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D. PAULO DELATTE, O.S.B.

A CONTEMPLAÇÃO DO INVISÍVEL
Tradução portuguêsa de Lydia Christina Fróis da Fonseca,
do original francês Contempler finvisible, publicado por Les
Édition·s Alsatia, Paris, 17, Rua Cassette.

P O D E-S E I M PRI M I R
São Paulo, 15 de janeiro de 1966
Pe. DR. JOÃO ROATTA, S.S.P.
Censor

IMPRIMA-SE
São Paulo, 29 de janeiro de 1966
t D. JOSÉ LAFAYETTE ÃLVARES
Vigário Gerai

São Paulo, 1966


PREFACIO

As páginas que formam o presente fascículo


da coleção "Temas espirituais", apresentam o texto
de um retiro pregado, em 1889, às monjas da
Abadia Santa Cecília, de Solesmes, por Dom Pau.lo
Delatte. Nessa ocasião, êle era apenas prior de
seu mosteiro. Mas, seguindo-o na exposição de
seu pensamento, é fácil verificar que já se achava
em plena posse de uma doutrina que haveria de
ensinar doravante, sob diversos modos, na ver­
dade, mas sempre com o l mesmo vigor e a mesma
justeza na formulação, por tôda a extensão de seu
frutuoso superiorato. E tão pura a fonte de seu
haurir, que mais de um leitor se surpreenderá di­
zendo consigo mesmo, ao meditar as páginas da
presente obra: "Que plenitude! que acento de ver­
dade,· que conscientização de riquezas, de cujo valor
eu nem sequer sttspeitava e que no entanto trazia
dentro de mim! Jamais avaliara eu, até então, a
sua amplitude, a sua fecundidade no comporta­
mento de uma vida que sinceramente se deseja em
união com Detts".

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A primeira vista, pode causar surprêsa a re­
produção de um texto pronunciado há tantos anos.
É fácil conceber que se volte rigorosamente aos
grandes clássicos cujo pensamento não tem idade
e desafia o tempo. Mas, para o público cristão
de nossos dias, em que tanto evoluíram as preo­
cupações, as exigências da vida, a orientação dos
pensamentos, haverá urgência em lançar temas
espirituais que já não parecem prender a atenção
de nossos contemp-orâneos, cujas idéias tomam
outros rumos? Não se acha a tendência atual dos
espíritos estimulada por outros objetos e não se
vê chamada a entrosar-se em outros domínios mais
concretos, mais acessíveis, porque de mais eviden,te
utilidade imediata?
Poder-se-ia atender a tais objeções. São liu­
manas. Refletem, a seu modo, a mentalidade de
uma época em que só a eficácia ou o rendimento se
impõem como absoluto. Dom Delatte, certamen,te,
não seria dessa opinião. Com efeito, é êle quem
escreve: "São precisamente essas verdades primei­
ras, fundamentais, que devem ser estudadas com
a maior atenção, porque são as mais ricas em
conseqüências práticas". Ademais, não vemos ao
nosso redor almas, cada vez mais numerosas, que
compreenderam a seriedade de seu compromisso
cristão e que querem voltar às fontes da vida es­
piritual para aprofundar suas realid.ades mais ele­
vadas, para perscrutar os seus alicerces, a fim de
corresponder ao Senhor com uma fidelid-ade a tôda

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prova? Tais almas, assim que absorvidas nesta
cativante leitura, reconhecerão ao primeiro relance
que se movem, através destas págin.as de admirá­
vel profundidade, numa atmosfera que raramente
se encontra, em nossos dias, nos escritos relativos
.ao comportamento espiritual. Penetramos em um
mundo de grandeza, de serenidade, de exigências
também, pois nada é fácil qu.ando se trata de rea­
lizar um ideal tão severo quanto o que se impõe
ao cristão. Dom Delatte, tendo contemplado lon­
gamente as realidades sobrenaturais que nos con­
vida a considerar asszduamente com os olhos da
fé, afirmava: "Olhai, mas olhai com todo o vosso
olhar e com tôda a vossa alm.a,· olhai como os an­
jinhos de Rafael, que se abismam na luz. A beleza
sobrenatural, que com tanta simpatia fixamos,
entra pouco a pouco em nós, penetra-nos e trans­
figura-nos. Em face da luz, tornamo-nos luz. Dei­
ficamo-nos e tornamo-nos 1 cada vez mais semelhan­
tes àquele cuja glória contemplamos".
Seria preciso mais para convidar-nos a entrar
em contato com êsse pensamento, a alimentar-nos
com êle, a abanhar-nos em tal luz?

* * *

O a·utor destas páginas permite-nos aspirar o


perfume da vida mQnástica. Elas constitu.em a
emanação puríssima, diáfana de tal vida.

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'

Dom Paulo Delatte ( 1848-1937) foi o terceiro


abade beneditino de Solesmes. Nascido em .leu­
mont (norte), a 27 de .março de 1848, foi orde­
nado sacerdote a 29 de junho de 1872. A eleva­
ção de sua inteligência e a excepcional lucidez
de seu espírito destinavam-no ao ensino itniversi­
tário. De fato, muito jovem ainda - estamos em
1879 - foi convidado a ocupar a cátedra de fi­
losofia na Universidade Católica de Lille, ainda
no alvorecer de uma brilhante história. Em 1882,
conquistaria o grau de doutor em teologia, após t1.ma
defesa de tese das mais brilhantes. De tal brilho foi,
que ecoou ainda nos anais da Universidade, cinqüen-­
ta e cinco, anos mais tarde, quando o seu Reitor,
Mons. Lesne, evocava, ao morrer Delatte em 1937, a
lembrança dêsse mestre no qual a Universidade de-­
positara tão grandes esperanças.
Assim confirmado o valor inteletual do jo­
vem professor, restava-lhe embrenhar-se resolu.ta­
mente num caminho para o qual se achava lza­
bilitado, de maneira inequívoca. Para gran,de
surprêsa de seus colegas, alguns meses depois de
tão feliz estréia, ia bater à porta do mosteiro
São Pedro de Solesmes ( a 28 de setembro de 1883),
onde continuava tão viva a memória de Dom Gué­
ranger ( 1805-1875). Ingressou então na obscuri­
dade do claustro. E os anos de formação monás­
tica deram a êsse caráter tão generoso, tão ple­
namente entregue desde o início, o remate de seu
fulgor definitivo. Quando êle escrever: "E pre-

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ciso contemplar Deus, como se tudo o mais não
existisse", traduzirá sua convicção profunda.
O Senhor não devia deixá-lo por muito tempo·
na sombra que ardentemente desejara. As qua­
1

1
lidades de alma que testemunhava, a seriedade
de seu comportamento cotidiano, a autenticidade
de um dom de si mesmo que transparecia sem·
reserva, tinham de atrair a atenção de seu abade,
Dom Couturier. Tendo professado a 21 de mar­
ço de 1885, foi nomeado prior três anos depois e,
a 9 de novembro de 1890, tornava-se abade de
seu mosteiro. Deveria desempenhar êsse cargo até'
1921, data em que renunciou; os males da idade
( contava 73 anos) já não lhe permitiam enfrentar
as múltiplas dificuldades que pode apresentar o·
govêrno de uma comunidade tão numerosa e flo-­
rescente quanto a de Solesmes. Entrou então no·
silêncio; e, durante os dezesseis anos que lhe res-­
tavam de vida, viveu em plenitude o que dizia,
muito jovem ainda, às monjas de Santa Cecília:·
"A que se atém as vitórias de Deus? À agitação?
Oh, não! Atém-se à calma, ao silêncio, à oração.
Jamais é o homem tão poderoso quanto ao diri-•
gir-se diretamente a Deus". A 20 de setembro de-
1937, extinguiu-se êle na paz, rodeado pela vene-­
ração .de seus monges que lhe conservam a me­
mória qual bênção do Senhor sôbre um mosteiro·
cujas vicissitudes foram tão grandes. Jamais pa­
receu tão adequada a palavra da Escritura quanto
ao grande abade de Solesmes:· "Alcançou glória,

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vivendo com simplicidade no meio de sua nação . . .
como sol brilhante, assim resplandecia êle no tem­
plo do Altíssimo ... como a o·liveira que brota ...
-quando subia ao altar santo, fazend . o brilhar as
vestiduras sagradas. . . de pé junto do altar, cir­
cundado pelos irmãos quais rebentos dos cedros
do Líbano. . . Então, descendo, levantava as suas
mãos sôbre todo o congresso dos filhos de Israel,
para dar glória a Deus com seus lábios, e para se
gloriar no seu nome" (Eclo 50).

* * *

Dom Delatte estuda aqui os três grandes te­


mas de tôda vida espiritual. A p·artir de suas re­
flexões, deduzirá as exigências que se lhe imporão
no caminho da própria perfeição. Ele o diz sem
.rodeios e suas palavras provocam uma séria in­
trospecção, à qual ninguém pode fugir sob pena
;de instalar-se na mediocridade: "Em minha opi­
nião, o maior castigo que -o Senhor pode infligir
a uma alma, é o de deixá-la tranqüila na sua vul­
,garidade, eqüidistante .do bem e de sua própria
fraqueza". Ele vai, portanto, colocar-nos diante
.do "Invisível", suscitar um leal esfôrço no sentido
.de profundo exame, pois "é impossível, em face
das realidades divinas, deixar de experimentar ime­
.diatamente o desejo de tornar-se verdadeiro".

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E quais são essas realidades? Resutnem-se em
três: Deus, Jesus Cristo, a Igreja.
Deus, porque "a diferença entre as almas se
acha exclusivamente no grau de atenção, de co­
nhecimento, de consciência íntima de cada uma
perante Deus". "Quando se quer conhecer uma
alma, peYigunta-se-lhe: 'Qual é a tua oração?' o que
equivale a dizer: 'Que és em face de Deus? De
que maneira o consideras?' "
Jesus Cristo, porque êle é "Rei pelo espon­
tâneo e jubiloso sufrágio de nosso amor. Nós o
elegemos, escolhemos, e foi por um sufrágio abso­
lutamente livre que o chamamos a reinar sôbre
nós". - "Vivemos face a face com o Cristo".
A Igreja, porque depositária do espírito de
Cristo. Porque, "sem a J_g:rgj�q, obra do Senhor
1
acabaria por achar-se comprometida e descoroadQ� •
--!-'"
�-.:...--.:-- ___ :.;______ --- . . ..-

Con'lO deixar desubscrever a - -verdaàe·


------ciue·: ·-�vtd.�-11:,
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desaparecimento"?
�guid�; �tr�-t�--,.--��=��b�de�d���-s;zesmes do
-�,
que denomina "o edifício de nossa vida sobrena­
tural", procedendo ao minucioso exame de seus
alicerces fundamentais. Distingue três: nossa -.:
con-
·---�=--�
dição de criaturas - de çriaturas in_telig.en�-0.�
Íi1!_� - de �.d�l2�!1:!· E difícil ser mais
profundo, mais verdadeiro, mais persuasivo. Cer­
tas páginas são emocionantes; o acento de since­
ridade e a convicção co-m que se apresentam os

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ensinamentos, fazem do conjunto um autêntico
espécime do que pode realizar uma teologia vi­
vida por um contemplativo. Efetivamente, é im­
possível resistir ao vigor e veracidade de certas
afirmações como as seguintes: "Sempre que um
s�g!!,__k,:a da_5. �o_n�ições e�i_gj_das E�-�_§(!_(!_-�iÜ,;
reza -e viola tais leis, ainda _ _q1!,e pqrciafrnente, há
áésõrdem, desunião, di;s��âncict:, s.pfrim�nto'��---..:::_
·n-üm se·;ç.· - ·-inteligente é um ser 4�s�_J!_alizadq, que
sai de si mesmo". - "A liberdade perfeita dos filhos •

de Deus não é o princípio, e sim a '!:.�com}!.�_1!:sa que


, ..... -- ...... - , - _.A.......... . ... ......_,_ __•
• • .

é Qreciso mere'?er".
Que belos pensamentos, cinzelados, trabalha­
dos como pedras que se deseiam engastar num
escrínio e nas qtlais se vê brilhar o raio do sol!
Quantas reflexões que causam impacto e deixa1n
o leitor pensativo! Porque provocam um salutar
exame, um esfôrço de lucidez para que, à luz de
tais palavras, se estabeleçam na alma a orde1n e
a limpidez. Basta citar aqui duas dessas suges­
tões para adivinhar até onde podem conduzir, desde
que acolhidas com um mínimo de humildade: "Não
há meio têrmo entre o apóstolo e o apóstata: oit
se é um, ou outro. E forçoso escolher". - ':.4.
Igr�iO:.. �ó pe_r,rnanece pelg��a.rztt4q,de de seus filhos".
•. ·--- Seriã-de desejar e cada · 1eitor···-aestas··· arden- �q,u
tes páginas compusesse, em seu benefício pessoal,
um florilégio dos pensamentos que mais o tiverem
impressionado e comovido, por �lhes sentir a au-
tenticidade. Poderia assim recordá-los cotn fre-

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qüência, aprofundando-os e transportando-os em
seguida à própria vida. Dom Delatte pressentira
a eficácia de sua palavra, ao traduzir nos seguintes
têrmos a emoção que o dominava perante seu au­
ditório: "Quanto maiores as realidades, quanto
mais elevadas, tanto mais merecedoras de ocupar
n,.ossa inteligência".
J
* * *

Através destas páginas, Dom Delatte revela..se


não apenas um teólogo avisado, seguro, penetrante,
mas também um contemplativo que se deteve lon­
gamente a aprofundar, à luz do dom de sabedoria,
o mistério de Deus e suas ramificações .. em nos­
sas vidas pelo doni de seu Filho, pela santa ins­
tituição da Igreja. Principalmente aqui, percebe-se
a infinita superioridade do monge que, após ter
estudado, itzvestigado a sua matéria teológica, sou­
be deixá-la amadurecer ao sol do Espírito Santo,
no decurso de longas e silenciosas horas de oração,
11a franqueza de uma intimidade vivida com Deus,
cztjos 111.istérios dever.ia balbuciar. Êle tinha, aliás,
plena consciência da fraqueza do espírito lzumano,
por penetrante que seja, para traduzir tais pro­
fundezas: "Meu Deus, exclamava êle certo dia, jq.-
�-.-9:.�YQ_s�o r_?,spe_ito___ _ .é.: __tn,fi!l-_i.tqmente ______doce, e �tfe-
sesperador também! Nem o nosso coração se acha
..... ,.___ oi

à altura do qite fizestes, nem a nossa língua à al...


·-·----�--

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tura do nosso coração. As palavras não foram
feitas para êsse fim. Todavia, possa eu fazer com­
preender, .a quantos me escutam, quão próximo
estais, quão próximo de nossas mãos, de nossos
lábios, de nossos corações/ 11
Seria da maior conveniência que a leitura de
tão densas páginas se terminasse em oração. Mais
de um leitor achar-se-á insenszvelmente levado a
ela, sem precisar de um esfôrço ao qual talvez
não esteja acostumado. Sentirá até surprêsa de
se ter embrenhado nesse caminho, impelido por·
uma necessidade íntima que lhe causará assom-­
bro, mas que o reconfortará poderosamente. E,
fechando êste livro, repetirá consigo as impressio­
.nantes palavras com que Dom Delatte traduz a
sua mais sincera convicção: "Creio que esta dou­
trina comunica às almas1 de maneira singular, uma
paz, uma alegria, uma firmeza, uma serenidade
absolutamente inalteráveis".

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I

DEUS

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No c'}pítulo 116 da História Lausíaca de Pa­
ládio, coletânea de lendas sôbre os padres do de­
serto, conta-se que um dia o abade Bessário foi
visto na solidão por um príncipe que muito o
conhecera no mundo. Surpreendido por vê-lo as­
sim na pobre túnica, com o rosto desfeito pelas
macerações, disse-lhe o príncipe: "Sois realmente
vós, Bessário? Quem vos pôs 11esse estado? Quem
vos despojou de tal 1naneira?" - E o venerável
abade, tirando do seio um rolinha que continha
o Evangelho, respondeu: "Eis o que me despojou:
Hoc, inquit, me exuit".
Que significa isso? Duas coisas: primeiro, que
a vida monástica é voluntária 1, sem dúvida; mas,
acima de tudo, que é uma vida de fé. Um roli­
nha, embora contendo as mais sagradas palavras,
seria insuficiente para despojar um homem: é pre­
ciso que tenhamos fé nesse rolinha e em suas ben­
ditas palavras. O que dizia Bessário, com a mes-

1 As palavras "vida monástica" aparecem aqui pela primeira vez.


Insistimos em dizer, conforme sugeriamos no prefácio, que podem ser,
de cada vez, substituídas p-elas palavras: "vida cristãn . Não pode haver
hesitação alguma em fazê-lo. A vida monástica nada mais é do que a
vida cristã vivida em plenitude e tendendo ao perfeito desabrochamento.
Uma fervorosa alma cristã logo o compreende rã, apropriando-se dessa
doutrina como se fôra sua. Seu instinto sobrenatural não a engana.

2 - .A. contemplação ... 17


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ma razão que êle podemos e devemos dizer: en­
tramos na vida monástica porque quisemos, e, ao
entrarmos, fizemos um ato de fé. Mas, se a nossa
vida monástica teve início por êsse ato de fé, e
indispensável, segundo a lei universal que exige
só se mantenham e prosperem as coisas por um
contato contínuo com os mesmos princípios q_ue
lhes deram origem, é indispensável, digo eu, que,
depois de t�m��-�C?.. _p�la f�, peJa fé se continue.
Eis o que me sugeriu o pensamento de chamar
vossa atenção para as realidades invisíveis, exte­
riores em relação a nós, e também para outras
realidades interiores que devemos meditar. Co­
mentarei uma palavra do apóstolo São Paulo, que
pode ser considerada a fórmula da nossa vida:
"não atender às coisas que se vêem, mas sirn às
o r�·ti�� -;�
q�ê,. se �-��_vêe111/'- (2C�� 4,18). Todo
acha compreendido nestas breves palavras4 Trata­
-se apenas de fazermos juntos uma viagem de ex­
ploração através as realidades sobrenaturais.
Deixarei de lado tôda retórica e as divisões
rigorosas; talvez pareça não haver grande ordem
no que vos direi; espero contudo que haverá um
secreto encadeamento. Mas, se destas palavras
pudermos receber um pouco de luz e de energia
para o bem, será mais uma demonstração de que
o Senhor pode ser glorificado nas palavras dos
que balbuciam: "Da bôca dos infantes e das tenras
criancinhas tirastes um louvor" (SI 8,3).

18
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Trata-se das coisas sobrenaturais, das reali­
dades sobrenaturais. Mas quais são essas ver....
dades sobrenaturais que se devem dizer às almas.
monásticas? As mesmas que se deve1n dizer ao 1

mundo inteiro. Ora, só há três coisas que dizer·


ao mundo, a fim de transformá-lo: Deus, Jesus:
Cristo, a .Igreja. Se êsse mundo, que parece en..,.
vôlto em 1trevas, compreendesse o que se encerra.
nas três palavras: Deus, Jesus Cristo, a Igreja,.
achar-se-ia imediatamente transfigurado.
O que o mundo precisa saber, estudá-lo-emos:
juntos, pois a vida monástica é o desabrochamento,.
o desenvolvimento perfeito da vida cristã: o que·
convém aos cristãos, a nós convém, monges e·
mon3as.

Deus, realidade suprema do 1nundo,

Deus, eis a realidade primeira, a mais impor-·


tante das realidades sobrenaturais, a única. É ao-,
redor dessa realidade única que tudo gravita. J a--­
mais se conseguirá descentralizar a criação; e o,
centro da criação, é Deus. A eternidade inteira.
dêle se ocupa e vive diante dêle. f:le tudo ul-­
trapassou pelos anos sem fim de sua eternidadeº.
No momento em que falamos a seu respeito, em.
que balbuciamos algumas palavras em seu louvor,.
sabemos que, em sua eternidade, inumeráveis in-·
teligências, incomparáveis por sua beleza natural

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e sobrenatural, dêle se ocupam exclusivamente.
Sabemos que os três primeiros côros dos anjos,
os que são puramente contemplativos, formam
uma guarda de honra a seu redor, ocupados uni­
camente em sua vida imortal da Eterna Liturgia.
Sabemos que, entre os espíritos celestes, há
os que se aplicam às coisas exteriores pelo mi­
nistério que devem exercer sôbre a criação; mas
sab·emos também que o exercício de tal minis­
tério não os impede de prestarem constante ate11-
ção a Deus, pois começaria o inferno, para êsses
espíritos bem-aventurados, no dia em que sua in­
teligência deixasse de estar solícita em Deus.
Enfim, nem mes1no os anjos malditos deixam
de ocupar-se de Deus. Se fôra possível apagar da
inteligência dos anjos decaídos a lembrança de
Deus, extinguir-se-ia o inferno, pois que êste con­
siste na ocupação desesperada a .respeito de um
Deus que se não pode atingir.
A criação física, material, em sua totalidade,
também gravita em tôrno de Deus: "Fogo, gra­
nizo, neve, gêlo, ventos tempestuosos, que obede­
cem à sua voz" (SI 148,8).

Deus no centro da vida dos homens

E a humanidade? Ah! quando chegamos à


humanidade, há distinções a estabelecer: contam­
-se por milhões os sêres humanos espalhados pela

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superfície do globo. Que os distingue? A côr, a
latitude, o clima, as fronteiras geográficas, as ci­
vilizações? Não. O que os distingue, é o conhe­
�imento que têm de Deus e a atitude que tomam
diante dêle: neste caso ainda, Deus é o centro.
Entre os homens, uns não conhecem a Deus
e não se voltam para êle. Aos milhões deve con­
tar-se a densa população da China e da índia, paí­
ses onde não se conhece Deus; e, no entanto, essas
almas foram remidas pelo Sangue de nosso Senhor
Jesus Cristo. Há também as populações apenas
conhecidas da África Central; ignoram a existência
de Deus, e, todavia, por tôdas essas almas morreu
nosso Senhor Jesus Cristo. e Deus é para elas
o Deus desconhecido!
Outros há que conhecem Deus, mas não que­
rem, de modo algum, voltar-se para êle, não con­
sentem e1n reconhecê-lo. Na sociedade cristã, onde
se estabeleceu a civilização sobrenatural, é possível
conhecer a Deus sem querer dar-lhe atenção: "Não
quis instruir-se para fazer o bem" (SI 35,4 ). -
"Abaixaram obstinadamente os olhos para a terra"
(SI 16,11). Os que têm seus olhos obstinadamente
fixos na terra, não consentem em olhar para Deus:
"Não queremos que reine sôbre nós" (Lc 19,14 ).
Não é a ignorância: é a incredulidade, o protesto
contra Deus, o ódio a Deus. "Vai-te, Majestade,
não te queremos. . . O que me interessa, é a mi­
nha rua, o meu círculo, a minha corrupção".

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Há outros ainda que podem pertencer a uma
civilização cristã, que podem conhecer a Deus; só
que pretendem não haja necessidade de pensar
nêle: "Deus, é demasiado grande. Tomando-o a
.sério, invadiria tudo. Tal nome não deve ser pro­
nunciado. Além disso, talvez seja apenas um nome,
•O resumo de nossas concepções mais elevadas, o
sublime de nosso pensamento, a categoria do Ideal.
Em todo caso, se existe, é o Incognoscível. Per­
tence a uma região superior à nossa experiência e
ao nosso pensamento: suprimamo-1.o. Deixemo-lo
de parte. Desanimemos a humanidade, aconselhe­
mo-la a que não mais se ocupe disso. O fenômeno,
sim, pode ser visto, sentido, apalpado, é ac�ssível;
mas o Absoluto, não! é um fantasma ou realidade
inacessível!"
Conheceis a tendência da filosofia para desa­
nimar o homem de ocupar-se de Deus. E, toda­
via, Deus é íntimo de 11ossa razão. E nosso co­
ração só deixará de bater para êle quando deixar
realmente de bater. Inútil tentativa, pois, se o
homem pudesse despre11der-se de Deus, cessaria
de existir.
Já estudastes a história do paganismo? Acaso
já pensastes nesse fenômeno? Não há espetáculo
mais doloroso que o da humanidade decaída à
qual se prometera um Redentor. Essa humani­
dade, arrastada durante quarenta séculos aos al­
tares do demônio, apresenta uma cena que, aten­
tamente considerada, seria causa de inexprimível
compaixão.
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No paraíso terrestre, antes da queda, o homem
entretinha-se familiarmente com Deus. Expulso do
paraíso, não foi possível apagar de sua inteligência
e de seu coração o nome e a lembrança de Deus.
Só que se arrastou tal nome a tôdas as luxúrias
e crueldades. O demônio apoderou-se do profun­
do amor que o homem consagrava a Deus, e sa­
bemos o que lhe mostrou para tornar-lhe odiosa
a face de Deus. Da mesma maneira que se cons
trange um pobre sequioso a beber ág.uas impuras,
assim foi o homem arrastado progressivamente por
um caminho de sangue e impureza. Sabeis o que
fazia papel de Deus no paganismo : a luxúria, a
crueldade', a impureza, as obscenidades mais re­
voltantes e mais ridículas. Diante de tais altares
curvou-se a humanidade inteira. Mas a tal ponto
se achava enraizada no coração dessa pobre hu­
manidade a lembrança de Deus, tal era a neces­
sidade das almas e a impossibilidade de despren­
dê-las dêsse amor de Deus, que jamais se conse­
guiu destruí-lo.
Não 1'1á nesses fatos uma dupla demonstração,
tanto do ódio diabólico contra o homem, quanto
das profundezas a que desceu o amor de Deus
no pensamento e no coração humano? Durante
êsses quarenta séculos, jamais se encontrou um
homem que, em face de tais desregramentos, dis­
sesse: "Deus, isto? Deus, esta luxúria? Deus, esta
impureza? Sejamos corajosos e retiremo-nos".
Jamais ocorreu ao paganismo tal pensamento: é

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que, na verdade, jamais se conseguirá apagar do
coração do homem o nome e a lembrança de Deus.
Desde o mistério da Encarnação, sucede estra­
nho fenômeno. Não parece que, antes da vinda
de nosso Senhor Jesus Cristo, tenham existido
povos verdadeiramente ateus. E hoje encontram­
-se homens que negam a Deus. Qual a causa?
Têm-se dado muitas explicações. Prefiro dizer
simplesmente que, após a Encarnação, desde que
o Senhor veio colocar-se no centro do mundo, a
noção de Deus parece menos protegida q·ue ou­
trora. No mistério da Encarnação, Deus revelou­
-nos de maneira incomparável a sua existência.
Mas, pelo próprio fato dessa afirmação solene,
parece ter diminuído as garantias de outros tempos.
Que espetáculo, ver rejeitadas, em nossa civi­
lização cristã, essa lembrança, essa noção e essa
compreensão de Deus, tão profundamente radica-­
das no coração do homem que, para destruí-las,
é preciso destruir tudo na inteligência e no co-­
ração do homem! E preciso destruir a fé: não
basta. E: preciso destruir a Igreja: ainda não é
tudo. É preciso aniquilar a própria razão.
Por êsse sintoma, podemos reconhecer o que
se passa a nosso redor, em filosofia: diremos ape­
nas o rigorosamente necessário.. Sabeis por que
há, em nossos dias, filósofos que não concordam
em admitir as noções mais elementares, noções in­
dispensáveis à nossa inteligência, as de substância
e de causa? Por quê? porque, de conclusão em

24
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conclusão, desde que eu admito a existência de
uma substância material, a madeira que toco, o
ferro que apalpo, terei de chegar logicamente a.
admitir a existência de uma substância superior.
Chegarei forçosamente à afirmação de uma subs­
tância infinita, a suprema fôrça que é Deus. E é·
precisamente isto o que não se quer a preço algum.
E, pelo mesmo processo lógico, a partir do mo-­
menta em que admito uma noção de causa, devo­
irresistivelmente chegar a reconhecer a existência
da causa suprema, donde tira1n energia e virtude
tôdas as demais. Vêdes portanto que, para ar-­
rancar Deus do nosso coração, é preciso arran-­
car-lhe a razão e chegar ao niilismo perfeito.
Há, enfim, uma quarta categoria de indivíduos
na humanidade: os que se voltam para Deus, e·
realizam a palavra de São Paulo: "E preciso,
que quem se aproxima de Deus creia que êle exis­
te e que é remunerador dos que o procuram 11 •

(Hebr 11,6).
Não é apenas entre os povos que se estabe-­
lecem as distinções e as categorias segundo a idéia.
que fazem de Deus, segundo a atenção que lhe
dispensam, segundo a atitude que tomam diante·
dêle; mas também a fisionomia individual das
almas e seu caráter sobrenatural se definem se-­
gundo a atitude de cada uma em face de Deus.
Eis verdadeiramente o que as distingue. A dife-­
rença entre as almas se acha tôda no grau de
atenção, de conhecimento, de consciência íntima

25
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de cada qual perante Deus. Deus, é o nosso Deus.
E o Deus de cada um de nós, e êle o é para cada
um de 11ós como para mais ninguém; não é igual
para nenhum de nós. As línguas humanas são
impotentes para exprimir o que Deus é para cada
um de nós; todavia, não é menos verdade dizer
que Deus é o Deus de todos, de tal modo que seja
também o Deus de cada um: ''Ele cha1na suas
ovelhas pelo nome, e elas conhecem-lhe a voz"
(Jo 10,3-4 ). E quando a Igreja, na festa de um
confessor pontífice, que nos faz dizer: "Não foi
encontrado outro semelhante a êle em glória; guar­
dou a lei do Excelso" (Eclo 44,20), é exatíssimo:
Deus é o Deus de cada alma considerada indivi­
·dL1almente.
Direi mais : a fisionomia de nossa alma modi­
fica-se no decurso da vida. Quando se quer co­
nhecer uma alma, pergunta-se-lhe: "Qual é a tua
oração?" Isso equivale a dizer: "Que és em face
de Deus? De que n1aneira o consideras? Que é
Deus para ti?" Porque as atitudes da alma variam
ao infinito, e a nossa fisionomia diante de Deus
muda conforme os graus que vencemos na vida
espiritual.
Voltamos sempre a afirmar que Deus é o cen­
tro de tudo. Segundo as relações que têm com
êle, é que todos os sêres se classificam em sua
respetiva categoria.
Continuo. Moisés era um grande contempla­
tivo. Com.o tinha grandes coisas a realizar, gran-

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des dores e imensas dificuldades a enfrentar com
as seiscentas mil cabeças duras que fêz sair do
Egito e conduziu pelo deserto, Deus quis forta­
lecê-lo. Elevou-o a uma alta intimidade consigo,
e entreteve com êle tais relações de familiaridade
como jamais concedera a qualquer outro: "Com
os outros, dizia o Senhor, falo por visões, por so­
nhos e como a servos; mas a Moisés, falo face a
face, como de amigo para amigo" (:Êx 33,11 ). Vê-
des que se descreve a fisionomia de um homem, !
de um santo, de um contemplativo, pela sua ati-
1./
tude em face de Deus.
Antes de conceder a Moisés essa visão supe­
rior diante da qual empalidecem tôdas as outras,
e a cujo respeito graves pensadores têm indagado
se não se tratava da visão intuitiva, Deus lhe deu
uma poderosa fé. E quando o Apóstolo, no ca­
pítulo 11 de suas epístolas aos hebreus, na in­
comparável enumeração de nossos ancestrais na
fé, quer revelar-nos o seg.rêdo da fôrça do grande
contemplativo, indicar-nos a fonte onde hauriu
seu vigor e tôda a sua energia, fá-lo com uma
só palavra: "Pela fé, Moisés abandonou o Egito:
como se visse o invisível, perseverou firme em seu
propósito" (Hebr 11,27). Moisés tudo suportava
porque vivia diante do Invisível como se o tivesse
visto.
A nossa atitude deve ser idêntica. Devemos
entrar na Terra prometida: marchamos para ela.
Abandonamos o Egito e passamos o Mar Vermelho;

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a lei da nossa vida, o programa de tôda a nossa
existência, é a contemplação do Invisível, é o viver
face a face com Deus: "não atender às coisas que
se vêem, mas sim às que se 11ão vêem" (2Cor4,18).

