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Comunicação instantânea à distância, acesso fácil e rápido à

informação, possibilidade de assistir às pregações do Padre Paulo Ricardo e às


aulas da nossa plataforma: é possível citar uma gama de utilidades, inegáveis, para
as novas tecnologias…

Mas os efeitos colaterais de seu uso desordenado, especialmente por crianças e


adolescentes, já se fazem sentir: presos ao mundo digital, temos nos tornado cada
vez mais “antissociais”, inaptos e despreparados para enfrentar os desafios da
vida real.

O que está acontecendo conosco? É o que vamos procurar entender neste curso,
cientes de que o primeiro passo para remediar um problema dessa gravidade é
saber em que ele consiste. Pois não se pode combater o que, antes, não se
conhece. 

Para tanto, Padre Paulo Ricardo partirá de uma abordagem integral do homem,


enquanto ser dotado de “corpo, alma e espírito”, aliando às recentes descobertas no
campo da neurociência uma reflexão filosófica e teológica profunda.

Afinal de contas, de nada adianta “deixar” os prazeres virtuais se não for


para “abraçar” algo que realmente valha o investimento do nosso tempo e da
nossa vida. É este, na verdade, o grande diferencial do conteúdo que você tem em
mãos.
As aulas listadas abaixo ficam à sua disposição na noite do dia 9 de maio. Nossa
equipe avisa, porém, que as 10 aulas a seguir não são o curso completo. Padre
Paulo ainda está gravando as lições finais que arrematam esse conteúdo.

AULA 01

Um estímulo para a caça


Não é possível viver sem dopamina. É ela que nos estimula à “caça” — a sair em
busca de alimento para a nossa sobrevivência, por exemplo —, justamente pela
expectativa de uma recompensa futura e imediata.

O problema é que o excesso dessa molécula, provocado pelo consumo de


pornografia e pelo contato frequente com as telas, está causando mudanças no
cérebro humano, tais como as que ocorrem no organismo de um dependente
químico e usuário de drogas.
imprimir
Neste curso vamos falar dos efeitos viciantes da internet, ou, melhor dizendo,
da adicção ou dependência que desenvolvemos em decorrência do seu uso —
ou abuso. É importante tratarmos desse assunto pois muitos pais brasileiros,
por temerem a violência das ruas, o que os impede de deixar suas crianças se
divertindo, livres e felizes, nas praças e parques, acabam precisando distrair
os filhos em casa e, não vendo outro remédio, terminam recorrendo, desde a
tenra idade, aos celulares, aos tablets, televisores, enfim, às telas.

Os pais mais atentos, com mostras de boa vontade, precisando apelar às


telas, cuidam ao menos de selecionar bem o conteúdo, escolhendo aqueles de
caráter educativo e, quando possível, de fundo cristão. Mas, conforme
veremos neste curso, para além do conteúdo, existe um outro e seríssimo
problema. 

Há sete anos, demos um curso sobre pornografia e masturbação, e nele


apresentamos vários estudos que, na época, eram novidade. (Quer dizer,
novidade no Brasil, pois no resto do mundo já se discutiam os efeitos viciantes
da pornografia e as modificações que ela causava no cérebro humano.)
Naquele curso, usamos como bibliografia básica as obras Your Brain on Porn,
de Gary Wilson [“Seu Cérebro com a Pornografia”, sem tradução portuguesa],
e “Programados para a Intimidade”, de William Struthers. Esses estudos
demostravam: que pessoas com acesso à internet rápida, a partir de 2006,
estavam sistematicamente consumindo pornografia: que este consumo
causava uma série de danos neurológicos; que se notava, nos viciados,
naqueles que já estavam em estado de adicção relacionada à pornografia,
uma dificuldade nos relacionamentos sexuais no mundo real, de carne e osso.

E isto porque, ao contrário do que pensam muitas pessoas, por estarem


imersas numa cultura assombrosamente pornográfica, pornografia não é
sexo. Muito pelo contrário. O sexo verdadeiro, no mundo concreto, não é
uma experiência visual. O que tem de visual, no ato mesmo, é mero
acidente. A cultura pornográfica, no entanto, vincula o sexo a uma experiência
visual, experiência que é processada na área do cérebro que nos ativa o
instinto de caça — coisa que, obviamente, o marido não precisa fazer com a
esposa. Daí que quem consuma pornografia desenvolva a parafilia do voyeur,
cujo prazer está apenas no olhar. É aquilo que acomete, por exemplo, os
homens que andam pelas ruas com olhar de caçador, torcendo
indecentemente o pescoço a todas as mulheres que passam. É o desejo
incontrolável por ver. 

Quando, noutros tempos, essa tara se resumia à caça de pornografia nas


bancas de revista, estávamos diante de um fenômeno, aparentemente, só
comportamental. Até que em 2006, com a popularização da internet rápida,
um vídeo que antes levava horas e horas para ser baixado, passou a ser
acessado em questão de segundos. E essa velocidade vem se aprimorando
constantemente, tanto que, hoje, se um vídeo leva mais do que segundos para
carregar, o internauta já fica agitado, resmungando, reclamando do serviço
que não estaria a contento. 

Para a minha geração, que viu o surgimento da internet, isso já é


evidentemente uma revolução. Quando eu era seminarista, em Roma, lembro
de todos comentarem, deslumbrados, diante de um fax: “Que maravilha!” O
fax era coisa de outro planeta: colocávamos um documento aqui e ele era
reproduzido do outro lado, inclusive a distâncias continentais e oceânicas.
Hoje, quem liga para fax? Agora, imagine o quanto tudo isso não parece
revolucionário para a geração do meu pai, que, com seus oitenta anos, viu a
máquina de escrever e o telégrafo. Hoje, com o celular que está no bolso de
todo o mundo, podemos conversar com pessoas de qualquer parte e de modo
instantâneo. Pode parecer bobagem se alongar neste detalhe, mas,
acreditem, para muitos jovens, toda essa tecnologia é como que parte do
mundo desde os idos da humanidade. 

Em resumo, houve toda uma evolução técnica, que causou uma série de
mudanças comportamentais. Dentre esses avanços está a internet veloz, que
possibilitou, dentre muitas outras coisas positivas e negativas, que uma
pessoa pudesse ter, em dez minutos, acesso à mais pornografia do que os
nossos antepassados jamais conceberiam ter durante a vida inteira. 

No entanto, temos o mesmo cérebro dos nossos antepassados, um cérebro


feito para a escassez. Um homem na savana africana ou na selva amazônica
precisa caçar, senão morre. Essa percepção da escassez e o estímulo para
supri-la são mecanismos fundamentais para a preservação da espécie
humana. Para que o homem antigo sempre se mantivesse estimulado a caçar,
o cérebro lhe criava uma sensação futura de recompensa, produzida por um
neurotransmissor chamado dopamina.

Inicialmente, os cientistas descreveram a dopamina — uma descoberta


recente, de 1957 — como a molécula do prazer. No entanto, e aqui temos uma
informação crucial para o curso inteiro, ela não é do prazer, mas do estímulo
para a caça. A dopamina, no chamado circuito mesolímbico, faz com que o
cérebro humano busque uma recompensa imediata e, por isso, nos estimula à
caçada. Note então que o prazer já conquistado, seja o que sentimos diante
da comida predileta, seja o que se sente no orgasmo sexual, não é
proporcionado pela dopamina. Ela, pelo contrário, nos atiça a ir buscar tais
sensações prazerosas, justamente pela expectativa de recompensa. 

É exatamente esse o mecanismo que, por assim dizer, move aquele olhar de
caçador. E não só o olhar do homem, nas ruas, à caça de mulheres. Acontece,
por exemplo, quando se está diante de vitrines de shopping center ou da lista
de produtos do site de vendas. Claro, não é possível viver sem dopamina.
Seria necessária uma virtude sobrenatural para forçar o nosso organismo, sem
essa recompensa interna, a buscar as coisas. O problema, conforme os
estudos mencionados constataram, é que o excesso de dopamina, como o
provocado pela caça de pornografia, está causando mudanças no cérebro
humano comparáveis às que ocorrem quando se usa uma droga. 

Existe uma renomada neurocientista mexicana chamada Nora Volkow, que,


numa curiosidade biográfica, é bisneta de Leon Trótski [1]. Ela estudou no seu
país e mais tarde migrou para os Estados Unidos, onde começou a fazer
experiências observando o cérebro de pessoas drogadictas por meio de uma
tecnologia recente chamada PET scan [2]. Ela notou que o funcionamento do
sistema mesolímbico em usuários de drogas era diferente do que se via em
pessoas sãs. Ao dar cocaína ou droga correlata a uma pessoa que não
costuma usar esse tipo de entorpecente, ela constatou dinâmicas cerebrais
distintas em comparação com pessoas já viciadas, submetidas à mesma
dose.  

Isso chamou a atenção de Nora Volkow e de toda a sua equipe. E tal foi a
relevância de suas descobertas que, desde a administração Bush,
sobrevivendo a Obama, Trump e Biden, ela é diretora do Instituto Nacional de
Abuso de Drogas (National Institute on Drug Abuse, ou NIDA, na sigla em
inglês), em Washington, fato que mostra, sem chance de dúvidas, que sua
preocupação não se reduz a uma questão partidária. 

Sempre notamos o seguinte fenômeno: quanto mais alguém, por exemplo,


cheira cocaína, mais precisará cheirar para conseguir um efeito cada vez
menor. Isso ocorre porque os receptores da dopamina, diante do excesso
deste neurotransmissor no sistema, se recusam a captá-la, e, portanto, não
permitem que se produzam os mesmos efeitos anteriores, de quando ela
ocorria em níveis mais modestos. O resultado é aquela experiência universal:
no começo a pessoa usa a droga para ficar “doidona”; depois precisa usar, e
cada vez mais, para ficar normal. 

O impressionante é que se descobriu, lá atrás, que com a pornografia o


fenômeno é o mesmo, só que em diferentes níveis quantitativos. A cocaína
provoca uma descarga dopaminérgica no cérebro, e quanto maior o pico de
dopamina, maior o prazer, mais se fica “doidão”. O pico de dopamina que se
alcança com a pornografia é, vamos supor, nível dez; com a cocaína,
cinquenta; com o crack, que é a mesma substância da cocaína, cem.  
Não estou dizendo, obviamente, que cocaína é dopamina. As várias drogas, o
álcool, a cocaína, a maconha, todas elas provocam a presença de dopamina
no sistema, mas por meios diferentes. Uma coisa é provocar a dopamina
através dos opióides, outra através dos canabinóides, e assim por diante. Só
estou dizendo que, no fim das contas, tudo termina na dopamina. 

Mas a dopamina, para voltarmos ao início do raciocínio, é um


neurotransmissor feito para a escassez. Que alimentos abundantemente
calóricos se pode encontrar na selva? Com sorte, um pouco de mel. No mais,
o silvícola antigo precisaria o tempo todo conviver com a escassez e manter-
se sempre estimulado a caçar para manter vivo a si próprio e a sua família.

O problema é que este cérebro, programado para a escassez, agora vive na


abundância. Por exemplo, os índios do Mato Grosso, se, antes, quisessem se
alcoolizar, tinham de pegar uma palmeira, o acuri, o bacuri e tirar o talo da
palmeira. Depois, tinham de tirar a seiva com um canudo e despejá-la num
pote onde, misturada com saliva, ela passaria por um processo de
fermentação. Daí sairia um álcool de gradação alcóolica baixíssima. Era isso
que os bororos conseguiam produzir. Agora temos os destilados, de gradação
alcóolica altíssima. Nem precisa dizer que a capacidade de adicção aumentou
estrondosamente. E isso está acontecendo com o álcool, com as drogas, com
a pornografia, com a internet. 

Nessa primeira aula, quis apenas colocar o problema de forma geral, com
enfoque nas descobertas de Nora Volkow. Nas próximas aulas, veremos
concretamente como essa realidade migrou da cocaína e das drogas para a
pornografia, e como agora está operando até mesmo sobre quem nunca vê
pornografia, sobre aquele adolescente que joga videogames e fica o dia inteiro
no Instagram ou no TikTok.

AULA 02

A molécula do futuro e a morte do agora


A dopamina em excesso tira a nossa capacidade de apreciar o agora. O viciado
em descargas dopaminérgicas sempre está, mentalmente, em outro lugar, no
futuro — como os pombinhos frenéticos da experiência de Skinner.

É por isso que, fatalmente, nossa geração está sempre distraída da presença
divina. Pois Deus só nos visita no presente: se Ele nos visitou ontem, é porque
aquele ontem era um hoje; se nos visitar amanhã, aquele amanhã será um agora.
imprimir
Vamos dar continuidade ao nosso curso sobre a capacidade da internet de
nos criar uma dependência. Não se trata de dependência química, como
acontece com a cocaína, o LSD, a maconha, pois, por mais que o nosso
próprio organismo, naturalmente, produza opióides, canabinóides etc., essas
drogas são artificiais e provocam, artificialmente, uma descarga dopaminérgica
muito grande no nosso organismo. No entanto, conforme as descobertas de
Nora Volkow, esse fenômeno provocado artificialmente pelas drogas ocorre
também quando há excesso de dopamina produzida pelo natural mecanismo
de busca do ser humano. 

O Pombo de Skinner

O famoso psicólogo americano B. F. Skinner realizou, na década de 1950,


uma propalada experiência com um pombo. Ele colocou a ave numa caixa, em
que havia botões, e a induziu a aprender que, tocando numa das teclas,
receberia uma recompensa de comida. O pombo acionava o botão, a comida
caía. Depois, o cientista mudou o mecanismo: a comida só cairia se o pombo
acionasse o botão por três vezes. O pombinho, pois, virou um burocrata, um
funcionário público, sem nenhuma emoção. Só teclava e comia, teclava e
comia, tranquilo e impassível. 

