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TERAPIA FAMILIAR
DANIEL SAMPAIO E JOSÉ GAMEIRO
4ª edição
Edições Afrontamento
A Carl Whitaker
Depósito legal: 53413/92 Impressão e acabamento: Rainho & Neves, Lda. / Santa
Maria da Feira
PREFÁCIO À 2ª EDIÇÃO
É com satisfação que prefaciamos agora a 2 @ *edição da obra, não só por nos
parecer de realçar o facto, não habitual, de um livro à partida mais destinado a
um público específico se ter vendido bem, mas também por neste momento a terapia
familiar adquirir grande desenvolvimento entre nós, o que só por si justifica
uma nova edição.
seu estudo. Consideramos que estes dois propósitos se mantêm actuais, sendo de
destacar os crescentes pedidos deformação que têm chegado à Sociedade Portuguesa
de Terapia Familiar. No momento actual existem núcleos de terapeutas já com
formação completa ou em vias de conclusão, em Lisboa, Porto e Coimbra, sendo
crescente o número de instituições que solicitam sensibilização ou formação
nesta área.
É assim que nos últimos anos temos desenvolvido novas áreas de trabalho no campo
da investigação sistémica, de que destacaremos:
leitor para uma perspectiva não redutora face à terapia familiar, que por vezes
se depreende do nosso livro. Em investigação científica cinco anos são muito
tempo e felizmente que muito mudou desde 1985.
Mas cremos que o nosso livro continua a ter lugar junto das famílias que o lerem
e dos técnicos que o estudarem.
filho que não quer estudar e raramente está em casa! Não sei o que hei-de fazer,
há qualquer coisa com nós todos que não está a correr bem!
Isabel veio pedir ajuda para o seu filho Ricardo, de 15 anos, agora com
Foi fácil fazer notar a Isabel que o problema do seu filho adolescente, embora
merecedor de toda a atenção, estava interligado com um determinado momento da
vida da família Gonçalves. Todo o grupo tinha deixado de ser capaz de resolver
sozinho as dificuldades e pedia ajuda ao exterior.
Passa-se o mesmo com muitas outras famílias. Quando qualquer terapeuta pretende
intervir num dado problema psicológico a primeira coisa a fazer é situar em que
ponto estamos do ciclo vital da família em
Haley (1973) considera que o stress sobre a família é máximo nos pontos de
transição de uma fase do ciclo vital para outra, justamente no momento em que o
grupo familiar tenta uma mudança nos seus comportamentos para fazer face às
novas solicitações. É então que o
Convém desde já esclarecer o que procuraremos deixar claro ao longo deste livro:
a terapia familiar não é uma terapia da família, mas com a
ou dois terapeutas com uma família que aceite este tipo de intervenção, como
detalharemos no capítulo 111.
Uma família que procura a terapia é um grupo familiar que de algum modo bloqueou
o seu processo de desenvolvimento, isto é, que não consegue, por si próprio,
criar alternativas que lhe possibilitem dar respostas às dificuldades do seu
quotidiano. 0 terapeuta familiar é um
ser avaliado se quisermos ter uma ideia do modo como a família vai lidar com a
mudança na sua vida.
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sintoma psicológico ele deve ser tratado em sessões conjuntas com a sua
disfunção do sistema;
Não empreendemos terapia familiar sempre que existe oposição de toda a família
ou mesmo de um seu elemento significativo, ou se a intervenção nos é solicitada
por uma autoridade exterior ao grupo familiar (polícia, tribunal). A terapia
familiar exige uma ética rigorosa, respei-
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E não julgamos que a terapia familiar possa resolver os problemas das famílias
portuguesas nem dos nossos serviços de saúde mental. Apenas queremos dar a
conhecer um modelo de trabalho e um quadro conceptual que achamos útil e que se
tem imposto por si próprio.
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diversos pontos dos Estados Unidos, mas as suas raízes datam de épocas mais
recuadas.
a) Influência da psicanálise
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ocupar-se de vários elementos da mesma família. Durante a sua vida, Freud parece
ter apenas analisado um casal, o casal Strachey, curiosamente os autores da
tradução das suas obras para inglês. Diz Freud (1912,
1915): «Quando se atinge o tratamento das relações devo confessar-me embaraçado
e tenho aliás pouca esperança numa terapia individual de qualquer deles» e
«quando a resistência do marido se junta à da mulher os esforços não são
frutuosos e a terapia é interrompida. Tomámos em
mãos qualquer coisa que nas condições existentes era impossível levar a cabo».
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seu nome;
- 0 grupo de Palo Alto, com Bateson, Haley, Weakland, Jackson e Satir, unido a
partir da citada obra do primeiro sobre comunicação;
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0 caminho a percorrer é ainda longo; cada vez se toma mais necessário aprofundar
conceitos, verificar resultados, precisar indicações. E sobretudo caminhar como
até aqui: com o entusiasmo das famílias e a criatividade e vigor dos técnicos
mais jovens.
grupo de que faziam parte, entre outros, Eduardo Cortesão e Guilherine Ferreira
reunia as famílias dos doentes internados no Hospital Miguel
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Também por essa altura Eduardo Cortesão fez uma experiência de terapia de casal
em que a forma adoptada era a de grupos de casais.
Esta Sociedade tem por objectivo não só incentivar a terapia familiar entre nós
- nos seus campos de investigação e de actuação psicológica
- mas também contribuir para a definição dos padrões de treino e de
A formação dos seus fundadores, todos com treino grupo-analítico, tem sido feita
no estrangeiro e com a vinda regular até nós de terapeutas famíliares
experimentados que lhes fazem supervisão. Assim, frequentámos cursos em Palo
Alto, Califórnia, no Instituto de Terapia Familiar de Roma (Prof. Maurizio
Andolfi) e trabalhámos com o Prof.
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No Hospital de Santa Maria desde 1977 que eram feitas abordagens familiares em
famílias com toxicómanos, sobre o que foi publicado, em
Outubro de 1978, o livro Droga, Pais e Filhos (Daniel Sampaio, José Gameiro,
Maria de Jesus Camilo e Maria Isabel Fazenda).
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111
O PROCESSO TERAPÊUTICO EM TERAPIA FAMILIAR
N.C.
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a sua ideia sobre o problema e a mãe diz-nos que são as más companhias que o
desviam, que não sabe o que há-de fazer, que já apanhou no quarto do jovem droga
e cartas da namorada a falar de «fumos». E o pai o que pensa?, perguntamos. 0
pai, coitado, trabalha muito, está pouco em ca-
sa, já falou com ele e não conseguiu nada, agora até nem lhe fala.
Após a ela @óra ção do pedido, @assamos à fase seguinte que consiste no seu
estudo, , tólha de te,rape-'tas e seu modo de trabalhar.
dade) insere-se numa dinâmica familiar repetitiva nestas situações: pai ausente,
mãe preocupada e contiroladora, filho em busca provável de autonomia. Este
«circuito familiar», já por nós descrito anteriormente (Droga, Pais e Filhos -
Sampaio, Assis Camilo, Fazenda e Gameiro), leva-nos a pensar que o comportamento
desviante do rapaz possa estar relacionado (mas não «causado») por uma relação
conjugal disfuncionante. A mãe contou-nos que já se deu o corte de relações
entre o pai e o
filho, o que significa que toda a informação familiar passa por ela.
A sala de terapia familiar deve ser ampla, com boa luz, mobilada sobriamente mas
sem ser «asséptica», cadeiras confortáveis mas que não «amoleçam». Deve ter-se
em conta que muitas vezes vêm crianças às sessões, pelo que deve ter objectos
lúdicos (não só brinquedos) que possam permitir brincar. A sala não deve ter
objectos que se possam
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que forma esta irá interagir. Habitualmente usamos a co-terapia com dois
terapeutas com igual nível de experiência, o que nos vai permitir maior
liberdade de actuação. A presença de dois terapeutas na sala irá possibilitar a
troca de papéis perante a família e uma maior criatividade na sessão. Isto é
particularmente importante em famílias com sintomas graves em que um dos
terapeutas pode ser como que uma «rede» do outro que se envolve
que vai trabalhar. Haverá alguns que se sintam mais à-vontade com
famílias com adolescentes, outros com casais. Não nos parece que um
terapeuta que não tenha filhos possa trabalhar com famílias em que os
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zados. Um terapeuta que viva uma relação conjugal que esteja a atravessar
uma crise terá nessa altura maior dificuldade em fazer terapia de casal. Nesta
situação, por exemplo, será de aconselhar a presença de um
quero tratar o meu filho, mas acho que o pai tem toda a razão».
Iniciamos aqui o que Whitaker chama a «Batalha pela Estrutura», que é também
uma luta pelo poder dentro do sistema terapêutico. Quem define as regras do
jogo? A família ou nós? Deve ou não pôr-se em causa o estereotipo do terapeuta
«bonzinho», disponível, pronto a aceitar os
problemas da forma como lhe são postos sem tentar redefini-los? Esta fase é
crucial para o futuro da terapia, pois a experiência mostra-nos que mais vale
não começar um processo terapêutico do que iniciá-lo «coxo».
grande parte destas situações esta dificuldade inicial tem mais a ver com
o membro da família que está em contacto connosco do que com o suposto membro
ausente. No exemplo que temos vindo a dar, a mãe queria por um
lado proteger o pai, mas por outro receava que a presença dele a fizesse perder
o seu papel de «dar cartas» na família.
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A ]@*sessão
Os terapeutas recebem a família tal como acolhemos alguém que pela primeira vez
conhecemos. Após a apresentação mútua os terapeutas descrevem o setting
terapêutico e iniciam aquilo a que Jay Haley (1976) denomina a fase social da
primeira entrevista. Trocam-se impressões, brinca-se com as crianças se elas
estão presentes, cria-se um ambiente
confortável e distendido.
norma.
A pergunta inicial pode ser colocada de múltiplas formas. «Diga-nos * que pensa
da sua família» - é a forína habitual. Quase invariavelmente * resposta é dada
em termos de sintomas ou- preocupações que trazem a família à terapia. É
importante realçar que não é indiferente o modo de
reram aos técnicos. Não se trata pois de resolver sintomas, mas sim de devol-
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lugar poderá parecer estranha, mas pensamos que é quase sempre o mem-
bro mais poderoso e também aquele que mais informação nos irá dar. Por vezes é
difícil respeitar esta ordem porque as pessoas tentam falar umas
Paulo se drogava, fumava e não quer deixar. Insistimos: diga-nos como é a sua
família. A esta segunda interpelação o pai conta-nos a história
daquela família, a sua vida de militar sempre fora, de como a mãe sempre se
sacrificou e do seu objectivo de educar o filho o melhor possível e fazer dele
um «homenzinho». Voltaremos a esta história mais tarde, mas para já é importante
notar que na primeira entrevista devemos ficar com uma
mais alargado em que esse problema adquire uma dimensão transgeracional e nos
vai permitir uma compreensão de «grande angular».
Maurizio Andolfi (198 1) diz: «Um terapeuta familiar tem de aprender a entrar no
mundo da família, adaptando a sua linguagem, estilo pessoal
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negativas essas experiencias, porque não lhe faziam mal e toda a malta fumava.
Tinha havido urna quebra de rendimento escolar que o levou a
empregar-se e a estudar à noite. Sentia isto como positivo pois tinha mais
dinheiro e dependia menos dos pais. Só queria era poder sair de casa e fazer uma
vida independente.
0 pai do Paulo tinha ficado surpreendido com o que estava a acontecer. Tinha
havido uma conversa entre os dois, mas o filho tinha-lhe dito que ele não sabia
nada da vida e sentia que não havia mais nada a falar
A mãe tinha escondido ao pai a situação até poder, porque estava convencida que
o pai poria o filho fora de casa e ela ia sofrer muito com isso.
Era para nós evidente que a comunicação entre os membros da família estava,
senão cortada, pelo menos curto-circuitada. Através do comportamento do filho a
mãe tinha reforçado o seu poder na família, o pai estava cada vez mais
periférico e o Paulo tudo fazia para manter a situaçã o.
perguntas habituais em terapia psicológica. Acham que ele se cura? 0 que é que
devemos fazer? Não seria melhor falar com ele sozinho?
fez. 0 sintoma é o mais importante, tudo corria bem até ele aparecer.
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dora, pelo que um afã excessivo dos terapeutas em querer mudar tudo depressa
pode levar a uma maior rigidificação da família. Nestas situaçõ es pode ser
importante uma aliança temporária e estratégica com a componente homeostática do
sistema familiar. É um pouco como se comunicássemos à família: não se assustem
que vamos operar, mas devagar e com pouca hemorragia.
1. Prescrições reestruturantes
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o problema do doente identificado para outro membro da família, ou para uma nova
sintomatologia) d) Prescrições de reestruturação sistémica (usadas para
reestruturar
aliança)
2. Prescrições paradoxais
3. Prescrições metafóricas
A segunda sessão é habitualmente marcada para 15 dias depois. Pensamos que este
intervalo permite à família «elaborar» a primeira entrevista e decidir
calmamente se quer voltar.
parte dos abandonos em Terapia Familiar se dão. Salvador Minuchin (1974 ) fala
dejoining - fase de reunião com a família - para descrever o processo mais
importante da primeira sessão. Quando o terapeuta falha esta fase, sendo
demasiado invasivo ou ficando muito distante, a família não volta. Mas, como em
todas as terapias, os factores contra-transfé-
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No início da segunda sessão poderá ser necessária uma pequena fase social para
novamente voltarmos a estar em contacto.
