Você está na página 1de 260

1

NATHAN SCHWARTZ SALANT

A RELAÇÃO1
PSICOLOGIA, CLÍNICA E TERAPIA DOS CAMPOS INTERATIVOS. DINÂMICA
DO CASAL À LUZ DA METÁFORA ALQUÍMICA

Editora:
A Biblioteca de Vivarum

1 Tradução livre da obra em Italiano feita pela Ms. Albertina Laufer, para fins de estudos exclusivamente
pessoais. NATHAN Schwartz Salant. La relazione: Psicologia, Clínica e Terapia dei campi interativi.
Dinamiche di coppia alla luce della metafora alchimica. Milano. La biblioteca di VIVARUM. 2002.
(SALANT, Nathan Schwartz. A relação: Psicologia, Clínica e Terapia dos campos interativos. Dinâmica do
casal à luz da metáfora alquímica. Milão: Ed. A Biblioteca de Vivarum, 2002).
3

Introduzindo o conceito de campo interativo, Nathan Schwartz-Salant mostra


que os estados mentais que, secretamente minam as nossas relações privadas ou
públicas, podem se trazidas à consciência, tornar-se fatores positivos de
transformação das próprias relações.
Também, à luz da metáfora alquímica, já utilizada eficazmente por C. G.
Jung, no seu texto fundamental referente à relação analítica, intitulada “Psicologia da
relação, ilustrada com o auxílio de uma série de imagens alquímicas” Nathan
Schwartz-Salant explica como o processo transformativo pode ser colocado em
movimento, uma vez que os dois componentes do par tenham aprendido a penetrar
no campo interativo que os envolve na relação. Isso permite a eles descobrir os
estados ou áreas ‘psicóticas’ que, segundo Nathan Schwartz-Salant, estão
presentes em suas mentes, assim como na mente de qualquer indivíduo.
Este processo de exploração incrementa a compreensão mútua, fortalece a
relação e libera a criatividade. Desse modo, os indivíduos, na relação, são capazes
de ultrapassar as atribuições da culpa pelas ‘coisas erradas’ percebidas como
perpetradas pelo outro e que, muitas vezes, são as causas dos conflitos não
resolvidos entre eles. Reconhecendo a subjetividade e os estados mentais que
afetam suas reações recíprocas e a existência de uma ‘terceira área’ que os afeta,
eles são capazes de transformar uma relação difícil ou suficientemente aceitável, em
uma experiência apaixonada e emocionante.
Jung interpretou os estudos alquímicos como uma projeção obscura sobre a
matéria dos processos psíquicos que aconteciam nos sujeitos – os alquimistas
praticavam tal disciplina pseudocientífica. Fenômenos descritos pelos alquimistas –
no caso a coniunctio, ou o solve e coagula, etc. – devido ao misturar-se dos agentes
químicos entre si e ao efeito transformativo desse produto sobre a prima matéria,
foram percebidos por Jung como uma metáfora da relação. Partindo destes estudos,
o autor deste livro dá novo impulso a esta visão.
Enriquecido por numerosos exemplos clínicos, o texto nos induz a uma
profunda reflexão sobre o tema e é fonte de inspiração para quem deseja empenhar-
se no mistério da relação e da formação dos campos interativos.
Nathan Schwartz-Salant, após o doutorado em Medicina na Universidade de
Berkeley, na Califórnia, obteve em 1969, junto ao Jung-Institut de Zurique, Suíça, o
diploma de Analista Junguiano. É o diretor do Centro de Perspectivas Analíticas em
Nova York e tem uma prática de psicoterapia em Nova York e Princeton, Nova
Jersey. É o autor de numerosas publicações, textos clínicos e livros, dos quais, A
Biblioteca di Vivarum publicou Narcisismo e transformação do caráter borderline:
visão e terapia.
4

SUMÁRIO

Prefácio...........05
1. A alquimia e a transformação das relações..........08
2. Ativação da experiência de campo..........29
3. Núcleos psicóticos..........47
4. Dinâmicas do campo interativo..........79
5. O poder transformador do campo interativo..........99
6. Visão alquímica da loucura..........120
7. O mistério central do processo alquímico..........147
8. A atitude alquímica para a transformação da relação..........170
9. União, morte e ressurreição do Self..........193
10. Apreciar o mistério da relação..........223
Bibliografia..........237
Anexos ..........243
5

PREFÁCIO

A relação considera a transformação do Self – tanto no plano individual,


quanto na interação com os outros – unindo uma visão científica do desprendimento
da personalidade, na perspectiva das visões antigas e imaginárias da alquimia. A
partir do momento em que as atitudes alquímicas se diferenciam radicalmente dos
métodos científicos modernos que, com um sucesso tão evidente, os substituíram, é
impossível não enfrentar o problema sobre como um trabalho referente às relações
possa usufruir dos modelos misteriosos e da aparência irracional do pensamento
alquímico, tomando-os efetivamente por base.
O processo mais anunciado e, talvez também definitivo da alquimia, foi a
tentativa de transformar uma substância de base como o chumbo e o mercúrio, em
um metal precioso como o ouro ou a prata. Não sabemos como a tradição alquímica,
que durou mais de dois milênios antes de entrar em descrédito, nos últimos três
séculos da ciência moderna, estivesse dedicada às áreas sutis da experiência
humana situadas na região que se encontra entre a mente e a matéria, áreas que a
ciência quase negligenciou e descartou.
De fato, o pensamento alquímico está repleto de metáforas estranhas e de
imagens complexas que fornecem insights iluminadores, propriamente sobre o modo
com o qual se pode desenvolver e transformar um processo entre dois indivíduos.
No seu reconhecimento da interação vital entre ordem e desordem e do potencial
transformativo do caos, a alquimia pode auxiliar-nos a aceitar e a apreciar as áreas
de intenso caos no interior da mente, áreas que, em trabalhos precedentes, eu
chamei ‘núcleos psicóticos’.
O pensamento alquímico se diferencia das abordagens modernas de
desenvolvimento da personalidade e das relações, abordagens essas que tendem a
evidenciar a causalidade e embasar a validade da experiência e dos resultados
sobre a sua repetição. Por exemplo, enquanto as abordagens modernas podem
concentrar-se sobre os aspectos, tais como as falhas do desenvolvimento e o modo
com que essas falhas são revisitadas nos assim chamados processos de
transferência e contratransferência, o pensamento alquímico aprecia a profundidade
e o mistério da relação, permitindo-nos fazer a experiência de um espaço animado,
repleto de significado, contendo seu próprio processo.
Neste livro pretendo usar o pensamento alquímico no contexto da perspectiva
científica da psicoterapia, para chegar a uma compreensão do lado escondido e
misterioso das relações, porque experimentar a sua profundidade implica abraçar
uma ordem de pensamento e percepção diferentes. De modo particular, pretendo
explorar o conceito alquímico do reino do corpo sutil existente como ‘terceira coisa’,
ou ‘terceira área’ entre os indivíduos.
6

C. G. Jung descobriu que o antigo simbolismo da alquimia é particularmente


adequado para compreender as relações complexas criadas pela psique consciente
e inconsciente do analista e do analisando. Eu utilizei a obra de Jung na minha
tentativa de compreender a natureza de uma ‘terceira área’ criada por duas pessoas
em relação que, por sua vez, pode ter um efeito transformativo sobre a estrutura
interna de cada um dos dois indivíduos. O verdadeiro mistério da relação não está
tanto em procurar compreender o que se está projetando, em que coisa ou sobre
quem, quanto em explorar a ‘terceira área’, o ‘reino intermediário’ que foi o tema
central da ciência antiga, em geral, e da alquimia em particular.
Estudando o simbolismo e as práticas da alquimia, cheguei a reconhecer e a
apreciar os estados de caos extremo (um caos que contém um tipo de ordem
secreta), que não somente vive no interior de todas as pessoas, mas que também
define o aspecto importante do processo interativo entre os indivíduos que se
relacionam. Ao compreender que este processo interativo tem a sua própria vida, eu
constatei também que o caos que está no seu coração, constitui a verdadeira vida
das relações. Ao invés de considerar uma relação como uma ação recíproca entre
duas pessoas, ou como uma forma de associação, eu comecei a perceber uma
relação como - para usar uma expressão matemática - um campo ativado entre
ambas que, no mais misterioso dos modos, movimenta e dá forma aos seus
processos em ambos os planos, tanto individual quanto comum, como se tais
processos fossem simples ondas sobre um vasto mar.
Compreender o mistério da relação exige um modo de pensar diferente das
abordagens científicas modernas, porque o mundo intermediário, do qual o indivíduo
pode (de modo consciente ou inconsciente) fazer experiência, requer a abordagem
subjacente à base das culturas anteriores ao novo paradigma da ciência e da
causalidade que emergiram a partir do século XVI e XVII. Foram precisamente,
estas áreas intermediárias - por exemplo, aquelas entre mente e matéria - que
atraíram a minha atenção para a alquimia como modo de compreender as relações.
A antiga ciência alquímica foi a melhor guia que encontrei para este tipo de lógica
‘primitiva’.
O interesse pela alquimia me ajudou enfrentar as provas nas minhas
relações, às quais me submeteram os numerosos analisandos na minha prática
analítica, o meu matrimônio, os meus filhos e a minha própria vida. Certamente, tudo
o que este livro tem para oferecer sobre as relações contemporâneas, foi
profundamente inspirado pelo trabalho com os meus pacientes, cujo material clínico
- continuamente localizado sobre a complexidade e sobre a vulnerabilidade dos
movimentos entre o relacionamento pessoal e uma forma de loucura que, como um
Deus invasor das antigas culturas, envolve o pensamento e a coerência emotiva -
constitui a substância de grande parte deste livro. Sou muito grato e eles pela sua
integridade, pelas suas implicações e, especialmente, pelo seu ensinamento.
Quero também expressar a minha gratidão pela participação dos Estudantes
do Seminário sobre Alquimia, junto ao Centro de Perspectivas Analíticas de Nova
York. A natureza estimulante das discussões, neste seminário, me levou a uma
7

compreensão mais profunda e revelou, nas imagens e textos alquímicos, os


significados importantes, muitos dos quais foram utilizados neste livro.
Ademais, comoveu-me profundamente a ajuda relacional que recebi durante a
construção desse livro. Roger Riendeau, escritor e editor profissional, além de ser
docente, consultor e pesquisador junto à universidade de Toronto, se tornou, ele
mesmo, uma espécie de Alquimista no decorrer da edição deste livro. Confrontando
o meu manuscrito original, aprendeu muitíssimo sobre os mistérios do caos. De
várias formas, eu obtive vantagem devido ao meu envolvimento no campo interativo
que sua energia inexaurível e sua inteligência ajudaram a constelar entre nós. O
trabalho editorial foi valorizado com generosidade e vitalidade também por Geraldine
Fogarty, cuja habilidade crítica de individuar, colocar em discussão a ambiguidade e
a obscuridade das ideias, ações, suposições e da construção da escrita, clarificaram
notavelmente, a perspectiva e a estrutura deste livro. Sou muito grato a ela pela sua
amizade e pelo seu empenho no decorrer do livro. Tenho uma grande dívida de
gratidão também pelo meu amigo James Haba que leu e releu atentamente o
manuscrito. A sua contribuição é algo que guardo profundamente no coração, e o
seu empenho tornou este livro muito melhor daquilo que, caso contrário, teria sido.
Exprimo a minha gratidão, também à Van Waveren Foundation, pela doação que
muito auxiliou a financiar a edição deste livro.
Enfim, na relação existe um mistério que se pode conhecer somente através
da prova da intimidade, através da sabedoria e do modo de viver da pessoa com a
qual se interage continuamente. Minha mulher Lídia contribuiu para com este livro,
encontrando, muitas vezes, a maneira de exprimir as experiências infalíveis e as
ideias no estado embrionário. Mas, sobretudo, sem a minha relação com ela, eu hoje
não seria a pessoa que sou. Nem teria conseguido compreender os temas
apresentados neste livro, se não tivesse feito a experiência das provas e dos
insights que desabrocharam pelo fato de ter experimentado o sofrimento e a alegria
da nossa relação. Ela foi a minha guia principal no nosso processo ininterrupto, e a
ela dedico este livro.
8

A ALQUIMIA E A TRANSFORMAÇÃO DAS RELAÇÕES

EXPERIÊNCIA DO MISTÉRIO NAS RELAÇÕES

Nas relações em que estão envolvidos, todos fazem a experiência inevitável


do conflito dentro de si e quanto ao outro conflito que permanece, não obstante os
melhores esforços para resolvê-lo. A natureza e as origens desse conflito, sejam
elas sutis ou evidentes, permanecem geralmente subjacentes no equilíbrio que se
consegue manter em uma relação normal, sobretudo durante os estados iniciais. Um
indivíduo não é, necessariamente, a causa para que o outro se sinta ferido, irritado,
desprezado, não amado, ou outra dentre as inumeráveis emoções negativas
possíveis. E também, quando uma atribuição da causa ou responsabilidade pode ter
certo sentido, a tentativa de decidir quem tem razão, ou quem errou, ou então quem
está consciente ou quem está inconsciente, não consegue resolver o conflito e,
certamente, não consegue revelar o mistério.
Um exemplo comum das dinâmicas de tal conflito é a situação em que o
marido, dormindo o sono dos justos, ronca felizmente, enquanto a mulher, exausta
ao seu lado, continua a escutar o seu ronco, não consegue dormir e se sente
submetida à tortura. Entre o nível das causas físicas e o das soluções práticas que
uma situação dessas faz, de imediato, surgir na mente, se encontra o território onde
há uma espécie de conflito insano, pronto a irromper num momento qualquer. A
tendência natural é a de presumir que, de qualquer modo, alguém está errado. É o
marido que, deliberadamente, ronca tão fortemente para manter acordada e em
estado de constante desequilíbrio pessoal, a mulher que sofre? É a mulher que,
tendo simplesmente o sono leve, não aceita a necessidade vital de seu marido de
repousar no final de uma jornada cansativa? Qualquer que seja a resposta a esta
questão, negativa ou positiva, em definitivo é irrelevante.
Estas duas pessoas deveriam, em vez, adentrar em um nível mais profundo
da sua relação, num terreno que ambos compartilham, em que nenhum deles está
fazendo algo ao outro. Deveriam descobrir que compartilham, não somente uma
relação consciente, mas também inconsciente. Esta relação inconsciente pode ser
muito mais extenso e incluir bem mais do que a relação consciente. Se eles
conseguissem se empenhar juntos para explorar este nível mais profundo da sua
relação, entenderiam que o conflito entre eles é um mero fragmento de um modelo
de interação mais amplo, mais complexo e, definitivamente, mais significativo.
Para muitos casais é mais simples evitar explorar tais conflitos em nível mais
profundo, e suportam contínuas perturbações emocionais enquanto procuram
comunicar e se colocar na intimidade recíproca, de maneira a eles habitual. Mas,
esses estados conflituosos influenciam profundamente as relações, de modo que
podem facilmente passar despercebidos e negligenciados. O resultado é um abismo
crescente entre as pessoas, um declínio da confiança e da intimidade, uma redução
9

da vida sexual apaixonada e excitante e, sobretudo, uma completa ausência de


consciência de que a sua relação contém o mistério do crescimento individual e
comum. E sem esse mistério, o que lhes resta? Eles podem interpretar papéis
reciprocamente definidos, ou se forem psicologicamente sofisticados, podem dar
uma mão à relação recíproca com as projeções individuais. Mas eles não sentirão e
não conhecerão o mistério da paixão e da transformação que pode ser explorado e
descoberto no decorrer da sua relação. Assim, a relação reduz a paixão e se torna
pura rotina. Podem subsistir amor, empatia e atenção, mas uma sombra emanada
pela ausência de paixão e de significado faz com que ambos saibam ter escolhido
nadar em águas rasas e acomodar-se em uma situação de aparente segurança que,
na realidade, os limita.
Este livro pretende se dirigir a quem quer confrontar estas áreas normalmente
escondidas nas relações, a quem possui condições de caminhar para além da
atribuição de responsabilidade ou a preocupação de estar ‘certo’ ou ‘errado’, a quem
deseja reconhecer e acolher o mistério do crescimento dentro de si e das próprias
relações.
As tentativas de apresentar um sentido racional ao conflito crônico presente
nas relações normais, invariavelmente falham quando não sondam a profundidade
da psique humana para descobrir a natureza e a origem do conflito. No interior deste
reino mais profundo, pode existir, simultaneamente, estados mentais totalmente
contraditórios, tanto no interior de cada um, quanto na relação em si. Estes estados
contraditórios que indicam os aspectos doentios da psique (ver cap. 8), na realidade
anulam-se mutuamente, de modo que, ocupar-se com um estado destrói
completamente a consciência do estado anterior. Qualquer um que se coloca em
relação com uma pessoa que apresenta esses estados contraditórios, tenderá a
perceber este processo, a entrar em confusão, a retirar-se ou a sentir uma raiva
impotente. Mas até certo ponto, uma área de loucura similar é parte integrante da
existência de cada um. Abraçar as áreas de loucura da nossa psique e reconhecer o
modo pelo qual elas nos limitam, é um modo de descobrir o mistério de si e do outro.
Esta ‘loucura’ sutil se torna uma espécie de praia caótica: a relação se destina a
remar contra, a varrê-la continuamente e a estar conectada a ela.
O conceito de loucura é um conceito que amedronta, porque implica que o
indivíduo se encontra fora do controle: distorce a realidade, está subjugado por
reações compulsivas e por fortíssimas emoções, age destrutivamente diante do que
não o interessa mais, e tudo isso ao mesmo tempo em que presume estar
completamente sob controle. ‘Os núcleos psicóticos’ são sempre perigosos; mas se
forem reconhecidos e com a consciência do seu poder, são potencialmente
curativos. As áreas de loucura nos levam a confrontar continuamente com os confins
e as limitações pessoais e com a nossa consciência, e nos fazem repensar e
reformar, muitas e muitas vezes, as nossas atitudes. Quando não se acolhe a
própria loucura pessoal, qualquer aproximação quanto à compreensão das relações
se torna maçante e perigosamente repetitiva, ao mesmo tempo em que tende a se
tornar uma questão puramente técnica e racional. A loucura parece ser a nossa
melhor aliada para colocar restrições, diante da tendência perigosa e sem alma, de
10

um conhecimento utilizado para nos proteger do choque de novas experiências.


Quando aceitamos tais áreas, não resolvemos necessariamente os problemas nas
nossas relações, mas transformamos a nós mesmos e as nossas relações.
A transformação é um processo que nos é sempre muito difícil de acolher e
levar em consideração, enquanto a psique tende a retornar às suas formas mais
estáveis, tipicamente as mais antigas, aquelas experimentadas no cadinho do
tempo. As novas formas são instáveis e de consequência perigosa, enquanto podem
conduzir-nos a perder o sentido de identidade, a estar propensos às fortes emoções,
a tornar-nos suscetíveis ao querer do outro, de forma que pareça ameaçadora.
Assim, nas nossas formas constituídas de relacionar-nos, tendemos a operar dentro
de uma estrutura cômoda e predeterminada. Podemos ser bem educados; podemos
reconhecer alguns papéis; podemos agir de modo cortês ou rude. Por exemplo:
pode acontecer que os componentes de um casal se provoquem mutuamente em
público, mas educadamente, e neguem a possibilidade que este comportamento
assinale o seu desprezo escondido e o seu desejo de humilhar-se mutuamente, uma
vez que essa admissão desestabilizaria a sua relação. Todavia, procurar sondar sob
tais interações revela que o modo hostil de se comportar educadamente, na
realidade, serve para protegê-los dos níveis de envolvimento mais profundos e mais
perigosos. Nestes níveis mais profundos, os indivíduos deveriam assumir as
responsabilidades por aquelas áreas da sua psique, nas quais eles, não somente
abrigam o ressentimento e outros sentimentos negativos, mas onde estão
verdadeiramente fora de controle, isto é, loucos.
A transformação interna de uma relação pode começar somente com um
reconhecimento do fato de que nós estamos inconscientemente projetando sobre o
outro e, muitas vezes, deformando a realidade do outro ou a nossa própria
realidade. Através do processo de projeção, nós tendemos a diminuir a presunção
de conhecer realmente a natureza e a motivação da intenção do outro para conosco.
A realidade individual do outro desperta pouca credibilidade na nossa mente, mas a
coisa mais importante, a insondável natureza do outro não é nem sequer
considerada. Em outras palavras, por meio das projeções, nós conhecemos
somente fragmentos da verdade sobre o outro e, muitas vezes, negamos a essência
do seu ser espiritual. Portanto, quanto mais retiramos as projeções e reconhecemos
a realidade do outro, tanto mais cada um se aprimora e a relação entre as duas
pessoas é melhorada.
Mas, para sustentar e aprofundar o processo de transformação, nós devemos
ir para além do reconhecimento e da consciência das dinâmicas de projeção. Uma
possibilidade do gênero pode ser difícil, sobretudo, porque o pensamento
psicanalítico sobre as relações humanas se desenvolveu dentro dos modelos
científicos que consideram a projeção como um conceito chave. A partir do trabalho
de Sigmund Freud, no início do século XX, se postulou que o analisando projetava
os próprios conteúdos internos sobre o analista que, mediante o instrumento de uma
atenção constante, poderia colher a natureza da projeção. No interior desta estrutura
causal, se compreende que a interpretação da projeção desbloqueia e resolve os
acontecimentos evolutivos fracassados que fizeram parte da primeira infância do
11

analisando. A natureza exata desse processo é controversa, pois existem


numerosas ideias opostas sobre o modo como o indivíduo se desenvolve com
sucesso ou insucesso, tomando por base a natureza das suas experiências infantis.
Por exemplo, concentrar-se sobre certas carências na primeira infância sobre
as irrupções emocionais ou físicas no estado psíquico vulnerável da criança é uma
abordagem válida e útil para compreender a evolução pessoal. As crianças podem
sofrer especificamente pela falta de uma presença materna que poderia aliviar
angústias, ou genericamente, pela ausência de uma figura genitorial que poderia
opor-se às irrupções físicas e emocionais que, invariavelmente, privam a criança do
sentido de segurança ou de integridade. As carências e tais irrupções impedem a
criança de fazer a experiência de contenção do seu sofrimento, e por isso, quando
adulta, ela poderá sofrer de neuroses, como os distúrbios dissociativos, narcisistas
ou borderline, de distúrbios psicoides de personalidade e, em casos extremos, de
distúrbios psicóticos. O tratamento psicossomático procura criar um espaço de
contensão que torna possível a experiência dos estados psíquicos. Idealmente,
através da transferência, essas carências e ofensas primárias ao desenvolvimento
podem ser recapituladas, compreendidas e, sobretudo, revividas sem regredir às
defesas primárias; e, essencialmente, é possível que o desenvolvimento do
indivíduo encontre o seu caminho natural de expansão. Progredir a este grau requer
uma coragem incomum por parte do paciente e, muitas vezes, também por parte do
terapeuta.
O inconsciente pessoal, segundo a definição de C. G. Jung, é um reservatório
de conteúdos negados e de processos que podem ser experimentados como partes
separáveis no espaço e tempo normal, dotados de um lugar próprio. No processo de
projeção, as partes do inconsciente pessoal são experimentadas como existindo
‘dentro’ do indivíduo, ou então, são projetadas para fora do indivíduo e ‘dentro’ de
outra pessoa. A projeção produz seus os efeitos e, por meio dela, o indivíduo faz
‘algo’ a outro. A abordagem das pessoas e das suas relações que parte de um ponto
de vista de ‘alguém que faz algo a outro’ – por exemplo, um indivíduo que está
inconsciente projetando sobre o outro as expectativas de abandono, perda, rancor,
ou ainda de qualidades muito positivas, perfeição e completude – é uma lente eficaz
através da qual se pode compreender a relação. Grande parte do pensamento
psicológico moderno chegou a compreender que as projeções influenciam o
indivíduo, reduzindo a força do ego de quem projeta e deformando o seu sentido da
realidade, ou ainda provocando uma mudança emocional e cognitiva no objeto da
projeção. A projeção pode ser usada para desembaraçar-se de sentimentos e ideias
que são fontes de sofrimento. E a projeção pode também ser um estado que
acompanha o emergir da consciência: projeta-se sempre antes de se tornar
consciente de possuir conteúdos inconscientes. A projeção pode, também, ser um
modo de desconhecimento da própria estrutura psíquica através de um processo
imaginário, em que se sente o dever de colocar os conteúdos ‘dentro de outro’,
observando-os de modo sutil, como em um transe, com a finalidade de perceber o
que o outro faz com esses conteúdos projetados. Este último processo é conhecido
como identificação projetiva e um analista poderia demorar muitos anos para
12

perceber as suas sutilezas, de modo a poder reconhecer a sua existência, onde as


pessoas menos entendidas ou menos sensíveis, poderiam, simplesmente, ativar os
conteúdos que foram projetados sobre elas.
Foi inevitável que Freud e outros psicanalistas depois dele reconhecessem
que o modelo, baseado sobre a projeção, de recapitular os primeiros conflitos e de
resolvê-los, era muito simplificado porque também o analista projeta sobre o
analisando. Deste conceito de contra projeção, resultou grande parte do
pensamento psicanalítico corrente sobre transferência e contratransferência, ou
seja, as projeções mútuas de ambos. Todavia, os psicanalistas compreenderam que
essas projeções, no espírito da pesquisa científica, poderiam se tornar dados
percebidos objetivamente. Alguns esperaram também (e em vários setores do
pensamento psicanalítico são muitos a provar-nos ainda) utilizar-se da
contratransferência para compreender objetivamente as elaborações interiores da
psique do analisando.
No esforço de superar as dificuldades em separar as projeções e contra
projeções, e de chegar aos padrões da objetividade científica, alguns analistas
começaram a pensar em termos de uma ‘terceira área’ ou ‘campo’ invadido por uma
espécie de subjetividade mútua. Criada pelas projeções recíprocas, esta ‘terceira
área’ poderia ser usada para a obtenção de certa compreensão objetiva daquilo que
atuava dentro do analista e do analisando. Através da obra da psicologia do Self, ou
ainda das contribuições de Thomas Ogden e do seu conceito de ‘terceiro em
análise’, o analista se torna consciente do fato de que a subjetividade não pode ser
negada na interação. E, através do uso das percepções da natureza desta ‘terceira
área’, o analista também pode cunhar interpretações, sentir empatia e fazer
intervenções para ajudar o analisando a reconhecer o próprio inconsciente e as
próprias más adaptações.
A pesquisa de Jung plantou a semente de um modelo alternativo de análise,
baseado sobre a exploração de um terreno intermediário entre o analista e o
analisando. Jung reconheceu que dois indivíduos criam uma relação inconsciente,
permeada de conteúdos psíquicos derivados não somente das experiências
pessoais da primeira infância. Estes conteúdos psíquicos, que Jung chamou de
arquétipos, são as estruturas das camadas impessoais do inconsciente coletivo ou
objetivo que se auto-organizam espontaneamente. Ao contrário dos conteúdos
pessoais, tais aspectos arquetípicos do inconsciente coletivo não podem ser
inteiramente percebidos como provenientes do interior de um indivíduo sendo
dirigidos ao exterior, para outro indivíduo. De fato, os processos arquetípicos criam
uma ‘terceira área’ entre os indivíduos, que não pode ser experimentada mediante o
conceito espacial de interno e externo. O sentido do espaço criado em uma relação,
não pode ser entendido como um ‘espaço vazio’ que caracteriza a área através da
qual, em grande parte, passam as projeções pessoais. Esta ‘terceira área’ tem,
preferentemente, a sua objetividade particular: uma qualidade subjetivo-objetiva. As
projeções individuais não podem ser separadas das tendências objetivas de
transformação, a partir do momento em que interagem com este ‘reino
intermediário’, e nenhuma das duas causa a existência da outra. Quando Jung
13

analisou esta ‘terceira área’ amplamente inconsciente entre os indivíduos, que foi o
seu meio para explicar o processo de transferência e contratransferência enfrentou
também os aspectos arquetípicos no paradigma científico da projeção. Certamente,
o trabalho de Jung nos ajudou a ver que é possível projetar muitos dos conteúdos
psíquicos pessoais.
Além disso, os níveis arquetípicos criam uma ‘terceira área’ que não se pode
simplesmente perceber como se tratassem de coisas, de partes projetadas em que
dois indivíduos possam cruzar-se. O arquétipo cria, então, um sentido paradoxal de
espaço, no qual o indivíduo é contemporaneamente dentro e fora, é um observador,
mas é também um conteúdo no próprio espaço. E eu percebi que a diferença de
ênfase colocada sobre a subjetividade nas relações psicanalíticas da ‘terceira área’,
deve ser considerada também uma concomitante objetividade de processos,
derivada da inclusão das dimensões arquetípicas.
Certamente, devemos ir para além da noção de vida constituída pelas
experiências internas e externas, e entrar em uma espécie de ‘terreno intermediário’,
perdido de vista há tanto tempo pela nossa cultura e do qual deriva a maior parte da
nossa transformação. Quando nós percebemos essa realidade dividida com outra
pessoa e nos concentramos realmente sobre ela fazendo-a assumir uma vida
própria, enquanto ‘terceira coisa’ nas relações, se pode verificar algo novo. O
espaço que ocupamos parece mudar, e ao invés de sermos os sujeitos, observando
esta ‘terceira coisa’, nós começamos a nos sentir dentro dela e movidos por ela.
Tornamo-nos o objeto; e o próprio espaço e os seus estados emocionais são o
sujeito.
Em tais experiências, as velhas formas de relação morrem e se transformam.
É como se nos tornássemos conscientes de uma presença muito mais extensa na
nossa relação, indubitavelmente uma dimensão sagrada. Tornamo-nos conscientes
de um sentido de unidade que permeia o estar em solidão e o estar com o nosso
parceiro. É uma unidade que parece infundir na relação um sentido de admirado
temor e de mistério. Quando esta experiência é intensa prevalece o respeito, lá onde
antes dominava o poder. Acolhe-se o temor como um sinal de que se está no
caminho certo, porque agora se está progredindo para o desconhecido, sobre um
caminho com horizontes em expansão e um desejo de ser movido pela verdade, a
partir do momento em que ela existe na relação. E caminhamos sempre para a
busca das nossas projeções e da nossa história pessoal, refletindo sobre, como se
elas constituíssem os confins que dão à experiência interativa a sua unidade e a sua
peculiaridade, evitando assim, que essa desemboque num processo de fusão com a
New Age.
Como os conteúdos arquetípicos criam uma ‘terceira área’ que não pode ser
suficientemente compreendida por meio do modelo da projeção, assim ocorre
também com os ‘núcleos psicóticos’. Tais áreas arquetípicas não podem jamais ser
reduzidas a uma soma de projeções individuais. Muitas vezes, os ‘‘núcleos
psicóticos’ jamais foram consideradas com sucesso no interior das abordagens
racionalmente orientadas para o desenvolvimento pessoal. As tentativas de reduzir
os ‘núcleos psicóticos’ a uma insuficiência qualquer no desenvolvimento que pode
14

ser projetado, podem equivaler a um pouco mais de um expediente repressivo. Os


modelos psicológicos que obtivemos pelo estudo do desenvolvimento infantil,
observando a evolução no decorrer do tempo, isto é, da Infância e da adolescência e
outras, não servem para compreender a estranha qualidade do espaço que serve de
base para a profundidade das relações. Jamais conheceremos a loucura como algo
a ser estudada em uma relação; em vez disso, fazemos muita experiência, e
devemos encontrar uma espécie de recipiente imaginário para contê-la. A loucura
pode ser compreendida como um fenômeno estranho que não só existe no interior
do indivíduo e entre os indivíduos, mas que, como os processos artísticos, ela
circunscreve e influencia ambos em uma relação no interior do seu reino indefinível.
Certamente, se a relação deve ser o lugar da transformação dos indivíduos e da
cultura, então devemos não somente desvelar a loucura na relação, mas devemos
também descobrir o seu mistério.
Podemos considerar a relação como o recipiente com o qual lidamos com
forças arquetípicas e irracionais da loucura em nossa cultura. Por esta razão,
devemos pensar a relação como algo muito mais extenso do que a interação entre
duas pessoas relativamente conscientes ou inconscientes. A relação repousa sobre
um grande mar de vida emocional, uma dimensão que jamais pode ser
compreendida apenas com os instrumentos racionais. Este fato foi percebido por
Freud e foi também amplamente utilizado por Jung nas suas pesquisas sobre a
profundidade da relação na transferência.
Enquanto os modelos científicos modernos não nos ajudam muito a pensar
em tais experiências de loucura na ‘terceira área’ entre indivíduos, as tradições que
precedem a descoberta científica e a ênfase colocada sobre a causalidade podem
permitir-nos redescobrir e reformular certas ideias antigas com relação a estas áreas
e experiências intermediárias. Para compreender e valorizar o potencial
transformador de tais ‘terceiras áreas’, é necessário voltar-se às antigas ideias e
práticas alquímicas. Jung utilizou o simbolismo alquímico para compreender a
natureza da ‘terceira área’ amplamente inconsciente, entre indivíduos. Servindo-se
da pesquisa alquímica de Jung, de modo mais amplo do que ele próprio a fez, é
possível aprender a fazer a experiência da ‘terceira área’ e sermos por ela
modificados, ao invés de confiar na análise das projeções que a compõem.
Eu conceituo e analiso o modo de pensar da alquimia, assim como nos é
apresentado nos seus mitos e narrações, pois é uma abordagem fundamental para a
psicoterapia. Esta abordagem alquímica está em contraste, não só em relação aos
que usam o simbolismo alquímico para amplificar os processos evolutivos
alcançados ou falhos, mas também com cada abordagem científica para a
compreensão da estrutura e das mudanças da psique que esteja baseada sobre a
causalidade. Uma abordagem alquímica, muitas vezes, não se refere em primeiro
lugar, ao que um indivíduo faz a outro, como acontece com as projeções recíprocas,
mas se trata sobre a sua experiência de um campo ocupado por ambos.
A estrutura e a metodologia da alquimia são extremamente válidas para
procurar compreender o mistério das relações. Quando a metodologia da alquimia é
aplicada ao processo psicológico nasce um novo modelo de análise, baseado não
15

sobre a modificação do comportamento ou sobre as modificações das relações


objetais, mas sobre a recuperação da alma. Chegar a este novo modelo de análise
requer, naturalmente, uma tradução dos termos alquímicos em termos psicológicos,
como também, um repensar da natureza da sessão analítica e do papel do analista.
Baseado na minha experiência no trabalho com a ‘terceira área’, que inclui os
‘núcleos psicóticos’, o pensamento cartesiano se torna defeituoso e nasce outro tipo
de lógica dos opostos, que é extraordinariamente similar àquela abraçada pelos
alquimistas no decorrer de 2.000 anos.

NASCIMENTO E DECLÍNIO DA ANTIGA ARTE ALQUÍMICA

A antiga arte da alquimia empenhou-se, em primeiro lugar, nas mudanças


qualitativas da matéria, isto é, a transformação de um metal em uma forma diferente,
a mudança e a fixação da cor de um material ou a criação do Elixir da vida ou Lápis
Fhilosophorum. Além desses aspectos gerais, as origens, a natureza e o propósito
da alquimia são objetos de conjecturas e de controvérsias. Como evidenciou
Raphael Patai, em seu estudo geral Os alquimistas Judeus (The Jewish Alchemists),
“quando se chega a decidir sobre o que realmente é (ou foi) a alquimia, os
estudiosos que escreveram sobre a alquimia estão longe de um acordo” (1994, p. 4).
O amplo aspecto dos comportamentos dos estudiosos se estende por uma
concepção de alquimia como um acontecimento absurdo e embaraçoso do
pensamento humano, ao posto de percebê-la como uma ciência mais sublime,
espiritual, que inseria em seu próprio centro, a transformação da personalidade
humana. Patai forneceu certo insight sobre a natureza ambígua e polêmica da
alquimia:

A alquimia foi tudo o que alegaram que era, aqueles que a praticaram, e os seus
propósitos continham tudo aquilo que os históricos lhe atribuíram. Estes excluíam a
transmutação dos metais em ouro e prata, a duplicação e, contudo, o aumento do peso
do ouro, a confecção de pérolas e pedras preciosas, a produção de todos os tipos de
tinturas em outras substâncias, a preparação de corantes, a produção de cada tipo de
remédio para curar as doenças das quais a humanidade sofre, e a criação da
quintessência, o fabuloso elixir que curava, rejuvenescia e prolongava a vida por séculos
[...]. Tudo isso fazia parte do aspecto prático da alquimia (1994, p. 4).

No processo se produziram medicamentos, desenvolveram-se vasos para a


transformação química e se postularam notáveis teorias acerca dos processos de
mudanças na forma ou na estrutura da matéria.
Além dos esforços alquímicos dedicados às mudanças materiais ‘externas’
correspondiam as mudanças ‘internas’ na psique do alquimista. Esta reciprocidade
da transformação fascinou as melhores mentes de muitas culturas e de muitos
períodos. Posteriormente, a prática da alquimia foi amplamente documentada por
um corpo literário transversal às várias culturas e se estendeu por três milênios.
Na base da alquimia estava a crença em uma unidade fundamental de todos
os processos naturais. Tudo na natureza – pedras, metais, madeira e mineral,
juntamente com a mente e o corpo do homem – era constituído por uma substância
16

única. Esta essência, o lápis, era a base de onde tudo se originava, e se alguém
conseguisse obter um pouco, ainda que uma pequena quantidade, poderia realizar
uma importante cura e transformação. Esta crença fundamental pode ser encontrada
na Índia, na Europa, na China, no Vizinho Oriente, no Oriente Médio (especialmente
no mundo árabe), e em todos os outros lugares nos quais a alquimia floresceu
(Patai, 1994).
Enquanto as origens da alquimia se estendem até a pré-história e ao
conhecimento dos xamãs, a tradição alquímica perece ter se consolidado no Egito
greco-romano durante o terceiro ou quarto século A.C. Naquele tempo, o
pensamento grego e o estóico se fundiram para criar as estruturas basilares da
alquimia, que posteriormente foram elaboradas e refinadas durante os sucessivos
2000 anos. A alquimia começou a emergir como um corpo teórico coerente na obra
de Demócrito Mistagoge (Pseudo Demócrito) por volta do ano 200 a.C. O
pensamento alquímico se desenvolveu a partir das ideias associadas à metalurgia, à
produção de cerveja, à tintura, à produção de perfumes. Por volta do terceiro século,
as ideias alquímicas foram difundidas e conectadas com um amplo número de
desenvolvimentos afins na esfera religiosa e filosófica (Lindsay, 1970, p. 67). Antes
disso, a prática da alquimia era muitas vezes, secreta, feita escondida por medo de
perseguições baseadas sobre a acusação de falsificação de ouro e de metais
preciosos. Os primeiros autores de textos alquímicos, muitas vezes, assumiam
pseudônimos retirados de figuras da mitologia como Hermes ou Moisés, ou de
qualquer grande mestre. Esta tendência na alquimia não era só um ato de modéstia
ou de desejo de esconder-se da perseguição como falsário e contraventor. Mas
refletia o desejo presente na alquimia de conectar às suas origens e quem a
praticava a uma dimensão mítica, uma tendência que se encontra também na
prática da magia.
O lado exotérico (ou voltado ao externo) das práticas alquímicas foi
amplamente inspirado pelo pensamento grego reconhecido, que era essencialmente
aristotélico. Segundo E. J. Holmyard, estudioso da tradição alquímica exotérica,
Aristóteles acreditava que o mundo fosse constituído por uma matéria prima dotada
somente por uma existência potencial. Para manifestar-se realmente, devia receber
a impressão de uma ‘forma’, que não significava a sua forma exterior, mas também
algo que dava ao corpo a sua propriedade específica. Na cosmologia aristotélica, a
forma dá origem aos “quatro elementos”: fogo, ar, água e terra. Cada um desses
elementos é posteriormente caracterizado pela “qualidade” de ser fluido (molhado),
seco, quente ou frio. Cada elemento possui duas destas qualidades. Quente e frio,
fluido e seco constituem pares de opostos e não podem associar-se. O aspecto
principal da teoria segundo Holmvard (1990), é que cada substância é composta por
cada um e por todos os elementos. A diferença entre as substâncias depende das
proporções nas quais os elementos estão presentes. A partir do momento em que
cada elemento, prossegue a teoria, pode ser transformado em outro, e cada
substância pode ser transformada em outra qualquer, mudando as proporções dos
seus elementos. Por exemplo, na teoria de Aristóteles, o elemento fogo é quente e
seco, e o elemento água é frio e fluido. Conseguindo-se combiná-lo em um modo
17

que leve à eliminação das qualidades seco e frio, se obtêm um elemento quente e
fluido, os atributos que a teoria atribui ao elemento ar. Através de processos do
gênero, a forma das coisas muda. Muitas vezes, conseguindo modificar as
qualidades e, portanto, a forma das coisas, então deveria ser capaz de transformar
qualquer substância em outra.
“Se chumbo e ouro, ambos consistem de fogo, ar, água e terra, porque não
deveria ser possível tornar as proporções dos elementos do metal ordinário e opaco,
igual à do metal brilhante precioso?” (Holmyard, 1009, p. 23). A pesquisa alquímica,
para realizar a forma justa da prima materia e os esforços incansáveis do laboratório
e comumente não concluídos, mas às vezes com sorte, e o alquimista, inspirado,
tanto quanto possível, na revelação divina e em momentos de graça, deu origem a
grande parte da história exotérica da alquimia.
Junto a esta teoria dos quatro elementos, se encontra uma base esotérica (ou
voltada ao interno) nas ideias pertencentes ao pensamento grego que se afirmaram
entre os séculos, VII e IV A.C.: (1) a ideia de um processo unitário na natureza e de
certa ‘substância última’ da qual são formadas todas as coisas; (2) a ideia de um
‘conflito de opostos’, mantidos juntos à unidade que prevalece sobre eles, enquanto
força que faz progredir o universo; (3) a ideia de uma ‘estrutura definida’ nos
componentes finais da matéria, seja que esta estrutura seja expressa por agregados
variáveis de átomos, (atomon, unidade indivisível) ou pela combinação de um grupo
de formas geométricas de base e nível atômico (Lindsay, 1970, p. 4). A este corpo
de pensamento foi agrupada a posição estóica, segundo a qual a ‘psique’ é material,
possui uma penetração mutua de alma e corpo, de physis e do mundo das plantas,
de hexis e do mundo da matéria orgânica. A física dos estóicos coerentemente
considerava todos os elementos mais sólidos ou particulares como permeados e
agrupados na infinita rede de tensões pneumáticas (Lindsay, 1970, p. 22-23).
As ideias alquímicas predominaram na Europa após os ‘séculos escuros’, e
elas criaram novas formas na cultura da imaginação que impulsionou o
Renascimento dos séculos XV e XVI. Estas novas formas de pensamento alquímico
se expressaram com vivacidade nos textos como o Rosarium Philosoforum (1550) e
o Splendor Solis (1582). O Rosarium era inicialmente um aglomerado de imagens,
como uma espécie de terço, sobre as quais se meditava. Pensa-se que o Rosarium
tenha se originado numa comunidade alemã do século XVI; ou talvez esse grupo
tenha anexado o texto às imagens, de forma que o que existe hoje é uma série de
imagens acompanhadas por comentários datados no ano de 1550. No mundo
existem numerosas coleções de Rosarium; algumas são coloridas, outras em preto e
branco, e outras coloridas em parte. A coleção mais bonita, encontrada na Stadt
Biblioteck di St. Gallen possui uma qualidade lírica digna de Picasso. Alguns destes
comentários parecem ter um sentido preciso, outros se apresentam obscuros, de
modo a nos fazer acreditar que foram adicionados ao acaso. Mas, o mais
importante, é que esta série de vinte xilografias está endereçada ao problema
principal da alquimia, a união da mente e corpo, que se adquire através do processo
da união de duas almas, ou da união de dois aspectos de uma personalidade
singular. Também o Splendor Solis, em geral datado em 1584, possui origem
18

incerta. As suas gravuras em ramos deram ao mundo as mais belas imagens


alquímicas. O Splendor Solis aborda um problema complementar da alquimia, isto é,
a encarnação da vida espiritual na realidade material do corpo. Enquanto o
Rosarium se baseia sobre um processo horizontal, como um encontro face a face de
duas pessoas, ou uma união de aspectos separados da vida psíquica em uma
pessoa, o Splendor Solis se baseia sobre a dimensão vertical do espírito que se
encarna. Nas bibliotecas existem diversas versões, porém, a mais bela interpretação
é o manuscrito Harley encontrado na Bristish Library.
Trabalhos como aquele construíram a espinha dorsal da alquimia
renascentista. O Splendor Solis é o mais importante exemplo de um trabalho que
combina realidade externa e interna, focalizando-as sobre substâncias reais e sobre
o nível interior da alma (McLean, 1981). O Rosarium lembra outro tema fundamental
da alquimia, a união dos apostos, masculino e feminino, corpo e espírito, quente e
frio. Estes dois textos juntos fornecem a base para analisar o simbolismo alquímico
que será discutido mais adiante neste livro.
Tendo alcançado o seu ápice na cultura Renascentista européia, a alquimia
foi se extinguindo devido ao aparecimento da ciência e, sobretudo, aos ataques da
reforma contra os papéis da imaginação. A morte do pensamento alquímico foi
causada principalmente pela necessidade de uma abordagem de mundo menos
imaginário e concebido em termos mais racionais. Baseada no pensamento
imaginário e nas imagens fantásticas, a alquimia estava completamente inadaptada
a compreender a natureza em termos causais, assim como postulado pelo grande
progresso cientifico dos séculos XVI e XVII. A ciência viu o mundo de modo
diferente, com a matéria não mais viva e passou a aplicar em cada problema, uma
ordem formada por equações cientificas. A filosofia mecanicista da idade da razão
empurrou a alquimia para um ângulo distante da atividade humana. O seu
conhecimento foi, eventualmente, realizado em segredo, muitas vezes em grupos
secretos, e a sua primazia rapidamente caiu, em conjunto com o respeito pela
atividade ocultista.

O DESENCONTRO ENTRE PENSAMENTO ALQUÍMICO E PENSAMENTO


CIENTÍFICO

Por volta do século XVII, a alquimia foi amplamente desprezada devido ao


seu processo estar embasado na metáfora que estava em forte conflito tanto com a
exigência científica moderna de objetividade, quanto com a premissa essencial de
causalidade da ciência moderna. Contrária aos métodos científicos modernos, a
tradição alquímica é um testemunho do poder da subjetividade. Ao invés do esforço
‘objetivo’ para localizar uma diferença precisa entre os processos materiais e a
psicologia do experimentador, na alquimia, a transformação espiritual e física do
sujeito é parte integral da obra de transformação da matéria. Esta fusão da realidade
interna do alquimista com a realidade externa da matéria a ser transformada, existia
em uma área do discurso imaginário, que os antigos alquimistas definiam ‘imginatio’,
e que não estava sujeita às noções de interno ou externo. A fusão do externo e
19

interno pode ser verificada em um espaço que os alquimistas chamavam de ‘corpo


sutil’, uma área estranha que não é material nem espiritual, mas uma mediação
entre ambas. Junto a outros ‘imponderáveis’ da ciência antiga que predominou por
muitos séculos, este reino ‘intermediário’ da existência há muito abandonou a nossa
consciência.
A partir do momento em que a alquimia se caracterizou por uma identificação
particular entre o alquimista e o material com o qual ele opera, a transformação
pessoal e a material foram interconectadas tão estreitamente, a ponto de se opor à
sua separação. Esta conexão faz parte da complexa metáfora da alquimia que
aceita que a possibilidade e as mudanças na personalidade do artesão, de qualquer
modo, afetam as mudanças na matéria com a qual ele esta operando. Foi somente
quando esta mistura entre interno e externo não pode mais ser conservada, que a
alquimia foi ridicularizada e desprezada por não ter conseguido obter o verdadeiro
ouro dos metais iniciais. É obvio que os fornos e as teorias alquímicas não estavam
à altura da tarefa, além dos poderes da imaginação que os seguidores lhe atribuíam.
De qualquer modo, fazer o ouro não era o interesse principal da alquimia, mas fazia
parte da metáfora alquímica da transformação da personalidade. A intenção de
transformar metais ‘crus’ ou estruturas inferiores da personalidade (no sentido
alquímico ‘chumbo em ouro’), não era diferente da ideia cristã da ressurreição dos
mortos. A alquimia foi essencialmente um sistema de transformação, e a sua
genialidade consiste no pressuposto de que a mudança faz parte da interação entre
sujeito e objeto, na qual ambos são transformados.
Enfim, a metáfora alquímica da mudança posiciona-se diretamente contra o
conceito no qual a essência de um indivíduo está separada das outras e é estável e
imutável em meio às vicissitudes da vida. Antigamente as pessoas tinham uma ideia
vaga do individualismo; ao invés, consideravam a si mesmos como partes de uma
realidade coletiva e organizavam a própria vida mediante o mito e a tradição. O
indivíduo tinha pouca importância, a não ser pelas mudanças ‘heróicas’ que o
‘grande indivíduo’ trazia à coletividade. Enquanto as pessoas funcionavam graças
aos modelos gerais, míticos, o eu individual não constituía alguma recordação nem
valor de massa, e de fato, era considerado perigoso. A ciência se tornou o grande
catalisador da mudança na consciência, na qual o ego emergiu como uma ordem
criadora de entidade. Por esse motivo, a igreja inicialmente considerava a ciência
emergente como obra do Maligno.
Porém, uma vez que a consciência individual se tornou a summa bonum, as
atividades da alquimia e a metáfora da transformação que ela representava,
tornaram-se um anátema pelo espírito científico ocidental que estava
desenvolvendo-se. A partir daquele momento, os cientistas, de posse dos princípios
e das equações que os governam, procuraram ordenar aqueles que, de outro modo,
lhes pareciam sistemas desordenados. Segundo a lei inexorável do incremento da
entropia, na própria natureza a ordem tende a decair e a se tornar menos ordenada,
mas crê-se que o cientista, enquanto depositário da ordem, não esteja submetido a
este destino. Ele pode modificar a concepção sobre como criar ordem, mudando o
paradigma abraçado pela ciência. Mas ainda é considerado estruturalmente
20

desligado daquilo que a ordem criou, salvo pelas possíveis consequências morais
das realizações criativas e tecnológicas. Não se pensa que o empenhar-se
seriamente em um experimento mude a personalidade do cientista, nem se
considera que o maior ou menor funcionamento do experimento seja consequência
dos esforços pessoais de meditação do cientista e da imaginação que o acompanha.
Esta estabilidade e autopersistência são qualidades centrais de um eu emergente
que assume a tarefa de afirmar a ordem do universo, mediante uma metáfora
causal. ‘Causa - Efeito’ é o motivo da pesquisa científica; e é essencial compreender
que os períodos precedentes - aqueles antes das grandes realizações de Galileu, de
Kepler e de Newton, com muitos outros – não seguiram aquela forma. De qualquer
modo, a abordagem alquímica, enraizada como estava no pensamento grego e
estóico, permaneceu essencialmente ‘desinteressada’ na causalidade (Lindsay,
1970). De fato, os alquimistas não tinham interesse exclusivamente no modo com
que as partes de um sistema ou os estados do desenvolvimento humano interagem
mutuamente no interior de um indivíduo, ou com outras partes do ambiente
circundante.
Assim, não é que a lógica científica seja superior àquela da alquimia,
considerada ‘primitiva’, mas se trata de sistemas de pensamento fundamentalmente
diferentes (Lévy-Straus, 1966, p. 1-34). Resumindo, o pensamento alquímico e o
científico perseguem objetivos diferentes e procuram resolver problemas diferentes.
A alquimia é uma ciência da alma, a ciência é um estudo da mudança material
durante uma sequência temporal e irreversível. A aplicação da alquimia à vida
externa, material, foi igualmente a falência das tentativas de entender o
funcionamento interno da psique, reduzindo-o a qualquer premissa materialista.
Necessita-se ainda compreender que a ciência não suplantou a alquimia. De
fato, a alquimia foi um dos interesses principais de Isaac Newton que chegou a ela
após um estudo aprofundado da química ‘racional’. Para Newton, a alquimia não era
uma aberração; segundo Richard Wesfall ‘o que ele considerou a sua maior
profundidade’ foi central no seu pensamento:

Na filosofia mecanicista, Newton encontrou uma abordagem para a natureza que


separava radicalmente corpo e espírito, eliminava o espírito das operações da natureza,
e explicava estas operações através de meras regras mecânicas do movimento das
partículas da matéria. Ao contrário, a alquimia fornecia a encarnação quintessencial de
tudo o que a filosofia mecanicista rejeitava. Na natureza, ela via a vida e não uma
máquina, explicava os fenômenos através do efeito ativador do espírito, e afirmava que
todas as coisas são geradas pela conjunção dos princípios masculinos e femininos. [...]
Lá onde a filosofia [mecanicista] insistia sobre a característica inerte da matéria [...] a
alquimia afirmava que nela existiam princípios ativos, na qualidade de agentes primários
dos fenômenos naturais (1980, 112, 116-117).

Newton, na realidade, estava numa encruzilhada de duas correntes: a de uma


nova ciência que sustentava a causalidade, e aquela de uma antiga ciência que
encontrava a causalidade limitada e incapaz de explicar o porquê dos fenômenos,
tais como os efeitos da alma humana nascer sem causa experimentável ou
observável. No final doe século XVII, quando os europeus cultos abraçaram
plenamente a era do racionalismo, a abordagem alquímica sobre a natureza estava
21

longe de desaparecer; a filosofia mecanicista e o mecanismo da causalidade


conquistaram o predomínio que conservam ainda hoje.
Este predomínio, todavia, foi conquistado escolhendo problemas diversos e
decididamente mais simples daqueles abordados pela alquimia. Por exemplo, a
ciência sabe pouco acerca do modo pelo qual a estrutura das coisas, como a forma
de uma folha, se cria ou se modifica. Na ciência se aplica uma equação e um
sistema, e tal sistema pode mudar no decorrer do tempo, mas não se sabe muito
acerca dos sistemas, cujas formas ou confins externos, e a sua natureza constitutiva
interna, mudam também estas como consequência dos processos no sistema. A
alquimia concentrou-se diretamente sobre os sistemas daquele tipo, isto é, o ser
humano e a maneira pela qual a estrutura psíquica se modifica. Porque uma pessoa
pode apresentar reações devastadoras durante certo período da vida, mas com uma
consciência crescente e uma integração interna de experiências rejeitadas começa a
re-exprimir o trauma com muito menos perturbação? De que modo a estrutura
interna se modifica para permitir uma evolução desse tipo? Quais são as leis dessa
modificação, ou quais as propriedades metafóricas que a governam?
A necessidade da ciência de separar-se dos fatores espirituais – assim como
é evidenciado pela separação operada por Descartes entre a ciência material e os
envolvimentos espirituais, bem como as finalidades - e a sua necessidade de
objetividade, que poderiam ser ofuscadas pelas incompreensões sujeito-objeto da
alquimia, levou sempre mais à abstração. A base metafórica da alquimia, não
diferente da metáfora em geral, reúne diferentes ordens de realidade, como matéria
e psique. A ciência as separa e torna-as depositárias da ordem, ordenando a
suposta ordem da matéria.
A existência da alquimia sobre a conexão entre sujeito e objeto derivou do
seu interesse pela alma, pela vida interior que se move espontaneamente,
independentemente de cada causa. Esta qualidade da alma é a razão pela qual as
questões causais são amplamente menos significativas para a mente alquímica, do
quanto são para a nossa. A partir do momento em que a alma vive na relação, o que
define a alquimia é a qualidade da relação, caracterizada na ciência alquímica por
um interesse pela relação em si, e não pelas coisas que se encontram em relação.
Portanto, o objeto do esforço alquímico é um universo diferente de
experiência. É um mundo ‘intermediário’ de ‘relações’, que ocorre em um espaço
não-cartesiano, caracterizado, diferentemente deste, por um relacionar-se paradoxal
no qual o ‘exterior’ e o ‘interior’ são alternativamente, ora distintos, ora os mesmos.
Na geometria paradoxal deste espaço, conhecido como o corpo sutil, isto é, um
reino ‘intermediário’ entre matéria e psique, os alquimistas acreditavam que ‘as
relações em si poderiam ser transformadas.
Os alquimistas se interessavam por este ‘reino intermediário’ e
demonstravam-se esperançosos de que também as ‘coisas em relação’, assim como
a matéria com que trabalhavam, poderiam ser transformadas. Esta tentativa
magnífica fracassou, não somente pela óbvia superioridade da ciência ao tratar
processos causais no mundo da matéria. Foram também a fantasia da objetividade,
que possui um papel central na ciência, e a heróica invencibilidade do ego que se
22

desenvolveu com esta fantasia, a transformar a metáfora alquímica e a sua pesquisa


da percepção imaterial das relações em si, em um reino obscuro e perigoso.
Todavia, no interior deste reino se constitui um ego que possui uma base imaginária
e que sabe que as suas percepções são raramente algo a mais da cintilação da
verdade de uma realidade incompreendida mais ampla, por exemplo, entre o ego de
uma pessoa e o seu inconsciente, ou entre duas pessoas. O ego desenvolvido pela
abordagem cientifica da natureza, seguramente corrige o amplo abuso de
subjetividade e de fantasia que a abordagem alquímica pode manifestar, do mesmo
modo em que a Reforma não foi somente repressiva, mas foi também um corretivo
necessário para os excessos imaginários das práticas mágicas do Renascimento
(Couliano, 1987).
Por causa da sua falta de interesse nas medidas quantitativas ou em
conceber os processos materiais nos termos dos seus objetivos ou causa final, a
compreensão e a transformação da matéria por parte dos alquimistas foi
amplamente inferior ao alcançado pela ciência moderna. Em geral, a alquimia foi
comumente confundida como pseudociência, o que deu lugar às descobertas
iluminadas pela química. Embora grande parte do desenvolvimento inicial da
química fosse uma sequência das ideias alquímicas, a história do destino da
alquimia é muito mais complexa. Por um lado, a alquimia escolheu confrontar
problemas muito difíceis – as questões da transformação qualitativa através da qual
a substância assume novas formas – que a ciência moderna deve ainda explorá-las,
para não falar em padronizá-las. Por outro lado, quem praticava a alquimia no século
XV e XVI vivia em um mundo que era completamente animado, um mundo em que a
matéria não estava morta ou caótica, mas possuía uma alma vivente. Este tipo de
consciência vê as relações em todos os níveis da existência, animada e inanimada,
espiritual e profana, mas não se ocupa com a distinção e com as entidades
separadas no interior dos processos causais. A abordagem alquímica de mundo
deu prioridade a um sentido de unidade de fundo que a impediu de separar-se dele,
com sucesso, e de validar adequadamente o seu instrumento mais potente: a
imaginação. Em um sentido forte, a ideia e a prática da alquimia, como as ideias que
estavam sob as transformações do Renascimento, deveriam renunciar ao
desenvolvimento do ego individual, um ego que pudesse acreditar estar separado
dos outros indivíduos, do mundo e de Deus, um ego que pudesse acreditar na
utilidade de conceber a natureza como um processo no tempo histórico.
Durante o período da presença da alquimia no Renascimento, a consciência
do ego era apenas desenvolvida. Porém, sem a atenta discriminação do ego, um
sentido do que é interno e do que é externo, especialmente nos estados de união
entre os indivíduos, regride-se rapidamente em um estado confuso de fusão sem
saída, que ofusca toda diferenciação sujeito-objeto. Antes e durante o
Renascimento, a mente era caracterizada por uma imersão nas imagens e por uma
falta de reflexão crítica sobre a fantasia e sobre o seu uso com o fim de provar
qualquer coisa de modo idiossincrático (Huizinga, 1954, p. 225). A objetividade
científica, em qualquer sentido experimental, simplesmente não existia. Os
problemas nas relações e nas disputas eram resolvidos com base em precedentes
23

míticos e filosóficos. Tudo se baseava em modelos preexistentes e não no


discernimento do significado dos eventos no momento histórico. Este último
desenvolvimento chegou somente com a separação de Descartes, entre mente e
corpo, como duas entidades qualitativamente diferentes, com a exclusão de Deus e
da finalidade da teorização sobre a natureza. Estas separações foram radicais,
porém, necessárias.
Esta grande conquista na consciência – uma objetividade para com a
natureza e o desenvolvimento da autoconsciência – que iniciou no século XVII
(Whyte, 1969, p. 42-43), tornou possível a abordagem científica moderna. Com ela
chegou a atitude, que se tornou norma, de separar os processos em partes distintas
e de focalizar a atenção sobre as partes, divididas em unidades cada vez menores.
No final, a totalidade e o fundamento unitário da existência, suporte principal do
pensamento alquímico, foram perdidos completamente, com o resultado da
fragmentação tão característica na vida do homem moderno. Pode-se, porém,
perceber que a ciência tenha livrado a alquimia da necessidade de ter competência
na investigação das mudanças externas, materiais. Mas as abordagens alquímicas e
o retorno à metáfora alquímica da subjetividade podem ser um dom para a ciência e
podem, por sua vez, diminuir as suas tentativas de matar a alma com o objetivo de
afirmar o mistério da psique e das suas transformações.
Aquela que, no decorrer da antiguidade e da idade média, foi a força da
alquimia, e nos tempos modernos se tornou a sua fraqueza inata, é a sua tendência
para relatar cada atividade humana a uma consciência da essência – ou Unidade –
de todo o criado. A estrutura teórica da alquimia está baseada em uma relação com
a Unidade do processo, enquanto as partes singulares constituem o foco principal
das descrições causais dos eventos no espaço e no tempo. A vida humana, as
formas orgânicas a inorgânicas naturais, a vasta extensão do Cosmo e qualquer
poder que esse contenha - ‘Deus’ no sentido religioso do termo – tudo está
conectado. Tal sentido de Unidade permeia todo o pensamento alquímico. É deste
modo que o antigo pensamento alquímico foi fortemente contrastado com o
pensamento científico moderno que se esforça para tornar a vida orgânica e a vida
inorgânica sem referência à sua interação e sem referência aos poderes ‘mais altos’,
ou ‘espirituais’. A humanidade progrediu ou regrediu dependendo do ponto de vista,
do quanto se distanciou do abraço com a Unidade, da qual a ciência moderna
estava imbuída.
A crença do alquimista em uma Unidade do processo baseia-se na noção de
uma essência que permeia todo o criado e que conecta as qualidades opostas. Todo
o pensamento alquímico ocupa-se com os opostos, estados que são notados, no
nosso ser psicológico, como mente e corpo, amor e ódio, bem e mal, consciente e
inconsciente, espírito e matéria, função do hemisfério direito e do hemisfério
esquerdo do cérebro, percepção imaginária e pensamento racional, pensamento
discursivo (lunar e solar em termos alquímicos), amor e poder, empatia e dedução
científica. De qualquer modo, o alquimista deveria reconhecer os opostos inerentes
a cada processo e, portanto, uni-los. O sentido espiritual da Unidade desempenha
um papel vital; por uma espécie de iluminação e, muitas vezes, necessário
24

‘enxergar’ os opostos, um ato de desvelamento da ordem no caos. O ‘enxergar’,


quem está envolvido pode ser, como disse William Blake, ‘através dos olhos e não
‘com’ os olhos, mas tal ‘enxergar’ está sempre fora do ordinário, é uma espécie de
percepção inspirada por uma realidade espiritual. É como se o ser do indivíduo
estivesse permeado por este ‘Outro’, ou como se este indivíduo sentisse a sua
existência com a finalidade de tirar os opostos para fora do caos. Neste sentido, não
é difícil discernir a passagem bíblica da criação, que é, muitas vezes, um modelo
que está por detrás do processo criativo do alquimista.
A união dos opostos é um conceito fortemente contrastante com o modo de
pensar moderno, ao passo que o processo da união acontece no interior de um
‘medium’, uma concepção que foi abandonada pela ciência há muito tempo. Na
alquimia, por ‘medium’, se compreende o ‘corpo sutil’, originariamente o pneuma no
pensamento estóico, o qual inspirou também os primeiros fundamentos teóricos da
alquimia. Não existe conceito mais importante do que este para procurar entender o
pensamento alquímico. O pneuma é uma substância mais áspera da matéria
comum e menos espiritual ou refinada do espírito, ‘intermediária’ entre as duas e
constituída por ambas. Esta permeia tudo o que existe na criação e reúne todas as
qualidades humanas, orgânicas e espirituais. O pneuma constitui uma ampla rede
de percursos que transmitem informações, através das quais todos os aspectos da
criação influenciam-se mutuamente. Se uma pessoa está conectada ativamente à
outra, uma imaginação sua pode ser transmitida a ela. Em outras palavras, postula-
se um nível de transmissão dotado de substância, algo que seria um anátema ao
mesmo tempo, tanto pela ciência, quanto pela psicanálise. Contudo, tal é a natureza
da teoria e da crença alquímica: no interior e através do medium do pneuma, o corpo
sutil, acontece a experiência da união. Muitas ilustrações alquímicas indicam este
nível de uma ‘terceira área’ dotada de vida própria que duas pessoas podem
compartilhar e pela qual podem ser transformadas.
O envolvimento espiritual e moral do alquimista nos seus experimentos era
uma parte essencial do processo. A abordagem alquímica acredita na existência de
uma realidade transcendente como um fato duradouro, e toda a teoria, assim como
toda a prática incluem este nível transcendente de Unidade. De fato, o alquimista
acredita que quando os seus materiais se transformam, quando esses são
condenados a morrer e, portanto, renascer em um vaso, também ele morre e
renasce. Frequentemente se evidenciavam imagens de desmembramento e tortura
no decorrer do percurso com vistas à consecução da Unidade com o Cosmos. A
alquimia estudava cuidadosamente o processo para atingir este estado de perfeição
e, o mais importante, se bem que consciente da impossibilidade virtual de conseguir
esta meta no decorrer da vida, estava convicta de que o percurso para esse fim
consistia em prosseguir.
Grande parte da alquimia reflete um pensamento muito sólido que pode
parecer confuso às nossas mentes cientificamente afiadas. Na alquimia, o corpo não
é um pedaço de matéria inerte sobreposta somente à ‘lei natural’, como era
entendido por Descartes e pela origem da ciência moderna. Nem a mente, e muito
menos o cérebro, é sinônimo só de espírito. A alquimia abraça os grandes mistérios
25

do espírito e da matéria e os vê no microcosmo do ser humano como experiências


diferentes da nossa Unidade, que nós chamamos de mente e corpo.
A alquimia durou por 2000 anos porque se voltou às questões tais como a
relação de um indivíduo com a Unidade, que cada um conhece profundamente e
facilmente esquece. Manteve a sua notável estabilidade, também porque foi
particularmente humana colocando os indivíduos em relação, e o que fazem e como
fazem com os processos que empreendem, com relação à sua própria arte, à
própria ciência, aos outros indivíduos. Não que todos fossem alquimistas, como
assim todos não são cientistas. Do mesmo modo como um espírito científico
permeia toda a nossa cultura, um espírito que acredita nas causas para o
comportamento humano, econômico ou social, um espírito alquímico, ao invés,
enfatizava os modos em que as coisas estão em relação recíproca. Este modelo
mais antigo é imensamente atraente pela vida interior, mas é também totalmente
privado pela capacidade de criar novas tecnologias e novos materiais. Pode-se
imaginar que a duração da tradição alquímica refletiu a vida da alma na vida
quotidiana e em todas as explorações da natureza, enquanto a morte da alquimia
resultaria de uma perda da consciência da alma ou na vida interior dotada do seu
grau de autonomia. O retorno à consciência da alma na cultura moderna parece
chamar novamente os valores e a consciência da alquimia.

ABORDAGEM ALQUÍMICA DO PROCESSO ANALÍTICO

Este livro se baseia sobre a consideração com que o imaginário alquímico


abraça de modo considerável os estados mentais, muitas vezes, definidos como
loucos ou psicóticos. Estes estados mentais constituem um aspecto importante,
perigoso, porém, potencialmente criativo, não somente para os indivíduos loucos ou
borderline, mas para todos. Esta loucura é uma característica central da prima
materia alquímica.
Uma abordagem alquímica também envolve o estabelecimento da existência
de um campo interativo entre duas pessoas, o experimentar os conteúdos deste
campo, como não pertencentes exclusivamente a uma das duas pessoas e, de
modo particular, o reconhecimento de que o campo contém a sua própria finalidade
autônoma, alcançada através dos processos dinâmicos que conectam ordem e
desordem. A objetividade do processo distingue uma abordagem para o campo com
atitude alquímica, das outras abordagens para o campo totalmente subjetivo que ora
estão emergindo no pensamento psicanalítico.
Noções alquímicas que não são nem materiais nem mentais, mas existem
numa zona ‘intermediária’ entre a mente e o corpo, enquanto envolve ambos – como
o ‘corpo sutil’, ou as ideias no nível imaginário que podem desenvolver-se em uma
forma de consciência aguda e essencial (visão imaginária), ou os mistérios da união,
da morte e do caos – todas elas abrem os nossos olhos para um novo modo de ver
as relações. Particularmente, uma abordagem alquímica manterá o foco sobre um
campo subjacente, dotado de dinâmicas próprias no interior de uma relação, ou
sobre um campo posto entre o eu consciente de um indivíduo e o inconsciente. Este
26

foco facilita experiências que tendem a ser impedidas pelas abordagens científicas e
pelas suas orientações sobre as partes separáveis de um processo e sobre as
projeções de um indivíduo sobre outro. A experiência consciente do campo com o
seu próprio sentido de autonomia – uma experiência semelhante a uma visão ou a
um sonho potente - é o fator primário de transformação. Um indivíduo pode ser
mudado – muitas vezes gradualmente, mas às vezes de improviso – a partir destas
‘experiências de campo’.
Eu acredito que a partir do simbolismo e dos textos alquímicos pode ser
desenhada uma ‘atitude alquímica’. Esta atitude contrasta com a atitude científica,
em primeiro lugar, porque o seu principal foco não está sobre as causas. O indivíduo
se concentra, ao invés, sobre as relações, sobre a natureza do ‘terceiro reino’ entre
as pessoas e não sobre o que uma pessoa está fazendo para a outra. Portanto, um
princípio fundamental da atitude alquímica é aquele de não ser hierárquica. Não
importa o quanto um indivíduo parece estar fazendo de negativo ou de reprovável
para outro, continua-se, portanto, a procurar o ‘casal inconsciente’ compartilhado
pelas duas pessoas. Outro aspecto de primeira importância na atitude alquímica é o
respeito pelo caos. De certo modo, o pensamento alquímico é semelhante às
recentes descobertas científicas da teoria do caos. Enquanto o caos foi ignorado
pela ciência e somente agora, de modo limitado, foi descoberto, ele sempre teve um
papel central para a alquimia. A atitude alquímica aprende a acolher e a tolerar o
caos, sem refugiar-se na razão para dispersá-lo e dissociá-lo. Ademais, a atitude
alquímica reconhece uma dimensão transcendente da existência, sem a qual o
processo de transformação não pode continuar. Em outras palavras, sem certo grau
de iluminação, não pode ocorrer transformação alguma. Portanto, a atitude
alquímica é fortemente transpessoal, sem jamais deixar de lado a realidade do aqui
e agora da relação pessoal.
Em termos gerais, a atitude alquímica e a científica focam em questões
diversas e apresentam força e fraqueza de modo complementar. É possível
compreender muito do ponto de vista causal, e seria pelo menos uma loucura
subestimar a importância do procedimento científico. Por exemplo, é necessário
considerar uma pessoa nos termos de um processo causal que inicia na sua
infância. Ele age como algo semelhante a uma condição inserida em um limite que
mantém real e com os pés no chão a abordagem imaginária da alquimia. Mas o
caminho alquímico oferece uma compreensão diferente, complementar, baseada
não sobre o que uma pessoa ‘faz’ a outra, mas sim sobre o modo com que as
pessoas ocupam um ‘reino intermediário’ da relação em si mesma e sobre o modo
com que tais relações são influenciadas pela subjetividade individual de ambas as
pessoas, bem como, das mais profundas e mais amplas correntes do inconsciente
coletivo. Através desta abordagem, se pode chegar a muitos resultados superiores
aos das abordagens científico evolutiva, especialmente quando de trata de escolher
as estruturas rígidas da personalidade e lidar com os núcleos psicóticos.
Tendo-se limitado à realidade específica do que é ‘intermediário’ ou ‘terceira
área’, que não obedece às leis causais, a alquimia falhou na tentativa causal de criar
o ouro a partir dos metais de base, de modo linear, confiável e repetível. A metáfora
27

alquímica não se adapta a tais tentativas, assim como a metáfora científica de


causa-efeito apresenta sérios inconvenientes para compreender e respeitar a vida
da alma. Temos necessidade de ambos os pontos de vista. Este livro, em contraste
com estas abordagens e, dependendo do caso, ao utilizar ambas, enfatiza,
sobretudo, o valor de uma abordagem alquímica sobre o reino ‘intermediário’, o
estado da relação em si que é normalmente negligenciado.
Hoje devemos reconhecer o lado Sombra do grande desenvolvimento da
consciência do ego, isto é, a criação de defesas que permitem uma separação
incisiva do ego do inconsciente e das emoções do corpo. O pensamento alquímico
sustenta um modo de retornar à totalidade sem abandonar a separação e a
especificidade do processo. De certo modo, chegou o momento da alquimia. Talvez
agora possamos retornar àqueles reinos misteriosos das ‘terceiras áreas’ que não
são nem físicas e nem psíquicas, territórios dos quais devemos reconhecer a
existência se quisermos reconectar ordens divididas da realidade como a mente e o
corpo. Eu acredito que estas ‘terceiras áreas’, interesse primário da alquimia, mas
negligenciadas pelo pensamento científico, devem ser reintroduzidas se quisermos
conquistar um sentido mais autêntico do que é a alma na relação, especialmente na
ótica da psicoterapia (Schwartz-Salant, 1989, 1995a).
Em certo sentido, estou retornando àquela encruzilhada da história em que
Newton procurou abraçar, tanto a abordagem mecanicista da natureza, quanto o
caminho alquímico. De qualquer modo, não subestimo a eficácia das abordagens
científicas e, sobretudo causais da compreensão, porém, a abordagem alquímica é,
muitas vezes, mais útil por conter os estados complexos da mente, normalmente
definidos como partes loucas ou psicóticas de um indivíduo mentalmente são, e
fornece um insight particular sobre a complexidade dos aspectos normalmente
inconscientes das relações.

ATIVAÇÃO DA EXPERIÊNCIA DE CAMPO

O CAMPO COMO OBJETO DE ANÁLISE

Em “Conselhos ao médico no tratamento psicanalítico”, Sigmund Freud


fornece algumas indicações que hoje são tão pertinentes quanto eram em 1912,
embora o seu otimismo agora pareça muito antiquado.

A primeira tarefa diante da qual o analista que possui mais de um paciente por dia, é
colocado, lhe parecerá também a mais difícil. Ela consiste em ter em mente todos os
inumeráveis nomes, datas, detalhes de lembranças, associações e produções
patológicas que um paciente relata no decorrer dos meses e anos de tratamento, não
confundindo este material com outro análogo, proveniente de outro paciente [...]. Se,
então, ele for forçado a analisar seis, oito ou também mais doentes por dia, uma
prestação mnemônica que consiga tal feito, despertará nos observadores externos a
incredulidade, maravilha. [...] Em todo caso, nascerá a curiosidade em conhecer a
28

técnica que permite padronizar um material tão vasto. [...] Esta técnica é, invés, muito
simples. Ela rejeita [...] todos os expedientes, inclusive aqueles de fazer anotações, e
consiste simplesmente em não querer anotar nada em particular e prestar a mesma
‘atenção flutuante’ em tudo o que lhe toca ouvir. [...] Neste modo, economiza-se um
esforço de atenção em que, portanto, não se poderia perseverar quotidianamente por
muitas horas consecutivas, e se evita um perigo que é inseparável da aplicação
deliberada. De fato, assim que se propõe em manter fortemente a atenção em um
determinado nível, se começa também a operar uma seleção de material oferecido. [...]
Mas, precisamente, isto não se deve fazer. [....] Tudo o que se obtém neste modo, será
suficiente para todas as exigências durante o tratamento. Os componentes do material
que já se inscrevem num contexto estarão disponíveis para o médico também de modo
consciente, o resto, ainda desconectado e arranjado em confusão caótica, perece
submerso num primeiro momento, mas desabrocham prontamente na memória assim
que o analisado produz algo de novo com o qual tal material possa ser relacionado. [...]
(Obras, Vol. 6, p. 532-533).

Muitos clínicos reconheceram que as indicações de Freud são difíceis de


colocar em prática, porque quando se constelam áreas de falta de sentido, de vazio,
de falta ou de ausência total de pensamento, de angústia que oprime e fragmenta,
de desespero intenso, de inveja, é praticamente impossível manter uma ‘atenção
flutuante’. Em outras palavras, quando se ativam as partes psicoides do analisando,
a capacidade do analista de manter uma atenção constante, livre e flexível, sofre um
desafio extremo. É como se o analista se esforçasse para empreender um estado
tranquilo de meditação profunda com o medidor estando no pico.
A análise tem feito muita estrada desde os tempos de Freud, mas os analistas
devem ainda percorrer um caminho muito difícil para tratar com sucesso os
pacientes que trazem material do tipo psicótico, à sessão. O estado mental analítico
do qual Freud é proponente pode ser normalmente conseguido se os analistas
excluem da sua análise os núcleos psicóticos da psique. Infelizmente, tal exclusão é
seguramente um beco sem saída para muitas pessoas em tratamento. Ao invés de
puxar a loucura para fora, os analistas devem procurar puxar para dentro (Schwartz-
Salant, 1993), e assim dar origem à possibilidade de submeter ao tratamento os
núcleos psicóticos do analisando. Certamente alguns psicanalistas foram além da
afirmação de Freud de que a consciência e a consideração dos estados psíquicos
tanto do analista quanto do analisando, são suficientes para compreender a
interação analítica e, muitas vezes, os processos ativados no analisando. A este
ponto, alguns analistas assumiram a existência de uma ‘terceira área’ dotada de
uma forte capacidade de contenção, da qual ambos, analista e analisando fazem
experiência e que é gerada por ambos.
O conceito de ‘terceira área’ existente entre analista e analisando adquiriu
súbita importância entre as escolas da psicanálise. Numerosos analistas referem-se
à ‘terceira área’ em termos ligeiramente diferentes, dependendo da própria
concepção particular: Donald Winnicott (1971) escreveu sobre o espaço
‘transacional’ ou ‘potencial’; André Green (1975) usa o conceito de ‘objeto analítico’;
vários psicólogos do Self, particularmente Robert Stolorow (Stolorow et al. 1987)
referem-se a um campo ‘intra-subjetivo’; e Thomas Ogden (1994) refere-se a um
‘terceiro analítico’. Estas abordagens baseiam-se nas percepções das formas e dos
sentimentos criados pela subjetividade combinada do analista e do analisando, e
29

excluem qualquer noção de existência de um processo objetivo independente e


impessoal que, em si mesmo dá origem e é, portanto, responsável pela formação e
pela estruturação das percepções.
Por exemplo, a posição de Odgen em relação à ‘terceira área’ entre analista e
analisando evidencia os parâmetros de uma abordagem desse tipo. Tratando sobre
a ‘terceira analítica’, no seu livro Subjects of Analysis, Ogden escreve:

O processo analítico reflete a interação de três subjetividades: a subjetividade do


analista, a do analisando e a da ‘terceira analítica’. A terceira analítica é a criação do
analista e do analisando, e ao mesmo tempo, o analista e o analisando (como analista e
analisando) são criados por ela. (Na ausência da terceira não existem nem analista, nem
analisando e nem análise). Do momento em que a terceira analítica é emanada pelo
analista e pelo analisando no contexto do próprio sistema de personalidade, de história
pessoal, de conformação psicossomática e assim por diante, a experiência da terceira
(mesmo que criada conjuntamente) não é idêntica para cada participante. Ademais, a
terceira analítica é uma construção assimétrica porque é gerada no contexto do seting
terapêutico, que é definido com força pelos papeis da relação entre analista e
analisando. Isso significa que a experiência inconsciente do analisando é
especificamente privilegiada, o que quer dizer que é a experiência passada e presente
do analisando a ser assumida pelo casal analítico como principal (ainda se não
exclusivo) sujeito do discurso analítico. A experiência do analista, na e da terceira
analítica é (sobretudo) utilizada como um veículo para a compreensão da experiência
consciente e inconsciente do analisando (1994, 93-94).