Iniciou-se então uma terceira fase da experiência: o número de acionamentos


necessários à liberação da comida alterou-se randomicamente. Então, o
pombo acionava duas vezes e não lhe vinha a comida; acionava quatro e
vinha; repetia, não vinha; mudava para cinco, nada; depois para três, comida;
e assim foi se alternando. Resultado: o pombo, antes burocrático e pacífico,
ficou frenético, absolutamente frenético, e isso por causa da recompensa
futura surpreendente. 

É esse o mecanismo que causa a adicção, mecanismo que funciona


fundamentalmente com base na sugestão de uma recompensa futura, embora
próxima e imediata. É por isso, por esse imediatismo do circuito, que as
pessoas viciadas são incapazes de pensar num futuro distante. Se chegamos
a um drogado oferecendo dez reais, agora; cem, caso ele espere um mês; e
mil, caso suporte esperar um ano, 80% deles, incapazes de aguardar uma
semana, vão querer os dez imediatos, mesmo com a perda de 99%. 

Como seja, aprendemos com Skinner e seu pombinho que a dopamina nos
induz a buscar uma recompensa futura imediata, mas que a carga é maior se
houver o elemento de surpresa. Acontece que as plataformas digitais também
tomaram aulas com Skinner. As redes sociais todas têm a comidinha do
pombo — que no caso somos nós. Quando nos inscrevemos numa plataforma,
qualquer uma delas, no YouTube, no Instagram, no Facebook, a plataforma
vai aprendendo nossos hábitos, vai aprendendo, inclusive, os horários em que
costumamos buscar tal ou qual conteúdo. A inteligência artificial, que as redes
usam, é capaz de detectar tudo isso com minúcias e armazenar essas
informações, organizadamente, no banco de dados dos nossos gostos. 

Quando, por exemplo, vamos no Reel do Instagram, começamos a girar os


vídeos, e, de repente, aparece um que não é do nosso agrado, não é que o
algoritmo tenha errado. Pelo contrário. A rede está ali nos expondo à mesma
experiência do pombo com os acionamentos aleatórios. Surge um fator de
surpresa. As coisas de que gostamos estão misturadas com as de que não
gostamos, em ordem indeterminada. Portanto, não sabemos quando teremos
a experiência prazerosa, mas sabemos que está próxima, que pode estar no
próximo vídeo, daqui a poucos segundos. E isso nos deixa frenéticos como o
pombinho, salivando por mais, mais e mais. 

A molécula do futuro e a morte do agora

A dopamina também é chamada the molecule of more, a molécula do mais.


Não é a molécula do prazer, conforme já dissemos, pois, embora ela dê algum
prazer, não é o mesmo que se sente no desfrutar da coisa caçada, mas na
caça mesma. A experiência da pornografia é a que melhor evidencia esse
fenômeno. O sujeito viciado em pornografia não senta no sofá com um pote de
pipoca e assiste a um filme do começo ao fim. Segundo os estudos, isto nunca
acontece. O sujeito se diverte, antes, pela caça, pela busca. Ora, se o que
estimulasse o viciado fosse algo como uma experiência sexual, ele procuraria,
o mais breve possível, alcançar aquilo que é o objetivo imediato do sexo: o
orgasmo. Acontece, no entanto, que muitas vezes a pessoa passa horas
diante do conteúdo pornográfico sem sequer pensar em masturbação. Claro
que há ali uma excitação sexual, provocada por hormônios etc. Mas o objetivo
ali, mesmo que inconsciente, não é o prazer sexual, mas o prazer cerebral.    

Tanto é verdade que as pessoas dependentes de pornografia não têm


problemas sexuais, mas problemas cerebrais. Já atendi muitos homens
casados que me vinham com a seguinte queixa: “Padre, acho que não sinto
mais nada pela minha mulher. Não tenho mais atração sexual por ela”. Ao que
eu pergunto: “Você está consumindo pornografia?” A resposta quase
invariavelmente é “sim”. E faz todo o sentido que seja essa a causa. O sujeito,
pelo consumo de pornografia, condicionou o seu apetite sexual a uma caça, a
uma busca, e a esposa está lá, no quarto, não precisa ser caçada. 

Quando o problema não é a busca pela pornografia, é a busca por pessoas


reais, em sites de relacionamento, na prostituição etc. Daí o fulano busca,
busca, busca e, quando encontra, e está lá no ato, se pergunta, admirado e
arrependido: “O que estou fazendo aqui?” No caso da pornografia, também
acontece isso: o sujeito fica horas caçando e se masturba quando lhe advém o
tédio, como quem chuta o balde e, em seguida, diante do fato consumado, se
arrepende e se frustra.  

Tudo isso porque, de novo, a dopamina é a molécula do mais. No livro The


Molecule of More, de Daniel Lieberman e Michael Long, eles dizem que a
dopamina é um neurotransmissor do futuro. Quando se alcança o orgasmo,
passam a operar no cérebro do sujeito os neurotransmissores do here and
now, do “aqui e agora”. Ora, entrando outros neurotransmissores, aquele
prazer da dopamina desaparece e a pessoa, como que saindo de um transe
profundo, se pergunta: “O que estou fazendo?” Essa experiência de
frustração, misturada com consternação e arrependimento, não se dá porque
o fulano tenha sido educado moralmente pela Igreja Católica, que repreende
sua capacidade de prazer, inclusive lhe causando neuroses. Trata-se de pura
mecânica cerebral, efeito de uma verdadeira ressaca de dopamina. 

A dopamina tira a nossa capacidade de apreciar o agora. A pessoa está,


mentalmente, sempre em outro lugar, no futuro. Não interessa, por exemplo, a
comida que está na geladeira, às mãos. Interessa a comida do iFood, a
comida do UberEats, a comida que vai vir. Não importa o conteúdo da Amazon
que chega em casa. Importa a compra e a espera, que mantinha o sujeito em
estado dopaminérgico, antegozando prazeres futuros, virtuais. O conteúdo
mesmo lhe corta o barato e o deprime.

Resultado é aquilo que acontece nas reuniões de família em que todos, ao


redor da mesa, não tiram os olhos do celular. As pessoas ali não querem ou
não conseguem viver o desinteressante agora; interessa o depois, a possível
mensagem no WhatsApp, o possível like no Twitter, o possível vídeo novo da
celebridade no Instagram. São os pombinhos frenéticos da caixa behaviorista. 

Notem que com isso não estou demonizando as plataformas, o WhatsApp, o


Twitter, o Instagram etc. Só digo que elas causam adicção, que os donos
sabem disso, e, acrescento, que continuam usando porque lhes é lucrativo. 

Surdos ao chamado de Deus

É preciso dizer que tudo isso tem consequências espirituais importantes. Ora,
se ficamos sempre buscando uma recompensa futura imediata, fatalmente
estamos distraídos da presença de Deus. Deus nunca nos visita no futuro,
mas sempre no agora. Ou seja, se estamos nesse estado, nessa ânsia pelo
depois, Deus nos chama e nós nunca o ouvimos. E o diabo quer justamente
isso, que fiquemos distraídos com o futuro ou com o passado e totalmente
apartados do presente. 

Entre passado, presente e futuro, essas três partes do tempo, a mais próxima
da eternidade, embora muita gente pense que é o futuro, é o agora. A
eternidade é o eterno presente. Somente o presente tem verdadeiramente ser.
O passado não existe mais e o futuro não existe ainda, de modo que essas
duas realidades só têm, como dizem os filósofos, um ser analógico. Por isso,
quando a eternidade entra na história, é sempre num presente. Se Deus nos
visitou ontem, é porque aquele ontem era um hoje; se Deus nos visitar
amanhã, aquele amanhã será um agora.  

Uma outra implicação espiritual do excesso de dopamina se vê na dificuldade


ou mesmo incapacidade de rezar. Ora, o pombo do Skinner não tinha alma,
portanto podia passar o resto da vida naquele circuito de estímulos
dopaminérgicos. Mas o ser humano tem alma [1], e, para acessá-la, na
oração, precisa necessariamente escapar desse círculo vicioso que o empurra
para um futuro incerto, impedindo-o de se concentrar no presente. 

Conselho aos jovens

Sempre aconselho aos jovens que fiquem um tempo sem redes sociais, que
usem o celular apenas para fins de trabalho, que tirem da cabeça que esse
instrumento tem por objetivo a diversão. Meu filho, minha filha, acreditem em
mim: as pessoas existiam antes do celular, e, pasmem!, elas se divertiam, e
passeavam no parque, e viam os passarinhos nos galhos, e visitavam os
amigos, liam livros, praticavam esportes, sentavam à mesa e saboreavam o
que tinham diante de si. Em suma, as pessoas sabiam viver o agora, coisa
que você, jovem, não sabe mais. Na aparência você vive, mas, na realidade,
sua vida lhe está sendo roubada. 

Diziam os antigos latinos: Age quod agis, “faça o que está fazendo”. Se estou
aqui, falando com você, fique aqui, no agora, falando comigo; se você está
ouvindo a esta aula, ouça-a realmente, e não fique, no meio tempo,
procurando outras coisas no celular. Dá-se a impressão de que estamos
sempre sendo levados, que estamos sempre num veleiro à deriva, guiados por
doida ventania. Onde fica a autodeterminação humana? Onde fica a
liberdade? Onde fica a nossa capacidade de conhecer a verdade, de amá-la e
de segui-la? 

Muito mais do que fazer uma cruzada contra a internet, as redes sociais ou o
celular, gostaria de fazer você enxergar que as coisas podem ser diferentes.
Para os mais velhos, que tiveram a experiência passada, e têm, portanto, uma
referência contrastante, tudo fica mais fácil. Com os mais jovens, no entanto,
que já cresceram com o celular na mão, é preciso um esforço maior. Mas, digo
a vocês: coragem! Vale a pena! Pois foi isso, o agora, que santos e santas,
mais sábios e mais felizes do que nós, viveram.

AULA03

Um carro sem freio


Além de ser a “molécula do mais”, a dopamina também desempenha um papel
importante no controle dos sentimentos, atuando como uma espécie de freio na
inteligência emocional. 

Em excesso, porém, o mecanismo falha: a pessoa adicta às descargas


dopaminérgicas vive como um carro de acelerador potente cujo freio quebrou.
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Recapitulando

Vimos nas últimas aulas que a dopamina opera no nosso cérebro um circuito
de recompensa. Na verdade, a dopamina atua em cinco diferentes caminhos,
mas, por ora, só dois nos interessam. O primeiro, de que já falamos, é o
circuito mesolímbico, em que ela sai do mesencéfalo e vai para o núcleo
accumbens, causando a já mencionada sensação de prazer pela
recompensa. 

Não custa lembrar que essa sensação prazerosa da recompensa é


indispensável. Não fosse isso, as pessoas simplesmente não buscariam nada,
e isso comprometeria a própria preservação da espécie humana. Porém, as
várias experiências demonstram que, quanto mais se descarrega dopamina
nesse circuito, mais se vai perdendo esse prazer. No uso de drogas — e essa
é uma experiência universal —, a primeira viagem é maravilhosa; a segunda,
nem tanto. E então se vai aumentando a dose, e, em medida inversamente
proporcional, o prazer vai diminuindo. Daí que se passe de uma droga para
outra droga, sempre mais forte: começa com a maconha, o resultado diminui;
passa para a cocaína, menos; vai para o crack, nada. Quando o usuário,
enfim, chega a um estado de completa adicção, passa a depender da droga
não mais para viajar, para sentir prazer, mas apenas para se sentir normal. 

Os galos de Coolidge

Existe uma famosa anedota envolvendo o presidente americano Calvin


Coolidge e a primeira-dama Grace. Em visita a uma fazenda, o dono da
propriedade, empolgado com a reprodução dos seus galináceos, mostrou à
senhora primeira-dama um galo que podia acasalar com um sem-número de
galinhas num curtíssimo espaço de tempo. Assombrada, Grace perguntou:
“Quantas vezes ele acasala?” “Tantas”, disse o homem. “E em tão curto
tempo? Nossa! Diga isso ao presidente!” Quando Coolidge apareceu, o
fazendeiro, conforme Grace pedira, lhe deu notícias sobre o galo prodigioso. O
presidente parou, pensou e disse: “Então o galo é capaz de acasalar tantas
vezes e em tão curto tempo?” “Sim, senhor”, fez o fazendeiro. “Com quantas
galinhas diferentes?”, emendou Coolidge. “Ah, senhor, com muitas, inúmeras”.
“Muito bem”, arrematou o presidente, “diga isso à primeira-dama”.  

É isso o que ficou conhecido como o Coolidge Effect, que reflete a capacidade
de um macho acasalar inúmeras vezes na medida em que tenha uma
variedade de fêmeas. Isto já foi observado em laboratório: se pegamos um
rato e lhe colocamos na gaiola uma única fêmea, ele acasala menos vezes do
que se lhe colocarmos várias. É, de certo modo, o mesmo que se dá com o
pombinho frenético do Skinner, quando exposto à novidade. Isso porque, vale
reforçar, essa novidade, essa variedade nos provoca, naturalmente, uma
descarga de dopamina. Naturalmente, pois não há, nesse caso, a intervenção
de drogas exógenas, vindas de fora; o efeito é causado integralmente por
drogas endógenas, cerebrais. Fato é que os marqueteiros sabem disso,
sabem que a novidade vende. Também sabe disso a indústria pornográfica.
Por isso o viciado, conforme dissemos no nosso curso sobre o assunto, tende
a ficar com gostos cada vez mais perversos. Aquilo que antes lhe causava
repulsa vai ficando atraente, uma vez que é preciso haver a novidade,
responsável por estimular novos picos de dopamina. 

