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v.36-1, p.49-58
O curador-ferido e a individuação
Resumo Palavras-chave
Este trabalho tece reflexões a respeito da Arquétipo do
importância da elaboração do arquétipo do curador-ferido,
curador-ferido na vida do analista. A autora dis- individuação,
elaboração
corre sobre livros e artigos de periódicos que en-
simbólica.
dereçam o tema. ■
O curador-ferido e a individuação
Este é um trabalho que se pretende ser além uma flechada não intencional de Héracles, seu
do teórico. A ideia não é discorrer teoricamente discípulo. A flecha almejava atingir outros cen-
sobre o arquétipo do curador-ferido, mas comparti- tauros e fisgou Quíron na coxa, produzindo uma
lhar observações e questionamentos que possam ferida muito dolorosa e que tinha a propriedade
aprofundar a vivência e levar a uma compreensão de nunca cicatrizar. Nesse símbolo do centau-
transcendente a respeito do tema. Para isso, trarei ro podemos observar a dualidade entre a razão
algumas histórias de curadores que também são (metade humana) e o instinto (metade cavalo),
feridos e de feridos que também são curadores. caracterizando um conflito entre a medida har-
Acredito sinceramente que buscar uma refle- moniosa, apolínea, e a pulsão animal, dionisíaca.
xão a respeito do arquétipo do curador-ferido, Aqui nasce, na referência da mitologia grega, um
assim como a elaboração desse aspecto em sua exemplo paradigmático do arquétipo do curador-
individuação, é tarefa fundamental para qualquer -ferido: Quíron ensina medicina, mas é incapaz
profissional de saúde. O que dirá do analista. de curar-se. Sendo imortal, deve carregar essa
Ninguém escolhe uma profissão de saúde de dor para sempre. Num trágico fim sacrificial, mas
maneira incólume. Uma escolha como essa vem com um caráter também libertador, Quíron troca
a serviço de algo, tem algum significado anímico de lugar com Prometeu, conquista sua mortalida-
profundo. Atende a uma vocação, a um daimon, de morrendo e torna-se constelação por obra de
para alguns. Para outros, pode ser um caminho Zeus. Outro aspecto digno de nota é que Quíron é
defensivo, a serviço de uma sublimação, ou até re- o mestre de Asclépio, pai da medicina.
presentar uma formação reativa. Ao longo da vida Enquanto eu cursava a faculdade de medici-
de um mesmo indivíduo, essa resposta pode os- na, refleti muito sobre essa dualidade: ser cura-
cilar, sendo ora uma coisa, ora outra. Nesse sen- dor e ser ferido, concomitantemente. Ora parecia-
tido, permanecer com a pergunta pode ser mais -me incompatível, em outros momentos, sentia
proveitoso do que respondê-la apressadamente, uma esperança de que as duas pontas poderiam
na tentativa de se livrar do questionamento. se dar as mãos. Ao olhar para os lados, eu não
Como acontece com os arquétipos, podemos via muitos exemplos de médicos ou estudantes
vivê-lo em diferentes níveis. O arquétipo do mes- portadores de alguma enfermidade. Pegava-me
tre-aprendiz é vivido num determinado aspecto pensando, também, que muitas pessoas têm fe-
enquanto se é aluno, e em outro, quando se tor- ridas não expostas, e que podem estar vivendo
na professor. Assim é com o arquétipo da Gran- a dualidade do arquétipo do curador-ferido sem
de Mãe ou do pai: num nível quando se ocupa o que ninguém perceba. Feridas psíquicas, angús-
papel do filho, em outro nível, no papel parental. tia existencial, quando não uma doença mental.
