Você está na página 1de 76

ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA

A “Carta Circular aos amigos da Cruz” – I

Enlevo e holocausto
Serviço, obediência e holocausto em prol da Igreja,
nascidos do enlevo pelas perfeições de Deus, são atitudes
próprias da alma onde lateja um autêntico amor à Cruz
de Nosso Senhor Jesus Cristo. É o que Dr. Plinio nos
convida a compreender, ao comentar — numa série de
conferências que equivalem a um retiro espiritual — a
“Carta circular aos amigos da Cruz”, escrita por São Luís
Grignion de Montfort.
S. Hollmann

10
S ão Luís Maria Grignion de Montfort escreveu uma
obra com um título glorioso: “Carta Circular aos
amigos da Cruz”. Por ser pequena, deu-lhe a for-
ma de carta. A julgar pelo título, foi redigida para afervo-
te livresco. Porque uma é a linguagem empregada com
os inimigos, outra, com os amigos. Há ainda um terceiro
modo de falar, utilizado com os irmãos, aqueles que vi-
bram de entusiasmo pelo mesmo ideal que o nosso, aos
rar certo número de pessoas conhecidas do santo, parti- quais não queremos apenas afervorar, mas impulsionar
cularmente amigas da Cruz ou, pelo menos, com um co- nas sendas desse ideal. São Luís escreve numa linguagem
meço de amor a ela, numa época [início do século XVIII] que convém às duas últimas categorias, embora mescle
onde se era pouco amigo da Cruz1. considerações diversas.
Com efeito, alguns pensamentos são próprios a es-
Ardorosa linguagem do santo timular o amor à Cruz, outros constituem defe-
sas ou apologias da Cruz, para serem usados
Esse é um pormenor importan- em polêmicas contra os inimigos dela. Anali-
te, e não de interesse meramen- saremos ambos os aspectos, para bem com-
preendermos a linguagem e o significado da
Carta, que assim começa:
Já que a divina Cruz me esconde e me interdiz
a palavra, não me é possível e nem desejo vos falar,
para vos externar os sentimentos do meu coração sobre
a excelência e as práticas divinas de vossa união na adorá-
vel Cruz de Jesus Cristo.
Hoje, entretanto, último dia de meu retiro, saio, por as-
sim dizer, da atração do meu interior, a fim de esboçar nes-
te papel alguns leves dardos da Cruz, para com eles trans-
passar vossos bons corações. Prouvesse a Deus que,

Crucifixo de São Luís


Maria Grignion de Montfort –
Saint-Laurent-sur-Sèvre, França

11
ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA

para acerá-los, bastasse o sangue de minhas veias, em lu- Esse é um ponto fundamental na vida espiritual. Pois
gar da tinta da minha pena! Mas, ai de mim! Mesmo se ele quando no coração de alguém cresce o enlevo por algo,
fosse necessário, é por demais criminoso. Que o espírito de ele fica apetente de obediência, serviço e holocausto, que
Deus vivo seja, pois, a vida, a força e o teor desta carta; que são cruzes. Fazer a vontade de outrem e não a própria:
sua unção seja a tinta de meu tinteiro; que a divina Cruz se- obediência; servir ao próximo e não a si mesmo e a seus
ja minha pena, e vosso coração, o meu papel! egoísmos: serviço; e mais que tudo isso, o holocausto, o
sacrificar pelo outro o que se possui, até a imolação da
Graça especial para se ter amor à Cruz própria vida. Essas três atitudes de alma constituem cru-
zes e são a substância de toda cruz que existe na Terra.
Percebe-se nesse trecho certo estilo próprio à literatu- Pode-se supor que é a esse amor nascido do enlevo pe-
ra da época, mas também um pensamento teológico mui- las coisas de Deus, o qual torna as almas capazes de abra-
to profundo. Ou seja, para tudo quanto é bom, faz-se ne- çar a Cruz, é a essa graça especial que se refere São Luís
cessária a graça de Deus, e de modo especial no que diz res- Grignion no exórdio de sua carta.
peito à cruz. Porque o homem é tão egoísta e infenso ao so-
frimento que, se não houver uma graça particularmente in- “Coragem! Combatei valentemente!”
tensa, pujante, a ação de qualquer pessoa é incapaz de des-
pertar noutra o amor à Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. E prossegue:
Por exemplo, a graça do enlevo pelas coisas celestes, Estais reunidos, amigos da Cruz, como outros tantos
pelas coisas de Deus, proporciona a uma pessoa cora- soldados crucificados para combater o mundo, não fugin-
gem para que ela carregue grandes cruzes como se fos- do dele como os religiosos e religiosas pelo medo de serdes
sem pequenas. Quer dizer, esse amor latente por Deus, vencidos, mas como valorosos e bravos guerreiros no cam-
por Nossa Senhora, pelas grandezas do Céu agem com po de batalha, sem largar o pé e sem voltar as costas. Cora-
tal profundidade no homem que, por um ato de consen- gem! Combatei valentemente!
timento livre, consciente — e ao mesmo tempo subcons- Como já vimos, uma das características de São Luís
ciente, o que parece parodoxal, porém verdadeiro — ele Grignion é o espírito combativo, com um quê de fogo-
se deixa transformar. E o amor à Cruz é o sintoma dessa so no sentido de apostrofar os erros dos adversários. En-
mudança de mentalidade. tão ele, que fundou uma congregação religiosa, reunin-
Fotos: S. Hollmann

No exórdio de sua carta,


São Luís Grignion se
refere ao amor nascido
do enlevo pelas coisas de
Deus, à luz do qual as
almas se tornam capazes
de abraçar a Cruz de
Nosso Senhor

Relíquias de São Luís Maria Grignion


de Montfort, Saint-Laurent-sur-Sèvre;
na página 13, crucifixo da igreja de
Notre-Dame de L’Épine, França

12
13
ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA

da
no
hi
.S
M

do pessoas para fugirem do mundo, conhece a varieda-


de dos dons que existem na Igreja. E compreende que “Imaginamos um missionário
certas almas são chamadas a permanecer no mundo para que fala e brande um
combater o mal. Porque viver no mundo é sinônimo de
lutar contra o mal. É para esses que ele escreve: “valoro- crucifixo para os seus ouvintes,
sos e bravos guerreiros no campo de batalha...” Apenas
isso? Não. “Coragem! Combatei valentemente!” Quer
convidando-os à luta em defesa
dizer, é preciso tomar a iniciativa em defesa da virtude, da virtude contra o pecado:
contra o pecado.
Essas palavras se compaginam com a forte persona-
bravos guerreiros, combatei
lidade de São Luís Grignion de Montfort, fazendo-nos valentemente!”
imaginar um missionário que fala e brande um crucifi-
xo para os seus ouvintes, convidando-os à luta. Nesse tre- Acima, medalhão com a efígie de São Luís
cho há qualquer coisa do timbre de voz de nosso santo, Maria Grignion de Montfort; na página 15,
que é insubstituível. Aqui transparece sua psicologia in- cruz feita pelo santo missionário, venerada na
teira: abrasado de entusiasmo, não passando um minu- igreja de Saint-Laurent-sur-Sèvre, França

14
S. Hollmann

to sequer sem um amor a Deus superlativo, lucidíssimo,


com os olhos voltados ao mesmo tempo para o ideal que
o enlevava e para a ação por ele contemplada. Portan-
to, da chama da contemplação passava para o ato, reali-
zando um apostolado dardejante, levando muitas pesso-
as consigo. Era um braseiro ardente, cujo calor comuni-
cativo se sente nessas palavras.

Mais anjo do que homem


Tem-se a impressão, aliás, ao lermos esses escritos de
São Luís Grignion, de vermos nele mais um anjo do que
um homem, com o amor próprio de um serafim. Cons-
tantemente aceso e deitando labaredas em torno de si.
Ele possuía uma castidade primeira, uma candura inicial,
uma incontaminação da sabedoria, sem nenhuma con-
cessão às máximas mundanas, aos desvios da Revolução.
Era um reflexo do espírito de Nossa Senhora agindo en-
tre os homens, como um anjo.
Como se vê, nesses comentários procuramos fa-
zer sentir o tom de voz e quase o calor pessoal de São
Luís Grignion de Montfort, pois para nós é indispensá-
vel compreendermos a personalidade dele, que tanto
nos fala à alma. Afinal, ele é o santo da verdadeira de-
voção a Nossa Senhora, a qual alcança para seus devotos
a plenitude de dons como este do amor à Cruz, enalteci-
do por São Luís nessa sua admirável carta circular. Y
(Continua em próximo artigo)

(Extraído de conferência em 20/5/1967)

1) Grandet, o primeiro biógrafo de São Luís Grignion, assim


escreveu: “O Pe. Grignion, apoiado na máxima de Jesus
Cristo segundo a qual, para ser do número de seus discípu-
los, é preciso renunciar a si mesmo, carregar sua cruz todos
os dias e segui-Lo, empenhava-se no inspirar a todos os po-
vos o amor à cruz, de qualquer espécie que esta seja: doen-
ça, injúrias, humilhações, desprezos, etc. E ele pregava es-
ta grande verdade, mais eficazmente por seus exemplos do
que por suas palavras.
E para incentivar essa devoção tão contrária aos sentidos e
à natureza corrompida, constituía associações de várias pes-
soas sob o título da Cruz; dispunha-lhes regras e práticas es-
pirituais aprovadas pelos bispos. Erguia grandes cruzeiros
ao final de cada missão, com solenidade, e distribuía peque-
nas cruzes bordadas aos que haviam participado dos 33 ser-
mões das suas missões.
Compôs diversos cânticos em louvor da Cruz e imprimiu
uma carta circular dirigida aos amigos da Cruz, contendo
máximas evangélicas necessárias à salvação.”
(Œuvres completes de Saint Louis-Marie Grignion de Mont-
fort, Éditions du Seuil, Paris, 1966, p. 217-218.)

15
ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA

A “Carta circular aos amigos da Cruz” - II

União dos
espíritos e dos
corações
Um extraordinário poder concedido pela Providência às almas
unidas por um verdadeiro amor à Cruz de Cristo. Assim entende
Dr. Plinio o valor e a força desse profundo liame espiritual —
ressaltado por São Luís Grignion de Montfort em sua Carta
Circular aos amigos da Cruz —, capaz de infligir, por sua simples
existência, tremendas derrotas ao demônio.

E screve São Luís Grignion:


Uni-vos fortemente pela união dos espíritos e
dos corações, infinitamente mais forte e mais temí-
vel ao mundo e ao inferno do que o são, para os inimigos
reino com tropas armadas invadindo outra nação, não
era descabida, e ele a empregou para reforçar seu valio-
so pensamento.
Aprofundando essa idéia de São Luís, podemos cons-
do Estado, as forças exteriores de um reino bem unido. tatar que existe uma espécie de porosidade universal da
sociedade humana — semelhante à osmose, que é um fa-
Princípio valioso to natural — por onde tudo que se passa em algumas al-
mas acaba atingindo todas as outras, ainda que não se
Eis um belo trecho, que encerra um abismo de sabe- conheçam. Donde a força incalculável dessa união de es-
doria e de realidade. União de espírito e de corações sig- píritos.
nifica vínculo de princípios e de vontade, mais poderoso
do que o liame no qual se aglomeram os soldados de um Sentido profundo da união
exército bem unido. em torno da Cruz
Cumpre observar que São Luís Grignion de Montfort
viveu durante o reinado de Luís XIV e no período da Re- Contra isso levantar-se-ia a objeção de que é uma fan-
gência, quando a Europa se achava conturbada por guer- tasia. Respondo: antes da descoberta do rádio, se se afir-
ras diversas. Assim, a imagem utilizada por ele, de um masse que através de uma caixinha seria possível ouvir,

10
São Luís Maria Grignion de
Montfort – Igreja de Saint-
Laurent-sur-Sèvre, França
S. Hollmann

S. Hollmann
Segundo o
pensamento de São
Luís Grignion,
existe uma forma
de porosidade
universal da
sociedade humana,
por onde o que se
passa em algumas
almas acaba
atingindo todas as
outras; daí a força
incalculável dessa
união de espíritos

11
ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA

nos mais diversos idiomas, notícias do mundo inteiro, Insisto: ainda que fossem cinco paralíticos num hospital,
muitos sorririam e diriam tratar-se de fantasia. Quando portanto pouco prestigiados, se tivessem essa união, re-
surgiu o rádio, ficaram boquiabertos. Porém, diante do presentariam um fator de alta importância para os desíg-
fato espiritual, continuam a pensar que dito fenômeno é nios da Igreja.
contra o bom senso...
Se pensarmos na analogia com a osmose, percebe- Admirável poder dado pela Providência
mos a veracidade de tal princípio. Algumas almas que se
unam de modo fervoroso em torno da Cruz de Nosso Se- Compreendamos como esse é um admirável poder
nhor, junto à qual se encontra Nossa Senhora — que nos que a Providência nos concedeu a nós, católicos e ami-
alcança e nos distribui as graças de Deus —, essas almas gos da Cruz. Pois mesmo que nos faltassem os recursos
assim inteiramente unidas têm o dom de desferir um gol- materiais, que nos negassem todos os meios de ação, ou
pe no demônio mais terrível que as armas de todo um fôssemos perseguidos e lançados em cárceres diferentes,
exército. mas permanecêssemos unidos nesse vínculo de almas, es-
Foi o que se deu, por exemplo, com Santo Inácio de taríamos combatendo os adversários da Igreja e da Civi-
Loyola e seus primeiros discípulos. Ao se reunirem com lização Cristã de modo extraordinariamente eficaz.
o propósito de constituir a Companhia de Jesus, naque- É o que se depreende do pensamento de São Luís em
le momento tal união de almas repercutiu nas piores fa- sua Carta Circular. Um pequeno grupo de amigos da
langes de calvinistas e luteranos, infligindo um tremen- Cruz, fortemente unidos, são como um exército em mar-
do golpe no foco essencial do adversário da ortodoxia ca- cha vitoriosa para derrotar o inimigo. Lembra-nos a afir-
tólica. mação de Nosso Senhor no Evangelho: o Reino dos céus
Esse é o sentido mais profundo do apostolado dos está dentro de vós (Lc 17, 21). Embora eu não seja exe-
amigos da Cruz, unidos, com amor e enlevo, em torno do geta, creio não me enganar ao considerar que o corolário
seu ideal, na forma como essa união deve ser organizada. dessa verdade é: nossa vitória está dentro de nós. Seja-

S. Hollmann

12
S. Hollmann
mos o que devemos ser, o triunfo será como que automá-
Ao se unirem para tico. Ou seja, mais do que qualquer outra coisa importa
formar a Companhia procurarmos ser o que devemos ser.

de Jesus, Santo Inácio e Santa Teresa e suas freiras


seus primeiros seguidores Nesse sentido, chama a atenção que todos os histo-
desferiram terrível golpe nos riadores mencionam a reforma do Carmo feita por San-
adversários da ortodoxia ta Teresa, a Grande, como um dos fatos dominantes da
Contra-Reforma. Porém, a quase totalidade deles abs-
católica: um corolário da trai o fato da comunhão dos santos e consideram ape-
nas os aspectos naturais dessa reforma. Ora, sob o ân-
palavra de Nosso Senhor no gulo meramente natural, tendo em vista uma reação, o
Evangelho — o Reino dos erro estratégico por excelência consiste em fundar uma
ordem contemplativa. Pois tomar um grupo de freiras
céus, o nosso triunfo, está que podiam estar agindo e pregando pela Espanha con-
dentro de nós tra o protestantimo, trancá-las atrás de grades e obrigá-
las ao silêncio, seria prestar um imenso favor ao adver-
sário. Significava inutilizar os melhores instrumentos hu-
Nosso Senhor com os Apóstolos - Basílica de
manos do bem.
Saint-Denis, França; na página 12, Paulo III
aprova a constituição da Companhia de Jesus - Entretanto, esses mesmos historiadores admitem o
Santuário de Loyola, Guipuzcua (Espanha) alcance concreto das fundações de Santa Teresa para o
triunfo da Contra-Reforma. Quer dizer, de um peque-
no grupo de freiras, no fundo de um convento, permeia,

13
ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA

filtra e voa um dardo vigoroso contra o mal. E quanto


maior for o amor a Deus e o ódio ao demônio com que

Todos os historiadores
admitem o papel
primordial das fundações
de Santa Teresa de
Jesus na vitória da
Contra-Reforma: de um
pequeno grupo de freiras
encerradas num convento,
filtra e voa um dardo
vigoroso contra o mal

14
de pecado, enquanto entre os católicos não houve re-

Fotos: S. Hollmann
quintes de virtude. E então o pecado também voa em
sentido oposto ao bem. Essa é a grande batalha, invisí-
vel e superior, dos amigos da Cruz, dos que pertencem
à cidade de Deus (para usar a imagem de Santo Agos-
tinho), aqueles que levam o amor do Altíssimo até o
esquecimento de si mesmos, contra os amigos da satis-
fação, do deleite desenfreados, filhos da cidade do de-
mônio que levam o amor de si mesmos até o esqueci-
mento de Deus.
Compreendemos, assim, como Nossa Senhora, os an-
jos e nossos santos padroeiros nos olham do Céu e nos
acompanham em nossa trajetória espiritual, esperando
que tenhamos esse impulso ardoroso de alma, capaz de
contrariar as ações do demônio e seus sequazes.

Fundamento do apostolado
da Contra-Revolução
As palavras seguintes de São Luís confirmam ainda
mais tudo o que acima consideramos. Diz ele:
Os demônios se unem para vos perder. Uni-vos para der-
rotá-los.
Portanto, é a visualização da luta como o confron-
to entre duas uniões, as quais não significam coliga-
ções estratégicas de forças, mas de amores contrários,
que definem a vitória ou a derrota, antes de tudo pe-
la sua diferente intensidade. É o lado estático e supe-
rior da luta, supereminente em relação a seu aspecto
dinâmico.
Os avarentos se unem para traficar e ganhar ouro e pra-
ta; uni vossos trabalhos para conquistar os tesouros da eter-
nidade, encerrados na Cruz.
O avarento recolhe para si, sendo o oposto do que tem
Santa Teresa de Jesus - Basílica da Estrela, amor de Deus: este é o “avarento” das coisas da eterni-
Lisboa (Portugal); Convento de San José, fundado dade, dos tesouros encerrados na Cruz de Cristo.
por Santa Teresa, em Ávila (Espanha) Os libertinos se unem para se divertir; uni-vos para so-
frer.
Eis um empolgante contraste! Se tantos se unem pa-
ra se divertir, como vencer essa coligação de libertinos?
essa união se faça, tanto maior será o golpe desferido no Sofrendo sozinho? Não: sofrendo unidos. Forman-
inimigo da Igreja. do dessa maneira o bloco coeso dos bons, desferindo o
maior impacto que se pode infligir ao mal.
Batalha invisível dos amigos Creio que essas palavras de São Luís Grignion de
da Cruz contra o mal Montfort contêm o fundamento do apostolado contra-
revolucionário, pois essa união de espírito e de corações
Em sentido contrário, é preciso considerar, não ra- é a mais eficiente arma na luta entre a Revolução e a
ro se vê famílias ou instituições desmoronarem moral Contra-Revolução. Y
e até materialmente. São muralhas da velha tradição
católica que se desfazem. A causa próxima dessa ruína
geralmente é indetectável. Mas o motivo remoto, pro- (Continua em próximo artigo.)
fundo, é este: nos antros do demônio houve requintes (Extraído de conferência em 20/5/1967)

15
ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA

A “Carta circular aos Amigos da Cruz” – III

Um nome mais
brilhante que o sol
O Amigo da Cruz é um escolhido entre mil, apartado
das coisas naturais e entregue à contemplação das
sobrenaturais, colocando o seu amor naquilo que todos
desprezam: o sofrimento, em união com o Divino
Mestre. Dr. Plinio prossegue seus comentários ao
opúsculo de São Luís Maria Grignion de Montfort.