Entretanto, como já vimos, a proteína que serve como neuroreceptora da


dopamina tem um limite e, exposta a uma quantidade abusiva do
neurotransmissor, simplesmente para de captá-lo, fecha as janelas, por assim
dizer, fato que diminui, gradativamente, a sensação prazerosa que o viciado
procura [1]. Daí que, para garantir novas doses, ele vá desenvolvendo
parafilias: uns procuram pessoas mais velhas; outros, enredo de incesto;
outros, pessoas do mesmo sexo; outros, sexo violento; outros — desculpem
dizer —, sexo com excrementos. E é daí para baixo, sempre nessa busca
obcecada pela novidade — não importa o quão escabrosa — e da
subsequente sensação de prazer. 

Tragando o tempo
Abro um parêntese para falar de outra experiência importante que se observa
em pessoas sob o efeito da dopamina: a perda de noção do tempo. Quem não
já se espantou ao notar que ficou duas ou três horas vendo vídeos
no Instagram? Duas ou três horas, como num piscar de olhos. Se fizermos as
contas, quantos dias inteiros, ao longo de alguns meses, não teremos perdido
diante de uma tela, vendo, não raro, completas banalidades? São dias e dias.
Dias em que se poderia descansar, fazer um curso, ficar com a família, se
aproximar de Deus.

Ora, se pedimos para a pessoa rezar duas horas por dia, ela evidentemente
dirá que não tem tempo. Mas, decerto, a mesma pessoa consegue passar,
com a maior facilidade do mundo, duas horas rolando a infinita página de uma
rede social. E é justamente para estimular isso que as plataformas estão
apostando em vídeos curtos, como os que se vê no TikTok, Kwai e
congêneres. O YouTube, em que se costumava colocar conteúdos mais
extensos, agora tem os shorts. Porque os vídeos curtos, vale lembrar, geram
aquela expectativa de recompensa futura imediata, misturada com a sensação
de constante novidade, que é a fórmula mágica para a descarga de dopamina.
Um vídeo longo, claro, pode causar um efeito dopaminérgico. Mas não há,
nesse caso, a surpresa constante que se tem na sessão dos vídeos de trinta,
quinze segundos.

Sem freio na ladeira

Fechando o parêntese e voltando ao tema central, temos que além do circuito


mesolímbico, do qual tratamos até aqui, existe o circuito mesocortical, que não
opera o mecanismo de recompensa. A dopamina também exerce um papel na
emotividade. É uma simplificação, claro, mas, para todos os efeitos, o córtex
frontal desempenha um papel no controle das emoções [2]. Certa vez, minha
sobrinha mais nova, ainda pequenina, estava no colo de minha mãe, de costas
para ela e de frente para o abismo. Ela dizia de si para si: “Calma, vovó não
vai derrubar você”. Ela estava claramente dominando suas emoções, se
esforçando para o medo não tomar conta de si. Isso, grosso modo, quem faz é
o córtex. 

Ocorre que a Dra. Nora Volkow descobriu, na observação do cérebro das


pessoas drogadictas, que exatamente essa parte frontal tende a não funcionar
muito bem. Por isso, a pessoa em estado de adicção teria sérias dificuldades
para refrear o impulso por mais drogas. Na minha experiência atendendo
viciados, já ouvi algumas vezes: “Padre, eu não queria, mas quando vi já
estava tomando a droga”. Isto seria efeito do mau funcionamento do córtex,
que, em estado normal, exerceria um papel importante no freio do vício. 

Ou seja, parece que a coisa foi feita mesmo para dar errado. Há dois
caminhos: um que vai na direção do núcleo accumbens e outro que vai na
direção do lobo frontal. O primeiro é uma espécie de acelerador, é a droga do
mais, the molecule of more. No entanto, se há um acelerador, deveria também
existir um freio. E ele existe: é a inteligência emocional, capaz de resistir ao
impulso pelo mais e dizer “menos”. Porém, o excesso de dopamina também
faz o freio — o córtex, onde opera essa emotividade — falhar. Ora, o que
acontece com o carro de acelerador potente cujo freio quebrou? Desastre. 

Essa é a descrição neurológica do estado da pessoa em drogadicção,


conforme os estudos em PET scan feitos por Nora Volkow. Ou seja, quem
quer que esteja nesse estado precisa de ajuda. Agora, qual é o tipo de ajuda
mais adequado? Existem muitos bons livros na internet, de neurocientistas,
que dão sugestões de como sair do vício. É o caso do famoso Nação
Dopamina, da Dra. Anna Lembke. Dentro da competência de uma psiquiatra,
de uma terapeuta, a obra dá dicas interessantíssimas, importantes, que
realmente podem ajudar seus pacientes. 

O problema é que a medicina não pode admitir — pelo menos não


oficialmente — que exista a realidade da alma humana, tal como a
entendemos, e menos ainda a realidade da graça divina. Para um médico,
como a Dra. Lembke, é eticamente difícil assumir uma perspectiva religiosa. O
máximo permitido é o que ela mesma diz: I believe in believe. Ou seja, ela
“acredita em acreditar”, crê no poder como que terapêutico da fé. No livro ela
relata que a um de seus pacientes, rapaz católico que sofria de compulsão
masturbatória, ela recomendou: “Quando acontecer, vá para uma capela, para
o seu oratório, se ajoelhe e pegue o terço”. É claro que é melhor essa
recomendação do que outras, mas, no final das contas, ela está servindo-se
da religião como um mecanismo terapêutico. É um utilitarismo religioso. 

Acontece que essa autossugestão opera ainda no campo psíquico, no sentido


moderno. Ela quer, no fundo, que o paciente crie forças para acionar o freio
natural, o do cérebro, do córtex. Isso porque ela desconhece ou finge
desconhecer o freio da vontade, que está não no nosso cérebro, mas na
nossa alma, no sentido tradicional, e que é reforçado pela graça, como
teremos oportunidade de estudar. 

O moralismo vicioso

Do que vimos até aqui, podemos concluir que nem tudo que se faz de errado
tem origem numa “fraqueza moral”. Há uma forte tendência de abordar o
problema da drogadicção pelo prisma moral, mas o discurso moralista, nesse
caso, não é convincente. Não convence pois o dependente experimenta a
impotência, a incapacidade de deixar aquilo. Se diante de uma pessoa nesse
estado alguém chega e afirma que tudo não passa de fraqueza moral, a
pessoa pode desanimar, jogar a toalha, achar-se irremediavelmente vencida
pelo vício. Tanto mais numa sociedade que patrocina e incentiva a prática
diária do pecado. Quantos especialistas já não ouvimos dizer que droga não
faz mal? Quantos programas de TV já não sugeriram que pornografia faz
bem? Wilhelm Reich, psicólogo da Escola de Frankfurt, tem um livro sobre os
benefícios do orgasmo para a saúde, em que defende que, quanto mais
orgasmos tiver, mais saudável uma pessoa será. Num cenário assim é fácil
compreender como seja difícil para um indivíduo, com suas próprias forças,
escapar das cadeias do vício. É difícil, quando não impossível, pois o
mecanismo cerebral, físico, humano, que poderia conter os impulsos e mitigar
a dependência, está debilitado; o carro corre ladeira abaixo, rumo ao
precipício, e o freio não funciona. 

O freio verdadeiro e a estrada da libertação

Por isso, aconselho fortemente a quem esteja nessa situação: não se


desespere e passe, desde agora, a apelar para um recurso superior e sempre
eficaz: a graça. Confesse a Deus a sua fraqueza, a sua incapacidade, e peça
a Ele que lhe refreie os desejos viciosos. Dobre-se e, com toda a humildade,
peça ajuda sincera a Nossa Senhora. Pois existe realmente um mecanismo
escravizador, mas veritas liberavit vos, “a verdade vos libertará” (Jo 8, 32).
Existe, sim, a escravidão, mas também o caminho de liberdade. E o primeiro
passo para tomar esse caminho é entender que existe essa ajuda do Céu, a
ajuda do seu anjo da guarda, a ajuda da Virgem Maria. É preciso entender que
o freio mais potente e infalível vem do Alto, e que ele está à nossa disposição.
Portanto, se você se sente escravo desses vícios, busque mais a vida
espiritual, aproxime-se de Deus, confesse-se. Tenha coragem de tomar essa
decisão. E creia firmemente: você não está sozinho.

AULA04

O caminho para a libertação


Seja qual for a fonte principal de nossas sucessivas e viciantes descargas
dopaminérgicas — maconha, pornografia, redes sociais ou videogames —, o
primeiro passo para se livrar da adicção é o processo que se costuma chamar de
“detox”, ou desintoxicação. 

As primeiras duas semanas são difíceis. Fatalmente faltará energia e abaterá


sobre o adicto uma falta de vontade de viver. Mas com coragem, determinação e,
sobretudo, com a graça de Deus, a libertação é perfeitamente possível.
imprimir
O cassino de bolso

Como vimos nas últimas aulas, sabendo dos efeitos que causa um dos
circuitos da dopamina, o mesolímbico, os marqueteiros e as plataformas
digitais transformaram nossos celulares em espécies de máquinas caça-
níqueis (slot machines). Segundo se diz, as casas de jogos lucram mais com
as maquininhas do que com as apostas e jogos propriamente ditos. E isso
porque esses aparelhos operam com base na constante surpresa, na infinita
novidade. A cada vez que se puxa a alavanca ou se apertam os botões, uma
nova sequência de caracteres aparece na tela multicolorida e isso vai criando
no jogador aquele prazer dopaminérgico, que se alimenta mais da busca, da
expectativa de ganho, que do ganho propriamente dito. As redes sociais nos
submetem a uma experiência parecida, dado que os conteúdos vão se
alternando na tela de modo infinito e aleatório, causando-nos esse desejo
insaciável por mais e mais. Eis o estratagema que mantém tanto o jogador de
cassino quanto o internauta compulsivo em estado de hipnose.   
Montanha-russa no penhasco

Vimos também que a dopamina nos coloca numa espécie de montanha-russa


decadente. Quando há a descarga dopaminérgica, ficamos high, para cima,
ligados, alertas. Porém, cessados os efeitos do pico, nos sentimos down,
abaixo de onde estávamos no início do processo. Então, para buscar
novamente aquelas alturas, é preciso apelar para uma descarga
dopaminérgica ainda maior. Mas, por instrumentos de defesa do organismo, o
prazer será menor e a queda subsequente ainda mais profunda. E a viagem
nessa montanha-russa da morte é tal que, passado algum tempo, o pico de
dopamina terá como máximo resultado elevar o sujeito, já no fundo do poço, à
sua altura normal. 

A “lei seca” e os ratinhos apáticos

Acontece que, se uma pessoa já em estado de adicção resolve cortar a causa


da dependência — drogas, pornografia, redes sociais —, ela se manterá com
um nível de dopamina abaixo do natural. Mark Schuckit, citado no livro de
Anna Lembke, Nação Dopamina, descobriu com outros colegas que, excluído
o elemento viciante, leva duas semanas para a dopamina voltar aos níveis
normais. Isso significa que, para largar o vício, é preciso atravessar duas
semanas miseráveis, infernais. Fatalmente faltará energia e abaterá sobre o
sujeito uma falta de vontade de viver. Como se não bastasse, o cérebro vai
ficar esperneando, implorando para sair daquele estado. Se lhe déssemos
voz, ouviríamos: “Me tira disso! Só um pouquinho, por favor! Só para dar uma
aliviada!” É isso o que ocorre quando o drogadicto entra em abstinência.  

Há inclusive um estudo que descreve muito bem esse fenômeno. Chama-


se: Dopamine-deficient mice are severely hypoactive, adipsic, and
aphagic (“Ratos com deficiência de dopamina são severamente hipoativos,
não sentem sede e não sentem fome”). Para essa pesquisa, foram utilizados
alguns ratos modificados geneticamente. Os cientistas foram fazendo uma
série de seleções e cruzamentos até chegarem num animal que não produzia
dopamina. Observou-se, então, que, ao nascer, esses ratos se alimentavam
como os outros, e engordavam e cresciam conforme o previsto para a espécie.
Quando, porém, acabava a fase da amamentação e eles tinham de buscar
alimento por conta, facilmente disponível, eles mostravam uma completa falta
de disposição e terminavam morrendo de fome.

Veja, portanto, como a dopamina não é o neurotransmissor do prazer: os ratos


tinham prazer quando comiam, quando o alimento lhes era dado na boca. O
que lhes faltava era a energia para buscar o objeto prazeroso, energia que a
dopamina nos dá. Lembrem-se: a dopamina não é uma droga latente criada
por Deus que não influenciava a vida humana até a invenção do celular. A
dopamina é importante, desempenha um papel crucial no cérebro saudável.
No mundo dos nossos antepassados, onde a comida era escassa, eles
precisavam dessa mola, que os impulsionava à caça, à busca. Se não
houvesse esse prazer no ato mesmo de caçar, prazer proporcionado pela
dopamina, quem iria à caçada, mata adentro? Deus faz as coisas bem feitas.
Ele criou a dopamina para que a espécie humana sobrevivesse — só muito
mais tarde nós a transformamos em instrumento de autoescravização. 

Como se libertar? Primeira coisa: coragem! Coragem para suportar as duas


semanas de misérias. Depois dessas, serão necessárias mais duas semanas
para que vá voltando o prazer nas coisas normais, o prazer em ver um
passarinho cantando num galho, o prazer de se sentar à mesa e se deliciar
com um pudim, o prazer de conversar com um ser humano real, diante de si,
por horas. Em uma palavra, é necessário o processo que se costuma chamar
de desintoxicação, detox, dopamine detox, ou mesmo “dieta de zero
dopamina”. Qualquer que seja o nome, o fato é que será preciso cortar a fonte
principal que causava as sucessivas e viciantes descargas dopaminérgicas,
seja lá qual for: a maconha, a pornografia, o TikTok, o videogame, o Forex,
que é uma espécie de videogame, a compulsão por compras, os jogos de
azar, enfim. Independente de qual seja, será preciso estancar a fonte por duas
semanas e aguentar o tranco, pois o cérebro, viciado, não gostará nada desta
“lei seca” que tiranicamente lhe será imposta. 

