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Teresa de Calcutá: uma vida de exemplos

2a parte
Daniel Salomão Silva

Dificuldades burocráticas, materiais ou mesmo físicas já faziam parte da vida de Teresa.


Convencer as autoridades da plausibilidade de seus projetos não foi tarefa simples. Conseguir recursos e
instalações para o início de suas atividades também não. A madre, já com cerca de 50 anos, também já
não tinha as mesmas condições físicas do início de seu apostolado. Entretanto, nada disso interrompia sua
caminhada. O que, todavia, surpreendeu muitos de seus admiradores quando da publicação de suas cartas
particulares1, foi a descoberta de seu “mais profundo segredo”.

Por favor, reze especialmente por mim para que eu não estrague a obra Dele e para que Nosso
Senhor se mostre, pois há dentro de mim uma escuridão tão terrível, como se tudo estivesse morto. Tem
sido assim mais ou menos desde o momento em que dei início à ‘obra’. Peça a Nosso Senhor que me dê
coragem.2

Assim, finalmente, em 1953, Madre Teresa revelava ao arcebispo, que lhe era autoridade
espiritual, um sentimento que já a incomodava há anos. Em sua humildade temia atrapalhar a obra, que
atribuía ao Cristo, ao perceber dentro de si uma angústia que chamava de “escuridão”. Por que, diante de
tão belo trabalho, de tamanho amparo espiritual que com certeza recebia, sofria intimamente? Em
diversas cartas a outras autoridades religiosas, por anos, voltou ao tema. Já com 85 companheiras de
trabalho, 52 centros de atendimento em Calcutá e propostas de iniciar fundações fora desta cidade, Teresa
ainda se via em angústia. A fé em seus propósitos, porém, era tamanha, que até mesmo essa dor oferecia
“com toda simplicidade a Deus pelas suas intenções como prova de gratidão” 3.
A revelação de sua “escuridão”, longe de ofuscar a grandeza desse espírito, torna-o ainda mais
exemplar a todos aqueles que buscam o trabalho no bem. Paulo de Tarso, em sua epístola aos Romanos,
também declarou as dificuldades íntimas que o acompanhavam em todo o período em que trabalhou
exaustivamente pelo Cristo: porque não faço o bem que quero, mas o mal que não quero esse faço. Ora,
se eu faço o que não quero, já o não faço eu, mas o pecado que habita em mim. Acho então esta lei em
mim, que, quando quero fazer o bem, o mal está comigo (Rm, 7:19-21). O esforço em domar as más
tendências em Simão Pedro, Maria de Magdala, Santo Agostinho e outros é claro em diversas passagens
de suas vidas exemplares. Jesus, ao convocar todos esses corações a sua obra, não esperava espíritos já
perfeitos, mas que exemplificassem a busca da perfeição à qual convidou toda a humanidade.

Na minha alma sinto justamente essa dor terrível de perda, de Deus não me querer, de Deus não
ser Deus, de Deus não existir realmente (Jesus, por favor, perdoa as minhas blasfêmias; disseram-me
que escrevesse tudo). (...) Para que trabalho? Se não houver Deus, não pode haver alma. Se não há
alma, então, Jesus, também tu não és verdade (...)4.

Talvez a mais forte das declarações de Madre Teresa, esta carta de 1959 atendia a um pedido de
seu confessor para que escrevesse a Jesus relatando seu drama pessoal. Teresa tinha sede de Deus, mas
não o encontrava em si mesma. Interessante também é o questionamento filosófico que se propõe. Qual
seria o sentido da prática da caridade sem Deus, sem a imortalidade da alma, sem a existência de uma
realidade espiritual que tudo rege? Para Paulo de Tarso, sem a crença na imortalidade da alma o trabalho
pelo Cristo é sem proveito: se, como homem, combati em Éfeso contra as bestas, que me aproveita isso,
se os mortos não ressuscitam? Comamos e bebamos, que amanhã morreremos (1Co, 15:32). E
corroborando este pensamento, Allan Kardec afirma que com efeito, sem a vida futura, nenhuma razão de
ser teria a maior parte dos seus [de Jesus] preceitos morais, donde vem que os que não creem na vida
futura, imaginando que ele apenas falava na vida presente, não os compreendem, ou os consideram
pueris5. Atestando a importante contribuição do Consolador Prometido quanto a este aspecto, Kardec
ainda diz que, com o Espiritismo, a vida futura deixa de ser simples artigo de fé, mera hipótese; torna-se
uma realidade material, que os latos demonstram, porquanto são testemunhas oculares os que a
descrevem nas suas fases todas e em todas as suas peripécias (...)6.
Importante é destacar, porém, que esta e todas as demais cartas de Madre Teresa sempre
terminavam com a reafirmação de seu compromisso com a caridade. Sua “escuridão” jamais triunfou. Em
O Evangelho segundo o Espiritismo, há uma mensagem, intitulada “A melancolia”, que possivelmente
trata da situação em questão.

