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UA.TEUISno·
DE

PIBSIYIB!NC.lº
ou
EXPOSIÇÃO HISTORICA, DOGMATICA, MORAL, LITURGICA, APOLOGETICA,
PHlLOSOPHICA E SOCIAL

DA B:ELIGI.l·O,
Desde a ori,;em •lo mundo até nos11es dias
tlJtlo. Jla'lttt '.). ehaume,
YiGARIO GERAL DA DIOCESE DE NEVERS, CAVALLF.IRO DA ORDEM DE S. SILVESTRE,
ME!IJBRO DA ACADEMIA DA RELIGIÃO CATHOLICA DE ROMA, ETC.

TRADUZIDO DA 6.à EDIÇÃO DE PARIZ


PELO

Jesus Cllristus heri lwdie, ipse


et in srecula. Hehr. XIII, 8.
Jesus Christo era hontem, e é
hoje: o mesmo tamhem será por
toJos os seculos.
Deus Clwritasi;st.1.Joan.IV.8.
Df'us é a cari<.!aJe.

TOMO VI.

POR.T O:
TYP . DE FRANCISCO PEHElRA D'AZEVEDO
Rua à'Almada u. 0 388.

t8ãã.

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CATECISMO
DE

··-
CONTINUAÇÃO DA SEGUNDA PARTE.

LV.' LIÇÃO .

. DE :NOSSA. IINIÃ.0 von o :NOVO A.DA.M


PELA. VHA.RIDADE•

Mandamentos da Igreja. - Poder legislativo da Igreja. - Sua certeza e


lndepcodencia. - Seu objeclo. - Terceiro e quarto mandarneo.tos da
Igreja. - Sua importancia social.

CERTEZA d' este poder. Para amarmos a Deus, e por consequencia


nos unir-mos a Nosso Senhor pela Charidade, não basta observar o
Decalogo: cumpre lambem guardar os mandamentos da Igreja. O
mesmo Salvador disse , com effeito, aos chefes da sua Igreja : A.ssim
como meu Pai me enviou eu vos envio; todo o poder me foi dado
no Ceo e na terra; ide pois, ensinai todas as nações; tudo que

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6 CATECISMO

~ligardes na terra será ligado no Ceo , e tudo que desli'gardes na


terra será desligado no Ceo. Aquell~ que vos ouve,.. a mi·m mesmo
ouve ; e o que vos despreza , a mim despreza , e quem me despreza,
despreza aquelle que me envi'ou. .Todo aquelle que não ouve a lg reja,
1

seja tido como pagiJo e publicano: esse está fora do caminho da


salvação. Na pessoa de S. Pedro e dos Aposlolos, e por consequen- ,
eia de nosso Santo Padre, o Papa , e dos Bispos, tem a Igreja
pois recebido divinamente o poder de fazer ; na ordem da Religião,
leis rigorosamente.. obrigatorias para todos os cbristãos, Sacerdotes
ou Bispos 7 ricos ou pobres , sabios ou ignorantes , reis ou vassal-
· los , sem excepção de pessoa. Em· que ·reino se achou auctoridade-
mais sagrada, podet· legislativo melhor estabelecido?
Alem d'isso , a Igreja é uma sociedade fundada pelo mesmo
Jesu-Christo Senhor nosso , para conduzir os homens ao Ceo , fazen-
do-lhes observar a Religião. Ora , toda a . sociedade em poder de
fazer as leis e regulamentos que julga necessarios á · sua conserva-
ção, prosperidade, e fim para que foi instituida. A Igreja, sendo
a mais perfeita de todas as sociedades , tem por conseqúencia o po-
der de fazer leis : e de facto as tem feito , desde a sua origem até
este nosso seculo d'impiedade e soberba; e todos os christãos se
creram selllpre obrigados a cumpril-as e guardal-as. Duranle os tres
primeiros seculos , na força das perseguições , houve mais de c.in- /
coenla concilios, tanlo no Oriente como no Occidente , cujos decre-
tos leem sido compilados debaixo do titulo de Canones dos Aposto-
/os ,' e Constituições Apostolicas. Regulam elles a ordenação dos
l\1inislros Sagrados , a administração dos sacramentos , a celebração
dos Sanlos Mysterios, a observancia da Quaresma , a solemnidade
da Paschoa , e outros pontos de· disciplina. ·
Sua independencia. - Ha mil e oilo centos annos . que a Igreja
não tem cessa dó de fazer uso d'este poder Jegislali vo , e isso com
soberana independencia. << Ha duas auctoridades , ~izia S. Gelasio
ao Imperador Anastasin , ha duas auctoridades, pelas quaes o. mun-
do se governa: a Sagrada auctoridade dos Pont1fices , e a auctori-
dade dos Reis. A auctoridade divina dos Pontifices é tanto mais
tremenda quanto são mais rigorosas as contas, que elles mesmos hão-
de dar a Deus no Jiltimo juiso, ainda do uso que , fizeram de1la para·

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.DE PERSEVRRANÇ,A.

a salvação dos Reis. Não ignoraes, augusto Imperador, que se bem


a vossa dignidade ''ºs eleva ·acima dos demais homens, nem porisso
deveis deixar de curvai· a cabeça diante dos Ponlifices, encarregados
da dislribu1ção das cousas divinas , e obedecer-lhes piedosamente,
em tudo quanto respeita á ordem da Religirio , e administração dos
Santos Mysterios. Bem sabeis"{]ue ~ no concernente a estas cousas,
dependeis da sua. auctoridade, e nenhum direito tendes de fazei-as
pender <la vossa vontade propria. Em tudo o que pertence á ordem
publica , estes m"esmos Bispos obedecem ás vossas leis ; assim como
da vossa parte , deveis obedecer-lhes no que toca ás cousas santas,
cujos dispensadores são ; e assim como seria crime da parte delles
o calarem-se a respeito do culto que é devido a Deus , não seria
menor prevaricação se , em lugar de prestar-lhes a obed jencia devi-
da • desprezassem as suas instrucções (1 ). »
Não acabaríamos se houvessemos de citar lodos os testemunhos
ou provas dos Padres , e todos os factos que confirmam , na suc-
cessão de desoito seculos , a total independencia da Igreja em ma-
teria de__governo espiritual. Ouçamos porem o immorla l Arcebispo
de Cambraia. « Embora se diga , exclama Fenelon , que a Igreja
está no Estado para obedecer ao Príncipe em tudo o que fôr tem-
poral ; mas sem embargo disso , jámaia dependeu delle no que toca
as funcções espiritnaes. Elia está n'este mundo , mas é para o con-
verter ; está n'este mundo , mas para o governar no concernente á
salvação. O mundo subrnetlendo·se á Igreja 1 não adquirio o direi-
to de. a dominar. Os Principes , fazendo-se filhos da Igreja , não
fi~am seus senhores : antes devem servil-a, e não dominai-a ; pros-
tmt·-se ante ella, e não impor-lhe o jugo. O imperador, dizia S.
Ambrosio , está dent1·0 da Igreja ; mas não é superior a ella. A
Igreja no reinado dos Imperadores convertidos , fica- tam livre como
no tempo dos Imperadores idolatras seus , perseguidores. EIJa con-
tinuou a dizer, no meio da m::iis profunda paz, o que Tertulliano

(1) Epist. Vil ad Anast.

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8 CATECISMO

dizia della. durante as perseguições : Non te terremus , qui nec ti~


memus; nada haveis que temer de nós, nem tambem nós vos te-
memos. Mas reparai bem , accrescenta elle, que não combatais con- -
· tra Deus. Com effeilo haverá cousa mais funesta ao poder humano,
que é uma verdadeira fraquesa, do que atacar o Todo Poderoso?
Aquelle sobre quem esta pedra cahir- será esmagado , e aquelle que
cahir sabre ella se despedaçará.
« Se f~llamos do ministerio esR}rilual, dado á Esposa. immediata
e unicamente por seu Esposo , a Igreja o exerce com inteira inde-
pendencia dos homens. Jesu-Christo disse: Todo o poder me foi
dado no Ceo e na terra ; ide pois, ensinai todas as taações , bapti-
sando-as , etc. Todo este poder do Esposo passou á Esposa, e este
poder não tem limites ; toda a creatura , sem excepção , lhe está
sugeita. Assim como os Pastores devem dar aos povos o exemplo
da mais perfeita submissão, e invio1avel fidelidade aos Príncipes , no
, que respeita ao temporal , assi{ll lambem os Principes , se .querem
ser cbrisLãós , hão-de dar aos povos o exemplo da mais humilde do-
cilidade , e da mais exacla obediencia aos seus Pastores , no que
toca as cousas espirituaes.
o: Perturbar a Igreja em suas fnocções é atacar o Altissimo ,
no que elle tem de mais charo, que é a sua Esposa ; é blasphemar
das suas promessas , querer destruir o seu reino eterno. Não só os
Principes nada podem contra · a Igreja , mas nem ainda a pro da
Igreja , no que pertence-ao espiritual , a não ser obedecendo-lhe. E'
verdade que o Princ1pe piedoso e cheio de zelo se denomina o Bispo
do exterior , e o protector dos Canones ; expressões que repetimos
sempre- com prazer , mesmo no sentido _moderado que os antigos lhes
davam ; mas o bispo do exterior não se ingere nas funcções do in-
terior. Conserva-se com· a espada em punho , á porta do Sanctua-
rio; mas não ousa entrar invadindo-o. Ao mesmo tempo que pro-
tege , · obedece ; protége as decisões, mas não decide.
Eis as duas funcções a que elle se lemita : a primeira é man-
ter a lgrej! em plena liberdade contra todos os seus rnimigos do ex-
terior , a fim de que possa no interior ·, sem contrangimento, pronun-
ciar , decidir , approvar , corrigir , em fim abater toda a soberba
que se levante contra a sciencia de Deus ; a segunda , é apoiar es.;

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DE PEttSEVERlNÇA.
las mesmas decisões logo que eslam feitas , sem ousar jamais inter-
pretai-as , seja sob que pretexto for.· (1f »
· Resumindo todas estas auctoridades, Pio VI escrevia, dizendo:
Nós reconhecemos , queremos até que haja no governo politico, e leis
inteiramente distinctas das da Igreja , leis que pertençam ao podet·
· ci"v il. Mas , quando reclamamos a obediencia p·ara umas , não per-
miltimos qoe as outras, que são da alçada do poder espiritual , se-
jam violadas pela auctoridade leiga. Que jurisdicção· podem ter os
leigos nas cousas espiriluaes? Por seu direito estariam os ecclesi- .
asticos sugeitos a seus decretos? Não ha Catholico que não saiba
que Jesu-Chrislo , instituindo a sua Igreja,· deu aos Apostolos , e a
seus successores, um poder independente de todo outro poder (2). l>
E' pois um facto 1.º que a Igreja recebeu de Deus o po-der de
fazer leis ; ~.ºque o exercício d'este poder legislativo é de direilo. divino,
independente de todo o poder humano; 3. 0 que ~ sob pena de re-
sistir ao mesmo Deus , ~odos devem submeller-se ás leis promulgadas
pela Igreja , e que ninguem póde revoltar-se contra ella, nem coar-
ctar a sua liberdade. Não se diga pois, par a· fugir de obedecer ás
leis da Igreja , que ellas são obra· dos homens ; porque nosso $e-
nhor disse : Aquelle qu·e vos ouve , a _mim mesmo ouve ; aquell~
que vos despreza , a . mim despreza. Por ventura será innocente o
filho , que desobedece a seu pai, por não ser mais que um homem?
Seu objecto. - Este poder abrange tudo quanto , por sua natu-
reza , se refere á Religião , 'ªº culto divino , ou á salvação das al-
m~s. D'est'arte, o ensino e a prégação do _Evangelho, a adminis-
tração dos Sacramentos , a lithurgia , a santificação do Domingo , o
estabelecunent~ e santificação das festas , os jejuns e abstinencias ,
os votos , as Ordens religiosas, sua instituição e approvação , a in-

(1) Discurso por occasiffo da Sagração do Bispo de. Colonia.


(2,' Breve de 10 de - Março de 1691 a Luiz XVI e aos Bispos da
Assemblea nacional.
2 VI

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10 CATECIS~10

lerprelação e dispensa do JUramen Lo , a cn~ação dos Ministros tia


Igreja , sua jurisd1cção, penas canonicas , irregularidades, em sum-
ma , tudo o que tencie ao governo ou disciplma ecclesiaslica , entra
no domimo do poder espiritual, que a este respeito é absolutamente
independente do poder ·temporal (1). ·
Terceiro e quarto mandamentos da Igreja. - Entre as leis que
o mundo deve a este· poder da Igreja, lam sagrado, sabio <'suave,
ha seis que dizem respeito a todos os Fieis, e que por excellencia
se chamam os l\fandamentos da lgreJa. Teem elles por fim applicar
as leis dadas por ~osso Senhor mesmo , e assegurar a sua obser-
vancia. E' aqui lugar de exp_licar duas d'estas leis ; das outras · ,
trataremos em outra parte (2).
O primeiro manda : Confessar ao menos uma vez cada anno.
Segue-se d'aqui que somos obrigados por dous differentes preceitos
a confessar aos sacerdotes os peccados mortaes , que temos commet-
. lido depois do Baplismo. Um é de direito divino ; e outro de di-
reito ecclesiashco. E' certo 1. º que , depms que uma pessoa cai em
qualquer pcccado mortal, é obrigada , pelo preceito divino, a confes-
sar-se quando está em perigo de morte ; 2. º que aquelles que pec-
cam mo~·talmente eslam obrigados a confessar-se muitas vezes na vi-
da , pelo mesmo preceito divino. Assim , aquelles .que, depois d'ha-
ver peccádo mortalmente , passam muil.os annos ~em se confessar,
peccam não só contra o preceito ecclesiaslico , mas lambem contra o
preceito divino ; 3.º estamos obrigados, pelo mesmo preceito: a con-
fessarmo-nos quando estivermos em peccado morlal, e tivermos ne-
cessidade de receber Sacramentos de vivos.
Nos bellos seculos da lgreJa não se limitavam os Fieis a cumprir

(1) Thcol. dogm. l. 1 , p. 663.


(~) o primeiro mandamento • na quarta parle do Calhedm~ íallando
das festas ; o segundo , no terceiro preceito do Decalogo; o quinto e o
!§CXlo tratando da Quaresma e das quatro Tc:nporas.

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lrn PEHSEYERANÇA. 11
à risca este mandamento , mas ainda sem consciencia de peccado
mortal muitas vPzes recorriam ao Sacramento da Penitencia. Era
purificando suas almas n'esle banho salutar ' que começavam suas
principaes emprezas. Tinham o costume de se confessar antes de co-
meçar as jornadas ,. d'cntrar no eslado religioso' de fazer qualquer
peregrinação , e até àntes de se alistar na milicia. « Era costume 11a
Inglaterra , diz um autbor anljgo, que quando alguem queria dedicar-se
á carreira militar , vinha procurar de vespera- o Bispo ou ·qua_lquer
Sacerdote , e se confessava de todos seus peccados com sentimentos
-de compunção; passando a no_µte na Igreja, depois d'absolvido, a
orar e mortificar-se devotamente diante de Deus. Na manhã segliin-
Le , ouvindo Missa , plÚ1ha a espada sobre o altar, e o Sacerdote ,
depois do Evangelho , lh'a lançava ao pescoço e o abençoava. Depois ·
commungava á .Missa, e ficava soldado (1). )) .
O mesmo se praticava na França (2). Se nossos pais eram 1am
rrligioso~ quando se tratava de tomar o parlido das armas, não o
eram menos nos perigos eminelilcs de perder a vida no sorviço da
palria. Na vespera elas batalhas passavam a noute a confessar-se (3).
Os bons christãos fazem bons soldados. O illu stre marechal de Tu:..
renne linha commungado na ·vespera do dia em que morreu.
Assim recorriam , pois., os nossos pais na fé alegre , esponta-
nea e frequentemente ao tribunal da reconciliação ; mas diminuindo ·
· o fervor com os seculos , · tornaram-se as confissões mais raras. Para
obstar .á relaxação, ordenou o quarto Concilio de Latrão, celebrado
cm 1'215; que todo o chrislão d'um . e outro· sexo, chegado á idade
de rasão , se confessasse ao menos uma vez cada anno , sob pena,
em vida, de ser expulso da· JgrPj<l, C na morte, privado de sepuf-
lura ecclesiaslica. Os mesmos menino&., como é clàro, desde o mo-

(1) lrigulph, ahbade do CroylanJ.


(.2) Chron. de S. Diniz; l'hron. de Rouen , apud Labb. t. I , Bi-
bliolh. nova.
(3) Guil. de l\Ialmcsbury, L. Ili, Degeslis Anglo.m m, e. 5; Bist.
dos Sacramentos , t. ll, e. .6.

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CATECISMO

mento em que podem discernir o bem do mal, ficam- obrigados á


observancia d'este preceito. Não basta aos pais mandai-os ao tri-
. bunal da Penitencia , mas devem preparai-os cuidadosamente para
isso, ensinando-lhes _o que vão fazer • lem_brando-lhes seus princi-
paes defeitos , excitando-os a conceber delles uma viva dor, recom-
mendand,o-lhes que os confessem todos com muita sinceridade. De-
pois da confissão devem obrigai-os a cumprir com devoção e quanto
antes a penitencia que o confessor Jhes houver imposto , e a seguir
seus conselhos.. Se ha tantos que não sabem confessar-se , e não
são sinceros na confissão , é muil~s vezes cu1pa dos pai-s e mãis •
que foram neg1igenles em preparai-os , como de, iam, para _acto de
1

tanta imporlancia.
O segundo preceito da Igreja, do qual nos cumpre dar a1guma~
explicações , manda: Commungar ao meno.!i pela Pasclwa da Ressur-
reiçao. Para a -Sagrada Communbão , assim como para a Confiss~o,
ha preceito divino ; e os primeiros chrislãos , o observaram religi-
osamente. Que digo~ amavam com tal extremo ao divino Salvador ;
tinham tantas saudades , lam grande fome e ta m ardente sêde de
seu divrno Corpo e Sangue , que commungavam lodos os uias. Uso _
admiravel ! cujo restabelecimento a Jgr(_lja desrja com todo o ardor
da sua maternal charidade (1 ).
Por muilo tempo foi escusado obngar os Fieis a commun-gllr.
Ah ! quem diria a nossos maiores que chegaria tempo, em que seus
filhos teriam uma tal indifferença por este celeste alimento , ·que a
Igreja se veria necessitada a empenhar toda a sna aurloridade , a
ameaçai-os até com seus raios , para oS: constranger a aproximar-sa
da Santa Mesa? E comludo, tal fui a dura, a triste necessidade e
c1u_e se viu reduzida. No mesmo Concilio de Latrão se ordenou ,
pois , que lodps os Christãos chegados á idade dê d1scripção com-
mungassem ao men.os uma vez cada anno pela Pas-choa·: diz-se ao me-
nos, pàra dar a entender. que , se bem a Cornmunhão Pascal basta

{1) Optarel quiJem Sancla synodus, ele. Cone. Trid, Sess. XXII, e. 6.

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l>E PERS1<:v1<:1tA~ÇA.

para não ficar excommungado , ella porem está longe de satisfazer


aos c.Jesejos de nossa terna mãi a Igreja, de nosso flivino Salvador,
e áinda de ser sufficiente as nossas proprias necessidades. Por iss'o, to-
das as pessoas que teem a peito a -sua salvação commungam com muita
. mais frequencia, e não ha Santo que não recommenue com inslancia a fre-
quente Communhão (1).
Sejam , pois , as suas maximas a regra de nossas acçõe~ , e · a
experiéncia nos mostrará logo , qne todas as virtudes germinam no
coração , debaixo da influencia d't~ste divino Sacramento.
Dissemos lambem que ha preceito rlivino da Confissão e Com-
munhão. Mas poderia ficar ao arbilrio de cada um o cumprimento
d'este preceito? Quem não vê que isso fornaria illusorio o mancla-
111e11lo ; porque as paixõe_s , que elle contraria , achariam sempre mil
pretextos para o não · cumprirem ; resultando d'aqui a ruina do Chris-
lianismo , porque , sem confissão, o Christianismo não é mais que
uma jusliça sem tribunal. l\las sem o preceito formal, que tielPr-
. mine. a epocba precisa em . que cada Christão seja obrigado a recorrer
á confissão , o tribunal da Penitencia ficaria como se não existisse ;
o , ~le faclo , a Communhão seria snpprimida.
Para prevenir, pois, estes dous inconvenientes , era necessario
qnc a aucloridade competente determinasse o seutido do · preceito, e
assegurasse_o seu cumprimento. Assim o fez a Igreja ; e a Jei da
Confissão e, Communhão annual ficoii sendo a base mais solida da
sociedade. Ouvi a este respeito, a quem ? - a um Padre? - Não ;
- a um Catholico ? - lambem não ; mas a um protestante. Eis o
que escrevia ha poucos annos , Lord Fitz William , . em - suas famo-
sas Curtas d'.4.ttiens :
« Todas as nações leem sua religião e suas leis ; sua religH'ío
para inr,nlcar a virtude e a moral , e suas leis para punir os crimes.
N'isto os Estados Catholicos Romanos como lodos os demais teem o

..
(1) Vejaru os seotimenlos dos Sanlos, refemlos no Tratado da Comm.
freq. de S. Liguori. Tambem S. Francisco de Sales , na sua lnlroduc-
~·ào á Yida de,·ota, citado no t.º \'Olumc deste Catecismo p 339 no fundo.

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CAUCIS'.WO

mesmo fim. Mas só ·na Religião CalhoJica Romana ha l~is d' uma au-
ctoridade tam solida , que não ha ardil. ou sophisma que illudil-as
possa; leis calculadas não só para inspirar o amor da virlude e da
moral , mas tambem para obrigar a seguil-as; leis que não se limi-
tam punir os crimes , mas que 9s previnem. Consistem estas leis na
obrigação imposta a .lodos os Cat~~licos romanos ; de commungarem
ao menos uma vez cada anno, liran<lo suaefficacia·da reverencia a este Sa-
cramento, da indispensavel e rigorosa preparação para o receberem ; ou
por outras palavras, da· crença da presença real, da Confissão, Pe.nilencia,
Absolvição e Communhão.
cc E não se diga que esla crença é illusoria e falsa. ~e nos não
elevarmos da terra , então é ella tam absurda, que não ha~eria ho- .
mem qu~ se metesse em cabeça offerecel-a a outros homens. Se um
dos Apostolos a houvesse proposto a seus collaboradores, estes. o te-
riam logo por affeclado tle loucura , e faziam da proposta objecto de
1rnsao. Visto, pois, que é impossive·1que ella venha dos homens, é
evidente que vem de. Deus : e como divina, perde toda a incredi-
bilidade , por mais incomprehensiv.el que seja. Pode dizer-se qne,
nos estados Calholicos Romanos, este é o eixo S'obre que rola toda
a economia da ordem sÕciaJ. A este maravilhoso eslabe.lec1menlo
devem elles a sua solidez , duração, segurança e felicidade; d' onde
resulta um principio inconleslavel , maxima p"reciosa , e ullimo elo
-d'esta longa cadeia de raciocínios, que deixo estàbelecidos, e vem
a ser: que é iºmpossivel formar um systema qualquer de governo, que
possa ser permarzenle ou vantajoso , a menos que se não basée na Re-
ligião Catholica Romana. Todo outro systema é illusorio.
« Os preceitos que ésta Religião impõe a seús filhos, e as pro-
hibições que lhes faz , são tam pouco conhecidas dos sectários que
a combatem , que apenas leem d'ellas uma Jigeira id.eia'. Uns por
ignorancia não lhes dão allenção; outros , em seus preconceiLos as
escarnecem. A ffm, pois , d'instruir os ignorantes e desenganar os
prevenidos , dir-lhes-hei somente que todos os Catholicos Romanos
são obrigados a commungar ao menos uma vez cada anno; sempre,
porem, segundo o estado da sua ' consciencia ; e accrescentarei agora,
que tendo de · receber este augusto Sacramento , diante do qual os
mais audaciosos ·d' entre elles se . sentem possuidos de temor e as-

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• 1

.· DK PERSEVERANÇA.
sombro, é preciso que todos, sem' distincção uem excepção , confes-
sem seus peccados no tribunal da Penitencia :· e que n·esle fribunal,
tam formidavel ã seus olhos, nenhum ministro póde conceder a per-
missão de se aproximarem da Sagrada Mesa, sem que os penitentes
lenham purificado seus corações com todas as disposições necessa-
rias pal"a este effeito.
« Ora , eslas disposiçõés ind1spensaveis sl'fo a contrição , e a
collfissão precisa e geral de todos os peccados commettidos , a expi-
ação de todas as injustiças praticadas , -a inteira restituição de lodos
· os bens illegalmente adquiridos , o perdão -de todas as injurias re-
cebidas ~ a ruptura de todos os laços criminosos e escandalosos , a
renunciação da inveja, da soberba, do odio, da avareza , da am-
bição , da dissimulaçã_o, da ingratidão , e de todo o senl1menio con-
trario á charidade. E' preciso ao mesmo tempo obrigarem-se djante
de Deus, n'esle tribunal , a evitar alé pequenos defeitos , e a cum-
prir todas as sublimes leis do Evangelho , · com a _maior exactidão.
<< Qualquer , como diz o Apostolo , que se aproximasse da Santa
. ~lesa sem estas disposições , não discernindo o Corpo de Jesu-Chris-
to ' receberia a sua propria condemnação. ))
Tal é , tal foi sempre ha clesoito seculos , a doutrina funclamen-
taí e immutavel da Igreja Calhol1ca Romana. E se se ousa dizer que
sêus filhos são máos e perversos , não obstante os laços com que os ,
prende , e os deveres que lhes impõe , que diremos então dos ho- ,
mens liues e soltos d' estes salutares obslaculos ? Os habitantes da mais
feliz e florescente monarchia, que jámais brilhou na terra , se des-
prenderàm inteiramente d'elles ; , mas qual foi a conseqúencia? Estes
infelizes insensatos , não tendo já freio que os contenha, tudo teem
ousado ; e seus crimes, como um mar que superabunda, rompendo os
diques que só Deus pod-erá restabelecer , leem àrruinado a Europa ,
inundado o mundo , e impresso no nome Francez uma nodoa lndele-
veJ , a mais ignominiosa com que 11ma nação póde denegrir-se.
« Que grande segurança e penhor se exige por este modo de ·
cada individuo , para o cumprimento de seus deveres sociaes ; ·para
o exercicio de todas as virtudes , da integridade , benevolencia, cha-
ridade, nlisericordia ! Onde se poderiam achar· garantias similhan-
tes ? Aqui , a co~sciencia · se regula unicamente em o tribunal de

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16 CATEClS&tO

Deus, e não em o do .mundo. Aqui, o proprio culpado é o accu-


··sador de si mesmo , e não o seu JUIZ. E em quanto o Cbristão de
outra comrnunhão se examina ligeiramente , pronuncitlndo em sua '
propria causa e absolvendo-se com indulgencia , o Christão Ca-
tholico é escrupulosamente examinado por outrem , espera a sua sen-
tença do Ceo, e aguarda suspirando esta absolvição consoladora,
que lhe é concedida, recusada ou differida em nome do Altíssimo .
. Que admiravel meio d'estabelecer entre os homens uma nrnlua con-
fiança , uma perfeita harmonia· no exercicio das suas funcçúes ! A
auctoridade do Principe não pó'~e degenerar em despotismo 1 nem a-
'Jiber<lade do . povo em licença ; o magistrado não póde fazer ju~tiça
sem imparcialidade , o senador é recto e desinteressado , o Sacer-
dote puro e zeloso em seu ministerio, o militar leal , o vassallo fi-
1

el , o soberano justo. ·
« Se considerarmos os homens em ·sua vida privada , veremos
que pôr este meio , a moral e a virtude se baseam em fundamentos
os mais solidos ; que cada um está submisso á Providencia n'o es-
tado em que o tem collocado ; que as fanulias estam unidas por indi~­
soh1Yeis laços ; e que o peccador contrito, por mais culpado que
seja ~ póde livr~r-se dos seus remorsos, e lavar-se de seus crimes
n'esla piscina salutar, sempre prompla a recebei-o., e d' onde elte
sahe cheio d'uma innocencia , proporcionada á poresa das disposições
com que para alli foi.
cc Para pronunciar_ em questões de imporlancia geral , é neces-
sario e justo tomar por base os effeitos geraes : foi isto o que eu
fiz ., mas ah ! é tal a fragilidade humana que , estou cerlq. d'islo ,
nem· todos os Câtholicos Romanos se ap.roveitam das vantagens que
se lhes offerecem. E' pois do dever, como é- sem duvida do maior
interesse d'um ·governo vigilante e sabio , oppor-se a toda a rela-
xação dos princípios , que tenho desenvolvido. Se em um Estado
Caibolico Romano ninguem se de~\·iasse d'elles , se.ria escusado per- -
guntar qual era o melhor dos governos ; pelo contrario se clina :
Em um tal governo , que necessidade ha d'outras leis ? Talvez que
todas as leis humanas se tornassem então tam superfluas e inuleis .
quanto são impolentes em .toda a parle, aonde a Religião Catholicà
Uomana lhes não serve ele fundàmenlo.

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DE l'ERSEVKRANÇA. 17
« Tudo que acabo tfo dizer em favor dos governos Catholicos
Romanos deve considerar-se pela face politica ; mas não posso com
effeito deixar de perguntar a mim mesmo ~ e acaso não será divma
em tudo qu·e ordena uma Religião, que contribue evidentemente para
a felicidade dos homens , d' uma maneira tam solida e admira vel?
Quanto me tenho eu lambem admirado quando considero a antigui-
dade d'esla respeitavel Igreja Romana , sua vasta extensão , a ma-
e
gestade' magnilicencia' simetria do seu edificio ; sua estabilida-
de , inabalavei no meio das perseguições que tem soffrido ; sua ad-
miravel disciplina , que parece traçada por uma sabedoria sobre na-
tural ; a impolencia de seus adversarios, apezar das suas mvecti-
vas , dos seus clamores e calummas; quando considero a dignidade,
o caracter • as v1rludes, e os talentos dos seus <lefensores ; os vícios,
e a má fé dos seus primeiros agressores ; a extirpação de tantas
seitas diversas , que se leem levantado contra ella; a pouca consis-
tencia das seitas actuaes, suas divergencias em pontos de doutrina ,
e sua total ruina, mesmo da mais numerosa, seja prolestante, seja ou-
tra qualquer, que talvez esteja tam proxima, que se alguem quizesse
hoje arrolar-se nclla , podia muito bem sobrevfver-lhe, e ver-se
reduzido á lrisle vergonha de se passar para outra!
« Em summa , a virtude, a justiça , a moral devem servir de
base a todos os governos.
« E' frnpossivel estabelecer a virtude , a justi'ça a moral sobre
bases, que são tam pouco solidas sem o tribunal da Penitencia ,
porque- _este tribunal, o mais terrivel de todos, serve-se da ,_ cons-
ciencia, 3' a dírige d'uma maneira mais efficaz do que outro qual-
quer tribunal. Ora , este tribunal pertence exclusivamente aos Ca-
tholicos Romanos.
E' z'mpossivel estabelecer o tribunal da penüencia sem a crença
da presença real, principal base da Fé Catholica Romana, porque
sem esta crença , o Sacramento da Communbão perde o seu valor e
a sua consideração. Os protestantes aproximam-se da santa mesa
sem temor , porque não recebem (!hi mais que o signal commemo-
rafüo do Corpo de Jesu-Christo ; os Catholicos , pelo contrario ,
aproximam-se d'ella tremendo , porque ahi recebem o proprio Corpo
do sen Salvador. Por isso , em toda a parte onde esta crença foi
3 VI

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18 CATECISMO

destruida , o tribunal da Penitencia acabou com ella : a confissão


tornou-se inutil ; assim como por toda a parte onde esta crença
existe , a confissão tornou-se necessaria; e este tribunal, que com
ella eslá assim necessariamente estabelecido, faz indispensavel o exer-
cicio da virtude , da justiça e da mora1. - Logo, como deixo dito :
« E' impossível formar um systema qualquer de ,qQverno , que
possa ser permanente ou vantajoso, a menos que se não basée na Reli-
gião Catholica Romana. »
Determinar o preceito divino, e assegurar o seu cumprimento,
levantar um ·dique á inconslancia dos homens, auxiliar a sua fra-
queza , procuràr efficazmente a sua santificação , e , por este meio ,
fazer a felicidade das familias e da sociedade ; tal é , -em geral , o
objeclo dos mandamentos da Igreja.

,
ORA.U.lO.

O' meu Deus ! que sois lodo amor , cu vos dou graças por
haverdes inspirado a vossa Igreja a nos dar mandamentos tam ·uteis,
vantajosos e faceis d'observar. Permilti , Senhor, que eu nunca os
transgrida.
Eu protesto amar a Deus sobre todas as cousas, e ao proximo
como a mim mesmo por amor de Deus , e, em testemunho d'eslo -=
amor pedirei todos os dias pela conversão dos indifferenti'stas.

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D~ PF.RSEVF.RANÇ!. 19

LVI.ª LIÇÃO.

OBJECTO DA NOSSA UNIÃO COM O NOVO ADAM


PELA CHARIDADE.

Vida santa no tempo. - Vida g\oriosa na eternidade. - Necessidade de


nos conformarmos com Nosso Senhor Jesu-Christo. - Jesu-Cbristo, mo-
'lelo da nossa vida interior. - Seus pensamentos áccrca de Deus, do
homem e do mundo. - Suas alfeiçõcs a respeito de Deus 1 do homem
e do muudo. - Jcsu-Christo, modêlo da nossa \'ida exterior. - Modêlo
dos superiores , - dos inferiores 1 - de todos os homens em seus deve-
res para com Deus, para comsigo mesmos, para com o proximo . - l\fo-
dêlo de todas as idades, - de todos os estados.

DEPOIS de ter - ensina<lo a seus Apostolos todos os segredos da nossa


união com elle -, deu-lhes a saber o novo Adam quaes deviam de
ser os fructos della. Os fructos d'esta união com nosso Senhor são
~ vivermos da sua vida no tempo e na eternidade, fazer-nos passar
n'este mundo· uma vida santa, e na eternidade uma vida gloriosa (1 ).

(1) Veja-se o que deixamos dilo nas lições XVI e XVII d' esta se-
gunda parte do Catecismo .

, '

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20 CATECISJ\10

Na p~ssoa de Jesu-Christo, diz- S. Agostinho , desceu do Ceo um


grande :Medico ; por que um grande enfermo jazia prostrado na ter-
ra (1). Este enfermo e'ra o genero humano. O Salvador não se con-
tentou com o trazer ao bom caminho e dizer-lhe : Camz'rlha ; -mas
quiz caminbar adrnnle d'elle, -para o ensinar a :rndar. Quiz per-
correr todas as differenles véredas da vida ; achar-se em lodos os
estados, por onde o homem pode passar , para os santific~r a todos,
como havia santificado toqos os elementos , e ensinar-nos lambem a
-santifical-os.
Em seus divinos vestígios deixou a graça que illumina e dá
agilidade aos passos que o seguem (2).
Chegado ao seu termo , voltou-se ainda para o homem, e disse-
lhe , do alto da Cruz : Segue-me. -Eu sou o caminho, a ·verdade
e a vida; aquclle que me segue não_anda em .trevas; eu vos dei o exem-
plo para que façais como eu tenho feito. Depois subio ao Ceo. glo-
rioso e triumphante , e do alto do seu lhrono . eterno, bradou ainda
- ao homem , estendendo-lhe os braç.os e mostrando-lhes a sua coroa ·:
Segue meus passos e serás comigo (3).
D'est'arte, Nosso Senhor, sendo o modêlo do homem na vida,
não o é menos na eternidade. Se nos assirnilhar-mos a ellc pela imi-
tação de seus exemplos , ser-lhe-hemos similhantes pela participação
de sua felicidade e glori~ (4); em uma palavra, se seguir-mos oca-
minho que elle traçou, chegaremos ao seu mesmo termo. Apren- ·
damos, pois, a conhecer este necessario modelo de todas as idaíles,
condições e estados : porque Nosso · Senhor é o ho1nem. Assim
como somos imagens do homem terrestre,

[11 l\lagnus de Creio descendit n:cdícus, quia magnus in terra Jacchat


;cgrotus. Serm. 59 de Verb. Dom.
m Lucerna pcd1bus meis vcrbum tuum. Psal. CXVlll.
(3) Philip. Ili , 21.
(-f) Horn. VIH, 17.

-,

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DE PERSEVERANÇA. 21
bem do homem Ce1esle : O Ceo fechar-se-ha para aquelle, que não
for a copia fiel do Novo Adam (1 ).
Um Chrislão é um outro Jesu-Christo. Tal é a sub1ime defini-
ção que os Padres da Igreja nos dão de nós mesmos (2). Façamos
pois por dizer com S. Paulo : Não sou eu que vivo, mas é Jesu-
Cflristo que vive em mim , que pensa , que deseja , que rJbra em
mim (3).
Eis como nos importa regular o nosso interior pelo do novo
Adam , sem querer pôr limites a esta conformidade. Cumpre que
Jesu -Chrislo seja formado em nós ; sim, cumpre absolutamente; que
nem irnra outra cousa ,·eio elle do ceo á terra ; nem para outro fim nos
nutrio de si mesmo; nem com outra intenção nos enviou os seus Apos-
lolos e fundou entre nós a sua Igreja; e esta terna mãi, com o infi-
nito cuidado que 1he damos, e desde que nascemos até ao ultimo
da vida , continuamente nos está dizendo: _,_~/ eus filhos ! eu solfro
por 1:ós as dores do parlo , até que Jesu-Christo esteja formado em
vós (í) ; até que chegueis a uma similhança tam perfeita , que o ·
Eterno Pai, contemplando-vos do alto <lo Ceo, possa dizer : Eis o
meu filho querido. Ora, esta similhança deve primeiro existir em
nosso interior.
1. º Em nossos pensam.enlos. Os nossos pensamentos serão conformes
aos de Jesu-Christo se em tudo julgarmos como elle seja a respeito
de Deus , de nós mesmos, das creaturas, do tempo , ou da eter-
nidade. Em primeiro lugar, que é o que pensou de Deus o novo
Adam? Respondam as suas pa1avras e exemp1os : Elle pensou que
Deus é o Ser por excellencia , o Ser infJnilamente sabio, bom , po-
deroso , sa~to , justo e misericordioso ; o unico digno das adora-

{1 > Rom. VIII, !9 .


.[21 Christiaous allcr Christus.
(3] Galat. II 1 20.
n-] Galat. V, 10.

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22 CATECISMO

ções , homenagens e allenlação dos homens. Para nol-o ensinar , se


humilhou elle diante de Deus até se anniquilar, tomando a forma
d'escravo , e consumindo a sna existencia em nos dar a conhecer
este ser Supremo ; e por fim , para reparar a sua -gloria , ultrajada
pelo peccado do homem, morreu em uma Cruz. Assim Deus foi t.l1do
para Jesu-Christô , e o deve ser igualmente para nós.
Eis o que o novo Adam p~nsou de Deus , durante a sua vida
morlãl ; será isto o que nós lambem pensamos ?
Para que os homens se não esquecessem d' aquellas lições , ou
uão cressem erradamente que só a certos seculos on a certos lu-
gares diziam respeito ; o novo Adam estabeleceu-se e perpetuou-se
na Eucharislia. Habitador ctas cidades e dos campos , nativo e coe-
vo de todos os climas e de todos os seculos, clle ensina desde o
Tabernaculo , e ensinará perpetuamente , a todas as gerações que
surgem no mundo , as lições que deu na Judea ; alli offcrece os
mesmos exemplos, que offereceu ha desoito seculos.
lolerrogai-o na sagrada Eucharislia ácerca do que elle pensa de
Deus, que o seu profundo anniquilameuto, o seu estado continuo de vic-
lima vos · responde: que Deus é ludo, que ludo deve anniquilar-se
diante d'elle : que lodos Amareis ao Senltor vosso Deus com toda
a vossa alma, com todo o vosso espirito e com todas as vossas for-
ças: eis o primeiro e o maior de todos os mandamentos ; e elle vos
ctá o exemplo , immolando-sc incessantemente por amor de seu Pai,
em os nossos altares , como em a Cruz.
Quaes são os pensamentos do novo Adam ácerca do homem?
Ellc- considera o homem como a mais preciosa das creaturas visiveis
de Deus , e a mais digna <le seus cuidados. Foi pelo homem que
clle veio ao mundo , que viveu pobre, e morreu em lormenlos.
~~lle tem a nossa alma por mais preciosa que seu proprio sangue,
pois não bes1ta derramai-o para salvai-a. Eis o que sobrn islo pc•11-
sava durante sua vida morlal , eis o que pensa ainda no Santíssi-
mo Sacramento da Eucharistia. Perguntai-lhe porque moliYo no~
trata com tanta bondade, é tanta pactencia, no meio dos ultrajes
e irreverencias, a que eslá exposto, ha desoito seculos, sobre mil
P mil allares , em que o seu amor o lem prisioneiro? RE1sponde-
vos : Que uma só cousa considera elle necessaria , que é a salva-

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DE PEllSEVERANÇA.

ção do homem. E'1s o que elle pensa, e por conseguinte, o que


devemos pensar de nós mesmos. A caso é assim que pensamos?
Quaes são os pensamentos do Q.Ovo Adam a respeito das crea- >
turas ? Elle considera as creaturas, como meios de n,os elevar-mos
a Deus , acautelando-nos , com summo cuidado ~ que não ponhamos
nellas o coração : despreza e foge a~ honras , as riquezas e. os pra-
zeres., O seu Presepio , a sua vida humilde , a sua morte em uma
nudez absoluta, são a prova d'esle profundo desprezo. A este fim,
ouçamos o que e1le diz: Bernaventurados os pobres - ai de vós, ó
ricos l Bemavenlurados os que soffrem e choram - ai do que vive
em delicias e prazeres! Bemaventurados os humildes ! aprendei de
mim , que sou brando , e humilde de coração. Ai dos soberbos !
Deus Jhes resiste, e dá a sua graça aos humildes. Estes anatbemas,
fulm~nados contra as honras, riquezas e prazeres , são os mesmos
que o novo Adam ainda hoje fulmina desde o seu Tabernaculo : o
seu estado de pobreza , q'humildade , de victima , nos está dizendo
ainda : Ai dos ricos , dos soberbos , dos felizes do secúlo 1 elle.s são
a imagem do homem terrestre , do velho e culpado Adam ; felizes •
os pobres , os humildes, os que soffrem ! elles são a imagem do no-
vo ho~em , do segundo e Santo Adam.
Quaes são os pensamentos tlo novo Adarn acerca do peccado?
.Elle o con3itlera corno o mais espantoso dos males , o unico mal
do mundo. O seu suor de sangue , a sua agonia mortal , os escar-
ros , a coroa d'espinbos , o sceptro d'ignominia , o manto d'irrisão,
a flagellação cruel , os cravos , o Cal vario, a Cruz, o fel , a inor-
íe, eis o que soffreu para expiai-o. Ide, ma]dilos, para fogo eter-
no ! eis o castigo dos que o. commettem. O que pensava do pec-
cado durante a sua vida mortal pensa-o .ainda na Eucharistia. Alli
3e expõe o novo Adam, para o expiar, a todos os horrores da sua pai-
xão ; porque alli permanece em estado de victima. Sobre o altar,
como no seu tribunal , elle diz todos os dias , ao homem do pecca-
do: Vai, maldito , .para o fogo eterno!
2. º Não basta que nossos .pensamentos sejam conformes aos do _
novo Adam , cumpre que os nossos affectos se afeiçoem tambem pelo
modêlo dos seus. Dous affectos somente teve Nosso Senhor, que ex-
primio por estas palavras : A.marás ao Senlwr teu Deus , com toda

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CATECISl\1"

a tua alma , com .todo o leu coração , com todas as tuas f urçM; eis
.o primcfro e maior de todos os rnandamentos. O .'iegundo é simi-
lhante a este : Amarás ao teu proximo como a li mesmo, por amor
de Deus. E seus exemplos foram a tr'aducção lilteral , e a rigorosa
applicação de suas palavras. Elle amou a Deus seu Pai, fa:wndo-se
obediente, e obediente até á morte , e morte de Cruz. Elle dizia :
Eu faço sempre o que é do agrado de meu Pai ; entre rner~ Pai e
eu tudo é commum; nós somos um só,. eu e meu Pai; e a sua vida
não foi mais que um longo acto d'amor para com . seu Pai. Eis o
que prégava e obrava durante a sua vida mortal ; eis o que ainda
préga e obra na sagrada hostia. Alh continua a ser obedirnle por
amor de seu Pai , a ponlo de renovar todos os dias o Sacrificio da
Cruz ; alli faz tudo que é do agrado de· seu Pai ,- habitando ainda
os lugares mais remotos ; em todas as Igrejas, ain_da as mais er-
mas ; em todos os Tabernaculos , inda os mais pobres , aonde apraz
a seu Pai que· elle resida. ·
Amou aos homens. São prova do amor os sacrificios. Ora ,
que maiores sacrificios podia fazer por nós o novo Adam ? De rico
se fez pobre ; soffredor , de essencialmente feliz ; de poderoso se tor-
nou menino; fez-se homem como nôs , sujeito a todas as no~sas mi-
serias; por nós, emnm , deu a propria vida. Não ba nome de enna-
morado , que não _tomasse: ora se chamou Pai , ora Irmão , ora
Amigo , ora Esposo, ora Salvador , e de todos preencheu a doce-
sig11ificação. Amou a todos os homens , mas especialmente aos Pº"'
bres , pequeninos, enferm9s, peccadores, amigos e inimigos ; do allo
<la Cruz implorou o perdão para seus algozes. Eis como amava o
novo Adam , durante a sua vida mortal ; eis corno ama ainda , no
Sacramento da Eucharistia.
Quantos sacrificios fez elle para nos Leslemunhar o seu amor !
Para estar sempre comnosco se encerrou elle em o San Lissimo Sa-
cramento. Alli demora noute e dia , cheias as mãos de graças ,
com o coração abrazado em amor, chamando.-nos ternissimamenle ,
e dizendo-nos : Vinde a mim , vós tollos que soffreis e estaes oppri-
midos de trabalhos, e eu vos alliviarei. Não ha mãi que nutra a
seu filho com a propría carne; mas isto o faz o novo Adam , mais
terno que a mais terna das mãis , a cada um de nós , e a cada

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DE PEf\SEVEitANÇA.

instante que o appelecemos. Elle ama a todos os homens , ainda


aos que delle so esquecem , aos mesmos que o off'endem , aos que
em seu mesmo templo o vem insultar. Do fundo do seu Taberna-
culo podéra fulminai-os , mas cala-se. Occulta a sua divindade, es-
concle o seu mesmo corpo , e só o seu amor descobre , só as entra-
nhas da sua infinita charidade patentea. Immenso , desinteressado ,
universal , jamais cansa o seu amor, jamais esfria. Eis como na
sagrada hostia nos ama o novo Adam, eis como nos amou durante
a sua ' ida mortal : Filhos do novo Adam , eis como deveis arnar-
1

Acaso o fazeis assim ?


O amor de Deus e dos homens do novo Adam regula da mes-
ma sorte o nosso amor das creaturas. D>estas usou o Senhor unica-
mente para gloria de Deus seu Pai , e salvação dos homens seus ir-
mãos. 1. «? Se1•viu-se elle de todo o universo para offerecel-o a seu
Pai ,- e referir-lhe tudo que de11e havia recebido. Santificou a terra;
habitando-a, regando-a com seu sangue e suas lagrimas ; usando das
creaturas, que conlribuiram para os seus padecimentos, como d'outros
tantos meios tle satisfazer á jusliça de Deus. Todos os poderes, que seu
Pai lhe deu , empregou para mostrar, que elle era Deus como seu
Pai , e d'est'arte dissipar as trevas do Paganismo, e deslhronar o de-
monio, que se fazia adorar em lugar de Deus. Para annuncrar o
seu nascimento, levanta-se uma estrella no Oriente , o mar se torna
solido debaixo éle seus pés , manda aos ventos e ás tempestades,
muda a agua em Yinho , com um pouco de lôdo restitue a vista a
um cego , com um pouco de trigo e cinco pei-Kes alimenta milagro-
samente a cinco mil pessoas, ordena ao sol se escureça no momento
cJa sua morte , e se perturbem todos os elementos , para manifes-
tar sua divindade.
Tambem para instruir os homens se serviu ·o novo Adam do
universo. De 'todas as creaturas lira CClmparações ' para nos dar a
conhecer as verdades mais necessarias e sublimes. Ora se serve da
semente confiada á terra , para nos mostrar o uso ou abuso que se faz
da palavra de Deus ; ora do bom grão e da palha em uma eira ,
para entendermos como os bons e os máos estam misturados na
Igreja ; ora das aves do Ceo , dos animaes da terra , dos füios · do
campo , para signicar sua Providencia·. Emprega mil parabolas :
i VI

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2H CATEClS)IO

os lhesouros e as pedras preciosas, para nos ensinar com que cui-


dado havemos de. procurar a virtude, que é o lhesouro do Evange-
lho ; o campo e a vinha , pn ra nos designar a sua Igreja , e mos-
trar-nos que lhe devemos esLr unidos como o renovo á cepa que o
alimenta ; a serpente e a pomba , para sabermos que virtudes den~­
mos praticar no commcrcio do mundo , que sno a prude.ncia e a sim-
plicidade. Fallando á Samarilana, tira a comparação da agua, para
explicar os admiraveis cffeilos da gra'ça.
Emfim , o norn Adam não se servio para si mesmo das crea-
turas , senão quando -eram eslriclamenle necessarias ás suas prcci- ,
sões. Nasceu em um presepio ; umas palhas foram seu berç.o ;
uns pobres panninhos, todo o seu enxoval. Viveu d' esmolas, ou
do trabalho de suas mãos , sem jamais possuir cousa alguma ; e elle
mesmo disse: As raposas leem as suas covas, as aves do Ceºo os
seus ninhos ; porem o Filho do Homem não tem aonde reclínar a
cabeça. Foi assim que o novo Adam nos ensinou , dura11Le ·a sua
\·ida mortal , a usar d'as creaturas ; assim é que condemna o abuso,
que fazemos d'ellas. O que então prégou , ainda agora o préga no
Sacramen_lo da Eucharistia. Convertendo o -pão e o vinho em seu
Corpo e Sangue, faz servir todo o universo à sua gloria e á salva-
ção dos homens ; porque todas as creatu ras do Ceo e da terra , o
sol e os astros , a agoa e o fogo , a chuva , as quatro eslações, o
ar, o frio, -o calor , todos os elementos concorrem a produzir um
bocado de pão e uma gota de vinho, e assim elle os emprega· todos, trans-
formando-os, em a salvação 'dos homens e gloria de seu Pai. · Eis de
que maneira o novo Adam é o . modêlo das nossas affeições e dos
nossos pensamentos ; por consequencia , da nossa vida interior ; e,
notemos bem isto , elle é nosso necessario modêlo ; porque não te-
remos salvação , se não tive-rmos os mesmos pensamentos e as mes-
mas affei_ções que elle._
Não basta ,- porem , que nossos pensamentos e affeições se con-
formem ás de nosso Senhor , releva ainda que as nossas acções lhe
sejam similhantes. Passemos , pois , a considerai-o como modêlo
universal do nosso comportamento, seja 'fUal for a nossa idade e
condição. Devidem-se todos os homens cm duas classes : uns, -que
mandam ; outros, que obedecem.

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DE PERSEVERANÇA. 27
·1. º Nosso Senhor é em g~ral o modêlo de lodos os superiores,
isto e , de todos aquellcs que estam elevados em poder ; e os torna
a lodos depositarias de parle da sua aucloridade divina ; são elles
seus vice-reis, cm ordem ao bem. Elle mesmo foi o primeiro de
todos os superiores , e sua vida resume-se em tres palavras : elle
passoie. fazendo bem ; é esla a mesma vida que ainda passa , no
adoravel Sacramento de nossos AHan's. Hoje , como outr'ora, se
pode dizer , que elle passa fazendo bem , e isto s~ havia de poder
dizer, e gravai· na campa de lodos os ·superiores ; pois que para fa-
zer bem aos homens , é que Deus os reveslio da sua auctoridade.
Ora, o bem do homem é o seu fim ; o seu fim , é a sua salvação ,
ou a posse de Deus. Para passar fazen(lo bem , devem .pois os su-
periores cmdar, primeiro. que ludo , e ter como o mais sagrado dos
seus deveres. a salvação dos inferiores. E por ventura é isto o que
succede?
2. º Nosso Senhor é em geral o modelo de todos os inferiores;
e sua vida resume-se ein duas palavras: elle foi' submisso a Joseph e
lllaria. A obetliencia inteira , simples e constante em altenção a
])eus , eis o grande dever dos inferiores. Ellc lhes era submi"sso ,
ris o que cumpre poder-se dizer e gravar na sepultura de todos os
inferiores. O Salva1lor, na Sagrada Eucharistia , continua a dar-nos
este exemplo de submissão absoluta. Elle obedece ao Sacerdote, com
a mesma docilidade que a Joseph ·e Maria ; o Sa(',erdote o chama do
Ceo, e clle vem ; diz-lhe que fique no tabcrnaculo , e elle fira :
que visite os enformos , e ellc visita·os ; que se dê aos Fieis, e ellc
se lhes dá.
O novo Adam é Lambem motlêlo de todcs os homens. 1. º
Em quanto aos nossos deveres para com Deus. Quem foi mars
religioso tio que o Salvador ~ onde Jamais achou seu Pai adorado1·
mais perfeito ? Elle o amou , e adorou cm espirito e Ycrdadc ; ex-
pulsou com indignação os profanadores do seu Templo ; a sua
vida relÍgiosa resume-se n'estas tres palavras : Foi um com seu. Pai,
procufou sempre a slta gloria , e lhe foi obediente até á morte , e
morte de Cruz. E' isto certamente o que importa se possa dizer e
gravar na sepultura de cada um de nós : Amou a Deus , procu-
rou a sua gloria , foi-lhe obediente alé á morte ; e ainda impo1·ta

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28 CATECIS~IO

que se possa accrescenlar: e sempre esteve promplo a dar seu s:m-


gue por elle se tanto fosse necessario. Este é o exemplo da Religião,
que o Salvador está dando constantemente na Sagrada Eucharislia.
Adorador de seu Pai; prégador da sua gloria, viclima da obedi-
cncia, modêlo da charidade , alli conlinua a viver a vida de Reli-
gião , que começou na J udea.
2. 0 Em quanto aos nossos deveres uns para com os oulros.
Neste ponto , re~ume-se a vida do novo· Adam em estas palavras :
Elle amou aos ltomens, fez-lhe mil bens, por elles derramou todo
o seu sangue. Amar , perdoar e sofl'rer , eis o que lambem importa
se possa dizer e gravar na campa de cada um de nós: eis lambem
o exemplo que o Salvador continua a nos dar na Eucharislia ! alli,
conlinua elle a amar aos homens, com um amor, para assim dizer,
excessivo, apaixonado, louco, diz S. Agostinho ; alli continua a per-
doar , e pedir a seu Pai que lhes perdoe ; alli continua a sofl'rer ,
sem abrir a boca para se queixar de quanto soffre.
3.º Em quanto aos nossos_ deveres para com nús mesmos. A
humildade, contraria á soberba , a caslidade inimiga da concupis-
cencia, a pobresa opposta á cubiça : eis as virtudes que resplande-
·ceram na pessoa do novo Adam ,. ~ qu_e importa resplandeçam em
cada um de nós. Combater a nossa soberba , o nosso amor dos
prazeres e das riquezas , é o sagrado dever que ternos a cumprir
para com nos mesmos. Estes os exemplos d'humildade, pureza e
pobreza, que o Salvador continua_a dar-nos no Sacramento dos nos~
nossos Altares. Se elle se anniqmiou no Mysterio da Incarnação, não
é logo certo que na Sagrada Eucharistia ainda mais se augmenta a
sua humildade do que no Presepio, comprimindo-se aqui, para assim
dizer, e limitando-se ao pequeno espaço <l'uma hóstia consagrada ,
ou ainda ao mais pequeno fragmenlo ·della?
Oh ! sim , leem rasão os Padres da Igreja , em chamar a eslo
Divino l\lysterio uma extenção da Incarnação, isto é, uma Incarna~
. ção reiterada mais altamente e corno mais extensão· que a primeira.
E' a perfeição da humildade do novo Adam.
Foi puro -e virgem aquelle, que quiz ter por Mãi a mais pura
das Virgens , por Pai adoptivo o casto Esposo de Maria , por clis-
eipulo bem amado um casto mancebo; que perrnillio sim , que sc1:1s

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DE PERSEVERANÇA. 29
m1m1gos lhe chamassem blasphemo e sedicioso , e levantassem con-
tra elle mãos homicidas , e o crucificassem como fualfei tor ; mas
que lhes não permillin dissessem uma só palavra, ou movessem uma
duvida ou sombra de duvida ácerca ela sua infinita purcsa. Admi-
xavel castidade., que se nos manifesta desde o seu Tabernaculo com
um divino esplendor ! Nem elle quer Sacerdotes , senão castos ; e
exige que tudo que o circunda annuocie a puresa dos Anjos. Elle
está neste augusto Sacramento com toJos os seus sentidos • mas não
os emprega : tudo nelle é divino. Que digo? Elle mesmo é o prin-
cipio de toda a caslidade : é bebendo o seu adoravel sangue que o
nosso sangue se purifica , e a virgindade germina em nossas alma .
Tambem na Eucharistia é o Salvador o modêlo da mais perfei-
ta pobreza. Oh ! alli é que ell~ é um Deus pobre. Elle foi sim
mui pobre no Presepio e na Cruz, mas na Eucharislia é ainda maior
a sua pobreza. Pois que estado pode ser mais pobre e miseravel
<lo que o -vi ver , para assim dizer, de emprestimo, com dependen-
cia d'outrem , mal alojado , pobremente coberto, mal recebido e peior
lrnlaclo ; ser em dignidade Soberano e não ter os distinclivos pro-
prios da sua Soberania ? No Presepio, uma estrella milagrosa annun-
cia a ·sua gloria e o seu nascimento ; no Calvario, confundidos os
astros e os elementos, publicam a sua divindade; mas na Eucharis-
tia ludo se cala , para o deixar no mais profundo abalimenlo ; elle
é Rei , e alli occulla o seu sceplro e a sua coroa.
Eis a vida que elle vive no Santíssimo Sacramento ! Antiando
· entre os homens, não tinha o Senhor asylo certo, ou lugar aonde
repousasse a cabe~a ; pois na Eucharistia vive, para assim dizer, em
casas d'empreslimo , sem ter outro alõjamento ql.ie o que lhe que-
rem ~ar. Quantos Altares mal paramentados, quantas Igrejas po-
hrcmenl.e adornadas, quantos lugares e sitios miscravcis e abjeclos,
que a nossa delicadeza não supportaria, e aonde ella comludo assis-
te , préga e publica altamente a sua pobreza !
Nosso Senhor é um modêlo completo para todos. EJJe percor-
reu todos os estados da vida , e deu a todas as idades exemplos ,
para que o imitassem. Quiz ser menino, e como tal, antes que
podcsse andar, se apresenlou no templo _de Jerusalem , offerecendo-
se a seu Eterno Par ; e n'esla primeira. idade a sua vida resume-se

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30 CA'l'ECIS~IU

n'eslas palavras : Na cabeceira do livro da minlta vida está cscrip-


to : Jle11J Pai, eis que eu ven/io para cttmprir a vossa santa von-
tade. Ass.i m, pois, se deve resumir a vida do· menino chrislão :
O primcirfJ uso da sua rasão deve ser o offerecimento de si e de
toda a sua vida áquelle q·ue lh'a deu. Na Eucharisl.ia onde Lodos os
dias renova , nas mãos dos Sacerdotes , o misterio da sua incanu-
ção , repete o Senhor incessantemente aqnellas mesmas palavras : .Meu
Pai , . eis que eu venho , para cumprir a vo1;sa santa vontade.
Na sua mocidade , elle trabalha e obedece , e a sua vida resu-
me-se Íl.'eslas palavras: Elt vivi em trabalhos desde a minha infan-
cia. Elle trabalha e obedece na presença de Deus ; tal é o Evan-
gl~lho da mocidade : Evangelho vivo, sempre patente á nossa visla.
Com e[eito , na Sagrada Eucharistia, são numerosas e continuas as
occupaç~ões do Salvador: orar , adorar , pedir graças, fallar aos
nossos corações, dar-nos os salutares remorsos , animar a nossa fra-
queza, en1enclar os nossos erros, dissipar as nossas duviJas. con-
solar-nos na aílversii.Jade; lal é o seu lrabalho , trabalho que dura
ha desoito seculos em todos os pontos do globo. · ·
Na virilidade, cança-se o nosso Redemptor. não lcm soccgo nem
descanço por levar a cabo uma grande obra' que é a sal vaç:ín do.
mundo : Elle estava fatigado do carnin!w, e passava as noutes em
oraçiio. Orar é lr_abalhar para cumprir a vonla1le de Deus, eis o
modêlo, e até direi , a pena imposta á virilidade. Commummenle.
não se ora nem se trabalha para Deus nesta illat.le , mas sim para
a lerra. Os negocios _lemporaes, estes e sem1)re estes negocios, islo
é , as bagai.elas da vida , os caslellos no ar , .qne a fonçe <la mor-
te a cada instante corta e derriba em terra : eis o que absorve toda
a attenção, todos os cuidados, a vida toda da virilidade. TodaYia
não lhes falta o exemplo d'um procedimento contrario. Nosso Se-
nhor, na Eucharislia , lh'o offerece conlinuamenle ; o seu desapego
universal nos brada do fundo do Sacrano, dizen<lo·-nos: De que ser-
,·e ao homem lucrar o mundo todo, se perder a sua aima ? In-
sensato, esta non_le te virão pedir a tua alma , e de quem será o
que lens ajuntado? Imilai o vosso modêlo, trabalhai como elle para
a vossa salvação, procurai primeiramenle o Reino de · Deus , e ludo
o mais se ,·os dará em cima.

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DE P~RSEVRRANÇA. 31
~os ultimas momentos, quando se aproximava a sua morte, lon-
ge u'afrouxar o zelo e ardor do novo Adam, parece que redobrava,
e rsla parle <la sua vida resume-se n'estas palavras : Tendo amado
os seus, que estavam no mundo , ellc os amou até o fim. Nunca
as suas conversações foram mais palhelicas e inslructivas. Ternas des-
pedidas , bençãos abundantes sahiram da sua divina boca até á hora
suprema em que • modêlo perfeito do homem , para quem já o mun-
do e nada , e só Deus é tudo , pronunciou estas palavras , as ul-
timas que devem pronunciar os l~bios do chrislão muribundo: lllel~
Pai, nas t'ossas mãos entrego o meu espfrilo. Eis o modêlo de todos
aquelles , para· quem se aproxima a ·ultima hora. O fim da sua
''ida dern resumir-se, como a do Salvador, n'eslas palavras: Ten-
do amado os seus, que estavam no mundo, amou-os até o fim.
Sim , amai-os , não como os ama o filho do velho Adam que ,
no momento de largar ludo , não pensa se não no ouro , na prata e
nas fazendas que bade deixar a avidos herdeiros. Em vez de con-
sagrar suas ultimas horas á edificação dos seus , a abençoai-os e en-
commcndar-se elle mesmo a Deus , perante quem vai comparecer ;
em lugar de pensar na eternidade, cujas porlas já se abrem diante
delle , não pensa ·senão nª terra que lhe foge. Pois não é porque
Nosso Senho1· nos não esteja dando lodos os dias , na Sagrada Eu-
charislia, como oulr'ora no Calvaria, o exemplo d'uma boa morte.
No Sacramento dos nossos Altares , mostra o nosso Salvador que elle
ama os seus alé o fim ; porque immola ndo-se lodos os dias por el-
les e pela gloria de seu Pai, ahi nos dá bem persuasivas lições de
desapPgo do mundo , de muluo amor, e de confiança em Deus.
Não é - só No-sso Senhor o modêlo de todas as idades, mas
lambem de todos os estados. Assim como dotou a cada crealura d'al-
guns caracteres da sua Divindade , ou vestígios das suas -adoraveis
perfeições ; da mesma sorte quiz que cada profissão representasse
alguma das qualidades e perfeições do n_ovo Adam. Assim é Nosso
Senhor o modêlo de todos os estados , nelle se veem todos ; porque
elle é o Homem , o Homem apparecendo em todas as relaçõos, e em
todas as condiç.ões. E' elle quem põe a cada um em seu estado ,
e nelle quer que participe das suas mesmas disposições e sentimen-
tos. Faz a'os Bispos -e Sacerdotes participantes do seu Sacerdocio ,

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3! CATECISMO

porque' é elle o Supremo Sacerdote ; e quer que a esta alla digni-


dade sejam chamados como elle por Deus, e não pelos homens.
Exige que representem no mundo a sua Santidade perfeita, que sejam
como elle Santos , sem macula , separados dos peccadores , humildes
e mais desapegados das creaturas que o commum dos christãos. Quer
que ·como elle sejam a luz do mundo , ·o sal da terra ; os consola-
dores de todos os desgraçados; que se encarreguem como elle dos
peccados do povo , fazendo penitencia ~pelo povo , sem jamais par-
ticipar da sua corrupção ; que ,·igiem por todas as ovelhas do ·re-
banho, confiado aos seus cuidados; ·que as alimentem_com o pão da
palavra e dos Sacramentos , dispostos se necessario for a dar a vida
para salvai-as do peccado e do inferno. Eis os exemplos que Nosso
Senhor incessantemente dá aos Sacerdotes na sua \'ida Eucharistica.
Aos Reis da mesma sorte faz pat·licipanles da sua Realesa, por
que elle é .Rei : esta a .qualidade que tomou e lhe foi dada. Elle é
aquelle que está sentado no lhrono de David seu Pai ; e S. João o
vio , trazendo este grande nome impresso em seus vestidos : llei dos
reis, Senhor dos senltores (1), e desta auctoridade ·se servio, para
destruir o imperio do tlemouio , e estabelecer o reino de Deus. EHe
quer , pois, que os Reis da terra se sirvam da sua auctoridade para:
o mesmo fim, com dependencia d'elle mésmo, a quem devem res-
peitar como seu Deus e Soberano, a quem devem render homena-
gem, snbmetlendo-se e obedecendo ás -suas leis, assim como elle obe-
dece ás leis de seli Pai. Quer que, como elle, os reis da terra g-0-
vernem os povos pelas immutaveis regras da eterna justiça, e da
sabedoria divina. Quer que, como elle, defendam seus subdilos t
protegendo os innocenles , tomando a peito a causa dos pequenos ,
dos fracos , dos opprimidos, sem se deixarem surprehentler _pelas
lisonjas de seus cortesãos ; e emfim , estejam dispostos como elle a
morrer , ·se preciso fôr , pela salvação do seu povo. São estes lam- --
bem os exemplos que dá aos Reis, na sua vida Eucharistica .
Paz igualmente participantes aos pais e mãis da sua mesma pa-

[1] Apoc. XIX, 16.

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DE PERSEVEllANÇA. 33
ternidade. Contrahiu o novo Adam um matrimonio ineITavel com a
Jgreja ; e tomou para com ella o titulo d'Esposo , e lhe chamou Es-
posa. Exige que os cazados representem em séu matrimonio a união
sanlissima , que ha enlre elle e a sua Igreja. Quer que os esposos
amem suas esposas como elle amou a Igreja , entregando-se á morte
para a tornar santa , e purifical-a de Lolla a macula e defeito ; que
as esposas amem seus esposos como a Igreja o ama a elle, e se lhes
sujeitem como a Igreja a seu Divino Esposo ; que entre os casados ·
não haja senão um espirito e um coração , como entre elle e a sua
Igreja não ha s~não um coração e um espírito ; a fitn que _, pela
identidade de sentimentos, concorram para se santificarem mutua-
mente e si e a sua familia , representando e honrando assim a alli-
ança do Filho de Deus com a natureza humana, e a de Jesu-Christo
com a sua Igreja.
Quiz Nosso Senhor tomar a qualidade de Pat dos chrislãos, como
de facto é no sentido espiritual, e ter seus filhos adopti\'os, de que
é mãi a Igreja ; e exige que os pais e mãis amem a seus fi1hos com
um amor santo , como elle mesmo e a sua Igreja amam aos seus ;
que ponham todo o ci1idado em conservar a seus filhos a vida cspi-
ritua,l , que receberam no Baplismo , e os a1udem a recuperai-a ,
quando tiveram a desgraça de a perder, assim como lambem clle e
a sua Igreja o fazem, a respeito dos seus ; que os . pais e mãis en-
sinem seus filhos a renunciar a si mesmos, a levar a sua cruz quoli-·
diana , a despresar os bens do mundo ·, e isso que chamam grandes
fortunas, como elle mesmo e a sua Igreja o ensinam aos seus. Eis
da mesma sorte os exemplos que o Salvador incessantemente dá, na sua
·'\'ida Eucharistica , aos esposos e pais de fatnilia.
Quer lambem Nosso Senhor que os pobres representem a sua pobre-
za; e para isso se dignou elle nascer, viver e morrer pobre. De propo- '
sito (;Scolheu um estado tam opposto ao e.spirilo do mundo , por ser o
mais proprio para ·reparar as desordens, que o amor dos bens da
terra causava entre os homens , ensinando-os a desprezar estes bens
terrenos e caducos, e procurar a felicidatle na posse dos bens -es-
pirituaes e eternos. Assim quiz ser elle o primeiro dos pobres, o
ehefe e amigq dos pobre~. Qniz que a seu exemplo snpportassem
com amor e paciencia ·a sua pobreza , e não murmuras:rnm da Pro-
5 VI

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CA TECiS~JO

vidcncia , conforman1lo-sc com os soffrimcntos· inhcrenles á sua con-


•lição. Quiz que a seu exemplo procurassem viver do trabalho de
suas mãos , e que , se posta a diligencia , ainda assim se Yissem
na penuria , aceitassem , como c11e mesmo fez, de bom grado, com
gr3tidão e sem pejo ~ as esmollas de seus irmãos. Quiz que, a seu
exemplo , nfío cubiçassem os pobres e humil'tles o eslat.lo llos ricos
, e poderosos da terra ; porque lambem elle fugi o e dcisappa receu ,
quando o quizeram fazer Rei ; e assim o Apostolo nos assegura ,
que todos aquelles que querem tornar-se ricos, cabem na tenlação e
nos laços do demonio, e em diversos desl~jos insensatos e perniciosos.
que- os precipitam n.o abysmo da perdiç.ão (1). Estes exemplos dá o
Senhor incessantemente aos pobres na sua vida Eucharistica.
Quer elle lambem que os castos representem a sua virgindade.
O novo Adam , querendo remir 'o mundo , escolheu o estado da Yir-
gindade , com prefercncia a qualquer outro , por ser este o mais
santo , perfeito , P. adequado ás funcções celesliaes do seu rninisterio,
e o mais conforme ao designio que tinha d'apartar -os homens dos
prazeres sensuaes, origem tam ordinaria como ignobil das desordens
que affiigem o mundo. Quiz que os castos aprendessem nelle o amor
que devem ter a esta virtude, e como lhes cumpre viver neste. par-
ticular estado. Para lhes dar a conhecer quanto elle ama a Virgin-
dade, quiz que o seu corpo fosse 'formado do Sangue d'uma Virgem:
e que no seio d'esta mesma Virgem fossem o seu corpo e a sua al-
ma consagradas a Deus seu Pai , como uma hostia santa e immacu-
Jada, uma Yiclima virgem e pura, cujo sacrilicio valena a remissão
dos homens. Quiz que a seu · exemplo , se considerem as virgens
como consagradas a Deus , para o servir a elle só , para honrar a
santidade e a pureza infinita da sua Divina Pessoa ; que a seu exem-
plo vivam a vida dos Anjos em um corpo mortal, 'como que não
tendo olhos senão para olhar para o Ceo; ouvidos, senão para · ou-
-vir fatiar de Deus; lingua, só para orar e publicar _os seus louvo-

[1] ·Timolh. VI , 9.

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DE PERSEVERANÇA. 3o
res ; espirilo, para só contemplar suas grandezas ; coração só para o amar
emfim , um corpo, para offerecer só a Deus, como uma hoslia immolada
pela penilencia e mortificação. Taes são os exemplos, que o salva- -
dor· dá incessanlemente aos castos, na sua \:ida Eucharistica.
Quer elle igualmente que os que são perseguidos im.ilem suas
"irludes no meio das perseguições. O novo Arlam , cuja viela e dou-
trina eram inteiramente oppostas ao mundo, foi desprezado, odiado
e perseguido pelo mundo. A troco de seus beneficios , recebeu in-
gratidões ; de seus milagres, blasphemias; de sua doulrina, censu-
ras. Foi contradicto cm vida e depois da sua morle ; e ainda o será
aló o fim dos tempos , na Sagrnda Eucharislla e em lodos os seus
membros. Deixou-nos a sua Cruz em herança , para que a levemos
como elle ; e a seu exemplo , em meio de dores e soffrimenlos, ca-
minhçmos lranquillos como a ovelha , que levam ao matadouro ; sem
abrirmos a boca para nos queixar , como o cordeiro que fica mudo ·
diante <l'aquelle qup. o tosquia (1).
Quer elle que não allribnamos aos que nos perseguem os nossos
soffrimenlos ; mas ao poder e justiça de Deus , clizemlo como elle
mesmo disse a Pilalos : Tu nao terias poder sobre mim , se te mio
fosse dado Já de cima (2) ; que a s~u exemplo não tenhamos para
aquelles, que nos fazem o mal, senão bençãos nos labios, e cbari-
dade no coração; que assim elle orou por seus algozes. Taes os
exemplos ,_ que o Salvador nos dá incessantêmenle na sua vida Eu-
charislica.
Emfim , o novo Adam é o modêlo <le lodos os homens, em
todas as suas acções ; e a sua vida resume-se em lres palavras :
elle fez bem todas as cousas , e assim exige que nos appliqucmos a
fazer bem todas as cousas , que fazemos lodos os dias ; e disto faz
depender a nossa perfeição e. salvação. Ora, para fazermos. as nos-

(1) AcL. VIH , 53.


(2) Joan. XIX , 1 t.

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36 CA TECISl\IO

sas acções d'uma maneira meriloria para Deus , quatro condições se


requerem : 1. º puresa d'intenção; 2. º bondade da.acção : 3. º circums-
tmcias convenientes ; 4. º estado de graça.
~ D'esL'arle, o primeiro fructo da nossa união com o novo Adam
é vivermos como elle yiveu na terra , tornando-nos perfeitos como o
nosso Pai Celeste é perfeito , e sendo assim lam felizes, quanto a
felicidade pódc ser compativel com as miserias inse.paraveis do exi-
lio. ·
O segundo é vi vermos a sua vida gloriosa no Ceo. Todos se-
reJl!OS reis, como o novo Adam é llei. ·Se como elle na terra tronxemos
urna corôa d'espinhos, no Ceo traremos como elle urna coroa de. gloria ;
se na terra'. o imitarmos na santidade~ no Ceo lhe seremos simi-
lhanles na bemavenlurança. Sim, a consummaçâo do .homem em Deus
por toda a eternidade, eis lodo o objecto da Religião , e o u1timo
fim de l.odas as cousas. O que será essa vida da gloria , da qual
a vida da graça é o começo , tentaremos dizei-o no resumo geral ,
que faremos no fim deste Catecismo : ahi poremos o remate desta
lição.

ORA.VI.O.
'

O' meu Deus ! que sois lodo amor , eu vos dou graças
po.r haverdes querido passar por lodos os estados , a f!m de os sa_n-
lilicar a todos , e me ensinar a occupal-os santamente ; permilti , -
Senhor, que eu siga a minha e cumpra com os deveres annexos a elle,
particular vocação , a fim que parlicip~ comvosco da vossa gloria
~terna.
Eu protesto amar a Deus sobre todas as cousas , e ao proximo
como a mim mesmo por amor de Deus ; e, em testemunho deste amO"r,
quero todos os dias fazer bem as min!tas acções.

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I>~ PEllSEVERANÇA. 37 .

LVII.ª LIÇÃO.

, ~

DO QUE PODE ROMPER A NOSSA UNIAO COM NOSSO


SENHOR, O NOVO ADAM - DO PECCADO . .

O que é o pcccado. - Pcrcado ori~inal. - Pecc<\Jo actual • - mortal e


-venial. - O que é nccessario para ha\'er peccado mortal. - Enormi-
dade do peccado mortal cm si mesmo, em seus clTcilos e casl1gos. -
Grandeza do. peccado venial. - Peccados morlac.s propriãmenle dilos. -
}lcccados contra o Espírito Saato - Pecrados que bradam ao Ceo. -
Virtudes contraria~. - Das pai~ões.

1.º Do peccado em geral. Uma só cousa rompeu a união primi-


tiva do homem com Deus> e allrabiu ao mundo esse diluvio de ma-
les que o inundam : foi o peccado. Restabeleceu o novo !dam a
primitiva união, e a cimentou com o seu divino sangue; uma só
cousa pócle de novo rompei-a: é ainda. o peccado. O Sahador ins-
truiu d'islo os seus Aposlolos. Toda a sua vida , os seus trabalhos

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~----....------- -- - --
CA TE€1S~t0

e soffrimentos, a sua morte, os Sacramentos que instituiu , bem


al.tamenle prégam uma grande verdade, e é, que o Filho do Homem
não veio ao mundo senão para extinguir .o peccado, e impedir que
pão entrasse mais no mundo. Resta-nos, a seu exemplo, fallar d'este mal
terrivel , não tanto para dar a conhec.er sua natureza , como inspi-
rar contra elle o horror que merece.
E' o peccado a desobediencia voluntaria_ á lei de Deus , ou ,
como diz S. Agostinho, a palavra, acção , ou desejo contrario á
lei eterna (1). Diz-se peccado e não vicig , porque ha grande diffti-
rença entre um e outro. Vicio é o habito ; peccado , o acto, pro-
duzido pelq habito. As tres designações : palavra , acção , desejo ,
incluem as differentes qualidades de peccados, cujos instrumentos
são a lingua , a mão, o coração. Diz-se contra a lei eterna , para
indicar a regra immutavel do bem e do mal. Com effeilo, esfa lei
eterna é o principio de todas as leis naturaes e positivas , di,·inas
e humanas ; cujo valor e força lhes provem de se harmonisarem com
a lei eterna , que não é outra cousa que a vonlade eterna de Deus,
essencialmente recla e immutavel.
Distinguem-se duas cspecies de peccados, original e actual. O
peccado original é aquelle , que se rémonta á origem do genero hu-
mano , que foi commellido por nossos primeiros pais _no Paraiso ter-
restre, e do qual lodos nascemos contaminados. A natureza e gra-
vidade d' este primeiro peccado , e sua · transmissão a toda a posterida-
de d' Adam ," ficaram explicadas e provarias na prime ira parte. d'esla
obra .
O peccado actual é aquelle , que commeltemos por nossa propria
vontade , e este se divide em mortal e venial. O receado mortal
é o que dá a morte á nossa alma , tirando-nos a vida da graça , e
fazendo-nos reos do inferno. O peccado venial é aquelle que nos não

(1) Pcccat.um csL diclum, vcl factum , vel concup1lam contra legem
énlcrnam. Contra Fausto. li!>. XXII.

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DE PERSEVERANÇA. 39
faz pNdcr a amizade de Deus,· mas enfraquece em nós a sua · gra-
ça , conlrista o .Espírito Santo , e nos dispõe para o peccado mortal.
Chama-se venial_ , . isto é , perdoavel , porque é menos indigno de
perdão que o pcccado mortal. Um e outro se commeltem por pen-
samentos, palavras e obras , e por omissão. Nada mais frequente
que o peccado venial , mesmo entre os chrislãos. Atfectos d'amor
proprio , palavras inuleis, mentiras levrs , pequenas faltas de pa-
ciencia para com os lilhos e domesticos, de brandura para com os
pohres ; ligeiras dislracções, murmurações e ressentimentos, faltas
de mortificação dos sentidos , movimentos d'inveja , perguiça ·cm se
levantar , em obedecer , ou cumprir com seus deveres, são outros
tantos peccados veniaes, de que daremos contas a Deus, e pagaremos
neste ou no outro mundo.
Funda-se esta distincção dos peccados actuaes em textos formaes
da Escriptura, no ensino dos Santos Pa,dres, e na doutrina da Igreja.
S. Paulo designa evidentemente o peccarlo mortal quando diz : O
salario do peccado , é a morte; os peccadores flào possuirão o reino
de Deus l1). Quanto ao peccado venial, a Escriplnra o designa cla-
ramente quando diz : Se dissermos que estamos sem peccado illudi·
mo-nos , e a verdade não está em nós (2) . . Com effeito , esta pa- ..
lavra que , na sua generalidade, abrange a lodos os homens , não
se póde entender do peccado mortal , pois que a Sanlissima Virgem,
os Aposlolos , e particularmente S. João~ e.stavam isemptos d'elle.
No mesmo sentido se ba-de entender o que diz S. Thiªgo : que nós.
cornmeltemos todos muitos peccados (3) ; e ainda o texto do Evange-
lho , em que Nosso Senhor estabelece muitos gráos de castigos, para
os peccados eonlra a clrnridade (i).

(1) Rom. VI, 23; vede taml.icm ad Gal. V, 20, 21 ; Apoc. XXI,
8 ; Sap. 1 , 15, H.
(2) Joan.
(3) Epist.
(i) l\latth. V. vede lambem S. Angustio, de Nalur, et Grat. e. 30;
· Cone. TriJ. Ses~. VI, e. II ; rl Can. 23 , 25.

1-

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CATECISMO

Tres ·cousas são necessarias para haver pcccado mortal,, a saber:


advertencia, consentimento, e gravidade de materia.
Advertencia , na sua accepção geral , é a allenção que sé dá a
uma cousa. A adverlencia de que aqui se trata tem por objeclo ,
não a acção em si mesma , mas a sua bondade ou malícia , o que
são cousas muito differentes. · Póde alguem obrar com muita refle-
xão, sem todavia advertir. se o que faz é bom ou máo. Por exem-
plo , comer carne mui involuntariamente á sexta feira ., sem se lem-
brar que é dia d'absLinencia ; ou lembrar-se muito bem qce é Do-
mingo , e por esquecimento deixar passar a hora da missa , e ficar
sem a ouvir. Em um e outro caso o esquecimento e inadvertencia
natural escusa do peccado. Para haver peccado mortal requer-.se
advertencia inteira ; e é necessario que actualmenle se conheça, ao
menos confusamente , a mahcia da acção ; ou se duvide , se ella é
ou não peccado mortal ; ou_ s~ saiba que na duvida ha obrigação de
se informar antes de a practicar; ou ainda quanrlo se <leu causa e
motivo a tal ou tal acção que succet.leu depois.
Consentimento ; este, para constituir peccado mortal , deve ser
perfeito ; porque : « Não ha peccado, diz S. Thomaz , que não tenha
·por principio a vontade (1). >> Ora , a vontade póde obrar relatjva-
menle ao objecto, que lhe apresenta o enten<limenlo, de lres rna-
~ neiras: 1.º consenlindo positivamente no peccado; 2.º resistindo-lhe
positivamente·; 3.º não consentindo nem resistindo • mas ficando-5e
neutral. Pecca-se, pois, consentindo ; mas não, resistindo ; com l.anto
que a resistencia seja positiva e absoluta. Quanto ao que permanece
neutral , é pi:ovavel que peque , mas este peccad~ é só venial , se
por outra pa-rle não ba perigo proximo de consentir. (2). Eis-aqui
porque, quando se trata de deleitações carnaes, ba obrigação ; sob
pena de peccado mortal , de reeistir positivamente, porque estes mo-
vimentos, quando são violentos , podem facilmente trazer o consen-
timeqto <la vontade , se esta positivamente lhe não resiste (3). Ora,

(1) Voluntas cst principium pcccatorum. 1, 2, q. 7.i, art. t.


(!) S. Alph. De peccal. o. 6.
{3) S. Alph. De peccal. n. 7.

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D~ PERSEVERANÇA.
o consentimento pode existir, ou directamente em gi mesmo, quando
adhere actualmenle ao peccado ; ou indirectamenle e só na causa ,
1slo é ' quando se dá motivo máo em si ' do qual se conheça ' ao
menos confusamente, que hão-de seguir-se cerlos males. Por exem-
plo , se um homem se em~reaga , sabendo por experiencia propria
que eslanllo embriagado costuma commeller grandes peccados :- este,
pois , fica responsavel pelos peccados que commelter , ainda ,que ao
commellel-os . não esteja em seu juiso.
1'/ateria grave. E' preciso para haver culpa mortal que o pre-
- ceito que se transgride seja grave , e que se conheça por tal. Ora,
conhece-se pela intenção do legislador; ou pela gravidade das penas
reservadas áqnelles ; que o transgridem; ou pela doutrina da Sagrada
Escriplura , da Igreja ou da tradição. Como nem sempre seja cousa
facil ·alcançar este conhecin1enlo, deve cada um tomar com-0 regra de
suas acções o fugir cautelosamente de tndo o que se sabe que é
peccad o (1). _
Faltando alguma d'eslas lres condições não ha peccado mortal.
D'esl'arte, o peccado será só venial, se se transgredio a lei de Deus
só em ma teria le\·e, ou só com adverlencia ou consentimento imper-
feito. Accrescentemos a isto : 1. º, que ha peccados que não ad-
mitlem parvidade de materia : taes são , entre outros, a idolatria ,
a apostasia , a heresia , o perjurio, o duelo , o homic1dio , o adul-
lPrio , et-c ; 2. º que o peccado venial de f,Ua natureza póde tornar-se
mortal de cinco maneiras : 1. º pelo rim a que se propõe; aquelle,
por exemplo, quem profere uma palavra algum tanto livre, com in-·
tenção de mover o proximo a comnwH<.·r peccado grave, pecca mor-

(1) Nisi habcatur expressa auctoritas sacrre Script1m.e, aut canonis,


seu determioationis Ecclesire, ,·cl evadenls raL10 , nonnisi periculosissime
pcccatum mortalc delerminatur. Nam nisi determinclur quod ihi siL mor-
tale , ct non s1t morlale, peccabit ·contra fac•eos, quia omoc quod est
coolra conscicntiam redificat ad g('hennam. s. Ant. Sum. Theol. p. 1, Lit~
Jl,c. 11.
6 . VI

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CATECISMO

talmente; 2.º pela conscicncia com que se commeltcu um peccado •


que se julgava ser mortal, ainda que fosse realmente só venial; 3.º
pelo desprezo formal da lei ou do legislador , considerado como
tal ; 4. º pelo e~candalo que se dá a filhos , domesticos , ou outras
pessoas ; 5. º pela rasâo do perigo proximo de cahir em peccado mor-
tal. N'esLe caso cumpre declarar na confissão a especie de peccado
a que se expoz , quer se lenha commellido, quer não. O perigo é
proxllllo quando está de tal sorte ligado ao peccado , que este quas1
sempre ou frequentemente se lhe segue (1).
Para conhecer, ao menos d'um modo imperfeito, a enormiuade do
peccado mortal , é preciso consit.Ieral-o em si mesmo , em seus cffci-
tos e em seus castigos. .
Em si mesmo , o peccado mortal é uma revolta contra Deus ,
e uma ingratidão monstruosa. Mas quem é Deus , e qual ·é o seu
poder? No principio, nada do que vemos existia; não havia Ceo
nem terra, nem montanhas , nem rios, nem animaes, nem plantas :
Deus disse , e tudo foi feito. Com a mesma facilidade , C(}lll que
creou o universo, Deus o governa, e todas as crealuras lhe obede-
cem. Elle disse ao sol que nascesse todos os dias , e elle nasce ;
disse aos astros que cumprissem suas revoluções no espaço , sem já-
mais se desviarem da orbita, que sua mão poderosa lhes traçou , e
os astros a seguem com perfeita regularidade. Elle chama o aqui-
1ão e as tempestades , e elles correm das extremidades da terra ,
e agitam o Occeano, e as aguaes bramindo se levantam como altas mon-
tanhas, que parece querem engulir a terra ; diz ao aquilão e ás tem-
pestades que se acalmem , e ellas apasiguam-se; diz. ao mar embra-
vecido que toí·ne a entrar em seu Jeito ; e o mar, obediente como
- a ovelha á voz do pastor, torna a entrar em seus abysmos ; diz á
terra que produza plantas e fructos de toda a especie, e a terra co-
bre-se de riquezas Iam variadas como as nossas precisões, c·•dcsejos.

(1) S. Alph. JJe peccal. n. 63.

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l>E PERSEVEl\ANÇA. .í 3
Ao menor signal do seu pensamento , as innumeraveis inlelligencias
dos Ceos correm , e , humildemente prostrados ao pé do seu throno,
lhe dizem : Eis-nos aqui. Elle falia , e os Cherubins e Scraphins .
os Anjos e os Archanjos executam suas ordens com a rapidez do
relam pago.
Este grande Deus manda , e tudo se apressa em render-lhe ho-
menagem , tudo lhe está submisso. Engano-me, no meio d'este con.
certo unanime, ouYe-se uma voz que diz : Eu não obedecerei-
Quem é pois o ser audacioso , que ergue contra' o Deus Forle, Eter-
, i10, Omnipotente, o estandarte da revolta? E' o homem ! ! ! o ho-
mem , montão vil de lodo e podridão ; o homem, ente fraco, pob_re,
miseraveJ, que não vive senão um dia , e nem esse vi\'e senão por
rsmolla : tal é o ser que se alreve a medir-se -com o Todo-Pode-
roso. Vede a insolente soberba com que pronuncia contra Deus suas
blasphemias : Bem sei , diz elle , que impondes leis a toda a natu-
i·eza , e que toda a natureza vos obedece ; mas eu não vos obede-
cerei , anles zombarei das vossas leis , das vossas promessas e das
vossas ameaç,as ; eu heide pensar como eu quizer, amar o que eu
quizcr , fazer Ludo -o que eu qmzer, e viver como me parecer.
Eis o que realmente diz um peccador , toda a vez que commelle
um peccado morta].
D'esl'arle , o peccado mortal e uma revolta declarada contra
Deus : e é alem disso uma ingratidão monstruosa. Quem é este que
ousa dizer a Deus: Eu nã~ vos obedecerei ? E' um ente curvat.lo
com o_peso dos beneficios de Deus , banhado no divino sangue que
o remio ; é o homem , em fim , para quem Deus fez o mundo , e
por quem sacrificou seu Filho Unigenitô: e, o que ha n'islo de mais
horroroso , é que o homem se serve dos mesmos beneficios de Deus
para o ultrajar. O ar , a agoa • o fogo, a luz, as trevas, o vinho ,
as plantas , os animaes , os metaes , são crealuras de Deus : o es-
pirilo , o coração, a imaginação, a alma , os olhos , os ouvidos ,
a lingo'a, os pés , as mãos , o corpo , tudo são cousas que Deus deu
ao homem ; e elle, ó cousa horrivel ! sorve-se de tudo isto para ul-
trajar a Deus! l ! INGllATO , eis o nome do .peccador. A ingralidão
é o se11 crime, crime que excita em todos os corações o horror e a in:.
dignação. O que acabamos de dizer apenas dará uma insigni-

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---~~-~-- --=
CATECIS'.ttO

ficante idéa da enormidade do peccado rnorlal, eonsülerado cm si


mesmo.
Em seus e/feitos, o peccado mortal priva o homem da amisade
<le Deus, faz-lhe perder todos os seus passados merecimentos e lhe
fecha M portas do Ceo. Quem poderá dizer o que se passa
em uma desgraçada alma , no momento em que cahe no peccado
mortal ? Bella ·como um AnJO , ella se faz negra como um carvão e
horifrel como Satanaz; cahe-lhe da cabeça a sua corôa ; o vestido ·
da innocencia lhe é arl'ebatado ; sae do seu coração a Trindade San-
tissima ·; hornvel bando de dominios vão occupa1· o seu lug ;r ; o seu·
nome é riscado do livro da vida. Se succcde morrer rn~sle eslado,
eil-a sepultada por toda á eternidade em um sorvedouro c.le fogo :
todos os seus nu~recimenlos passados eslam perdidos. Imaginai uma
pessoa, que pralicasse durante noventa annos todas as ausle~·idades
dos solitarios , que houvesse dado lodos os seus bens aos pobres ,
que se li\'esse accumulaclo dos merecimentos de Lodos os sa11los, que
tem havido e hão-de haver no mundo , e que depois de tudo is ln
commettesse un1 só peccado mor la 1 ; ludo perdeu, ludo ficou ex Li neto.
Se mone n'aquelle estádo , nada lhe é conlacfo na eternidade. Cho-
ra o lavrador , porque a neve lhe queimou a novidade; o navegan-
te, porque as ondas lhe submergira:n o nano ; pois logo que la-
mentos, que amargo pranto não merece a dPsgraçada alma , que
perde os seus merecimentos , o seu Paraíso , o seu Deus ! E' ver-
dalle , que se recorrer ao Sacramento da Penitencia , se obl.i ver o
,, perdão das suas culpas , re\'ivirão os seus merecimentos: mas em
quanlo está no deploravel .estado d~ peccado, perdidos estam para
ella esses merecimentos totlos. Inda mais , uem póde adquirir no-
vos ; por mais f)Ue faça, em eslado de· peccarlo morlal , jamais poderá
mcrect•r a recompensa eterna.
Em .seus castigos. rara fazer idea da enormidade do peccaclo
mortal , hasla uma reflexão bem simples. Deus é justo, infinitamente
justo; não pode castiga~ o peccado mais do que merece : Deus é
bom , infinitamente bom ; a sua misericordia o leva conlinuamente a
dar ao peccador um casligo menor do que lhe é devido. Ora , ha
seis mil annos que Deus inunda o universo de c.asligos espantosos ,
e tudo isto para casligar o peccado morlal : e ainda isto é nada.

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OE l'EllSKVERAl\ÇA.

Deus· é infinitamente justo ; Deus é bom, inlJnilamenl.e bom; e para


cnsligar o peccado cavou o inferno, o inferno eterno, onde o pecca-
''º será castigado sem descanço•. com tormentos laes , que sú a
lembrança faz estremecer~ Não p~ra aqui : o que excede quanto se
pódc imaginar, é que este Deus infinilamenle jnslo, infinitamente
bom , para castigar o peccado , deu á morte o seu proprio Filho ,
<' o ft'z expirar em uma Cruz, enlre dous malfeit.ores ! Eis os cas-
tigos do peül'ado mol'lal ; e toda\·ia Deus é justo , é bom , infinila-
nwnle juslo e bom. O' Deus ! que é pois o pecca1io mortal ! ~ - e
sem nos Je.mbrarmos disto com tanta incuria peccamos, e Iam lran-
qnillos dormimos depois de · ter peccado t nós, que por baga lei las nos
~migimos e Lalrcz choramos amargamente , e por nossos p{'ccados
não teremos derramado uma lagrima ! Ainda bem, se d'or'avante se
poder dizer de nós o que d'um · santo Bispo se dizia nos pri-
· meiros s(!rulos: Não leme este homem senão o peccatlo ! ..
D'aqui lambem pot.lemos concluir que o pecc3do Yenial não é
pequeno mal ; p~1is que e, como o peccado mortal , uma nwolla
contra Deus, e uma feia ingratidão. Para fazer idea de quanto é
· gran<le este mal, (f Ue se commelle com lanla faciliJade como se bebe
um copo rl'agoa , lembremo-nos do que a nossa Fé nos diz. Esten-
dei a vista pelo mundo , vede a mullidão d'enfermos que eslam ge-
mendo pelos hospilaes e casas particulares , cheios de dores e mo-
leslías ; percorrri todos esses cemilerios, aon1fo as ~r·raçõcs hnma-
m1s cslam amontoadas umas sobre as outras ;· consider~i o sem nu-
mero de herrjes e idolatras. que não conlwcem a Deus ou o conhe-
crm mal; abri o Purgalorio , vedr. o grande numero <l'almas eleilas.
que penam nas chammas, e ·.suspiram prlo seu livramento ; ·dl'seei
GOS alrios tio inferno , comtemplai lá no fundo d'essas abrawdas pri-
sõPs as · desgraçadas viclimas , accumuladas no eterno , virolenlo
f:ip ~ - píii1' sJb~·i que, quando , para sarar lodos os enfermos do
munJo , resuscitar todos os mortos , converler todos os herejes e
infleis, livrar todas as almas do Purgatorio, salvar todos os condem-
nados ; sim , quando para conseguir isto não fosse preciso mais que
commetler um só pcccatlo venial·, dizer uma só mentira leve, não
seria permitlitlo fazei-o ! Negar i1'lo é LCÍ' perdido a fé.
Ainda mais : vede como Deus, qnP é inílnilamenlc justo, cas-

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CArnCISJ\to

tigou muitas vezes o peccado vemal no seus mais fieis servos.


Moyses e Aaram, aquelles dous irmãos tam llignos da graµde mis ão
que lhes foi confiada ; Moyses , a quem Deus faltava como o amigo
falla com o seu amigo , e Aaram , chefe do~ seu Sacer<.locio ; aquel-
lcs dons grandes servos de Deus , comp.1elleram um peccado venial,
porque hesitaram um momento , ferindo com a vara o rochedo do
deserto; e só por islo foram privados de entrar na terra da pro-
missão; aquella terra , pela qnal suspiravam havia- tantos annos, a
cu1as portas tinham chegado por meio de tantas fadigas e tribula-
ções. Chegaram sim, para seu maior pezar , para vel-a de longe
com os olhos, que lhes não foi dado pôr nella os pés. David que
foi rei sf:lgundo o espirito de Deus • teve um Jigeiro movimento de
vaidade , ~ só isto foi bastante para que em sPu reino cahisse um
terrivel flagello , que em tres dias matou selenla e dois mi] bomen .
Pois foi um peccallo leve, como os que commeltemos milhares de
vezes · ao dia.
Não pára aqui. Quereis conhecer , ao menos em parle, a enor-
midade do peccatlo venial, e o horror que causa áquelle Deus d
toda a justiça e de Loda a santidade? Pois sahej que se fosse pos-
sivel descobrir elle um só destes peccados nos Anjos, que compoem
a sua corte, no mesmo inslante seriam precipitados do Ceo , e obri-
gados , para lá tornar a enlrar , a fazer grande pcniLencia. Que
digo? Se ell~ divisasse a menor ombra d'um ligeiro peccado ve-
nial em Maria Sanli ima , em sua propri.a mãi , no mesmo instante
a Rainha dos Anjos e dos lwmens seria obrigada .a depor a sua co-
roa , descer do seu lhrono , sair do Ceo, e fazer penitencia para tor-
nar lá a enlrar.
Tal é a invencivel opposição que existe entre Deus e o peccado.
Não admira, pois, que os Santos o tivessem em tanto horror , que
antes queriam perder a vida do que commeller um só peccado ve-
nial. « Eu sei morrer, dizia nos tcwmentos um santo Bispo d'Africa,
mas não sei mentir. »
O que sobre tudo nos deve fazer temer do peccado venial, é que -
elle conduz insensivelmente ao mortal. Ninguem se faz de repente
grânde santo, nem grande peccador , mas sim a pouco a pouco e in-
sensivelmente. Quem quizer dizer a verdade ha-dc confessar , que

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DE PERSEVERANÇA.
não ha peccado mortal sem que houvesse primeiro a desgraça de ler
sido prec1d1do e prep~rado em nós por algum peccado venial. Entre
os pe.ccados que se chamam veniaes , ha um sobre tudo que conduz
quasi infallivelmenle ao mortal : é a negligencia, e principalmente a
falta habitual d'orar pela manhã e á tarde. Não pode o corpo vi-
''CF sem comer, nem a alma sem orar ; porque o sustento da alma,
o seu pão quotidiano , é a oração. O' meu Deus ! inspirai a todos
os que lerem estas li'nhas , a inabalavel resolução de nunca mais
commetler um só peccaJo venial com proposito deliberado, por mais
leve que lhe pareça (1).
2. º Dos peccados mortaes propriamente ditos - Entre os pec-
cados acluaes , ha sete, que se chamam propriamente mortaes ; por-
que são o principio e origem de todos os outros. S. João os re-
presenta no Apocalipse pela Besta d~s sete cabeças; pgrque todos os
peccados dependem delles como os membros do corpo dependem da
cabeca.
. .
São sete , como dissemos , os peccados mortaes , a saber : a so-
berba, a avaresa , a luxuria , a ira , a gula , a inveja e a pm·-
guiça.
A soberba é a de.sregrada estima de nós mesmos, pela qual nos
preferimos aos outros, e referimos , não a Deus , mas a nós mes-
mos, ludo o· que somos e 'tudo o que temos. Supposto que a so-
berba se possa considerar como origem de todos os outros peccados,
e em todos intervenha (2) , todavia alguns ha _que nascem directa-
mente della ; como são, a presumpção , · que é· o desejo de fazer o
que elcede as nossas forças e capacidade; a ambiçlio , ou o desejo
desregrado elas · honras e dignidades ; a desobediencia , ou falta de
submi'ssão aos legitimos superiores ; a !typocrz'sia , que affecta uma
piedade ·que não tem , ou ~mais da que tem ; a incredulidade, com

(1) Sobre os meios d'obter o perdão dos pcccados morlacs e vcnines,


''f:ja-se o <lecimo segundo artigo do symbolo.
(2) Initium omnis pcccali cst supcrbia. Bccl. X, 7.

