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TERAPIA FAMILIAR
DANIEL SAMPAIO E JOSÉ GAMEIRO

Colaboração de: Helena Silva Araújo

Cristiana Bastos Maria Isabel Fazenda Manuela Fazenda Martins

4ª edição

Edições Afrontamento
 

A Carl Whitaker

1ª edição: Maio 1985


2ª edição: Fevereiro 1992
3ª edição: Março 1997
4ª edição: Setembro 1998

Título: Terapia Familiar


Autores: Daniel Sampaio e José Gameiro

Colaboração: Cristiana Bastos, Helena Silva Araújo, Manuela Fazenda


Martins e Maria Isabel Fazenda
C 1985, Autores e Edições Afrontamento Edição: Edições Afrontamento / Rua de
Costa Cabral, 859 / 4200 Porto Colecção: Biblioteca das Ciências do Homem.
Psicologia, Psicanálise, Psiquiatria/8 N2 de edição: 233 ISBN: 972-36-0136-2

Depósito legal: 53413/92 Impressão e acabamento: Rainho & Neves, Lda. / Santa
Maria da Feira
 

PREFÁCIO À 2ª EDIÇÃO

Cinco anos após a publicação do nosso livro Terapia Familiar, a sua


1ª edição encontra-se esgotada.

É com satisfação que prefaciamos agora a 2 @ *edição da obra, não só por nos
parecer de realçar o facto, não habitual, de um livro à partida mais destinado a
um público específico se ter vendido bem, mas também por neste momento a terapia
familiar adquirir grande desenvolvimento entre nós, o que só por si justifica
uma nova edição.

No prefácio da edição original definíamos como objectivos para esta obra a


divulgação da terapia familiar em Portugal e a possibilidade de oferecer aos
terapeutas em treino um texto que servisse de base para o

seu estudo. Consideramos que estes dois propósitos se mantêm actuais, sendo de
destacar os crescentes pedidos deformação que têm chegado à Sociedade Portuguesa
de Terapia Familiar. No momento actual existem núcleos de terapeutas já com
formação completa ou em vias de conclusão, em Lisboa, Porto e Coimbra, sendo
crescente o número de instituições que solicitam sensibilização ou formação
nesta área.

Quando em 1979 fundamos a Sociedade Portuguesa de Terapia Familiar, em conjunto


com outros técnicos de Saúde Mental, a nossa linha de actuação clínica estava
centrada na terapia familiar numa

óptica sistémica. No decurso do nosso trabalho fomos verificando que esta


perspectiva poderia ser alargada a outros contextos, diferentes do familiar.

É assim que nos últimos anos temos desenvolvido novas áreas de trabalho no campo
da investigação sistémica, de que destacaremos:

- na área da Saúde Mental, a investigação e actuação clínica no

campo do suicídio juvenil e perturbações do comportamento alimentar, bem como a


investigação epistemológica na Psiquiatria.
 

-  no terreno da Clínica Geral Medicina Familiar, temos procurado desenvolver o


treino sistémico e a metodologia de intervenção junto das famílias que acorrem
aos Centros de Saúde.

-no campo judiciário estamos a incentivar a intervenção sistémica junto do


Tribunal de Família de Lisboa, através de um número crescente

de técnicos que solicita a formação na SPTF e do desenvolvimento do

processo de mediação familiar.

- na intervenção na toxicomania, através de acções deformação e

supervisão nos centros de tratamento, nas perspectivas de terapia familiar com


famílias com doente toxicómano e de compreensão do sistema familiar no
acompanhamento individual do toxicodependente.

Em livro posterior daremos detalhada informação sobre estes desenvolvimentos,


mas ao prefaciarmos esta 2ªedição não queremos deixarde notar a evolução e
extensão do conceito de terapia familiar.

«Tratar as famílias», modificá-las de fora para dentro não é actualmente o


objectivo fundamental. Cada agregado familiar possui um

funcionamento próprio e o papel do terapeuta é o de construir com a família um


contexto onde surja uma nova auto-organização não disfuncional.

Os novos desenvolvimentos da teoria geral dos sistemas em que as noções de


ruído, aleatório, níveis hierárquicos e complexidade permitiram dar um novo
sentido a esta conceptualização, trouxeram para a

terapia familiar a possibilidade de corrigir um certo determinismo

em que as famílias tinham caído enquanto «nova causa» de disfunção psicológica.


A família passou a ser encarada como um dos níveis de análise do indivíduo, a
par de outros níveis, que vão do molecular até ao social.

A terapia familiar iniciou assim um movimento que a aproximou de uma visão da


realidade em que mais facilmente se complexifica com

outras formas de abordagem em que o indivíduo é o principal objecto.

A discussão que trazemos para este prefácio pretende despertar o

leitor para uma perspectiva não redutora face à terapia familiar, que por vezes
se depreende do nosso livro. Em investigação científica cinco anos são muito
tempo e felizmente que muito mudou desde 1985.
 

Mas cremos que o nosso livro continua a ter lugar junto das famílias que o lerem
e dos técnicos que o estudarem.
 

1 FAMíLIAS E TERAPIA FAMILIAR

De tal ninho, tal passarinho

Ditado popular português

Isabel torcia as mãos, num desespero:


- Não sei o que hei-de fazer ( ... ) sinto que não vou aguentar ( ... )o meu
marido está pior da úlcera, dizem que é dos nervos ( ... ) o meu pai está
reformado e veio viver connosco, depois da minha mãe morrer ( ... ) sinto-

-me esgotada, fui ao médico e deu-me calmantes ( ... ) e agora é o meu

filho que não quer estudar e raramente está em casa! Não sei o que hei-de fazer,
há qualquer coisa com nós todos que não está a correr bem!

Isabel veio pedir ajuda para o seu filho Ricardo, de 15 anos, agora com

dificuldades escolares e problemas de relacionamento com a sua família.

Mas será só isto?

Foi fácil fazer notar a Isabel que o problema do seu filho adolescente, embora
merecedor de toda a atenção, estava interligado com um determinado momento da
vida da família Gonçalves. Todo o grupo tinha deixado de ser capaz de resolver
sozinho as dificuldades e pedia ajuda ao exterior.

Passa-se o mesmo com muitas outras famílias. Quando qualquer terapeuta pretende
intervir num dado problema psicológico a primeira coisa a fazer é situar em que
ponto estamos do ciclo vital da família em

questão. Este ciclo é constituído pelos momentos mais significativos da vida


familiar, considerada no seu conjunto, no qual existem zonas de

particular instabilidade, correspondentes a mudanças na organização


 

da família, por si sós geradoras de desequilíbrios momentâneos a que a família


tem de dar resposta, de modo a atingir uma nova organização.

A família de Isabel Gonçalves tinha até ao momento sido capaz de ultrapassar as


suas zonas problemáticas: agora, a morte da mãe de Isabel, a reforma do pai, a
adolescência de Ricardo criaram um conjunto de novas dificuldades a que foi
difícil dar resposta.

As famílias estão organizadas de um certo modo, mediante regras de funcionamento


que não podem ser mantidas rigidamente: por exemplo, a hora de deitar dos filhos
deverá ser sucessivamente dilatada à medida que eles crescem - que sentido terá
mandar para a cama às 21 horas adolescentes de dezassete anos?

Mas as famílias passam também por crises regulares no seu processo de


desenvolvimento, progredindo por mudanças descontínuas (Hoffman, 1980),
possuindo em maior ou menor grau a capacidade de gerar novas estruturas
organizativas e novos modos de funcionamento relacionados com as fases do seu
ciclo vital.

Na família tradicional ocidental, considera-se que as fases do ciclo vital de


uma família são essencialmente as seguintes:

- união de dois elementos para constituir uma nova família;


- nascimento dos filhos;
- educação e crescimento dos filhos;
- adolescência e saída de casa dos filhos;
- o casal está de novo só;
- velhice e morte.

Existem muitas variações, como é evidente: há pessoas solteiras, casais sem


filhos, famílias em que todos continuam a viver em conjunto. Mas não interessa
só o que se passa agora, muitas vezes temos que ver como se processaram os
ciclos vitais dos antepassados, ou se uma pessoa solteira o quer continuar a
ser. E é nesse sentido que a questão da família tem sempre um grande significado
na vida de cada um e em qualquer intervenção terapêutica.

Haley (1973) considera que o stress sobre a família é máximo nos pontos de
transição de uma fase do ciclo vital para outra, justamente no momento em que o
grupo familiar tenta uma mudança nos seus comportamentos para fazer face às
novas solicitações. É então que o
 

comportamento sintomático pode emergir - nesta perspectiva o sintoma é uma


tentativa mal sucedida para atingir um novo equilíbrio. A intervenção
terapêutica a realizar deve conter em si suficiente intensidade para provocar um
desequilíbrio transitório que permita uma posterior organização, geradora de uma
nova estrutura não disfuncional, apta a fazer face às novas situações da vida
(Cf. capítulo V).

Nas páginas que se seguem o termofamília designa um conjunto de elementos


emocionalmente ligados, compreendendo pelo menos três gerações, mas não só: de
certo modo consideramos que «fazem parte da família» elementos não ligados por
traços biológicos, mas que são significativos no contexto relacional do
indivíduo, ou indivíduos, que solicitam a nossa intervenção. Assim, falaremos da
família nuclear tradicional (pais e filhos), da família extensa (família
alargada com

várias gerações) e de elementos significativos (amigos, professores, vizinhos,


etc.).

A terapia familiar é um método psicoterapêutico que utiliza como

meio de intervenção sessões conjuntas com os elementos de uma família, entendida


no sentido lato atrás definido.

Convém desde já esclarecer o que procuraremos deixar claro ao longo deste livro:
a terapia familiar não é uma terapia da família, mas com a

família, isto é, diz respeito sobretudo a um modelo de trabalho familiar, não


estando nos seus propósitos adaptar famílias a uma definição pré-estabelecida.

A família em terapia familiar sistémica é considerada um sistema, isto é, um


conjunto de elementos ligados por um conjunto de relações, em contínua relação
com o exterior e mantendo o seu equilíbrio ao longo de um processo de
desenvolvimento, percorrido através de estádios de evolução diversificados
(Sampaio, 1984).

0 terapeuta não pode considerar a família isoladamente. 0 grupo familiar deve


ser relacionado com a comunidade que o rodeia, visto que uma família está em
contínua relação com o meio ambiente. Escolhemos a família como unidade de
intervenção por ser mais fácil intervir junto dela do que numa comunidade e
também porque a família é sem dúvida uma unidade de vital e duradoura
importância para o indivíduo.

A terapia familiar processa-se através de encontros regulares de um


 

ou dois terapeutas com uma família que aceite este tipo de intervenção, como
detalharemos no capítulo 111.

Uma família que procura a terapia é um grupo familiar que de algum modo bloqueou
o seu processo de desenvolvimento, isto é, que não consegue, por si próprio,
criar alternativas que lhe possibilitem dar respostas às dificuldades do seu
quotidiano. 0 terapeuta familiar é um

agente catalisador que através da sua acção vai provocar um desequilíbrio


transitório na vida familiar, de modo a que o grupo familiar possa criar uma
nova estrutura de funcionamento e um novo modelo relacional.

No seu trabalho o terapeuta tem presente a função principal da família, que é a


de fornecer meios de subsistência aos seus elementos (no sentido económico e
afectivo do termo), ao mesmo tempo que deve fazer face às tarefas de
desenvolvimento acima referidas e também a outras zonas de instabilidade que
possam porventura aparecer (separações, doenças, crises económicas, cataclismos,
etc.).

0 terapeuta trabalha fundamentalmente segundo dois eixos:

- 0 eixo vertical, ou transgeracional, em que se trabalham na sessão os mitos,


papéis e funções característicos da família em terapia, bem como o nível de
autonomia e diferenciação de cada elemento face à sua família de origem (Cf.
capitulo lV);

- 0 eixo horizontal, ou eixo do aqui e agora, que inclui o estudo

na sessão dos padrões de interacção da família em terapia, bem como o

modo como o grupo familiar lida com as dificuldades da sua vida.

Estes dois eixos terapêuticos correspondem a «agentes de stress» horizontais e


verticais, na acepção de Carter (1980). Esta autora considera a existência de
uma «corrente de ansiedade» vertical, resultante das expectativas, rótulos e
lealdades familiares herdadas das famílias de origem e outra corrente
horizontal, incluindo a ansiedade provocada pelo quotidiano actual da família.
Carter considera que o nível de ansiedade da família no ponto de confluência dos
eixos horizontal e vertical deverá

ser avaliado se quisermos ter uma ideia do modo como a família vai lidar com a
mudança na sua vida.

A terapia familiar tal como a praticamos no âmbito da Sociedade Portuguesa de


Terapia Familiar representa um novo olhar sobre o modo de intervir em saúde
mental. Não se trata de reunir numa mesma sala

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indivíduos de uma família para obter mais informações sobre o elemento

doente. Nesta perspectiva, quando existe um elemento portador de um

sintoma psicológico ele deve ser tratado em sessões conjuntas com a sua

família e/ou elementos significativos do seu universo relacional (Sampaio,


1984). Não concordamos também com o procedimento frequentemente utilizado em
muitas instituições de saúde mental, em que parte da família é atendida por um
técnico enquanto outro terapeuta se ocupa dos restantes. Consideramos que a
família deve, no seu conjunto, assumir desde o início a sua parte activa na
terapia, sendo necessário que a iniciativa de mudança seja apenas catalisada
pelo terapeuta. A nossa

experiência mostra bem como se não se consegue em terapia individual ou familiar


o comprometimento da família na terapia, se obtém uma

mudança de curta duração.

A terapia familiar sistémica é muito diferente da psicoterapia individual


tradicional, por razões que detalharemos, mas que desde já enunciamos:

- Epistemologia radicalmente distinta: é abandonado o modelo

causal, unifactorial, substituído por um deterininismo multifactorial, regido


por uma óptica sistémica;

- A definição da patologia deixa de ser centrada num conflito intrapsíquico ou


defeito na estrutura psicológica, para ser considerada relacionada com a
disfunção do sistema em causa;

- 0 objectivo da terapia não é o de promover discernimentos sobre a vida de cada


um, mas sim o de conseguir modificações nos processos de comunicação e modelos
de interacção de modo a haver correcção na

disfunção do sistema;

- 0 terapeuta familiar necessita de um treino específico e prolongado, do qual


faz parte integrante o estudo da sua relação com a própria família.

A terapia deve realizar-se sempre que houver um ou dois terapeutas treinados


neste tipo de intervenção e uma família solicitando ajuda psicológica para um
dos seus elementos ou para o seu conjunto.

Não empreendemos terapia familiar sempre que existe oposição de toda a família
ou mesmo de um seu elemento significativo, ou se a intervenção nos é solicitada
por uma autoridade exterior ao grupo familiar (polícia, tribunal). A terapia
familiar exige uma ética rigorosa, respei-
 

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tando totalmente as características de uma família e a sua capacidade de


resolução da crise.

E não julgamos que a terapia familiar possa resolver os problemas das famílias
portuguesas nem dos nossos serviços de saúde mental. Apenas queremos dar a
conhecer um modelo de trabalho e um quadro conceptual que achamos útil e que se
tem imposto por si próprio.

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II HISTóRIA DA TERAPIA FAMILIAR

1. Nascimento e evolução do movimento da terapia familiar

0 movimento da Terapia Familiar nasceu nos anos cinquenta em

diversos pontos dos Estados Unidos, mas as suas raízes datam de épocas mais
recuadas.

Broderick e Schrader (1981) consideram que a terapia familiar se

estruturou como resposta a necessidades sociais: o aconselhamento familiar, os


centros comunitários e os centros de saúde mental infantil, os modelos de
psicoterapia breve.

Foi talvez uma assistente social, a conhecida Mary Richmond, a autora da


primeira descrição de uma interacção familiar, num caso publicado em 1908 e que
relatava a história de uma viúva com os seus quatro filhos. De então para cá
muito se avançou e recuou na intervenção junto das famílias, sendo sobretudo a
partir dos anos sessenta que a terapia familiar ganhou corpo como modelo de
investigação e de intervenção no campo da saúde mental.

Na sua evolução, o movimento de terapia familiar foi influenciado por diversos


factores:

a) Influência da psicanálise

0 pensamento psicanalítico dominava as discussões e tomadas de posição


científicas no início do século e até aos anos quarenta. É conhecida a posição
de Freud sobre o não ser conveniente para o analista

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ocupar-se de vários elementos da mesma família. Durante a sua vida, Freud parece
ter apenas analisado um casal, o casal Strachey, curiosamente os autores da
tradução das suas obras para inglês. Diz Freud (1912,
1915): «Quando se atinge o tratamento das relações devo confessar-me embaraçado
e tenho aliás pouca esperança numa terapia individual de qualquer deles» e
«quando a resistência do marido se junta à da mulher os esforços não são
frutuosos e a terapia é interrompida. Tomámos em

mãos qualquer coisa que nas condições existentes era impossível levar a cabo».

Psicanalistas posteriores não tiveram, contudo, posições tão radicais. Jung e


Adler elaboraram teorias psicodinâmicas mais relacionadas com o tecido social;
Otto Rank deu mais atenção ao que se passava na sessão entre analista e
paciente, preocupando-se em limitar o tempo de intervenção e com aspectos
específicos da sua personalidade; Erich Fronun e sobretudo Harry Stack Sullivan
(1947) desenvolveram novas dimensões da psicanálise; Sullivan preocupou-se com a
psicoterapia da esquizofrenia e com as relações precoces mãe-criança.

Muitos dos terapeutas pioneiros em terapia familiar ou tiveram treino

psicanalítico (Lidz, Bowen, Ackerman) ou foram influenciados pela psicanálise.

De qualquer forma, algo começou lentamente a mudar nos anos

cinquenta. A publicação da obra de Bateson e Ruesch Conununication: The social


matrix of psychiatry (195 1), a progressiva atenção sobre a
*/*
acção entre os indivíduos (interacção), a forrnulação da Teoria Geral dos
Sistemas nos anos sessenta por Bertalanffy, levaram ao aparecimento de

um novo paradigma, o paradigma sistétnico. Esta evolução no campo da saúde


mental estava relacionada com alterações significativas noutros ramos do
pensamento científico. Na Biologia o conceito mecanicista do organismo e do
comportamento era substituído pela descrição do organismo como uma organização
estratificada, hierarquizada, cujo comportamento é determinado num campo de
transacção por determinantes independentes, que vão da informação genética até à
estrutura de organização e ao modo de comunicação relacional entre o organismo e
o ambiente (Guntem, 1982). Evoluções semelhantes se dão na Física, com o
estudo das relações entre as partículas subatómicas, e na Matemática, com a
teoria dos tipos lógicos de Whitehead e Russell.

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b) Orientação comunitária dos Serviços de Saúde Mental

Nos Serviços de Saúde Mental, na mesma época, surgiram propostas de ligação à


comunidade, no sentido de a prática psiquiátrica poder estar mais ligada aos
problemas reais. Também a formação de diversos Centros de Saúde Mental Infantil
(Child Guidance Clinics) traduziu a necessidade de se poder dar apoio às
crianças com problemas, não só numa perspectiva individual mas também como forma
de resolver dificuldades familiares.

Também a comunidade começou a organizar serviços de apoio às suas dificuldades,


por exemplo criando estruturas de aconselhamento conjugal funcionando
independentemente dos serviços oficiais.

c) Trabalhos pioneiros em terapia familiar

As investigações iniciais neste campo centraram-se essencialmente à volta da


comunicação normal e patológica na família e nas relações existentes entre
família e esquizofrenia. Broderick e Sclírader (1981) consideram os anos de
1952-61 como a década de fundação da terapia familiar, que se consubstanciou em
1962 com a criação da revista Famíly Process. Os pioneiros foram diversos
investigadores trabalhando de início isoladamente em vários pontos dos Estados
Unidos, mas que no fim dos anos cinquenta se começaram a contactar, trocando as
suas

experiências. De entre os trabalhos mais significativos deste período,


destacaremos:

- Nathan Ackerman, psiquiatra infantil, autor, em 1958, do livro Psychodynamics


offamily life e fundador do Instituto que tem hoje o

seu nome;

-John Bell, professor de Psiquiatria em Worcester;


- Lyman Wynne, Murray Bowen e Carl Whitaker, que se destacaram pelas suas
observações pioneiras com famílias com um elemento esquizofrênico;

- 0 grupo de Palo Alto, com Bateson, Haley, Weakland, Jackson e Satir, unido a
partir da citada obra do primeiro sobre comunicação;

Boszormenyi-Nagy e seus colaboradores em Filadélfia.

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Os anos sessenta caracterizaram-se pela troca de experiências dos diversos


autores, ao mesmo tempo que se avançava na conceptualização de aspectos teóricos
visando atingir uma compreensão da família.

A década de setenta é a fase de grande implantação da terapia familiar, nos


Estados Unidos e na Europa. Multiplicaram-se os trabalhos científicos sobre o
tema, cresceu vertiginosamente o número de técnicos em formação e de famílias em
terapia. Nos anos iniciais desta fase houve um certo fanatismo, com excessivo
ênfase em aspectos técnicos, em parte prejudicial à consolidação do modelo; mas
desde há cerca de dez anos que se assiste a um aprofundamento de conceitos e a
uma verificação de resultados que conduzem a terapia familiar a uma posição
cimeira nas

formas de intervenção em saúde mental. Trata-se afinal de uma evolução


semelhante à realizada noutras ciências e que parece imparável, para desgosto de
alguns técnicos, esclerosados nas suas posições, que precipitadamente a
condenaram à nascença, quer no estrangeiro quer em

Portugal. Como é curioso vermos agoraesses arautos do passado vestirem à pressa


uma farpela nova e falarem de sistemas!

A terapia familiar impôs-se internacionalmente porque se trata de um modelo de


intervenção bem ligado a uma vida quotidiana das pessoas -

ao cabo e ao resto a sua vida familiar - e por ser um método de terapia


relativamente breve e eficaz.

0 caminho a percorrer é ainda longo; cada vez se toma mais necessário aprofundar
conceitos, verificar resultados, precisar indicações. E sobretudo caminhar como
até aqui: com o entusiasmo das famílias e a criatividade e vigor dos técnicos
mais jovens.

2. História da terapia familiar em portugal

Em Portugal, o trabalho com famílias numa perspectiva terapêutica remonta, tanto


quanto sabemos, ao início dos anos sessenta, em que um

grupo de que faziam parte, entre outros, Eduardo Cortesão e Guilherine Ferreira
reunia as famílias dos doentes internados no Hospital Miguel

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Bombarda e »trabalhava» a família com o pressuposto de que o doente

seria mais facilmentexeintegrado na comunidade se a família também participasse


no tratamento.

Também por essa altura Eduardo Cortesão fez uma experiência de terapia de casal
em que a forma adoptada era a de grupos de casais.

Estas experiências foram abandonadas no seu carácter regular e

só nos anos setenta se inicia a organização da Terapia Familiar em Portugal.

Em 1977 Pina Prata programa para Portugal o 12 curso intensivo

de Terapia Familiar dirigido por Pierre Fontaine, da Faculdade de Medicina da


Universidade de Lovaina, a que se seguem mais dois cursos

dirigidos por outros terapeutas belgas.

Em Novembro de 1979 é criada a Sociedade Portuguesa de Terapia Familiar de que


são sócios fundadores Daniel Sampaio, Helena Silva Araú jo, Emília Ressano
Garcia, José Gameiro, José Maria Neves Cardoso, José Manuel Almeida Costa, Maria
Isabel Fazenda e Maria de Jesus Assis Camilo.

Esta Sociedade tem por objectivo não só incentivar a terapia familiar entre nós
- nos seus campos de investigação e de actuação psicológica
- mas também contribuir para a definição dos padrões de treino e de

exercício profissional dos terapeutas familiares.

A formação dos seus fundadores, todos com treino grupo-analítico, tem sido feita
no estrangeiro e com a vinda regular até nós de terapeutas famíliares
experimentados que lhes fazem supervisão. Assim, frequentámos cursos em Palo
Alto, Califórnia, no Instituto de Terapia Familiar de Roma (Prof. Maurizio
Andolfi) e trabalhámos com o Prof.

Carl Whitaker em Madison, E.U.A.

Em Abril de 1980 realizou~se entre nós o 1 Encontro de Terapia Familiar


coordenado por Maurizio Andolfi.

As actividades formativas da Sociedade Portuguesa de Terapia Familiar iniciaram-


se em Janeiro de 1981, com a realização de dois workshops intensivos de
sensibilização à Terapia Familiar.

Em Janeiro de 1982 fundou-se o Instituto de Terapia Familiar, cons-

tituído pelos membros fundadores da Sociedade Portuguesa de Terapia Familiar e


 

dedicado à prática da Terapia Familiar em privado e à

formação de técnicos de saúde mental em Terapia Familiar.

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Também em Janeiro de 1982 se inicia o 12 Curso de Formação em

Terapia Familiar, com a duração de 4 anos.

A nível institucional a Terapia Familiar foi-se alargando ao longo destes


últimos cinco anos.

Em 1979 é criado o V Centro de Terapia Familiar estatal no âmbito do Centro de


Estudos e Profilaxia da Droga (Centro de Lisboa). É dirigido desde o seu início
por José Manuel Almeida Costa.

No Hospital de Santa Maria desde 1977 que eram feitas abordagens familiares em
famílias com toxicómanos, sobre o que foi publicado, em

Outubro de 1978, o livro Droga, Pais e Filhos (Daniel Sampaio, José Gameiro,
Maria de Jesus Camilo e Maria Isabel Fazenda).

A partir de 1979 começam terapias familiares quer de doentes internados em


Hospital de Dia (equipa do Dr. João França de Sousa) quer de doentes de
consulta, principalmente adolescentes.

Também no Centro de Saúde Mental Infantil de Lisboa foram iniciadas terapias


familiares em 1981, continuando o trabalho com famílias que existiu desde a sua
fundação pelo Dr. João dos Santos, embora anteriormente mais numa perspectiva de
ajuda à compreensão do caso clínico

infantil do que propriamente como método terapêutico.

Poderá dizer-se que hoje, em 1984, a Terapia Familiar está implantada em


Portugal como método terapêutico autónomo e reconhecido e estando já numa fase
de diálogo e troca com outras formas de terapia psicológica que se tem revelado
muito benéfica, já que para nós a melhoria de

qualquer situação clínica passa pela existência de várias alternativas


terapêuticas e a escolha da utilizada só poderá ser adequadamente feita se

os técnicos de saúde mental mantiverem abertas as vias de comunicação e os


clientes não servirem de alvos de competições disfuncionantes.

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O PROCESSO TERAPÊUTICO EM TERAPIA FAMILIAR

«É preciso encontrar outras formas de olhar para as coisas»

N.C.

0 processo terapêutico em Terapia Familiar começa pelo pedido de terapia feito


pela família ou por um dos seus membros. Esta fase inicial, que pode parecer de
relativa importância, é para nós fundamental, pelo que implica de recolha de
informação e da forma de a tratar.

Habitualmente o primeiro contacto é feito telefonicamente. Para isto existe no


Instituto de Terapia Familiar uma ficha de pedido de terapia que é preenchida
pela recepcionista na altura do telefonema. Para além dos dados «geográficos» da
família (nome, morada, telefone) é registada a

composição da família nuclear (entendida pelo grupo de pessoas que vivem em


conjunto), idades, situação escolar e profissional. Também é para nós importante
quem envia a família, visto não ser indiferente, do ponto de vista relacional, o
circuito que a família faz até chegar ao Centro.

Na segunda parte do pedido é perguntado ao membro que o faz: qual é o problema?


Temos então uma descrição individual do sistema/problema que traz a família à
terapia. Esta primeira descrição do problema indica-nos apenas o que o membro
que telefona pensa dele e aproxima-se da apresentação habitual dos problemas
psicológicos em consulta individual.

Exemplo: telefona-nos uma mãe de um adolescente dizendo-nos que o filho se


droga, chega a casa de madrugada, responde mal aos pais, até aí sempre tinha
sido bom filho e bom estudante. É-lhe perguntado qual é

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a sua ideia sobre o problema e a mãe diz-nos que são as más companhias que o
desviam, que não sabe o que há-de fazer, que já apanhou no quarto do jovem droga
e cartas da namorada a falar de «fumos». E o pai o que pensa?, perguntamos. 0
pai, coitado, trabalha muito, está pouco em ca-

sa, já falou com ele e não conseguiu nada, agora até nem lhe fala.

Esta pequena descrição de um problema vai-nos permitir forínular algumas


hipóteses det. o, que na primeira sessão serão confirmadas ou
abandonadas.,-*..

A última paliàteo,@@ @ *dè'pé -o de terapia inforina-nos de eventuais

aj@àres e se tratamentos us res tados.

Após a ela @óra ção do pedido, @assamos à fase seguinte que consiste no seu
estudo, , tólha de te,rape-'tas e seu modo de trabalhar.

a informação recolhida a partir da mãe Retomando o

e-nos por alg

do jovem permit umas hipóteses relacionais sobre a família.


0 comportamento toxicómano do jovem (de que não sabemos a gravi-

dade) insere-se numa dinâmica familiar repetitiva nestas situações: pai ausente,
mãe preocupada e contiroladora, filho em busca provável de autonomia. Este
«circuito familiar», já por nós descrito anteriormente (Droga, Pais e Filhos -
Sampaio, Assis Camilo, Fazenda e Gameiro), leva-nos a pensar que o comportamento
desviante do rapaz possa estar relacionado (mas não «causado») por uma relação
conjugal disfuncionante. A mãe contou-nos que já se deu o corte de relações
entre o pai e o

filho, o que significa que toda a informação familiar passa por ela.

Construída esta primeira hipótese, elaborada a partir da inforrnaçáo do pedido e


da experiência anterior dos terapeutas, passa-se à fase do projecto da primeira
sessão. A família irá ser recebida por um ou dois terapeutas? Neste último caso
eles vão funcionar em co-terapia ou vai estar um com a família e o outro em
supervisão? Quem deve vir à priimeira sessão?

Paralelamente ao processo terapêutico é importante descrever o

«setting» terapêutico em Terapia Familiar.

A sala de terapia familiar deve ser ampla, com boa luz, mobilada sobriamente mas
 

sem ser «asséptica», cadeiras confortáveis mas que não «amoleçam». Deve ter-se
em conta que muitas vezes vêm crianças às sessões, pelo que deve ter objectos
lúdicos (não só brinquedos) que possam permitir brincar. A sala não deve ter
objectos que se possam

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partir facilmente, de fon-na apermitir à família movimentar-se livremente, sem


receios. Aprendemos com Carl Whitaker a usar «batacas». É difícil descrevê-las,
mas são instrumentos que se assemelham aos que são

usados para jogar basebalI, todas cobertas de espuma de modo que se

possa «bater» sem magoar. Ao longo da descrição do processo terapêutico


exemplificaremos a sua utilização.

A sala de terapia está também provida de um espelho unidireccional. Trata-se de


um vidro coberto de uma película especial que permite observar a sessão de uma
outra sala contígua sem que a família sinta e veja o observador. Podemos ou não
filmar e gravar a sessão em videotape para posteriormente podermos recordar a
sessão e sobretudo partilhá-la com colegas que possam ter uma nova visão da
dinâmica familiar e da nossa actuação terapêutica.

0 registo das sessões pode também ter objectivos de formação e

eventualmente permitir à família rever-se numa sessão anterior, se isso for


considerado importante pelos terapeutas.

Este «setting» terapêutico é descrito à família no início da primeira sessão,


sendo pedida autorização formal para poder filmar e comuni-

cada a utilização posterior das fitas.

A equipa de terapeutas terá de pensar como irá agir com a família e de

que forma esta irá interagir. Habitualmente usamos a co-terapia com dois

terapeutas com igual nível de experiência, o que nos vai permitir maior
liberdade de actuação. A presença de dois terapeutas na sala irá possibilitar a
troca de papéis perante a família e uma maior criatividade na sessão. Isto é
particularmente importante em famílias com sintomas graves em que um dos
terapeutas pode ser como que uma «rede» do outro que se envolve

mais com a família. Napier e Whitaker (1980) falam da terapia familiar

como uma intervenção cirúrgica com dois cirurgiões: enquanto um abre

e faz sangrar, o outro limpa o sangue e faz transfusões se for necessário.

Na escolha dos terapeutas, quando trabalhamos em equipa (Instituto de Terapia


Familiar), existem factores pessoais que também são ponderados. Não é
indiferente para nenhum terapeuta o tipo de família com

que vai trabalhar. Haverá alguns que se sintam mais à-vontade com
 

famílias com adolescentes, outros com casais. Não nos parece que um

terapeuta que não tenha filhos possa trabalhar com famílias em que os

filhos são parte importante ou em que os sintomas neles estejam locali-

21
 

zados. Um terapeuta que viva uma relação conjugal que esteja a atravessar

uma crise terá nessa altura maior dificuldade em fazer terapia de casal. Nesta
situação, por exemplo, será de aconselhar a presença de um

co~terapeuta que diminua os factores contratransferenciais negativos.

Também na escolha do «par terapêutico» os factores relacionais são influentes.


Os terapeutas quando trabalham em equipa têm conflitos, paixões, ódios, que
podem ser actuados na terapia. Se um determinado par pode estar bem numa época,
pode atravessar uma crise noutra e

deve ter a coragem de discutir as dificuldades e eventualmente separar-se


temporariamente. A co-terapia é uma relação de casal com a vantagem de, acabada
a sessão, cada um ir para sua casa, mas com a desvantagem de não dormirem
juntos.

Após todos estes passos preparatórios, marca-se a sessão. A marcação é


comunicada telefonicamente, acompanhada da indicação de quem deve vir à sessão.
Aqui poderão surgir dificuldades. Retomemos o exemplo dado anteriormente. Quando
telefonámos à mãe e lhe pedimos que viessem os três à primeira sessão foi-nos
dito que isso seria impossível.
0 pai não viria de certeza, não só porque está sempre muito atarefado, como
neste momento não fala com o filho e não quer saber dele para nada. «Está a ver,
Sr. Doutor, a minha situação, não posso obrigá-lo, eu

quero tratar o meu filho, mas acho que o pai tem toda a razão».

Iniciamos aqui o que Whitaker chama a «Batalha pela Estrutura», que é também
uma luta pelo poder dentro do sistema terapêutico. Quem define as regras do
jogo? A família ou nós? Deve ou não pôr-se em causa o estereotipo do terapeuta
«bonzinho», disponível, pronto a aceitar os

problemas da forma como lhe são postos sem tentar redefini-los? Esta fase é
crucial para o futuro da terapia, pois a experiência mostra-nos que mais vale
não começar um processo terapêutico do que iniciá-lo «coxo».

Então insistimos junto da mãe na importância da presença do pai e podemos


eventualmente pedir para falar directamente com ele. Em

grande parte destas situações esta dificuldade inicial tem mais a ver com

o membro da família que está em contacto connosco do que com o suposto membro
ausente. No exemplo que temos vindo a dar, a mãe queria por um

lado proteger o pai, mas por outro receava que a presença dele a fizesse perder
o seu papel de «dar cartas» na família.
 

22
 

A ]@*sessão

A primeira sessão em Terapia Familiar pode ser comparada ao primeiro encontro


entre duas pessoas que se supõe irem continuar uma relação.

Os terapeutas recebem a família tal como acolhemos alguém que pela primeira vez
conhecemos. Após a apresentação mútua os terapeutas descrevem o setting
terapêutico e iniciam aquilo a que Jay Haley (1976) denomina a fase social da
primeira entrevista. Trocam-se impressões, brinca-se com as crianças se elas
estão presentes, cria-se um ambiente

confortável e distendido.

No nosso modelo de intervenção, na primeira entrevista é deixada pouca


iniciativa à família. Assumimos claramente que quem dirige as

operações somos nós, fazendo perguntas, provocando interacções, sugerindo


actividades na sessão. Optamos normalmente por interpelar em primeiro lugar o
pai. Em Portugal e na cultura ocidental é usual a figura paterna ser a mais

importante socialmente e tentamos numa primeira fase respeitar essa

norma.

A pergunta inicial pode ser colocada de múltiplas formas. «Diga-nos * que pensa
da sua família» - é a forína habitual. Quase invariavelmente * resposta é dada
em termos de sintomas ou- preocupações que trazem a família à terapia. É
importante realçar que não é indiferente o modo de

perguntar em Terapia Familiar. Se queremos desde o início «redefinir» o


problema, nas nossas perguntas deve estar implícita a importância da estrutura
da família e da sua relação com os problemas apresentados.

Partimos do pressuposto de que todas as famílias que nos procuram já tentaram


resolver os problemas que nos trazem e que foi por essa

capacidade de transformação e resolução ter sido bloqueada que recor-

reram aos técnicos. Não se trata pois de resolver sintomas, mas sim de devol-

ver à família a sua capacidade de evolução e de ultrapassagem da crise.

Apesar da resposta habitual da família ser em terínos de sintomas, insistimos na


ideia que cada um tem da família - qual a estrutura e

sobretudo qual a história da família?

A questão inicial é posta sucessivamente a todos os membros presentes, sendo o


 

último habitualmente a mãe. A colocação da mãe em último

23
 

lugar poderá parecer estranha, mas pensamos que é quase sempre o mem-

bro mais poderoso e também aquele que mais informação nos irá dar. Por vezes é
difícil respeitar esta ordem porque as pessoas tentam falar umas

porcima das outras, obrigando-nos a serfirmes nacondução da entrevista.

Retomemos o exemplo que temos vindo a dar. No início da primeira entrevista


ignorámos deliberadamente a dificuldade que tinha sido posta pela mãe sobre a
presença do pai, notando-a apenas pela afirmação da importância de que estejam
todos. 0 que é que o pai pensa da família? É uma família em que tudo corria bem
até à altura em que soubemos que o

Paulo se drogava, fumava e não quer deixar. Insistimos: diga-nos como é a sua
família. A esta segunda interpelação o pai conta-nos a história

daquela família, a sua vida de militar sempre fora, de como a mãe sempre se
sacrificou e do seu objectivo de educar o filho o melhor possível e fazer dele
um «homenzinho». Voltaremos a esta história mais tarde, mas para já é importante
notar que na primeira entrevista devemos ficar com uma

história do problema, mas, talvez mais importante, com a história da família.

A vida de uma família é um longo repertório de acontecimentos, mortes,


nascimentos, sentimentos de ódio e amor, que abrange três ou

quatro gerações e vários contextos histórico-sócio-culturais. Do ponto de vista


epistemológico é diferente relacionar um deteríninado problema com a história do
indivíduo que o apresenta ou inseri-lo num contexto

mais alargado em que esse problema adquire uma dimensão transgeracional e nos
vai permitir uma compreensão de «grande angular».

Uma das dificuldades da primeira entrevista é a aprendizagem da linguagem da


família. Não é indiferente a origem e o estatuto sócio-

-cultural do terapeuta, os seus valores e a sua «forma de estar na vida». Já


observámos terapeutas familiares experimentando grandes dificuldades em
«entrarem» na família por barreiras culturais. 0 terapeuta deve captar
rapidamente a forma existencial da família e procurar acompanhá-la, sem perder
obviamente a sua cultura própria. Recordamos uma primeira sessão de uma terapia
de casal em que o marido tinha tido uma relação extra-conjugal, e de a terapeuta
ter perguntado à mulher o que é que sentia do affaire do marido e ela ter
respondido: «0 que é isso, Si'- Dr * ?»

Maurizio Andolfi (198 1) diz: «Um terapeuta familiar tem de aprender a entrar no
mundo da família, adaptando a sua linguagem, estilo pessoal
 

24
 

e experiências às pessoas com quem está a lidar. Ele tem também de

respeitar as “regras” familiares e ver a realidade e as necessidades da família


na sua rede social alargada».