Por vezes, no intervalo das duas primeiras sessões há uma melhoria espectacular
dos sintomas apresentados. A família pode fazer uma «fuga para a frente», isto
é, a intervenção exterior pode ser tão ameaçadora que o sistema se refugia na
«cura» para «escapar» à mudança.
Fomos procurados por uma família com um rapaz de 10 anos de idade com alterações
de comportamento de tipo agressivo para com os pais, ameaçando-os com facas e
masturbando-se na sala. Na primeira sessão
segunda sessão. Então a família diz-nos que tudo estava resolvido, nada mais
tinha acontecido e não precisavam de vir mais. Respeitámos a
Neste caso tínhamos a informação, dada por alguém exterior à família, que o
conflito fundamental se situava no casal, com uma relação extra- conjugal do pai
de que o filho partilhava o sofrimento com a mãe. Mais tarde foi possível
compreender que a «cura» sintomática foi importante para a protecção do casal:
assim como o filho se tinha oferecido como PI (Paciente Identificado) para
chamar a atenção sobre si, também se escondeu quando o sistema sentiu a
intervenção como ameaçadora.
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que lhes permite sentirem-se ligados uns aos outros, ficando por satisfazer as
suas necessidades fusionais.
não faziam mal e afirmando que continuaria. 0 terapeuta presente constatou que
as posições eram irredutíveis e provocou-os, dizendo que a única hipótese era
jogarem ao «braço de ferro» para verem quem tinha mais força. Colocou uma mesa
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A introdução do jogo nesta fase da terapia pode ser decisiva para desbloquear
tensões que o verbal não consegue.
-lo. 0 humor pode ajudar a lidar com situações de tensão e permitir à família
criar um contexto mais aberto na sessão, que pode depois ser
~se com a utilização das metáforas, que em Terapia Familiar são extremamente
úteis. Se por exemplo na família o futebol é um assunto de interesse frequente,
o terapeuta pode exemplificar algumas interacções habituais do adolescente com
os pais, quando estes não conseguem chegar a acordo na forma de lidar com os
filhos, utilizando um exemplo futebolístico,
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0 terapeuta para mostrar o conflito disse que o filho e os pais, nesta época da
vida (adolescência), eram como duas equipas de futebol num
mento dos defesas centrais da equipa adversária para penetrar na grande área e
marcar golos. Os pais estavam a actuar como defesas que não coordenam o jogo e
deixam «penetrar» o avançado contrário.
explorada indefinidamente.
forma de intervenção.
Pensamos que todos estamos mais ou menos impregnados de ideais terapêuticos que
nos chegam do modo de pensar psicanalítico em que a distância, o controlo da
contra-transferência, a camuflagem das fantasias pessoais do terapeuta são
valores que estão directamente relacionados com a eficácia da terapia.
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Cada um de nós tem uma família e um modelo de família que, quer queiramos ou
não, está sempre presente nas sessões. Pensamos que este modelo familiar é muito
mais intenso que o modelo individual de cada
pessoa e que nas terapias individuais os aspectos técnicos aparecem como mais
importantes porque a modelização é menor.
uma ilha deserta em que a regra fosse é proibido fazer amor - quem transgredir
volta para a cidade.
como no trapézio, em que o trabalho deve ser feito com «rede», a nossa segurança
pode ser um co-terapeuta que apareça como mais «seguro», menos louco e que
proteja a família quando ela está a ser provocada.
tentar que o jogo continuasse em casa. Prescrevemos à família que duas vezes por
semana, antes de jantar, lutassem com as «batacas» (que
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levaram para casa) com a assistência da mãe, que a seguir deveria preparar um
«petisco» para o jantar.
A família volta na sessão seguinte, com a mãe mais triste e começando por nos
dizer que tudo estava na mesma, o Paulo continuava a chegar a
crucial da terapia. A mãe tinha perdido poder e não o queria admitir. Era
necessário intervir rapidamente senão a família não suportaria a crise.
Tinha nascido numa família rural do centro do país, quatro filhos, pobres.
Trabalhadores rurais, pai e mãe mal ganhavam para dar de comer às crianças, mas
eram muito unidos. À noite juntavam-se à volta do fogo de chão e rezavam em
conjunto. A mãe tinha uma bondade que era recor-
dada agora pela D. Irene com lágrimas nos olhos. 0 Sr. João nunca tinha bebido,
como tantos homens da aldeia faziam, e chegava sempre a casa
a horas. Um dia a D. Irene veio para a cidade à procura de melhor trabalho e foi
servir para uma casa de Lisboa, onde começou a namorar com o Alfredo.
A família de origem da mãe era muito aglutinada, uma família em que os conflitos
não eram importantes. A D. Irene tinha vivido num banho
Quando conheceu o Alfredo este estava a cumprir o serviço militar num quartel de
Lisboa. «Verem-se e amarem-se foi obra de um momento» .
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Passados seis meses casaram e arranjaram uma casa. 0 Alfredo não quis que a
Irene continuasse atrabalhare arranjou um «biscate» para aumentar o magro
ordenado de soldado. A Irene ficou grávida, mas três meses antes de o Paulo
nascer o marido foi mobilizado e partiu para Angola. E a Irene ficou com um bébé
recém-nascido e sem apoio da sua família. Pensou em voltar para a terra com o
Paulo à espera do Alfredo, mas lá a vida também era difícil. Ficou. 0 marido só
voltou dois anos depois, não arranjou dinheiro para vir nas férias conhecer o
filho, que tudo era
pouco para mandar para cá e as passagens eram caras e ele não era sr. oficial.
0 Alfredo tinha uma história muito diferente da Irene. Nascera numa família de
Lisboa. 0 pai era artífice de vidro e tinha uma pequena oficina onde gravava
copos com nomes e emblemas de clubes de futebol. Era um homem austero, ríspido,
que nunca tinha permitido a aproximação dos filhos. 0 Alfredo era o mais novo de
três irmãos, todos rapazes. Mal conhecera a mãe, que morrera tinha ele seis
anos. 0 pai entregou-os a uma
tia e mais tarde casou novamente. 0 Alfredo não fala ao pai há dez anos.
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nas em casa. 0 pai conta-nos que a vida tinha continuado como dantes, mas que
sentia a mãe mais triste e o Paulo mais comunicativo. A mãe interrompe-o e diz-
nos: «Ele continua a drogar-se, só que agora o pai parece que já não se
importa». «Claro que me importo, mas nós estamos aqui é para resolver isso. E eu
acredito que talvez se consiga».
dizia que o pai não queria vir à terapia e não acreditava que algo pudesse ser
feito pelo Paulo.
Um dos terapeutas dirige-se à mãe e diz-lhe: «Acho que a sua posição na família
é cada vez mais difícil. Se pudesse falar com alguém da sua
longamente de ter casado sem saber nada da vida e como a vida era diferente do
que ela tinha imaginado que fosse. A mãe sempre lhe tinha ensinado que a mulher
devia estar sempre ao lado do marido, mas ela não
tinha podido estar porque o Alfredo tinha ido para a guerra. Tinha sido uma
mulher abandonada e sempre com receio que ele morresse. Habituou-
«Sr. Alfredo, como é que pode ajudar a sua mulher neste momento?», perguntamos.
0 Alfredo não sabia o que fazer, mas estava aflito. Habituado a uma mulher
«bombeiro» não conseguia comunicar com ela naquele estado.
0 Daniel estava próximo daquela mãe «controladora» do filho, que lhe recordava
cenas da sua vida passada. 0 Zé revivia naquele grupo de pessoas o seu longo
afastamento do pai e as dificuldades da sua adolescência por ele não estar
próximo.
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tomasse realidade, voltando à sala com essa proposta. A mãe hesitou, dizendo que
a mãe estava muito velha, vivia muito longe, não estava a par do que se passava
e iria sentir-se mal. Dissemos-lhe para dizer à mãe, em
nosso nome, que a avó seria a pessoa que conhecia melhor a Irene e nos
poderia ajudar. Acedeu em tentar. Marcámos a sessão seguinte para daí a quinze
dias.
No dia da sessão estávamos ansiosos por saber até que ponto seria possível
mobilizar aquela família e trazer uma velhinha aldeã, pacatamente sossegada na
sua velhice tranquila.
A família chegou a horas e a avó também vinha. Era uma senhora já de idade, olho
azul vivo, xaile pelas costas, que nos cumprimentou res-
nicando-lhe que tínhamos pedido a sua comparência para nos poder ajudar. Qual
era a opinião dela sobre a família da Irene?
Olhem, Srs. Drs., a Irene teve muita sorte, casou com um bom homem, muito
trabalhador e que sempre foi amigo dela e do filho. Coitada, agora está muito
preocupada com o Paulo, mas eu acredito que isto são coisas da idade e que ele
se há-de fazer um homem. Lá na Ribeira (aldeia on-
de nasceu e vive) também há uns rapazolas que parece que se drogam, mas não são
maus. No fundo os homens também vão para a taberna, embebedam-se e depois dão
maus tratos às mulheres.
Mas o nosso plano para a sessão era voltar à sessão anterior e trabalhar a
tristeza da mãe. A presença da avó era importante para que a mãe não
muito triste. Perguntámos-lhe com quem gostaria de falar naquele momento e ela
disse-nos que seria consigo. «Podem conversar agora».
A mãe aproximou-se da filha e falou-lhe das alturas em que ela também se tinha
sentido deprimida. «Tu precisas é de ir passar uns dias à terra comigo e isso
passa. A vida lá é mais calma, o Alfredo e o Paulo
Alguns dias depois recebemos um telefonema do pai dizendo-nos que tudo tinha
piorado. A mãe tinha partido com a avó, mas ele e o Paulo não se estavam a
entender. 0 Paulo chegava cada vez mais tarde e tinha começado a faltar ao
emprego. Tinham tido uma discussão violenta em que o Paulo lhe voltara a dizer
que ele não percebia nada da vida e que já era «maior e vacinado». 0 pai
telefonara à mãe e pedira-lhe para voltar mais cedo.
família muda no seu sistema de relações só porque surge uma pequena mudança. 0
nosso desejo tinha interferido na capacidade de mudança do sistema.
Mas pela primeira vez o pai e o Paulo tinham ficado sozinhos e esta situação que
nunca tinham vivido iria de certeza ter implicações na
relação futura entre ambos. Aliás, numa das primeiras noites, o Paulo
tinha levado lá para casa a sua nova namorada e passaram o serão a ver
televisão.
A mãe começou por afirmar que, como se provava, ela não podia largar aquela casa
porque eles não se entendiam.
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e era cada vez mais importante a sua presença junto dos dois. Mas perguntámos-
lhe como se tinha sentido na terra. Muito bem, disse-nos, mas sempre muito
inquieta. Telefonava todos os dias a saber o que se
tinha ido visitar. A avó tinha falado muito com ela. Tinha-a aconselhado a
preocupar-se mais com o marido e menos com o Paulo. Este qualquer dia saía de
casa e depois haviam de aparecer netos para ela cuidar.
A D. Irene aceitara estes conselhos, mas continuava muito preocupada com o filho
e ficara indignada com o marido por ter aceite lá em casa
vizinhos já lhe tinham falado nela e disseram-lhe que ela andava sempre com
muitos rapazes.
A mãe protestava contra aquele serão em que ela não estivera presente, mas o pai
não estava de acordo. A Teresa era muito simpática e
Era a primeira vez que pai e mãe não estavam de acordo. Era um sinal de alerta
para nós. Sentíamos que não seria ainda a altura de trabalhar a relação do
casal.
Preferimos assumir que tínhamos errado e que de facto ainda não era possível pai
e filho entenderem-se, mas dissemos-lhes que também a
estadia dos dois juntos teria servido para ajustar «contas antigas».
0 Sr. Alfredo estava novamente ausente durante a sessão, o que permitiu à mãe
toda a iniciativa; mas alguma coisa tinha entretanto mudado. 0 Paulo, não
verbalmente, mostrava-se «enfadado» quando a
mãe falava e olhava para o pai de urna forma diferente. E quando a mãe
nos falava da sua preocupação enquanto estava na terra o Paulo explodiu e disse-
lhe: «Pois é, a mãe nasceu preocupada, nunca me deixou à vontade, quando eu era
miúdo e queria ir para a rua brincar não me
deixava e eu bem ouvia o pai a dizer - deixa lã ir o rapaz -, mas quem acabava
sempre por decidir era a mãe. 0 pai tenta explicar à mãe que um
Aqui o Paulo tocou um ponto quente do pai. Ele tinha feito toda a sua
adolescência sozinho, uma relação distante e difícil com o seu pai. A sua
integração na vida militar tinha-lhe dado apesar de tudo uma estrutura
que ele não teria dentro de si. Mas não tinha sido possível transmitir ao
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ser adulto.
Interviemos para dizer ao pai que o Paulo lhe estava a pedir qualquer coisa de
muito importante e de que ele talvez não tivesse respostas seguras, mas que
ninguém teria. «Diga-lhe qual foi a sua experiência! ».