E assim também é com o arquétipo do curador- Lembro-me, no entanto, do espanto que tive
-ferido: ele é vivido numa dimensão quando se é numa aula de genética em que discutíamos os li-
o curador, e em outra dimensão quando se tem mites éticos da tecnologia. Um colega expressou
uma ferida. Mas o que dizer daqueles que, ao que achava que seria um ótimo médico, pois nun-
longo da vida, ocupam as duas pontas do espec- ca ficava doente. Senti um grande estranhamen-
tro, concomitantemente? to. Para minha surpresa, nem a professora nem os
Na mitologia grega, temos que Quíron, o cen- outros alunos esboçaram qualquer inquietação, e
tauro que era versado nas artes da cura, levou a aula seguiu normalmente após aquela declara-
ção. Esse fato aconteceu há cerca de 20 anos, e sidade de Stanford, na Califórnia. Rachel hoje tra-
sua lembrança ainda é nítida em minha memória. balha como terapeuta em psico-oncologia, além
Essa passagem ilustra a tendência a considerar de atender outras pessoas portadoras de doenças
que o médico não sofre ou adoece, que sua vivên- graves, com expectativa de vida curta. Sua histó-
cia é diametralmente oposta à do paciente. É uma ria como paciente é pungente e extraordinária: aos
tendência perigosa, pois cinde arquetipicamente 15 anos foi diagnosticada com um grave caso da
a dualidade curador/ferido, aumentando a dis- doença de Chron, uma patologia intestinal de di-
tância entre o médico e seu paciente, contribuin- fícil manejo. Desde a adolescência foi submetida
do para uma relação entre eles que é desfavorá- a doses tóxicas de medicação, a única alternativa
vel. Além do mais, não é verdadeira: a qualquer para mantê-la viva, passando por diversas cirur-
momento o médico pode adoecer e, neste prisma gias grandes. Teve muitas ocorrências dramáticas,
apolíneo, encontra-se despreparado para enfren- como entrar em coma depois de um sangramento
tar o outro polo. muito forte no início da doença, ganhar uma barba
Ao longo dos anos, dois livros me influencia- cerrada aos 16 anos de idade em decorrência do
ram muito, e trago-os comigo, como leitura de uso de altas doses de corticoide, a ponto de ter que
referência, nesse aspecto de grandes curadores se barbear todos os dias. Além disso, ainda em de-
portadores de feridas incuráveis. Ambos foram corrência da toxicidade das medicações que alme-
escritos por mulheres norte-americanas e têm javam mantê-la viva, Rachel sofreu fraturas espon-
uma força própria que só o relato autobiográfico tâneas em diversos ossos, quase morreu depois de
é capaz de atingir. uma cirurgia, e teve uma perda significativa de sua
Uma das autoras é a psicóloga Kay Redfield visão por catarata e glaucoma. Aos 29 anos, teve
Jamison (JAMISON, 2009), que é professora boa parte de seu intestino removido cirurgicamen-
de psiquiatria na Universidade Johns Hopkins, te, ficando com uma bolsa de ileostomia. Recebeu
nos EUA. Ela é um grande expoente no estudo sentença de morte de médicos, que disseram que
do transtorno afetivo bipolar. Escreveu muitos ela não chegaria à meia-idade. Em função disso,
artigos científicos sobre o tema, inclusive sen- desistiu de se casar e de ter filhos, mas está viva
do coautora de um compêndio sobre a doença, até hoje, aos 76 anos de idade, dando palestras,
publicado em 1990, que se tornou uma grande workshops, atendendo na clínica e sendo autora
referência no campo de estudo psiquiátrico. Pois de alguns livros que considero extraordinários.
em 1996, Kay surpreende ao publicar um livro Essa pessoa, com uma história de doença tão dra-
autobiográfico revelando ser ela própria porta- mática, é uma incrível curadora.
dora do transtorno bipolar. No livro, relata seus “Uma mente inquieta”, de Kay Redfield Jami-
dramas pessoais e a batalha com a doença que son, e “Histórias que curam”, de Rachel Naomi
a levou a depressões seríssimas, inclusive com Remen, são livros que recomendo fortemente
uma tentativa de suicídio, além de manias psi- para qualquer estudante ou profissional de saú-
cóticas e estados mistos, em que se experimenta de que queira se aprofundar no testemunho do
concomitantemente sintomas de depressão e de que é viver as duas polaridades do arquétipo do
mania. Também escreve sobre sua batalha na curador-ferido concomitantemente.
aceitação do remédio maravilhoso e maldito que Em seu livro, Remen (1998) conta diversas histó-
a fez passar por muitos efeitos colaterais, mas rias sobre seus pacientes e outras sobre si mesma.
que terminou por salvar sua vida: o lítio. Uma dessas histórias de que gosto especialmente
A outra autora que é para mim um exemplo é é a respeito de sua recuperação após uma cirurgia
a médica Rachel Naomi Remen (REMEN, 1998), abdominal de emergência, motivada por peritonite
pediatra de formação, chegou a ser catedrática e e sépsis. Rachel conta que, ao ser levada às pres-
diretora-adjunta da clínica de pediatria da Univer- sas para a sala de operação, o cirurgião – também
um amigo pessoal – disse, correndo ao lado de prio tempo, cabe apenas observá-los, aguardá-los
sua maca: “você sabe, devido à infecção, teremos e muitas vezes admirá-los. A cura possível virá no
que conseguir uma cicatrização por aderência pri- tempo possível, e é preciso aprender a ficar em paz
mária” (REMEN, 1998, p. 83). Rachel comenta que com essa realidade. A palavra aceitação também
essa conversa era típica de colegas médicos, como tem um lugar cativo nesse processo. Algo aconte-
se estivessem dissociadamente discutindo teoria cerá de dentro para fora, e cabe apenas aceitar.