Da fossa à terra em um mês: o caminho de subida

Se a pessoa em estado de adicção conseguir ficar um mês, por assim dizer,


limpa, vai naturalmente começar a sentir um ganho. A Dra. Anna Lembke
atendeu certa vez uma menina, viciada em maconha, que não queria fazer o
tratamento. Só com muita insistência da família a moça aceitou visitar a
especialista, mas não queria largar a droga pois dizia não ver qualquer
problema em consumi-la. Diante da médica, na primeira consulta, a jovenzinha
deu uma extraordinária aula sobre maconha, falando das variedades, de como
ela poderia ser usada para fins medicinais e gastronômicos etc. Ao que a
médica lhe perguntou: “Muito bem, mas você gostaria de estar usando
maconha daqui vinte anos?” “Não”, disse a moça. “E daqui dez anos?”
“Também não”. “E daqui cinco anos?” “Não”. Quer dizer, a médica foi
mostrando à paciente a perspectiva de uma vida inteira de dependência — e
ela não gostou. Então a doutora deu o bote final: “E ano que vem?”

A moça também recusou pois, no fundo, estava empurrando com a barriga.


Ela queria se livrar do vício, mas como Santo Agostinho antes da conversão,
que sempre a adiava para o dia seguinte, e este nunca chegava. Ou como a
história do corvo de Santo Expedito. Santo Expedito, querendo se converter,
recebeu a visita do diabo sob a aparência de um corvo. Os corvos, quando
crocitam, fazem um “cras, cras, cras”. Cras, em latim, é “amanhã”. Entendendo
a mensagem tentadora, Santo Expedito, sem titubear, pisou em cima do corvo,
e disse: Hodie, “Hoje”. A decisão tem de ser tomada hoje. A Dra. Anna
Lembke conseguiu trazer aquela paciente para o hoje, para o agora, e nisso
consistiu a eficácia de sua consulta, em que ela lhe recomendou a abstenção
de um mês. 

Via perigosa: a estrada pavimentada para o fundo do poço

Mas, atenção: não quero dizer, em hipótese nenhuma, que, vencido esse mês
abstêmio, o vício estará extirpado de uma vez para sempre, amém, aleluia. De
jeito nenhum. Quem fez o curso de pornografia e masturbação lembra que
existe uma coisa chamada “plasticidade neuronal”. Ou seja, o cérebro tem
uma capacidade adaptativa, ele é como que modelado e remodelado pelos
nossos hábitos. No mesmo curso, fiz a seguinte metáfora: é como um caminho
na floresta. Alguém passa por aquele caminho e vai criando um trilho. Daqui a
pouco, aquele trilheiro vira uma estrada; mais tarde, uma rodovia; por fim, a
trilha se transforma numa autoestrada. É assim o processo de modelação do
cérebro. O hábito vai alargando e sedimentando os caminhos cerebrais. O
cérebro, portanto, já tem como que os caminhos, os atalhos do vício, vício que
pode, portanto, facilmente se reinstalar. Daí a experiência muito comum da
recaída. 

É por isso que as pessoas, no desespero, chegam à famosa conclusão da


Gabriela: “Eu nasci assim, eu cresci assim… vou ser sempre assim”. Errado.
Completamente errado. Há saída, evidentemente. Mas, na medida em que se
criou uma dependência, será preciso pagar um preço para largá-la. Preço que
será maior ou menor, claro, a depender do vício. “Ah, mas todo mundo bebe.
Por que eu não posso beber socialmente?” Não pode pois, se esse é o seu
vício, o vício que o escraviza, será preciso pagar a alforria. E o preço da
liberdade é uma zelosa abstenção.  

No cérebro existe uma memória emocional, que guarda as circunstâncias das


suas ações. Frequentemente atendo pessoas que dizem passar o dia inteiro
limpas, tranquilas, longe do vício. Quando, porém, entram no carro, para voltar
para casa, vem-lhes a sugestão pecaminosa. É por causa da referida
memória. Tem pessoas que, ao se sentarem em determinada cadeira, aquela
que sempre usam para acessar certo conteúdo na internet, recebem a
sugestão. Essa memória existe. São os tais gatilhos que ficam mais sensíveis
durante as duas primeiras semanas de abstenção. Claro que depois desse
período a memória não cessa de existir, mas nas duas semanas miseráveis,
ela fica mais aguda, mais desperta, mais tentadora.

Porque, de fato, nesse momento, o sujeito fica abaixo do padrão normal. Seu
mundo fica cinza, sem graça, entediante. Nada o alegra, nada o anima. É o
estado do ratinho de laboratório que não produz dopamina. A diferença é que
o ratinho é irracional e você, que está tentando se livrar do vício, não é. Você
consegue compreender sua situação. Por isso lhe digo: saia dessa! Faça um
esforço! Coragem, meu irmão! Aguente as pontas, reze. Faça o propósito de,
nas duas semanas de sofrimento, ir diariamente à Missa, de receber todos os
dias a Comunhão. Busque a graça, peça a ajuda de Deus. Suporte esse duro
momento e preste atenção no caminho, para se desviar das recaídas. 

Conclusão

Ainda vamos falar mais detidamente dessas estratégias para a saída do


estado de dependência. Por enquanto as aulas estão centradas num nível, por
assim dizer, animal, cerebral, físico, pois a graça supõe a natureza. Uma das
partes da nossa natureza é o cérebro, o corpo, e precisamos entendê-lo; a
outra parte é a alma, da qual nós também vamos falar, no momento oportuno. 
Essa aula, portanto, pode ser resumida pelas seguintes palavras: você que
tem um vício, qualquer desses de que falamos, pode se libertar. Só que vai
haver um preço. Existe realmente um sofrimento inicial e quanto maiores eram
os picos de dopamina, maior ele será. Pois uma coisa é se livrar da
dependência da internet, outra coisa é se livrar da cocaína; uma coisa é se
livrar da cocaína, outra é se livrar do crack. No fundo, seu estado atual é que
vai informar a ajuda necessária. Há casos, inclusive, em que, devido aos
níveis quase insuportáveis de ansiedade, depressão etc., será preciso um
suporte psiquiátrico. Há casos em que será preciso até mesmo apelar à
internação. Depende. Mas, qualquer que seja o estado, nada substitui a
realidade da conversão. Porque, embora precisemos de ajuda no campo
natural, temos uma alma e podemos receber a graça, o remédio dos remédios;
o tratamento infalível.

AULA 05

Para além do cérebro


Se usarmos um método físico para analisar fisicamente o cérebro, os resultados,
obviamente, se limitarão à ordem física. Mas, se certos fenômenos humanos
participam, também, da ordem espiritual, talvez o método adequado não seja o
físico, mas o metafísico. 

A neurociência nos ajudou até aqui, mas, cientes de que temos algo que os
métodos científicos não alcançam, precisamos dar um passo adiante, para uma
nova trilha.
imprimir
O que é adicção?

A palavra “adicção”, que temos usado ao longo deste curso, é a versão dos
portugueses para “adição”. Tenho preferido a primeira forma, europeia, por ser
mais próxima do inglês e também porque algum desinformado pode se
perguntar: “Mas o que está sendo adicionado?” 

Como seja, vale esclarecer que a adicção não é somente um vício. Vícios são
maus hábitos. Há quem tenha o vício de falar palavrões, contar mentiras,
roubar etc. Quando falamos de adicção, temos em vista um outro fenômeno,
estudado nos últimos anos, que consiste em certas modificações no cérebro,
neuronais, provocadas pelo uso de certas substâncias — como o álcool, a
maconha, a cocaína, o crack e outras do gênero. A novidade é que, conforme
descobertas recentes, essas mesmas modificações ocorrem, em grau menor,
nas pessoas que consomem muita internet. Modificações estas que têm
ocasionado sintomas disfuncionais, como desânimo, falta de foco e energia
para a realização de tarefas etc. —, deixando-as como aqueles ratinhos
apáticos da aula anterior. 

Um problema metodológico, ou: A filologia dos neurônios


Acontece, porém, que esses estudos neurocientíficos, embora importantes sob
vários aspectos, não são suficientes. E não são, pois a metodologia de que se
servem é limitada. A primeira dificuldade está no fato de que todas essas
descobertas foram feitas a partir de pessoas drogadictas, já adoentadas, e não
de pessoas sadias. Ou seja, busca-se descrever o comportamento normal a
partir do disfuncional. Outro problema, ligado ao primeiro, é que sempre se
parte da disfuncionalidade de um organismo físico, de maneira que o método,
como não poderia deixar de ser, se adequa e se destina à análise de um
organismo físico. 

Ora, qual seria o benefício de estudar um neurônio utilizando os instrumentos


da filologia: a morfologia, a análise sintática, a crítica literária etc.? Suponha
que se pegue toda a bibliografia em língua inglesa sobre neurônios e, por
métodos filológicos, se chegue a curiosas conclusões sobre os padrões
sintáticos dos textos, sobre as idiossincrasias no vocabulário de psicólogos,
psiquiatras, neurocientistas etc. Por muito interessante que os resultados
possam parecer, eles não dirão nada sobre a natureza dos neurônios — que,
a princípio, era o objeto de interesse. Pode-se dizer que o método filológico é
bom, mas não para a finalidade desejada. 

O cérebro e a lâmpada

No nosso caso, interessa-nos entender o que causa, nos seres humanos, a


adicção, e mais particularmente a adicção ligada ao uso da internet. Quer
dizer, trata-se, para começo de conversa, de um fenômeno eminentemente
humano, pois, embora os pombos de Skinner, motivados pela dopamina,
ficassem hipnotizados com as alavancas e botões, é de se duvidar que
ficassem vidrados vendo conteúdos sucessivos no TikTok. Claro que o modelo
animal tem sua serventia e muito nos ajuda, pois podemos fazer com os
bichos experimentos que seria até mesmo imoral pensar em realizar com um
ser humano — por exemplo, modificações genéticas para obter um exemplar
que não produz dopamina. No entanto, se estamos diante de um fenômeno
humano, não é de se admitir, ao menos como possibilidade, a insuficiência do
método que se limita às semelhanças dos homens com os animais?

É de se perguntar: por que raios um ser humano caça conteúdos na internet?


Ora, primeiro porque o ser humano é dotado de uma coisa chamada
curiosidade, curiositas, em latim. Essa ânsia de saber que, aplicada
virtuosamente, redundaria numa estudiositas, uma estudiosidade, não é uma
realidade propriamente humana? É do homem o prazer no investigar, no
inquirir, no descobrir. Certa vez, um entrevistador perguntou à filósofa judia
Hannah Arendt por que ela escrevia. Ela respondeu: “Vejo que os homens
tendem a conhecer as coisas na medida que elas tenham uma finalidade
prática. Não faço nada disso. Quero entender as coisas para conhecer a
verdade, e preciso escrever porque a minha memória não é boa o suficiente
para eu guardar tudo na cabeça. Então escrevo e, no processo, vou
meditando. Quando, finalmente, termino a investigação de um objeto e vejo ali
alguma coisa, me vem aquela sensação de estar em casa”.
Ora, esse fenômeno não existe nos animais. Logo, se vou investigar como o
ser humano é capaz de ter uma adicção com o conhecer, com o ver, com o
investigar, atos que, voltados às verdades, representam uma virtude, mas que
podem descambar naquilo que São João chama “concupiscência dos olhos”,
se é esse o objeto da investigação, talvez o método que se fixe apenas
naquilo que os homens compartilham com os animais não seja suficiente. E
talvez não pois o cérebro, de que nós e as feras dispomos, não parece ser
a causa suficiente do fenômeno que nos interessa, mas apenas sua condição
necessária. 

Pensemos no seguinte exemplo para explicar essa terminologia filosófica: uma


lâmpada só acende caso um fio leve até ela a eletricidade. Sabendo disso, fica
a questão: basta levar o fio ao laboratório para saber qual é a causa de uma
lâmpada acender? Não, pois o fio não é a causa suficiente do funcionamento
da lâmpada. A causa suficiente é a eletricidade, da qual o fio é, por assim
dizer, um auxiliar indispensável, sem o qual a eletricidade não chega na
lâmpada — daí que seja a condição necessária. 

Para além do cérebro

É isso o que acontece quando os neurocientistas se debruçam sobre certos


comportamentos humanos. Em nós, muitas vezes, o cérebro é apenas o fio, a
condição necessária para o funcionamento de algo que é a causa suficiente do
comportamento: a nossa inteligência. Ora, no exemplo da lâmpada, pode-se
estudar e descobrir fios de melhor e pior qualidade; pode-se descobrir, em
alguns, fissuras, emendas e soldas; pode-se entender que, a depender de
como se usa um fio, a rede elétrica produz harmônicas de tal ou qual
frequência, e assim por diante. Pode-se descobrir tudo sobre fios, mas, sem
estudar a eletricidade, nunca se vai saber como a lâmpada funciona. Do
mesmo modo, pode-se estudar infinitamente o cérebro, mas, sem conhecer a
natureza da inteligência humana, nunca se vai descobrir, realmente, como
funciona o homem.