Esta concepção da ‘terceira analítica’ permite ao analista, reflexões muito


mais amplas sobre a experiência do que aquelas fornecidas desde o princípio da
introjeção, pela qual o analista interioriza o processo do analisando, reflete sobre a
contratransferência induzida e, portanto, dá uma nova conformação ao processo do
analisando, possivelmente através da uma interpretação. Na aproximação de
Ogden, a ‘terceira’ está sempre em função do processo, influenciando tanto o
analista, quanto o analisando, de modo que não se esgota com a compreensão e,
portanto, permite maior criatividade e uma procura da verdade mais agressiva em
relação ao que permitem os modelos de análise precedentes. Outro modo de ver a
função do campo na prática analítica combina com a abordagem psicanalítica
daquele modelo, que considera a subjetividade entre duas pessoas, com a
abordagem de Jung, que considera a interação da subjetividade de um indivíduo
com os processos do inconsciente coletivo. Duas pessoas podem, assim, tornarem-
se conscientes do modo com o qual os seus processos individuais participam da, e
são influenciadas pela objetividade do inconsciente coletivo. Nesta concepção
combinada do campo, as aquisições pessoais, históricas, que são o elemento
central das relações objetais, se misturam com um substrato objetivo, que Jung
denominou de inconsciente coletivo. O substrato objetivo do inconsciente coletivo
tem as suas próprias dinâmicas que são caracterizadas pelas formas preexistentes
de uma natureza universal e impessoal e são separadas e independentes dos
indivíduos. Mas a descoberta destas dinâmicas é possível somente fazendo a
experiência através da combinação das objetividades individuais de ambos os
indivíduos. A experiência desta consciência é por si mesma profundamente curativa.
Eu identifico esta noção de campo, concepção que inclui ativamente, tanto as
30

dimensões subjetivas, quanto as objetivas – como ‘campo interativo’. O campo


interativo é intermediário entre o campo do inconsciente coletivo e o reino da
subjetividade, e ao mesmo tempo intercepta ambos. Marie-Louise von Franz ampliou
a abordagem de Jung chegando à conclusão de que o inconsciente coletivo possui
uma qualidade ‘de campo’, “em cujos pontos excitados estão os arquétipos” (1974,
61). Em Número e tempo, ela afirma que o campo é a fonte latente da forma de
todas as nossas percepções, comportamentos e pensamentos (1974,154). Nesta
abordagem domina a natureza objetiva do inconsciente coletivo. Jung acredita que a
subjetividade de um indivíduo se ativa a este nível arquetípico para revelar o
significado ou a qualidade de um dado momento, o que significa que o indivíduo
pode fazer a experiência dos aspectos das propriedades dinâmicas de um campo
que transcende a sua consciência individual.
A análise estrutural de Jung sobre a transferência baseava-se sobre uma
quádrupla de elementos constituídos das posições conscientes de ambas as
pessoas e dos seus componentes inconscientes, contra-sexuais. O uso dos
componentes contra-sexuais, a anima em um homem e o animus em uma mulher,
para representar o inconsciente coletivo, é particularmente significativo para o
conceito de campo, enquanto a anima e o animus são essencialmente estruturas
interpostas, mediadoras entre a consciência e o inconsciente. Este elemento
arquetípico, junto ao fato de que as subjetividades de duas pessoas então
envolvidas, qualquer uma separadamente e individualmente, dá à análise estrutural
de Jung uma qualidade de campo que é ‘interposta’ entre o reino da subjetividade e
o da objetividade.
Embora Jung tivesse compreendido a natureza da dimensão arquetípica, e
em muitos aspectos, o papel significativo que ela representa ao dar forma e
transformar as percepções, ele definitivamente limitou o uso desta ‘terceira área’ em
uma fonte de informações acerca das projeções do analisando. A análise de Jung se
concentrou sobre a sua natureza arquetípica, em que as combinações inconscientes
da psique do analista e a do analisando deverão ser separadas mediante uma
análise das projeções do analisando e das contratransferências do analista. As
dinâmicas de campo subjacentes, não são consideradas úteis e dignas de ser
experimentadas em pleno direito, mesmo que as frequentes referências de Jung ao
simbolismo alquímico mostram também que ele, definitivamente, tinha em mente
esta possibilidade.

O RENOVADO INTERESSE INTELECTUAL NO PENSAMENTO ALQUÍMICO

Certamente, no seu estudo sobre a transferência, Jung descobriu o valor do


imaginário alquímico para compreender esta ‘terceira área’ de interação entre o
analista e o analisando. É considerável que em Psicologia e Alquimia, em A
Civilização em Transição e em Misteryum Coniunctionis, Jung reconheça que certo
imaginário alquímico pode representar a parte inconsciente que está sob uma
relação humana. Como eu relatei em meu livro Jung on Alchemy (1995b), Jung
percebeu que o simbolismo alquímico é um espelho notável do processo da psique
31

humana que ele descobriu e que definiu ‘individuação’. Neste processo, a forma da
estrutura interna da psique modifica. Os indivíduos podem se tornar mais sensíveis à
vida espiritual, à sabedoria e à consciência presente no próprio corpo. Os fatores
arquetípicos, assim chamados transpessoais, tornam-se reais e funcionais de modo
criativo, e o sentido do significado e do propósito entra na vida. Jung foi grande
pioneiro ao reconhecer que o simbolismo alquímico se dirigia aos processos desse
tipo. No verdadeiro sentido da palavra, o seu trabalho ressuscitou a alquimia da
obscuridade intelectual.
Quando, há quase trinta anos, eu estudava a sua psicologia analítica em
Zurique, o trabalho de Jung sobre a alquimia era apresentado explicitamente como o
coração da sua obra. A alquimia era um espelho maravilhoso pelas suas
concepções daquele processo na psique humana em que se criam novas formas e
se destroem as velhas. Tanto nas mudanças qualitativas, quanto nos ciclos de morte
e renascimento que caracterizam a alquimia, via-se o processo de individuação
finalizado, coroado por aquela forma suprema que Jung chamou de Self. Nasceu um
número crescente de pesquisas e de investigações criativas, baseadas sobre a sua
obra, que em grande parte, citei em Jung on alchemy.
Marie-Louise von Franz, colaboradora de Jung, contribuiu com muitas obras
particularmente importantes não somente para clarificar e completar a pesquisa
pessoal de Jung, mas também para conferir aos estudos alquímicos uma forma de
coerência racional que dificilmente se iguala. Por exemplo, ela escreveu um amplo
comentário sobre a Aurora Consurgens (1996), um texto que, com Jung, atribuiu a
Tomas de Aquino e que foi publicado como apêndice a Mysterium Coniuctionis
(1963) de Jung. O seu livro Alquimia (1980), um dos numerosos trabalhos sobre o
argumento derivado das aulas que ela ministrou no Instituto Jung de Zurique,
contém uma pesquisa histórica de amplo espectro sobre as origens da alquimia e
apresenta uma análise de textos alquímicos árabes, gregos e europeus. O seu texto
Alchemical Active Imagination (1979) é um estudo preciso da atitude do alquimista
Gerhard Dorn em relação à imaginação e ao corpo.
A partir dos anos 80, Adam McLean disponibilizou numerosos textos
alquímicos em inglês, além de fornecer outros comentários iluminados do ponto de
vista oculto. Analogamente, o historiador Johannes Frabricius no seu trabalho de
seminários Alchemy (1976), compilou quase todas as imagens significativas da
alquimia, além de contribuir para uma compreensão de muitas passagens
alquímicas obscuras e oferecer uma crítica aguda às interpretações de outros.
Em relação às contribuições de outros que foram próximos a Jung, deve ser
citada uma antologia com uma introdução aos escritos de Paracelso redigida por
Jolande Jacobi (1951). E o analista Junguiano de São Francisco, Joseph
Henderson, dedicou uma notável atenção ao texto alquímico, Splendor Solis. No
Instituto Jung de São Francisco está disponível um vídeo cassete com os frutos
interessantes desta pesquisa. James Hillman escreveu amplamente sobre a
alquimia, fornecendo ensaios poéticos e inspirados particularmente nos processos
alquímicos. O seu ensaio “Silver and the White earth” (a primeira parte é de 1980, a
segunda de 1981) contribuiu notavelmente para uma compreensão do significado do
32

Sol, Lua e Enxofre alquímico. Outra fonte importante para uma visão junguiana da
alquimia é Anatomy oh the Psyche (1985) de Edward Edinger, um estudo
sistemático sobre o significado para a psicoterapia das várias operações alquímicas
como a solutio e a coagulatio. Muitos ensaios escritos por junguianos tentaram fazer
uma ligação mais estreita à prática clínica e a amplificação alquímica de Jung sobre
a transferência. Particularmente “Jung’s concptions of the transference” de Michel
Fordham propõe uma reflexão sobre o estado crítico da coniunctio e da nigredo em
termos de identificação projetiva; Judith Hubback (1983) usou a imagem da
coniunctio no seu trabalho sobre pacientes depressivos; Andrew Samuels (1985)
estudou de maneira útil e inovadora o Rosarium em termos das imagens metafóricas
de interações alquímicas; The analytic Encounter (1984) de Mario Jacoby é uma
contribuição importante e de fácil leitura para a transferência como é refletida no
imaginário alquímico do Rosarium.
O meu percurso intelectual pessoal foi profundamente influenciado por muitos
de seus escritos sobre a alquimia. A primeira vez que me encontrei envolvido no
estudo da alquimia foi durante as aulas sobre a matemática da mecânica
newtoniana, que frequentei nos anos 60. Naquela época, a história da ciência
encontrava-se no início; somente poucas pessoas dedicadas ao trabalho científico
tinham consciência de que existia uma longa e preciosa história da ciência e aqueles
que estavam privados desta base cultural científica não podiam fazer grande coisa
com os textos mais antigos. Mas quando o meu professor que tinha interesse por
esta história chegou a uma referência aos estudos alquímicos de Newton,
ultrapassou-os rapidamente, considerando-os uma aberração que foi concedida ao
gênio da ciência, talvez a maior que já tenha existido. Assim como muitos outros
estudiosos, este professor associava a alquimia quase exclusivamente à loucura de
tentar produzir o ouro do chumbo, ao invés de vê-la como uma ciência espiritual da
alma, aplicada às transformações da matéria. O meu livro Narcisismo e
transformação do caráter (1982) evidencia a importância atribuída a Jung ao uso do
imaginário alquímico para colaborar na formação uma compreensão coesa do
material onírico e fantástico, seja uma abordagem de valor inestimável. Nele, mostrei
o uso do simbolismo alquímico a fim de conter e compreender o material
extremamente caótico e explosivo que parece ser parte essencial de um processo
criativo. Em um livro posterior, Borderline: visão e terapia (1989), eu utilizei de outro
modo as pesquisas simbólicas de Jung, ressaltando como o imaginário alquímico
pode auxiliar e explicar o que está ocorrendo no aqui e agora de uma sessão
analítica. Em outras palavras, ao invés de concentrar-me sobre o material onírico e
fantástico espelhado no simbolismo alquímico, me interessei em como a alquimia
pudesse explicar a complexidade do processo de transferência e
contratransferência. Sustentei que a visão imaginária é, muitas vezes, extremamente
eficaz em ajudar, tanto o analista quanto o analisando, a reconhecer as estruturas
centrais da personalidade escondidas por uma miríade de defesas utilizadas pela
personalidade borderline. Enfatizei, sobretudo, a necessidade de aprender usar a
própria imaginação para ‘ver’ as partes escondidas da personalidade, como se o
analista pudesse perceber um sonho que o analisando está sonhando, em meio aos
33

ataques emocionais típicos que o analista, muitas vezes, sofre, em decorrência de


certos tipos de analisandos. Naquele texto, referi-me à série alquímica de xilografias
do Rosarium Philosoforum, que Jung utilizou para amplificar o processo de
transfrência e contratransferência (Jung, “A Prática da Psicoterapia”, Obras, Vol. 16).
Como afirmei, a personalidade borderline permanece essencialmente bloqueada ao
estado que os alquimistas denominam de nigredo, mas ela se encontra na condição
angustiante, caracterizada pelo desespero e, muitas vezes, pela ausência de
consciência, pelo vazio e pelo pânico do processo psicótico, sem alcançar o estado
das qualidades que os alquimistas denominaram coniunctio. Desta forma, o
imaginário alquímico pode fornecer um vislumbre, tanto para a ausência que o
indivíduo borderline sofre, quanto para um possível sentido de significado e, até
mesmo de propósito, nos estados desolados que atormentam tais condições. Meus
outros trabalhos levam adiante esta abordagem: por exemplo, em “Anima and
Animus in Jung’s Alchemical Mirror” (1992) evidenciei o modo como o simbolismo da
coniunctio alquímica é extremamente útil para compreender os conceitos de Jung de
Anima e Animus.
Em Borderline: visão e terapia (1989), e sobretudo nos artigos “Jung,
Mamdnes and Sexuality: Reflections on Psichotic transference an
Countertransference” (1985) e “The Interactive Field as the analytic Object” (1995ª),
introduzi também o conceito de ‘campo’ dentro do qual interagem tanto o analista,
quanto o analisando. Os campos foram introduzidos na ciência pelo grande físico do
século XIX James Clerck Maxwell, aquele que fez a descoberta do campo
eletromagnético. Esta ideia ‘clássica’ de campo, diferente daquela quantística,
pressupunha uma realidade subjacente ao mundo manifesto pelos objetos dotados
de carga elétrica. O campo as movia; era possível observar as alterações no modo
dos objetos dotados de carga. Após a sua descoberta, Maxwell tentou fornecer uma
representação do campo nos termos de ideias já conhecidas, como aquelas do
movimento de um fluido, mesmo se nas equações do campo haviam termos que
eram impossíveis de serem representados. Somente com um grande esforço e
depois de certo tempo, o conceito de campo começou a ser aceito com algo
fundamentalmente não representável. De fato, posteriormente se chegou a conceber
os campos como existentes nos espaços vazios, separados das partículas dotadas
de carga. Ora, com a teoria quântica, todas as tentativas de representar um campo
foram abandonadas. Assim, com o conceito de campo nos movemos para o não
representável.
Num estudo de extremo valor, o conceito de campo interativo foi considerado
por Marvin Spiegelman e Victor Mansfield (1996), do ponto de vista da conexão
entre a física e a psicologia. Eles classificam a psicoterapia em quatro níveis e
consideram o quarto nível relacionado com os fenômenos de campo análogos, por
sua vez, aos campos do tipo quântico na física. Uma publicação anterior de
Mansfield e Spiegelman (1989) relaciona a mecânica quântica com a psicologia
junguiana, enquanto Spiegelman (1988) concentra-se sobre o conceito de campo
interativo. Analogamente, nos trabalhos apresentados em seminários, Henri Reed
(1996a, 1996b) examinou experimentalmente os fenômenos do campo interativo,
34

refletindo sobre como a teoria do caos pode ser útil para compreender certos
aspectos da experiência de campo.
Eu acho que o conceito de campo pode ser uma ótima representação, em
termos modernos, da ideia central dos alquimistas, aquela de ‘corpo sutil’ (Schwartz-
Salant, 1982, 1986, 1989, 1995a, 1995b). Enquanto reino intermediário entre espírito
e matéria, em que se ativa a visão imaginária em uma ‘unidade’ do processo, o
‘campo interativo’ é considerado o recipiente dos processos que dois indivíduos
podem experienciar como a sua díade inconsciente, e dos modos em que esta díade
se modifica e os modofica. No campo criado e descoberto no processo analítico
existe uma combinação de objetividade e subjetividade, como sugere von Franz em
Número e tempo (1974), enquanto não somente a subjetividade de ambos influencia
o campo, mas esse também contém as próprias dinâmicas objetivas. A alquimia nos
faz conhecer estas dinâmicas de um modo que vai além de qualquer outro recurso
de que dispomos.
Certamente, a minha ideia de campo interativo deve muitíssimo aos estudos
de Jung. O seu modelo da quaternidade define uma estrutura igual àquela dos
diagramas dos níveis energéticos da física, que indicam uma notável qualidade de
troca de informações entre as moléculas que não estão em contato uma com a
outra. Vários níveis energéticos em uma molécula podem mudar e induzir mudanças
em outra molécula. A implicação psicológica deste notável paralelismo é que as
mudanças no inconsciente do analista, por exemplo, possuem um efeito não
somente sobre o conhecimento consciente do analisando, mas também sobre o seu
estado inconsciente. O mesmo conhecimento está evidenciado no texto alquímico
Splendor Solis (McLean, 1981), que remonta a 400 anos antes, em que os estados
aparentemente separados se influenciam mutuamente em um modelo complexo de
troca de informações.
Portanto, a análise de Jung contém, mais implicitamente que explicitamente,
um modelo de campo interativo, constituído pelas subjetividades recíprocas e pelo
nível objetivo da psique. De certo modo, os seus estudos possuem dois fios
condutores: o primeiro é uma amplificação alquímica reflexiva em nível arquetípico,
e o outro é uma interpretação psicológica. Eu considero a minha formulação fiel às
amplificações e reflexões de Jung sobre as imagens alquímicas das quais se serviu,
porém, distinta do modo com que ele interprpetou o material alquímico nos termos
da análise das projeções.

FUSÃO ALQUÍMICA DE SUJEITO E OBJETO

Enfrentar os processos do campo interativo requer que o analista não se


refugie em um modelo de objetividade científica que, enfim, se limita a reordenar as
projeções recíprocas do analizando e do analista. O analista deve, invés, aceitar a
ideia da existência de uma área essencialmente do ‘não saber’, uma área na qual
jamais entra um afeto de medo, raiva, ódio ou amor proveniente do analizando ou do
analista. O analista deve, sim, assumir que tais emoções existem enquanto
qualidade do campo interativo, caracterizado essencialmente por uma fusão entre
35

sujeito e objeto, um estado em que o problema sobre quais conteúdos estão sendo
experimentados, não se pode determinar. E, caso o analista procura fazer uma
diferenciação em estados de propriedade individual dos conteúdos, concentrando-se
no campo em si, introduz uma qualidade de Unidade na sua experiência que mostra
o quanto tal diferenciação, seja de natureza limitada e dependente de qualquer
teoria evolutiva subjacente, foi introduzida implicitamente no encontro.
Uma fusão sujeito-objeto era uma parte essencial do processo alquímico.
Porém, as numerosas abordagens alquímicas para a compreensão da vida da alma
e das suas relações com o corpo e a matéria contrastam, de modo significativo, com
as nossas abordagens modernas. Particularmente significativa é a existência da
alquimia sobre o fato de que o indivíduo é uma parte inseparável e uma unidade
maior. A alquimia não concebe um ‘eu observador’, considerado como um ser
separado e consciente que ordena a matéria. É, invés, através da imaginação que o
alquimista medita sobre seus experimentos, vê os seus processos e prova a sua
verdade ou a sua falsidade, na convicção de que esta imaginação está conectada a
uma Unidade maior. E como o alquimista faz parte desta unidade, as mudanças
químicas que ele tenta fazer surgir serão influenciadas por ele e, por sua vez,
influenciarão o desenvolvimento da sua personalidade, enquanto faz parte da
transformação dos seus metais. Se ele não conseguir alcançar um estado em que
possua as estruturas que transformam todas as várias espécies do caos que, de
outro modo, demoliriam e degradariam a sua vida espiritual, a sua imaginação e o
conhecimento do próprio corpo, como poderia o alquimista criar modificações
consideradas duradouras?
Esta aparente confusão entre os próprios processos pessoais e aqueles que a
ciência insiste em considerar processos diferentes, tanto que se desenvolvem no
mundo material ou que envolvem outros indivíduos, pode ser difícil de considerar útil
para alcançar a transformação da estrutura. Mas se reconhecemos que a alquimia
era um Universo em que funcionavam as ‘terceiras áreas’, normalmente não
observadas, muitas vezes como intermediárias entre o experimentador e os seus
objetos, e que tais áreas eram elas mesmas os objetos da transformação, então
essa confusão pode ser vista de um modo muito mais interessante. O mundo
‘intermediário’ do alquimista era um reino do corpo sutil, áreas que não eram nem
materiais, nem mentais, mas participavam em ambos os aspectos. O historiador da
antiguidade e do oculto, G. R. S. Mead, observou que o ponto central da alquimia
não era a transformação da matéria ordinária, como o chumbo, em ouro, mas a do
corpo sutil (1919 1-2).
A mente do alquimista era imersa na fusão do sujeito e objeto que constitui a
essência da relação e que age no coração da psicoterapia. Quando dois indivíduos
entram em relação, eles o fazem em diversos níveis, tanto consciente quanto
inconsciente, e interações significativas envolvem esses níveis em que as suas
psiques inconscientes se fundem de modo que a separação sujeito-objeto se torna
pouco clara. Assim, o analista que luta com sentimentos, imagens, afetos,
pensamentos causais e misteriosos impulsos que fazem parte do seu trabalho com o
analisando, pode se beneficiar dos esforços daqueles que dedicaram as suas vidas
36

ao estudo das leis que governam os fenômenos ilusórios, mas penetrantes e plenos
de poder. O analista e o indivíduo interessado que conseguem entrar nesses
territórios intermediários, podem começar a considerar as palavras e as imagens
alquímicas como sérias tentativas para descrever os esforços da psique
contemporânea e podem encontrar nessas palavras e nessas imagens os insights
convincentes e úteis à análise. Também descobrirá que as forças com as quais se
encontra, não somente transcendem as dimensões do seu corpo e da sua mente,
mas também impregnam e organizam as percepções e os pensamentos de toda a
cultura.
A conexão entre o processo humano e o material, que foi tão essencial para o
alquimista, não era necessariamente um resultado de uma confusão sujeito-objeto,
fundada sobre a projeção inconsciente. Como uma experiência de campo, em que
ambos os indivíduos compartilham os mesmos conteúdos, pode ser erroneamente
considerada como uma confusão sujeito-objeto, uma polaridade desencadeada pelo
zelo obsessivo de possuir uma sã identidade do ego, assim também as atitudes
alquímicas podem parecer primitivas e terrivelmente inconscientes.
O historiador da alquimia Jack Lindsay dá uma explicação da natureza
‘intencional’ do modo com que o alquimista enfrenta a si mesmo com a matéria
sobre a qual trabalha:

A alquimia deve chegar ao grau de identificar a si mesmo [com o processo sobre o


qual está trabalhando]. Deve realizar a unidade entre homem e natureza – não
como ideia geral, mas através da concentração total da sua mente, do seu corpo e
do seu espírito sobre a obra que está fabricando, de modo a sentir-se em uma
nova forma. Esta identificação do cientista-artesão com os processos que está
produzindo é, talvez, o aspecto mais difícil da alquimia para qualquer um, que,
hoje em dia, queira compreendê-la ou entrar no seu espírito. Para os homens em
que a alienação intelectual sobre o mundo da natureza ultrapassou em muito
aquela dos pensadores da Grécia clássica, toda a questão se torna fantasiosa e
muito forçada, irreal. Mas, de fato, foi apaixonadamente real, e segundo a minha
opinião, essa possui um elemento de verdade que devemos nos esforçar para
enfrentar e recapturar caso a nossa ciência deve estar à altura de todas as
pesquisas sobre a realidade (Lindsay, 1979, 150-151).

Nesta atitude, que é um anátema contra a objetividade pesquisada pelas


abordagens científicas, a experiência e a imaginação do adepto desempenham um
papel significativo no resultado dos seus experimentos físicos.
Os princípios da alquimia são modelados na forma de metáforas como ‘O
Axioma de Ostane’ (que trata das mudanças organizacionais interiores) e como o
‘Axioma de Maria’ (cuja série crescente de números, compreendidos no sentido
qualitativo, está na base de todo o processo transformativo), e como histórias iguais
‘A narrativa de Iside ao seu filho Horo’ (um mito de iniciação que instrui sobre as
atitudes de base necessárias e sobre os níveis de iluminação possíveis na opus
alquímica). Alguns desses ‘princípios’ requerem criatividade e capacidade
imaginativa para a sua realização. Os grandes textos alquímicos que sobreviveram
até hoje, como o Rosarium Philosoforum (1550), o Splendor Solis (15) e o Mutus
Liber (1677), descrevem o processo de transformação com uma complexa série de
37

imagens. As transformações representadas nesses textos ocorrem tanto nos


elementos materiais, quanto na personalidade do alquimista.
A identificação do alquimista com os processos que está produzindo é
espelhada em uma narrativa tirada de um texto atribuído ao alquimista mítico persa
Ostane (por volta do terceiro século A.C.), que descreve as suas aventuras sobre a
pesquisa da panacéia alquímica:

Enquanto eu estava caminhando por este sinal que não conseguia decifrar, ouvi
uma forte voz que gritava: ‘Homem, vai embora daqui antes que todos os portões
sejam fechados; está se aproximando o momento do encerramento’. Tremendo
pelo medo de que fosse muito tarde para deixar aquele lugar, eu saí. Quando
ultrapassei todos os portões, encontrei um velho de beleza inigualável.
‘Aproximando-se, disse-me, o homem do coração sedento por esta ciência. Eu te
farei compreender muitas coisas que te parecem obscuras e te explicarei tudo o
que está escondido’. Aproximei-me do velho, que me segurou pela mão e ergueu
a sua na direção do céu. [...] Eu elevei um louvor a Deus que tinha me mostrado
todos [os segredos da sabedoria] e que me manifestou todos os segredos da
ciência.
Enquanto eu me encontrava naquele estado, o animal de três corpos, cujas partes
devoravam-se, gritou com voz estranha: ‘Toda a ciência pode ser aperfeiçoada
somente por mim, e é em mim que se encontra a chave da ciência (...)’.
Ouvindo essas palavras, o velho me disse: ‘Homem, vai procurar aquele animal,
dá a ele uma inteligência no lugar da sua, um espírito vital no lugar do seu, uma
vida no lugar da sua; então ele se submeterá a ti e te dará tudo o que necessitas. ’
Enquanto eu perguntava como haveria de fazer para dar a alguém uma
inteligência no lugar da minha, um espírito vital no lugar do meu, (...) o velho disse:
‘Pega o copo que é como o seu, coloca nele o que acabei de te dizer e entrega a
ele’. Eu fiz como o velho tinha ordenado e agora adquiri toda a ciência, completa
como Hermes tinha escrito (apud Lindsay, Lima, 1950-51).

O enigmático ‘animal dos três corpos’ referido aqui é uma ‘experiência


conglomerada da mente, corpo e espírito e foi visto na imaginação e experimentado
por Ostane na sua obra alquímica. O guia, que aqui é um velho de beleza
inigualável, ensina que só concentrando intensamente a própria atenção sobre a
transformação nesses níveis, Ostane pode esperar encontrar a chave para a ciência
que abraçou. Mas a transformação que Ostane procurava pressupunha uma
renúncia à velha personalidade, e poderia ser realizada apenas como resultado
disso. Essa renúncia é a própria tarefa da qual a maior parte das pessoas foge,
porque a necessidade de segurança e o terror pelos níveis caóticos da psique,
sistematicamente os impedem de uma autêntica submissão aos seus mistérios.

DIMENSÃO INICIÁTICA DA EXPERIÊNCIA DE CAMPO

Nas culturas onde a alquimia floresceu, a capacidade visionária e o


conhecimento do mistério do caos derivam das experiências dos rituais de iniciação.
Em tais ritos de iniciação da puberdade ou nas religiões mistéricas da antiguidade, o
ser humano era transformado através do êxito do ritual. Os iniciados conheciam e
experimentavam outra realidade, diferente de qualquer outra coisa que acreditassem
anteriormente que fosse possível, ou mesmo que tivesse existido. Portanto, esta
outra realidade os guiava e dirigia. A sua vida emotiva mudava, e eles estavam a
38

serviço dos novos ideais encontrados. Eles não eram mais os mesmos, nem para si
mesmos, nem para aqueles que os conheciam antes: tinham sofrido uma mudança
qualitativa.
A experiência da iniciação perece central para a formação das ideias sobre a
alquimia. Lindsay afirma que toda a abordagem dos alquimistas sobre a
transformação da substância baseava-se sobre o conceito de iniciação:

Às transformações dos corpos alquímicos é aplicado o conceito de provações


iniciáticas e de morte-renascimento. Não é por nada acidental que se faz esse
apelo a esta analogia, pois afinal, foi na experiência da iniciação que os homens
conseguiram exprimir e desenvolver a ideia de movimento de um nível de vida
para outro nível qualitativamente diferente – da criança com o seu mundo
materno, à vida adulta com tudo o que ela comporta, completamente diferente de
ralações e de responsabilidade, com as suas novas conscientizações e
compreensões, e assim por diante. A alquimia representa, antes de tudo, a
aplicação científica destas ideias de iniciação a um salto de um nível qualitativo
para outro; e é por isto que os alquimistas retornam continuamente à analogia das
provações, das provas, das ressurreições. E não o fazem pela simples
necessidade de uma analogia retirada da vida humana que ajuda a fornecer uma
sequência dos estados e a tornar mais compreensível, no seu complexo, o
processo misterioso da mudança química. Eles o fazem porque sentem de modo
autêntico, uma união entre o processo natural e o humano; eles estabelecem uma
relação orgânica vital com a natureza que a abordagem abstrata ou atemporal,
com a sua ênfase sobre o intelecto alienado dos homens, negou-lhe (1970, 142).

Muitos alquimistas empreenderam tal iniciação e, na própria obra, projetaram


uma mudança dinâmica experimentada por eles, ao lidar com a matéria com a qual
trabalhavam, como por exemplo, nas suas tentativas de transformar o chumbo em
ouro. Simbolicamente haviam feito a experiência da mudança de si mesmos de um
estado ‘de chumbo’ – dominado por uma depressão do espírito e uma compulsão do
instinto – para um estado ‘de prata’ e a um início de iluminação, a uma renovada
paixão vital para a verdade das percepções imaginárias. Eles acreditavam que,
talvez, com iniciações posteriores, ou através do caminho constelado de tudo o que
tinham visto e pelo qual haviam sido modificados, seriam modificados
posteriormente ‘no ouro’ de possuir outro eu interior estável em meio aos impactos,
tanto das contingências da vida externa, quanto do mundo interno feito de
turbulência instintiva e emotiva. Na sua arte, os dois reinos – as modificações
externas das substâncias, e as modificações internas, psicofísicas da mente, do
corpo, do eu – estavam entrelaçadas.
Um dos aspectos mais essenciais da iniciação é o papel das emoções mais
escuras, das experiências de terror, de pânico, das profundas angústias. Os
alquimistas usavam essas experiências de morte como principal metáfora na sua
pesquisa da mudança qualitativa. Porém, as substâncias eram ‘torturadas’ e
deveriam ‘apodrecer’. Nos textos alquímicos, é putrefatio e a nigredo eram os
segredos da arte. Os alquimistas sabiam pela própria experiência de iniciação -
obtida em uma sociedade secreta ou através da iluminação do espírito na unio
mystica com a inevitável descida na experiência caótica e louca, que cada
verdadeira mudança dependia, não só de uma nova visão, mas também da morte da
velha personalidade, juntamente com tal visão.
39

Enquanto as mais notáveis imagens alquímicas derivaram dos séculos XVI e


XVII, as atitudes que estão envolvidas nelas, são tão antigas quanto a arte em si. O
tratado egípcio ‘Iside e seu filho Horo’, que remonta ao primeiro e ao segundo
séculos, revela o segredo da alquimia que inclui a conjunção: Eu sou você e você é
mim. Esta voz da iniciação tem a função de promover a compreensão de outra
realidade que o iniciado das religiões mistéricas conhece. De fato, ‘eu sou você e
você é mim’, é um nível de consciência que não existe em um mundo normal
espaço-temporal, no qual um eu observador consciente vê e pensa objetos externos
ou internos. A identidade entre sujeito e objeto existe, ao invés, em um espaço ou
uma ‘dimensão’ que pode ser reconhecida no seu tecido único e na sua qualidade
de vida. O espaço não é um ‘recipiente vazio’, nem uma abstração, ou uma
coordenada. Este é, invés, um espaço pleno: um conceito essencial para o
pensamento alquímico. Longe de ser uma fusão regressiva sujeito-objeto, este
sentido de identidade era um estado de graça assim como também uma realização
de visão obtida através da tortura e das provas da iniciação.
Esta ênfase sobre os ritos de iniciação pode ser expandida de forma útil
graças à clássica análise da experiência feita pelo estudioso Walter Burckert no seu
Ancient Mystery Cults. A alquimia fundava-se sobre os ritos de iniciação que
estavam no centro dos mistérios conhecidos por terem existido desde os tempos do
Neolítico, permitindo assim, um reencontro entre as experiências dos primeiros
alquimistas e as experiências daqueles que foram iniciados nos antigos cultos de
mistérios (Burkert, 1987, 2). Mais adiante, Burkert explica que os antigos mistérios

Não são ritos de puberdade no nível tribal; não constituem sociedades secretas
com fortes ligações recíprocas; ser admitido, em grande parte, não depende do
sexo ou da idade e não tem aparente mudança de status exterior para aqueles
que se submetem a tais iniciações. Da perspectiva de um participante, a mudança
de status tem efeito sobre a sua relação com um deus ou uma deusa (...), é uma
mudança mental através da experiência do sagrado. A experiência permanece
fluida; diferentemente das típicas iniciações que provocam uma mudança
irrevogável, os antigos mistérios, ou para eles ao menos parte dos seus rituais,
poderiam ser repetidos. (1987, 8)

Burkert evidencia também que fazer parte de um mistério era uma escolha
muito pessoal e por nada obrigatória. Muitos seguidores do culto não eram iniciados,
assim como muitos que praticam hoje as religiões não possuem uma experiência
direta do sagrado. Segundo Burkert, nem todos aqueles que foram iniciados se
transformavam, e nem todos mudavam da mesma maneira:

O famoso ditado que ‘muitos carregam o bastão, mas poucos são sacerdotes de
Baco’, perece indicar que (...) ‘ser tomado por deus’ é um evento que acontece de
modo imprevisível, e provavelmente, somente para poucos indivíduos especiais
(...). Proculo escreve o que segue sobre as iniciações: elas criam uma participação
nas almas com os rituais de uma forma que nos é incompreensível e divino, de tal
modo que certos iniciados são afetados por pânico, repletos de temor sagrado;
outros se assemelham aos símbolos sagrados, perdem a própria identidade,
tornam-se familiares com os deuses, e fazem experiência da possessão divina’. O
próprio fato de que as reações descritas não sejam uniformes, mas variam desde
a perplexidade até a exaltação, indica que esta não é uma conjectura livre
40

baseada sobre postulados, mas uma descrição de tudo o que foi observado:
(participação) de almas e de rituais, uma forma de ressonâncias que não se
verifica em cada caso, mas que, quando acontecem, afastam profundamente ou
mesmo quebram aos pedaços os constructos da realidade. Não conhecendo os
rituais e não podendo reproduzi-los, não somos capazes de recriar esta
experiência, mas podemos reconhecer que uma vez existiram (1987, 112, 114).

Em geral, os mistérios eram rituais de iniciação com um caráter voluntário,


pessoal e secreto que procuravam uma mudança da mente, do corpo e da alma,
mediante a experiência do sagrado. Estes mistérios eram, seguramente, o ponto
principal das experiências dos primeiros alquimistas que, então, tentavam tratar o
seu ‘metal’ como se também estes fossem dotados de uma alma que pudesse ser
transformada através da provação da iniciação.
Burkert cita Aristótoles, que “diz-se tenha usado a aguda antítese que, no
estado final dos mistérios não obteve nenhuma aprendizagem, mas um provar
sensações e uma modificação na disposição do ânimo” (1987 89). Burkert cita
também Aristóteles como conselheiro: “seja feliz por haver sofrido os sofrimentos
que nunca tinha sofrido” (1987, 89, nota 2). Esta afirmação central sugere a
possibilidade para que o indivíduo experimente e sofra verdadeiramente muito mais
do que uma reprodução de qualquer angústia primária, como afirma a psicologia
evolutiva, e encontre, invés, uma nova criação no mundo adulto da experiência.
Os iniciados que foram transformados falam de uma transformação
fundamental na consciência. Um iniciado por Elêusis afirmou: “Eu saí do templo dos
mistérios me sentindo como um estranho para mim mesmo” (Burckert, 1987, 90). O
papel desempenhado pelo medo, pelo terror, pela desorganização e pela loucura na
transformação é verdadeiramente incrível. Os alquimistas, assim como os iniciados
nos mistérios, sabiam que um extremo terror era fator que acompanhava
inevitavelmente a transformação. Em Elêusis se dizia: “Patrício dá a luz a Patrício”.
O nascimento divino de Patrícios, uma forma de Dionísio, deriva de Patrício, que
significava ‘terror’ (Kerényi, 1949, tr. it. vol. II, p. 281). Os iniciados por Elêusis,
provavelmente viam uma luz extraordinária, como está, muitas vezes, descrito na
união mystica, e como descreve Platão em Fedro: “Se deveria ver uma beleza
resplandecente, quando juntos ao coro bendito (...) eles viam uma visão gloriosa”
(Burkert, 1987, 92), mas se verificavam “eventos extremamente terrificantes que
precediam a luz extraordinária.” Em um texto se afirma que se as divindades de
Elêusis aparecessem em sonho, isso significa que “para um não iniciado elas
carregam, antes de tudo, algo de terror e de perigo...” De modo geral, os iniciados
‘vêem’ algo de divino, e esta visão é acompanhada pelo terror (Burkert, 1987, 92-
93).
Uma parte dos mistérios eleusinos, parece que tinha a finalidade de superar
este terror no momento em que um iniciado tocava, sem medo, em uma serpente.
Nas iniciações dionisíacas, o iniciado exclamava: “escapei do mal, e encontrei o
melhor”; e sucessivamente na procissão dionisíaca, alguns levavam serpentes,
mostrando assim controlar o terror (Burkert, 1987, 103).
41

As experiências de terror vinham, muitas vezes, conectadas com uma


experiência de morte e, portanto, relacionadas com mitos tais como Deméter-
Perséfone ou Isis-Osiris. Os mistérios de Isis devem ser considerados “na formação
de uma morte voluntária e da salvação através da graça (...)”; o iniciado “coloca o pé
sobre o limiar de Perséfone” (Burkert, 1987, 99). Morte e salvação através da graça
confirmam a experiência de ter aprendido que a Luz vence a Escuridão.
Pelo menos em alguns mistérios, os iniciados eram humilhados e torturados.
Parecia que em tais rituais fossem impostas ao iniciado as mais comuns
experiências de terror e de estados dissociativos de loucura que acompanham a
visão. Eles tinham os olhos vendados, eram aterrorizados com sons
amedrontadores, amarrados ou derrubados em uma cisterna de água - tudo como
parte da preparação para uma nova visão. Em outros mistérios era consentida a
humilhação física real, mas “o terror psicológico está bem confirmado: todas essas
coisas terríveis, pânico e calafrios e suor, para citar Plutarco” (Burkert, 1987, 103).
O dever de experimentar estados de loucura se encontra de modo mais
explicito nos mistérios dionisíacos. Em uma série de afrescos de Pompeia que
representam os mistérios dionisíacos na ‘Vila dos mistérios’, uma cena de flagelação
representa uma menina atingida, do lado esquerdo, por uma figura feminina. Nas
narrativas de tais mistérios, são comuns as alusões à flagelação e, “logo na tragédia
antiga, a loucura é descrita como a prova dos golpes de um chicote; em uma pintura
côncava, Lyssa aparece com um chicote, como ‘loucura’ personificada...” (Burkert,
1987, 104).
A função do medo e da sua produção de estados mentais caóticos é,
portanto, bem testemunhada, tanto nas religiões mistéricas, quanto na alquimia. Tais
experiências de terror e de caos fazem parte dos fatos obscuros do numinosum,
para o qual o indivíduo não deve somente sobreviver a estes estados mentais
caóticos, mas as velhas estruturas também devem ser quebradas pelo caos, para
permitir que o novo ser se encarne. Portanto, a capacidade de enfrentar e sobreviver
ao caos e ao terror gerado é essencial.
A ênfase posta, tanto sobre uma nova visão, quanto sobre os estados
caóticos que a acompanham é tão central para os cultos mistéricos e para qualquer
experiência de iniciação, quanto o é para a alquimia. Não admira, porém, descobrir
que o caos, estando conectado a uma visão ou a uma experiência de uma alteridade
numinosa da existência, desempenha um papel central no pensamento alquímico.
Certamente, o caos era caracterizado como uma qualidade principal da misteriosa
prima materia que os alquimistas viam como ponto de partida vital da sua opus.

NATUREZA DA PRIMA MATERIA

Nos textos alquímicos, o termo prima materia refere-se às energias e aos


processos que são fundamentais para os processos de transformação. No Rosarium
Philosophorum, a prima materia é definida radix ipsius (raiz de si mesma) porque
contém as próprias raízes, é autônoma e não depende de nada. Todavia, os
alquimistas jamais especificaram claramente a natureza efetiva da prima materia, o
42

misterioso ponto de partida da sua obra. Por outro lado, os textos falam da prima
materia como causa, mas outros textos, entretanto, claramente a definem como
sabedoria e iluminação divina. Procurando fixar o significado da prima materia,
pode-se concordar com o que escreve Jung:

A prima materia é, para servirmo-nos de uma impregnante expressão inglesa


tantalizing, (tentadora); ela é barata e se pode encontrar por tudo, somente que
ninguém a conhece. É, entretanto, evasiva e indeterminada daquele lápis que dela
deve ser produzido. Possui ‘mil nomes’. O problema é que sem ela a obra não
pode, ao menos, ter seu início (...). A prima materia é saturnina, é o Saturno
maléfico, é a morada do diabo, senão a coisa mais desprezível e obediente – in
via eiecta, in stercore eiecta, in sterquilinis invenitur [jogada pela estrada, jogada
no esterco, encontrada no lamaçal]; nestas definições se reflete não somente a
perplexidade do pesquisador, mas também o seu fundo psíquico, que anima a
escuridão presente diante dele (...): trata-se do confronto com o inconsciente
(Obras, vol. 13, p. 207).

E mais adiante, Jung acrescenta:

Portanto, é incorreto sustentar que os alquimistas nunca disseram o que seria a


prima materia; pelo contrário, deram muitas definições e assim foram
contradizendo-se eternamente. Para alguns, a prima materia era a prata viva; para
outros, o metal, o ferro, o ouro, o chumbo, o sal, o enxofre, o vinagre, a água, o ar,
o fogo, a terra, o sangue, a água da vida, o lápis, o veneno, o espírito, a nuvem, o
céu, o orvalho, a sombra, o mar, a mãe, a lua, o dragão, Vênus, o caos, o
microcosmos. O Lexicon di Ruland nos oferece nada menos do que cinquenta
sinônimos, cujo número poderia aumentar notavelmente (Psicologia e alquimia, p.
325-27).

Mas, de acordo com os diferentes pontos de vista autorizados, sobre a


alquimia, Johannes Fabricius, um estudioso de alquimia, considera que Jung tenha
se esforçado para "nunca especificar a sua suposição geral da prima materia como
um símbolo de erupção da psique inconsciente" (1976, 22). Fabricius insiste que,
com a ajuda da psicologia evolutiva, o equivalente psicológico da prima materia
pode ser claramente especificado. Citando a característica essencial da prima
materia, o despertar do amor em meio a um caos desconcertante, que é
experimentado como um processo em que os elementos existentes da criação se
dissolvem enquanto dão vida a um novo cosmos, Fabricius afirma que a
adolescência é o equivalente psicológico da prima matéria

A psicologia da adolescência corresponde a essa imagem paradoxal de criação. A


turbulência e a agitação da prima materia expressam o reavivamento regressivo
no ego adulto das camadas inconscientes que contêm as impressões da criação
tempestuosa do ego da adolescência em que aparece a ‘terra árida’ e o sol da
personalidade consciente surge em pleno esplendor, do mar do inconsciente. Dois
outros aspectos proeminentes desse período evolutivo são: 1) o despertar da
sexualidade adulta, em função da sobrevivência (amor genital); 2) o despertar a
agressão do adulto em função da sobrevivência (1976, 22).

Fabricius evidencia que as descrições psicanalíticas da adolescência são


notavelmente semelhantes à linguagem que os alquimistas usam para a prima
materia. Por exemplo, ele cita a descrição de Edith Jacobsen sobre a adolescência
43

no seu artigo “Adolescent Moods na the Remodelling os Psychic Structures um


Adolescence”:

A evolução do instinto do adolescente demonstra de modo impressionante, como,


subindo a escada tortuosa rumo à vida adulta, a cada novo degrau parece-lhe
provar ânsia, confusão, desorganização e um retorno às posições infantis,
seguidas pelo impulso e pela reorganização aos níveis mais avançados e mais
adultos. Tais processos, na verdade, podem ser observados em qualquer estágio
da evolução. Mas durante o dramático período da adolescência, podemos ver o
que Helene Deutsch descreve como sendo um ‘desencontro’ entre forças
progressivas e forças regressivas. Este desencontro introduz a uma momentânea
dissolução de grande alcance das velhas estruturas e organizações
contemporâneas à formação de uma nova estrutura e à instauração de novas
ordens hierárquicas, nas quais, as formações originais da psique assumem
definitivamente um papel subordinado, enquanto as novas adquirem e mantém o
domínio (Frabicius, 1976, 19).

Mais adiante, Fabricius, analogicamente cita Leo A. spiegel, que em seu


artigo “A Review of Contributions to a Psycoanalytic Theory of Adolescence” afirma:
“Sim, existe a impressão de que na adolescência a personalidade se funde, torna-se
liquefeita, fluida, e no final, solidifica novamente naquilo que permanece como
núcleo do caráter (Frabricius, 1976, 23).
A tentativa de Fabricius de ‘especificar a prima materia como adolescência
caminha de mãos dadas com a sua tentativa de explicar a totalidade do processo
alquímico como uma metáfora para a evolução, determinada biologicamente, pela
personalidade humana da infância à velhice. Assim, Fabricius se alinha com o
pensamento de escritores psicanalíticos como Freud, Melanie Klein e Margaret
Mahler, e critica Jung que, segundo ele, deixou de lado a perspectiva evolutiva
quando rompeu com Freud em 1912. Partindo de uma orientação biológica,
Fabricius vê a psicologia da adolescência como a prima materia. Mas do momento
em que esta interpretação, ainda que lógica teoricamente, está distante de uma
versão adequada do espírito do material alquímico em si, no final não é satisfatória
como definição completa ou definitiva da prima materia. Jung oferece um ponto de
vista muito mais amplo, ainda se naturalmente menos específico:

Ninguém nunca soube em que consiste esta prima materia: Os alquimistas não
sabiam, e nenhum encontrou o que realmente entendiam, enquanto se trata de
uma substância do inconsciente (1988, vol. 2, par. 886).

Diferentemente da abordagem de Jung, o ponto de vista psicanalítico


evolutivo não somente evita considerar as dinâmicas e as capacidades
transformativas da experiência do numinosum, mas acredita que o desenvolvimento
da personalidade resulta da mistura e de uma reestruturação das ‘relações objetais’
que existem desde a infância e das primeiras experiências evolutivas. Este ponto de
vista não aceita que algo de fundamentalmente novo, jamais provado antes de
algum modo, possa emergir do caos e do mistério do inconsciente na personalidade
humana. Uma abordagem alquímica da análise da psique, assim como compreende
44

Jung, evidencia o fato de que, na personalidade pode aparecer um elemento não


existente anteriormente.
Quando está emergindo uma nova estrutura interna, muitas vezes, o faz
observando a fenomenologia na adolescência. Mas a adolescência não é a silhueta
de referência para estas experiências. Ademais, a adolescência é governada de
modo complexo e cuja ordem e desordem interagem na psique humana ao criar as
novas formas, como também de todas as mudanças significativas na estrutura da
personalidade, compreendendo a encarnação das experiências numinosas. Todavia,
as turbulências extremas da adolescência devem considerar um aspecto da prima
materia que deve ser integrado, não somente como um constructo evolutivo, mas de
modo o mais fiel possível, ao mais vasto espírito da alquimia, e, portanto, às
profundas modalidades com as quais a personalidade pode transformar-se.
Nas suas experiências de iniciação, como também nas suas considerações
para a fusão entre sujeito e objeto, os alquimistas conceberam profundos estados de
turbulência e perceberam a natureza numinosa de tais estados. Estes estados
profundos de turbulência emotiva faziam parte da profundidade da prima materia e
do processo de transformação alquímica. Tais turbulências, enquanto características
da prima materia estão em estreita relação com o caos alquímico, a manifestação
psicológica do que, muitas vezes, se encontra nos núcleos psicóticos.

NÚCLEOS PSICÓTICOS

NATUREZA DA LOUCURA

O espírito da alquimia considera, tanto os poderes destrutivos, quanto os


transformativos da loucura. No seu livro On Private Madness, André Green analisa
de modo penetrante a loucura quanto aos aspectos criativos e destrutivos da paixão.

A loucura, que é um componente do ser humano, está entrelaçada com as


vicissitudes do Eros primordial que está em constante conflito com os instintos
destrutivos. Quando o Eros prevalece, é porque as paixões que o habitam são
aproveitadas e a psicose é evitada. Mas quando os instintos destrutivos triunfam
sobre o Eros, o processo de deixar livres é mais forte do que de frear e a psicose
vence (...) (1993, 242-43).

Quando o Eros, que representa o poder que nega amor e sexualidade, cede
aos instintos destrutivos, o que equivale à morte da estrutura e à regressão às
45

formas primárias arcaicas e compulsivas do comportamento, a paixão incontrolada


conduz aos processos psicóticos. E, poderei acrescentar: a psicose ou uma parte
psicótica pode, às vezes, estar ligada ao Eros e conectada de modo criativo à
paixão. Eu penso que a loucura e a psicose estejam muito entrelaçadas para que,
na prática, possam ser separadas, e as vejo como qualidade de fenômenos idênticos
em que os seres humanos não conseguem nem conectar-se com um objeto
primordial e nem separar-se dele.
Este dilema antigo está codificado no mito da Grande Mãe dos deuses,
Cibele, e pelo seu filho amante Átis, uma narrativa que, provavelmente, é datada no
final da era neolítica. A paixão de Átis por Cibele é assim tão grande que ele não
pode nem permanecer com ela, nem separar-se dela. As suas exigências
individuativas são tão bloqueadas, que a sua paixão se transforma em destruição
total; com um ato psicótico, ele se suicida com uma horrível automutilação. O mito
continua a viver intrapsiquicamente e não seria mais estranho hoje em dia do quanto
era há mais de 500 anos.
A área psicótica das pessoas, de certa forma normal, não cria somente
distorções sutis e algumas vezes vistosas da realidade, mas pode também estimular
atos destrutivos, contra si mesmas e contra os outros. Por um lado, o poder do
núcleo psicótico do analisando de fragmentar a consciência do analista pode criar
neste último, dificuldades notáveis em qualquer tentativa de focar, aparecendo, em
seguida na descoberta de uma terceira área. Por outro lado, uma vez que o analista
supera a sua experiência dissossiativa, a experiência dos núcleos psicóticos
analisando pode, então, levá-lo a descobrir a natureza e a estrutura do campo
interativo. Portanto, quando se pode conter ‘as águas da loucura’, antes de deixar
que elas invadam a existência do indivíduo de modo causal, as áreas psicóticas da
psique podem se tornar construtivas, ao invés de destrutivas.
Quanto, em um mito egípcio, a alma surge das águas primordiais do Caos,
uma expressão que usam, muitas vezes, para a prima materia, em seguida pode
também emergir uma sensação significativa, de propósito e de identidade – um Self
– das áreas eróticas da própria loucura. Os alquimistas permaneciam vigilantes em
relação ao potencial destrutivo das águas primordiais do Caos. Como observa
Johannes Fabricius, “o encontro inicial do alquimista com a prima materia é
caracterizado por sentimentos de frustração, perdas, dissociações e desintegração”
(1976, 20). Uma afirmação do alquimista Alfidio no Rosarium refere-se à natureza
ameaçadora da loucura que o alquimista deveria enfrentar. “Esta pedra provêm de
um lugar gloriosíssimo e sublime, de grande terror, que assassinou as muitas
serpentes (Jung, Obras, vol. 13, p. 342). E os perigos da arte alquímica para a
mente são claramente expressos nas inscrições sobre as medalhas que
representam o estado inicial: “esta ciência requer um filósofo e não um louco” (apud
Fabricius, 1976, 20). Iniciar a opus era considerado uma tarefa arriscada. Referindo-
se aos perigos para a mente, o adepto fala de “...huius artis fundamentum, propter
quod multi perierunt” [“o fundamento desta arte, causa pela qual muitos pereceram”]
(Jung, Obras. vol. 13, p. 341, nota 217). E o alquimista Olimpiodoro cita a
afirmação de Petasio que o chumbo (prima materia) é “tão possuído pelo demônio e
46

irrepreensível”, ao ponto de fazer com que os adeptos percam a razão (Jung, Obras.
vol. 14, p. 358).
Por núcleos psicóticos, compreendo aqueles aspectos da psique que não
estão contidos no eu e aos quais a função autorreguladora da psique lhes falta. O
‘eu’ representa os aspectos do “Self”, a mais vasta totalidade da personalidade, que,
falando metaforicamente, foram integrados na constituição, tanto de um centro,
quanto de um círculo de contenção do eu. Esta experiência de contenção se amplia
com a integração da personalidade. Mas as partes psicóticas da personalidade,
como as águas caóticas de todas as culturas tradicionais, beiram sempre esta
estrutura do eu, no melhor dos casos, como um fenômeno de fronteira e, no pior dos
casos, sempre ali a se intrometer e a esmagar cada sentido de contenção percebido.
Estas águas caóticas, as partes psicóticas da personalidade, fazem parte do Self: e
possuem sempre um papel crucial para a transformação e a regeneração.
Quando a instância psicótica é animada pelo trabalho analítico, manifesta-se
uma transferência que possui uma afinidade com a descrição de Harold Searles, de
transferência psicótica com os analisandos esquizofrênicos. A transferência
“deforma ou impede um relacionar-se entre seres humanos saudáveis, distintos e
vivos, entre o analisando e o terapeuta (Searles, 1965, 669). A diferença entre a
transferência psicótica no indivíduo esquizofrênico e a constelação desta
transferência em uma pessoa não psicótica é uma diferença estrutural e de nível. O
esquizofrênico desconhece a instância psicótica, enquanto o núcleo psicótico é,
parcialmente, mantido fora pelas defesas da divisão.
Geralmente, os núcleos psicóticos que possuem uma causa perceptível, são,
muitas vezes, mais compreensíveis pelos estados mentais psicóticos com os quais
se faz experiências quando da interação com indivíduos esquizofrênicos. Um
analista pode trazer à tona os estados internos psicóticos, de condição borderline,
nos quais os opostos são mantidos separados por defesas de divisão. Nestes casos,
um fluxo de material emotivo feito de desespero, raiva, estados de pânico,
ansiedade e sentimentos de abandono, podem engolir o indivíduo quando a
separação dos opostos vier a faltar. Mas, enquanto as áreas de loucura podem
então predominar, o quadro global pode se tornar significativo reconhecendo que
estes estados são um resultado do terror do abandono. Existe outro aspecto que, a
uma extremidade, apresenta leves estados caóticos de natureza borderline. Então,
existe uma zona intermediária na qual o processo psicótico possui menos conteúdo
– particularmente nas desordens esquizóides em que o núcleo psicótico pode
manifestar-se nos opostos que não se dividem, do mesmo modo relativamente
estáveis, e em que um núcleo psicótico pode estar muito escondido. Então, na
extremidade oposta do espectro, encontra-se a esquizofrenia, na qual, muitas vezes,
falta uma separação dos opostos, o que leva a uma fusão dos estados incompatíveis
e a uma sensação de excentricidade. Esta sensação de excentricidade, de
extravagância, de estranheza, acompanha-se pelos processos psicóticos, também
nas pessoas não psicóticas, e esta característica particular do processo psicótico é
um aspecto central na contratransferência que, muitas vezes, leva o analista a
47

rejeitar o processo no decorrer do tempo e a manipular o analisando com um


discurso e um comportamento mais racionais e não psicóticos.
Quando faltam as defesas como a negação, a idealização e a divisão mente-
corpo, as partes psicóticas invadem a personalidade consciente. Então, o indivíduo
se torna fortemente dissociado e pode oscilar entre as fases da realidade na relação
com a própria pessoa e com os outros. O comportamento e a fantasia decorrentes
de tais partes podem deformar a realidade de modo muito sutil. Enquanto se está
comportando em modos que parecem inspirados, o indivíduo pode não ter qualquer
consideração por outra pessoa, ou, em relação a isto, pela própria alma. O analista
é, normalmente, influenciado do mesmo modo. Quando em uma análise emerge a
loucura de um analisando, o analista se sentirá, muitas vezes, desorientado e será
extremamente difícil concentrar-se e ter nas mãos o processo. O próprio centro
parece vir a faltar e predominam as partes dissociadas.
Falar das partes psicóticas é, de certo modo, uma contradição. Nós não
esperamos jamais os estados psicóticos de outras pessoas, como se fossem uma
parte dela, como nos momentos em que falamos de um complexo. Os estados
psicóticos são como as águas do caos na alquimia ou nos mitos de criação, espaços
psíquicos nos quais a linguagem cartesiana entra em falência. Tais estados se
estendem prontamente ao analista, criando um campo em que não é possível
afirmar quem esteja contendo a ‘parte psicótica’. O analista e o analisando têm mais
o que fazer com fenômenos de campo não reduzidos às estruturas separáveis.
Geralmente, o termo ‘parte psicótica’ ou uma expressão similar é compreendido
aqui, como um termo sintético que ajuda a designar o domínio das experiências em
que reina o processo psicótico. Mas não possui a finalidade de conduzir a uma
abordagem em que o analista se esforça para falar das ‘partes psicóticas do
analisando’, como se elas fossem, de qualquer forma, totalmente separadas dos
mesmos fenômenos do analista. De certo modo, para que a análise de tais áreas
possa ter sucesso, a psicose na transferência constela a psicose na
contratransferência, mas a um nível mais baixo e de forma mais manejável.
Existe um paralelo interessante entre o comportamento das áreas psicóticas e
o caos como é concebido no âmbito da teoria do caos. Até o advento da teoria do
caos, os cientistas aprenderam a não focar sobre ela. Na sua constante
preocupação para pesquisar a ordem, eles raramente estudaram a causalidade e as
modificações improvisadas e imprevisíveis. Muitas vezes, a descoberta que certos
sistemas aparentemente causais, de fato, tinham no seu interior uma espécie de
ordem que afrouxou o terreno e – segundo o entusiasmo dos que escreveram, foi
como um novo paradigma científico.
A exploração das áreas loucas ou psicóticas constitui um paralelo muito
próximo a tal situação. Por um longo tempo se pensou que esses estados da mente
fossem, essencialmente, não analisáveis, sendo assim, irregulares em suas
aparições, ao ponto de não podermos encontrar uma contenção estável no processo
analítico. Além disso, os seus afetos e as suas imagens foram considerados muito
excêntricos para decifrar e com ausência de significado. Considerou-se que uma
forma extrema de tal estado fosse encontrada na esquizofrenia.
48

Como os cientistas estão reconhecendo as qualidades caóticas nos sistemas


que uma vez eram considerados dotados de ordem suprema, – por exemplo, as
órbitas dos planetas, e começamos também a reconhecer o valor do caos, assim
eles poderiam começar a questionar-se – como fez a ciência antiga – sobre a função
criativa das áreas psicóticas da mente. Uma sensibilidade extrema das pequenas
variações – o sinal distintivo daqueles que a ciência considera processos caóticos –
e, somente um irritante ponto fraco na criação individual, um pouco de desordem
com a qual se necessita, de qualquer maneira, prestar as contas? Ou então, tal
desordem poderia ter uma função ou uma finalidade que não foram vistas? Certos
estados da mente não parecem revelar uma ordem mais profunda. Eles perecem
permanecer ‘buracos negros’ na psique que absorvem toda forma de ordem e não
substituem com outra qualquer. Mas outros estados da mente, que parecem
completamente fragmentados e sem significado, na realidade se revelam dotados de
um insólito tipo de ordem com a qual é possível trabalhar.
A área psicótica é em si mesma instável, sujeita a grandes oscilações a partir
do input emotivo ou dos fatores externos ou internos. Ela contém opostos
essencialmente incompatíveis. Mas, em vez de referir-se aos sistemas dinâmicos
movidos no mundo físico e descritos pela teoria do caos, nos quais os estados de
um sistema oscilam de modo radical, mas contínuo, necessitaríamos imaginar algo
em que uma oscilação para um estado anula o estado que existia anteriormente.
Esta imagem seria, na linguagem da teoria do caos, uma atração anômala. Tal
oscilação seria totalmente instável nos termos das condições iniciais, isto é,
poderíamos modificar qualitativamente em funções de pequenas variações do input.
Creio que este modelo fornece uma útil metáfora para os processos psicóticos. Se
as áreas psicóticas podem ser conceituadas por meio de tais formas não lineares,
não faremos melhor conviver com elas, tanto no trabalho analítico, quanto na vida?
E se esta não linearidade existe, não seria melhor que as formas caóticas da
transferência e da contratransferência, nas quais se exaure todo sentido de
significado, fossem aceitas enquanto o processo que pode gerar um novo significado
através de um tipo de ordem não usual? De fato, se elas pudessem encontrar esse
tipo de contenção, nós não poderíamos então considerar as áreas psicóticas como
formas potenciais criativas? Adquirir esta nova perspectiva requereria a contenção,
não por parte de uma mente que preenche e detém o processo do analisando, mas
por uma mente que foca sobre um processo caótico quando ele revela as suas
formas instáveis de ordem. Esta é uma possibilidade clínica.
Por essa perspectiva privilegiada, a psique não é vista como um sistema
estável de objetos que interagem com outros objetos. Às vezes, se podem fazer
experiências somente de barulho e de estados sem significados, mas depois
aparece algo único; e caso se consegue pegar este evento, então se começa a ver
de modo novo e a reconhecer processos anteriormente escondidos e criativos. É
este o efeito produzido pela visão da área psicótica; e quando ela é contida, a
criação de um Self pode ser sentida como se estivesse muito próxima do próprio
processo criativo.
49

Além do tema geral do seu poder transformador, o analista tem uma razão
específica para assumir estas áreas como uma prima materia. Nos anos da primeira
infância, alguns indivíduos viram que um ou ambos os seus genitores eram ‘loucos’.
O genitor não era necessariamente psicótico de modo evidente - ainda que isso
pudesse acontecer e fosse negado pelo sistema familiar - mas a criança preferiu ver
de modo imaginário, atrás das cenas, que o genitor era guiado por forças fora do
seu controle, ou que se retirava e estava completamente ausente, ainda que agisse
como se estivesse presente e mentalmente são. Esta psicose não se desencadeava
necessariamente por todo o tempo, mas era uma presença angustiante que a
criança avistava em segundo plano, ou ainda se manifestava ocasionalmente
quando o objeto genitorial sofria um deslocamento temporário da personalidade,
como por exemplo, através do uso de substâncias como o álcool. A psicose
genitorial podia desencadear-se assumindo a forma de abuso físico e sexual, mas
quando as áreas psicóticas dessas figuras genitoriais não agiam de tal forma como
abertas e devastadoras, comumente se manifestavam na modalidade mais sutil e
insólita.
Por exemplo, um pai deu a permissão para que o filho dirigisse o seu carro,
mas insistiu para que não usasse o rádio. O filho, naturalmente, usou, e toda vez
procurava sintonizá-lo no modo como tinha encontrado; todavia, o pai sabendo que
ele sempre ligava o rádio, se enfureceu. Essa história poderia lembrar simplesmente
a representação de um comportamento extremo. Mas significa muito mais: o jovem
sabia que naquelas ocasiões o seu pai ficava ‘completamente’ fora de controle,
verdadeiramente louco. Sabia que a loucura estava sempre latente nele,
manifestando-se em vários modos que poderiam sempre ser redimensionadas,
como simples exemplo do seu rigor.
Em outro exemplo, o pai de um homem insistia para que os seus filhos,
entrando em casa, limpassem cada vez, imediatamente os próprios calçados,
mesmo quando ainda tinham somente três anos de idade. A veemência e a violência
do seu pai aterrorizavam, tanto ele, quanto seus irmãos, pelo medo de não serem
perfeitos na higiene dos calçados. Todavia, o pai estava bem adaptado, amava a
sua comunidade, e somente quando bebia demais se mostrava abertamente
aterrorizante e fora de controle.
Poder-se-ia fornecer muitos outros exemplos sobre o modo como a psicose
de um objeto genitorial é uma presença escondida, sempre amedrontadora,
manifestando-se ocasionalmente, com um comportamento controverso que, na
maioria das vezes, tende a ser normalizado pelo outro genitor. Como resultado
disso, a visão da sua psicose, por parte da criança, teve que ser dividida.
Quando pessoas desse tipo empreendem um tratamento, evidenciam vários
níveis de associações, que aparecem, muitas vezes, nos sonhos ou são percebidas
intuitivamente como imagens de uma criança dissociada do estado normal do ego
da pessoa. Normalmente, a ‘criança’ fica eternamente amedrontada. É muito fácil
presumir que tais indivíduos foram vítimas de abuso incestuoso, enquanto o seu
comportamento traumatizado pode ser o mesmo de quem sobreviveu a um abuso.
Mas esta explicação pode ser somente uma abordagem apressada à qual nos
50

agarramos no desejo de compreender o motivo pelo qual a vida de um analisando


não se transforma de modo suficiente. Uma pessoa inteligente, criativa e dotada de
insight pode repetir o mesmo comportamento destrutivo e continuar a se envolver
para minar as relações objetais. É minha experiência que tais áreas psicóticas no
analisando, constituem-se através da incorporação e da divisão da sua percepção
imaginária de psicose no objeto genitorial, estão sujeitas ao mesmo tipo de repetida
compulsão, que um analista encontra nas vítimas de abuso sexual físico. Como
consequência desta divisão, a realidade se deforma, e a deformação continua no
decorrer da vida, destruindo a vida e a vitalidade do ego e do Self ampliado. Áreas
psicóticas, muitas vezes, se formam também em pessoas que sofreram abuso físico
ou sexual, sobretudo, quando elas não estão em grau de usar formas neuróticas de
dissociação com a finalidade de sobreviver.
Como resultado do processo de negação, a pessoa ficou traumatizada por
uma área psicótica de um objeto genitorial e carrega consigo um ‘objeto estranho’,
isto é, o processo psicótico do genitor, agora misturado com as próprias defesas de
divisão. Para relacionar-se eficazmente com tal amálgama, o indivíduo deve, antes
de tudo, chegar a reconhecer a própria área psicótica e, portanto, empreender a
coragem para ‘ver’ novamente o que tinha visto há tempo, e agora, como num ato de
auto-relembrança, não dividir mais tal percepção. Então, o indivíduo deve confrontar,
contudo, o problema que, possuindo tal percepção, significa estar sozinho, não ter
nenhuma escolha senão aquela de abandonar o sistema familiar. Muitas vezes, a
verdade que ele ’vê’, é de qualquer modo cruel, mas, de forma mais profunda, esta
visão é o caminho para a liberdade e a posse de um Self.
A chave para tratar as partes psicóticas é que a relação seja capaz de
impregnar o analista e o analisando. Este empenho é raramente uma questão de
foco constante; mas é semelhante à observação da pista de uma reação em uma
câmera de névoa no âmbito das ciências físicas. Por um instante, o analista vê a
estrutura peculiar dos opostos na área psicótica; ou pega de passagem uma divisão
reatualizada em que vivem conteúdos psicóticos perigosos e devoradores,
anteriormente divididos pela pessoa; ou pode perceber pelo caminho da imaginação,
opostos estranhos lado a lado, estranhos por causa do modo com o qual se
combinam para produzir as qualidades excêntricas.
Karl Jaspers observou: “a mais profunda diferença na vida psíquica é aquela
entre o que contém significado e permite a empatia e o que, a seu modo, é
incompreensível, ‘psicótica’ no sentido literal, vida psíquica esquizofrênica” (apud
Sass, 1992, 16-17). Como Louis Sass evidenciou em Madness and Modernism, as
fantasias:

podem ser totalmente ilusórias, mesmo sem ser excêntricas. Mas nos
esquizofrênicos são excêntricas. Um indivíduo afetado pela psicose
maniacal pode se sentir como se estivesse criando o mundo, e aquilo que
pode ser entendido como o resultado de graves sentimentos de
inferioridade que ele está procurando compreender. Nijinsly durante uma
crise esquizofrênica: ‘Uma vez andei de passagem e me pareceu ver
sangue sobre a neve. Segui os traços de sangue e percebi que alguém, que
ainda estava vivo, tinha sido assassinado (Sass, 1992, 17).
51

O sentido do excêntrico, assim como mostrarão exemplos posteriores,


acontece através da fusão das imagens contraditórias na área psicótica. Estados
incompatíveis se fundem juntos, mas o fazem de modo que não é desprovido de
ligações. Ao invés de gerar um produto simbólico que transcende ambos, eles
geram um estado místico que manifesta mensagens contraditórias e um sentido de
estranhamento.
Enquanto um indivíduo não psicótico não apresenta geralmente ilusões tão
evidentes, e qualquer fantasia excêntrica ele possa não ter expressado de modo tão
direto, como no caso de Nijinsky, o mesmo tipo de material desorientador e
insensato pode, algumas vezes, encontrar-se tanto nos discursos aparentemente
normais, quanto nos sonhos.
Por exemplo, uma analisanda sabia que devia abandonar a relação com a
qual estava envolvida, mas contemporaneamente, negava esta sua consciência,
fazendo frequentes afirmações contraditórias no interior do próprio discurso.
Enquanto ainda estava procurando desesperadamente encontrar um sentido no
comportamento duplo e nas duplas mensagens do seu namorado, ela sonhou:

Está acontecendo uma festa oferecida por um casal enraivecido que está para se
divorciar. A festa celebra o fato de eles estarem juntos, por um ano.

Aqui, a contradição não é tão forte como aquela que encontramos na ilusão
de Nijinsky, e se apresenta em um sonho. Mas a contradição existe como modelo
inconsciente que confere um sentido excêntrico às comunicações da paciente.
Muitas vezes, as imagens oníricas desprovidas de sentido, podem assinalar uma
área psicótica, como no caso de um homem que sonhou com um mamilo que se
desenvolvia em seu bezerro. Obviamente, caso se consiga encontrar um significado
em tais imagens, elas deixam de ser excêntricas e não indicam mais a presença de
um processo psicótico. Mas seria ingenuidade supor que tais possibilidades fossem
as regras, ao invés da exceção. Este tipo de suposição pode ser uma resistência
contratransferencial para ver claramente que um analisando pode ser
completamente psicótico e ser estranho. Geralmente, o analista deve sintonizar-se
com a falta de significado que uma imagem parece possuir, mas, ao mesmo tempo,
deve perceber que esta ausência de significado é uma função da sua própria psique
e da interação com o analisando. Porém, no trabalho analítico, tudo o que o analista
pode oferecer é a própria perspicácia e a própria subjetividade. Todavia, é próprio
desta condição limitada que pode emergir a verdade para o analisando.
Outro homem sonhou com uma criatura serpentiforme de cores branco e
marrom, que se desenvolvia ao lado de seu pé esquerdo. Uma mulher sonhou com
três seios que cresciam nas suas costas. Num outro exemplo que indica a grave
dissociação que, muitas vezes, acompanha o processo psicótico, um homem
sonhou que se encontrava em uma ilha e que, de repente começou a ser invadida
por milhares de criaturas semelhantes a touros em miniatura. Ele acordou
impregnado pelo terror, seguido de uma regressão que durou seis meses. Só então
conseguimos voltar às imagens psíquicas violentas que foram apresentadas a ele.
52

Uma mulher, em outro exemplo de processo psicótico dissociativo, sonhou com


milhares de seres indescritíveis, semelhantes a insetos, que rastejavam sobre o seu
corpo. E um homem que estava defendendo-se da sua área psicótica, sonhou que
estava lendo um livro. Mas, de repente a sua identidade mudou e se viu olhando
através dos olhos de uma pessoa diferente e viu uma cena caótica em um hospital
psiquiátrico no qual os pacientes estavam todos emaranhados e confusos.
Às vezes, as áreas psicóticas são explícitas, como no caso de um homem
que sonhou estar transportando sobre as costas a sua mãe psicótica. Ou então, de
uma mulher, cuja mãe recentemente esteve internada num hospital psiquiátrico, que
sonhou estar transportando-a de casa em casa, procurando encontrar um lugar onde
depositá-la. Mas, geralmente, as áreas psicóticas comunicam-se conosco através de
um sentido posterior de estranhamento que pode desencadear em seguida, uma
sensação de desorientação e de vazio mental, ou então, comunicam-se através de
reações dissociativas de contratransferência do analista.
Uma área psicótica submete o indivíduo a uma pressão interior extrema. Sob
o seu impacto, o analisando pode sofrer de um sentido crônico de incapacidade de
atuar em uma vida dotada de qualquer continuidade e estabilidade. Uma mulher
sofria da sensação de que tudo a sobrecarregava. Uma vez, por exemplo, teve a
ideia de organizar um jantar na sua casa para os seus amigos. A ideia lhe parecia
tão bela ao ponto de fazê-la sentir-se envolvida por sentimentos muito ricos e
criativos. Mas logo este estado eufórico se transformou num completo terror e,
repentinamente teve a convicção de que o jantar teria sido um fracasso. Ambos os
seus estados eram totais, e cada um deles não permitia que, nem menos um aceno
do outro estado entrasse nela. Outro exemplo sobre o modo como a parte psicótica
se infunde na experiência interior de um indivíduo e a distorce: uma mulher teve a
ideia e imaginou estar vendo no seu quarto o belo gato do seu professor. A presença
do gato lhe comunicou um sentido de graça, de beleza e de calma. Então, ela sofreu
uma mudança radical, e foi totalmente engolida pelo pensamento da sensação dos
aborrecimentos que teria pelo fato de ter que cuidar do gato. Em continuidade com
estes estados de mutação, sentiu-se submersa em tais pensamentos sem poder
controlá-los, e todo o seu corpo começou a doer. Não tinha condições de lembrar-se
de nada sobre a experiência inicial de beleza e de graça; tudo aquilo estava
completamente eclipsado. Caso a sua área não psicótica tivesse sido envolvida ou
se ela não tivesse um setor psicótico tão significativo, ela poderia ter provado o
sentido da beleza, e sucessivamente teriam se apresentado nela os pensamentos
daquilo que, concretamente, significaria ter um gato, oxalá, redimensionando a ideia
de ter um. Por sua vez, a presença do gato poderia começar a fazer interiorização
do desenvolvimento de um símbolo interno, um sentimento de um ‘gato interior’, que,
oxalá, representasse a sua imagem pessoal de graça e de beleza. Mas no seu caso,
os opostos estavam tão divididos, de nodo a impedir o processo simbólico que, por
definição, reúne juntos os opostos em um terceiro elemento que proporciona
significado.
53

Muitas vezes, uma área psicótica de um indivíduo pode ser um armazém de


criatividade – em termos alquímicos, ‘pérola de grande valor’ – mas fazê-la
desabrochar não é coisa simples. Por exemplo, uma mulher que tinha conhecido a
própria parte psicótica percebeu que tal psicose tinha se formado nela como
resultado das interações com seu pai. Ele parecia um pai maravilhoso e muito
afetuoso, mas de repente se tornava agressivo e ela sentia que ele aniquilava cada
sentido da sua identidade e de seu valor. Ela se tornou incapaz de idealizá-lo, isto é,
de manter o pai positivo na sua própria mente e separar daquele negativo. O
negativo, invés, estava sempre ali com o positivo e mantinha sob pressão a sua
mente enquanto possibilidade sempre presente, também quando o seu pai estava
atuando o seu eu maravilhoso. Era como se fossem dois binários, dizia ela, cada um
com seu trem, e ambos sempre vivíssimos, a poucos milímetros de distância.
Porém, os opostos estavam quase fundidos juntos na sua mente, e ela não
conseguia manter completamente separados. Cada um era absolutamente
verdadeiro, e cada um anulava o outro. Quando, interiormente se tornava confusa,
amedrontada e plena de idealizações distorcidas de si e dos outros, ela conseguia
também ser notavelmente criativa e produtiva. O problema era, todavia, a atração
que, muitas vezes, ela sentia por homens criativos que podiam ser decisivamente
psicóticos. Estas relações terminavam por ser desastrosas, pois, por um lado,
reproduziam a sua experiência com o pai e, por outro, representavam uma tentativa
de desabrochar a própria criatividade através de uma área psicótica. Em tal
processo, a sua criatividade pessoal não emergia.
As áreas psicóticas, que muitas vezes, são um anátema para o indivíduo e
para qualquer um que se encontra em contato com ele, para além da relação
analítica (e comumente também nesta), são na realidade, um hábil esconderijo para
tudo o que o indivíduo mais prefere e que, mais que tudo, quer preservar das
relações abusivas. Na mitologia alquímica, é no esterco e, geralmente, nos lugares
desprezíveis que se encontra o símbolo central de um Self unificado, a tão
procurada ‘pedra da sabedoria’, o Lápis.