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48 CATF.CISMO

que o homem se não submette á rasão , e ao ensino da Igreja ; a


obstinação que teima na opinião propria, apezar da bem fundada
auctoridade d'aqnelles, que não pensam como nós; a jaclancia , que
se louva a si do seu merecimento , dos seus grandes seniços , do
bom exilo dos seus negocios , a sobranceria, que trata o proximo com-
altivez , manda com arrogancia , falia com desdem ; a vaidade, que
se gloria do vestuario, da belleza, força , ou outros doles que Lem
ou imagina ter. (1 ).
Eis os filhos da soberba , dignos por certo da rnãi que os pro-
duz.
E' grande peccado a soberba ; porqt~e foi ella qu~m deu. origem
aos demonios. E' injuriosissima a Deus , porque tende a roubar-lhe·
a sua gloria ; detestavel aos homens , porque os avilta ; é direcla-
mente opposta aos exemplos de Jesu-Chrislo , e repeli e a sua graça.
Deus resiste aos soberbos, e permilte que caiam em peccados muito
vergonhosos e homiliantes. A soberba póde considerar-se como fon-
te de todas as iniquidades, e signal ordinario de reprobação.
·. O anlidolo da soberba é a humildade , que se fund~ no conhe-
cimento de nós mesmos, e por consequencia no JUizo recto e justo
que de nós fazemos. Ora , nós nada temos , nada somos , nada po ·
demos : Ludo nos vem de Deus , ludo esta em Deus : por consequ-: ·
encia não somos mais que um puro nada ; de que havemos, pois,
de ensoberbecer-nos ·? a soberba não vive senão da ignorancia ; a-
prendamos a estimar-nos bem e seremos humildes. Meditemos seria-
mente e com freqnencia nestes tres pontos: Em todo o meu ser ,

( 1) Snperbia · nominalur ex hoc quod ahquis per volnntatcm tcndit


supra id quod est. Unde dicil lsidorus, lib. X· , Ety1no1. ad Iilt. õ: Su-
perbus dictus est, quia vult supervideri q1rnm est. Ilabcl aulcm hoc ra-
tio rccta ul voluntns nniuscujusquc fcralur io id quod est prnportionatnm
sihi. Et idco mánifcstum csl qood superbia 1mporlal aliquid quod ad-
vcrsatur ratione reclre. Hoc autcm facit rat1onem peccali , qui a malum
animre est pré'elcr ratione esse. Uodc manifcslum est quod supcrbia est
peccatum. D. Th., 2, ~, q. 162, art. 1.

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DE PERSRVRRANÇA.
tanto no que pertence ao corpo como á alma, que fui eu ? que sou ?
que virei a ser?
E' a humildade uma virtude essencialmente necessaria á salva-
ção; e para a obter cumpre pedil-a e sobre tudo exercitai-a. Cum-
pre ser humilde nos pensamentos , não nos exaltando acima dos ou-
tros ; nas palavras , fallando sempre com rnodestia, e nada dizendo
em louvor proprio ; nas acções , fugindo cl'actos estrondosos e usan-
do com frequencia e espirito d'hum1ldade exercicios bumiliantes.
A avaresa é o ap~go desregrado aos bens da terra. As trui-
ções , fraudes ~ perju.rios , ú1quielações , dureza com os pobres , são
os negros fruclos deste vicio. Conheceremos que cslamos domina-
dos d'avareza 1.º, quando cubiçamos -os bens alheios; 2.º ,·quando
o desejo de.adquirir riquezas é o unico motivo do que fazemos e
emprehendemos ; quando nos alegramos immoderadamente ti.e r-ossuir ,
bens temporaes ; quando nos affiigimos com excesso pelos perder;
quando os procuramos ou conservamos por meios illicitos ; quando
não damos aos pobres o que temos superfluo ; quando não estamos
dispostos a perder o que possuímos , antes do qÜe offender a Deus.
D'aqui vem o chamar S. Paulo á avareza uma idolatria (1).
A avareza é grande peccado ; porque contraria o amor que de-
vemos ter a Deus ; aparta-nos do seD servi'ço , porque o homem não
póde ter dous senhores. Nada ha mais iníquo , diz o Espirito Santo 1
do que amar o dinheiro, o maior criminoso é o avarento (2). O
avarento é detesta vel a Deus e aos homens. O antidoto da avareza .
é a liberalidade; vit·tude summamenle necessaria. Pelo modo como
dermos esmollas e s~ccorrermos os pobres é que seremos julgados no
dia do Senhor.
A lwcuri·a é o peccado nefando e torpe ; de que os christãos
devem abori·ecer até o nome, e que, pela rndocilidade de nossas pai-
xões, se não pode definir. As causas d'este pcccatlo são a soberba,
a rneza lauta , a ociosidade , a dtirc\za com os pobres : já foliamos

(1) Eph. V.
(2) -Anro nihtl scelestius. Ercl. X, 9.
7 VI

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CA l ECISl\JO

das occas1ues <Jelle, quando explicamos o sexto mandamento. As


suas c.onsequcncias são a cegueira do espírito , endurecimento do co-
raçlio, ruina da saude, desordem da casa, o suicidi"o , a.impeniten-
Clll final. A vigilancia , isto é, a mortilicaç5o , a fuga das occa-
siões, a oração; e particularmente a meditação , a confissão e com-
munhão frequentes , são o grande remedio contra este vicio.
A ira é um movimento impetuoso e <lésregrado da alma , que
nos conduz á vingança ·, e no~ faz repell ir com violencia o que nos
llesagrada. Dizemos movimento desregrado , porque póde haver ira
santa , justa e rasoavel ; lal foi <t de .Moyses contra os Israelitas,
que adorarnm o beserro <l'ouro ao pé do monte Sinai; tal a de Nos-
so Senhor contra o escandaloso bando de traficantes, que faziam do
lugar santo praça de mercado e covil de ladrões. :Mas quando a ira
se não acende no amor ·e zelo da gloria de Deus, e proveito do
proximo; ou transgride os seus JUslos limites , é tremendo crime, de
que saem os odios , contendas, injurias , mortes, in~endios, e ruina
tias familias. Do que fica dilo conheceremos quanto é acertada a
comparação de S. BasiJio. « A ira , diz ellc, é similhante a um cã~,
c1ue é bom quando h1dra aos inimigos do seu Senhor ; máo, · porem,
quando enlende com os amigos da casa (1). l> A malicia da ira con-
siste em tres cousas : 1. º querer vingar-se de quem está innocente~
e nos não fez mal; 2.º querer tirar ving:rnça por auctoridaLle pro-
pria ; :l.º vingar-se por odio e não por zelo da justiça. Aconselham
certo philosopho pagão , como remcdio contra a ira, o dizer o Alpha-
beto , ou beber um copo d'agua fria, antes de falJar. Quanto a
nós , chrislãos , temos outro e melhor remedio , que é olhar para
a Cruz de Jesu-Cbrislo, lembrando-nos da doçura e paciencia do nos-
so divmo Mestre em toda a sua Paixão e morte. .
A gula anda ue ordrnario junta á impudicicia e é muitas ve-
zes a causa rle1la. Consiste no amor desregrado de comer e beber,
com exr.esso e sensualidade. Não é o prazer ou gosto que se dá

(~) rnepropere, loute, uimis , nrJenter, studiose. D. Th. 2, 2, q.


US, :m. i.

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DE PERSEVERA~ÇA. õl
na comida o que caracterisá o peccado da gula , mas sim o exccs~o
ou falta de moderação. Pecca-se por ·gula de cinco maneiras: 1. º
comendo antes do tempo conveniente, sobre tudo nos dias de jejum ;
2. º procurando comidas exquisilas, e de grande preço, allenla a con-
dição de quem se serve d'ellas; 3. º comendo ou bebendo com ex-
cesso ; 4. º atirando-5e á comida com voracidade, como os brutos ;
5.º exigindo muitos temperos (1). Os peccados que nascem da gula
sã-0 o embrutecimento da iºntelligencia , alegria vã, a únmoderação
da lin,qua; e não poucas vezes a foxtirfo e suas funestas conse-
. qnencias. Oe todas as ·maneiras 1le peccar pela gn la , a mais feia
e indigna do homem , a que o torna inferior aos brutos. é a em-
briaguez. N'este estado ex porm-se a commelter mil desordens , é o
opprobrio dos homens, desbarata a sua fortµna, abre,·ia os dias da
vida , incorre na maldição de Deus.. A mortificação é o grande re-
me<iio da gula. Oh ! çomo e santo o costume de não deixar passar
dia, sem se privar d'alguma cousa na comfrla , para honrar as pri-
vações de Nosso Senhor em Bethlem , no Egyplo e em Nazareth '
A inveja occupa o quinto lugar entre estes monstros , que nos
lyrannisarn e mancham o coração. Consiste em ~e doer dos
bens do proximo , como se diminuissem os nossos ; e folgar com os
seus males , como se fossem bens para nós. _Nascem deste vicio a
maledicencia ou murmuração, a calnmnia, as inlri gas ., as inlrcpre-
Lações malevolas. Quem s~ enlrc~gar á inveja imita o rlemonio que,
inve.Joso da felicidade de nossos primuiros pais, os induzio ao pcc-
. cado , e trabalha sem descanço por nos fazer desgraçados; imita a
·Caim que matou a seu irmão. Abel, por ver que se lhe avantajava ;
faz emfim o papel dos Judeos que , deslumbrados pelo esplendor das
virtudes, milagres e poder de Nosso Senhor, o crucificaram. Para curar
csle mal cumpre exercer a charidade fralcrnal, e considerar que a Ínveja
arruina mais ao invejoso que ao invejado, porque o inv(.ljoso roe-se interi-
ormente; e muitas vezes se serve Deus do~ peccados do invejoso, para

1; 1,i ln Orãt. de Ira .


... '

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--
CATECISMO

e]evar ao oulro a quem inveja. Assim vemos qn.e, l.endo-nos a in-


veja do cJemonio foito pe1·der o Paraiso terrestre , disso tirou Deus
cccasião ~ para nos enviar Nosso Senhor , e dar-nos o Para1so Ce-
Jest(l. E' Joseph vendido por seus invejosos irmãos, e serre-se Deus
disto mesmo, para exaltar a Joseph , e fazei-o senhor delles. Por
inveja persegue Saul a David , e Deus tira o reino a Saul e o dá a
David. Releva Lambem recorrer á humildade, mortincação, e de-
sapego dos· bens do mundo, que assim evilaremos o immoderádD amor .
- das honras, prazeres e riquezas, objectos ordinarios , e a1imenlos ha-
bituaes da inveja.
A perguiça termina este horroroso catalogo de peccados. E' uma -
ella laxidão, uma tibieza, com que deixamos as nossas obrigações por
não termos trabalho com 1sso. Por ella peccamos mortalmente, quan-
do faltamos a alguma obrigação grave. Os peccados que produz são :
menosprezar os· flfandamentos, en.trêgàr-se qos vicios, á desespera-
ção e odio contra .aquelles, que nos obrigam a deixar o mal e a fa-
zer o bem. lia uma perguiça espiritual , que nos faz negligentes
em cumprir com os deveres de chrislão : e quam trivial é este ge-
nero de perguiça ! O meio de a curar é adoptar um bom regula-
mento de Yida , aprovado por confessor prudente. Para nos corri-
gir-mos da perguiça , .consideremos que o lempt> é breve, e c1ue elle
é o preço da ''ida eterna; que em cada instante que · se perde po-
derá ir d'envolta á eternidade ; que _o obrei1·0 aclivo receberá uma
recompensa infinita , e o 8érvo perguiçoso , um castigo eterno; que
o homem nasce para o lra~alho ; que como peccadores estamos con-
. demnados a elle, e como christãos somos obrigados a imitar a Jesu-
Christo , cuja "vida foi tam laboriosa. Não nos aproveitemos do
somno nem da recreação, senão quanto baste pa.ra descançar o es-
pirito e o corpo , e pôr-nos em estado de continuar as nossas oc-
cupações.
3.º Peccados contra o Espirito Santo. - AJem dos peccados
morlaes , de que , como já vimos , tanto devemos temer , ha outros
ainda tam temíveis e horrendos que não podem ser mais ; sãe os
pcccados conlra o Espirilo Santo. Divide-se em seis ramos esta mor-
1ifera arvore, cujos nomes são : . desesperação de se saltiar, presum-
pçlio de se salvar sem merecimentos , negar a verdtide conltecida por

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DE PERSEVERANÇA. ü3
tal , ter ÚlVeja das merces que Deus faz a -outrem , obstinação no
peccada , impenitencia final. Chamam-se peccados contra o Espirilo
Santo , porque se commeltem por pura malicia , sobre tudo o ter-
ceiro, que é propriamente o peccado contra o Espirilo Santo , islo
é , a pertinacia com que se pretende e se qu,er provar que uma
vel'dade conhecida é uma mentira. Diz-se que pecrar por malicia
é contra o Espii'ito Santo; porque a elle se altribuea bondade, que é o con-
trario da malicia. Da mesmà sorte se diz que peccar por igno1:ancja é
contra o Filho , ao qual se altribue a sabedoria ; e peccar por fra-
gilidade é contra o Pai , a quem se allribue o poder.
Os pecoodos contra o Espírito Sanlo leem isto de particular, que
não se perdoam n'este mundo. nem no outro (1). Todavia o
que se deve entender por isto é , que ha grande difficuldade em
obter o perdão delles. Com etfeilo, a· expcriencia tem mostrado ,
que aquelles · que o commettem rarissimamente tornam á penttencia.
Assim , quando dizemos que uma molestia é incurave] , não quere-
mos dizer que não possa jámais curar-se , mas sim que raras vezes
se cura. Quanto devemos, pois, temer <lo peccado contra o Espirilo
Santo, que de dia para dia se torna ma-is commum na terra ! Ah !
quantos homens, e até mulheres , vivem obstinados no mal , tra-
tando com indifferença todos os deveres da Religião, apezar das ad-
vertencias dos ministros do Evangelho, e dos fonnaes avisos de Deus,
laes como os flagellos , as revoluções , as epidemias? Quantos não
ousam mesmo atacar abertamente , em suas conversaç.ões, escriptos
e discursos ,. a nossa santa Religião , cuja ''erdade é tam manife.sla
como a luz do dia!
4. º Peccados que bradam ao Ceo. - Dos enormes crimes ele
que é capaz a profunda malicia humana, alguns ha, que de nenhum
modo podem colorir-se ou dissimular-se ; e por isso se cJjz que cha-
mam vingança. São eil~s quatro, a saber : homicidio voluntario;
peccado sensual contra. a natureza ; oppressão dos pobres, principal-

'.

(t) Matth. xn, 3~.

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CAl'ECISMO

mente orphãos e viuvas ; nõo pagar o jornal a quem lraballla ( 1).


füz-se que bradam ao Ceo , -como já ad verlimos , porque a inj us-
tiça d'estes peccados é tam _manifesla e iniqua, que se não pode
cncubrir nem offuscar. Para fazer idea da enormidade de tacs cri-
mes , basta ler na Escnptrira os tremendos castigos, com que Deus
·ameaç.a aquelle qué os comelte (2).
Explicado o peccado , e as differenles maneiras como por elle
se rompe a nossa união com o ºº"''º Adam, quem não tremerá agora,
sabendo que o germen <l'este mal lerrivel existe em nós mesmos, que
nasce comnosco , e faz conlinuos exforços por se desenvolver e per-
der-nos , separando-nos de nosso Salvador~ Pois de facto, o germen
do peccado está em nós ; os mesmos peccados morlaes , que geram
-· os mais pecca.dos lodos, leem sua causa em nossas proprias paixõt~s:
estas são as arvores ; os peccaJos , seu fruclo. Por isso , se não
gostais do fruclo, acabai com as arvores que o produzem.
Tres são as paixões do homem : a ambição, a cubiça , a concu-
piscenci·a . isto é, o amor das honras , das riquezas e dos prazeres ;
e por isso se chamam os li'es iniliiigos d'alma. São como tres gran-
. des feritlas , qnc o peccado original fez no homem ; e eis porque o
novo Adam , medico d'esle grande enfermo, quiz nascPr, viver e
morrer em pobreza , humildade e soffrimenlo. Esta apparrnle bai-
xesa, de que o mundo se es-can<lalisa, é a prova mais brilhante da
sua profunda sabedoria e infinita bondade : é o balsamo que applica
as nossas ulcernsas chagas. .
Se queremos , pois , prescverar cm união com Deus , suffo-
quemos no coração os funestos germens tio pecca<lo , que é o
uuico que póLle separar-nos de Deus ; suffoquem ol-os desde a in-
fancia , que ao depois será tarde. Em tenros meninos já aquellas tres
paixões se manifestam. Primeiramente o orgulho. ou o amor das
bonras. E' desobediente o menino , altivo, vaidoso ; cnlri~tcre-se
c1uando lhe não satisfazem os caprichos ; depois vai gostando de suas

(1) Gen. IV, XVIII; Exed. XII; Jacob. v.


(2) Ubi supr . .

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üE PEfiSEVli:RANÇA. 55
dislincçôesinllas, preferrncias e ad·ulações. A princ1p10 nada disto
parece perigoso nem muito máo : pois se não houver cuidado, ~quella
pai~ão de creança, ou antes, aquella pequena serpente , que o me-
nino nutre em seu interior , não. tardará a desenvolver-se, e tornar
corpo , para a seu tempo ·lhe dilacerar as entranhas. Amau exige
ser honrado, e adulado ; nem póde levar em paciencia que Mardo-
cheo não dobre o joelho na sua presença; e chega tl'ahi a querer
la,·ar no sangue d'um povo inteiro um pretendido ultrage !
Ao amor das honras segue-se o das riquezas. A infaucia e
a juventude gostam muito de ter um sem numero de coisinhas, moveis,
vestidos e enfeile1'. _Parece isto cousa indifferente, e em que não ha
perigo : pois se não houver cuidado , aquelle desregrado afferto é
outra pequenina vibora , que se acalenta no_seio do menino , e que
breve crescerá, para a seu tempo lhe dilacerar as entranhas. Co-
meçou Judas por ganhar amor a um pouco de dinheiro, e acabou
por vender a seu Mestre. .
Temos , emfim , o amor dos prazeres : todos gostam do que dá
- goslo ao corpo ; e assim os meninos go~tam do somno prolongado,
tia mesa lauta , do macio leito , em summa, de ludo que lisongea o
paladar, o olphato, a vista, o lacto ; e talvez isto nellas pareça
!ndifferenle, e de nenhum modo perigoso : pois se não hou,·er cui-
dado , est'oulra viborasinha, que se nutre no menino , não tardará
a tomar vulto e forças , para a seu lempo lhe despedaçar as entra-
nhas. Olhai aquella mulher , CUJO nome está escripto no Evangelho
com lodo e sangue : Começou Herodias por gostar de festas , e aca-
bou por pedir a cabeça do Baplista. Interrogai todos aquelles que
leem cornmeltido grandes crimes ; ~ sabereis que começaram por pou-
co , e a pouco a pouco chegaram aos maiores excessos. Impruden-
tes ! escutai a vossa historia.
Certo. dia , andando um homem a passear pelo campo, deu com
um ninho de viboras - Ao vêl-as , recuou amedrontado, e desviou-se
para longe. Reflectrndo , porem , um pouco, cobrou animo, e tor-
nando ao sitio pegou do ninho e mui contente levou para casa aqU€:1-
les perigosos reptis , e lá os foi creando com diligencia. Havia quasi
tres semanas que tinha em sua cas1 aquella interessante familia ,
quando vindo um seu amigo visital-o , e vendo aquelle foilio , lhe

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56 CATli:CISMO

disse muito admirado : Tu que fazes , homem ! Se não malas estas


víboras em quanto são pequenas, se continuas a dar-lhes esla boa vi-
tla , logo estarão crescidas, e -te darão crueis mordeduras ; serás vic-
tima da lua imprudencia. - Está descançado, respondeu o homem das
víboras, ellas são novinhas, tenho muito· tempo de evitar esse pe-
rigo;. alem d'isso eu vou tomando minhas precauções, e se vir que
ha risco bem me saberei livrar sem muito trabalh~. - Não te fies
n'isso , has-de ser surprehendido, replicou o amigo , que s~ retirou
sem nada conseguir , mas não sem grande inquietação.
D'ahi a quinze dias tornou elle , e achou o seu amigo atormen-
tado de dores : acabava de ser mordido por . aq nelles perigosos rep-
tis. Procurou acudir-lhe o prudente amigo , mas já o veneno linha
chegado ao coração , o doente expirou em seus braços. Eis a his-
toria d'innumeraveis christãos, que nos horrol'isam por sua desorde-
nada vida. Nascendo , como todos nascem , com os germens das
paixões ; pouco ou nenhum .cuidado teem rle as suffocar na infancia;
antes pelo contrario as lisongeam e nutrem, com acções a seu pare-
cer indifferenles ou desculpa veis. Assim se vão . contrahindo os ha-
bitos, fortificando e alimentando as viboras. Por mais que lhes ad-
Yirtam que ellas crescerão rapidamenle , e breve serão dilacerados
por aquellas venenosas , mortiferas aspi_des , não fazem caso das ad-"
vertencias: mas que suc~ede? A occasião chega, a tentação aper-
ta , as debeis paixões , ha muito consentidas e alimentadas , agora
rompem vigorosas suas debeis prisões ; prevalecem, triumpham 1 e dão
a morte á alma.

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DE PERSEVER.\NÇA. 57

ORA.ÇÃO _

ff méu Deus ! que sois todo amor , eu vos dou graças por
me haverdes dado a conhecer a fealdade e malicia do peccado
mortal ; permi_tti, Senhor , que eu nunca chegue a cair nelle.
Eu protesto amar a Deus sobre todas as cousas, e ao proximo
como a mim mesmo por amor de Deus , e, em testemunho d'este
amor, nU!JCa c~mmetterei pecca_do· venial com proposito deliberado ,
por mais leve· que me pareça.

8 VI

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58 CATECISMO

LVlll.' UÇAO.

QUE E' O QUE PERPETUA A NOSSA UNIÃO COM O


NOVO ADAM.

Remcdios geracs coolra . os peccaclos : os oovissimos t.lo homem, as nr-


tudes. - - A Igreja. - Sua fuodc1<;ão ; Sagração de S. Pedro. - Ascen-
são do Srnhor. ·

Üs novrssimos do homem. - Se um medico annunciasse que tinha


descoberto um remedio, parà curar infallivelmente algumas das innu-
·meraveis moleslias, que aftligem a misera natureza humana desde a infan-
cia até á velhice, certo que seria esse medico objecto de universal reco-
rihecimenlo ; de toda a parte o procurariam com empenho : viagens ,
-fadigas , despesas , nada se potiparia para obter o tal remedio. Pois
i o lngar desse inedico que havemos preenchido, illuminados da Fé :

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D~ PERSEVERANÇA. 59
jit na lição precedente indicamos rcmedios especiaes contra as moles-
tias. da alma. , Perrnitta Deus que lodos recorram a elles com ames-
ma diligencia e confiança, ·que mostrariam para com o medico e o
remedio corporal de que faJlámos ! A palavra que annunciamos não
é nossa , mas é a infallivel palavra de Deus. Não é nosso o reme-
dio que propomos , mas do medico celeste , que veio á terra para
curar tudo o que estava eníermo. ..
Mas se um medico provasse que possuia- um remedio infallivel,
para todas as molestias, julgue-se com que affan o viriam consultar
das mais remotas parles; com que generosidade lhe pagariam o re-
medio ; a gratidão que tributariam áquelle , que fizera succeder ás
lemiveis dores da enfermidade os encantos da saude !
Pois bem, existe na ordem espiritual , isto é , na ordem em
que as doenr.as são mais numerosas, graves e perigosas, existe digo
este medico, que é Nosso Senhor mesmo : em suas mãos está este
universal remedio , que elle nos offerece, e otferece-o gratuitamente.
Para o conseguir não são necessarias fadigas nem viagens ; basta
q·uerel-o. A formula d'este remedio, que tem a duplicada vantagem .
de ser preservativo e curativo, ellc mesmo no_J-a dá n'estes termos:
Meu filho , lembra-te em todas ns tuas obras dos teus novissimos ,
e não peccarás jamais (1 ).
E' pois de fé que este · remedio é universal , que cura infalli-
velml'nte todos os males da alma ; qne não é menos efficaz para
nos preservar dos males do que para nos curar d'ellcs. D'esl'arte ,
se um homem , · rico ou pobre. novo ou velho, sabio ou ignorante,
eslivr.r em perigo de cair em soberba, avareza , luxuria, · ou algum
outro peccarlo ; se já mesmo estiver affectado e comido dessa devo-
radora lt1pra ; ide ter com elle , persuadi-o a que use deste remed_io,
e , e_stai certos, como o estais da palavra do mesmo Deus , que
conservará ou recobrará infallivelmenle a saude da sua alma. Ma1

(1) Fili ... in omoibus operibus luís, mcmorarc noTissima lua, el in


rolcrnum non peccahis , Eccl. YII , ~O •

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f,0 CATECISMO

em que consiste este incomparavel ·remedio; e qual a maneira de


fazer uso d'elle?
Os 1t0vissimos do homem . isto é , os nossos ullimos fins , a
nwrle , o juizo , o inferno ; e o Paraisa - são , para assim dizer ,
a e~sencia deste remedio. Chamam-se novissimos , ou fins ultimos;
porque a morte é o fim da vida, e a ultima cousa que nos succe-
de no mundo. O 'juizo final é o ultimo de todos os juizos que leem
sido , são , e hão-de ser pronunciados pela nossa consciencia , pelos
tribunaes humanos, e pelo mesmo Deus ; por isso este juízo não tem
appellação. O inferno é o ultimo mal que acontecerá aos máos ;
mal immuta,·cl; cujo rigor não 'poderão jamais d1 mínuir , nem mu-
dar de natureza. O Paraizo é o ultimo bem reservado àos ~ons;
bem inalienavel , comp1eto , ·puro e inlerminavel : tal é o remedio
universal, preparado pelo medico infallivel.
Quanto á maneira de o empregar , esta consiste em duas cou-
sas: 1.º na fé; 2.º na h~mbrança habitual d'este reme<lio. Releva
primeiramente crer na realidade dos nossos fins ultimos , o que é
facillimo' ; pois basta trazer á memoria as_ evidentes provas que <folies
temos dado neste Catecismo , e que se leem no Evangelho , e em _
lodos os 1nTos religiosos ; e lambem a crença universal de todos os
povos , ainda ,os pagãos ; que sempre tiveram que havia recompen-
sas e castigos· eternos depois ti' esta vida ; ení fim a mesma necessi-
dade d' esta crença ; necessidade tal -, que o negai-a é negar a dis-
tincção do bem e do mal , tornando impossivcl toJa a sociedade en-
tre os hon~ens ; é negar a sabedoria e a jusliça de Deus , e o mes-
mo Deus ; em uma palavra , é ficar doudo varrido.
Mas não é bastante crer tam trementfas Cílusas d'um modo vago,
mas com fé viva , que se moslre nas obras, como uma cansa. acti--
va qne produz seus effeitos. E' pela lembrança habitual d'estas qua-
tro grandes reali<lades, que a nossa fé determina efficazmente o nos-
so comportamento ; e esta é a segunda cousa que devemos fazer para
nos ser util aquelle celestial remedio; assim nol-o prescreve o divi-
no medico : Em todas as tuas obras lembra-te dos teus novissimos.
Em todas as nossas obras ; e porque '! - porque n~nhuma ha , em
que a nossa alma não pos3a contrahir o germen d'algum mal ; como
a vaidade. o amor proprio., o interesse pessoa1 , a cobiça , a sen-

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DE PERSEVERANÇA. 61
sualidé!de; porque não ha nenhuma de Mssas obras, que não pos-
sa , sendo bem feita, condúzir-nos á eterna bemaventurança; em fim,
porque a successão de palavras , obras e occupações ordi na rias nos
levam as horas , os dias , as semanas , os meze.s , os annos , a vida
toda , e assim nos conduzem ao Ceo ou ao inferno.
Lembra-te dos teus novissimos: eis a maneira de fazer bem . as -·
nossas acções , de bem dirigir a nossa vida , é Ler os olhos conti-
nuamente lixos no fim a que havemos de chegar, como o navegan-
te que , para abordar a uma ilha remota, perdido no meio do Ocea-
. no , não tira um instante os olhos da bussola , ou da estrella polar.
Lembra-te dos teus novissimos; e _para isso vigia em teus sentidos
inleriores e exteriores , temendo que as preoccupações e distracções
-alheas do leu fim, não venham enfraquecer ou apagar na lua memoria
esta luminosa lembrança, e vas caminhando rara o inferno ao luar en-
ganoso das maximas do mundo , das suggestões do demonio ~u dos
falsos dictames dns tuas paixões. Lembra-te dos teus novíssimos ; e
para isso medita totlas 3s manhãs nos quatro ultimas fins do homem·;
considera-os attentamente, d'um modo proporcionado á tua iclade, in-
dole e occupações. renova pelo dia adianle esta meditação; esteja
a tua alma repassada destas i_deas, quando adormecer á noute. Para
te ser mais facil o uso d'este remedio, que le hade dar a saude da
eternidade , aqui le ensiuaremos o modo de fazer esta meditação.
1. º Sobre a morte. Podemos considerar quatro cousas. A
primeira , que a morte é cerlissima. ,Eu hei-de morrer: eis o que
dirás comt.igo. A segunda • que a hora da morte é incerta, e que
muitas pessoas morrem quando menos o pr.nsam. Dize , pois : Eu
nfío sc1i quando morrerei ; o que sei é que posso morrer bem cedo,
basta um instante para morrer. A terceira, é que com a morte aca- •
b:u:1 to.ios íiS prnjt•ctns , e empresas da vida, então se conhece toda .
a ·:aidJdr d' ,•st(~ mundo ; dize pois com ligo : Eu serei despojado de
tudo , separado de tudo , esquecido de todos (1). A quarta '·que na

(1) Omnia si perdas, animam scr\'are memento.

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62 ta.TEClSMO

-morte nos arrependemos do mal que temos feilt>, e do bem que dei-
xamos de fazer ; é pois ioqualificavel loucura fazer o que sem du-
vida nos arrependeremos de ter feito; dize pois ainda : Que pezar
não lerei eu depois , por ter abusado de tantas graças l
2.º Sobre o juiso. Podemos considerar lambem quatro cousas.
A primeira , que o juiso terá por objecto uma cousa da ult.ima im-
porlancia, a summa fellic1dade ou a summa desgraça : lá se ha-de
decidir se eu serei um Santo ou um reprobo. A segunda, que o juiso
será feito pelo juiz Supremo, que sabe tudo , e a quem -ninguem
póde resistir : Os meus peccados occultos serão postos á luz do dia,
'. e me cobrirão de confusão, se eu d'e11es não fiz penitencia. A ter-
ceira , que será feito em pres~nça de todas as nações juntas, de
sorte que ninguem poderá esconder-se : Lá comparecerei eu , serei
visto, conhecido e chamado pelrr meu nome. A quarta, que não
haverá esperança de illndir a sentença da justiça Divina : Irei ha-
bitar para todo sempre o lugar que me for· determinado- pela Omni-
potencia de Deus.
3. º Sobre o inferno. Podemos' considerar outras quatro cou-
sas. A primeira , suas dimensões -; é um abysmo de largura , ex-
tensão , alfura e profundidade immesuravel. E' largo , porque con-
tem todos os tormentos imaginaveis para a alma e suas faculdades,
para o corpo e seus sentidos ; extenso , porque lodas as suas pe-
nas são eternas ; alto, porque todas são elevadas ao mais allo gráo ;
profundo, porque são penas sem descanço nem allivio._ Estou en
disposto a ir hab!tar por toda a eternidade n'estas chammas arden:-
tes ? A segunda , seus hábitanles. O inferno é a habitação dos de-
mon~ios, inimigos implacaveis dos homens, que se entreterão cruel-
. mente em atormentai-os, em_ insultar as suas dores ·; é_a habitação
de todos , quantos malfeitores, assassinos, ladrões, impudicos, máos
filhos , pais , esposos , tudo quanto houve máo no mundo , que Já
eternamente se amaldiçoarão uns aos outros : ser-me-ha agradavel
esta companhia~ A terceira, seus tormentos , que são de duas
qualidades : a pena de damno, ou privação .do Soberano Bem : ·Per-
di a Deus , por minha culpa , por uma bagatelJa, perdi-o sem re-
medio ; a pena de sentido , ou a dor corporal , que consiste em es-
tar sepullutado n'um abysmo de fogo , penf.ltrado de fogo , como a

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DE MmSE\'EUANÇA. 63
carne salgada empl'egnada de sal (1 ). Não tocar senão fogo, não
respirar senão fogo, sem jamais esperar a mais pequena gota d'agoa,
que diminuir possa o ardor , ou refrigerar a ardente sêde que me
atormentará noute e dia , sempre , sem fim. A quarta , o caminho
-que vai O.ar ao inferno. O caminho do inferno é o peccado ; pri-
meiro o peccado venial , que , enfraquecendo a alma , a dispõe para
as q uetlas mortaes ; depois o p eccado mortal , que nos abre a porta
do abysmo , e lá nos assigna o lugar para onde iremos , logo que
a morte , desferindo o golpe , alli precipitar. a sua victima : Se n'este ·
instanle morrer ., para onde irei eu (2)?
4. º Sobre o Paraiso. Podemos igualmente considerar quatro
cousas. Primeira, suas dimensões. E' largo o Paraiso , rorque
· contem todos os bens imagina veis e até os não imagina veis para a
alma e para. o corpo ; é extenso, porque todos os seus bens são
eternos ; alto ., porque todos são nobilíssimos , e muitissimo supe-
riores a quantos prazeres conhecemos ; profundo , porque todos os
seus bens são puros , sem mistura alguma do mal : E não quererei
cu fazer alguma cousa para os obter ! A segunda, seus habitantes.
O Ceo é a luminosa habitação da Sanlissima Trindade, da Huma-
nidade de Nosso Senhor Jesu-Christo , da Sanlissima Virgem , de
todos os Anjos e Santos, · isto é, de tudo o que ha tle mais bello,
arnavel e perfeito ; que são as magnificencias da terra em compara-
ção d'aquellas? A terceira, suas delicias ; que são <le duas espe-
cies : a felicidade da alma , que vê_, possue e ama _o Soberano Bem.
A felicidade do corpo , que goza a vida , a saude, a belleza, a ju-
ventude eterna : não d.irá isto cousa alguma ao meu coração , a este
coração tam apaixonado dos bens da terra , que não 'teem nenhuma
. rias quatro condições dos verdadeiros bens? Com effeito , estes são ·
poucos , breves e pequenos / misturados de muitos males e muitos
desgostos. Por outrà parte os males do mundo, aliás de pouca im-

{1) Omois ncLima igoe salictur. Marc. IX, 4.8.


( 2) lJellar Dottr. Crisl. 246.

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CATECISMO ·

portancia, porque acabam , são sempre misturados d'alguma conso-


lação ; não teria eu todo perdido o 1uizo se, por amor dos bens da
presente vida, ou pelo temor das tribulações actuaes, sacrificasse os
bens futuros, e cahisse nos ma1e.s da eternidade? A quarla , oca-~
minho que lá vai ler. O caminho do Ceo é a fidelitlade nas cou-
sas pequenas , porque está escriplo : aquelle que for fiel nas cousas
pequenas o será lambem nas grandes (1).
Esta pequena acção que eu faço n'este momento, se a faç.o bem,
é um annel da longa cadeia , cuja extremidade está nas mãos de
Deus , e que me elevará com suavidade á morada da eterna bem-
aventurança.
Faze isto e não tornarás a peccar. Não tornarás a peccar, isto
é , . segundo a explicação de S. Diniz, nunca mortalmente, raras ve-
zes venialmente. A promessa do mesmo Deus é formal,. e para tor-
nai-a mais luminosa , assegura-nos o oraculo in-fallivel , que todos os
peccados que mancham a terra e enchem o inferno, nascem da falta
de meditação (2). Não tornarás. a peccar , eis o qu(Y lambem nos
diz a experiencia. « A consideração <los ultianos fins <lo homem, diz
S. Agostinho , é a destruição da· soberba , a extincção da inveja,
o terror da luxuria , o fundamento da virtude , a estrada real da.
sàlvaÇão eterna (3). » Se lermos· a historia da Igreja, veremos como
a lembrança dos ultimos fins tem evilado muitos crimes, e conver-
tido mais peccadores do que todos os prégadóres juntos. Quem não

(1> Qui in m\oimis fidclis cst, ~ct io maJori fidclis est. Luc. XVI, 10.
[2] Desolatione desola ta est omnis terra 1 quia nullus est qu i rccogi-
let corde. lerem. XII, 11. • -
(3) Coosideratio hujus scotcntire , dcstructio est supcrb1re, cxtinctio
invidire , medeia matitire , effugatio luxurire. evacuat10 vanitatis eL jactan-
l1re, constructio disriplinre. períectio saoctimooire, prreparatio salotis reter- .
nre. Specul peccat. e. 1 ; Cor. a Lapid. ln hunc loc. - Aiosi, on ,ne
saurait trop répandre ct trop lirc Jc petit ouvrage rn titulé : Pensez y
bien.

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i'l'
DE PEllSEVEH.ANÇA. OiJ

conhece a influencia decisiva d'esle remed10 salutar em S. Crysostomo,


S. Agostinho , S. Jeronymo , S. Marcella , S. Bernardo, S. lgnac10,
S. Francisco Xavier , S. Luiz Gonsaga , S. Francisco de _Dorgia , e
mil oulros.'
As virtudes. - O pensamento dos ultimos fins do homem é um
remedi o soberano para o preservar ou curar do peccado., para ven-
cer os máos habitos e contrahir os bons. Mas a cura rião é com-
pleta , nem o christão é o que deve ser, senão quanc!o os bons ha-
-bitos se lornam a regra -das suas acções. Não basta , com effeito ,
para mánter a nossn união terrestre com Nosso Senho1~, e chegár-
mos á nossa união eterna~ não basta, digo, não fazer o mal, cumpre
fazer o bem ; não basta não ter vicios , releva ter virtudes.· Q'ou-
lra sorte não havemos que esperar outra cousa senão a sentença
profe1·ida contra a arvore esteril , e o servo inutil. l\las como se
praticarão as virtudes sem as conhecer? Va1pos, pois, ·dar aqui
uma noção sufficienl.e dellas , a 1 fim ue nos formarmos na vida ver-
dadeiramente chrislã~ e torn~r dura\'el a nossa união com Jesn-Chris-
to.
O homem póde ser consitlera<lo em si mesmo e em suas rela-
ções com Deus. Considerado em si mesmo , temos o bomem com o
seu entendimento e vontade ; considerado em suas relações com Dem:,
o homem apresenta-se como destinado á posse de Deus. D' aqui vem
distinguirem .. se tres qualidade~ éle _virtudes : z'ntelecfoaes ·, moraes- e
theologaes. Primeiramente, que é a virtude em -geral'> A palavra
\'irtude quer dizer força , - po'rque , para fazer o bem ba vemos de
_vencer-nos, havemos de Ler força. (( A virtude, diz S. Tbomaz , é
uma boa qualidade, um bom habito da alma , que· nos faz viver
segmhlo a recta Tasão ; é um habito que nos aperfeiçoa de 1110-
'lo, que nos faz operar o hem (1) )) A virtude ou é inftisa; isto

- (1) Virlus csL bona qualalas menlis (seu hobit11s), qua recte vmtur,
qua nullus mate ulit~; vel . quitfam lubilQs perficicns hominem ad hene
operandum. 1, ~. q. õa, art. ~; id q. õ8, nrl . 3.
·9 VI

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CATECISMO

e, infundida em nossa aima pelo mesmo Deus, sem concurso da


nossa parle , como a Fé, a Esperança e Charidade no. Baplismo; ou
adquirida, islo é, formada por actos repetitlos da nossa vonlade, sus--
tentada pela graça , como a paciencia , a mortificação , a obedien-
cia (1).
As virtude:; in[elecluaes. são habitos que aperfeiçoam o entendi-
mento. Distinguem-se lres principaes : a sabedoria , a sciencia e a
inte.llig_encia (2).
A sabedoria é uma virtude, pela qual o nosso espi rito vê os
effcitos em suas mais elevadas cousas. Na ordem material , o ho-
mem aperfeiçoado por esta virtude é como um espectador co1Jocado
no alto d'nma montanha , deseobrindo em redor grande extensão de
terra , vendo formar-se o raio , conhecendo os resel'Vatorios subter-
raneos d' onde fluem as fontes , em uma palavra, que vê em . suas
causas os phenomenos , de que o homem ordinario. apenas conhece

. {1) . . . Quam Deus in oobis sinc no bis operalur; qure quidem par.
licula si aufcratur , rcliqnum definition_is erit commune omnibus virtuti-
bus , cl acquisitis ct infus1s. Itl. id. g. 5ã , art. 4. - Virtutes infusre,
seu supernaturales ~ sunt illre qnre ncqueunt, per potentiam naturalem '
compara ri , scd ex natura sua intrinsrca postu lan~ infundi, sicque no bis
a Deo immediate rnfundunlur, ul snnl habilus lidei, spci e( charilalis ,
qui etiam parvulis in Baptismo di,·initus infunduntnr, ex Cone. Trid. Sess.
VI, e. 7, ibi: « lo ipsa 1uslificalione rum remissione percálorum hrec
omnia simul infusa acc1pil homo per Jcsum Christum., cui ·inscritur, fidem,
spcm ct charitalcm. » V1rlntcs arquisitm , seu na t•iralcs sunt 11lre qure
e:< natura sua possunl physice arqlÃiri ab 1psa polcntia per frequeotatio-
ncm aclnnm, et de farto nostris frequcnlalis actibus comparanlur, cl
acquirnntnr, ut sunl habitns humil1tatis, temperaotim , mansuctudinis csl
hujusmodi. Ferraris, art. Virlus, n, 6, 7.
(2,1 Virlus intcllectnahs cst per flUa m intel lcclus períicilur _ad con-
síderandum verum : hoc cnim esl bonum opus cjus ... poniL has solum
lres \"irtules inlcllcctuales, scillicel • !"apicnliam, s•ntiam cl inlellcclum.
O. Th . 1, 2, q. 57, arl. ~.

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DE P~RSEVEl\t\NÇA. G7
a existeucia. Na ordem moral , o homem aperfeiçoado pela sabedo-
ria vê todos os acontecimentos , o engrandecimento e rui na dos im-
pcrios , as revoluções dos povos , suas tendencias , os castigos ou
recompensas que recebem , na causa das causas , na Providencia
ele Deus. Que superioridade não dá .ella ao homem , que ineffaveis
prazeres lhe não procura ! Que admira, pois , que Salomão não pe-
dissl' outra cousa ao Senhor , e dissesse que com ella lhe vieram
juntamente lodos os mais bens (1 ).
A oração , a leitura de bons li nos , a puresa de coração e a
meditação' são os principaes meios d'obter a sabedoria divina, que
~os presen'ará da sabedoria mundana , cega , maldita , rnimiga mor-
tal de Deus e de nós C2). Oh ! quanto a primeira é rara, e por con- _
sequencia necessaria em nossos dias t Suppliquemos , pois , ao Se- -
nhor , dizendo-lhe como Salomão : Dai-me , Senhor , a sabedoria
que assiste comvosco,,,.rw vosso throno , a fim que ella opere comigo,
e eu saiba o qne vos é agradam~/ (3). -
A sciencia é, uma virtude , pela qual o nosso espirilo vê as
cousas em seus effeitós , em suas consequencias e no que ellas nos
tocam mais fie perto. O homem aperfeiçoado pela sciencia , juJga ,
discute , analysa , prevê , refere os effeit os ás causas, os priocipios
ás consequencias • e·ncadea os raciocrnios, fórma syslemas que o con-
duzem a preciosas descobertas , seja na ordem material , ou na mo-
ral. Pode-se pois dizer, que o sabio olha de cima para baixo ; o
scientifico , debaixo para cima ; aquelle desce ·das causas aos effei-
tos, este sobe dos effeitos para as causas (4). Se nada é mais

(1) Omn1a hona n~ocrunt mihi pariter cum ilia. Sa1l. VII, 11.
(!!) 1 Cor. III • 19 ; Jacob. IIl , 15.
(3) Da mihi sedium tuarum assistricern sapieoLiam ..• ut mecum sít
el mecum Jaborct ul sciam quid acceplum sit apud te. Sap. e. IX, .4,
10.
- ( 4) Sapientia coosidcrat a1trssimas causas .••• Unde convcnientcr ju-
dicat et ordinal de o"1nibus, quia judicium perfectum et univcrsalc habcri
non potest oisi per resolutiooem ad primas causas. Ad id \'Cro quod cst

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.68 CATt:CISMO

perigoso que um · meio sabio, nada nms ulil que um sabio inteiro.
Cada um_fle nós é obrigádo , na condição em que Deus o collocon 1
a tornar-se solidameole sabio , isto é, a adquirir toda a sciencia
necessaria para o cumprimento dos seus deveres para com D~us.
·para com sigo mesmo e para com o proximo. Jamais foi -permitli-
do a pessoa alguma o permanecer na ignorancia , assim como não e
permitlido ao lavÍ·ador deixar o seu campo sem cultura , ou ao ser-
vo, deixar improductivo o talento <le seu Senhor. Deus condemna
a ignorancia volunta.ria ~ em quanto promelte magnificas recompen-
sas áquelles, que tiverem aperfeiçoado o seu espinlo pela sciencia (1 ).
Os principaes meios d'aquirir a sciencia são o recolhimento, q estudo
e a docilidade.
A terceira virtude intelectual , que se chama inlelligencm , é
um habito que aperfeiçoa o nosso espírito, e o habilila a conhecer os
princípios das cousas taes como são Pm si mesmos , feita abstrac-
ção das conclusões, (Jlie d'elles nascem C2). O home.m dotado d'esta
admiravel virtude vê a verda<le pura; qual a aguia real, da qual
se diz que fita os olhos no sol sem deslumbrar-se. As suas pala-

ultimum iu liuc vcl illo gencre cognosrihilium pcrlicit intcllectum sdcntia;


ct idco secundam di\'ersa genera scihilium suol di\'crsi hahilus scientia-
rum , cum tamcm sap1cntia non ·sit nist una . . . Sapientia csl qurecJam
scienlia ia quantum lrnhct 1d quod cst . commune omn1hus scientiis; ul
sci1ice1 ex principiis conchtsiones dcmonslret. Sed qnrn hahel aliqu1ri pro-
prium supra nltas scientias. ia' quantnm scilicet de omnibus judicat. ct
non sofom quantum ad conclusiones sed elian1 quantum ad prima prinl·ipia :
ideo habet rat1onem pcrfcclioris virtutis quam scienlta D. Th. 1, 2, q. õ7,
art. 2.
(1) Prov. XV, 24; XVI, 20; XVII, 27; Eccl. XXI, 26; XL.
3 J.
(2) Quod cst per se notum se babel ut principiam et precipitur sLa-
tiru ah inLellcctu ; eL ideo habitas perfictens intclleclum ad hujusmocJi veri
considcral1onem vocatur intelleclus, qni est habitas principiorum D. Th.
1, 2, q. il7, art :!,

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DE PERSEVERANÇA. 69
vras são lucidas' , admiraveis as suas descobertas , respeilaveis as
suas decisões. Quam necessarja nos é esta· mtelligencia, para rnm-
per as nuvens e _9issipar as trevas, que os alheios sophismas, e
as paixões proprias agglomeram , hojt~ mais que nunca , em torno
do-s princípios, ainda os mais inconteslaveis ; das ve~dades , ainda
as mais necessarias á conservação da Religião , da sociedade e da
familia. Tal é, segundo o oraculo do Espirilo Santo , o effeilo par-
ticular d'esla virtudH, que não devemos cessar de pedir a Deus, e
procurar ailquiril-a , hbertan<lo-nos do imperio dos sentidos, desem-
baraçando-nos dos interesses mundanos, e contrahindo o habito da
reflex~Q (1 ).
A sabedoria , a sciencia , e a intelligencia são as tres grandes
virtudes , que aperfeiçoam o nosso espi ri to. Todas tendem ao mes-
-mo fim • distinguindo-se só em sua na lureza intima , que é a sua
superiori•fade relativa. D'est'arte a sciencia depende da inlelligencia,
e uma e outra da sabetloria > que as contem ambas ; pois a sabe-
doria abrange assim os effeitos e consequencias das cousas, como as
causas e princípios que as produzem (2).
As virtudes moraes, isto é , que teem por objecto as inclina-
ções e propensões do homem, são as que lhe aperfeiçoam a vontade,
pela pratica do · bem , e pelo recto uso da sua rasão. Se elle as
·exerce por meros motivos na.turaes • são ellas então virtudes pura-
menle moraes , humanas, estereis para a salvação. Se por motivos
da Fé , tornam-se sobrenaturaes , christãs e meritorias para a vida

(t) Baruch, Ili. U ; Eccl. XXXIX, 8.


(2> Si quís recte considerei , istre tres virtules non ex requo distin-
guuntur ah rnvicem, sed ordine quodam ... scicntia dcpe'odct ah inlelleclu
sicút a principaliori ; cl ulrumquc dcpcndcl a sapicntia sicul a prmcipa-
lissimo, qure sub se. contiacl et iulclleclnm el scicatiam , ut de conclu-
sionibus scientiarum dijudicaos, ct de prinripiis earumdcm. D. Th. 1, 2)
q. õ7 , art. 2.

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70 CATECISMO

eterna (J). São ellas _quaLro, assim coordenadas : pnidencia, jus-


tiça, fortaleza e temperança. Cha1nam-se virtudes cardinaes, por
que são como os principios ou fontes das oul.ras virtudes. A pru-
dencia dirige o enlendimenlo ; a justiça, a vontade ; a temperança·,
o appelite concupisc1vel ; a forlaleza, o appelite irascivel (2).
A prudenr.ia é á sciencia pra lica do que deYemos fazer ou evi-
tar (3). O seu oflicio é mostrar-nos em ludo o que dizemos ~ faze-
mos ou defendemos, o fim a que devemos encaminhar-nos ; os meios
convenientes ; as c1rcumstancias do ·tempo_, lugares e oulras si-
milbanles condições : para que as nossas acções sejam boas a
lodos os respeitos. Eis porque se chama á pruclencia a mes.tra das
virtucies ; ella é , em relação a ellas , como os olhos no corpo; o
sal nos alimentos; o sol no mundo. Nadá mais necessario que esta
\IÍrlude , formalmente recommendada por Nosso Senhor ; ella é a

· {1) Virlus humana cst quídam hahilus perfic1cns hominem l\<l hcne
opcrandum. Principium autem humanorum acluum iu hominc non cst nisi
duplex, scillicel inlellectus SÍ\'e rat10, et appctitus: hrec ca1m sual duo
movenlia in hominc ... Unde omnis ,·irlus humana oporlcl quod sil per-.
fcctiva alicUJUS istorum priocipiorum. Si quidem sil pcrfecliva intelleelus
spcculativi vcl pratica ad bonnm homin1s aclum , cril \'Írlns inttlllértualis;
si autem sil pcrforlirn appctitirn~ partis, crit virlus morali!C. D. Th. 1. 2,
q. 58, art. 3.
(2) Bcllar. !Jotfr. crisl. p. ~09.
[3] Prudcntia cst appelcnclarum ct ''1landarum rerum scíentia. S. Auiz.
ne Liber. arbitr. lib. 1, e. 13. - Virlutcs cardinalc~ qualuor assignantur,
scillicet, prudenJia, justitia, lcmperantia cl íorliludo, de quibus legitur
Sap. VIII , 7 : Sobrietatem e11im et prndenliam docet • et jusfiliam • f't
virtulem, quibus utilius 7'íhil e.'lt in víta hominibus. Undc S Amhr. '1r
· e. VI Bvang. Luc. sic expresse hahcl: Scimus virtnlcs esse qnatuor car-
dinalcs , tempcranlaam , Jl1Sl1Liam , prudent_iam • forlilndinem ; et S. Ang.
ln Psa/. 83 , v. 8: cc Virlules, inqnil, agcndre v1tre noslr<.e qualuor des·
cribunlur a mullis, ct in Scriplura invcniuntur. Prudenlia d1cilur, qna
dignoscimns inter booum et malum ; justilia clicilur , qua sua cuiquc Lri~
b~imus, nemini quid quam debcntes, scd omnes diligentes; temperantia

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. 71
verdadeira sciuncia dos Santos (1 ). A prudencia influe em todas
~s faculdades· da alma , e de todas se serve para cheg~r ao seu fim :
.serve-se da memoria , recordando-nos a experiencia propria e alheia,
os enos em que lemos caido e visto cair os outros , a fim ·de nos
· premunirmos contra novas quedas ; e bem assim as occasiões do
mal, para nol-as fazer evitar; serve-se do entendimento, para nos
esclarecer sobre o que devemos desejar, ou sobre o que deveremos
pensar dos homens e das suas disposições : serve-se da vontade ,
dirigindo-a em todas as suas operações.
A prudencia ex tende-se · a ludo , e toma differenles nomes , se-
gundo os objectos a que se applica : a prudencia pessoal ensina a
cada um o que lhe cumpre fazer a respeito de si mesmo , da sua
alma e do seu corpo ; a prodencia domestica. ensina aos pais e mãis
a maneira de educar seus filhos , d~ tratar os seus negocios espi-
rituars e temporaes , de cumprir suas ·obrigações um para com o
outro ; a prudencia politica ensina .aos chefes das nações , seja na
ordem espiritual ou temporal, a governar seus subditos, a fazer
observar as leis divinas. ecclesiaslicas e civis~ a prudencia legisla-
tfva ensioa aos legisladores a fazer leis sabias, justas , convenien-
tes e aptas a produzir o bem dos povos ; a pruJencia mi"ti1ar ensina
aos generaes as regras que devem seguir, para combater com bom
exilo, e triumphar com moderação (2).

t.lirilur, 4ua libidines rcfrrenamus; íortiludo dic1tur, qua omnia molt!sla


tolcramus. » •
... Cardinales nuncupantur, quia suot tanquam aliarum ''irlulum mo-
ralaum fonlcs, cl cardincs qu1hus subnixa lota humana \'Íla regslur. Sicul
enirn ostinm in cardine, . ila omnis honeslre v1lre ratio in illis vcrsalur,
alq.nc unircrsa lioni operis slruclura cisdem innitilur. _Unde S. Greg. lib. '
! Moral. e. 36 : lo quatuor virtutibus lotam boni opcris slrucluram coo- .
surgere tcslalur. Fcrraris, art. Virt. n. 88, 89.
(1) Scientrn Sanclornm prudenlia. Prnv. IX, 10. - Estole ergo pra-
.dentes sicul serpentes ct simplices sicol rolumbre. 1Jla/th. X, 9
(~ 1 D. Th. 2, 2, q. 50, art. 1.

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CA1'1CISMO

As.. virLndes particulares , que nascem da prudencia, como de


sua p1;opria mãi ' e a ella naturalmente se referem ' são : a prei~·­
dencz"a , que con1eclura os aconlec1menlos , e conhece d'anle-mão os
meios de cons~guir o bom éxito; a circumspecção , que , pesando
tudo com maduresa , nada deixa correr ao acaso ; o discernimento
que, calculado o _pro e o contra , conhece o partido mais prudente
e os meios mais aptos para conseguir o fim. Tâmbem nasce da
prudencia a desconíiaoça de si mesmo , e a docilülade em seguir os
conselhos dos prudentes.
Ha duas especies de v1c1os opposlos á prudencia , uns por de-
feito , outros por excesso ; porque a prudencia , corno todas as mais
virtudes moraes, consistP. em seguir o igualmente meio termo, evitando
os extremos. São cinco os vicios que peccam por defeito, a sâber:
1. º a precipitação , que consiste em fazer tudo o que nos lembrª ,
sem consultar ninguem : este vicio é causa tlc muitos erros • mais
ou menos graves, segundo as circnmstancias ; ·2. º a i"nconsideraçâo,
que julga, decide e obra sem exame sufficienle ; 3. º a i"nconstancia,
. 'lue abandona sem motivo 1nsto , um partido maduramente. tom_ado ;
4. º a ne.qligencia , que omille os meios convenientes á execução d'um
projecto formado ; a únprudencia , que não attende a difficu1dades ,
nem perigos , nem advertencias ; e que se expõe a passos e(rados,
e muilas vez6s a occasiões de peccado , e até de peccado mortal. ·
Os vi cios por excesso são lambem cinco , a saber : 1. ~ a pru.clencia
carnal , pela _qual obramos segundo os designios e desejos da natu-
reza corrompida ; 2. º a astucia, , que e a arle de descobrir os 'meios
<l'enganar o proximo ; 3. º o ardil , que põe em pratica esses meios,
quer consistam em palavras ou em obras ; 4. º a fraude , que é a
execução por factos positivos da astucia e do ardil , como é usar de
medidas ou moeda falsa no commercio ; r.. º a demasiada sollicitude
nas cousas lemporaes. Que lastima é Yer os prudent.es do seculo
que, referindo tudo ao pessoal interesse , nenhum escrupulo fazem
nem da natureza de seus projectos , nem da escolha dos meios ! O
_dia Yirá em que elles hão-de conhecer, que foram os mais impru-
denlt1s de fodos os homens; quando virem que por uns. meros nadas
perderam o Sobernno Bem.
Quanto aos meios tl'adquirir a prudencia christã, unica de que

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DE P~ltSEVEllANÇA. . 73
tratamos , e . que consiste essencialmente na vontade de tirar partido
de Ludo para a salvação, e tudo perder antes que a alma ; pri- o
meiro consiste em a pedir a Deus ; o segundo , em tomar conselho
com pessoas prudentes e discretas ; o terceiro cm perguntar cada
um a si mesmo , antes de começar alguma cousa : Poderá isto ser
d'algum modo co'!venienle á minha salvação?
A justit7a é a virtude, pe]a qual damos a cada um o que lhe
pertence (1). Ella serve para estabelecer e conservar a igualdade
nos Clhllratos , fundamento da pàz e lranquillidade publica e domes-
-llca. Na verdade, se cada u~1 se contentasse com o que lhe per-
!ence, sem cubiçar o~ béns alheios, jámais haveria guerras ou dis-
cordias. Esta virtude, absolutamente necessaria , obriga os parlicu-
. lares a dar á alma o que lhe pertence, ClUC são os seus alimentos
e remedias espiriluaes; ao -corpo, o que tamhem lhe pertence, que
são o seu sustento , e vestido ; a vender por preços rasoaveis, a ler
boa fé nos contratos , a reparar o mal ou os damnos causados. Da
mesma sorte obriga aos chefes do estado a administrar justiça a
todos, que nem para outra cousa eslam inveslidos do poder (2); a
distribuir os empregos , dignirlades , e honras , não por favor , mas
pelo merecilJlenlo.
Obriga tambem os povos uns para com _os oulros a ~bservar
a equidade, e não fazer guerra sem justificados motivos; e ainda,
em guerra justa, a respeilar as leis da humànidade, taes como o
Chrislianismo as tem estabelecido enlre os povos ci vilisados. Obriga
emfim todos os homens a dar a Deus · o culto e h-0menagem que lhe
é devida : e d'aqui o preceito fundamental do Divino Mestre: Dai
a -Cesar o que é de Cesar , e a Deus o que é du Deus (3).

(1) Just1lia ea lirtus es~ quaY su~ cuique JísLrihuit. S. Aug /)e Ci-.
vil. Dei, lib. XIX , e. 21.
[2] Por isso di!ise certa mulher do povo ao imperador Trn1ano: « Aut
JUS dicilo, aut imperalor esse desinito. n

(3) Matth. xxn, 21.


10 VI

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CA l'ECJS\IO

Assim , pois , - se mostra que a justiça abrange todos os deveres


do homem , já para comsigo mesmo , já para os outros , já para com
Deus. Obriga a lodos· a que sejam justos para com a sua alma e o
seu corpo ; para com a alma e o corpo de seus irmãos ; e assim
nascem da jusliça as seguintes virtudes : 1. a Reli"gião, c1ue dá a
0

Deus o culto supremo , interno e externo ; e ccfrnprehende a Fé,


Esperança e Charidade; a devoção, oração e adoração ; •o sacrificio,
o juramento, o volo , a acção de graças , como ficou dito na ex-
plicação do Docalogo; 2.º a piedaae filial, que consiste· em-amar,_
respeitar e honrar aquelles· que , ;ib.aixo de Deus, são os aulhores
de nossos dias, isto é,_ nossos pais e mãis, avf\.c;; e demais parentes;
~L º a obediencia , com que sujeita mos a nossa vontade e pessoas á de
nossos superiores, seja na ordem espiritual, ou _temporal; 4. º a ve-
racidade , que nos prohibe enganaT meí.tindo ; õ. º a gratidão, com
que devemos ·corresponder aos que nos fazem bem com sentimentos,
palavras e obras de recon1iecimenlo , ·como são Deus , nossos pais,
superiores ele. ; G. º a amisade , com que retribui mos a benevolcn-
cia de que somos objecto da parle de nossos iguaes.
Quanto aos Yicios opposlos á ,, irtude da j nsliç.a , são de duas
qualidades, uns por excesso, outros por defeito (1). Qs primeiros
são , a .supersti'çcio e fmwtismo, que exageram e desfiguram o cullo
que d{}vemos a Deus ; a usura nos contratos, e a prodigalulade,
que ambás excedem os direitos que lemos em nossos bens ou nos
do proximo. Os vicios que peccam por defeito são: a irrel(qião ,
que comprehende a 'impi"edade , a indilferença , a duresa do cora-
ção e das palavrns para com nossos pais , a desobediencia aos ~u­
periores , a iºngratidllo com os bemfeitores, a mentira , para com o
proximo, a ilâm1"sade , com os amigos ; em fim , para dizer.. tudo em -
uma só palavra, a injttst1ºça propriamenle dila , que se ~1anifesla de
tlnas maneiras: 1.º qtiando tiramos os bens do proximo, ou os de-

(l ,! D. Th. 1, 2, q. f)~, arl. i

...

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Dls PERSEVEllANÇA.

fraudamos pagando menos , ·ou recebendo mais do que é devido ; e


quan1lo com demasiado rigor reclamamos os nossos direitos. Com
effeito, em muit~ casos se deve unir a compaixão com a justiça , ·
por exemplo , quando um pobre não póde pagar logo ludo· o qul!
deve sem uma grande mortificação , ~ é rasoavel e juslo conceder-lhe
algum tempo : recusar-lho ; é duresa e rigor excessivo.
Pois que toctl'.>s somos obrigados a exercer a justiça , · com pena
<le condemnação eterna, segue-se que nos imcumbe saber porque
meios adquiriremos esta virtude. O. primeiro é a oração; o se-
gundo , o desapêgo dos bens temporaes ; o terceiro , a esmola ; o
quarto , a humildade : porque a soberba e o egoismo são a cansa
directa da irreligião ,_ c:!a fraude , e de todos os vicios opposlos á
justiça , considerada em toda a sua extensão.
A fortaleza é a virtude com que superamos todos os obstacu-
los que nos embaraçam de praticar o bem e supportar o mal (1).
Por ella g~nerosamente emprehendemos, e -apezar dos perigos e dif-
ficuldades, conseguimos com effeito cumprir com os nossos deveres
_para eom Deus, para com nós mesmos e para com o p·roximo. Os
Chrislãos. e Chrislãs que a cada instante vencem a perguiça e repu-
gnancia do corpo ~ a tibiesa do eora_ção , as seducções da carne e :
do mundo, para seguirem o Evangelbo ; os Religiosos e Religiosas,
os Sacerdotes e Missionarios , que se dedícam aÓ bem espiritual e
corporal da humanidade ~ os soldados que affrontam as fadigas da _
guerra , as pnva~ões e a morte; são outros tantos modêlos da for-
taleza. E' lambem por esta virtude que supportamos corajosos, sem
murn1urnr e christãmentc, as perseguições, calumnias e injurias;
as doenças e penas interiores ; as tentações e toda a sorte de ma-
les por não offender a Deus : a morte mesma soffremos com forta-
leza , quaTtdo é necessaria á salvação ; e d is lo são os l\fartirc5: exem-
plo e modêl.o. ,

(t)
.
Forliludo esl ronsidcrala perirulorum susccptio et lal>orum per-
pess10. D. Th. ·2 , 2, q. 123, art. ~.- • ,,

•·
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76 CA'l'ECISl\10

E' esta virtude indispensa vel ao Chrislão. iVinguem. diz o Evan-


gelho , será coroado, sem que ltajri legüimamente combatido. ,. O
Reino dos Ceos so/fre violencia ; só o conquislarã(jlo aquelles que sa-
Üem triumpltar de si (1 ). .
As virtudes que nascem da· fortaleza e a Lornam perfeita , são:.
1. a. confiança , que não duvida affronlar e vencer os· perigos e
0

obslaculos d'uma empresa rasoavel ·; a mag.nanimi·dade, que empre-


hends e obra grandes e gloriosos feitos ; a magniftcencia , que des-
pende a tempo e com mão larga , para produzir os resultados que
deseja ; 4. a perscveranra , que caminha lirme no bem , não obs-
0
,

tante as difficuldades que lhe embargam o passo ; 5. º a pacieneia ,


que soffre tranquilla e com serenidade as ..afllicções e as doenças.
São l~mbem dous os vícios opposlos á fortaleza ; a saber : por
excesso , a temeridade e a audacia, que se atira aos perigos, sem
necessidade , sem calcula1· os obstaculos, nem o meio de os rnncer;
o atrevir!Lento e a presum]Jção , com que emprPhendemos cousas s1F
periores ás nossas forças: por tlefeilo, . o medo, ~ pusilanimidade,
a cobardia , a perguiça, os respeitos liumanos, com que recuamos ..
ante os obstaculos , e nos rendemos sem combate ou quasi sem com-
baler.
Para a<lquirir a fortaleza, .como somos obrigados_, cumpre re-
correr aos seguintes meios : a oração , a consi<ieração assidna da
vida e Paixão de nosso Senhor, dos Aposlolos, marlyres e mil
outros modêlos de coragem nos trabalhos e resignaç.ão no 'soffrimen-
.to.
A. temperança é uma virtude que moJera o homem no nso dos
prazeres da vida. Tambem se define: uma virtude quP regula .e re~
dnz a justos limites o uso das cousas agradaveis aos sentidos, par-
ticularmente ao paladar e ao laclo (2). Não con:;istc a ~mperança ·

(U A<I TimoLh, li, õ; l\lallh. XI , ~.

lilJS , ct concupisceo\ias
- .
(2) Tempcrantia est virtus reframans ac modcrans iuordinalos appe·
ac voluptates corporis quibus prresertim gustus
cl tartus allicitur. Ferraris, arl. Vfrt. n. 130

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DE PlmSKVEilANÇA. 77
em absler-se de toda a sorle de prazeres , mas sim regular o uso
d'elles· pela bõa rasão e a lei de Deus. Assim definia a temperan-
ça , é impossível desconhecer a sua necessidade. A obrigação de
exer~r esta virt.ude está consignada pelos ditferenles homes de mor-
tificação , abslmencta, conlinencia e sobriedade, em cada pagina das
SagraJas Escripluras, da vida de nosso Senhor e dos Santos.
As principaes virtudes que nascem da Leccperança , são · a abs-
tinencia, que nos modera no uso dos alimentos, e no gosto de os
saborear; e pela qual especialmente observamos as leis da abstillen-
cia e do Jejum , estabcle~idas pela lg-reja ; ~ sobriedade , que ºº"
modera no uso das bebidas, sobre -tudo espirituosas ; a ca$tidade,
·que modera e reduz aos limiles do dever a inclinação ao prazer
ramal (1) ; o pudor, que é um virtuoso pejo, com que cvilamos as
· - vislas, familiaridades, e ac·ções ..t}Ue podem offender: a castidade; a
modeslia , que regula os movimentos. interiores e exteriores do ho-
mem (2); a humildade, com ""que nos apoucamos pelo conhecimento
da nossa propria miseria , conformamo-nos com a disposição da Pro-
videncia , e referimos a Deoe .todo o bem que podemos fazer ; a
brandura que modera os ímpetos da alma , e~ evitando a impacien-
cia e a colera , e conservando a paz e tranquilidade do espirilo, faz '
com que tratemos sempre ao proximo com a mesma sua\'idade ; -a
clemencia , que adoça, quanto a rasão e a justiça exterior o permille,
as penas 1nerecidas pelos. culpados, e até lhes perdoa já por causa
do seu arrependimento , já por oulros motivos legitimos .
..;)3 "principaes vicias opposlos á temperança são, por defeito: a
im;ensibilidade' que consiste em nos :1hslermos ' contra 3 ordem de
neus, das cousas necessarias á vida, á saude, ao cmr1primcnto dos

(1 l Et hrec triplex csl, ncmpc virgioalis, vitlualis ct roojugalis. Vir-


ginahs cst omnimoda contiueolia. V1dualis est conlineotia posl mortcm
ronjugis cl hrec cst ITlinus perfecla quam virginalis. Coojugalis qum con
1

sislit in lidelitate conjugum ad iu,·icem ct io usu legitimo ct saocto ·ma-


trimonii. '•
(2> D. Th. 2, 2, q. 160, art. 1 ;. Ferraris, art7 Yirt. o. 131.


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/

78 l',A TECISMO

deveres do proprio e!'lado , Lemenllo de gozar o prazer natural que


lhes é proprio; não é este vicio muito vulgar, nem é de temer se
vulgarise ; e por isso não cessaram Nosso Senhor e os. Santos de
llOS exhorlar á morl1ficação. e
A la virtude se oppõe ' por ex\,esso
a intemperanç.i,. , que é o amor desregrado do prazeres , com que
nos excedemos no comer • no beber, e na salisfacção dos senti-
dos. A intemperança iraz com sigo a glotoneria, a embreaguez, a incon-
tnencia e os mats peccados que se derivam destes .
... Quanto aos meios d'adquirir a temperança, indicaremos sea:Qpre
a oração , ~s exemplo de nosso Senhor e dos Santos, o pensamen-
to dos males lemporaes e eternos, que se seguem á. intemperança ,
taes como a v~rgonha , o embrulel~ imcnto , a pobreza , as enfermi- •
dades, a inpenil~ncia • e outros particulares castigos po~ toda a eler-
ni4ade.
·A terceira classe cie virtudes _com.J>rehende as trns virtudes Lheo-
logaes : a Fé , Esperança e Charidacie que , aperfeiçoando o homem . -
em suas relações com Deus, produzem , alimentam e coroam to-
todas as demais virludes , ás quaes- communicam o seu merito e va-
lor (1) . . Ficando Já explicadas em outra parte estas tres virtudes ,
resta-nos mostrar as relações que leem ~om as outras, assim corno
as relações que t·odas as virtudes icem entre si.
Cumpre , pois , saber : 1. º 'que todas as virtudes moraes se co1?-
servam , unem e governam de sorte , que não póde haver uma só
em sua perfe1ç,ão , que não tenha comsigo as outras cm gráo mais . ·
ou menos elevado. Com effeilo , a virtude perfeita é o anior ~·me,
e const(ijlte da ordem , com q.ue procuramos e fazemos em todas as
cousas o qu~ é conforme á rasão esclàrecida pela Fé. Ora , esle
·amor encerra evicienlemente todas as mais vil'Ludcs , pois que uma
pessoa, por exemplo , não póde ser perfeitamente justa , se lho falta
a fortaleza, a_ t(\mperanÇ.a ou a prudencia, ou,~ por outras pa!ana_:;,

...
(t). 1 Cor. e. xm

-,

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~e
.
não · tem um amor firme e conslante da ordem em maleria de
fortaleza , temperança ou prudencia. O mesmo é a respeito das oú-
lras virfüdes moraes, que todnia podem , supposlo que em estado
de i-mperfeição, existir uma sem a outra (1).
Cumpre saber: ~-º que todas as virtudes, em certo gráo, são
prrcisas á salvação. Assim , ninguem póde salvar-se sem que tenha
em gráo proporcionaao á sua idade , condição e educação , sabedo-
ria ,. sciencia , inteligencia , prmlencia , justiça , forlalesa ,
temperança , Fé , Esperança , Charidade ; e as mais virlu-
. <les particulares , que dependem e .nascem d'aquellas virtu<les-prin-
- cipaes. Sustentar o contrario seria dizer que a arvore esleril é boa
arvore, que o servo ocioso é bom servo , que o discipulo d'um
Deus modêlo de todas as virtudes é bom discípulo, posto que e não
imite , e despreze as palavras , com que elle l1iz : Eu vos dei o
exemplo , a fim que façais como eu tenlto feito; aprendei de mim
que sou brando e humilde de coração , e mil outros textos em que
expressamente se nos manda, não só evitar o mal ,· mas praticar o
bem. Seria dar um desmentido formal a todos os Sa!llos -que~ pela
duplice prégação da palavra e do exemplo , nos leem en~nadõ a ne-
cessitlade da vi1;lude. W pois , como já dissemos , do maior inte-
resse do homem , embeber-se nesta obrigaç.ão , estudar com dili-
gencia as differentes virllT'des quanto á sua natureza , qualidades ,-
applieaçf:o p, acquisição. Já deixamos indicados os meios d'adquirir

{1) Orunes \'Írtutcs morales, sive cardioales, Sl\'C eis adjunctre, suot
ita inter se ~ conncx.re, nt nu lia porsus absquc creterarum comitaln ohtrneri
possi! in tatu perfccto. Ferraris, arl. Virt. n. 91; S. Aug. Epist. 167.
- - V1rlutes si siot disjunclre; noo possunt esse pcrfcclre secundam rntio-
... nem virtutis , quia nec prudcntia vera cst , qure justa ct temperaos et
fortis noo est S, Greg. H Moral. e. 1 ; D. Th. 1, 2, q. 65, art. 1. -
Potesl tamen una (virlus moralis) sioe cretcris aliis esse in slatu impre;
fecto. D. Th. ld. 1d ; Ferróris, arl. Yirt. o. 91.

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80 Ct\TECISMO

cada virtude em parlicular , os quaes devemos pôr em ·pratica , e


alem disso exercer os actos dessas mesmas virtudes. Quanto ao ma-is,
conheceremos se possuimos uma virlude na sua perfeiçfio ; quando
chegamos a exercei-a prompta, facit, alegre e perse·verantemente (1).
Cumpre saber : 3.º que Iodas as virtudes inlellectuaes e moraes,
separadas das theologaea,, de nada servem para a salvação. Com
effeito, estas virtudes , de per si mesmas , não nos farão obrar se
não o bem natural , humano , puramente rasoavel , que não pode só
de per si conduzir-nos ao bem sobrenatural, que é Deus , nosso
ultinr.> fim. Para que lenham tam precioso valor , hão-de sei' ani-
madas e ennobrecidas pelas tres grandes virtudes sobre-naturaes que
tendem direclamente· a Deus. Aqui devemos lambem nolar, que não
só lMi virtudes intellectuaes e moraes , mas nem ainda a Fé e Es-
perança podem corjduzir-nos ao Ceo sem a Charidade. - A Charidade
é pois a origem perenne e fecunda de todas as verdadeiras virtudes ; é a
augusta rainha, . . que as ennobrece e corôa. SC:'m a Charidade não ha
virludes dign3s Ll'este nome; com ella , porêm , ha todas as virtu-
des e~n gráo .sufficiente , para chegar á felicidade eterna (2).

{1) Promple, facililcr, delectabilitcr, pcrsereranler.


(2) Qu1 non dili~il mDnet rn morte, J Joan. XIII, U; scd per ,·ir--
tntes perficitur vila spiritalis ipsre; cnim snut..quibus rect vivitur, ut Aug.
didt lib. 11 de Liber. r.-rbitr. e. 17 , 19. Ergo ntln possunt c~se sinc
clilcctione charitalis ... virtulcs moralcs prout sunL operat1vre boni 10 or-
dine ad finem qui non excedit farultatcm naturalcH1 hominis, possuat per
opera humana acquiri; et sic acqnisilre sine charitale esse possúnt, sirut
fuerunt io ·mullis gcntilibus. Secundam aulem quod sunt opera livre hon1
io ordine nd ultimum fine supcrnaluralem , sic perfecte ct vcrc habcnt
rotionem \•irlules morales sine dia ri late esse non po.;sunt. D•• Th. 1 , 2,
q. 65 , arl. 2. - Fitlcs el spes sine charilalc possunl quidcm aliqw.aliter
~ esse (sccuodum rnchoalioncm 'qu:>mdam) ; pcrfcctro aulem ,·irlulis ralionem
sinc char1late non habeuL. lJ. icl. art. 4 ; 1 Cor. e XIII. - Per charilnlem ""
tola lex imple~ur; sed tola lex implcrí non potest oÍ'Si per ornncs ,·írlutes
morales , qoia lei prreci;>il de omnibus acl1bus virtutum. Ergo qui ha ·
bel charitatem habet omoes virlutes moralcs. Augustinus eLiam dicit, quod

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. .
DE PERSEVERANÇA. 81
Resumamos lodo este magnifico systema de virludes , que são
lambem o resumo de toda a doutrina do Divino Mestre. Assim
como ha dez mandamentos , que produzem e encerram em si todos
os mais, assim ba dez grandes virtudes, donde nascem e para onde
fluem todas as outras. Estas ,·irtude s são : a sabedoria, a sciencia,
a intelligencia~ a prudencia , a justiça, a fortaleza , a temperança ,
a Fé, a Esperança e a .Charidade. Assim como ha tres inanda-
men\os que regulam as nossas relações com Deus ; e sete, que as re-
gu Iam para com nõ·s mesmos e o proximo ; assim hà fres vfrtudes,
que se referem a nós mesmos e ao proximo. Da mesma sorte que os dez _
mandamentos se encerram no preceito ,da Charidade , assim todas as
virtudes se refundem nesta mesma virtude , que é a sua primeira
e ultima expressão. D'est'arle, as tres primeiras virtudes, chama-
das intellectuas , aperfeiçoam o nosso entendimento, e o tornam apto
para discernir a verdade ; as outras quatro, que se denominam mo-
,,. raes e cardinaes , aperfeiçoam a nossa vontade , e a tornam apta
. para operar o bem ; as lres ultimas, chamadas theologaes, aper-
feiçoam o nosso enlendimenlo e vontade de sorte , que nos habili-
tam a entrar em relação com Deus • operar o bem sobre-naturál, e,
por consequencia , conduzem-nos a felicidade- suprema, que é a nossa
união com Deus pela Cbaridade n'este mundo e no outro.
n··esl'arle todas as virtudes estam entrelaçadas umas com outras,
~ todas leem por ultimo fim o desenvolver o homem em Deus, du-
rante as luctas da vida, cm quanto não vai desenvolver-se comple-
ta_mente nas delicias da etermdade ; porque no Ceo é o amor. Ha
ahi por ventura cousa mais bella , predosa , e digna do homem e
de Deus?

charitas IDcludit io se omocs virtutes cardioales ••. Rcspondco diccn<lum


quod cum charatate simul infunduntur omncs virtutes morales. D. Th. 1,
2, q. 65, art. 3. - Voyez pour de plus grands développemenls l'excellent
ouvrage intitulé Traité des Vertus chrétitnnes, par M. l'ahbé C. Busson,
chanoine de Besaoçou.
11 VI

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/

~ C.\ TF,CISMO

Para melhor se conhecer e apreciar este maravilhoso systema ,


confronte-se com o grande conlraste dos vicios, que igualmente se
entrelaçam uns com os outros e Lodos leem por objecto final o en-
fraquecer e aviltar o homem, tornando-o escravo do mal durante as
luctas da vida , em quanto o não precipitam no abysmo do mal
eterno e infinito , porque o inferno é o odio.
Odio ou amor., inferno ou Ceo , eis a expressão ultima tia dou-
trina do Divino Mestre, e a explicação suprema do homem e da
,,~da , do tempo e da eternidade. '
/ O Filho de Deus , que desceo do Ceo á_ terra para instruir o
genero humano , consagrou éspecialmente os quarenta dias posterio-
res á sua resurreição , a ensinar aos Apostolos os segredos da sua
doutrina , e dar-lhes a perfeita intelligencia das Escripturas. A a~­
miravel economia da Redempção humana, o fim porque o Verbo de
Deus ·viera ao muudo ; e quisera nascer, viver, morrer e resuscilar ;
a necessidade da união de todos os homens com elle pela Fé , Es-
perança e Charidade ; o fim desta união que é , no tempo, a imi-
tação da sua vitla, _e na eternidade, a participação da sua gloria ;
a natureza do peccado , causa umca que pode romper esta união
santa , e tornar o Christo inutil para nós ; tudo sabiam já os Apos-
tolós , e estavam em estado de instruir o mundo em todas estas
cousas.
Que restava pois ainda ao novo Adam , antes de subir ao Ceo?
Por uma parte , todas as gerações que viriam ao mundo eram cha-
madas a esta união com elle, principio unico da regeneração e sal- ·
vação humana; por outra parte, não é já pessoalmenie que elle
ha-dc instruir o mundo ; a sua missão na terra está cumprida, elle
vai àssenlar-se á dextra de seu Pai. Que fará pois, para perpetuar
a sua .Redempção e tornar este beneficio accessivel a todos os povos
alé á consummação do tempo~ Deixa-nos um substituto , um outro
Christo ; nomeia o seu Vigario. Confia-lhe a plenitude do póder que
recebera de seu Pai ; dépõe nelle o cuidado de perpetuar e dilatar
a- grande obra que elle mesmo começára. Jamais houve tam alta
dignidade conferida a um homero : jámais tam formidavel responsa-
bilidade pezou em· hombros humanos. Quem será o eleito Vice-Rei
do Filho Eterno ! O' admiravel abysmo de sabedoria e miseri-

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D~ PRRSEVERANÇA. 83
cordia ! Aquelle mesmo que poucos dias anles havia negado trc!i
vezes seu Mestre diante d' uma serva do Ponlifice dos J udeos ! O
mais ftaco para a mais importante empreza 1 Uma fragil canoa para
sustentar o Universo! Um grande peccador para s~r o Douto1· da fé
e Pai dos Christãos ! Em uma palavra, o Vigario do novo Adam
será o Apostolo S. Pedro !
Nada ao mesmo tempo mais sublime e patbelico que as cil'cums-
tancias da sua ordenação. Vejamos como ella se effeituou.
Pouco antes de subir ao Ce9, estando o Salvador no meio de
seus Apostolos , levantou os olhos para Simão Pedro , e endereçou-
Jhe eslas mysleriosás palavras: Simão, filho de João, tu amas-me
mais que todos estes que estam comigo? Não atinava Pedro, nem
. os seus companheiros com o fim a que se dirigiam aqu_ellas palavras.
Que queriam ellas dizer?
Quando um rei pretende confiar um cargo importante a um de
seus subditos, exige delle garantias e cauções: assim fez Nosso Se-
nhor. Este divino. Pastor que acabava de derramar seu 'sangue para
salvar suas O\'elhas , eslava a ponto de as deixar, e resolveu con-
fiar a guarda dellas a Pedro seu discipulo.
Antes porem de o honrar com tam sublime encargo , exige de
Pedro uma caução , demanda-lhe garantias. l\Ias que caução pode
elle obter d'um pobre pe::;cador , que não possue outra cousa que a
sua barca e as suas redes? A maio1· comtudo e a mais segura que
um homem possa offerecer , o amor; 'mas o amor levado ao bero-
isruo , o amor prompto a. immolar-se cm serviço <le seu amo , e em
tlesempenho de seu cargo : tal a caução e as garantias que o Filho
de Deus exige de seu Discipulo. -
D'est'arle , fazendo a S. Pedro aquella pergunta : Amas-me tu
mais que estes? Jesus lhe dizia : Eu quero dar-te um testemunho de
maior confiança que aos outros ; queres tu , <la lua parte , dar-me
lambem maior garanlia da lua inviolavel fidelidade ? Amas-me tu ?
is lo ~ , estás tu disposto , e mais disposto que os ou lros , a sacrifi-
car por mim e pelo meu re.banho a tua sande , fortuna e a mesma
vida ? Responde S. Pedro com humildade : Senhor , bem sabeis que
vos amo. Só enlão , obtida (\Sta segurança , é que o tlivino Pas-
tor Jhe , diz : Apasccnl.a os meus cordeiros. Penetrado de rnconhc-

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84 CA1'ECIS.MO

crnienlo , conheceu· Pedro a honra infinita que lhe dava seu Mestre.
O Salvador; para Ih.e dar bem a conhecer a i01porlancia do encar-
go, segunda vez lhe pergunta : Simão , filho de João, tu amas-me'!
Sim , meu Senhor , responde outra vez Pedro , bem sabeis que vos
amo. E Jesus lhe disse : Apascenta os meus cordeiros. Os corctei-
ros do enhor são os simples fieis.
Bastariam já e3las seguranças • se Pedro não houvesse dtl ter
outro encargo mais que de guardar e apascentar os cordeiros; mas
irncumbia-lhe a guarda não só dos (9ortleiros, mas t.ambem das ove-
lhas , dos Fieis e d.os Pastores. E le encargo , que era o cumulo
da confiança do l\leslre e da, gloria do Oi cipulo, eligia ainda nova
caução. O Salvador lhe pêrgunta , poi , a LP-rceira vez : Simão ,
filho de João , tu amas-me? Só um coração , lam dedicado a Jesus
como ·o do primeiro dos Apostolos, poderia sentir lam vivamente
como elle a apparente amargura e inquietação d'uma peraunta simi-
lbantc, e tantas vezes repelida : de perlavam-se-lhe as mais tristes
recordações. Pedro mava muito , e por isso temia que ainda não
fosse bastante o seu amor. Turvado , confuso, responde com as la-
grimas nos olhos: Senhor , nada vos é occulto ; vós sabeis que eu •
vos amo. Complctára-se a provação , deram-se todas a garantia .
O Salvador, satisfeito já, diz-lhe a ultima vez : Apascenta as mi-
nhas ovelhas.
Era bem curta nas palavras, mas quam extensa a signiíicaçãtl
desta phrase; e quam abundanlernênte recompensam a inquietação,
que o Santo Apostolo aca.bava de soffrer ! Ja se lhe~ não confiavam
só os tenros cordeiros, figura dos imple Fieis; mas ainda os pas-
tores particulares dos differentes rebanho , rt-'presenlados nas ove-
lhas; mãis dos cordeiros. Todos foram confiados .por Nosso Senhor Jesu
Christo , como parle do total rebanho, á vigilancia e auclorhlade
de Pedro. A catla um destes pertence ' apascentar uma porção do
rebanho, e todos os rebanhos juntos com seus pastores devem en-
cerrar-se em um só aprisco , sujeitos ao baculo do Pastor commum.
Assim foi sagrado o pri"meiro Papa. Uma immensa dignidade
rm troca d'um immenso amor: taes as condições d'esle contrato su-
blime , celehrado entre o Creador e a crcalu ra , o Mestre o o dis-
cípulo.

..
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· DE PERSEVERANÇA. 8õ
Foi Pedro , pelas palavras de Jesus, cons Liluido seu vigario em
_toda a extensão do seu reino ; Bisp<! não só d'alguma particular Sé,
mas Bispo dos bispos , Padre dos padres , centro da· unidade cal.ho-
lica, Prelado da Igreja universal , Principe dos Pastores ; ou , por
outras palavras , e altenla a natureza da sua dignidade , Servo de
todos os servos de Oeus. Eis o que é ainda hoje , e será no espi-
rito de lodos os Fieis e de todos os Pastores catholicos , o succes-
sor de Pedro • Vigario de Christo na terra. Assim é que por um
instincto religioso , commum a todos os membros e a todas as ordens
da Igreja ; ao ou\'ir o nome do Summo Ponlifice nos sentimos
penetrados d'ac1uella profunda veneração e terna confiança, que os bons
filhos tem com seus pais. Chamamos-lhe o Nosso Santo PADR~, o PAPA,
porque todos em geral e cada um em particular somos seus filhos.
Ai de nós séa deixamos allerar estes sentimentos ou aeolir esta lin-
guagem 1 Não ba signal' menos equivoco · da decadencia da Fé-nas
familias , e da proxima defecção dos povos , que o diminuir este res-
peilo e esfriar este amor.
Nalla mais augusto que a dignidade com que o Salvador honrava
a seu d1scipulo , para lransmiltil-a a seus successores ; mas esta dig-
nidade mesma impunha-lhe tremendas obrigações: nem permittio Nos-
so . Senhor que elle as ignorasse ; antes lhe manifestou claramente a
que ponto devia chegar aqueJlo amor que exigira delle, por caução '
da sua fidt~lidade. Disse-lhe , pois : Pedro , quando tu eras novo ,
cingias-te a li mesmo , e ias para onde querias. Quando porem fo-
res velb.o estenderás os braços : outro le cingirá, e le con·duzirá para
. · onde tu não quererias ir. Annunciava o Senhor a Pedro o genero
de morle com que um dia havia de glorificar- a Deus , que era o
supplicio da Cruz.
Não se entristeceu PedrÔ com a predicção. Estimando mais a
honra de morrer na Cruz como seu Mestre , que a gloria de gover-
nar a sua Igreja, ~unca se esqueceu elle d'aquella terna profecia.
Trinta annos depois sendo já sexagenario , suspirava pelo cumpri-
mento do Oraculo, e escrevia aos fieis, de quem era amado e re-
rnrenciado como pai : (e Meus filhos , justo é que eu vos exhorte e
instrua , em quanto permaneço nest~l carne mortal. Eu estou velho; ·

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86 CATECISMO

e logo tenho de deixar o labernaculo do meu corpo , como me deu


a entender. Nesso Senhor Jesu-Chrislo (1). »
Endereçando-se depois a todos os seus Apostolos , o Filho de
Deus lhes disse , com tanto amor como magestade : ~ Todo o poder
me (oi dado no Ceo e na terra ; ide, ensinai todas as nações; nada
temais; ei~ estarei com·vosco todos os dias até á consummaç(7o dos
seculos. Está consummada a sua missão terrestre , estabelecida e
Igreja ; nada mais lhe resta do que tornar para seu Pai , a fim de
enviar o Éspir1to vivilicador, que ha-de animar o seu corpo rnystico,
formado por ellc mesmo na lerra. ·
Havendo , pois , promellido aos Aposlolos que lhes enviaria o
Esp1rilo Parachto ; que os mudaria subitamente em novos hornens ,
e os tornaria capazes de lhe servirem de testemunhas em Je.rusalem,
na Judea , Samaria, Galilea. e até ás extremidades da terra, Jesus
se levantou e os levou alé á · aldeia de Bethania ; todos o seguiram
até ao monte das Oliveiras Chegados a este lugar , que havia pou-
co offerecera o cspeclaculo de suas humitiaç~es . e dores , e ~agora ia
offerecer outros da sua gloria, o Divino l\'lestre estendeu a mão para
elles e os abençoou : dcpuis elevava-se suavemente á ·yisla delles. e
insensivelmente desapparecia ·a seus olhos. . Collocado e.m uma
luminosa nuvem , como em um carro trium_phal , sobe ao mais alto
Ceo, e, no meio das acclamações de toda a celeste milicia, primo-
genilo d' entre os mortos, chefe do genero humano, em nome de
todos os homens seu:; irmãos, eil-o que solemnemente toma posse
da gloria eterna, em cujo seio elle , e com elle-- a nossa lrnmanida-
de, se as~enta alçado em um lhrono sublime , á dextra de seu
Pai.
A.Ili , Pontince Supremo , l\lediarlor , Advogado , Esposo da
Igreja , elle vela por nós, advoga a nossa causa, dirige o baixel por
meio dos escolhos, até que surja, com todos que nelle nav4:1gam
nas celesles praias. Elle intercederá por nós , e deixar~ Yogar a

(1)_· II Pctr. 1 1 13. ·

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D& PERSEViRANÇA~ 87
barca immortal de Pedro por sobre a8 ondas , ·em quanto durar a
prova do tempo concedido á· especie humana , para que se reha-
bilite. Então voltará a separar para sempre os que sahiram tia
vida purificados , dos que , abusando della , sahiram peiores do que
entraram. Eis a formidavel verdade que o Filho de Deus fez annun-
ciar n'aquella mesma hora a seus Apostolos , e por elles ao uni-
verso. Tinham elles ainda os olhos filos no Ceo, quando dous An-
jos , em figura d'homens , vestidos de branco , appareceram ao lado
delles e lhes disseram : Homens da Galilea , que estaes olhando
para o Ceo? Aquelle Jesus, que para lá vistes subir , tornará um
·. dia , com o mesmo poder com que ascendeu ao Ceo. A estas pa-
lavras, outra yez os Apostolos adoraram a seu Divino Mestre , e
voltaram a Jerusalem, entraram com a Santissima Virgem no Ce-
naculo ·, dando principio áquelle retiro ,' modêlo de todos os retiros,
que havia de terminar por tantos prodígios, tam gloriosos para o
Salvador e consoladores para nós.

ff meu Deus 1 que sois lodo amor , cu vos dou graças por
me haverdes feito nascer no gremio da Igreja Catholica ; permitti,
Senhol' que eu nella viva e morra santamente.
Eu protesto amar a Deus sobre todas as cousas, e ao proximo
como a mim mesmo por amor de Deus , e, em testemunho d'esle
amor, associar-me-hei á Propagação da Fé.

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CATECISMO
DE

~-~ ~•v;•~
r · aau.a ~ ~m
• .-aa~«a ZJ
~4fA~

I.ª LIÇÃO.

O CBRISTIANISMO ESTABELECIDO~

(1.º SECULO.)

Vida da lgre1a: Lacta eterna - Quadro do 1.0 Seculo: Dia de Pente-


costes - Discurso de S.. Pedro - Confirmação de sua doutrina pelos mi-
- lagrcs - O Coxo cur~do - S. Pedro e S. João postos em prizão -
Igreja de Jerusalem - Aoanias e Saphira ~Eleição dos sete Diaconos -
Martyrio de Santo Estevã«>:- Vantag,as desta morte, e da persegui-
ção - Prégação do Evangelho oa Palestina - Simão Magico - Conver-
são de S. Paulo.

A historia dos -quatro mil annos , que procedeu ·o Messias resu-


me-se êm tres palavras - Tudo para o Christo, o Christo para o ho-
mem , (1) o homem pàra Deus.

(1) O Christo para o homem! E' de fé esta sublime verdade: e


para que jámais. nos não esqueça a Igreja Catholir.a a proclama lodos os
Domingos em todos os pontos do -globo. quando diz : Qui yropter nos
bomines el prõpler noslraflt salutsm· d6S'ímdil de ccelis.

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DE .. ERSEVRRANÇA. 89
A historia dos dezoito seculos decorridos desde o nascimento
do Messias , e de todos os que se seguirem até ao fim cios tempos,
igualmente se resume em tres palavras : - Tudo para o Chrislo 1
o Christo para o homem ·, o homem para Deus.
Desla admiravel philosophia, com a qual se dá razão de tudo ,
e sem a qual nada se explica, resulta que a salvação do gcnero
humano, por meio de Jesu-Chri3lo ,. . é o termo da acção divina du-
rrmte o t~mpo ; e que em. lugar de nada ser no mundo , como o
pertende a indiffercnça dos nossos dias, o Christrnnismo· é. o Centro ~
paí·a onde tudo converge, ·o e-i~o sobre o qual gira todo o governo
do universo.
Antes da vinda du Redemplor todos os designios de Deus se di-
rigem a realisar o seu nascimento no tempo, e nos lugares preditos
pelos Pruphelas , e· determinados desde toda a elerriidade nos seus
divinos decretos. ·
Depois da sua vinda todos os designios de Deus são para esta-
belecer, conservar, difundir por todo o universo, e parlicularisar
a todos os homens a obra da sua Rede~pção.
Temos visto até aqui os acontecimentos , os imperios, os reis e
os 1-lovos , dirigidos pela mão de Deus, sem o saber, ou sabendo-o,
ê querendo , ou não querendo , contribuir para a gloria do :Messias ;
e é este o mesmo espectacuto que veremos na longa· carreira que
vamos percorre_r. l\fas este estabelecimento do refoo do :Messias, a
sna propagação e conservação , não se couseguirá seus exforços ; a
vida da Igreja será uma perpetua .lncta. Estabele.cida para continuar·.
a obra do seu divino Esposo, isto é para tirar o peccado do mundo,
a Igreja Catholica completará a sua missão na terra com as armas
em punha; Mas não. füe hão-de ser imputadas as terríveis consc-
.quencias desta · guerra de morte, as divisões, os odios, as rui nas_ e
todo o sangue derramado , que não foi. a Igreja quem começoü a
guerra , mas sim o demonio , pois foi elle que , no Paraíso terres-
tre veio_usurpar o domimo de Deus em o homem e em as crealu-
ras. DesLle aquelle momento lhe podéra a Igreja dizer..o que depois
tem dito a todos os herejes na serie dos . seculos - Para que vens
tu melter a fouce na minha seara? . . . Quem te deu o direito de
rlispor t.leHa a teu arbitrio? ... São minhas as almas que tens sub-
12 VI .

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90 caTF.CISMO

jugadas, e este mundo onde semeasle a sizania o erro e o vicio ;


são meus por que são t.le Deus, meu Esposo e Pai. Ellc m'os deu
creanclo-os, para lh'os resliluir inlaclos até ao ullimo dia. Sou eu a
primugenita , que os possuo antes de li , sou eu a filha do legitimo
prop1 ielariu , e lenho os Litulos authenlicos , por onde provo que
descendo <lelle. Despojada injustamente venho reivindicar os meus
iiDprescripliveis direitos, e expulsar os usurpadores. Eu não faço
mais do que defender-me. Caiam pois sobre li todas as falaes con-
. sequencias da lncla , por que és tu o aggressor, és tu que agrides
sempre , por que vieste depois, e vieste depois por que não és o
legitimo possuidor. Esla verdade, de que a Igreja Calbolica posto
que sempre em guerra, nunca járnais é aggressora , faz caducar o
sem numero t?e insensatas .declamações <1ue os espirilos superficiae1'
fazem ou recebem como accnsações graves.
Entretanto o genio elo mal · varia perpetuamente os seus meios
de ataque , a fim de arrebalar á Igreja uma parle dE! suas nobres con-
quistas , e impedil-a de fazer outras ; mas é sempre obrigado a
bater-se em retirada. ·
D'est'arte veremos em cada seculo dous belligerantes etercitos.
De um lado o mal , o erro , o demonio , o usurpador do caºmpo
do Pai de familia ; <lo outro a verdade, o bem, .a Igreja, ou antes
o filho do Pai de familia , vivendo perpetuamente na Igreja , e sus-
tentando os interesses de seu Pai : de um lado Satanaz e o seu es-
lendarte, do outro Jesu-Christo e a sua Cruz. Eis o holletim do
combale durante o primeiro seculo.
Vendo o demonio que a Igreja armada de uma força divina ,·i-
nha arrancar-lhe o sceplro, ·que elle linha usurpado, deu rebate e
correram a ahstar·se debaixo de seus estendarles - primeiro os ju-
tleos, cujo culto fignralivo se via ameaçado de uma proxima abo-
lição; depois os pagãos, cujos idolos desde logo tremeram sobre seus
alLares. A csla formidavel força juntou-se grande copia de herejes,
como os Nicolaitas, os Ebionitas , os Cerinlhios e nuvens de outros
muitos. A este exercilo do demon.io oppõe Jesu-Chrislo os seus doze
pescadores e os seus novos discipulos ; a lucla é continua, sangui-
nolenta, mas a victoria não é um só instante duvidosa : o Chrislia-
nismo por toda a parte trinÍnpha. Para substituir os Judeos, qne

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91
.recusam submeller-se á lerdade, veem-se ·concorrer n1ilhares de pa-
gãos , e o ,·erdadeiro Deus é conhecido muito alem dos limites da
Judea.
A fim de robustecer a coragem dos seus limidos Aposto los, li- .
nha-lhes o Filho de Deus revelado esta guerra eterna, dizendo-lhes -
Eu vim trazer a espada ao meio do mundo ; d'oravante haverá guer-
ra entre toe.los , entre o pai e a mãi , entre o Elsposo e a esposa ,
entre o irmão e a irmã ; vós sereis o a1vo de Ioda a sorte de ata-
ques ; mas nada receif:lis, porque lodo o poder me foi dado no Ceo
e sobre u terra. Ide , ensinai e baptizai todas as nações , pois que
eu estarei comvosco todos os dias até á consummação dos seculos.
Instruidos na sua divina escho1a sabiam os Aposlfllos fundamcnlalmenle
todas as verdades que haviam de ensinar : toda via para serem nãó
só os prégadores mas lambem os martyres destas santas verdades ,
c~reciam de sobrenaturaes forças de Deus , e . por isso o Salvador ,
lhes disse, quando se ausentou dellcs : Não cmprehendais nac.B , mas
ficai em or3ção_ até que sejais reveslidos da força, que vos hade vir
do AHo.
Cheios de confiança nas pala\'l'as de seu Mestre, desceram os
Discípulos do monte Olivele d'onde Jesus acabava de subir no Ceo ,
e, acompanhados da Santíssima Virgem entraram em Jerusalcm. Já
tranqui1los encerraram-se em o Cenaculo, isto é cm ·um aposenl.o
solil.ario • aonde nada perturbava o seu recolhimcnlo , nem diminnia
o fervor das suas orações ; e preparando-se .deste modo para o seu
lrc1nendo minislerio, chamavam sobre si o Divino Espirilo , que
com elles havia de 1·egene1·ar o mundo. Nunca os dons de D<.'us fo-
ram tam dignamente pedidos, e nJo ha eschola onde melhor possa~
mos aprender o modo de merecei-os e alcançàl-os.
Nem loclo o tempo , porem , se empregou na oração.
O Sal rndor linha dilo aos seus Aposlolos , escolhcndo:-os para
S('rem os doze Palriarcbas do povo chrislão , que no tempo da re-
generação, logo que o Filho do Homem se t.ivesse assentado no throno
da sua magestade , á d ireila de Deus seu Pai , elles mesmos se as-
sen lariam em doze thronos para julgar as doze tribos de Israel. Um
destes doze lhronos achava-se vago pela traição e desgraçado lim
de Ju.las , era preciso prehenchel-o, e con'vinha occupal-o anles que
...