Entre anjos e macacos

Há vários exemplos de realidades propriamente humanas que,


consequentemente, para serem compreendidas, carecem de método que não
se restrinja às coincidências entre homens e animais. Veja-se o caso do
suicídio. Só os seres humanos cometem suicídio. Os animais não podem se
suicidar pois: não têm consciência de self; não concebem  a morte como
possibilidade futura; e, por fim, não dispõem de liberdade para tal. Trata-se de
capacidades e características humanas. Não digo todavia que basta a alma
para explicar o suicídio. Mas tampouco digo que basta o cérebro. Anjos são
espírito, embora não tenham cérebro, e macacos têm cérebro, conquanto não
tenham alma. Nem um nem outro se suicidam. Não é de se desconfiar,
portanto, que o suicídio seja fenômeno eminentemente humano, justamente
porque decorre de um desarranjo na relação entre alma e cérebro, par de
realidades que só o homem possui? No mínimo, é uma hipótese a se
investigar. E, para investigá-la, não bastam as observações de Skinner nem
o PET scan da Dra. Volkov.
O imperativo como expressão do espírito

Outro exemplo são as regras morais. Em toda sociedade humana, desde as


mais rudimentares e bárbaras, vigora algum código moral. O filósofo Eugen
Rosenstock-Huessy, após analisar dezenas de línguas, descobriu que a parte
mais primitiva dos verbos é o modo imperativo. Por exemplo: da
forma ama, imperativo do verbo amar, é que teria
derivado amar, amarei, amava etc. Quer dizer, a linguagem humana teria se
constituído em torno da ideia de ordem — da que se espera um vínculo de
obediência, de compromisso, de aliança. Uma ordem, com efeito, não é uma
coisa simples. Se analisarmos filosoficamente, chegaremos à conclusão de
que não existe ordem, comando no mundo animal. Os bichos, no máximo, têm
algo que imita o verbo no indicativo, cuja essência é informativa. Um macaco
pode fazer certos gestos e emitir certos sons que comuniquem a presença de
um leão, mas nunca será capaz de ordenar: fujam!  

O ser humano, capaz de dar ordens, é o único animal que restringe o seu
comportamento através de um vínculo interior, moral. A foca do circo deixa de
fazer certas coisas porque sabe que se fizer vai levar uma paulada e começa
a fazer outras coisas porque sabe que vai ganhar um peixe. Isso não é um
imperativo, é um condicionamento. O ser humano é o único animal que tem
consciência e, por isso mesmo, é capaz de refletir livremente sobre um
imperativo e pode obedecê-lo ou não por um ato de vontade.

Resumo

Como vimos, a alma é causa suficiente de uma série de fenômenos para os


quais o cérebro é somente a condição necessária. Se, então, usarmos um
método físico para analisar fisicamente o cérebro, os resultados, obviamente,
se limitarão à ordem física. Mas, se certos fenômenos humanos participam,
também, da ordem espiritual, talvez o método adequado não seja o físico, mas
o metafísico. 

A neurociência nos ajudou até aqui, mas, cientes de que temos algo que os
métodos científicos não alcançam, precisamos dar um passo adiante, para
uma nova trilha. E é disso que vamos nos ocupar na sequência do curso,
sequência para a qual essa aula serviu de preâmbulo.

AULA 06

Minha vida tem sentido, afinal?


Que os bichos não vejam sentido na existência, é o esperado. Mas o ser humano
não é assim. E é exatamente a sua sede de sentido, e frustração por não o
encontrar, que o torna muitas vezes doente. 

Fármacos podem até ajudar a aliviar determinados sofrimentos por que


passamos. Mas só considerando o homem em sua totalidade — corpo e alma,
cérebro e espírito — é que se curam certas doenças propriamente humanas,
ausentes do mundo dos animais.
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Recapitulando

Nas primeiras aulas deste curso, em que investigamos por que o celular tem
se transformado, para muitas pessoas, numa espécie de cachaça, olhamos,
de modo panorâmico, interessantes descobertas neurológicas a respeito do
cérebro humano. Vale reforçar que essas descobertas são importantes para
que, na avaliação e na solução de problemas ocasionados pela adicção, não
se caia num moralismo. É evidente que há um componente de ordem moral,
um pecado, um erro, que deve ser confessado, que deve provocar o
arrependimento. Mas não se pode perder de vista que há também um
componente físico, cerebral. 

Imagine o ladrão que se arrepende de ter pulado o muro da casa, pois, no ato,
quebrou a perna. O homem é preso, confessa seu erro, admite-se pecador. Do
ponto de vista moral, está limpo. Mas e a perna? Será que ficou mais curta,
mais fina, atrofiada? Será que perdeu em destreza? Ora, ainda que fiquem
essas e outras sequelas do episódio, não é correto passar o resto da vida
atribuindo cada passo manco a uma imoralidade. Isso seria neurotizar-se. A
causa da marcha capenga não é o crime, que já foi esquecido e perdoado,
mas uma condição física, que em si mesma não é moral nem imoral.

O excesso de internet causa uma condição física. Vimos, inclusive, que a Dra.
Nora Volkow descobriu o acelerador que nos impulsiona para o uso da
substância aditiva, que é a dopamina. Vimos, conforme descobertas mais
recentes, que esse mesmo acelerador é o que nos movimenta para o consumo
desenfreado de conteúdos na internet. Existe, pois, no nosso cérebro, algo
que grita sedentamente por mais, mais e mais. Logo, não se trata, somente,
de tentação do diabo. O diabo, claro, faz tentações. Mas, evidentemente, é
mais fácil que elas alcancem sucesso caso o tentador tenha como maior
cúmplice o cérebro de sua vítima. Vimos, por fim, ainda nas questões físicas,
que uma outra parte do cérebro, o córtex, que ajudaria a resistir aos impulsos
dopaminérgicos, também fica debilitada quando no estado de adicção. 

Considerando tudo isso, fica a questão: como ajudar a pessoa drogadicta não
somente com base na neurologia, que cuida do cérebro, do físico, mas
considerando aquilo que é propriamente humano: a alma? 

Em busca de sentido

Na aula passada, vimos manifestações que são próprias da alma humana e


concluímos que um estudo do cérebro, por mais pormenorizado que seja, não
dá conta de explicá-las. Há, entretanto, nesse rol de manifestações
tipicamente humanas, uma que ainda não abordamos, mas que é muito
importante para o curso. Trata-se da busca por sentido, conforme a
abordagem do psiquiatra Viktor Frankl, criador da Logoterapia. O ser humano,
ao contrário dos outros animais, não é movido somente por recompensas
imediatas. O homem busca sentido nas coisas que faz, mesmo que não seja o
sentido último. Na sociedade atual, por exemplo, em que somos movidos pelo
sistema financeiro, pelo dinheiro, as pessoas traçam a linha de suas vidas e,
normalmente, admitem como primeiro passo a escola. No entanto, se
perguntarmos qual é o sentido de frequentar a escola, por tantos anos, a
pessoa vai dizer que, no fim das contas, é a faculdade [1]. Daí se alcança esse
segundo objetivo. Quando, porém, se pergunta à pessoa qual é o sentido de
cursar a faculdade, ela responderá que é o futuro ingresso no mercado de
trabalho [2]. E qual seria o sentido do trabalho? Admitindo uma hipótese quase
utópica, vamos supor que a pessoa responda ser o sustento da família. E
assim por diante. 

Veja, então, que o sentido de cada coisa não está na coisa mesma, mas fora.
Então, no fundo, nada aí teve sentido. E a vida vai correndo assim. Vai
correndo até que, num belo dia, esbarra-se com a realidade da morte.
Suponha a seguinte história: alguém, precisando de dez reais, chega a um tal
de Eduardo e pede a quantia emprestada. O Eduardo diz que não tem, mas
que pedirá ao Francisco. O Francisco, porém, também diz não ter, mas que
vai arrumá-lo com o Tiago. E este diz que não tem e o próximo também não, e
assim sucessivamente. Até que alguém resolve pedir o dinheiro à Fátima, que,
também não o tendo, vai demandá-lo no cemitério. Como não é muito provável
que uma cova se abra e um cadáver saque de entre os ossos a tão sonhada
nota de dez, ninguém vai conseguir o dinheiro, e a primeira pessoa que pediu
ficará a ver navios. Ora, a nota de dez é o sentido que todos buscamos. As
pessoas, para quem se pediu o dinheiro, são as coisas da vida nas quais
buscamos o sentido, mas nunca encontramos. E isso até o fim, até o
cemitério, até a morte.    

Que os animais não vejam sentido na existência, tudo bem, é o esperado.


Afinal de contas, ninguém chega para o bezerro, no pasto, e pergunta o que
ele vai ser quando crescer. Porque o bezerro, como todos os outros bichos, já
é, desde o início, tudo o que precisa ser. Se ele tiver pasto para comer, água
para beber, sal para lamber e, quando adulto, tiver uma fêmea para acasalar,
pronto, ele terá sido um touro feliz, na sua felicidade bovina. O ser humano
não é assim. E é exatamente essa sede de sentido, esse drive, esse impulso,
essa pulsão por um sentido que faz o ser humano, na medida em que não o
encontra, adoecer. Conheço várias pessoas, saudáveis em todos os aspectos,
que não saem da depressão, que não saem da cama simplesmente porque
não veem motivo para tal. Esse fenômeno não acontece no mundo dos bichos
[3]. Por isso, parece pertinente usarmos, para além do método neurológico,
que considera o cérebro em sua animalidade, uma abordagem total, que
considera, ao mesmo tempo, corpo e alma, cérebro e espírito. Os fármacos
podem ajudar, podem aliviar o sofrimento. Mas o que realmente pode tirar as
pessoas dessa miséria é a busca pelo sentido.

E o sentido, como vimos, nunca está na coisa mesma, mas fora. O sentido da
escola é a faculdade; o sentido da faculdade é o trabalho; o sentido do
trabalho é a família etc. É uma constante. Ora, se é logicamente assim, temos
que concluir que, se a vida tem um sentido, o sentido não está nela mesma,
mas fora, para além. Mas estamos no mundo da ciência, onde não se pode
mais falar no pós-morte, onde não se pode mais levar em consideração o
“detalhe” chamado Deus. Estamos na era que se vangloria de ter superado a
teocracia medieval e ter inaugurado o antropocentrismo moderno, o
humanismo, o homem no centro de tudo, o homem, no mundo, como o sentido
de si próprio. Infelizmente, por crer nessas coisas, o mundo adoeceu. A
gloriosa virada antropocêntrica terminou na vitória bancocêntrica, em que o
homem vive para pagar dívidas do banco, o seu senhor. O mundo moderno
jura ter promovido a liberdade, jura ter livrado os homens dos antigos grilhões.
Mas qual é a liberdade substantiva que esse mundo nos dá? A moribunda
democracia? A tecnologia que é capaz de amestrar e submeter uma geração
inteira sem o uso da força? 

No fundo, esse mundo da abundância está nos tornando adictos. E, como falta
a perspectiva do Céu, as pessoas, ao serem alertadas de que estão nesse
estado, simplesmente não veem sentido em superá-lo. Simplesmente não são
capazes de vislumbrar uma vida fora dessas cadeias do espírito. É como
aqueles jovens traficantes cariocas que, perguntados se não temem a morte,
respondem, numa ironia sádica, que “não”, pois “já que todo o mundo morre, é
melhor morrer com emoção”. Eis a profissão da insensatez de uma vida
humana sem sentido. 

Memento mori

Mas será que sempre foi assim? As pessoas não eram mais saudáveis
espiritualmente quando tinham sentido, quando tinham a transcendência,
quando tinham um porquê? Evidente que sim. Por isso, dentro do tratamento
para a adicção — ao celular ou ao que quer que seja — é importante ajudar a
pessoa a se colocar diante do sentido da vida, de um futuro maior; é
importante colocá-la, como dizem os filósofos, sub specie æternitatis, debaixo
do olhar da eternidade, sob a perspectiva da morte. 

O filósofo Olavo de Carvalho, por exemplo, fazia isso com seus alunos. Na
primeira aula do Seminário de Filosofia, ele pedia que o aluno fizesse um
necrológio. Necrológio é um texto de homenagem a um recém-falecido. Nesse
exercício, o próprio aluno devia se imaginar morto e escrever o necrológio
como a expressão resumida daquilo que as pessoas diriam de si diante do seu
túmulo. Ou seja, o objetivo era o aluno conceber sua própria imagem acabada,
sua biografia realizada, e tomar aquilo como meta para as suas ações
presentes, de modo a fazer tudo em face daquele sentido último.  

É, por outros meios, aquilo que a Igreja sempre fez. A Igreja sempre ensinou
as pessoas a fazerem exame de consciência, todos os dias, e se colocarem
diante da morte. Não para entristecer, para deprimir, mas para meditar no
sentido da vida. Colocar-se na hora da morte é se colocar naquela posição em
que tudo tem sentido ou tudo é insensato. E é isso que faz com que a pessoa
ou se mova numa determinada direção ou fique paralisada. 

O coração inquieto e a sede de sentido

Existe, portanto, uma realidade muito mais poderosa do que a dopamina. A


dopamina move o rato à busca de mais e mais comida, pois os ratos, com
essa recompensa futura imediata, já são felizes. Os seres humanos, não. Os
homens, buscando vorazmente essas recompensas imediatas, entristecem, se
deprimem. E esse, repito, é um fenômeno plenamente humano, fenômeno
impossível de ser explicado olhando para o cérebro de um rato. Porque existe
no ser humano uma realidade chamada alma, que está inquieta. Basta que
olhemos sinceramente dentro de nós para perceber. O ser humano é um
animal sempre disfuncional. Os outros bichos se contentam com o que têm. O
ser humano é sempre um cor inquietum, um coração inquieto. 