MANIFESTAÇÕES DOS NÚCLEOS PSICÓTICOS

Os analistas ocupam-se em diferentes modos, com as dinâmicas da


transferência psicótica. O que pode conter os estados de inércia interior, de vazio e
confusão que emergem quando a atenção do analista começa a se fragmentar?
Muitas vezes, em um ato de vontade, por exemplo, um esforço intenso de
concentração, pode acontecer uma retirada esquizóide ou a regressão que
acompanha o distúrbio do equilíbrio de uma personalidade narcisista. Mas a
dissociação da parte psicótica, geralmente, oprime o ego do analista. Muitas vezes,
mas não sempre, uma qualidade de consentimento pode desabrochar da
compreensão do analista de que nos bastidores está agindo uma transferência
psicótica. Em outras palavras, o analisando pode ser totalmente racional e também
relacionado com os seus próprios afetos, diferentemente de quando ocorrem as
dinâmicas de divisão do estado esquizóide, mas é dominado por uma projeção de
54

natureza psicótica. Por esta perspectiva, o analista é um objeto perigoso,


persecutório; perdeu-se o ‘como se’ de uma projeção não psicótica. Também, o
nosso modo de ver este estado é essencial para que a parte psicótica esteja contida.
O analista deve conhecer o estado psicótico no analisando, não somente enquanto
realidade psíquica, mas também enquanto estado normal da mente, porque, ao ver
a parte psicótica, o analista tende a retroceder diante da sua natureza que distorce a
realidade. O analisando parece estranho ao analista. Este estranhamento é inerente
à fenomenologia da irrupção da psicose no mundo cotidiano normal de um indivíduo;
o fenômeno da psicose é semelhante ao deus grego Dionísio, mas é também uma
emanação do medo do analisando de ser visto como um leproso psíquico. Muitas
vezes, o analista deve ser capaz de perceber a parte psicótica de um modo aderente
aos fatos. O analista se encontra diante de uma pessoa ferida e limitada (como
somos todos), mas se encontra também diante de alguém dotado de beleza e de um
valor que, de fato, derivam em grande parte, do seu sofrimento em nível psicótico.
Muitas vezes, se o analista deixa de permanecer com os pés no chão e se
põe a falar sobre as deformações da realidade e da transferência psicótica, pode
acontecer que o analisando reconheça a retidão do que está sendo dito, mas em
ambos se apresenta o estado dissociativo enquanto a angústia não for contida. Se,
invés, o analista consegue permanecer encarnado, e encontra e examina a parte
psicótica, estará em grau de produzir as interpretações que contém o analisando.
A transferência psicótica é um estado no qual, em qualquer medida, existe
ainda a aliança terapêutica analista-analisando. Portanto, o analista está em grau de
‘ver’ o ‘duplo’ diferente no analisando, nisso se verifica certo alívio, e a isso se segue
um sentido de contenção. Quando, invés, a aliança analisando-analista perde a sua
qualidade e a transferência se torna enganosa, não existe visão ou relação
empática, ou compreensão que tenha qualquer efeito de contenção. O analista e o
analisando permanecem, ao menos momentaneamente, em um estado em que o
maligno acaba levando vantagem.
Para conter o campo psicótico, o analista deve estar em grau de reconhecer a
loucura e resistir à tentação de traduzi-la em qualquer sistema de pensamento que
lhe seja familiar. A parte psicótica, na sua essência, fragmenta os pensamentos,
conduz a estados de vazio e, sobretudo, atormenta o analisando com um calvário de
angústia mental, onde cada coisa que ele sente ou pensa pode rapidamente ser
anulada, portanto, a um estado em que o que foi dito não possui algum significado.
O analisando se percebe ter tentado se agarrar num fio suspenso no vazio, sem
nenhum sentido de um centro interior que o orientasse, ou de uma sustentação de
fundo que pudesse lhe dar a sensação de estar no caminho certo. Ao contrário,
nenhum caminho parece ter significado. Os opostos divididos pela parte psicótica,
em vez de criar um estado de suspensão voluntária do saber, tornam-se um fator de
violenta dilaceração dos pensamentos e dos sentimentos, privando de significado
qualquer estado.
Se o analista consegue conter a parte psicótica, percebendo o desespero total
que abarca o analisando, convencido de que esta parte e os seus efeitos jamais
mudarão, então, pode verificar-se uma nova experiência do Self. Para acelerar essa
55

transformação, o analista sacrifica a própria onipotência e se alinha com a realidade


do analisando que, com razão, pode ser considerada real. Não é somente questão
de empatia, mas de coragem de deixar aberta a possibilidade de errar. Tudo aquilo
que o analista pode oferecer concretamente é uma incerteza proporcional, diante do
pessimismo do analisando. O mistério desta incerteza proporcional se encontra na
sua qualidade de contenção. Enquanto esta incerteza não for comunicada, que não
se trata de uma renúncia à confiança, o estado de não saber do analista não
alcançará um lado criativo.
A parte psicótica se manifesta em uma miríade de modos; para ter a
percepção, o analista deve registrar as contratransferências e usá-las. Pode
acontecer que o analista assuma uma tendência à dissociação, da qual faz parte a
retirada e a perda de energia, assim como comumente acontece com as dinâmicas
esquizóides, mas, antes de tudo, ele se sente fragmentado, o que lhe torna
extremamente difícil, entre os sentimentos de vazio, ausência, ignorância e apatia,
concentrar-se sobre o analisando. Qualquer tentativa de manter uma orientação fixa,
e que tenda a se mover para os postos, vacila facilmente. Como consequência
destes desagradáveis estados mentais, o analista pode sentir ódio do analisando e
pode tender a retirar-se ou a atacá-lo.
Nestes momentos, a tendência do analista, invés, será de evitar entrar em
contato afetivo com o analisando, sobretudo rompendo com os sentimentos
negativos; de deixar que a dissociação proceda, e de caminhar adiante, como se
nada tivesse acontecido. Uma tendência concomitante do analista, que comumente
é um sintoma da constelação da parte psicótica, é aquela de começar a acentuar as
energias do analisando, abordando as partes normalmente mais neuróticas.
Continuamente, o analista aprenderá que nestas suas manobras, acentuou um dos
opostos da parte psicótica e excluiu o outro, na esperança de reduzir a própria
angústia.
Se conseguir entrar em contato com o campo dissociativo que acompanha a
transferência psicótica de tal modo a poder manter uma presença coesa e envolver
emocionalmente o analisando, o analista pode começar a clarificar o campo a ponto
que este não mais seja uma desintegração de fragmentos agressivos e destrutivos
da imagem, mas toma a forma das imagens reais. Então, o analista pode reconhecer
uma forma de transferência psicótica. Por exemplo, o setor psicótico do analisando
deforma a imagem do analista em um animal agressivo ou em uma figura genitorial
perigosa. O analista passa a ser identificado com as partes da psique genitorial que
foram particularmente perigosas para o analisando. Um exemplo disso é o fato de
ver o analista como morto: sucessivamente se pode descobrir que este estado fez
parte da vida interior psicótica de um genitor que o analisando dividiu da própria
consciência. Ao tornar clara a natureza da transferência psicótica, o analista percebe
que o analisando o vê de modo extremamente irreal. Nestes momentos, o
analisando parece também estranho e estrangeiro para o analista, enquanto o
estado psicótico opõe-se radicalmente à parte neurótica normal em que geralmente
se encontra. Se o analista consegue viver esta transferência de modo
56

suficientemente estável, muitas vezes, as percepções de si mesmo do analisando e


do analista podem direcionar-se e transformar-se profundamente.
Enquanto o analista está clarificando esta sequência de desrealização ou de
despersonalização, as resistências do analisando a experimentar a parte psicótica
podem começar a clarear-se e transformar-se. Tais resistências geralmente se
mostram de natureza erótica, compulsiva, maniacal e sado-masoquista. Como
exemplo, são muitas vezes, divididas na parte psicótica formas extremas de sado-
masoquismo. Quando esta parte é contida, e se torna personificada, pode se tornar
evidente que grande parte do comportamento sado-masoquista extremo de doar-se
aos outros, ao mesmo tempo em que sutilmente se retira, é, na realidade, uma
defesa inconsciente da psicose. É também minha impressão que a experiência de
um abuso sexual sofrido na infância, muitas vezes, reside em um setor psicótico, e
que, recuperar as recordações, poder exigir um trabalho com as dinâmicas desse
setor.
Adquirir consciência dos distintos opostos situados no interior do setor
psicótico requer, muitas vezes, muito tempo e fadiga. Geralmente, os opostos destes
setores possuem uma qualidade particular da divisão total e também da fusão: elas
perecem andar por própria conta, mas também se misturam ao ponto de fazer
desaparecer a sua distinção. Esta divisão lembra a natureza do Mercúrio alquímico
que é uma boa imagem da qualidade do campo geral destes opostos. No interior
deste campo, o analista tende a sentir-se identificado com um ou outro oposto, ou
vice-versa, para se separar da experiência dos opostos. Esta combinação particular
de fusão e divisão situa os opostos em um estado colocado nos confins daquilo que
os alquimistas definiam ‘anterior ao segundo dia’, o que quer dizer, anterior à
separação dos opostos. Eles emergem, separam-se, e depois se reúnem de novo
rapidamente em um estado indistinto de fusão. Mas o mais importante é que, na
parte psicótica, a fusão e a separação dos opostos podem verificar-se com extrema
rapidez, produzindo uma oscilação que pode criar pânico e confusão.
A área psicótica, como cada complexo, é estruturada por qualidades opostas,
como o amor e o ódio; mas nas áreas psicóticas os opostos não se completam e
nem se compensam, ou se equilibram mutuamente. Eles se comportam mais como
antimundos recíprocos: fazer experiência ou conscientizar-se de qualquer estado
mental conduz, muitas vezes, à consciência de um estado oposto que destrói
completamente a percepção anterior. De certo modo, o analista e o analisando
ocupam-se com um processo à beira da separação dos opostos, como se um oposto
e depois o outro emergissem, um de cada vez; mas eles não coexistem, a não ser
que um ato intencionalmente consciente não os mantenha juntos. Muitas vezes, o
processo imaginário se diferencia do processo de identificação projetiva, em que um
oposto é dividido no analista; no encontro com as áreas psicóticas, a percepção do
oposto se anula e escorrega novamente para o inconsciente. Às vezes, um analista
pode pensar de ter se esquecido do que apenas ocorreu, mas com uma reflexão
mais profunda, perceberá que não é assim. Certa percepção foi, então, anulada, e
outra percepção ou um estado de inconsciência tomou o seu lugar.
57

O processo de descoberta dos opostos na parte psicótica, geralmente,


decorre de tê-los experimentado, profundamente divididos, entre um campo
interativo e, às vezes, tendo-se percebido em uma identificação projetiva. O analista
sente os apostos divididos, cada um competindo para obter a atenção total, e sente
entre eles, um espaço que provoca um estado de ausência ou de vazio em que as
suas energias se enfraquecem, tornando-se difícil manter a consciência. Quando o
analista compreende que os opostos são um par em relação mútua, isto é, consegue
não identificar-se com um ou com o outro, então se torna possível um novo
desenvolvimento. Pode nascer um campo de união, a percepção de uma
experiência de coniunctio. Através de tal experiência, para ambos, tanto para o
analista, quanto para o analisando, amplia-se o coração. Esta é normalmente uma
experiência nova para o analisando, em que a experiência e a visão do coração
estavam impedidas por uma defesa maciça. A compreensão dos opostos não leva
sempre a tal experiência, mas leva a uma nova consciência do setor psicótico, e
especialmente, da sua natureza limitada. O analista e o analisando podem aprender
a conhecer o poder que o setor psicótico desempenha na deformação da realidade,
de modo sempre sutil e através desta consciência conseguem desenvolver um
processo onde podem emergir os aspectos da psique escondidos no setor psicótico.
O caso mais comum é aquele de uma parte esquizóide, cuja fraqueza essencial, a
falta de relação e a natureza deformante, leva a um profundo sentido de humilhação.
Somente a consciência dos opostos que faz parte da consciência adquirida, permite
com que esta experiência seja contida ao invés de traduzir-se em um estado
persecutório. Acontece que o que parece esquizóide e sem vida, muitas vezes,
começa a manifestar-se como parte de um campo fortemente energético que foi
dividido. Em tais aspectos típicos, a descoberta da parte psicótica e o trabalho com
as suas energias, são semelhantes a um processo criativo.
Um conflito entre o processo de divisão no setor psicótico e o da dissociação
nos distúrbios dissociativos revela que as partes que se encontram em desordem
dissociativa são mais íntegras. Geralmente são diferenciadas umas das outras por
uma barreira de memória, e continuamente levam a pessoa a um estado induzido,
semelhante a um transe no objeto com o qual o indivíduo está se relacionando. Tal
condição tem um efeito dissociativo também sobre este último, mas não produz uma
fragmentação semelhante àquela induzida por uma área psicótica. As perturbações
dissociativas podem formar-se para superar um abuso ou para separar os opostos
das frequentes duplas mensagens com as quais o indivíduo cresceu durante a
infância. As duplas mensagens são comunicações compostas por duas mensagens
contraditórias, com o requisito implícito de que o destinatário da mensagem não
elabora a contradição. Na defesa da confusão do duplo vínculo, cada uma das duas
partes do vínculo desenvolve uma parte dissociada. Todavia, em uma instância
psicótica, a divisão, o abuso e as duplas mensagens não são elaborados através do
transe - a capacidade de fazê-lo, provavelmente, está em uma base genética, assim
como a capacidade de ser hipnotizado. Uma área psicótica desenvolve, por vezes, o
que é definido pelos opostos, e que são experimentados como os antimundos que
se anulam mutuamente.
58

Os opostos divididos no setor psicótico criam uma extrema confusão nos


numerosos encontros cotidianos. Por exemplo, um aluno de uma sala me fez uma
pergunta acerca de algo que eu tinha dito em uma aula que ele tinha assistido. Algo
naquela pergunta me irritou. Esta sensação piorou quando ele prosseguiu fazendo
outra pergunta baseada sobre o que eu tinha dito naquela mesma aula. A este
ponto, senti um ímpeto de cólera e confusão. Por um lado, ele tinha distorcido o que
eu havia dito, fazendo de um modo que a tornava difícil de reconhecer. Por outro
lado, estava colocando uma pergunta importante, que, todavia, me inseria no conflito
da dupla mensagem. Se eu considerasse a sua distorção, penso que o atacaria,
esquivando-me da sua pergunta; se a sua pergunta fosse dirigida a mim, pode ser
que teria avaliado a distorção. Nessa interação, eu estava incapaz de separar os
dois fios da sua comunicação, enquanto para o grupo se tornava praticamente não
gerenciável uma comunicação tão pessoal. A natureza do campo que se manifesta
através da dinâmica da parte psicótica criou uma confusão suficiente, ao ponto de
tornar muito difícil o pensamento de modo diferenciado.
Assim, as diversas partes de um estado dissociativo, podem, muitas vezes,
parecer totalmente opostas umas das outras, pois elas existem no interior de um
reino da lógica do transe, assim que estas contradições não levam,
necessariamente, à confusão. X e Y podem ser afirmações completamente
contraditórias, como a convicção de uma pessoa de ser totalmente competente ou
totalmente incompetente. No reino da lógica do transe, essas convicções opostas
podem existir simultaneamente. Mas quando se trata de um complexo psicótico, X e
Y representam estados mentais que não existem de modo equânime, e combinando-
os, eles se anulam mutuamente ou ainda criam um sentido de excentricidade. As
suas oposições não podem ser tratadas como se existissem de modo hipnótico de
lógica do transe; elas, talvez deixam o indivíduo suspenso em um estado de
confusão. Quando se começa a fazer a experiência deste estado, a única coisa que
um analista pode fazer é ficar confuso, mas o importante é não confundir-se em
relação ao ficar confuso. A confusão no interior do campo criado pela parte psicótica
é o meio pelo qual o analista e o analisando trabalham. Se o analista deixa a
confusão de lado, será inclinado a sentir uma cólera imponente e tenderá a seguir o
analisando desde a área psicótica para levá-lo para um mau funcionamento mais
competente. Esta divisão pode verificar-se quando o analista se ocupa com as
partes de uma perturbação dissociativa; mas isso acontece geralmente quando se
exaspera com as partes recentemente dissociadas. Ou ainda, a divisão do analista
se verifica quando não consegue reconhecer a totalidade do sistema das partes e
tende a tratar a pessoa como se uma parte fosse a totalidade, com a única finalidade
de encontrar grandes resistências e regressões. No estresse destes estados
dissociativos induzidos, o analista pode ter a tendência de sentir o mesmo tipo de
raiva impotente que se verifica com relação às áreas psicóticas. Mas quando o
analista reencontra a orientação e encontra o tom de voz apropriado que pode
encorajar o sentido tranquilizador da conexão, a angústia que, em certo momento
parecia catastrófica, pode rapidamente desaparecer. Este tipo de modificação não
se verifica com relação à área psicótica, na qual os sentimentos catastróficos não se
59

modificam tão prontamente. Quando a natureza da divisão não é contida em um


campo interativo e na imaginação do analista, e quando estes perdem a sua
capacidade de conservar um ego no meio da confusão e das amarras contra a
possibilidade de relacionar-se, então se pode verificar uma regressão perigosa.
Muitas vezes, esta regressão provoca colapso do tratamento e uma série de feridas
no analisando.
Ainda que o material de uma pessoa dissociada possa parecer excêntrico,
estas comunicações podem parecer muito mais compreensíveis e significativas do
quanto ocorre nos processos psicóticos. Por exemplo, uma mulher sonhou que
estava comendo um cérebro de uma pessoa que jazia sobre uma mesa. Era
também o seu cérebro e tinha o aspecto de tiras de queijo. A imagem, todavia, tinha
um sentido. Referia-se ao modo como ela tinha se dissociado durante um abuso, e
como o seu cérebro estava programado e como ela foi levada a conduzir os próprios
pensamentos. Fosse verdade ou não este constructo, o ponto é que se tornou
rapidamente disponível como uma possibilidade de pensamento, enquanto em nível
psicótico não é assim.
Particularmente importante é o papel da idealização defensiva das dinâmicas
das partes psicóticas. São empregadas com extrema tenacidade para bloquear os
sentimentos de ódio e de raiva direcionados a um objeto e para manter uma imagem
desse ideal. Uma analisanda, enquanto estava elaborando a própria parte psicótica
e as suas defesas idealizantes começaram a declinar, sonhou com uma luz
acenante que rapidamente se transformou em um escuro total. Esses opostos
oscilaram rapidamente criando medo e pânico, impulsionando-a a tentar aprisionar
as próprias defesas idealizantes. Outro analisando começou a ter alucinações sobre
possuir os dentes de um animal. Em várias ocasiões, eu vi imagens oníricas ou
alucinações em estado de vigília em que o analisando tinha garras de animais.
Quando se convive com as diversidades terrificantes e você as contém, isto é, não
age em direção a outra pessoa, por exemplo, através de uma raiva extrema, então
os opostos, na parte psicótica, podem transformar-se. Objetos inanimados tornam-
se animados; formas de animais de sangue frio evoluem em animais de sangue
quente, e os animais se transformam para adquirir, em parte, formas ou linguagem
humana.
Uma vez que os opostos na parte psicótica começam a assumir uma forma
dotada de maior sentido, em que o seu estado de antimundos começa a modificar e
os opostos se aproximam a uma função compensatória, então se pode decifrar, na
parte psicótica, uma lógica particular do tipo ‘nem...nem’. Pode-se decifrar esta
lógica também no fundo da organização borderline, e neste caso, é explicada pela
existência da parte psicótica naquela organização da personalidade, como por
exemplo, uma mulher borderline que tinha aplicado com sucesso as numerosas
defesas, em particular a idealização, para selar a sua parte psicótica, disse que não
se sentia nem morta e nem viva. Disse que não se sentia nem plena e nem vazia.
Cada qualidade era sentida entre um estado desconcertante de não ser nem ‘X’ nem
‘não X’. Este estado de suspense predominava.
60

Com frequência, este estado de suspense se encontra de modo


particularmente forte nas vítimas de abuso quando tentam recordar-se de um
incesto. O indivíduo é, geralmente, atormentado pela pergunta: aconteceu ou não
aconteceu, ou então, estou inventando tudo isso? Mas o ponto é que qualquer coisa
que tenha acontecido, ela emerge da instância psicótica, na qual o analista não pode
verificar nem se aconteceu, nem se não aconteceu. Domina o suspense, um estado
fortemente obstaculizado por mecanismos paranóicos que não podem tolerar a
ambiguidade. Todavia, o analista deve conseguir conter o problema se isso
aconteceu ou não, apenas tolerando o próprio estado de suspense ambíguo.
Como resultado da divisão e dos opostos incompatíveis no interior das áreas
psicóticas, o indivíduo com fortes áreas psicóticas tende a produzir as duplas
mensagens em suas comunicações. E, por sua vez, as áreas psicóticas se formam,
muitas vezes, como uma defesa contra o fato de ser objeto de duplas mensagens.
O trauma desenvolve um papel primário na formação das áreas psicóticas.
Com o passar do tempo, estas áreas podem se tornar ‘lugar’ em que o ego regride
para evitar o sofrimento de uma jovem parte que conserva a memória do trauma.
Por exemplo, uma mulher começou a enfrentar o seu medo de exprimir qualquer
necessidade. Mas este medo era de tal proporção e fundado sobre um trauma
ininterrupto com a sua mãe, às vezes realmente psicótico, tanto que cada vez que
ela começava a sentir a necessidade da minha ajuda, o campo entre nós se
fragmentava rapidamente e eu dificilmente conseguia concentrar-me sobre qualquer
coisa que ela dissesse.
Fora do estado de percepção dos opostos, um indivíduo pode aprender a
respeitar a existência da parte psicótica e modificá-la, posteriormente.
Psicologicamente, envolve-se um sacrifício, uma consciência de estar limitado pela
sua existência. O terapeuta deve submeter-se à condição de ser limitado,
especialmente pela lógica do ‘nem...nem’ e pela extrema divisão na parte psicótica,
estados mentais que desafiam profundamente qualquer sentimento de onipotência
do analista. Mas, através da aceitação desta limitação, tanto no analista, quanto no
analisando, emerge o sentido da estrutura interior do Self e da vida interior da alma.
Também, tanto o analista, quanto o analisando podem aprender que viver ao lado
das energias da parte psicótica tem uma estranha capacidade de abrir o coração, de
criar uma consciência centrada sobre o coração, em que o reino imaginário é uma
potente realidade psíquica e um meio para ‘ver’ o que anteriormente estava
impedido.
A parte psicótica e a transferência que ela cria, podem, portanto, ser
elaboradas. Para obter essa relativa estabilidade, o analista deve, repetidamente,
fazer caminho nas dinâmicas que eu elenquei, enquanto a natureza mercurial da
parte psicótica pode fazer com que a atenção e a consciência escapem do tumulto e
da profundidade desta área. Mas um esforço contínuo, muitas vezes, conduzirá a
uma relativa estabilidade no acesso a esta parte do analisando, um estado que
depende não somente das dinâmicas arquetípicas do nível psicótico, mas também
da disponibilidade do analista de acessar continuamente os próprios estados
mentais psicóticos. Quando a transferência e a contratransferência são elaboradas,
61

o analisando experimenta um estado de contenção que torna possível enfrentar uma


natureza mais profunda da parte psicótica.
Durante este processo de elaboração, o analista e o analisando podem fazer
a experiência não somente de uma opressão emocional, mas também de estados
que não podem ser chamados, nem mentais e nem físicos. Eles são as duas
coisas e se sentem da maneira mais pungente com uma sensação de sofrimento
que parece sem fronteiras. Muitos sentem esse sofrimento na zona do peito, como
em um estado no qual o Outro - pessoa ou deus - está ausente. Então, não existe
outro, senão um paroxismo de terror, uma experiência que faz fronteira com a não
experiência, e leva a muitos a acreditar neste tremendo inferno interior, de sofrer de
percepções e de sentimentos não assimilados em toda uma vida. Estes estados
não metabolizados se verificam em ausência de imagens, mas somente com
sofrimento e terror diante dos fatos que parecem intermináveis. Este nível lembra a
noção de Jung da psique que corre ao longo dos estados limitados pelo ‘nível
psicoide’: um aspecto definido e limitado de uma parte da extremidade vermelha dos
processos somáticos e extensíveis, e por outra da extremidade violeta dos
processos mentais e espirituais. Em nível psicótico, estes opostos se modificam e
não mais se separam.
Quando o nível psicótico é suficientemente elaborado, torna-se evidente
assim como é uma ausência de relação, para abrir as portas ao terror daquele nível.
Seria errado dizer que esta ausência ‘provoca’ a existência daquele nível, pelo qual
estes reinos são arquetípicos, anteriores à criação no sentido de estruturas
adquiridas no tempo e no sentido da ausência do que deveria ter se desenvolvido.
Mas os problemas de relação são particularmente evidentes quanto à falta de
contenção que o nível psicótico introduz na consciência do ego.
Segundo a minha experiência, uma qualidade particularmente importante que
entra em jogo como consequência dos problemas de relação é um profundo
masoquismo. O indivíduo reage ao buraco negro da psicose (Grotstein, 1990) com a
esponja negra do masoquismo. Para opor-se à ausência de relação, o indivíduo a
conecta com qualquer coisa que ele sentir como errada, seja qual for o erro. Cada
coisa, desde os mais leves deslocamentos de interesse ou de atenção por parte do
objeto, real ou destorcido do processo paranóico, aos ataques abertos de culpa por
parte do objeto, é absorvida em nível muito profundo. Este é um fenômeno no
núcleo da parte psicótica, e um dos horrores desta dinâmica é que procede de um
modo totalmente autônomo. Definir este nível de masoquismo como dominado pelo
arquétipo do ‘bode expiatório’, é inadequado ou é uma espécie de magia verbal que
desemboca no horror do fato que, até certo ponto, somos todos como esponjas para
qualquer coisa que nós percebemos como obscura ou errada. O indivíduo com uma
forte parte psicótica é guiado por este estado até o extremo. Ele se relaciona
mediante esta qualidade masoquista e não sente algum contato com a outra pessoa.
O sofrimento do não contato toma o seu lugar. Para conectar-se de modo autêntico,
significaria ter uma confiança em outra pessoa nesse nível, um estado que é
completamente estranho e que se torna uma imagem ou uma possibilidade somente
quando o nível psicótico for desvelado e contido.
62

Através dos efeitos da parte psicótica, não somente se distorcem as relações


objetais, mas também as fronteiras do ego podem mudar rapidamente, de modo que
um indivíduo pode se sentir estar ocupando todo o espaço, ou então, de não ocupá-
lo absolutamente. Para evitar perder completamente o sentido de si mesmo, o
analisando pode ferir-se ou abusar de si mesmo, ou agir de outros modos
autodestrutivos. Os sentimentos catastróficos podem conter uma forma crônica,
muitas vezes, latente em baixo nível, e irromper de modo chocante, como o acreditar
que qualquer coisa que alguém diga possa ser totalmente destrutiva. Sentir
necessidades de qualquer tipo pode equivaler a sentir a ameaça de ser
assassinado. Sob o impacto da parte psicótica, a transferência pode tornar-se
psicótica. Por exemplo, o analisando pode acreditar que o analista seja o genitor
invejoso e destrutivo de outra maneira. Para o analista, um aspecto central desta
transferência é uma sensação de excentricidade do analisando, quando a sua parte
psicótica se ativa.

EXPERIÊNCIAS PSICÓTICAS

A experiência da transferência psicótica é passageira e facilmente afastada,


tanto pelo analista, quanto pelo analisando. Por exemplo, um analisando que sofria
toda uma vida de perturbações de ansiedade, medo de entrar em relação e uma
falta de realização dos seus talentos inatos, apresentou um material psicótico em
que os opostos, anulando-se, criaram em mim uma notável confusão. Em uma
sessão, enquanto eu procurava concentrar-me sobre ele, a minha mente não
somente começou a divagar, mas se esvaziou quando tentei me concentrar sobre a
sua comunicação. Eu fiquei pouco tempo com esta troca e achei impossível manter
um processo linear, discursivo, ao seguir os seus pensamentos. Diferentemente da
dissociação, que é neurótica e que se divaga por entre as fantasias ou pensamentos
coerentes, neste nível psicótico os meus pensamentos foram dilacerados pela
incoerência, e se tornou extremamente difícil colocá-los em qualquer sequência
causal. Se eu fizesse um esforço extremo para concentrar-me e tentasse remeter
junto à minha mente, descobria que meus pensamentos tornavam-se tão densos de
modo que não tinham sentido. Enquanto, nesta situação, eu fazia bem pouco para o
meu ou o seu estado perturbado, deixando-o oscilar ritmicamente, com áreas de
narração que ressaltavam claramente os episódios caóticos, o analisando se
beneficiava ao ver que eu estava verdadeiramente infectado por ele.
Em outra sessão começou o mesmo modo de fragmentação; desta vez
consegui bloquear o meu processo dissociativo e percebi que também o meu
analisando estava em um forte estado dissociativo. Ele comparou este estado àquilo
que lhe acontecia sempre com sua mãe. Então eu sugeri a ele que poderia pintar ou
desenhar aquele estado. Diante desta sugestão, ele se enrijeceu, e de um modo
muito insólito para ele, tornou-se antagônico. O campo entre nós, de repente,
tornou-se hostil. Perguntei sobre essa hostilidade e ele disse que o pedido para
fazer qualquer coisa lhe recordava sua mãe. Mas tinha algo a mais acontecendo.
Eu lhe havia sugerido de fazer um desenho, isto é, de confrontar, ativamente, por si
63

só, esta área, enquanto esta interferiu com sua vida diária. Por um breve instante,
ele tinha perdido o sentido de quem eu era, e passou a acreditar que eu fosse a sua
mãe. Quando readquiriu o sentido de quem eu era realmente, amedrontou-se. Ficou
claro que o seu processo dissociativo, que destruía literalmente a sua capacidade de
pensar, era uma defesa contra este estado mais excêntrico em que os objetos
perdiam a sua realidade quando eram absorvidos pela sua imagem materna interior.
Confrontando ativamente estas áreas psicóticas, gradualmente emergiu um sentido
de contenção e os seus estados psicóticos diminuíram.
Geralmente, estes níveis caóticos da experiência passam com o tempo, caso
contrário, permanecem como uma espécie de presença que cria uma incerteza no
interior na interação analítica, no sentido de uma falta de ‘estar presente’ em ambos
os participantes, ainda que seja possível levar adiante um diálogo, podendo-se
interpretar sonhos e levar em consideração outros eventos externos. Existe um
aspecto destes estados que se estende por uma forte perturbação na mente do
analista, de modo a impedir o foco durante a sessão, inclusive a perturbação de
menor importância, representadas por uma espécie de incerteza, no interior da qual,
muitas vezes se consegue, igualmente funcionar. Esses estados são sintomáticos
de uma área de loucura, da qual se defende melhor do que na psicose, mas a
loucura continua a dominar o campo interativo e pode ser prontamente afastada,
tanto pelo analista, quanto pelo analisando. O analista pode fazer o apelo ao lado
mais racional do analisando, de modo semelhante a um cientista que tende a
procurar nos sistemas físicos a regularidade em vez do caos.
A natureza da área de loucura é muito efêmera e difícil de entender e de reter
na própria consciência. Por exemplo, uma analisada que tinha sofrido por toda a
vida perturbações esquizoides, estava apresentando o seu problema em uma
sessão analítica de grupo. Em certo momento, um dos participantes do grupo lhe
perguntou onde se situava a sua raiva no quadro que estava apresentando. “Não
posso ocupar-me agora” respondeu Nell, como se não pudesse suportar alguma
interrupção na sua apresentação. Como resposta, outra pessoa do grupo comentou:
“Quando tu dizes assim, eu me sinto de qualquer modo desvalorizada, é como se tu
tivesse assumindo completamente o controle, e verdadeiramente, não sei o que
aconteceu”. Então, outro acrescentou:

A última vez eu me senti tão ofendido por ti ao ponto de me perder


verdadeiramente. Não sei por que eu fiquei tão enraivecido, mas por um momento
perdi completamente o controle, e me senti humilhado e me sinto ainda agora,
pelo que fiz e disse. Tudo o que eu consegui compreender é que, na última vez,
eu me senti completamente deixado de lado. Isso me faz pensar, de qualquer
forma, em meu pai, mas não exatamente. E, na realidade, não compreendo
totalmente a minha reação tão extrema, como se tivesse acontecido um pequeno
episódio psicótico.

Enquanto Nell e os outros do grupo refletiam sobre as suas reações, eu


comecei a pensar na minha experiência com ela, e lembrei-me de ter sentido algo
similar àquilo pelo qual ela estava recebendo estas recriminações, lembrei-me do
modo em que eu tinha me sentido desvalorizado e controlado. Lembrei-me das
64

vezes em que ela tinha dito: “Não posso ocupar-me agora”. Naquelas ocasiões, por
um instante, eu senti um estranho desconforto porque ela tinha assumido o controle,
mas eu o tinha afastado no contexto do seu simultâneo pedido de “andar adiante” e
de não ocupar-nos com qualquer problema que se apresentasse. Não me dei conta
do quanto o seu comentário fosse estranho. Por um lado, ela parecia justificar-se por
ser tão débil ao ponto de perder facilmente o fio do quanto estava dizendo; por outro
lado estava pegando nas mãos a situação e determinando o que seria ou não seria
discutido. Mas o comportamento de Nell evidenciava mais do que uma simples
incoerência entre fraqueza e força, entre o seu baixo tom ‘não posso ocupar-me
disso’ e a sua atitude de assumir o controle, de ‘afastá-lo’.
No grupo, quando eu concentrei a atenção sobre o seu pedido de “andar
adiante”, algo em relação a ela e àquilo que estava dizendo não era considerado,
nem facilmente metabolizado. De fato, prevalecia um sentido do excêntrico. Senti
que uma parte da sessão em questão estava sendo anulada e em seu lugar estava
sendo evidenciado um espaço vazio. Mas, se como grupo, nós simplesmente
andávamos adiante como ela desejava, eu sentia que algo não estava sendo
digerido, como se uma pedra estivesse sendo engolida. Porém, todos nós
perecíamos sentir, sobretudo, o desejo de que esta sensação embaraçosa, e a
qualidade do vazio mental que a acompanhava, simplesmente passassem.
Enquanto estávamos todos procurando recompor, não somente o que as duas
pessoas do grupo anteriormente citado, tinham sentido no comportamento de Nell,
mas também os nossos sentimentos e os nossos estados de ânimo, Nell afirmou
que se sentia muito forte ao dizer coisas que afastavam os outros. Acrescentou que,
sobretudo, naqueles momentos, sabia de ter duas partes dentro de si: uma menina
amedrontada, e a outra, uma adulta muito forte.
Quando ela conseguiu expressar esta ideia, o sentido irritante de estranheza
e também toda a recordação da confusão do momento anterior começaram a
dissolver-se. Ora, pelo que parecia, ela tinha explicado o que lhe acontecia e
novamente poderíamos andar adiante. Todos nós podíamos perceber que
tendíamos a não querer saber, em que modo, nem queríamos indagar mais. Mas
quando o sentido de estranheza começou a escapar, eu consegui agarrá-lo, como
se um espírito evanescente estivesse zombando de todos nós e, ao menos naquele
momento, não tivesse conseguido fazer estragos. As reflexões iniciais dos dois
participantes tinham preparado o terreno para compreender este espírito rude,
mesmo que eles agora estivessem felizes por ter se livrado dele, tão desconfortável
e estranha a qualquer esquema conhecido, foi a experiência de grupo com Nell.
Lutando com a consciência, um momento antes, eu consegui fazer emergir o
meu sentido de desorientação. Então eu percebi que não se tratava somente do fato
de que Nell tivesse dois aspectos – uma menininha amedrontada e outra forte, plena
de poder. O estranho mais do que estas duas qualidades fossem fundidas em uma
única unidade. Esta fusão de poder e de onipotência, de fraqueza e de controle total,
de fragilidade e de estrutura férrea, de necessidade e de recusa completa da
necessidade, tinha assumido o controle do momento. E que estes opostos não se
combinassem nem se separassem, tornou-se muito estranho. Emergia, então, uma
65

qualidade excêntrica, que atrapalhava a nossa percepção normal, de modo que a


tendência de cada um fosse simplesmente a de deixar passar tal momento. Capturar
aquele momento no grupo foi muito difícil: quem conseguia capturar o sofrimento
físico e a desorientação com a finalidade de vislumbrar um fragmento do significado
do que está acontecendo? Cada um de nós conseguia, então, cindir a própria mente
confusa pelo seu sofrimento físico: uma sensação estranha no peito por parte de
outro do grupo, uma mordida de náusea por parte de outro ainda. E nesta cisão
mente-corpo foi possível perder, em um segundo, a consciência da criatura similar a
um espírito que tinha aparecido brevemente.
Concentrar-se sobre tal episódio passageiro, leva a um confronto com aquilo
sobre o qual os alquimistas do renascimento falavam em termos de ‘fixar’ o
Mercúrio, a criatura selvagem, manhosa, maliciosa e endemoniada que esvoaçava
de um personagem para outro, provocando ruína, ainda que fosse fonte de resgate
de toda forma de consciência velha, estática. Para a situação do nosso grupo, ‘fixar’
o Mercúrio significava agrupar um sentido de sofrimento físico e o sentido de
confusão e de vazio mental. Somente assim, a excentricidade do momento poderia
ser capturada.
Só então, poderíamos encontrar um paradoxo na vida de Mell e na vida do
grupo. Na medida em que conseguíssemos ‘fixar’ o Mercúrio estaríamos em grau de
compreender como as qualidades totalmente incompatíveis, podem modificar-se
mutuamente, se bem que, de modo muito estranho, a tal ponto de anular o
significado. Na alquimia, haver detectado este paradoxo destrutivo, abriu a porta
para sua transformação em um paradoxo criativo. Os alquimistas configuravam as
imagens das suas hermafroditas, como estados mentais negativos, que degradam a
energia e criam desordem, que podem, todavia, transformar-se na hermafrodita
positiva que representa uma ordem nova e transcendente. Na hermafrodita negativa,
os dois opostos não se fundem e jamais se misturam em um terceiro estado
simbólico. Os opostos conservam, então, a sua separação como dois metais
distintos, porém, conectados. No estado de hermafrodita positiva, se verifica uma
verdadeira transformação e os Dois tornam-se um Terceiro. O fim da opus
alquímica, não fácil de se conseguir, requeria que um indivíduo passasse através da
confusão total, o caos alquímico, ue era o sine qua non para a transformação, e que
nós esquecemos no fragmento de loucura de Nell.
Como um cavaleiro, Nell trouxe ao grupo, para todos nós, este elemento de
loucura. Agora tivemos a oportunidade para que cada um pudesse ver estes
estados em seu interior. Por exemplo, a pessoa que estava tão enraivecida,
sentindo-se desvalorizada, teve que se confrontar com o fato de estar encolerizada
daquele modo, por ter tido, de fato, um breve episódio psicótico. Por um momento,
durante o incidente, para ela sumiu toda a realidade e também quem era Nell. Podia
começar a ver, não somente a provação de sentir-se desvalorizada, mas também
que o modo excêntrico que aquilo tinha se desvelado nela mesma, uma área de
qualquer espécie de loucura. As pessoas que confrontam estas áreas tendem a
amedrontar-se, enquanto as áreas de loucura atacam qualquer sentido de ordem e
de significado; e, muitas vezes, a reação defensiva é aquela de uma raiva intensa.
66

Por outro lado, essa raiva é movimentada para o exterior ou ainda é


masoquisticamente direcionada para si mesmo. É raro que aquele que é objeto dos
núcleos psicóticos de outro, por sua vez, enxergue a própria loucura. Todavia, no
grupo, aquela dinâmica poderia agora ser vista por qualquer um que estivesse
aberto a esta exploração. Mas esta exploração dependia do estar vinculado àquele
sentido ilustrativo de loucura, no sentido da estranheza que, como o deus louco de
Dionísio, tinha penetrado no grupo. Penetrando em um lugar sem ser convidado,
Dionísio pode purificar aqueles que aceitam a própria loucura, mas se torna perigoso
para aqueles que a rejeitam. Assim, o grupo tinha feito a experiência de uma
espécie de visita do deus da loucura. Poderíamos simplesmente rejeitá-lo negando a
sua existência ou tornando muito simples um de seus aspectos - reconhecendo que
somente dois estados estavam presentes. De fato, essa rejeição poderia ser
verificada quando Nell tinha dito ao grupo que sabia que nela existiam duas partes.
De repente, a natureza excêntrica do momento assumiu uma mudança como se esta
qualidade nunca tivesse existido.
Capturar momentos daquele gênero é extremamente difícil. Se Nell quisesse
tomar parte no esforço de retornar e considerar a estranheza da sua comunicação,
então toda tentativa de fazê-la, por parte dos participantes do grupo, teria sido vivida
como uma perseguição. Mas a natureza manhosa da sua instância psicótica,
seguramente não tinha sido domada ainda. Todos nós começamos a avançar com a
sessão de grupo, quando ela pediu que indicássemos todas as vezes que a
vivíamos no modo em que estávamos examinando. Ainda uma vez, uma estranheza
tortuosa penetrou na sala. Nós queríamos e poderíamos evitar através da cisão,
mas o grupo acabou mantendo o foco na estranheza do novo pedido de Nell. A partir
daquele momento, cada um se sentiu esgotado. Pedir se verdadeiramente
quisessem continuar essa exploração parecia bastante inútil. Parecia-nos estar
mordendo a cauda. A tremenda confusão foi provocada porque o seu pedido,
aparentemente racional, estava sendo acompanhado por uma sensação irracional e
opressora (partilhada por todos) de que ela não quisesse, por nada, examinar o que
solicitou. Ela procurou ajudar-nos e acabou dizendo: “Eu sei que carrego estas duas
partes”. A este ponto, a sua afirmação tornou-se, até mesmo engraçada. Ora,
também ela podia ver que estava andando muito além daquilo que, até o momento,
fosse capaz de entender.
O que se poderia obter de uma exploração desse tipo? Para usar uma
metáfora alquímica, o pungente Mercúrio tinha simplesmente fugido mais uma vez?
Teríamos nos saído melhor permitindo com que a cisão levasse vantagem? É minha
experiência que a psique é, pelo menos às vezes, mais generosa do que tudo isso.
Manter-se apegado aos momentos de loucura, ainda que eles desapareçam e,
portanto, alcançá-los novamente, repetidamente, possui um efeito transformador. De
certo modo, a contenção da loucura, ainda que brevemente, cria algo de precioso –
uma gota de elixir – e enquanto houver confiança permitindo com que o processo se
dissolva e, por meio do esforço ativo, coagula repetidamente, o elixir pode ter um
efeito potente sobre o nível caótico que se tornou tão persecutório.
67

A atenção para com o meu estado confuso e dissociado, ajudou um


analisando a desenvolver a capacidade de reconhecer o poder limitante da própria
área psicótica. Este homem sofria de uma série da falhas nos relacionamentos e de
um sentido crescente de alienação. Iniciou uma sessão com a observação de que
tinha o dever de desenvolver uma relação melhor com um dos seus filhos. Assim, eu
lhe perguntei por que ele pensava que poderia recuperar a sua ralação. Ele se
surpreendeu com a minha pergunta, pois para ele era uma coisa óbvia de se fazer.
Mas recordando a nossa sessão anterior, em que tinha descoberto as próprias
partes psicóticas, ele pode perceber que o seu comportamento prepotente, que
cruelmente tinha negligenciado de ver, por muitos anos, a realidade pessoal dos
seus filhos, tinha sido amplamente responsável quanto à instauração problemática e
que ora o fazia sofrer tanto assim. Quando reuniu coragem suficiente para conseguir
reconhecer que as suas partes psicóticas estavam ainda em plena atividade e pouco
integradas, ele teve que concluir que tal recuperação era bem menos fácil e, ao
menos para o momento, provavelmente ilusória. Esta consciência provocou notável
desconforto e raiva contra mim, pelo fato de eu ter colaborado para fazer emergir
esta consciência do seu comportamento prepotente e narcísico. Mas o levou
também a perceber o quanto era limitado por esta escura qualidade de Sombra.
Teve então, um sonho notável: encontrou uma menina recém formada. A
menina estava muito triste depois de ter tentado, sem sucesso, tocar as orelhas. Ele
a levantou e a ajudou a tocar as orelhas, e ela, depois de der feito, se iluminou de
alegria. O sonho representava uma recuperação interna da capacidade de escuta, o
próprio ato que fora impedido pela sua grandiosidade. Este ato transformativo foi
facilitado pela tomada de consciência de estar limitado pelas suas partes psicóticas.
Finalmente, através da experiência da limitação causada pelas suas partes
psicóticas, emergiram nele as bases para escutar os outros, e o sentido de si que
tinha sempre ignorado, começou a enraizar-se na sua psique.

CONTENÇÃO DAS QUALIDADES DESTRUTIVAS E ILUSÓRIAS DOS


NÚCLEOS PSICÓTICOS

Os núcleos psicóticos não integrados podem ser muito destrutivos. Por


exemplo, um homem que procurava construir uma carreira na bolsa de valores,
iniciou uma sessão comigo falando-me dos seus conflitos no trabalho, e logo eu
descobri que estava em uma espécie de estado de torpor. A minha mente não
conseguia segui-lo por mais de alguns segundos. Notei este meu estado e tentei o
mais rápido possível concentrar-me sobre ele, mas percebi que não conseguiria.
Deixei que esta dissociação continuasse por cerca de dez minutos, procurando
segurar-me nas áreas de estabilidade do seu relato, inserindo nele uma espécie de
história destas ilhas de claridade, e percebendo também o quanto eu estava
essencialmente confuso em relação ao que ele estava dizendo. Esta confusão foi
caracterizada pela minha incapacidade de recordar quem seriam certas pessoas na
sua imaginação, e não estava completamente seguro de poder dizer algo sem cair
na armadilha de que eu não estava seguindo o que ele recém me havia dito.
68

Consegui lutar com esta confusão de modo quase heroico, empenhando-me para
vencer o meu estado mental caótico e discernir no processo em que ele estava, mas
me pereceu falhar miseravelmente. Decidi, então, concentrar-me, sobre o que,
naquele momento, estava acontecendo na minha mente e percebi que ela perecia
estar fraturada. Assim, lhe pedi, se por acaso, ele estaria sendo submetido a
qualquer tipo de ataque interno, e se a sua mente esttaria fraturada em pequenas
partes que criaram desordens enquanto ele falava. Ele rapidamente reconheceu
este ataque interior, perguntando-se como eu poderia sabê-lo, e admitindo de
envergonhar-se desta experiência, muitas vezes, crônica.
Assim, ao menos eu tinha percebido que entre nós existia um estado muito
caótico, que seguramente governava com frequência os seus processos mentais. A
este ponto, dei um passo adiante pensando dentro de mim sobre quais estados
mentais opostos estariam presentes no seu estado caótico. Na fragmentação e no
vazio mental dominantes, eu teria conseguido distinguir os opostos? Fazendo a
pergunta diretamente a ele ajudou a tornar menos caótico, e ele começou a pensar
em uma relação que teve tempos atrás.
Agora ele poderia fazer uma associação com os estados opostos que
aconteceu com uma moça do seu passado: depois que tiveram uma violenta
discussão, ficaram excitados sexualmente e fizeram sexo. Mas não foi muito simples
porque o sexo e o estado amoroso que experimentaram por um momento
desgastou-se rapidamente. Foi como se o ódio que ele sentiu tivesse estragado
rapidamente o Eros emergente. Então ele fez uma associação com condições
semelhantes verificadas com sua mãe. Não tinha jamais sentido realmente um amor
que fosse simplesmente amor. O amor que tinha sentido era, em vez, corrompido,
sem valor e indigno de ser considerado um sentimento positivo. Assim, perguntando
sobre os opostos, emergiu uma espécie de ordem. Agora eu podia concentrar-me
sobre ele e ele sobre mim. Tinha ainda certa confusão, mas certamente não aquela
do início. Assim que ele se tornou mais mental nas suas reflexões, retornou o
sentido do caos entre nós. A experiência do caos tinha esta periodicidade, uma
periodicidade previsível no sentido de que seguia a cada cisão mente-corpo.
De certo modo, ele tinha adquirido uma espécie de contenção da sua
experiência. Os opostos existiam, mas enquanto ele se encontrava em uma parte,
por exemplo, sentindo amor, podia rapidamente e improvisadamente saltar para
outra parte, cujo amor e ódio se fundiam. Depois, podia faltar ao sentimento
somente de ódio, recordando-se, por exemplo, de certas experiências infantis, e
emergia maior ordem e também o sentido de conexão - o Eros entre nós - e depois
quando este desaparecia, um retorno à confusão. Talvez nós estivéssemos, para
usar uma linguagem da teoria do caos, em uma atração anômala? Cada rápida
mudança na minha atenção fazia com que a ordem existente, qualquer que ela
fosse, se ofuscasse e se modificasse. Todo o processo tinha necessidade de um
êxtase. Mas tinha uma forma, ainda que devesse ser continuamente descoberta.
Esta área psicótica do analisando tinha o efeito de denegrir fortemente a
sua atividade de agente da bolsa de valores, e tê-la identificado e começar a contê-
69

la, o levava à seguinte tomada de consciência em relação ao próprio comportamento


autodestrutivo:

Realizou-se um ganho, o mercado será derrubado e as próximas posições a


serem assumidas serão negativas. Então devo manter a minha posição, ainda que
todos os indicadores digam que não deverei. Agora fica claro que deveria ter
deixado anteriormente, mas não a fiz. Perdi. Mas não posso deixá-la agora, e não
posso permanecer. É loucura permanecer. Só um milagre poderia me tirar.

Se o mercado estivesse caindo, ele trabalhava com a convicção de que


deveria cair mais ainda: então poderia funcionar bem porque outros estavam
perdendo. Desse modo, se mantinha separado dos outros, daqueles que, neste
caso, perderiam. Mas se acaso o mercado subisse, ele não conseguiria mudar o
modo de operar, porque isso tinha o significado de manter-se unido aos outros que
estavam ganhando. Geralmente, o ponto é que ele deveria conseguir sentir-se
separado dos outros e ‘ser um indivíduo’, para usar as suas palavras. Só em uma
inversão do mercado ele poderia sentir a própria individualidade. Assim, deveria
também poder ganhar milhares de dólares quando o mercado estivesse abaixo, mas
quando mudava, ele permanecia na sua posição, confiando que o mercado devesse
abaixar posteriormente, ainda que cada indicador técnico nos quais acreditasse
estivesse assinalando o contrário. Ele estava agarrado a esta posição e perdia
sempre tudo o que tinha ganhado e também mais ainda. Nada poderia pará-lo.
Assim, perdia milhares de dólares. Mudar e juntar-se aos vencedores, ser um deles,
para ele, significava ser como um empregado, como fazia seguindo o próprio
método. “Não eu! Eu sou um indivíduo!” exclamava, com uma auto-ironia que não
conseguia esconder a sua verdade excêntrica.
Tal comportamento autodestrutivo era guiado pela sua área psicótica. Nesta
instância do seu ser, ele era atormentado por uma porção insaciável para fundir-se
com sua mãe, e por uma porção igualmente forte de separação. Coexistir com
qualquer reação dela, significava a morte para ele, enquanto se encontrava no
estado impossível de desejar o que não tinha conseguido, isto é, o amor e a cura da
qual ele sentia uma grande necessidade. Estas estavam, por sua vez, ausentes, e
ele conhecia somente uma mãe rígida, sedenta de poder. Assim, ele permaneça
fundido, na sua área psicótica, com uma ausência, e ao mesmo tempo procurava
fugir deste estado impossível, falhando cada vez, e cometendo um suicídio psíquico.
Na sua atividade, alinhar-se com a tendência vigente que incluía os outros,
significava unir-se a eles, o que lhe fazia sentir o terror e o tormento da fusão com
uma ausência de amor e uma dependência total. Sentia-se seguro somente na
separação e se separava a todo custo, um ato realizado somente através das
convicções ilusórias e um comportamento financeiramente suicida. Realizava essa
separação através de um sentido de onipotência e de onisciência velada. Ele já
sabia demais; os outros investidores eram joguetes. Os milhares de dólares perdidos
não afetavam, em nada, as suas convicções. Fazer qualquer coisa que o unisse aos
outros, cogitar um sistema que pudesse funcionar, e seguir uma tendência que os
outros também estivessem seguindo, para ele era como unir-se à sua mãe. Separar-
70

se, de qualquer modo, parecia uma necessidade absoluta. Enquanto, para muitas
pessoas, ganhar podia ser um ato de separação, para ele poderia significar a sua
submissão.
Nem sempre as partes psicóticas podem estar integradas, nem aceitá-las
leva invariavelmente a um Self integrado. Esta seria uma atitude excessivamente
otimista como é demonstrado no exemplo que segue:
Um homem, com muitos anos de análise junguiana sobre as costas, que por
anos tinha sofrido de abuso sexual e agressões por parte do seu pai, tinha, muitas
vezes, notáveis sonhos com o Self. Em uma sessão me contou um sonho muito
inquietante:

Eu tinha em mãos um pedaço de carvão radioativo preto, que continha no interior


um brilho vermelho. [...] A fim de que continuasse e movimentar-me sem derrubá-
lo, ele não explodiria em chamas. Perguntei-me o quão longo teria sido o seu ciclo
vital. Por quanto tempo eu teria mantido o seu calor? De que modo eu poderia
liberar-me dele? Não consegui responder a nenhuma dessas perguntas. Veio-me
em mente que poderia jogá-lo no mar, mas escolhi não fazer.

O carvão (a fonte de um diamante futuro), com o seu centro incandescente,


radioativo, é uma imagem da estrutura do Self deste homem no interior de um
processo psicótico, simbolizado pela radioatividade. No sonho está clara esta
instabilidade, enquanto não se pode transportar material radioativo sem ser
contaminado. O homem utilizava como frequentes recursos, uma finalidade
protetiva, a identificação inflacionada com uma imagem paterna rígida, compulsiva.
O Self era para ele uma realidade apenas momentânea, e jamais teria conseguido
encarná-la.
Mas também, em casos menos graves, quando o analista encontra a
instância psicótica de um analisando, com frequência, ambos se perguntam como
seria possível que algo curativo, por si só, emergisse nas experiências de ansiedade
opressora, terror, inveja, confusão e humilhação que, continuamente impulsionam
um indivíduo a funcionar sob limite. Essa preocupação sempre prevaleceu em cada
processo analítico, mas às vezes, os sonhos podem dizer-nos que estamos sobre
um caminho positivo, não obstante a presença do caos na experiência do analisando
(Schwartz-Salant, 1982).
Durante tal processo perigoso e amedrontador, uma mulher plena de graves
ataques de desconfiança paranóica teve este sonho:

Devo estudar, observar e cuidar de uma mulher que é louca - faz coisas que os
outros não fariam. Tem um sentido de grande seriedade. Devo perceber que ela
chega sã e salva da outra parte porque é louca e ousada. A sua ousadia reside na
sua loucura.

A coragem da analisanda em arriscar expor na análise a sua loucura


paranóica, malgrado o seu medo de ser abandonada por mim, foi vital.
A parte psicótica ou dominante projetada sobre outra pessoa, à organização
do mundo interior do sujeito deforma a realidade. Normalmente predominam as
71

imagens malévolas que se combinam com as qualidades de uma figura genitorial,


produzindo, muitas vezes, objetos excêntricos que parecem desafiar a
compreensão. Quando uma pessoa começa a integrar a própria parte psicótica, a
sua consciência normal do ego se expande, mas de modo desordenado; de fato, o
ego sabe que, na área da própria loucura, esta não está sob o controle dos seus
pensamentos e do seu comportamento. O campo afetivo da parte psicótica tenta
assinalar ao ego que ela poderia agir de modo muito destrutivo no interior da ilusão
que a controla. De certo modo, a parte psicótica é uma ferida aberta que alimenta a
ilusão; mas a aceitação por parte do ego, da limitação, tanto da própria consciência,
quanto da própria capacidade de controle, pode produzir uma atitude de cura para a
alma. Como disse Lacan, “não somente o ser humano não pode ser compreendido
sem a loucura, mas não seria um ser humano caso não levasse dentro de si a
loucura como limite da própria liberdade” (1977).
O próximo exemplo ilustra a natureza secreta e homicida de uma fantasia
psicótica que tende a ser projetada sobre o mundo e a distorcer as relações. Tais
conteúdos extremos são, muitas vezes, difíceis de elaborar em algum tipo de
coerência, porque não se adaptam à imagem ideal que o analista tem do analisando.
Após seis anos de psicoterapia comigo, um homem que agia bem abaixo das
suas capacidades nas relações e no trabalho, e que era acometido por ataques de
pânico quando tentava ampliar os próprios horizontes, começou a descobrir níveis
de ódio contra o seu pai que tinham origem em sua extrema violência física. Estas
áreas foram dissociadas e a análise anterior não tinha conseguido evidenciar.
Quando ele foi submetido às agressões, não chorava, mas tentava derrotar seu pai
dissociando-se do sofrimento. Este processo, finalmente, acarretou uma cisão
interna em que ele negava a importância da violência. Foi chocante para ambos
começar a sentir terríveis consequências dos atos de seu pai, uma vez que o
deixaram com uma extrema desconfiança em relação a todas as formas de
autoridade. Nas suas interações com o mundo, o analisando inconscientemente
transformava sempre em seu pai cada pessoa com a qual interagia. A iminência de
um encontro com alguém o deixava na insônia e em um estado de ansiedade
opressora que depois desaparecia no encontro real, uma vez que a realidade de
violência e as projeções do tipo psicótico diminuíam. Essa situação durante toda a
vida se tornava mais penosa no momento que ele era uma pessoa de inteligência e
criatividade insólitas; mas ambas as qualidades eram postas em prática só
marginalmente por causa da natureza psicótica, isto é, distorcer a realidade do seu
complexo paterno.
Durante uma sessão particular, o analisando estava referindo-se a algo que
seu pai lhe tinha feito, e eu comecei a sentir uma raiva intensa do seu pai. Essa
raiva era algo que eu tinha sentido anteriormente e que poderia utilizar para ajudar o
analisando a reconhecer a própria raiva e desvelar a violação que estava sendo
verificada. Mas repetir agora este processo parecia supérfluo, enquanto eu não me
lembrava de descobrir outra raiva que fosse útil. Tinha qualquer outra coisa a mais.
É sempre muito difícil descrever como se consegue o tipo de percepção que eu tive
naquele momento. Alcançar essa percepção requer uma vontade de esquecer o
72

‘querer saber’ algo em relação à sua raiva contra o pai ou à sua raiva contra mim na
transferência, e de abrir-se ao ‘não saber’. Havendo esta intenção, emerge uma
nova percepção que eu chamarei ‘ter a visão’ dos processos na sua área psicótica.
O analisando não só odiava e queria matar seu pai, mas influenciado pela sua área
psicótica acreditava ter realmente assassinado seu pai. Estava desvelando-se um
profundo segredo dentro dele: ele era um assassino, não somente um homem pleno
de raiva, desejoso de eliminar seu pai.
Parecia-me muito difícil vê-lo como um assassino. Mas era absolutamente
necessário para ele que eu o víssemos assim e compreendêssemos que ele
carregava este segredo obscuro e que tinha organizado a sua vida de modo a evitar
vê-lo ou de que alguém o visse. Esta percepção foi acompanhada pelo sentimento
de que, para o momento, ele tinha se tornado estranho para mim.
Neste caso, a diferença entre a cisão psicótica e a dissociação neurótica fica
evidente. O conteúdo psicótico, isto é, ter matado efetivamente seu pai, não era
defendido por uma distorção neurótica. O conteúdo psicótico pertencia mais a um
nível profundo, mais primitivo - que os alquimistas representavam como as águas
inferiores da Fonte Mercurial, a primeira xilografia que ilustra o Rosarium
Philosophorum.
Enormes dificuldades nascem em decorrência desse tipo de associação. Por
exemplo, torna-se possível crer que casos de violação física parecem reais às
vítimas simplesmente por causa de tais deformações interiores, psicóticas. Por isso,
para este analisando, o ‘seu assassinato’ do pai seria um segredo real quando se
tornasse num verdadeiro assassino. Do mesmo modo, o incesto psíquico pode
ocorrer para a vítima igualmente real a um incesto efetivo. Por isso, tanto o
analisando, quanto o analista, podem facilmente entrar em confusão com relação ao
que efetivamente aconteceu. Pode-se, portanto, dizer que o que conta é a fantasia
interior, a partir do momento que isso é tão poderoso. Infelizmente, uma redução do
gênero não é útil, pois se algo ocorreu realmente e fora negado, os eventos se
instalam em uma área psicótica: o indivíduo é impulsionado a sentir-se louco.
Necessita, então, recapturar tanto quanto possível a percepção autêntica, bem como
a história, com a finalidade de reduzir o poder da área psicótica e a necessidade de
defesa da cisão que continuamente enfraquecem o indivíduo.
Eu sempre tinha visto aquele homem como competente, colaborativo, aberto
e corajoso. Todavia, durante a análise ele parecia desenvolver pequenos progressos
que não poderiam ser mensuráveis com o modo pelo qual eu ou alguém mais que
tivesse algo e ver com ele, o víamos. Este vê-lo positivamente era, talvez, uma
sedução, um resultado do modo com o qual ele desejava ser visto, como um oposto
do assassino? Eu o via como totalmente honesto, uma pessoa cuja sinceridade, e
sobre como procurar ser sincero se poderia contar. Eu o mantinha numa altíssima
estima. Ele tinha verdadeiramente aquelas qualidades. Olhando retrospectivamente,
reconheci as qualidades em outros como a forte área psicótica. Mas, aquele modo
de eu vê-lo era uma reação contratransferencial que representava o espelho do
modo com o qual ele via a si mesmo? Ele tinha, talvez, aprendido a ver-se daquele
modo em vez do modo oposto que sempre escondia em si? Esta imagem narcisista
73

de si demonstrou ser somente uma imagem oposta no interior de uma instância


psicótica, sendo aquela do assassino a outra imagem completa.
Antes desta sessão, o meu trabalho com ele era caracterizado por um
sentido de desintegração que fazia divagar e fragmentar a minha atenção, ao menos
que eu mantivesse equilíbrio ao perceber o sentido de aniquilamento que trabalhava
sobre a minha consciência. Permanecer concentrado sobre qualquer percepção que
eu tivesse dele, durava pouco. A minha percepção se focava sobre qualquer outra
coisa e, no decorrer do processo, era muito difícil relembrar o que tinha acontecido
anteriormente. Um ato de vontade normalmente fracassava, e encontrava
recordação daquilo que tinha acontecido, somente quando a minha percepção
anterior oscilava na minha consciência, de modo espontâneo. Então esquecia o
estado anterior. Todavia, quando vi na imaginação, o seu mais profundo segredo de
que ele era um assassino - esta oscilação desapareceu. Todas as vezes que perdia
de vista esta visão da sua loucura, tipicamente retornava à dinâmica dissociativa
oscilante do antimundo.
Desvelar as ilusões no interior das áreas psicóticas é, muitas vezes, de
importância crucial. Por exemplo, uma analisanda, ao final de uma relação amorosa,
não teve outras, por muitos anos. Essa situação parecia estranha porque ela era
atraente e nunca tinha ficado tanto tempo assim sem uma relação. No decorrer da
análise, ela revelou que estava se sentindo atraída pela convicção ilusória de que tal
relação não tivesse realmente terminado e que aquele homem deveria retornar. Na
parte da sua mente associada com a sua parte psicótica, ela permanecia ainda com
ele. Além do mais, no mesmo modo ilusório, ela ainda estava com seu pai. Uma
convicção tão absoluta e tão estranha de fazer com que o analista a visse como uma
metáfora, e não como um fato psíquico, como uma verdade na qual a pessoa não
consegue colocar em discussão e tampouco remexe na consciência.
O analista deve aprender a olhar nas áreas de caos e procurar fornecer o tipo
de contenção permitido pelas dinâmicas de tais áreas. Esta ação é um pré-requisito
essencial para a transformação, enquanto área psicótica é, muitas vezes, a prima
materia e rege a chave para a transformação. Porém, muitas vezes, é necessário
aproximar-se das áreas caóticas quando estas são um problema obscuro, que
jamais domina completamente uma sessão nem fratura totalmente uma narrativa.
O problema, portanto, que se apresenta é o modo de conter os estados
mentais caóticos. Aparecem contidos pela imaginação de outra pessoa, como o
devaneio materno sobre a angústia da própria criança? Ou também, se requer outro
tipo de contenção? A experiência demonstra que a terceira área enquanto campo
interativo pode ser um espaço extremamente criativo, através do qual a vida interior
do analisando e as percepções do analista podem ser amplamente clarificadas e a
relação entre analisando e analista pode se tornar mais profunda.
74

DINÂMICAS DO CAMPO INTERATIVO

EXPERIÊNCIAS IMAGINÁRIAS DE CAMPO

Os afetos dos núcleos psicóticos da personalidade têm um efeito indutivo tão


forte que o ego pessoal do analista, muitas vezes, não consegue se ocupar destes
efeitos sem dissociar-se, assumindo uma oscilação entre a contradição e a
concentração. Fazer de modo com que o processo entre analista e analisando se
desenvolva em uma ‘terceira área’ é um ato imaginário, que cria, de fato, um
recipiente imaginário que contém a permite experimentar as partes fragmentadas de
uma personalidade, sem distorcer o próprio mistério através de uma análise
baseada sobre os conteúdos e as origens históricas. A noção de objetividade do
processo não minimiza o mistério da subjetividade. Nem minimiza um período de
falta de relação e perda de particularidade que pode acompanhar as tentativas de
fixar as leis e modelos objetivos de comportamento da psique. Mas eu não estou
assumindo uma objetividade do processo, no sentido da abordagem científica da
natureza, enquanto a objetividade do inconsciente coletivo não pode ser conhecida,
salvo no modo em que a consciência individual faz experiência. Contudo, esta
experiência pode ser informada e aprofundada por uma consciência dos modelos
que o inconsciente coletivo perece manifestar no contexto de cada intervenção
subjetiva com os seus processos.
Segundo Jung e von Franz, a chave para compreender as dinâmicas mais
profundas da ‘terceira área’, entendida como campo, encontra-se em uma visão
qualitativa do ‘número’. “Os números naturais parecem representar os modelos
típicos, universalmente recorrentes, do movimento habitual da energia, tanto
“psíquica’, quanto ‘física”, escreve von Franz (1974, p. 166). Jung utilizou uma visão
qualitativa do número conjuntamente ao simbolismo alquímico para explicar a mais
profunda complexidade das transferências e das contratransferências. Assim
fazendo, ele essencialmente colocou as bases para a noção de terceira área,
compreendida como campo entre indivíduos, bem como, para a utilização do
simbolismo alquímico como representação da transformação dos modelos
energéticos no interior do campo. Implicitamente, Jung reconheceu que o
simbolismo alquímico é uma ótima fonte de informação em relação aos processos
de transformação na terceira área. Particularmente, Jung e von Franz descobriram
que os antigos alquimistas reconheceram centenas, e talvez milhares de anos antes
deles, que os processos de transformação na terceira área, o corpo sutil como
definiam os alquimistas, podem ser vistos como modelos energéticos que envolvem
a interação nos números qualitativos do um ao quatro.
A proposição numérica alquímica que lembra, particularmente, as dinâmicas de
campo, é chamada ‘O axioma de Maria’. Jung (Obras, Vol. 16, 14, 12) e von Franz
(1874) se ocuparam, e também eu discuti com particular referência ao problema
75

clínico da identificação projetiva (Schwartz-Salant, 1988, 1989). O Axioma, um


exemplo da lógica qualitativa das culturas pré-científicas, é o seguinte:

O Um se torna Dois, o Dois se torna Três, e do Três, o Um provém como quatro.

O Um significa um estado anterior a uma ordem estabelecida, por exemplo, o


Caos alquímico, ou a experiência de uma sessão analítica na sua fase de abertura.
Os alquimistas falam de estados mentais que são ‘anteriores ao segundo dia’,
compreendendo antes da separação dos apostos. Este estado de Unidade é
experimentado como fonte de desordem e confusão. Somente trabalhando para
perceber imaginariamente as correntes e as tensões dentro deles, os opostos
podem ser compreendidos. O Dois é o iniciar a encontrar um sentido no fenômeno, o
emergir de um par de opostos. Neste estado, que se cumpre na maior parte das
formas de análise, o analista se torna consciente dos pensamentos e dos
sentimentos, dos estados físicos, ou talvez, de uma tendência a divagar com a
mente e a perder a concentração. Estes estados mentais podem refletir os mesmos
estados no analisando. O analista, segundo o grau do conhecimento de si mesmo,
pode, então, tornar-se consciente da qualidade induzida, e pode utilizar esta
qualidade para compreender o processo do analisando. Outra possibilidade é que
os estados mentais ou físicos do analista representam um estado oposto e
complementar para o analisando (Racker, 1968. p. 135-137; Fordham, 1969). Em
ambos os casos, portanto, o analista segue um movimento do Uno que se torna
Dois. No caso de identificação projetiva, o analista conseguiu uma consciência dos
opostos sintônicos: a mesma qualidade existe na psique do analista e do analisando.
Nos casos de identificação oposta e complementar, o analista sente que a própria
psique contém uma qualidade, enquanto a do analisando contém a qualidade
oposta. Por exemplo, o analista pode sentir uma tendência a falar sem muita
inibição, e o analisando pode sentir-se preso ao silêncio. Ou então, o analista pode
sentir-se deprimido, enquanto uma qualidade maniacal domina o analisando; o
analista pode sentir aversão ou ódio, e o analisando pode estar pleno de
sentimentos de amor e de atração. Geralmente, qualquer par de oposto pode se
exprimir deste modo.
Por exemplo, as dinâmicas de campo em uma reação de contratransferência
do tipo sintônico podem focar-se sobre a ansiedade. De quem será a ansiedade,
minha ou do analisando? Posso perguntar-me se foi introjetada, se faz parte de um
processo de identificação projetiva, ou se é a minha. A ansiedade nasce da minha
psique ou da psique do analisando? O simples fato de fazer-me esta série de
perguntas leva a questionar-me se posso fazer algo com um par de opostos da
mesma qualidade que se expressou como ansiedade. Estes opostos deveriam ser
experimentados como aspectos sucessivos de um processo cuja ansiedade foi
sentida alternativamente como meu estado subjetivo e também como condição do
analisando. A diferenciação dos opostos, por um lado compreendidos como duas
‘coisas’ diferentes, remonta ao filósofo pré-socrático Heráclito (Kir e Raven, 1969, p.
189-190). O Três é a criação da terceira coisa, o campo. Normalmente, na tradição
76

analítica, um analista que passou através de um processo de espelhamento daquele


tipo, chagaria a concluir do que se trata essencialmente a ansiedade em questão,
como em um processo de identificação projetiva. Mas o analista tem a opção de
suspender o juízo e, como observa Jung, de deixar que

os opostos tornam-se vaso onde se flutua, vibrante, a criatura que antes era uma
coisa e depois outra, de modo que o estado doloroso de suspensão entre os
opostos se transforma, pouco a pouco, em uma atividade bilateral do ponto central
(Obras, Vol.14, p. 213).

Para empreender este tipo de processo, o analista deve ter a vontade de sacrificar a
possibilidade de conhecer ‘de quem é’ o conteúdo que está tratando e imaginar que
o conteúdo (neste caso, a ansiedade) existe no campo em si e, não pertence
necessariamente a uma pessoa ou a outra. O conteúdo, muitas vezes, pode ser
impulsionado imaginariamente no campo que o analista e o analisando ocupam
juntos, de modo que se torne uma ‘terceira coisa’. Tal processo de ‘projeção
consciente’ foi tratado por Jung (1988, p. 1495-96), e Henri Corbin (1969, p. 220) a
descreveu no conceito sufi de himma.
Como resultado deste impulso imaginário e do sacrifício da interpretação, a
qualidade do campo muda de modo perceptível e palpável: o analista pode se tornar
consciente da tessitura do espaço circundante. É difícil descrever, de modo mais
exato, a qualidade da transformação no campo e o sentimento inspirado que está
presente naqueles momentos. Os sentidos se reavivam como cores e as
particularidades se tornam mais vívidas, até mesmo os sabores podem mudar na
boca. O analista e o analisando têm a sensação de uma descarga de adrenalina e,
talvez, em termos espirituais, da presença do divino. Assim, o ‘Dois se torna Três’.
Não como interpretação, mas como uma qualidade do campo. Em momentos
similares, o analista e o analisando permanecem, ambos, no cadinho analítico. O
ingresso no cadinho e o atingir o Três, emergem do sacrifício do ‘saber’, por parte do
analista, isto é, pelo sacrificar a interpretação que se conseguiu e pelo continuar,
então, a concentrar-se sobre o campo em si.
O Quatro é a experiência do Terceiro, enquanto agora conjunto com um
estado de Unidade da existência. Depois que o tempo se tornou uma ‘presença’
para ambos, agora cada um chega, tanto ser, de modo paradoxal, no interior desta
presença, quanto ser ao mesmo tempo o observador. Uma intensa contradição
continuada faz com que algo mude no movimento oscilatório do campo, se o afeto
dominante que definia o campo era a ansiedade, se deveria sentir no interior da
ansiedade e, alternativamente, como se a ansiedade estivesse no interior de si.
Tanto o analista quanto o analisando deveriam sentir este efeito. Quando o sentido
do espaço ou da atmosfera modifica, a parte oscilante em que ambos sentem-se ‘no
interior’ da ansiedade – isto é, da experiência de sentir-se dentro da mesma emoção
– torna-se contenção de um sentido permeado pela ‘Unidade’.
No movimento em direção ao Quatro, se pode fazer experiência da área
alquímica que todas as substâncias (como o enxofre, o chumbo e a água) possuem
duas formas - uma ‘ordinária’ e a outra ‘filosófica’. Em essência, os efeitos cessam
77

de ser experimentados como ‘ordinários’, como ‘coisas’, e se tornam, então, algo a


mais: estados de totalidade. Enquanto a pergunta: ‘ansiedade de que’?, pode ser
liquidada deste modo, a resposta nunca será o resultado final, mas a resposta será
mais o Terceiro no caminho para o Quarto, no qual o mistério da contenção se torna
conhecido. No interior deste cadinho, o analisando pode experimentar, com o
analista, a própria ansiedade em relação ao ser engolido e à perda de identidade.
Chegar a este estado dá a possibilidade de perceber e sentir como esta experiência
pode ser uma repetição de análogos temores de fusão com a mãe do analisando.
Deste modo, a contenção faz com que o analista e o analisando se tornem ambos,
observadores objetivos e partícipes do afeto que está presente e animado, que
façam a experiência das dinâmicas de tais estados, fornecendo, assim, a
possibilidade de comportamentos por ele gerados, e para explorar uma matriz de
material associativo que pode ter sido simulado. Nós procuramos, portanto, o ‘vaso’
e o paradoxo do processo, enquanto somente o vaso pode conter os aspectos
misteriosos, psicóticos do nosso ser, deixa-nos descobrir o seu mistério e faz tentar
uma experiência da relação entre o mundo conhecido através das ‘partes’ e a sua
conexão com uma esfera mais ampla de unidade (Jung, Obras, vol.14, p. 465).
A experiência da animação do campo que une os participantes no estágio do
Três e abre ao transcendente no estágio do Quatro, foi geralmente chamada
‘núpcias sagradas’ dos antigos e coniunctio, particularmente pelos alquimistas. O
fazer a experiência abre ao sentido do mistério que pode ter um poder
transformativo, próprio como uma visão ou um ‘Grande’ sonho pode ser profético.
Resulta uma reciprocidade no processo partilhado que representa, de qualquer
forma, um distanciamento da advertência de Ogden: “O analista e o analisando não
estão empenhados em um processo democrático de análise recíproca” (1994, p. 93-
94). Enquanto a assimetria do processo analítico não deve jamais ser esquecida,
momentos importantes de experiência - como quando vive a transferência mais
essencial para interpretá-lo - dá ao analisando mais coragem para admitir desejos e
medos de fusão. Neste ‘vaso’ o analisando pode começar a ver que um processo de
união existe para além da morte através da fusão, que este processo possui uma
dimensão arquetípica, e que a experiência do seu numinosum tem muito a ver com a
cura.
Às vezes, o analista e o analisando fazem a experiência de estados
completamente opostos. Em termos alquímicos, esta experiência pode ser
compreendida como aquele aspecto do processo em que o ‘Uno se torna Dois’. Para
iniciá-la, um ou ambos os participantes desta interação devem conscientemente
separar-se do estado de fusão (o Uno) e reconhecer o par de oposto que está na
obra (o Dois). Uma vez que forem reconhecidos, todavia, o analista pode usar este
nível diádico de opostos para interpretar a interação. Por exemplo, no caso de uma
mulher que tinha grande dificuldade para respeitar a própria criatividade artística, o
Terceiro era a consciência de que ela estava novamente experimentando na
transferência a usurpação maniacal das suas ideias criativas por parte de seu pai.
Desde a sua primeira infância, toda vez que partilhava com ele qualquer insight ou
ideia que a excitavam, ele não a acolhia, não a reconhecia e nem reagia a ela no
78

modo que seria esperado em uma interação normal. Ele, então, era estimulado a
associar livremente as próprias ideias criativas, pedindo a ela para espelhar e
idealizar a ele e à sua criatividade. No campo interativo, sentia um impulso para
exibir-me, a demonstrar a minha consciência, enquanto ela estava sentada travada e
relutante a revelar qualquer valor da própria alma. Rendemo-nos conta de que
estávamos estabelecendo novamente a relação entre ela e seu pai. Ela percebeu a
própria sensibilidade e começou a notar tal dinâmica como uma efetiva e nova
experiência do desejo de seu pai de roubar-lhe a criatividade, e a verdadeira
construção do seu sentido de si. Esta consciência foi de grande valia, porque trouxe
à luz um terrível processo interativo que a analisanda tinha reprimido, mas que
influenciou de modo significativo toda a sua vida. Ela escondia a própria criatividade,
ou ainda ficava travada por uma forma de ameaça toda vez que tentava expressá-la.
Em outros momentos, todavia, o analista escolheu antecipar tal consciência e
de sacrificá-la ao estado de ‘não consciência’, deixando que o ‘não conhecido’ se
tornasse o ponto central. O analista pode, então, perguntar-se: qual é a natureza do
campo entre nós, ou qual é a natureza da díade inconsciente? Deste modo, o
analista e a analisanda podem, ambos, abrir-se ao campo como objeto da sua
atenção. Durante o processo os opostos - discurso maniacal/silêncio, pode
modificar-se com o analista que agora se sente agarrado pelo silêncio, e a
analisanda que possui um pensamento após o outro. Na consciência dos opostos
pode oscilar, a fim de adquirir um novo centro, o ‘ponto bilateral’ de Jung; e deste
ponto central, o campo em si começa a adquirir vida. Os opostos, por sua vez,
podem mostrar terem sido somente fragmentos separáveis de uma fantasia muito
mais funda e, muitas vezes, muito arcaica. O analista e a analisanda podem
desvelar fantasias da cena primária na qual o discurso maniacal é uma forma
sublimada de uma falta perigosa, e o seu oposto, o silêncio, é um cadáver
petrificado, os restos de um corpo morto pela inveja. Enquanto tais imagens podem
ser históricas, no sentido daquilo que a analisanda experimentou inconscientemente
através das fantasias de seu pai e a sua reação a ele, o campo em si possui
processos arquetípicos diferentes de tais níveis históricos, na medida em que podem
ser importantes. Por exemplo, quando o analista e a analisanda ‘vêem e sentem’ os
efeitos e as imagens da díade inconsciente (cada uma dos dois a seu modo), as
formas arcaicas e destrutivas da díade podem transformar-se em formas mais
positivas. Esta nova díade pode ser vista como já apresenta na relação pai-filha. Em
vez de ser simplesmente uma interpretação das bases históricas, o movimento do
Dois para o Três pode se tornar uma nova experiência de campo.
Como no exemplo anterior, o analista e o analisando podem se tornar sujeitos
ao campo, no sentido de que a renúncia ao poder ou à consciência de outra pessoa
põe o indivíduo na posição de concentrar-se sobre o campo em si e ser por ele
influenciado. Isso pode envolver as experiências das formas menos arcaicas que
pode conduzir insights libertadores. A subjetividade do indivíduo incrementa o
campo e a sua objetividade interage com o analista e o analisando. Então, emerge
um tipo diferente de Três, em que os opostos transcendem. De fato, o Três pode ser
um estado de união, a coniunctio alquímica. Neste estágio, o analista e o analisando
79

sentem, muitas vezes, um fluxo intrínseco do campo em que eles se sentem


alternativamente impelidos para outra pessoa e, portanto, separados dela. Esta
dinâmica é o ritmo da coniunctio quando uma qualidade Três do campo se torna a
Unidade do nível Quatro. “O número quatro, sugere von Franz, constitui um ‘campo’
com um movimento rítmico intenso que procede do centro abrindo-se como um
ventilador e indo em direção ao centro” (1974, p. 124). Também, o movimento do
Três ao Quatro é um movimento em que perece que nos sentimos definidos (von
Franz, 1974, p. 122). No nível Três não existe o sentido das fronteiras do nível
Quatro. De certo modo, o nível Três convida a interpretá-lo como um ato de
expansão, mas talvez também como um ato que defende o analista do tipo de
familiaridade que pode evoluir no movimento para o Quatro. De fato, no movimento
para o Quatro está envolvida a ‘totalidade’ do observador (von Franz, 1974, p. 122),
trazendo ao sentido paradoxal de uma subjetividade e a um sentido percebido de
Unidade.
Todavia, no caso da experiência da jovem criativa, com o próprio pai invasivo,
a psique da analisanda contém a imagem do passado de uma violação efetiva ou
imaginária. Como esta condição psíquica muda? Seguramente não ocultando uma
nova imagem ou lembrando as partes da uma vida de fantasia positiva que existiu,
também essa, enquanto estado de fusão negativa, destrutiva, é muito poderosa para
ser influenciada pela memória histórica de outros estados. Existe um processo que
realmente extrai, dissolve e transforma a imagem anterior, seja ela uma inscrição de
uma história de abuso efetivo ou um trauma introjetado da cena primária? Em
resposta a estas perguntas, as dinâmicas de campo desempenham um papel com
modalidades que se diferenciam, sobretudo das ideias de campo com base apenas
em uma única subjetividade. Fazer a experiência do campo com as próprias
dinâmicas objetivas, e ser influenciado por essa experiência, é um modo de
transformar as estruturas internas. Podem, enfim, emergir novas formas que criam
ordem nas partes psíquicas até então esmagadoras e fragmentadas.
As dinâmicas de campo desempenham também um papel no processo de
encarnar a experiência arquetípica em uma realidade interna, percebida. Pode-se ter
a opinião de que cada criança, já ao nascer, conheça níveis do numinosum, e em
seguida, perde esta consciência até certo ponto, e dependendo do quanto a díade
mãe-criança está em grau de conter a sua presença sagrada. A mãe é o primeiro
veículo, em projeção, da energia espiritual da criança; mas a criança pode conhecer
esta energia também antes que se verifique o processo de projeção. Ou ainda se
pode ter a opinião de que os níveis espirituais que nunca foram conscientes de
algum modo por um indivíduo, podem, portanto, irromper do inconsciente coletivo.
Em ambas as abordagens, muitas vezes, o dilema de uma consciência do
numinosum permanece, mas logo se perde em face do trauma e das demandas da
vida no espaço e no tempo, e à inércia da matéria. Todavia, esta consciência
continua a viver pelo inconsciente, ou como um nível de ‘paraíso perdido’, ou como
um potencial espiritual cuja alma conhece um modo inato da existência, com o
antiguíssimo problema da sua encarnação em um centro da psique percebido e
ainda presente. A experiência do campo interativo constela a capacidade de facilitar
80

este processo de encarnação que, como explica Adam McLean, era o ponto central
do Splendor Solis (1981, p. 83).
Além disso, também é possível perceber brevemente uma realidade
imaginária que parece ser uma propriedade do mesmo campo, o que é como fazer a
experiência da qualidade temporal do momento. O analista e o analisando podem se
tornar conscientes de uma imagem que sentem emergir do campo e refletem o
estado de ambos. Cada um pode apresentar o próprio sentido das imagens do
campo quando se concentra sobre ele, como na concepção de imaginação ativa de
Jung. O resultado pode ser semelhante a um ‘diálogo através do desígnio’ em que,
das imagens criadas por cada pessoa se constroem um sentido de campo. A
interpretação, no sentido clássico de relacionar a imagem e o afeto com as
produções do desenvolvimento primário, bloqueia a consciência do campo. Em vez
de fazer a experiência da interpretação, vive-se a qualidade do momento do campo,
muitas vezes, verbalizando-a e outras vezes, permanecendo em silêncio. Viver
ativamente e conscientemente as energias e os modelos que podem perceber no
campo, vivê-los no aqui e agora, influencia o campo e o anima como se fosse um
organismo vivente. Muitas vezes, os afetos do campo são quase esmagadores, e
em outros momentos é quase impossível prestar atenção no campo. Estados
mentais extremamente caóticos (em ambos) podem tornar muito difícil permitir que o
campo seja o objeto e ainda mais difícil perceber as imagens do campo
Se estivermos envolvidos no campo, podemos nos tornar conscientes de um
profundo processo organizativo, do qual anteriormente estávamos inconscientes. O
analista e/ou analisando podem sentir ou intuir este processo organizativo como
operante, mas não necessariamente conhecido no domínio espaço-temporal
normalmente ocupado pelo ego. O campo possui a natureza paradoxal por ser
criado através do ato da submissão, mas também por ser um increatum sempre
presente, um processo fora do tempo. Para penetrar no mundo imaginário do
campo, necessita renunciar, em grande escala, ao controle do ego, não ao ponto de
fundi-lo com outra pessoa e não no sentido de cindir o próprio eu em uma parte
irracional que vive a fusão, e uma parte racional que atua como observador. É
necessário algo mais do que o desejo de viver o campo, de modo que possa revelar,
com certeza, a limitação de qualquer ideia que se tenha sobre o significado de uma
interação particular, tanto analítica, quanto pessoal. Tendo confiança em um
processo mais amplo, se pode comumente descobrir que a forma particular de
campo é, efetivamente, muito mais arcaica e poderosa do que qualquer coisa que se
possa imaginar. Esta experiência da forma existente, e a criação/descoberta de
novas formas, podem exercer um efeito transformador na estrutura interna e pode
fazer com que se encarnem novas estruturas.