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.•
1 ,

CATECISMO

o Espírito . Santo, cuja efusão Jesus havia promeUido, se Livesse <lí-


fundido em o Collegio Apostolico. S. Pedro se levantou pois no meio
da assemblea , composta de quasi cento e ,·mte Discípulos , dizendo
que convinha dar um successor a Judas, cuja traição e miseravel
morte lhes recorJou em poucas palavras. Entre aquelles que tem
segmdo i Senhor Jesus , accrescentou elle, durante todo o tempo
que esteve entre nós , desde o baptismo de João até ao dia em que
nos deixou para subir ao Ceo, escolhei um qne dê comnosco lcs-
timunho da verdade da sua resurreição. Dous se indigitaram : José,
cognominado o justo, -e l\Ialhias.
Ambos eram dignos do apostolado , se o apostolado potlesse me-
recer-se; mas nem os uiscipulos alli junlos, nem os primeiros Apos-
totos, nem Pedro mesmo quiz encarregar-se da decisão; convieram
em pedir . esta -eleição ·ao Senhor, e lodos os assislenles , de com..,
mum ac.coruo lhe tlirigiram esta ferveroza oração. - Vós, Senhor,
que avtliais os co.rações , fazei-nos conhecer, qual -dos dous haveis
escolhido. Acabada a oração tirou-se a sorle e cahiu em Mathias,
que immedialamente Jomou luga~ entre os Aposlolos.
Entretanto ia terminar o retiro dos Apostolos : o dia para sem-
pre 'memoravel do PentecoslPs brilhou em o mundo. Pelas nove ho-
ras da manhã , no momento em que se fazia no templo a oblação dos
. pães da nova colheita , eis que de repente se ouve <lesce.F do. Ceo
como um ruido <le vento impeLuoso que relumbou . em toda a caza
em que os Aposlolos estavam junlos; a este primeiro prodigio, suc-
cede oulro mais admiravel ainda e mais expressivo. Vêem-se avpa-
rccer , como umas linguas de fogo que vão pousar-se sobre as. ca-
beças de cada um delles, símbolo aurniravel da unidade da crença
e do amor que ia reinar no mundo ; e desla sorte elles são cheios ·
do Espirito . Santo. Desde este momento a Igreja foi amrnalla -da sua
vida divina e immortal, e os doz~ pescadores da Galiléa se tornam
os Aposlolos do Filho de Deus e os cooperadores do seu mimsterio.
Mudados em novos homens, · hvres de todas as suas antigas fra-
quezas , corajosos e cheios de um ze]o abrazador, começam a fallar
differentes linguas segundo a impressão elo Espirito Santo.
Espalhou-se Jogo a fama deste prodigio em toda a cidade. Ora
neste dia Jcrusalem estava cheio de innumeraveis filhos de Abraham,

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D·E PERSE.VERANÇA. 93
que tinham vindo aquelle anno de todas as partes do mundo , e em
maior numero que de ordinario , porque todo o Oriente estava per-
suadido de que o Messias- ia apparecer.
Tudo correu ao Cenaculo para ser teslimuoha do prodigio ~ e
admirados perguntavam - Estes homens que assim diversamente fal-
1am , não são todos Galileos? Como é possivel que cada um de
nós os ouça fali ar ao mesmo tempo na lirigua do seu paiz ?. . . Ora,
convcrn advertir que estavam alli Parthos , Medos , -Elamilns, homens
· originarios da Mosopolamia, das montanhas da Cilicia da- Capadocia,
do Ponto , da Asia proconsülar, - de que Epheso era a capital , da
Phrigia , do Egipto, da Libia situada para o lado de Cyrene, Odu-
canos , J udeos , Arabes e Cretenses.
A' vista de todo este .povo , S. Pedro , . rodeado dos anze , le-
vantou a voz e rUsse : O prod1gio que vos espanta é o sensivel cum-
primento da predicção de Joel. Eis aqui, disse o -Senhor, pela boca
deste Prophela , • que 11os ultimos tempos do reinado da Synagoga ,
eu. derramarei o meu Espirilo sobre toda a carne ; então eu fàrei ap-
parecer prodigios no Cco e sobre a terra e os. vossos filhos prophe-
tizarão .. E annunciando-lhes depois a prox_ima rui na de JerusaJem ,
accrescentou que aque11es que cressem no Senhor n~o seriam en-
volvidos na horrível calhaslrofe; que Jesus ·de ·Nazareth, a quem ti-
nham crucificado , era o verdadeiro Messias promellido a•seus pais,
e -os exhortou a receber o baphsmo em seu nome para alcançarem
a remissão dos seus peccados e os dons do Espirilo Santo.
Tres nul pessoas se converteram e baptizaram no mesmo dia ;
tal foi o milagroso effeito deste ~rimeiro disgurso. Que novo , pois,
e maior prodígio foi a mudança operada p~la graça em Lantos co-
rações! Viam-se aquelles recentes fiei~ doceis ás instrucções do~
Aposlolos ~ assifluos na oração, commungando juntos na fracção do
pão ; isto é, parlic1pando em commum do corpo e e.lo sangue de Jesu-
Christo realmente -presente debaixo das especies do pão , e espargindo
pela graça de suas . virtudes a sanclificação d'aquelle Deus <le quem
acabavam de receber a gloriosa adop_ção.
Deus confirmava a doutrina dos Apostolos, e a fé dos novos
· ficis por um grande numero de milagres , que tinham toda a cidade
em úm santo temor. Um dia S.• Pedro e S. Joã.o subiam· para u

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CATECISMO

Templo pelas tres horas ·da' larde; era este o momenlo da oração pu'-
bfica pelos filhos de Israel ; e enlão os pobres se reuniam ás por-
tas do Templo rara pedir esm~la: em todos os tempos se tem ju1-
gado que aquelles que frequentam a casa <le Deus são lambem os
mais charilativos. ·
Um homem de quarenta annos , que era coxo , e não podia
mexer as pernas , fazia·se conduzir para alli todos os dias : . colloca-
<lo á porta do Templo chamada a Porta Especiosa menrliga va aos que
eulravam , e ''cndo rhrgar S. Pedro e S. João pedio-lh<'s esmolla.
obsenando-o os do1Js Aposlolos . S. Pedro lhe disse - Põe os olhos
~m nós. Cuidando (flle ia receber alguma cousa elle ·os olhova alen-
tamente. Nflo lenho ouro nem praia, lhe diz S. Pedro, mas don-le
o que lenho. :Em nome ele Jesus tle Nazarelh levanta-te e caminha.
Prof(lrindo eslas palavrtis , S. Pedro toma o honwm pela mão e o
ajuda a levantar-se. lmmediatamen~e suas pernas se firmaram e
elle se poz a antiar e a. saltar. Já bem certo da st1a cura elle en-
tra no TNnplo com os Aposlolos e de novo se põe a saltar em pre-
sença de lodo o povo , e a lou,'ar a Deus.
Nunca houve milagre mais inconteslavel ; a admiração se arw-
derou de lodos os col'ações, e converteu-se, se assim se pode di-
zer, em um exlasi geral. A multidão agglomerou-se em volta dos
dous Aposlolos, e S. Pedro aproveitou a occasião para novamen~e
prégar o Erangelho: lam efliraz foi esle segundo discurso que con-
verteu cinco mil pessoas.
Os sacrificadores e o· centurião du guarda do Templo, irritados
por ver um tam prodigioso acontecimento, lançaram mão dos Apos-
tolos e os melleram em prisão : S. Pedro e S. João alli passaram a
noule; mas perdendo a liberdade, nem por isso se perdrn ou · es-
friou sua coragem , pois já não eram aquelles homons que lremiam
á vista dos inimigos de seu mestre , ou á simples voz de uma mu-
lher. Na manhã tio dia seguinte, reunindo-se o Synédrio, qne era
o lribunal supremo da nação, e mandando vir alli os Apostolos, lhes
perguntaram com que authoridade obravam elles. S. Pedro possuido
do Espirito Santo respouden com fi.rmeza - Pois que é pelo beneficio
que fizemos a uni paralitico , quê hoje somos questionados, e se
nos manda declarar em nome e '"Jm virtude de quem foi. elle cura··

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DE PERSEVIRANÇA. 95 -
tio ; sabei todos • Pl'incipes e Sacerdotes , e -- todo o Israel o sail>a
co~vosco , que foi em nome de Jesu-Christo de Nazareth , que vós
crncificastes , que este homem foi CU1°ado.
Todo o consefho ficou atlonito ao ver a firmeza dos Apostolos
que sabiam não serem mais que uns homens do povo ; mas o mi-
lagre era inconlestavel. Depois de lerem deliberado os JUizes prohi-
biram-lhes que não ensinassem mais em nome de Jesus. Então S.
Pedro e S. João lhes responderam com uma santa iutrepidez ~ Jul-
gai vôs mesmos se é -1icito o_bdecer a \'Ós antes que a Deus. Como
poderemos occullar . o que vimos e ouvimos ., quando Deus nos or-
dena que o publiquemos ?.. Então elles os deixaram ir, mas com
grandes ameaças que não prégassem.
Os dous Apostolos, lendo voltado para o gremio dos fieis ,
contaram-lhes o acontecido : tolla a assemblea deu graças a Deus
reanimando-se para a1tamente publicar mais que nunca a divindade
de Jesus o Salvador. -
Nunca se viu no mundo maior maravilha do que esta Igreja de
Jerusalem ; alli br!l~a vam todas as virtudes, alli st>breludo a charidade,
a grande virtude dos chrislãos reinava com absoluto impel'lo. Os
fieis vendiam seus bens e depositavam o preço aos pés dos Aposto- .
los que os punham em commum : não havia pobres enlre elles ;
lodos tinham uma só fo1'luna , um só coração , uma só alma.
Todavia , um dos fieis chamado Ananias, de commum accordo
com sua esposa Saphira , tornou-se culpavel de ama mentira, ao
parecer bem simples. Tinha elle um campo o qual vendeu , e, re-
servando parte do produclo , veio depositar o resto aos pés dos Apos-
tolos. S. Pedro lhe disse : Ananias, como le tentou Sanlanas o
coração a ponto de c1uereres menlir ao Espirilo Santo, occultando
- parte do preço do teu campo ? Era lua a herança , ninguem le
obrigava a vendei-a ; não é por tanto aos homens que mentiste mas
sim a Deus. No momento em que o culpado ouvio as palavras do
Apostolo caio morto a seus pés. Julgue-se que santo terror cansou '
nos fieis aquella morte : os mancebos c1ue estavam presentes levan-
taram o cadaver , e foram , segando o costume, enterrai-o fora da
cidade.
Continuou S. P(ldro a sua praclica , que durou perto de tres

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CATECISMO

horas, e ·estando ainda fallando chegou a mulher de Ananiàs-, qne


nada sabia do succedido. Dize-me, lhe perguntou S. Perl ro , Sl~ esta
quantia que aqm está é por ventura toci'o o preço porque vendestes
o vosso campo ? Sim: respondeu ella. Para que te ª"·ieslc, pois ,
com teu marido , tornou o Aposlolo , para .lentares ao Espírito San-
to ?. . . Ah1 vem chegando já os que foram enterrar teu marido, ·
eil-os ahi á porta, e vão igualmente couduzir-le á sepullura. A estas
palavras Saphira caio morta : . aquelles mesmos que haviam ido en-
terrar seu marido foram dar á terra seu cada ver.
Este duplicado exemplo de severidado 'produzio seu effeito, lodos
ficaram penetrados da grandeza de Deus , e do terror da sua jus-
tiça. O numero dos fieis augmentava diariamente : Jerusalem mu-
dava insensivelmente de face , até pode ser que toda se convertesse,
se os que a governavam não fossem pela mâior parte homens im-
pios e orgulhosos , qae não se lembravam d'outra · cousa senão de
destruir o que chamavam a nova seita ; mas os meios pelos quaes se.
propagava o Evangelho desconcertavam lodos seus esforços e planos :
esses ·meios eram os ·milagres, constantes, visiveis , continuos. S.
Pedro era o que mais milagres . fazia , e algumas vezes sem eJle
mesmo o perceber; chegava a ponto de exporem os doentes pelas
mas , e trazel .. os em ·seus leitos para as praças publicas , para
que , quando S. Pedro passasse , -a sua sombra tocasse aquelle.s in-
felizes e os curasse. De todas 'as cidades visinhas corriam a Jerusalem.
trazendo os enfermos e os possessos, e todos eram curados.
Como poderia a Synagoga tolerar estes progressos do Evangelho !
Enfurecido o princepe dos Sacerdotes, mandou lançar -os Apostolos em
um carcere : mas um Anjo os libertou ; ordenando-lhes que fossem
aó Te"mplo prégar publicamente a palavra de Deu~. Foi alli mesmo
que segunda vez os prenderam , e os conduziram ao tribunal su-
perior da nação. Nós vos probibimos, lhe diz o-Pontífice, que não
ensinasseis em nome de Jesus , e pelo contrario tendes persuadido
a vossa doutrina a toda lerusalem , querendo assim que sobre nos-
sas cabeças caia o sangue desse homem. Ah ! como a si mesma
se desmente a impiedade ! Não foste tu , ó Caiphas, principe dos
Sacerdotes, não foste tu dos primeiros que pediram q·ue aquelle san-
gue caísse sobre vós e sobre vossos filhos ? Porque o receiais ago-

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DR PERSEVERANÇA. 97
ra? .. Porqne cnmrna1s os. Apostolos, que vos accusam da morte des-
se homem ? Se Jesus_, como havieis asseverado dfanle de Pilatos ,
e do povo , se Jesus ue Nazareth era um impostor , qual a razão
porque agora temeis as consequencias da vossa sentença ? . . S. Pe-
<lro , pois, respondeu sem perturbação : Cumpre obdecer a Deus
antes do que aos homens. Esta resposta , cheia de dignidade e rec-
tidão., de tal modo irritou aos rniquos juízes, que meditavam de
que modo juntariam o sangue <los Discipulos ao do Mestre ; mas
um membro do concelho, chamado Gamalicl, tomando a palavra
fez-lhes esle raciocínio - DesisLi de perseguir esla gente; se o seu
projeclo é obra dos homens, cairá por si mesmo ; se é de Deus ,
de balde Lentais suspender-lhe o passo.
Adoplaram o parecer de Gamaliel. O conselho modilicou o de-
creto de morte, que estava proxim.o a pronunciar, mas mandou afron-
tozamente açoutar os Aposlolos prohibinuo-lhes sevel'amenle que nun-
1

ca mais fallassem em nome de Jesus, e enlão os pozeram em li-


berdade. Longe ~ porem , de ficarem humilhados e e3morecidos, re-
liraram-se os Apostolos cheios de alegria , por· han~rem ~ido julga-
dos dignos de 3offrel' um ullrage por amor de seu ~fe~.,tre. Quem
pode encadear -os raios do sol?... quem , da mesmn sorte , P.e1torpe-
cer as lingnas que Deus mesmo desata ?. . . Apesar dos lraclos e
prohibiçõcs da Synagoga , continuaram. os Apostolas com o mesmo
zelo a publicar a divindade do Salvador. .
Até então el!es se tinham encarregado de repartir entre os no-
vos fieis as esmolas, d~ que os fazram depositarios ; mas augmen-
tando de dia · para ilia o numero dos discipulos, os Apostolas lhes
disseram : NãÕ ·convem que abandonemos a prégação da palavra de
Deus , para vigiar o s~rviço das mezas, e regular minueiosameute o
que deve distribuir-se a cada um ; escolhei entre vós sete homens
da melhor reputação , cheios do Espirilo Santo , e dotados do <lom·
da sabedoria , a fim ele os encarregarmos deste serviço : quanto a nós
empregaremos o _nosso tempo na ,oração e pregação da palavra. Foi
aceite a proposla por um voto unanime, procedeu-se á eleição, e
caio a sorte em Estevão, FilippP., Prochoro_, Nicanor, Ti~on, Par-
menes e Nicolau. Esta cséolha foi confirmada pelos Apostolos ; que.
ora1·am todos pelos novos eleitos , e, impondo-lhes as mãos , lhes
13 · VI

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98 CATECISJ\10

conferiram a ordem do Diaconato , instiluida por Jesu-Chrislo para


dar aos Bispos e aos Sacerdoles ministros inferiores nas sanlas func-
ções inherentes á sua dignidade. ·
S. Eslevão', o primeiro dos sete Diaconos, era um homem chrio
tlo Espirilo Santo; Deus fazia por seu rninisterio grande numero de
milagres, que propagavam rapidamente o Evangelho. Os membros da
Synagoga quizeram disputar com elle ; mas Estevão de tal modo os
confundio, que resolveram perdei-o: peitaram testimunhas falsas, que
depozessem que Estevão blaspheniara contra Moyses e contra Deus.
Reuni-O-se oulra vez o concelho da nação e o rnnocente accusado foi
condemnado á morte. - Apossaram-se <folie e conduziram-o ao lugar
do supplicio. Em tanto que o apedrejavam, o marlyr invocava a
Deus e dizia : Senhor Jesus, recebei a rnrnha alma. Depois caindo
de joelhos , levantou a voz exclamando - Senhor, não lhes imputeis
este peccado , porque elles não· sabem o que fazem. Dilas estas pa-
lavras adormeceu em o Senhor. Assim tinha morrido sobre o Cal-
va rio o principe de lodos os martyres ; assim devia morrer o pri-
meiro dos seus imitadores, e o modelo de tantos mill1ares que o
seguiram.
· Nãn havia para que lamenlar a S. Estevão , que lriumphára no
ceo. _A mesma Igreja , qu_e perdia com a sua morte um ministro
digno della , não aproveitou pouco. com a sna percra. Beus tinha
de tal modo dirigido os successos que 1 lev·antando-se uma perse-
guição nesta occasião , a palavra da Salvação , contida 1lesde o Pl'n-
tecostcs na circumferencia de Jerusalem, espalhou-se nas provinciils,
e desde enlão pôde com verdade· dizer-se, que o ·sangue dos mart y- -
res era a semente dos chrislãos.
Não se sabe, porem, quanto durou esla perseguição contra a
Santa Igreja de Jcrusatem , nem quanlas innocentes victimas se im-
molaram : sabe-se sómente que um dos mais ardenles perseguidores
fo1 um mancebo chama<ló Sanl , que guartlára as vestes d0s algozes
em quanto que apedrejavam a Santo Estevão. Partidista dedicado
do~ pharizeos e <los principes dos Sacerdotes , tinha delles oblitlo
amplos poderes. Elle mesmo refere, que se dirigia em Jerusalem a
todas as cazas, que lhe eram suspeitas de Chrislianismo; que fazia
.
arrastar para a pnsão os homens e mulheres, que confessavam a

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/
j
DE PERSEVERANÇl.
Jesu-Curislo , que os mandava crnelmenlc atol'mentar, e expedia
contra elles os decretos de morte , apressando-se em fazei-os dar á
execução. Tantas violencias não poderam intimidai· os Apostolos,
que llermaneciam constantemente em Jerus"lem ; mas ,obrigaram os
novos discipulos a espalhar-se pelos differentes silios da Judéa e da
Samaria , e a sua dispersão foi a -salvação daquelles povos.
Em quanto que os Apostolos , residindo em Jerusalem, culliva-
vam as suas prime.iras conquistas , os discipulos, dispersos pelo paiz,
prégavam a todos os Israelitas o Evangelho de Jesu-Chrislo. D'es-
t'arte, a furiosa tempestade qu~ queria anniquilar a Igreja nascente,
não foi mais ·que um benefico assopro , que espalhou ao longe a boa
semente. O mesmo tem acontecido com todas as uerseguições ; e os
seculos seguintes nos otferecerão as provas. ,
O Diacono Filippe dirigiu-se á Samaria , e prégou na capital
aoncte se estabeleceu. Os seus discursos , comprovados cada dia po-r
repelidos milagres, dispunham os espirilos a favor do Evangelho;
mas um famoso magico chamado Simão , de tal modo os tinha en-
chido de prejuisos , que foi preciso tempo para dissipar suas illusões.
F1lippe o conseguio emfim com tanta felicidade , que não só con-
verteu os povos seduzidos, mas o mesmo seduclor: Simão renunciou
a magica , confessou a Jesu-Christo, e recebeu o baptismo.
Tanto que o Santo rnacono vio firmada a sua obra, apressou-se
em o noticiar aos Apostolos , cuja nova os encheu de 1ubilo. Como
Fili ppe não linlftl o poder de impôr as mãos ; is lo é de dar a C011-
firmação aos novos baplisados , a Igreja enviou Pedrn e João á Sa-
maria, a fim de admi~istrarem este Sacramento.
Nestes primeiros dias da Igreja nascente , · Deus ajunta-va ordi-
nariamente ás influencias invisiveis do Espirito Santo os sensiveis
dons que se manifestam no exterior , taes como o dom da prophecia
e o co-nhecimenlo das linguas. Este maravilhoso espectaculo atrahio
a curiosidade de Simão. Nada lhe pareceu mais glorioso e apete-
cível do que o poder communicar aos outros estes dons exlraordi-
narios. Offereceu pois aos Apostolos uma som ma de dinheiro , di-
zendo-lhes. - Dai-me o poder de fazer descer o Espirilo Santo so-
bre aquelles a quem eu impozer as mflos. Morra ~comtigo o teu di-
nhei1·0, lhe respondeu
.,,,
S. Pedro , já qnc cresle que os dons de

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100 c;ATECISMO

Deus se obtem a preço ele - ouro. Tu nada tens com este minislerio ;
pois que o teu coração não é recto diante de Deus. Simão ·não se
aproveitou desta admoestação, pelo contrario ,tornou-se o inimigo p~s-'
soai dos Apostolos. A infamia do seu cri mo ficou para sempre· uni-
da á sua nrnmoria , o, - ha mil e oito ccn tos an nos que se designa
pelo seu nome o lrafico das cousas santa~, projeclado por aquelle
impio.
Tendo os Aposlolos concluido, em Samaria o que alli haviam de-
terminado fazer, para g1oria <la Religião , vollarnm a Jerusalem.
Filippe, porem • continuou a sua missão~ e converteu um do~ mi- -
nislros de Candace , rainha de Elhiopia , que tinha findo orar a
Jerusalem. Depois percorreu todo o paiz desde Azot. alé Cezarêa :
reinava ãinda · a paz nestas regiões longiqnas; mas não eslava res-
tabelecida na capital ; a ira publica estava alli constantemente aceza.
e Saul continuava a excitai-a com o mesmo ardor.
Hum dia que cHe estava tQdo occupado nos seus proJeclos con-
tra Jesus Crucificado. soube que em Damasco, um bom numero de
Israelitas tinham deixado l\foyse5i, para seguir_ a Jesus de Nazareth :
immediatamente foi procurar o Summo Sacerdote, pedindo-lhe car-
tas e poderes para as Synagogas daquella cidade, a lim de que se
Jhe permitlisse o apossar-se dos prevaricadores, e conduzil-os car-
regados de forros a Jerusa]em. Acolhida a propos! a , partiu elle
para Damasco , acompanhado de ,a1guns esbirros. Qua1 ·tigre se-
quiozo de sangue corre para o redil , assim corria"' Saul para Da-
masco , não respircfndo senão sangue e malança , quando foi subi-
tamente detido.
No meio ele um bello dia , diz elle mesmo, referindo a sua con-
versão ao rei Agrippa, fiquei en allucrnado por uma radiànle luz
descida do Ceo; ella m~ envolveu completamente, bem como aos
que vinham comigo , e todos caimos por terra como assombrados do
raio. Ao mesmo tempo ouvi eu uma voz que dizia - San], Saul ;
porque me persegues L. Senhor , respondi eu , quem sois ''ÓS? ...
Sou , replicou a voz , JeS'l1s de Nazareth ; a quem tu guerreas ~ não
te obstines pois , que te será mui funesto recalcitrar contra o agui-
1hflo. Tremulo e confuzo , não tive mais força que para dizer estas
·~
duas palavras, - Senhor, que quereis que eu fora? ... tevanla·Le,

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DE PERSEVERANÇA. 101
me disse o Senhor , entra em Damasco, e lá saberás o que te cum-
pre fazer. l.ernntei-me ; mas estava cego ; e aquelles que me acóm-
panbavam me conduziram pela mão até Damasco , aonde fiquei tres
dias sem comer nem beber.
Ora, havia em Damasco um discipulo de Jesus , chamado A'na-
nias : o Senhor atlpareceu-lbe e disse-lhe - Vai á rua que se nomêa
· DirPila, e ahi procura em casa de ·Judas um homem de Tarso, ~ha­
mado Saul. Senhor, respondeu Ananias, eu sei quanto damno eIJe •
tem feilo aos vossos Santos em Jerusalem , e. q0t' veio a Damasco
para prender lodos, os que invocam o vosso nome. Vai, Ananias, -
replicou . o Senhor, nada receies : eu Lenho feito de Saul um vaso
de eleição , pelo- qual destino levar o 111eu nome peránte os gentios,
e os seus reis e lodos. os filhos de Israel. Tranquillisado Ananias ,
parlio no mesmo inslante; e entrando na caza, poz as· mãos nos olhos
de Saul , e lhe disse - Saul meu irmão , o Senhor Jesus que -le
apparecen no caminho, me mandou aqui, para que recuperes a vista
e sejas che10 do Espirilo Sanl~. Ainda Ananias fallava, quando cairam
dos olhos de Saul uma especie de escamas: e logo recobrou a vista
e recebeu Ó baplismo.

ORA.VI.O.
'

O' meu Deus , que sois lodo amor, eu vos dou graças -por ha-
verdes escolhido Apostofos para annunciar o vosso Evangelho, não
sómenle aos judeos, mas ainda aos gentios. Permilli , Senhor, que
recebamos a vossa Santa palavra com ~ mesm;i docilidade com que a
receberam os fieis de Jerusalem.
Eu proleslo amar a i;>eus sobre lodas as cousas , e ao proximo
como a mim mesmo por amor de Deus ; e , em testimunho deste
amor, estudarei cuidadosamente a terceira parte deste Cat~ci'~mo.

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102 CATECISMO

II.ª LIÇAO.

O CHRISTIANISMO ESTABELECIDO

(CoNTINUAÇAÕ no l.º SEcuLo.)

O Evangelho passa aos gentios. - Baplismo do Centurião Corncllio. -


Missões de S. Pedro cm Cezarêa , em Anliochia , rm Roma. aonde
ellc combate Simão o oagico, cm Jcrusalem , aonde é posto cm prisão
por ordem de Herodes ·Agrippa, e lib.erlado por um Anjo: cm Roma ,
aonde S. Marcos. escreve o seu E\·angelho; cm Jcrusalcm aonde eHc
preside ao primeiro· coocilio; e finalmente em Homa. - Vida e missões
de S. Paulo em Damasco , Cezarêa, Anliochia, Chypre, Jconia, Listria
e em Philippes.

Üs Apostolos, que tinham acompanhado o Salvador durante a .sua


vida publica , tinham sido particular e especialmente encarregados
de cultivar a Palestina. Mas a Synagoga obstinava-se de dia para
dia , e o povo deicida enchia rapidamente a medida das iniquida-

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DE NmSEVERANÇA. 103
clades que deviam condnsil-o á sua ruina. Mas , nem por isso o sol
tlr justiça que ,se erguera sobre a judea , havia de exlingui_r-se ;
anles passaria a outros povos para exclarecer no\'as regiões. E' este
maravilhoso transporte do Evangelho que vamos referir.
Imaginai um foco luminoso, donde partam doze raios que , di-
rigindo-se em oppostas direcções , alcancem até ás extremidades do
mmHlo , e tereis feito idea da propagação evangelica. Esse foco lu-
minoso é o Cenaculo , é a Igreja de Jerusalem ; os seus doze raios
são os doze Apostolos. Pal'lindo de Jerusalem ~· uns se dirigem para
o Orienle , outros pai·a o l\'Ieio dia ; aquelle~ vão para o Norte ,
esles vem para o Occidenle; todo o orbe , até ás suas mafs remotas
rxlremitlades , é visitado por algum destes novos conquistadores.
Façamps a biographia de cada um delles , esludando as suas rapidas
· <li vagações , seguil-os-hemos pelo rasto de seus bcneficios e do seu
sangue : comecemos por S. Pedro.
Os Judeos , como já dissemos , iam ser regeita<los , e os Pa-
gãus chamados ao Ernngelho ; mas e1 a preciso que fosse S. Pedro
que lhes abrisse a porta. Cbefc de Ludo o rebanho , e pastor Su-
premo dos estranhos bem como dos filhos do '1prisco, em toda a
parle ellc apparece primeiro. Um dia, pois, em que · eslava em
ora~ão , fpz-lhe Deus saber que era chegado o momento de lrazer as
nações ao redil do Divino Paslor. Havia n'aquelle tempo em Cezarêa
um official romano, chamado Cornetlio , commandante de uma das
cohorLPs da legião ilalica : era esle um homem cheio de religião e
Jemor de Deus , e dava muitas esmolas , acompanhadas de fervorosas
orações. O Anjo do Senhor lhe appareceu, dizendo-lhe - Cornellio,
as tuas orações , e esmolas se elevaram ao lhrono de Deus ; manda
a Joppe procurar um homem chamado Simão, cognominado Pedro,
que habita em casa de oulro Simão, Surrador, cuja casa está pro-
xima ao mar ; delle saberás o que te cumpre fazer. Haven<lo o
Anjo desaparecido, Cornellio chamou dous de seus servos, e um sol-
dado temente a Deus, e os mandou . immediatamente para Joppe.
Era distancia quasi ~e quinze leguas de Cezarêa a Joppe , e os en-
viados não poderam chegar senão no dia seguinte pelo meio dia.
Alé este momento , ainda o Senhor não trnha revelado a Pedro
os designios <la sua providencia; mas em quanto que os enviados

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104 CAH~CISMO

de Cornellio cammhantlo se aproximavam da cidade ; Pedro, segundo


o seu costume , subio ao solão da casa, para orar ·algum tempo an-
les ele tomar algum alimento. Acabada a sqa oração leve fome, e
ped10 de comer· Em quanto se lhe preparava, fot repentinamente
· arrebatado em espírito ; e abrindo-se o Ceo , vio descer delle uma
toalha, que suspensa pdos quatro angulos . se abaixava desde o Ceo
á terra. Esta toalha estara cheia de toda a sorte de animacs, assim
quadrupedes como- repl1s e volaleis.
Tanto que a toalha desceu até proximo do Aposl{)lo uma voz
soôu .que dizia : Lcrnnla-le Pedro, mata destes anirnaes e come sem
dcslincção nem escolha. Ah ! Senhor, replicou o Apostolo , como
poderei fazer tal , eu , que toda a minha vida tenho observado a lei
exaclamenle , e a quem nunca aconteceu comer cousa impura., ou
immunda !. .. A voz replicou - Não lenhas a temeridade de chamar
impuro e immunuo ao que o Senhor purificou. Tres vezes se re-
peliu a visão, lres Yezes Pedro recebeu as mesmas ordens, deu_ a
mesma resposta e ouvio a mesma replica: recolheu-se a toalha ao
Ceo , e Pedro acordou do seu exslasi.
Meditam• ellc como compreender esle myslerio , quando os en-
viados de Cornellio. lendo-se apresl nlado á porta de, Simão o Sur-
1

rador, perguntaram se não era alli que se alojava Simão cogno~


minado Pedro. Ainda elles faltavam quando S. Pedro apparcceu.
Disseram ...lhe elles- o molivo da sua jornada , rogando-lhe que os
qnizesse seguir a Ceiarêa. A chegada destes .gentios tinha uma li-
gação sensivel com a revelação , e o Apostolo compreendeu logo qur.
dalli em diante não haverja mais distincção entre judt•os e gentios,
e. que e~tes povos não deviam formar mais tio que um só rebanho.
Recebeu S. Pedro os mensageiros benignamente e partio com elles
para Cezarêa aonde baplisou o ''irluoso oflicial e toda a sua familia.
Taes foram as felizes primicias da Igreja das nações.
De Cezarêa , dirigia-se S. Pedro a Anlioc.hia, aonde o Evan-
gelho fazia rapiuas conquistas ; . sendo alli que os d1scipulos do· Sal-
vador começaram a ter o nome de chrislãos. Este nome nada con-
tinha enlão , que não fosse honroso entre os gentios; nem alrahia
ainda sobre si perseguições e supplicios ; em tanto que os jutleos o
blasfemavam em Jerusalem era e11e venerado no centro da itlola-

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OE P~RSEVERANÇA. 105
lria . Na partilha do universo , que os doze Pescatlores entre si fi-
zeram , foi S. Pedro · destinado a l~rnr o Evangelh0 á capital do
mundo t·om:ino; mas não cumprio desde logo este designio ; ainda o
momento <la Providencia não era chegado : enlrl'lanlo foi elle , por
com mum consenso dos Apostolas , estabeleddo Dispo de Antiochia ,
que era a capital da Syria.. Crê-sé que elle governára esta Igreja
durante sete annos ; do que não se infere comtudo que alli residisse
constantemente. E' certo, porem, que durante esle inlervallo , o in-
faligavel Apostolo prégou o E\'angelho aos judeos que divagavam em
toda a Asi a, Ponto, Galacia , Bithinia e Ca padocia; e apezar destes
penosos trabalhos, o ''igario do Filho de Deus passava um vida
extremamente frugal. S. Gregorio Nasianzeno nos diz, que elle se
contentava com comer por dia um celamim de tremoços. .-
Entretanto Herodes, cognominado Agrippa , renovou a persé·
guição contra os christãos. Tinha clle já maudatlo matar a S.
Thiago, irmão de S. João E"angelist.a ; e a esta morte lam jnjusla
quiz ajuntar a de S. Pedro. Para isto se apoderaram do chefe da
Igreja e o lanç.aram em um llpcrlado carcere, preso. com duas ca-
1

deas , e ~uardado por dezeseis soldados. que se revesa vi:!m quatro a


quatro, vigiando-o de dia e de noute. Estavam dous sempre junto
tio preso ' e até e provavel o estivessem segurando pelas proprias
cadêas , srgundo o onlinario costume dos romanos ; e outros dous
faziam gentfnella a porta da pri8âo._
Todas eslas precauções de Agrippa não serviram senão de tornar
niais inconteslavel o novo milàgre que Deus queria operar. A Igreja
de Jerusalem rslava cm oração para obter o livramento de seu pai,
e o Senhor ouvio as suas supplicas. Na mesma noule anterior ao
dia destinado para _o supplicio de S. Pedro, um Anjo desceu á pri-
são e acordou o Apostolo , a quem ·tam immine1l-le perigo não im·
pedia de dormir , ordenando-lhe que se vestisse e o seguisse. No
1i1esmo instante clle quebrou suas cadêas, abrio as portas e o conduzia
por entre dous corpos de guârdas,. com uma luz que só elle via, até
além da ullima porta , que era de ferro , e d'ahi o guiou ainda
por uma longa rua até que desappareceu. S. Pedro, que alé aqui,
julgaYa um $onho ludo quanto se passava , só então comprehendeu
que Deus verdadeiramente o havia libertado. Tenllo reconhecido o
H VI

..
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..,

106 CATECISMO

lugar aonde se achava , foi· bater á porta da casa ele Maria ., mãe
de João .Marcos (t)., aonde grande numero de fieis estavam orando.
Veio á porta uma criada chamada Rhode; escutou e reconheceu a
voz de S. Pedro : o espanto é alegria a alucinaram , e tlm lugar de
abrir correu transportada a dizer aos cbrislãos-:- Pc;;dro Pslá á porta.
Estás louca lhe disseram elles - Por certo que não , replicou ella,
porque é elle mesmo. Enganas-te tornaram elles, será talvez o seu
Anjo. Entretanto , Pedro, a quem Rh-0de deixára na rua , conti-
nuava a bater ; abriram-lhe emfim : Pedro entra e é reconhecido.
Não se pode dizer qual foi a admiração e alegria de todos os fieis
quando o viram ; poder-se-ha fazer idea pelo amor que lhe tinham.
Então· o Apostolo lhes f~z signal que se callassem , e contou-lhes
como Deus o havia livrado. ·
Logo que amanheceu , iuformado Agrippa de que o seu preso
se havia. evadi<la, mandou ptir a tormento os soldados ; e como rJeJ-
les nada podesse saber, mandou que fossem suppliciados. A Igreja, .
que tanto havia orado a Deus pelo liv.ramento do seu chefe. lhe
rende graças ainda todos os annos , no primeiro de Agosto, ua festa
de S. Pedro ad vincula.
O Apostulo milagrosamente livre , saio logo tle Jcrnsalem e tli-
rigio-se para as fronteiras marítimas da JlHléa. Alh \'isilon as Igre-
jas nascentes, estabeleceu bispos , semeando por toda a parle o dn-
-plicado beneficio da sua doutrina e dos seus milagres. "'Enríqnecido
com tantos despojos arrebatados ao demonio. emprehendeu S. Peflro
ir combalel-o na propria Roma. Admiravel maravilha !... Aquelle
mesmo homem , que oulr'ora lremêra diante d'uma escrava, ·não
recêa agora ir metter -se em uma cidade, similhante a uma vasta flo-
J"esla cheia de furibundas feras : a sua coragem n'esta ocêasião foi
amda maior do que quando caminhou sobre o mar. ~las , donde lhe
vinha tanto valor , senão do ardente amor que .Jesn Chrislo lhe ha-
via inspirado pelas suas ovelhas , lenrlo-as 'confiado á sua direcção~

[1 l S. João Mar~os era <Jisc1pnlo e primo de S. Barnabé.

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DE PEl\SEHRA NÇA. 101
Encaminhou-se , poi~, S. Pedro para Roma de accordo com os outros
Apostolas, que o tinham destinado para a capital tio mundo, a_fim
de que a luz da verdade se ditfundisse com mais promptidão e efi-
cacia desde a cabeça a todo o corpo , por isso que nenhuma parle
do imperio podia ignorar o que se passava em Roma .
•~oi no st•gundo allilo do reinado do imperador Claurlio , aos
quarenta e quatro de Jesu-Chrislo, que o pescador Gallilêo entrou
na cidade dos Cezares. Elle plantou !l arvore Sagrada do Evange-
lho no mesmo centro da idolatria , e co~o esta planta inteiramente
nova era ainda tenra , Deus , para dar-lhe tempo de crescer em paz,
inspirou ao imperador Claudio um espirito de brandura e bondade
para com os povos , e permittio que etle podesse reprimir em pou-
cos <.lias perigos1ssimas revoltas , proximas a transtornar o imperio.
D'esCarte o Estado ~proveilou da graça que Deus fazia á cidade de
lloma, enviando-lhe o seu Apostolo.
Entre outras conversões, que S. Pedro operou nesta sua primeira
viagem , conta-se. a do Senador Pudencio com sua mulher Prisilla
e seus dois filhos Novato e Timotheo, e suas duas illustre filhas Pra-
xetles e Pudcnciana (1). Hospedou-se o Apostolo com aquella familia,
em cuja casa celebrou os divinos mysterios , ordenou Sacerdotes ,
consagrou a primeira Igreja, isto é o primeiro ~edificio onde os chris-
tãos se ajuntaram, e combateu Simão Mago (2); o qnal _, em lugar
de aproveitar-se da advertencia que S. Pedro lhe fizera em Sama-
ria , cada vez mais· se obstinava na arte magica e ·nos seus d~abolicos
encantamentos. Tinha elle já percorrido diversas provincias, e, con-
duzido pélo demonio , veio lambem a Roma no tempo do imper·ador
Claudio, a fim -de primeiro 'ie apossar da capital do mundo. Com
effeilo , alli fez aquellc impostor lam gran<le numero <le presligios,
que fui mscriplo em o numero dos <leuzes pelo Senado (3) ; e sup-
posto que S. Pedro desde logo llte abalou os credilos, comtudo não
o venceu de todo senão_dl'pois. '

[1] Baron. U.
f~J Euscb. liv. li C. H.
PJ Just. Apor. li P· 69; Euscli . lih. IJ e. u .

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108 C.\H:CISftlO
1

Entretanto approveitou o Apostolo a sua estada em Boma para


escrever a sua primeira Epistola , que endereçou a~s fieis do Ponto,
da Galacia , .Azia e Capadocia. Dirige-se esta Epistola em particu-
lar aos Jmleos convertidos e dispersos por aquellas províncias, mas
tambem se entende com os que tinham abraçado a fé , e é escripla
com uma dignidade e vigor digno do prindpe dos Aposlolos (1).
Os principnes companheiros do chefe da Igreja nesta primeira
' iagem foram Santo Apollinario , que S .. Pmfro consagrou Bispo de
1

Ravenna; S. Marcial que enYiou ás Gal lias ; llnffo que estabelecru


Bispo de Capua (2) ; ma~ o mais celebre de todos foi S. Marcos Evan-
gelista ; o qual , em quanto esteve em Roma, escreveu o seu Evan-
gelho a rogo dos Christãos, e particularmente- dos c2valheiros roma-
nos ,. a quem S. Pedro tinha aununciado Jesu-Christo (3). Elle o es-
crr.ven de alguma sorte pelo que lhe diclou s~ Pedro, e depois o levou ao
Egipto para onde foi enviado pelo chefe da lgrej~.
Entretanto o pescador da Galliléa havia quasi sete annos qur tra-
balhava em estabelecer o irnperio da -cruz na mesma capital dos Ce-
zares, quando no anno de 51 de Jesu-Christo, e no seplimo do im-
perarlor Ciaudio , um edicto obrigou todos os judeos a sairem de
Roma. S. Pedro partiu irnmediatamenlc para o Oriente e veio ce-
lebrar as festas da Paschoa a Jerusalem. Alli presidio no mesmo
anno ao Concilio que se celebrou n'aquella cidade, e o qual drcidio
que não se obrigai·iam os gentios baplizados ás obsenancias .mosai-
cas , como queriam certos judeos convertidos.
. Os Aposto los exprimira IH a sua decisão , á qual toda a Igreja
se submetteu , por estas me·moraveis palavras - Approuve ao
Espírito Santo e a nós- que bem denotam a Omnipolencia e irifal-
libilidade do collcgio apostuhco. Depois do Concilio de Jcrnsalem ,
continuou S. Pedro com o mesmo ardor a cumprir a sua grande
missão de governar e apascentar os cord~iros e as ovelhas.

(1) Esta nota é de um protestante. YCJa-se Gracio, in Epasl Pelr.


e. 1 , tom. VIII , Crilic. Sacr p. q 7.
(2) Baron. ad ann. H.
(3} . Euseh. liv. ll C 15.

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' 109
Quasi aos cinco anuos depois da sua partida de Roma ; istJ é
aos cincoenla e nove annos de Jesu-Chrislo-·, e no terceiro do reinado
de Nero, voltou elle a Roma, tl'onde nunca mais sahiu. A chegada
de S. Pedro augmentou muito a ·Religião na capital do mundo; mas
o demonio, furioso por ver ,fiminuir alli o seu imperio de dia para
dia , esgotou toda a sua sanha e artificio cm suspender os progres-
sos do Evangelho. Nero seu digno ministro, excitou a violenta per-
seguição, que trouxe a S. Pedro a Corôa do martyrio.
Tinha o Salvador depois tia sua resurreição , revelado ao Apos-
tolo o modo como havia de glorilicar a Deus na sua velhice , e de-
pois lhe deu a conhecer o tempo e o lugar aonde islo havia de ,·e-
rificar-se. Sabendo , pois , que breve sairia do seu corpo mortal,
quiz S. Pedro aproveitar o pouco tempo que lhe restava para ª''ivar
a piedade dos fieis , e recordar-lhes as verd~tles que lhes linha en-
sinado. Para isto escreveu a sua segunda Epistola , que endereça,
como a primeira, aos fie1s do Ponto e Asia, e que é para assim di-
zer , o testamento do chefe da lgrrja.
Antes porem de referir a morte de S. Pedro , ·foliemos d'aquelle
que havia de ser seu glonoso · companheiro, e partilhar da sua vi e-
lo ria depois de ler participado dos seus combales. Este novo con-
quistador, saido da JUd~a para submeller o mundo ao imperio da
Cruz, era Saul. Nascido em Tarso , cillade da -Cilicia , da progenie
de Abraham e da tribu de Benjamin, era elle lambem por seu nas-
cimento cidadão i·omano ; porque Augusto. por gratidão aos habitan-
tes de Tarso , que tinham sempre mostrado muita afeição á casa dos
Cezares , sendo por isso muito mal tratados de Cassio , um dos as-
sassinos de Julio Cezar , . em quanto esteve Senhor d_a Asia , entre
outras honras e bens com que os agraciou , concedeu-lhes o fôro de
cidadãos romanos.
O joven Saul foi enviado a Jerusalem , e educado por um cele-
bre doutor cbamadÔ Gamaliel. Era costume e.ntre os 1udeos darem
um officio áquell('s que aprendiam as Santas lellras; ou fosse a fim
de que ·tivessem sempre um meio de grangeal' sua subsistencia, ou
para lhes evitar os desvarios que nascem sempre da ociosidade.
Assim , p_ois, é provavel que foi durante aquellc tempo que Saul
aprendeu o officio de fazer lendas que exercia mes~o prégando o Evan-

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110 CA l'ECISllO

g~lho. Pharizéo zelozo , Saul se declarou perseguidor dos christãos ;


mas lendo-se convertido; como já vimos , no caminho de Damasco,
desde logo se tornou o mais al'(ltrnte propagador cio Evangelho.
A conversão dos gentios fui a sua missão. Damasco foi o pri-
meiro thealro da sua prégação , e d'ahi passou á Arabia, onde es-
teve quasi lres annos, _e donde outra vei voltou para' Damasco. Os
judcos não podendo já. levar com paciencia as vantagens que a Igreja
tirava da sua conversão e dos seus discursos, tomaram a resolução
de o malar. Saul , porem fot avisado disto , e os discípulos para
lhe salvarem a vida , o ilesceram durante a noule, em um cesto, por
uma jan<.~lla que havia na muralha da cidade. Livre do perigo ,
Saul tomot1 o caminho de Jerusalem para ver S. P~dro. Convinha
que antes de . partir para a sua grande missão, prestasse obediencia
ao chefe da Igreja. De Jerusalem passou Saul a Cezarêa , depois a
Cilicia , demorando-se algum tempo em Tarso , lugar do seu násci-
mento. Alli veio -ler com clle S. Barnabé, seu amigo, que prégavà
em Anliochia , a fim de tomar parte cm seus trabalhos - « elle veio
procurai-o , diz s. João Crysoslomo , não só como seu particular
amigo, mas como um general da milicia cbrislã, um leão , uma
alampada brilhante, uma boca capaz de. fazer-se ouvir em toda
a terra (1 ). » Permaneceu Saul um anuo inteiro na cidade de An-
liochia, que , -por suas frequentes prégações, se tornou C<'lebre em
todo o universo. Alli , como já dissemos , começaram os discípu-
los a ter o nome de christãos; nome que lhes foi dado pelos mesmos
Apostolos.
Em quan_lo Saul estava em Antiocbia , sobreveio uma gr~nde
fome no Oriente. Foi no quarto anno do reinado do imperador
Claudio, aos quarenta e Ires annos de Jesu-Clrrislo. Deus, que fazia
convergir todos os acontecimentos para o estabelecimento do Evan-
gelho, servio-se d'aquelle mesmo · flagello para tornar os. ~hrislãos re-
commenda veis , e unir os gentios , de que era qnasi toda a Igreja

(1) Chrys. hom. XXV.

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ni.; PERSEVERANÇA. H1
ele Autiochia , com os judeos que se tinham convertido D_!l ju{iea ;
por quanto , ba vendo estes , por amor da fé, deixando os seus bens,
ou sendo-lhes .tirados .por seus inimigos , resolveram os de Anlio-
chia soccorrel-os. . Encarregaram-se Saul e Barnabé de lhes tirar as
esmollas, e elles mesmos partiram para Jerusalem e as entregaram
aos Sacerdotes para serem distripuidas. Na volta para Antiochia elles
receberam a imposição das m~o3, e resolveram deixar _aquella ci-
dade querida aonde a fé eslava para sempre plantada e baslante-
mente firm~. Dirigiram-se os tlous amigos para Chypre , aonde en-
Lão .era governador o Proconsul Sergio Paulo , homem sabio e pru-
dente. Desejoso de ouvir a palavra de Deus, mandou chamar Saul
e Barnabé: mas, tinha junto de si um judeo magico e falso profeta,
chamado - Barjesu , que se oppunha aos Aposlolos , e fazia todas
as diligencias para evitar que o Proconsul abraçasse a fé ; Saul ·
fez-lhe perder a vista, reduzindo-o a precisar d~ quem o guiasse.
Commovido por esle milagre, o Proconsul converteu-se. Igualmente
se rrê rp1e por meio desta cegueira , de que depois foi curado ,
abrandúu Deus o coração de Barjesu , e dando-lhe o esririto' de
pPnilencia lhe abrira os olhos <la alma com os do corpo , a fim de
que visse não só o sol que esclarrce o mundo das intelligencias, como
o que allumia o mundo material (1). Em memoria da converção do
Proconsul, tomou Saul o nome de _Paulo , r1uerendo assim celPbrar .
o glorioso triumpho que Jesu-Christo havia obtido pelo fraco minis-
terio do ultimo dos seus· Apostolos.
Paulo e Barnabé passaram. successivamenle a novas conquistas.
Depois de haverem -percorrido , e evangelizado uma parte da Asia
menor, chegaram a Iconia. Foi alli , segundo a commum tradição,
que o Aposto) o das gentes converteu Santa Tecla , e lhe persuatlio a
consagrar a Deus a sua virgindade. · Em Listria curou um homem
coxo das pernas' e que nunca linha andado : digamos como este
milagre foi feito. Vio Paulo aque1le en!érmo entre os seus numero-

,.
(1) Orig. io Elod. XXVll.

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1U CATRCIS&10

sos ouvinles, e es.clarccido por uma luz divina , leu em sua alma
a ,sua fé e o seu dC's(ljo de conhecer a verdade. Repentinamenle o
Apostolo inlerrompe o seu discurso, e clamando com voz forte disse
áquelle homem - Levanta-ld e firma-te em teus pés. Para logo ex-
perimenlou o enfermo qual era a e,:icacia do preceito de um Apos~
tolo de Jesu~Christo, que falla em nome de seu mestre; e fez mais
do que se lhe havia onlenado , pois começou a saltar e a andar
diante de todos. Proiluzi l este milagre um prodigioso effeilo ; lodos
1

os assistenles clmaram - Estes são deuzes disfarçados cm figura hu- ·


mana: e no mesmo instante esla loura phantesia se apoderou ue-
todos os espíritos. Só restava dizer que deuses eram , no que lam-
bem não houve duvida. Barnabé era mais velbo _do que Paulo e de
estatura mais corpolento ; fizeram-no Jupiler. Paulo que tinha o dom
da palavra, e prégava com grande eloquencia , tomaram-no pelo
interprete do maior dos deuzes, e chamaram-lhe l\f ercurio. O Sacer-
dole de Jupiler, correu a · buscar corôas para os novos deuz\.es.
mandando trazer novilhos para os immol~r em sua honra. Paulo e
Barnabé, vendo o que se passava , rasgaram os seus vestidos, e
lançando-se no meio da multidão clamavam quanto podiam, dizendo;
Que fazeis ! nós somos mortaes e homens como vós , que só viemos
conjurar-vos a que renuncieis os vossos falsos deuses , e vos ron-
verlais au Deus vivo , que creou o Ceo e a terra.
e
Estas palavras, o horror que moslravam ao sacrilego culto que
lhes queriam lributar , mal poderam impedir que não se lhes immo-
Jassem as victimas. Tudo era porem um !aço que o demonio lhes
armava, e de que sairam dando gloria a Deus pela sua humildade,
bem como lha llavam pela sua paciencia nas perseguições. Tambem
não tardou que experimentassem quanto são vertigjnosos e fallaces
estes applausos. populares.
Ainda durava a conlestação com os habitantes idolatras de Lis-
tria , f)Uando chegaram emissarios enviados pelas Synagogas de An- .
tiochia e de lconia; os quaes por suas declamações tle tal modo
w mudaram o animo do povo, que c·onsenlio, que os ju<leos apedre-
jassem a S. Paulo ; e julgando-o morto o arrastaram para fora da
cidade. Foi assim que Deus o punio das pedradas que havia atirado

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DE _PERSEVERANÇA. 113
contra S. Eslevão, pelas mãos dos outros, expiando o peccado com-
- metido pelo sofrimento de igual supplicio.
Estavam satisfeitos os judcos ; mas Paulo não estava morto ;
pois que no mesmo dia voltou para a cidade. Entretanto , para
não irritar mais os perseguidores, saio d'all1 no dia seguinte, dirigindo-se
a Derbe com ·s. Barnabé. Numerosas ''iclorias coroaram sua coragem.
Voltaram depois para Lyslria e Iconia, ordenando Presbyleros n'a-
quellas Igrejas com orações e jejuns, exhortando os fieis a perseve-
rar na fC, e )(>mbrando-lhcs que e p.or meio ·de muitas tribulações
que haremos de entrar no reino de Deus.
No anno 47 de Jesu-Christo, tornaram os dous Aposto]os para
Antiochia ; mas Paulo .não se démorou alli muito tempo. Elle foi
levar o Evangelho á Çapadocia , ao Ponto, á Thracia, a l\Iacedonia
e .até á lllyria. Similhanle a uma nuvem dívina, impellida pela
aura da charidade , assim aquelle vaso de eleição col'ria por l.oda
a terra , para por toda derramar o orvalho vivificador da palavra
de Deus. Cinco annos depois estava elle e·m Philippes cidade de Ma-
cedonia, aonde· converteu, entre outros, a uma -mercadora de pur-
pura chamada Lydia. Reoebcu aquella mulher o baptismo com toda
a sua familia , e obrigou S. Paulo e seus companheiros a hospe-
dar-se em sua casa, para pro''ª de que elles a jufgavam fiel ao Se-
nhor.
Desta casa se esforçava S. Paulo em ganhar para Jesu-Chnsto
a quantos se apresentavam para o ouvir. Um dia qae os obreiros
evangelicos se dirigiam para a oração , ~ encontraram uma donzella
possessa de um ~spirilo maligno, q~e revelava todos quan~os se-
gredos o dernonio pode revelai·. Tinha elia estado , ao serviço de um
bando de impostores, e o seu ma.hJito talento de advinbação, , com
que em l.odos os tempos os homens se leem illudido, era um ma-
nancial de riquezas para seus amos.
Quando iamos passando , diz o historiador sagrado , reparamos
n'aquella donwlla, que começou a seguir-nos e a grilar: Estes ho-
mens são os servos do Deus allissiíno , ellcs vos mostram o cami-
nho da salvação : Paulo deixou fallar ; mas por fim, aborrecido d'a-
quelles artificiosos louvores , ordenou ao demonio que sahisse logo
do corpo da donzella , e f-01 prornptamenle obed(>eido : mas a sor·
15 VI

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114 CATECISMO

ditla avareza, que se havia apossado dns amos da pobre rapariga, fez
que desesperassem pela verem curada. Não ousando, porem , con- '
fessar a sua paixão , quizeram occullal-a pretextando um crime de
Estado. Apoderando-se pois de S. Paulo e de Si!ás , arraslaram-os
para a praça publica , e os apresenlaram aos magistrados , dizendo :
Eis aqui dous homens que põe a cidade em alvoroto. Os juizes, sem
mais exame , os mandaram açoutar com varas, e lançar no carcere .
.Melleu-os o carcereiro em uma enxo\'ia , lançando-lhes cêpos aos
pés , o que os constrangia a estarem deitados de coslas, sem pode-
rem por-se em pé.
·Tantas ignomnias, longe de os abater, lhes causaram uma
santa alegria, de tal sorte que alia nonle se poseram a orar e a
louvar a Deus com lanto ardor, que os outros prezos os Oll\'Íam. Ao
mesmo tempo qniz Deus mostrar qual era o podei· de uma tal ora-
ção : abalaram-se os alicerces do carcere, as portas abnrani-se, e os
proprios grilhões de todos os presos se despedaçaram. Acordando a
isto o carcereiro , e vendo as portas abertas, julgou que os prezos
se tinham ~scapado ; e como por el1es respondia a sua cabeça, lan-
çou/ mão da t~spada para matar-se. S. Paulo o vio , não obstante
não se ler ainda trazido luz , e gritou-lhe : Não faças lal, nós esta-
, mos aqui. Mandou o carcereiro [razer luz, e entrando no carcere de
Paulo e Silas todo tremulo, cahio a seus pés. Depois conduzia os Sa1i-
los ao seu alojamento , la vou-lhe as feridas e lronxe-lhes de comer.
Meus senhores, e meus mest.res , lhes (hsse elle , que devo eu fazer
para me salvar? Crê no Senhor Jesus , lhe disseram elles. Creo o
carcereiro, e foi baplizado com toda a sua familia.
Logo que amanheceu·, mandaram os magistrados os liclores ú pl'i-
são , com ordem de soltar os dous presos. O carcereiro apressou-se
a dar-lhes esta boa nova : então S. Paulo, que não se havia queixado
quando fora açoutado e metido no carcere, levanlou a Yoz e disse :
que era muilo para estranhar ·que de tal modo se livéssem ultrajado
dous cidadãos romanos ; e que depois de um tal procedimento ape-
nas se mantlassem soltar, sem dar-lhes nenhuma satisfação (1 ). Não,

(1) Os cidadãos romanos -goza\'am grau1lcs privilcgios, as leis 111uilo

,_

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DE PERSEVERANÇA.
- disse elle ·, isto não deve passar de s1milhanle maneira ; cumpre que
os mesmos, que aqui nos meteram, d'aqui venham tirar-nos. Julgou
o Aposto) o conveniente atemorisal-os deste modo, a fim que os fieis
desta cidade Li vessem mais descanço e liberdade. Os magistrados
todos rece.osos vieram á prisão, pec~indo aos dous Santos que sa-
hissem e se retirassem. Desde então conservou Paulo sempre 1Hlla
lerua lemhrança dos christãos de Philippes ; e estes _ igualmente o
amavam como a seu Pai. Foram estes seus filhos mui queridos, que
. depois vieram a Corinlho, trazer ao grande Apostolo as cousas de
que necessitava , procedendo de igual m-0do mmto tempo depois ,
quandp elle eslava preso em Roma.

- ORA.Ç.10

O' meu Veus ! que sois Lodo amor , cu vos dou graças pelo
admiravel zelo com que animastes a S. Pedr:o. e a S. Paulo : dai-nos
a docilidade dos primilivos fieis.
Eu protesto .amar a ·Deus sobre todas ,as cousas, e ao proximo
como a _mim mesmo por amor de Deus , e, em -testemunho d'esle
amor , ouvirei as santas instrucções com grande desejo de apro-
veitar-me de/las.

principalmente prohihrnm que fossem açoutados com varas. Cl1rys. it&


Act. homil. XLVllI.

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11G CATECIS.l\10

III.~ LIÇlO.

O CHRISTIANISMO ESTABELECIDO. ·

(CoNTINUAÇAÕ no l.º SEcuLo.)

"Missões de S. Paulo cm Thessalonia , cm At~cnas, perante o Areopago ,


em Corintho, em Epheso, e cm Jerusaleru. E· · prezo e enviado a Ce-
zaréa. Par~e para Roma - .\colhimento que alli teve - Ainda mesmo
prezo préga o Evangelho - Torna para o Oriente, don'<.te Hlla a Roma,
aonde entra com S. Pedro - Morte de Simão o magico. - Martyrio de
S. Pedro e de s. Paulo.

TENDO Paulo e seus companheiros saido de Ph11ippes, vieram para


Thessalonia, cidade celebre e .capital da província. Era Paulo, pelo
, seu especial destmo, o Apostolo das gentes; e era ºpor este titulo
sobre tudo, que os filhos de Jacob, juÍgando-o naturalmente con-
trario aos privilegios da sua lei, ·se declararaffi'" por seus maiores ini-
migos. Com tudo não deixava elle de os procurar em todos os lu-
gares, aonde estabelecia as suas missões, e prégou fres sabbados na
Synagoga de Tbessalonia. _Não fo~ inutil a sua palavra , pois con-
verteu alguns judeos e um grande numero de gentios. · Pela sua cons-

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DE rERSEV~RANÇA. 117
tancia , zelo e charidade se tornaram esles novos christãos o modêlo
de todas as Igrejas.
Interessava-se o Apostolo por elles como uma terna mãi por
- ~eus filhos; no excesso do seu amor não cuidava só em dar-lhes o
conhecimento do Evangelho ; mas a sua propria vida. Elle os .exhor-
tava, consolava e conjurava a que obras sem sempre por maneira digna de
Deus, e da gloria a que os tinha chamado : ensinhou-lhes a obrar
bem as menores acções e particularmente o·s seus trabalhos manuaes
de que elle mesmo lhes dava o exemplo.
Entretanto os judeos endurecidos resolveram desfazer-se dos
novos prégadores; mas advertidos a tempo da borrasca que os amea-
çava , Paulo e Silas partiram para a cidade de Beroa. Para logo
alli fructilicou o Evangelho ; mas t.endo chegado emissarios de Thes-
salonia para amotinar o povo , viram-se os ch1:istãos · obrigados a
conduzir S. .Paulo ao porto e fazel;o embarcar. D~est'arte perniiltia
Deus, que-o sopro da perseguição levasse de cidade em cidade aquella
nuvem beneficen~e, a fim que derramasse ao longe a chuva salutar
de que estava prenhe: tanto é verdade que nás mãos da Providen-,
eia as mesmas paixões dos homens servem ·ao cumprimento dos seus
adoraveis desígnios.
Acompanharam o Apostolo alguns christãos de Beroa até Alhe-
nas , aonde Sitas e Timolheo tinham ordem tle se reuni-r a elle. A-
thenas tinha sido o ponto da reunião geral dos mais bellos espiritos,
e dos maiores philosophos ; e era ainda a cidade mais civilisada e
amante das bellas letras. O fructo porem , que disto tinha tirado,
era não haver cidade, excepto Roma , mais cheia de idolos e su-
perstições. Adoravam-se alli todos quantos falsos d,euses se sabia
serem adorados dos outros povos ; e receosa a cidade de ter esque-
cido algum quP não conhecia , tinha levantado uma ara com esta
inscnpção - Ao Dei1s desconhecido.
O zelo dºs ALhenfonses pelo erro , animava o de Páulo pela
veruade, a ponto de finar-se de dor. Elle prégava aos judeos nas.Sy-
nagogas lodos os sabbad('IS ; e todos os dias na .praça aos que alli
~e encontravam , e nunca lhe faltavam ouvintes; porque os habi-
tantes de Athenas pareciam não ter outra occupação mais, que a de , - -
1

· passear e espareccr a sua ociosidade em dar e. saber noticias. ~ra

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118 CU~CISMO

a cidade igualmente povoada de Stoico:; e rle Ep1curi slas, homen:s


curiosos de Loda a nova doutrina , e vinham por is<;o em mullid1io
ouvir o discu·rsador, que era e te o nome que davam ao Apos-
tolo. A principio contentaram-se com rir delle ; mas depois o con-
duziram ao Areôpaao para que alli desse rasão da sua doutrina. O
1

Areopago era o Senado de Alhenas ; e nada ha ma is celebre na his-


. toria do que esta illnstre assemblea , considerada , como oraculo da
verdade , da regra_ e do bom gosto.
Tambcm poderíamos dizer que nunca houve mais cdebre sessão
do que aquella em que Paulo appareceu diante desta Academia. O
ChrisLianismo e o paganismo , que desde longo lempo pareciam pro-
curar-se, achavam-se em fim cara a cara. e iam lactar peito a peito.
De um lado viam-se os representantes de todas as sei tas philosophi-
cas da antiguidade, com o coração lumido de orgulho , a cabeca
cheia de preJnizos e argumentações, a língua habil em tecer o so-
phisma. Oo outro lado estava um estranho , um judeu de pequena
eslalura_, e cujo exlerior nada tinha que podesse impôr respeito. Que
poderia haver mais dramatico e interessante do que similbante con-
traste (1)? .. Logo que todos -º~ juizes se assentaram , Paulo appa-
rcçeu na barra : que irá elle dizer?... Para sentir-se toda a sublime
simplicidade do seu discurso , cumpre notar bem, que cada uma das
suas palavras é como um golpe de martell\), _,que reduz a pô algum,
e mesmo muitos dos systemas que elles tinham de Deus, do bo-
.mem , e do mundo ; e de que os seus juízes eram os parlidarios ou
os apostolos. A fim porem de os não atacar ele frente , Paulo não
combate direclamente a philos·ophia ' nem o paganismo' expõe s1m--
plesrnente a verdade; e deixa aos seus ouvintes tirar as consequen-
cia. Eis. . aqui o seu admiravel discurso
Cidadãos de Athenas, tudo qnanlo aqui vejo me annuncia que

(1) Tres cousas desejara eu ler visto , diz S. Agostinho: l\oma em


um dia de triumpho, Cirero harengaodo na ·tribuna , e S. Paulo pcrantê
o Areopago.

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.
119
sois excessivamente religiosos ; pois que percorrendo a vossa cidade,
e examinando os Simulacros dos vossos deuses , encontrei um altar,
no qual li esta inscr1pção ·_Ao Dezis desconhecido~ Ora, o que vós
adorais sem conhec.er é o que vos annuncio : é o Deus (}Ue fez o
mundo e tudo quanto ha n'elle. s~nhor do Ceo e da terra, não ha-
bila em templos fabricados por mâos ue homens ; e se recebe · as
houwnagens dos morlaes , não é porque lenha pretisão de cousa al-
guma, pois que só elle dá a lQdos a vida , o alento e todos os
mais bens.
E' elle que de um só homem fez sahir lodo o genero humano,
para habitar a terra , marcando a cada homem o tempo ela sua vida,
e a cada povo os limites da sua possessão. Era seu designio que
os homens o buscassem em suas obras , e c1ue depois d~ o ha\'erem
encontrado lhe tributassem as suas ad ,rações; porque elle .. não es1á
1

longe ele cada um de nós. E' por elle que lemos a vida , o mo-
vimento e o ser; e é nesle senlidu que alguns dos vossos poetas
disseram : Nós somos da linhêlgem de Deus.
Ora, sendo nós lilho~ de Oeus, nfo devmnos crer que a Divin-
dade seja alguma cousa similhanle aos simulacros d'ouro , prata ou
pedra, obras da arte e da rnvensão dos homens
Deus , porem , depois de ler dissimnla:lo estes tempos de igno-
rancia e cegueira ; manda agora annnnciar a todos os homens e em
· todos os lugares da terra , que lhrs importa fazer penillrncia dos
seus voluntarios desvarios ; ponpie elle tem dete rrninado um dia. no
qual julgará todo o mundo com nma Sl!JJrema justiça~ pelo ministerio
de um homem, a· íJUem deu o seu poder, e disto nos deu induvi-
tavel prova, resuscitantlo 0sse homem d'enlro os mortos.
E' imposs1vel imaginar cousa mais proporcionada á disposição
dos ouvintes. e mais conforme ás suas presentes luzes, do que esle
discurso do grande Apostolo.
Tinha clle visto na cidade de Alhenas um altar erigido ao Deus
desconhecido, e d'ahi tira occasião para despertar no anin10 dos
Athenienses idolatras e supersticiosos a ideia tam natural, - que as
obras de Deus produzem em todos os homens , de um Creador ,
Senhor e Juiz; fazendo-lhes sentir deste . modo, quam desviadM an-
davam da primeira de todas as verdades. Depois accrescenta que

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no CATECISMO

Deus quer pôr fim a esta culpavel ignorancia ; que lhes cumpre con.:
verterem-se, porque elle julgará o mundo; que este juiz existe , e
que para dar testimunho da. soberana auctoridade com que o enves-
tio, o mesmo Oeus o resuscitou d'enlre os morlo.s.
D'csl'arte a unitlacle·, , espiritualidade e stimma perfeição de Deus,
a c'reação do homem á sua imagem, a sua queda, a necessidade que
tem de fazer penitencia, porque ha-de dar conta <las suas obras; a
creação do mundo , destmado a re~elar-nos a existencia de Deus ;
tal é o simples, mas sublime symbolo · que o Aposto.lo expõe: e
eis-aqui lodos os syslemas dos philosophos sobre a pluralidade dos
deuses, a eternidade do mundo , os alomos creadores, a n:itureza
• da alma e seu fim • derribados e reduzidos a pó. Qual foi , porem, •
o fructo tl'este discurso, o mais bello, _sem duvida, que jamais sa-
hiu da boca de um simples mortal 'L .. Aquelle mesmo que a pa-
lavra de Deus ainda hoje diariamente produz. Ninguem ouviu re-
plicar; alguns riram-se, eram os ímpios: outros adiaram o assumplo
para outra OCCasifo; laes OS indilferentes; Um -pequeno nume!'O crêo;
1
eis os fieis. Em o numero d esles ullimos entrou um dos membros do
Areopago, chamado Dionizio , que veio a ser o primeiro Bispo de
Alhenas (1).
Sahindo do- Areopago. soube Paulo que Timolhe~- linha chegado.
Acompanhado deste discipulo querido ; sêlhiu da cidade , aonde re-
conhecera que a seara não eslava ainda madura , e chegou breve-
mente a Corinlho , capital de loda a Grecia·.
Situada cnl-re dous mares, que a faziam o centro de todo o
commcrcio do Occidenle , era esla cidade mui pov.oada e rica. To-
dos os vicios; mas sobre tudo a impudicicia, alli reinavam por ma-
neira incrível. S. Paulo fo1 alojar-se em casa de Aquila e Priscilla
sua mulhe'r: escolheu ~lle a casa destes porque eram judeos, e exerciam
o seu· mesmo officio. O Apostolo trabalhava juntamente com ~lles;
porque em Corinlho , muilo mais que em qualquer outra parle, não
qüeria receber o seu su·stento d'aquelles a quem prégava. A abne-

/ '

tl) E de Paris segundo ama .bem ruo dada tradição.

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DE PERSEVERANÇA. 121
gaçâo , as orações , o zelo do novo missionarlo pro<luzfram o seu
effeito ; apesar de lodos os obstaculos Paulo plantou a fé em Co-
rintho. Foi alli que Timolheo , que linha ido a Thessalonia, veio
reunir-se-lhe com Silas. Ambos lhe foram de grande consolação,
tanto pela sua presença., como pelas boas novas que lhe trouxeram
dos seus queridos Tllessalonicenses. Foi a estes fervorosos neophytos
que elle escreveu a sua ·primeira .Epistola, para os felicitar e animar
sua fé. -
Dezoito mezes esteve o Apostolo em Coríntho : d'ahi passou ás
dilfercntcs provincias da- Asia ; veio a Jerusalem, e voltou depois para
Êpheso , onde se demorou lres annos , para funda-r aqnelh:t Igreja ;
que depois S. João havia de firmar com sua presença e honrar com
· a sua morte-. E' im possi vel descrever tudo quanto o grande Apostolo
teve qu·e sotfrer, para' cultivar este terreno bravio. Elle mesmo nos
refere, que não se passava dia que não· se v.isse exposlo a morrer.
Uma vez, entre outras muilas, se apoderaram delle e o lanç.aram
ás feras no amphithealro ; mas Deus o livrou.
No meio de lanlos perigo~ e trabalhos , o infaligavel Apostolo
e~creveu a sua Epislola aos Gaiatas.
Tinham esles fervorosos christãos deixado-se illudir por falsos
doutores , que queriam obrigai-os ás observa.ncias mosaicas ; o que
importava natla menos que a ruina do Evangelho. S. Paulo escre- ·
veu-lhes, com energia proporcionada ao seu zelo, e á imporlancia do
mal que combalia. Por este mesmo, tempo escreveu Lambem as suas
duas Epistolas aos Corinlhios. Tudo quanto a firmeza, a charidade
a mais esclarecida e terna, a prudencia dirigida pela fé, podem
inspirar, eslá reunindo nestes dous monumentos do zelo aposto ..
l1co. ·
Entretanto começava a boa semente a germinar ; Epheso contava
já grande numero de christãos ; mas a contradicção é o ·Sello das
obras de Deus ; e não podiam tantas conversões t.leixar de excitar
novos combales contra o Apostolo. _
Drnna , deosa da caça , trnba em Epheso um templo, que passa..
va por uma das maravilhas do mundo ; ·todos os idolalras o tinham
em veneração. Aquelles que se dirigiam a Epheso nunca deixavam ·
de venerar aquelle templo , e para prest~rem oblações á deosa, cos--
16 - VI

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1U CATECISftlO

tumavaín comprar e levar · comsigo pequenas figuras de prata, feilas


em forma de nichos, aonde estava meltida a cslalua da deusa.
Um certo homem chamado Demelrio , ourives de profissão, que
tinha grande deposito desta sorte de obras, previo que se a dou-
trina de Paulo prevalecesse, dava em terra com o seu comrnercio
e com os seus rnteresses. Assim, pois, convocou lodos os ourives
que faziam o mesmo trafico : Bem sabeis, lhes disse élle, que são a's
obras fabricadas em honra de Diana, que nns produzem os meios de
snbsistencia ; não obstante sabeis ·e. bem vêdes que este Paulo · des-
Yia não só cm Epheso , mas em totfa a· Asia , um sem numero de
pessoas de procurar-nos , pregando por toda a· parle, que deuses
feitos por mãos de homens não são deuses : que ha-de tl'aqui se-
guir-se L Que o n-0sso comrnercio será desacreditado; e o te~1p]o .
ela grande Diana , reverenciado em toda a Asia , virá a sêr uma
cousa despresi vel.
Era isto tocar as almas vulgares pelo lado mai-s capaz de commo-
vêl-as; o interesse a superstição. Demetrio, pois, conseguio mais do que
esperava. Todos os obreiros transportados de cólt)ra começaram vocife-
rando e clamando em aHas vozes: Viva a grande Diana dos Ephesios !
Ajunta-se povo, toda a cidade se alvorola, -e a multidão precipita-se para
o l.hcatro. Na falta de Paulo, que Deus occullou a~ furor de seus ini-
migos , arremessam-se com furor a Gaio e Aristarco, dous dos seus
companheiros.
Paulo , informado do que se passava, teve bastante coragem
para querer apresentar-se ao povo furioso; mas os seus discipulos se '
lhe opposeram. Entrelanlo mil confusos grilos se levantaram d'entre
a multidão; e, como quasi sempre acontece nos movimentos popula-
res, um grande numero · mesmo dos mais irritados · nem ao menos
sabiam de que se tratava. Os judeos temeram que a tempestade
caisse sobre elles , e com este receio fizeram todos os esforços, para
collocar um dos seus , chamado Alexandre , em um sitio elevado ,
donde· podesse fazer-se om ir e advogar sua causa. Qui~ eHe fallar,
1

mas tanto que se soube que era judeu , mil vozes abafaram a sua ,
gritando mais alto que nunca - Viva a g-randc Diana dos Ephesios !
Duraram os clamores quasi duas horas , sem que fosse. possi vel apa-
siguar o tumulto. Quando emlim se cançara{n de gritar , o magis...

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DE PERSKVERANÇA. -

, trado da cidade apres~tou-se, e representou que este tumulto podia


tomar-se por sedição, de que os habitantes seriam responsaveis pe-
rante o Imperador : que se Demelrio tinha alguma questão a resol-
' 'er com aJguem, podia ir á audiencia e pedir justiça ao l'roconsul.
O povo contentou-se com estas palavras -e retirou-se.
Paulo, pela sua parte, tendo ajuntado todos os christúos, despe-
diu-se d'elles, e tratou <la sua partida. Antes porem , de empre-
hender esta sua ,·iagem , dirigio a soa famosa Epistola aos Roma-
nos ; era no anno 58 de Jcsu-Christo. Esta Epistola escripla depois
de outras muitas , é com tudo collocada em primeiro Jogar, tanto por
causa da dignidade da eh.Jade· de Roma , como pelas importantes
inslrucçõcs e bella <loutrina qu_~ contem. N'ella explica o Apostolo
particularmente o misterio da graça , que justifica o peccador ; e
mostra que nem os ]Udeos, nem os gentios a merecem.
Ainda que S. Pedro tivesse fundado a Igreja de Roma, S. Paulo
escrevia aos {fois que a compunham, porque era o Apostolo dos Ro-
manos bem como das outras nações. Já clle linha enchido do nome
de Jesu-Christo todos os paizes, qtíe se estendem desde a Judea até
á lll1ria. Em todas as provincias do Oriente já se não encontrava lu-
gar. em que o EvangeJho não tivesse sido annnnciado: por isso es-
lava resolvido .,1 passar a Hespanha, logo que tivesse levado a Je-
rusalem as esmollas dos fieis , e de caminho visitar a cidade de
·Roma. Zelo admiravel. ! Fallaram os imperios á ambição de Ale-
xanllre ; mas eis que toda a terra é u~ pequeno espaço, para este
novo conquistador.
Preparado tudo sahiu Paulo de Epheso, aonde tinha estado lres
- annos ; e at.raressando a Macedonia, para recolher as esmollas des-
tinadas aos irmãos de Jerusalcm, chegou a Tróada. aonde celebrou
a festa da Pascoa. No mesmo dia juntaram-se os discípulos em uma
safo de um terceiro andar, para a·IÍi partir o pão sagrado. Paulo
prégou até á meia noute, porque havia t.Je partir logo de manhã;
de sorte que a todos esqueceu a hora da refeição e do sornno, não
lendo mais fome que da verdade e da salvação de suas almas. Quiz
o demonio interromper esta santa ~legria : mas n3da mais conseguio
do que angmental-a. Certo mancebo cbamatlo Eutiques , que se li-
nha assrnlado sóbre uma janella , nüo poude resistir ao somno, e

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' 124 CATECISMO

tendo adormecido durante o sermão , cahiu do terceiro andar e fi-


cou morto. Este incidente prova .muito bem a merecida punição
d'aquelles, que ouvem a palavra de Deus com negligencia, mas Deus
o fez servil' á gloria do seu Apostolo e á consolação dos fieis.
Paulo desceu immediatamente, e lançando-se sobre o morto o
abraçou e lhe resliLuio a vida. Não vos affiija is , disse eJle vol-
tando para a assernblea, o mancebo está vivo. Contin~ou então o
seu discurso, e. benzeo o pão sagrado. l\)de julgar-se com que novo
fervor escutariam os discipulos ao Apostolo, e participariam dos san-
tos misterios. A ctivina Euchadstia , apresentada por mãos de um
santo, que acabava de ressuscitar um morto , não podia deixar de
ach~r espiritos bem convencidos, e coraçõe~ bem dispostos. Depois
do celeste banquete , Paulo continuou a exhortar e consolar os fieis.
Ao romper da aurora desceu do pulpito, para dirigir-se ao porto omle
embarcou immediatamente, e dous dias depois chegou a Mileto,
celebre cidade na costa da Asia na provincia de Caria.
Era sua intenção estar em Jerusalem no Pentecostes ; a fim de
mover mais facilmente os judeos, que tinham grande respeito e ve-
neração ãquellas festas e ceremonias. Apezar do seu pouco tempo,
.não deixou o zelo.so Apostolo de convocar em Mileto uma especie de
Synodo. Tendo enviado expressos a Epheso , convidou os Anciãos
da Igreja, isto é os Pastores que o Espirito Santo tinha estabele..
cido alli, para governar o povo de Deus ; e tanto que os vio reuni-
dos em torno de si , fez-lhes uma das suas despetlidas apostolicas ;
ua qual, soltando · sem constrangimento seus paternaes sentimentos ,
taes -cousas disse a seus filhos que para sempre lhes ficaram indeleveis na
alma.
«Vós sabeis, diz· e11e, qual tem.sido o meu comportamento no-
meio de vós, destle o dia que entrei na Asia. Eu lenho sen:ido ao
Senhor , pela humildade, pelas • lagriµias , pelos perigos e contra-
. dicções que me teem sido suscitadas pelos judeos. Com tudo, nada
tenho poupado , nada ommitlido de tudo quanto julguei poder con-
tribuir para a vossa salvação. Eu vos tenho annunciado o Evange-
lho em publico e nas vossas cazas. -
<e Mas eis quo agora, como qu·e ob1·igado e encadeado pelo Espi-
rilo Santo , me t.lirijo para Jerusalem, ignofando a sorte que alli me

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UE PERSEVERANÇA. U5
espera. O que eu sei é que o Espirito Santo me faz annunciar em
todas as cidades por onde passo , que me esperám em Jerns3 lem ca-
deas e tribulações ; mas nada receio ' de tudo isso , nem estimo
mais a minha vida que a eterna salvação da minha alma, nada me
importa, com tanto que eu complete ~minha carreira, e cumpra a missão
· · que recebi do Senhor Jesus, de annunciàr 6 Evangelho da _Graça de
Deus.
« O que sei , porem, é que não me tornareis mais a ver , vós a
quem tenho visitado e prégado o reino de Deus. Velai pois por
vós mesmos, e pelo rebanho de que o Espirilo Santo vos estabeleceu
Bispos e conductores; rebanho querido, que elle comprou com o seu
sangue. LPvantar-se-hão d'entrc vós homens, que prégarão uma falsa
doulrina , lobos rapaces, que não poupariio o rebanho. Velai, pois,
vos torno a dizer, lembrando-vos que durante tres annos , não te~ho
cessado, nem de dia , nem de noute , de advertir a cada um de
vós com as minhas lagrimas. Agora vos recomniendo a Deus e á sua
graça, que bem pode elevar e sustentar o edific10 da ·igreja, cujos
fundamentos lancei no meio de vós.
e: A estes rasgos que caractensam um completo pastor, accrcscenla
o Apostolo o seu desinteresse; nobre virtude, em que resplandeceu emi-
nenlemente : - « Eu nunca desejei ouro ou prata , ou as Yestes de
pessoa alguma , ''Ós mesmos o sabeis ; estas mãos teem supprido ás .
minhas necessidades, e ás dos meus collaboradores. »
Depois deste discurso tam tocante , Paulo poz-se de joelhos; to- .
dos os assistentes toII).aram o seu exemplo e começaram a orar. O
silencio e a oração brevemente foram interrompidos pelos suspiros e
soluços de toda a assemblea. Todos estes filhos se lançavam ao
collo d'aquelle terno Pai, debulhados em lagrimas, sobre tudo por lhes
haver declarado elle, que nunca mais o veriam; e deste modo o acom-
panharam até ai navio.
Paulo veio desembarcar a Tyro ; e alguns dias depois estava
em Jerusalem. Logo ao outro dia da sua chegada a esta
ciua·de , foi visitar S. Thiago que della era Bispo. Todos os padres
vieram saudai-o e bemdizer a Deus pelo que, por seu ministerio ,
havia feito entre os gentios. Havendo já sete dias que o Apostolof
estava em Jerusalem, unicamente occupado na distribuição das es-

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126 C!Tl(CtSMO

molas, que tinha trazido aos fieis, na occasião em que orava no


Templo foi reconhecido por alguns judeos da Asia , que logo come-
çaram a grilar, que era aquelle que dogrnalisava por toda a parte,
contra a Lei. A este grilo se alvorotou a cidade toda, e lançam-se ao
Apostolo o em puxaram para fóra do T(•mplo, a fim de o estirarem a pau-
ladas, e o despe~açarem com mais liberdade e menos escrupulos; o
que sem duvida Leriam feito, se lhes dessem tempo para isso ; mas
o tribuno Claudio Lysias, que commandava a cohorte romana da
guarnição em Jerusalem, acudio a toda a pressa com os seus solda-
dos ; e a sna presença suspendeu aq uelles furiosos. Tendo pois ar-
rancado o Apostolo das suas mãos, quiz mandai-o açoutar com varas,
para apasiguar o povo ; mas Paulo o suspendeu repentinamente, per-
guntando-lhe. - E' assim que ousais tratar um ciriadão romano ?
Estas palavras fizeram tremer Lysias: desde logo tractou de
snbtrahir o Apostolo ao furor dos seus inimi gos, e de o enviar a Fe-
lix , governador da Palestina, que residia em Cezarêa. Era Felix, como
a maior parti! dos governadores romanos daquelle tempo, um ho-
mem venal , que só tratava de enriquecer-se. Eco breve conheceu
elle a innocencia do seu preso , mas comludo releve-o dous annos
na prisão , · esperando que se lhe compraria o seu livramento a preço
d'ouro ; e mais leria prolonga<lo Lam iníqua detenção , se Paulo ti-
vesse estado mais tempo cm seu poder ; mas Felix foi chamado a
Roma , e Nero lhe deu por successor Porcio Feslo, a fico de atrabir
os JUdeos ao seu partido. Felix deixou Paulo carregado de ferros nos
carceres de Cezarêa á descripção de Feslo.
A nomeação de novo presidente romano na judea, era a
ultima disposição com qne a Providencia preparava a partida tio
Apostolo, para a sua missão tia ltalia. Feslo , tanto que chegou do
Roma mandou comparecer o Apostolo na sua presença. Depois de ouvir
o::; seus accusadores, o presidente 1he perguntou aonde queria ser
julgado : respondeu-lhe Paulo : Eu appello para Cezar. Festo admi-
rado desta resposta , conferio um pouco com o seu conselho, e vol-
tando depois ao tribunal , lhe disse : Tu appellasle para Cezar ,
irás a Cei.ar. D'esL'arle os homens, sem o saber e sem o querer,
secundavam os desiguios da Providencia. Paulo ia prégar o Evan-
gelho a Roma , e as predicções do Salvador se cumpriam á leira.

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DE PERSEVEl\A.NÇA. 127
Soube o governador que um navio, que linha arribado a Cezarêa,
se dispunha a levantar ancora. Paulo foi nelle embarcado·com ou-
tros prezos debaixo da gnarda de um official chamado Julio, centu-
rião de uma cohorte da legião Augusta. Elle linha comsigo S. Lucas
e Aristarco de Thessalonia. A historia desta navegaÇão é tam in-
. teressante por si mesma , e tam propria para nos fazer conhecer o
zelo e o grande caracter de S. Paulo, que a vamos referir cinums-
tanciadamenle.
Depois de havermos levantado ancora, diz S. Luca~ , começamos
a coslear as terras da Asia : na seguinle m11nhã chegamos a Sidonia;
e Julio tratando Paulo com humanidalle lhe perrn iltio ir ver os seus
amigos, e prover as suas precisões: Tendo partido d'alli, tomamos
a nossa derrota abqixo de Chypre, porque os ventos eram conlrarios.
Depoi:' de ter atravessado o mar de Cilicia e de Pamph1lia, ch~ga­
mos a Lyslria, aonde o centurião, lendo encon lra do um navio de
Alexandria , que dava a n•la para Ilalia , nos fez embarcai· nelle.
Navegamos mui lentamente durante mnitos dias, chegando com grande
difliculdade defronte de Gnido; e porque o Yento nos impedia de ir
avante, fomos costeando a ilha de Crela pelo lado de Salmona. Indo
com trabalho ao longo ·c1a cosla , abordamos a um sitio chamado
Bons Portos, proximo aonde demorava a cidade de Thalassa. Ten-
do assim decorrido bastante tempo , e tornando-se a navegação pe-
rigosa; Paulo deu este parecer á equipagem : Meus amigos eu pre-
''ejo que a navegação vai ser perigosissima , não só para o navio
e sua carga, como para as nossas pessoas. O centurião , porem,
dava mais credito ao ' parecer do. piloto é do meslre do navio do
que ao que Paulo dizia ; e como o porto não era proprio para in-
''ernar, a maior parte foi de opinião que se fizessem ao mar, e po-
sessem toda a deligencia por abordar a Phenicia, que é· um porto de
Creta , a fim de abi passar o inverno.
Começando o vento Sul a soprar brandamente, julgaram elles
poder conseguir o_ seu intenlo; immedialamente levantaram ancora e
foram costeando a ilha de Creta ; .mas pouco depois ergueo-se um
'Vento tempestuoso de Nordeste, que levou o navio abaixo de uma
ilhota chamada Cauda, aonde apenas podemos ser senhores da lan-
cha.

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128 CATECISMO

No dia seguinte , como fossemos furwsamente batidos pela tem-


pestade , os marujos alijaram. as mercadorias ao mar ; e tres dias
depois fizeram ó mesmo ao maçame do Navio. Entretanto, nem o sol,
nem as estrellas apareceram durarHe muitos dias , e a tempestade
era sempre larn furiosa , que perdemos toda a esperança de nos sal-
var. No meio da gerr1l . consternaç.ão , Paulo se levanlou e disse:
Na verdade, meus amigos, mui to melhor terieis feito em acreditar-me,
e não ter partido de Creta , para poupar-nos la.ntos trabalhos e tam
grande perda : aconselho-vos , com tudo que tenbaes animo , porque
-ninguem morrerá, e sómente terá de perder-se o navio ; porque esla
mesma noute um anjo de Deus , a quem eu pertenço e a quem sir-
vo , me appareceu e me . diss~ : Paulo, nada lemas, cumpre que
compareças diante de Cezar ; eu te anrtunc10, que Deus te concede
a vida de Lodos quantos estam com ligo no navio. Por esta rasão ,
meus amigos , socegai , que lenho confiança em Deus, que aconte-
cerá como me foi dilo ; ainda que Lenhamos de ser arrojados contra
a ilha.
Na decima quarta noute, quando os ventos nos combaliam de
todos os lados sobre o mar adriatico, os marujos julgaram ver, pela
volta da meia noule , alguma terra; e tendo deitado a sonda, acharam
vinte braças de agua , e um pouco mais longe não acharam mais de
quinze. Então receiando que fossemos dar contra algum escolho,
deitaram quatro ancoras da popa , esperando com impac1encia que
raiasse o dia. Ora , como os marujos buscassem fugir do navio, e
descessem a lancha ao mar a prP.texto de irem lançar outras anco-
ras do lado de prôa , Paulo disse ao centurião e á senlinella : Se
tlsles- homens não se conservam no navio não vos podeis salvar.
Então os soldados cortaram os cabos eia lancha, e deixaram-a cahir.
Ao amanhecer , Paulo exhortou a todos para que tomassem algum
alimento, dizendo-lhes: Faz hoje quatotie dias, que quasi eslais
em jejum , pois quasi nada tendes comido ; é por isso que vos acon-
selho a comerdes, para poder-vos salvar, pois nenhum de vós perderá
nem urn só cabello da cabeça. ))
Dizendo isto tomou o pão ,. e tendo . dado graças a Deus diante
de todos , o parti o e pôz-se a comer. Todos os mais rec_obraram
animo, e começaram igualmente a come'r. Ora , no navio estavam

.-

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DE PERSEVERANÇA.

<luzentas e selenta e seis pessoas ao Lodo, e depois que comeram e sé


salisliseram, alijaram o navio arrojando o trigo ao mú : quando em
fim esclareceu o dia, ~ão reconheceram elles que lena linhamos
á vista , mas perceberam um golfo, em cuja praia resolveram fazer
encalhar o navio, se lhes fosse possivel. Então' levantaram as ancoras
e afrouxaram ao mesmo tempo as talhas do leme , abandonando-se
ao mar, e depois de haver soltado a mezena ao vento, vo-
garam para a praia : tendo , porem , · encontrado uma lingoeta de
terra. alli fizeram encalhar o navio. Então os soldados foram
de voto que se matassem os prezo.s; receando que alguns delles,
tendo-se sahTado a nado, não fugissem. Mas o centurião, que queria
conse1~var Paulo, o evitou, ordenando, que aquelles que sabiam na-
dar se lançassem primeiro á agua, e alcansassem a terra ; aos ·mais
fez. passar em pranchas, e alguns sobre os mesmos destroÇos do na-
'' io; e deste modo lodos chegaram a terra e se salvaram.
Ten.do-nos, pois, salvado d~ste modo , reconhecemos então que
a ilha se chamava l\lalta , e os barbaros nos trataram com bastante
humanidade , porque. d_epois de acender uma grande fogueira por causa
. da chuva e tio frio que fazia , a todos nos deram os soccorros de
que linhamos precisão. Nesta mesma occasião, juntando Paulo al-
guns graYelos para lançar no fogo , uma víbora que o calor do
lume fez sahir da terra , mordeu-o na mão. Quando os barbaros
lbe viram della pendeiite aquelle bicho , diziam entre si. Eslé ho-
mem é , sem duvida algum malfeitor, pois que depois <le ter sido
salvo do mar ,. a vingança divina não o quer deixar viver ; mas
Paulo , lendo sacudido a vibora no fogo, não soffreu o menor damno.
Os barbaros esperavam que elle enchasse e r.ahisse ~·epentinameole
morto : mas depois de esperar longo tempo, vendo que nenhum
mal lhe acontecia , mudaram de opinião, e disseram .que elle era um
deus. Ora. nesta paragem havia terras que perte1rniam a um .hod
mem principal desta ilha , chamado Publio, o qual nos recebeu
muito humanamente , exercendo comnosco .a hospitalidade durante
lres dias. Aconteceu que seu pai se achava doente de uma fevre e
desinteria ; foi Paulo vel-o, e podo-se em· oração , 'irnpoz-Jhe as mãos
e curou-o. Depois deste milagre , lodos que na ilha se acha va1n
doentes ''ieram ler com elle , e foram curados : elles nos fizeram
17 VI

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130 CATECISMO

grandes honras, e nos proviram de quanto nos era ncccssario para a


nossa ·\'iagem. Passados lres dias embarcamo-nos em um na,'io de
Alexandria, que havia invernado na ilha, e que tinha· por insígnia
Castor e Pollux, e abordamos a Syracm.~, aonde nos demoramos lrcs
dias. D'alli costeando as terras viemos a Rhegio , e na manhã se-
gninl_e1, .tendo o vento saltado ao Sul , chegamos um dia depois a
Pouzzolo, cidade da campanha de Napoles.
Lá encontrou Paulo christãos ; porque a llalia e a mesma Roma
alli
eslava cheia dellt•s : S. Pedro tinha plantado a fé já de ha mui-
to tempo. Depois de ter passado toda a semana com os fervorozos
neophylos de Pouzzolo, parlio Paulo para a capital do mundo. Os
·irmãos de Roma vieram ao seu encontro a vrnle leguas de distan-
cia; algu9s vieram até uma villa chamada Forum Appius, outros alé
ao lugar ·chamado as Tres Vendas. Rodead_o destes f~rrnrosos. dis-
cipulos foz o grande Apostolo _a sua entrada na cjdade dos Cezares
pela v1a Appiana. no prrncipio da ~rimavera cio anno 61 do nasci-
mento de Jesu-Christo. Entrou elle carregado cpm as suas cadeas.
com a alegria e nobre segurança de um principe, que voltasse á
sua capital, sobre um carro de tnumfo, coberlo dos louros da Yic-
Loria (1).
Todos os prezos foram -entregues pelo .centurião Julio ao pre- .
fcilo do Pretorio , que era capil.ão das guardas do Imperador. Esle
cargo era então occupado por Afranfos Rurrlius , de quem a hislo-
ria louva as boas· qualidades, e que sustava tanlo quanto. podia as
más inclinações de Nero. Paulo , admirado dos mesmos pagãos, leve
a faculdade de ficar no seu domicilio com um guarda, a qurm elle
eslava ligado noule e <lia pqr uma longa cadêa , segundo o coslnme

(1) Estes lugares para sempre memora"eis existem ainda hoje. A


rn de Fevereiro 18H passamos n.ós por Cisterna, que a tr:idição asse- .
gura ser as Trcs Ta"crnas das Actas dos A.postolos. AJ;;umas horas de-
pois no meio das Lagôas Poulinas almoçamos no Jlormn Appius, r!rnnrn<lo
ainda hoje Forappio. - Veja-se as Tres llomas t. II.

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, .
I>E PERSEYERANÇ·A. 131
dos romanos. O Aposto lo alugou para si e para o seu prel<;.»riano
um alojamento, aonde passou dous annos completos , ''ivendo do
trabalho de suas mãos.
Alli recebia todos quantos o vinham visitar, prégando-lhes fran-
camente. o Evangelho. O seu capl1veiro foi uma continua missão ,
que muito servio á propagação da fé, e o tornou celebre até mesmo
na côrte do Imperador, aonde já havia muitos chrislãos.
Entretanto os fieis de Plnlippes·, Iam ternamente unidos ao seu
Apostolo , tendo sabido que elle estava preso em Roma , enviaram-
lhe Epaphrodito seu bispo, tanto para acudir-lhe com soccorros, corno
- para o servir em seu nome. Paulo escreveu aos seus querido~ Phi-
lippenses uma carta, aonde se revelavam. loda a grandeza da sua
alma e lodo o ardor do seu zelo. Escreveu igualmente para Pbile-
mon de Colossos, cidade da Phrygi~ , em favor t.le Onezimo seu es-
cravo , supplicando-lhe por amor de snas mesmas cadêas, que o re-
cebesse como a si mesmo. Desta mesma prisão sairam ainda as ad-
mira,'eis Epistolas aos Colossenses e aos Hebreos.
DE>JlOis de dois annos de prisão, conseguio Paulo ser ouvido, e
tendo-se plenamente 1uslificado das accusações que os judeos inlen-
taram contra elle , foi posto em liberdade : immedialamenle o homem
de Deus parlio para o Oriente. Julga-se· que foi durante esta ,·ia-
gem , que elle escreveu aos seus muito amados discipulos Tito e
Timotheo. Tendo feito sua ultima visita ás Igrejas Orienlaes, aquelle
astro brilhante dirigio novamente a sua carreira para a cidade de
. Roma , sobre a qual havia de ficar como que suspenso para sem-
pre. Depois da .
sua volta para a capital do mundo, escrevea a sua'
segunda Epistola a 'fimotheo e aos fieis de Epheso.
Paulo entrou cm lloma com S. Pedro : esles dous conquislado-
res, unindo os seus esforços, plantaram o eslandarle do sru divino
Mestre até no mesmo palacio ele Nero ; mas este infame princi1)e não
podia soffrer se- inlrodnzisso em Roma uma religião Lam santa • que
anl(•s quereria elle perder o imperio do que os srus desregrados
1u·az<1res. O seu furor porem não pôde ser maior, quando soube da
conversão de uma cortezã, de quem elle fazia o seu idolo. O gran-
de Apostolo, que linha operado eslc prodígio , foi imni .ediatamcnl~

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132 CATECISMO

carregado de cadêas e lançado na mais estreita pl'isão , aonde S.


Pedro foi promptamente reunirse-lbe.
Antes , porem , que trrnmphassem do mesmo Nero por uma
morte gloriosa , os dous alhletas de Jesu-Christo , haviam de ganhar
uma brilhante victoria sobre o maior inimigo que a lgrrja leve
nestes primeiros tempos. Simão o magico , enviado a Roma pelo
demonio, para desacreditar e arruinar a obra evangelica , tinha an-
nunciado, em prova da sua divindade que e!le se elevaria aos ares.
Era um dia de Jogos publicos , em presença de toda a cidade e do
proprio Imperador , que o falso propheta devia obrar o seu preten-
dido milagre , e confirmar a -sua doutrina. .
Pedro e Paulo, sabendq disto· pozerapi-se em oração; o impostor,
abandonado dos demonios que o levantavam, caio por lel'ra, quebrou
as pernas, e. o seu sangue salpicou até o proprio pavilhão, donde
Nero o observava. Retiraram-no d'alli , mas enraivecido e dcse_spe-
rado, precip1tou·se da sua habitação e matou-se (1 ).
Tendo, emfim. chegado o dia do seu martyrw , foram os dous
Apostolos tirados da prisão, e conduzidos ambos para fora da cidade
pela porta Ostia: dirigiram S. Pedro para o monte Vaticano, aonde
foi crucificado com a cabeça para baixo, ·o que ell"e mes1no havia
pedido por humildade, receiando que se não julgasse que aspirava
á gloria {}e Jesu-Christo , sendo crucificado da mesma forma que o
seu divino Mestre. S. Paulo foi conJuzido ao lugar chamado as Aguas
Salvianas (2) , e pela qualidade de cidadão romano foi degolado. Era
o dia par~ sempre memoravel de 29 de Junho do anno de 66 <le
.Jesu-Chnslo (3). S. Pedro, fundador e primeiro Bispo da Igreja de
Roma , tinha-a governado- por espaço de vinte e cinco annos.

(1> llrud. de Martyr. li, Uã. Veja-se igualmente TillemonL. L. 1,


180.
(2) Baron. 68 • Conslit. apost. lib. VI e. 9.
. ,(3) Vej_a-se Baroo. ad. ao ..69 §§ 1.º 3.º 19. Ve1a-se as Tres Ro-
mas t. 3.º ; e Foggioio - De jf'inere et e71i5copato r:omano divi Pelri.

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DE P~RSEVERANÇ~.

OBAVXO.
'

O' meu Deus , que sois todo amor , eu vos dou graças por nos
terdes feito nascer no gremio da vossa Igreja , permilt_i , Senhor ,
que estejamos sempre unidos do fundo do coração á Igreja romana,
mãi e mestra rle todas as mais Igrejas.
En protesto amar a Deus sobre todas as cousas , e ao proximo
como a mim. mesmo por amor de Deus ; e , em testimunho deste
amor , quero cumprir sem hesitar tudo o que a Igreja me ordena.

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1H CATECISMO

IV.ª LIÇÃO.

O CHRISTIANIS:MO ESTABELECIDO

( CoNT rnu A.Ç.AÕ no 1.• SEcuw.)

Vida , missões e rnarlyrio de S: André - de S. Thiago Maior - J uizo


de Deus sobre Agrippa, primeiro rei perseguidor 'da lgre1a ...-e Vida, 111 i~­
sõcs e marlyr10 de S. João _ Evaugeli~la - de S. Thomé, - de S. Thia-
go menor - de S. Philippe - de S. Bartholomcu - de S. Matheus -
de S. Simão - de S. Judas - de S. Mathias - de S. Marcos e de S.
Lucas.

V1Mos na precedente lição a brev-e ;~historia de S. Pedro e de S.


