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Junguiana

v.36-1, p.49-58

O curador-ferido e a individuação

Renata Ferraz Torres*

Resumo Palavras-chave
Este trabalho tece reflexões a respeito da Arquétipo do
importância da elaboração do arquétipo do curador-ferido,
curador-ferido na vida do analista. A autora dis- individuação,
elaboração
corre sobre livros e artigos de periódicos que en-
simbólica.
dereçam o tema. ■

* Adaptado de palestra proferida no 7º Congresso Latino Amer-


icano de Psicologia Analítica, realizado em Buenos Aires no
ano de 2015.
Médica pela USP, psiquiatra pelo HC-FMUSP, membro analista
da SBPA-SP e da IAAP, membro da Comissão de Ensino da
SBPA-SP renata.ferraz.torres@gmail.com

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O curador-ferido e a individuação

Este é um trabalho que se pretende ser além uma flechada não intencional de Héracles, seu
do teórico. A ideia não é discorrer teoricamente discípulo. A flecha almejava atingir outros cen-
sobre o arquétipo do curador-ferido, mas comparti- tauros e fisgou Quíron na coxa, produzindo uma
lhar observações e questionamentos que possam ferida muito dolorosa e que tinha a propriedade
aprofundar a vivência e levar a uma compreensão de nunca cicatrizar. Nesse símbolo do centau-
transcendente a respeito do tema. Para isso, trarei ro podemos observar a dualidade entre a razão
algumas histórias de curadores que também são (metade humana) e o instinto (metade cavalo),
feridos e de feridos que também são curadores. caracterizando um conflito entre a medida har-
Acredito sinceramente que buscar uma refle- moniosa, apolínea, e a pulsão animal, dionisíaca.
xão a respeito do arquétipo do curador-ferido, Aqui nasce, na referência da mitologia grega, um
assim como a elaboração desse aspecto em sua exemplo paradigmático do arquétipo do curador-
individuação, é tarefa fundamental para qualquer -ferido: Quíron ensina medicina, mas é incapaz
profissional de saúde. O que dirá do analista. de curar-se. Sendo imortal, deve carregar essa
Ninguém escolhe uma profissão de saúde de dor para sempre. Num trágico fim sacrificial, mas
maneira incólume. Uma escolha como essa vem com um caráter também libertador, Quíron troca
a serviço de algo, tem algum significado anímico de lugar com Prometeu, conquista sua mortalida-
profundo. Atende a uma vocação, a um daimon, de morrendo e torna-se constelação por obra de
para alguns. Para outros, pode ser um caminho Zeus. Outro aspecto digno de nota é que Quíron é
defensivo, a serviço de uma sublimação, ou até re- o mestre de Asclépio, pai da medicina.
presentar uma formação reativa. Ao longo da vida Enquanto eu cursava a faculdade de medici-
de um mesmo indivíduo, essa resposta pode os- na, refleti muito sobre essa dualidade: ser cura-
cilar, sendo ora uma coisa, ora outra. Nesse sen- dor e ser ferido, concomitantemente. Ora parecia-
tido, permanecer com a pergunta pode ser mais -me incompatível, em outros momentos, sentia
proveitoso do que respondê-la apressadamente, uma esperança de que as duas pontas poderiam
na tentativa de se livrar do questionamento. se dar as mãos. Ao olhar para os lados, eu não
Como acontece com os arquétipos, podemos via muitos exemplos de médicos ou estudantes
vivê-lo em diferentes níveis. O arquétipo do mes- portadores de alguma enfermidade. Pegava-me
tre-aprendiz é vivido num determinado aspecto pensando, também, que muitas pessoas têm fe-
enquanto se é aluno, e em outro, quando se tor- ridas não expostas, e que podem estar vivendo
na professor. Assim é com o arquétipo da Gran- a dualidade do arquétipo do curador-ferido sem
de Mãe ou do pai: num nível quando se ocupa o que ninguém perceba. Feridas psíquicas, angús-
papel do filho, em outro nível, no papel parental. tia existencial, quando não uma doença mental.
E assim também é com o arquétipo do curador- Lembro-me, no entanto, do espanto que tive
-ferido: ele é vivido numa dimensão quando se é numa aula de genética em que discutíamos os li-
o curador, e em outra dimensão quando se tem mites éticos da tecnologia. Um colega expressou
uma ferida. Mas o que dizer daqueles que, ao que achava que seria um ótimo médico, pois nun-
longo da vida, ocupam as duas pontas do espec- ca ficava doente. Senti um grande estranhamen-
tro, concomitantemente? to. Para minha surpresa, nem a professora nem os
Na mitologia grega, temos que Quíron, o cen- outros alunos esboçaram qualquer inquietação, e
tauro que era versado nas artes da cura, levou a aula seguiu normalmente após aquela declara-