PERIGOS DA EXPERIÊNCIA DO CAMPO INTERATIVO

Os alquimistas diziam, muitas vezes, que o seu ‘elixir’ ou ‘pedra’ era tanto
uma cura, quanto um veneno. Do mesmo modo o campo, como ‘terceira coisa’ com
a sua própria objetividade, pode ser uma bênção ou uma maldição. Aplicando a
81

abordagem do campo interativo às relações, nós percebemos que ele contém quatro
perigos específicos:

Evitar a nigredo

O campo interativo cria um amplo aspecto de estados que podem ser


compreendidos por experiências de um intenso fluxo erótico e desejo de atualizá-lo,
a estados de morte emocional e mental e total ausência de conexão. A partir do
momento em que estes últimos estados são tão problemáticos em decorrência do
sofrimento que geram e das feridas que infligem, especialmente sobre o narcisismo
do analista, os estados opostos, cujos fluxos eróticos parecem criar intensos campos
de união e de profundo conhecimento do outro, tornam-se extremamente sedutores.
O analista pode escolher concentrar-se sobre estes estados dotados de forte carga
para evitar aqueles emocionalmente mortos, como por exemplo, lembrando
experiências do passado a ele agradavelmente conectadas e/ou imaginando tais
experiências inconscientemente. Ações semelhantes têm um forte efeito indutivo, e
podem ser usadas para evitar experimentar os obscuros estados mentais que,
geralmente, seguem a coniunctio.

Não avaliar a qualidade estrutural do casal inconsciente

A coniunctio que se forma pela psique inconsciente de ambas as pessoas


possui uma natureza positiva ou uma negativa. Jung reconheceu que a experiência
da coniunctio pode levar à criação da ‘libido parental’ (Obras, vol. 16, p. 241) que
ultrapassa a ilusão da transferência. O problema é que existem muitas formas de
coniunctio, e enquanto um campo de desejo pode ser acompanhado por muitas
delas, o erotismo do campo não pode acompanhar adequadamente sem uma
consciência da qualidade estrutural do casal inconsciente que inclui e define a
coniunctio. Por exemplo, o Rosarium Philosoforum descreve um casal – O Rei e a
Rainha – que participam do ato do coito. Mas um texto alquímico mais antigo, a
Turba Philosophorum, descreve um casal - um dragão e uma mulher – entrelaçados
em um estado violento de fusão que leva à morte. A paixão que acompanha esta
imagem não possui a modulação e o controle da paixão representada no Rosarium.
Em ambos os casos, a qualidade erótica da coniunctio deve ser vista como uma
qualidade de campo e não como algo para possuir ou com o qual identificar-se. Na
prática clínica, como na relação em geral, muitas vezes, se percebe que conexões
conscientes, amorosas, ainda que genuínas, são também modos para ocultar um
campo de fusão muito mais perigoso. A sexualidade, como pode esconder a
ansiedade na transferência, pode esconder a natureza monstruosa de um casal
inconsciente.
A este propósito fui consultado ocasionalmente por analistas em relação aos
casos após anos de sua conclusão. Os analistas relatavam que, ainda que o
tratamento tivesse aparentemente terminado bem, eles eram procurados
intermitentemente pelos seus analisandos anteriores, que lhes contavam que se
82

sentiram atormentados, durante anos consecutivos, por desejos tenazes ligados ao


analista. Torna-se claro que tais analisandos estavam passando pelo sofrimento de
não ter vivido realmente as energias eróticas da coniunctio, o que teria levado a uma
situação muito pior. Mas era crucial para aqueles analisandos que os analistas
envolvidos reconhecessem e comunicassem que, também eles sofriam do sacrifício
inerente em manter um bem superior, devido à necessidade de preservar os limites.
Os analistas tinham feito um bom trabalho quanto aos limites, mas a sua resistência
contratransferencial em sentir a dor de perder a conexão erótica que eles também
experimentaram, deixou o analisando em um terrível dilema. Os analistas tinham
cindido estes sentimentos, e na realidade, deixaram os analisandos suportar toda a
dor, a raiva e o desespero de união, que não poderia ser consumada. Estes
analisandos se libertavam deste tormento, somente quando se beneficiavam de
novas seções analíticas, e os analistas podiam reconhecer o seu sofrimento pessoal
em relação ao mesmo problema.

Incompreensão da coniunctio como propósito de trabalho

Ao trabalhar em um campo compartilhado nasce o mais grave dos perigos


quando o analista pensa que a coniunctio, o estado de união de opostos, tais como
a fusão e a distância direcionadas ao Terceiro transcendente, seja o ponto central do
processo analítico. De fato, o analista deve focar também sobre a nigredo, o estado
obscuro, fonte de desordem, que se segue a todos os estados de coniunctio. A
literatura alquímica é uma mina de informação sobre este ponto. Toda
transformação, insistem os alquimistas, ocorre através da morte e da putrefação, às
qual se segue um estado de união. Caso conheça essa sequência e deseja
examinar minuciosamente e elaborar os efeitos de renúncia, ausência, confusão,
sentido de morte e de vazio após uma sessão em que se conseguiu uma conexão
Eu-Tu de um estado de união, um analista se encontrará normalmente no caminho
seguro.
Jamais se enfatiza de modo suficiente que a nigredo, a morte da estrutura e
os efeitos aterrorizantes que, de repente, são associados às partes loucas afloradas,
é a substância privilegiada da análise, assim como era para os alquimistas. Mesmo
que uma transferência ou uma contratransferência, fortemente negativa, acompanha
a nigredo, o analista pode usar as experiências anteriores de união como meio para
evitar experimentar os intensos efeitos negativos e os dolorosos estados mentais
que as acompanha, enquanto ele pode procurar recriar um estado de união ou ainda
agir com raiva contra a sua ausência, identificando-se passivamente com a natureza
dissociativa da qualidade do campo da nigredo. Deve, então, procurar os efeitos
entre os próprios movimentos mais leves, o que não é uma tarefa fácil quando o
estado de união, muito mais prazeroso e feliz acabou de acontecer. Esta
consideração para as dinâmicas de campo onde se encontram em sucessão os
estados de união e a morte da estrutura, é a melhor guia para utilizar o conceito de
campo e para respeitar a sua dimensão arquetípica. A resistência
contratransferencial é geralmente o problema no analista, mas é particularmente
83

intensificada em uma experiência recíproca do campo. Se o analista elabora os


próprios sentimentos negativos, após uma experiência de união com o analisando,
ou ainda ao contrário, se o analista registra tais sentimentos negativos e pensa que
certo nível de coniunctio pode e deve ser inconscientemente verificado, então a
nigredo pode se tornar o ponto central do trabalho.
No caso particular, em que se trabalha com pessoas que foram vítimas de
incesto, a coniunctio se torna particularmente problemática, porque oferece uma
fortíssima promessa de cura. Como o ‘Deus que fere é o Deus que cura’, a
experiência de coniunctio pode ajudar na cura do abuso derivado do incesto, mas
somente se a nigredo que dela resulta for atentamente gerenciada. As vítimas de
incesto são particularmente sensíveis e alérgicas aos sentimentos de traição e de
abandono, inevitavelmente presentes na fase da nigredo. Se o analista for incapaz
ou relutante em ocupar-se honestamente com a própria incapacidade de relação
com a nigredo na sua negação de empatia, especialmente com analisandos que
sofreram a violência do estupro ou do incesto, o analisando se sentirá terrivelmente
inseguro e a coniunctio será experimentada somente como um objeto lisonjeiro e
nada mais, resultando em um trauma renovado.

Não reconhecer os estados de transe

Uma pessoa que sofre de uma perturbação dissociativa - que se encontra


comumente onde sofreu abandono e/ou violências sexuais ou físicas - está sempre,
a certo nível, em um estado de transe. A partir do momento em que a abordagem de
campo tem a própria tendência de constelar um leve estado hipnótico, se não se dá
atenção, é possível cometer graves erros. Graves erros podem ser verificados, não
somente no que o analista faz - o que é bem fácil de ocorrer - mas também no que
diz e também no que imagina, porque o seu inconsciente tende a ser intensamente
colocado à prova pelo analisando dissociado, como se fosse de uma aumentada
capacidade de ESP. Geralmente, o analisando dissociado tende a levar ao pé da
letra as afirmações do analista, enquanto este acredita estar falando por meio de
metáforas. Esta confusão é particularmente perigosa quanto o analista está evitando
os efeitos negativos e usa o poder vinculante dos processos da ‘terceira área’, o
campo interativo, para cindir estes efeitos forçando a existência de uma relação lá
onde, de fato, a qualidade principal da interação é uma falta de conexão. Somente
se o analista está atento ao processo de dissociação pode pensar de iniciar a tratar
os processos no campo interativo. Muitas vezes, anos de trabalho com um
analisando devem, antes, apresentar os estados dissociativos com os quais é
possível lidar, e somente então, se pode fazer a experiência de campo, com certa
medida e segurança.

Uma vez que está consciente dos perigos implícitos nas experiências de campo, o
analista pode abrir-se de modo mais confiante aos processos imaginários
necessário para compreender as dinâmicas de campo. Tais processos, no interior
do campo, cobrem um espectro que se estende entre a vida espiritual e a material,
84

opostos que se manifestam ao ego através do que Jung chamou de inconsciente


somático e inconsciente psíquico (Jung, 1988, 1, par 441).

CONHECIMENTO DO CAMPO ATRAVÉS DO INCONSCIENTE PSIQUICO E DO


INCONSCIENTE SOMÁTICO

O estado inconsciente de um indivíduo pode exprimir informações e


experiências através de formas mentais, espirituais e corpóreas. Jung definiu como
inconsciente psíquico as formas mental-espiritual de expressão, e de inconsciente
somático as formas corpóreas. O inconsciente e psíquico e o somático são
complementares no sentido de que fazem experiência do mesmo material, porém,
através de meios diferentes. Ao tratar os estados psíquicos das pessoas normais,
muito material traumático integrado pode ser colhido através da experiência dos
estados corpóreos, enquanto eles influenciam a natureza do campo interativo como
modalidades que não podem ser vistas tão prontamente somente através do
inconsciente psíquico. Quando nos referimos ao inconsciente somático, podemos
temporariamente perder a estrutura e a ordem das nossas aquisições mentais: mas
podemos restaurar o sentido e a realidade constante na totalidade psicofísica de um
evento ou de uma experiência. Desse modo, é possível reviver a consciência das
interações e do fluxo constante entre mente, espírito e o soma, essencial para
estabelecer uma experiência viva do próprio campo.
No nível mental-espiritual, isto é, ao nível da cabeça ou da mente de um
indivíduo, o inconsciente psíquico é experimentado em forma de imagens, modelos,
causalidades, significados e história. O inconsciente psíquico nos fornece as
imagens dos nossos processos mentais e espirituais. Tais imagens,
necessariamente, levam ordem e logos, pela sua natureza confeccionam o todo de
modo unificado e ordenado para que a nossa consciência possa funcionar. Não
podemos começar a identificar e compreender uma coisa sem um processo de
pensamento com os seus efeitos concomitantes que separam e parcelam. Através
do inconsciente psíquico, o analista pode perceber as partes perturbadas da psique
do analisando, quando influenciam ou ego e o pensamento, bem como, a coesão do
processo analítico.
No nível corpóreo, o inconsciente somático é experimentado como sofrimento,
desconforto, tensão, opressão, energia, impulso e outros sentimentos de ser
encarnado. Estar encarnado significa um estado mental particular no qual se
experimenta o próprio corpo em um modo particular. Por exemplo, torna-se
consciente do próprio corpo, no sentido de estar consciente da sua dimensão. No
decorrer desta consciência, o indivíduo adquire uma experiência particular de viver
em tal dimensão, isto é, se sente fechado no espaço do corpo. Este estado requer
um livre fluxo de respiração que é sentido como uma onda que move o corpo para
cima e para baixo; em que o indivíduo começa a sentir-se habitando no próprio
corpo. Nesse estado, o corpo se torna um lugar, e se sente a sua idade. A condição
de estar encarnado é a experiência de um intermediário existente entre o próprio
corpo material e a própria mente. Os alquimistas chamaram Mercúrio a este
85

intermediário; outros o definiram o corpo astral, o corpo sutil, e Yesod na cabala


(Jung, Obras, vol. 14, p. 445); Jung o definiu como inconsciente somático (1988, 1:
441). Os alquimistas e os magos dos tempos antigos, até o renascimento,
entendiam que este intermediário fosse uma substância que se volta para dentro do
corpo humano, mas também que flui através do espaço formando os percursos
pelos quais fluem a imaginação e o Eros.
Estar encarnado significa fazer a experiência do corpo sutil, e se pode dizer
que cada complexo, o que significa dizer, um grupo de associações no inconsciente
designadas por uma totalidade comum de sentimento e apoiadas sobre um
fundamento arquetípico, possui um corpo sutil. Quando se constela um complexo, o
seu corpo, até certo grau, assume o controle do corpo do ego. Por exemplo, o
analisando que tinha dificuldades de sentir a própria autonomia, se revelou
inusitadamente vivaz e lúcido no final de uma sessão comigo, e afirmou
metaforicamente: “Hoje acordei na minha própria casa”. Continuou explicando que,
com frequência, acordava na ‘casa de sua mãe’. Usava essa metáfora para explicar
uma experiência de perda da consciência do próprio corpo; se sentia, então,
engolido na imagem do corpo de sua mãe, ou naquela imagem do corpo construída
pela sua interação com a mãe durante a infância. Quando acordava na “própria
casa”, no seu próprio corpo, percebia certos problemas de trabalho como questões a
enfrentar; quando ele acordava na ‘casa de sua mãe’, esses mesmos problemas
eram vistos como aborrecimentos e perseguições. O seu comportamento assumia,
então, uma qualidade ‘como se’, em plena distinção com a claridade e a força que
ele manifestava quando estava ‘na sua casa’.
Necessita dissolver o corpo do complexo. Esta ideia - que em nível do
inconsciente psíquico seria aquela de enfrentar as projeções negativas que
deformam a autenticidade - é transmitida pela literatura alquímica com a expressão
“destruir os corpos”. Por exemplo, a Turba Philosophorum a firma: “Pegai o velho
(veterem), espírito negro, e com ele destruireis e atormentareis os corpos até que se
transformem” (Jung, Obras, vol. 14, p. 360). O ‘velho espírito negro’ é comumente a
raiva, a vergonha e a paranóia que foram divididas pela consciência durante os
primeiros anos de vida e esta divisão impulsiona o indivíduo para fora do corpo.
Entrar em contato com afetos poderosos, sentidos como catastróficos para a própria
vida, é muitas vezes, o único modo de “destruir os corpos” para deixar de viver no
corpo as imagens que carregam consigo as qualidades estranhas que bloqueiam a
vida.
O material psicótico se choca com a consciência como se esta fosse
acometida por sensações e fragmentos sem significado nem ordem. Wilfred Bion
definiu esses materiais como ‘produtos beta’ e desenvolveu uma teoria do
“pensamento embrionário que constitui uma ligação entre impressões sensoriais que
constituem uma conexão entre as impressões sensoriais e a consciência” (1970. p.
49). O problema de conectar tais domínios foi o ponto central de muita especulação
pré-científica da arte mágica e dos seus fundamentos filosóficos no pensamento
estóico. Mas a arte mágica se aproxima dessa conexão de modo diferente. Mais do
que sobre uma teoria de pensamento, os alquimistas e os mágicos se concentraram
86

sobre uma teoria da imaginação. Em uma grande visão da comunicação em todos


os níveis da realidade, eles hipotetizaram um corpo sutil com ligações através da
fantasia, fibras de ligação vistas como vínculos, e talvez, definidas como pneuma
que conectam o corpo e a mente, pessoas e (segundo o autor), níveis que se
estendam em direção aos reinos planetários e outros. Mas em todas essas
abordagens, o agente da conexão é a imaginação enquanto a linguagem da alma é
imaginal. A coisa mais importante, um órgão - o coração nos seres humanos e o Sol
no Cosmos - age como a estação central que orienta o processo de transmutação
das impressões sensoriais em consciência. O coração é um ‘sintetizador cardíaco’
que Aristóteles chamou o Princípio Hegemônico (Couliano, 1987, p. 9).
Do ponto de vista desta abordagem, é possível trabalhar sobre temas da
criação de conexão de imagens para tratar estados psicóticos mediante o
inconsciente somático. A conexão de opostos interiores, imaginários do analista, que
é sentido como elemento de relação no interior do campo, se entrelaça com o tecido
menos estruturado ou menos conexo do analisando, com grupos de relações
fragmentadas. Muitas vezes se pode trabalhar deste modo ‘anímico’, que se refaz na
antiga tradição da magia, sobre os mesmos temas, cujas teorias mais modernas,
como aquela de Bion, procuram dirigir-se. Mas na antiga tradição, o órgão central do
pensamento era o coração mais do que a mente. A partir da conexão encarnada do
inconsciente somático, sente-se uma corrente de conexão entre si e o outro, uma
corrente que tem a sua própria visão centrada no coração.
Trabalhar mediante o inconsciente somático tem um valor espiritual e gera
uma capacidade de encontrar ordem e significado nos estados caóticos. Mas
trabalhar mediante o inconsciente somático envolve bem mais a alma, o sentido da
vida nas e entre as pessoas e, sobretudo, a experiência da energia vital do espaço
relacional que é ocupado por ambos os indivíduos. As atitudes que se desenvolvem
ao trabalhar com o inconsciente psíquico envolvem a consciência e o modo de obtê-
la. As atitudes que se desenvolvem ao trabalhar com o inconsciente e somático não
envolvem as projeções e as introjeções, mas experimentar as relações. Necessita,
todavia, estar atento ao fato de que as áreas dissociadas da pessoa com a qual nos
encontramos ou a sua divisão mente-corpo possuem o efeito indutivo que tende a
impulsionar-nos para fora do nosso estado encarnado.
O reino de conexão do corpo sutil era visto pelos alquimistas como Mercúrio.
As suas qualidades elencadas por Jung no seu estudo “O Espírito Mercúrio” (Obras,
vol. 13), são todas qualidades do campo relacional. Este campo é influenciado pelas
relações interiores entre os opostos que o indivíduo carrega dentro de si. As áreas
no interior do indivíduo em que os opostos não são estados separados, nem
começaram a ser maciçamente reunidas, influenciam a natureza do campo. Do
mesmo modo, a divisão mente-corpo do analista e do analisando que, muitas vezes,
resulta em uma reação às áreas psicóticas presentes na personalidade do analista
ou do analisando, influencia o campo.
No modelo quaternário da relação transferencial e contratransferêncial, a
conexão consciente-inconsciente do analista realiza a mesma conexão no
analisando. Mas a conexão consciente-inconsciente realiza também a conexão
87

inconsciente-inconsciente. E a resistência que uma das duas pessoas opõe ao


inconsciente ou à experiência da conexão em um corpo sutil ou campo relacional,
tem efeitos correlatos na outra pessoa. Portanto, a série de caminhos descritos por
Jung entre os quatro pontos criados pela consciência e pelo inconsciente de ambas
as pessoas representa relações que podem ser ativadas, para o bem ou para o mal,
por um das duas, e a sua conexão mútua pode ter um efeito curativo ou prejudicial
sobre o campo relacional no interior do indivíduo.
Desse modo, nós podemos falar de um ‘campo interativo’, embora com esta
terminologia não impliquemos qualquer causalidade normal, mais do que Jung o
faça, quando fala das projeções enquanto analogias injetáveis na medula espinhal.
É mais um modo fenomenológico de tratar uma experiência, com a vantagem que
nos é oferecido por esta terminologia para uma espécie de visualização da
experiência relacional.
O campo e as percepções que emergem do inconsciente somático podem
ser explicados pelo caso de uma mulher que devia passar por uma pequena
intervenção cirúrgica. Tínhamos explorado com profundidade o nosso campo
recíproco, geralmente, do ponto de vista do inconsciente psíquico. Parecia-me
digna de nota a maneira com a qual ela falava do seu corpo. Independentemente da
condição orgânica que estava descrevendo, eu percebia um claro sentido de contato
com ela. Não percebia alguma dissociação e além do mais, eu tinha uma notável
sensação que o uso do corpo fosse sadio. Esta sanidade era provável. Era como
ouvir um médico capaz de falar de modo completamente aberto sobre qualquer
função ou órgão do corpo.
Mas quando começava a falar de qualquer forma sobre a sexualidade, ou se
a sexualidade estivesse presente no seu material onírico, este sentido de unidade
corpórea desaparecia completamente. Era como se qualquer referência ou
associação com a sexualidade introduzisse uma imagem diferente do corpo. Então,
o sentido do espaço ou campo entre nós modificava radicalmente e perdia energia,
tornava-se escuro e apagado no sentimento, desprovido de qualquer sentido de
relação. A única conexão entre este estado e o anterior que eu tinha conhecido com
ela se verificava quando eu sentia-me apagado e apático no meu próprio estado
emocional, sob o impacto dos opostos cindidos na sua parte psicótica. Mas não
percebi ser conveniente explorar os meus estados interiores em termos de
identificação projetiva. Ela insistia sempre que estes estados de estagnação e de
apatia estavam em primeiro lugar na minha resposta para interagir com ela. Mas
quando finalmente nos ocupamos dos seus estados esquizóides e do seu terror e da
sua humilhação ao sentir tal fraqueza do ego, ficou claro que o que ela sentia em
mim (e que eu não sentia mais neste estágio do nosso trabalho), era o modo com
que ela tinha vivido sua mãe em muitas ocasiões na sua primeira infância.
Esse estado de torpor não existia mais em mim, mas tinha se tornado uma
qualidade do campo entre nós, que ela conseguiu reconhecer. Sentia como se o
próprio corpo tivesse modificado e ela tivesse dois corpos - um de carne e outro que
parecia escuro e fonte de perturbação assim que brotasse qualquer argumento
88

sexual. Era como se o corpo sutil fosse possuído por um espírito obscuro que
chegava a dominar o nosso campo interativo.
Então ela teve um sonho notável: vestia uma velha camisola negra e devia
levantar-se para iniciar o seu trabalho cotidiano. Mas não conseguia tirar o
indumento, que malgrado todos os seus esforços, permanecia grudado nela.
Pensava em tomar um banho, mas sabia que isso a tornaria mais pesada. Acordar
seria o único modo para conseguir dar fim àquilo que sentia como uma tortura.
O estado terrível no sonho foi gradualmente clarificando. Em vez de entender
a imagem da camisola como, por exemplo, a Sombra do analisando, uma
focalização encarnada sobre o campo fez emergir um ponto de vista diferente: a
indumentária era a imagem do corpo de sua mãe, e trazia consigo loucura,
depressão e desespero como resposta ao fato de que sua mãe tinha sido vítima de
um incesto. A mãe tinha constantemente forçado a analisanda a identificar-se com
ela durante toda a vida. Por exemplo, a analisanda lembrava como sua mãe lhe dizia
que ainda eram semelhantes, no fato de não amar os homens. Mesmo que a
analisanda sabia que aquilo não era verdadeiro, temendo a violência imprevisível de
sua mãe, não dizia nada e, às vezes, também concordava com ela. Havia
numerosos exemplos de semelhantes projeções diretas e impostas, em que a
analisanda não conseguia dizer não, pois estas projeções eram a única forma de
contato que tinha com sua mãe, além disso, ela temia sentir profundamente raiva de
sua mãe, caso ousasse separar-se dela. Assim, a analisanda literalmente vestia a
loucura de sua mãe com a finalidade de sentir-se fundida com o corpo dela. Quando
a imagem do corpo de sua mãe revivia nela, eu me tornava incapaz de aproximar-
me dela afetivamente.
Tendo trabalhado com o inconsciente psíquico e havendo reconhecido o seu
setor psicótico e um sentido de si mental-espiritual, finalmente conseguimos acessar
este material. Mas a analisanda podia começar a agir para separar-se dos fatores
estranhos ao ego, representados pela loucura de sua mãe, somente fazendo a
experiência do inconsciente somático e tornando-se consciente dos seus dois
corpos. Podia reconhecer como o estado do seu corpo modificava o campo entre
nós. Agora eu podia estar encarnado com ela e sentir a morte e a escuridão que
invadiram o campo que ocupávamos. E também ela. Só o corpo pertence a uma
experiência direta deste gênero. Como observou Jung, nós fazíamos experiência do
encontro através do corpo sutil, de modo mais direto, muito mais tangível do que
através do inconsciente psíquico.
Como consequência desse trabalho, a analisanda finalmente conseguiu
rejeitar completamente as projeções de sua mãe, também quando sentia o quanto a
amedrontava ter a coragem de realizar tal separação. Essa rejeição foi para ela um
ato surpreendente, e foi uma parte do esforço final conseguido para tirar a
indumentária da vergonha e da loucura de sua mãe. Esta forma do corpo sutil
começou também a reduzir-se no campo entre nós.
Trabalhar com o inconsciente psíquico e o inconsciente somático, quando a
informação de tais formas do inconsciente se manifesta através do campo interativo,
tem um efeito indutivo sobre a psique de ambas as pessoas. Os processos
89

projetivos e introjetivos se transmitem através do campo interativo. Nesta


transmissão - uma atividade não limitada por um processo de lugar e de tempo e,
portanto, não caracterizada pelos conceitos normais de causalidade - as estruturas
psíquicas de um indivíduo se transformam. Os alquimistas falam do ritmo da
dissolução e da coagulação da sua ‘matéria’ como fundamental para a
transformação. Do mesmo modo em que os processos inconscientes percebidos
através de uma forma do inconsciente, por exemplo, do inconsciente psíquico, esta
percepção se registra como uma estrutura interna, um complexo. Por sua vez, tal
complexo é implicitamente usado a fim de ordenar e compreender os processos
inconscientes enquanto continuam a se manifestar. Mas quando esses processos
são compreendidos através do inconsciente somático, as estruturas inconscientes
do complexo criado se dissolvem e se formam novamente em uma estrutura
diferente. Assim, o movimento entre o inconsciente psíquico e o somático é um
modo para seguir a máxima alquímica do solve e coagula, e no processo ajuda a
criar novas formas e estruturas internas.

TRANSFORMAÇÃO DA FORMA NA ALQUIMIA

Todas as escolas de pensamento da prática analítica procuram criar novas


formas de estrutura interna. E, sobretudo, esta ênfase sobre uma mudança da forma
que conecta a psicoterapia às suas raízes na obra dos alquimistas do XV e XVI
séculos, que prefiguraram a descoberta da psique (Jung, Obras, vol. 14, p. 122). O
pensamento Kleiniano (Segal, 1975, p. 54-81), ocupa-se do movimento da assim
chamada “posição esquizoparanóide” e “posição depressiva”. Por exemplo, um
indivíduo dominado por processos de divisão da posição esquizoparanóide, muitas
vezes, reage com uma raiva que distorce a realidade de dada situação, enquanto
alguém que conseguiu acessar a posição depressiva viverá a mesma situação com
muito mais tolerância e com a capacidade de ver a realidade do lamento de outra
pessoa. Um expoente da psicologia do Self estará interessado, entre outras
mudanças da transformação, de um Superego sádico em uma forma benévola,
idealizada, e ao desenvolvimento de objetos em si de formas primitivas a formas
mais adaptadas. Um Freudiano se ocupará com as modificações no
desenvolvimento do ego, representadas pelo movimento de um estágio oral e um
estágio anal e fálico-genital, que representam todas as diferentes formas de
organização psíquica. Um Junguiano irá focar sobre a individuação e sobre suas
miríades de formas internas que modificam. Um clínico das Relações Objetais, por
exemplo, acredita que a criação de estruturas psíquicas é adquirida passando
através dos estágios de separação e de reaproximação. Estas escolas de
pensamento apresentam todos os modelos que são representações da modificação
na forma estrutural da psique.
A transformação da estrutura interna é o resultado prático da experiência dos
processos do campo. O pensamento alquímico em relação a esse processo é
revelado no Splendor Solis. Segundo em importância apenas para o Rosárium
Philosophorum, marco no estudo de Jung sobre a transferência, o Splendor Solis
90

trata de questões que completam o Rosariumm, particularmente o problema da


encarnação dos processos arquetípicos. O prefácio do texto compreende numerosas
dissertações. De acordo com a primeira dissertação, que descreve a “origem da
Pedra dos antepassados e como ela é aperfeiçoada mediante a Arte”, a forma da
coisa que deve ser criada, a “Pedra do sábio”, somente poderá se tornar, através da
natureza:

A natureza está ao serviço da Arte e, da mesma forma, a Arte está ao serviço da


natureza. (...) Ela sabe qual tipo de formação é agradável à natureza, e o quanto
dela deveria ser feita de Arte, de modo que esta Pedra pode conseguir a sua
forma através da Arte. Então, a forma procede da natureza: porque a forma real
de cada coisa singular que cresce, animada ou metálica, deriva do poder interno
do material (McLean, 1981, p. 10).

Por natureza, podemos compreender a psique e, por ‘Arte’, as atitudes


conscientes e técnicas da análise. Então, a primeira dissertação fornece um
exemplo particularmente interessante e insolitamente claro da ciência alquímica:

Deve-se perceber que a forma essencial não pode desenvolver-se no material.


Haverá de passar através do efeito de uma forma acidental: não através do poder
desta última, em que o poder de outra substância ativa como o fogo, ou então,
qualquer outro calor que atue sobre ela. Daqui provém o nosso uso da alegoria de
um novo ovo de galinha, em que se gera a forma essencial da putrefação sem a
forma acidental, que é um uma mistura do vermelho e do branco, do poder do
calor da choca, que age sobre o ovo. E, mesmo que o ovo é o material da galinha,
todavia, nisso não nasce alguma forma, nem essencial e nem acidental, a não ser
através da putrefação (McLean, 1981, p. 12).

Desta passagem podem ser retiradas muitas ideias chave. Antes de tudo, é
necessária uma forma acidental, e esta forma é uma mistura do vermelho e do
branco. Esta mistura alude à coniunctio de Rei e rainha, de Sol e Lua, ou, na
análise, ao matrimônio consciente dos aspectos do inconsciente de cada pessoa,
em que uma psique fornece a substância vermelha ativa e a outra uma substância
branca, mais receptiva, com esses papeis também intercambiáveis. A forma é
definida ‘acidental’, o que significa ‘acausal’; a sua existência não é causada por
alguma operação anterior. Depois, a passagem afirma que a forma que emerge da
elaboração do material, atua sem o poder da forma acidental, e com o poder de uma
substância ativa, como o fogo. Está implícito que a ‘forma acidental’, que é gerada
pela união dos opostos, não media necessariamente, as suas propriedades através
do fenômeno energético. Na teoria de Rupert Sheeldrake (1991, p. 111) uma ideia
similar representa a relação e a estabilidade da fonte, e os seus ‘campos mórficos’,
não são transmitidos pela energia, mas eles próprios transmitem as informações.
Mas, de qualquer modo, a forma acidental é, portanto, essencial? O texto responde
que o segredo da transformação é a putrefação, é pré-requisito para a morte criativa
da estrutura. Está envolvido também um processo ativo, que consome energia,
como na alegoria do calor da galinha choca. Esse processo é semelhante à energia
empregada para lidar com as intensas reações, geralmente negativas, de
transferência e contratransferência descritas anteriormente, estando incluídas as
91

tendências à renúncia e ao vazio mental que, muitas vezes, segue à coniunctio e


que, infelizmente, poderiam ser ignoradas.
A ciência alquímica procurou empenhar-se imaginariamente em um processo
de encorajar a criação de uma forma ‘acidental’ – a coniunctio. Mas a psicoterapia
essencialmente tratou os estados de união ‘acidental’ como um ‘parâmetro
escondido’. Jung observa que, normalmente, se reconhece a presença da conexão
em uma sessão, somente pelos sonhos que ocorrem na sequência (Obras, vol. 16,
p. 257). Mas também, neste caso, a própria experiência do estado de união não só
forja, geralmente, uma nova estrutura interna. Juntamente com o estado de união, é
necessário enfrentar e integrar parte do caos para o qual conduz.
Através da nigredo, os alquimistas procuravam purificar-se dos desejos
regressivos, onipresentes, identificando-se com os processos arquetípicos, como é a
coniunctio. Esta purificação chamada de mortificatio, conquistada através de
numerosas sequências coniunctio-nigredo e, portanto, através de grandes
sofrimentos, foi representada simbolicamente pela morte de um dragão, que em si
representava a pulsão para a concretização. Necessita compreender que estas
pulsões para a concretização dos processos instintivos, não estão somente situadas
na subjetividade de ambas as pessoas. Elas são também aspectos do campo em si,
sobretudo, quando procura se encarnar no espaço e no tempo. Porém, não são
somente os indivíduos a ser modificados, mas também o campo que eles ocupam
assume novas formas. Através da compreensão das propriedades que o campo
oferece, podemos ocupar-nos das suas dinâmicas e transformações no decorrer do
processo. A transformação na forma estrutural interna de uma psique é criada pela
experiência repetida da qualidade do estado momentâneo e do seu significado, do
mesmo modo em que se é influenciada por uma visão.
Duas pessoas podem fazer experiência da coniunctio, mas o modo em que a
elaboram modifica em função da sua subjetividade. Por exemplo, duas pessoas - um
analista e um analisando - podem fazer a experiência de um estado de união. Eles
podem experimentá-la diretamente como um estado ‘aqui e agora’. E pode ser que
eles não se restrinjam conscientemente à existência, e que um deles, talvez o
analisando, na noite seguinte sonhe com um casamento. Também, na sessão
seguinte, entre o analista e o analisando pode se perceber uma mudança de uma
relação plena de sentimento e de conexão, para uma relação dominada pela
ausência de conexão e também por estados de renúncia esquizóide e apatia mental.
Um analista pode entender essa condição como uma necessidade de retirar-se da
intimidade da sessão anterior, por causa das perturbações de apego do analisando
e da consequente reação à conexão anterior. Outro analista pode perceber a reação
ao sentimento de conexão como uma medida significativa de uma qualidade
esquizóide ou borderline que está na base do analisando.
Mas um analista que se foca sobre a dinâmica de campo verá também o
estado de apatia e de renúncia, como um fato naturalmente concomitante com o
estado de união anterior. Desse ponto de vista, ele pode reconhecer que as
qualidades obscuras não representam somente uma falta de evolução, mas que elas
existem para qualquer psique individual que provou o estado de união. Também, o
92

analista verá este estado de união, e a nigredo que dela resulta, como parte do ritmo
essencial da transformação. Por sua vez, produzirá uma relação com estes estados
e com a sua contenção, diferente daquele que produziria um analista que interpreta
em termos evolutivos.
Em vez de atribuir os problemas do analisando à posição depressiva, aos
problemas da reaproximação, aos medos de ser engolido, o analista deveria
observar e experimentar as dinâmicas de campo envolvidas. Esta percepção pode
possuir a mesma qualidade de conexão que existe em muitos casos de ansiedade
extrema quando o analista sabe, por experiência, que tais estados fazem parte de
um processo mais amplo, potencialmente positivo. Aceita neste modo, a nigredo
pode começar a atuar com o objetivo de destruir as velhas estruturas, sobretudo
introjeções estão de acordo com a essência do analisando. De certo modo, este é
um processo em que se criam novas formas no analisando, talvez também no
analista e também no espaço que esses ocupam juntos. Assim, formas que podem
conter e elaborar os estados altamente perturbadores, afetados anteriormente,
podem vir à tona através da experiência do campo e das suas dinâmicas.
Portanto, o modo com que nós pensamos sobre os campos é muito
importante. Como simples metáfora para uma subjetividade conjunta, os campos
são úteis para espelhar a história do analisando, assim como se desvela no decorrer
do processo analítico. Mas a ideia de um campo interativo pode conduzir a modos
simplesmente diferentes de conceber o processo analítico quando ele é conceituado
arquetipicamente através da subjetividade conjunta de ambas as pessoas e quando ,
ao mesmo tempo, se compreende que as suas dinâmicas se estendem para além de
tal subjetividade.
93

PODER TRANSFORMADOR DO CAMPO INTERATIVO

IMAGINAÇÃO E PROJEÇÃO NO CAMPO

Em 1916, C. G. Jung começou a desenvolver o conceito de imaginação ativa.


Nesta abordagem, a imagem de um sonho ou fantasia está relacionada com um
diálogo interior, imaginal, em que o nível de consciência dominui e paira entre uma
posição consciente de vigília e uma fusão com a imagem. Desse modo, pode-se
recriar um sonho ou uma fantasia e diálogar com uma figura interior, conseguindo,
assim, um notável efeito transformador. A nossa vida interior sente-se vista e em
relação, na medida em que o outro responde à empatia e ao espelhamento, um
ponto que Jung evidenciou com mais força em 1952 em sua "Resposta a Jó" (Obras,
vol. 12), onde afirma que a consciência que o homem possui da imagem divina
influencia a própria consciência de Deus. Geralmente, a estrutura interior,
respondendo à atenção consciente, pode mudar de formas compulsivas e
negativamente agressivas, para formas curativas e amorosas. Jung considerava que
a imaginação ativa é essencial para qualquer análise minuciosa.
Essa importância atribuida ao poder de uma imaginação ativa bem focada é
uma pedra angular da alquimia. Ver algo em uma pessoa, como enfatiza Jung, faz
com que a realidade venha para essa pessoa (Jung, 1988, par. 616). Ver significa
um ato de visáo não-ordinário. Pode ocorrer ‘através’ dos olhos, diferentemente de
'com' os olhos, ou pode ocorrer como resultado de percepções inconscientes
mediadas pela consciência corporal ou emocional.
A imaginação sempre foi um conceito central na alquimia. No primeiro ou
segundo soéculo, Bolos Democritus, que se diz ser o fundador da alquimia greco-
romana no Egito, relatou uma parábola da descoberta do famoso alquimista 'Axioma
de Ostane', 'Apóstrofe' do morto Ostane, isto é, dialogando com sua imagem para
obter acesso ao mistério (Lindsay, 1970, p. 102). Repetidamente, ao longo dos
séculos e mais explicitamente durante o Renascimento, a literatura alquímica insiste
sobre uma visão espiritual, que emerge a partir de uma relação com o inconsciente.
O alquimista renascentista Hogheland cita o alquimista árabe medieval Senior
dizendo que a "visão" do vaso hermético é mais procurada do que a escritura", e
ambos “falam sobre um ver com os olhos do espírito” (Jung, Psicologia e Alquimia,
1968, p. 261) O alquimista renascentista Dorneus escreve:

Nas coisas naturais há certa verdade que não pode ser vista com o olho exterior,
mas é percebida apenas pela mente (...) Nesta [verdade] reside toda a arte de
libertar o espírito de suas correntes (...) (Jung, Psicologia e Alquimia, p. 276).

Esta visão percebe estruturas que não são guiadas por um princípio de
localização e pela sua diferenciação entre ‘dentro’ e ‘fora’.
Em Psicologia e Alquimia, Jung refletiu sobre o significado psicológico da
afirmação da obra alquímica De Sulphure que “a alma atua no corpo, mas a maior
94

parte da sua vida se desenvolve fora do corpo” (Jung, Psicologia e Alquimia, p. 295).
Naquela época, Jung interpretou essa condição ‘externa’ como o resultado da
projeção. No entanto, após reflexão adicional em 1955, Jung escreve em Mysterium
Coniunctionis:

Poderia ser um preconceito restringir rigidamente a esfera psíquica àquilo que se


encontra ‘dentro do corpo’. Na medida em que a psique tem um aspecto não
espacial, pode haver um elemento psíquico ‘fora do corpo’, ou seja, uma região
tão completamente diferente do ‘meu’ espaço psíquico que é preciso sair para fora
de si mesmo ou fazer uso de alguma técnica auxiliar para chegar a ele. E se essa
visão for correta, a consumação das núpcias na cucurbita poderia ser entendida
como um processo de síntese de um elemento psíquico ‘fora’ o ego (Obras, 1963,
vol. 14, p. 311-312).

Assim, Jung percorreu uma distância considerável ao passar de uma


compreensão de ‘externo’ como sendo limitado ao resultado da projeção, para a
compreensão do psíquico ‘fora’ do corpo 'como sendo uma região' completamente
diferente' dos conteúdos do espaço interno. Essencialmente, o conceito de campo
interativo, pelo qual ocorre a coniunctio – semelhante à alucinante cucurbita
alquímica, o vaso da transformação - é um espaço de relações que não é
compreensível em termos tridimensionais convencionais.
Psicologicamente, o analista deve incluir este conceito mais amplo do campo,
na conceitualização do espaço, em que todas as interações ocorrem, caso se deva
criar um recipiente suficientemente seguro para lidar com os processos psicóticos de
um analisando. Por exemplo, ao se trabalhar com uma transferência psicótica, se o
analista experimenta um estado mental embriagado, dissociativo, a comunicação
pode ser muito arriscada porque a relação com o analisando pode ser marginal.
Usando métodos psicanalíticos convencionais, o analista pode tentar superar esse
estado embriagado e pode começar a perceber que estas reações são todas ‘no
interior’ de sua própria pessoa. Mas, além da abordagem convencional, o analista
pode, então, se perguntar se a característica de não-comunicação é também uma
qualidade de um campo interativo entre analista e analisando, uma qualidade que
não é apenas ‘fora de seu ego’ no sentido de uma contra-projeção, mas existe ‘no
interior’ de um espaço que contém tanto o analista, quanto o analisando. Com efeito,
o campo parece ser caracterizado por duas partes que se organizam em opostos
que, inevitavelmente, se aniquilam mutuamente no âmbito psicótico. E o analista
pode estar mais aberto ao mistério do ‘outro’ se refletir sobre o fato de se encontrar
neste campo com o analisando, com os afetos e os estados estruturais conceituados
como qualidades de campo.

Como consequência, as ideias, sentimentos, concicções e a identidade, tanto


do analista, quanto do analisando, se movimentam em direção às observações e às
experiências do campo, e ambos podem visualizá-lo como uma ‘terceira coisa’ que
existe sem a sua contribuição pessoal. Ainda, podem reconhecer que esses
conteúdos pessoais existem como projeções que criam estados intersubjetivos
mútuos, sendo eles uma ‘terceira coisa’, sentida de modo independente da
95

qualidade do campo. Uma maneira de representar estas ontologias alternativas é


pensar em uma forma exterior que tem a sua própria vida ou processo, e que não
requer conteúdo projetado para a sua definição. Mas os conteúdos projetados
também fazem parte da imagem.
Para que qualquer interação clínica seja completa, a questão do analista e do
analisando enquanto sujeitos no campo devem estar combinados com o aspecto do
analista e do analisando enquanto observadores objetivos dos processos que se
desenvolvem no campo. Esta combinação é a essência de um paradoxo alquímico,
que emana uma notável luz, o assim chamado "enigma de Bolonha", analisado por
Steven Rosen (1995, 127) como um aspecto do vaso alquímico.

Eu sou um corpo que não tem túmulo.


Eu sou um túmulo sem um corpo.
Corpo e túmulo são a mesma coisa.

‘Eu sou um corpo que não tem túmulo’ refere-se à projeção dos conteúdos
sem o espaço do campo. 'Eu sou um túmulo sem um corpo' refere-se à atividade do
campo em si sem referência às subjetividades individuais. 'Corpo e túmulo são a
mesma coisa', refere-se à sua combinação paradoxal que só pode ocorrer como um
estado situado entre opostos dentro em uma qualidade de campo das relações per
se. O mistério que o analista e o analisando devem abranger é que, o recipiente e o
conteúdo são idênticos. Para experimentar esta identidade, eles devem fazer a
experiência da vida existente entre os opostos; eles devem chegar a conhecer esta
‘vida intermediária’, o reino que os tibetanos chamam de um estado bardo e que os
alquimistas chamaram de corpo sutil.
De modo geral, a imaginação é a chave para toda a opus alquímica (Jung,
Psicologoa e Alquimia, p. 285). Neste espírito, e estendendo o uso de Jung da
imaginação ativa como um diálogo interior, podemos aplicar este ato ao próprio
campo. A conjunção da imaginação e do campo demonstra possuir um notável
poder de contenção.

CAMPO INTERATIVO E CONTENÇÃO DOS ESTADOS MENTAIS AÓTICOS

O melhor modo para abordar a complexidade de uma interação analítica,


sobretudo, quando a desordem afetiva dos processos psicóticos estiver presente,
consiste em permitir que o próprio campo existente entre analista e analisando seja
o objeto analítico. Então, a atenção do analista tenta pairar dentro do espaço
analítico; a atenção não é pautada uniformemente no conteúdo do discurso, ou no
mundo interno do analisando ou do analista, mas no campo em si. Este processo
imaginal, como o misterioso vaso alquímico, tem um efeito de contenção que nos
permite processar o material que, de outra forma, seria muito caótico e fragmentaria
a consciência.
Quando a área psicótica de um analisando se constela - ou seja, quando se
move de um potencial para um estado ativo - afeta a estrutura do campo criado pela
díade analista-analisando. A contratransferência se torna, então, um fulcro sobre o
96

qual se articula a possibilidade de sucesso ou o fracasso no envolvimento com estas


instâncias. Mas os processos psicóticos, ofuscados em um funcionamento normal,
são extremamente fáceis de ativar. De modo geral, somente através do
envolvimento ativo deste campo, o analista pode elaborá-lo na própria consciência e
fixá-lo de uma forma suficientemente estável para que a sua existência seja
apontada para o analisando de modo eficaz. Assim, não havendo um ato de
vontade, a atenção do analista se deslocará para um estado dissociado, a fim de
que o afeto da área psicótica constelada diminua, o poder transformador do campo
interativo retorna apenas a um estado potencial. Então, a contratransferência tende
a diminuir em uma forma nebulosa, em que o analista pode perceber um nível de
dissociação ainda mais rebaixado, porém, significativo e desapegado. Tal recessão
da contratransferência faz com que a área psicótica aja prontamente e os seus
processos não mais são percebidos.
As reações de contratransferência mais típicas que assinalam a constelação
da área psicótica e que, por sua vez, podem alertar o analista sobre a necessidade
de um ato volitivo para empenhar-se no campo interativo, em vez de assumir o
caminho mais instintivo e tranquilizante de retirada ou dissociação, são: uma
fragmentação da própria consciência; um sentido de estranheza percebido no
analisando; e uma tendência concomitante para excluir e experiência dos estados
mentais induzidos pelo processo do analisando, que supõe a sua saúde e a força do
ego.
A área psicótica pode se manifestar fortemente fragmentada na consciência
do analista e do analisando, mas também pode se manifestar como um par de
opostos que se anulam. Por exemplo, o analista, no processo de escuta do
analisando, pode perder a concentração e não lembrar-se de nada do que o
analisando acabou de dizer. O analista pode raciocinar erroneamente que essa
perda de memória é apenas o resultado do cansaço ou da distração. Em vez disso,
o ele está realmente experimentando a qualidade aniquiladora dos opostos no
processo psicótico, que, por sua vez, têm um efeito muito desordenador sobre a
consciência e a identidade do analista. Além disso, os opostos podem combinar,
mas não de modo simbólico, porém, de uma maneira excêntrica que, por sua vez,
produz uma sensação de estranheza. O analista, geralmente, procura evitar essa
experiência do analisando a tenta recuperar a pessoa que ele conhece.

As reações contratransferenciais do analista, diante da constelação da área


psicótica do analisando, têm semelhanças significativas, embora de modo mais
suave, com os estados mentais que os esquizofrênicos descrevem no início de uma
ruptura psicótica. No seu livro Loucura e Modernismo, Louis Sass descreveu essas
características iniciais, observando que psiquiatras europeus conferem um especial
valor diagnóstico ao ‘sentimento praecox’, uma sensação de alienação radical que
acompanha o início de uma ruptura psicótica. Nesse estado, o analisando não
consegue descrever o que está experimentando; todos os significados e a coerência
comuns desaparecem.
97

A realidade parece ser revelada como nunca antes, e o mundo visual parece
peculiar e misterioso, estranhamente belo, tentadoramente significativo, ou talvez,
aterrorizante e ameaçador, mas inefável (Sass, 1992, p. 44).

Todas as experiências do analisando, parecem desafiar comunicação, e um


sentido conjunto e contraditório de

significado e falta de sentido, de significância e insignificância, que poderia ser


descrito como ‘antiepifania’ - uma experiência em que o que é familiar tornou-se
estranho e o que é incomun em familiar (Sass, 1992, 44).

As reações contratransferenciais da área psicótica de um analisando não são


diferentes desse ‘sentimento praecox’. Elas são, certamente, menos radicais e
menos intensas, mas se o analista penetrar ativamente em seu próprio estado
mental e tentar perceber o processo do analisando, em meio a estados dissociativos
intensos, muitas vezes, sentirá uma ‘alienação radical’, bem como, uma tendência a
compreender um significado que depois se dissolve na incoerência.
O processo de contenção das percepções das áreas psicóticas apresenta
semelhanças com o padrão lógico que o analista tende a seguir para as áreas não
psicóticas. Mas ele experimenta uma diferença qualitativa, primeiramente através de
sua reação contratransferencial. Quando se constela uma área não psicótica, o
analista será capaz de experimentar um estado de suspensão de qualquer coisa
conhecida, permitindo o fluxo livre de ideias, imagens, e os afetos indutivos do
processo do analisando se misturam formando o que poderia ser chamado de caos.
E, à medida que a sessão avança, o analista geralmente pode processar a
contratransferência, os sonhos e as fantasias em pares de opostos, por exemplo, em
pares de estados mentais divididos pela identificação projetiva ou em relação
recíproca enquanto compensação consciente-inconsciente. Como resultado, o caos
inicial, que pode ser designado como o Um, torna-se Dois. Este ‘estado Dois’ é
geralmente compreensível como os dois lados de um todo maior, e quando são
combinados através da imaginação do analista, podem levar a um novo estado: dois
se tornam Três, um estado que pode ser uma interpretação ou uma consciência de
um símbolo que combina os opostos. Esta sequência de números qualitativos
pertence a 'O axioma de Maria', explícita ou implicitamente encontrado em séculos
de pensamento alquímico. Na prática clínica, o analista, muitas vezes, permanece
dentro dos primeiros três níveis do axioma, mas também existem experiências
clínicas, especialmente aquelas que envolvem ativamente um campo entre o
analista e o analisando, em que o Três é um estado de união, a coniunctio alquímica
que conduz a uma aparição fugaz, ou a um maior vislumbre de um estado
transcendente de Unidade, que é o Quarto no axioma. Mas mesmo sem este
movimento no aqui-e-agora da situação clínica para o Quarto, um engajamento que
conduz ao Três como um novo estado pode, por sua vez, resultar em sonhos que
abrem, posteriormente, o Quarto como um nível maior, mais abrangente ou
arquetípico.
Lidar com as áreas psicóticas é diferente. Muitas vezes se experimenta um
alto grau de fragmentação. Mas este estado inicial caótico – que, muitas vezes, se
98

repete ao longo de uma sessão - pode revelar um tipo de ordem como um par de
opostos, mesmo que tais estados mentais têm a qualidade destrutiva de se anular
total e mutuamente: a consciência de um estado tende a oscilar para o outro e, no
processo, aniquilar qualquer memória ou significado do que acabara de aparecer. O
estado Dois que o analista pode perceber neste caso é, portanto, muito diferente do
que é nos processos normais, em que cada estado alimenta o outro para criar um
todo maior, um terceiro estado. Em vez disso, quando os opostos se combinam, eles
criam um objeto excêntrico, um estado que produz um sentimento de estranheza a si
mesmo, bem como, um sentido de que o analisando é estranho também. Este
estado misto também tende a ser experimentado como uma morte interna do
pensamento, um estado que é desprovido de significado e que não produz um
estado simbólico. No processo psicótico, esta forma de Três pode nos permitir ver
mais profundamente para além, e vislumbrar outro estado, o Quarto, que, neste
caso, é um amedrontador ‘Objeto de segundo plano’. No processo psicótico, o Um,
em vez de se tornar o Quarto como positivo em nível numisoso, se torna algo mais
demoníaco. Aqui vemos o lado sombrio de Deus. Por exemplo, vemos imagens de
abuso e abandono tão intoleráveis fundindo-se com imagens arquetípicas
profundamente negativas que aprisionam o indivíduo no desespero e na
desesperança.
O campo interativo pode ser um notável receptáculo dos estados mentais
caóticos. Por exemplo, outro agente da bolsa de valores me consultou sobre sua
dificuldade em se tornar disciplinado no mercado. Embora ele tivesse a habilidade e
a inteligência de ser um comerciante de sucesso, ele mal sobrevivia
economicamente nesse esforço. Para ele, a bolsa de valores era um ‘auto-objeto’,
ou seja, a estabilidade de sua identidade estava ligada às flutuações descendentes
do mercado. Em termos analíticos, ele teve um transtorno narcisista do caráter.
Quando o via, ele geralmente estava desiludido, ansioso, retirado e desesperando
porque não conseguia avaliar, com precisão, o desempenho do mercado. Em tais
estados, ele me contava sobre suas dificuldades, mas era difícil ouvi-lo atentamente
por mais de um minuto de cada vez, porque a minha atenção invariavelmente
vagava por causa da sua dissociação interna. No entanto, quando recuperava o meu
foco e recordava o que ele tinha dito, percebia que, se eu tivesse lido o que ele me
dissera em vez de ter escutado isso, minha atenção não teria divagado. Com efeito,
o campo afetivo que ele partilhou envolveu a sua narrativa fragmentada e de tédio,
para comigo, e, na verdade, para ambos.
No início de uma seção específica, deixei minha atenção pairar dentro do
espaço entre nós, e depois de alguns momentos, comecei a imaginar que
estávamos em uma tempestade violenta. Concentrei-me nesta imagem durante toda
a sessão, com a ideia de que tudo o que ele dissesse seria fácil de ouvir e
simpatizar. A tempestade estava claramente relacionada à sua inveja e ansiedade
intensa; todavia fornecer uma interpretação não teria sido útil. Vendo que a
tempestade teve uma influência de contenção, não só para mim, mas também para
ele, para deleite durante esta sessão, refleti em voz alta, sobre sua vida como uma
luta terrível para sobreviver a uma tempestade após a outra. Ele terminou a sessão
99

contando-me sobre uma transação que tinha concluído com sucesso no mercado de
ações e sobre as suas esperanças para a eficácia de um novo sistema de
negociação que estava planejando programar. Ele parecia estar me comunicando
inconscientemente, que estava se sentindo emocionalmente mais contido e mais
esperançoso para empreender um novo começo.
Outro exemplo sobre como o campo foi útil na contenção de processos
psicóticos, diz respeito a uma mulher com quem já havia diagnosticado a existência
de uma forte parte psicótica. Às vezes, conseguia perceber como a sua parte
psicótica atacava-a tão violentamente, ou ainda, eu a auxiliava para ver sua angústia
interior como resultado de uma fúria reprimida em si pelo seu processo paranóico.
Mas essa parte psicótica ainda não tinha nenhuma contenção. Então, eu tentei me
concentrar no campo entre nós, mesmo que a minha atenção tivesse tendência à
fragmentação sob o impacto do material psicótico. Ela começou a falar sobre o seu
namorado e de certos aspectos de seu comportamento que a preocupavam. Depois
que ela terminou, perguntou-me, de modo todo particular, se suas preocupações
eram ‘uma loucura’. Embora a alusão à transferência fosse clara, eu não me
concentrei nisso, pois isso teria impedido a experiência do campo. Em vez disso,
expliquei que achei o seu pensamento claro, mas não sabia o porquê ela sentiu
tanta ansiedade e fragmentação. Ao longo desta experiência, manter a atenção no
campo entre nós era como estar perdido em um nevoeiro. Ainda assim, eu poderia
compreender o seu processo com bastante consistência. A sensação de um
nevoeiro entre nós permaneceu até que ela me contou sobre seu sonho envolvendo
um homem que, para sua surpresa, conseguiu controlar sua mãe. Na realidade, a
mãe poderia ser psicótica. Novamente, observando, mas não interpretando a
transferência, comecei a perceber que, talvez, o campo entre nós estivesse
dominado pela psicose de sua mãe. A analisanda incorporou esse processo
psicótico que, por sua vez, viveu dentro dela como um fator estranho e dominou o
campo entre nós. Se eu tentasse escutá-la, essa loucura fragmentava o meu
pensamento e o dela. Voltar-se ao campo como a um objeto, foi um instrumento de
ajuda, enquanto ela terminou a sessão de uma forma que lhe era incomum: falou
sobre a energia que ela sabia que tinha.
Estes breves exemplos ilustram o que entendo para voltar-se ao campo como
um objeto. Geralmente, o campo entre duas pessoas, no início, é sentido como
vazio, como no caso da noção científica moderna do espaço. Se o analista se dirige
ao campo interativo como um objeto, o que significa que ele tem a coragem de
realizar este ato aparentemente absurdo – imaginar-se num espaço vazio e assumir
que algo pode estar lá – ele pode descobrir que a forma de comunicação do
analisando se torna mais coesa. O espaço pode, então, deixar de se sentir vazio.
Uma imagem do processo de campo não aparece necessariamente clara, mas
muitas vezes, o analista e o analisando podem imaginar um sentido de solidez e de
plenitude, ou um sentido de fragmentação e tessitura rasgada. Claramente, estas
são apenas duas das intermináveis metáforas possíveis para a experiência do
espaço interativo. Quando os processos psicóticos são constelados, torna-se
extremamente difícil se concentrar sobre o campo como objeto analítico. O campo
100

está presente, mas, como a área psicótica ou louca não está contida e não possui
estruturas ou imagens funcionais ou viáveis, não se pode atuar. A experiência deste
tipo de campo é dominada pelas rupturas das conexões, e por afetos extremos, tais
como a apatia e a ausência de sentido. Às vezes, o analista pode processar esse
material através da identificação projetiva, e esta atividade pode ter um efeito de
contenção que, por sua vez, permite com que o campo se torne o objeto da análise.
Por exemplo, uma vez uma analisanda entrou em meu consultório, jogou a
bolsa e a certeira, caminhou rapidamente até um canto da sala e sentou-se no chão.
Enquanto eu olhava para ela, percebi que era melhor dizer alguma coisa ou então
ela explodiria como tinha feito no passado. Senti-me enervado por esta
possibilidade, tentei entreter-me e aguardei até eu poder perceber algo mais
espontâneo e pertinente para o momento. Mas eu perdi a contenção por um
momento e comecei a combater o seu intenso desespero e a sua autopiedade por
ter perdido o emprego, exortando-a de que ela não deveria atuar em sua histeria. No
entanto, eu também, no momento tornei-me histérico. O ar estava tenso, e faltava
um sentimento de contenção. Então, comecei a refletir sobre os meus sentimentos.
Eu queria me livrar dela. Eu queria que ela parasse de me pedir para consertar sua
vida. Eu queria que ela ficasse bem e se tornasse mais otimista. Ficou claro que eu
me tornei sua mãe. Naquele instante, ela disse: “Você é igual a minha mãe”. E eu
respondi: “Isso é o que está se criando aqui, uma situação em que você está sendo
contida e é tratada como um problema terrível”. Em virtude de ter processado a
identificação projetiva (da imagem da mãe), eu poderia fazer essa afirmação e assim
mudar radicalmente o ambiente. Ela não estava mais sobrecarregada, nem eu.
Sentou-se no sofá e a sessão progrediu sem que eu ou ela atuássemos com
comportamentos encenados.
Neste caso, esta sessão nos introduziu no trabalho sobre a parte psicótica da
analisanda. Nunca havendo lhe enfrentado anteriormente, a interpretação através da
identificação projetiva foi necessária para estabelecer uma maneira de se aproximar
do campo perturbado. Concentrando-nos no campo compreendido enquanto objeto
analítico, poderíamos obter um sentido de contenção, bem como, a imaginação ou
percepção possibilitou perceber na analisanda, imaginariamente, uma divisão de
front-back, com um forte componente de fundo de um exibicionismo cindido. Como
cena de um ato imaginário para conter as suas partes psicóticas, eu a encorajei a
representar as suas fantasias exibicionistas através de desenhos. Ocupar-se com o
seu material inconsciente, de maneira imaginária, ajudou-a a diminuir o seu nível de
fragmentação psicótico.
Concentrando-se no campo interativo como objeto analítico, se pode dizer, à
luz da natureza da transferência e da contratransferência psicóticas, que sempre
está agindo utilmente nos bastidores, assim como pode ser vista à luz da divisão de
front-back que, muitas vezes, tende a esconder o processo psicótico. Da mesma
forma, o analista pode sensibilizar-se para com a existência de outras grandes
divisões, geralmente presentes: as divisões verticais que caracterizam a dissociação
e as divisões horizontais que caracterizam a repressão, isto é, a divisão mente-
corpo. Concentrar-se sobre o campo, torna possível a consciência dessas divisões
101

e sua interação mútua, e a experiência paradoxal que implica esta concentração


constitui um avanço significativo no trabalho analítico. Um analista que não se
concentra no campo interativo pode ainda descobrir algumas dessas divisões, por
exemplo, a identificação projetiva; mas é improvável que esta modalidade de
descoberta reunirá todas as dimensões da divisão no analisando. No entanto, o
campo, experimentado como objeto analítico, é de alguma forma o Quarto que
contém as três principais dimensões da divisão. A menos que os opostos divididos
sejam combinados ao longo dessas várias ‘linhas defeituosas’, nenhuma mudança
fundamental na estrutura interna pode acontecer.
A utilidade do campo compreendido como objeto analítico também foi
evidente no caso de uma analisanda que estava tentando lidar com um trauma
severo de abandono. Através da identificação projetiva, nos concentramos nos
estados de apatia e de falta de sentido, fontes de profundas perturbações que
abrangem os níveis paranóicos de inveja e de raiva. Este material psicótico criou um
campo intensamente perturbado, caracterizado pela rotura das conexões. Enquanto
a abordagem de identificação projetiva revelou como as suas defesas psíquicas
minaram qualquer conexão entre nós, o foco sobre o campo em si, nos permitiu uma
abordagem muito mais abrangente do processo psicótico.
Por exemplo, em um estado de ansiedade, a minha analisanda sentiu a
necessidade de falar comigo, mas ela resistiu à ideia de telefonar-me, ainda que
tivéssemos falado sobre essa possibilidade. Quando, finalmente, encontrei-lhe, ela
me deu a seguinte explicação para o fato de não ter telefonado em um momento tão
crítico:

Talvez eu sinta que só aceito o que recebo e não tenho direito a nada mais. É
como se eu vivesse com os vários pedaços, sem nada entre eles. Eu vivo de
pedaço em pedaço e nunca perguntei sobre o que existe entre eles. Fazer isso é
muito ameaçador. Eu posso perder o que eu já tenho. Não tenho sentido o que
conecta um estado a outro, eu apenas me seguro em cada um deles, como se
cada um fosse uma ilha no mar, completamente isolada até aparecer o próximo
estado, mas não tenho como chegar de um para o outro. É assustador pensar em
como eles se conectam, porque qualquer coisa que eu quisesse saber, eu poderia
perder o que eu tenho. Cada estado é uma catástrofe em potencial.

A minha resposta interna à sua explicação, foi sentir-me ligado e distanciado.


Eu tinha lidado com esse tipo de interação durante muitos meses, período durante o
qual ela se tornou mais consciente sobre o desejo de conexão entre nós como forma
de evitar sentir necessidades das quais ela tivesse medo. Quando ela tocou nesse
nível em si, surgiram ansiedades psicóticas que a levaram a numerosos
comportamentos encenados para acabar com a dor. Mas senti que experimentaria
minhas tentativas de apontar sua tendência para estabelecer a nossa conexão,
como um ataque direto contra ela; de qualquer modo, eu só percorri o terreno a ela
já conhecido. Em vez disso, eu me concentrei no campo extremamente fragmentado
entre nós, e fiquei surpreso ao descobrir que o que eu percebi como um ataque
poderia ser visto como uma exteriorização do tecido caótico interno do corpo sutil da
analisanda.
102

Um trauma grave causa perda do sentido interior de um tecido conectivo, que


o analisando pode sentir-se como uma ausência nociva ou perigosa para a sua
alma. Para reparar o tecido conjuntivo da alma, a pessoa pode se agarrar
desesperadamente a algo que foi ou não foi dito. Não ousa verificar a sua validade,
pois fazer isso implica confiança no processo de passar de um pensamento ou de
uma memória para a outra. Mas essa confiança não existe. Além disso, pedir algo
sobre o que o analisando pensa ser real é arriscar perder. O analisando sente medo
de ouvir dizer que ele está louco ou, que, de alguma forma, errou. O analisando
acredita que o analista conhece as ‘regras do jogo’, enquanto ele não as conhece.
Ao me concentrar no campo e percebendo como a analisada sentiu-se
perseguida por seu estado fragmentado, consegui manter uma conexão com ela em
meio a essa fragmentação. Ela conseguiu compreender quando se encontrava em
meio a uma necessidade, situação que não tinha sido capaz de enfrentar desde
quando tinha revivido severamente os eventos traumáticos de sua infância. Uma das
minhas interpretações da interação entre nós, unicamente em termos de
identificação projetiva, bloqueou a possibilidade de uma experiência de campo
estável e consciente.
Enquanto trabalhávamos anteriormente em suas áreas de loucura, que eram
dominadas por energias extremamente agressivas, não conseguimos conectá-las
com os sentimentos em relação à sua mãe. A história da sua infância e a estrutura
familiar não permitiu tal pensamento. Mas usando o campo como objeto,
gradualmente permitiu esta conexão histórica crucial. Além disso, através do campo
emergiu um sentido de contenção que fez com que emergissem afetos
extremamente negativos e que foram conectados rapidamente com a sua
experiência materna. Assim, o campo compreendido como objeto, não só exerce
influência de contenção sobre os processos psicóticos, mas também permite a
reconstrução histórica do trauma.

TRANSFORMAÇÃO DAS ESTRUTURAS DA PERSONALIDADE ATRAVÉS DAS


EXPERIÊNCIAS DE CAMPO

Além da sua capacidade de conter as características dissociativas e


psicóticas da interação analítica, o campo interativo pode transformar a estrutura
interna do analista e do analisando; e, no decorrer processo, a própria estrutura de
campo muda. Experimentar o campo interativo em sentido imaginário é a chave do
seu poder transformador. Este processo transformador pode ser ilustrado pelo caso
de uma mulher analisanda que veio consultar sobre um distúrbio narcisista com
fortes características dissociativas, que tinha há muito tempo. Queria falar-me sobre
um evento importante em sua vida, mas estava preocupada com a coerência
suficiente para me contar sobre isso. Tornou-se consciente de seu estado crônico de
ser dissociada, após muitas sessões comigo, durante as quais eu me sentia vazio e
dissociado, pela sua divisão. Durante esta sessão, ela estava especialmente
preocupada de que tipicamente estivesse se encontrando comigo ‘em dois lugares
ao mesmo tempo’ e que essa divisão estava exercendo um efeito desorientador
103

sobre mim. Por meio da imaginação, eu consegui visualizá-la como se estivesse,


simultaneamente encarnada e se distanciando, como se estivesse escapando de
seu corpo. Estar com ela física e psiquicamente era doloroso para mim: meu corpo
sentia-se apertado e interiormente atormentado.
Dada a clareza que tínhamos alcançado até este ponto, por razões que não
entendi no momento, mas que incluíram uma confiança e a convicção de que
poderíamos ‘usar-nos’ mutuamente, eu escolhi fazer uma pergunta em voz alta: "O
que constelamos juntos? Não apenas você ou eu, mas nós dois?" Ela respondeu,
depois de refletir: “Você é como minha mãe. Eu avanço, e por um momento, ela está
lá. Mas, depois se vai”. Ela sentiu que estava no estado de privação extrema; eu
também me senti muito privado por ela, privado da conexão e de qualquer
sentimento que tivesse embora o sofrimento e a confusão que eu estava sentindo.
Minha admissão a surpreendeu, e ela não tinha ideia de que poderia ter esse efeito
sobre mim. O campo entre nós parecia estar manifestando-se em uma tendência
para a conexão e depois para um rápido distanciamento e um sentido de perda e de
privação.
Concordamos que tais opostos estavam presentes em ambos. Tenho especial
cuidado em insistir que os opostos não eram mais seus, do quanto eram meus. Eu,
especialmente, não sugeri que ela fosse essencialmente responsável por criar os
opostos no campo e que eu estava experimentando pela via indutiva. Eu perguntei-
me até que ponto, estes opostos faziam parte da minha própria vida psíquica. O
sucesso de qualquer tentativa de definir o campo interativo e a experiência de sua
dinâmica depende do desejo do analista de evitar lidar com conteúdos de campo
apenas como projeções.
A natureza de tais interações é um pouco difícil de descrever porque é sutil.
Ao reconhecer que a natureza do campo é fortemente caracterizada pelas
qualidades opostas de atração intensa – esquivar/privar, e reconhecendo o
sofrimento a essa associada, nós nos tornamos mais íntimos do que anteriormente.
Essa intimidade, muitas vezes, gera um sentimento de medo. Quem é essa pessoa
que agora vive de uma maneira nunca sentida antes ? Em que situação eu entrei?
Nesse caso, tais preocupações eram leves; em vez disso, ambos conseguimos
manter a qualidade do campo e a nossa relação individual com os opostos.
Todas as formas de análise, geralmente, diferenciam os opostos no processo
analítico. Seja através da observação da diferença entre a consciência do
analisando e as atitudes inconscientes, ou entre os conteúdos projetados e as
defesas, ou como atributos em oposição na estrutura interna ou na dinâmica de
transferência, os opostos desempenham um papel central em todo o pensamento
analítico. A forma como esses opostos são tratados diferencia uma abordagem que
reconhece que o campo possui o seu próprio processo objetivo, de uma que
considera que o campo deve ser composto apenas por subjetividades combinadas
de analista e analisando, a partir do qual, o analista pode extrai informações sobre a
história pessoal do analisando.
No caso citado, a analisanda e eu conseguimos entender o par inconsciente
no campo entre nós, um par caracterizado por uma qualidade grotesca de união e
104

desejo, seguido por um rápido recuo na privação de qualquer contato afetivo. O ato
de cada um de nós em reconhecer esses estados mentais e o sofrimento a eles
associados teve um efeito muito libertador sobre suas necessidades de defesa
narcisista. No caso dela, essa defesa assumiu a forma do que eu chamo de bolha
narcisista; ou seja, o analisando atua como falante e ouvinte simultaneamente.
Nesse caso, o mundo objetal está, de fato, completamente excluído. Ouvindo-a, eu
normalmente me sentia desatento e amortecido, como um observador sem contato
real com ela. Percebi que estava fazendo perguntas incontroláveis sobre questões
que não tinham absolutamente nada a ver com o assunto em questão. Em uma
ocasião, saí bruscamente do estado de quase transe induzido pela transferência de
‘bolhas narcísicas’ da analisanda, quando ela afirmou assustada: "Mas de que coisa
você está falando?" Tendo, finalmente, feito contato comigo dessa maneira, ela
emergiu de sua ‘bolha narcísica’, mas eu fui obrigado a confrontar a bagunça que,
inadvertidamente, ela tinha provocado. Foi, então, possível reconstruir a interação
anterior e a estrutura ‘bolha narcisista’.
A partir dessa experiência, aprendi a controlar meu esforço quase compulsivo
para conversar através da ‘bolha’, com a intenção de conseguir entender o meu
estado mental interior. Estes enigmas perturbadores e, por vezes, excêntricos,
tiveram o propósito de permitir-me escapar de um estado de dor interior e vazio
mental. Tais reflexões sobre o meu esforço, quase compulsivo de falar, muitas
vezes, ofereceu uma boa maneira de começar a classificar a natureza dos opostos
psíquicos envolvidos, opostos do tipo atração-evitação que anteriormente, era
impossível registrar.
Entrando no campo, com seus opostos experimentados e mutuamente
percebidos, tive um efeito dissolvente sobre a transferência rígida, ‘bolha narcísica’,
e sobre este tipo de estrutura de personagem na analisanda. A questão dos opostos
é especialmente significativa para compreender as qualidades dinâmicas da
transferência do tipo ‘bolhas narcísicas’. Se o analista consegue se concentrar o
suficiente para que ele chegue a algum significado na comunicação do indivíduo
(que eu gostaria de enfatizar, não é uma tarefa mínima dada de modo quase insular,
em que o analisando se comunica, e os concomitantes processos dissociativos), e
se o analista se apega a esse significado, como é típico dos processos psicóticos,
outro possível significado logo surgirá e aniquilará o anterior.
Em outra ocasião, com esta analisanda, eu pude vislumbrar a natureza
delirante do processo que vivia na estrutura ‘bolha narcisista’. Ela começou sua
sessão com o que chamava de dilema de que se sentia confusa e sobrecarregada.
Recentemente, ela conheceu uma mulher na rua, alguém que ela realmente não
gostava muito, mas que foi muito útil para ela, profissionalmente. No momento,
sentiu que queria fazer uma permuta com esta mulher, e ela sugeriu que a mulher
poderia ser capaz de obter o cargo de consulesa no local onde ela estava
empregada. Mas logo depois, ela percebeu que tinha um bom amigo, alguém que
realmente a ajudara em muitos aspectos pessoais, que também precisava de
trabalho e também gostaria do trabalho. Então, a analisanda se perguntou a quem
deveria "dá-lo’.
105

Ao me contar esse conflito, logo eu comecei a desenvolver uma sensação de


divisão, uma sensação de sofrimento real e sensação geral de confusão. Estava
claro que ela era muito dissociada, como costumava ser, mas essa instância era
diferente, porque, em vez de uma tendência para dissociar-me com ela e tornar-me
vago até recuperar o foco, agora experimentei sofrimento real. Depois de uma breve
tentativa de descobrir para quem ela poderia ‘dar’ o trabalho, pensando para mim,
em termos, por exemplo, de questões de fidelidade versus o bem-estar econômico
da mulher, eu senti-me cada vez mais confuso e dolorido. Quando pensei em
favorecer uma amiga, razões para favorecer a outra surgiram e aniquilaram
totalmente, na minha mente, qualquer um dos pensamentos anteriores sobre a outra
amiga. Naquele momento, comecei a me perguntar se algo ‘louco’ tinha
continuando, e pensei que talvez não houvesse nenhum trabalho real para que ela
pudesse ‘dar’.
Perguntei-lhe sobre a natureza do trabalho, se realmente existia agora, e ela
reconheceu que, na verdade, não existia. Tudo o que existia era a fantasia de
alguém com quem ela pudesse conversar, e talvez uma destas pessoas que
posteriormente poderia lhe chamar e pedir trabalho. Mas ela não tinha nenhuma
base concreta para continuar. Por exemplo, ela não tinha motivos para acreditar que
as duas mulheres realmente poderiam precisar de ajuda. Isso ficou então claro que
ela estava lidando com sua própria fantasia, que tratava como se fosse realidade, e
disso lhe nascia a inflação, um estado grandioso de que ela esbanjava esse
potencial trabalho. Até este ponto, eu acreditava que existia um trabalho real e que a
minha analisanda tinha a capacidade de assegurá-lo para uma ou para outra mulher.
Ela agora podia ver que criara esse estado quase delirante. Eu lhe perguntei,
se essa criação veio de uma necessidade de poder em relação às duas mulheres.
Ela respondeu rapidamente e claramente: "Não, é que eu me sinto tão
insignificante." E então ela continuou dizendo que sentiu que não era importante
para elas, nem para ninguém. Ela disse ainda que elas, na verdade, disseram coisas
agradáveis para ela e que, de fato, faziam coisas úteis e afetuosas para ela.
Perguntei por que o seu comportamento não era importante e porque ela continuava
a se sentir insignificante. As pessoas para ela, muitas vezes, não eram reais, no
sentido de serem relativamente iguais em tamanho e potência. Em vez disso, elas
eram mais do que reais, capazes de levantar seu sentimento de auto-estima ou
fazendo com que ela falhasse. Sua única opção era tornar-se seu próprio espelho e
viver em uma ‘bolha narcisista’ em que ela desempenhava o papel de falante e
ouvinte.
Em uma ‘bolha narcisista’, outras pessoas são ‘objetos próprios’, não objetos
reais, e ela havia passado sua vida com auto-objetos que a atormentaram,
raramente vendo seu valor. Mas se as pessoas não são objetos reais, nada de
positivo pode ser introjetado. Os ataques poderiam empurrá-la e reforçar os
sistemas de crenças paranóicas, mas bem pouco, por meio de um processo de
introjeção de qualidade positiva, poderia desenvolver o seu ego em uma estrutura
relativamente estável que traz uma sensação de significado para a pergunta: "Quem
106

sou eu?" Assim, ela permanecia presa pelo tipo de espelhamento que recebia, e
este estado, geralmente, é muito perigoso para apresentar-se ao mundo.
A questão que se coloca é como dissolver este receptáculo narcísico e
permitir uma forma mais cheia de vida. Percebi que a descoberta da imagem do
campo interativo, obtida pelos opostos, que se manifesta, muitas vezes, como
divisão psicótica em antimundos, pode levar ao surgimento de uma nova forma de
transferência, que está mais relacionada e muito menos psicótica. Heinz Kohut
chama esse desenvolvimento de uma transferência de espelho no sentido mais
estreito, em que o analista se torna um objeto para o analisando, mas é importante
para o analisando apenas "no âmbito das estruturas das necessidades geradas pela
eu grandioso terapeuticamente reativado" (1971, 116). O analisando torna-se capaz
de encarnar a imagem do analista enquanto faz uso dela como fonte de identidade
de uma maneira mais ampla. Mas quando este estado de encarnação é muito
perigoso para admitir, o analisando se sente totalmente indesejável, cheio de ódio
em seu interior, tornando-se, assim, incapaz de conservar algo de bom dentro sem
destruí-lo ou ser destruído pela rejeição do objeto. Em vez disso, a transferência de
‘bolhas narcísicas’ toma seu lugar, e o analisando torna-se sujeito e objeto.
Transformar este estado de ‘bolha’ torna-se, então, a tarefa analítica.
Essa estrutura narcísica é comum, até certo ponto, em todos. Quem, às
vezes, não assume o papel, tanto de falar, quanto de escutar? Todos nós fomos
criados, até certo ponto, pelo nosso objeto de relações primárias. Qualquer pessoa
que lida com o desenvolvimento infantil, poderá perceber que a maneira com que
uma criança pequena responde e reflete sobre suas qualidades reais é essencial
para o desenvolvimento posterior de um ego espontâneo e um sentido de essência.
Mas quem está totalmente espelhado? As áreas secretas do Self que não podem
ser comunicadas, sempre existem. E quando o analista se aproxima dessas áreas,
as formas de comunicação se movem prontamente em direção à qualidade de
‘bolhas narcísicas’. Com algumas pessoas, essa estrutura narcísica pode ser o
substituto de uma relação genuína, em que o ‘outro’ tem um significado percebido e
um processo que está gravado; mas raramente percebi que essa estrutura está
sempre presente. Em vez disso, o indivíduo é capaz, em certos momentos, de uma
grande empatia e contato emocional. Em outras vezes, esta capacidade está
totalmente ausente, e a transferência de ‘bolhas’ domina. É possível que se passem
anos de trabalho analítico em que ambos os estados estejam presentes na mesma
sessão. No entanto, antes que se chegue a elaborar a estrutura de defesa da
‘bolha’, seções inteiras são dominadas por ela. Então, com a transferência dissolve a
‘bolha’, apenas segmentos da sessão são dominados por ela, até que, nos
momentos de angústia na vida do analisando, novamente emergem. Mas
geralmente, a ‘bolha narcísica’ pode diminuir cada vez mais e as capacidades da
pessoa para o contato emocional, consciência e empatia podem surgir. De certo
modo, essas pessoas não se encaixam em um simples esquema de diagnóstico.
Elas certamente exibem características narcísicas e esquizóides; mas elas também
possuem uma qualidade competente e empática.
107

Uma característica fundamental que se apresenta como uma resistência


contratransferencial ao enfrentar essas áreas, é a não-comunicação. O analista
tende a não comunicar a sua experiência de analisando, embora uma experiência
posterior possa provar que esse tipo de comunicação e ‘exploração mútua’ é, muitas
vezes, fundamental para transformar a estrutura narcisista. Esta falta de
comunicação é um estado congelado, e a comunicação pode aparecer como a
última coisa com a qual o analista quer se envolver. Uma explicação sobre a
resistência contratransferencial pode ser a defesa contra o sentido de excentricidade
e o sofrimento associado com o processo psicótico; outra explicação é que estão
envolvidos níveis extremamente sensíveis do trauma, em que a identidade do
analista está instável; e a este ponto, a exploração com o analisando pode parecer
risco excessivo a se correr. Mas o analista pede ao analisando que prossiga, e
ambos podem aprender que correr riscos em se comunicar e ao explorar a
experiência de campo pode curar.