Paulo ; fallemos agora das missões e viclorias dos outros conquista-
dores evangelicos, e primeiramente de S. André : irmão de S. Pedro,
que teve a gloria de conduzir ao Salvador aquelle quo devia ser o
chefe da Igreja universal. Depois da Asçen~ão, dirigio-se este Apos-
tolo para o lado de Scilhia, percorreu a Grecia e o Ponto, e voltou
depois para o No1·Le. Os ruosco-\ itas cslam persuadidos , qua foi S.
1

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DE l1 ERSEVERANÇA. 135
André quem levou a fé ao seu paiz, e até ás fro11teiras da Polonia.
Ultimamente veio á mdade de Palros na Achaia, aonde , deu o seu
sangue por Jesu-Christo ~m um suppliçio similhante ao d6 seu ir-
mão, e ao de seu divino Meslre ; pois foi como elles crucificado.
Consta da tradição que a cruz de S. André era formada de duas
peças de páo, que no meio se crusavam obliquamente, formando a fi- . _
gura de um X.
Tanlo que o Apostolo avislou o _instrumento rlo seu supplicio ,
e'\'.clarn~rn transportado de alegria : Salve, 6 Cruz .preciosa , que
fosle consagrada pelo corpo do meu Deus , e ornada dos seus mem-
bros como de ricas pedrarias. O' Cruz Salvadora, recebe-me em Leus
braçog ., que muito ha te desejo e te procuro ·, p·or li ine ·receba
aquelle Senhor que em ti me remio. Repousam actualmente as re-
Jiquias do Santo, na ltalia na Cathedral de Amalfi (1). Possa o seu
amor pela Cruz suusistir em toda a parle aonde ha chrislãos.
Fallemos tl'oulro conquistador, d'outra teslimunha da fé que temos a
felicidade de profess.ar ; é S. Thiago, fil.ho de Zebedeo e de Salomé,. irmão
de S. Jo~o Evangelisla e proximo parente do Salvador: chama-se maior,
para o distinguir do Apostolo do mesmo nome, que foi Bispo de Je-
rusalem, e se cognomina o menor, ou po1~_que foi chamado ao Apos-
tolado depois de S. Thiago Maior ; ou porque era tle pequena esta-
tura ; ou finalmente por causa da "uà mocidade. Salomé, mãi d-e
S. Thiago Maior e de S. João chamava-se lambem Maria e elJl
prim~ e irmã da Sanlissima Virgem. .
S. Thiago leve a Galiléa por palria ; era pescador de profissão,
assim como seu pai e irmão. Depois da Ascensão do Senhor, apres-
sou-se como os mais Apostolo~ a ir cultivar o .vasto campo, que lhe
havia caido ·em partilha. Sabe-se que elle prégou o E''angelho ás
c.loze Lribus de Israel, dispersas em diversos lugares <la terra , e que
levou a luz da fé até á Hespanba (2). Voltou pelo inverno a Je-

(1) Veja-se Ughelli , llal. Sacr. t. VII.


(~) .Tal é a tradição ~a Igreja de Hespanha apoiada na anthorida;fc
de San lo lzidoro de Se' ilha &r.

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136 CA l'ECIS&IO

rusalem cheio de victorías , e não tardou muilo que não chegasse o


dia do seu mesmo lriumpho.
Agrippa, nelo de Herodes , educado em Roma no reinado de
Tiberio, teve a amisade · de Calígula, e mereceu a confiança deste
pt'incipe lisonjeando servilmente as suas paixões. Apenas CaHgula
subio ao imperio, logo ,para testimunhar a sua affeição a Agrippa,
lhe deu o litulo de rei dos judeos ; e o novo soberano apressou-se
a ir tomar posse dos seus Estados. Affectando grande zelo pela Lei
de l\Ioyses, suscitou uma sanguinolenta perseguição contra os discí-
pulos de Jesus , bem seguro <le ganhar por isso as afeições dos ju-
deos. Aproveitou pois a viagem que fez de Cezarêa a Jerusalem com
intenção de celebrar -a Pascoa do anno 43, para teslimunhar-lhes o
desejo que linha de lhes agradar. S. Tbiago foi - a primeira viclima
da sua polilica ; elle o mandou prender alguns dias antes da so-
lemnidade , e ordenou que se lhe cortasse a· cabeça , o que logo foi
executado.
Refere Eusebio ,. segundo S. Clemente de Alexandria , que o de-
lator do S. Apostolo, se commoveu tanto com a sua resignação e
constancia, que logo se declarou chrislão, e foi condemnado junta-
mente com elle a ser de.càpilado. Como o conduzissem ao supp1i-
cio com S. Th1ago , elle lhe p~dio perdão de o ler de tal modo en-_
tregne aos seus algozes. O Apostolo se voltou e lhe disse abra-
çando-o : A paz seja comtigo. Ambos receberam a morte no mes-
mo dia e no mesmo lugar (1). S. Thiago maior e o primeiro dos
Aposlolos que soffreu o marlyrio. A Igreja·, perdendo na terra uma
das grandes columnas em que parecia particularmente sustentar-se ,
nem por isso ficou menos firme, ·a fim de que os seus m1m1gos co-
nhecessem , que não é nos homens , mas na omnipolencia de Deus
que ella está fundada.
Guardou S. Thiago castidade perpetua ; não comia nem carne
nem peixe, e nada mais vestia que uma só tunica e um simples

(1) Eusebio livro íl. cap. 9.

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J
Dr. PEl\SEVRR!NÇ.A. 137
níanto de linho (1). Foi seu corpo sepultado em Jcrnsalem; mas
pouco depois o trasladaram seus discipulos para Hespanha. Hoje
repousa na Calhedral de Compostella na Galliza, que é uma das mais
celebres romarias do mundo Calhoiico.
Agrippa, que mandou matar o Santo Apostolo, é o primeiro
rei perseguidor da Igreja. Por elle começa a tremenda historia da
Justiça de Deus, sobre aquelles que leem ousado alevantar-se contra o
Senhor e conlra o seu Christo ; porque os reis e os povos· são crea-
dos e pDstos no mundo, para conhecer, servir e amar a Jesu-Chris-
to, Cordeiro uominador do mundo ; tal é a immutavel condição da
gloria , felicidade e até da existencia dellcs. Se a violarem, serão
infallivelmenle feridos de exemplares castigos. A rigor,,sa precisão
com que islo se tem verificado, ha desoito secnlos, não é a menor
prova da divindade do Chrislianismo ; pois responde victoriosamen-
te à indifferença dos impios dos nossos dias, que parecem considerar
Jesu-Cbristo como um monarcha destronado, que não merece mais
ser temido, nem respeitado, nem obeuecido ;. ao mesmo tempo que
esta verdade. prova claramente o cuidado, com que o divrno Pastor
attemle, do alto do Ceo, ao seu querido rebanho.
Herodes e Pilatos , como já vimos , morreram miseravelmente.
Manchado no sangue de um Apostolo de Jesu-Christo, Agrippa pou-
co tardou em experimentar os effeilos da vingança divina. Depois
da festa da Pascoa, vollou elle para Cezarea, com o designio de dar
jogos publicas em honra do Imperador Claudio. Foi seguido por um
numeroso cortejo de pessoas de consideração. No segundo dia dos
jogos appáreceu elle no theatro, com uma opa tecida de prata, da qual
o arli11cio excedia a riqueza, e que tirava um novo brilhantismo
dos raios do sol , cujos reflexos ''inham deslumbrar os espectadores.
Estes, pela sua parte, mostravam um respeito, que mais parecia ado·
ração. Agrippa , tendo feito um discurso, os aduladores, que cer-
cam ordinariamenle os principes, ergueram repelidas ac'clamações ;

l1] Epiph. epist. 18 , e. H.


' 18 VI

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CATECISMO

« Esta não é , elamaram elles , a voz de nm homem , é a voz de


um Deus. O principe, inebriado por estes impios louvores, esqueceu-se
de que era mortal ; mas no mesmo instante o Anjo do Senhor o fe-
rio , e de3Je logó sentio tam violentas doies nas entranha~, que não
as podia supportar. Depois de haver padecido t:inco dias, sem que
os medicos podessem dar o menor allivio ao seu mal, nem impedir
os vermes de o roer ainda vivo-. expirou entre agonias, que não se
podem imaginar, e ainda menos exprimir. Justiça de Deus, euimplo
aos perseguidores.
S. João Evangelista tem o quinto lugar entre os doze pescado-
res de homens, que tiraram o universo do abismo da idolatria. Este
Apostolo , de lodos o mais moço , virgem no corpo e no coração ,
foi o di~cipulo bem amado do Salvador. Com Pedro e Thiago as-
sistio ao glorioso especlaculo do Thabor ; e depois á agonia de Jesus
no horto de Gethsernani. Mas elle só, entre todos os Apostolos,
teve a felicidade inelTín'el de repousar , durante a ultima cêa , em
o adora vel seio do Homem Deus ; só elle o segui o ao Cal vario ; só
elle com Maria , foi nomeado do allo da Cruz no testamento do Sal-
vador. Em recompensa do seu amor -e fidelitladc constnnle, Jesus
lhe confiou o cuidado de sua augusta Mãi.
Depois da Ascensão do divino :Mestre, S. João prégou o Evan-
gelho na Judea e na Samaria. Logo que chegou o momento de le-
var aos gentios a luz sagrada , o discípulo querido Leve por qui-
nhão o vasto paiz occupado pelos Parlhos (1 ). Esta nação famosa
era a unica que então disputava o irnperio do mundo aos romanos.
Não resta na historia vesligio algum das maravilhas, que S. João
obrou pela salvação deste povo: sabemos sómente .que elle voltou
para a Asia menor , e que se estabeleceu na cidade de Epheso ,
aonde a San la Virgem habitava com elle. O Apostolo bem amado,
estava encarregado do governo de lodas as Igrejas da Asia , e go-

[1] Bar. U; Aug. Qurest. ev. lib. II. e. 39 ; Esli.us in Joan. p.


1250.

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DE PEllSto:VERA'.\ÇA.

zava de grande reputação, tanto por causa da sua eminente digni-


tJade, como pelas suas virtudes e milagres.
Domiciano o mandou prender e conduzir a Roma no anno 95
de Jesu-Christo. Compareceu elle perante o Imperador que , longe
de commover-sc com a vista cieste veneravel velho , leve a barba-
ridade de· mandar que fosse lançado em uma caldeira de azeite a
ferrer (1). Grande foi a alegria do Santo, quando ouvio pronun-
ciar a sua sentença : abrazava-se no ardenlissimo desejo de ir e.n-
contrar...se com o seu divino Mestre, e retribuir-lhe amor por amor 1 l\las
Deus contentou-se com as suas intenções, concedendo-lhe com tudo
o merecimento e a honra do martyrio. Suspendeu o Senhor a acti-
-vidade do fogo , e conservou-lhe a vida , como havia conservado a
dos tres meninos na fornalha de Babilonia. O azeite fervendo se
converteu para elle em um banho refrigerante, e delle sahiu mais
forte e vigoroso do que tinha entrado.
O tiranno ficou tam espantado com este acontecimento , que
não se atrevendo a dar a morte ao Santo, contentou-se com des-
terrai-o para a ilha de Pathmos (2) , para lá trabalhar nas minas.
Foi alli que rnarlyr, Apostolo e Prophela da nova Lei , S. João es-
creveu o seu Apocalypse, cuja palavra significa revelação. Alli deu
o Salvador a qmhecer ao seu casto discípulo, o_ que ha-de aconle-
cer no fim dos tempos , assim corno as maravilhas da celeste Je-
rusalem, até então sómente sabidas dos Anjos ; tanto gosla o Se-
nhor de se manifestar nos corações puros ! Ctmdemnado ao desterro
e ao duro trabalho das minas, em uma idade taro avançada , es-
perava S. João acabar em pouco tempo a vida no marlyrio ; mas
o sen divino mestre lirnu-lhe logo esta esperança.
Domiciano sendo assassinado no anno seguinte, Nerva , dotacfo
de boas qualidades , e de caracter naluralmenle pacirico, foi elevado

[1] Terlull. de Prrescríp. C. XXXVI. - Uma .-apclla lc\'anlada no


lugar Jo mê'lrlyrio, perto da porta latina existe arnda hoje.
.
[2) Uma das ilhas SporaJcs situadas no mar Eóeo ou Ard1ipcl,1t;o .

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uo CATECISMO

no imperio. S. João teve a liberdade de vollar .para _Epheso ; linha


eJle então quasi novenfa annos. Esta grande velhice, nem por isso
o impedio de ir ás provincias contiguas , tanto para ordenar Bispos,
como para formar novas christandades ; e deste modo governava
como anteriormente, totlas as Igrejas da Asia. Um dos Bispos que
elle ordenou nos ui Li mos annos da sua gloriosa carreira, foi o grande
Polycarpo, a quem estabeleceu Prelado de Smyrna (1 ).
Foi por este tempo que se manifestou completamente o coração
do discipulo mnito amado. Tendo ido o Santo Velho a uma ci-
dade proxima de Epheso (~), chamou o Bispo, e em presença de todo
o povo apresentou-lhe um mancebo, que ás graças do corpo jun-
tava uma indole viva e ardente; eu vos recommenuo eslc moço,
lhe disse e!le , tanto quanto vol-o posso recommendar, e vol-o en...
trego em deposito na presença de Jesu-Christo e da Igreja. O Bis-
po promelleu ter nelle o maior cuidado, mas breve se esqueceu da
sua promessa , e o moço, vivendo com muita liberdade, foi corrom-
pido por oulros da sua idade. Levado pelo ardor do seu animo ,
como fogoso cavallo que toma o freio nos dentes, brevemente exce-
deu os Sl1US companheiros , e pondo-se á lesta delles , fnrmou uma
quadrilha de ladrões, dos quaes era o mais violento , cruel e le-
mivel.
Entrelanlo, alguns negocios obrigaram o Apostolo a vollar á
mesma cidade ; depois de os haver regulado chamou o Bispo edis·
se-lhe : Reslilue-me o deposito que Jesu-Christo e eu te confiamos
em presença da Igreja a que presides : ficou o Bispo altooilo. Eu
te peço ·, continuou o Apostolo, aquelle mancebo , a alma do teu
irmão que te con!iei . . . O Bispo, abaixando os olhos~ lhe respondeu
com lagrimas : Elle está morlo ! . . . Como ? . . . Replicou o Sanlo
velho , e de que genero ele morte'? . . . Morreu para Deus , repli.,.

[1 j Tertull. de prmsc1'ip. e. XXXII.


· [~) Chris. aJ Th. ; Baron. lib. 1 e. !JS , Euz. lih. 111 e. ~3. /

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DE PERSEVERANÇA. 14.1
cou o Bispo , tornou-se um homem malvado, um perverso, em summa
um ladrão. Em vez de estar aqui na Igreja , procurou uma mon-
tanha, aonde habita com uma quadrilha de outros como elle.
A eslas palavras, o Aposto lo , rasgando os seus vestidos, e arran-
cando um profundo suspiro lhe diz , batendo com as mãos na ca ..
beça : Ah 1 como guardaste lu a alma de teu irmão 1 Tragam-me
já um cavallo , e deem-me um guia. Não altendendo mais que á
sua charidade, mo.nta a cavallo o veneravel velho, e dirige-se á in-
dicada montanha. Brevemente foi detido pelos vigias dos ladrões ;
mas em lugar de fugir ou de lhes pedir a vida , exclama em alta
voz: Para ser preso é que venho aqui ; levai-me ao vosso chefe.
Assim o fizeram ; mas o mancebo, que armado o esperava, apenas
avistou e conheceu a S. João, fugio por aquelles montes, aterrado
de o ver. Esquecendo a sua fraqueza e idade, correu o Santo quanto
pôde em seu alcance , grilando ao mesmo tempo; Meu filho ! meu
·. filho ! Porque me foges? porque foges a teu pai? que temes tu de
um velho , fraco e sem armas ! :Meu filho lem piedade de mim ,
nada temas, ainda ha esperança da lua salvação. Eu responderei
por li a Jesu-Christo, soffrerei voluntariamente a morte por Li, da-
rei a minha alma pela tua. Delem-te, e confia em mim e em Jesu ..
Chrislo, que me envia por lua causa.
Não pôde o mancebo res1slir mais ao Apostolo : parou, arrojou
as armas, baixou os olhos , e Lodo banhado em lagrimas abraçou o
Sanlo velho, cuidando de occullar a mão direita, que se achava man-
chada de innumeraveis crimes. O San lo Aposlolo , apertando-o ao
coração , assegurou-lhe novamr.nte e com juramento, que lhe obte..
ria do Salvador o perdão dos seus peccados ; prostrou-se até de joe-
lhos diante delle, e por urna bondade que não pode assaz admirar-se,
tomou-lhe a mão direita , que elle occullava, e beijou-lh'a como que
1

já purificada pelas lagrimas do arrependimento.


Glorioso da sua conquista, conduzio o bom pastor ao aprisco es-
ta desgarrada ovelha , e. apresentou-a na assemblea dos fieis. Não
se satisfez só com isto ; offereceu a Deus continuas orações por
aque1le mancebo , mortificou-se com elle , adoçou-lhe o coração com
muitos textos da Escriplura, transformou-o, para assim dizer, por um
encanto divino ; e não se separou delle , senão depois de o haver

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H2 CATECISMO

reslabelecido na Igreja, pela absolvição dos seus peccados, e parlt-


cipação dos Sacramentos.
Foi lambem na cidade tle Epheso , depois da sua volta de Pa-
thmos , que S. João escreveu o seu Evangelho, o que foz a rogo de
seus discipulos, e da maior parle das Igrejas da Asia , e de todos
os fieis das provincias visinhas , que vieram supplicar-l~e que desse
por escriplo um teslimunho aulhenlico da verdade. Não o começou
porem, senão depois de jejuns e orações publicas, e, como que des-
pertando d'uma profunda revelação, pronunciou aquellas primeiras
palavras (1): No principio era o Verbo, e o Verbo estava em Deus,
e o Verbo em Deus. Os outros Evangelistas Linham dado a conhe-
cer a humanidade do Salvador; S. João, porem , descobre-nos a
sua divindade: este é com effeilo o seu principal fim.
Tambem escreveu lres Epistolas o discipnlo amado , as quaes
ainda possuimos ; e são dignas d'aquelle, que era o predileclo d'um
Deus lodo amor. A fim de firmar a obra Evangeli('a, permillio Deus
que S. João chegasse a uma extrema velhice. Reduzido, por causa
da sua muita idade , a já não poder ir á Igreja , era conduzido por
seus discipulos ; e, não podendo fazer longos discursos, não dizia ao
povo em todas as assembleas senão estas poucas palavras : .Meus
queridos filhos , amai-vos uns aos outros. Como se enfadassem de
ouvir-lhe sempre repelir a mesma cousa, den-lhes esta .resposta, ver-
dadeiramente digna do ·Apostolo predilecto. E' csle o mandamento
do Senhor ; se o cumprirdes , elle só basta (2).
Não era porem um velho impertinente, e até queria que se to-
massem recreios innocentes , do que elle mesmo dava o e~emplo.
Um dia, em que se divertia em acariciar uma per<1iz domesticada,
foi observado por um caç.ador , que se mostrou muilo admirado ele
ver tam venerando homem entreter-se com tal divertimento. Que
tens ahi na mão ? lhe perguntou o Apostolo. Um arco, respondeu

[1] Veja-se Tillcmónt. t. 1.


t2J llieroa. io epist. ad Gal. lili. Ili. e. li.

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DE PERSEVERANÇA. U:l
o caçador. Porque não o tens sempre armado? ... « Porque per-
deria a força. Ora pois , replicou o S. Apostolo, é pela mesma
rasão que eu dou algum descanço ao meu espirito. » Finalmenle ,
tendo chegado ao centesimo anno de vida, eutregou a sua bella alma
nas mãos d'aquelle , em cujo seio elle mesmo teve a felicidade de
repousar : foi sepullado em Epheso.
O sexto conquistador evangelico é S. Thomé. Era elle , bem
como os outros de que havemos fallado , judeo de origem. Foi esle
o Apostolo, a quem o Senhor permitlio '1ue mellesse a mão na cha-
ga d~ seu lado. .Depois da Ascensão parlio para o Oriente, e levou
o Evangelho á Persia , Ethiopia e á Judea (1), aonde confirmou com
seu sangue a doulrina que pregára. Não se sabe ao cert.o o lugar,
nem o anno do S(lU martyrio , e só sim que o seu corpo foi levado
uepois para Edessa, cidade celebre da l\fesopotamia (2), aonde· foi
por muilo tempo objeclo t-le singular veneração. Nada admira este
culto, se nos lembrarn:ws que, aos trabalhos e soffrimentos dos Apos-
lolus devemos nós a vantagem de conhecer o Evangelho, e sermos
chrislãos.
Poi o setimo, S. Thiago o J.llenor ; filho de Alpheo e :Maria ,
proxima parente da Santissima Virgem. S. Jcroninw e Santo Epipha-
nio refrrem, que o Salvador, no momento da sua Ascensão, lhe re-
commendou a Igreja de Jerusalem , e em consequencia disto o es-
t:ibeleceram os Apostolos Bispo .d'aquella cidade, quando se disper-
saram para pregar o Evangelho. Os mesmos Jndeos respeitaram ao
santo- Bispo, apezar do furor com que perseguiam os christãos . Foi
pelo anuo de 59 que elle escreveu a sua Epistola, que tem o titulo
de Catlwlica ou Universal, porque não foi dirigida a alguma JgreJa
particular ; mas a t(}dos os JUdeos convertidos,, que estavam disper-
sos pelas differentes parles do universo. Nella refuta o Apostolo a
certos falsos doutores, que ensinavam que a fé só de si bastava para

Pl Chrys. t. VI hornil. 31; Baroo. U.


l2] S. Greg. de Tours. Gloria Marl_yr. e. 3!.

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1U CATECIS~io

a justificação , e assim as boas obras eram inuteis. Dá lambem


excellenles regras para viver santamente ; e exhorta os fieis, a que
recebam o Sacramento da Extrema-Uncção em suas enfermidades.
Na mesma epocha , tendo S. Paulo frustrado , pela sua appel-
laçüo para o Imperador, os máos des,ignios dos judeos 1 resolveram es-
tes descarregar toda a sua vingança no Santo Bispo de Jerusalem.
O Ponlifice Ananus, digno filho do famoso .Annaz, de que nos falla o
Evangelho,· reunio o Synedrio, e perante elle fez comparecer S. Thiago,
com muitos outros chrislãos. Accusaram o Apostolo de ter violado
a Lei de Moyses, e o Mndemnar~un a ser apedrejado. Antes, porem;
de o entregar ao povo, levaram-no ao alto do Templo , para d'alli
renegar a sua fé em voz alta , <le sorte que fosse ou vi do tle toda a
gente , e lhe disseram : Esta é a maneira de desenganar aquelles;
a quem tens seduzido. Mas o Santo , bem longe .de fazer o que elles
queriam , começou a confessar a Jesu-Chrislo , da maneira a mais
solenrne. A isto os Scribas e Phariseos , ardendo em ira , exclama-
ram : Pois que? ! ... o homem justo de tal sorte se tem perverti-
do l ... E subindo apressadamente aonde elle estava, o precipitaram
abaixo.
Não morreu logo o Apostolo , leve ainda forças para por-se de
joelhos ; e nesta posição levantou os olhos ao Ceo, e rogou a Deus
perdoasse, aos seus assa~sinos, dizendo como seu divino Mestre :
elles não sabem o que fazem. Então a plebe arremessou contra elle
uma chuva de pedras, e por fim um certo pízoeiro . o acabou , des-
carregando-lhe na cabeça um golpe, com a maça de que se servia
para bater os pannos. Foi isto no dia de Pascoa, a 10 d'Abril do
anno 61 de Jesu-Chrislo (1 ). Era tal a opinião que os judeos ti-
nham da sua santidade, que alribuiram á sua injusta morte a des-
truição de Jerusalem (2).
Foi S. Filippc o oitavo conquistador evangelico. Era este Apos-

[1] Eusebio , p. U.
[2j Josepho, Autiq. liv. XX e. 8,

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ti~ PtlSEVERANÇA. H5
toio de Bélhsaida na Galiléa : foi um dos primeiros discipulos do
Salvador. Depois da descida do Espirito Santo, logo que os doze
pescadores de homens se dispersaram pelas diversas partes do mun-
do, S. Filippe parlio para as duas Phrygias; aonde o glorioso ven-
cedor do paganismo gozou por muito tempo o fructo da sua victo-
ria ; . pois que S. Polyca'rpo , que não se converteu , senão no
anno 80 do Senhor, teve algum tempo a felicidade de conversar
com elle. Foi sepultado na cidade de Hierapolis na Phrygia , e
não poucas vezes esl.a cidade se julgou devedora da sua conservação
àos continuas milagres; que se obravam pela virtude do Santo Apos-
tolo.
O none é S. Bartholomeli ; galliléo de origem , chamado ao
Aposlolado por Nosso Senhor. Ao sahir do Cenaculo, em tanto que
os seus companheiros se dirigiam , aquelles para o Occidente, estes
para o Meio dia , est' onlros para o Norte·, S. Barlholomeu filou a
sua attenção nos continentes mais barbaras do Oriente , e penetrou
alé ás extremidades das Indias (1). Por este nome entendiam os
antigos algumas vezes não só a Arabia e Persia , mas lambem, a
lndia propriamente dita. Com effcito , elles fa11am dos Brachama..;
nes deste paiz, famosos no universo pelo seu pretendido conheci-
mento da philosophia, e por seus supersliciosos mystel'ios. No prrn-
cipio do 3.º Seeulo, indo S. Pantenio ás Indias, para refntàr os Bra-
cbamanes, alli enconlrou vestigios do Christiauismo. Vio elle, entre
oul'ras cousas, uma copia do .Evangelho de S. MaLheus em hebraico,
a qual lhe asseguraram ter sido levada áquelles silios por S. Bár-
tholomeu, quando alli foi plantar a Fé (2).
O Santo Apostolo voltou aos paizes situados ao Noroeste da Asia,
e encontrou S. Fillippe em Hierapolis de Phrygia. D'alli se dirigio
a _Licaonia , aonde S. Chrysostomo assegura que elle instruio os po.,; ·
vos na Rel_igião Chrislã.

(f) Eusebio 1. V. e. 10.


{~> Idem p. 175.
19 VI

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--- -
H6 CATECISMO

Finalmente peneh·ou na grande Armenia , para prégar a Fé a


uma nação caprichosamente aferrada ás superstições da idolatria ; e
ah1 recebeu a corôa do martyrio (1 ). Os , historiadores Gregos e La-
tinos concorqam eril dizer, que elle foi crucificado e esfolado vivo.
A reunião destes dous supplicios era usada não só no Egyplo, mas
lambem entre os Persas ; de sorte que bem podiam os Armenios
ter aprendido de seus visinbos aquelle genero ele barbaridade. Crê-se
que a cidade de Albanopolis , aonde elle foi martyrisa~o, é a cidade
de Albania, situada no littoral do mar Caspio, que confina com a Ar-
menia.
Quem poderá pensar, sem admiração, em tantos carceres, que os
Apostolos sanctificaram pela sua presença ; em lam vastas regiões ,
que percorreram e regaram. com o seu · sangue! :Mas , admirando o
ardor do seu zelo, e o heroismo da sua coragem, como não nos hu-
milharemos , á vista da nossa pergniça ; nós, que nada ou quasi nada
fazemos , para dilatar o reino de Deus entre as nações, nem ainda
para a sanctificação de nossas proprias almas !
Em quanto S. Bartholomeu se votava a tantos trabalhos e soffri-
mentos nas lndias e na Armenia, o decimo conquistador Evangelico
penetrava na Ethiopia e na Persia (2)." , Este . novo Apostolo é S.
Matheus. Chamado pelo Salvador de recebedor de in;ipostos á dig-
nidade do Apostolado, jámais quiz ter outro titulo que o da sua
primeira profissão, isto é de fatheus o Publicano. Assim por hu-
mildade se appelidava a si mesmo, para que todas as gerações admi-
rassem o poder e misericordia d'aquelle , que até de uma pedra de
escandalo sabe fazer, quando lhe apraz , um filho de Abraham.
Antes de partir para as suas longiqaas missões, escreveu o seu Evan-
gelho (3). Obrigado . a separar-se para sempre dos seus querido

(1) S. Greg. de Toeceres, li\•. 1. e. 3ii.


8

[2] Socr. liv. 1. e. 50 - RulT. liv. X e. 9 p. 161.


[3j Euseb. pag. 95.

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DE PEUSEVERANÇA.. U7
neophytos de Jerusalem , quiz supprir por .este meio a falta da sua
presença.
Deu elle á sua obra ~ nome de Evangelho ; isto é . Boa e felfr
Nova, e com rasão, porque descrevendo a vida do Verbo incarna-
do, annuncia a todos os homens , ainda aos mais perversos , a re-
conciliação do Ceo com a lerra, o perdão do peccado, o livramen-
to do inferno , a adopção de filhos de Deus, a herança do seu rei-
no , e a gloria de virem a ser irmãos de seu unico Filho : são com
effeito bem felizes novas. No seu Evangelho, dedica-se S. Malheus
a descrever a geração temporal do Redemptor, e deixa a S. João
o cuidado de acabar o que elle havia começado , revelando o seu
nascimento eterno. Foi o seu Evangelho o primeiro que se escreveu.
Quanlo era justo , que aquelle que se tinha convertido depois de
rnuilo peccador, fosse o primeiro que annunciasse a infinita mise-
ricordia do Salvador, que veio chamar, não os justos, mas os pec-
cadores ?
Vivia S. Matheus vida muilo austera ; e não comia carnes,
· mas só se alimentava de hervas , raízes e fructas agrestes (1). Mor-
reu em Lucb, no paiz de Senaar , que fazia parte da antiga Nubia,
e que fica entre a Abissinia e o Egyto. Assim, por determinação da
Providencia, cada Apostolo havia de ficar, ainda depois da sua morle,
no paiz que lhe tinha caido em sorte para plantar o Evangelho.
Poderosos guardas da nossa Fé, do alto dos Ceos , velai por vossa obra.
Deus que se glorifica, fazendo estrondosamente brilhar as gran-
des acções dos seus servos , lambem algumas vezes se compraz em
as ter occultas ; e assim a sua infinita sabedoria nos quer ensinar
o amor da obscuridade, e o desprezo do mundo. Tal é a reflexão
que inspira a ''ida de S. Simão. Tudo o que se sabe deste unde-
cimo Apostolo, é que o ardor do seu zelo por seu divmo Mestre
lhe fez dar o nome de zeloso. Os martyrologios de S. Jeronimo,
Deda, Adon e Usuard, collocam o seu martyrio na Pers.ia, em uma

llJ .
Clcm. AlcxauJ. Pocdag. 1. li e. l .

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148 CATECISMO

cidade chamatla Suanir, e atribuem a su_a morte. ao furor dos padres


idolatras. O duodecimo Aposlolo é S. Judas, cognominado Thadeo ,
que quer dizer louvor, e Lebbeo, que significa !tomem de espírito.
Era irmão de S. Thiago menor , e proximo parente de Jesu-Chrislo.
Escolhido como os demais para libertar o universo do impPrio do
demonio , saio da Judea depois do Pentecostes, passou á Africa, e
plantou a Fé na Libya (1 ). No anno 62 depois de Jesu-Chrislo ,
voltou S. Judas a Jerusalem , e alli assistio á eleição que se fez da
S. Simeão , seu irmão, para governar a Igreja d'aquella cidade.
Diz-se que elle morreu em Ararate, ~la Armenia ; o certo é que os
Armenios honram ainda hoje a S. Bartholomeu e a S. Judas, como seus
primeiros Aposlolos (2). Temos de S. Judas uma Epistola, dirigida
a lodas as Igrejas , , e particularmente aos judeos converlidos ; o seu
fim principal é precaver os fieis contra as heresias .então nascentes
dos Nicolaitas e Gnosticos.
AQtes da sua vocação ao Apostolado , tinha S. Judas sido casa-
do (a). A historia falia de dous seus netos , dignos por suas vir-
tudes de seu illuslre avô! Estes innocentes chrisLãos possuiam em
cummum duas geiras de terra, que ambos cullivavam ; o rendimen-
to desta pequena herdade bastava-lhes para p'agarem os tributos, que
Domiciano exigia dos ju<leos com extremo rigor. Não se contentan-
do porem com isto , aquelle tiranno desconfiado e cruel , mandou
malar todos os descendente~ de David , a fim de tirar aos judeos o
menor pretexto de se revoltarem. Em consequencia desta ordem
havendo denuncia que os netos de S. Judas eram da progenie de
David e parentes do Christo , foram conduzidos a Domiciano, o qual
os interrogou pessoa_lmente ácerca da sua origem e fürtuna, inquirin-
do tambem sobre quem era o Messias , e qual a sua realeza. A tudo

[1] S. Paulin. Carm. 26.


l2J Vede Jç>aquim Schroder. Thes. ling. armen. p. U9.
[3] Euseb. IJist. liv. III e. 20.

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DE PERSEVERANÇA. H9
responderam com a maior sinceridade. Bem mostra,'am as suas mãos,
calejadas do trabalho , que era ,·erdade o que diziam da sua po-
breza. Quanto ao Messias , disseram qne elle era verdadeiramente
Jlei ; mas que o seu reino não appareceria com todo o seu esplendor
senão no fim do mundo, que eolão havia de vir julgar os vivos e os
mortos, Encantado da sua simplicidade , e assegurado pela sua hu-
milde condicção aclual , o imperador os despedw como pessoas de
quem nada tinha que recear. Foram depois elevados ao Sacerdocio,
e governaram santamente consideravms Igrejas (1 ).
O nome de S. Mathias , de que agora vamos fallar, não se
· pode pronunciar sem dolorosa lembrança. Judas Iscariotes ti-
nha deixado, por sua traição e por sua morte, um lugar vago no col-
legio apostoJico ; alguns dias antes do Pentecostes, S. Malhias foi
eleito para o substituir. Não se sabe nem a historia de suas con-
quistas Evangelicas, nem as circumstancias de sua morte : a sua vida,
bem como a de S. Simão, está occulla em Jesu-Chr1Slo, e sómente es-
cripla pelos Anjos no livro immortal da eternidade.
Doze destes illustres pescadores , de quem lemos esboçado a his-
toria, tinham sido directamente enviados para prender na rede da
Igreja os fiJhos de Abraham. D'esL'arte, por sua mcançavel mise-
r1cordia, tinha Deus querido , apezar da morte de seu Filho, lem-
brar-se das promessas feitas aos Patriarchas. Os judeos deviam ser
os primeiros a entrar no reino de Deus ; mas a sua obsll.nação for-
çou o Omnipotente a dar ao Messias um povo novo , e os gentios
tornaram-se os herdeiros das promessas. Paulo foi chamado para
elles ao apostolado, e o seu zelo correspondeu á sua vasta missão.
A historia dos doze conquistadores , aos quaes os modernos po-
vos nunca pagarão o tributo de gratidão que lhes devem , jun-
temos a de S. Marcos e de S. Lucas. Estes dois fieis companhei-
ros de S. Pedro e de S. Paulo , merecem , por muitos tilulos ,
as homenagens das nações christãs,; já porque partilharão os traba-

[1] Tillernont , t. t.

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130 CATECISMO

lhos de seus illustres patronos, já porque nos transmiltiram a his-


toria do Salvador e das primeiras conquistas Evangelicas.
Era S. Marcos iudeo de origem : chamado á fé pelos Apostolos,
depois da Ascensão , tornou-se o fiel companheiro de S. Pedro. Ti-
nha o chefe do collegio apostolico, na sua primeira viagem a Roma,
convertitlo grande numero de pessoas. A instancias destes novos
Fieis, e particularmente dos cavalleiros romanos, escreveu S. Marcos
o seu Evangelho (1); no qual recopilou tudo quanto tinha ouvido
dizer ao Apostolo. S. P~dro ficou encantado do zelo que os chris-
tãos mostravam pela palavra de vida, approvou o Evangelho de S.
Marcos, e imprimio-lhe o sêllo da sua auctoridade , porque foi lido
nas assembleas dos Fieis. O Apostolo, voltando para o Oriente, en-
viou S. Marcos ao Egyplo com o titulo de Bispo de Alexandria ,
que era, depois de Roma , a .mais celebre cidade do mundo.
Doze annos prégou S. Marcos nas diversas provincias do Egypto,
depois disto voltou para Alexandria • aonde em pouco tempo for-
, mou uma 'Igreja numerosa. Os admiraveis progressos do Christia-
nismo , causaram aos pagãos um tal furor, que resolveram acabar
com o instrumento de tantas maravilhas ; mas S. Marcos achou meio
de se esquivar á sua furia por algum tempo. Por ultimo foi des-
coberto quando otferecia a Deus a oração ; isto é, quando celebrafa
os sagrados misterios. Os mais exaltados dos pagãos se apossaram
d'elle , ligaram-no com cordas , arrastaram-no pe[as ruas , grilando
que era preciso levar aquelle boi a Bucoles , que era um lugar pro-
ximo do mar, cheio de rochas e de precepicios. Aconteceu isto a
24 de Abril do anuo 68 de Jesu-Cbristo , e aos quatorze do reina-
do de Nero.
Arrastaram o Santo por todo o dia ; a terra e as pedras ficaram
tintas de sangue, e por toda a parte espalhados pedaços de carnes
Durante este afrontoso supplicio, não cessava o veneravel velho de
louvar a Deus, pelo haver julgado digno de soffrer pela gloria do seu

ll] Euseb. l. li e. tõ.

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DE PiRSEVERANÇA. 151
nome. Chegada a noute, lançaram-no os idolatras cm uma prisão ;
e na seguinte manhã arrastaram-no como no dia anterior até que
expirou. Os christãos recolhera~ os restos do seu corpo, e o en-
terraram em Bucoles, 110 mesmo lugar em que costumavam ajuntar-se
para a oração.
S. Marcos, no seu Evan_gelho , não fez mais do que compendiar
a S. l\Iatheus. A sua maneira de narrar é cone isa ; e interessa sin-
gularmente pela graça de sua elegante simplicidade. A exemplo de
S. ~fatheus dá-nos a conhecer o Salvador, como homem legislador
e modêlo. Não refere o que o Filho de Deus diz em abono de S.
Pedro ; mas nisto mesmo inclue uma grande lição, quaJ é de não
querer offender a humildade do Santo.
·Outro é o estillo e a maneira de narrar de S. Lucas.
Este parece ter por objecto mostrar-nos o Salvador como
Sacerdote e como Pastor; alem disso é no seu Evangelo que se
encontra a narração de muitas circumstancias relativas á Incarnação,
como a annunciação deste mysterio á Sanlissimá Virgem , a sua vi-
sita a Santa Izabel, a parabola do filho prodigo, e muitas outras
particularidades do mesmo genero. O estillo é claro , elegante e
variado; os pensamentos e a dicção tem uma sublimidade admira-
vel , sem faltar áqnella simplicidade, que constitue o caracter distin-
clivo dos escriptores sagrad0s. A energia com que o Evangelista
falia da paciencta , doçura, e charidade de um Deus feito homem ,
por amor de nós ; a sua placidez em relatar os soffrimentos e morte
do Salvador , a sua atlenção em evitar qualquer aposlrophe, ou in-
v~ctiva, que álias é tam natural no homem, contra os inimigos do
seu amigo ; tudo tem não sei· que sublime , nobre , palhelico e per-
suasivo , que se não encontra nos mais bellos ornamentos da litlera-
tura. Esta simplicidade , para assim dizer , faz que as grandes ac-
ções foliem por si mesmas ; em tanto que a eloquencia humana não
conseguiria mais do que diminuir-lhes o esplendor.
Agora, que temos fallado da obra , fallemos do auctor. Era S.
Lucas nalural de Autiochia , metropole da Syria , aonde versou ex-
cellentes estudos , que aperfeiçoou viajando pela Grecia e Egypto.
O seu genio particularmente o inclinou á medicina ; mas parece que
só depois da sua conversão ao ·Christianismo , é que a charidade 0

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CATECISMO

moveu a exercer aquella arte, que álias não era incompativel com
os trabalhos do ministerio aposlolico. S. Jeronimo, assegura-nos que elle
foi medico distincto , e a tradição accrescenta, que foi lambem muilo
habil na pintura. Era elle já um perfeito modelo de todas as vir-
tudes , quamlo S. Paulo o escolheu para cooperador e companheiro
de seus trabalhos, no anno õ1 de Jesu-Christo ; e estes dous grandes
Santos nunca mais se separaram, senão por pouco tempo,, e só quan-
do o exigia a necessidade das Igrejas. Acompanhou S. Lucas o gran-
de Apostolo a Roma, quando alh foi preso no anno 61; e não se
separou delle em quanto não teve a consolação de o ver restituido
á liberdade no anno 63.
Neste mesmo anno concluio S. Lucas as Actas dos Apostolos , -
cuja preciosa ol:ira tinha ernprehendido em Roma, por inspiração do
Espirilo Santo (1); e é uma como continuação do Evangelho. Nella
se propõe S. Lucas refutar as falsas noticias , que se publicavam
ácerca da ·vida e trabalhos dos fu odadores do Christianismo ; bem
como consignar em esCl'iptura authentica as maravilhas de que Deus
se trnha servido , para formar a sua Igreja ; o que lambem impor-
ta uma 'rnvensivel prova da resurreição do_ Salvador , e da divin-
dade do Evangelho. Depois da morte de S. Paulo , o Evangelista
prégou na llalia e na Dalmacia ; e terminou a sua longa carreira
por um glorioso martyrio. (2).
Cumpre notar bem, que foi , para assim dizer , com difficnl-
dade , e co'mo forçado , que Deus , tanto no Novo como no Antigo
Testamento , mandou escrever a sua Lei. A tradição oral é com
effeilo muito mais conforme á simplicidade e innocencia, que Deus
deseja ver entre os homens ; bem como é mais propria, para estrei-
. ar os laços da familia , e fazer de todos os homens um só povo
de irmãos. Assim pois, não vemos que Nosso Senhor encarregasse
• aos seus Apostolos de porem por escripto a historia da sua vida ,

[11 Oier. Catalog. vir illustr. e. VII.


[2] Vede S. Greg. de Naz. or· Ili; S. Paulin. Serus. XVIII.

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tm PERSEVEltANÇA.
ou <la sua doutrina : os anctores {(Ue a escreveram , moveram-se a
1
fazei-o por diversas c1rcumslancias , ou por inspiração do Espirito
Santo. S. Malheus escreveu o seu Evangelho a rogo dos judeos
cÕnvertidos da Palestina ; S. Marcos escreveu o seu, a inslancias dos
Fieis ele Roma. S. João foi rogado pelos Dispos da Asia, para dei-
xar um tesllmunho authentico da verdade, contra as heresias de Co-
rinlho e de Ebião (1).
Santo Irineo, S. Jeronimo e Santo Agostinho consideram como
figura dos Evangelistas os qnatro animaes mysleriosos de Ezequiel e
do Apocalypse ; ·e por isso as pinluras dos Evangelistas costumam
ser acompanhadas por algum destes animaes figurativos. Todos con-
vem que a Aguia é o symbolo de S. João, que desde o principio se
eleva ao seio da Divmdade , para ahi contemplar a geração eterna
do Verbo. O boi é a figura de S. Lucas , que comeaça por fazer
mcncão do Sacerdocio do Homem Deus, e do Sacrificio de Za·
0

charÍas ; S. Matheus é repre&enlaclo pelo animal, que linha como fi-


gura de homem, porque começa contando a g{'ração temporal do Sal-
Yador, e porque o seu íim é dar-nos a conhecer a sua santa hu-
mani'clade. Finalmente o Leão caracterisa S. Marcos, porque explica
a dignidade real do Salvador, verdadeiro Leão da tribu de Juda, e
porque começa pelo seu retiro no deserto , habitação ordmaria do
leão.

ORA.VÃ.O.

O' meu Deus , que sois lodo amor, eu vos dou graças por nos
haverdes lransmitliclo a vossa Santa doutrina • não só de viva voz,
mas por escriplo ; dignai ·vos esclarecer, Senhor, aquelles que ainda
não vos conhecem.
Eu proleslo amar a Deus sobre Lodas as cousas , e ao proximo
como a mim mesmo por amor de Deus ; e , em testimuilho deste
amor , llei-de ler o Evan9ellto coin o mais profzmda respeito.

[1} Vede Eusebio, liv. Ili. e. 24. iJ. liv. 11. e. 15; S. Jerooimo
Prol. in Malli.
20 YI

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CATF.CISl\fO

V. 11
LIÇAO.

O CHRISTIANISM:O ESTABELECIDO

(CoNT1NU AÇAÕ no 1.0 SEouLo.)

Lucta do Paganismo contra o Chrisliaoismo ,... Roma pagã.

O REINO dos Ceos , ou a Igreja, é similhante a um grão de mos-


tarda, ·que , sendo a mais pequena semente , converte-se depois
em grande arvore, de modo que as aves do Ceo podem fazer os
ninhos em seus ramos, e recrear-se entre a sua folhagem ; eis o
que dizia o Salvador aos seus Aposto los, quando percorria , pe>bre
·e obscuro , as aldêas da Palestina. Assim como não ha parle al-
guma da terra que o sol não visite na sua diaria carreira, da mes-
ma sorte não ha povo debaixo do· Ceo, que não tenha ouvido a sua
voz : eis o que dizia , dez seculos antes, o Rei Prophela, pred1zen-··
do as conquistas dos pescadores ga1Héos.
A historia das suas missões é o cumprimento litteral destas duas
prophecias. O Oriente , o Occidente , o Norte e o l\Jeio dia, teera

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DE PERSEVERANÇA.
presenceado suas conquistas evangel1cas. Em Lodos os pontos do
globo arvoraram elles o estandarte viclorioso da Cruz_: em todas as
terras lançaram a semente da verdade ; a todos os povos annuncia-
ram a Boa Nova , as nações a receberam com alegria ; e a boa se-
mente se multiplicou a cento por um. Quando o ultimo destes doze
luzeiros, deixou de brilhar na cidade tl'Epheso, já a luz envange- /

lica fulgurava d'um a outro polo, e , por toda a parle, augmenlava


o numero dos christãos.
- D'esl'arte uma nova sociedade se forma !no meio da antiga ; e
engrandecendo-se rapidamente, apparece uma e outra frente a frente_,
promptas a ferir a lucta , na qual a velha sociedade se empenhará
por suffocar a nova. Antes , porem , de entrarmos na descripção
deste combate que , por espaço de tres ·seculos, alagou o mundo em ,
sangue, importa dar bem a conhecer os dous campos oppostos, qu~
são o paganismo de uma pa1~te , da outra o Christianismo: des.le
Gonhecimenlo resultarão lres vantagens principaes :
1. Ver de um lado o mundo velho , o mundo pagão, caduco
0

pela incre(lulidade e depravação , furioso por ver-se combatido nas


suas infames s~nsualidades e brutal despotismo ; dispondo de toda a
força material ; de_scarregando repetidos golpes sobre a sua debil ri·
vai; vibrando, como abrazados ·raios, os seus erlictos de proscrip-
ção geral ; armando de duro~ cutellos os seus algozes e proconsu·
les; desatrelando todos os leões, ' tigres e ursos que lhe podiam for-
necer os desêrtos da Africa , e as florestas da Germania; chaman-
do em seu auxilio as legiões victoriosas do Universo , com o seu
stnado e seus imperadores ; ver do outro a sociedade nascente, aso-
ciedade christã, composta dos pequeninos e pobres , fortes só pela
sua fé, e sem oppor á sua formitlavel inimiga outra cousa que as
suas angelicas virtudes, e esta só palavra que diziam: Ei~ sou e/tris-
tão ••• ver isto, é ver com os proprios olhos, e para ·assim dizer
palpar com as proprias mãos , o braço do Omnipotente , que fez
triumphar a fraqueza da força , a victima do algoz. A esta vista
admirados e confundidos, adoraremos em silencio , dizendo no co- ,
ração como Terlulliano : Isto é incomprehensivel, incrivel ... logo
ó a obra de Deus , Jncredibile , ergo divirwm.
'2." Quando tivermos estudado a fundo o eslado do mundo pa- -
...

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156 GATECISl\IO

gão ; quando conhecermos qual era nclle a abjecção e profunda mi-


seria <lo menino , da mulher, do escravo , do pobre ; e virmos en-
tão o que o Christianismo fez a bem1 delles, saberemos distinguir
as duas sociedades .; o nosso coração se encherá de gratidão, e dos
Jabios nos sahirão conlinuos louvores ao Deus Salv~dor, que nos ti·
rou d'aquelle horri vel estado , em que teria mos nascido e morrido ;
e nos chamou a gozar da luz , da liberdade , e _dos beneficios do
Erangelho.
3.º Com a nolici~ dos primitivos chrislãos nossos illuslres ante-
passados, suppriremos a deliciencia da no.ssa educação moderna ; edu-
cação insensata , que não nos falia senão dos heroes pagãos , e dos
deuzes da fabula , como so tivessemos sido alguns cidadãos .de Alhe-
nas ou de Roma ; ou bouvessemos de ser adoradores de ~Jercurio e
' '
de Jupiter. As virtudes de nossos avós nos ensinarão qual é a
santidade lia nossa vocação ; conhe.ceOLlo-as , diremos em nossa cons-
ciencia · Eis o que fizeram nossos maiores ; eis como nos e3lam bra-
dando: Nós vos demos o exemplo , a lim que façais como temos
feito. Herdeiros do seu sangue e do 8eu nome , porque não pode-
remos lambem fazer o que elles fizeram? Nada mudou na Religião :
adoramos o mesmo Deus , professamos o mesmo Evangelho , espe-
ramos a mesma recompensa. Filhos do velho Adam como nós, nos-
sos avõs foram frageis , lentados , pobres, perseguidos , soffredores ;
não depende pois senão de nós o sermos como elles ,filhos do novo
Adam , simpliccs, ·sinceros, humildes,. castos, resignados, charitali-
vos : eis o que cuQlpre que sejamos : sim , eis o que nos cumpre,
que este é o preço do Ceo . .
Para bem conhecer a difft~renç.a do Paganismo e do Chrislia-
nismo , para apreciar a extensão dos beneficios, de que o ·mundo é
· devedor a esl.e ultimo , e ver de perto as v~rtndes de nossos avós
na fé, remontemo-nos aos primeiros seculos da Igreja. Supponha-
mos que chegamos a Roma na manhã do dia elo martyrio de S.
Pedro e de S. Paulo, e observemos de espaço esta famosa cidade,
na qual o mundo de então se reflectia todo , como em um vasto es-
pelho.
Aqui é ver o Christianismo e o Paganh;mo cara a cara. Este
- havia chegado ao seu ultimo gráo de ·desenvolvimento; aquellc cs-

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DE PERSEVERANÇA. tõ7
lava ainda no berço. Estudemos primeiramente o Paga.msmo , e
consideramol-o alternativamente no seu culto , nos seus costumes ,
nas suas leis : a este triplice quadro opporemos o culto , os costu-
mes e as leis do Christianismo. O Paganismo occupa Roma, que
se moslra á face do sol ; o Chrislianismo habita outra Roma subler-
ranea : vejamos pois o que era a lloma pagã.
Apos setecentos annos de continuas guerras, estavam os roma.nos
senhores do imperio do mundo. Seguintlo o espirilo ele todos os povos pa-
gãos, não tinham elles combatido senão para conquistar e fazer escravos.
Para elles era a terra uma ovelha , que não se conlenlaram com
tosquiar, senão qne lambem a esfolavam. Subamos ao Capitolio, e
vejamos o que faziam dos seus immensos despojos.
Lá se divisa uma cidade immensa : no seu ambito se agilam
mais de cinco milhões de habÚantes : nada iguala o numero dos s~us
palacios e templos; é espantoso que o mundo tivesse tanto ouro como
o que foi preciso para os construir e adornar. Estava Roma edi-
ficaua sobre sele collinas ; mas tanto se estendeu no tempo dos Ce-
~ares, que já cingia esta coroa imperial a fronte de doze montanhas (1).
Dividia,.se em quatorze bairros ('!), cuja total circumferencia ·era de
duzentos e quatro mil novecentos e quinze pés • contendo quarenta
e oito mil sele cen los e desenove casas. Deste numero , dois mil
eram palacios da mais incrível mngnincencia (3), formados de abo·

(1) Eisaqui os nomes dos sele montes primitivos - Palatino, Ca--


pitolino, A,·entiao, Caelio, Quirinal, Vimmal, Esq.uilino; eram os outros,
Jaaiculo, Monte Cavallo, Pincio, VaLirano, C1tar10 e Gionlano.
(2) Eis os seus nomes 1. 0 Porta Carena, 2.º Caclimoot!um, 3.c Isis
e Serar'is Mõnela' 4.0 Tcmplum Pac1s, 5. 0 Esqu1lina CUIJ) lurre el colle vi-
minali 6. 0 Alta Semita 7. 0 Via Lata, 8.º Forum romanum, 9.º C1rcus Fia-•
minius, 10 Palatium, 11 Circias l\taximus, 12 Piscma publica, 13 Aveo-
linus, U Trans Tiberim.
- (3) Nas precedentes edições do Catecismo' não tínhamos rallAdo'
senão úos palac1os. VcJa Onuphro - Dtscriptur bis llomae , p. 105. -

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rns CATECISMO'

bada alé certa allura , e construidos de pedra, que resistia ao fogo.


Eram todos separados uns dos outros , e se·m muro interrnet.110 :
cada um era como uma cidade completa. Ahi s~ achavam os fo-
rums, ou amplas praças, circos, porticos , banhos , vastos jardins
e ricas bibliolhecas.
Para satisfazer a molleza, e nutrir a ociosidade dos seus \'olup-
Luosos habilantcs, tinha Roma novecentos estabelecimentos de banhos,
duzentos e noventa celeiros, ' e quarenta e cinco palacios destinados
á dissolução. Em sua Yasta circumíerencia se erguiam quatrocentos
o vinlé templos de idolos , nos quaes se adoravam trinta mil deu-
ses. Havia ainda em Roma cinco naumachias, ou especies de lagos,
aonde se representavam batalhas navaes ; eslaluas e obeliscos innu-
. mera veis, trinta e seis arcos de lriumpho de precioso marmore, or-
nados de esculpluras; vinte e quatro cavallos de bronze dourado •
e noventa e quatro de marfim ; muitos amphielhealros , em um só
dos quaes cabiam oi lenta e i;;ele mil espectadores assenlados ; o grande
Circo , ontle havia lugares para cento e cincoenta mil pessoas , pela '
menor conta , pois dizem alguns que linha quatrocentos e oitenta
e lres mil lugares. O que porem não -havia era hosrital , ou cousa
que o parecesse. Em fim o palacio imperial , construido por Nero ,
muito menos nolavel pelo ouro e pedral'ias, prodigalizadas em seus
ornamentos , do que pelas campinas , florestas e lagos de que era
cercado. Vinte e quatro estrauas, calçadas de grandes lages, e guar-
necidas de soberbos mauzoleos , saiam das vinte e quatro porta8 de
Roma e conduziam da capital do mundo ás provincias do impe-
rio (1).
Desçamos agora do Capitolio , e penetremos no interior das ca-

Nardioi - Roma anlica p. 74. Nesl1 aprccaaçao ·não se comprehcndem


os arrabaldes, que cobriam a vasta campina , no meio .da qtiaJ está lloma
si tnada.
(1) EsL~ deseripçi'io é tirada 110 Aurelio Victor, e de Onuphro líh.
1 p. 105. Vejam-se outras descripções nas Tres llu.nas L. 1.

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(
DE H!USft:VERANÇ·A. 159
sas : antes de chegar a seus donos , veremos milhares de escravos~
que de dia estam ao dispor de todos os seus caprichos , e de noute
são fechados em uma especie de prisões soturnas e infectas. chama-
das ergastula; a plebe que ferve pelas ruas, de noute dorme debaixo
de alpendres, ou por onde pode ; de dia agglomera-se no amphilhea-
lro , ou nos lugares de devassidão : ella não quer mais que duas
cousas ; não tem mais que dnJs precisões : pão e prazeres (1 ). Quan-
to ao rei, esse habita em quartos, cujas paredes são pintadas a
fresco ; o soalho, formadD de ricos mozaicos ; os tectos, cobertos de
ouro, por maneira que não seriam hoje para nós outra cousa, séoão
palacios da maior magnHicencia.
A historia e os monumentos, que ainda subsistem, attestam que
o ouro , a pãala , o marfim , as pedrarias , as- madeiras mais raras
e preciosas se empregavam na mobilia com a mais larga profusão.
Cicero, o modesln Cicero , linha uma meza de Cidreira, que
custara duzentos mil sestercios , isto é, do nosso dinheiro , qualro
contos de reis. Uma simples casa, que etle comprou, de Crasso, cus-
tou-lhe tres milhões e meio de sesterci os ou setenta contos de
reis.
Julio Cezar tinha duas mHzas, que lhe custaram trinta e oito
contos e quatrocentos mil reis : esle mesmo Cezar assistia aos jog•)S
publicos assentado em uma cadeira de ouro massiço.
Contemos ainda a fortuna de alguns destes cidadãos de Roma.
Crasso possuiá dous biliões de sestercios , tanto em terras como
em dinheiro , sem contar os seus moveis e os seus escravos. Por
isso dizia ~lle modestamente, que nenhum homem podia chamar-se
rico ; r,e não estava em estado de sustentar dos seus rendimf.nlos
uma legião : ora , é sabido que uma legião romana continha quasi
dez mil homens.
Seneea , o philosopho, tinha em bens de raiz lres.ento~ milhões

(1) Duas tantum t'es a11xius oplal , panem el circen1e&.

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1GO CATECISMO

de sestercios. Outro romano , chamado Caio Cecilio Ciaudio lsido... ·


ro, declarou no seu teslamelo, que supposto llvesse perdido muito
durante a guerra civil, com tudo deixava a seus herdeiros qoalro
mil cento e desaseis escravos , tres mil e seis cenlas Juntas de bois,
duzentos e cincoenla e sele mil diversos animaes, e seis centos mi-
lhões de sestercios.
E de que serviam aos Romanos cslas enormes riquezas, e o
mundo inteiro submellido ás suas leis? ... Serviam-lhes em relação
a Dens, para o sacrilegio ;. em relação a si , para a immoralidade ;
a respeito dos outros , para a mais barbara oppressão. Nas m~os
destes seres aviltados todas as creaturas se convertiam cm instru-
mentos do c.-ime. A sua religião era uma grande infamia; os seus
templos, outras tantas paragens de vicio ; as 5nas festas, escolas de
lubricidade ; os seus deuses , modêlos de quantas paixõe& tinham no
coração. Nada dizemos de seus myslerios , e suas occultas insinua-
ções , todo o homem honesto sabe porque o não fazemos. Diremos
sómente, que os exemplos de seus deuses serviam-lhes de incentivo a
todos os crimes , cuidando cada um como melhor os imitaria ; e
como se ainda fosse pouco a mullião de deuses <le Roma , adopta-
vam todos os das nações conquistadas, por màneira que se viam den-
tro em seus muros divindades de todas as figuras , de todos os no-
mes, e sacnlicios e religiões de todas as especies. Alli se offerecia o
demonio , debaixo de mil e mil diversas formas , á adoração dos
mortaes. Roma era o centro do imperio , o templo e o ceo
de Salanaz.
Nutridas as paixões pela opulencia, favorecidas.pela religião~ jul-
gue-se quaes seriam os coslurnes dos romanos, debaixo do ardente
clima da Italta. .O seu luxo e insensatas profusões excedem tudo
quanto possa dizer-se. Caligula gastou em menos de- um anno. dous
biliões e setecentos milhões de seslerc.ios , que o imperador Tiberio
lhe havia deixado. Simples parlicu Ia res, vindos das suas expedições,
e"<cediam em magnificencia -e luxo aos maiores monarchas; tal foi
o famoso Lucullo. Alem dos seus jardins, tam celebres na historia,
tinha muilos salões, a cada um dos quaes deu o nome de uma
divindade ; e este nome era para o sPu mordomo o sinal da des-
Jleza que elle queria fazer. Um dia Pompeo e Cícero, visitando-o ele

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DE PERSEVERANÇA. 161
improviso, L~1cullo disse que jantaria no salão de Apollo, e se lhe
servio uma refeição que custou dez mil cruzados. Outra occasião
enfureceu-se contra o seu mordomo, porque sabeOllo que tinha de
jantar só , mandára preparar uma comida menos sumptuosa. Não
sabias lu , lhe diz aquelle honesto homem , que hoje Lucullo havia
de jantar com Lucullo? Os seus excessos Lranstornaram-lhe o juiso,
de sorte que morreu doudo.
Tito Annio l\Iilon morreu endividado em quarenta milhões, du-
zentos e cincoenta mil cruzados. Outro, depois de haver consu·
mitlo em deva~sidões seis centos milhões de sestercios, vio-se obri-
gaflo a examinar o seu ren1limento (1 ), e achanrlo que não excedia a
quarenla e cinco conlos de reis , entendeu que não ch.rgava para
um romano, e tomou veneno. Só a cosinha deste homem havia cus·
lado um bilião d~ seslercios (2). Chamava-se Apicio, e teve por
litulos da sua gloria o ter sido o inventor de certos pasteis, que U-
nham o seu nome, e ser chefe de uma academia de golodice. To-
dos eram pouco mais ou menos dados a estes v~rgonhosos e:\cessos.
O luxo dos banquetes e das festas esgotava os thesouros do estado
e a forluna das familias. Para este povo de Sybaritas era preciso
ir buscar os peixes mais raros aos paizes e praias mais longiquas.
Tinham achado o meio de servir porcos inteiros assados _de um lado
e cozidos do outro. Faziam picado de miolos d'aves e de porco com
gemmas d'ovo e folhas de rosa , formando de ludo uma odorifera
massa, cosida a fogo brando , com azeite d'arenque, pimenta e vinho.
Antes do banquete comiam cigarras , para despertar o appelite. Os
. mais exquisilos vmhos não eram aceites se não vinham misturados com
perfumes e aromas.
Longe de repdmir este luxo , que arruinava o rico, e irritava
o pobre, eram os imperadores os primeiros, que davam o exemplo.

(1) O seslcrcio vaHa dois soJdos e meio. Ve1am-se os rostumes ro·


manos por N1cnport. liv. VI P·, 28!.
(2) Scnec. Cons. ad llelviam e. X.
21 vr

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16'2 CATECISl\IO

Já vimos as profusões de Caligula ; pois não lhe ficaram atraz os


seus soccessores. Vero deu um banquete que custou seis milhões
de sestercios. Mas o que excedeu todos foi Heliogabalo ; o qual sus-
tentava os officiaes do seu palacio a entranhas de barbos, miolos de
faizão e de tordos , ovos de perdiz, e cabeças de papagaio. Dava
aos seus cães figados de pato ; aos cavallos, uvas de Apamene ; e
aos l~õ_es, faisões e papagaios.
A meza delle consistia de chispas de camello, cristas arran-
cadas aos gallos vivos , línguas dos pavões e rouxinoes, ervilhas
cosidas com ouro em pó, favas gaizadas com pedaços <le ambar,
e arroz mi"lurado com perolas. Era tambem com perolas , em lo-
gar de pimenta branca , que se lhe adubavam as batatas e os pei-
xes. Fabricador de comidas e bebidas, misturava a almecega com
o vinho rozado.
No verão <lava banquetes, cujos ornatos mudavam cada dia de
ct>r ; sobre os rescaldos , terrinas e vasos de prata de cem li-
b,ras de peso , viam-se esculpidas figuras do mais obsceno desenho.
As mezas, ou leitos em que comiam, eram <le prata massiça , jun_
cadas de rozas. violetas, jacintos e narcizos : os lectos movediços espar-
giam flores em tanta quantidade, que quasi suffucavam os.convidados.
O nardo e os perfumes preciosos alimentavam as alampadas destes
banquetes, que conlavam algumas vezes vinte e duas cobertas.
A este luxo da meza dos romanos accrescia o do vestuario. O
mesmo Heliogabalo servia de modêlo. Trajava roupas de seda, bor-
dadas de perolas ; e nunca veslia duas -vezes o mesmo calçado, nem
o mesmo aonel, ou a mesma lunica. Os coxias, em que se deitava,
eram cheios com penugem cxtrn!Jida de d baixo das azas das perdizes.
Moolava em carros d otiro marchetados de pe<lrarias, os quaes roda- ·
vam sub porlicos forrado de laminas l'ouro. Heliogabalo despre-
zava os carros de prala e de marfim.
Se estas iniquidades r. desvarios não fossem senão <le um ho-
mem só , nada se poderia concluir dos costumes de um povo ; mas
Haliogab3lo não fez mais, do que reunir em si Lado, quanto se linha
visto antPs delle , desde Augusto até Commodo. O exemplo dos
grandes . havia produzido o seu etreilo; em todas as classes tinha
achado imitadores. As mulheres levavam em adornos a subsislrn-

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DE PERSEVERANÇA. 163
eia de muitas provmcias. Yia-se chegar ao pé da indolente matrona,
mal que despertava do somno, uma pomposa procissão de escrav;as,
que lhe traziam os aprestos do toucador ; bacia d'ouro ou prata ,
jarro, espelho, ferros de frizar , arribeqúes, potes de pomada de lim-
par os dentes , ennegrecer as sobrancelhas , tingir e perfumar os '
cabellos : poderia chamar-se-lhe um laboratorio pharmaceutico. I.las
orelhas e do pescoço lhes pendiam brincos e collares de finas perolas ;
braceletes, a tingir s~rpentcs dJouro, lhes cingiam os braços e pulsos;
corôas de diamantes e pedras da India adereçavam-lhes a cabeça ;
saltos d' ouro lhes erguiam nos pés os ça patos de purpura ; e as fe-
m_entidas tintas lhes occullavam a natural pallitlez das impodentes ra.:
ces.
Se alguma cousa lhes não saia como desejavam , tratavam estas
criminosas mulheres as suas escravas com extremas violencia~. o
toucador de algumas não era menos para temer que o tribunal dos
tirannos da Secilia. Alem da rnultidã • de pessoas, occupadas em seus
toucadores, oulras muitas havia, só para darem o seu parecer ; e es-
tas formavam orna especie de conselho , onde se discutia a materia
com tanta seriedade, como se d'aqui pendesse sua ''ida e reput.ação.
Porque diziam os medicos que os banhos de leite de burra tiravam
as rugas, faziam a pelle macia , e conservavam a côr alva , mulhe-
res havia que , para conservar a belleza do rosto, com elle se ba -
nhavam setenta vezes ao dia , tendo nisto a mais escrupulosa re-
gularidade.
Todos sabem que Popéa , lam vergonhosamente celebre du-
rante a ,,ida de Nero, trazia ordinariamente comsigo quinhentas bur-
ras de cria , a fim de se banhar no leite , para lhe fazer a pelle
mimosa (1 ).
Assim como os Consoles não saiam, sem as insignias da sua auc-
toridade , assim as mulheres romanas não vinham a publico, sem os

(1 l Juvcnal, Satyr. VI.


*

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T

tu CA1'EC1SMO

seus adereces e diamantes. Plinio diz : a: Eu vi Lollia Paulina , e


não foi em festa ou solemnidade publica, onde é costume ostentar
luxo e opulencia; mas sim em umas bodas mui ordinarias, 'toda co-
berta de esmeraldas e perolas, que brilhavam , combinadas umas
com as outras , d'um modo admiravel. A cabeÇa , as orelhas e o
coWo, os braços e os dedos , tudo eram pedras .preciosas, no valor
de quarenta milhões de seslercios : mais de um milhão. E Ludo
is lo eram joias de familia , que ella havia herdado de ~larco Lollio,
seu thio (1 ).
Pelo que levamos dito julgue-se quaes seriam os costumes do
mundo pagão, entregue sem termo nem medida a taes monstruosos ex-
cessos ele luxo e gula ! taes e"ram elles que a penna se recusa a es· ·
boçar-lhe o quadro ; e nem mesmo o conseguiria, ainda quando fosse
molhada em lama. Tudo o que podemos dizer é , que as maiores
infamias , cujo especlaculo fazia i'mpallidecer a Z.Ua, e de que só o
: nome mancha os labios que o pronunciam , e os ouvidos que o ou-
vem , consagradas pelo uso , auclorisadas pelo silencio das leis, sanc-
cionadas pela mesma religião , se exerciam publicamente nas cazas
e nos thealros , nos palacios dos imperadores e nos templos dos deu-
ses , sem ha\ er distincção entre novos e velhos , entre os grandes
1

e o povo. A' sua vista, a propria Sodoma coraria de vergonha(~).


Tal era Roma pagã , taes os seus habitantes; a sua religião e os
seus costumes era um duplicado ullrage a Deus e á humanidade.
E que eram elles a respeito de seus similhantes? E' o que nos res ..
ta examinar.
Os povos voluptuosos sempre foram crueis : a depravação é fi.
lha e mãi do egoismo, ou do amor exclusivo de si. Ora, o amor
exclusivo de" si é o odio contra lodos os mais. Roma pagã justifica

<1) Mem. da Acad. dos Inscript. liv. IV.


(2) Todos estes pormenores que damos de Roma, e do luxo e cos-
tumes de seus habitantes, são copiados dos auctores pagãos. Estamos bem

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DE l'ERSEVERANÇ.\. 165
este principio ; o odio e a crueldade reinava por toda a parle. Em
primeiro lugar no amphitheatro : antes de ver as ondas de sangue
que o inundavam, façamos a descripç.ão , deste .edificio, que depois se
tornou lam celebre pelas gloriosas victorias de nossos pais na fé.
O amphithealro era u_m espaço oval, descrevendo urna elypse,
cercada de degraos levantados uns sobre outros, donde o povo via
assentado o e-speclaculo e os jogos. O maior e o mais magnifico d~
todos os amphilheatros romanos é o que ainda hoje. se chama Coli-
seo; nome que tomou da estatua Colossal de ·Nero , que ficava alli
proxima. E' construido de pedra lioz , que na solidez e belleza se
parece com marmore. Tem de largo quinhentos e vinte e cinco
pés; os degráos , que o cercam , elevam-se á altura de cento e
sessenta e cinco pés , e podem conter cem mil espectadores assenta-
dos muito á vontade. Debaixo destes degraos estavam as jaulas e
prisões onde se guardavam as feras destinadas para o combale e alli perto,
grandes rcservatorios cheios de agua. Para variar os prazeres do
povo abriam-se estes reservatorios, que inundavam o centro do am-
pbilheatro, dando-se- então batalhas navaes no mesmo silio , aonde
pouco antes se tinham visto combater os homens e as feras. A'
entrada havia um altar, sobre o qual estes bons romanos immola-
vam viclimas humanas, antes de começar os· jogos (1). No meio es-
t<tva o camarote do imperador (2) , e logo que elle entrava no
theatro , levantavam-se todos e baliam as palmas. Os combalentes,
postos por ordem , desfilavam diante do seu · camarote, dizendo : O'
Cesar , os que vão morrer te saudam (3).
A um sinal dado, começava o combate. Ver por mero gosto ho-

longe de d1ier tudo: e nem mesmo citamos os auctores; Deus sabe por
que.
(1) Minot. Felix. Ocl ; Tertull. Apo~ e. IX.
(~) Cubiculum princapis.
(3 > Cesar, murituri te salu&aot,

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166 CATECISMO

mens degolar-se mutuamente, era para aqnella gente sanguinaria lam


api·azivel espectaculo , que por este preço tudo se obtinha delles :
foi tanlo , que .se vio o governo na necessidade de prohibir aos par-
ticulares, que pediam cargos , o dar ao povo o espectaculo dos gla-
diadores (1) !
Pessoas d'ambos os sexos , de todas as idades e classes, sacia-
vam-s·e, com avidez, n'aquellas scenas de horror. Logo que o gla-
diador era ferido , o povo gritava : Suspende. (2) O gladiador abatia
as armas, em signal de que se dava por vencido. Então dependia
do povo conceder-lhe a vida ; se o queriam salvar, baixavam o dedo
polegar, e pelo contrario o levanlavam se desejavam que morresse.
O simples movimento d'um dedo decidia da vida d'um homem ...
que respeito á humanidade ! ..
Estas victimas, que, forçavam a immolar-se elJes para divertimento
assim da mais abjecta plebe como da mais fina sociedade, eram
umas vezes desgraçados prisioneiros de guerra ; outras, infelizes es-
cravos, cujo umco crime era ler caido na escravidão ; outras, final-
mente, os miseraveis meninos expostos, a quem se havia conser-
vado a vida, para os obrigar a perdei-a UPstes lugubres combates.
De sorte que se obrigavam, pais, lilhos e irmãos, a degolarem-se mu-
tuament~, para dive'rlir um Nero; e o que é mais ainda , um Ves-
pasiano e um Tito.
E não se julgue que similhante espectaculo era particular á Cida·
de de Roma , ou que não consistia senão d'um pequeno numero de
co\nbatentes. Em toda a extensão do imperio havia amphilbealros ;
os reis e os governadores , os magistrados e os simples particulares
davam gladiadores ao povo. Victimas sem numero se sacriflcavam
nesle feroz divertimento. No espaço de cento e vinte e tres dias
deu Trajano dez mil gladiadores; e nesta mesma occasião, onze mil
feras appareceram na área. Teria faltado o pasto a tantas e tam

(1) Lex Tullia / pri>mulgada por Circro.


(2) lloc hal>el.

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DE PERSKVERANÇA. 167
famintas fauce3 , se opporlunameole não se livessem achado os mar-
tyres , para fornecer carne e sangue áquelles exercilos do deserto.
A lei romana estendia lambem os seus maternaes cuidados ·a
Postas foras mortíferas; pois que probibia matar em Africa Ós leões ,
os tigres, as panlheras ; e nas florestas da Germania , os lobos e
os ursos, como se prohibe matar as ovelhas , mães dos rebanhos.
O estridor das espadas , o rugido dos animaes, os gemidos das victi-
mas, cujas entranhas eram arraslradas pela area , borrifada de es-
sencia de açafrão e agua de cheiro, arrebatava a multidão.
A' sahu.la do amphilheatro ella hia mergulhar-se nos banhos ou
nos lugares de prosliluição.
Os banquetes particulares eram realçados por este prazer de
sangue ; quando se estava replllto , e começava a embreagaez, cha-
mavam-se os gladiadores. A sala retinia com applausos, quando um
dos combalentes cabia morto (1).
Esta crueldade de Roma pagã, e o desprezo iosullanle da hu-
manidatle manifestan-se de muitas outras maneiras. Nesta caduca
sociedade , em que não se conhecia outra regra senão o direito do
mais forte , o fraco era por toda a parte opprimido.
Começando pela mulher, não me atrevo a dizer qual era a sua
sorte, pois se julgaria que calurnnio o genero humano; todavia a
historia ahi existe escripla com iodo, para alleslar o horri\ el av il-
1

lamento da dllulher pagã. Nascendo escrava de seu pai, que a podia


malar ou vender, e que muitas vezes usava do seu direito, a filha
pagã era por fim vendida áquelle, que offerecia maior preço (2).
Não julgueis , porem, que s~odo esposada se lornava a nobre com-
panheira do homem; não, ncava sua escrava, . convertia-se em pro-
priedade sua, e até perdia o nome que tinha (3). Exposta cada
dia aos caprichos e brulahdade <le seu novo senhor, vcnditla, ultra-

(1) Chateaobriand.
(2) Historia das lefs sobre o casamento e o divorcio por M. Nouga-
rcde , t. I.
<3) Idem. - Esta coodição d.i douzclla Lcm permanecido sempre a

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168 CATECISMO

jada , ainda se julgava muito feliz, se a final não era desprezada, e


abandonada ao · oprobrio e á miseria, como muitas rnzes lhe acon-
tecia.
A polygarnia, origem fatal dos crueis ciumes, dos odios, mortes
e envenenamentos ; e o divorcio, incremento do adulterio, e causa de
inexplicaveis hurnilhaç.ões para a mulher, eram auclorisados pelas
leis (1 ).
Escrava deshonrada pelo chefe da familia, que atlenções e res-
peitos podia esperar de seus filhos a mãi que , ,d'um para outro dia 1
podia . ser ignominiosamente banida do la,r domestico ?
Tal era a mulher, a esposa e a mãi no paganismo, tal ainda
hoje , entre os povos idolalras (2). E bem sabe ella, que é só ao
Chrislian.ismo que deve as vantagens, que possue entre nós: porqtJe
ella a pouco e pouco recabe neste abatimento entre as nações e fa-
milias , aonde a Religião perde a sua influencia.

mesma por toda a parle aonde o Chrisl1amsmo não tem exercido a sua
benefica influencia. Entre os Arabcs do Delta, a íormala do casamento é
concehi<la desta maneira : - O pat da· doazella diz ao fuluro noivo: Eu
te darei uma escrarn para fazer o teu ·serviço. M1chaod , Correspond.
d' Orient.
c1) O principio do direito arbitrario .do repudio ~chava-se cstnbcle-
ci<lo ao codigo das doze tabuas. O abuso deste direito foi levado ao ul-
timo excesso: as causas de divorcio brc\·emente foram um cscarnco. A
mulher de Sempronio, porque tinha ido aos jogos publi('os sem sua licença ;
a de Aotislio, porque Linha fallado em voz baixa a uma liberta de má re-
putação; e a de Sulp1c10, porque a tinha encontrado , sem vco na
, rua ; fo:-am repudiadas por seus mari1los ; e não tardou qnc se
não ,·isscm outros repudias , por cansas que nem tinham appareac1as
ele deliclo. Apenas, dizia Juveaal, a têz de Bibula romcçava a murchar-
se , os dentes a perder a brauQura , e os olhos o brilho ; quando um li·
berlo se apresenta: Vai·le, lhe diz, que te assoas muito; sahc ,
que queremos um nariz menos enfadonho que o teu.
(2) Basta saber o que aincla hoje so passa na Turquia , na Chiaa ,

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DE PERSEVERANÇA. 169
Donzellas; esposas, mãis christãs, oh ! se soubesseis tudo quanto
deveis. ao ChrisLianismo ! não, por certo não haveria bastante reco-
nhecimento no vosso coração , para com aquelle De~ que foi sobre
tudo o vosso Redemplor. Para vós, não amar o Christianismo, não
o prallcar com enthusiasmo e devoção , não é só um crhne, mas
lambem uma horrivel ingralidão; · é o ·vosso proprio suicidio.
Passemos agora da mulher ao menino. O menino ! o debH me ..
nino ! Só este nome suscita em nosso peito christão uma grande ternura ;
um religioso respeito se apodera da nossa alma, e excessivos clis~

e nas lndias. .,Eu não sct todas quantas obras nos referem a escravidão
e aviltamento da 1oulher nestes paizes: o mesmo acontecé enlrn os ne •
gros da Africa central._ Vcja·sê a Influencia elas mulheres por Madame de
l\fongelraz; Instituições elos povos da lnclia por .M. Dubois; Viagem ao
Tombouctou por Calllé. YeJa as cartas dos missiooarios~ e as relações dos
viajantes. Nesta hora em que escreve mos, aintla o jugo de ferro pesa
sobre as donzellas chinczas. Eis · o que se le nos tinnaes da propagaÇiÍo
da Fé, o.º õO, .p. 2io, aooo de 1837:
« As leis da Ch'ioa não permiLlem dota·r as filhas. Qs pa·is poderu
,·endel-as corno aos aoimacs (a legislação condemna estes horrores, mas
o go\·erno tolera-os); até padem matai-as, mas não dotal"'as~ Só os varões
podem ser herdeiros : e quando não haja rilho varão, ou seja natural o·u
adoplivo , os bens passam de direito para o mais proximo parente, por
· mais remoto que seja , mas nunca pará as filhas; porque um barb:uo pre-
ju1so faz que se co11~idererh como especie degenerada, inferior ao homem. E'
sobre ludo na classe superior da socie·da<le, que mais se manifesta este
estado de escravidão e aviltamento da mu~her. Só a Religião Chrtslã,
assi~~ na China como no · resto da Asia , tem sua\'isado a sua sorte, dan-
do-lhe mais liberdade. Pode diter-sc que o Chrislianismo a tem de algum
modo colloçado no c·stado civil. A dilTerença entre as chrisli'ls e ~s pa....;
g·ãs é lam scnsivel, que os clünczes lhe chamam ii rch~ião das mulheres. »
Teriamos de citar [oda a historia dos po\'OS antigos e modernos, se
houvessemos de contar todas as humilhações, de que o Ch-rislianismo li-
bertou a mufhcr. Veia a obra de M. NougarMe , cilada anteriormenle,
t. 1.
. 22 VI

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170 CATECISMO

vellos e doces caricias são prodigalisadas ao ser querido , que tem


esle nome. Ac.onteceria o mesmo na Roma pagã?.... O que era o
menino a seus olhos?... As suas leis julgavam que o menino -antes
de nascer não pertencia ~ especie humana , e authorisavam o abor-
to; logo depois authorisou-se a morte tle todo o menino que , .
vindo á luz , não tivesse ainda . tocado o seio ua ama. Augusto
confirmou esta jurisprudencia por suas leis e exemplo. A' morte do
menino, antes ou depois do nascimento, accresce a exposição delle (t ),
'que não só era permittida pelas leis , mas em certos casos obriga-
toria. Pobre menino ! ainda estas não são luas ullimas penas. Ou-
tra lei permiltia ao pai matar _seus filhos (2), outra vendei-os e re-
geital-os até tres ,vezes (3). A religião unia-se á lei , para opprimir
este ser, tanto mais fraco quanto mais ' digno de compaixão. o me-
nino era a viclima escolhida, que se immolava, e degolava, e queimava,
. e cantando em h·onra de divindades
dancando . monstruosas : horrivel
costume , que vigorou por todo o mu.ndo ('4). ,
Ainda hoJe uma abominavel superstição condemna na India uma
infinidade de meninos a morrer morte cruel. Em certa província
da presidencia de Madras, os rendeiros e lavradores teem o horrivel
costume de engordar os meninos e matai-os depois. Ainda mesmo
vivos fazem-lhes incisões no corpo , e lhes cortam pedaços de carne,

(I) Veja a lei Falcidia, Digest. lib. XX V lit. 2.


(2) Suetonio , vida de Augusto. Ello ordenou que o filho, de que sua
filha Julia eslava, gravida fosse sulTocado logo depois do parto de sua
•• #' •

mãi.
(3) A lei pcrmilL1a expor os meninos sem alguma rcslricçã9; este uso
era geral oo tempo dos Imperadores. Veja Suclooio in oclav. e, 65 - io
caliguL e. õ -Tacito lib. V - Histor. e. 5. ·
(4> · Tinham este coslume os Chaoancos, Carlhagineses, Gauleses, Egip-
cios, Mexicanos ele. ele. Vejam.se as hislorias dos d1lTcrcnlcs po,·os.
Achar·se-ha quanto se deseja sobre esta materia , tam ioleressanle quanto
pouco conhecida, na nossa historia da familia. 2 vol. cm 8.º

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DE PERSEVERANÇA. 171
com qu-e vão estercando seus campos e plantações , deixando cor-
rer todo o sangue do desgraçado pela terra antes que morra , ~
persuad_idos que a terra, regada com sangue d~ um menino ainda
quente, se torna mais fertil ! Alguns soldados inglezes, enviados ~
uma certa aldêa encontraram só alli nada menos. de vinte e cinco
meninos , confiados aos bonzos encarregados de os engordar , para
fazer delles depois o uso nefando que acabamos de dizer. Deste mo-
do o velho paganismo fazia do menino viclima, o novo faz delle es-
, trume (1). ,
Ainda hoje em Darfur, provincia d' -4.frica , visinha do Egipto ,
se immolam cada anno dous meninos , para obter prosperos dias e
bellas searas. ,
O' meninos! dai graças ao Deus Salvador, que para arrancar-
vos a tanta tirannia se dignou fazer-se elle mesmo menino: e nós
mesmos , homens d.e madura idaJe, rendamos-lhe graças ; porque lam-
bem já fomos meninos. ·
Talvez que muitos dos q.ue lerem estas linhas não devam se-
não ao Christianismo o beneficio da sua existencia e conservação.
Amemos e pratiquemos esta Religião beneficente ; que por toda a
parle, aonde ella perde a sua influencia, reapparece a oppressão da ...
infancia , a exposição- e o inJantecidio.
Se os pais assim tratavam seus filhos, qual devia ele ser a
sorte dos escravos ? Primeiro que tudo convem saber, que em cento
e vinte milhões de homens, que continha o imperio' romano , havia
menos de dez milhões de homens livres. Tal era a liberdade do
mundo pagão. Mas que era um escravo?... O texto das leis nol-o
vai dizer. '
- Segundo a ignobil expressão da legislação d'aquélle tempo , o
escravo era uma cousa eslimada a preço de dinheiro , ·e realmente

( 1) Este faeto está consignado nos jornaes ioglczes de-18íã .


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17~ CATECISMO

eonvertida em objecto de trafico infame (1 ). As ~ condicçõ.es da venda


destas crealuras humanas eram reguladas como as das bestas. Aquel-
les que vendem escravos, cliz a lei , devem declarar aos comprado-
res as suas molestias e defeitos ; se são propenços á fuga e á va-
diagem ; se não teern comm eltido alguns delictos ou prejuisos ; se
depois da venda o escravo não tem perdido o seu valor ; ou se pelo
contrario lem adquirido alguma qualidade nova (2).
Immr:diatamente depois deste titulo está o artigo sobre a venda
dos cavallos e oulros alimarias, redigido da mesma forma que o an-
tecedente dos escravos. A.quelles que venuem cavallos , devem de-
clarar seus defeitos, vicios e molestias etc. E para que se conheça
bem ' que não foi senão o Chris lianismo que abolio aquelle uso in-
I

fame , e que não é senão o Cbrislianismo que obsta a que se res-


tabeleça , lembramo-nos que em Constantinopla, em Tunes e na Ame-
rica ele. , existe ainda hoje a escravidão ant.iga.
O senhor 'linha direito de vi~a e morte sobre o escravo;
e não deixava de usar delle. As crueldades exercidas com os es-
cravos eram horriveis. Se acaso algum quebrava um vaso , man-
dava-se talvez lançai· logo ao rio, como servo inhabil, e lá -ia seu corpo
engordar as naiadas bellas elos Poetas, ornadas de anneis e collares.
Um certo senhor mandou matar seu escravo , por ter trespassado
um javali com venabulo, especie de arma prohibida aos escra-
vos (3).
Os escravos velhos ou doentes eram ordinariamente abandona...
dos ou mortos a pauladas; aos que eram lavradores marcavam no
rosto com um ferro em braza , e depois de haverem sido excitados
?º trabalho durante o dia a grandes golpes de azorrague, passavam

[1) A definição do escravo rai ainda mais longe - Non tam vilis, ·
quam nullus - menos vi 1 que nullo.
. (~) Edit. Ediles, lib. XXI. líL. 1.
. (3) Ciccr. in· Verr : V. e. 3.

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DI~ PERSEVRRANÇi\. 173
a noute encadeados em subterraneos (1), aonde não recebiam ar se-
nã-0- por urna estreita fresta. Por alimento distribuía-se-lhes um pou-
co de sal. O · possuidor de escravos podia condemnal-os ás feras ,
vendei-os aos gladiadores, e forçai-os a acções infames. As malro-
nas romanas , dignas imitadoras de seus crueis maridos , pelas mais
leves causas davam tractos ás mulheres sujeitas ao seu serviço. Se
um escravo malafa a seu Senhor eram condemnados á morte, jun-
tamente com o culpado, todos seus innocentes companheiros. .
O cumulo e remate da legislação dos escravos é a lei conhe-
cida pelo nome de Senatus conmltus Sillaniano. ·Esta lei , que ne-
nhuma expressão pode caracterisar, e que devia de escrever-se com
letras de sangu~ , foi promulgada no fim do reinado de Augusto :
por ella se ordenaYa, que logo que um senhor fosse assassinado por
um seu escravo, todos qu·antos se achassem debaixo do mesmo teclo
e ainda os que não estivessem a tal distancia, que não podessem ou-
vir a sua voz , ou perceber o perigo que corria , soffressem todos o·
ultimo supplicio. Nem perm1ltia a lei se fizesse distincção de idade ou
sexo , nem se allendesse a desculpas'. cuja e\'idencia podesse soffrer
a menor c·onlestação ; pois neste cas,o rejeitava todas as provas con-
trarias, e obrigava finalmente o ,herdeiro do defuncto, sub pena de
multa , a ser o proprio accusador dos escravos.
Em consequencia desta lei (2), Pedanius Secundas, prefeito de
Roma , tendo sido assassinado em sua casa , quatro centos escravos
foram implacavelmente executados.
O instincto da crueldade romana se manifestava da mesma sor..
te com os prisioneiros de guerra , que eram ou reduzidos á escra-
vidão, ou coudemnados a combater uns contra outros no amphithea-
tro , ou talvez a ser immolados sobre o tumulo dos Yencedores, ou
sobre os altares .dos deuses (3) ~ ·

(f J Estes subterraneos tinham o nome de Ergastula. ~ Vc1a áeerra


dos escravos as Tres Romas t. 1. ;fe os Cczarcs por M. de Chapagny, &e.
(2) Tacito Annal hb. XIV.
(3) VeJa os Costumes dos Romanos por Nccuport, lib. IV p. U.
Bucyclovedie arl. Dqlides.

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IH CA.TECISMO

A lei do odio e barbaridade, qnc regia o mundo pa'gão, appli·


cava-se a ludo. O credor. tinha o direilo de esquartejar o seu de.,.
vedor insoluvel (1). Tod-o o estrangeiro era um inimigo: na lingua
de Roma pagã , estrangeiro e inimi·go exprimiam-se pelo mesmo ''º-
cabulo (~). D'esl'arte o eslra ogeiro se converlia em liclima para os
sacrificios. E 9ue dizemos dos pobres ?••• Para elles nem um só
hospital havia em toda a eslensão. do Imperio romano. ;_ tinha-se
. como crime o prestar-lhes allivio · (3)~ A lanla barbaridade juntava-se
o maisi-truel insulto· (4) ; e quando a sua preseuça fatigava o rico
voluptuoso , quereis ~aber o meio de que se seniam, para se livra-
rem delles? Perguntai-o a esse imperador , que lendo carregado
de pobres tres navios , ·os fez meller a pique no alto mar (5). Tal
era Roma, no dia em que o ·pescador Gallileo alli enlrou, só, a pé,
e sem mais apoio que o seu bordão de viandante, e a sua cruz de •
missionaria, para prégar nesta immensa Babilonia a pobreza , a pe-
nitencia, a humildade • a charidade , ? fraternidade de todos ós ho-
mens , e sua igualdade diante de Deus. E' pois evidente, que sobre

(1J Terlul. Apol. IV. -Ainda hoje na lndia o infeliz que não pode
.pagar uma divida de lrmla francos fica escravo do credor que lem o di-
reito de o reter em ferros até que seja libertado. - Annaes da Propaya·
fâO da Fé n, º 51. p. '09.
(!) Horlis apud majores dicilur quem nuoc peregrrnum vocamus.
Cic.
(3) Male merelur qui mendico da,l quod edal;
Nam et illud quod dat peril, el illi produc1l vilam ad misc-
seriam. Plauto - Trmum, act. 1 e. 2. ·
Platão quer q~e se expulsem implacavelme'nte da sua repu-
blica estes animats impuros. Do lcgib. Dialog. II.
· Nil babel. infelix paupertas durius in se
Quam quod ridiculos homines faciL.
Juv~o. Sal. III :
(4) - Lacl. de Mortib. perseculor.

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,

DE PERSEVERANÇA. ;(75
o brilhante involucro d'uma civihsação materjal , levada ao seu ul-
timo gráo de desenvolvimento , o mundo pagão não era mais que um
cadaver corrupto, cujo fetido. chegava até o Ceo.
Quanto não é pois admiravel, que nas catacumbas de Roma sur-
gisse logo um povo que , por austeridades e lagrimas, começasse a
creação d'um n_ovo mundo? Na seguinte lição visitaremos esta
Roma Subterranea.

ORAÇÃO

O' meu Deus ! que sois todo amor , eu vos dou graças de todo
o meu coração por haverdes tirado ~ mundo das trevas e crimes
da idolatria ; ·permilli, Senhor , que vivamos com~ filhos da luz e na
santidade a que nos chamastes.
Eu protesto amar a Deus sobre todas-as cousas, e ao proximo
como a mim mesm~ por amor de Deus ; · e, em !eslemunho d'este
amor, direi todos os di~s uma oração z1ela conversão dos infieis.

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176 CATECISI\10.

O CHRISTIANISMO ESTABELECIDO.
. .'

(CoN'rINUAÇAÕ no l.º SEcuLo.)

Roma Cl1ristã. - As Calacuml.Jas.

DE0A1to da soberba Roma , que sê osfenfava a face do mondo como


uma grande prostituta , radiante d'ouro e purpura , ebria de sangue
e hedionda de crimes , apenas chegou o pescador da Ga11ilea ·, co-
meçou a existir outra Roma sublerranea, liabilada por alguns homens
do povo. Desçamos pois ahi , para estudar a vida e costumes de
seus h·abilantes ; entremos sem receio nesses escuros sublerraneos ,
lJUC lá acharemos com quem tratar familiarmente : são estes os nossos
primeiros pais na fé , são os chrislãos. - Esle povo novo , llestinado
a renovar um. dia a face da terra , esfa\ra então como encarregauo
<le contrabalançar perante a justiça divina , enorme peso d'aquellas
iniquidades , cuja horrenda historia acabamos de traçar.
D'est'arte á infame religião d'aquella sociedade caduca , oppõe
esta sociedade nova uma religião santa; corrige cada um · de seus
/ , .

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DE PERSEVERANÇA.
v1cws com uma virtttde contraria ; o seu infernal orgulho com a hu-
mildade ; o luxo , com a modeslia ; os excessos da mesa, com a
temperança e o jejum ; a torpe lascivia, com a pureza dos anjos; a
sêde d'ouro , com a pobreza volunlaria ; todos os seus crimes, cam
orações e lagrimas ; as leis do odio emfim, da escrav1dãÓ e crueldade,
são combalidas pela lei da chari<lade universal. Antes, porem , de
entrarmos em minuciosa comparação , estudemos a nova Roma.
Cousa admiravel ! em Jerusalem, como na cidade dos Cesares, o berço
do Chrislianismo foi um tumulo ; é do seio da morte que surgio a
vida : bella imagem da resurreição moral do uni verso , operada pelo
Evangelho. '
A nova Roma , o berço do Christ'ianismo no Occidenle , são as
Catacumbas.
Imaginai uma cidade subterranea de muitas l_eguas de extenc;ão, com
seus differentes bairros, designados pot nomes celebres, e habitados por
numerosos habitantes de toda a idade, sexo e condição ; com suas praças
publicas, e encrusilhadas, suas capellas, !grejas e pinturas formando
tudo um vivo quadro da fé e disposições das gerações que alti habita-
vam : snas innumerave1s ruas ou galerias, erguidas urnas sobre ou-
tras, em num~ro de quatro e cinco, ora baixas e estreitas. ora altas e - '

largas ; correndo aqui -em linha recla, acolá encui·vando-se e rodeando


_ sobre si mesmas , ab~rlas em todos os sentidos , en trecortando-se e
encrusando-se nas mil veredas · <l'um labirynlho immenso. Eram es-
tas galerias , praças , e capellas, alumiadas exteriormente , de dis-- , 1

tançia em distancia , por aberturas pral1cadas até á superficie do


terreno , e illurninadas interiormente por milhares de lampadas de
barro, ou bronze , da feição d'uma naveta. Estavam por toda a
parle, á direita e esquerda 1 desde o chão até ás abobadas, tumulos
tlahados orisontalmente nas paredes ·<las galel'ias ; cuja exlenção e
multiplicidade era tal que, se se estendessem em uma linha continuada,
formariam uma ru!l de lresentas leguas de comprimento, bord_ada
por seis milhões de lumulos. Imaginai pois afü os primeiros chris-
tãos , nossos pais e modêlos , puros como os anjos , obrigados a es-
conder-se , para escapar aos contagios e furor da -velha sociedade;
offerecendo , com os santos rnysterios, suas supplicas e lagrimas ao
Senhor , já para dispor-se ao marlyrio , já para obler a salvação de
23 Vl

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178 CATECISMO

seus soberbos perseguidores, cujos aureos estrepitosos carros rodavam


sobre suas cabeças; imaginai tudo isto; deixai-vos possuir das ,emo-
ções da fé, e fareis idea · das catacumbas nos dias da nascente
Igreja.
A palavra Catacumba, em geral, quer d~zer subterraneo , ce-
miterio, e applica-se na fraze religiosa a essas vaslas escavações,
aonde as primeiros chrislãos buscavam azylo contra as perseguições,
e aonde davam sepultura aos/ 'corpos de seus irmãos e martyres.
Havia Catacumbas cm grande numero de cidades, taes como Napo-
]es , Syracuza , Carlhago , Alexandria e outras (1). As de Roma
são as mais famosas e veneraveis , porque esses immensos subler-
. raneos são a obra exclusiva de nossos pais na · fé.
Da descripção das Catacumbas passemos ao seu uso. Primeira-
mente serviam ellas de rellro aos fieis. Tanto que o ed1clo de proscripção
se publicava , viam-se os christãos, tomando o conselho de seu divino
:Mestre , sair de suas casas, e sepultar-se vivos u'aquelles vastos ce-
milerios. Alli prostrados , em redor dos tnmulos dos martyres, pe-
diam elles uns para os outros a graça ·de os imitar ; alli recebiam ,
com td fervor que só Deus pode avaliar , o pão dos fortes ; e o
vinho que gera as virgens ; alli , finalmente, aquelles que ainda não
, eram baptisados recebiam o primeiro de lodos os sacramentos ; ou-
viam em assemblea , com resp·eito e recolhimento , as instrucções do
Bispo , em cujo corpo algumas vezes brilhavam os vestigios do mar-
tyrio. Era assim tambem que os filhos dos Patriarcbas assentados debaixo
da palmeira do deserto, escutavam a voz do velho , encanecido dos ·
annos.
Com effeito, em quasi todas as Catacumbas se veem ainda ' sa-
las, (2) alg~mas bastante espaçosas , ue forma mais , ou menos re-

(1) Veja a respeito da Roma Suhtcrranca , suns pintoras, uzos e


costumes dos primeiros christãos, e sobre tudo pelo que pertence ao9
martyres , a nossa Historia das Catacumbas.
(!) Cubicula •.
·~

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DE PERSEVERANÇA. 179
guiar , que não podiam servir senão para as reuniões chamadas Sy-
naxas; ou para a celebração dos santos niysterios. Estas s~las ,
commummente privadas de luz externa, eram alumiadas por alampadas
suspensas das abobadas , e das quaes algumas se teem achado em
seu proprio lugar nestes ullimos tempos. Outras vezes estavam es-
tas alampatlas mettidas em pequenos cubiculos, que ain.da alli se en-
conlram em graRde numero'. Algumas d'eslas salas recebiam a luz
por uma claraboia aberta · ua abobada , até a superficie exterior. Ha
exemplos de christãos, que foram precipitados vivos nos sublerra-
neos de Roma , por estas claraboias; achando assim a morte n'aquel-
las mesmas Catacumbas, aonde os esperava a sepullura.
Estas salas cavadas nas Catacumbas , tivessem ou não clara-
boias , sempre careciam de ser illuminadas por lampadas. a fim
que podessem servir a todos os actos de piedade , e mysterios da
Religião a que eram destinadas ; e esta a rasão da immensa quanti-
dade de tampadas, que se encontram nas Catacumbas ; e d'aqui lam-
bem, sem duvida (1 ), o uso de acender vellas nas funcções religiosas,
que a Igreja conserva, para a celebração dos Santos officios ; uso ve-
nera-vel ~ que nos recorda ainda hoje , quando já ba tantos seculos
o Chrislianismo professa o seu culto á luz do dia, esses aur~os tem-
pos de provação e penuria , em que, os chr1stãos se occuHavam nos
umbrosos seios da terra. ,·
Alem destas salas, mais ou menos espa1;osas, abertas no tufo ,
algumas · vezes com degraos em rodor para a multidão dos fieis, e
cadeiras talhados na parede principal , e destinadas ao pontifice que
presidia á reunião, com columnas do mesmo tufo, que sustentavam
a abobada ; encontram-se nas Catacumbas pequenos edificios cavados
em parte , ·e em parle construidos , que nos offerecem indubila vel-
mente os primitivo.; moclêlos das Igrejas chrislãs , que se lem con-
servado na terra.

{21 Cu bicu la clara.


~

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180 e.ATECISMO

. Ha amda nas Catacumbas, nos silios aonde se tem aehado fon ..


tes e cisternas, algumas disposições que provam terem servido á
administração do baptismo (1 ). Talvez fossem os primili vos baplis-
terios, da mesma forma que os templos sublerraneos, de que aca-
bamos de fallar ' nos otferecem os primeiros modêlos das bazihcas
christãs. Fmalmenle acham-se nas Catacumbas salas, que mostram ·
evidentemente por sua configuração e natureza ·, mesmo pelas
pinturas que as adornam ; terem servido á celebração dos innocentes
banquetes , chamados Agapas.
Dest'arte, o primeiro uso das Catacumbas foi dar asylo aos chris-
tãos, durante as perseguições. Bem é de suppor que vida de pri-
vações e penuria passariam n'aquelles te:1ebrozos retiros. infecciona-
dos do cheiro dos cadaveres ; e todavia antes queriam nossos maio ..
res soffrer tudo isto , do que expor-se ao perigo de perder sua alma,
perdendo a fé : que exemplo , que lição para .seus fi lhos !
Para se afervorarem em suas provações, tinham elles pintadas
nas paredes, gravadas nós tumulos , vasos , vidros, alampadas , e
emfim em tudo aquillo de que US'4vam , as passagens d~ Antigo e
Novo Teslamenlo , analogas á sua posição. Aquellas que ordinaria-
.mente mais se encontram são os Tres meninos na fornallia, .Daniel
no pateo dos leões, /zaac sobre a fogueira ; por onde nossos pais,
submettidos ás mesmas provas , viam a toda .a hora imagens da rea-
lidade , modêlos para imitar, e motivos de consolação e esperança,
Noé, a Arca e' a Pomba trazendo entre o bico o ramo u'Oliveiras
terna similhança da Igreja que, se bem agilada pelas· perseguições,
chegará sem ·<luvida ao seguro porto da eternidade. As passagens
alli desenhadas · do Novo· Teslamento , são ordinariamente as do Sal-
vador, nas situações mais · proprias para fornecer exempros das vir.. ·
tudes christãs, imagens de gloria, motivos de consoJação e esperança.
Nosso Senltor rnultiplicándo os pães , curando o paralytico , restitu ..

(t) AI. Raoul Rochetle, Quadro d.as Catacumbas. p. õO ;_Prudencio,


Peri,tepli. Oymn. 2; S. Paulino do Nola, Poema XVUI, v. 96-98.

