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SANDPLAY

ESPELHO DA PSIQUE DE UMA CRIANÇA

UM LUGAR LIVRE E SEGURO


DORA M. KALLF

1
Primeira Impressão
©Copyright 1971 por Jack Stark Guthrie.
Todos os direitos reservados.

Do original em alemão "Sandspiel", Walter-Verlag AG, Olten & Freiburg,


Suíça.
Tradução para a inglês por Sra. Hilde Kirsch

Tradução para o português por David Gilbert Aubert


Revisão por Denise Ramos

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Desde a sua juventude, a música e filosofia oriental foram os principais
interesses de Dora M. Kalff, os quais ela estudou intensivamente. Durante seu
treinamento no Instituto C. G. Jung em Zurich, descobriu certos paralelos entre a
Psicologia Analítica e o pensamento oriental. Sob a orientação de C. G. Jung ela
se dedicou à psicoterapia de crianças, para a qual ela tinha muita aptidão, não apenas
devido às suas próprias experiências como também pelas suas qualidades
maternais de empatia. Na Inglaterra, travou conhecimento com a caixa de areia
de Lowenfeld e logo percebeu o grande potencial que oferecia no tratamento
psicológico de crianças. Ela clinica numa casa muito antiga e lindamente
reformada em Zollikon (Zurich) e aí encontrou, novas formas de cura psíquica. Suas
conferências e demonstrações nos Estadas Unidos, Japão e outros países fez com
que o seu método ficasse conhecido bem além das fronteiras da Suíça.

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À meus filhos
Martin Baudouin e Martin Michael

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ÍNDICE

Páginas

Prólogo 6

Capítulo 1. Caixa de Areia: Local Livre e Seguro 16

Capitulo 2. Christoph: Vencendo uma Neurose Ansiosa 28

Capítulo 3. Tom: Cura de uma Inibição Para Aprender 39

Capítulo 4. Gabriela: Separação de uma Avassaladora Fixação Materna 49

Capítulo 5. Christian: Cura de uma Enurese 55


Capítula 6. James: Perda de Instinto Devida à Identificação com uma 59
Mãe Extrovertida
Capítulo 7. Dede: Vencendo um Bloqueio de Fala 71
Capítulo 8. Marina: Os Antecedentes de uma Incapacidade de Ler de
79
uma Criança Adotiva
Capitulo 9 - Úrsula: Notas sobre a Restauração de um Ego
90
Demasiadamente Fraco - (Uma Moça de 23 anos)
Capitulo 10 - Eric: Uma Cura de Enrubescimento, que tinha um fundo
94
religioso - (Notas Sobre Um Jovem)
Epílogo 99

Bibliografia 100

5
PRÓLOGO

Para mim é uma grande honra ter sido convidado a escrever o prólogo do livro
mais importante da Sra. Dora Kalff. Gostaria de começar contando uma estória,
um conto de fadas. É uma estória bem adequada ao conteúdo do livro da autora,
pois fala da relação com o "fio da vida interior", a qual a Sra. Kalff como pessoa
como terapeuta e como escritora, exemplifica tão bem.

"Era uma vez uma princesa chamada Irene. Seu pai era um rei muito bondoso
que passava a maior parte do tempo entre o povo do seu reino, tentando fazer
todo o possível para ajudá-lo de todas as maneiras. A mãe de Irene faleceu
quando ela era muito pequena, de modo que não tinha nenhuma lembrança
dela.

Durante longos períodos, Irene vivia num castelo no campo uma vez que seu pai
frequentemente estava fora do castelo principal, tratando de assuntos de Estado.
Quando estava neste castelo, era cuidada por uma velha pajem e pela criadagem
que tomava conta da propriedade. O que o rei não sabia era que este castelo
estava construído numa montanha, sob a qual moravam duendes que eram
inimigos do rei. Eles tinham um plano de raptar a princesa e fazer com que ela
se casasse com o príncipe dos duendes.

Irene tinha um amigo, seu único amigo, que morava numa casa muito pobre não
muito distante do castelo. Seu nome era Curdie, trabalhava nas minas de carvão
e era filho de um mineiro. Logo adiante falaremos mais sobre Curdie.

O castelo no campo era muito amplo. Irene podia andar por onde bem
entendesse na parte da frente do castelo, mas recebera instruções de que nunca
deveria abrir uma certa porta, pois esta a levaria para partes posteriores do
castelo onde ela poderia se perder facilmente. Mas, é desnecessário dizer que,
como uma verdadeira heroína, um dia abriu a porta e começou a explorar os
inúmeros cômodos que encontrou. Após algumas horas ficou confusa, perdeu-se
no labirinto de escadas e cômodos e começou a chorar. No entanto, como era
uma verdadeira princesa, logo recobrou o controle e começou a procurar o
caminho de volta à parte principal do castelo.

Ela se defrontou com uma outra porta e a abriu. E, para sua grande surpresa,
viu uma mulher sentada no meio do quarto, fiando na roda de fiar. Irene ficou
absolutamente pasmada. E, ainda mais surpresa quando a mulher parando de
fiar, lhe disse: "Olá! Há quanto tempo lhe esperava."

Irene ainda muito surpresa, perguntou quem ela era e ai veio a maior de todas
as surpresas: “Sou sua avó". Isto foi um choque para a princesa. Primeiro
porque não sabia que tinha uma avó e em segundo lugar esta mulher era muito,
muito velha, mais velha do que qualquer avó poderia ser e era, ao mesmo tempo
tão jovem e tão bela como qualquer mulher poderia ser.

Irene chegou perto da avó e disse que nem sabia que tinha uma avó. A mulher
respondeu que todos tem uma avó - só que alguns sabem disso e outros não; era
apenas uma questão de olhar para o que acontecia.

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A princesa Irene ainda perto da avó, observou-a fiando. Ela olhava para o fio,
mas este era tão fino que não podia ser visto. Perguntou à avó o que estava
fazendo e a avó respondeu que estava tecendo um presente especial, só para ela
e que logo ficaria pronto, mas ainda não era tempo. Disse então à neta que era
melhor ir embora, mas que voltasse dentro de alguns dias. Disse também que
conviria manter a visita em segredo.

Irene deixou sua avó e voltou para a ala principal do castelo. Foi severamente
repreendida pela velha ama pelo fato de ter sumido tanto tempo, mas ela
manteve o segredo e nada falou sobre suas explorações.

Nas semanas seguintes, a princesa visitou frequentemente sua avó. Ela adorava
sentar ao lado da avó e observando-a fiar o fio invisível, falar com ela. Certo dia
conversando com seu amigo Curdie, disse que desejava partilhar algo muito
especial com ele. Contou-lhe então sobre sua avó e levou-o para conhecê-la.
Quando entraram no quarto, ela apresentou Curdie à sua avó e sua avó à
Curdie.

Curdie estava de pé, olhando à sua volta, com o olhar meio vago e obviamente
foi ficando cada vez mais zangado. Finalmente tirou o chapéu de mineiro, jogou-
o no chão e gritou que não estava achando graça nenhuma! Com isto saiu do
quarto furioso com Irene, pela peça que ela havia lhe pregado.

Irene ficou inconsolável e começou a soluçar. Curdie não podia ver sua avó. Ela
estava invisível para ele. Depois que a princesa se recompôs, a avó disse à ela
que nem todos podiam vê-la e que Irene não deveria apressar as pessoas que
ainda não tivessem essa capacidade. No devido tempo, dizia, Curdie seria capaz
de vê-la, pois este era seu destino. Aí a avó disse para Irene voltar na noite
seguinte pois seu presente especial estaria pronto, até então ela teria terminado
de fiar.

Irene estava muito ansiosa e mal podia conter sua excitação até a noite seguinte.
E quando finalmente chegou, Irene foi para o quarto da avó nesta noite tão
especial. A avó a despiu, banhou-a em água especial, vestiu-a com um vestido
também especial e Irene estava pronta para o presente.

A avó então, pegou a bola de fio na qual tinha estado trabalhando durante tanto
tempo e colocou-a na sua gaveta. Depois, delicadamente pegou a ponta do fio da
bola e estendeu-o para Irene.

Você pode imaginar a surpresa - e o desapontamento - da jovem princesa


quando ela percebeu que nem podia ver o fio. A avó não ficou nem um pouco
surpresa quando ela percebeu a frustração de Irene. Disse-lhe que era verdade:
não poderia ver o fio, era realmente invisível; no entanto poderia senti-lo,
somente senti-lo.

Irene então expressou seu segundo desapontamento. Queria saber que tipo de
presente era aquele que tinha que ficar na gaveta da avó. Já era mim que o fio
era invisível, mas não fazia sentido algum receber um presente que não poderia
ter para si.

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A avó lhe respondeu que não seria um presente se a bola de fio ficasse em outro
local que não com ela. Disse à Irene que ela deveria pegar esta ponta do fio e
carregar com ela por toda parte. Ai quando estivesse em dificuldades ou
necessidades, tudo que tinha que fazer era voltar à origem e isto lhe permitiria
encontrar uma saída para o perigo.

Irene ficou surpresa com tudo isto: um presente que era invisível, não podia se
ver mas somente sentir, um presente que deveria ser guardado no quarto da avó
e que ela ficava apenas com a ponta dele. Estava desorientada, no entanto sabia
que recebera algo muito importante. Você pode ter certeza que quando Irene se
percebeu em apuros, o presente da avó foi então muito valorizado. Era algo que
Irene tinha aprendido a compreender.

No entanto, nesta altura da narrativa vamos deixar as aventuras da princesa


Irene e sua avó e você pode lê-las no lindo conto de George McDonald, intitulado
"A princesa e os duendes". Como disse no primeiro parágrafo, queria usar o
início do conto para apresentar o livro mais importante da Sra. Kalff, porque ele
se encaixa tão bem aos assuntos aqui contidos e, de uma maneira especial à
autora em si. No entanto, deixe-me primeiro lidar com alguns itens
contemporâneos, de modo que possamos ver o trabalho da Sra. Kalff em
perspectiva.

Vivemos numa época revolucionária, uma revolução do inconsciente, que está


destruído formas antigas e frequentemente, não há nada com que substituir o
antigo a não ser uma caótica energia. Estamos colhendo os frutos de séculos de
repressão do inconsciente. O homem ocidental destruiu há muito tempo os seus
Deuses e os substituiu pelo Deus da Razão e Racionalidade. A imaginação foi
perdida. As emoções foram negadas. Os sonhos se tornaram uma linguagem
perdida. Os demônios foram banidos. O Mal foi considerado como elucubrações
metafísicas da Idade Média. Todos nós somos tanto as vitimas como os
causadores deste tipo de insanidade e atualmente estamos todos arcando com
as consequências. O inconsciente está em revolta contra seu opressor, ou seja, a
consciência racional, como ela tem sido conhecida ao longo dos últimos séculos.

Há alguns anos atrás, trabalhei com uma mulher que sofria de violenta
enxaqueca. Trabalhamos com muitos problemas e áreas de conflito, mas as
enxaquecas continuavam, até o aparecimento de um sonho. As enxaquecas não
desapareceram devido ao sonho, mas uma alteração estava ocorrendo no
inconsciente que a levou ao sonho e ao aparecimento do sintoma. Esta é uma
visão não causal, uma visão que C. G. Jung chamou de sincrônica.

No seu sonho, a paciente estava limpando o seu armário de remédios, jogando


fora os vidros velhos. Aí ela encontrou duas garrafinhas muito velhas que ela
tirou e contemplou. Para sua surpresa, cada garrafinha continha uma pequena
cobra e uma etiqueta com o número "1385", significando o ano em que a cobra
havia sido engarrafada. Ela sabia que tinha que soltar as cobras, apesar do
medo que sentia. Ela saiu e abriu uma das garrafas e a cobra saiu e entrou
numa vala. Daí a pouco, a cobra voltou; tinha crescido, tinha prolongamentos no
corpo e mergulhou na natureza.

Sintomaticamente a enxaqueca da paciente desapareceu. E, em termos de


comportamento, liberou-se uma expressão de emoção que anteriormente estava
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contida. A questão para nós é o ano do engarrafamento. O ano de 1385 é
realmente o início de todo o desenvolvimento do humanismo cientifico. Saindo
da Idade Média, quando as pessoas estavam imersas no inconsciente, na magia,
na superstição e no medo centrados em torno da Igreja Católica, o humanismo
científico foi como uma lufada de ar fresco. Prometia conhecimento e a liberação
do homem das fantasias medievais. O problema é que foi longe demais. O
desenvolvimento da mente, do conhecimento, de uma abordagem científica da
vida e de seus problemas foi feito às custas do engarrafamento e da contenção
da cobra e seus numerosos significados simbólicos. A cobra expressa emoção
primitiva. Expressa sexualidade. Expressa todo o reino da imaginação que foi
condenado a uma posição crescentemente inferior, na medida em que
entrávamos cada vez mais na era científica.

Para esta paciente, a soltura da cobra não era apenas um problema pessoal. É
um problema histórico que envolve cada um de nós, pois todos nós nascemos
com dois históricos: um pessoal, familiar e um impessoal, coletivo.

Resumindo, o humanismo tirou a humanidade da Idade Média. Trouxe-nos um


novo tipo de relacionamento com o nosso próximo, mas também iniciou um
movimento da mente voltada para fora do inconsciente. Este movimento de
separação entre consciente e inconsciente tem continuado até recentemente;
mas hoje, no inicio dos anos setenta vemos que a curva está mudando e está
ocorrendo um movimento que espero que traga o consciente e o inconsciente
para um relacionamento suficientemente íntimo nas próximas gerações, de
modo que uma ponte possa ser lançada entre eles. Certamente, este é um
desafio para cada um de nós.

Energias estão fluindo e saindo de nós de muitas maneiras diferentes. Vemos


isto em guerras, em distúrbios no confronto entre brancos e negros. Vemos
pessoas, jovens, engolindo comprimidos de modo que possam "sentir" coisas, ter
visões. Encontramos psicólogos tentando encontrar novas maneiras de trabalhar
com energia. Grupos de encontro e grupos de treinamento de sensibilidade são
maneiras de tentar ajudar as pessoas a atingirem seus sentimentos e emoções
reprimidas, embora, frequentemente, exista um total desconhecimento que estão
lidando com o inconsciente ao fazerem estes trabalhos.

Existem os tradicionais sistemas psicoterapêuticos que se preocupam com os


aspectos gerais da cura. Aqui vemos que está ocorrendo uma notável mudança
de ênfase. O início da psiquiatria foi marcado por uma preocupação pelos
sintomas e a sua remoção. O que tem se desenvolvido cada vez mais nos últimos
anos é uma perspectiva evolucionária sobre estes mesmos problemas. Estas
abordagens voltadas para o crescimento estão preocupadas com o
desenvolvimento geral da personalidade. Os sintomas são expressões de um
modo de vida que está de alguma maneira errado: está demasiadamente
comprimido; existe um bloqueio a certos sistemas de energia. Considera-se que
a personalidade contém, em si, a capacidade de crescimento e cura que tem que
ser libertada para que possa crescer e evoluir.

É claro que a psicologia profunda sempre esposou a causa da função curadora


da psique. O trabalho de C. G. Jung atraiu a imaginação de muitos profissionais
porque falou da separação entre o homem moderno e sua alma. Falou da
necessidade do homem moderno se ligar com o espírito interno a fim de
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novamente trazer um sentido às nossas vidas e colocar um fim à terrível
correria.da vida moderna. Hoje existem muitos que falam disto. Não se pode
mais falar em escolas de psicologia como se uma fosse a dona da verdade e o
outra não. Existem psicoterapeutas criativos que são abertos tanto.à vida
interior como à exterior e existem alguns que não o são. A Sra. Kalff é uma
destas psicoterapeutas criativas, uma analista junguiana por treinamento, um
espírito livre dentro da vida e, neste livro, expressa sua maneira individual de
lidar com o desenvolvimento da personalidade, pois sua abordagem vai além da
questão de tomar pessoas doentes em pessoas sãs.

A Sra. Kalff nos traz uma maneira de materializar, em forma de símbolos, a


energia do inconsciente, através da caixa de areia. Esta evolução criativa de
expressão simbólica, é estimulada, a evoluir na criança ou no adulto da maneira
mais livre e desimpedida possível. O efeito é saudável no sentido tradicional e o
que é ainda mais importante, leva a uma ligação mais profunda ao centro,
dentro do qual está a fonte do espírito humano.

A caixa de areia não é um instrumento de magia. É uma ferramenta


extremamente eficiente para atingir a imaginação e permitir que ela se torne
criativa. Mas é mais do que apenas uma ferramenta. È também uma expressão
da terapeuta, como personalidade criativa, que se relaciona com os pacientes.
tanto pessoal como simbolicamente num nível extremamente profundo. A
evolução simbólica que se observa nos casos descritos não ocorre somente
dentro da caixa de areia e na sala de terapia. Ocorre na presença da Sra. Kalff,
que fornece um "temenos", um receptáculo, no qual as mais profundas emoções
e expressões de fantasia tem uma chance de se manifestar e de serem recebidas,
consideradas e compreendidas. O inconsciente conhece um amigo e a Sra. Kalff
é uma amiga do inconsciente, assim como do próprio paciente.

A grande necessidade da nossa época é que as pessoas se liguem ao espírito;


que as pessoas se liguem a um cerne de sentimento que possuem dentro de si,
que torna suas vidas plenas e cheias de sentido, que torna a vida um mistério
que estará sempre sendo descoberto. Os nossos sonhos nos ajudam a nos
conectar a este mistério. Para muitas pessoas, a meditação fornece um acesso às
profundezas do nosso ser interior. A caixa de areia nos fornece um acesso à este
cerne de sentimentos interiores e permite o acionamento de um processo que
tem como resultado esperado, uma ligação ao fio invisível da princesa Irene. O
fio não pode ser visto, só pode ser sentido. O mesmo ocorre com o fio intangível
do espírito humano. Não pode ser visto, somente sentido.

Mas como é que podemos senti-lo nesses dias de atividade constante, tráfego
barulhento, ruídos, poluição, agitação e violência? Devemos desenvolver
maneiras de nos ajudar e, se somos terapeutas, ajudar o paciente a ligar o seu
ego consciente ao seu centro de sentimentos profundos, o centro eterno do
espírito, que sempre tem sido o cerne e o sustentáculo do homem. O fio invisível
do espírito está enraizado num centro espiritual; o que Jung chamou de Self ou
a psique objetiva, o que Maslow chamou de base biológica da psique. É a ligação
à este centro que é o grande presente da avó de Irene.

Quanto a ajudar as pessoas a atingirem este centro por meios comuns, a cultura
ocidental tomou-se algo danoso. A instituição escolar também tomou-se um
tanto danosa e, somente agora estamos vendo os primeiros sinais de mudança
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no horizonte. A educação tomou-se o instrumento que tem perpetuado a
destruição do espírito humano. A nossa meta tem sido fazer crianças se
"amoldarem" o mais rapidamente possível, precisam pensar e aprender o mais
rapidamente possível, assim como competir com seus colegas com notas e
prêmios - tudo o que efetivamente destrói o desenvolvimento de um desejo
intrínseco de aprender.

Destruímos dentro de nós mesmos a capacidade de brincar, de se divertir. Não é


por acaso que a nova ética entre jovens da atualidade tem relação com o "ser' e
com o "brincar", ao invés de "fazer". Pelo fato de termos pensado demais,
esquecemos como é que se brinca; espeçialmente como permitir o jogo da
imaginação e da fantasia. Perdemos a nossa ligação com os contos, as fábulas e
os mitos, pois esta é uma outra forma de brincarmos com a nossa imaginação.
Brincar é um apetite muito fundamental e necessário em crianças e adultos. A
ligação com o brinquedo é a ligação com a fantasia e é essencial que o brinquedo
e a fantasia tenham uma chance de operarem em nossas vidas, pois são
caminhos centrais pelos quais o ego se contata e permanece em contato, com a
profunda reserva de imaginação que chamamos de Self.

Um dos motivos pelo qual a caixa de areia é ferramenta tão eficiente, é que nos
proporciona a chance de brincar. Para muitos adultos, é primeira vez que
lembram ter a oportunidade de brincar. É triste ver um jovem de 10 anos e
perceber que a única oportunidade que ele tem durante a semana, de brincar é
quando está na caixa de areia na sua hora de terapia.

Não valorizamos a imaginação, o que chega a ser estranho quando consideramos


o tempo que usamos em atividades fantasiosas. Obviamente, são atividades
fantasiosas inadequadas - devaneios que ocupam grandes porções de tempo e
geralmente não são criativos. Continuamos a negar a imaginação e a emoção;
pelo fato de não permitirmos que estas propensões humanas fundamentais
vivam dentro de nós, elas se tomam reprimidas. Ao se tomarem reprimidas,
tomam-se aumentadas e crescentemente negativas. Acredito que este seja o
motivo porque atualmente, ocorrem tantos sonhos de "monstros" nas crianças.
O inconsciente opera dentro de nós como uma personalidade com quem
possamos estar morando. Se ignoramos essa outra pessoa, ela se "azeda" e se
volta contra nós. O mesmo ocorre com o inconsciente. Se o ignoramos, ele se
"azeda" e se volta contra nós.

Nos sonhos de crianças, frequentemente vemos leões ou animais selvagens que


estão atacando a criança. Estes sonhos geralmente ocorrem em estados de
vigília antes do adormecer. A nossa maneira tradicional de lidar com estes
sonhos e fantasias é de garantir à criança de que nada existe realmente ali.
Acendemos as luzes e mostramos à ela a "realidade" para provar que não há
nenhum leão sob a cama ou no armário. O terrível disso tudo é que a criança
logo se convence de que não há nada ali. É, então, "apenas" um sonho ou
"apenas" a sua imaginação. Este é uma típica de insanidade esquizofrênica que é
parte da nossa criação, Eu emprego o termo insanidade esquizofrênica porque é
assim que perpetuamos a divisão entre consciente e inconsciente.

O que é realidade? Há pouco tempo atrás, no deserto ao sul da Califórnia, um


homem parou o seu carro, saiu dele correndo e gritando que os comunistas
estavam chegando. Correu para o deserto, vindo a morrer. Foi "apenas" a sua
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imaginação, mas devida à ela, chegou a morrer. Temos medo da bomba de
hidrogênio? E altamente improvável que uma chegue a disparar sozinha. A
única coisa que temos a temer é "apenas" a imaginação e fantasias das pessoas
que tem acesso à estas armas.

Os leões ou monstros dos sonhos de nossas crianças são reais! É um tipo


diferente de realidade daquela que conhecemos, mas temos que nos acostumar
com esta realidade. Não existe nenhuma maneira "certa" de trabalhar com estes
sonhos e fantasias. O que podemos dizer, de maneira definitiva, é que devem ser
considerados seriamente pelo adulto. Isto por si só já irá provocar uma
mudança. Existem também algumas técnicas que se pode usar. Pode-se fazer
com que a criança desenhe um leão. Se a figura não for muito assustadora, no
dia seguinte pode-se pedir que a criança visualize o leão e o descreva. A criança
pode modelar a imagem em barro ou contar uma estória. Todas estas ideias são
maneiras de considerar a imagem com seriedade e o que iremos fazer, depende
da idade da criança e onde nos situamos como pais.

O inconsciente é uma expressão que descreve energia, isto é algo que devemos
perceber. Esta energia é expressada de duas maneiras: uma é pela emoção e a
outra por pensamento e imagem. Uma criança deve entrar em contato com suas
emoções naturais, caso contrário não será capaz de viver e competir com seus
iguais. No entanto. a nossa cultura tem embotado as nossas emoções,
recompensando as pessoas que são "boazinhas" ou melhor, "bem comportadas".
Indubitavelmente isto tem a ver com uma série de fatores, entre os quais
podemos mencionar o sistema de algumas ideias que chamaremos de ética
cristã. Esta ética começou com a deificação de Cristo e a queda (expulsão) do
céu do Arcanjo Satanás. De fato, a sua queda do céu lançou-o profundamente
no inconsciente do homem ocidental onde tem vivido de uma maneira simbólica,
carregando as emoções e paixões, que gradualmente se esvaziavam da sua
contrapartida no céu.

O que estou dizendo aqui é que a imagem de Deus, expressada por Jesus,
tomou-se demasiadamente branca e luminosa; pois sem o elemento satânico,
não temos nenhuma ligação com nossos corpos, nossas emoções ou nossas
paixões. Não é por acaso que atualmente observa-se o impressionante fenômeno
de grupos de bruxos, satanismo e rituais de magia negra. São as expressões do
lado escuro de um deus, cuja imagem tomou-se por demais luminosa.

Defrontamo-nos com uma situação que é comparável, em muitos aspectos, com


o surgimento do deus Dionísio (Baco em Roma) na antiga Grécia. Como
desenvolvimento mitológico, ele veio essencialmente como invasor proveniente do
norte, entrando no panteão grego numa data relativamente tardia. Vinha
compensar o deus Apolo que era demasiadamente luminoso, estruturado e
manso. Naturalmente, uma imagem de um deus mais passional tinha que
acabar entrando.

Assim é que hoje testemunhamos a nossa volta um ressurgimento da energia


dionisíaca com toda a sua força e fúria, frenesi e paixão, e energia vital. Como
pessoas, o nosso maior desafio é encontrar um receptáculo para esta energia de
modo que possamos encontrar um equilíbrio harmonioso entre as nossas
estruturas e experiências. Caracteristicamente, a caixa de areia leva a um
equilíbrio entre o aspecto estrutural e o aspecto das experiências.
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O método da Sra. Kalff com a caixa de areia tem duas partes: a primeira
orientação é a de fazer o cenário e a seguir, pede-se que o paciente conte uma
estória. Estes dois atos são extremamente importantes. A criação da imagem em
si é essencialmente um ato introvertido e já ouvi a Sra. Kalff dizer que este é um
tipo de meditação ocidental. Embora muitos ocidentais sintam-se atraídos por
estes sistemas, é minha opinião que a meditação no Ocidente irá lidar cada vez
mais com imagens. A caixa de areia é uma expressão disto. Outras expressões
são o que Jung chama de imaginação ativa; o que o pessoal da psicossíntese
chama de visualização simbólica; o que os gestaltistas chamam de visão
orientada; o que Ira Progoff chama de imagens crepusculares. O fato de se
contar uma estória é o tecer de um conto. A maioria do jovens gosta de contar
uma estória. Embora, como destaca claramente a Sra. Kalff nos seus
ensinamentos, isto nunca deve ser forçado.

Assim, vemos que brincar na caixa de areia é justamente o que o nome diz. É
brincar com areia, brincar no sentido crítico de liberdade e experimentação
imaginativa, diversão, medo e tudo mais que faz parte da imaginação. Pois a
imaginação contém tudo que é positivo e o bem mais elevado; e tudo que é
negativo e o mal mais profundo.

Mas existe uma importante limitação ligada a esta liberdade de fantasia. A caixa
tem uma dimensão específica. Essencialmente, esta dimensão permite que o
espectador a veja sem ter que virar a cabeça de um lado para o outro. Esta
dimensão da caixa é um fator bastante critico, porque significa que a liberdade
total da fantasia, que está a disposição da criança, tem uma limitação embutida;
ou seja, o tamanho da caixa. Tem que ser um recipiente, um "temenos" e o
simples fato de que o "temenos" está aí é que destaca a liberdade da criança.

Vivemos numa era em que o assunto de limites é bastante critico. Como


mencionei, estamos assistindo agora ao surgimento do inconsciente como um
potente sistema de energia. Quando ocorre este tipo de surgimento e quando se
experimenta este tipo de energia dionisíaca, após um momento de vida que
parece estéril, existe então uma tendência a se "superidentificar" com esses
impulsos dionisíacos. É claro que esta tendência à "super-reação" é mais
fortemente sentida nas figuras dos pais (ou substitutos, ou "establishment") que
estão demasiadamente fixados no lado "bom" da imagem e/ou da estrutura e/ou
não-emotividade.

