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Em Espírito e Verdade

Daniel Salomão Silva

Jesus, em viagem de retorno da Judeia para a Galileia, necessitando descansar, fez breve
parada em Sicar, na Samaria, junto à fonte de Jacó, conforme narra o apóstolo João em seu
evangelho (Jo, 4:4-24). Entretanto, passar pela região da Samaria não era algo tranquilo para os
que vinham do sul. Samaritanos e judeus viviam em conflito religioso, de origem remota.
Acentuando a cisão entre eles, os hebreus da Samaria construíram para si um templo próprio,
para não terem de frequentar o templo de Jerusalém, e adotaram reformas em seu pensamento
religioso1. É neste contexto que Jesus vai dialogar com uma mulher samaritana, que vinha
retirar água do poço quando o encontrou.
Após anunciar simbolicamente quem era e o que viera fazer, Jesus é reconhecido como
profeta pela mulher que o ouvia impressionada, tanto pela profundidade de sua lição, quanto
pelo fato de conversarem, não sendo o Cristo samaritano. Sendo identificado por ela como
judeu, é então questionado sobre onde seria o verdadeiro local de adoração, se em Jerusalém ou
na Samaria. Estava dada a oportunidade para mais um belo esclarecimento do Mestre.
Gerd Theissen, teólogo e professor de Novo Testamento, identifica uma grande ruptura
nas formas de expressão simbólicas da religião judaica com o florescimento do cristianismo
primitivo:
Desde logo, as práticas rituais tradicionais (...) (os sacrifícios cruentos de animais),
foram substituídas por novos ritos (incruentos). Objetos tradicionalmente santos, como
templos, perderam sua “sacralidade”. (...) Os primeiros cristãos desenvolveram, na verdade,
um sistema de sinais sem templo, sem sacrifício, sem sacerdote (...) 2.
A origem desta nova postura está nas palavras e na vida de Jesus. À mulher samaritana
diz que mais importante que adorar a Deus em Jerusalém, na Samaria ou em qualquer outro
lugar, é adorá-lo em Espírito e Verdade (Jo, 4:23). Mas o que isto significa?
O Mestre afirma que Deus é Espírito (Jo, 4:23), ou seja, imaterial, sem necessidade de
sacrifícios, objetos e templos. Não está especificamente em lugar algum, mas em todos os
lugares permanece. Não exige subidas a montes, pois a verdadeira escalada que espera de nós é
a da evolução espiritual rumo à plena felicidade. Allan Kardec, ao estudar a questão da adoração
religiosa, recebe dos Espíritos o ensinamento de que a verdadeira adoração é a do coração3 e
que o ato religioso exterior só tem valor quando sincero e acompanhado de ação no bem 4.
Mais à frente, o apóstolo João registra mais uma das grandes máximas do Cristo:
conhecereis a Verdade e a Verdade vos libertará (Jo, 8:32). Mas de que Verdade Jesus falava?
Ao comentar este versículo, Emmanuel destaca que a verdade libertadora é aquela que
conhecemos na atividade incessante do Eterno Bem. E ainda, que conhecer (...) a Verdade é
conhecer o sentido da Vida5. O Mestre não falava das verdades “provisórias”, das nobres
conquistas científicas, de pontos de vista apaixonados, muitas vezes fontes de discórdia. Falava
do conhecimento verdadeiro, apenas intuído a partir das experiências de caridade, tão
enfaticamente exemplificada por Ele. Falava de sentido, de objetivo de vida, de felicidade como
conquista individual, mas absolutamente indissociável da preocupação com a felicidade do
outro. Em completa concordância com a visão espírita, Gerd Theissen, na obra já citada,
entende que a recomendação do amor ao próximo, superando em importância todos os
elementos religiosos exteriores existentes, torna-se central no cristianismo primitivo 6.
Enfim, adorar a Deus em Espírito é compreender o Criador não como uma pessoa ou algo
material, mas como Ser Transcendente, causa primária de tudo e inteligência suprema 7. É
desenvolver aquela fé divina, que tem plena esperança na tranquilidade futura e resigna-se às
vicissitudes que a vida apresenta, entendendo-as como mecanismos de crescimento espiritual.
Adorar a Deus em Verdade é experienciar a caridade diariamente e em qualquer situação,
conforme nos mostrou Jesus em cada segundo de sua existência física na Terra. Mais verdadeira
que qualquer postura religiosa exterior ou “certeza” científica, a caridade é a grande
recomendação do Mestre para os que buscam o Reino dos Céus, ou seja, a Felicidade.

1. KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. Tradução de Guillon Ribeiro, 112a ed.,
FEB, introdução, item III.
2. THEISSEN, Gerd. A religião dos primeiros cristãos. 1a ed., Paulinas, cap. 1, p. 16.
3. KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Tradução de Guillon Ribeiro, 76a ed., FEB, q. 653.
4. KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Tradução de Guillon Ribeiro, 76a ed., FEB, q. 654.
5. XAVIER, Francisco Cândido. Pelo espírito Emmanuel. Fonte Viva. 23a ed., FEB, cap. 173
6. THEISSEN, Gerd. A religião dos primeiros cristãos. 1a ed., Paulinas, cap. 1, p. 20.
7. KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Tradução de Guillon Ribeiro, 76a ed., FEB, q. 1.

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