TRANSFORMAÇÃO DAS ESTRUTURAS DA RELAÇÃO ATRAVÉS DAS


EXPERIÊNCIAS DE CAMPO

A experiência da dinâmica de campo é eficaz na transformação de estruturas


não apenas da personalidade, mas também das relacionais. Este último é ilustrado
pelo seguinte caso de um homem de 50 anos de idade, cujo relacionamento íntimo
com uma mulher mais velha e casada, era uma fonte tanto de paixão intensa,
quanto de sentimentos de perda devastadora. Entre um encontro e outro, passavam-
se dias e, muitas vezes, semanas. Durante as sessões, comecei a perceber que,
sempre que ele mencionava o nome da mulher ou começava a falar sobre ela, a
minha atenção se fragmentava. Embora ele parecesse falar palavras de
preocupação sobre a problemática que trazia para a sessão, a sua verdadeira
essência ou a atenção vital estava em outro lugar, destacada do momento presente.
Não me parecia estar com alguém que estivesse lembrando outro tempo ou em
outro lugar, mas sentia sim que ele tinha saído de si mesmo e que estava lutando
com não estar realmente presente, enquanto um vazio substituía o sentimento
subjacente às suas palavras. Eu fazia grande esforço para manter-me conectado em
suas palavras, mas a minha atenção continuava a se dissociar, e perdia grande
parte dos conteúdos que ele trazia. Outras vezes, quando falava sobre assuntos
diferentes daqueles em relação à mulher, ele estava ‘presente’ e a minha atenção
não divagava e nem se fragmentava.
Ambos podíamos perceber uma atmosfera de medo e de elementos
paranóicos que pareciam nos afastar de um nível corpóreo. Durante uma sessão,
evidenciei essa tendência, e ele perguntou: "Onde está esse medo? E eu respondi:
"Em ambos", porque não tinha uma maneira verdadeira de considerá-lo como um
fenômeno de identificação projetiva. Eu poderia ter construído uma interpretação dos
sentimentos de abandono que experimentei quando ele se fragmentou. Nós
tínhamos feito um trabalho considerável interpretando suas áreas psicóticas, e nós
entendemos que essas criam na relação, tanto no modo como se relacionou, ou com
108

a forma como experimentou o pai e com as formas que o pai provavelmente o


experimentou. Mas enfatizar agora essa interpretação baseada no abandono parecia
ser muito limitante e reprimir o campo existente entre nós.
Ele me perguntou o que poderia conter esses sentimentos. A afirmação de
Jung de que o receptáculo é o arquétipo, me veio à mente. Certamente poderíamos
refletir juntos sobre um mito filho-amante que estruturasse o espaço entre nós, e
poderíamos escolher muitas outras imagens, por exemplo, o mito alquímico do filho
engolido pelo dragão que depois o corta em milhares de pedaços. Eu percebi que
uma imagem tão poderosa poderia estar organizando nossa interação. Concentrar-
nos nessa imagem mudou o campo: ambos nos sentimos mais sob controle e
menos fragmentados. Poderíamos, portanto, obter algum sentido de compreensão e
de relação: mas a experiência entre nós era sem alma e não era possível entrar em
qualquer profundidade de relação corpórea. As amplificações arquetípicas, assim
como a compreensão evolutiva, poderiam criar um tipo de ordem mental-espiritual,
uma descoberta de ordem, mas não de alma. Tais interpretações não permitiam um
campo de conexão que, por si só, poderia talvez criar as pontes necessárias para
ajudá-lo a deixar a esfera magnética do campo filho-amante sem reprimi-lo
heroicamente e perder, por necessidade, a consciência do próprio corpo.
O seu material de sonho e fantasia apresentou um padrão dominado por um
tipo mítico de interação filho-amante/deusa-mãe. Como o filho nesses dramas do
mito, ele foi capturado em uma rede de paixão - bastante mortal para sua própria
integridade psicológica - da qual ele não conseguia separar-se. Seu crescimento
exigia o surgimento desta rede, porém a sua paixão – que incluía também o
compromisso, a honra, a fidelidade, o sentido um propósito nobre, mas, sobretudo,
de sentir-se intensamente vivo - exigiu que ele a abraçasse cada vez mais forte.
Ambas as opções levaram-no a um tormento e a uma sensação de desespero
irresistível. Na realidade, a relação não poderia ter e não tinha nenhuma base firme.
A mulher que amava estava profundamente comprometida com seus deveres como
esposa e mãe. Mais jovem e solteiro, ele era muito ambivalente na sua relação com
ela. Eles se encontravam de forma irregular, com longos períodos intermitentes de
ausência. De fato, nenhuma matriz de espaço-tempo, realmente estável, poderia
conter esse padrão mítico. Ele e a mulher se encontraram em um estado de
transporte psíquico, e eles nunca estabeleceram um mundo de relação real, ou seja,
que vivesse no espaço e no tempo normal.
O nosso trabalho obteve ganhos consideráveis através da análise da real
relação objetal, e também no nível de suas próprias relações objetais interiores. O
padrão filho-amante foi particularmente evidenciado por suas próprias questões
maternas e paternas. Ele percebeu os desejos incestuosos incubados para com sua
mãe e as ameaças de abandono, agravadas pela ausência emocional de seu pai
durante a infância. Inevitavelmente, esta ausência criou uma imagem interna crítica
do seu pai que o impediu de se desafiar no mundo real. Poderia funcionar muito
bem, mas as suas capacidades superavam amplamente as suas conquistas
efetivas, tanto na vida profissional, quanto na vida pessoal. À medida que ele se
tornou cada vez mais consciente do filho-amante e começou a integrá-lo em sua
109

consciência, ele se tornou um pouco menos encantado pela mulher que ele
idolatrava e reconheceu que sua paixão não estava sob seu controle, mas foi
altamente dependente de suas ressonâncias incestuosas, tanto com o pai, quanto
com a mãe. Sua capacidade de entrar no mundo de forma mais completa começou
a se expandir e se desenvolver. Por exemplo, se dissolveu em parte, o seu estado
de rejeitado ou de estranhamento negativo.
No decorrer deste processo, eu lidei com minhas reações subjetivas, de
contratransferência, que consistiam tanto em uma tendência a ser crítico em relação
a ele, quanto uma tendência oposta de idealizar o seu pensamento e as suas
atitudes em relação à importância da paixão. Fazendo uso dessas reações de
contratransferência, eu poderia ser um guia para ajudá-lo a integrar o próprio
material inconsciente. Era o suficiente para eu processar seu material dessa
maneira? Caso eu agisse impecavelmente neste sentido, constantemente
perguntando sobre minha própria contratransferência, usando as informações
adquiridas dessa maneira, tentando ouvir as referências inconscientes nos seus
discursos em relação ao meu papel em nossa relação, e inquirindo metodicamente
sobre como o seu material onírico respondeu ao nosso trabalho, então eu estava
agindo como qualquer analista. Tais atitudes eram necessárias, mas não suficientes
para atender às suas exigências terapêuticas para a contenção dos seus elementos
psicóticos. Isso exigia uma abordagem alquímica, a ativação de uma visão alquímica
que indagasse sobre a natureza do campo que ambos constelamos.
Apenas gradualmente, ambos começamos a nos tornar conscientes da
presença de um campo. Ao longo do nosso trabalho, aos poucos foi ficando claro
que ele estava aborrecido devido à raiva em relação a essa mulher. Às vezes, sua
raiva assumia proporções psicóticas, tendo pouca contenção, levando a uma
fragmentação considerável, e continuamente, embora sutilmente, distorcia a
realidade. Grande parte do nosso trabalho teve como foco nesta distorção da
realidade, especialmente porque ela separava a relação com a sua parceira nos
estados alternados, em que ele a percebia como uma bruxa enganadora ou como
uma amante maravilhosa. Muitas vezes, percebemos o quão inconscientemente ele
continuava a negar suas percepções sobre os traços de caráter negativos reais da
mulher, aspectos do seu comportamento que não eram éticos e nem honestos. Às
vezes, essa negação o mantinha em um estado perigosamente fundido com ela e
afastava de outras pessoas e coisas. Ele temia que ela perdesse a sua paixão, caso
visse nela algum aspecto escuro: a sua paixão se tornaria em ódio e sadismo
envolvente. Essa perda o teria jogado na parte da sua psique que criou essa
distorção da realidade, isto é, na área psicótica dentro de sua psique. Além disso,
suas áreas psicóticas foram tipicamente estruturadas por ‘mundos contrários’ em
que tudo o que foi dito sobre a mulher, levaria a uma visão totalmente oposta que
anulava (a sua e a minha) consciência do oposto anterior. A fusão destes opostos
poderia levar à excentricidade que caracteriza o processo psicótico. Eu costumava
ter a impressão de uma excentricidade sutil ao escutar seus comentários sobre suas
relações. Sentia como se algo estivesse sempre sendo retido, e caso fosse
revelado, seu discurso se tornaria menos compreensível.
110

Este processo continuou por vários anos. Perguntei repetidamente sobre o


motivo pelo qual a minha atenção se fragmentou. Isso resultou do seu medo e do
meu julgamento? Eu dissociei-me porque não suportava deixar nas mãos dessa
mulher? Ele queria que eu sentisse a sua perda porque seu pai abandonou a sua
mãe, e eu devia ser o pai que, finalmente, afirmava? Ou, esse era o meu próprio
processo de fusão com o dele? Exploramos juntos e individualmente, essas
permutações, para o seu benefício, tanto em relação à sua relação, tanto com a
mulher, quanto com o mundo. Mas a sua raiva parecia não diminuir, o que se
tornava uma fonte de consternação para nós dois. No drama do mito, a raiva do filho
resulta em sua morte, muitas vezes, por sua própria mão em uma mutilação suicida.
Às vezes, o animal consagrado à deusa, enviado pela própria deusa enraivecida e
traída, o mata. A presença desta raiva estava entre nós? Estava, talvez, ‘atacando
as conexões’ em nosso campo relacional, tornando inúteis os aspectos do nosso
trabalho?
Um dia, durante uma sessão em que ele estava falando sobre sua relação
com a mulher, comecei a perceber em mim a tendência, agora familiar, de separar-
me da concentração sobre ele. Eu perguntei-lhe se a raiva estava atacando a
conexão entre nós. Ele respondeu: "De quem é a raiva?" A única resposta
verdadeira que eu poderia dar era que não havia como saber. Nós dois estávamos
em um tipo de campo energético em que a raiva estava presente.
Ao responder dessa maneira, conscientemente comecei a adentrar na
‘terceira área’ presente entre nós, caracterizada pelo afeto da raiva. Ambos
experimentamos essa mudança para com uma presença imaginária, neste caso,
identificável por uma qualidade de raiva. Nós estávamos experimentando uma
mudança na qualidade da consciência da textura e do espaço ao nosso redor, ou
seja, o ‘campo’ ou a ‘terceira coisa’. Nós sentimos como se um ‘outro’ estivesse
presente conosco. A natureza do campo era tal que nós dois poderíamos estar
dentro e contidos por ele. Outras vezes, sentimos como se estivéssemos
observando o campo, sua natureza e suas qualidades no espaço entre nós. Às
vezes, parecia que fosse a nossa necessidade ou a nossa vontade a fazer com que
nós constituíssemos o sujeito ou ainda o objeto do campo. E, às vezes, podíamos
observar que o campo tinha o seu próprio ritmo que causava a oscilação sujeito-
objeto. Assim, sentados ali juntos, começamos a perceber imaginariamente, que a
raiva é uma qualidade do campo em si, como um objeto que podíamos ‘sentir’, ou
‘ver’ imaginariamente, entre nós. O campo desencadeou um afeto que foi gravado
pelos nossos corpos. Nós poderíamos perceber que sentir esse afeto tinha o
potencial de impulsionar para comportar-nos de certo modo. Por exemplo, com este
processo surgiu certo nível de medo que nos levou ao limite da contenção. A raiva
ou uma fusão sem fronteiras assumiram indefinidamente? Um alto nível de
ansiedade também estava presente neste momento crítico.
Eu poderia facilmente ter evitado esse tipo de situação, e talvez eu estivesse
fazendo isso por algum tempo durante o nosso trabalho, antes desta sessão. Eu
poderia ter diminuído a ansiedade refletindo sobre ‘sua’ raiva, mas ao fazê-lo, eu
teria me tornado o elemento ativo, ou como Jacques Lacan diz, ‘aquele que
111

conhece’ (1977, 230). Como resultado, eu teria negado o campo entre nós com sua
expressiva qualidade, mas basicamente desconhecida. Essencialmente, eu teria
desconstruído e despotencializado o campo entre nós de forma particularmente
sedutora. Eu teria, inconscientemente, transmitido a experiência da supremacia do
poder ao lidar com a relação colocando-me para além da experiência da relação e
do sofrimento, tudo sob o pretexto de que era para o seu próprio bem.
Mas tendo permitido a verdade, isto é, que eu não sabia de quem era a raiva,
o discurso passou para outro nível. Agora poderíamos tolerar a presença imaginativa
de uma forte raiva, de raiva mesmo, e com ela veio uma consciência respeitosa do
mistério da imaginação. Se, a este ponto, eu tivesse lidado com ‘sua raiva’, eu
estaria projetando nele a minha própria raiva conectada a este padrão arquetípico.
Ele teria levado consigo, além da sua raiva, também a minha. Em vez disso, a
presença imaginária foi tolerada sem que soubéssemos de quem era. E com este
movimento para o imaginário, uma sensação corporal foi ativada. Nesse caso,
ambos experimentamos um sentido de energização do corpo e de sua vivacidade; e
nos tornamos conscientes de nossos corpos como campos energéticos. Talvez seja
só esse tipo de experiência do corpo - os alquimistas pensariam nisso como uma
experiência do corpo sutil - que pode criar um sentimento de contenção das paixões
perigosas.
Então, a experiência de campo entre nós mudou. Ele sentiu que seu corpo
queria abraçar o meu, e eu também poderia experimentar esse sentimento de
abraço, de um desejo real em relação a ele. Mas mesmo com essa nova
experiência, a fúria não desapareceu. Ela oscilava com o sentido de desejo no
campo energizado entre nós. E então, agora tivemos um par de opostos que definia
o nosso espaço interativo: raiva e desejo. A raiva aniquila, o desejo une. Em termos
alquímicos, a substância quente que aniquila, era conhecida como ‘enxofre’,
enquanto a substância que une e deseja fundir, era conhecida como ‘sal’. No
processo de experimentação, estávamos criando uma espécie de vaso para a
relação que era tão preciosa, quanto destrutiva para a sua vida. O ato de conter e
objetivar os seus afetos conflitantes lhe possibilitou começar a perceber a sua
parceira de maneira muito mais real.
Como os outros analistas com quem ele tinha trabalhado antes de mim,
analisei a sua relação com a mulher, relacionando-a com a transferência e à
resistência de transferência, interpretei os seus desejos edipianos e pré-edipianos, e
refleti sobre seus medos de separação. Mas foi somente quando conseguimos
adentrar no campo entre nós - e isso continuou acontecendo ao longo de um
período de tempo - que a qualidade magnética dessa relação começou a perder sua
natureza compulsiva e mágica. A beleza da relação não foi destruída, mas a
qualidade do desejo, que constituís uma parte importante dela, foi movida para fora
do padrão incestuoso da paixão destrutiva. A transferência desta mulher foi desviada
para mim e de volta para ela, depois para os outros e depois para o desejo de um
Self interno. A sua relação com ela não foi menos real porque tinha raízes anteriores
nas relações genitoriais que antecederam a sua relação comigo. Ambas as relações
tiveram uma realidade; tampouco foram funções de ilusão que dissipasse com a
112

consciência. De forma lenta, mas eficaz, ele começou a ser capaz de envolver o
mundo ao seu redor de maneira mais individual e significativa. Ele pôde arriscar
maior vulnerabilidade e testar a sua criatividade.
Dos vários estados mentais encontrados nos exemplos anteriores - inveja,
ansiedade, medo, caos, paranóia, raiva, histeria, divisão (frente-verso, mente-corpo),
dissociação, abandono, trauma, paixão, desejo incestuoso, desespero, entre outros -
podemos reconhecer inúmeros pontos de partida para descobrir o potencial
transformador do campo.
Mas um ponto de partida é melhor do que o outro? A contenção do caos, ou o
que eu tenho chamado ‘as partes loucas das pessoas sãs’, parece ter um significado
especial na alquimia. O caos, ou a prima materia, era um ponto de partida vital para
a opus, o processo de transformação material e pessoal. Na verdade, a ênfase
assegurada ao caos e à sua contenção na abordagem alquímica, pode fornecer
informações às abordagens modernas para o processo analítico, especialmente se e
quando a prima materia é experimentada como um aspecto do campo interativo.
113

VISÃO ALQUÍMICA DA LOUCURA

'CAOS' E CAMINHO ALQUÍMICO

Do ponto de vista da psicanálise, os estados mentais que temos considerado


- como a fragmentação extrema, o vazio, a morte e a aniquilação desconcertante
dos opostos - fazem parte do processo psicótico. Enquanto alguns analistas (Eigen,
1986) e Jung (Schwartz-Salant, 1982, 1989) apreciam o valor transformador desses
estados mentais, geralmente esses são considerados exemplos perigosos e
reprováveis de falhas na área evolutiva. Este ponto de vista negativo nasce de um
quadro científico de referência. Assim como um cientista que faz uma experiência ou
resolve um problema sobre criar ordem e desordem, tradicionalmente, o analista
confronta uma gama de comunicações dispersas que, de início, não faz sentido, e
depois tenta descobrir neles uma ordem e possivelmente também um significado. De
um ponto de referência semelhante orientado para o ego, o fenômeno conhecido
como loucura não pode ser ordenado, mas continua excêntrico e, por definição,
desprovido de significado.
Jung e outros insistiram que, se um analista pudesse entender os produtos de
um esquizofrênico, então o analisando já não estaria mais louco. O ponto de vista
contrário é que se o analista pudesse entender um esquizofrênico, então o
diagnóstico estaria errado. O problema em relação à compreensão dos produtos da
loucura, no entanto, é que é preciso perguntar: quem está procurando
compreender? O significado pode ser encontrado em estados excêntricos, tais como
o aniquilamento dos opostos pela consciência de um eu que o observa? Ou então, é
preciso ‘ver’ de uma maneira completamente diferente?
O pensamento alquímico fornece uma maneira diferente de ver, imaginária,
que pode nascer do encontro ativo com as áreas de loucura. Mas o significado ou a
visão que o analista obtém, não são como certas sequências evolutivas do
crescimento da personalidade, nem estáveis e nem repetíveis. Em vez disso, esta
visão é breve e facilmente ignorada. A visão, muitas vezes, instantânea em que o
analista consegue reunir os opostos divididos vivendo ‘entre eles’ aparece
fortemente dependente da qualidade do momento em que o analista e o analisando
interagem. Embora sendo relativamente pouco frequentes, durante um processo
analítico, estes momentos são extremamente valiosos. O analista deve ver além dos
opostos, e também vê-los juntos e este ver assemelha-se ao elixir alquímico, uma
gota do qual tinha um extraordinário poder transformador.
De certo modo, ‘o caminho alquímico’ é aquele em que o analista vê com a
visão maior do Self; o caminho científico é aquele em que ele vê através da visão do
ego. O caminho alquímico vê ‘através’ dos olhos, enquanto o científico vê ‘com’ os
olhos. Enquanto o caminho científico não abrange ambos os opostos ao mesmo
tempo, o caminho alquímico pode englobá-los ao mesmo tempo, situando-se em um
reino intermediário, o corpo sutil ou o campo interativo, cuja existência é negada
114

pelo pensamento científico. O caminho científico é repetível e acessível a qualquer


um que obteve um treinamento suficiente e que tem capacidade para processar a
identificação projetiva ou a consciência das estruturas de empatia. Por outro lado, o
caminho alquímico não é repetível a contento e depende do kairos - a qualidade do
momento - que é em grande parte, determinada pela ontologia do analista, quando
abraça o momento e põe-se no campo interativo.
Assim, o modo em que se encontra e se avalia o reino das partes loucas das
pessoas sãs é, em grande parte, função do modo em que se vê este nível da vida
psíquica. A visão alquímica valoriza muito a nossa abordagem sobre estas áreas,
comumente encontradas e geralmente evitadas. Enquanto anátema para uma
pessoa, as áreas de loucura são a prima materia, um ponto de partida vital, para
outra. Encontrar esse ponto vital pode levar muitas horas ou mesmo anos; é
raramente encontrado na primeira hora analítica ou no primeiro encontro. No modo
alquímico de pensar, este ponto de partida é um estado altamente procurado, que
pode ser encontrado rapidamente ou que pode exigir o trabalho de toda uma vida.
Mas o Self, ou o mundo interior e a natureza das relações que podem ser criadas
através das áreas de loucura, tornam a missão uma fonte inigualável de significado
nas relações e no crescimento individual.
O caminho alquímico de transformação da personalidade não procura à
adaptação social, econômica, a força do ego, a capacidade de se relacionar, a
maturidade sexual e os ideais espirituais. Estas pedras milenares de todas as
culturas não são o principal objetivo do caminho alquímico. Elas são uma
preocupação inicial, ou ainda é um resultado secundário de uma procura mais
central que constitui o núcleo do processo: a busca do lápis ou ‘Pedra da Sabedoria’,
que é o Self. O Self é o centro do ser e não é sentido nem como se fosse pessoal
nem como impessoal, nem como ‘meu’ nem como ‘não meu’. O caminho alquímico é
caracterizado por uma busca de Self pessoal, semelhante a um Self mais amplo,
que nunca é conhecido como um objeto interno, mas apenas conhecido, em termos
religiosos, na ascensão da alma para Deus ou na fusão extática da alma com outra
alma no espaço do corpo sutil, em que é possível conhecer a união sagrada, a
coniunctio. O Self nunca será um valor coletivo, porque é muito exclusivo, impossível
de ser descrito, a não ser por meio de termos que parecem ser místicos para
aqueles que ignoram esta experiência. Os termos ‘unidade’, ‘outro’, ‘luz’, ‘íntimo’ e
‘temor sagrado’, são algumas das muitas metáforas para descrever a experiência do
inefável. Mas essa experiência é apenas um começo, a partir do qual, se chega a
um sentido da interioridade do sagrado e um sentido da encarnação da sua
numinosidade. As religiões foram sempre as guardiãs desses reinos, e as doutrinas
e as imagens veicularam a experiência do numinosum. No caminho alquímico, o Self
é uma experiência única para cada indivíduo, e essa experiência pode ser, e tem
sido conhecida por muitos.

No entanto, os ‘muitos’ fazem parte de um número maior ou de um tempo


mais amplo, em que, de acordo com a frase alquímica que se encontra, muitas
vezes, na obra: "muitos pereceram" (McLean, 1980, 45). Qualquer pessoa que
115

empreenda uma reestruturação completa do seu ser, como no caminho alquímico, e


não simplesmente em um percurso voltado para a cura do sintoma ou para
incrementar a relação e a adaptação aos outros e à sociedade, começa com uma
experiência que está sempre cheia de medo. Este começo requer a vontade de
renunciar ao que se sabe - aos objetos, enquanto proporcionam segurança, e às
suas crenças, pois criam ilusões suficientemente funcionais. Em numerosas obras
alquímicas, o início da opus se configura por uma inundação que simboliza a
dissolução total da personalidade. Os alquimistas faziam parte de uma tradição que
sabia que uma mudança total estava reservada para aqueles que fossem corajosos
o suficiente para sobreviver a este estado caótico.
Tal início caótico é representado em vinte e duas imagens que compõem o
Splendor Solis (Fig. 1). Dois alquimistas olham, com grande tremor, as águas onde
devem entrar, ou seja, um fluxo turbulento que se emana da esquerda para a direita,
implicando uma descida no inconsciente de um modo indeterminado. Fabricius
associa estas águas às famosas ‘águas do Stige' (1976, 17) que, na tradição grega
antiga são terríveis, tanto para os humanos, quanto para os deuses. Estas águas só
podem ser contidas por um misterioso vaso, como no mito de Eros e Psique, com o
casco de um cavalo de cristal que simbolizava a criatividade do vaso (von Franz,
1970, Cap. 7). Em termos gerais, o Splendor Solis evidencia o perigoso ingresso no
inconsciente, um regresso cujo receptáculo requer o melhor, tanto por parte da
pessoa criativa, quanto dos companheiros de viagem.
A primeira imagem do Splendor Solis representa o sol acima e o mesmo sol
abaixo, embutido em um escudo, símbolo da matéria. O objetivo deste trabalho
alquímico era a encarnação das forças espirituais em uma substância ou em uma
existência encarnada (MaLean, 1981, 83). Este processo está sempre associado às
experiências caóticas. Geralmente, se experimenta uma perturbação considerável
quando surge uma consciência que entra em conflito com a personalidade
estabelecida. Quanto mais forte for esta consciência, mais forte é o conflito. Por um
lado, a realização ou a encarnação desta consciência requer a dissolução das
velhas estruturas que antes constituíam uma defesa contra uma nova consciência.
Por outro lado, a afirmação da nova consciência exige que alguém esteja disposto a
ser conduzido mais além, por caminhos que não são necessariamente previsíveis. A
mudança é sempre assustadora e a imagem que mais resiste à mudança é Narciso.
Os nossos investimentos narcisistas para aparecer e no prestígio pessoal, sempre
se opõem à mudança, e a perda de nossas estruturas narcisistas sempre nos abre
para áreas inconscientes que nos desorientam fortemente. No entanto, quando a
encarnação da experiência espiritual pertence à ordem do numinosum, o caos do
qual se faz a experiência pode ser esmagador.
No pensamento alquímico, a alma experimenta um nível de numinosidade
que, em seguida, procura encarnar no espaço e no tempo, uma transição que cria
considerável desordem. A desordem sempre acompanha a mudança de uma forma
de consciência mais baixa para uma consciência mais alta, significando uma
mudança de uma estrutura ou forma antiga e estável, para uma instável (Schwartz-
Salant, 1969). Como na descida do sol no escudo da matéria na primeira imagem do
116

Splendor Solis, a descida da alma na existência espaço-temporal parece exigir que


se percorra, através das primeiras experiências do indivíduo, como se a alma
conhecesse algo da eternidade e traçasse seus passos de volta para o nascimento
no espaço e no tempo. Mas quando a alma, o órgão da experiência psíquica, traça
este caminho, encontra também os traumas primários, onde a loucura, muitas vezes
se esconde, ou talvez uma loucura parental escondida ou uma experiência de
abuso. E, à medida que a alma toca essas áreas mentais, podem surgir a ansiedade
e pânico consideráveis, como se reflete no aspecto deformado do vulto do sol sobre
o escudo da primeira imagem do Splendor Solis.
A descida na matéria e na vida encarnada pode trazer uma inundação de
material inconsciente, caracterizada por estados perigosos e destrutivos, como se
percebe nas várias obras alquímicas (Fabricius, 1976, 16-23). Por exemplo, a
primeira imagem do Mutus Liber evidencia um alquimista dormindo onde os anjos,
símbolos de uma conexão com o reino numinoso, procuram despertá-lo e exortá-lo a
ascender à consciência superior (Fig. 2). E, no fundo, o mar representa a inundação
que certamente ocorrerá, isto é, a estado de espírito caótico que o alquimista
experimentará. Mas os alquimistas acreditavam que no caos era possível encontrar
a ordem através da compreensão dos opostos conflitantes, como ilustrado em uma
imagem pelo alquimista Michel de Morolles (Fig. 3). Esta imagem captura a vida dos
opostos psíquicos dentro do caos - por exemplo, um touro e um escorpião, um
mergulhador e um leão, representando os opostos astrológicos Touro/Escorpião,
Aquário/Leão e Capricórnio/Câncer. A natureza caótica dos opostos psíquicos foi
posteriormente indicada por cabeças humanas, algumas esguichando água e outras
cuspindo fogo. Além desses opostos conflitantes, foram representados estados mais
extremos como um dragão que se opõe a um cão e um urso devorando o sol, ambos
indicativos da morte e putrefação que, certamente seguirão qualquer estado de
união de opostos. A morte que irá inevitavelmente, seguir à união é representada
pelo casal abraçado que está para ser atingido pela flecha de um centauro. E no
topo da imagem, tem a figura de uma mulher, em pé sobre dois peixes que nadam
em direções opostas, significando a sabedoria da alquimia em unir os opostos.
Assim, o caos compreendido pelo caminho alquímico contém formas de ordens e as
vicissitudes da união que ocorrerão mais e mais, com o desdobramento da opus.

A representação mais completa e significativa do processo alquímico, o


Rosarium Philosophorum, descreve na sua série de vinte xilografias, a
transformação dos estados caóticos compreendidos psicologicamente como as
partes loucas das pessoas sãs. O caos e os estados da mente semelhante à loucura
são essenciais para envolver o mistério da criação da concepção alquímica do Self,
o lapis philosophorum. A série de xilografias do Rosarium constitui um núcleo de
sabedoria inigualável em qualquer tratado alquímico, e considero-o como o núcleo
do que, em termos patológicos, pode ser considerado o ‘caminho alquímico’. O
empenho sobre um campo interativo não constitui somente um receptáculo para os
estados de loucura, mas se torna também um receptáculo para os aspectos
inconscientes da psique pelos quais um Self é criado.
117

A ‘FONTE MERCURIAL’ E A DINÂMICA DA SERPENTE DE DUAS CABEÇAS

A primeira xilografia do Rosarium Philosophorum, a ‘Fonte Mercurial’ (Fig. 4),


é uma representação da misteriosa base da opus (Jung 1954, Obras. vol. 16, p.
212). A 'Fonte Mercurial' é uma imagem estranha: na parte superior, contendo a
serpente de duas cabeças, conhecida na alquimia como Binarius, e muitas vezes,
significando o demônio, está separada da parte inferior, contendo a Fonte Mercurial
que é preenchida pelo jarro de três canos, dos quais jorram três fluxos de água.
Num primeiro olhar, a conexão entre a parte de cima e a de baixo é feita somente
através das colunas de fumaça que saem das bocas da serpente.
Na tradição alquímica, o quadrado que fecha a xilografia é uma imagem do
engajamento hostil dos opostos, levando a um estado de caos, a uma União inicial.
Quando o analista experimenta este nível de caos, vive um estado muito
desordenado. Contudo, o efeito indutivo do campo que desabrocha das áreas
psicóticas se introduz na consciência do analista, fragmentando a sua atenção. A
lógica qualitativa desta xilografia continua, seguindo o ‘Axioma de Maria’. Do Dois
da díade, provém o Três, representado por três jatos que alimentam a fonte de
mercurial. Estes são as ‘águas inferiores’ que Jung compara ao Anthropos inferior ou
a Dionísio. As águas se difundem na fonte e a própria fonte é alimentada pelo
elemento dionisíaco e pelas colunas de fumaça que saem das bocas da serpente.
Estas colunas conectam a parte superior com a inferior, e também estas se enchem
o vaso. A conexão mostrada na fonte mercurial participa da dinâmica de
identificação projetiva. Estados mentais que podem ser descritos como áreas loucas
da pessoa sã enchem o vaso analítico do alto, como fazem os estados mentais
associados ao deus louco, Dionísio. As duas ‘águas’, de cima e de baixo, são
idênticas, como afirma a inscrição na borda do vaso. A fonte representa, portanto,
dois aspectos do mesmo processo, um do ponto de vista do inconsciente psíquico, o
reino de Apolo no mito grego, e o outro do inconsciente somático, o reino de
Dionísio.

Essas duas formas dos estados de loucura são experimentadas de modo


diferente, mas o ponto desta primeira xilografia do Rosarium é que elas criam, juntas
um campo que é o misterioso vaso em que a opus se desenvolve. E, ainda de
acordo com 'O Axioma de Maria’, dos processos que se desenvolvem nesse vaso o
Três é sentido, por exemplo, como a díade inconsciente entre duas pessoas que se
encontram e as suas dinâmicas autônomas que são experimentadas, levando a um
novo sentido de Unidade. Assim, do Três vem o Quarto como Um.
Do estado desordenado de Unidade inicial, representado pelo quadrado que
delimita a primeira xilografia, emerge a qualidade dos opostos, simbolizado, no
Rosarium, pela serpente de duas cabeças. A imagem da serpente também é
encontrada em muitas outras culturas fora da tradição alquímica. Por exemplo, nas
imagens do egípcio antigo, a serpente cósmica é de cabeça dupla (Lindsay, 1970, p.
339). O antigo Deus-herói grego da medicina, Esculápio, regia verticalmente uma
118

vara com duas serpentes entrelaçadas, terminando no topo com as duas cabeças
voltadas uma para a outra. Até hoje, esse símbolo é usado pela medicina para
simbolizar a cura, embora seja frequentemente confundida, talvez através de uma
tradição misteriosa, com a vara de Mercúrio, o caduceu. Além disso, a imagem do
deus grego, Hermes, é apresentada com as duas cabeças em direções opostas.
Entre os astecas, a serpente de duas cabeças era um símbolo do deus Tlaloc, o
poderoso e benéfico deus da chuva (Burland, 1980, 30, 110). A imagem da serpente
de duas cabeças também pode simbolizar o Self que contém os opostos que o ego
não pode acolher, sobretudo, os opostos que têm a qualidade aniquiladora
encontrada nas instâncias loucas da personalidade.
Esta característica particular do Self pode ser encontrada explicitamente
descrita no Capítulo LXXIV do romance de Moby Dick Herman Melville (1962), que
trata da natureza da visão da baleia:

Uma questão curiosa e enigmática poderia ser aberta em relação a este aspecto
da visão de Leviatã. Mas devo me contentar com uma dica. Enquanto os olhos de
uma pessoa estão abertos à luz, o ato de ver é involuntário, ou seja, esta pessoa
não pode impedir-se de ver mecanicamente todos os objetos que estão à sua
frente. No entanto, qualquer experiência irá ensiná-lo que, embora possa ver
sinteticamente todas as coisas com um só olhar, é impossível, para ele, examinar
com atenção e completude, duas coisas quaisquer, ao mesmo tempo – ainda que
sejam pequenas ou grandes, não importando se estão lado a lado ou tocando-se
uma à outra. Mas caso esses objetos fossem separados e circundados, cada um
por um círculo de profunda escuridão, então, para que se possa ver de modo a
concentrar-se sobre a mente, o outro deverá ser completamente excluído da sua
consciência contemporânea. Como ocorre, então, com a baleia? Ambos os seus
olhos, verdadeiramente, em si mesmos, devem agir simultaneamente, mas o
cérebro será muito mais compreensivo, combinado e sutil, do que o do homem,
que pode ao mesmo tempo examinar atentamente por duas perspectivas distintas,
uma por um lado e a outra, exatamente na direção oposta? (Trad. Cesare
Pavese).

Talvez a representação mais completa e animada desta configuração de


opostos seja encontrada em um mito dos índios Kwakiutl do noroeste do Pacífico,
que trata especificamente com Sisiutl, um deus que é uma serpente de duas
cabeças (Fig. 5). Sisiutl é considerado um perigoso e temível monstro marinho, que
é um participante importante nas cerimônias de guerra de Kwakiutl. Sisiutl
invariavelmente aparece na forma de uma serpente com uma cabeça alongada de
cada lado e com um vulto humano que constitui o corpo central. Sisiutl tem uma
grande boca e dentes, uma língua longa e afiada, narinas grandes e alargadas e
dois chifres ondulados em sua cabeça. Acredita-se que seja capaz de ferir qualquer
pessoa; seu olhar falso pode fazer com que as articulações de uma vítima se voltem
para trás, e a pessoa morre transformada em pedra. Qualquer guerreiro que se
banha no seu sangue, tornar-se invulnerável, pois as escamas, os ossos e o sangue
de Sisiutl dão poder tremendo.
Seu poder é tão grande que a imagem de Sisiutl é, muitas vezes, pintada nas
portas de entrada de casas em homenagem ao seu papel de protetor de ‘seres
superiores’. Se adequadamente acalmado nos rituais, Sisiutl se apresentará ao
guerreiro quando invocado. No entanto, muitos perigos estão conectados com
119

qualquer contato com o monstro marinho: se alguém tropeça no caminho de Sisiutl e


esfrega as mãos ou os pés no limo, os membros se transformarão em pedra; ou, se
o sangue coagulado da serpente for esfregado sobre a pele, ela também se
petrificará. No entanto, acredita-se que se possa matar Sisiutl mordendo-se a língua,
aspergindo com o sangue o bastão de guerra e golpeando o monstro. O mito indiano
Kwakiutl especifica como enfrentar o poderoso Sisiutl:

Quando você vê Sisiutl, você deve ficar de pé e encará-lo. Enfrentar o horror.


Enfrentar o medo. Se você perde a confiança naquilo que sabe, se procura fugir,
Sisiutl vai explodir com ambas as bocas ao mesmo tempo e você começará a
girar. Não estando enraizado na terra como são as árvores e as rochas, não
sendo eternas, como as marés e as correntes, o seu rodopiar como um saca-
rolhas, fará com que você deixe a terra, e vagarás para sempre, alma perdida, e
sua voz será ouvida pelos ventos gritantes do primeiro outono, soluçando,
suplicando, implorando por libertação (...) Quando você vê Sisiutl, o terrível,
embora você fique assustado, permaneça firme. Não há motivo para envergonhar-
se ao ser assustado, apenas um tolo não teria medo do horrível Sisiutl. Fique
firme, e se você conhece as palavras de proteção, diga-as. Da água, sairá
primeiramente uma cabeça, depois a outra. Mais perto. Mais perto. Virão na
direção do teu rosto, as cabeças feias, mais próximas e o cheiro das bocas
devoradoras, o frio e o terror. Fique firme. Antes que as bocas gêmeas de Sisiutl
possam apertar o seu rosto e roubar sua alma, cada cabeça deve virar-se para
você. Quando isso acontecer, Sisiutl verá seu próprio rosto.
Quem vê a outra metade do Self, vê a Verdade. Sisiutl gasta a eternidade à
procura da Verdade. À procura daqueles que conhecem a Verdade. Quando vê o
próprio rosto, quando olha dentro dos próprios olhos, encontra a Verdade.
Sisiutl vai te abençoar com a sua magia, irá embora, e sua Verdade será sua para
sempre. Ainda que se alguma vez você fosse posto à prova, ou até enfraquecido,
a magia de Sisiutl e a sua bênção, farão com que a tua Verdade seja duradoura. E
o doce Stalacum irá visitá-lo muitas vezes, lembrando-lhe que a sua Verdade será
encontrada dentro de teus próprios olhos. E você nunca mais ficará sozinho
(Cameron, 1981, 45-46).

O contágio de Sisiutl que pode contaminar as mãos ou os pés representa o


modo em que a loucura afeta as funções do ego e a visão da realidade. A loucura é
contagiosa e este contágio também se espalha pelo campo que a loucura cria. Ser
transformado em pedra corresponde à experiência comum de sentir-se morto ou
inerte quando confrontado com a parte psicótica. Enfrentando os opostos,
representados pelas cabeças opostas de Sisiutl, muitas vezes, sente-se dominado
por um estado inconsciente, vazio, desesperado. Identificar-se com essa condição,
em vez de suportá-la passivamente, poderia levar a morder a língua que mentiria ao
falar rapidamente e, em seguida, desaparecendo antes que esta condição seja
conhecida. Se, em vez disso, sentisse um estado de impotência, poderia nascer
uma nova capacidade de se sentir impulsionado contra a confusão engendrada pela
área psicótica. Somente através da força de reconhecer a limitação e a impotência
da própria raiva, pode surgir uma nova força, que pode ver o poder de Sisiutl sem
esforço frenético de encontrar qualquer tipo de ordem.
A experiência das duas cabeças e das suas duas mensagens conflitantes é
amedrontadora. Ao fazer a experiência quotidiana comum de coisas análogas,
muitas vezes pode acontecer de sair fora, ou de encontrar outras defesas,
principalmente a raiva. Por exemplo, quando confrontado pela instância de loucura
120

de uma pessoa em que os opostos conflitantes transmitem simultaneamente a sua


mensagem, a tendência comum é permanecer com a razão, fazendo com que a
pessoa veja que está distorcendo as coisas, fazendo-a ver o seu lado sombrio. Nós
tendemos a fazer qualquer coisa para evitar sermos tratados como loucos. Por
exemplo, uma vez eu recebi uma carta cuidadosamente elaborada de uma pessoa
muito inteligente dizendo que não poderia pagar uma dívida que me devia. A carta
era cheia de inteligência e prosa fina, contudo, continha imprecisões grosseiras -
tanto em relação ao montante, quanto em relação ao espírito com que o empréstimo
foi feito – que eu sabia que a pessoa negaria. Lutei com dois estados: um admirava
a beleza e a clareza da carta, o outro foi repelido pelas mentiras e decepções.
Ambos queriam ler a história inteira, e este conflito levou-me a criar uma sensação
de impotência e raiva. Ainda: outra pessoa pediu-me para explicar rapidamente algo
que foi particularmente difícil de colocar em linguagem concisa. Esta solicitação foi
especialmente irritante porque queria me comunicar com aquela pessoa, mas eu só
tinha tempo breve para fazer isso. Se eu me recusasse a dar uma resposta rápida,
teria frustrado a ambos; e se eu tentasse responder, sem dúvida teria sido
impreciso. No entanto, o pedido, em meio às exigências incessantes da vida, parecia
razoável. Eu me perguntava se, talvez, era apenas minha necessidade narcisista de
ser preciso e de levar tempo. Por que eu não poderia simplesmente atender ao
pedido? Era difícil ser honesto e recusar. Imerso nestas dinâmicas de loucura que
me puxavam em direções opostas, eu poderia sentir um profundo conflito na minha
alma. Sentia como se a minha alma estivesse esvaziada destas mensagens que me
apressavam e por uma necessidade de separar-me do seu impacto destrutivo.
Quando enfrentamos estados semelhantes de loucura, a alma está em perigo.
A loucura, como Sisiutl, é contagiosa. Podemos perder a alma, e depois encontrá-la.
Mas mesmo se a conservarmos, a sua luminosidade, a sua conexão com o nosso
ser podem ser fortemente diminuídos.
Ainda que estas experiências sejam muito comuns na vida, e normalmente
podem ser mais ou menos rejeitadas, elas ecoam em nossa vida interior e recordam
o terror que já conhecemos quando, como crianças, nós vislumbramos traços de
loucura em nossas mães e pais. Muitas vezes, almas sensíveis que, durante a
infância, eram muito conscientes desta dimensão escondida crescem retiradas do
mundo. Às vezes, facetas inteiras de indivíduos bem sociáveis e bem adaptadas
são, igualmente retiradas. Eles se tornaram profundamente conscientes da loucura
do mundo e da loucura escondida em qualquer encontro. Não ousam viver o próprio
pânico e, muitas vezes, não conseguem mais perceber a loucura em si, ou nos
outros. Não conseguem sentir o quanto são livres, o quanto são estranhos aos
próprios corpos e como suas mentes, um tempo cidadelas de inteligência vivaz,
desaparece sob o impacto da insuportável confusão que experimentam. ‘Girar’
quase fora de controle, como no mito, significa sentir-se impotente, perder a direção,
não saber no que acreditar. Qual das duas cabeças é a verdadeira? Você olha para
a esquerda e uma mão bate palmas; você olha para a direita e a outra mão bate
palmas. Elas nunca batem palmas juntas, e a vida permanece sem fundamento e
sem confiança. De encontros semelhantes podem surgir os pesadelos, cujo núcleo
121

do próprio ser vacila, em que reina o pânico, e em que um deles vaga sem
esperança, como uma alma perdida que implora para que o medo pare.
Mas podemos aprender a permanecer firmes e a combater o medo,
mantendo-nos apegados à nossa humildade antes de sobrecarregarmos – não por
outra pessoa, mas pelo fenômeno de duas cabeças falantes e pelo medo que
engendram. Aprendemos a ficar firmes aceitando o nosso medo. Aprendemos que a
confiança - mesmo que apenas um pouco - é crucial. Tudo o que sabemos sobre a
psique pode ajudar, desde que não permitamos que tais ‘palavras protetoras’
signifiquem demais. De fato, essa falta de julgamento, seguramente, nos tirará para
fora do nosso corpo e nos fará ‘girar’ novamente. Como permanecemos firmes,
gradualmente começamos a ver os opostos separadamente, e da ‘água, saíra
primeiramente uma cabeça e depois a outra’. Essa experiência causará medo
porque cada face poderá deformar a realidade ao ponto de vermos a pessoa de
modo radicalmente diferente do que estamos vendo no drama. Através de ‘cada
cabeça’, vemos de forma diferente, e com essa mudança repentina vem a ameaça
da perda da realidade, de sermos atacados verbalmente, ou então fisicamente. Mas
se nos mantivermos firmes e conscientes, uma mudança pode ocorrer. Pois, como
diz o mito, cada face pode ver a outra, e os opostos poderão unir-se e deixar de
existir como estados de tudo ou nada, com cada um dos que disputam pela
supremacia completa. O mito pede que mantenhamos a confiança, que reneguemos
a fuga diante de um único oposto, e de acreditarmos, que também nesta condição,
um mundo maior, compensatório - um mundo de unidade - prevalecerá e mostrará a
outra face antes de sermos devorados. Uma verdade parcial, então, se torna
possível; torna-se possível a capacidade de trabalhar em conjunto para conhecer
gradualmente a verdade. De fato, quando as duas faces se vêem, a verdade
aparece. A verdade, uma consciência do que realmente aconteceu, ou talvez, o que
não aconteceu na infância, ou em uma situação de vida atual, pode ser terrível. Mas
a rigidez paranoica finalmente passou. Sentimos ter sobrevivido a uma provação que
poderia ter durado por muitos anos.
A busca da verdade torna-se uma alavanca, mesmo nos níveis mais
psicóticos de cada um. De fato, a nossa alma se esconde nesses níveis psicóticos,
pois a loucura é o melhor esconderijo. A loucura pode confundir completamente a
todos, fazendo com que nos fiquemos sozinhos. Somente a pessoa que aceita a
entrada no mundo da loucura é digna de ver a própria alma. Só então, ela pode
confiar o suficiente para ter a chance de sentir que não será violentada
posteriormente.
Através desta experiência, é possível obter certa estabilidade com base em
uma crença na própria Verdade. E esta verdade deve ser encontrada atrás de seus
próprios olhos, de acordo com o mito de Sisiutl, o que significa a imaginação que vê
‘através’ dos nossos olhos, não ‘com’ eles. Então, nunca estaremos sozinhos, o que
significa que estamos em contato com o Self.
As imagens mitológicas da serpente de duas cabeças atuam como um mapa
que pode guiar a experiência dos opostos de destruição da consciência e da
estrutura psíquica para um ato criativo da visão que potencializa a estrutura. Os
122

mitos nos ilustram o modo como o ego não pode conter os opostos, como uma
presença de contenção provém do Self, e como a interação ativa e corajosa com o
campo, engendrada pelos opostos divididos, deve ser um ato intencional que luta
pela visão em meio a campos fortemente dissociativos.
Por exemplo, um homem que eu estava tratando de uma crise de meia idade
que foi adversamente com episódios de ansiedade e medo de abandono, pela sua
situação de trabalho e casamento, estava falando com grande elogio sobre o
sucesso financeiro de sua esposa. Ele também observou como ela estava sendo
contraposta por forças negativas em seu local de trabalho. Na noite anterior, ela lhe
pediu para postar uma carta importante para ela. Ele saiu a casa para fazer um
trabalho e não enviou a carta. Quando ele contou esta história, que lhe deixava
muito envergonhado, e enquanto me contava que verdadeiramente gostaria de
saber o motivo pelo qual tinha agido tão mal, eu me senti confuso. Tempos atrás, eu
evitava esse estado e, em vez disso, mantive a atenção, com um grande esforço,
enquanto o ouvia. Mas agora, reconhecendo que isso não agir não é frutuoso, eu
escolhi focar no sentido de confusão à qual eu estava resistindo. Assim, perguntei-
lhe se ele se sentia de qualquer forma um pouco fragmentado, e ele reconheceu
sentir-se.
Ao examinar posteriormente o que estava em jogo nos negócios de sua
mulher, eu sugeri que talvez ele tivesse ficado com raiva por uma perda financeira,
motivo pelo qual a carta de sua mulher tinha a ver com os negócios com que ela
tinha se comprometido anteriormente e que não tinham terminado bem. Esta
sugestão atingiu o alvo e, depois de uma pausa, ele disse: "Então, os meus nobres
sentimentos em relação à sua nobre habilidade são somente uma farsa." Por que
você pensa assim?", perguntei. "Talvez ambas as atitudes estejam presentes". Essa
consciência evaporou-se rapidamente entre nós; ele disse: "Claro, isso faz sentido".
Mas depois comecei a me concentrar mais profundamente sobre a existência de
ambas as atitudes, pois eu estava começando a perceber que ele estava exibindo
dois estados opostos realmente incompatíveis. Em resposta ao seu "Claro, isso faz
sentido," tinha a tentação de apenas prosseguir adiante, e foi preciso um ato
voluntário para não ser arrastado. Em vez disso, permaneci firme sobre o modo
estranho em que esses dois estados se estruturavam, pois quando me concentrei
em seus sentimentos hostis em relação à sua esposa, esses sentimentos eram os
únicos que estavam presentes: não era fácil lembrar qualquer sentimento positivo.
Por outro lado, quando seus sentimentos positivos foram todos atendidos, os
negativos foram completamente aniquilados. Os opostos neste campo não foram
divididos, como ocorre na identificação projetiva. Eu não identificava um oposto
enquanto o analisando se identificou com outro. Em vez disso, para ambos
dominava completamente a presença de uma parte do par de opostos; depois era a
outra a dominar completamente.
Ele disse que sempre usou sua bondade para aniquilar o lado obscuro de sua
psique, mas eu apontei que tinha acabado de ocorrer o inverso. Desta forma,
conseguimos estabelecer um par de opostos dentro de sua vida caótica. Durante
este processo, a névoa desapareceu; entre nós havia uma clareza de contato, que
123

não estaria presente caso tivéssemos nos limitado a atender a claridade durante os
períodos de confusão mental e de fragmentação. Ele começou a sentir uma raiva
profunda dentro de si, para com a esposa que perdia dinheiro, e depois pela mãe,
que o controlava, usando-o como uma criança. Ele percebeu, com algum medo, que
estava identificando sua esposa com a sua mãe e, neste momento, ele também
percebeu que estava com respiração presa, e sentindo medo de respirar. Assim,
pode reconhecer que uma fúria esmagadora contra a sua mãe habitava em uma
divisão fron-back que habitava nele e que lhe inseria nos processos dissociativos
para aniquilar a consciência dessa raiva. Mas estabelecia também uma restrição
geral de sua vida, de suas capacidades e suas recompensas. Como todas as
pessoas na área de loucura, ele estava limitado por isso. Mas não aceitava
conscientemente essa limitação. Prevalecia, em vez disso, uma espécie de auto-
imposição masoquista, um estado fortemente não criativo.

Ele me perguntou: "Porque você está explorando isso tudo agora, hoje e não
o fez antes?" Esta pergunta, de certo modo, me surpreendeu. Senti-me relutante em
dizer que estava escrevendo um artigo sobre a teoria do caos e dos estados
psicóticos, mas o fiz. Então lhe falei sobre o valor desses estados mentais, dizendo-
lhe que eles eram a prima materia alquímica e ele se sentiu aliviado. Poderia ter se
dividido novamente; voltou o estado de confusão mental. O meu comportamento
maníaco - falar sobre pensamentos que me interessavam - abriu a porta para uma
divisão mente-corpo; mas consegui capturar essa divisão, e retornamos aos opostos
na sua instância de loucura. Eu lhe sugeri que escrevesse a sessão e aproveitasse o
tempo para reconstruí-la. Diante dessa sugestão, sua ansiedade voltou. Ele sabia
que tinha de enfrentar esta área, e percebeu que sua vida tinha sido administrada
pela tentativa de evitá-la. Ele viu que seu medo subjacente consistia em ser
psicótico, por exemplo, que sua esposa era, na verdade, a sua mãe. Eu também
senti que ele estava me protegendo de uma transferência delirante e da raiva que
isso implicava. Mas atuar nos processos dissociativos dentro os estados de loucura
não era uma opção viável para ele. Deveria encontrar seu próprio caos de forma
criativa.
O analista, muitas vezes, pode ser orientado, em tais processos, pela reflexão
sobre as formas com que as civilizações anteriores lidaram com a loucura,
especialmente as formas que eles consideravam como um componente necessário
e funcional da transformação da personalidade. Como tal, a capacidade alquímica
de penetração e de compreensão sobre o a prima materia, particularmente como
está descrita no Rosarium Philosophorum, é uma guia indispensável para calcular as
ambiguidades e o potencial de transformação dos aspectos de loucura das pessoas
sãs.

DIONÍSIO E AS ÁGUAS INFERIORES DA ‘FONTE MERCURIAL’

No Rosarium, a ‘fonte mercurial’ é preenchida por baixo o que indica a


dimensão ‘inferior’ ou cromática da existência. Esse domínio da paixão, das
124

erupções das emoções e da espontaneidade, muitas vezes, vem acompanhado pela


loucura. Como os limites são quebrados e a estrutura é dissolvida, as águas do caos
têm um acesso rápido; somente através delas, cada transformação se completa.
Dionísio (ver Detienne, 1989; Otto, 1965; Hillman, 1972; Kerenyi, 1976;
Paglia, 1990) é um excelente exemplo mitológico da natureza da paixão na instância
de loucura de uma personalidade normal. Esta parte pode ser descartada como
histeria, caso for vivida do ponto de vista espiritual-mental, representada pelo deus
olímpico Apollo. A parte psicótica, como Dionísio, cria uma sensação de estranheza.
Quando se constela não reconhecemos uma pessoa e esta nos conhece apenas
marginalmente. Dionísio coincide com essa experiência que contém tanto o mistério,
quanto o perigo. A parte psicótica, com seus opostos divididos, dá uma sensação de
vazio amortecido. No entanto, quando esses opostos são pacificados, a experiência
se transforma em sentido de plenitude.
Dionísio combina esses estados de ausência e de presença. A pessoa que
vemos, quando a parte psicótica é ativada, sempre usa uma máscara. Vemos um
estranho, alguém que, verdadeiramente, não conhecemos. A estranheza é
inquietante. Mas, como na experiência de Dionísio, existem duas máscaras, dois
estranhos, um que parece puxar para a vida e o outro para a morte, um à plenitude e
outro ao aniquilamento. Não podemos ver essa dualidade, a menos que vejamos a
própria parte psicótica, isto é, através da experiência da limitação sentida por nossa
própria loucura. Essa experiência de limitação diante da loucura é um sacrifício ao
deus - como diziam os gregos, uma epidemia - à qual participamos quando o deus
aparece através do analisando. Para aqueles que estão conscientes de sua própria
contaminação através da loucura, Dionísio torna-se um deus purificador, uma
questão essencial quando se relaciona com as instâncias de loucura. O analista
deve conhecer o modo pelos quais ele contaminou outra alma através dos atos que
foram destrutivos, ou propriamente, através dos atos que eram guiados
secretamente por uma loucura escondida. Tais comportamentos, geralmente
assumem a forma de aproximação ou de distanciamento, com base na confiança no
próprio comportamento saudável, corajoso, que ousa romper com a sabedoria
convencional. No entanto, mais tarde, aprende-se que as ações em questão eram
loucas e destrutivas em um alto grau. Todas as instâncias de atuação sexual em
psicoterapia se enquadram na categoria da loucura. Na época, o analista realmente
acreditava que ele estava são e a serviço das energias especiais; o deus Dionísio
cobra pedágio daqueles que o negam.
Este pedágio pode exercer um papel na atuação, enquanto muitos que
sucumbiram desta forma dizem sentir que um poder superior estava sendo servido e
que agir de outro modo teria sido um ato de covardia e fracasso. Mas Dionísio, na
verdade, não exige que se torne louco; ele exige apenas um reconhecimento de que
a loucura está presente. Quando Dionísio pede para ser adorado, pede apenas que
dentro de nós seja reconhecida a presença do seu poder naquele momento. Ele se
torna um poder purificador para aqueles que sabem o que fazer com as energias tão
poderosas e que não têm a capacidade de saber se estão ou não loucos.
Respeitando o poder desse ‘não saber’, se respeita o deus, enquanto que agindo de
125

modo louco, não se faz, como descobriram muitos que, no mito grego
enlouqueceram pela rejeição dos seus ritos. Nos mitos, aqueles que rejeitam
Dionísio cometem atos horrendos como o assassinato dos próprios filhos.
Posteriormente são desmembrados, literalmente despedaçados pela loucura.
A consciência por parte do analista, de seus graves fracassos, contaminação
da alma e a capacidade de reger essa história, de falar e permanecer vivo junto a
ela, dentro dele, lhe fornece o tom de voz adequado e o sentimento através do qual
a parte psicótica de um analisando pode ser conhecida e aceita. O analista pode,
através de entendimentos racionais que se voltam ao lado neurótico normal do
analisando, negar Dionísio, e perceberá que a loucura exigirá o seu pedágio sob a
forma de uma severa dissociação e um ataques brutais sobre a própria vida interior,
estados mentais geralmente sentidos pelo analisando quando o analista se retira
sutilmente e envia a mensagem de que ele não quer a loucura do analisando na
sala. Dionísio não é um tipo para perdoar desavenças, mesmo quando
transformamos rapidamente uma atitude. As defesas maníacas emergem, e o
analisando, muitas vezes, se volta para drogas ou alimentos a fim de acalmar a raiva
interior que é tão insuportável e destrutiva.
Dionísio é uma pessoa que gera uma invasão que se espalha entre as
pessoas em larga escala. É contagioso, tal como é a parte psicótica. Ele nos faz
tropeçar, o que, por sua vez, cria uma nova visão da vida. Convida-nos a reconstruir,
novamente, as nossas imagens psicóticas, e a não esperar por um longo período de
tempo. Quando conhecemos os opostos em sua forma dividida, conhecemos
Dionísio em sua natureza mais parecida com a natureza mortal, como diz Camille
Paglia, ‘na lama e no esterco do elemento ctônico' (1990, 6). Quando o analista o
encontra no campo interativo com o analisando, a conexão de coração e a
espontaneidade são inexistentes. Ambos sentem uma sensação de alienação, de
apatia, de vazio e um sentido de estranheza sempre presente. Pode-se abordar
esse desenvolvimento a partir de um ponto de vista apolíneo e falar de uma
‘sequência desordenada-despersonalizada’. Embora esta conversa Apolínea seja
clara, nos deixa um sentimento de desconforto: o analisando se torna estranho para
o analista e o analista se torna estranho para si mesmo.
Em Dionísio e na parte psicótica se esconde um assassino. A psicopatia de
uma pessoa reside na parte psicótica, na forma de uma crueldade que conhece
pouca compaixão pelos outros. No entanto, o analista jamais conhecerá essa parte
interpretando-a no analisando? Não importa o que o analista faz ao longo do
caminho, não importa como ele possa experimentar internamente o contágio do
‘deus’ e não importa como ele possa enquadrar essa experiência em uma
interpretação: o analista, em vez, mudou de nível, tendo passado de Dionísio ao
Apolíneo. A interpretação, muitas vezes, produz uma consciência repressora, não
uma consciência viva do modo em que se é, enfim, limitado pela loucura.
O analisando deve chegar a conhecer esta parte apenas pelo fato de ser
‘visto’ pelo analista, apenas por ser visto em sua estranheza e percepção do campo
interativo do momento. Além disso, o analisando verá a psicopatia do analista e
conhecerá nele aquela parte, e quando o analista souber reconhecer as percepções
126

do analisando, então o analisando poderá aceitar mais facilmente essas partes


dentro de si mesmo. Neste nível de interação, não se lida com uma divisão
consciente-inconsciente, mas sim com uma divisão que também inclui uma
separação radical de opostos dentro do próprio complexo. O analista encontra esta
divisão no campo interativo, enquanto a repressão consciente-inconsciente pode ser
empregada para negar a sua dor e a sensação de estranheza. Essa divisão também
pode ser empregada para negar os poderes envolvidos. Dionísio foi retratado como
um touro e uma pantera. Estas energias selvagens habitam a parte psicótica e
podem ser conhecidas quando vistas como tais, quando as defesas de idealização e
dissociação são elaboradas e dissolvidas com sucesso.
Dionísio não é apenas um deus da morte e do vazio, mas também da vida e
da plenitude. Às vezes, em suas histórias, ele é apresentado em formas que
parecem ser saudáveis, por exemplo, como um jovem homem ou uma bela mulher.
Também nós, muitas vezes, podemos parecer sãos e não saber que estamos
agindo de maneira louca. No entanto, quando os opostos de Dionísio são finalmente
mantidos juntos, a distância dá lugar à proximidade, o vazio à plenitude e forma-se
um coração capaz de conter lá onde a experiência do coração estava anteriormente
ausente.
A palavra grega (ψύχωση) psicose significa ‘animação, despertar da alma’. Na
raiz, estamos buscando a animação de uma alma que foi congelada nas primeiras
experiências aterrorizantes da vida ctônica. Em seu livro Sexual Personae, Camille
Paglia oferece um relato sucinto e vivaz do nível dionisíaco:

O que o Ocidente reprime em sua visão da natureza é o elemento ctônico, que


significa ‘da terra’, - mas as entranhas da terra, não a sua superfície. (...) Adotei
como um substituto do termo ‘Dionisíaco’, que foi contaminado com piadas
vulgares. O Dionisíaco não é algo fácil. É a realidade ctônica aludida a Apollo, o
trabalho cego das forças subterrâneas, o risco, a obscuridade e a lama. É a
brutalidade desumanizadora da biologia e da geologia, o desperdício darwiniano e
o derramamento de sangue, a miséria e a podridão, que devemos manter fora da
consciência para manter nossa integridade de pessoas apolíneas. (...) O
demoníaco da natureza ctônica é o pequeno segredo obsceno do ocidente (1990,
5-6).

Essa natureza ctônica pode ser transformadora. O caos pode tornar-se


ordem, mas sempre permanece perigoso e sangrento.
Em sua plenitude, as energias dionisíacas sempre foram consideradas
perigosas pela sua capacidade de inundação. Para participar dessas energias de
forma positiva, é preciso aprender sobre o poder e o perigo do reino ctônico e de sua
diversidade fundamental para o Self. Hoje, a vida ctônica do corpo é essencialmente
aceita, e não se compreende que a sexualidade tenha um componente numinoso
(isto é, religioso). A espiritualidade é reservada para o mundo desencarnado. Mas a
sexualidade é um poder arquetípico, cuja numosidade é apenas um pouco velada na
cultura moderna. Ao representar um ponto de vista unilateral, a insistência de Freud
sobre a base sexual da nossa fantasia interior, explica em grande escala, o motivo
pelo qual a sua obra foi continuamente levada a sério.
127

Às vezes, é possível perceber como a vida ctônica se esconde na borda de


nossa consciência quando nos tornamos conscientes dos nossos corpos, de
estarmos encarnados, e de estarmos por dentro. À medida que abordamos a vida
ctônica, ela ameaça a luz da nossa natureza solar-racional e, na verdade, essa luz
se apaga quando entramos em nossas profundidades corporais. Na verdade,
apenas a consciência lunar, a luz imaginária, bastará para ver no escuro; e
geralmente essa forma de visão significa uma consciência que vem do coração.
O analista pode perceber os aspectos perigosos da vida ctônica que se
escondem na instância psicótica dos analisandos, especialmente de forma nebulosa
antes que a transferência psicótica se coagule. Antes desta experiência, o analista
pode experimentar a divisão do analisando divisão e uma dissociação induzida. Mas
nos momentos em que o analista consegue permanecer focado no analisando, o
analista geralmente pode ter um vislumbre da natureza do nível ctônico.
O nível ctônico, caracterizado por um forte campo erótico, apareceu a uma
mulher que sofre de uma doença esquizoide. Ela ignorou que isso estivesse
dividindo o seu corpo. Quando eu interpretei a divisão, ela pode então, embora
momentaneamente, reconhecer seus sentimentos sexuais e seus medos sobre eles.
Perguntou-me, se por acaso, estava sendo vítima de incesto; se bem que estava
absolutamente certa de que nenhum incesto real tivesse sido verificado, os seus
medos no nível erótico eram intensos e sua espontaneidade com os homens estava
quase ausente, o que causou seu grande sofrimento. Uma vez que, durante uma
sessão consegui ajudá-la a se concentrar nesses sentimentos, ela imaginou sua
mãe que a atacava violentamente. Na verdade, ela tinha sido a filha favorita do pai,
mas sempre intelectualmente, e, pelo que ela sabia, não tinha acontecido nada de
inapropriado fisicamente entre eles. Ela parecia sofrer de um forte complexo edípico,
talvez antagonizado pela sexualidade inconsciente de seu pai e pela competitividade
de sua mãe em relação às outras mulheres, das quais a analisanda estava
extremamente consciente desde os primeiros anos de idade. No entanto, uma vida
erótica intensa parecia insistir entre ela e seu pai e este padrão de energia
rapidamente emergiu na transferência para comigo, juntamente com a sua
necessidade de destacar-se das amarras. Eu era ao mesmo tempo o pai que
conecta - a mãe, e o objeto de seus desejos incestuosos, - o pai. Claramente, os
dois não eram separáveis, o que teria sido indicativo de uma capacidade de
repressão. Em vez disso, na transferência, eu era um objeto duplo, que ao mesmo
tempo estimulava e conectava, seduzindo e sadicamente castigando-a pelos seus
sentimentos eróticos.
Geralmente sentimos essa qualidade agressivo-erótica ou sado-masoquista
do campo em meio a um processo intensamente dissociado. Esses recursos não
apresentaram as características da explosiva sexualidade eruptiva que um analista,
muitas vezes, encontra com esquizofrênicos, e tampouco foi controlada através da
repressão e dos ganhos estruturais que se desenvolveram no alvorecer de um
período edipiano.
De certo modo, quando tentei manter minha atenção por vários minutos, pedi-
lhe para associar ou imaginar o que ela esperava que acontecesse. Olhou para
128

dentro e se amedrontou ao descobrir a própria resposta: “Espero que você me bata


contra a parede e me use! A brutalidade em tudo isso foi chocante e completamente
fora do caráter para o campo erótico existente entre nós, e cuja natureza tinha sido
bastante calorosa e acolhedora. Em outro momento, vários meses depois,
novamente eu segurei os opostos no campo com o tempo suficiente para pedir para
ela entrar em si – mantê-los seria necessário, caso contrário a sua fragmentação
teria tornado impossível fazer qualquer outra coisa – e ela descobriu outra imagem
chocante. Ela me viu como um animal - algo como um touro - atacando a sua
cabeça.
Geralmente, os analistas pensam que tais camadas arquetípicas se
manifestam de uma maneira florida nos esquizofrênicos, ou então, como
trabalhando nos bastidores no chamado processo primário, mas não que se
intrometam abertamente. Freud havia dito que o psicótico vê demais. No entanto,
esses níveis da natureza ctônica, existem na parte psicótica e constituem a base
para a transferência psicótica. É claro que esses níveis ctônicos são terríveis para o
analisando, e a arte do processo analítico consiste em conseguir elaborá-los em
uma transferência psicótica, estável, coesa, que não se torne delirante.
A transferência dos dois lados e o processo dissociativo intenso foi um
exemplo da constelação de seu setor psicótico. Os opostos nesta instância podem
resultar da experiência do analisando de ambos os pais, ou podem resultar de uma
divisão mente-corpo em um único pai ou de fontes que não podem ser totalmente
compreendidas em termos de problemas evolutivos. Dentro da área psicótica, os
opostos não se separaram ou, quando se separam, podem assumir a forma dos
opostos que tenho descrito como antimundos. Em ambos os estágios, as energias
das quais o analisando está amedrontado pertencem ao domínio de uma dissolução
total, - as águas inferiores da fonte mercurial. Mas os opostos podem se combinar
na área psicótica de forma a gerar confusão e controle, o que pode influenciar a
estrutura e as dinâmicas do campo interativo.

ÁREA PSICÓTICA E FUSÃO NEGATIVA DOS OPOSTOS

Além da fragmentação e da estranheza, e uma série de assuntos intensos


como raiva e ódio e estados mentais de ausência e morte, algo a mais se esconde
no processo psicótico. O analista sente algo que é tão amedrontador ao ponto de
sentir-se destrutivo para o analisando. Na maioria das vezes, isso existe como um
pano de fundo no processo que é percebido como separado da fachada do
analisando, provocando a divisão front-back. O ‘objeto de fundo’ (Grotstein, 1981,
77) desta divisão constela sentimentos de catástrofe. Assim, o objeto do processo
psicótico domina as forças destrutivas, - uma situação que é característica da
psicose. O analista geralmente experimenta uma forte tendência a evitar vivenciar
estes aspectos da área psicótica, e esta reclusão pode ser atuada na
contratransferência. Talvez a forma mais dominante de evasão seja uma tendência
para o analista experimentar qualquer experiência de dissociação, vazio e o estado
129

de estranheza que prevalece até que as características passam, ou o analista se


evade por esse tipo de reação, enfatizando os pontos fortes do analisando.
Este ‘objeto de fundo’ existe em um estado de separação relacionado a outros
eixos de divisão: divisão vertical, em que se encontram opostos incompatíveis que
se combinam em objetos excêntricos; e a divisão horizontal, característica da divisão
mente-corpo. A divisão vertical tem o efeito indutivo de uma separação posterior do
objeto de fundo e de uma crescente divisão mente-corpo. Por outro lado, reunindo
os opostos em uma divisão vertical, tem o efeito indutivo de tornar o objeto de fundo
mais presente na consciência, e o lançar uma ponte sobre a divisão mente-corpo
tem um efeito indutivo semelhante. Esta interação indutiva de divisão dos eixos era
bem conhecida na ciência antiga, especialmente na alquimia renascentista, e uma
interação de dimensões semelhantes se encontra nas modalidades de transferência
de energia e de informação em certos processos da mecânica quântica.
O analista pode perceber o objeto de fundo através de um ato imaginário.
Este ato imaginário é uma espécie de visão que não é comum, como a que se
encontra em Ludwig Wittgenstein de ‘ver-como’ (Monk, 1990, 508), ou na noção de
‘ver’ de Carlos Casteñeda (1971), ou na concepção de William Blake (Damrosch,
1980, 16) de ‘ver através dos olhos, e nas noções sufi e alquímicas da imaginação.
O ato do analista de perceber imaginariamente o objeto de fundo, muitas vezes,
desvela uma sensação de medo que reside no analisando, tornando-o consciente de
um sentimento profundo de humilhação. Esta humilhação nasceu da convivência
com tais estados mentais, e especialmente, com a consciência de ter sido odiado.
Enquanto o ato de ver essas condições de fundo diminuem temporariamente a
divisão dos outros eixos, essa divisão tende a retornar quando a visão do analista
recuar. Dentro desta dissolução e coagulação, a natureza negativa e insustentável
do objeto de fundo, pode às vezes, ser gradualmente contida e transformada.
O processo de fundo é de natureza dionisíaca, e a divisão que bloqueia o seu
impacto total leva a interrupções mentais, como a criação de ‘antimundos’ e objetos
estranhos. Louis Sass foi fortemente incisivo ao ponto de criticar o uso de analogias
Dionisíacas, geralmente derivadas da visão de Friedrich Nietzsche daquele deus,
como meio de compreender a esquizofrenia. Sass acredita que a esquizofrenia
também é, senão principalmente, uma doença apolínea. Ele afirma com insistência
que, embora possam existir os estados dionisíacos - como dissolução dos limites e
‘autodissolução do ego em uma sensação física intensa’ – tais estados são, na
verdade, uma defesa contra a esquizofrenia. Para Sass, esses recursos incluem
questões fundamentais de um ‘sentido de divisão, morte e não realização, ou ainda
para evitar o medo da responsabilidade solipsista para o mundo' (Sass, 1992, 312).
Ele sustenta a sua posição evidenciando a visão de Nietzsche pela qual a união
dionisíaca da paixão e a dissolução dos limites podem ser uma libertação
momentânea do próprio Apolíneo, da “tendência de desenhar linhas de fronteira, e
(...) de apreciar sempre mais a prática do conhecimento de si” (Sass, 1992, 312). De
modo geral, a concepção de Sass é que a esquizofrenia está realmente longe de ser
uma doença apolínea ou socrática, “cujas características centrais são a hipertrofia
da consciência e um concomitante destacamento de fontes instintivas de vitalidade”
130

(1992, 74), juntamente com uma “hiper-consciência fragmentada de um tipo de auto-


interrogação cerebral" (1992, p. 37).
A crítica de Sass é incomum e útil, mas seu argumento pode ser ativado com
a insistência de que suas características 'apolíneas' são efetivamente defesas contra
o ‘dionisíaco’ que se esconde em segundo plano. Por exemplo, fiz a experiência de
‘hiper-consciência fragmentante’ e do descuido que Sass evidencia, com uma
analisanda cuja estrutura narcisista a isolava de modo extremo. Enquanto a fantasia
sexual, não tivesse ainda feito parte das nossas sessões, em uma sessão particular
eu tive a experiência incomum de sentir uma imposição interna de não permitir a
fantasia sexual. O material sobre o qual ela estava falando naquele dia, não tinha
relação a homens, mas ela não tinha feito nenhuma alusão a sexo ou a fantasias
sexuais. Enquanto eu olhava para ela, eu me vi desviando meus olhos e sufocando
minha imaginação, como se um tabu estivesse presente. Era como se um décimo
primeiro mandamento tivesse sido proclamado do alto, e que agora aparecia
dependurado no consultório: 'Você não deve imaginar'.
De repente, reconheci que esse tabu sempre existia no meu trabalho com ela
e aquilo era tão amplo que, nos anos de trabalho, eu nunca tinha imaginado ter um
pensamento sexual relacionado a ela, embora fosse uma mulher muito atraente.
Anteriormente discutimos o fato de que nosso trabalho em conjunto parecia estar
limitado pela falta de intimidade, e que parecia restritivo e estéril. Somente agora eu
percebi que a ausência do erótico em nosso trabalho, poderia, talvez, ter algo
relacionado aos sentimentos áridos que vivemos na sua análise. Quando
exploramos esta qualidade da nossa interação, várias facetas emergiram.
Vivendo a imposição de não ter absolutamente nenhum interesse sexual por
ela, tomei consciência de que me senti totalmente indesejável. Mas quando lhe
comuniquei este sentimento, ela refletiu sobre suas interações com os homens, e
conscientizou-se de que foi ela a me comunicar essa imposição ‘antierótica’. Então,
ela confessou que se sentia totalmente indesejável e acreditava que nenhum
homem poderia ter qualquer interesse sexual ou íntimo para com ela. Depois de
cuidar dos sentimentos envolvidos, ficou claro que sua imposição antierótica era sua
negação da invasão sexual de seu pai durante a sua infância.
A invasão de seu pai não havia sido realizada concretamente, mas existia
dentro da atmosfera doméstica de sua infância como uma presença poderosamente
perigosa. Ela tinha internalizado as dinâmicas inconscientes domésticas da sua
infância, como fazemos todos, e através da proibição inconsciente, poderia manter
esse estado traumático invasivo sob controle. Ela conseguiu se proteger em uma
divisão horizontal, mente-corpo, em que sua mente não permitiu o reconhecimento
das energias eróticas que seu corpo poderia ter percebido no ambiente circundante.
Através da identificação projetiva, essa divisão foi enviada para outros, em grande
parte através do dispositivo de cortar a respiração abaixo do seu diafragma. Só
marginalmente a sua respiração surgia da parte inferior do corpo, e quase nunca
voltava a essas profundezas. Essa se tornou a modalidade principal que influenciava
o campo interativo no nosso trabalho e com a qual foi comunicada a sua divisão
mente-corpo
131

A descoberta da natureza de sua divisão mente-corpo - e a sua divisão front-


back, com o objeto de fundo dominado por fantasias sexuais invasivas que a
amedrontavam – foi também impedida por uma divisão vertical e pelas
características mentais a ela associadas, como a apatia e o vazio mental descritos
por Sass. A divisão vertical, nesta analisanda, caracterizou-se por estados
completamente opostos e mutuamente aniquilados. No seu aspecto de divisão
vertical, o campo com ela estava assinalado, por um lado, por uma plenitude de
desejo de conexão e, por outro lado, por um estado concomitante de apatia e vazio
mental. Essas divisões bloquearam com sucesso o elemento dionisíaco e o seu
medo de fusão que esse estado provocou (Green, 1993, 243). Então, enquanto Sass
enfatizou sobre as características extremamente importantes que ele chama de
Apolíneo (uma escolha infeliz uma vez que Dionísio é um deus louco, enquanto
Apollo não o é), poderia ser necessário ter em mente que tanto o dionisíaco quanto
apolíneo não somente existem, mas coexistem. Se bem que, às vezes, um deles
pode ser uma defesa contra o outro, e esses pontos de vista são ambos
necessários. O dionisíaco pode caracterizar melhor as divisões de segundo plano,
enquanto o Apolo parece descrever mais a divisão vertical que também é muito
comum e que é, muitas vezes, mais óbvia do que a vida do processo psicótico em
segundo plano. A separação mente-corpo parece combinar elementos dionisíacos e
apolíneos.
O analista pode, às vezes, sentir os aspectos perigosos da vida dionisíaca, a
vida ctônica oculta na instância psicótica, especialmente de forma nebulosa antes da
coagulação da transferência psicótica. Antes dessa coagulação, o analista pode
experimentar a divisão do analisando e uma dissociação induzida. Mas nos
intervalos em que consegue manter o foco sobre o analisando, o analista geralmente
consegue ter um vislumbre da natureza de segundo plano do nível de ctônico.

ÁREAS PSICÓTICAS E DUPLO VÍNCULO

Quando os antimundos se fundem no aspecto apolíneo da loucura, o campo


que é criado tem uma natureza particularmente confusa e controladora, conhecida
como duplo vínculo. Gregory Bateson desenvolveu o conceito de duplo vínculo como
parte de compreensão dos sistemas familiares, e também acreditava ser este um
fator etiológico na esquizofrenia. Embora esta ideia não tenha sido frutífera, o
conceito de Bateson do duplo vínculo é, muitas vezes, um fator forte na formação da
parte psicótica de uma pessoa com funcionamento normal. No duplo vínculo de
Bateson, duas mensagens são dadas simultaneamente, no entanto, uma contradiz a
outra. Mas, além de ser contraditório e crítico para seu efeito desastrosamente
poderoso, o duplo vínculo faz uso de um campo que tem a imposição não expressa
que o objeto não deve abandoná-lo; o objeto não deve subtrair-se à influência do
duplo vínculo refletindo conscientemente sobre ele. O analista está preso no dilema
de fusão com o objeto, enquanto, ao mesmo tempo, procura separar-se, e descobre
que nenhuma das opções é possível. A demanda inconsciente de ‘não perceber’ o
duplo vínculo leva aquele que não é objeto a dissociar em duas partes a imposição
132

contraditória; e se este objeto não tiver facilidade para hipnotizabilidade que a


dissociação requer, então tende a formar áreas psicóticas de opostos incompatíveis.
Geralmente, esses processos se entrelaçam e se multiplicam.
Bateson, juntamente com outros, fornece o seguinte exemplo que ocorreu
quando um menino esquizofrênico foi visitado por sua mãe em um hospital:

Ele estava feliz em vê-la e, impulsivamente, colocou o braço em torno de seus


ombros, ao que ela endureceu. Ele retirou o braço e perguntou: "Você não me
ama mais? Ela ficou corada e disse: "Caro, você não deve se sentir tão facilmente
envergonhado e com medo de seus sentimentos” (1972, 18-19).

O seu corpo transmite uma mensagem e a sua mente outra, e juntos, eles
conduzem a um estado de confusão e loucura. Não é ela que deve se tornar
esquizofrênica sob o impacto de tais mensagens, mas a alma certamente tende a
perder-se e, interiormente, a reação é de manter as duas mensagens distintas.
Como acontece geralmente com defesas semelhantes, esta separação então se
torna uma divisão radical e as duas mensagens se tornam totalmente separadas, ou
seja, cada uma delas tenta ser toda a história. Quando o mecanismo dissociativo é
psicótico e leva aos opostos existentes como antimundos, esse mecanismo produz
grande angústia para a pessoa e para qualquer um que tente se comunicar com ela.
A imposição para ‘não notar’ o duplo vínculo, para negar sua existência, é
exemplificada por um analisando que estava falando sobre suas visitas ao seu pai
idoso. Durante a noite, seu pai estava ‘segurando um banco’, como de costume, e
criando uma atmosfera muito difícil de tolerar. Por exemplo, seu pai insistiu que ele
nunca tinha se preocupado com nada, o que deixou o filho estupefato e confuso.
Algo estava destoante; ele se sentiu irritado, mas não sabia o que dizer. Ele sabia
que seu pai não estava sendo sincero, mas também se sentiu inibido para falar.
Oscilou entre as duas polaridades, como se houvesse uma liminar secreta para não
dizer nada. Seu pai estabeleceu uma atmosfera em que ‘tudo estava bem’, e em que
não existiam conflitos. No entanto, havia claramente muitos conflitos. Ambas as
mensagens eram proeminentes. Ouvindo seu pai, ele de repente começou a sorrir,
não intencionalmente, mas de modo evidente, pelo qual seu pai lhe perguntou o que
estava sendo tão divertido. Esta pergunta quebrou o encanto e ele disse: “Porque o
que você disse não é claramente falso. Muitas vezes, de noite, você acorda às
04h00min e não consegue dormir por causa da sua ansiedade”. Seu pai ficou
chocado e estupefato. Naquela noite, o filho teve o sonho seguinte:

Estou observando duas colunas paralelas de jornal e as comparo, comparando as


notícias. Apenas concluo, meu pai anuncia que deverá fazer uma grande reunião,
na qual deverá anunciar a todos que eu estou louco.