A conten,zplação de Deus,
forite de paz e de estabilidade

"Contemplar, bem está, mas que devo contem­


plar no Invisível, que devo considerar em Deus?"
Em primeiro lugar, é preciso ver em D-eus o que
êle é: Deus deu de si próprio uma definição no
Antigo Testamento: "Eu sou aquêle que sou", diz
êle a Moisés (E:x 3,14 ). E necessário contemplar
Deus como se tudo o mais não existisse : Êle é
, .
o un1co.
São Paulo, nas palavras tão citadas: "E pre-­
ciso que quem se aproxima de Deus creia que êle
existe" ( Hebr 11,6), indica-nos qual deve ser a nos­
sa atitude primeira em face de Deus. O ser de
Deus é algo de tão potente, de tão vigoroso, e de
tão intenso, que, em comparação com êle, tudo
quanto parece existir tem apenas uma aparência
de existência e não existe realmente. O que ver­
dadeiramente é, o que existe, não é o que vemos,
é a invisível beleza de Deus, diante de quem vi­
vemos: "Todos os povos na sua presença são como
se não existissem, e êle os considera como um
nada, uma coisa que não existe. São diante dêle

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como uma gôta de água, e como um grão na ba­
lança" (Is 40,17,15). "E não bastará o Líbano
para queimar, e não bastarão os seus animais para
uni holocausto digno dêle" (Is 40,16 ).
O que é preciso considerar ainda no Invisível,
é que êle existe com os gloriosos caracteres de sua
absoluta independência. A criação depende dêle,
a êle se atém; êle, porém, independe da criação.
Est1.1dar a Deus: é contemplar o Invisível em
sua infinidade, em sua existência necessária, ili­
n1itada, imensa, imutável e eterna. Moisés, diz­
...nos o Apóstolo, achou á fôrça para tudo suportar,
unicamente porque contemplava o Invisível: "como
se visse o invisível, perseverou firme".
Quanto a nós, não ten10s que suportar tantos
fardos quanto Moisés: em comparação com os so­
frimentos, as tristezas, as so]icitudes que lhe to­
cavam, são bem diminutas as nossas ansiedades e
assaz desprezíveis as nossas preocupações. Que
deverr10s fazer para libertar-nos de tudo isso? Con­
siderar do ponto de vista de Deus. Deus existe,
Deus é; tudo vai bem. Acaso precisais de algo
além da existência absolutamente certa da incom­
parável beleza que é Deus? - Não. - Sofreis? -
Grande coisa! - Sem dúvida, há a glória de Deus;
mas acha-se atingida a glória de Deus?. . . Se Deus
pudesse perder algo, se êsse divino Ser, essa in­
comparável beleza pudera alterar-se de alguma for­
ma, se a beatitude de Deus pudera ser atingida no
que quer que fôsse, isso deveria constituir, para

https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 29
nós, motivo de imenso e inconsolável desespêro ...
Mas o Ser Divino é inacessível: Deus é imutável,
Deus é infinito, Deus é bem-aventurado!... Na
minha opinião, tôda alma cristã que sabe o que
é Deus, e que o estima no seu devido valor, não
po-de deixar de libertar-se das tentações da vida,
dos aborrecimentos, das preocupações, das ansie­
dades e tristezas mais ou menos romanescas, de
procedência ignorada. Tudo isso nada é; tudo
isso é vão, falso, vazio, é zero; tudo isso se des­
vaneceria como um sôpro se concordássemos em
olhar constantemente do ponto de vista de Deus.
"Amar, disse muito exatamente um filósofo, é
colocar sua felicidade na felicidade de outrem".
Amar a Deus, por conseguinte, é colocar a sua
felicidade na felicidade de Deus. E, como D·eus
é feliz, como não muda, como nada o pode atin­
gir, amá-lo é estabelecer-se na paz e estabilidade
perfeitas, amá-lo é achar no Ser Divino a eterna
indenização de tôda tristeza e ansiedade: Deus é.
Viram-se homens que, tombando sob o ferro dos
assassinos, exclamavam ao morrer: "Deus não mor­
re!" Eis a universal compensação. Assim, para
fixar-nos definitivamente na paz em nossa vida,
basta que nos libertemos de tôdas as atenções e
preocupações confusas e pessoais, basta que fixe­
mos o olhar de nossa fé sôbre o Ser de Deus, seu
4=• • •····

Ser imutável, infinito, necessário, independente e


inacessível.

30 https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
Se agora estudo convosco questões algo abs­
tratas, não é apenas para apresentar-vos o pálido
resumo de um curso de teologia., mas para assi­
nalar-vos o objeto primeiro e essencial de nossã.
fé, para mostrar-vos aonde devemos voltar os nos­
sos olhares, estabelecendo também a alegria e a
firmeza de nossa vida. Estou intimamente con­
victo de que, no mundo, nada mais saudável para
as almas do que subir a tais alturas. Sem dúvida,
o ar é ali menos denso, faz frio, é a região das
neves eternas, é rude a escalada. :e, à custa de
esfôrço que se chega, e à custa de esfôrço que
ali se permanece. Mas o horizonte que se des­
cortina recompensa tôda fadiga. Subamos: estu­
demos juntos um pouco de teologia; que é a teo­
logia, em suma, senão a cultura sobrenatural da
nossa fé?

Contemplar a Deus
para conhecer a nossa condição

Quando o Senhor quis dar uma definição de


si mesmo, disse a Moisés: "Eu sou aquêle que sou".
Deus é; afirmação que a teologia traduziu pela
seguinte fórmula: Deus é o Ato puro. Nem sem­
pre é bem compreendido o alcance dessa fórmula,
sendo necessário, portanto, dar-lhe um sentido exa­
to. Dizer de Deus que êle é, e dizer de Deus que
êle é o Ato puro, é o mesmo.

31
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Quanto a nós, não somos ato puro. Não so­
mos a perfeição. Há em nós perfeição, certa parte
de perfeição, que faz a nossa razão de ser. Mas
.a nossa perfeição é reduzida, limitada. Em nós
l1á bondade: não somos a bondade. Em nós há
grandeza, sabedoria talvez: não somos nem a gran­
deza, 11em a sabedoria. Sem dúvida, podemos ad­
quirir perfeição apoiando-nos na fôrça de Deus,
porém jamais possuímos senão partes limitadas de
perfeições reais. E temos que estender perpetua­
n1ente a mão, porque nos vem de fora o pouco
que possu1mos.
Det1s, porém, nada tem a adquirir: êle é o
Ato puro de tôdas as perfeições. Tôdas essas per­
feições: bondade, beleza, grandeza, que analisamos
e adicionamos lentamente, formam em Deus um
só todo: nêle, nada se acha em potência, tudo está
em ato. Êle é o infinito de tôdas essas perfeições;
e se, na terra, podemos pressentir algo dessas ma­
ravilhas, uma das surprêsas e das alegrias de nos..
sa eternidade, será descobrir em Deus muito mais
do que a teologia nos permitira entrever.
Não é tudo. Desejaria chamar vossa atenção
para outra debilidade da nossa natttreza, que cor­
responde, em Deus, a urna perfeição absoluta­
mente incomparável. Refiro-me à fragmentação de
nossa natureza, comparada com a unidade e a
simplicidade da divina. Não apenas somos finitos,
mas também divididos. Vêde: quando pensamos,
nosso pensamento é limitado e ordinàriamente se

32
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aplica a um só objeto: "O coração que anda por
dois caminhos, não será bem sucedido" (Belo 3,28 )�
diz a Escritura. Neste momento, estais escutando
as minhas palavras e, se a atenção a Deus pode
. .
unir-se aos pensamentos que vos sugiro, nao e
,.,,, �

menos verdade que nos é difícil, devido à ten­


dência fragmentária de 11ossa inteligência, estarmos
igualm.entc atentos a pensamentos diversos.
Assim não acontece com Deus.
Suponde uma inteligência que, em vez de co..
nhecer dessa maneira sucessiva e fragmentária tô­
das as verdades, esteja não só de posse de tôda
verdad.e, mas ainda na contemplação atual de tôda
verdade. Vamos adiante. Suponde que, a essa
inteligência, para achar-se na contemplação atual
de tôda verdade e de tôda beleza, baste tomar
consciência de si mesma, sem ver-se obrigada, como
n9s, a haurir sua ciência no exterior, nem a apoiar­
-se no conhecido para conquistar o desconhecido,
nem a fragmentar seu conhecimento: tal inteli­
gência, ou para falar mais exatamente, tal intelec­
ção em ato, será como que uma reprodução do
pensam.ente de Deus.
E a vontade? Suponde uma vontade capaz,
não de amar tal ou qual bem, mas todo bem.
E de fazê-lo, não por uma sucessão e uma frag-·
mentação de atos que se vão encadeando um ao
outro, mas por ser uma vontade sempre em ato,
que jamais dormita, que ama com um amor po­
tente, :indestrutível, inalterável, a tôda bondade,

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3 - À. cc;,nt��n:n.1n.r.lí.n
a tôda beleza. Esse ato único de vontade, que
é ao mesmo tempo ato de inteligência, é ainda
o ato puro: é Deus.
Enfim, temos uma energia, um poder exte­
rior que nos permite agir sôbre o que nos rodeia.
Entretanto, mesmo quando agimos, não estamos
no exercício total de quanto nos é possível; a nos­
sa própria ação é sucessiva, obrigados que esta­
mos a parcelar nossa atividade. Mas o Ato puro,
Deus, sem sair de sua interior e inalterável tran­
qüilidade, pode produzir exteriormente a si mes­
mo milhares de mundos, dirigi-los e sustentá-los
sem esfôrço e sem rumor: "sustentando tôdas as
coisas pela palavra de seu poder" (Hebr 1,3 ).
Se me acompanhastes nesta longa dedução teo­
lógica, tendes não apenas o comentário da palavra
do Êxodo: "Eu sou aquêle que sou", mas .também
a noção mais exata, ainda que acessível à inteli­
gência humana, do que é Deus: Deus ato puro de
tôda perfeição, de todo pensamento, de todo amor,
de tôda energia.
Esses quatro modos de atividade em Deus,
distinguimo-los um do outro, porque as co.ndições
de nossa inteligência criada não nos permitem
abrangê-los num só olhar. Notai, porém, que fa­
zem um só todo em Deus, na simplicidade e uni­
dade virginal de sua natureza.
E êsse Deus, ato puro, onde se acha êle? Ê
um ser longínquo, estranho, absorvido na sua bea­
titude, como dizem os ímpios no livro de Jó: "Nas

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nuvens está escondido, e não tem cuidado das
nossas coisas, e passeia pelos pólos do céu" (Jó
22,14)? Não, acha-se muito próximo, ao alcance
de vossos lábios: "Nêle vivemos e nos move1nos e
existimos'' (At 17,28 ). Jamais saímos dêsse san­
tuário de Deus, onde vivemos com êle. É verdade?
- Sim, tanto quanto Deus é. - E pensamos nisso?
e há em nossa vida ansiedades e sofrimentos? e
há em nossa vida dilações, delongas, oposições,
indelicadezas e descortesias formais para com
Deus? Não tinha eu razão ao dizer que bastaria
tomar séria consciência do ser de Deus para des­
truir definitivamente essa ferrugem que nos devora
a alma, e às vêzes nos macula a vida?
Poderia 11ma alma batizada, tendo consciência
de viver diante de Deus, do Deus "que vive e que
vê" (Gên 16,14 ), deixar-se levar a tais descortesias?
E não é absolutamente exata a palavra de Sto.
Agostinho: "A1na e faze o que quiseres"?
Já disse que é preciso contemplar no Invisível,
em primeiro lugar, a sua existência; em segundo;
a inabalável firmeza dessa existência; contemplar
também essa perfeição e essa incomparável beleza,
a cujo respeito procurei falar em têrmos lentos,
frios e penosos. Que é preciso ver ainda no In­
visível?
Falava de caridade e amor. Ora, um dos si­
nais da caridade (há muitos outros, mas escolho
êsse de preferência, por se relacionar com o meu
tema), um dos sinais da caridade, do puro amor,

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o único do qual se pode falar na assembléia dos
santos, é confiar um segrêdo. { O homem que faz
uma confidência produz um ato de confiança ín-
tima, mostra o fundo de sua alma àquele em quem
confia�,) :E: o que se passa entre nós, e é o que
acontece com Deus. Quando o Senhor ama, não
pode mais guardar seus segredos. Ê de incompa­
rável fraqueza o Senhor, desde que ama.
O bem-aventurado Jacopone da Todi, que se
presume ser o autor do Stabat Mater, ao contem­
plar os excessos de amor, as loucuras do Senhor,
sentia-se inebriado de sobrenatural e dizia extrava­
gâncias. Os superiores ,aborreceram-se e repreen­
deram-no. Um dia, o próprio Sen:\1-or pareceu cen­
surá-lo: "Atenção, calma, é preciso ser discreto;
é conveniente o entusiasmo, mas não êsses exage..
ros, essas loucuras" E o bom do santo respon­
deu-lhe: "Ah! Senhor, muitas outras fizestes vós!"
Sim! Quando o Senhor ama, fa� loucuras ....
Lembrai-vos de como falava a Abraão. Dir-se-ia
verdadeiramente que não pode ser reservado com
o seu servo; o seu segrêdo pesa-lhe qual intolerável
fardo, não pode guardá-lo, tem de comunicá-lo:
''Poderei esconder a Abraão o que estou por fazer?"
{Gên 18,17). O segrêdo foge-lhe irresistivelmente.
Oh! quanto sois fraco, Senhor!
Deus não mudou na nova lei. Por que proces­
so o Senhor, que nos amava, nos mostrou o seu
amor? Disse-nos tudo. A nós, pobres átomos,
entregou-se todo. "Já não vos chamo servos ...

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mas chamo-vos amigos, porque vos dei a conhecer
tudo aquilo que ouvi de meu Pai" (Jo 15,15). Vê­
des? Conhecemos a santidade de Deus, conhece-
mos o que 1gnorar1am os propr10s anJos, se nao
• • .1 • • ,..,

tivessem sido elevados à ordem sobrenatural. Co­


nhecemos o que criatura alguma poderia conhe-­
cer, se Deus mesmo não 1110 dissera. O mistério
da vida íntima de Deus, o 1nistério de sua fec11n­
didade, o seu segrêdo, Deus no-lo revelou: é o
mistério da Santíssima Trindade, essa gloriosa e
inefável fecundidade do nosso Deus que no-lo
mostra diferente de tudo o mais, e que acima de
tudo o eleva.
Conjuro-vos a não receardes essas alturas.
Elas vos devem ser familiares. Aí está o verda­
deiro Deus, aí está o Deus vivo. O Deus vivo não
é sombra indecisa da filosofia, a categoria do Ideal,
um instrumento de política utilitária, um tema de
boa literatura, o assunto para uma bela interro­
gação. Não, o verdadeiro Deus é a Santíssima
Trindade, o Pai, o Filho e o Espírito Santo: não
há outro. Mas, se Deus nos revelou tal mistério,
é para experimentar-nos a inteligência? Oh! não;
é para coroá-la, para 110s dar a conhecer o segrêdo
de sua vida íntima, para manifestar-se inteiramente,
para fazer-nos compreender o mistério da Encar­
nação, inexplicável sem aquêle; para fazer-nos com­
preender também tôda a ordem sobrenatural.
Pelo nosso batismo em nome do Pai, do Fi­
lho e do Espírito Santo, somos transportados a

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êsse santuário de Deus: ''Somos agora de sua casa,
seus familiares", como diz São Paulo (Ef 2,19).
:é dêsse mistério eterno, necessário, universal, que
vivemos: pois, onde se encontra o Invisível de
Moisés? Aqui, bem junto a nós. Estamos reu•
nidos sob o olhar de Deus, Pai, Filho e Espírito
Santo, e aqui, entre nós, realiza-se o mistério da
Santíssima Trindade, mistério eternamente jovem,
mistério jamais acabado: desde tôda a eternidã��
e até à eternidade, o Filho nasce do Pai, e o Espírito
Santo procede do Pai e do Filho. Aos olhos da
alma cristã, da alma batizada, é verdade, é rigoro­
samente verdade que, neste momento, diante de
nós se realiza êsse mistério universal, imenso, do
Pai, do Filho e do Espírito Santo.
É de pasmar como Deus é calmo, como é si­
lencioso e plácido o mistério da Santíssima Trin­
dade. Vêde, não há um sôpro, um estremecimento,
um murmúrio sequer. Não se acha aí um completo
programa de espiritualidade? Mas é preciso con­
templar, é preciso viver assiduamente em face de
tais realidades. Uma das mais profundas chagas
que nos deixou o pecado original, é a dispersão
da inteligência: estamos exteriorizados: "A fasci­
nação das frivolidades escurece o bem" (Sab 4,12).
E-nos forçoso, por meio de um trabalho contínuo,
disciplinar a nossa inteligência, reuni-la, recolhê-la,
fazer com que considere frontalmente as coisas
re-ais e verdadeiras, e assim, por meio dêsse olhar
assíduo, criar convicções. Haverá fraquezas., mas

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existirá ao menos um ponto de apoio. E um amor
pela\ harmonia, pela retidão, uma poderosa lógica
diminuirá dia a dia a distância entre o que cremos
e o que somos.
Não imaginais que há uma onipotência da
idéia? Colocai-a na inteligência, colocai-a em um
povo, e ela seguirá seu curso. Jamais haverá pres­
crições contra ela, será impossível resistir-lhe. Con­
templai o Invisível e, espontâneamente, em con­
seqüência da sagacidade e do bom gôsto que há
em todo coração, a alma assumirá, diante dêle,
a atitude que lhe convém. São muito diversas as
atitudes das almas, e eu dizia que é inútil procurar
traçar-lhes a configuração exata, porque Deus é
verdadeiramente o Deus de cada uma delas. To­
davia, para terminar, quereis p-ermitir-me indicar
quais as atitudes mais habituais das almas em face
de Deus?

Atitudes das almas em face de Deus:


o temor

Há uma primeira atitude: a da consciência,


a do temor de Deus. Porque haveríamos de con­
dená-la? É o cerne da espiritualidade de S. Bento.
Não se deve depreciar o temor de Deus: é de
uma eficácia soberána. E falta certa firmeza como
gravidade à alma que nêle não se exercitou, que
não foi crucificada pelo penetrante sentimento de

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que falava o salmista: "Transpassa com o tetl te­
mor as minhas carnes" (SI 118,120). A tais al,tnas,
chega a faltar certa ternura, o que é fácil de ·veri-
ficar. O temor é o auxiliar de Deus. Muitos se1

hão de salvar pelo temor do inferno. Conheci al-


mas que se detinham no declive do mal, por mêdo
do remorso, terrível represália de Deus. Sei que
é apenas o início da sabedoria, e que há um mau
temor, absolutamente servil. Existe u1n temor pe­
rigoso, o inquieto, pusilânime, vendo em Deus um
tirano, um credor zeloso, um juiz enamorado da
punição, um papão onipotente que espera- surpre­
ender-nos no desvio de suas leis para ter o prazer
de castigar-nos cruelmente. Eis uma falsa :noção
de Deus, uma car�catura do temor de De·us. A
falsificação, porém, não impede que o próprio te­
mor seja muito elevado, podendo tornar-se filial
e temperar-se de amor. Nosso Senhor o possuiu:
ao mesmo tempo que os outros seis dons -·do Es­
pírito Santo, Jesus levava em sua alma o sétimo,
o temor de Deus: "E será cheio do espírito do
Senhor" (Is 11,3). E permanece até na eternidade:
"O temor do Senhqr é santo, permaneça pelos sé­
culos dos séculos" (SI 18,10).

a retidão

Há outra atitude: a da retidão e da inata leal­


dade. Não se encontra aí um considerável desen-

40
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volvimento do amor efetivo. Apenas uma dispo­
siçã<i> profunda, a identidade com a Regra, como­
que \1ma espécie de hábito de tomar, por instinto,.
o partido de Deus. É algo de cavalheiresco: não
há senão Deus; não acode o pensamento de esqui­
var-se dêle. Notai que não se trata da honra hu­
mana; esta se reduz ao orgulho. Não é tampouco
certo zêlo pela própria dignidade, a disposição do­
arminho que não quer, de maneira alguma, se
macule a sua branca veste: é antes um sentimento
elevadíssimo do direito, da ordem, da Regra, uma
conformidade profunda e natural, aperfeiçoada pela
educação, a tôdas as disposições e desígnios de
Deus.. Tais almas desconhecem a desobediência,.
a revolta, a murmuração, a surprêsa; todavia, nada
de acanhado, de estreito, de militar. E sim a
consciência perfeita, o estado de uma alma ele­
vada acima de si própria, e tranqüilamente de
acôrdo com Deus: a lealdade. Que se felicitem e
bendigam a Deus! Essa atitude é elevadíssima.
Muitas vêzes se confunde com a perfeição da vida
espiritual, e é possível que eu, querendo descre­
vê-la, tenha efetivamente usado de certos traços
que pertencem à união perfeita.

o amor

Há uma terceira maneira de comportar-se pe­


rante Deus. Prevalece sôbre as duas anteriores:

41
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é mais do que a consciência, é uma disposição
generosa e delicada que jamais dormita. É a pres­
teza, a generosidade, o entusiasmo, a alegria; é o
amor. "Conhecemos a caridade que Deus nos tem
e nela acreditamos" (lJo 4,16).
Como pode haver adulterações, dar-vos-ei uma
última característica: Deus é Ato. Qua:r:ido as ati­
tudes são ativas, dêle provêm com tôda a certeza.
Não se trata de um fervor súbito, inspirado por
uma emoção fugitiva e poética, que se derrama em
protestos e se esvai ao primeiro embate. É algo
de generoso e humilde, delicado e calmo, resoluto
e duradouro.

quando o Senhor mesmo ilumina a alma

Enfim, há talvez uma quarta maneira de ser:


é quando o Senhor se torna, êle próprio, a cons­
ciência; quando êle, Soberano Mestre, repousando
no segrêdo da alma, adverte-a das menores fra­
quezas, das mais diminutas inadvertências, das
mínimas indelicadezas; quando de tal modo se tor­
nou um com ela que parece não haver mais pos­
sibilidade de subtrair-se a alma a Deus. Mas, dêsse
estado, nada se pode dizer, basta havê-lo indicado.
Seja qual fôr dessas atitudes a que temos, ou
tivemos diante de Deus, cultivemo-las; peçamos ao
Senhor esteja a nossa alma cada vez mais desperta
em face do Invisível. Roguemos-lhe, não apenas

42 https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
a virtude da fé, mas o dom da fé para o aperfei­
çoamento e o remate da nossa vida sobrenatural
que, bem o sabemos, é tão somente o desabrocha­
mento total e pleno da fé em nós. "A fé é a se­
gurança do que se espera" (Hebr 11,1), diz-nos o
Apóstolo. As coisas sobrenaturais, não as vemos
ainda, mas a fé no-las revela; acham-se ainda ve­
ladas a nossos olhos, mas, pela esperança e pela
graça de Deus, já vivem em nós.

https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 43
II

NOSSO SENHOR JESUS CRISTO

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"Jesus Cristo ontem e hoje; êle o será tam�
bém por todos os séculos" (Hebr 13,8 ). De tudo
quanto acabamos de dizer, pudemos tirar a se-­
guinte conclusão: só Deus existe. Parece-me que
nossa atitude diante dêle se acha bem definida
pelo salmista: "Assim como os olhos dos servos
estão fixo� nas mãos dos seus senhores, e como
os olhos da escrava nas 111,ãos de sua senhora, as­
sim os nossos olhos estão fixos no Senhor nosso
Deus, até que tenha misericórdia de nós" ( SI 122,2 ).
Eis a verdadeira atitude cristã, a verdadeira ati­
tude contemplativa e - por que não o dizer? -
a verdadeira atitude inteligente. Não faço dife­
renciação alguma entre a faculdade da inteligência
e a faculdade inteligente de procurar o bem em
atenção a Deus. Se estamos intimamente con­
vencidos de que só Deus existe, a nossa inteli­
gência voltar-se-á espontâneamente para as únicas
realidades existentes, para as coisas sobrenaturais,
para Deus: "O Senhor olhou do céu para os filhos
dos homens, para ver se há quem tenha inteli--­
gência e busque a Deus" (S113,2). Vêdes que, no
próprio juízo de Deus, não há distinção entre a
inteligência e a busca de Deus. E eis aí a justi-

https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 47
ficação de tôda a nossa vida, eis aí a nossa ver­
-dadeira atitude diante Deus, seja qual fôr, aliás,
a fisionomia particular que nossa alma conserve
perante êle.
Determinei a estrêla polar de nossa vida: Deus,
e as diversas atitudes que podemos assumir diante
-dêle. Dir-me-eis talvez: "Fôste incompleto! Não
basta dizer-nos a atitude que tomam ou podem
tomar as almas em face de Deus. Para criar uma
sociedade, não é suficiente que as relações se es­
tabeleçam de uma só porte, é preciso que sejam
:mútuas. Ora, não vejo ainda relação entre Deus
e mim. Sei o que é Deus, o que sou diante dêle;
muitq, desejaria saber o que Deus é para mim".
- Já vo-lo disse: Ele é a invisível testemunha de
vossa vida, a atmosfera de vossa vida, o templo
incriado onde viveis: "Deus que contendes invisi­
velmente tôdas as coisas" 1• - "Todavia, não me
basta. Não há sociedade. Concordo contigo que
Deus é a mais elevada, a mais necessária realidade,
a mais firme substância, e que tudo o mais é
precário: só êle existe. Mas, quanto mais me
.assinalaste o caráter augusto e deveras transcen...
<lente dessa divina realidade, mas excitaste tam-­
.bém o meu desejo de saber o que é Deus para
mim. Êle é Deus: é o meu Deus? É grande:
é bom? É verdade que me ama?"

1 Missal romano, oração da Dedicação has igrejas.

·48
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O problema único de uma vida:
sou amado por Deus?