Conforme se pode ver pelo relato parcial que temos vindo a fazer desta
máxima, porque a energia que eles põem no sistema é de tal modo grande que pode
«rebentar» os laços ténues que unem os elementos entre si.
A terapia aproxima-se do fim quando a família é capaz de falar das suas relações
com menos tensão e sobretudo com a capacidade individual de olhar para o outro e
respeitar a sua autonomia sem se sentir agredido por isso.
família que diz que não quer voltar, porque já não é necessário. Respeitamos
este desejo porque acreditamos nas capacidades do sistema para se
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sempre é fácil criar. Haverá sempre membros da família mais disponíveis que
outros. Como diz Whitaker, a fase final da terapia é como o fim da adolescência.
Já podem ficar sozinhos que não acontece nenhuma desgraça.
0 processo terapêutico em Terapia Familiar nunca é muito longo. Por vezes pode
atingir os dois anos com sessões quinzenais, mas habitualmente termina entre a
décima e a vigésima sessão. Consideramo-lo como
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peuticamente. Neste capítulo descreveremos com mais pormenor aqueles que mais
influenciaram o nosso modo de trabalhar, fazendo breves referências aos
restantes.
2) Perspectivas transgeracionais
4) Perspectivas estratégicas
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Perspectivas transgeracionais
Introdução
Segundo este ponto de vista a perturbação de uma família que procura a terapia
não reside essencialmente no problema apresentado e que constitui o pedido
imediato da família, mas tem a sua raiz em factos
lise de transmissão da cultura familiar no seu sentido lato, de uma geração para
outra, englobando os padrões, estilos, costumes, segredos, mitos e
familiar e na sociedade, e se bem que na prática seja por vezes difícil juntar
várias gerações numa sala de terapia, é já exequível estudá-las através da
pesquisa sistemática das relações intrafamiliares ao longo dos anos.
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Exemplo:
Dulce
o A
r, n
ntónio
Margarid
r X
18 Mariana
15 Pedro
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sentido lato, mas ao mesmo tempo toma-se patente que é erro grave utilizá-los
terapeuticamente.
sinal de que está a haver uma grande acumulação de injustiças, pelo que a acção
terapêutica só pode ser empreendida após análise da história familiar em
terírios desses problemas emocionais.
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Nagy conceptualiza a família como um grupo humano rodeado por uma rede complexa
de obrigações e lealdades que exigem cumprimento, mas que protegem ao mesmo
tempo o conjunto familiar. 0 terapeuta deve criar uma atmosfera que tome
possível a cada um encarar as suas
Se bem que este ponto de vista seja útil na compreensão de muitas situações,
esta perspectiva parece-nos de tom moralista e raramente a utilizamos.
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Murray Bowen. Na visita que em 1980 fizemos ao seu Centro em Washington, Bowen
dizia-nos que nada se pode fazer sem uma teoria, colocando-se numa perspectiva
muito crítica face às terapias de orientação estratégica, que no seu ponto de
vista correspondem ajogos de manipulação procurando a resolução de problemas sem
a necessária compreensão do funcionamento familiar. Diferenciando-se da
perspectiva estraté gica, Bowen não considera a terapia terminada quando o
problema que trouxe a família à consulta está sintomaticamente resolvido, pelo
que a acção terapêutica deverá ser continuada até que cada elemento da família
adquira um self com autonomia e maturidade.
Embora Bowen utilize alguns conceitos comuns à teoria geral dos sistemas tal
como Bertalanffy a formulou, tem procurado diferenciar-se, falando de uma
«teoria específica sobre o funcionamento das relações humanas», considerando a
família um sistema emocional com características específicas. Bowerí define
sistema emocional como «qualquer coisa que está em contacto com processos
celulares e somáticos» e
possam emergir.
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1. Diferenciação do self
Dentro deste conceito básico para a compreensão da sua teoria, Bowen distingue
em primeiro lugar dois tipos de pessoas:
são autónomos.
processo por fases de menor fusão emocional. Bowen fala assim de «massa
indiferenciada do eu na família» para descrever situações de menor
diferenciação, ao passo que nos diz que em famílias com maior maturidade os
indivíduos têm autonomia emocional não se envolvendo
que fará, esteja em que relação estiver. Opseudo selfé o elemento consti-
tutivo do self que entra nas relações e é modificado por elas, agrupando
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2. 0 conceito de triângulo
problemas emocionais ou físicos (muitas vezes o filho, por ser o elemento mais
vulnerável).
terapeuta mantém-se em contacto emocional com o pai e a mãe, o que leva estes a
uma nova situação: estão numa situação triangular mas a
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nas suas experiências com a família de origem, é expressa na sua própria relação
familiar.
pelos dois elementos da díada conjugal, existem várias maneiras de lidar com
essa ansiedade:
- conflito aberto entre o casal - em que nenhum dos elementos do casal cede nem
procura adaptar-se;
arrasta, está cada vez em maior dificuldade e com maior dependência do outro.
Este mecanismo, bastante frequente, pode levar a uma verdadeira
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um nível de diferenciação cada vez mais baixo. Bowen considera que um filho
esquizofrênico é o produto de várias gerações de crescente projecção familiar de
cada vez menores níveis de diferenciação, colocando-se aqui no nosso entender
numa perspectiva muito reducionista da compreensão da gênese da esquizofrenia.
6. Corte emocional
seus pais para começar uma nova vida com os indivíduos da sua geração. Este
conceito diz respeito também a certas regras que governam a ligação entre os
membros das diferentes gerações na família.
Se a ligação emocional dos filhos para com os pais é «resolvida» por um corte
emocional através de uma operação interna ou através de
50
dificuldades actuais.
7. Posição nafratria
nasce e se é educado.
8. Regressão social
Com este conceito Bowen pretende alargar o campo da sua teoria, postulando que a
fusão entre os sistemas intelectual e emocional que ocorre no indivíduo pode
ocorrer na sociedade. Assim a ansiedade crónica numa sociedade leva a que sejam
tomadas decisões cada vez
Num breve relance sobre estes conceitos fundamentais da Teoria de Bowen, chama-
nos a atenção a sua persistência em não englobar na sua
51
0 processo terapêutico
Segundo Jones (1980), o terapeuta com esta orientação tem quatro funções
principais:
52
- estimular a formação do self sólido em cada elemento - o que ocorre por vezes
no decurso da terapia mas deve ser um objectivo a atingir.
Treino
0 treino em terapia familiar boweniana passa pelo apoio dado pelo supervisor ao
processo de diferenciação do self do candidato. Este terá que conduzir um longo
caminho de reanálise das suas relações com a família de origem antes de
propriaíriente trabalhar directamente com
Carl ~itaker
Carl Whitaker
1.
0 nosso primeiro contacto pessoal com Carl Whitaker ocorreu em Roma, durante um
seminário organizado pelo grupo do Istituto di Terapia Familiare, em Outubro de
1979. Carl começa por impressionar pelo seu
53
Desde o contacto em Itália que ficou a germinar em nós o desejo de trabalhar uns
tempos com Carl Whitaker, projecto que veio a concretizar-
da tarde, sem intervalo para almoço! Este treino teve grande influência na nossa
maneira de trabalhar, de conceptualizar a família e a sua
Carl Whitaker, hoje já com 72 anos, licenciou-se em Medicina nos Estados Unidos
em 1936, tendo trabalhado inicialmente em Obstetrícia e Ginecologia mas cedo
mostrando interesse pela dimensão psicológica da Medicina. Trabalhou num
Hospital Psiquiátrico da zona de Nova
lorque antes de partir para o Sul dos Estados Unidos (Atlanta), onde em
1946 iniciou um período de grande importância na sua vida e onde esta-
beleceu contactos com Thomas Malone, seu co-autor no livro The Roots of
Psychotherapy que publicou em 1953.
0 seu trabalho foi influenciado por Sullivan, Otto Rank e John Rosen.
54
2.
Whitaker costuma dizer: «não faço terapia familiar, sou terapeuta familiar».
Esta frase sintetiza bem o seu ponto de vista de que a terapia familiar não é
mais uma técnica de intervenção em saúde mental, mas corresponde a uma visão
diferente dos problemas. Se bem que muitos dos seus conceitos estejam espalhados
ao longo deste livro, procuraremos aqui chamar a atenção para os aspectos mais
importantes do seu trabalho.
Salvador Minuchin, amigo de Carl e seu grande admirador, diz que embora a
posição de Whitaker seja quase sempre crítica face à existência de teorias,
trabalha com uma teoria bem elaborada (Minuchin, 1982). Julgamos que na sua
prática Carl parte de uma noção defamília saudável, conceptualizada a partir da
sua experiência pessoal de homem casado, com cinco filhos e fortemente
influenciado pelos seus pais, e também a
anos.
ele no decurso da terapia. Não se pense que o seu trabalho consiste, contudo, em
pedagogicamente ilustrar à família aquilo que a «afasta da norma». Whitakeré um
«destruidordas formas cristalizadas» (Minuchin,
1982) e todas as suas intervenções são dirigidas para pôr em causa o
55
c) Existe uma barreira intergeracional, isto é, «os pais não são filhos e os
filhos não são pais», sendo necessária uma delimitação dos subsistemas;
atentamente brincando com cubos no chão, a mãe pode «fazer» o jantar para as
bonecas enquanto os filhos fritam os bifes, para mais tarde os
papéis tradicionais serem retomados, sendo toda esta troca feita ao serviço do
grupo familiar;
realidades quotidianas;
56
1. Fase inicial
Carl Whitaker
primeira sessão, deixa claro que este não é o seu modelo preferencial de
trabalho.
família. Whitaker considera que, tal como no xadrez, a mãe-rainha deve ser
deixada para o fim por ser a peça mais importante.
Na fase prévia da terapia e nas primeiras sessões dá-se a batalha pela estrutura
(V"itaker, 1971, 198 1), na qual o terapeuta deve definir como
57
não prosseguir uma terapia se a estrutura conseguida não é a mais favorável para
o desenvolvimento do processo terapêutico: então mais vale mandar a família para
casa e fazê-la reflectir sobre quem está interessado em participar - isso pode
ser em si mesmo um movimento terapêutico. Também é importante fazer sentir à
família que o terapeuta está seguro do seu procedimento e é activo na condução
da sessão.
não os quero passivos». 0 terapeuta não pode ser responsável pela não
participação de elementos da família, podendo dizer, por exemplo, de um
modo paradoxal: «Que sorte hoje estarem tão calados, acabou de sair uma
família que me deixou muito cansado, onde todos falaram muito». Se a família
perírianecer distante e pouco motivada, o terapeuta pode ficar em
ideia que a família tem que lidar com o stress, entrando e saindo do trágico e
do lúdico constantemente.
58
que é mais fácil lidar com a ansiedade e a tensão que uma sessão familiar
provoca quando se está acompanhado. Por outro lado, com dois terapeutas um pode
ficar provisoriamente imerso no sistema familiar, enquanto o
outro permanece mais afastado, não se deixando englobar pela família (estas
posições devem contudo ser reversíveis). 0 conjunto dos dois terapeutas perrnite
maior criatividade, liberdade administrativa, partilha de responsabilidades,
maior grau de honestidade acerca do cansaço, raiva e sentimentos pessoais
(Whitaker, 1977), sendo também muito importante nas discussões no intervalo e na
preparação das sessões.
presença seja inútil. Na fase média da terapia podem ser partilhados com
Numa das suas histórias mais célebres, Carl aceitou a definição dada por um
esquizofrênico de que era Jesus Cristo, dizendo para a família:
«O.K., aqui temos Jesus Cristo! Mas não sei quem são os outros, nem o
que estão aqui a fazer. Será que isto é o baptismo de Cristo? Quem é S. José?
Quem é a Virgem Maria? E não sei quem é a Maria Madalena».
59
redefinida: «se deixares de existir como pessoa, a tua família será salva».
trabalho com Carl. A família era constituída por dois filhos e a mãe, tendo o
mais velho dos rapazes sintomatologia classicamente definida como esquizofrenia
catatónica. Mike ficava horas debaixo do chuveiro, ou o dia
tentar encontrar novas pessoas. Entra e vem conhecer a tua nova família. Qual
destes é o teu pai?» - isto perante o espanto dos estudantes de Medicina...
enterro? Acha que o seu retrato ficará na sala? Quanto tempo depois a sua
mulher arranjará outro homem? Como se darão os seus filhos com o padrasto?» -
esta manobra permite melhorar a comunicação dentro da
60
família ao tornar claro que muitos sentimentos latentes não são tão destruidores
como a pessoa que os tem, sozinha, pode imaginar.
gregário da família.
Nesta fase média da terapia é útil conseguir uma reunião com afamília extensa,
se tal ainda não foi feito. É útil reunir na mesma sala as famílias de origem de
ambos os pais, procedimento que alarga o campo de intervenção e toma mais
criativo o processo terapêutico.
Não se pretende introduzir alterações na geração dos avós, mas apenas fazê-los
contribuir para o processo de mudança que está a ocorrer na
nova família. A entrevista decorre sem tema prévio e de uma forma não
estiruturada, procurando «uma contribuição de afecto para a terapia e não uma
cerimônia confessional» (Whitaker, 1977).