C om seu fervor característico, São Luís Grignion


continua a escrever:
Chamai-vos Amigos da Cruz. Como é grande es-
te nome! Confesso-vos que ele me encanta e deslumbra. É
tra várias exclamações que traduzem o fogo de sua alma,
com possibilidade de um contágio extraordinário.
Como é grande este nome! Confesso-vos que ele me en-
canta e deslumbra.
mais brilhante que o sol, mais elevado que os céus, mais Não se trata de expressões lançadas ao léu. Encantar
glorioso e mais pomposo que os títulos mais magníficos dos não é o mesmo que deslumbrar. O encanto assemelha-
reis e dos imperadores. É o grande nome de Jesus Cristo, a se à ternura, e o deslumbramento, à admiração. O que
um tempo verdadeiro Deus e verdadeiro Homem, é o nome me encanta, de certo modo me pertence profundamen-
inequívoco de um cristão. te. E aquilo que me deslumbra desperta em mim admira-
ção, veneração. Talvez sem intenção de fazê-lo, São Luís
Exclamações contagiantes Grignion de Montfort aponta aqui os dois elementos ca-
racterísticos do enlevo: a veneração e a ternura.
Cumpre considerar que São Luís Grignion escreveu É mais brilhante que o sol, mais elevado que os céus,
essa obra numa época em que — não tanto como na Ida- mais glorioso e pomposo que os títulos mais magníficos dos
de Média — os títulos ainda tinham muita importância, reis e dos imperadores.
e por meio deles se definiam as pessoas com o direito de As duas primeiras comparações me parecem muito fe-
usá-los. Então o Santo utiliza o valor da titulatura, con- lizes, e na pena do Santo adquirem um calor, uma força
forme à ordem natural das coisas, para mostrar como o de atração, uma refulgência extraordinários. Como que
título de amigo da Cruz é elevado. Nesse intuito, regis- sentimos a sua alma de insigne teólogo, de inspirado lite-

10
Tal é o valor de
ser Amigo da
Cruz, que esse
título equivale
ao nome do
Homem-Deus,
Nosso Senhor
Jesus Cristo

Crucifixo na Serra da
Piedade - Minas Gerais
P. Veas

11
ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA

rato, de varão católico, vibrando de emoção diante do tí- Escolhidos entre milhares
tulo “Amigo da Cruz”. Continua São Luís Grignion:
Entretanto, se seu brilho me encanta, seu peso não me
Ternura e veneração pela espanta menos. Quantas obrigações indispensáveis e difí-
Paixão de Cristo ceis contidas nesse nome, e expressas por estas palavras do
Espírito Santo: sois uma raça eleita, um sacerdócio real,
É o grande nome de Jesus Cristo, a um tempo verdadeiro uma nação santa e um povo que Deus formou (1 Pd 2, 9).
Deus e verdadeiro Homem. Quer dizer, a cada Amigo da Cruz corresponde essa
Tal é o valor de ser Amigo da Cruz, que esse título definição: pertence ele a uma raça eleita, possui um sa-
equivale ao nome d’Aquele que é verdadeiro Deus e ver- cerdócio real, é filho de uma nação santa e membro de
dadeiro Homem, Segunda Pessoa da Santíssima Trinda- um povo que Deus formou.
de, Nosso Senhor Jesus Cristo. Pensamento lindíssimo e Um Amigo da Cruz...
acertado, pois ao longo de toda a História a piedade ca- Faço notar que São Luís escreve Amigo da Cruz com
tólica elegeu a Cruz como símbolo do próprio Redentor. “A” e “C” maiúsculos, pois não se refere a todo e qual-
Nota-se, ainda, que ele não se refere apenas à cruz co- quer católico, mas especialmente àqueles que se consa-
mo sofrimento, aceito e levado até seu termo em união graram na associação por ele fundada para propagar o
com os méritos infinitos de Nosso Senhor, mas considera amor à Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. A essa fun-
filosoficamente a forma de uma cruz como símbolo que dação ele fará elogios magníficos, por causa dos seus ob-
traz consigo algo de santo, pelo vínculo que adquiriu com jetivos. Para nós significa algo pleno de ensinamento,
a Paixão. São Luís deseja nos comunicar, assim, ternura e pois nos mostra como o valor de nosso movimen-
veneração pelo holocausto redentor de Jesus, bem como to provém igualmente do fato de amarmos
pela santa Cruz considerada como tal, conforme, aliás, a Cruz, e esse amor sobrepuja a quali-
ensina a teologia. E como o ratifica a mesma piedade po- dade individual de seus membros
pular, ao erguer cruzeiros ou plantar cruzes nos mais va- ou a consistência de sua es-
riados locais, aonde vão em peregrinações, ou simples- trutura jurídica.
mente depositar um punhado de flores junto a elas, num
singelo e sincero testemunho de sua devoção.

12
A piedade popular manifesta
sua ternura para com a Paixão
do Redentor, levantando
cruzeiros e depositando flores
junto às cruzes erguidas nos
locais mais variados
Cruzeiro na Floresta Negra –
Baviera, Alemanha

L. Werner

13
ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA

Um Amigo da Cruz é um homem escolhido por Deus en- A linguagem de São Luís é frisante: não é contra a ra-
tre dez mil que vivem segundo os sentidos e apenas da razão, zão, mas acima dela. E quanto aos sentidos, refere-se à
para ser unicamente um homem todo divino e elevado aci- desordem deles. Está subjacente nessa afirmação a idéia
ma da razão, e todo em oposição aos sentidos por uma vida de que o pecado original abalou de modo tão profundo o
e uma luz de pura fé e um amor ardente à Cruz. homem que seus sentidos se tornaram desordenados.
Então, sentir uma vocação especial para uma vida e uma Um Amigo da Cruz é um rei todo poderoso e um herói
luz de pura fé, bem como de um ardente amor à Cruz, é triunfante do demônio, do mundo e da carne em suas três
graça invulgar que Deus concede a um entre dez mil que concupiscências. Pelo amor às humilhações, esmaga o or-
“vivem segundo os sentidos e a razão”. Já naquele tempo se gulho de Satanás; pelo amor à pobreza, triunfa da avare-
estabelecia oposição entre a fé e a razão, esta última enten- za do mundo; pelo amor à dor, amortece a sensualidade da
dida no sentido do racionalismo cartesiano1. Donde, aqueles carne. Um Amigo da Cruz é um homem santo e separado
que vivem de acordo com a pura razão natural, recusando o so- de todo o visível, cujo coração está acima de tudo quanto é
brenatural, só têm luzes proporcionadas por aquela. São os ra- caduco e perecível, e cuja conversa está no Céu (Fl 3, 20);
cionalistas — que de fato claudicam também em matéria de ra- que passa pela Terra como estrangeiro e peregrino; e que,
zão — e os que vivem de acordo com os sentidos. sem lhe dar o coração, a contempla com o olho esquerdo e
com indiferença, calcando-a com desprezo aos pés.
Espírito metafísico e amor ao sublime Trecho muito bonito, que exprime o amor aos impon-
deráveis e, de certo modo, ao sublime, ao maravilhoso.
Um homem todo divino e elevado acima da razão, e to- Para estar “separado de todo o visível”, ou seja, afastado
do em oposição aos sentidos. das coisas materiais e voltado para as invisíveis — mor-
S. Martins

14
mente as sobrenaturais — importa ter um feitio de espí-
rito contrário ao materialismo, bem como à concepção
racionalista e cientificista da existência humana. Para os
Além de se enternecer adeptos dessa mentalidade, apenas o material é atingível
com a Paixão de Cristo, pelos sentidos, é confiável e desejável, constituindo a fi-
nalidade da vida terrena. Tudo quanto é metafísico, que
o autêntico Amigo da vai além dos sentidos, deve ser evitado como quimera do
Cruz deve possuir um espírito e, portanto, inconsistente.
Devido à decadência da civilização, os homens cada
espírito metafísico, vez mais adotaram essa postura de alma, que certas es-
voltado mais para os bens colas filosóficas do século XIX levaram ao apogeu. São
Luís Grignion de Montfort prevenia seus discípulos con-
espirituais do que para os tra esses desvios. Para ele, o Amigo da Cruz não é apenas
interesses terrenos o que se enternece com a Paixão de Nosso Senhor Jesus
Cristo, mas o que possui alguns pressupostos mentais pa-
ra esse enternecimento, e um deles é o espírito metafísi-
Cruzeiro em Palmela, Portugal co, interessado no espiritual.
Em suma, para se compreender o valor do sofrimento,
a pessoa deve apreciar os bens do espírito e estar desa-
pegada da matéria, o que envolve um padecimento espe-
cial, pois significa disciplinar seu próprio ser. Tal discipli-
na, que exige certa renúncia — e, portanto, dor — é ine-
rente ao autêntico Amigo da Cruz.

Desejar mais o “beau” que o “joli”


Os franceses fazem uma interessante distinção en-
tre joli e beau. O primeiro vocábulo significa “bonito”
e se aplica a coisas pequenas. Já o segundo quer dizer
“belo”, um conceito mais elevado e corresponde à be-
leza da alma. É preciso ter algo de ascese para se con-
servar a posição do beau; querer exclusivamente o joli
importa em escravização à matéria. Então nosso San-
to mostra que o Amigo da Cruz deve ter como pres-
suposto uma forma de mentalidade metafísica visando
mais o beau do que o joli. Este deve ser apenas peque-
no acessório daquele.
Somente uma alma assim é capaz de compreen-
der inteiramente a grandeza do sofrimento, da dor e,
portanto, da Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. Y
(Extraído de conferência
em 6/6/1967)

1)
Referência à filosofia do autor francês René Descartes
(1596-1650) que, rompendo com a escolástica, coloca como
base do pensamento o que ele chama a “dúvida metódica”.
Teve grande influência no racionalismo dos tempos poste-
riores, notadamente na França e nos países que ela inspi-
rou culturalmente.

15
ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA

A “Carta Circular aos Amigos da Cruz” - IV

Uma ilustre conquista


de Nosso Senhor
Jesus Cristo
Ser um autêntico Amigo da Cruz significa nutrir na alma
um particular amor aos valores sobrenaturais, e ter sempre
em vista esta subida verdade: fomos engendrados durante
a Paixão de Cristo; mil dores e gemidos precederam nosso
nascimento, que se deu através da chaga aberta no flanco do
Redentor. Dr. Plinio prossegue suas considerações sobre o
opúsculo escrito por São Luís Grignion de Montfort.

C omo vimos em nossa última exposição, São Luís


Grignion estabelecia certas características funda-
mentais do autêntico Amigo da Cruz, entre elas, o
possuir um espírito metafísico, desapegado dos interes-
como funesta conseqüência, entre outras, o fato de pes-
soas se subtraírem às aulas de catecismo e abandonarem
prematuramente a prática da religião. Afirmar, pura e
simplesmente, que elas rejeitaram a ascese e por isso se
ses terrenos e voltado primordialmente para os valores expõem ao risco da condenação eterna, é um julgamen-
sobrenaturais. to sumário.
Ponderemos. Foi-lhes explicada a doutrina da Igre-
Cumpre formar as almas no ja sobre as virtudes católicas em toda a sua importância
amor às verdades metafísicas e magnitude? Por outro lado, mostraram-lhes até onde
chega a degradação dos vícios? Ou apenas se lhes falou
Ora, para se ter esse feitio de alma é necessário uma dos Dez Mandamentos, com referências concisas, sem
formação católica que cultive, com seriedade, o amor às explanações complementares?
verdades metafísicas, que proporcionará ao fiel uma só- Quer dizer, há portanto toda uma ascese para se amar
lida disposição para abraçar a Cruz e o sofrimento. Infe- a Cruz, a qual, ao longo dessas exposições, à medida que
lizmente, tal formação não é corrente, e essa lacuna traz o texto o favorece, procuramos apontar.

10
n
an
lm
ol
H
S.

“Filhos da dor e da destra”: São Luís Grignion nos deu, até aqui, dois pressupos-
com seu preciosíssimo Sangue, tos para se tornar um Amigo da Cruz. O primeiro consis-
te na ternura diante dos padecimentos infinitos de Nos-
Nosso Senhor Jesus Cristo so Senhor Jesus Cristo no Calvário. Segundo, acima lem-
conquistou cada um dos amigos brado, o espírito metafísico por onde a pessoa se desta-
ca da consideração das realidades meramente palpáveis
de sua Cruz e dirige seu pensamento para o invisível, para os bens so-
Longinos abre o lado direito de Jesus - Vitral brenaturais. Quem quiser se formar na escola dos Ami-
da Catedral de Bourges, França gos da Cruz deve, pois, cultivar esses traços de alma.

11
ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA

Indivíduos particularmente chamados


Continuemos a analisar as palavras de São Luís Grig-
nion:
Um Amigo da Cruz é uma ilustre conquista de Jesus
Cristo crucificado no Calvário, em união com sua Santa
Mãe...
Faço notar, uma vez mais, que em toda a Carta, São
Luís escreve “Amigo da Cruz” com A e C maiúsculos,
pois ser membro dessa sociedade por ele fundada é uma
“ilustre conquista de Jesus Cristo”. Ou seja, Nosso Se-
nhor conquistou cada um particularmente, derramando
seu Sangue para que este e aquele fossem mais chama-
dos e recolhidos no cenáculo dessa instituição. E — be-
líssima característica de São Luís Grignion — a referên-
cia nunca esquecida a Nossa Senhora:
...em união com sua Santa Mãe. É um Benoni ou Benja-
min, filho da dor e da destra...
Refere-se aos dois nomes dados ao último filho de Ja-
có: o primeiro por sua mãe, Raquel, o outro por seu pai
(Gn 35, 18). “Filho da dor e da destra”, bonita expressão,
indicativa de traços da própria alma de São Luís Grig-
nion de Montfort. Com efeito, embora ele não explique,
entre a destra e a dor há certa correlação. Pode-se entre-
ver que a dor propicia méritos para o indivíduo se tornar
um filho da destra, isto é, um filho que é direito, sério,
honrado, objeto de especial preferência. Não há destra
sem dor, e toda dor santa tem algo de destra.

Filhos da dor, cobertos pelo


Sangue de Cristo
... gerado em seu dolorido Coração, vindo ao mundo por
seu lado direito atravessado e coberto da púrpura de seu
Sangue.
Eis uma comparação em extremo contundente, pró-
pria a surpreender as almas superficiais. Imaginemos um

Gerado pelos indizíveis sofrimentos


do Homem-Deus durante a
Paixão, o Amigo da Cruz nasceu
para a sublimidade e não para a
frivolidade das coisas mundanas
Cenas da Paixão de Nosso Senhor - Retábulo
da Catedral de Colônia, Alemanha

12
13
S. Hollmann
ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA

marquês do Ancien Régime1, trajado com roupas vistosas


e de espírito frívolo, a quem São Luís Grignion afirma que
deveria “ser gerado no dolorido Coração de Jesus, vindo ao
mundo por seu lado direito atravessado e coberto da púrpura
de seu Sangue”... A superficialidade do nobre receberia um
duro golpe!
Pois outro não é o paralelo estabelecido pelo santo. Ele
compara o nascimento do filho da destra, ou seja, do Amigo
da Cruz, à gestação e ao parto dolorosos de uma criança; no
caso, vindo à luz em meio ao sofrimento, através do Cora-
ção de Cristo aberto por uma lança. Aí nasceram os especial-
mente chamados, que vêm à Terra cobertos pelo Sangue do
Redentor. São filhos da dor, da agonia e da morte, e não do
prazer. Nasceram para as sublimidades dessas perspectivas e
não para a frivolidade. Seu feitio de espírito é o oposto ao do
homem mundano, que deseja viver apenas para a fruição das
transitórias alegrias terrenas.

Esteio da mentalidade de
um autêntico católico
Importa termos sempre em vista essa subida verdade:
fomos engendrados durante a Paixão de Cristo. Mil dores
e gemidos precederam nosso nascimento. Este se deu tra-
gicamente, através da chaga do lado de Nosso Senhor, pro-
vocada pela lança de Longinos. Portanto, onde a última go-
ta de água, o último sangue, a derradeira oblação, a extre-
ma generosidade se fizeram notar. Compreende-se, assim,
a diferença entre essa visualização e o mundanismo.
Recordo-me de que nas antigas cerimônias de Semana
Santa, durante a Via Sacra se cantava: “Pelas lágrimas de
Maria, tende de nós compaixão; por vossa última agonia,
tende de nós compaixão; Jesus, perdão, perdão”. Nesse
hino as pessoas se compraziam em considerar a lumino-
sa e sublime tristeza de Nosso Senhor, e ao ouvi-las can-
tando, eu pensava comigo mesmo: “Embora muitos não
estejam compenetrados, o fato de entoarem esse cânti-
co lhes dá uma tal ou qual participação no valor daquilo

A mentalidade do católico
autêntico supõe o amor compassivo
à Sagrada Face de Cristo,
ensanguentada, machucada,
desfigurada...
Crucifixo da Catedral da Sé - São Paulo, Brasil

14
que a letra da música exprime”. Ou seja, participavam do

T. Ring
amor à Cruz de Cristo.
Reafirmo, portanto: nada em matéria de pensamento
de vida interior vale qualquer coisa se não proceder des-
se sofrimento, do ato sacrifical de Nosso Senhor no alto da
Cruz e de nossa gestação dolorosa aí realizada. Isto cons-
titui o esteio da mentalidade de um autêntico católico. To-
dos os santos foram assim. E todos somos chamados a nos
enternecer com a Paixão de Nosso Senhor, com sua Sagra-
da Face ensangüentada, desfigurada, machucada.

Mortos para o mundo, a


carne e o pecado
Continua São Luís Grignion:
Dada a sua extração sangrenta, ele [Amigo da Cruz] só
respira cruz, sangue e morte ao mundo, à carne e ao peca-
do, para estar totalmente oculto aqui na Terra com Jesus
Cristo em Deus.
Trata-se, pois, da atitude em face dos adversários da
Cruz, isto é, o mundo, a carne e o pecado. Além disso, re-
fere-se o Santo à passagem da epístola de São Paulo aos
colossenses: “estais mortos, com efeito, e vossa vida é to-
da oculta em Deus com Jesus Cristo” (Cl 3, 3). É uma me-
táfora com a qual ele indica que devemos morrer para as
coisas materiais e carnais, utilizando-nos destas apenas na
medida em que favorecem nossa união com Deus, e não
para os meros deleites que podem nos proporcionar.
Enfim, um perfeito Amigo da Cruz é um verdadeiro por-
ta-Cristo, ou antes, um Jesus Cristo, de maneira que possa,
em verdade, dizer: “vivo, mas não eu, é Jesus Cristo que vi-
ve em mim” (Ga 2, 20).
Magnífica afirmação de São Luís Grignion, mostran-
do-nos o Amigo da Cruz como um porta-Cristo, ao mes-
mo tempo que nos faz essa soberba promessa de aposto-
lado: aonde vai o Amigo da Cruz, este leva Nosso Senhor
consigo. Portanto, sua evangelização se reveste de uma
suprema eficácia.
Vê-se, assim, uma vez mais, a grande necessidade de
formar as pessoas para compreenderem o atrativo da
Cruz, amá-la e, desse modo, deixarem Nosso Senhor Je-
sus Cristo viver nelas. E isto supõe uma profunda gravi-
dade de alma, contrária a tudo quanto podem pensar os
espíritos superficiais. Y
(Continua em próximo artigo)
(Extraído de conferência em 3/6/1967)

1) Período da história da França iniciado em princípios do sé-


culo XVII e extinto em 1789, com a Revolução Francesa.

15
ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA

A “Carta circular aos Amigos da Cruz” - V

Nossas
obrigações
para com
a Cruz
Na seqüência de seus
comentários ao opúsculo
escrito por São Luís Maria
Grignion de Montfort,
Dr. Plinio ressalta esta grave
advertência do santo: quem
quiser ser um autêntico
Amigo da Cruz, deve fugir do
mundanismo que o conduzirá
por um caminho de perdição,
oposto ao da perfeição e
santidade para o qual foi
chamado.

S ão Luís Grignion de Montfort assim continua a sua


Carta:
Sois por vossas ações, meus queridos Amigos da
Cruz, aquilo que o vosso grande nome significa? Ou pelo

10
menos tendes vontade e desejo autênticos de assim vos tor- perdição? Sabeis que existe um caminho que parece ao ho-
nardes com a graça de Deus, à sombra da Cruz do calvá- mem reto e seguro, e que conduz à morte (Pr 14, 12)?
rio e de Nossa Senhora da Piedade? Entrastes no verdadei-
ro caminho da vida (Pr 6, 23; 10, 17; Jr 21, 8) , que é o ca- Justificadas apreensões de um Santo
minho estreito e espinhoso do Calvário? Não estareis, sem
pensar nisso, no caminho largo do mundo, que é a via da Nestas perguntas transparece intensamente o espírito
de São Luís Grignion. Quer dizer, de um lado ele toma
em consideração os Amigos da Cruz como pessoas elei-
S. Hollmann
tas por Deus para um alto chamado. De outro lado, po-
rém, ergue-se diante delas a malícia do século, e à vista
das condições em que estas pessoas vivem, São Luís ma-
nifesta suas apreensões. Donde formular questões como
esta: “sois verdadeiros Amigos da Cruz?”
Ou seja, fácil é alguém tomar o nome de Amigo da
Cruz, mas igual facilidade há para deixar de sê-lo. Por-
tanto, trata-se de uma preocupação cujo fundamento é
evidente. Então, insiste: “Pelo menos tendes verdadei-
ro desejo e vontade de assim vos tornardes com a gra-
ça de Deus”, etc.?
A formulação empregada por ele é muito apropriada
e fina, porque um verdadeiro Amigo da Cruz é alguém
que, em primeiro lugar, está em ordem com seus deveres
para com a Santa Cruz. Mas também é aquele que pos-
sui ao menos um desejo autêntico de estar em ordem a
esses deveres. Poderá ter suas faltas, suas fraquezas, mas
almeja atingir a plenitude de entrega própria ao seu cha-
mado. Este será considerado igualmente um verdadeiro
Amigo da Cruz.