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ção. Esse fato aconteceu há cerca de 20 anos, e sidade de Stanford, na Califórnia. Rachel hoje tra-
sua lembrança ainda é nítida em minha memória. balha como terapeuta em psico-oncologia, além
Essa passagem ilustra a tendência a considerar de atender outras pessoas portadoras de doenças
que o médico não sofre ou adoece, que sua vivên- graves, com expectativa de vida curta. Sua histó-
cia é diametralmente oposta à do paciente. É uma ria como paciente é pungente e extraordinária: aos
tendência perigosa, pois cinde arquetipicamente 15 anos foi diagnosticada com um grave caso da
a dualidade curador/ferido, aumentando a dis- doença de Chron, uma patologia intestinal de di-
tância entre o médico e seu paciente, contribuin- fícil manejo. Desde a adolescência foi submetida
do para uma relação entre eles que é desfavorá- a doses tóxicas de medicação, a única alternativa
vel. Além do mais, não é verdadeira: a qualquer para mantê-la viva, passando por diversas cirur-
momento o médico pode adoecer e, neste prisma gias grandes. Teve muitas ocorrências dramáticas,
apolíneo, encontra-se despreparado para enfren- como entrar em coma depois de um sangramento
tar o outro polo. muito forte no início da doença, ganhar uma barba
Ao longo dos anos, dois livros me influencia- cerrada aos 16 anos de idade em decorrência do
ram muito, e trago-os comigo, como leitura de uso de altas doses de corticoide, a ponto de ter que
referência, nesse aspecto de grandes curadores se barbear todos os dias. Além disso, ainda em de-
portadores de feridas incuráveis. Ambos foram corrência da toxicidade das medicações que alme-
escritos por mulheres norte-americanas e têm javam mantê-la viva, Rachel sofreu fraturas espon-
uma força própria que só o relato autobiográfico tâneas em diversos ossos, quase morreu depois de
é capaz de atingir. uma cirurgia, e teve uma perda significativa de sua
Uma das autoras é a psicóloga Kay Redfield visão por catarata e glaucoma. Aos 29 anos, teve
Jamison (JAMISON, 2009), que é professora boa parte de seu intestino removido cirurgicamen-
de psiquiatria na Universidade Johns Hopkins, te, ficando com uma bolsa de ileostomia. Recebeu
nos EUA. Ela é um grande expoente no estudo sentença de morte de médicos, que disseram que
do transtorno afetivo bipolar. Escreveu muitos ela não chegaria à meia-idade. Em função disso,
artigos científicos sobre o tema, inclusive sen- desistiu de se casar e de ter filhos, mas está viva
do coautora de um compêndio sobre a doença, até hoje, aos 76 anos de idade, dando palestras,
publicado em 1990, que se tornou uma grande workshops, atendendo na clínica e sendo autora
referência no campo de estudo psiquiátrico. Pois de alguns livros que considero extraordinários.
em 1996, Kay surpreende ao publicar um livro Essa pessoa, com uma história de doença tão dra-
autobiográfico revelando ser ela própria porta- mática, é uma incrível curadora.
dora do transtorno bipolar. No livro, relata seus “Uma mente inquieta”, de Kay Redfield Jami-
dramas pessoais e a batalha com a doença que son, e “Histórias que curam”, de Rachel Naomi
a levou a depressões seríssimas, inclusive com Remen, são livros que recomendo fortemente
uma tentativa de suicídio, além de manias psi- para qualquer estudante ou profissional de saú-
cóticas e estados mistos, em que se experimenta de que queira se aprofundar no testemunho do
concomitantemente sintomas de depressão e de que é viver as duas polaridades do arquétipo do
mania. Também escreve sobre sua batalha na curador-ferido concomitantemente.
aceitação do remédio maravilhoso e maldito que Em seu livro, Remen (1998) conta diversas histó-
a fez passar por muitos efeitos colaterais, mas rias sobre seus pacientes e outras sobre si mesma.
que terminou por salvar sua vida: o lítio. Uma dessas histórias de que gosto especialmente
A outra autora que é para mim um exemplo é é a respeito de sua recuperação após uma cirurgia
a médica Rachel Naomi Remen (REMEN, 1998), abdominal de emergência, motivada por peritonite
pediatra de formação, chegou a ser catedrática e e sépsis. Rachel conta que, ao ser levada às pres-
diretora-adjunta da clínica de pediatria da Univer- sas para a sala de operação, o cirurgião – também