No nosso modelo, após colhermos a história da família, preocupan-io-nos em saber


um pouco mais da história do problema. Quando começou, qual a opinião que cada
membro tem dele e o que já foi feito para resolvê-lo.

0 Paulo tinha começado a fumar marijuana e haxixe há cerca de


5 anos, mas os pais só descobriram há 2 meses. 0 Paulo não achava

negativas essas experiencias, porque não lhe faziam mal e toda a malta fumava.
Tinha havido urna quebra de rendimento escolar que o levou a

empregar-se e a estudar à noite. Sentia isto como positivo pois tinha mais
dinheiro e dependia menos dos pais. Só queria era poder sair de casa e fazer uma
vida independente.

0 pai do Paulo tinha ficado surpreendido com o que estava a acontecer. Tinha
havido uma conversa entre os dois, mas o filho tinha-lhe dito que ele não sabia
nada da vida e sentia que não havia mais nada a falar

e ele cortou relações com o filho.

A mãe tinha escondido ao pai a situação até poder, porque estava convencida que
o pai poria o filho fora de casa e ela ia sofrer muito com isso.

Era para nós evidente que a comunicação entre os membros da família estava,
senão cortada, pelo menos curto-circuitada. Através do comportamento do filho a
mãe tinha reforçado o seu poder na família, o pai estava cada vez mais
periférico e o Paulo tudo fazia para manter a situaçã o.

No fim da primeira entrevista os terapeutas têm uma primeira visão da família e


confirrnam ou desconfirmam a hipótese inicial. A última fase da primeira sessão
é o que poderemos chamar a fase do contrato. A família é inquirida da sua
disponibilidade para voltar e pode mesmo ser feito um acordo para x sessões. É
também a altura em que a família põe as

perguntas habituais em terapia psicológica. Acham que ele se cura? 0 que é que
devemos fazer? Não seria melhor falar com ele sozinho?

A família tenta repor o problema do mesmo modo que inicialmente o

fez. 0 sintoma é o mais importante, tudo corria bem até ele aparecer.

No fecho da primeira sessão poderá ser feito algum comentário que


 

25
 

não deixe a família desapoiada e desapontada. Por vezes as famílias

investem uma enorme quantidade de energia na vinda à primeira sessão e poderão


ficar frustradas se os terapeutas não comentam nada do que foi dito e
trabalhado.

Noutras situações, logo na primeira sessão os terapeutas podem ser

activos no sentido de sugerirem tarefas práticas à família. Fala-se então de


prescrição, tal como numa receita médica. Esta prescrição pode ser

positiva, isto é, façam qualquer coisa, ou negativa, deixem tudo como

está, subentendendo que a mudança é perigosa.

Em todos os sistemas vivos e abertos como a família a tendência homeostática em


alturas de crise é maior que a tendência transforma-

dora, pelo que um afã excessivo dos terapeutas em querer mudar tudo depressa
pode levar a uma maior rigidificação da família. Nestas situaçõ es pode ser
importante uma aliança temporária e estratégica com a componente homeostática do
sistema familiar. É um pouco como se comunicássemos à família: não se assustem
que vamos operar, mas devagar e com pouca hemorragia.

A prescrição positiva, na maior parte dos casos de tarefas, tem um efeito


estruturante na família. Por exemplo, na primeira sessão em que a história
revela aos filhos factos até aí desconhecidos, poderemos sugerir ãfamíliaque
continue em casaafalardas gerações anteriores. Acreditamos que numa família é
importante a lenda dela própria, e que o papel que habitualmente têm os avós de
contadores de histórias pode ser retomado

pelos pais na época em que estão em crise.

Classificação de prescrições por Maurizio Andolfi (1981):

1. Prescrições reestruturantes

a) Contra-sistémicas (usadas para contrastar directamente a homeos-

tasia do sistema familiar) h) Prescrições de contexto (usadas para estabelecer


ou manter um

contexto terapêutico) c) Prescrições de deslocamento (usadas para deslocar


artificialmente

26
 

o problema do doente identificado para outro membro da família, ou para uma nova
sintomatologia) d) Prescrições de reestruturação sistémica (usadas para
reestruturar

padrões de interacção pré-existentes, utilizando elementos do sistema) e)


Prescrições de reforço (usadas para reforçar tendências que são

activas no sistema familiar, e que são capazes de promover mudanças) f)


Prescrições de utilização do sistema (prescrições de ataque e de

aliança)

2. Prescrições paradoxais

a) Prescrição do sintoma (usada para descrever o comportamento

perturbado) b) Prescrição de regras (usadas para solicitar a participação de


toda

a família, através da prescrição de regras «peculiares» ao sistema familiar).

3. Prescrições metafóricas

A segunda sessão é habitualmente marcada para 15 dias depois. Pensamos que este
intervalo permite à família «elaborar» a primeira entrevista e decidir
calmamente se quer voltar.

É neste intervalo entre o primeiro e o segundo encontros que a maior

parte dos abandonos em Terapia Familiar se dão. Salvador Minuchin (1974 ) fala
dejoining - fase de reunião com a família - para descrever o processo mais
importante da primeira sessão. Quando o terapeuta falha esta fase, sendo
demasiado invasivo ou ficando muito distante, a família não volta. Mas, como em
todas as terapias, os factores contra-transfé-

renciais do terapeuta são importantes. Quantas vezes tivemos aexpenencia de não


desejarmos que uma determinada família volte porque é «Chata», «agressiva»,
«desinteressante» e depois de uma reflexão mais profunda chegamos à conclusão
que nos tocou em qualquer coisa de pessoal.

27
 

No início da segunda sessão poderá ser necessária uma pequena fase social para
novamente voltarmos a estar em contacto.

Pedimos habitualmente o relato dos acontecimentos desde a primeira sessão e


verificamos se foram cumpridas as prescrições no caso de terem sido pedidas.
Interpretamos o não cumprimento da prescrição como um

desafio ao nosso poder, uma resistência da família à mudança ou uma

precoce manobra reestruturante da nossa parte.

Por vezes, no intervalo das duas primeiras sessões há uma melhoria espectacular
dos sintomas apresentados. A família pode fazer uma «fuga para a frente», isto
é, a intervenção exterior pode ser tão ameaçadora que o sistema se refugia na
«cura» para «escapar» à mudança.

Fomos procurados por uma família com um rapaz de 10 anos de idade com alterações
de comportamento de tipo agressivo para com os pais, ameaçando-os com facas e
masturbando-se na sala. Na primeira sessão

a nossa intervenção foi no sentido de compreendennos o funcionamento da família.


Não fizemos nenhuma prescrição, mas marcamos uma

segunda sessão. Então a família diz-nos que tudo estava resolvido, nada mais
tinha acontecido e não precisavam de vir mais. Respeitámos a

decisão, mas telefonámos passados seis meses à família. 0 comportamento tinha


obviamente recomeçado e talvez voltassem. Nunca mais voltaram.

Neste caso tínhamos a informação, dada por alguém exterior à família, que o
conflito fundamental se situava no casal, com uma relação extra- conjugal do pai
de que o filho partilhava o sofrimento com a mãe. Mais tarde foi possível
compreender que a «cura» sintomática foi importante para a protecção do casal:
assim como o filho se tinha oferecido como PI (Paciente Identificado) para
chamar a atenção sobre si, também se escondeu quando o sistema sentiu a
intervenção como ameaçadora.

Na fase intermédia da Terapia Familiar os terapeutas focam a sua intervenção na


reestruturação da família. Uma estrutura familiar rígida não permite a autonomia
dos seus indivíduos. Todo o ser humano tem dentro de si duas forças antagónicas:
o sentido de autonomia e o sentido defusão. Estas duas dinâmicas equilibram-se
de forma desigual ao longo das diversas fases do ciclo vital. Na idade adulta a
autonomia sobrepõe-se, mas é alimentada por momentos fusionais que têm a sua
expressão mais habitual na relação do casal. Pelo contrário, nas famílias com
uma estrutura muito lábil, os seus membros não têm o sentimento de pertença

28
 

que lhes permite sentirem-se ligados uns aos outros, ficando por satisfazer as
suas necessidades fusionais.

Nesta fase da terapia é importante fazer aparecer à luz as alianças e

coligações que eventualmente existam. Estas disfunções criam conflitos e


barreiras à compreensão e ao conhecimento de cada membro da família.

No exemplo da família Silva existe uma nítida aliança entre a mãe e

o filho, não permitindo o acesso deste ao pai e vice-versa.

Foi possível, durante a fase de recolha da história da família, ficarmos a saber


que o pai, na sua vida de militar, tinha sido mobilizado várias vezes para
África e tinha conhecido o Paulo só quando este tinha 2 anos. A mãe

criara o filho sozinha e provavelmente estabelecera uma relação altamente


fusional com ele na infância, em que o pai não foi capaz ou não quis introduzir-
se. Ele nunca aceitou o pai, diz a mãe, em pequenino fugia dele e tinha medo
quando ele chegava a casa.

Nesta fase da sessão o pai emocionara-se discretamente, o que era contraditório


com a aparente frieza no relacionamento com o filho, o que nos levou a pensar
que o desejo de se entenderem existia, ainda que latente. A mãe provavelmente
tinha posto na relação com o filho um

investimento demasiado, como compensação da sua frustração na rela-

ção conjugal, precocemente amputada com a mobilização do marido.

Os terapeutas na sua técnica de reestiruturação desta família tentaram no


início, sem êxito, pôr o pai e o filho a falarem na sessão. Cada vez que o pai
era interpelado para falar do filho a mãe interrompia, acrescentando
informações, como que a dizer-nos que ela é que sabia da vida do filho e tinha o
privilégio da relação com ele.

Esta interacção familiar repetitiva levou-nos a decidir activar a famí-

lia provocando comportamentos. Face à interrupção constante da mãe, um dos


terapeutas convidou-a a ir para trás do espelho acompanhando-a, enquanto outro
ficou com o pai e o filho e convidou-os a conversar.

0 diálogo estabeleceu-se e as posições radicalizaram~se: o pai dizendo que ele


tinha de abandonar a droga e o Paulo retorquindo que os «fumos»

não faziam mal e afirmando que continuaria. 0 terapeuta presente constatou que
as posições eram irredutíveis e provocou-os, dizendo que a única hipótese era
jogarem ao «braço de ferro» para verem quem tinha mais força. Colocou uma mesa
 

no meio dos dois e ficou a observar. Foi

evidente a tensão e simultaneamente o prazer do jogo. Depois deu uma

29
 

«bataca» a cada um e afastou-se. Assistiu então com emoção a uma luta

«feroz» entre um pai e um filho que há anos se degladiavam, sem nunca

terem tido a coragem de brincar à luta.

A introdução do jogo nesta fase da terapia pode ser decisiva para desbloquear
tensões que o verbal não consegue.

Julgamos que um dos erros em que os terapeutas caem frequentemente é acreditarem


que a palavra resolve tudo, não sendo eles próprios capazes de brincar,
introduzindo o simbólico através da acção.

Durante o jogo, que se passava na sala de terapia, o outro terapeuta continuava


a sessão com a mãe, atrás do espelho unidireccional. A senhora, na fase inicial,
previu que pai e filho iriam começar a discutir

violentamente, para depois, quando observava a brincadeira, a desqualificar,


dizendo que era sóporque o terapeuta os forçara a fazer aquilo que o faziam. Lá
em casa iria continuar tudo na mesma e o Paulo drogar-se-ia cada vez mais.

E chegamos com este exemplo a outra regra importante da fase intermédia da


terapia que é o suporte afectivo aos membros que são mais postos em causa pelo
processo terapêutico. É evidente neste exemplo que a mãe sentiu o seu poder na
família ameaçado pela fantasia que fez do futuro entendimento entre pai e filho.
Aquela família tinha-se estruturado de modo que o poder da mãe estava em íntima
relação com o não

entendimento pai-filho. A sua ansiedade atrás do espelho mostrava-nos o seu


receio. 0 terapeuta apoiou-a, vincando a importância da sua

presença ali e reforçando o seu papel na família.

Outra das técnicas utilizadas nesta fase da terapia é a utilização do humor.


Quando o conhecimento com a famíliajá existe e está estruturado

e os terapeutas se sentem à vontade e têm humor, podem e devem utilizá-

-lo. 0 humor pode ajudar a lidar com situações de tensão e permitir à família
criar um contexto mais aberto na sessão, que pode depois ser

transportado para o seu ambiente natural. A utilização do humor prende-

~se com a utilização das metáforas, que em Terapia Familiar são extremamente
úteis. Se por exemplo na família o futebol é um assunto de interesse frequente,
o terapeuta pode exemplificar algumas interacções habituais do adolescente com
os pais, quando estes não conseguem chegar a acordo na forma de lidar com os
filhos, utilizando um exemplo futebolístico,
 

30
 

Exemplo: numa família com os pais separados, com um filho adoles-

cente de 17 anos que vivia com a mãe, o rapaz explorava sistematicamente o


desentendimento dos pais para conseguir o que queria. Pedia à mãe para sair à
noite, esta não autorizava e ele telefonava ao pai, que sem

perguntar a opinião da mãe dizia que sim.

Nesta família, aos domingos, pai e filho iam ao futebol e interessa-

vam-se muito por todos os aspectos relacionados com este desporto.

0 terapeuta para mostrar o conflito disse que o filho e os pais, nesta época da
vida (adolescência), eram como duas equipas de futebol num

jogo de campeonato a tentarem desesperadamente ganhar, mas que no fim do jogo


vão jantar juntas. E continuando a explorar a metáfora

comparou o adolescente a um avançado que tenta explorar o desentendi-

mento dos defesas centrais da equipa adversária para penetrar na grande área e
marcar golos. Os pais estavam a actuar como defesas que não coordenam o jogo e
deixam «penetrar» o avançado contrário.

A família percebe a metáfora e pode continuar a explorá~la durante toda a sessão


falando dos defesas laterais, de passes em profundidade, offisides, intervalos
no jogo, estágios antes do jogo, etc.

Uma vez introduzida na sessão a metáfora pode ser utilizada e

explorada indefinidamente.

0 terapeuta familiar nas sessões

Em Terapia Familiar, tal como a concebemos, o papel do terapeuta e o seu modo de


estar com as famílias adquire uma importância que provavelmente é idêntica a
todos os outros modelos de terapia, mas que habitualmente é estranho para quem
não está familiarizado com esta

forma de intervenção.

Pensamos que todos estamos mais ou menos impregnados de ideais terapêuticos que
nos chegam do modo de pensar psicanalítico em que a distância, o controlo da
contra-transferência, a camuflagem das fantasias pessoais do terapeuta são
valores que estão directamente relacionados com a eficácia da terapia.

Quando se trabalha com famílias a técnica fica muitas vezes em


 

31
 

segundo plano, isto é, o terapeuta parte para a sessão disponível para o

que aconteça e liberta a sua criatividade e a sua loucura, tentando contagiar a


família. Acreditamos que as famílias disfuncionantes são famílias pouco
criativas, em que as partes loucas estão camufladas ou

centradas num só membro.

0 terapeuta, ao utilizar o seu self de uma forma «filtrada», partilha com a


família fantasias que teve ou tem e que podem actuar como

catalisadoras de fantasias da família.

Cada um de nós tem uma família e um modelo de família que, quer queiramos ou
não, está sempre presente nas sessões. Pensamos que este modelo familiar é muito
mais intenso que o modelo individual de cada

pessoa e que nas terapias individuais os aspectos técnicos aparecem como mais
importantes porque a modelização é menor.

Exemplo: numa terapia de casal em que o problema era uma crise

de impotência do marido a que a mulher tinha reagido muito negativamente


prolongando as dificuldades sexuais do casal, o terapeuta, na

segunda sessão, eraque o casal discutia aberta e agressivamente acusando-se


mutuamente, interrompeu o diálogo e disse que tinha «desligado» do que se estava
ali a passar e imaginara-se com a sua mulher no meio de

uma ilha deserta em que a regra fosse é proibido fazer amor - quem transgredir
volta para a cidade.

Esta fantasia que é comunicada ao casal muda o contexto de uma

sessão. 0 absurdo da imaginação aparece em contraponto ao absurdo da interacção


conjugal, em que a energia sexual tinha sido canalizada da cama para a sala. 0
terapeuta oferece-se como catalisador e provocador e partilha a sua experiência
vivencial com os clientes.

Este trabalho terapêutico é evidentemente muito mais arriscado do que na


intervenção mais técnica, mais codificada, mais estereotipada. Tal

como no trapézio, em que o trabalho deve ser feito com «rede», a nossa segurança
pode ser um co-terapeuta que apareça como mais «seguro», menos louco e que
proteja a família quando ela está a ser provocada.

Mas retomemos o exemplo que temos vindo a dar da família do Paulo.


 

No fim da sessão em que o pai e o filho se envolveram decidimos

tentar que o jogo continuasse em casa. Prescrevemos à família que duas vezes por
semana, antes de jantar, lutassem com as «batacas» (que

32
 

levaram para casa) com a assistência da mãe, que a seguir deveria preparar um
«petisco» para o jantar.

Os terapeutas tentaram prolongar o contexto da sessão fora dela, contrariando


assim a previsão da mãe. 0 papel desta é reforçado através da função nutriente
que naquela família era a dela. Era como se sim-

bolicamente pai e filho tivessem um espaço próprio, mas depois se

encontrassem os três novamente.

A família volta na sessão seguinte, com a mãe mais triste e começando por nos
dizer que tudo estava na mesma, o Paulo continuava a chegar a

casa de madrugada e a drogar-se. Olhamos um para o outro como se disséssemos:


pobre mãe, está a passar um mau bocado, é preciso estar pró ximo dela. 0 pai e o
Paulo evidenciavam boa disposição. Então, divertiram-se?, perguntamos. Não era
preciso esperar a resposta.

Mais depressa do que supúnhamos tínhamos chegado a uma fase

crucial da terapia. A mãe tinha perdido poder e não o queria admitir. Era
necessário intervir rapidamente senão a família não suportaria a crise.

0 sistema estava a balançar. Éramos uma ameaça. A patologia tinha-se deslocado


para a mãe. 0 pai e o Paulo estavam «apaixonados». Porque é que naquela família
a relação entre dois excluía sempre o terceiro?

Era preciso ir à geração atrás para compreender. Retomamos a

exploração das famílias de origem da primeira sessão. Primeiro a mãe.

Tinha nascido numa família rural do centro do país, quatro filhos, pobres.
Trabalhadores rurais, pai e mãe mal ganhavam para dar de comer às crianças, mas
eram muito unidos. À noite juntavam-se à volta do fogo de chão e rezavam em
conjunto. A mãe tinha uma bondade que era recor-

dada agora pela D. Irene com lágrimas nos olhos. 0 Sr. João nunca tinha bebido,
como tantos homens da aldeia faziam, e chegava sempre a casa

a horas. Um dia a D. Irene veio para a cidade à procura de melhor trabalho e foi
servir para uma casa de Lisboa, onde começou a namorar com o Alfredo.

A família de origem da mãe era muito aglutinada, uma família em que os conflitos
não eram importantes. A D. Irene tinha vivido num banho

de amor, sem experiência de separações.


 

Quando conheceu o Alfredo este estava a cumprir o serviço militar num quartel de
Lisboa. «Verem-se e amarem-se foi obra de um momento» .
33
 

Passados seis meses casaram e arranjaram uma casa. 0 Alfredo não quis que a
Irene continuasse atrabalhare arranjou um «biscate» para aumentar o magro
ordenado de soldado. A Irene ficou grávida, mas três meses antes de o Paulo
nascer o marido foi mobilizado e partiu para Angola. E a Irene ficou com um bébé
recém-nascido e sem apoio da sua família. Pensou em voltar para a terra com o
Paulo à espera do Alfredo, mas lá a vida também era difícil. Ficou. 0 marido só
voltou dois anos depois, não arranjou dinheiro para vir nas férias conhecer o
filho, que tudo era

pouco para mandar para cá e as passagens eram caras e ele não era sr. oficial.

A Irene e o Paulo habituaram-se um ao outro e fizeram um casal. Era um bebé


bonito, brincalhão, que dormia com a mãe. Mas um dia o barco chegou e trouxe o
Alfredo são e salvo. 0 Paulo fugia do pai, não o queria em casa, chorava de cada
vez que ele aparecia, protestava à noite quando o punham na sua cama.

0 Alfredo, temendo não arranjar emprego, «meteu o chico» e continuou na tropa,


indo fazer o curso de sargentos para Lamego. Foram mais três meses difíceis, mas
o Alfredo, não sabe bem porquê, sentiu-se aliviado. 0 ambiente em casa era
pesado. Ele tinha-se habituado à vida ao ar livre, à selva, ao convívio com os
homens e até às saudades. E aquele miúdo que não o aceitava criava-lhe um
desgosto que o roía por dentro. Mas continuava a amar a Irene, que dizia - deixa
lá que o miúdo há-de habituar-se.

0 Alfredo tinha uma história muito diferente da Irene. Nascera numa família de
Lisboa. 0 pai era artífice de vidro e tinha uma pequena oficina onde gravava
copos com nomes e emblemas de clubes de futebol. Era um homem austero, ríspido,
que nunca tinha permitido a aproximação dos filhos. 0 Alfredo era o mais novo de
três irmãos, todos rapazes. Mal conhecera a mãe, que morrera tinha ele seis
anos. 0 pai entregou-os a uma

tia e mais tarde casou novamente. 0 Alfredo não fala ao pai há dez anos.

Acusa-o de alcoólico e de sempre ter desprezado os filhos. Quando conheceu a


Irene, o Alfredo deve ter sonhado com uma relação que lhe desse novo alento. Mas
a guerra e outras coisas que ele não entendia cortaram-lhe esse projecto.

À primeira comissão nas colónias outras se tinham seguido, com

ausências prolongadas e um cada vez maior afastamento do Paulo. 0

34
 

mal-estar foi-se instalando, mas a relação do casal continuava aparentemente


preservada.

Tentamos saber mais do que se tinha passado naquelas duas sema-

nas em casa. 0 pai conta-nos que a vida tinha continuado como dantes, mas que
sentia a mãe mais triste e o Paulo mais comunicativo. A mãe interrompe-o e diz-
nos: «Ele continua a drogar-se, só que agora o pai parece que já não se
importa». «Claro que me importo, mas nós estamos aqui é para resolver isso. E eu
acredito que talvez se consiga».

Estávamos já longe da fase inicial em que a mãe, pelo telefone, nos

dizia que o pai não queria vir à terapia e não acreditava que algo pudesse ser
feito pelo Paulo.

Um dos terapeutas dirige-se à mãe e diz-lhe: «Acho que a sua posição na família
é cada vez mais difícil. Se pudesse falar com alguém da sua

família de origem, quem é que escolhia neste momento?». A mãe olhou-nos,


perplexa, e retorquiu: «A minha mãe». «E o que é que lhe dizia se

ela estivesse aqui connosco?». A Irene começou a chorar e falou

longamente de ter casado sem saber nada da vida e como a vida era diferente do
que ela tinha imaginado que fosse. A mãe sempre lhe tinha ensinado que a mulher
devia estar sempre ao lado do marido, mas ela não

tinha podido estar porque o Alfredo tinha ido para a guerra. Tinha sido uma
mulher abandonada e sempre com receio que ele morresse. Habituou-

-se a criar o Paulo sozinha.

0 Paulo comentou que estranhava a mãe, sempre tinha sido uma

pessoa bem disposta, comunicativa, nunca a tinha visto triste.

«Sr. Alfredo, como é que pode ajudar a sua mulher neste momento?», perguntamos.

0 Alfredo não sabia o que fazer, mas estava aflito. Habituado a uma mulher
«bombeiro» não conseguia comunicar com ela naquele estado.

Saimos para conversar, como fazemos nalgumas sessões particularmente tensas e em


que é preciso planear com mais cuidado o trabalho seguinte.

Aquela família tocava-nos muito. Qualquer de nós tinha muitos pontos de


identificação com o que ali se vivia.
 

0 Daniel estava próximo daquela mãe «controladora» do filho, que lhe recordava
cenas da sua vida passada. 0 Zé revivia naquele grupo de pessoas o seu longo
afastamento do pai e as dificuldades da sua adolescência por ele não estar
próximo.

35
 

Falámos os dois, fora da família, daquilo que se passava em nós próprios.

0 podermos partilhar os nossos sentimentos contra-transferenciais diminui a sua


actuação no terreno terapêutico e aumenta o sentimento de intimidade dos
co~terapeutas que, canalizado para a família, é extremamente positivo.

Decidimos que seria bom que a fantasia da avó materna presente se

tomasse realidade, voltando à sala com essa proposta. A mãe hesitou, dizendo que
a mãe estava muito velha, vivia muito longe, não estava a par do que se passava
e iria sentir-se mal. Dissemos-lhe para dizer à mãe, em

nosso nome, que a avó seria a pessoa que conhecia melhor a Irene e nos

poderia ajudar. Acedeu em tentar. Marcámos a sessão seguinte para daí a quinze
dias.

No dia da sessão estávamos ansiosos por saber até que ponto seria possível
mobilizar aquela família e trazer uma velhinha aldeã, pacatamente sossegada na
sua velhice tranquila.

A família chegou a horas e a avó também vinha. Era uma senhora já de idade, olho
azul vivo, xaile pelas costas, que nos cumprimentou res-

peitosamente, agradecendo-nos o trabalho que estávamos a ter com o neto.

Começámos a sessão agradecendo a presença da D. Elvira e comu-

nicando-lhe que tínhamos pedido a sua comparência para nos poder ajudar. Qual
era a opinião dela sobre a família da Irene?

Olhem, Srs. Drs., a Irene teve muita sorte, casou com um bom homem, muito
trabalhador e que sempre foi amigo dela e do filho. Coitada, agora está muito
preocupada com o Paulo, mas eu acredito que isto são coisas da idade e que ele
se há-de fazer um homem. Lá na Ribeira (aldeia on-

de nasceu e vive) também há uns rapazolas que parece que se drogam, mas não são
maus. No fundo os homens também vão para a taberna, embebedam-se e depois dão
maus tratos às mulheres.

Estávamos na presença de uma daquelas avós da nossa infância, compreensivas e


com uma visão alargada da realidade de quem já viveu muito e sabe por
experiência própria que a tempestade e a bonança an-

dam sempre a par.

Mas o nosso plano para a sessão era voltar à sessão anterior e trabalhar a
tristeza da mãe. A presença da avó era importante para que a mãe não
 

se sentisse sozinha na sua tristeza.


36
 

D. Elvira, a sua filha esteve aqui connosco há duas semanas e estava

muito triste. Perguntámos-lhe com quem gostaria de falar naquele momento e ela
disse-nos que seria consigo. «Podem conversar agora».

A mãe aproximou-se da filha e falou-lhe das alturas em que ela também se tinha
sentido deprimida. «Tu precisas é de ir passar uns dias à terra comigo e isso
passa. A vida lá é mais calma, o Alfredo e o Paulo

aguentam-se bem sozinhos».

A avó oferecia-se para «recarregar as baterias» da Irene. Tinha voltado a


sentir-se mãe e estava contente por isso.

Reforçámos esta ideia, comentando a importância de por vezes fazermos um «banho»


materno para retomar forças. Dissemos à família que eles eram corajosos e
provavelmente quereriam mudar qualquer coisa. A nossa disponibilidade para
continuar era evidente.

Alguns dias depois recebemos um telefonema do pai dizendo-nos que tudo tinha
piorado. A mãe tinha partido com a avó, mas ele e o Paulo não se estavam a
entender. 0 Paulo chegava cada vez mais tarde e tinha começado a faltar ao
emprego. Tinham tido uma discussão violenta em que o Paulo lhe voltara a dizer
que ele não percebia nada da vida e que já era «maior e vacinado». 0 pai
telefonara à mãe e pedira-lhe para voltar mais cedo.

Ao telefone dissemos ao pai que nos encontraríamos no dia marcado. A família


surgiu-nos na mesma situação do início: mãe bem disposta, pai e filho zangados.

Tínhamos querido ir depressa demais. Aquela proposta comovente da D. Elvira


tinha-nos convencido e ingenuamente pensámos que uma

família muda no seu sistema de relações só porque surge uma pequena mudança. 0
nosso desejo tinha interferido na capacidade de mudança do sistema.

Mas pela primeira vez o pai e o Paulo tinham ficado sozinhos e esta situação que
nunca tinham vivido iria de certeza ter implicações na

relação futura entre ambos. Aliás, numa das primeiras noites, o Paulo

tinha levado lá para casa a sua nova namorada e passaram o serão a ver
televisão.

A mãe começou por afirmar que, como se provava, ela não podia largar aquela casa
porque eles não se entendiam.

Confessámos à família o nosso erro. De facto, ela era indispensável


 

37
 

e era cada vez mais importante a sua presença junto dos dois. Mas perguntámos-
lhe como se tinha sentido na terra. Muito bem, disse-nos, mas sempre muito
inquieta. Telefonava todos os dias a saber o que se

passava e ficava preocupada cada vez que não encontrava ninguém em

casa. Tinha reencontrado velhas amizades e familiares, toda a gente a

tinha ido visitar. A avó tinha falado muito com ela. Tinha-a aconselhado a
preocupar-se mais com o marido e menos com o Paulo. Este qualquer dia saía de
casa e depois haviam de aparecer netos para ela cuidar.

A D. Irene aceitara estes conselhos, mas continuava muito preocupada com o filho
e ficara indignada com o marido por ter aceite lá em casa

a Teresa (namorada do Paulo), se calhar também uma drogada. Aliás os

vizinhos já lhe tinham falado nela e disseram-lhe que ela andava sempre com
muitos rapazes.

A mãe protestava contra aquele serão em que ela não estivera presente, mas o pai
não estava de acordo. A Teresa era muito simpática e

parecia gostar muito do Paulo.

Era a primeira vez que pai e mãe não estavam de acordo. Era um sinal de alerta
para nós. Sentíamos que não seria ainda a altura de trabalhar a relação do
casal.

Preferimos assumir que tínhamos errado e que de facto ainda não era possível pai
e filho entenderem-se, mas dissemos-lhes que também a

estadia dos dois juntos teria servido para ajustar «contas antigas».

0 Sr. Alfredo estava novamente ausente durante a sessão, o que permitiu à mãe
toda a iniciativa; mas alguma coisa tinha entretanto mudado. 0 Paulo, não
verbalmente, mostrava-se «enfadado» quando a

mãe falava e olhava para o pai de urna forma diferente. E quando a mãe

nos falava da sua preocupação enquanto estava na terra o Paulo explodiu e disse-
lhe: «Pois é, a mãe nasceu preocupada, nunca me deixou à vontade, quando eu era
miúdo e queria ir para a rua brincar não me

deixava e eu bem ouvia o pai a dizer - deixa lã ir o rapaz -, mas quem acabava
sempre por decidir era a mãe. 0 pai tenta explicar à mãe que um

rapaz precisa de liberdade a partir de certa altura».


 

Aqui o Paulo tocou um ponto quente do pai. Ele tinha feito toda a sua
adolescência sozinho, uma relação distante e difícil com o seu pai. A sua
integração na vida militar tinha-lhe dado apesar de tudo uma estrutura

que ele não teria dentro de si. Mas não tinha sido possível transmitir ao

38
 

filho o que é ser um homem e as dificuldades que se passam antes de se

ser adulto.

Interviemos para dizer ao pai que o Paulo lhe estava a pedir qualquer coisa de
muito importante e de que ele talvez não tivesse respostas seguras, mas que
ninguém teria. «Diga-lhe qual foi a sua experiência! ».

Conforme se pode ver pelo relato parcial que temos vindo a fazer desta

terapia familiar, o processo terapêutico é feito de avanços e recuos em que a


família, imaginada como sistema, vai «balançando» à medida que as intervenções
terapêuticas surgem. 0 que se pretende é flexibilizar a

estrutura de fon-ria a que ela possa suportar embates e tensões sem se

desagregar. Numa família com adolescentes a flexibilidade tem de ser

máxima, porque a energia que eles põem no sistema é de tal modo grande que pode
«rebentar» os laços ténues que unem os elementos entre si.

Uma das confusões habitualmente feitas a propósito da Terapia Familiar é de que


pretenderia unir a família. Nenhuma intervenção terapêutica deve ter como
pressuposto influenciar as decisões das pessoas. Mas também todos sabemos que ao
longo dos processos psicoterapêuticos muitas vezes os clientes tomam decisões
que alteram profunda mente a sua vida.

Em Terapia Familiar a família durante a terapia pode ou não alterar-

-se na sua composição, mas o fim do processo terapêutico é criar espaços de


autonomia individual e de relação com os outros em que o prazer se sobreponha à
tensão.

Fase final da terapia

A terapia aproxima-se do fim quando a família é capaz de falar das suas relações
com menos tensão e sobretudo com a capacidade individual de olhar para o outro e
respeitar a sua autonomia sem se sentir agredido por isso.

Em terapia familiar o fim do processo não é rígido. Por vezes é a

família que diz que não quer voltar, porque já não é necessário. Respeitamos
este desejo porque acreditamos nas capacidades do sistema para se

autogerir. Se algum dos seus membros quer ir mais longe em trabalho

individual aconselhamos uma psicoterapia individual.


 

39
 

A Terapia Familiar é um processo que envolve muita energia que nem

sempre é fácil criar. Haverá sempre membros da família mais disponíveis que
outros. Como diz Whitaker, a fase final da terapia é como o fim da adolescência.
Já podem ficar sozinhos que não acontece nenhuma desgraça.

0 processo terapêutico em Terapia Familiar nunca é muito longo. Por vezes pode
atingir os dois anos com sessões quinzenais, mas habitualmente termina entre a
décima e a vigésima sessão. Consideramo-lo como

um processo de desbloqueamento do ciclo vital da família, visando uma nova


organização familiar. Atingida esta, poderá ser contraproducente continuar a
Terapia.

40
 

IV MODELOS DE INTERVENÇÃO EM TERAPIA FAMILIAR

Existem diversos modelos de intervenção em terapia familiar, baseados em


diferentes concepções da família e do modo de intervir tera~

peuticamente. Neste capítulo descreveremos com mais pormenor aqueles que mais
influenciaram o nosso modo de trabalhar, fazendo breves referências aos
restantes.

Classificação dos modelos de intervenção em terapia familiar

1) Perspectivas relacionadas com o modelo psicanalítico

2) Perspectivas transgeracionais

- perspectiva transgeracional de Boszormenyi Nagy


- perspectiva simbólico-vivencial de Carl V.,fhitaker
- perspectiva de Murray Bowen

3) Perspectiva estrutural (Salvador Minuchin)

4) Perspectivas estratégicas

- perspectiva do Mental Research Institute (Palo Alto)


- perspectiva de Jay Haley
- Escola de Milão

-5) Perspectivas comportamentalistas.

41
 

Perspectivas transgeracionais

Introdução

Segundo este ponto de vista a perturbação de uma família que procura a terapia
não reside essencialmente no problema apresentado e que constitui o pedido
imediato da família, mas tem a sua raiz em factos

passados que constituem a história natural da família e que são transmitidos de


geração em geração. A perspectiva transgeracional é uma aná-

lise de transmissão da cultura familiar no seu sentido lato, de uma geração para
outra, englobando os padrões, estilos, costumes, segredos, mitos e

problemas que determinam o carácter único de uma família (Lieberman,


1979).

Nesta óptica não se valoriza especialmente o comportamento sintomático que traz


a família à terapia, tentando-se pelo contrário integrar o

presente, através do uso do passado, de modo a definir padrões repetitivos


disfuncionais que urge alterar se se pretende construir um futuro diferente.

Como processo terapêutico, é utilizado o estudo das relações familiares em pelo


menos três gerações (avós, pais e filhos), idealmente quatro ou mesmo cinco
gerações. 0 actual aumento da longevidade dos indivíduos leva a uma crescente
importância das gerações mais velhas na vida

familiar e na sociedade, e se bem que na prática seja por vezes difícil juntar
várias gerações numa sala de terapia, é já exequível estudá-las através da
pesquisa sistemática das relações intrafamiliares ao longo dos anos.

Os terapeutas familiares que seguem a perspectiva generacional procuram definir,


em conjunto com a família, os padrões de relação básicos dos diversos sistemas
familiares que se entrecruzaram ao longo de muitos anos. Alguns utilizam mesmo o
genograma, um diagrama visual da árvore genealógica familiar, construído em
conjunto com a família na sessão terapêutica. As lacunas detectadas são
preenchidas mais tarde, após reflexão e pesquisa efectuadas pelos familiares,
nos intervalos das

sessões. A partir deste procedimento técnico toma-se mais patente o

sistema relacional da família, ao mesmo tempo que os principais acon-

tecimentos biográficos são destacados (nascimentos, casamentos, divõrcios,


mortes, etc).

42
 

Exemplo:

Genograma da família Santos, obtido a partir de duas sessões de terapia familiar

Dulce

o A

r, n

ntónio

Margarid

r X

18 Mariana

15 Pedro

0 - Indivíduo do sexo masculino o~ indivíduo do sexo feminino

ligação duradoura ligação efémera ou morte X - aborto

0 genograma toma muitas vezes evidente uma verdadeira passagem transgeneracional


de tradições relacionadas com a família, bem como uma série de crenças e
comportamentos específicos. É deste modo que são veiculadas ideias sobre a vida
e a morte, a sexualidade, atitudes face à política, ao dinheiro ou a outras
famílias, papéis familiares e muitas

outras características que definem a unidade do corpo familiar.

Nem todas as perspectivas intergeracionais da terapia familiar têm clara


individualização. Muitos dos trabalhos nesta área resultam de

43
 

esforços para adaptar o ponto de vista da psicanálise à terapia familiar, como


tentativa de lutar contra o aparecimento de um novo paradigma, o paradigma
sistémico (Guntem, 1979). Alguns autores consideram a

terapia familiar uma variante da terapia analítica com o objectivo de


compreender e tratar a neurose familiar. Stierlin (1977) tenta reconciliar dois
paradigmas que considera em conflito - a psicanálise e a terapia familiar - mas
acaba por colocar maior ênfase na dinâmica intrapsíquica como factor causal em
psicopatologia. Em Portugal alguns psicanalistas seguem esta linha, talvez como
forma de resistênç1a à

crescente implantação da terapia familiar. Queremos deixar bem claro que os


conceitos da psicanálise, postulados para uma relação dual paciente-
psicanalista, dificilmente podem ser aplicados à situação familiar,
correspondendo tais adaptações a erros epistemológicos.

Framo (1965) tenta combinar o ponto de vista intrapsíquico com o transpessoal na


sua terapia conjugal com as famílias de origem, mas o seu

conceito de «transferência familiar» como fenômeno reactivo do conjunto familiar


à presença do terapeuta parece-nos a persistência do modo de pensar
psicanalítico aplicado a uma situação não apropriada. Assim não parece possível
trabalhar com este conceito quando se fala que cada membro da família transfere
para outro membro a sua oposição de «filho» ou de «pai» derivada da sua posição
familiar passada. Basta assistir a uma

sessão de Terapia Familiar para identificar episódios transferenciais em

sentido lato, mas ao mesmo tempo toma-se patente que é erro grave utilizá-los
terapeuticamente.

Outro autor fortemente influenciado pela psicanálise é Boszormenyi-Nagy (1973).


No seu livro Invisible loyalties, escrito em colaboração com G. Spark, Nagy
introduz o conceito de «carta de legadosfamiliar», um conjunto multigeracional
de obrigações e dívidas a serem cumpridas ao longo dos tempos. Sempre que uma
injustiça ocorreu vai haver mais

tarde um movimento para a reparar, embora não necessariamente pelo devedor


original. Os problemas surgem quando a justiça vem muito

lentamente ou é insuficiente, dando-se aquilo que Nagy chama «uma

cadeia deslocada de retribuições». Um sintoma familiar pode ser um

sinal de que está a haver uma grande acumulação de injustiças, pelo que a acção
terapêutica só pode ser empreendida após análise da história familiar em
terírios desses problemas emocionais.
 