Sempre que por qualquer motivo o processo terapêutico tenha caído num impasse,
V..Ihitaker chama um colega externo ao sistema, fazendo uma sessão de consulta.
0 novo terapeuta-consultor está em condições de analisar o sistema terapeuta-
família, uma vez que não está envolvido nele e pode também confrontar-se
fortemente com a família, uma vez que não vai continuar com ela. Esta sessão
traz seguramente elementos muito importantes para o prosseguimento da terapia,
desde que o terapeuta esteja atento a toda a riqueza que pode desprender-se do
encontro.
61
3. Fasefinal da terapia
família foi apoiada de início, como um bebé que aprende a andar. Lutou pela sua
individualização, cresceu: é agora um jovem adulto que pode caminhar por si só.
As intervenções terapêuticas são agora raras, o tera-
Indicações preferenciais
multipessoal;
- Famílias em crise;
- Famílias com um bode expiatório grave, por exemplo um elemento
esquizofrênico;
- Famílias com crianças pequenas.
Treino em terapiafamiliar
Whitaker considera (1960) que todo o terapeuta familiar deve ter uma experiencia
como «doente», sendo preferível trazer a sua família a uma
62
De origem argentina, mas há muito radicado nos Estados Unidos, Salvador Minuchin
abandonou nos anos sessenta a sua prática psicanalítica para elaborar uma
perspectiva de terapia familiar que denominou terapia estrutural. Até
recentemente Director da conhecida Child Guidance Clinic, de Filadélfia,
Minuchin é conhecido não só pela sua abordagem específica dos problemas
familiares, mas também pelos seus trabalhos de investigação em famílias com
doenças psicossomáticas.
63
64
a família. 0 terapeuta não deve perder, contudo, o seu poder nesta fase; é
importante não perder o controlo da sessão.
Exemplo: A família Esteves faz o seu pedido de terapia familiar por graves
dificuldades de comunicação, desencadeadas a partir da toxicomania com heroína
do filho Ricardo, de 19 anos. Na primeira sessão compareceram o pai, a mãe e
Ricardo. No contacto inicial com os terapeutas os elementos da família
permaneceram muito isolados, nem
65
acusatório para Ricardo, que é apresentado como «grave drogado». Não parecia de
início possível entrar em contacto com a família, muito tensa e crítica, nem
compreender minimamente a sua estrutura. Então um dos terapeutas, colhendo a
informação de que o Pai ocupava funções directivas num grande clube desportivo
do Porto do qual também era sócio, iniciou uma conversa informal sobre desporto.
Imediatamente toda a família se envolveu na discussão, protestando a mãe sobre a
importância que o
futebol tinha na família, dizendo o pai como o desporto tinha sido a sua
técnico, levado pelo seu afã de não agredir a família, fez várias referências
elogiosas ao seu modo de comunicação. Imediatamente estes conteú dos foram
sentidos como artificiais, tendo o pai comentado: «0 Sr. Dr. acha que foi para
ouvirmos que somos bons que nós cá viemos?».
É bom não esquecer que o técnico foi solicitado para mudar qualquer coisa,
embora esse pedido muitas vezes tenha sido feito de um modo não evidente.
66
mostrar aos seus clientes uma nova visão das questões, que passa pelo
envolvimento e responsabilidade de todos. Segundo o quadro conceptual da terapia
estrutural, o terapeuta deverá ser aqui activo e questionar claramente a
realidade apresentada. Esse desafio poderá ser feito atravé s dos seguintes
procedimentos:
metendo-se por atalhos sucessivos. Uma das dificuldades com que os terapeutas se
defrontam é muitas vezes a de excesso de informação: a
família lança tantas pistas que o técnico não sabe qual seguir. É necessário
então que o terapeuta aumente a intensidade das suas intervenções, repetindo as
suas mensagens se necessário for e não deixando perder a sua
linha de acção.
2.3. Demonstração - Minuchin fala neste ponto de uma dança em três tempos: o
terapeuta observa a dança, depois faz dançar e por último sugere novas danças.
Esta demonstração (enactement) perante o terapeuta é, aliás, um procedimento
básico da terapia estrutural. Se a família através de um dos seus elementos faz
um relato de uma discussão havida em casa entre o pai e a mãe, imediatamente
Minuchin a faz executar perante si, recriando a situação no contexto da sessão
terapêutica.
67
68
Aqui há sempre que estar atento às verdades enunciadas pela família, os seus
mitos e crenças, de modo a poder aplicá-los em situações de impasse, não podendo
a família rejeitar as frases do terapeuta, visto estas pertencerem à própria
cultura familiar.
S. Fase de reestruturação
A modificação estrutural é obtida por fases, não sendo exclusiva deste momento.
Podemos dizer que a terapia estrutural decorre essencialmente segundo três
momentos: o terapeuta entra em contacto com o sistema familiar; avalia a
estrutura familiar subjacente e cria as condições para que a família proceda à
transformação dessa estrutura.
Perspectivas estratégicas
Jay Haley usou pela primeira vez o termo «estratégico» para descrever qualquer
forma de terapia em que o terapeuta, de um modo activo, elabora intervenções
dirigidas à resolução do problema. 0 termo está hoje em dia
69
comportamento sintomático.
objectivo está cumprida, visto que a sua intervenção é por definição breve e
dirigida à «resolução de um problerna».
tempo necessário para o resolver, não se tendo interessado, por exemplo, numa
terapia de casal, na história familiar do marido e da mulher, relações com os
filhos, infância de cada um. Esta perspectiva é muito pragmática, chamando a
atenção para o tempo que muitas vezes se perde recolhendo informação de carácter
histórico que depois não é utilizada na terapia. Também nos advertem sobre as
psicoterapias de longa evolução, nas
70
não é, pois, tão amplo como noutros modelos de intervenção, de modo que decerto
muitas vezes conseguem atingi-lo».
Jay Haley (1978, 1979), inicialmente ligado ao grupo de Bateson, é hoje em dia
um dos autores mais conhecidos trabalhando numa perspectiva estratégica. Também
considera que se devem identificar sequências de comportamento que envolvem um
problema, mas preocupa-se sobretudo
organização habitual da família (pais tomando conta do que se passa em casa) não
é possível haver qualquer resolução do problema.
71
Se bem que este acesso às famílias rígidas se caracterize por grande clareza e
didactismo, os conceitos de homeostasia e transformação utilizados pelo grupo de
Andolfi têm recebido recentemente críticas. 0 próprio Andolfi se tem afastado
nos últimos anos deste modelo estrutural/ /estratégico, para caminhar para uma
perspectiva mais existencial, com
mais atenção às famílias de origem e muito maior utilização das fantasias, mitos
e crenças familiares. Neste momento, o seu trabalho, influenciado por Whitaker,
tem muito mais elementos transgeracionais que estratégicos. Andolfi ilustra bem
como é possível retirar de cada escola de intervenção elementos válidos para a
construção de um modelo e de um estilo próprio. Nada pior do que decalcarmos
modos de intervir que nada têm a ver com a nossa maneira de actuar e com a nossa
personalidade: Andolfi soube enquadrar os seus mestres Minuchin, Haley e
Whitaker com as suas características pessoais de vivacidade e vigor para
construir um modo de intervir extremamente flexível. Maurizio Andolfi foi
extremamente importante na história do movimento da terapia familiar em Portugal
e vários elementos do nosso grupo trabalharam directamente sob a sua orientação
- a nossa história estará sempre ligada ao seu apoio e estímulo.
72
Os anos cinquenta corresponderam, como já foi dito atrás, a uma época em que
surgiram novas hipóteses explicativas da esquizofrenia. De entre os autores que
se debruçaram sobre esta psicose destacaram-se Wynne, Lidz e Gregory Bateson
que, em 1952, juntamente com Jay Haley e John Weakland, desenvolveu o projecto
de estudo da esquizofrenia, donde saiu a teoria do double-bind2).
A equipa inicial do M.R.I. era constituída por Don Jackson, Jules Riskin e
Virginia Satir, a quem mais tarde se juntaram Jay Haley, John Weakland e Paul
Watzlawick. A orientação desta equipa pretende ser uma nova fortria de
conceptualização dos problemas humanos e
família. A terapia tem assim que ser centrada a partir de fenómenos observáveis
na sessão.
73
relata: ele está sempre a beber, chega a casa embriagado e sujo e eu afasto-
comunicação.
74
Estes termos são descritivos, não implicam um juízo de valor, pois uma relação
simétrica pode tomar-se disfuncional se se verifica
Processo terapêutico
75
Luigi Boscolo.
Selvini tinha mostrado especial interesse pelo estudo da anorexia mental, tendo
notado, a partir do seu contacto com as famílias com um elemento anoréxico, a
necessidade de mudar o seu modelo analítico de intervenção para uma
epistemologia cibernética, a partir dos trabalhos de Gregory Bateson.
Embora fortemente influenciado pelo grupo de Palo Alto, o grupo de Milão cedo
ganhou autonomia, e a sua escola constitui hoje um corpo de doutrina de grande
importância para o desenvolvimento futuro da terapia
76
familiar, tanto na Europa como nos Estados Unidos. 0 seu modo de trabalhar
traduz grande rigor epistemológico e para alguns autores é dos poucos que merece
correctamente a designação de «sistémico».
contexto da terapia».
abandono destas noções, e devendo o terapeuta chegar à conclusão que aquilo que
deve atacar não é nenhum membro da família ou sequer a família disfuncional, mas
aquilo a que chamam o jogofamiliar ( ... ) anão ser que todos concordem sobre
as regras do jogo familiar, não há quem o ganhe, nem ele acaba; num ciclo
eterno, o jogo acerca do jogo, o meta~
77
família uma retroacção importante para o trabalho futuro, ao mesmo tempo que
limita o campo de observação e estrutura a próxima sessão. A prescrição pode
envolver a indicação de que a família execute um ritual, no intuito de destruir
mitos familiares resistentes ao longo do tempo e que bloqueiam a família na sua
evolução.
3. Processo Terapêutico
temente, Cecchin e Boscolo têm trabalhado sobretudo fora de Itália, pelo que as
sessões são conduzidas apenas por um terapeuta com um a três terapeutas atrás do
espelho.
78
A equipa deve partir para a sessão com uma hipótese, elaborada a partir dos
dados fornecidos pela família quando solicita a intervenção.
da família de um modo sistémico. Como diz Hoffinan (1981), «não podemos dizer
que o sintoma é devido à reacção da família, mas ver que todos os comportamentos
vão rodando num arranjo específico. Temos que encontrar um processo em que as
actividades se liguem umas às outras ritmicamente como o inspirar e o expirar,
ou a sístole e diástole
do coração».
A prescrição final nunca coincide com a hipótese inicial, sendo antes uma
explicação dos comportamentos, tomando-os significativos para o conjunto da
família, um ritual familiar ou qualquer comentário que reforce a coesão do grupo
familiar.
79
acontecimento preciso: «Rui, a tua Mãe e o teu irmão mais velho, desde que o teu
Pai adoeceu, batem-te mais ou menos?»;
80
0 problema da mudança através da terapia familiar tem que ser visto nas suas
duas vertentes de persistência e mudança, ou de homeostasia e transformação.
Nas situações problemáticas das pessoas que recorrem a uma terapia parece que o
desejo comum a terapeutas e familiares será o da mudança: se existe uma situação
incómoda, um sintoma muitas vezes grave, um
para os quais temos que olhar, ao mesmo tempo que existem potencialidades de
transformação que às vezes ignoramos.
81
Tanto no ciclo natural da vida familiar como nas situações de crise, mudança e
permanência fazem parte dum continutim no qual estão em
Vamos ver como os vários autores da terapia familiar se ocupam deste assunto. Se
alguns estão mais preocupados com a forma de lidar com a homeostasia e outros
com a maneira de introduzir a mudança, outros ultrapassaram esta dicotomia,
permanecendo abertos ao amanhã imprevisível das famílias que os procuram. .
Definiremos os objectivos pretendidos com a terapia, para cada autor, assim como
as técnicas utilizadas, agrupando-os em três perspectivas globais: perspectiva
estratégica, perspectiva estrutural, perspectiva transgeracional. Finalmente,
debruçar-nos~ernos sobre a abordagem do grupo de Maurizio Andolfi do Instituto
di Terapia Familiare de Roma, porque nos parece uma fórmulação criativa, embora
claramente tenha recebido influências de outras escolas.
Para Jay Haley (1979) a finalidade da terapia é a resolução dos dilemas dos
seres humanos: «A nossa abordagem terapêutica tem como centro a
82
contexto social dos problemas humanos, que pode incluir, além da família, a
escola, as instituições, os grupos sociais, os próprios terapeutas. Não é apenas
numa perspectiva de diagnóstico que Haley acentua a
Esta visão coloca um problema aos terapeutas: até onde vai a inter-
venção junto duma família, se deve abranger o contexto mais lato que a
acção política? Haley diz (1979): «Não há solução simples. Qualquer que seja a
sua posição militante como cidadão, a obrigação do terapeuta enquanto tal é
definir a unidade social que ele pode mudar para resolver o problema apresentado
pelo seu cliente». Escolher a área de intervençã o possível e eficaz é a função
do terapeuta na resolução dos problemas.