Nos nossos tempos, isto leva as pessoas a sentirem que devem expressar tudo
que está contido nelas, como se a resposta aos males da sociedade fosse uma
enorme catarse. Individualmente, não há nenhuma dúvida que temos
necessidade de nos soltar, pois temos realmente sofrido uma severa repressão
das nossas emoções. No entanto, a nossa necessidade de expressão deve ser
equilibrada por um senso de responsabilidade para com o nosso próximo; caso
contrário, aquela fugaz liberdade que estamos procurando ao nos expressarmos
estará perdida. Se temos que nos soltar com base na ideia que isto é a coisa
correta a se fazer, então já não há mais liberdade, mas sim um novo dogma.

Uma das fantasias da nova ética de confronto, na psicologia moderna, é que é


sempre bom "confrontar" alguém - realmente "soltar os cachorros em cima!". Isto
é justamente o que acabei de chamar, uma fantasia. Isto pode levar a uma
comunicação humana positiva e criativa ou pode liberar conteúdos demoníacos
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do inconsciente, da maneira mais destrutiva e danosa possível. Este é o motivo
porque as emoções são tão frequentemente reprimidas. Estes conteúdos
estiveram soterrados durante séculos e, talvez, eles precisem ser transformados
antes para que a pessoa possa liberá-los. A caixa de areia é uma maneira de se
obter esta transformação de energia.

A caixa de areia se originou com Margaret Lowenfeld, na Inglaterra. Foi


difundida nos Estados Unidos por Charlotte Bühler, que usou-a como agente
diagnóstico e preparou-a como um kit que os terapeutas pudessem comprar. Foi
então absorvida pela Sra. Kalff, cujas longas viagens fizeram com que as pessoas
trabalhassem com esse método em várias partes do mundo.

Por que os terapeutas adotaram este método? Penso que o motivo é semelhante
ao fenômeno que se experimenta quando observamos alguma atividade ritual.
Os espectadores de um verdadeiro ritual, realmente se tornam participantes,
sentimentos profundos são tocados e existe um sentido de identidade com o
grupo. O terapeuta que observa as retratações simbólicas e as fantasias verbais
que ocorrem na caixa de areia, se envolve num ritual de significado profundo.
Somos afetados por estas retratações simbólicas e a nossa própria vida
simbólica é ativada. Um verdadeiro símbolo é sempre experimentado pelo
paciente e pelo terapeuta, a não ser que o terapeuta insista em reduzir o símbolo
a um sistema puramente causal, retirando assim todo o "sumo" dele. O interesse
pela caixa de areia tem se difundido, não somente pelo fato de ser uma eficaz
ferramenta no processo de cura, mas também pelo terapeuta ficar tão
profundamente tocado pela experiência.

Lembro da primeira vez que vi os slides da Sra. Kalff. Isto foi há muitos anos
atrás e eu já tinha começado a trabalhar com crianças na caixa de areia,
usando-a, no entanto, de uma maneira interpretativa, montando cenários,
fazendo sugestões. Quando o trabalho da Sra. Kalff pela primeira vez e quando
vi a evolução das imagens numa determinada criança, senti que finalmente
tinha chegado em casa. Aqui estava algo que deixava ocorrer o desenvolvimento,
que se relacionava com a criança com o mais profundo calor e conexão, mas que
permitisse que a vida simbólica tivesse vida própria. Até mesmo através dos
slides, a pessoa se envolve com o desenvolvimento destes símbolos - quanto
mais se tiver o privilégio de observar este desenvolvimento, na própria sala de
terapia.

Devo admitir a vocês, terapeutas, que o uso da caixa de areia é uma doença cara
de contrair. Uma vez que você começar a fazer caixas de areia montar prateleiras
e, de uma modo especial, começar a comprar miniaturas, você ficará
irremediavelmente envolvido nas alegrias da criança lúdica (e, para o seu próprio
bem, espero que não uma criança compulsiva) que quer cada vez mais
brinquedos, aparentemente para que os pacientes os tenham à disposição.

Quero novamente enfatizar que o uso da caixa de areia não é um método de


terapia em si. É uma ferramenta nas mãos do artista. É um método usado em
terapia para materializar conteúdos da imaginação. O que irá ocorrer com a
criança dependerá essencialmente do artista-terapeuta, quem ele é e o que ele é.
Não é um substituto para um conjunto de decisões e interferências que se tem
que lidar nos problemas de orientação de crianças. Fornece-nos uma ferramenta
que não só facilita a terapia, mas também nos dá uma maneira de estudar o
14
próprio processo de cura e crescimento. Um médico pode estudar uma doença
usando numerosos indicadores que determinam o que está ocorrendo com o
paciente. Pode tomar a temperatura, fazer a contagem de glóbulos brancos e
vermelhos, analisar a urina e muitas outras variáveis. No estudo dos processos
do inconsciente, a nossa tarefa é muito mais difícil e o uso da caixa de areia é
uma excelente maneira de observar e estudar os esses processos.

Este livro representa um marco no surgimento de uma terapia criativa. Quer


para o terapeuta profissional como para a pessoa interessada, este livro promete
ser um trabalho informativo e envolvente que não pode deixar de atingir
profundamente a alma do leitor.

Como a avó no nosso conto de fadas, a Sra. Kalff com sua caixa de areia, nos
trouxe a refrescante fragrância do mistério da vida. Numa época em que se
supõe que a ciência resolve todos os mistérios, ela novamente torna a vida um
eterno mistério e o presente a cada um de nós é a bola de fio invisível que não
podemos ver, mas apenas sentir. O centro da bola habita, em cada um de nós,
naquele cerne profundo, produtor de imagens dentro do nosso ser, que tão
vigorosamente nos pede para ajudá-lo a se descobrir e desenvolver.

Los Angeles, Califórnia 1970


Harold Stone. Ph.D.
Presidente do Instituto C. G. Jung de Los Angeles, Califórnia.

15
Capítulo 1 - Caixa de Areia: Local Livre e Seguro

Ao longo do meu trabalho com crianças e adolescentes, observei que há na


infância certas analogias com a dinâmica do processo de individuação nos
adultos, conforme descritos pelo Dr. Carl Gustav Jung. Neste livro, irei esboçar
estas descobertas como histórias estanques de desenvolvimento, do modo que
ocorreram na minha sala de brincar. A fim de tornar estas histórias
compreensíveis, são necessárias algumas explicações do meu ponto de vista
básico.

O homem nasce com a totalidade de sua disposição potencial já existente. Esta


totalidade é então primeiramente nutrida dentro do Self materno durante o
primeiro ano de vida. Todas as necessidades do recém-nascido que exigem a
participação da mãe, tal como saciar a fome, proteção contra o frio, etc., são
cumpridas pela mãe física. Erich Neumann chamou esta fase de unidade mãe-
filho, na qual a criança sente uma segurança natural através do amor e atenção
maternais. Após o primeiro ano de vida, o Self da criança, isto é, o centro de sua
totalidade, se separa daquela mãe. No segundo ano, a criança, que agora está se
separando da unidade original, experimenta cada vez mais um relacionamento
com a mãe ao invés da identificação original com ela. Este relacionamento é
estabelecido através da receptividade da mãe para com a criança.

A segurança que brota deste primeiro relacionamento é a base para a terceira


fase que se inicia por volta do final do segundo ano e início do terceiro ano de
vida. Durante esta fase, o centro da totalidade da criança, chamado Self, se
estabiliza no inconsciente da criança e começa a se manifestar através do
símbolo da totalidade.

Assim, a criança então brinca, desenha, pinta, ou fala na antiga linguagem de


símbolos com o qual o homem tem expressado, quer consciente ou
inconscientemente através de toda a camada de cultura, esta totalidade. Esses
símbolos são figuras humanas de conteúdo divino, como Jesus Cristo, Maria,
Buda1, etc., ou são de natureza geométrica ou numérica, tal como o círculo ou
quadrado. Aceitamos a validade destes símbolos da totalidade da psique
humana porque ocorreram em todos os locais sem exceção desde os primórdios
da humanidade. O círculo, especialmente na qualidade de um "símbolo da
totalidade e do ser completo" é, nas palavras de Jung, "uma conhecida expressão
do céu, sol, Deus e a origem do homem e da alma" (Figuras 1,2,3,4). Por outro
lado, o quadrado aparece aqui com mais frequência quando a totalidade está se
desenvolvendo.

A experiência tem mostrado que, no desenvolvimento psíquico, a entidade quatro


aparece antes do símbolo do círculo ou ligado ao círculo (Figuras 5,6, 7).

Minhas ideias foram confirmadas há alguns anos atrás em São Francisco


quando vi a coleção de Rhoda Kellog. Durante seus muitos anos como diretora
de um jardim de infância, ela colecionou milhares de desenhos e pinturas a
dedo, que foram feitas por crianças entre dois e quatro anos de idade. Um

1
É também considerado o símbolo da sabedoria. Ganesha, o Deus da Sabedoria tem cabeça de elefante. (N. do T.)
16
enorme número destes cenários mostra estes bem conhecidos símbolos de
totalidade.

Figura 1 - Quadrado, triângulo e circulo como imagens do universo


The World of Zen - Sengai - New York, 1960

Figura 2 - Círculo na Areia, feito por um menino de onze anos.

Figura 3 - O Sol como imagem de Deus


Símbolos de Transformação - C. G. Jung

17
Figura 4 - O Sol . Feito por um rapaz de quinze anos

Figura 5 - Símbolos chineses do céu (circulo) e terra (quadrado).


Dinastia Chou Chinesa - Finlay Mackenzie 1966

Figura 6: a) Desenho de uma criança de 3 anos


b) Imagem do Self mais evoluída com brotamento de formas humanas.
Pintura de criança de 6 anos

18
Figura 7: Escavação de uma aldeia Viking - Dinamarca
Publicação do Museu Nacional Dinamarquês

Tais símbolos aparecem não apenas em desenhos e pinturas, mas as crianças


nesta idade também os usam para expressar-se verbalmente. Um menino de três
anos perguntou-me certo dia: "Se é verdade que a terra é redonda e se Deus
pode ver a todos, isto então significa que Ele é redondo?". Sobre cada um de
seus cenários, na parte superior, ele desenhava uma linha azul de uma ponta a
outra. Quando perguntei o que significava as linhas, ele respondeu que era
Deus. Essas linhas, cada uma sendo uma parte muito pequena de um círculo
enorme, contava de sua concepção.

Um outro menino da mesma idade descobriu certa vez algumas miniaturas de


chumbo no meu piano. Colocou-as de maneira a formarem um círculo completo.
Saiu um pouco da sala e quando voltou, trazia uma pequena pomba de
porcelana e colocou-a atrás de uma fotografia que estava sobre o piano. Quando
perguntei porque a pomba estava escondida, respondeu: "Nós também podemos
ver a Deus".

De tais declarações, podemos ver o conteúdo numeroso do símbolo. O círculo


não é apenas uma forma geométrica; é também um símbolo que vive
invisivelmente no homem. Os símbolos falam para seu eu interior; são figuras
carregadas de energia, dos potenciais inatos do ser humano que, quando
manifestos, sempre influenciam o desenvolvimento do homem. Esses símbolos
de conteúdo numinoso ou religioso falam de uma busca interna à procura de
ordem. Esta ordem dá ao homem uma segurança interna e lhe garante, entre
outras coisas, o desenvolvimento de sua personalidade inerente. Quero destacar
que a manifestação do Self, esta ordem interna, este padrão de totalidade, é o
momento mais importante no desenvolvimento da personalidade.

No trabalho psicoterapêutico, evidenciou-se que uma manifestação do Self é a


pré condição necessária ao desenvolvimento de um ego sadio, que é e centro da
personalidade consciente.

Por outro lado, no caso do desenvolvimento de um ego fraco ou neurótico,


suponho que esta manifestação do Self deixou de ocorrer. Isto pode ocorrer
devido ao fato da proteção materna não ter sido possível ou porque a auto-
manifestação foi destruída por influências externas tal como guerra, doença ou
falta de compreensão por parte do meio ambiente da época do desenvolvimento
mais remoto e delicado. Portanto, na terapia pretendo dar ao Self da criança, a
19
possibilidade de externar e manifestar. E procuro, através da transferência,
protegê-lo e estabilizar o relacionamento entre o Self e o ego. Isto é possível
dentro do relacionamento psicoterapêutico porque corresponde à tendência
natural da psique de se agrupar no momento em que se cria um local livre e
seguro.

Este local seguro ocorre na terapia quando o terapeuta é capaz de aceitar


totalmente a criança de modo que ela, como pessoa, torna-se parte de tudo que
está ocorrendo na sala, da mesma forma que a criança. Quando uma criança
sente que não está sozinha, não apenas nas tristezas mas também nas alegrias,
qualquer que seja a experiência pela qual estiver passando, ela então se sente
livre, mas ainda assim protegida em todas as suas expressões. Através de um tal
relacionamento de confiança, é provável que ocorra uma "participacion
mystique" que crie a situação da primeira fase, aquela da união mãe-filho. Esta
situação psíquica estabelece uma paz interior que contém o potencial para o
desenvolvimento da personalidade total, incluindo aspectos intelectuais e
espirituais.

É papel do terapeuta perceber essas potencialidades e, como guardião de posses


preciosas, protegê no seu desenvolvimento. Para a criança, o terapeuta é ao
mesmo tempo, o espaço, a liberdade e os limites. Os limites individuais de cada
desenvolvimento é significativo porque a transformação da energia psíquica só
pode ocorrer dentro dos limites da pessoa.

Gerhard Terstegen, nascido no século XVII e que dedicou a sua vida a Deus,
seguia o seguinte princípio: "Aquele que lidar com almas deve ser como a
enfermeira que segura na mão da criança e que somente a protege dos perigos e
quedas mas, fora isto, deixa a criança seguir o seu próprio caminho". Parece-me
que ele dizia que não se pode fazer nenhuma teoria para a cura de almas, mas
sim que se deve reconhecer o que é individual ao paciente - aquilo que não se
repete - de modo que se torne possível um desenvolvimento livre.

O desenvolvimento sob os cuidados de um terapeuta pode ser comparada à meta


estabelecida por Pestalozzi no seu trabalho sobre educação, onde disse que,
através do amor genuíno por parte da mãe, a criança encontra o seu caminho à
unidade interna e Deus.

Parece-me que esta unidade interna é a experiência que surge da segurança da


criança com a mãe e que se manifesta em símbolos de totalidade como o
primeiro elemento religioso, ainda inconsciente.

Já que a minha experiência parece indicar que o desenvolvimento sadio só pode


ocorrer com base na segurança da criança, devo supor que, no caso de um ego
fraco, a manifestação do Self, que geralmente ocorre aos dois ou três anos de
idade, não ocorreu. Surpreendentemente, descobri que na maioria dos casos em
que a constelação do Self ficou impossibilitada durante a infância, ela pode ser
recuperada. Isto pode ocorrer em qualquer época da vida, qualquer que seja a
idade da pessoa.

O próprio Jung dizia no seu livro "Comentários Gerais Sobre Simbolismo"


(Psicologia e Religião - Obras Completas 11, 1958, pag. 191):

20
"Baseado na minha experiência, percebi que é considerável importância
prática que os símbolos voltados para a totalidade sejam corretamente
compreendidos pelo terapeuta. São o remédio, com a ajuda dos quais,
dissociações neuróticas podem ser reparadas, devolvendo à mente
consciente um espírito e uma atitude que desde tempos imemoriais, tem sido
considerados como tendo efeito solucionador e curativo. São as
"representações coletivas" que facilitam necessária união do consciente e
inconsciente. Esta união não pode ser atingida intelectualmente ou de uma
forma puramente prática pois, se no primeiro caso os instintos se
rebelariam, no último caso isto ocorreria com a razão e a moralidade. Toda
dissociação que se enquadra na categoria de neurose psicogênica é devido
a um conflito deste tipo e o conflito só pode ser solucionado através de
símbolos".

Neste contexto, podemos também entender Bachofen quando ele escreve: "É
exatamente aqui que reside a grande dignidade do símbolo, já que ele permite e
até mesmo estimula diferentes graus de compreensão e leva, à partir das
verdades da vida física, àquelas de uma ordem espiritual mais elevada". Em
grande parte, o símbolo incorpora um conteúdo consciente que leva à
transcendência e ao eterno alicerce da nossa natureza que nos foi dado por
Deus. Se ele for reconhecido e sentido pelo homem, leva-o à real dignidade do
seu ser.

Na minha prática clínica, a Técnica Mundial de Lowenfeld provou ser uma


grande ajuda nessas situações psíquicas para o processo do desenvolvimento.
Estes são representados numa caixa de areia de dimensões específicas (50cm x
70cm x 7,5cm), de modo que a fantasia do paciente é delimitada. O fato de que a
tensão é assim confinada dentro destes limites, opera como fator organizador e
protetor.

A areia da caixa pode ser seca ou úmida. Se a areia for úmida, ela pode ser
moldada para fazer uma paisagem ou topografia. Coloca-se à disposição
centenas de miniaturas de todos os tipos possíveis. A criança escolhe então, a
miniatura que deseja para brincar na areia.

O cenário de areia que é feito pela criança pode ser compreendido com
representação tridimensional de algum aspecto de sua situação psíquica. Um
problema inconsciente, como um drama, é representado na caixa de areia. O
conflito transpõe, do mundo interior para o mundo exterior e torna-se visível.
Este jogo de fantasia não ocorre sem reação na psique do paciente. Parece
influenciar a dinâmica do inconsciente na criança.

O analista acompanha esta brincadeira da criança. Frequentemente, contente


com que produziu, a criança produz uma série inteira de cenários, na qual os
símbolos emergentes são compreendidos pelo analista. A compreensão por parte
do terapeuta do problema que aparece na representação, frequentemente
reproduz a "participacion mystique" da unidade original mãe-filho, o que por si
só já tem influência terapêutica. Este efeito terapêutico, aparece mesmo quando
o "insight" do analista não é comunicado à criança por palavras. Aqui, na
situação terapêutica, experimentamos o símbolo no local livre e seguro.

21
Sob certas circunstâncias, os cenários são interpretados à criança como maneira
facilmente compreensível que está ligado a sua situação de vida. Isto leva a um
conhecimento da correspondência entre os problemas internos e externos, o que
provoca a próxima etapa no desenvolvimento. Além disso, os detalhes e
composição dos cenários, dá ao terapeuta uma indicação do caminho a ser
seguido no tratamento. Frequentemente, o cenário inicial fornece informações
sobre o problema e contém, oculta nos símbolos, uma indicação de que maneira
irá ocorrer a experiência do Self.

Neste processo, novas energias são liberadas levando a formação de um ego


forte. Um menino de oito anos representou o desenvolvimento normal dessas
energias de uma maneira muito bonita, na figura que se segue (Figura 8). No
canto superior direito, vemos o eu, encarnado no pastor com as ovelhas.
Escuros poderes exteriores (marroquinos) dirigem-se em fileiras ao local que
pode ser considerado o Self do menino, Estes poderes estão armados. No
entanto, o menino comentou: ''Na verdade, não precisavam estar armados",
indicando que estava disposto a aceitá-los.

Figura 8: Escuro - Energias inconscientes se movimentam de forma ordenada


em direção ao Self - Cenário de um menino de oito anos

A minha experiência coincide com as teoria de Neumann das etapas do


desenvolvimento do ego. Estas etapas são as seguintes:
1. A etapa animal, vegetativa
2. A etapa lutadora
3. A adaptação ao coletivo

Na primeira etapa, o ego se expressa principalmente em cenários em que


predominam os animais e a vegetação. Os cenários feitos na segunda etapa
representam batalhas, que sempre aparecem, especialmente na puberdade. A
esta altura, a criança se sente tão fortalecida que luta com as influências
externas na nossa cultura. Na terceira etapa, ela é capaz de enfrentar e ser
enfrentado por estas forças externas até que haja uma compreensão de modo
que ela é finalmente aceita no ambiente e se torna um membro do coletivo. Isto é
representado nos cenários da terceira fase.

Ao estudar o pensamento chinês, deparei-me com o diagrama que parece-me


corresponder com nossa concepção (Figura 9). É o diagrama do Chou-Tun-Yi,
um filósofo do período Sung, que viveu por volta do ano 1000. Aqui o início de
todas as coisas, é mostrado como um círculo, onde vejo uma analogia com o eu
no nascimento. Um segundo círculo mostra a ação interpenetrante do Yin e
Yang que produz os cinco elementos. Estou inclinada a referir a este círculo o
que já disse sobre a manifestação do eu. Contém o germe das potencialidades
22
psíquicas que levam a formação do ego e o desenvolvimento da personalidade
(Figuras 10, 11).

Figura 9: Representação gráfica do desenvolvimento de progressão do corpo e psique. Chou-Tun-


Yi, um filósofo Chinês

Da mesma forma que os elementos surgem da ação interpenetrante, a


personalidade se desenvolve à partir da manifestação do Self ao redor do centro
do ego. Eu comparo esta etapa com o desenvolvimento da primeira fase da vida.
Também na nossa tradição, cinco é o número do homem natural (Figuras 12,
13). Aqui o homem forma um pentagrama com sua cabeça, braços e pernas
abertas - um microcosmo no macrocosmo.

O diagrama mostra então, o desenvolvimento futuro, que chamaria de segunda


metade da vida, com uma clara tendência para o Self. O terceiro círculo pode ser
comprado com a manifestação do Self no processo de individuação na segunda
metade da vida. No quarto círculo, vejo o fim em oposição ao começo – portanto
como o fim da ação – que leva da vida à morte contém o germe de nova vida.

23
Figura 10: O homem e a mulher abraçando circulo centrado. O germe do ego formado
pela interação dos opostos que emergem do Self. Desenho sobre o osso - Dinamarca.

Figura 11: Dançarinos. Menino e menina de dançando em uma estrela de cinco pontas.
Energias masculinas e femininas interagem no símbolo de uma pessoa inteira.
Escultura de gesso de uma menina de doze anos de idade.

Estas imagens nos mostram que, em todas as tradições, as nossas vidas


correspondem a um fluxo físico e psíquico que pode ser considerado como o
padrão de desenvolvimento individual. Parece-me, então, que todos os nossos
esforços terapêuticos com a criança e adolescentes tem que fazer justiça a esta
colocação.

As crianças que vem a mim para tratamento sofrem geralmente de uma falta de
segurança interna e não tem nenhum sentimento de identificação ("belonging").
Algo impede a crescimento normal que é necessário ao seu equilíbrio interno -
pode ser uma situação doméstica desfavorável ou algo externo. Acredito,
portanto, que é muito importante não separar a minha clínica da minha casa
(Figura 14A). Quando a minha pesada porta se fecha (minha casa foi
originalmente construída em 1485), a criança entra numa sala com painéis e um
velho fogão de azulejos. Alguns degraus levam até o fogão. A criança pode fazer
agora o que desejar. Pode sentar ou deitar no banco que pertence ao fogão, olhar
o quarto de cima ou pela janela, observar os pássaros que brincam e banham na
pequena fonte que tenho no jardim. Pode ver alguns livros de figuras, ou
revistas, ou ler. Pode também sentir vontade de investigar objetos incomuns e os
quadros na minha velha casa. A ordem irregular dos cômodos e escadarias,

24
aguçam o seu interesse, de modo que as crianças pequenas geralmente adoram
brincar de esconde-esconde, enquanto que os mais velhos se tornam às vezes
aventureiros e começam a procurar tesouros escondidos. Se possível, deixo-os
bem à vontade. Frequentemente, os levo até o porão onde investigam as grossas
paredes para ver se há passagens subterrâneas. As crianças estão realmente
sempre procurando por algo escondido, que gostariam de encontrar dentro de si
próprias.

Figura 12: Cristo como totalidade de pé no globo terrestre. Os elementos


Terra, Ar, Fogo e Água despeja nos quatro quadrantes esférico do mundo material.
Psicologia e Alquimia - Jung

Figura 13: Homem como microcosmo em estrela de cinco pontas. Tyco Brahe. Calendarium
Naturale Magicum Perpetuum (1582)

25
Assim é que a minha casa, construída há centenas de anos atrás numa pedra e
cujos cômodos não foram construídos de acordo com medidas, mas sim de
acordo com as próprias leis da casa; oferece uma atmosfera que corresponde ao
temperamento natural dos jovens. E mais, a criança vem a um mundo que está
completamente aberto para ela. Quando ela entra na sala onde está a caixa de
areia, ela já está relaxada (Figura 14 B). A cadeia de tensão: "O que irei
encontrar, o que terei que fazer?", é então quebrada.

Existem muitas coisas na minha sala: tinta, argila, mosaico, massa, etc. Ficam
convidativamente sobre uma grande mesa. Por perto estão caixas de areia e
numa prateleira estão centenas de miniaturas de chumbo e outros metais;
representam pessoas não apenas de vários tipos e profissões dos tempos
modernos, mas também de séculos passados, bem como, negros, índios em luta,
etc. Existem também animais selvagens e domésticos, casas de diferentes
estilos, árvores, arbustos, flores, cercas, sinais de trânsito, carros, trens,
carruagens antigas, barcos; em resumo, tudo que existe no mundo bem como na
fantasia da criança.

Tudo que foi descrito acima, é o material que a Dra. Lowenfeld em Londres tem
colecionado para seu "World Play" (brinquedo mundial) (Figura 15). Ela
compreendeu completamente o mundo da criança e criou com uma intuição
engenhosa, uma maneira que permite que a criança construa um mundo - o seu
mundo - na caixa de areia. A medida da caixa corresponde exatamente, a que os
olhos podem abarcar. A criança escolhe objetos que ela gosta. Ela forma morros,
túneis, planícies, lagos e rios na areia, como se fosse no seu mundo e, permite
que as miniaturas ajam como elas as sentem na sua fantasia.

A criança tem toda a liberdade de escolher as miniaturas e usá-las da maneira


que bem entender. Da mesma forma que a verdadeira liberdade tem que ser
limitada, a caixa de areia limita a pessoa. A criança experimenta,
inconscientemente o que chamo de um local livre e, ao mesmo tempo, seguro.
Dentro deste espaço, pode ocorrer a transformação que tento descrever neste
livro. Estou ciente de que tive que omitir certas informações para proteger o
paciente e que isto, consequentemente, faz com que o relato seja incompleto.

Figura 14A: Entrada da casa de Dora Kalff - Construída 1485

26
Figura 14B: Sala de Brincar de Dora Kalff

Figura 15: Coleção de miniaturas

27
Capítulo 2
CHRISTOPH
Vencendo uma Neurose de Ansiedade

Christoph, nove anos, foi trazido à minha casa pelo seu pai, um alto, robusto
fazendeiro. O menino dava a impressão de ser delicado e excessivamente
ansioso. Mas, atendendo a meu pedido, seguiu-me de bom grado para a sala de
brincar. Hesitante, mas curioso, olhou à sua volta. Pequenas mechas loiras
caíam sobre a sua pálida fronte. Me perguntava como um menino tão frágil pode
vim do campo? Apôs uns minutos seus olhos viram uma pequena pistola que
estava perto dele. "Gostaria de brincar com ela?" perguntei. Um movimento sutil
mas definitivamente defensivo mostrou que ele estava com medo da pistola.

Seu pai me contou que as autoridades escolares pediram que o Christoph fosse
enviado a um psicólogo, porque frequentemente não comparecia à escola. Cada
dia Christoph saía pontualmente de casa para a escola e chegava em casa no
horário esperado. Portanto, a sua mãe não tinha ideia que muitas vezes ele nem
ia a escola.

Christoph morava com seus pais e um irmão, que era dois anos mais novo,
numa localidade rural razoavelmente isolada. No seu caminho para a escola da
vila, ele passava pelos campos com árvores frutíferas. O que fazia quando as
outras crianças estavam na escola, ninguém sabia.

Christoph olhou para a caixa de areia. "Você já brincou com areia?” perguntei.
"Sim, costumava fazer isto", respondeu, "...mas agora isto é apenas para o meu
irmão menor. Sou grande demais para isto".