44
 

Nagy conceptualiza a família como um grupo humano rodeado por uma rede complexa
de obrigações e lealdades que exigem cumprimento, mas que protegem ao mesmo
tempo o conjunto familiar. 0 terapeuta deve criar uma atmosfera que tome
possível a cada um encarar as suas

dívidas emocionais e eventualmente corrigi-Ias, mostrando que muitas das


dificuldades actuais correspondem à tentativa de superação de erros

ou características das gerações passadas.

Se bem que este ponto de vista seja útil na compreensão de muitas situações,
esta perspectiva parece-nos de tom moralista e raramente a utilizamos.

Dentro das perspectivas intergeracionais descreveremos a seguir com pormenor a


perspectiva multigeracional de Murray Boiven e a

perspectiva simbólico-existencial de Carl Whitaker, não só pela sua


especificidade mas pela importância que têm na nossa fonnação e na nossa
prática.

Perspectiva multigeracional de Murray Bowen

Murray Bowen, actualmente professor na Georgetown University, de Washington,


pertence ao grupo de té cnicos de saúde mental que nos anos cinquenta iniciou
trabalho clínico com famílias de doentes internados em instituições
psiquiátricas. Em 1954 trabalhou em Washington num projecto de investigação
sobre a esquizofrenia, em que os jovens eram internados em conjunto com as suas
mães numa área do hospital reservada para o efeito. A equipa em breve verificou
que muitos dos efeitos benéficos do tratamento eram prejudicados pela constante
interferência dos elementos da família que permaneciam afastados do hospital,
pelo que Bowen passou rapidamente a envolvê-los nas sessões.

0 crescente número de participantes, a não aceitação da esquizofrenia apenas


como doença biológica e o trabalho sobre as famílias de origem dos progenitores
dos doentes com esquizofrenia lançaram as bases para a teoria que Bowen iria
desenvolver nos anos seguintes.

A procura e delimitação sistemática de uma teoria sobre o funcio-

namento emocional da família é uma das preocupações constantes de

45
 

Murray Bowen. Na visita que em 1980 fizemos ao seu Centro em Washington, Bowen
dizia-nos que nada se pode fazer sem uma teoria, colocando-se numa perspectiva
muito crítica face às terapias de orientação estratégica, que no seu ponto de
vista correspondem ajogos de manipulação procurando a resolução de problemas sem
a necessária compreensão do funcionamento familiar. Diferenciando-se da
perspectiva estraté gica, Bowen não considera a terapia terminada quando o
problema que trouxe a família à consulta está sintomaticamente resolvido, pelo
que a acção terapêutica deverá ser continuada até que cada elemento da família
adquira um self com autonomia e maturidade.

Embora Bowen utilize alguns conceitos comuns à teoria geral dos sistemas tal
como Bertalanffy a formulou, tem procurado diferenciar-se, falando de uma
«teoria específica sobre o funcionamento das relações humanas», considerando a
família um sistema emocional com características específicas. Bowerí define
sistema emocional como «qualquer coisa que está em contacto com processos
celulares e somáticos» e

sistema de sentimentos como uma «ponte em contacto com partes do sistema


emocional por um lado e com o sistema intelectual por outro» (Bowen, 1978).

Embora tenha tido formação e prática psicanalítica, Bowen distingue-se de outros


terapeutas familiares de orientação psicodinâmica em

diversos aspectos, nomeadamente pela sua posição face ao conceito de

transferência. Bowen trabalha fora do sistema emocional da família, funcionando


como um consultor e desencorajando movimentos transferenciais entre os elementos
da família e o terapeuta. Costuma dizer-se assim que Bowen trabalha com «baixa
tensão», de modo a que a ansie-

dade diminua e os comportamentos de maior autonomia e maturidade

possam emergir.

Na tentativa de objectivar a sua teoria de modo a torná-la mais

utilizável no ensino e treino de terapeutas familiares, Bowen delimitou oito


conceitos fundamentais, que a seguir descrevemos.

46
 

1. Diferenciação do self

Dentro deste conceito básico para a compreensão da sua teoria, Bowen distingue
em primeiro lugar dois tipos de pessoas:

A) Indivíduos com fusão emocional intensa - baixo nível de diferenciação do


self- em que a vida é dominada pelo sistema emocional. Nestes casos o intelecto
é inundado pelas emoções e a vida é totalmente

orientada no sentido da procura relacional, sendo toda a energia investida em


busca de aprovação e amor. Muitos objectivos de ordem intelectual ou
profissional são assim prejudicados, já que estas pessoas estão emocionalmente
dependentes daqueles que as rodeiam.

B) Indivíduos com baixafusão emocional- alto nível de diferenciação do seIf- em


que o nível emocional e o intelectual surgem distintos, o que faz com que em
períodos de stress o indivíduo seja capaz de optar entre o funcionamento
emocional e o funcionamento racional.

A) e B) correspondem aos extremos de uma escala hipotética de diferenciação do


self de 0 a 100, em que o extremo 0-25 corresponde ao

mais baixo nível de diferenciação do self e o outro extremo 75- 100 é um

patamar dificilmente atingível em que os níveis emocional e intelectual

são autónomos.

Bowen também utiliza o conceito de diferenciação do self no sentido

da fusão intergeracional entre pais e filhos. Em situações de grande ansiedade


na família os seus diversos membros podem chegar ao ponto de sentir as me@mas
emoções e ter os mesmos sonhos, progredindo o

processo por fases de menor fusão emocional. Bowen fala assim de «massa
indiferenciada do eu na família» para descrever situações de menor
diferenciação, ao passo que nos diz que em famílias com maior maturidade os
indivíduos têm autonomia emocional não se envolvendo

em fusão com os outros.

A terceira perspectiva, relacionada com o conceito de diferenciação do self, diz


respeito à noção de self sólido e de pseudo self.

0 self sólido é constituído por opiniões, princípios gerais e convic-

ções que permitem ao indivíduo dizer quem é, naquilo que acredita e o


 

que fará, esteja em que relação estiver. Opseudo selfé o elemento consti-

tutivo do self que entra nas relações e é modificado por elas, agrupando

47
 

um conjunto de princípios aceites pelo grupo exterior ou pelos elementos


significativos para o indivíduo em causa.

As pessoas com menor diferenciação terão um maior pseudo self e

um menor self sólido.

2. 0 conceito de triângulo

Triângulo corresponde à configuração emocional que envolve três pessoas e que é


considerada como base de qualquer sistema emocional, incluindo o familiar. Um
sistema de duas pessoas pode ser estável numa situação calma, mas se a ansiedade
aumenta há tendência para o envolvimento de uma terceira pessoa. As famílias são
vistas como consti-

tuindo uma série de triângulos que se entrecruzam e cuja composição depende do


grau de ansiedade e tensão presente em cada momento. A triangulação leva a
situações disfuncionais na medida em que fornece estabilidade através de uma via
lateral e não pela resolução do conflito.

Se considerarmos o triângulo clássico pai-mãe-filho, quando a tensão

aumenta na relação conjugal o casal pode concentrar-se na criança, passando o


comportamento sintomático do filho a ser motivo de

preocupação para ambos os progenitores. Se esta situação se rigidifica,


mantendo-se ao longo de bastante tempo, é provável que impeça a

resolução da díada conjugal e leve um dos elementos do triângulo a ter

problemas emocionais ou físicos (muitas vezes o filho, por ser o elemento mais
vulnerável).

0 processo de triangulação pode continuar indefinidamente, dentro do sistema,


até atingir um ponto em que já não é possível envolver mais pessoas; é nessa
altura que uma família pode «triangular» um técnico

de saúde mental, por exemplo.

Na situação terapêutica, e na perspectiva de Bowen, o terapeuta deve evitar ser


«triangulado». Se o comportamento sintomático atinge o

elemento mais vulnerável do triângulo (no exemplo acima, o filho), o terapeuta


pode trabalhar apenas com os pais. Evitando a triangulação, o

terapeuta mantém-se em contacto emocional com o pai e a mãe, o que leva estes a
uma nova situação: estão numa situação triangular mas a
 

díada não consegue «meter» um terceiro elemento. Tomam-se assim

48
 

mais nítidos para o casal os seus movimentos anteriores e é possível aumentar o


seu nível de diferenciação.

3. 0 processo emocional da famt7ia nuclear

0 processo emocional da família nuclear é o postulado que descreve os padrões de


funcionamento emocional na geração parental de uma

família nuclear. Refere-se às interacções entre os parceiros sexuais que


estabeleceram uma relação duradoura, a partir de uma escolha de dois indivíduos
com níveis semelhantes de diferenciação. Quanto mais baixo for o nível de
diferenciação colectivo, mais intensa e problemática é a

fusão dos dois pseudo-self no casamento.

Este conceito diz-nos o modo como a indiferenciação dos pais, vivida

nas suas experiências com a família de origem, é expressa na sua própria relação
familiar.

4. 0 processo de projecção familiar

Como o processo de indiferenciação na família tem que ser resolvido

pelos dois elementos da díada conjugal, existem várias maneiras de lidar com
essa ansiedade:

- distância emocional entre o casal - que pode atingir um verda-

deiro divórcio emocional, em que o marido e a mulher vivem de costas

viradas um para o outro;

- conflito aberto entre o casal - em que nenhum dos elementos do casal cede nem
procura adaptar-se;

- doença num dos elementos do casal - desempenhando o outro

elemento funções «cuidadoras». 0 elemento doente, se a situação se

arrasta, está cada vez em maior dificuldade e com maior dependência do outro.
Este mecanismo, bastante frequente, pode levar a uma verdadeira

carreira psiquiátrica do doente, em que o elemento são surge como «transportador


para clínicas» para pseudo-tratamento de uma depressão crónica, quando a única
abordagem eficaz seria a de lidar directamente

com o conflito conjugal;


 

49
 

- projecção familiar - define o modo como a indiferenciação parental lesa um ou


mais filhos. Este processo não é igual para todas as crianças numa dada família,
parecendo ser especialmente vulneráveis aqueles que nasceram durante um período
de grande stress da mãe. Deste mecanismo resulta que cada geração sucessiva vai
ter indivíduos com

um nível de diferenciação cada vez mais baixo. Bowen considera que um filho
esquizofrênico é o produto de várias gerações de crescente projecção familiar de
cada vez menores níveis de diferenciação, colocando-se aqui no nosso entender
numa perspectiva muito reducionista da compreensão da gênese da esquizofrenia.

S. 0 processo de transmissão multigeracional

0 processo de transmissão multigeracional postula a passagem do processo de


projecção familiar de geração para geração e aplica-se à transmissão dos níveis
de diferenciação. Toma-se necessário este con-

ceito para compreender a problemática actual de uma família, que na

perspectiva de Bowen tem as suas raízes nas gerações anteriores.

6. Corte emocional

0 corte emocional descreve o modo como uma pessoa se afasta dos

seus pais para começar uma nova vida com os indivíduos da sua geração. Este
conceito diz respeito também a certas regras que governam a ligação entre os
membros das diferentes gerações na família.

Se a ligação emocional dos filhos para com os pais é «resolvida» por um corte
emocional através de uma operação interna ou através de

distância geográfica, a ligação fica por resolver e não existe processo de


diferenciação estruturado na vida do indivíduo, levando à transmissão de um
baixo nível de diferenciação para os filhos. Deste modo, as dificuldades
emocionais são passadas às gerações seguintes e só a re-análise desses

problemas poderá evitar dificuldades psicológicas. Bowen encoraja os

elementos da família a restabelecer laços com as suas famílias de origem, de


modo a alterar o processo de corte emocional e tentar uma nova

50
 

diferenciação. A partir de experiências concretas com a sua própria família


(Bowen, 1974), Bowen conclui que uma terapia familiar só terá sucesso se cada
indivíduo fizer uma reavaliação pessoal da sua relação com os seus antepassados,
de modo a procurar estabelecer elos significativos entre o que se passou na sua
relação com eles e as suas

dificuldades actuais.

7. Posição nafratria

Este postulado, quanto a nós menos importante, diz-nos que carac-

terísticas de personalidade são devidas à posição na fratria em que se

nasce e se é educado.

É possível estabelecer perfis hipotéticos de personalidade correspondentes a


determinadas posições em famílias norinais: o mais velho, o mais novo, o único,
etc. A maneira como o perfil de personalidade do indivíduo em estudo se
relaciona com o perfil hipotético considerado «normal» fornece um meio de
compreender o nível de diferenciação e a

direcção do processo de projecção familiar de geração para geração, mesmo nos


casos em que faltam dados objectivos.

8. Regressão social

Com este conceito Bowen pretende alargar o campo da sua teoria, postulando que a
fusão entre os sistemas intelectual e emocional que ocorre no indivíduo pode
ocorrer na sociedade. Assim a ansiedade crónica numa sociedade leva a que sejam
tomadas decisões cada vez

mais baseadas na emoção, levando a uma situação de regressão social.

Num breve relance sobre estes conceitos fundamentais da Teoria de Bowen, chama-
nos a atenção a sua persistência em não englobar na sua

análise da dinâmica familiar aspectos da teoria geral dos sistemas já aceites


por muitos autores. Embora o seu conceito de diferenciação do self nos pareça
muito importante, vemos que o termo fusão se aplica umas vezes a um processo
intrapsíquico, outras vezes a um processo intergeracional entre pais e filhos, o
que tem levado a certos equívocos na

51
 

sua aplicação. A aplicação da teoria de Bowen parece-nos por vezes

demasiado intelectual ou distanciada, mas não podemos perder de vista a riqueza


dos seus conceitos, que ultrapassam largamente o campo da terapia familiar para
se imporem como um verdadeiro quadro conceptual de compreensão dos sistemas
humanos.

0 processo terapêutico

Na sua prática como terapeutas familiares, Bowen e os seus cola-

boradores aplicam os oito conceitos descritos. Actualmente as sessões decorrem


muitas vezes sem a família completa, trabalhando o terapeuta com uma ou duas das
pessoas envolvidas no triângulo (por exemplo o

casal ou mesmo só o pai ou a mãe).

A terapia procura identificar os padrões originados no passado que mantêm presas


as pessoas no seu dia a dia, de modo a torná-las autónomas. Procura-se assim
descobrir um padrão repetitivo, transmitido de geração em geração e, se
possível, alterá-lo. As sessões desenrolam-se à volta de um genograrna que se
desenvolve para o passado e colateralme----, a partir de um indivíduo ou de um
casal como ponto focal.

Segundo Jones (1980), o terapeuta com esta orientação tem quatro funções
principais:

- definir a relação entre o casal - o terapeuta procura baixar o nível de


ansiedade fazendo com que todas as comunicações passem por si, de modo a que
cada elemento do casal interaja apenas com o técnico. Bowen considera que a
ansiedade e a irracionalidade existentes entre o casal e estimuladas por uma
comunicação directa inúmeras vezes tentada sem sucesso é o terreno fértil para a
manutenção das relações familiares disfuncionais;

- manter-se «não triangulado» - conservando-se por exemplo num

registo apenas verbal, ou fazendo um comentário aparentemente descomprometido, o


terapeuta evita envolver-se na situação de tensão;

- ensinar o funcionamento dos sistemas emocionais - a partir do genograma o


terapeuta clarifica aspectos do sistema emocional da família em terapia: aqui o
contexto é francamente pedagógico;

52
 

- estimular a formação do self sólido em cada elemento - o que ocorre por vezes
no decurso da terapia mas deve ser um objectivo a atingir.

Treino

0 treino em terapia familiar boweniana passa pelo apoio dado pelo supervisor ao
processo de diferenciação do self do candidato. Este terá que conduzir um longo
caminho de reanálise das suas relações com a família de origem antes de
propriaíriente trabalhar directamente com

famílias em terapia. 0 treino passa assim pela análise sistemática do genograma


do candidato a terapeuta familiar, de um modo semelhante àquele que foi descrito
para as famílias em terapia.

Perspectiva simbólico-vivencial de Carl Whitaker

«I belíeve craziness is where life is»

Carl ~itaker

« If you'refree to hate, you'll love more»

Carl Whitaker

1.

0 nosso primeiro contacto pessoal com Carl Whitaker ocorreu em Roma, durante um
seminário organizado pelo grupo do Istituto di Terapia Familiare, em Outubro de
1979. Carl começa por impressionar pelo seu

aspecto físico: grandes mãos, continuamente fazendo gestos largos, muito


expressivos, enorrne cabeça coberta por um cabelo prateado nem

53
 

sempre muito arrumado e um olhar e um sorriso de criança grande que pode


repentinamente tomar-se muito séria e transformar-se num adulto responsável.
Depois há uma voz capaz de oscilar entre uma doçura muito tema e um tom de
reprimenda, sem contudo jamais perder o seu afecto.

Desde o contacto em Itália que ficou a germinar em nós o desejo de trabalhar uns
tempos com Carl Whitaker, projecto que veio a concretizar-

-se em 1980, quando ambos estagiamos em Madison (Wisconsin), assistindo e


participando em terapias familiares desde as 8 da manhã até às 5

da tarde, sem intervalo para almoço! Este treino teve grande influência na nossa
maneira de trabalhar, de conceptualizar a família e a sua

importância estendeu-se também à-nossa vida pessoal e à nossa visão do mundo.

Carl Whitaker, hoje já com 72 anos, licenciou-se em Medicina nos Estados Unidos
em 1936, tendo trabalhado inicialmente em Obstetrícia e Ginecologia mas cedo
mostrando interesse pela dimensão psicológica da Medicina. Trabalhou num
Hospital Psiquiátrico da zona de Nova

lorque antes de partir para o Sul dos Estados Unidos (Atlanta), onde em
1946 iniciou um período de grande importância na sua vida e onde esta-

beleceu contactos com Thomas Malone, seu co-autor no livro The Roots of
Psychotherapy que publicou em 1953.

0 seu trabalho foi influenciado por Sullivan, Otto Rank e John Rosen.

Este último publicara em 1946 os seus primeiros trabalhos sobre «análise


directa» de esquizofrénicos, sendo talvez a partir destes contactos que Carl se
interessou pelo tratamento da esquizofrenia, que viria a ser uma

das principais motivações da sua obra.

Teve treino pessoal em psicoterapia de grupo e, embora influenciado pela


psicanálise, como todos os terapeutas do seu tempo, o seu trabalho cedo se
autonomizou, sobretudo pela grande criatividade e capacidade de utilização do
seu inconsciente.

Em 1964 foi ocupar o lugar de Full Professor na cadeira de Psiquiatria da cidade


de Madison (Universidade de Wisconsin), pequena cidade universitária do Norte
dos Estados Unidos, perto de Chicago. Em 1982, quando nos visitou em Lisboa para
participar no 11 Encontro de Terapia Familiar, estava no limiar da reforma das
suas funções públicas. As notícias que hoje temos continuam a mostrá-lo activo,
procurando siste-

54
 

matizar aspectos do seu trabalho e fazendo seminários de treino em vários pontos


do mundo.

2.

Whitaker costuma dizer: «não faço terapia familiar, sou terapeuta familiar».
Esta frase sintetiza bem o seu ponto de vista de que a terapia familiar não é
mais uma técnica de intervenção em saúde mental, mas corresponde a uma visão
diferente dos problemas. Se bem que muitos dos seus conceitos estejam espalhados
ao longo deste livro, procuraremos aqui chamar a atenção para os aspectos mais
importantes do seu trabalho.

Salvador Minuchin, amigo de Carl e seu grande admirador, diz que embora a
posição de Whitaker seja quase sempre crítica face à existência de teorias,
trabalha com uma teoria bem elaborada (Minuchin, 1982). Julgamos que na sua
prática Carl parte de uma noção defamília saudável, conceptualizada a partir da
sua experiência pessoal de homem casado, com cinco filhos e fortemente
influenciado pelos seus pais, e também a

partir do contacto com famílias na sua prática terapêutica de quarenta

anos.

Procurando definir as características de uma família não disfuncional, Whitaker


(1981, 1982) vai lançar as bases do seu modo de actuar. No fundo, trabalha com
um modelo de família interiorizado que não vai impor a quem o procura, mas,
sabendo que as zonas de conflito e

disfunção estão relacionadas com percursos de afastamento ou de

rigidificação face a esse modelo, há que pôr a família em contacto com

ele no decurso da terapia. Não se pense que o seu trabalho consiste, contudo, em
pedagogicamente ilustrar à família aquilo que a «afasta da norma». Whitakeré um
«destruidordas formas cristalizadas» (Minuchin,
1982) e todas as suas intervenções são dirigidas para pôr em causa o

significado que os membros da família dão aos acontecimentos, reais ou


fantasiados.

Características de uma família saudável (Whitaker, 198 1):

a) A família tem uma noção de conjunto, uma espécie de «nacio- nalismo»


familiar, gênero «nós somos os Rodrigues», mas que não pode impedir a noção de
indivíduo. Trata-se de um conjunto integrado,

55
 

não demasiado em fusão que não permita a individualização, nem demasiado


disperso qua leve à sensação de isolamento de cada membro;

b) Cada elemento da família contacta com uma «família intrapsíquica de três ou


quatro gerações», isto é, há uma sensação de continuidade ao

longo dos tempos e uma visão transgeracional da passagem de valores familiares;

c) Existe uma barreira intergeracional, isto é, «os pais não são filhos e os
filhos não são pais», sendo necessária uma delimitação dos subsistemas;

d) Há grande liberdade e flexibilidade na escolha de papéis familiares, isto é,


o filho pode ler alto uma história enquanto o pai o escuta

atentamente brincando com cubos no chão, a mãe pode «fazer» o jantar para as
bonecas enquanto os filhos fritam os bifes, para mais tarde os

papéis tradicionais serem retomados, sendo toda esta troca feita ao serviço do
grupo familiar;

e) A distribuição do poder dentro da família também é flexível, sendo possível


exprimir as diferenças individuais e renegociar o que foi obtido a partir das
experiências vividas;

f) A família é capaz de brincar em conjunto, o pai vem do trabalho e pode dar


cambalhotas no chão, o filho senta-se seriamente a ler o jornal, todos em
conjunto gozam o vizinho ridículo;

g) A família continua a crescer, tenham existido mais ou menos acontecimentos


desagradáveis. É capaz de notar a passagem do tempo e

modificar a sua maneira de estar, viajando através de ciclos de regressão e


reintegração. Os sintomas podem surgir em épocas de crise, mas sã o uma maneira
de aumentar a experiência familiar e portanto o seu crescimento;

lí) Os problemas são resolvidos através de um diálogo franco e aberto, que


envolve a análise e síntese de mitos, regras familiares, esperanças e

realidades quotidianas;

i) A família passa por crises de identidade, nas quais a «frustração é um enzima


útil para acelerar a mudança»;

j) A família é um sistema aberto, influenciado pelo que se passa na sociedade à


sua volta e em contínua evolução.

0 objectivo da terapia familiar, segundo este modelo, consiste em


 

56
 

estabelecer o sentimento de conjunto (de pertença) de cada elemento da família e


ao mesmo tempo possibilitar a liberdade de individualização. Não se trata de
adoptar socialmente a família, mas sim aumentar a sua criatividade e
flexibilidade. A intervenção terapêutica não tem a ver com

a melhoria sintomática, mas procura o máximo crescimento da família

em todas as dimensões possíveis.

0 processo terapêutico pode ser dividido em várias fases (V¥rhitaker,


1977):

1. Fase inicial

«A terapiafamiliar é uma viagem: nós somos os guias»

Carl Whitaker

Começa com o pedido de terapia e a proposta do terapeuta de chamar para a sessão


todas as pessoas que vivem em conjunto, qualquer que seja a definição do
problema porparte da família. Whitakerexplica a quem fez o pedido de intervenção
que necessita ter o máximo de pessoas presentes para poder intervir e, se de
algum modo cede em ver parte da família na

primeira sessão, deixa claro que este não é o seu modelo preferencial de
trabalho.

A primeira entrevista inicia-se com a família presente na sua máxima

extensão, começando o terapeuta por pedir ao pai: «Diga-me como é a

família», percorrendo em seguida todos os elementos e obtendo diferentes


respostas para a mesma pergunta que dão logo uma ideia da estrutura da

família. Whitaker considera que, tal como no xadrez, a mãe-rainha deve ser
deixada para o fim por ser a peça mais importante.

Na fase prévia da terapia e nas primeiras sessões dá-se a batalha pela estrutura
(V"itaker, 1971, 198 1), na qual o terapeuta deve definir como

vai trabalhar, quem são os elementos da família necessariamente presentes,


presença de co-terapeuta, etc. 0 terapeuta é que define as regras do processo
terapêutico. Whitaker considera que muitas vezes é preferível

57
 

não prosseguir uma terapia se a estrutura conseguida não é a mais favorável para
o desenvolvimento do processo terapêutico: então mais vale mandar a família para
casa e fazê-la reflectir sobre quem está interessado em participar - isso pode
ser em si mesmo um movimento terapêutico. Também é importante fazer sentir à
família que o terapeuta está seguro do seu procedimento e é activo na condução
da sessão.

Depois de estruturada a intervenção, o terapeuta, segundo este modelo, deve


levar a família a definir claramente a sua vontade de mudar - é a batalha pela
iniciativa. Whitaker (1977) diz: «Eu quero participar, mas

não os quero passivos». 0 terapeuta não pode ser responsável pela não
participação de elementos da família, podendo dizer, por exemplo, de um

modo paradoxal: «Que sorte hoje estarem tão calados, acabou de sair uma

família que me deixou muito cansado, onde todos falaram muito». Se a família
perírianecer distante e pouco motivada, o terapeuta pode ficar em

silêncio ou trocar fantasias com o seu co-terapenta, sobre a pouca participação


dos clientes. A terapia só prossegue se a família o pretende, posição que
Whitaker vai manter ao longo de todo o processo terapêutico. Muitas vezes o
vimos, após uma sessão especialmente importante, perguntar calmamente à família:
«Querem voltar? Marcamos já outra hora ou preferem pensar e telefonar depois?».

No fim da primeira sessão o terapeuta deve ter-se relacionado com

todos os familiares presentes na sessão e procurar não ficar inquieto se a

família não pretende continuar. Na nossa experiência, algumas famílias


interromperam a terapia ao fim de quatro ou cinco sessões. Whitaker considera
que este pode ser um movimento saudável de crescimento por parte da família,
chamando a atenção para o facto de estudos defollow-up provarem que há
reorganizações importantes nos grupos familiares a partir de apenas uma sessão.

As crianças são chamadas a participar activamente nas entrevistas, quer através


do uso de metáforas acessíveis, quer através de jogos existentes na sala.
Whitaker utiliza frequentemente bolas, sticks de baseball («batacas»), puzzles,
desenhos e fotografias de jornais ou revistas. Muitas vezes vimos Carl lançar
uma bola de borracha a uma criança ou

a um pai no meio de um momento particularmente tenso da sessão. É sua

ideia que a família tem que lidar com o stress, entrando e saindo do trágico e
do lúdico constantemente.

58
 

Whitaker trabalha habitualmente com um co-terapeuta. A sua ideia é

que é mais fácil lidar com a ansiedade e a tensão que uma sessão familiar
provoca quando se está acompanhado. Por outro lado, com dois terapeutas um pode
ficar provisoriamente imerso no sistema familiar, enquanto o

outro permanece mais afastado, não se deixando englobar pela família (estas
posições devem contudo ser reversíveis). 0 conjunto dos dois terapeutas perrnite
maior criatividade, liberdade administrativa, partilha de responsabilidades,
maior grau de honestidade acerca do cansaço, raiva e sentimentos pessoais
(Whitaker, 1977), sendo também muito importante nas discussões no intervalo e na
preparação das sessões.

2. Fase média da terapia

À medida que o processo terapêutico avança, o terapeuta deve evitar ser


englobado no sistema familiar ou tomar-se tão distante que a sua

presença seja inútil. Na fase média da terapia podem ser partilhados com

a família sentimentos pessoais e experiências anteriores de outras sessões.


0 terapeuta pode aproximar-se de um elemento da família e confidenciar-lhe um
sonho, discutir um filme com o seu co-terapeuta, envolver-se numa disputa com um
jovem. Esta proximidade permite a Vnitaker

mobilizar as fantasias latentes no núcleo familiar, ao mesmo tempo que


possibilita a um ou vários membros da família uma experiência de criatividade e
de intimidade. 0 terapeuta deve ser activo em questionar o impasse fornecido
pela família, se necessário usando e amplificando a sua própria definição do
problema.

Numa das suas histórias mais célebres, Carl aceitou a definição dada por um
esquizofrênico de que era Jesus Cristo, dizendo para a família:

«O.K., aqui temos Jesus Cristo! Mas não sei quem são os outros, nem o

que estão aqui a fazer. Será que isto é o baptismo de Cristo? Quem é S. José?
Quem é a Virgem Maria? E não sei quem é a Maria Madalena».

Imediatamente a irmã do doente gritou: «Eu sou a Maria Madalena».

Então Carl pôde imediatamente trabalhar na sessão toda a gama de relações


intrafamiliares sem se ter envolvido numa discussão estéril ao «charnar à
realidade» o falso Jesus Cristo, como tantas vezes vemos fazer, sem resultado,
nos nossos hospitais psiquiátricos.

59
 

Existem técnicas específicas desta fase do processo terapêutico (Whitaker,


1977,198 1):

a) Os sintomas são definidos como esforços de crescimento - por exemplo, se a


mãe acusa o pai de infidelidade, Vv'hitaker diz: «Ambos devem ter sentido a
necessidade absoluta de fazer qualquer coisa pelo casamento, que estava a
esfriar. 0 pai deve ter sido escolhido, implicitamente, pelos dois, para
aumentar a temperatura do casal. Estão en-

tão ambos a lutar pelo crescimento da vossa relação! ». Ou se um jovem fica


muito tempo em casa, sem conviver com outros adolescentes, Whitaker poderá
dizer-lhe: «É óptimo como tu te preocupas em fazer companhia e em animar a tua
mãe, agora que o teu pai mudou de emprego e chega mais tarde a casa! ». Mesmo a
sintomatologia psicótica pode ser

redefinida: «se deixares de existir como pessoa, a tua família será salva».

Lembramo-nos de uma terapia a que assistimos, aquando do nosso

trabalho com Carl. A família era constituída por dois filhos e a mãe, tendo o
mais velho dos rapazes sintomatologia classicamente definida como esquizofrenia
catatónica. Mike ficava horas debaixo do chuveiro, ou o dia

todo na cama, ou em pé diante de uma parede. Após urna sessão de terapia


familiar, a mãe não conseguia levá-lo do hospital. Mike ficou o dia todo com
Carl, que falava com ele uns minutos no intervalo das sessões. Quando a meio da
tarde ia dar uma aula prática de psiquiatria, Carl disse: «Mike, vem cá. Percebo
porque quiseste ficar hoje comigo. Andas a

tentar encontrar novas pessoas. Entra e vem conhecer a tua nova família. Qual
destes é o teu pai?» - isto perante o espanto dos estudantes de Medicina...

b) Podemos modelar fantasias alternativas às situações reais de stress - «em vez


de se tentar suicidar de novo, porque não tenta matar-me? E se o fizer, que
método vai usar? Espeta-me uma faca nas costas

ou dá-me um tiro de frente?» - isto permite expandir sentimentos agressivos


latentes sem o receio de violências reais.

c) Transformar os receios intrapessoais emfantasías interpessoais«Se se matar,


quem chorará mais? Quem levará mais flores ao seu

enterro? Acha que o seu retrato ficará na sala? Quanto tempo depois a sua

mulher arranjará outro homem? Como se darão os seus filhos com o padrasto?» -
esta manobra permite melhorar a comunicação dentro da

60
 

família ao tornar claro que muitos sentimentos latentes não são tão destruidores
como a pessoa que os tem, sozinha, pode imaginar.

d) Aumentar o desespero de um membro da família e clarificar a revolução latente


nafamília são dois procedimentos tácticos que servem

para aumentar a tensão na sessão terapêutica, para Whitaker necessária à


mudança. «John, quando o teu pai deixar a casa e for viver com a secretária,
serás capaz de ser o homem da tua mãe, ou crês que ela terá que chamar para
junto de vocês o amigo do bridge?».

e) A família deverá ser ajudada a brincar, criando na sessão um contexto de


jogo. No jogo o processo primário e secundário estão misturados (Bateson) ou,
como diz Winnicott, o jogo é universal, é saudável e

facilita o crescimento. Também se pode brincar a partir de um sonho de um


elemento da família, fazendo-o partilhar com os outros membros e trabalhando a
sua posição na família a partir daí.

f) Deve-se procurar aumentar as relações dafamília com a comuni-

dade e com as famílias de origem, de modo a aumentar o sentimento

gregário da família.

Nesta fase média da terapia é útil conseguir uma reunião com afamília extensa,
se tal ainda não foi feito. É útil reunir na mesma sala as famílias de origem de
ambos os pais, procedimento que alarga o campo de intervenção e toma mais
criativo o processo terapêutico.

Não se pretende introduzir alterações na geração dos avós, mas apenas fazê-los
contribuir para o processo de mudança que está a ocorrer na

nova família. A entrevista decorre sem tema prévio e de uma forma não
estiruturada, procurando «uma contribuição de afecto para a terapia e não uma
cerimônia confessional» (Whitaker, 1977).

Sempre que por qualquer motivo o processo terapêutico tenha caído num impasse,
V..Ihitaker chama um colega externo ao sistema, fazendo uma sessão de consulta.
0 novo terapeuta-consultor está em condições de analisar o sistema terapeuta-
família, uma vez que não está envolvido nele e pode também confrontar-se
fortemente com a família, uma vez que não vai continuar com ela. Esta sessão
traz seguramente elementos muito importantes para o prosseguimento da terapia,
desde que o terapeuta esteja atento a toda a riqueza que pode desprender-se do
encontro.

61
 

3. Fasefinal da terapia

0 final da viagem aproxima-se. A família começa a funcionar sozinha nas sessões,


os filhos começam a ter dificuldades em estar presentes. Alguém fala do fim da
terapia. É o fim do processo de crescimento: a

família foi apoiada de início, como um bebé que aprende a andar. Lutou pela sua
individualização, cresceu: é agora um jovem adulto que pode caminhar por si só.
As intervenções terapêuticas são agora raras, o tera-

peuta começa a separar-se da família. Se o processo terapêutico foi


suficientemente rico, se cada elemento da família conseguiu uma experiência de
crescimento, se foi possível transmitir à família a importância da sua unidade e
a cada membro a sua liberdade de escolha, o fim da terapia é uma experiência
gratificante para a família e para o terapeuta.

Indicações preferenciais

Whitaker considera que a sua perspectiva simbõlico-vivencial resulta melhor com


as famílias que de certo modo se aproximam da sua visão do mundo, sendo menos
eficaz por exemplo em famílias cujos membros fizeram demasiada terapia, ou com
patologia psiquiátrica de longa evoluçã o.

As famílias mais susceptíveis de aderir a este modelo são (Whitaker,


1981):

- Famílias loucas, envolvidas num dilema multifacetado e

multipessoal;
- Famílias em crise;
- Famílias com um bode expiatório grave, por exemplo um elemento

esquizofrênico;
- Famílias com crianças pequenas.

Treino em terapiafamiliar

Whitaker considera (1960) que todo o terapeuta familiar deve ter uma experiencia
como «doente», sendo preferível trazer a sua família a uma

62
 

ou duas sessões com o terapeuta-supervisor para poder ter a dimensão da

terapia familiar do lado dos clientes. Idealmente, todo o terapeuta familiar


deveria fazer, aliás, uma terapia familiar.

No seu treino quotidiano, o candidato a terapeuta familiar pode fazer

a sua aprendizagem trabalhando em co-terapia com um colega mais diferenciado,


processo aliás frequentemente usado entre nós no âmbito do

Curso de Formação da Sociedade Portuguesa de Terapia Familiar.

Terapia estrutural de Salvador Minuchin

De origem argentina, mas há muito radicado nos Estados Unidos, Salvador Minuchin
abandonou nos anos sessenta a sua prática psicanalítica para elaborar uma
perspectiva de terapia familiar que denominou terapia estrutural. Até
recentemente Director da conhecida Child Guidance Clinic, de Filadélfia,
Minuchin é conhecido não só pela sua abordagem específica dos problemas
familiares, mas também pelos seus trabalhos de investigação em famílias com
doenças psicossomáticas.

A estrutura de uma família é definida como um conjunto invisível de necessidades


funcionais que organiza o modo como os elementos da família interagem (Minuchin,
1974). Através de transacções repetidas ao longo dos anos, estabelecem-se
padrões de interacção que se tomam

verdadeiras leis de conduta para os diversos elementos da família. 0

objectivo da terapia estrutural éjustamente o de alterar a estrutura


disfuncional da família, através da criação pelo terapeuta de um contexto que
leva a família a reorganizar-se de um modo diferente.

A família é conceptualizada por Salvador Minuchin como um sistema

aberto, em relação dinâmica com o exterior. As alterações no contexto

social da família levam não só a modificações desta, como também

determinam mudanças nos indivíduos que a constituem. 0 sintoma é

considerado o produto de uma organização estrutural disfuncional do sistema


familiar, de modo que se conseguirmos tomar essa organização mais «adequada» o
sintoma desaparecerá.

Olhando o sistema mais de perto, Minuchin considera-o subdividido em sub-


sistemas, procurados a partir de gerações, sexos, interesses ou
 

63
 

funções. Assim distingue-se por exemplo o sub-sistema parental, o sub-sistema


filial, etc. Os limites definem quem participa no sub-sistema e como o faz. Nas
famílias disfuncionais há frequentemente alterações dos limites, como por
exemplo na situação em que certos elementos da família invadem as funções que
pertencem a outros - é o caso da criança parental que assume de um modo
persistente face aos seus irmãos responsabilidades que pertencem aos pais.

0 conceito de limite perimite a Minuchin uma verdadeira tipologia familiar, ao


considerar famílias aglutinadas («enmeshed families»), com limites difusos não
permitindo a individualização dos elementos da família, como é característico
das estruturas familiares psicossomáticas, e famílias desagregadas («disengaged
families») em que os limites aparecem excessivamente marcados, não permitindo
trocas afectivas e

vivendo cada membro da família afastado do conjunto familiar. A família não


disfuncional teria limites claros, mas permeáveis, permitindo contacto entre os
elementos dos sub-sistemas, mas mantendo a individualização das funções. A
clareza e a penneabilidade dos limites numa família toma-se deste modo uma
espécie de barómetro do funcionamento familiar. Assim, o sub-sistema conjugal
«normal» manterá o contacto com os filhos, mas terá limites claros que protejam
a intimidade do casal. 0 sub-sistema filial estará organizado segundo uma certa
hierarquia, havendo funções relacionadas com o sexo e a idade dos filhos,
determinadas pela história e cultura da família. 0 limite exterior da família
nuclear será também visível, de modo a protejer a sua unidade, mas deixará
passar as

influências da comunidade circundante.

A terapia familiar estrutural é uma terapia activa, em que o terapeuta intervém


em transacções determinadas, características da estrutura familiar. Pretende-se
que o sistema possa tomar contacto com as mudanças estruturais iniciadas na
sessão terapêutica, desencadeadas a partir de operações que o terapeuta executa,
de modo a tomar claras as alterações funcionais relacionadas com o problema que
leva a família à terapia. As operações têm que trazer consigo suficiente
investimento das pessoas do sistema ou tomarem-se tão investidas através de uma
manobra técnica que uma alteração na estrutura das transacções da operação
reverberará profundamente na estrutura de suporte do problema (Minuchin, 198 1).

64
 

0 contexto terapêutico é assim explorativo, de experimentação e

aprendizagem através da acção.