Dois graus de amor à Cruz


Percebe-se aqui dois graus de amor à Cruz, assim co-
mo pode haver dois graus de perfeição religiosa no cum-
primento de uma vocação.

Seguir os passos do Divino


Redentor no caminho
estreito e espinhoso do
Calvário, eis o ideal que o
autêntico Amigo da Cruz
deve procurar e se esforçar
por atingi-lo
Nosso Senhor na Via Dolorosa –
Museu do Louvre, Paris

11
ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA

Antes de tudo, tal perfeição é a inteira conformida-


de do membro de uma ordem com sua respectiva regra.
Contudo, pode dar-se o caso de que algum religioso, ain- Embora o mundanismo no
da neófito, não tenha alcançado essa conformidade; ou,
por desventura, terá retrocedido na sua trajetória rumo seu tempo ainda demonstrasse
àquela perfeição. Mas, se ele demonstrar o desejo de se aparências de distinção e
tornar um verdadeiro religioso e de adquirir um eleva-
do grau de observância, ele ainda se achará no seu lugar nobreza, São Luís Grignion
próprio dentro da ordem. Quer dizer, há para com ele,
da parte de Deus e dos seus superiores, uma atitude de
não deixa de alertar os Amigos
misericórdia, de compaixão, e até de compreensão, a par da Cruz para o grave perigo
das graves exigências que a regra lhe impõe.
O mesmo se aplica ao Amigo da Cruz. Há aquele que
que representam as seduções
se entregou por completo ao amor e ao serviço da Cruz do século
para com ela se identificar; e há aquele que, por lacunas
espirituais, ainda não alcançou essa plenitude de devo- Cena na França do século XVII –
ção, mas a deseja atingir. Então, olhando para estes últi- Museu do Prado, Madrid
mos, São Luís Grignion escreve: “Não estareis, sem pen-
sar, no caminho largo do mundo, o caminho da perdi-
ção? Sabeis bem que existe uma via que parece reta e se-
gura, e na realidade conduz à morte?” é, ao lado do demônio e da carne, uma das concupiscên-
A expressão “sem pensar” é curiosa, e insinua bem cias que inclinam o homem para o pecado e o afastam de
o que poderia ser uma culpa inconsciente do Amigo da Deus. Portanto, o mundanismo assim entendido sempre
Cruz. Ora, o caminho do mundo é tão agradável, e o ho- foi algo ruim, ao qual o católico desejoso de alcançar a
mem de tal maneira se habitua ao que lhe compraz, que santidade deve combater.
ele por irreflexão acaba cometendo uma falta. Esta, em- No tempo de São Luís Grignion, o mundanismo ain-
bora não seja inteiramente consciente — e, portanto, da se revestia de uma aparência elevada e nobre, carac-
não reúna as condições próprias ao pecado mortal — é terística do Ancien Régime prévio à Revolução France-
um passo em falso. E a sucessão de faltas e concessões sa, mas que preparou largamente a irrupção desta no ce-
inconscientes, acabam desviando a pessoa para longe do nário europeu. Se tomarmos gravuras que representam
caminho verdadeiro. Daí a nota da prudência pastoral, burgueses dos séculos XVI e XVII, veremos que são ain-
da vigilância de São Luís de Montfort em relação a esses da pessoas sérias, compassadas, dignas. Não era uma
Amigos da Cruz. burguesia mundana, e tinha conservado toda aquela cir-
cunspeção dos antigos tempos. Pelo contrário, conside-
Censura aos que cedem re-se um burguês das vésperas da Revolução Francesa, e
à concupiscência do mundo já não se o distingue mais do nobre, não só porque os tra-
jes se igualaram, mas também por causa da atitude. Ni-
Continua ele: velaram-se. E o mundanismo revolucionário que impreg-
Distinguis bem a voz de Deus e de sua graça, da voz do nava as cortes, irradiou-se para as outras camadas da so-
mundo e da natureza? Escutais a voz de Deus, nosso Pai, ciedade, putrefazendo-a por completo.
que depois de ter dado a sua tríplice maldição a todos que Em nossos dias, podemos dizer que o mundanismo se
seguem as concupiscências do mundo: Ai, ai, ai dos habi- multiplicou pelo mundanismo, e as suas seduções, ati-
tantes da Terra (Ap 8, 13), grita-vos amorosamente, esten- çadas por obra do demônio, são ainda mais perniciosas.
dendo-vos os braços: separai-vos, meu povo (Nb 16, 21). Donde as censuras de São Luís Grignion conservarem
Separai-vos, meu povo escolhido, queridos Amigos da Cruz toda a sua atualidade, e são perfeitamente aplicáveis aos
de meu Filho, separai-vos dos mundanos, malditos por mi- que se entregam ao mundo, pois estes romperam com as
nha majestade, excomungados por meu Filho (Jo 17, 9), e amarras que os uniam a Deus Nosso Senhor.
condenados por meu Espírito Santo (Jo 16, 8-11). Se desejamos ser autênticos Amigos da Cruz, deve-
Importa compreender bem a razão dessas fortes cen- mos limpar nossas almas de qualquer laivo de munda-
suras, dessa maldição tão pesada sobre o mundanismo. nismo, de qualquer apego ao que há de frívolo, de lai-
Lembremo-nos de que, na linguagem da vida espiri- cista e de fundamentalmente contrário à sabedoria,
tual, o apego e o amor desregrado às coisas do mundo nos costumes do mundo.

12
S. Hollmann

Contagiabilidade Essa cadeira toda empestada de que fala São Luís é


da virtude contra o vício uma referência ao Salmo 1, onde o salmista exclama:
“Feliz o homem que (...) não se assenta entre os escarne-
Continua São Luís Grignion: cedores”, ou, segundo outras traduções, “que não toma
Tomai cuidado para não vos sentardes em sua cadeira assento na cátedra de corrupção dos pecadores”. Esta úl-
toda empestada, não sigais os seus conselhos, nem mesmo tima expressão me parece ainda mais vigorosa. Quer di-
pareis em seu caminho (Sl 1, 1). zer, trata-se da cadeira de onde o pecador ensina o peca-

13
ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA

do e, de certa forma, é a própria sede do pecado, na qual santa, mas era uma boa senhora católica, com o padrão
este se instala e aí faz luzir sua “glória”. mínimo de algo do qual a santidade é a expressão mais
Fugi da grande e infame Babilônia (Is 48, 20; Jr 50, elevada. E ao considerar muitos aspectos de sua rica per-
8), não escuteis outra voz e não sigais outras pegadas se- sonalidade, poderemos ver quanta retidão, compostu-
não as de meu Filho bem-amado, que vos dei por vos- ra, destreza, e quanta dignidade assentada sobre o tro-
so caminho, vossa verdade, vossa vida (Jo 14, 6), e vos- no, em meio a uma corte que, se não era a primeira, era
so modelo (Mt 17, 5). das mais importantes do mundo, a do Sacro Império Ro-
Vemos aqui uma espécie de demolição ardente, leva- mano Alemão.
da a cabo por São Luís Grignion, contra toda a sedução Creio que essa situação só se tornava possível por esse
exercida pela sociedade frívola do seu tempo. Ele queria trabalho de subestrutura da virtude que se contagiava en-
os Amigos da Cruz afastados desse mundanismo. tre os bons de lugares diferentes. E em seguida notava-se
Por outro lado, é também interessante notar que no a recíproca: a Cruz levantada no mais alto degrau da cor-
meio dessa sociedade frívola surgiram outros movimen- te, repercutia sobre todo o país e nas camadas profundas
tos de autêntica piedade católica, que reagiram a seu mo- da população, gerando novos Amigos da Cruz. Esses são
do contra a decadência generalizada do ambiente em que os grandes mecanismos por onde o amor de Deus se afir-
viviam. Creio que tal reação se deve ao princípio da con- ma, se multiplica e conquista as almas.
tagiabilidade da virtude, considerado por nós em exposi-
ção anterior. Ou seja, na ordem sobrenatural há reversi-
bilidades, reciprocidades, interações pelas quais uma vir-

S. Hollmann
tude séria e profunda praticada de um lado repercute no
outro. Assim, havendo na Vandéia ou na Bretanha da-
quela época, muitos genuínos Amigos da Cruz, efetiva-
mente separados do mundo, ainda que não conhecessem
os Amigos da Cruz de Versailles, aqueles reforçavam a
possibilidade de perseverança, de santificação e de vitó-
ria destes últimos no meio dos deleites e das delícias da
corte mundana.

O exemplo de Maria Teresa d’Áustria


Recordo-me, a esse propósito, da figura da grande im-
peratriz Maria Teresa d’Áustria. Não se tratava de uma

Pelo princípio da
contagiabilidade de
virtudes, a existência de
bons Amigos da Cruz
favorecia a vitória do
bem no meio de uma
sociedade frívola
Imperatriz Maria Teresa de Áustria –
Hofburg, Innsbruck (Áustria)

14
S. Hollmann
As graças e as forças necessárias para seguirmos o Redentor Crucificado nos são alcançadas
por intermédio de Maria Santíssima, que se achava de pé, junto à Cruz

Crucifixão – Vitral da Catedral de Notre Dame de Paris, França

Abraçar a Cruz em união É palavra do próprio Jesus: “Quando Eu for eleva-


com o Divino Redentor do, atrairei a mim todas as criaturas”. Ou seja, o Divi-
no Crucificado é o verdadeiro encanto da Cruz, o que
Prossegue São Luís Grignion: realmente atrai as almas para ela. E não apenas atrai,
Não escutais esse amável Jesus que, carregando sua cruz, como lhes concede as graças e o vigor indispensáveis
vos conclama: vinde após Mim (Mt 4, 19), o que me segue para carregá-la. Com os olhos fitos n’Ele, pensando
não anda nas trevas (Jo 8, 12); tende confiança, Eu venci o no seu Sagrado Coração e no precioso Sangue que por
mundo (Jo, 16, 33)? nós derramou, na sua agonia e morte, é que adquiri-
Conforme o ensinamento de todos os grandes auto- mos forças para segui-Lo.
res, São Luís Grignion acrescenta que a Cruz só é su- E não nos esqueçamos de que essas graças e essas for-
portável quando carregada em união com Nosso Se- ças nos são concedidas por intermédio de Maria Santíssi-
nhor. A Cruz concebida esquematicamente, apenas de ma, a Medianeira Universal, que se encontrava aos pés
modo teórico, aterroriza o homem e este foge dela. O da Cruz, com seu Coração Imaculado transpassado e co-
único modo de a Cruz ser atraente, é considerar Aque- roado de espinhos. Y
le que nela se acha pregado e d’Ele receber as forças
necessárias para aceitá-la. (Extraído de conferência em 17/6/1967)

15
ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA

A “Carta circular aos Amigos da Cruz” – VI

O partido de Jesus
e o do mundo
Na continuação de seus comentários ao opúsculo de
São Luís Maria Grignion de Montfort, Dr. Plinio nos faz
compreender, uma vez mais, como todo aquele que ousa
abraçar o sofrimento, a pobreza e as humilhações por amor a
Deus, identifica-se com Nosso Senhor Jesus Cristo e dispõe
sua alma para que nela habite a sabedoria.

D irigindo-se aos membros da Confraria dos Sempre pequeno, o número


Amigos da Cruz, por ele fundada, São Luís dos Amigos da Cruz
Grignion assim escreve:
Eis, meus caros confrades, dois partidos que se defron- Conforme tal noção, o santo autor prossegue:
tam todos os dias: o de Jesus Cristo e o do mundo. O [partido] de nosso amável Salvador está à direita, em acli-
ve, num caminho estreito e que assim cada vez mais se tornou
Duas falanges de servos que devido à corrupção do mundo. Caminha à frente o Bom Mes-
lutam por dois senhores tre, os pés descalços, a cabeça coroada de espinhos, o corpo to-
do ensangüentado e carregando uma pesada cruz. Apenas al-
Conforme ficou explicado no início dessas exposições, gumas pessoas, das mais corajosas, O seguem, porque sua voz
São Luís redigiu sua carta circular durante um retiro, e es- tão delicada não se ouve no tumulto do mundo; ou porque não
sa idéia dos “dois partidos” evoca a meditação das “duas se tem coragem para segui-Lo em sua pobreza, suas dores, suas
bandeiras”, proposta por Santo Inácio de Loyola nos seus humilhações e suas outras cruzes que necessariamente é preciso
Exercícios Espirituais. Lembra, também, o que o próprio carregar, a seu serviço, todos os dias da vida.
São Luís afirma no seu Tratado da Verdadeira Devoção: À esquerda está o partido do mundo, ou do demônio, o mais
por natureza, o homem é escravo, e o será de Nosso Se- numeroso, magnífico e fulgurante, pelo menos na aparência.
nhor Jesus Cristo ou do demônio, príncipe deste mundo. Todos os indivíduos mais brilhantes correm para ele e, apesar
Então, esses dois partidos são as duas grandes falanges de serem largos como nunca os caminhos que a ele conduzem,
de servos que lutam por dois senhores. Faço notar que há atropelam-se em virtude das multidões que por aí passam co-
apenas dois partidos, sem possibilidade de uma tercei- mo torrentes. São caminhos juncados de flores, emoldurados
ra posição. Donde toda a História se resolver, em última de prazeres e de divertimento, cobertos de ouro e de prata.
análise, no seu sentido mais profundo, no confronto des- O santo indica, pois, duas categorias de pessoas bem
ses dois interesses, desses dois princípios, desses dois se- diversas. As que constituem o partido de Nosso Senhor
res antagônicos: Jesus Cristo e o demônio. estão à direita, em aclive. Ou seja, em ascensão, na su-

10
Apenas as almas mais corajosas seguem o Bom Mestre
pelo caminho estreito, vendo-O à frente, coroado de
espinhos e carregando sua pesada Cruz
Caminho do Calvário –
Catedral de Montréal, Canadá
F. Boulay / G. Kralj

11
ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA

bida que torna difícil a caminhada por se ter de vencer Nosso Senhor, temos de ser desapegados de tu-
o peso da gravidade. Essa trajetória se faz cada vez mais do o que possuímos. Do contrário, ao nos ser
estreita, isto é, o esforço pela salvação se apresenta a ca- pedido, em nome do serviço de Deus, a
da dia mais árduo, devido à corrupção do mundo, às so- renúncia de algo a que nos afeiçoamos,
licitações maiores do pecado, à insistência das más influ- bem mais difícil será a nossa confor-
ências e dos maus exemplos. midade com o superior desígnio divi-
Porém, à frente vai o Bom Mestre, pés descalços, co- no. Portanto, para ser fiel à vocação
roado de espinhos, coberto de sangue e carregando sua de seguir o Mestre, a alma precisa ser
Cruz. Trágica visão de uma vítima que sofre em todo o pobre, desapegada.
seu corpo, seguida apenas por algumas pessoas, e das
mais corajosas. Vê-se o numero sempre pequeno dos au-
tênticos Amigos da Cruz, daqueles que ousam aceitar o
sofrimento e compreendem que nesta vida estamos sujei-
tos a toda sorte de provações. Pelo contrário, incontável
é o número dos homens que fogem do sacrifício e procu-
ram não considerá-lo de frente.

Ensurdecedor ruído das


paixões desordenadas
Na seqüência de seu pensamento, São Luís Maria fala
do tumulto do mundo que abafa a delicada voz de Nosso
Senhor Jesus Cristo. Quer dizer, há um barulho, um ruído
ensurdecedor no mundo que seduz as pessoas e estas, em
tais condições, não escutam a suave voz do Divino Mestre.
Esse barulho, embora possa ser tomado no sentido
material da palavra, antes de tudo significa o tumulto das
paixões humanas desordenadas que nos levam a agir e a
nos movimentarmos de maneira igualmente desordena-
da. Donde uma espécie de perturbação difusa nas gran-
des cidades, uma agitação da vida moderna e seus acon-
tecimentos, que embriagam e fascinam imensa parce-
la dos habitantes dos maiores centros urbanos. Ora, en-
quanto houver numa alma esse deleite com o tumultu-
ar do século, algo da delicada voz de Nosso Senhor Jesus
Cristo não chegará até ela. Nesta sua lamentável surdez
irão esbarrar e se deter as inspirações da graça.
Daí, por outro lado, a necessidade de o verdadeiro
S. Hollmann

Amigo da Cruz, desejoso de seguir o Bom Mestre, pedir-


Lhe o horror e a aversão ao tumulto do mundo.

Pobreza, dores e humilhações


Ou porque não se tem coragem para segui-Lo em sua
pobreza, suas dores, suas humilhações e suas outras cruzes
que necessariamente é preciso carregar a seu serviço todos
os dias da vida — acrescenta São Luís Grignion.
Ou seja, quem deseja servir a Nosso Senhor deve es-
tar disposto a abraçar três coisas: pobreza, dores e humi-
lhações.
A pobreza é, de algum modo, a virtude católica por ex-
celência, pois para fazermos inteiramente a vontade de

12
Além da pobreza, as dores. A vida de todo homem
Nosso Senhor concede comporta sofrimentos, e estes serão talvez maiores para
os poucos que souberem aceitá-los com o autêntico espí-
graças especiais àqueles que rito de Amigo da Cruz.
estão dispostos a pagar o Por fim, as humilhações. Não é fácil discernir qual
das três coisas é a mais pesada, pois as dificuldades va-
duro preço da admirável riam de pessoa a pessoa conforme o temperamento de
vocação de segui-Lo cada uma. Estas aceitarão melhor as dores e sofrerão
mais com as humilhações; aquelas se alegram na po-
breza, mas se arrepiam com as humilhações; enquan-
Nosso Senhor e um discípulo –
to outras padecem de boa mente as penúrias materiais
Catedral de Amiens, França
e as humilhações, mas sofrem demasiado com as dores
físicas e morais.
Claro está, naturalmente falando, sem o concurso da
graça homem algum se dispõe a esses três tipos de sofri-
mento, e menos ainda estão inclinados a tal os que com-
põem o partido do mundo. Portanto, devemos compre-
ender que Nosso Senhor Jesus Cristo concede graças e
dons especiais aos seus seguidores, para que estes acei-
tem e abracem o duro preço dessa admirável vocação.

O aparente brilho do
partido do demônio
Em seguida, São Luís Maria Grignion de Montfort
descreve o partido do demônio, “o mais numeroso, mag-
nífico e fulgurante, pelo menos na aparência”.
É curioso notar como a felicidade confere certo bri-
lho ao indivíduo. Tome-se, por exemplo, alguém que te-
nha sido sorteado numa loteria, ganhando avultada so-
ma. Nesse dia ele se torna mais luminoso, mais bem dis-
posto, sente-se seguro de si e demonstra um garbo invul-
gar, proporcionado pelo êxito. E não há coisa que mais
tire o garbo de uma pessoa do que o insucesso. Um gene-
ral perder a batalha, um rei perder a guerra, um advoga-
do perder a causa, e aparecerem garbosos num jantar de
gala? Não se pode concebê-lo.
Pois esse esplendor do êxito e da felicidade pos-
suem os que seguem o partido do mundo ou do demô-
nio. Daí ser este grupo, na aparência, o mais reluzen-
te, magnífico e numeroso. “Todos os indivíduos mais
brilhantes correm para ele”, afirma São Luís. De fato,
a experiência da vida nos mostra que, por uma razão
difícil de definir, o indivíduo naturalmente brilhante,
dotado de maiores qualidades apreciadas pela gente
do mundo, é mais propenso a se perder do que aquele
que não possui esse brilho pessoal.
Além disso, existe a imensa falange dos que se abalam
para o partido do demônio por causa de reflexões opor-
tunistas: “Eu, me alistar sob a bandeira da pobreza, da
dor e da humilhação, enquanto no outro lado terei brilho
e fortuna? Não há dúvida na escolha.”

13
ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA

Inútil dizer até onde essas reflexões podem levar a al- Os que são de Jesus Cristo mortificaram a carne com as
ma que lhes dá ouvidos. suas concupiscências; é preciso ser conforme a imagem de
Jesus ou condenar-se. “Coragem, exclamam eles, coragem!
Largas e cobertas de ouro, Se Deus está por nós, em nós e diante de nós, quem estará
as vias da perdição
Esses caminhos do mundo, assevera o santo autor, “são Uma clara oposição:
mais largos do que nunca, e neles as pessoas se atropelam,
em virtude das multidões que por aí passam como torren-
de um lado, Jesus Cristo e o
tes. São caminhos juncados de flores, emoldurados de pra- despojamento das coisas terrenas;
zeres e de divertimento, cobertos de ouro e de prata”. de outro, os costumes do mundo
Percebe-se, pela idéia exposta por São Luís, que a im-
piedade no tempo dele se mostra maior do que nas épo- com suas vãs ilusões
cas anteriores. Então, as vias do mal nunca foram tão lar-
Pregação de Nosso
gas, e as multidões que passam por elas, perdendo-se, Senhor – Catedral de São
são tais que esses caminhos se dilatam. Patrício, Nova York
Essa situação me faz recordar o caso de uma freira
carmelita que, tendo de se deslocar para outro convento,
viajou pela primeira vez por uma estrada asfaltada. Inda-
gada sobre as impressões que tivera da “moderna” rodo-
via, ela respondeu:
— Creio que assim deve ser o caminho que leva ao in-
ferno: agradável, largo, asfaltado, e as pessoas correndo
sobre ele...
A meu ver, uma observação muito sagaz e verídica.
Não raro, ao considerarmos a trajetória de certos ímpios,
vemo-los a correr, desimpedidos, na estrada do mundo,
enquanto o homem que procura trilhar as vias da retidão
caminha passo a passo, em meio a dificuldades de toda
espécie. Por quê? Porque as sendas da perdição são espa-
çosas e lisas; as de Nosso Senhor são estreitas e penosas,
e seu fim é o Calvário.