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um amigo pessoal – disse, correndo ao lado de prio tempo, cabe apenas observá-los, aguardá-los
sua maca: “você sabe, devido à infecção, teremos e muitas vezes admirá-los. A cura possível virá no
que conseguir uma cicatrização por aderência pri- tempo possível, e é preciso aprender a ficar em paz
mária” (REMEN, 1998, p. 83). Rachel comenta que com essa realidade. A palavra aceitação também
essa conversa era típica de colegas médicos, como tem um lugar cativo nesse processo. Algo aconte-
se estivessem dissociadamente discutindo teoria cerá de dentro para fora, e cabe apenas aceitar.
a respeito de um paciente que não estava presen- O livro de Kay Redfield Jamison (2009) é mais
te. Relata que ao ouvir “aderência primária”, cheia linear do que o livro de Rachel. Enquanto o segun-
de remédios e se sentindo muito mal, não atinou do pode ser lido de forma não consecutiva, pois
para o significado da expressão. Aderência primá- conta inúmeras histórias, algumas em que Rachel
ria significa não dar pontos, deixar a ferida aberta figura como curadora e outras, como paciente; o
para que o próprio organismo feche lentamente a livro de Kay conta sua biografia cronologicamente,
abertura cirúrgica, em seu próprio tempo, pois a desde menina crescendo com seus pais e irmãos
ferida está infectada e não deve ser fechada para até a idade madura, passando pelos múltiplos
dar a oportunidade de que o organismo purgue e episódios de transtorno afetivo bipolar. É notável
se livre da infecção. Rachel só se deu conta no dia a gravidade de seu quadro, pois ela chegava a ter
seguinte da cirurgia, quando a enfermeira veio tro- manias psicóticas em que experimentava delírios
car seu curativo, e ela, horrorizada, vê uma grande e alucinações. Tão notável quanto o aspecto pa-
ferida aberta, como tantas vezes vira durante uma tológico, está também a fibra e tenacidade com
cirurgia em um paciente anestesiado, antes que que se agarra à vida. E é muito bonita a descri-
fossem dados os pontos. Ficou terrivelmente cho- ção da aliança terapêutica que constitui com o
cada, pensando que não havia como uma coisa seu psiquiatra, o qual via semanalmente, e am-
dessas sarar. Nos dias subsequentes, não olhava bos estabeleceram um vínculo de muito respeito,
para a ferida durante a troca de curativo operada cumplicidade e seriedade. Além da medicação,
pela enfermeira, cética e desesperada. Depois de Kay enfatiza a importância da psicoterapia mes-
mais ou menos uma semana, ocorreu a ela que, afi- mo em casos psiquiátricos graves. Suas mazelas
nal de contas, continuava viva. Talvez ela não fosse fizeram com que compreendesse e tivesse empa-
morrer em consequência daquela ferida. Pensou tia por pacientes com transtorno bipolar do humor
muitas coisas sobre o que fazer com aquela lacu- que tinham dificuldades semelhantes às suas,
na – a seu ver impossível de ser preenchida – an- como, por exemplo, a aceitação da medicação.
tes de tomar coragem e olhar novamente a cicatriz Conta minuciosamente como era difícil aceitar o
cirúrgica. Quando finalmente olhou, percebeu que lítio, que lhe trazia efeitos colaterais importantes
a cicatriz começava lentamente a se fechar. Isso – vale dizer que naquela época tomava-se doses
passou a ser um ritual diário: a enfermeira vem tro- substancialmente superiores, e a composição da
car o curativo da cicatriz e Rachel observa “aquela medicação era um pouco diferente – e a colocava
grande ferida, do modo lento e paciente de todas numa linha de normalidade que lhe parecia me-
as coisas naturais, gradualmente se tornava uma díocre. Queria dormir quatro horas por noite e se
cicatriz da espessura de um fio de cabelo” (REMEN, sentir suficientemente descansada, porém isso
1998, p. 37). Observa como ela, médica, não tinha só acontecia quando estava numa leve hipoma-
nenhum controle sobre aquilo, o que se constituiu nia, que durava poucos dias e logo escorregava
numa experiência “que infunde humildade”. para uma mania desastrosa.
Humildade é uma palavra-chave na vivência or- Após o livro autobiográfico, Kay escreveu ou-
questrada pelo arquétipo do curador-ferido. Não é tro volume, intitulado “Tocado pelo fogo: a doen-
possível controlar nem conduzir alguns processos ça maníaco-depressiva e o temperamento artís-
de cicatrização e regeneração: eles têm seu pró- tico” (REMEN, 2007), em que descreve casos de