Segundo a sua formulação mais recente, podemos esquematizar as

fases de uma terapia estrutural do seguinte modo:

1. Fase do contacto inicial com a família

De todos os terapeutas familiares conhecidos é talvez Salvador Minuchin aquele


que mais tem desenvolvido o modo como o terapeuta deve entrar em contacto com a
família. Esta fase é muito importante, porque a maioria das vezes os elementos
da família desconhecem o modo como vai decorrer a sessão e estão numa posição de
certa desconfiança. Em Portugal, onde a terapia familiar se encontra em fase de
desenvolvimento, muitas famílias acorrem à terapia com uma informação muito
reduzida da técnica de intervenção. 0 terapeuta deve assim respeitar as
características específicas da família, não sendo de início muito intrusivo,
forçando o grupo familiar a acções que estão fora do seu

quotidiano. Esta fase de terapia tem características sociais, em que o terapeuta


recebe a família em sua «casa» e a vai mostrando, esclarecendo os convidados
sobre o espaço onde vão decorrer os próximos encontros e respeitando aquilo que
eles desejam ou não fazer.

Existem três técnicas especificas para esta fase da terapia estrutural:

1. 1. 0 terapeuta deve seguir apistafornecidapelafamília. Devem ser

adoptados símbolos da vida familiar através dos quais se comunica com

a família. 0 terapeuta não deve perder, contudo, o seu poder nesta fase; é
importante não perder o controlo da sessão.

Exemplo: A família Esteves faz o seu pedido de terapia familiar por graves
dificuldades de comunicação, desencadeadas a partir da toxicomania com heroína
do filho Ricardo, de 19 anos. Na primeira sessão compareceram o pai, a mãe e
Ricardo. No contacto inicial com os terapeutas os elementos da família
permaneceram muito isolados, nem

sequer se entreolhando e respondendo às perguntas dos técnicos com

monossilabos. As informações sobre o espaço e modo de funcionamento das sessões


são recebidas com grande frieza. 0 contexto é claramente

65
 

acusatório para Ricardo, que é apresentado como «grave drogado». Não parecia de
início possível entrar em contacto com a família, muito tensa e crítica, nem
compreender minimamente a sua estrutura. Então um dos terapeutas, colhendo a
informação de que o Pai ocupava funções directivas num grande clube desportivo
do Porto do qual também era sócio, iniciou uma conversa informal sobre desporto.
Imediatamente toda a família se envolveu na discussão, protestando a mãe sobre a
importância que o

futebol tinha na família, dizendo o pai como o desporto tinha sido a sua

salvação, enquanto Ricardo defendia a natação em contraponto com o

futebol. Um dos terapeutas, não versado em questões desportivas, pôde


imediatamente fazer uma aliança táctica com a mãe enquanto o outro terapeuta
explorava as relações intrafamiliares. A partir daqui foi possível prosseguir a
sessão, com a família numa posição completamente diferente face aos terapeutas:
a desconfiança inicial estava pelo menos

provisoriamente ultrapassada, sendo possível a partir daqui explorar situações


mais complexas com uma ideia aproximada da posição de cada elemento no grupo
familiar.

1.2. Acomodação - o terapeuta reúne-se à família relacionando-se de acordo com


padrões de transacção desta, aceitando de um modo geral os

canais de comunicação apresentados.

1.3. Mimetismo - como consequência do ponto anterior, o tera-

peuta deve tomar-se semelhante à família na fase inicial da terapia, fazendo


comunicações que a não hostilizem. Esta técnica contudo não pode ser levada ao
exagero, como no caso da família Roxo, em que o

técnico, levado pelo seu afã de não agredir a família, fez várias referências
elogiosas ao seu modo de comunicação. Imediatamente estes conteú dos foram
sentidos como artificiais, tendo o pai comentado: «0 Sr. Dr. acha que foi para
ouvirmos que somos bons que nós cá viemos?».

É bom não esquecer que o técnico foi solicitado para mudar qualquer coisa,
embora esse pedido muitas vezes tenha sido feito de um modo não evidente.

66
 

2. Fase do desafio ao sintoma

Neste período o terapeuta procura uma redefinição do problema, enquadrando-o


numa perspectiva diferente. Muitas vezes a família apresenta-se com um único
problema - o comportamento sintomático de um dos seus membros. A primeira tarefa
do terapeuta nesta fase é a de

mostrar aos seus clientes uma nova visão das questões, que passa pelo
envolvimento e responsabilidade de todos. Segundo o quadro conceptual da terapia
estrutural, o terapeuta deverá ser aqui activo e questionar claramente a
realidade apresentada. Esse desafio poderá ser feito atravé s dos seguintes
procedimentos:

2. 1. Focagem - tal como quando se utiliza uma máquina fotográfica se escolhe um


aspecto da paisagem, focando a nossa objectiva num

determinado ponto, assim o terapeuta deverá escolher, de entre as questões que


lhe são apresentadas, aquelas que irá salientar em primeiro lugar.

2.2. Aumento da intensidade - é provável que a família não aceite totalmente o


foco escolhido, continuando a apresentar problemas, ou

metendo-se por atalhos sucessivos. Uma das dificuldades com que os terapeutas se
defrontam é muitas vezes a de excesso de informação: a

família lança tantas pistas que o técnico não sabe qual seguir. É necessário
então que o terapeuta aumente a intensidade das suas intervenções, repetindo as
suas mensagens se necessário for e não deixando perder a sua

linha de acção.

2.3. Demonstração - Minuchin fala neste ponto de uma dança em três tempos: o
terapeuta observa a dança, depois faz dançar e por último sugere novas danças.
Esta demonstração (enactement) perante o terapeuta é, aliás, um procedimento
básico da terapia estrutural. Se a família através de um dos seus elementos faz
um relato de uma discussão havida em casa entre o pai e a mãe, imediatamente
Minuchin a faz executar perante si, recriando a situação no contexto da sessão
terapêutica.

67
 

3. Fase de desafio à estrutura

0 objectivo desta fase é desafiar a definição familiar de papéis e funções.

3. 1. Criação de limites - o terapeuta tenta delinear limites entre três ou mais


pessoas, tomando claras alianças e coligações( *). Por outro lado procura que os
elementos da família encontrem a solução para os seus

problemas dentro do próprio sub-sistema. Também podem ser criados limites na


própria sessão através de um re-arranjo espacial, por exemplo juntando os pais
no lado direito da sala e os filhos no lado esquerdo, se

o terapeuta quer deixar claro à família a necessidade de separação dos sub-


sistemas, como é fundamental por exemplo em casos de famílias em que um dos
filhos está coligado com um dos pais contra os restantes elementos.

3.2. Desequilíbrio do sistema - aqui procura-se mudar a relação hierárquica dos


membros de um sub~sistema, através de manobras tácticas como a de ignorar um
membro da família ou entrar em coligação contra certos membros.

4. Fase de desafio à realidade familiar

Nesta fase o terapeuta selecciona da própria cultura familiar as

metáforas que simbolizam a sua realidade estreita, usando-as como direcção de


mudança.

Exemplo: Se os pais estiverem muito tempo definindo-se como os

responsáveis face ao que se passa em casa, o terapeuta aproveita esta definição


para mais tarde dizer, a propósito da autonomia de um filho: «Uma vez que são
pais responsáveis, certamente darão ao vosso filho a possibilidade de crescer».

(1) Distingue-se coligação de aliança, porque no primeiro caso duas pessoas


estão

unidas contra uma terceira.

68
 

Aqui há sempre que estar atento às verdades enunciadas pela família, os seus
mitos e crenças, de modo a poder aplicá-los em situações de impasse, não podendo
a família rejeitar as frases do terapeuta, visto estas pertencerem à própria
cultura familiar.

S. Fase de reestruturação

Nesta última fase procura-se numa recomposição do sistema uma

modificação estrutural, objectivo último da terapia.

0 terapeuta deve possibilitar a construção pela família de um novo

padrão estrutural, ajudando a acentuar diferenças, desenvolvendo e

procurando que a família solucione conflitos implícitos e bloqueando padrões


transaccionais patológicos.

A modificação estrutural é obtida por fases, não sendo exclusiva deste momento.
Podemos dizer que a terapia estrutural decorre essencialmente segundo três
momentos: o terapeuta entra em contacto com o sistema familiar; avalia a
estrutura familiar subjacente e cria as condições para que a família proceda à
transformação dessa estrutura.

Perspectivas estratégicas

Jay Haley usou pela primeira vez o termo «estratégico» para descrever qualquer
forma de terapia em que o terapeuta, de um modo activo, elabora intervenções
dirigidas à resolução do problema. 0 termo está hoje em dia

relacionado com a óptica de intervenção usada em terapia individual e

familiar, tomada muito conhecida a partir da chamada escola de Palo Alto,


nomeadamente a partir do livro de Watzlawick et al. Change.principles
ofproblemfÓrmation andproblem resolution (1974).

Ao contrário da escola estrutural de Salvador Minuchin, que parte de uma noção


abstracta de estrutura familiar e trabalha no sentido, primeiro de a conhecer,
depois de a alterar, os estratégicos começam a partir de um problema muito
específico (em regra relacionado com o pedido da família). Não é contudo apenas
o sintoma que interessa a estes terapeutas, como por vezes erradamente se quer
fazer pensar. Este grupo defende

69
 

que hápadrões transaccionais específicos que mantêm acadeia sintomática, sendo


muitas vezes o problema mantido pela própria «soluÇão» utilizada; isto é, assim
como há comportamentos que tendem a fazer cessar o problema, também existem
comportamentos que o mantêm. 0 terapeuta estratégico procura detectar a cadeia
de interacções que perpetua o

comportamento sintomático.

0 estratégico dá grande importância à redefinição, que Watzlawick (1974) diz ser


uma «arte subtil». Pela redefinição o terapeuta reenquadra a situação de modo a
ela poder ser percebida de outro modo. 0 terapeuta pode terminar a sessão
prescrevendo uma mudança no comportamento, às vezes através de uma directriz
precisa, muitas vezes paradoxal. Se através desta manobra os clientes anunciam
que o seu problema está resolvido, o terapeuta estratégico considera que a parte
principal do seu

objectivo está cumprida, visto que a sua intervenção é por definição breve e
dirigida à «resolução de um problerna».

0 terapeuta estratégico apenas olhou para o contexto do problema o

tempo necessário para o resolver, não se tendo interessado, por exemplo, numa
terapia de casal, na história familiar do marido e da mulher, relações com os
filhos, infância de cada um. Esta perspectiva é muito pragmática, chamando a
atenção para o tempo que muitas vezes se perde recolhendo informação de carácter
histórico que depois não é utilizada na terapia. Também nos advertem sobre as
psicoterapias de longa evolução, nas

quais os clientes conhecem muito acerca de si próprios, mas na prática não


mudam. Parece aos estratégicos mais correcto definir com os seus

clientes, muito objectivamente, aquilo que eles querem resolver, estabelecer um


contrato breve e trabalhar activamente na resolução dos problemas definidos.
Mais: não é necessário modificar todos os comportamentos do ciclo que mantém o
comportamento sintomático, mas apenas uma ansa dessa cadeia, ou o elo de uma
outra cadeia estreitamente associada, que por reverberação levará à rotura da
primeira.

0 objectivo da escola estratégica não é modificar a estrutura da família, não


sendo pois fundamental ter todos os elementos presentes na sessão. Hoffinan (198
1) diz que «a chave da mudança para os estratégicos é a arte corno redefinem a
percepção que o cliente tem do contexto do seu

comportamento ( ... ) o ponto desejado é mudar a «realidade» do cliente de


modo que comportamentos diferentes se tomem possíveis. 0 seu objectivo

70
 

não é, pois, tão amplo como noutros modelos de intervenção, de modo que decerto
muitas vezes conseguem atingi-lo».

Jay Haley (1978, 1979), inicialmente ligado ao grupo de Bateson, é hoje em dia
um dos autores mais conhecidos trabalhando numa perspectiva estratégica. Também
considera que se devem identificar sequências de comportamento que envolvem um
problema, mas preocupa-se sobretudo

com a hierarquia e a organização da família. 0 seu ponto de vista é que a


mudança deve ser conseguida passo a passo, partindo do modelo inicial de
desorganização da família para uma organização cada vez mais clarificada.

No caso de um adolescente com comportamento psicõtico e fuga de casa, Haley


reforçaria o papel dos pais, colocando-os directamente no

controlo da situação. A sua ideia é que enquanto não for clarificada a

organização habitual da família (pais tomando conta do que se passa em casa) não
é possível haver qualquer resolução do problema.

Também Andolfi e colaboradores (198 1) se colocaram inicialmente numa


perspectiva estrutural/estratégica, a partir do seu trabalho com famí lias de
transacção esquizofrénica. A terapia decorre por etapas, tendo em atenção a
tendência homeostática da família e a sua capacidade de transformação. Andolfi
considera (198 1) que um sistema familiar é tanto mais rígido quanto mais
resulta incapaz de encontrar novo equilíbrio aquando da variação do seu ciclo
vital. Quando o terapeuta tenta intervir num sistema rígido tem que ter presente
que a sua entrada é considerada

ameaçadora para a homeostasia do sistema, pelo que o sistema retroage de modo a


reforçar a sua estabilidade. 0 terapeuta pode então favorecer a mudança usando
«a sua própria capacidade de transformação, camu-

flando-a de tendência homeostática e apoiando assim a homeostasia do

sistema familiar até ao ponto de prescrevê-la e de sugerir o seu reforço».

A escola de Andolfi tomou-se inicialmente conhecida pelo uso da provocação do


paciente identificado como porta de entrada no sistema familiar: «aquele que por
definição é incapaz de mostrar activamente um

comportamento adequado e autónomo, vê-se directamente confrontado com o


terapeuta num desafio aberto, baseado na negação estratégica do seu
comportamento anorrnal ( ... ) se o comportamento é redefinido como lógico e
voluntário e a função de controlador oficial da família é valorizada, porque
indispensável e insubstituível, o sistema vê-se privado do

71
 

próprio alibi para continuar um jogo relacional que necessita de um

bode expiatório para evitar o confronto. Tal provocação impede por um

lado o paciente de exercer poder e desempenhar o papel de sentinela oficial do


sistema, por outro revaloriza-o como pessoa capaz de autodeterminar-se.
Éjustamente a contemporaneidade do ataque a nível das funções e do apoio ao
nível do individuo que permite ao paciente aceitar a provocação do terapeuta,
considerada um impulso para se

relacionar de um modo mais autêntico no seio da família» (Andolfi,


198 1). No Capítulo V será detalhada a estratégia deste grupo para obter a
mudança na família.

Se bem que este acesso às famílias rígidas se caracterize por grande clareza e
didactismo, os conceitos de homeostasia e transformação utilizados pelo grupo de
Andolfi têm recebido recentemente críticas. 0 próprio Andolfi se tem afastado
nos últimos anos deste modelo estrutural/ /estratégico, para caminhar para uma
perspectiva mais existencial, com

mais atenção às famílias de origem e muito maior utilização das fantasias, mitos
e crenças familiares. Neste momento, o seu trabalho, influenciado por Whitaker,
tem muito mais elementos transgeracionais que estratégicos. Andolfi ilustra bem
como é possível retirar de cada escola de intervenção elementos válidos para a
construção de um modelo e de um estilo próprio. Nada pior do que decalcarmos
modos de intervir que nada têm a ver com a nossa maneira de actuar e com a nossa
personalidade: Andolfi soube enquadrar os seus mestres Minuchin, Haley e
Whitaker com as suas características pessoais de vivacidade e vigor para
construir um modo de intervir extremamente flexível. Maurizio Andolfi foi
extremamente importante na história do movimento da terapia familiar em Portugal
e vários elementos do nosso grupo trabalharam directamente sob a sua orientação
- a nossa história estará sempre ligada ao seu apoio e estímulo.

Perspectiva de Palo Alto

Esta abordagem nasceu em Palo Alto, Califórnia, a partir de 1950, e

tem hoje o seu desenvolvimento no Mental Research Institute (M.R.I.), no mesmo


local.

72
 

Os anos cinquenta corresponderam, como já foi dito atrás, a uma época em que
surgiram novas hipóteses explicativas da esquizofrenia. De entre os autores que
se debruçaram sobre esta psicose destacaram-se Wynne, Lidz e Gregory Bateson
que, em 1952, juntamente com Jay Haley e John Weakland, desenvolveu o projecto
de estudo da esquizofrenia, donde saiu a teoria do double-bind2).

A equipa inicial do M.R.I. era constituída por Don Jackson, Jules Riskin e
Virginia Satir, a quem mais tarde se juntaram Jay Haley, John Weakland e Paul
Watzlawick. A orientação desta equipa pretende ser uma nova fortria de
conceptualização dos problemas humanos e

secundariamente uma perspectiva terapêutica diferente, assente numa

nova epistemologia, baseada em princípios de cibernética e da teoria geral dos


sistemas. 0 seu ponto de partida foi o abandono dos pnncipios da psicanálise,
sendo a unidade de análise a acção entre os indivíduos -

donde o termo interacção e interaccional. É básica para esta perspectiva a ideia


de que os problemas psiquiátricos resultam do comportamento entre as pessoas, no
contexto de uma organização particular como a

família. A terapia tem assim que ser centrada a partir de fenómenos observáveis
na sessão.

Bateson (1951) foi o primeiro a utilizar um modelo cibernético para descrever o


conceito da homeostasia familiar. No seu livro, já hoje

(2) A teoria do double-bind foi inicialmente postulada como mecanismo causal

da esquizofrenia, tendo-se mais tarde verificado, contudo, que se trata de uma

situação patogénea universal. Na sua formulação original, o double-bind


comporta:
1 - Duas pessoas numa relação vital;
2 - Uma mensagem é emitida:
- que afirma qualquer coisa;
- que afirma qualquer coisa sobre a sua própria afirmação; - estas duas

afirmações excluem-se. Deste modo, se é uma injunção paradoxal, é preciso


desobedecer-lhe para lhe obedecer: «Sê espontâneo»; «Tu deves amar-me».
3 - 0 receptor da mensagem não pode sair do quadro fixado pela mensagem, quer
através de uma metacomunicação (crítica) quer através de uma resposta.

73
 

clássico, Pragmatics of Human Communication( *), Watzlawick et al (1967)


conceptualizam os padrões de interacção através de cinco axiomas da comunicação:

- É impossível não comunicar, isto é, todo o comportamento é comunicação e


portanto não existe um não-comportamento e uma não-comunicaçã o. Actividade ou
inactividade, palavras ou silêncio, gestos ou gritos, todos constituem mensagens
e influenciam outras pessoas, que respondem de qualquer modo a estas
solicitações;

- Toda a comunicação implica e define uma relação, quer dizer, a

comunicação não só fornece informação mas determina comportamentos;

- A natureza da relação está relacionada com a pontuação, conceito devido a


Bateson e que nos diz que quando duas pessoas comu-

nicam impõem certo tipo de ordem e sequência causal à comunicação.


0 exemplo clássico é o do marido que diz: a minha mulher implica comigo, por
isso afasto-me de casa e desato a beber, enquanto a mulher

relata: ele está sempre a beber, chega a casa embriagado e sujo e eu afasto-

-me e implico. Uma tarefa essencial do terapeuta serájustamente facilitar uma


mudança na pontuação;

- Os seres humanos comunicam verbalmente (digitalmente) e não

verbalmente (de um modo analógico). Porcomunicação analógica entende-se, pois,


todas as formas não verbais de comunicação (gestos, inflexõ es de voz, riso,
lágrimas, etc.), que nos fornecem indicações sobre a relação. A comunicação
digital serve para comunicar a um nível conceptual, mas

não dá muita informação acerca da relação das pessoas envolvidas na

comunicação. A comunicação verbal e não verbal podem não ser con-

gruentes, o que também é importante sob o ponto de vista terapêutico;

- A comunicação inforima-nos por último sobre o tipo de relação existente entre


duas pessoas: relação simétrica, se baseada na igualdade e minimização da
diferença, e relação complementar, à volta de uma

maximização da diferença; na relação complementar uma pessoa ocupa a posição


alta e outra a baixa, mas estes comportamentos dissemelhantes

(3) A pragmática da comunicação estuda os efeitos comportamentais da

comunicação.
 

74
 

equilibram-se reciprocamente. A rivalidade simétrica pode exprimir-se assim:


«tudo o que possas fazer, eu farei melhor».

Estes termos são descritivos, não implicam um juízo de valor, pois uma relação
simétrica pode tomar-se disfuncional se se verifica

uma escalada, e uma relação complementar toma-se patológica se se rigidifica.

Processo terapêutico

Segundo este modelo de intervenção o diagnóstico familiar define o problema como


uma sequência de actos entre pessoas vivendo no seio

de uma família e influenciando-a. Desta sequência repetitiva de comportamentos


resultam regras que os determinam, desenvolvidas durante um longo período de
tempo. Estas regras tomar-se-ão o centro da

elaboração diagnóstica e ulteriormente da acção terapêutica. Watzlawick (1967)


considera que a quebra do funcionamento familiar ocorre quando as regras se
tornam ambíguas.

0 objectivo da terapia é, assim, a clarificação das regras familiares, começando


por observar o que se passa no sistema em interacção, como

este continua a funcionar e como é possível introduzir mudança. Depois da sua


observação inicial, a função principal do terapeuta é provocar mudança na
sequência interactiva que precipita e mantém o sintoma (Jones, 1980).

Na Pragmática da Comunicação Humana, Watzlawick et al (1967) consideram que o


terapeuta é um outsider capaz de levar o sistema a fazer aquilo que este sozinho
não consegue, justamente uma mudança nas suas

regras. Para ser terapêutica, a comunicação terá que transcender as regras de


comunicação existentes: um double-bind sintomático só pode ser

vencido com um «double-bind terapêutico», descrito do seguinte modo:

- Existe uma relação psicoterapêutica intensa;


- Neste contexto, uma injunção é dada de um modo que: a) reforce o comportamento
que o paciente esperava ver alterado; h) implique que este reforço é o veículo
de mudança; c) crie um paradoxo (contradição que vem no fim de uma dedução

75
 

correcta a partir de premissas correctas), onde a escolha não é possível, visto


que se diz ao doente para mudar perrnanecendo na mesma;

- A situação terapêutica evita que o paciente se retire, e a injunção tem um


valor pragmático: o doente não pode não reagir, mas também não pode reagir da
sua maneira habitual, sintomática.

A abordagem terapêutica, segundo este modelo, é dirigida para o aqui e agora da


sessão, procurando despistar as cadeias de interacção que perpetuam o
comportamento sintomático. Não interessa fazer grandes pesquisas sobre a
história da família, porque se entende que uma vez

tomada clara uma sequência interactiva, poderemos pontuã-la de maneira


diferente, levando a uma mudança de segundo grau, que se traduz por uma
modificação da lei de composição interna que governa o sistema na sua
totalidade. Trata-se, como foi explicitado anteriormente, de uma mudança a um
nível mais elevado, visando as meta-regras (regras das regras) e capaz de gerar
uma mudança de facto duradoura.

A ênfase terapêutica é colocada na situação imediata, visando uma mudança no


comportamento, atingida não através do insight mas pela alteração dos
pressupostos quotidianos e regras de funcionamento com que a família opere.

A Escola de Milão de Selvini Palazzoli e colaboradores

1. A chamada Escola de Milão iniciou as suas actividades de investigação a


partir de 1968, ano em que Mara Selvini Palazzoli, até então psicanalista
infantil, fundou o Centro per lo Studio della Famiglia, juntamente com os seus
colegas Giuliana Prata, Gianfranco Cecchin e

Luigi Boscolo.

Selvini tinha mostrado especial interesse pelo estudo da anorexia mental, tendo
notado, a partir do seu contacto com as famílias com um elemento anoréxico, a
necessidade de mudar o seu modelo analítico de intervenção para uma
epistemologia cibernética, a partir dos trabalhos de Gregory Bateson.

Embora fortemente influenciado pelo grupo de Palo Alto, o grupo de Milão cedo
ganhou autonomia, e a sua escola constitui hoje um corpo de doutrina de grande
importância para o desenvolvimento futuro da terapia

76
 

familiar, tanto na Europa como nos Estados Unidos. 0 seu modo de trabalhar
traduz grande rigor epistemológico e para alguns autores é dos poucos que merece
correctamente a designação de «sistémico».

Se bem que se afaste do nosso modo habitual de trabalhar, descreveremos


brevemente este modelo, dada a sua importância actual, quer na prá tica
terapêutica quer no ensino e investigação.

2. 0 grupo de Bateson já anteriormente tinha discutido que tipo de resposta


terapêutica deveria ser dado ao double-bind enunciado pelas famílias em terapia.
As famílias solicitavam ajuda terapêutica dizendo: «Aqui está o nosso filho
doente. Ajudem-nos a libertar-nos deste peso terrível»; mas esta mensagem é
acompanhada de outra: «Tratem do nosso

filho, mas deixem-nos estar como estamos».

0 grupo de Milão desenvolveu a ideia do double-bind terapêutico, chamando-lhe


contraparadoxo. Selvini et al. (1978) diz-nos: «No que diz respeito aos
paradoxos a nossa investigação tem mostrado como a família

de transacção esquizofrênica mantém o seu jogo através de uma rede

intrincada de paradoxos que só pode ser desfeita por contraparadoxos no

contexto da terapia».

Para o grupo de Milão toma-se absolutamente necessário abandonar a causalidade


linear, qualquer que ela seja: por exemplo, é igualmente «linear» considerar
que um elemento da família está perturbado devido ao mau funcionamento da díada
conjugal, como diz Hoffinan (198 1): «0 grupo de Milão deixa claro que uma
perspectiva sistémica envolve o

abandono destas noções, e devendo o terapeuta chegar à conclusão que aquilo que
deve atacar não é nenhum membro da família ou sequer a família disfuncional, mas
aquilo a que chamam o jogofamiliar ( ... ) anão ser que todos concordem sobre
as regras do jogo familiar, não há quem o ganhe, nem ele acaba; num ciclo
eterno, o jogo acerca do jogo, o meta~

jogo, continua sem cessar».

Embora o grupo de Palo Alto e outros autores tivessem anteriormente redefinido o


comportamento patológico, reenquadrando-o numa

perspectiva mais ampla e chamando a atenção para a sua importância no

equilíbrio do sistema, é com a conotação positiva de Selvini que este


procedimento se toma verdadeiramente correcto sob o ponto de vista
epistemológico e uma arma de grande eficácia terapêutica. 0 que se
 

77
 

pretende é a prescrição do sintoma ao paciente identificado, na linha

de uma intervenção terapêutica paradoxal. Mas a intervenção não pode centrar-se


apenas no paciente, visto que tal seria fazer uma intervençã o linear- há que
salientar os aspectos positivos de todos os comportamentos familiares em relação
com o comportamento sintomático. Como escreve

Selvini (1978): «Foi-se tomando claro que o acesso ao modelo sistémico

só era possível se fosse feita uma conotação positiva, tanto do sintoma do


paciente designado como dos comportamentos sintomáticos dos outros elementos da
família, dizendo por exemplo que os comportamentos observáveis do grupo pareciam
inspirados pelo objectivo comum de

preservar a coesão do grupo familiar». Não é assim possível, como nota

Hoffinan (198 1), «separar a conotação positiva da prescrição paradoxal à qual


se liga. A redefinição positiva do sintoma ligado aos outros

comportamentos dos familiares é o ceme da prescrição paradoxal». 0 grupo de


Milão prescreve assim não só o comportamento sintomático, mas também os
comportamentos e configurações relacionais mais vastos ligados ao problema em
causa.

A prescrição feita no fim da sessão, ligada como dissemos a uma

conotação positiva dos comportamentos, tem a função de provocar na

família uma retroacção importante para o trabalho futuro, ao mesmo tempo que
limita o campo de observação e estrutura a próxima sessão. A prescrição pode
envolver a indicação de que a família execute um ritual, no intuito de destruir
mitos familiares resistentes ao longo do tempo e que bloqueiam a família na sua
evolução.

3. Processo Terapêutico

No início do seu trabalho, o grupo de Milão entrevistava as famílias

com dois terapeutas de sexo diferente, enquanto os outros dois elementos

do grupo observavam através do espelho unidireccional. Mas, recen-

temente, Cecchin e Boscolo têm trabalhado sobretudo fora de Itália, pelo que as
sessões são conduzidas apenas por um terapeuta com um a três terapeutas atrás do
espelho.

Os observadores e os entrevistadores trocam impressões algumas vezes durante as


sessões e sempre antes do fim, altura em que se dá uma
 

78
 

discussão da situação terapêutica por toda a equipa. Os terapeutas entram de


novo na sala para terminar a sessão, habitualmente sob a forrna de uma
prescrição, comentário ou ritual, muitas vezes sob a forma escrita. Se um membro
importante da família faltou à sessão, os terapeutas encarregam-se de lhe enviar
uma cópia.

0 tratamento dura cerca de dez sessões, intervaladas de um mês. 0 grupo entende


que este intervalo é necessário para que a família possa elaborar o que se
passou na sessão e organizar o seu processo de mudança.

No seu trabalho «Hipótese, circularidade, neutralidade», Selvini et al. (1980)


descrevem com pormenor as directrizes que o terapeuta deve seguir para conduzir
a sessão.

A equipa deve partir para a sessão com uma hipótese, elaborada a partir dos
dados fornecidos pela família quando solicita a intervenção.

Sabemos, de facto, sempre qualquer coisa sobre a família que vamos

entrevistar, mesmo que seja só o nome, idade e profissão dos elementos da


família e natureza do problema. É a partir destas informações que o

terapeuta elabora a sua hipótese, que o vai orientar na condução da sessão. A


hipótese é um ponto de partida para uma investigação, não interessando saber se
é verdadeira ou falsa - os dados obtidos se encarregarão de a

confirmar ou levarão à necessidade da sua reformulação.

A hipótese tem que ser circular e relacional, ligando todos os elementos

da família de um modo sistémico. Como diz Hoffinan (1981), «não podemos dizer
que o sintoma é devido à reacção da família, mas ver que todos os comportamentos
vão rodando num arranjo específico. Temos que encontrar um processo em que as
actividades se liguem umas às outras ritmicamente como o inspirar e o expirar,
ou a sístole e diástole

do coração».

A prescrição final nunca coincide com a hipótese inicial, sendo antes uma
explicação dos comportamentos, tomando-os significativos para o conjunto da
família, um ritual familiar ou qualquer comentário que reforce a coesão do grupo
familiar.

Outra noção importante é a da neutralidade do terapeuta - «0 terapeuta só pode


ser eficaz se é capaz de obter e manter um diferente nível (metanível) em
relação à família» (Selvini, 1980). 0 técnico deve assim evitar alianças, não
fazerjuízos morais e escapar a todas as armadilhas lançadas pela família,
procurando manter-se impassível e destacado durante as
 

79
 

sessões. A neutralidade relaciona-se assim com o seu efeito pragmático


específico nas sessões.

Selvini desenvolveu também um método de recolher a informação hoje em dia


seguido p@Dr todos os terapeutas familiares que trabalham próximo deste modelo.
As informações devem ser solicitadas à família não de uma forma anárquica, mas
segundo os princípios seguintes:

1 - Pergunta- se a C o que pensa da relação entre A e B (não se solicita a


inforrnação directamente nem a A nem a B), o que perrnite uma metacomunicação;

2-Solicita-se inforfnaçãoemten-nosde comportamentos interactivos específicos: «0


que faz o Pai quando a Mãe ralha com o Rui?»;

3 - Em termos de diferença de comportamento: «Quem fala mais, o

teu Pai ou a Tua Mãe?» (para o Rui);

4 - Em tenrios de escala, de classificação dos diferentes elementos da família


face a um comportamento específico ou a uma interacção específica: «Quem é o
mais gastador, o Pai, a Mãe, tu ou o teu irmão? Faz uma ordem de 1 até 4»;

5 - Em termos de mudança na relação antes ou depois de um

acontecimento preciso: «Rui, a tua Mãe e o teu irmão mais velho, desde que o teu
Pai adoeceu, batem-te mais ou menos?»;

6 - Em termos de diferença no que diz respeito a circunstâncias hipotéticas: «Se


o Pai e a Mãe dessem um jantar, quem convidariam em

primeiro lugar? Quem se sentaria à direita do Pai e à direita da Mãe?».

4. A influência da Escola de Milão vai certamente continuar, já que se

trata de um grupo muito vocacionado para a investigação clínica. Se bem que


faltem estudos de revisão catamnéstica dos casos apresentados, não poderemos
deixar de ser sensíveis à elegância e criatividade das intervenções e ao seu
efeito nas famílias de transacção esquizofrénica.

80
 

MUDANÇA EM TERAPIA FAMILIAR

por Maria Isabel Fazenda

0 problema da mudança através da terapia familiar tem que ser visto nas suas
duas vertentes de persistência e mudança, ou de homeostasia e transformação.

Em todas as situações humanas estas duas qualidades são inseparáveis e não


opostas, como nos poderia levar a pensar uma perspectiva linear. Nascemos
através duma grande mudança: do saco uterino para o espaço exterior; mas sem a
permanência duma relação materna essa criança não vai crescer. Poroutro lado, se
esta relação materna, se mantém inalterável, se não acompanha o ciclo de vida da
criança em direcção à maturação, essa criança não vai ser adulto. Novas mudanças
serão necessárias constantemente.

Nas situações problemáticas das pessoas que recorrem a uma terapia parece que o
desejo comum a terapeutas e familiares será o da mudança: se existe uma situação
incómoda, um sintoma muitas vezes grave, um

sofrimento intenso, é necessário mudar. No entanto, o que se verifica é que os


esforços empreendidos pelas famílias e muitas vezes pelos terapeutas no sentido
da mudança levam a insucessos repetidos ou a bons resultados iniciais seguidos
de um retrocesso. Parece então que estão presentes nos grupos e nas famílias
factores que resistem à mudança e

para os quais temos que olhar, ao mesmo tempo que existem potencialidades de
transformação que às vezes ignoramos.

Os sintomas, desajustamentos, disfunções, serão uma configuração

81
 

da homeostasia familiar ou, pelo contrário, um apelo à mudança? Depende da forma


como qualificarmos a realidade que a família traz escolhermos aquela vertente
que for mais útil em cada situação.

Tanto no ciclo natural da vida familiar como nas situações de crise, mudança e
permanência fazem parte dum continutim no qual estão em

constante interacção. A opção pela permanência ou a emergência da criação é


muitas vezes imprevisível na natureza e na vida social - mas

podemos criar as condições para uma e outra e assim ajudar as famílias a


escolher o seu futuro.

Vamos ver como os vários autores da terapia familiar se ocupam deste assunto. Se
alguns estão mais preocupados com a forma de lidar com a homeostasia e outros
com a maneira de introduzir a mudança, outros ultrapassaram esta dicotomia,
permanecendo abertos ao amanhã imprevisível das famílias que os procuram. .
Definiremos os objectivos pretendidos com a terapia, para cada autor, assim como
as técnicas utilizadas, agrupando-os em três perspectivas globais: perspectiva
estratégica, perspectiva estrutural, perspectiva transgeracional. Finalmente,
debruçar-nos~ernos sobre a abordagem do grupo de Maurizio Andolfi do Instituto
di Terapia Familiare de Roma, porque nos parece uma fórmulação criativa, embora
claramente tenha recebido influências de outras escolas.

Perspectiva estratégica de Jay Haley

Para Jay Haley (1979) a finalidade da terapia é a resolução dos dilemas dos
seres humanos: «A nossa abordagem terapêutica tem como centro a

resolução dos problemas apresentados pelo cliente no contexto da sua

família. 0 mais importante não é a metodologia em si, mas a necessidade de


abordar cada problema com uma técnica precisa que responda às particularidades
de cada situação considerada como única e singular. A tarefa do terapeuta é
formular claramente o sintoma apresentado e

conceber uma intervenção no contexto social do cliente de maneira a mudar o


sintoma».

Portanto, o objectivo terapêutico é a mudança de algo definido e

delimitado, um problema, um sintoma ou uma situação, e neste sentido

82
 

opõe-se às terapias que se dirigem ao crescimento dos indivíduos ou das


famílias.

No entanto, paramudarum problemaé preciso mudaro contexto onde ele se insere.


Haley sublinha que a sua visão difere de outras terapias também «centradas sobre
o problema» porque dá grande importância ao

contexto social dos problemas humanos, que pode incluir, além da família, a
escola, as instituições, os grupos sociais, os próprios terapeutas. Não é apenas
numa perspectiva de diagnóstico que Haley acentua a

necessidade de compreensão do contexto, mas também no momento da intervenção.

Esta visão coloca um problema aos terapeutas: até onde vai a inter-

venção junto duma família, se deve abranger o contexto mais lato que a

envolve? Não tende a transformar-se em acção social ou mesmo em

acção política? Haley diz (1979): «Não há solução simples. Qualquer que seja a
sua posição militante como cidadão, a obrigação do terapeuta enquanto tal é
definir a unidade social que ele pode mudar para resolver o problema apresentado
pelo seu cliente». Escolher a área de intervençã o possível e eficaz é a função
do terapeuta na resolução dos problemas.

Quanto ao processo de instaurar a mudança, para Haley há quatro etapas


fundamentais:

1. Definir o problema;
2. Observar a organização da família;
3. Definir as mudanças desejadas pela família;
4. Dar directivas.

Para definir o problema, o terapeuta pede opinião a todos os membros

da família e tenta que ele seja visto em termos não de uma, mas de duas, três ou
mais pessoas. Este é o primeiro passo para a mudança. Por outro ladopedeque
oproblema sejadescritono seu contexto- as circunstâncias concretas em que
ocorre, de lugar, de tempo, quem está presente e como actua.

No entanto, os membros da família não podem descrever as sequências e os modelos


do seu comportamento porque não as conhecem. Só a

83
 

observação directa pode fornecer esta informação. Por isso o terapeuta deve dar
importância aos actos. Mais do que ter uma conversa sobre os problemas, ele deve
levar a família a reproduzir, ou representar na sala da sessão, os
comportamentos e as interacções habituais dos seus membros na presença desses
problemas.

Esta técnica permite ao terapeuta observar a organização da família, as


sequências de comportamentos, as alianças existentes, as fronteiras
intergeracionais que foram quebradas, o envolvimento dos pais ou dos avós com um
ou outro membro da fratria, ou a parentificação duma crianç a.

0 terapeuta passa então a escolher com a família uma área de intervenção bem
delimitada e acessível. Quais são as mudanças desejadas por todos e quais são as
possíveis. «Nunca sublinharemos demais que o

problema sobre o qual o terapeuta se fixa deve ser não só o que a família deseja
modificar, mas também um problema formulado de maneira a

torná-lo acessível a uma solução. A negociação a fazer deve incluir a maneira de


tomar o problema operatõrio» (Haley, 1979).

Fixar um objectivo é pois condição fundamental para que se possa atingir a


mudança, e o objectivo deve ser claro e concreto. 0 terapeuta pode então dar
directivas, ou seja, tarefas a realizar pela família, na ses~

são ou no intervalo entre as sessões.

As directivas visam levar as pessoas a comportarem-se de maneira diferente e


portanto a viverem experiências subjectivas novas. São estas experiências que
confirmam as mudanças; ao pedir a um ou mais membros da família que actuem de
forma diferente, o terapeuta faz mudar o comportamento de toda a família porque
altera as sequências de interacção que existiam no grupo familiar.

A técnica de fornecer directivas pode levantar dúvidas a muitos terapeutas, que


consideram errado dizer à família o que deve fazer. Haley ( 1979) faz notar que
«as directivas podem ser não só prescritas abertamente, como transmitidas
implicitamente numa conversa pela entoação da voz, pelos gestos e por silêncios
bem colocados. Todos os nossos actos em terapia podem ser considerados
directivos».