“É preciso ser conforme a imagem


de Jesus Cristo ou condenar-se”
Prossegue São Luís:
À direita, o pequeno rebanho que segue Jesus Cristo só
fala em lágrimas, penitências, orações e desprezo do mun-
do; ouvem-se continuamente essas palavras, entrecortadas
de soluços: “soframos, choremos, jejuemos, oremos, ocul-
temo-nos, humilhemo-nos, empobreçamo-nos, mortifique-
G. Kralj

mo-nos, pois o que não tem o espírito de Jesus Cristo, que é


um espírito de cruz, não pertence a Ele”.
Trata-se do despojamento próprio àqueles que de-
sejam ser escravos de Nosso Senhor e de Nossa Senho-
ra. Estes sofrem, choram, jejuam, humilham-se, rezam,
mortificam-se e abraçam a pobreza. Atributos dos quais
o mundo tem verdadeiro pavor. E por que essas almas se
sujeitam a tais sofrimentos? Porque desejam adquirir o
espírito de Jesus Cristo, receberem as graças d’Ele a fim
de com Ele se identificarem.

14
contra nós? Aquele que está em nós, é mais forte do que o tro lado, a moda, os costumes do mundo, aos quais São
que está no mundo.” Luís alude, dando a entender tudo quanto possuem de
São Luís aponta a solução: se Jesus Cristo habitar em viscoso, de fascinação por coisas vãs, em última análise,
mim, serei capaz de aceitar o preço por segui-Lo; se Ele de ilusões.
não estiver em mim, faltar-me-á coragem para tal. Pelo contrário, os mundanos, a fim de se animarem a per-
severar na sua malícia sem escrúpulos, gritam todos os dias:
Combater segundo o Evangelho “Vida, vida! Paz, paz! Alegria, alegria! Comamos, bebamos,
e não conforme a moda cantemos, dancemos, brinquemos! Deus é bom, Deus não
nos fez para nos perder; Deus não nos proíbe de divertir, nem
O servo não é maior que seu senhor. Um momento de le- seremos condenados por isso. Nada de escrúpulos!”
ve tribulação redunda num peso eterno de glória. Há me- Temos aqui a idéia infelizmente muito difundida de
nos eleitos do que se pensa. Só os corajosos e os violentos que, no fundo, o vício não será punido, pois Deus é bom.
arrebatam o céu de viva força; ninguém ali será coroado Na verdade, trata-se, não do Deus de misericórdia que
se não houver combatido legitimamente segundo o Evange- acolhe o pecador arrependido, mas de um Deus de falsa
lho, e não conforme a moda. Combatamos, pois, vigorosa- bondade, indiferente ao pecado. Mais uma vez, é a opo-
mente; corramos para atingir a meta, a fim de ganharmos a sição entre duas mentalidades.
coroa. Eis uma parte das palavras divinas com que os Ami-
gos da Cruz mutuamente se animam. Amor à Cruz, sinal de que a
Portanto, a oposição entre os dois partidos está sabedoria habita em nossa alma
bem estabelecida. De um lado,
Jesus Cristo, o modelo; de ou- Concluo essas considerações de hoje com uma observa-
ção a respeito dos mistérios que cercam a alma humana.
São Luís Grignion escreveu essas palavras porque as
considerava úteis, e as concebeu sob um evidente sopro
da graça. Ou seja, a graça divina teve a intenção de ani-
mar essas páginas. Entretanto, de tal maneira nos parece
árduo carregar a Cruz junto com Nosso Senhor, que, ao
lermos os pensamentos expressos pelo santo, dificilmen-
te não nos virá ao espírito a seguinte idéia: “Isto tudo é
um lero-lero surrado, já conhecido por mim e por todos,
que não precisa ser relido”.
Quer dizer, esses princípios na verdade tão pouco re-
petidos, quase nunca ensinados, penetram em nossa alma
uma vez e a repetição deles nos dá a sensação de algo fas-
tidioso e monótono. Nós, que seríamos capazes de ouvir
inúmeras vezes uma mesma música, assistir duzentas ve-
zes uma mesma peça de teatro ou manter durante horas
uma conversa com a mesma pessoa, desde que aproveitem
ao nosso interesse e apego, julgamos tratar-se de lengalen-
ga essas altas e inapreciáveis reflexões de um santo.
Vemos, por aí, como é de fato penoso elevar o espíri-
to humano através do sofrimento; como há uma repulsa
quase instintiva ao amor à Cruz. E, portanto, como a de-
voção a essa mesma Cruz é algo de suma importância e
indispensável para a nossa vida espiritual.
Eu diria mais. Se nos empolgarmos ao ouvir falar da
Cruz e do sofrimento, se admirarmos a dor cristãmente
aceita e sentirmos o vazio de uma vida sem padecimen-
tos, tais disposições serão um sinal de que a sabedoria
habita em nossa alma. Y
(Extraído de conferência em 1/7/1967)

15
ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA

A “Carta circular aos


Amigos da Cruz” – VII

Amoroso apelo
de Jesus
Na seqüência de seus comentários ao opúsculo de São
Luís Grignion de Montfort, Dr. Plinio nos coloca diante
desta imperiosa questão: temos retribuído como devemos
— isto é, pelo nosso empenho em perseverar na virtude —
aos sofrimentos que o Divino Redentor e sua Mãe
Santíssima padeceram por nós no caminho do Calvário?

N a exposição anterior sobre a “Carta circular


aos Amigos da Cruz” consideramos o pensa-
mento de São Luís Grignion acerca dos dois
partidos que se enfrentam na história humana: o de Je-
zam com ela, como se fosse objeto de horror (1Cor 1, 23);
os hereges quebram-na e a derrubam como coisa digna de
desprezo. Mas, e isto só posso dizer com lágrimas nos olhos
e com o coração transpassado de dor, os filhos que criei em
sus, constituído pelos que se despojam das coisas terre- meu seio e que instruí em minha escola, os meus membros
nas para segui-Lo com sua Cruz, e o do mundo, com- que animei com meu espírito abandonaram-me e despreza-
posto pelos homens que se deixam levar pelas vãs ilusões ram, tornando-se inimigos de minha Cruz (Is 1, 2)! Num-
mundanas. quid et vos vultis abire (Jo 6, 67)?
“Quereis vós também abandonar-me, fugindo de minha
Pungentes palavras de Nosso Cruz, como os mundanos, que nisto são outros tantos An-
Senhor a seus seguidores ticristos: antichristi multi? (1 Jo 2, 18) Quereis, enfim, con-
formar-vos ao século presente, desprezar a pobreza de mi-
Na seqüência, o santo autor assim escreve: nha Cruz para correr após as riquezas? Evitar a dor de mi-
Lembrai-vos, meus caros confrades, que nosso Bom Je- nha Cruz para procurar os prazeres? Odiar as humilhações
sus vos olha neste instante e diz a cada um de vós em parti- de minha Cruz para ambicionar as honras? Tenho, na apa-
cular: “Eis que quase todos me abandonaram no caminho rência, muitos amigos que me fazem protestos de amor, mas
real da Cruz. Os idólatras cegos zombam de minha Cruz no fundo me odeiam, pois não amam a minha Cruz; muitos
como de uma loucura; os judeus obstinados se escandali- amigos de minha mesa, e pouquíssimos de minha Cruz.”

10
S. Hollmann
A cada um de nós,
se formos fiéis, é
dado mitigar o
peso da Cruz sobre
os ombros de Nosso
Senhor Jesus Cristo

Nazareno – Igreja dos


Jerônimos, Madrid

11
ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA

A este apelo amoroso de Jesus elevemo-nos acima de Façamos uma análise desse trecho.
nós mesmos; não nos deixemos seduzir pelos nossos senti- Lembrai-vos, meus caros confrades, que nosso Bom Je-
dos, como Eva; não olhemos senão o autor e consumador sus vos olha neste instante, e diz a cada um de vós em par-
de nossa fé, Jesus crucificado. Fujamos da concupiscên- ticular: “Eis que quase todos me abandonaram no cami-
cia do mundo corrompido; amemos Jesus Cristo da melhor nho real da Cruz.”
maneira, isto é, através de toda sorte de cruzes. Meditemos Esta imagem tem um fundamento histórico, ou se-
bem estas admiráveis palavras de nosso amável Mestre, que ja, Jesus Cristo, do alto do Céu, vê todas as almas e la-
encerram toda a perfeição da vida cristã: Si quis vult veni- menta que tantas delas O tenham abandonado no ca-
re post me, abneget semetipsum et tollat crucem suam, minho da Cruz. Além disso, possui um sentido mais
et sequatur me! [Se alguém quiser vir após Mim, renuncie profundo, que sempre devemos tomar em considera-
a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me] (Mt 16, 24). ção, referente às disposições de Nosso Senhor duran-
te a Paixão.
Sendo fiéis, podemos diminuir Sabemos que Ele sofreu na previsão do mal que fa-
as dores de Jesus na Paixão ríamos. E, portanto, de um modo misterioso, mas mui-
to real, podemos diminuir as dores d’Ele na Paixão, de
O que vimos até aqui é, portanto, uma espécie de acordo com o bom procedimento que tenhamos. Nos-
proêmio do estilo de vida de renúncias que Nosso Se- so Senhor, em vários momentos de sua Paixão, se não
nhor Jesus Cristo traçou para seus fiéis seguidores. E em todos, teve-nos em vista, considerando as alternati-
essas palavras exortam e preparam a alma a receber vas de nossas almas em seguir o caminho da Cruz, em
bem um programa tão austero. aceitar ou não os sofrimentos.

12
Ser-nos-ia possível fazer essa meditação tomando
cada passo da Via Sacra. Por exemplo, quando o Re-
dentor caiu três vezes sob o peso da Cruz, poderia ter
Na antevisão que ambos pensado: “Plinio Corrêa de Oliveira agüentará as cru-
zes sob as quais deverá cair? Ó Pai Eterno, eu Vos pe-
tinham dos acontecimentos ço por ele, para que tenha força e ânimo, a fim de car-
regá-las”. Nossa Senhora, acompanhando seu Divino
vindouros, Nosso Senhor Filho, teve presente Plinio Corrêa de Oliveira e cada
e Maria Santíssima um dos que estão aqui, na previdência que ambos ti-
nham dos acontecimentos vindouros, e se pergunta-
se perguntavam como vam o que faríamos das cruzes com as quais nos visi-
receberíamos as cruzes com tariam: se bem as receberíamos ou se as abandonaría-
mos; que proveito tiraríamos da imensa quantidade de
as quais nos visitariam sangue derramado, de seus gemidos, prantos, dores e
tudo o mais que estavam sofrendo.
Não é, portanto, despropositado fazermos esse racio-
Caminho do Calvário – Museu da Catedral cínio, cheio de compunção. Para compreendermos tudo
de Santo Isaac, São Petersburgo, Rússia quanto esse pensamento tem de pungente, devemos ima-
ginar um pai que fez tudo por seu filho e, ao chegar o
momento de receber uma retribuição, pergunta-se: como

G. Kralj

13
ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA

meu filho vai me recompensar? Corresponderá ao bem


que lhe fiz? Ou, pelo contrário, pagar-me-á com uma
injúria, uma blasfêmia, um abandono? Ou, então, com
uma dessas friezas que naturalmente enregela a alma de
um pai? Essas são algumas considerações — todas elas
válidas, e haveria outras — a fazer a propósito desse tre-
cho de São Luís Grignion de Montfort.

A necessidade da graça para


compreender essas verdades
A partir da fé essas perguntas são muito coerentes e
lógicas. Cumpre dizer, entretanto, que quando temos
cogitações como essas, sentimos a necessidade da gra-
ça. Porque sabemos que tudo isso é muito razoável, po-
rém muitas vezes nada disso nos fala sensivelmente à al-
ma. Se recebermos uma graça, podemos nos transformar
ao calor de raciocínios assim, baseados na fé. Compreen-
demos, desse modo, como a graça divina é indispensável
para avançarmos na vida espiritual.
Alguém poderia indagar: “Por que, então, o senhor
perde tempo com esses comentários, se acha que sem a
graça não é possível aproveitar isso?”
São feitos na esperança de que Nossa Senhora, em
certo momento, faça-os frutificar, concedendo graças
que me ajudem, e a cada um dos meus ouvintes, a cor-
responder a essas verdades. Deve-se agir assim: repe-
tir, repetir, até o momento em que Ela tenha pena de
nós e nos obtenha uma grande graça para mover nos-
sas almas. O valor disso, portanto, é exatamente o da
repetição, à maneira de um mendigo que, do lado de
fora da porta, bate, bate, bate até ela lhe ser aberta.
Ou daquele homem importuno, elogiado por Nosso
Senhor no Evangelho: para conseguir pão, bateu tanto
à porta da casa de seu vizinho que este pensou: “Ain-
da que seja só nesta ocasião, para acabar com o incô-
modo, vou abrir e dar-lhe o que pede”. Assim também
devemos fazer.

A Cruz: razão mais profunda pela


qual se abandona Nosso Senhor
É interessante notar que, por esse trecho, percebe-se
ter tido São Luís Grignion uma concepção do agir hu-
mano inteiramente de acordo com os princípios que pro-
curamos traçar em nosso livro “Revolução e Contra-Re-
volução”. Ou seja, para ele, assim como pensamos nós,
a razão mais profunda pela qual as pessoas abandonam
Nosso Senhor é a Cruz. O Redentor quer que os homens
carreguem a Cruz, e muitos não a aceitam. Donde pode-
rem ser classificados de acordo com a atitude que tomam
em função do sofrimento. Então diz ele:

14
T. Ring
Por não quererem
compartilhar o peso da Cruz
com Nosso Senhor, muitos o
abandonam; porém muitos
O seguiriam, se Ele lhes
oferecesse apenas vantagens
terrenas...

Crucificado – Mosteiro da Batalha, Portugal

Os idólatras cegos zombam de minha Cruz como de


uma loucura.
Os idólatras, isto é, os que vivem para os prazeres, vê-
em a cruz e a consideram uma loucura. O gênero de vi-
da levado pelos católicos coerentes com sua religião é ti-
do como uma demência pelos mundanos.
Os judeus obstinados se escandalizam com ela, como se
fosse objeto de horror. Os hereges quebram-na e a derru-
bam como coisa digna de desprezo.
Ele se refere aos protestantes que, em sua época, esta-
vam ainda, sob certo ponto de vista, no auge de suas ini-
ciativas, e quebravam as cruzes ao longo dos caminhos
da Europa inteira. Diziam que venerar a cruz é uma for-
ma de idolatria.
Mas, e isto só posso dizer com lágrimas nos olhos e com
o coração transpassado de dor, os filhos que criei em meu
seio e que instruí em minha escola, os meus membros, que
animei com meu espírito, abandonaram-me e desprezaram,
tornando-se inimigos de minha Cruz!
Por “membros” entende-se aqui os integrantes do
Corpo Místico de Cristo, ou seja, da Igreja. Muitos aban-
donaram e desprezaram a Cruz, e não quiseram seguir
Nosso Senhor. Vemos, assim, como muitas apostasias
que presenciamos ocorrem em função da Cruz. Quer di-
zer, muitos homens não querem o sofrimento, por isso
abandonam o Divino Salvador. Se Ele somente ofereces-
se vantagens terrenas, muitos O seguiriam.

(Continua em próximo artigo.


Extraído de conferência em 8/7/1967)

15
ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA

A “Carta circular aos


Amigos da Cruz” - VIII

Assemelhar-se ao
Varão de Dores
Em mais uma exposição dedicada a comentar o opúsculo de
São Luís Grignion de Montfort, Dr. Plinio ressalta a divina
figura de Nosso Senhor Jesus Cristo como o “vir dolorum” —
varão a cujas dores devemos estar associados, com veneração
e gratidão profundas; a Ele nos unindo de modo crescente, ao
aceitarmos os sofrimentos que a vida nos traz.

N o intuito de afervorar seus discípulos no amor


à Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, assim
prossegue São Luís Grignion de Montfort:
Numquid et vos vultis abire (Jo 6, 67)?
É uma pergunta de transpassar a alma de qualquer
ouvinte que tenha um mínimo de sentimento. Nosso Se-
nhor foi abandonado estúpida e ingratamente. Nessa
ocasião, São Pedro pronunciou aquela frase magnífica:
Isto é: “quereis vós também retirar-vos?”. Foi a per- “Aonde iremos, Senhor, se só Vós tendes palavra de vida
gunta que Nosso Senhor dirigiu aos apóstolos, quando eterna?” (Jo 6, 68). Estava tudo dito, nada havia a acres-
alguns começaram a abandoná-Lo após ouvi-Lo procla- centar.
mar que sua carne era verdadeira comida, e seu sangue
verdadeira bebida. Ou seja, quando Ele aludiu à Sagra- Riquezas, prazeres e honras:
da Eucaristia. Vários discípulos se escandalizaram e O causas de abandono da Cruz
deixaram. Ele, então, fez aos que ficaram essa pergunta,
cheia de melancolia patética: “Vós também quereis ir?” “Numquid et vos vultis abire? (Jo 6, 67). Quereis vós
Como quem dissesse: “Se quiserdes, ide também vós”. também abandonar-me, fugindo de minha Cruz, como os

10
Jesus coroado de
espinhos – Igreja da
Ordem Terceira do
Carmo, Salvador (BA)

G. Kralj

11
ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA

mundanos, que nisto são outros tantos Anticristos; Anti-


christi multi?” (1 Jo 2, 12)
Por mundano devemos entender aquele que coloca as
esperanças de sua felicidade apenas neste mundo e nes-
ta vida, procurando tão-somente as coisas terrenas. Esse
foge da Cruz de Nosso Senhor e, por isso, São Luís Grig-
nion o compara ao Anticristo.
Quereis, enfim, conformar-vos ao século presente, des-
prezar a pobreza de minha Cruz, para correr após as rique-
zas?
Conforme o pensamento do santo autor, o apego às
riquezas do século, ou seja, do mundo, seria um primeiro
fator que inclina o homem a se recusar a seguir o Divino
Mestre nas vias do sofrimento.
Evitar a dor de minha Cruz para procurar os prazeres?
O segundo motivo para a mesma recusa é a busca de-
sordenada dos prazeres.
Odiar as humilhações de minha Cruz, para ambicionar
as honras?
Estão, portanto, indicados os três grandes atrativos do
mundo: as riquezas, os prazeres e as honras.

Onde não está a Cruz, não


está Nosso Senhor
Tenho, na aparência, muitos amigos que me fazem pro-
testos de amor, mas no fundo me odeiam, pois não amam
a minha Cruz...