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DE PERSE\'ERANÇA. 181
indo a vista ao ceg~ , ressuscitando Lazaro, sempre e por toda a
parte - Jesus o bom Pastor.
No que toca a parle puramente decorativa destas pinturas, nada
conteem que não sejam assumplos agrada veis e graciosos, represen-
tações de 8_cenas pastoris, agapas , sim bolos de fructos, flores, pal-
mas e coroas. Em meio das provações de lam agitada vida, e quasi
sempre nas agonias da mais lerri\'el morte, unicamente enlevadus na
celeste recompensa que os esperava , não viam elles na hora do pa-
samento, ·e no mesmo horror dos supplicios, senão o caminho curlo
e seguro da eterna bemaventurança ; e bem longe d'associar a esta
idea mesma a fias torturas e prh ações, que lhes abriam o ceo , pelo
1

contrario as vestiam de risonhas cores, symbolisavam em agradaveis'


allegorias , e ornavam de festões e flores. E' assim que nos appa-
rece o asylo da morte nas Catacumbas christãs (1).
Admiravel poder do Christianismo ! em lam longo periodo de
perseguições, em meio de impressões tam dolorosas , refugiados nas
Catacumbas, reduzidos a orar sobre os lurnulos, e incessantemente
occupados de tristes e severos deveres , todavia nossos pais na Fé
não deixaram n'aquelles cemiterios , entre tantos objectos sinistros ,
nem imagens lugubres, nem signal de ressentimento, nem expres"ões
de vingança ; antes pelo contrario, tudo alli respira sentimentos de
brandurà , benevolencia e charidade. Ou eu estou muito illudido ,
diz um homem celebre, ou esta observação , que tam positivamente
resulla do exame das pmturas cbristãs, apresenta o primiLi vo Chris-
tianismo sob um aspecto tam proprio, para conciliar;.lhe o respeito e
o amor, corno nenhum outro dos rasgos da sua historia, ou dos monu-
mentos do seu genio (2). Muitas outras pinturas se encontram nas
ruas de Roma subterranea ; como a cada passo nas da ll.oma pagã ,

(t) Ariogi , Roma Sublerr. 1. 1. p. 3'8.


(!) Veja lodo este- maravilhoso simbolismo explicado em a nossa his-
.toria das Catacumbas. Veja lambem Maneachi t. I. p. 156-16&.

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182 CATECISMO

as estatuas e os quadros de divindades infames, suppos_to que nesta


primeira epocha o ensino da Religião era inteiramente vocal ; comtmfo
assim como os patriarchas levantavam outr'ora monumentos , para
perpetuar a memoria dos milagres e beneficias , com que o Senhor
os havia favorecido , assim os nossos pais gravavam, pintavam, e
esculpiam todas as . verdades da nossa Religião. Do mesmo modo
que os Palriarchas expHcavam então a seus filhos a origem e o
sentido desses monumentos do deserto , assim nossos pais
explicavam a seus filhos e despertavam em si mesmos as
lembranças para sempre memoraveis d'aquellas pinturas e esculturas
que os rodeavam. Alli se representavam os factos prmcipaes · do
Antigo e Novo Testamenlq; alli o nome e a essencial qualidade do
Redemptor do mundo. E' nolavel que entre outras imagens o figu-
ravam por um peixe , porque as letras de que se compõe esla pa-
lavra em grego, são as iniciaes do nome de nosso Senhor: JeS'U-
Christo , filho de Deus, Salvador (1).
Do mesmo modo em diversos simbolos representavam todas as
virtudes christãs, todos os -santos affectos da alma que ama ao seu
Deus : o· veado, o cavallo , o leão, a lebre , a pompa , a vinha, re-
cordavam alternadamente o desejo do Ceo , o ardor na vereda dá
virtude, a força contra o demonio e o mundo , a prudente timidez,
a innocencia, a brandura e a doce charidade (2). Muito careciam
nossos pais que tudo que os rodeava sustentasse a sua ~oragem, e

(1] ralavras de M. Raoul Rochcllc.


, (2> Em seus anneis , suas medalha~ , e mil oulros objertos
d'uso acha-se este signal X r , que se compõe das duas letras gregas X P
ino1ciaes da palavra Christo. Este sigoal sagrado começa a reapparccer
em muitos objectos d'arLe modernos. Elle se tem conservado na Alema-
nha e na Suissa, aonde se vê em gravuras piedosas, em altares &e.
Elle Lem a Lraducção figurada desta ·palavra do Rei propltela - Dico ego
opera mea Beg1 - Dedico as m1nhu obras ao meu Rei.

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DE PERSEV~RANÇA. 183
animasse a sua virtude ; porque , quem o hade crer? nem sempre
estavam seguros em suas Iugubres habilaç.ões. Apenas se acendia a
perseguição 1 apressavam-se os pagãos a interceptar-lhes a entrada
das Catacumbas ; e se , apezar desta _defeza , alli buscavam abrigo ,
cercavam-nos, e os obrigavam a sahir. Então os sateliles, postados
a todas as portas , aferravam as innocentes victimas e as levavam
de rojo perante os tribunaes. Outras vezes fechavam todas as aber-
turas , e os christãos , uão podendo ser soccorridos por seus irmãos,
morriam de fome e sê.de (1). Então aquelles subterraneos, que os
escondiam em vida, lambem em mortos lhes davam sepultura : tal é
o segundo fim <las Catacumbas.
Com effeilo, acha-se alli uma infinidade de lurnulos : em quasi
todas as galenas se vêem cinco e seis ordens de cubiculos. abertos
~10 tufo, e destinados a receber os corpos: alguns ha onde não ca-
be mais que um, onlros maiores encerram dous, tres e quatro Jtmlos
(2). E' alli que repousam em paz os sagrados restos dos primeiros jus-
tos, heroes do Chrislianismo; a sua ''i\'3 fé, a sua terna Cbarida-
de lranluzem nos ornamentos e inscripções de seus tumulos (3).
Tal era a vida de nossos pais nas Catacumbas ; taes são os mo-
numentos que alli deixaram da sua babi lação. Os dias de provação,
que afligiam a Igreja nascente, repetiam-se tam amiudadas vezes,-
que a Roma subterranea se tornou a habitual residencia dos chrislãos,
durante mais de lres seculos. No inlervallo das perseguições, habi-
, lavam entre os pagãos nas cidades e campos. Aqui , como nas Ca-
tacumbas, derramavam o santo· cheiro de Jesu-Christo , e retarda-
vam com todo o poder das suas vil'ludes , , a queda do imper10 ro~
mano (í). Passai-vos para nós , lhes diziamelles , ou aliás morre-
reis ; nós somos os herdeiros do futuro, temos a palavra de vida: O

(1) Tertull. Scorprac e. t. p. 488. -· Mamacbi t. 1. p. 169-174.


(2)- MamachiL. 2. pag. 221.
(3) Bisomum trisomum • quadrisomum.
{4) Mural. Thesaur. }Hscrip. t. IV, p. 9H>.

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18i CATECISMO

imperio permaneceu surdo á sua voz, e quando soou a hora da yin-


gança· divina, não foi mais que um vasto cadaver, cujos despojos
_''ieram os povos barbaros disputar entre si (1).
Entretanto , faziam nossos pais , pela santidade de sua vida , o
contraste da iniquidade pagã; aos erros crueis , grosseiros , infames
e aviltanles da idolatria, oppunham a Religião de santidade, ver...
dade e charitlade , da qual foram elles os marlyres e nós os
filhos.
Ao infernal orgulho lia velha Roma, oppunha Roma subterra-
nea a sua humildade. Aprendei de mim , que sou brando e humilde
de coração (2). Bsta lição do Deus de Belhlem e do Calvario , pre-
sente sempre a nossos pais na Fé , era a regra dos seus sentimentos
e das suas acções. Nós não desejamos, diziam · elles , nem ser reis,
nem ricos , nem prefeitos do imperio ; longe de nós o pensamento
de percorrer os mares , para contentar uma insaciavel avareza : ne-
nhum desejo temos de vangloria (3). E o seu proc.eder era a litte-
ral applicação desta nobre profissão d'hu míldade. Imitadores do di-
·vino Mes'tre, que quiz s_ei- o servo <?e seus proprios discípulos, e se
abateu a lhes lavar os pés , assim os mais rico:s d'entre os christãos,
longe de se ensoberbecerem com a sua fortuna, disvellavam-se em
se humilhar dianle dos pobres ; lavavam-lhes os pés , iam visitai-os,
testimunhavam~lhes loda a sorle de estima e respeito, para mostrar
a humilde opinião que tinham de si mes-mos (4).
. Esta humildade, tam sincera como profunda , era commum a to-
dos os membros da nova sociedade. Terlulliano , persuadindo sua
mulher a não casar com pagão, no caso que elle mol'resse, entre ou-

(1) Tertull. Apol.


(2) Et nunc. reges rnlelligilc ; erud1minc ,. qui judicatis lerram.
Psal. II, 10
(3) Mallh. VII.
(4) Tatian. Oral cont1·. Gent. D. tt. p. H4.

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DE PERSEVERANÇA. 18ã
tras rasões que lhe dá , cita o cuslume geral dos homens e mulherês
chrislãs, de humilhar-se com os pobres. cc Que marido pagão, ·1h·e
dizia elle , permiltirá a sua esposa chrislã, que saia aos caminhos,
e .entre nas choupanas dos pobres; a fim de visitar os irmãos e la-
var-lhes os pés~ (1) ))
Tudo quanto tinham de bom só a Deus -o atlribmam nossos
pais. O louvor proprio os vex.ava (2). Durante a cruei per~egui­
ção, que ensanguentou as Gallias , foram os gloriosos martyres de
Lião encerrados em uma ouscura masmorra ; e· como alguns irmãos~
que · os vieram visitar, lhes dessem o nome de martyres, porque
·estavam em vesporas de derramar o sangue por J esu-Christo ,_não se
pode crer a magoa que por isto tiveram. Ah ! , diziam elles , dai
esse glorioso nome a Nosso Senhor, primeiro dos martyres, dai-o
:íq1rnlles que Já soffreram a morte em defezd da Fé , e já estam na
palria da bemaventurança ; nós outros, vis e <lespreziveis, não o mere-
cemos. Ajudai-nos antes coln as vossas orações, para que alcance-
mos a gl·aça de chegar a esse termo feliz , objecto dos nossos vo-
tos (3).
Ao desenfreado lttxo dos pagãos , oppnnharn nos3os pais su.a mo-
desta simplicidade; se bem que, vivend·o no meio <lo mundo, não
contrariavam· aquelles usos, que não eram contrarios á piedade e Re- ,
ligião. D'est'arle cada um trajava os vestidos proprios tio seu esla-
<lo e classe. Os que faziam profissão de vida mais austera , dei-
xavam a toga e vesliam o manto : era este o habito distioclivo dos
philosophos e ascelicos (4). Aquelles, porem, que conservavam: a toga,
tmham todo o cuidado em dar, -com sua gravitlade e modestia, bom
exemplo a seus irmãos ( 5).

(1) Lib. li a<l Uxor e: 1.


(2) Justi. nialog. cum Tryph. p. ~rn.
(3) E~scbio 1. 1. e. 11.
(4) Chama,·am-sc assim aquellcs que, vivcacfo mais retirados do
mundo se cxerciarn c1n unia vida ruais perfeita. 4-

(õ) Afamac.hi', Antiq. Clirist. t. II( p. 389.


2i . VI

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186 CATECISMO

As pessoas de inferior condicção, contüntes com a ~ua sorte ,


não moslravam desejo de a exceder. TraJantlo com simplicidade e
modestia , tcslimunhavam o pudor da sua alma , e a caslidade dos
seus pensall}entos. Nada os poderia mo,•er a aceitar vestidos offere-
cidos pelos pagãos , se nelles descobrissem o menor signal de su-
perstição· (1 ).
Se dos vestidos passat·mos aos moveis, não havemos que eslra-
nbar de não ver nas casas dos primeiros ·chrislãos , nem 1uxo ,
nem vaidade, nem ornamentos indignos da modestia e simplici-
dade que professavam. Os espelhos , quadros , cadeiras, mezas ,
Jeitos, vasos de ornamento, e ainda os do uso famihar, todos tes-
timu.nhavam a humildade de seus donos, e a sua aversão a toda a
especic de fausto. Em summa , eis • a respeito da mobilia, os pl'in-
cipios que adoplavam. Os vasos d'ouro e prata , bem como af pe-
drarias, são cousas .inuteis, que só servem de lisonjear a vista. E'
oulra vaidade ter vasos de cristal e de vidro, delicadamente lapidado.
As cadeiras, jarros, e baixella custosa, as mezas de cedro, d'ébano
e marfim , os leitos com pilares de marfim ou de prata , as cober-
tas de purpura, e outras cousas similhanles, dão signal de molleza e ,
effeminação ; e é por isso que os devemos -abanuonar absolutamente.
Como poderemos crêr, que se nos permilte o orgulho e o luxo , a
nós, que seguimos as maximas do nosso divino Redemplor?.. Por·
ventura não disse elle: Vendei o que possuis, dai o seu preço aos po-
bres, e segui-me? Imitemos pois a~ Senhor, e lancemos para louge
de nós esse fausto, que se dissipa como a sombra; fa~amos por
possuir só o que é justo, e o que nos não pode ser tirado ; tenhamos
fé em Deus , confe~semos o nome do Senhor , que padeceu por nós ;
conservemos a charidade para com os nossos irmãos.
Pot· ventura , por ser o vaso de barro , não poderemos lavar
nelle as mãos ? Não eomeremos por ventura , se a meza, que sus-

{t) Acl, SS.' Perpct. e Felic. - S. Cypr. de Lapsis p. 122.

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DE PERSEVE~ANÇA. 187
tenta o nosso pão , não custou o seu peso em ouro? Não a1umiará -
a candea, por ser do oleiro e não do ourives ? Nos outros entende-
mos que tanto se dorme em uma pobre ba1-ra, como em leito de
marfim. Lembremo-nos que o Senhor, para comer, se servia d'um ·
prato de nenhu·m valor ; que elJe mandou assentar os seus discípulos
sobre a relva., e lhes lavou os pés; tam longe estava elle do fausto,
posto que fosse o Senhor de todas as cousas (1 ).
Assim \'emos que era sempre com o exemplo e as Hçõestlo di-
''ino Mestre, que os primeiros ffois combatiam os costumes corrompidos, e
os desregrados desejos da natureza.
Profunda philosophia do Christianismo, que faz da perfeição do
Homem-Deus a pedra de toque , e a regra dos pensamentos, dos
desejos , e elas acções de lod.os os homens ! Sera pois para admirar
que esta philosophia tenha renovado a face da terra? ...
A' devassidão e gula dos pagãos oppunham nossos pais a lémperança
e o Jejum. Viver para comer era a maxima da velha sociedade ; comer
para viver foi o principio do jejum '. segundo estes principios eram
nossos pais sobrios na bebida e comida, e não só desconheciam lodos
os excessos <la~ meza, que deshonravam os pagãos; mas até os meno.:.
res appelites da sensualidac.le lhes eram estranhos. Sustentar a vida,
e adquirir as forças necessarias, para servir a Deus e ao proximo ,
taes as regras que regiam a sua refeição.
D'est'arte preferiam elles as carnes simplices, e proprias a for·
tilicar o eslomago, as que rnâis serviam de li~ongear o appetite;
por isso que estavam persuadidos, que as comidas delicadas ' em lu-
gar de nutrir, são nocivas ao corpo e á alma. (2).
Esta prudente sobriedade, que observavam em suas casas, .da
mesma sorte dominava nos innocentes lrnnquetes chamados Agapas.
, Em todos os tempos e em todos os paizes a mcza em commnrn foi
sempre signal d~amisade. Assim nossos pais , para ~lar um tcstimu-

(1) Clem. A!exand. Paedag. e. ·3. ·P· 1156


(2) Clcm. Ale~. Pac~ag. e. t. 1a9 .

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188 CATECIS~IO

nho sensivel da terna charidade que os unia, muitas vezes se assen ..


lavam á mesma meza. Preparada á custa (los ricos uma honesta e
frugal comida , todos os irmãos, isto é, Lodos os fie1~ da mesma
Igreja , eram convidados , e comiam juntos , sem que enlrb "'.lles se
fizesse distinção de pessoa.
E' assim que, ainda mesmo nos seus usos mais triviaes, o Chris-
linianismo ensinara aos homens a fraternidade e a igualdade para di-
ante de Deus. Não poucas vezes alumiaram as alampadas <las Ca-
tacumbas eslas innocentcs reuniões. Faziam-se ella3, na primili\!a
Igreja, muitas vezes por semana, depois se reduziram ás Lres epo-
cas memoraveis da v·ida chrislã ; isto é , na occasião do baplismo,
das nupcias e dos funeraes (1 ).
Nada mais interessante do que a descri pção, que - os Padres fa-
zem, destes banquetes para sempre memoraveis, e cujo nome só nos
traz á memoria tam saudosas recordações.
Terlulliano, advogando a causa dos chrislãos no tribunal da ve-
Jha sociedade pagã, que por toda a parle não presenseava senão
excessos · e desordens, porque ella mesma não podia viver sem ellas,
dizia : « Só o nome dos nossos banquelcs moslra o que elles são.
Chamam-se Agapas , que no grego quer dizer charidade. Qualquer
. que seja o seu custo sempre nos são de mnito proveito·, pelo bem
que comsigo trazem , pois soccorrem e alliviam aos pobres. Longe ·
de procedermos com elles como vós com os vossos ·11arasitas , que ·
folgam de Ye111.le.r a liberdade só para engordar ás V( m1s mezas , a
preço de mil afronlas , nós tratamos os pobres como homens , os
quaes attende Deus com maior complacencia. Se no motivo dos n-0ssos
·banquetes nada ha deshonesto, julgai ago.ra do que nelles se passa pelo
espirito de Religião que os anima. Nada se tolera desprez1vel , 011
immodeslo ; ningucm chega á moza , sem primeiro fazer sua oração
í,\ Deus ; e então come só em quanto tem fome , J} bebe com a mo"'.

rJ) . Mamachi , t. lII. p: mo.

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DE PERSEVERANÇA. 18~)

deração do homem casto , salisfazendo-se como convem a quem hacle


· levantar-se de noule para orar a Deus. Depois , lavadas as mãos ,
'~ accesas as ·Janipadas , lodos são convocadoS"- a cantar os louvo.res
do Senhor, que cada um lira das Escripluras , ou compõe e11e mes-
mo ; d'aqui se pode ver o que lerá bebido.
« Assim acaba o banquete pela oração, e d'alli saem lodos ;
não como ban,Jos de gladiadores , de bachanles ou audaciosos de-
vassos , mas sim como entraram , com pudor e modeslia. Sabem
<l'uma e3chola de virtude, mais que d'uma cea. :»
cc Nós somos em nossas reuniões o mesmo que em nossas ca-
sas; to1los juntos, o mesmo que cada um em particular. A nin-
guem fazemos injuria, nem damos escanda)o a pessoa alguma (1). »
Não sera cousa bem admiravel ; que similhantes banquetes de
rharidade se estabelecessem espontaneamente nas selvaticas ilhas de
Gambiar , recentemente convertidas á Fé? . . . Qne prova mais
sensivel de que o espJrilo da Religião é o mesmo em todos os tem-
pos e em lodos os climas~ Escutemos um de seus m1ss10narios :
<r Nesta mesma ilha de Tara vai, vimos nós em um Domingo ' 'irem
os selvagens de .manhã ce.do, trazendo comsigo viveres paraajorna--
da. Quizeram passar todo o dia comnosco , e chegando a hora da
comitla , partilharam entre si as suas frugae~ provisões, com a maior
cordialidade. Assistimos com summo prazer a estas novas agapas, e
o que mais admira é que nunca Jhes linham9s fallado em similhanle
cousa : foi lembrança delles , suscitada por uma calhechese ácerca
da communhão dos Santos.. Hoje são já estes banquetes um costume
entre elles , a que dão o nome de comnrnnhão. , .
~ Não haverá nisto bastante motivo de regosijo para o pobre mis-
sionario, que vê celebrarnm-se aquelles banquetes com toda a símp1i-
cjdade da primitiva Igreja? ~ .. (2) .
. Não era baslan te para i1ossos pais o abster-se de todo· o genero

.(1) Apolog. e. XXXVIII; l\finut. Felix. p. 308 ; cartas de Plínio o


lDOÇO a Trajano. !ih. X. Epist. 98 , Marnachi t. 11. p. 94 e seguintes.
[2] Carla de Mr. Honorato La\'al - Aoo. da Propag. da fé o. õ6.
p. 176 .
. .

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190 CATECISMO

de excesso na comida e bebida. O seu divino modêlo, jejuando qua-


renta dias no deserto; os Apostolos , jejuando não obslanle os seus
grandes trabalhos ; a carne ' sempre prompla- a revoltar-se contra o .
espirito ; a obrigação de enfraquecer a vida dos sentidos , para ser
digno membro d'uma Re1igião toda espiritual ; e sobre ludo, a velha
sociedade , abysmando-se cad<! dia em novas devassidões , que dti-
mandavam exp!ações novas ; tudo era para elles mo li vo de se pri ..
varem alé das cousas permiltidas. Ainda fora da Quaresma, jejua-
vam muilas vezes na semana; e nesses dias não tomavam refeição
senão depois do sol posto. <t A Quarta e Sexta feira , dizem Ter- -
tu Ilia no e Origenes , são entre nós _dias de jejum solemne (1 ). »
Na Igreja de Roma , era tambem o Sabbado dia de jejum. E que
cousa mais terna do que a sua origem ! Muilos .dos anciãos d'aqnella
cidade escreve Santo Agostinho, entendiam que o costume de jejuar
ao Sabbado em Roma ti vera este principio , que lendo S. Ped.ro de
combater a Simão o magico, cm um Domingo , jejuara no dia pre-
cedente com toda a Igreja <le Roma; e como fosse lam glorioso o
successo do combale, se ficou depois observando sempre a mesma pra-
· Lica (2).

· O' meu Deus , que sois todo amor, eu '·os doa graças por ha-
verdes santificado o mundo, estabelecendo o Evangelho. Permilli ,
Senhor , que possamos imitar a hunuldade ., modeslia e temperança
de nÓssos pais na Fé.
Eu protesto amar a Deus sobre todas as cou$.as , e ao proximo
· como a mim mesmo, por amor de Deus ; e , eib leslimunho deste
amor , evitarei todo o exqm'sito no vestido e na meza.

[1] EpisL. 86 , p. U6 - V~ja iguakneete l\lamachit. t. li p. 119.


L2] Terlull. lib de jejun. CXIV; Orig. Jlomil in Levitic.

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DI~ l'EllSEVERANÇA. 191

VII.ª LIÇAO.

O CHRISTIANISMO ESTABELECIDO

(CoNTlNU A.ÇAÕ DO l.º

Roma Sublerranca .

.PROStGAMos a historia de nossos pais , e não nos esqueça. que nas


suas heroicas virtudes consiste o segredo do seu triumpho ' a gloria
do seu nome, e o modêlo da nossa vida. Comtemplemos agora as
infames torpezas dos pagãos , e a angelica pureza de nossos maio-
res.
A sobriedade e o jejum são os guardas da mais amavel das vir-
tudes ; assim o dizem com voz unanime , não só a rasão e a expe-
riencia , mas a mesma philosophia pagã. Na falta d'outras provas
isto só bastaria, para confirmar a castidade perfeila dos primeiros·
christãos ; mas existem outros documentos , e é a mesma velha ·so-
ciedade quem nôl-os fornece. Bem a seu pezar era eJla. forçacla a

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19! CA'fECIS~10

reconhecer , que o Clll'islianismo fazia caslos, todos aquelles que o


praticavam , e que o pu<lor era a mais querida virtude dos nos-
sos avós.
Tertulliano , r~pro<luziíuio as propnas palav1 as dos pagãos, di-
1

zia: « Fallando d'um on d'ootro que conheceis , e que antes da sua


conversão ao Chri~lianismo se havia assignalado por sua vi<la dissi-
pada , dissoluta e até escandalosa , não tratais senão_ de os d'esa-'
creditar por salyricas comparações, que se convertem em seu elogio,
tanto é o odio mconscquenle. Dizeis, por exemplo : vêtle e~ta mu-
lher , quanto não era louçã , quanto lasciva ! • . . Olhai este man-
cebo ; como era voluptuoso e exquisito nos prazeres ; que pena que
se fizessem chrislãos ! Como assim ! não vêdes que fazeis á sua
Religião · a honra de os haver mudado? Vós mesmos, accrescenlava
o eloquente apologista, condemnantlo uma christã . a ser exposta no
lupanar, antes de a expor á furía dos leões, haveis provaclo, que a
perda do pudor é para nós um snpplicio muito mais atroz, do que
todas as torturas , e do que a morte mesma. (t). »
Infinitos são os exemplos de mulheres cllrislãs , a quem os
juizes ameaçavam, como ullimo meio de as fazer abjurar o Evangelho, .
com expol-as nos lugares de prostituição. Em tempo posterior, quando
os barbaros do Norle <leram sobre o imperio romano, encontraram o
mesmo amor áquella angelica virtude. Que mulheres ha entre os
chrislãos ! exclamavam elles, transportados de admiração. _ _A joven
sociedade tinha tam aferrado amor á pureza e continencia , que
muitos consagravam a Deus a sua ,·irgindade. Cousa milagrosa !
Augusto podia apenas, na immensa R()ma , achar seis Vestaes (2) ,

[1] Apol. e. Ili id. sub fin.


í2] Eram as ,·estaes virgens pagãs , consagradas ao culto <la <leoza
Vesta. Eram sómente seis e só podiam casai· na idade de trinta annos.
Deste pequeno numero , e durante a sua eiistcncia , que foi de perto de
mil nnnos, de1.e.sctc foram condemnados ao ultimo supplicio por lerem
violado o seu voto, e muito maior numero foram lidas por suspeitas : tanto
é vcrd3iie que a pureza é uma virtude , que não tlorcce senão na ver-
dadeira Religião.

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trn PERSEVERANÇA. 193
· quando ao mesmo tempo 1 milhares de virgens . (t) floresciaqi co.mo
candidos lírios, no pequeno agro da Igreja ; e os mesmos , que to-
mavam o estado do matrimonio, guardavam em toda a sua perfei- ·
ção a castidade çonjugal t· sefüfo extremamente raro vêl-os passar a
segundas nupcias (2).
A admiravel pur~za de nossos pais manifestava-se em todo o seu
exterior. A modestia das mulheres christãs fazia singular contras-
te com a desenvoltura e o requinte das pagãs. N'estas tudo eram
arrebiques, perfumes e riquíssimos toucados d' ouro e perolas; aquel-
las, pelo contrario,_ cheias de recolhimento e circumspecção , não
saiam senão cobertas com seus véos, que nunca tiravam nem mesmo
na Igreja , principalmente não sendo cazadas (3) ; e era cousa rarissí-
ma ver em seus cabellos genero algum de luxo ou vaidade. Emfim
lam poucas eram as vezes que saiam, que o seu mesmo retiro era para
os pag~os molivo de zombaria. Por isso nossos pais lhes d-iziam:
« Vós fallais sempre com escarneo das nossas ,·irgens, por viverem
no retiro ; porque suas mãos se occupam em fiar a lã, e a sua boca em
canlar canticos sagrados ; envergonhai-vos , enchei-vos de vergonha •
poi~ haveis levantado esta tuas a todas as mulheres confusão que se
tem tornado celebres pela devassidão de seus costumes (4). » Não
traziam os homens o cabello intenso ; mas cortado ; do c1ue são
evit.lenle· proYa os retratos encontrados n~s Catacumbas. A maior·
. parte, principalmente ·no Oriente, usavam barbas crescidas , mas
detestavam a louca vaidade dos pagãos , que as consertavam e tin-
giam, para o fim de parecerem mais moços e formosos (5). Modestoa no

(1) Plebem pudoris como diz Santo Ambrozío.


(2) Mamarhi. t. IT. p. 126-132.
(:l) Tertull. De ornai. mulier. lib. U. e. ~. eL De teland virginib
e. 2.º Clem. Alex. Paedag. lib Ili.
(á} Tatian. Contra gent. p. 169.
(ã) VeJa Roma Sublerr. de Bosio ; as obras de Bottari e de Bol-
detli.
VI

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CATECISnfO

' esli<lo, não o eram menos nos olhos e na Iingua. Não se ou viam enlre
1

elles palavras obscenas , nem dtios equi vocos , nem zombarias, nem
essas cantigas loucas, de que hoje tantos fazem tam pouco escrupulo.
Sua angelica pureza , sua grande modestia cansav~a aos pagãos lal
estranheza que para muitos foi motivo de se converterem (1).
A' insaciavel sêde d'ouro, que devorava os pagãos , oppunham
nossos pais a pobreza voluntaria. A Roma dos imperadores não era
mais que uma grande praça, aonde Ludo se mercadejava , tudo se --
vendia ; a honra , a innocencia, a probidade e a vida : o mesmo
irnpeno foi posto em ai moeda pela guarda pretoriana, e o império achou
seu comprador. N'aquella velha sociedade o ouro era tudo , porque
o ouro é a fonte dos prazeres, e os prazeres eram a vida d'aquella
monstruosa agglomeração d'homens. D'aqui os assassinatos, em·enena-
menlos , revoltas , e abominações de toda a especie, que maculam
a cada instante as paginas da sua historia.
Em a -nova sociedade era tudo ao contrario. Filha d'aquelle Deus,
que nasceu no presepio .e morreu na cruz , ella regulava os seus
sentimentos e acções pelos_ exemplos do seu divino fundador. O
amor da pobreza chegava a ponto de se desfazerem de suas rique-
zas. CÓnlenLes com o necessario, os primeiros fieis davam o super-
íluo de seus bens á Igreja , a fim de soccorrer as \'iuvas, os or-
fãos e os pobres quaesquer que fossem ; entre elles tudo era corn-
rnurn. Ricos da sua fé e da sua esperança, tinham em total des-
prezo as riquezas transitorias do mundo [2]. Este admiravel desapego
dos bens da ,terra fazia ao mesmo tempo a sua felicidade e a sua gloria.
« Vós nos lançais êm rosto o sermos pobres , diziam elles aos
pagãos ~ mas a pobreza- é mais um titulo de gloria que de huoü-
lhação ; a frugalid~de, de que ella é a origem, robustece a alma tanto,

(1) Taliao. Contra Graecos, n. 29. S. Jusl. Apol. 1, n. H. id. n. .


n.
(~) Lucian. Samos. Dial Percgrin. o.º 13.

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DE PERSEVERANÇA.

quanto a abundancia a enerva. Demais, como podereis chamar po-


bre áquelle, que de nada precisa :. nada cubiça, do que perlence a
oulrem ; e só a Deus tem por seu thesouro ? ... Pobre é sim aquel-
Je que , lendo muitas riquezas, muitas mais deseja. Para dizer tudo,
por muito pobre que alguem seja , nunca o é tanto como quando
entra no mundo. Os passarinhos nascem sem patrimonio , mas cada
dia leem seu alimento. Todas as creaturas fei Deus para nós , e
nós as gozamos sem com tud., as ambicionarmos. Aquelle que viaja
vai -tanto mais ligeiro , flUanto menos carregado. Pois Lambem no
caminho da ,·ida, o cbristão é o mais feliz dos homens , a pobreza
o allivia , e elle não tem que supportar o prso das riquezas. Nós
pediríamos a Deus as riquezas, se julgassemos que nos eram nercs-
sarias ; e ~e na verdade o fossem, que Jhe custaria concedernol-as,
sendo elle o Senhor de tudo ? ••• .mas antes as não queremos, do que
ler de as administrar. Os nossos unicos desejos são a innocencia e
a resignação; por isso que mais estimamos ser virtuosos do que pro-
digos. Os ricos são escravos c\o seu ouro, e o estimam em mais que o
Ceo , o que é uma loucura. Quanto a nós , somos prudentes , por
que somos pobres, e a lodos ensinamos a maneira de ' iver bem, e re-
1

gular os seus costumes (1). ».


Finalmente a todos os crimes da velha socieda<le , oppunham os
cbristãos as suas oraçõ('S , lagrim~s , e sanctidade; assim o prova a
historia das suas acções quotidianas. Nossos pais levantavam-se com
a aurora, e a sua primeira acção era fazer o adora.vel signal da
Cruz , e o repeliam muitas _vezes pelo dia adiante ; porque enten-
• <liam ser a arma mais lerriveJ ao inimigo do genero humano. Nls
fazemos sobre o rosto o signal da Cruz , diúam elles, para que o
demonio , vend J o eslandarle do Grande Rei , recue e fuja espa vo-
1

(t) Miout. Felix Oct. p. 331, id. U3; Liict. Div. Inst. lil.I. Vil.
cap. ·1,. p. 517.

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196 CATECISMO

rido (1). Este salutar costume era commnm a lodos os christãos, e


as mãis o ensinavam constantemente a seus filhos.
Logo que se tinham vestido, lavavam as mãos e ô rosto : o aceio
era para ellcs urna virtude; e por isso tornavam a lavar-s~ anles
de começar as orações, reunindo .. se a familia para isso em uma ca"'.'
mara deslinada a este santo uso. As oraç.ões da manhã começavílm
pelo signal da Cruz, e duravam não pouco . tempo ; pois entendiam
nossos- pais, que a manhã era o momento mais proprio de offerecer ao
Senhor o sacrificio de suas orações (2).
Se um christão · se achava só em casa , não era menos fervo'\"
roso na sua oração. Depois de ler feito o signal da Cruz, dava gra~
ças a Deus por lhe ter concedido a vida da alma e do corpo, durante
a noute precedente ; e pedia os auxilios e protecção ela sua graça,
para o dia presenle. Era um filho, que todas as manhãs vinha famiJi.,.
. armente pedir a seu pai celeste o pão quotidiano ; era o viaJanle,
que supplicava o necessario provimento para continuar sua jornada.
Nas casas chrislãs era o chefe da familia quem entoava a oração , e os
mais o acompanhavam em côro.
Ainda que estivessem persuadidos, que a vida deve ser uma
continuada oração' os primeiros christãos tinham comtutlo certas ho-
ras destinadas para este sancto exercício; pois que as occupações
exteriores , e a fraqueza do nosso espirilo nos não permiltem muitas
vezes pensar só em Deus (3). ·
·Vejamos agora em que posição oravam. Nós pedimos diz Ter:'!
tnlliano, com os olhos levantados ao Ceo , as mãos estendidas, por~

rl) Tcrlull. de Coi· mil. e. 4. Orig. in Bzcch. LacL. Div. /nst. lib.
IV. e. 26; Cyril. Hicros. Catecli. 13, p. 28.
(2) Orig. in Ezech. p. 238 ; Tertull. lib. de Oral. e. 11 p. 133;
Crhys. Homil. XLIII, in 1. Com. n. 4; Bazil. E'pist. JI aà Gregor.
D. 2.
<3) Prud. Hymn. Calli. p. 30. Clcm. Alcxaod. Slrom lib. VI p. 7U~

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DE PERSEVERANÇA. 197
que ellas eslam pura ; a cabeça descoberta , porque não lemos de
que envergonhar-nos ; sem que ninguem nos prescreva os formularios
de orar, porque é o coração q_ue ora. » Nada mais lemo do que o
.costume d'orar com os braços abertos.
O Christão, qnal outro Jesu-Chrislo, imitava assim o seu divino l\fo-
dêlo expirando na Cruz ; e dava lestimunho da sua completa devoção.
« Em quanto nós oramos com os braços abP,rlos, acrescenta Tertulliano,
rasgai-nos, se vos apraz, com as vossas unhas de ferro atai-nos ás cruzes,
fazei-nos consumir pelas cbammas, embebei as espadas em nossos peitos,
lançai-nos ás feras bravas ; o Chrislão orando vos assegura, só pela
sua altitude, que elle está prompto para tudo soffrer (1).
Voltavam-se lambem para o Oriente ; porque assim como o sol -
nascendo traz a luz aos morlaes , assim a appar1ção do verdadeiro
sol de justiça, que é Nosso Senhor Jeau-Christo, dissipa as trevas do es-
.pirito, e illumina a todo o homem que vem a este mundo. Vol-
tando-se pois para o Orienle para orar , exprimiam nossos pais a
esperança e o desejo de serem esclarecidos pela luz divi'na [2].
Durante a oração, era o seu exterior perfeitamente composto ,
mas sem ·nenhuma affeclação. · Apenas prostrados , elevavam o espi-
rilo a Deus , e penetrados do ·sentimento da sua presença, falla-
\'am-Jhe como se o estivessem vendo com os proprios olhos. Este
pensamento produzia nelles o mais profundo sentimento de humildade ;
e detesta.ado as suas culpas do fundo do coração, perdonam aos seus
inimigos , suffocando totlo o affeclo menos christão. Pediam elles so-
bre tudo os bens da alma, importando-se pouco com os do corpo. Feitos
assim os actos de humildade, arrependimento e adoração, entregavam-se
á meditação da infinita grandeza, e suprema magestacle d'aquelle Deus,
que elles glortficavam por Jesu-Christo nosso Senhor e Salvador. Segui-

[tl Tcrtull. Apol. e. XXX.


[2] Clem. Alexand. ubi supra; Orig. lib. de Orat. o. 31 ; auctor
quoest. ct resp. ad orihod., ioLer opera S. Just. resp. 108.

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198 CATECISMO

am-se depois as affecluosas supplicas por si, e por ~eus parentes e amigos, .
e alé por seus inimigos ; pois bem sabiam, que o Christão não deve
contentar-se, com perdoar áquelles que -lhes querem ou fazem mal,
mas que ainda devem orar lambem por elles l1].
Acabàvam então a oração como a tinham começado, glorificando .
o Sancto Nome de Deus pelo signal da Crnz. Depois disto toda a familia
se levantava , e modestamente vestida se dispunha para o Santo Sa-
crificio. Anles de sair de casa , cada um fazia novamente o signal
da Cruz, e dirigia-se para a Igreja. Segundo as instrucções do Di-
vino :Mestre, entendiam nossos pais, que as oraçõQS cm commum eram
muito mais eficazes e agradaveis a Deus. Depois de ouvir a missa
to<los commungavam : Israelitas vigilantes, tinham o cuidado de Yir
todas as manhãs recolher o manná do Ceo, persuadidos de que é im-
possivel, sem receber o pão dos fortes, atravessar o deserlo da vi-
da:
O tempo do Sacrificio. gastava-se com a oração , exphcação das
Escripturas e canto dos Psalmos. ~epois da missa voltavam para
suas casas sem tumulto, mas com recolhimento e modeslia; havendo
grande cuidado em repeltir áquelles, que não tinham podido assistir
á reunião , e principalmente aos meninos , as instrucções dos Sacer-
dotes.
Cumprados estes deveres , deveres que são sempre taro suaves
quanlo sagrados para as familias christãs, empregavam-se nossos
pais nas suas particulares occupações. Elles exerciam indislincta-
mente todos os estados honestos e licitos. Devemos estar longe de
suppor, que por haverem renunciado ao paganismo, ficassem inuteis
ou estranhos á sociedade : havia chrislãos em to<las as condicções.
Bem como os Aposlolos , que não deixaram a pescaria depois da sua
vocação ao apostolado , assim os primeiros fieis conservavam, depois
da sua conversão , os mesmos empregos que antes exerciam ; e não

(1] Orig. ubi supra n. s. et 38; Cypr. l-ib de Orat:--- p. 107A

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DE PERSEVERANÇA. 199
os deixavam, senão quando podia haver perigo da sua salvação. Nós
ainda somos d'honlem , dizia TertuHiano , e já enchemos toda a
extenção dos vossos dominios ; as ciclades , villas , fortalezas , colo-
nias, fribunaes, campos, tribns , decurias , o palacio , o senado e·
o foro. Apenas vos deixamos vasios os templos (1]. « Ouzaisdi-
zer , accrescenta o mesmo apologista, endereçando-se aos pagãos,
ouzais dizer, que somos inuteis. ao Estado ; como assim ? .• ~ Habi-
tantlo comvosco, sem nenhuma ditferença, tanto na materia~dos ali-
mentos como do vestido , çom os mesmos moveis e as mesmas pre-
cisões, porque não somos Brachmanes , nem Girnnosopbislas da In-
dia , que habitemos as matas. Separados do commercio dos homens,
não nos esquecemos de pagar a Deus o tributo de reconhecimento,
por todas as obras de suas mãos. Nada rejeitamos do qu"é elle fez;
e só sim cuidamos em não usar de cousa alguma excessiva e des-
necessariamente, sem comludo nos privarmos do que é preciso á
vil.la. Nós vamos ao foro como vós outros , \'amos aos mercados ,
aos banhos , ás feiras publicas , ás lojas e hospedarias ; navegamos
comrnsco , servimos no exercito, cu Jtivamos a terra, e finalmente exer-
cemos as mesmas profissões como vós (2). » ·
Com etfeilo , em todos os estados havia cbrislãos ; como foram,
na jurisprudencia, Minucio Felix, os senadores Hyppolito e Appolonio;
na oraloria , Quadrato , Aristides, Alhenagoras , S. Justmo e Ter-
tuJUano; na medicina , S. Lucas, S. Cosme e S. Damião ; na arte
militar, Cornellio , a Legião Fulminante , a Legião Tbe bana e aquelle • 1

celebre capilão Mario , cuja inscr:ipção, achada nas Catacumbas , é


- a seguinte': Aqui jaz l\lario , moço capilão do impera'dor Adriano ;
o qual assaz viveu , pois deu o sangue e a vida por Jesu-C~rislo.
Os seus amigos, em meio de affiicções e sustos, lhe levantaram esta

llJ Apol. xxxvn.


f2] Apol. e~ X Lll.

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200 CATECISMO

lapide (1 ). ,, Encontram-se ainda muito maior numero de christãos


em condições menos imporJantes ; pobres , pela maior parte, que
ganhavam a sua vida pelo trabalho de seus braços, como eram fer-
reiros , oleiros , corrieiros , tecelões , carvoeiros , lavradores , al-
faiates , rnarcineiros , çapaleiros e pescadores. Em todos os estados
tem havido santos.
Deus o permillio assim , para nos ensinar, 1. que a Religiã'.o
0

é bastante poderosa para santificar todas a5t profissões e condições do


homem , e que lhe não é necessario relirar•se para o deserto , para
obler a salvação ; 2. º que se qu~remos salvar-nos em o nosso es-
tado, devemos imitar aquelles que vivendo n'eHe ; tiveram a feJi ..
cidade de obrar a sua sanclitic~ção. Entremos nos desígnios desla
amavel Providencia, e vejamos como nossos pai's' desempenhavam os
seus deveres em suas differentes· occupações ; para que taes exemplos
nos sejam de proveito~
Antes de começar a lrabalhar faziam sempre o signal da cruz ,
acompanhado ordinariamente com entoar . os canlicos- sagrados. Ao
seu trabalho presidia a boa fé, o ardor e· a paciencia, não havendo
em lodo o imperio gente mais sisuda e honesta do que os chris-
tãos.
Ao meio dia suspendiam suas fadigas , porque era a hora da
comida; e anLP.s de ir para a meza, novamente faziam o signal da
cruz, invocando o nome do Senhor , leu.d~ que primeiro convinha
confortar a alma que nutrir o corpo, e assim liam tamMm algumas
passagens da Escriptura Santa. Acabada a leitura faziam o signal
da cruz sobre os alimentos, sobre o vinho e agua, e dizendo uma curta
oração começa''ªm a comida.

í1J l\lam?chi. Antiq. Chrisl. t. 1 pag. ~30. - Veja Lambem na obra


do mesmo auctor, Dé -costumi dé primilivi Cliristiani. l. li. p. 50 e
scgurntcs, outro catalogo mais extenso dos chrislãos de diversos csla-
dos. '

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DE PERSE\'ERANÇA. 2-() 1

Eis a formula dessa antiga benção , cuja con~ervação se deve


ao celebre Origenes « O' vós, que dais sustento a tudo quanto res-
pira, concedei-nos a graça de usar santamente destes alimentos,
que a vossa misericordia nos tem concedido. Vós dissestes, O' meu
Deus, que ainda quando os vossos discipulos bebessem algum ve-
neno, nenhum mal lhes fazia , se Livesscm cuidado de invocar o
vosso nome, po.rque vós sois mfinilamenle bom e poderoso ; tirai ,
pois , deste alimento tud.o quanto possa· prejudicar o corpo e a alma
de vossos servos (1 ). »
Se se achava presente algum sacerdote, a ellc pertencia a ben-
ção da meza (2) : durante a comida recitavam-se canticos sagrados:
Este terno uzo , que prova a innocencia dos costume~ e a
alegria da boa consciencia, tinha ainda a vantagem de elevar a
alma para Deus, e prevenir toda a palavra ociosa. Os Bi~pos e
Sacerdotes igual~enle recommendavam aos pais.de famiha que en-
srnassem canticos sagrados a suas mulheres e filhos , a fim de
que os cantassem , não só fiando a sua lã e tecendo as suas lêas ,
mas até mesmo durante o tempo da comiqa (3).
Acabada esla , davam graças ao Senhor, repeliam o cantico dos
canticos sagrados, e liam ainda alguns trechos da Biblia (4). Che-
gada a hora cada um ,·oitava alegremente para o seu trabalho ; ou
a exercer <li\'ersas obras de charidade, taes como visilar os irmãos
prezos pela fé, receber os peregrinos , lavar-lhes os pés, preparar·
lhes de comer., distribuir esmolas e assistir aos enfermos (li}.
Pelas tres horas da tarde oravam ·novamente , e a tal re·speito
o seu uso dia'rio era , ao amanhecer, ás nove horas, ao meio

( 1) Lib. 1t in Joan. p. 36.


(2) Vede dom. Ruiaart , JJlartyrio de S. Tt.eodoto p. 299.
(3J Clem. Alcx. Slrom. lib. VII, p. 728 ; Chrys.. ili /'sal. XL. n.
2. p. ·rn'.2.
C-4) Tcrtull. Apol. XL. Vede igualmente Cave. de Rel1g et morib
vele.r. Christ. t. 1. p. 297.
(5) Tertull. lib. II , acl Uxor e. i.
26 VI ·

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202 CATECISMO

dia e ás lres da tarde recorrer ao Senhor por meio de fervorozas


orações, bem persuadidos de que Lanto mais se pedem a Deus os seus
auxilios e o seu soccorro , tanto mais se deve esperar a victoria das
~ tentações e o bom resultado do que se deseja : (1) ao recolherem-se
a suas casas sempre os pais instruíam os filhos.
Em troca de uma ternura verdadeiramente christã , recebiam os
pais e mãis a obediencia , o respeito e as mais express1 vas demons-
trações de piedade filial (2).
· Antes ele cear liam as Santas Escripluras ; · da mesma forma
que ao jantar cantavam himnos e canlicos; acabada a comida ,
davam graças , e liam outra vez os Livros Santos. Chegada a hora
do repouso, oravam em commum; faziam com rnodestia o signal
ela cruz , quando se deitavam , para gozar do necessario somno (3).
Para evitar todas as phantaslicas illusões do dcrnonio noclurno , levanta-
vam-se á meia noule,.e passavam alg~m te_mpo em oração (4)~
Tal era a vida que viviam nossos pais. Quando se nos propõe.o imi- ·
tal-os, respondemos , isso já não é costume. Na verdade já não é
costume viver, como chri.slãos , porque lambem o não é morrer como
e
santos. Sim, .tá não costume ... n.ias não é segundo o costume que
havemos dt ser julgados ; mas segundo o Evangelho. Jesu-Chrislo,
1

diz Tertulliano, não se chama uzo ou costume chama-se verdade; e a ver-


dade nu~cà muda ; e neste caso} ó chrislãos, que parlido tomaremos? ...
cumpre, pois , ou mudar de nome, ou mudar de costumes (ü).
Tantas virtudes· em homens do povo, excitavam alterna4amen-
te o furor e a , admiração da velha sociedade pagã. Adiante fa11a-
remos da maneira atroz , porque ella perseguio nossós pais ; agora
wjamos a brilhante homenagem, que tributou á sua santidade: é um
perseguidor dos chrislãos que vai fallar.

p) Clcm. Alcxand. Strom. lib. VII p. 7H.


(2) Tcrlull. de Cor. mil. e. II.
(3) ld. ih.
(-ll Id. 1. 11. ad Utror e. ã.
\5) Aol mula oomcn, aut mula mores.

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DE PERSEVERANÇA. 203
Plinicr o moç.o governador de Bitllynia, encontrou na sua pro-
1

vincia lam grande numero de cbristãos, que ficou embaraçado-, sem


saber de que modo se haveria a tal respeito ~ pelo que escreveu ao
imperador Trajano , nos seguintes lermos :
« Senhor , entendo que é meu dever consullar-vos em todos os
D(lgocios du\'idosos ; por isso que ninguem pode melhor tirar-me da
incerteza, ou instruir-me solidamente.
Eu nunca assisti ao processo dos christãos e uão sei o que nelles
se procura devassar ; eis os grandes motivos da minha duvidá. Dc,'erá
fazer-se dislincção de idades?... os· mais tenros nwninos não deverão -
distinguir-se das pessoas grandes? Deverá perdoar-se ao arrepen-
dime_nto; on será crime indelevel ter sido chrislão? E' este nome, •
sem mais crime; ou são os crimes inherenles a este nome, que se
devem punir? ...
Eis qual tem sido até hoj"e o meu procedimento para com aquel-
les, que me foram denunciados como chrislãos ; quando elles o con-
fessam , interrogo-os segunda e terceira vez. ameaçando-os com o
sJJpplicío; e se perseveram em o ser, os tenho effeclivamente man-
dado executar; porque , fosse qual fosse a sua opinmo , não du-
~dava que se devessem punir por aquella sua inflexivel obstinação.
Outros ha feridos da mesma loucura , os qoaes resolvi mandar para
Roma , por isso que são cidadãos romanos.
(e Teem-se multiplicado as accusações, como onlinariamenle suc-
ceue: grande numero de casos se offerecem. Tem corl'ido por aqui
um libello auonimo, contendo os nomes de mui los que se leem ga-
bado de ser chrislãos , ou de o haverem sido. Quando porem vi
<1ue invocavam os deuzes comnosco, e offoreciam incenso e vinho á
vossa imagem, que mandava trazer para a Ui entre as eslaluas dos
deuzes; e que alem disto amaldiçoavam o Cbristo, dei ordem que
os sollassem ; por isso que consta ser impossi vel constranger a pra-
ticar tal cousa áquelles que são- venlaJeiranrnnle chrislãos. Oulros, -
denunciados de terem dilo que eram chrislãos , o negaram immo-
dialamente, dizendo sim que o tinham sido , mas que já o não eram ,
uns havia lres annos ; outros, havia já vinte annos. Todos estes
adoraram a vossa imagem , e as estaluas dos deuzes ; e alé amal-
- diçoaram o Chrislo.
*

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20~ CATECISMO

« Ora, aquillo a que elles dizem se reduzia o seu deirnlo, ou o


seu erro era: que elles tinha-m o costume de se UJUnlar em certo
dia antes do nascer do sol e dizerem juntps em tlous choros um can-
tico em honra do Christo, como se fosse um Deus ; qne se obrigavam por
juramento , não a- commetter algum crime, mas a não commetter
dolo , nem roubo , nem adulterio , nem faltar á sua palavra, ou
negar algum deposito, retirando-se depois : que se tornavam a reu-
nir, para tomar sua refeição, consistindo d'alimentos ordinàrios e
innocentcs; e isto mesmo lin ham deixado de fazer , depois que eu
prohibi taes reuniões. A fim de me certificar plenamente da ver-
dade, mandei pôr a tormentos duas escravas, que se dizia lerem
servido nestas reuniões ; mas nada mais descobri que uma desre-
grada a excessiva superstição; e por isso differindo o julgamento ,
apresso-me a consullat-rns.
"- O negocio parece-me digno de consulta,, princrpaJmente por
que é mui grande o numero dos accusados ; uma infinidade de pes-
soas d'ambos os sexos, de todas as idades e condiç.ões se acham com-
promettidas, e leem de ser citadas. Esta supersli~ão tem infectado
não só as cidades , mas lambem as aldeas e os campos. Não obs-
tante, parece que se poderá atalhar , e curar-se; pelo menos con~
ta que se tornam a frequentar os templos , já quasi abandonados ; ·a
celebrar os sacrificios solemnes, ha muito interrompidos ; que por
toda a parte se vêem viclimas, quando já poucas pessoas as com-
pravam ; do que facilmente se pode· concluir, que grande numero
se corrigirá •. se se admillir o arrependimento (1).
Trajano respondeu deste modo á carta de Plinio :
« Tendes lido o procedimento que devieis, meu querido Secun-
do, nas cauzas d'aquelles , que vos tem sido denunciados por ch1_'is·
tãos; porque não se pode para com todos eslabelecer uma regra
uniforme. Não convem procurai-os, mas se forem denunciados e con-
victos , cumpre punil-os; com tanto, porem , que sempre que qual-

(tl Epilit 97 .

.....

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DK PERSEVEllANÇA. 205
quer diga não ser chrislão , e o provar sacrificando aos nossos deu-
Z<'s, obtenha o perdão pelo seu arrependimento , por mais suspeito
que tenha sido anteriormente. Quanto aos libellos anonimos, não fle-
,·em ser admillidos , em especie alguma de accusação. E' isso de
muito rnáo exemplo, e cousa indigna do nosso seculo (1). »
Assim, segundo Trajano , não convinha procurar os chrislãos;
mas punil-os quando fossem denunciados : singular jurisprudencia ,
exclama Tertulliano , monstruosa contradição ! Prohibir que se
procurem, como innocentes; e -ordenar que se punam, · como culpa-
dos! favorecer e castigar , dissimular e condemnar ! Para que ,·os
contradizeis assim tam grosseiramente? Se vós condemnais os chris-
tãos , porque os não procurais? E se os não procurais, para que os
cond~mnais? (~).
Esta repugnante contradição ·mamfestamente comprova, que aos
olhos dos mesmos pagãos erarp, nossos pais · irreprehensiveis.
Da mesma sorte. os nossos apologistas , defendendo a causa de
seus irmãos . nos . tribunaes do imperio , desafiavam os juizes, para
convencer alguns dos chriStãos dos crimes que se lhes imputavam.
« Nós tomamos para prova o registro dos vossos tribunaes , ó magis-
trados , que todos os dtas JUigais os prezos e, pronunciais vossas sen-
tenças, em consequencia das denuncias que ''os fazem. Por ventura
já encontrastes algum christão nessa multidão de . ~ai feitores, assas-
sinos , ladrões, sacrilêgos, e subornadores que veem cilados p_erante
vós? Ou por outra , entre os que vos leem sido denunciados como
christãos, houve por ventura algum convicto de taes crimes?... E'
pois dos vossos, que lrasbordam os carceres, e se engordam·as feras ;
é com os grilos d'elles, que retumbam as mmas ; é delles que sabem
esses bandos de condemnados, destinados aos espectaculos: nenhum

[11 Apud Plinium , p. 98.


p2] Apol. e_. II.

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!06 CATECISMO

delles é christão ; e que o seja, é só por ser chrislão ; se o- for por


alguma outra cousa , esse tal não é .christão.
« Por quanlo, só nós somos innocenles; e nem haveis que vos
admirar, porque a innocencia é para nós necessaria ; conhcccrnol-a
perfeitamente, · porque a aprendem{)s do mesmo Deus, que della só é
mestre perfeito ; nós a guardamos fielmente, porque assim nos foi
ordenado por um juiz.que se não illude .. Quanto a vós, foram homens,
que vos ensinaram a virlude, são homens que vôl-a mandaram ob-
servar , por isso ·não a podeis conhecer na terra como nós, nem re-
ceiar tanto perdei-a como nós. Ah ! e corno é poss1vel, fundados na
auctorHade dos homens , -conhecer a verdadeira virltHle, e muito
menos praclical-a? São fatuas essas 'luzes , desprezada essa aucto-
ridade; e pelo que respeita as suas leis, facil é esêapar-lhes, tanto
mais que nem ellas alcançam aos crimes occultos. Ame.la quando se
não illudem, os seus castigos são d~ curta duração ; porque não
excedem ao breve tempo da vida. A justiça para nós e ~utra cou-
sa.
« Persuadidos, como estamos, que nada escapa aos olhos pres-
crutadores d'aquelle que tudo vê, e· que ternos a evitar eternos su p-
plicios, somos os unicos que damos solida garantrn á verdadeira
virtude , não tanto porque a conhecemos na sua origem , mas por-
que confiamos a sua guarda aos castigos d'u·m fuluro , que não du-
rará alguns annos, mas que será -eterno : em summa, é a Deus
que tememos, e não ao Proconsul (1). »
Temer a Deus, e só a Deus , 1al foi a diviza de nossos pais ;
tal deve ser a .nossa , se quizermos alcançar a santidade, de que o
mesmo Deus nos deu o exemplo.

(1] Apol. e. XLIV, _XLV.

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DE PERSEVERANÇA.

OR&V&.O.
1

O' .meu Deus , que sois todo ~or, eu vos dou graças pol' nos
haverdes proposto tam be1los modêlos, em os primeiros christãos ;
permilh , Senhor, que possamos imm1Lar a sua pureza, santidade
e desapPgo do mundo.
Eu protesto amar a Deus sobre todas as cousas , e ao proximo
como a mim mesmo, por amor de Deus ; e , . em testemunho deste
amor ' promclto fazer cada aia ·algumas boas obras .

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208 CATECISMO

VI li.ª l..IÇÁO.

O CHRISTIAN ISMO ESTABELECIDO

(CoNTINU AÇAÕ no 1. SEcuw.)


0

Roma Sublcfranca.

A verdadeira sanclidade não consiste , por cerlo , em cumprir só


com os nossos deveres para com Deus , e para com nós mesmos ;
mas tambem exige o fiel cumprimento de nossas obrigações para com
o proxrmo : já vimos, porem , que a velha sociedade estava longe
de o fazer assim. A' lei do odio , que se manifestava em todas as
relações dos pagãos uns para com os outros, oppunham os nossos pais
. a doce lei da charidade universal. De todas as virtudes da Igreja
nascente , era ª' charidade a que mais admirava os pagã_os, por isso
que a viam cada dia brilhar de IJlil 111odos differentes , lanto nos
grandes actos ·, como nas mais vulgares acções da vida·.
Fieis a este preceito do divino Mestre : Amai ao vosso proximo
como a vós mesmos , bemdizei aquelles que vos fazem mal; orai ·

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DE PERSEYERA'.'1ÇA. 209
pot· aquelles que vos perseguem ; reconn.ecer-se-lrn que sois meus dis-
âpulos , se vos amardes uns aos- outros; fieis , repito , aó preceito
da charidade , todos os membros da nova sociedade formavani um ·
só coracão e uma só. alma.
~

Para proceder com ordem , fatiaremos primeiro do amor dos ,,


pais aos filhos e dos filhos aos pais; depois, do amor dos espozos a
suas espinas , e desta:; a elles ; em terceiro lugar, do amor , dos ir-
mãos e irmãs uns aos outros; e finalmente, de degráo em degráo
chegaremos a demonstrar, que a immensa charidade. de nos~os pais se
estendia a todos ; até aos seus inimigo:; e algozes. _ _
Em quanto que os pagãos não du\'idavam matar seus filhos an·
tes <le nascidos, ou expol~ os brutalmente dPpois do nascimento , só
_ por não terem o incommodo cte os nutrir ; os nossos pais consideravam
os seus como uma benção. e nada potrpa vam em cuidados e despezas
para conservar aquel!es, que Deus lhes linha dado. Creal-os era um '
dever sagrado para suas mãis, a fim que 1 ecebessem, com o· leite
1

materno , as. santas ma"timas da Religião. A ternura dos pais era


augmentada com uma especie de veneração , porque contemplavam _
seus filhos como irmãos de Jesu-Chri:;to , templos Yivos da Santissima I

Trindade: e preciozos depositas · de que dariam á Deus rigorosas con-


é tas. Assim, pois. penetrado destes sentimentos, o Santo l\Iarlyr Leonidas,
pai do grande Origenes, áproximava-se mansamente do berço de seu /
1ilho adormecido ," descrbria-lhe o peito , e o beijava respeitoso ,
_como o Sancluano do Espirito Sancto. Quando chegava a idade
-proprià da educação, era ella o objeclo de seus maiores cuidados (1).
« Nós outros , dizia S. Justino , ou não tomamos o estado do ma-
trimonio, ou se o tomamos, é ,unicamente pa:1·a nos consagrar mos á edu-
cação de nossos' filhos: não, vivemos senão ,para elles, e para ensi-
nar-lhes a dóutrina sancla (2)'. )) Com effeito, o principal ponto da

(t) Alhen. Legal. o. 33 p. 332. id. n. 33. p. 33. - Clcm. Alc:rnnd.


- Poedag. liv. 11. e. 10.
(2) Apol. ·1 D. ~9; id. 11. n. 4. - 1
. 27 VI
, ,. ,

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!10 CATEC1Sl'tl0

educação, era ensinar 3 seus filhos as verdades <.la Re1igião, e cos-


tumai-os á virtude e ás ôbras de misericordia. Era o Evangelho' o li-
no da_eschola , aon<le aprendiam a pensar, amar, fallar, e obrar
c·omo o Homem-Deus; crea·ndo-se por este m.odo homens preciosos
para- a sociedade, e sanctos para o Ceo. Ouçamos a S. Jerommo,
prescrevendo a certa mãi christã-as regras, por onde devia educar
sua filha.
« Lembra-fe dos sagrados deveres que contrahes, pelo . precioso
deposito que te foi confiado ; considera de que modo ·convem ser .,
educada uma alma, destinada a ser o templo de Dens. Pois qne as
primícias de todas as cousas são e~pecialment.e devidas ao Senhor, I ..

assiin as primeiras palavras e os ultimos pensamentos do menino de-


vem ser consagra.dos á piedade. A alegria da mãi chrislã ha-de con-
sistir em ouvir a seu filho pronunciar, com a sua voz debil e bal-
buciente, o doce nome de Jesu-Chri~to ; e os sons , ainda mal ar-
ti"culados de sua delicada lingua, exercitarem-se nos piedosos canl1-
cos. Logo .que tua - fiJha poder decorar , procura que aprenda os
Psalmos, e faça do Ernngelho, e dos Escriptos dos Apostolos o the-
souro do seu coração. Que se exercite cada dia em repelir algu-
/ ~ mas passagens, que serão como um ·ramalhete, colhido nas San las
Escripturas, que te offerccerá todas as manhãs. Sejam estas as suas
principaes joias , o seu . mais predilecto adorno , ·OS brincos com que
se entretenha, adorme~endo e despertando do som no (1). »
Quam sabias são estas maxim<rs ; qu:im aptas a produzir almas
robuslas ! Mas como estam mudados os tempos, e alterados os r.os-
lumes ! Hoje só se cuida em sobn~carregar a imaginação, e a memoria
dos meninos, com uma confusão de conhecimentos estereis , e até
perigosos , -chegando mesmo a defeca1-os com estudos difliceis e im-
tempeslivos·: e o peior é, que ha ahi pais christãos, que ao passo que
_,
ensinam a seus filhos !.odas essas cousas, os deixam n:J mais profunda e

(1) Ep1st. ad Laet. 1. \'II; id. aJ Gaudent. p. 398.

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DE ' PERSEVERANÇA. 211 ,,,

vergonhosa ignorancia ácerca dos prrncipios da divina siencia; sem a-


qnal toda a humana sabedoria não é mais do que erro e vaid,atle ! ·
« Olha que não caiam nas mãos de lua 'filha, conti'nuâ S. Je-
ronimo _, esses perigosos livros , que introduzem no Cllristianismo a
lingoagem dos pagãos. Que pode haver de commum entre os canli-
cos proíanos do paganismo , e os ca!;los hymnos da lyra dos Pro-
_phetas ? Como poderá harmonisar-se Iloracio com Davitl , Virgilio
con~ os Santos Evangelislas? Nem prelentlam <lesculpar-se pela in-
' tenção ; é sempre escandaloso ãndar uma virgem dé Jesu--Cbristo,
uma alma chrislã, pelos lugares c~nsagrados aos ídolos ; nã() é pos-
sivel beber ao mesmo tempo pelo calix de Jesu-Christo, e pela taça
dos demonios (1). Fugi igualmente da maxima que diz , que é ulil
ensinar desde logo á mocidade cútas cousas, que ninguem ueixará
-'
ile conhecer a seu tempo. E' muito mais seguro , _para nos -con-
termos, ignorar as cousas, cujo conhecimento é já uma tentação de .
as procurar : nesta parte a ignorancia é o melhor escudo da inno- /
cencia (2).
Queriam . nossos pais que seus filhos nunca csti vessem ociosos ;
e por isso revezavam assiduamente a leitura com a oração , e a
oraçã~ com a leitura; as ocwpações domesticas com os exercícios_
religiosos , alongando para assim dizer o tempo' por uma discreta
- variedade. Vig1aYam com grande atLenção os companheir'os que vi-
,·iam ao lado de seus filhos, e nunca junto delles consentiam crea-
dos suspeitos. De perto e de longe olhavam em que se entretinham,
-como S<( vestiam , de que se alimentavam. Não perrnittiam a seus
filhos os brincos e diçerlimentos em· que reina a desordem e a con-
fusão ; nem vestidos contrarias á módeslia chrislã , que evita ambos
os extremos do fausto e do desalinho ; o requinte de vaidosa elc-
gáncia, e a relaxação da •negligencia ; porque uma é dos libertinos

• 1

(1) Epist. ad Eustoch. p. H.


r~) Epist. ad Lact. p. !JlH.
*
/

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-.

212 CATECISMO

e immotleslos , oulra dos que não leem brio nem estima propria ;
_ finalmente procuravam aparlar· do alimento de seus filhos toda a es-
pecie de gólodice e sensualidade ; no que andavam com muita pru-
dcncia , pois bom é, que os meninos experimentem até algumas pri-
vações , a fim de que nunca se esqueçam de que nesle mundo estam
-sujealos á sorte de milhares d'oulros, a quem ordinariamente falta o.
, necessario (1).
Todas estas liçõés de vrrlude produziam seu fructo , por isso
que nossos pais eram os mesmos que lhes davam o exemplo. O
amor que tinham · a seus filhos era lam esclarecido como terno-- e
vigllanle. Tractavam lanlo do bem eterno delles, que para isso -
não poupavam 'sacrificips, e alé eram os primeiros a regosijar-so· quando
uma santa e gloriosa morte vmha êbamal-os ao seio de seu Pai ce-
leste, e mellel-os de .posse da stJprema bemaventurança.
Citaremos um d'enlre mil exemplos desta corajosa ler~rnra.
Tinha ordenad·o o imperador Va.1ente que se fechas~e as Igrejas dos
Calbolicos. Nossos pais , porem , querendo an.tes obdecer a Deus
que aos homens, reuniam-se aos Domingos fora da cidade , para
assislir aos officios divinos ;. o que sabendo o imperador , mandou
que fossem moi'los todos 'os chrislãus, que se encontrassem em taes
rcunwes. O Prefeito· da cidade , chamado -Modesto, menos barbaro
que o imperador , adverlio secretamente os fieis, para que .. não ce-
lebrnssem as suas assemble_as , dando-lhes parle dás ordens que Li-
nha recebido ; mas no Domingo seguinte a reunião- foi mais nume-
1

rosa do que ,nunca. Partio pois o governador com os seus so1dados,


para dar a rnorle a .estes generosos christãos ; e quando atravessa-
':ª a cidade, vao ·urna pobre mulher que apresstH'adarnenle saia de sua
casa , sem mesmo fechar a porta, levando um menino pela mão ;
e tam arrebatada ia , que rompeu por meio dos -soldados que guar-
neciam a rua. Modesto a mandou parar , perguntando-lhe :· Aonde

'/ \

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DE PERSEVERANÇA. 213
vais, com lanta pressa? ... « Vou, disse eJla, para chegar a lempo
á reunião dos calholicos. » Pois não sabes que eu \'ou para punir
ue morte quantos alli encontrar? ... <r. Bem o sei, e. é_por isso mes-
1

. mo que ·en me apresso , a lirn de .não perder . esta occasião tle sof-
frer o martyrio. - Mas para que levas comligo esse · menino? ... »
Para que elle participe da minha feliculade. Modesto espantado de
tanta .coragem , foi procurar o imperador, e çonseguio que renun- _
ciasse a seu crnel projecto.
A es~a constante ternura, tam . vigilante como sobre-natural de
seus pais , correspondia a m9cidade christã com igual affeição e res-
peito. Attendei bem a isto , jovens clmstãos, e procurai confor-
mar o vosso proceder ao · delles. Imita ti ores de -Jesu-Christo , que
obedeceu a José e Maria , preveniam elles todos os desejos de seus
pais e mãis, ajudnam-os em seus trabalhos, e consolavam-os nas
suas affiiç.ões. Se alguns tinham a infelicidade de ver seus pais
ainda idolalras, duplicavam por elles o respeito e ternura ; mas lam
firmes como respeitosos, recusavam obdecer-lhes no que era contrario
á religião. Ainda mais : sabendo que é um d9s precetlos da cha-
r1dade o ensinar os ignorantes, nada poupavam para esclàrecer os seus
mais charós parent~s, e fazei-os rent~nciar ao paganismo (1 ). Apontaremos
a seu tempo um bello e_xemplo das aclas de Santa Perpetua. Algumas
vezes estes piedosos . meninos não recebiam em troca da sua piedosa
charidade senão máos tratos e atfronlas ; mas nada- os desanimava.
E quando as suas orações não eram sufficientes , offereciam a Deus
o sacrificio da prop-ria vida , pela conservação dos desgraçados aucto-
res de seus dias (2)·.
A charidad~ que unia os pais o os filhos , igualmente uni~ os
esposos e esposas. Corno o seu amor era casto e santo , os e~­
pos~s davam a suas espos~s o nome de irmãs . (3). Se o· marido

,_

\
(U Justin. Apol. t. o. 111.
(2) Tertull. /ib. acl Nal. e. 4 e. 7 ; Arnob. lib. ,11_ Cootr. Gcnt. p.
u.
(3) Tcrtull. ad Uxor p. 161 e seguintes .

. ,

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2U ' CATECISMO

receiava da tibieza de sua mulher no meio das persegurções , não


cessava de a animar, recordando-lhe as lições , exemplO'S e promes- ·
sas 110 Salvador. N'islo imitava elle o Apostolo S. Pedro, de quem
S. Clemenle de Alexandria escreveu esta passagem :· « Vio o Apos-
tolo , que linha sido casado , a sua mulher presa pelos perseguido-
res , e conduzida ao marlyrio : immeuiatatnente a felicitou , e lhe
disse, chamando-a pelo nome: 1..embra.te do Senhor (1 ): Tal
era a nobre affeição dos maridos nos bellos dias da primitiva Igreja.
Nem era menos perfeita a de suas mulheres. Ternas , affaveis,
submissas e desvelladas , faziam ·- quanto podiam em os lucrar para
o Senhor , se ainda tinham a infelicidade de ser idQlatras ; ou para
os tornar perfeitos christãos , se eram Cathecumenos; a fim de que
o nome de Jesu-Cbristo fossê respeitado pelos mesmos infleis (!). ,
Educados em lam boa eschola, os irmãos e irmãs não formavam~
em toda a exleusão da palavra, mais que um só coração e uma só
alma. D'aqui · derivavam as mutuas allenções e ternos cuidados que
elles tinham de se animar á virlude , e sotfrer generosamente todas
as sortes de supplicios , anles do que expor-se a uma eterna sepa-'
ração renunciando a fé. Viam-se enlrar juntos nos amphilhealros,
combater e morrer unidos. Se por desgraça algum vinha· a ceder,
não se pode expressar a magoá de lodos os outros ; chorava!D la-
grimas de sangue , roga-vam e conjuravam aquelle seu irmão, que não
tinham deixado de amar, a que tornasse em si • e faziam orar por
elle alé que o tivessem de novo conduzido ao caminho do· dever e da fe-
licidade. Esta fina amizade so~.resaia em tudo : elles a representa-
vam em. mil symbolos ctiffer~nles , e a esculpiam nos túmulos e nas
urn~s. sepulcraes (3).
Tal era a familia christã'. nos bellos dias da Igreja nascenle ; ·e
pet·millio Deus ·, que estes 'costumes se tenham encontrado cm lodos.
·"

(1), Slrom. lib. 111 p. U8.


(!) Slrom. lib. IV p. ?S!ã. ,
(3) l\Jamachi Dé Costumi ·, e. a. ' p. 1G e 1\ntiq l'hrisl t. l l l p. ,
398.

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DE PlmSEVERANÇA. 215
os seculo.s ; · ja para comprovar a sua perpetuidade , já para tirar
toda a desculpa á negligencia , já emfim para moslrar que a Reli·
gião é sempre a mesma, cheia de vida sempre, e sempre capaz
de produzir os mesmos effeitos. Para pro\'a. ~ ~omo exemplo, ,·amos
manifestar aqui o interior · d'uma dessas familias christãs dos tempos
modernos. Oxalá que; nunca os pats a percam do sentido !
Poslo que a educação , e principalmente a educação eh ris lã, es-
teja qllilsi inteiramente abandonada ; ha , com ludo, ainda bastantes
, mãis piedo-sas que , bem convencidas qne só pot este meio podem
assegurar ~ felecidadc e gloria de seus filhos , emprega~ Lodos os
seus cuidados em os educar christãmenle ; mas como ellas leem mais
zeio que instrucção ,, enganam-se muitas vezes na escolha dos meios
que devem empregar para o conseguir. A fim de as .preservar taro~
bem deste erro , proporemos o exemplo de :Madame Acarie, que,
depois de ter muito tempo edificado o mundo com suas virtudes,
renunciou gencrosamerile a todos os bens que possuia , para ir ti-
nalisar seu~ dias no convento das carmelitas de Poutoise, aonde che-
gou á santidade m.ais eminente.
Conhecendo ó.. imperio qne o~ primeiros costumes l.em ordina-
riamente sobre o coração humano , esla senhora, verdadeira christã,
, tomeçou desde logo a 'formar seus filhos nas virtudes, que a Reli-
e
gião a sociedade esperavam deites ; e para o conseguir teve cui-
l1ado de lhes ensinar desde Jogo os priiicipaes rmlimenlos da fé. O
parocho de S. Gervasio, prégàntlo da ignorancia em ·· que os ·pais
deixam seus filhos a respeito da Religião . e querendo apresenlar um
exemplo, começou pelas seguintes pal11vras _.Se eu pergu.nfar a um
menino o que é a fé? ... lmmediatamente se ouvio, no meio do au-
ditorio, o mais pequeno dos filhos de Madame Acarie responcier ,
como se estivesse sido interrogado : E' um don de Deus ; e· teria
conlinuado, se .sua respeilavel mãi , que o linha no C(}llo , não lhé
- : ·tivesse posto a ,. mão na boca para que não conlinuasse.
Madame ..A.carie explicavã ~ muifas vezes a seus filhos a obriga-
ção que tinham contraido, recebendo o baptismo , de unir-se unica-
mente a Deus , evitando lutlo quanto o podesse offender. Elia nos
, dizia frequentemeule , · conta sua filha mais velha , " que não seria
nossa amiga ; senão em quanto amassemos a Deus , e que se co-

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CATECISMO

nhecesse, que qualquer menino estranho tinha mais amor_a Deus do


que nós Linhamos, ella lambem o -amaria mais a elle do que a
nós. ))
· Inspi1•ou-lhes desde a infancia grande aborrecimento á men lira ,
e nenhuma lhes perdoava, por mais insignificante que fosse.·« Ainda
que em tudo lenhas bolido ,., e quebrado tudo em casa, disse ella um.
dia a uma de suas filhas , _se o confessares i mmediatamen te , eu de
boamente te perdoarei , e. nenhum mal te aconlecerâ ; mas ainda que
fosses laru crescida como um pinheiro , mais depressa' pagaria é.u
a quem le segurasse, do que deixar-te passar uma só .menlira sem
castigo ; e sobre isto nem o mundo inteiro me faria mudar de re-
solução. ·
Elia as exhortava a sei:em s~mpre muito unidas entre si, e lhes
falia''ª muitas vezes das vantagens da paz , e das desgraçadas
consequencias da discor.!fia. E' util ceder sempre ~ -lhes dizi,a eÍla ,
exceplo quando a honra tle Deus · exige se resi3ta ; aquelle que cede
tem sempre vantagem sobre o seu adver~ario.
Exigia que ellés lratassc'm os s~us domesticos com brandura e
urbanidade, e quanlJo de outro modo lhes fallasstHn,,, não lhes de-
veriam responder. Tendo um dia ouvido uma de suas filhas fallar
com altivez , reprehendeo-a asperamente : Estranho isto muito ,
minhà' querMa amiga , lhe <lisse ella : Que maneiras são essas ?...
E quem és tu, para · fallarcs assi-m L. Toma cuidado que té não ouça
·eu Jnais sirntlhantes palavras.
Quando os mandava , queria que obdecessem immctliatamente e
sem murmurar, (leixando o que estivessem fazendo ao primeiro sig-
nal que lhes desse; em uma palavra, que nunca tivessem vontade
sua_. Não es~á bem , disse ella ~m dia a u·ma de suas filhas , que
moslrava l'epugnaneta el!l ficar 'com ella em uma casa , não está
- bem a uma filha bem creada aborrecer-se da companhia de sua mãi,
nem ler outra vontade que nao seja a della. Certa occasião, estando
no campo com .uma de suas filhas, teve esta desejos de ir a urna
cidade proxirna, em companhia de outra de sua amisade : Madame
Acarie consenlio primeiro , mas depois, querendo experimentar a ob-
diencia de sua 'filha , manclQu-a descer da carruagem, e tirar a sua
bagagem , quando estava proxima á partir. Repelio esla experien- _-

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DE PERSEVERANÇA. 217
eia duas ou lres vezes, e finalmente, depois de liavcr edificado toda
a companhia , que penetrava o motivo do procedimento da mãi; e
louvava a obediencia da . filha, promplamente consenlio na p~quena
viagem que ella desejava fazer.
Assi-m formava seus filhÓs neste espirito de mortificação , que
caraclerisa o verdadeiro chrislão. Em suas moleslias obrigava-os a
tomar, sem mostrar repugnancia , os desagradaveis remedios que
prescrevia o medico. Para os prevenir contra a sensualidade e a
intemperança,, fazia-lhes servil' á meza comidas ordinarias, e quasi
sempre um só prato ; não, lh'es permittia que dissessem o seu goslo ,
e que nunca regeitassem cousa alguma. Do mesmo modo não con-
sentia que Slms filhos decidiss~m da côr ou da forma dos seus ves•
tidos , sol.Ire o que nunca os consultava ; e evilando a singularidade,
. nada lhes permiltia que inspirasse a vaidade.
Finalmente punha tudo em pratica, para inspirar a humildade a
seus filhos , porque considerava esta virtude como o fundamento da
vida christã. Supposlo pertencessem a uma familia nôbre e dis-
tincla por suas aliança~, nunca os chamava , nem consentia que os
chamassem , senão por seus nomes propnos. Por melhor vontade
'toe os seus creados tivessem de servir a seus filhos, de ordinario
queria que elles se servissem_a si mesmos. Eu era muito orgulhosa
diz sua filha mais vel~a, e para corrigir-me, minha mãi me encar-
regou dos serviços mais bumilianlcs da casa, e.orno barrer a escada ;
e percebendo ainda que eu, para o fazer, aproveitava as occasiões de
não ser ''ista, e fechava a porta para me occullar, ordenou-me que
a barresse á hora em que concorria mais gente, e que não fechasse
a poria. Sua segunda filha , que foi sempre mui -viva , , tinha di-
los mui agudos destle os seus primeiros annos : para suffocar as se-
·' mentes de amor proprio, que podessem germinar no coração desta
menina, sua rnãi quasi sempre affectava não a lei· ouvido, ou a
mandava calar. ·
Para facilitar a seus filhos o cumprimento dos seus deveres, e
infundir-lhes o espirilo da subordinação, fez-lhes um regulamento de
vida, e seus filhos em. quanto viveram com ella , seguiram esle re ..
gu]amento em tudo que lhes dizia respeito.
Em seus primeiros annos, suas filhas levantavam-se ás 7 horas,
28 VI

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218 CATECISl\IO

e depois às seis. Logo que se vesliam resavam a oração da · ma-


nhã, á qual se seguia 'alguma leitura piedosa ; iam depois á missa,
que ouviam de Joelhos , durante a qual recitavam o officio de Nossa
Senhora ; mas depois , sua piedosa mãi os acostumou a meditar so-
bre o sacrificio de . Jesu-Christo , d_urante que se celebrava na sua
presença.
Voltando, para casa entregavam-se ao, trabalho ; porque Madame
Acarie nada temia tanto em seus filhos, como o costume da ociosi-
dade-; ella mesma lhes dava o exemplo, empregando-se em continuas
occupações uteis. A mesma hora do descanço não era perdida em
vãos discursos: esta santa mulher entretinha então mesmo seus filhos,
com reflex-ões capazes de lhes illustrar o espírito, e moralisar o co-
ração.
Todos os dias , excepto aos Domingos e dias Santos, havia de-
pois do jantar uma hora de recreio , a que assistia sua mãi, ensi-
/
nando-lhes a servir-se dos instrumentos , jogos e brincos proprios
da sua idade, e que ella mesma lhes havia comprado ; querendo
que eslivessein muito á sua vontade nestes momentos de folga.
« O constrangimento., dizia ella , áque1las que então se mos-
travam sisudas, quasi que não serve senão para embolar a vivaci-
dade do espirito ; a sisudez intempestiva quasi sempre. acaba tam
cedo como começa. ))
Pelas tres horas da tarefe rezavam Vesperas , passava-se depois a
uma leilura de piedade, e cada uma voltava á sua costura. Perlo
da noute, as duas mais moças davam conta dos pensamentos que
mais as tinham occupado duranle o dia ; se linha havido alguma
questão entre ellas, ordenava-lhes que pedissem perdão e se abraças-
sem, em teslimunho da sua -reconc1liação. Depois de cêa liam as vi-
das dos santos : os exercícios do dia terminavam pelo exame de
êonsciencia, . no fim <!o qual rezavam a ladainha e faziam a oração
da noule.
Nos Domingos e dias Santos linha madame Acarie o cuidado de
levar suas filhas á missa da parochia, e de larcle voltavam á Igreja
ouvir o sermão e as Vesperas. Quando chegavam a casa, deviam
referir o que li nham ouvido no pul pilo , e a hora ele cêa era or-
dinariamente consagrada a este exercido.

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DE PEllSEVERANÇA. 219
Quando havia alguma indulgencia, leva''ª esta santa, ma1 pesso-
almente suas filhas á Igreja indicada , para que lucrassem aquellas
graças tam preciosas aos olhos da fé ; e nestas occasiões, bem como
na Quaresma e feslas solemnes , tinha ella cuidado que suas filhas
levassem algum dinheiro, para distribuir aos pobres. A sua maior
satisfação era vel-as contrair o habito de pralicar boas obras.
Eram suas filhas ainda bem moças, quando começaram a recebei·
o ,sacramento da Eucltaristia ; mas a sua grande mocidade não as
impedia de conservarem os fructos da primeira communhão. Sua
mãi nacla poupava, para que ellas estivessem em estado de commun-
gar em todas as principaes festas do anuo, e muito mais -ainda quan-
do augmentavam em piedade. Elia mesma as preparava para este -
grande acto, admoestando-as dias 11ntes,. e ajudando-as a fazer as
convenientes disposições.
Os filhos , por mais bem educados 9ue sejam , podem tomar
em um momento as mais funestas impressões. Madame Acarie vel-
- lava altenlamente, para não deixar aproximar dos seus senão aquellas
pessoas , cuja virtude e prudencia lhe eram bem conhecidas. Pelo
mesmo principio desejava ella encontrar nos mestres , que dava a
seus filhos, a vigilancia e firmeza , juntas com a piedade e sciencia.
Admirando-se alguem de que ella tivesse preferido 1\1. Blanzy, com
o qual não linha relações · algumas, a M. Calvy, a quem estimava
muito, respondeu: « M. Cal vy e brando e indulgente: l'd. Blanzy é
severo, nada desculpa aos discípulos , e é isto mesmo que eu de-
sejo para os meus filhos. Não se creia, porem, que ella tivesse du-
ras maneiras para com seus filhos ; pelo contrario, tratava-os mui cari-
nhosamente, diz sua filha mais velha, mas junlava á sua brandura .
tam mageslosa e respeitavel gravidade , que era impossivel não lhe
obedecermos em tudo· que nos . mandava.
Prudentemente severa para com seus filhos, quando commeltiam al-
gum ei·ro, fazia-lhes mil caricias quando estava . satisfeita com clles.
O seu coração parecia dilatar-se, tam viva era a alegria que tinha :
prometlia-lhes tudo quanto lhe pedissem ; e se o que lhe pediam
era rasoavel cumpria fielmente as suas promessas. Em suas doenças
era_ ella que pessoalmeete QS tratava, passava as noites JUncto del-
les e prestava-lhes lodos os serviços de que tinham precisão. A cha-
*

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220 CATECISMO

ridade com que esta boa mãi os servia, animava-os a soffrerem tudo
com paciencia ; e a tudo se prestavam, para lhe poupar fadigas com
sua prompta cura. Finalmente , aprendiam com ella a fazer todo o
sacrifício, quando se tratava de prestar aos outros os mesmos ser-:-·
viços.
Tam .esmerada educação produzio .os fruclos que eram de es:-
perar ; por ella mereceram as tres filhas de madame Acarie ser
admiltidas na ordem do Carmo , aonde, depois de haverem occupado
os primeiros cargos , morreram santamente. Se, para nos servir-
mos das expressões de S. Francisco de S:illes, suas fil!tas tardaram,
e deram mesmo em certos momentos inquietações a sua mãi ,. a
respeito da sua salvação, os cargos honrosos, quo occu param na
Igreja e no estado , e as, felizes esperanças, que o mesmo Prelado
concebia dellas , quando tornou a vel-as um anno depois da morte
de sua mãi , provam que aproveitaram emfim da educação, que ti-
nham recebido.
Voltemos aos primitivos christãos. O t riumpho da cbaridade
chdstã, e a elerna gloria de nossos pais, é o terem amado ao pro-
xioio como a si mesmos ; isto é , a todos os horrwns.
Em primeiro lugar, os chrislãos eram entre si unidos pelo ''in-
culo do mais estreilo amor ; tanto que causava espanto e inveja a-0s
: mesmos pagãos (1 ). « Fallando de nós, diz Terlulliano , exclamais;
Olhai como elles são amigos ! Admirais-vos disto , porque eslaes
longe de vos parecer comnosco. Olhai como eJles estam promplos
a morrer uns pelos outros ! pois ainda mais d'ispostos estaés vós a
vos degolar uns aos outros. Acoimam-nos os vossos censores por
nos chamarmos frmãos , mas é porque para elles, qualquer deno.,.
minação de parentesco não é outra cousa, que uma simulação d' ami~
sade. Pois lambem somos irmãos vossos , pelo direito da natureza,
que é nossa mãi commum ; pelo d!reito d'homens' que todos somos,
com quanto vós sejáes bem pouco humanos, e bem máos irmãos.

PJ Apol. e. XXXIX.

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·•
DE PERSEVERANÇA. Hl
Itluito mais direito temos nós , pois , de nos tratarmos por irmãos,
porque todos temos o mesmo pai , que é Deus ; somos ilJuminados
do mesmo Espirito Santo , engendrados pela mesma verdade , apos
de havermos saído da mesma ignorancia. Entre nós ludo é com..
mum ~ os mesmos bens que possuímos servem a unir-nos como ir..
mãos , e não a separal'-nos como inimigos , como entre vós sue.. "
cede (1). J>'
<e Não julgueis , diz outro Padre da Igreja , que esses nomes
de charidade, que estam entre nós em uso, sejam ou_lra cousa que
a sincera expressão dos sentimentos que nos animam.
cc A nossos mferiores cha~amos filhos; aos iguaes , irmãos ; aos
superiores , pais. Pela mesma rasão ás mulheres chrislãs damos o
nome de filhas , irmãs ou mãis, segundo a ordem da idade (2). »
Manifestava-se muito parlicularmenle esta do,ee charidade com
certas classes de pessoas. Pela veneração em que eram lidos os
ministros cio Senhor , a quem deviam a vida da alma , appressura-
vam-se nossos pais em os provei· de todas as cousas necessarias. Bem
conheciam elles que os Padres se consagravam todos á salvação de
seus irmãos, e por isso não podiam occupar-se da sua propria sub-
sistencia. Mas as oblações dos fieis 1hes forneciam todo o nccessa..
rio , tanto para o sustento , como para o vestido (3).
_ Com aquelles , porem, que estavam em ferl'os pela fé, com
es~es sobre ludo se desenvolvia a mais ardente charidade , e a mais
destemida coragem. Apenas constasse que algum irmão tinha sido
preso , corriam todos , homens e mulheres , Yelhos e novos , a vi-
sitar o encarcerado. · Começavam por se recommendar ás orações do
futuro rnartir, peitavam os carcereiros para os deixar entrar, e bei-
Jar os ferros que o prendiam , servil-o , e prover a todas as suas

(1) Lucian. Dial. peregr. p. 337.


(!) Athéoag. Legal. p. 330.
(3) Mamachi, t. III , p. !6.

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CATECISMO,

precisões (1). Se não bastavam às esmolas da Igreja para soccorrer


aquelle seu filho , esc1·eviam os Bispos e Sacerdotes ás outras Igre-
jas, e ~ogo se davam pressa a · supprír a falta, para o que havia
em cada uma seu 'fundo .especial (2). « Cada um de nós, diz Ter-
tulliano , otferece. todos os mezes seu pequeno tribulo, segundo quer
e quamlo quer , conforme as suas posses, não sendo ninguem obri-
gado a isto, mas tudo voluntariamente. '
Assim se constilue um monte pio, que não se gasta em ban-
quetes ou dissipações eslereis ; mas ·ernpr<'ga-se na sustentação dos
indigentes, nas despezas de seus enterros; em soccorrer os orphãos
pobres , os domesticos velhos ~ invahdos ; os naufragos, os condem-
nados ás minas, os desterrados da patria, e os que eslam enca1·-
cerados pela causa de Deus (3). »
Levavam lam longe os nossos pais a devoção de visitar os con-
fessores da fé, que muitas vezes os bispos se viam obrigados a mo- ·
dcral-os, por medo que não irritassem mais com isto o odio dos per-
seguidores (4).
Onde quer que se manifastasse a miseria, era logo soccorrida ;
fosse nos carceres , ou na choupana do pobre·, ou na barra do do-
ente.
A charidade chrislã voava em seu auxilio , levando nas mãos
exuberantes ·esmollas, no coração os afagos e as consolações. Se
qualquer igreja particular não linha recursos que chegassem, para
manter os seus pobres, soccorria-se ás outras igrejas suas ir.rnãs ; e
não tardava que chegassem os Diaconos carregados d'esmollas e car-
tas fraternaes. Algumas vezes , as mesmas igrejas ricas pediam ás
pobres , a fim de acudirem immedialamenle e sem inlen;upção ás
necessidades de seus membros (B).

(1) Lacian. peregr. n. H, p. 334.


(2> ld. n. 3. Euscbio, 1. IV , e. 25
(3) Tértull. Apol. e. XXXIX.
(4) Cypr. Episl. 10 e 12.
(5) Cyp. Epist. ad Eucrat

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Não se faz idea do respeito, atlenções e carinhos de que eram


objeclo aquelles membros de Jcsu-Chr1slo affiictos. Não se conten-
tavam nossos pais com dar lcnitivo a suas dores, mas faziam lodos
·os esforços pelos consolar, e inspirar-lhes animo e paciencia. Não
havia doença , por contagiosa , que lhes detivesse o passo ; e o que
mais admira , é que faziam iguaes extremos· pelos mesmos, que os
pers~guiam ! Em uma pesle que assolou o Egiplo, Yiam-se os rhris-
tnos levantar nas ruas o~ pagãos , que jasiam doentes abandonados
dos seus , leval~os para suas proprias casas, e prestar-lhes os mesmos
soccorros como se fossem irmãos (1).
Dava-lhes lambem grande cuidado os meninos ; e em primeiro
lugar os orphãos, filhos de chrislãos , e sobre ludo de marlires ,
procurando que fossem educados na verdadeira Religião. A Igreja
- de Roma se distinguia entre todas, pelo muito que ·allendia aos po-
bres, quaesquer que fossem. No Pontificado de S. Cornelio, pelo
anno 250, mantinha aquella Igreja mil e quinhentos ; e desde a sua
fundação ' em quanto duraram as perseguições, enviou ella sempre
consideraveis sommas ás igrejas pobres das provincias , e aos con-
fessores condemnados ás minas.
Eram os Diaconos os encarregados d'aquelles thesouros vivos da
Esposa de Jesu-Chrislo. Recebiam as oblatas que se faziam, para as
necessidades communs da lgr~ja , e as arrecadavam em seguro, para
as distribuirem depois , por ordem do Bispo , áque lles que elle de-
signava , segundo a noticia que linha de suas parlicul ares necessi-
dades. Tambem· cumpria aos Diaconos informar-se dessas necessi-
dades, e ler exacla relação dos pobre sustentados pela Igreja (2).
Dest'arte os Diaconos tinham vida muilo activa , porque lhes era
preciso dar muitos passos pelas cidades, e até mesmo faze~· longas
jornadas. Por isso não traziam capa , nem balJitos magnos como os
Padres , mas somente tunicas e dalmalicas, que lhes facilitavam a
acção e movimento (3). ·

(1) Eusebio , 1. VII , e. U.


[2] Consl. Apost. 1. III, e. 19.
(3) Coost. Aposl. 1. II , e. 57.

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2U CATECISMO

Mas o que mais ndmirava aos pagãos, não era ~er os chris-
Lãos da mesma igreja, e ·da mesma lerra, amarem~se uns aos outros
com tanto extremo ; o que os fazia pasmar era quando um thris-
tão estrangeiro , desconhecido , era recebido, alojado , sustentado ,
soccorrido; e cercado de favores e afagos por homens, que nunca
o tinham visto , e dos quaes logo. se ausentava para sempre. Por
isso cheio~ de odio espalhavam o falso boato , que os chrtstãos era
uma seila secrela , cujos membros se conheciam lá por certos sig-
naes. Esta odiosa· calumnia fez dizer a Minucio Felix : « O~ signaes
porque nos conhecemos , não são, como pretendeis , senhas e-&lerio-
. res , mas sim a innocencia e a modeslia. Amam-se os christãos mu-
tuamente , porque não sabem ter odio. Chamam-se irmãos, porque
são filhos do mesmo Pai , creador de todos o·s homens ;- e porque
todos leem a mesma fé, e a mesma espe·rança do p'orvir (1 ). "
Logo que um estrangeiro mostrasse , que fazia profissão da fé
orthodoxa, e estava na communhão da Igreja , era recebido com os
braços abertos. Qualquer temeria , se lhe recusasse a entrada em
casa , recusai-a ao mes-ino Jesu-OlrislO'. Pat·a islo, porem , era
1neciso flue se· desse a conhecer (2) ; pelo que , os chrislãos que
viajavam, levavam cartas de seus Bispos (3).
O primeiro acto d'hospilalidade. consistia em lavar os pés aos
hospedes : allivio que se fazia necessario pelo modo, como os anti-
gos se calçavam. Se o hospede estava na plena communhão da
Igreja , oravam com elle , e era eBe que fazia todas as honras da
casa : benzia a mesa , sentava-se n9 primeiro lugar, e doutrinava
a familia. Reputava-se grande. felicidade o p ossuil-o , e o banquete
em que tomasse parle era tido por mais santo. Honravam os eccle-
. siaslicos em rasão da sua dignidade ; e se algum Bispo ia de jor-
nada, por toda a parle o convillavam pára officiar e prégar, mos-
trando dest'arte a unidade' do sacerdocio e da Igreja (4).

ft) Oct. p. 312.


<~> Baroo. ao. H3 , o. 7.
(3) Tcrlull. Pracscript. e. XX, cL Mamachi , l. Ili, p. ,8.
(i) Const. apost. 1. II, e. 58.

. '

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llE PERSEVERANÇA.
O que, porem , admira ainda mais , meus éharos meninos é,
que nossos pais exerciam a hospitalidade com os mesmos infleis.
Executavam lambem com muita charidade _as ordens dos prrncipes ,
quando os obrigavam"' a alojat os sqldados , officiaes , e outro5 que
viajavam em serviço do estado. S. Pacomo, que entrou sendo muito
moço no exercito romano , indo embarcado com os da sua compa·
nhia, aportou a uma cidade , onde ficou admirado de w r, ·que os 1

recebiam com tanta affeição como se f~sem amigos antigos. Per-


guntou quem eram : disseram-llíe que estes pertenciam a uma re-
ligião particular , que chamavam chrislãos. Tratou logo de indagar
quaes eram suas doutrinas, e este foi o principio da sua conver...
são (1). ·
Os escravos abandonados de seus senhores, em rasão de esta-
rem velhos e doentes , os desterrados , e em geral os pobres de
todo o genero , que a sociedade pagã lançava de si , tinham asylo
certo no gremio da nova sociedad~_. Para snpprir a ludo isto , não
se contentavam nossos pais com ~eder dos seus bens , e fazer-se
pobres ;· mas até se vent.liam a s1 mesmos, quando não tinham mais
de que fazer dinheiro. E não eram raros. os exemplos de charidade
tam heroica , como refere na sua carta aos fieis de Corintho o papa
S. Cl~menle (~) ; citaremos um deli e s, para que se veja o espírito
que apimava nossos pais. . 1
Um .chrislão d'aquelles tempos, chamado Serapião , condoeu-se
tanto da triste sorte d'um certo pagão farsista , que , para conse-
guir a sua conversão , vendeu-se a elle como escravo , pela quantia
de vintl:' peças de prata. Sem faltar ao mais exacto cump'rimento
das suas obrigações, ainda assim elle achava tempo ·cte se entregai·
á oração , e medila~ão ; ·e não tomava outro alimento senão pão o
agua. Os seus discursos e exemplos produziram por fim seu etreito ;

{1) Yida Je S. Paromo. Veja lambem Fleury, Costumes--dot Chris- -


tãos , § XXIX. Hospitalidade.
l2] · Epist. 1 , o. 4, p. 36.
!9 Vl

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CATECISMO

converteu-se o comediante e sua familia , e renuncio,u ao theatro.


Serapião , como é do suppor , recebeu_a sua liberdade , mas não a -
conservou po1· muito tempo.
Dentro cm pouco tornou a vender-se por escravo, para soccor-
rcr uma viuva affiicla ; e o seu novo senhor ficou tam satiSfeito cios
seus bons serviços , que em breve tempo'º libertou , e ainda por
cima lhe deu um vestido novo , uma tunica e um livro dos santos
Evangelhos. Partio d'alli ierapião; mas encontrando logo um po-
bre, deu-lhe o seu vestido novo; a pouco"s passos, outro pobre, que
estava transido de frio , recebeu a tunica ; e já Serapião ficou como
/
nós di_zemos em camisa. Perguntaram-lhe que era feito dos sens
,·estidos ; respondeu , apontando para o Jivro dos Evangelbos : «Eis
aqui quem m'os tirou. ».
Não esteve muito tempo o livro em seu poder, pois o vendeu para
ncudir a.uma pessoa que estava reduzida á ultima miseria e como lhe per-
guntassem o que linha feito d'elle, respondeu ,: Não o haveis de
crer !. . . Parecia-me ouvir conlinuadameute o Evangelho, que medi-
zia : Vai e vende o que possues, e dá-o aos pobres. Eu vendi, pois,
o meu livro , e dei o dinheiro aos mc~bros de Jesu-Chrislo, que
estavam em precisão. >)
Serapião, não possuindo já outra cousa mais que_a sua pessoa,
traficou ainda algumas vezes, permilla-se-nos a expressão , para
procurar ao proxímo soccorros espirituaes e lcmporaes. Um d'aque~­
Jes a quem se vendeu foi a um l\fanicheu, ao qual Leve a fortuna
de trazer com toda a sua familia ao gremio da verdadeira Igre-
ja (1 ). Se os nossos pais tanto se empenhavam em aliviar as ne-
cessidades corporaes do proximo, como poderia du\'idar-se do seu
z_elo na cura das almas l Levar-nos-hia longe. füzer tudo o que fa-.
ziam , para obter a conversão dos peccadores , -herejes , e até de
seus mai!\ crueis inimigo~ : era por elles que offereciam as snas la-

(1) VeJe Godes Cord. !1 de Marro.

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· DE PERSEVERANÇA. 227
grimas, JPJUns e suppliéas (t). Ouçamos a Tertulliano: Nós roga-
mos pela salvação dos imperadores ; e estes são os Neros, os Do-
nucianos , os Decios e os Dioclecianos. Rogamos ao Deus eterno ,
ao .Deus verdadeiro, ao Deus vivo , lhes conceda longa viJa ,
imperio pacifico , paz inallera vel , exercitos valerosos, Senado fiel ,
subtlitos submissos, respouso universal , e tudo o que os homens
e o imperador desejam· (2). »
Soldados fieis ; cidadãos pacificos e conscienciosos, os nossos pais
desempenhavam fielmente lodos os deveres da sociedad~ humana.
« Quanto ás contribuições publicas , continua Terlulliano , nós as
pagamos exactamenle e sem fraude : os impostos testificam o que ha ·
de chrislãos pelo mundo, porque os chrislãos cumprem este de\'er
por principios de consciencia e de piedade (3) . ))
A charidade de nossos pais , ilhmitada quanto aos vivos , não
se esquecia dos mortos. Para melhor feslemunhar a ressurreição
Lin-ham grande cuidado das sepulturas·, no que faziam grande des-
peza ', se a compararmos com a sua maneira de viver. Depois dé
lavarem o corpo o embalsamavam. cc N'rsto empregamos mais aro-
mas , 'dizia Tertulliano , que os que vls despcrdiçaes em incensar
os vossos deuses (1). Depois o envolviam em lençoes mui finos ou
estofos de seda , e algumas vezes cm preciosas vestimentas. Tres
dias estava exposto , tendo grande cuidado de vellar junto delles em
continuas orações (5). Por fim o levavam á sepultura, acompanha-
do de muitos círios e tochas , duplicado symbolo da charidade, do .
defunclo e da ressurreição fu lura , cantando Psalmos e hymnos, que
respiravam a doce esperança da vitla eterna (6). Oravam lam~em
por elles; ofi'ereciam o santo Sacl'ificio, e davam aos pobres o ban-

(1) Mamachi , de costumi , t. Ili p. tH-üG.