Sabeis por que, às vezes, uma vaga tristeza se apodera dos vossos corações e vos leva a
considerar amarga a vida? É que vosso Espírito, aspirando à felicidade e à liberdade, se esgota, jungido
ao corpo que lhe serve de prisão, em vãos esforços para sair dele7.
A felicidade plena a que Teresa aspirava não podia ser encontrada na Terra. Os frutos de seu
trabalho, que naturalmente traziam paz a seu coração na maior parte do tempo, só seriam amadurecidos
em outro momento. O espírito François de Genève, autor da mensagem, recomenda resistência a este
desânimo, recomendando não esperar deste mundo a satisfação de nobres aspirações, inatas no espírito de
todos os homens. Se no cumprimento das tarefas na vida física sobre vós desabarem os cuidados, as
inquietações e tribulações, sede fortes e corajosos para os suportar.
É como agia Madre Teresa. Em 1960, a convite de um grupo de mulheres católicas de Nova York,
fez sua primeira de muitas viagens para fora da Índia. Seu nome já era uma referência mundial e, mesmo
resistindo o quanto pode a qualquer destaque pessoal, julgou importante divulgar pessoalmente sua
proposta à humanidade. Diante dos diversos prêmios que recebeu, manteve a postura modesta, sempre os
atribuindo ao trabalho realizado pela congregação.
Em 1975, após 25 anos de constituição da congregação, as Missionárias da Caridade já eram mais
de mil, espalhadas por 85 casas em 15 países. Já tendo aprendido a conviver com sua “escuridão”,
preocupava-se apenas em levar luz aos que sofriam.

Que Ele faça comigo o que quiser, como Ele quiser, por quanto tempo quiser. Se a minha
escuridão é luz para alguma alma, mesmo se não for nada para ninguém, sou perfeitamente feliz em ser a
flor do campo de Deus8.

A felicidade que podia atingir na Terra conseguia alcançar. Não há salário maior para o bem que
se faz do que o próprio bem que se faz. No fim da década de 70, os pensamentos que a angustiavam desde
1950 davam lugar a um estado de serenidade e paz 9. Em 1979 foi novamente eleita superiora geral da
congregação, mesmo já querendo trabalhar apenas como simples irmã de caridade. O prêmio Nobel da
Paz veio nesse mesmo ano. Seu discurso, ao receber a famosa distinção, não poderia tratar de outro tema
que não o convite à busca dos pobres, atendendo-os materialmente, mas, principalmente, espiritualmente.
Fossem os pobres da África, fossem os parentes mais próximos, todos eram carentes de algo que todos
podem dar: afeto. Em sua opinião, a grande destruidora da paz era a falta de afeto, de atenção e de carinho
entre as pessoas10.
Em seus últimos dezesseis anos de vida física, já com a saúde bem frágil, Teresa permaneceu à
frente da congregação, dedicando-se com fervor à instituição dos ramos masculinos de seu projeto. Em
1979 foi criado o primeiro ramo dos Missionários da Caridade. Na década de 80, bem como nos
primeiros anos da década de 90, prosseguiu com as mesmas atividades. Cumpria os horários, executava
com as outras irmãs as tarefas mais simples. Seus últimos dois anos foram acompanhados de muitos
problemas de saúde, naturais de sua idade avançada. Recuperando-se de uma doença quase fatal em 1996,
ainda permaneceu à frente da congregação até março de 1997, quando foi eleita a irmã M. Nirmala Joshi
para sucedê-la.
Em 5 de setembro, às 21h30, em Calcutá, Madre Teresa relatou dores nas costas e dificuldades
para respirar. Inesperadamente faltou energia elétrica. As duas fontes de energia auxiliar da instituição
também falharam. Apesar de atendida por um médico, nada podia ser feito, pois não era possível ligar o
respirador. Ironicamente, em meio à escuridão material, deixava o corpo físico aquela que muita luz havia
trazido ao mundo.
Seus 87 anos de vida física são riquíssimos de exemplos. Talvez o maior deles seja o de uma
mulher que, apesar das angústias e imperfeiçoes que identificava em si mesma, não deixou de se esforçar
pelo bem do próximo, conforme a inesquecível recomendação de Jesus. Teve dúvidas, receios,
inseguranças, mas que jamais abalaram sua confiança na proposta cristã. Não é necessária perfeição para
iniciar qualquer trabalho, pois o trabalho no bem é o único mecanismo de alcançá-la. Importante é
lembrar que, segundo Kardec, reconhece-se o verdadeiro espírita pela sua transformação moral e pelos
esforços que emprega para domar suas inclinações más11.

1. KOLODIEJCHUK, Brian. Venha, seja minha luz: os escritos privados da santa de Calcutá. 3a ed., Petra
(todas as informações sobre Madre Teresa neste artigo têm por fonte esta obra).
2. ___________________, p. 159.
3. ___________________, p. 194.
4. ___________________, p. 201.
5. KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. Tradução de Guillon Ribeiro, 112 a ed., FEB, c. 2,
i. 2.
6. ___________________, i. 3.
7. ___________________, c. 5, i. 25.
8. KOLODIEJCHUK, Brian. Venha, seja minha luz: os escritos privados da santa de Calcutá. 3a ed.,
Petra, p. 219.
9. ___________________, p. 280.
10. ___________________, p. 297.
11. KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. Tradução de Guillon Ribeiro, 112a ed., FEB, c.
17, i. 4.

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