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artistas já falecidos nos quais existe um provável em que não conseguimos manter o antigo
diagnóstico de transtorno de humor bipolar e um modo de fazer as coisas e entramos em
traço de genialidade. No livro, ela examina as rela- uma acentuada curva de aprendizado. Às
ções entre o temperamento artístico, um desajus- vezes é preciso uma crise para iniciar o
te psiquiátrico e a genialidade. De fato, a autora crescimento (REMEN, 1998, p. 109).
organizou junto com um amigo músico uma série
de concertos com a Filarmônica de Los Angeles Estamos aqui nos concentrando em exemplos
em um programa baseado na música de alguns nos quais os profissionais de saúde têm uma
compositores que sofreram com o transtorno bi- doença crônica, mas o mesmo pode ser vivido
polar. O objetivo era despertar a consciência para quando eles têm uma doença aguda, ou quando
os transtornos mentais e também um olhar para a uma doença crônica é deflagrada. Os abalos na
criatividade que acompanha tais temperamentos. transferência e contratransferência são inevitá-
Nesse sentido, Kay convida-nos a um certo veis, pois agora o profissional precisará cuidar
“elogio ao desajuste”: no doente mental existe não só do outro, como também de si mesmo. Ele
muita criatividade. A esse respeito, escreveu Kay: pode precisar se ausentar do consultório por um
período ou pode ser capaz de continuar os aten-
Há muito tempo abandonei a noção de uma dimentos, mas sob a constelação do arquétipo
vida sem tempestades, ou de um mundo do curador-ferido tendo ativado a figura do médi-
sem estações secas e assassinas. A vida co ferido em si, o que necessariamente vai afetar
é por demais complicada, é constante de- a sizígia analista/analisando.
mais nas suas mudanças para ser diferen- O autor junguiano Groesbeck publicou o óti-
te do que realmente é. E eu sou, por natu- mo artigo “A imagem arquetípica do médico fe-
reza, instável demais para ter outra atitude rido” no primeiro volume da Revista Junguiana.
a não ser de uma profunda desconfiança Nele, o autor aponta:
diante da grave artificialidade inerente a
qualquer tentativa de exercer um contro- A verdadeira cura só pode acontecer
le excessivo sobre forças essencialmente quando o paciente entra em contato com
incontroláveis. Sempre haverá elementos seu “médico interior” e dele recebe ajuda.
perturbadores, propulsores [...]. No final E isto só pode se dar caso sejam retiradas
das contas, são os momentos isolados de as projeções feitas sobre a persona do
inquietude, de desolação, de fortes con- médico. Para tanto, é necessário que o
vicções e entusiasmos enlouquecidos, médico entre em contato com o seu pró-
que caracterizam nossa vida, que mudam prio lado ferido (GROESBECK, 1983, p. 77).
a natureza e a direção do trabalho e que
dão colorido e significado final ao amor e A partir dessa reflexão, percebemos o quanto
às amizades (JAMISON, 2009, p. 258). é importante a tal humildade de que nos fala Ra-
chel. Um médico ou terapeuta arrogante e iden-
Tais reflexões são importantes contrapontos tificado com a face exclusivamente apolínea da
à cultura vigente, que tende a valorizar exclusiva- profissão de cura pode prejudicar o paciente em
mente o equilíbrio, a previsibilidade, a estabilida- seu processo. A história de vida de Groesbeck
de. Também na instabilidade se encontram forçar demonstra uma vivência ativada do arquétipo do
curadoras e regeneradoras. Rachel escreve: curador ferido: em sua primeira infância, o dedo
médio de sua mão direita foi violentamente de-
Frequentemente, um período de crises é cepado num acidente. Conta que já era adulto,
um período de descobertas, um tempo casado e com filhos quando teve um sonho que