(2) Apol. e. XXX.
(3) lb. id. e. XLII.
(4) Apol. e. XLU.
(ã) Baron. ano. 34 •. 310.
(6) ConsL. Apost. Yl- rrud. lly1nn. CXC(l,

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"' '

~28 • , CATECISl\10

quele chamado Agapa , e outras esmollas. Faziam a commomoraçtlo


do d~funclo no fim do anno, a qual se con~inuava nos seguintes ; alem
da commomoração . diaria, que se fazia no Santo Sacrificio da Mis-
sa (1 ).
Para honrar os mortos, e perpetuar a memoria da sua vida, en-
tei:_ravam· ordinariamente com elles diversas cousas, como os signaes
de sua dignidade , os inslrumentos do seu rnartyrfo , r(ldomas ou
esponjas cheias do seu sangue , as actas do seu processo , o seu '
nome , medalhas , folhas de louro , ou de qualquer arvore sempre
v1ren te, cruzes , o Evangelho , e 1té mesmo a San la Eucharislia. qs
1

.aromas eram em tanta quantidade, e os lumulos tam bem fochadost


que mais de doze seculos depois ainda exhalavam mui agradavel
perfume (~). Costumavam deitar o corpo de costas , o roslo vol-
tado para o Oriente. Esta posição era ~m symbolo d'esperançaJ e
como o derradeiro brado da immortaliâade.

ORA.Ç&O

O' rne.u Deus! que sois todo amor , eu vos dou graças por
haverdes subsliluido á lei de odio , que reina,~a no paganismo , a
doce lei da charidade uni versai. Permilli , Senhor , que possamos
imitar os bellos exemplos, que nos deram nossos pais.
Eu protesto amar a D~us sobre todas as cousas , e ao proximo
como a ruim mesmo , por amor de Deus ; e , em leslesmunho deste
amor , nunca mais direi dos outros o que não quereria que se dis-
sesse de mim.

(1) Terlull. de Coron. mil. e. 3. - Orig. in Job,, liomil. Ili Cyp.


- cp. 46 - Mamachi t. Ili p. 67 e seguinlcs - Flury p. 263.
(2) _Vede a nossa historia das Catammbas e Boldetti observações so·
bre os cemilcrios ele. liG. I. e. 29. p. 309.

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DK PERSE\'ER.ll'<ÇA.

O CHRISTIANISMO ESTABELECIDO.

(CoNTINUAÇAÕ no l.º SEcuLo.)

Roma Súblerranca, considerações áccr<'a dos martyrcs.

\. ...

PrnnADE sincera , charidade universal , perfeita santidade, eis, com


pequenas excepçées, o caracter -dos primitivos chrislãos, durante o
longo espaço de· trezentos annos. « Não negaremos , di:iia Tertulha-
no , que lenha havido enlre nós alguns homens entregues a suas pai-
xões ; mas para provar a divindade da Religião Chrislã, basta que
estes sejam um -pequeno numero. E' impossivel que n'um corpo, por
.mais perfeito que seja , se não encontre mancha alguma; mas o
que demostra a perfeição d'uma sociedade, é ter muitos bons pou- e
cos máos (1). >

(1) Tcrtull. ad Nat. 1. 1 , e. S. p. 13 - Vede igualmente Mamacbi


pref. p. a 17 a Jt.

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230 CATECISMO ·

Tanlas virtudes não podiam deixar d'assombrar os pagãos, e nós


mesmos seriamos tentados a crer, que já agora não se podem imi... .
l.ar -OS exemplos de nossos maiores. Todavia é certo que nós somos
obrigados como elles á mesm·a perfeição e sanclidade, pelo simples
facto da nossa vocação ao Cllristianismo ; é certo igualmente que Dens
a ninguem recusa os nccessanos meios de chegar a esse fim ; e que
sem duvida, se empregarmos essPs meios, e tomarmos as mesmas
precauções, poderemos ler as mesmas virtudes. E com etfrilo,
_. se elles foram o que nós somos , como não poderemos ser
o que elles foram ? ·
Passavam e11es o dia, como já vimos , na oração , no trabalho
e no exercicio , das obras de misr.ricordia. Quem nos embaraça, pois,
de seguir o seu exemplo ? Conh~cendo a fraqueza e corrupção da
natureza, desconfiavam de si mesmos, e fugiam, com todo o cui-
dado, as occasiões do peccado. · Uma vez que tinham passado po
paganismo para o Chrislianismo , não queriam mais ler- contacto al-
gum impuro com a velha sociedade. Não só regeitavam os seus li-
vros, e cantos profanos ; não só evi lavam os templos, e rilos idola-
tras ; mas lambem os Lheatros , - as festas e os bailes. Ora, as
rasões , qne para isso tf nham , nada leem perdido da sua força ,
porque ainda hoje, como outr'ora, todas estas profanas assembleas
são occasião de escandalos e peccados.
Com effeito , os pnmeiros christãos não iam aos tbeatros : é
facto attestacio pelos auctores pagãos. O exemplo de nossos vene-
raveis avós deveria ser sufficiente, para regular o proceder de seus
Jegilimos filhos ; e se nos perguntarem a rasão, porque assim obra-
mos , 1·esponderemos o que elles respondiam aos pagãos. « Pergun-
tais, porque não assistimos aos vossos espectacu1os? é porque lhes
conhecemos bem o perigo (1). Ora , esle perigo não será boje o
mesmo que então era?..
,_

(1) Miout F~hi. Octav. p. 8 e 26.

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DE PERSEYE'RANÇA. 231
Ouçamos Tertulliano, meditemos _em suas palavras ; e cligamos,
com a mão na consciencia , se a historia que nos descreve dos es-
p~ctaculos do seu tempo, não é a mesmâ dos nossos? « O theatro
diz elle, é pl'Opriamenle o sanctuario do amor profano ! Não se vai
alli senão para achar o rrazer. O alraclivo do prazer ateia a pai-
. .xão, e esta , uma vez ioflamrnada, circunda o attraclivo .de novos pres-
tigias: ·Eu quero suppor, que alli se esteja com um exterior mo-
desto ; mas ·quem me diz que deba1 xo dessa appar.encia socrgada,
dessa mascara imposta pela arte -ou pela posição, o coração não es-
teja abrazando-se, e luctando no fundo da alma urna secreta agilação?
Ninguem_ que procura o praier regeila o que se lhe offerece. Ora,
é impossível sentir o prazer , sem lhe ter affrição ; pois essa mesma
affeição, é o maior rnccntivo do prazer sensivel: cessando ella desa-
parece o prazer, que logo então aborrece, e se torna enfadonho e
importuno. l\fas prrgunlo: será ludo isto decente ao christão? Qual
quer que seja a opinião qne se forme dos .especlaculos, ainda que , .

alguem assista a elles contrafeito , e até com deteslaç.ão , nem por


isso deixa . de auctorisar com a sua presença os qne alli concorrem,,
e estar àssim em contrmlição comsigo mesmo. J\luito é absolver com
1
o exemplo o qnc se condemna com o pensamento .. Torna-se cum-
plice do mal aquelle, que livremente concorre com os que o comm~t­
tem. Não basla não srr aulhor, cumpre nem parecer complice; nem
haveria aclores, senão houvesse espectadores.
a: No thealro impudico , entra o amor deshonesto no corarão
pelo~ olhos e pelos ouvidos; nelle as mulheres se sacrificam á in-
0

conli1wncia publica, de uma forma mais prrigosa do que não fariam


em lugares, que não ê permil.tiuo nomear. Qne mãi, . já não digo
chrislã , mas que tenha alguma hoilest1rlade , não desejaria antPs VE'f .
sua filha no tunrnlo, do que no Lheatro? Pois que ! Crearia eJla 'sua fi-
lha tam extremosa~menle e com tantas precauções, para depois a ex-
por a similhante oprobrio? Vigiaria ella , noute e ·dia , pela . sua
'Conservação , para a entregar ao mundo , e convertei-a em escan-
dalo da mocidade? Quem não considera, pois , essas desgraçadas,
como escravas perdhlas, em quem o pudor está exlinclo, ao mesmo
témpo que ellas se oslenlam no theatro , cam todos os alavios da
vaidade? ! Será cousa indifferenle satisfawr o luxo dos espectado·

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23~ CATECISMO

res, entreter a sua corrupção , seduzir-lhes o proprio animo, e emfim


irem aprender dellas o que nunca deveria saber-se?
' Se é certo que devemos detestar a impudicicia , ser-nos-ha per-
mi ltido ir ou vir e ver, o que nos é prohibirlo fazer e dizer ; e isto quan-
do se nos ba-de pedir conta de uma só palavra ociosa? Logo o es-
pectaculo é-nos pMhibido, pelo simples facto de nos ser prohihida
toda a especie de impndicicia.
« Aquillo que uma vez renunciamos solemnemente no baplismo,
não nos é permillido praticai-o , nem exprimil-o, nem observai-o de
perto ou de longe. Ora , qualquer que seja o nome, que a- scena
apresente , tragedia, CC1luedia, pantomina , pouco importa , não ha
peça, cuja intriga não tenha por assumpto alguma cousa contra os
costumes, ou conlra a humanidade: fraquezas ou crimes, eis o que
se vê. ,
« Dizei-me , que é que vos ensina a tragedia ? Nada mais do
que aventuras fingidas e exageradas, que a maior. parle das vezes •
não vos trazem á memoria senão actos violentos ou· vergonhosos_, que
muito convinha se esquecessem ; ou ainda servem para desenvolver
no coração desgraçados germens , que se manifestam por mui fieis
\mitações. << Que vos ensina a comedia? Que expõe ella aos vossos
olhos? O adullerio , a inf edilidade , as intrigas da seducção e des-
honra dos esposos ; chocarrices indecentes , pais escarnecidos por
seus criados e por seus filhos ; velhos imbecis e dissolutos. _
« A pantomina ostenta aos vossos olhos todas as desordens (ruma
luxuria insolente, tudo quanto uma penna christã não tem ánimo de--
descrever. Que eschola de moral, ou anles que fóco de crimes,
que cornbusll vel. de vicios ! »
Depois de ter mostrado, que o tbealrn é occasião do peccado, e
que as promessas do baplismo O probibem ao ,chrislão , examina
Tertulliano os pretextos , que se allegam para jnstifical-o. Não ha
um só dos modernos sophismas , em favor dos espectaculos , que
não seja prevenido e refulado victoriosamente , por este eloquente
escriplor.
« Dirão talvez : Na minha idade , na minha posição , com a
força aos me'1S princípios , ou com o feliz temperamento da -mínha
constituição , nada tenho a .temer dos espec~aculos. A vossa idade? ..

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DI~ PERSEVERANÇA. 233
quem quer que sejais , ella não vos guarda dos perigos do lheatro,
Joven , é para li que elles são mais temíveis ; por quanto como po-
derás defender-te das emoções da voluptuosidade , que alli te excitam
por todos os sentidos, e, que a todos vês applaudir? O dever; pois,
nada pode contra os · espectaculos , que alteram todo o teu ser , e
faliam mais poderosamente ao coração do que a consciencia. A
mesma velhíce não é antidoto sufficiente ; porque os ge1os da idade
nem sempre extinguem fogos de ha niuilo acesos , e de que o tempo
não t'ern feito mais que augmentar a act1vidade.
« Dizeis_, que se torna para vós Uíl\fl necessidade, pela posição
que occupais? Respondo-vos que a fé christã não admille' necessi-
da(le, que não seja a de obedecer á lei do Senhor . . Ha circumslan...
cias , dizeis vós , ~m que se não pode deixar de lá ir; e eu digo
que nenhumas ha , em que se possa permillir a offensa de Deus.
Julgais-vos seguros pelo temperamento. Eu appello para a experien-
cia ; e segundo as suas diarias lições pergunlo, se jámais a1guem saiu
do theatro , como para lá linha entrado. Se mlerrogar a vossa cons-
ciencia.: que terá eUa que responder-me ? Porqu·e moJivo fostes ao
theatro? Para satisfazer paixões. Que fostes lá ver? Tudo quanto
vos aprazia , e tudo quanto vos ·é prohibido_ imitar.. Em boa fé ,
será este o lugar proprio do christão? Não se acha no campo mi-
rnigo aquelle que , infiel a seu princ1pe, desertou das suas fileiras'?
Como haveis de estar um momento antes na lgreja de Deus , e logo
depois no templo do demonio ! ainda ha pouco na sociedade <los
espiritos celestes , e agora cm um charco impuro ! Como assim ! as
mãos que acabaes tle levantar para o Ceo, podem logo depois ap-
plaudir um histrião t A mesma boca , que se abria para cantar os
santos mysterios , proclama logo depois os louvores d'uma proslilui-
ta ! Quem no futuro vos impedirá de cantar hymnos á gl.oria de
Satanaz ? -
l\las , dizeis ainda , eu nj_Q escolho ;senão boas peças, h~ es-
pedaculos honestos , que alé -são eseholas de moral. Aonde estam
pois , essas boas peças ? Dizei antes, que escolheis as menos más : nisto
a escolha não é enlre o bom e o máo, mas entre o máo e o peior. Por Yen-
tura não respiram todas ellas mais ou menos a mais perfida das paixões? E
demais essas peças não mudam de natureza, quando são representadas,
30 VI

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"

CATEClSlUO

tornanclo·se mil vezes mais perigosas, pelo' apparato das seducçõcs que
:ts adornam? Ides ao lhealro , como a uma eschola· de moral ! fd('s
lá buscar modêlos das v1rtudes christãs ~ Ah ! esta não é de certo
a vossa , religião , ou aliás está desfigurada. Que dignos interpretes
da Escriptura são os vossos poetas dramaticos ! Que dignos orgãos
cio Espirito Santo , os vossos aetores !.. .
" Mas , insistis , eu vou 1á por acompanhar meus filhos)) e com
que direito lhes pcrmitlis o Já ir? Não é já baslante ter-lhes com-
rnunicado o fogo da concupiscencia, gerando-os~ Ainda os quereis
abrazar levando-os ao fóco_cle todas as paixões ? Mas cu faço isso
para os instruir. Pois que! a vossa .filha não pode ser bem edu-
cada , sem ter uma comediante por medêlo ; e o vosso filho , um
comico por perceptor?
l\'Ias , tornaes ainda , isto não é mais do que um passa tempo.
Respondo que a mão qu'e propina o ~eneno, não aromatiza o copo com
fel ou hell~boro mas com fragrancias suaves e appelilosas, a fim de disfar-
ç.ar a traição e a morte. Taes são os arlificios e manhas do demo-
nio. Muito embora se encareça a- belleza das scenas, a melodia do
canto, a excellencia dos poemas, e . alé a pureza da moral: arroios
de mel , se assim o quereis , mas nem por isso a laça em que se
derramam eslá menos envenenada; e o atlraclivo do prazer não
Yale a pena , por consequencia , do perigo que o acompanha. Temei
esses pci·fidos altraclivos; deixai aos libertinos, ás -mulheres \'icio-
sas , ás almas maleficas o prazer de ir ao Lheatro ; para esses é que
elle foi feito. Quanto a nós, os nossos divertimentos e as nossas
festas não eslam ainda preparadas. Não podemos, pois, assentar- nos
á mesma meza com elles , porque não os podemos ler por compa-
nheiros. Tudo vem a seu tempo, hoje para elles o gozo , e para
nós a tribulação. O mundo , ·diz nosso Senhor Jesu-Chrislo, estará
em alegria , e vós em trislcza. Estejamos, pois, em affiicção, em
quanto que · o pagão se regosij~ ; a fim de estarmos em alegrn ,
quando elle começar a affiigir-se ; por medo que , participando ~dos
seu~ prazeres , não participemos lambem das suas dores (1 ). ))

(1) /)e Spectacuris. Talian, Oral. contra Graecos p. 27~; S. Theo-


. philo de Antiochia ad Antolil-. p. ft6; S. Cypr. de Speclac; Lact. lnst.

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..
DE PERSEVERANÇA. 235
O mesmo horror , que nossos pai" tinham aos espectaculos , ti-
nham igualmente ·ás festas profanas (1) ; e os pagão~ lhes lançavam
islo em rosto ; mas elles respondiam : Na verdade , os cbnstãos
são selvagens, e inimigos do Estado, porque não assistem aos vos-
sos banquetes , e porque ~ consagrados á verdadeira Religião , ce-
lebram os dias festivos do imperio, por uma alegria toda interior, e
não pela devassidão !
Grande prova de zelo , na verdade, é o acender fogueiras, pre-
parar mezas nas ruas ' ostentar banquetes nas praças publicas, trans- '
formar Roma em taverna, vasar torrentes de vinho , e correr em
bandos aqui e alli , pro~·ocando-se uns aos outrns por injurias , es-
candalosos desafios e gestos impudicos ! De sorte que a alegria pu-
blica não se manifesta senão pela vergonha publica? O que ·offende
a decencia em qualquer outro dia, torna-se decente nas festas do
imperador 1 Oh ! quanto não somos pois dignos de mor.te, pelo cri- _
me de orarmos então pelo imperador , e tomarmos a noss·a parle na
alegria geral , sem deixat· de ser castos , modestos e sisudos em ·nos-
sos costumes ! (2). »

div. ; S. Bazilio, J/omil. l V , in llexameron. ; S. João Chrys. llomil.


XV. ad pop. Anlioch. e lfl, in Saul et David.; e Ambr. de fuga Saecu-
li; S. Aug. Co,nfess. lib. Ill ; Sah'iano, lib. VI de Providml. &e. &e.
os· Concilias d' Elvira , cm 305, Canon 6'.2 e 65; o primeiro de Ar-
les em 314, Canon õ ; o terceiro de Carthago cm 395, Canon 2 ; o
quarto idem em 598, can. 88; o uc Africa em 42.i, can. 28 ou 61, can.
30 ou 63, cao. 129 ; segundo i.Je Arles , em H2, can. ~O ; o sexto Con-
c1lio geral, em 680 can. IX ; o Synodo de S. Carlos Borromco em 1568 ;
o de Bourges, em lõ8~, can : 4. A '

Alé os com1cos , os auctorcs do comedias o os frequentadores de


theatros faliam do mesmo modo , e estam d'accordo com os Padres da
· Igreja e Concilios em condemoar os c:ipec!aculos. Veja as oprniões dcllcs
cm Després de Boissy 1 C5,'rlas sobre os espe~laculos.
Cl; Veja l\fomachi t. II, p. 188.
(2) 'i'ertull. A710l. e. XXXV.
li<

.
. '
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CArnCISl\10

Pode fazer-se mais exacta pintura do ·que se ·passa entre nós ,


em certas epochas- do anno , e em certos dias de publico regosijo ?
Vegonhosa comparaç,ão, que bem prove:,. que uma parte da sociedade
se tem tornado similhante aos pagãos. Quanto a vós, filhos de chris-
tãos , o proceder que vos couvem está prescr ipto nos exemplos de
vossos pais. Nós temos as mesmas rasões, pa rn temermos todas es-
tás festas culpaveis: a fuga das occasiões é o mais seguro escudo
da virtude. ·
Até aqui temos esboçado o quadro das duas socieda.des, que
existem ha desoilo seculos, _depois da prégação dos pescadores da ga-
Jilea. ,Temos visto o estado e os costumes de Roma pagã ; e os
costumes bem differentes da Roma _Sub terranea , habitação sagrada
.dos pnmilivos ~hristãos. Cumpre agora que presenciemos o tcrrivel
combate, que vai ferir-se entre a velha e a nóva sociedade.
Ora , como é semprn o erro que ataca , porque o erro vem
sempre depois da verdade ; foi a velha sociedade que começou o
combate : ella principiou por calumnias; porque convem primeiro lor-
nar odiosos aquelles , a quem se pretende exterminar. A violencia •
procur~ semp're revestir-se dos exl~riores da justiça. Nisto os judeos
e os pagãos fizeram causa commu~. Os obcecados de.scendentes de
Abraham e de Jacob, em lugar de fazer penitencia do seu deicidio,
encheram a medida dõs seus crim~s, ' perseguindo raivosos os disci-
pulos do Messia~. Presentindo a rnina do seu culto figurativo , fo-
ram os primeiros a dar rebate ; apenas conheceram o dêsignio que
os Apostolos tinham formado, de levar o Evangelho por toda a terra1

escreveram Cartas, e mandaram a toda a pressa emissanos, para in-


dispÔr os esptrilos. Appareceu uma nova seita , diziam e.lles , que
tem o nome d~ chrislãos. Elia sustenta o alheismo , e destroe to-
das as leis ; a sua doQlrina é ímpia, dett~slavel e sacrilega (1).
Apresentar o ChrisL!anismo corno destruidor de toda a virtude

{U s. Just. Diaeli cum Triph. p.-~35.

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DE PERSEVERANÇA. 237
e hostil aos governos, era attrair sobre seus seclarios o- rancor dos po-
vos .e dos reis. Esl_as atrozes calumnias_produziram o desejado ef- ·
feito : os pagãos adoptaram-as , e as falsas impressões que então
produziram, ainda se não tinham desvanecido duzentos annos de-
pois (1 ). Pretende se mesmo dizer, que os JUdeos ainda hoje gua1 1
-

dam em Vormcs ,sobre o Rhino , uma destas cartas , que foram en-
viadas por toda a parte, contra Jesu-Christo e os seus discipulos (2).
A. fama, que sempre vai exagerando tudo , accrescenlou outras
imputações , e não tardou que os pagãos , . tirando a consequencia
de tan~tas calumnias , tiveram ·os chrislãos pelos mais crimino-sos dos
homens, e ·os fizeram responsave is de quantas calamidades, peque-
nas ou grandes ' affiigiam o imperio. ·o seu nome, só era já um
' crime ; bastava lei-o para ser cu1pado de todos os aue·ntados (3).
Dest'arle Tacito , referindo que Nero linha feito. quennar vivos
grande numero de christãos , a· quem falsamente accusava de terem
posto fog-o a Roma , diz sinceramente que elles foram menos con-
victos de algum crime, do que do odio do genero humano (4).
Foi para refutar todas estas odiosas inculpações ·. que Deus sus-
citou lam eloquentes apologistas. Estes viam-se obrigados a pedir
por grande mercê que se não condemnassem os cbristãos sem os
ouvir, e que o seu nome só não fosse tido por crime de morte (õ).
O p~oceder . dos christãos , ainda mais eloquentemente respondia a to-
das as accu-sações ; mas a ira é cega , e a dos pagãos e dos judeos
não contente com fechar OS olhos , para não YCr as virtudes de nos-
sos pais , tapou os ouvidos para não ouvir as ·suas rasões ; fechou o
coração em um triplice mtfro de bronze , para o tornai· inaccessi-
vel a Lodo o sentimento de humanidade ; e armou-se de espa~as e

(1) Origin. in Cels. 1. VI. ; Terlul!.. ad Nat. 1. L e. U.


Tillemont. t. 1 , p. 148.
"(:!)
t3} Terlull. Apol. e. XI.
(4) Annal. 1. XV. e. 44.
(5) Tcrtull. A pol. e. 1 p. 11.

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238 . C!TECISMO

cutelos, para immoíar as suas viclimas. Não _tardou que o sangue


_/ corresse. a jorros por toda a superlicie da lerra , e o Ceo teve de
coroar milhões de martyres. _
Digamos aqui alguma cousa ácerca dos heroes da fé ; fallemos
elo seu nome' numero e acções; e bem assim do modo como mor:-
riam , e do que succedia depois da sua morte (1).
O nome de marlyr-signHica testemunha ; designa aquella pessoa ,
que soffreu tormentos ou a morte para dar testemunho da verdade da
Religião ; da-se por excelleucia aos primeiros christãos , que sacri- ·
ficaram a vida para alteslar a verdade dos factos sobre que se fun-
da o Chrislianismo. O Salvador havia annunciado que a Religião
teria martyres. Encarregando os Apostolos- de pregar o Evangelho ,
disse-lhes : Vós me sereis testemunhas em Jerusalem, em toda a
judea , e até ás extremi'dades da terra (2). Ao mesmo tempo ex-
plicava-lhes que o seu testemunho seria de sa~gue : Atormenlar-vos-
ltâo ; tirar-vos-ltâo d vida . e sereis odiozos a todas as nações por
causa do meu nome (3). Mas logo fortalecia a sua timidez, accres-
cenJando : Não temais , porem, d'aquelles, que só podem matar o
· corpo ; e não a alma; aquelle que me confessar diante dos lwmens
eu o confessarei na presença de meu Paz·, que está no Ceo; rnas se
algum me negar perante os liomens, et{ o nnarei dipnte de meu
Pai (4).
D'estas sagradas palavras conclue com rasão Terlulliano , que a
fé chrislã é um compromisso do marlyrio (5). Pensemos bem nisto.
O numero dos martyres é incalculavel, (G) alguns factos nos
darão,. uma idea delle.

{1) Veja 1
sobre eslas parlicularidadcs e suas provas, a nossa IJis-
Loria das Catac~mbas , e o Padre 1!,lores , De foc(yto a yone martyrii,
io foi.
(2) Act. liv. 8.
(3) Malh. XXXIV. 9.
(4) Mallh. X. 28 e 32 ..
(ü) Dehilricem marlyrii lidem. De spec't.
(6) Os calculos mais cxactos clevam~nos a oozl! milhões durante os

• /

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DE PERSEVERAN~A. !39
1. Houve durante o espaço de trezentos an nos , dez persegui-
0

ções geraes em lolla a ~slenção do imperio romano , e o imperio


romano comprehendia nesta epocha quasi todo o mundo enfão co-
nhe~ido. No quarto seculo, · houve-as particularmente na Persia ,
Africa e M tempo dos Godos e dos Vandalos ; só uma das quaes
{iurou quarenta annos, e fez duzentos mil marlyres (1 ).
Ora , depois da morte dos Aposlolos havia chrisl~fos em todas
as partes da terra. No tempo de Tertulliano eram já em tam gran-
de numero, que enchiam tudo , excepto os templos dos deuzes ; de
·sorte que se tivessem quer.ido vingar-se cios romanos, não precisa-
vam mais que retirar-se , e o imperio teria ficado desérto (2).
2. º Era tal . a carnice1:ia de cbrislãos , que só na cidade de
· tião houve dezenove mil marlyres. Não se perdoava , nem ao sexo
nem á idade, nem á classe.
3.º O numero das viclim-as foi taro grande, que Diocleciano e
:Ma.~imino gabaram-se no principio do 4. º seculo , de ~erem final-
mente exterminado a raça dos chrislãos, e _aniquilado a sua Reli-
gião (3) !
Já antes das grandes perseguições, · e no principio do reinado
de Marco Aurelio , 1renéo • Bispo de. Lião, escrevia dizendo : « Por
toda a parte, aonde está a Igreja , esta santa Mãi envia ao Ceo,
adiante della , por meio do marlyrio, uma infinidade de seus filhos, que
o(ferece a seu Pai,. como penhores do extremoso amor que lhe tem.
As outras a~sembleas , porem, não leem marlyres, só a Igreja que
eslima soffrer opprobrios , para testemunhar a Deus qual é o exces_so
da stía charidade, e qual a grandeza da fé, que lhe faz confessar
lam altamente a Jesu-Christo. l\luilas vezes se tem visto enfraque-

tres primeiros seculos. Vede a nossa llisloria das Catacumbas. p. riM


e seguintes .
. (1) Sor.om. Hisl. Ercl.
(2) Apol. e. XXX VII.
{3) Nominc Christianorum delcto, supersliLione u~iquc delcta •

.. ,
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240 CATECISMO

cida pela perda do seu sangue, e dos s-eus membros ; mas logo re-
~ - penlinameme restabelecida ; recobrar novas forças , e tornar-se fe-
cunda l\lãi de maior numero de filhos (1)~ ·
Soffrendo a morte, provavam os marlyres a divrndade da Re-
ligião ; por isso que verificavam o cumprimento visivel das- Profe-
cias do Salvador; e não menos a provavam pela- sua sobrenatura-l _
conslançia. ·
Sotrrer a morte sem algum interesse de· vaidade ,. ambição ,
odio, ou gloria humana ; morrer em meio dos in:mltos de todo o
povo , com soceg!> e serenidade ; morrer para attestar factos , que
não se viram com os proprios olhos, nem palparam com as proprias
mãog ; morrer, quando se podia evitar a ~orle por uma só palavra,
e só para sustentar uma Religião Santa , contraria a todas as pai-
xões , na qual não se foi criado , mas que se abraçou por con-
vicção •.que se hade sellar com o propmr sangue·.; e quando isto se
faz não um dia , mas durante seculos , não por um só homem, mas
por milhões de pessoas de toda a idade , s·exo e condicção ; pessoas
de todas as classes e de lodos os paizes ; então se isto não é cousa ,so-
brenatural , ê de mister abjurar a rasão, e renunciar para sempre
a poder ligar duas ideas.
De tal modo os !Yagãas estavam convencido°s que a paciencia
dos rnartyres lhes não podia vir senão de Deus, que se converliam
em grande numero ao ver a coragem ·q-ue elles tinham nos tormen-
tos. « A constancia que vqs espanta , diz Tcrlulliano, é uma lição;
vendo-a , quem não será tentado ·a examinar-lhe a causa ? Mas todo
·• aquelle que examina a nossa Religiã<>, converle-se ; e desde logo
deseja soffrer , a fim de alcançar pela eITusão do seu sangue , a
graça de Deus e o perdão <los seus peccados (2). ))
· Em- duas palavras ; linha o Salvador promettido aos Aposlolôs a
graça, qne os faria superiores a todos os tormentos _; cumprio-se a

(0 Lib. IV, e. 6~. Vede sobre o nonicro dos marlyrcs. Dom Rui-
narlc Aclas dos 9nartyres prer.
(2) Apol. e. L.

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'1

DI..: PERSKVEilANÇA. 2H
palavra (1). Eis a unica rasão da misteriosa constancia dos mar-
tyres ; não é sómente loucura , é ridiculo buscãr-lhe alguti1a outra
rasão sufficiente.
l\las que maior leslemunho da Religião,, que o sangue de tantos
milhões de innoccntes e heroicas testemunhas ! Embora à impieda-
de consiga demolir os templos dos marlyres, arrancai-os dos tumulos,
dispersar-lhes as sagradas cinzas, apagar os seus epitaphios ; embora, ,,.
que o leslimunbo de seu sangue permanecerá para sempre !
As narrações dos seus Julgamentos, supplicios e morte chamam-se
Actas dos -martyres. Não ha livro mais Yencravel, abaixo da Escrip·
lura Sancla; porque as respostas dos martyres aos inlerrogatorios
dos juizes , eram-lhes dictadas pelo Espírito Sancto. Nosso Senhor
tinha promcllido, em termos explicitos, que responderia por elles e
fallaria pela sua boca --- Não estejaes cuidando , disse clle aos mar-
tyres de todos os seculos, na pessoa dos seus Aposlolos , sobre o que
liaveis de responder ; o Espírito de vosso Pai fallará por vossa bo-
ca (2). Nada poderá melhor que as Actas dos martyres. reanimar a
nossa piedade : o filho nobre e generoso sente o seu coraç.ão infla-
mar-se, com a.narração das brilhantes acções de seu pai ; como pois
poderiamos ficar frios, cobardes e insensíveis diante da felicidade
celestial , quando vemos que para alcançai-a atravessaram os mar-
lyres um mar de sangue , e caminharam po1· sobre bra.zas ardentes
e gumes de espadas? Os primeiros christãos estavam tam persua-
didos. desta verdade, que muitas vezes arriscavam a vida, só para
hí}ver á mão as Aclas dos santos martyres.
O principal· e mais ordinario meio de que ee serviam para ha.._
Yer estas Actas, era comprar á força de dinbeiro os cadorarios
dos archivos , aonde se guardavam os registros e delles tirar copias.
Em segundo lugar; logo que os juizes mandavam dar tormentos a
algum chrislão , muitos fieis , que não eram conhecidos , mistura- /

(1) Luc. XXI, 1õ e 19; Joan. XVI, 33; Ph11ipp. 1. 18.


(!) Luc. XXI.
31 · VI

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2H - C.\ TF.CISMO I

''am-se enlre os pagãos , e recolhiam cuida<losanwnte as perguntas


e respostas, com todas as circumslancias do procc~sso. Reunidas e
encorporadas estas difTerenles peças , eram depois levadas ao Bis-
po; (1) e, dada a sua approvação, se distribuiam aos fieis, e era a sua
ordinaria leitura. Estas actas liam-se lambem na Igreja nos dias de
assemblea (2).
Se nossos pais tinham em lanla veneração a historia dos mar-
tyres , que não seria com os marlires mesmos ? Tanto que eram
prezos consideravam-se como seres sagrados, e gozavam de muitas
prerogativas. A seu rogo se dava a communhão, aos que tinham
fraqueado durante· as perseguições ; os Diaconos eram nomeados para
os visitar, animar e cuidar do seu sustento. Aos Diaconos se jun-
tavam as Diaconissas; qne eram viuvas , ou viclenles, e de provado
zelo e virtude. Parle das funcções, que o~ Diaconos exerciam com
os homens , exerciam as Diaconissas com as mulheres. Tinham a seu
cargo visitar todas as pessoas do seu sexo , prezas pelà fé , ou
aquellas cuja pobreza on moleslia tornava dignas dos cuidados da
Igreja.
Em tempos ordinarios , ensina.vain as Catechnmenas, ou antes
··lhes repeliam as inslrucções <lo Catecismo, apresentavam-nas ao bap-
tismo , ajudando-as a despir-se e vestir-se, para que ninguem a visse
em estado. pouco decente.
Tinham lambem a seu cargo as rccem-baplisadas , durante cer-
to tempo , a fim de confirmai-as na ,·ida chrislã (H). Na Igreja
guardavam as porlas do lado das mulheres, e olhavam que cada uma
se colocasse no seu lugar, e guardasse silenc10 e modestia. As Dia-

(t) Vt'ja antcrior111cnle algumas observações na qoarL!i parte do Ca-


thecismo , resta de Todos os S:rntos , e mais extensamente oa Jlislona
das Catacumbas. p. 505 e s~guinlcs. ,
(2) Dom RuinarL Actas dos marlyres pref.·
(3) CoosliL. Aposl. 1. VI. e. 77, 1. VIII -e. 19 Terlull. íle l"eland.
virg. 9.

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llE PBRSEV8RANÇ1.
conissas davam conta de todas as suas funcções ao Bispo, e por sua
ordem aos Padres e Di(\conos ; e cuidavam principahnenle de os ad·
verlir das precisões das outras mulheres ; o que elles por si mesmos
não podiam fazer com tanta decencia (1 ). ,.,
Se algumas 11ezes obtinham os oulros fieis permissão de enl1·at·
nas prisões , era a qual mais beijaria as cadeias dos confessores ,
a qual mais se esforçaria em lhes trazer algum allivio, curar suas
feridas ' preslar-lhes serv-iços ' e dar-:-lhes lQdos os signaes de vene ..
rnção e respeito.
Desl'arle a Igreja nada omiltia, para que os marlyres fossem soc-
corridos e visitados. Na ''espera da sua morte , t.lepois de dada a
sentença, celebrava-se a cêa livre; isto é, permiltia-se a lodos os
condemnados o comerem juntos (2). Para isto os reuniam em uma
sala commum , em redor d'uma meza , que os christãos tinham o
cuidado de ser\' ir melhor que a sua pobreza permiltia. Toda a gente
potlia assislir ao banquete dos ruartyres ; os christãos não falla\'am
a elle , ou para se encommendar a suas ora~. ões , ou para recebei·
os seus ullimos conselhos.
Depois <la execução da sentenç.a, apr~ssavam-se nossos pai~, sem-
pre que era possivel , em levar os corpos e reliquias dos marlyres,
envolvendo-os em ouro e seda, com os mais esquisitos pe1·fume~.
Era junto de seus tumulos que vinham orar, e sobre os mesmos
se offerecia o augusto sacrificio. ,
Os Concilios d' Africa prohibiram se não levantasse altar, sem
·reliquias de marlyre·s : lei venera\•el • que se observa ainda em toda
a lgreja. Nossos pais, convencidos com rasão, de que os martyre~,
que acabavam de dar o sangue por Jesu-Christo, eram mui pode-
rosos no Ceo , invocavam seus nomes; insliluiam festas em sua
lwnra; e escolhiam para as celebrar o dia do seu marlyrio: este _
dia se 'chamava Natividade , ou nascimento : admira vel idea ! que
inculca ser_ n'aquelle dia da sua niol'te, que verdadeiramente nasciam
para a vid?. A Igreja nunca deixou de conservar esta lingoagem.

l1 J Costumes dos chrislãos. p. 25~.


(2] VeJa as Actas de Santa Perpetua, e Godcscard. Gde Abril &.e . &e .

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2U CA 1'EC1S&IO

Ensina-nos S. Agostinho qual era o culto, que se tribulava aos


marlyres. Este sànto doutor, escrevendo contra Fausto, o manicheo,
que accusaYa os chrislãos de ter substituído os marlyres aos idolos,
responde-lhes nestes Lermos : « Os christãos honram os santos rnar-
lyres , ou pelo desejo de participar dos seus merecimentos, ou pela
esperanç.a de ser felizes por su'as Õrações , ou para excitar-se á im-
milação das suas Yirtudes. Dest'arte os altares , que a piedade le-
vanta sobre os seus tumulos, não s~o erigidos a algum marlyr ;
mas sim ao Deus dos martyrcs. Que ministro do Senhor, subindo ao
altar, disse jámais : é a vós Pedro , é a vós Paulo, é a vós Cypria-
, no , que nós offerecemos? O que se offerece, é a Deus que se of-
ferece ; áquelle Deus , que coroou os marlyres. E' certo que nós
offerecemos muitas vezes no mesmo lugar, onde foram coroados ; mas
-- é uara que a vista desses· lugares sagrados excite em nossos cora-
. çõe:; uma cbaridade mais ardente, um amor mais Yivo, não só para
com elles a quem devemos imitar, mas para com aquelle, por quem
só o püdernos fazer. Assim, pois· , reverenciamos os rnarlyres , mas
quanto ao culto de latria , cremos e ensinamos que só a Oeus per-
tence. Ora , semlo o sacrificio o acto essencial deste culto , não o
offerecemos nem aos nJartyrcs, nem aos santos , nem aos anjos.
Se algum dos nossos víesse a cair em simjlhante erro, nós lhe oppo·
riamos immediatamente a sã doutrina , para que logo o advertisse
e se habililasse para o evitar (1). ))

O' meu Deus , que sois todo amor , eu vos dou graças pela san-
tidade e fortaleza que destes a nossos pais : .permitll , Senhor, que
imitenios a vigilancia, que tinham comsigo mesmos ; e a constancia
nos trabalhos da vida.
Eu protesto amar a Deus sobre todas as cousas ·, e ;ro proximo
como a mim Ólesmo, por amor de Deus ; e , em testemunho deste
amor ; fugiréi com horror das assembleas mundanas.

ll] Coolr. Fausl. 1. XX !t.

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X.ª LIÇÃO.

O CHIUSTIANISMO EST AB~LECIDO

(CoNTlNU A.ÇAÕ no 1. SEcuLO'.)


0

Principio da grande lucta entre o Paganismo e o ChrisLianismo. - Dez


grandes perseguições. A primeira no reinado de NerQ; retrato deste
principe, particularidades desta perseguição. - Juiso <le Deus sobre .
Nero. - Juiso ele Deus sobre Jerusalcm ; ruína da cidade e· do tcmplõ.
Segunda perseguição no reinado de Domiciano, retrato deste priocipe;
S. João lançado em uma caldeira de azeite fervendo. - Juiso de Deus
sobre Domiciano.

ArÉ aqui temos seguido nossa Mãi a: Igreja, guiados pelo bom cheiro
de suas virtudes: agora seguil-a-hemos durante tres sectilos, pelo ras-
tro do seu sangue e a luz das fogueiras acesas contra ella. Terna
esposa do Homem Deus , enche-te de fortaleza, que é chegada a
hora do combale. Dez vezes o mundo inteiro vai levantar-se coutra
ti, para apagar a mesma memoria .do teu nome (1).

[1] Nós contamos, com Dom Ruinart, dez pers~guições gcraes, isto
é ordenadas, ou aulhorisadas pelos imperadores romanos, senhores do

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CAT~CISMO

Com Pffeilo ~ conlam-se dez grandes perseguições , islo é, dez


perseguições orde.nauas pelos imperadores romanos, cujo formidaYel po-
der domiuava na maior parle c..lo mundo então conhecido. llourn
oulras perseguições , que se chamam parciaes , porque se limitaram
a alguns reinos : laes foram, entre oulras, as dos imperadores Li-
cinio e Valente, a tlc Sapôr rei da Persia, · que durou qualro annos;
as <los Godos e do:; Vandalos em Africa e outras partes.
Saiamos agora das Calacurnbas , aonde Lemos admirado as pre-
paradas viclimas; cn Lremos na Roma pagã , subamos ao pa1acio im-
perial , para conlcmplar de perto o p1·imei ro algoz dos chrislãos.
Não pode deixar cllc de ser o mais 'malvado <los homens, e para o
provar bastará nomeai-o : é Nero. Vejamos o -seu retralo.
Nasceu Nero no anno 35 de Jesu-Chrislo : o imperador Claudio,
o adoplou por filho, e o leve por successor na coroa no anno 5 L Desde
logo se desen volrcrarn nelle lodos aquelles vi cios , que leem causa do
horror a toda a humanidade. Começ,ou o ~en reinado por en-
venar Britanico, filho de Claudio. Um crime chama por outro cri-
me. Nero, entregue a loda a corrupção do seu coração , breve-
mente despresou aquellas mesmas con veniencias , que até os peiorcs
, malvados respeitam nos seus excessos. Passava- elle as noules pelas
ruas, tabernas, e lupanares com uma quadrilha de mancebos de-
vassos e desenfreados, espancando, roubando e malando a quem lhes
parecia. Para cumulo d)horror, resolveu Nero malar a sua propria mãi
Agrippina ; e para isto buscou primeiro afogal-a uma noute em um
passeio por mar , mas como falhou a tentativa , manuou-a apunha-
lar , e o Senado approvou a atrocidade. Nero, vendo em seus sub-
ditos outros tantos escravos, não consultou mais que as extrava-
gancias do seu insensato espirilo ; até se fez comico. V10-se- então

mundo. Não so S('gue por isso que cada uma dellas se estendesse a lo·
das as provincias do imperio; algumas foram circumscriptas nos limites
de certos paitcs. O paJre Mamachi coota doze , porque comprchcnde no
numero das groodcs perseguições a dos judeos oo governo de Barcochc -
bas, e a de Licínio.

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DE PERSEVERANÇA. 247 -
um imperador representar publicamente no palco sc.t'nico , como um
aclor ordinano. Quando tinha de cantar em publico. dispersavam-se
guardas entre os espectadores , para punir aquelles que não se mos-
trassem bastante sensiveis aos encantos da sua voz.
A crueldaclc e a lasciYia , eram nelle inseparaveis, como sem-
pre são em todos os malvados. Oetavia, sua mulher , e Burrho e
' Seneca , seus mestres , foram satrificados ao seu furor ; e a estas
• mortes se segnio tam grande numero .d' outras, que o fizeram ler
mais por sanguinosa fera. que por homem. Ouvindo cilar um dia
esla fraze provervrnl : Quanuo eu moner, embora se abraze o mun-
do. Replicou : ' Pois que se abraze , mas que eu o veja : e foi en-
tão que, no fim d'um banquete, tam extravagante como abominavel,
mandou pôr fogo aos quatro angulos ele Roma , para contemplar a
imagem do incendio de Troia. Durou o incendio oilo- dias, e dos
quatorze bairros da cidade , dez ficaram reduzidos a cinzas.' Este
Jamenlavel espectaculo foi para Nero uma fesla : para o gozú á sua
. ''ontade subio-se a uma elevada torre , aonde se poz a declamar,
cm trages de comico , ~ m poema que elle Linha composto sobre o
incendio de Troia (1 ). Todo o povo o accusou de ser o author do
incendio (2) ; / mas Nero lançou a culpa delle para os chrislãos.
Ninguem o accreditou , diz Tacilo (3) ; mas comtudo os pagãos ,
cm consequencia da sua a \'ersão ao Christianismo , não deixaram de
~slimar isto, para potlerem perseguir os que o professavam. Nero,
pela sua parte , não teve nisto só por fim o reparar a sua reputa-
ção, qmz lambem satisfazer o oclio que linha á virtude, e saciar a
~ma sêde de sangue humano.
• Logo por toda a parte prenderam todos os chrislãos , qu·e fo-

l1] Isto aconteceu no anno Ci de J. e.


[2] A verdade · desta accus;ição é ronlirmada pelo tcstimunho de
muilos historiadores d1gn1ss1mos de fé. Pode-se consultar a Suelooio e a
Dião Cass10 : e entre os modernos 1 Tillemout. Crevicr &e.
(1] Aunai. V.

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2i8 CATl~CISMO

ram tratados como victimas da ira publica. Aos tormentos jun-


tou-se o sarcasmo, e fez-se da sua morle um deverlimenlo para o
povo. A un:; vestiram com pelles d'anirnaes , a fim que os cães il-
luclidos com a similhança, os dilacerassem cruelmente ; a outros cn-
vol veram em tu nicas, embebidas em pêz e cera (1) , e alando-os a
cruzes, ou postos collocados nas quinas das ruas, Jhes lançaram
fogo , para servirem de fachos , que allurniassem de noule. Qulz
Nero que os seus jardi~s fossem o lhealro deste horrendo espectaculo, -
ao qual elle mesmo uão se envergonhou de assistir , em trages de
cocheiro , conduzindo os carros ao clarão d'aquelles funestos ar-
chotes.
E' incalculavel o numero de chr1stãos que assim morreram ;
Deus ~ só , que os coroou , os pode contar. Quanto a nós,- só sabe-
mos que estas gloriosas viclimas foram as primicias da innumerav'eJ mul-
tidão de marlyres, que a Igreja de Roma enviou ao Ceo; ellas pre-
cederam na gloria ao mesmo· S. Pedro e S. Paulo, que lhes tinham
ensinado o caminho da Salvação.
Aceso em Roma o fogo da perseguição, rapidamente lavrou
pelas provincias. Por toda a parte se publica-rarn edictos , prohi-
bindo o Chrislianismo com as mais rigorosas penas , sem excepluar
a morte~ A carniceria tornou-se legal : ein quanto Nero atormen-
tava os chrislãos em lloma , nas provincias os perseguiam com igual
furor, e os condemnavam em forma juridica (2). Entre as nume·
rosas victimas desta perseguição , cujo nome é conhecido, conta-se,
além de S. Pedro e S. Paulo , o glorioso martyr S. Tropes. Era
um dos principaes officiaes de Nero , e um dos fervorosos christãos,
de quem S. Paulo diz : Todos os Sarztos vos saudam , e principa"!l
mente os que são da casa de Cezar. Depois de mal lralado em
oc.Jio da sua fé , por ordem de Satellico, que o 1nandou esbofetear e
nç.oular com varas , foi o santo lançado ás feras. Corno porem estas

j1] Tunica incendialis.


[2j Lulp. Sc\•ero. Ilist. l. li. Orosio. 1. III. e. ã.

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DE PERSEYERANÇA.
o não Óffenderam , foi condemnado a ser degolado , e assim _con-
summou o seu martyrio (1).
Laclancio diz , formaes palavras , que . o motivo que induzio
Nero a exacerbar-se contra os christãos • foi o interesse dos seus
deuses, qu" vio cada dia mais abandonados e despresados. O in-
. cendio de Roma não foi ma1s que o pretexto.
« Nero , ·diz elle , sabendo que S. Pedro tinha tirado á idola-
tria grande numero de romanos , e que não só e_m Roma, como
lambem nas províncias eram innumeraveis os · que abandonavam o
culto tlos deuses, enlendeu que não devia perder tempo para des-
truir (o que suppoz como pagão) o divino imperio do Christianismo,
e arruinar completamente a piedacJe que o sustentava. Foi elle pois
o primeiro que perseguio os discipulos do Salvador; mas não o fez
impunemente, porque o Senhor , vendo a. pérseguição do seu povo,
carregou a mão sobre o tiranno .(2).
Nero deveria saber , como todos os perseguidores que tem vin-
do depois delle , que ninguem é forte contra Deus. Eis pürque o
estrondo da sua rui na, e as horriveis circumstancias da sua morte,
servirão de monumento á posteridade, e dirão a lodos os seculos:
Assim será tractado aquelle, que ouzar revoltar-se contra o Senhor,
e contra o seu Christo. Se recusardes firmar o imperio do Cor-
deiro dominador , obedecendo á sua lei, firmal-o-heis, ensinando aos
outros a temei-o. .
Continuava o monstro coroado a banhar-se no sangue dos chris-
tãos , e a devastar as provincias , para regalar os seus escravos , e
satisfazer ao seu luxo insensato ; quando um grito de indignação
partia do fundo da Hespanha. Vindex escreveu a Galha , governa-
dor da Gallia Tarragoncza , para que tivesse piedade do genero
humano, de ·quem seu deteslavel amo era flagello. Galha proclama-
. se imperador, e brevemente lodo o imperio o recon~ece. O Sen~do,

(1) Veja o inartvrologio romano, 17 de Maio.


(2) De Mort. pe~secut. /l. 11.
32 VI

- L
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CATRCISMO

sim o Senado Romano , esse escabe11o servil de lotlos os tyrannos ,


declara Nero inimigo do Estado, e condemna-o a ser precipitado da
rocha Tarpêa, depois <le ser arrastado nú pelas ruas , e morto a
.
acoules. .
O nrnnstro, sabendo do castigo que o esperan , dirige-se a casa
d'um seu liberto , onde se escondeu aquella noute em um paul , no
meio d'um canavcal. Quando o introduziram na casa , offereceram-
lhe um bocado de pão de rala,· que elle recusou , e apenas bebeu
um copo d'agua quente. Advertido de que era procurado por toda a
parte , mandou abrir a _sua cova exclamando repetiuas vezes , ba-
nhado cm lagrimas : E' possivel morrer tam grande musico !.. Ou-
vindo finaln1ente os passos dos cavallos • apontou um -punhal á gar-
ganta , e pedia que o malassem. Ninguem quiz prestar-lhe tam~ pe- -·
. rigoso e culpavel serviço. Pois que !.. exclamou elle com deses-
peraç.ão, é possível que eu não tenha nem amigos, que me defen-
dam a vida , nem inimigos que me acabem ! O se.o secrélario, em-
firo , lhe cravou o mortifero punhal , e a terra ficou livre d'aquello
monstro , que não teve igual. As suas eslatuas foram arraslradas na
lama , e o seu palacio abrazado. Nero morreu no anno 68 ele Jesu-
Christo , lendo vivido trinta e sete annos, e reinado quatorze.
Todo aquelle, que ti_ver lido a vida de Nero, dirá com Terlnl-
liano : Nós reputamos um titulo de gloria para a nossa Religião, o
ter sido Nero o sen primeiro perseguidor; porque basta conh(\cel-o
para c-omprehendcr , que um tal principe não podia condernnar se-
não o que fosse eminentemente bom (1). )) Brevemenle veremos que
os outros imperadores poµco melhores foram do que elle.
Se Nero tinha de ser um munumenlo da justiça de Deus, lam-
bem os ,1udeos haviam de ensinar ao munlfo , quanto lhes vai em
se revoltarem contra. Jesu-Cbrislo. Não contentes com derr:imarcm
o sangue do Messias, elles condenaram á morte os seus d1ssipulos, e

,.

(t1 Apol. e. IV.

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. DE PERSEVERANÇA.
foram por suas calumnia§ e violencias· os mais ardentes persegui-
dores da Igreja. Encheu-se alfim a medida dos seus crimes ; che-
gou . o tempo em que o ~angue do Homem-Deus," o dos Prophetas e dos
Apostolos ia cair sobre a cabeÇa d'aquelle criminoso- povo. A ruina
tolal de Jerusalem, e a _dispersão dos juJeos por Ioda a ter:ra, iam
verificar as predicções do Salvador , e dar nova prova di;i sua
divindade.
Escutemos, com silencio e terror , - a historia da ruina de Jeru-
salem. O Senhor , comtudo -, nâo quiz abandonar aguelle povo ob-
durado , sem primeiro o advertir do castigo que o ameaçava.
Quarenta annos antes da 1;uina da cidade dei.cida , que corresponde
ao tempo da morte de Nosso Senhor , não cessavam de ver-se no
templo cousas exlraordinarias : uma vez appareceu ás nove horas
da noute•, -por espaço de meia hora , em torno do altar e do tem-
plo, um. clarão tam forte , que parecia ser de dia ; . d'oulra vez a
porta do Templo, que oltiava para o Oriente, e era de bronze lãm
peza<la , que viole homens mal a podiam mover , abrio-se por si
mesma , bem que estivesse fechada com grossas fechaduras, trancas
de frrro e ferrolhos, encravados profundamente no liminar, q.ue ·
era uma pedra inteiriça. Outra occasião retumbou no Sancluario um
medonho ruido, e immediat.aruente se ouvio uma voz lastimosa, que
uizia repelidas vezes : Saiamos' d'aq1â ! Saiamos d' aqui. Os Santos
Anjos, prolectores do templo, declararam altamente que o abandona-
vam , porque Deus, que havia feito · alli ha tantos seculos sua ha-
bitação , agora a trnha reprovada.
Todus os dias se viam novos prodígios, de sorte que um fa:- #

moso rabbino d'nma vez exclamou , dizendo : O' templo ! ó tem-


plo ! que é que le conturba? como succede, que tu pões medo ali
mesmo?! (1)
Horrendos signnes se moslr.avam igualmente na cidade: um
Cometa , da forma d'um gladio, appareceu sobre Jerusalem <lui·anle

(1) Talmud de Babilonia, em Galat. 1. IV, e. 8 p. 209.


~

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/

252 CUECISMO

um annó rnleirn. Por muito tempo se viram no_ ar , em toda a


Palestina, carroças cheias de gente armada, atravessando as nu-
vens e espalhando-se em derredor das cidades , como para citial-as.
Quatro anuos antes da guerra , que deslruio Jerusalem, ti v~ram os
judeos outro horrendo presagio , que foi ·presenceado de todo o povo.
Josepho, historiador judaico , o refere deste modo : ·
(<Um certo Jesus, filho de Ananus, que não era mais que um simples
camponez , vindo do campo á festa dos labernaculos, e estando ainda
a cidade em profunda paz , começou de repente a bradar : Voz do
Oriente , voz do Occidente , voz dos quall·o ventos, maldição a
Jcrusalem , maldição ao Templo, maldição a lodo· o povo l e não
11arava dia e noule, correndo por toda a cidade , e repetindo con-
lmuamente a mesma cousa.
(< Os magistrados , não podendo soffrer tam máó agouro, man-
daram prender e casliga1· rigorosamente o homem ; porem elle não
disse palarra para justificar-se, ou queixar-se; e só conlrnuou a
gntar como d' antes : maldição a J~rusalem; maldição ao Templo !
Então o conduziram perante Albino, governador romano , que o
mandou açouLar alé ficar Lodo ensanguentado. ,
(< Não o forçou a dôr a pedir perdão , nem a derramar uma
só lagrima; antes a cada golpe que se lhe davam repellia com voz
triste e lamentosa : Maldição , maldição a Jerusalcm l Quando Albino
lhe perguntou quem elle era , doude tinha vindo , e porque fallava
assim , respondeu com a coslumada ameaça : maldição 1 ••• Deixa-
ram-no emfim como idiota; nias elle não deixou de grilar , e nos
dias de festa redobrava os gritos. E foi cousa que causou esp'ecie,
o não enrouqu~cer , nem lhe enfraquecer a voz, apezar de berrar
.sempre.
« Continuou o homem assim até que a guerra começ.ou ; isto é,
durante quatro annos e cinco mezes sem interrupção , sem fallar a
pessoa alguma , sem injuriar o~ que .o castigavam , nem agradecer
aos que davam alguma comida. Quando Jcrusalem foi cercada, en-
cerrou-se na cidade, e girando infatigavelmente em redor por dentro
das muralhas, gritava com toda "- sua força: Maldição a Jerusalem !
maldição ao Templo ! maldição ao povo ! A final , accrcscentou !
Maldição a mim mesmo !

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DE PERSEVERANÇA. 253
E naquelle instant~., uma pedra lan-çada por uma das machinas
rnimigas , o derribou redondamente morto (1). )) _
Quem Hão diria que a vingança divina se linha niani-
festaLlo a este homem ; que não existia senão para publicar os
seus decretos ·? que · ella lhe_ Linha dado forças , para que os seus
gritos igualassem as desgra<_;as do povo? e que não só o tinha feito
propbela e testemunha , mas lambem victima pela sua morte , a fim
de tornar mais visiveis e evidentes as ameaças de Deus? O pro-
phela das maldições de Jerusalem chamava-se Jesus; como para mos-
trar que o nome de Jesus , nome de Salvação e de paz, se conver-
teria em funesto presagio para os judeos, que o desprezavam na
pessoa do · Salvador; e que aquelles ingratos , tendo regeitado um
Jesus , que lhes annunciápi a m1sericordia, a graça e a vida, fossem
forçados agora a receber ou!ro Jesus , que não tinha para annunci.-
ar-lhes senão males jrremedia veis , ~ o in~vitavel decreto da sua
proxima ruina (2).
Enlretanto aproxima-se a hora fatal. Os judeos , a quem uma
causa occulta parece que agitava , e tor·nava inquietos e turbulen-
tos , revoltaram-se contra os romanos , e esta revolta· deu occasião
á sua ruina. · Os mais prudentes d~ nação saíram de Jerusalem ,
prevendo os males que sobre ella cairiam. Os christãos, allentos ás,
predicções do Salvador , fizeram o mesmo. Reliraram-se para· a pe-
quena cidade de Pella , situada no meio das monl.anbas da Syria.
· Não tardou que o exercito romano não ''iesse pôr .cerco á cidade.
A principio tiveram os romanos um pequeno revez, com que se exal-
taram os animos dos rebeldes ; mas apenas foi dado o commando a
Vespasiano , este general retomot1 Jogo a superioridade. Então co-
.meçou a divisão entre os judeos , formaram-se na cidade differen-
tes partidos, que commetteram os mais horriveis excessos. Dest'arto
a de~graçada Jer~salem se via opprimida por todos os lados : no in-

(1) Josepho , da guerra ·dos judeos, liv. V. e. 11 e !!.


(2) Historia abreYiada da Igreja p.. 20. .

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1
25i CATECISMO ,,,..·

terior , crueis facções ; por fora, os romanos. Vespasiano, sabendo


do o que se passava dentro , deixou-se estar, dando tempo a que os
judeos se destruissem uns ~os outros, para depois mais facilmente
os reduzir.
Vespasiano neste meio tempo, sendo acclamatlo imperador, encarregou
se_u filho Tito de continuar o cerco. O joven principe acampou a uma
legoa de Jerusalem , e lhes tomou todas as saidas. E como esla-
vam proximas as festas da Paschoa , grande multidão de jutleos, vin-
dos de todas as partes da judea, e até de paizes remotos , ficaram
fechados na ci~.ade. Em breve se consumiram quantos viveres ba-
·via ; sobreveio ·horri vel fome , e Jerusalem se tornou a imagem do
inferno~ Entravam os facciosos roubando pelas casas , espancando
os que tinham mantimentos escondidos • e obrigando-os com -crueis
tol·mentos a des~obril-os. Muitos vendiam ás occullas as suas he-
ranças, por uma· medida de trigo .ou de cevada ; e quasi todos cm
breve se v.iam reduzitlos a comer o que encontravám , roubando-se
uns aos outros._ Arrebatavam ás creanças o pão que tinham aferra-
do nas mãos, e para o largarem as esmagavam de enr,_onlro á terra.
Alguns faccwsos, constrangidos · da fome saiam da cidade a buscar
hervas. Tito ordenou á 'sua t!avalleria que os perseguisse ; e to-
maram muitos prisioneiros, e entre elles alguns do povo , dos quaes
nenhum se quiz render sem combale, com medo que os sediciosos
não se vingassem em suas mulh.eres e filhos. Os que eram assim
tornados com as armas na nião , fazia-os Tito crucificar a Lodos ,
tanto pela difficuldade de os guanlar, como para aterrar os cercados.
Crucificavam-se até quinhentos por dia, e ás vezes mais , àe sorle
que faltavam cruzes e lugar para as erguer. O:; sediciosos lambem
d'aqui tiravam partido; pois levavam á força os parentes e amigos
·dos padecentes ao alto das muralhas, para qué prrsenceassem aquellc
espectaculo, e vissem o que podiam esperar da clemencia dos ro- '
romanos. ,-
Para acabar de os reduzir pela fome, Tito resolveu bloqueai-os comple-
tamente, e mandou levantar pelas suas tropas em- volta da cidade
uma muralha de duas leguas de circumferencia , guarnecida de treze
castellos , onde faziam senlinella tle noúte e de dia. Esta gran~le
obra foi feita e· acabada em tres dias. Então se verificou lilleralmen-

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ll"E PERSEVERANÇA. 25ü
te a predicção do Sa'Irndor; quando annunciou a Jerusalem , que_(is
seus inimigos 3 cingiriam com muralha, e a cercariam por todos os lados.
A fome tornou-se horrível. Basculhavam-se até os monluros e os canos da
cidade, e comiam-se as immundi'cias mais infectas. Certa mulher , ator-
mentada e desesperada pela fome, com os olhos esgaziados fitou um seu
filhinho , que aleitava a seus peitos: Para ·que te estou eu e reando,
ó desgraçado , disse e11a , para morreres de forne ou seres escravo
dos rom:rnos? Ah, não será assim .' •. e no mesmo instante o de-
capiloti , assou-o, comeo metade, e escondeo o resto ! Os facciosos,
ch eirando-lhe a carne , entram na rasa , e ameaçam matai-a, senão
lhes apresentasse o assado.- Então lhes mostrou a outra metade, e como
ficassem horrorisados e immoveis : Bem o podeis comer , disse. ella,
é o meu filho, fui eu <iue o matei, e comi o que ahi falta: não
sois YÓs , não , mais delicados que uma mulher, nem mais ternos que
uma mãi. Então a tremer devoraram a carne. ·
Entretanto al'rebatava a fome familia~ inldras ; as casas e as
ruas estavam cheias de mortos; e para evitar ·maior infecção , lan-
çavam-nos do aito das muralhas aos precipícios que rodeavam a ci-
dade. Tito, vendo aquella infinidade de cadveres, cuja pntrefacção cor-
-rompia os ares , levanlou suspirando as mãos para o ceo , e tomou
a Dêus por teslemunha, que não era elle o culpado d'aquillo". Para
acabar, pois , com tantas miserias, fez conlinuar os trabalhos com
maior acti vidafle, mas ainda leve que presencear novos horrores.
Alguns judeos, para escapar á fome, passaram-se para os ro-
manos. Os soldados de Tito , persuadindo-se que estes infelizes ti ~
nbam engolido as suas Joias, para as salvar das pesquizas dos fac.-
ciosos, rasgavam-lhes o ventre, e lhes esquadrinhavam as entranhas.
Em uma noulc se encontraram dois mil assim estripados.
-Tito, sabendo disto, declarou que faria morrer lodo aquelle ,
que fosse convencido de tam atroz barbaridade ; mas as suas ordens
não_ foram respeiladas.
Em fim , depois ele muitos e renbiflos combates, J'ito apode-
rou-se da Torre Antonia . e chegou a entrar na galeria .exterior do
Templo no dia 17 de Julho , lendo começ.ado o cerco em U de
Abril. Desde logo alacou a segunda galeria , e pôz fogo ás portas ,
ordenando , com tudo , que se conservasse o corpo do ed1ficio. Mas

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256 CATEClSMO

um soldado romano , diz o historiador Josepho , cuja historia va-


mos seguindo, movido de inspiração divina' tomou um archote' e
levantando-se sobre os hombros d'outros soldados o arrojou dentro
d'uma casa contigua. ·
Ateou-se logo o fogo, que penetrou no interfor do Templo , e o
devorou completamente, não obstante todos os esforços que fez Tilo,
para suspender o incendio. Então se cnmprio a predicção do Sal-
vador, que não ficaria alli pedra sobre pedra. Ardeu o segundo
Templo em 1O de Agosto , no mesmo dia e mez em que o primeiro
foi posto em chammas por Nabuchodonosor.
Os romanos , entrando em Jerusalem, passaram tudo a fio da
espada, sem perdoar a ninguem. Tito , tendo acabado de arrazar o
que restava do Temp~o e da ci1fatle, mandou lavrar a terra. :Mõr-
reram n'este cerco um milhão e mil judeos ; noventa e sele mil fo-
ram vendidos, ou dispersos com os restos da nação por toda a es-
tenção do Impetio. Tito recusou as corôas, que as naçõrs visinhas
1be offerlavam, para honrar a sua vicloria; dizendo altamente, que.
este successo não fóra obra sua ,' e que elle não ' tinha sido mais que
o instrumento da vingança divrna (1 ).
E na verdade , quem não vê neste borrivel assedio o justo cas-
tigo do impio furor, que os judeos tinham exercido conlra o Mes-
sias~ Outras muitas cidades leem soffrido assedios e fomes ; mas
nunca se vio que os habita~tes rle uma cid.ade ciliada se -guerreas-
sem tam encarniçados, exercendo, uns conlra os outros , alroeidades .
maiores que as qne sofreram dos mesmos inimigos. E' este um
caso unico e o se.rá sempre ; mas este exemplo unico, venlicando a
predicção de Jesu-Chrislo , igualou o casligo de Jerusalem .ao cri-
me que commetteram, de crucificar o séu Deus; crime lambem uni- ·
co , que não tem nem terá exemplo no passado ou no futuro(!).
Talo, depois desta victoria , embarcou-se para Roma , aonde lri-

(1) Joscpho, Guerra dos Judeos 1. VII. Philosl. Apol. 1. VI. e. U


(.2) Historia abreviada da Igr~Jª p. 2!.

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DE PEnSEVERANÇA. 2ü7
umphou da Ju(Jea com Vespasiano seu Pai , a quem bre\•emenle, suc-
.. ·
ceden no lhrono. Era t.am beneficente este príncipe, que uma noute,
estando~ meza, e lembrando-se que n'aquelle· rti"a não tinha feito
bem a pessoa alguma, ~xclamou : Meus amigos , hoje perdi o dia.
Não durou porem, o seu rºinado mais de dous annos , pois mor-
rcú no anno, 81 de Jesu-Chris~o. Succedeu·-lhe seu irmão Domiciano;
que foi quem movco a segunda perseguição geral contra a Igreja ;
ol.H·a na verdade <ligna <le.lle.
Este pedaç·o de Nero , como diz Tertulljano (1 ); assignalou-se por
crueldades , que fazem gelar o sangue. Quiz que se lhe desse o
nome de Deus, em todas as petições que se lhe dirigiam. Juntando
a loucura á depravação·, convocou um dia o Senado ,, para resolver -
em que ,·aso se deveria cozer um redovalho ; outro dia , tendo convi-
dado os principaes senadores para Jantar, Jel-os conduzir com prag-
matico ceremonial a um salão todo forrado de preto • e apenas alu-
miado por amortecidas alarnpadas srpulchraes ; a cujo clarão se divsava
urna fileira de tumbas , e cada convidado tinha seu nome escripto
- em sua. D'ahi a pouco entraram na sala homens taro negros como
as tapeçarias , trazend-0 na mão direita espada , na esquerda ~ma
tocl1a.
'Estas especies de furias , tendo por algum tempo aterrai.lo os
senadores , ahriram-ltles por fim as portas. Digno castigo d'aquella
famosa n.ação: que, depois de ter vencido o Universo - por sua cora:..
gero , e pela severidade dos seus costumes, se tornou mai~ corrupta,
effeminada e depravada que tocros os povos· que tinha subjugado ; e
dest'arte se fez o ludibrio dos tirannos, a quem idolatrava ainda
quando a esmagavam. '
Domiciano passava dias inteiros, no seu gabinete, só . a caçar -
moscas com um ponteiro muito aguçadÕ. Perguntando-'Se um dia a
- c~rto cortezão , se o imperador ficava só : S ~m, respondeu , e tam

(t) Apol. e. IV. -


3:l -. VI /

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CATECISMO

só, que não está com elle nem uma mosca. No outro dia o cortezão pa-
gou com a cabeça o seu innocente gracejo.
Quanto á violencia da perseguição , que elle suscitou contra os ·
christãos , pode julgar-se della pela maneira como tratou as pessoas
mais dislinctas, e até os seus mais proximos 'parentes. Mandou "'
malar o consul Flavio Clemente, seu primo coirmão , e desterrou
Domiti'lla mulher elo mesmo , por serem christãos. A sobrinha do
consul foi deportada para a ilha Pontia; e passado algum tempo ,
foi queimada· em Terracina com outros dous martyres. Dous escra-
vos do consul , Nereo e Achilles , que lambem se tinham convertido
á fé, soffreram ·varios tormentos, e por ultimo· foram decapitados.
Infinilo numero c.le christãos foram condemnados á morte, e
seus bens confiscados; mas o que tornou mais relebre a perseguição '
de Domiciano foi o martyrio de S. João Evangelista ; de que já em
outro lugar fizemos menção.
Não era bem que ficassem impunes lanlas crueldades, exercidas
contra a divma esposa de Jesu-Cbristo. Cumpria que ·Domiciano con-
corresse, com os mais imperadores , para a gloria do Cordeiro Dom~­
nador. Deus carregou a mão sobre elle. Muito terppo antes de vo-
mitar a alma , esteve o monslro , pungido <los remorsos, em con-
tinuos terrores. Nem um ·só rnslante socegava , com medo que o
matassem : e era pressentimento ; pois sem embargo de todas suas
precauções. foi assassinado por um dos libertos de sua mulher,
no anno 96 de Jesu-Cbristo. O Senado, depois da sua morte , pri-
vou-o de Lodas as honras , e alé as da sepultura.

OR~ÇÃO
O' meu Deus! que sois todo amor , eu vos dou graças por
haverdes sustentado o · v~lor de nossos pais no meio das· persegui- ·
ções. Perroilti , Senhor, que os imitemos ; e que nos convençamos,
que assim os bons como os máos igualmente servem _, ainda que de
llifferenie motlo , á gloria da Religião.
Eu protesto amar a Deus sobre todas as cousas , e ao proximo
como a mim mesmo , por amor de Deus ; ~ , em testemunho deste
amor , prometto orar pelos i"nim;gos da Igreja.

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V.& rrmst:YEl\ANÇA.

II: LIÇlO.

O CHRISTIANISMO ESTABELECIDO.

... DO
( n\ _, ONTINU.AÇA.O 1. 0 SECULO. )

Epistola de S. Clemente á Igreja de Corinlho - Terceira perseguição no ·


reinado de Trajano ; retrato deste priocipe - Martyrio de Santo Jgnacio,
Bispo de Aotioclua ; sua chegada a Roma , ondé é lançado "ós feras ;
suas relíquia 'são levadas a Aoliochia - Juízo do Deus sobro Trajano -
Quarta perseguição uo reinado u' Adriano , retrato deste principe -
Martyno de Santa Symphorosa e seus sete liihos.

Üs meus inim~g<>s não teem cessado de pelejar contra mim , desde


a minha Juventude: eis o que a Igreja póde dizer de si com ver-
tlade. Em quanto Nero e Domiciano derramavam o sangue de seus
filhos, esforçava-se por outro lado o demonio em suscitar enll·e elles
o espirilo da ·discordia .

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2GO CATECISMO

Pelos fins do primeiro seculo , suscitou-se uma contestação en-


tre os fieis de Corinlho , na qual se formaram ·muitos parlidos , e
estava inpendente um scisma. O chefe dºaquella Igreja, achando-se
_sem forças para afugentar o lobo do curral ~ pôz <J. mira na citlade
de Roma e dirigiu-se ao Pastor dos pastores. O Papa S. Clemente
acudio prompto áquella parle afflicla do -seu imruenso rebanho. Esle -
Ponlifice, elevado no anno 9l á cadeira, já tantas vezes · ensanguen-
tada, do Apostolo S. Pedro, morreu no anno 100 de Jesu-Chrislo,
na perseguição de Trajap.o. Escreveu pois aos Corinlhiós uma epis-
tola , verdadeiramente digna do pai commum dos chrislãos; a qual
de tal mo'do respira o espírito de nosso Senhor , que nos primeiros
seculos se lia nas Igrejas , como as Epistolas dos Apostolos e as
~ Santas Escripturas. -
Começa o Santo por descrever em breve quadro os costumes
dos primeiros christãos, e em particu1ar dos fieis de Corinlbo, antes
da .funesta clivis:io que lacerava aquella Igreja. « Qual dos esll·-an-
geiros, diz elle , que em multidão vos visitavam, se não dPlioha
impressionado da vossa '"i va fé, ornada de- todas as vfrtudes ?
Quem não admirava ~ vossa piedade para com Jesu-Christo, lam
cheia de bran1lura e de sabeJorfa? Qu~rn não louvava a ·generosi-
dade incrivel , com que se exercia a ho~µitalidade entre vós ? En-
tã9 obra veis em Ludo sem inflae.ncià de ninguem, ·e toda via vos adi-
antaveis a gran<les passos no caminho da lei t.le Deus , e sob o pa-
ciíko governo d()s vossos Pastores. Jfotão tributaveis a honra de-
vida aos ,·ossos anciões; <laveis aos mancebos o exemplo da humil-
dade e da rnodeslia ; ensinaveis as mulheres a eslirnar como devem
seus maridos, bemdizcndo a sua depemlencra na humildade e sim-
plicidade do coraç.ão ; bem como a occupar-se do governo de suas casas,
- com retiro e pruden_cia, ,, e. a ennobreccr toJ.as as suas obras pela pureza
e santidade das suas intenções. )>
« Eülão não tiuheis presumpç,ão , mas ereis humildes e mais
ínclinados a oóedecer que a mandar: cnt:io mais quereis dar do..quc
receber ; contentando-vos com o pão quotidiano deste mundo , pelo
- qual julgaveis atravessar, como por uri1 lugar de lransilo , no ca-
- rninho que leva veis para a vossa J>alria,. com a lei do Senhor sem-
p1•e diante dos olhos, e o coração sempre aberto á sua divina pa!a-

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DE l1 EllSKVEllANÇA. 261
na. Assim gozaveis de suas bençãos, felicidade e paz . . . Então
,:ivieis cóm sinceridade e inuocencia' sem malignidade nem res~~n- .
timento. ,Se a~guem peccava conlrn vós, era a sua queda que la- -,
mentarnis, e desejavris ~alisfazer pelas fraquezas do ,·osso proximc.
O menor jermen de divisão, uma simples sombra de tlis·secção vos
causava horror. »
Aqui descobre o Sanlo Padre a rasão da mudança, que repen-
tinamente se opei·ou entre elles, que era o crime da inveja , cujas
(fesordcns descreve, citando exemplos colhidos na Escriplura Santa,
começando desde Abel e os Patriarchar até os Aposlolos e os tem-
pos mais recentes.
O remeJio contra a inveja consiste em imitar os exemplos do
divino :Mestre : a isto se applicavam inteiramente nossos pais. Apos
deste augusto modelo , S. Clemente propõe outro nas creaturas ina-
nimadas, qne vi vem em paz· constante , sujeitas á providencia ; e
assim faz eUe do Universo material u~1 grande ·prégador da con-
cordta.
Eis aqui as suas notaveis palavras. Os Ceos , subm~-;sos ás leis
da Providencia divina, cumprem em paz as suas impeluozas revo ~
luções : o dia e a noute acabam o seu curso que lhes foi prescripto,
e nunca oppõe obstaculo um ao outro. O sol , a lüa e as myriades
dos astros percorrem obedientes, e em per[eit a harmonia, os espaços
que lhes foram marcados, sem delJes se afastar um só ponto. A terra,
sempre fecunda, fornece· com abunclancia , e nas differentes estações,
todas as cousas necessarias á nutrição dos homens , t.los animaes e
de tudo quanto respira -, sem nunca alterar as leis que Deus lhe im-
poz. O mar , ainda que embravecido contra si mesmo pela agitação
das sua~ ondas, nunca ullr a passa os limilies qtíe lhe foram prescriplos.
A primavera, o estio , o outomno a o inverno succedem-se pacifica-
mente un~ aos outros; os ventos em determinados períodos soltam
sem obstaculo os seus violentos nssopros ; os mais pequenos animaes
emfim vivem juntos em a mais perfeita concordancia. ))
Conclue por ultimo o Santo Pontífice dizendo , que á imitação
de toda a natureza , a unica ambição do cõristão deve ser agra-
dar a Deus .e Yiver em paz co~ os seus irmãos. Tanto que chegou
a Corintho e foi lida ao povo esta Epistola, lam cheia de espirilo apos-

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--
.-
I

CATECISMO

lolico , e lam digna do Pai commum dos fieis , abundantes lagrimas ,


d~ arr«1pendimento co1·reram de todos os olhos , abraçaram-se todos ,
recobrou á eharidade o seu imperio , .e todo entrou na boa ordem.
Taes eram nossos pais; se, como homens, commelliam erros , como
christãos sabiam reconhecei-os e humilhar-se.
Tornava-se tanto mais necessaria a paz interior, por isso que
se ia aproximando o combale, que pela terceira vez expoz as ove-
lhas do Salvador aos lobos furiosos do paga_nismo. Foi Trajano
o aulhor desla terceira perseguição. Os seus costumes o
fazram digno de inscrever o seu Mme na lista dos de Nero
e Domiciano. · Esle imperador subiÕ ao tbrono do mundo no anno
98 de Jesu-Christo ; e dilatou por suas victor1as os limites do im-
perio romano. · Bom guerreiro e habil po1ilico, eslava longe de ser
egualmente eslimavel como homem particular. Entregue '3-0 vicio e á dis-
solução, achava-se ordinariamente depois que janlava em estado de
nada fazer rasoavel. Presume-se com bastante. rasão , que a sua in-
clinação á sensualidade e aos prazeres grosseiros , a que -sem pudor
se entregava, foi a caus~ do o.dio que .téve aos christãos, cujos cos-
tumes de pureza e castidade eram flagrante condemna9ão da sua vida
devassa. Ordenou , pois , que sotfressem a morte em toda a exten..
são do imperio (1 ). Com~ç,ou a carniceria pel~s ann~s 106 ou 107.
N~esta perseguição foi morto S. Simão, Bispo de Jerusalem ; ao qual
depois d'haver confessado a Jesu-Christo, com constancia admiravel ,
condemnaram ' ao supplício da Cruz, morrenüo assim c0010 o seu
divino l\f P.Stre.
, A mais illustre viclima da raiva , que _Tl'ajano linha ·ao nome
, cbrislão , foi S. lgnacio , Bispo de Aniiocbia , e discípulo de S.
João. Preparemo-nos co111 profundo respeito -para ouvir a interessan-
, te historia do se ti martyrio , e roguemos a Deus , que acenda cm
nosso coração uma faisca d'aquella chariclade inimilavel, que ab1·a-
/

(1) Veja Eusebio, liv . .III. e. 33.

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DE PERSEYERANÇA. 263
zava a Santo .Ignacio. Uma circumstancia, referida nas actas do
~éu ma1fo·io, explica o terno amor que o veneravel Ponlifice linha
a nosso Senhor. Estava elle ainda, dizem os authores d'aquellas
aclas , na sua mais tenra infancia, quando Jesu-Christo, andando en-
tre os homens , impoz sobre elle suas venera veis mãos, ,e disse ao
povo , en'carando-o. " O que não f ôr tam humilde como este tenro
·menino, não entrará no reino dos Ceos. Governava lgnacio~ havia
quarenta annos ,- a Igreja de Antiochia , quando foi chamada ao
marlyrio. No anno 106 de Jesu-Chrislo, Trajano, resolvido a levar
suas armas contra os Parthas , dirigiu-se ao Oriente. Veio a Antio-
chia no anno seguinte·, e alli· fez a sua entrada com magnificencia
em 7 de Janeiro : o seu primeiro cuidado , apenas chegou áquella
cidade , foi tràtar da gloria do~ seus deuzes , e exigio, sob pena de
morte , que toda a gente os adorasse.
Ignacio , que só · pelo seu rebanho se inquietava, deixou-se ge-
nerosamente- conduzir perante o imperador; o qual, vendo-o, Jhe
disse : E's tu pois, demoniÓ máo , que ouzas infringir as minhas
ordens , e persuadir aos outros a morrerem miseravelmente? ..
lgnacio. Ninguem , senão tu , ó Principe , jámais chamou a
Theophoro o nome injurioso , que agora lhe deste; sabe, pois , que
tam longe estam de serem demonios má os os servos de Deus , - que
·pelo contrario os demonios tremem e fogem diante delles !
Trajano. Quem é esse Theophoro ?
Ignacio. Sou eu , e todo aquelle que traz , como eu , a Jesu-
Christo no coraÇão (1 ).
Trajano. Parece-te , pois , que nós não trazemos lambem no
coração os deuzes, que nos ajudam a vencer os nossos ini~igos?
Jgnacio. Deuzes !.. enganas-te ~ Principe : esses é que não são
senão demonios. Não ha mais que um só Deus , que creou o Cco
e a terra ; e um Jesu-Cbristo , seu unico filho. Este é o grande
Rei , cujas misericordias sómente te poderão fazer feliz.

(1) Tl1eophoro, em grego , significa - Que possue a Dem;.

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26i CATF.CJSMO

Trajano. Quem é que ahi norneas? é por ventura esse Jesus ;


que Pilalos mandou pregar em uma Cruz ?
lgnacio. Antes dize , que esse Jesus foi o mesmo que pregou
na sua Cruz o peccado e o seu au lor , e que elle lorua vicloriosos
d~om e d'oulro a todos aquelles qne o encerram 110 coração.
Trajano. Trazes tu, por tanto-, o Chri lo em ,li ?
Ignacio. Sim, porque está - scripto : Eu !tabitarei e repo.uza-
rei nelles (1).
TraJano, irritatlo da firmeza com que o Santo Bispo linha coo•
fossado a fé , pronunci.ou contra elle a seguinte senlença : « Orde-
namos que Ignacio , que se gloria de trazer em si o Crucificado ,
seja posto em ferros , e couduzitlo dêbaixo de boa -guarda á grande
cidade de Roma, para alli ser lan :ado á fora , e servir de es-
peclaculo ao povo. »
· Apenas o Santo ouvio ler o decreto da ~ma morte , exclamou
transportado d'alegria : cc Eu vos tlou graças, Senhor, por me ha-
verdes concedido que vos tenha um perfeito amor ; e permitirdes
que eu seja ligado com gloriozas cadeas , como o grande PauJo,
vosso Apostolo» ; e dizendo isto elte mesmo veslio os ferros. Depois
orou pela sua Igreja , e sé encornmeodou a Deus com lagrimas. En-
tl'egou-se então ·elle mesmo á escolta de ferozes soldados , que o ha-
viam de conduzir a Roma , para servir de pasto aos leões, ·e de di-
vertimento ao povo. ,
Que espectaculo 1 Um Bispo, velho venerando, Santo e inno-
cenle, canegado de · grilhões e pondo-se a caminbo de seis cenlas
legoas, no fim das quaes se divizava o amphithealro ensanguentado,
lobos e leopartlos que esperavam a sua preza , e um povo inteiro
a victoriar a morte da viclima ! O Oriente e o ü_ccidente tinham ·
os olhos filos em lguacio ; a velha e a nova sociedade estavam cm
e~peclativa ; aquella, bramando d'alcg~ia ·· esta, orando com lagriroas ·

(1) ·li cor. VI. ~

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DE PERSt:VERANÇ.A.

aquella, contando já com uma grande victoria, esta, com um glorioso


lriumpho. Vejaa10s agora qual dellas se enganou.
lgnacio sahiu tle Antiochia , para dirigir-se a Seleucia, aonde
embarcou em um ·navio que havia de costear a Asia menor e con-
duzil-o a lloma. Não se sabe a causa porque escolheram este ca-
minho, que alongava muito mais a \ iagem. Talvez pretenderam mos-
1

trar o Santo em muitos lugares , a fim de àterrar os chrislãos , e


aquelles que tivessem vontade de o Yir a ser. Como quer que seja ,
esta longa navegação foi p~rmitt1da pela Providencia , para que a
,·isl.a de lgnacio servisse de consolar e edificar maior numero de
Igrejas. Já nesta parte ficou Yencillo o Paganismo.
Acompanharam o Santo, desde a Syria até Roma, Pbiloa, Dia-
cro , e Agalhopodo , que são tidos por auclores das actas do seu
martyrio. Sairam ainda de Antiochia outros christãos , que _marcha -
ram adiante, e foram esperai-o em Roma. · lgnacio era guardado noute
e dia , ta nlo no mar como em terra , por dez soldados ; aos quaes
pôz o nome de Leopardos. por causa da.-sua crueldade • e porque
a paciencia e a brandura, que com elles usava, não servia senão de
os irritar cada vez mais.
Ainda que o Santo era vigiado de perto pelos seus guardas,
con~ediarn-lhe com tudo liberdade bastante , para confirmar na fé as
Igrejas por onde ia ~lassando ; pois de todas saiam os fieis com
ai \'oroço , para o verem , e prestar lhe todos os serviços que podiam.
As Igrejas da Asia , não contentes com lhe enviar deputados, por
parle dos Bispos e Padr~s, encarregaram ainda mmtos fieis de o acom·
panhar no resto da viagem , o que fez dizer ao San'to, que tinha
comsigo muitas Igrejas-. Dest'artc , o caminho do martyrio foi para
Ignacio marcha lriumphal : no que lambem ficou debaixo o Pagél-
nismo.
Depois de lon~a e perigosa navegação aportou o Santo a Smyr-
na; e approveilando-se da licença que Jhe deram de sair em ferra,
foi saudar S. Polycarpo , Bispo d'aquella cidade, que tinha sido como
elle dimpulo de S. João Evangelista. Depois de terem conversa-
do com intimidade e charidade episcopal, lgnacio, glorioso dos seus
grilhões, e mostrando-os a S. Polycarpo , pedio-l·he não pozesse obs-
lacnlo á sua morle ; e fez a mesri1a supplica ás Igrejas da Asia, que
3~ Vl

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266 CATECISMO

o linham mandado Yisitar na jornada , e cujos depnlados encontrou


em Smyrna : eram estes os Bispos de Epheso, Magnesia, e Tral-
les.
S. lgnacio escreveu de Smyrna quatro epistolas , as quaes to-
das respiram a charidade e o espirito verdadeiramenle aposlolico :
a primeira é (lirigida á Igreja de Epheso ; a segunda á de Mag-
nesia ; a terceira, á ·de Tral1es ; e a quarta , ã de Roma. Co-
nhecendo quanto a oração é efficaz para com Deus; e receando não.
pedissem ao Ceo e oblivessem o seu livramenlo; escreveu o silnlo
aos romanos , conjurando-os que tal não ffzessem , porque lhe não
roubassem a corôa do marlyrio. '
Esta epistola é talvez unica no seu genero, preparemo-nos para 1

ouvir a sua leitura , e det~emo-nos compenetrar da abrazada cba-


, ridade, de que ella é a expressão.
« Ignacio , êognominado Theophoro, á Igreja predilecta de Densi~
:l Santa Igreja de Roma, lam digna de senir ao Todo poderoso;
- que merece ser louvada , respeitada e feliz ; que tudo regula com
prudencia , e onde a charidacle reina , e a caslid_aue triumpha : aos
illustres fieis, igualmente unidos segundo o espirito e a carne ; cheios
da graça que, unindo-os por vinculos sagrados , os sepai-a de toda
a profana sociedade; saude em Jesu-Christo, Filho do Padre, e ple-
nitude do Padre em Jesu-Christo, nosso Senhor e nosso Deus.
Amen.
u: Havendo o Senhor attenditlo_ aos meus rogos , concedeu-me ,
por sua bondade a ventura ele vos ,·êr. _ Breve espero estar com-
,·osco, sem embargo de ir arrastándo pesadas cadeas. Temo po-
H'm da vossa charidade, que vos não mova uma falsa compaixão
deste meu corpo mortal. Facil cousa ''os ·será evitardes- a minha
morte, mas assim poreis obstaculo á minha felimlade. . . talvez não
tornarei a ter lam boa occasião como esta, de me unir ao meu Dçns ~
nem vós, outra melhor, de exercerdes uma boa obra. Basta , para
isso ' que vos não movaes ; porque se vos oppozerdes á minha morte,
por un'la alTeição demasiadamente humana , ficarei outra vez mettido
em trabalhos· , e obrigado de novo a correr no esladio. Consenti ,
antes, que seja immolado em quanto -õ altar está ereclo ; e sú . vos
peç.o , c1ue em quanto durar o saci'incio, l'nloeis concordes hymnos

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DE PERSEVEl\ANÇA. 267
em honra do Padre, ~ de Jesu-Chrislo seu filho. I..ouvai a -Deus
por haver permiltido , que trouxesse1n . do Oriente ao Occitlenle um
Bispo da Syria , só para aqui perder a vida ... mas que digo?. ·.
para renascer em o seu Deus. » . _ -
« Vós , que nunca tivestes inveja de ninguem , havíeis agora
de inveja:· a rriinha boa sorte? Vós , que sempre avisastes a firmeza
_ e a constancia , mudaries hoje de maximas '! Alcançai-me antes c.om
vossas orações o valor ' de que careço ' para vencer as tentações
interiores e exteriores. - Pouco importa ao · homem parecer christão,
se o não é em reaiiclade, Pois n~o fazem o _chrislão bellas pala-
vras , e especiosas appare_ncias-, m~s sim a virtude solida, e a gran-
·deza d'alma nas provações. :n
(e A outras Igrejas escrevo , que_ morrerei gostoso , uma \'ez ·
que \'OS não opponbaes. Consenti que eu seja o pasto das feras ,
que é caminho mais curto do Ceo. Eu sou trigo de Deus, preciso
ser moído nos dentes dos leões- e dos ursos, para converter-me em
pão digno de se offerecer a Jesu-ChrisLo. Festejai as feras, que ~c­
jam· o meu tumulo quando eu chegar, e nada deixem do meu cor-
po , para que a ningu-em de mais trabalho depois de morto. Eu es-
pero em Deus, que estarão promplas para devorar-me. »
« Perdoai-me estes senlimentos; mas eu bem sei o que _me con-
vem ; e começo a ser verdadeiro d1scipulo de Jesu-Christo. . Nada
Jª me d-á cuidado , tudo me é inditferente , menos a esperança <le
-possuir ao meu Senhor Jesus. - Reduza-me o fogo a cinzas , uma
cruz me faç.a' morrer de morte affrontosa e lenta, açolem-me tigreit
crneis e esfaimados leões, sejam desconjuntados os meus membros ,
moitlos os ossos , esmigalhado todo o meu corpo ; esgotem os tlemo-
mos conlra mim toda a sua rairn ; tudo soffrerei alegremente , com
tanto que chegue a possuir· o meu Senho1· Jesu-Chrislo. »
, « O meu amor está cruxifica_do ; o fogo que me abraza é puro
e divino. E' vivo fogo que no fundo do coração me diz de conti-
nuo : Váe, Ignacio , para teu Pai celeste. Já não lenho gosto ai·
gum das mais exquisitas viandas , nem dos mais delicados vinhos.
O alimento, que appeleç,o , é a carne sacrosa11la de J(•su-Christo, fi-
lho tle Da viu ;· e o vinho de que estou sequiozo , é o seu sangue
precioso , -fonle de.: charidade incorrnptivel. Eu já n.ão pertenço a .

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'!G8 CA1'ECISMO

este mun1lo, nem já- me considero· vivo entre os homens. Permilla


o Senhor que possªes sentir a verdade do que digo, pois seu mesmo
Pai é quem dirige o que escrevo. Alcançai-me de Deus que obte-
nha' o premio que desejo. Entenderei que me tendes amor , se eu
chegar a padecer o martyrio; mas se fôr regeitado, conhecerei que _
sou objccto do vosso odio ; lembrai-vos nas vossas orações da Igreja
da Syria , ·que , na minha ausencia , não tem outro pastor senão
aquelle que é soberano pastor de Lodas as Igrejas. Nosso Senhor ·a
dirija e a guarde: · eu a confio á sua Providencia e a vossa chari-
dade. Quanto a mim , quasi me env~rgonho de me chamar um ele
seus membros, pois de todos sou o ullimo e menos digno. Eu vos
saudo espintualmenle , a-ssim como a todas as Igrejas que me teern
acoJllitlo na minha viagem com verdadeira cbaridade.
<< Da Smyrna vos escrevo pelos Fieis de EphesQ. Dizei aos que
parliram · da Syria para Roma , com o intento da gloria de Deus ,
pois JUigo Õs conheceis , que ell estou proximo. Todos são dignos
de Deus e de vós ; prestaj-Jhes por charitlaue todos os beneílcios -que
a sua virtude merece. ·
a: Escripla em Smyrna, a 2.3 de Agosto. A Deus alé ao fim,
na paciencia de Jesu-Chnsto. »
_ Ap,euas escreveu esta carla ., parlio lgnacio de Smyrna por cau-
sa da impaciencrn dos soldados, que o conduziam ; e que não ces-
savam de o apressar, para chegarem a Roma anles do dia desti-
nado aos especLaculos. D'alli vieram surgir em Troades , aonde
soube que Deus tinha dado a ..Pªl á JgreJa de Anliochia : a qual
nova o lranq~illisou. De Troades. escreveu ás Igrejas de Philadelphia
e de Smyrna , e a S. Polycarpo: respiram estas lres_ epistolas o
. mesmo espirilo de charidade que a precedente.
Bem desejou o santo escrever ás mais Igrejas da Asia; mas as
guardas lhe não deram tempo; pelo que rogou a. S. Polye.arpo' que
por elle o fizesse. De Troades passou a Napoli na l\Iacedonia . e
d'alli a Philippes. Obrigaram-no a atravessar a pé a l\Iacedonia e
o Epiro ; donde torn·ou a embarcar em Epidauro na Dalmacia. Pas-
sou o navio- na altura de Reggio , e avistando Pouzzolo , cidade
aonde S. Paulo havia desembaréado , pedio lgnacjo permissão desa-
bir cm Lerra , a fim de. seguir as pegadas do grande Apostolo ;

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• ,.

DE PERSEVERA:-.ÇA. 269
mas um-· tufão de vento _afastou o navio para o mar alto , e o sanlo
se vio obrigado a s'eguir ávante, contenla1ulo-se com dar grandes
louvores á chari~fade dcrs fieis d'aquella Igreja.
« Por fim dizem os auclores das suas aclas, soprando nnlo ·
fresco 5iurgimos em vinte e quatro horas na barra do Tibre, que é
o porto dos romanos. Eslavamos trespassados de dor ; lembrando-
nos que nos iamos separar do no~so querido mestre ; ellc pelo con-
trario regosijava-se de ter chegado ao lermo da viagem :
« Apenas sa1mos em Lerra , os soldacfos nos obrigaram á pressa
a tornar o caminho de Roma, porque estavam quasi a terminar os
jogos. Correu voz que chegava Ignacio, e logo os irmãos nos sai-
ram ao encontro. Estavam elles opprimidos de dor; mas sentiam
ao mesmo tempo a alegria de ''erem entre s1 aquelle grande homem,
que tinham sido escolhidos para acompànhar. Alguns mais forvo~
rosos começaram a dizer entre si , que era necessario apaziguar o
povo , e traelar de extinguir a sede ardente que elle tinha do seu
sangue ; mas o Espirito de Deus , lendo f~ito conhecer ao Santo
Bispo o projecto que se formava contra elle , o suspendeu , por is~o
que tendo saudado aquelles que o cercavam, e tendo-lhes pedido e
dado a paz, os conjurou , ainda com mais vchcmencia do que na sua
carta , pára não se opporem á sua felicidade. Então se submelle-
ram aos seus desejos ; e pondo-nos depois todos de joelhos ; o Santo
Jeya'ntando a voz no _meio delles, rogou a Jesu-Chrislo que se com-
padcee3se ela Igreja , pozessé fim á perseguição, e conservasse a cha-
. ri dade nos fieis.. ·
« Acabada esta oração foi levado precipitadamente pelos guardas
e conduzido ao amphilheatro, a tempo que estavam terminados os
especlaculos. Era o •lia 20 de Dezembro, um dqs dias solemnes ,
que a superstição romana linha consagrado com o nome de festus sigil-
larias. >>
« Toda a cidade havia conconido ao amphithealro. Logo que
o perfeito leu a carta , que os soldados Jhe entregaram do impera..
dor ; desceram o Santo ao circo : e tanto que o veneravel velho
ouvio o rugir dos leões, exclamou : Err sou trigo de Deus, preciso
ser moído nos dentes das feras , pal'a converter-me cm pão digno
de Jcsu-Cfirislo. )) Mal tinha pronunciado estas palavras , quando .

http://www.obrascatolicas.com . ..... _!_


-, .

270 C.UKCISMO

dous leões arremelleram para clle, e o devoraram em um instante,


ficando do seu corpo sõ os ossos grandes , e cumprimlo-se uest'arle
aquillo mesmo , que elle tanto anhela va e pedia .
. ·A velha Roma bebeu com avidez o sangue do marlyr, e dei-
xando logo o amphilheatro , foi sumir-se nos lnpanares.
«· Nós mesmos, continuam os companheiros de Ignacio , preSPll-
ceamos debulhados em lagrimas o glorioso martirio : e passamos toda
a noule em vigilia e oração , conjurando a-0 Senhor nos consolasse
d'aquella morte , dando-nos . algum seguro penhor da gloria que so
lhe linha seguido. O Senhor nos ouvio , porque tendo alguns dos
í1ossos adormecido , viram a lgnacio em inefavet gloria. Escrevemos
a acla de ludo que se passa . no seu martyrio; marcamos o dia ou lu-
gar e mais circumslancias da sua morte, para nos ·juntarmos todo's
- os annos, e caularmos a vicloria de Jesu-Christo , que combateu o
demonio, e delle triumphou pelo seu illustre e generoso alhleta. »
« Depois recolhemos com respeito os ossos do Santo , que !~­
vamos em triumpho a Anliochia, onde se guardaram como thesouro
in.extimavel. De sorte que todas as cidades que ficam m1tre Roma e-
Anliochia receberam duas vezes a benção de lgnacio, porque na vin-
da lhe saiam ao encontro para o conversarem, e na volta se apinha-
vam em redor das suas preciosas reJiguias , como enxame d'abelhas
em redor do favo (t). »
Passado tempo foram .as reliquias de Santo Jgnacio trazidas a
Roma, e collocadas na veneravel baziHca de S. Clemente ~ a pouc,os
passos do Coliseo, onde inda hoje repousam.
Entretanto o braço de Deus se manifestou contra o perseguidor
do nome chrislão. Trajano , consumido mais por devassidões , que
por fadigas morreu miseramente em Selinunto, pelo principio d' A.gosto
do annó 117 de Jesu-Chrislo. Muitos authores lhe escreveram a bis-
, toria, mas todas e~tas obras se perderam , e apenas restam frag-
mentos informes. Parece que a Providencia quiz sepultar no olvido

(1) BiblioLh. Selut. Petr.

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DE ~ERSEURANÇA. 271
as acções de Trajano , ja que tam immoderado desejo tinha , de ~wr
famoso no mundo.
O Paganismo , vencido na perseguição de Trajano , não tardou
a ferir mais furioso combale. Determinou Adria,no imitar o.seu pre-
decessor no odio contra os chrislãos, assim como o tmha imitado
em seus infames coslume.s. E' grande gloria llo Chrislianismo, o ni'io
ter tido ate hoje por inimigos, senão _homens· depravados , e cheios
de vergonhosos Yicios, Disto se[Jl duvida nos devemos gloriar, como
da mais ev idcnte prova da santidade e verdade da nossa Religião (1 ).
A' crueldade, que lhe era natural, juntava Adriano um espirilo
excessivamente supersticioso. Tomava parle em todos os sacrificios,
.que se faziam em. Roma, exercia o cargo · de soberano ponlifiec, e
foi sacrificador do templo de Eleusina. Tendo passado cerlo inver-
no em Alhenas , e iniciando-se em l0tfos os rnislerios da Grecia ,
permillio aos pagãos que perseguissem os chrislãos ; e esta pcrse- -
guição, como rde.re S. Jeronimo, foi das mais sanguinolentas (2).
Entre as prirneirns e mais illuslres viclimas , se deve nomear
Santo Euslachio ; o qual , com sua mulher Tbeophisla , e seus fi.
lhos , ·foram queimados vivos em um _louro de bronze. A esle se se- ·
gue Santa Symphoroza. No anno 1H , segundo _da sua elevação ao
imperio, construio Adriano perlo de Tibur, hoje T1voli, um mag-
nirico palacio, cuja dedicação ordenou se fizesse com todas as ce-
rcmonias em lacs casos observadas . OtTereceu sacrificios e consul-
tou os deoses ácerca da duração do soberbo edificio. l\fas longe de
receber resposta lisongeira , como· esperava , disseram-lhe os demo-
nios : Principc, nós uão podemos satisfazer a lua curiosidade , em
quanto nãÕ acabar o insulto , que nos faz cerla viuva chrislã , in-
vocando o seu Deus em nossa presença. Ella se chama Sympho-
roza , e é mãi de sete filhos. l\fanda que vos offereça inc~nso , o
então respon1leremos ás - tuas supplicas .

.(1) Vede Spartian. ~-


(2) ln f.fltalo~ Oroiio, Mamachi. Baronio • e pae da historL1 ccclc·
siastir11 a· põe no numero das dez grandes perseguições lia Egreja.