Há vários tipos de directivas: as que pretendem criar um comportamento novo e as


que pretendem evitar um comportamento indesejável. Há ainda directivas que
prescrevem um sintoma e nesse sentido são paradoxais.

84
 

Provocam uma situação anormal diferente, ou exageram a situação anoririal


inicial. «Uma das razões do insucesso de algumas terapias é a

hipótese de que é possível passar directamente dum estado anormal a um estado


normal. É mais produtivo pensar em termos de etapas entre o

estado anormal inicial e o estado normal. Face a um sistema disfuncional,


podemos pensar na maneira de o transformar primeiro noutro sistema disfuncional
que poderá em seguida tomar-se um sistema normal» (Haley, 1979).

Perspectiva estratégica de Mara Selvini Palazzoli

Os objectivos da terapia são aqui considerados em termos de comunicação, visto


que a família com um paciente identificado é carac-

terizada pela impossibilidade de metacomunicar sobre a inconsequência de vários


tipos de mensagens. A comunicação ao nível verbal é repetidamente desqualificada
ou negada pela comunicação não verbal. Esta contradição não pode ser
reconhecida, o que toma também impossível definir a interacção entre os
partenaires da comunicação. Assumir posições definidas na interacção permitiria
compreendê-las e qualificá-Ias claramente, o que poria fim ao jogo contraditório
atrás referido.

Esta modalidade de comunicação pode ser resumida brevemente da forma seguinte:


ao nível verbal é dada uma inforinação que a segundo nível, muitas vezes não
verbal, se vê desqualificada. Ao mesmo tempo envia-se a mensagem seguinte: é
proibido fazer cornentários, quer dizer. metacomunicar, sobre a incongruência
dos dois níveis, e é proibido abandonar o terreno... a interdição de
rnetacomunicar e a de abandonar o terreno estão já impUcitas na impossibilidade
de assurnir na interacção uma posição definida, ou simétrica ou complementar.
Com efeito,só uma posição bem definida perinite tanto metacomunicar como
abandonar o terreno, ou seja, redefinir a relação» (Selvini Palazzoli el al,
1978).

As finalidades da intervenção terapêutica são pois:

1. Definir a interacção como simétrica ou complementar;


2. Metacomunicar sobre ela;
3. Redefinir as regi-as do @_1

jogo interaccional.

85
 

A técnica da conotação positiva consiste em qualificar de alguma forma como útil


ou proveitoso para a família o sintoma ou comportamento patológico que o
paciente identificado apresenta, tal como foi descrito no Capítulo IV. É uma
aliança com a tendência homeostática da família para evitar que mudanças súbitas
sejam sentidas como ameaçadoras pela família levando-a a reforçar o seu sistema
de comunicaçao autoprotector.

A conotação positiva é já uma intervenção paradoxal: se o sintoma é

útil, para quê continuar uma terapia? «Ao mesmo tempo a conotação positiva abre
implicitamente a via ao paradoxo: porque é que a coesão do

grupo necessita da presença dum ‘paciente'?» (Selvini Palazzoli et al.,


1978).

As prescrições paradoxais vão no sentido de provocar na família uma

retroacção: tomado voluntário um comportamento até aí considerado indesejável, é


agora possível controlá-lo, defini-lo e transformá-lo.

As prescrições são introduzidas através dos rituais familiares. Um ritual é um


conjunto de acções que a família deve realizar, acompanhadas de fónnulas ou
expressões verbais e que deve implicar todos os membros da família. Cada ritual
deve ser especificado em termos de lugar, de hora, de ritmo de repetição, de
sequência, e destina-se a mudar as regras dojogo sem ser através da explicação
lógica dos factos.

«Na medida em que é proposto num registo de acção, o ritual familiar está muito
mais próximo do código analógico do que do código digital. A componente
analógica preponderante é por natureza mais apta do que as palavras para unir os
participantes numa vivência colectiva poderosa e para introduzir uma ideia de
base mutuamente partilhada. 0 ritmo impõe~se pelo seu carácter norrnativo na
passagem do signo ao sinal, do sinal à norma... Podemos concluir que a
prescrição de um ritual pretende evitar o comentário verbal sobre as normas que
perpetuam o jogo em acção. 0 ritual familiar é antes a prescrição ritualizada
dum jogo no qual novas normas se substituem tacitamente às normas anteriores»
(Selvini Palazzoli et a], 1978).

86
 

Perspectiva estratégica da Escola de Palo Alto

Na Escola de Palo Alto a finalidade da terapia, quer seja individual ou

familiar, é introduzir mudança nas situações-problema trazidas à terapia. Esta


mudança deve processar-se ao nível da qualificação dessa situação (mudança de
tipo 2), ou seja, a um nível lógico superior ao da situação que se deseja mudar
e que é vista em termos de jogo de comunicação.

Na maior parte das terapias a solução de um problema é procurada dentro do mesmo


nível lógico, ou seja, pertence à mesma classe que o

problema considerado (mudança de tipo 1). Este procedimento leva geralmente à


manutenção das dificuldades iniciais e ao aparecimento dum novo problema que é a
própria tentativa de solução, e portanto a um agravamento da situação.

«Comete-se um erro de tipo lógico, criando umjogo sem fim, ao tentar uma mudança
de tipo 1 numa situação que só admite modificações a partir do nível
imediatamente superior» (Watzlawick et al, 1975). 0 nível lógico imediatamente
superior é aquele que dá à situação uma determi-

nada conotação que tem a ver com os valores e significados que são

atribuídos à realidade e não tanto com a realidade em si mesma.

0 mais importante em terapia para os terapeutas do M.R.I. é pois mudar o


significado atribuído a um problema, uma experiência ou uma

forma de comunicação; para isso é também necessário esclarecer a

confusão de níveis lógicos que se estabeleceu nas anteriores tentativas

de solução, que colocaram ao mesmo nível factos, informações ou comu-

nicações que pertencem a níveis lógicos diferentes.

Uma resultante desta confusão é a criação de paradoxos na prática da


comunicação, ou seja, formas de comunicação que incluem na mesma

classe mensagens que pertencem a classes diferentes, como se de facto estivessem


ao mesmo nível de abstracção. Estas situações paradoxais só são acessíveis a
mudanças de tipo 2, tendo em conta dois principlos:

- Actuar na tentativa de solução é mais eficaz do que actuar no

problema inicial;

- 0 paradoxo tem um papel tão importante na resolução dos problemas como teve na
 

sua gênese.

87
 

0 processo terapêutico segue quatro etapas:

1. Definição clara do problema em termos concretos;


2. Análise das soluções já tentadas anteriormente;
3. Definição clara da mudança que se pretende;
4. Formulação dum projecto e sua realização através de prescrições ou

directivas.

É na quarta fase que se opera a mudança. 0 problema é que é neces-

sãrio dar à pessoa ou família a motivação necessária para cumprir as

directivas. Isto é função da linguagem utilizada pelo terapeuta: uma

estratégia terapêutica deve ser traduzida numa linguagem que esteja de acordo
com a forma de ver a realidade do cliente. Só a partir daqui é possível fazer um
reenquadramento, isto é, mostrar a mesma realidade duma forma totalmente
diferente.

0 reenquadramento supõe que o terapeuta apreenda e utilize a linguagem do


cliente, num registo analógico e frequentemente paradoxal: «não atrai a atenção
para nada - não produz tomada de consciência -

mas ensina um novo jogo que toma o antigo caduco» (WatzIawick et al,
1975).

Perspectiva estrutural de Salvador Minuchin

Na terapia estrutural de Minuchin a mudança deve ocorrer na estrutura

da família e nas posições relativas dos seus membros. «Este é o fundamento da


terapia familiar. 0 terapeuta une-se à família com o objectivo de mudar a
organização familiar de tal modo que as experiências dos membros da família se
modificam».

A perspectiva estrutural vê a família como um organismo que em

certas situações funciona mal. 0 terapeuta ataca a homeostasia existente nesse


organismo, fazendo aparecer crises que empurram o sistema para o desenvolvimento
de uma organização que funcione melhor. A finalidade da terapia é por um lado
dirigida a um objectivo bem delimitado que é a mudança de um sintoma, por outro
vai no sentido do crescimento da família como organismo pela criação de uma nova
estrutura.

88
 

Neste aspecto a terapia estrutural reúne em si características das

escolas estratégicas e das escolas existenciais.

Três estratégias são definidas com vista a estas mudanças - uma dirigida ao
sintoma, outra dirigida à estrutura da família e outra à

realidade da família.

0 sintoma é considerado como uma reacção de um organismo em

stress, ao qual é atribuído pela família um deterininado sentido - ou seja, a


responsabilidade pelo seu mau funcionamento. A tarefa do terapeuta é mudar a
visão da família acerca do sintoma e transformá-lo em respostas alternativas na
interacção familiar.

Em primeiro lugar o terapeuta pede à família para fazer na sessão

uma representação da cena familiar”), ajudando os membros da família a


interagirem uns com os outros na sua presença, para poder ele próprio
experimentar a realidade da família tal como ela a define, e o seu funcionamento
transaccional.

Destes dados o terapeuta selecciona os que são relevantes para a mudança e


organiza-os à volta de um tema que lhes dá novo significado e que permite
centrar a sua intervenção. Por outro lado deve apoiar a

família pela intensidade da sua mensagem terapêutica, enquanto ao

mesmo tempo ataca o sintoma e a posição do paciente identificado.

As posições dos membros da família no conjunto determinam a

intervenção do terapeuta dirigida à estrutura. Se há um grande envolvimento, a


liberdade de cada um pode ficar restringida pelas regras do conjunto. Se há
pouco envolvimento, as pessoas podem ficar isoladas

e sem apoio. Pode ser necessário, portanto, aumentar ou diminuir a

proximidade dos membros da família dentro de cada subsistema (hierarquias) ou


entre os vários subsistemas (limites).

0 mapa da família revela estas posições, as alianças, os conflitos e a

forma de os resolver. Traça os limites entre os subsistemas, que podem ser


frágeis, permitindo a ingerência excessiva de subsistemas uns nos

outros, ou demasiado rígidos impedindo a comunicação entre eles. 0 terapeuta


 

maneja a proximidade e a distância, esclarecendo as fronteiras, levando os


membros da família a definir os seus papéis e funções e a
encontrar a complementaridade das suas posições dentro do conjunto.

(1) Ver Capítulo IV.

89
 

Os membros da família só podem mudar se houver mudanças no

conjunto de que todos fazem parte. Nenhum deles pode ser o único responsável
pelas mudanças a realizar, assim como não foi o único responsável pela disfunção
existente.

«A terapia familiar pressupõe que os padrões transaccionais da família dependem


de e incluem a forma como as pessoas experimentam
* realidade. Aliás, para mudar a forma como os membros da família vêem
* realidade exige o desenvolvimento de novas formas de interagir na

família» (Minuchin, 1981).

Por isso o terapeuta toma os dados que a família apresenta e reorganiza-os; a


experiência que a família faz desta nova organização permite-lhe mudar. A
reestruturação das suas posições pode abrir uma nova visão

da realidade, que traz em si potencialidades de mudança.

Perspectiva transgeracional de Murray Bowen

Os objectivos duma terapia familiar para Bowen estão centrados na

noção de diferenciação do self *), considerada a três níveis:

V* - Diferenciação no interior da personalidade entre o sistema emocional e o


sistema intelectual. Quando nã o há separação entre estes dois sistemas ou
níveis de funcionamento, eles são automaticamente dominados pelo sistema
emocional, o que implica que o comportamento das pessoas não é livre para fazer
opções nem escolher entre situações diferentes porque está determinado pela
influência das emoções.

0 que se pretende na terapia é aumentar o grau de diferenciação entre os dois


sistemas de forma a que eles sejam autónomos ou funcionem em

cooperação quando necessário.

29 - Diferenciação na relação com os outros, através das próprias experiências


no decurso da vida e não na dependência de pessoas significativas ou de um grupo
de pertença. 0 pseudo-self negoceia-se conforme as situações e as pessoas
presentes. Uma terapia no sentido de Bowen permite aumentar a autonomia das
pessoas na interacção umas

(2) Ver no Capítulo IV a definição deste conceito.

90
 

com as outras, de forma a comportarem-se não de acordo com as

expectativas dos outros, mas segundo as próprias exigências ou opções de cada


um.

3 - Diferenciação na família, em relação ao que Bowen chama «massa


indiferenciada do ego familiar», isto é, a uma deteríninada dose de
relacionamento fusional existente em cada família, que é tanto maior quanto mais
baixo for o grau de diferenciação de cada membro do casal parental e no casal
entre si.

Esta massa indiferenciada transmite-se por um processo multigeracional através


da projecção familiar, como vimos anteriormente, ou seja, a indiferenciação do
casal projecta-se sobre os filhos, principalmente em situações de tensão ou de
crise, podendo levar ao

aparecimento dum sintoma.

A segunda geração fica portanto equipada com um grau de indiferenciação que faz
reduzir as suas possibilidades de autonomia para graus progressivamente mais
baixos.

Na terapia é possível realizar um processo de diferenciação de todos os membros


através de uma técnica que se baseia em:

1. Redução da ansiedade e da tensão;


2. Não envolvimento do terapeuta;
3. Análise transgeracional.

É função do terapeuta reduzir a tensão para permitir a diferenciação, visto que


o aumento da ansiedade leva ao aumento da fusão relacional. Por isso deve
encorajar os membros da família a falar com o terapeuta e não entre si, porque a
relação com o terapeuta é despida de ansiedade. Os sentimentos não são
expressos, deve falar-se acerca deles - a interacção na terapia é
fundamentalmente verbal.

Para isto é necessário que o terapeuta se mantenha fora do sistema emocional da


família e demonstre, pela sua própria posição de inde~ pendência e não
envolvimento, um modelo de diferenciação.

A análise transgeracional é um aspecto fundamental desta técnica no

sentido de compreender e esclarecer o processo de transmissão de uma geração a


outra que pode dar origem a uma determinada dinâmica familiar.

91
 

Bowen chegou à conclusão de que era mais útil trabalhar apenas com

o casal e não com os outros membros da família visto que as mudanças operadas no
casal se repercutem no resto do sistema familiar. Ora, o que se verifica é que
há membros de casais que se separaram das suas famí-

lias de origem através dum «corte emocional»(1), seja por negação, por
distanciamento físico ou por isolamento afectivo. Isto é, iniciam a vida no

seu grupo de pares sem terem resolvido a parte de indiferenciação que têm em
relação aos seus pais. Quanto maior for o corte emocional, maior é a
possibilidade de trazer para o casamento e para a nova família os

problemas da família de origem.

Por isso é necessário manter ou renovar o contacto da família nuclear com as


famílias de origem, não só para evitar o aparecimento de sintomas numa ou noutra
família, como para permitir o processo de diferenciação através da autonomia e
não através do corte emocional.

Perspectiva transgeracional-simbólico-vivencia1 de Carl Whitaker

1 Na perspectiva de Carl Whitaker a mudança terapêutica é encarada como


crescimento e expansão da pessoa na sua existência individual e relacionaL

Não se trata de resolver um problema ou fazer desaparecer um sintoma, nem de


alterar a estrutura da família, mas sim de um processo de desenvolvimento das
capacidades dos indivíduos e das famílias no

sentido de uma maior criatividade e não de uma adaptação. Pretende-se aumentar o


sentimento de pertença a um todo integrado - a família e a

comunidade em que s.e vive - e ao mesmo tempo assegurar a liberdade a cada


pessoa para se individualizar.

Este processoé desencadeado pelautilização na sessão, daexperiência vivida das


famílias e do próprio terapeuta de forma a aumentar a tensão. A mudança só pode
resultar da ‘vivência de situações significativas na relação com o terapeuta e
entre os membros da família, e do uso da união

(3) Ver Capítulo IV.

92
 

e separação no sistema terapêutico como possibilidades diferentes de


relacionamento.

Por outro lado a compreensão da experiência e da história da família de origem é


indispensável para a delimitação das fronteiras intergeracionais e de pertença
de cada um à sua própria geração.

É importante notar que a técnica utilizada é essencialmente baseada no jogo, na


exploração das fantasias, numa interacção entre o terapeuta e família e entre os
membros da família, que devem poder expressar os

seus sentimentos, positivos ou negativos, uns para com os outros, duma forma
directa. É a experiência do que se passa na entrevista que introduz mudança,
porque é uma experiência vivida e não apenas referida ou descrita.

Os objectivos que são estabelecidos pelo terapeuta não verbalmente têm uma
vantagem, porque o pensamento intelectual tende, na família e

nos terapeutas, a evitar ou iludir a mudança. Os métodos que ultrapassam este


jogo intelectual são mais efectivos.

Neste aspecto a terapia familiar de Whitaker difere enormemente da de Bowen,


embora seja usual classificã-las dentro da mesma categoria. É verdade que
Whitaker utiliza largamente a análise transgeracional que, como Bowen, considera
indispensável ao desenvolvimento da

família e à indívidualização de cada membro. Mas enquanto para Bowen a ansiedade


deve ser baixa na terapia, para permitir a diferenciação, e a interacção com o
terapeuta deve ser não-emocional, para V-,Ihitaker toda a personalidade do
terapeuta e dos membros da família pode e deve ser

posta em jogo, levando se necessário ao confronto, não se furtando ao conflito


ou à expressão da loucura de cada um.

Perspectiva de Maurizio Andolfi e colaboradores

Os objectivos da intervenção terapêutica dirigem-se à transformação da família


como espaço de interacção, de modo a que ela possa assegurar continuidade e
crescimento aos seus membros; ou seja, por um lado que ela possa corresponder às
necessidades de coesão e de unidade do grupo e por outro lado perínita a
diferenciação dos indivíduos como caminho

para a autonomia pessoal.

93
 

É desejável que a família assegure a sua evolução através das funções que
atribui a cada pessoa no seu seio. Função significa «o conjunto de
comportamentos que, dentro de uma relação, satisfazem as exigências recíprocas
dos participantes» (Andolfi et al, 1982). Mas é necessári, o que exista, além
deste «espaço interactivo», um «espaço pessoal» que permita a cada um
experimentar novas relações e funções diferentes e expressar aspectos da sua
própria identidade.

Se a expectativa do grupo em relação às funções de cada um é

excessivamente intensa ou rigidamente programada no tempo, não podendo adaptar-


se às necessidades de cada membro e à própria evolução do ciclo vital da
família, as pessoas passam a relacionar-se apenas através da função; é nesta
situação que surge, frequentemente, um paciente designado como garantia da
estabilidade funcional do grupo. As mudanças requeridas pelo normal crescimento
do grupo e das pessoas são sentidas como ameaçadoras; pela designação de um dos
membros para assumir duma forma maciça as funções que corriam risco de ser
alteradas, as mudanças podem ser evitadas ou congeladas no tempo.

A mudança desejada na terapia significa um abandono pela família dessa protecção


através do sintoma e uma «transfon-nação das regras de associação capazes de
assegurar a coesão da família por um lado e de permitir o crescimento
psicológico dos seus membros por outro» (Andolfi,
1982). Uma maior flexibilidade na atribuição e altemância das funções de cada um
é necessária para que a família possa fazer face a situa-

ções novas, muitas vezes imprevisíveis, e fazer opções entre as várias


alternativas.

Das técnicas utilizadas com vista à mudança, referimo-nos a:

1. Redefinição;
2. Aumento da tensão (indução da crise);
3. Provocação;
4. Negação estratégica.

Diz Andolfi (1982): «0 terapeuta parte da definição mais ou menos

explícita que a família dá de si própria e tenta modificá-la mudando o

significado das interacções entre os seus membros ou entre estes e ele

próprio». Para evitar que uma nova definição da interacção seja rigidamente
assumida pela família ele deve também aumentar a complexidade da

94
 

situação, ampliando as hipóteses de interacção e as possibilidades de opção a


fazer pela família.

Por outro lado é necessário redefinir as circunstâncias da interacção: uma nova


visão do contexto em que ela se situa contribui para a alteração do seu
significado. A redefinição do problema trazido pela família opera-se quando o
sintoma é transferido dum plano individual para o plano relacional e se toma
aceitável pela sua função de manutenção no sistema

familiar. Só a partir daqui é possível ver o comportamento sintomático numa


perspectiva diferente e preparar o terreno para as mudanças seguintes.

A indução da crise e o aumento da tensão são as técnicas utilizadas

para a mudança: «... A suspeita de que alguém possa ameaçar os

esquemas de interacção habituais, subtraindo-se às regras do jogo, conduz cada


um a um controlo cada vez mais cerrado do outro e a uma forte tensão emotiva. Se
por um lado a tensão é funcional à homeostasia, por outro lado a sua intensidade
pode atingir com o tempo um nível tão alto que representa uma motivação para a
mudança... a tensão interna

cresce a tal ponto que já não pode ser contida pela função desempenhada pelo
paciente designado» (Andolfi, 1982).

A crise é pois necessária para que seja possível desejar a mudança; as


alterações na organização da família são muito mais dificeis se o

tratamento contribuiu inicialmente para reduzir a tensão e o mal-estar. E a


possibilidade de determinar a crise na família está ligada à intensidade da
intervenção - a família sente-se apoiada sobretudo pela intensidade do impacto
terapêutico. Este impacto faz-se através da provocação terapêutica, isto é, da
utilização das próprias características contraditórias do discurso da família -
desejo de curar e impossibilidade de mudança para entrar na realidade complexa
que é o sistema familiar.

A provocação é dirigida à função do paciente designado e à rede de

funções familiares, mas é acompanhada do apoio à pessoa que experimenta


sofrimento e dúvida. «Tornando a parte negativa da ambivalência que as

pessoas nutrem pelas próprias funções, o terapeuta leva-a até às últimas


consequências... Só assim é possível operar uma escolha de mudança. Esta decisão
é de natureza emotiva, é uma espécie de reacção instintiva necessária naquele
momento. A clareza e a consciência do porquê dum certo comportamento em vez de
outro, virão depois» (Andolfi, 1982).

95
 

Esta atitude de provocação, que implica fortemente o terapeuta na relação com a


família, deve ser alternada com outra de carácter oposto que serve para prever e
evitar a retroacção da família no sentido da homeos-

tasia. A negação estratégica é «uma técnica paradoxal, pela qual o

terapeuta se alia explicitamente à parte homeostática do sistema, fazendo


aparecer e amplificar as razões que sustentam a impossibilidade de mudar»
(Andolfi, 1982).

Negando a oportunidade das melhoras, a negação estratégica funciona, por outro


lado, como um desafio à família para ultrapassar a sua própria tendência
àhorneostasia; desejando demonstrarão terapeuta uma evolução menos pessimista do
que a que ele apregoa, a família pode chegar a mudar

regras que mantinham até ali o status quo.

Na medida em que introduz uma distância maior do terapeuta em relação ao sistema


familiar a negação estratégica leva a família a tomar

nas suas próprias mãos as decisões acerca dos seus problemas. 0 terapeuta passa
de protagonista a espectador.

«A tensão, que na fase provocatória actuava no interior da relação terapeuta-


familia, fica agora completamente redistribuída dentro do grupo familiar,
desenvolvendo todas as suas potencialidades de transformação e diferenciação»
(Andolfi, 1982).

Conclusão

Vemos, pois, que a mudança terapêutica é considerada por este conjunto de


autores sob aspectos diferentes. A perspectiva transgeracional de Bowen e de
Whitaker, a escola de Andolfi e em parte a escola

estrutural de Minuchin dão grande importância ao crescimento e

diferenciação das pessoas dentro da família, valorizando a criatividade de

cada membro da família, e utilizam o ambiente de tensão, a amplificação da crise


e o desafio ao confronto das pessoas e das gerações na interacção recíproca como
vias para a mudança. Excepção feita para Bowen, que utiliza uma técnica de
«baixa tensão».

Outros dirigem os seus esforços terapêuticos para a reestruturação da família


como sistema, para a reorganização das forinas de comunicação familiar e
utilizam a linguagem paradoxal, os rituais e as prescri-

96
 

ções para introduzir um novo jogo relacional (perspectiva estratégica e


estrutural).

Haverá entre estes dois grupos uma oposição ou uma complementaridade? Por outras
palavras, a diferenciação pessoal poderá ser compatível com a coesão familiar,
ou seja, com o aumento da organização do sistema?

É uma questão crucial na prática terapêutica, à qual muitos procuram dar


resposta. Guy Ausloos, numa visão renovada da teoria dos sistemas, faz notar que
um sistema ao organizar-se, ao definir hierarquias, funções, papéis e limites,
favorece, em vez de impedir, a diferenciação e a individualização.

Por outro lado, as finalidades individuais são factores dum processo


interactivo, duma negociação que levará ao aparecimento das finalidades do
sistema. Nesta «negociação constitutiva do sistema» (Ausloos, 1983) as
finalidades individuais vão-se modificar em confronto umas com as outras. Se
esta negociação constitutiva não é adequada, o sistema pode tomar-se
disfuncional, aparecer um paciente designado e um mal-estar

generalizado. Prepara-se uma crise necessária à mudança.

Assim, a organização do sistema e a criatividade pessoal são aspectos


complementares da vida familiar; tal como para mudar é necessária uma «
flutuação» imprevisível, na formulação de Prigogine (1980), e uma

determinada instabilidade do sistema, ou seja, um estado de não-equilibrio. A


partir desta conjugação do acaso com a necessidade é possível atingir um «ponto
de bifurcação» (Prigogine, 1980) no qual é viável uma opção por um novo estado
que é uma ruptura com o anterior. Este novo estado corresponde a um mais alto
nível de organização interna e de interacção com o meio exterior.

Nas famílias em terapia a amplificação dacrise, assim como apequena mudança numa
área localizada da família, podem ser a flutuação utilizada para que da
instabilidade-tensão no grupo familiar surja uma nova

escolha em termos de interacção e de diferenciação. É tarefa do terapeuta criar


as condições - crise, tensão - para a mudança, mantendo ao

mesmo tempo a continuidade da relação de apoio à família. É tarefa das famílias


optar, em algum momento, por um novo estado mais satisfatório

que o inicial.

97
 

vi CASAMENTO E TERAPIA FAMILIAR

Woman I know you understand the little child inside the man

John Lennon

Matrimónio, praça sitiada: os de

fora querem entrar, os de dentro

querem sair

Ditado popular português

Talvez que as pessoas crescidas não necessitem ler histórias de castelos, de


dragões e de princesas porque se casam, uma vez que o casamento é uma união de
dois fantasmas, cada um com o seu cortejo de crenças atrás. Tal como nas
histórias de crianças, esses fantasmas, não explicitados quando as pessoas se
unem, vão a pouco e pouco revelando os seus verdadeiros contornos, e a história
de fadas vai-se transformando na batata cozida do dia a dia, comida não por
pagens e princesas mas por pessoas reais.

Unimo-nos por motivos sociais, económicos e até meramente contabilísticos de


mercearia familiar, mas também devido a um sentimento de incompletude que se
espera seja anulado pelo outro e por uma esperança de felicidade decorrente da
vida anterior da pessoa que aguarda a

satisfação mítica dos seus desejos e uma função de cirurgia plástica das
frustrações que substitua definitivamente o merpurocromo e os pensos rápidos das
soluções individuais até então utilizadas.

0 grande drama do casamento é que as duas peças julgam ajustar-se até


compreenderem que pertencem a puzzles diferentes, que a casa

99
 

termina numa árvore ou o duende num cavalo, o que nos leva por vezes a procurar
pelos cantos da sala as peças verdadeiras, impossíveis de encontrar porque nunca
existiram. No fundo o casamento tem muito a ver

com um jogo infantil e o seu sucesso ou o seu fracasso decorrem da forma como
esse jogo é aceite e vivido por ambos: a não capacidade de ser criança a dois,
de brincar a dois, a circunstância de um dos membros do casal ficar olhando com
severidade de adulto, distante, crítico e não participativo os jogos emocionais
do outro, conduz a uma ossificação da relação que se as pessoas não conseguem
resolver no interior da mesma procurarão inevitavelmente solucionar através dos
vários escapes ao seu

alcance: o trabalho, as relações paralelas, os tratamentos psiquiátricos ou


psicoterapêuticos ou outros derivativos de afogar os sonhos.

E assim a história de castelos, de dragões e de princesas termina com dois


adultos de roupão perplexos diante do espelho da manhã, culpando-se mutuamente
das suas próprias olheiras. E como nos dizia o marido de um casal em terapia:
«... E depois vem o silêncio... olhando um para o

outro sem nada ver... e ouvindo gritos terríveis no silêncio da nossa


relação ... ».

A dream you dream is only a dream - a dream you dream together is reality.

Yoko Ono

2. Na nossa experiência e na nossa prática corno terapeutas familiares temos


tendência para considerar a união conjugal inserida no quadro de urna relação
familiar mais ampla. A unidade escolhida preferencialmente para intervir é o
conjunto das três gerações (avós, pais e filhos), mesmo que o pedido de terapia
tenha sido formulado a partir da díada marital. Esta perspectiva resulta da
nossa hipótese de que é difícil compreender as dificuldades actuais da relação
conjugal sem ter em conta o passado individual de cada um e a justaposição
actual dos dois puzzles de que falámos atrás, como pode deduzir-se a partir do
esquema seguinte, adaptado de Sholevar (198 1):

100
 

Desenvolvimento dele

Desenvolvimento

dela

Sistema familiar multi-

geracional

Sistema familiar multi-

geracional

Desenvolvimento

infantil

Desenvolvimento

infantil

Maturação e desenvolvimento (experiências an-

teriores, sobretudo relações afectivas, ligações

anteriores, etc.)

Maturação e desenvol-

vimento (idem)

CONTRATO ORIGINAL CONTRATO DE INTERACÇÃO

Desenvolvimento da relação

CONTRACTO ACTUAL

PROBLEMAS ACTUAIS

Pedido de Terapia

Sager(l98 1) define o contrato maritalcomo o conjunto de pressupostos e


expectativas do próprio e do companheiro com que cada elemento do casal vê a
relação. Este contrato não tem a ver com o contrato legal, mas

resulta das várias etapas de desenvolvimento infantil do homem e da


 

mulher, é influenciado através de modelações de comportamento, de normas


culturais, da influência relativa das familias de origem e pelos comportamentos
quotidianos.

A dificuldade é que muitas vezes estes contratos não são explicitados, isto é,
muitas vezes um companheiro não verbaliza ao outro aquilo que

101
 

espera da relação; outras vezes o contrato permanece secreto, por receio das
consequências, ou até pode não ser consciente, por resultar por exemplo de
feridas provocadas pela relação com as famílias de origem que se esperam ser
solucionadas pelo outro, tal como descrevemos na introdução a este capítulo.

De qualquer forma existe sempre um contrato de interacção, quer seja claro ou


não para a díada marital, e que vai ser o objecto da intervenção. A terapia
marital trata pois dos problemas surgidos pela interacção ou

pela disfunção da interacção.

Na nossa perspectiva a díada marital não está isolada, pois o novo

sistema familiar está ligado aos sistemas familiares anteriores através das
relações de cada um e através da participação das famílias de origem no

quotidiano da nova família. B oszormenyi-Nagy e Spark (1973) falam de lealdade,


justiça e conta-corrente afectiva: nas famílias não disfuncionais este
equilíbrio é flexível, de modo que aquilo que se recebe é pago mais tarde sem
rigidez de escrita; nas famílias patológicas há balanços rígidos, que levam a
disfunções da relação conjugal, sendo feitas exigências ao

companheiro que têm mais a ver com dívidas do passado familiar de cada um.
Whitaker (198 1) considera mesmo que «é ilusório pensar que o homem e a mulher
são duas pessoas independentes que sejuntaram pafa formar uma união perfeita.
São simplesmente bodes expiatórios enviados pelas suas famílias para
reproduzirem a sua maneira de ser».

Nesta perspectiva, que partilhamos, a terapia marital surge como um

subsistema da terapia familiar.

Existem alguns pontos de partida que usamos para a análise e possível


intervenção nas dificuldades de um casal:

a) 0 sentimento familiar tem raízes muito remotas (Goody, 1983), tendo-se a


família adaptado às etapas da industrialização. Até ao século XVI, no Ocidente,
a família estava ligada à lógica da reprodução social, com baixo nível de
afectos. Estudos de Flandrin e Goody (1983) mostram que a partir dos séculos
XVII e XVIII surgiram novas atitudes, tendo-se desenvolvido sentimentos de
privacidade, podendo falar-se de uma

verdadeira revolução romântica, originada em casais nucleares de proletários em


que o lar surgia como refúgio e local de nascente oposição das classes populares
às aristocratas. As duas formas de amor tradi-

102
 

cionalmente opostas - o amor-paixão, extraconjugal, e o amor-conjugal, ligado à


reprodução - tendem a aproximar-se. Como diz Ariès (1983): « Pouco apouco,
noOcidente, constituiu-seum ideal de casamento que impõe aos esposos que se
amem ou que façam de conta que se amam

como amantes. 0 erotismo extraconjugal entrou no casamento, expulsando o recato


tradicional em proveito do patético e experimentando a

durabilidade ( ... ). Já não existe senão um amor, o amor-paixão, o amor

poderosamente erotizado, e as características originais e antigas de amor

conjugal, tal como acabámos de evocá-las, foram abolidas ou consideradas


obstáculos residuais que atrasam o triunfo do amor: um só amor, uma só
sexualidade»;

b) Apesardo crescente número de divórcios, estatísticas internacionais confirmam


uma certa durabilidade e importância da relação marital, uma

vez que cerca de 65% dos casais com mais de 25 anos se mantêm até à morte de um
deles;

c) 0 casamento emocional tem uma história natural de crescimento, progredindo ao


longo do tempo através de uma série de pontos nodais: início da união,
nascimento do primeiro filho, o síndroma do impasse dos dez anos (Whitaker, 198
1), a saída de casa dos filhos, a proximidade da morte de um dos cônjuges, tudo
isto relacionado com o que se está a

passar nas famílias de origem de cada um e na comunidade circundante;

d) As dificuldades e características de cadaelemento dadíadaconjugal devem ser


perspectivadas em relação aos seus sistemas familiares de origem, como já
afirmámos, e tendo também bem presente que para manter o equilíbrio da relação
os companheiros actuam muitas vezes de

modo complementar, sendo por exemplo ele mais aberto e extrovertido e ela mais
retirada. Este padrão pode inverter-se por iniciativa de um, mas

seguramente o outro responderá com novo comportamento enquadrável no equilíbrio


relacional;

e) 0 terapeuta jamais tomará posição sobre o que «devem» fazer o

homem e a mulher em terapia: o casal é que tem que tomar qualquer iniciativa de
mudança, o terapeuta é um criador de alternativas, um

catalisador de afectos e um facilitador de interacções;


 

f) A experiência de terapia terá de ser uma experiência de crescimento para cada


um dos cônjuges, deve procurar tomar nítido o limite inter-
geracional com as famílias de origem e com o subsistema filial, tomando

103
 

claro que numa família saudável os papéis estão disponíveis para todos de um
modo flexível;

g) 0 terapeuta, se trabalha apenas com a díada conjugal, deve actuar corno


consultor face ao impasse da psicoterapia bilateral (Whitaker,
1978) em que tantas vezes mergulham os casais;

li) Existem vários tipos de relação conjugal: há casais que se dizem perfeitos,
sem crises, mas que têm uma relação morta, como se houvesse um verdadeiro
divórcio emocional entre eles; outros atravessam períodos de dificuldades mas a
sua relação é quente e viva, sendo possível ajudá-los a encontrar novas formas
de relacionamento.

3. Processo terapêutico em terapia marital - indicações e contra-indicações

Quando temos um pedido de intervenção, feito por um elemento de um casal,


centrado na problemática da relação, procuramos desde o início redefini-lo em
ternios do conjunto familiar, ligando o problema que nos

trazem aos puzzles passados e às peças dispersas da actualidade. Algumas vezes


aceitamos trabalhar inicialmente apenas com o casal, mas a tendência é envolver
precocemente no processo terapêutico a geração dos pais do casal e os filhos,
sempre que os haja. Trabalhamos exclusivamente com o casal quando tal nos é
solicitado expressamente ou

sempre que não é possível a comparência de elementos das outras gerações, o que
por vezes acontece.

Iniciamos a entrevista definindo o pedido do casal, solicitando a

cada um que o exprima individual e claramente. Tentamos em seguida conhecer a


história natural da relação, desde o momento em que se iniciou até ao presente.
Esta fase procura tomar claro o tipo de contrato marital existente e as
expectativas que cada um trouxe para a relação, ao mesmo tempo que estudamos o
grau de diferenciação de cada elemento do casal face à sua família de origem
(Bowen, 1978). Todo o problema trazido à sessão é redefinido em termos da
relação conjugal e dos sistemas familiares, procurando que se tome nítida, desde
o início, a necessidade de trabalhar com o conjunto da família. Frequentemente
incluímos as crianças na terapia e desejaríamos incluir ainda mais os pais do
casal. A

104
 

nossa ideia é de que a intervenção terapêutica é mais eficaz se for apoiada por
todo o sistema familiar, sendo muito evidente o calor e a alegria que as
crianças fornecem à sessão, se forem chamadas a participar activamente. Se toda
a família é incluída estabelece-se uma dialéctica de pertença e de

individualização que é a base de qualquer intervenção psicoterapêutica.

As fases do processo terapêutico em terapia marital acabam por ser

semelhantes às descritas no capítulo 111, sendo os procedimentos do terapeuta


idênticos aos já descritos,

Constituem indicações preferenciais para terapia marital:

- Casais à beira da separação, que procuram uma solução legal para

os seus problemas mas nos quais existe uma relação ainda suficientemente quente
que impede uma individualização, falsamente conseguida muitas vezes à custa de
disputas em advogados;

- Casais com dificuldades, nomeadamente após alguns anos de vida comum.


Inicialmente a relação persistiu à custa de certa fusão emocional, mas com o
crescimento dos filhos foi aumentando a necessidade de autonomia de cada
elemento do casal. Marido e mulher sentem que de certa forma cada um dificultou
a criatividade e a liberdade do outro. Toma-se então necessário, mais do que
nunca, que a terapia os con-

fronte com os seus fantasmas, de modo a que cada um deles possa passar a ver no
outro figuras reais e não fragmentos do passado ou figuras idealizadas;

- Casais em que um elemento é portador do sintoma e o outro

saudável; numa óptica sistémica não faz sentido considerar que só existe um
doente, sendo necessário redefinir o problema em termos da relação disfuncional.

Mas mesmo nestas três situações, e sempre que possível, procuramos transformar a
terapia do casal numa terapia familiar tal como a

descrevemos. Provavelmente isto radica na nossa convicção de que muitas relações


matrimoniais estáveis são relações mortas, de que o

casamento precisa de ser reinventado diariamente se não quisermos que a alegria,


o prazer sexual, a intimidade, desapareçam completamente ao

fim de alguns anos. 0 objectivo da terapia marital é aumentar o termostato

emocional do casal (Whitaker, 198 1), o que é feito através de uma


 

105
 

experiência de partilha entre os terapeutas - habitualmente a terapia é


conduzida em co-terapia com dois terapeutas de sexo diferente - e o

casal. Essa partilha pode ser estimulada com a presença de outros elementos da
família que interagem com os terapeutas e entre si, parecendo que esta
experiência pode ser extremamente importante para todos e

nomeadamente para a díada conjugal.

A nossa experiência como terapeutas familiares mostra que é crescente o número


de casais que procuram ajuda para as suas dificuldades, estando cada vez mais a
ser ultrapassada a ideia de que os problemas de um

casamento ou união livre estável são pertença exclusiva de um elemento. Pensamos


também que para se trabalhar psicoterapeuticamente com um

casal é importante uma experiência pessoal semelhante. Só sabe bem as

dificuldades de uma relação duradoura quem conviveu diariamente com elas.