"Mas aposto que você nunca brincou na areia com brinquedos e miniaturas
como estes". Mostrei-lhe a minha coleção. Isto chamou a sua atenção e
rapidamente pôs-se a trabalhar No meio da caixa, apareceu um grande morro.
Com grande cuidado cavou um túnel. Só ficou satisfeito quando pode ver através
dele. Voltou-se então para as miniaturas. Uma pequena casa aparentemente lhe
agradou e colocou-a no canto inferior esquerdo. Perto dela colocou um balanço.
Colocou uma cerca em volta disto, sem que tivesse nenhuma abertura para
entrar ou sair. No topo do morro, plantou um grande álamo. Sob esta árvore,
colocou uma pequena criança num banco. Um caminho estreito ligava o morro à
planície abaixo. (Figura 16).

Figura 16
28
Subitamente ele tornou-se vivaz e selecionou tanques pesados, soldados e
armas, que colocou todos em volta do morro. Disse que tinha estourado uma
guerra. Os soldados cercaram o morro, metralhadoras atiravam através da túnel
e os tanques estavam preparados para o combate. Ele até queria que um avião
bombardeiro ficasse pendurado do teto por um fio de modo que a colina pudesse
ser atacada pelo ar. Esse menino, que no início do seu horário era tão tímido e
preocupado agora parecia dominado pela paixão se certificando de que tudo
estivesse exatamente do jeito que queria. Olhou o cenário com satisfação e tinha
certeza de que o bombardeiro não erraria o seu alvo. Antes de sair da sala ele
repentinamente colocou um posto de gasolina no canto esquerdo do cenário.
Sua face estava cintilante quando foi encontrar o seu pai, a quem pediu que
fosse ver o que tinha feito.

Por um lado, o cenário mostrou um ambiente pacifico - de uma forma que


poderia ser a sua casa: uma casa, um pequeno jardim e uma criança no
balanço. Aqui ele parecia se sentir à vontade. Ao mesmo tempo, no morro perto
do álamo, estava um segundo menino com o qual Christoph se identificava.

A árvore tem preocupado o homem desde tempos imemoriais. Está


profundamente enraizada na terra fértil, seu tronco crescendo em direção ao céu
e os galhos se desdobram em uma coroa que floresce na primavera e carrega
frutos no outono. O seu crescimento é comparado com a vida do homem e, em
muitas culturas, é representada como a Árvore da Vida. Sob sua sombra, os
homens procuram proteção e suas frutas saciam a fome e a sede. Desta
maneira, ela encarna os elementos protetores e nutrientes.

Aí na morro, o menino sonhava que sob o abrigo da árvore poderia desenvolver


seus talentos através de persistente trabalho e que isto lhe permitiria ocupar o
seu devido lugar no mundo. Mas aí havia uma guerra que se travava ao redor do
morro, ameaçando estes pensamentos. O mundo exterior lhe parecia uma luta
que não podia vencer. Ansiosamente, recolheu-se à sua casa no canto.

Quando refleti sobre o seu morro, lembrei-me involuntariamente do formato de


abdômen de uma mulher grávida e fiquei imaginando se este era o alvo dos
ataques. Será que a mãe teve uma gravidez difícil? O menino estava procurando
uma proteção feminina que não da sua própria mãe? Talvez pudesse encontrá-la
sob a árvore no morro? Conclui que uma conversa com a mãe seria certamente
bastante informativa.

Ela contou-me que, como filha de fazendeiro, tivera uma vida difícil.
Frequentemente não se sentia bem e sofria de dores no estômago. No entanto,
pouca atenção foi dada a isto. Ao contrário, era repreendida por ser preguiçosa
quando ficava doente. As dores continuavam mesmo após ter se casado.Tinha
medo de engravidar. Vários médicos tiveram que tranquilizá-la de que não havia
nada com que se preocupar quanto ao fato de dar à luz a uma criança. Assim
que engravidou, o medo do parto tornou-se quase insuportável. Novamente, teve
que ser tranquilizada por um médico. Finalmente, foi possível esperar
pacientemente pelo nascimento. Teve um parto normal. No entanto, tinha
apenas acabado de assumir as responsabilidades de cuidar da criança, quando
foi acometida por novos temores.

29
É, portanto, compreensível que o menino nunca realmente sentiu segurança
com a sua mãe. É ainda mais óbvio que os temores da mãe fossem transferidos
ao filho.

Além disso, o pequeno Christoph teve muitos acontecimentos infelizes na sua


curta vida. Quando tinha acabado de fazer dois anos, enfiou seu dedo numa
tomada elétrica e recebeu um choque grave. Antes de começar na escola, foi
operado da hérnia. Esta experiência também intimidou-o consideravelmente.
Sua mãe contou-me que tinha muito medo de injeções e médicos com roupa
branca. Tinha medo do escuro e, de noite, tinha medo de subir sozinho ao seu
quarto no andar de cima.

Durante seu segundo ano na escola, teve um professor que tratava rudemente
as crianças. Obviamente, isto aumentou o seu medo e deve ter eventualmente
levado a que volta e meia não fosse para a escola. A esta altura, começou a
roubar pequenas coisas da sua mãe, especialmente doces.

Tornou-se agora imperativo fornecer ao menino a segurança de que necessitava


para permitir que enfrentasse as dificuldades da vida.

No seu cenário, ele mesmo tinha mostrado de que estava procurando um local
seguro fora da sua casa: sentou no topo do morro sob a proteção de uma árvore.
Estava procurando uma mãe simbólica. A árvore é também o símbolo do Self.
Encarna não somente e mãe feminina mas também o tronco, que tem um
significado fálico. Portanto, representa a união dos opostos. Consequentemente,
ousei esperar que seria possível uma centralização dos seus próprios poderes
naturais. Fiquei contente quando no ultimo minuto Christoph colocou um posto
de gasolina no conto esquerdo do cenário. Energias não usadas poderiam ser
armazenadas no inconsciente!

Na segunda vez, parecia que estava completamente à vontade comigo. Podia


decidir com o que iria brincar. A primeira grande atenção foi uma pequena loja.
Queria ir até ela e comprar coisas de mim. Havia frutas de todos os tipos,
verduras e doces. Comprou muitas laranjas. Nada surpreendente, já que a bri-
lhante bola continha suco doce e sementes. Estes simbolizam a fonte da vida, e
qual seu inconsciente estava procurando.

Certo dia, a brincadeira pacífica teve um abrupto fim. Repentinamente,


Christoph planejou um assalto à loja. Christoph era o assaltante e eu era a
policial que tinha que procurá-lo. Christoph divertiu-se muito escondendo em
muitos locais secretos na nossa velha casa e tive que procurá-lo durante muito
tempo. Frequentemente, fazia isto de propósito a fim de mostrar como ele tinha
se escondido bem. Afinal, não era um jogo em que Christoph queria ser
descoberto no seu esconderijo? Queria ser levado a sério; queria ser procurado.

Contou-me que gostava de desenhar da maneira que seu pai o fazia. Queria
desenhar numa grande lousa branca. Mas fiquei surpresa quando, apesar da
sua vontade de preencher a ampla superfície, desenhou um pequeno homem no
canto inferior. Sim, este ainda era o tamanho do seu pequeno ego.

30
Após um mês, fez um segundo cenário. Novamente o menino sentou-se no morro
com uma pequena cidade aos seus pés. Subitamente, a pacífica vila
transformou-se em batalha com soldados lutando por toda volta. Carros e um
trem estavam paralisados no morro.

Ficou claro para mim que praticamente nenhum progresso foi feito no mês
precedente.

Mesmo assim, Christoph tornou-se mais audaz. Tornou-se até interessado na


pistola. Queria saber o que poderia ser feito com ela. Primeiro mostrei-lhe como
segurá-la e como apertar o gatilho com o dedo. Finalmente, ele queria também
ouvir o barulho. Atirei e ele ficava longe com as mãos sobre os ouvidos. Olhou e
ouviu duas ou três vezes. Aí ele mesmo queria disparar. Queria que o barulho
fosse cada vez maior. Finalmente, fomos até o porão, onde disparou inúmeras
vezes no chão de pedra. Não pude fornecer-lhe cápsulas suficientes e quanto
maior o barulho, mais satisfeito ficava.

Perto de quatro meses depois, fez um outro cenário, Desenhou com as mãos,
largas ruas na areia com muitos carros circulando. Em contraste com seus
primeiros cenários, este parecia vazio e sem sentido; no entanto, era a primeira
vez em que os carros não estavam obstruídos e podiam mover-se livremente. A
libido represada estava começando a fluir! Esperei que não demorasse muito
para que tomasse um passo definitivo para frente na sua vida.

Na sua próxima consulta, ele novamente desenhou na grande lousa. Desta vez
ele preencheu quase que todo o espaço à sua frente. Desenhou uma pista de
esqui. Muitas pessoas estavam ao lado da trilha e estavam observando o
esquiador correndo para o vale.

Este cenário confirmou a minha impressão de que a energia retida no


inconsciente estava começando a se mexer e estava agora procurando alcançar
um objetivo. O mundo exterior, onde primeiramente os soldados em combate
representavam as obstáculos ao seu desenvolvimento, transformavam-se agora
num público que estava admirando o notável esquiador. Ficou bastante claro
para mim que esta criança aparentemente delicada continha oculto dentro de si
uma considerável ambição.

Evidenciou-se que era muito cedo ainda para que Christoph fosse agora capaz
de lidar com esta energia, mas fiquei encantada ao perceber que a influencia
terapêutica da psique tinha começado a brotar. O desenha indicava o
considerável potencial da criança; no entanto, o traçado fraco indicava que esta
realização ainda estava no futuro. De minhas observações anteriores, sei que
pelo menos seis a oito semanas são necessárias antes que um sinal visível possa
brotar do inconsciente para a vida exterior. É tão delicado como um broto novo
de grama que acabou de sair e precisa de muitos cuidados.

Foi com grande confiança que aguardei a próxima consulta de Christoph.

Ele veio uma semana depois, mas a expressão na sua face me preocupou.
Estava mais pálido do que nunca e olhava ansiosamente à sua volta. O que será
aconteceu? Cumprimentei-o com a pergunta "Como vai você?" Não muito bem",
respondeu. "Acabei de ver um acidente".
31
Christoph tinha feito uma curta viagem de trem para vir até meu consultório.
Viu um carteiro, que estava levando pacotes até o trem, cair do seu vagão
quando o trem começou a se mover. O homem nada tinha sofrido. No entanto,
os poucos segundos de incerteza antes que Christoph soubesse se o carteiro
estava ou não seriamente machucado foram suficientes para destruir a
segurança que estava apenas começando a se construir dentro dele.

Isto ficou muito claro no cenário que fez aquele dia, quando ainda estava
perturbado.

Pegando indiscriminadamente as miniaturas, colocou-as na areia (Figura 17).


Tanques, soldados, animais domésticos, e aqueles das planícies e florestas
encheram a caixa de areia até a borda sem qualquer agrupamento ou esquema.
Um trem estava parado na areia. Lembrou-me de cenários feitos por esquizo-
frênicos. Na minha preocupação por este grande retrocesso que estava ocorrendo
com o menino, tentei procurar alguns elementos positivos. No canto inferior
esquerdo havia uma pequena lagoa. Na frente havia um menino e uma mulher
sentados com as costas voltados para o caos. Por perto havia uma grande árvore
em flor. Um elefante foi o único animal que estava bebendo água.

Figura 17

Christoph disse "Não gostaria de morar num mundo assim". Estava procurando
refúgio na situação terapêutica que estava representada pela criança e pela
mulher. Ele já tinha sentido segurança aqui e sabia que ganhou novas forças de
fontes desconhecidas (seu próprio inconsciente, simbolizado pela água). Aqui,
também, a árvore em flor representa o Self, que orienta o processo de
crescimento. O elefante, que pode ser considerado como pertencente ao mundo
animal, provavelmente representa as grandes exigências que o menino carrega
dentro de si. Animais representam os diferentes aspectos dos instintos humanos
e seu significado espiritual. O elefante possui grande inteligência e ajuda os
homens no seu trabalho nas florestas primitivas. Na Índia, ele é sagrado pois é o
pai lendário de Buda. Portanto, ele representa, entre outras coisas, a forma
animal pré-consciente da salvação.

Dizendo que não queria viver num mundo assim, Christoph já expressou a sua
esperança de liberdade. Isto ele revelou inconsciente e simbolicamente na
pequena lagoa. Obviamente, a força avassaladora da situação caótica que o
circundava ainda parecia forte demais.
32
De vez em quando o professor de Christoph entrava em contato comigo e fiquei
satisfeita em saber que Christoph não estava mais evitando a escola. No entanto,
estava tendo dificuldades em se equiparar com seus colegas nos estudos, o
professar então sugeriu que Christoph fosse transferido a uma classe especial. A
mim parecia que isto seria um novo choque para o menino. A sua ambição, que
estava dormente no inconsciente mas que se tinha evidenciado tão fortemente
nos cenários, iria certamente sofrer. E a pequena segurança que Christoph tinha
adquirido seria destruída.

Pedi que o professor fosse paciente e que, se possível, mantivesse Christoph na


classe. A esta altura, pareceu-me crucial dar a Christoph toda oportunidade
para se tornar psiquicamente mais forte. Agora era muito importante não forçar
a situação com uma possível regressão. Era meu desejo salvar e desenvolver o
pouco que foi obtido às duras penas e que já ameaçava desaparecer.

Na terapia, estava tornando-se possível encontrar maneiras de recuperar a


oscilante confiança que Christoph tinha em si próprio.

Quando veio para a próxima consulta, descobriu uma locomotiva elétrica


quebrada. Queria desmontá-la, descobrir porque não funcionava e consertá-la.
Até mesmo meninos maiores tinham tentado o mesmo sem sucesso. Mas deixei-
o fazer o que queria.

Com grande consciência, tirou os pequenos parafusos e pequenas peças e


colocou-os na ordem exata numa mesa à sua frente. Admirei a sua destreza
manual e o cuidado com que lidava até mesmo com as menores peças. Ao final
da consulta, estavam todos enfileirados. Seria possível que Christoph os
juntasse novamente na ordem correta? Pediu-me para que deixasse as peças do
jeito que estavam.

Nas duas consultas seguintes, Christoph ocupou-se intensamente em montar


novamente a pequena locomotiva. De vez em quando, ele a experimentava; e
quando não funcionava, ela mudava alguma coisa. Repentinamente, começou a
andar. Que surpresa! Ele rapidamente construiu um trilho para o trem no chão.

Apôs isto, durante muitas consultas ficamos os dois no chão e ele me ensinou
sobre desvios e cuidado com trens, etc. Como realmente não sou grande coisa
nestes assuntos, deixei que me instruísse. Isto lhe dava uma satisfação óbvia.
Intencionalmente, às vezes esquecia de acionar um desvio ou de fazer algo. Isto
lhe dava a oportunidade de me corrigir. Nesta brincadeira, ele se tornou meu
mestre e assim entrou num outro papel. Sabia algo que eu ainda tinha que
aprender.

Após cinco semanas de brincadeira intensa, sugeri um cenário. Christoph


rapidamente concordou (Figura 18). Uma ponte larga saindo de uma floresta
atravessava um rio no qual barcas estavam cruzando nas duas direções. Na
ponte em si, havia um tráfego intenso. Um trem e alguns carros estavam indo e
vindo.

33
Figura 18

Muita potência e novas energias estavam surgindo de inconsciente, representado


pela floresta. Olhando com mais cuidado, percebia-se que alguns dos veículos
tinham funções especificas: por exemplo, o carro de polícia e carro de bombeiros
que estavam correndo para apagar a incêndio. O caminhão de lixo que estava
recolhendo o lixo. As energias regulatórias que resolveram a condição caótica no
cenário precedente estavam agora se movimentando. O tráfego circulava nas
duas direções, na água assim como em terra. Isto indicava que as forças
estavam inteiramente libertas, porém num fluxo ordeiro, e estavam
estabelecendo uma ligação entre o inconsciente e o consciente, A esta altura,
percebi que um saudável desenvolvimento psíquico estava-se iniciando.

Pareceu-me que o menino era um eletricista nato e que se tinha tornado, um


especialista em todo pequeno detalhe elétrico. Ele consertou o trem e manejava-
o com grande habilidade. A fim de tornar mais fácil ficar em casa com seu irmão,
sugeri que instalasse um pequeno conjunto de telégrafo que pudesse operar de
um andar para o outro. Enviar sinais de um lado para outro seria divertido para
as crianças e para os pais.

Enquanto esteve comigo, dei-lhe a tarefa de instalar luzes na minha casa de


bonecas de três andares. Sendo a casa um símbolo para o ser interior, queria
que ele simbolicamente iluminasse seu interior. Christoph ficou mais uma vez
entusiasmado com seu trabalho. Com grande concentração, colocou os fios
delicados e montou pequenas luzes e tomadas. Após trabalhar durante várias
consultas, todas as luzes dos seis quartos podiam ser ligadas e desligadas.

O assombro com a invenção da lâmpada elétrica de Edison no século passado


dificilmente seria maior do que o efeito que sentiu Christoph ao contemplar todos
os quartos iluminados da casa de bonecas. E, além disso, foi trabalho seu!

34
Isto deu surgimento a mais um cenário.(Figura 19).

Figura 19

Um músico estava tocando uma gaita num pequeno morro no centro. Em volta
do morro, seres circenses moviam-se nas duas direções dentro de um círculo
fechado. Havia elefantes, tigres, cavalos e uma carruagem romana, bem como
palhaços e acrobatas. A plateia estava do lado fora, à esquerda e à direita.

O Self, que se tinha revelado no cenário anterior pelo movimento da água, bem
como a ponte e o tráfego nas quatro direções, tinha agora claramente se
desenvolvido num movimento circular do centro.

A fim de esclarecer meus sentimentos sobre esta representação, gostaria de falar


sobre o simbolismo do "circumambulatio" (movimento circular).

Em latim, "circus", que é proveniente do grego, significa "anel", "círculo". Perto


Capitólio na Roma antiga havia o Circus Maximus de Tarquinius (600 A. C.).
Servia principalmente para as corridas de carruagem dos romanos e
posteriormente para lutas entre animais. Durante as perseguições aos cristãos,
estes eram sentenciados a lutarem com os animais na arena.

Seria possível que um menino de nove anos já tivesse ouvido falar das corridas
dos romanos e que tivesse dois deles circulando no seu cenário "Certamente
não, porque ele me disse que nunca tinha ido a um circo. Morando longe da
cidade, num ambiente simples, ele nunca teve a oportunidade de ir ao circo. Já
que não é comum hoje em dia que circos apresentem carruagens romanas, deve
então ter sido um conhecimento inconsciente de algo que tem vivido através da
tradição humana. É mais provável que ele tenha ouvido de animais amestrados
como elefantes e tigres, que circulava dentro do cenário com os cavalos.

Christoph explicou que o músico no meio fazia música para que todos se
deleitassem. Neste cenário, é claramente "uma questão de "circumambulatio"
que se concentra no meio. Ao examinarmos mais de perto, pode-se ver que os
dois círculos externos se moviam da direita para a esquerda (sentido anti-
horário), que é psicologicamente comparável a um movimento em direção ao
inconsciente - enquanto que as figuras internas descreviam um circulo da
esquerda para a direita (sentido horário), que psicologicamente é a direção do
consciente.
35
Sabemos que o equilíbrio central no homem é equivalente a uma experiência
religiosa-emocional. È uma movimentação de forças religiosas internas. Como
analogia, podemos comparar esta experiência com os três movimentos circulares
do padre na sequência da missa católica com o incensário (duas vezes da direita
para a esquerda e uma vez da esquerda para a direita) sobre a oferenda.

A oferenda na missa é então abençoada e preparada para a transformação real.


O cenário do menino expressava uma centralização que envolvia uma
transformação. Aqui, numa brincadeira aparentemente sem importância, estava
expressado o aspecto terapêutico profundamente movente da psique. A
centralização significa que a energia no centro da homem pode mover-se
livremente. Será que era possível que as forças negativas, expressadas no
cenário pelas carruagens romanas e animais em luta, estavam para ser
transformadas através de evento inconsciente mas profundamente religioso?

O círculo em si e o fato de se fazer um círculo em volta do meio em particular,


também tem um caráter divino em outras culturas. Jung o menciona em "O
Símbolo da Transformação da Missa" (Obras Completas, Vol., XI/3, Págs. 75 e
76, § 418 e 419).

"Desde todos os tempos, o círculo e o seu centro constituem um símbolo


divino que ilustra a totalidade do Deus encarnado: um único ponto no centro
e todos os outros na periferia".
“Psicologicamente, essa disposição significa uma mandala
consequentemente, um símbolo do si-mesmo, para o qual se acham
orientados não somente o eu individual mas, juntamente com ele, muitas
outras pessoas que estão ligadas a ele pelos sentimentos ou pelo destino. O
si-mesmo não é o eu, mas uma totalidade superior a este que abrange a
consciência e o inconsciente; como, porém, este último não possui limites
determináveis e, além do mais, é de natureza coletiva em suas camadas
mais profundas, não é possível distingui-lo de um outro individuo .Por isso,
constitui a "participation mystique" que encontramos sempre e por toda
parte, ou seja, a unidade da multiplicidade, um único homem em todos".

O menino conseguiu adquirir confiança em si através da transferência, que era


equivalente a uma unidade Mãe-Filho. Isto o protegia da desintegração que era
temida pelas indicações da Figura 17. Com segurança interna, seria possível,
lidar com o mundo externo. Se lembrarmos da primeira figura, vemos que o inte-
rior e o exterior não estavam em harmonia. Na proteção da sua casa, ele estava
bem. Mas no morro sentia-se terrivelmente ameaçado.

Tinha simbolicamente expressado a centralização que normalmente ocorre com


crianças de dois ou três anos de idade. De agora em diante, iria desenvolver um
ego sadio e forte.

Começou a se interessar por pintura e modelagem. Novamente revelou


habilidade com as suas mãos e um grande senso de cores. Durante esta fase, dei
à criança mais oportunidade de ser criativa. Não era uma questão de criar obras
de arte, mas de investigar ideias e tentar expressá-las. Não faria a menor
diferença se ele atingisse a perfeição ou não. Mas através da centralização
interna, a criança produz muita energia. Lentamente, comecei também a prestar
36
mais atenção aos seus problemas escolares, porque queria que adquirisse mais
controle sobre aquela situação. Desta maneira, tentei edificar o seu ego, que é o
centro da consciência, e com o qual a pessoa se relaciona com o mundo exterior.

O nível de desenvolvimento da criança que Neumann menciona tinha que ser


restabelecido. Nos cenários, este nível aparece na forma de vegetação e animais.
Foi isto o que ocorreu com este menino.

O próximo cenário representava uma floresta primitiva (Figura 20). Um rio corria
como um limite natural através do meio de uma mata. Uma vau e uma ponte
ligava as duas margens. Os animais se dirigiam ao regato para beber. No canto
direito, de cada lado da água, havia um marroquino.

Figura 20

Vi nisto o ego, que estava começando a sair das profundezas - as profundezas


primitivas - do nível instintivo latente.

Na vida cotidiana, Christoph estava mais autoconfiante; a sua ambição começou


cada vez mais a se afirmar. Boas notas tornaram-se importantes. Fui convidada
participar num exame a fim de ver por mim mesma o seu progresso.

Não demorou muito para que esta situação se expressasse num cenário (Figura
19).

Enquanto que a água no cenário anterior criava um limite natural, desta vez
estava canalizada num canal feito pelo homem. Navios se moviam nas duas
direções, Dos dois lados, soldados estavam lutando e homens escuros estavam
lutando pela posse do Canal de Suez, foi o que ele me disse. No lugar de árvores
escuras, que lembravam a floresta primitiva, havia palmeiras que crescem no
Oriente Médio e sul da Europa. Havia também elefantes.

Vamos imaginar uma cena de floresta tropical, do tipo que podemos encontrar
na África. Se o considerarmos psicologicamente, testemunharíamos uma cena
num nível inconsciente mais profundo do que aquele que ocorre num canal
construído pelo homem. A água na Figura 21 corria de uma maneira natural, em
contraste com a canalização consciente da água no canal. Portanto, estimulei-o
a fazer algo que pudesse também ser útil numa profissão mais tarde na vida.

37
Figura 21

Entre outras coisas, construiu uma pequena via férrea funicular que ligava a
casa do seu amigo com a sua própria. Fez isto de iniciativa própria. No entanto,
todos os planos foram debatidos comigo e ofereci ajuda para completar. A
funicular também significava uma ligação com o mundo exterior, que
necessitava muito para seu futuro.

A escola, que tinha provocado tanta preocupação no início, já não era mais um
problema. Perseverava em cima das matérias que lhe eram mais difíceis. A
ameaça de ser transferido a uma classe especial tinha passado há muito tempo.
Mesmo sem ser um aluno brilhante, ele estava certamente preparado e aberto a
maiores estudos.

O último cenário (Figura 22) que ele fez durante a terapia mostrava a colina que
separa o lago de Zurich do lago Greifensee. Algumas casas representavam as
vilas e os homens que estavam por perto eram seus donos. Uma estrada
serpenteava a colina. No ponto mais elevado, estava sentado um menino.
Sentava em completa liberdade na colina onde ele realmente se sentia em casa.

O ajustamento ao mundo foi agora atingido. O cenário mostra a transformação


destas forças que no cenário inicial eram expressadas por meio de agressão e
que impediam seu desenvolvimento. Onde soldados em luta cercavam o morro e
ameaçavam o menino no seu banco sob o álamo, agora haviam pessoas que
podiam trabalhar em paz. O menino, que no primeiro cenário tinha-se visto
numa situação doméstica perturbadora e envolto pela ameaça de guerra, agora
estava ao lado da estrada até que o ônibus, como dizia, o levasse até o mundo.

Figura 22

38
Capítulo 3
TOM
Cura de Uma Inibição Para Aprender

Conhecia Tom, que tinha doze anos, e que não podia fazer nada com a sua vida.
O seu pai o descreveu como sendo solitário, sem amigos, retirado e
frequentemente entediado. Brinquedos não o tinham interessado desde a tenra
infância. De vez em quando lia um livro, mas sem maior interesse. Na
companhia de adultos, parecia muito bem ajustado.

Suas roupas estavam sempre impecáveis e seu cabelo era bem penteado.
Embora desse uma impressão de destreza, Tom preocupava seu pai. Os seus
primeiros anos escolares se passaram sem maiores dificuldades. No entanto, o
seu afastamento de crianças da sua própria idade tornou-se cada vez mais
óbvio. As vezes, aparecia uma relutância de aprender. Foi testado quanto à
inteligência e descobriu-se que tinha uma boa média. Iniciou uma terapia mas
sem grande sucesso. O conselho do terapeuta foi o de enviá-lo a um internato,
onde se esperava que fosse mais fácil encontrar amigos da sua própria idade e
com quem poderia participar de esportes.

O pai não queria se separar de seu filho. Desde a morte de sua mulher vários
anos atrás, agarrava-se muito ao seu filho.

E aqui começa a verdadeira estória de Tom. Na idade de dois anos, perdeu a


mãe. Uma enfermeira cuidou da criação dele e de seu irmão que era um ano
mais novo do que Tom. Durante seis anos desempenhou o papel de mãe dos
meninos e era amada por ambos. Parece que de todos, era o pai que tinha mais
sofrido com a morte da esposa. Saiu da lugar onde tinha constituído família e
trabalho. O pior é que não podia decidir que novo tipo de trabalho iria exercer.
Uma inquietação constante tinha-se apossado dele. Inquietação significa
insegurança. Como é que ele poderia, nesta condição, fornecer aos meninos a
necessária segurança? Assim, após o filho mais novo ter sido enviado a um
internato seguindo os conselhos de um terapeuta, ele queria preservar a sua
família ficando junto do filho mais velho. Este era um desejo humano,
completamente compreensível e que, na minha opinião, deveria ser satisfeito, se
fosse possível.