1. Definir o problema;
2. Observar a organização da família;
3. Definir as mudanças desejadas pela família;
4. Dar directivas.
da família e tenta que ele seja visto em termos não de uma, mas de duas, três ou
mais pessoas. Este é o primeiro passo para a mudança. Por outro ladopedeque
oproblema sejadescritono seu contexto- as circunstâncias concretas em que
ocorre, de lugar, de tempo, quem está presente e como actua.
83
observação directa pode fornecer esta informação. Por isso o terapeuta deve dar
importância aos actos. Mais do que ter uma conversa sobre os problemas, ele deve
levar a família a reproduzir, ou representar na sala da sessão, os
comportamentos e as interacções habituais dos seus membros na presença desses
problemas.
0 terapeuta passa então a escolher com a família uma área de intervenção bem
delimitada e acessível. Quais são as mudanças desejadas por todos e quais são as
possíveis. «Nunca sublinharemos demais que o
problema sobre o qual o terapeuta se fixa deve ser não só o que a família deseja
modificar, mas também um problema formulado de maneira a
84
jogo interaccional.
85
útil, para quê continuar uma terapia? «Ao mesmo tempo a conotação positiva abre
implicitamente a via ao paradoxo: porque é que a coesão do
«Na medida em que é proposto num registo de acção, o ritual familiar está muito
mais próximo do código analógico do que do código digital. A componente
analógica preponderante é por natureza mais apta do que as palavras para unir os
participantes numa vivência colectiva poderosa e para introduzir uma ideia de
base mutuamente partilhada. 0 ritmo impõe~se pelo seu carácter norrnativo na
passagem do signo ao sinal, do sinal à norma... Podemos concluir que a
prescrição de um ritual pretende evitar o comentário verbal sobre as normas que
perpetuam o jogo em acção. 0 ritual familiar é antes a prescrição ritualizada
dum jogo no qual novas normas se substituem tacitamente às normas anteriores»
(Selvini Palazzoli et a], 1978).
86
«Comete-se um erro de tipo lógico, criando umjogo sem fim, ao tentar uma mudança
de tipo 1 numa situação que só admite modificações a partir do nível
imediatamente superior» (Watzlawick et al, 1975). 0 nível lógico imediatamente
superior é aquele que dá à situação uma determi-
nada conotação que tem a ver com os valores e significados que são
problema inicial;
- 0 paradoxo tem um papel tão importante na resolução dos problemas como teve na
sua gênese.
87
directivas.
estratégia terapêutica deve ser traduzida numa linguagem que esteja de acordo
com a forma de ver a realidade do cliente. Só a partir daqui é possível fazer um
reenquadramento, isto é, mostrar a mesma realidade duma forma totalmente
diferente.
mas ensina um novo jogo que toma o antigo caduco» (WatzIawick et al,
1975).
88
Três estratégias são definidas com vista a estas mudanças - uma dirigida ao
sintoma, outra dirigida à estrutura da família e outra à
realidade da família.
89
conjunto de que todos fazem parte. Nenhum deles pode ser o único responsável
pelas mudanças a realizar, assim como não foi o único responsável pela disfunção
existente.
90
A segunda geração fica portanto equipada com um grau de indiferenciação que faz
reduzir as suas possibilidades de autonomia para graus progressivamente mais
baixos.
91
Bowen chegou à conclusão de que era mais útil trabalhar apenas com
o casal e não com os outros membros da família visto que as mudanças operadas no
casal se repercutem no resto do sistema familiar. Ora, o que se verifica é que
há membros de casais que se separaram das suas famí-
lias de origem através dum «corte emocional»(1), seja por negação, por
distanciamento físico ou por isolamento afectivo. Isto é, iniciam a vida no
seu grupo de pares sem terem resolvido a parte de indiferenciação que têm em
relação aos seus pais. Quanto maior for o corte emocional, maior é a
possibilidade de trazer para o casamento e para a nova família os
92
seus sentimentos, positivos ou negativos, uns para com os outros, duma forma
directa. É a experiência do que se passa na entrevista que introduz mudança,
porque é uma experiência vivida e não apenas referida ou descrita.
Os objectivos que são estabelecidos pelo terapeuta não verbalmente têm uma
vantagem, porque o pensamento intelectual tende, na família e
93
É desejável que a família assegure a sua evolução através das funções que
atribui a cada pessoa no seu seio. Função significa «o conjunto de
comportamentos que, dentro de uma relação, satisfazem as exigências recíprocas
dos participantes» (Andolfi et al, 1982). Mas é necessári, o que exista, além
deste «espaço interactivo», um «espaço pessoal» que permita a cada um
experimentar novas relações e funções diferentes e expressar aspectos da sua
própria identidade.
1. Redefinição;
2. Aumento da tensão (indução da crise);
3. Provocação;
4. Negação estratégica.
próprio». Para evitar que uma nova definição da interacção seja rigidamente
assumida pela família ele deve também aumentar a complexidade da
94
cresce a tal ponto que já não pode ser contida pela função desempenhada pelo
paciente designado» (Andolfi, 1982).
95
nas suas próprias mãos as decisões acerca dos seus problemas. 0 terapeuta passa
de protagonista a espectador.
Conclusão
96
Haverá entre estes dois grupos uma oposição ou uma complementaridade? Por outras
palavras, a diferenciação pessoal poderá ser compatível com a coesão familiar,
ou seja, com o aumento da organização do sistema?
Nas famílias em terapia a amplificação dacrise, assim como apequena mudança numa
área localizada da família, podem ser a flutuação utilizada para que da
instabilidade-tensão no grupo familiar surja uma nova
que o inicial.
97
Woman I know you understand the little child inside the man
John Lennon
querem sair
satisfação mítica dos seus desejos e uma função de cirurgia plástica das
frustrações que substitua definitivamente o merpurocromo e os pensos rápidos das
soluções individuais até então utilizadas.
99
termina numa árvore ou o duende num cavalo, o que nos leva por vezes a procurar
pelos cantos da sala as peças verdadeiras, impossíveis de encontrar porque nunca
existiram. No fundo o casamento tem muito a ver
com um jogo infantil e o seu sucesso ou o seu fracasso decorrem da forma como
esse jogo é aceite e vivido por ambos: a não capacidade de ser criança a dois,
de brincar a dois, a circunstância de um dos membros do casal ficar olhando com
severidade de adulto, distante, crítico e não participativo os jogos emocionais
do outro, conduz a uma ossificação da relação que se as pessoas não conseguem
resolver no interior da mesma procurarão inevitavelmente solucionar através dos
vários escapes ao seu
A dream you dream is only a dream - a dream you dream together is reality.
Yoko Ono
100
Desenvolvimento dele
Desenvolvimento
dela
geracional
geracional
Desenvolvimento
infantil
Desenvolvimento
infantil
anteriores, etc.)
Maturação e desenvol-
vimento (idem)
Desenvolvimento da relação
CONTRACTO ACTUAL
PROBLEMAS ACTUAIS
Pedido de Terapia
A dificuldade é que muitas vezes estes contratos não são explicitados, isto é,
muitas vezes um companheiro não verbaliza ao outro aquilo que
101
espera da relação; outras vezes o contrato permanece secreto, por receio das
consequências, ou até pode não ser consciente, por resultar por exemplo de
feridas provocadas pela relação com as famílias de origem que se esperam ser
solucionadas pelo outro, tal como descrevemos na introdução a este capítulo.
sistema familiar está ligado aos sistemas familiares anteriores através das
relações de cada um e através da participação das famílias de origem no
companheiro que têm mais a ver com dívidas do passado familiar de cada um.
Whitaker (198 1) considera mesmo que «é ilusório pensar que o homem e a mulher
são duas pessoas independentes que sejuntaram pafa formar uma união perfeita.
São simplesmente bodes expiatórios enviados pelas suas famílias para
reproduzirem a sua maneira de ser».
102
vez que cerca de 65% dos casais com mais de 25 anos se mantêm até à morte de um
deles;
modo complementar, sendo por exemplo ele mais aberto e extrovertido e ela mais
retirada. Este padrão pode inverter-se por iniciativa de um, mas
homem e a mulher em terapia: o casal é que tem que tomar qualquer iniciativa de
mudança, o terapeuta é um criador de alternativas, um
103
claro que numa família saudável os papéis estão disponíveis para todos de um
modo flexível;
li) Existem vários tipos de relação conjugal: há casais que se dizem perfeitos,
sem crises, mas que têm uma relação morta, como se houvesse um verdadeiro
divórcio emocional entre eles; outros atravessam períodos de dificuldades mas a
sua relação é quente e viva, sendo possível ajudá-los a encontrar novas formas
de relacionamento.
sempre que não é possível a comparência de elementos das outras gerações, o que
por vezes acontece.
104
nossa ideia é de que a intervenção terapêutica é mais eficaz se for apoiada por
todo o sistema familiar, sendo muito evidente o calor e a alegria que as
crianças fornecem à sessão, se forem chamadas a participar activamente. Se toda
a família é incluída estabelece-se uma dialéctica de pertença e de
os seus problemas mas nos quais existe uma relação ainda suficientemente quente
que impede uma individualização, falsamente conseguida muitas vezes à custa de
disputas em advogados;
fronte com os seus fantasmas, de modo a que cada um deles possa passar a ver no
outro figuras reais e não fragmentos do passado ou figuras idealizadas;
saudável; numa óptica sistémica não faz sentido considerar que só existe um
doente, sendo necessário redefinir o problema em termos da relação disfuncional.
Mas mesmo nestas três situações, e sempre que possível, procuramos transformar a
terapia do casal numa terapia familiar tal como a
105
casal. Essa partilha pode ser estimulada com a presença de outros elementos da
família que interagem com os terapeutas e entre si, parecendo que esta
experiência pode ser extremamente importante para todos e
de nós. Viver com uma pessoa terá que ser uma luta e uma procura constantes: a
terapia marital fornece o terreno para que essa luta seja possí vel e criadora,
mas deve permitir que o casal seja completamente livre nas suas opções face ao
futuro da relação. É também fundamental que cada elemento do casal esteja bem
consciente das diferenças de cada um. Estas dissemelhanças não têm apenas que
ver com as suas origens, mas traduzem-se também em formas diferentes de sentir e
viver o amor
e a relação sexual.
pênis dentro de uma vagina, mas um universo feminino em contacto com um universo
masculino». E chamam a atenção para diferenças importantes de carácter
sensorial, por exemplo no que diz respeito às zonas erógenas: as masculinas
estão concentradas ao nível dos orgãos genitais, enquanto as femininas estão
mais difusas na superfície corporal. Muitos casais não estão alertados para
estas diferenças e tendem a ver o companheiro à sua
E oxalá a terapia possa ajudar a realizar aquilo que Ariès (1983) escreve: «Um
casal formado com o tempo e ao longo de tempo considerável e que sente que cada
106
cônjuges, dá-se conta do fortalecimento da sua união: duo in una carne (... ) o
verdadeiro casamento é uma união que dura, com uma duração viva, fecunda, que
desafia a morte. Desforra subterrânea do dinamismo da continuidade numa
civilização que privilegia o instante e a ruptura».
107
Pedi a um Arapesh que imaginasse o diálogo com alguém que quisesse casar com
a sua própria irmã:
- Mas como? Não queres ter um cunhado? Não compreendes que se te casares com a
irmã de outro homem e um
outro homem se casar com a tua irmã terás pelo menos dois
cunhados, enquanto se te casares com a tua própria irmã não terás nenhum? E com
quem irás caçar? Com quemfarás as tuas plantações? Quem irás visitar?
M. Mead
Licenciada em Antropologia.
109
forma ou outra, ainda em nós persistem como engramas (A. Bracinha Vieira, 1979):
a territorialidade e a hierarquia.
110
constitui. E é essa atitude que está por detrás de todo o interesse por estes
temas, de todo o gosto nem sempre confessado pelas aproximações à antropologia:
é de nós que ela fala, ainda que por metáforas, ainda que falando de tribos
distantes. E ouvir a antropologia a propósito da família toca-nos então com
muita força. Mais que o económico, o político, o religioso, o técnico, o assunto
família/parentesco atinge rapidamente a frágil zona em que nos descobrimos,
também nós, objecto da antropologia e não apenas o sujeito neutro e distante
duma relação de conhecimento. Família é assunto de todos. Pai, mãe, filhos,
irmãos, tios, primos, avós, cônjuges, são coisas de todos nós. Assim como o são
os afectos, as dependências, os contratos, as regras, a partilha e o conflito
que todos vivemos e conotamos com a família. Mesmo sem sabermos como as
outras sociedades vivem estas coisas, pressentimos que algo existirá de comum, e
daí pensarmos nos fundamentos naturais da família, uma vez que está em causa a
questão evidentemente biológica da reprodução. E, por outro lado, ao depararmos
com a diversidade de soluções com que as sociedades a resolvem, voltamos a
questionar-nos sobre os limites do
e a sociedade, nem tão pouco é um produto aleatório de uma formação social todo-
poderosa. Todo o fenômeno humano se situa na chameira do
aberto, isto é, permitindo variantes, e por sua vez esse substrato biológico se
desenvolve e modela dentro de padrões culturais que ele próprio permite.