Valerá a pena? A resposta terá que ser encontrada dentro de cada um

de nós. Viver com uma pessoa terá que ser uma luta e uma procura constantes: a
terapia marital fornece o terreno para que essa luta seja possí vel e criadora,
mas deve permitir que o casal seja completamente livre nas suas opções face ao
futuro da relação. É também fundamental que cada elemento do casal esteja bem
consciente das diferenças de cada um. Estas dissemelhanças não têm apenas que
ver com as suas origens, mas traduzem-se também em formas diferentes de sentir e
viver o amor

e a relação sexual.

Grafficille et al. (1983) advertem: «A sexualidade a dois não é um

pênis dentro de uma vagina, mas um universo feminino em contacto com um universo
masculino». E chamam a atenção para diferenças importantes de carácter
sensorial, por exemplo no que diz respeito às zonas erógenas: as masculinas
estão concentradas ao nível dos orgãos genitais, enquanto as femininas estão
mais difusas na superfície corporal. Muitos casais não estão alertados para
estas diferenças e tendem a ver o companheiro à sua

imagem e semelhança. Uma das funções da terapia do casal é também a

de salientar estas diferenças, fazer despertar num elemento o desejo da


descoberta do outro, sem que ambos receiem perder a sua individualidade.

E oxalá a terapia possa ajudar a realizar aquilo que Ariès (1983) escreve: «Um
casal formado com o tempo e ao longo de tempo considerável e que sente que cada
 

período suplementar de tempo aproxima mais os

106
 

cônjuges, dá-se conta do fortalecimento da sua união: duo in una carne (... ) o
verdadeiro casamento é uma união que dura, com uma duração viva, fecunda, que
desafia a morte. Desforra subterrânea do dinamismo da continuidade numa
civilização que privilegia o instante e a ruptura».

107
 

Vil OLHAR DE LONGE, OLHAR DE PERTO: ANTROPOLOGIA E TERAPIA FAMILIAR, ALGUMAS


REFLEXõES

por Cristiana Bastos*

Manuela Fazenda Martins**

Pedi a um Arapesh que imaginasse o diálogo com alguém que quisesse casar com
a sua própria irmã:
- Mas como? Não queres ter um cunhado? Não compreendes que se te casares com a
irmã de outro homem e um

outro homem se casar com a tua irmã terás pelo menos dois

cunhados, enquanto se te casares com a tua própria irmã não terás nenhum? E com
quem irás caçar? Com quemfarás as tuas plantações? Quem irás visitar?

M. Mead

Do viver em família se poderia dizer que é uma modalidade do viver em sociedade;


em ponto reduzido, se atendermos ao tamanho que nor-

malmente se atribui a uma e a outra, e todavia ampliado se pensartrios na


densidade das relações. E viver em sociedade (mesmo que sob o nome de família) é
uma concretização de um princípio geral, o de que ser humano é também estar com.
Nenhum ser humano, na sua singularidade, está só:

Licenciada em Antropologia.

Licenciada em Filosofia. Assistente convidada do Departamento de Antropologia da


Universidade Nova de Lisboa. Psicoterapeuta.

109
 

ele é um elemento de um jogo complexo de interacções, em que a todo o momento


intervém e sofre efeitos. A terapia familiar sistémica sabe-o melhor que
qualquer outra atitude terapêutica; e, ciente da complexidade do fenômeno que se
lhe depara, sonda a antropologia - a ciência tida por especialista/generalista
das sociedades humanas.

Sobre a «natural sociabilidade» humariajá a biologia teria algo a dizer;


postulada a evolução das espécies, basta um olhar sobre as sociedades de
párnatas supenores para constatar que a emergencia do homo sapiens se

dá sob o signo do grupo organizado. «Organização» essa que contém em

si a longa história evolutiva dos dois eixos de «arrumaçao» que, de uma

forma ou outra, ainda em nós persistem como engramas (A. Bracinha Vieira, 1979):
a territorialidade e a hierarquia.

0 social «estar com» é portanto um «estar com deterininadas regras de arrumação»


- sejam estas regras geneticamente determinadas ou

culturalmente sugeridas e/ou impostas. É aqui que alguns autores (Lévi-Strauss,


1949) estabelecemum corte entrenaturezae cultura: às primeiras, porque
genéticas, logo universais, chamam leis danatureza; são essas que regem o
comportamento animal, incluindo os comportamentos sociais, conotados - tal como
os alimentares, migratórios, etc. - com o

«instinto». As segundas, porque não genéticas e particulares (variando com as


culturas), chamam regras e consideram-nas próprias do homem
- a única espécie que se permite as mais diversas modalidades de estar no mundo.

Esta repartição rígida entre a natureza e a cultura instalou-se não só em largos


sectores das ciências como - e aqui com toda a inércia - na opinião comum. É
muitas vezes este o quadro em que tomam corpo as perguntas colocadas aos
antropólogos, e não é por acaso que as obras mais divulgadas de toda a
literatura antropológica são os trabalhos de Margaret Mead, pesquisando em
contextos reais os limites do «natural» e do «cultural», alimentando o debate
naturelculture. Hoje seria extremamente redutor e arcaizante situar o problema
nesses termos. Não vamos, portanto, encaixar o fenômeno «família» na ordem do
natural/inato ou cultural/imposto; mas podemos, com a antropologia, aspirar a
ultrapassar o primarismo dessa dicotomia, antever uma outra forma de abordar os
fenômenos humanos que, aproveitando o contributo das diversas ciencias, sirva
para aprofundar a permanente interrogação que a natureza humana

110
 

constitui. E é essa atitude que está por detrás de todo o interesse por estes
temas, de todo o gosto nem sempre confessado pelas aproximações à antropologia:
é de nós que ela fala, ainda que por metáforas, ainda que falando de tribos
distantes. E ouvir a antropologia a propósito da família toca-nos então com
muita força. Mais que o económico, o político, o religioso, o técnico, o assunto
família/parentesco atinge rapidamente a frágil zona em que nos descobrimos,
também nós, objecto da antropologia e não apenas o sujeito neutro e distante
duma relação de conhecimento. Família é assunto de todos. Pai, mãe, filhos,
irmãos, tios, primos, avós, cônjuges, são coisas de todos nós. Assim como o são
os afectos, as dependências, os contratos, as regras, a partilha e o conflito
que todos vivemos e conotamos com a família. Mesmo sem sabermos como as

outras sociedades vivem estas coisas, pressentimos que algo existirá de comum, e
daí pensarmos nos fundamentos naturais da família, uma vez que está em causa a
questão evidentemente biológica da reprodução. E, por outro lado, ao depararmos
com a diversidade de soluções com que as sociedades a resolvem, voltamos a
questionar-nos sobre os limites do

natural e do cultural. No campo da família e do parentesco, onde se entrelaçam a


obviamente biológica necessidade de reprodução com as

obviamente culturais regras de casamento e descendência (a que algumas outras se


acrescentam), essa questão reaparece com todo o seu vigor. É por isso que não
deixamos de a referir, embora pareça resolvida para muitos autores( *) integrados
nas investigações que nos últimos anos têm aproximado as ciências ditas sociais
das ditas físico-naturais.

Em breves palavras, pensamos que nenhuma instituição humana é um

dado primário da natureza em tomo do qual se «constroem» a cultura

e a sociedade, nem tão pouco é um produto aleatório de uma formação social todo-
poderosa. Todo o fenômeno humano se situa na chameira do

chamado biológico e do chamado cultural porque, no ponto em que os tomamos, eles


se pressupõem mutuamente: se os fenômenos culturais

particulares existem é porque o programa biológico humano funciona em

aberto, isto é, permitindo variantes, e por sua vez esse substrato biológico se
desenvolve e modela dentro de padrões culturais que ele próprio permite.

(1) Vejam-se, por exemplo, as obras L'unité de 1'homme e La Méthode.

111
 

Contrariamente ao que alguns esperariam, a antropologia não vai sancionar,


dando-lhes forma científica, as opiniões do senso comum que ora concebem a
família como núcleo natural de base em tomo do qual se criam as sociedades, ora
a vêem como um resultado contingente das culturas em que se forma.

Se o antropólogo não dá respostas imediatas, dada a complexidade do tema, pode


no entanto delinear caminhos de reflexão. Ele também sabe

que o terapeuta familiar, quando o procura, não sabe bem o que quer e todavia
pressente que pode aprender algo. Talvez uma definição de família, para além da
dicotomia «natural» ou «cultural». Talvez uma

relativização do sistema familiar que conhecemos da nossa sociedade, através do


estudo de outros sistemas. Talvez um historial da família através dos tempos e
das formas de associação que eventualmente a

antecederam. Talvez umas noções sobre a função da família no meio

social e sua transformação na história. Talvez uma panorâmica das formas que os
homens das diversas culturas encontraram para se associar

com os mesmos fins da família que conhecemos. Ou talvez apenas uma achega na
forma de abordar as sociedades aplicável às mini-sociedades que são as famílias.
Tudo isto a antropologia poderia dar. Nas suas

variantes evolucionista, funcionalista, estruturalista, etc., em noções que


poderíamos arrumar sistematicamente, a antropologia ajudaria a cons-

truir o edifício da teorização em terapia familiar, ou, porventura mais


importante, ajudaria o terapeuta perante a família a decifrar a realidade

e sobretudo a optimizar a sua intervenção.

Podemos assim definir dois campos em que a antropologia pode fornecer ajuda à
terapia familiar: a teorização e a intervenção. E claro que toda a acção
pressupõe uma determinada forma de ler o real e, por seu

lado, cada modalidade teórica incita a uma intervenção específica; a

separação que estabelecemos obedece antes de mais a critérios metodológico-


expositivos.

No plano teórico, a antropologia teria tantos contributos a dar quantos os


autores que directa ou indirectamente sobre ela reflectiram - e, se procurarmos
formulações gerais, tomemos Lévi-Strauss como ponto de referência e concluíremos
que a família não é o ponto de partida nem o

ponto de chegada da sociedade: «a família restrita não é o elemento de base da


 

sociedade nem é -o seu produto» (Lévi-Strauss, 1983). A família,

112
 

poderíamos dizer, é um momento da dinâmica social ou, talvez mais correctamente,


um intervalo de momentos, um continuum também ele dinâmico, onde se estabelecem
as relações imediatas dos membros das sociedades.

A sociedade não é apenas um conjunto de indivíduos, nem um com-

posto de relações abstractas; ela é um todo articulado pessoas/relações que se


nos apresenta, em cada momento e espaço, sob uma configuração cultural
específica. Essa cultura é o quadro em que tomam sentido as acçõ es dos
indivíduos e fortriam corpo as suas interacções, conscientes ou inconscientes.
Além de cenário e palco onde se desenrola a vida social, a cultura é como que o
cinzel que modela a extrema plasticidade humana, que toma concretos, reais e
singulares os comportamentos potencialmente multivariados do gênero humano. E,
no entanto, essa multiplicidade não é infinita: os comportamentos humanos variam
entre certos limites, de que o leque das culturas nos dá um retrato que a
antropologia procura estudar.

Os aspectos integráveis no tema «família» são, obviamente, de primeira linha na


atenção da antropologia, constituindo uma das suas

áreas de investigação fundamental: o estudo do parentesco. Resumir as posições


acerca deste assunto seria fazer uma pequena história da antropologia - história
que simultaneamente nos dá uma imagem deste corpo complexo de conhecimentos que
a constitui enquanto ciência e

que, na sua faceta de permanente discussão, interminável reflexão, no-la mostra


enquanto atitude perante o real, perante esse inquietante lado do real que é o
nosso próprio ser.

Assim, após toneladas de edições sobre parentesco, após décadas de maturação de


posições solidamente fundadas em trabalho etnográfico e

reflexão filosófica (afinal a grande chave das divergências nas escolas de

antropologia, porque atrás de um olhar emográfico está um cérebro

preparado para receber a imagem e para a digerir de uma ou outra maneira


consoante a sua fonnação filosófica)( *), pouca coisa reúne o consenso dos

antropólogos. 0 próprio objecto de estudo é já posto em causa (Cf. Needham, La


parenté em question), visto como uma ilusão dos obser-

(2) De que o caso mais flagrante é a tradicional divergência


britânicos/franceses,

radicada na oposição empirismo/racionalismo.

113
 

vadores que, sob o mesmo rótulo, encaixaram uma série de fenômenos de natureza
diferente. No extremo, todo o corpo de conhecimentos acerca

do parentesco estaria mais ligado às preocupações dos antropólogos observadores


do que às realidades observadas. É que, contrariamente aos microscópios e
laboratórios de que os outros cientistas dispõem, o

meio de captar a realidade é para o antropólogo fundamentalmente a sua

própria capacidade de discemimento e sensibilidade - o que se toma


particularmente complexo quando o objecto de estudo é uma variante da natureza
imediata do observador, a condição de humano. Por isso a antropologia se tem
construído em olhar distante, para que a proximidade do espelho não fira a visão
do observador. Assim ela - que seria e é, ainda que em projecto, a ciência do
homem na sua generalidade - se tem

feito ciência das sociedades culturalmente afastadas do antropólogo: sociedades


«primitivas», «sem escrita», «sem história», e todos os mais « sem» que as
distinguem da acabada e completa sociedade em que vivemos...

No estudo da diferença, do olhar o outro, se foi fazendo a antropologia.


0 bizarro, o estranho, o inesperado era privilegiado nos primeiros relatos
emográficos, face às escamoteadas semelhanças que aproximariam os povos - ora
porque estavam fora de causa (lembremos a dúvida metafisica que assaltava os
primeiros europeus na América acerca da existência de alma nos índios), ora
porque estavam implícitas a partir da crença na unidade do gênero humano. Desde
os primeiros contactos entre culturas que possuimos os mais variados relatos
sobre costumes, misto de observação e fantasia dos autores. Perante esse
material, alguns pensadores do século XIX imaginaram-se em condições de elaborar
uma ciência geral dos usos e costumes humanos e assim se publicaram as primeiras
obras de antropologia propriamente dita. 0 ambiente filosófico e científico de
então podia caracterizar-se como evolucionista, e foi esse o tom que marcou as
referidas obraS(3) . Acreditava-se numa evolução mais ou menos

unilinear da espécie humana e das culturas, que teriam invariavelmente


atravessado um certo número de estádios culturais de desenvolvimento,

(3) Referimo nos nomeadamente a Bachofen (Das Mutterrecht, 1881), Tylor


(Primitive Culture, 187 1), McLennan (Primitive Marriage, 1865) e sobretudo

114
 

correspondendo a cada um deles deterrninado nível tecnológico, eco-

nómico, de organização social, religiosa e parental-familiar. A socie~ dade


ocidental seria o ponto mais alto do desenvolvimento e as sociedades chamadas
primitivas e exóticas representariam estádios evolutivos pelos quais a nossa já
teria passado. A família nuclear monogâmica da nossa sociedade teria sido
antecedida por sistemas poligâmicos e de casamento de grupo (Cf. o debate entre
Malinowski e Briffault em 193 1). A «promiscuidade primitiva» dos nossos
antepassados teria dado lugar a

um sistema matriarcal e só recentemente na história da humanidade -

para alguns autores em correlação com o aparecimento da propriedade -

este teria sido substituído pelo patriarcado. Os autores evolucionistas


pretendiam encontrar nos factos etnográficos a prova do real para as suas

ficções; assim, e para citar apenas dois exemplos, as nomenclaturas


classificatórias de parentesco( *) seriam sobrevivência do «casamento de grupo» e
o avunculato (51 seria sobrevivência do «estado, matriarcal».

É evidente que os factos etnográficos são passíveis de outras leituras; e se


hoje a antropologia os interpreta de outra maneira, acontece também que os mitos
evolucionistas persistem a nível do senso comum. Talvez a

a Morgan (Ancient Society, 1877) que, através de EngeIs (A origem da família, da


propriedade e do estado), teve grande divulgação. (4) Estas nomenclaturas
aparecem-nos como estranhas por «classificarem terminologicamente» os parentes
de uma forma muito diferente da nossa; um termo que segundo a nossa lógica
corresponderia a um só indivíduo pode recair sobre uma série deles, como o termo
«pai» (aplicado ao pai, seus irmãos

e irmãos classificatõrios), «irmão» (aplicado também aos filhos dos pais


classificatórios), «mãe» (estendido às irmãs, reais ou elassificatórias, da
mãe), etc. Para os evolucionistas, estas nomenclaturas eram sobrevivência dos
tempos promíscuos, em que os laços de filiação seriam indeten-nináveis. Um
estudo mais aprofundado destes sistemas - que variam com as culturas, permite
outras leituras. Radcliffé Brown, porexemplo (Cf. Estrutura efunção na sociedade
primitiva), baseando-se no facto de também os irmãos da mãe

serem chamados «mãe masculina» e as irmãs do pai «pai feminino», formula o


princípio da unidade dos sibling e lança as bases do átomo de parentesco,
explicando assim estruturalmente esta questão, bem como a do avunculato.

(5) «Avunculato» designa a relação especial (e todo o conjunto de atitudes,


direitos e deveres que comporta) entre um indivíduo e o irmão da sua mãe.

115
 

ideologia do progresso nos tenha impregnado de tal forma que, qualquer que seja
a conotação que lhe damos, se instale em toda a leitura que fazemos do mundo. E
na interpretação de fenômenos de parentesco essa

ideologia persiste particularmente: ao perguntarmos como apareceu a família


moderna, escondemos (ou eventualmente exibimos) uma outra

interrogação, que traz imbricada a inquietação sobre a sua evolução futura. As


profecias de instituições alternativas que, a partir de 60, pareciam assentar no
seu declínio ou hipotético desaparecimento não se

verificaram; por outro lado, o aprofundar das investigações histórica e

antropológica não só não comprova as teses evolucionistas, como nos mostra a


inesperada recorrência da família monogâmica. Esta, contrariamente ao que
segundo a óptica evolucionista seria de esperar, aparece não só na nossa
civilização como nas sociedades consideradas mais primitivas nos mais diversos
pontos do globo: os caçadores-colectores, sejam eles australianos, bosquímanes,
pigmeus ou grande parte dos índios americanos. Este facto irrefutável fez
vacilar o evo-

lucionismo ortodoXo(6).

Vemos assim que a família nuclear monogâmica que conhecemos da nossa sociedade
não está determinadamente associada à «complexidade» desta e à sua posição de
superioridade na escala evolutiva, mas aparece

A maioria das culturas estabelece uma diferença a nível de terminologia e de

atitudes entre o tio materno e o tio paterno; e em quase todas as relações


avurículares é algo de notável, quer se caracterize pela brandura das relações
quer pela sua dureza. Se para os evolucionistas era uma sobrevivência do

matriarcado, para os funcionalistas e estruturalistas é uma relação que deve ser


estudada em simultâneo com a relação filho/pai com a qual normalmente estabelece
um contraste.

(6) Lembremos que, sob o rótulo evolucionista, existem também algumas correntes
que trilham um caminho completamente diferente, partindo da biologia dos
primatas superiores para chegar às instituições humanas, estabelecendo um
continuum natureza/cultura que ultrapassa falsas questões e becos sem saída em
que a antropologia tantas vezes cai. Neste sentido, não poderíamos deixarde
chamar a atenção para a importância de uma abordagem, paralela à nossa, no
âmbito da chamada antropologia biossocial (R. Fox), da etologia e da
sociobiologia.

116
 

também no que seria o ponto mais baixo dessa escala, onde, na lógica
evolucionista, seria de esperar uma formação próxima da promiscuidade primitiva.

Aos evolucionistas mais ingénuos, surpreendidos com estes factos, pôr-se-á uma
alternativa: ou os dados são falsos e se continua a crer no carácter recente e
único da família dita «moderna», uma vez que a

«primitivos», sejam eles actuais ou de outros tempos, corresponderiam formas


arcaicas de associação sexual e social mais próximas da promiscuidade, ou bem
que algo está errado nos seus postulados teóricos. À medida que os dados
etnográficos foram aparecendo e desmentindo as

hipóteses evolucionistas, estas foram perdendo argumentos. Até que alguma coisa
com o nome de evolucionismo viesse a retomar o seu lugar no panorama da
antropologia (o que só muito timidamente começa a dar-

-se), porque os cientistas se vão dando conta de que a refutação das ficções
sobre a evolução não deve pôr em causa a existência da mesma, a antropologia
teve como que uma pausa para respirar e deixar de pensar no assunto evolução. Às
velhas questões da procura das origens dos costumes, à obsessão de formular uma
teoria geral do desenvolvimento das culturas, sucedeu uma outra forma de encarar
as sociedades. Em detrimento dos estudos diacrónicos, passou a privilegiar-se a
abordagem síncrónica, o que representa um modo totalmente diferente de lidar com

os factos etnográficos: por exemplo, em vez de se isolar um costume ou


instituição e compará-los entre diversas sociedades - quer no tempo
(evolucionismo propriamente dito), quer no espaço (evolucionismo difusionista)
-, procura-se estudá-los integrados nas sociedades onde

existem, buscando o sentido que aí têm e a sua articulação com o todo.

A maior parte da produção teórica em antropologia nas últimas

décadas dá-se neste quadro e desenvolve-se nomeadamente entre duas

grandes linhas suportadas por tradições filosóficas opostas: o empirismo


britânico e o racionalismo formalizante francês. É assim que assistimos à vasta
produção de monografias por parte de autores de língua inglesa na sequência do
trabalho pioneiro de Malinowski, Os Argonautas do Pacífico Ocidental, de 1922.
Baseadas em trabalho de campo prolongado, garante de uma aproximação fiel à
cultura em causa, as monografias procuram dar como que retratos das sociedades
que descrevem e, simultaneamente, arrumar essa descrição de costumes segundo um
sentido

117
 

encontrado na cultura. As instituições são vistas como integradas e

integradoras dos indivíduos. Na sua formulação mais ortodoxa, o

funcionalismo britânico defendia que todo o costume preenchia uma

necessidade de indivíduos e grupos e toda a aproximação antropológica se


resumiria a um discriminar das formas como as sociedades resolviam

essas necessidades. Era assim que as instituições família e parentesco eram


vistas como uma «resposta cultural» à necessidade biológica da reprodução (Cf.
Malinowski, Uma teoria científica da cultura).

Lentamente, a abordagem global das sociedades foi dando origem a

teorizações igualmente globais; e os elementos que antes eram vistos


desgarradamente, como sobrevivências de hipotéticos estádios anteriores da
cultura passaram a ser elementos-chave para uma leitura de conjunto. Tal é o
caso dos já referidos avunculato e terminologias classificatórias do parentesco.

A visão integrada passa a dominar a atitude dos antropólogos. A família, o


sistema de parentesco, são estudados por si mesmos no con-

texto em que existem; e, a princípio com timidez, depois abertamente, tentam


formular-se leis gerais sobre os sistemas de parentesco. Citemos apenas
Radcliffe-Brown (em particular no clássico 0 irmão da mãe na

África do Sul) e Lévi-Strauss (especialmente emAs estruturas elementares do


parentesco e Antropologia Estrutural), como exemplos-tipo de duas formas de
teorizar que têm em comum o pretender procurar as estruturas

subjacentes às instituições sociais. Separa-os a forma como a estrutura é

concebida e as consequências teóricas dessa posição: enquanto para Radcliffe-


Brown a estrutura é algo de concreto, tal como o são os

elementos e instituições que compõem a sociedade, para Lévi-Strauss é antes uma


certa forma de abordar a realidade que está em causa - um

mudar a atenção dos elementos para as relações que os ligam e a

construção de modelos que tomem inteligível o jogo das mesmas. Neste

sentido, dirá Lévi-Strauss, «o princípio fundamental é que a noção de estrutura


social não se liga à realidade empírica, mas aos modelos

construídos segundo esta. Surge deste modo a diferença entre duas noções tão
próximas que muitas vezes se confundiram, isto é, a de estrutura social e a de
 

relações sociais. As relações sociais são a matéria


prima utilizada na construção dos modelos que tomam manifesta a

própria estrutura social. Em nenhum caso esta se poderia ligar ao conjunto

118
 

das relações sociais, observáveis numa determinada sociedade» (Lévi-Strauss,


1958).

É a partir daqui que Lévi-Strauss nos conduz à noção de átomo de parentesco,


síntese das relações básicas - consanguinidade (a), matrimónio (b), filiação (c)
e, consequentemente, relação avuncular (d):

(a) (b)

(d) (C)

As propriedades deste modelo tomaram-se referência quase obrigatória nos estudos


de parentesco que a partir da sua fonnulação se elaboraram (aliás, a forma como
o expôs em 1958 induziu muitos autores na crença numa «lei do átomo de
parentesco», que enunciaria a existência, para todas as sociedades, de uma
combinação de relações que se oporiam por pares negativos/positivos; em 1983,
Lévi-Strauss põe claramente em

causa a rigidez do seu enunciado - Cf. Um ‘átomo de parentesco * australiano, in


Lévi-Strauss, 1983).

Não é apenas uma melhor leitura dos fenómenos de parentesco que o

modelo do átomo nos traz, com a consequente elucidação de questões como o


avunculato e a estereotipização das atitudes entre parentes. É toda uma
filosofia sobre os fundamentos da sociedade, criada a partir do interdito do
incesto e da troca exogâmica (a sua contrapartida positiva) que lhe está
subjacente. A troca fundamentaria a sociedade, nos seus mais diversos aspectos.
E se o que fundamenta a família é esse movimento

geral de troca, de constante fluxo dos indivíduos entre grupos, o pequeno grupo
criado reconstitui-se como mundo: a família, seja qual for a sua

forrna, extensão, modalidade, inserção no meio. Por isso, tudo aquilo que
aprendemos com o estudo das culturas nos pode ensinar a ler cada

realidade família e, eventualmente, nela intervir.

Faz então sentido lembrar como as sociedades criam os seus mitos de

119
 

origem, as suas religiões privadas, os seus rituais, a sua organização


económica, a sua distribuição do poder, porque as famílias, aberta ou
veladamente, também os têm - e só as poderemos compreender globalmente se
tivennos em conta todos estes aspectos.

Talvez exista uma diferença entre as múltiplas sociedades estudadas pelos


antropólogos, e que não têm terapia familiar, e a nossa sociedade, que por
alguns motivos a criou. Dir-se-ia que nas primeiras a rede familiar está mais
claramente «encaixada» na rede social e que as atitudes e comportamentos no
interior do equivalente à nossa família estão mais próximos do estereotipo da
sociedade; na nossa, em que a porta da casa

se fechou, dir-se-ia que cada família se encontra em condições de livremente


recriar o mundo, o que nem sempre está em condições de fazer saudavelmente. A
estrutura que cada família inconscientemente encontra para dispor os seus
membros pode, assim, ser livremente saudável ou altamente patogénica; e
começamos neste momento a compreender, com

os ensinamentos da antropologia, alguns dos elementos que contribuem para essa


patogenia.

Este tipo de considerações, evocando timidamente a ordem, o equilíbrio, o


saudável, conflui numa concepção homeostática da realidade social, que pode ser
localizada na história da antropologia. A procura, por parte do cientista, de
uma «ordem» social corresponde antes de mais aos

requisitos de coerência do discurso científico. Daí que a visão da sociedade em


equilíbrio estático esteja directamente relacionada com a

aproximação globalista que marcou a época clássica da antropologia (Malinowski,


Ruth Benedict ... ). Há um fundo de conceitos que essa época nos legou - o
pattern cultural, o ethos, o eidos, etc. que, reformulando os velhos volkgeist e
zeitgeist, nos espreitam ainda quando procuramos a ordem ideal e estática das
famílias (não daríamos connosco

encontrando o carácter apolíneo dos Silvas e dionisíaco dos Marques?).

Bateson parece-nos um pioneiro quando, juntamente com a

popularização do ethos (tonalidade emocional integradorade cada sistema


cultural), concebe o processo de cismogénese como dinâmica de ruptura e mudança
componente da própria «ordem» social. Por isso escolhemos Naven para concretizar
a passagem do olhar distante da antropologia ao

quase coirpo-a-corpo da intervenção em terapia familiar.

120
 

1935. Gregory Bateson, na Nova Guiné, estuda a sociedade iatmul, partindo da


observação de uma conduta cerimonial particular, a cerimônia

de Naven, em que se toma relevante uma situação de duplo travestismo.


Comportamento aparentemente paradoxal, só o seu contexto lhe dá

sentido, permitindo compreender ao mesmo tempo as relações interindividuais - em


particular através da análise da relação sobrinho/ /tio materno - e intergrupais
- mais concretamente, intercIânicas. Dupla compreensão que é possível pelo ponto
de vista metodológico, igualmente duplo, avançado por Bateson: analisar a
cultura na sua

totalidade e analisá-la fragmento por fragmento, nas relações individuais em que


se exprime.

Esta a proposta de Bateson de uma «antropologia total», retomando a

orientação de Marcel Mauss mas também de E. Sapir, que solitariamente defendia


em 1932 a necessidade de o antropólogo inventariar os modelos

sociais do comportamento através das interacções individuais.

Opondo-se à atitude habitual do antropólogo que encara as variações individuais


a partir de uma pretensa objectividade da cultura, Sapir defendia a necessidade
de analisar os comportamentos quotidianos de um

determinado número de indivíduos vivendo em comum e, a partir daí, detectar as


constantes das relações interpessoais.

Poderíamos dizer que a prioridade lógica indivíduo ou sociedade carece aqui de


sentido ou, pelo menos, se encontra «entre parêntesis». Consequentemente, a
diferença entre os problemas da sociologia e os do

comportamento individual está no seu grau de especificidade, não de natureza.


Consequentemente também, Sapir irá defender a necessidade

de a tarefa do antropólogo ser completada pelo ponto de vista «psiquiátrico» (no


sentido de apelar para a personalidade total) segundo o qual «a

cultura é a teoria global dos modos de comportamento reais ou virtuais

extraídos das realidades vividas da comunicação, quer sob o modo do

comportamento declarado, quer sob o modo do comportamento imaginário» (Sapir,


1938).

É nesta perspectiva «total» que Bateson igualmente situa o seu estudo


 

da cerimônia de Naven: procura analisar as relações interpessoais em

questão (em particular, como veremos, nos seus vários jogos iden-

121
 

tificatórios - identificação pai/filho, filho/clã da mãe, irmão/irmã,


marido/mulher), a maneira como estas relações se integram num sistema coerente e
os seus efeitos na integração social.

Opontode vista subjacente aestaanálise, metodologicarnente inovador, é o da


circularidade indivíduo/cultura, sem que a investigação se preocupe

com uma explicação em termos de anterioridade causal. Interessa mais o como


dojogo interactivo e suas modalidades, do que oporquê explicativo.

É a partir deste ponto de vista circular que Bateson irá considerar que os
indivíduos de uma comunidade são normalizados pela sua cultura e

que as características gerais dominantes da cultura, as que podem ser

admitidas nos mais diversos contextos, são uma expressão dessa normalização.

No entanto, estudar as modalidades de normalização pela cultura o que implica


ter em linha de conta, na perspectiva de Devereux, as cinco maneiras específicas
como o indivíduo vive e manipula os materiais

culturais: normalidade, imaturidade, neurose, psicose e psicopatia (Devereux,


1952) - remete necessariamente para o estudo, por um lado, dos desvios à norma e
da forma como ameaçam a coesão social e, por outro lado, dos mecanismos de
«contenção» do conflito e da ruptura. É sobretudo este segundo aspecto que a
análise de Naven permite esclarecer. Vejamos de que maneira.

A especificidade de relações em Naven dá a Bateson uma base de compreensão da


importância de um elemento terceiro nas situações de tensã o e conflito,
evitando o processo de ruptura que posteriormente reforrnulará no conceito de
cismogénese. Como é elaborada esta noção? Partindo da hipótese de que os seres
humanos manifestam uma tendência para interagirem em sequências cumulativas,
Bateson analisa duas modalidades fundamentais de interacção:

- a cismogénese simétrica, em que as acções de A e B, essencialmente similares,


se estimulam mutuamente, num processo em escalada (caso da competição,
rivalidade, etc.);

- a cismogénese complementar, em que as acções entre A e B são basicamente


opostas (submissão/domínio, autonomia/dependência, etc.).

Como se auto-regulam estes processos? Observando a sociedade iatmul, Bateson faz


notar que, por um lado, autoridade e controlo se exercem mais por sanções
«laterais» do que por

122
 

sanções «vindas de cima», ao contrário das sociedades ocidentais (Bateson,


1940); por outro lado, assinala que não basta referir o sistema de costumes

e as estruturas de carácter dos sexos como diferentes um do outro. 0 que para


este investigador será significativo é sobretudo o facto de o sistema

de costumes de cada sexo estar «engrenado» no outro, reforçando-se mutuamente


nos seus comportamentos (Bateson, 1942). Noutros termos, os processos de
simetria e complementaridade não se definem isoladamente

mas em interacção. Mesmo no caso da complementaridade, em que o


elemento A em posição «primária» (Sluzki, 1965) ou superior - por exemplo, de
autoridade - parece definir a natureza da relação aceite por B - neste caso, de
submissão -, mesmo aqui é no processo interactivo que a natureza da relação se
define.

Há ainda a ter em conta que complementaridade e simetria não

significam exclusividade, mas apenas a predominância de uma ou outra

modalidade (excepto em situações em que os mecanismos de equilibração «falham»,


havendo uma rigidificação na utilização de cada uma destas

modalidades interactivas), sendo precisamente uma das fôrrnas de controlo

da escala cismogenética a autocorrecção de uma complementaridade pela simetria e


inversamente, como as relações na cerimônia de Naven exemplificam.

0 sistema de relações iatinul constitui para Bateson o protótipo dos sistemas


cismogenéticos em que um conjunto de sistemas finalistas regeneradores(l) mantém
o equilíbrio do sistema, impedindo a sua ruptura.

(7) Os termos «regenerador» e «degenerador» provêm das técnicas de comunicação.

Um circuito regenerador ou «vicioso» é uma cadeia de variáveis do seguinte tipo:


um aumento em A provoca um aumento em B; um aumento em B provoca um aumento em Q
um aumento em C provoca um aumento em E. E claro

que, se um tal sistema dispõe das fontes de energia necessárias e se os factores

externos o permitem, funcionará a uma taxa ou a uma intensidade cada vez

maiores. Um circuito «degenerador» ou «autocorrectivo» difere do anterior

por conter pelo menos um elemento do tipo: «um aumento em N provoca uma
diminuição em M». 0 termostato do aquecimento das casas ou a máquina a vapor com
regulador são exemplos destes sistemas autocorrectivos. Note-se que, em muitos
casos, o mesmo circuito material pode ser ao mesmo tempo regenerador ou
 

degenerador, consoante a carga, a frequência dos impulsos

123
 

A cerimônia de Naven exemplifica precisamente estes sistemas autocorrectivos,


enquanto ritual que caricatura de uma forma exagerada a relação complementar
entre o tio materno (wau) e o filho da irmã (laua) (Bateson, 1958).

A conduta cerimonial Naven, não sendo um rito de passagem, procura celebrar cada
novo acto cultural do latia, isto é, filho/a da irmã, sendo o seu traço mais
relevante o facto de os homens se vestirem de mulheres e as mulheres de homens.
Partindo das rivalidades entre indivíduos e grupos, Bateson irá analisar a
insistência no modelo complementar da relação wau/laua como forma de controlo da
cismogénese simétrica subjacente a esta sociedade patrilinea1@1), ou seja, da
relação entre um

homem e o marido da sua irmã, relação simétrica provocada pela ambivalência


mútua entre um homem que dá a outro a sua irmã em casamento(9).

Ao esquematizar as principais características da posição do wau, Bateson


assinala que:

- a identificação do wau com a sua irmã (flecha 1), pela qual se

conduz como mãe (procura alimento, é chamado «mãe» durante as cerimónias de


iniciação Naven e reconforta o latia, começando por transportá-lo às cavalitas
na iniciação, como uma mãe, trata-o afectuosamente durante a escarificação
iniciática, etc. Note-se que o latia, por sua vez, trata o wau como mãe e
comporta-se como se fosse seu filho;

transmitidos no circuito e as características temporais do circuito total


(Bateson, 1949, pp. 121-22). (8) Isto é, em que a filiação é definida por uma
via masculina.

(9) Compreendemos, nesta perspectiva, que o antropólogo psicanalista G.


Deveretix, ao analisar a questão da aliança matrimonial, se proponha passar do
quadro emológico avançado por Lévi-Strauss, fundado na regra de troca, para o
quadro psicanalítico - nesta óptica, segundo Devereux, o casamento

será sobretudo um meio de resolver os conflitos entre «receptores» e

«dadores» de mulheres. Perspectivas que não se opõem, mas se complementam.


Complementaridade para que J. Pouillon chama igualmente a atenção, presente no
que o psicanalista ou o etriólogo retêm como essencial na interdição do incesto:
a mãe (real) para o primeiro, a irmã (que pode ser

classificatória) para o segundo (Cf. G. Deveretix, 1965; J. Pouillon, 1971).

124
 

- a identificação do latia com o pai (flecha 11), segundo a qual o wau

trata o latia como se fosse o marido da sua irmã e o latia trata o wau como se
fosse o irmão da sua mulher (Bateson, 1936):

A 6,C-- &

WAU

L5 LAUA

Desta forma a cerimônia Naven, no seu duplo jogo de identificações, permite


compreender a conduta extraordinária do wati, que se oferece

sexualmente ao laua apresentando-lhe o traseiro (estas identificações poderiam


ser formuladas, diz Bateson, como se o irmão da mãe dissesse: «Eu sou a minha
in-nã» e «o meu sobrinho é o marido da minha irmã»). Logo, «consideradas
simultaneamente as duas identificações, é perfeitamente lógico que o wau se dê
sexualmente ao rapaz (laua), pois é a mulher deste último» (Bateson, 1936, Pág.
92). É igualmente possível entender a sua função integradora, de um ponto de
vista estrutural, surgindo-nos como um circuito autocorrectivo da tensão
simétrica entre clãs - o do Wati e o do Latia -, através destes rituais
complementares que corrigem a ameaça de cisão (Bateson, 1958, pp. 174-6).

Se usássemos agora uma óptica psicanalítica, poderíamos encarar o

papel complementar do tio materno como forma de assegurar «a distância

da criança face aos genitores», possibilitando~lhe a representação dos afectos


de amor e ódio (A. Green, 1977). Por isso o tio materno seria aqui, segundo
Green, «um agente de equilíbrio, que permite a derivação sobre ele de atitudes
afectivas que, de outra forma, estariam bloqueadas por uma saturação excessiva
entre pais e filhos»I`).

(10) Segundo o antropólogo Francis Martens, é normal que onde a organização

social privilegia o papel do pai - isto é, onde há o poder - sejajunto do tio


materno que a criança encontre consolação para os rigores da lei; veja-se,
segundo Martens, o caso dos artistas, por definição «fora. da lei», que adoptam
muitas vezes como pseudónimo o património da sua família

125
 

A estruturação edipiana, centrada no conflito entre a bissexualidade psíquica e


a identidade sexual, leva a que seja colocada em primeiro plano a triangulação
criança/pai/mãe:

PAI MÃE

CRIANÇA

Mas não podemos esquecer que o conflito edipiano se duplica numa

outra diferença, a de gerações, e é aqui que um terceiro elemento, neste caso o


tio materno, cria a abertura à diferenciação criança/pais, como

Green faz notar:

PAI (geração 1)

TIO MATERNO

CRIANÇA (9eraç@,o 2)

Diferenciação geracional nem sempre clara com que o terapeuta familiar


frequentemente se confronta, face à amálgama dos subsistemas familiares,
conceptualizada nas noções de «família aglutinada», «filho parental» (Minuchin,
M. Bowen e outros), mito da «harmonia», em que todos se amam igualmente porque
todos são iguais (Stierlin, etc.), etc.