E1n uma de suas obras, fala o Pe. Faber a


respeito de uma criancinha que teria derramado
ardentes lágrimas, indagando consigo mesma:
"Deus me ama? Sou amada por êle?. . " Creio
que tal pergunta tem feito derramar muitas lá­
grin1as, não só a crianças, mas também adultos ...
Na verdade, eis a questão única em nossa vida.
Que nos interessa tudo o mais? "Sou amado por
Deus?" Se tenho esta certeza, se tenho a gara11tia
de que Deus me ama, tudo o mais se apaga e des­
vanece ,. tudo me é indiferente. Mas é forçoso re­
conhecer que temos necessidade desta garantia,
desta certeza do amor de Deus, e temo-la no
próprio i11terêsse da nossa fé. Conseguirei tornar
bem claro o meu pensamento?
Tudo se explica, tudo é compreensível; só uma
coisa permanece inexplicável: o amor de Deus.
Quando o homem ama, realiza ações extraordi11á..
rias, extravagantes, heróicas, acima de sua natureza ..
Que acontecerá, pois, se Deus ama? Já não nos
causarão surprêsa os maiores, os mais extraordi-
nar10s, os mais 1nveross1me1s m1stenos.
� • • • � ■ • , .

No fundo, só existe um problema, e não é o


mistério da Santíssima Trindade, nem o da En­
carnação, ou da Redenção. O verdadeiro problema,
é o do amor de Deus. Uma vez demonstrado que

4 - A contemplação . .• 49
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Deus nos ama, teremos a explicação de tudo� Le­
mos no Evangelho: "Deus amou de tal l'rtodo o
mundo, que lhe deu seu Fil/10 Unigênito" (Jo 3,16 ).
Nessa palavra, encontramos a explicação do mis­
tério da Encarnação e da Redenção. Deus nos
ama: agora tudo se explica. Mas por que Deus
nos ama? Concebo o amor substancial no seio
da Trindade, concebo o amor do Pai e do Filho,
tendo por conseqüência eterna o Espírito Santo.
Concebo ainda o amor de' Deus derramando-se ex­
teriormente sôbre a Virgem Maria, sôbre as mi­
ríades de esplêndidas inteligências que cercam o
trono divino; mas o amor de Deus inclinando-se,
abaixando-se até nós, até a êste nada, êste átomo
ínfimo que é a nossa pobre natureza, eis o que
não concebo.. . . Não! é certo, mas inexplicável.

A resposta de Deus:
o dom de seu_ Filho

A pergunta: "Sou amado por Deus?", há uma


resposta: É nosso Senhor Jesus Cristo. Por que
Deus nos ama? De que maneira nos ama, não sei.
Mas que nos ama, eu o sei, pois a demonstração,
a prova irrecusável dêsse amor de Deus, é ainda
nosso Senhor Jesus Cristo. E eis a segunda das
realidades a que se devem ligar nosso pensamento
e nossa vida.

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Eu vo-lo confesso sem rodeios : tendo que vos
falar a respeito de nosso Senhor Jesus Cristo, ex­
perimento grand-e perplexidade, mesclada de ale­
gria. Se não soubera que tentar a De11s é pecado,
de bom grado permaneceria obstinadamente em
silêncio, a fim de que a Santíssima Virgem viesse
ter conosco e tomasse ela mesma a palavra para
falar-nos de seu Filho. Mas, confesso-o também,
esta absoluta impotência não deixa de cat1sar j(1-­
bilo. Ah! nossa verdadeira alegria e nosso triunfo,
quando temos de falar sôbre essas realidades so-­
brenaturais, é sentir que ultrapassam infinitamente
qualquer pensamento, qualquer palavra humana!
Que vos direi? Tudo já se disse a respeito de
Jesus Cristo. Limitar-me-ei a permanecer dentro·
da ordem e da direção de idéias que tomei : a in­
tensidade do ser e da vida de nosso Senhor Jesus
Cristo. f:le é Deus. Tudo quanto vos disse ontem,
a respeito de Deus, é verdade a seu respeito. Tô­
das ·as belezas que afirmamos de Deus, tôdas as
perfeições., todos os esplendores que a eternidade
nos revelará, acham-se na Criancinha que repousa
e dormita no presépio de Belém, encontram-se numa
hóstia consagrada. . . e, se o Senhor rasgasse por
um instante o véu que os encobre a nossos olhos,
seria tal o esplendor, a perfeição, a beleza, que
nossa frágil vida não os poderia suportar. Sim,
além da beleza visível do Senhor como homem:
"Vossa formosura excede a de todos os filhos dos
·homens" ( SI 44,3), sei que há outra beleza: êle é

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Deus, o Verbo de Deus, o Filho de De11s, a Sabe­
doria de Deus, gerado antes de tôda criatura, igual
a Deus, consubstancial com Deus, o primeiro fruto
da Vida divina.
Mas como sabeis de tal beleza? São Paulo a
viu. Recordai com que esplendor no-la descreve
no início da Epístola aos Hebreus: "Havendo Deits
outrora falado muitas vêzes e de muitos modos
aos pais pelos profetas, a nós nestes últimos dias
falou pelo Filh.o, a quen1 constituiit herdeiro de
tudo, por quem fêz também o 1nundo. O qual,
sendo o resplendor de sita glória e a imagem ex­
pressa de sua substância, tendo feito a purificação
dos pecados, assentou-se à direita da Nlajestade
11,as alturas" (Hebr 1,1-3).
Êle é Deus. Quem vo-lo disse? São João, que
repousou em seu peito: "No princípio era o Verbo,
e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deits 11
(Jo 1,1). E tenho ainda outro testemunho: dos
lábios do Senl1or. Em uma noite terrível, foi por
duas vêzes interrogado: "De nôvo perguntou-lhe o
pontífice: Es tu o Cristo, o Filho do Bendito? Jesus
disse: Eu o sou" (Me 14,61 ). Poderia ter-se calado,
nossa fé não haveria de hesitar: por que respondeu
eAIe :>. . . . Ah'. so, Deus ama assim . . .
Creio na palavra do Senhor, eu o creio firme­
mente: tôdas as belezas, todos os esplendores di­
vinos encontram-se em nosso Senhor Jesus Cristo,
"em quem se acham ocultos todos os tesouros da
sabedoria e da ciência" ( Col 2,3). Nêle está a ple-

52
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
nitude da divindade, embora encoberta sob o véu
de seu corpo: "Nêle habita tôda a plenitude da
divindade em forma corporal" ( Col 2,9), nêle re...
pousam tôdas as complacências do Pai. Podem
vir os incrédulos de todos os séculos. Tenho a
vossa palavra, Senhor: posso morrer, mas 11ão
mudar. Podem arrancar-me a alma; não po,derão,
da alma, arrancar-me a fé.
Nosso Senhor Jesus Cristo é Deus, sim, n1as
de Deus já vos falei, e dêle voltaremos a falar na
eternidade. Nosso Senhor Jesus Cristo é l1omem:
"E o Verbo se fêz carne, e tomou sua 1nora.da erz­
tre nós" (Jo 1,14 ). Oh! que doce palavra!
Observava eu, há pouco, que a inteligência con­
siste em olhar as verdadeiras realidades. Quanto
maiores os objetos, quanto mais elevados, tanto
mais merecedores de ocupar a nossa inteligência.
O verdadeiro gênio, a verdadeira i11teligência co11-
siste, portanto, em ocupar-se das verdadeiras rea­
lidades, em ocupar-se de Deus, porque êle é a pri­
meira, a mais elevada, a mais necessária de tôdas
as realidades. Nosso Senhor Jesus Cristo-, consi­
derado em sua natureza humana, merece excelen­
temente a nossa atenção. Nenhuma vida de ho­
mem pode ser comparada a essa vida do Senhor,
pois vida alguma no mundo atingiu jamais a in­
tensidade, o vigor, o que de bom grado eu cha­
maria a virtualidade de vida de nosso Senhor Jesus
Cristo. Desejando resumir em poucos traços a
vida do Senhor, disse o apóstolo São Paulo: "Jesus

https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 53
Cristo ontem e hoje, o mesmo também pelos sé­
culos'' (Hebrl3,8). "Ontem", o Senhor preexistiu
em todos os séculos que o precederam. Em vista
dêle é que tudo foi criado. Desde que se pronun­
ciou no Paraíso terrestre a palavra: "Porei inin1i­
zade entre ti e a mulher, entre a tua descendência
e a dela'' ( Gên 3, 15), desde aquêle dia tôdas as ai-­
mas, todos os corações, tôdas as vontades, todos
os pensamentos ( digo todos os pensamentos real­
mente despertos) voltaram-se para êle. Pode dizer­
-se que todo o mundo antigo, sem exceção, para
êle se orientou. As profecias, as figuras, as ins­
tituições, a marcha em conjunto e o movimento
das naçõ-es, os st1cessivos desmoronamentos dos
impérios, a série das gerações, a expetativa e o
desejo dos justos, tudo convergia para êle� tudo
para êle se dirigia, antes mesmo de o conhecer.
O apóstolo São Pedro descreve-nos a ansiosa
atitude dos antigos profetas: "esquadrinha11do que
tempo e circunstâncias indicava o Espírito de Cris­
to" (lPdr 1,11). E, em muitas outras passagens da
Sagrada Escritura, captamos o eco dos abrasados
d•esejos, da aspiração universal cujo objeto é aquê­
le que é chamado "D·elícia das colinas perpétuas"
(Gên 49,26 ), "Desejado de tôdas as gentes" (Ag 2,8 ).
Era verdadeiramente a estrêla à qual se dirigiam
tôdas as inteligências e todos os corações. E, fato
que só com êle aconteceu, foi a expetativa univer­
sal de todos os séculos que o precederam. Em
particular, devemos considerar tôda a antiga lei

54
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como profecia atuante de nosso Senhor Jesus Cristo
que teria de vir. Todos os justos do Antigo Tes­
tamento possuíam individualmente algum traço do
Senhor: pareciam-se com êle antes de sua vinda 2•
Na Epístola aos Colossenses, o Apóstolo Paulo
refere-se à Encarnação qual mistério oculto a todos
os séculos e gerações (Col 1,26). Por que diz êle
"mistério oculto"? Não parece que, após tantas
profecias, deveria ser um mistério revelado? -
Responder-me-eis talvez que só era conhecido pelos
judeus: "Deus é conhecido na Judéia" (SI 75,2), e
que as nações 11ão se achavam iniciadas no seu
conhecimento. É verdade. Creio, todavia, q11e,
além desta resposta, há outra: o mistério da En­
carnação e o da Redenção permanecem mistérios
ocultos porque, mesmo depois de revelados, são
tão grandes, tão belos, que constituem sempre ob­
jeto de admiração. E sua realização histórica,
1nesmo após tão longa preparação, ultrapassa ain­
da o esplendor das profecias e das promessas di-
VJnas.
Acreditareis que haja no mundo quem ouse
pretender seja nosso Senhor Jesus Cristo um mito,
u.ma lenda, uma alegria, um ser imaginário, uma
fantasia criada pela imaginação dos povos? Tudo
2 O autor destas páginas deixa entrever uma idéia hoje plenamente
f.ocalizada com a renovação biblica que conhecemos: a unidade funda­
mental dos dois testamentos, sendo um a prefiguração do outro que
haverá de exprimir a realidade total. Os que desejarem aprofundar êsse­
maravilhoso paralelo lerão com proveito a obra: Figures Bibliques, de
F. HAus (publicada em francês pelas Ed. Alsatia). Cada personagem da
Bíblia é estudado em si mesmo e em sua relação com o Nõvo Testamento.
Êsse livro apresenta numerosas e imprevistas sinopses, bem como grande
riqueza de sugestões.

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isso já foi dito e tudo isso despertot1 a·plausos.
Tais criaturas são capazes de descobrir, pelas i111-
perceptíveís vibrações, uma estrêla ignorada; de
concluir que existe uma corrente magnética qt1an­
do vêem a agulha da bússola inclinar-se obsti11a­
damente para o norte; de reconhecer pela vaga
espumante o invisível rochedo que se oculta sob
as ondas. Por outras palavras, pelo qt1e se vê,
são capazes de deduzir o que se 11ão vê direta­
mente. E, ao tratar-se de nosso Senhor Jesus
Cristo, são capazes de ver a história humana di­
rigir-se e orientar-se tôda para êle, sem tirar a
conclusão de sua existência real. Deixe:n10-las.
Nosso Senhor Jesus Cristo teve també1n as suas
testemunhas que deixaram depoin1ento consignado
em documentos contemporâneos, assi11.ados, data­
dos, documentos que chama1nos divinos.

Jesus Cristo,
único objeto de a1nor através dos séculos

Veio o Senhor. E veio com uma alma irmã


da nossa, e111 uma carne irmã da nossa. Veio.
e, em suma, foi bem recebido. Quem é amado,
senão êle, êle apenas? Em quen1 se pensa? A
quem, em nossa terra, se dirige essa inefável mes­
cla de ternura, de adoração, de respeito, de amor?
A quem? Ao Senhor tão sàmente. E se, além do
Senhor, outras almas são amadas, é ainda por êle,

56 https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
por motivo de se lhe assemelharem, por causa de
suas próprias relações co111 nosso Senhor Jesus
Cristo. No fundo, só êle é amado. Pediu ao mun-­
do sacerdotes: êle os teve; quis confessores: êstes
não lhe faltaran1; mártires: deram-se-lhe aos mi­
lhares; virgens: vêde a inun1erável falange das
que o seguem. Bem sei que, antes de deixá-lo
subir ao céu, a terra gravou-lhe nos sagrados me111-
bros as cinco chagas que nossa fé e nosso amor
não podem olvidar. Todavia, é forçoso reconhe­
cê-lo, a terra tratou bem o Senhor. Só êle cons­
titui exceção no universal esquecimento em qt1e
caem tôdas as coisas: só êle é amado.
O Senhor preexistiu. Veio. E sobreviveu.
Desde que viu seu Filho levantado da terra -
"Quando fôr levantado da terra, atrairei tudo a
1nin1," (Jo 12,32) - Deus mesmo parece ter-se es­
merado em perpetuar neste mundo a vida de seu
Filho. Tôdas as obras de Deus se lhe assemelha1n.
Reparai bem; tudo quanto é verdadeiramente belo
parece-se com o Senhor. O homem sobrenatural,
a Igreja, os sacramentos, a Sagrada Escritura, tudo
é o Senhor. Mais uma vez, tudo quanto é verda­
deiramente grande, verdadeiramente nobre, verda-­
deiramente belo, é o Senhor, é a beleza do Senhor
reproduzida, fragmentada, prismatizada.
Vou mais longe. Ê forçoso notá-lo : chega a
causar admiração, .no curso do ano litúrgico, a
multidão de santos que se sucedem ininterrupta­
mente. Parece, às vêzes, que tão variegada mul-

57
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tidão nos distrai da beleza de nosso Senhor e nos
desvia de Deus. Por que não se reza diàriamente
o ofício da féria? Por que não é todo dia festa
de nosso Senhor? É que, na realidade, só dêle
se ocupa a Igreja. São João o diz expressamente:
"Da sua plenitude todos nós recebemos graça sô­
bre graça" (Jo 1,16 ). O Senhor veio, e nêle hau­
rimos. Tôdas as santidades diversas que estuda­
mos no decurso do ano e reunimos numa festa
única de Todos os Santos, devido à nossa impos­
sibilidade de dar a cada uma a atenção que me­
rece, tôdas essas santidades brotaram da mesma
fonte, tôdas essas belezas sobrenaturais provêm da
1nesma Beleza, todos os rios do mesmo Oceano.
E, propondo sucessivamente à nossa admiração e
à nossa boa-vontade os esplendores sobrenaturais
dos santos, a Igreja não faz senão mostrar-nos
sempre a beleza do Senhor reproduzindo-se inces­
santeme11te, fragmentada, diversificada, mas sem-
, .
pre 11n1ca.
Co11heceis a teoria que me é cara, segundo a
qual tôda beleza sobrenatural é uma beleza pre­
existente. Tudo quanto há de esplendores nas
almas santas que sucessivamente apareceram no
decorrer dos tempos e cada uma em sua hora,
existiu já na alma de nosso Senhor Jesus Cristo,
capaz de dar-se a todos, sem se empobrecer jamais.
Permiti que vos sugira uma idéia extrava­
gante: por que não nos deixou o Senhor um re­
trato seu?.. . Sem dúvida, há um suficiente con-

58
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
junto tradicional que nos legou os traços do Se­
nhor� Mas por que não veio êle na época da fo­
tografia? Ah! é bem simples: cada um teria acre­
ditado ingênuame-nte que tal retrato do Senhor
seria êle mesmo. Não, a se1nelhança do Senhor,
é nas almas que se acha. O verdadeiro retrato do
Senhor sois vós!
Uma indagação ainda: Por que a Sagrada Es­
critura, história contínua desde o "ln principio"
do Gênesis até ao "llen,i, Domine Iesu" que encer­
ra o Apocalipse, sofre interrupção desde os Após­
tolos até os últi1nos dias? Sempre pela mesma
razão: cabe aos santos escrever essa história de
nosso Se11hor Jesus Cristo.
Vêdes que, em verdade, só nosso Senhor Jesus
Cristo existe. O mundo inteiro o contempla: a
semana recorda-nos sua Paixão; o ano dispõe-se
de acôrdo com êle e o desenvolvimento de seus
mistérios. Os séculos contam-se a partir de seu
• - r
nascimento, os povos sao a seu ravor ou contra
êle. Êle é o ''Vexillum Dei", o Estandarte de Deus,
implantado entre as nações. Não forma o mundo
inteiro o se11 cortejo? E, depois que todo o mundo
antigo se voltou para êle, não se acha o nôvo m11n­
do dividido entre a recordação de sua primeira
vinda, a expetativa e a esperança da segunda? E
não é o grito de tôda alma cristã que se trans­
mitiu aos lábios do Apóstolo, dizendo: "Somos ci­
dadãos do céu, de onde esperamos o Salvador e
Senhor Jesus .Cristo" (Flp 3,20)? Não houve, nem

https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 59
haverá jan1ais existência tão elevada e tão exclu­
sivame11te digna da atenção de nossa fé.

A Eitcaristia,
coroamento do an1or de J esz.-ts Crista

Será tudo? Teremos investigado basta11te a


profunda realidade de nosso Senhor Jesus Cristo?
Ainda não. O Senhor quis auxiliar nossa fé, aju­
dar nossa conte1nplação, cioso de ser para nós a
mais doce, a mais íntima, a mais próxima de tôdas
as realidades. Se tudo se limitara à E11carnação
(e ela poderia ter-se limitado), se o Senhor não
tivesse permanecido conosco, a Ascensão teria cons­
tituído para nós u1na festa, por ser o dia em que
o Senhor tomou posse definitiva à direita do Pai,
posse do reino que conquistara com o próprio
Sangue. E creio que, num santo desinterêsse, po­
deríamos compartilhar da alegria, da glória, do
triunfo do Se11hor, sem levar em conta a solidão
em que nos abandonara. Sim, creio que a Ascen­
são seria uma festa, mas que festa? ...
Para n1edir os benefícios do Senhor, devemos
reconhecer, não apenas a sua liberalidade, mas
também a sua absoluta liberdade. Ninguém mais
que Deus é soberanamente livre em suas mercês.
O Senhor podia livremente instituir ou deixar de
instituir a Eucaristia. Poderia ter-se limitado à
Encarnação e à Redenção. Sem dúvida, a Encar-

60 https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
nação era já urna promessa implícita da Euca­
ristia. Não obstante, o Senhor permanecia livre.
Se se limitasse à Encarnação e à Redenção,
já teria merecido de nós imensa gratidão. Pare­
ce-me, todavia, que no caso de não nos dejxar o
Senhor a Eucaristia como eterno memorial de sua
vinda e meio de sua presença real, as almas se
voltariam para o passado com reconhecimento, sem
dúvida, 1nas com singular expressão de dor. Pen­
saríamos incessantemente 110s trinta e três anos que
o Senhor consentira em passar na terra, sonharía­
mos co1n a pequenina província da Judéia que per­
correra, seguiríamos com amor e dor o vestígio de
seus passos, voltaríamos espiritualmente a ver Be­
lém e o berço do divino Infante, o Egito onde
derrubava os ídolos e semeava os germes da vida
monástica, Nazaré, Cafarnaum, Jerusalém. Haveria
reconhecimento, mas reconhecimento mesclado de
infinitos queixumes. . Teríamos dito conosco:
"Ah! seria belo demais. . . o céu sentiria ciúmes
de nós" Até, quem sabe? teríamos dirigido ao
Senhor uma discreta queixa: "Então, não havia
nas fontes de vosso Amor e de vossa infinita Sa­
bedoria, um meio, um processo de permanecerdes
conosco? ... " as almas iriam ter convosco quais
ondas dos rios precipitando-se no oceano. . . Disse­
ra-nos o vosso Apóstolo que vossos dons são s·em ar­
rependimento: corno vos afastastes? Será então até
a eternidade? Todavia, só vós podeis cumular ..
como só vós podeis medir o vazio causado pela

https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 61
vossa partida: quem nos haverá de consolar, na
saudade que teremos do Deus desaparecido? ... "
Tôdas essas queixas são impossíveis. O Se-­
nhor veio; o Senhor ficou. Permaneceu e11tre nós,
no ce.ntro de nossa vida, para ser o nosso guia,
conselheiro, sustentáculo, amparo, fôrça, alimento,
consolação, alegria.. Diz-se, por vêzes, que tudo
isso é pura invenção. Não obstante, os mistérios
dessa natureza trazem consigo sua própria demons­
tração. Não é dessa maneira que o ho1nem in­
venta. Desafio a alma humana, naturalmente egoís-­
ta mas tão desinteressada quanto queirais supor,
eu a desafio a inventar jamais algo de semelhante.
Vêde: há dezessete anos que, tôda 1nanhã, diz
um pobre sacerdote ao Senhor que venha,. Dezes-•
sete anos! E o Senhor, que é fiel, vem cada dia.
Desce às minhas mãos, mais pobre que no Calvá­
rio, menor que em Belém... E o faz no desígnio
de chegar até nós. . . Desce aos nossos altares onde
se estabelece num estado de morte, de aniquila­
mento, de tal aniquilamento que, doravante, sua
única função é a de tornar-se alimento de tôda
alma cristã., seja qual fôr. . . Nesse estado de
morte, encontra-se realmente vivo, já que no Sa­
cramento se acha nas condições da eternidade.
E não menos verdade é que, no altar, o aniquila­
mento é p�rfeito, total, absoluto: "ln cruce latebat
sola Deitas, at hic latet simiLl et humanitas" 3• No
3 Hino "Adoro-te" :
"Sõ a divindade na cruz se ocultava,
Aqui também se oculta a humanidade".

62 https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
Calvário, velava-se a Divindade, mas era ainda vi­
sível tôda a humanidade de 11osso Senhor. A sua
beleza humana, embora fanada e desfigurada pelo
sofrimento, tocava ainda o centurião, absorvia a
contemplação de Maria Madalena. Beleza que, para
a Santíssima Virgem ao pé da Cruz, era objeto de
inexprimível adoração. No Sacramento, porém .,
desapareceu até a humanidade. A beleza de nosso
Senhor oculta-se por detrás dos véus eucarísticos.
E é preciso que nossa fé lhe restitua, uma por uma,
tôdas as glórias, tôdas as grandezas, tôdas as mag­
nificências, tôdas as belezas de que voluntària­
mente se despojou.
Acaso já pensamos no número das missas? É
o sacrifício eterno. Devido à diferença de horários,
graças à continuidade do movimento de revolução,
a terra, desde o momento do Calvário, oferece inin­
terruptamente ao olhar êsse espetáculo, do qual
já não se pode prescindir. Seria permitido pensar
na existência de alguma relação entre o número
dos eleitos e o dos sacrifícios? Tendo cada eleito
a sua missa e, por conseguinte, o seu Calvário,
diria o Senhor a cada uma dessas almas remidas
com o seu Sangue: "Ofereci-me por ti"?
Eis, num rápido estudo, a vida de nosso Se­
nhor: :f:le afastou o esquecimento; fixa a atenção
e nos fascina o olhar. Deveras, nada interessa,
senão êle. Vivemos face a face com êle: a santa
missa, a cujo redor se dispõe o ofício divino, é o
Senhor; a oração, a contínua oração de nossa vida,

https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 63
é êle; as almas de vossas irmãs, são êle; vossos
trabalhos, vossos estudos, são êle: é nosso Senhor
fechando todos os caminhos de vossa vida, para
que vossa contemplação se concentre exclusiva­
mente nêle. E vêdes sob que forma infinitamente
amorosa se realiza a palavra apostólica: "Jesus
Cristo ontem e hoje, o n1esmo também pelos sé­
culos": sob a forma da santa missa, sob a forma
da Eucaristia. O Calvário é para nós a santa missa;
Belém, a presença real; a Encarnação, a santa
co111unhão, o Senhor que vem a nós, que desce
às 11.ossas almas, a fim de as nutrir e fortificar.
Se quiserdes reler os capítulos 7 e 8 do Livro
da Sabedoria, encontrareis admirável elogio de
nosso Senhor Jesus Cristo, eterna Sabedoria. Elo­
gio que resume magnificamente e ultrapassa t11do
quanto dissemos a seu respeito. No testemunho
dos autores inspirados, nada existe digno de com­
parar-se a essa divina Sabedoria: "Nem pus em
paralelo com ela as pedras preciosas, porque todo
o ouro em sua comparação é ttm pouco de areia;
e a prata será considerada como lôdo à sua vista.
- Amei-a mais do que a saúde e qtle a formosura,
e resolvi-me a tê-la por luz, porque a sua claridade
é inextinguível" (Sab 7,9-10). E o elogio termi11a
com as seguintes palavras: "Entrando em minha
casa, encontrarei nela o meu descanso; porque a
sua conversação não tem nada de desagradável, nem
a sua companhia nada de fastidioso, mas tudo nela
é satisfação e alegria" (Sab 8,16). Não pode haver

64 https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
tédio em sua intimidade, nem tristeza em seu
� .
conv1v10.
Como vêdes, a relação perseverante que temos
com a Santíssima Trindade, por meio da união com
nosso Senhor Jesus Cristo, faz jorrar no centro de
nossa alma uma fonte inextinguível de alegria.
Refiro-me - e todo o mundo assim o entende -
à alegria sobrenatural, q11e desabrocha em nosso
coração aos raios do Sol divino. E, na verdade,
que nos falta? Há no mundo algo que valha Deus,
que ,,alha nosso Senhor Jesus Cristo? Já não é,
para. nós, a eternidade?

65
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III

A IGREJA

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"Cristo amou a Igreja e se entregoit por ela"
(Ef 5,25 ).
O objetivo que visamos é estabelecer a estrêla
polar de nossa vida, fixar o olhar de nossa inteli­
gência, esclarecida pela fé, sôbre as realidades in­
visíveis, idéias diretrizes de tôda a 11ossa vida. Fa­
lei sôbre Deus, falei sôbre nosso Senhor Jesus
Cristo, resta-me falar sôbre a Igreja. �Ião obs­
tante a aparente triplicidade, há intimidade pro­
funda, unidade perfeita entre essas três realidades.
O que faz a beleza das coisas, é Deus, é o re­
flexo, a manifestação, a presença de Deus nelas.
E a fé é precisan1ente, em nós, a i11teligê11cia st1-
perior que nos faz ver, onde se encontram ,. a ver­
dade e a beleza de Deus. Ora, há Deus na Igreja,
-e assim co1no Jes11s Cristo se atén1 a Deus, a Igreja
atém-se a Jesus Cristo. A Igreja é Jes11s Cristo
vivo, irradiante, que se continua, que se prolonga
na humanidade regenerada, de quem é Cabeça. A
Igreja é a Encarnação que se perpetua através dos
tempos. A Igreja é a Redenção que se oferece e
se realiza em tôdas as gerações.
Tendes observado como procedemos por hi­
póteses? Ê, sem dúvida, o meio mais seguro e

69
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mais habitualmente empregado para estabelecer
uma verdade, seja qual fôr. Para avaliar com exa-­
tidão o lugar ocupado por um ser qualquer, nada
melhor do que supô-lo desaparecido. Por isso,
indagamos : que aconteceria se Deus pudesse ser
atingido na sua beatitude? Que aconteceria se
nosso Senhor não tivesse instituído ·a Eucaristia,
Encarnação que se perpetua, Belém que se con­
tinua? E reconhecemos que o desaparecimento da
Eucaristia teria sido certamente, no mundo sobre­
natural, o mesmo que no mundo natural o desa­
parecimento do sol que nos ilumina e nos aquece.