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modificou sua maneira de ver a profissão. No Adolf Guggenbühl-Craig (1983), também num
sonho, ele estava perto de casa, procurando ani- artigo publicado no primeiro volume da Revista
mais. Avista um macaco com um camundongo Junguiana, discorre sobre o que chamou de ar-
que tinha uma mão direita esquisita, semelhan- quétipo do inválido e sobre os limites da cura,
te à sua. O macaco então coloca e tira a mão de tanto na análise quanto na medicina. Faz uma
um cesto contendo fezes. Ao acordar, reflete que distinção entre o arquétipo do inválido (que go-
o sonho parecia dizer que o trabalho de ser cura- verna aquilo que nunca poderá ser curado) e o
dor requer também que, às vezes, o lado ferido e arquétipo da criança (que está temporariamente
as áreas vulneráveis devam ser constantemente dependente, mas vai crescer e tornar-se autôno-
submetidos à exposição do lado sombrio da vida ma). De fato, muitas são as vezes em que um do-
real, para se ficar com as mãos sujas e se conse- ente é tratado como uma criança, quando lhe é
guir manter em contato com o que quer que seja dito: "me dá o bracinho", "é só uma picadinha",
que os pacientes tragam, numa relação terra a dentre outros diminutivos afetivos e regressivos,
terra. Considera que o sonho parecia dizer-lhe que podem ser irritantes ou mesmo desconcer-
que, para que ele fosse um verdadeiro curador- tantes. Guggenbühl-Craig faz uma importante
-ferido, deveria manter constantemente a “mão observação: de que "a vida pode ser vivenciada
na massa” e somente isso poderia promover o sob a estrela da saúde ou da doença, indepen-
processo de crescimento. dentemente do real estado de saúde" (GUG-
O filósofo gaúcho Gerd Bornheim (2009) es- GENBÜHL-CRAIG, 1983, p. 100). Assim como o
creveu longamente sobre a experiência negativa, arquétipo da grande mãe pode ser fortemente
como sendo responsável pelo despertar para a filo- constelado na vida de uma mulher sem filhos, o
sofia e o aprofundamento do hetero e autoconhe- arquétipo do inválido pode aparecer na vida de
cimentos. Ressalta a experiência negativa – que, uma pessoa que não esteja particularmente vi-
para nossa reflexão, pode ser representada pela vendo uma situação de doença. O autor observa
vivência da ferida incurável na vida do profissional que o arquétipo do inválido pode ter um efeito
de saúde – como sendo fundamental na saída de positivo sobre alguém que o vivencia, infundin-
uma posição dogmática e de identificação com o do modéstia e contrapondo-se à soberba. Pode
mundo. O autor coloca que a experiência negativa constelar em outras pessoas à sua volta bon-
é um passo necessário para se desenvolver o espí- dade e paciência. Ressalta também que nossa
rito crítico, o questionamento e a inquietação, con- cultura vive num tempo em que existe um furor
dições precípuas ao filosofar. Acredita que a expe- curandis: antigamente as pessoas passavam
riência negativa acarreta numa “perda do mundo”, pela vida com um temperamento melancólico,
mas também de uma “reconquista do mundo”, hoje em dia precisam ser rapidamente medica-
motivado pela reflexão e metanoia. das. É claro que existe aí um avanço tecnológico
Podemos refletir sobre as feridas na vida do louvável, que representa um acréscimo, mas é
próprio Jung. Desde as vulnerabilidades da infân- importante refletir o quanto vamos ficando into-
cia, quando, depois de uma ocorrência traumática, lerantes com sofrimento: tudo precisa ser cura-
não queria mais ir à escola e sofria de desmaios, do, tratado, bem-sucedido, superado.
até o período frágil e perturbador que viveu depois Henry Abramovitch, analista junguiano liga-
da ruptura com Freud, período em que tinha visões do à Sociedade de Israel, esteve no Brasil mi-
e experiências psíquicas assustadoras e descon- nistrando uma conferência sobre o arquétipo
certantes. Nesse período, embora não tenha dei- do curador ferido e sua vivência em primeira
xado de atender pacientes, atendia em menor nú- pessoa, tendo ele passado por um câncer. Pre-
mero, e trabalhava com as mãos intensivamente, cisou se ausentar da prática clínica subitamen-
esculpindo, pintando, escrevendo. te depois do diagnóstico, para submeter-se a