Aonde iremos, Senhor,


se só Vós tendes palavra
de vida eterna? — Se o
Redentor fez tudo por
nós, é inteiramente lógico
que façamos tudo por
Ele e O acompanhemos,
com sua Cruz

“Eu sou o caminho, a verdade e a


F. Boulay / G. Kralj

vida” - Igreja do Sagrado Coração


de Jesus, Montreal, Canadá

12
13
ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA

Esse pensamento de São Luís Grignion nos leva a uma


importante consideração. Com efeito, pessoas há que pa-
recem ser muito devotas de Nosso Senhor, mas, na hora Que a Mãe Dolorosa nos
de aceitar o sofrimento, de provar seu amor à Cruz, não alcance a graça de sentirmos,
o fazem. Ora, diz o santo, no fundo tais pessoas odeiam o
Redentor, pois rejeitam sua Cruz. como Ela, dor e pena pelos
A frase é dura, mas verdadeira. Interpretando-a, po- sofrimentos de seu Divino
der-se-ia apontar como ridícula a afirmação que se ou-
ve aqui e ali: “cada um pratica a religião a seu modo; uns Filho; e nos faça ter,
amam Nosso Senhor com a Cruz; outros O amam sem semelhante ao d’Ela, um
ela”. Pelo que nos ensina São Luís, essa postura de alma
é equivocada. Onde não entra a Cruz, não se acha o Re- abrasado amor à Cruz
dentor. E o requinte de amor a Ele é o amor à sua Cruz.
Cumpre ter espírito de sacrifício, pois sem isto não existe
autêntica adoração ao nosso Salvador. Mãe Dolorosa – Madrid, Espanha
Compreendemos assim quanto é adequada a expres-
são de que todo católico deve se assemelhar ao Reden-
tor enquanto vir dolorum, um varão de dores. Parece- de a comover as pedras; devemos implorar o dom da fé
me que esse qualificativo descreve de modo magnífi- capaz de mover montanhas, e termos os olhos sempre
co o Divino Mestre ao longo de sua existência terrena: voltados para a Cruz.
um varão repleto de dores, que sofre profunda e luci- Pensemos: a morte de Cristo causou tanta perturba-
damente, e faz do sofrer o seu viver. Donde o autên- ção no universo que o sol se toldou no firmamento, a ter-
tico católico dever se conformar a esse augusto exem- ra tremeu e outros fenômenos do gênero se verificaram.
plo, e levar sua cruz como Nosso Senhor levou a d’Ele, Ora, se as próprias criaturas materiais como que se mani-
varonilmente, peito aberto, sem olimpismo, mas sem festaram diante da morte do Filho de Deus e Lhe prepa-
fraquezas. ram aquele funeral, como posso tomar conhecimento da
Peçamos à Santíssima Virgem que nos alcance a ines- Paixão e não me incomodar?
timável graça de amarmos assim a Cruz de seu Divino Fi- Pois a maldade do homem decaído pelo pecado origi-
lho. nal o levará a ser indiferente aos padecimentos de Cristo
e à sua Cruz, caso ele não seja auxiliado pela graça. A in-
Necessidade da graça para tomarmos clinação para essa indiferença, qualquer um pode sentir
a sério esses ensinamentos dentro de si: ouvirá diversos sermões a respeito dos so-
frimentos de Nosso Senhor, os mais lógicos e atraentes;
Muitos [são] amigos de minha mesa, e pouquíssimos porém, sem uma assistência da graça, daria no mesmo se
de minha Cruz. A este apelo amoroso de Jesus elevemo- lhe narrassem a Guerra de Tróia. Quer dizer, não o aba-
nos acima de nós mesmos; não nos deixemos seduzir pe- laria nem o moveria a nenhuma boa disposição.
los nossos sentidos, como Eva; não olhemos senão o au- Daí adquirirem especial valor aquelas palavras sin-
tor e consumador de nossa fé, Jesus crucificado. Fuja- gelas do cântico Stabat Mater, frutos da piedade popu-
mos da concupiscência do mundo corrompido; amemos lar, acessível e amável: Santa Mãe, fonte de amor, fazei-me
Jesus Cristo da melhor maneira, isto é, através de toda sentir a intensidade de vossa dor, fazei-me chorar convos-
sorte de cruzes. Meditemos bem estas admiráveis pala- co. Quer dizer, depois de Nosso Senhor ter feito tudo por
vras de nosso amável Mestre, que encerram toda a per- mim, preciso pedir a Maria Santíssima que me alcance
feição da vida cristã: ‘Si quis vult venire post me, ab- graças para eu ter pena d’Ele, pois a Cruz, sem o socor-
neget semetipsum et tollat crucem suam, et sequatur ro da graça, pode me parecer apenas um pedaço de ma-
me!’ [Se alguém quiser vir após Mim, renuncie a si mes- deira, e todo um ciclo de conferências sobre a beleza e ri-
mo, tome a sua cruz e siga-me] (Mt 16, 24). queza do sofrimento não nos tocará a alma.
Vemos, assim, qual é o convite feito para os genuínos
amigos da Cruz. Nosso Senhor Jesus Cristo fez tudo por Oferecer com alegria nossos
nós. Seria inteiramente lógico que, por retribuição, nós sofrimentos e renúncias
O seguíssemos. Porém, a maldade do homem é tal que
precisamos pedir uma graça particular para tomarmos a Ao concluir esses comentários, gostaria de frisar co-
sério esses ensinamentos, os quais entretanto são de mol- mo é excelente nutrirmos em nós, de maneira constan-

14
T. Ring

te, o desejo de um verdadeiro amor à Cruz, no seguin- Uma vez mais: não deixemos de implorar a graça de
te sentido: se Nosso Senhor Jesus Cristo, se a Virgem termos esse abrasado amor à Cruz, de nos tornarmos
Santíssima, minha Mãe e minha Senhora, pedirem-me ardentes amigos dela, não querendo coisa mais elevada
alguma coisa, devo dá-la com alegria, sobretudo em se e mais cobiçada do que a Cruz de nosso Salvador. Y
tratando de algo que me exija sacrifício, renúncia, sofri-
mento, de maneira que minha dor seja uma gota dentro
do oceano das dores que Ambos padeceram por nós na (Extraído de conferência
Paixão. É por essa forma que melhor me unirei a Eles. em 8/7/1967)

15
ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA

A Carta Circular
aos Amigos da Cruz – IX

Práticas da
perfeição cristã
Dando continuidade aos seus comentários à “Carta Circular aos
Amigos da Cruz”, de São Luís Grignion de Montfort, Dr. Plinio
salienta a necessidade de nos compenetrarmos de que nascemos,
antes de tudo, para cumprir a missão e o plano de Deus a nosso
respeito. E tal desempenho envolve o sofrimento que devemos
abraçar, “sem fugas, sem fraudes, sem contrabandos”.

N a segunda parte de seu opúsculo destinado aos


Amigos da Cruz, São Luís Grignion de Mon-
tfort estabelece o programa de santidade que
o próprio Divino Mestre nos deixou. Escreve ele:
conquista da perfeição cristã. A seguir, o autor comenta-
rá cada um desses componentes.

Muito poucos querem


Toda a perfeição cristã, com efeito, consiste: abraçar a cruz de Cristo
1º) Em querer tornar-se santo: “Se alguém quiser vir
após Mim”. “Se alguém quiser vir comigo” — “Alguém” e não “al-
2º) Em abnegar-se: “renuncie a si mesmo”; guns”, para marcar o pequeno número dos eleitos que que-
3º) Em sofrer: “carregue sua cruz”; rem se identificar com Jesus crucificado, carregando sua
4º) Em agir: “siga-me” (Mt 16, 24; Lc 9, 23). cruz. É tão pequeno esse número, tão pequeno, que se o
Portanto, ao interpretar a admirável frase de Nosso soubéssemos, ficaríamos pasmados de dor.
Senhor no Evangelho, São Luís demonstra como ela en- É tão pequeno, que há apenas um em cada dez mil, co-
cerra um desejo de santidade, uma renúncia, um pade- mo foi revelado a vários santos — entre outros a São Simão
cimento e uma ação. São os elementos fundamentais da Estilita, segundo narra o Santo abade Nilo, bem como San-

12
Fotos: G. Kralj

“Se alguém quiser vir comigo, renuncie-se a si mesmo,


tome sua cruz e siga-me” — na frase do Divino Mestre,
o nosso programa de santidade
A Verônica enxuga o rosto de Jesus no caminho do Calvário - Museu Hermitage, São Petersburgo (Rússia)

13
ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA

to Efrém, São Basílio e alguns outros. É tão pequeno, que


se Deus quisesse reuni-los, gritar-lhes-ia, como o fez outro-
ra pela boca de um profeta: reuni-vos um a um, um desta
província, outro desse reino (Is 27, 12).
Cumpre notar que São Luís Grignion não se refere
apenas ao seu tempo, mas considera todas as épocas, em
todos os lugares: assim mesmo, o número de pessoas que
verdadeiramente querem tomar a cruz de Nosso Senhor
e segui-Lo, é pasmosamente pequeno.

Sem o auxílio da graça não se


aceita uma vida de renúncias
São Luís prossegue:
“Se alguém quiser” — se alguém tiver vontade autêntica,
firme e determinada, não pela natureza, pelo costume, pe-
lo amor próprio, pelo interesse ou respeito humano, mas por
uma graça toda vitoriosa do Espírito Santo, que não se dá a
todos. O conhecimento do mistério da cruz, na prática, só é
dado a poucas pessoas. Para um homem subir ao Calvário e
aí se deixar pregar na cruz, com Jesus, em sua própria pátria,
é preciso que seja um corajoso, um herói, um determinado,
um homem formado em Deus, que despreze o mundo e o in-
ferno, seu corpo e sua vontade própria; disposto a deixar tu-
do, a tudo empreender e a tudo sofrer por Jesus Cristo.
Sabei, queridos Amigos da Cruz, que aqueles dentre vós
que não têm essa determinação, andam com um pé só,
voam com uma asa só e não são dignos de estar no meio de
vós, porque não são dignos de serem chamados Amigos da
Cruz, à qual devemos amar com Jesus Cristo, corde magno
et animo volenti. Basta uma meia vontade nesse caso, pa-
ra corromper todo o rebanho como uma ovelha negra. Se
em vosso aprisco já existe uma delas, vinda pela porta má
do mundo, em nome de Jesus Cristo crucificado expulsai-a
como a um lobo que se esgueirou entre os cordeiros.
Esse pensamento de São Luís Grignion é muito im-
portante, porque nos revela a necessidade de uma graça
especial para determinar os homens a seguirem a cruz de
Nosso Senhor.
Quer dizer, se alguém julga que somente fatores hu-
manos são capazes de levar uma pessoa a aceitar uma
verdadeira vida de sacrifícios, esse se acha completamen-
te enganado. E igualmente errado estará quem pense
que a tal nos inclinará o costume, a natureza ou o “ânimo
dedicado”. Não existe ânimo dedicado nessa matéria. Há
homens que, às vezes, demonstram certa facilidade para
algumas formas menos penosas de dedicação. Mas entre-
gar-se até o sangue nas grandes dificuldades, não se con-
segue sem o auxílio da graça.
Sabemos, pela experiência pessoal de cada um, como
é dura a batalha pela perseverança na virtude: luta e en-
trega individuais, em que a tradição e o ambiente domés-

14
Se quisermos, como alguns
poucos, seguir Nosso Senhor
com a cruz às costas,
importa suplicarmos por
meio de Maria Santíssima
o indispensável auxílio
da graça

Encontro de Jesus com Nossa Senhora na Via


Sacra - Marfim, Museu Metropolitan de Nova York

tico podem ajudar um tanto, mas não são fatores deter-


minantes para nos levar à pratica da virtude. É preciso a
força da vontade secundada pelo socorro divino.

A graça “toda vitoriosa”


do Espírito Santo
Curioso notar como São Luís Grignion se refere tam-
bém ao interesse e ao respeito humano — tomado aqui
no sentido de honras e regalias que se prometem a al-
guém — como ineficazes para convencer o homem a to-
mar a Cruz. Ou seja, nenhuma razão natural, nenhum va-
lor terreno e mundano é capaz de determinar uma pes-
soa a cumprir estavelmente os Mandamentos de Deus.
Só mesmo com o amparo do Céu, como o próprio autor
insistirá na frase seguinte:
Mas por uma graça toda vitoriosa do Espírito Santo que
não se dá a todos.
Agrada-me salientar essa bela expressão de São Luís:
“graça toda vitoriosa”.
Com efeito, há certas graças que o Espírito Santo con-
cede aos homens, em geral graças de conversão, que tra-
zem consigo a vitória na vida espiritual. Graças tão ricas,
tão eficazes, alcançadas por meio de Maria Santíssima,
que nos fazem sentir um desejo quase irresistível de pro-
gredir na virtude e de abraçar as vias da santidade de mo-
do mais resoluto.
Certo, mesmo sob o influxo dessa graça poderemos
conhecer eclipses, enfrentaremos toda espécie de venta-
nias, de tropeços, mas, afinal, aquela luz divina nunca se
apagará inteiramente no nosso horizonte. E acabaremos
por segui-la e por atingir nosso bom porto, conduzidos
pela misericórdia de Nossa Senhora.

15
ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA

Prudência sobrenatural
Continua o santo autor:
Basta uma meia vontade nesse caso, para corromper to-
do o rebanho como uma ovelha negra. Se em vosso aprisco
já existe uma delas, vinda pela porta má do mundo, em no-
me de Jesus Cristo crucificado expulsai-a como a um lobo
que se esgueirou entre os cordeiros.
É interessante analisarmos a razão pela qual São Luís
Grignion se refere à “má ovelha”. A meu ver, uma razão
de prudência sobrenatural, que se explica nesses termos:
quando um grupo forma um todo homogêneo, a presen-
ça nesse conjunto de um elemento heterogêno pode ma-
culá-lo por inteiro.
Imaginemos, por exemplo, um lindo tecido sobre o
qual cai uma gota de tinta. Diríamos: “o pano está man-
chado”. E estranharíamos se outro objetasse: “Não, des-
culpe-me, mas apenas um centímetro quadrado desse te-
cido está sujo; o resto está limpo”. Ora, um centímetro
quadrado de mancha num tecido branco, implica em que
todo ele está manchado. Se se deseja a alvura inteira do
pano, é preciso remover a mancha.

Se aceitarmos a cruz,
cumpriremos nossa missão
“Se alguém quiser vir comigo”, que tanto me humilhei e
aniquilei, que me tornei mais semelhante a um verme, que
a um homem; comigo, que só vim ao mundo para abra-
çar a cruz, para colocá-la no centro de meu coração, para
amá-la desde a minha juventude; para suspirar por ela du-
rante a minha vida; para carregá-la com alegria, preferin-
do-a a todas as alegrias do céu e da terra, e que, enfim, só
me contentei quando morri em seu divino abraço.
Eis um dos sublimes pensamentos de São Luís Grig-
nion de Montfort, pois se refere à posição do homem pe-
rante a missão que ele recebeu de Deus; missão que sem-
pre traz uma cruz, à qual deseja carregar. Aqui está, ex-
pressa em termos magníficos, a vocação do verdadeiro
Amigo da Cruz.
Trata-se, portanto, de termos a compenetração de que
viemos ao mundo, não para nos divertir nem para satisfa-
zer caprichos. Viemos, antes de tudo, para cumprir nossa
missão, o plano de Deus a respeito de cada um. E o de-
sempenho dessa missão envolve o sofrimento que deve-
mos abraçar, agarrarmo-nos a ele, sem fugas, sem frau-
des, sem contrabandos, mas tomá-lo por inteiro. Cla-
ro está, suplicando a Nossa Senhora que nos alcance de
Deus as forças necessárias para beber o cálice das dores
como Ela e seu Divino Filho o fizeram na Paixão, sem
deixar escapar uma gota sequer. Seja o que for, por mais
duro, mais difícil, mais enigmático e incompreensível aos
nossos olhos, aceitarmos.

16
Ao mundo viemos, antes de
tudo, para cumprir o
plano de Deus a respeito de
cada um, e isto envolve a
renúncia de si mesmo
e o aceitar a Cruz do Divino
Redentor, sob o amparo de
Nossa Senhora

O corpo de Nosso Senhor é descido da Cruz -


Marfim, Museu Metropolitan de Nova York

E não é apenas aceitar a cruz, mas nos adiantarmos e


a agarrarmos, nos prendermos a ela, com todo o amor e
toda a força de nossa alma. Amo minha missão e o sofri-
mento sacrossanto que ela traz consigo. O resto me im-
porta menos ou não me importa nada. Quero a cada uma
dessas gotas de sacrifício, com integridade de coração,
sem me esquivar de nenhuma. Devo preferi-las “a todas
as alegrias do céu e da terra”, e “amá-las desde a minha
juventude”.
Outra expressão de extrema beleza. Na verdade, mui-
tos podem dizer que desde a juventude, desde os albores
da infância, sentiram o sopro da graça que lhes convida-
va para sua vocação. E se corresponderem, no momen-
to de deixarem este mundo, poderão olhar para trás e di-
zer a Deus:
“Senhor meu Pai, ao menos, de um modo ou doutro,
amei a vocação que me destes desde o começo de minha
vida. E esta não foi outra coisa senão procurar o cum-
primento da missão que me confiastes. Agora morro nas
vossas mãos e nas de Maria Santíssima; aquilo que me
mandastes fazer, eu fiz. Dai-me, pois, Senhor, o prêmio
da vossa glória.”
É a missão realizada. Mas, missão aceita é, antes de
tudo, a cruz aceita. Abraçada a cruz, está cumprida a mis-
são. E é a graça de tomarmos a cruz que devemos pedir a
Deus, de toda a alma e com toda a confiança, por meio
de Nossa Senhora. Y
(Extraído de conferência em 22/7/1967)

17
REFLEXÕES TEOLÓGICAS
Sergio Hollmann

Crucifixo junto aos restos mortais de


São Luís Maria Grignion de Montfort -
St-Laurent-Sur-Sèvre, França

18
Teoria do
Amor à Cruz
O mundano, conforme seu feitio e o ambiente em que
foi formado, admira quem é cheio de honras, dinheiro
e conforto. O verdadeiro católico, dotado de sabedoria,
desapegado de seus bens e que os utiliza por amor a Deus,
possui uma dignidade, um decoro, uma distinção, uma
compostura, que são o brilho da Cruz de Cristo.

S ão Luís Maria Grignion de Montfort1 apresenta o


seguinte elemento para praticarmos perfeitamen-
te o amor à Cruz:
Mudança completa de mentalidade
Há aqui umas pequenas observações a fazer. Em pri-
meiro lugar, essa ideia claríssima, de Nosso Senhor:
“Se, pois, alguém quiser vir após Mim, assim aniquila-
“Renuncie a si mesmo!” do e crucificado, que só se glorifique, como Eu, na pobreza,
Longe dos Amigos da Cruz os orgulhosos e os sensuais! nas humilhações e nas dores de minha Cruz!”
Se, pois, alguém quiser vir após Mim, assim aniquila- Essas são palavras já tão conhecidas e referidas, com
do e crucificado, que só se glorifique, como Eu, na pobre- tanta superficialidade e banalidade de espírito, por pre-
za, nas humilhações e nas dores de minha Cruz! Abne- gadores de segunda classe, que elas tomam aspecto de
get semetipsum, renuncie a si mesmo! Longe da Compa- chavões. Ora, Nosso Senhor não poderia ter dito cha-
nhia dos Amigos da Cruz os sofredores orgulhosos, os sá- vões. E não é possível que o Espírito Santo tenha inspi-
bios do século, os grandes gênios e os espíritos fortes, que rado chavões. De maneira que, chavões não podem ser.
são teimosos e convencidos de suas luzes e talentos! Lon- Existe uma pátina de trivialidade por cima dessas coisas,
ge daqui os grandes tagarelas, que fazem muito ruído e que não se pode confundir com a substância delas, por-
colhem apenas o fruto da vaidade! Longe daqui os devo- que do contrário seria admitir que Nosso Senhor diria
tos orgulhosos e que levam para toda parte o “quanto a banalidades, o que é o absurdo dos absurdos.
mim” do orgulhoso Lúcifer, “non sum sicut ceteri” (Lc Como nós podemos atender esse conselho de Nos-
18, 2), que não podem suportar que os censurem sem des- so Senhor? Tal conselho de algum modo toca o precei-
culpar-se, que os ataquem sem defender-se, que os rebai- to e até o âmago do preceito: “Se alguém quiser vir após
xem sem exaltar-se! Mim, renuncie a si mesmo...”; e deve ser aniquilado e
Tende bem cuidado para não admitir em vossa compa- crucificado, de tal maneira que só se glorifique na pobre-
nhia os delicados e sensuais, que temem a menor picadela, za, nas humilhações e nas dores.
que se queixam da mínima dor, que nunca provaram a cri- Em primeiro lugar, isso supõe uma espécie de meta-
na, o cilício, a disciplina e, entre as suas devoções em mo- noia, uma mudança completa de mentalidade. Porque o
da, misturam a mais disfarçada e refinada delicadeza e fal- homem, pelas forças, pelas tendências de sua natureza,
ta de mortificação. admira o contrário dessas coisas. Ele tem admiração pe-

19
REFLEXÕES TEOLÓGICAS

lo sucesso, pela riqueza, pelas glórias, pelo bem-estar. E mim esse modo de pensar, e aí está o aspecto metanoia.
quando ele vê uma pessoa nos píncaros da fortuna e das Quer dizer, preciso agir internamente em mim mesmo,
honrarias, gozando do sumo bem-estar, é levado a que- pedir a Nossa Senhora que me dê a graça de ser de tal
rer admirá-la. Pelo contrário, quando um indivíduo não maneira, que essas coisas não contribuam para que eu
tem isto, ele tende a não admirá-lo. tome alguém como meu mestre ou doutor, meu símbo-
lo e meu guia. Mas que eu seja capaz de compreender
Honras, dinheiro e conforto que isso não são credenciais para ninguém, debaixo de
nenhum ponto de vista, e devo tomar outros critérios pa-
É por causa disso que os amigos do mundo procuram ra julgar os homens.
cercar de glória, de dinheiro, de bem-estar os homens Por exemplo, o mundanismo não é senão isso. Toda
que eles querem prestigiar; e buscam evitar o acesso a es- forma de mundanismo acaba tendo esses sintomas. A
sas coisas às pessoas cujo prestígio desejam evitar. Por- pessoa que é mundana, conforme seu feitio e o ambiente
que eles sabem que uma grande glória, uma grande for- em que foi formada, admira o homem cheio de honras,
tuna, a ostentação de um bem-estar mais nítido, são tri- ou de dinheiro, ou de conforto.
bunas do alto das quais um homem afirma a sua supe-
rioridade perante os outros, e se transforma num doutor Erva daninha em nosso espírito
deles; o que ele diz, os outros acreditam facilmente, ele
se torna um símbolo e um guia para os outros. Quer di- Eu lhes garanto o seguinte: se fizermos um exame de
zer, ele representa a própria plenitude da humanidade. consciência cuidadoso, corremos o risco — não digo uma
Doutor, símbolo e guia são as três formas pelas quais um certeza, mas um risco sério — de encontrar resquícios
homem pode arrastar a opinião pública atrás de si. disso dentro de nós. Quer dizer, há pessoas que admira-
Alguém me dirá: “Mas Dr. Plinio, isso é igualmente mos e exercem império, se não sobre a nossa razão, pelo
sabido.” menos sobre as nossas vivências, porque elas têm algum
Eu afirmo: “É verdade, porém não é tão lembrado.” desses três títulos. E isso de tal maneira nos fascina, que
Além disso, é preciso dizer o seguinte: devo retificar em não somos capazes de abalá-lo, de derrubá-lo. Mais ain-

Wikimedia Commons
Quando alguém vê uma
pessoa nos píncaros
da fortuna e das
honrarias, gozando
do sumo bem-estar,
é levado a admirá-la.
Por isso, os amigos do
mundo procuram cercar
de glória, dinheiro e
conforto os homens a
quem desejam prestigiar.