A Igreja,
depositária do Espírito do Cristo

Já pensastes no que aconteceria com a ver­


dade e a doutrina sobrenaturais trazidas ao mun­
do pelo Senhor, se êle não instituísse a Igreja como
sua representante e depositária da integridade da
revelação e da virtude sobrenatural de santificação?
A doutrina sobre11atural logo se transforma num
informe conjunto, totalmente devastado pela he­
resia. Que seria da doutrina de nosso Senhor
Jesus Cristo, dessa túnica inconsútil rasgada, di­
lacerada, desfeita em farrapos, se a Igreja não
houvera defendido e solenemente afirmado, no meio
de tantas vozes discordantes, a integridade sobre-

70 https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
natural que recebera de seu Espôso: a revelação
e a fé?
O mesmo acontece com a virtude sobrenatural
de santificação: sem a Igreja, achar-se-ia compro­
metida e descoroada a obra do Senhor. Imaginai
um homem perturbado, atormentado pelos remor­
sos. Vai prostrar-se aos pés de outro homem que,
a seus olhos, é o representante de nosso Senhor
Jesus Cristo. Ajoelha-se, bate no peito e diz-lhe:
"Perante o mundo, minha vida não tem mácula;
mas a vós, falo como a Deus, eis a verdade sôbre
a minha alma e sôbre mim ... Arrependo-me, peço
perdão a Deus e, a vós, meu pai, a absolvição".
E o sacerdote absolve o culpado que, aliviado do
pêso de suas faltas, vai em paz. Ah! é que possui
a palavra do Senhor. O homem a quern se diri­
giu, para êle não é u1n homem; direi que é o
representante e o depositário dos podêres de nos­
so Senhor? Não: é mais ainda. Êsse homem, é
Jesu� Cristo mesmo, a tal ponto que, se nosso
Senhor aparecesse na realidade de sua beleza di­
vina e humana, não daria garantia e segurança
mais autênticas que as recebidas de seu ministro.
Mas, se a Igreja não existira, se não fôra a
depositária autêntica e oficial da verdade, da graça
e do perdão, se não lhe fôra conferido o poder
de santificação, que seria da virtude de santifi­
cação dos sacramentos? E que seria do próprio
Cristo sem a Igreja? Nosso Senhor teria sido
apenas um deslumbrante meteoro, aparecendo al-

https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 71
guns anos sôbre a terra; um fenômeno brilhante,
extraordinário, cujo desaparecimento haveria mer­
gulhado o mundo numa obscuridade mais pro­
funda que dantes. Todavia, não foi dessa maneira
que se concebeu e realizou o desígnio de Deus.
Nosso Senhor, cioso de permanecer eter:na:me11te
conosco, deu-nos a Igreja como nos deu a Eu­
caristia.

L4. .lgreja,
criação do Espírito Santo

O nascimento da Igreja ocorreu no dia de


Pentecostes. Naquele dia, encontramos u:rna re­
edição da cena da criação. Vemos o "factus est",
não "in animam viventem", mas "in Spiritum vi­
vificantem" Naquele dia, a alma da Igreja, o
Espírito de Jesus Cristo veio-lhe do alto ..
Notável é o cuidado com que o Senhor parece
decalcar a criação da Igreja pela do primeiro ho­
mem. Considerai: quando criou Adão, Deus ton1.ou
um pouco de lôdo, modelou-o com suas divinas
mãos, pensando no Cristo que haveria de vir, -
pois o ideal de Deus, ao formar o corpo de Adão,
era o seu Filho encarnado, o nôvo Adão. E, te11do
formado êsse corpo humano, deu-lhe um sôpro de
vida: "insufloit em suas narinas um hálito de vida"
(Gên 2,7). Vejo algo de semelhante 11a i11stituição
da Igreja. Também nesse caso, o Senhor co1-r1eça

72
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por tomar um pouco de lôdo, modela-o, depois en­
via-lhe o Espírito vivificante. De fato, considerados.
após a vinda do Espírito Santo, os apóstolos cons-·
tituem uma criação sobrenatural absolutamente
incomparável, já que a n1ais alta dignidade, após
a Maternidade divina, é o apostolado. Chega mes­
mo a ser uma forma da Maternidade, como diz o,
Senhor e, depois dêle, São Paulo: "Todo aqtlêle
que fizer a vontade de 1neu Pai qile está nos céus,
êsse é meu irmão, e minha ir1nã, e minha mãe''
(Mt 12,50). "Meus filhinhos, pelos quais sofro d.e
nôvo dores de parto até ver Cristo formado en1
vós!" (Gál 4,19).
Todavia, forçoso é reconhecê-lo, aquêles a quem
chamamos São Pedro, São João, São Tiago, Sar1to
André ( São Paulo só mais tarde apareceu), não
eram inteligências s11periores. Para prová-lo, nada
melhor que suas conversas co1n o Senhor. Quan-­
tas reflexões pueris, quantas discussões sôbre a
preeminência! Mesmo depois da Ressurreição, após
os quarenta dias de colóquio com o Senhor que­
lhes fala do reino de Deus, nada compreendem
ainda. Entretanto, é com êstes homens, é com
tais homens, que nosso Senhor Jesus Cristo vai
fundar sua Igreja.
Na hora de os deixar, revela-lhes a grande mis­
são. A ingênua pergunta: "Senhor, é agora que
vais restabelecer o reino de Israel?" (At 1,6), Jesus,.
sem condescender em satisfazer-lhes a vã curiosi­
dade, manifesta-lhes a obra para a q11al os destina:

https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 73
uA vós não compete conhecer os tempos nem os
.momentos que o Pai fixou em virtude do seu pró­
prio poder; porém recebereis a virtude do Espírito
Santo, que descerá sôbre vós, e sereis minhas tes­
temunhas em Jerusalém, em tôda a Judéia, na
.Samaria, e até os extremos da terra" (At 1,7-8 ).
Essas palavras constituem a solene promessa da
Igreja, verdadeiro reino de Israel.
Sua carta de investidura, o ato que realme11te
a constituiu, acha-se contido naquelas outras pa­
lavras que nosso Senhor Jesus Cristo dirige ainda
a seus apóstolos, pouco antes de os deixar para
subir novamente ao Pai: "Ide por todo o mundo,
-diz-lhe com divina autoridade, e pregai o Evange­
lho a tôda criatura" (Me 16,15 ). Jamais ouvira o
mundo algo de semelhante. Tentara-se alcançar a
unidade pela violência, pelas armas, pela fôrça.
E11saiaram-se monarquias universais: o império
:assírio, o império dos medos, o império de Ale­
xandre. Grandes domínios se foram formando su­
cessivamente no oriente e no ocidente, como que
para guiar a massa das nações humanas civiliza­
.das para a sua definitiva e predestinada capital.
Pouco duraram, contudo, essas tentativas, porque
lhes faltava coesão. Quanto a uma monarquia es­
tabelecida sôbre a fé, fundada na verdade, unida
�pela caridade, tal idéia, o espírito humano não a
teria sequer pressentido. E, deveras, teria sido
bem difícil. . . No entanto, foi precisamente essa

74 https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
obra imensa que o Senhor tentou. . . e saiu triun­
fante.
Dirigiu-se êle à Grécia, o gênio mais afável,
mais inteligente, mais liberal, mais expansivo, mais
livre, gênio no qual hauriram tôdas as civilizações,
até a nossa européia? E não parece que com
apóstolos escolhidos nas escolas de Aristóteles e
de Platão, a Igreja teria futuro? Dirigiu-se acaso
aos romanos, raça forte, sábia e poderosa na guer­
ra, raça de gênio conquistador e unificador? Não,
com uma ·ousadia tôda divina, o Senhor dirigiu-se
aos judeus, raça desprezada, estreita e servil, com
o gênio menos expansivo do mundo. Entretanto,
foi nessa raça que o Senhor escolheu seus após-
tolos; foi com êsses homens que criou o reino da
unidade pela persuasão, pela fé e pelo amor. A
verdade recebida do Pai, êle a deu à inteligência
de seus discípulos e, por meio dêles, à sua Igreja.
Tudo lhe deu: seus méritos, seu Sangue, as almas
que remiu, porque tôdas as almas pertencem à
Igreja. ·Não tem limites a missão de que ela se
acha investida: "Assim como meu Pai me enviou,
também eu vos envio" (Jo 20,21).
É preciso ter esta verdade profundamente ra­
dicada no coração, a fim de proclamá-la bem alto
e de realizá-la imediatamente em nossa vida.

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A Igreja, sociedade perfeita

Importa sabermos que nosso Senhor quis cons­


tituir, não apenas u1na religião, mas uma sociedade.
Conjuro-vos a não esquecerdes êsse ponto de vista.
Os Estados, os governos, os liberais de hoje, seja
qual fôr a sua categoria, legistas ou demais, até
mesmo católicos liberais, não o admitem. De
bom grado admitiriam reconhecer em Jesus Cristo
o fundador de uma religião, não de uma socie­
dade. Contudo, o Senhor não veio simplesmente
trazer ao mundo um.a religião, criar indivíduos
batizados; mas criar o sobrenatural na terra. É
em virtude de nossa naturalização, ou melhor, de
11ossa sobrenaturalização, de nosso ingresso na so­
ciedade que êle fundou na terra, que nos tornamos
filhos de Deus. É tornando-se filho da Igreja que
se pode ser filho de Deus. Sem dúvida, a1nbos os
fatos são historicamente simultâneos; todavia, há
como que uma prioridade lógica a exigir perten­
çamos primeiro à Igreja como sociedade, a fim de
que, por meio dela, logo sejamos de Deus.
Estudemos sumàriamente como, e sob -qu.e no­
mes, se acha quase se1npre simbolizada a Igreja
na Sagrada Escritura: é uma fa1nília, um rebanho,
um b.anquete, um reino. Sob êsses diversos no1nes
e símbolos, porém, encontramos sen1pre a idéia
de uma sociedade organizada. Quando Caifás, su..
mo sacerdote daquele ano, profetizava que o Se...

76 https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
nhor deveria morrer "para unir num só corpo os
filhos de Deus, que estavam dispersos" (Jo 11,52),
anunciava, sem o saber, a verdade que agora afir­
mamos. Eis o fato: até então, os filhos de Deus
estavam disseminados pelo mundo, sem laço algum
que os agrupasse entre si. Doravante, achar-se-ão
reunidos no seio da Mãe, isto é, da sociedade per..
feita que se chama Igreja.
Sim, a Igreja é uma sociedade perfeita, por­
que traz em si todos os elementos necessários à
sua própria existência, à sua vida. f: uma sacie..
dade livre, uma sociedade soberana, e chama-se
Espôsa. Ora, de modo algum convém ·seja vassala
a Espôsa de nosso Senhor Jesus Cristo. Preten­
dê-lo, seria humilhar a Deus. Irei mais_ longe: a
Igreja só é livre quando soberana. Tudo se orien­
ta para ela, como para nosso Senhor. Para ela,
tudo existe. Tudo lhe pertence, de fato e de direito,
por direito e por destinação. Existem no mundo
milhões de almas: pertencem-lhe. Os movimentos
geográficos, as crises econômicas, as revoluções,
tudo se relaciona com ela : numa palavra, na Igre­
ja e pela Igreja temos a explicação de tudo. Por
ela e com ela nos é dada a chave da história do
mundo natural e do mundo sobrenatural. E as­
sim é, porque a Igreja é o têrmo de tudo e por­
que tudo para ela se encaminha.
Devemos sempre, e em tudo, estabelecer-nos
nesse ponto de vista e reivindicar energicamente os
direitos de nossa Mãe. No caso de surgir con-

https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 77
flito entre ela e uma sociedade qualquer, de ter
que reconhecer se tal ou qual poder determinado
deveras lhe pertence, o princípio universal de so­
lução é sempre o mesmo : tal direito pertence ao
Senhor, logo, também à Igreja sua Espôsa.
Dizia Santo Anselmo: "Nihil amplius diligit
Deus quam Ecclesiae suae libertatem'' Deus não
mudou. Nada ama tanto, ainda hoje, quanto a
liberdade de sua Igreja. E para a Igreja, ser livre
é ser soberana. O papa, seu chefe visível, só é
livre quando soberano: a liberdade da Igreja con­
funde-se com a sua soberania.

A Igreja, reino de Jesus Cristo

Que nomes tem ainda a Igreja? E o reino de


Jesus Cristo. O Senhor é rei. Foi justamente com
êste título que o anjo o anunciou à Mãe: ' 0 Se­
1

nhor Deus dar-lhe-á o trono de Davi, seu pai, e


êle reinará 11a casa de Jacó pelos séculos'' (Lc 1,
32-33 ). O Sénhor reina sôbre o mundo regene­
rado, que se tornou sobrenatural. Nas derradei­
ras horas de sua vida mortal, nosso Senhor Jesus
Cristo se mostra cioso de afirmar, diante de Pi­
latos, o caráter inalienável de sua realeza. Per­
gunta-lhe o governador romano: "Logo, tu és rei?"
- Sim, responde o Senhor, "tu o dizes, eu sou rei".
E imediatamente, aponta o caráter especial de sua

78
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realeza: "Para isto nasci e para isto vim ao mundo,
para dar testemunho à verdade; todo aquêle que
é da verdade ouve minha voz" (Jo 18,37). Por­
tanto, o Senhor é Rei, Rei pela verdade; seu reino-,
a Igreja, reino que a nenhu1n outro se assemelha,
é o reino da verdade; seus súditos são os que es­
cutam e aceitam a verdade.
Rei, o Senhor o é deveras por sua divindade,
e pela Redenção. Ainda o é por outro título: à
diferença de todos os demais, é rei pelo espon­
tâneo e jubiloso sufrágio do nosso amor. Nós o
elegemos, nós o escolhemos, e foi por um sufrá­
gio absolutamente livre que o chamamos a reinar
sôbre nós.

A Igreja, espôsa de Cristo

A Igreja não é apenas um reino, é também


Espôsa: chama-se, e é verdadeiramente a Espôsa
de nosso Senhor Jesus Cristo. Êsse título encerra
urr1a afir�ativa de dileção. Mais ainda, uma afir­
mativa de predileção, de eleição, pois o Espôso
escolhe livremente a Espôsa. Uma afirmativa de
:união, de comunicação de todos os bens, já que
tudo é comum entre o Espôso e a Espôsa. Enfim,
uma afirmativa de tutela e de fidelidade por parte
daquele que a amou. Por conseguinte, se a Igreja
é espôsa, e se cada uma de vossas almas é real­
mente espôsa, o Senhor tem um compromisso de

https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 79
honra para convosco. E cumprirá fielmente, em
relação a cada uma de vossas almas, tudo quanto
acarretam as diferentes afirmativas que acabamos
de enumerar.

A Igreja, corpo de Cristo

A Igreja, Espôsa de 11osso Senhor Jesus Cristo,


também se denomina seu Corpo. Expressão cara
ao apóstolo São Paulo, encontramo-la freqüente­
mente em suas epístolas. Apraz-lhe comparar a
Igreja a um imenso corpo, cuja cabeça é o Senhor.
·Chegaremos a compreender o sentido profundo
,dessa expressão que não é metáfora, mas revela-nos
.a relação íntima, vital, que existe entre nosso
:Senhor Jesus Cristo e cada uma de nossas almas
individ11ais, cuja reunião forma a Igreja?
A Igreja é uma sociedade. Ora, qualquer so­
ciedade é um corpo, um todo orgânico, cujos ele­
]nentos se acham agrupados e reunidos por um
sistema de relações mútuas. Muitas vêzes, po­
rém, de maneira apenas fortuita, devida às cir­
cunstâncias do nascimento e do ambiente. É por
um fato acidental, embora providencial, que sou
francês e não belga.
Há um todo orgânico mais real ., é o gênero
humano, tôda a humanidade proveniente de uma
fonte original comum, e condensada, contida em
Adão, cujo corpo místico ela forma.

80 https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
H.á, enfim, um todo orgânico mais real ainda.
O apóstolo Paulo -convida-nos a considerar a uni­
dade de tôdas as almas em Jesus Cristo como
simbolizada pela unidade de todos os homens em
Adão. Escreve êle aos coríntios: "O primeiro ho­
nienz, feito da terra, é terreno; o segundo homem,
vindo do céu, é celeste" ( lCor 15,47 ). Assim esta­
belece estreito paralelismo entre a humanidade
reuni.da, condensada ,em Adão, e a humanidade
achando-se tôdas essas individualidades intima­
mente ligadas pela fé e pelos sacramentos, pela
submissão aos mesmos chefes e aos mesmos
pastôres.
Há, no entanto, uma diferença: a unidade de
tôdas as almas em Jesus Cristo é muito mais real,
muito mais profunda, que a de todos os homens
em Adão. Sem dúvida, recebemos de Adão a vida
natura], mas por intermediários; a vida sobrena­
tural, ao contrário, recebemo-la direta e unica­
mente "das fontes do Salvador" (Is 12,3 ). Dêle,
e só d.êle, é que recebemos a vida. Vida que nos
é da.da pelo batismo. E depois aumenta, cresce,
completa-se e, finalmente, coroa-se pela recepção
dos outros sacramentos. Além do mais, a teolo-­
gia nos ensina que todos os atos sacramentais de­
vem considerar-se atos e operações imediatas de
nosso Senhor Jesus Cristo. Seja Pedro ou Paulo
quem batiza, segundo observa Santo Agostinho, é
sempre nosso Senhor Jesus Cristo quem batiza.

6 A con.tenipla<:ão . . . 81
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
Mas esta vida do Senhor, é na Igreja que
circula, é à sua Espôsa que nosso Senhor Jesus
Cristo a confiou. Êle tudo lhe deu: se11 Sa11gue,
seu Corpo, seus méritos. Estabeleceu-a dispensa­
dora perpétua dêsse tesouro de santificação ativa,
dessa riqueza de méritos que constituiu eu.trc as
suas mãos: o santo sacrifício da missa, o sacrifício
de louvor, a fé, a tradição, a Escritura, o poder de
santificação e os dons sobrenaturais, o poder de
govêrno e a autoridade, foi a ela que .e11tregou.
E, nesse terreno, vêde a que ponto se afirma
a unidade entre nosso Senhor e a Igreja: tanto é
verdade que nas suas mãos colocou o Senhor to­
dos êsses tesouros, que nenhum sacramento pode
ser vàlidamente conferido sem ter o ministro a
intenção de fazer o que faz a Igreja. E assim é
realmente a Igreja, rica de tôdas as riquezas do
Senhor, que sempre intervém diretamente.

Conseqüências desta doutrina


para a vida cristã

Qual deve ser então o nosso proceder? .A que


conclusões práticas devem conduzir-nos essas in­
teressantes considerações teológicas? Somos da
Igreja, pertencemos a essa incomparável unidade,
a essa sociedade, a essa imensa família. E só em
virtude dêsse fato de pertencermos à Igreja, e por
meio dela a Jesus Cristo, é que entramos co1n

82 https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
Jesus Cristo na família incriada da Santíssima
Trindade.
Mas, se é assin1, é necessário tomen,zos cons­
ciência de nossa vida e de nossa inserção no corpo
da Igreja.
Não é bastante ver Deus na criação sobrena­
tural, crer nessa obra divina, admirar-ll1e o detalhe­
e o funcionamento. Não é suficiente romper com
as outras concepções da ordem das coisas, e re­
conhecer platônicamente que tudo gravita ao redor
de Deus, que o centro universal de tudo não é o
sol, mas a glória divina, e que cabe à Igreja. pro­
curar essa glória.
Temos nosso l11gar e nossa parte de ação nesse
imenso corpo e de modo algum nos assiste direito·
de desinterêsse para com êle. E11tão, compre­
endeis imediatamente que um monge ou monja
(digamos: um cristão ou cristã) que se isolasse·
um pouco dos interêsses da Igreja para preoct1par­
-se exclusivamente com a sua salvação, a sua san­
tificação, a sua beleza sobrenatural, monja que só
existisse para o santo egoísmo de sua felicidade
espiritual sem preocupar-se com a Igreja a que·
pertence, tal monja estaria, - não receio afirmá-lo,.
- fora do seu estado: não seria 11en"1 monja, nem
cristã. Tratar-se-ia de uma pura e simples hiper­
trofia do próprio eu; ora, o eu natural ou sobre­
natural é sempre detestável. Direi mais; tôda.
monja que só existisse para a sua santa c�sa, para
a sua santa ordem, sem preocupação alguma com

https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 83,
a Igreja, seria tão pouco cristã quanto monja: o
egoísmo de grupo não vale mais que o pessoal e
isolado.
Sem dúvida, é necessário particularizar a ação.
Mas sem fazer exclusão alguma, de coração seme­
lhante ao coração de Deus. Sem jamais se desin­
teressar das necessidades, dos interêsses, das gló­
rias, dos sofrimentos da Igreja. Sem que fato al­
gum, a ela referente, deixe de causar em nossas
almas profunda repercussão, de modo a sentirmos
deveras que fazemos parte dêsse Corpo místico de
Jesus Cristo. Quando se trata de riquezas natu­
rais, é muito prudente medir e circunscrever sua
intervenção, porque, ao se dividirem, esgota1n-se
as riquezas materiais. Tratando-se, porém, de bens
sobrenaturais; dividem-se e jamais se esgotam. As­
sim, repito, não posso compreender um cristão,
consciente do que é na Igreja, um cristão a quem
tudo lembra a solidariedade orgânica que o une à
Igreja, não posso, digo eu, chegar a compreender
um cristão encerrado em si mesmo, sem ter no
coração o zêlo constante por tudo quanto inte­
ressa e diz respeito à santa Igreja de Deus.
E preciso saber encarar essas verdades e de
mitito perto. Na verdade, o amor de Deus faz
tremer. Pensai bem: nosso Senhor, o Filho de
Deus, veio a êste mundo, morreu numa cruz; dei­
xou o Sangue nas mãos de sua Espôsa, a Igreja.
Hoje é sexta-feira. Se fôssemos retrocedendo, de
sexta-feira em sexta-feira, chegaríamos finalmente

84 https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
àquela sexta-feira, àquele momento para sempre
solene, em que nosso Senhor Jesus Cristo se acha­
va prêso ao madeiro da cruz; chegaríamos àquelas
três hotas terríveis em que o Senhor estava lá,
suspenso entre o céu e a terra, est�ndendo os bra­
ços a quantos o contradiziam: "Estendi as 1ninhas
mãos todo o dia para um povo incrédulo, que
anda por itm caminho que não é bom" (Is 65,2).
Em face de tal espetáculo, é que se compreende a
palavra de nosso Senhor a Santa A11gela de Folig­
no: "Vê como te amei seriamente". E, em face
de tão sério amor do nosso Deus, possuiria deve­
ras a fé quem se desinteressasse? Conheceis a
palavra do Evangelho: "Quem não está comigo
está contra mim" (Mt 12,30). Ningué1n pode per­
tencer simultâneamente a dois caminhos: n.ão há
meio têrmo entre o apóstolo e o apóstata: ou se
é um, ou outro. É forçoso escolher.
Dir-me-eis talvez: Mas que posso eu fazer co111
a minha pobre vida? Como poderia, com a minha
pobre energia sobrenatural, sacudir a imensa inér­
cia do mundo inteiro?
Notai que a Igreja só se manté1n pela santi­
dade de seus filhos : um São Domingos e u.m São
Francisco, ao tempo do papa Inocêncio III, supor­
tavam os ombros a Basílica de Latrão. Considerai
o que fêz pela Igreja o nosso pai São Bento, o
que fêz Dom Guéranger, simplesmente escrevendo
o seu Ano Litúrgico. Compreendeis o pêso de uma
vida? Não tendes tal fôrça, sem dúvida, mas re­
fleti: é sempre p9r atos interiores que se alca:nça1n
�à ••�u�.�.:::.:,..,:_,-""!'!" ,- , •

https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 85
as
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vitórias de Deus. É co1n atos sobrenaturais
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interiores que se abala o mundo. E sabeis qual


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·o pêso de um ato sobrenatural?


Pretenderam certos físicos que ne1n um só áto­
mo pode entrar em vibração no universo sem que
o eco e a repercussão de seu vibrar se façam logo
sentir no mundo inteiro, tão estreita, real, pro­
funda é a correlação orgânica existente entre todos
os átomos do universo. O valor exato dessa teoria
para o mundo natural, eu o ignoro. Mas creio
no dogma da Comunhão dos Santos. E sei mui­
to bem que, em virtude da profunda correlação
orgânica, existente entre todos os membros do
Corpo místico -de Jesus Cristo, não podemos rea­
lizar, no segrêdo de nosso coração, o mais fácil,
mais singelo- e mais doce ato sobrenatural sem
que se produza o eco, a repercussão dêsse ato em
todo o mundo sobrenatural. Já considerastes o
alcance de um ato sobr,enatural, do "Quis ut Deus"
de São Miguel? Vêde a repercussão, no mundo
sobrenatural e histórico, dêsse ato interior, pois
interjor o foi com absoluta certeza, não tendo o
anjo, deveras, senão inteligência e vontade.
Sei que é imensa a inércia do mundo. Mas
também - e isto me tranqüiliza - que a idéia
é invencível, que uma idéia não morre, que uma
idéia triunfa sempre.
Lembro-me de que, ai11da criança, ia visitar
um tio. Vi no caminho pequenas colinas forma.­
das por montes de pedras e, no meio das factícias
colinas, percebi uma hastezinha. Era uma cere-
86 https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
jeira, Com o gênio de destruição que caracteriza
a criança, logo me esforcei por arrancar a haste.
Fiz cuidadosa limpeza a todo redor, tirei à direita,
à esqt1erda, num esfôrço inútil para achar as raízes
da maldita cerejeirazinha que se erguia insolente­
mente diante de mim. Vêde como se encadeiam
os fatos·: havia anos, passara por ali outro menino
e deixara cair uma semente de cereja. A semente
procurara um pouco de ar e de luz, brotara uma
cerejeira e ali se ostentava, no esplendor de sua
vida e de seus ramos, a despeito de mim, do meu
desespêro e dos meus infrutíferos esforços.
Que significa isto? Que nada no mundo pode
matar ·um germe qualquer; que nada no mundo
pode matar uma idéia, porque a idéia, por seu
caráter: :intelectual, escapa a tôda destruição.
Hoje, pobremente vos falei a respeito da Igreja.
Pois bem, essas idéias qt1e agora trocamos, dentro
de 40, de 50 anos, achar-se-ão em Wisques, na
Alemanlia, na Bélgica, por tôda parte aonde o vento
da perseguição - ou melhor, o vento da provi­
dência divina - as co11duzir 1• Ficai certos de que
percorrerão o seu caminho, porque, mais uma vez
1 Não seriam essas palavras, pronunciadas em 1899, uma visã.o pro­
fética dos acontecimentos que iriam produzir-se e que o autor não poderia
imagina:t? Efetivamente, os monges de Solesmes, expulsos de sua abadia
(1901), reunir-se-iam de nôvo na ilha de Wight, depois em Nossa Senhora
de Quarr · (Inglaterra). Um enxame de monges, partindo de Solesmes
para São Mauro sõbre o Liger (1890), instalar-se--â, em 1908, no Grão­
-Ducado de Luxemburgo, fundando a abadia de São Mauricio de Clervaux,
s-ob a direção de seu primeiro abade, Dom Eduardo de Coetlosquet, Um
dia, ressurgirá Fontgombault, onde os monges de Solesmes, voltando do
exílio, retomarão posse do velho mosteiro. Em nossos dias, a irradiação
cfe S'OlesmeEi estende .. se até ao Senegal, com a fundação de um priorado
em plena terra africana.

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insisto, a idéia é invencível. Os l1ome11s, :por }ner­
tes que sejam, não resistem eternamente. Q1Íando
se persevera, acabam por render-se. Às vêzes é
preciso tempo ( o gênio é uma longa paciência),
é preciso muito sofrimento. Mas, quando se sen­
tem amados, vendo alguém crucificado por amor,
acabam por ir a seu encontro: "Quando fôr le­
vantado da terra, atrairei tudo a mim" (Jo 12,32 ).
Existe, aliás, um meio infalível: temos a von­
tade, temos a graça, temos o amor, temos a ora­
ção, temos o Senhor por nós. :É imposs:ível que
o mundo resista a um feixe assim.
Quisera desenvolver estas considerações, mas
falta-me o tempo: apenas uma palavra sôbre a
oração. Estais lembradas de que, ao inicia:re:m os
apóstolos a pregação evangélica, houve e:ntre os
irmãos um comêço de discussão quanto à organi­
zação interna da família cristã. Os apóstolos res­
tabeleceram a harmonia; mas julgaram necessário
aliviar-se dos cuidados materiais da comu:nidade,
reservando-se exclusivamente à pregação e oração:
"Nós devemos atender à oração e ao mistéri-o da
palavra 11 (At 6,4 ). É inacreditável quanta luz en­
cerram certas palavras da Escritura para deter­
minar o que eu chamaria a hierarquia dos :nossos
deveres. De que dependem as vitórias de Deus?
Da agitação? Oh, não! Dependem da caln1a, do
silêncio, da prece. Creio que jamais é o homem
tão poderoso quanto ao dirigir-se diretamente a
Deus. Observareis que, mesmo ao se tratar da

88 https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
pregação evangélica, os apóstolos dão precedência
... -
a oraçao.
Assim, estaremos atentos, em primeiro lugar, à
oração; seremos perseverantes na prece. Nela, pos­
suímos a alavanca suficiente para sacudir a inércia
do mundo; temos o princípio onipotente para al­
cançar tôdas as vitórias de Deus.