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tratamento que incluía quimioterapia, perda de gens sagradas: pinturas, estátuas, cerâmicas,
cabelo, e outros efeitos colaterais oncológicos. tapeçarias e vitrais de diversos lugares e épo-
Contou como foi o processo de sofrer as modi- cas. Mostra uma imagem de Shiva, o deus hin-
ficações acarretadas pela doença, e como isso du, dançando em círculo com brasas feitas de
impactou seu consultório, com as fantasias e bronze. As mãos de seus muitos braços seguram
pensamentos contratransferenciais e transfe- símbolos da abundância do mundo espiritual.
renciais. Explorou suas práticas pregressas, e Enquanto ele dança, um de seus pés fica erguido
percebeu que há um quê de onipotência quan- bem no alto, e o outro é sustentado pelas costas
do dizemos a um paciente no momento de alta nuas de um homenzinho agachado na terra, que
que “se quiser voltar, as portas estarão sempre tem toda a sua atenção voltada para uma folha
abertas”. Quem garante que estaremos sãos, ou que está na sua mão. Os médicos, treinados na
mesmo vivos? (informação verbal).1 observação, apesar da beleza do deus dançante,
De fato, a pequenez no ego diante dos desíg- focaram sua curiosidade no homenzinho curva-
nios do Self é tremenda. Nosso estado de saúde do. Perguntaram a Joseph Campbell, que come-
física e psíquica é, no máximo, um equilíbrio di- çou a rir, explicando que o homenzinho é uma
nâmico, um barquinho de papel num oceano. pessoa tão absorta no estudo do mundo mate-
Viktor Frankl (2008), em seu livro pioneiro so- rial que nem mesmo percebe que um deus vivo
bre os campos de concentração, “Em busca de dança em suas costas. Rachel observa que exis-
sentido”, relata que a própria sobrevivência pode te um homenzinho desses em cada um de nós.
depender de buscar e encontrar um significado As artes da análise, às vezes, nos exigem o
para aquilo que se vive. Nos campos de concen- movimento oposto ao de focalizar a atenção no
tração, aqueles que conseguiram manter um sen- homenzinho; tentar ver a chamada big picture,
so de significado e propósito em seu sofrimento escutar e compreender o outro de uma forma
foram mais capazes de sobreviver às privações e mais integrada e vivenciar tanto o sagrado e
atrocidades de sua vida diária do que os outros quanto o profano das relações.
para quem o sofrimento não tinha sentido. Podemos a qualquer momento nos interiori-
Um texto anônimo, desses que circula na in- zar e perguntar-nos, profundamente: estou em
ternet, diz: “Carregue sua cruz com classe”, e de- contato com minha ferida pessoal? Que tenho
pois continua em estrofes enaltecendo a impor- feito de minha relação com ela? Como posso
tância de não ser presa de uma autocomiseração compreender mais a respeito de minha trajetória
que pode ser paralisante. Eu gosto mais do título como curador-ferido?
do que do texto. Carregue sua cruz com classe Aquele analista que conseguir estar em con-
pode ser uma elegia ao fato de que cada um de tato profundo com sua ferida interior, e também
nós carrega uma cruz, uma ferida. Uma das tare- em contato com os aspectos curador e ferido de
fas da vida é dar conta do sofrimento, da expe- seu paciente, poderá operar a função transcen-
riência negativa de que nos fala Gerd Bornheim dente. Trilhar sua individuação e contribuir para
(2009), e a partir da qual é possível o autoconhe- que seu paciente trilhe a dele.
cimento e a dedicação ao outro. Vou citar Rachel Remen quando diz:
Rachel Remen (1998) conta uma história so-
bre um seminário organizado por Joseph Cam- Todo mundo que está vivo já sofreu. É a
pbell para médicos sobre a experiência do sa- sabedoria adquirida com nossas feridas
grado. Ela estava presente na plateia, e Joseph e com nossas experiências de sofrimento
Campbell foi mostrando diversos slides de ima- que nos capacita para curar. Tornar-me
uma especialista revelou-se menos im-
1
Informação fornecida por Henry Abramovitch durante palestra
em São Paulo, em mar. 2012. portante do que lembrar-me da integri-