O inconsciente pegou a provação significativa pela qual o homem passou


durante o dia anterior. Repetiu os eventos - as duplas mensagens do pai e a forma
com que o filho lutava para recebê-las - em um novo contexto metafórico. Então, o
‘anúncio do pai’ revela um aspecto da dificuldade que, ao que parece, aludia à
consciência do filho: algo na mensagem do pai o fazia verdadeiramente
133

enlouquecer. Num certo sentido, a luta entre eles evidenciava que um dos dois fosse
louco. De fato, pelas regras do jogo de duplo vínculo, um deles tinha que estar
louco. Qualquer coisa que o pai estivesse tentando elaborar com a sua própria
mensagem psicótica, os estados mutuamente aniquiladores faziam com que o filho
sentisse que estava ficando louco.
Geralmente, as mensagens de duplo vínculo nascem de uma área louca do
projetor, o que torna muito difícil ter o que fazer com aquela pessoa. A relação com a
loucura de outro é, muitas vezes, uma opção inaceitável. Em vez disso, o medo e
sentimentos de impotência se transformam em fúria impotente. Talvez a lição mais
difícil de aprender ao enfrentar um duplo vínculo é que não se pode vencer. É
preciso aprender a sair do campo de batalha sabendo que a própria alma está em
perigo. Às vezes, este ato permite que alguém tenha alguma experiência imaginária
que movimenta o duplo vínculo em outro nível em que desaparece a imposição do
'não prestar atenção’ às mensagens opostas. Em outras ocasiões, se permanece
com a necessidade de reconhecer e afirmar algo que não é bom para mim. A
qualidade de tal resposta aparentemente infantil é, muitas vezes, percebida como
humilhante para uma pessoa enfraquecida pelo impacto do duplo vínculo, que
acredita que ele deve ser um herói e superá-lo. Geralmente, esse heroísmo assume
a forma de uma tentativa de obter o projetor da mensagem de duplo vínculo para
entender como ele está sendo contraditório. Não poderia ser mais inútil.
Nesse caso, um analista, é claro, não saberia como o pai do analisando
realmente era. O analista deve aprender a apoiar a experiência do analisando e não
se identificar com efeitos induzidos, irritantes e confusos de duplo vínculo. Para fazer
isso, o analista deve aprender a respeitar seus próprios limites, que lhes são
impostos por sua própria área psicótica. Por exemplo, dentro dessa experiência
específica, pode-se começar a aprender esses limites, se pudermos processar os
próprios estados mentais e, talvez, a própria experiência com o próprio pai. Outra
pessoa pode ser objetiva, mas o analista não deve acreditar automaticamente que
ele está fazendo isso. Tolerar essa subjetividade é a coisa mais difícil para um
analista que foi traumatizado, porque a reação diante de ser re-traumatizado é a de
lutar, de se retirar ou de tornar-se condescendente. Sustentar-se a si mesmo por
parte do analista, de modo honesto do, ‘as coisas estão assim’, em que sente os
próprios limites e assume a autenticidade e a importância, é um passo necessário,
porém extremamente difícil. O analista pode sentir como se ele se abrisse a si
mesmo para ser ainda mais traumatizado, e muitas vezes, o único aliado parece ser
o poder. Mas a lição que o analista pode aprender em tal processo é apenas o
quanto são tolas e, finalmente, quão impotentes são essas respostas de poder.
O impacto do duplo vínculo é visto mais detalhadamente no seguinte caso de
um homem que teve uma história crônica de seu temperamento e assustou sua
família. Ele nunca conseguiu entender realmente essas erupções, e se sentiu
impotente quando ocorreram. Ele começou a sessão falando sobre como se
machucou jogando futebol. Perguntou-me se eu acreditava em acidentes que
apenas ocorressem, ou se eu acreditava que eles sempre tinham um significando
mais profundo. Fiquei interiormente irritado com a pergunta. Eu não respondi
134

enquanto tentava resolver meus próprios sentimentos. Sua pergunta parecia ser tão
pesada, que me fez sentir um pouco amortecido. Se eu tivesse respondido aos
fatos, - por exemplo, dizendo: "Sim, os acidentes acontecem", ou talvez "Sim, eu
acho que tais eventos, muitas vezes, têm significado", eu teria me sentido vazio e
punitivo. Perguntei-me:

Ele realmente quer me perguntar isso? Ele esteve em análise há anos, e


certamente sabe que tais eventos, muitas vezes, têm um significado simbólico. Ele
está sendo hostil? É por isso que estou com raiva? Parece ser uma análise de
caricatura.

Mas nenhum desses pensamentos captou o sentido do momento. Meu


sentido de sua estranheza aproximou-se do ponto. Finalmente, consegui encontrar
um ponto de aterrissagem na pequena tempestade que a sua pergunta tinha
desencadeado, e quando me desloquei para outro nível perguntando em troca: "O
que isso pode significar?" - ele respondeu: "Talvez, isso significa que eu não deverei
procurar uma nova posição no time”. Com este movimento, a atmosfera normal de
reflexão e separação mudou e prevaleceu um estado mais normal de reflexão e de
separação que não eram fortemente incompatíveis.
A sua afirmação introdutória levou a uma experiência muito suave, mas
durante a sessão seguiram estados muito mais profundos que revelaram como as
áreas de loucura são criadas e podem se esconder sob o aparente comportamento
neurótico da ambivalência e da ansiedade. Especificamente, passada a fase inicial
da sessão, ele colocou o próximo dilema:

Tenho um conflito. Um treinador de futebol está vindo para ensinar-nos, mas


também é meu aniversário e minha esposa fez planos de ir ao teatro e também
planeja jantar em casa antes. Eu me sinto verdadeiramente em conflito. Quando,
inicialmente, eu tinha treinado muito para chegar à minha posição e consegui,
voltando para casa, meu filho disse: "Viva, papai está finalmente de volta com a
gente." Eu me senti terrível. Eu tinha me dedicado às minhas ocupações e os tinha
negligenciado. Estou fazendo a mesma coisa agora?

Enquanto o analisando falava, eu me sentia oscilar entre dois sentimentos.


Por um lado, tendia a pensar: "Por que não colher esta realização importante para si
mesmo e aproveitá-la?" Mas então eu me senti oscilando para um pensamento
oposto: "Sua família e seu filho são importantes, então talvez você devesse ser
menos fanático." Eu senti uma pressão para dizer-lhe algo, especialmente quando
ele disse: “O que eu faço com esse conflito? Parece que eu sou egoísta, como eles
dizem, ainda tenho que treinar três noites por semana”.
Eu poderia ter lidado com diferentes estados, como o amor e o ódio, mudando
assim a sessão para este tipo de nível. Por exemplo, me veio em mente uma ideia
de dizer-lhe “seja homem” e era tão difícil de controlar o desejo de inspirá-lo a
assumir a responsabilidade e não ficar vinculado com as expectativas dos outros.
Mas esses impulsos foram realmente calculados para fazer parar o desconforto que
eu sentia. Tinha algo de estranho me seu modo de me apresentar as coisas e a
135

situação em que me colocou, como se qualquer coisa que eu lhe dissesse, seria
uma maneira de escapar de algo mais fundamental.
Neste ponto, a sessão poderia ter desencadeado em resolução de problemas
ou refletido sobre como se este conflito estivesse relacionado aos problemas iniciais
da sua primeira infância. Eu vaguei novamente em pensamentos sobre suas
grandes dificuldades com a separação de sua mãe e suas experiências igualmente
traumáticas com a aproximação. Veio-me a tentação de ver seu conflito como uma
repetição das velhas feridas que remontavam ao tempo crítico de vida de 2 a 3 anos.
Nós tínhamos lidado com essas questões muitas vezes em nossas sessões, e
recordá-las naquele momento teria sido para escapar de algo muito desconfortável,
e quanto mais me voltava aos meus sentimentos atuais, mais eu me sentia
desconfortável. Tinha um estranho abismo entre o estado mental caracterizado pelo
seu desejo de alienar-se e o seu sentido de culpa para com a família. Primeiramente
este abismo me parecia como um estado sutil, e fui tentado a ignorar a qualidade da
divisão e tomar parte, ora por um, ora por outro lado do estado, procurando conectá-
los entre si. Mas quanto mais eu aceitava o desconforto de não saber o que fazer ou
dizer, tornou-se mais claro que tais estados realmente representavam mundos
diferentes: estados mentais totalmente em oposição um ao outro, cada um
completamente fechado em si e dominando o outro. Assim, se eu tendesse a pensar
em um estado, como o treinamento, e para pedir-lhe que tomasse uma posição
heroica e fosse de encontro às próprias necessidades individuais, um estado
igualmente válido – ou igualmente pouco válido – teria seguramente prevalecido.
Porque entendi que estas mudanças teriam provocado tensão e confusão, escolhi,
em vez disso, lidar apenas com o estado dos mundos opostos. Eu então perguntei
se ele experimentou esses estados da maneira que eu descrevi, e ele ficou aliviado
ao saber que eu tinha consciência do seu processo interno. Esta consciência é
importante porque as pessoas em geral, se envergonham por haver divisão deste
tipo, que às vezes podem ser afastadas, mas que retornam com um efeito
paralisante. No entanto, tendo conseguido essa consciência, o que então se pode
fazer nesses dois mundos?
A sua mente não podia lidar com o conflito. Ele não tinha forças para manter
os opostos, e durante anos, quando se confrontava com dilemas deste gênero, caía
em um turbilhão de fúria impotente, e depois disso, ele se sentia terrivelmente
culpado. Ele parecia estar sendo confrontado com duas escolhas impossíveis, e não
conseguiu reuni-las. Eu me perguntei sobre o papel de sua esposa na criação de
seu estado mental, e novamente perguntei como ela tinha se relacionado com o
conflito entre treinamento e família. Ele disse:

Ela sempre diz que me apoia cem por cento, mas então ela vai e faz um jantar e
planos de teatro na noite anterior ao dia do jogo mais importante. Se a questiono
em relação a isso, ela dirá que estou apenas sendo rígido, e se eu não mantiver a
minha posição, eu nunca mais o farei. Isso parece certo. Porque eu tenho que
treinar até o último minuto? Por que eu sou tão compulsivo? Mas, eu sinto que
estou fazendo a coisa certa. No entanto, ela me explica com muita compreensão
psicológica. Assim, eu sinto que devo relaxar, ser menos tenso, ainda assim eu
136

também sinto-me chateado com isso e não posso pensar com clareza. Torno-me
confuso e zangado e sei que isso não está certo. Eu sou um desastre!

Perguntei-lhe, então, o que teria acontecido se ele tivesse falado com sua
mulher sobre o processo que estava atravessando. Por exemplo, perguntei por que
não fazê-la perceber que ela apoia totalmente o treinamento, mas também faz um
enorme jantar e outros planos para a noite em que chega o treinador? Perguntei
ainda como a esposa do analisando responderia à sua explicação em que ele se
sentiu em um duplo vínculo, e especificamente, se ela reconheceria ser parte desse
processo. Ele riu, explicando que não havia chance de que ela reconhecesse o
próprio papel. Ela só lhe dizia que ele estava ficando louco e que, de jeito nenhum,
ela estava transmitindo uma dupla mensagem. Não, ela realmente se importava com
seu treinamento, mas certamente seu jantar de aniversário também era importante,
e era somente a sua rigidez a responsável por criar problemas.
Ele sentia-se realmente preso. O que poderia fazer com a fúria assassina que
sentia? Eu reforcei a sua atenção sobre os opostos que estava vivendo, os
antimundos, e decidi experimentar uma abordagem diferente. Claramente, como ele
não conseguiu processar o duplo vínculo com sua esposa, era necessário superar
isso, movendo a análise para um nível diferente. Nesse caso, este movimento foi
facilitado pela reflexão sobre o paralelo mitológico de Sisiutl dos índios Kwakiutl que
amplificaram o conflito que ele estava experimentando.
Eu não tinha certeza se a narração do mito ajudou a ele ou a mim, mas
quebrei o feitiço do duplo vínculo, e uma solução começou a aparecer. Ele não
conseguiu encontrá-la sozinho e eu sugeri que poderia dizer para sua esposa que
ele havia decidido o que ele queria para o seu aniversário. Ele disse:

O que eu quero fazer é ir ao treinamento, e tu e a tua família poderiam comer


sozinhos. Quando eu voltar para casa, eu gostaria que você me acolhesse,
apreciasse o que eu fiz e me desse o seu apoio. Então poderíamos ir a algum
lugar.

Esta abordagem era óbvia uma vez que tinha sido formulada. Ele não
conseguiu desconstruir o duplo vínculo, mas poderia ganhar alguma força da Sisiutl
interior, a força que ele nunca sentiu quando ficou enfurecido e impotente e desviou
o controle, e agora poderia simplesmente afirmar o que desejava em termos
completamente diferentes dos dela. Ele foi capaz de encarnar a sugestão, e
funcionou o suficiente para superar o conflito sobre o que ele iria fazer. Então,
aquela noite ele teve o seguinte sonho:

Duas tribos primitivas estão em guerra. Um chefe está falando com um xamã.
Disse-lhe que a sua tribo não tem a supremacia tecnológica de seu oponente, que
não pode competir com eles e que perderão. Mas o xamã lhe diz que ele tem os
feitiços certos para empregar, e que com estes vencerá a sua batalha.

Eu acho que o seu inconsciente tenha representado a minha utilização do


mito, neste caso, como um estratagema xamânico, mas um estratagema que agia
para confrontar o armamento de sua mulher sobre as conversas psicológicas, que
137

normalmente o havia submetido. A ‘fórmula mágica’ que tinham encontrado era a


simples afirmação daquilo que ele desejava: mas, muitas vezes, diante da loucura, a
sua e a dos outros, simples afirmações do gênero são quase impossíveis de
alcançar.
No mito de Sisiutl, tomando o ato das duas cabeças, leva à Verdade e à
aquisição de poder que somente pode ser comparado ao processo do Self. Possui-
se um Self, sem possuí-lo. Vê-se o caos e um milagre de ordem dentro do caos;
então tal ordem desaparece e se reconstitui de um modo novo. O analista não pode
permanecer agarrado aos próprios pensamentos de maneira sólida. Uma espécie de
humildade nesse processo favorece a aparição do Self, e o processo caótico ou
louco que precede essa experiência pode então ser transformador em vez de limitar
o crescimento. Como que Sisiutl provocava essas mudanças, e como o deus grego
Dionísio fazia a mesma coisa por aqueles que respeitavam seu poder de induzir a
loucura, assim as partes loucas da nossa psique podem se tornar as organizadoras
mais significativas de uma nova atitude para com a vida.
Assim, a loucura, especialmente como o núcleo psicótico, faz parte da prima
materia alquímica. Sem essas partes, e especialmente se não soubermos como
somos limitados pela loucura de alguém, o mistério central do processo alquímico, a
coniunctio, torna-se perigoso em vez de melhorar a vida. De fato, por esta
experiência de união central, deve viver em um corpo sutil de relações em si
mesmas. A nossa loucura rejeita essa condição e insiste em uma literalização - uma
atuação da imagem da coniunctio - ou uma rejeição absoluta evitando o poder desta
condição. Mas as nossas instâncias loucas são mais do que uma condição de limite;
elas também são uma fonte de vida que foi profundamente reprimida pelas forças
culturais e pessoais. E uma fonte de dissolução de estruturas que nunca permitiriam
que uma experiência do numinosum se tornasse uma realidade interior.
Enquanto constante ameaça de destruição do que deve ser preservado, o
caos da loucura foi sempre uma característica central da arte alquímica e, muitas
vezes, um fator para sua ignição. A fumaça da fonte mercurial enche a parte de cima
do vaso hermeticum, o recipiente misterioso, e as energias do tipo dionisíaco
preenchem a parte inferior. Juntas, elas são as mesmas: uma é a experiência do
numinosum do ponto de vista do inconsciente psíquico, e a outra, do ponto de vista
do inconsciente somático. Portanto, as forças superiores e inferiores são idênticas e,
juntas, formam a prima materia.
138

O MISTÉRIO CENTRAL DO PROCESSO ALQUÍMICO

A PARTE SOMBRIA DA CONIUNCTIO

Os alquimistas registraram suas teorias sobre a prima materia não como


constructos evolutivos, mas como representações do mito. As dinâmicas centrais da
prima materia são encarnadas no mito antigo e duradouro de Átis e Cibele. A fusão
amedrontadora retratada no mito de Átis e Cibele leva à nigredo que antecede a
coniunctio, e esta nigredo pode ser extremamente perigosa. O mito de Átis e Cibele
é sempre um lado sombrio da coniunctio e enfrentar esta forma fundida e
assustadora do estado da união é a condição sine qua non para a eventual
aceitação final e o confronto com a paixão no estado de rubedo da opus alquímica.
O mito de Átis e Cibele faz parte de uma trama que percorre toda a cultura ocidental,
e representa um estado mental e corporal que nunca foi abordado adequadamente.
A abordagem alquímica é a tentativa mais detalhada e mais séria dos últimos dois
mil anos para integrar as forças apresentadas pelo mito.
Cibele é a Grande Mãe dos deuses e dos homens, e Átis é tanto seu filho,
quanto seu amante. Sua relação intensamente fundida e apaixonada é caracterizada
não apenas por amor profundo e ciúmes, mas também por vingança, traição e
loucura. Cibele e Átis estão vinculados por um amor recíproco, violento e
apaixonado. Todavia, uma força igualmente forte, também os separa, uma força que
se expressa nas várias maneiras pelas quais Átis tenta libertar o vínculo com sua
mãe/amante. Nas muitas variações desta história, Átis geralmente morre -
desnecessariamente, ao contrário de outros deuses que morrem, como Dionísio – e
não emergiu nenhuma solução da luta elementar promulgada por Cibele e Átis. Átis,
às vezes, foi assassinado em uma caçada, às vezes enforcado de uma árvore, e em
outras vezes enlouqueceu. E Átis, ou alguém associado a ele, geralmente foi
castrado. Os sacrifícios de castração, de fato, já foram a marca das festividades
extáticas dedicadas à Cibele nos tempos antigos.
As dinâmicas do mito mãe-filho em suas várias expressões terríveis foram,
particularmente, identificadas por Jung como representações das qualidades da
prima materia na alquimia. Embora o mito possa ser visto como as vicissitudes da
adolescência, como a própria prima materia, é mais fundamentalmente uma
representação dos mais prolongados e angustiantes problemas com os quais
lidamos durante toda a nossa vida. Mais especificamente, o mito Átis-Cibele explora
as qualidades da prima materia e envolve a natureza das relações em seus
aspectos vitais e turbulentos quando as energias estão em movimento (Átis) no meio
de fortes e vinculativas forças contrárias (Cibele). O mito aborda as questões que
todos enfrentamos, individualmente, nas nossas interações com os outros e, ao
mesmo tempo, documenta essencialmente o nível do desenvolvimento da
consciência com o qual a humanidade lutou até agora.
139

Neste mito, o filho representa a natureza expansiva, exploratória e separadora


da psique que se mantém na esfera magnética das forças inconscientes,
representadas pela mãe. O mito é a afirmação de uma paixão impossível – um amor
que não pode existir, nem não existir. Ele representa uma imagem de separações
trágicas e fracassadas e de estados igualmente trágicos de fusão ou de conexão.
Referindo-se a um homem ou a uma mulher, estas dinâmicas evidenciam uma
característica central da prima materia alquímica.
Um homem ou uma mulher jamais se separam da Grande Mãe sem a
integração do seu ‘lado sombrio’. Mas essa sombra, especialmente quando está
embutida nos aspectos da raiva e do sadismo do caráter narcísico – que emerge
automaticamente em qualquer confronto - pode ser usada para suprimir, em vez de
integrar a sua sabedoria e a sua vida ctônica. A alquimia abordou o mistério e a
importância da vida ctônica, não pela superação heroica, mas por relacionar-se ao
mistério central da união. Assim sendo, uma compreensão do mito Átis-Cibele
desempenha um papel vital na abordagem deste mistério central da união. Como os
alquimistas sabiam, qualquer estado de união era seguido por uma morte, a nigredo.
A grande sabedoria no processo de encarnação da alquimia é que as sequências de
união e morte são o processo com o qual a prima materia é refinada em um Self
encarnado, o lápis.
Em uma das histórias de Átis, ele nasce de forma milagrosa. Em um
arremesso de amor, Zeus se aproxima da rocha Agdos, disfarçado de Rainha
(Cibele). Mas ela o rejeita e na luta que travam, derrama um pouco do seu esperma
sobre a rocha. A rocha concebeu o esperma divino, e nasceu uma criatura
terrivelmente selvagem e andrógina chamada pelo nome de Agdistis. Esta
hermafrodita constitui um perigo tanto para os deuses, quanto para os humanos,
porque pode se multiplicar sem o auxílio dos outros; então, os deuses deveriam agir.
Eles rejeitam um assalto abertamente assassino e, em vez disso, invocam a
cooperação de Dionísio. Eles sabiam que Agdistis tinha o hábito de ir saciar a sua
sede, então pediram a Dionísio para que misturasse vinho na água da nascente.

Enquanto o bruto estava dormindo, Dionísio, sóbrio, vai escondido dele e com um
cordão robusto amarra os órgãos genitais de Agdistis em uma árvore. Ao acordar,
Agdistis 'se priva do que lhe tornava um homem (Vermaseren,1977, 91).

Do seu sangue nasce uma árvore. Quando a filha do rei, Nana, passa por lá,
fica surpreendida pela beleza do fruto da árvore. Ela escolhe alguns e coloca-os em
seu colo. De repente, uma das frutas desaparece e Nana fica grávida. Seu pai,
Sangarios (nome também de um rio da Frígia), quer assassinar a filha para evitar a
desonra. Mas a deusa intervém e organiza o nascimento prematuro de Átis. A
criança é abandonada, mantida viva por uma cabra e criada pelos pastores. Ao
crescer, se torna um pastor muito atraente que nem mesmo a poderosa Mãe dos
Deuses consegue resistir.
Nesta história, a paixão desenfreada na forma de Zeus leva a uma estrutura
destrutiva do Self, a hermafrodita Agdistis, que na realidade, é uma forma de Cibele.
Em outras palavras, a paixão leva-a diretamente ao aspecto destrutivo da deusa, à
140

fusão total e à impossibilidade de qualquer relação objetal. Uma hermafrodita


positiva é uma representação de uma união de opostos, uma conjunção, ou a
‘terceira coisa’. Mas na história da paixão desenfreada de Zeus, a hermafrodita é o
resultado de uma união forçada, de um estupro ou incesto, e, portanto, é uma
monstruosidade. Na hermafrodita negativa, os opostos não se conjugam em um
terceiro, mas permanecem em uma condição excêntrica, um estado de fusão que
nega o significado e favorece a concretização dos afetos. A paixão sob a forma de
Agdistis, leva à retirada e à negação de Eros. Na história, os deuses espirituais
intervêm. Do mesmo modo, do ponto de vista psicológico, qualquer pessoa que
encontre as intensas energias da paixão deve fazer o esforço mental-espiritual de
restrição para evitar as reações destrutivas que certamente emergem quando a
paixão é colocada em prática de forma suspeita. Esta restrição inclui reconhecer e
submeter-se ao poder e ao valor da própria loucura, e requer que se saiba até que
ponto estas áreas são limitantes, como faziam os antigos gregos quando
celebravam o deus Dionísio. E, a partir desta restrição, surge um novo ciclo: nasce o
Átis.
Psicologicamente, é possível usar este mito como um guia para as próprias
experiências em relação aos outros. Uma pessoa pode reconhecer os aspectos de
Agdistis, na sua falta de relação e insensibilidade aos outros. A paixão de Zeus pode
ser reconhecida nos sentimentos indisciplinados ou indiscriminados que clamam por
satisfação, e o aspecto Átis de uma pessoa é aquela parte que procura encontrar
uma auto-identidade pessoal no amor pelos outros. Internamente, sofremos as
dinâmicas retratadas no mito Átis-Cibele, e no processo pode emergir a consciência
de uma atitude espiritual para a prima materia. O caminho alquímico ensina que se
pode adquirir um sentido e uma estrutura interna que pode levar a experimentar
tanto a inibição criativa, quanto a criatividade da paixão, com a plena consciência da
sua natureza potencialmente destrutiva.
A morte de Átis vem sempre após um casamento: ou a deusa mata seu
amado, e ele morre através de uma automutilação, ou então, ele é assassinado
enquanto procura um javali, símbolo do lado mais escuro da deusa. Na linguagem
alquímica, esta morte é a nigredo, o sofrimento sombrio que sempre segue a
experiência da coniunctio.
Outra versão do mito, apresentada por Ovídio na sua obra, Fastos, mostra
que Cibele ama o belo pastor que deve prometer fidelidade eterna a ela. Quando ele
cai sobre o encanto irresistível de uma ninfa, a mão vingadora da deusa o atinge: a
ninfa Sangarite (filha do rio Sangarios) é assassinada e Átis fica louco. Obcecado
por alucinações e convencido de estar sendo perseguido pelos Erínios, ele se priva
das partes de seu corpo que foram a causa de sua infidelidade. Do seu sangue
brotam flores, e ele mesmo foi transformado em um pinheiro (Vermaseren, 1977, 91-
92).
A conexão entre este mito e a loucura se mostra central para qualquer
desenvolvimento concluído, tanto a separação, quanto o respeito pela deusa.
Simbolicamente falando, é preciso morrer para se desenvolver de modo que possa
lidar com a paixão da união e com as reações devastadoras que se seguem. Assim
141

como Narciso – aquele que se opõe ao sofrimento e à mudança - morre e se torna


uma flor, que por sua vez, leva aos mistérios de redenção de Eleusis, então a morte
de Átis conduz a um ritual de transformação. Esse mistério da nigredo está muito
distante da nossa consciência patriarcal que valoriza e aprecia a solidez, a
estabilidade, a constância e a força. Para muitos, é um percurso longo e árduo,
mesmo que apenas se comece a apreciar a sabedoria desse caminho diferente, o
caminho da união e da morte.
A vingança de Cibele quando Átis a traiu, relacionando-se com outra mulher é
um tema recorrente no mito. As festividades criadas em homenagem a Átis
consistem em Tristia, a comemoração da tristeza, e de Hilaria, as festas de alegria
pela sua ressurreição, muitas vezes parcial. Seguindo seu exemplo, os sacerdotes
da Átis se dedicaram inteiramente à deusa, submetendo-se ao seu poder e
majestade. Quando alguém entrava em seu culto, era iniciado a se tornar um
escravo sagrado sem qualquer esperança de liberdade. Em troca, acreditava-se que
a deusa estendesse as próprias mãos sobre seus escravos para protegê-los
(Vermaseren, 1977, 92).
Essa maneira incrivelmente regressiva de lidar com o poder de Cibele
representa uma forte pulsão psíquica. Homens e mulheres ainda se castram
psicologicamente, embora de forma aparentemente modesta, para evitar as amarras
que temem ser inevitável, caso tomem o próprio poder e a própria autoridade. De
modo geral, a noção de ser ferida pela interação complexa de estados de união, ou
de tentativas de união, e as amarras de desordem e o desespero que se seguem,
desempenha um papel central na alquimia. A cura para os indivíduos castrados,
descoberta pelos alquimistas é fornecida através de uma substância chamada
'bálsamo' (Jung, Obras, vol. 14, p. 665). Esta medicação de cura, que purifica da
fusão incestuosa e do impulso à ação das tendências, é criada através do sofrimento
consciente de numerosos ciclos de coniunctio-nigredo. Mas o mito Átis-Cibele
representa sempre um lado escuro, da sombra da experiência de união, e o mito
constitui a estrutura arquetípica que molda as muitas facetas da nigredo após a
experiência de coniunctio.
A narração de Ovídio sobre o mito Átis-Cibele explica o rito da castração dos
sacerdotes de Cibele. Mas o mito contém a questão principal da ‘paixão impossível’
que nunca é resolvida. Na obra, Fastos de Ovídio, Átis quebra seu voto, e Cibele se
vinga, matando a ninfa Sangarios. E, em meio à sua automutilação ele grita como
alguém oprimido pela sua culpa: "Eu merecia isso! Com o meu sangue, pago a pena
que mereço" (Frazer, 1989, 205-06).

A culpa e a loucura descritas no mito de Átis e Cibele são os estados mentais


profundamente escondidos na vida psíquica da maioria das pessoas. Mas esses
estados e o padrão a eles associado que exclui as possibilidades de experimentar
criativamente os estados de fusão e separação, podem também ser uma qualidade
de um campo interativo. Duas pessoas que vivenciam o campo podem chegar
ambas à consciência de um estado de fusão impossível e à sua transformação em
formas de união menos destrutivas e mais criativas.
142

DINÂMICAS DE FUSÃO E DE SEPARAÇÃO NO CAMPO INTERATIVO

Num primeiro olhar, pode parecer que o mito de Átis e Cibele, sobretudo
porque retrata o filho-amante da grande deusa, representa os esforços de separação
do mundo materno, e especialmente a separação dos machos de suas mães. Nesta
perspectiva limitada, tanto a deusa mãe, quanto uma mulher real são vistas como
perigosas para um homem que deve desenvolver a capacidade de se separar.
Quando as energias do mito são interpretadas dessa maneira em um homem, ele
tende a relegar as mulheres a uma função limitada: elas deveriam ser qualquer
coisa, exceto Cibele. Equivale a dizer que deveriam ser compreensivas, amorosas,
doadoras, mas não pessoas com suas próprias necessidades e padrões de
existência. Este tipo de visão concreta do mito reduz o seu significando, com um alto
custo para ambos os sexos.
De modo mais produtivo, pode-se entender que este mito representa tanto um
drama intra-subjetivo, quanto às vicissitudes dos estados de união entre duas
pessoas. O gênero não limita a aplicabilidade do mito a uma relação qualquer; tanto
o macho ou a fêmea podem fazer a experiência das dinâmicas que o mito Átis-
Cibele apresenta como um drama intra-subjetivo. Um homem fará a experiência da
própria consciência e da capacidade de penetrar e desvelar novas habilidades
psíquicas, como se a sua consciência estivesse presa em outra força que impedisse
tais descobertas. Ele pode projetar essa força sobre a mulher, ou pode experimentá-
la como um conflito interno, o que naturalmente é preferível. Uma busca agressiva e
atos novos ou independentes desencadeiam a ansiedade, porque implica em deixar
o mundo da fantasia das eternas possibilidades. Além disso, em um nível intra-
subjetivo, ele experimentará a separação como medo de tornar-se abandonado em
uma relação. Uma mulher, no controle desse tipo de complexo de Átis-Cibele,
experimentará um campo intra-subjetivo semelhante. Uma força interna, que é
experimentada como ‘outra’, obriga-a a se envolver e a se fundir com os outros. O
próprio desejo de separação e autonomia e a própria capacidade ativa de separação
são terrivelmente impedidas porque as pulsões de individuação são ‘semelhantes a
Átis’. A cultura dominada pelo masculino quer que o aspecto Cibele da mulher seja
controlado. Mas o fator Cibele também pode encontrar-se nos homens e
especialmente em seus lados femininos, nos seus estados de humor irracional que
eles podem projetar nas mulheres. E uma mulher pode projetar sobre um homem o
seu lado Átis não desenvolvido e assustador. Ambos se manterão secretamente no
desprezo mútuo. Então, a mulher, em certo sentido, torna-se como uma Cibele para
o homem, e ele como um Átis para ela. O mito é projetado para fora e torna-se
especialmente destrutivo.
Outra possibilidade, mais alinhada com o modo de pensar alquímico, é a que
consiste em considerar que a díade Átis-Cibele domina, como uma força de campo,
o modo de interagir de um casal, como se outro casal invisível dominasse a
interação consciente. Esse casal invisível e inconsciente é, naturalmente, aquele de
Átis e Cibele. Esta díade cria um campo que duas pessoas podem participar no
143

sentido de serem movidos por suas correntes de energia e pelo seu modelo
intrínseco de comportamento. Eles experimentam este campo como um vaso
hermeticum, isto é, como um espaço que as contém, mas que contém também as
relações objetais observáveis como uma ‘terceira coisa’ entre eles. A forma primitiva
do campo Átis-Cibele, como evidenciado no mito, tende para a fusão e para a
literalização, uma forma de atuar ou concretizar os afetos e os sentimentos de
desejo. A partir deste campo, as pessoas realizam abordagens sexuais
inadequadas, ou fazem promessas que não são realistas em seu melhor interesse.
Alquimicamente, este campo é representado por uma hermafrodita negativa ou por
um dragão.
Esta forma primitiva, literalizada do mito está em oposição à ‘terceira coisa’
experimentada como um ‘outro’, com as suas próprias dinâmicas ligadas às
projeções e à imaginação de ambas as pessoas. Uma experiência semelhante da
‘terceira coisa’ acontece quando ambas as partes sentem o mistério a que
pertencem e estão dispostos a experimentar o estado de fusão sem literalizá-lo,
conquistando, assim, um novo nível de intimidade que também pode ser
internalizada como intimidade para consigo mesmo. Alquimicamente, esta condição
é retratada por um casal consciente em coito, mostrado na décima primeira imagem
do Rosarium, deitado sobre as águas e dotada de asas (Fig. 21). Os alquimistas
trabalharam sobre tais campos para transformá-los de uma dinâmica de fusão
dominante (em que uma pessoa teme ou está sobrecarregada pelas emoções da
outra) em um campo que possui uma dinâmica rítmica de separação e fusão, em
que nenhuma polaridade leva vantagem sobre a outra. O famoso ditado alquímico
de ‘matar o dragão’ representa este tipo de transformação. O objetivo desta
transformação era o lápis, aquela estrutura do Self, cujo ritmo de base consistia na
coniunctio purificada de todas as dinâmicas negativas de fusão, bem como, o seu
outro lado, o distanciamento sem alma.
O desejo, com sua qualidade poderosa e compulsiva, é o elemento mais
dominante que impede a purificação do campo Átis-Cibele. A qualidade esmagadora
compulsiva do campo adormece a consciência e induz todas as outras faculdades
em uma fusão com o objeto. Em seu estado transformado - a transformação
expressa em uma imagem alquímica do corte das pernas de um leão – o desejo é o
ingrediente chave. É o fogo que conduz o processo. O psicanalista francês Luce
Irigaray nos oferece um profundo insight do desejo e do espaço ou ‘intervalo’ em que
a união pode ser experimentada, quando afirma:

O desejo ocupa ou designa o intervalo. Uma definição permanente de desejo


acabaria com o desejo. O desejo requer uma sensação de atração: uma mudança
no intervalo ou nas relações de proximidade ou distanciamento entre o sujeito e o
objeto (1987, 120).

Tratando sobre o tema do desejo, ela fala eloquentemente das dinâmicas do


estado de união, sem fusão, a coniunctio. Irigaray observa que, se existe um ‘duplo
desejo’, isto é, se um homem e uma mulher são capazes, de desejar e de ser
desejados, então:
144

os pólos positivos e negativos se dividem entre os dois sexos (...) criando um elo
ou um duplo ciclo em que cada um pode mover-se para o outro e voltar para si (...)
A fim de manter a distância, não se deve, talvez, saber, como se comportar?
Como falar? No final se chega à mesma coisa. Talvez a capacidade de comportar-
se requer um espaço ou um receptáculo permanente, talvez, uma alma ou uma
mente? (1987, 121).

Reconhecendo que a coniunctio não está isenta de perigos, Irigaray continua:

O sujeito que oferece ou permite o desejo, transporta o outro e assim o envolve ou


o incorpora. Além disso, é perigoso se não houver um terceiro elemento. Não
apenas porque é uma limitação necessária. Este terceiro elemento pode se
apresentar na pessoa que contém a relação desta última com os próprios limites:
uma relação com o divino, com a morte, com a ordem social ou cósmica. Se esse
terceiro elemento não existir na e para a pessoa, esta última pode se tornar
onipotente (1987, 123).

Nas primeiras quatro xilografias do Rosarium Philosophorum (ver Fig. 4, 9, 10,


11), encontramos esse ‘terceiro elemento’ como o Espírito Santo descendente. Mais
adiante, é a própria coniunctio a se formar e a tornar-se o terceiro elemento, pois
internalizou os ritmos de separação e proximidade. Mas a fusão, o colapso da
distância e do intervalo, continua sendo um ameaça constante.
A décima sétima xilografia (Fig. 27) apresenta uma descrição simbólica
retratando a superação final dos estados de fusão negativos. Todas as xilografias
que vêm após a quinta, abordam a questão de transformar posteriormente a
coniunctio em uma forma contenedora-contida que exclui a consumação do desejo
como seu objetivo principal. Esta forma de coniunctio significa a harmonia entre as
polaridades masculinas e femininas
A Turba Philosophorum, um texto alquímico escrito por volta de 1300,
representa uma forma particularmente fundida e perigosa de coniunctio,
reminiscente do mito de Átis-Cibele. Uma das imagens da Turba mostra um estado
de fusão que ocorre entre uma mulher e um dragão (Fig. 6). A mulher representa a
grande deusa, e o dragão, as pulsões arcaicas dos estados de fusão, pulsões que
dominam qualquer sentido de um ‘intervalo criativo’ entre as pessoas, através das
quais a paixão pode conter um mistério, em vez de um resultado de ação imediata.
O texto da Turba possui a seguinte formulação enigmática:

No entanto, os filósofos mataram a mulher que mata os seus maridos; de fato, o


corpo da mulher está cheio de armas e veneno. Escavai, pois, uma tumba para
aquele dragão, sepultando junto com ele a mulher, que acorrentado firmemente a
ela, quanto mais se aperta e se enrola em volta dela, tanto mais serão cortadas
pelas armas femininas que são formadas no corpo da mulher. E quando, porém,
ele se vê que está misturado com os membros da mulher, morrerá na certa e será
completamente transformado em sangue. Quando, porém, os filósofos o vêem
transformar em sangue, deixam exposto ao sol por alguns dias, até que sua
fraqueza seja consumada e o sangue seque, e eles possam encontrar aquele
veneno. Aparecerá, então, o vento2 escondido (Jung, Obras, vol. 14, p. 26).

2
O vento é o pneuma oculto na prima matéria.
145

Na primeira frase deste texto enigmático, o alquimista está sugerindo que


ocorreu processo anterior, antes que a mulher e o dragão fossem acorrentados.
‘Matar a mulher’ significa que foi superada ativamente a tendência de destruir a
coniunctio e tal tendência foi vencida. Sempre que alguém envolve uma pessoa que,
no passado, teve uma terrível experiência com atos sexuais ou agressivos, em
particular, violação incestuosa se encontrará uma forte resistência à formação de
qualquer estado de união. Por exemplo, um analisando sonhava que um homem e
uma mulher se casavam, mas estava fazendo de tudo para interromper o
casamento, até o ponto de jogar ovos neles. O casamento representava a sua
conexão inconsciente comigo, a transferência analítica. Seu comportamento, no
sonho, indica o quão forte é a sua resistência para estabelecer uma conexão
comigo. Inconscientemente, ele estava disposto a sacrificar sua possessão mais
preciosa - os ovos, símbolo da sua criatividade e de seu desenvolvimento futuro –
com a finalidade de interromper o desenvolvimento de um estado de campo de
união comigo. Na análise, estas questões devem ser reconhecidas e ativamente
comparadas com a interpretação. Tanto a resistência do analista a um estado de
união, - que também pode acontecer, - quanto a do analisando, ambos requerem um
confronto para que o processo possa continuar. O desejo de uma das pessoas de
permanecer inconsciente pode ser representado pela ‘mulher que mata seus
maridos’, isto é, destrói a pulsão ativa para a união.
Às vezes, os textos alquímicos têm repetidas injunções que atuam como
dispositivos para superar a resistência à coniunctio. Por exemplo, nas cartilhas da
terceira xilografia do Rosarium Philosophorum, chamada 'a verdade nua’ (Fig. 10), o
Sol diz: 'Oh Lua, deixe-me ser seu marido', e a Lua diz: 'Oh Sol, devo lhe obedecer’
(Jung, Obras, vol. 16, p. 244). A repetição e a naturalidade da função da metáfora
funcionam para estimular o ato, ‘psicologizando’ a si mesmo para lidar com a
relutância de se envolver em uma atividade potencialmente dolorosa.

É preciso aprender como entrar e sair do campo de união; e até que não se
adquiriu experiência suficiente para lidar com a área, ou não se entra por nada e se
permanece narcisicamente isolado, ou tenta entrar e é imediatamente engolida pelas
energias magnéticas do campo e fundida com elas. Todo o empreendimento é
extremamente doloroso, pois se abrem feridas antigas, colocando sal no decorrer do
processo. Mas se encontra o próprio caminho apenas através de excursões
repetidas nesse território, e através da reabertura de feridas suturadas para que
possam, com o tempo, curar corretamente.
A imagem da Turba é um exemplo de uma qualidade extremamente fundida
da coniunctio que conduz à transformação do dragão, a qualidade compulsiva de
concretização/divisão da qualidade da psique. A mulher foi assassinada pelo
‘Filósofo’ isto é, pelo alquimista. Ele matou o desejo de se retirar para a
inconsciência e também o desejo de destruir a união dentro de si ou do seu metal.
Tendo morrido, ela agora está transformada. Ela está acorrentada ao dragão que
representa tanto a tendência para a fusão, quanto a tendência de fugir da
experiência de campo. Esta imagem arcaica da qualidade do campo interativo
146

perece ‘semelhante à morte’. Cada um que faz essa experiência interativa do campo
pode sentir-se como se estivesse em uma sepultura, sempre sob a vantagem de ser
devorado pela morte da inconsciência. Este estado extremamente enervante desafia
constantemente a confiança do indivíduo. Neste estado, as ‘armas e o veneno’ estão
sempre prontos para reaparecer, o que significa que se sente em perigo e se tenta
buscar alívio através da dissociação do perigo de ataque que se percebe. Tratando-
se do perigo de ser acometido pelo ódio, pela raiva ou pela inveja, nesta experiência
de campo se está sempre no fio da navalha. Quase todos têm áreas de trauma em
suas estruturas da própria personalidade, e todos, portanto, têm reações quase
instintivas para evitar ser re-traumatizadas. Retroceder para a inconsciência através
da retirada ou dissociação é um meio ponto para evitar a re-traumatização. Muitas
vezes, a regressão deve ser evitada, e assim o dragão está acorrentado à mulher.
Esta imagem representa um envolvimento com o processo.
O assassinato do dragão significa que começou a transformação do impulso
para concretizar a paixão ou o oposto, para fugir dos estados de fusão. O ponto de
transformação ocorre quando o dragão é ‘transformado inteiramente em sangue’.
Em outras palavras, ele se torna uma tintura sentida como paixão, mas a tintura
ainda não é utilizável, ainda não é segura. Necessita ser feito algo a mais, e 'deixá-lo
alguns dias no sol, até que sua suavidade seja consumida, e o sangue seque e eles
encontram esse veneno’ (Jung, Obras, vol. 14, p. 26).
A ênfase é após a secagem, o que significa que toda inconsciência deve ser
exposta - sendo a água representativa de inconsciência. Esta tarefa desafiante
solicitará de qualquer um, até o limite, enquanto requer que se faça a experiência de
tais estados amedrontadores de fusão e se saia modificado por eles enquanto
experimenta a tentação de recair na inconsciência - o veneno - de modo que ou se
funde com as energias do campo que conduz ao acting out, ou então, se separa da
experiência. Mas se for bem sucedido, aparece o ‘vento escondido’. Em outras
palavras, uma maior experiência espiritual surge do devastador campo de fusão.
Este aspecto da Turba (como toda a passagem) não é simplesmente uma
imaginação fantástica, mas uma metáfora de uma experiência real. Pode-se fazer a
experiência de ser quase devorado pelos estados de paixão, sejam de ódio ou amor;
e, ao mesmo tempo, pode-se experimentar o campo que, continuamente quase
mata qualquer conexão, com o resultado de desejar simplesmente evitar toda a
provação. A última coisa que se espera é que tudo isso tenha um propósito espiritual
escondido. No entanto, isso é exatamente o que pode acontecer.
Assim, a Turba, um dos textos alquímicos conhecidos mais antigos, pode ser
visto como a descrição de uma forma perigosa da prima materia semelhante à
descrita no mito Átis-Cibele. O dragão é o componente Átis que é transformado com
sucesso, assim como é a mulher, Cibele, de modo que emerge uma orientação
espiritual.
O vento escondido é a atitude espiritual que é necessária se alguém deve
lidar com o impossível dilema de fusão-distanciamento que caracterizou a prima
materia no mito de Átis-Cibele. Na Turba, como na alquimia em geral, o vento, o
espírito, sai da matéria - no décimo primeiro quadro do Splendor Solis (Fia 7). O
147

espírito não é imposto ao processo de transformação como um conjunto de regras


ou ditames éticos. Mas como os alquimistas insistem que é preciso o ouro para
produzir o ouro, claramente algo dessa atitude espiritual também deve existir antes
que se possa lidar com formas tão horripilantes da coniunctio (Jung, Obras. vol. 14,
p. 26).

ABORDAGENS HEROICAS PARA OS ESTADOS DESTRUTIVOS DE FUSÃO

O mito Átis-Cibele, e com ele as formas terríveis da Grande Deusa que ele
encarna foram realmente um problema para a humanidade à medida que evoluiu a
partir da cultura neolítica através da Idade do Bronze. O ‘vento escondido’ realmente
se mostrou muito escondido, e a qualidade devoradora do inconsciente, simbolizada
pelos aspectos destrutivos de Cibele, superou qualquer potencial para o
desenvolvimento da consciência. O Antigo Testamento e a religião patriarcal de
Israel nasceram naquele período (cerca de 1200 a.C.) quando a Grande Deusa tinha
uma forma extremamente destrutiva. Esta nova religião monoteísta se baseava
sobre as experiências do numinosum. Mas, aparentemente, era impossível para a
emergente religião patriarcal utilizar essa visão para se relacionar com os mistérios
da união, o hieros gamos. Esse era o centro religioso dos cultos da Grande Deusa.
O impulso obscuro e regressivo do inconsciente era muito forte; não tinha ‘vento’ o
suficiente que pudesse relacionar-se com o tipo mais antigo de visão e com os
mistérios da união. Em vez disso, o deus do Antigo Testamento, Yawheh, cuja forma
simbólica era, entre outras, a ruach, o vento, foi criado no contexto da supressão do
culto da Grande Deusa, fazendo dela um objeto de desprezo, escárnio e ódio.
Era necessário, essencialmente, matar Cibele, para reprimi-la totalmente, de
modo que um ego patriarcal, com base no desejo de ordenar a natureza, pudesse
surgir? Em Símbolos da Transformação, Jung considera o aspecto positivo da libido
instintiva e explica que o sacrifício é visto mais claramente na lenda cultural de Átis.
Jung considera o motivo da libido instintiva, e explica o sacrifício é visto mais
claramente na lenda cultural de Átis, o amante-filho da mãe dos deuses de Agdistis-
Cibele.

Tornado demente pela mãe desesperada em loucura, incendiado de amor por ela,
ele se castrou sob um pinheiro, árvore que tinha desempenhado um papel
importante em seu culto; uma vez por ano um pinheiro era enfeitado com
guirlandas, dependurando-se nele uma efígie de Átis-Cibele e, portanto, ele foi
espancado. Cibele então pegou o pinheiro, levou-o para a caverna e chorou sobre
ele. Neste contexto, a árvore, obviamente significa o filho; de acordo com outra
versão, Átis foi, na verdade, transformada em um pinheiro, que a mãe Cibele leva
de volta à sua caverna, o que quer dizer, o útero materno. Ao mesmo tempo, a
árvore também tem um significado materno, a união do filho ou a efígie na árvore
mãe e filho (...). O corte do pinheiro corresponde à castração e é uma
reminiscência direta disso. Nesse caso, a árvore teria, mais do que qualquer coisa,
significando fálico. Mas uma vez que a árvore significativa principalmente a mãe, a
sua queda tem o significado de um sacrifício da mãe. É possível desembaraçar
essa intrincada sobreposição de significado somente reduzindo a um denominador
comum. O denominador é a libido: o filho personifica o desejo da mãe, desejo que
existe na psique de cada indivíduo que se encontra em uma situação semelhante.
A mãe personifica o amor (incestuoso) pelo filho (...). O corte do pinheiro, ou seja,
148

a castração denota o sacrifício desta libido, que busca algo de impróprio e


impossível. O mito, portanto, retrata (...) o destino de uma regressão da libido que
se desenvolve principalmente no inconsciente (...).
No caso acima, o impulso ao sacrifício parte da mãe. A mater saeva cupídio, que
leva o filho à loucura e à automutilação. Como um ser primordial, a mãe
representa o inconsciente, oposto à consciência. Os mitos nos dizem, portanto,
que o impulso ao sacrifício vem do inconsciente. Isso deve ser entendido no
sentido de que a regressão é hostil à vida e perturba os fundamentos instintivos da
personalidade e, consequentemente, provoca uma reação compensatória, que
assuma e forma de uma repressão violenta e eliminação da tendência
incompatível. (...)
A metamorfose do pinheiro equivale à sepultura da mãe, assim como Osiris se
desenvolveu completamente pelo cedro. (...) Átis é mostrado crescendo de uma
árvore (...). Na lenda de Penteu, que está ligada ao mito de Dionísio, existe um
desencontro impressionante para a morte de Átis e a subsequente lamentação:
Penteu, curioso para ver as orgias das Mênades, subiu em um pinheiro, mas foi
visto por sua mãe; As Mênades o derrubaram a árvore, e Penteu, preso por um
animal, foi atacado por ele sob a força da fúria (...); a sua mãe foi a primeira a
lançar-se sobre ele. Nesta lenda se encontram reunidos o significado fálico da
árvore (o corte dessa simboliza a castração), a sua natureza materna (a árvore
carrega Penteu), e sua identidade com o filho (corte – assassinato de Penteu); ao
mesmo tempo temos o desencontro e o reencontro da “pietá, ou seja, a mãe
terrível (...).
A essência e a força motriz do drama sacrifical consistiram em uma transformação
inconsciente da energia, da qual o ego toma consciência quase da mesma
maneira que os marinheiros se dão conta de uma erupção vulcânica sob o mar.
Necessita concordar que diante da beleza e a sublimidade de toda a concepção
da ideia do sacrifício e seu ritual solene, deve-se admitir que uma formulação
psicológica possua um efeito terrivelmente prosaico. A concretude dramática do
ato sacrifical é reduzida a uma abstração estéril, e a vida florescente das figuras é
mortificada em duas dimensões (...). Mas, o entendimento científico faz uma
compreensão mais profunda dos fenômenos em questão. Assim, podemos
perceber que as figuras do drama mítico possuem qualidades que são
intercambiáveis, porque não têm o mesmo significado existencial como as figuras
concretas do mundo físico.
Eles vivem e sofrem a tragédia na realidade, enquanto os outros apenas a
representam somente sob a cena subjetiva de uma consciência introspectiva (...).
O essencial no drama mítico não é a concretude das imagens, nem é importante
que o tipo de animal seja sacrificado ou que tipo de deus representa; o que é
importante é que há um ato sacrifical, isto é, ocorre um processo de transformação
inconsciente cujo dinamismo, cujo conteúdo e cujos sujeitos são inconscientes,
mas se revelam indiretamente para a mente consciente, estimulando o material
imaginativo que está à sua disposição, de certo modo, revestindo-se dele, como
os dançarinos que se vestem das peles de animais ou os sacerdotes nas peles de
suas vítimas humanas.
A grande vantagem da abstração científica é que ela nos dá a chave dos
processos misteriosos promulgados nos bastidores, onde, deixando para trás o
mundo colorido do teatro, descobrimos uma realidade psíquica dinâmica e plena
de significado, não mais redutível. Esta consciência despe os assim chamados
processos inconscientes do caráter epifenomenal e faz com que eles apareçam
assim como são, como demonstra toda a nossa experiência, isto é, entidades
autônomas (...).
Como todos esses sacrifícios de animais, o assassinato mitral do touro é um
sacrifício para a Mãe terrível, isto é, para o inconsciente, que atrai
espontaneamente, atrai para si a energia da consciência, porque esta última se
afastou muito das raízes, esquecendo-se do poder dos deuses, sem os quais
qualquer vida seca ou se perde catastroficamente num mar de perversão. No
sacrifício, a consciência renuncia ao poder de posse em favor do inconsciente.
Isso possibilita uma união de opostos, resultando na liberação de energia (...).
149

A comparação entre o sacrifício mitraico e o cristão deve mostrar claramente em


que consiste a supremacia do símbolo cristão: ao reconhecer com franqueza que
é sacrificada não somente a instintualidade animal do homem (simbolizada pelo
touro), mas todo o homem natural, que é mais do que pode ser expresso por seu
símbolo teriomorfico. Enquanto o primeiro representa a instintualidade animal, o
que quer dizer que a submissão total à lei da espécie, o homem natural significa
algo a mais, algo especificamente humano, ou seja, a capacidade de desviar-se
da lei, ou o que em linguagem teológica é conhecida como a capacidade de
'pecar' (...).
Esta é o objetivo que se tenta alcançar através do sacrifico do homem natural,
uma vez que, somente neste caso, o ideal dominante da consciência estará em
grau de impor-se completamente e moldar, à sua maneira, a natureza humana
(Obras, vol. 5, p. 401-422).

A abordagem de Jung para Átis-Cibele reflete o amplo alcance de sua teoria


da libido. Esta abordagem heroica é necessária para aproximar a uma luta vital na
qual a libido não flui bem nas relações externas ou internas, e em que existem fortes
defesas caracterológicas contra a experiência das profundidades expressas no mito.
Átis se encontra fundido no amor por Cibele, e ao mesmo tempo não é capaz
de separar-se, e na mesma situação se encontra qualquer um que não teve um
vínculo materno suficientemente bom. Essa pessoa está fundida na busca do que
lhe faltou, ou não foi o suficiente durante os primeiros anos de vida. Se uma mãe,
não conseguiu ‘ver’ a unicidade do seu filho e, em vez disso, apenas se relacionou
com um cuidador, de modo mecânico, ou com base naquilo que deveria ‘fazer’ ou
com base no que é ‘certo’, mas não por amor e por admiração, a criança, homem ou
mulher, se tornará privada de um ingrediente essencial para o seu crescimento.
Surge uma enorme frustração e, com ela, uma grande quantidade de agressividade
que não tem saída natural. Na sua mente, a criança age com ataques agressivos ao
corpo materno, porque a sua frustração não tem outra saída. Mas a criança também
é identificada com a mãe, fundida no vínculo de uma promessa de amor que é o seu
direito de nascimento e que ela encontrou em casos que eram pouco tangíveis, mas
o suficiente para conduzi-la à esperança. Porque a criança está identificada com a
mãe, os próprios ataques fantasmagóricos também se castraram. Assim, o símbolo
da árvore derrubada, na qualidade de falo ou de mãe, não é apenas um símbolo da
libido, mas uma metáfora da experiência. Não são somente as pessoas com
distúrbios pré-edipianos a serem lançadas nesses abismos, nem esses abismos são
apenas conhecidos nos sistemas de defesa da personalidade limítrofe ou do caráter
narcisista. Na verdade, cada um de nós, em níveis diferentes, sofre de feridas nas
profundezas do nosso ser.
Em um grau ou outro, cada um se castra pelo medo de separar-se e de
alcançar o objetivo destinado. Cada um se apega a uma forma inferior, tratando-se
de uma relação particular ou uma tarefa de individuação. O herói que rouba o fogo
ou o grão dos deuses sofre. Todos nós temos medo de segurar o nosso poder;
todos, em alguma profundidade do nosso ser, agimos de acordo com o drama de
Átis e Cibele. Todo mundo sofre de uma história de abandono, talvez não tão grave
ao ponto de minar o desenvolvimento do ego como na estruturação borderline ou em
outras estruturas patológicas da psique, mas, existe, portanto, o abandono como
150

uma consciência de não ter sido visto ou amado. E quando temos a coragem de nos
encaminhar na individuação, surge o drama de Átis e Cibele. Todos, em diferentes
níveis, estamos presos nesta rede pela qual a separação leva à morte, isto é, a
morte da paixão e do vínculo relacional que motivou a separação, assim o
entusiasmo e a paixão se transformam em desânimo. Nessa mesma rede, estamos
presos também pela demanda da individuação e pela exigência – igualmente grande
ou maior – de permanecer com um objeto interior de amor, conhecido ou mais
provavelmente, nunca conhecido o suficiente. Nesta luta, na maioria das vezes,
escolhemos uma solução de compromisso, uma espécie de castração parcial
através da obediência coletiva em que o coletivo ganha a projeção da mãe
desejada. Aqueles que estão presos pela luta entre as suas pulsões individuais e
uma fraqueza de ego, baseada em medos ou traumas, muitas vezes,
inconscientemente, projetam a Terrível Mãe em uma situação externa, e depois
sutilmente ou não tão sutilmente, atacam-na. Por sua vez, eles são atacados e
enquanto os atacantes podem ter seu próprio material sombrio, o próprio material-
sombra, de fato, a pessoa atacada atua internamente no mito Átis-Cibele e é
crucificada pela sua dinâmica, bem como, pelo ataque emocional externo.
Qualquer que seja a forma assumida no drama, ele existe em cada um como
um estado ontológico, não apenas como uma imagem dos fluxos profundos da libido
no próprio inconsciente. Ao envolver-se com estes fluxos, não só em um nível
individual, mas como um drama entre duas pessoas, a alquimia encontra a própria
força e o mistério.
Na prática clínica, o analista encontra duas reações principais ao processo
dinâmico representado pelo mito de Átis-Cibele, isto é, os estados com estrutura
narcisista e os estados borderline. Ambas são reações ao que aparece como o
impossível drama, fusão-separação. No caráter narcisista, a fusão é mantida através
do controle do objeto, enquanto na separação também é mantida através da defesa
narcisista que afasta todo envolvimento afetivo. No transtorno borderline, o dilema
fusão-distanciamento é resolvido com deslocamentos radicais em direção à fusão
com um objeto, sentindo o medo pela perda da identidade, com um retrocesso para
um estado de distanciamento, com o objeto que agora carrega sobre si uma
projeção de medo e perigo extremo. Às vezes, estas oscilações se combinam,
levando ao estranho sentido de excentricidade que pode permear o trabalho com
pacientes borderline. Lá onde essas defesas caracterológicas falham, emergem as
áreas psicóticas; caso contrário, elas permanecem escondidas, em um grau ou
outro, na estrutura do caráter. O processo psicótico é uma reação ao fato de não se
estar em grau de lidar com os impulsos de fusão, de não conseguir nem separar-se,
nem permanecer na fusão.
A ligação de Jung entre Penteu e Átis é digna de nota, pelo fato de que
Penteu foi despedaçado porque rejeitou Dionísio. Mas reconhecer dentro de si o
‘deus louco’ é a única maneira de lidar com o drama Átis-Cibele, ao passo que
rejeitar a loucura é uma maneira de aumentar o drama. Por esta razão, a prima
materia alquímica, muitas vezes, foi comparada como caos, e o caos é um dos
melhores sinônimos para os estados internos de loucura.
151

CAOS E CONIUNCTIO

Os aspectos perigosos dos estados de fusão, como no mito Átis-Cibele, são,


no entanto, uma característica essencial do processo de transformação. Seja
conscientemente experimentado ou afetando inconscientemente o ego, a coniunctio
provoca a liberação de uma energia de alto grau na personalidade consciente com a
criação concomitante de desordem. Funcionalmente, esse transtorno quebra as
defesas rígidas. É por isso que a prima materia é, muitas vezes, definida o como o
líder de Saturno:

O filósofo Petasios afirma: “O líder (...) é tão possuído pelo demônio e impensado
que aqueles que querem investigar a realidade, tornam-se vítimas da fúria ou
perdem a razão” (Jung, Obras. vol. 14, p. 358).

Este caos provém da experiência da paixão impossível descrita no mito de


Átis e Cibele e, porque nega o sofrimento da fusão e da perda, pode também este
ser uma defesa. De qualquer forma, tal caos se vê especialmente na nigredo – a
sexta e sétima xilografia (Fig. 12) do Rosarium.
Em grande parte das visões do mito, Átis se torna louca, ou também Cibele é
representada como louca. Psicologicamente, a loucura pose ser uma via de saída de
um estado mental corpóreo que toma a parte superior. A loucura é o resultado
inevitável do tipo de fusão evidenciada no mito. O indivíduo é altamente envolvido
por sentimentos que se torna impossível permanecer na fusão, mas também
separar-se. Ambas as opções podem fazer nascer áreas de loucura da psique. Por
sua vez, tais áreas podem se tornar a prima materia.
Jung explica que os alquimistas falam, muitas vezes, da prima materia nos
termos do aspecto perigoso do mito filho-amante:

Vênus, rainha do sexo feminino, menina virgem (...). A prima materia é, sobretudo,
a mãe do Lápis, do filius philosophorum (Obras, vol. 14, p. 23).

Jung cita um notável alquimista do renascimento, o conde Michael Maier, que


por sua vez, refere-se ao tratado da metade do século XV de um autor anônimo
admirado por defender a sua tese que a prima materia era o incesto entre mãe e
filho:

Tal casamento, que começou com grande alegria, acabou com a amargura do luto
(...). De fato, se o filho dorme com a mãe, ela o mata com um golpe de uma víbora
(Obras, vol. 14, p. 24).

Mais adiante, Jung discute ainda sobre a ligação entre a prima materia, a
morte e o filho. A prima materia

é a terra e a serpente que se esconde nela, a escuridão e o orvalho, ou ainda a


água maravilhosa que reúne tudo o que está dividido. A água é, portanto,
chamada de 'mãe', 'minha mãe, que é minha inimiga', mas também ‘aquela que
reúne juntos todos os meus membros divididos e dispersos’ (Obras, vol. 14, p. 26).
152

A dinâmica do mito de Átis e Cibele é a prima materia; e a questão de uma


dinâmica de fusão-separação impossível, levando a um estado interior de loucura e
auto-abstração, é uma realidade clínica sempre presente. Mas a prima materia
também é desprezada e facilmente distanciada. Fabricius observa: "a prima materia
é o caos em que a pedra é descoberta (...). É tão barata e desprezível que é jogada
nas ruas" (1976, 21). Este potencial possuído pelo caos subestimado pode ser visto
no exemplo a seguir, que destaca a diferença entre uma abordagem alquímica e
outras possíveis abordagens ao dilema de uma paixão impossível e da sua loucura.
Um homem começou a me contar sobre o sucesso que ele teve ao lidar com
sua irmã durante uma herança. Ele estava com medo de sua irmã, cinco anos mais
velha do que ele. Em uma sessão anterior, eu pude perceber que ele oscilava entre
os estados de amor e de ódio por ela. Mas, geralmente, tal oscilação entre os
opostos era difícil de perceber; com relação a ele, eu tinha a tendência a me sentir
confuso. Em um grupo de terapia, outros membros eram levados a sentir a mesma
confusão e, muitas vezes, perdíamos o interesse ou ficávamos com sono quando ele
falava. Nesta sessão, como sempre acontecia, ele estava desenraizado, no sentido
de que estava desconectado da consciência de seu corpo; ele não fez contato
comigo quando falou e, em vez disso, entrou em uma série de associações mentais
que, muitas vezes, eram impossíveis de compreender. Quando lhe perguntei sobre o
que estava dizendo, ele respondeu que não sabia.
Entre nós existia um campo que estava fragmentado e através do qual era
extremamente difícil, salvo por alguns segundos, se concentrar no que ele estava
dizendo e ter qualquer pensamento autônomo. Durante esta sessão, parei para fazer
uma pausa e refletir sobre a extrema fragmentação que experimentava, além da sua
fragmentação, ele insistiu em falar. De repente, eu percebi que ele estava tão
retirado e dissociado porque estava extremamente orgulhoso do que tinha feito com
sua irmã. Ele, finalmente, tinha se mantido firme, lhe havia posto seu próprio ultimato
e se sentiu bem com isso. Mas não podia comunicar-me o quão orgulhoso estava se
sentindo, por sua necessidade de espelhamento – que eu o visse especial naquilo
que tinha feito - lhe dava muito medo. Comunicar-me o seu orgulho significaria que
ele precisava enfrentar sua necessidade de fundir-se comigo, tanto na fantasia,
quanto na experiência afetiva, enquanto representava um objeto onipotente.
Essa fusão, em termos Kohutian, da psicologia do self, com um objeto em si,
foi esmagadora para ele. Reconhecê-la, significaria para ele ter que sentir
necessidades que eram impensáveis. Quando eu consegui reordenar para mim este
estado e lhe dizer, por um minuto ou dois, o campo entre nós se tornou claro e
relacionado. Enquanto estávamos sentados um diante do outro e com essa clareza,
logo ficou ansioso. Poderíamos ambos sentir uma conexão, uma sensação de
espaço energizado entre nós, mas um espaço que a ele causava medo quando
sentiu vontade de se fundir comigo. O espaço lhe parecia perigoso ao emergir das
suas necessidades, especialmente as necessidades para ser visto como bom.
Assim, quando ele recuava para a confissão, o campo entre nós se tornava
fragmentado, e a minha capacidade de fusão se reduzia fortemente. Em outras
153

palavras, o processo psicótico retornou ao status de objeto em si do nosso campo,


por parecer muito perigoso.
Do ponto de vista psicologia do Self, o problema é que um campo objeto em
si recíproco é difícil de criar, e, portanto, a fragmentação que pode ter características
psicóticas ocorre com frequência. Como analista, eu deveria preocupar-me com isso
e estava adicionando o objeto em si a este campo. Qual é a minha resistência ao
espelhamento do analisando e de auxiliá-lo a criar a qualidade adaptada do campo
que lhe desse segurança na experiência de ser espelhada? Era questão de eu me
tornar mais empático para com os perigos que, para ele, representavam o
espelhamento e o exibicionismo associado a isso? Em outras palavras, a
abordagem da psicologia do Self trata a experiência do caos – para usar uma
palavra favorita dos alquimistas - como o resultado de uma ausência de ordem, mais
do que como uma experiência de pleno direito extremamente importante.
A abordagem alquímica valorizaria a experiência do caos como algo a ser
alcançado. Em vez de considerar a experiência do caos como resultado de um medo
da fusão, como a psicose é concebida nas tradições psicanalíticas, a abordagem
alquímica valoriza essa experiência, especialmente quando é o resultado de uma
operação anterior. Em outras palavras, não só percebemos áreas caóticas, ou
instâncias de loucura, em outra pessoa, mas procura-se alcançar o caos desse
estado como resultado da coniunctio.
Na dinâmica do mito Átis-Cibele, o desejo da criança foi contaminado pelas
paixões do adolescente e depois do adulto, e esse desejo também deve tornar-se
sujeito ao tabu do incesto. O resultado é que todos, como o meu analisando, sofrem
de uma paixão impossível e pelo caos dela derivado, ao qual se deve ir ao encontro,
caso se queira que a relação seja mais de um simples contrato econômico ou de um
lugar em que se escondem os medos e as próprias patologias.
A dinâmica do mito de Átis e Cibele, com as variantes e as voltas que tomou
desde a sua criação no início da era neolítica é, portanto, o foco principal para a
prima materia alquímica. O mito evidencia a natureza traiçoeira da paixão e requer
uma sabedoria que raramente foi vista na história. De que modo um homem ou uma
mulher respeitam adequadamente essas energias? Se um homem se funde a ela na
cegueira e na loucura do amor apaixonado, ele se torna um garoto. Ele é um ser
fundido de opostos - um infante-criança-adolescente sem limites que explode a partir
do desejo de obter a satisfação e que, por isto, se desespera. Este infante-criança-
adolescente sem limites é associado a um adulto que nunca se tornou realmente um
adulto e que, na melhor das hipóteses, pode fingir ser adulto através de uma moral
rígida que condena a sua ‘outra metade’. Este sofre a humilhação de nunca se
tornar o homem que poderia ter se tornado. E a fusão de uma mulher com essas
energias a torna amedrontadora para homens e mulheres, pois assumiu uma forma
arquetípica que engole todas as relações objetais e a torna dividida entre ser jovem
e velha enquanto esses segmentos são, paradoxalmente, também fundidos. Em
outras palavras, mais ou menos proeminente, reina a excentricidade. De fato, para
ambos os sexos, este estado de fusão nunca é perfeito, e nunca é um amálgama de
velhos e jovens em um terceiro simbólico, mas ambos, ao mesmo tempo. Muitas
154

vezes, uma qualidade ligeiramente excêntrica de uma combinação de carisma e


humildade existe ao lado da uma loucura escondida que distorce a realidade de
modo que a pessoa tende a agir com terríveis formas destrutivas. Neste estado de
loucura, um indivíduo permanece preso para sempre em um duplo vínculo. Agindo
com base na paixão, morre de uma morte psíquica sem sentido, que não leva a
nenhuma transformação, ou provoca sofrimento incalculável nos outros. E, se não
agir sobre a paixão que experimenta, se resseca prematuramente em uma pessoa
velha, negando ou fantasiando essa paixão perdida.
O mito Átis-Cibele retrata o ritmo coniunctio-nigredo muito mais que qualquer
outra história da união, por causa de seu retrato apaixonado da natureza
devastadora da nigredo seguida de - suicídio loucura e autocastração. Lidando com
as paixões do mito Átis-Cibele como prima matéria, requer que todos os que se
envolvem com as energias de loucura possuam um ponto de vista espiritual.
Compreende-se que tal requisito sirva de suporte subjacente à supressão da forma
negativa da Grande Deusa no tempo do Antigo Testamento, em vez de considerar
essa mudança em um esquema excessivamente simplista da supressão da Deusa
por parte do patriarcado. A nona pintura dos Splendor Solis (Fig. 8) representa uma
hermafrodita que é desprovida da dimensão encarnada ou ctônica, diferentemente
da hermafrodita da décima xilografia (Fig. 18), que foi forjada mediante o fogo de
sucessivas nigredo.
No Splendor Solis, a hermafrodita representa uma auto-imagem espiritual, um
estado que existe como um centro orientador interior de grande vitalidade e
significado. As operações alquímicas subsequentes transformam a imagem de modo
que as ‘águas inferiores’ estão incluídas, conforme descrito na décima primeira
imagem (Fig. 7) surge um espírito dessas águas inferiores. Mas entre a hermafrodita
espiritual e essa última transformação, se encontra na décima imagem (Fig. 20) - um
homem louco desmembra um corpo que é uma reminiscência da hermafrodita. Essa
loucura transformadora, certamente a loucura do mito Átis-Cibele, não pode ser
criativa e contida, a menos que não exista primeiro num nível espiritual representado
pela hermafrodita. O louco extrai esse espírito, simbolizado pela pequena cabeça
dourada do homem desmembrado, assim o espírito pode ser reunido com o corpo. A
loucura experimentada dessa maneira é o agente transformador do processo
alquímico. Esta função transformadora do caos é posteriormente evidenciada por
Jung em referência à mudança na alquimia do símbolo do rei, representante das
atitudes coletivas dominantes:

Para alcançar o reino de Deus o rei deve transformar-se na prima materia, no


corpo de sua mãe e retornar ao estado inicial escuro que os alquimistas chamam
de ‘caos’. Nesta condição de massa confusa, os elementos estão em conflito uns
com os outros e se rejeitam mutuamente, de modo que todas as conexões entre
eles são dissolvidas. A dissolução é o pré-requisito para a redenção. E a morte
significa que o iniciado aos mistérios deve sofrer para poder experimentar a sua
transformação (Obras, vol. 14, p. 296).

A experiência do caos é, portanto, especialmente importante; é um dos mais


comuns atributos da prima materia em si. Através de um retorno ao caos, as
155

estruturas podiam ser dissolvidas e depois se tornar uma prima materia adequada.
Mais uma vez, Jung comenta:

O que para nós é essencial na definição da prima materia é o fato de que ela foi
designada como a massa confusa e ‘caos’, referindo-se ao estado original de
hostilidade entre os elementos, à mistura desordenada que o aurífero
gradualmente conduzia à ordem, pouco a pouco, por meio de suas operações
(Obras, vol. 14, p. 391).

A ligação entre o caos e um nível espiritual de existência é um aspecto


importante da prima materia - o ponto de partida indispensável para a opus - como
se vê na injunção que o alquimista repete muitas vezes: para fazer o ouro, é
necessário o ouro. Além da sua importância para o seu trabalho real com processos
materiais, em nível espiritual ou psicológico, esta frase que o alquimista tomou como
condição inicial, - o ouro espiritual - é o resultado da formação de uma auto-estrutura
interna do Self. Muitos textos insistem que a arte é dada por Deus e é conhecida
somente por quem foi transformado pelo Espírito. O alquimista do século XVII,
Gerhard Dorn, afirma: "Não é possível para nenhum mortal entender esta arte, a
menos que seja iluminado pela luz divina". A partir do momento em que se pensa a
criação do Self como um produto final, relegá-lo a um estado inicial pode parecer
paradoxal. Mas não é. De fato, o Self que pode aparecer como um centro psíquico e
criar uma sensação de totalidade e especialmente um sentido de significado que
anteriormente não existia, não desenvolveu necessariamente a capacidade de
participar do corpo ou da vida instintiva.
Assim, como se vê no Splendor Solis, a prima materia pode ser o eu em certa
condição espiritual que ainda não inclui uma transformação do corpo em mais um
veículo sutil da consciência, nem esta auto-estrutura necessariamente inclui uma
integração dos níveis cultural e pessoal da vida reprimida escondida no corpo. Estes
domínios levariam a um eu novo que é muito mais inclusivo do que o anterior, um eu
que poderia experimentar o fogo da paixão – para referir-se a uma preocupação
alquímica especial – sem dissolver-se em estados perigosos de fusão, ou em
retirada e negação. Partindo do início, com este Self espiritual, pode-se continuar
trabalhando em sua transformação em um produto final, o lápis alquímico que
abrange o corpo, os processos instintivos e o desejo.
No Rosarium, o nível espiritual que precede a nigredo existe na imagem da
coniunctio. A pomba descendente, a dimensão espiritual, foi incorporada na
característica rítmica do estado da união em que a fusão e a distanciamento,
oscilam e se unem. A natureza da prima materia que liga espiritualidade e paixão é
posteriormente explicada por De Rola que, em seu livro, Alchemy, observa:

Diz-se que a prima materia possui um corpo imperfeito, uma alma transparente e
constante, uma tintura penetrante e um claro mercúrio transparente, volátil e
móvel. Contém o sentido do ouro dos filósofos e o mercúrio dos sábios (1973, 10).

A iluminação espiritual pode produzir uma constância de propósito, uma


personalidade interna – ou alma que tem confiança na existência de um processo e
156

de uma finalidade mesmo na ‘noite escura’. Além disso, como resultado da


experiência do Self espiritual, a imaginação obtém uma nova clareza e fluidez; em
termos alquímicos, o indivíduo obtém um mercúrio transparente. E a tintura, a
substância penetrante, refere-se a um Self que, pelo menos, começou a atingir uma
integração de sua natureza sexual e agressiva a tal ponto que seu poder pode ser
movimentado de forma penetrante e imaginal. Neste estágio, o indivíduo não é mais
capturado, por exemplo, em um ciclo defensivo, sado-masoquista que preserva a
separação e foge da união.
A ‘tintura’ é um aspecto muito importante da prima materia, como explica
Jung:

A tintura é ‘de cor rosada’ e corresponde ao sangue de Cristo que é ‘comparado e


associado ao lápis’ (...). A relação entre a deusa do amor com a cor vermelha
remonta aos tempos antigos. Escarlate é a cor da Grande Meretriz da Babilônia e
sua besta. O vermelho é a cor do pecado. E a rosa também é um atributo de
Dionísio. Vermelho e rosa-vermelho são a cor do sangue, um sinônimo da aqua
permanens e da alma, que são extraídos da prima materia e trazem vida aos
corpos ‘mortos’. A prima materia é chamada de ‘meretriz’ e é equiparada a
'Grande Babilônia' (Obras, vol. 14, p. 316-317).

Mas o ‘corpo imperfeito’ - o que significa o corpo na sua forma em que não é
um veículo de consciência, que não é sentido como uma presença viva em que o
indivíduo está ‘dentro’, e também não é percebido como fonte de instinto e paixão
que podem ser controlados conscientemente - necessita ser transformado em um
veículo sutil de consciência. Pois só então pode ser feita a Pedra dos Filósofos, isto
é, um Self em que espírito e corpo estão unidos, com ambos funcionando como
fonte de consciência e nenhum dos dois é considerado mais importante do que o
outro.
Do ponto de vista alquímico, a prima materia que se revela em um estado de
união é um nome para certo padrão de energia psíquica e de estruturas associadas
que constituem uma experiência em que um nível numinoso de vida psíquica - como
na iluminação espiritual ou na coniunctio – encontra o mundo dos eventos
separáveis espaços-temporais. Qualquer tipo de afeto ou de estado mental, ou de
padrão pode ser a prima materia, desde que ocorra na interface onde o numinosum
encontra a vida encarnada.
A prima materia é, neste contexto, um conjunto de padrões e de energia a ela
associada que emergem quando a alma faz uma experiência transcendente e depois
retorna ao mundo da consciência do ego. O Splendor Solis identifica o material
primário a ser trabalhado como um ‘mineral', uma substância formada onde o céu e
a terra se encontram (McLean, 1981, 100). O caos que é desejado e procurado
nesta união é, muitas vezes, carinhosamente chamado ‘o nosso Caos’. Não é
simplesmente um estado desordenado, mas sim segue uma união anterior.
O Musaeum Hermeticum (1678) inclui um tratado alquímico intitulado 'Entrada
ao Palácio fechado do rei’, escrito por um anônimo “Sábio amante da verdade’: Foi
escrito por volta de 1645 e o autor diz possuir 23 anos:
157

Deixe o aluno inclinar seu ouvido ao veredicto unido dos Sábios, que descrevem
esta obra como análoga à Criação do Mundo. No princípio Deus criou Céu e
Terra; e a Terra estava sem forma e vazia, e o Espírito divino se moveu sobre a
superfície das águas. E Deus disse: ‘Que haja luz ‘, e a luz se fez. Estas palavras
são suficientes para o estudioso da nossa Arte. O Céu deve estar unido à Terra no
jazigo da amizade; assim ele deve reinar na glória para sempre. A Terra é o corpo
pesado (...). O Céu é o lugar onde as grandes luzes giram, e através do ar
transmitem suas influências para o mundo inferior. Mas, no início, existia um caos
confuso. O nosso caos é, como era, uma terra mineral (em virtude de sua
coagulação), e ainda assim, volátil, no centro da qual está o Céu dos sábios, o
Centro Astral, em que a sua luz irradia a superfície da terra (...). Eu agradeço a Ti,
ó Deus, porque escondestes estas coisas do sábio e prudente, e as revelastes aos
pobres de espírito! (Waite, 1973, vol. 2, p. 167-68),

E em outra parte, na descrição da ‘Aparência da escuridão no trabalho do Sol


e da Lua’, ele afirma:

Seja duplamente prudente (...) e descobrirá que a terra tornou-se bastante seca e
profundamente escura. Esta é a morte do composto; os ventos cessaram e há
uma grande calma. Este é um grande eclipse simultâneo do Sol e da Lua, em que
o Mar também desapareceu. Nosso Caos está pronto, do qual, por vontade divina,
todas as maravilhas do mundo emergem sucessivamente (Waite, 1973, vol. 2, p.
188).

O escritor anônimo diferencia entre um caos inicial, confuso e o ‘nosso Caos'


que foi coagulado e também é volátil. O analista pode experimentar esta qualidade
diferenciada do caos na prática clínica ao ocupar-se com as partes caóticas ou
loucas da pessoa sã. Os numerosos exemplos clínicos anteriores mostraram a
existência de um caos confuso, mas quando o analista se ocupa imaginalmente com
esse caos, ele parece tornar-se menos coagulado, como se contivesse um tipo de
ordem ilusória. Esta ordem é ‘volátil’, capaz de escapar da consciência quase tão
rapidamente como foi apreendida. Este tipo de Caos, o ‘nosso Caos', é o resultado
de uma união prévia - 'o Céu se une com a Terra', - enquanto o caos, na forma mais
primitiva e flutuante, um verdadeiro estado confuso, encontra-se na prática quando
não existe um contato real com a outra pessoa ou consigo mesmo. Do verdadeiro
estado confuso, o analista geralmente pode deduzir um par de opostos. E, a partir
desses opostos, uma ‘terceira’ forma pode emergir como a díade ou par
inconsciente. O trabalho alquímico segue, então, a descoberta desse par em estado
fértil e com a sua morte final. Esta morte leva ao Caos ou nigredo que os Sábios
chamam de ‘o nosso Caos’, resultado de uma coniunctio anterior.