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272 CATECISMO

Vivia Symphoroza em Tibur, com os seus sele filhos , e empre-


gava as suas rendas, que eram consideraveis , em soccorrer os po-
bres, e principalmente os chrislãos perseguidos pela Fé. Ordenou
Adriano , que prendessem a Santa viuva e s~us filhos' , e Jh'os trou-
xessem á sua presença; chegaram : dissimulando a raiva, com rosto
prasenteiro , eni lisongeiras palavras, procurou persuadil-os , que
sacrificassem aos deoses. ~yrnphoroza , cheia do espirilo de Deus ,
respondeu em seu nome, e no de seus filhos; Principe, meu marido
e meu cunhado foram dous officiaes dos vossos exerci tos (t) ; ambos
tinham a honra de commandar os vossos soldados ; eram tribunos e
deram a \'ida por Jesu-Christo , preferindo antes soffrer mil tor-
mentos, do que queimar um grão de incenso a esses idolos que ado-
raes : morreram sim , depois de terem Yenci<lo OS demonios ; mas
. já agora vivem no Ceo , coroados de honra e de gloria.
Subilo o imperador, mudanilo o sorriso em horrivel catadnra :
sacrifica já, lhe diz , ou le sacrifico a li e a teus filhos aos om ni-
potentes deuses.
Symphoroza : Donde mereci tanta felicidade , de ser oilo vezes
sacrificada ao meu Deus!
Adriano: Outra vez te digo, que te sacnficarei aos nossos deo-
ses.
Symphoroza : Os vossos deoses não podem receber-me em sacri-
ficio, que não sou victima para elles; mas se me mandares queimar
pelo nome <le Jesu-Christo , a minha morte augmenlará os tormentos,
que os vossos demonios soffrem nas chammas do inferno.
Adriano: Escolhe ; sacrifica, ou morre.
Symphoroza : Vós julgais sem duvida que me aterrais . é en-
gano ; as rns~as ameaças não me farão mudar. · Tomára já ir ver o
.meu marido, a quem destes a morte pelo nome de Jesu-Christo. Que
mais quereis ?.. Eis-me aqui prompta para morrer : eu adoro o
mesmo Deus.

l 1] Gctulio e Amacio.

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,, .
DE PF.RS&VERANÇA. . 273
Desenganado o liranno , ordena que levem Symphoroza ao tem-
plo de Hercules , que lhe esmaguem o rosto a punhadas, e a suspen- . ,
dam pelos cabellos. E como aguentasse com todos os tormentos,
'mandou-a lançar no rio (1); com uma grande pedra pendente ao pes-
c~oço.

Dir-se-hía que aquelles lugares de T1bur, que de tantas impu-


rf'zas foram thealro , careciam de purificar-se com o sttpplieio e san-
gue dos nossos martyres. ' .
Eugenio, pai de Sympboroza , um dos prineipaes do conselho
"
de Tibur, Lirou do no o corpo de sua filha. e o-sepultou á beira
tio caminho, não longe da cidàde.
Ao outro dia , mandou Adriano que lhe. trouxessem os sete fi ..
lhos de Symphoroza ; e este novo Anliocho , para os reduzir , mis-
turou revesadamente as persuaçõos e promessas com as affrontas e
ameaças. Vendo, porem, que ludo era ~m vão, mandou levantar
em redor do templo de Hercules sete postes, onde os mancebos .fo·
ram estendidos, e puxados com roldanas. Divertia-se o cruel im·
pl1rador a lhes variar os tormentos. A Crescencio, o mais velho,
atravessaram-lhe a garganta ~om uma espada. O segundo, chamado
Juliano, foi apunbalado no peito. _ Nunesio , vasado pelo coração
com uma lança. Primitivo , ferido no estomago ; a Justino, rasga-
ram-lhe os rins ; Sctacio , foi aberto pelas costas ; Eugenio, o mais
moço , foi escalado cl'alto abaixo. ·
Ao outro dia da morte destes bemaventurados irmãos, Adriano
''eio ao templo de Hercules, mandou abrir um profundo fosso, e 01·-
llenou <prn nelle se enterrassem os corpos dos martyres. O seu san-
#tUe ex tmguio o fogo da per5eguição , que só dezoito mezes depois
se acendeu de novo. Aproveitaram os chrislãos o ensejo da paz,
• ·para tribular ás reliqllias dos santos marlyres a honra que se lhes
deve : levantaram-lh~s tumnlos em muitas partes do mundo ; seus
nomes foram gravados n~sleg monumentos , mas onde elles verda~

(1) O Tcverone.
35 VI

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CATF.CISMO

deiramente estam escriptos, é no livro da vida, onde fulguram em


caracteres de luz; que o tempo .jámais poderá exl.ioguir (1 ).
Tal era a vida de nossos pais, naquelles dias ao mesmo tempo lam
bellos e taro fnnestos. Combater, sepultar os mortos e ora1 nnido~
1

em· redor tios seus tnmulos , preparando-se dest'arle para novos com-
bates, eis no que se exercilavam. .
Depois de uma tregua de dezoito mezes. tornou a gurrra. e não
acàbou senão_ pouco tempo antes da .Jllorte de Adriano. Nesta nova
perseguição morreram S. Hermes , prefeito de Roma , e o papa S. :-
Alexandre.
Approximava-s~ o tempo, em que a verdade, até alli defendi-
da pelo sangue e repostas valorosas dos martyres , havia ele ser pu-
~licamente vingada ;· Deus lhe suscitou eloquentes apologistas. Qua-
drato era Bispo de Athenas , e elle mesmo pessoalmente apresentou
a sua apologia ao imperador Adriano : perdeu-se, porem , este pre-
cioso monumento. Arislide's era lambem Atheniensf', e exercia a pro~
fissão d~ philosopho. Converlido ao Christian1smo, - quiz dilatar a~
conquistas da Fé, cscrcven'do em seu favor. e apresentou igual-
mente a sua apologia ao mesmo imperador. Deixou-se persuadir
Adriano pela eloquencia dos dous advogados ~Jo Chrislian!smo , e
mandou suslar a perseguição. ·
Entretanto este imperador, banhado no sangue dos chrislãos ,
havia ue senir á gloria de .Jesu-Christo, tornando-se um novo mo-
nnmenlo da sua just1Ça. A9s seus passados crimes ajuutou elle no-
vas offensas de Dens. Ouzou fazer um lropo das suas infames' de-
Yassidões , mandando, ·-ed.ificar t1ma cidade , que lhe perpeluasse a
memoria. Em o mésmo Juga.r, aonde nos~o Senhor LÚ1ha rcssusci-
líldo. collocou uma estatna _rle .Tupiler , e outra de Venus sobre o
·Cal vario. Em Bethlem ~ mandou plantar um bosque , em honra de
cerla divinda(te não m~nos infame , e consagrou-lhe a grnla, aonde
o Salvador tinha nasci-Oo. Taí1tos sacrilegios' encheram a medida

_(1) D. Ruiaarl. l. 1. p. 12G.

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OE PEllSE,' ERANÇ.A. 27Ii
das suils iniquidades. Atacado d'urna taciturna melancolia, Lórnou-sl!
Adriano mais cruel do que nunca , e per lo do fim do seu reinado.-.
mandou matar sem motivo algum muitas pessoas de ºdislincçfio. So-
breveio-lhe depois uma hydrop~sia , no mesmo palacío 'de Tibur,
aoude lrnha c,ondemnf:Hlo Santa Symphoroza e seus filhos; e chegou
a tal desespero, que .muitas vezes pedia veneno, ou espada que o
acabasse ; e até offereceu dinheiro , promeltendo a impunidade a
ttuem lhe fizesse aquelle pretendido serviço. Ninguem quiz porem
aceitar a utfcrla. La menta va-se dia e nou~te , por não poder achar
a morte, aquelle Liranno, que a Linha dado a tantos. Por fim con -
seguiu suicidar-se , comendo e bebendo cousas contrarias á sua do-
ença. Foi islo ,no anno 138 de Jcsu-Ch1·islo.

ORA.U.lO.

O' meu Deus , que· sois toclo amor , eu vos dou graças pelas glo-
riozas victorias , que fizestes alCançar sobre o c..lemonio , a S. Igna-
"'cio e Santa Sy~phoroza. Permilli , Senhor , que pa1·ticipemos <l'a-
t]uella fervorosa charilladc , que abráza o coração dos marlires, e
os torna mais fortes que a morte.
Eu protesto amai· a Deus sobre todas as cousas , e a9 proximo
como a mim mesmo, por amor de Deus ; e , em testemunho deste
amur, prometto de viver no 1nimdo conto se estivesse só com Deus.

.. -

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276 c.+.rnClSMO

XII.' UÇÁO.

O CHRISTIANISMO ESTABELECIDO

( JJ SECULO,)

Quiota perseguição, no reinado de Antonino: retrato <leste príncipe. Mar-


lyrio de Santa Felicidade , romana, e de seus sete filhos; apologia de
S. Justino - Juizo de Deus sobre os romanos. Selta perseguição sob
Marco Aurelio, retrato deste prmc1pe; marlyrios de S. Juslrno e de S.
Polycarpo.

N10 tardou que Antoní~o , . successor d' Adriano, não desembainhas-


se a espada sanguinolenla da perseguição, que estive1·a em descan-
ço aquelles ultimos annos. O Senado, que concebera grandes esperan:...
ças no principio do seu reinado , linh8:-lhe conferido o titulo de pio.
As suas huµianas virtudes poderiam merecer-lh~o aos olhos dos pa-
gãos; mas os seus dissolutos eosiumes não podfam deixar de o tor-
nar perseguidor da Religião cbri_stã. Elle não só tolerava com ex- -
trema indolenc1a , a desenfreada licença de sua mulher Faustina ,
mas até d~ algum modo quiz immorlalizal-a. Depois da morte desta

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'UE P~RSEVERANÇA. ~71

devassa princeza, decretou-lhe as honras divinas, e lhe consagrou


um templo que subsiste ainda. Entregue ás mais vergonhosas de-
sordens , era este imperador escravo das mais vis crealuras, as quaes
podiam tanlo com elle , que á vontade dispunham das honras e dig-
nidades do imperio , a favor de pessoas as mais indignas (t). Tarn-
bem tinha este princ1pe tanta devoção aos seus itlolos, que inces-
sanlemente · lhes offerecia sacrificios , e elle mesmo sacrificava, e só
de~xava de o fazer quando eslava doente.
Não consta, porem, da historia, que Antonino expedisse novos edic-
tos conlra os cbrislãos. Principe fraco e devasso, deixou-os immolar
em seu nome , em virtude dos anteriores decretos. Foi tal o furor_
<los pagãos , que as mais reconditas cavernas e os mais escuros an-
tros não eram asylo bastante, para escapar-lheH ; e alé faziam crime
aos parentes e amigos dos chrislãos , por cumprirem com aquelles
de.vere", a que a natureza ou am-isade os obrigava (2).
Entre os martyres, que então derramaram o sangue em teste-
munho da ,Fé , houve uma illuslre romana, chamada FeHcidade, tarn
dislincla nas virtudes como no nascimento. Tinha ella sete filhos,
educados no temor de Deus e pratica de todas as virtudes chrislãs.
Depois da morte de seu marido , servia a De1.1s na conlinencia, não
se occupando senão em boas obras: e com os exemplos della e de
sua familia deixaram muitos pagãos a superstição itlolalra.
Os sacerdotes dos idolos, funosos por· verem as desersões ··que
- soffria a sua religião , foram. queixar-se ao imperador. e< Principe ,
lhe disseram elles , JUigamos do nosso dever advertir-vos, que ha
em Roma certa viuva da seita inimiga dos nossos deoses , que não
cessa de os ultrajar , e irritai-os contra vóB e contra o imperio.
São cumplices da sua impiedade sete filhos seus ~ christãos como

(1) Vede jul. capitol.


(2) Mamachi 1 t. II. p. 2õ8. Roma Subtsr. 1. Ill e. !:! ; e a nossa
liistoria das Catacumbas , Catacumba de S. Caliixto.
II

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278 CATECISMO

sua mat , e fazem como ella votos sacrilegos , que Lornarão impla-
ca \'els os nossos deoses , se a vossa piedade não cnitfar em appla-
caf,..os, obrigando esla familia. impia ·a render-lhes o culto que lhes
é d<:vido. » · -
Antonino, que era muito supersticioso , respondeu favoravel-
menle ás queixas dos sacerdotes ; e ordenou a _Publio, Prefeito de
Roma, que obrigasse e 'constrangesse Felicidac,le e seus filhos a sa-
crificar aos deuses; era no anno mo de Jesu-Christo. O PrefeiJo
obedeceu ás ordens do imperador , e Úsarnlo primeiro de bra-ndur~,
rogou mui corlezmente á illustre romana quiwsse dirigir-se a sua
casa. Foi ella acompanhada de seus filhos. Acompanhemos peranlr.
o JUIZ a esta mãi tam digna de o ser, e sirva-nos de modêlo o seu
1

nobre procedimento, e o de seus gloriosos -filhos. Publio lomou á


parle Felicidade , e empregou todos os meios_de a persua_di( a sa-
crificar, accrescenlando, que no ca~o de recuza, elle se veria obrigado
a recorrer a meios de violencia.
Nunca espereis, ó Publio, respondeu a Saula, com tanla firmeza .
como modesdia , que Felicidade · jámais esqueça o que deve aó sPu
Deus. Nem me alterram as vossas. ameaças, nem me com movem as
vossas altenções. Eu trago no peito ao Deus omnipotente, sinto que
elle me fortifica, e que não permittirá -que a sua serva seja venci-
da, -porque não comba~ senão pela sua gloria.
~Iiseravel, replicou Publio , se a· morte tem para ti tanlos en-
cantos , va1 , morre; mas que furor te ·leva a quereres tirar a vida
a teus filhos , depois de lh'a teres dado tu mesma ? 1\fens filhos,
respóndeu Felicidade, vivirão 'eternamente em Jesu-Cbristo , se lhe
forem fieis ; mas devem esperar supplicios, que nunca terão fim, se
sacrificarem aos ídolos.
No outro dia , Publio , assentando-se na seu tribunal rio campo
de Marle , lll.andou trazer Felicidade e seus filllos; depois dirigindo-
se á mãi lhe diz : Tem piedade de teus filhos , que estam na flor
;
<laidade, e que podem _aspirar aos primeiros cargos do imperio.
A. vossa pied1de, respondeu a Santa , é uma verdad~ira impiedade,
e a compaixão a que me exhorlaes , fariá de mim a mais cruel mãi.
Voltando-se depois para saus ~lhos disse : , Olhai, meus filhos, para
1

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••
Dl!: PERSEVERANÇA. 279 -
o Ceo, tam bello e sublime ~.. E' alia que Jesn-Christo vos espern,
para coroar-vos. Persisli no seu amor, e cornba-lei pela S<.tlvação das
vossas almas.
A estas palavras , Publio mand6u dar-lhe uma bofetada , dizen-
do-lhe com voz terrível : Assim ouzas aqui mesmo inspirar-lhes laes ,
sentimentos; e persuadil-os a desprezar as ordens dos imperadores !
Todavia resolveu fazer um ultimo esforço, foliando a cada Qm dos
Santos martyres separadamente, querendo seduzil-os pela forç,a das .
promessas e ameaças.
Começou por Janêiro, Januario o mais velho dos sele irmãos, mas
não conseguio mais que esta resposta : O que me aconselhais é contra-
. rio a rasão; espero da bondade do meu Senhor Jesus que me pre-
serve de tam grande impiedade. O Perfeito o fez dilacerar com
varas, depois cio que o mandou para a prisão. Felix foi depois éba-
mado _; e instacfo para sacrificar, respondeu : Nós não sacriHc~mos
senão a um só Deus; nunca esqueceremos o amor qne devemos a
Jesu-ChrisLÔ :- empregai todos os arlificios e excessos da crueldade ,
nunca podereis arrebatar-nos a nossa fé.
Fil;ppe entrou no tribunal ; -e Publ10 lhe disse: O ·teu invicto
imperador ordena que sacrifiques aos deo3es immorlaes. Aquelles
a quem quereis que eu saerifiqne, respondeu elle, não são deoses,
mas sim idolos, que servem de receptaculo aos demonios. Levaram-
luo com ,·iolencia da presença do Perfeito, -que branrnva de raiva , e
Sylvano tomou o -lugar de seu irmão. Pnblio lhe diz: Pelo que vejo,
obrais todos de commum acordo com a peor das mulheres ; com essà
mãi desnaturada. - que vos .envenena com seus consrlhos, e vos ins-
pira a desobediencia e impiedade: tremei de incorrer na mesma con-
~lemnação que a espera. SyJvano respondeu : Se fossemos tam fra·
cos , que nos intimidasse a morte , que não dura mais que um ins-
tante ; seriamos ''iclimas d'oulra verdadeira morte~ que é eterna.
Todo aquelle que despreza os vossos idolos , para só servi~ ao ver-
dadeiro Deus, com Elle vi virá elérnamenle ; mas o culto abomina-
vel dos demonios vos prcc1pilará com elles nas chammas do inferno.
Irritado o PPrfrilo com esta sabia lição, mandou .sair o joven
marlyr. Enlrou AIPxandre. Mancebo , lhe diz Publio, a ·1ua sorte

, ,
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280 CAT[ClSlfO

está nas luas mãos , tem pieda~e de ti mesmo, conserva os teus dias,
. que estás na flor da idade ; sacrifica e merecerás ~- protecção dos
deoses ,. e o favor do Cesar. Eu sirvo a outro amo mais poderoso
do que Cesar , respondeu Alexandre , e esse é Jesu-Chrislo. Confes-
so-o com a boca , trago-o no coraç~o, e adoro-o incessantemente.
A ~inba idade , que ''os parece lam tenra , lerá todas as virtudes
em quanto eu for fiel ao meu Deus ; quanto , porem , aos vossos
dcoses, exterminados sejam com aquelles que os adoram l
Compareceu Vital , e Publio lhe fali ou , dizendo : Meu filho, ln
ao menos não vens por, certo , como teus irmãos, buscar loucamen-
te a morte ; tens uma alma bem formada, e por isso preferirás vida
feliz a morte affrontosa; Vital respondeu : E' verdade , ó Publio ,
que eu amo a vida , e para a gozar mais tempo é que adoro a uni
só Deus , e abomino ao dcmonio.
Finalmente Publio ·' tendo mandado comparecer o ultimo irmão,
chamado Marcial , lhe disse : Eu lamento a sorle de teus desgraça-
dos irmãos : e tu , queres Lambem seguir o seu exemplo e desprezar -
como elles as ordens do nosso princ1pe ·? ó Publio , respondeu l\lar-
rial, se soubereis que horriveis tormentos eslam preparados nos in-
fernos, para aquelles que adoram os demonios !.. Ah! reconhecei
que Jesu-Christo é o unico Deus; que todo o universo deve ado-
rai-o ; ou tremei dos eternos castigos que vos esperam.
Acabado o interrogalono, soffreram os Santos marlyres a pena
dos açoutes , sendo depois conduzidos á prisão. Publio desesperando
. de ''encer a sua conslancia , enviou todo o processo ao impera-
dor.
Antonino , tendo lido o inferrogalorio , ordenou que os confes-
sores fossem enviados a differentes juizes, e condernnados a diversos
generos de supplicios. Januario foi morto a açoutes, com discipli-
nas guarnecidas de balias de chumbo. , Felix e F1lippe foram moidos -
a golpes de maça ~ ~ilvano despenhado em um precipício; Alexa·n-
cire, Vital e Marcial , que eram os mais moços, foram degolados.
Felicidade morreu do mesmo modo quatro mezes depois. Todos es- ,
tes admiraveis rnarlyres de Jesu-Christo foram por differenles cami-
nhos reunir-se no lugar, aonde o soberano juiz os esperava, para

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,.
J>E Pf:J\SEVERi\N~. A. • ~81

- dar a cacla um o - preço que merecia a sua invenciv.cl constan-


cia (t ).
·Entretanto , o Senhor, que ''elava pela sua Igreja , tinha-lhe
suscitado um defensor. As calu~nias dos pagãos -e dos judeos, ser·
,·i~m de pretexto á perseguição; convinha refutai-as, a mostrar a i1mo ..
cencia de nossos pais : uma ''ºz corajosa se fei eiltão 9Uvir, e esta
foi a de S. Justino. ,
Nascido em Sichem , antiga capital lia Sama1•ia , e educado no
paganismo , teve Justino desde principio a curiosidade d'estudar as .
. differentes seitas da pbilosophia. Dirigio-se soccessivamente aos Stoi..
cos , aos Pilhagoricos e aos · Academicos; mas ficou longe de rece-
ber as luzes que buscava. Finalmente um dia , que passeava á
beira mar, encontrou-se com um velho que <le perto o seguia. Fi-
cou Justino admirado do seu ar magesloso , bem como de certa
gravidade e benevolencia , que se manifestavam em sua pessoa. Tra-
vando conversa , fallaram da excellencia da philosophia. O relho
con renceu Juslino de que os mais ·celebres philosophos e.lo paganis-
mo se. tinham enganado '· pois qac não conheceram _ bem a Divin-
dade, nem a alma humana.
« A' quem devo ~u logo dirigir-me, perguntou Justino , par'a
conhecer a verdade?.. O velho nomeou-lhe os Prophelas, e indicou-
lhe as suas obras. Quanto a YÓs , disse elle concluindo, fazei ar·
dentes supplicas , para que as portas da vida ,·os sejam abertas:
ns cousas de. que acabo de vos fallar são de natureza, que não pode
comprehenrlel-as o homem , sem que Deus e Jesu-Christo lhe dê a
, inlelligencia. )> Dizendo isto retirou-se o velho , e Justino nunca
ruais o vio.
Causou esla pratica bastante impressão no espírito <lo joven phi~
- Josopbo ., e inspirou-lhe grande estima tlos Prophelas. « Desde este
momento , diz elle mesmo , comecei a ser Yerdadeiramenle philoso-
• J

(1] Dom. Ruioart. l. L Vede igualmente S. -Greg. in Eyclum pas-


cal. , '
36 VI


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282 CATEClSM~

, pho (1 ). Dei-me a estudar os mo li vos da credibHídatJe do Christia·


nismo , e o que s.obre tudo determinou a minha ·convc·rsão , foi a
interior a<lmiração que me causava o jnvench·el valor, com que os
christãos atfronlavam os tormentos. Eu ·não ignorava de quantos
crimes os accusa va o odio publ lco ·; mas vendo como encaravam -a
morte e quanto nella ha de mais lerrivel , reconheci ser irfipossivel,
llUC laes homens fossem culpados das abominações que lhes impu-
tavam ; por quanto , como podia ser que homens ~ avidos Je pra-
zeres, pollessem com alegria receber a morte, que os ia privar da -
· vida., e de ludo quanto a torna feliz e agrada vel no mundo (2)? .
. Pouco depois da sua conversão , que foi aos trinta ann~s tia
sua -idade, Justino saio do _, Oriente, e tlirigio-se para Roma. . A
s~ia primeira obra foi o Discurso aos Gregos ; no qual se propõe o
Santo convencer aos pagãos das l~gilimas rasões , que lhe tinham
feito abraç'ar o Chrislianismo.
Depois publicou a sua Exhor/açlio aos Gregos ; na qual traz a ·
refutação dos erros da idolatria , com as provas da vaidade dos
philosophos pagãos.
P9nco lempo depois appareceu a sua celebre Epistola a Dio-
r1netes. Este Diognetes, homem de grande consideração , era muito
versado na philosophia. Tinha elle .sido preceptor de Marco Aure-
. lio , que sempre o teve em grande estima e pclle fazia grande con-
Hança. Com movido pelo proceder dos chrislãos , desejava conhecer
o que os persuadia a desprezar o mundo e a morl(l, com todos os
seus horrores ; e donde lhes vinha aquella sua charidadc, desco-
nhecida dos· outros homens; charidade tam poderosa , que parecia _ -· · .
tornai-os insensíveis . .aos mais crueis tratamentos. S. .Justino en-
carregou-sé de , lhe dar os esclarecimenÍos que pedia. Depois de ter
demonstrado a loucura do paganismo, e a imperfeiç.ão da lei juda1ea,
pinla as- virlurles. dos chrislãos, e sobre Ludo a sna humildat1e 1

'' '

[l) Dial. com Tryph. p. 2~5.


(2) Ap'!I. l. p. , ~iO.

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"
DE PERSEVERA~_Ç.A. 283
~atÍsfdão e _o amor d'aquellcs níesmos , -que injuslamente os perse- ,
guiam ; accrescentando que as torturas não serviam senão de augmen-
lar o numero , e aperfeiçoar a santidade dos (ir.is : depois dislo dá
uma explicação clara e precisa da -divindade de Jesu-Christo, Filho
de Deus e creador de todas as cousas.
'Habitou S. J uslino longo tempo em Roma, applicando-se a ins-
truir aquelles que o vinham consultar ; ou exercitando-se nas vir-
tudes, do Christianismo. Tendo saido de Roma , veio a Epheso, aon-
de encontrou Tryphon. E.,le Tryphon era habil philosopho, e o mais .
famoso judeu do seu tempo. Justino teve com elle uma disP.ula · re-
gular, que durou dous ·ctias. As conferencias se passaram na pre- .
sença de muitas pessoas. O Santo as escreve,u depois, e publicou-as
com o titulo de Dialogo com Tryplwn. Este dialogo contem a pro-
va da -insufliciencia da lei- de Moyses , ê da divindade do Christ1a.:.
nismo.
Mas o · que deu maior celebridade a S. Justino fora1n as duas
- Apologias, que escreveu, da Religião Chrislã. A primeira e mais
impoi:l.ante era dirigitla ao imperador Antonino, o pio, ·e a seus dous
filhos adopllvos :Marco Aurelio ~ Commodo. Nunca os .chrislãos ti-
- nham sido tam eloquentemente defendidos das innumeraveis ·calum-
nias, com que os judeos· e' pagãos tratavam de os denegrir. Esta
primeira Apologia produzio o seu effeiLo. Antonino enviou para a
Asia um rescnpto , pelo qual prohibia se perseguissem os chris-
tãos (1 ). ·
Innumeraveis êalanmlatfes opprimiram o imperio no reinado des- , .
te principe , as quaes Deus permiltia para vingar o sangue inno-
cenle que" derramar~am. Com effeilo , foram as provincias , mais
que o imperaélor, que puxaram da t'spada contra a Igreja ; e assim
foram estas mais parlicularrnenle punidas, em quanto qlfe sobre
aquelle se não mostrou Lam irritada a divina justi~.a.
Por morle d'Anlonino que foi no anno 161 de Jesu-Christo, reno-
1

(1) Euscbio, llist. l. IV. e. 73.


li<

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1 .

284. CATECISMO

vou-se a perseguição sob Marco Aurelio seu filho adopli voe successo1· (1 ).
Toda a hisloria de Marco Aurelio prova que elle era voluvel, allirn,
egoista e corrupto por systema. A extravagancia do seu espiriLo
corria parelhas ' com a do _seu coração. Foi inin1igo dos cbrislãÓs
por . superstição e por philosophia. Enlão se \'io mu.Jtiplicarem-se
sacrificios, e introduzirem ..se religiões estranlrns, que antes eram des-
conhecidas aos romanos.
Fez elle repetidas diligencias, para obter do Senado que decre-
tasse honras divinas a Adriano , cujos \•idos o lrn ham tornado me-
moravelmente infame. Não parou aqui a impiedade e o desaforo ,
Jlois inscreveu no numero das ueosas a abomioavel Faustina , e lhe
erigio um templo , no qual obrigou os que casassem a ir offorecer
8acrilicio á pretendida deosa (2). Na m_orle de Lucio Vero, seu col-
lega, cujo nome causava horror a todos os bons, forçou 0- Senado
a honrai-o como a Deus. Tanto é cerlo que fóra do Christianismõ,
as mais bellas virtudes ·não são mais do 'que apparcncias vãã·s.

(1) E' engano affirmar que Marco Aurclio aão linha publicado ne-
nhum cdicto de perseguição contra os chrislãos. Nas nelas de S. Sym-
phoriano qu~ t'odos os bons cnticos collocam no tempo desle imperador ,
o juiz fez ler o seguinte decreto. - O imperador Aurclio a lodos os scns
admioi'llradores e ofiiciaes. - Nós somos informados que aquclles qµe em
nossos dias se rharnarn christãos violam as ordenações das leis. Pelo que
mandamos sejam pretos , e se não sacrificarem aos nossos dcoscs, puni-
os com di,·ersos su pplicios : de tal -modo com tudo qne a justiça ande a
par da severidade, e que o casLigo acabe quando acabar o cr~me. Acl.
S. Sy~phor; D. Ruinart., H, Aug.
(2) Faustma, filha de Antonino excedcn ainda a, sua mãi na d1s~
solução dos costumes e crupulosa lihcrtrna-gem. Persuadiram muitas ,:c-
zes a Marco Atfrelio, que a repudiasse. Isso é rnuilo bom , respondia o
tam gabado philosopho ; ruas se cu repudiar a mulher , preciso Lamhcm
restituir-lhe o dote. Ora, este dote era · o impcrio· - Si uxorc1u dimilli-
mus, rcddamus et dole:u foi. capit. n.º rn.
1 '

- / .
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lH~ l'RRSKV-ERA~ÇA.

Tendo os barbaros feito grandes estragQs nas provincias do im-


perio ' o impio Marco - Aurelio vingou;.se llOS christãos' que de . tudo
estavam innocenles. Era sistema dos pagãos, o imputarem a nossos
virtuosos pais todas as calamidades publicas e particulares . . Em lras-
bordando o Tibre, dizia Tertulliano, cm o Nilo vão innundando os
campos' em não chovendo ' em havendo terramotos, peste ou fome,
que é o que se faz?.. Dos lupanares não sais vós , mas correis
em tumulto a sàcrificar a Jnp~ter , Ol'denaes ao povo ceremonias
supersticiosas , buscais o ceo no CapiloHo, ('esperais que a chuva caia
, das abobadas cJos vossos l ~mplos, sem vos lembrardes de Deus , sem
lhe dirigirdes as vossas· sup_plicas. Qua'fllo a nós , -cxlenu:ados pelos
jejun ~ e austeridades , purificados -pela conlinenma; privãodó-nos de
tod os os gozos da vida , cobertos de sacco e de cinza ; desarma-
mos o Ceo, forçamos a sua clemencia, e q·uando · tem·os obtido a sua
misericordia, é a Jupiler que se agradece. Vó~ , portanto, é que sois
pezatlos á terra ; pois qne desconhecendo o verdadeiro Deus , vos
lornaes conl.innamenle culpados- dos males que opprimem o imperio ·
e por inaudita injus(iça , em sobrevindo. qualquer nova calamidade.,
grilaes de todos os lados : Ao leão com os chrislãos ! Como assim !. .
Só para uma fera, um povo inteiro de christãos !.. (t)
S. Justino , vendo mais que nunca ateado o fogo da persegui-
ção , compoz segunda Apologia ; a qual endereçou ao mesmo Marco
Aurelio e ao Senado romano. Bem cerlo esfou , diz elle ,. que este
escriplo me custará a vida. E não se énganf!rn ; pois tendo sido
prezo com outros cbrislãos , o Santo Apologisla foi levado á presen-
ç.a de Rustico , prefoito de Ruma, o ·qual lhe disse: Obedece aos
deoses , conformando-te cóm os edictos do imperador.
Justino :
Todo aquelle que obedece a Jesu-Cbrislo , nosso Salvador , ·,não
pode ser condemnado.

(1) Apol. e. XLi e XLI.

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1 I
286 • CATECISMO
" ..
Ruslico : A que scíencia te applicas tu ?..•
Justino : Tenho cursado .todas as scicncias , mas não podendo
por citas descobrir a verdade , esludei a philosophia dos chrislãos .
que é a unica verdade, embora não se1a do palada-r d'aquelles, qiie
a leem por um erro.
Rustico : Pois que ! miseravel , tu segues essa donlrina? ...
Justino : Tenho nisso muita gloria , porque ella me d-à a vanta-
gem de c.slar no caminho da verdade.
Ruslico : Quaes são os dogmas dos ,christãos?
Juslino: Nós, os christãos, crêmos em um só Deus, Creador
de loclas as cousas visíveis e im·isiveis, em Jesu-Chrislo, nosso Se-
nhor , Filho de Deus , predito pelos prophetas , aulbor e pregador
da Salvação , e juiz de Lodos os homen~. ·
Rustico: Aonde se re~nem os christãos ~
Justino : Aonde querem , e aonde podem.
Rustico: Qu<'ro saber aonde reunes ~os teus discipulos.
Justrno : Tenho habitado até agora nos banhos de Timotheo, so-
bre o monte Viminal, proximo da casa de um chamado Martinho.
Quando alguem me procura, ensino-lhe ~ doutrina da verdade.
Ruslico : Logo , tu és chrislão ?
Justi~o: Sim , eu o sou.
O Juiz , tendo feito a mesma pergunta aos outros accusados ,
todos responderam firmes ~ Sim, somos christãos. Então "Voltando-se
para Justino, disse-lhe: Escuta : tu que fazes de orador, e presumes
de sabio , quando eu te tiver feito dilacerar o corpo com um azorraguc .
desde a cabeça até os pés' , entendes que irás ao Ceo n'esse es_latlo ?
Justino: Sim , se eu soffrer o marly,rio que dizes, espero rece-
ber a recompensa que Já tem · recebido aquelles , que observaram
os .preceitos de Jesu-Christo ..
Rustico: Como assim ? pois imaginas que , alguma recompensa lc
espera no Ceo?
Justino : Não o imagino , eu o sei , e d'isso não ·tenho a menor
duvida.
Rustico : Deixemos· essas cousas; vamos ao que importa ; ajnn- .
tai-:.vos lodos , e sacrificai aos deoscs. -·
Justino, fatiando em nome de lodos : Jamais homem de juiw ,
•'

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DE PERSEUIUNÇA. 287
abandonará a verdadeira Religião , · para seguir a impiedade e o
erro.
Ruslico : .Se não obedeceis , contai que sereis lralados sem mi-
ser1cordia. . _
Justino: Nada desc~Jamos tan~o como soffrer por Jesu-Chrislo;
nosso Senhor. Os tormentos trarão mais breve a nossa __felicidade ,
e nos inspirtirão COf!fiilnça - n'aquelle tribunâl , aonde todos os homens
hão-de comparecer, para serem julgados ~ Então os confessores clamaram _
......
todos a uma· voz : E' inulil demorar-nos mais tempo. somos chrislãos, e
nunca sacrificaremos aos idólos.
O prefeito, vendo . . os inalaveis, pronunciou esta sentença : Or-,
denamos, ·que aquelles que não quizerem sacrificar aos deoses , e
- obedecer ás Q_rdens do imperador, sejam açoulados com varas, e con-
duzidos ao lugar do supplimo , para ahi se lhes cortar a cabeça.
Chegando á praça das execuções , os santos marlyres consum-
maram - o seu sacrilicio, louvando a Deus e confessando a Jesu-
Chr isto até o ultimo suspiro. Alguns chrislãos le\'3ram a occultas
os seus corpos , , e os enterraram_ honrosamen~e.
Por toda a parle, aonde apparecia o inimigo dG Cllrislia- -.~
nismo , e_ncontrava corajosos albletas, quo o cobriam de vergonha
e confusão .
.Voltemos a . Smyrna , aonde ha pouco passamos com o grande
S. lgnacio , quando vinha lriumphar do demonio na capital do seu
mesmo imp_erio. Já vimos s. PQlycarpo , Bispo d'aquella cidade ,
beijando respeitoso as cadeias . gloriosas do futuro marlyr ; pois lam-
bem lhe ~hegou a elle a bora, de pisar o ensanguentado trilho do
seu illuslre cnudiscipulo:
Polycarpo , convertido em -tenra idade ao Christianismo , teve
a ventura de con\'ersar com os proprios Aposlolos ~ e de beber o
espirilo do divino ~eslre pelas inslrucções delles. S. João Evan-
gelista o ordenou Bispo de Smyrna , e elle se tornou o,, oraculo das
Igrejas da Asia. Acendendo-se a perseguição, mmtos christãos foram
.levados a Smynía, para serem supplictad1Js. Do numero destes foi um -
mancebo chamado Germanico , que se dislinguio dos demais. Instou
com elle o Proconsul , já me~m·o sobre o amphithealro , a que ti-
vesse . picd~de de si mPsmo , considerando que estava , na tenra flor

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• • CA1'EC1SMO ~

tia idade. Não respondeu o :Marlir, mas cheio d(l impaciencia, ar~
rojou-se ás açanhadas , foras ~ para mais prestes sair do mundo ini-
qno para a morada da justiça.
O povo irritado e surprehenílido da co'râgem heroica de Germa-
nico , e dos seus companheiros, começaram a gritar lodos a úma yoz :
,- Acabem com os impios , acabem com os ímpios, procurem a· PoJy-
' carpo.
- Não· era S. Polyc~t·po _homem que tetnesse a morte, mas ce-
dendo aos rogos dos seus amigos , estava retirado no- campo , em -
ama casa pouco chslante da cidade aonde loda a sua occupação era
orar noule e dia : não lardou a ser descoberto; Herodes, ~ irenacba (J)
de Smytna .(2)·, em·iou de nôute soldados· de cavâlleria com
ordem de investir a casa aonde . Polycarpo se alojava. FaciJ seria
ao Santo evadir-se ; .mas não o quiz , antes elle mfsmo se apresen-
tou aos soJclados, dizendo: « Seja feila a vontade do Senhor. »
D-eu-lhes de comer e beber quanto quizeram , e só lhes pedio algum
tempo para orar , o que Jhe foi con~edido. Orou de pé , com os ·-
olhos e1evado5; para o Ceo , pelo seu rebanho e por todas as lgreJas
do mundo. A sua oração durou mais de duas horas, e a fez com
lal piedade , que muitos dos soldados se arrependiam de ter ''indo
prender um velho tarn veneravel.
Chegado. em fim o momento de ·se pôr a caminho, caminho
que o Jevava ao :ceu·, fizrram-no montar sobl·e um jumento, e assim
foi conduzido á cidade~ A pouco espaço encontraram um carro, em
que · montava o irenarcha Herodes, e seu pai Nicelas; os quaes con-
vidaram. co1'lezmente Polycarpo a ir com ell.es , e trataram d~ o
seduzir, dizendo-lhe repetidas yezes : Que mal pode ba\'er em dizer:
Senhor Cesar, ou alé mesmo sacrificar, para salvar a vida? O San-

·(l) Era publico, cncarrega~o de manter a


ordem , e prender os l'nalfcitores.
(2) Irenarcha era um ·magislradu encart('ga1lo de manter a boa ordem ,
e prender os malfeitores.

-.

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DE PERSEVERANÇA. 289
to guardou silencio, mas tanto o apertaram ·, que por f1-m respon-
. .deu : Nunca farei isso que exigis de mim. A estas palavras o co-
briram d'injurias , e o anrojaram tam asperamente a pontapés pela
carroça fóra, que cabio e quebrou uma perna. O Santo velho não
se ressei1L:o , ·alegremente continuou, como se nada tivesse soffrido ,
e deixou-se conduzir ao amphilheatro. Logo que· alli entrou , ou·
vio uma voz do ceo qué lhe di3se : Animo· Polycarpo 1 Os chris-
tãos ' que estavam presentes ouviram aquella voz ~
Levaram o Santo B(spo para junto do tribunal do Proconsul , o
qual lhe disse : Jura pela fortuna do Cesar , e terás a liberdade ;
maldize ao leu Christo. ·
Polycarpo : Ha oitenta e seis annos , que o sirvo,. e elle nunca
me fez mal ; pelo contrario me tem feito mil bens. Como hei-de,
- pois , maldizer ao meu rei , áquelle que me salvou ? .
Proconsul : Dá conta a este povo da tua crença.
Polycarpo : A ti a darei; porque a Religião nos ensina a tri- -
bular aos poderes da terra a honra,. que lhes é devida,· e que não é
incompattvel com a que devemos a Deus ; mas quanto a este povo, _
esse não é meu juiz , para que me justifique perante elle.
Proconsul . com voz severa. Sabes tu , que eu tenho feras , e
.que te lançarei a ellas, se não desistires? ...
Polycarpo : Manda-as desaltrelar, que eu não rn~do 'do bem ·.
para o mal. -
Proconsul : Se não temes as feras , mandar-te-hei queimar
vivo.
Polycarpo : O fogo com que- ameaÇas , queima por um mo-
mento ; oull·o, porem, que tu não conheces, e que o supremo juiz -·
acenJe para consumir os impios , esse nunca se extingue. Eia ,
pois , que esperas ? faze o que melhor te parecer.
Quancto o Santo pronuncwu estas palavras uma luz celeste res-
plandeceu em seu rosto. O mesmo Pr.oconsul ·ficou suspenso. To~
davia não deixou de ordenar a ullima formalidad~, que se pratica,·a
nos julgamentos cr1minaes , mandando apregoar tres vezes, por um -
arauto, em todo o amphitbeatro : Polycarpo persiste em confessar que
é christão. Depois deste pregão , a mull1dão dos pagãos e judeos
bradaram de chusma , com vozeria .horrivel : Esl0' é o pai dos
. 37 VI

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'~90 CA TF.CIS~IO
'-
- -chrisUfos , é o doutor da Asia , é o deslruidor <los nos~os deuses ,
ao leã-o com elle ! Disse-lhes o Proconsul , que o não podia ; por
que os combates das feras estavam acabados. Eolão todos outra vez
clamaram: Queimem-no, queimem-no vivo. E ao mesmo t.empo ,
saindo em tumulto do amphilheatro. correm aos b~nhos , ·destroem
as officinas , e arraslram quanto possa servir para acender a fo-
gueira. Os judeos eram os que mais trabalhavam. Preparada a fo-
gueira , Polycarpo tirou e seu cinlo e a sua tunica ; depois cur-
vou-se para descalçar-se , ao que não .eslava costumado, porque os
fiei~ lhe tinham tanta veneração , que era a qual primeiro lh'o fi-
zesse .• só por ter a ventura de o tocar.
Como os algozes lratas~em de o ligar ao poste , com cadeas de
forro , segundo o costume , elle lhes disse : Isso é precaução inulil ;
aquelle que me concede a graça de soffrer o fogo , me dará lam-
bem força para ficar firme sobre a fogueira. Então se limitaram a
hgar-lhe as mãos atraz das coslas. Neste eslarlo subio á fogueira ,
como ao altar, em que se ia offerecer a Deus, como victima esco-
lhida do reb~nho. Alevantando depois os olhos ao ceo, disse eslas
palavras , que foram as ultimas que pronunciou : Senhor Deus omni-
potente, pai de Jesu-Christo, vosso filho muito amado, por quem
havemos recebido a graÇa de conhecer-vos, Deus dos Anjos e dos
Archanjos, Rei soberano do ceo e da ter..-a , Proleclor de toda a
naç.ão dos justos que vivem na sua presença, eu ,·os dou graças ,
que sendo como ~ou o menor dos vossos servos • me ba veis achado
digno de aproximar dos meus Iabios o calix, de que Jesu-Christo
mesmo quiz beber. Recebei-me hoje , pois , na vossa presença ,
como victima de agradavel cheiro. Antes que o dia acabe, Yere1 o
· cumprimento das vossas promeças; e é por isso que vos louvo, bem-
digo , e glorifico pelo Ponlifice eterno, nosso Senhor Jesu-Christo ,
vosso bem amado filho • com o qual a gloria vos seja e ao Espi rito
Santo, agora e por todos os seculos. Amen. _·
Apenas tinha acabado a sua oração; quando as chammas, sa-
mdo da fogueira -em turbilhões, pareciam subir até ao ceo. Mas ,
Deus , querendo honrar o seu servo diante dos homens , fez um
milagre , cuja ·novidade maravilhou quantos o presencearam ; e se
publicou como monumento do poder do Senhor, e da Santidade do

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DE PERSEVERANÇA. '291
seu minisfro. Os lurbilhõcs ~ de labaredas, curvando-se ·em arco, e ..
estendendo-se para a direita e esquerda , representavam uma vela
, ele navio enfu_nada pe~o vento. Esta abobada de fogo , suspensa nu
ar , cobria o Santo marlyr , sem que a menor faisca ousasse locar
nos seus vestidos. O seu sagrado corpo estava no centro, como o
ouro- ou a prata , quando sae do crisol , e dérramava fragrancia
igual a de preciosos perfumes.
A1.tonitos ps perseguidores, ordenaram a um bestiario (1) , que
fosse de perto verificar a verdade _do prolligio , ao qual, como con-
firmasse o milagre , mandaram cravasse um punhal no peilo do Santo.
Assim o fez, e no mesmo instante o sangue correü em tanta abun-
- dancia , que apagou o fogo. Foi assim que Polycarpo, Bispo e dou-
tor ·da Santa Igreja de Smyrna ,' consummou o seu sacrificio. -
Os auclores das suas aclas continuam dizendo : « Recolhemos
'lepois as relíquias do Santo , mais 'preciosas que o ouro·, e as pe-
drarias ; e as pozemos em lugar conveniênte , no qual esperamos ,
pela graça tle Deus, ajuntar-nos, para celebrar o dia do seu nascimento.
Nós vos enviamos, dizem elles aos fieis de Philomelia , pelo. nosso
irmão Martiniano, a exacta relação de tudo quanto- se passou nesta
preciosa morte ; participai-o ás demais Igrejas; a fim que o Senhor
seja bemLlito ~m Lodos os lugares. .Saudai.. lodos os Santos ; os que
aqui estam comnosco vos saudam. Evaristo, que esta escl'eveu, igual-
mente vos -sauda com toda a sua famili!:l.
« O nosso pai soffreu o marli rio aos 2õ de Abril , ás duas ho-
ras depois do meio dia ; foi pr~so por Herodes , sendo Proconsul
, Slacio Quadralo. Esta foi lranscripla da copia de lrllnéo , disCipulo
de Polycarpo. Mil acções de graças sejam dadas a Jesu-Chrislo, nos-
so Senhor , a quem pertence a gloria e o poder por toda a eterni-
dade. Amen. ))

(l} Chamavam-se bestiarios os que combaliam as feras e os


gladiadores qne ficavam feridos no amphitheatro.

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292 CAUClSMO

... OBA.Ç.lo·

O' meu Deus l que sois todo amor , eu vos dou graças por
nos haverdes dado tam illustres testemunhas da nossa fé. Permitli ,
Senhor , que a defendamos como S. J uslino , e amemos a nosso Se-
nhor como S. Polycarpo.
Eu protesto amar a Deus sobre todas as cousas , e ao p1~oximo
como a mim mesmo , por amor de Deus ; e , em testemunho deste
amor, prometto fazer bem _áquelles que me fizerem mal .

. '

-.

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DE 11 1-:nSEVEl\ANÇi\.

XllI.8 LICÃO.
~ .

O. CHRISTIANISMO ESTABELECIDO.

(II SECULO.)

Milagre <la Legião rulmiaaote - Martyrcs de Leão: S. Potluoo , Santa


Biandina, clé. - Marty_r~o de S Symphoriaoo de AuLuo.

Ao pa:;so que Marco Aurelio, perseguindo os christãos, enviava ao


supplicio os seus mais fieis subdilos, colligavam-se novamente os barba-
ros contra o imperio , e o poseram ás bordas da sua ruina. Não
podendo já o povo pagar novos tributos , mandou vender o impe-
rador os mais ricos moveis do seu palacio , as pedrarias , estatuas,
pinturas , a baixela d' ouro · e prata , e alé os adórnos da· imperatriz
e as suas perolas.
Foi esta guerra mais duradoura e de resultado mais duvidoso
q~e as precedentes .. Os Quados, povo da Germania, alrairam o exer-
cito romano um pa1z cercado de bosques e montanhas, dondé lhe
era impossivel rctiraP-se. Succedeu istó na força do estio , fazendo
-. calma, excessiva e no silio não havia agoa ; de sorte que o exercito

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CATECIS~IO

eslava prestes a morrer de sê<le. Deus , que permitle todos os


acontecimentos para gloria de Jesu-Christo, e estabelecimento do seu
reino eterno, tinha predisposto assim as cousas, para ~ar 1á sua Igreja
um periodo de paz.
Convem saber que , no exercito romano, havia grande numero
de soldados cbrislãos, pela maior parte naturaes de Melitina, cidade-
da Armenia, ou das suas visinhanças. Estes, pois, se lançaram de
joelhos e ~ogaram a Deus com a·r<lenles suppl1cas , que lhes valesse.
De repente se toldou o ceo, e caio abundante chuva no campo dos
romanos. Os soldados , erguendo o rosto, recebiam a agua na boca,
que tal era a· sêde que os atormentava. Depois encheram os capa-
cetes e saciaram"'.se a si e aos cavallos. Julgaram os barbaros que ·
era este o momento opportuno · para os atacar, mas o ceo arman-
do-se a favor dos romanos , despedio contra seus inimigos formida-
Yel granizo misturado de raios , que qeslroçaram suas tropas. Esle
prodigio deu a victoria aos romanos. Os barbaros arrojaram as ar-
mas, e vieram buscar abrigo entre os seus inimigos, rara escapar
aos raios , qµe deslruiam seu campo. ·
Tanto os romanos como os barharos tiveram este_successo por
milagroso ; e a legião dos chrislãos , que tinha obtido o fayor <lo
ceo , ficou com o nome de Légião fulminante. O mesmo imperador
o referio por escripto ao Senado ; e para perpetuar a memoria cio
prodígio o gravaram no baixo relevo da columna Antonina., erecla
por esse tempo em Roma , e a qual arnda boje subsiste. Ficando
para com os chrislãos em mais favoraveis disposições , ordenou en-
lão Marco Aurelio, que os tratassem com menos rigor, e prohibio
que fossem perseguidos por e.ausa da sua religião .
Todavia , sem embargo disto , apenas tinham decorrido tres an-
nos, quando a perseguição rebentou contra elles mais violenta do
que nunca. Foi no anuo t 7ü de Jesu-Christo ; e Lião foi o princi-
pal lheatro do furor pagão. A descripção dos gloriosos combates, sus-
tentados por nossos pais, acha-se em uma carta.. admiravel , que os
fieis d'aquella cidade escreveram aos seus irmãos da Asia. Com
quanto seja.m ~orlas as suas palavras, r~sp iram ainda o espírito dos
bemavenlurados martyres: o sangue que fervorosos derramaram por
Christo , parece que ainda alli está ru·mando.

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DE PERSEVERANÇA.
<< Jámais alcanç.arão nossas palavras , dizem os auctores lia car-

ta (t) , a exprimir quantos males suscitou contra nós o cego furor


dos genlios, nem quanto sua engenhosa crueldade fez soffrer aos
hemaventurados martyres. Aqui empenhou o inimigo toda a sua·
força , e desde já mostrou quanto se ha-de esperar deite , quando
no fim do mundo lhe for permillido atacar a Igreja. Não se con-
tentou coin nos lanÇar fora de nossas casas, e expulsar-nos rlos ba- _
nbos e das praças publicas , mas até prohibio que apparecessemos
fosse aonde fosse.
« Mas a graça , superior a todas as potencias do imperio, re-
tirou pela maior parte os fracos do perigo , e expoz os mais fortrs
á sanha ·c1e seus m1m1gos. Ao princip10 deu nelles o povo com im-
petuosidade cega ; e feriram uns , arraslraram outros pelas ruas ;
estes foram apedrejados , aquelles roubados. · Passado o primeiro im-
peto , começaram · o~ processos com formalidade. Ordenaram o tri-
buno e mais magistrados da cidade que lodos os chr1slãos compa-
recessem na praç.a publica; e sendo interrogados perante o povo ,
confessaram gloriosamente a sua fé. E11tão os lançaram em prisão
até que chegasse o governador ; e tanto que chegou, foram de novo
citados á · sua presenç:a. Este juiz iniquio tractou-os com tanta crubl-
·, dado, que Epagatho , um dos confessores, pedio lhe fosse concedido
dizer uma palavra em favor dos ~hrislãos. Era um mancebo cheio
,.do amor de Deus e do proximo, e de costumes tam puro , que
posto fosse mui joven, já o comparavam ao Santo velho Zacharias,
pai do _incomparavel -João n·aplisla ' -
« O povo , que conhecia o seu talento, abafou com tumultua-
ria ,·ozeria a proposl.a do Santo , e o governador, tam determinado
como interessado em não lhe prestar atlenção , interrompeu-o brusca-
mente , perguntando-lhe se era cbrislão; e como declarasse a sua fé,
o mandou-o logo metter entre os martyres, e deu-lhe por zombaria o

(t) Crê-se que S. lrineo foi o seu prmripal :rnctor.

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296 CATECISMO

titulo de orador dos christlios , tecendo-lhe , sem o_cuidar , o seu


elogio em uma só palavra.
« Animaram-se os mais com o seu exemplo, sendo muitos os que,
preparados de ha muito para o que succedesse, se mostraram promp-
tos a morrer. Mncta mal que outros houve que, não se tendo exerci-
tado para o combate, deram triste prova da sua fraqueza. Dez apos-
tataram ; e sua deploravel queda nos fez dert'aruar torrentes de la-
grimas. Esta vamos ' ~ousternados , não por temermos os tormentos ;
mas receosos que alguns dos nossos ainda chegassem a cair. Feliz- "
mente a perda que acabamos de soffrer, foi abundanternen Le reparada
por novas levas de generosos martyres, que eram presos diaria-
menle.
« Os pagãos accusaram-nos de toda a so rle de crimes. Aquellml
mesmos, que até alli nos lioham Lratado com algum resto de huma- -
nidade, espumavam agora de raiva , e cobriam-nos de maldiç,ões
« O principal crime , que imputavam aos liejs de l.ião ; e -em
geral a lodos os chrfslãos , ,~ra o de comerem lá entre si a carne
d'um menino. »
Como tivessem uma idea vaga e confusa da Srgrada Eucharistia,
na qual verdadeir-amente comemos a . carne do Salvador, tinham para
si, e nos accusa vam os pagãos, d'aquelle horrendo crime.
:Mas esla mesma accusação que faziam a nossos pais, prova a [>er-.
pelna crença da presença real de nosso Senhor na Eucharista.
« Os que mais particularmente sentiram os effeitos da cruel-
dade do governador , soldados e povo , foram o Diacono- Santos ,
natural de Vienna ; Maturo , que sendo apenas neophyto, appareceu
cheio de forca e ardor no combate. Attalo de Pergamo , columna
0

· e ornamento da nossa Igréja ; e finalmente uma escrava, por nome


Biandina, CUJO illuslre exemplo mostra , quantas vezes ·as pesso-
as de mais baixa condição aos olhos do mundo , são· as mais apre-
ciaveis aos olhos de Deus , pel,o ardente amor que lhe consagram.
Era Biandina de compleição· taro debil, que lhe receavamos muilo. A
sua senhora, mais que todos, que lambem era do numero do.s marlyres, -
temia que não tivesse força nem animo para confessar a fé. l\las o
seu generoso coração supprio por tal a_rte a fraqueza do corpo, que
arrostou, com toda a crueldade , e cançou os ditferentes algozes, que

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,
DE PERSEVERANÇA.
a atormentaram desde o nascer do dia até á noute. Todas as vezes
que lhe mudavam de supplicio , recobrava no'vãs forças ~ pronun- ,.
·ciando o sagrado nome de Jesus, e dizendo : Eu sou-·christã, entre
n;ós não -se commettem crimes. Estas palavras lhe amolgavam o
. soffrimenl.o, -e a torBavam como insensivel á dôr.
Do mesmo modo; o Diacono. Santos sofft·eu com paciencia sobre-
humana , tormentos inauditos. A cada pergunta .. que lhe faziam ,
respondia t Sou christão.. Entretanto o· governador e os algozes es-
-· pnmavam de raiva. Depois das mais exquisitas crueldades, que po-
deram imaginar, ·applicaram-lhe chapas de lat~o em braza ás parles
mãis sensiveis do corpo; ma.s o martyr, confortado por graça es- ·
'pecial; perseverava ~nvicto na profissão da fé. Deixaram-no socegar
cm lim , até que alguns dias uepois foi posto, a nova provação. Re-
parando os· pagãos, qué lhe trnha vindo uma inflammação por todo o
corpo , de tal sorte que elle nem podia soffrer que se lhe tocas·sa.,
imaginaram que facilmenle alcançariam agora o finÍ de o vencer,
se lhe rasgassem as ulceras , ou que no menos espiraria no torme~lo,
. o que faria medo e ª~balo aos outros. Frustrou-se-lhes porem a es-
. perança ; por que quando isl'o meditavam ; o corpo do Santo, com
geral espanto dos espectadores recobrou as forças e o uso dos membros.
Dest'arte , por milagre da graç.a- de Jesu-Christo, a cogitação
oruel de lhe redobrar os soffrimentos , foi occasião de lhe causar
uma porfeita cura.
« J ulga-va já, o demonio que tinha segura a desgraçada Biblis ,
uma das dez que renunciaram ~ fé ; e quiz augmentar o seu crime
e castigo, obrigando-a a calumniar os christãos. Como ella era de
caracler fraca e timicla contava que, dando ..Jhe tratos, a faria dizer o
que elle quizesse ; mas errou o calculo,_' porque produziram o effeilq
contrario. Biblis,, como qúe despertando d'um lethargo , e conside- '
rando, por -Um transitório supplicio -, o q,ne havena de soffrer nos
- supplios -eternos, de repente exclamou : O' - malvados! como_ pode-,
reis ~ccuzar aos christãos de comer . a -carne d'um· menino, ·qt!ando -
lhes não é permillido nem tocar n-0 sangue dos animaes? (1) »

(t) Os chris-tãos seguiam ainda.a lei dada a este respeito pelos Apos- ,
tolos - Act. XV ~().
38 . VI

____ ____-_
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,_,_
298 CATECl-SMO

« Como fossem inuleis os tormentos, que temos r&ferido , exco-


~itou ó demonio outro., e foi dos mais terriveis. Lançaram os mar-
tyres em um calabouço escuro e infecto, aonde lhes foram melli-
dos os pés em cepos de madeira , puxando-os alé o quinto furo (t);
. e foi tam cruel este ultimo supplicio , que muitos expiraram n'clle. -
«. Por esta ' mesma occasião prende-ram o bemaventurado Polhino,
Bispo de Lião. Era um venerando velho, de mais de no\'enla annos
de idade , tam fraco e enfermo, que apenas podia respirar ; mas o
ardente desejo de morrer _por Jesu-Christo , ·deu-lhe forç'as e vigor.
Foi levado pe1os soldados ao tribunal , indo de l1<1z os magistrados
e o povo cobrindo-o ·d'opprobrios , como se fosse o proprio Jesu-
Chrislo , que abominavam. Perguntando-lhe o governador , qual era
o Deus dos christãos; para preveni.r blasphemias, respondeu o Santo
- velho : Vós o conhecerieis se fosseis dignos disso. »' Anemelleu a
elle ~ povo , aç~nhados por isto como feras ; daodo-1he punha<las e
pontapés , sem terem respeito ao menos á sua idade ; e os que por
distantes lhe não podiam chegar, arremessavam-lhe com o que acha-
"ªrn á mão. Por ullimo o encerraram já quasi morto em um es- ·
treito calabouço, onde passados dous dias expirou.
« Tendo decorrido alguns dias, trataram de pôr termo ao mar-
tyrio dos nossos Santos confessores por diversos geoeros de morlP.
, Assim o quiz a Providencia par"a que podessem offerecer ao Senhor
uma ·corôa matizàda de variadas flores , e cuja fragrancia lhe fosse
mais agradavel. Resolve~àm por tanto que Maturo , Sanlos, Bian-
dina e Attalo fossem lança~os ás ferás; e escolheram dia assigna-
lado para aquelle publico .espectaculo da crueldade pagã. Sanlos e •
Maturo soffreram novamente todos os tormentos c1ue haviam já sup-
portado, accrescentando-se os mais que- o ferino povo in\•cnlavá no

(1) O cepo , em latim nervus, era rerta maqurna de madeira, com


buracos <le dislaocía cm distancia , nos quacs mettiam os pés dos mar-
\yrcs, escorando-lhes ás \'czcs as pernas alé ao quarto e qoioto furo. Esla
· etipecie de torlura era muifo dolorosti como é facil de imaginar.

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l>E PEUSEYERANÇA. 299
momento , e que immedialamente eram execulatlos pelos algozes.
Depois de terríveis supplicios soltaram as feras , que os arrastaram
em redor <lo amphitheatro sem os devorarem. Por ultimo pediram
os espectadores a uma voz que os assentassem em cadeir~s de ferro
em braza. A.s carnes queimadas enchiam lodo o amphilhealro de lam
horrendo cheiro , que ninguem o poderia supportar, a não ser aquelle
povo Jernz , a quem era delic10so. Com tam crueis tormentos, não
puderam arrancar ao Diacono Santos outras palavras senão estas. « Eu
sou chl'islão ! E como elle e Maturo ainda luctassem com a morte, os
degolaram por Hm , e assim terminou o esprctaculo d'aquelle dia.
Seguio-se apos estes Blandin_a ; a qual ataram a um poste, para
ser devorada das feras , a cujo furor · esteve a Santa por algum tem-
po exposta , sem que nenhuma ousasse tocar-lhe. Então a desataram
e levaram á pri~ão, reservandõ-a para outro combale. Desl'arle uma
fraca e Jlobre escrava , fortalecendo-se em Jesu-Christo , desconcer-
t u toda a mahcia do inferno , e por sua inabalavel conslancia
mereceu elevar-se a uma gloria immortal.
(e Altalo foi trazido depois , e como era homem notavel, o ~ovo
pedio a grandes vozes, que queria presencear a sua mor.te. Nós todos
o linhamos em muita·consideração. Entrou ·elle com ar rnagnanimo
no campo da batalha, fizeram-no andar de roda do amphilheatro, levando
anle si um rotulo com estas palavras: Attalo cltrislõo. · O porn não
cessava <le pedir u sua morte , mas o governador, sabendo que elle
era cidadão romano , remelleu-o. á prisão com outros martyres ; e
escreveu a Marco Aurelio pt1din<lo-Jhe as suas ordens.
« No entretanto os Santos martyres nos davam o exemplo éle
todas as virtudes : não nos cançavamos de admirar a paciencia , ,
mansidão e dignidade com que fallavam aos pagãos. Não accusa-
~· · vam a ninguem , a lodos desculpavam , , e semelhantes ao primeiro
marlyr da Igreja, oravam pelos seus perseguidorrs, e pediam sobre
ludo por aquelles ~ que tinham tido a desgraça de fraqueal' no com-
:Qale. Deus ouvio os seus 'rogos, e ltvemos a consnlação de ver
nquelles generosos penilenles confessar a Jesu-Chrislo, e entrarem 5 0-
luntariamenle em o numero dos martyres.
Entretanto · chegaram as ' ordens do imperador -; ordenando se
executassem sem demora aquelles que presislissem na confissão da
~ ,

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300 CATECISMO

fé ; e fossem postos em liberdade _os qne abjurassem o Chrislianismo. ~. ·


O governador approveitou a occásião d'uma festa publica , que ti~
)1ba alrahido muita gente á cidade, par.a dar ao po'vo especlaculo
com o supplicio dos martyres. Vieram , pois , citados ao seu tri-
bunal , e interrogando-os de novo , e achando que eram inabala-
veis, condemnou os que .eram cidadãos romanos a ser· degolados, e
Lodos os mais lançados ás feras.
Alexandre , Fl'igio de nascimento e medico de profissão, estava
1wesente quando se trouxeram perante :o governador os que tinham
fraqueado: era homem cheio de espírito apo~tolico, e vivia de ha
muitos annos nas Galhás , ao!lde li~ha adquirido veneração univer-
. sal por seu .amor de Deus, e pela franqueza com que publicava o
Evangelho. , ,
Achando-sé , pois , no tribunal , neste critico momento , ell~
fazia signaes a seus irmãos com a cabeça e olhos , a fim de_ os ani-
. mar a que confessassem a Jesu-Christo. · Não tardou que fosse obser-
vada a connnua e extFaordinarta ag1taçã-0 em que eslava. Os pa-
gãos, irritados de ver os mesmos que anles renegaram a fé agora,
confessando-a , virar.am.-se contra Alexandre ~ ~lamando que era eJlc
o auctor da mudança. A'vista disto , o JUiz, voltando-se para elle , -
perguntou-lhe quem era , e o que fazia. Alexandre , sem mais ro-
deios respondeu : Eu sou chrislão. Com esta resposta ficou tam i_r·
rilado o governador , que sem mais demora o condemnou a s·er de-
vorado ·pelas feras. No dia seguinte foi conduzido á arena com Allalo,
.e fu~am ambos decapitados. '
« No · ultimo dia dos jogos trouxeram Biandina ao amphilheat.ro,
e mais a um JOVen de quinze annos , chamado Ponlico. Ambos
· - tinham assistido ás execuções dos martyres nos .dias precedentes.
Quizeram obrigai-os a jurar pelos -idolos ; e coroo recusassem~ os . -
pagãos romperam -em tam violentos lransporles de colera , que não
.
acba.vam crueldades nem tormentos com que sàtisfazer-se. Ponlico,
animado pela sua companheira , sotrreu com alegria todo" os transes
do martírio , e terminou a vida por umà gloriosa morte. Desl'arte
foi Biandina que ficou ullima na area, rodeada dos -corpos dos 'mar-
tyrcs, e tinta de seu sangué. -Como !Ilãi que estremece seus filhos,
assim tmha ,clla exhorlado seus irmãos a soffrcr ludo com ~aciencia,

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DI~ PERSEV-ERA:'iÇ.A. 301
cnv'iantlo-os diante de si ao rei dos -Ceos. Passando depois pelas
mesmas provas, via chegar com alegl'ia o momento de se unir com -
elles na mesma gloria. Foi flagellada , dilacerada pelas feras, e as- ,
sentaua na cadeira candente ; depois do que , mettida em uma sac-
ca de rede, a expozeram a urna vacca brava e ciÓsa ·, que com as
pontas a poleou aos 'ares por longo tempo. Alfim a degolaram.
Causou pasmo aos mesmos pagãos a paciencia e valor d'aquella
martyr , chegando a -c-onfessar que nunca entre elles houve mDlher
que supporlasse tam extraordinaria e lon~a serie de tormentos. Du- , _
ranté a perseguição de Marcó Aureliõ, o numero dos marlyres que pade-
cerem em Lião chegou a desanove mil.
A'vista do denodo, fervor e coragem de tantos santos confesso-
res , de toda a idade e condi~ão , que diremos da uossa tibieza e
intlifferença? - · ·
De ~myrna viemos ás Gallias ; acolá assistimos ao triumpho de
S Polycarpo ; aqui, ao de innumcraveis marlyres , que sel'ão para _
sempre gloria de Deus, e opprobr10 de seus inimigos. Breye tor-
naremos a esta cidade , verdadeira Roma das Gallias, aonde teremos
que registrar novos prodigios ; e., entretanto ,_façamos uma digressão ·
a outra cidade , visinha e rival desta outr'ora; Antun vae offere-
cer-nos o seu heroico marlyr.
Sylllphoriano , de familia· christã e illust.re , distinguia-se · entre
os seus concidadãos -pela~ vastidão dos- seus oonhecimentos , e suas
est1mav.eis qualidades. Estava elle na flor da idade, quando fez a
Deus o sacrificio da sua vida." Seu pai, pór nome Fausto, foi celebre
pela sua nobreza , mas ainda o foi maiSI" pela heroicidade de seu
fi!ho. Anlun ·, ci1lade antiquissima, era das mais celebres das Gal-
lias, mas ao mesmo tempo das mais supersticiozas. Em. certo dia·
do anno saia pelas ruas da cidade, em carro magnificamtmte ornado,
./
a cslatua de Cybele, lambem chamada a mâi dos deoses e a boa
d~osa. Concorria gra_nde m'ultidão a esta sacrílega - ceremonia. Sym-
phoriano, como não adorasse o idolo nesta ., occasíão , foi prezo pela
turba, e conduzido perante Heraclio , govrrnador da provincia , que
estava então na cidacte, aonde tinha vindo para pesquizar dos cbris-
tãos. . .
- _ Assentou-se Heracl!o no tribunal, 'e interrogou· o santo por e.sle 1 ' -

modo: Qual é o leu nome e a tua profissão'? ...

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302 CATECISMO

Symphoriano: Eu sou chrislão e chamo-me Symphoriano.


Herâclio : E's chrislão ? . aqui ainda ha um , que cu não exter-
minasse? Como tens podido escapar-me? ...
Responde, porque recusaste adorar a boa deosa?
Symphoriano : Já o disse ; porque sou christão. Eu não adoro
senão o \ erdadeiro Deus , qne está no Ceo. E estou tam decidido a
1

não adorar esse vão simulacro do demonio, que se me quereis dar


um martello ,_ irei n'um instante fazei· a vossa cleosa em pedaços.
Heraclio : Este mancebo não só é impio e sacrilego, mas recal-
citrante e revoltoso . . Elle é d'aqui ?... Um official respontleu : Sim,
Senhor; é natural desta cidade-, e d' uma· das princi paes familias.
Heraclio a Symfhoriano: E' pois isso o que te faz lam alliYo? Igno-
- ras ln as . ordenações dos nossos príncipes ?. . Leam-lh'as.
O escrivão lê : 0 imperador Marco Aurelio a lodos os gover- ,
1

nadores , juizes , magistrados ~ -presidentes e mais omclaes geraes do


nosso 1mpcrio: ConstandQ-nos que certos homens, que se chamam
1
christãos , não poem duvida em Yio1ar as mais ·santas leis da reli-
gião , ordenamos · que ·se proceda coolra elles com lodo o rigo1· , e
sejam castigados com diversos supplicios , logo ·que se houvei·em ás .
mãos, uma vez que não queicam sacrificar aos deoses. ·Acabada a "
leitura , conlrnuouo. inlerrogalorio.
Heraclio : Então que dizes Symfhoriano? Julgas que esleja em meu
peder contrariar as expressas ordens do imperador'? Tu não pode5!
negar que és culpado de dous crimes , d~ sacrilegio para com os ·
deoses, e 1~ebeldia contra César. Obedece ; alias os ~Itrajados oeo-
ses , e as leis violadas reclamam o íeu sangue.
Symphoriano : Esta imagem não é mais do que um prestigio ,._
de que o demonio se serve para Qnganar os homens. Quanto. a nós,
temos um Deus que dá o castigo e a recompensa : em quanto lhe for
fiel , nada tenho que temer.
Vendo , pois , . Heraclio que nada conseguia do inlrepido man-
•, cebo , mandou-o cruelmente açoutar peios seus liclores ( t) , eóvian-

(1) Chamavam-se liclor·es os que levavam os madiados e os


molhos de varas d1aotc dos magistrados romanos.
, '
...

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..
DE N:nstVEIUNCA. -3oa
'/
do-o depois _ao carcere. Passados dous dias , compareceil de novo
Svmfhoriano.
... . .. .
--neraclio : Considera quanto serás mais prudente servinde os
deoses immorlaes, pois teras uma gratificação do lhesouro publico,
_e receberás um posto honroso no exercito. Eu vou mandar_ ·enfei-
tai- de flores o altar , para offereceres aos deoses o incenso que lhes
é devido. ·
Symphoriano : Um magistrado, deposilario da auctor1dade do
principe, e encarregado dos negocios publicos , não dev,e perder o
tempo em discursos inulcis.
Ileraclio : Ao menos sacrifica , a Om de gozares as honrns que
te esperam na corte.
Symphoriaóo : Um juiz avilta a sua digRidade, quando se serve
do poder, que ella lhe confere, para urt.lir )aços á innocencia. Of-
fereceis-me em taça d'ouro· o licor . venenoso; mas eu repulso todas ·
as vantagens , que se me offereçam por oulra mão que não seja a mão
. adoravel de Jesu-Christo. Só elle pode dar uma felicidade verdadeira.
Heraclio: Esgolas-me emfim a paciencia. Ou sacrifica, ou le
farei cair a cabeça aos pés da boa deosa.
· Symphoriano : Eu temo ao Deus omnipolenle, que tne deu o ser
e a vida ; a elle só adoro. O meu corpo eslá nas -vossas mãos ,
mas o vosso poder não será de longa duração, a minha alma não
Yos eslá sngeita nem ao vosso tribunal.
Não pôde o juiz conter por mais tempo a sua colera , nias
cheio de furc,r pronunciou esta sentença. Declaramos Symphoriano
culpado do erime de Leza-mageslade divina e bümana , tanto por
ter recusado sacrificar aos deo~es , como por fallar delles com pouco
:respeito.; para· cuja _reparação o condemnamos a moner pela espada
vingadora dos deuses··e das leis. »
O Santo ouvio pronunciar a sentença com alegria. Como fosse
conduzido ao supplicio , sua mãi veneravel por sua idade e virtudes .
o exhorll!va do alto uos muros da cidade, a morrer como verdadeiro
soldado de Jesu-Christo : Meu filho lhe bi=atlava ella , Symphoriano,
meu filho , lem aninio ! Lembra-te do Deus vivo ; olha para o Ceo,
e considera aquelle que alli reinà. Não receies a morlê , que por
ella vaes entrar na vida eterna.

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30i CATEClSMO

Levaram o santo a um · sitio dos suburbioc; da cidade , aonde


corre uma fonte que ainda hoje existe , e alli o decapitaram. Foi
, no anno 180 de Jesu-Christo; No mesmo anuo morreu o . tiranno,
por cuja ordem Symphoriano e tantos outros martyres "soffreram hor-
ríveis tormentos. Fulminou-o Deus, quando estava longe dos :st us 1

amigos e parentes, tendo apenas de idade cincoenla e nove annos,


YerHicando assini a sentença da Escriptura que diz , que os velha- .
cos e, sanguinarios não chegarão -a viv'er a metade dos seus dias. Ha
; sua morte' já o imperio romano' ebrio dé sangue' gaugrenado de
crimes, ameaçado . de lodos os lados pelos povos do norte, se sentia
abalado até os fundamentos. · . Nem tardou que ã mão do 'Omnipo-
tente o não reduzisse a pó.
A Marco Aurelio succetleu o infame Commodo. Sob este im-
perador, diz Eusebio , estiveram os nossos negocios em estado assas
tranquillo , e pela m1sericonlia de Deus a Igreja gozou de profunda
paz em to<la a terra. Contam-se, não obstante , neste intervallo
muitos marlyres, entre outros Apolonio, apologista da Religião.
Durante os primeiros seculos a lucta da velha contra a nova so-
cie<la<le foi quasi conlinua. Ao passo que as paixões armarias per-
seguiam os christãos, atacavam os pbilosopho3 a sua doutrina , pro-
curando diffamal-a entre o povo , e emfim não poucos heresiarchas
cemeav~m _a díscordia e a diyisão entre o rebanht>. Todavia, ap.ezar
de tantos obstaculos, o Christianismo estabeleceu-se em todas as par-
tes do mundo, em Roma, Alnenas , Alexandriá, e nas Gallias. A
immensa propagação do Evangelho é confirmada por todos os aÜLho-
res chrislãos e pagãos (1 ). Ora , os christãos; que já enchiam o im- -
perio , nem eram homens credulos e avidos de novidade, nem de
condição baixa , supersticiosa e -estupida ; eram peló__ co~trario, pes-
soas de lodos os estados e condições, cuja pene.tração atlerrava e
desconcertava os impostores , que pretendiam seduzir o povo (2).

(1) , Carta de ·Plinio , ·Luciano-, Daal.


- (2) Juslioo , 1. ~pol e. XXV.

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DE PERSEVERANÇA. 305

on~vxo.
'

O' meu Deus , que sois todo amor , eu vos dou graças por ha·
verdes eslabel~cido a Religião , apezar de todos os obstaculos ;
mostrando-nos ainda por este modo, que ella é obra vossa. Dai-nos,
Senhor ~ a fé , e constancia dos martyres , a fim que possamos re-
1
sistir como elles a todos os inimigos da nossa salvação.
Eu protesto amar a Deus sobre todas as cousas , e ao proximo
como a mim mesmo, por amor de Deus ; e , em testemunho d~ste
amor , direi constantemente como os martyres. Eu -sou christão !

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30ft C..lTIC1Sll()

XIV.ª LIÇÃO.

O CHRISTIANISMO ESTABELECIDO

(III SECULO.)

Quadro <lo terceiro seculo - Tertulliano - Origcnes - Selima per~cguí­


:ç~o sob Scplimio Severo; ~.ctrato deste príncipe ~ martyrio de Santa
Perpetua e de Santa Felicidade.

DuiuNtE o terceiro seculo , o demonio que via desmoronar-se o seu


imperio por lodos 6s lados , e sobre as suas ruinas erguer-se o reino
e
da verdade da santidade ' reunio todas suas forças para vibrar
um grande golpe, e aniquilar a nova sociedade. A par dos pro-
consules , precedidos da espada , marcha um exercito de pbiJosophos,
impostores , magicos ,. herejes ·e apostolos de todos os erros. e de to-
dos os vicios. A Igreja nascente é investida por todos os lados ;
e ~ para assim dizer, ella não sabe para onde virar-se. Entretanto
Deus está com ella , e sustentada por seu poderoso braço , a bem
amada esposa resiste a tudo e a todos. Aos algozes oppõe os mar-
tyres ; aos pbilosophos e hereges , os seus apologistas ; aos presli-
gios , os verdadeiroa milagres ; aos vicios de todo o genero, as vir-

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DE PERSEVER!N~A.. 307
ludes todas. Comt'ça a lucla : os editos de proscripção , as calum-
ni as , as injurias chornm sobre a Igreja como espesso granizo : atten- .
damos , para que o nosso coração tome parle no combate.
N'este momento apparecem dous homens destinados a suster .o
peso do inimigo. Veem-se alternadamente já nos tribunaes, aonde
se julgam os christãos , já nas academias dos pbilosophos, e assem-
bleas dos hereges , defendendo com energia a mnocencia de seus ir-
mãos, e pulverizando o erro: estes dous homens são Te1·tulliano e
Origenes. -
O primeiro tinha nascido em Carthag-0 " pelo anno 160. Era
filho de um centurião das tropas proconsulares da Africa. A cons-
t:ancia dos marlyres lhe tinham aberto os olhos sobre a falsidade do
paganismo , fazendo-se por isso christão. _ Pouco depois, sendo ele-
vado á dignidade do Sacerducio por causa das suas virtudes e sa-
ber, partiu fie Carthago para Roma, e crê-se que foi nesta ultima
cidade, ··que elle publicou a sua obra a favor dos chrislãos, que
tem por titulo Apologetico , durando a perseguição do imperador
Se, ero • pelo anno 202.
1

Esta obra é classificada entre as melhores que nos ficaram da


antiguidade chrislã, e por ella alcançou- o seu auclor grande repu-
tação em toda a Igreja; de sorte que o seu nome é conhecido -até _
ás extremidades do Universo (1). A eloquencia de Terlulliano fusi-
la , troveja, e derriba. E' como raio , que aonde fere não deixa
se não ruinas. A sua critica não é só luz que illumrna , é flam-
ma que devora.
O seu Apologetico, a mais vasta e famoza das apologias chrislãs,
deu golpe mortal no paganismo.
Te.rlulliano começa por 1uslificar os christãos das accusações com
que os arguiam calumniosamenle , e prova que. é a maior das injus-
liç.as punil-os unicamente em ras!fo do seu nome. Traz depois a

(1) Euseh. 1. li, e. ! .



.\

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./

308 CATECISMO

refutação da idolatria. Cada palavra é como um formidavel golpe de


martello, que vai demolindo e desmoronando até os fundamentos o
velho ed1ficio do paganismo , expond? á irrisão os seus deuses e os
ieus adoradores.
A' refutação da ido 1atria segue-se a exposião da Religião Ciiris. .
Lã , e dos sotfrimentos de nossos pais. l\lostra em todo o seu. cx-
plendor a submissão dos christãos aos imperadores , a affeição aos
proprios inimigos , a charidade que os unia , o horror que Linh:im
/
ao vicio , e a constancia com que supportavam os tormentos e a
morte por amor da virtude.
Os idolatras lhes chamavam ·por escarneo Sarmentianos ou Se ...
maxianos, porque os prendiam a troncos d'arvore.s, ou os ligavam
a feixes de lenha , para os lançar no fogo. Tertulliano responde-
. lhes nestes termos. O estado a que nos reduzem • para nos quei-
mar , faz o nosso mais bello ornamento ; são vestes lriumphaes, bor-
dadas de ramos ele palmeira em signal de victoria. A fogueira é
o nosso carro triumphal. Quem Jamais examinan40 a nossa Reli-
gião a não segnio?.. E quem, seguindo-a , não está prompto a mor-
rer por ella ?.. Nós damos gra-ças quando nos condemnaes, porque
ha infinita distancia enlre o juizo de Deus e dos homens ; quando
nos condémnaes, Deus absolve-nos. l)
Depois de derribar os pagãos , o vigoroso ath1eta volta-se con-
tra os berejes . Armádo de irresistível logiea, confunde com um só
argumento todas as heresias passadas, presentes e futuras. Este é o
argumento, da prescripção (1 ). A verdadeira Igreja, diz elle, é aquella
qiie sobe sem interrupção até Jesu-Christo. A Igreja Cai/tolica e a
unicq, que sobe sem interrzipçiio até Jem-Christo. Log<~ a Igreja Ca-
tlwlica é a unica t•erdadeira. Por cõnseguinle , Tertulliano.. dirigiu-

_ (1) O termo prescripÇão , é como todos sabem, tirado da 1urispru-


dencia e signilica um motivo de não receber uma excepção peremptona ,
que o defensor oppõe ao démandanle , em virtude da qual este é de-
clarado - ioadmissivel para intentar certa acção, sem que haja ncceu.idade
de entrar oo exame das suas rasõcs e llos seus Litulos.'
J

http://www.obrascatolicas.com , 1
DE PERSEl'ERANÇA. ao!l
tio-se aos innovadores diz-Jhes : « Quem ~ois vós ·?.. donde vindes'!
Vós sois d'honlem, honlem mesmo nascestes, pois antes d'"esse dia
não ereis conhecidos. Eu alcanço-vos no primeiro passo. diz a Igre-
ja· Catholica. Eu existia anles ele vós, existo desde Jesu-Christo;
e fui eu que transmilti ao universo as suas li~ões_e as dos seus Apos-
tolos. Quanto a vós, recem-nascidos d'hontem, que fazeis em minha
casa não sendo dos meus? Com que direito , ó Marcião , melles a
fouce na minha seara? quem te deu licença ó Valentim , de mu-
-:- dares a direcção das minhas agoas f' quem te auctorisou, ó Apelles (1)
a deslocar os marcos do meu campo? como ouzais pensar e viver
aqui a vosso arbilrio? estes bens pertencem-me. Eu estou de posse
de11cs ha muito tempo ~ tenho a posse antiga; descendo dos anti-
gos possuidores , e provo a minha descenclencia por tiLulos authen-
licos (2). )} .. Estes lilulos são a succcssão nunca interrompida dos , 1
nossos Bispos a!é aos Apoetolos, e a uniformidade da sua doutrina 1

· com a doutrina aposlolica. ·


Tertulliano emprega este mesmo argumento contra os herejes
parti1.mlares que elJe refuta, laes como ~larcião , Valen~im, Apelles
e Hermogenes.
Depois de ter feito lam uteis serviços á Igreja , perseverando
alé quasi ' a metade da sua vida • isto é, até á idade. de mais de
quarenta ~mnos , caiu tambem Tertulliano em erro. A sua queda é
/
para nos fazer tremer ; pois se os Cedros do Libano tlão em terra,
que será das frageis canoas?
. Este successo , comtudo , nada prejudica o merecimento dos
seus anteriores escriplos. Elle é como um homem ele grande tino,

(J) São nomes dos diITererentcs hercJes d'aqueUes Lempos.


(2) Mca cst possessio , Olim possideo , prior poisideo , habeú origi-
nes firmas, ab i·psis auctor1bus quorum futt res. Ego sum haeres Aposto-
lorum. Sicut ca,·crun(, sicut adjuraverunt, Ha tenco. C. XXXVII.

,1

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310 C!TKCISWO

a quein sobreveio alienação mental ; e cuja loucura , por tanto,


não intilihsa o que antes tinha feilo em beneficio das siencias (1).

(1) Alem do Apologelíco e ns Prescrípções Tertulliano compoz ain-


da antes da sua queda outras obras_, que são as seguintes:
1. º Os seus dons livros contra os gentios. No primeiro refuta as
ralnmoaas, com que os idolalras accusa,·am os christãos ; ataca no segundo
o culto das falsas di,·indadcs.
!.º O liHo contra os j11deos, no qual Tcrlnlliaoo se propõe mostrar
o lriumpho oblido pela fé sobre os judeos, povo cego e obstinado que pa-
recia surdo a todos os racioc1oios.
3 º O livro contra Hermogenes. Hermogcncs , philosopJ10 stoico sus·
citou na Afrira uma non heresia, que consisLia cm sustentar que a ma- .
teria é clcrn.a : Terlulh.mo refu la ·o.
~.º O livro contra os Valentinianos: no qual o auclor cuida mais
cm ridicularizar , do que refutar seriamente as opiuiõcs extrarngantcs de8lcs
hcreJeS.
5.º O tractado da penitencia : Terlulliano trala na primeira parle do
arrrpendimento dos peccados corumclidos antes do baptismo ; e na segunda
dos peccados commellidos depois da regeneração. Ensina que a lgreJa lcm
o poder de renuttir os peccados.
6. 0 O livro da oração conLcodo <luas partes : a oração dominical é
explicada na primeira; na segunda tra\a de · mu1Las ccrcmooias que se
obscr\'a\'am na oração.
7 .º A exhortação á penitencia. Os mo li vos desta virtuue são aqui
dcsen,·ol\'idos com haslanLe eloquencia.
8. 0 A exhortação ao martyrio. Nada mais locante pode ler-se do
que esta obra.
9. 0 O livro do baplismo. Tcrlulliano prova a sua necessidade na
primeira parte ; e trata oa segunda de . muitos pontos de disciplina rela-
tivos a esle sacramento.
10. Os dous livros a sua mulher , <'ompostos por Tertulliano antes
da sua ordenação. No primeiro exhorta sua mulher a que oão torne a
cazar, se lhe sobreviver; no segundo reconhece que é permittido tornar·
se n cazar: termina por uma bella -dcscripção do cazameoto christão .
11. O livro dos espectaculo$. Ncllc prova Tertulliano que cl lcs são
uma fonte de vicios e impurcsa.

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Di PERSEVERANÇA. 311
Ao. passo que Tertulliano sustentava a çausa do Chrislianismo
.no Occillente , o. celebre Origenes a defendia no Oriente. Este gran-
de homem, filho do Santo martyr Leonidas-, nasceu em Alexandria
em 185. Excedendo em genio lodos os homens da sua epocha ,
Origenes abrangeu todas as- sciencias. Aos desoilo annos foi encar-
regado da eschola lias catechescs de Alexandria ; a qual era des-
tinada a iniciar os neophitos nas verdades da fé. Origenes era ad-
mirado e respeitado de todos pelo seu saber. De toda a parle o
.linham consultar. e não -tardou que se visse seguido de grafllle
-numero de discipulos. Da sua eschola sahiram os doulores'e padres,
que depois esclareceram a lgr•eja com $Ua scienria ; e os marlyres,
que a confirmaram com o seu sangul'. Era lam amante da pobreza
como <.lo estudo. Andava descalço , e abslinha-se do uso de carnes.
'
12. 0 IÍHO da idolatria; no qual trai a dec1são Jc muitos Ci\SOS
de coosciencia , a respeito do culto das falsn dh·in(tadcs.
13. Os dois livros dos ortiametilos ou vestidos das mulheres : onde
rerommeoda muito a modestia no vestido ; e seHramcnle crimina o uso
de arrcbiqucs.
14. O liHo da necessidade de se recatarem com o teo as virgen.v.
Tcrtulliaoo mostra como as donzcllas moças devem cobrir o rosto na
Igreja.
15. O livro do _Te.stimunho da alma. O fim do aurtor é provar 'IUC
não ha se.não um só Deus , pelo proprio testimunho da alma de cada ho-
mem.
f 6. O livro intitulado Scorpiaco, esmpto para pre,·cnrr os fieis
contra o veneno dos Scorpiões ou Gnosticos.
17. E'xhorlação á castidade. Neste desria Tcrtulliaoo uma viu''ª de
passar a · segundas nupcias , amda que cooíessa serem 1>crmillidas.
Depois da sua quecfa ; Terlulliano escreveu , I .° Ciuco horas contra
Marciano, 2. º o Tratado da alma de Jern -Christo, 3 .º Da· /lessurreicão
dn Carne, 4.. 0 /)a Corôa do soldado, 5. 0 -A apologia do manto filosoftco,
isto é do habito e trajes dos lilosofos, que muitos tinham e criam não
- dever abandonar depois da sua con,·crsão, 6.º O livro á Scapula, 7.º
os escriplos contra Praxéas, 8.º os livros da pi1dicicici, 9.º da · ft1gida
durnnt1 as perseguiçqes, do jej11m e da monogauua.

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_ 3U CH~CISMO .

Uma extrema fraqueza_ de estomago o obrigou a uzar d'um pouco de


' vinho. Jejuava e r~lava muito , e para repousar, a terra nua lhe
servia de Jeilo.
Assim tinha Deus preparado o vigoroso alhlr.ta, que havia de
vingar a sua Igreja : Origenes não tardou a enlrar no combate .
Celso , philosopho epicurista, tinha agglomerado contra os cbrislãos,
e os seus dogmas, todas as calnmnias , e sublilezas inventadas pelos
judeos e idolatras ; e accrescentou outras mais suas por tal modo que nada
deixou que dizer aos inimigos da Religião ,- que depois delle tem ap- -
parecido. Elle achava na fecundidade do seu espir1to, exercitado na
disputa, multidão d'objecções, que. sabia tornar plausíveis e apre-
sentar com aspecto seduclor ;. escrevia com dogmatismo e em estil ~
frisante, lendo de mais a habilidade de zombar cow pilheria, e ri-
cliculizar os seus adversarios; o que tudo e de grande importailcia
para o vulgar dos leitores. Eis aqui o homem com quem Origenes
tinha de bater-se. Mas elle o atacou, e levou debaixo, com a su-
perioridade <l'uma boa causa, d'um geuio vasto, erud1ção immensa ,
argumento solido, justo e consequente. Persegue-o o albleta passo a
passo , reduzindo todos os raciocinios aos seus verdadeiros princi-
pios; e o mesmo é demonstrar elle que Celso altera os factos, como
tirar a lume o que elle havia de proposito embaralhado. Estabelece
depois a verdade do Christianismo pela evidencia do facto, que re-
sulta das provas historicas. E' isto o que fez dizer a S. Jeronimo,
qne ha nas obras de Origenes com que refutar todas as objecções
que se Lem feito, ou que se .rossam fazer contra a Religião (1).
Teve Origenes, porem, como Terlulliano , a desgraça de sus-
tentar doutrinas erroneas; mas parece que nunca fora obstinado nas
suas opiniões (2).

(1) Ep. aà Mag. Eusebio l. 1 adv. Rieroclem.


1~)As ' soas obras mais celebres são 31cm da Refutação de Celso as
suas Hexapies, ou a Biblia em seis columnas , os commeolarios da es-
criptura e o livro dos marlyre1 dirigido aos fieis presos pelo nome Je
Jesu-Christo.

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- I
/

DE PEUSEVEI\ANÇA. 313
A Providencia , q'1e linha opposto , no momento opporluno, os
apologistas da ·verdade aos campiões do erro, sustentava com igual
resultado . a ·guerra, que os tirannos armados com a espada faziam
ao Christianismo.
Os marlyres se apinhavam _em multidão perante os tribunaes,
e o seu sangue , conslancia e solida virtude respondiam a tudo.
l..ogo no anno 200 , renovou o imperador Septimo Severo os edictos
da perseguição : a sua crueldade , lhe mereceu o titulo de liranno.
Possuia elle algumas boas qualidades mas eram sobrepujadas por to-
dos quantos vicios pode ter um homeni detestavel : era velhaco, dis-
simulado , mentiroso, perfido , perjuro , avarento, egoista, iracundo
e cruel. Havendo as guardas preterianas posto o imperio a lanços,
foi rematado por Didio Juliano. Severo, então governador da Illi-
ria , fez revoltar as suas tropas , veio a Roma , desfez-se dos seus
competidores , mandou matar ou desterrou muitos senadores, cujos
bens conllscau ; e passando ás Gallias , derrotou Albino, governador
da Grão Bretanha. Vindo ' examinar o campo da batalha, e vendo o
corpo do seu inimigo estendido morto, atropellou-o e pizou-o aos pés
do seu cavallo. Usar assim da vietoria, prova quanto elle era indigno
~ de vencer. Pouco depois mandou matar a mulher .e filhos de Al-
bino , e lançar seus cadaveres no Tibre. Tendo Jido os papeis des-
te desgraç.ado, fez morrer a todos os qut' tinham seguido o se11
parLido. As primeiras personagens de Roma, e muitas damas de ·
distincção foram envolvidas nesta carniceria.
Sob o podér d'um principe deste caracter não podia deixar de
correr, como logo correu a jorros o sangue christão , em todas as
Igrejas do mundo. Em primeiro Jogar apparecem duas heroinas
para sempre celebres nos fastos da Religiãà, · a saber : Santa Per-
petua e Santa Felicidade. Perpetua mesma foi que escreveu a his-
toria do seu martyrio. Ouçamos com particular attenção o seu re-
latorio , escripto no proprio .carcere, na vespora do seu supplicio.
Aos 7 de Março do anno 203 , o proconsul Firminlano (1) fez

(1) O Proconsul era o magisirado que Roma enviava á provinciá,


para a governar rom toda a auctondada que os consoles linham em
Roma.
40 VI

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314 , CA TEC1Sl!O

prentler em Carlhago cinco jovens cat~ecumcnos : Rcvocalo e Fe-


licidade de condição servil ; Saturnino , Secundolo e Vibia Perpetua.
Felicidade estava ~nlão gravida de sele mezes , e Perpetua tinha
um lenro filhinho, que amamentava.
Esta ullima contava apenas vinte e dous annos· de . idade , d_çs-
cendia de familia nobre, _e era casada com um lidalgo dislincto.
Parece que sua mãi era chrislã , mas seu pai , homem já velho,
era mui afferrado ao paganismo. Amava elle Perpetua mais que aos
outros filhos, dos quaes um era lambem chrislão, outrn cathecn-
meno , e tinha tido outro, que morrera da idade de sele annos.
Saturo , que segundo parece , era irmão de Salurnino, e linha dou-
trinado os nossos santos marlyres , deixou-se voluntariamente pren-
der , para se lhes reunir. Logo que estes generosos soldados 1Je
Jesu-Chrislo foram presos , estiveram alguns dias fechados em uma
casa particular; e foi alfi que começaram os combales., que tiveram
que sustenlar contra a natureza e o inferno : ouçamos, porem, fallar
a mesma Santa Perp!'lua.
cc Eslavamos ainda, diz ella , com os nossos perseguidores,
quando meu pai , movido da sua ternura , veio fazer novos esforç.ns
para abalar a minha conslancia : Meu Pai , lhe diss~ eu, este ,·aso
de terra que aqui está , poderá mudar de nome ? Cerlamenlc não
póde ; me respondeu elle. Do mesmo modo, lhe repliquei eu , não
posso ser senão o que sou ; isto é , chrislã.
A eslas- palavras, men pai se atirou a mim para arrancar-me os
olhos ; mas contentou-se com mallractar-me , retirando-se depois con-
fundido , por não ter podido vencer a minha resolução com totlos
os arlilicios, que o demonio lhe suggerira.
Passados a1guns dias , em ~ue me não appareceu , dei graças a
Deus, consolando-me da sua ausencia. Aproveitamos este pequeno
inlervallo , para receber o Baplismo ; ao sair da agua , o Espil'ito
San lo me inspirou para não pedir outra cousa , . senão a paciencia
nos tormentos.
« Poucos dias depois fomos conduzidos á prisão ; fiquei espan-
latlà , porque nunca tinha visto iguaes trevas (1 ). Soffremos baslan-

• (1> As prisões dos romanos eram calabouços soturnos, aonde a· luz.