Mas, se os animais têm sede é porque em algum lugar existe água; se os


animais têm fome é porque em algum lugar existe comida; se o nosso coração
se sente vazio, é porque existe, em algum lugar, algo que o preenche. Porém,
já que nada do que é visível e disponível parece preenchê-lo, é porque talvez
essa realidade não esteja confinada no mundo visível. Talvez a resposta
esteja em algo invisível. Talvez estejamos nesse mundo para buscar, no fim
das contas, algo que está fora dele. 

É por isso, por levar o paciente a essa perspectiva mais alta, que o método
dos Doze Passos do A.A., uma fraternidade de autoajuda, funciona. Ali, o
adicto é tirado dessa gaiola dos pombos e colocado não só diante de uma
responsabilidade social, perante os outros membros do grupo, mas,
principalmente, colocado diante do transcendente, diante de Deus. 

Conclusão

Em resumo, precisamos nos dar conta de que só o ser humano produz certas
doenças, porque só o ser humano tem alma, de modo que analisar o homem
como se se tratasse de um macaco, fatalmente não vai funcionar. Trocando
em miúdos, o primeiro passo para a cura é aquele velho conselho dos
filósofos: conhece-te a ti mesmo.

AULA 07

Quem tem um porquê, aguenta qualquer como


Nos campos de concentração nazistas, o médico judeu Viktor Frankl comprovou:
as situações extremas da vida não criam só gente vil e suicida. A algumas
pessoas o sofrimento enobrece e até santifica.

Isso acontece porque, quem tem um propósito, uma causa final para sua vida, é
capaz de suportar até a mais difícil das circunstâncias — e esse fenômeno,
ausente do mundo animal, a neurociência não pode explicar.
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Na segunda parte deste curso, estamos nos esforçando por ver como os
conhecimentos científicos acerca do cérebro humano, sobretudo do cérebro
drogadicto, são, apesar de bons, úteis e valiosos, insuficientes. Insuficientes
pois, como já tivemos a chance de ver, não dão conta de explicar o fenômeno
humano em sua plenitude, limitando-se apenas àquilo que há em comum entre
os homens, os pombos, os ratos e os demais bichos.   
Para dar prosseguimento a esses esforços, vamos agora nos concentrar num
autor mencionado em aulas passadas, mas que requer uma maior atenção.
Trata-se de Viktor Frankl. Pode ser que apresentá-lo, no Brasil, onde vários
psicólogos seguem sua linha terapêutica, a Logoterapia, seja chover no
molhado — mas vale a pena correr o risco com um pequeno resumo. Viktor
Frankl, nascido em Viena, na Áustria, em 1905, foi, na sua juventude, aluno de
Sigmund Freud. Com esse aclamado mestre, aprendeu que toda a dimensão
que chamamos de espiritual, a nossa ligação com Deus, as virtudes, os
pecados etc., não passa de uma construção humana, um produto cultural
inventado por alguém e repassado, ardilosamente, de geração em geração.
No fundo, o que realmente existe no homem, diria o psicanalista, é a Natureza,
sua parte animal, as suas paixões, as suas pulsões; numa palavra: o Eros.
Eros este que, tragicamente, é oprimido pela Cultura — criada justamente com
esse objetivo.    

Notem que é a versão individual, psicanalítica, da interpretação que Marx fazia


da sociedade. Para o teórico comunista, tudo o que entendemos como cultura
superior — a religião, os valores, as leis etc. — forma a
chamada superestrutura, um emaranhado de concepções inventadas pela
classe opressora com o fim de manter-se no comando do mundo real, o
da infraestrutura, onde há o trabalho, o dinheiro e as relações de dominação
[1].

Com base nessa teoria, Freud defendia que pessoas expostas a situações
extremas, como a da fome, terminariam largando todas as suas crenças e
valores, que no fundo eram postiços. Segundo ele, caso um pastor e um
ladrão fossem colocados num bunker, com privação de alimento, não
demoraria para o primeiro nivelar-se moralmente ao segundo, pois que todas
as convicções do religioso, diante das necessidades materiais, se
dissolveriam, ficando apenas as pulsões, o instinto de sobrevivência [2].

Foi com essas ideias que Viktor Frankl, um médico judeu, entrou num campo
de concentração nazista. Disse em outra aula que é possível fazer certas
experiências científicas com ratinhos e com pombos, mas que seria
completamente imoral repeti-las com seres humanos, por motivos óbvios.
Mas, nos campos nazistas, os seres humanos foram tratados como pombos e
ratos, e isto, esta abominação, serviu como laboratório para que aquele jovem
freudiano pudesse observar, bem de perto, o comportamento humano em
situações limites.

Então, ele logo notou que existiam dois tipos de prisioneiros. Havia pessoas
que, de fato, nessas situações extremas, deixavam desmoronar tudo que
tinham aprendido sobre religião, valores etc. Eram  pessoas que se vilificavam,
que ficavam piores. Eram pessoas movidas ou pelo instinto de sobrevivência,
a pulsão de Eros, ou pelo ímpeto da morte, a pulsão de Tanatos, que induz ao
suicídio. Os primeiros, para fugir da dor, matavam os outros; os últimos, para
fugir da dor, matavam-se a si mesmos. Até aqui, seu professor estava certo.
Mas Frankl também notou que havia um outro grupo. Havia prisioneiros que,
naquela situação, melhoravam. Ele começou a ver atos de caridade, de
altruísmo, de abnegação. Viu pessoas se entregando umas pelas outras, viu
moribundos, em pele e osso, realizando atos heróicos. Ou seja, ele tinha ali
exemplos concretos que refutavam as teses de Freud. A situação extrema, ao
contrário do que dizia seu professor, poderia enobrecer e mesmo santificar,
ampliando no sofredor sua fé, solidificando seus valores e virtudes.

A busca por sentido e a sobrevivência no inferno

Ora, essa reação positiva ao sofrimento não se acha entre os animais. E


justamente porque, como notou Frankl, a melhora moral diante da completa
desgraça só ocorria naqueles cativos que conseguiam achar um sentido para
suas existências, naqueles homens que tinham uma missão, uma meta, um
projeto, seja profissional, familiar ou espiritual. 

Certa feita, um dos prisioneiros, homem que ele já observava, veio lhe fazer
um desabafo:   

— Doutor — disse o doente, fatigado pela fome, pelo frio, pelas pancadas,
pelas humilhações —, estou pensando em tirar a minha vida. 

— Por quê?

Essa pergunta, diga-se, é parte fundamental tanto de psicoterapias quanto de


direções espirituais. É muito importante deixar o paciente narrar os seus
motivos. 

– Porque, doutor, eu não espero mais nada dessa vida…

Eis que Frankl lhe fez a pergunta salvadora, pergunta que Freud não poderia
formular:

— E a vida, o que ela espera de você?

O homem, refletindo nessa questão, desistiu de se matar. Sim, a vida


esperava algo de si. Ele tinha uma missão a cumprir e, se encontrasse forças
para resistir àquele sofrimento atroz, poderia ainda fazer alguma, quem sabe
algo de relevante pela humanidade.

O como e o porquê

Nietzsche escreveu um livro de aforismos chamado “O Crepúsculo dos Ídolos”


— Götzen-Dämmerung; em alemão, Got é “Deus” e Gotzen é o mesmo que
“deuses falsos” —, cujo subtítulo era: “Como se filosofa com um martelo”. Bem
no início da obra, no número 12, ele diz uma coisa que, devido a suas
experiências no campo de concentração, Frankl passou a repetir durante toda
a vida: Hat man seinwarum? Des Lebens, so verträgt mansich fast mit
jedemwie? — “Você possui um porquê na vida? Então, suporta quase todo
como”. Ou, simplificando: “Se você tem um porquê, você aguenta o como”. 
Quer dizer, se se tem um porquê na vida, um motivo, uma causa última, é
possível suportar até o mais difícil “como”, que é a circunstância, a situação
atual. Esse fenômeno, é preciso repetir, a neurociência não explica. É algo
que está muito além do comportamento animal motivado por essa ou aquela
substância química, por essa ou aquela pulsão. 

A ciência moderna e a morte do sentido

Esse sentido de que fala Viktor Frankl é chamado em filosofia de causa final, e


é exatamente isso o que a ciência moderna destruiu. David Hume, filósofo
empirista, dedicou parte de sua obra a questionar as relações de causa e
efeito, fato que colocou em xeque a própria validade da ciência. Ora, a ciência
não se faz de outro modo senão explicando as causas de certos fenômenos.
Por exemplo, todos esses livros e pesquisas que tenho citado, falando sobre
pornografia, masturbação, dopamina etc. servem para que eu tente
compreender e consiga explicar as causas de um problema que observo todos
os dias no confessionário, que é essa doença ocasionada pelo excesso de
internet.  Isso é ciência. 

David Hume começou a questionar a validade dessas cadeias de causa e


efeito. Immanuel Kant, buscando debelar essa crise, que afetaria a validade do
método científico, elaborou sua filosofia, salvando, o quanto pôde, três das
quatro causas das coisas, conforme ensinava Aristóteles: a causa material, a
causa formal, a causa eficiente e a causa final. Kant conseguiu preservar a
reputação das três primeiras, mas terminou de assassinar a última.  

O problema é que a causa final é a mais importante de todas. Ela é que


explica as razões do ser. Ora, podemos pegar uma xícara e apontar sua causa
material (a cerâmica), sua causa formal (a ideia de xícara: um recipiente
cilíndrico, com uma alça, que usamos para beber certos líquidos) e sua causa
eficiente (o artesão). Mas, de que adianta tudo isso se não sabemos para que
ela serve, qual é sua razão de existir, a que ela se destina?

O mesmo acontece com os homens. O cientista pode pegar um ser humano,


colocá-lo no balcão do açougue, abrir o seu cérebro e descobrir como ele é
feito. Pode desmontar cada uma das partes e nomeá-las: hipocampo,
hipotálamo, tálamo, Núcleo Accumbens e assim por diante. No entanto, dessa
observação ele não pode obter a resposta fundamental: para que o homem
veio ao mundo? 

Necrológio

Para ajudá-lo, aluno, a responder essa pergunta sobre o sentido da vida, peço
que realize a seguinte tarefa [3]: 

Imagine que você morreu. Não precisa ser agora, com sua idade atual. Projete
a idade de sua morte, na época em que bem entender. 
Em seguida, imagine que escreveram, no jornal da cidade, o seu necrológio,
um texto descrevendo e narrando quem foi o recém falecido. 

Então escreva, numa folha de papel, aquilo que você gostaria que estivesse
registrado nesse jornal. Quais feitos, quais realizações, quais exemplos você
gostaria que estivessem listados nessa homenagem pública? 

Do campo de concentração à superabundância 

Esse exercício tem o objetivo de trazer à nossa consciência a nossa imagem


final, conforme nós mesmos idealizamos. E essa imagem, claro, deve nos
servir como um projeto de vida. Precisamos iniciar o traçado agora para que
dê tempo, até o fim dos nossos dias, de terminar a obra, em todas as suas
pinceladas, com todas as cores e detalhes.  

No entanto, fica a advertência de uma dificuldade a mais que temos na nossa


época. 

Frankl, como dissemos, fez do campo de concentração o seu laboratório. Nós,


no mundo moderno, nessa maluquice toda, temos também o nosso: a própria
sociedade. A diferença entre os dois reside no seguinte: Frankl tinha um
laboratório onde as pessoas estavam privadas de tudo. Nós temos um
laboratório onde as pessoas, pelo contrário, vivem na superabundância.
Acontece, como vimos, que na privação alguns se destroem e outros se
encontram. Mas os Santos Padres, os santos, os diretores espirituais já nos
mostraram que, na abundância, esse encontro, essa conversão é muito mais
difícil. Pode ser que o famoso aforismo seja exagerado para o caso, mas,
serve para ilustrar: “A pobreza fez alguns santos; a riqueza, nenhum”. É o que
Jesus nos ensina: é muito difícil um rico entrar no Reino dos céus. E, veja, o
problema não é o dinheiro. O problema é a sensação de já possuir tudo, aqui,
agora, nesse mundo.  

É preciso, pois, descobrir a causa final de nossas vidas. E, como vimos neste
curso, a causa final de alguma coisa nunca está na coisa mesma, mas além.
Logo, para encontrarmos a nossa causa final, temos que renunciar às nossas
vidas. É como diz o Cristo: “Quem quiser se salvar, vai se perder, mas quem
se perder, por amor de mim, irá se salvar”. Eis o sentido de tudo. Eis o que
pode nos curar da insensatez da vida, essa insensatez, essa falta de sentido
que termina nos empurrando para o abismo do vício e da depressão.

AULA 08

Saindo da caverna
O famoso mito da caverna, de Platão, fala de homens aprisionados, acostumados
a ver apenas a sombra do mundo real, projetada na parede de seu cativeiro. Ora,
alguém tem dúvidas de que a nossa caverna, hoje, é o celular e as novas
tecnologias? 
A internet, as redes sociais, as plataformas digitais, nos revelam apenas uma
sombra da realidade. E esta nos entretém, nos hipnotiza e termina por nos
afastar da própria realidade. Felizmente, porém, existe um caminho de saída, que
passa pelo uso da nossa inteligência.
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Nossa caverna

É bastante conhecido o mito da caverna de Platão. A alegoria fala de homens


que, aprisionados em uma caverna, de costas para a saída, acostumaram-se
a ver apenas a sombra do mundo real, projetada na parede do cativeiro. Ora,
hoje, a nossa caverna, é o celular, o computador. A internet, as redes sociais,
as plataformas nos revelam apenas uma sombra da realidade que nos
entretém, nos hipnotiza e que termina por nos afastar da realidade mesma. 