20
da, quando desejamos nos cre-

Wikimedia Commons
denciar à consideração dos ou-
tros, em vez de procurarmos bri-
lhar pelo esplendor da Cruz, in-
tentamos dar-lhes ideia, ou de
que somos ricos, ou cercados de
muitas honras, ou de que temos
um bem-estar esplêndido.
De maneira que há uma ver-
dadeira necessidade de meditar-
mos a respeito disso, para evitar
o desenvolvimento de uma erva
má, que a todo o momento es-
tá renascendo no espírito de to-
dos nós, ou de quase todos nós;
corta-se e renasce, corta-se e re-
nasce.
Por exemplo, conversas mun-
danas, tratando sobre pessoas
que têm qualquer evidência na “Longe daqui os grandes tagarelas, que fazem muito
classe à qual pertencemos. No ruído e colhem apenas o fruto da vaidade!”
fundo, tais conversas são sempre
seguidas de um preito de admiração à pessoa de quem Há uma expressão fisionômica do verdadeiro católi-
se fala, por causa desses títulos. Daí vem o efeito debili- co que lhe dá compostura, dignidade e beleza. É um quê
tante do mundanismo sobre nós. Porque, admirando es- pessoal indefinido, o qual resulta da intimidade ou da
sa gente, imediatamente em nosso espírito forma-se uma compenetração da alma com os mais altos princípios da
posição falsa a respeito de nós mesmos. Começamos a doutrina católica. As expressões mais elevadas do pen-
nos sentir pouca coisa, inibidos, a duvidar do alcance dos samento se tornam para ela como que naturais. A posse
grandes lances que nós jogamos. Por quê? Porque não da virtude da sabedoria, incluindo em si todas as outras
temos dinheiro, honras, em quantidade suficiente para virtudes adequadas, adaptadas ao próprio temperamen-
deslumbrar os outros. Possuímos o suficiente para apa- to; com aquele senso da dignidade sobrenatural do que
recer com dignidade, com decoro, se quiserem, mas para a pessoa é de fato; com o desapego das coisas no que diz
deslumbrar não. Temos o nosso bem-estar nessas propor- respeito à vaidade, e com aquele puro amor, desejando
ções. E muitas formas de insegurança em nós resultam que essas coisas brilhem, porque são dons de Deus, e pa-
da pujança dessa erva daninha no nosso espírito. ra que agradem ao Criador, mas desinteressado em que
façam pôr em relevo a miserável pessoinha de cada um
Dignidade, desapego e amor de Deus de nós; quando isso entra numa alma dá-lhe uma digni-
dade, uma honestidade, um decoro, uma distinção, uma
Se os que estão neste auditório dessem orientação es- compostura que é o brilho da Cruz de Cristo.
piritual, compreenderiam melhor o mal que pode fazer A Cruz de Cristo é o conjunto de sofrimentos neces-
a uma alma, numa hora errada, a evocação de um mun- sários para adquirir a sabedoria. É o conjunto de re-
dano. Aquilo entra como uma picada de uma mosca ve- núncias, de asceses, de aplicações contínuas e, portanto,
nenosa e pode estragar um dia, exatamente por causa do muitas vezes esses sofrimentos são sentidos nos pontos
mundanismo. fundamentais, com os devidos equilíbrios, contrafortes,
Alguém poderia dizer: “Dr. Plinio, o senhor está pre- as devidas hierarquias; a alma pena para ter amor à Cruz
conizando que nós não procuremos nos vestir bem, ter de Cristo. E o esplendor da Cruz de Cristo é uma certa
um decoro, uma compostura! E que sejamos uns trapos, nota de desapego, que vem junto com todos esses dons, e
ao contrário do que o senhor toda a vida ensinou! Por- é condição para que esses dons se tornem suscetíveis de
que se é para ostentar só a Cruz de Jesus Cristo, não se serem amados por outros.
pode fazer brilhar as outras coisas que a pessoa tem.” Quando uma pessoa tem uma superioridade qualquer,
O princípio se transmuda da seguinte maneira: como é difícil fazer com que os outros aceitem a própria infe-
faço brilhar a Cruz de Cristo em mim? rioridade. Mas o modo pelo qual isso ainda é possível,

21
REFLEXÕES TEOLÓGICAS

com o auxílio da graça, consiste em fazer com que os ou- Esse autêntico prestígio vale mais do que o da Ciên-
tros notem o desapego. Mas se notam uma satisfação vi- cia. Há um mundanismo dos homens livrescos e outro
brante, apegada àqueles dons, e o olhar oblíquo para ver dos fúteis. E, no fundo, um é tão fútil quanto o outro;
se outros estão admirando ou não, e uma efervescência apenas o segundo é um mundanismo mais deslumbrado
se não for admirado, os outros notam o apego. Apego e ensebado.
gera apego, e nada torna um inferior tão apegado quanto Há uma espécie de honestidade, de dignidade, de
o apego do superior. grandeza de alma, em comparação com o qual tudo mais
é resto.
Prestígio verdadeiro e sacrossanto
Senso aristocrático e sabedoria
Então, a posse de todas as qualidades de uma deter-
minada alma — que a graça ou a natureza lhe concedeu Alguém me dirá: “Dr. Plinio, o senhor parece fazer
—, consideradas pelo aspecto sapiencial, nas proporções uma exclusiva glorificação da virtude. A glória do ho-
sapienciais, com renúncia a qualquer coisa contrária e mem é a virtude e nada mais. Ora, isso está em contra-
sendo a posse desapegada, isto dá à alma algo que é fator dição com o hábito que o senhor tem de realçar muito os
de prestígio verdadeiro e sacrossanto, incomparavelmen- valores aristocráticos.”
te maior do que o prestígio de ter automóvel ou qualquer Não é verdade. O que é aristocracia? O senso aristo-
outra coisa. crático é o aspecto da sabedoria pelo qual o homem sá-
bio nota o que é mais excelente e o que é me-
nos excelente. E dá às coisas com que ele tra-
Gustavo Kralj

ta um valor que está de acordo com as hierar-


quias delas. E, quanto a si mesmo, se mostra
compenetrado do valor que lhe toca nessas
hierarquias, tudo por amor de Deus. De ma-
neira que nada pode produzir um senso aris-
tocrático tão raffiné, tão requintado, quanto a
verdadeira sabedoria.
O espírito hierárquico não é senão um amor
sapiencial à desigualdade, que leva o homem a
ter um amor próprio — não de quem está pen-
sando em si mesmo —, mas um amor adequado

A posse da virtude da
sabedoria, incluindo
em si todas as outras
virtudes, dá à alma uma
dignidade, um decoro,
uma distinção, que é o
brilho da Cruz de Cristo.

Jesus leva a Cruz rumo ao


Calvário - Jerusalém, Israel

22
ao seu próprio grau, tanto quan-
to ao grau dos outros. E a respei-
tar cada coisa, não porque é sua,
mas por amor de Deus.
Vê-se em muitas pessoas que
têm, por exemplo, qualquer grau
aristocrático, se entra o amor de
Deus ou o amor de si mesmo pe-
lo meio, e a vivacidade com que
se interessam pela instituição no-
biliárquica, quando não diz res-
peito a elas.
Então o amor à Cruz não é em
nenhuma hipótese o débraillé, o
desarranjado, o esmolambado,
nem o sentimental. Mas é qual-
quer coisa que prepondera sobre
isto.

Segurança e insegurança
Quanto às seguranças e in-
seguranças, isso dá no seguin-
te: quem tem esse espírito con-
denado por São Luís Grignion
Dr. Plinio osculando o Crucifixo que pertenceu a São Luís Grignion de Montfort
de Montfort, ou que pelo me-
nos possui “vegetações” subcons-
cientes desse espírito, no conflito ou no contraste entre fundidade de vistas. Elas representam, em relação ao
as duas formas de esplendor — a da Cruz e a do mun- esplendor da Cruz, o papel do pedal do piano em re-
do —, chega a sentir-se inseguro. Quem ama verdadeira- lação à nota musical, aumentando sua sonoridade. E,
mente essa hierarquia de valores compreende a força de- como a força do mundo está continuamente procuran-
la e que essa insegurança não tem razão de ser. Pode-se do acalcar o pedal que diminui a sonoridade, é normal
ir para a frente, e aguentar o confronto com toda a firme- que se acalque o pedal oposto. Mas não é indispensá-
za, porque em si a superioridade da Cruz é simplesmen- vel e nem o principal.
te incomparável. Que vantagem há em explicar isso? Os que se encon-
Se nós tivéssemos sempre a compenetração disso, co- tram nesta sala não apreenderam nada de novo pelo que
mo a nossa vida se tornaria mais fácil! E como todas eu disse. Mas se lembraram de alguns princípios úteis, ti-
as nossas atividades se tornariam mais compreensíveis! veram ocasião de se embevecer e de amar mais uma vez
Por exemplo, um dos segredos de nosso apostolado, do a doutrina católica diante de uma reexposição de tudo
nosso modo de nos apresentarmos em público, consiste quanto ela tem de bonito, e sobretudo puderam pôr em
em realçar isso. Aqui está a nossa grandeza. ordem a sua consciência, em face a alguns desses cha-
vões, que sempre constituem umas pedrinhas nos sapa-
Pôr em ordem a consciência tos da pessoa.
Aí está uma pequena teoria do amor à Cruz, num co-
Alguém perguntaria: “Mas então o senhor considera mentário muito livre desse texto de São Luís Maria
que o dinheiro, o traje e outras coisas são inúteis para a Grignion de Montfort. Y
apresentação?”
Eu não disse que essas coisas são inúteis. Afirmo (Extraído de conferência
que elas são de uma utilidade real, mas secundária, de 29/7/1967)
para serem assumidas por essa superioridade de es-
pírito e representá-la. Elas existem para sublinhar o
prestígio da virtude junto às pessoas com menos pro- 1) Carta-Circular aos Amigos da Cruz, n. 17.

23
REFLEXÕES TEOLÓGICAS

Levar a cruz
com ufania

Os infortúnios, nossas limitações e defeitos constituem cruzes, por


vezes muito pesadas, que devemos saber carregar. Certas pessoas, sem
compreenderem a beleza e a necessidade do sofrimento, procuram fugir
dele por meio de um blefe. Dr. Plinio nos aponta a atitude, ao mesmo
tempo ufana e equilibrada, de um verdadeiro católico face à dor.

“T ollat”, leve-a! E não a arraste, nem sacuda, nem


reduza e, ainda menos, a esconda! Isto é: leve-
-a bem alto na mão, sem impaciência nem pesar,
sem queixa nem murmuração voluntária, sem partilha e
sa que não a Cruz de meu Senhor Jesus Cristo!” (cf. Gl 6,
14). Leve-a aos ombros a exemplo de Jesus Cristo, a fim de
que essa cruz se torne para ele a arma de suas conquistas e
o cetro de seu império: “(imperium) principatus (ejus) super
sem alívio natural, sem envergonhar-se, e sem respeito hu- humerum ejus” (cf. Is 9, 6). Enfim, coloque-a, pelo amor,
mano. “Tollat”, que a coloque sobre a fronte, dizendo com em seu coração, para torná-la numa sarça ardente que, sem
São Paulo: “Que eu me abstenha de gloriar-me de outra coi- consumir-se queime, noite e dia, de puro amor de Deus1.

14
Sofrimentos que devemos aceitar demais. Mesmo nos casos em que fosse meu direito me
para salvar nossas almas encolerizar, não me encolerizarei. Só por esta forma eu
mato a raiz de minha cólera. É o meu mau gênio que me
Neste trecho da “Carta Circular aos Amigos da Cruz”, leva continuamente a estar implicado e irritado com os
vem enunciado o princípio de que, em relação à cruz, ou outros. Então, tenho que descer aos porões de minha al-
seja, ao sofrimento que Nossa Senhora nos manda, não ma e fazer uma poda dolorosa.”
nos cabe o levarmos resignada e arrastadamente, mas Devemos pedir a Nossa Senhora as graças para fazer-
conduzi-lo alto, com alegria e ufania. mos essa poda generosamente e com ânimo forte, isto é,
Dizia o Duque de Saint-Simon que o mundo deveria fixar uma resolução e traçar um programa: “Eu chegarei,
ser conduzido “à la croix haute”, tomando a cruz na mão de uma vez só ou por progressivos cortes, a eliminar den-
e, com ela bem alta, fazer tocar todas as coisas. Porque se tro de mim aquilo que constitui essa raiz da qual brotam
nos reportarmos ao que se entende por cruz, então com- os meus pecados.” Isso será com a cólera ou com um de-
preenderemos bem o que diz esse texto de São Luís. feito oposto à cólera, que é a apatia e a falta de sensibi-
A cruz é o conjunto dos sofrimentos que devemos lidade para com as ofensas profundas; será em relação a
aceitar para salvar as nossas almas. Em primeiro lugar, qualquer defeito preponderante. Leva-se a cruz alta, co-
os esforços que nossa santificação exige, abrangendo o mo recomenda São Luís Grignion de Montfort, quando
enorme domínio da ascese. Em segundo lugar, os infor- temos a graça de operar por esta forma.
túnios que nos acontecem. E em terceiro lugar, as limi-
tações e restrições em nós mesmos, com as quais deve- Todos os homens passam por infortúnios
mos nos conformar. Todo homem tem uma série de limi-
tações, e não deve apenas arrastá-las penosamente, tris- O que é a aceitação dos infortúnios que nos aconte-
temente, tomando-as como um fato consumado, mas, cem?
ao ver outros que têm mais virtude, mais inteligência, Não há pessoa que não receba, de vez em quando,
ou qualquer coisa a mais do que ele, precisa ter satisfa- uma bombarda de algo que não quereria e acontece de
ção, dar graças a Deus, a Nossa Senhora, e por esta for- um modo inteiramente imprevisto. Ora é a morte inopi-
ma manifestar a aceitação das próprias limitações. nada de alguém a quem estimávamos muito; ora é uma
Como levamos nossa cruz em matéria de ascese? Se campanha de calúnias, ou uma amizade que desejávamos
algo me custa muito, é de bom aviso pedir graças a Nos- muito e não a obtivemos, ou um dinheiro, a saúde; seja o
sa Senhora para entregar não apenas o que me foi pedi- que for, mas ninguém deixa de receber o impacto de vá-
do, mas dar mais. Porque, assim, faço uma renúncia mais rios infortúnios.
completa àquele apego que me levava a sentir dores em Como levar a cruz até o fim, em relação a esses in-
conceder aquilo, e vou muito mais longe no caminho da fortúnios? Preparando a alma no período de tranquilida-
cruz e da santidade, do que um outro que não segue es- de para que, no tempo da adversidade e das desventuras,
se princípio. ela seja forte.
Se logo depois de me acontecer uma coisa desagradá-
Devemos cortar as raízes de nossos defeitos vel, de ter me aclimatado e posteriormente saído dela, eu
esfrego as mãos e penso: “Graças a Deus, saí de dentro
Por exemplo, uma pessoa que seja colérica e se põe disso, e nunca mais vai me acontecer novamente!” Quan-
como norma: “Nunca darei o meu consentimento em en- do me acontecer, apanha-me fraco e desprevenido, e te-
colerizar-me com alguém, sem razão.” Se o defeito pre- nho outro drama.
ponderante dela é a cólera, ela nunca ficará nesse limite. Devo pensar o contrário: “Esta vida é um vale de lá-
Porque, com a preocupação de ficar no mínimo, ou seja, grimas. Aconteceu-me isso agora e pode me suceder ou-
apenas no limite da correção nos assuntos em que temos tra desventura daqui a dez minutos. E isto é normal, por-
uma tendência contrária muito forte, não extirpamos a que são as regras do jogo, não posso estranhar. Por pou-
raiz, mas apenas cortamos os maus frutos que estão em co que eu olhe em torno de mim, desde que não o fa-
nós. Resultado: esses frutos surgirão com tanta abundân- ça como um ingênuo, mas procure ver como é a vida
cia, que todo nosso tempo e energia não bastarão para dos outros, percebo que cada um tem infortúnios sérios,
cortá-los continuamente. grandes e, portanto, é natural que eu os tenha também.
Então, como se leva a cruz nesse caso? Dizendo: “Te- Pela bondade divina, no momento não tenho, mas tê-los-
nho uma tendência para estar continuamente me irritan- -ei daqui a pouco. Se vier o sofrimento, Nossa Senhora o
do com os outros. Portanto, não vou me limitar a não me estará mandando para o bem de minha alma, e devo es-
irritar, mas serei um modelo de correção no trato com os tar preparado. Assim, habituo um pouco a minha imagi-

15
REFLEXÕES TEOLÓGICAS

nação de maneira a não ficar tão surpreso e não


ser colhido de improviso se me acontecer alguma

Francisco Lecaros
desventura.”
O oposto a isso é o defeito moral de muita
gente que começa a imaginar situações otimistas.
Isso amolece a alma, tira completamente a cora-
gem para a luta.
O que se deve fazer? Prever o mal, não exage-
rando a possibilidade de ele acontecer, mas acos-
tumando os olhos a considerá-lo de frente. E,
durante o infortúnio, rezar para Nossa Senhora
afastá-lo, se for a santíssima vontade d’Ela; pedir
até que seja a santíssima vontade d’Ela afastá-lo,
se Ela não nos dá a sede de cruz. Rezar filialmen-
te, pedindo isso à Virgem Maria, mas compreen-
dendo que Ela pode não conceder, porque, por
mais altos desígnios, quer que eu tenha uma cruz
a carregar nesta vida.