Entrementes, Tom tinha doze anos. De acordo com a sua inteligência e habilidades,
entrou para a primeira série da ginásio. Não era um aluno excelente. De um modo
específico, o latim e novas matérias pareciam ser os que apresentavam maiores
dificuldades para ele.

A pergunta perturbada que o pai me fez foi: Será que meu filho será capaz de pas-
sar pelo ginásio sem ter que se separar de mim?

Seria esperar demais que um terapeuta respondesse uma pergunta deste tipo com um
simples 'sim' ou 'não'. Nada é mais complexo, mais delicado e influente do que a
psique. Mas o desenvolvimento de suas forças aparece quando se estabelece um
local livre e, no entanto, seguro. Somente então as possibilidades da psique se
tornam visíveis, que frequentemente consideramos como um milagre. A psique tem
uma tendência a curar a si mesmo. A tarefa do terapeuta é o de preparar o
caminho para esta tendência. Mas seria mera fanfarronice afirmar, com base na
39
inerente tendência terapêutica, de que o caminho será sempre achado. Adoramos
começar e terminar com base numa reflexão racional e esquecer, ao fazer isto, que
somos constantemente surpreendidos por eventos completamente irracionais.
Mesmo assim, enquanto houver uma possibilidade de cura, todo caso merece ser
tentado de uma maneira sincera.

Quando Tom entrou na minha sala de terapia pela primeira vez, tive a impressão
de que era um menino que não sabia o que era alegria ou diversão e o que
interessava na sua vida estava profundamente enterrado no seu interior.

Falemos de escola e de latim. Quando lhe perguntei algo sobre vocabulário, co-
meçou a bocejar. Esta era a melhor expressão pela sua completa falta de interesse.
Por este motivo, sabia que aconselhamento individual não ajudaria e que uma
mudança de ambiente também não provocaria nenhuma melhora sensível. Sua
falta de interesse era a expressão de um desenvolvimento desigual, cuja causa
ainda tinha que ser descoberta.

Quando veio para a segunda consulta, parecia muito mais alegre. Perguntou-me
diretamente se podia fazer algo na caixa de areia. Surpreendida pela sua
sugestão a de brincar, mostrei-lhe as miniaturas que poderia usar (Figura 23).
Algo que parecia ser impossível estava por acontecer. Primeiramente a areia foi
cuidadosamente misturada com água de modo que pudesse ser moldada.
Depois, com incrível cuidado, construiu paredes que representavam todo um
sistema defensivo. Armas pesadas, tanques, canhões e bombardeiros eram,
como se por um cálculo exato, colocados para defesa. Primeiramente o lado
esquerdo da caixa de areia foi deixado vazio. Somente depois que estava
satisfeito com o lado direito, depois que se tinha repetidamente convencido de
que as armas não podiam ser vistas do lado, é que se voltou para o lado
esquerdo. Aí colocou três peças leves de artilharia, com relativa rapidez, atrás de
uma proteção de metal razoavelmente fraca. Contemplou tudo e depois
adicionou quase que imperceptivelmente um avião, que definiu como tendo sido
derrubado dentro do sistema defensivo cuidadosamente construído.

Figura 23

A desigualdade dos campos opostos de força fez com que fizesse a única
pergunta dirigida ao rapaz durante toda aquela consulta: "Essas três peças
fracas de artilharia podem fazer frente a armas pesadas?" Sua resposta foi:
"Nunca se sabe".
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Essas palavras comoveram-me profundamente. Pois, inconscientemente, ele
mesmo expressou na sua resposta e possibilidade de uma cura.

O avião derrubado mostrava a sua própria situação. Até agora, toda a sua vida
foi desligada do inconsciente, mas a sua resposta mostrou-me que ele poderia
aprender, poderia se adaptar a poderosos fatores externos. No entanto, algo
dentro dele estava quase asfixiado. Era a criatividade dentro dele, que realmente
constitui o tornar-se um homem. No início da fase desenvolvimentista da
puberdade, quando o rapaz de transforma em homem e a menina numa mulher,
é extremamente importante que permaneça intacto o acesso às fontes inerentes
de energia que garantem o desenvolvimento da personalidade.

No seu caso isto tinha sido ameaçado na sua tenra infância. A criança, ao sair
do útero protetor materno para o mundo, ainda requer a proteção da mãe por
muito tempo. Tinha perdido isto. Através dos cuidados e, acima de tudo, através
do amor que a mãe dá à criança, ela fornece um sentimento de segurança, a única
segurança que é necessária para que a criança se desenvolva de acordo com o seu
próprio potencial. Se a mãe estiver ausente, então a criança se recolhe dentro de
si mesmo. A fim de se proteger contra as influências do meio ambiente, constrói
um abrigo para seu ser ainda inseguro. Por detrás de um tal abrigo, oculta-se o
medo que, ao se tornar demasiadamente grande, se transforma em agressão. Se a
agressão for contida, se não se puder manifestar, isto exige tanta energia interna,
que pouca ou nenhuma energia pode ser dada para qualquer coisa nova na vida.
Portanto, a criança subitamente se recusa a operar. Recusa-se a expandir
quando se espera "demais" dele. Neste caso, a exigência de que Tom começasse a
estudar latim tornou-se "demais" para ele. É facilmente compreensível de que
uma criança sensível, assustada por uma exigência que parece demasiada, perca
coragem e mostre uma aparente falta de interesse naquilo que se exige dele. Isto
provoca grande preocupação entre os pais e professores.

O avião derrubado no nosso cenário era uma expressão do que sentia como
sendo a sua situação sem esperança. Estava no alcance onde a agressão retida
estava representada na forma de armas pesadas por detrás de abrigos pesados.
Esta era a situação que vivia quando fez esta representação. Na verdade, esta
era a primeira brincadeira criativa que começou a animar sua resistência
enrijecida. A dinâmica bloqueada dentro dele estava representada por três peças
de artilharia leve por trás de uma estrutura fraca. Que fossem em número de
três pareceu-me significativo, já que o número três é um número dinâmico.
Sempre que o encontramos, está sempre ligado a um início e uma meta. Em
contos de fadas, por exemplo, sabemos das três tarefas difíceis que o jovem herói
deve executar a fim de conquistar a sua princesa e ganhar para si o reino.

O nosso rapaz também quer atingir o seu reino, que residia no fato de se tornar,
como uma pessoa de acordo com a sua tendência normal, um membro da
coletividade.

Afinal, não somos cada um seu próprio mestre e rei que é capaz, com seus
talentos e habilidades, de desempenhar uma tarefa que diariamente revive e o
torna feliz? Não interessa em que campo, quer seja de habilidade manual ou em
disciplinas intelectuais. Mas o que seria do rei sem o seu reino? E, acima de

41
tudo, de onde ele tira seu poder quase sobre-humano para liderá-lo e governá-
lo?

Num significado simbólico adicional, o número três tem a chave de como este
poder pode ser alcançado. Desde os tempos antigos, o número três não é apenas
dinâmico mas também definido como sendo sagrado. Milhares de anos antes do
cristianismo, atos de natureza divina estavam ligados a ele, quer seja na
Babilônia, no Egito, na Índia ou outras culturas - o homem tinha ou uma tríade
de deuses ou então um deus com três atributos cooperativos.

Assim, três parece ser ligado a um poder sobre-humano que aponta para
desenvolvimentos futuros.

Sobre isto, Jung disse na sua Interpretação Psicológica do Dogma da Trindade


[Obras Completas, Vol., XI/2, pág. 82 § 286).): "A tríade é também um arquétipo,
e como força dominadora não apenas favorece uma evolução espiritual, como a
obriga, em determinada circunstâncias. do se lhe não presta devida atenção e é
recalcado. A sombra é uma componente da natureza humana”. Aqui a
necessidade de desenvolvimento no cristianismo é evidente. Na trindade, Deus é
representado por três entidades - Pai, Filho e Espírito Santo - todos de natureza
divina. Assim, a trindade, produz a religiosidade pertencente ao homem que
nutre e fortalece a alma. Sob a proteção destes poderes divinos, que eram
conhecidos pelo inconsciente do nosso menino, surgia a esperança de vitória
sobre suas avassaladoras agressões. As suas ainda débeis energias eram
ativadas por algo maior do que o seu ego.
Está nas mãos do terapeuta interceptar tais poderes reveladores numa criança e
protegê-los a fim de dar-lhes a possibilidade de se tornarem eficazes.

Surpreendo-me repetidamente com a descoberta de quão intimamente ligados


estão a psique de uma criança com tendências espirituais e sagradas. As
simples palavras da criança "nunca se sabe", diziam de uma sabedoria
profundamente temporal que me fez pensar involuntariamente no filósofo chinês
Lao-tsé. Encontramos no capítulo 76 do Tao Te Ching algo que é válido tanto
para o ocidental como para o oriental:
O Homem, quando entra na vida
é delicado e fraco,
E quando morre
é então rijo e forte.
É por isso que os rijos e fortes são
companheiros da morte,
os delicados e fracos,
companheiros da vida.
Por este motivo:
Se as armas forem fortes, não seremos vitoriosos

e no capítulo 78
Aquilo que é fraco conquista aquilo que é forte,
e o que é delicado conquista o que é rijo,
Todos na terra conhecem isto,
mas ninguém quer agir de acordo.

42
Lao-tsé expressa aqui a possibilidade do fraco triunfar sobre o forte, o que não é
conhecido na história, pelo menos nos nossos tempos. Penso nos antigos suíços
ou nos israelenses que receberam forças insuspeitas na profundeza da sua
fraqueza devido à sua profunda fé e que os levaram a vitória.

Quando o menino apareceu para a próxima consulta, queria novamente brincar


na caixa de areia (Figuras 24, 25). Deliciada com o seu desejo de brincar e
excitada na expectativa de como a sua condição iria se desenvolver, de bom
grado deixei que fizesse o que lhe agradasse. Uma outra "construção" foi feita de
uma forma um tanto mais solta. Quando contemplou-a, disse: "Isto não está tão
construído como antes".

Figura 24

Figura 25

De fato, as paredes já não eram tão altas e parecia que o menino já começou a
retirar as paredes do abrigo.

Novamente na próxima consulta, Tom foi sem demora à caixa de areia.


Novamente construiu paredes, mas desta vez havia uma pista de pouso no qual
aviões e bombardeiros estavam prontos para decolagem. Era grande e largo,
orientado para a esquerda, o lado da possibilidade ainda não experimentada.
Isto significava que as suas agressões anormalmente intensas, que tinham sido
bloqueadas, estavam com o caminho livre e podiam ser realizadas. Como e de
que maneira isto poderia ocorrer com um rapaz que na sua vida nunca tinha
conscientemente destruído nada? Fiquei aguardando, excitada.

43
Na próxima consulta, não queria mais brincar na areia. Perguntei-lhe então o
que queria fazer, olhou à sua volta e descobriu alguns dardos que ele
eventualmente lançou no alvo destinado a eles. No entanto, após um pouco,
ficou entediado de jogar dardos no alvo e começou a lançá-los na minha parede
de painéis recém pintada. Usava tanta energia no arremesso que lascas caiam
das paredes de madeira. Provavelmente para seu grande espanto, deixei que
fizesse o que queria. Pela primeira vez, a sua face se iluminou. Que eu não o
repreendesse nem tivesse dito, por exemplo: "É terrível como você está
demolindo a minha sala!", lhe deu a sensação de que aqui havia algo que
poderia ajudá-lo.

O jogo com os dardos não era suficiente. Uma pequena espingarda de ar


comprimido que descobriu pareceu mais atraente. Novamente começou a atirar
no alvo e parecia tirar prazer disto. Mas queria fazer barulho, ouvir
estardalhaço. Aí veio um pensamento, a medida que andamos juntos de que na
adega de vinho estavam empilhadas muitas garrafas vazias. Estas poderiam ser
alvejadas em estilhaços. Voavam em milhares de cacos. Por algumas horas, esta
atividade tornou-se o seu maior prazer, mas também chegou ao fim quando
acabaram as garrafas. Agora tinha outro desejo: queria derrubar a tiros o
candelabro do teatro da cidade. Podia-se prontamente reconhecer que enorme
agressividade ainda estava contido no menino. Que um tal desejo não pudesse
ser satisfeito também ficou claro para ele, mas ainda gostaria muito de quebrar
algo que ainda estivesse inteiro. Dei-lhe liberdade de escolher um objeto na
nossa sala, já que sentia que as suas agressões tinham começado a procurar um
alvo. A selvageria, que simplesmente encontrou sua expressão no barulho,
parecia gradualmente a ficar para trás. Olhou até que viu uma pequena mesa
quadrada de madeira na casa de bonecas. Perguntou se pudesse atirar nela.
"Sim, pode", respondi.
Primeiramente, parecia que a pequena mesa da casa de boneca parecia um alvo
razoavelmente modesto se comparado com o candelabro. No entanto, o quadrado
da mesa significava uma totalidade. Instintivamente, o menino tinha agarrado
um símbolo da totalidade; assim, tendia em direção à uma centralização.
Portanto, deixei-o fazer o que quisesse. O que vislumbrei por detrás da sua
atitude destrutiva pode não parecer evidente para o leigo.
O homem, nasce como uma totalidade. Ele se volta para a totalidade. Uma
totalidade não vivenciada prejudica o desenvolvimento normal. Como as
circunstâncias do menino tinham evitado um desenvolvimento positivo para ele,
estava tentando experimentar uma totalidade através da sua atitude destrutiva
para com a mesa.

A esta altura, pensei, no significado espiritual da arte do arco e flecha no Japão.


Esta arte é aí praticada por muitos mestres, mas não significa competição
sangrenta com um oponente vivo. É um exercício espiritual, uma compreensão de
si próprio. Quando se mira no centro do alvo, está-se mirando no nosso próprio
centro. Desta maneira, o arqueiro tenta alcançar seu próprio centro, geralmente
um penoso treinamento que dura anos. Eugen Herrigel diz isto no seu livro
"Kunst dês Bogenschiessens", "A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen":
"A competição brota da existência daquilo que o arqueiro mira em si mesmo
- e, no entanto, não a si mesmo - já que pode alvejar a si mesmo - e, no
entanto, a si mesmo - e, desta maneira, sendo o atirador e o alvo, ele é o
44
oponente e o oposto. O arco e a flecha em si são apenas um subterfúgio do
que poderia também ocorrer sem eles. É o caminho para uma meta, não a
meta em si".
Aqui vemos claramente o que mencionei anteriormente; isto é, que o valor quatro
(a mesa quadrada) aparece quando se busca uma centralização, num sentido de
totalidade. O menino também era o oponente e o oposto. Tinha que atingir
aquele aspecto que impedia seu desenvolvimento e, ao fazer isto, atingir a si
próprio. Fazendo isto, uma atitude antiga poderia ser trocada por uma atitude
nova.

Uma miniatura pertencente à caixa de areia foi o seu próximo alvo.


Representava um homem que, na linguagem Junguiana, exibia uma verdadeira
defesa da "persona". Isto significa uma defesa que ê tão perfeita olhando-se de
fora que não permite reconhecer o que ocorre no interior. Colocou a miniatura
numa bola de argila e destruiu-o inteiramente a tiros. Agora tinha
definitivamente vencido a defesa.

Devo reconhecer que perguntei a mim mesma se não tinha ido longe demais ao
deixar isto ocorrer. Temia que agora quisesse atirar em pessoas vivas.

No dia seguinte perguntei ao pai que efeito teve este acontecimento sobre o
menino. "Algo muito fora do comum ocorreu comigo na noite passada",
respondeu. "Pela primeira vez desde a tenra infância, Tom deu-me um beijo de
boa noite".

Finalmente algo tinha rompido a rígida resistência do menino. Ele próprio


destruiu a sua máscara. As emoções e sentimentos romperam o bloqueio. Como
resultado disto podia abraçar seu pai.

Mas isto me comoveu ainda mais porque sabia que o próprio pai era incapaz de
mostrar à criança seus próprios sentimentos espontaneamente. O pai estava
felicíssimo de que menino agora chegava até ele.

Assim, chegou o momento em que as agressões negativas tinham sido


adequadamente vivenciadas. Este ponto frequentemente não é fácil de ser
reconhecido. Mas é um dos momentos mais importantes num tratamento. Se
este momento for perdido, corre-se o risco de que as energias liberadas
assumam permanentemente uma forma destrutiva.

Por este motivo, é extremamente importante que as energias recém-despertas


sejam captadas pelo terapeuta e orientadas para caminhos construtivos.

Na consulta seguinte, o menino descobriu uma tocha à querosene.


Primeiramente, divertiu-se no jardim, deixando vazar o querosene para fora da
tocha, de modo que pudesse acendê-lo depois. Assim, chamas muito pequenas
eram provocadas e reconheço que era uma brincadeira muito divertida. No
entanto, não era isso que estava atrás no momento, e portanto, interferi de uma
maneira orientadora pela primeira vez durante o tratamento.

Expliquei-lhe que a tocha à querosene era um instrumento muito útil que


poderia, por exemplo, dissolver tinta velha da madeira. Naquela época, ainda
havia na minha casa, que foi construída na Idade Média, muitas vigas que
estavam pintadas com uma cor feia. Juntos tentamos dissolver a tinta com a
45
tocha. Agora isto foi realmente interessante. O entusiasmo por esta brincadeira,
que se tinha transformado em trabalho, perseverou. As mesmas energias que
dissolviam a tinta com a chama instantaneamente assumiram um efeito positivo
à medida que aparecia a madeira antiga e bonita das vigas. Este era o equivalente
a uma “enantiodromia" das forças.

Agora pareceu-me que tinha chegado a hora para um novo cenário e ele mesmo
aceitou a sugestão com prazer (Figura 26).

Figura 26

Vi com satisfação de que os tanques não foram mais tocados. Pela primeira vez,
foram usados cores, árvores e pessoas. Onde anteriormente foram construídos
abrigos fortes, havia uma tênue floresta sobre a paisagem. À esquerda disto -
não podia crer no que via - quatro mulheres índias com crianças nos braços
sentavam em volta do fogo.

A situação familiar arquetípica tinha sido revivida. O que havia se rompido na


tenra infância tinha começado a se juntar de novo! O que se tinha desenvolvido
de uma maneira negativa durante anos e cujo símbolo tinha que desaparecer na
forma da destruição da mesa quadrada, tinha agora se manifestado de uma maneira
maravilhosa.

No mesmo lado, quatro índios com todos os paramentos de penas estavam em


volta de um totem. No outro lado da pequena floresta estava ocorrendo uma luta
entre cowboys e índios. A minha pergunta "O que representam os índios na
frente do totem?", ele respondeu: "Estão rezando para que a luta acabe
beneficiando-os". Não há duvida de que o simbolismo neste cenário é a
aparência do que Jung chamaria de Self. As quatro mães, como uma
representação simbólica da totalidade infantil no seu melhor sentido, mostrava a
representação do que aconteceu com o menino. A infinita insegurança a que ele
estava exposto até então poderia agora, com base nesta família sólida e
completa, se transmutar em segurança

Fiquei profundamente comovida por esta feliz mudança. A minha experiência diz
que tal transformação e manifestação são sempre sentidas como um despertar
espiritual. Isto foi-me novamente confirmado pela fato dos índios estarem rezando. A
vida, especialmente na puberdade, é sentida como uma luta. Mas se for lutada
com base numa segurança profundamente arraigada que contém uma qualidade
numinosa, então desenvolve e fortalece a personalidade total.
46
Uma semana depois, foi produzido um cenário similar que aprofundou a
impressão daquilo que havia precedido (Figura 27). Havia quatro índios com
cachimbos da paz nas suas bocas sentados em círculo em volta do fogo,
enquanto que uma mulher sentava atrás deles. Algumas mulheres estavam
cozinhando e algumas tinham crianças no colo. Aqui foi atingido o centro.

Figura 27

Enquanto que o número quatro está ligado, na maioria das culturas, com a terra
e, portanto, a uma situação de realidade, o círculo significa um símbolo de
totalidade, céu e que está voltado para o espiritual. Já que, de acordo com o meu
ponto de vista, a manifestação do Self, que é representado de muitas maneiras
mas de forma mais impressionante no círculo, significa o ponto de partida para
um ego saudável e um desenvolvimento de fatores inerentes de personalidade, a
mim parecia que um desenvolvimento saudável do menino estava assegurado.
Mas os seus primeiros sinais exigem proteção e cuidados, como uma criança
recém-nascida. Portanto, seria errado dar alta para a criança a esta altura da
terapia. O potencial para progresso, que estavam anteriormente inibido e
portanto, sentido como agressão, tornou-se livre e deve agora ser ajudado e
orientado. Ai é possível que tarefas aparentemente insolúveis ou talentos que
não podiam se expressar, possam então repentinamente serem abordadas com
facilidade.

As muitas energias que agora despertaram no rapaz estavam representadas num


cenário em que ele usou duas caixas de areia (Figura 28). Representava uma
corrida de carros no qual seu carro favorito estava na ponta. Os carros da
corrida, com seus motores possantes, representavam duas forças libertas, que
agora se movimentavam de maneira ordeira e estavam orientados para uma
meta. Caso saíssem para fora da pista, então os bombeiros, ambulância e
caminhão de transporte estavam à postos. Mas onde no primeiro cenário havia
um avião derrubado e estava indicado situação desanimadora, agora havia um
helicóptero pronto para voar. Na verdade, o menino tinha vivenciado as três
etapas psíquicas, que estavam aparentemente indicadas como simbolizadas no
número três, na forma de armas leves situadas à esquerda:
1. Expressão das agressões
2. Manifestação do Self
3. Um uso positivo das fontes de energia

47
A meta ou, em outras palavras, o reino que queria obter, estava prestes a ser
atingido.
Encontrou satisfação em trabalho construtivo. Fez muitos amigos e tornou-se
também um bom amigo para seu pai. O seu trabalho na escola melhorou. Hoje,
seis anos após e já com alta há muito tempo, chegou ao ponto de prestar os
exames em Matura e ele mesmo responde a pergunta que nó início da terapia
tinha sido tão difícil de responder.

Figura 28

Capítulo 4
48
GABRIELA
Separação de Uma Avassaladora Fixação Materna

A mãe descreveu Gabriela, de doze anos, como sendo tímida e retraída. Faltava-
lhe a coragem a ir em qualquer lugar sem a sua mãe. Não foi nem capaz de pas-
sar uma noite com a sua avó. Tinha dificuldade em arrumar amigos. Era uma
criança solitária. Sua professora reclamava da sua falta de interesse e parti-
cipação nas atividades escolares. Apesar de ser crescida e fisicamente bem
desenvolvida, dava a impressão de ser uma aluna totalmente passiva, incapaz
para o nível ginasial para o qual tinha sido designada. A escola propôs colocar a
menina num nível menos avançado. Seus pais ficaram muito perturbados com
isso e trouxeram-na para mim.

Gabriela dispôs-se de bom grado a aceitar minha sugestão de brincar com as


miniaturas da minha coleção (Figura 29). Usando suas próprias palavras,
começou deixando que as vacas pastassem dentro do pasto cercado. Do outro
lado, havia uma carroça puxada por dois cavalos cujos pés estavam bem
enterrados na areia. Diretamente em frente dos cavalos, havia uma estrada que
levava a um hotel no lado oposto. Um homem estava andando em direção ao
hotel. Ao lado da estrada, sob uma árvore, havia um banco para descansar.

Figura 29

Parecia que a carroça da vida de Gabriela, sua habilidade de se mover de uma


etapa da vida para outra, tinha, estancado. Os cavalos podiam avançar somente
com maior sacrifício. Suas patas tinham parado perto de uma esfera maternal,
representada pelas vacas pastando. O caminho em direção ao mundo parecia
longo e quase impossível. Isto estava representado por um hotel, um lugar que
está aberto a hóspedes. Já que isto foi colocado no canto esquerdo oposto,
indicava que a menina deveria entrar em contato com seu inconsciente - com,
por assim dizer, suas próprias, fontes internas. Isto era necessário a fim de
permitir que ela vivenciasse um desenvolvimento adequado. No hotel, havia a
figura de um homem, que ao contrario da mãe que representava o mundo
doméstico estabelecia o relacionamento da menina com o mundo exterior.

Na segunda consulta, contou-me que teve um sonho "horrível" envolvendo


cobras e ela não podia esquecer do sonho. Sugeri que ela desenhasse ou
pintasse estas cobras, já que coisas alarmantes geralmente perdem o seu poder
de assustar quando se procura reproduzi-las.

Começou imediatamente a trabalhar nisto e com mão firme, desenhou oito


cobras estavam que dispersas no campo. Foram então coloridas com aquarelas e
o campo foi pintado com verde vivo salpicado de flores. Gabriela achou que o
cenário dava um aspecto razoavelmente alegre. Uma cobra que estava enrolada
era o único senão do cenário. Representava que o problema ainda estava
totalmente no inconsciente, um lado ainda completamente não desenvolvido e

49
pálido do eu da menina. A cobra geralmente aparece no inconsciente durante a
puberdade. A troca da pele da cobra simboliza a renovação que está preparada
no inconsciente. Contem o segredo da vida. Para a menina de doze anos, a cobra
enrolada representava o lado feminino ainda não desenvolvido.

Para uma criança ou jovem, procuro interpretar os sonhos, assim como os


cenários, ao nível da compreensão consciente da criança ou jovem. Por este
motivo, perguntei à Gabriela quantas matérias tinha na escola. A resposta foi
oito! Disse que era regular nas oito. Somente tinha dificuldades em matemática.
Vemos que, das oito cobras, a cobra enrolada representa a matéria mais
detestada e, de agora em diante, tinha que se prestar mais atenção nela de modo
a adquirir prática Com isto, o sonho perdeu o aspecto ameaçador para Gabriela.

Na terceira consulta, fez seu segundo cenário, que representava um cruzamento


bloqueado (Figura 30). Dos quatro lados vinham carros para o cruzamento. No
entanto, a estrada era demasiado estreita e parecia impossível que pudessem
passar. Somente a ambulância, que tinha direito de percurso, podia passar,
conforme explicou Gabriela.

Figura 30

O marcante disto foi o fato de que o fluxo de carros da esquerda passava por
uma estrada ladeada de árvores. Poder-se-ia supor que as energias bloqueadas
na inconsciente já estavam sendo ativadas. Esta ideia foi reforçada por um posto
de gasolina no canto inferior esquerdo do cenário. Aqui os motores eram reabas-
tecidos com novas energias.

Todo cunho do cenário parecia dar uma indicação esperançosa de que estas
novas energias galopantes poderiam ser disciplinadas em terapia e que ela
poderia vencer a sua passividade. (Havia uma ambulância para ajudar).

No terceiro cenário, podia-se ver que as energias vitais tinham realmente


começado a fluir. Um largo rio cruzava a paisagem. Uma ponte, sobre a qual os
carros podiam passar, ligava as duas margens. Novamente havia um hotel, mas
agora podia ser atingido de carro.(Figura 31).

50
Figura 31
Gabriela trouxe pedras grandes tiradas do jardim do lado de fora da sala de
brincar e colocou-as no rio. A água corrente indicou que as restrições na menina
tinham começado a se dissolver, mas as pedras indicavam que os impedimentos
ainda tinham que ser vencidos. As pedras que represavam o curso natural da
água indicavam dificuldades. Por outro lado, este mesmo cenário lembrou-me de
uma representação chinesa de água descrita da seguinte maneira no "I Ching"
(Livro das Mutações): "A água corre ininterruptamente e atinge a meta. Flui e
não se acumula em lugar nenhum. Sua natureza confiável tampouco se perde
nos locais perigosos".
Isto dava confiança para o futuro - especialmente desde que Gabriela tinha-se
também tornado muito mais ativa e disposta na vida cotidiana. Encontrava
ocasionalmente com os amigos e convidava-os a irem em casa. Gostava de
trabalhos manuais e, acima de tudo, de pintar e desenhar, no que tinha muito
talento.
No quarto cenário representou um circo (Figura 32). Todo o espaço estava
dividido em seis quadrados. Em cada um deles, estava sendo encenado algo. No
canto superior esquerdo, havia tigres e leões exibindo seus talentos. Um tigre
estava descendo do pódio enquanto que um leão estava prestes a subir nele. Na
área contígua, um domador trabalhava com quatro elefantes. No canto, cinco
bailarinas formavam um círculo. No canto inferior esquerdo, cavalos brancos
circundavam um que estava no meio. Na próxima área, havia uma carruagem
romana e no canto inferior direito da caixa de areia havia palhaços exibindo
suas habilidades. Bem embaixo, havia bancos para os expectadores.