Não há dúvida que a nossa sociedade apresenta um menor grau de diferenciação


geracional, estabelecida menos rigidamente, com limites

mais esbatidos, o que poderá conduzir a uma «indiferenciação» no seio

da família, mais ou menos aglutinada, sem delimitação precisa dos subsistemas


conjugal/parental/fraternal/filial. Por isso o terapeuta fami~ liar, sobretudo
quando orientado numa estratégia «estrutural», procurará delimitar os
subsistemas familiares, traçando claramente os seus limites, reestruturando-os
nas suas funções (caso, por exemplo, de um filho

materna: assim Pablo Ruiz que se tomou Picasso, e Charles Dodgson que foi Lewis
Carrol (F. Martens, 1975).

126
 

«parental» com funções «executivas» que o enquadram no subsistema

parental, isolando-se da fratria. Cf. S. Minuchin, 1974). Por isso também uma
intervenção terapêutica como a de Murray Bowen, privilegiando o

processo emotivo de aglutinação da família nuclear - a «massa indi-

ferenciada do eu da família» (M. Bowen, 1966) - e a sua interdependência do


campo emotivo multigeracional, com grande influência nas suas moda-

lidades de funcionamento, terá como intervenção de base o processo de definição


e diferenciação do self da família de origem. Diferenciação fúlcral, na medida
em que o indivíduo interage relacionando-se segundo mecanismos da sua família de
origem. Assim, por exemplo, um indivíduo

que se separa da sua família de origem, não por autonomia emotiva, mas

por «corte emocional» (the emotional cut-off), tenderá a manter esse modo

de funcionamento nas suas relações futuras.

Partindo da triangulação primária pai,,. mãe

ego

Bowerí considera que, em sentido lato, a «quantidade de ansiedade tende

a ser paralela ao grau de ligação não resolvida na familia» (Bowen, 1972), sendo
um dos mecanismos mais eficazes da sua redução um sistema

relacional relativamente aberto no quadro da família extensa, referida por Bowen


mais como a rede de parentes vivos do que o sistema de três

gerações, a formulação mais corrente em terapia familiar(”).

(11) A recuperação de pontos de referência na história familiar, a comparação do

presente com o passado, criando abertura no futuro, permite que a família

mais facilmente se mantenha. Numa situação sociocultural de esvaziamento,


distanciação, separação cada vez mais fechada sobre si própria, a família

nuclear actual, sobretudo em meio urbano, vê diminuída a rede de relações


pessoais com a família extensa, vizinhança, etc. Por isso nos confrontamos

por vezes com grupos familiares rurais que mantêm em meio urbano uma

rede de relações mais ou menos hermética, que lhe permite ao mesmo


 

tempo proteger-se do envolvimento em relações citadinas e manter as suas

orientações rurais. Por isso também não surpreende que possa surgir como

proposta de intervenção terapêutica a de uma «retribalização»:

127
 

Delimitando fronteiras, definindo subsistemas, diferenciando a família, o


terapeuta familiar encontra-se assim numa posição análoga à do antropólogo no
terreno que analisa os subsistemas de parentesco em

busca da sua estrutura «escondida»; só que, face à multiplicidade de


«arrumações» possíveis da família actual, à singularidade das regras de cada
família, o terapeuta familiar, ao mesmo tempo que observa e modela

o «mapa» da família concreta que o procura, ao mesmo tempo que constrói as


«lentes» que lhe perinitem ler o território(12>@ comete-se simultaneamente
como elemento terceiro que, entrando no sistema

Partindo da elaboração do conceito de «rede social» pela antropologia britanica


(E. Bott, J. Bames, etc.), os terapeutas R. Speck e C. Attenave

utilizam a noção de «tribo» como metáfora da rede social, que inclui o

núcleo familiar e todos os parentes de cada elemento, mas também amigos,


vizinhos, companheiros de trabalho, etc. Assim, será esta rede social que irá
ser tomada como unidade de intervenção, considerando-se que possui em si

mesma os recursos para desenvolver soluções criativas face às situações difíceis


dos membros. É este fenômeno de rede, induzido na tentativa de

resolver uma crise, que leva à interacção do grupo composto pelo núcleo
familiar, parentes, vizinhos, etc., durante a qual todos mantêm um contacto
contínuo e variado entre si, que produz a «retribalização».

«Retribalização» que não se confunde com a utilização de toda a rede

social em que o indivíduo se insere. Por isso Elizabeth Bott, ao reavaliar em


1971 as repercussões do seu trabalho pioneiro de 1957, Family and Social Net-
work, particularmente no domínio terapêutico, coloca algumas objecções a uma
«network therapy» (isto é, em que a rede social mais extensa é chamada ao
«setting» terapêutico), defendendo em contrapartida a validade

da «terapia familiar» e da «terapia tribal» (ou retribalização), visto nestes


dois casos «o terapeuta lidar com um grupo pré-existente com suficiente

identidade colectiva para poder entrar ou sair do contrato terapêutico» (E.


Bott, 197 1, Reconsiderations). (12) Em 1970, em conferência de homenagem a A.
Korzbski, Bateson retoma a célebre distinção deste autor - «o mapa não é o
território» -, chamando a atencão para a necessidade de não confundirmos estes
dois níveis, o do

«Modelo» e o da «substancia». Distinção que o terapeuta terá de ter sempre


presente: uma coisa é o seu modelo de «leitura» da família, qualquer que ele
seja, uma outra a família concreta que tem perante si.
 

128
 

familiar «doente», lhe dá meios para se redefinir e reestruturar. Não

tanto como perito, mas sobretudo enquanto olhar mais objectivo face ao

sistema familiar, o terapeuta oferece-se como elemento que possibilita a

abertura à situação de conflito, doença ou sofrimento que a família lhe

traz. Objectividade que lhe advém da sua posição de observador que, partindo
das «transacções» da comunicação familiar, acede às suas

«regras» de comportamento. Isto é, observando os padrões de comunicação


repetitivos, as redundâncias( 13) do sistema familiar, no seu duplo nível do
conteúdo (transmissão de informação) e ordem (definição da relação entre os
informadores), o terapeuta poderá inferir as «regras» da família, metáfora por
ele próprio forjada (D. Jackson, 1965).

A partir daqui, o terapeuta poderá ajudar a família a mudar, a criar


alternativas, a modificar os seus padrões habituais de comportamento, podendo
para isso introduzir-se no sistema familiar, triangular activamente com ele,
abrindo deste modo brechas no status quo, dando possibilidade de saída para o
conflito, quanto mais não seja pela crise que a sua «intromissão» pode
desencadear.

Ao procurar delimitar os conceitos básicos de uma poleomologia, isto é, de uma


ciência geral do conflito, Julien Freund distingue a «crise» -

etimologicamente, faculdade de julgar, diferenciar, decidir - do «conflito» -


etimologicamente, choque, confronto entre duas forças que se medem.

É a ausência ou dissolução de um terceiro termo, suporte das contradições, que


transforma a crise em conflito, conduzindo à bipolarização(14)@ transforrnando
as contradições em contrários antinómicos.

Talvez a reflexão sociológica de Freund nos tome agora mais clara a

fecundidade de uma intervenção do terapeuta como elemento terceiro no

sistema familiar em geral e, mais especificamente, em terapia conjugal (talvez


aqui a bipolarização seja observável mais frequentemente... sistematizada
sobretudo na intervenção estratégica de J. Haley.

(13)Cf. Bateson(1967): «Éprecisamente esta estruturação ou esta previsibilidade

dos acontecimentos particulares, no interior de um conjunto mais vasto de


acontecimentos, que é chamada “redundância"» (pág. 163). (14) Para exemplificar
sociologicamente a bipolarização recorre J. Freund, entre outras situações, à
oposição e divisão de grupos no Portugal de 1976...
 

129
 

Partindo da consideração de que, de um ponto de vista biológico, o

triângulo é a unidade natural, Haley analisa as situações de patologia como


situações em que há uma «desarrumação» das hierarquias familiares.
0 sintoma será então visto como uma «metáfora da confusão da organização
familiar» (Haley, 1976), uma confusão das hierarquias da organização familiar.
Enquanto sistema hierárquico, a família contém várias barreiras, sendo a mais
simples a das gerações.

A situação patológica significará então, na perspectiva de Haley, a

transposição das barreiras intergeracionais, através do que este terapeuta chama


«coligações» (isto é, processos de acção comum entre duas pessoas contra uma
terceira, distínguindo-se desta forma das «alianças», estabelecidas entre duas
pessoas em função de um interesse comum, independentemente de uma terceira), da
oposição entre duas hierarquias ou da sua instabilidade, desorganizando a
estrutura familiar e levando à «luta pelo poder».

A «luta pelo poder» consiste, no essencial, em estabelecer coligações no seio da


família que, denegadas e repetidas, geram a situação patológica dos «triângulos
perversos». Quais as suas características? São essencialmente três:

Vk Os três elementos do triângulo são de gerações diferentes;


2a. No seu processo de interacção comum, um indivíduo de determinada geração
forma uma coligação com indivíduo(s) de outra geração contra um indivíduo da sua
própria geração.

3*. Esta coligação é denegada, permanecendo «vendado» o curto-

-circuito de gerações. Se esta violação geracional se toma repetitiva, o

sistema tornar-se-á patológico (Haley, 1967, pp. 67-68 )(15).

Se analisarmos a rede familiar em termos de triangulações, prossegue

(15) 0 conflito edipiano será aqui interpretado como uma coligação velada entre

gerações, cujas variações reflectem, possivelmente, as mudanças da estrutura


cultural da autoridade (Haley, 1967). Nesta perspectiva, o tabu do incesto

resultaria do reconhecimento de que as coligações entre gerações perturbam


gravemente todos os participantes da rede familiar.

Poderíamos perguntar o que distingue a «solução» iatmul deste «triangulo


perverso», base da patologia: precisamente a sua ritualização.

130
 

Haley, verificamos que qualquer elemento da família forma o ponto nodal (nexus)
de um grande número de triangulos e é o único a ocupar esse

lugar, pois nunca encontraremos duas pessoas numa mesma situação contextual. Por
isso toda a possibilidade de comparação se toma impossível, por isso toda a
patologia é sempre diferente.

Um sistema familiar patológico é pois uma rede de «triângulos perversos», cuja


persistência exige, no mínimo, a colaboração de duas pessoas de diferentes
gerações, colaboração inscrita no campo mais amplo da rede familiar, mesmo que a
distância geográfica separe os

elementos familiares e, sobretudo, as diferentes gerações. Neste aspecto, Haley


não considera que a influência intergeracional seja menor na

família moderna, «em que a comunicação e suas repercussões se

transmitem no conjunto mais vasto da família, qualquer que seja a

distância geográfica que separa os seus rnembros» (Haley, 1967).

A estratégia terapêutica consistirá então em «subverter» estes diferentes


triangulos, pelo manejo que o técnico familiar - este, enquanto tal, «é já de
uma geração diferente, de uma ordem diferente na hierarquia da autoridade» -
pode operar, estabelecendo novas coligações, temporárias, com as diferentes
díadas do sistema familiar.

Partimos de uma reflexão sobre a sociedade e a família. Detivemo-nos em Bateson,


nalguns aspectos da sua análise do sistema de relações iatmul, particularmente
na cerimônia de Naven. Sem surpresas, demo-nos conta de que falávamos de algumas
estratégias de intervenção em

terapia familiar, estimuladas talvez pela fecundidade de uma investigação que,


da biologia à antropologia, dos processos comunicativos interpessoais e
intergrupais à patologia das sequências comportamentais familiares, colocou
Bateson como ponto de referência central da teorização e

intervenção terapêutica familiar. Percurso modelar de uma reflexão


multidisciplinar, sem analogias fáceis nem confusões metodológicas, visando uma
fundamentação epistemológica do espírito humano - que o levaria a trabalhar
febrilmente, sob a ameaça da morte próxima, na obra de síntese a que
significativamente chamou Mind andNature-, Bateson ilustra exemplarmente o que
nos propúnhamos salientar: um horizonte

possível do encontro e confronto da antropologia e da terapia familiar.

(Junho de 1983)
 

131
 

VIII A FORMAÇÃO EM TERAPIA FAMILIAR

Todos os modelos de formação psicoterapêutica estão intimamente relacionados com


o tipo de psicoterapia que se pretende treinar.

As terapias psicanalíticas e grupo-analíticas treinam os seus candidatos

através de uma rigorosa forrnação teórica e de uma supervisão indirecta em que o


candidato relata ao supervisor as suas sessões. A relação cliente- _terapeuta-
supervisor é diferida no tempo, e o cliente nunca conhece e não

sabe que existe um supervisor.

Em Terapia Familiar o modelo de formação é aberto e directo, isto é, a


supervisão do candidato é feita na própria sessão através do espelho
unidireccional ou da co-terapia.

Mas quem pode ser terapeuta familiar? A Terapia Familiar exige uma larga
experiência prévia no campo psicológico, numa actividade profissional mal
correlacionada (psiquiatria, psicologia, serviço social, enfermagem, educação).

Esta experiência prévia não só permite adquirir traquejo de contacto com


situações difíceis como leva a que o técnico «cresça» e se tome mais

flexível nas suas apreciações e sentimentos dos outros. A experiência de vida na


formação de um terapeuta familiar é para nós um dos factores na

selecção dos candidatos. Não acreditamos que um homem ou mulher que não tenha
passado pelas vivências boas e duras da relação com os outros

possa vir a ser um terapeuta competente.

Um dos problemas que se impõe sempre que se fala de formação de terapeutas é o


da análise individual dita didáctica. É importante ou não

que o terapeuta tenha feito um trabalho pessoal psicoterapêutico? Recusamos a


classificação maniqueísta de terapeutas em bons e maus, consoante tenham ou não
feito uma análise pessoal. Mas estamos

133
 

frontalmente em desacordo com aqueles que pensam poder trabalhar com

pessoas seinjamais teram passado pela posição de doentes. A experiência dos


técnicos viverem uma reflexão sobre si próprios vai-lhes permitir no seu futuro
terapêutico estarem mais próximos dos clientes e a sua

patologia individual invadir menos o contexto terapêutico.

Na Sociedade Portuguesa de Terapia Familiar incentivamos a passagem dos


candidatos por uma terapia individual, grupal ou familiar, mas não fazemos
qualquer escolha sobre o tipo de terapia, competindo-lhes decidir sobre isso.

As linhas mestras da formação para terapeuta familiar são a formação teórico-


prática, a posição do candidato no grupo de formação e o trabalho
com a sua própria família.

1. Trabalho teórico-prático

Ao longo dos quatro anos de treino os candidatos recebem toda a informação


disponível sobre teoria da informação e da comunicação, teoria geral dos
sistemas, escolas de terapia familiar, história da terapia familiar em Portugal
e no estrangeiro.

Os dois primeiros anos são eminentemente teóricos, sendo feita observação de


entrevistas familiares em videotape, mas sem que os candidatos tenham
responsabilidade terapêutica.

No terceiro ano os alunos conduzem regularrnente primeiras entrevistas com


supervisão (atrás do espelho unidireccional) dos monitores.

Ao longo dos quatro anos cada candidato faz uma ou mais terapias familiares,
sempre com supervisão e discussão com todo o grupo de formaçã o.

2. Posição individual no grupo de formação

Pensamos o grupo em formação como um sistema com uma finalidade comum: tomar-se
terapeuta da família. Este sistema, em relação com o

sistema de monitores, adquire uma história e uma dinâmica proprias que


ultrapassam as suas componentes individuais. Tal como numa família,

134
 

criam-se tensões, alianças, coligações, e a posição de cada um dos alunos

adquire uma função no grupo que é importante explicitar e trabalhar.


Norrnalmente os candidatos reproduzem no grupo a sua função habitual na
instituição onde trabalham. Os conflitos institucionais, que são muitas vezes
vistos em termos de patologia individual (fulano é psicopata, fulano é
histérico), são sempre o resultado de sistemas rigidificados que criam sintomas
como qualquer família. Quantas vezes não conseguimos relacionar-nos com um
colega de trabalho que tem um comportamento difícil profissionalmente e depois
vivemos uma situação social com ele e ficamos agradavelmente surpreendidos pela
suposta alteração da sua personalidade.

Em todos os grupos de formação aparece o bode expiatório, o deprimido, o


maníaco, o criativo, o obsessivo, etc. Quando é possível que o sistema se
aperceba da importância transitória destas diferentes personagens para a sua
vida talvez possa tomar-se mais flexível e

canalizar a sua energia conflitual para outras tarefas mais gratificantes.

3. Posição do candidato na sua família de origem

Cada técnico que pede uma formação em Terapia Familiar, para além do seu desejo
expresso de vir a trabalhar com famílias, traz consigo toda a sua família que o
vai acompanhar durante a vida.

Pensamos que o trabalho de diferenciação do selfindividual em relação ao self


familiar (M. Bowen) de cada candidato vai ajudá-lo a, no futuro, olhar as
famílias de outra forma.

0 genograma individual é apresentado no grupo e trabalhado no

sentido da compreensão da motivação de cada um para a terapia e da sua posição


na família de origem e nuclear. As cenas da vida familiar mais importantes são
feitas em role-play, em que os colegas de grupo e os

monitores adquirem o papel de figuras importantes da vida do aluno.

Este trabalho muito pessoal e íntimo vai levar progressivamente a uma

estruturação do grupo e ao desaparecimento das tensões negativas e bloqueadoras.

Os monitores não têm neste trabalho uma posição de fora e abstinente.

As suas experiências pessoais e terapêuticas podem ser partilhadas com

135
 

o grupo. Os terapeutas familiares mais experimentados partilham com o

grupo em formação não só os aspectos técnicos e teóricos como a sua

própria vivência familiar nos aspectos em que contribuiu para o trabalho


terapêutico.

A estrutura de fonnação não é rígida, porque assumimos que em

qualquer sistema a retroacção (feed-back) é um elemento importante para a


correcção dele próprio. Assim, em todos os momentos da formaçã o, esta é
discutida e analisada pelos monitores e pelos elementos que a recebem

de modo que o grupo vai evoluindo e «crescendo» sem disfunções.

136
 

Ix CASOS CLíNICOS

Caso Clínico nº 1* -por Helena Silva Araújo

«Se ao que busco saber nenhum de vós responde Porque me repetis -vem por aqui?
»

José Régio

Em Março de 1982 a mãe pede uma consulta para o filho, dizendo que fora enviada
pelo professor pois o Pedro não aprende na escola; tem 10

anos e frequenta ainda a l1@ classe.

Faltam às duas consultas que foram sucessivamente marcadas. Há um novo pedido de


consulta em Novembro do mesmo ano, agora feito pela avó materna, que volta a
referir as dificuldades de aprendizagem do Pedro. Está há 4 anos na escola -
dois na escola oficial e dois num

externato particular - e não consegue aprender. É além disso muito irrequieto,


por vezes mesmo mau, diz.

A família «não acha» mais problemas na criança e tem tentado tudo

para o interessar pela escola. 0 pai faz-lhe todas as vontades e promete-lhe


coisas se ele aprender e, neste ano lectivo, arranjaram-lhe uma explicadora.

0 Pedro vive com o pai, de 53 anos, dono duma tabacaria, com a mãe

de 30 anos, empregada de escritório, e com um irmão de 2 anos, José

Caso seguido no Centro de Saúde Mental Infantil de Lisboa por Helena Silva
Araújo e Antônio Trigueiros.

137
 

Filipe. Passa parte do dia, quando acaba a escola, em casa da avó materna. Esta
informa que o pai é de facto padrasto do Pedro. 0 verdadeiro abandonou a mãe
quando a criança tinha 11 meses, e aquela voltou com

o filho para casa dos seus propnos pais. Casou novamente com o actual marido
quando Pedro tinha 3 anos. 0 irmão é filho deste marido.

A avó acha que o padrasto trata a criança muito bem, como se fosse também filho
dele e só quer que ele aprenda na escola e para isso promete-lhe tudo.

Inicialmente disseram ao Pedro que o pai tinha morrido, mas

actualmente ninguém fala disso, admitindo que o padrasto é de facto seu

pai. A avó põe como condição da vinda à consulta que não se faça referência ao
assunto. (Estes foram os elementos transmitidos pela avó à assistente social do
serviço, C.S.M.I.L., pelo telefone).

Os dois técnicos que se vão ocupar do caso, em co-terapia, ficam atentos ao que
parece a grande ambivalência da família em pedir, ou não, uma ajuda para os seus
problemas, traduzida pelos pedidos de consulta e a sua não comparência quando
estasforam marcadas, originando um intervalo de 9 meses entre o primeiro pedido
e a primeira sessão enfim realizada.

A primeira consulta realiza-se em Dezembro de 1982, tendo sido pedida a presença


dos pais e dos dois filhos bem como da avó materna, que parecia muito implicada
na situação.

No dia marcado para a consulta não se encontra o processo, e por isso os dois
terapeutas realizam a consulta sem nada saberem da família e do seu pedido, nem
das exigências postas pela avó.

Observando a família na sala de espera pensamos tratar-se duma mãe com 2 filhos
e os avós. A mãe parece deprimida e está sentada um pouco à parte. 0 «avõ» toma
conta e brinca com a criança mais nova, que depois traz ao colo para o gabinete.

Ao iniciarmos a consulta verificamos que na realidade se trata de um casal em


que há uma grande diferença de idades, e o pai é praticamente da mesma idade da
avó materna.

Começa o pai a falar, referindo a grande preocupação que têm pelo facto de o
Pedro não aprender na escola e como têm feito tudo para o

interessar. Acha também que o Pedro é muito infantil, só quer brincadeiras de


miúdo pequeno e exige que quando o pai traz um brinquedo para

138
 

o irmão pequeno traga um igual para ele, querendo tudo o que o irmão tem, sem
compreender que já é crescido. Eles não percebem o que se passa, pois acham-no
inteligente. Recentemente o pai prometeu-lhe um relógio e ele aprendeu a ver as
horas de um dia para o outro.

A avó confirma as dificuldades e acrescenta que ele se porta mal, sempre a


guerrear com o irmão, nunca está sossegado e, ultimamente, revolta-se muito
contra os adultos.

A mãe fala só quando directamente citada, explicando que sempre foi assim
calada. Também ela acha o Pedro inteligente, não percebendo porque não aprende.
0 pai, que é um homem com bastante à-vontade e

muito comunicativo, queixa-se um pouco do feitio da mulher, que por vezes o


deixa envergonhado perante os amigos, com o seu feitio triste e inibido.

A mãe apresenta uma carta da professora que diz o seguinte: «Sendo bastante
fraco em Matemática é contudo na leitura e escrita que ele encontra as maiores
dificuldades. E bastante estranho que, em

quatro anos consecutivos, o Pedro não tenha conseguido fixar o nome das

letras e os respectivos sons; têm sido tentados vários métodos, mas com

nenhum se conseguiu pôr o Pedro a ler».

Os pais foram alertados para esta situação que não nos parece comum, pois o
Pedro está com 10 anos e não sabe ler, nem conhece o nome das

letras. Em comportamento é uma criança «extrernamente desatenta, um

pouco turbulenta e muito mandriona».

Noutra carta, a directora da escola chama a atenção para os graves problemas de


indisciplina do Pedro na aula, problemas que ela teme possam vir a pôr em risco
o estágio que alguns jovens professores estão a efectuar na escola.

Esta primeira entrevista foi dominada pelas queixas dos pais e avó

quanto às dificuldades escolares, infantilidade e mau comportamento actual do


Pedro, na escola e em casa. Procurou trabalhar-se um pouco a possibilidade de
ciúmes do Pedro em relação ao irmão mais novo, que na sessão solicitava
constantemente o pai, hipótese que causou grande surpresa aos adultos.

A família surgiu-nos como simpática, embora nos parecesse muito defensiva,


tentando centralizar as suas preocupações exclusivamente nas

dificuldades do Pedro.
 

139
 

Para os terapeutas parecia haver qualquer coisa de ambíguo mas

dificil de localizar (lembramos que nada sabíamos do que fora comunicado à


assistente social na ocasião do pedido). Por isso, os terapeutas acabaram a
sessão comunicando à família que a situação ainda lhes parecia pouco clara e
pedindo-lhes que, até à sessão seguinte, mantivessem os seus

comportamentos habituais, de modo a permitir-lhes tentar entender melhor a


situação.

A segunda sessão realizou-se em Janeiro de 1983, igualmente com os pais, os dois


filhos e a avó. Entretanto os terapeutas tomaram conhecimento da história da
família e da interdição expressa pela avó de se falar no facto de o pai ser na
realidade padrasto do Pedro.

Na sala de espera o pai continua a brincar com o filho mais novo, que novamente
traz ao colo para o gabinete e de quem se ocupa durante toda a sessão; a avó e a
mãe estão sentadas perto, embora sem comunicarem, e o Pedro está sentado
sozinho, no outro lado da sala.

A mãe começa dizendo que as coisas estão pior. 0 Pedro interessa-se cada vez
menos pelos trabalhos da escola, só quer brincar com os

carrinhos ou com outras brincadeiras muito infantis, não vai brincar com os
rapazes da sua idade, só quer fazer tudo o que o irmão faz.

0 pai concorda e diz que, pelo seu lado, passou a ter a preocupação de sempre
que traz qualquer brinquedo ou guloseima para o mais novo trazer

igual para o Pedro, embora continue com dúvidas que isso esteja certo, pois o
José Filipe é muito mais pequeno.

A avó diz, num tom um pouco zangado e acusatório, que o Pedro

lembrou algumas vezes, quando o repreendiam, o que nós disséramos na primeira


consulta, que todos deviam manter o seu comportamento habitual.

Nesta altura os terapeutas comentam que, apesar da família nos

transmitir que tudo está pior, o Pedro e a mãe parecem-nos estar hoje com um ar
mais alegre. Um dos terapeutas faz notar que o Pedro vem hoje de gravata e que
isso costuma ser um acontecimento importante para

os rapazes.

Com grande satisfação o Pedro conta-nos que fez anos e que foi a

mãe que lhe deu a gravata. Há um momento de satisfação e alegria de todos.


 

140
 

Em seguida, os terapeutas lembram que na primeira entrevista não sabiam o que a


avó dissera à assistente social quando pedira a consulta, por não se ter
encontrado o processo. Lembram ainda que, no final da sessão, a avó tinha
proposto dizer-nos qualquer coisa em particular, o que não aceitáramos, por nos
parecer que deveríamos continuar a falar todos juntos; e de como estanos era
pessoalmente uma situação desconfortá vel, falarmos todos mas saberinos que
existe um segredo que não nos será possível abordar. Compreendemos que numa
família os adultos por vezes

decidam que há assuntos que não é conveniente partilhar com os filhos, pois são
assuntos de crescidos, mas na nossa experiência temos verificado que,
frequentemente, são falsos segredos que todos mais ou menos

conhecem mas fingem não saber.

É deliberadamente que os terapeutas introduzem o tema do segredo, que lhes


parece poder ser um dos núcleos mais importantes da situação actual, hipótese
que vãoprocurar testar, embora cautelosamente, pois ir directamente contra ele
seria perigoso por ameaçar o equilíbrio actual dafamília, conseguido à volta
desse segredo.

Igualmente é importante para os terapeutas retomarem rapidamente

o seu poder terapêutico (batalha pela estrutura) que seria anulado se

aceitassem continuar a trabalhar apenas segundo as regras impostas pela família


-falar-se apenas do que ela autorizasse. No entanto, os

terapeutas não deverão tentar desvendar o segredo a todo o custo, atacá-lo


defrente, pois seria atacar a homeostasiafamiliar e correr o risco de tornar
impossível a sua aliança com a família, inviabilizando a sua

intervenção terapêutica.

0 pai acha que ele ou a avó poderiam falar connosco em particular; também não
lhe agrada esta situação (curiosamente exclui a mulher, confirmando-nos assim a
ideia do seu fraco poder na família, liderada por ele e seguramente pela avó).

De resto, acrescenta o pai, já se tem posto a questão dum dia terem que falar
com o Pedro e pensa que o nosso conselho poderá ser importante. Pessoalmente
pensa que não é ainda altura, por o Pedro ser muito infantil, não liga a nada,
não quer saber de nada, não é capaz de ter uma conversa

direita, «parece começar muito bem mas depois mete qualquer coisa pelo meio sem
sentido».

0 Pedro é muitas vezes o guardião da homeostasia familiar e sobre


 

141
 

ele recai, mais do que sobre qualquer outro membro da família, o

paradoxo do segredo: «é proibido conhecê-lo e é proibido esquecê-lo».

Pergunto ao Pedro se ele é capaz de imaginar do que estão a falar e do que a avó
nos queria dizer em particular.

Não faz ideia nenhuma. Sinal, dizemos, de que o segredo tem sido bem guardado
mas, mesmo

sem falarmos sobre qual é esse segredo, gostaríamos de compreender o

receio que cada um tem do que poderia acontecer se os filhos o viessem a


descobrir.

É a avó quem primeiro nos fala do medo que tem que o conhecimento desse segredo
possa fazer perigar a união da família. Pensa que poderia passar a haver um mau
entendimento entre eles, o Pedro poderia responder torto ao pai e este zangar-se
e a mãe acabar por se meter entre os dois.

0 que mais preocupa o pai é que o Pedro pense que ele dá mais atenção ao Zé
Filipe.

A mãe acha que o que a preocupa mais é outra coisa, não é tanto o

receio que o conhecimento do segredo faça mal ao Pedro, mas que depois ele faça
mais perguntas.

Perguntamos em seguida se já pensaram qual seria a altura ideal para falarem


sobre isso.

Novamente é a avó quem primeiro toma a palavra para dizer que quando o Pedro se
portar bem, quando for um homenzinho e não for mal educado.

0 pai tem dúvidas, repete que acha que ainda é cedo por ele ser muito infantil e
irresponsável, porta-se como se não compreendesse, não liga a

nada e provavelmente não iria ligar.

0 Pedro mostra-se como se não fosse curioso, comentamos.


0 pai conta como uma única vez o Pedro lhe perguntou porque é que o irmão não
tinha o mesmo apelido que ele. Queremos saber o que lhe responderam. Nada,
porque ele não insistiu.

A avó explica agora ao Pedro que isso, por vezes, acontece nas

famílias; ela teve 7 filhos e dois deles não ficaram com os dois apelidos dela
como os irmãos, mas apenas com um.
 

Perguntamos ao Pedro o nome e ele diz o seu nome completo. Perguntamos-lhe de


seguida o nome do irmão, ao que responde: «José Filipe, nã o me lembro do
resto».

142
 

Neste momento os terapeutas vão redefinir o problema. Comentam como o Pedro tem
sido bom filho não sendo curioso e respeitando os segredos da família. No
entanto, acrescentamos que para aprender a lere a interessar-se pelas coisas da
escola é preciso ser curioso.

Talvez o Pedro pense que aprender a ler possa ser perigoso, poderia ler coisas
que não deve, o bilhete de identidade ou outros papéis.

0 pai, um pouco admirado, concorda que na verdade para aprender é preciso ter
curiosidade.

Procuramos então saber se já combinaram, quando chegar a altura

própria, quem vai falar com o Pedro, ou com o Pedro e o Zé Filipe se ele

já for mais crescido.

0 pai achaque será ele. «A sós ou com mais alguém? » -perguntamos. A sós com o
Pedro, numa conversa de homens.

A mãe não concorda, acha que terá que ser ela a falar com o filho: «se

ele me perguntar eu digo-lhe e quem estiver está, mas acho que é a mim

que compete falar com ele».

A avó discorda do que os terapeutas disseram. Acha que o Pedro é

muito curioso, «aposto que quando sairmos daqui nos vai perguntar do que
estávamos a falar».

Nesta altura o Pedro, que se tem mantido muito atento a tudo quanto é dito,
intervindo por vezes, começa a rir-se.

«Se queres saber porque não lhes perguntas?», inquirimos. «Aqui ou em casa?»,
quer o Pedro saber, dizendo ainda que gostaria mais que fosse aqui. Concorda,
quando lhe dizemos que provavelmente ele está com medo que em casajáninguém fale
com ele, mas acrescentamos ainda que os pais têm o direito de escolher quando e
onde deverão falar com os filhos.

Sugerimos que ele pode ir sentar-se ao pé da mãe e perguntar-lhe como ela


gostaria de fazer. É necessário empurrá-lo um pouco, mas acaba por ir sentar-se
junto dela e os dois falam em voz baixa.

Os terapeutas têm muito cuidado em não se substituirem aospais, não chamando a


si responsabilidades que só a eles pertencem.

Procuram ainda facilitar a comunicação mãe-filho que parece um


 

pouco abafada pelo lugar preponderante que a avó e o pai ocupam.


Nesse momento, o José Filipe, que até aí estivera a brincar e a desenhar

solicitando apenas a ajuda do pai, vem sentar-se na cadeira onde o irmão

143
 

estivera, dizendo «eu sou o Pedro». 0 pai diz-lhe que não, que ele é o José
Filipe. «Eu sou grande, eu sou o Pedro», insiste, parecendo querer reocupar a
pos1ç@o central que habitualmente é a sua, manifestando igualmente o seu desejo
de crescer.

0 Pedro diz então que concorda com a proposta da mãe de falar com

ele em casa e, após uma pequena pausa, diz que já sabe o nome todo do irmão,
que foi a mãe que o ajudou. Diz então o nome completo do irmão, que na realidade
tem um apelido diferente do dele.

Partilhando com todos a conversa sobre o segredo, o Pedro pode permitir-se agora
dizer que conhece a diferença de apelidos dos dois.

Nesta sessão, depois de terem redefinido o problema «incapacidade de aprender do


Pedro» em termos sistémicos, relacionando-o com as interdiçõesfamiliares
queprocuram esconder um acontecimentopassado (primeiro casamento e abandono da
mãepelopai do Pedro), os terapeutas entendem que não deverão substituir-se à
família na decisão da sua revelação mas, ao partilharem com todos a admissão da
sua existência

e ao explorarem com eles asfantasias que cada um tem sobre o assunto, diminuem
as tensões que se condensaram nele, esperando que isso permita ao Pedro sentir-
se menos prisioneiro da obrigatoriedade de dar garantias aos pais e avós de que
não sabe o que aconteceu, pois é incapaz de aprender.

A sessão acaba com a marcação dum novo encontro para o mês seguinte.

Faltam à consulta na data marcada. Telefonamos para casa e como

ninguém responde ligamos para casa da avó. Diz-nos que a filha não podia faltar
ao emprego e que lhe pedira para nos avisar e pedir nova

marcação de consulta, mas ela, avó, não tinha conseguido encontrar o

número de telefone do nosso serviço.

Confirma-se a nossa ideia do poder da avó na família e da sua resistência à


nossa intervenção, que ela teme seja perigosa e que portanto começa a tentar
impedir. Pensamos que embora a mãe possa quererfalar com ofilho só ofará quando
a avó o autorizar.

Faltam novamente à consulta. Em Abril de 1983 telefonamos novamente e falamos


com o pai. Este diz-nos que a situação melhorou muito na escola e o Pedro já vai
juntando as letras.

144
 

Ainda não lhe disseram nada. 0 pai continua a pensar que gostaria que ele
tivesse mais juízo para aceitar a notícia. 0 Pedro continua sempre muito
preocupado que o pai traga prendas ao irmão e não a ele.

Fala da dificuldade que têm tido em arranjar tempo para virem à consulta. Já
propôs à mulher que, se ele não pudesse vir, poderia vir ela com o filho, o que
a mulher não aceitou.

Combinamos nova consulta para o mês seguinte. Novamente não comparecem. Os


terapeutas enviam a seguinte carta:

«À Família Silva: avó

pais Pedro e Zé Filipe

Esperámos por vós hoje conforme o combinado com o pai. A vossa

ausência fez-nos reflectir sobre a situação actual da família e admitir que


talvez a vossa decisão de não falar com o Pedro seja a mais prudente neste
momento, perante os riscos que todos temem.

Se o Pedro continuar a ser o bom filho que tem sido, talvez ele consiga
continuar a não ser curioso e a respeitar o segredo da família mas, ao

mesmo tempo, talvez possa mostrar agora alguma curiosidade pelas matérias da
escola.

Queríamos comunicar a todos, em especial à avó, a nossa compreensão pelos


receios que manifestaram quanto à continuação da boa harmonia na vossa família.

Gostaríamos de ir tendo notícias e continuamos ao vosso dispor para quando o


entenderem.

Os terapeutas»

Decidimos contactar com a família após as férias grandes, mas de facto só o


fazemos em Janeiro de 1984.

Ao telefone falamos com o pai. Este mostra-se muito satisfeito com

o nosso telefonema. Tem boas notícias. 0 Pedro anda muito melhor, está a
frequentar a Y classe e já lê bem. Parece outro, interessa-se pelas coisas da
escola e já tem conversas próprias para a idade e vai brincar para a rua

145
 

com os outros rapazes. Este ano mudou novamente de escola e a

professora interessa-se muito por ele.

Os pais ainda nada lhe disseram, fazendo apenas comentários indirectos sobre a
situação, aproveitando-se de situações parecidas existentes com

crianças conhecidas.

Pergunto ao pai como conseguiram uma mudança tão grande. «Não sei, talvez a
idade, ele vai crescendo, eu também lhe prometo coisas se ele aprender, e o ir
aí, se calhar, também ajudou».

Uma vez que o motivo da consulta - incapacidade do Pedro para aprender a ler -
parece ultrapassado, damos por terminada a nossa

intervenção, assegurando aos pais que continuaremos disponíveis para os

atender, em qualquer altura que julguem necessário.

Apenas alguns breves comentários a este caso.

Gostaríamos de citar Guy Ausloos: «Todas as famílias têm as suas leis

próprias que definem o que pode ou não ser feito. Geralmente é a

culpabilidade que resulta da transgressão duma dessas regras que vai dar origem
ao segredo e a todo um conjunto de novas regras muitas vezes patogéneas, com o
fim de evitar a sua revelação.

Os segredos e as regras que eles originam, contribuem para manter a

homeostasia da família e evitar as mudanças vividas como ameaçadoras. Se, num


primeiro tempo, os segredos se podem revelar úteis, rapidamente se transformam
em prisões que impedem qualquer mudança verdadeira, impedindo portanto a
evolução do sistema familiar. Este vai caminhar para um encerrar-se cadavez
maisem sipróprio, para um empobrecimento das suas comunicações, para uma
rigidificação progressiva das suas

estruturas relacionais» (Guy Ausloos, 1980).

Gostaríamos ainda de chamar a atenção para que apenas foram realizadas duas
sessões com a família (em Dezembro de 1982 e Janeiro

de 1983). Os terapeutas, convictos de que o abandono das consultas não

implica necessariamente a interrupção do processo terapêutico, não se


 

desligaram do caso, mas procuraram manter-se em contacto, continuando

a sua intervenção terapêutica quer telefonicamente quer por carta.

146
 

Caso Clínico nº 2 - «ANA: AS MARGENS DE UM CAMINHO»

por Daniel Sampaio / Manuela Fazenda Martins

«Sabendo de quem vens, dir-te-ei o mal ou o bem que tens. »

Ditado Popular

Ana foi-nos enviada por um psiquiatra do serviço, após uma tentativa

de suicídio.

Vem sozinha à primeira sessão. É uma miúda de 16 anos, muito viva, sorridente,
com grande facilidade de contacto. Não parece ter dificuldade em contar o que se
passa e, nesta primeira entrevista individual, procura explicar o que lhe
aconteceu, o que a fez tomar os comprimidos0):

ANA - Acho que é uma vontade muito grande que eu tenho de pegar em mim e ir
embora daqui. Saturo-me das coisas e das pessoas. A minha mãe agora já me aceita
mais, mas nunca me aceitará como eu gostava que me aceitasse.