Cada criatura tem um belo e


digno lugar nos planos de Deus
No tocante às limitações que temos, devería-
mos partir da ideia de que cada criatura, por me-
nor, mais apagada e mais defeituosa que seja —
e falo, sobretudo, da criatura racional —, tem
um lugar nos planos de Deus. E um lugar de for-
mosura, de dignidade. Portanto ela deve aceitar,
com enlevo, e dentro de todas as suas limitações,
esse destino.
Não me refiro apenas a limitações físicas, mas
a defeitos nativos, por exemplo, de inteligência,
de temperamento e até morais.
A pessoa deve fazer este raciocínio: Se Deus
compôs para Si um universo como um diadema,
no qual há pedras centrais enormes e, à medida
que se distanciam do centro, as pedras vão dimi-
nuindo, até o diadema fechar-se em pedras bem
pequenas; e se, para a beleza desta joia, deve ha-
ver pedrinhas e eu sou uma delas, então vou me São Domingos de Gusmão, portando a cruz, vence o
alegrar por isso, dar graças a Nossa Senhora e demônio - Museu de Belas Artes, Córdoba (Espanha)
aceitar de bom humor, porque componho a beleza
desse conjunto.
Portanto, não vou morrer de tristeza, por haver pedras nho uma razão para existir e, por isso, não há motivo pa-
maiores do que eu. Pelo contrário, fico alegre de com- ra me desprezarem. Estou desempenhando meu papel.
por o cortejo das pedras e ser um lampejo pequeno den- Por mais rico que seja um palácio, é necessário que
tro dos lampejos maiores. Uma vez que a beleza do con- nele haja vassouras. O dono da residência não pode des-
junto precisa de mim, tenho um papel, uma razão de ser, prezar, quebrar e jogar fora a vassoura, pois ela tem uma
e não sou uma excrescência, desde que saiba realizar o função a exercer.
meu destino. Logo, se tenho a minha razão de ser, não terei com-
Um ponto fundamental nesta questão é que não se de- plexo ou vergonha por não ser os outros. Quererei ser eu
ve ter vergonha de ninguém. Por menor que eu seja, te- mesmo. E se os outros quiserem pisar em mim, eu rio de-

16
les, porque a boa razão e o bom direito estão de meu la- Se eu possuir um automóvel, darei graças a Deus; se não
do. O próprio Deus está de meu lado. E vou ser, com to- o tiver, estarei com a mesma fisionomia ao sol, com a
da a paz da alma, o que sou, com os meus defeitos e li- mesmíssima apresentação. Aqui estou, Plinio Corrêa de
mitações. Oliveira, pronto a aguentar qualquer desprezo e revidar,
Se sou pouco inteligente ou sem graça, ou tenho má mantendo-me normal, sem me amargurar.
memória, ou sou pequenininho; que importa? Não tenho Entretanto, muitas pessoas procuram blefar até mes-
minha razão de ser? Então eu me afirmo: sou como sou, mo aos seus próprios olhos, quando o melhor é ver a ver-
sou o que sou, aqui estou! Desde que eu seja de acordo dade, pois a humildade é a verdade. Isso é carregar a
com a regra com a qual devo ser, não tenho vergonha de cruz. E carregando-a, devo considerar também que pos-
nada e me afirmo com toda a dignidade e toda a minha so vir a perder um pouco do que tenho e ser menos do
finalidade. que sou. Se isso acontecer, Deus seja bendito!
Essas são verdades conhecidas e cuja lembrança faz
Um blefe existente hoje mais do que bem à vida espiritual.
em qualquer outra época histórica
Martírio de São Théophane Vénard
Como esse senso da cruz importa ao senso contrarre-
volucionário! O oposto disso é o blefe, por onde o mun- Contudo, parece-me que
do de hoje está continuamente elaborando atitudes pelas haveria restrições a fazer,

W
or
quais as pessoas procuram dar a entender que são mais de ordem prática, ao

ld
Im
ag
do que são. que eu disse. Porque,

ing
Por exemplo, bancar ser mais inteligente do que é, ou pelo nervosismo,
então mais fino, de melhor posição social, ou ter mais di- pela debilidade de
nheiro, mais importância, mais prestígio, e outros mil re- vontade, por algo
cursos para blefar. Acho que hoje em dia o blefe é de de desengonça-
uma frequência maior do que em qualquer outra época do existente nas
histórica. Isso significa não querer carregar a cruz. gerações mais
Certa vez, uma pessoa, estando em minha residência, recentes, com-
disse-me: preendo que
— Sua casa é bonita, e tenho muito gosto em vir até esse quadro
aqui. Mas não teria coragem de morar nela. traçado assim,
— Mas por quê? — indaguei. embora se pres-
— Porque, neste gênero de casas, há objetos mui- te a ser admira-
to mais ricos e distintos do que os existentes aqui, e eu do, sua simples
não teria coragem de habitar num ambiente que não fos- explicitação pode
se o mais bonito no gênero. Como também, na sua posi- causar, em certos
São Théophane Vénard
ção, não teria coragem de ir até a esquina e ficar “pes- momentos, tremor.
cando” um táxi, como o senhor “pesca”. Um homem de Alguém me con-
sua idade e condição tem automóvel. E eu teria vergonha tou, outro dia, como foi
de não possuir automóvel. Jamais iria para uma esquina, o martírio do Bem-aven-
por onde passa muita gente conhecida, e estar ali “pes- turado Théophane Vénard2.
cando” um táxi. Cada um que passa dentro de um auto- Ele estava sendo preparado para ser decapitado, dian-
móvel próprio e vê o senhor ali, pensa: “Está vendo? Es- te do mandarim. E o carrasco, vendo um pequeno ob-
te chegou a essa idade e não tem automóvel!” jeto de ouro que ele possuía, disse-lhe: “Se você me der
Eu disse: isso, eu tiro a sua cabeça de um golpe só, você nem vai
— Meu caro, isso não me causa a menor emoção. Mo- sentir.” Não lembro se ele deu ou não o objeto, mas res-
ro nesta casa e julgo que ela me serve de boa moldu- pondeu ao verdugo: “É melhor que você demore, por-
ra, porque não sou, nem pretendo ser, mais do que is- que quanto maior o número de pancadas, mais ocasião
so. Acho, inclusive, que está de acordo com meu nível de terei de sofrer.”
educação e com minha posição tomar um táxi na esquina Admiro isso profundamente, mas uma coisa como es-
e, portanto, não me incomodo. E se eu tivesse que pegar sa me enregela. Se eu fosse morrer decapitado, não me
ônibus ou bonde, também não teria vergonha, porque, passaria pela cabeça fazer isso. Eu julgaria ter cumpri-
se não possuo dinheiro, não adianta pensar que tenho. do inteiramente o meu dever, simplesmente deixando-

17
REFLEXÕES TEOLÓGICAS

-me decepar. De maneira que se eu tivesse que ser mar- mas uma estrutura com sua fragilidade própria. E diante
tirizado, eu tout bêtement3 teria que pensar em outra coi- do dever descrito em toda a sua austeridade, pergunto-
sa e me entregar nas mãos da Providência. Se Nossa Se- -me se não há almas que experimentam uma constrição,
nhora quiser permitir que me cortem a cabeça com vá- uma incapacidade de realizar o sacrifício até o fim, com
rios golpes, e Ela me der forças para isso, ficarei encan- todas as aparências de falta de generosidade que, entre-
tado. Mas se Ela não me der forças, não há remédio, tem tanto, não o é; trata-se apenas do indicativo de uma ou-
que ser de um golpe só, porque do contrário não aguen- tra via de dentro da qual o homem pede a Nossa Senho-
to mesmo. O que equivale a dizer que, se for de sua von- ra:
tade, Ela me dará as graças. “Minha Mãe, sou fraco demais para enfrentar esses
Esse estado de alma é um pouco o da santa már- pavores. A simples perspectiva de suportá-los me faz tre-
tir que tinha disposição para ser comida por qualquer mer. Se quiserdes isso de mim, dai-me uma graça espe-
fera, exceto por um leopardo. E a Providência arran- cial, operai na minha alma com uma rapidez, uma subli-
jou um jeito de que não fosse um leopardo que a de- midade, uma eficácia especial, para que ela seja capaz
vorasse. daquilo de que eu, pelo simples jogo da graça ordinária,
não sou. E então, eu Vos peço enlevos, entusiasmos, fa-
O problema da cruz e a pequena via vores e auxílios, por onde, em determinado momento,
minha pobre alma se torne capaz.”
Esses são exemplos de uma debilidade de alma que Creio ser esta uma das diferenças mais frisantes en-
não se pode considerar propriamente como um defeito, tre a grande e a pequena via; esta última conta com au-

Sérgio Hollmann
Nossa Senhora toma a alma
débil e a carrega aos ombros
para fazê-la atravessar as
dificuldades mais tremendas.
De maneira tal que a alma
faz, com toda facilidade e
suavidade, coisas enormes
que nunca se imaginaria
capaz de realizar.

Nossa Senhora do Rosário -


Málaga, Espanha

18
xílios desses. Nossa Senhora toma a alma débil
e a carrega aos ombros para fazê-la atravessar

Francisco Lecaros
as dificuldades mais tremendas. De maneira tal
que a alma faz, com toda facilidade e suavida-
de, coisas enormes que nunca se imaginaria ca-
paz de realizar.
Ou, então, não faz essas coisas, porque são
afastadas de seu caminho. E a Santíssima Vir-
gem obtém para a pessoa auxílios a fim de reali-
zar as coisas pequenas, frágeis, comuns, com tan-
to amor que as engrandece por esta forma.
Eis como devemos considerar esse problema
da cruz na pequena via.

Muitos caminham, ora pela


grande via, ora pela pequena via
O Bem-aventurado Teóphane Vénard, leva-
do por uma grande graça no último momento
de sua vida, realizou um ato da grandeza de um
dos Macabeus, desses martírios mais terríveis.
Mas não o fez pela ascese inaciana, com pro-
pósitos, e prevendo ponto por ponto, mas meio
impelido por um vendaval da graça que o sus-
pendeu.
A mesma coisa se deu, depois, com Santa Te-
resinha, grande devota dele. Ela morreu com
um heroísmo que o herói da Chanson de Ro-
land poderia invejar, ou considerar que emu-
lou com ele. Mas ela chegou a isso pela peque-
na via.
Tudo quanto acima foi dito sobre a aceitação
do sofrimento deve ser profundamente admira-
do. Mas cada alma, conforme seu caminho, to-
ma em relação a isso alguma distância; e muitas
Jesus a caminho do Calvário - Igreja de
almas, em relação a alguns pontos, ora andarão
São Francisco, Baena (Espanha)
à grande via, ora à pequena via, de acordo com
o feitio de cada uma e o tipo de perfeição mo-
ral que Nossa Senhora quis suscitar. dos pelo Divino Espírito Santo, com o auxílio das graças
Quantas vezes, ao desvendar panoramas muito sérios obtidas por Nossa Senhora, seremos levados a praticar a
e grandiosos em matéria de vida espiritual, há almas que virtude de carregar a cruz, com aquela plenitude que São
podem se sentir alquebradas ou desanimadas e, ao mes- Luís Maria Grignion de Montfort deseja. Y
mo tempo, empolgadas. O que fazer diante de panora-
mas como esses? (Extraído de conferência
Devemos não só amar e admirar, mas conhecer e de 12/8/1967)
compreender esta outra via. Rezando bem, entendere-
mos como aplicá-la aos nossos próprios problemas, pa-
ra transpor — suavemente, no ritmo da nossa personali- 1) Carta Circular aos Amigos da Cruz, n. 19.
dade e sem nos alquebrarmos — obstáculos para os quais 2) Jean-Théophane Vénard, presbítero e mártir (*1829 -
de outra maneira não teríamos coragem. †1861). Beatificado por São Pio X e canonizado pelo Bea-
Por uma via ou por outra, portanto, seguimos a Nosso to João Paulo II.
Senhor Jesus Cristo com a cruz, e a levamos alto. E, guia- 3) Do francês: ingenuamente, inocentemente.

19
REEFLEXÕES
FL
LEXÕES TEOLÓGICAS

Nada é tão necessário,


útil, doce e glorioso! - I

Na Idade Média, uma


homilia sobre a Cruz e
os novíssimos do homem
comovia as pessoas, e
muitas vezes os pecadores
mudavam de vida.
Entretanto, a Revolução
instaurou nas almas
tal forma de dureza, de
frieza, que em nossos
dias os homens não se
interessam por esses
temas fundamentais.

C
Petrus Barbygeree

ontinuação dos comentários sobre a


“Carta-circular aos Amigos da Cruz”,
de autoria de São Luís Maria Grig-
nion de Montfort.1

Se Deus nos tratasse apenas com


justiça, mereceríamos o Inferno
[20] Crucem, a cruz; que ele a leve, pois
nada existe que seja tão necessário, tão útil,
O Paraíso - Livro de Horas do Duque de Berry, tão doce ou tão glorioso quanto sofrer algu-
Museu Condé, Chantilly (França) ma coisa por Jesus Cristo.

10
Então, necessário, útil, doce e glorioso; são quatro Somos filhos da misericórdia
proposições. São Luís Grignion vai começar por provar Alguém objetará: “Mas, Dr. Plinio, isso não está
como é necessário. em contradição com as palavras de São Paulo, antes
de morrer: ‘Combati o bom combate...’3?” A resposta é
a) Nada tão necessário — para os pecadores! muito simples: não está nem um pouco em contradição.
[21] Com efeito, queridos Amigos da Cruz, sois todos São Paulo não diz que ele conseguiu combater o bom
pecadores; não há um só dentre vós que não mereça o In- combate e fazer o percurso todo da pista por mera jus-
ferno, e eu mais que ninguém. É preciso que nossos peca- tiça de Deus. Ele faz tal afirmação, mas sem entrar na
dos sejam castigados neste mundo ou no outro; se o forem indagação. É claro que o conseguiu pela misericórdia.
neste, não o serão no outro. Se Deus não tivesse sido misericordioso, ele não conse-
guiria preencher as condições que lhe davam, em justi-
Essa afirmação de que todos nós mereceríamos o ça, o direito ao Céu. De maneira que o Paraíso é devi-
Inferno pode parecer uma demasia, uma coisa ma- do, em justiça, à alma que morre bem, mas é por causa
luca e, entretanto, não é. Ela se baseia na ideia de da misericórdia que a alma morre bem, de maneira que
que nenhum homem é capaz, por si mesmo, de cor- todos nós somos filhos da misericórdia, e com a mera
responder à graça de Deus, constantemente, duran- justiça nós nos perderíamos.
te a vida inteira. Não se trata aqui da possibilidade A esse propósito é preciso dizer — eu insisto um pou-
do homem agradar a Deus com a graça, mas quinho nesse ponto — que não é uma doutri-
é uma outra ideia: se a graça for dada ao ho- na muito esplanada, em geral. Creio que va-
mem parcimoniosamente, apenas a graça su- le a pena desenvolver esse assunto. A dou-
ficiente, ele faz dela um tão mal uso que aca- trina que não se ensinava, mas ao menos se
ba desmerecendo-a e, portanto, perde-a, e insinuava no meu tempo de aluno de colé-
por isso merece o Inferno. Nesse sentido, gio, era essa: Deus me dá a graça su-
só quem não teria merecido o Inferno se- ficiente. Eu correspondendo intei-
ria Nossa Senhora, porque Ela, em to- ramente à graça — o que está in-
dos os dias de sua vida, correspondeu teiramente em meu poder — obte-
de um modo perfeito às graças que nho, em justiça, mais graças. As-
Deus lhe dava. Então, isto coinci- sim, vou merecendo do Altíssi-
de com a metáfora apresentada mo promoção e mais promo-
por São Luís, segundo a qual to- ção, até o estado em que de-
do homem é como o sapo, a ser- verei ficar quando eu morrer.
pente, o porco2 . E aí eu me apresento peran-
Então, é coerente que ele ache te Deus com um sorriso, de
que todos os homens merece- igual a igual, e com um cheque
riam o Inferno se Deus os tra- na mão. Quer dizer: “Eu fiz, eu
tasse, não com misericórdia, mereci, agora cumpra sua palavra,
mas apenas com justiça. Essa honre sua promessa, porque reali-
noção é fundamental numa vi- zei o que era de minha parte.”
são contrarrevolucionária das Isso não é verdade. Eu sou fi-
coisas, como é fundamental na lho da misericórdia. Com a graça
própria doutrina católica. suficiente — que é suficiente mes-
Trata-se da compreensão da mo! — eu poderia corresponder bem;
maldade fundamental do ho- mas é certo que não vou corresponder, e
François-Boulay Gustavo Kralj

mem e, portanto, de como de- fico, portanto, em débito perante Deus. E


vemos viver de pé atrás em re- se não houver uma intervenção contínua
lação aos outros, e em relação da misericórdia, a restaurar aquilo que
a nós mesmos. E isso vale tam- usei mal, não vou para o Céu. E isso
bém para os santos. Por essa comanda as minhas orações com
razão, São Luís de Montfort o Criador. É um colorido que
diz que ele mesmo, se não fos- entra em todas as perspecti-
se a misericórdia de Deus, te- vas de minhas relações com
ria ido para o Inferno. Nossa Senhora liberta uma alma Deus. Estou continuamente
do Purgatório - Paróquia de Santa
Brígida, Montreal (Canadá)
11
REEFLEXÕES
FL
LEXÕES TEOLÓGICAS

precisando da misericórdia d’Ele. E é por isso que se ve- Criador. Não é um direito da obra de arte ser restaura-
em os maiores santos morrerem, recomendando-se à mi- da por Ele.
sericórdia do Altíssimo. Não é por um ato de humildade. E é por isso que Deus usa para conosco de um espírito
Quer dizer, se no fundo de minha cabeça eu penso conservador, na misericórdia. A misericórdia e o espírito
que vou me salvar por justiça mesmo — e me impondo à conservador são a mesma coisa. E o homem, querendo
justiça de Deus, mas, em última análise, vou ser humilde que tudo que existe e possa continuar a existir, continue
e direi ao Criador que tenha compaixão de mim —, estou a existir, é conservador; quer dizer, essa espécie de amor
errado. Deus precisa ter compaixão de mim para que eu a tudo quanto existe é uma perfeição, que no homem é
me salve, senão não me salvo. Ou seja, a salvação é uma análoga à perfeição de Deus enquanto misericordioso.
obra da misericórdia de Deus. De maneira que o verdadeiro misericordioso é conser-
vador; e o verdadeiro conservador é o homem de miseri-
Misericórdia e espírito conservador; córdia. Essas são noções conexas e que dão a ideia da mi-
o papel de Nossa Senhora sericórdia divina. É dessa misericórdia que eu vivo; não
vivo da justiça de Deus.
Alguém poderia perguntar: “Compreende-se que a Aí também se compreende melhor o papel de Nossa
justiça tenha fundamento em Deus, mas que fundamen- Senhora. Porque a misericórdia é um dom. Se é preciso
to tem no Criador a misericórdia?” ter esse dom, deve-se pedi-lo. Mas só poderei ser atendi-
Não sei se os presentes neste auditório se lembram de do por misericórdia. Como posso obter misericórdia se
uma conferência, na qual eu mostrava que a virtude da eu não pedir? A solução é rogar a Nossa Senhora, cuja
misericórdia e o espírito conservador são coisas cone- oração é perfeita e imaculada, que reze por mim. E, se
xas. Todo artista, por exemplo, gosta de conservar as suas Ela rezar por mim, poderei ter certeza de que serei aten-
obras de arte porque são reflexos dele; de maneira que, dido. Então, Nossa Senhora é a ponte entre Deus e os
se uma delas se estraga, ele por amor a si mesmo traba- homens; é o canal da misericórdia d’Ele; uma pessoa que
lhará para conservar essa obra de arte. Ora, cada um de o Altíssimo criou para que a misericórdia d’Ele se reali-
nós é uma obra de arte irrepetível de Deus. E Ele, por zasse de um modo esplêndido. Ela é Mãe de misericór-
amor ao plano que teve ao criar aquela obra de arte, con- dia.
descende em restaurá-la, e nisso está a misericórdia do
É melhor sermos castigados nesta
vida do que na outra
Philippe Gambete

Compreendemos, assim, como toda


a nossa vida espiritual é filha da mise-
ricórdia. E uma vida espiritual que fa-
ça abstração disso se torna insuporta-
velmente pesada, dura, fria. Se tiver-
mos apenas a ideia de um Deus jus-
to em relação a nós, é-nos impossí-
vel amá-Lo. Precisamos compreender
que Ele é um Deus misericordioso,
que condescende conosco, tem pena
de nós, perdoa as nossas faltas. É essa
ideia de Deus misericordioso, que São
Luís Grignion inculca e está subjacen-
te nesse trecho.
Então, diz ele que é melhor sermos
castigados nesta vida, do que na outra.
Portanto, as cruzes afastam de nós o In-
ferno.

Se Deus os castigar neste mundo de


concerto conosco, sua punição será amo-
Os Infernos - Museu de Belas Artes, Besançon (França) rosa. Quem há de castigar será a miseri-

12
córdia, que reina neste mundo, e não a justiça rigorosa; o eterna e infrutífera por outra passageira e meritória, carre-
castigo será leve e passageiro, acompanhado de atenuan- gando nossa cruz com paciência!
tes e de mérito, seguido de recompensas no tempo e na eter- Quantas dívidas temos a pagar! Quantos pecados te-
nidade. mos, para cuja expiação, mesmo após amarga contrição e
confissão sincera, será preciso que soframos no Purgató-
Quando formos julgados no fim do mundo, termina rio durante séculos inteiros, porque nos contentamos, neste
o reino da misericórdia e começa o da justiça. As pesso- mundo, de penitências leves demais!
as serão depois enviadas para o Inferno ou para o Céu,
de acordo com o veredictum final, que é da justiça. Ora, Então, ele passa a falar do Purgatório.
afirma São Luís, se nós formos castigados neste mundo
— ainda não é o reino da justiça, mas da misericórdia Ah! paguemos neste mundo, de forma amigável, levan-
—, então, virão mil cruzes, mas consentidas por nós, com do bem nossa cruz! Tudo deverá ser pago rigorosamente no
atenuantes, com mil provas de amor; enquanto que no outro, até o último ceitil, mesmo uma palavra ociosa7. Se
Inferno o tormento é eterno, que nem sequer merece o pudéssemos arrebatar ao demônio o livro de morte, onde
nome de cruz. anotou os nossos pecados todos e a pena que lhes corres-
ponde, que grande “debet”8 verificaríamos, e como nos sen-
[22] Mas, se o castigo necessário dos pecados que come- tiríamos encantados em sofrer durante anos inteiros neste
temos for reservado para o outro mundo, a punição cabe- mundo, para não sofrer um só dia no outro!
rá à justiça vingadora de Deus, que leva tudo a fogo e san-
gue! Castigo espantoso, horrendum, inefável, incompreen- Esse é um pensamento que a pessoa deve ter quan-
sível: quis novit potestatem iræ tuæ? — Quem conhece o do sofre. A maior parte dos homens, quando tem um so-
poder de tua cólera?4 Castigo sem misericórdia, judicium frimento, sofre inconformada; não se lembra do Infer-
sine misericórdia5, sem piedade, sem alívio, sem méritos, no, do Purgatório. Entretanto, a pessoa deve dizer: “Co-
sem limite e sem fim. mo me alegro de sofrer! Estou padecendo agora, mas es-
se sofrimento vai me tirar outro, mil vezes pior. Esse pa-
É o castigo do Inferno. decimento, por pior que seja, afinal de contas acaba. E o
sofrimento nesta Terra é menos ruim do que no Purgató-
“Sim, sem fim: esse pecado mortal rio, para não falar no Inferno.”
de um momento, que cometestes, esse Então, com espírito de Fé, com amor, devemos abra-
pensamento mau e voluntário, que es- çar esse pensamento, e cada vez que sofremos preci-
capou a vosso conhecimento6, essa pa- samos aceitar de bom grado esse sofrimento.
lavra que o vento levou, essa açãozinha
contra a Lei de Deus, que durou tão
pouco, serão punidos eternamente, en-
quanto Deus for Deus, com os demônio
no Inferno, sem que o Deus das vingan-
ças tenha piedade de vossos soluços e de
vossas lágrimas, capazes de fender as pe-
dras! Sofrer para sempre sem mérito,
sem misericórdia e sem fim!