Figura 32
51
As diferentes representações em todos os cenários apontavam para uma
centralização ou representavam uma oircuambulação: o tigre, aparecendo com o
leão, tinha que ser considerado como o feminino, a sombra do leão. Em latim,
"tigris", o tigre, contém um caráter feminino e representa a feminilidade escura.
O leão, na qualidade de rei dos animais, e associado com o sol devido à sua juba
amarela. Aponta para uma iluminação do consciente como parte da
personalidade. A sua vitalidade fala de energias que estão prontas a se tornarem
conscientes. Já que na representação o tigre estava descendo do pódio no centro
e o leão estava prestes a subir nele, podemos supor que uma transformação no
desenvolvimento da menina estava aqui indicada. Isto levaria a uma
revitalização das energias que tinham, até então, permanecido adormecidas na
menina. Esta vitalidade estava também expressa nos elefantes, um símbolo geral
para força e sagacidade.

A verdadeira feminilidade da menina estava expressada na dança das bailarinas


(Figura 32). Walter F. Otto diz em seu livro "Der Tans" (A Dança): "A dança
originalmente uma expressão espontânea de apreensão, onde o apreendedor e
apreensivo se uniam em um". A pessoa que dança torna-se o cenário do seu
interior. Aqui a círculo das bailarinas indicava não apenas a feminilidade mas
também o contato com uma divindade do interior que habita em todo ser
humano. O círculo sempre foi essencialmente um símbolo religioso.

A menina de doze anos apresentava aqui uma profunda experiência interna, que
nunca traduziria em palavras.

Cavalos são animais com excelente instinto e, como animais de carga, tem um
aspecto maternal. Cavalos brancos são cavalos celestes e estão perto dos deuses.
Por este motivo, os cavalos brancos circundando um outro no centro, de pé
sobre suas patas traseiras, podem expressar um impulso religioso ainda
inconsciente na menina.

As carruagens romanas lembravam o significado original do circo. "Kegkos" é


uma palavra grega que significa círculo. Novamente aqui, o fato de se mover em
círculo indicava o Self.

O palhaço é o bobo da corte no circo que desenvolve um profundo conhecimento


de todas as habilidades artísticas. Por detrás de suas palhaçadas, há uma
profunda sabedoria que se aplica a todos nós. O palhaço deixa isto ao
discernimento do seu público.

Normalmente, isto leva a um período de paz interior, que a menina expressou


nos movimentos circulares em volta do centro. Todo o mencionado acima fez
com que fosse possível acreditar que o esperado desenvolvimento da
personalidade tinha chegado ao ponto de realização.

A Figura 33, feita algumas semanas depois, mostrou que esta suposição estava
correta. Entrementes, o trabalho de Gabriela e a participação geral em
atividades escolares melhoraram significativamente e seus esforços estavam
sendo reconhecidos.

52
Figura 33

Este penúltimo cenário mostra cinco mulheres que estão buscando água no
poço da vila. (Poço: um telhado vermelho sobre a pequena floresta). A esquerda,
um homem está de pé. Um caminho com uma ponte sobre ele vai até uma vila
próxima.

Ao contrário, as cinco bailarinas que se moviam em círculo (Figura 32), tornando


a experiência numinosa, essas cinco mulheres estavam fazendo uma tarefa
diária. Em oposição ao anterior, agora aqui está representada a feminilidade
natural: a mulher que cuida da alimentação e bem estar da sua família. Ela
pertence àquela fase do crescimento na qual ocorre a transformação de menina
para mulher e na qual o ego é fortalecido.

Aqui a menina de doze anos agora atingiu a fonte do inconsciente, do modo


prognosticado no primeiro cenário. Foi a fonte da sua natureza, oculto até então,
mas agora trazido até a superfície. A ação de retirar água do poço é, como a
pescaria, uma ação simbólica: através dele, os conteúdos das profundezas do
inconsciente são trazidos à tona.

A figura do homem em pé um pouco para o lado é considerado como o lado


masculino da menina. Ele agora assumiu seu papel importante na formação da
sua personalidade.

Tenho repetidas vezes observado que o "outro" lado do homem torna-se


positivamente ativado logo apôs a vivência da centralização. Somente então é
que se pode formar o relacionamento com a coletividade, com o mundo exterior.

Gabriela, cujos problemas escolares estavam agora solucionados e cujo


relacionamento com a mãe tinha abrandado, dedicou-se de agora em diante à
pintura. Seus desenhos indicavam que o crescimento da jovem menina estavam
cada vez mais voltado para o mundo exterior.

Finalmente, mostrou a sua disposição de sair da casa dos pais num último
cenário (Figura 33): num aeroporto, aviões estavam prontos para a decolagem,
navios estavam ancorados prontos para a partida, um vagão de correio e um
carro estavam prontos para partir e um trem estavam prestes a se mover. Todos

53
estavam prontos - na água, na terra e no ar - para explorar os quatro pontos
cardeais.

Figura 34

54
Capítulo 5
CHRISTIAN
Cura de Uma Enurese

De uma maneira geral, sabemos que é muito difícil curar uma enurese. É
especialmente difícil quando a criança atingiu uma idade em que isso deveria ter
sido cuidado muitos anos atrás. Portanto, tive sérias dúvidas quando uma mãe,
que morava longe da minha cidade, pediu se eu podia ajudar seu filho de doze
anos a se livrar deste mal durante umas férias de oito dias. Finalmente cedi às
suas súplicas e concordei em ver o menino no meu consultório. Esperei chegar à
raiz do problema durante esta consulta. Durante as suas férias, o menino ficou
com parentes que moravam perto de mim.

Ele estava no sexto ano e era um aluno muito destacado. Na presença da sua
mãe, que era a autoridade da família, parecia muito inibido. O pai era
complacente. O rapaz relaxou imediatamente assim que entramos na sala de
brincar.
.
Como esperava ser capaz de diagnosticar seu mal o mais rapidamente possível e,
se fosse viável, dar um prognóstico, pedi que o rapaz fizesse um cenário com as
minhas miniaturas, Este não é o meu procedimento usual. Obviamente
estimulado por esta ideia, colocou logo mãos à obra. Mas ele também duvidava
de que isto fosse curar o seu mal. Enquanto trabalhava com as miniaturas,
começou a falar. Disse-me que sofria muito com a sua enurese. Já havia
consultado vários médicos, mas nada adiantou. Ele sempre acordava quando já
era tarde demais para ir ao banheiro. Chegou até mesmo a tentar um
complicado mecanismo para acordá-lo em tempo, mas isto tampouco ajudou.

Disse-lhe que sentia muito, quando confidenciou-me a sua dificuldade;


evidentemente, sofria muito. Novamente balançou a sua cabeça - não podia
entender como é esta caixa de areia poderia ajudá-lo. Expliquei-lhe que poderia
descobrir as raízes das dificuldades a partir do cenário e que este conhecimento
se baseava em exaustivos e profundos estudos que eu tinha feito. Quando
descobrisse a causa do seu problema, poderia ser capaz de ajudá-lo. Expliquei-
lhe também que temos muita coisas dentro de nós sobre as quais nada
conhecemos. Às vezes, estas poderiam ser boas ideias que poderiam ajudar; às
vezes, poderiam ser ideias ou imagens destrutivas. Tais imagens poderiam
aflorar à superfície enquanto brincava na areia. Esperava ser capaz de detectar
se tinham algo a ver com a sua enurese.

Pensativo com o que acabara da ouvir, olhou-me e começou a escolher algumas


miniaturas (Figura 35). Com a sua mão, desenhou algo oval na areia. Isto ele
povoou com soldados e cruzados. Sentia que estavam lutando entre si. Separou-
os com uma cerca alta. Estavam sob o fogo disparado pelo lado de fora por
outros soldados. Um ferido foi retirado de maca. Alguns ingleses estavam por
perto, sem participar na batalha. Disse que poderiam ajudar a trazer a paz. No
entanto, num ponto intermediário perto do canto oposto de caixa de areia,
colocou um pelicano.

Deste cenário, pude facilmente perceber as energias contrarias lutando dentro


do rapaz. Produziam insegurança e, portanto, sentia-se ameaçado de fora. Ele
até mesmo imaginou ser um soldado ferido (soldado na maca), como um que
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tinha sido ferido e que tinha que se retirar da batalha. No entanto, a situação
não era sem solução, já que os ingleses poderiam trazer a paz, disse Christian.
Não pode me dizer porque é que só os ingleses poderiam trazer a paz. Apenas
comentou que "gostava" muito deles.

Figura 35

Tive que encontrar um significado para os ingleses, um significado que fosse


válido para todos, já que não havia uma associação pessoal. O caráter inglês foi
moldado pela sua situação insular e pela estabilidade da sua sociedade. Os
ingleses aparentam ser autoconfiantes e equilibrados. O mundo inteiro conhece
os conceitos gerais de "gentlemen" (cavalheiro) e "fair play" (jogo limpo).
Demonstram um desenvolvimento de caráter que é tão importante aos ingleses
como o conhecimento que adquirem na escola. Podia-se deduzir disto que o
rapaz ansiava por uma estabilidade interior. Mas qual era o significado do
pelicano que contemplava todo o cenário? Um pelicano é o símbolo do amor
materno. De acordo com mito antigo, ele rasga o seu próprio peito para
alimentar seus filhotes, com o seu próprio sangue. Será que isto significava que
Christian inconscientemente esperava a restauração da sua paz interior sob a
proteção da unidade mãe-filho? Todo o cenário apontava em direção a um
problema materno.

A mãe me disse que teve toda a responsabilidade pela criação dos seus quatro
rapazes. Teve que discipliná-los e ensinar-lhes ordem, porque o pai estava
completamente absorvido pela sua profissão. Portanto, este mimava os meninos
nos raros momentos que ficava junto.

No dia seguinte, Christian fez um outro cenário (Figura 36). Isto foi ainda mais
indicativo do seu problema. Representava um circo. Na arena, havia um
domador com quatro tigres amestrados. No centro Christian colocou um poste
de luz com quatro braços. Isto é muito incomum para uma arena de circo. Os
espectadores estavam todos à volta. A esquerda, havia artistas, palhaços e
carruagens romanas prontas para entrarem no próximo número.

Ficou claro para mim que Christian sentia a educação da sua mãe como uma
"domação”. A mãe assumiu o papel do pai com muita força e energia e em boa
fé, mas ele sentia falta de afeto por parte da mãe.

Tentei, portanto, aceitá-lo sem restrições. Começou a sentir à vontade comigo e


queria brincar com outros materiais. Como estava perto do Natal, queria
aproveitar e oportunidade de fazer alguns presentes de Natal. Começou a
56
trabalhar com barro. Foi capaz de fazer um vaso muito bom. Depois, queria
esmaltá-lo. Tornou-se alegre e disposto, e fiquei contente ao ver a sua liberação
após ter feito dois cenários na areia.

Figura 36

Este era completamente diferente (Figura 37). Construiu, com grande cuidado,
uma estrada larga com um caminho por baixo. Isto foi razoavelmente difícil de se
fazer e foi necessário muito trabalho com madeira de modo que pudesse colocar
areia em cima para forrar uma estrada firme e sólida. O tráfego em ambas as
direções estava disciplinada por uma faixa forte e visível no meio da estrada. A
estrada que passava por baixo tinha tráfego intenso orientado pela polícia. Isto
mostrava que as energias agressivas, retratadas no primeiro cenário, estavam
agora bem disciplinadas e tinham perdido a sua agressividade.

O pelicano no primeiro cenário foi substituído - mas no lado oposto - por uma
enfermeira. Christian tinha sentido a minha total aceitação dele e, portanto,
sentia-se tão seguro como sob a proteção de uma mãe dedicada. Isto agora
começou a ter um efeito terapêutico sobre ele.

Figura 37

No dia seguinte, brincou novamente com outros materiais. Quando estava muito
ocupado fazendo um avião para seu irmão, disse repentinamente:

"Sra. Kalff, a senhora sabe mais do que um médico".


"O que você quer dizer com isso?", perguntei.
"Já faz duas noites que não molhei a minha cama", respondeu.

57
Fiquei muito contente, e torci em silêncio para que isto não ocorresse mais. Ele
tinha se livrado da dúvida de que a caixa de areia poderia ajudar tanto quanto
os remédios de um médico. Parecia ter havido algum sucesso no meu tratamento
e discuti com Christian a possibilidade de receber permissão do seu professor
para prolongar a sua estada aqui. Ficou encantado com a ideia e recebemos um
prolongamento de oito dias. Christian vinha diariamente e continuou a fazer
presentes de Natal. Queria fazer algo para seus irmãos e pais. Nunca discutimos
a sua enurese. Certo dia, ele repetiu, enquanto balançava a sua cabeça, "É
verdade - a senhora sabe mais do que os médicos".

Sua cama permaneceu seca. Falou sobre seus irmãos e pais, e senti o quanto
gostava deles. Sentia-se suficientemente seguro para esperar que acontecesse a
coisa mais ansiada por ele que pudesse ir com os amigos numa viagem de esqui.
Até agora, teve que ficar em casa devido à sua enurese.

Seu trabalho de duas semanas comigo tinha acabado. No último dia, pedi que
fizesse um outro cenário (Figura 38). Novamente começou com um circo. Mas
desta vez os ingleses eram os atores. Representavam a paz interior. Quase não
pude acreditar! Uma transformação tinha aparentemente ocorrido neste curto
espaço de tempo. Sugeri que continuasse a ter contato comigo por telefone.
Temia que a súbita interrupção de nosso íntimo relacionamento pudesse
provocar uma regressão. Quando se despediu de mim, sussurrou no meu ouvido
"A senhora realmente sabe mais do que um médico".

Figura 38

58
Capítulo 6
JAMES
Perda de Instinto Devido à Identificação Com Uma Mãe Extrovertida

James tinha dezesseis anos e era excepcionalmente alto para a sua idade. Seus
ombros eram tão largos quantos os de um homem, e suas maneiras eram
aquelas de um adulto. Fumava incessantemente e tinha a conversa fácil e
espirituosa. Seu objetivo era ter tantos amigos quanto fosse possível, a fim de
nunca ficar só.

Era o segundo filho de um total de cinco. Sua família tinha vindo dos Estados
Unidos para morar um ano na Europa. As crianças deveriam cursar escolas
alemãs, a fim de ter um maior contato com o povo e cultura europeias. Podia-se
ver que James, que teve problemas nos Estados Unidos com aprendizado e
concentração no colégio, iria fracassar numa escola estrangeira. Acima de tudo,
o seu inglês não correspondia à norma para a sua idade, parece que não havia
dúvidas de que seria incapaz de entrar numa faculdade no futuro. Por este
motivo, os pais pediram que deixasse rapaz morar comigo durante a primeira
parte da sua estadia na Europa.

A grande inquietação do rapaz foi imediatamente expressada durante primeiros


dias. Não podia ficar só, nem se ocupar com nada. Até mesmo revistas folheava
rapidamente. Isto fez com que levasse uma vida muito extrovertida. Quase todos
os dias ia ao cinema ou encontrar-se com outros num café. Ficar 'em casa’ era
um tormento para ele. No entanto, ficou evidente para mim que a sua
extroversão não era legítima. As piadas que acompanhavam as suas conversas
revelavam um desamparo que era também evidente no seu modo de andar -
aparentemente lépido mas, na verdade, razoavelmente pesado. Seus pés
pareciam grudar no chão como se procurassem segurá-lo. Qual seria a causa
subjacente?
Bem início da terapia fez um cenário representando uma cena rural: uma
fazenda com gansos, patos, uma porca com seus filhotes; um fazendeiro que
semeava suas terras recém aradas; dois cavalos, um claro e o outro escuro, num
cercado; árvores em flor e vacas pastando (Figura 39). A região era atravessada
por um pequeno rio que desaguava à esquerda num pequeno lago. Todo o
cenário dava uma impressão bastante pacífica. Perguntei a mim mesma se o
desejo do rapaz de se contactar com a natureza estava expressa nele.

Figura 39
59
Porém, duas coisas me chamaram a atenção: primeiramente, no campo onde as
vacas estavam pastando perto de árvores exuberantes, havia uma pequena
árvore desenxabida e sem folhas na qual dois corvos estavam sentados. A vaca-
mãe que dá o leite simboliza a mãe nutriente em muitas culturas antigas - na
Mesopotâmia, no Egito, na China e, ainda hoje, na Índia. Portanto, as vacas
pastando no seu cenário poderiam, ser consideradas como maternidade.

Já que a pequena árvore sem folhas estava à direita das vacas que estavam
pastando, deduzi que algo tinha destruído o relacionamento mãe-filho.
Consequentemente, perguntei à mãe de James se qualquer experiência ou
doença seria tinha ocorrido no primeira ano da sua vida que teria influenciado
seu desenvolvimento. Ela se lembrou de seguinte:

Quando James tinha nove meses, contraiu bronquite, que foi tratado com
inalador. Devido a um manuseio descuidado do aparelho, o berço tinha pegado
fogo. Felizmente, o bebê não se queimou seriamente e ficou apenas com uma
pequena cicatriz na testa. No entanto, achei que esta experiência foi um choque
para James. Considerando que nesta tenra idade a criança normalmente ainda
vive totalmente dentro da unidade mãe-filho, este choque foi suficiente para
destruir parcialmente este relacionamento. Seria possível que esta experiência
tinha provocado uma influência inconsciente?

Em segundo lugar, no cenário havia dois cavalos completamente isolados por


uma cerca. Não havia nenhuma abertura, nenhuma porta. O simbolismo do
cavalo tem muitas camadas e deve ser considerado de diferentes ângulos.
Primeiramente, o cavalo é um símbolo da esfera instintiva. Neste nível, está
intimamente ligado ao homem como cavaleiro. Nas contos de fadas, o cavalo leva
o príncipe perdido para casa. Diz-se frequentemente que o cavalo tem excelente
audição e visão. Estas habilidades o tornam um "psicopompo". Na qualidade de
cavalo de cor escura, está associada com Poseidon, o deus grego do mar que, de
acordo com a mitologia, revolve o mar com o seu tridente. O cavalo alado da
mitologia grega é Pegaso que abre a fonte de água, Hippokrene, com a sua pata.
Por este motivo, a capacidade de ajudar o inconsciente (água) a ir de encontro ao
consciente estava aberto a ele. Os cavalos também significam libido: isto é,
energias, devido ao seu passo rápido e sua intensidade (horse-power - HP =
cavalo-força).

O cavalo branco está ligado à luz, o sol. Cavalos brancos puxavam a carruagem
de Hélios. Foi também um cavalo branco que carregou à Índia o monge chinês
que voltou à China com manuscritos budistas. Lá havia um templo dedicado ao
cavalo. Desta maneira, estava também relacionado com religião. O cavalo branco
pode também ser encontrado na tradição cristã assim como na chinesa. No Livro
de Revelações da Bíblia, cap. 19 - versículo 11, diz que Cristo saiu com um
cavalo branco a fim de enfrentar os dois animais malignos que saiam do Hades.

Já que os dois cavalos, o escuro e o branco, estavam completamente isolados do


resto da fazenda, podia-se supor que uma perda de instinto foi a principal causa
do seu desenvolvimento unilateral.

Nestas condições, não podia frequentar a escola e, no entanto, pareceu-me


desejável que ele se familiarizasse com o alemão. Um estudante comprometeu-se
em ajudá-lo.
60
No entanto, pareceu-me que a coisa mais importante seria o de tentar aproximá-
lo dos seus instintos. Já que adorava animais, perguntei no zoológico sobre a
possibilidade de um cargo para ele. Tivemos sorte. Tinha acabado de fazer
dezesseis anos, que é a idade limite. Também tinha seguro, que era uma das
exigências do contrato de trabalho do jardim zoológico.

Ia ao zoológico duas a três tardes por semana. Limpava as jaulas dos macacos e,
após fazer o seu serviço, observava os animais. Esta tarefa era evidentemente
divertido para ele. Pouco a pouco, os animais o reconheciam e desafiavam-no a
brincar com eles. Um deles gastava muito de James e reagia afetuosamente.

A fim de saber como é que James se saía na escola, olhei seus livros, Pareciam
um tanto rasgados. Davam a impressão de pertencer a um menino que estava
entediado e, como consequência, tinha rabiscado nas páginas. Descobri na
última página em branco um pequeno desenho feito por James que representava
Cristo na cruz. No entanto, esta figura masculina não tinha pênis. James não
poderia ter retratado mais claramente a situação. Considerava-se como crucifi-
cado, já que a sua masculinidade não foi capaz de se desenvolver. De fato,
parecia muito ligado à mãe. Era o filho predileto dela. Ele era tão devotado para
com ela que o seu próprio eu não pode se desenvolver.

Um sonho que James me contou confirmou as minhas suspeitas. Sonhou que o


caminho que ia até a sua casa tinha crocodilos à esquerda e à direita. Os
crocodilos tem um aspecto ameaçador, agressivo até mesmo devorador.

Jung mencione no seu livro "Símbolos de Transformação" (Obras Completas Vol.


V, página 180), que os símbolos teriomórficos (representados por animais)
sempre se aplicam ao inconsciente ou à supressão dos instintos. Diz ainda:
"Estes são os alicerces virais, a leis que regem toda a vida. A regressão causada
pela repressão dos instintos sempre levam a um passado psíquico e,
consequentemente, à fase de infância onde os fatores decisivos parecem ser, e
ocasionalmente são, os pais".

O rapaz estava em perigo de ser atacado e devorado pelos crocodilos. Então, a


fim de poder enfrentá-los, era necessário entrar em contato com a sua esfera
instintiva. Eu esperava que um encontro com a sua libido ainda indiferenciada
pudesse evoluir a partir do seu relacionamento com os animais; isto é, aquela
energia que ainda adormece nas profundezas do inconsciente. Somente quando
conhecesse aquela energia é que seria capaz de dispor dela! Já que os crocodilos
vivem na água e na terra, representa a ligação entre o inconsciente e a esfera da
consciência.

Agora que estava separado de uma mãe enfática, extrovertida e dominadora pela
primeira vez, foi terrivelmente difícil para James se orientar. E, no entanto, ele
rapidamente tornou-se feliz na nossa casa e tentou se adaptar ao nossos
hábitos. Eu prezava a confiança que ele tinha nos seus pontos de vista no que
lhe era possível, a fim de fazer com que brotasse um sentimento do seu
verdadeiro eu. A ajuda que vinha recebendo quase que diariamente com o
estudante logo permitiu que falasse um pouco em alemão. Ele não podia e não
queria escrevê-lo. Provoca-lhe um esforço extraordinário e sua caligrafia era
praticamente ilegível. Somente a contragosto cedeu à proposta de escrever um
sonho ou uma experiência. No entanto, tornou-se visivelmente calmo e começou
a interessar-se mais pela sua própria língua.
61
Dois meses depois, James veio para casa e disse "Avisei o diretor do zoológico de
que não vou mais trabalhar lá". Fiquei surpreendida pela decisão e, no entanto,
respeitei-o. Quando lhe perguntei o que queria fazer, respondeu "Quero ir para a
escola". Isto era ainda mais surpreendente. No entanto, discutimos imediata-
mente a questão de que escola, já que teria que se acostumar com alemão.
Dentro de poucos dias, foi como ouvinte numa escola particular, enquanto
continuava com as aulas de alemão com maior entusiasmo. Nesta época, fez um
cenário que indicava a inesperada mudança na sua condição (Figura 40).

Figura 40

A esquerda, perto do canto, construiu uma pequena vila, da qual saía um largo
caminho através da caixa até em cima. Uma menina estava levando alguns
gansos para casa e um pastor estava prestes a recolher alguns carneiros, fora do
rebanho para a cocheira. Os carneiros que estavam pastando, um cavalo e uma
vaca estavam dirigindo-se à vila. Parece que era de tarde. Um pequeno grupo
estava indo para a vila. Um homem e uma mulher estavam no lombo de um
burrico. Perguntei ao James se estas pessoas tinham algum significado. Disse
que era Maria e José, que estavam se dirigindo à vila porque Maria estava
prestes a dar à luz.

Esta declaração comoveu-me profundamente. Será que era possível que James,
que aparentemente só queria fugir de si mesmo, já estava a caminho de se
encontrar? Será que a criança que estava por nascer não era a sua própria nova
situação? Será que era ele mesmo que iria "novamente nascer"? Alguns sinais
tinham realmente filtrado através cio seu relacionamento para comigo. Não havia
dúvida na minha mente de que James estava prestes a abordar uma centralização
no inconsciente, da maneira que ocorre com uma criança pequena.

Apesar do nascimento de Cristo representar um acontecimento histórico único, ele


contém um caráter arquetípico. "Cristo é o Filho do Pai, é o Logos, Judex Mundi
(Juiz do mundo), Salvador e Redentor, uma entidade que tudo abarca. É o Pastor e o
centro do rebanho. É mais completo e mais perfeito do que a pessoa natural. Ele
vela e abraça esta pessoa, que se comporta com relação à Ele como uma criança
com um adulto ou um animal (ovelha) com o ser humano". ("Psicologia e Religião",
Obras Completas 11, parágrafo 239).

O jovem James tinha expressado neste cenário a abordagem da sua própria


religiosidade interior. De acordo com a sua tradição, carregava um caráter cristão
mesmo se conscientemente sabia muito pouco sobre isto. Estava a caminho de se
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colocar nas mãos de uma figura arquetípica de mãe. Era Maria, a mãe de Deus,
que no cenário estava a caminho para o Nascimento. O pastor também estava
recolhendo os jovens carneiros em segurança antes do anoitecer, a fim de se
preparar para o nascimento. Isto interpretei como se James estivesse agora pronto
para um "nascimento" no seu inconsciente.

James agora recebeu a tarefa de diariamente escrever ou um diário ou uma estória


da sua escolha. Primeiramente, isto era para que praticasse o seu inglês que
deixava muito a desejar.

Às vezes, escrevia uma estória sobre um jovem chamado Tol, que largou a sua
família para entrar na floresta, armado apenas com uma faca. Quero citar aqui a
parte principal da estória, palavra por palavra:

"Tol parou por um momento para contemplar o sol que caía lentamente sobre
as árvores. Com um meio sorriso, pegou a sua faca e desceu o morro. Ao
chegar embaixo, virou para a esquerda, preferindo o abrigo das árvores ao
campo aberto. Andava rapidamente, esperando poder chegar logo a um
pequeno regato, pois estava com sede. Depois de andar meia milha, parou
subitamente. Alterando de direção, continuou vagarosamente. Tinha andado
apenas um poucos passos quando novamente parou. Franzindo levemente a
testa, prosseguiu um pouco mais rapidamente. Após andar algumas centenas
de jardas, parou abruptamente. Desta vez não havia dúvidas. Tinha ouvido o
ruído de homens. Logo o ar tornou-se pesado com o seu cheiro. Rapidamente,
pôs-se à salvo subindo num galho baixo e depois subiu mais. Os homens logo
apareceram, andando em fila indiana. Marcharam pela árvore onde Tol estava e
prosseguiram até saírem de vista. Assim que desapareceram, Tol desceu da
árvore e correu na direção oposta. Correu até que tinha sacudido para fora o
ruído e o cheiro deles. Indo mais devagar, mudou de direção até que estivesse
paralelo à direção tomada pelos homens. Manteve então uma cadência de passo
contínua até o meio da manhã, quando chegou a um regato. Parando somente
para beber, seguiu adiante.