a respeito de um paciente que não estava presen- O livro de Kay Redfield Jamison (2009) é mais
te. Relata que ao ouvir “aderência primária”, cheia linear do que o livro de Rachel. Enquanto o segun-
de remédios e se sentindo muito mal, não atinou do pode ser lido de forma não consecutiva, pois
para o significado da expressão. Aderência primá- conta inúmeras histórias, algumas em que Rachel
ria significa não dar pontos, deixar a ferida aberta figura como curadora e outras, como paciente; o
para que o próprio organismo feche lentamente a livro de Kay conta sua biografia cronologicamente,
abertura cirúrgica, em seu próprio tempo, pois a desde menina crescendo com seus pais e irmãos
ferida está infectada e não deve ser fechada para até a idade madura, passando pelos múltiplos
dar a oportunidade de que o organismo purgue e episódios de transtorno afetivo bipolar. É notável
se livre da infecção. Rachel só se deu conta no dia a gravidade de seu quadro, pois ela chegava a ter
seguinte da cirurgia, quando a enfermeira veio tro- manias psicóticas em que experimentava delírios
car seu curativo, e ela, horrorizada, vê uma grande e alucinações. Tão notável quanto o aspecto pa-
ferida aberta, como tantas vezes vira durante uma tológico, está também a fibra e tenacidade com
cirurgia em um paciente anestesiado, antes que que se agarra à vida. E é muito bonita a descri-
fossem dados os pontos. Ficou terrivelmente cho- ção da aliança terapêutica que constitui com o
cada, pensando que não havia como uma coisa seu psiquiatra, o qual via semanalmente, e am-
dessas sarar. Nos dias subsequentes, não olhava bos estabeleceram um vínculo de muito respeito,
para a ferida durante a troca de curativo operada cumplicidade e seriedade. Além da medicação,
pela enfermeira, cética e desesperada. Depois de Kay enfatiza a importância da psicoterapia mes-
mais ou menos uma semana, ocorreu a ela que, afi- mo em casos psiquiátricos graves. Suas mazelas
nal de contas, continuava viva. Talvez ela não fosse fizeram com que compreendesse e tivesse empa-
morrer em consequência daquela ferida. Pensou tia por pacientes com transtorno bipolar do humor
muitas coisas sobre o que fazer com aquela lacu- que tinham dificuldades semelhantes às suas,
na – a seu ver impossível de ser preenchida – an- como, por exemplo, a aceitação da medicação.
tes de tomar coragem e olhar novamente a cicatriz Conta minuciosamente como era difícil aceitar o
cirúrgica. Quando finalmente olhou, percebeu que lítio, que lhe trazia efeitos colaterais importantes
a cicatriz começava lentamente a se fechar. Isso – vale dizer que naquela época tomava-se doses
passou a ser um ritual diário: a enfermeira vem tro- substancialmente superiores, e a composição da
car o curativo da cicatriz e Rachel observa “aquela medicação era um pouco diferente – e a colocava
grande ferida, do modo lento e paciente de todas numa linha de normalidade que lhe parecia me-
as coisas naturais, gradualmente se tornava uma díocre. Queria dormir quatro horas por noite e se
cicatriz da espessura de um fio de cabelo” (REMEN, sentir suficientemente descansada, porém isso
1998, p. 37). Observa como ela, médica, não tinha só acontecia quando estava numa leve hipoma-
nenhum controle sobre aquilo, o que se constituiu nia, que durava poucos dias e logo escorregava
numa experiência “que infunde humildade”. para uma mania desastrosa.