Ele coloca esta antítese: os sofri-


mentos desta vida e os sofrimentos
do Inferno.
Zarateman

O Purgatório
[23] Será que pensamos nisso,
queridos irmãos e irmãs, quando so-
fremos alguma pena neste mundo?
Como somos felizes por podermos
trocar tão vantajosamente uma pena O Purgatório - Igreja de São Saturnino, Pamplona (Espanha)

13
REEFLEXÕES
FL
LEXÕES TEOLÓGICAS
Modorra do homem contemporâneo Ora, para quem tem Fé não é razoável que isso seja
diante dessas verdades assim. O que pode mover mais alguém a aceitar a cruz do
que isso? Entretanto, acaba sendo — e tenho impressão
A respeito disso, há uma coisa curiosa e que faz par- que os presentes neste auditório sentem isso na própria
te da crise religiosa do Ocidente. Quando um pregador pele — que isso não move as pessoas; parece que a fonte
dizia coisas dessas, na Idade Média, as pessoas se como- está seca, se estancou.
viam, os pecadores muitas vezes se arrependiam, muda- Vemos aqui o mistério da dureza que a Revolução fez
vam de vida. Eu não sei o que aconteceu, o que caiu so- cair sobre os homens. Porque essa atitude de alma do ho-
bre o gênero humano, mas essas verdades tão fundamen- mem contemporâneo é a mesma com relação à Paixão
tais — que todos nós deveríamos amar — encontram de Nosso Senhor Jesus Cristo, à meditação sobre o amor
uma espécie de modorra no homem contemporâneo, e misericordioso d’Ele, sobre a Sagrada Eucaristia. Por
mesmo nos homens piedosos. Enquanto que os santos exemplo, Deus está na Sagrada Eucaristia, continuamen-
meditavam essas verdades com delícias. te oferecendo reparações por nós, mas não há quase nin-
E eu tenho uma certa vergonha de desenvolver isso guém que vá adorá-Lo.
aqui, com a sensação de estar tratando de uma coisa tão Essas meditações dizem pouco às pessoas. Entretanto,
banal, tão sabida, que as pessoas se espantam ao ouvir isto é o melhor suco, o melhor leite da vida espiritual, a
o que estou dizendo. Entretanto, se formos analisar, o flor de trigo da piedade. São os pensamentos inspirados
proveito que tiramos para a nossa vida espiritual é muito por Nosso Senhor para nos salvar. Nossa Senhora ditou
bom. “Meditai em vossos novíssimos e não pecareis eter- a Santo Inácio, em Manresa, meditações a respeito des-
namente.”9 Os novíssimos do homem, as últimas coisas ses temas sobre os quais acabo de falar. Entretanto, qual-
que lhe sucederão, são quatro: a morte, o Juízo, o Céu e quer coisa secou.
o Inferno.
Não sei o que há, mas a meditação sobre a bem-aven- Cogitações ao passar em frente da
turança do Céu, a visão beatífica, com todos os mil enle- Igreja da Consolação, à noite
vos que deveriam decorrer daí, tudo isso acabou ficando
como fonte estancada; procura-se tirar dela alguma água Às vezes, por exemplo, quando estou voltando à noite
para a vida espiritual, porém as almas não se abeberam de um restaurante, o automóvel passa em frente da Igre-
nem se dessedentam com isso. ja da Consolação e a pequena distância das janelas da ca-
Entretanto, pensamentos às vezes menos importantes, pela do Santíssimo; ali dentro está o tabernáculo. E faço
menos nobres, produzem um efeito maior do que o cau- pequenos comentários: que maravilha deve estar se pas-
sado por tal meditação. sando dentro dessa capela!
É uma capela qualquer do San-
tíssimo Sacramento, à noite, no
auge da solidão. Pensar nas coi-
Sérgio Hollman

sas inenarráveis que Nosso Se-


nhor está dizendo para as outras
Pessoas da Santíssima Trindade!
Nos Anjos e nos Santos que es-
tão ali presentes, pelo menos pela
atenção e pelo espírito, adorando-
-O! E aquela lamparina vermelha
com a luzinha acesa; aquele silên-
cio próprio de capela do Santíssi-
mo, onde os menores estalidos se
ouvem, os ruídos da rua passam
cortando o ar, como se fossem
profanações, mas cessam também
e continua um longo silêncio gros-
so de abandono, de recolhimento,
de soledade — que coisa magnífi-
ca a soledade! É um silêncio assim
Pórtico do Juízo Final (detalhe) - Igreja de Notre-Dame, Paris (França) que impregna a capela.

14
Como eu gostaria de menos, uma jaculatória ao
poder abrir àquela hora da Santíssimo Sacramento.
noite a igreja, entrar sozi- Pior! Muitas daquelas
nho na capela do Santís- pessoas estão voltando do

François Boulay - Gustavo Kralj


simo Sacramento e ficar pecado, ou indo para o pe-
o resto da noite rezando cado; vão descansar para
lá. E o ideal é ir sozinho, pecar, ou descansar do pe-
sem mais ninguém, para cado. E no meio daquela
termos a sensação de que praça, com aquele trânsito
Nosso Senhor está ali só todo, está a Igreja da Con-
para nós, de que Ele não solação; então, o abando-
presta atenção em mais no de Nosso Senhor fica
ninguém, e de que pene- ainda mais pungente!
tramos, a bem dizer, no Por que isso ocorre?
Coração de Jesus. E ter ali Porque essas coisas aca-
uma imagem de Nossa Se- baram um tanto gastas.
nhora, diante da qual pos- Mas o gasto não está nelas
samos rezar. E até às pri- e sim em nós, porque elas
meiras claridades da auro- são insondáveis, eternas.
ra, ficarmos envoltos nes- Por que isto está gasto em
se mistério, nesse fluxo de nós? Que mistério houve
orações que há ali dentro. para que essas coisas su-
Isso é uma coisa verda- mamente tocantes tenham
deiramente celeste. Ain- deixado de tocar?
da que seja algo insensível, E é claro que este gasto
sabemos que é assim. é o resultado do pecado de
Alguém dirá: “Mas Dr. Revolução. Quer dizer, a
Plinio, que diferença faz Revolução instaurou na al-
noite e dia? O senhor pen- ma humana uma forma de
sa que Nosso Senhor ado- dureza, de frieza, que gas-
ra menos ao Padre Eter- tou essas coisas e fechou as
no durante o dia do que à almas para isso. Y
noite? E que nossos mise- Sacrário da Igreja do Sagrado Coração
ráveis barulhinhos terre- de Jesus - Montreal, Canadá
nos são capazes de perturbar a Ele?” (Continua no próximo número)
Certas coisas não se sofismam assim... Por exemplo,
São João Batista e Nosso Senhor iam para o deserto re- (Extraído de conferência de 26/8/1967)
zar. Deus está tão presente nos desertos quanto nas cida-
des. Mas há uma graça da solidão total no deserto, onde
se tem a impressão de que o Altíssimo, na solidão d’Ele, 1) Outros trechos comentados por Dr. Plinio encontram-se nos
se manifesta melhor ao homem que está só. E que o Cria- números 109, 112, 113, 114, 115, 116, 118, 122, 123, 127, 184,
dor abraça o homem, e o homem como que pode também 186 desta Revista.
abraçá-Lo melhor. E este é exatamente o deserto eucarís- 2) Cf. Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem, n.
tico, que é uma capela do Santíssimo Sacramento à noite. 79.
E se não fosse chamar a atenção, eu teria vontade de, 3) 2Tm 4, 7.
numa noite, mandar parar o automóvel bem junto à pa- 4) Sl 89, 11.
rede da capela do Santíssimo, e ficar adorando Nosso Se- 5) Tg, 2, 13.
nhor do lado de fora. São coisas tão verdadeiras e tão 6) Nota da edição de 1954: Isto é, que esquecestes por falta de
evidentes! exame.
Se prestarmos atenção nos automóveis que passam 7) Mt 12, 36.
por ali a toda velocidade, podemos perguntar qual é a 8) Do latim: dívida.
alma que se lembra de Deus e seja capaz de fazer, pelo 9) Eclo 7, 40.

15
REFLEXÕES TEOLÓGICAS
Paulo Mikio

Crucifixo da Catedral de
Setúbal, Portugal

Nada é tão necessário,


útil, doce e glorioso! - II
O demônio promete às pessoas o prazer na vida, se forem egoístas.
Entretanto, precisamente isso ele vai tirar, pois é o pai da mentira. Não
há coisa mais miserável do que a vida de quem é egoísta. Somente tem
verdadeiro gáudio quem vive do enlevo desinteressado.

N o Reino de Maria tudo vai ser diferente. De-


vemos considerar que, eliminado o pecado de
Revolução, no Reino de Maria as almas vão
começar a ser sensíveis para esses temas. Vão aparecer
de novo as pessoas que se via outrora, chorando ao fazer
a Via Sacra.

10
Relógio de São Rafael como esse. Entretanto, isso sumiu tão completamente que,
Eu ainda peguei isso no meu tempo de pequeno. De 50 anos depois, encontrado um deles, é mostrado com uma
vez em quando, eu ia à igreja e encontrava uma ou ou- curiosidade como quem mostraria um amuleto, tirado de
tra pessoa fazendo a Via Sacra; eram três ou quatro da dentro de um sarcófago de uma múmia egípcia.
tarde, que são as horas mais simpáticas. Eu via, então,
uma velha, uma mocinha, um menininho, rezando a Via Como era a Semana Santa
Sacra, calmamente, lentamente, meditando cada um da- nas primeiras décadas do século XX
queles passos. Como isso deveria falar para as almas!
Mas gastou... Lembro-me de que uma vez ou outra, quando era pe-
Lembro-me de que havia em minha casa uma co- queno, eu ainda ouvia as criadas, ou outras pessoas, fa-
zinheira de cor, a qual era reumática; uma vez eu vi o zerem interjeições dessas: “Pelo Sangue de Cristo, não
quarto dela e chamou-me a atenção encontrar um des- faça isso!”
ses despertadores comuns, chamado relógio de São Ra- E alguns antigos documentos pontifícios pediam que
fael, que era artigo muito barato. E no mostrador do re- Fulano ou Cicrano não fizesse tal coisa, “pelas entranhas
lógio, em cada hora, estava descrito, por meio de uma fi- de misericórdia de Nosso Senhor Jesus Cristo”. Havia um
gurinha, o que Nosso Senhor durante a Paixão havia so- vinho chamado Lacrima Christi, dulcíssimo como a lágri-
frido àquela hora. Era um relógio para doente, que fi- ma de Cristo, que era cheia de doçura e de mise-
cava à cabeceira de sua cama, e quando o enfermo co- ricórdia. E existe uma trepadeira Lacrima Chris-
meçava a achar longa a sua doença, que o tempo es- ti, cujas flores são brancas com uma pétala verme-
tava custando para passar, ou quando chegava a ho- lha, simbolizando o Sangue misturado numa lágri-
ra da dor pungente, da preocupação mais tremenda, ma cristalina e puríssima de Jesus Cristo.
ele olhava para o relógio e dizia, por exemplo: “Na ho- Na Semana Santa, os fiéis se aproximavam da
ra em que estou sofrendo isso, Jesus penetrava no pre- igreja com um senso sacral, um enlevo, uma ad-
tório de Pilatos”; ou, padecendo as constrições de uma miração, uma ternura enormes. As pessoas se
angina, pensava: “Jesus tinha seu Coração transpassa- vestiam de preto, não se fazia barulho, as crianças
do pela lança de Longinus.” não podiam falar alto,
E dessa forma o doente en- os motores não fun-
contrava uma distensão. cionavam, as chami-
Recordo-me, ainda, que nés das locomotivas
lhe perguntei: não apitavam. E uma
— Você olha para esse espécie de doçura de
relógio e reza conforme ele indica? dor pairava sobre toda a humanida-
Ela deu uma risada, com uma certa bonomia, de. Então se compreendia o que São Lu-
e disse: ís Grignion fala da suavidade do sofrer. Porque
— Se olho... o fato de Nosso Senhor estar presente nesse so-
Essa cozinheira negra era uma Amiga frimento proporcionava uma suavidade, uma
da Cruz! tranquilidade de alma, uma resignação, da
Tais relógios deixaram completa- qual o homem moderno já não tem nenhu-
mente de existir, e eu tive uma dor ma ideia, nenhum conhecimento. A cozi-
pungente quando, há anos atrás, al- nheira, há pouco citada, compreendia bem
guém dizia para todo mundo que isso. Mas infelizmente essas coisas passaram
nunca tinha visto um relógio assim, completamente.
era uma verdadeira curiosidade, e co- Entretanto, São Francisco de Assis quanto
mentou: “Olhem, como os antigos eram chorou aos pés de um Crucifixo, Santo Afonso
piedosos...” de Ligório quanto o osculou!
E a livraria do Coração de Jesus1 ven- Quantas almas, não maculadas pela Revolu-
dia esses relógios para as empregadas do ção, eram sensíveis para isso! Aí se compreende
bairro, no tempo em que eu era meni- um aspecto do pecado de Revolução, que é uma
Farragutful

no. Foi um lindo pensamento que ins-


pirou a elaboração de tais relógios; te-
nho certeza que nesta sala não haveria Jesus crucificado abraça São Francisco
um que não gostasse de ter um relógio de Assis - Maryland, EUA

11
REFLEXÕES TEOLÓGICAS

insensibilidade córnea, algo que se tem dificuldade de Assim, compreendemos também uma outra coisa: a
definir e explicitar; esse pecado faz com que, diante des- nossa famosa procura do absoluto como está ligada a is-
sas coisas, as almas simplesmente não liguem. so!
Alguém me dirá: “Dr. Plinio, o senhor está fazendo As almas picadas pela Revolução não se incomodam
uma grande confusão. Porque está falando de piedade com o absoluto. Mostramos-lhes a coisa mais sublime, e
sensível, e a sensibilidade com a piedade não tem relação se não tiver relação com uma vantagem prática delas, da
com a Revolução. Isto é uma concepção de Deus, que dá vida de todos os dias, elas não se incomodam.
o dom das lágrimas ou não. E, às vezes, há mais mérito São secas e frias para essas considerações; são almas
em não ter essa sensibilidade do que ter.” incapazes de se enlevar. Elas possuem umas fruições,
É bem verdade, mas não estou falando só da sensibilida- mas verdadeiro enlevo, que é o entusiasmo pela coisa en-
de; é de algo por onde esses raciocínios moviam as almas e quanto tal, e sem preocupação de gozo, essas almas não
hoje não movem mais. E diante de uma coisa que impres- têm. O egoísmo é tal que elas só são capazes de pensar
siona, as pessoas ficam simplesmente com a impressão. no seu próprio gozo. E não cogitam em mais nada. Por
isso também estão fechadas para a Paixão de Cristo.
Forma requintada de egoísmo Se quisermos ter a ideia de uma alma em diâmetro
oposto a isso, podemos, por exemplo, pegar aquela fo-
E exatamente um efeito do pecado de Revolução é tografia de Santa Teresinha do Menino Jesus menina.
uma espécie de dureza de alma, de frieza, de falta de ter- Cheia de enlevo, ela ama uma porção de coisas por não
nura e de capacidade de se enlevar, e ao qual correspon- serem ela mesma. E não por lhe darem vantagem, mas
de uma forma requintada de egoísmo. porque as coisas são como são. Aquelas famosas medita-
ções que Santa Teresinha fazia, nos Buisson-
nets, olhando para as estrelas, eram coisas que
ela amava não como um egoísta pode amar
Petrus Barbygere

porque gosta de olhar para estrela, mas por-


que a estrela é estrela. Entretanto, quão pou-
cas almas são assim!
É tremendo, mas aquilo que o demônio
promete é precisamente o que ele quer tirar.
Ele promete às almas que, se forem egoístas,
irão encontrar o prazer na vida. Não há coisa
mais miserável do que a vida da alma de quem
é egoísta. O único prazer da vida é ter uma al-
ma enlevável, enlevada e que vive do enlevo
desinteressado; o resto da vida não tem praze-
res. Mas quantos ignoram isso! E daí a secura
das almas para com as nossas considerações.
Se alguém, portanto, quiser ter uma noção
do que vai ser o Reino de Maria, deve imagi-
nar almas completamente diferentes das de
hoje; almas capazes de se tocarem desinteres-
sadamente por essas coisas, e de amar esses
temas por serem eles mesmos e não por qual-
quer outra razão. Afinal raia no mundo a au-
rora do desinteresse!

O verdadeiro escravo de Maria não


busca seu próprio interesse
Embora não claramente enunciado por São
Luís Grignion de Montfort — mas eu dizen-
do todos percebem —, por detrás do conceito
Jesus saindo do Pretório - Museu Condé, Chantilly (França) da sagrada escravidão à Santíssima Virgem es-

12
tá precisamente isso: o escravo é aquele que re-
nuncia a ter qualquer interesse. Ele só tem os
direitos mínimos do Direito Natural, os inalie-
náveis, e renuncia a suas vantagens, a seus pró-
prios interesses; e quase se diria que ele renun-
cia ao seu próprio eu. Porque o escravo de Ma-
ria compreende que essas coisas não são nada;
são puro egoísmo e trazem consigo a frustração
de todas as amarguras. E ele se funde em Nos-
sa Senhora, que é sua Senhora; torna-se escravo
d’Ela porque não quer fazer outra coisa senão
contemplá-La, admirá-La, e todo o prazer dele
está exatamente em que tudo na Terra seja con-
forme a Ela, viva e prospere independente dos
seus interesses.
Um perfeito escravo de Nossa Senhora seria
de tal maneira, que ele teria incomparavelmen-
te mais ventura em ser lixeiro no Reino de Ma-
ria, do que um duque na Inglaterra ou um mi-
lhardário nos Estados Unidos.
Mais ainda: um verdadeiro escravo de Nos-
sa Senhora, no Reino de Maria, gostaria mais
de ser o último, não ter nenhuma vantagem
pessoal, para contemplar desinteressadamente
aquele quadro do seu cantinho, do que ser um
ator do centro da cena. E são almas assim que o
Grand Retour2 deve suscitar. Almas nesse pon-
to escravizadas ao enlevo, ao ideal, e que já não
procuram mais nada para si. E que, afinal, en-
contram paz para suas almas.
Mas isso supõe graças muito especiais, ver-
dadeiramente de Grand Retour. Graças de uma
renúncia interna, que tanto dá no heroísmo dos
Macabeus, quanto no isolamento dos eremi-
tas, na pequena via de Santa Teresinha, quanto
em todas as formas de santidade, mas não nesse Dr. Plinio na década de 1980
egoísmo que a Revolução criou.
Aqui estaria uma meditação sobre um dos
aspectos mais fundamentais do que é a cruz.
O que é a cruz? É o conjunto de renúncias que se faz 1) Situada junto ao Santuário do Sagrado Coração de Jesus,
para ser assim. E, quando a pessoa realiza esse esplêndi- em São Paulo, bairro Campos Elíseos.
do negócio, percebe que de fato toma uma cruz sobre os 2) Do francês: grande retorno. No início da década de 1940,
ombros, mas entende ser bem verdade o que dizia o Cura houve na França extraordinário incremento do espírito
de Ars: “A vida dos que vivem segundo a cruz é como um religioso, quando das peregrinações de quatro imagens
manto de espinhos, forrado de arminho. E a existência de Nossa Senhora de Boulogne. Tal movimento espiritual
dos que vivem segundo o seu egoísmo é como um manto foi denominado de “grand retour”, para indicar o imenso
retorno daquele país a seu antigo e autêntico fervor, então
de arminho, forrado de espinhos.”
esmaecido. Ao tomar conhecimento desses fatos, Dr.
Quanta coisa excelente existe para a alma nesta vida Plinio começou a empregar a expressão “grand retour” no
de enlevo! Que miséria existe no contrário! Y sentido não só de “grande retorno”, mas de uma torrente
avassaladora de graças que, através da Virgem Santíssima,
(Extraído de conferência Deus concederá ao mundo para a implantação do Reino
de 26/8/1967) de Maria.

13

Você também pode gostar