IMPLICAÇÕES CULTURAIS DA SEQUÊNCIA CONIUNCTIO-NIGREDO

Assim, o mito de Átis-Cibele encarna o estado de fusão-morte que caracteriza


o aspecto nigredo da sequência coniunctio-nigredo recorrente em todo o processo
transformador da alquimia. O mito retrata o lado sombrio do processo descrito no
Rosarium Philosophorum. Os estados devastadores e paralisantes descritos no mito
são análogos à prima materia da alquimia, o material bruto do caos e os efeitos
tormentosos das partes loucas das pessoas sãs. A capacidade de reconhecer e para
158

tolerar os estados descritos no mito de Átis-Cibele é necessária para que o processo


psicológico alquímico tenha sucesso.
Jung identifica a condição psicológica expressa nos mitos da díade mãe-filho,
como Átis e Cibele, como a condição mais significativa para a progressiva evolução
psicológica da humanidade. À medida que assume o mandato de compreender a
natureza da transformação, a alquimia concentra-se sobre esta dinâmica,
representada pela díade mãe-filho. Jung escreve:

A alquimia forma, de fato, uma vasta corrente subterrânea daquele cristianismo


que reinou na superfície. A relação entre a alquimia e o cristianismo equivale
àquela entre o sonho e consciência, e assim como o sonho compensa os conflitos
da mente consciente, assim os esforços da alquimia tentam preencher as lacunas
deixadas abertas pela tensão cristã dos opostos (...). A ideia fundamental da
alquimia lembra (...) aquele mundo primitivo matriarcal (...) que foi derrubado pelo
mundo masculino patriarcal. A evolução universal histórica da consciência do
mundo no sentido masculino é compensada, primeiro pelo elemento feminino do
inconsciente. Em certas religiões pré-cristãs, a diferenciação do princípio
masculino assumiu a forma da especificação pai-filho, uma mudança que deveria
ser de extrema importância para a Cristandade. Se o inconsciente fosse
meramente complementar, essa mudança da consciência teria sido acompanhada
pela produção de uma mãe e filha: mas no mito de Demeter e Perséfone o
material necessário já estava à disposição. Mas, como mostra a alquimia, o
inconsciente escolheu um pouco o tipo Cibele-Átis sob a forma de prima materia e
filius macrocosmo, provando assim que não é complementar, mas compensatório.
É, portanto, evidente que o inconsciente não age simplesmente de forma contrária
à consciência, mas se comporta em relação a ela na maneira de um oponente ou
parceiro. O ‘tipo’ de filho (...) evoca (...) também outro filho (...). A mãe, que era
anterior ao mundo do pai, acomoda-se ao princípio masculino e, com a ajuda do
espírito humano (a filosofia), produz um filho: não a antítese de Cristo, mas sim a
sua contraparte cromática, não um homem-deus, mas um ser fabuloso em
conformidade com a natureza da mãe primordial. E, assim, como a redenção do
homem, (do microcosmo) é tarefa do filho ‘superior’, então o ‘filho inferior’ tem a
função de um microcosmo salvador (...).
Embora este 'filho inferior' seja decididamente hermafrodita, ele tem um nome
masculino - um sinal de que o submundo ctônico, tendo sido rejeitado pelo espírito
e identificado com o mal, tende a evitar os pactos: Não se pode negligenciar, que
ele representa uma concessão ao princípio espiritual e masculino, embora
carregue em si o peso da terra e toda a fabulosidade da natureza primordial (...).
Esta resposta do mundo-materno é um indício de que o abismo que o divide do
mundo paterno não é intransponível, visto que o inconsciente contém a semente
da unidade de ambos. (Psicologia e Alquimia, p. 26-29).

O ponto básico de Jung é que o mito Átis e Cibele indica uma mudança
fundamental na consciência, uma mudança que desde os tempos pré-cristãos foi
bloqueada ou está falida. A tentativa do cristianismo de uma resolução resultou na
transcendência. A alquimia, no entanto, a corrente subterrânea da cristandade,
chegou mais próxima de um resultado. A sugestão de Jung de que a alquimia
funciona como um fator de equilíbrio para o cristianismo em um plano transpessoal,
da mesma forma que o sonho funciona para o nosso Self consciente no nível
pessoal é um exemplo de sua extraordinária amplitude de visão. Este modo de ver,
de acordo com von Franz, resultou em uma descrição da relação entre os dois
mundos da alquimia e da cristandade ‘que é insuperável’ (1975, 216). No entanto, a
alquimia foi uma compensação não só para a cristandade, mas também para todo o
159

pensamento religioso patriarcal, inclusive aqueles sistemas gnósticos, direcionados


para um espírito no reino superior, e conhecido no misticismo ascético. Diferente da
alquimia, esses sistemas gnósticos geralmente se opõem a reentrar na vida e
domínio do espírito ctônico, que é considerado decorrente do reino inferior.
Ao longo dos séculos, o impulso presente na cultura patriarcal ocidental tem
sido o da ascese e o da transcendência, enquanto a deficiência na cultura envolve
uma falta do que vem de baixo – de baixo para baixo - de reinos considerados mais
básicos, primitivos e ainda informes. Nesses reinos ctônicos, reside um aspecto até
então desconhecido, não integrado e informe da humanidade, esperando por uma
consciência que seja igual a esse impulso.
A compreensão de Jung do inconsciente como uma entidade teleológica,
buscando perpetuamente equilibrar e harmonizar o desenrolar da vida encarnada, é
verdadeiramente estimulante. E se aceitamos a proposição de Jung de que a
alquimia detém a solução através da compensação da supressão patriarcal do
feminino e da negação do masculino ctônico, a importância da alquimia para o nosso
mundo problemático torna-se não apenas óbvia, mas também urgente.
Seja qual for o caminho atual para uma nova relação com o feminino e entre
os sexos, a atitude consciente em relação a esse objetivo pode beneficiar-se muito
da imagem alquímica do filius philosophorum, o ‘filho do filósofo’, o que significa que
o espírito nasceu da arte alquímica. Em outras palavras, o que era uma vez uma
compensação inconsciente representada pela dinâmica da díade mãe-filho, hoje
pode e deve se tornar uma atitude consciente. Então, as maiores profundidades do
feminino podem ser justapostas por um Eu mais capaz, como jamais poderia ser
com uma atitude patriarcal ou unicamente apolínea. Como o antigo mito de Dionísio
mostra que esse deus, e talvez somente esse deus, possa coexistir com a Grande
Deusa como Cibele-Rea e pode sobreviver em meio aos afetos persecutórios sem
ser assassinado ou reduzido a um príncipe consorte, assim, também um novo tipo
de consciência, ainda não adquirida, mas imaginada pela alquimia, é um
componente necessário para uma futura imagem de si mesmo.

8
160

A ATITUDE ALQUÍMICA PARA A TRANSFORMAÇÃO DA RELAÇÃO

SABEDORIA DA TRANSFORMAÇÃO ALQUÍMICA

O núcleo do processo alquímico de transformação é revelado por meio de


histórias e imagens que fornecem informações sobre a dinâmica transformadora de
estados de opostos aparentemente irreconciliáveis. Pares conflitantes de opostos,
como amor e ódio, desespero e paixão, ousadia e covardia, podem ser
experimentadas por um indivíduo ou entre duas pessoas uma díade inconsciente. A
menos que tais opostos separados se combinem de forma frutífera, liberando
energia e criando consciência, um ego ou um par podem encontrar estados mentais
e corporais que levam à estagnação e à regressão através dos quais perdem
energia e coragem. Por exemplo, um analisando que tem uma forte e quase
automática obediência para com os ideais coletivos ou padrões convencionais de
moralidade, mas também uma paixão igualmente intensa para representar as
energias proibidas. Com efeito, ele leva uma vida dupla: o cidadão modelo durante o
dia, uma obsessão por prostitutas e pornografia infantil, à noite. Como é possível
que tais opostos se combinem em um ‘terceiro’, de modo que ele não seja
constantemente atraído por uma parte e depois pela outra? Como pode curar sua
estrutura interna dividida de modo que esses opostos já não o governem? Mesmo
que os opostos em questão sejam extremamente divididos na área psicótica, a
mudança sempre ocorre através de sua união. Mas a união é apenas o início do
processo alquímico de transformação. De fato, porque a mudança da estrutura
interna se estabilize é necessária a morte da união e o acolhimento da nigredo
subsequente. Através desta sequência coniunctio-nigredo, o processo alquímico
trabalha para criar uma forma nova e duradoura.
O objetivo do processo, como se vê na vigésima xilografia do Rosarium
Philosophorum (Fig. 30), é nada menos do que a transcendência de tal ciclo de
união-morte. Nesta última xilografia da série, a figura de Cristo ressuscitado
simboliza a estabilidade e a constância de uma estrutura do Self, mesmo que, em
segundo plano (como mostrado em outras variantes desta xilografia), ocorrem ainda
processos dissociativos e violentos. No entanto, com este objetivo da opus, se
alcança uma transformação da consciência e da estrutura, que é capaz de crer na
ressurreição, não apenas a ressurreição de um Self morto, como no caso de Cristo,
ou o paralelo egípcio do deus Osíris, mas também a ressurreição da estrutura
interna de uma pessoa, seja qual for a forma que ela deve tomar para uma
individuação contínua. Esta confiança é o centro do objetivo, e é alcançada através
do que, muitas vezes, parece ser um ciclo sem fim de morte e renascimento, de
união e da sua morte.
O analista em particular deveria observar que, em qualquer processo, pode
verificar-se uma união sem uma nigredo inconsciente e esmagadora. A relativização
da nigredo requer um alto nível de consciência por ambas as pessoas, e
especialmente, um sofrimento consciente pela perda de união física. A experiência
dessa dor, que faz parte da imagem alquímica de ‘matar o dragão’ ou ‘cortar as
161

patas do leão’, pode resultar em um estado de união que não desaparece em


desespero e confusão. Mas o apaziguamento e a minimização consciente do poder
da nigredo são raros porque, em outras ocasiões do processo entre as duas
pessoas, provavelmente aparecerá a sequência coniunctio-nigredo, em que a
nigredo é uma condição poderosa e inicialmente inconsciente.
Três narrações metafóricas encarnam a sabedoria alquímica da
transformação de um campo interativo: ‘O axioma de Maria Profetisa’, ‘O axioma de
Ostanes’ e ‘Isis, a Profeta para o seu Filho Horus’.
Como o "O Axioma de Maria Profetisa", anteriormente analisado, "O axioma
de Ostanes" é um ensinamento alquímico que trata da forma como a estrutura
interna de um objeto se modifica. Particularmente, a forma enigmática de "O axioma
de Ostanes" aborda a complexidade da união, morte e criação de uma estrutura
estável:

Uma natureza é misturada com a outra natureza, uma natureza conquista a outra
natureza, uma natureza domina a outra natureza.

A fórmula triádica de Ostanes sustenta em muito o pensamento alquímico,


das suas primeiras formas, que remonta em Bolos Democritus (por volta de 200
a.C.) até o século XVI. Aparentemente, a fusão de ideias iranianas e greco-egípcias
em Bolos de Mendes determinou as legendas da colaboração entre as Lendas de
Demócrito e Ostanes - legendas que, sem dúvida, tomaram várias formas, uma das
quais é a história do pilar rasgado pela metade e da fórmula triádica (Lindsay, 1970,
158).
Bolo Democritus relata a sua viagem ao Egito para ensinar a tradição das
virtudes ocultas, "então para que você possa se elevar acima da curiosidade múltipla
da matéria difundida (hylé)':

Depois de aprender essas coisas do mestre chamado Ostanes e ter alcançado a


consciência da diversidade da matéria, eu me estabeleci para fazer a combinação
das naturezas. Mas como nosso mestre morreu antes que a nossa iniciação fosse
completada e ainda estávamos todos empenhados em aprender esta matéria,
procurei evocar Hades, como se diz. Eu me apliquei à tarefa, e, assim que ele
apareceu, eu falei nestes termos: "Você não vai me dar nada em troca pelo que fiz
por você?”
Falei em vão. Ele manteve o silêncio.
No entanto, quando me dirigi a ele no melhor modo e perguntei-lhe como eu
deveria modificar a natureza, ele me disse que era difícil falar; o daimon não
permitiria isso. Ele disse apenas: "Os livros estão no templo".
Voltando, fui fazer pesquisas no templo com a chance de poder colocar as mãos
nos livros (...). Mas, apesar de toda a nossa pesquisa, não encontramos nada; e
então nós nos esforçamos com terríveis tormentos a fim de compreender como as
substâncias e as naturezas foram unidas e combinadas em uma única substância.
Bem, quando percebemos a síntese da matéria, algum tempo depois, se realizava
uma celebração no templo. Todos nós participamos de um banquete.
Então, como estávamos no templo, de repente, uma coluna se abriu ao meio.
Mas, à primeira vista, não havia nada dentro. No entanto, o filho Ostanes nos
disse que era nessa coluna que o pai dele tinha colocado os livros. E, tomando
conta da situação, ele tirou os livros para fora. Mas quando nos inclinamos para
olhar, com surpresa vimos que tínhamos compreendido tudo, exceto a fórmula
totalmente valiosa que ali encontramos. “Uma natureza está misturada com outra
162

natureza, uma natureza conquista outra natureza, uma natureza domina outra
natureza”. Grande foi a nossa admiração pela maneira como ele se concentrou,
em poucas palavras, toda a Escritura (Lindsay, 1970, 102).

Lindsay observa:

Um princípio orientador da mudança qualitativa, um princípio formativo, foi


realizado no interior de um processo unitário (...). O que os alquimistas estavam
falando era um movimento formativo onipresente, compartilhado pelos homens e
pelos objetos orgânicos e inorgânicos da natureza (1970, 144-45).

E, como explica Lindsay,

Os dois materiais, o da prima materia (...) e o da mistura que a amalgamava e


transformava, deveria conter algo em comum, algum elemento de harmonia. Ou
seja, eles se interessavam um pelo outro. Mas se isso fosse tudo, seria criado um
estado de equilíbrio e nada aconteceu; o primeiro nível não foi transcendido.
Então, uma natureza deveria conquistar a outra. O ato de conquistar era o
momento de transformação, quando o equilíbrio se rompia e se estabelecia um
novo relacionamento. A nova substância fundida existia em um nível superior e
implicava a criação de uma nova qualidade, que se revelaria na mudança de cor.
Mas isso não foi o suficiente. O novo estado deveria ser estabilizado, de modo a
poder fornecer a base para mais um movimento ascendente. Assim, a terceira
parte da fórmula: uma natureza deve dominar outra. Os três estágios do ato
alquímico podem, então, ser definidos: mistura no nível original, introdução de um
fator dinâmico que altera as relações originais e cria um novo nível qualitativo, e
então, a estabilização desse nível. Em um texto árabe (...), o processo é descrito
como três casamentos, em que as duas substâncias interagentes são chamadas
de macho e fêmea (Lindsay, 1970, 116).

O modo de funcionar do "Axioma de Ostanes", na prática clínica, é


exemplificado por uma analisanda que, lembrando a sessão anterior, enfatizou a
forma como tínhamos descoberto como a sua inveja e a inveja dos outros, tendiam a
estragar as coisas e a amargar a vida. Ela me contou como esse dia, enquanto
aguardava na sala de espera, queria me dizer: "Como é que tenho essa relação
diferente e criativa com minha filha agora? O que permitiu tudo isso?" Enquanto ela
falava, eu senti uma tensão corporal, um desejo de distanciar-me e uma sensação
de estranheza no que ela estava dizendo. Eu estava dividido em duas direções -
responder ou não responder - e eu gostaria de responder para que os sentimentos
dolorosos saíssem. Mas não consegui responder honestamente a pergunta sem
afastar-me dos meus sentimentos. Enquanto sentia-me imerso neste campo,
tentando unir minha mente às minhas reações corpóreas e emocionais, de modo a
adquirir uma imagem que tivesse sentido para a interação, eu compreendi que ela
realmente estava sendo sincera ao solicitar que eu examinasse e compreendesse a
coisa. No entanto, ela também estava comunicando uma mensagem oposta sobre a
qual não queria nenhuma reflexão da minha parte, mas apenas para aproveitar a
glória de sua experiência, relatando tudo para si mesma.
O axioma afirma que ‘uma natureza se encanta com outra natureza’, uma
metáfora adequada para o vínculo que ocorreu entre nossas psiques em que me
senti atormentado e dividido. Esse estado era uma indicação de que nossas psiques
163

inconscientes se encontraram e ‘se encantavam’ de um modo muito desagradável.


Assim, ocorreu um estado de fusão.
Eu sentia a natureza conflitante dos opostos na área psicótica, na medida em
que, tentando formular uma resposta rapidamente, se transformou em uma
sensação de vazio e de não ter resposta alguma. Por um lado, eu poderia ter dado
uma resposta. Eu poderia ter dito algo como: 'Você fez muito trabalhando tão
intensamente sobre a relação com sua filha, e isso está dando frutos'. Em outras
palavras, eu poderia ter espelhado a sua necessidade de ser vista como especial e
importante; este espelhamento a teria satisfeito, e o desconforto que eu sentia
provavelmente teria desaparecido, mas eu não consegui empatizar de maneira
totalmente encarnada e genuína.
Em vez disso, quando eu entrei intencionalmente no campo - sentindo estes
estados de distanciamento e permitindo usar o campo como um objeto (como na
imaginação ativa), vendo e sentindo o objeto, e depois me experimentando nele –
emergiu a minha percepção dos opostos, que se anulavam mutuamente. Estes
opostos não entraram na consciência como a solução de um problema ou como uma
compreensão estável. Em vez disso, a percepção foi passageira e difícil de manter,
mas consegui transmiti-la para ela de modo suficiente e, ao ponto de explicar o
motivo que me impedia de lhe responder a pergunta.
Geralmente, o analista não ‘deduz’ uma qualidade oposta de algum estado de
que está fazendo experiências. Por exemplo, o analista não vai muito longe, caso
experimentando o amor se pergunta conscientemente acerca do ódio ou da
agressão. Muitas vezes pode estar presente um oposto daquele tipo, mas essa
abordagem cognitiva não é a maneira de descobri-lo. Em vez disso, o analista deve
passar por um estado de ‘desconhecimento’, isto é, através de um estado de caos
em que, realmente, se sente perdido e sem orientação. Nessa condição, o analista
pode descobrir as maneiras pelas quais a sua mente e as suas emoções circulam
por diferentes estados e, em seguida, reconhecê-las como opostos. Mas os estados
não são, em geral, claramente distintos, como amor e ódio. Em vez disso, como
neste caso, eles dependem do encontro individual, que os torna únicos.
Eu e o analisando vivemos um caos inicial, um estado de perplexidade, sobre
o qual se pode fazer uma reflexão, além do “Axioma de Ostanes’, e também através
do ‘Axioma de Maria. Eu não poderia experimentar algum sentido de ordem, mas
apenas estados mentais e corporais conflitantes sem qualquer significado.
Dominavam-me o sofrimento, a ausência de pensamento e o desejo de fugir. Os
estados terrivelmente conflitantes não produzem qualquer sentido de ordem, como é
típico das definições alquímicas do caos. Entrando conscientemente nesta qualidade
caótica do campo, entrando no Um, e descobrindo um receptáculo para seus
estados na natureza oscilante do campo em que eu estava sendo alternadamente
objeto e sujeito, os opostos se diferenciaram: ‘O Um se torna Dois’, afirma o ‘Axioma
de Maria’. Aqui, o Dois era uma condição muito instável. Em outros processos, o
Dois pode ser muito mais estável; mas neste caso, os opostos divididos criaram um
estado de Dois que oscilava, entrando e saindo da consciência.
164

Graças ao Self como agente de contenção que mantém vinculada a rede dos
opostos e, graças e esta mesma vinculação ‘vista’ no campo, uma nova natureza se
tornava perceptível, como na próxima etapa do ‘Axioma de Ostanes': ‘uma nova
natureza supera a natureza’. Neste processo, a nova natureza assumiu a forma
terrível que o analisando percebia como objeto de segundo plano. Ela se sentia
constantemente atacada por essa forma de segundo plano, que reconheceu como
apresenta de sua experiência materna.
Esta ‘presença’ de um objeto de segundo plano negativo - um oposto total à
experiência positiva de um ambiente de espera, de ‘ser apoiado’ - foi crônica na
analisanda. A existência de tais divisões front-back entre o que está diante e o que
está no fundo, é um padrão arquetípico da psique. Muitos sistemas meditativos
tentam constelar um objeto positivo em segundo plano. Quando eu consegui ‘ver’
esse objeto de segundo plano, e ela também pode reconhecê-lo, emergiu uma nova
e mais estável consolidação. Essa ‘nova natureza’ superou a natureza anterior. Até
que o objeto de segundo plano poderia ser 'visto', outras formas de divisão não
ocorreram. Mas esse estado da consciência imaginária era altamente instável; por
este motivo, a última fase, ‘uma natureza domina outra natureza’, ainda não havia
ocorrido. Em vez disso, eu e a analisanda passamos, repetidamente, através dos
dois primeiros estados, vivendo muitas experiências de transferência, na esperança
de adquirir mais estabilidade, assim como ela tinha feito com sua filha. O que,
muitas vezes, é notável em processos semelhantes, é que, apesar da instabilidade
da ordem do tipo fugaz que aparece, ocorre um processo de mudança de estrutura
em transformação, em geral, é uma verdadeira surpresa, e que certamente nos
surpreendeu.
Os antigos princípios essenciais do processo de transformação estão
descritos no conto de ‘Isis a profetisa ao seu filho Horus’, em que Isis revela o
segredo da alquimia. De acordo com Lindsay, “Isis desempenha apenas uma
pequena parte na literatura alquímica além desse trabalho (...). Existem duas
versões que não diferem substancialmente. As passagens da segunda versão foram
adicionadas entre parênteses:

Você, meu filho, você decidiu partir para a batalha com Tufão, de modo a disputar
com ele o reino de seu pai. Quanto a mim, depois da tua partida, eu fui para
Hormanouth, onde a Arte Sagrada do Egito é praticada em segredo. E depois de
ter ficado lá por muito tempo, eu desejei voltar.
Bem, quando eu estava prestes a sair, um dos profetas ou anjos que habitam o
primeiro firmamento me viu (graças a uma estação favorável e de acordo com o
movimento necessário das esferas). Ele veio em minha direção e queria acasalar-
se comigo, em uma união amorosa.
(Eu estava prestes a fazer o que ele queria), mas recusei-me. Eu exigi que antes
ele me contasse sobre a preparação de ouro e da prata.
No entanto, ele exibiu certo sinal de que tinha na cabeça e um vaso que segurava
entre as mãos e que não continha peixes, cheio de água transparente. Mas ele se
recusou a me dizer a verdade.
No dia seguinte, tendo voltado a mim, Amnael estava tomado pelo desejo em
relação a mim e (incapaz de conter a sua impaciência) apressou-se em pedir para
obter o objeto pelo qual tinha vindo.
Mas, quanto a mim, eu deliberadamente não tomei conhecimento (e não perguntei
nada sobre tudo isso).
165

No entanto, ele não parou de tentar me conquistar e me convidar para o ato, mas
recusei-me a me deixar levar. Eu recusei a sua luxúria até que ele estivesse
pronto para me mostrar o sinal em sua cabeça e me revelar, generosamente, e
sem esconder qualquer coisa, o mistério sonhado.
Então ele decidiu me mostrar o sinal e revelar os mistérios. Começou enunciando
os detalhes e os juramentos - e aqui está o que ele expressou:
"Jura no céu e pela terra, na luz e na escuridão. Juro no fogo, na água, no ar e na
terra. Jura no topo do céu e nos abismos dos Tartaros. Jura por Hermes e Anubis,
e pelo rugido da serpente Ouroboros e de Cerbero, o cão de três cabeças,
guardião do Hades. Jura pelas Três Deusas do destino, em seus chicotes e na
sua espada".
Quando ele me fez jurar por todas essas palavras, prosseguiu solicitando-me para
jamais comunicar a ninguém a revelação, exceto você, meu filho amado e legítimo
(para que ele pudesse ser você, e você, ele).
Então, vá então, meu filho, a um determinado trabalhador (Achaab) e pergunte o
que ele tem semeado e recolhido, e aprenderá com ele que o homem que semeia
o trigo também colhe trigo e o homem que semeia cevada, também colhe cevada.
Agora que você ouviu esse discurso, meu filho, e aprenda a compreender a
fabricação inteira, (demiurgia) e a geração dessas coisas, e saiba que a condição
do homem consiste em semear um homem, de um leão, semear um leão, de um
cão, semear um cão, e se acontecer que um desses seres seja produzido contra a
ordem de natureza, será gerado no estado de um monstro e não pode subsistir.
De fato, uma natureza se alegra com outra natureza, e uma natureza conquista
outra natureza.
(Então, tendo compartilhado este poder divino e tendo sido favorecido por essa
presença divina, iluminados graças ao pedido de Isis) devemos preparar a matéria
com o auxílio apenas dos minerais, sem usar outras substâncias (e conseguir o
nosso objetivo graças ao fato de que a matéria adicionada é da mesma natureza
daquela que foi preparada). Assim como eu lhe disse, o trigo gera o trigo, o
homem gera o homem, e do mesmo modo, o ouro gera o ouro. Veja, o mistério
está todo aqui (1970, 195).

A batalha entre Horus e Seth é a antiga luta desses deuses egípcios em que
Horus arranca os testículos de Seth enquanto Seth arranca um dos olhos de Horus.
Em um homem, esta batalha representa a clássica ‘luta com a sombra’ entre
atitudes alternativas: uma emocional e violenta, e muitas vezes, malvada,
representado por Seth; a outra espiritual e relacional, boa, representado por Horus.
Em uma mulher, a batalha entre Horus e Seth representa um conflito entre as
atitudes internas: uma posição espiritual, geradora de vida, e uma força demoníaca,
de morte. De acordo com Ogden, o conflito encarna a dinâmica da identificação
projetiva:

A identificação projetiva é um conceito que aborda a maneira pela qual os


sentimentos correspondentes às fantasias inconscientes de uma pessoa (aquele
que projeta) são gerados e processados em outra pessoa (o destinatário), ou seja,
a maneira em que uma pessoa faz uso de outra pessoa para experimentar e
conter um aspecto de si mesma. O projetor tem a fantasia primeiramente
inconsciente de livrar-se de partes indesejadas ou ameaçadoras em si mesmo
(incluindo objetos) e de depositar essa parte em outra pessoa como uma poderosa
modalidade de controle. A parte projetada do Self é vivida como sendo
parcialmente perdida e colocada em outra pessoa. Associada a essa fantasia
projetiva inconsciente, existe uma interação interpessoal através da qual o
destinatário é pressionado para pensar, sentir e se comportar de maneira
congruente com os sentimentos ejetados e as auto-representações encarnadas na
fantasia projetiva. Em outras palavras, o destinatário é pressionado a se engajar
166

em uma identificação com um aspecto específico, desconhecido por parte do


projetor (1982).

O processo de identificação projetiva pode ser horrível: é como se o objeto da


projeção tivesse a sensação de sentir-se como se seu o olho estivesse se arruinado,
símbolo da consciência. Como resposta, mediante a reatividade emocional, o objeto
tende a ‘castrar’ especialmente a racionalidade, reativa, a posição defensiva e a
resolução de problemas. Uma terapeuta, por exemplo, queixou-se de que estava
ansiosa com um determinado analisando. Quando ela e eu examinávamos mais
profundamente a situação, ela parecia ter medo de que o cliente a abandonasse. O
cliente também exigia que o terapeuta resolvesse seus problemas de ansiedade. Ela
se sentia ansiosa sob a pressão desta demanda e a ameaça implícita de abandono.
Então, ela não conseguiu lidar com os dados, com a demanda de onipotência e o
medo de abandono. Em vez disso, ela procurou soluções.
A analista não conseguiu ‘ver’ que no analisando tinha se ativado uma criança
pequena, que esta parte estava sob um ataque interior terrível e estava se
refugiando para a onipotência. O analisando pressionava a analista para que fosse
onipotente, e a analista tentou cumprir. Neste estado inflado, seus olhos são
arrancados; ela ‘trocou vaga-lumes por lanternas’ e forneceu uma solução, caindo
como presa da compulsão do campo, ao invés de permanecer em seu campo que
estava constelado com os seus aspectos de ansiedade e abandono.
O processo emocional de seu analisando, efetivamente, arrancou seus olhos.
Mas garantindo-lhe o seu desejo de onipotência, ela lhe forneceu uma ‘solução’ que
não poderia fazer outra coisa além de castrá-lo: "Eu vou resolver isso por você, seu
idiota." Sua ‘solução’ não é sua e, além disso, ela exigia que ele funcionasse a um
nível além de suas habilidades, pois estava sujeito às ameaças de abandono. Então,
segundo a metáfora do conto, seus olhos e seus testículos são arrancados.
Mas dentro de tal comportamento entre analista e analisando existiam Isis e o
Anjo, uma coniunctio potencial, de forma sulfúrica ou compulsiva. Depois que Isis
resiste à sua compulsão, o Anjo revela o mistério central da alquimia ‘o semelhante
cria e semelhante’ com a injunção de nunca criar através de entidades diferentes.
Em todos os encontros humanos, existe a tentação de negar essa sabedoria.
Toda vez que um estado caótico existe, especialmente quando as áreas psicóticas
são ativadas, a tendência é mudar para algo conhecido. Geralmente, existe também
a tentação de espelhar a necessidade de alguém de ser visto e de negligenciar
outros sentimentos de grande desconforto. Este ato de negligenciar faz ‘trocar vaga-
lumes por lanternas’. Também, as interpretações rápidas podem violar o conto,
especialmente quando aumentam o nível de conforto do analista. No conto de ‘Isis a
profeta para o seu filho Horus’, o analista e o analisando, continuam aprendendo
como, ao agir e ao falar sobre um desejo sentido, pode resultar na revelação de uma
sabedoria mais profunda. Ambos podem conhecer o mistério do Self dentro de um
campo interativo em que a frase final do conto, "Eu sou você", pode surgir.
O processo de transformação na alquimia requer a sabedoria dessas três
parábolas. Inspirado por essa mitologia, o alquimista renascentista criou, no
167

Rosarium Philosophorum, um tesouro de imagens das dinâmicas de campo. O


processo de transformação implica a apreensão de uma díade inconsciente de um
caos inicial, em que não existe sentido de ordem ou memória, e em que o processo
psicótico pode ser a prima materia.

AS IMAGENS DO ROSARIUM PHILOSOPHORUM

A série de vinte xilografias do texto alquímico mais famoso, o Rosarium


Philosophorum (1550), pode ser vista como um processo entre duas pessoas,
experimentando dinâmicas de campo e trabalhando com a transformação do campo
em si. O objetivo é criar qualidade de campo, tanto interno-individual, quanto
externo-conjunta que perdure através de qualquer trauma mental, emocional,
somático ou ambiental, por meio de uma união mente-corpo tão sutil como uma
fonte de autêntica percepção imaginal. Se bem que este tipo de estabilidade
significa um objetivo inalcançável, no entanto, indica o sistema de valores desse
pensamento, além do que, implica ainda que o êxito não consista em atingir a
perfeição, mas em estar no caminho da transformação.
As dez primeiras xilografias do Rosarium são perfeitas para descrever um
campo interativo, uma vez que elas trabalham continuamente com a imagem de um
casal com a décima, a 'Rebis' (Fig. 18), uma hermafrodita representando a união dos
opostos. O estágio representado pela conclusão das dez primeiras xilografias é
chamado de ' A Imperatriz' ou a ’Pedra Branca’, que representa a criação de uma
estrutura do Self que unifica mente e corpo. É muito significativo, que a conquista
estrutural representado pela ‘Pedra Branca’ seja capaz de perseverar ou de
recuperar-se em meio aos ataques de ansiedades abandonadas, pânico e medo que
um indivíduo possa viver como uma morte psíquica. A Rebis pode ser uma
qualidade do campo interativo entre duas pessoas, ou ainda pode ser uma imagem
de um Self interno. A Rebis está em cima da lua representando o mundo do corpo
sutil, um indicador de que esse tipo de visão encarnada, - uma consciência dos
estados de união e suas vicissitudes (em experiências de nigredo que se seguem),
agora existe e não será destruída.
No entanto, os alquimistas reconhecem que essa criação é ‘aquosa’, ainda
não tendo a solidez caracterizada pelo resultado das próximas dez xilografias, a fase
da rubedo. No albedo, sob o impacto da paixão se perde a consciência do campo e
do sentido de si. O campo pode ser recuperado por meio de um elemento essencial
de confiança, alcançado no albedo, mas na rubedo o alquimista procura trazer uma
espécie de vida e de sangue para a ‘pedra’ que agora tem uma continuidade e
presença mais profundas em meio a intensas emoções e nos estados do corpo. No
albedo, de acordo com Jung:

não existe verdadeira vida, é uma espécie de estado abstrato, ideal. Para torná-lo
vivo, deve ter ‘sangue’, deve ter o que o os alquimistas chamavam a rubedo, a
‘vermelhidão’ da vida. Somente a experiência total de todos os estados do ser,
pode transformar o estado ideal de albedo em um modo de existência plenamente
humana (Mcguire e Hull, 1977, 295).
168

Na alquimia, trabalhar com o ‘vermelho’ deve ser baseado em uma


iluminação prévia ou fase solar: "E, assim, aquele que não sabe o princípio, não
obtém o fim, e aquele que não sabe o que procura é também ignorante do que ele
encontrará" (McLean, 1980, 19). Esta iluminação desce para o corpo e, como
resultado, a "Pedra branca" pode ser criada através do trabalho com os opostos,
como em uma experiência de campo ou numa díade inconsciente. O Rosarium
afirma:

Porque foi dito, que a Lua contém em si o enxofre branco (...), todavia, a forma do
fogo ainda está escondida embaixo da brancura. Portanto, apesar disso, é
possível que da Prata seja feito o ouro. Depois disso, o Filósofo diz: 'Não se
tornará ouro, a menos que tenha sido prata por primeiro (McLean, 1980, 80).

Esta insistência na fabricação da prata, a ‘Pedra branca’, antes do ouro, é


essencial para a abordagem alquímica, porque até que não se reestabeleçam a
consciência do corpo e o mundo imaginal do corpo sutil, o caminho espiritual da
rubedo conduzirá somente a uma posterior divisão mente-corpo.
As dez xilografias da rubedo não se prestam a uma interpretação de campo
tão direta como as dez primeiras, embora várias delas, especialmente a décima
primeira, 'Fermentação' (Fig. 21), podem ser vistas como representações das
possíveis dinâmicas de campo. O estágio da rubedo, no entanto, vai além do
relacionamento e da visão imaginária da vida lunar, feminina e, eventualmente,
recupera a visão solar e espiritual que era um pré-requisito. Inicialmente, essa visão
foi desencarnada, resultado da unio mystica, e muito ignorada pela vida encarnada e
os mistérios femininos da coniunctio. O espírito ainda é um perigo para o 'Pedra
Branca', pois pode ser usado para escapar da relação e da encarnação que trazem
consigo os perigos da fusão e da perda de identidade. Tais estados alimentam os
níveis de engajamento com o ‘Outro’ que alguns alquimistas pretendem superar,
especialmente a paixão impossível descrita pelo mito de Átis-Cibele. A reconciliação
deste estado de paixão pode ser também o significado da imagem mais misteriosa
de toda a série, a décima oitava xilografia, em que o leão verde devora o sol (Fig.
28).
Assim, não só o espírito, mas também os perigos da paixão podem fazer com
que o processo regrida para a fuga da encarnação. A paixão, mais proeminente na
décima primeira xilografia, a ‘Fermentação’, é o centro do estado da rubedo. Na
décima segunda xilografia, 'Iluminação' (Fig. 22) e na décima oitava xilografia,
'Mortificação do Casamento Celestial’, a vida solar é continuamente sacrificada ao
serviço da criação de uma nova estrutura do Self que não escapa do corpo e que é
também estável sob o impacto das paixões e da visão espiritual.
Especialmente importante é a décima nona xilografia em que a alma é
coroada por grandes personagens (Fig. 29), enquanto que em outras visões do
Rosário a coroa possui dimensões muito grandes para a alma. O significado desta
imagem é que a pessoa deve reconhecer que a fonte de iluminação está fora do seu
ser (McLean, 1980, p. 129), uma questão importante em termos das formas em que
o numinosum é experimentado. O numinosum sempre tem um aspecto
169

transcendente, um Self que não pode ser encarnado, mas que se encontra também
em grau de criar um eu. Estes dois aspectos do Self, imanente e transcendente, não
estão confusos na tradição alquímica. Se bem que essas fontes de benção e
significado têm uma semelhança substancial, são experimentadas em âmbitos com
diferentes escalas. Com essa consciência, o alquimista nunca deixa de conhecer o
seu lugar no Cosmos, e a inflação já não poderá traí-lo.
Geralmente, o Rosarium, em seu estado de Rubedo, consolida um eu que
pode viver sem fusão com os outros e que faz experiência de uma paixão pelo
vínculo - com os outros e consigo mesmo - que não é repudiado de um dia para o
outro pelo medo de ser engolido e contaminado.
A transformação dos processos interativos favorece este resultado, em que se
obtém um eu sensível, tanto do modo ‘lunar’, quanto do ‘solar’ de relações e de
experimentar o numinosum, como o pergaminho desta imagem da ‘coroação’ afirma:

Verdadeiramente, a lua é a mãe; e o pai, do filho foi criado; o seu pai é o filho. O
dragão não morre sem o irmão e a sua irmã; e não por um somente, mas por
ambos.

A transformação do dragão, a imagem da morte de um campo caracterizado


pela concretização de pensamentos e projeções e por uma tontura na visão, é
realizada através do trabalho imaginal no casal inconsciente, ‘irmão e irmã’,
encontrado dentro do campo do corpo sutil. Assim, mesmo que o Rosarium defina
as experiências de transcendência que vão além das noções de campo conjunto,
são alcançadas através do trabalho com a díade inconsciente.
A díade inconsciente existe em um médio, o corpo sutil, que está ao centro do
pensamento alquímico. Jung evidenciou este papel de um médio para as projeções:
"É este médio, o corpo sutil, que unifica o espírito e o corpo, através do qual a
psique pode ter efeitos muito reais, através dos quais se conhece a realidade física"
(1988, 432). Os efeitos de uma pessoa sobre a outra são tão fortes que o objeto
muitas vezes, prefere ‘não notar’. Jung afirma ainda:

Se alguém intuir que o outro tem certo pensamento, provavelmente este será
levado a pensar aquele pensamento. A intuição parece funcionar através do
sistema simpático, e sendo uma função semi-inconsciente, permite também
emergir um efeito inconsciente no objeto da intuição. Ao tratar com os intuitivos,
percebemos que eles podem intuir uma coisa de tal modo que ela vem como
lançada na nossa espinha dorsal, na nossa medula espinhal, e nós devemos
reconhecer que estávamos pensando nisso, mesmo se, na sequência,
percebermos que aquele pensamento não era certamente o nosso (...) (1988, 616-
17).

E Jung também observa que:

Uma projeção é uma coisa muito tangível, uma espécie de coisa semi-
inconsciente que produz uma carga, como se ela tivesse peso real. É exatamente
assim que os primitivos a entendem, um corpo sutil (...). É interessante que os
alquimistas tenham descrito a fabricação da pedra como uma projeção. Ou seja, é
algo que está separado do indivíduo: separamos algo e estabelecemos que ele
possui uma existência independente, colocando-a fora de nós. Agora, isso pode
170

ser totalmente legítimo na medida em que é uma questão de objetivação de


conteúdos psíquicos; ou ainda, pode não ser mais absolutamente legítimo se for
usado para propósitos mágicos, ou se é uma simples projeção, em que se liberta
de qualquer coisa (…) (1988, 1495-96).

Essa capacidade de ‘objetivar conteúdos psíquicos’ em vez de ‘livrar-se deles’


faz parte do mistério de projeção e está subjacente à capacidade de provar certos
estados mentais e imaginá-los como parte de um campo interativo. Podemos
imaginar-nos ‘jogando-os’ no campo.
O campo é influenciado pela vida interior de cada pessoa. Por exemplo, um
homem sonhou ter feito sexo com uma mulher, mas podia ver, no espelho, que o
próprio pênis passava através dela e saia por trás. Ele praticamente não
experimentou nenhuma sensação sexual, porque ela era quase incorpórea. De
qualquer forma, essa imagem poderia referir-se à sua vida, mas também
representava a campo interativo entre nós. Ele poderia ser muito ativo com uma
energia que estava presente e clara, mas qualquer energia de conexão que surgisse
entre ele e eu, ele caia na inconsciência. Esse ritmo entre os opostos do poder e da
inconsciência, com cada uma delas que dominavam em alternância, foi o ritmo do
campo interativo entre nós. Na identificação projetiva, eu podia sentir esses dois
estados. Mas o que eu contribuía? Eu me dissolvia com ele, a menos que eu me
mantivesse estreitamente conectado à minha atenção. Mas foi esse mesmo ato que
me impediu de conhecê-lo. Então, eu deixei-me conduzir por um ritmo semelhante,
relaxando a minha atenção consciente e permitindo que emergisse qualquer coisa, e
depois me concentrando de modo intenso e controlado. Assim, esses opostos
definiram nosso campo; nós dois contribuímos, mesmo que tivesse sido o seu sonho
a dar início à consciência dos opostos. Ele reconheceu que estas qualidades de
estados opostos e conflitantes existiam dentro dele, mas apenas quando eu o fazia
notar. Então, eu podia ver os opostos como uma dinâmica inconsciente entre o seu
ego e seu lado feminino, e esta relação que dominava o campo interativo, eu
também poderia torná-la um caso, embora um analista possa pensar em sua
contratransferência como uma reação à transferência do analisando. Mas eu poderia
realmente saber se a sequência de eventos era verdadeira? Poderia saber se a
minha conexão interna Ego-Anima não influenciasse o campo, nem mesmo ou mais
fortemente, do que a dele? Eu só poderia perceber que uma qualidade de campo
relacional dominava o nosso trabalho. Nós dois poderíamos experimentar
imaginalmente essa qualidade, em nível individual e interativo, mas quando minha
consciência flutuava para frente e para trás entre os opostos, como fazia também a
sua, nós vivíamos a nós mesmos também no campo. Assim, o espaço que
ocupamos poderia ter a natureza do vaso alquímico, enquanto nós deveríamos
intersectar ativamente o campo para descobrir essa qualidade do espaço. Se não o
fizéssemos agir dessa forma, então o espaço permanecia cartesiano, um mundo
tridimensional do ‘seu’ processo e do ‘meu’ processo e da sua interação. No entanto,
este espaço cartesiano não tem textura ou espírito; não é um pleno, mas um vazio.
O processo alquímico reconhece que observar e experimentar o campo proporciona
uma maneira de transformação.
171

A PRIMA MATERIA DO PROCESSO DE TRANSFORMAÇÃO

Na ‘Fonte Mercurial’, a primeira xilografia do Rosarium (Fig. 4), o objeto de


transformação – a unificação da mente e do corpo através do trabalho com uma
díade inconsciente - é representada de forma abstrata. A serpente de duas cabeças
e as águas inferiores, dionisíacas, ambas são ‘pontos de partida’, formas da prima
materia alquímica. A serpente Binarius representa os mundos contrários nas áreas
loucas da psique. E o mito Kwakiutl de Sisiutl (cap. 6) amplifica ainda mais essa
imagem, demonstrando que a experiência da confusão, o medo e a falta de
consciência dos mundos contrários aniquiladores, podem levar à visão, a ser capaz
de ‘ver’, um objetivo sagrado no trabalhar com a prima materia.
O nível superior, o mundo diádico da serpente Binarius e as águas inferiores
da Fonte, as paixões e os estados corporais dos Dionísios extáticos, ele mesmo um
deus louco, são idênticos. A inscrição na Fonte Mercurial indica que Mercurius é
animalis, vegetabilis e mineralis, que se repete no nível do Binarius. Jung observa
que vegetabilis deveria ser traduzida como ‘vivente’, e animalis como ‘animar’, no
sentido de ter uma alma ou mesmo no sentido de ‘psíquico’ (Obras, vol. 16, p. 212).
Assim, as três qualidades do deus trino da alquimia são equivalentes à matéria, à
alma e ao espírito. Os três fluxos de água que escorrem da fonte, são, como
observa McLean, sinônimos do fluxo Lunar, Solar e do Meio, as Águas da Vida como
são encontradas no Tantrismo (1980, 119). Combinando solar e lunar dentro de um
campo do ‘terceiro’ é o leitmotiv de todo o processo. Não é possível garantir o seu
sucesso ou o seu fracasso, pois as ‘águas’ tratadas são descritas como segue:

Nenhuma fonte e nenhuma água são iguais a mim


Torno saudáveis ou doentes, tanto os ricos, quanto os pobres
Porque eu posso ser mortal e venenosa. (Fabricius, 1976, 18).

As formas superiores e inferiores da prima materia são dois aspectos do


mesmo fenômeno, o modo no qual espírito e matéria são dois lados da mesma
moeda. Um é experimentado através do reino mental-espiritual, e o outro através da
vida encarnada e o inconsciente somático, o corpo sutil. Mas essas experiências
estão divididas ao nível de chakra do coração, como no pensamento tântrico que
influenciou o Rosarium (McLean, 1980, 119). Em outras palavras, o Rosarium
representa espírito e matéria como modalidades da experiência da vida que se
tornaram contraditórias e mutuamente excludentes. A ideia é que o desenvolvimento
da consciência ao longo da história da vida patriarcal e solar-heroica, resultou nesta
divisão, que agora deve ser curada. Uma maneira simplificada de descrever esta
divisão é falar de divisão mente-corpo, mas, na verdade, duas principais
modalidades humanas de percepção e de cognição não estão unidas em uma
harmonia rítmica como devem ser. O Rosarium, e talvez a alquimia renascentista em
geral, se referem sobre a cura dessa divisão, que é, pela primeira vez, representada
na décima nona xilografia (Fig. 29). O caminho da cura, no Rosarium, é através do
trabalho com os pares de opostos, geralmente representados como sol e lua, ou
172

irmão e irmã: pares vistos como qualidades opostas do corpo sutil, ou no interior de
um campo interativo.
O Rosarium oferece ainda outro ponto de vista sobre a serpente de duas
cabeças, que é especialmente importante na fase da rubedo, caracterizada pelas
últimas dez xilografias. De fato, a serpente existe no nível do chakra da testa, o que
significa que o Binarius está centrado em um nível de visão espiritual.
A visão transcendente que o alquimista Albertus acreditava ser necessária
para a sua obra - "enquanto a alma não sair do corpo para acederá ao Céu, jamais
chegará a esta Arte” (McLean, 1980, 110) – inevitavelmente se encarna novamente
uma vida de espaço e tempo comuns. Em seu vínculo com o numinosum, a alma,
que se torna capaz de experiência espiritual e física, chega além de sua
temporalidade existencial; mas ao retornar à vida encarnada e ao ego, a alma
encontra ansiedades esmagadoras. Como resultado, a pessoa experimentará um
intenso estado de confusão e divisão de opostos, como se ocorresse uma
lembrança da ordem e a luz da unio mystica, mas se encontra totalmente perdida
em um estado oposto de medo e total desorientação. Se o indivíduo não for muito
sobrecarregado nesta conjunção ao ponto de se tornar extremamente psicótico,
essas oscilações entre os mundos contrários se acalmarão, e como resultado,
poderá iniciar o processo de encarnação do numinosum, que pode eventualmente,
levar à criação de um eu interior estável e espiritual. Essa estrutura psíquica do eu é
uma dos pontos de partida dos alquimistas, como está descrita na sua visão de que
é preciso o ouro para fazer o ouro. Quando Jung (1988) lida com o corpo em sua
análise da obra Assim falou Zaratustra de Nietzsche, ele afirma que um indivíduo
necessita ter um espírito para colocar no corpo antes de poder entrar no corpo e
fazer a experiência da sua natureza sutil. Se não tiver a presença deste início
espiritual, entrar no corpo não conduz a uma experiência transformadora, como do
corpo sutil e da união mente-corpo.
Portanto, as angústias psicóticas representadas pela serpente de duas
cabeças, ou as mesmas angústias da loucura do reino dionisíaco, não devem ser
consideradas dentro de um paradigma evolutivo como, por exemplo, uma defesa
contra a perda de identidade em estados de fusão. Essas angústias certamente
podem servir à função de evitar níveis mais profundos de dor, mas o Rosarium
reconhece que esse nível de angústia é necessariamente concomitante à
experiência de iluminação. Quando um indivíduo está passando por níveis
psicóticos, como as intensas oscilações entre opostos no Binarius, ele pode ser
acalmado e o estado pode se tornar criativo se o outro indivíduo a ele relacionado
cria um sentido de contenção. Um apoio positivo semelhante pode ocorrer se esse
indivíduo conhece o nível de angústia psicótica como o resultado da iluminação, e se
torna capaz de empatizar com quem sofre o estado da intensa angústia, mas esta
empatia deve vir acompanhada pela lembrança da iluminação anterior a esta
experiência de perda atual. O sujeito que sofre não está consciente deste nível
espiritual, mas a suposição que se pode fazer, de modo alquímico, é que ele existe
como precursor do caos que está sendo experimentado. Assim, na sétima xilografia
profética do Rosarium, conhecida como Impregnatio (Fig. 15), a alma ascende ao
173

céu e deixa para trás um ser hermafrodito morto. Do ponto de vista consciente, um
indivíduo ou um casal experimentando a dinâmica representada por esta xilografia,
conhecerá apenas um estado terrível de desorientação e perda de qualquer forma
de conexão interna ou externa. No entanto, de um ponto de vista mais profundo,
afirma-se que essa conexão perdida, a alma, se encontra no processo de ser
impregnada por uma forma mais elevada de consciência.
Essa abordagem alquímica é ‘não-redutora’ e espiritual, no sentido de que os
estados mentais não são vistos como fantasmas de falhas evolutivas da
personalidade. O papel de consciência espiritual revela-se especialmente importante
quando o analista e o analisando encontram as últimas dez xilografias da rubedo. De
fato, então eles devem ‘acrescentar’ não só paixão e encarnação, no sentido de
viver o Self no mundo real (o que ainda não é parte da opus na fase da albedo das
dez primeiras xilografias), mas também devem acrescentar a consciência espiritual,
cuja experiência foi um tanto embotada ou perdida no processo de encarnação. O
nível lunar da albedo, a ‘Pedra branca’ criada através da décima xilografia (Fig. 18),
em que uma estrutura do Self que une os opostos foi alcançada (embora de forma
‘aquosa’ ou instável, ainda sujeito à perda temporária através de afetos intensos),
deve se juntar com a consciência espiritual. Esta inclusão da vida espiritual pode se
tornar um problema, pois pode ser empregada para fugir do mundo, das relações e
do corpo. A vida espiritual pode se tornar um refúgio seguro contra conflitos
intensos, de perda e abandono, como acontece em muitas disciplinas espirituais que
o Ocidente assimilou. Então, quando a vida do espírito é reincorporada, deve ser
feita sem perder a visão encarnada, lunar, e o sentido do eu criado na albedo. Esta
incorporação do espírito de modo encarnado é realizada no estágio da rubedo
através de uma consciência aguda da necessidade de sacrificar a consciência solar,
ou seja, aquele tipo de iluminação e de consciência que a alma adquire em seu
modo intuitivo ou espiritual. Durante o processo deste sacrifício, o indivíduo, mais
uma vez, anima a ‘Pedra Branca’ até que ela se transforme em sua forma final,
‘Vermelha’ que integra espírito, paixão e vida encarnada, incluindo o comportamento
no mundo.

DESCOBERTAS E RESISTÊNCIAS NA EXPERIÊNCIA DA DÍADE


INCONSCIENTE

A segunda xilografia do Rosarium, o ‘Contato com a mão esquerda’,


apresenta a primeira imagem de um casal, o Sol e Lua alquímicos (Fig. 9). O
‘Contato com a mão esquerda’, é referido no Tantrismo como ‘esquerdo’, porque
representa um vínculo que quase negligencia a reflexão consciente e o controle. De
certo modo, as forças inconscientes das duas pessoas se combinam envolvendo
energias incestuosas. Essas forças inconscientes são as primeiras conexões
familiares que o indivíduo internalizou, particularmente aos vínculos incontáveis,
inconscientes e proibidos entre membros da família. Existe uma forte possibilidade
de que, na análise e nas relações pessoais, se faça um mau uso de tais energias.
Por esta razão, na segunda xilografia, é necessária a descida da pomba, que
174

representa a iluminação pelo espírito ou o vínculo com uma consciência superior.


Esse vínculo é ‘adicionado’ ao encontro, e apenas na quinta xilografia, a ‘Coniunctio’
(Fig. 12), este controle é integrado à própria dinâmica do campo. Nas primeiras
quatro xilografias, e especialmente na segunda, remete-se a uma espécie de
consciência ‘externa’, algo como um Superego espiritualmente inspirado.
O analista e o analisando podem encontrar díades inconscientes no decorrer
dos encontros aparentemente ordinários, quotidianos. Por exemplo, em uma
interação comum, pode ocorrer que uma esposa diga ao marido algo que, de
qualquer modo, possa lhe parecer como crítica. A crítica não é particularmente
intensa, e ele pode facilmente deixar de lado a picada e até mesmo compreender a
verdade contida no que ela disse. Ou então, ele pode reagir com raiva ao ‘seu tom’
ou à sua ‘negatividade’. Mas o que acontece se ele espera para mostrar tais reações
e, em vez disso, persiste experimentando os próprios sentimentos? O alquimista
Geber citado no Rosarium afirma: ‘Três são as coisas necessárias para esta Arte,
isto é, a paciência, o atraso, e os instrumentos adequados’ (McLean, 1980, 96).
Quando o marido se olha por dentro, ele se dará conta de que está chateado e
irritado; mas depois pode continuar procurando os motivos pelos quais se sente
assim. Enquanto ele procura dessa maneira e, ao mesmo tempo, mantendo contato
emocional com sua esposa, percebendo que necessita experimentar os próprios
sentimentos, pode chegar a algo novo. Ao invés de sentir-se bloqueado e diminuído,
pode perceber que ela sente desprezo por ele. A palavra ‘desprezo’ pode, portanto,
lhe parecer como se fosse a palavra correta em uma poesia. Ele pode perguntar-lhe
se esta palavra faz sentido: ‘Você me despreza?’ E supõe-se que sua esposa, talvez
depois de certa resistência, da qual ele não se permite desviar em sua busca,
concorda dizendo ter sentido desprezo por ele.
Este processo pode ter exigido um grau de perseverança e gentileza de sua
parte e não foi fácil de manifestar. De fato, se ele ainda se sentir chateado por ter
sido atacado, se ele for induzi-la a olhar mais profundamente, deve também protegê-
la da própria raiva enquanto pergunta sobre suas reações, nunca podendo saber se
está certo, mas talvez esteja aberto para revelar as próprias qualidades mais
escuras. Não é fácil induzir outra pessoa a se conectar a uma parte inconsciente de
si mesma, mesmo que essa parte tenha acabado de ser ativada. No exemplo de
desprezo de uma mulher em relação a um homem, essa conexão pode ser
particularmente difícil de alcançar, pois tais reações negativas podem exercitar o seu
controle enquanto se encontram em segundo plano, pois nunca falam abertamente,
apesar de ter consequências tácitas e efetivas. Mas se ele conseguiu esse esforço
de revelação, pode então olhar posteriormente para os seus sentimentos e
reconhecer que ser tratado com desprezo - o que ele agora reconhece ser um
padrão de longa data não apenas com sua esposa, mas também com mulheres
anteriores em sua vida - o deixa muito bravo.
Então, essa troca onde deixa o casal? A esposa revelou seu desprezo, e o
marido reconheceu que estava muito bravo. Ela agora poderia ‘elaborar o próprio
desprezo’, examinar como isso se liga às suas relações objetais primárias e aos
próprios sentimentos sobre os homens. Por sua vez, ele ainda poderia observar
175

como a sua raiva intensa também está relacionada às suas experiências iniciais e
com as mulheres em geral. Desta forma, ambos poderiam começar a elaborar as
qualidades da sombra.
Essa descoberta mútua é o início de um processo alquímico de
transformação. Mas como eles entram no reino do corpo sutil, em um lugar onde a
transformação pode acontecer? Inicialmente, eles se encontram em um estado de
lidar com as emoções que cada um sentia como sendo repugnante. Certamente eles
não se suportariam mutuamente de modo consciente aos estados destrutivos de
raiva e aos estados corrosivos de desprezo. Os alquimistas falavam de uma
‘repulsividade’ nesse início ou o Caos e que não é necessariamente óbvia. A
insistência do marido em parar, esperar e sentir, foi um ato de penetrar em um caos
que poderia ter sido facilmente evitado. A disposição da esposa para ouvir, refletir,
reconhecer e perceber o próprio desdém foi uma reação que poderia ter sido
facilmente evitada. Se um dos dois não estivesse disposto ou incapaz de estar
consciente de seu lado sombrio, eles não poderiam ter entrado no reino do corpo
sutil. Na alquimia, a opus poderia começar a partir de um estado de repulsão. No
texto alquímico 'Novum lumen, a ignição da arte', é explicado da seguinte maneira:

Ao filósofo inteligente Deus permite por meio da natureza (per naturan) tornar
visíveis as coisas escondidas na sombra, para tirá-las da sombra. (...) Tudo isso
acontece, e os olhos dos homens comuns não as vêem, mas os olhos do intelecto
(intellectus) e a força da imaginação as percebem com verdade, verdadeira visão
(Jung, Psicologia e Alquimia, p. 261-262).

Assim, agora pode ocorrer um ato imaginal. Eles podem agora, ‘decidir’ ir
além. Eu enfatizo ‘decidir’ porque um deles deve assumir a liderança para fazer as
perguntas: "Em que consiste agora, a nossa díade inconsciente? '' O que está nos
movendo?” Este ato sempre é acompanhado por alguma resistência. Ambos devem
desistir do controle neste momento. Pois já não é a ‘minha raiva’ ou o ‘meu
desprezo’, ou a ’sua raiva’ ou o ‘seu desprezo, mas agora ambos devem perder tais
pontos de vista projetivos e, em vez disso, entrar em um campo com uma vida
própria. Mas ainda tem mais, pois este ato também é uma entrada em um espaço
liminar onde existe igualdade e falta a relação hierárquica. Neste espaço
desaparecem as normas coletivas, tais como o tabu do incesto e, de acordo com
Victor Turner, "nasce um uma quantidade considerável de afeto – ainda que de afeto
ilícito” (1974, 257). Este modo de espaço revela paixões, especialmente aquelas
conhecidas através de movimentos incestuosos. No seu interior, a ‘raiva dele’ e o
‘desprezo dela’ estão associados às figuras parentais e aos primeiros sentimentos
incestuosos. Estes aspectos tornam o ‘movimento’ para uma díade inconsciente um
ato que geralmente, tem em si, certo sentido ilícito, juntamente com uma perda de
poder e de controle.
Se eles escolhem entrar neste espaço, ambos podem então considerar que
existe dois estados entre eles, raiva e desprezo. E se eles tentassem imaginar que
entre eles, metaforicamente falando, existe um casal - uma mulher com desprezo
por um homem e um homem com raiva intensa em relação a uma mulher? Isto é,
176

eles podem tentar se separar de sua identificação individual com esses afetos, e
podem, em vez disso, movimentá-los imaginalmente para o espaço entre eles e
começar a senti-los como um par de afetos em que ambos se encontram, mas que
ambos podem observar.
Se um casal permitir que tal díade exista, cada um pode sentir que está em
um ‘espaço relacional’ em que é movido por energias não experimentadas
anteriormente. O espaço torna-se vivo. Não só ambos mantêm o ritmo da coniunctio,
mas também cada um pode se identificar com os lados da díade. O homem pode
começar a sentir o seu profundo desprezo pelo lado masculino da mulher, e a
mulher pode sentir uma raiva intensa pelo lado feminino do homem. Assim, a
sensação de um campo entre eles permite com que experimentem uma fluidez de
identidade e de papeis ativos e passivos. Além disso, a consciência individual de
ambos se expande porque devem perceber o quanto as suas estruturas profundas
são dotadas de atitudes poderosas. E todo o tempo eles podem experimentar como
o campo em si existe e também como ele transporta os seus pensamentos
conscientes como o mar transporta as suas ondas. Através dessa experiência, eles
podem começar a reconhecer que são partes de um mistério, enquanto a raiva e o
desprezo são apenas palavras, apenas formas que revestem um mistério muito mais
profundo de opostos. Os alquimistas falariam de Sol e Lua, e seria claro, como é o
caso no Splendor Solis e no Rosarium Philosophorum, o casal transforma os
próprios papeis ativos e passivos.
Assim, de uma simples observação - uma crítica que poderia facilmente ser
evitada, sem dúvida, como foi feito anteriormente com centenas de observações, por
esse casal hipotético – pode-se penetrar em um reino misterioso que pode
aproveitar a vida e convidar a relação a um confronto. De fato, o campo tem seus
próprios fluxos, os próprios desejos e movimentos para a união, e o poder magnético
da coniunctio com as suas dinâmicas, coloca em jogo muitas facetas da vida
inconsciente que cada um pode desejar manter inconsciente. De um encontro árido,
a sua ‘terra’, como os alquimistas diriam, tornou-se ‘frondosa’, revitalizada, e assim
seus os corpos agora se atraem; e sentem-se envolvidos por um mistério que
sempre esteve presente, ainda que escondido em sua simplicidade.
Ao entrar em um campo com suas formas diádicas determinantes e fluidas,
ambos, de certo modo, não apenas se submetem a uma autoridade superior, mas
também devem também confiar no fato de que o outro não usa indevidamente o
próprio poder. Caso consigam alcançam sucesso no processo, geralmente se
sentirão mais próximos, como nunca antes. Com efeito, eles compartilharão um
mistério; em um sentido restrito, mas significativo, eles terão sido iniciados juntos no
mistério da sua relação.

PREPARAÇÃO PARA A CONIÚNCTIO

Após o ‘Contato com a mão esquerda’, em que ambos os indivíduos podem


ter mais ou menos sentido as energias incestuosas, mas tendem a mantê-las fora da
consciência consciente, o Rosarium continua com a terceira e A quarta xilografias
177

que são especialmente importantes, pois elevam a transição para o espaço liminar
da coniunctio. A terceira xilografia, a 'Verdade nua', retrata o casal despido de suas
roupas, e suas paixões incestuosas são mais evidentes (Fig. 10). O Sol diz: “Oh Lua,
deixe-me ser seu marido”, enquanto a Lua exclama: “Oh Sol, com certeza que eu lhe
obedeço”. E a pomba descendente traz consigo a inscrição: "É o espírito que
vivifica". A variante da imagem afirma: "É o espírito que une" (Fabricius, 1976, 34).
Em vez de serem diretamente conectados pela mão esquerda, o contato
incestuoso potencialmente esquerdo, Sol e Lua estão agora conectados por uma
rosa que cada um, respectivamente detém na mão - Lua, a rosa branca e o Sol, a
vermelha. Assim eles foram separados da paixão incestuosa, cujas energias agora
podem ser mostradas mais abertamente, umas para as outras. As inibições de Sol e
Lua estão superando a resistência para entrar em relação.
Enquanto no ‘Contato com a mão esquerda’ cada uma das rosas termina com
duas extremidades, e na ‘Verdade nua’, cada uma delas têm somente uma
extremidade. Sol e Lua estão superando a sua ambivalência e sua tendência para a
divisão. As duas rosas da pomba se tornaram a rosa mystica, a rosa que simboliza a
unio mystica do amor no nível ‘espiritual’ do incesto. O texto que acompanha a
terceira xilografia do Rosarium descreve:

Aquele que for iniciado nesta arte e nesta sabedoria secreta deve deixar a vício da
arrogância e deve ser devoto, justo e de espírito profundo, humano para com seus
semelhantes, de um semblante alegre e uma disposição feliz e respeitosa para
com isso. Da mesma forma, deve ser um observador dos segredos eternos que
lhe são revelados. Meu filho, eu exorto-te, acima de tudo, ao temor a Deus, o qual
conhece a tua disposição e, junto ao qual, encontra auxílio todo aquele que está
abandonado (Jung, Obras, vol. 16, p. 243).

A terceira xilografia é uma ladainha contra os aspectos destrutivos das


estruturas narcisistas. Não é possível entrar criativamente em um campo interativo
sem causar dano, a menos que seja capaz de aceitar a consciência, muitas vezes
chocante, do próprio inconsciente, das qualidades sombrias, que podem
acompanhar o processo e perturbar o equilíbrio narcisista.
Na imagem posterior, preparando-se para a coniunctio, a quarta xilografia,
'Imersão no banheiro', ocorre a ‘experiência das águas inferiores dionisíaco-
mercuriais' (Fig. 11). Neste estágio, ambos os indivíduos são capazes de
experimentar as energias eróticas e, através da inteligência espiritual, representada
pela pomba descendente, de saber que um mistério que está nas mãos é maior do
que qualquer um que se possa imaginar. Lidar com as projeções neste estágio pode
destruir a consciência do campo, e também uma fusão excessiva, que a
interpretação pode ajudar a separar, pode prejudicar o processo. O Rosarium
proclama: "Esta água fetal (aqua foetum) contém tudo o que você precisa"
(Fabricius, 1976, 64).
Tendo sobrevivido aos processos da terceira e quarta xilografias, o indivíduo
se torna capaz de enfrentar a principal sequência transformadora do Rosarium, a
coniunctio-nigredo da quinta até a sétima xilografia que se encontra novamente nas
últimas dez xilografias da fase da rubedo. Na modalidade de transformação
178

alquímica, tornar-se deprimido ou doente não é um estado suficientemente criativo


de nigredo; em vez disso, procura-se uma morte estrutural que dá sequência a um
estado de união, a coniunctio. O exemplo hipotético anteriormente citado, da
interação entre marido e mulher, provavelmente resultaria em um estado de nigredo.
Ou seja, depois do seu encontro, é muito provável que, nos próximos dias, eles se
sentissem um pouco distanciados. A menos que não pudessem lembrar que já
estiveram no espaço liminar da coniunctio, sua experiência degeneraria. Esta
degeneração incluiria o retorno a uma vida conjugal de projeções e decepções e,
eventualmente, a outro retorno a um espaço sagrado e a um possível recomeço da
opus. Estes recomeços encontram-se repetidamente, até alcançar uma nova
estabilidade, como consta no 'Axioma de Ostane'. Essa estabilidade é representada
na quinta xilografia, a ‘Coniunctio’ (Fig. 12).
Na quinta xilografia, o campo é representado por uma díade que está em
grande parte no inconsciente - Sol e Lua são retratados imersos na água. Nesta
qualidade de campo, a existência da díade deve ser inferida ou então ‘vista’, através
de uma penetração imaginal. A primeira imagem de união no Rosarium é introduzida
como uma visão.
É difícil explicar a natureza intermediária da coniunctio. Na imagem
arquetípica da coniunctio, se combinam duas substâncias e a energia é liberada.
Esse processo pode ser comparado ao conceito moderno de fusão a frio, isto é, os
experimentos de Utah, em que se afirma que as substâncias se combinam em uma
reação de fusão nuclear, produzindo energia sem aplicar nenhum calor extremo,
usado nas reações atômicas convencionais.
As antigas tradições, em que o pensamento alquímico se baseia, esperam a
criação de algo novo pela experiência de união. Por exemplo, afirma-se que o
estado de união mente-corpo cria o pneuma, a substância que, segundo o
pensamento alquímico, permeia o universo e do qual as estrelas são feitas. Afirma-
se que este pneuma existe no interior de um conjunto infinito de tensões que une
todas as formas de vida e de matéria, um conjunto de conexões que são a base da
noção de relações em si mesmas. Embora o pneuma sempre exista, a ideia
alquímica é que ele também é criado pela experiência da união. Ao invés da
liberação de energia tratada na fusão a frio, uma substância muito sutil, geralmente
não vista, o pneuma, é liberada pela experiência de união. No processo alquímico de
transformação, pensa-se que um indivíduo é capaz de desenvolver os próprios
sentidos até o ponto de poder ver esse nível de existência, de ver como ele se
conecta a outro ser humano e ao cosmos. Couliano discute sobre esse
desenvolvimento dos sentidos:

(O intermediário entre alma e corpo) é composto pela mesma substância - o


espírito (pneuma) - do qual as estrelas são feitas e executa a função de
instrumento primário (proton organon) da alma em relação ao corpo. Tal
mecanismo fornece as condições necessárias para resolver as contradições entre
o corpóreo e o incorpóreo: é tão sutil que se aproxima da natureza imaterial da
alma, e ainda possui um corpo que, como tal, pode entrar em contato com o
mundo sensorial. Sem esse espírito astral, corpo e alma seriam completamente
inconscientes um do outro (...). De fato, a alma não tem uma abertura ontológica
179

através da qual pode olhar para baixo, enquanto o corpo é apenas uma forma de
organização de elementos naturais, uma forma que se desintegraria
imediatamente sem a vitalidade assegurada pela alma. Finalmente, só a alma
pode transmitir ao corpo todas as atividades vitais, incluindo o movimento, por
meio do proton organon, o aparelho espiritual localizado no coração (...). O corpo
abre à alma uma janela para o mundo através dos cinco órgãos sensoriais, cujas
mensagens vão para o mesmo aparelho cardíaco que agora está envolvido em
codificá-las para que possam tornar-se compreensíveis. Chamadas de fantasia ou
sentido interior, o espírito sideral transforma as mensagens dos cinco sentidos em
fantasmas perceptíveis para a alma. De fato, a alma não consegue entender nada
que não seja convertido em uma sequência de fantasmas; em suma, não pode
entender nada sem fantasmas; o sensus interior, sentido interior ou o senso
comum aristotélico, que se tornou um conceito inseparável não só da escolástica,
mas também de todo o pensamento ocidental até o século XVIII, mantem a sua
importância mesmo para Descartes e reaparece, talvez pela última vez, no início
da Crítica da razão pura de Kant. Entre os filósofos do século XIX, ele já perdeu a
credibilidade, e foi transformada em uma mera curiosidade da história, limitada
aos livros especializados no assunto, ou se tornando alvo exposto ao ridículo (...)
(1987, 4-5).

Assim, a coniunctio é mais do que um amálgama de duas coisas, mais do que


um entrelaçamento de projeções de uma pessoa para outra, e mais do que um
estado em que as projeções penetram em outra pessoa e, na metáfora de Jung,
hospedam-se na medula espinhal do destinatário da projeção. Em outras palavras, a
coniunctio é um fenômeno que está para além, tanto da projeção, quanto da
introjeção. A preocupação alquímica reside na criação da coniunctio de seus
produtos mais conscientes, de estados mentais mais estáveis e mais encarnados,
geralmente rejeitados pela vida coletiva – isto é, as emoções e os perigos do incesto
e, em um sentido mais amplo, a paixão.
Quando a coniunctio é percebida, ou seja, quando a sua presença é
conhecida no aqui e agora, tanto aquela visão através dos olhos, quanto ou através
do sentimento ou do ouvido - a morte que se segue é, muitas vezes, um poderoso
agente transformador. O tipo de penetração imaginária que pode ‘ver’ - isto é,
perceber de algum modo a natureza das formas que operam em uma relação, as
formas que eu designei como um ‘objeto em segundo plano’ ou as formas tomadas
pelas divisões mente-corpo ou divisões verticais, ou a natureza de uma díade
inconsciente - está realmente presente para a maioria das pessoas. A sua existência
foi negada, enquanto o que esse tipo de visão conhece geralmente não é aceitável
para o mundo racional. E a sua existência também foi, muitas vezes, negada porque
o que foi visto, o segundo plano da violência e os desejos de incesto que um adulto
preferiria que não fossem vistos, ou a textura das mentiras que minam um sistema
familiar, é um reconhecimento muito perigoso para a criança em crescimento.
Quando uma criança vê uma imagem terrivelmente perigosa que espreita atrás de
um pai que está agindo como se essa imagem não estivesse presente e, nesse
caso, não sabe que este problema existe, a criança tem poucos recursos a que
recorrer, exceto unir-se à negação da sua existência. Mas, assim como a criança
está intimamente ligada ao arquétipo da criança, esta estrutura psíquica pode ver e
sobreviver. Muitas vezes, a criança vê e ao mesmo tempo nega a sua visão. No
processo de negação, as qualidades negativas do objeto são encarnadas, pois o
180

inconsciente da criança se estrutura pelas forças perigosas, agressivas, e o aspecto


heroico do ego emergente, o arquétipo da criança, tenta combater essas forças.
Assim, o drama da visão negada é evocado como um drama interno,
projetado para fora muitas vezes, mas em uma forma distorcida e paranoica que
pode ser negada pelo objeto e que também o sujeito espera não seja verdade.
Segue-se um jogo de decepção, e as abordagens psicanalíticas ocupam-se
infinitamente com o objeto interno do sujeito, com as formas em que é estruturado
por padrões míticos ou por prisões no desenvolvimento, e com as projeções que ele
emite. Uma vez que esta análise da projeção se encontra no centro, a realidade da
visão facilmente se torna um possível problema e geralmente é descartado como
parte do processo paranoico. Os alquimistas falam de imaginação real e fantástica,
pois a imaginação possui uma qualidade do tipo trickster que facilmente pode ser
usada, ao longo de linhas neuróticas, com o propósito de auto-engano.
Típico de um processo imaginal que está ao centro da transformação da
díade inconsciente, é o refrão encontrado em 'Luz das Luzes’, citado no Rosarium
Philosophorum:

O dragão não morre, a menos que seja assassinado por seu irmão e sua irmã, e
não por um só, mas por ambos de uma só vez. Sol é o irmão e a Lua é a irmã
(McLean, 1980, 49).

A importância deste refrão para os alquimistas é evidenciada pela repetição


em outros três lugares dentro do texto do Rosarium (McLean, 1980, 21, 31),
incluindo o pergaminho da décima nona xilografia (Fig. 29) (McLean, 1980, 109).
Este refrão é a essência do processo de transformação: a apreensão de uma díade
inconsciente, especialmente da união de opostos e da morte da união, tem o poder
de matar a dragão, símbolo do inconsciente em sua capacidade literária, compulsiva
e trickster de praticar o auto-engano.
Por exemplo, a mulher e o marido hipotéticos, com sua díade de raiva-
desprezo, poderiam transformar seu campo relacional, focando sobre a natureza
dividida de sua díade, de Sol e Lua juntos. Este foco significaria que um material
cada vez mais inconsciente, proveniente de uma das pessoas poderia ser tolerado
pela outra sem reações de raiva, de defesa ou de distanciamento. Em vez de
desencadear uma reação no outro, através deste processo, poderia desencadear
um cuidado para com a alma: para a própria e para a do outro. Todo impulso de
emoção e argumento, torna-se uma prima materia, algo interessante para ser visto
com cuidado, em vez de algo contra o qual reagir ou tratar como um inimigo. Desta
forma, o dragão, representando o inconsciente, assim como é experimentado por
eles, morre repetidamente, e cada vez mais material inconsciente pode ser integrado
no processo. Mas nesta abordagem alquímica, esta morte e transformação não
acontecem somente através do Sol, nem somente através da Lua, nem somente
com a compreensão interpretativa e racional, nem somente com a empatia e o
sentimento. Caso se queira chegar à sua compreensão, necessita fazer a
experiência da união de Sol e Lua, no corpo sutil, um campo interativo em que se
necessita entrar pela imaginação.
181

A transformação exige, portanto, a combinação de dois estados e que o


próprio estado combinado se transforme. Na versão de Mylius, da primeira xilografia,
os alquimistas bebem da Fonte Mercurial (Fig. 13). Beber significa incorporar, e é
assim que acontece com qualquer relação profunda. Cada uma das pessoas
incorpora uma qualidade do campo que ambas criam. Mas o estado de união está,
muitas vezes, longe de ser feliz. O representação da primeira xilografia do Rosarium
(Fig. 4) é uma interpretação maravilhosa dos opostos enquanto eles oscilam em um
campo com o seu próprio ritmo, e em que nem o engolfamento da fusão, nem a
ameaça de abandono por causa da perda e do medo da conexão, são dominantes.
Em vez disso, ao longo do processo, o reconhecimento de que a combinação de
duas realidades psíquicas também incorre em estados, cuja fusão, perda e loucura
se entrelaçam com as vicissitudes da paixão, age como um poderoso receptáculo
transformador.

UNIÃO, MORTE E RESSURREIÇÃO DO SELF

A SEQUÊNCIA CONIUNCTIO-NIGREDO NO ROSARIUM PHILOSOPHORUM

O processo alquímico de transformação, como é representado nas cinco


primeiras xilografias do Rosarium Philosophorum concentra-se na descoberta dos
182

opostos que compõem uma díade inconsciente entre dois indivíduos e a sua
sucessiva relação com a união desses opostos. O estado de união da quinta
xilografia, seguida pela morte dessa união, representada na sexta e sétima
xilografias (Fig. 12, 14, 15), constitui a sequência essencial da coniunctio-nigredo, a
dinâmica central de transformação através da qual um Self é eventualmente criado.
No processo desta evolução, o campo interativo pode mudar de formas que tendem
a uma literalização de seus conteúdos, em formas que estruturam ritmicamente a
união e a separação e mantém esta estabilidade em meio a uma variedade de
distúrbios relacionais, internos e ambientais.
O caminho alquímico da transformação, representado nas xilografias do
Rosarium, descreve um padrão de transformação que ocorre continuamente no
inconsciente, na luta de toda a vida para criar um Self. Segundo Jung:

(...) é uma desconcertante profusão de definições aquela que o inconsciente emite


sobre aquela coisa obscura que chamamos (...) de ‘Self’. Podemos quase ter a
impressão de que estamos nos preparando para continuar a sonhar juntamente ao
inconsciente o velho sonho da alquimia e continuar a acumular novos sinônimos
ao lado dos antigos, para saber, finalmente, ou ainda menos, do que os antigos
(...).
Naturalmente é fácil dizer ‘Self’, mas exatamente o que se entende por esta
palavra permanece velado em uma obscuridade ‘metafísica’ (...). E é verdade, um
conceito que cresce cada vez mais claro com a experiência – como demonstram
nossos sonhos - sem, no entanto, perder qualquer coisa de sua transcendência.
Porque não podemos saber os limites de algo desconhecido para nós, não
estamos em condições de definir quaisquer limites para o Self (...). As
manifestações empíricas de conteúdos inconscientes carregam todas as marcas
de algo ilimitável, algo não determinado pelo espaço e tempo. Esta qualidade é
numinosa e, portanto, alarmante, sobretudo para uma mente reflexiva e cautelosa
que conhece o valor de conceitos precisamente limitados (...).
Tudo o que se pode dizer sobre o simbolismo do Self é que ele retrata um fato
psíquico autônomo, caracterizado por uma fenomenologia que se repete e que é
idêntica em todos os lugares. Parece ser uma espécie de átomo nuclear, cuja
estrutura mais íntima e cujo significado final, nós não conhecemos nada
(Psicologia e Alquimia, p. 185-187).

O Self da transformação alquímica, tal como descrito no Rosarium, tem a


qualidade de ‘não-localização’ do campo que abrange não só o indivíduo, mas
também toda a humanidade. O Self é como o elétron da física que está em todos os
lugares e é localizado apenas quando individuado em uma situação de espaço-
tempo particular. Essa atitude alquímica de abraçar a humanidade e a natureza é
mais do que uma fantasia ilusória; é uma atitude psicológica e ética de cuidado para
com os outros e para com a sociedade, uma preocupação que é animada pelo Self.
O Self abraça uma ética de ser ‘socialmente útil’ (Adler, 1964, 254). Mas o Self que
finalmente ‘ressuscitou’, como descrito na vigésima e última xilografia do Rosarium,
‘Ressurreição’ (Fig. 30), também mantém um elemento ‘místico’, pois é uma criação
que conhece uma luz transcendente e prospera em sua sabedoria, e pode manter a
estabilidade e amadurecer na intensidade emocional da paixão e da relação. Assim,
o Self da alquimia é encarnado e sexual, vivo e prospero não só através do espírito,
mas também através das paixões.
183

A atitude alquímica atende ao processo de transformação de vários estados


de união através de uma consciência tanto ‘solar’ quanto ‘lunar’. A consciência lunar
pode ser muito indiferenciada, muito informe, imaginativamente muito indisciplinada
e excessivamente empática; a consciência solar pode ser muito penetrante, muito
destrutiva da sensibilidade da criação aquosa, lunar, e muito fixada sobre a
‘exatidão’ em vez de se submeter à relação, à consciência corporal e às demandas
de um todo maior. É necessário reconciliar estas duas formas de consciência para
criar uma relação que possa sobreviver como entidade funcional em meio às
emoções negativas e especialmente às ameaças de abandono.
Jung cita a máxima alquímica: “Pegue o depósito impuro (facem) que
permanece no vaso de cozimento e preserva-o, pois é a coroa do coração" (corona
cordis) (Obras, vol 16, p. 228). O depósito impuro do sofrimento e da dor das
interações humanas, especialmente aquelas que negam a ausência de relações e
procuram forçar alguma conexão, e aquelas em que dominam os níveis psicóticos
de transferência e contratransferência, tornam-se a coroa sobre a qual poderia
crescer um novo coração. Este crescimento pode se refletir em termos das imagens
da coniunctio-nigredo: o desespero, o abandono e a natureza suicida da nigredo da
sexta xilografia, e o estado ainda mais preocupante da ausência de contato, de viver
em ‘universos paralelos’ da sétima xilografia.
A sexta xilografia do Rosarium, ‘Sarcófago da concepção e do apodrecimento’
descreve o casal real, Sol e Lua, como mortos e fundidos em um único ser de duas
cabeças (Fig. 14):

Aqui jazem o Rei e a Rainha


Em grande angústia, a alma se separa.