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IV
O EDIFlCIO DE NOSSA VIDA SOBRENATURAL:
SUAS Bl\.SES FUNDAMENTAIS

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1) NOSSA CONDICÃO DE CRIATURAS

14Sabei que o Senhor é Deus; êle nos fêz, e não


nós a ·nós mesrnos" ( SI 99 ,3).
Não lamento o vos haver entretido com as
verdades sobrenaturais, sôbre as quais falamos até
agora; tão, pouco lamento o haver apenas apre­
sentado ràpidamente, e como que de passagem, tais
assuntos. Adverte-nos a Escritura que, aos sábios,
basta oferecer a oportunidade de refletir: "Dá ao
sábio ocasião, e se lhe acrescentará sabedoria"
(Prov 9) 9). Sei também que vos achais estabele­
cidas na doutrina e de bom grado aplicar-vos-ia
as palavras de São João: "Não necessitais de que
ninguém vos ensine" ( 1Jo 2,27 ). Precisais de que
venha alguém ensinar-vos, a vós, que estais sob a
obediência? Não ten.des, sob a obediência, a un­
ção do Espírito de Deus que vos ensina, êle pró­
prio, tôdas as coisas?
Entretanto, a vantagem incomparável que acha­
mos em. determinar, com tôda a clareza, essas rea­
lidades às quais se deve orientar habitualmente a
nossa ,,ida sob o olhar da fé, essa inapreciável

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vantagem é a de imprimir em nós, de 1naneira
quase inconsciente, a atitude e a fisionomia que
devemos ter na vida sobrenatural. Cada um de
nós, em virtude de sua natureza inteligente, em
virtude de sua alma de cristão, de batizado, pos-·
sui os recursos de um certo sentimento inato, ao
mesmo tempo natural e sobrenatural, de uma fle­
xibilidade íntima que lhe dá assumir q_uase invo­
luntàriamente, em face das pessoas e das coisas,
a atitude que lhe convém. Assim, creio firme­
mente que é suficiente colocar e manter uma alma
em face das realidades sobrenaturais para que logo
se ordene por si mesma. Na verdade, só uma coisa
temos a fazer: contemplar, contemplar com tôda
a nossa alma: "Todos nós, de face descoberta, re­
fletimos a glória do Senhor co·mo num espelho, e
nos transformamos na mesma imagem" (2Cor 3,18 ).
E do Apóstolo não diverge Santo Agostinho, ao
dizer: "A reflexão da inteligência é o princípio de
todo bem". Sim, o princípio de todo ben1, na vida
sobrenatural, é o saber considerar: "intelligere'·',
isto é, ler interiormente: "intellectus quasi intus
legere".
Há outra vantagem: a do amor das realidades
sobrenaturais, por conseguinte o amor da verdade.
Em face das realidades divinas, é impossível dei­
xar de experimentar imediatamente o desejo de
tornar-se veraz. - Mas, dir-me-eis talvez, tantas
causas impedem em nós a verdade e a exatidão;
tantos obstáculos se opõem à simplicidade! -

94
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Sem dúvida, são múltiplos os obs_táculos. Poden1,
todavia, reduzir-se a dois: a ilusão e a afetação,
escrófula da vida sobrenatural.
Na ilusão, sabeis que e11tra uma parte de ver-­
dade, uma primeira base desn1edidan1ente acres­
cida por não sei que vidros de aume11to, pertur­
badores de nossa visão interior: um princípio ver­
dadeiro, mas que sofreu desvios ulteriores.
Na afetação, não existe coisa alguma. :É sim­
plesmente o nada, um drama, uma criação quimé­
rica, um ser imaginário, um romance onde alguém
se instala e se constitui, ao mesmo tempo, objetivo,
herói, espectador. Para que serve tudo isso? Che­
gará o dia em que, face à revelação das realidades
sobrenaturais, diante do Senhor que iluminará por
vez primeira, no limiar da eternidade, a nossa alma
e tôda a nossa vida, será necessário inclinar-se ante
a realidade austera e despojar-se da túnica de ilu­
são e afetação para entrar na exata e nua simpli­
cidade. Por que esperar essa hora temível? Con­
templemos o invisível, e imediatamente se tornará
verdadeira a nossa alma: pois acho impossível coe­
xistirem a afetação e a contemplação assídua das
realidades sobrenaturais.
Determinei, de certo modo, a estrêla polar de
nossa vida. A um navio, porém, não basta a es­
trêla polar; também lhe é necessária a bússola.
A estrêla polar pode desaparecer, velada pelas nu-­
vens, quand9 há mau tempo e o mar se apresenta
proceloso. :E. raro na ordem da fé; todavia, e a

https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 95
rigor, pode acontecer faça Deus trevas na alma e
a conserve momentâneamente em profunda obscu­
ridade. Então, na falta da estrêla polar, a bússola
mostrar-lhe-á o caminho.
Doravante, sem abandonar, como logo vereis,
as realidades sobrenaturais de que vos falei até
agora, nem renunciar à aplicação das palavras do
apóstolo que nos serviram de tema: "não atender
as coisas que se veem, mas sini as que se nao vee1n
'- o A • '- - ,._ ,,

(2Cor 4,18 ), voltar-nos-emos para outras realidades


invisíveis. Depois de têrn10s estudado, à luz da
fé, as realidades que, embora não nos sejam ple­
na1nente exteriores nem estranhas, t�mbém não
constituem o nosso próprio ser, estudaremos o que
s01nos. Em outras palavras, depois de têrmos olha­
do para fora, olharemos o nosso interior. Não
receemos o perigo de exagerar o eu; considerare­
mos em nós tão sàmente o que o Senhor fêz, as
qualidades que nos são comuns.
O edifício de nossa vida sobrenatural descansa
em alguns alicerces superpostos. Por indecisão de
um dêles, o edifício achar-se-á vacilante; por falta,
estará inacabado e sem proporções; se houver gre­
tas, ficará ameaçado.
Meu objetivo, portanto, é o de esquadrinhar
convosco êsse edifício, essas realidades invisíveis
que, embora esclarecidas pela nossa razão, só a luz
da fé no-Ias mostra plenamente. Estudaremos hoje
o que há de fundamental, de absolutamente prin­
cipal.

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Deus, o único ser necessário

Sem dúvida alguma, o que há de mais funda­


mental, de absolutamente principal, é lembrar-nos
de que Deus é o Ser necessário. Eis aí, já vo-lo
disseJI o que o caracteriza, o que o distingue abso­
lutamente de todos os de111ais sêres. No entanto,
é preciso ainda compree11der bem a significação
exata. da fórmula: Deus é o Ser necessá1io.
Pretender, como o têm feito alguns, que Deus
é necessário simplesmente para explicar a existên­
cia do mu11do, é inexato. Decerto que, sem uma
causa primeira, não existiria o mundo; mas su­
bordinar a perfeição de Deus à existência do mun­
do, isto é falso. Deus é necessário absolutamente,
em si. mesmo, em virtude de uma necessidade in­
trínseca e pessoal. É necessário à maneira do
axioma lógico, com a diferença de que Deus não
é um. axioma lógico, mas um axioma substancial.
Independentemente de todo objeto material a que
se aplique, o axioma lógico é necessàriamente ver­
dadeiro. Estenda-se indefinidamente o espaço, ve­
nham novas regiões acrescentar-se às antigas, onde
quer que haja um lugar para recebê-lo, precipitar­
-se-á. o axioma lógico: por tôda parte e sempre,
dois mais dois são quatro. Ora, tudo quanto di­
zemos do axioma lógico aplica-se às realidades in­
visíveis; com a diferença, todavia, de que o axioma
lógico existe na inteligência, enquanto Deus, o ser
necessário, existe em si mesmo.

97
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A ·noção de criatura
exa1ninada à lui da fé

Se Deus é o Ser necessário, tôda criatura só


possui, ao contrário, um ser de empréstimo, pre­
cário, perpetuamente niendigado. Eis a base pri-
1neira do nosso edifício: somos criaturas. Que
significa isto? Já refletistes alguma vez, e com
seriedade, neste po11to?
Sou uma criatura, o que, de certo modo, ,quer
dizer: não comecei, existo eternamente, fui, desde
tôda a eternidade, o têrmo do pensamento e do
amor de Deus. Eu, êste verme d.a terra que sou
eu, com tôdas as particularidades individt1ais q·ue
me fazem ser eu e não outro, fui amado com um
amor eterno. Não é inverossímil? Sim, deveras.
E, no entanto, é rigorosamente verdadeiro� Deus
mesmo no-lo assegura: "Eu amei-te com amor eter-
110, por isso, compadecido de ti, te atraí a mim"
( Jer 31,3). E São João no-lo reafirma: "Quanto a
nós, amemos a Deus, porque êle 1ios aniou pri­
meiro" (1Jo 4,19). Porque Deus me amou p:timeiro,
porque em Deus não existe data alguma, é que,
desde tôda a eternidade, por tanto tempo quanto
Deus tem sido, estive no seu pensamentoº Sim,
porque sou uma criatura, existi em Deus, muito
antes da hora de minha existência histórica e de
meu aparecimento no domínio experimental..

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Não julgais q1..1e seria convenie11te retroceder,
por um esfôrço de boa vontade, a êsse .ideal de
nosso ser, qual foi concebido no pensamento e no
:.1111or de Deus?
Que é uma criatura? Aquela qu.e não é. Re-
cordai a palavra do Senhor a Santa Catarina de
Sena: "Eu sou aquêle que sou, e tu, aqu.ela que
11ão é". Com efeito, pelo fato de sermos criaturas,
nada somos. Pelo fato de sermos criatt1ras, Deus
tc1n sôbre nós o direito de a11tor: "Êle ·nos fê2:., e
nilo nós a nós mesmos" (SI 99,3). Somos o seu
ben1, o seu objeto, a sua propriedade. Ora, o di­
reito de propriedade é o de usar, de ab1asa1r, de
dispor de alguma coisa absolutamente a seu bel
prazer. No fundo, considerai bem: só Deus é
proprietário. Não há, 110 1nL1ndo, do1ní11io algt1111
l:apaz de dar a idéia dessa plenitude de posse.
i)eus não tem contas a prestar. l\Iascemos quando
êle quer, e1n determi11ada fa1nília, em tais circuns­
tâncias, em tal meio, em certas condições, humil..
eles ou aristocráticas, com tal temperame11to, com
tal saúde. Nossa vida tem a duração de tantos
anos e 11ada mais. Por tudo isso, não tem o Senhor
q_ue responder: dispõe soberanamente, a seu ·bene­
_plácito. O direito humano de propriedade nada
tem que seja comparável ao dêle.
Suponho que não sejais pobres como -eu, que
tenhais a propriedade de alguma coisa, uma ca-
11eta à vossa disposição, da qual possais dizer:
''minha caneta", e um livro a que possais chamar:

https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 99
"meu. livro" Essa caneta e êsse livro poderiam
objetar-vos: "Não vos pertenço, diriam em sua
língua; assim como vós, e originàriamente com a
mesma razão que vós, pertenço a Deus. Não fôstes
vós que me fizestes, não foi de vós que recebi a
matéria de que sou composto. Nem os caracteres
qt1e vos mostro, nem as verdades intelectuais que
vos digo, de vós provêm. Só de maneira precária
vos pertenço, e em virtude, não de um direito, mas
de ·um -fato material e essencialmente modificável.
Vós v·os servis de mim, mas existo de igual maneira
quand.o me abandonais: sou independente de vós.
Mais ai11da, sois vós que precisais de mim. Sou-vos
útil, de nada me servis. Eu me bastava a mim
mesmo, na minha tranqüila inutilidade; vós, na
vossa indigência, não podíeis agir sem vos servir­
des de mim: n.o fim das contas, sois vós a escrava.
Prossigamos. A criatura é mendiga. Tôda cria­
tura. possui, não apenas um ser precário e de em­
1

présti1no, mas um ser 1,erpetuamente mendigado:


inteiramente mendigado e concedido a cada hora.
Pelo fato de existirmos hoje, não se segue que
existamos amanhã. Consideremos bem: "As coisas,
às quais se está acostumado, parecem vis". A re­
gularii.dade do benefício não deve cegar-nos quanto
à sua. realidade. É preciso romper com os hábitos
e, armando-nos com tôda a nossa fé, com tôda a
nossa razão, olhar o que somos, o que constitui
em nós o ser de criatura, essa condição primeira,
essencial, básica, sôbre a q11al descansa e se apóia

100
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tudo o mais. Não nos habituemos jamais a des­
frutar da vida como se não a receb.êssemos, a todo
instante, da divi11a bo11dade.. Por ser perpetua­
mente mendigada, a existência nunca é um direito,
mas um dom essencialmente revogável e precário
que, a cada instante e sc111 injt1stiça, :Dct1s nos po­
deria retirar. Eu vo-lo conjuro, estejamos atentos.
Dizei-me se é possível achar, percorrendo todos os
tesouros da jurisprudência hun1ana, a]gu1n artigo
estimulando que, à fôrça de ser devedor, se acabe
por tornar-se credor, e que, à fôrça de receber, se
adquira direito ao benefício.
Asseguram-nos os teólogos que Deus não po­
deria criar um ser sem perpétua dependência dC�le;
não por ser impotente, mas por lhe rept1gnair qtte
uma criatura, por qualquer motivo, possa existir
por si mesma. Pela razão de que, repito, a criatura
é essencialmente aquilo que não é. Suponl1anT10s
uma criatura que só tivesse recebido de Deu.s a
esmola inicial de sua existência e qt1e, depois, se
mantivesse por si mesma; teria o direito de elevar­
-se em face de Deus: "Sem dúvida, dir-Jhe-ia, meu
ser de vós provém; originàriamente, precisei de vós;
agora, porém, existo por mim mesma, por minl1a
própria fôrça".
Pois estamos no terreno das l1ipótescs, acaso já
pensastes no que aconteceria se Deus tivesse uma
distração, um esquecimento? Contemplai o uni­
verso, os anjos, os santos, a santíssima Humani­
dade de nosso Senhor Jesus Cristo, Nossa Senhora,

101
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nós todos, em uma palav'ra. Se Deus pudera ter
um esquecimento, tôda essa criação recairia, não
no caos, mas no nada. Porque a criatura nunca
se acha terminada, jamais saiu completamente do
nada e, a cada instante de sua duração sucessiva,
deve ser amparada pela mão de Deus como a
criança pelo braço da mãe.
Eis aí verdades elementares. Mas, precisa­
mente, essas verdades primeiras é que devem ser
estudadas com a 1naior atenção, por serem as
mais ricas em conseqüências práticas. Insisto neste
ponto, pois é muito fácil de encontrar o estranho
fenômeno de um certo dualismo que recusa chegar
ao fim das conseqiiências da verdade para a nossa
vida� Eleva-se qual parede estanque entre a inte­
ligência e a vontade, entre os princípios que cha­
mamos de elementares, e as suas conclusões prá­
ticas.. Guardemo-nos dêsse dualismo, dessa dispo­
sição ilógica que faz admitir a verdade sem atingir
os extremos lin�ites desta mesma verdade.
São inúmeras as conseqüências de nossa de­
pe11dência de Deus, e de importância decisiva em
nossa vida sobrenatural. Classificá-las-ei em duas
categorias: as que chamarei de jurídicas; e as que
são voluntárias. Deixemos, por agora, estas últi­
mas, às quais voltaremos depois.
A qualidade de criatura coloca-nos, perante
Deus, em condições absolutamente especiais: nada
temos, por nós mesmos. Tudo quanto somos,. in-

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teligência, alma, vontade, saúde, natureza e sobre...
natureza, tudo nos verp. de Deus, e só de Deus.
Será austero, será apavorante sentir-se tão pequeno,
tão ppbre, tão vazio, tão nada em face de Deus?
.Não �chais que, pelo contrário, aí se encontra a
soberaha alegria? Em nossa vida sobrenatural,
tudo é �onte e princípio de alegria, e, acima de
tudo, est� realidade: sentir que nada somos e que
êste nosso nada só recebeu o ser pela liberalidade
soberanamente graciosa e pela ternura do nosso
Deus! tjlorio-me de minha pobreza, glorio-me do
meu, nad� e da minha baixeza. A ninguém devo
favores spnão a Deus, só a êle sou devedor. Ah!
por tud9 isso, seja êle mil vêzes bendito!
Assirp, traremos sempre conosco o traço de
nossa dupla origem: Deus e o nada. Por um lado,
só ,existimos porque Deus nos deu o ser e continua
a .,fazer-nos, a cada momento, êsse dom primeiro;
por outro, em virtude da nossa origem, recairíamos
í1nediatamente no nada, se nos abandonasse a mão
ide Deus, tal como cairia uma criança que deixasse
1
de ser amparada pela mão materna. São Paulo
ressaltou esta característica da providência: "Sus­
tentando tôdas as coisas pela Palavra de seu poder"
(Hebr 1,3). Deus sustenta e mantém perpetua­
mente a vida de todos os sêres que seu infinito
poder tirou do nada.

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Os frutos dessa contenzplação:
a httrnilclacle

O primeiro fruto da contemplação do ;nosso


ser de criatura, será, portanto, a humildade,, affipla
e sadiamente compreendida. Muito se tern procu­
rado, e eu próprio muito procurei outrqra, e em
vão, uma definição completa da humiltlade� A
humildade, não seria esta consciência exat� de nos­
sa origem primeira? Não seria esta �isposição
básica, que nos estabelece em face de }Deus na
plenitude de nossa dependência? Algo s�mpre ha­
verá de faltar à alma que, resolutament�,. em face
de Deus, não se penetrou da condição de/ criatura.
E, se nos lembrarmos de que o amor dos �antos foi
humilde, de que as graças divinas ampliaram o abis­
mo do seu nada, de que o Senhor os manteve1., na
humildade, compreenderemos que é preciso desc�n­
fiar de tôda espiritualidade, de todo amor que nã9
tenha inicialmente lançado raízes na humildade
1
e:
na dependência absoluta em relação a Deus. Só
1
a esta luz brotará espontâneamente de nosso co- 1.

ração o prolongado clamor da santa penitente: ,;ó


vós que me fizestes, tende piedade de mim'v

.a paz

ftà contemplação do nosso nada é também a


verdadeira fonte da paz, disposição de espírito que,
104
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a cada uma de suas obras, nada traz de emocional,.
de precipitado; de apaixonado. Não poderíeis ima­
ginar quantas desorde11s causa o ardor na vida so­
brenatural. Na base de tôdas as nossas obras, há
uma operação prévia que jamais se deve omitir:
afinar o nosso instrumento. Assim como, antes da
execução de um concêrto, para assegurar-lhe a be­
leza do conjunto, cada músico se esforça por obter
a justeza do seu instrumento, também nós, antes
de agir, principiemos por recolher-nos : afinemos
nossa alma com o Espírito de Deus; depois, me­
diante uma doce vigilância, conservemos, com so­
licitude, essa afinação. Comunicaremos então, às
nossas obras, um caráter suave, humilde, tranqüilo .,.
comedido.
Não sei se é possível exagerar, do ponto de
vista da direção na vida espiritual, a importância
do conselho que vos dou neste mo-mento. E vêde
que é apenas co-nseqüência natural da doutrina que
vos apresentei: pois que nada somos, nada além do
que Deus nos faz ser a cada instante, devemos estar
em sua mão sem limitação alguma, qual dócil ins­
trumento que êle governa a seu beneplácito. Mas ,,
para chegar a êste ponto, precisa-se de calma. Deus
é ato, e é tranqüilo. Nêle, as ações exteriores não
deixam traço, nem ruga. Temos de assimilar seus
costumes e fazer, a cada instante, na paz, tudo
aquilo a que nos sentimos inclinados pela sua
vontade.

https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 105
. . . a docilidade e a dependência

A contemplação do nosso nada, fonte de hu­


n1ildade ,, fonte de paz e de serenidade, é ainda a
verdadeira fonte da docilidade e da dependência
sobrenaturais: sentimo-nos na mão de Deus, já não
temos movimentos próprios, compreendemos bem
que não nos assiste direito de nos servirmos do
ser recebido de Deus senão de acôrdo com os de­
sígnios e as orientações divinas. Inclinamo-nos ale­
gre1nente diante de todos os caminhos, de todos os
atos de Deus a nosso respeito: é o absoluto aban­
dono quanto ao corpo, doença ou saúde; quanto
à nossa inteligência, à nossa alma; quanto a tôda
a fisionomia de nossa vida sobrenatural, quanto à
perseverança material das imperfeições que vemos
em nós e à lentidão que Deus impõe, segundo lhe
apraz, à nossa vida espiritual. Por vêzes; as almas
têm impaciências, desejariam progredir ràpidamen­
te e ver desaparecerem, quais bolhas de sabão, as
imperfeições de detalhe, de certo modo físicas e
involuntárias, que o Senhor julga conveniente dei­
xar-lhes. Parecem-se com as crianças que marcha­
vam para a cruzada pela mão do pai e pergunta­
vam, sempre que aparecia um campanàriozinho:
"É Jerusalém, papai?" - "Não, meu filho, ainda
não, ainda não".

106
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. . . o abandono tranqüilo e jubiloso

Se bem penetrados de nossa condição de cria­


tura, o sentimento de nossa dependência em rela­
ção a Deus cegar-nos-á santamente sôbre o que êle
diz ou faz, tornar-nos-á impossível qualquer tenta­
ção contra a fé, contra a vontade de Deus, contra
os seus divinos processos. E, se nos sentirmos
tentados a olhar em volta de nós, e a comparar
nossa vida com esta ou aquela que parece mais
amável e mais favorecida, pensaremos suavemente
que não foi a que Deus escolheu para nós. Numa
tranqüila aquiescência, consentiremos jubilosamen­
te nas disposições sobrenaturais de Deus a nosso
respeitar
Bendito seja Deus, por nos haver deixado, na
Sagrada Escritura, a vida de todos êsses justos.,
nossos antepassados na fé, para nosso ensinamento
e exemplo! Ora, considerai de que maneira tratou
o Senhor aos seus patriarcas e profetas. Deus
não faz contas com os seus santos. f:le os conduz
e-··"'·reconduz à sua vontade. - A Abraão, pai dos
crentes, diz o Senhor: "Toma teu filho, teu único
filho, que tanto amas, Isaac, e vai à região de Mó­
ria e lá oferecê-lo-ás en1 holocausto sôbre um dos
montes que te indicarei" ( Gên 22,2 ). Na verdade,
é preciso que Deus tenha plena confia11ça nos seus
santos para experimentá-los a tal ponto. Vêde como
emprega um divino ciúme, como demonstra com-

https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 107
placência em assinalar todos os detalhes próprios
para tornar mais doloroso ,o sacrifício que impõe:
"Teu filho, teu único filho, que tanto amas, Isaac".
Existe Ismael, sem dúvida, mas não foi nêle que
se fixou a minha escolha; foi Isaac, o filho da
promessa, aquêle a quem estremeces, o que esco­
lhi para mim.
Também é assim que trata Ezequiel: "Dormi­
rás sôbre o teu lado esquerdo, e porás sôbre êle
as iniqüidades da casa de Israel. . . durante tre­
zentos e noventa dias; dor1nirás segunda vez sôbre
o teu lado direito, e tomarás sôbre ti a iniqüidade
da casa de Judá durante quarenta dias,, (Ez 4,4-6 ).
E a Oséias: "Não tinhas, talvez, a intenção de des­
posar uma mulher, e essa mulher, tu a desposarás".
De modo algum pergunta a seu profeta se amava
tal mulher - e, de fato, ela não era digna de ser
amada. - Todavia, o profeta a desposa :porque
Deus o disse, e êle é o Senhor soberano (Os 1,2).
Quando falamos sôbre os profetas, um dêles,
João Batista, apresenta-se-nos como que natural­
mente ao pensamento. É o maior dos profetas,
porque, se os outros haviam ant1nciado o Senhor
num longínquo futuro, êle o apontou com o dedo:
"Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do
mundo" (Jo 1,29). Quando se trata de docilidade,
de dependência, de submissão absoluta, é João Ba­
tista o nosso modêlo. Parece que o caráter de
humildade, de aniqüilamento, que é o caráter pró­
prio do mistério da Encarnação, jorrou do Senhor

108
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e de su.a .fvlãe sôbre tudo quanto se lhes aproxima,
e, em grau especialíssimo, sôbre o santo Pre·cursor.
:Êle parece verdadeiramente perder-se na penumbra
da Encarnação e só ter existido para desaparecer e
imolar-se diante de Deus. Quem é êle? - Um
.homem. que veio para dar testemunho (Jo 1,7);
existe, n.ão para si mesmo, porém em vista de ou­
tro. Quando os fariseus o interrogam: "Q·uem és
tu?", parece embaraçado. "Quem sou eu? Jamais
pensara o.isto" E quando, constrangido pelas in­
dagações, se decide a responder, assim se define:
"A voz do que clan-za no deserto" (Jo 1,22-23 ).
"Nada sou, apenas uma voz, um sôpro, um clamor
que ressoa pelo deserto. Não sou uma personali­
dade, só existo para apagar-me, para deixar de ser"
.Mais tarde, são os seus próprios discípulos que vão
ter com. êle, dizendo-lhe: "Não sabeis, mestre? aquê­
Ie de qU1.em deste testemunho, está agora batizando,
e todos vão a êle pp João Batista, porém, não se
entristecee Prepara os discípulos, e os envia su­
cessivamente para o Senhor: quanto a êle próprio,
sua alegria é desaparecer: "Preciso é que êle cresça
e eu diminua. Quem tem a espôsa é o espôso; o
amigo do espôso, que está presente e o ouve, ale­
gra-se intensamente de ouvir a voz do espôso. Pois
assim êste meu gôzo ficou completo" (Jo 3,29-30).
Já observastes, no Evangelho (cf. Jo 1,35-51), como
êsse admirável mestre de noviços conduzia a nos­
so Senh.or, para a profissão, aquêles a quem for­
mara: Pedro, André, Tiago, João? Como todos pas-

109
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saram, da escola de João Batista, à escola do Se­
nhor? Se nos fôra dado penetrar o coração do
santo Precursor, ver os sentimentos que encerrava,
creio que descobriríamos um intenso desejo de ir,
êle também, à escola do Senl1or: enviar os outros,
e achar-se excluído! "Tu, não virás; ficarás à dis­
tância. - E que farei, Senhor? - Irás dizer severa
palavra a um rei incestuoso. - E êle se converterá?
- Não, por recompensa haverão de cortar a tua
cabeça, para agradar a uma dançari11a, filha de
u1na devassa".
Estará suficienten1ente demonstrado q_ue Deus
é soberano e que trata seus sa11tos a seu bel :prazer?
Estais ag.ora conven.cidos do poder absoluto, dis­
cricionário, do Senhor para corn a sua cr1atura?
Se precisais ainda de ot1tros exer11plos, olhai nosso
Senhor Jesus Cristo. A dependência posstti um.
caráter tão divino, tão glorioso para Deus e para
a sua criatura, que o Senhor a amou e escolheu
para si mes1no: "Eis que ven.ho, está escrito de
mim na cabeceira do livro, para fazer a tua von­
tade. Deus meu, eu o quis, e a tua lei está no
íntimo do meu coração (SI 39,8-9). Essa depen­
dência em relação ao Pai, nosso Senhor Jesus Cristo
a afirmou com tal ênfase que chegou a dar.pre­
texto para que os heréticos suspeitassem de sua.
divindade e de sua igualdade ao Pai. Qual era a
alegria do Senhor, senão a de estremecer à pode­
rosa pressão do Verbo? E qual foi a alegria do
Calvário {porque houve no Calvário uma inenar...