"Viajou o resto da manhã em paz, parando somente uma vez para beber água.
Por volta do meio-dia, estava com muita fome e, virando-se para a esquerda
saiu numa ampla planície. Ficou um pouco de pé no capim alto, acostumando-
se com a luz brilhante e,ao mesmo tempo, procurando por comida, Apôs um
momento, viu uma cadela pastando um pouco afastado do rebanho. O vento
estava favorável e foi capaz de chegar suficientemente perto para atirar a faca. Num
movimento praticamente simultâneo, atirou a faca e correu para a sua presa.
Ainda estava se debatendo quando chegou até ela, mas ela rapidamente partiu-lhe
o pescoço. Tirando a pele com cuidado, começou a comer. Após saciar a sua
fome, deitou na relva para dormir, mas antes de adormecer seus pensamentos
estavam, como sempre, em casa.
Vinte dias depois:
Adormecendo, Tol começou a sonhar. Andando pelo longo caminho até a caverna,
viu a sua mulher sentada na saliência do rochedo, brincando com seu filho de sete
anos, Ruk. Ao chegar no topo, olhou à sua volta. As árvores estavam começando a
tornarem-se verdes e a suave fragrância de flores novas pairava no ar. Lá
embaixo no vale, podia ver o movimento de grandes animais à medida que
arrancavam a espessa vegetação rasteira. Aqui era o melhor local de caça num
raio de cinquenta milhas. Havia gazelas, ursos, grandes mamutes e aves de todos

63
os tipos. Por perto havia frutas silvestres e água. Seu peito se encheu de orgulho
ao contemplar isto. Aqui era o seu lar, seu desejo de viver e sua própria vida. Tudo
que queria ou precisava estava aqui. Chamou pela mulher e filho, que ainda não
sabiam da sua presença. Ruk, alcançando-o primeiro, colocou seus pequenos
braços em volta do pescoço do seu pai enquanto que sua mulher, mais vagarosa,
cumprimentou-o com lágrimas nos olhos.

"Ainda no processo de acordar, Tol podia ouvir a alegria de sua mulher e filho
pelo seu retorno. Relutantemente, levantou-se e começou novamente a andar".

Catorze dias depois:


"Tol caminhou o resto da tarde em relativa paz. À medida que vinha a escuridão
da noite, começou a procurar uma árvore na qual pudesse dormir. Após uma
árdua e longa procura, achou uma árvore velha mas forte para servir de abrigo.
Subiu o máximo que pode e deitou-se num galho grosso. Enquanto estava
deitado esperando pelo sono tentou distinguir os diferentes ruídos da noite: o
grito alto e estridente de um plerodáctilo à procura de comida; os guinchos e
grunhidos dos animais pequenos, à medida que atravessavam a noite na sua
incessante busca atrás de alimento.

"Pensou nos dias e semanas que passou à procura de Kezz, o cavalo. Tinha
primeiramente visto-o duas semanas atrás perto da caverna e tinha estado à sua
procura desde então. Aí a pista se perdeu quando tinha ido atrás dele nas
montanhas. Foi então obrigado a voltar para casa, onde a sua mulher e filho
estavam pacientemente à sua espera.

"Logo seus pensamentos eram apenas uma confusão de ideias e adormeceu".

Sete dias depois:


"Acordando cedo, Tol desceu da sua árvore e contemplou o amanhecer ouvindo as aves
que estavam no alto das árvores. Quanta diferença havia entre os sons da noite e
aqueles de dia! A manhã estava cheia de otimismo de um novo dia, enquanto que a
noite continha os sons de árdua luta e trabalho. A manhã deu-lhe tal êxtase que teve
ímpetos de gritar para o mundo. Ao invés disso, correu selvagenmente através do
cerrado sem saber para onde estava indo. Subitamente, viu um lago e mergulhou nele.
Deleitou-se com a água fresca por uns cinco minutos depois saiu e sacudiu-se para
secar. Abruptamente, gelou na paisagem: uma grande cabeça, imediatamente seguida
por um pescoço de serpente, saía da água. A criatura tomou um grande fôlego e depois,
com um agudo silvo, mergulhou nas profundezas. Imediatamente, Tol começou a
procurar comida. Vagarosamente, para não assustar os peixes, aproximou-se da água.
Curvou-se sobre a água durante muito tempo até que viu o que queria. Com incrível
velocidade, mergulhou atrás mas o peixe escapou. Tentou mais três vezes, mas sem
sucesso. Na quarta tentativa, foi capaz de agarrar um de tamanho razoável, que ele
imediatamente bateu contra uma árvore. Depois disso, esfregou-o contra uma pedra
para tirar as escamas. Quando chegou à carne, arrancou-a dos ossos. Tinha acabado de
comer após três enchidas de boca. Lavou então a sua boca, pegou a sua faca, e seguiu
adiante. A manhã estava linda. As grandes árvores pareciam reduzir o tamanho
do homem à medida que corria por entre seus troncos. Seus topos estavam
mergulhados numa espessa névoa enquanto que os galhos inferiores estavam
cobertos com um espesso musgo verde. Havia a nítida sensação de se estar
numa terra de gigantes.

Enquanto Tol corria pela floresta, outras criaturas estavam olhando. Um grande
brontossauro estava mastigando grama. Por perto, uma pequena corça apareceu
por entre os arbustos, logo seguido por um ser com aspecto de lobo. Um
64
plerodáctilo voava bem no alto, procurando pequenos animais para caçar. Um tigre
com dentes de sabre estava num rochedo ao alto e rugia o seu desafio ao
mundo. Ao longe, ouviu o último triste grito de um pequeno animal que tinha
sido agarrado por um maior.

"Nada disto Tol percebia conscientemente, mas foi lançado para trás na sua
mente. Quando ouvia o som de um animal maior ou mais perigoso, ele
automaticamente desviava para a o direita ou esquerda. No entanto, isto nem
sempre funcionava. Certa vez saiu dos arbustos direto em cima de um
tiranossauro e por muito pouco não foi dilacerado pelos seus dentes.

"A medida que caminhava, seus pensamentos estavam se esforçando para achar
uma maneira de capturar o cavalo. Sabia que quando o visse novamente, teria
apenas uma chance; pois, se ele errasse ou o ferisse de qualquer forma, não
haveria mais esperança de recapturá-lo. Abruptamente, seus pensamentos
pararam. Não sabia o que estava atrapalhando, mas havia algo errado. Parou
bruscamente. À sua frente, estava seu cavalo, com sua alvura brilhando ao sol.
Estava a apenas 20 pés de distância, mas Tol tinha certeza de que ele não tinha
sentido a sua presença. Bem vagarosamente, ele se aproximou. Quando estava a
um dez pés do cavalo, parou novamente e rapidamente tentou encontrar um
meio para capturá-lo. O que queria fazer era colocá-lo numa espécie de cercado,
mas não teve tempo de fazer um. Por um momento, ficou completamente perdido
sobre o que fazer. Depois, ao repassar na mente a viagem do ultimo dia,
lembrou-se de um pequeno desfiladeiro que poderia usar como curral. O grande
problema era como fazer com que o cavalo fosse até lá. Chegando por trás e
deixando que o cavalo sentisse o seu cheiro, poderia ser capaz de assustá-la na
direção certa. Tol não queria assustá-lo muito; pois então ele semente iria correr
para cima na montanha.

"Bem devagar, Tol aproximou-se por trás do cavalo, sempre temendo quebrar
um galho e assustá-lo. Pelo menos foi capaz de chegar diretamente atrás dele.
Cautelosamente, moveu-se em direção ao cavalo. Primeiramente, o cavalo nada
percebeu; mas quando chegou mais perto, o cavalo começou a trotar embora,
Tol temia que tivesse se aproximado demais, mas o cavalo parou e recomeçou a
comer. Tol andou, então se aproximou e o cavalo andou. Isto continuou durante
três horas; a cada retirada do cavalo, Tol temia de que não fosse parar. Logo Tol
pode ver a abertura do desfiladeiro e temia que o cavalo não fosse entrar nele;
mas, à medida que foram chegando mais perto, não deu o menor sinal de que
soubesse que estava sendo levado à uma armadilha. Repentinamente, o cavalo
desferrado trotou pelo caminho de pedras que ia até o desfiladeiro. Assim que o
cavalo entrou, Tol começou a bloquear a entrada com galhos. O cavalo era seu!
"Agora que o cavalo era seu, tinha que encontrar um meio de domá-lo".

"Tol sabia que apôs ter encurralado o cavalo, ele ficaria ressentido porque tinha
sido privado da sua liberdade. Para domá-lo, tinha primeiramente que mostrar
ao cavalo que queria ser amigo dele. Portanto, toda manhã trazia pequenas
guloseimas para o cavalo, na esperança de que ajudassem a construir uma
confiança mutua entre eles. Primeiramente, Kezz apenas bufava e corria para o
outro lado do desfiladeiro; mas, gradualmente, Tol foi capaz de acariciá-lo
enquanto o cavalo comia da sua mão. Após vários dias, quando Tol assobiava,
Kezz galopava em sua direção.

65
"Muitos dias passaram antes de Tol decidir que tinha chegado a hora de passar
para a próxima etapa, a de entrar no curral com o cavalo. Bem cedo de manhã,
Tol passou sob o portão e ficou perto do cavalo. Kezz contemplou o seu novo
amigo por um momento e depois trotou para o outro lado do desfiladeiro.
Lentamente, Tol caminhou em sua direção com uma grande fruta na sua mão e
falando suavemente. O cavalo parou por um momento, sem saber se fugia ou
ficava. Finalmente, decidiu ficar e permitiu que Tol lhe acariciasse o pescoço.
Todo dia Tol entrava na curral com Kezz, mas nunca tentou subir nas suas
costas temendo perder a confiança que tinha construído.

"Várias semanas se passaram e Tol sabia que, cedo ou tarde, deveria tentar
montar em Kezz. Consequentemente, escolheu uma bela manhã de primavera e
foi ao curral mais cedo do que costume. Assim que chegou perto de Kezz, o
cavalo sabia que algo estava errado. Tol começou falando com ele e, ao mesmo
tempo, colocava seu peso nas costas do cavalo. Depois vagarosamente, tirou os
pés da terra. Durante todo este tempo, Kezz ficou perfeitamente imóvel; mas
assim que sentiu o peso de Tol nas suas costas, disparou para o alto. Um salto
foi o suficiente para atirar Tol para fora, que veio a cair com um pesado baque
na terra. Lentamente, Tol levantou-se e caminhou em direção ao cavalo, que
tinha corrido para o outro lado do desfiladeiro. Novamente falou suavemente
com o cavalo, novamente colocou seu peso nas suas costas e mais uma vez foi
atirado para fora. Tentou muitas vezes e, a cada tentativa, o cavalo reagia
menos, até que finalmente Tol foi capaz de trotar pelo desfiladeiro sem que o
cavalo empinasse. Kezz foi domado! Tol desceu, abriu a porta do curral e deixou
Kezz sair. Assobiou e Kezz voltou. Isto foi o início de uma longa e sincera
amizade.

Na estória de Tol, James descreveu a sua própria maneira de descobrir seu eu


interior. Largou o mundo exterior e foi para as estepes e floresta primitiva; isto é,
às mais profundas camadas do seu mundo interior. Descreveu muito bem como
largou das pessoas; queria e tinha que ficar sozinho. Tinha sido voltado para o
exterior durante um tempo demasiadamente longo, sem conhecer que energias
estavam dormentes no interior. Descreve a abordagem à sua esfera animal de
instinto conforme simbolizado pelos animais na floresta. Primeiramente, fugia
deles mas depois, devido à fome, teve que chegar num acordo. Caçou um animal
selvagem, uma gazela, e comeu o suficiente para aplacar a sua fome. Na
mitologia, a gazela é um símbolo da alma - um tímido animal fugitivo que está
constantemente fugindo dos animais carnívoros. Mostrou claramente para mim
o quanto James estava ameaçado por impulsos avassaladores e agressivos. Pelo
fato de comer até saciar a sua fome, integrou muito do seu eu primitivo
ameaçado, de modo que pôde ficar alerta e não cair nos dentes de um animal
carnívoro.

Fortalecido por um profundo sono nos galhos de uma árvore, no dia seguinte
chegou a um lago onde foi incapaz de agarrar um peixe. Para se proteger das
influências desfavoráveis e devoradoras do seu ambiente anterior, teve que
pescar seus próprios conteúdos ocultos e tirá-los para fora do inconsciente
(água). Tinha, de fato, já indicado seu novo nascimento no cenário que
representava o nascimento de Cristo. "O peixe nos sonhos", diz Jung no seu livro
"Símbolos de Transformação", (Obras "Completas 5, página 190), "ocasionalmente
significa a criança não nascida, porque a criança, antes do nascimento, vive na
água como o peixe".

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O peixe que foi agarrado e comido por Tol tinha realmente um importante
significaria no desenvolvimento de James. Foi tirado das profundezas do
inconsciente. James foi enriquecido com os conteúdos que o peixe representa
simbolicamente: é um símbolo de fertilidade devido aos seus muitos ovos. Será
que se poderia supor de que James estava ocultando um tesouro desconhecido
dentro de si?

Mas, acima de tudo, o peixe é um símbolo de Cristo. Cristo foi frequentemente


chamado pelo nome de "Ichythys" (a palavra grega para peixe, cujas letras
formam "Jesus Christus: Jesus, Christus, Theon, Ayon, Soter). Jung disse que
por este motivo o símbolo do peixe significa a ponte entre a forma histórica de
Cristo e a natureza do homem, no qual repousa o arquétipo do Salvador.

James tinha procurado, completamente inconsciente, uma redenção da sua


condição; um caminho tinha agora começado a emergir das profundezas do seu
inconsciente. Mas, ainda, parecia que o Self tinha começado a copiar um padrão
dos tempos da tenra infância.

Após ter pego o peixe e comido como sendo um ritual, descobriu a beleza da
natureza à sua volta. Descobriu as altas árvores que faz com que a pessoa se
sinta pequena. Isto me fez lembrar de uma declaração de um velho Zen-Sudista,
Suzuki. Ele disse: "O ocidental quer vencer a natureza; o oriental, ao contrário,
sente-se como uma pequena parte dela".

Era somente agora que James estava realmente perto da terra. Animais
andavam pela floresta; e, na sua alegria pela linda manhã na natureza, ele
repentinamente se lembrou do cavalo que planejava pegar. Não demorou muito
para descobri-lo: "À sua frente, estava seu cavalo, com à sua própria natureza
fez com que fosse possível, com toda precaução, capturar o cavalo e ter
suficiente paciência para domá-lo.

Fiquei profundamente comovida pelas suas palavras: "Isto foi o início de uma
longa e sincera amizade entre o homem e o animal". Com isto, tinha adquirido
acesso à sua esfera instintiva que correspondia a um novo nascimento.

James tinha compreendido que a atitude da sua consciência, acuada por


opiniões arbitrárias, tinha sido completamente unilateral e que tinha sido
desviado por ela. Somente ao nível materno dos seus próprios instintos é que
poderia desenvolver a sua individualidade.

Naquela época, contou-me o seguinte sonho: "Estava de alguma forma, junto


com meus pais, à procura de ovos de Páscoa. O curioso é que não achamos
ovos, mas sim presentes. Contrariamente ao usual, fui muito atencioso para
com minha irmã. Ela recebeu um cavalo e carroça na qual queria dar umas
voltas. No entanto, perguntei se poderia dirigir o cavalo. Ela concordou e assim
dirigi com minha irmã na carroça".

Uma das mais importantes tradições de Páscoa é a entrega de ovos de páscoa,


símbolo da fertilidade. Agora não havia dúvida de que James poderia esperar por
uma vida mais fértil.

No sonho, os pais estavam presentes. No entanto, não apareceram na transação


com a irmã. O próprio James agora dirigia o cavalo que puxava a carroça da sua
irmã. O "anima" materno tinha perdido seu poder; sua irmã adquiriu um novo
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significado ao sentar na carroça. A irmã agora se tornou a fonte da nova vida.
Jung menciona esta transição no seu livro "Psicologia e Alquimia" (Obras
Completas 12, página 81- Nota 27): "Isto é na verdade um processo vital normal,
mas geralmente ocorre bem inconscientemente. A anima é o arquétipo que está
sempre presente. A mãe é a primeira portadora da imagem de anima, que lhe dá
uma fascinante qualidade aos olhos do filho. È então transferida, via irmã e
similares, à pessoa amada".

A transição de James ficou também claramente perceptível na vida cotidiana.


Expressou o desejo de cursar a escola como estudante e não mais como ouvinte.
Por este motivo, novamente trocamos de escola, de modo que aqui também um
novo começo pudesse ser expressado. Cobriu-se todas as matérias que dariam a
James a possibilidade da passar nos exames vestibulares de faculdade dentro de
um prazo de tempo adequado.

Apesar de ainda ter dificuldades com o alemão, continuou nas aulas e


trabalhava nas suas lições de casa.

Ele logo arrumou uma namorada e, apesar de estar quase sempre em casa, só se
permitia sair uma vez por semana. Sua vida ficou muito mais rica.

Certo dia, perguntou-me espontaneamente: "Sra. Kalff, a senhora acredita em


Deus?" Respondi que não somente acreditava mas tinha também sentido a Sua
existência. Isto foi e começo de conversas de cunho religioso e filosófico. Quando
trabalhamos seriamente com os jovens, vemos que, na puberdade, ao lado do
desenvolvimento físico, ocorre um aprofundamento religioso.

Com muitos povos primitivos, as passagens de uma etapa da vida para outra,
especialmente da infância para a idade adulta, são marcadas através de
prolongadas cerimônias. Hoje em dia, isto em grande parte desapareceu ou
perderam seu significado profundo. Por este motivo, é tão importante na terapia,
principalmente para jovens, falar sobre a questão de Deus. Somente com o
relacionamento com o arquétipo do divino é que o jovem pode realizar a sua
transformação em adulto. Isto, por sua vez, aparece quando o homem tem um
acesso natural à sua esfera de instinto.

Um cenário que James fez cerca de três meses mais tarde confirmou meus
insights" (Figura 41). Novamente, representava uma paisagem:

Figura 41
68
À esquerda, havia um curral com dois cavalos. Um de cor escura e outro de cor
clara. Estavam prestes a irem em direção a um portão aberto. Um pastor aí
estava com seu rebanho. A direita, dois cisnes estavam nadando numa lagoa.

Os cavalos, assim como o pastor com seu rebanho, estavam se movimentando


para a esquerda, em direção ao inconsciente. Uma clara introversão tinha sido
indicada quando James estava escrevendo a sua estória e isto agora estava
surtindo efeito. Os cavalos não estavam mais trancados, como estavam no
primeiro cenário. Estavam prestes a saírem do seu curral e entrar em contato
com o mundo. Isto significava de que James estava se aproximando da sua
esfera de instinto e tinha recebido acesso, determinado pela sua natureza, ao
meio ambiente.

O pastor representava um símbolo de Cristo, como um bom pastor com rebanho.

No primeiro cenário, havia dois corvos sentados numa árvore despida. Naquela
época, podia-se facilmente considerá-los apenas pelo seu aspecto negativo
devido às suas penas pretas, que está ligado a aves de mau agouro. James era
uma ave de mau agouro e acobertou seu humor melancólico sobre seu
desamparo através de uma conduta enfaticamente extrovertida. Os corvos são
geralmente amigos dos eremitas. São os mensageiros dos deuses que traziam
ajuda para aquelas pessoas reclusas. Os corvos são também representados na
Bíblia (Salmos 147:9, Jó 38:14) como um tipo de ave de Deus. Quando em
apuros, os jovens corvos chamam a Deus e são ouvidos.

O cisne que agora aparecia no seu cenário anunciava algo novo. Jung no seu
livro "Símbolo de Transformação" (Obras Completas 5, página 348) que "cisne"
('swan' em inglês) deriva da raiz 'sven', assim como "sol” ('sun') e "som" (sound').
Esta ascensão significa renascimento, o surgimento da vida vindo da mãe.
Quando representa, como ave nectarínia (em inglês, 'sun-bird', literalmente 'ave
do sol'), aquilo que é brilhante e claro, aponta em direção a uma consciência
ampliada, em direção à relação de possibilidades internas. Ao mesmo tempo,
representa um aspecto completamente diferente! Como ave e especialmente
como ave meteorológica, pressente o que irá acontecer no futuro. Quando temos
uma má sensação, dizemos: "Tenho um pressentimento como um cisne". No
entanto, podia-se ver qual dos dois aspectos seria o mais importante.

James trabalhava alegremente preparando-se para seus exames. Certo dia,


inscreveu-se para o teste, na verdade não para passar mas sim "para ver", como
disse, "o quanto exigia". Após um longo tempo, tivemos notícias de que tinha
passado no exame! A alegria foi grande. Agora uma carreira universitária abria-
se à sua frente!

No entanto, surgia uma outra questão. Após mais de dois anos no estrangeiro,
tinha-se acostumado com o nosso modo de vida. Como se sentiria no seu país de
origem? Pensou em ir de navio cargueiro, o que demoraria várias semanas.
Assim, teria tempo para se preparar para o futuro e para aquilo que poderia vir a
ser diferente. Seus pais, que queriam comemorar o que o seu filho tinha
conseguido, decidiram de outra forma. Enviar uma passagem de avião; queriam
que chegasse em casa o mais rápido possível!

Não era surpreendente que a ideia de uma transição assim rápida de um mundo
para outro gerou um pânico interno nele.

69
Sonhou: "Estava na minha cidade natal, numa grande casa. Um incêndio
parecia ter começado. Deus estava aí mas, por algum motivo, Ele não podia
ajudar. Ai chamou-se pelo 'homem na lua'. Podia vê-lo à medida que se
aproximava vindo lá de longe no espaço. Ele e Deus entraram no quarto e
conferenciaram. O que se seguiu não ficou claro para mim".

O incêndio que tinha começado indicava a emoção interna de James. Mas por
algum motivo, Deus não podia ajudar. E como, então, o 'homem na lua' deveria
ajudar a Deus?

Existe incontáveis variações em lendas e mitos sobre a 'face' que está na lua, O
homem frequentemente foi levado à lua como castigo No entanto, uma lenda
norte germânica de um grande homem que se curva na maré vazante para
derramar água na terra a fim de apagar um fogo pareceu-me significativa. A lua,
em oposição a resplandecente bola quente da luz do dia, tem seu efeito nas
ondas do mar, e representa o princípio inundador da natureza nos mitos de
quase todos os povos.

Num conto de fadas chinês, o homem na lua é citado como sentado numa
perfumada árvore cássia em flor. Na África, a polpa doce da árvore cássia é
também chamado de maná. Maná é o alimento enviado pelos céus aos israelitas
no deserto. Diz-se que caía da céu ao entardecer, assim como o orvalho. Assim,
maná é frequentemente chamada de pão da céu ou alimento da lua. Nas
Sagradas Escritura, maná é comparada com orvalho, que por' sua vez era um
símbolo de oração. Nas "Revelações de São João" (2: 17), consta: "Para aquele
que venceu, darei da comer do maná oculto".

Neste sonho, era novamente claramente visível o quão extraordinariamente


importante era para James o encontro entre o consciente e o inconsciente. E, no
entanto, de uma maneira lógica isto teria sido impossível. Porém, ao ter
simbolicamente vivenciado o Self (que, suponho, não se tinha manifestado desde
a tenra infância) no nascimento de Cristo, um tesouro tinha caído no colo de
James. Não só tinha à sua disposição a sua capacidade de aprender como
também tinha desenvolvida uma masculinidade com o qual poderia se adaptar
ao coletivo. No entanto, acima de tudo isso, a sua alma estava agora mais perto
de Deus a Quem poderia pedir ajuda em oração. Já tinha adaptado isto para a
vida cotidiana. Só se podia esperar que esta experiência aliviaria um pouco as
tempestades da vida James.

70
Capítulo 7
DEDE
Vencendo um Bloqueio de Fala
Dede veio a mim para fazer terapia quando estava entre cinco e seis anos.
Tantas coisas ocorreram durante o tratamento, que durou mais de dois anos,
que é impossível para eu relatar todos dentro do esquema deste livro. Portanto,
escolhi alguns pontos relevante que foram de especial importância no desenvol-
vimento do menino.

De acordo com a estória dos pais, o menino tinha ascendência caucasiana,


curda, turca, bizantina e suíça no sangue. Isto levava a conflitos raciais,
culturais e religiosos de tamanho incomum: cultura primitiva, islamismo e
cristianismo novo e velho. Duas ancestrais femininas foram roubadas na
infância das tendas nômades. Tinha sido educadas por famílias turcas ricas. Os
nômades que vagavam pela estepe estavam permanentemente em guerra com
seus vizinhos cristãos, mas suas guerras eram altamente éticas e cheias de
lealdade para com suas próprias famílias. Estou mencionando estes detalhes
porque o menino impressionou-me como sendo bem incomum. Olhos obstinados
mas francos fitavam-me ao se encostar na sua mãe.

Seu vocabulário era reduzido. Isto não coincidia, de maneira alguma, com sua
idade. Exibia também outros sintomas alarmantes. Exigia a presença da sua
mãe constantemente, na rua e escondia atrás do seu casaco e tinha que usar
uma touca de noite. Tinha uma nítida preferência pelo azul e recusava-se a usar
um pulôver de uma cor diferente. Nada podia persuadi-lo a entrar numa
banheira. Adorava música e desenhava em grande papel marrom.
Duvida-se de que seria capaz de se desenvolver normalmente.
Descobri pela pediatra como ele tinha se comportado no hospital infantil, onde
teve que ficar com uma aguda infecção causada por estafilococos. A experiente
médica disse-me que seus músculos estavam tão tensos que uma agulha
hipodérmica quebrava quando era inserida. Durante três dias, o menino esteve
em grande perigo de vida. Após isto, recuperou-se rapidamente mas não podia
nem andar nem falar após sua doença. Antes da sua doença, parecia um bebê
saudável, mas agora tinha que começar tudo de novo. Embora não tivesse
dificuldade andar novamente, nunca desenvolveu a fala de acordo com sua
idade. Segundo uma opinião psiquiátrica, duvidava-se que fosse capaz de
frequentar uma escola, Este foi um dos motivos porque a família entrou em
contato comigo

Passamos a primeira hora juntos com seu irmão de quatro anos no meu jardim.
Brincamos com um bondinho e pude observá-lo. Dede dominou o
desenvolvimento da brincadeira com gestos e algumas palavras. Seu irmão
falava pouco. Na primeira consulta, Dede foi direto ao meu toca-discos. Isto
parecia indicar de que gostaria de ouvir música. Sentado numa cadeira baixa,
ouviu atentamente a música. Após um pouco, mostrou que era para eu sentar
ao seu lado. Ouvimos Mozart. Quando o disco acabou, ficou multo satisfeito e
disse: "verde". Aí decidimos ouvir Bartok. Esta música ele chamou de "amarelo".
Percebi que as conotações correspondia às etiquetas coloridas fixadas no centro
dos discos. Agora queria "azul". Este era um disco de Bach. Observei a atenção
com que escutava e sabia agora que tinha ligada as cores com certos
compositores que chamava de verde, amarelo ou azul.
71
Passamos várias consultas ouvindo estes três compositores. Desta maneira,
estabelecemos um certo relacionamento um com o outro. Mas sabia que tinha
que tentar outros meios para fazer com que a terapia fosse bem sucedida. Fui ao
piano e toquei e cantei uma canção infantil. Sentou bem perto de mim e ouviu
com muita atenção. Eu tinha certeza de que não perdia um único som. Sentou
imóvel na sua cadeira. Quando eu queria virar e página para cantar uma nova
canção, ele parou-me. Adorava a canção referente à lua e as gravuras com a lua
e estrelas no céu. Repeti todos os versos duas; ou três vezes. Não queria escutar
nada além disso. Então fechou o livro e fomos para a sala de brincar no andar
de baixo. No nosso caminho, passamos por um relógio que fazia um suave tique-
taque. Parou por um momento e agarrou minha mão. Senti a sua insegurança e
ansiedade e assegurei-lhe de que não havia nada a temer.