111
que o terapeuta familiar, quando o procura, não sabe bem o que quer e todavia
pressente que pode aprender algo. Talvez uma definição de família, para além da
dicotomia «natural» ou «cultural». Talvez uma
social e sua transformação na história. Talvez uma panorâmica das formas que os
homens das diversas culturas encontraram para se associar
com os mesmos fins da família que conhecemos. Ou talvez apenas uma achega na
forma de abordar as sociedades aplicável às mini-sociedades que são as famílias.
Tudo isto a antropologia poderia dar. Nas suas
Podemos assim definir dois campos em que a antropologia pode fornecer ajuda à
terapia familiar: a teorização e a intervenção. E claro que toda a acção
pressupõe uma determinada forma de ler o real e, por seu
112
113
vadores que, sob o mesmo rótulo, encaixaram uma série de fenômenos de natureza
diferente. No extremo, todo o corpo de conhecimentos acerca
114
115
ideologia do progresso nos tenha impregnado de tal forma que, qualquer que seja
a conotação que lhe damos, se instale em toda a leitura que fazemos do mundo. E
na interpretação de fenômenos de parentesco essa
lucionismo ortodoXo(6).
Vemos assim que a família nuclear monogâmica que conhecemos da nossa sociedade
não está determinadamente associada à «complexidade» desta e à sua posição de
superioridade na escala evolutiva, mas aparece
(6) Lembremos que, sob o rótulo evolucionista, existem também algumas correntes
que trilham um caminho completamente diferente, partindo da biologia dos
primatas superiores para chegar às instituições humanas, estabelecendo um
continuum natureza/cultura que ultrapassa falsas questões e becos sem saída em
que a antropologia tantas vezes cai. Neste sentido, não poderíamos deixarde
chamar a atenção para a importância de uma abordagem, paralela à nossa, no
âmbito da chamada antropologia biossocial (R. Fox), da etologia e da
sociobiologia.
116
também no que seria o ponto mais baixo dessa escala, onde, na lógica
evolucionista, seria de esperar uma formação próxima da promiscuidade primitiva.
Aos evolucionistas mais ingénuos, surpreendidos com estes factos, pôr-se-á uma
alternativa: ou os dados são falsos e se continua a crer no carácter recente e
único da família dita «moderna», uma vez que a
hipóteses evolucionistas, estas foram perdendo argumentos. Até que alguma coisa
com o nome de evolucionismo viesse a retomar o seu lugar no panorama da
antropologia (o que só muito timidamente começa a dar-
-se), porque os cientistas se vão dando conta de que a refutação das ficções
sobre a evolução não deve pôr em causa a existência da mesma, a antropologia
teve como que uma pausa para respirar e deixar de pensar no assunto evolução. Às
velhas questões da procura das origens dos costumes, à obsessão de formular uma
teoria geral do desenvolvimento das culturas, sucedeu uma outra forma de encarar
as sociedades. Em detrimento dos estudos diacrónicos, passou a privilegiar-se a
abordagem síncrónica, o que representa um modo totalmente diferente de lidar com
117
construídos segundo esta. Surge deste modo a diferença entre duas noções tão
próximas que muitas vezes se confundiram, isto é, a de estrutura social e a de
118
(a) (b)
(d) (C)
geral de troca, de constante fluxo dos indivíduos entre grupos, o pequeno grupo
criado reconstitui-se como mundo: a família, seja qual for a sua
forrna, extensão, modalidade, inserção no meio. Por isso, tudo aquilo que
aprendemos com o estudo das culturas nos pode ensinar a ler cada
119
120
questão (em particular, como veremos, nos seus vários jogos iden-
121
É a partir deste ponto de vista circular que Bateson irá considerar que os
indivíduos de uma comunidade são normalizados pela sua cultura e
admitidas nos mais diversos contextos, são uma expressão dessa normalização.
122
por conter pelo menos um elemento do tipo: «um aumento em N provoca uma
diminuição em M». 0 termostato do aquecimento das casas ou a máquina a vapor com
regulador são exemplos destes sistemas autocorrectivos. Note-se que, em muitos
casos, o mesmo circuito material pode ser ao mesmo tempo regenerador ou
123
A conduta cerimonial Naven, não sendo um rito de passagem, procura celebrar cada
novo acto cultural do latia, isto é, filho/a da irmã, sendo o seu traço mais
relevante o facto de os homens se vestirem de mulheres e as mulheres de homens.
Partindo das rivalidades entre indivíduos e grupos, Bateson irá analisar a
insistência no modelo complementar da relação wau/laua como forma de controlo da
cismogénese simétrica subjacente a esta sociedade patrilinea1@1), ou seja, da
relação entre um
124
- a identificação do latia com o pai (flecha 11), segundo a qual o wau
trata o latia como se fosse o marido da sua irmã e o latia trata o wau como se
fosse o irmão da sua mulher (Bateson, 1936):
A 6,C-- &
WAU
L5 LAUA
125
PAI MÃE
CRIANÇA
PAI (geração 1)
TIO MATERNO
CRIANÇA (9eraç@,o 2)
materna: assim Pablo Ruiz que se tomou Picasso, e Charles Dodgson que foi Lewis
Carrol (F. Martens, 1975).
126
parental, isolando-se da fratria. Cf. S. Minuchin, 1974). Por isso também uma
intervenção terapêutica como a de Murray Bowen, privilegiando o
que se separa da sua família de origem, não por autonomia emotiva, mas
por «corte emocional» (the emotional cut-off), tenderá a manter esse modo
ego
a ser paralela ao grau de ligação não resolvida na familia» (Bowen, 1972), sendo
um dos mecanismos mais eficazes da sua redução um sistema
por vezes com grupos familiares rurais que mantêm em meio urbano uma
orientações rurais. Por isso também não surpreende que possa surgir como
127
resolver uma crise, que leva à interacção do grupo composto pelo núcleo
familiar, parentes, vizinhos, etc., durante a qual todos mantêm um contacto
contínuo e variado entre si, que produz a «retribalização».
128
tanto como perito, mas sobretudo enquanto olhar mais objectivo face ao
traz. Objectividade que lhe advém da sua posição de observador que, partindo
das «transacções» da comunicação familiar, acede às suas
129
(15) 0 conflito edipiano será aqui interpretado como uma coligação velada entre
130
Haley, verificamos que qualquer elemento da família forma o ponto nodal (nexus)
de um grande número de triangulos e é o único a ocupar esse
lugar, pois nunca encontraremos duas pessoas numa mesma situação contextual. Por
isso toda a possibilidade de comparação se toma impossível, por isso toda a
patologia é sempre diferente.
(Junho de 1983)
131
Mas quem pode ser terapeuta familiar? A Terapia Familiar exige uma larga
experiência prévia no campo psicológico, numa actividade profissional mal
correlacionada (psiquiatria, psicologia, serviço social, enfermagem, educação).
selecção dos candidatos. Não acreditamos que um homem ou mulher que não tenha
passado pelas vivências boas e duras da relação com os outros
133
1. Trabalho teórico-prático
Ao longo dos quatro anos cada candidato faz uma ou mais terapias familiares,
sempre com supervisão e discussão com todo o grupo de formaçã o.
Pensamos o grupo em formação como um sistema com uma finalidade comum: tomar-se
terapeuta da família. Este sistema, em relação com o
134
Cada técnico que pede uma formação em Terapia Familiar, para além do seu desejo
expresso de vir a trabalhar com famílias, traz consigo toda a sua família que o
vai acompanhar durante a vida.
135
136
Ix CASOS CLíNICOS
«Se ao que busco saber nenhum de vós responde Porque me repetis -vem por aqui?
»
José Régio
Em Março de 1982 a mãe pede uma consulta para o filho, dizendo que fora enviada
pelo professor pois o Pedro não aprende na escola; tem 10
0 Pedro vive com o pai, de 53 anos, dono duma tabacaria, com a mãe
Caso seguido no Centro de Saúde Mental Infantil de Lisboa por Helena Silva
Araújo e Antônio Trigueiros.
137
Filipe. Passa parte do dia, quando acaba a escola, em casa da avó materna. Esta
informa que o pai é de facto padrasto do Pedro. 0 verdadeiro abandonou a mãe
quando a criança tinha 11 meses, e aquela voltou com
o filho para casa dos seus propnos pais. Casou novamente com o actual marido
quando Pedro tinha 3 anos. 0 irmão é filho deste marido.
A avó acha que o padrasto trata a criança muito bem, como se fosse também filho
dele e só quer que ele aprenda na escola e para isso promete-lhe tudo.
pai. A avó põe como condição da vinda à consulta que não se faça referência ao
assunto. (Estes foram os elementos transmitidos pela avó à assistente social do
serviço, C.S.M.I.L., pelo telefone).
Os dois técnicos que se vão ocupar do caso, em co-terapia, ficam atentos ao que
parece a grande ambivalência da família em pedir, ou não, uma ajuda para os seus
problemas, traduzida pelos pedidos de consulta e a sua não comparência quando
estasforam marcadas, originando um intervalo de 9 meses entre o primeiro pedido
e a primeira sessão enfim realizada.
No dia marcado para a consulta não se encontra o processo, e por isso os dois
terapeutas realizam a consulta sem nada saberem da família e do seu pedido, nem
das exigências postas pela avó.
Observando a família na sala de espera pensamos tratar-se duma mãe com 2 filhos
e os avós. A mãe parece deprimida e está sentada um pouco à parte. 0 «avõ» toma
conta e brinca com a criança mais nova, que depois traz ao colo para o gabinete.
Começa o pai a falar, referindo a grande preocupação que têm pelo facto de o
Pedro não aprender na escola e como têm feito tudo para o
138
o irmão pequeno traga um igual para ele, querendo tudo o que o irmão tem, sem
compreender que já é crescido. Eles não percebem o que se passa, pois acham-no
inteligente. Recentemente o pai prometeu-lhe um relógio e ele aprendeu a ver as
horas de um dia para o outro.
A mãe fala só quando directamente citada, explicando que sempre foi assim
calada. Também ela acha o Pedro inteligente, não percebendo porque não aprende.
0 pai, que é um homem com bastante à-vontade e
A mãe apresenta uma carta da professora que diz o seguinte: «Sendo bastante
fraco em Matemática é contudo na leitura e escrita que ele encontra as maiores
dificuldades. E bastante estranho que, em
quatro anos consecutivos, o Pedro não tenha conseguido fixar o nome das
letras e os respectivos sons; têm sido tentados vários métodos, mas com
Os pais foram alertados para esta situação que não nos parece comum, pois o
Pedro está com 10 anos e não sabe ler, nem conhece o nome das
Esta primeira entrevista foi dominada pelas queixas dos pais e avó
dificuldades do Pedro.
139
Na sala de espera o pai continua a brincar com o filho mais novo, que novamente
traz ao colo para o gabinete e de quem se ocupa durante toda a sessão; a avó e a
mãe estão sentadas perto, embora sem comunicarem, e o Pedro está sentado
sozinho, no outro lado da sala.
A mãe começa dizendo que as coisas estão pior. 0 Pedro interessa-se cada vez
menos pelos trabalhos da escola, só quer brincar com os
carrinhos ou com outras brincadeiras muito infantis, não vai brincar com os
rapazes da sua idade, só quer fazer tudo o que o irmão faz.
0 pai concorda e diz que, pelo seu lado, passou a ter a preocupação de sempre
que traz qualquer brinquedo ou guloseima para o mais novo trazer
igual para o Pedro, embora continue com dúvidas que isso esteja certo, pois o
José Filipe é muito mais pequeno.
transmitir que tudo está pior, o Pedro e a mãe parecem-nos estar hoje com um ar
mais alegre. Um dos terapeutas faz notar que o Pedro vem hoje de gravata e que
isso costuma ser um acontecimento importante para
os rapazes.
Com grande satisfação o Pedro conta-nos que fez anos e que foi a
140
decidam que há assuntos que não é conveniente partilhar com os filhos, pois são
assuntos de crescidos, mas na nossa experiência temos verificado que,
frequentemente, são falsos segredos que todos mais ou menos
intervenção terapêutica.
0 pai acha que ele ou a avó poderiam falar connosco em particular; também não
lhe agrada esta situação (curiosamente exclui a mulher, confirmando-nos assim a
ideia do seu fraco poder na família, liderada por ele e seguramente pela avó).
De resto, acrescenta o pai, já se tem posto a questão dum dia terem que falar
com o Pedro e pensa que o nosso conselho poderá ser importante. Pessoalmente
pensa que não é ainda altura, por o Pedro ser muito infantil, não liga a nada,
não quer saber de nada, não é capaz de ter uma conversa
direita, «parece começar muito bem mas depois mete qualquer coisa pelo meio sem
sentido».
141
Pergunto ao Pedro se ele é capaz de imaginar do que estão a falar e do que a avó
nos queria dizer em particular.
Não faz ideia nenhuma. Sinal, dizemos, de que o segredo tem sido bem guardado
mas, mesmo
É a avó quem primeiro nos fala do medo que tem que o conhecimento desse segredo
possa fazer perigar a união da família. Pensa que poderia passar a haver um mau
entendimento entre eles, o Pedro poderia responder torto ao pai e este zangar-se
e a mãe acabar por se meter entre os dois.
0 que mais preocupa o pai é que o Pedro pense que ele dá mais atenção ao Zé
Filipe.