110 https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
rável alegria)? Foi justamente o júbilo de presta:t
a Deus, por um derradeiro, total, supremo ato de
submissão, a mais excelsa homenagem que poderia
obter na terra: "Consummatum est". - "Tudo está
consumado" (Jo 19,30). Nada tão grande, nada tão
belo na natureza humana quanto essa flexibilidade,
essa docilidade, essa dependência que Deus obté1n
da sua criatura. Há nisto algo de maior, de 1nais
belo que a própria onipotência de Deus.. Sim, pre­
firo êste império soberano, absoluto, discricionúrio,
que Deus exerce sôbre as almas, à sua onipotência
fazendo st1rgir do nada, com uma palavra, as 1i-1i­
ríades de espíritos angélicos, as infinitas multidões
de sêres, de tôda espécie, que povoam a criação ..
Que Deus, por êsse in1pério soberano exercido
sôbre a sua criatura, se tor11e senhor de tudo q_uan­
to possui vida e liberdade, que êle gover11e, co11-
duza, dirija, dissipe, a se11 beneplácito, imole até
as almas que criou à sua imagem e seinelhança_�
que êle seja a tal ponto senhor da sL1bstância fir­
me e forte que se chan1a alma h11mana; eis a sua
glória infinita, glória única, que lhe é pect1liar.
Glória e grandeza das quais é mais cioso que da
sua onipotência, e que, com efeito, prevalecem in ..
contestàvelmente sôbre essa onipotência ..
E, notai bem, essa docilidade, dependência,
abandono da criatura nas mãos de Deus não ca­
rece de altivez. Não é servilismo, nem amor do
proternamento, ou a necessidade da deferência cega
e estúpida que devora o mundo. Muito se prego11,

https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 111
demasiado se pregou a humildade, e há demasiado
:rebaixamento, excessiva subserviência.. Nada ex..
_pressa melhor a atual situação do mundo que a
palavra de Tácito: ''Omnia serviliter pro domina-
1:ione".. Palavra que se aplica a tôdas as decadên­
cias. Visto que se é orgulhoso, o que é néscio,
torna-se vil, o que é baixo. Daí prosterna-se aos
p-és do ídolo em moda e sacrificar-lhe o corpo, a
alma, a dignidade, a honra; tudo, numa palavra.
À vista dessa insaciável necessidade de obe­
-diência, relaxada e servil, de universal prosterna­
mento., lembro-me da palavra que um escravo
devia repetir ao ouvido do triunfador st1bindo ao
·Capitólio. Para que a embriaguez do triunfo não
lhe fizesse esquecer a própria condição, murmu­
rava perto dêle: ''Caesar, hominem te esse me­
mento". César, poderias julgar-te entre os imor­
tais; não, lembra-te de que és apenas um homem.
A tôdas essas criaturas inebriadas de servilis­
-i110, diria eu, de bom grado, num sentido oposto:
·"Lembrai-vos de que sois homens; tende um pouco
·de altivez, um pouco de orgulho". Quando obe­
decemos, nós que temos religião, quando nos in...
1
-Clinamos, sabemos diante de quem o fazemos: é
,diante de Deus. Ora, inclinar-se diante de Deus
não é uma baixeza. Inclinamo-nos perante nosso
·Se11hor, ante o único Senhor, o Filho único de Deus.
·Temos um Senhor, não milhares. Os outros não
,existem para nós. E creio fazer-vos justiça dizendo
.que, tantos quantos somos, se estivéssemos ainda
.l.12
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
11a sociedade humana, se ainda pertencêssemos a
êsse impuro século que merece a palavra de Tácito:
"Corromper e ser corrompido, eis o que se cha1na
o século", faço-vos a justiça de crer que, se lhe
pertencêssemos, seríamos anarquistas. Uma vez
que se rejeita a autoridade de Deus para só reco-
1-ihecer a autoridade dos homens e do número, ad-
mitindo-se que o poder, deixando de ser o lu.gar­
-tenente e representante de Deus, é apenas o re­
sultado do número, não me inclino: por que ha­
veria de inclinar-me? Que direito tendes sôbre
1nim? E êsse direito, quem vo-lo deu? Tendes
a vossa vontade; tenho a 1ninha. - A vontade
nacional? Mas, em qt1e consiste? Em homens que
não têm direito algum sôbre mim. São numerosos,
sem dúvida, mas desde quando número constitui
autoridade? e, se cada uma dessas vontades não
tem direito algum sôbre mim, em virtude de que
operação fantástica, não possuindo essas vontades,
individualmente, nenhum direito sôbre a minha
pessoa, dêle se achariam investidas por se acharem
adicionadas no conjunto? Se não somos socialis­
tas, é precisamente. por sabermos qual a autoridade
perante a qual nos inclinamos .

. . . a adoração e o sacrifício

Reconhecemos as conseqüências práticas que


decorrem, como que espontâneamente, da nossa

8 • A contemplar;ão . • •
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 113
condição de criaturas: a humildade, a paz, a de­
pendência absoluta, o abandono tranqüilo e jubi­
loso. Será tudo? Não, ainda não. Dessa primeira
realidade sobrenatural que hoje estudamos juntos,
vemos sair, como flor de sua haste, a adoração e
o sacrifício. Podemos até dizer que, na simples
palavra "somos criaturas", está a Encarnação, está

a santa missa.
Que é a adoração? É a volta, a Deus, de tudo
quanto dêle provém, é a criatura esforçando-se por
voltar ao que lhe é próprio, por reduzir-se ao que
ll1e é pessoal, isto é, ao nada. Tomando consciên­
cia diante de Deus, e diante de si mesma, do seu
nada, já que nada é, nada além daquilo que Deus
lhe concedeu ser. Dêsse desejo de voltar ao nada,
donde só a vontade e a ternura de Deus nos faz
sair, brota espontâneamente o espírito de adoração.
Então bem compreendemos como, desde o primei..
ro passo, a criatura se acha ligada, prêsa, entre­
gue ao mais elevado ato litúrgico: a adoração e
o aniquilamento.
E que é a Encarnação? É a Santíssima Trin..
dade tomada em seu centro, é a segunda Pessoa
da Santíssima Trindade fazendo-se homem, reves­
tindo-se da nossa humanidade, apreendendo e
abrangendo a criação no seu centro, a fim de
resumi-la tôda.
E a santa missa? É nosso Senhor Jesus Cristo,
o Filho único de Deus valendo-se da união pessoal
com uma natureza finita, criada, para aniquilar-se

114 https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
diante de Deus, seu Pai. A santa missa é o ato
< lc adoração litúrgica por excelência, de adoração
st1prema; de aniquilamento perfeito, absoluto, to-­
tal.· Não só de uma natureza q11alquer, de uma
1
simples criatura. Mas, para que o ato de aniqui-­
lamento esteja deveras à altura de Deus, e seja
capaz de satisfazer a tôdas as exigências de sua
infinita Majestade, é o aniquilamento, o ato de
adoração de uma natureza humana unida pessoal-
1nente ao Verbo de Deus. Assim é que o Verbo,
ele Deus, hieràrquicamente disposto no centro da
'Trindade, entre o Pai e o Espírito Santo, apreende
a criação inteira nesse nó central onde a natureza.
criada e a incriada se acham, de certo modo, con­
densadas, onde o corpo e o espírito estão indisso--
1.uvelmente reunidos, e aproveita-se, por assim di­
zer, da dependência, da fraqueza, da inferioridade·
de sua natureza humana, para inclinar-se e aniqui­
lar-se diante de Deus. Compreendeis agora? Não·
tinha eu razão ao dizer que, desde o primeiro pas­
so da criação, achavam-se compreendidos, como;
num longínquo futuro, a Encarnação e o santo sa­
crifício da missa? Sim, Deus pensava na Encar­
nação, Deus pensava na santa missa, ao fazer sur­
gir, do nada, a matéria.
Olhemos atentamente para o nosso nada, des­
çamos alegre e voluntàriamente à contemplação do-­
que somos, em virtude de nossa origem primeira.
e em virtude do que nos fêz a mão de Deus. Se·
chegá�semos até ao extremo do que nos impõe·

https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 115
essa primeira e essencial condição de criatura, seria
a perfeição. Creio que essa doutrina comunica às
almas, de maneira singular, paz, alegria, energia,
serenidade absolutamente inalteráveis.
No primeiro dia do retiro, falei a respeito das
formas particulares, dos especiais e diversos com­
portamentos das almas em face de Deus. E ime­
diatamente reconhecemos, acima do temor, acima
da simples consciência, uma atitude a que de bom
grado chamaria cavalheiresca, atitude que consiste
numa união tranqüila, firme, universal com todos
os procedimentos e tôdas as vontades de Deus.
Parece-me que essa atitude especial se acha cons­
tituída, sobretudo e de uma maneira mais ou me­
nos consciente, pela contemplação ordinária e as­
sídua do soberano domínio de Deus sôbre a sua
criatura. Quanto às almas que, diante de tal es­
petáculo, não sentissem despertar-se-lhes o espírito
de adoração, o espírito de aniquilamento, muito
receio que se encontrem demasiado leves nas mãos.
de São Miguel e não possam ter lugar na inume­
rável falange dos que repetem eternamente a ex­
clamação do grande arcanjo: "Quis ut Deus?" -
"Quem é como Deus?"

116 https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
2)
-
NOSSA CONDIÇAO DE CRIATURAS
INTELIGENTES E LIVRES

"Justorum semita quase lux splendens, proce­


dit et crescit usque ad perfectam diem" (Prov 4,
18): A vereda dos justos, como luz que resplan­
,ll�ce, vai" adiante, e cresce até ao dia pleno.
Antes de prosseguir no tema ordinário de nos­
sos colóquios, parece-me útil entrar em certos de�
lal11es psicológicos que, para algumas almas, po­
(lcm ser de interêsse. Abro, por conseguinte, um
parêntese.

Como discernir o que ve11i ele Deus

Sentimos, por vêzes, a legítima curiosidade de


reconhecer a verdade, a realidade das graças so-­
l1renaturais que recebemos. Não haveria um pro­
cesso, um meio, um critério para discernir o que
vem deveras de Deits, daquilo que seria apenas o
:resultado de uma exaltação natural, algo factícia,
o resultado de certo desabrochamento de bem-estar
físico, de um belo sol ou da primavera? Sim,
há um processo; há vários, até. Vejamos, pois.
Já vo-lo disse: Deus é ato. É Ato, e é ativo.
Para reconhecer as graças de Deus, consideremos
as que são verdadeiramente ativas em nossa vida.

https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 117
Certamente não vem de D·eus o que nos leva a
comunicar a outrem as consolações e alegrias so­
brenaturais de nossas ações de graças, a expor
complacente-mente a determinada irmã, confidente
de nossos pensamentos íntimos, os notáveis relan­
ces que nos iluminam as orações. Se, porém,
conduzindo-nos à ação, à energia, ao vigor, uma
graça deixa em nós a paz, aumenta em nós a ale­
gria, vem certissimamente de Deus, pois o caráter
de tud.o quanto- vem de Deus é sempre ameno,
calmo, jubiloso. Pelo contrário, a perturbação se­
ria o sinal irrecusável de que uma disposição não
procederia de Deus: tudo quanto perturba, vem
do pai da mentira.
Existe, ainda, outra pedra de toque para ex­
perimentar o que somos e a verdade da nossa vida
sobrenatural, e é a que nos reconduz à doutrina
ontem exposta. Vem certamente de Deus tudo
quanto amplia, diante de nós, o abismo do nosso
nada, tudo quanto nos leva à humildade, tudo quan­
to nos reconduz mais profunda1nente ao nada que
somos. Ainda mais irrecusável é o sinal se, em
conseqüência de uma graça sobrenatural, sentimo­
-nos mais levados a apagar-nos, a reduzir-nos, a
desaparecer; se tomamos uma consciência mais
exata do pouco, ou melhor, do nada que somos.
Então, há em nós algo do caráter de nossa Se­
nhora, daquela que, na hora em que o anjo a
saudava Mãe de Deus, só achava em seu coração
a resposta: "Eis aqui a serva do Senhor" (Lc 1,38).

118
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1 � sentia-se estremecer de alegria porque Deus olha­
ra para a sua humildade: "Rejubila meu espírito
eni Deus, meu Salvador, porque êle olhou a hu-
111ildade da sua serva" (Lc 1,47-48).
Fechemos o parêntese, e voltemos à doutrina
que em.preendi expor.

Primazia do conheciniento de si mesmo

Já a sabedoria antiga compreende·ra qual a


importância de conhecer-se o homem e, pela bôca
de Sócrates, dizia aos raros iniciados: ''Conhece-te
a ti mesmo". A verdadeira sabedoria, a verdadeira
filosofia, a doutrina sobrenatural di-lo melhor ain­
da, pelos lábios de Santo Agostinho; dirige-se a
Deus e suplica-lhe: "Senhor, fazei que eu vos co­
nheça, e que me conheça" e, que, na verdade,
todo ser encontra na própria natureza a lei do
seu a.g1r.
Desde os primeiros dias do mundo, o Senhor
promulga lei universal, ordenando aos vegetais
produzam frutos "segundo a sua espécie" {Gên 1,
11). Por isso, tôdas as vêzes que um ser age fora
das condições exigidas por sua natureza e viola
essa lei, ainda que parcialmente, há desordem, dis­
córdia., dissonância, sofrimento.
Imaginai o assombro que causaria hoje a sú­
bita aparição, no mundo, de um barão do século
XIII, saindo, completamente armado, do túmulo

119
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
onde dorme há mais de seis séculos? ''Que fazes
aqui? - perguntar-lhe-iam. - Estás enganado, há
um anacronismo; volta à tua tumba secular e dela
não tornes a sair".
Com efeito, a primeira lei é a que nos impõe
a nossa própria natureza. Eis por que, ontem, de
maneira rápida, mas suficiente para fornecer ma­
téria às vossas meditações, reconhecemos em nós
êsse prin1eiro caráter, essa primeira base funda­
mental de nossa vida sobrenatural: somos cria­
turas. Dêsse primeiro caráter vimos brotar, qual
flor de sua haste, uma completa messe de virtudes:
o dever da dependência absoluta, a verdadeira hu­
mildade, a submissão e a docilidade, o espírito de
adoração, o espírito de abandono a Deus, que é,
por si só, a perfeição da vida sobrenatural.
Poderíamos deter-nos aí. Seria o bastante para
constituir em nós a perfeição. Todavia, mais vale
prosseguir e esquadrinhar mais ainda o nosso edi­
fício interior.

O respeito de Deus
por sua criatura inteligente

Sou uma criatura humana, inteligente, racional.


"Ah, meu Pai, racional, bem o sei, eu que estou
sempre arrazoando. Há, no fundo da minha alma,
regiões que ignoro, mas estou deveras convencida
de que bastaria descer a elas uma vez para desco-
120
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
brir tesouros de argumentações. Por que isto?
Qual a razão daquilo?... Vêdes, meu Pai, que é
inútil insistir neste ponto; já ultrapassei todos os
vossos conselhos; mais uma vez, estou sempre ar­
razoando, a minha primeira ,, disposição é de achar
s·empre o que responder . ''Minha filha, há uma
diferença entre o ser racional e o ser arrazoador:
és arrazoadora, o que não prova imediatamente,
não prova de modo algum, poderia até provar o
contrário, mas, em todo caso, não prova que sejas
racional. Assim te esqueces de qu.e és uma cria­
tura essencialmente dependente; assim, e na me­
dida em que te abandonas neste ponto, deixas
tua alma aberta ao interrogador por excelência,
pai de todos os porquês". Conhecemos poucas pa­
lavras suas, - a Escritura poderia dizer-nos mais,
- porém as que nos refere são muito significa­
tivas, muito características do inimigo de Deus:
"Sobrepujarei a altura das nuvens, serei seme­
lhante ao Altíssimo 11 (Is 14,14 ). - "Por que vos
mandou Deus que não comêsseis de tôda árvore
do paraíso?" (Gên 3,1). Vêdes: Por quê?

• ~
. . . na sua criaçao

Sou uma criatura humana, inteligente, racio..


nal. Detenhamo-nos considerando tal afirmação�
Algo existe de notável na história da Criação�
Os "fiat" sucederam-se altivos, imperiosos: "Haja

121
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
luz! haja um firmamento; haja luzeiros no firma­
mento dos céus" (Gên 1,14 ). Diante da última cria­
ção, Deus parece interromper-se. Recolhe-se, entra
em conselho, sua obra toma um caráter singular­
mente solene: "Façamos o homem à nossa ima­
gem, conforme nossa semelhança" (Gên 1,26 ). Dir­
-se-ia que faz questão de desmentir, ou ao menos
de modificar, o que eu disse de nossa pequenez e
de nosso nada: seria o homem, essa criatura de
nada, essa criatura 11ula, seria, pois, considerável?
Por que êsse assombroso respeito? Por que se
tornaram tão delicadas as mãos de Deus? Seria
em virtude da universal lei de respeito com a qual
Deus trata tôdas as suas criaturas, mas em parti­
cular a criatura humana: "E nos governas com
indulgência" (Sab 12,18)? Sim, é verdade, e desejo
que o noteis; não é tudo, porém.
Veria Deus, portanto, nessa criatura privile­
giada, o caráter especialíssimo que a assemelhava
a si próprio, a participação que lhe dá em sua
divindade? O Senhor de ninguém depende: eis
a sua característica. Ora, em grande medida, o
homem é também independente. Sendo livre, cria­
-se a si mesmo, faz-se a si mesmo, modifica-se a
si mesmo: é, ao mesmo tempo, criatura de Deus,
e, iria dizê-lo, - não fôra pretenciosa a palavra!
_,. criatura de si mesmo. Ao agir, a ação reflui
sôbre si, êle traz consigo o sinal de Deus e o sinal
de si mesmo.

122
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
Seria, enfim, por ver o Senhor, na criatura
que sairia de suas mãos, o pontífice da Criação?
Com efeito, o homem é sacerdote: reconduz a Deus
tôda a criação, coroada por si mesmo. A incons­
ciente homenagem da matéria só toma voz e pode
subir a Deus, qual incenso de adoração e suavi­
dade, sob condição de passar pelos lábios do ho­
mem. O homem é deveras o intermediário, o pon­
tífice entre Deus e a criação inteira, cuja adoração
inconsciente recolhe e reúne para levá-la, unida
com a sua, ao Soberano Senhor e Criador de tôdas
as coisas. Sim, verdadeiramente, o homem é sa-­
cerdoté. E êsse caráter eminente poderia deter­
minar, em Deus, a solenidade, o assombroso res­
peito com que procede a esta criação onde há, com
efeito, algo de maior que na criação da terra e
dos elementos.
Tôdas essas razões são válidas. Há, porém,
mais ainda.

. . . no 1nistério da Encarnação

Nessa hora da criação, Deus - sabemo-lo pela


palavra de Tertuliano - pensava no seu Filho úni­
co: "Quodcumque limus exprimabatur, Christus
cogitabatur homo futurus". Deus tinha em mente
aquêle de quem se haveria de dizer um dia: "Ecce
homo"� Pensava na aliança que êle mesmo have­
ria de contrair com essa natureza que estava a

https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 123
surgir, tôda bela, de suas mãos divinas. Não hou-­
ve emoção, nem estremecimento no Imutável. To­
davia, que se terá passado no coração de Deus,
à vista dessa natureza humana que haveria de
unir a si pessoalmente, dessa natureza que deveria
pertencer-lhe a ponto de se tornarem os atos da
natureza humana os atos do próprio Deus, assu­
mindo êle tôda a sua responsabilidade?
Quando o Verbo de Deus quis unir-se à natu­
reza humana, não qt1is proceder com autoridade,
nem por conquista. O que êle queria, unindo a
si tal natureza em unidade de pessoa, era 11ma
união real, um real desposório, uma verdadeira
aliança. Ora, contrair uma aliança supõe neces­
sàriamente o consentimento formal de ambas as
partes que se unem. Mas a quem, pois, o Verbo
de Deus, o próprio Deus, desejoso de tal união,
haveria de dirigir-se para a realização do seu de-­
sígnio de ternura? Seria preciso dirigir-se à na­
tureza humana e perguntar-lhe se concordava? Se­
ria necessário reunir num imenso congresso tôdas
as almas futuras e submeter a votos a Encarnação?
Mas como interrogar os que deixaram de existir?
E os que não existem ainda? Nós, por exemplo,
não estávamos presentes.
Seria preciso dirigir-se à natureza humana do
Cristo e perguntar-lhe se consentia? Mas, como
subordinar a existência da Encarnação à existên­
cia de uma vontade que só haveria de existir uma
vez realizada a Encarnação? Era tão impossível

124 https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
dirigir-se à natureza individual do Cristo para pe­
dir-lhe o consentimento, quando pedir a Adão con-­
sentisse em sua própria criação. Para consentir,
é preciso existir.
Em vista disso, terá a Encarnação de ser um
embargo violento, uma conquista, uma apropria­
ção arrogante? Será isto, porém, um casamento?
Uma aliança? Quem, por conseguinte, em nome
de tôda a natureza humana, acolherá a mensagem
de Deus, receberá suas propostas e consentirá na
união projetada?
Considerai o processo, sobera11amente amável,
que Deus utilizou: ainda nest·e caso, trata a sua
criatura com grande respeito. Um anjo é envia­
do a uma virgem da Judéia; a Virgem é livre. E,
para que a plenitude de sua liberdade seja mais
acabada, ela tem perfeito conhecimento, não só
da incomparável dignidade de seu Filho, mas de
tôdas as dore1s, do mar de dores, do oceano de
amarguras que deveria acarretar-lhe o simples fato
de sua divina Maternidade. A profecia de Simeão
pouco lhe ensinou: Deus devia à sua Mãe o vas­
tíssimo conhecime11to profético de quanto lhe acar­
retava, de maneira implícita, o consentir na En­
carnação. Mais uma vez, a Virgem era livre: li-­
vremente pronuncia o seu "fiat", livremente dá a
Deus o consentimento requerido e esperado como
aquiescência de tôda a família humana, segundo
a bela palavra de Santo Tomás de Aquino: "Con­
sensus Virginis expectabatur tamquam totius hu-

https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 125
mani generis consensus". Poucas considerações me
parecem mais aptas a dar-nos uma idéia exata,
uma concepção mais elevada de Nossa Senhora,
e que melhor assinala o lugar por ela ocupado
nos desígnios de Deus.
Deus convida o mundo inteiro, o mundo cria­
do e o mundo incriado; manda à Virgem o em­
baixador angélico. O mundo criado e o incriado
ali estão, ansiosos, atentos, de certo modo suspen­
sos à palavra que vai sair dos lábios da humilde
Virgem: "Suscipe verbum, Virgo Maria", exclama
a liturgia, como q_ue para demonstrar a ansiedade
do mundo inteiro, suspenso na expetativa do con­
sentimento de Nossa Senhora, ao qual se prendia
todo o glorioso conjunto do desígnio de Deus.
Vêdes o soberano respeito com que Deus trata
a sua criatura? Quer se trate da criação do ho­
mem, quer da Encarnação, é sempre o mesmo pro­
ceder. E creio que cada um de nós, se descera
ao fundo da própria alma, ao mais íntimo de sua
vida, encontraria sempre essa mesma reverência
amorosa, da parte de Deus. Nós o sabemos pelo
Cântico dos Cânticos, sabemo-lo pelo Apocalipse;
Deus não constrange-. Ele solicita, pede, por vêzes
chega mesmo a suplicar: "Eis que estou à porta
e bato" {Apc 3,20). "Abre-me, minha irmã� pomba
minha ... ,, (Cânt 5,2).
Não nos afastemos, porém, do nosso tema.

126
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
. . . em sua constituição de criatura racional

O homem é uma criatura racional e inteligente.


[nteligente, que significa isto? Que o homem está
elevado acima do animal. O animal é um ser todo
concentrado, todo fechado, todo recolhido em si
n1esmo, ocupado exclusivamente consigo, interes-­
sado apenas pelo que o atinge pessoalmente na
própria sensibilidade. O animal não é artista: é
incapaz de elevar-se à contemplação da beleza,.
acha-se todo voltado para si mesmo. Se pudera
haver raciocínio em sua cabeça, seria o seguinte:
''As coisas não são boas senão quando úteis; só
são úteis quando o são para mim". A ocupação
consigo, a concentração em si mesmo, a hipertrofia
do eu, eis o caráter do animal.
Eis também o caráter da criança. Enquanto
não se lhe desenvolve a inteligência, embora te­
nha em si tôdas as virtualidades intelectuais, não
passa de um animalzinho. À espera de superar
as baixas tendências do animal, de que se ocupa?
Do eu, do eu, sempre do eu. Considerai : leva tudo
à bôca. - "Oh! isto nada quer dizer". - Perdão,
quer dizer muito, quer dizer tudo: significa que
o bebê é o centro das coisas, que estas só têm
valor na medida em que o servem; que, para êle,
a bôca é o critério da bondade.
Esta concentração do eu, caráter do animal,
caráter da crianca. � também o caráter do demônio,

https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 127
pois que êste, olhando-se a si mesmo, rebaixou -se
ao nível do animal. Qual o brado de São Miguel?
''Quis ut Deus? Quem é como Deus?" E o do
demônio? "Estabelecerei o meu trono acim;a dos
astros de Deus" (Is 14,13 ). "Sou o mais belo, o
maior dos espíritos celestes, poderia ter sido unido
a Deus. Por que não me cabe essa união pessoal?"
- Que vem a ser isto? animalidade.

As características do ser inteligente:


de�centralizado, saindo de si

O caráter da i11teligência encontra-se no pólo


oposto. Um ser inteligente é um ser descentrali­
zado, que sai de si mesmo. Muito se tem procu­
rado qual a característica do homem. Os filósofos
( de tantas coisas se ocupam! ) também fizeram
investigações a respeito. Disseram alguns: Ê a
linguagem. - A linguagem? e os papagaios? - Afir­
maram outros: E a religiosidade, isto é, a capa­
cidade, que tem o homem, de reconhecer algo su­
perior a si. Quanto a Darwin, pensa de maneira
diversa; não acredita seja a religiosidade apanágio
exclusivo do homem, e eis o fato no qual baseia
sua demonstração: certo dia, no decurso de um
passeio, sentou-se entre o seu cão e o guarda-chuva,
que se achava aberto. Sobreveio leve brisa que fêz
oscilar o guarda-chuva. Ante o movimento insólito,
o cão logo se pôs alerta. Darwin, sem dúvida muito
128 https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
competente para saber o que se passa no cérebro
de um animal, conclui, de tal incidente, que o cão,
incapaz de apreender a relação existente entre o
vento, de uma parte, e, de outra, o movimento
que imprime, admitia, em sua inteligência canina,
a existência de uma causa superior, invisível, trans�
cendente. De tudo isso, tira Darwin a conclusão
de que a religiosidade não é a característica do
homem, encontrando-se também no animal: eis o
que seria preciso demonstrar.
Deixemos de parte a linguagem: do contrário,
seriam I1omens os que mais falassem. Deixemos
também a religiosidade. Qual é, pois, a caracte­
rística do homem? É a inteligência. A inteligên­
cia, eis o que é sublime! 11 a faculdade do uni­
versal, a faculdade que nos faz ver, não só o que
é verdadeiro para mim, bom para mim, belo para
mim; mas o que é verdadeiro em si, bom em si,
belo em si. Eis o que constitui a característica e
a dignidade do homem, elevando-o acima da sen­
sibilidade e da animalidade pura. Desprendendo-se
destas vis cadeias e ignóbeis atrações, o homem é
capaz de elevar-se à concepção intelectual de uma
ordem universal, de uma ordem superior, de uma
ordem ideal, aspirando a tal ordem, a realizá-la, a
devotar-lhe a vida. "O homem, já se tem dito, é
um ser capaz de dar a própria vida pela verdade
e pela justiça". Sem dúvida. E, se é capaz de
dar a vida pela verdade e pela justiça, trata-se,
portanto, de um ser descentralizado, universal, li-

129
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
bertado de si mesmo, capaz de simpatizar co·m tôda
inteligência criada, de entrar em associação com
o. próprio Deus. Por isto é que digo, às vêzes:
"O que faz a dignidade da pessoa, é o fato de ser
impessoal". Parece um trocadilho, e é um bom
trocadilho. Sim, a dignidade da pessoa está em
ser impessoal, isto é, capaz de elevar-se aci1na de
si própria e da animalidade, para reconhecer o que
é belo, bom e verdadeiro, não para si mesma; mas
o que é belo, bom e verdadeiro para Deus e para
tôda criatura inteligente, seja qual fôr. Para isto
foi criado o homem: não para a felicidade, mas
para a felicidade que é o bem. Se o homem fôra
criado apenas para a felicidade, teria o direito de
procurá-la onde a pudesse encontrar: "A felicidade
é o meu bem, tomo-a em qualquer lugar". Não,
o homem requer uma felicidade que esteja à sua
altura, que seja a verdade, que seja o bem, o bem
soberano.

. . . capaz de realizar, o beni

E o homem não é somente capaz, pela inteli­


gência, de conceber essa ordem superior, ideal, t1ni­
versal. Pela vontade, é também capaz de querê-la
e de realizá-la. Claro que não estou excluindo a
graça divina. Mas creio que a muitos seria uma
revelação dizer-lhes: Tendes uma vontade; portanto,
essa ordem superior, êsse bem, essa verdade, essa

130
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
justiça, essa virtude que a vossa inteligência vos
aponta, podeis e deveis realizá-la em vós. Podeis,
por um esfôrço pessoal e perseverante, subtrair-vos
a essas vis atrações, a essas vulgares solicitações
que designei com o desiquativo geral de animali­
dade. Eis a eminente dignidade da vossa natureza.
IIaverá, talvez, resistências; poderão apresentar-se
dificuldades. Sern dúvida, assim acontecerá no
início. E nisto ainda, encontramos nossa glória:
Deus quer que nos façamos a nós mes1nos, que
de certo modo nos criemos. Quer dar-nos a nossa
herança, não qual esmola, mas como recompensa;
quer que realmente tenhamos ganho o nosso salá­
rio. Temos uma vontade. Exerçamo-la. Não há
fôrça no mundo que nos possa entravar. Não se
conhecem, não se esgotaram os recursos de uma
vontade humana. Só se deixam entrincheirar com
pretensas impossibilidades aquêles que jamais se
utilizaram dessa fôrca invencível. A vontade é a
,J

onipotência, a ponto de poder resistir a Deus mes-


mo. Algo existe que Deus não pode fazer: vio­
lentar uma vontade httmana. Bem sei que há in­
finitos recursos nos tesouros da graça divina, bem
sei que não há almas cujas resistências o Senhor
não possa vencer, mas sei também que a vontade
do homem pode resistir a Deus, opor-se-lhe e dizer­
-lhe: "Não passareis". Ah! a onipotência da von­
tade! Outrora, eu gostava de dizer: "Santa Von­
tade, rogai por nós". No fundo, não é apenas a
tradução., sob forma original, talvez bizarra, do

https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 131
pensamento de Santo Tomás de Aquino? Pergun­
tava-lhe a irmã: "Meu irmão, para salvar-se, que
se deve fazer?" Santo Tomás refletiu um instante,
depois respondeu com essa áurea palavra: "Minha
irmã, para salvar-se, é preciso querer" Sim, mais
uma vez insisto, haverá dificuldades, resistências,
mas que sig11ifica isto? Crêde naqueles que vos
gt1ian1, e marchai avante. Havereis de st1perar as
dificuldades, até com heroísmo. Aliás, a quem
pedir heroísmo, se não às almas que se elevam à
ordem sobrenatural e se consagram a nosso Se­
nhor Jest1s Cristo?
Sem dúvida, em face de um dever penoso,
concebo um instante de fraqueza; a natureza treme,
hesita: é a fragilidade inerente à n.ossa condição.
Turenne, à véspera de uma batalha, sentia-se estre­
mecer: "Tremes, carcassa; se souberas a que festa
irei conduzir-te amanhã!" Sirn, os mais bravos
podem curvar-se, mas reerguem-se com tôda a
energia e saem vitoriosos .