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dade que há em mim mesma e em todas Quero finalizar lembrando que se diz que,
as outras pessoas e confiar nessa integri- quando os japoneses consertam objetos que-
dade. Os conhecimentos especializados brados, eles exaltam o dano sofrido preenchen-
curam, mas pessoas que sofrem são mais do as rachaduras com ouro. Eles acreditam que,
bem curadas por outras pessoas que so- quando algo já sofreu danos e tem, portanto,
frem. Somente outras pessoas sofredoras uma história, torna-se mais bonito e único. ■
podem compreender o que é necessário,
pois a cura para o sofrimento está na com- Recebido em: 23/02/2018 Revisão: 16/05/2018
paixão (REMEN, 1998, p. 189).

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Abstract

The wounded healer and individuation


This article reflects on the importance of the the life of the analyst. The author talks about books
elaboration of the wounded healer archetype in and articles that adresses the theme. ■

Keywords: the wounded healer archetype, individuation, symbolic elaboration.

Resumen​

El curador-herido e la individuación
Este trabajo hace reflexiones que tratan de la escribe sobre libros y textos de periódicos​que ​se
importancia de la elaboración del arquetipo del dirigen al tema. ■
curador-herido en la vida del analista. La autora

Palabras clave: el arquetipo del curador-herido, la individuación, elaboración simbólica.

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Referências
BORNHEIM, G. A. Introdução ao filosofar: o pensamento GUGGENBÜHL-CRAIG, A. O arquétipo do inválido e os
filosófico em bases existenciais. São Paulo: Globo, 2009. limites da cura. Junguiana, v. 1, p. 97–106, 1983.

FRANKL, V. E. Em busca de sentido: um psicólogo no JAMISON, K. R. Uma mente inquieta: memórias de loucura
campo de concentração. 25. ed. Petrópolis, RJ: Editora e instabilidade de humor. 2. ed. São Paulo: Editora WMF
Vozes, 2008. Martins Fontes, 2009.

GROESBECK, C. J. A imagem arquetípica do médico ferido. REMEN, R. N. Histórias que curam: conversas sábias ao pé
Junguiana, v. 1, p. 72–96, 1983. do fogão. 3. ed. São Paulo: Ágora, 1998.

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