A mãe acha que o que a preocupa mais é outra coisa, não é tanto o
receio que o conhecimento do segredo faça mal ao Pedro, mas que depois ele faça
mais perguntas.
Novamente é a avó quem primeiro toma a palavra para dizer que quando o Pedro se
portar bem, quando for um homenzinho e não for mal educado.
0 pai tem dúvidas, repete que acha que ainda é cedo por ele ser muito infantil e
irresponsável, porta-se como se não compreendesse, não liga a
A avó explica agora ao Pedro que isso, por vezes, acontece nas
famílias; ela teve 7 filhos e dois deles não ficaram com os dois apelidos dela
como os irmãos, mas apenas com um.
142
Neste momento os terapeutas vão redefinir o problema. Comentam como o Pedro tem
sido bom filho não sendo curioso e respeitando os segredos da família. No
entanto, acrescentamos que para aprender a lere a interessar-se pelas coisas da
escola é preciso ser curioso.
Talvez o Pedro pense que aprender a ler possa ser perigoso, poderia ler coisas
que não deve, o bilhete de identidade ou outros papéis.
0 pai, um pouco admirado, concorda que na verdade para aprender é preciso ter
curiosidade.
própria, quem vai falar com o Pedro, ou com o Pedro e o Zé Filipe se ele
0 pai achaque será ele. «A sós ou com mais alguém? » -perguntamos. A sós com o
Pedro, numa conversa de homens.
A mãe não concorda, acha que terá que ser ela a falar com o filho: «se
ele me perguntar eu digo-lhe e quem estiver está, mas acho que é a mim
muito curioso, «aposto que quando sairmos daqui nos vai perguntar do que
estávamos a falar».
Nesta altura o Pedro, que se tem mantido muito atento a tudo quanto é dito,
intervindo por vezes, começa a rir-se.
«Se queres saber porque não lhes perguntas?», inquirimos. «Aqui ou em casa?»,
quer o Pedro saber, dizendo ainda que gostaria mais que fosse aqui. Concorda,
quando lhe dizemos que provavelmente ele está com medo que em casajáninguém fale
com ele, mas acrescentamos ainda que os pais têm o direito de escolher quando e
onde deverão falar com os filhos.
143
estivera, dizendo «eu sou o Pedro». 0 pai diz-lhe que não, que ele é o José
Filipe. «Eu sou grande, eu sou o Pedro», insiste, parecendo querer reocupar a
pos1ç@o central que habitualmente é a sua, manifestando igualmente o seu desejo
de crescer.
0 Pedro diz então que concorda com a proposta da mãe de falar com
ele em casa e, após uma pequena pausa, diz que já sabe o nome todo do irmão,
que foi a mãe que o ajudou. Diz então o nome completo do irmão, que na realidade
tem um apelido diferente do dele.
Partilhando com todos a conversa sobre o segredo, o Pedro pode permitir-se agora
dizer que conhece a diferença de apelidos dos dois.
e ao explorarem com eles asfantasias que cada um tem sobre o assunto, diminuem
as tensões que se condensaram nele, esperando que isso permita ao Pedro sentir-
se menos prisioneiro da obrigatoriedade de dar garantias aos pais e avós de que
não sabe o que aconteceu, pois é incapaz de aprender.
A sessão acaba com a marcação dum novo encontro para o mês seguinte.
ninguém responde ligamos para casa da avó. Diz-nos que a filha não podia faltar
ao emprego e que lhe pedira para nos avisar e pedir nova
144
Ainda não lhe disseram nada. 0 pai continua a pensar que gostaria que ele
tivesse mais juízo para aceitar a notícia. 0 Pedro continua sempre muito
preocupado que o pai traga prendas ao irmão e não a ele.
Fala da dificuldade que têm tido em arranjar tempo para virem à consulta. Já
propôs à mulher que, se ele não pudesse vir, poderia vir ela com o filho, o que
a mulher não aceitou.
Se o Pedro continuar a ser o bom filho que tem sido, talvez ele consiga
continuar a não ser curioso e a respeitar o segredo da família mas, ao
mesmo tempo, talvez possa mostrar agora alguma curiosidade pelas matérias da
escola.
Os terapeutas»
o nosso telefonema. Tem boas notícias. 0 Pedro anda muito melhor, está a
frequentar a Y classe e já lê bem. Parece outro, interessa-se pelas coisas da
escola e já tem conversas próprias para a idade e vai brincar para a rua
145
Os pais ainda nada lhe disseram, fazendo apenas comentários indirectos sobre a
situação, aproveitando-se de situações parecidas existentes com
crianças conhecidas.
Pergunto ao pai como conseguiram uma mudança tão grande. «Não sei, talvez a
idade, ele vai crescendo, eu também lhe prometo coisas se ele aprender, e o ir
aí, se calhar, também ajudou».
Uma vez que o motivo da consulta - incapacidade do Pedro para aprender a ler -
parece ultrapassado, damos por terminada a nossa
culpabilidade que resulta da transgressão duma dessas regras que vai dar origem
ao segredo e a todo um conjunto de novas regras muitas vezes patogéneas, com o
fim de evitar a sua revelação.
Gostaríamos ainda de chamar a atenção para que apenas foram realizadas duas
sessões com a família (em Dezembro de 1982 e Janeiro
146
Ditado Popular
de suicídio.
Vem sozinha à primeira sessão. É uma miúda de 16 anos, muito viva, sorridente,
com grande facilidade de contacto. Não parece ter dificuldade em contar o que se
passa e, nesta primeira entrevista individual, procura explicar o que lhe
aconteceu, o que a fez tomar os comprimidos0):
ANA - Acho que é uma vontade muito grande que eu tenho de pegar em mim e ir
embora daqui. Saturo-me das coisas e das pessoas. A minha mãe agora já me aceita
mais, mas nunca me aceitará como eu gostava que me aceitasse.
dificuldades com a mãe - que sente demasiado próxima - e com o pai, mais
distante (separados desde os 6 meses de Ana, tendo cada um deles casado de novo,
o que, como veremos, tem tido grandes repercussões na
sua vida):
ANA -0 meu pai tem uma vida muito ocupada, trabalha num grupo de teatro. Mora
num sítio oposto a mim, quase nunca estamosjuntos. Tem
147
com a minha irmã uma relação muito melhor; viveu quatro anos com ela.
Ana é uma adolescente muito dividida nas suas relações familiares, procurando
desajeitadamente autonomizar-se. Está dividida entre a
ANA - Tenho que ter uma grande calma, porque todos precisam de mim. A minha irmã
é para a minha mãe um caso perdido. Ela éfilha do meu pai e eu sou filha dela.
Dividida também em relação ao pai: ANA - Há uns tempos, antes das férias
grandes, tivemos uma
discussão em que eu lhe disse se ter duas meninas bonitas que atéfazem solfejo é
que é ser pai. Ele deu-me duas bofetadas. Eu sei que ele gosta de mim, depois eu
chego ao pé dele dou-lhe dois beijinhos e acabou. E é assim a minha relação com
ele. Ele não tem relações profundas com
ninguém, não tem amigos. Depois tenho um sem número de madrastas que dava para
montar uma orquestra!
A situação é assim difícil para Ana; há momentos em que a única saída é ficar
sozinha:
sem ver ninguém, sozinha com o meu cão a ouvir música clássica.
Tínhamos alguns dados sobre Ana. Tínhamos um primeiro contacto caloroso, em que
o humor e um sorriso aberto não escondiam um olhar bastante inquieto. Tínhamos
também a sensação clara de que a ajuda a
Ana teria de passar por uma clarificação do seu lugar na família, sem o que a
sua autonomização nos parecia pouco consistente. As dificuldades adolescentes de
Ana inscreviam-se nitidamente na confusão das teias familiares; haveria pois que
clarificá-las.
148
Na semana seguinte Ana vem à sessão com Rita e Maria Teresa. Rita tem 19 anos;
mostra-se ansiosa e preocupada. É muito comu-
Maria Teresa, de 40 anos, inicialmente mais reservada, mostra uma atitude muito
afectuosa, colaborante, questionando-se logo de início:
MARIA TERESA -Eu dediquei-me demasiado às minhasfilhas, dei-lhes muito o que não
devia, para as ter sempre para mim. Com pavor, não sei, pavor, terror de as
perder. Por isso fiz muitas coisas que não devia e muitas coisas que eu devia
saberpara ser mãe, não sabia, nunca fui capaz de saber ou, se sabia, dizia a
mim própria que não sabia. Por isso eufazia tudo quanto devia e não devia para
as ter.
Rita dá-nos também a sua opinião acerca do que se tem passado com Ana:
RITA -Eu apeguei-me muito à minha irmã, talvez porque ao longo de vários anos
tive para com ela uma certa atitude maternal e ao mesmo tempo de irmã. Eu tinha
sido educada pela minha avó paterna, pelo meu
pai, mas a minha irmã era da minha mãe, era qualquer coisa só dela e...
sei lá, isso originou ao princípio uma grande revolta da minha irmã para com o
meu pai, no fundo para com toda a família do lado do meu pai.
TERAPEUTA A* - Por que é que a Ana teve ideias de morrer? MARIA TERESA - Falta
de umas bofetadas que nunca levou, falta de dizer « ainda sou eu que mando, isto
não é assim».
Maria Teresa prossegue, muito emocionada: MARIA TERESA-Eu sofri muito e opai
delasfoi o único homem da
149
minha vida... E era pai delas. Eu não queria reagir assim, não estou a
RITA -A Ana não pensou em morrer. Ela tem complexos e precisou de chamar a
atenção das pessoas e dizer «eu existo». Não tomou comprimidos para morrer,
porque se assim fosse tinha tomado ofirasco inteiro. Já uma outra vez tinha
tomado uma dúzia de comprimidos e veio
MARIA TERESA - Eufico triste porque penso que se a niinhafilha quer morrer é
porque eu não soube ser mãe, é porque a culpa é minha. Eu denuncio-me a mim,
porque eu é que vivi com ela. Nem sequer denuncio o pai, que não viveu com ela.
TERAPEUTA B -Por que é que tira essa conclusão, como se fosse causa única?
MARIA TERESA -As mães têm muita culpa do que osfilhosfazem e são. Neste caso sou
eu. Eu queria estar muito bem preparada para suportar a saída do pai e aguentar
como se ele estivesse presente, sem
TERAPEUTA A - Foi uma grande perda para si? MARIA TERESA - Sim, foi a minha
vida. Se voltasse atrás e me perguntassem se queria morrer ou perdê-lo, eu diria
que queria morrer!
TERAPEUTA A -As coisas ainda estão muito vivas? MARIA TERESA -Não, eu tenho
outro homem. ANA -Não, estão! 0 Paulo é muito boa pessoa, só que eu sei que a
MARIA TERESA - Mas é estranho, porque eu não o quero, ainda que hoje vivesse
sozinha. Mas é o homem que eu amo.
Foi uma educação muito rígida. A minha mãe não foi mulher dele; foi criada, foi
tudo!
150
PAULO M. TERESA
RITA ANA
Notemos qua a saída de Rita, há dois anos, foi sentida por Maria Teresa e por
Ana como o acontecimento recente mais importante.
RITA ANA
A separação de Ricardo e Maria Teresa ocorreu quando Ana tinha 6 meses, situação
que, segundo ela própria, a teria marcado muito devido à instabilidade da mãe.
Para Ricardo, como veremos, esta separação criou problemas ao seu relacionamento
com as filhas.
151
João, filho mais velho de Paulo, amãe deste tiveragrande responsabilidade. Ideia
que vai ao encontro da sua culpabilidade relativamente a Ana.
(MÃE)
(PAI)
(SUICIDIO) +
21 U_@
OFIA
(SUICIDIO)
E] (tentat. de
MIGUEL SUICIDIO)
152
ser cantora como parece desejar, mas para Maria Teresa terá que completar o
curso liceal.
Quarto elemento de uma fratria de oito irmãos, Maria Teresa descreve o seu
ambiente familiar: Fui educada numa aldeia muito pequena, com uma educação
rígida. Ainda hoje as minhas sobrinhas casam com o
primeiro homem que namoram. Tinha muitos irmãos, mas era como se fôssemos um só.
Éramos todos muito amigos ( ... ). Fala em seguida do pai com muita
saudade: 0 meu pai era de um carinho, respeito e ternura que jamais vi noutro
lado. Neste momento Rita interrompe: 0 meu avô era
Após a morte do pai, Maria Teresa vem para Lisboa, casando-se um ano depois: A
minha saída da terrafoi zangada com a minha mãe. Uma
das minhas irmãs tinha uma mercearia e eu estava à porta a falar com
um rapaz. A minha mãe deu-me uma bofetada efoi assim que eu saí de
casa.
filho da minha madrasta, o Miguel. 0 Miguel é parecido com o seu pai, mas ao
153
ou seja dos Graafland, porque a minha madrasta e o meu pai são primos afastados.
ANGELO
RODRIGO GRAAFLANI)
ATAIDE
REGINA
DANIL
.1 F- ---- :?
BRANCA CON1STANÇA
o FLOR
RITA - Um judeu quefoi para a Holanda teve vinte e umfilhos de várias mulheres.