Humildade é uma palavra-chave na vivência or- Após o livro autobiográfico, Kay escreveu ou-
questrada pelo arquétipo do curador-ferido. Não é tro volume, intitulado “Tocado pelo fogo: a doen-
possível controlar nem conduzir alguns processos ça maníaco-depressiva e o temperamento artís-
de cicatrização e regeneração: eles têm seu pró- tico” (REMEN, 2007), em que descreve casos de
artistas já falecidos nos quais existe um provável em que não conseguimos manter o antigo
diagnóstico de transtorno de humor bipolar e um modo de fazer as coisas e entramos em
traço de genialidade. No livro, ela examina as rela- uma acentuada curva de aprendizado. Às
ções entre o temperamento artístico, um desajus- vezes é preciso uma crise para iniciar o
te psiquiátrico e a genialidade. De fato, a autora crescimento (REMEN, 1998, p. 109).
organizou junto com um amigo músico uma série
de concertos com a Filarmônica de Los Angeles Estamos aqui nos concentrando em exemplos
em um programa baseado na música de alguns nos quais os profissionais de saúde têm uma
compositores que sofreram com o transtorno bi- doença crônica, mas o mesmo pode ser vivido
polar. O objetivo era despertar a consciência para quando eles têm uma doença aguda, ou quando
os transtornos mentais e também um olhar para a uma doença crônica é deflagrada. Os abalos na
criatividade que acompanha tais temperamentos. transferência e contratransferência são inevitá-
Nesse sentido, Kay convida-nos a um certo veis, pois agora o profissional precisará cuidar
“elogio ao desajuste”: no doente mental existe não só do outro, como também de si mesmo. Ele
muita criatividade. A esse respeito, escreveu Kay: pode precisar se ausentar do consultório por um
período ou pode ser capaz de continuar os aten-
Há muito tempo abandonei a noção de uma dimentos, mas sob a constelação do arquétipo
vida sem tempestades, ou de um mundo do curador-ferido tendo ativado a figura do médi-
sem estações secas e assassinas. A vida co ferido em si, o que necessariamente vai afetar
é por demais complicada, é constante de- a sizígia analista/analisando.
mais nas suas mudanças para ser diferen- O autor junguiano Groesbeck publicou o óti-
te do que realmente é. E eu sou, por natu- mo artigo “A imagem arquetípica do médico fe-
reza, instável demais para ter outra atitude rido” no primeiro volume da Revista Junguiana.
a não ser de uma profunda desconfiança Nele, o autor aponta:
diante da grave artificialidade inerente a
qualquer tentativa de exercer um contro- A verdadeira cura só pode acontecer
le excessivo sobre forças essencialmente quando o paciente entra em contato com
incontroláveis. Sempre haverá elementos seu “médico interior” e dele recebe ajuda.
perturbadores, propulsores [...]. No final E isto só pode se dar caso sejam retiradas
das contas, são os momentos isolados de as projeções feitas sobre a persona do
inquietude, de desolação, de fortes con- médico. Para tanto, é necessário que o
vicções e entusiasmos enlouquecidos, médico entre em contato com o seu pró-
que caracterizam nossa vida, que mudam prio lado ferido (GROESBECK, 1983, p. 77).
a natureza e a direção do trabalho e que
dão colorido e significado final ao amor e A partir dessa reflexão, percebemos o quanto
às amizades (JAMISON, 2009, p. 258). é importante a tal humildade de que nos fala Ra-
chel. Um médico ou terapeuta arrogante e iden-
Tais reflexões são importantes contrapontos tificado com a face exclusivamente apolínea da
à cultura vigente, que tende a valorizar exclusiva- profissão de cura pode prejudicar o paciente em
mente o equilíbrio, a previsibilidade, a estabilida- seu processo. A história de vida de Groesbeck
de. Também na instabilidade se encontram forçar demonstra uma vivência ativada do arquétipo do
curadoras e regeneradoras. Rachel escreve: curador ferido: em sua primeira infância, o dedo
médio de sua mão direita foi violentamente de-
Frequentemente, um período de crises é cepado num acidente. Conta que já era adulto,
um período de descobertas, um tempo casado e com filhos quando teve um sonho que
Resumen
El curador-herido e la individuación
Este trabajo hace reflexiones que tratan de la escribe sobre libros y textos de periódicosque se
importancia de la elaboración del arquetipo del dirigen al tema. ■
curador-herido en la vida del analista. La autora
FRANKL, V. E. Em busca de sentido: um psicólogo no JAMISON, K. R. Uma mente inquieta: memórias de loucura
campo de concentração. 25. ed. Petrópolis, RJ: Editora e instabilidade de humor. 2. ed. São Paulo: Editora WMF
Vozes, 2008. Martins Fontes, 2009.
GROESBECK, C. J. A imagem arquetípica do médico ferido. REMEN, R. N. Histórias que curam: conversas sábias ao pé
Junguiana, v. 1, p. 72–96, 1983. do fogão. 3. ed. São Paulo: Ágora, 1998.