A partir daqui os terapeutas procuram inserir o momento actual que levou à


tentativa de suicídio de Ana na sua história pessoal, no seu quotidiano, nas
suas preocupações, nas suas inter-relações. Procuram desde início criar um
espaço terapêutico em que Ana possa falar de si, do que sente, das pessoas com
quem vive e com quem se relaciona.

Mostra de imediato dificuldades no seu relacionamento familiar:

dificuldades com a mãe - que sente demasiado próxima - e com o pai, mais
distante (separados desde os 6 meses de Ana, tendo cada um deles casado de novo,
o que, como veremos, tem tido grandes repercussões na

sua vida):

ANA -0 meu pai tem uma vida muito ocupada, trabalha num grupo de teatro. Mora
num sítio oposto a mim, quase nunca estamosjuntos. Tem

(1) Todas as declarações feitas pelos intervenientes nas sessões são


transcrições

rigorosas de partes das suas intervenções. Apenas foram alterados os elementos

de identificação (normas, locais, etc.).

147
 

com a minha irmã uma relação muito melhor; viveu quatro anos com ela.

Ana é uma adolescente muito dividida nas suas relações familiares, procurando
desajeitadamente autonomizar-se. Está dividida entre a

lealdade à mãe, que sente muito centrada em si - sobretudo depois da saída de


casa da irmã, há dois anos: «A minhã mãe perdeu a minha irmã e eu tenho que a
ajudar» -, sacrificando pelas filhas parte da sua vida e precisando ao mesmo
tempo do seu apoio. Ana sente assim uma grande carga sobre os seus ombros:

ANA - Tenho que ter uma grande calma, porque todos precisam de mim. A minha irmã
é para a minha mãe um caso perdido. Ela éfilha do meu pai e eu sou filha dela.

Dividida também em relação ao pai: ANA - Há uns tempos, antes das férias
grandes, tivemos uma

discussão em que eu lhe disse se ter duas meninas bonitas que atéfazem solfejo é
que é ser pai. Ele deu-me duas bofetadas. Eu sei que ele gosta de mim, depois eu
chego ao pé dele dou-lhe dois beijinhos e acabou. E é assim a minha relação com
ele. Ele não tem relações profundas com

ninguém, não tem amigos. Depois tenho um sem número de madrastas que dava para
montar uma orquestra!

A situação é assim difícil para Ana; há momentos em que a única saída é ficar
sozinha:

ANA -Ainda hoje tenho alturas em que só me apetece estar em casa

sem ver ninguém, sozinha com o meu cão a ouvir música clássica.

Tínhamos alguns dados sobre Ana. Tínhamos um primeiro contacto caloroso, em que
o humor e um sorriso aberto não escondiam um olhar bastante inquieto. Tínhamos
também a sensação clara de que a ajuda a

Ana teria de passar por uma clarificação do seu lugar na família, sem o que a
sua autonomização nos parecia pouco consistente. As dificuldades adolescentes de
Ana inscreviam-se nitidamente na confusão das teias familiares; haveria pois que
clarificá-las.

Propusemos-lhe o trabalho conjunto com a mãe, Maria Teresa, e a irmã, Rita, já


que, embora não vivendo com Ana, a saída de Rita tivera um papel central nas
relações Ana/Maria Teresa.

148
 

Na semana seguinte Ana vem à sessão com Rita e Maria Teresa. Rita tem 19 anos;
mostra-se ansiosa e preocupada. É muito comu-

nicativa, com grande facilidade em exprimir o que pensa.

Maria Teresa, de 40 anos, inicialmente mais reservada, mostra uma atitude muito
afectuosa, colaborante, questionando-se logo de início:

MARIA TERESA -Eu dediquei-me demasiado às minhasfilhas, dei-lhes muito o que não
devia, para as ter sempre para mim. Com pavor, não sei, pavor, terror de as
perder. Por isso fiz muitas coisas que não devia e muitas coisas que eu devia
saberpara ser mãe, não sabia, nunca fui capaz de saber ou, se sabia, dizia a
mim própria que não sabia. Por isso eufazia tudo quanto devia e não devia para
as ter.

Rita dá-nos também a sua opinião acerca do que se tem passado com Ana:

RITA -Eu apeguei-me muito à minha irmã, talvez porque ao longo de vários anos
tive para com ela uma certa atitude maternal e ao mesmo tempo de irmã. Eu tinha
sido educada pela minha avó paterna, pelo meu

pai, mas a minha irmã era da minha mãe, era qualquer coisa só dela e...

sei lá, isso originou ao princípio uma grande revolta da minha irmã para com o
meu pai, no fundo para com toda a família do lado do meu pai.

Procurámos ouvir a opinião de Maria Teresa e Rita sobre a tentativa de suicídio


de Ana:

TERAPEUTA A* - Por que é que a Ana teve ideias de morrer? MARIA TERESA - Falta
de umas bofetadas que nunca levou, falta de dizer « ainda sou eu que mando, isto
não é assim».

TERAPEUTA A -Falta de autoridade?

MARIA TERESA -Talvez. Sim, falta de autoridade da minha parte. TERAPEUTA B*


-Como reagiu quando ela tomou os comprimidos? MARIA TERESA - Fiquei preocupada,
trouxe-a para o hospital. Tentei ajudá-la, mas sou incapaz de lhe dar duas
bofetadas. Além de preocupada fiquei triste, porque eu não mereço.

Maria Teresa prossegue, muito emocionada: MARIA TERESA-Eu sofri muito e opai
delasfoi o único homem da

Terapeuta A - Daniel Sampaio Terapeuta B - Manuela Fazenda Martins.

149
 

minha vida... E era pai delas. Eu não queria reagir assim, não estou a

reagir assim com a Ana.

RITA -A Ana não pensou em morrer. Ela tem complexos e precisou de chamar a
atenção das pessoas e dizer «eu existo». Não tomou comprimidos para morrer,
porque se assim fosse tinha tomado ofirasco inteiro. Já uma outra vez tinha
tomado uma dúzia de comprimidos e veio

ter comigo aterrorizada a perguntar «o que é que eu faço? ».

MARIA TERESA - Eufico triste porque penso que se a niinhafilha quer morrer é
porque eu não soube ser mãe, é porque a culpa é minha. Eu denuncio-me a mim,
porque eu é que vivi com ela. Nem sequer denuncio o pai, que não viveu com ela.

TERAPEUTA B -Por que é que tira essa conclusão, como se fosse causa única?

MARIA TERESA -As mães têm muita culpa do que osfilhosfazem e são. Neste caso sou
eu. Eu queria estar muito bem preparada para suportar a saída do pai e aguentar
como se ele estivesse presente, sem

lhes transmitir afalta dele tantas vezes.

TERAPEUTA A - Foi uma grande perda para si? MARIA TERESA - Sim, foi a minha
vida. Se voltasse atrás e me perguntassem se queria morrer ou perdê-lo, eu diria
que queria morrer!

TERAPEUTA A -As coisas ainda estão muito vivas? MARIA TERESA -Não, eu tenho
outro homem. ANA -Não, estão! 0 Paulo é muito boa pessoa, só que eu sei que a

mãe muitas vezes chama Ricardo ao Paulo. Não esqueceu.

MARIA TERESA - Mas é estranho, porque eu não o quero, ainda que hoje vivesse
sozinha. Mas é o homem que eu amo.

ANA -Inconscientemente queres, conscientemente não. RITA -Ela não esqueceu. E,


acima de tudo, foi o único homem que ela namorou. A minha mãe teve uma educação
numa aldeia pequena e

ainda hoje as minhasprimas casam com oprimeiro homem que namoram.

Foi uma educação muito rígida. A minha mãe não foi mulher dele; foi criada, foi
tudo!

A intervenção de Rita abriu-nos o caminho para procurar compreender, por um


lado, a adolescência da mãe, já que cremos que as dificuldades de um
adolescente reflectem muitas vezes as dificuldades da adolescência dos seus
próprios pais; por outro lado, parecendo-nos fundamental
 

150
 

compreender o «lugar» dos elementos da família no território, natopografia


familiar,na dupla perspectiva sincrónica, isto é, posicionamento actual, e
diacrónica, ou seja, num contexto transgeracional, procurámos em

seguida trabalhar na sessão a história da família através do genograma.

Agregado familiar actual de Ana:

PAULO M. TERESA

RITA ANA

Notemos qua a saída de Rita, há dois anos, foi sentida por Maria Teresa e por
Ana como o acontecimento recente mais importante.

Família nuclear de origem:

RICARDO 1:1-@ MARIA TERESA

RITA ANA

A separação de Ricardo e Maria Teresa ocorreu quando Ana tinha 6 meses, situação
que, segundo ela própria, a teria marcado muito devido à instabilidade da mãe.
Para Ricardo, como veremos, esta separação criou problemas ao seu relacionamento
com as filhas.

A separação de Ricardo e Maria Teresa foi resultado da ligação daquele com


Sofia, ligação existente ainda hoje. A ligação de Maria Teresa e Paulo é mais
recente, datando de há cerca de quatro anos.

A tentativa de suicídio de Ana tem em Maria Teresa uma ressonância mais


inquietante ainda, na medida em que, na sua ideia, no suicídio de

151
 

João, filho mais velho de Paulo, amãe deste tiveragrande responsabilidade. Ideia
que vai ao encontro da sua culpabilidade relativamente a Ana.

A tentativa de suicídio vista na perspectiva transgeracional em que nos


colocamos, remete-nos de imediato para o seu carácter, isolado ou não, dentro do
contexto familiar. Como é vivida a ideia da morte? Que mitos ou segredos se
encontrarão ou não ligados ao suicídio? Haverá ou não situações paralelas na
história familiar?

A partir destas interrogações procurámos analisar a história familiar actual e a


das famílias de origem, o que nos deu a conhecer o suicídio do marido de Sofia e
a tentativa de suicídio de Miguel, seu filho de 19 anos, com quem Ana parece ter
bastante contacto e afinidades, dizendo-nos: «Eu sou muito parecida com o filho
da minha madrasta» .

PAULO M. TERESA RICARDO s

(MÃE)

(PAI)

(SUICIDIO) +

21 U_@

JOÃO RITA ANA

OFIA

(SUICIDIO)

E] (tentat. de

MIGUEL SUICIDIO)

Quanto às famílias de origem, obtivemos os seguintes dados:

Família de origem materna (RIBEIRO)

152
 

Maria Teresa Ribeiro, natural de uma aldeia do centro litoral, salienta o


analfabetismo geral do ambiente em que viveu e as dificuldades que teve para
fazer a quarta classe. Por isso, estudar é hoje uma actividade que a absorve
muito, procurando recuperar uma possibilidade que não teve em nova e, ao mesmo
tempo, visando melhorar a sua situação profissional
- dactilógrafa numa empresa de Lisboa. Preocupa-se muito com a

actividade escolar de Ana, dizendo não a querer analfabeta: poderá vir a

ser cantora como parece desejar, mas para Maria Teresa terá que completar o
curso liceal.

Quarto elemento de uma fratria de oito irmãos, Maria Teresa descreve o seu
ambiente familiar: Fui educada numa aldeia muito pequena, com uma educação
rígida. Ainda hoje as minhas sobrinhas casam com o

primeiro homem que namoram. Tinha muitos irmãos, mas era como se fôssemos um só.
Éramos todos muito amigos ( ... ). Fala em seguida do pai com muita
saudade: 0 meu pai era de um carinho, respeito e ternura que jamais vi noutro
lado. Neste momento Rita interrompe: 0 meu avô era

apessoa mais extraordinária que apareceu. Maria Teresa prossegue: Eu tinha 17


anos quando o meu pai morreu. Ele tinha uma pequenafábrica de louça, que agora
é dos meus irmãos, onde nós trabalhávamos todos, pais efilhos. Toda a gente
trabaIhava em casa, toda a gente trabalhava na cerâmica Nascemos ali,
trabalhámos ali sempre, sempre juntos

Após a morte do pai, Maria Teresa vem para Lisboa, casando-se um ano depois: A
minha saída da terrafoi zangada com a minha mãe. Uma

das minhas irmãs tinha uma mercearia e eu estava à porta a falar com

um rapaz. A minha mãe deu-me uma bofetada efoi assim que eu saí de

casa.

Se, para Maria Teresa, Ana é fisicamente parecida consigo, o seu

temperamento e maneira de ser é do lado paterno, ou seja, Graafland, o

que Rita corrobora:

RITA-Nota-se entre todos os Graaflandmuitas características. Não sei porquê, mas


realmente há uma grande tradição genética. Mesmo vivendo separadamente uns dos
outros, há enormes semelhanças. É curioso que a maneira de ser da minha mãe é
muito parecida com a do

filho da minha madrasta, o Miguel. 0 Miguel é parecido com o seu pai, mas ao
 

mesmo tempo tem as características dafamília do lado da mãe,

153
 

ou seja dos Graafland, porque a minha madrasta e o meu pai são primos afastados.

Família de origem Patema: (GRAAFLAND)

ANGELO

RODRIGO GRAAFLANI)

ATAIDE

REGINA

DANIL

.1 F- ---- :?

BRANCA CON1STANÇA

o FLOR

RITA - Um judeu quefoi para a Holanda teve vinte e umfilhos de várias mulheres.
Começou aí a vida dos Graafland. Elesfaziam parte da corte holandesa e foram
perseguidos por serem judeus. Foi assim que um deles veio cá parar. Como era
poliglota,foi tradutor oficial da corte portuguesa. Teve umfilho com o mesmo
nome dele, Rodrigo Graafland, que casou com duas mulheres: uma de origem
italiana, afamília Angelo, e outra portuguesa, de apelido Ataide. A minha
madrasta é descendente dos Angelo e nós somos do ramo Ataide.

Do casamento de Rodrigo Graafland com uma Ataide nasceram cincofilhas, havendo


grandes conflitos entre@duas delas, a Regina e a Matilde. Eram senhoras da
grande sociedade lisboeta; tinham grandes dilemas de homens entre elas e ambas
tiveramfilhos de pais incógnitos.
0 meu bisavô, que não sabemos quem é, estava para casar com a minha

bisavó Regina e só não ofez por intrigas da minha tia Matilde, que por sua vez
teve umafilha de pai incógnito, Branca Flor, que descobrimos há pouco tempo.
Pensámos que ela tinha morrido, porque não Júncio-

154
 

nava da bola e apaixonava-se por tudo quanto era Presidente da República!

Entretanto surge uma outra mulher no meio disto tudo, a Constança, que é sem
dúvida Graafland. Desconfiamos que também seja filha da Matilde... Foi um drama
na família! A Matilde deve ter escondido essa

segunda filha, de pai incógnito também. Quando nasceu foi registada em nome dos
criados que viviam lá em casa, só quejoi sempre criada e

educadapelos Graafland, isto é,pela minha trisavó Regina epela minha tia
Matilde.

Entretanto, esta tia Constança veio a casar com um homem do ramo Angelo, o avô
da minha madrasta, José Angelo Graafland ( ... ).

0 meu avô paterno, Daniel, acaboupornunca tero nome dopai, o que só descobriu
aos 20 anos quandofoipara a tropa. A minha bisavó Regina lutou muito pela vida:
tocavapiano em barespara se sustentar e aofilho. A minha tia bisavó Eugénia
disse que nunca casaria porque tinha visto
* desgraça das irmãs e morreu virgem, segundo consta.

Tudo isto é muito confuso, porque, por exemplo, o meu pai começou
* viver com a minha madrasta depois do marido dela se ter suicidado.

Era um escritor que passava 40 a 60 horas a escrever sem dormirlandava a noite


inteira no corredor a fumar.

TERAPEUTA B -A Rita conheceu-o? RITA - Não, porque nessa altura o nosso ramo da
família não se

dava com o outro ramo Angelo.

MARIA TERESA - Só se uniram depois deles se amantizarem. TERAPEUTA A - Qual


seria a bandeira dafamília Graafland, se a

pudesse resumir numafrase?

ANA - Eu diria assim: Os Graafland são uns loucos. RITA - Eu não diria tanto,
não podemos esquecer que os nossos

antepassadosforam muitoperseguidospor seremjudeus. E ainda mais... A mãe da


minha madrasta diz: «Não se esqueçam que o vosso pai, além de ser homem, é
Graafland», quer dizer, está na bandeira dos Graafland que todos os homens
nãopodem ter só uma mulher, que todas as mulheres

não podem ter um só homem, há uma confusão contínua de várias mulheres e de


vários homens.
 

TERAPEUTA B -A Ana é Graafland ou é Ribeiro?

MARIA TERESA - São as duas mais Graafland.

155
 

A sessão prossegue centrando-se na criatividade dos Graafland, que Ana parece


desejar continuar: ser cantora como Sofia, sua madrasta, ou seguir a carreira
teatral do pai.

TERAPEUTA A - Neste nosso trabalho temos encontrado jovens com problemas


relacionados com a morte, com a vida, com o suicídio, sendo-lhes por vezes muito
dificil receber estas heranças assim contraditórias, ficando com dificuldades em
optar por um certo estilo de família. Estava a pensar se a Ana, atraída por um
lado pelo canto, pelo teatro e pelo apelo dos Graafland e, por outro lado, pela
harmonia, pelo amor e pelo bem-estar dos Ribeiro, não estará indecisa.

ANA - Talvez.

RITA -Aí é que está a questão! É todo umfascínio pelos Graafland que a atraem e,
ao mesmo tempo, toda a calma que a Ana é. Todas as

loucuras que ela querfazer, mas que não batem certo com ofundo dela

própri a.

Quinze dias depois, aparecem-nos apenas Ana e a mãe, por impossibilidade de Rita
e novamente do pai, este por motivos profissionais, justificação que Maria
Teresa não aceita - considera a ausência

de Ricardo sinal de desinteresse, o que Ana contesta.

Um dos terapeutas intervém, prosseguindo a questão dos modelos familiares com


que Ana se confronta.

ANA -Realmente eu acho que sou parecida com outras pessoas, só que não sou essas
pessoas, sou eu mesma.

TERAPEUTA B - Mas eu julgo que a Ana não sabe bem quem é. ANA - Eu não sei bem
quem sou, mas sei que não vou ser igual ao meu pai, ou à minha mãe, ou à minha
irmã, ou à minha madrasta.

TERAPEUTA A -A minha ideia é que se continua apensar muito no

que aconteceu, no quepoderia ter acontecido, aAna nunca mais se torna

uma pessoa só, individualmente;fica sempre dependente da relação com

outras pessoas, nunca mais cresce.

ANA - Sim... É possível. TERAPEUTA A - É um ponto importante. Fica sempre a


pensar: se os meus pais não se tivessem separado ou se eufosse viver com o meu
pai
 

e a Sofia, em vez de viver com a mãe...


156
 

MARIA TERESA - Pode ir à vontade! Enquanto foi pequenina, é verdade, eu não


alinhava nisso. Agora, tudo bem!

A sessão prossegue, tomando-se mais claro que esta aparente aceitação de Maria
Teresa de todas as decisões de Ana esconde uma grande

dificuldade em opôr-se-lhe, em dizer-lhe «não», dificuldade em que os terapeutas


se centram, procurando compreender a sua origem. As dificuldades actuais de
Maria Teresa com Ana, a sua preocupação em dar-lhe todas as facilidades, em
resolver-lhe os problemas do dia a dia -

tarefas em casa, saídas, fins-de-semana, mesada, etc. - vão-se a pouco e pouco


tomando mais claras, parecendo enraizar-se nas dificuldades da sua própria
adolescência, no seu desejo de que as filhas tenham uma vida

mais facilitada:

MARIA TERESA-Na minhajuventudefui muito oprimida. Tínhamos dificuldades, por


isso sempre sonhei dar às minhasfilhas aquilo que eu

não tive. Quando eu era pequena às vezes pensava: que bom que era, por exemplo,
que a minha mãe me deixasse ir a uma festa!

TERAPEUTA A - Portanto, diz mais vezes que sim porque lhe disseram muitas vezes
que não no passado?

MARIA TERESA -Mais vezes é como quem diz! Não sei se alguma vez lhe disse que
não!... Eu digo sempre que sim, senhor doutor. Sabe, os

meus 16 anos eu não os vivi e tinha direito a vivê-los! Eles eram meus! É o que
eu digo sempre à minha filha: aproveita os teus 16 anos, não voltas a tê-los!...

Aos terapeutas pareceu necessário compreender qual seria a posição de Ricardo


face a Ana: permissivo como Maria Teresa ou mais coercivo? Tomou-se assim
evidente a necessidade da sua presença, questão posta abertamente a Maria Teresa
e a Ana. Maria Teresa concorda com a necessidade de Ricardo estar presente, mas
não quer ser ela a contactá-

-lo. Ana mostra-se receosa: quando estiverem um com o outro, se calhar matam-se
e esfolam-se. No entando, no final da sessão, diz que vai contactar Ricardo no
sentido de este estar presente na sessão seguinte.

Ricardo vem à quarta sessão, com Ana e Maria Teresa. Senta-se um

pouco à margem; parece desconfiado e ao mesmo tempo apreensivo, o

157
 

que leva a terapeuta a procurar introduzi-lo no sistema terapêutico,


solicitando-lhe a sua opinião sobre o que se tem passado, sobre a intervençã o
terapêutica com Ana.

RICARDO-Todas as vezes que minhafilha me tenifalado nas vindas

aqui, eu pergunto-lhe sempre: «Estás a tomar remédios? ». Porque o que receio


muito são remédios e coisas assim. Ela diz-me que não e isso deixa-me mais
tranquilo, porque não quero esse sistema de tomar coisas que realmente são
drogas. Verifico agora que este tipo de trabalho é diferente e estou disposto a
colaborar.

Maria Teresa intervém, mostrando-se preocupada com o que sente ser um grande
desinteresse de Ana por tudo: pela escola - aonde a mãe fora

chamada recentemente pela directora de turma, que a advertira do risco de


«chumbo» em que Ana se encontra -, pela casa que o seu quarto reflecte, numa
desarrumação total.

Para Ricardo, este desinteresse é habitual em Ana, mesmo em relação às coisas


que mais parecem entusiasmá-la: foi o que aconteceu com o piano e canto,
iniciados com entusiasmo, mas Ana rapidamente quis desistir, mudando
frequentemente de professores -neste ponto, segundo Ricardo, se a relação
afectiva de Ana com os professores é má, ela desinteressa-se mais facilmente. Na
opinião do pai, tem sido este o modo habitual de funcionamento de Ana: desde a
instrução primária que o seu

rendimento escolardependia sobretudo do professorque tinha, da relação


estabelecida: as dificuldades dos dois primeiros anos só se atenuaram na Y@
classe, quando teve um professor de quem gostava muito.

De resto, eu também era assim, prossegue Ricardo, tantopodia ter um

7 no 1 ‘período como um 18 no 32. Até no que diz respeito às coisas de que mais
gostava eu era como ela: interessava-me, desinteressava-me e só mais tarde
voltava a interessar-me muito. Nisso ela é parecida comigo. Acho que a minha
maneira de ser, não só a minha como de toda afamília, a atraíram sempre muito.

Nesta altura Maria Teresa interrompe~o: MARIA TERESA -Das duas uma, ou realmente
o pai toma posição, leva-a para o pé dele e diz-lhe não, não ou sim, sim. Eu não
faço nada porque sou molengona.

Ricardo mostra-se espantado, diz não compreender o que está a dizer, o que se
discute, pelo que lhe é explicado um aspecto importante das

158
 

anteriores sessões: a dificuldade de Maria Teresa se opor a Ana, lhe dizer


«não», quer se trate das suas saídas ou obrigações em casa, quer se trate

do dinheiro que frequentemente pede à mãe.

Ricardo discorda, acha necessário contrabalançar o sim e o não, consoante as


situações. Recorda um dia em que Ana lhe fugiu e ele a obrigou a entrar
imediatamente no carro. Tem consciência, no entanto, que o seu contacto com Ana
é irregular, mesmo escasso.

A tensão inicial entre Ricardo e Maria Teresa fora-se esbatendo ao longo da


sessão, estando agora menos centrados nas suas dificuldades, mais preocupados em
ajudar Ana que, no entanto, se mostrava desinteressada, pouco receptiva aos
problemas apontados por Maria Teresa, que novamente refere a questão da
desarrumacão do seu quarto:

MARIA TERESA - Um escândalo, uma vergonha! A cama porfazer, tudo a monte! Os


livros aqui, a gabardine ali, uma camisola aqui, as cuecas acolá, uma bota
aqui, a outra ali, tudo no chão!

ANA, rindo-se - É um problema de critério, de estética!... 0 pai, na

sua sala, tem tudo espalhado na secretária.

RICARDO - Está tudo em cima da secretária, mais nada. ANA -Pois aí é que está!
Em cima da secretária, e eu tenho tudo em

cima do chão!...

RICARDO - Mas eu não prejudico ninguém com a minha

desarrumação, enquanto tu gastas a tua mãe.

TERAPEUTA B - Estava a imaginar se a mãe resolvesse um dia adoptar lá em casa o


mesmo critério de arrumação e começasse a pôr os tachos e as panelas no meio do
chão...

ANA - Chegava a um ponto que eu também não suportava...

Tomava-se agora possível intervir em aliança com Ricardo e Maria

Teresa. Embora separados e distantes, pareciam reunir-se em tomo da sua

função parental, num projecto comum de ajudar Ana, o que os terapeutas


procuraram concretizar através da elaboração, com o seu apoio, de uma

tripla tarefa para Ana: a arrumação do quarto, a especificação das tarefas de


casa em que colaboraria com a mãe e a mesada dada por Ricardo, que teria de ser
 

rigorosamente respeitada, sem que Maria Teresa lhe desse nem mais um tostão.
159
 

Todos aceitaram esta prescrição, que foi novamente discutida e ava-

liado o seu cumprimento na sessão seguinte.

0 acordo de Ricardo e Maria Teresa relativamente à ajuda que neste aspecto


poderiam dar a Ana levou-os a trocar impressões já fora da sessã o, aspecto por
eles próprios salientado em sessões posteriores, referindo a possibilidade de
agora, em conjunto, poderem conversar

sobre as dificuldades de Ana, o que até então não fora possível.

Quinze dias depois, Maria Teresa chega à sessão abatida e diz-nos: A

sessão hoje vai ser muito desagradável. Fica calada, Ana também. Rita e Ricardo
chegam a seguire Maria Teresa começa afalar: Oque eu receava aconteceu - na
sessão anterior tinham surgido os receios de Maria

Teresa quanto à ligação de Ana e Paulo, seu namorado, de 21 anos. Sente a filha
nova ainda para uma ligação com um homem, segundo Maria Teresa, já com uma
filha, muito batido e irresponsável, que largou a

mulher com uma miúda nos braços. Receio quepossa acontecer o mesmo

com a Ana e ela é ainda uma criança. Não é ofacto de ele ser divorciado

que me preocupa, eu também o sou, mas Ana é ainda muito nova.

Maria Teresa continua: MARIA TERESA -A Anafez um aborto há dias, e magoou-me


muito ela não ter sido capaz defalar comigo. SoubepelaRita e custou-me muito

que não tivesse confiado em mim. A Ana sabe que pode contar comigo, tem contado
sempre que precisa. De resto, tudo isto inefaz muita confusão, me magoa muito.
Acho que não sou aceite, mas acho que têm de pensar que
estouprofundamenteferida. Tenho receio que me considerem

analfabeta, inoportuna...

Eu andava apavorada com oproblema de uma gravidez, mas não era

capaz de falar nisso a ninguém e os srs. drs. abriram essa possibilidade


defalar.

Mas eu não posso guardar a Ana, tem de ser a Ana a guardar-se. No entanto
nãofiquei parada a lamentar-me e procurei ajudá-la no

que podia - levei-a à minha ginecologista, que aliás há muito tempo é médica
dela também. A Ana confia nela, pois não sei nada do quefalam, a médica respeita
a vida privada da Ana. Rita interrompe-a, dirigindo-se a Ana:
 

160
 

RITA -Pois, isso é que me irrita em ti. Nalgumas coisas tens a mania

que és muito crescida e independente, mas depois não aguentas as coisas

em que te metes. Porque nãojoste capaz defalar com a mãe, se sabes tão bem o
quefazes? Ficaste completamente aflita e vieste ter comigo para resolver o
problema e ser eu a falar com a mãe.

Ricardo permanecia calado, pelo que a terapeuta lhe pediu a sua opinião:

RICARDO- 0 que isto é não passa de uma estupidez, para mim não tem outra
explicação. E só prova que ela também é má pessoa. Se fosse boa tinhafalado
contigo (dirige-se a MariaTeresa), comigo também. Para mim, além de sabida, é má
e estúpida. E estou muito ressentido com ela.

MARIA TERESA -Não vamos transférir para a nossafilha as culpas que nos cabem a
nós! Cabem-nos muitas culpas aos dois.

RICARDO -Eu acho que é uma estupidez. Hoje em dia, no meio em que ela vive e
aspessoas com quem se dá, não entendo que tenhafeito uma

coisa destas, que não tenha ido a uma consulta médica ou então que tomasse a
pílula mesmo sem consulta. Isso é que eu acho ser uma prova de estupidez.

Além disso, as ofensas que ela temfeito à mãe são pura maldade. Não tem razão
nenhuma para proceder assim com a mãe!

TERAPEUTA A -Eu acho que a Ana precisa de outraspessoas para mandar mensagens
aos pais e este problema do aborto teve esse lado

positivo, que foi, numa situação tão difícil, ter levado as pessoas a
aproximarem-se. A Ana tem tido grande dificuldade, mesmo aqui, em

falar convosco, e por isso tem trazido sempre outras pessoas para que possa,
através delas,falar com os pais. Não conseguefalar de dentro de si com os pais e
se calhar os pais têm dificuldade em comunicar com a Ana.

Assim, o lado positivo do que se está a passar é tornar-se clara a

necessidade de falarem mais intimamente uns com os outros.

A situação estava a transformar-se sobretudo num processo de acusação a Ana, o


que não parecia ter qualquer efeito positivo. Neste sentido,esta intervenção
terapêutica visou redefinir o problema do aborto, das dificuldades de
comunicação, abrindo novas possibilidades de diálogo, o que se tornou bem claro
na intervenção de Rita, que deslocou as

dificuldades Ana/Maria Teresa, introduzindo a sua relação com Ricardo:


 

161
 

RITA -Eu gostava de dizer uma coisa. Acho que a culpa de não haver diálogo não é
só nossa, mas do pai também, porque a maior parte das vezes que estamos contigo
o diálogo é muito restrito. É como se nós estivéssemos perto, podemos estar
juntos, mas há uma barreira metida pelo meio.

A sessão vai seguindo e os terapeutas procuram manter a comunicação entre os


quatro membros da família, reforçando o lado positivo do problema em questão.
Maria Teresa mantém-se no entanto mais calada do que é habitual e acaba por
expressar mais abertamente os seus receios:

MARIA TERESA -A Ana agora está mais receptiva ao que lhe temos estado a dizer,
mas eu tenho medo, sei como ela é. Qualquer dia passa-lhe alguma coisa pela
cabeça e tenho medo que tudo se volte a repetir. Efico apavorada, receio que ela
siga o esquema do pai...

TERAPEUTA B - Estou-me a lembrar, não tanto do pai que, como

era dito na família, «além de Graafland é homem», mas das várias mulheres na
história familiar... mulheres com complicações... Não quererá a Ana seguir o
exemplo da tia Matilde, com as suas duasfilhas naturais, de pais incógnitos?...

RITA (rindo-se) - Uma delas, a Constança, embora educada pelos meus


antepassados, atéfoi dada como filha de uma criada!

MARIA TERESA -Apavora-me pensar que a minhafilha entre nesse esquema de vida.

0 receio de Maria Teresa que a filha se possa orientar segundo o

padrão da família paterna- ou seja, criação artística e uma certa loucura,


aliadas ao que na época não poderia deixar de ser uma certa forma de
libertinagem -, foi retomado no final da sessão, que mais uma vez se

centrou na dualidade de modelos de vida (materno e paterno) em que Ana tem


oscilado: as margens do seu caminho...

Esta dualidade foi retomada na sessão seguinte. Maria Teresa queixa-se do


desinteresse de Ana pela escola - hoje não pôs os pés nas aulas, numa altura em
que ainda tem o ano na mão. Rita insiste também neste desinteresse de Ana,
dizendo não perceber afinal quais os projectos de Ana: tem tentado várias
actividades - canto, piano, dança, etc. - mas

desistindo facilmente. Ana interrompe-a:

ANA-Isso não é bem assim! Eu gostava de tocarpiano, mas não sei

162
 

se na minha idade dá para começar. Além disso, quando desisti do canto foi
porque a professora que tinha se foi embora e os outros eram uma porcaria.

RITA -Isso da idade não quer dizer nada. Afinal a Sofia também só começou a
cantar aos 18 anos, até era mais velha do que tu. Arrancou sozinhapara Viena
epassou aspassas doAlgarvepara conseguir e como

sabes é hoje uma grande cantora!

Eu própria tive problemas quando andava a estudar e acabei por conseguir o que
queria -falo fluentemente quatro línguas.

TERAPEUTA B - Não deve ser fácil para a Ana decidir o que pretende fazer,
confrontada com mulheres tão determinadas como a mãe, que estuda à noite, como a
Rita, como a madrasta e mesmo como a bisavóRegina, que tocavapiano em barespara
sozinha educarofilho...

RITA - Também os amigos da Ana não ajudam muito, é tudo malta pouco virada para
o estudo! 0 meu paijá lhe tem dito que ofacto de não gostar da escola é um bom
motivo para tentar despachá-la o mais

depressa possível. Pelos vistos não consegue nada com a Ana, como não consegue
nada com o Miguel. De resto, os dois são bem parecidos! Até nos estudos! 0
Miguel passa a vida a faltar à escola, andando pelos cantos com um caderno a
escrever como o pai dele fazia.

TERAPEUTAA-Se calhar aAnapreferia largar a escola e escolher

outra vida. Por exemplo, viver com o Miguel e ganharem a vida os dois, o Miguel
lendo poemas e a Ana cantando. De resto, sefosse viver com o

Miguel, voltaria a unir as duas famílias Angelo e Ataide, como já a tia

Constança fizera, ao casar-se com o avô de Sofia; mais recentemente o

pai, ligando-se a Sofia,faz com que os dois ramos dafamílias se dêem de

novo.

Esta intervenção encontrou um certo eco em Ana que, embora rindo, pareceu achá-
la uma hipótese plausível. De resto, esta intervenção foi feita
propositadamente, visando aumentar a confusão de Ana face ao seu projecto de
vida e, ao mesmo tempo, confrontar a família com a precocidade de uma decisão
relativamente ao futuro de Ana, prosseguir,os seus

estudos, optando por uma vida mais tradicional e estável ou, Pelo contrário,
seguir a «loucura dos Graafland» .
 

Neste sentido, os terapeutas irão em seguida centrar-se num objectivo mais


restrito, solicitando a Ana a sua proposta de uma pequena, mas
163
 

plausível mudança. 0 objectivo terapêutico era claro: em primeiro lugar, levar


Ana a ter, na sessão, uma posição mais activa e interveniente, procurando assim
alterar a sua forma de estar habitual: pôr os outros

elementos da família a falar por si; em segundo lugar, conseguir que Ana fizesse
uma proposta que realmente lhe agradasse, sem se ver coagida a

realizar os desejos dos outros contra a sua vontade; por fim, levar Ana a

alterar o seu modo de agir habitual, isto é, tomar decisões exclusivamente


centradas na sua vontade. Tratava~se agora de fazer qualquer coisa que também
fosse agradável aos outros elementos da família. A proposta de Ana teria, no
entanto, de possibilitar a colaboração de todos, única forma de se conseguir
atingir uma mudança do padrão comum de relacionamento.

Ana faz várias propostas, acabando por se decidir pela modificação do seu
quarto: aborrece-a o facto de ter duas entradas - a porta e uma janela que dá
para a marquise -, o que a faz sentir-se pouco à vontade. Ficou decidido que
estudariam, em conjunto, a possibilidade de taparem a

janela de forma a que Ana pudesse estar mais à vontade no quarto, quando lhe
apetecesse, alteração também satisfatória para Maria Teresa.

Conhecemos Ana num serviço de psiquiatria hospitalar, depois da sua

tentativa de suicídio. Aparentemente desistente, este seu gesto era sem dúvida
um apelo, um pedido de ajuda numa crise que os seus 16 anos

deixavam perceber: situação de dificuldades relacionais, de desinteresse, de


perplexidade, situação adolescente sobretudo.

Sem dúvida Ana poderia ter sido ajudada individualmente; sem

dúvida também toda a complexidade das suas relações na família, no seu grupo de
amigos, na escola, não teria surgido com tanta nitidez.

Cremos que teria sido dificil ajudar Ana sem compreender e possibilitar
alternativas aos padrões de comunicaçao na situação familiar actual. No entanto,
o relato que fizemos mostra que muitas das suas dificul-

dades actuais se inscrevem num passado familiar que lhe cria modelos
divergentes, senão contraditórios, de comportamento. Por isso, a uma perspectiva
interaccional aliámos uma perspectiva transgeracional.

164
 

É inevitável, mesmo num relato terapêutico, querer adivinhar-lhe o fim.

A terapia com Ana está em curso, o que não nos impede de tentar prever o seu
termo. Talvez o leitor nos possa acompanhar nesta aventura. Talvez um dia, quem
sabe, nos possamos reencontar e comparar soluções...

Nota final - A Terapia prossegue no momento actual (Janeiro 85),

um ano após a primeira sessão. Ana estuda agora com mais entusiasmo, retomou os
seus estudos de canto e não refere ideias de suícidio.

A mãe diz-nos: «Há uma grande mudança, estamos as duas agora muito mais próximas
... »; o pai mantém contactos mais regulares e

afectuosos com as filhas. Ana parece próxima de encontrar o seu caminho...

165
 

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Nota 1 - Por vezes a seguir ao nome do Autor figura uma data, que se refere ao

artigo original, como por exemplo nos trabalhos de Bateson.

Nota 2 - Dado que alguns autores de capítulo referem a mesma obra, no original

e em tradução, decidimos incluí-Ia na bibliografia apenas na edição original.


 

íNDICE

Prefácio à 2”
edição .........................................................
..................... 5

Capítulo 1 Famílias e Terapia


Familiar ..............:................ ..................
........................... 7

Capítulo 11 História da Terapia


Familiar ..................................................
....................... 13

Capítulo 111
0 Processo Terapêutico em Terapia Familiar ...
........................................... 19

Capítulo IV Modelos de Intervenção em Terapia Familiar


.................................. ............ 41

Capítulo V Mudança em Terapia Familiar, por Maria Isabel Fazenda...


.................. ....... 81

Capítulo VI Casamento e Terapia


Familiar ................................................
....................... 99

Capítulo VII Olhar de longe, olhar de perto: Antropologia e Terapia Familiar,


algumas reflexões, por Cristiana Bastos e Manuela Fazenda Martins
... ..... 109

Capítulo VIII A Formação em Terapia


Familiar .............................................
................... 133

Capítulo IX Casos clínicos

Caso clínico n2 1 - por Helena Silva


Araújo ......... ......... .... .................
.. 137 Caso clínico n2 2 - por Daniel Sampaio e Manuela Fazenda Martins ... 147

Bibliografia .........................................................
............................ 167
 

Helena Silva Araújo

Assistente Hospitalar de Psiquiatria do Centro de Saúde Mental Infantil e


Juvenil de Lisboa.

Grupanalista.

Presidente da Sociedade Portuguesa de Terapia Famíliar.

Cristiana Bastos

Licenciada em Antropolog-!a@

Maria Isabel Fazenda

Assistente Social do Serviço de Ps4quiatria do Hospital de Santa Maria (Lisboa).

Membro fundador da Sociedade Portuguesa de Terapia Familiar.

Manuela Fazenda Martins

Psicoterapeuta.

Assistente do Departamento de Antropologia da Universidade Nova de Lisboa.

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