No conto do filósofo, um dos prisioneiros consegue arrebentar as cadeias e


escapa da caverna. Seu primeiro contato com a luz do sol é doloroso; muito
lhe custa abrir os olhos. Depois, quando se acostuma, vê pela primeira vez as
dimensões, as cores, os movimentos, em uma palavra: o mundo real.
Deslumbrado, volta para contar as novidades aos amigos, ansioso por levá-los
também à contemplação da luz. Os companheiros, já há tanto tempo
habituados com a falsidade das sombras, tomam o liberto por louco e
terminam o matando. 

Ora, também nós, na nossa escravidão digital, temos dificuldade em acreditar


que há um mundo para além das telas. Pois, olhar para esse mundo exige
mudança, cobra esforços, incomoda. Aquele que aconselha esse abandono
das telas sempre será visto como um inconveniente, um importunador.
Entretanto, é preciso dizer: assim como os prisioneiros da caverna só tinham
aquela vida para sair da escuridão e conhecer a verdade, nós só temos essa
vida para conhecer e amar a Deus. Esse é o sentido, a causa final.
Precisamos, como o liberto da história, tomar a decisão de largar o mundo das
aparências, das ilusões virtuais e nos voltar para a luz da realidade.    

Todavia, essa virada de vida exige um ato de vontade. Mas como realizá-lo?

O rabanete, o biscoito e a vontade

No já mencionado livro The molecule of more (p. 96), os autores relatam uma


pesquisa engenhosa e interessantíssima, cujo resultado, também interessante
e engenhoso, demonstra uma ignorância prodigiosa acerca da psicologia
humana. Trata-se do “desafio dos rabanetes e biscoitos”. Consistia no
seguinte: os cientistas formaram dois grupos de pacientes. O primeiro foi
colocado numa sala onde havia, numa mesa, uma forma de cookies recém
saídos do forno, exalando um cheiro maravilhoso de biscoito com gotas de
chocolate, e uma tigela com rabanetes. As pessoas ali, essa era a ordem, só
podiam comer os legumes. Como os participantes sabiam se tratar de um
teste, aguentaram firme — embora, pelas câmeras, os pesquisadores tenham
visto alguns quase sucumbirem, pegando o doce nas mãos, cheirando,
salivando.   
Ao segundo grupo, a ordem era justamente o contrário: só podiam comer os
biscoitos — o que, convenhamos, não é nenhum sacrifício. Depois desse teste
inicial, as pessoas ali receberam uma folha com a missão de resolver um
problema, uma charada, que, no fundo, era absolutamente insolúvel.
Resultado: as pessoas que comeram o biscoito conseguiram ficar, em média,
dezenove minutos quebrando a cabeça, tentando desvendar o enigma. As
pessoas que comeram o rabanete aguentaram, mais ou menos, oito minutos.
Conclusão dos pesquisadores: a força de vontade, que as pessoas precisaram
usar para resistir ao biscoito, as deixou debilitadas; é como se tivessem feito
esgotar a paciência, a perseverança etc. Força de vontade, portanto, seria um
recurso limitadíssimo e que deveria ser usado com moderação.

Para mostrar como isso é uma tremenda desinteligência, conto uma


experiência que eu mesmo tive e que ilustra muito melhor o que é o ser
humano.

História de amor em Barão de Melgaço 

Já fui pároco em Barão de Melgaço, no Pantanal matogrossense. Estive lá por


onze anos. Era reitor do Seminário em Várzea Grande e todo final de semana
saía, num Gol quadrado, sem ar, vencendo poeira e lama, rumo à pequena
Barão. Mas, antes de ir à história, abro parêntese para um pormenor da
geografia pantaneira. 

Na época das chuvas, das cheias, o Pantanal fica alagado e as cascas das
árvores, as folhas etc. que caem no solo, apodrecem. Na época da seca, essa
maçaroca toda se transforma num pó, bem fininho, muito semelhante ao talco.
Ora, quando se bate o pé nessa camada, ocorre um espetáculo tremendo. O
pó imediatamente sobe e forma uma nuvem. Quem quer que passe numa
estrada dessas sabe melhor que ninguém o valor da expressão “comer
poeira”. 

Digo isso pois numa das comunidades que eu atendia, rio abaixo, chamada
Porto Brandão, havia um rapaz que fazia de um saco de arroz, desses de
cinco quilos, uma bolsa, em que colocava um punhado de roupas, e, com ela
nas costas, sob um sol de rachar mamona, se punha na estradinha rumo a
Barão de Melgaço. Três horas de caminhada, margeando o Rio Cuiabá. Três
horas de caminhada na estradinha de pó, sob nuvens de poeira.

Quando ele chegava na cidade parecia um monstro. Certa feita, passando de


carro, vi a criatura e exclamei admirado: “Que situação, Fulano!”. Ele me disse,
tranquilo: “Nada! Agora vou ali na casa do meu amigo, me banho, coloco
perfume, roupa nova, está aqui, ó — mostrou a sacola —, e vou namorar”.
Perguntei: “Pelo amor de Deus, rapaz, não é muito pesado? Não é um preço
grande demais para namorar?”. “Padre — disse ele —, nada é pesado para
quem ama”. 

Aí está tudo. É o aforismo de Nietzsche: “Se você tem um porquê, aguenta


qualquer como”. O porquê deste rapaz era sua amada. Então, para encontrá-
la, ele suportava essas circunstâncias, a lonjura, o calor, a poeira, a
humilhação. Ele tinha um objetivo, um sentido. É assim que funciona a alma
humana [1]. E é isso o que a pesquisa dos rabanetes e biscoitos parece
ignorar. É evidente, senhores cientistas, que uma pessoa não vai se dedicar a
uma missão estressante sem que esteja vendo claramente uma razão, uma
finalidade, um porquê. 

Inteligência, o farol da vontade

Isso tudo quer dizer que, para realizar aquele ato de vontade, aquela saída da
caverna, ou, melhor dizendo, a fuga das telas, é preciso ter um objetivo. Mas,
por outro lado, esse objetivo depende de um ato da nossa inteligência. Na
alma humana, e isso não vale só para os cristãos, pois se trata da estrutura
natural do ser humano, existe uma coisa chamada intelecto. Por causa disso,
existem conhecimentos e experiências cognitivas humanas que nenhum
animal, nenhum computador nunca, jamais irá reproduzir: a experiência da
autoconsciência; aquela sensação de compreender alguma coisa, seja numa
pregação, seja na leitura de uma obra literária; aquelas intuições
ou insights que tiram da nossa boca, involuntariamente, um “nossa!”,
expressão natural daquele maravilhamento de que falava Aristóteles. 

E é dessas experiências que deriva o amor, pois, conforme não me canso de


repetir: ninguém ama aquilo que desconhece. Então veja: é preciso deixar o
mundo falso para conhecer a verdade, pois, conhecendo-a, você vai amá-la e,
por amá-la, assim como o moço de Porto Brandão, vai buscá-la, não importa
quais as circunstâncias, o como.  

Para se livrar da escravidão digital, portanto, é preciso esse ato de


inteligência, essa contemplação da verdade. Porém, uma das maiores
tragédias ocasionadas pelo mundo digital é exatamente a imbecilização, a
burrificação do homem. Experiências já antigas, dos anos 50 e 60, ainda no
advento da televisão, mostravam que crianças que passam o dia inteiro diante
das telas desenvolvem menos a inteligência. Isso acontece, vale a pena
repetir, porque o intelecto humano, o menos potente de todos — acima está o
de Deus e o dos vários anjos —, depende do corpo, depende do cérebro. O
cérebro, por sua vez, precisa ser estimulado por realidades e, com o vício das
telas, ele só tem recebido simulacros de realidade — que vão originar, quando
muito, simulacros de inteligência. 

Então faça o exercício: tire o celular da sua vida, exceto nas ocasiões
realmente necessárias, e vá passear num parque. Se não tem parque na sua
cidade ou você não sente segurança para frequentá-lo, vá, aí mesmo no seu
prédio, observar as árvores, uma folha, as nuvens. Ou, mais fácil ainda, vá até
a geladeira, pegue uma maçã e veja, quem sabe pela primeira vez na vida, os
seus detalhes, os seus matizes, o seu brilho, a sua textura. Saia, vá ver o
mundo! Caminhe pelas ruas, fale com pessoas, sem pressa. Chame sua mãe
para conversar, pergunte sobre sua vida e a ouça com todo o interesse, o
tempo que for preciso. 

É muito oportuno aquele conselho do Jordan Peterson: “Erga a cabeça, ponha


os ombros para trás, abra os olhos”. Enxergar as coisas é condição necessária
para nossa inteligência funcionar. O seu cérebro foi feito para entrar em
contato com o mundo. E não precisa ser contemplações sublimes de
realidades místicas. Comece com coisas mais humanas, mais básicas.
Comece olhando para o seu pé. Veja seu formato, suas belezas e
imperfeições, seu funcionamento. Há quanto tempo você não olha para o seu
pé?

Para os pais, fica o apelo: pare de educar os seus filhos com telas! Claro, isso
implica que você precisará se doar mais. E esse é o problema. As pessoas
muitas vezes não querem tirar a tela da mão da criança porque, no lugar,
sabem que precisarão doar-se a si mesmas, doar o seu tempo, a sua atenção.
Mas, pai, mãe, acreditem: vai fazer bem para você. Para você e para a
criança. Olhe no rosto do seu filho, enquanto ele brinca como as crianças
sempre brincaram, no mundo real, com coisas reais, em contato com a
natureza, com as pessoas. 

Depois que você voltar a se acostumar às experiências humanas mais


simples, no entanto reais, pode, numa segunda fase, se abrir a experiências
maiores, mais edificantes, através da grande literatura. Os grandes escritores
são aqueles que conseguiram captar e nomear experiências humanas
fundamentais, até ali indizíveis, impossíveis de serem reproduzidas e
partilhadas. Ora, na medida em que lemos os grandes clássicos, vamos como
que nos alfabetizando nesse vocabulário, nesse dicionário das experiências
humanas e, por consequência, vai se tornando mais aguçada a nossa
percepção da realidade e maior a nossa capacidade meditativa [2]. E
conforme percebemos mais e meditamos mais, ficamos mais inteligentes. E
nossa inteligência é que vai guiar a nossa vontade, que é potência cega, para
sairmos da caverna moderna e iniciarmos o caminho rumo àquilo que
queremos ser, o nosso sentido, a nossa causa final.

AULA 09

“Órfã na Janela”
No belo poema “Órfã na Janela”, Adélia Prado fala das “saudades de Deus”. Sua
experiência, descrita em versos belíssimos, lembra-nos por que só o ser humano
é capaz de fazer poesia. 

A partir desse texto literário, Padre Paulo Ricardo mostra como a cura para as
angústias, sofrimentos e desilusões próprias do homem, é necessariamente
espiritual — por mais ajuda que nos dêem os fármacos e os psiquiatras.
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A cura do corpo

Nas últimas aulas, temos nos esforçado para deixar bastante claro que a
escravidão digital não pode ser explicada unicamente pelo funcionamento do
cérebro humano. Temos feito todo um trabalho pedagógico — que envolve
repetição e abordagens diferentes para alcançar todos os tipos de alunos —
para demonstrar que o ser humano é corpo, sim, mas que é igualmente alma,
e que a alma não é alguma coisa que se possa conhecer fazendo testes com
pombos ou colocando a cabeça de um homem no scanner. 

Ao mesmo tempo, temos também caminhado no sentido de entender qual é a


cura. Mas, antes de prosseguir nessa marcha, vamos parar para compreender
do que ela se trata.

Imagine um tal Joãozinho, pessoa concreta, sujeito com data de nascimento,


com uma compleição física, com uma herança genética, com certos hábitos
etc. Pois bem, um médico recebe o Joãozinho, que se queixa de dores, no seu
consultório. Ora, esse médico estudou nos manuais de medicina aquilo que,
segundo seus pares, é uma pessoa razoavelmente saudável. Mas, de onde
eles tiram esse modelo, esse ideal de saúde? 

A medicina não pode dar o braço a torcer, mas, na prática, ela supõe uma
inteligência que criou as coisas, dentro de uma lógica, de um funcionamento
considerado excelente. É absolutamente impossível fazer medicina sem ter, in
the back of your mind, no fundo da sua mente, essa realidade: a saúde do
corpo humano funciona a partir de um padrão inteligente, pensado por alguém.

Segredo: nós, cristãos, sabemos que esse padrão foi pensado por Deus. E
sabemos que ele deriva daquilo que podemos chamar essência ou natureza
humana. Nós, cristãos, ainda sabemos que essa natureza humana perfeita
não é somente uma essência abstrata. Existe uma realidade concreta,
histórica, que é Jesus Cristo. O homem, como Deus o pensou, existiu nesse
mundo. E ainda existe, no Céu. 

E isso, esse pressuposto de um modelo excelente, é assim tanto para se


compreender a saúde do homem quanto a do macaco, da minhoca e do
protozoário. Compreender como funciona a fisiologia de qualquer desses
seres implica que se admita a existência de um padrão inteligentemente
planejado.

A cura da alma

Acontece que nós, neste curso, não estamos diante de um fenômeno


meramente fisiológico. Se estivéssemos estudando o estômago, o pâncreas
ou a corrente sanguínea, poderíamos investigar a cura tomando como base,
como modelo, o padrão de funcionamento do estômago, do pâncreas ou da
corrente sanguínea dos macacos, dos pombos ou dos ratinhos. Se
estivéssemos estudando algo que se restringisse ao cérebro, mesma coisa. 