. . . que usa da própria liberdade


para desenvolver-se

É verdade que tal vigor não surge de início;


pouco a pouco, por atos sucessivos e repetidos,
é que a vontade se torna soberana. Já não há
sequer deliberação, ela se dirige instintivamente
para o bem: eis, então, a verdadeira liberdade.
132 https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
,Muitas vêzes, é tão mal compreendida esta noção
da verdadeira liberdade, que faço questão de es­
tudá-la, mais detidamente, convosco.
Principio por 11ma afirmação incontestável: não
temos a liberdade e sim liberdade; não possuí1nos.
a liberdade perfeita. Prova disto é que a Igreja,
em nt1merosas orações, pede a Deus, para seus
filhos, a graça de realizar, com alma livre, o que
fôr agradável a êle: "Quae tibi sunt placita, libe­
ris mentibus exsequamur" 1• Se a Igreja pede essa
liberdade, é porque não a possuímos ainda. Com
efeito, a liberdade perfeita não é o princípio, mas
a recompensa que temos de merecer. Não imagi­
neis possível ser livre com facilidade, bastante
proceder de qualquer maneira. A liberdade é o­
poder de agir segundo a inteligência. Só nos acha­
mos livres sob a condição de agir primeiro no
sentido da maior resistência, de agir no sentido
de Deus, sob a condição de estar sempre crescendo.
Eis a única maneira de ser intelig.ente. Ora, bem
sabemos que, no início da vida sobrenatural, não
existe a liberdade em nós, porque solicitados, sa­
cudidos pelas baixas atrações da sensibilidade. É
pouco a pouco, na medida de nossa virtude, de nos­
sa energia, de nossos esforços voluntários, que ela
se desprende, cresce, desenvolve-se até chegar, en­
fim, à isenção plena, total. E alcança êste ponto
no dia em que triunfamos definitivamente de tô­
das as atrações dêste mundo, no dia em que per-
l Oratão do 199 domingo depois de Pentecostes.

133
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
tencermos, definitiva e inelutàvelmente, aos cami­
nhos e disposições da inteligência, aos caminhos e
disposições da justiça, aos caminhos e disposições
da verdade, aos caminhos e disposições de Deus.
Quando São Paulo nos fala da liberdade dos
filhos de Deus, liberdade superior à lei, porque os
identifica à própria lei, a ponto de não mais haver
nêles resistência, é verdadeiramente dessa liberdade
sobrenatural perfeita que nos quer falar. Esta
doutrina não é compreendida por tôda parte; não
é por tôda parte que se fala a seu respeito: eis,
todavia, a verdade.

Solução das dificuldades

l) Nã o é hum a n o

Bem conheço as objeções, as dificuldades que


se lhe podem opor: "Tudo isto, dirá alguém, não
é humano, é angélico!" Que não seja humano: não
o nego. Seja, pois, angélico: e daí? :É belo? É
grande? É reto? É conseqüente? É glorioso para
Deus? :é, lógico? Então, a verdade, a lealdade,
a retidão, a dignidade, tudo isso é feito para ser
proclamado, para ser reconhecido, e para se per­
manecer eternamente cativo na injustiça?

134 https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
Dir�me-ão: "Tomai cuidado. Nem tudo cst{1
leito quaJ.'\do a inteligência se rendeu. Esqueceis
a graça da vontade". Tenho, para isto, mais de
sessenta respostas. Reparai que os próprios pa­
güos nos respondem: "Nos acontecimentos impre­
vi.stos, diz Aristóteles no terceiro livro d·a Ética, o
h�fi!�!!_l--�g�N--�.���-�o 9 -�!_}!!___ nqlJ.�---º-�!-�!!!!}IlOU --� S�!-
gundo os seus hábitos". Quando, em conseqüência
de--ato�--��petidos, " õ hábito criou em nós essa bem-
�aventurada necessidade, quando a vontade acaba
por transformar-se, em nós, numa espécie de i.n..
teligência, então, nas circunstâncias imprevistas,
resolvemo-nos segundo os instintos que nossas
obras em nós criaram. Lembrai o gesto de um
granadeiro francês, surpreendido pelo inimigo: "Se
pronunciares uma palavra, morrerás". - E o bravo,
sob a pressão instintiva de uma natureza leal e
submissa ao dever, clamou: "A mim, d'Auvergne,
são os inimigos!" Deixa de haver deliberação, a
virtude torna-se natural.
É preciso convencer-se de que a vontade é da
inteligência. À custa de contemplar, fascina-se a
!P:!eligêP.-s!ª e, U_!!"la y_ez fascinad�, ���tade se��=ª·
naturalmente. Mais uma vez, o que _p�ns_�, eis o
q�_e.. .. eu ...-QY.�!:Q..
E para que serviria a vontade se não se diri­
gisse resolutamente ao bem que lhe mostra a in­
teligência? Seria, então, uma espécie de facul­
dade giratória, mudando a cada instante, sem que
a inteligência a governasse e dirigisse? Se assim

https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 135
f ôra, eu suplicaria ao Sen hor me retirassie quanto
antes uma tal vontade, capaz de pertunbar intei­
ramente as indicações da inteligência. 1}1.ém disso,
falta essa graça da v ontade? Acaso Deus se des­
mente? Mostra-nos o fim, mas proíbe-nos de as­
pirar e de tender a êle?

2) A r e si stência dos h ábito s

Por vêzes, ouve-se a queixa: "Há resistência!"


Sim, a resistência inerte de vossas concupiscências
e hábitos de outrora. Pois bem! tomai coragem e
passai de largo. - É difícil, aborrece-me!" Então,
o que é grande, verdadeiro, justo não é capaz d0
subtrair-vos à atração da natureza e da animali­
dade? Mesmo pelo amor e honra de nosso Senhor
Je sus Cristo, só tendes capacidade para coisas fá­
ceis? Nesse caso, o Senhor terá vin do inutilmen­
te. . Além disso, considerai: é mesmo difícil?
há realmente dificuldades? Quanto a mim, não
o creio. Li, há muito tempo, na Imitação de Cristo:
"Onde se ama, não e.xiste labor, ou, se existe, é
objeto de amor''. O que era verdade no tempo de
Santo Agostinho, ainda hoje o é. Não falemos em
dificuldades. Já se disse que se deveria riscar,
do dicionário, a palavra "impossível". Do dicio­
nário cristão, é preciso riscar a palavra: "difícil".
Não há dificuldade na virtude. Ou, se há, é sim-
136
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
_plesmente porque chegais ao dever atual COI11 tnna
vontade insuficiente. Hesitais, tremeis diante d[�lc,
:não o enfrentais. Ou, se o enfrentais, é com matt
l1umor, à distância, com excessiva precaução. Por­
tanto, vejamos. . . experin1entai. . . o dever não se
realizará por si mesmo . . . Empregai coragem.
Crêde-me que só de longe são difíceis as coisas.
E se em vosso coração houver amor, do tamanho
de um grão de mostarda, não é possível que as
dificuldades lhe resistam: haverão de dissipar-se e
desaparecer.
O difícil, o doloroso, eis que vo-Io direi: é vi­
ver, a vida inteira, entre os impulsos, as solicitações
do mal e do bem. Viver dividido entre o mal, ao
qual não se consegue fugir, e o be1n, ao qual não
se quer pertencer. Numa palavra, "não ser, nem
de Deus, nem de si mesmo": Até quando claudica­
reis vós para dois lados? Se o Senhor é Deus,
segui-o; se, porém, o é Baal, segui-o" (3Rs 18,21 ).
Oh! isto sim é duro. Além disso, convencei-vos
seriamente de que o §.eE.h�rl a_manclq:Y.Q��vela_m
fil_�__pr9p_!io para ... 9..1J�-º-ªº---YQ.S___ f<!l!§m dificl!!.flades.
"Ah! quereis conservar apêgo à vossa vontade,
guardar um ídolo secreto, estremecendo-o e defen­
dendo-o contra mim; hei de vos tornar dolorosos
todos os contatos, semearei amargura e dor, tem­
perarei de absinto e fel qualquer tentativa: ?JOS:
�rarei ciúme". A derradeira punição de Deus seria:
��;.I:"-----...___,.:-·

"Agora, já não terei zêlo". Se o Senhor, que vos


ama, pudesse afastar-se de vós, sem vos deixar a

https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 137
amargura dessa dificuldade inerente ao vosso �stado
indeciso e confuso; se algum dia deixasse /de ser
verdadeira a palavra dita a Ezequiel 2 se q Senhor
cessasse de se mostrar zeloso e vos abahdonasse
a uma calma enganadora e sem remorsos, seria
esta a pior das maldições. Na minha opinião, o
maior castigo que o �nhor _ __p_Q��a infligir a uma
---- ·-···· -
.i!!_!Ila, é o de g�ixá-la __t�ngüila. __na_ p_;rpp;r.i�- vulga-
. ·•-

r���de, a igual distância, já ia dizer, do filai,---.:__


hão··-é-,�-- porém, do mal que agora se trata, - mas
':'-. i&�Ldistância. . __dQ_JJem e___ �-�-.,R!:.Qp_ri� ----eza,
- --. __fr�g.u
das próprias misérias.
·------ .. ...- ----
----.�--
-

3) A busc a d a p e rfeição

Encontra-se ainda outra objeção, assaz fre­


qüente: "Isto é perfeição!" À perfeição, porém, é
que estais obrigadas; é o vosso estado; a ela per­
tenceis: é um dever universal. Um dos erros mais
prejudiciais e 1nais comuns, consiste em persuadi­
rem-se as almas de que se chega à perfeição por
meio de atos imperfeitos. Assegurai-vos do con-­
trário. Jamais os atos indecisos, atos flutuantes,
a que eu chamaria de "esponjosos", por outras pa­
lavras, jamais os atos de preguiçosos atingirão o
objetivo: "o preguiçoso quer e não quer,, (Prov
2 Ez 23,25: "Desafogarei contra ti o meu zêlo".
Ez 16,42: "O meu zêlo se retirará de ti".

138
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
i3,4 ). Não se quer o mal; tão pouco se quer re­
solutamente o bem: atos dessa natureza jamais
conduzirão à perfeição. Só se vai à perfeição exer­
cendo os atos da perfeição, isto é, atos vivos, cla­
ros, enérgicos, viris; e, uma vez alcançada a per­
feição, é ainda por meio dêsses atos vigorosos que
nela se pode perseverar. Eis a verdade: todo ato
sobrenatural é meritório, e, embora nos adquira
um nôvo mérito, não basta para elevar-nos; para
engrandecer-nos, é preciso que esteja à nossa altu­
ra e seja proporcionado ao grau que atingimos.
De resto, há um pensamento que pode animar­
-nos singularmente em nossos esforços: assegura
Bossuet, o grande psicólogo, que gois __9u tr�s __9-ê�-
��s 9-�os_n:s_ QJU!º_s...-��riam �uficie�tes _p�rª_ crjªr_ Q
_b_�bit-9.. Julgo que Bossuet tem razão. Com ? au-
:,çflJQ . ._.da__ gr_�ç�-- do Senhqr, com o amparo da. stta
bênção, a virtude torna-se como __ qu� natur?J,l, a
alma estabelece-se no bem, sem oscilação. É o
triunfo da fé.

4) As co ndiçõe s do tempera mento

Há uma última observação. E faço absoluta


questão de vo-la dirigir, porque é um dos obstá­
culos mais fatigantes e mais persistentes na dire­
ção das almas: ouvi-las entrincheirarem-se perpe­
tuamente nas condições de temperamento, de edu-

https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 139
cação, de caráter, de hábitos anteriores, a fim de
�"'"oliçi@I.�_ e obter_ não sei que miserável ,anistia em
.
fêl'ºf·__J.L.,.l as. -pro.p_rtªs cul_p_�s: "E u sou assim '' E n-
� •

tão, mudai! Porventura sois cristãs para vos exi­


mirdes da coragem? Esqueceis, portanto, que sois
vós a parte de escol, a reserva de Deus? - De
outras vêzes, as almas se contristam, surpreendem­
-se: "Meu Deus, bem vêdes que sou sempre a mes­
ma!" - Nesse caso ainda, coragem! Utilizai-vos
. ,,,.�..

da vo11tade: a facilidade, a disposição instintiva


virá logo em seguida. A vontade e a fidelidade
abrirão caminho ao hábito, que haverá de estabe­
lecer-se a pouco e pouco. Se desperdiçardes a vi.da
inteira verificando, desta forma queixosa, gemente,
triste, concentrada, dolorosa, as imperfeições que
em vós se encontram, e vos achardes enfim obsti..
nadamente hipnqji�ª�l�� �-�--�!ª.��---��-�- próp!-:_���----mj­
�é.ri_é:J._S.,_ podeis dizer-me que estará vencida a resis-
tência? derrubado o obstáculo, e realmente cum­
prido o vosso dever? Amamos, porém, as nossas
debilid_açles_m.Qr-ª1s, comprazemo-nos em nossas im::
- -----.
pe:r._f eiçõ�_s. Se descêssemos lealmente ao fundo da
-· ... •-··

consciência, descobriríamos uma espécie de vil con-


descendência, uma conivência inconfessa, mas por
demais real, com essas mesquinhas atrações da
animalidade: quer-se e não se quer, acabando-se
por morrer no meio das ��� i ões e _ d_9s .--���-e­
jQ�_ JIP-_!!_qtente� "Os desejos matam o preguiçoso"
(Prov 21,25). Sem dúvida, não se ama absoluta­
mente a própria imperfeição. Há, todavia, certa

140 https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
condescendência, digamos a palavra justa, certa
,·unzplicidade com todo êsse maldito conjunto que
1 razemos em nós.
Para terminar: vêdes as condições da nossa
natureza; estais, agora, instruídas a seu respeito.
Se ainda vos acontece pertencer ao eu, hipnotizar­
-vos diante dêle, deixar-vos arrastar pelo sensível,
sabereis doravante em que sacrificar-vos. Jamais
uma natureza l1umana, situada nos confins da in­
teligência e do inundo sensível, poderá manter-se
110 equilíbrio perfeito entre êsses dois extremos:
inclinar-se-á inevitàvelmente para um ou para ou­
tro lado. Por conseguinte, para nós existe uma
só alternativa: ser de Deus ou do ídolo; pertencer
à ordem ideal, universal, superior, ou pertencer ao
eu, ao sensível, ao animal. Por outras palavras,
nossa vida é tal q11e se torna necessário sermos
de �1!§ ou de I!._Ós .. P-�J>rios e de J!_Os_�-ª-l'?�t�__ [�­
- ior� É absolutamente-1.le·Cessário escolher. Deus
fer
por deus, será que o nosso não vale mais?

https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 141
3) NOSSA CONDICÃO
� DE FILHOS DE DEUS

"Considerai que amor nos mos­


trou o Pai em querer que seja­
mos chamados filhos de Deus,
e que o sejamos na realidade,,
(lJo 3,1).

A graça vem enxertar-se


em uma 11atureza .sã e reta

Poderíeis lastimar-vos de que vim ter convosco


pretendendo falar-vos das realidades sobrenaturais
e há dois dias que me limito estritamente à ex­
posição de verdades de ordem puramente itatural.
Poderíeis lastimar-vos, se não fôra também evi­
dente que os compromissos e deveres, implicita­
mente compreendidos em ambos os títulos de cria­
tura e de criatura inteligente, já encerram vastís...
simo programa de perfeição. Ah! se essas teorias
entrassem, de maneira· profunda, na trama de nos­
sa vida, estaríamos em condições de oferecer a
D·eus algo de perfeito: q_ sobrenatural viria ert­
xertar-se no natural, iniciando-n�s em uma orde1n
�Jf",
n�;�.
dCcÕfsas ·;ô·d,;·......___-----....a-:� Por favor, não levemos de-
=-- ... -·----•.--.........-..-
formidades a Deus. Sem dúvida, em sua bondade,
..-•...----r�,,am--••-.:..·.1.,..11,.,,, .._ ,__ ------

o Senhor não haveria de repelir-nos. Em sua ter-


nura, dignar-se-ia acolher-nos assim mesmo. To­
davia, já que se digna descer até nós, é justo que

142 https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
lhe ofertemos, ao menos, uma natureza sã 1 uma
natureza reta.
Irei mais longe: no fundo, que nos detém na
marcha para Deus? Quais as dificuldades que nos
atrasa1n na vida? São provenientes da vida so­
brenatural? Explico-me. É-nos penoso participar
da santa Comunhão? De modo algum, não é ver­
dade? - Achamos difícil confessar-nos? Sim, tal­
vez, mas devido a certos obstáculos de ordem pu­
ramente natural. Se quiserdes, tornemos mais
clara a questão: vejamos o que se passa no 111t1n­
do. Por que não se é cristão? Por receio do ca ...
rátér sobrenatural? Não. Exclusivamente e1n ra­
zão de verdades, de deveres estrita e simplesmente
naturais, aos quais não se quer respeitar. Para
tudo resumir em breves palavras, apenas por l1a­
ver um quinto e u1n sexto mandame11tos. Não é
por causa de dificuldades provenientes da orde1n
sobrenatural, nem sequer por orgulho que se re­
cusa inclinar-se e que não se chega às últimas con­
seqüências do caráter de cristão: é por covardia.
Ai de nós! talvez existam outros motivos ainda,.
Dizia eu, portanto, que não se devem neglige11-
ciar as considerações de ordem puramente natural,
pois a natureza é a base primeira na qual se vem
enxertar o sobrenatural.

143
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A adoção divina:
"' .
sua essencza

Terei eu terminado apresentando essas reali­


dades interiores, pessoais, às quais se deve dirigir
o olhar da nossa fé, e segundo as quais se deve
ordenar a nossa vida? Apenas começamos.
És uma criatura, uma criatura inteligente. Que
sois ainda? - Uma criatura batizada, um ente so­
brenatural: tornei-me, por adoção, o filho de Deus.
- Por adoção: entendamo-nos bem. Não confun­
damos a adoção sobrenat11ral com a çivil e legal.
Na adoção humana, modificação alguma ocorre na
pessoa do adotado: seus hábitos, sangue, vida, per­
manecem, após a adoção, os mesmos de antes. A
adoção não é mais que uma ficção de direito, ba­
seada, sem dúvida, num ato real, acarretando con­
seqüências muito apreciáveis, mas no qual tudo
se passa exteriormente.>
Assim não acontece com a adoção divina. Nes­
ta, há vida nova, real e íntima transformação. No
livro terceiro dos Diálogos de São Gregório, encon­
tramos uma história que nos ajudará a compreen­
der a realidade gloriosa de nossa adoção. Um
judeu encaminhava-se de Fondi para Roma. Sur­
preendido pela noite, sem encontrar abrigo, reti­
rou-se a um templo de Apolo. Para um judeu,
não é de tranqüilizar um templo de Apolo, como
refúgio., à noite. Por ser judeu, não se deixa de

144 https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
ter mêdo; por ser judeu e medroso, tanto mais
razões para ser prudente. Tomado de imenso ter­
ror, encolheu-se num canto e, visando maior se­
gurança, antes de adormecer, preveniu-se com o
sinal da cruz. Bem fêz êle, porque êsse templo
de Apolo era precisamente o lugar onde se reu­
niam os demônios, em seus conciliábulos. E reu­
niram-se, com efeito. De que tratavam, não pre­
ciso dizer-vos; o caso é que, ao fim de um instante,
percebeu Lúcifer que havia alguém a mais. Os
diabretes logo fizeram ronda em tôrno do infeliz,
sem, contudo, poder atingi-lo, detidos que se acha­
vam por uma fôrça secreta. E, despeitados, ex­
clamavam: "Vae, vae, vae, vas vacuum, sed signa­
tum''. ''O vaso está vazio, mas assinalado". Ti­
veram de resignar-se a partir: nada havia a fazer.
Quando o vaso está assinalado e cheio de so­
brenatural, cumulado até à santidade, então pior
ainda para o demônio. Conta-se que dois dêles,
sem dúvida cobiçosos de pregarem alguma peça,
foram suspender-se à porta de S. Teodoro, abade
de Nitria. Sentiram-se muito mal ., pois uma fôrça
sobrenatural ali os manteve pregados. Passando
por êles um terceiro demônio, disse consigo: ":Estes
são crian·ças, eu sou mais forte" Aproximando-se,
foi retido como os outros. Assim passaram a noite,
gemebundos, queixosos, e, no dia seguinte, roga­
vam ao abade que os despedisse. "Ide-vos", foi a
resposta. E partiram. Mas confessai que é hu­
milhante, para um diabo, ter de pedir permissão
a um homem.
145
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Qutu1do cheio o vaso, quando cumulada a alma,
(llle se encontra nela, então? Conjuro-vos a refle­
ti r.rnos bem. Escutemos, para guiar-nos, a oração
da Igreja que, conforme sabeis, não fala em vão.
Na bênção da pia batismal, no Sábado Santo, o
sacerdote invoca a bênção de Deus sôbre a água
santa. Eis as suas palavras: "Este Espírito, pela
secreta impressão de sua virtude, se digne fecundar
esta água, destinada a regenerar os homens, a fim
de que os filhos concebidos e santificados no seio
puro destas águas divinas, se tornem novas criatu­
ras, por um nascimento celeste . .. " Não parecem
tais palavras ultrapassar a 111edida? Não: há de­
veras, aqui, urna vida nova, um título e direitos
novos: "Aquêle que está em Cristo é criatura nova.
O velho passou, fêz-se um mundo nôv,o" (2Cor 5,17).
Existe, neste caso, uma participação em a natu­
za divina: "Consortes divinae naturae11 (2Pdr 1,4).
Desta vez, entramos no infinito.
Já notastes (e eis um dos traços mais admirá:.
veis no caráter de Deus) a solicitude que êle em­
prega na constituição do ser sobrenatural, quer
na espécie, quer no indivíduo? Os teólogos não
ad1nitem intervalo entre a criação de Adão e a sua
elevação ao estado sobrenatural; ao tratar-se do
indivíduo, da criancinha recém-nascida, observa-se
ainda a mesma impaciência divina. Seríamos ten­
tados a dizer: "l\.tfas, Senhor, lembrai-vos de que
sois Deus, e de que vos bastais a vós mesmo". A.
criança, cuja razão não despertou ainda, é incapaz

146
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de produzir um ato pessoal. E Deus, 11uma espé­
cie de precipitação que não parece muito conforme
à dignidade e à infinita suficiência de sua natureza,
vai a ela, prendendo-se-lhe imediatamente pelos
vínculos mais fortes e mais poderosos.
Mais uma vez, enfim, que há, pois, nessa alma
elevada à ordem sobrenatural? Vinde com tôda a
vossa fé, aproximemo-nos juntos dessa criancinha.
Voltando do batismo, dorme na calma de �eu ber­
cinho: não a desperteis, não perturbeis os anjos
que velam sôbre ela. Vamos considerar, nes sa
alma batizada, a nossa. Assemelha-se ao templo
de Jerusalém. Oh! como é belo! e bem construído!
Aí vejo, deveras, as três partes do templo: o átrio
exterior, o Santo, o Santo dos santos.

A alma do batizado: um templo

a) O átrio as disposições
na t u r a i s
Existe o átrio exterior, o átrio dos gentios,
onde se fazem os preparativos para o sacrifício.
Existem as disposições sensíveis e animais que o
batismo nos deixa e contra as quais, se crescer,
a criancinha terá de lutar. � a região inferior,
a da sensibilidade. Encontra-se na criancinha, en­
contra-se em vós como em tôda criatura humana.
Tumultos, revoltas, obscuridades, tentações, tudo
isso ali se pode reunir. É a sala de espera: é

147
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assustador o zunzum, ouvem-se conversações de­
sencontradas, propósitos estúpidos, por vêzes in­
dignos. Sei, pelo ensinamento do apóstolo São
Paulo, que tudo quanto se passa nesse mundo
inferior da sensibilidade não tem valor algum para
mim, desde que, bem entendido, a minha vontade
não lhe esteja apegada e simplesmente o desaprove·:
"Não há mais condenação algum.a p·ara os que es­
tão em Cristo Jesus, os quais não andam segundo
a oarne" (Rom 8,1 ). Sei também que tôdas essas
dispo6ições sensíveis, animais, estão mortalmente fe­
ridas pelo batismo: "Estais mortos". Morreu tudo
quanto outrora existia de mau: "Vossa vida está
oculta com Cristo em Deus". Mas, quando -apa­
recer o Cristo, que é a vossa vida, bem se verá
que estais vivos, "manifestar-vos-eis com êle, em
glória". No entanto, acrescenta o Apóstolo: "Mor­
tificai os vossos membros terrenos, a fornicação . ..
co,ncupiscência e a cobiça de possuir . .. " ( Col 3,
3-5). Mas como, grande Apóstolo, como? acabas­
tes de dizer que estávamos Hmortos", e agora ·acres­
centais: "mortificai". Por que nos aconselhais a
"mortificar" o que está morto? - Ah! não o com­
preendeis? Digo-vos: conseryfil_ na morte o que
_....._,::;:,....,._�T;--�- ..-... �

j�_�stá m.__!!r�o, m�;ntenA� - -�� _!!!_orte as di�pos�ç_õ�-�-


J.!lOJ.."t.alm..em:e feridas -��__V(?SS_9 Ç<:lt�-�!!_1�<?! n�-º�- e�
�uniqueis �rregul�_!mente_Y.!���-ªº�-�- essas di�po­
sições
-- · --.-;......_ ____que
�_ estão·---mortas,
-�-
mas que poderiam reviver
l.?.ºr vossa própria �u.Jp� Eis por que eu vos disse
__ ,, . ....................___ ___........,_
-� .... ·-�--·
·�•:;--.·- .. , , - ·-·--·-·.. ;•

também: "Deponde, também vós, tôdas estas coisas:

148
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
ira, raiva, maldade, maledicência e linguagem tor11e"'
(Col 3,8). "Sacudi todo êsse fardo, deixai cair 1�or
terra tudo quanto se achava morto, mas que po­
deríeis procurar revivesse''.
Então, não deveríamos compree·nder, não de-­
veríamos conservar a calma nessas horas de tu­
multo? Mas, até o dia de pert·encer perfeitamente
a Deus, a não ser que uma educação especial a
tenha corrigido, existe no fundo da alma decaída
uma secreta afinidade pelo sofrimento agudo ou
violento, surdo ou co-nfuso, em qualquer dos casos
malsão e maldito. Quando, nessa região da sens�
bilidade, que para algumas almas é tudo, há uma
pequena agitação, uns perdem a cabeça, exaltam-se,.
embriagam-se numa cól·era malsã; parece que a
alma se entesa, se enrija tôda. Outros desanimam,
deixam tudo de lado, entregam-se à persuasão co-•
varde, mentirosa e blasfema de que o trabalho da
vida cristã não produz r,esultado algum, já que:
se tem sempre de recomeçar. Outros ainda aban­
donam-se à louca inquietude, tomam suas visões. 1

por realidades, seus pesadelos por atos, e as inso--,


lências do inimigo por verdadeiras e reais respon-- 1

sabilidades: "Mortificai", conservai a calma. Te-•


nho absoluta certeza de que um ato resoluto, a.
....,,.. :"11.:----.&:...·•.· --
cujo respeito ontem vos falava, l>asta�ia para si-•
!��-e!�. todo êsse_ r�jdo. Na faltà--..dêsse ãto-··vigo--­
roso, há um excelente processo, é o de saber dizer
consigo: "Tudo isso acabará amanhã". Nunca ex�­
perimentast�s disposições irregulares·? - Sem dú--

https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 149'
vida. - E desapareceram? - É fato. - Então,
tranqüilize-vos a experiência passada e, se tais dis­
posições desapareceram, é que realmente não exis­
tiam. As coisas que deveras existem, não estão
sujeitas a êsse vaivém contínuo: permanecem, são
estáveis. Não vos inquieteis, não faleis, não cho­
reis, ocupai-vos tranqüilamente de vossos deveres
habituais. Acima de tudo, i;i�°----ºt:�is mais que d�
��stumei . nessa hora, o ardor __çla pr:_ece seria um
.:e_���-��- e ..êerV!__J].�
• • •
apenas para provocar o re�par�-
cimento
•--··
da tentação:......_,__ seria lançar óleo na fogueira.
Há outro- processo·--aillda, e agora citar-vor-ei
um exemplo pessoal: primeiro, porque não é em
meu louvor; depois, por se tratar de algo tão co­
mum que cada um de nós pode tê-lo experimentado.
Quando eu era vigário, tinha por vêzes aborreci­
mentos, quais não importa. Em face dessas difi­
culdades, ao experimentar certa irritação, dizia eu
comigo: "Sejamos razoável, dentro de quinze dias
não pensarei mais nisto; portanto, situemo-nos ime­
diatamente na perspetiva dêsses quinze dias e, já
que tudo então haverá desaparecido, não mais pen­
semos no caso, desde agora". E o tédio se afas­
tava, desvanecia-se.
Existe, enfim, um último processo, absoluta­
mente infalível. Está perturbado o vosso íntimo?
Cantai uma boa cançãozinha, bem cômica. (Cantai-a
discretamente, pois é inútil revelar à vossa vizinha
que estais com uma tentação). Cantar é infalível.
O demônio detesta a alegria, não sabe rir, apenas