Começou aí a vida dos Graafland. Elesfaziam parte da corte holandesa e foram
perseguidos por serem judeus. Foi assim que um deles veio cá parar. Como era
poliglota,foi tradutor oficial da corte portuguesa. Teve umfilho com o mesmo
nome dele, Rodrigo Graafland, que casou com duas mulheres: uma de origem
italiana, afamília Angelo, e outra portuguesa, de apelido Ataide. A minha
madrasta é descendente dos Angelo e nós somos do ramo Ataide.
bisavó Regina e só não ofez por intrigas da minha tia Matilde, que por sua vez
teve umafilha de pai incógnito, Branca Flor, que descobrimos há pouco tempo.
Pensámos que ela tinha morrido, porque não Júncio-
154
Entretanto surge uma outra mulher no meio disto tudo, a Constança, que é sem
dúvida Graafland. Desconfiamos que também seja filha da Matilde... Foi um drama
na família! A Matilde deve ter escondido essa
segunda filha, de pai incógnito também. Quando nasceu foi registada em nome dos
criados que viviam lá em casa, só quejoi sempre criada e
educadapelos Graafland, isto é,pela minha trisavó Regina epela minha tia
Matilde.
Entretanto, esta tia Constança veio a casar com um homem do ramo Angelo, o avô
da minha madrasta, José Angelo Graafland ( ... ).
0 meu avô paterno, Daniel, acaboupornunca tero nome dopai, o que só descobriu
aos 20 anos quandofoipara a tropa. A minha bisavó Regina lutou muito pela vida:
tocavapiano em barespara se sustentar e aofilho. A minha tia bisavó Eugénia
disse que nunca casaria porque tinha visto
* desgraça das irmãs e morreu virgem, segundo consta.
Tudo isto é muito confuso, porque, por exemplo, o meu pai começou
* viver com a minha madrasta depois do marido dela se ter suicidado.
TERAPEUTA B -A Rita conheceu-o? RITA - Não, porque nessa altura o nosso ramo da
família não se
ANA - Eu diria assim: Os Graafland são uns loucos. RITA - Eu não diria tanto,
não podemos esquecer que os nossos
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ANA - Talvez.
RITA -Aí é que está a questão! É todo umfascínio pelos Graafland que a atraem e,
ao mesmo tempo, toda a calma que a Ana é. Todas as
loucuras que ela querfazer, mas que não batem certo com ofundo dela
própri a.
Quinze dias depois, aparecem-nos apenas Ana e a mãe, por impossibilidade de Rita
e novamente do pai, este por motivos profissionais, justificação que Maria
Teresa não aceita - considera a ausência
ANA -Realmente eu acho que sou parecida com outras pessoas, só que não sou essas
pessoas, sou eu mesma.
TERAPEUTA B - Mas eu julgo que a Ana não sabe bem quem é. ANA - Eu não sei bem
quem sou, mas sei que não vou ser igual ao meu pai, ou à minha mãe, ou à minha
irmã, ou à minha madrasta.
A sessão prossegue, tomando-se mais claro que esta aparente aceitação de Maria
Teresa de todas as decisões de Ana esconde uma grande
mais facilitada:
não tive. Quando eu era pequena às vezes pensava: que bom que era, por exemplo,
que a minha mãe me deixasse ir a uma festa!
TERAPEUTA A - Portanto, diz mais vezes que sim porque lhe disseram muitas vezes
que não no passado?
MARIA TERESA -Mais vezes é como quem diz! Não sei se alguma vez lhe disse que
não!... Eu digo sempre que sim, senhor doutor. Sabe, os
meus 16 anos eu não os vivi e tinha direito a vivê-los! Eles eram meus! É o que
eu digo sempre à minha filha: aproveita os teus 16 anos, não voltas a tê-los!...
-lo. Ana mostra-se receosa: quando estiverem um com o outro, se calhar matam-se
e esfolam-se. No entando, no final da sessão, diz que vai contactar Ricardo no
sentido de este estar presente na sessão seguinte.
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Maria Teresa intervém, mostrando-se preocupada com o que sente ser um grande
desinteresse de Ana por tudo: pela escola - aonde a mãe fora
7 no 1 ‘período como um 18 no 32. Até no que diz respeito às coisas de que mais
gostava eu era como ela: interessava-me, desinteressava-me e só mais tarde
voltava a interessar-me muito. Nisso ela é parecida comigo. Acho que a minha
maneira de ser, não só a minha como de toda afamília, a atraíram sempre muito.
Nesta altura Maria Teresa interrompe~o: MARIA TERESA -Das duas uma, ou realmente
o pai toma posição, leva-a para o pé dele e diz-lhe não, não ou sim, sim. Eu não
faço nada porque sou molengona.
Ricardo mostra-se espantado, diz não compreender o que está a dizer, o que se
discute, pelo que lhe é explicado um aspecto importante das
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RICARDO - Está tudo em cima da secretária, mais nada. ANA -Pois aí é que está!
Em cima da secretária, e eu tenho tudo em
cima do chão!...
rigorosamente respeitada, sem que Maria Teresa lhe desse nem mais um tostão.
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sessão hoje vai ser muito desagradável. Fica calada, Ana também. Rita e Ricardo
chegam a seguire Maria Teresa começa afalar: Oque eu receava aconteceu - na
sessão anterior tinham surgido os receios de Maria
Teresa quanto à ligação de Ana e Paulo, seu namorado, de 21 anos. Sente a filha
nova ainda para uma ligação com um homem, segundo Maria Teresa, já com uma
filha, muito batido e irresponsável, que largou a
mulher com uma miúda nos braços. Receio quepossa acontecer o mesmo
com a Ana e ela é ainda uma criança. Não é ofacto de ele ser divorciado
que não tivesse confiado em mim. A Ana sabe que pode contar comigo, tem contado
sempre que precisa. De resto, tudo isto inefaz muita confusão, me magoa muito.
Acho que não sou aceite, mas acho que têm de pensar que
estouprofundamenteferida. Tenho receio que me considerem
analfabeta, inoportuna...
Mas eu não posso guardar a Ana, tem de ser a Ana a guardar-se. No entanto
nãofiquei parada a lamentar-me e procurei ajudá-la no
que podia - levei-a à minha ginecologista, que aliás há muito tempo é médica
dela também. A Ana confia nela, pois não sei nada do quefalam, a médica respeita
a vida privada da Ana. Rita interrompe-a, dirigindo-se a Ana:
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RITA -Pois, isso é que me irrita em ti. Nalgumas coisas tens a mania
em que te metes. Porque nãojoste capaz defalar com a mãe, se sabes tão bem o
quefazes? Ficaste completamente aflita e vieste ter comigo para resolver o
problema e ser eu a falar com a mãe.
Ricardo permanecia calado, pelo que a terapeuta lhe pediu a sua opinião:
RICARDO- 0 que isto é não passa de uma estupidez, para mim não tem outra
explicação. E só prova que ela também é má pessoa. Se fosse boa tinhafalado
contigo (dirige-se a MariaTeresa), comigo também. Para mim, além de sabida, é má
e estúpida. E estou muito ressentido com ela.
MARIA TERESA -Não vamos transférir para a nossafilha as culpas que nos cabem a
nós! Cabem-nos muitas culpas aos dois.
RICARDO -Eu acho que é uma estupidez. Hoje em dia, no meio em que ela vive e
aspessoas com quem se dá, não entendo que tenhafeito uma
coisa destas, que não tenha ido a uma consulta médica ou então que tomasse a
pílula mesmo sem consulta. Isso é que eu acho ser uma prova de estupidez.
Além disso, as ofensas que ela temfeito à mãe são pura maldade. Não tem razão
nenhuma para proceder assim com a mãe!
TERAPEUTA A -Eu acho que a Ana precisa de outraspessoas para mandar mensagens
aos pais e este problema do aborto teve esse lado
positivo, que foi, numa situação tão difícil, ter levado as pessoas a
aproximarem-se. A Ana tem tido grande dificuldade, mesmo aqui, em
falar convosco, e por isso tem trazido sempre outras pessoas para que possa,
através delas,falar com os pais. Não conseguefalar de dentro de si com os pais e
se calhar os pais têm dificuldade em comunicar com a Ana.
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RITA -Eu gostava de dizer uma coisa. Acho que a culpa de não haver diálogo não é
só nossa, mas do pai também, porque a maior parte das vezes que estamos contigo
o diálogo é muito restrito. É como se nós estivéssemos perto, podemos estar
juntos, mas há uma barreira metida pelo meio.
MARIA TERESA -A Ana agora está mais receptiva ao que lhe temos estado a dizer,
mas eu tenho medo, sei como ela é. Qualquer dia passa-lhe alguma coisa pela
cabeça e tenho medo que tudo se volte a repetir. Efico apavorada, receio que ela
siga o esquema do pai...
era dito na família, «além de Graafland é homem», mas das várias mulheres na
história familiar... mulheres com complicações... Não quererá a Ana seguir o
exemplo da tia Matilde, com as suas duasfilhas naturais, de pais incógnitos?...
MARIA TERESA -Apavora-me pensar que a minhafilha entre nesse esquema de vida.
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se na minha idade dá para começar. Além disso, quando desisti do canto foi
porque a professora que tinha se foi embora e os outros eram uma porcaria.
RITA -Isso da idade não quer dizer nada. Afinal a Sofia também só começou a
cantar aos 18 anos, até era mais velha do que tu. Arrancou sozinhapara Viena
epassou aspassas doAlgarvepara conseguir e como
Eu própria tive problemas quando andava a estudar e acabei por conseguir o que
queria -falo fluentemente quatro línguas.
TERAPEUTA B - Não deve ser fácil para a Ana decidir o que pretende fazer,
confrontada com mulheres tão determinadas como a mãe, que estuda à noite, como a
Rita, como a madrasta e mesmo como a bisavóRegina, que tocavapiano em barespara
sozinha educarofilho...
RITA - Também os amigos da Ana não ajudam muito, é tudo malta pouco virada para
o estudo! 0 meu paijá lhe tem dito que ofacto de não gostar da escola é um bom
motivo para tentar despachá-la o mais
depressa possível. Pelos vistos não consegue nada com a Ana, como não consegue
nada com o Miguel. De resto, os dois são bem parecidos! Até nos estudos! 0
Miguel passa a vida a faltar à escola, andando pelos cantos com um caderno a
escrever como o pai dele fazia.
outra vida. Por exemplo, viver com o Miguel e ganharem a vida os dois, o Miguel
lendo poemas e a Ana cantando. De resto, sefosse viver com o
novo.
Esta intervenção encontrou um certo eco em Ana que, embora rindo, pareceu achá-
la uma hipótese plausível. De resto, esta intervenção foi feita
propositadamente, visando aumentar a confusão de Ana face ao seu projecto de
vida e, ao mesmo tempo, confrontar a família com a precocidade de uma decisão
relativamente ao futuro de Ana, prosseguir,os seus
estudos, optando por uma vida mais tradicional e estável ou, Pelo contrário,
seguir a «loucura dos Graafland» .
elementos da família a falar por si; em segundo lugar, conseguir que Ana fizesse
uma proposta que realmente lhe agradasse, sem se ver coagida a
realizar os desejos dos outros contra a sua vontade; por fim, levar Ana a
Ana faz várias propostas, acabando por se decidir pela modificação do seu
quarto: aborrece-a o facto de ter duas entradas - a porta e uma janela que dá
para a marquise -, o que a faz sentir-se pouco à vontade. Ficou decidido que
estudariam, em conjunto, a possibilidade de taparem a
janela de forma a que Ana pudesse estar mais à vontade no quarto, quando lhe
apetecesse, alteração também satisfatória para Maria Teresa.
tentativa de suicídio. Aparentemente desistente, este seu gesto era sem dúvida
um apelo, um pedido de ajuda numa crise que os seus 16 anos
dúvida também toda a complexidade das suas relações na família, no seu grupo de
amigos, na escola, não teria surgido com tanta nitidez.
Cremos que teria sido dificil ajudar Ana sem compreender e possibilitar
alternativas aos padrões de comunicaçao na situação familiar actual. No entanto,
o relato que fizemos mostra que muitas das suas dificul-
dades actuais se inscrevem num passado familiar que lhe cria modelos
divergentes, senão contraditórios, de comportamento. Por isso, a uma perspectiva
interaccional aliámos uma perspectiva transgeracional.
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A terapia com Ana está em curso, o que não nos impede de tentar prever o seu
termo. Talvez o leitor nos possa acompanhar nesta aventura. Talvez um dia, quem
sabe, nos possamos reencontar e comparar soluções...
um ano após a primeira sessão. Ana estuda agora com mais entusiasmo, retomou os
seus estudos de canto e não refere ideias de suícidio.
A mãe diz-nos: «Há uma grande mudança, estamos as duas agora muito mais próximas
... »; o pai mantém contactos mais regulares e
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169
Nota 1 - Por vezes a seguir ao nome do Autor figura uma data, que se refere ao
Nota 2 - Dado que alguns autores de capítulo referem a mesma obra, no original
íNDICE
Prefácio à 2”
edição .........................................................
..................... 5
Capítulo 111
0 Processo Terapêutico em Terapia Familiar ...
........................................... 19
Bibliografia .........................................................
............................ 167
Grupanalista.
Cristiana Bastos
Licenciada em Antropolog-!a@
Psicoterapeuta.