No entanto, vale repetir, existem realidades humanas, e exclusivamente


humanas, que fogem absurdamente do padrão animal. Claro que mesmo entre
os bichos encontramos diferenças. Em matéria cerebral, o chimpanzé é
diferente do gorila, que é diferente do mico, que é diferente do pombo de
Skinner. Todavia, como já tivemos a chance de provar com vários exemplos,
entre qualquer desses animais e o ser humano há um abismo — como o que
há entre os homens e Deus. 
Para mais um exemplo, veja a experiência musical, uma coisa simples, do
nosso dia-a-dia. Não há música na natureza. Aquilo que os pássaros fazem,
por mais agradável que seja, não é música no sentido verdadeiro da palavra.
Só nós, seres humanos, podemos fazer música — uma ordenação consciente
de sons. E só nós podemos desfrutá-la. Só os seres humanos são capazes de
ouvir uma sinfonia, uma sonata ou, mais simples, um Salmo, participar da
tensão que a música ocasiona e, no fim, aliviar-se, gozando de um bem-estar,
de uma sensação de que tudo fez sentido, de que estamos finalmente em
casa. 

Poesia medicinal

Do mesmo modo, só os seres humanos são capazes de fazer e de


compreender poesia. Leiamos os seguintes versos da poetisa Adélia Prado,
de seu poema Órfã na Janela:

Estou com saudades de Deus,


Uma saudade tão funda que me seca.
Estou como palha e nada me conforta.
O amor hoje está tão pobre, tem gripe,
Meu hálito não está para salões.
Fico em casa esperando Deus,
Cavacando a unha, fungando meu nariz choroso,
Querendo um pôster dele, no meu quarto,
Gostando igual antigamente da palavra crepúsculo.
Que o mundo é desterro eu toda vida soube.
Quando o sol vai-se embora é pra casa de Deus que vai,
Pra casa onde está meu pai.
Que animal tem a capacidade de não só perceber nossos sentimentos mais
profundos como também de traduzi-los em palavras, trazendo-os à tona,
tornando-os claros, translúcidos à nossa consciência? Veja como a artista
consegue trabalhar as palavras criativamente de modo a revelar os meandros
de nossa alma. Adélia diz, depois de afirmar ter saudades de Deus: “Estou
como palha”. O que tem a ver a saudade com a palha? Ora, é evidente que
ela não estava fisicamente como palha. Mas a palha evoca certas sensações,
certas imagens. A palha é seca, é a erva que perdeu a verdura, o viço. Eis
como estava o coração da escritora. Haveria jeito melhor de nos comunicar
seu estado de espírito? E nós, já não sentimos algum dia nosso coração como
palha? 

“O amor hoje está tão pobre, tem gripe, / Meu hálito não está para salões”. Um
amor gripado. Não há dias em que sentimos nosso amor indisposto? Não há
aqueles dias em que não queremos amar ninguém? Em que só queremos ficar
sozinhos? Não há dias em que nosso hálito — ou nossas palavras — não está
para salões, para encontros, para o próximo, pois sabemos que lhe
causaremos desconforto, que o adoeceremos?

Depois ela diz querer “um pôster dele no meu quarto”. Quem é esse “ele”? Ela
começou dizendo estar com saudade de Deus. Deus é invisível, não tem
rosto. Mas as meninas adolescentes, antigamente, colecionavam pôsteres dos
seus artistas favoritos. Não seria isso uma oração, um pedido para que Deus,
de quem ela sentia saudade, mostrasse a ela o seu rosto? Não seria um jeito
curioso de uma jovenzinha rezar?

Adiante, ela diz: “Gostando igual antigamente da palavra crepúsculo”. Ela


gostava da sonoridade do vocábulo ou do entardecer mesmo? O texto não
deixa claro. Mas importa que, tendo já nos conduzido imaginativamente ao cair
da tarde, ela arremata: “Quando o sol vai se embora é para a casa de Deus
que vai”. O sol foi para Deus e ela ficou. O sol foi para onde está o seu pai, a
quem ela, órfã, tanto ama. Mas ela não foi. Está na janela, contemplando o
horizonte, tomada de saudades, esse sentimento tão humano. Saudades do
seu pai da Terra e do seu Pai do Céu.

À carne o que é da carne; ao espírito o que é do espírito

Tudo isso é para dizer que está aí o caminho da cura. Os psiquiatras e seus
remédios podem ajudar, mas a cura para essas angústias humanas, para os
sofrimentos humanos, para as desilusões humanas, para essas dores que
ferem nossos corações, como a saudade de Deus, como a saudade de nossos
pais falecidos, a cura para essas experiências, que são espirituais, deve
também ser espiritual. É como diz o Nosso Senhor na Última Ceia: “Eles estão
no mundo, mas não são deste mundo”.

AULA 10

O heroísmo dos que amam


Onde está o grande diferencial dos santos e santas da Igreja? Como explicar o
seu heroísmo? A resposta está no amor que os movia e arrebatava, tornando-os
capazes de fazer o que, humanamente, não nos parece possível. 

Isso acontece porque, sobre a natureza humana, já superior à de todos os outros


animais, atua ainda outra força, mais elevada que tudo o que existe no mundo
criado. É sobre ela que o Padre Paulo Ricardo começa a falar nesta terceira e
última parte de nosso curso.
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Recapitulando

O cérebro

Até aqui nosso curso se concentrou em duas etapas. Num primeiro momento,
voltamo-nos para o cérebro a fim de entender por que motivo e por quais
meios ele está nos deixando no estado de adicção que se observa nos usuário
da internet.

A conclusão foi que nosso cérebro, criado para um estado de privação,


equipado com substâncias, como a dopamina, que nos motivam à caça sob a
promessa de recompensa — que é a sobrevivência mesma —, está hoje
experimentando um estado de abundância. O ambiente é outro, mas o cérebro
é o mesmo. Efeito disso é o tédio, e a busca frenética por prazeres imediatos
surge como suposto remédio.

Conhecendo perfeitamente esse mecanismo cerebral, as redes sociais e as


plataformas, tomando lições com a indústria pornográfica, passaram a nos
oferecer infinitamente essas recompensas fáceis. Acontece que, devido a
estratégias de defesa do próprio cérebro, o internauta, como um cracudo, vai
carecendo de doses cada vez maiores para um “barato” cada vez menor. Eis o
caminho, do ponto de vista físico, para a escravidão digital.

A alma

O cérebro, pois, é a causa física, corporal do problema. No entanto, na


segunda etapa do curso, buscamos indicar, pelos mais variados exemplos,
incluindo a leitura de poesia, como o ser humano não se resume ao corpóreo,
ao físico, ao cerebral. Tentamos demonstrar como há em nós, homens, uma
realidade que nos distancia substancialmente dos animais, sejam eles
macacos, pombas ou ratos. Buscamos provar, não por explicações
doutrinárias, mas por experiência direta, como há em nós uma realidade que a
tradição, desde os gregos, costuma chamar de alma.

Nota: é muito importante que você, aluno, tenha compreendido bem esses
dois pontos. Caso contrário, aconselho fortemente que assista de novo às
aulas. Muitas vezes, diante de um livro que nos interessa, fazemos uma
primeira leitura, mais rápida, para nos certificar do assunto, e, em seguida,
relemos de modo mais lento, mais meditado, para compreender aspectos
menos evidentes a um primeiro olhar. Recomendo o mesmo procedimento
com os cursos do site.

A inteligência e a vontade

Quanto à saída do problema, vimos ser difícil, não raro impossível, alcançá-la
por vias cerebrais. Pois isso dependeria de uma mecanismo natural de
frenagem, no lobo central, que o acesso de dopamina danifica ou mesmo
destrói. Daí que, conforme explicamos, precisemos recorrer a um freio
infinitamente mais seguro e mais potente, que está para além e acima do
cérebro e seus neurotransmissores: a vontade.

Admitida a hipótese, mil vezes atestada, de que temos alma, precisamos


entender, na sequência, que justamente ela, a alma, nos capacita a recusar o
prazer e heroicamente buscar a dor. Note que esses dois movimentos são
completamente impossíveis aos animais. Para um animal, o prazer é sempre
bom; e a dor, sempre ruim. Invariavelmente. O ser humano, porém, tem em
sua alma uma faculdade chamada inteligência. A inteligência é aquilo que
torna o homem capaz de entrever o ser das coisas por debaixo de suas
aparências. A inteligência, portanto, é capaz de mostrar ao homem que
determinada realidade, embora aparentemente prazerosa, é ruim; ou que
determinada realidade, embora dolorosa, é boa.
A inteligência é, pois, a faculdade da nossa alma que ilumina aquilo que
chamamos de vontade. A vontade é o acelerador que, guiado pela inteligência,
nos leva para aquilo que é bom — seja prazeroso ou doloroso — e é também
o freio que nos evita o caminho do mal.  E é esse mecanismo — mais perfeito
que o cerebral — que permite ao homem desenvolver as virtudes, outra
realidade absolutamente inconcebível aos bichos.

Dentre as virtudes, há uma, fundamental para nós neste curso, que é a


temperança. É a temperança, como o nome sugere, que dá o tempero de
nossa vida. Ora, na gastronomia sabemos que o bom tempero é o equilibrado:
nem muito doce, nem muito amargo. Isso também se aplica às questões
morais: os prazeres nos são necessários, mas, às vezes, a verdade e a
justiça, realidades que a inteligência nos revela, nos levam a dissabores — e
devemos aceitá-los com bom gosto.

Essa virtude do tempero é fundamental para o ser humano porque,


diferentemente dos animais, nossa busca pelo prazer é ilimitada. Um macaco,
com sede, bebe água e se sacia. Um macaco, com fome, come e se contenta.
Um macaco, no cio, copula e se satisfaz. O homem, não. O homem, que foi
feito para aspirar coisas maiores, é capaz de beber, comer e fazer sexo até a
autodestruição. Isso porque nós temos, pulsando no nosso peito, o já
mencionado cor inquietum, de que falava Santo Agostinho; porque nós temos,
na nossa alma, a sede de sentido, de que falava Viktor Frankl. Nós homens
nunca estamos satisfeitos neste mundo pois fomos feitos para um outro, mais
alto, mais perfeito. E nossa alma, mesmo que ignoremos sua existência,
anseia pelo verdadeiro lar, onde se escondem os alimentos que realmente
podem satisfazê-la.

A psicanálise, que não admite a alma, costuma chamar a nós, homens,


de animais faltosos, concordando que somos o único dos bichos que jamais se
contenta. O problema é que, recusando teimosamente as realidades da alma e
de Deus, terminam concluindo que o homem sente essa perpétua insatisfação
não por estar acima das feras, aspirando outras alturas, mas por estar abaixo,
por sermos uma menos perfeita criatura do acaso. Como o diagnóstico errado
sugere o tratamento ineficaz, quem é que pense assim termina sugerindo ao
homem, doente da alma, um paliativo para o cérebro. Tentam sarar uma ferida
do espírito com um remédio para a carne. 

De novo: não se trata de um discurso contra a psiquiatria. Como já dissemos,


ela é necessária em muitos casos e eu mesmo já testemunhei pessoas
decolando na vida espiritual depois de resolver problemas de ordem
psiquiátrica, com base em fármacos e terapia. O problema não está em tratar
o cérebro com remédios; o problema está em reduzir o ser humano e todas as
suas dores, anseios e angústias ao cérebro, a fenômenos neuronais,
moleculares e endocrinológicos.

O amor que liberta

São José de Anchieta saiu das Canárias para o litoral brasileiro, terra bruta e
inculta, quase inteiramente desconhecida. Ele veio, porém. De São Vicente,
olhava o paredão montanhoso da Serra do Mar, com seus picos sumidos por
detrás do nevoeiro. Tinha vontade de superá-lo, escarpa por escarpa. Afinal,
ali em cima havia almas, almas sedentas do Deus vivo que ele conhecia e
sabia anunciar. Então, ignorando o difícil da rota, o perigo das matas, as
peçonhas, as doenças, os selvagens, ele foi, subiu, abriu caminho às picadas
até o Planalto de Piratininga e, em terras bravias, pôs-se a cumprir sua
missão: trazer aquela gente para Cristo.

Que mecanismo meramente cerebral explica uma tal atitude? São José de
Anchieta, como tantos outros santos e santas, fez o que fez movido de amor,
um amor que inflama e arrebata, amor que nos comove e inspira aos mais
incríveis sacrifícios. 

Mas de onde vem esse amor? Ele começa na inteligência. Como já disse
tantas vezes, é conhecendo a verdade que passamos a amá-la. É esse amor
pela verdade o que nos capacita a renunciar os prazeres e abraçar,
amorosamente, as cruzes. Mas é claro que não precisamos sair das nossas
misérias atuais e já começar com obras como a de São José de Anchieta. A
verdade também nos leva a amar coisas mais simples, mais do dia a dia. O
trabalho, por exemplo. Quem já não viu um trabalhador empenhado, que ama
o que faz, só percebendo, já alta noite, que passou o dia inteiro sem comer.
Teve fome, sentiu um desconforto, mas o amor pelo trabalho, pelo bem que
produz, foi maior, superou a dor. Claro também que, conforme nos
aprofundamos na verdade e a vemos, pela luz da inteligência, com maior
nitidez, somos capazes de amar realidades, por assim dizer, menos
comezinhas, como a família, a pátria, as almas, o próprio Deus.

Nós somos a imagem e semelhança daquilo que amamos. Os santos,


iluminados pela luz da inteligência, foram capazes de amar profundamente a
Deus. E nós temos que seguir-lhes o exemplo. Temos que também deixar a
luz da verdade iluminar e aquecer nossos corações para que deixemos de
amar mediocridades, baixezas e mesquinharias, pois quem ama o medíocre é
medíocre, quem ama o baixo é baixo, quem ama o mesquinho é mesquinho.
Por outro lado, aquele que, como os santos, ama o sublime e o eterno,
também será sublime e não passará. Quem ama o infinito alarga infinitamente
o coração e é levado a extremos de caridade, atravessando mares, subindo
montanhas, dedicando o próprio sangue pelo Amado. 

É esse o caminho da graça que nos livrará da escravidão digital. 

FIM

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