·,,

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llF. PERSE.vERAt\ÇA. 313
Le neste dia , tanto pelo calor da multidão, como pela insolcncia
dtls soldados, que nos guardavam. O que me causava mais pena
er~ o não ter o meu filho; mas os bem-aventurados diaconos Ter-
tio e Pomponio , que nos assistiam , conseguiram á força de dinhei-
ro, que nos pozessem algumas horas em um sitio, onde podessemos
respirar. Em quanto cada um pensava nos seus negocios, amamen-
tava eu o meu ·filho, que me haviam . trasido; roguei a minha mã1
que o tornasse a seu cuidado, e consolei-a bem como a meu irmão.
Eu mesma eslava penetrada de dôr , Hndo a que lhes causava.
Passei muitos dias nestes trances, mas tendo obtido, que me'deixassem
o meu filho -na prisão , achei-me consolada , e pareceu-me a prisão
uma habitação agradavel, sendo-me indifferente estar alli ou em qual-
quer oul.ra parle.
« Um dia, disse-me meu irmão: Eu sei, Perpetua, que és mlíilo
aceita de Deus ; pede-lhe, p01s , eu to rogo, que te dê a conhecer
por alguma vizão , · se terás de soffrer o martyrio , e dize-mo de-
pois. » Comi) eu sabia , que Deu_s me dava cada ,dia mil signaes
da sua bondade , respondi com confiança a meu irmão : ámanhã
saberás o que hade acontecer. Conjurei , pois , o Senhor, para que
me desse uma ' vizão , e eis-aqui a que tive.
Vi uma eseada , tle prodigiosa altura , que cbegaYa da terra ao
· Ceo ; mas tam estreita , que não podia subir senão uma pessoa de ·
ra1Ja vez : . ambos os lados estavam erriçados de lanças , espadas , ,
ganchos e cutellos ; de sorte que todo aquellc que descuidadamente
subisse , ou sem olhar para o alto , não podia deixar de ser dilace-
rado por todos aqnellcs instrumento~. Junto da escada ·estava um
dragão horrendo , que parecia sempre db:;josto a arrojar-se a quem
lentasse subir. O primeiro que subio foi Saturo , que não estava
_comnosco quando ~fomos prezos ;~ mas que depois se entregou vo-
luntariamente aos perseguidores por nossa causa. D{'pois que .ellc

i
não cotra"a se não por uma pílqueoa fresta do que é pro''ª c\·idcntc a
prisão Manurlina em Roma , e outras ainda existentes em antigos amph1-
lhcatros~ ·

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316 CATECISMO

chegou ao allo da escada , voltou-se para mim e disse-me : Perpe-


tua , eu te espero ; mas tem cuidado que o dragão te não morda .
Eu respondi-lhe : Em nome de Nosso Senhor .Jesu-Christo, que me
não fará mal. Então como se elle tivesse medo de mim , ergueu
brandameóte a cabeça por baixo da escada, e dispondo-me eu a
subir, elle me serv10 de primeiro degrao. Logo que cheguei ao alto,
vi um homem de grande estatura , veslido de · pastor, cujos caoellos
eram brancos , e eslava mugindo as · suas ovelhas , e cercado de
innumeravel multidão de pessoas, vestidas de branco. Elle me cha-
mou pelo meu nome, e disse-me : Minha filha , sejas bem vinda.
Depois deu-me uma especie de requeijão, feito do leite, que ordenava.
Recebi-o juntando as mãos e o comi : lodos os que estavam presen- 1-
tes responderam - Amen - Acordei a este rumor, mastigando o quer
que era muito doce. Contei esta vizão a meu irmão, e concluimos
.que sofreriamos. a morto. Começamos desde logo a desligar-nos da~
cousas terrenas , e a pôr· todo o pensamento na eternidade. _
Alguns dias depois , lendo-se espalhado o boato de que iamos
a perguntas, 1'i eu entrar oícu pai na prisão ; a dôr estava pintada
em seu rosto : « Minha filha , me disse elle , tem compaixão da mi-
nha encanecida velhice , compadece-=te de mim. Se mereço que me
chames teu pai , pois que te criei até esta idade, e sempre no meu
coração te preferi a teus irmãos , não faças de mim o opprobrio dos ·
homens ! Contempla teus irmãos , tua mãi e teu filho,· que não po-
derá sobreviver a tua morte. , Deixa essa fereza , para não nos per-
deres a todos; porque nenhum de nós ousará apparecer em pnblico,
se fores condemnada ao supplicio. ))
Dizendo isto , me b.r;jou as mãos ; depois , lançando-se a meus
pés, todo banhado em lagrimas, chamava-me, · não sua Hlha, mas sua
Senhora. A minha dor era extrema , pensando que d~ tóda a minha
familia , elle seria o unic.o, que não se regosijasse com o meu mar-
tyrio. Disse-lhe para o consohlr: Ora meu Pai , bade aconlecer só
o que aprouver a Deus ; a nossa sorte depende del1e.e n:ão de nós~
· Elle Í'etirou-se opprimido de trisleza.
No dia segui!lle , quando janlavamos , vieram-nos repentina-
mente buscar, para sermos perguntados. A noticia espalhou-se im-
mediatamenle. . por lodos os bairros da cidade, e a sala da audiencia

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1 •

DE PERSl~VERANÇA. 317
em um instante se encheu de immenso povo. Fizeram-nos subir ' a
uma especié de theatro , aonde o juiz tinha o seu tribunal.
Comparecemos perante Hila.rião , intendente da provincia , que
representava o proconsul , ha pouco fallecido. Todos os que ante~
ele mim foram perguntados, generosamente confessaram·a Jesu-Christo.
Chegando a minha vez , preparava-me para responder • quando meu ·
pai apparece, acompanhado de met~ filho, que um creado trazia nos
braços. Ell~ me apartou um pouco do tribunal, e empregou todos os '
méios que a ternura pode suggerir , para me ilÍlernecer da sorte ,
de meu innocente filho. llilar~ão coadjuvava meu pai. Pois que ,
me diz elle, não te enternecem nem as cani de leu envelhecido
pai, que deixarás inconsolavel ; nem a innocencia deste menino, que
fiçará orfão pela tua morte'? Vamos, basta que sacrifiques pela
prosperiddde dos imperadores !
Eu lhe respondi : Não , jamais sacrificarei. Hilarião replicou :
Logo és cbristã ~ Sim , sou christã , lhe tornei eu.
« Entretanto , meu pai , que tinha vindo esperançado de .Jl1C
· persuadir, recebeu uma varada d'um porteiro, a qtwm Hilarião ti-
nha ordenado que o mandasse retirar. Este golpe me foi mui sen-
sível ; senti a mais viva dôr, por vêr meu pai assim m~llralado
na sua velhice. O juiz pronunciou depois a nossa sentença, e nos
condemnou a sermos todos · lançados :ls feras. Tornamos para a pri-
são cheios d'alegria. Logo que entrei , pedi ao Diacono Pomponio
que fosse a meu pai , pedir o meu filho ; mas elle não quiz man-
dar-mo. ))
Pàrece que Secundulo tinha morrido na prisão , antes do inler-
rogatorio , porque não se falia delle. Hllàrião, antes de pronunciar
a sentença, tinha. feito soffrer uma cruel flagellação a Saturo, Salur-
nino e Revocato ; igualmente tinha mandado esbofetear Perpetua e
Felicidade. Demorou elle o Supplicio dos martyres para os jogos ,
destinados_ a festejar Gela , qtÍe o imperado~ Severo , seu pai, tinha
creado Cesar , logo que Caracalla foi proclamado Augusto. Ouça-
.mos Santa Perpetua continuando o seu relatorio. « Pouco depois nos
transferiram pal'a a prisão do campo ; e fomos lodos mellidos a fer-
ros até o dia, em que devíamos ser expostos ás feras. Entretanto,
o oflfoial, chamado Pudencio ,, que com mandava as guardas da prisão,

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318 CA lllClS~IO

,·endo que Deus nos favorecia com muilas g1·aças, concebeu por nós
grande estima , e deixou entrar hvremente os irmãos, que vinham
ver-nos, ou para nos consolar , ou para elles mesmos receberem
consolação. Como o dia destinado para o espect.aculo se aproxima-
va, veio meu pai visitar-me. Elle estava n'uma prostração inex-
plicavel , arrancava a barba, lançava-se por terra, e alli se <leixava -
ficar de bruços , maldizendo a sua velhice, e dizendo cousas capazes
de commover todas as creaturas. Eu morria de affiicção pelo ver
neste estado. » Aqui acaba a relação de Santa Perpetua ; o que se
segúe foi escripto por uma testemunha ocular.
Como fica dito , Felicidade estava gravida de sete mezes, e vendo
o dia do espectaculo tam proximo , eslava muito afflicla, receando
que o seu martyrio não fosse tl1fferido , por que não era pcrmiltrdo
executar as mulheres prenhes, antes do seu parlo. Os companheiros
tio seu sacrificio experimentavam grande tristeza, por d~ixal-a só no
caminho da sua commum esperança. Por isso todos se pozeram em
_oração , a fim que ficasse livre antes do dia do combale. Logo
llepois dos seus rogos, sentio as dores do parlo, cuja violencia lhe
fez sollar alguns gritos. Então um dos carcereiros lhe disse? Tu
gemes ?... Que será , quando fores Jançada ás foras ?... Sou eu res-
pondeu -Felicidade , que sinto agora o que soffro; mas lá haverá ou-
trem em mim, que soffrerá por mim como eu sollí'erei por elle.' »
Elia deu á luz uma menina , que certa mulher chri~lã creou como
sua filha.
Entretanto o tribuno, que tinha os Santos marlyres a seu cargo,
tratava-os com extremo rigor. Perpetua, conservando semp~:e o seu
elevado caracter , disse-lhe corajosamente. Como ouzas tratar com
tanta dureza prezos que pertencem ao Cesar, e que estam destina-
dos a combater 110 dia da sua- festa ?.. Porque lhe recozas o pouco
allivio, que lhes é concedido alé esse dia? Não será em Li lou·vavel,
que nos achem sãos e hem tratados ~ O tribano , envergonhado e
corrido da reprehensão, ordenou que os tratassem com mais humanida~e,
e então permiltiram aos irmãos que entrassem na prisão. Trouxeram
~lles refrescos, e o carcereiro Pudencio , que se .linha converti( o, lhes
prestava occuUamente lodos os serviços que dependiam delle:
Na vespera do combate, tiveram., st)gundo o costume, a cea ,

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DE PEJ\SEURANÇA.

que se chamava cêa Jivre, e que era publica. Fizeram os Sanctos


quanto lhes foi possivel, por tornar esta ultima cêa , urna refeição
de charidade. A sala aonde comiam estava cheia de povo, ao qual
os martyres harengavam de espaço a espaço·
Umas vezes fallavam-lhes .com firmeza, ameaçando-os _com a ira
de Deus ; outras, exaltavam a felicidade, que linham, de morrer pelo
nome ele Jesu-Christo ; e outras lina1mcnle lhes repreh1.1ndiam a sua
brutal curiosidade. Pois que, lhes dizia Saturo , não vos bastará
o dia de amanhã, para nos contemplardes á vossa vontade? Hoje
inculcais ter compaixão de nós, ámanhã batereis ás palmas quando ,·
expiramos. Em todo o caso reparai bem em nós, a fim de n~s co-
nhecerdes no dia tremendo, em que todos os homens serão julgados.
Estas palavras, pronunciadas com o tom de segurança e firmeza, que
a re inspira, causavam abalo na maior parle delles. Uns reliraram-
sc cheios de terror , muitos ficaram para se doutrinarem, e creram
cm Jesu-Christo.
Raiou em fim o dia, deslinado para o triumpho dos genero-
sos athlet.as, Foram tirados da prisão e conduzi<los ao amphilhea-
.' lro ; a alegria se lhes pintava no rosto , nas palavras e cm lodo
o exterior. Perpetua ia em ullimo lugar ; a tranqmlidade da sua
alma manifestava-se em seu gesto. teva va com rnodeslia os olhos
no chão , para occullar aos espectadores ·a sua natural vivaci<lade:
Felicidade lrasbordava d'alegria , por ir na companhia dos outros
combater as feras. Logo que chegaram á porta do ampbitheatro ,
quizeram , segundo o costume , fazer-lhes vestir os trajes, que se
costumavam levar para aquelle espectaculo, que era para os homens,
manto vermelho , como usavam os sacerdotes de Saturno, e pa1·a
as mulheres , mantilha em que envolviam a cabeça, como as sacer-
tlotizas de Ceres. Os martyres , porem , recusaram vestir as librés
da iclolatria.
Perpetua cantava, como estando já segura da victoria. Revo-
calo , Salurnino e Saturo, ameaçavam o povo com o juizo~ de Deus .
.Logo que chegaram defronte da · tribuna de Hilarião, presid{lnle dos
jogos, bradaram-lhe: « Por ti somos julgados neste mundo ; mas
Deus te julgará no outro. D O povo, irritado com esta audacia ,
pcdio que fossem açoulados. Os S~nlos, porem, alegraram-se por

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"
. :

320
.· CATECISMO

serem tratados como o linha sido Jesu-Chrislo , seu divino Mes•


lre (1).
Este Deus de bondade , que disse : Pedi , e receber'eis , ou vio
a oração dos martyres ; que estando um dia conversando na prisão,
ácerca dos diversos supplicios que se dav.am aos chrislãos , uns de-
sejavam morrer de uma sorl.e , outros d'outra. Saturnino mostrou
desejo de ··ser exposto a todas as feras do amphitheatro, a fim de
multiplicar as suas victorias, multiplicando os combales. Obteve ·em
parle o que desejava, porque elle e Revocal~ , depois de . haverem
sido longo tempo atacados por um Leopardo , o foram tam~em por
um furioso urso , que os arrastou para junto do lhealro , aonde os
deixou todos dilacerados. Saturo nada temia tanto como ser exp()s[o
a um urso'"', e o que queria era que um Leopa~rdo Jhe tirasse a vf~la
do primeiro assalto. Mas, eis que investe contra elle um javali , o qual
porem , virando-se para o picador ~ue o açolava , rasgou-lhe o ven•
trc com as prezas, e logo voltando para Saturo , contenlou--s-e com
o arrastar aJguns passos pela arca. Levaram-no então para junto
,d'um corpulento urso , que não quiz sair da jaula. Assim Saturo
entrou e saio do combale sem ler recebido nenhuma ferida.
Foi então que tendo-se retirado para debaixo dos porlicos do
amphilheatro, achou occasião de fallar a Pudencio-', a quem exhor-
tou a perseverar na fé. « Ves , lhe diz elle, como as feras me não
fizeram mal ? Parece que sabiam os meus desejos, e a predicção
que. eu linha feilo. Crê , pois , firmemente em Jesu-Christo. Eu
vollo ao amphithealro, aonde um Jeopardo me tirará a vida, de um
só golpe dos seus dentes. » Assim aconteceu,, quasi no fim do es-
pectaculo , um leopardo se atirou a elle e d'uma só dentada lhe

[1] Pro ordine venatorum , diiem as Actas. Chamavam-se venato-


res aos que estavam armados para combater as feras. Collocavam-se em
duas alas, tendo um açoute na mão, e á medida que os besliarii ou con-
demnados ãs feras passavam por entre clles, cada um lhe descarregava -
um golpe. Os beslúiris eram despidos para passarem por esle genero de
supplic10.

. /

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Irn PERSEVERANÇA. 321
abi·io Iam larga ferida , que o sangue corria a jorros , e o povo ex-
clamou : Eil-o baptizado segunda vez. Então o martyr voltou os
olhos moribundos para Pudencio, dizendo-lhe: Adeus, charo amigo,
lembra-te da minha fé. Longe de te horrorisarem , sirvam os meus
soffrímentos de fortalecer-te. Pedio-lhe depois um annel , que tinha
no dedo , e tendo-o molhado em seu sangue restituio-lhe, dizendo-
lhe: Recebe-o como penho1· da nossa amisade; traze-o por amor de
mim ; recorde-te o sangue em que está tinto, <lo que eu derramei_ a
jorros ,por Jesu-Christo. Depois disto transportaram o Santo martyr
a um lugar para onde levavam os que não morriam logo das fe.
ridas.
Neste meio tempo o demomo , estalando de raiva , por ver que
o sexo mais fraco ia alcançar mais assignalada victoria, tinha ar-
1

mado de modo que, contra o costume, destinaram uma vacca brava,


para combater contra Pérpetua e Felicidade. As duas Santas foram
por tanto despidas , e embrulhadas em uma rede , para serem ex-
postas ao furioso animal. A este espectaculo ficou o povo possuido
de horror e compaixão , ve!ldo uma. dama tam delicada, e outra
que acabava de ser mãi. Retiraram-nas, pois, e fü~ cobriram com
roupas fluctnanles. A vacca tendo-se arremessado ·primeiro a Perpe-
tua , a po!eou no ar, e a deixou cair de costas. A joven marlyr,
percebendo que os seus vestidos estavam rasgados, concertou-os
promptamente , menos occupada das suas dores que da offendida mo-
deslia ; . e lev<lnlando-se logo , entrançou os cabellos , que se ti-
nham soltado , a fim de não se parecer com as pessoas affiiclas.
Tendo reparado em Pelicidade , que tinha sido muito mal tra-
tada pela vacca , e que estava estendida sobre a area, correu a ella,
e deu-lhe a mão para a ajudar a levantar-se. Arnbas esperavam que
se lhes -fizesse soffrnr novo ataque ; mas i;ião o tendo querido o povo,
foram conduzidas á porta -Sanavivaria, que dava para' a praça pu-
blica (1 ). Alli foi Perpetua recebida por uma cathecumena, chamada

f1] Havia nos amphiLheatros duas portas chamadas , Sanaoivaria ,


ou portà da carne viva, pela qual saiam os que não morriam no comba-j
(1 VI

,
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322 . Ci\TECISMO

Ruslica. Então esta mulher admiravel acordou como de um profun-


do somno, e perguntou quando as exporiam a essa furiosa vacca.
Quando se lhe pisse o que já se tmha passado , não . o quiz ·crer,
até que reconheceu a catbecumena , e observou no seu corpo e ves-
tidos os signaes do que tinha soffrido.
a: Ah! aonde eslava ella pois? exclama S. Agostinho , fallando
deste acontecimeoto; aonde eslava ella, quando era acommellida e
dilacerada pela cruel fera? Sem lhe sentir os. golpes, pergunlilva
apos d'um fero combate , quando deveria ello comeÇar l Que via
ella para não ver o que todo o mundo via'? Que sentia ella, para
não sentir lam agúdas dores? Porque amor , porque extasi, porque
fütro estava de tal modo transportada fora de si mesma , e como
divinamente embriagada, ,que parecia insensivel -em um corpo mor-
tal ? >>
Mandou a Santa chamar a seu irmão , e disse-lhe, bem como a
Rustica : Presisti firmes na fé , uni-vos uns aos outros , e não vos
escandalizeis pelos meus padecimentos.
Entretanto dispunham-se a degolar os marlyres no Spoliarium ,
aonde Saturo linha sido transportado. Era este , como - havemos
dilo, o lugar aonde se acabavam aquelles, que as feras não haviam
inteiramente morto; mas para gozar até ao nui deste deshumano es-
peclaculo , o povo peuio que lodos fossem degolados no meio do
amphilhealro. Então levantaram-se immctliatamenle, abraçaram-se
para sellar o seu rnarlyrio com o santo osculo da paz, e dirigiram-
se para ondo o povo os . chamava. Todos receberam o golpe mortal
sem fazer o menor movirneulo , e sem soltar a menor queixa. Sa-
turo fot o primeiro coroado, conforme a vis:io de Santa -Perpetua.
Deu ella nas mãos d'um gladiador mhabil , que a fez soffrer longo
tempo , senrlo ella mesma , quem por ullimo guiou a mão tremula cio
algoz que a drgolava , mdicando-lhe o lugar aonde devia ferir.

te , e Saudapilaria, ou a porta tios lençõcs, por onde saiam os \1ue ti-


oham succumb1do.

'
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DE l'ERSKVERANÇA. 323
_ Os seus corpos gloriosos foram recolhidos pelos fieis. No quin-
to seculo estavam na grande Igreja de Carthago. A sua festa , se-
gundo refere -s. Agostinho, atlr.ahia mais povo para honrar a sua
mémoria, do que outr'ora allrahira pagãos ao seu mariyrio. Os no-
mes de Santa Perpetua e Santa Felicidade foram incluidos no Canon
da missa. Que mais bellos ·nomes podia a Igreja nossa Mãi, con-
sagrar á immortalidade 1 Que mais tocanles exemploi podia ella
propôr ás gerações chrislãs !~

~RAÇ.10

O' meu Deus l que sois lodo amor, eu vos dou graças por
haverdes escolhido testemunhas da nossa fé em todos os estados ,
paizes e condições; a fim de confundir a incredulidade, e offerecer
modêlos a todos os cbristãos. Permilli , Senhor , que imitemos a
charidade e grandeza d'ahna de Santa Perpetua e de Santa Felici-
dade.
Eu protesto amar a Deus sobre todas as cousas 1 e ao proximo .
como a mim mesmo , por amor de Deus ; e , em leslemunho deste
amor , meditarei todos os dias nos juiz os de Deus.

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32í CArnCISMO

XV.ª LIÇlO.
I

O CHRISTIANISMO ESTABELECIDO.

(rrr SECULO.)

Santo lreoéo - Oi Saolos Ferróol e Ferjcu~ - Juizo de Deus sobre Sep-


limio Severo - Perseguição particular sob Max1mino - retrato deste prin·
cipe - Juiso de Deus sobre clle - Oitava perseguição geral no reinado
de Decio ; retrato deste principe....:. Marlyrio de S. Piooio , S. Cyrillo e
Santa Agueda - Juiso de Deus sobre Decio - Nona perseguição geral
no reinado de Valerio; retrato deste principc ; martyrio de S. Lourenço
e S, Cypriano.
• 1 '

Eu quanto que Carlhago adquiria duplicada gloria, pelo nascimento


de Tertulliano e o martyrio de Santa Perpetua, conseguia Lião outro
titulo de immortalidade. Santo henéo, seu Bispo, sellava com ··o
seu sangue a fé que linha defendido contra os hereJes (1). Em Be-

· (1). A. principal obra de Santo Irenéo é o Tractado contra as here-


sias. Elle a escreveo sobre todo contra os Vatentioiaoos~ No primeiro
livro, expõe Saoto lreoéo os delirios dos _Valcolinianos sobre a genealo-
gia dos trinta Eooos1, Estes seres imaginarios eram divindades inferiores,

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DE PERSEVERANÇA.
sançon , dous de seus discipulos, Ferréol e Ferjeux, davam o mesmo
testemunho á verdade evange1ica , de qne foram os prim01ros Apos-
tolos, neste paiz tam longo tempo fecundo em .nobres ''irtudes. O seu .
martyrio foi pelo anno 21 O.
Entretanto Seplimo Severo devia , como todos os perseguidore3,
contribuir para a gloria de Jesu-Christo , tornando-se monumento da
sua temerosa justiça.
Deus o ferio com doença mortal no meio de suas conquistas.
El1e vio · o seu proprio filho Caracalla , armado de punhal , attenlar
contra a sua propria vitla. O goJpe falhou ; mas Severo cahiu na
mais profunda melancolia. ·sentindo aproximar-se a morte, excla-
mou : Eu tenho sido tudo quanto o homem pode ser; mas de que
me servem hoje as honras? (1). A sua firmeza o abandonou : de-
pois de ter de balde pedido veneno , tomou de proposito e tam avi-
damente comidas indigestas , que morreu no anno 211. A velha so-
ciedade pagã eslava então já tam devassa , que só no remado deste

produzidas pelo Deus eterno, im·isivel , eh amado Profundeza, ao qual .


davam por mulher o Pensamento.
No segundo livro, mostra Santo lreaéo que só Deus creou o u01verso;
e refuta o "Yslema dos Eonos.
No terceiro, lamenta que os hcrejes, sendo espertados pela Eserip-
tura , lhe illudiam a authoridade, pertcndendo que a tradição lhes era
favoravel; e que, quando atacados pela tradição , a abandonavam, ap-
planJo só para a Escriptura , sabem que a Escriptura e a tradição for-
neciam armas invencivcis contra elles. Prova-o á evidencia.
No quarto mostra a unidade de Deus , e como Jesu-Christo, abolindo
os antigos sacrilic1os, lhes subst1luia o do seu corpo e sangue, que deve
ser offerecido em todo o mundo, conforme a predicção de Malachias.
No quinto falia da nossa redcmpção por Jesu-Christo, e refere as·
- provã's dâ ressurreição da carne.
Santo Epiphanio diz de S. Irenéo, que elle é homem doutíssimo,
muito elc,queote e dotado de todos os dons do Espírito Santo. Theodo·
relo considerado como a luz das Gallias occideotaes.
(1) Omnia fui, et vidi quia oibil cxpcdit.

, ,. .

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326 CATEClS~IO

imperador , isto é, durante quatorze annos , foram processadas trea


mil pessoas , accusadas de adullerio.
Ainda no reinado rle Caracalla houve marlyres , e o mesmo
succedeu no governo dos seus primeiros successores. Era o fogo que
por um instante amortecia ; mas logo se inflammava com maior vio-
lencia. Maximino, subindo ao throno, no anno 285, excitou uma
1

perseguição que durou lres annos ; e que elle especialme nle dirigia
contra os Bispos e Padres (1). O Papa S. Ponciano foi ari~ebatallo
nesta lerrivel tempestade C2).
Para aval!ar o numero dos martyres e o horror dos supp"hcios,
a que foram condemnados , bastará saber quê Max1mino era mons-
tro tam cruel, que os historiadores pagão!", lhe chamaram Cyclope, Bn-
ziris, Phalaris, Typhon. Roma e o Senado , vendo-o partir para
uma expedi~.ão Iongiqua , fizeram preces publicas, para que ta111
detestavel tiranno não vollasse mais á capital. A fama de suas inau-
ditas crueldades feria constantemente os ouvidos de todos. Não se
ouvia out.ra· cousa por toda a cidade senão a funesta relação das
execuç.ões , que elle ordenav~. Mandava crucificar uns, meller ou-
tros nos cada\'eres de animaes recentemente mortos ; estes eram ex.- ~
postos aos leões e aos ursos , aquclles-moidos a pauladas ; sem qua .

(1) E' sem duvida por esta rosão, que não é contada entre ns pet-
segu ições gcraes.
(~) Crê-se que um soldado chrislão lhe deu causa por uma acção
que fez bastan.le estrondo. Quando Maximioo foi. proclamado imperador,
fez, segundo o costume, liberalidades ás tropas. Cada soldado devia·
apresentar-se ao imp~rador com uma corôa de louro na cabeça. Appa- ~
receu um _com o cabeça descoberta , e trazendo a sua corôa na mão.
Tinha clle já passado -sem que o tribuno repa,rassc , quando ·os murmurios
dos seus camaradas lhe fizeram advertir. ·Este orticial perguntou ao sol-
dado porque não levava a sua corôa na cabeça? Porque sou christão ,
respondeu o soldado, e a minha religião me prohibc .trazer as vossas co- -
rõas. O soldado foi despido das suas vestes militares, cm1tlido oa pri-
são.

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D~ PERSEVERANÇA. 32'7
o monstro Livesse contemplação nem com a classe. nem com o me-
rilo ; porque Linha por maxima , que para firmar o throno convi-
nha cimentai-o com sangue. Nunca fera mais cruel pizou a terra (t ).
A morle que teve foi digna da sua vida. Sabendo que o Senado
havia nomeado 'Vinte e duas pessoas, para gornrnar a republica,
encolerisou-se tanlo, que no accesso do seu furor bramia com~ fera,
e batia com a cabeça contra as paredes da sna camara. Depois de
ter acalmado um pouco as suas magoas com o vinho resolveu mar-
char sobre Roma, para Yingar-se; mas os seus soldados o assassi-
naram ·no anno 238. Depois dclle appareccu · Decio, aulhor da oi la-
va perseguição geral .
Uma fera execravel diz Lactancio , chamada Decio, veio devas- '
lar a Igreja. Este novo Nero, depois de haver manchado as mãos,
com a morte do ..seu bemfeitor, apoderou-se tio lhrono ·, e voltou
loclo o seu furor contra os christãos ('2). Enlre os generosos Athle-
tas , que soffreram a morte pela Religião, durante a perseguição do
llecio, nenhum ha mais illustre do que S. Pionio. Este Padre,
honra a Igreja de Smyrna , tinha herdado o espirito de S. Polycarpo.
Converteu grande n·umero <le hlolalras , fazendo servir á gloria de
Jesu Christo o proíundo conhecimento qu.e tinha das vertlades lla
Ucligião , e o dom da palavra , que possuia em gráo superior. Os
Rl'US exemplos eram igualmen le maravilhas de eflicacia. A pallidez ,
do seu ro~lo , que annuncia va a austeridade da sua vida , p1·oduzia
nos corações a mais forte impressfio.
, Poi elle prezo em um sabbado, a ~3 d~ Fevereiro do anno 230,
quando cclebràva a festa de S. Polycarpo com Asclepiades, e uma
chrisLã chamada Sabina. Na vespera Pionio, tendo jejuado com As-
clepiades e Sabina como se jejuava nas vigilias das festas dos mar-
tyres , leve uma visão, pela qual conheceu que seria preso no d_ia
seguinte. A visão foi lam clara que mandou fazer tres cadêas,
uma para elle , outras duas para Sabina e Asclepiades. Pozernm-

(1) Jnl. Ca.p1tol. llerodaan l. Vil e Ylll.


·(2) De mortib. persccutor.

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328 CATECISMO

nas ao pescoço , fizeram a oração solemne , tomaram o pão sagrado


e a agua ; isto é , receberam a Santa Eucharislia , para se disporem
ao marlyrio. Pouco depois chegou Polemon , Sacerdote <los idolos ,
acompanhado <le força de soldados, que os prenderam com effeilo.
Sabeis , lhes disse Polemon , qne ha ordem do imperador, que
vos obriga a sacrificar aos deuzes? •
. Pionio : Nós sabemos <l'um unico mandamento , que é o d'ado-
rar a um só Deus.
Polemon : Acompanhai-me, e sabereis ; se o que vos digo é
certo. Como elles atravessavam a praça com as cadeas ao pescoço.
o povo, que de Ludo fazia objeclo de divertimento e espectaculo, os
foi seguindo .; e de tal modo a multidão augmentou, que a praça bre-
vemente _ficou cheia ; os leclos das casas e dos tem pios, que a cer-
cavam , cobriram-se de espectadores. Os martyres estavam nu meio
de lodo este povo , quando Polemon lhes disse : Farieis muito tne·
lhor evitar o supplicio submellendo-vos , como outros muitos tem
feito, e obedecendo ás ordens do principe. Então Pionio, levan-
tando a voz, demonstrou aos pagãos a falsidade dos idolos , e a di-
vindade do Christianismo : fallou muito tempo , e foi ouvido com
grande allenção· O povo queria ir mesmo ao Lbealro , a fim de
ouvir o discurso do martyr ; mas Polemon não o consentio, e disse
a Pionio : Se não queres sacrificar, ao menos entra no templo.
- Pionio : Para os idolos não é bom que nós lá entremos.
Polemon : E' pois impossivel persuadir-te? ...
Pionio : Prouvera a Deus, que eu podesse persuadir-vos a serdes
chrislão !
Deixa-te disso ; disseram alguns zombando , por mêdo que
sejamos queimados vivos .
Pionio : Muito peior será se o fordes depois da morte.
Durante a contestação , percebendo os espectadores que Sabina
se ria , disseram-lhe com voz ameaçadora : Tu ris? ...
Sabina : Eu rio , porque Deus o quer , nós somos christãos.
Os espectadores : Pois soffrerás o que de certo não quererias.
Sabina : Deus Santo me acudirá.
Põlemon disse ainda a Pionio : obedece.
Pionio : Se tendes ordem de persuadir , ou de punir, puni, por-
que nunca podereis persuadir-nos.

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Irn PERSllVEllA;\;Ç.A • 329
.Pot~mon (irritado com a resposta) : Saáifica !
Pionio : Nunca!
Polemgn : Porque não ?
Pionio : Porque sou chrislão.
Polemon : Que Deus adoras?
Pionio : O Deus omnipotente , que creou o Ceo e a terra , que
nos fez a lódos , . que todas as cousas nos dá co1n abundancia , e
c1ue nós conhecemos por Jesu-Christo s_eu Verbo.
Polemon : Ao menos sacrifica ao imperador.
Pionio : Não sacrifico a homens.
Enlão, Polemon o interrogou jundicament~ ·' fazendo escrever
todas as suas repostas, por um escrivão que as gravava ·em cera:
(( Como l.e chamas tu ? lhe disse e1le.
Pionio : Ch~uno-me christão;
Polemon : De que lg1'eJa ~
Pionio : Da Igreja Catbol1ca. »
Polernon , deixando Pionio , v~llou-se para Sabina.
Tinha a Sanla mudado de nome por conselho de Pionio, com
rr.ceio de ser conhecida e cair ·em poder de sua Senhora ; que era
pagã e flue , no reinado do imperador Gordiano, pretendera fazei-a
abjurar a fé havendo-a carregado de cadêas e desterrando-a para as
montanhas , aonde os irmãos secrelamente a trnham sustentado ..
Polernon : Como le chamas tu ?
Sabina :, Chamo-me Theodota christã.
Polemon : De que Igreja?
Sabina : Da Igreja Calholica.
Pulemon : Que Deus adoras?
Sabina : O Deus o~nipotenle, que creou o Ceo e a terra , e
que nós conhecemos por Jesu-Christo, seu Verbo.
Polemon (endereçando-se a Asclepiades) : E lu , como te cha~
mas?
Asclepiades : Chamo-me chrislão.
Polemon ; De que Igreja '!
Asclepiades : Da Igreja Catholica.
Po1emon : Que Deus adoras ?
.Asclepi·ades : A Jesu-Christo.
t! VI

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330 _CATECISMO

Polemon : Como assim! pois este é já oulro ?


Asclepiades : Não, é o mesmo que elles confessaram.
Depois deste interrogatorio , foram os martyres conduziJos á
prisão ; immenso povo enchia a praç.a. Sabina segurava Pionio· pelos
vestidos , a fim de suster-se entre a multidão. Chegados ao carcere,
resolveram todos generosamente não aceilar o que os fieis costuma-
vam levar aos confessores, porque Pionio , aqnelle Santo Padre, di-
zia : Eu nunca fui pezado a ninguem , e não o serei lambem ago -
ra. Os guardas , que estavam costumados a receber os presenles
elos que vinham ''isilar os cbristãos, desesperados por vêr que esles
prezos não os altrahiam, lançaram-nos em um calabouço escuro e in-
fecto, a fim de mais os atormentar. Entrando alli os Santos, lou-
nram a Deus, e deram aos guardas as rropinas que era costume
dar-lhes. O carcereiro ficou admirado , e quiz de novo conduzi 1-os
á melhor prisão ; mas elles recusaram , dizendo : Seja Deus lourado,
eslamos aqui bem , porque teremos liberdade de mcdiLar e orar
noüte e dia.
Muitos pagãos os \'isita ram e diligenciavam dissuadir a Pio-
nio ; mas tudo foi debalde , antes não puderam deixar de admii·ar a
sabedoria das suas resposl:.1s. Entretanto Polemo'll o Theophilo, cl1t~­
fe da cavallaria, vieram com guardas e turba de povo, e leraram
os martyres. Todos tres bradaram em alta voz ; Nós somos chris-
tãos. Chegados ao meio da praça , assentaram-se no chão, com re-
ceio de entrar no templo dos idolos; mas os soldudos arraslaram
Pionio. Resistia e11e com tanta força , que tiveram muito trabalho
em o meller para tlentro, dando-lhe pontapés e empuxões. Em fim
chamaram outros , e pegando nelle o levaram em braços e depoze-
ram diante do altar, corno -viclima, pondo-lhe corôas na cabeç.a ,
a 'fim que tomasse parte ua idolatria ao menos exteriormente. Elle
porem as espedaçou e arremessou por terra. Os outros marlyres
clamavam como e11e : Somos chrislãos !
Vendo, pois, os pagãos que nada cons~guiam, outra vez leva-
ram á prisão os generosos confessorl}S: o povo escarnecia-os e dava-
lhes bofetadas.
Poucos dias depois veio o Pror.onsul Qurnliliano a Smyrna , e
tendo mandado vir a sua presença Pion-io , disse-lbe : E' certo seres
tu o doutor dos christãos ? '

.'

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DE PEl\SE''lmANÇA.

Pionio : Costumo doutrinal-os.


Quíntiliano : Ensinas-lhes a loucura? ..
Pionio : Não ; a piedade.
Quinliliano : Qual piedade ?
Pionio : A piedade para com o Deus que crcou o Ceo e a
terra.
Quinliliano : Logo , sacrifica aos nossos_delises.
Pionio: Eu aprendi a não adorar senão ao Deus vivo.
Quintiliano : _Nós adoramos todos os deuses , o Ceo e aquelles
que o habitam. Porriue conlemplas tu o Ceo?
Pionio : ,Não é o Cêo que eu contemplo , mas a Deus que o
- creon.
Qnintiliano : Quem o fez? .
Pionio : Não é opportuoo dizei-o agora.
Quintiliano: E' preciso que tu digas que foi Jupiler com quem
· eslão todos os deuses e todas as deuzas. Sacrifica a 6sle rei do
Ceo e dos deuzcs.
Pionio calou-se. Então o proconsul mandou o tomassem e .posessem
a lormenlo. Logo • que comcç.aram a torturai-o, Quinliliano lhe disse :
Sacrifica.
Pionio : Não.
Quinlill1ano : Com que presu~npção buscas a morte? faze o que
te orJeno.
Pionio : Não sou presumpçoso ; mas temo ao Deus eterno.
O Proconsol , vendo-o tam firme, delibe1·ou algum l~mpo com
o seu conselho : depois dirigindo-se a Pionio, Jhe disse : Persistes
ai~da na tua resolução?
Pionio: Sim.
Quintiliano : Queres mais tempo para deliberar e vires depois
a perguntas ?
Piouio : Não.
Quintiiiano : Já que queres a morte , se1·ás queimado viYo. De-
pois mandou ao escrivão que Aesse a seguinte sentença : « Tendõ o
f,acril~go Pionio confessado ser christão , havemos por bem que seja
queimado vivo , p~ra de~aggravo dos cleuses, e escarmento d.os ho-
mcns. »

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33~ CATEC1Sl10

Pionio dirigiu-se alf;lgre e impavido , ao lugar do combale : elle


mesmo subio á pira , e deu os pés e as mãos para serem pregados
ao poste ; e tanto que o foram , o algoz lhe disse : Tem juízo, muda
d'opinião, e tirar-se-te-hão os cravos. Pionio respondeu : Bem os
senti. quando me e.ncravaram. Então o levantaram ao alto, e jun-
taram em redor do -poste gra~de quantidade de lenha. O martyr
fechou os olhos, e o povo julgou que estava morto ; mas elle orava.
Tendo acabado a sua oração, abrio os olhos , fitou-os no fogo com,
ar risonho , e disse ameh. A sua morte. foi placid.Sl, e expirou pro-
nunciando estas palavras: Senhor, recebei a minha alma. Depois
que a fogueira se apagou, os fieis que estavam presentes, acharam o seu
corpo int~iro e como se nada tivesse soffrido. As orelhas, os cab~llos,
a barba, o rosto todo estava como -vivo e resplandecenle. · Elles se
reltraram confirmados na fé , ao passo que os pagãos iam aterrados
e pungidos· de remorsos. Passou-se isto em Smyrna , no anno de
Jesu-Chrislo 2ti0 , aos 5 de Março ás quatro horas da tarde. Ascle-
piades e Sabina participaram_do mesmo triumpho. ·
Se desta fogue\ra , que ainda fumega, e onde 1caba df' expirar
o Santo Padre ·de Smyrna , levantamos os olhos para Capadocia , lá
divisamos outra incendiada pira , consumindo nas chammas uma in-
nocente viclima. Aqui é um velho e venerando Padre ; lá um ten-
ro menino , dando generosamente a vida pela fé. -
Cyrillo , nascido em Cezarea de Capadocia , tinha apenas sele
annos , quando seu pai , acermno idolatra, descobrindo que elle era
cpristão, o expulsou' de casa , deixando-o em tolal desamparo. Sa-
bendo disto o governador da cidade , mandou prender o joven dis-
cipulo do Salvador, e empregou toda a sorte de meios, · pàra que
adorasse aos idolos. A's promessas e ameaças ~ oppoz Cyrillo inba-
balavel firmeza. O juiz vencido e despeitado o condemnou emfim a
· ser queimado vivo. Ouvio o marlyrsinho a sua se.ntença com o maior
jubilo. Todos os assistentes se debulhavam em lagrimas ; mas elle
lh~s disse : Vinde antes cantar alegres hymnos em redor da minha
foguefra. Oh ! se soubesseis a grandeza da gloria que me espera !
E dito isto, correu para a fogueira , e Jogo a sua alma , pura e
angelica , voôu ao seio <lo eterno imperio.
Ao mesmo tempo que na Asia era -o demonio vencido por um

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DE ii1-:ns1·: \'EllANÇ ,\.

menino ·, uma delicada virgem , alcançava delle na Europa assig-


nalada vicloria. Agueda, descendente de familia illuslre , herdeira
' , de immensa fortuna , e dotada de todas qualidades que constituem .
uma perfeita donzella , desde a mais tenra infancia se tinha con-
sagrado a Deus.· Tendo noticia disto o governador da Ilha, 'a mandou
prender, e entregar a certa mulher, que debalde tentou corrom-
pei-a. Elle mesmo depois . a interrogou , fallando-lhe da sua nobre
ascendencia , ella lhe respondeu , que toda a nobreza e toda a H-
bertlade consistia em servir a Jesu-Christo. Esta reposta rrrilou o
tiranno, que desfechou contra ella crueldade inaudita. Mas a vio-
lencia dos mais feros torm~ntos não pôde abalar sua conslancia.
Foi a Santa , toda ulcerada , mellida em um carcere, aonde fez ao
Drus dos martyres esta oração : Senhor meu Deus, disse e11a , que
desde o berço me tendes protegido ; vós Senhor , é que me desa-
pegastes do mundo , e me destes a paciencia para soffrer : dignai-
vos, pois, receber agora a rpinha alma nas vossa3 mãos. Apenas
havia acabado esta oração, veio o Senhor e a levou aos choro~ das
virgens, que entoam os louvores do Cordeiro na JerusaJem Celeste.
Assim escolhia Deus os mais fracos para abater os mais
fortes ; assim ostenlrn com os bomens as maravilhas do seu poder.
Entretanto o liranno , em cujo nome se praticavam tantas atrocida-
des, devia lambem- contnbuir para a gloria do Deus, que ultrajava.
Decio acabava de declarar a guerra aos Goctos ; o seu exercito sur-
prehendido pelo inimigo , foi derrotado; e elle mesmo, guiando o
seu cavallo para uma profunda ·lt1gôa , nella se abismou , sem que
nunca mais se podesse encontrar o seu corpo. Privado, assim, das
honras da sepultura , nú e despojado , como convinha a um inimi-
go de Deus , foi elle o pasto das feras e das aves de rapina (1 )· A
sua funesta morte succedeu no mez dP. Outubro do anno 251.
Apenas desapareceu este perseguidor , outro surgi o logo, talvez
ainda mais cruel. Soldado insolente , despota impio, Valeriano, que

(1) taclan. e. 4.
.'

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CATECISl\10

excitou a nova persegmçao geral , foi proçlamado imperador em 253.


Revoltou-se igualmente contra o Cordeiro dominador do mundo, e
derramou rios de sangue. Incilado por 1\facrião Sf~U ministro , pu-
blicou sangninarios edictos contra o Christianismo, e loucamente se
vangloriava que o exterminaria. Mal sabia elle que tinha de se
ver com a obra do Todo-Poderoso. Para mais facilmente dispersar
o rebanho, atacou primeiro os pastores. O Santo Papa Sixlo '!!:•
foi preso logo no anno seguinte ; e quando era levado ao suppliciõ,
Lourenço, seu Diacono , o seguia chorando , e carpindo-se por não
participar dos seus sotfrimentos. Meu pai , lhe dizia, aonde ides
sem o vosso filho? A.onde ides, Santo Pontífice , sem o vosso Dia-
cono? Nunc<r foi vosso costume ·offerecer o sacrilicio sem que eu
vos sen~isse ao allar. Em que tive, pois , a desgraça de desagra ·
dar-vos? Esperimenlai-me de novo, a ver se não fizestes de mim
boa escolha, e se serei imligno de distribuir o sangue de Jcsu"."
Christo ?
Commovido da ternura do seu Diacono , voltou-se para ellc o
Santo Padre , e lhe disse : Não sou eu que te abandono, meu falho !
Maior provação e mais signalaíla ·vicloria le está reservada ; pois estás
no ·vigor da mocidade. O Senhor me quiz poupar , á conla da
minha f;·aqueza , e da minha velhice. D'hoje ?. tres dias me se·
guirás. Dito isto, encarregou-lhe que dislribuisse logo aos pobres os
thesouros de que era deposilario, por medo que os pagãos os não rou-
bassem. Com effeito , na qualidade de primeiro Diacono, tinha
Lourenço a seu cargo o thesouro da Igreja, e os pobres, que ali-
mentava. Este lugar exigia raro merecimento.
Tra-nsporlado de alegria, por saber que Deus o chamaria breve-
mente a si , fez Lourenço exacta indagação das viuvas e orfãos, que
estavam em indigencia, e lhes dislribuio todo o dinheiro que havia
em deposito. Vendeu lambem os vasos sagrados, e repartio o pro-
ducto por elles. A Igreja de Roma linha então consideraveis ri·
quezas ; pois não só fornecia alimentos a seus ministros , mas a
grande numero de viuvas e virgens. alem de quinhentos pobres com-
muns , dos quacs havia um registro nas mãos do Bispo , ou do
primeiro Diacono. A Igreja de Roma estava igua1mente em cir--
cum.slancias de enviar abundantes esmolas a outras Igrejas. Estas

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DE PERSEVERANÇ.A• 335 •
......
riquezas , e princ1palmenle a magnificencia dos vasos sagrados, exci-
tava a cobiça dos perseguidores (1) ; dellas se quiz apod.erar o pre-
feito de Roma , e com este intento mandou prender Lourenço , e
lhe disse : l\fuitas vezes vos queixaes, vós outros chrislãos, que sois
traclados com rigor ; ora , pois , hoje não se trata de torluras, con- _
tento-me com pe<lir-vos mansamente o que me podeis dar. Eu Sf'i
que os ''ossos Padres se servem de vasos d' ouro para fazer libações,
que recebem lá o sangue sagrado em copos de prata ; e que nos
vossos sacnftcios nocturnos acendeis tochas de cera lambem em cas-
liçaes d'ouro : enviai-me, p01s, essas riquezas que tendes escondidas ;
o príncipe tem precisão dellas , para restaurar os seus esgotados
lhesouros.
I..ourenço respondeu : Confesso que a nossa Igreja é rica ; e os
lhesouros do imperao não chegam por certo aos seus. l\Ioslrar-vos-
hei parte delles , e só vos peço pouco -tempo para os pôr por or-
dem.
Não atlingio o Prefeito de que lhesouros Lourenço fallava. Ima-
ginando que o seu preso lhe entregaria grandes riquezas, conceden-
lhe Ires dias de espera. Neste tempo percorreu Lourenço toda a ci-
dade, convocando os pobres e indigentes sustentados pela Igreja.
No terceiro rlia, reunindo grande numero delles, os collocou por esta
ontem. Iam na frente os cêgos, cada um com seu pao , não para
combater, mas para se apegarem; depois os coixos , todos calam-
beando ; este, com um joelho deslocado ; aquelle, estropeado de fe-
ridas; uns com pernas de páo, outros· com molelas. Taes havia ,
sú de meiff corpo, que pareciam bustos a.mbulantes. Seguiam-se os
rnanetás , encorporados com os que tinham ulceras e chagas incora-
,veis.
I.onrcnço os conhecia a lodos e de todos l'ra conhecido (2). Assim '
1

Eusebio 1. VIII. e. 22.


(1)
(2) Quem sabe _a maneira bar~ara como os mendicantes de profissão
tratavam os meninos abaodonados, que Jcstinarnm a mendigar por s_ua


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33G CATECISMO

os foi chamando pelo nome; e collocaodo-os na frente da Igreja . .Foi


ílepois ter com o Perfeito e o convidou, que viesse ver os thesouros
de que lhe tinha fallado , pois estavam promptos. Veio logo o Pre..;
feito , mas como não ficou elle quando, em lugar dos cofres que
esperava cheios d'uuro e prata , achou aquella multidão de misera-'
·veis, que pela maior parle fazia. horror vel-os? Desconcertado; aceso em
ira : . Que é isto? disse para Lourenço , ·para que me trazes aqui'? '
Onde cslam os Lhesuuros da Igreja :!
Nas pessoas destes pobres , lhe diz Lourenço : estes é que são os
lhosouros ua Igreja. Estas são as suas perolas e pedras preciosas.
Olhai estas ·virgens, estas viurns consag1·adas a Deus; a Igreja ,
cuja são a corôa, é por certo objecto das complacencias de .Jesu...
Chrislo. Elia não lem, pois , o.utras riquezas. Bem podeis -valer- -
vos dellas, para bem <le Roma, do imperador e vosso.
Assim o exhorlava o Santo Diacono a remir seus peccados p<H'
meio da esmolia ; dando-lhe a saber ao mesmo tempo , em que se
tinham empregado os Lhesouros da Igreja.
l\hs, este homem carnal, longe ele aproveitar espectaculo lam
tocante ·e inslructivo, como o que tinha diante dos olhos, bradou
transporlado tle colera : Miseravel ! como le atreves a zombar de
mim ? E; pois as&im qne msultas a~ minhas Segúres ·e as minhas
fasees (1)? Eu sei que desejas a morte", mas não imagines que St'rá
breve. Prolongarei os tormentos , dar-te-hei a morte a pouco e
pouco , não morrerás senão gradualmente. Dilo islo , manda que
tragam umas grelhas de ferw, e as pôz sobre um fogo brando (2).

conla , ni'ío admirava na(la o· grande numero de seres mutilados , de que


a Igreja de Roma lomarn conta. Vl'Ja a nossa llistoria da sociedade do-
·meslica l. 2.
t1} o~ magistraJos romanos .eram precedidos de li etores que lernvam
uus machados e molhos de varas, symbolo do poder.
(2) Atoda a grelha se conserva cm Roma , na Igreja de S. Louren-
ço , io Lucina ; e a pedra cobert;1 de canões .na Igreja de S. Lourenço
.· extra muros.

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/

DE PERSEVERA~"Ç-A. 337
Dous a1gozes de:;piram o Santo Diacono, e o ligal'am sobre o funesto
leito , para ser assado a fogo lenlo. Ao mesmo tempo um raio lu-
minoso cingia a cabeça do. ·santo marlyr. Os cl1ristãos o percebe-
ram, e sentiram _um cheiro mui agradavel que exhalava seu corpo :
esle duplicado prodígio ficou occulto aos pagãos.
Ao mesmo tempo que as chammas mâtel'iaes ,. diz Santo Ani-
brozio , operavam no corpo do Sanlq Diacono , o fogo do amor di-
vino, qne lhe abrazava o cornção com muilo maior ardor , absorvia o
sentimento das dores que soffria. Nada pôde alterar a placidez de
sua alma , nem a serenidade de seu rosto. Depois de supporlar
longo tempo quantos tormentos pthle imaginar o Liranno , disse-lhe
sem azedume : (( Agora volta-me, que ja estou bem assado deste la-
do. » O algoz o ' irou. A minha carne já está assada, continuou .
1

l.ourenço , fallando ao juiz , já pod~s comei-a. A isto respondell o


Prefeito, com novos insultos. Ao mesmo tempo o santo martyr ,
elevando os othos ao Ceo, orava fervorosamente pela conversão de
Jloma. <( O' Senhor Jesus ; exclanióu elle , unico Deus .e luz do
Universo, sois vós que haveis dado a Roma lodos os sceptros da
terra, com o fim de favorecer a vossa religião; e unir todos os
povos no vosso Santo nome. PermJLLi , po.is , Senhor , que Roma , -
capilal do mundo , aceite o jugo da Fé; para qué o Evangelho mais
facilmente se propague por todas as províncias do imperio. Tirai
da nms bella ·cidade do mundo o vergonhoso opprobrio da idolatria ;
enviai o vosso Anjo, que lhe dê a conhecer o verdadeiro Deus. Ro-
ma já possue penhores desla esperança, que os principes dos Apostolos
tomaram posse della e_m vosso nome. Assim espero que o ·raçaes em
breve, ó grande Deus; e triumpheis só nesta cidade dos imperado~
res e dos ídolos. »
Acabada esta oração , expirou. O Santo Diacono tornou-se a
glorià de Roma , como Estevão a de Jerusalem. S. Prudencio não
duvida dizer, que a total conversão de Roma foi fructo da morte e
orações de S. Lourenço. Deus começou a ou vil-o, ainda antes quà
saisse do mundo. Muitos senadores , testemunhas do sell valor e
piedade , se converleram logo , e tomando uos hombros o corpo do
sanlo rnarlyr, o enterraram honrosamente, a 10 de Agosto anno 258 no
'
VI

r
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338 CATECISMO ,,,

campo de Ver.ano, perlo do caminho que vai dar a Tibm· (1). A morle
de S. Lourenço foi a morte da idolatria , que desde então foi sem-
pre em decadencia. Acabava de fechar-se o tnmulo do grande Ar-
chidiacono de Roma, quando .oulro .s~ abria ás_portas de Carlhago,
para receber o precioso corpo de u'm illustre Pontilice. Esl'outro
rnarlyr é o grande S. Cypriano, ~ispo , e luz da lgreja.
Era S. Cypriano natural de Carlhago , e seu pai um tios Se-
na~ores d'aquella cidade. Dotado de raro engenho. empregava-se
no ensino da eloquencia ; emprego este , n'aquelle tempo tam, hol)-
roso, que Cypriano, exercendo-o~ conservava o decoro . do séu illus-
tre nascimento. Professava eHe a religião de seu pai, e só depois
que chegou a i<lade madura é que abandonou as superstições do pa-
. ganismo. . As suas virtudes , e mais que ludo o seu ardente zelo
foram causas , que em pouco tempo o elevaram ao sacerdocio e de-
pois ao episcopado. Havia alguns annos que era Bispo de Carlbago.,..
quando lá chegou o edicto da perseguição; o qual , apenas se publi-
. cou , eis .correm á praça os pagãos , clamando : Cypriano ao Leão !
Cypriano ás feras! A trinta de Agosto do mesmo anno 2J8 foi
preso e conduzido á presença do proconsul Paterno, o qual lhe dis·-
se : Os nossos religiosissimos imperadores Valeriano e Galleno , me
escreveram ordenando , que obrigasse eu todos aquelles, que não
teem a religião dos romanos, a que a professa~sern. .ManLlei , pois,
que viesses citado perante mim , para dares conta da tua crença e
das tuas opiniões, ácerca das ordens dos nossos principcs. Qual e
o teu nome , qual a tua qu9lidade?
Cypriano : Eu sou chris~ão e Bispo ; não reconheço senão um
só Deus -que creou o Ceo e a terra, o mar e tudo que nelles se
contem. E' esle' o Deus, a quem nós os chrislãos servimos. Nou-
te e uia imploramos a sua misericordia, e lhe fazemos supplicas
por nós, por todos os homens e pela prosperidade dos imperado-/
res.

(1) E' ho1c a celebre ·catacumba de S. Lourenço.

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DE PERSE\'ERANÇ·A. 33~

Paterno : Persistes, pois , na lua declaração?


Cypriano : Quando a vontade é recla e dedicada· ·.ao Senhor ,
não pode mudar-se.
Paterno : Irás desterrado para a cidade de Coruba.
Cypriano: Irei.
Paltlrno : Dize-me , quantos Padres ha nesta cidade?
Cypriano : Não posso c.lescobril-os, as leis romanas punem os de-
latores; mas podem buscar-se em suas caias.
Paterno : Eu os buscarei ; já demais tenho dado ordens,, para
obsfar á reunião de vossas assembleas , e de entrardes nos cemi-
lerios ; todo o que ouzar infringil-as será punido de. morle.
Cypriano : Fazei o que se vos ordena.
Coruba, para onde o Santo foi desterrado~ era uma pequena
- cidade , distante quasi desoito leguas de Carlhago. Tomou parle D(}
desterro o Diacono Poncio, e mais alguns chrislãos. Havendo GaJe ...
rio l\faximo succedido a Paterno , teve o Santo a liberdade de re-
gressar a Carlbago ; mas veio habitar para uma casa de campo pro·
xima <la cidade, que elle comprou para palrimonio dos pobr_cs,
quando recebeu o Baptrsmo. Foi nesle pacifico retiro , que elle vio
chegar dous officiaes do proconsul. O Santo, dispondo-se para tu-
do , recebeu-os com rosto alegre e tranquillo~ Os officiaes o mon-
taram em uma .carroça , e o levaram a outra casa de campo, aonde
o Proconsul residia por causa da sua sande. Galerio deferio o in-
terrogatorio para o dia seguinle , e o marlyr foi transportado a Car· _
thago , sendo guardado em casa do primeiro dos <lous officiaes •
que o tinham prendido.
Tanto que se espalhoü a noticia da prisão de Cypriano, foi ge-
ral o alvorolo em toda a cidade; reunindo-se grande concurso de
povo em volta ela casa. O official, que guardou Cypriano durante
a noute , usou com elle bastante urbanidade , permiltindo até aos ·
seus _amigos , que lhe foliassem e ceassem com elle. Na seguinte
manhã , qu·e, segundo refere o Diacono Poncio, foi dia ~e Jub1leo
para o Santo Dispo , levaram-no com bom numero ele soldados ao
Prctorio. Assentou-se no tribunal o Proconsul Galério , e mandan-
do entrar o Santo para a sala dos criminosos , disse-lhe : Thascio
Cypriano , tu és cluislão ?

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,..
f I

340 CATECIS~IO

Cypriano : Sim , eu o sou.


Galerio: · E's tu o que tens sido Bispo, e pai destes impios?
Cypriano : Sim , eu sou o B~spo dos que vós tratais por im-
pios.
Galerio : Os sacrahssimos impetadores ordenam-te que observes
as ceremonias da religião romana.
Cypriano : Não posso.
Galerio : Olha por ti e pela tua- vida .
. Cypriano : Fazei o que ·se vos ordena ; a jusliça da causa que
defendo não permille hesitar sobre o pa rli<lo , que devo lo mar.
Galerio, ouvrndo o parecer do seu Conselho , continuou d1zcn-
do : Ha mui Lo tempo, qúe vives na impiedade, e persuades gran-
: de numero de infelizes- a conspirar comtigo coutra os deuses do im-
perio. Os nossos sacratissimos imperadores Galleno e Valeriano não
puderam conseguir que te emendasses, e voltasses ao seu culto. Por
tanto , como não tens pêjo de ser o principal auctor de tal crime,
servirás de exemplo aos que seduziste ; para que a obdiencia ils
leis se restabeleça com o teu sangue. Tomando .depois a estanle,
escreveu esta sentença, que leu em. voz alta : Ordeno que Thascio
Cypriano seja decapi~ado.
Cypriano respondeu : Deus seja louvado ! Os chrislãos , que
estavam presentes, clamaram que t.ambem queriam morr~r com o
seu Bispo.
Logo que o Santo sabio do Prelorio , · collocou-se uma escolla
de soldados em torno deJle ; acompanharam-no centuriões e tribunos ;
conduúram-no ao campo, a um lugar remoto e coberto de arvores, ás
, quaes logo muitos subiram, para poderem. ver por causa da multidão.
Chegado ao lugar do supplicio , lirnu elle o manto , que era es-
cum , poz-se de joelhos , e orou por algum tempo. Tirou depois
a sua dcalmatica , e a enlregou a uns Diaconos, que o tinham
acompanhado , ficando apenas com uma simples tuilica de hnho.
Che~ndo o algoz, mandou-lhe dar vinte e cinco peças d'otiro ; e
logo vendou elle mesmo os olhos, e disse para o Padre Juliano, e ·
para ·outro Juliano seu Diacono , que lhe ligassem as mãos. Os ir-
mãos estenderam lençoes em redor , para rec.olher o sangue. D'ahi
a um instante recebeu o golpe, que terminou a sua vida Ínortal, e

·~

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DE PERSEVERANÇA. 3H
den princ1p10· á sua vida gloriosa. - Os Fieis lev~lram o seu corpo a
um campo visinho, aonde o enterTaram de noute com bastante so- •
lemnidade (1 ). De sorte qqe não se sabe qne mais se ha-dé admi- ·
rar, se a fifmeza do martyr , se a coragem de nossos pais, que não
_temiam expqr a vida para o_acompanhar ao cadafalso.

' OR~Ul.O.
'

O' meu Deus , que sois todo amor , eu vos dou graças pelos
grandes exemplos de virtude , que nos dais nos vossos martyres.
Permilti , Senhor , qu~ tenhamos parte da charidade de S. Lourenço,.
e da fé de S. Cypriano.
Eu protesto amar a Deus sobre todas as cousas , e ao proximo
como a mim mesmo, por amor de Deus ; e ; em testemunho deste
amor , promet to soccorrer e respei"tar os pobres.

(1) As prmc1pacs obras de S. Cyprrnuo Leão :


1.º Carta ácerca áo desapego do mundo.
2. º O livro eia vaidade cios ídolos.
3. º Os dous livros do Testimunlio; aonde o Saolo rccopila todas a
passagens relativas a Jesu-Chmto e á Igreja.
4.º · O livro sobre a vida das virgens,· no qual o Santo exalta a
grandeza do seu estado, e lhes dá regras da \'ida que devem ter.
õ.º O livro da unidade da Jgre1a; que é uma eloquente demons-
tração de como é necessaria a unidalie da Igreja.
6,,, O livro .dos que cahiram. Como na pcrs~guição de Decio, ti-
nha · havido retractaçõcs de alguns christãos , escreveu o Santo esla obra ,
µa qual começa por cograndcccr a corôa dos marlyres; deplora depois

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CA l'Et:IS~IO

XVl.n LIÇAO.

O CHRISTIANISMO ESTABELECIDO

(III E IV SECrLOs.)

Juizo · de Dcns sobre Valcriano. - Perseguição parlil·olar sob Aureliano ;


retrato deste príncipe ; martyno de S. Dioíz. ~ J u izo de Deus sol.ire
Aureliano. - Dccima persegG1ção geral sob D1ocleciaao e Maximiauo,
retratos destes dous princ1pes ; martyrio de S. Geaez da Legião Lhcba-
na - A lgreJa consolada, vida de S. Paulo Eremita.

V ALERIANO, como todos os mais perseguidores, devia servir de mo-


numento á justiça de Deus, e· ensinar a todas as gerações , que

com amargura a queda dos apostatas, e passa aos rcmcd1os a que dc-
Hm recorrer , mostrando-se adverso aos que pc'dcm curta penitencia.
7 .º O hvro da Oração dominical ; que dá explicação do todas as pe-
tições do- Padre nosso ; e indica as horas em que oravam os primeiros
chmtãos.
8. 0 O livro da Mortalidade, que o Santo compÓz por occasião da
uma i)esle que assolou a Afr1ca. N'elle moslra quaes devem ser os sen-
timentos e procquer dos chnsLãos nas calamidades publicas.
9. º As suas cartas em nu mer.o de 81.
Diz 'Lactaoc10, que S. Cypriano reunio em si quanto cooslltue o gran-
de O~ador; pois deleita , iostrue e persuade. Não se póde mesmo deci-
dir qual destes trcs dotes possuio elle cm gráo m_ais emioeote.

,
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DE PERSEVERANÇA. 343
ninguem impunemente se revolta contra o Senhor e contra o seu
Chrislo. ' Tendo partido para o Oriente, a fim de repelli.r os Per-
sas que invadiam as provrncias do imperio , foi tümado. prisioneiro
em 260. O rei Sapor o levou á ·Persia, aonde o obrigava a servir-
Jhe de degráo , quando montava o cavallo ou sobia ao seu carro.
E' este um lriumpho , lhe dizia eJle insullando-o , que os romanos
não gra v·arão nas suas muralhas. Deus permitlio para maior castigo
do perseguidor, que nem seu filho , nem o seu successor tivessem ·
o menor cuidado do seu livramento. Depois de ter exposto o nome
/ romano aos insultos dos barbaros,.,. morreu Valerian~ miseravelmente
Sapor o mandou esfolJar (1) , curtir-lhe a pelle , tingil-a de encar-
nado, e a pendurou depois em um templo , para ser eterno mono-.
rnento do opprobrio dos romanos, ou antes ela ving:ança de Deus.
Depois destes estrondosos castigos, infligidos ac s perseguidores do
Christianismo, não será bem admiravel, que ainda tenha havido ho-
mens tam audazes, que se atrevessem a conspirar contra aqueJie Deus
Omnipotente , que destroe os monarchas e os povos ·como vasos de
oleiro?
Aureliano, esquecendo logo estas Lerriveis liç,ões, ousou de novo
provocar a justiça divina, perseguindo aos chrislãos. Este imperad.or,
que subio ao tbrono em 270, era filho d'um rendeiro dos suburbios..
de Sirmium na Illyria. Era elle um d'aquelles espirilos de brulal e gros-
seira aclividade, que teem por leg1limo todo o objecto d'orgulho.
Naturalmente feroz e impio, só raramente tinha aquella apparentc
sensibilidade , que o amor proprio ostenta, para enganar a opinião
publica , e entregar-se depois co_m mais segurança ás suas atrozes
inclinações. Mguma vez foi admirado , mas sempre aborrecido.
Duas cid_ades celebres , Roma e Paris foram regadas com o
sangue de illnstres marlyres. A primeira vi_o morrer o Papa S. Fe- '1
Jix 1. º ; a segunda S. Diniz e seus compa~be1ros. S. Diniz, primeiro

(1) Alguns authorcs querem que fosse esfullado_ "'"º·

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au CATECISMO

Bispo e fundador da Igreja dê Paris , tinha sido enviado de Roma


ás Gallias com seis missionarios , revestidos como elle do- caracter
episcopàl (1 ). Diniz penelrou mais que os outros pelo paiz den-
1
tro , e estabeleceu a sua séde em Paris. As Igrejas de Chartres ,
Senlis, Meaux e Colonia , foram fundadas por elle ou por seus dis-
cípulos. O Santo Aposto lo converteu grande numero de idolatras ;
e coroou os seus trabalhos pelo seu glorioso marlyrio.
Depois de haverem passado por diversos generos de supplicios,
Diniz e seus comp~anheiros, Eleutherio, · diacono e o Padre Rnslico
foram por fim decapilados. E' lradicç.ão constante, comprovada por
anligos monumentos, que o lugar do suppllcio foi em um monle
proximo de Paris , que por isso se ficou chamando monte dos- mar ..
tyres e vulgarmente Alontmarte. Ainda hoje se mostram em Pa-
1

ris os lugares, onde S. Diniz foi encarcerado e posto a tormentos ;


nos quaes se edificaram duas Igrejas em sua honra. Tinha ordenado
o juiz que se lançassem no Sêna os corpos dos martyres, mas certà -
mulher pagã , que já andava tocada da graça, peitou os que esta-
vam encarregados d'aquella commissão, e fez occullamente sepultar
as santas reliquias.
Ainda os sangninarios ediclos de Aureliano não tinham bem che-
gado aos confins do imperio, quando Já o mesmo imperador regava a terra
com o propno sangue nos arredores d'Heraclia.. l\lneslheo, seu se-

(1} Os outros seis Bispos são : S. Trophiano ~e Arles, S. Gaciano


de Tours, s. Austrcmcno de Clermont. , S. Paulo de Narl>ona, S. Salur-
niao de Tolosa, e S. M:irçal de L11noges. Os authores modernos collo-
cam a missão destes homens apostohcos no anno 250 ; porem a mais an-
tiga e provavcl tradicção a coilocn em eptcha muito mais remota. Se-
gundo esta tradição, S. Diniz apostolo das Gallias é S. Dinionino Areo-
pag!la , con\'Crtido por S. Paulo. Veja as pro,·as nas Tres Ramas; em
l\lamarh1 , Origines et. autiquit. Christ. Em de Sausai l\fartyrol. Gallic.
&e. A lgrC'JU de Arles sustenta com boas rasões, que S. Trnphimo, seu
primeiro Bispo , é o bem amado discipulo , de quem S. i>aul~ falia nas
soas -Epislolas.

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DF. l'ERSKVERANÇA.

cretario , temendo a colera de seu amo , falsificou-lhe a letra , e


mostrou aos principaes cbefês ,do exercito uma lista de proscriplos,
entre os quaes estavam os nomes de11es e o seu propr_io. Permittio
Deus que caissem no laço; e arremessaildo-se a Aureliano, este foi
assassinado por seus mesm9s amigos. Tam funestos exemplos , ti-
nham por fim , nos conse!hos da Providencia , reprimir os perse-
guidores no fuluro ; mas , longe de se aproveitarem d'eslas lições ,
cada vez se lornavam mais audazes e crueis esses opsecados homens.
O imperio romano , que desde muitos annos estava em guerra
aberta com o Chrisliamsmo, . atacando-o de cottinuo , se bem que
inutilmente , fez por ultimo um derradeiro esforço, para o aniquilar.
Longe, porem , de o conseguir, ainda o consolidou mais. No reinado de
Diocleciano é que começou verdadeiramente a era de sangue, a era dos
martyres. « Toda a terra, diz Lactancio, se inundou de sangue chris-
tão ~ desde o Oriente ao Occide~Jle (1_). )) Este crue1 liranno, au-
lhor da decima perseguição geral , subio ao lhrono no anno 284
('2).
Era Diocleciano U1º mero · soldado· aventureiro. Nascido na Dal-
rnacia , de pais humiÍdes, desde manr.ebo srguio a profissão das
armas ' e foi gratlualmenfe elevado ás primeiras hónras militares ~
No anno de 28G Leve parle no imperio com l\laximiano Herculeo.
-Este homem, de famili'a muito obscuro, tinha nascido em uma aldêa
de Pannonia. Era de caracter cru{\) e dado a todâ a casta de vi-
. cios. Simples soldado da mesma companhia de Diocleciano, deveu
, a sua elevação aos seus talentos mililares , e ao favor do seu antigo
camarada. Em 292 , estes dous principes , temendo o perigo que
1

ele todos os lados ameaçava o imperio, e desesperando d~ poder


fazer frente a Lodos os seus inimigos, nomearam cada um seu Ce- ·
sar, para que os ajutlassem a defender os seus respectivos estados, e ao

(1) De mortib. persccul. p. 30:2.


(2) Quanto ao nu meto das perseguições scgÚ1mos o sabio P.e Mama.
chi· t. II. p. 235 e 304 e D. Rumarl. Acl. dos Martyres. t. · 1.
ft VI

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CATCCtSMO

_mesmo tempo lhes servissem tle snccessores. Diocleciano nomeou a Ma~


xirno Galerio para o Oriente ; ~ l\lax1miano·, a · Conslancio Chloro
para o Occidenle. Galerio era um campop.es de Dacia, incorporado
-· nos exercttos romanos. Tudo nelle annunciava indble bárbara e fe-
roz : a voz , Q olhar , o aspecto , todo era horrendo. Alem disso
era zeloso idolatra e até fanalico. Conslancio Chloro era de familia
illustre , e reunia em si todas as qualidades d'um grande prin-
cipe .
.Esta muHipliciclade d'imperadore'i acabou cl'ari'uinar o imperio.
Por um lado , cada nm delles queria ler tantos ofliciaes ·e ~oldados
- como os seus collegas , pelo que foi necessario augmcntar os impos-
tos (1) ; por oulr_o laclo , os edielos decretados pelos imperaflores
antecedentes continuaram a ter execução , e milhares de homens vir-
tuosos, verdadeiro suslentaculo do estado , foram cruelmente sacrifi-
cados . . A sua morle, enfraquecendo o imperio e clamando ao Ceo
vingança, chamava, e facilitava a imminente invasão dos barbaros.
Para ·esclarecer os perseguidoros , Deus, sempre cheio de misericor-
dia, comprasia-se em obrar a seus olhos os mais admfra,·eis mi--
Jagres. Tal foi por exeinplo a conversão de S. Genez. ·
No anno 286 havia em Roma certo comico chamado Genez, que
pertencia á companhia de comedia nles do imperallor. Uma ·voz de
extraordinaria extenção e belleza , a mnis natural agnição, extrema
finura para apanhar e representar o ridiculo, e ludo- isto junto ao gran-
de conhecimento da sua arle, fazia de Genez o ídolo dos romanos.
Quando elle tinha d'apparecer em scena , Roma toda corria ao thea-
tro. Vindo Diocleciano á capilal , aonde foi recebido com a maior
magniílcenria-, entre as .festas que se lhe <lcd ica ram não esquece1i
o theatro. Genez , que conhecia o odio do prineipe conlra os chris-
lãos , julgou cum rasão, <]Ue uma peça em que se escarnecessem os
mislerios desta Religião lhe agradaria muito. Escolheu por tanto as
..
,

{1) Lactanc. lle mortib. pmernt. p. 303.

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D!~ l'El\SEVKnANÇA.

cerimonias do bapti~mo , para assumplo de suas culpaveis choearri-


ces. Sabia elle alguma cousa dos sagrados ritos, por noticia que
linha de aJgumas pessoas , que professavam o Christianismo.
Appareceu Genez, pois, no lhealro, deitado em um leilo, fin-
gindo-se doente. Para abrir a scena exelamou : Ah ! !Jleus amigos,
eu sio lo sobre o cstomago um pezo que me opprime ; breve mor-
. rerei, ·se me não buscais allivio. Que te havemos <le fazer'? lles-
pomle;ram os outros comicos. Queres tu <1ue te desbastemos á piai-
- na, para ficares mais leve ? Todo o povo dava eslrondozas gar-
galhadas, com estes iosulsos gracejos. Já vejo que d'isto não en-
lenlluis nada, respondeu. Genez; eu sinto approximar-se o meu fim ,
t~ quero morrer chrislão. Para que? Jleplicaram os actores .. Tor-
nou Gcncz : Para que na minha morte Deus me receba no sêu pa-
raizo , como desertor dos vossos deuzes.
Então aproximaram-se dous actores, um tios quaes fazia de Pa-
dre, e outro ele exorcist::t. Collocan<lo-se á cabeceira do fingido
doenle, diss(~ram-lhe: Filho nosso, para que nos mandasles v11·
aqui'! Genez, subitamente mudado por milagre da graça, respondeu,
não já brincando, mas seriamente : Porque desejo receber a graça
de Jllsu-Chrislo , e ser regenerado e li ffe dos mrus pcccados. Exe-
·cutaram os actores as ceremonias do baplismo , mas sempre como
representação, tingido-se ministros da Igreja. Reveslio-se o 11eo- -
phito com a ln nica branca. Uepois. outros acto1'Cs, vestidos ele sol-
<fado.;, e dizendo-se enviados do Prefeito de Uorna, npodcram-se de
Genez, e inculcando mallraLal-o , conduzem-no ao imperador, para.
ser interrogado como · era costume fazer aos chrislãos, Diocleciano,
íl lodos os espectadores , riam a ban<lei ra s despregadas , ''cndo um
especlaculo lanto ao nalurnl. Para o continuar, fingio-se enlão o im-
perador muito cncolerisado, e perguntou asperamente a Genez : Tu
es chmlão ? .
' A isto responLleu Genez por ·estes lermos: Senhol' ! e vós lo~os,
que estais presentes, officiaes do exerci lo , philosophos , senadores e
cidadãos ! allendei ás minhas palavras. Até aqui Lenho tido um odio
tam grande aos christãos , que só o nome delJes me fazia horror ;
e chegava a Jclcslar os ·mesmos meus parentes, que professa,·am
tal religião. Procurei saber os mislcrios e rilos do Chrislianismo,

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. /

/ 348 CATE:CISl10

-unicamente para rir , e fazer que os outros os tlcspresassem; _


No Il)omeato, poren1, que a agl}a · do baplismo tocou o meu corpo,
e que eu sinceramente respondi , que cria nos a1·Ligos sobre que era ,
perguntado, vi por sobre a minha cab.eça um choro d' Anjos, ra- '
diaotes de luz, que liam em um livro todos os peccados, que eu te-
nho commellido desde a minha infancia. Depois o mergulharam na
mesma a·gua em que eu ainda' estava, e mostraram-m'o limpo, e mais
branco que a neve. Vós, - pois. poderoso imperador,- vós romanos,
que me ouvis , vós todos que tendes escarnecido dos myslerios do
Chrislianismo , crêde como eu , que J esu-Chrislo , ·é o verrladeiro
Deus, que elle é a luz e a verdade , e _que é só por elle que po-
dereis obter a remissão <los vossos peccados (1). »
Bem pode comprehender-se qu~ se · um raio cais.se no meio do
iheatro leria assombrado menos os pagãos do que o discurso de
Q-enei. Diocleciano, ardendo em ira , mandou-o açoutar cruelmen-
t~ , e depois o enviou a Piando , Prefeilo do Prelorio , para que o
obrigasse a sacrificar. Estenderam o marlir no cavalete, e lhe ras -
garam as costas com unhas de ferro , queimando-lhe depois as fe-
ridas com carvões acesos. Mostrava elle admira.vel paciencia nos
torQ.lentos, e repetia sempre aquellas palavras : Não ha outro Se-
nhor do mundo senão o que eu tive a felicida(!e de ver ; eu o ado-
ro ,, e o reconheço por meu Deus , e ser-lhe-hej inviolavelmente de-
dicado, ainda que haja ·ue soffrer mil mortes! Toda a minha dôr
consiste . ef1:1 _o haver, ultrajado tantas vezes , e só agora chegai· a co-
nhecei-o. O juiz, desesperando de vencer a sua constancia , con-
demnou-o a ser decapitado , o que se executou a 2õ de Agoslo do
anno 286·.
Um comico, converlitlo -sobre a scen~; e do Lheatro chamado a

' 1

(1) Este baplismo. ª'.J.ministrado em Scena; não era Sa·cramt:nlo,


pela falta de seria intcnsão de fazer o que faz a Igreja, Mas foi suppri-
do em Genez pelo desejo , acompanhildO de · ,·erdadma conLriccão; be111
como depois pelo marlyrio.

, .
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D~ PERSKVKRANÇA. 349
gloria tio martyrio ... que prodigio de graça e de -m1sericordia ! Aqui
. se manifesta o poder e bondade d'af1uelie Deus, qu~ em um mo-
mento fez d'um Publicano um Apostole.
Temos no marlyrio da Legião Theuana novo monumento desle
µiilagroso poder.
O imperador Maximiano Herculeo , collega de Diocleciano , indo
contra os Ilagodes, povo principalmente composto dos camponezes
das Gallias , levou no seu exercilo a celebre Legião Thebana. Pa-
l'ece que se chamava assim esta legião, por ler sido organisada na
Theba1da , ou alto Egiplo , povoado de grande numero de excellenles
fieis. A Legião el'a cornmantlada toda por Mauricio, era de chris-
tãos , soldados de provado valor, e qua~i todos envelhecidos no exer-
_cicio das armas. .Maximiano, teDllo passauo os Alpes: qniz dar al-
gum descanço ao seu exercito, a fim que se refizesse da fadiga de
-' tam penosa marcha; para o que parou na cidade <le Octodoro ,
11'aquclle tempo consid.eravel , e cujo sitio era sobre o Rhone , aci-
ma do lago de Genebr"'. Boje é a aldêa de Morligny no Valais.
'fendo todo o exerçilo recebido ordens de fazer um sacrificio aos
deoses, para ler bom ex1to a expedição, apartou-se a legião Tbe-
bana, acampando a lres legoas de Octouoro , proximo d' Agaun_e ,
aldea situada em um profundo valle no meio dos Alpes , que por.
toda a parte a circumdavam. Sabendo o imperador da relirada da
legião, mandou ordem que Jogo se reunisse ao corpo do exercito ,
a fim de assistir á oblação <lo sacrificio ; mas Lodos recusaram tomar
parle na sacrileg;i ceremoni~. Irritado pela resistencia, ordenou l\la-
ximiano que a legião fosse dizimada, e mortos os soldados em quem
a sorte caisse. Assim se fez, mas a legião ficou inhabalavel. Vi-
am-se os soldados velhos exhortando-sc mutuamente a morrer, an-
tes que violar o juramento que tinham prestado ao Rei do Ceo , no
dia do seu Baplismo.
Segunda vez foram dizimados ', mas sem màis etfeito que da
primeira; protestando os cjue ficaram vivos, que jámais obedeceriam
a tal ordem. l\faurjcio , f;xupero e Candido, seus pl'incipaes chefes, -
não contribuiam menos para os confirmar nestes bellos sentimentos ;
pelo que Maximiano lhes mandou declarar , que ou obedecessem ou ·
morreriam lodos. Os generosos 3oldados , animados pelos seus .offi-
" ,J

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:mo CAIECISMO

ciaes, enviaram ao cmct imp~rador esta reposta , cheia tle nobre fir ..
meza.
« Senhor! somos vossos soldados , mas lambem servimos ao
Deus verrladeiro. De vós recebemos o sol<.lo , mas de Deus a_vida.
Não podemos· obedecer ao imperador, n'aquillo que Deus prohibe ;'
que tanlo é elle nosso Deus , como é vosso. Mandai, pois. Senhor,
o que não enconlre a nossa Lei , que promplos estamos a obedecer,
como alé aqui o lemos feito. Primeiro, ó imperador, juramos obe-
die1i'éia a Deus, do que a vós ; e poderíeis -acaso confiar n'esle se-
gundo juramento, se violassemos aqueJle primei1'0 ~ Ahi ' 'imos as-
sassinar os nossos companheiros sem nos quéixarmos, antes alegran-
do-nos pela boa ventura que. tiveram , de morrer pela sua Religião.
A extremidade a que estamos reduzidos não é capaz de nos Lentai·
a revolta. Temos as armas nas m]os, mas não· sabemos resíslir-vos ;
porque antes queremos morrer innocenles, que não viver culpados. »
· A legião Thcbana era composta de quasi dez mil homens bem
armados , que podiam vender caras as suas vidas , mas nossos pais
sabiam , que dando a Deus o que é de Deus , nem por isso deviam·
deixar de dar a Cesar o que era de Cesar; e moslravam mais valor
morrendo pela fé , do que vencendo batalha~. l\Jaximiano, vendo a
sua inhaba lavei constancia , mandou-os cercar pelo exercito. Longe
de fazerem a menor rcsistencia, t.odos depozeram as armas, e se dei-
xaram trucidar, sem que um só se relractasse. Ficou a terra jnn·
cada de cadaveres e innundada cJe sangue. ·
Em quanto os brutaes soldados despojavam os que a~abavam de
Msassmar , chegou um veterano chamado Victor , que não perten-
cia ao mesmo corpo ; o qual. cheio de indignação se retirou ; sem
querer tomar parle na feroz alegria dos algoze~. Perguntaram-lhes,
se era chrislão , e como dissesse que sim, lançaram-se todos a rlle,
e o mataram. Urso e Victor, ambos da legião Thebana, achando-se
lambem ausentes ao tempo da execução , foram martyrisados em So-
ladora, ou Soleure , aonde inda hoje se veneram as suas reliquias.
· Assim morreu esta venturoza Legião. O seu exemplo ensinou aos ,
futuros seculos a formar uma justa idea do verdadeiro valor. O heroe
christão ama os seus inimigos, e anlcs quer soffrer as mais duras pro ..
vações, do que revollar-se. Nen-hum sacrificio lhe é custoso, quaJ1do
so trata de con5crvar a virtude.

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m~ PEl\SEURANÇA. 351
Até aqui Diocleciano e seus collegas não tinham persegui'do nos-
sos pãis senão em consequencia dos edictos de seus antecessores.
ChegaYa, porem,' o momento, em que o seu nome devia reunir-se
ao dos tirannos, que desde tres seculos armavam o mundo pagão
conlra a Igreja nascente. Esta nova lucta será mais furiosa que ne-
nhuma das outras; é o ultimo exforço do paganismo agonisante, Es-
poza .muito amada do Homem-Deus, não temas ; que o celeste
espozo tem a seu cuidado segurar-te a vicloria. E' tempo de ma-
nifestar á luz do dia os desígnios da Providencia, ácerca de leu~ im-
rnorlaes deslinos; e desenvolver uma das mais bel.las figuras do
antigo testamento, que em ti se hade cumprir.
Não devemos ter esquecido , que o povo d,e Israel, alraYes-
sando o deserto, para t.lirigir-se á terra promellida , encontrou os ·
filhos de Amelec, que oppunham ~om innumeravel ármada insup~­
ravel obslãculo á sua passagem. Foi inevitavel dar batalha , que se
d1spoz para o dia seguinte. Desde o nascer cio dia, sahio :Moises·
do campo ôe Israel, e subro ao cimo d'uma proxima monlanlrn.-
Alli elevou elle o coração e as mãos ao Ceo 1 implorando a ,·iclo-
ria para o seu povo. Empenhado o co_!11bate, quiz o Senhor,- para mos- ·
trar que o resultado pe1~ uia da oração âe Moyses, que os lsraelilas -
levassem vantagem , qnando- e seu servo pPrrnaneeia com as mãos
· levantadas para o Ceo ; e perdessem terreno, quando as- deixava cair
para a temi. Assim é que os acontecimentos humanos- são muitas
wzes determinados pelas oraç.~es dos amigos de Deu.s ! ·Esta crença
é lam antiga como a existencia do homem. Todos os povos tem
orado, para obter favores tempóraes. ou desviar de si as catamida-
des deste mundo ; logo todos os povos lem crido na influencia da
oração, sobre os aconlecimenlos humanos.
Os p~gãos por exemplo , se iam a guerra ; antes de se pô1:em
a caminho, dirigiam-se·solemnemenle aos templos dos deuses~, faziam vo-
. los e rogalivas • e offereciam sacrifici'os para obter a ·victoria. Se
depois a alcança mm vinham suspender, nas abobadas _dos templos,
os tropheos, que julgavam devidos ao auxilio do Ceo. Nas cala-
midades publicas , epidemias e perigos , a oração se levantava dos
altares, <l'envolla ·com o fn'mo do insenso. Sem duvida , er'a sena
rasão que os pagrios allribuiam a seus <ieuses as vantagens e favores,

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" I

CATF.CISMO

J •
de · que se regosijavam ; mas o seu proceder não prova menos a
crença invariavel d~ lodos os povos, na influencia da oração sobre -
·os acontccimen tos do mundo : Lodos os lances d~ sua historia o pro-
vam evidentemente. Donde , pois , nasceu este facto , senão da
prim1liva revelação , que nos ensinou , que o mundo é regido por
uma Proviuencia , livre em suas detel'minações ; e que suspende e
modifica as sua3 leis , para recompensar ou punir os habitantes da
terra? Os annaes sagrados estam cheios de factos, que comprovam
esla mesma verdade. Os meninos na fornalha de Babilonia, Judith
e os habitantes de Be_lhulia , os Chrislãos de Jeru$alem, oi·antto por
Pedro prezo por Herodes ; Paulo em o navio , ameaçado da tempes-
tade ; e mil outros successos , publicarão eternamente a crenç;t dos
povos , e a efficacia da oração. Este dogma fundamental está de
tal ~nodo arraigado no coração do genero humano, que se encontra
entre as hordas mais selvaticas da America e ,da Africa central.
Quem. não lerá ou vi do fallar cias festas de guerra entre os selva-
gens, e da immolação das viclimas humanas no Darfur, ou seja
para obter a victoria , ou para altrair as bençãos do Ceo sobre
as Searas?
Voltan<lo , pt>rem ao nosso ohjecto , no momento preciso em
que ia empenhar-se_a grande batalha do paganismo contra o Chris-
,tianismo , no mesmo instante em que de uns a outros confins do
imperío ia retumbar o grilo : Os christãos ás feras ! no momento em
que tenros men.inos, e frageis mulheres iam _descer aos amphilhea-
lros, e subir aos cadafalsos ; Deus faz partir para os de,sertos e
santas montanhas da Thebaitla novos l\loyses. Do fundo de suá
solidão , Paulo, e Autonio, e os seus numernsos discipulos ele,•aram ao
Ceo. as suas vozes, e as ,supplicantes mãos, que imploravam graça ·
·para a "Igreja ; perdão , para os perseguu.lores ; e coragem, para seus
irmãos , que combaliam.. nas ensanguenladas áreas. Os claq10res da
virtude alcançaram graç.a para os lirannos , coragem para os mar-
tyres, e Constantino para a Igreja.
E' tempo de dar a conhecer- os chefes deste exercito escolhido,
dosla Santa Coloma do desrrlo, encarregada ue fazer violencia ao
0

Ce 0.
. .. Paulo , primeiro erermila, nasceu na baixa Thebaida, no Egipto_

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l>I~ l'ERSEYERANÇi\.

em 229. Tinha apenas 15 annos quando ficou orfão de pai e ma1.


A bondade do seu coração correspondia aos talentos do seu espirito ;
foi desde a sua mocidade affavel , modesto e temente a Deus. Na
occasião da perseguição de Decio fugio para o deserto. Depois de
haver caminhado muito, chegou junto d'um monumento, aonde havia
muitas cavernas , entre as quaes escolheu uma para sua habitação.
Não longe desta cova corria uma fonte , cuja agua lhe servia de be-
bida ; uma grande palmeira, coberta rle folhas E' fructos , lhe forne-
cia vestido e alimento. Paulo tinha -vinte e dous annos, quando entrou
no deserto . O seu primeiro designio era deixar passar alli a bor-
rasca da persegmção , e voltar depois para entre os homens ; m·as o
Senhor tinha outros intentos com o seu servo. Pa1•a fixar o novo
Moyses na santa montanha , fez-lhe sentir ineffaveis doçuras na vida
penitente, e contemplativa. Paulo, fiel ás rnspirações da graça, to-
mou a firme resolução de nunca mai~ entrar no seculp, e consagrar
a sua vida a orar por aqnelles que o habitavam.
.. Até a idade de quarenta annos , não teve outro alimento que
o fructo da sua palmeira ; e no restante da sua vida, foi milagroza-
mente sustentado, como outr'ora o fora o propheta Elias , por um
corvo , que cada dia lhe trazia a metade de um pão. Que fet o
Palriarcha do deserlo, durante os noventa annos, que passou na so-
lidão , inteiramente só com Deus , alheio a tudo, ao estabelecimento
da Religião , ás revoluções dos imperios , e até á sussessão dos
tempos ? conhecendo apenas as cousas indispensaveis ; o Ceo, que o
cobre ; a terra , que o· sustenta ; o ar , que respira ; a agua , que
bebe; e o milagrozo pão, que o nutre ; elle orava, expiava, e con-
templava a Deus ; adorava-o , amava-o , fazia , em summa , tudo o
que o Ceo a terra , os homens e os Anjos ·devem fazer ; a vontade
de Deus.
Entretanto quiz o Senhor revellar ao mundo esta maravilhosa
existeocia. Eis-aqui , pois , como o facto aconteceu. O grande S.
Antão , velho já de noventa annos , foi tentado de vangloria , ima-
ginando que ninguem , como elle , tinha servido tam longo tempo
a Deus, e em tam inteira separação do mundo. Quando eslava occupa-
do deste pensamento, promoveu-lhe Deus um sonho , no qual o de-
senganou • ordenando-lhe que fosse procurar um dos seus servos ,
15 VI

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CATECISMO

_que habitava no fundo do deserto. Partio Antão na seguinte manhã ;


e depois de jornada de dous dias e duas noutes , avistou o Santo
uma luz, que lhe indicava a habitação d'aquelle que buscava. Apro-
ximou-se , rogou ao Santo que lhe permitlisse a entrada, e fez bas-
tantes instancias , primeiro que obtivesse o seu consentimento.
Paulo cedeu emfim , e o recebeu com um doce sorri$o ; os dous
·,elhos abraçaram-se ternamente ; e, esclarecidos pelo Ceo , mutua-
mente se saudaram pelos seus nomes.
Assentaram-se ambos, e Paulo disse a Antão: Eis aquelle, que
tens procurado com tantas fadigas ; cujo corpo está gasto da velhice,
e a cabeça cobe.rta de cans ; eis o homem , que está proximo a ser
reduzido a -pó. l\las , por isso que á charidade nada é difficil ,
peço-te qne me digas como vai lá o mundo? Fazem-se novos edi-
ficios nas antigas · cidades? Qnem é hoje o reinante? Ha ainda
hoje homens . tam cegos , que adorem os ídolos? Durante esta in-
genua conversação , chegou o Côrvo ; e , pousando em um ramo da
grande palmeira ; d'alli voou mansamente para a terra , e pôz aos
pés dos dous Palnarchas um pão inleiro. Prebenchida a sua com-
missão , ergueu a ave o vôo , e desappareceu. Vede , disse Paulo,
como o nosso bom Senhor , nos envia que comer; ha sessenta an-
nos, que eu recebo diariamenle, pelo mesmo mensageiro, a metade
d'um pão ; mas como ''ieste ver-me , Jesu-Chrislo dobrou a provisão
do seu servo.
Immediatamente deram graças a Deus ; dizendo o seu Benedicite,
e vieram assentar-se á beira da fonle. AIli se empenhou uma ques-
tão de corlezia e humildade , querendo um ao outro deferir a honr_a
de partir o pão. Paulo insistia nas leis da hospitalidade ; A1Úão re-
cusava-se por causa da avançada idade do Patriarcha. Finalmente ,
convieram em que pegando ambos .no pão , e puchando por elle,
cada um teria a parte que lho ficasse nas mãos. Depois de have-
rem comido , beberam na Jimpida fonte, deram graças, e passaram a
noute ein orações.
- Na seguinte manhã , Paulo disse a Antão : « Ha longo tempo,
irmão, que eu sei da tua habitação no deserto ; e que Deus me pro-
melteu que empregarias , como eu , a vida no seu serviço. A hora
do · meu som no está chegada ; ''ai buscar, se é do teu agrado, para

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DE PERSEVERANÇA. 355
envolver o meu corpo , o manto que te deu o Bispo Athanasio. »
Não dizia isto , · porque lhe importasse muito, que o seu corpo fosse
~epullado , mas queria· poupar a Antão a dor de o ver morret· ; e
testemunhar-lhe o respeito que tinha a S. Athaoasio, e ao grande e
ardente zelo da fé, (leia qual aquelle grande Bispo soffria então os mais
crueis tormentos.
Admirou-se S. Antão, que elle lhe pedissê o manto. que lhe déra
S. Athanasio , porque ninguem senão sómente Deus podéra ter re-
ve11ado este .fact~ ao bemaventurado Paulo ; mas sem querer profundar
o motim de 'tal supplica , cuidou em obdecer. Beijou as mãos do
seu veneravel amigo , e sem demora se poz a caminho do seu mos-
lci1·0. Dous , dos seus discípulos lhe sahiram ao encontro , e lhe
disseram : -Padre , aonde tendes estado tanto 1empo? Não sou mais
que um miseravel peccador • respondeu elle ; sou indigno de me
chamar servo de Deus. Vi Elias, VI João Baptista, não digo bem,
''i Paulo em um raraiso. E sem dar 1nais palavra, entrou na sua
celta , tomou o manto, e parl.10 immedialamente. Apressou o passo,
receioso que .não morresse o Patriarcha, antes que elle chegasse : e era
bem fundado _receio ; pois no dia seguinte, ao romper da aurora ,
vio subir ao Ceo a alma do bemaventuraclo Paulo, no meio dos An-
jos , dos Prophetas e dos Apostolos. Prostrou-se com o rosto em
terra , del'ramou torrente de lag1:imas , e erguendo-se depois, conti-
nuou o seu caminho . ·
Chegado á , cova , achou o corpo <lo Santo de joelhos , com a
cabeça levantada, e as mães erguidas para o Ceo : é assim que ora-
vam os primeiros cbrislãos. Pcrsuadio-se, pois, que elle estava orando,
e poz-se a orar lambem ; mas não o ouvindo suspirar , como cos-
tumava, na oração, isto bastou para conhecer que estava morto,
como de feito estava.
Cuidou, pois, em prestar-lhe os ultimos oft1cios: envolvendo
seu corpo no mant·o de Athanasio, tirou-o da gi·uta, cantou os hvmn os
e Psalmos da tradicção da lgréja Catholica ; mas quando tratot~ de o
enterrar, vio-se em extremo embaraço .; por não ler instrumentos
com que abrir a sepulturn. Deus , porem , veio logo em seu auxi-
lio ; pois, levantando os olhos, vio vir o Santo ao longe dous ~orpu­
lentos leões , sacudindo suas Oucluantes jubas , e eorrendo para ella
'

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356 CATECISMO
~

do fundo do deserto. Então se encommendou a Deus, e ficou lam


socegado corno se visse que vinham para elle duas pombas. Assim que che-
garam , deitaram-se as temiveis feras ao pé do corpo do vene-
rando velho,· festejando-o com as caudas, e erguendo depois grandes
rugidos , como indicio de que o choravam.
-Então começaram _a cavar a terí-a com as garras , até que abri-
ram cova capaz de receber um corpo humano ; o que feito, corno
se pedissem a recompensa do seu trabalho , agitando as orelhas e
abaixando a cabeça , chegaram-se a S. Antão • e começaram a lam-
ber-lhe os pés. O Santo, comprehendeu que lhe pediam a sua ben-
ção, e dando graças a nosso Senhor, porque os mesmos animaes
adoravam a sua divindade , tlisse : Senhor , sem cuja vontade não
cáe a menor folhinha nas florestas , nem a mais pequenina ave per-
de a vida, dai a estes leões o que sabeis que lhes convem. Ten-
do-lhes depois feito signal, com a mão, que se ausentassem, p~rl1ram
logo, e desappareceram os terrive_is coveiros. · .
Este admiravel imperio, que os Santos exercem nas c,realuras, nada
tem que se deva estranhar, lendo ellcs, como tecm, recuperado; por sua
eminente virtude, parle d'aquelle poder, coin que Deus honrou o
primeiro homem ; o qual tanto mais se santifica , quanto se apro-
xima da sua perfeição primordial , e entra de posse das sublimes
prerogalivas, de que pelo peccado decahira. Tal é lambem a pro-
messa do Reparador de todas as . cousas (1). ;,. ..
Logo que os leões partiram, Antão depoz o corpo do bemaventura-
do Paulo na sepultura, e o cobrio de terra, segundo o costume da Igreja. •
Voltou o Santo para o seu mosteiro , · levando a tunica de fo-
lhas de palmeira , que S. Paulo para si teceu com suas proprias
mãos , e a guardou sempre como preciosa tela , com que se reves- -
lia nos dias solemncs da Paschoa e do Penlecosles. A morte do
bemavenlurado Paulo, Palriarcha do deserto, foi no anno 3H, (2).

(1) · Veja o Discurso de Arnaldo d'Audilly sobre a vida dos Padres


do deserto t. 1. p. 17 e seguintes.
(2) Vida de S. Paulo por S. Jeronimo, e Vida de Santo Antão por
Santo Athanasio. Para tacs herocs , necessarios se faziam taes historia-
dores.

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Df. l'l·:llSEVEllA N~.i\.

ORA.Çi.O

O' meu Deus ~ que sois todo amor , eu vos dou g1~aças, por
haverdes prolegido t.am benignamen!e a vossa Santa Igreja. Dai-me,
Senhor , o valor dos generosos soldados da legião Thebana , e o
espiritÕ interior de S. Paulo eremita.
Eu protesto amar a Deus sobre todas as cousas , e ao proximo
como a mim mesmo , por· amor de Deus ; e , em teslemunho deste
amor , prometto nunca mais murmurar dos me1M superiores.

FlM DO SEXTO VOLUME.

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'

....


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INDEX

UÇÃO.

UE NOSSA UNIÃO COJ\l O NOVO ADUI PELA CHARIDADE .

Pag.

Mandamentos da Igreja. - Poder legislativo da Igreja. - Sua certeza e


indepcndencia. - Seu objecto. - Terc_eiro e quarto rnaodame.ntos du ..
Jgreja. - Sua imporlaocia soc"ial.. 5

LVI.ª LIÇÃO.
OBJECTO l>A NOSSA UNIÃO COM O NOVO ADA.IU PELA CHARID •.\DE.

Vida sanl~o tempo. - Vida gloriosa na eteroidaJe. - Necessidade de


nos confOfmarmos com Nosso Senhor Jesu-ChrisLo.-Jesu-Christo, mo-
delo da nossa vida interior. - Seus pensamentos áccrca de Deus, do
homem e do mundo. - Suas alfeiçõcs a respeito de Deus, do homem
e do muudo. - Jcsu-Christo, modêlo da- nossa vida exterior. - Modêlo
dos superiores, - dos inícriores, - de todos os homens em seus deve-
res para com Deus, para comsigo mesmos, para com o proximo. - Mo-
dêlo de todas as idades, de ~odos os estados. 19

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360 INDEX

LVII. ª LIÇÃO.
DO QUE PÓDE ROMPER A NOSSA UNIÃO COM NOSSO SENHOR, O NOVO ADAM -
DO PECCADO.
Pag.
O que é o pecrado. - Peccado original. - Peccado aclual, - mortal e
venial. - O que é nccessario para ha\'er peccado mortal. - Enormi-
dade do peccado mortal em si mesmo, em seus cffeitos e castigos. -
Grandeza do peccado venial. - Peccados mortaes propriamente ditos.-
Peccados contra o Espirito Santo - Pecrados que bradam ao Ceo. -
Virtudes contrarias. - Das paixões. .. .. .. .. 37

LVIII.ª LIÇÃO.
QUE É O QUE PERPETUA A NOSSA UNIÃO COM O NOVO ADAM.

Remcdfos gemes contra os peccados : os nov.iss imos do homem , as vir-


tudes. - A TgreJa. - Sua íundação; Sagração ·de S. Pedro. - As-
censão do Senhor .. . . 58

TERCEIRA PARTE
1.ª LIÇÃO.
O CHRISTIANISMO ESTABELECIDO.

Vida da Igreja: Lucta eterna - Quadro do 1. 0 Seculo: Dia de Pente-


costes - Discurso de S. Pedro - Cooíirmação de sua doutrina pelos mi-
lagres -- O Coxo curado - S. Pedro e S. .João postos em prizão -
Jgre1a de Jerusalcm- Aoaoias e Saphira - Eleição dos sete Diaconos-
Martyrio de Santo Estc\·ão - Vaotagens desta morte, e da persegui-
ção - Prégação do Evangelho na Palestina - Simão Magico - fioover-
são de S. Paulo . . 88

II.ª LIÇÃO.
O CHRISTIANlSMO ESTABELECIDO.

O Evangelho passa aos genLios. - BapLismo do Centurião Coroellío. -

•' /

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DAS MATÉRIAS. 361

Pag.

Missões de S. Pedro em Cezarêa, em Antiochia, em Roma, aonde


elle combate Simão o magico, em Jerusalem, aonde é posto em prisão
por ordem de Herodes Agrippa, e libertado por um Anjo; em Roma,
aonde S. Marcos escreve o seu Evangelho; em Jerusalem aonde elle
preside ao primeiro concilio; e finalmente em Roma.-Vidae missões
de S. Paulo em Damasco, Cezarêa, Antiochia, Chypre, J conia, Listria
e em Philippes . 102
III.a LIÇÃO.
O CHRISTIANISMO ESTABELECIDO.

l\Iissões de S. Paulo em Thessalonia, em Athenas, perante o Areopago,


em Corintho, em Epheso, e em Jerusalem. E' prezo e enviado a Ce-
zarêa. Parte para Roma-Acolhimento que alli teve-Ainda mesmo
prezo préga o Evangelho-Torna para o Oriente, dondevolta a Roma,
aonde entra com S. Pedro-Morte oo Simão o magico-Martirio de
S. Pedro e de S. Paulo · . . H6
IV.ª LIÇAO.
O CHRISTIANISMO ESTABELECIDO.
Vida, missões e martirio de S. to Andre-de S. Thiago Maior-Juizo de·
Deus sobre Agrippa, primeiro rei persiguidor da Igreja-Vida, mis-
sões e martyrio de S. João Evangelista_:_de S. Thomé,-de S. Thia-
go menor-de S. Phillippe-de S. Bartholomeu-de S. Matheus-'-
de S. Simão - de S. Judas - de S. Mathias - de S. Marcos e de S.
Lucas . .. 13 4
V.ª LIÇAO.
O CHRISTIANISMO ESTABELECIDO.

Lucta do Paganismo contra o Christianismo-Roma pagã . 154

..
·
VI.a LIÇÃO.

O CHRISTIANISMO ESTABELECIDO.

Roma Christã.-As Catacumbas . . 176


VII.ª LIÇÃO.
O CHRISTIANISMO ESTABELECIDO.

Roma Subterránea . . 191


46 VI

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362 , · I~DEX
Pag.
YIII.ª LIÇÃO.
O CHRISTIANISMO ESTABELECIDO.

Roma Subterránea • 208

IX.ª LIÇÃO.

O CHRISTIANISBO ESTABELECIDO.

Roma Subterránea, considerações ácerca dos martyres . 229


X.ª uçlo.
O CHRISTIANISMO ESTABELECIDO.

Prin ipio da grande lucta. entre o Pagani ~mo e o Chri tiani mo.-Dez
grande per eguiçõe . A rim ira JlO reinado de ero; retrato deste
prin ipe, particularidade e ta perseguição.-Juizo de Deus obre
Nero.-Juizo de Deu obre J ru alem; ruina da idade e d templo.
Segunda perseguição no reinado de Domiciano, retrato deste principe;
S. João lançado em uma caldeira de azeite fervendo.-Juizo de Deus
sobre Domiciano . 245

XI.ª LIÇÃO.

O CHRISTIANISMO ESTABELECIDO.

Epistola de S. Clemente i Igreja de Corinto-Terceira perseguição no


reinado ele Trajano; retrato deste principe-Martyrio de Santo Igna-
cio, Bispo.. de Antiochia; sua chegada a Roma, onde é lançado ás fe-
ras; suas reliquias são levadas a Antiochia-Juizo de Deus sobréTra-
jano-Quarta perseguição no reinado d' Adriano, retrato deste princi-
pe-Martyrio de Santa Symphorosa e seus sete filhos . . 259

XII.ª LIÇÃO.

O CHRISlIANISMO ESTABELECIDO.

Quinta perseguição, n_o reinado de Antonio: retrato deste principe.


Martyrio de Santa Felicidade, romana, e de seus sete filhos; apolo-

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INDEX 363

Pa,q.
gia de S. Justino - Juizo de Deus sobre os romanos. Sexta perse-
guição .sob Marco Aurelio, retrato deste principe; piartyrios de S.
Justino e S. Policarpo . - . 276

XIII.ª LIÇÃO.
O CHRJ'STIANISMO ESTABELECIDO.

Milagre da Legião fulminante - Martyres de L·eão: S. Pothino, Santa


Blandina, etc.-Martyrio de S. Symphoriano de Antun . . 293

XIV.ª LIÇÃO.

O CHRISTIANISMO ESTABEJ,ECIDO.

Quadro do terceiro seculo-Tertulliano-:-Origenes-Setima persegui-


·ção sob Septimio Severo; retrato deste principe_; martyrio de Santa '~ .
Perpetua e de Santa Felicidade . · . 306
• . XV.ª LIÇÃO.

O CHRISTIANISMO ESTABELECIDO.

Santo lrenéo-OsSantosFerréol eFerjeux-Juizo de'Deus sobreSepti-


mio Severo - Perseguição particalar sob Maximino - retrato deste
principe - Juizo de Deus sobre elle - Oitava perseguição geral no
reinado de Decio; retrato deste principe-1\fartyrio de S. Pionio, S.
Cyrillo e Santa Agueda-foizo de Deus sobre Decio - Nona perse·
guição geral no reinado de Valerio; retrato deste princi pe; marty-
rio de S. Lourenço e Cypriano. 324
XIV.ª LIÇÃO.
O CHRISTIANISMO ESTABELECIDO.

Juizo de Deus sobre Valerio. -- Perseguição particular sob Aureliano ;


retrato deste príncipe; martyrio de S. Diniz -- Juízo de Deus sobre
Aureliano. - Decima perseguição geral sob Diocleciano e Maximia-
no, retratos destes dous principes; martyrio de S. Genez ~a Legião
thebana-A Igreja cónsolada, vida de S. Paulo Eremita · 342
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