Na sala de brincar, foi direto à caixa de areia. Construiu um morro e furou-o nos
quatro lados com as suas mãos. Desta forma, fez um túnel e um quadrado oco
no centro. Sua face me mostrou que ele não via nada além da caverna. Aí
descobriu uma vela, colocou dentro da caverna e pediu-me para acendê-lo.
Parecia gostar disso.

Durante a próxima consulta, estávamos ou ao piano ou trabalhando na caixa de


areia. Parecia gostar desta atividade. Senti que a luz na caverna fascinava-o.
Moldava a areia com muita rapidez e imediatamente após lavava as mãos. Não
gostava de tocar a areia. Após mais algumas consultas, a face de Dede se
iluminou. Obviamente, sentia prazer em vir. Quando ia para casa, sempre queria
que a porta da minha casa permanecesse aberta até que não pudesse mais vê-la.
Tinha que ter certeza de que a casa estava realmente aberta para ele.
Desenvolveu comigo uma familiaridade que expressava querendo sentar no meu
colo enquanto eu tocava o piano. Tive que repetir as duas "Canções da Lua".
Entrementes, descobriu uma segunda composição "Canções e Sons para os
Corações das Crianças" (Sang und Klang fur Kinderherzen"; Verlag Neufeld and
Henius, Berlim, S. W. 1909). Eu não podia deixar uma estrofe de fora, pois
conhecia-as todas; lembrava delas depois de pouco tempo.

Certo dia, descobriu papel e lápis de cor. Com surpreendente firmeza, desenhou
um grande quadrado. Esta era a minha casa. Quando eu desenhei a porta, ele a
queria aberta. Os velhos sinos ao lado da entrada também tinham que constar
no desenho. Precisava da segurança de saber que sempre poderia voltar.

Comecei a sentir que o compreendia. Repetidas vezes queria ouvir as canções


"Boa Lua, você Está Indo tão Silenciosamente" e "Pisca, Pisca, pequena Estrela".
Cada vez, ele sentava e escutava atentamente.

Percebi que a audição do menino era especialmente sensível. Reagia ao menor


ruído. Certo dia, quando estava no meu consultório às onze horas e os sinos da
igreja estavam badalando, pediu para que eu mantivesse a janela aberta, de
modo que pudesse escutá-los. Desenhei uma igreja e apontei-lhe os sinos que
estavam na torre. Ele então desenhou a minha casa e, ao lado da porta, um
mostrador redondo. Tentou desenhar um relógio acima dele. Fez isto muito
rapidamente num único traçado, irradiando uma tremenda vitalidade e
serenidade.

Tudo que agora fazia nas nossas consultas era motivado por uma necessidade
interna. Não tinha opção. Seu inconsciente assim o determinava. Seu problema
72
ainda estava obscuro. Algo dentro dele o empurrava em direção a luz. Adorava
as canções sobre a lua e as estrelas, porque lhe davam luz no céu da noite. A
vela na caverna podia também se relacionar com a sua necessidade da ver a luz.
Não estava interessado em mais nada além disso. Teria sido completamente
inútil tentar ensiná-lo como amarrar os sapatos, apesar dele tropeçar devido a
cadarços frouxamente amarrados.

Dois meses depois, logo antes do Natal, mostrei a Dede no seu livro de canções
uma ilustração da canção "Noite Silenciosa, Noite Sagrada". Havia ilustrações de
uma igreja muito iluminada, algumas casas na noite de Natal e pessoas que
andavam pelos campos cobertos com neve carregando lampiões. Cantei o toquei
a canção de Natal. Dede ouviu atentamente a canção e a estória do nascimento
de Cristo. Lembrou-se da árvore de Natal com muitas velas. Colocou uma igreja
e uma casa na areia (Figura 42), Assentou-os num pequeno morro. Agora já não
precisava fazer uma caverna. Para completar o cenário, iluminamos a igreja e o
casa com luzinhas elétricas. Procurou por sinos na torre da igreja, mas não os
encontrou. No entanto, estava satisfeito. Cada vez que vinha à minha casa,
ouvia os sinos da igreja baterem o meio-dia. Aí eu tinha que abrir as janelas. Por
que estava satisfeito com a sua pequena igreja que não tinha sino, já que
gostava tanto do seu som? Seu vocabulário ainda era muito reduzido. Somente
depois fiquei sabendo que temia que os sinos fossem cair. Tive garantir-lhe
repetidas vezes de que havia um chão sob o sino que separa o campanário da
igreja. Aparentemente, os sinos simbolizavam as energias criativas entre o céu e
a terra. O seu medo de que os sinos fossem cair tinha aparentemente a ver com
o medo de que seria sobrepujado pelas suas energias criativas. Seu eco ainda
não estava suficientemente forte. Era por isso que queria ter certeza de que
havia um chão sob os sinos como uma proteção natural, da mesma maneira que
o terapeuta teve que observar suas expressões criativas e tentar dar-lhes
direção.

Figura 42

Dede não apenas gostava da música "Canção da lua" como também adorava
canções de Natal, bem como suas lindas gravuras de Natal. Repetidas vezes
colocou a casa e a igreja na areia. As vezes, colocava algumas casas à mais de
modo a formar uma vila. Outras vezes, a casa ficava isolada ao lado da igreja no
morro. As vezes, chamava a casa de "minha casa" e, às vezes, que era do Menino
Jesus. Vagarosamente a unidade mãe-filho - como se forma na terapia via
transferência - começava a se dissolver. Sentia-se completamente aceito e
compreendido e o seu Self estava protegido. Estava muito seguro na "minha
casa" e às vezes, na casa do Menino Jesus.

73
Estava muito seguro na "minha casa ao lado da igreja", já que às vezes referia-se
a casa como sendo a moradia do Menino Jesus, poderia agora esperar pelo
nascimento da criança divina - representando Self de um menino - como
descrevi na introdução.
Ocupou-se com o Menino Jesus. Começou a se interessar por igreja pois numa
das canções o nascimento de Jesus está ligado à igrejas intensamente
iluminadas. Já tinha desenhado a minha casa como sendo uma igreja. Olhamos,
com entusiasmo, um livro sobre igrejas e catedrais. Lembra-se
surpreendentemente bem, de uma consulta para outra, os nomes da igrejas que
eu lhe tinha mostrado. Lembrava-se até mesmo de detalhes de uma determinada
igreja, porque se lembrava da rosácea de um vitral. Pedia-me frequentemente
para ver o "livro das igrejas" e finalmente começou e desenhar e a pintar igrejas
(Figuras 43 - 44) - não igrejas imaginárias sim igrejas reais. Tinha-as visto ou no
livro ou nos passeios pelo campo. Seu traçado estava igualmente firme para
traçar igrejas e catedrais como quando desenhou o quadrado pela primeira vez.
O que não podia dizer em palavras, parecia dizer muito melhor por meio de
desenhas e pinturas. Uma necessidade o impelia a procurar uma forma de
expressão como um meio de se comunicar. Isto era tão forte que às vezes todo o
ser do menino estava envolvido nisto. Este era o motivo porque nenhuma figura
humana aparecia nas suas brincadeiras. Algo muito diferente o tinha agarrado.

Figuras 43

Figuras 44

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Será que era possível que uma consciência cristã queria se manifestar nele?
Aparentemente, tinha adormecido nos ancestrais de Dede durante gerações.
Ficou fascinado com os desenhos do estábulo em Belém e o nascimento divino
que ele encontrou no meu livro de canções.

Natal passou. Dede continuou a colocar igrejas e casas na areia, geralmente em


cima do morro. Gradualmente, foi adicionando outras casas e uma outra igreja.
Ainda não havia pessoas, mas dois cavalos brancos brincavam na praça ria. vila.
O cavalo branco frequentemente aparece ligado a uma experiência religiosa. Dois
cavalos podem indicar uma manifestação imediata.

Pouco tempo depois, Dede construiu uma vila sobre um morro (Figura 45). Uma
casa de madeira estava profundamente envolta pele neve e rodeado de pinheiros
cobertos de neve; com uma igreja atrás. Uma carruagem de núpcias carregando
a Rainha e o Rei foi levado ao topo do morro por um cavalo branco e um preto.
Dois serviçais precediam a carruagem. Uma grande raposa indicava o caminho.

Figura 45

Durante a terapia, conseguimos restabelecer a unidade mãe-filho. Como já


demonstrado anteriormente, sinais indicavam uma nova separação, já que a
minha casa era alternativamente também casa do Menino Jesus. O Self,
simbolizado por Cristo - o ser humano completo - começou a se destacar da
unidade mãe-filho. Neste cenário, o Self foi representado como sendo uma união
de opostos através do casamento do Rei da Rainha que sentavam numa
carruagem puxada por um cavalo branco e um preto. Na interpretação dos
contos de fada, a raposa aparece quando o herói tem que se conscientizar de um
importante conteúdo do inconsciente. O autor Saint-Exupéry "(O Pequeno
Príncipe") também usa a raposa como alguém que ensina o que é invisível.

A intensidade com que ouvia a música das canções de Natal e o badalar dos
sinos de igreja estavam obviamente ligados à necessária ruptura. Assim o Self
podia-se manifestar a tradição cristã que estava profundamente oculta no seu
inconsciente até agora. A esperta raposa, o instinto do menino, foi de grande
ajuda.

Logo após, "o gelo derreteu". Começou a falar normalmente. Tinha renascido.
Tinha agora descoberto outras canções no nosso livro. Adorava ouvir algumas
canções especificas, tal como "Maio Renova Tudo" ou "Venha Querido" Mês de
Maio e Torne as Árvores Novamente Verdes". As gravuras que acompanhavam

75
estas canções mostravam crianças brincando. Mas não escutava com a mesma
atenção com que escutava as canções da lua. Interessou-se numa gravura com
pessoas com suas roupas dominicais andando pelos prados ensolarados em
direção à igreja. Fez muitas perguntas: "Por que as pessoas vão a igreja no
domingo? O que estão fazendo na igreja?”Disse-lhe que escutavam estórias
sobre Deus contadas pelo ministro e que rezavam e cantavam ao som do órgão.

Fui ao piano e tentei improvisar um culto: o badalar dos sinos, sons claros e
escuros, a entrada do ministro, a cantoria e a musica do órgão. Ficou fascinado
e pedia mais improvisação até que tentou fazer o mesmo com seus próprios
dedos. Foi muito comovente observar como suas mãos destreinadas tentavam
achar as notas certas. E encontrou-as! Fiquei surpresa com a sua extraordinária
habilidade musical. Ele agora tocava o piano com a mesma intensidade com que
anteriormente ouvia as canções.

Também queria ouvir estórias sobre Deus e escutava atentamente quando disse:
Deus velava por todos. "Então deve morar no andar mais alto", disse, "para
poder ver a todos".

Como já não tinha mais dificuldade em falar, discutimos a questão dele ir para
escola. Normalmente, começaria na escola no ano seguinte.

Ao longo da sua vida, Dede praticamente não teve contato com o mundo exterior.
Tinha feito contato com o mundo exterior somente através dos seus pais ou
irmão mais velho. Seus pais concordaram com a minha sugestão de entrar num
jardim da infância particular duas ou três vezes por semana onde poderia
encontrar crianças da sua idade e se acostumar com elas. Esta tentativa foi
apenas parcialmente bem sucedida. Dede não tinha o menor interesse em usar as
suas mãos para trabalhos manuais assim como as outras crianças. Seu
professor também teve dificuldades em se relacionar com intensidade. No entanto,
gostava da escola e falava entusiasticamente sobre as crianças.

Entrementes, um problema diferente ocupou o seu tempo ao consultar na minha


casa. Descobriu uma canção de ninar "Boa Noite, Boa Noite" ("Good Evening,
Good Night") no nosso livro de canções. Toquei para ele no piano. Não sei se ele a
escutou enquanto tocava. Fixamente, olhava no bebê deitado no berço. Tive que
garantir-lhe que o bebê deitava no berço somente durante a noite. Queria saber
a idade da criança. Expliquei-lhe que só bebes novinho é que dormiam num
berço - quando crescem eles dormem numa cama. Não sabia porque me fazia
estas perguntas. Escutava e, ficava muito ansioso, Estava preocupado de que a
criança teria que ficar no berço para sempre, apesar de garantir-lhe de que este
não era o caso.

Ao invés de igrejas, começou a desenhar berços. Compreendi que estava


novamente revivendo seus pressentimentos de morte, o mesmo que sentiu
durante a sua doença, Este poderia também ser o motivo de temer a banheira.
Inconscientemente, temia que ficaria preso a ela. Uma gravura que ilustrava a
canção "Durma, meu Amado Filho", deu-lhe um pouco de consolo. Esta gravura
mostrava uma mãe de pé ao lado do berço segurando seu filho no colo. Durante
semanas, desenhou tudo quanto era tipo de berço. Após muitas tentativas,
conseguiu até mesmo desenhá-lo na perspectiva correta (Figura 46).

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Figura 46

Ele agora se desenvolvia bem e começou a frequentar o jardim de infância públi-


co. Uma professora inteligente ajudou-o a fazer a transição para o mundo. Ele
ainda desenhava e pintava muito ficando a sós, mas ela deixou-o fazer isto.
Durante esta época, adorava ouvir contos de fadas, especialmente "A Bela
Adormecida", dos Irmãos Grimm. Adorava a ideia de que o Príncipe acordou a
Bela Adormecida com um beijo. Simbolicamente, o conto de fadas nos deu um
"insight" do problema de Dede. Por um lado, teve que haver com o medo da
morte vivenciado por ele na sua tenra infância, que ainda era seu maior medo;
por outro, também simbolizava um despertar de um sono profundo, um
renascimento, um despertar para uma nova vida. Agora desenhou o caixão de
vidro com a Bela Adormecida e o Príncipe (Figura 47). Esperava-se que o seu
velho problema tivesse começado a se resolver, de modo que uma nova fase na
sua vida pudesse começar.

Figura 47

A ideia de renovação da vida tornou-se ainda mais forte quando Dede fez o
próximo cenário. muitas pessoas nadavam num largo rio, Ele disse: "Todos eles
mergulham e depois voltam à superfície". Mais tarde, expressou isto ainda mais
nitidamente ao fazer um batismo (Figura 48). Colocou uma pequena vasilha na
areia e batizou uma boneca mantendo-a sob a água. Homens e animais
rodeavam ritual em circulo.

77
Figura 48

Sabemos que o batismo de Cristo ocorreu por imersão na água. No cristianismo


primitivo, o batismo foi um ritual aceito pela comunidade e tinha um profundo
significado. Atualmente, a águas benta na igreja ainda tem uma qualidade
numinosa e transformadora. Reconhecemos a partir destes exemplos, que
ampliam a submersão na água, o quanto esta experiência foi importante para
Dede. Uma nova vida podia começar a lhe permitir que lentamente obtivesse a
segurança para enfrentar a vida e suas dificuldades.

O desenho e a pintura expressavam a sua imaginação. Agora podia também


tocar um pouco de piano. Para minha surpresa, tentou repetidas vezes tocar as
minhas canções no piano.

Foi aceito no primeiro ano ao atingir a idade normal. Este foi o primeiro passo no
desenvolvimento de Dede. Recompôs o equilíbrio entre a natureza primitiva e o
cristianismo. Isto não curou todo o problema. Ele agora construía mesquitas ao
lado de igreja cristãs.

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Capítulo 8
MARINA
Os Antecedentes de uma incapacidade de ler de uma criança adotiva

Embora a menina pequena, de olhos castanhos, entrasse saltitante na minha


sala de brincar, pude perceber que seus sentimentos e expectativas sobre o que
iria fazer estavam em conflito. Sua mãe tinha dito de que viria a mim para
brincar. Parece que estava se perguntando que tipo de brincadeira seria? Mesmo
assim, quando viu a caixa de areia, ela arregaçou as mangas e começou a
moldar areia. Mostrei-lhe todas as miniaturas que poderia usar para brincar na
areia. Com as mãos na cintura, examinou cuidadosamente as prateleiras de
cheias miniaturas.

Ao ficar aí de pé de costas para mim, pude observá-la. Tinha cabelos lisos e


escuros que quase caiam nos ombros e uma tez ligeiramente escura que me fez
lembrar a pele de crianças oriundas do Mediterrâneo. O peso do seu corpo
esguio e ainda infantil estava apoiado na sua perna direita à medida que virava
o calcanhar da sua perna esquerda, com determinação, de um lado para outro
ao contemplar as miniaturas.

"Posso pegar o que quiser?" perguntou.

Sim, pegue aquelas que você gostar mais, aquelas com as quais você mais
gostaria de brincar" respondi.

Ela gostou mais de uma pequena casinha da madeira (Figura 49). Colocou
exatamente no meio da caixa de areia. Olhou-a de todos os lados e,
aparentemente satisfeita, virou-se para as miniaturas. Escolheu algumas
árvores para servir de cerca às terras pertencentes à casinha. À esquerda, ela
construiu uma cerca de madeira que cercava um pasto de um cavalo branco que
estava sendo trinado por um homem que estalava o chicote. Animais
domésticos, vacas, ovelhas e gansos estavam por perto da casa e uma menina
estava prestes a alimentar as galinhas e gansos. Tudo isto foi colocado
exatamente à esquerda da caixa de areia, enquanto que o lado direito
permaneceu completamente vazio. Com sua mão esquerda, fez alguns buracos
rasos na areia e colocou um semeador no campo que, disse ela, estava
semeando a terra.

Figura 49

79
Este cenário representava a situação psicológica de Marina.

Ela tinha sido adotada quando tinha seis semanas de idade. Quando teve idade
suficiente para compreender, seus pais contaram-lhe que ela tinha sido adotada.
Sua mãe adotiva queria ardentemente uma criança. A menininha desenvolveu-se
se bem, embora molhasse a cama até os seis anos. De vez em quando, exibia
uma forte resistência contra seus pais adotivos e endurecia seu corpo contra
eles. Quando tinha quatro anos, queria uma pequena irmã, e então seus pais
adotaram uma segunda criança. Nesse período, seus pais, que moravam nos
Estados Unidos, tinham vindo para a Europa. Já que pretendiam voltar aos
Estados Unidos dentro de alguns anos, foi escolhida para Marina uma escola
onde pudesse aprender na sua língua de origem. Mostrou muito talento em
desenho e trabalhos manuais mas teve problemas com aritmética e leitura. O
fato dela não ser capaz de ler com a idade de nove anos, aliado a um
comportamento geralmente retirado e depressivo, foram os motivos que fizeram
com que fosse trazida até mim.

Suas dificuldades de leitura eram tão aparentes que teve necessidade de aulas
particulares no segundo ano. Isto, no entanto, não a tinha ajudado. O pai
adotivo estava especialmente descontente porque queria uma filha inteligente.

A aconchegante casinha da madeira, que é um dos favoritos de várias crianças,


na minha prática, ficou primeiramente isolada na caixa de areia. Será que isto
representava o desejo de Marina por uma casa aconchegante ou por paz in-
terior? Podia ser os dois. O cavalo branco também era significativo, o qual
pastava pouco separado do resto da vida da fazenda e, no entanto, era mantido
cativo pelo fazendeiro com o chicote comprido.

Na mitologia e no folclore, o cavalo é considerado como sendo capaz de ver o fu-


turo. É frequentemente descrito como sendo clarividente, ter excelente audição
e, às vezes, ter a capacidade de falar. Como animal, representa o primitivo, isto
é, a camada totalmente inconsciente do homem. Como animal de carga, está
ligado ao aspecto maternal. A sua tendência arisca e nervosa para reagir,
selvagem e imprevisivelmente, ao inesperado, representa aquela força instintiva
no mundo cuja consciência só pode controlar de uma maneira limitada. Um
outro elemento do símbolo do cavalo branco é seu aspecto religioso: na China,
há um templo dedicado ao cavalo; nas religiões antigas, o cavalo branco foi
associado com o deus sol.

Portanto, o cavalo representa a eterna imprevisibilidade da Natureza e, ao


mesmo tempo, aquele elemento que se dirige à uma iluminação da consciência.
No primeiro cenário de Marina, o cavalo branco dominado pelo homem com o
chicote estava bem à esquerda da caixa. Isto provavelmente significava, bem nas
profundezas do inconsciente da criança, um aspecto ferido, cativo, feminino-
maternal da menina que tinha que ser alcançado. O semeador à direita oferecia
um prognóstico favorável. Estava semeando um grande campo, indicando a
possibilidade de fertilidade.

Na segunda consulta, Marina trouxe um pequeno buquê de flores que tinha pego
no caminho. Quando agradeci, ela disse: "Não é ótimo? Gosto de você e você
gosta de mim".

80
"Hoje quero pintar", disse. Mostrei-lhe as diferentes tintas, lápis, giz pastel e
aquarelas. Essas eram-lhe atraentes. Contemplei, surpresa, os traçados que
executava com mão firme, com a qual fez uma bonita representação de tulipa em
flor. Levou o desenho para casa; queria dar à sua mãe.

Na sua terceira consulta, ela novamente trabalhou na caixa de areia (Figura 50).
Começou construindo uma estrada sobre a areia. Aí escolheu algumas casas que
colocou à alguma distância. Eram casas como as que podem ser encontradas na
nossa região da Suíça. À sua frente, fez um pequeno regato sobre o qual colocou
uma ponte de estrutura oriental. Perto disso, colocou um pagode; e, na água,
um junco. Alguns outros elementos orientais, pequenos templos e um pagode
branco, foram colocados entre as casas orientais e as árvores. Aí foram colocadas
grandes árvores, bem à esquerda do cenário crescente. Logo depois, a estrada,
que atravessava o cenário, tornou-.se povoada. Para fazer isto ela escolheu, com
o maior cuidado, todas as miniaturas orientais que pudesse encontrar, até que
uma, longa fila de pessoas estava se movimentando da direita para a esquerda.
Bem para a frente, quase desaparecendo na floresta, havia um carregador de
lâmpada chinesa. Quando perguntei à Marina o que ele estava fazendo na
floresta, ela respondeu: "Ele tem que trazer luz para a floresta escura".

Figura 50

"Sim, você esta certa", disse para ela. Sabia que a sua psique sentia uma
excitação interna com este pensamento. Somente através da escuridão é que corre o
caminho para a luz. Uma eterna verdade estava aqui expressa, sem hesitação, no
inconsciente da criança.

Na escola, ela não passou de ano devido à sua deficiência em aritmética e


caligrafia. Sentiu que suas colegas estavam evitando-a devido à sua pele escura.
Portanto, era geralmente escuro e solitário no seu "eu" interior". Simbolicamente,
ela já tinha expressado isto no seu primeiro cenário ao usar o cavalo solitário
que estava pastando. Já que o símbolo de um cavalo branco significa luz, o
segundo cenário indicava que ao longo do caminho através do escuro
inconsciente podia-se encontrar uma resposta para mostrar à esta criança uma
saída a sua solidão interna.

O terceiro cenário falava mais (Figura 51). Dentro dele, havia uma ilha que
Marina chamava de Havaí. No canto superior esquerdo da ilha havia uma
pequena floresta, na frente da qual uma dançarina havaiana dançava ao som de
alguns músicos que estavam em pé num semicírculo. Um pouco abaixo havia
um pequeno lago redondo, atravessado por uma ponte chinesa, levando a uma
outra parte de terra na qual havia uma única a árvore. A ilha estava cercada de

81
água. À direita havia uma terra deserta, que eu poderia definir como sendo terra
firme.

Figura 51

A coisa toda me lembrava de uma face muito triste. Para os olhos, que
representam o consciente e o contemplar do mundo, havia músicos estrangeiros
com a dançarina. Em cima disto, a floresta parecia mechas de cabelo. O
pequeno lago redondo com uma ponte deu-me a impressão de uma boca
fechada.

Aqui na minha opinião, estava expressada toda a solidão da menina. O que se


queria dizer com isto? - que a sua boca estava fechada, mas que se identificava
com a dançarina? - que ela era uma criança de um país distante e sentia alheia
neste meio? Podia ser os dois. Aquilo que não podia ser expressado, porque o
seu segredo jazia adormecido no inconsciente, falava aqui por si próprio, A terra
deserta, que estava mais próximo ao consciente (no lado direita do cenário),
estava representando uma parada no desenvolvimento de Marina. Sobre ela,
nada crescia; era desabitada, E, no entanto na sua solidão que poderia ter sido
sentida pelo fato dela saber que era criança adotiva, ela dançava!
Involuntariamente, lembrei-me de um maravilhoso verso de um poeta persa:
"Aquele que conhece o poder da dança, mora com Deus". A dança é, na verdade,
a autorrepresentação do homem. Quando ele se expressa numa ação
espontânea, ele é realmente como se tivesse sido criado por Deus.

Abracei por um momento a pequena Marina para mostrar-lhe que entendi a sua
linguagem. Para ela, significava ser plenamente aceita.

Após isto, ela se comunicava de muitas maneiras diferentes. Havia sempre


formas artísticas e criativas expressadas em argila, cores ou esmalte. Certo dia,
fez uma pequena máscara com argila (Figura 52). Suas habilidades artísticas
para uma criança da sua idade me surpreenderam. E, no entanto,
primeiramente não sabia o que fazer com a máscara. Era uma face esculpida de
forma bonita e marcante. "Não é nada", dizia ela, mas sabia que ela também
tinha gostado.

82
Figura 52

Após algumas semanas, ela fez um outro cenário (Figura 53). No centro,
construiu um morro e colocou uma igreja nele; diretamente à sua frente, uma
entrada em arco de estilo chinês. Na frente da igreja, os caminhos se dividiam,
indo um para a esquerda, até uma pequena ponte oriental que, à sombra de
árvores em flor, cruzava um pequeno regato. Uma pequena menina japonesa
com uma sombrinha estava no meio da pequena ponte. O outro desvio ia na
direção oposta, à direita. Dirigia-se, numa grande curva, à uma vila com casas
ocidentais, que formavam um círculo quase completo. Um grupo inteiro de
pessoas, semelhante àquele que estava se movimentando em direção a floresta
no segundo cenário, estava se aproximando da vila. Um pequeno riquixá, no
qual uma mulher estava sentada, já estava entrando na vila. Mariana disse que
ela era a princesa que estava indo para casa. À direita, em frente, havia uma
pequena lagoa com peixe.

Figura 53

Aqui, o Oriente e o Ocidente estavam unidos na igreja com o portal oriental.


Depois que a menina sentiu que entendi e aceitei o seu segredo, o segredo
poderia retornar ao seu lugar nas profundezas do seu ser e não pesaria mais
sobre ela. Parecia-me de que já não pesava porque a japonesinha estava
colocada, de uma maneira encantadora, sob árvores em flor. Na verdade,
significava um sacrifício que é sempre exigido quando se alcança um novo
estágio de desenvolvimento. Uma situação antiga retrocede de modo a deixar o
caminho livre para uma nova.

83
Agora Marina podia abordar o seu lado ocidental. Isto estava representado no
grupo de pessoas que se movimentavam na direção oposta, indo à direita, em
direção à vila de estilo ocidental. Também a paisagem, com a sua pequena
floresta de pinheiros, tinha uma característica ocidental. Era como se, no
interior mais profundo da criança, o Oriente e o Ocidente tinham-se encontrado;
como se, só com base nesta comunicação, a adaptação a um novo meio pudesse
agora ser abordada com grande intensidade (expressada pelas muitas pessoas).