150
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escarnecer. E, uma vez recebido dessa maneira,
vai distrair-se alhures.
Em resumo, em face dêsses estados de cons­
" ciência ., aborrecimentos, tristezas, sofrimentos, per­
l maneçamos em calma. Talvez que os autores mís­
ticos se detenham excessivamente em tudo isso; é
fastidioso. Como se a vida sobrenatural devesse
passar-se tôda a tomar o pulso, a conservar-se dian­
te de Deus em não sei que oceano de miséria es­
piritual: estudam-se as emoções, as impressões, até
aos mínimos detalhes das próprias impressões e
emoções. Não se trata disto: estais em face de
Deus, por conseguinte, desprezai tudo o mais.

b) O sa n t o a graç a , pri n cíp i o


da vida sobrenatural

Voltemos à criancinha. Dorme sempre, nossa


ruidosa conversa não a despertou, e traz consigo,
silenciosamente, o seu tesouro. - Que tesouro?
Nas profundezas dessa alminha, como no templo
de Jerusalém, está o Santo. Há a graça de Deus,
a graça santificante, princípio de uma vida nova
e superior, que não é conatural a nenhuma cria­
tura possível, e cujo têrmo único de comparação
é a própria vida de. Deus. Essa criança é deveras
uma nova criatura. Exteriormente, tem as feições
semelhantes às de tôdas as crianças, mesmo não

https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 151
batizadas. Aos olhos dos anjos, porém, não é as­
sim: ela possui os traços do Menino de Belém;
é filha de Deus e traz em si tesouros e riquezas
sobrenaturais que deslumbram o olhar �os anjos.
Contemplai-a ainda, vêde como dorme serenamente.
O sono é tão calmo que se assemelha quase à morte.
Mas, se viesse a morrer, falaria a língua dos eleitos.
Apresentar-se-ia no para1s0 como em sua propr1a
I' •
• I'

-casa e diria a seu anjo da guarda: "Muito desejaria


ver a Deus, meu Pai, e à Santíssima Virgem Maria,
minha Mãe, e a Jesus, meu Irmão Primogênito".
Isto simplesmente em razão do tesouro de vida
superior que a eleva à estatura de Deus.
Além disso, porque tôda vida, seja qual fôr,
é dotada das faculdades que lhe convêm e que
lhe são proporcionadas, essa criança recebeu, no
batismo, .,..-----......
faculdades�-- condizentes à vida·--------
·------ ..�.-..---�---
.
nova --·..... e__ su-
,,_,_
.._, _ __,.,,.___

--...-- -- que agora possui; nela se encontram as três


perior_
virtudes teologais: a fé, isto é, a inteligência �Q-:-
\?..:re�atl!ral que se voJtª ___ parª ·ª- - _ye�g.ª9:�_ ___ divina e
faz �ei:çeb_�r....Deus por tôda _par_!e; a caridade, von­
tade sobrenatural que se volta para a Beleza de
Deus e a faz amar; e enfim, porque essa crianci­
nha recém-batizada é ainda levada ao seio da Igreja,
porque ainda não nasceu totalmente, - o que se
realizará quando ela entrar na glória, - porque
não chegou ainda o seu verdadeiro "dies natalis",
recebe a esperança que se apóia na fidelidade de
Deus e lhe é uma garantia de que o céu lhe per­
tence. Ela é filha de Deus: sendo filha, é herdeira

152 https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
de Deus., co-herdeira de nosso Senhor Jesus Cristo
(Rom 8,17).
Não é só o que existe nessa .alma batizada.
Traz ainda em si as virtudes morais sobrenaturais:
prudência, justiça, fôrça, temperança. Não é pagã
essa criancinha; por conseguinte, suas virtudes são
de outra ordem. Ela não terá de adquirir, à ma­
neira dos filósofos, virtudes que surgiriam como
resultado de seus atos, mas de pôr em ação ener­
gias divinas que já possui. Nunca lhe digais:
"Exercita-te na paciência, na justiça; exercita-te
em determinada virtude especial". Dizei-lhe, pelo
contrário: "Utiliza-te dos tesouros de vida acumu­
...·...--- ·�
lados em-------ti, utiliza-te das virtudes sobrenaturài;
c!.eJ2Q§Üª9ª�---ªQ.___�e�ro de teu cor,�ção, --��__bendito
.,.,,.:. ....
_.,.,,.--�--·- -:---------�---....----
---:

dia de teu batismo". -


Não receemos as distinções. Longe de nós a
tímida filosofia que desmente o que o batismo
criou em nossas almas : as virtudes morais dessa
criança não são as do filósofo; são deveras sobre­
naturais e, mais uma vez insisto, de outra ordem.
Ainda não é tudo. Nessa alminha, estão os
dons do Espírito Santo, essas flexibilidades, faci­
lidades e docilidades sobrenaturais que submetem
plenamente à moção do Espírito de Deus. f!á --�-
cir-
- _.,.....

cunstâncias heróicas em que não bast{.:!. __a __ virtude;


.é -Cntão que inter�m º�-
dons-�º Espírito___SaotQ_.
Nessa criança, �p__ç_ontra_!ll���!Q_Q.Q� __os� .germ��- __ gQ..
heroísmo, tôdas as possibilidades sobrenaturais, tô-
,._... .,, . ...-.. .,_ �-- ___ ,b.. .-•-•• •··•---•-..-_ -r. ----••••-• .... ., __.._.,......,......,,....-•

das �s ���rgias _divina�. Talvez nem tôdas se de-


11 - A contemplação • • •
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 153
senvolvam. Mas, na extensão de seu caráter batis­
mal, Deus achará com que elevá-la à altura de
qualquer missão. Poderá ser um doutor, um bispo,
um pastor, uma virgem, um apóstolo, um mártir.
O Senhor nada terá que acrescentar depois; a crian­
ça já está 2rovi�a �t9do� os ele�ntos. so·breJ.?,:�­
- -�---Poderia .dizer·
turais que a graça quiser d_e.§�µvolver ulterionii"ente.
-�m-;·---·p;Í;vra -�- ·-;·;;p-�ito ·das -�ffi-
-aventuranças; mas o tempo urge. Há uma última
observação que faço questão de vos dirigir e mes­
mo de acentuar com extremo cuidado.
A vida sobrenatural foi, portanto, constituída
e, por um ato potente de Deus, levada ao fund-o
dessa alma: ali se acham, profundamente enraiza­
das, a fé, a esperança, a caridade, a graça. Não
julgtteis seja apenas um verniz superficial, uma
atmosfera banhando, somente pelo exterior, a nos­
sa inteligência e a nossa vontade: a própria espécie
é diferente e não p.ode entrar ern comparação, nem
adicionar-se; só se adicionam quantidades da mes­
n1a natureza e da mesma ordem. E, neste caso, a
natureza e a ordem são essencialmente diversas.
Então, como explicar o fato de nos persuadirmos,
com tanta facilidade, de que a nossa vida sobre­
natural se perde e desvanece? Encontram-se cris­
tãos e cristãs que dizem seriamente: "Ai de mim!
não mais sinto a minha fé, nem a minha espe­
rança, nem a minha caridade". - Imaginais que
a fé, a esperança e a caridade se possam avaliar
por nossas impressões? - Como se a obra de Deus

154 https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
estivesse à mercê de semelhantes coisas. Além dis­
so, ficai sabendo: quando é que nos sentimos bem?
Quando não sentimos o nosso corpo. Um sinal
de perfeita saúde é haver, em nós, o que os filó­
sofos chamam de "cenestesia", isto é, a ausência
<le qualquer in1pressão determinada. Se não mais
sentis a vossa fé, a vossa esperança, a vossa cari­
dade, alegrai-vos; é um sinal de que agem nor­
malmente ..
Por favor, eu vo-lo conjuro: não vos persua­
dais de que êsses esplendores sobrenaturais em vós
criados por Deus, e tão admiràvelmente, tão sà­
lidamente construídos para transformar e transfi­
gurar a vossa alma e todo o vosso ser, não vos
persuadais de que semelhantes belezas, tão incom­
paráveis riquezas estejam à mercê de um nada,
de um sôpro, de uma impressão. Não tendes ,.
talvez, a consciência de seu existir; elas, porém,
- .
sao reais e permanecem.
Não permita Deus queira eu estabelecer as
almas numa falsa segurança, ou adormecê-las nal­
gum quietisrno! Mas, quando vemos o que Deus
fêz e com que solidez construiu tudo; quando, além
disso, é regular a direção normal e volu11tária de
nossa vida, não havendo um ato enorme e positivo
que desminta categoricamente tudo o mais e cause
retrocesso, a alma deve pressupor em seu favor .,
desprezando tôdas as ridículas e vãs ansiedades.
Nesses estados perturbados, indecisos, confusos, a
alma deve crer na perseverança e julgar que possui

https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 155
o benefício da direção habitual de sua vida. Guar­
de-se, então, das indagações, dos exames de cons­
ciência: não é esta a hora adequada. Só na calma
deve e pode realizar-se frutuosamente o exame de
consc1enc1a.
• A •

Se bem compreendidas as breves palavras que


vos disse acêrca do batismo e de suas realidades
gloriosas, parece-me que não mais haverá motivo
de surprêsa alguma em nossa vida. No dia do
nosso batismo, tudo ficou constituído em nós: está
em nós o infinito de Deus. Então, que poderia
surpreender-vo� doravante? Por vêzes, quando des­
cemos ao segrêdo de nossa vida sobrenatural, h-á
como que assombro em face das obras de Deus.
Admiramo-nos das ternuras e caridades do Senhor
e sentimo-nos tentados a perguntar-lhe: "Meu Se­
nhor e meu Deus, então não vos lembrais? Como
pode suceder que, na vida sobrenatural de uma
pobre alma qual a minha, semeeis tão contínuos
e variados incidentes de solicitude e de ternura?"
E, à. vista dos esplendores de nossa vida sobrena­
tural, que o Espírito Santo nos revela, vemo-nos
tentados a extasiar-nos e achar que é verdadeira­
mente extraordinário. No entanto, era no dia do
nosso batismo que deveríamos ter-nos surpreen­
dido, ocasião em que Deus descia silenciosamente
em nós. Depois, tudo é normal, tudo se tornou re­
gular, tudo, principalmente o extraordinário.

156 https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
e) O S a nt o d o s s a ntos

Voltemos para junto da criancinha. Nela re­


( ·011hecemos a disposição do templo de Jerusalém:
o átrio exterior, dos gentios, ou o mundo da sensi­
bilidade; o "santo", isto é, a inteligência, as facul­
dades e as virtudes sobrenaturais, pois nada falta
a essa criança: tem, não apenas o pri11:ç.!Pi9____q._e
vida, a graçª_ santificante, mas taDlbéin:- f�zendo­
-lhe çorteJo,. as _faculdades sobrenaturª.is.,_ as--·virttl­
des ms,_rill��;-dons do ES;pirito ..Santo. Õ sér
sobrenatural não é insuficientemente constituído, o
batismo jarr.tais falha, os batizados nunca são dis-
._-..

formes ( � me�_Q§ qg.,.e procurem irregularme11te d��


-·:"'... -�-.:,l,,.�-.f116•.· _,,,,,__,.,,,,.

truir-s� a si próprios). E, ainda qy� tôdas q� vir:


!�âli�ades e en:ergiãs do batismo n...�5!. -��---c!�senvol­
yam ig?al!fl��t,�--�l!!._!odos, ·��43:!!!.-se., no entanto,
�� Jô..�as_ as a)ni�, ·e a eternidade ver-lhes-á O
esplêndido desabrochamento.
Disse eu tudo, ao falar sôbre o átrio dos gen­
tios e o Santo? Não: no templo de Jerusalém,
havia também o Santo dos santos.

A alrlla do batizado,
habitáculo da Santíssima Trindade

Eis que desperta a criancinha: não vêdes os


seus olhos? Nêles se revela carícia, candura, ter-

157
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nura, pureza; olhai bem, há também o reflexo dq
Infinito. Sim, se olhássemos atentamellte, Com�
lt1z da nos�� i�, ª2-E!'ofundezas dessa alma bati-
;.,·•.··-·-�'!'t__,,.,..

zada, "'verí�os __o Eterno, Deus Pai, Filho e EspTriio

. êxterior·:nésse p�queni�� ·--santl!ªrfõ _. ·a-�--- Iu� . -e-


SãiitO '"iesidindo S�J!l....�-�paço, sem ruido, s�m brifno
-de·
purezã'. Nossa- fé · -aconseihai-U:�s-ia �--
_filoelhar-nos,
a inclinar-nos diante dessa criança. E, a exemplo
________ ... ---- -··•#•·

dõ sant� mártir Leôniêliis:-·be1.jandO com veneração


o peito de seu filho Orígenes, recém-batizado, bei­
jaríamos também respeitosamente o santuário in­
finitamente puro onde reside a Trindade Santíssima.
Evitemos, sobretudo neste caso, acreditar em
artifícios de linguagem; dizemos, não palavras, mas
realidades e verdades. O Evangelho no-lo ensina:
"Viremos a êle, e nêle faremos morada" (Jo 14,23 ).
E diz-nos também o 'ãpóstõlo Paulo: "Cristo, pela
f_é, habita em nossos corações" (Ef 3,17): ·o-p'ellsã­
mentocla7iãbitação sti"E,stâncial de Deus na alma
batizada sustentou a coragem de nossos Pais na
fé; com efeito, Deus ali se encontra, não a título
de sua presença comum a tôda criatura, não como
presente a uma criatura que êle ilumina, mas .E_orp9
p_resente ��a criatura qtte êle __-ª..!!!�, e cujo bem
e p..ropriedétcl.e êle é.
Se a yig!_lância materna visasse tal o�J�tiY-9,

· ª·
se a vigilªAcia e o �s.in.9 sacer.çlot�l se aplicassem
em çµl_ttyqr_�_._!azer ..l?.!.9_g!°.kdir se��--�tvi�, se a
Igreja sempre fôsse livre, a criança -------��-- c·ons,,�_r-------
varia _ ....

.- imaculada até à eternidade, a t(1nica de


intata,
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_Jlureza re.ce.bid.a .no batismo. E, dêste santuário de
·, ; -- ··-1 . .

·pureza e santidade, do qual tomou posse quando


batizada, Deus jamais se retiraria.
Sem dó'�id� a presença ae · 'oeus não é s::::·cons-
.· - .,_ •••- ••- ..�.�
• - ••,--., T__.--,_,�

ciente ·Qara
----- -·-·· --- Todavia, devemos saber que
a alma. .
as __coisas
. -· divinas ------
•-.---...--- ---não estão ao alcance da · consciên- -
,·eia.
··- Na antiga lei, não se concedia a todos entrada
no Santo dos santos. Só uma vez no ano, com o
sangue das vítimas, podia o Sumo sacerdote, e só
êle, ultrapassar o véu. Separara-se das coisas ex­
teriores, transpusera o átrio dos gentios, até o
Santo, tal como se descreve nps capítulos 9 e 10
da epístola aos hebreus. E só então, após haver-se
purificado, é que tinha acesso ao Santo dos santos,
ante a divina Majestade. Deus ali estava, velado
pelos querubins, a estenderem suas asas de ouro
sôbre o- propiciatório, e o triságio angélico reper­
cutia silenciosamente. Não se achava ainda aberto
o caminho do Tabernáculo ( Hebr 9 ,8) e, de fato,
era rara a santidade no Antigo Testamento.
Agora, porém, está franqueado o caminho do
Santuário, e o dever de tôda alma batizada é ten­
der, com tôdas as fôrças, a adorar a Deus neste
santuário interior que traz dentro de si. Mais uma
vez, se com tal objetivo se empregara suficiente­
mente a vigilância materna, se mantivéramos o es­
tado primeiro, se nos conserváramos no frescor do
nosso batismo, se nenhuma falta pessoal viera rom­
per a bendita unidade estabelecida entre Deus e
nós, em virtude mesmo da remissão perfeita, e

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por não existir já nenhuma culpa, nenhuma fen"1
desde a aurora da nossa razão nos acharíamo des-
pertos simultâneamente para as claridades ná.turais
e as sobrenaturais. Viveríamos, com plenitude, na
união e na presença de Deus. Mas, porque não se
realizaram tais condições, porque a nossa inteli­
gência se dispersou pelo esquecimento e falta de
atenção; porque nossa vontade se arrefeceu e afrou­
xou; porque o nos[;,o coração se tornou egoísta e
obstruído, sucede o estranho fenômeno de que, em
certa hora da nossa vida, somos obrigados a re­
parar o trabalho de destruição iniciado por ocasião
do batismo. Pela mortificação, isto é, pela repres­
são generosa de quanto se acha desordenado em
nós, temos de subjugar tôda a plebe revolucioná­
ria que se agita na sensibilidade, de concentrar a
nossa inteligência que se extravia sem ce�sar, e de
mantê-la em face das coisas da fé; temos de apoiar
na fôrça de Deus a nossa vontade indecisa e aguer­
ri-la. Temos, enfim, de eliminar do coração todos
os obstáculos que, livremente, estabelecemos entre
Deus e nós.
Nesse trabalho lento, co11tínuo, indispensável e
por vêzes árduo, temos como amparo a graça de
Deus. Até agora não quis deter-me neste ponto, a
fim de não destruir a unidade dos assuntos que
expunha. Hoje convém, é absolutamente neces-
, . .
sar10 que pronuncie o seu nome.

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A alma do batizado
amparada pelo auxílio divino

A graça, eis o auxílio oferecido por nosso Se­


nhor Jesus Cristo a tôda alma de boa vontade;
é a solicitação assídua, amorosa, regular de nosso
Senhor Jesus Cristo, comprazendo-se em bater à
porta de um coração que, com demasiada facili­
dade, se fecharia diante dêle. Utilizando êsse au­
xílio, nada permanece de todo o conjunto maldito
e revolucionário, e chega-se, poµco a pouco ., a es­
tabelecer a ordem em si. Quando há demora, é
por nossa culpa. Sem dúvida alguma, a ineficácia
da graça provém tão somente do homem. Deus d.á,
dá sem reserva, sem se fatigar. "Deus não dá o
Espírito por medida" (Jo 3,34 ). Dá às torre11tes,
dá sempre, mantém-se à porta da alma. Só que
esta porta, à qual Deus não çessa de bater, a alma
pode conservá-la fechada, obstinadamente fechada
a tôdas as solicitações; ela pode responder ao Se-­
nhor: "Não, eu não quero". Ela po.de embuçar-se
em todos os seus hábitos irregulares, envolver-se
da sua covardia, pode mesmo dizer a Deus, como
se diria a um empregado: "Espera lá na antecâ­
mara; quando precisar de ti, mandar-te-ei chamar"'.
No entanto, para essa alma batizada é que fôra
criada tôda a ordem sobrenatural. "Tudo é vosso,
mas vós sois de Cristo, e Cristo é de Deus" (lCor
3,22-23). Tôdas as complacências divinas, tôdas as
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confianças, tôdas- as ternuras de Deus eram para
ela. Para ela, os sofrimentos do Senhor, os sa­
cramentos, a Confirmação, a Eucaristia, a presença
paciente e secular de nosso Senhor Jesus Cristo
no seu tabernáculo, a Penitência, a Ordem, todo
êsse conjunto de riquezas e de graças. sobrenatu­
rais. E tudo isso em vão. Sim, foi para isso que
correu o sangue do Senhor, e inutilmente... E
parece-me que, diante dessa alma em obstinada
oposição a Deus, vejo, não apenas nosso Senhor
Jesus Cristo com o seu Sangue, mas ainda a Igreja
inteira, os confessores, os mártires, os apóstolos,
os doutores, as virgens, batendo à porta dêsse co­
ração, fazendo o cêrco dessa alma a fim de ven­
cer-lhe as resistências. E ela recusa render-se ..
Ah! se nos rendêssemos! se, reprovando tudo
quanto em nós se opõe a Deus, voltássemos ao
homem do nosso batismo; melhor ainda, se voltás­
semos, tanto quanto possível, ao homem da justiça
origir1al! . . . Se vos assustais, então insisto. Se
voltássemos a nosso Senhor Jesus Cristo, e, já que
trazemos Deus em nós, se vivêssemos nessas mãos,
nesses braços, e sôbre êste Coração! Se restabele­
cêssemos a ordem, a harmonia, a hierarquia normal,
regular, sendo Deus, não o primeiro, mas o único!
Permaneceria, talvez, em nós, tfm conjunto de fra­
quezas naturais, de imperfeições condenadas, que
não mais desagradariam ao Senhor, por humilhan­
tes que nos pareçam. E mesmo isso desapareceria
progressivamente. Com um pouco de amor, tudo
isso logo se transformaria em escombros e ruínas,
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q_ue o trabalho da vida cristã haveria de eliminar
como que brincando; procuraríamos os seus vestí­
gios e não mais os encontraríamos. Seria a plena
·posse de nossa inteligência pela fé, de nossa von­
tade pela esperança, de nosso coração pela cari­
dade. E, em vez dêsse estado perturbado, inde;,o
ciso, flutuante, a que eu me referia, haveria um
estado definitivo de calma, de paz, de alegria, de
silêncio, momentâneamente interrompido pelos as­
saltos da natureza qt1e não quer morrer, pelas
tentativas do inimigo que jamais desanima, acen­
tuado também, em algumas circunstâncias, pelos
estremecimentos, em nós, do próprio amor do nos­
so Deus. O amor de Deus é desesperante. É o
contato divino sob o véu bendito da nossa fé.
Jamais pensastes nessa hipótese? Por que não
nos criou o Senhor, a todos nós, na visão beatífica?
A rigor, era possível. O que se pôde fazer quanto
à natureza individual de nosso Senhor Jesus Cristo,
poderia fazer-se igualmente para cada uma de nos­
sas almas. Em vez desta longa série de provas,
Deus nos teria estabelecido, de improviso, nos des­
lumbrantes esplendores da visão beatífica, de modo
que a felicidade eterna seria para nós uma esmola,
uma herança, não uma recompensa.

A alma do batizado,
teatro de um combate
Não temos que discutir as obras do Senhor e
sabemos perfeitamente que êle quis estabelecer-nos
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em um período de provas, a fim de nos dar a opor­
tunidade da nossa educação, fazendo-nos merecer
e ganhar a nossa eternidade. Além disso, não creio
haja diferença essencial entre as condições da vi­
são e as da fé. Já tive ocasião de vos fazer esta
observação, mas há coisas que jamais se �epetem
em demasia: Deus não nos será mais próximo,
nem mais terno, nem mais nosso durante a eter­
nidade, do que o é no tempo: a eternidade nada
acrescentará. Da nossa parte, sem dúvida, há uma
diferença: menos alegria, menos felicidade. Mas
a diferença é tôda da nossa parte; da parte de
Deus, e do ponto de vista de sua proximidade, de
sua ternura, as condições do tempo não diferem.
das da eternidade. Com um pouco de fé e amor,
seria fácil ver que a nossa vida não se assemelha
a coisa alguma criada, e que o coração de Deus
mesmo, nada pôde formar de mais terno, maior
e mais doce.
A criança possui em si tôda a realidade do
homem feito e, embora sujeita ainda'ª certas im­
perfeições, certas fraquezas, das quais deverá des-·
fazer-se a pouco e pouco no rude trabalho da vida,
nem por isso deixa de ser um homem, a mesmo
título que o adulto chegado à plenitude da idade.
é viver à sua luz, como se já estiv�ramos "entre
os resplendores dos santos" (SI 109,3 ). Desde ago­
ra, "neste lugar escuro" (2Pdr 1,19), Deus está em
nós, Deus está conosco, nas mesmas condições de
ternura e de intimidade. Desde êste mundo, não

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nos achamos menos conduzidos às suas mãos ben­
ditas, a seus braços e ao coração de nosso Senhor
Jesus Cristo. Eis por que mais uma vez repito,
o único meio de honrar a nossa fé, é utilizá-la como
exercendo a função da visão intuitiva.
Hoje, termino com uma prece: Roguemos ao
Senhor, que se acha entre nós, conforme prometeu
(cf. Mt 18,20), que se complete em todos nós essa
perfeição do ser sobrenatural; peçamos-lhe que ne­
nhuma das almas aqui presentes oponha obstáculo
voluntário à sua atuação; supliquemos-lhe que essa
plenitude de vida sobrenatural se realize, não só
em nós, mas no maior número de almas cristãs.
Há muitos problemas suscitados pelo mundo: pro­
blema social, problema econômico, que sei eu?
Creio, todavia, que, no dia em que o Senhor encon­
trasse um feixe de trezentas almas reunidas na
unidade e caridade, a fim de servirem a Deus até à
completa abnegação de si mesmas, em tal dia, creio
eu, estaria em suas mãos a verdadeira, a indispen­
sável alavanca, suscetível de revolver a inércia do
mundo. Tôdas as dificuldades atuais estariam de­
finitivamente resolvidas, e para sempre eliminados
os madianitas 3•

3 Alusão ao povo que constantemente se opõs à entrada dos hebreus


na Terra Prometida ..

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1NDICE

PREFACIO 5

I. DEUS 15
Deus, realidade suprema do mundo 19
Deus no centro da vida dos homens 20
A contemplação de Deus, fonte de paz e de estabi-
lidade 28
Contemplar a Deus para conhecer a nossa condição 31
Atitudes das almas em face de Deus: o temor 39
a retidão 40
o a,mor 41
quando o Senhor mesmo ilumina a alm.a 42
II. NOSSO SENHOR JESUS CRISTO 45
O problema único de uma vida: sou amado por Deus? 49
A resposta de Deus: o dom de seu Filho 50
Jesus Cristo, único objeto de amor através. dos séculos 56
A Eucaristia, coroamento do amor de Jesus Cristo 60

III. A IGREJA 67
A Igreja, depositária do espírito de Cristo 70
A Igreja, criação do Espírito ·Santo 72
A Igreja, sociedade perfeita 76
A Igreja, reino de Jesus Cristo 78
A lgrej a, espôsa de Cristo 79
A Igreja, corpo de Cristo 80
Conseqüências desta dou trina para a vida cristã 82
IV. O EDIFtCIO DE NOSSA VIDA SOBRENATURAL:
SUAS BASES FUNDAMENTAIS 91
1) Nossa condição de criaturas 93
Deus, o único Ser necessário 97
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A noção de criatura examinada à luz da Fé 98
Os frutos dessa contemplação: a humildade 104
a paz 104
a docilidade e a dependência 106
o abandono tranqüilo e jubiloso 107
a adoração e o sacrifício 113
2) Nossa condição de criaturas inteligentes e livres 117
Como discernir o que vem de Deus? 117
Primazia do conhecimento de si mesmo 119
O respeito de Deus por sua criatura inteligente 120
na sua criação 121
no mistério da Encarnação 123
. . . em sua constituição de criatura racional 127
As características do ser inteligente: descentraliM
zado, saindo de si 128
capaz de realizar o bem 130
que usa da própria liberdade para desen-
volver-se 13 2
Solução das dificuldades
1 ) não é humano 134
2) a resistência dos hábitos 136
3) a busca da perfeição 138
4) as condições do tempera1nento 139
3) Nossa condição de filhos de Deus
A graça vem enxertar-se em uma natureza
-
sa
142

e reta 142
A adoção divina: sua natureza 144
A alma do batizado: um templo l 47
a) O átrio·: as disposições naturais 147
b) O Santo: a graça, princípio da vida
sobrenatural 151
a graça santificante 151
as três virtudes teologais 152
as virtudes morais sobrenaturais 153
os dons do Espírito Santo 153
e) O Santo dos santos 157
a alma do batizado, habitáculo da
Santíssima Trindade 157
a alma do batizado amparada pelo
auxílio divino 161
a. alma do batizado, teatro de um
combate 163
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