Os peixes na lagoa podiam ser uma sugestão do Self em termos cristãos. Para
ser capaz de atingir isto, Marina teve que sacrificar-se até um certo ponto (a
japonesinha), de modo a vivenciar a centralização. No adulto, significaria tornar-
se consciente, mas a criança vivência isto ao fazer o cenário.

Ao dar a uma criança oportunidades com argila, madeira, massa, vidro, esmalte,
papel colorido, tintas e outros materiais, eu não espero nenhuma obra de arte.
Só quero captar a energia criativa da criança. Procuro, sem nenhuma meta
artística, ativar as energias criativas que estão em perigo de serem tolhidas pela
rotina diária na escala e em casa. Somente considerando-se a totalidade do
homem é que se pode esperar o desenvolvimento normal das suas capacidades.
Se, desta maneira, talentos artísticas puderem ser despertos, então encontrarão
uma expressão à própria maneira. Mesmo assim, é tarefa da terapeuta descobrir
e estimular qualquer talento artístico genuíno. Por exemplo, na música a criança
pode tocar as notas desajeitadamente; no entanto, através da intensidade e
poder de formação, mesmo em melodias bem simples, podemos reconhecer
talento e, se houver potencial, estimulá-la. Mesma através de um trabalho
criativo limitado, é frequentemente possível para a criança vivenciar seus
próprios sentimentos e, através deles, relacionar-se com o mundo.

Era verão e frequentemente usamos as horas de sol para brincar no jardim, O


Self que acompanha todo o processo de desenvolvimento pode, na minha
opinião, ser fortalecido com uma meta fixa estabelecida pela terapeuta,
especialmente ao se brincar. Assim, frequentemente brincamos com bola. Uma
pequena bola, atirada pelos jogadores em algum ponto distante do gramado, é a
meta. Com bolas maiores e coloridas, procura-se chegar o mais perto possível da
bola pequena. Neste jogo, eu insisto que o ponto de partida seja frequentemente
alterado a fim de envolver, simbolicamente, os diferentes lados da criança que
estão lutando para atingir um centro.

Brincar na areia era, contudo, o que mais atraía Marina e, depois de uma tempo,
novamente fez um cenário com uma ilha (Figura 54). Desta vez, mostrou a
mesma vila anterior na qual a princesa e todos as suas pessoas estavam en-
trando. Novamente havia a dançarina e os músicos. No entanto, desta vez eles
estavam na parte interior da praça da vila. Apesar da dançarina ser a única
figura feminina na representação, o cenário produziu uma mudança significativa
na psique da criança. Aqui havia uma área circular na qual se dançava, um tipo
de 'temenos', um espaço abrigado, apesar de ser uma ilha.

84
Figura 54

Toda liberdade e, portanto, também a liberdade de desenvolvimento, pressupõe


segurança. Por este motivo, a diferença do primeiro cenário com ilha com este
era muito grande. No primeiro cenário, a dançarina parecia entregue,
desprotegida e abandonada à Natureza; ao passo que aqui ela estava sob a
proteção de uma vila feita pelo homem que continha, no seu formato circular, a
característica arquetípica do protetor, A forma oval incompleta da vila me
lembrava do recipiente do qual a criança nasce. O formato da ilha recordava um
útero cercado pelo líquido amniótico, do qual o fruto, ou seja, a criança, nasce.

No livro "A Grande Mãe" (The Great Mother) - página 231, Neumann fala o se-
guinte com referência à dança: "O ritual é originalmente sempre dança, na qual
o corpo-psique, na verdadeira acepção da palavra, é posta em ação". Este
cenário, com a dançarina no centro da vila oval, continha a promessa de ação.

Quando a pequena Marina contemplou o seu recém completado cenário,


começou a dançar. Cantarolava uma melodia e parecia muito feliz.
Evidentemente comovida, ela disse: "Um dia dançarei". No mesmo momento
descobriu, olhando pela janela, o nosso pequeno basset, que estava andando no
jardim. Ela correu e foi abraçá-lo. Gostou de fazer isto e sempre que Marina
vinha, ela mostrava-lhe afeição. "Ele é meu amigo porque é tão felpudo". Como
um basset de pelo longo, ele tinha pelo macio e comprido e Marina adorava tudo
que era macio e felpudo. Também adorava os coelhos que o nosso vizinho criava.
Dava-lhes cenouras e acariciava seu pelo macio. Gostaria muito de levar um
para sua casa.

No crescente senso do segurança comigo, era evidente que estava tornando-se


mais feliz. Ela agora contava-me as suas aventuras. As horas que passava
comigo pareciam curtas para ela. Ela frequentemente vinha com uma proposta
de como queria pasmar o tempo. Uma segurança interna estava sendo obtida.

Pelo final do verão, Marina fez um cenário chamado "Nascimento de Cristo"


(Figura 55). A Criança estava deitada numa caverna, tendo ao lado Maria, José e
os pastores. A sua frente, árvores maravilhosamente grandes foram colocadas,
como para proteger o acontecimento. Em vez dos três reis usuais da estória,
Marina colocou quatro reis sobre cavalos galopantes entre dois morros pequenos
e completamente redondos.

85
Figura 55

Fiquei muito tocada pelo cenário, não somente porque era uma verdadeira
continuação do cenário anterior e representava o nascimento arquetípico mas
também porque a sua própria força atestava os talentos artísticos que
concediam à criança a capacidade de expressar simbolicamente aquilo que
nunca poderia ser expressado verbalmente. Quando pensamos na penúria e
solidão que estavam expressados no terceiro cenário, reconhecemos aqui, no
símbolo do Nascimento, uma expressão de uma situação psíquica
completamente nova.

A criança tinha nascido no abrigo de uma caverna, cercada de carinho. Simboli-


camente, Marina tinha assimilado a sua penúria. Jung diz do arquétipo da
criança em "Criança-Deus e Criança Herói", no livro "Os Arquétipos e o
Inconsciente Coletivo" (Obras Completas 9.1, página 167): "Os vários destinos da
"criança" podem ser considerados como representando o tipo de eventos psíquicos
que ocorrem na enteléquia ou gênese do si-mesmo. O 'nascimento miraculoso'
tenta mostrar o caminho pelo qual essa gênese foi vivenciada".

A totalidade da experiência interior da menina foi ainda representada pelos


quatro reis que se apressavam. O aspecto coletivo e arquetípico estava ligado à
qualidade real destas figuras e indicava a união do interior (caverna) com o
exterior. Esta união ocorre quando a Self está constelado. Com base nesta
união, esta centralização numinosa, resultante da sua união com o
relacionamento mãe-filho, parecia agora possível que Marina desenvolvesse a
personalidade e talentos com os quais nascera.

O verdadeiramente feminino também pertencia à sua personalidade e pareceu-


me como se, através das duas pequenas colinas, tivesse representado seus dois
pequenos seios. Ela certamente tinha nascido para ser uma mãe e
frequentemente falava de como iria se casar um dia e ter filhos. Como estava
certa!

Durante a terapia, um intenso esforço foi feito para fortalecer a sua recém
adquirida personalidade. Os novos aspectos eram delicados como grama nova
que tinham acabado de brotar. Marina voltou-se com renovado ardor para
trabalhos manuais artísticos. Fez uma menina com massa e bonitas peças de

86
bijuteria foram feitos com esmalte. A maioria delas acabou dando à mãe e
amigas.

A esta altura, o problema da escola novamente surgiu. Em línguas e,


especialmente, na ortografia, não tinha feito grandes progressos. O tempo à
nossa disposição era realmente por demais curto. Tinha vindo à terapia duas
vezes por semana por apenas quatro meses. Havia também outras complicações
familiares. Quando tinha quatro anos, Marina pediu que seus pais adotassem
uma outra criança. Esta criança era inteligente e, ao contrário de Marina, tinha
a pele clara e, embora não fosse mostrado diretamente, ela era a favorita dos
seus pais. Com isto, ficou ainda mais difícil para Marina obter êxito à sua
própria maneira, como também pelo fato do seu pai realmente duvidar da sua
inteligência.

Decidimos pegar um professor particular para ajudar Marina nas suas dificul-
dades com leitura e escrita. Sob a orientação do professor, Marina escrevia
quase que diariamente uma pequena redação dos seus acontecimentos diários.
As palavras que não conhecia ou cuja ortografia era difícil, eram escritos em
letras grandes e nítidas num pedaço de papel, dispostas em ordem alfabética.
Desta maneira, fez-se o seu própria livro de ortografia através do qual Marina
poderia aprender novas palavras. Primeiramente, suas redações eram curtas,
consistindo de quatro frases curtas. O professor então datilografava cada
redação e Marina fazia um bonito desenho para acompanhá-la. Cada folha era
cuidadosamente colocada num caderno espiral, de modo que gradualmente se
fez um livro com estórias coloridamente ilustradas. Marina agora mostrava
grande dedicação em escrever e tentar ler. Cada estória dava mais informações
sobre seu desenvolvimento psíquico.

Após a sétima aula particular, ela fez visíveis progressos na leitura e, na noite
seguinte, sonhou que era a primeira da classe. Rezou a Deus para que Ele a
ajudasse.

A espontânea expressão religiosa que estava tão impressionantemente


representada no nascimento de Cristo parecia se aprofundar ainda de uma outra
maneira. Marina fez uma face de argila que lembrava Jesus (Figura 56). Se nos
lembramos da face que fizera quatro meses atrás, sobre a qual não queria falar
nada, e depois olharmos esta nova face, pode-se ver claramente a mudança que
ocorreu no seu Self interno. Vamos lembrar que, no início, Marina fez uma
figura com argila que tinha o aspecto de uma máscara exótica. Agora
contemplamos a serena face de um jovem Jesus. Marina conseguiria
eventualmente livrar-se completamente sua ansiedade interior que ela expressou
repetidas vezes? Ela procurava consolo, especialmente quando qualquer
acontecimento dava enfoque à sua irmã. Certo dia, quando sua irmã mais nova
teve uma forte reação a uma vacina, Marina usou uma tipoia feita com o
cachecol de seda da sua mãe. Era constantemente necessário que ela obtivesse
atenção especial. A vida não era fácil para ela. Seu pai, embora eu tivesse
constantemente garantido a ele, não acreditava que a inteligência de Marina
estava dentro da media. Tinha insistido que ela lesse em voz alta para ele, o que
era penoso para ela. Para ler com seu professor particular, onde ela e sua defici-
ência eram aceitas, era consideravelmente mais fácil e ela exibia progressos
constantes. Apôs dois meses de aulas particulares, chegou o grande momento
em que Marina podia ler tudo que seu pai lhe colocava à frente sem erros. O pai,
87
comovido por este longamente ansiado evento, imediatamente deu uma festa em
família para comemorar.

Figura 56

Aqui reconhecemos um dos motivos que podem levar a dificuldades nos


relacionados entre pais e filhos adotivos. Pais, especialmente adotivos,
frequentemente formam uma imagem fixa de um filho muito desejado e surgem
grandes problemas quando a criança não corresponde à imagem formada.
Geralmente o resultado é uma desilusão de parte à parte. O terapeuta deve
sentir o ambiente familiar e compreender os pontos de vista de todas as partes
envolvidas. Dentro da segurança da sala de terapia, luta-se pela reconciliação
dos opostos, como representados pelos pais e filhos.

O outono e o novo ano letivo estavam se aproximando e Marina mostrou


progressos palpáveis. Os pais decidiram que ela deveria ficar com os avós e
frequentar a escola no seu país de origem. Na minha opinião, Marina não estava
pronta para isto. Eles próprios pretendiam voltar aos Estados Unidos no futuro
próximo.

Marina fez um outro cenário. Novamente havia uma ilha [Figura 57). Desta vez,
tinha uma montanha que estava coroada com uma fortaleza, quadrada com
muros fechados. A torre na praça da fortaleza não era uma torre de controle,
como na maioria das fortalezas. Era importante para Marina que isto
pertencesse à igreja. Árvores e arbustos em flor circundavam a fortaleza. Na sua
frente, do lado de fora e ao céu aberto, havia uma menina vestida de branco.
Abaixo, próximo a uma ponte que fazia a ligação com a terra firme, um homem
forte montava guarda. Um pequena navio estava ancorado. Fortalezas e castelos
eram construídos, no início da Idade Media pela nobreza ou comunidades
monásticas, frequentemente em locais elevados. Davam abrigo; atrás de suas
grossas muralhas, a vida, fortuna e propriedade estavam seguras.

88
Figura 57

Quando perguntei à Marina quem morava no castelo, ela respondeu: "Maria", já


que Marina tinha, há algumas semanas atrás, representado o nascimento de
Cristo, era mãe arquetípica. A mãe tinha, inocentemente como uma criança,
concebido e como mãe de Cristo, tornou-se a essência da segurança maternal.
Era a proteção que Marina tinha obtido para si. Era sua própria fortaleza estava
aí. Atrás de suas grossas muralhas, poderia proteger sua posse recém adquirida
contra os invasores. Era sua segurança interna que ela não queria mais
entregar. Um guarda decidia quem tinha ou não acesso à fortaleza.

Olhando o cenário inteiro, lembrei-me de um conto de fadas francês no qual um


cavalo branco tinha ajudado um príncipe a cumprir as difíceis tarefas neces-
sárias para conquistar a sua princesa. No momento do casamento do príncipe, o
cavalo se transformou em Maria. Será que era demais esperar que o cavalo
branco de Marina, tão isolado e preso no início, tinha feito o mesmo para ela?

Isto fez com que fosse possível eu esperar que Marina, com nove anos, estivesse
suficientemente segura para enfrentar as circunstâncias novas, ainda
desconhecidas da vida, sem nenhuma ajuda exceto sua recém nascida força e a
coragem que sempre fora sua.

89
Capítulo 9
URSULA
Notas sobre a restauração de um ego demasiadamente fraco
(Uma moça de 23 anos)

O cenário inicial (Figura 58) foi feita pela moça de vinte e três anos durante uma
sessão de uma hora e meia, quando estava num humor bem depressivo. Esses
humores foram o motivo pelo qual me tinha procurado.

No início, qualquer verbalização da situação pareceu-me inoportuna. Portanto,


sugeri, caixa de areia.

O primeiro cenário (Figura 58) representa um símbolo do feminino e do


masculino: útero e o falo estão lado a lado. Ligados a eles está um círculo do
qual um ponto está orientado para o canto superior direito. O conjunto todo, que
lembra um embrião, representa uma expressão completa de um sentido
inconsciente dos opostos como foram vivenciados na tenra infância, com a
distinta tendência em direção, à sua união no Self, o círculo à direita.

Figura 58

Através do contato que a moça teve com a areia, surgiu a necessidade de


trabalhar na argila. Assim, três dias depois, uma estatueta (Figura 59) foi
esculpida que mostra uma bruxa segurando na sua mão a foice da lua
minguante. Ela representa o arquétipo da mãe negativa, cuja conquista está
simbolizada pela lua minguante.

Figura 59

90
Dois dias depois, fez um outro cenário (Figura 60). Da meia lua cresça uma árvore.
È um símbolo do Self, porque o tronco é um símbolo masculino e a coroa é um
símbolo feminino.

Figura 60

Dois dias depois, fez uma escultura de Cristo (Figura 61) com argila. Ele estava
segurando uma lua crescente nos seus braços. O Self é aqui representado como
um 'imago dei'. Contém a base de um desenvolvimento posterior, representada
na lua nova como o ponto de origem de nova vida feminina.

Figura 61

Esta nova vida foi produzida de forma marcante numa outra representação
(Figura 62). Mostra um monge segurando uma menina recém nascida nos seus
braços.

Figura 62

91
Devido à sua preocupação com os níveis mais profundos da sua psique, a moça
vivenciou um renascimento no inconsciente. Somente então é que seu próprio
componente masculino ficou positivamente indicado. Isto é mostrado em mais
figuras, como em O Príncipe (Figura 63), O Primitivo (Figura 64) e, finalmente,
Um Menino (Figura 65).

Figura
63

Figura
64 Figura 65

As figuras, produzidas numa rápida sucessão, eram uma previsão da análise


resultante, que consistia em trazer e integrar com o consciente um material
onírico muito abundante. Nesta época, o momento crítico do distúrbio no
desenvolvimento também foi trazido à tona.

Isto ficou simbolizado num desenho que a moça fez quando era uma criança de
três anos. Ela chamou-o de uma representação de um homem. Atendendo ao meu
pedido, ela copiou o desenho usando a memória (Figura 66). Representa uma
criança urinando e defecando, representada pelos quatro círculos. Esta
representação mostrava uma compreensão da totalidade do homem, com seu lado
sinistro bem como seu lado radioso.

92
Figura 66

Já que a nossa cultura atual reprime o lado escuro da nossa existência, o


desenho foi chamado de indecente pela mãe da criança e foi rasgado à sua frente.
Assim, esta manifestação do "eu" foi destruída. Foi refeita na análise resultante e
é bem representado na forma de duas mandalas na caixa de areia com formato
tridimensional. O quadrado e o círculo na Figura 67 estão unidos em harmonia.
O número "cinco" domina a figura dentro do círculo (Figura 68), o que sugere um
desenvolvimento físico e, portanto, um passo adiante dentro da vida real.

Figura 67

Figura 68

93
Capítulo 10
ERIC
Uma cura de enrubescimento, que tinha um fundo religioso
(Notas sobre um jovem)

A Figura 69 é o primeiro cenário feito por um jovem de vinte e cinco anos de


idade. Marcou uma consulta comigo porque sofria de enrubescimento sem
nenhum motivo aparente. Isto tornava o seu relacionamento com as pessoas
muito difícil. Prejudicava seu desenvolvimento e crescimento, Não podia decidir-
se sobre qual profissão seguir. Já tinha feito terapia antes, mas a comunicação
verbal com seu analista não o ajudou. Esperava obter algum tipo de ajuda
através da caixa de areia.

Figura 69

Olhou as miniaturas, mas nenhuma deles dizia-lhe alguma coisa. Ao invés


disso, construiu um quadrado em mosaico. Usou diferentes tons de azul.
Chamou-me a atenção alguns mosaicos vermelhos perto do centro e dois
amarelos isolados à esquerda. Ocorreu-me perguntar o que o amarelo significava
para ele. Após refletir um pouco, disse: "Os judeus tiveram que usar uma estrela
amarela durante a sua perseguição". A resista veio tão rápido que deduzi que o
jovem estava preocupada com algum problema religioso. A ideia era apoiada pela
cor azul dominante no mosaico, O azul é a cor do céu. Também é a cor das
vestes celestes de Maria. Por este motivo, o azul é frequentemente interpretado
como um símbolo de religião cristã. Parecia-me que este era um problema
cristão-judaico

Para a segunda representação na caixa de areia (Figura 70), usou palmeiras,


uma cabana de palha, animais, uma dançarina de pele escura e algumas
crianças negras. Esta era a África, frequentemente chamado de "continente
negro". Por isso, concluí que seu problema parecia ainda estar no inconsciente.
A dançarina escura simbolizava o seu lado que ainda não estava consciente. A
parte feminina inerente ao masculino é primeiro vivenciado através da mãe e é,
portanto, basicamente maternal. No menino que cresce, o seu caráter muda e
corresponde à figura que Jung chama de "anima". A Anima acompanha
inconscientemente o desenvolvimento co masculino. Ela ativa o homem.

94
Figura 70

Notei que todos os animais colocados no seu cenário vinham aos pares. O
número dois simboliza o contraste, bem como a tendência de unir os opostos.

O terceiro cenário (Figura 71) era uma escavação. Um peregrino, carregando sua
trouxa aos ombros, caminha em direção à pedra preciosa que estava visível. Por
isso, pensei que o jovem era uma pessoa que tinha procurado em vão pela sua
casa no ambiente exterior, porque não a podia achar dentro de si.

Figura 71

Parecia estar procurando e tentando recuperar o relacionamento perdido com


suas raízes e seus ancestrais. Analisando este cenário, concluí que suas raízes
estavam no Oriente Médio.

Conto-me que passou algum tempo como um jovem judeu num mosteiro, a fim
de se proteger das perseguições. Com relação à isto, lembrou-se de um sonho
que teve no passado. Ele disse, "No jornal está escrito a palavra 'perdido'.

Na sua juventude, não pode viver de acordo com a sua tradição. Nunca
vivenciou a segurança maternal. Perturbações como esta na infância evitam a
constelação de uma centralização. Não tendo mãe, seu desejo de ser cuidado de
uma forma maternal tornou-se demasiadamente forte e evitou um
desenvolvimento normal. O sonho mostra que, sob estas circunstâncias, sua
consciência de ego não se tinha formado.

No próximo cenário (Figura 72) construiu um morro. Uma árvore crescia nele.
Disse que, ao lado dela, havia um judeu. Todo tipo de pessoa, saudáveis e até
doentes, carregados em macas, subiam pelo caminho que serpenteava morro
acima. O peregrino estava na ponte. A ponte era o símbolo da sua recém
95
encontrada ligação entre os dois polos, Através de toda história, um significado
sagrado foi projetado em árvores e morros ou montanhas. O judeu que faz a
peregrinação a Jerusalém está "subindo e montanha".

Figura 72

Este jovem estava cumprindo seu destino. Ele era o peregrino que estava se
juntando a todos os outros peregrinos que subiam pelo caminho que serpenteava
morro acima. Ele repartia o seu destino com todas as outras pessoas, porque todo
ser humano tem que achar o caminho para si próprio. Este caminho leva à
experiência do divino, no qual todos participam. Desde a Idade Media, a maneira racional
e unilateral de pensamento tem evitado que muitas pessoas tenham um
relacionamento com o espírito. A unidade com Deus não existe para elas. Estão
todos procurando por esta vivência que está tão profundamente enterrada no
inconsciente.

Atrás do morro, há crianças brincando e a mesma dançarina escura está


dançando, como no segundo cenário. O jovem chamou estas cenas de paradisíacas
(Figura 70).

O seu desenvolvimento pode ser observado neste cenário. Estava à caminho da


sua individuação. Após este cenário, discutimos a possibilidade dele fazer uma
viagem à Israel. Pareceu-me que esta viagem seria muito importante para o seu
desenvolvimento psíquico. Mas não havia dinheiro disponível. O inconsciente
arrumou um encontro "acidental". Após este encontro, foi convidado a visitar
Israel.

Antes de viajar, fez um outro cenário (Figura 73). Chamou-o de "O Jardim do
Paraíso". Está centrado e cercado e, no entanto, há um portão que leva a um
pequeno templo. Uma paz e quietude mágicas irradiam deste cenário.

Figura 73

96
A união da ideia platônica de "um e do outro" apareceu na sua procura de um
caminho a este santuário. As cores azul e amarela eram divididas de maneira
razoavelmente regular no seu primeiro cenário (Figura 69) e que iam da periferia
ao centro do santuário.

O que tinha aparecido no segundo cenário como sendo apenas uma insinuação -
a união dos opostos espirituais e a transformação da anima escura - estava
agora pronto a ser realizado num ritual. A anima arquetípica, coletiva - a
princesa - dançava no templo. Muitas culturas usam a dança como um ritual
para reverenciar seus deuses. Somente após isto, tocado e sensibilizado pelo
divino, é que o homem pode tornar-se aquilo que realmente é e confiar em Deus.

O pequeno templo e a quietude paradisíacos que emanava do jardim garantiam-


lhe a sua segurança. De acordo com a minha experiência, a anima aparece nos
cenários ou ao mesmo tempo ou imediatamente após a centralização. A anima
estava agora visível. A medida que se manifestava neste cenário, novos aspectos
do crescimento de ego poderiam ser esperados. Até agora, o seu ego não podia
crescer positivamente, pois a dissolução da unidade mãe-filho e a ausência de
qualquer segurança carregada pelo arquétipo maternal, tornaram isto
impossível.

O jovem teve o seguinte sonho em Israel. Estava olhando pessoas que estavam
próximas a um vulcão e viu a sua pele caindo em tiras.

A troca da pele de cobra é uma imagem semelhante, simbolizando transformação


e renascimento. Na alquimia, a mudança ocorre no fogo. Uma vitalidade
renovada frequentemente se manifesta como fogo. Esta vivência numinosa
frequentemente é acompanhada por fortes emoções, quando é trazida ao
consciente.

O encontro com o "Outro" em Israel afetou o processo da sua mudança, que


levou à uma manifestação do Self. Expressou isto intuitivamente nos seus
cenários. Agora ara capaz de olhar o mundo de uma nova maneira.

Após seu retorno de Israel, teve um outro sonho, no qual encontrou um bebê
recém nascido sob os galhos de uma grande árvore. A criança simbolizava este novo
"Weltanschauung". Não precisavam mais escolher "Um ou o Outro"; agora podia viver
com "Um e o Outro". Tinha vivenciado ambos.

Seu próximo cenário (Figura 74), que representa um deserto com animais,
demonstrava sua chegada em Israel. Olhando atentamente, vi que os morros no
cenário tinham a forma de uma mulher. Estava deitada na água com os joelhos
recolhidos como um embrião. Este era seu anima pessoal que era terrena e que
nasceu do inconsciente no momento que colocou os pés na terra das suas
raízes. Os animais das estepes eram os instintos. A anima estava como o ego,
ainda num nível bastante primitivo. Agora o círculo, cujo ponto de partida tinha
sido o nascimento interno, estava fechado. Seu enrubescimento desapareceu e
logo recebeu a oferta de um emprego que garantia seu futuro profissional.

97
Figura 74

Para esta nova atividade, energias foram liberadas e usadas. Estas energias que
agora estavam crescendo estavam representadas na Figura 75 de uma maneira
que ia muito além disto. Continha muitas outras cores além do azul e do amare-
lo e dirigia-se a um amplo passeio com lindas árvores. A meta era uma árvore
frutífera. A fonte de nova vida estava simbolizada por um poço. Ao seu lado,
sentava um figura feminina, seu próprio ser feminino, para ajudá-lo no seu
trabalho criativo. Aqui a árvore era o símbolo daquilo que cresce da terra e que
unifica em si o masculino e o feminino, assim como o crescimento e fertilidade
da vida.

Figura 75

Nota do Editor:
Estas duas notas foram incluídas de modo que o leitor possa ver que a técnica de
caixa de areia é de grande ajuda em terapia com adultos. Também servem como
uma prévia de um planejado segundo livro a ser escrito pela autora.

98
EPÍLOGO

Escolhi alguns casos da minha prática e tentei mostrar como um bloqueio


insuportável no desenvolvimento psíquico de uma criança pode ser libertada de
modo que ela possa novamente crescer de forma normal. Frequentemente, não
ajuda em nada tratar um complexo somente com o uso da razão. Temos que
tentar entender a linguagem simbólica com a qual e psique multifacetária se
expressa em imagens e sonhos. Assim, podemos atingir as sementes criativas da
psique que são capazes de efetuar uma transformação no relacionamento que
uma criança tem com a vida.

Em todos os casos aqui apresentados, foi possível atingir alguma transformação


que geralmente foi inferida no primeiro cenário do paciente. Poderia mencionar
muitos mais casos, mas queria mostrar apenas alguns processos típicos.

Obviamente, todas as expectativas não foram realizadas dentro de cada


tratamento. É geralmente muito difícil que pais de crianças perturbadas tenham a
necessária compreensão e paciência para esperar por uma cura completa.

O curso de um desenvolvimento psíquico, que é irracional e ocorre fora da nossa


consciência, pode ser melhor comparado com água corrente. Um comentário do
"I Ching" (Editora Pensamento, Hexagrama no 29) diz:

"A água flui sem se acumular em lugar nenhum e mesmo em locais


perigosos e não perde sua característica confiável. Desta maneira, o
perigo é vencido. No coração, a natureza divina está trancada dentro de
indicações e tendências naturais e, assim, está em perigo de ser
sobrepujado por desejos e paixões. A maneira de vencer o perigo e ater-se
firmemente à disposição inata da pessoa em ser boa".

Quando somos bem sucedidos no nosso trabalho, em atingir uma harmonia interna
na qual vive todo o nosso ser, podemos chamar isto de bem-aventurança.

99
BIBLIOGRAFIA

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