Com efeito, a díade inconsciente está morta: o leito nupcial se transformou


em um sarcófago de ‘concepção putrefatória’, indicando como a morte é
considerada uma fonte de vida nova para o campo interativo. O evento também é
chamado de ‘concepção ou putrefação’, refletindo o insight do alquimista sobre a
natureza enigmática e paradoxal do processo de transformação ‘em preto’: um
construir através do demolir, um movimento de putrefação para a criação. "A
corrupção de um é a geração do outro", diz o Rosarium. “Quando vê que a tua
matéria fica preta, regozija-se, porque esse é o começo do trabalho” (Fabricius,
1976, 102). "Construir e demolir", é uma boa imagem para as modalidades com as
quais os opostos da vida e da morte encontram harmonia no processo de
transformação. No início do trabalho, estes opostos, como estados no campo da
serpente de duas cabeças, estavam totalmente em oposição e se aniquilavam
mutuamente.
Jung faz este comentário em relação à sexta xilografia.

(...) Esta morte é um estágio transitório a ser seguido por uma nova vida.
Nenhuma nova vida pode surgir, dizem os alquimistas, sem que antes tenha
morrido a antiga. Eles comparam a sua arte ao trabalho do semeador, que enterra
o grão de trigo na terra: ali ele morre para despertar para uma nova vida (Obras,
vol. 16, p. 262).
184

A sétima xilografia é chamada de "Extração e impregnação da alma" (Fig. 15).


Da decadência do corpo corruptor, a alma, na forma de um homúnculo, ascende ao
céu para receber sua ‘impregnação’. No texto do Rosarium, os tormentos sofridos
durante a ‘extração da alma’ fazem parte do iterum mori - a ‘morte reiterada’ - que
pertence à experiência do campo interativo deste estado da obra. Esta experiência
pode ser extremamente fatigante, provocando em ambas as pessoas, o desejo de
render-se ou evitar, de alguma forma, o processo. Continuar requer coragem e
vontade.
A natureza dissociativa desta experiência de campo é representada por um
autor alquimista, chamado Hermes, o Rei, que afirma:

Saibas meu filho, que esta a nossa pedra, que possui muitos nomes e várias
cores, é organizada e composta pelos quatro elementos. Devemos separá-los e
dissecar os membros, dividindo-os em fragmentos menores, mortificando as
partes, e transformando-as na natureza que já está nela (a pedra) (McLean, 1980,
45).

O aspecto depressivo da qualidade do campo representada pela sétima


xilografia se encontra nas palavras do autor alquímico Sorin:

Divide o todo, esfregue-o frequentemente até que a morte reine na intensidade da


escuridão, como um pó. Este é um ótimo sinal, na investigação de que não são
poucos os que pereceram (McLean, 1980, 45).

E, novamente, a necessidade de atingir essa ‘escuridão’ é reconhecida por


Hermes, que diz: "Pegue seu cérebro, moa-o com vinagre muito forte, ou com urina,
até que ele se torne ‘preto' (McLean, 1980, 45-46). Estas imagens caracterizam a
natureza escura, perigosa e potencialmente frutífera desta experiência de campo,
que parece prosperar nos tormentos e estada mentais de loucura da sétima
xilografia. Jung compara a sétima xilografia com uma dissociação esquizofrênica
(Obras, vol. 16, p. 271). Esta xilografia representa uma qualidade de campo que é a
mais difícil de abordar sem violar a sabedoria do aforismo para criar 'o semelhante a
partir do semelhante'. Em tais violações, o analista muitas vezes assume o controle
na criação da monstruosidade de uma transferência delirante e de um campo
psicótico intratável. O conhecimento e a experiência com a natureza dos opostos em
uma instância de loucura, e especialmente, com a qualidade estranha da sua fusão
ou o duplo vínculo que eles infundem no campo, são essenciais para abordar
adequadamente este estágio do Rosarium. No entanto, podem-se experimentar
esses estágios tanto como prima materia, quanto associados a uma coniunctio.
Ambas os estágios fazem parte do processo alquímico de transformação: a primeira
conexão com a compreensão do caos da serpente de duas d duas cabeças, a
segunda como um agente para transformar a rigidez e permitir que um novo Self
apareça. A primeira requer que se veja e se experiência os opostos; a segunda
requer um e outro - lembrando ou descobrindo que um estado de união precedeu a
nigredo. O Rosarium, porém, insiste que, durante este estágio mais difícil, está em
185

obra um grande mistério. De fato, agora a alma, enquanto agente da ligação e da


realidade psíquica, está sendo renovada, mesmo que a experiência do campo seja
dificilmente tolerável.
A oitava, nona e décima xilografias do Rosarium representam uma
transformação qualitativa do campo interativo em que ele não só é re-animado, mas
a sua estrutura também é transformada em outra, em que os estados negativos de
fusão, em um grau considerável, não são mais tão problemáticos. Este estado ainda
requer o estágio da rubedo para sua realização, mas na albedo, já são percebidos
ganhos consideráveis.
O sofrimento da nigredo é finalmente aliviado na oitava xilografia, a 'Queda do
Orvalho’ (Fig. 16), pelo orvalho celestial ou ‘umidade filosófica (...) caindo tão claro
como uma lágrima' (Fabricius, 1976, 112). Afirma-se, também, que o orvalho possui
um efeito milagroso, não só para a purificação, mas também por fertilizar o cadáver
hermafrodito, levando-o a uma gravidez incipiente:

Aqui cai o orvalho celestial, que lava


A sujeira do corpo negro na sepultura.

"O orvalho que cai", afirma Jung, "é um sinal do iminente nascimento divino".
Para Jung, o orvalho

é um sinônimo de aqua permanens, portanto, do Mercurius. A passagem ao


branco, o clareamento (albedo ou dealbatio) é comparada ao ortis solis, o nascer
do sol; é a luz que aparece depois das trevas (Obras, vol. 16, p. 277).

Através das várias experiências da coniunctio e da consequente nigredo, é


possível alcançar um novo estado, o ‘clareamento’ da albedo. Este novo estado faz
parte das transformações qualitativas da alquimia, caracterizadas por mudanças de
cor. Na albedo, o desespero, a loucura e os medos de abandono foram superados
na medida em que esses estágios já não criam uma divisão radical da união ou uma
fusão regressiva, ocasionando a perda total de identidade (Schwartz-Salant, 1995b,
35).
A queda do orvalho leva ao renascimento do casal régio na nona xilografia
'Retorno da alma' (Fig. 17). Segundo Jung, "a alma, o elemento unificador dos Dois,
desce do céu para reanimar o cadáver" (Obras, vol. 16, p. 285). Fabricius descreve
este retorno da alma em termos de mudanças em um indivíduo:

No final das operações anteriores de ablução, calcinação e incineração, o corpo


grosseiro, finalmente, assumiu uma forma ‘da alma’ e ‘espiritual’, tornando-se um
corpus mundum - um ‘corpo purificado’ - capaz de abrigar a alma e o espírito ou
até mesmo atraí-los para si (...). A alma retorna com o espírito na figura do
homúnculo, que é bissexual e representa alma e espírito unificados (1976, 124).

O mesmo pode ser dito do campo; ele é renovado e assume uma forma
purificada. A décima xilografia, 'Rébis', representa a realização da 'coniunctio
branca', isto é, a conjunção para a qual tende todo esforço nas xilografias anteriores
(Fig., 18). Pode-se compreender que a hermafrodita representa uma qualidade de
186

campo em que existe um estado estrutural que permite uma conexão entre mente e
corpo, ou entre consciente e inconsciente, mesmo em meio a estados de perda e
abandono iminentes. A conexão com o próprio coração e o vínculo imaginário com a
outra pessoa através da imaginação do coração (Corbin, 1969, 219-22) já não
desaparece. A figura hermafrodita está em pé sobre a lua crescente, significando um
fundamento que está enraizado na mudança, mas também supera o estado mortal
de abandono.
Jung apresentou uma posição muito negativa sobre a imagem do 'Rébis'
como apareceu no Rosarium (Obras, vol. 16, p. 315). Ele acreditava que era uma
monstruosidade e que representava o modo em que a mente alquímica ignorava a
projeção e a sexualidade. Em outro lugar, eu argumentei (Schwartz-Salant, 1984,
1989) que Jung se equivocou sobre este ponto e que estava reagindo à ênfase de
Freud sobre a sexualidade, o que é evidente em suas observações sobre o 'Rébis'.
Mantenho sempre esta visão, mas penso também que a intuição de Jung tem valor,
pois a sexualidade e a paixão ainda não foram negociadas com a fase da albedo do
Rosarium. Estes incêndios da vida humana começaram o processo de
transformação no ‘Contato com a mão esquerda’ da segunda xilografia (Fig. 9), mas
eles estimularam a criação de um Self psíquico, a ‘Pedra Branca’, com falta de
paixão e de uma sexualidade integrada. Ou como afirmou Jung, a fase da albedo da
transformação ainda carece de ‘sangue’, que simboliza uma paixão pela vida:

Mas neste estado de ‘brancura’ não existe vida verdadeira, é uma espécie de
estado abstrato, ideal. A fim de torná-lo vivo, necessita-se infundir o ‘sangue’, a
rubedo, a ‘vermelhidão’ da vida. Somente a experiência de todos os estágios do
ser pode transformar este estado ideal da albedo em um modo de existência
plenamente humana. O sangue sozinho pode reanimar um estado glorioso da
consciência em que o último traço da escuridão é dissolvido, no qual o demônio já
não tem uma existência autônoma, mas está integrado reconstituindo a profunda
unidade da psique. Então, a opus magnum está concluída: a alma humana está
completamente integrada (McGuire e Hull, 1977, 229).

Finalmente, na fase da rubedo, esse estado do Self como uma qualidade de


campo é ainda melhorado ao se tornar uma estrutura do Self individual e
transcendente.

DINÂMICAS DA UNIÃO-MORTE NA PRÁTICA ANALÍTICA

Ao aproximar-se da sequência coniunctio-nigredo na prática analítica, o


analista deve, então, ficar atento às formas mais escuras da união. Por exemplo, a
chamada transferência negativa pode ser um estado de união forjada através do
ódio e da inveja. No entanto, também é um estado de união em que estão
entrelaçadas pulsões de fusão e tendências individuativas para a separação.
Quando visto como uma coniunctio e respeitado como tal, o estado de união
negativa pode desenvolver-se ao longo das linhas criativas expressas pelo
Rosarium. Em outras palavras, se o analista procura apenas estados de união
positivos que ‘perecem bons’, ele nunca estará trabalhando dentro de um espírito
alquímico e não ajudará o analisando a trabalhar para o corpo mental vinculando ou
187

criando um Self. As mesmas observações são, naturalmente, verdadeiras para


qualquer casal que procura abraçar a profundidade e o mistério da relação.
O seguinte e extensivo material clínico ilustra a dinâmica união-morte na fase
da albedo das dez primeiras xilografias. Este caso também destaca os erros que
ocorreram no estágio da nigredo e o processo de reparação que então ocorreu em
seguida. O material é retirado do quarto ano (cerca de seis) do meu trabalho com
uma analisanda que sofria de problemas relacionais referentes ao abuso físico e
sexual precoce (Schwartz-Salant, 1990). Durante os primeiros quatro anos, o tema
do incesto e seu efeito devastador nunca surgiram; isto também tinha ficado
escondido em várias de suas análises anteriores. Uma das suas queixas iniciais foi
que seu terapeuta anterior lhe disse que a encontrava atraente espiritualmente, mas
não sexualmente. Este julgamento foi uma ofensa grave para ela, e quando falou
sobre isso, estava em um estado de divisão mente-corpo e vazio mental. Mas o mais
importante para o nosso trabalho posterior foi a minha vontade de seguir estes
estados dissociados da mente e, em vez disso, concentrar-me sobre sua afirmação,
que perecia ser como uma ordem para eu não a rejeitasse.
Depois de quatro anos, ela começou a lembrar que tinha sido abusada
sexualmente pelo seu irmão, e muito antes ainda, por uma babá. Neste momento,
exploramos a natureza sadomasoquista de sua vida interior, primeiro porque ela foi
submetida a ataques brutais pelo que apresentava ter sido o seu papel no episódio
de incesto, e depois porque se atacou ainda mais duramente, alegando que havia
inventado tudo aquilo e que estava realmente louca. Quando este tema do incesto
se tornou gradualmente mais central para o nosso trabalho, encontrei-me
internamente resistindo à possibilidade de que o incesto realmente pudesse ter
acontecido com ela. Foi então que ela começou uma sessão com uma pergunta: "O
que eu faço com meus sentimentos quando eu não sinto nenhuma conexão
contigo?" Era como se ela tivesse dito, por um lado, que ela não tinha sentimentos e,
em seguida, que ela havia dito, por outro lado, que tinha sentimentos. A confusão e
as emoções que acompanharam a apresentação desta questão foram tão
carregadas, que tentei evitar os efeitos e a natureza contraditória de sua
comunicação; senti-me desafiado e zangado. Fiquei perplexo com a intensidade da
minha reação, mas a desviei e concentre-me na irritação. Assumi que este
sentimento, juntamente com a minha tendência para descartar sua pergunta como
irrelevante, pudesse representar uma reação induzida ao seu masoquismo. Eu a
desafiei insistindo que existia uma conexão entre nós, mas foi em um nível
sadomasoquista; e eu foquei a sessão explorando essas dinâmicas, à medida que
estavam se desenvolvendo na identificação projetiva. Pensei que havíamos tirado
boas conclusões, mas o resultado foi o surgimento de uma transferência psicótica.
Nas sessões subsequentes, a analisanda estava vazia, retirada e
amedrontada. Pegava tudo em sentido literal qualquer coisa que eu dissesse ou
tinha dito a ela em seções anteriores. Por exemplo, em um ponto da sessão anterior,
enquanto estava envolvido no que eu pensava ser um campo mutuamente ativado e
no qual eu estava experimentando as introjeções de um processo de identificação
projetiva, eu lhe disse: “Você espera que eu a odeie e a considere uma prostituta
188

desagradável". Durante a sessão senti-me pressionado por esta fantasia na minha


consciência, e eu acreditava de tê-la processado internamente para que eu pudesse
compartilhar como um processo imaginal e, portanto, trazê-la para a sua consciência
no aqui-e-agora da sessão analítica. Minha linguagem chocante foi lançada com o
material de muitas sessões em que lidamos com seus ataques contra si mesma,
decorrente de memórias do abuso sexual do irmão contra ela. Convenci-me de que,
a partir daquele momento, ela sabia que tinha sido vítima de incesto, mas logo
aprendi que, enquanto esse conhecimento havia sido assimilado por seu ego
neurótico normal, não tinha sido assimilado por suas partes mais psicóticas. Assim,
com o campo interativo ativado, convenci-me de ter experimentado o par
sadomasoquista da analisanda, cujo sádico interior estava culpando-a pelo incesto
e, de fato, acusando-a de ser uma prostituta. Eu pensei que, dando-lhe voz, eu
estaria fazendo sair dessa dinâmica, levando-a para a consciência. Na verdade, eu
estava revelando minha inexperiência (naquela época), tanto sobre o antimundo dos
opostos nos processos psicóticos, quanto sobre as tendências contratransferenciais
para evitar aquelas áreas criando significado. Além disso, se eu tivesse reconhecido
que o par sadomasoquista não era ‘dela’, mas ‘nosso’ e que esse par era uma forma
negativa da coniunctio, eu teria fornecido uma contenção muito melhor para a
analisanda e a nigredo que se seguira teria sido menos grave e menos perigosa. No
entanto, essa consciência só veio para mim vários meses depois da minha
intervenção inapropriada.
Erros contratransferenciais são extremamente comuns ao lidar com a nigredo
que segue uma coniunctio. Um estado (sadomasoquista) de união tinha precedido
nesta sessão, mas o meu desejo de evitar os estados mentais vazios e obscuros da
nigredo me fez não apenas lembrar, mas me fizeram acreditar na existência de um
estado de conexão anterior. A analisanda agora estava inconsciente desta conexão;
e se eu tivesse sido mais consciente, eu teria reconhecido que essa conexão
também estava ausente da minha consciência. Forcei uma conexão. Contrastando a
sabedoria do 'Conto de Isis para seu filho Horus' para criar o semelhante a partir do
semelhante’, errei tentando criar ordem e significado em um estado caótico,
desprovido de significado, como defesa contra esta condição.
Em sua investigação sobre a alquimia, Jung menciona que a nigredo "significa
uma deformação de si mesmo e um sofrimento psíquico, (...) comparado à situação
do pobre Jó' (Obras, vol. 14, p. 361). O alquimista escritor Olympiodorus observa a
dor, a luta e a violência da nigredo, dizendo que o demônio (...) nos infunde a
negligência, impedindo nossas intenções; em todo lugar, este demônio se infiltra por
tudo, tanto dentro quanto fora, ora causando negligências, ora ansiedade e
acidentes inesperados" (Jung, Obras, vol. 14, p. 358). E o filósofo Petasios afirma:
"O líder (...) é de tal forma possuído pelo demônio desavergonhado que todos os
que desejam investigar isso se tornam loucos por meio da ignorância" (Jung, Obras,
vol. 14, p. 258). Se os alquimistas estão corretos, investigar as experiências difíceis
associadas à nigredo produz níveis de transferência e de contratransferência
psicótica e a ignorância poderá levantar a cabeça de modo diferente em cada caso.
189

Em Mysterium Coniunctionis, Jung registra vários textos alquímicos que


retratam a coniunctio e seus resultados. Em certo sentido, os textos alquímicos são
como os raios X que mostram o que se encontra sob a superfície de fenômenos que
são frequentemente tratados através de uma perspectiva da história pessoal. De
acordo com Jung, a coniunctio tem resultados indesejáveis no início. Ele explora a
natureza de uma dessas imagens negativas, o cão raivoso, de uma forma que eu
acho particularmente perspicaz em relação ao material clínico em discussão:

O filho hermafrodito (...) está infectado desde o seu berço devido à mordida do cão
raivoso corasceno; por isso ele fica enlouquecido de raiva e com uma hidrofobia
perpétua. No entanto, apesar de todas as coisas naturais, a água é a mais
próxima dele, mas ele fica amedrontado com isso e foge. O destino! No entanto,
no bosque de Diana há, porém, um casal de pombas, que alivia sua loucura
delirante. Então, o cão raivoso, rabugento e grosseiro, para que ele não sofresse
mais com as recaídas de sua hidrofobia, mergulhando nas águas, para não
permanecer no fundo, veio à superfície meio semi-asfixiado (...). Mantiveram-no à
distância e a escuridão desapareceu. Quando a lua resplende ao máximo do seu
fulgor, dá-lhe asas e ele voará como uma águia (Jung, Obras. vol. 14, p. 148-49).

Jung considera a fonte da loucura, o cão raivoso, não somente como


perigoso, mas também como a fonte de um novo espírito, a águia que ascende da
sua transformação.
Jung liga o cão raivoso ao caos ou à prima materia, ou ao líder, o qual
‘contém um demônio que torna o adepto louco (Jung, Obras. vol. 14, p. 149). Em
outra passagem, Jung se refere ao inimigo do novo nascimento como o ‘ladrão’
(Jung, Obras, vol. 14, p. 193). Na prática clínica, essa qualidade perigosa assume
várias formas, incluindo o incesto. O simbolismo alquímico de transformar o cão
raivoso ou ladrão pode refletir o árduo processo de criação da contenção analítica
para as angústias, a vergonha, os estados de pânico e os opostos associados
divididos no modo loucura que acompanha o retorno da experiência de abuso
incestuoso. O ‘ladrão' representa a experiência de perder repetidamente cada ganho
aparente em consciência ou no vínculo com a pessoa. A transformação milagrosa
em uma águia pode aparecer em termos de uma transferência idealizada como
manifestação do arquétipo espiritual (Schwartz-Salant, 1982). Quando o analista
trabalha com os estados mentais desconexos, caóticos e extremamente descrentes,
aos quais remete uma imagem, como a do cão raivoso, pode viver como um
acontecimento de todo milagroso, o surgimento, tanto de uma transferência criativa
e idealizada,quanto da extrema vulnerabilidade que a acompanha.
A analisanda, em grande parte, através do meu erro, entrou na sua parte
psicótica, mas com certo grau de contenção. Ela estava cheia de desconfiança e
medo em relação a mim. No entanto, graças, sobretudo, à parte sã de seu ser, ela
também sabia que tinha que elaborar as coisas comigo; existia uma aliança. Ela
escreveu a sessão que começou com a sua pergunta sobre os sentimentos e a sua
conexão para comigo, e sua convicção de que eu havia dito que a odiava. Neste
ponto, eu ainda estava (loucamente) comprometido em ajudar as qualidades mais
normais do seu ego a reconhecer as distorções de sua parte psicótica. Eu estava
olhando ‘as suas’ – não ‘as minhas’ ou as ‘nossas distorções psicóticas, tentando
190

ajudá-la a reorganizar a realidade. Quando finalmente voltamos à sua pergunta


inicial, eu disse a ela que me senti irritado por isso, que eu experimentei como um
ataque ao nosso trabalho. Tentei forjar uma conexão que não existia, o que, agora
poderia ver, foi um ato hostil da minha parte. Somente após esse tipo de exploração,
em que eu comecei a refletir sobre a validade de suas percepções, ela pode
encontrar algum alívio. Agora estava reconstituindo o espaço em que ela poderia
voltar a trabalhar sobre seus problemas de incesto e sobre as qualidades psicóticas
que se manifestaram como divisão extrema, distanciamento, distorção da realidade
e impulsos suicidas.
Se eu fosse promover a integração de sua parte psicótica, em vez de fortificar
seu ego neurótico normal, eu teria que reconhecer abertamente a verdade de suas
percepções, mesmo que essas percepções pudessem ser vistas como parciais e
distorcidas. Uma consciência semelhante pode ajudar o analisando a correr o risco
de reconhecer e exprimir percepções como aquela de sentir-se odiado pelo analista.
A minha analisanda, eu aprendi mais tarde, estava amedrontada porque tal
afirmação poderia me levar à decisão de encerrar a análise.
As distorções da realidade que decorrem da parte psicótica poderiam perecer
que fosse muito ariscado o ato de reconhecer a verdade das percepções do
analisando. Ele poderia usar esse procedimento para materializar ainda mais suas
distorções. Mas a minha experiência é que, a menos que um processo
esquizofrênico esteja no trabalho, essa preocupação geralmente não se revela
problemática e, muitas vezes, se baseia na introjeção por parte do analista dos
receios do analisando de ser abandonado por ter sido confrontado. A menos que o
analista encontre uma maneira de espelhar a precisão da visão da alma, raramente
conseguirá ajudar o analisando a integrar a profundidade de seu ser que está preso
em distorções psicóticas.
Em uma sessão subsequente, a analisanda disse:

Não posso confiar em ninguém. Estou em um lugar frio e retirado e estou


amedrontada com o poder que você exerce sobre mim. Se eu lhe disser algo
sobre o que pensei na noite passada, você pode me aniquilar em um instante.
Nunca antes senti o poder total que você teve sobre mim e isso me amedronta. Eu
só quero me retirar e deixar totalmente tudo, esse processo, a vida.

A este ponto, o seu medo se centrou no que eu havia dito quando


reavaliamos a sessão, porque eu lhe disse que ela tinha me ouvido dizer que ela era
uma prostituta desagradável. Eu expliquei que, na verdade, eu não acreditava que
ela fosse uma prostituta, mas que eu estava jogando uma fantasia sobre ela, um
processo do qual pensei que ela estivesse consciente enquanto estava
acontecendo. Ela ouviu atentamente, e eu pensei que estava tendo êxito para ajudá-
la a ver as próprias deformações da realidade. Na sessão seguinte, percebi que não
era a ‘parte da puta’ que chegou a ela, mas sim o fato de eu ter dito que ‘ela me
ouvira dizer’ o que eu disse, insinuando a ela que eu não tinha dito, de fato, e que
ela era psicótica. Ela sentiu que eu tinha aniquilado as suas percepções, e ficou sem
saber em que acreditar ou confiar.
191

Ela estava especialmente amedrontada com a possibilidade de pensar que


estava louca. Sentia que eu agora estava apenas acalmando-a e mentindo para ela.
Quando eu expliquei novamente que eu realmente disse o que ela acreditava que eu
tinha dito, mas ela tinha tomado no sentido errado, se tornou claro, mesmo para
mim, no meu ataque absurdo aos elementos psicóticos entre nós, que tinha bem
pouco efeito. Então me perguntei: onde ela tinha razão? Ela acreditava que eu tinha
dito por que senti que ela era uma prostituta desagradável, mas que eu estava agora
negando esse sentimento. Sua convicção poderia desabrochar de sua parte
psicótica ou de uma espécie de força trikster dominando nosso processo - Mercurius
em sua forma demoníaca, como o cão raivoso. Ou sua convicção se baseou na
percepção de minhas próprias partes loucas, das quais eu tive, quando estava com
esta analisanda, pouca consciência?
Eu neguei suas percepções, como quando eu não ouvi e elaborei
atentamente e a sua pergunta sobre o que ela deveria fazer com seus sentimentos
quando não sentia nenhuma conexão comigo. Quando insisti que apenas ocorreu
uma mudança de forma na conexão, neguei o que ela experimentou, ou seja, um
espaço em que ela não tinha absolutamente nenhuma conexão comigo ou consigo
mesma.
Depois de outra sessão, sentindo o estresse do meu trabalho com ela, gravei
o seguinte processo imaginário:

Eu quero batê-la, afogá-la em um mar tempestuoso, jogar seu corpo de um lado


para outro nas ondas até que ela pare de torturar-me com os distanciamentos e o
masoquismo, deixando-me sempre como a parte culpada. Mais e mais eu sinto
como se tivesse cometido incesto com ela. Eu sinto como se eu fosse seu irmão
culpado que fez isso para ela e negou isso. Sinto-me nas bordas de perder o
como-se. Eu fiz isso ou não?

Reconheci que, inconscientemente, eu talvez tenha sentido essa identificação


por algum tempo, ou seja, que eu fui seu irmão mais velho, aquele que a violara
incestuosamente. Como consequência de negar esse nível de contratransferência
psicótica, eu estava forçando interpretações e tentando sentir-me empático e
relacionado com ela, em vez de sentir o ar da irrealidade que realmente permeou o
nosso trabalho.

CONTENÇÃO DO PROCESSO PSICÓTICO MEDIANTE A QUALIDADE DO


CAMPO DA CONIUNCTIO

Após essas tentativas de reordenar o nosso processo, ela fez a pergunta


inevitável: "Isso significa que fui eu quem despertou essas reações em você?" Como
teria sido fácil dizer que sim! Claramente, a identificação projetiva ocorreu, mas
também sabia que, ao tomar consciência da transferência psicótica, eu estava
abrindo para um domínio maior que parecia ter um objetivo ou propósito; uma
abordagem clássica de identificação projetiva teria assassinado essa consciência. A
experiência de um terreno maior do campo interativo, que incluiu as minhas próprias
fantasias de incesto, criou um sentido de significado. Esta área necessitava,
192

certamente, ser explorada, mesmo que tivesse começado a aparecer muito imaterial,
não concreta, e eu voltei a uma visão de identificação projetiva, partes psicológicas
que eu projetava nela e ela em mim. Por sua vez, essa abordagem de identificação
projetiva perece muito restrita, uma vez que impedia uma percepção de significado.
Desta forma, possibilitou o surgimento da consciência da oscilação entre os níveis
evolutivos e míticos. Estas oscilações caracterizam a experiência de campo
interativo quando é ativada. Modifica o sentido do espaço, como no ditado alquímico:
"Esta pedra está embaixo de ti, ao teu lado, acima de ti e ao seu redor "(Jung,
Obras, vol. 14, p. 53).
Podemos entender que nossa interação incluía uma ‘terceira coisa’, um reino
mítico que estava ordenando e tecendo juntas as partes psicóticas de nossa psique.
Para revelar este reino, poderemos olhar nos bastidores dos nossos episódios
psicóticos. Eles eram sempre precedidos por um estado de união inconsciente,
geralmente (eu descobri ao examinar seus sonhos) indicado por temas nupciais.
Então, se instaurava uma nigredo devastadora. Por exemplo, o sonho de um
casamento precedeu a sessão em que eu insisti que entre nós tinha uma conexão.
Eu reconheci que meus tempos periodicamente difíceis com esta analisanda foram
precedidos por tais sonhos; neste momento, descobri que eu poderia elencar quatro,
e poderia haver mais.
O simbolismo da coniunctio é extremamente variado e sutil, geralmente não
tão evidente como o casamento e as imagens nupciais, neste caso particular. Em
vez disso, é preciso lidar com as imagens obscuras de união, e às vezes é fácil
ignorar as imagens que podem implicar a existência da coniunctio, como os animais
em luta, ou motivos oníricos, um fogo começando na adega, um ladrão entrando, ou
o pai do analisando morrendo. Jung também se refere à imagem de um relâmpago
em um raio e o nascimento da pedra. Mas essas imagens podem ser facilmente
consideradas como representações da existência intrapsíquica do analisando, ou
como o reflexo do material infantil emergindo através da transferência. O que, muitas
vezes, é visto como um freio na evolução é, na verdade, o resultado de uma
coniunctio ocorrendo entre duas realidades psíquicas e a transferência-
contratrasnferência negativa é um estado de união que leva o analista a tentar evitar
ou interpretar defensivamente.
Nesse caso, a metáfora alquímica ‘nossa’ nigredo foi encontrada e
gradualmente contida. Poderíamos, então, ter encontrado nosso rumo, lidar
imaginariamente com o material que tinha nos devorado, e conseguir fazer isso sem
perder o sentimento? Às vezes, diante da sua solicitação, a analisanda e eu,
voltávamos para a fatídica sessão em que procurava lidar com a nossa relação em
termos de qualidade sadomasoquista. Fiquei perplexo e, às vezes, senti-me
perseguido pela sua insistência de que ainda tínhamos questões sem solução,
embora já tivesse aprendido a respeitar sua resistência e continuar até que se
esclarecesse de modo satisfatório, o que tinha ocorrido naquela sessão.
Mesmo se ela tivesse se rebelado anteriormente diante da minha formação de
que ‘ela me ouviu dizer o que eu havia dito’, agora também estava profundamente
perturbada com o conteúdo. Estava convicta de que eu realmente pensava que ela
193

era uma prostituta desagradável. Senti-me ansioso pela sua queda mais profunda
em um estado psicótico me que se desencadeavam impulsos suicidas devido ao seu
desespero pela perda da capacidade de pensar e pelo seu medo de ser psicótica.
Ela sentiu que nunca mais iria sair desse estado. Eu tentei lembrar-lhe que naquele
momento eu acreditava que estávamos em sintonia e que ela necessitava entender,
pois eu estava desempenhando um papel e não estava, por nada consciente, ao
dizer que ela era desagradável. Na verdade, eu acreditava que deveria prevalecer
um estado totalmente contrário, um estado em que sentisse uma profunda afinidade
com ela, um efeito comum da coniunctio (Jung, Obras, vol. 16, p. 241), como se ela
fosse uma irmã intimamente conhecida com quem eu tinha o direito de dizer ou
sentir qualquer coisa que fosse. Só então compreendi que esse pensamento era só
meu e não compartilhado por ela. No entanto, ela ainda sentia não ter nenhum
direito e, se alguma coisa, sentia-se totalmente em meu poder. Ela poderia advertir,
mas apenas sentia uma profunda raiva. Através destes sentimentos - denominados
de parentesco - nossas partes psicóticas dominavam secretamente o campo
interativo, e uma díade sado-masoquista estava sendo bem mais ativada, do que
expressa. Então eu tive que perguntar-lhe: "Ma eu estava convencido de que você
fosse uma prostituta nojenta?" Eu precisava reconhecer que, de alguma forma, eu
poderia dizer ‘sim’, porque na medida em que sentia que era seu irmão no incesto,
eu também sentia que ela me seduzia.
As imagens da prostituta são encontradas na alquimia. A nigredo emerge
desta imagem; a prostituta como o lado escuro da lua, fere o sol (Jung, Obras. vol.
14, p. 30). No entanto, fui levado a reconhecer que essa imagem também se referia
ao meu setor psicótico, estruturado por formas míticas como o mito Átis-Cibele.
Quando o estado do meu ego normal foi fortemente afetado por esse padrão
arquetípico, senti-me em perigo de ser dominado pelas necessidades e desejos da
analisanda. De modo bem mais real, me parecia estar sendo engolido e de ter
perdido a minha autonomia; era bem possível que eu estivesse me dividindo da
minha realidade psíquica e tivesse deposto toda a confusão e a angústia nas mãos
da minha analisanda. No entanto, ao ser capaz de me relacionar imaginariamente
com a presença dessa instância arquetípica e com o estado do ego a ele associado,
eu poderia agora começar a perceber a minha projeção sobre ela, mesmo que eu,
conscientemente, não a tinha como sedutora e perigosa. Então ficou claro para mim
que, através da constelação deste padrão arquetípico, eu a vi como uma prostituta e
a tinha odiado pelo poder que ela tinha sobre mim e também pelo desejo se fundir-
me com ela para neutralizar esse poder e para recuperar a sensação de amor.
Assim, começou a esclarecer-se uma díade inconsciente, análoga à fusão Átis-
Cibele.
Em termos do Rosarium, esta díade estava presente durante a sessão inicial;
era um ‘contato com a mão esquerda’ (segunda xilografia, Fig. 9) em que nossa
psique inconsciente estava fundida através do desejo, enquanto simultaneamente,
lutavam contra qualquer contato afetivo. Então, caso eu tivesse mais experiência
naquele momento, eu poderia ter conseguido manejar bem melhor com esta
194

qualidade de campo, porque teria tido mais consciência de que a nigredo tem as
próprias dinâmicas que são muito fortes e que induzem a estados de loucura.
Uma vez que esta loucura foi elaborada, nosso processo poderia continuar
em uma maneira menos estressante e conflituosa. O Rosarium indica a condição de
'Verdade Despida' como qualidade de campo da terceira xilografia. Eu deveria
reconhecer e assumir a responsabilidade pelos meus erros subjetivos para com esta
analisanda. Naquele momento este modo de proceder foi narcisicamente
humilhante: fiquei chocado diante do modo com o qual eu tinha sido e ainda
continuava inconsciente. Mas aquele procedimento permitiu-nos continuar de
maneira útil e de experimentar a natureza da nossa conexão emocional.
O analista pode entender o analisando de várias maneiras, através da
empatia, através das reflexões sobre a própria experiência e através da consciência
dos padrões evolutivos ou arquetípicos. O analista pode fazer intervenções e
interpretações baseadas em tais compreensões. Mas a visão imaginária - o pilar da
modalidade alquímica - só será disponível para o analista quando ele vê
conscientemente através dos olhos dos próprios complexos. Foi este o modo de
confrontar a qualidade da inconsciência mútua neste caso e, como resultado, eu
cheguei a níveis de minha própria psique que eu costumava encontrar, mas não com
a qualidade arquetípica e autônoma. As percepções imaginárias que o analista pode
ter são confiáveis somente se ele as elaborar assim que fizerem algum sentido,
tanto do ponto de vista evolutivo, quanto arquetípico. Este duplo ponto de vista será
sustentado pela percepção do analista. Neste caso, tive que perceber a extrema
angústia e a loucura que abrangia a parte dividida da minha analisanda, como
defesa das suas experiências de ter sido violada incessantemente. Por exemplo, eu
poderia me concentrar sobre a posição esquizoparanoide Kleiniana e sobre a
dificuldade da minha analisanda de assumir a posição depressiva, mas também era
importante perceber a sua loucura interna como um resultado da coniunctio que
ocorreu no processo analítico.
Enquanto eu não reconheci e assumi a responsabilidade por níveis dentro de
mim, em que estava atuando um mito do tipo Átis, a minha analisanda foi deixada
com os seus sentimentos delirantes, a sua visão negada. Como consequência, ela
não poderia ter uma ideia clara do que estava ocorrendo entre nós. Em vez disso,
sua visão manifestava-se através de dores corporais e da angústia em relação e
essa sessão particularmente sadomasoquista. Necessitou uma coragem
considerável para ela poder conter a própria confusão e o próprio desconforto, em
vez de se desprender da própria visão e tornar o seu Self complacente, árido e eu
competente. A consciência deste nível arquetípico e da sua natureza avassaladora
foi para mim a chave para entrar com ela em uma fusão centrada no coração, a
ponto de perceber o seu processo. Inspirada em suas preocupações, que poderiam
ser facilmente reduzidas à paranóia eu também tive que reconhecer que eu
realmente falava sobre ela como uma prostituta, não apenas como um ator no seu
drama. Ao desvirtuar meus sentimentos desta maneira pessoal e vulnerável, eu fui
capaz de sentir a dinâmica arquetípica subjacente que poderia tecer esses estados
de desejo e fusão, distanciamento e ódio.
195

As qualidades que, muitas vezes, criam as maiores dificuldades de análise


são precisamente aquelas que remontam aos antigos substratos da mente, como o
mitologema do filho-amante, uma importante forma da prima materia. Nos substratos
antigos da mente, o analista deve enfrentar qualidades de sombra que não são
capazes de ser integradas na esfera do ego, mas que devem ser vistas, sentidas e
experimentadas como os seguidores de um deus ou de uma deusa,
experimentariam o ritual daquela deidade. A escala de tais fenômenos é muito maior
que a do ego; o ato de imaginar, perceber e experimentar a sua numinosidade é
significativo.
Os erros que um analista comete podem resultar ser consequência da análise
pessoal insuficiente, ou podem fazer parte de uma qualidade do tipo trickster do
inconsciente que pode romper o analista, talvez com a finalidade de incrementar a
sua consciência. As feridas que o analista inflige sobre os analisandos, e vice-versa,
são parte do mal que o analista experimenta na medida em que ele envolve o
inconsciente. O analista deve assumir a responsabilidade por este mal sem
enfraquecer-se sob seu peso. O analista não pode atribuir ao analisando todos dos
seus erros, insultos e ferimentos graves como parte de um processo de feridas mais
antigas que reaparecem na transferência; e também deve se perguntar sobre como
essas experiências negativas podem ser criadas no processo analítico sobre sua
responsabilidade a ele associada. A criatividade tem uma sombra intensa, e se o
processo analítico deve ser um esforço criativo, o analista deve esperar que o seu
lado sombrio forte, inevitavelmente apareça.
Perto do final do período de dois anos do caso clínico que eu tenho citado, a
raiva da analisanda foi mobilizada pelo que ela percebeu como sendo a minha falta
de conexão comigo mesmo. Esta questão apareceu depois de outro sonho de
casamento. Desta vez, ambos nos perguntamos o que aconteceria na sequência.
Duas semanas depois, sua raiva ocorreu como nunca antes, e com isso veio um
intenso desespero e um ódio contra mim por não estar conectado a ela e também
por não tê-la deixado morrer. Ela estava cheia de ódio pelo que experimentou como
a minha tortura devido ao nosso processo, e pela minha confiança nesse processo.
Nas sessões subsequentes, a analisanda ouviu com a cabeça virada para outro
lado, arriscando não tentar conectar-se através do contato visual. Desta forma, ela
podia ouvir se eu estava bem conectado ou não - com ela e comigo mesmo.
Naquele momento, sua loucura emergiu cada vez com mais força. Às vezes, isso me
deixava ansioso, pois sua loucura não tinha a forma de uma parte da criança perdida
em ansiedades e raiva esmagadoras, mas, em vez disso, sentia-se como uma
massa de fúria sem forma, dirigida contra mim.
Ela sonhava com um assegurador chamado John Hinkley, o desequilibrado
aspirante assassino do presidente americano Ronald Reagan. Ficou claro que a sua
segurança contra a perda e o abandono, derivavam de ser louca. A dor da perda de
conexão comigo estava aumentando para um novo nível de intensidade. Ela sentia
que estava provando a união - comigo e consigo mesma - em momentos
provavelmente ligados aos seus sonhos de casamento, mas nós não tínhamos
alguma continuidade nem sentimento encarnado de vínculo. Um estado sem alma a
196

torturava, e a falta de contenção era, às vezes, muito irritante para mim. A pesquisa
de Jung sobre a alquimia sugere que estava no lugar também um processo
inconsciente, em que se estava procurando, ou talvez, elaborando a cobiçada
conexão através do coração (Obras. vol. 16, p. 274-75).
Alguns meses depois, ela teve outro sonho de casamento; esta coniunctio e a
consequente nigredo foi ainda mais devastadora. Ela falou agora de se sentir
‘totalmente dispensável’. No entanto, apesar da intensidade dos sonhos, e ainda a
presença de pensamentos suicidas e de isolamento emocionais, agora ela estava
muito menos esquizoide. Sentia-se como se a sua parte jovem, que tinha se
escondido quando criança, na esperança de não ser encontrada, agora também
fazia parte do material do seu processo. Anteriormente, essa parte só era percebida
através de um campo interativo de não vínculo. Esta nova espiral descendente
continha o material anterior, mas incluía também uma importante mudança
estrutural. Sentimentos de distanciamento e falta de relação ainda a atormentavam,
mas eram menos intensos em geral, e eram particularmente menos intensos
enquanto ela estava comigo.
Na sessão seguinte, ela disse que durante a sessão anterior estava diferente.
Quando eu disse-lhe que também sentia que ela estava diferente agora, introvertida
e reflexiva em vez de distanciada, respondeu-me dizendo que também notou essas
mudanças. Quando saiu do consultório, disse adeus. Anteriormente, nunca dizia
nada, simplesmente saía.
O estado da união, portanto, atua como um ímã que atrai estados mentais
divididos, níveis de abuso da alma que, muitas vezes, podem ser muito horríveis de
serem contemplados. A coniunctio evidenciou um processo que limpa a díade
analista-analissando como se fosse uma corrente em um vasto mar, e as realidades
psíquicas individuais balançavam-se subindo e descendo juntas como partes do
inconsciente há pouco integrado. Às vezes, o analista se engana quando apenas
presta atenção a este movimento mais profundo, especialmente quando a
contratransferência, como no caso da fatídica sessão com a qual comecei este
estudo de análise clínica. No entanto, se não tivéssemos abordado o movimento
maior entre nós, a contenção que foi criada teria sido muito pequena para o
processo da analisanda. Este foco mais estreito a teria impulsionado em direção à
consciência ou então às acusações, e a teria distanciado da sensação de que nós
estávamos juntos, tecendo nossa história que, de certa forma, correspondia ou
recriava sua história de vida precoce, mas que também era a sua criação pessoal.
Nesse caso, pudemos reconhecer gradualmente o propósito da nigredo de
dissolução das defesas rígidas da analisanda (e as minhas) contra a loucura e, mais
importante, a dissolução das defesas contra a dor subjacente e a vulnerabilidade
que sua alma abusada sofreu. Como consequência, gradualmente ficou claro que
esse processo não era apenas o dela, mas também nosso, através do qual
estávamos mudando juntos.
Na medida em que a analisanda, gradualmente se tornou mais capaz de se
conectar com sua alma dividida, o seu distanciamento diminuiu, e uma imaginação
centrada no coração tornou-se possível. Eu pude sentir uma vitalidade no meu
197

coração e um maior impulso reforçava o controle e a conexão através da


consciência ou a interpretação. Este processo é difícil de descrever porque existe no
interior de uma realidade imaginativa em que a própria atenção flui através do
coração e em direção a outra pessoa. No decorrer do processo, emerge a visão
imaginária. Esta visão pode ser experimentada através dos olhos, através do corpo,
ou através do sentimento, mas esse nível de percepção penetra suavemente, de
maneira que um processo discursivo não consegue alcançar. Para a alma
abandonada, o conhecimento sem coração parece um abandono. O coração oferece
uma maneira de se conectar sem violar a alma.
Os estados nigredo que continuaram a surgir foram difíceis de gerenciar,
especialmente quando mergulharam a analisanda cada vez mais profundamente em
estados de desconfiança. No entanto, estes estados demonstram-se sempre mais
enraizados no processo de criação de um novo limite analítico, por exemplo, pelas
violações incestuosas feitas por outros membros da família, que ela temia que eu
realmente não acreditasse que realmente tivessem acontecido. Para a analisanda,
lidar com suas dúvidas de perseguição era como aquele texto alquímico que eu
mencionei anteriormente: manter o cão raivoso em uma distância. Através deste
processo, como no caso do cão que se transforma em águia, no final começou a
existir uma transferência criativa, idealizada.
A minha analisanda sofria terrivelmente quando a sua conexão do coração e
a conexão do meu coração para com ela se ausentava. A perda de coração foi a
principal questão de abandono em nosso trabalho, já que sempre esteve em sua
vida. O psicanalista Harry Guntrip refere-se ao "coração perdido do Self” (1969, 97)
na personalidade esquizoide, e esta metáfora descreve bem a qualidade esquizoide
em cada um de nós. O que foi notável sobre o processo de união e os estados
consequentes de nigredo foi o fato de que esse processo continuamente envolvia o
coração.
Neste caso, foi dominante a sequência coniunctio-nigredo da quinta, sexta e
sétima xilografias (Fig. 12, 14, 15). A empatia era impossível no campo representado
pela sétima xilografia, exceto a empatia ao reconhecer que ela não existia. Esta
forma de empatia fez bem pouco para remover a dor sentida no campo, mas eu
finalmente consegui respeitar o fato de que no processo existisse algum mistério
além da consciência consciente. A qualidade do campo da sétima xilografia é
caracterizada por três facetas:
1. Porque a experiência de ambas está em universos paralelos, nenhuma
conexão significativa é possível.
2. Uma das duas pessoas ou ambas tendem a agir de forma impulsiva e
automática, como se fosse uma qualidade mecânica a assumir o controle. O analista
especialmente tende a falar de maneira forçada, sem sentimentos. Se o analista
atrasar essas introduções no processo, o analisando se sentirá logo grato por ter
sido salvo de uma humilhação resultante deste.
3. Pode estar presente um sentido sutil de excentricidade. Se o analista
realmente se concentrar na pessoa, manifestará um sentimento de estranheza.
198

A sétima xilografia representa a agonia física e psíquica da qualidade do


campo, e infelizmente, em muitos casos, o analisando carrega a maior parte do
sofrimento. Geralmente, os analistas estão em uma posição de poder em virtude do
desequilíbrio na situação analítica e, consequentemente, suas defesas de divisão
são geralmente mais úteis do que as do analisando. Ainda que os analistas possam
permanecer relativamente ‘intactos’, caso entrassem na verdade da sua dor, eles
achariam que, de fato, não eram menos do que a dos seus analisandos. O analista e
o analisando devem sofrer a dor da não vinculação e a ausência total de uma
conexão de coração. Somente a experiência e a resistência a esse sofrimento por
ambos podem levar à queda do orvalho da oitava xilografia (Fig. 16,) com a
renovação da díade inconsciente e da experiência de campo.
No meu processo com esta analisanda, o campo interativo foi ativado e a
conexão empática também foi possível. Além disso, a minha capacidade de visão
imaginária da sua vida psíquica foi aprimorada, e ela também poder começar a
confiar em sua percepção corpórea e imaginária. O ‘retorno da alma’, simbolizado
pela nona xilografia (Figura 17), significava que existia um sentido de conexão mais
estável, e com isso uma consciência renovada da ‘terceira área’ como um espaço
próprio dotado de processo e de mistério. Neste caso, a experiência do corpo sutil
esteve mais presente para nós dois. Além disso, neste estágio, surgiu uma nova
capacidade para a visão imaginária, uma capacidade de visão que não estava mais
desencarnada. Esta experiência culminou em um tipo de qualidade de campo
indicada pela Rebis da décima xilografia (fig. 18)
Quando dois indivíduos constituem um campo com essa qualidade, eles
podem experimentar os campos devastadores das sexta e sétima xilografias, sem
que a sua conexão seja destruída pela divisão e defensividade. Ambos são mais
capazes de manter um sentido de si mesmo, ao mesmo tempo em que
experimentam como esse estado de si é fluido e precisa ser recuperado através da
exploração mútua.
Neste ponto, o analista e o analisando conseguiram algo de grande valor,
conquistado duramente através de muitas provações da nigredo. Em linguagem
alquímica, no entanto, a Rébis ainda é 'aquosa', fluida e fácil de perder. Neste
estágio, o analista e o analisando acreditam que a união pode ser recuperada, tanto
como um estado interior, quanto como uma qualidade de campo. Em certo sentido,
as primeiras nove xilografias são um processo que leva à criação da confiança em
um processo conjunto que pode ser usado e respeitado.
É muito significativo que a Rébis significa uma qualidade de campo interativo
de parentesco. Parentesco denota aquela condição especial em que o abandono e a
perda ainda existem, mas não são mais as principais questões, e a confiança
fundamental na presença do outro é estabilizada. Além disso, em parentesco com o
outro, ele nos acolhe, se importa conosco de forma reflexiva e sem preocupar-se
com as necessidades narcisistas e de inveja. Como me disse um analisando: "Sinto-
me como se eu fosse o seu projeto criativo." E eu senti que também era o seu.
Embora a Rebis tenha uma qualidade muito positiva de unir os opostos, criar a
energia de parentesco e representar um Self compartilhado no campo interativo,
199

pode se dissolver, sob o impacto das paixões; e sem a integração de uma ampla
gama de desejos, esta imagem pode degenerar em um perigoso estado de fusão.

PAIXÃO E TRANSFORMAÇÃO DO CAMPO INTERATIVO

Na descoberta de Freud sobre a psicanálise, as paixões, como no "Contato


com a mão esquerda" do Rosarium (Fig. 9), foram o foco do processo analítico. A
Psicanálise abordou a nigredo de forma caracteristicamente redutora buscando
causas remotas da sua fenomenologia e incluiu implicitamente a coniunctio como o
processo de conexão da transferência-contratransferência. Mas a ênfase na paixão
se reduziu quando se voltou para a formação dos distúrbios narcisistas e borderline,
que tratam dos níveis psicóticos e dos receios de ser engolidos nos primeiros
estados de paixão. Depois disso, as relações com os objetos tornaram-se
primordiais, e com essa mudança de foco, a paixão deixou de ser o foco central do
pensamento psicanalítico, e qualquer encontro direto com as energias da coniunctio
raramente foi o seu tema central. Com o advento das teorias das relações objetais, o
caminho escolhido pela psicanálise foi claramente a interpretação da transferência e
a análise das defesas caracteriais. Além disso, a transferência e as noções de
campo nascidas na psicanálise, no decorrer do último decênio, não incluem a
utilidade ou a necessidade de experimentar a paixão de um reino interativo e seu
significado transformador.
A psicanálise sempre teve um foco duplo sobre a necessidade de analisar a
transferência como uma experiência e na transferência ou contratransferência como
forma de projeção, como uma fonte de informações sobre o processo do analisando.
Mas com a possível exceção do trabalho de Sandor Ferenczi (1938, 1955), a
psicanálise raramente se concentrou na relação de transferência como uma
qualidade ativa de campo, caracterizada pela paixão. De qualquer modo, é razoável
perceber que a psicanálise, como inicia com uma experiência de rubedo na
descoberta de Freud das experiências ou fantasias de incesto, desenvolvendo-se
através de uma fase semelhante às dez xilografias do Rosarium, e culminando com
a décima xilografia em que a morte psíquica, através da divisão e outros
mecanismos de defesa esquizóide são abordados. Ao longo do processo, o objetivo
da psicanálise tem sido ajudar uma pessoa a obter sua própria capacidade de se
relacionar com o inconsciente. Essa relação consciente-inconsciente é simbolizada
no Rosarium pela hermafrodita da Rébis segurando as três cobras em uma mão e a
quarta cobra, na outra.
As energias da paixão conhecidas na rubedo foram cortadas e diminuídas em
tempos modernos, por exemplo, pela noção de Freud de sexualidade infantil e
genital. Enquanto o ideal heróico de Wilhelm Reich (1973) de abraçar toda a libido
no orgasmo permaneceu apenas um ideal, para Freud, a repressão e a sublimação
da sexualidade infantil foram necessárias e inevitáveis. Essas energias não podem
ser plenamente experimentadas na carne, e quando tal experiência é tentada, as
energias, muitas vezes, se movem para um nível sadomasoquista em que o egp
procura transcender as limitações da carne.
200

Conter a paixão e se relacionar com ela são habilidades essenciais para


quem deseja lidar com a complexidade dos estados de união e com as questões de
abandono a elas associadas e às poderosas emoções e elas relacionadas. Sem
paixão, qualquer relação corre o risco de se desintegrar em comportamento
mecânico e no ressentimento. O texto alquímico, o Splendor Solis, contém muita
sabedoria sobre estes aspectos.
Por exemplo, a sexta imagem do Splendor Solis refere-se à cena de Eneide
de Virgilio em que Eneas, que é ajudado por Cibele, consegue atravessar, com
segurança, pelo Inferno (Fig. 19). Somente alguém que pode experimentar a paixão
sem perder consciência e estrutura tem a capacidade de confrontar, tanto os
estados do abandono sem alma, representados pelo inferno, quanto a emoção
esmagadora simbolizada pelo fogo. Tal passagem através do inferno é essencial
para a existência de um Self estável e individual. Sem tal passagem, o Self será
sempre guardado por uma variedade de defesas narcisistas e esquizóides, entre
outras.
No Splendor Solis, a sexta imagem, que representa o roubo do ramo, é
seguida por muitas outras que conduzem ao nascimento de uma hermafrodita, que
representa um símbolo do Self que não foi associado à dimensão ctônica do corpo.
Dirigindo-se â dimensão ctônica de uma forma poderosa, a décima imagem mostra
um homem de aparência selvagem com uma espada que cortou os membros de
outro homem, representada em sua condição desmembrada em sua brancura de
sangue avermelhado (Fig. 20). Notavelmente, a qualidade dessa sombra escura
atinge o desmembramento da rígida imagem de si, do corpo e da psique. Esta figura
representa a integração dos aspectos do nosso ser que são capazes de atos
psicóticos que decorrem de uma identificação interna com a vida animal do
inconsciente. Quando essa identificação é ativada, isto é, quando não é sofrida e
sacrificada conscientemente, mas é atuada de forma grandiosa e delirante, essa
sombra mostra sua qualidade psicótica. Mas quando essa identificação é integrada
na medida em que determina uma fronteira que não se pode atravessar sem
violentar a própria alma ou a de outro, e quando alguém sofre a frustração de não
identificação com estas energias, então essa sombra se torna mais criativa. Mais
notavelmente, a sombra então se torna o sacrificador de estruturas rígidas, levando
à décima primeira imagem do Splendor Solis em que o corpo se transforma e o
espírito é experimentado como ascendendo das profundezas do corpo (Fig. 7). Esta
transformação representa a criação do Self dentro de um reino de corpo sutil em que
matéria e espírito não são mais separados, mas vinculados em um campo de nova
capacidade perceptual. O corpo sutil é um receptáculo potencial da paixão, e o
objetivo principal do processo de transformação na alquimia. O corpo sutil ou o
campo interativo evoluem para estruturas que contêm paixão em um aspecto
essencial do estágio da rubedo nas últimas dez xilografias do Rosarium em que as
questões de união, morte e paixão são consideradas, com mais detalhe, do que no
Splendor Solis.
O estágio da rubedo do Rosarium começa com a décima primeira xilografia
'Fermentação' (Fig. 21). Esta xilografia representa um estágio em que o campo
201

interativo tornou-se vitalizado de um modo novo. Tanto a paixão quando o espírito


são elementos vivificantes, embora o texto deixe claro que a fermentação é
adicionada "um pouco, e depois outro pouco novamente "(McLean, 1981, 69). Agora
a existência do campo é sentida e vista mais diretamente, como é sugerido pelo fato
de que o casal, que representa uma díade, totalmente inconsciente, agora não está
mais embaixo da água.
É importante reconhecer o poder transformador que acompanha esses
campos, mas podem emergir e devem ser respeitadas, as fortes resistências a tais
campos, nos casos em que o tabu do incesto foi realmente ou emocionalmente
violado por uma figura genitorial ou fraterna. Eu certamente não consegui ter esse
respeito pela resistência no caso que eu discuti neste capítulo. Em publicações
anteriores, cujo conteúdo pode ser visto refletido na dinâmica do campo da décima
primeira xilografia, eu escrevi sobre tais interações clínicas. Em um caso particular
(Schwartz-Salant, 1989, 144-57), quinze anos após uma sessão crucial em que o
campo interativo ativado tornou-se um estímulo para um processo imaginal, a
analisanda ainda considerava que foi um evento transformador em sua vida, o que
lhe possibilitou fazer mudanças significativas, tanto internamente, quanto nas
circunstâncias da vida. A experiência imaginária do campo a ligou muito mais
profundamente ao inconsciente, que até hoje ela pode aproveitar esta fonte
inestimável. Nesta xilografia, o campo é tão vivo quanto o inconsciente em uma
imaginação ativa vivida, só que agora faz parte de um processo compartilhado com
outra pessoa que lhe dá uma espontaneidade que pode ser duradoura.
Mas a natureza ativada do campo também pode ser mal utilizada - inferida
para existir como entidade útil antes de ter sido criada como resultado da sequência
coniunctio-nigredo - como apresentada no caso ilustrado neste capítulo. Eu assumi
erroneamente que eu e a analisanda compartilhamos um processo imaginal que
poderia conter a afirmação de que ela esperava que eu a visse como uma prostituta.
Mas, no outro caso ao qual aludi, e no qual uma interação imaginária teve um
resultado bem mais positivo, o campo interativo foi um receptáculo que poderia dar
forma e sustentar as afirmações aparentemente chocantes que se tornaram
criativas.
Na décima primeira xilografia, as próprias dinâmicas do campo se manifestam
em uma inversão dos papeis de gênero: a mulher agora está sobre o homem. A
inversão dos papeis, masculino e feminino, culturalmente condicionadas, sobretudo
nos aspectos dos papeis ativo-passivo, são frequentemente muito evidentes neste
estágio do processo, assinalado pela décima primeira xilografia (Schwartz-Salant,
1992). Cada um pode ‘penetrar no outro’, e pode fazê-lo de forma surpreendente ao
ponto de expulsar repetidamente um indivíduo de uma posição de poder e
conhecimento. Esses compromissos obtêm sucesso caso agirem contra a
consciência de um campo com as suas próprias dinâmicas. Esta situação é paralela
à imaginação ativa em que se dialoga com uma imagem no inconsciente. O campo
toma o lugar do inconsciente, e a imaginação é a díade inconsciente. Os perigos das
energias da paixão, são agora reduzidos ao fato de que, na décima xilografia (Fig.
18), conseguiu-se uma estrutura psíquica do Self. Nas experiências oferecidas pela
202

qualidade de campo da décima primeira xilografia (Fig. 21), o analista e o analisando


podem agora conhecer o ritmo da coniunctio em que existe uma ‘terceira coisa’ que
pode ser imaginariamente sentida e com a qual se pode relacionar como se
estivesse diante de uma visão. O processo é muito mais consciente do que na
coniunctio da quinta xilografia (Fig. 12), pois agora a experiência da nigredo levou à
assimilação do material incestuoso e, portanto, compulsivo.
É evidente que um ‘lado da sombra’ deste processo é sempre uma ‘análise
selvagem’ em que tudo pode ser dito. Tal comportamento é, geralmente, uma defesa
contra a ansiedade de um ou de outro e, por sua vez, pode esconder as pulsões
sadomasoquistas. Estes períodos existem para aqueles que não passaram através
do estágio da albedo e, sobretudo, através do estágio da mundificatio que liberta da
inflação (Jung, Obras, vol. 16, p. 294). O estágio da albedo no Rosarium cria um Self
psíquico que é o centro de orientação para o estágio da rubedo. Sem esta
experiência do Self e do seu funcionamento como centro do próprio ser, não é
possível entrar, com sucesso, no estágio da rubedo que, acredito, seja uma parte
essencial da sabedoria alquímica, como se percebe nas quatro xilografias
posteriores.
A paixão, que historicamente é sempre seguida pela tragédia e morte (como
se vê em O Amor no Mundo Ocidental (1983), de Denis de Rougement) pode se
tornar um fator criativo na rubedo. Mas em uma mudança notável do estágio da
albedo, o estado de união agora não necessita conduzir imediatamente a uma
nigredo devastadora. As imagens posteriores do Rosarium indicam o caminho e a
sabedoria do processo.
As xilografias do Rosarium, da décima segunda à décima quinta e os textos
que a acompanham realizam dois objetivos. Por um lado, o modo pelos quais a
consciência e a iluminação solar-racional podem ser destrutivas e como, por vezes,
devem ser sacrificadas. Por outro lado, representam a mesma sequência da nigredo
já observada na fase da albedo, com a principal diferença de que a hermafrodita no
sarcófago é alada. Assim como a coniunctio na décima primeira xilografia é uma
criatura aérea, assim também esses estados de nigredo são mais suscetíveis de se
tornarem conscientes para os participantes e refletem mais facilmente sobre eles, o
quanto estão sofrendo cegamente, como ocorre, com frequência, na fase da albedo.
A décima segunda xilografia, 'A Iluminação', mostra o sol, expressão de
iluminação e pensamento racional, perecendo no poço da Lua, representação do
ser, da imaginação e da consciência emocional (Fig. 22). Em um processo analítico,
o analista é, muitas vezes, o observador da consciência, obtida, por exemplo, nas
suas reflexões sobre a identificação projetiva ou pela análise dos sonhos. Do mesmo
modo, o analista ‘conhece’ muito das formas de transferência e contratransferência,
graças ao seu estudo no decorrer da vida e aos muitos casos de diagnóstico
esquematizados. No entanto, é fácil que o analista faça mau uso de tais formas de
consciência, ‘formas solares’ na metáfora alquímica, para defender-se de uma re-
traumatização, isto é, defender-se das próprias feridas psicóticas inflamadas pela
interação com o analisando, e especialmente, pela consciência do analisando.
203

Antes que a consciência possa ser sacrificada criativamente, como é a


situação na décima segunda xilografia, é obviamente necessário ter esse
conhecimento analítico. O sol entra no poço voluntariamente, significando que o
analista pode ter uma série considerável de compreensão, e pode até ter uma
capacidade solar-espiritual através da qual, imaginariamente, mantém uma
consciência, mas neste estágio a consciência é abandonada. Este ato parece
perigoso para o analista, pois está sem defesa e, em vez disso, em um estado de
desconhecimento. Enquanto a sétima xilografia (Fig. 15) força esta condição no
estágio da albedo, ela é voluntariamente inserida na décima segunda xilografia.
Este ato de sacrifício é o símbolo de uma morte voluntária do narcisismo em
favor da criatividade. É possível diferenciar um esforço criativo em formas narcísicas
e formas mais autênticas. No primeiro caso, o indivíduo mostra essencialmente o
que já conhece. No último, renuncia conscientemente a esta exibição e o processo
criativo busca o que não conhece. Embora tal sacrifício também desempenhe um
papel no estágio da albedo, como acontece em qualquer análise, é especialmente
importante na rubedo, pois ao lidar com a paixão, qualquer apego ao conhecimento
é perigoso. Esse tipo de atitude narcisista é facilmente envolvido pela paixão e pode
levar a estados de fusão regressivos e destrutivos em que a díade inconsciente
entra em ação ou está dividida e a sua presença é negada.
Assim, esse sacrifício precede os estágios da nigredo da décima terceira e
décima quarta xilografia (Fig. 23-24), porque como resultado da natureza
apaixonada e ‘vermelha’ da díade inconsciente, o sofrimento da não ação e do
desconhecimento, pode ser facilmente negligenciado, e o processo ficar
comprometido. Consciência solar é, ao mesmo tempo, a sacrificada e sacrificadora:
o analista e o analisando devem, conscientemente, sacrificar o que sabem ao
serviço de uma posterior experiência de morte e de falta de conexão, como ocorre
na sexta e sétima xilografia (Fig. 14-15). O problema é que, com a adição ou a
presença de paixão, esses estados de ‘ausência’ ou desconforto são facilmente
evitados em uma espécie de comportamento maníaco que é o aspecto negativo da
natureza alada da hermafrodita. Assim, no estágio da rubedo, a ‘morte’ não é tão
evidente e não é imposta à consciência do analista e do analisando, como ocorre no
estágio da albedo; em vez, no estágio da rubedo, a natureza lunar da ‘morte’ do
vínculo, a sua textura emocional deve ser procurada através do sacrifício da
consciência solar.
Agora que existe uma ‘base lunar’ - uma estabilidade e um acesso à visão
imaginária - como é percebido na criação da Rebis, o estágio da rubedo funciona
transformando as forças solares de sua forma negativa, compulsiva. O foco é
sempre uma díade subjacente, e ocorre a mudança através da díade: "O dragão
morre com o sol e a lua, não somente pelo sol ou pela lua." E com a morte do
dragão - mais uma vez simbolizando a literalização da pulsão da fusão – emerge um
Self individual que sobrevive ao calor da paixão, ressuscitado pela sua dissolução
sob o impacto do desejo e da morte.
Como na sexta xilografia que lhe corresponde, na décima terceira xilografia
‘Nutrição’, se instaura novamente uma nigredo, e essa morte faz parte da
204

transformação do Sol (Fig. 23). O texto que a acompanha fala do enxofre vermelho
digerido pela lua prateada. A condição da hermafrodita morta é chamada de
nutrimentum. Em outras palavras, o estágio da nigredo agora é sentido de forma
mais consciente na sua função de transformar o potencial da natureza invasiva e
compulsiva da consciência. O desconforto e a dor do abandono, não são mais o foco
principal.
A importância da transformação da consciência não pode ser excessivamente
enfatizada. O mundo moderno valoriza altamente o ‘fazer’ em detrimento do ‘ser’.
Para o analista possuir um verdadeiro estado de consciência sobre o processo de
seu analisando – uma consciência obtida, por exemplo, da transferência ou da
interpretação dos sonhos - e sacrificar essa consciência está longe de ser uma
questão simples. Um ato de sacrifício semelhante desaparece em a face dos valores
coletivos e a um incremento narcisista provocado por um ato de ‘conhecimento’.
Além disso, sacrificar a consciência sobre o processo do outro pode conduzir a uma
regressão para um estágio ‘aquoso’, a menos que o analista saiba que está
desistindo de algo que lhe pareça muito precioso, para um objetivo ainda maior.
Quando se possui esta consciência, o campo interativo é posteriormente vivificado
ao serviço da relação, um mistério em que o analista sabe que o analisando pode se
tornar consciente sobre o analista, do mesmo modo em que ele possui consciência
do analisando.
Na décima quarta xilografia, denominada ‘Fixação’, a hermafrodita já não é
alada, e, em vez disso, uma mulher nua ascende ao céu (Fig. 24). Na sétima
xilografia que é a sua correspondente da fase do albedo do Rosarium, a alma
ascendente era masculina, e a qualidade do campo transmitia a perda de qualquer
capacidade de penetração sólida, deixando ambos os indivíduos em um estado de
vazio e morte. A décima quarta xilografia significa o fim da vida totalmente lunar das
qualidades de campo anteriores, especialmente da fase da albedo, e indica o início
de uma nova vida solar da hermafrodita. A consciência, juntamente com o seu
elemento potencialmente compulsivo e assassino da alma, é transformada. O Self
que, eventualmente ressuscita, requer essa transformação para sua estabilidade
final em meio à mudança.
Semelhante à oitava xilografia (Fig. 16), a décima quinta xilografia do
denominada 'Multiplicação', apresenta uma descida de chuva do céu (Fig. 25). Nela,
como observa Fabricius, o enxofre solar já não está ‘fermentando’ na pedra que o
‘nutre’, mas a ‘fixa’, ‘multiplicando-a’ em sua terra. Essas xilografias são, portanto,
todas as transformações do elemento masculino, o ‘enxofre’ ativo e agressivo que é
penetrante, mas que também pode ser corrosivo. Os alquimistas compreendiam que
sofrendo a consciência dessas qualidades negativas, poderia surtir o efeito na queda
do orvalho, uma chuva que causa um efeito multiplicador sobre o produto, a pedra
(Fabricius, 1976, 154).
Este estado de multiplicação não é um desejo fantástico, mas um resultado
da experiência, pois quando a qualidade do Self do analista foi forjada no calor dos
processos, como os que foram descritos pelo Rosarium, terá tal efeito. Este efeito
pode ser chamado de ‘introjeção’; mas a introjeção é apenas um termo abstrato para
205

um processo pouco compreendido. Em vez disso, está envolvida a transmissão de


um mistério e o pensamento alquímico prospera em tais realidades.
O processo alquímico, portanto, tenta criar uma estrutura do Self que também
seja uma qualidade de campo, uma essência das relações em si mesmas, que têm a
capacidade de penetração e recepção ativa. Estas qualidades não são mais
divididas, como na tradição cultural ‘uma coisa aos homens e a outra às mulheres’.
Transcender essa divisão é um objetivo claro do processo alquímico.

TRANSFORMAÇÃO RECÍPROCA DAS ESTRUTURAS DO SELF E DO CAMPO


INTERATIVO

Semelhante à oitava xilografia, a décima sexta, denominada ‘Revitalização’,


mostra a alma que retorna jogando-se do topo (Fig. 26). O lema explica:

Eis a alma que retorna do céu,


gloriosa e clara, na verdade
devolvendo vida à filha do filósofo.

A metade feminina é revivificada na décima sexta xilografia. O estágio em que


a pedra atinge o seu ‘terceiro grau de preparação’ e "o corpo é convertido em
espírito", foi superado (Fabricius, 1976, 158). Um dos principais objetivos do estágio
de rubedo é a de encarnar o Self e uma qualidade de campo, através da qual se
procura a presença do corpo como veículo da percepção. Assim, a rubedo se move
através dos estágios de paixão e espírito que se integram sacrificando as suas
prerrogativas orientadas para o poder, de modo que um novo poder seja adicionado
à 'Pedra Branca' do estágio do albedo. Uma qualidade mais forte, espiritual, e uma
estrutura mais estável, estão sendo forjadas. Este estado é um objetivo, que de vez
em quando, pode ser conhecido em qualquer relação, mas que geralmente
desaparece na medida em que os conteúdos de estresse e de sombra se tornam
muito urgentes para os indivíduos envolvidos. Para os alquimistas, este estado é
realizável como um campo interativo que está se formando e continua no
‘avermelhamento’, à medida que se torna mais consciente e permite tanto a visão
espiritual, quanto à imaginativa.
A décima sétima xilografia, 'Perfeição', mostra o que é conhecido como a
terceira conjunção, uma vez que agora a hermafrodita está sobre a colina solar (Fig.
27). O Três e o Quatro estão unidos, simbolizando uma união consciente-
inconsciente; mas agora o leão, símbolo do incesto, está em segundo plano, e a
serpente de três cabeças está prestes a morrer. A xilografia também mostra um
processo de autonutrição do pelicano. O casal está triunfante. O aspecto incestuoso
do matrimônio solar, representado pelo leão, aparece atrás da hermafrodita. O texto
que o acompanha afirma:

Eu sou a lua crescente, úmida e fria, e tu, o sol, é quente ou úmido (ou também
seco). Quando nos unimos em igualdade de hierarquia em nossa casa, o que não
pode ocorrer, exceto por meio de um fogo suave, que carrega consigo uma
206

elevação, devemos estreitar-nos nele e nos tornar como a nobre mulher que o
marido levou para casa.

O Sol responde à Lua:

Se tu desejares fazer isso e não me fizer algum mal, então o meu corpo deverá
mudar novamente; em seguida, eu lhe darei um novo poder de penetração, graças
ao qual tu te tornarás poderoso na luta do fogo da liquefação e da purgação. E tu
sairás de tudo isso sem diminuição, nem escuridão (...) e não serás combatida,
porque não te rebelarás (McLean, 1980, 101-02).

O Sol reconhece o poder da Lua. A vida masculina, solar, finalmente


reconhece o poder do feminino não só para prejudicar, mas também para se
transformar. Além disso, a vida solar do masculino reconhece o quão vital é para a
transformação do feminino. Este reconhecimento vale para homens e mulheres e
também para os poderes que constituem os opostos dentro de um indivíduo ou
dentro de um campo interativo.
Um dos aspectos mais significativos da décima sétima xilografia é
representado pelo fato de que a hermafrodita está em pé sobre a serpente de três
cabeças, Mercurius, que agora está transformando-se. Esta imagem representa uma
qualidade de campo que não só supera a fusão inconsciente que pode ser
favorecida pela paixão, mas também põe fim nos enganos da identificação projetiva.
Dois indivíduos agora podem experimentar um campo em que a paixão existe, e em
que os elementos paranóicos já não dominam, e em que facilmente mudam os
papeis ativos e passivos.
Na décima oitava xilografia 'Mortificação do matrimônio celeste’ ou ‘O Leão
Verde que devora o Sol’ (Fabricius, 1976, 170), este processo de transformação
continua porque a vida solar da compreensão racional e espiritual é novamente
sacrificada em função da criação de uma nova estrutura de campo (Fig. 28). A
finalidade simbolizada por esta xilografia é a de criar um campo que possa existir de
maneira estável dentro das paixões representadas pelo Mito Átis-Cibele. Esta
estabilidade se expressa em uma experiência de si mesmo e dos outros que não
foge do corpo, que conserva a visão imaginária, e isso é estável sob o impacto das
paixões e da visão espiritual. Para realizar esta estabilidade, como observa McLean,
o alquimista deve estar disposto a sacrificar tudo o que ele sabe, bem como, toda a
estrutura do conhecimento adquirido. Deve arriscar-se para se encontrar com o
aspecto destrutivo, devorador do inconsciente, o Leão Verde (McLean, 1980, 129).
A décima oitava xilografia representa um estágio em que um ou outro está
disposto a sacrificar a segurança da consciência, aceitando motivos de sombra para
atos que foram realmente destrutivos. Aceitar a sombra, reconhecer o próprio
comportamento destrutivo ou a maldade pode ser muito perigoso, pois o outro pode,
verdadeiramente, ocasionar danos. Por exemplo, somos vulneráveis a todo tipo de
rejeição e desprezo, lesões narcisistas e abandono que ameaçam a estabilidade do
Self. A décima oitava xilografia representa uma qualidade do campo que conduz ao
risco, mesmo existindo a confiança de que se pode sobreviver a tais ataques como
um Self vital, encarnado. O ponto consiste no fato de que alguém arriscaria o próprio
207

Self solar, sabendo que esse risco é uma maneira pela qual se honra a alma e a
verdade. Somente enfrentando e superando os perigos do ‘Leão Verde’, pode-se
evitar tornar-se rígido ou invulnerável no processo de negar o ‘mundo objetal’ no seu
poder de ferir. Este nível de força pode experimentar as paixões representadas pelo
estado de fusão impossível de Átis e Cibele, sem ser emocionalmente dominado por
eles.
Na décima nona xilografia, 'Assunção e coroação', a alma é representada
pela união com a Santíssima Trindade (Fig. 29). A alma não é apenas coroada por
imagens maiores do que ela, mas em outras versões do Rosarium, a coroa é muito
grande para a alma, o que significa que o indivíduo deve reconhecer que a fonte da
iluminação se encontra fora do seu ser (McLean, 1980, 129). Esta questão é
importante em termos do modo como se faz a experiência do numinosum. O
numinosum sempre tem um aspecto transcendente, um Self que não pode ser
encarnado, sentido dentro, mesmo sendo também capaz de criar um Self imanente.
Estes dois aspectos do Self, imanente e transcendente, são simbolicamente
evidentes na décima nona xilografia, juntamente com uma vida lunar do corpo sutil.
A experiência mostra que os dois aspectos do Self têm uma substancial
semelhança, mas estas fontes de bênção e de significado são experimentadas em
âmbitos de escala muito diferentes. Conhecendo esta diferença entre imanência e
transcendência, o alquimista nunca erra em saber qual é o seu lugar no cosmos, e a
grandiosidade já não pode mais tentá-lo, nem traí-lo. Na vida espiritual da relação, é
essencial o mesmo nível de consciência.
Ao longo de todo o Rosarium, trabalhar em um processo interativo promove a
criação de um eu Self que é sensível, tanto ao modo ‘lunar’, quanto ao ‘solar’ de
relacionar-se e de experimentar o numinosum. Embora o Rosarium mostre
experiências de transcendência que ultrapassam as noções de campo, o processo
de transformação que realiza os mistérios da fase solar do numinosum prospera
continuamente dentro de um campo de relações.
A vigésima e última xilografia do Rosarium representa a ‘Ressurreição’ do
corpo glorificado e incorruptível de Cristo (Fig. 30). Embora este seja o objetivo final,
me ocorreu-me de perceber esta imagem do corpo da ressurreição, também em
sonhos, surgidos próximo ao início da análise. Uma imagem destas chamou a minha
atenção no seguinte sonho, trazido por um homem:

Eu sou - ou eu também me vejo - em um caixão. Estou coberto por camadas de


uma mulher, por livros e pedras. Eu me vejo empurrando-os, e enquanto os
empurro, percebo que tenho um corpo perfeitamente claro e fosforecente. É
radiante, e eu estou triunfante à sua vista.

Na época deste sonho, a análise estava se ocupando de um trauma


importante dos primeiros anos de vida deste homem, a perda do amor e da atenção
de seu pai. Aos quatro anos de idade, seu pai se distanciou e tornou-se deprimido e
essencialmente ‘desapareceu’ depois que ele o tinha conhecido como uma pessoa
profundamente amorosa. Seu pai então o ‘deu’ a um tio para que o educasse. Ele
208

perdeu a paixão e o interesse genuíno pelo pai; ele sentiu isso como uma traição
terrível porque o havia amado profundamente.
Toda a sua vida de relação com homens e mulheres sempre foi esquizoide,
coberta de intelectualizações (os livros no sonho), de masoquismo (a submissão às
pedras no sonho) e de sedução (mergulhada no feminino no sonho). Em sua vida
real, ele estava com duas mulheres por um determinado período de tempo, ou
permanecia junto a uma somente com a modalidade ‘dentro e fora’.
O corpo da ressurreição, o corpo luminoso do sonho permitiu que um campo
interativo existisse entre nós em que ele poderia ‘usar-me’ no sentido de Winnicott
(1971) de ‘uso objetal’, isto é, sem o medo de destruir-me. Ele poderia realizar os
seus espelhamentos, e eu os meus, sem o impedimento das deformações dos
mecanismos projetivos e introjetivos. Este estado estava presente desde o início do
nosso trabalho, apesar das muitas camadas do processo psicoide, que de outra
forma, negaria a existência do corpo luminoso. Neste caso, a qualidade do campo
apareceu no início, certamente na transferência, talvez indicando o potencial em
nosso processo para recuperar a paixão que ele, tão desesperadamente,
necessitava. Às vezes, o inconsciente mostra um objetivo possível muito cedo em
um processo, e então, é preciso trabalhar para alcançá-lo de forma estável.
Envolver-se nas profundidades irracionais da relação no estágio da rubedo é
transformar a paixão de um perigo imanente para a alma em um fogo criativo de
mudança para maior intimidade e individualidade. No contexto de uma consciência
espiritual que conhece tanto uma forma imanente, quanto uma forma transcendente,
o campo interativo entre os indivíduos se torna uma fonte de um Self que é tanto
individual, quanto compartilhado, um estado que constitui um paradoxo bem vindo
que ajuda a superar o narcisismo, flagelo da relação e de toda a cultura.
A vigésima e última xilografia do Rosarium é diferente de todas as anteriores,
porque a 'Ressurreição' representa o surgimento do túmulo de um único humano
(Fabricius, 1973). Antes desta xilografia, quando uma imagem como a 'Rébis' da
décima xilografia (Fig. 18) define o campo interativo, um indivíduo alcançou uma
conexão entre consciente e inconsciente que pode existir em meio às ameaças de
perda do objeto e de abandono. Mas essa criação ainda não é uma imagem do Self
no sentido da vigésima xilografia. Enquanto em ambas, tanto na décima, quanto na
décima sétima xilografias (Fig. 18, 27), a imagem hermafrodita surge como resultado
de um processo de união e morte, esta imagem representa principalmente um
vínculo que conecta. Mesmo que se trate de um vínculo entre consciente e
inconsciente ou entre mente e corpo - em um indivíduo ou como uma qualidade de
campo entre indivíduos - as realizações da décima e décima sétima xilografias não
são ainda representantes de um centro orientador, o Self. Essa é a conquista da
última xilografia da série.
Uma estrutura do Self também existe dentro de todo o processo - por
exemplo, os alquimistas insistem em que é preciso ouro para fazer ouro - mas o Self
é perdido e obtido quando os diversos estados qualitativos do Rosarium são
encontrados. Na ‘Ressurreição’, um novo tipo de estabilidade finalmente é
alcançada, um Self que é imanente e transcendente. Qualquer que fosse a
209

orientação que pudesse ser exaurida anteriormente, de uma conexão consciente-


inconsciente ou de um campo interativo compartilhado através do qual a conexão foi
forjada, agora existe também uma experiência qualitativa. Agora, um ‘outro’ interior é
sentido e conhecido como o centro do próprio ser, mas também é sentido como
‘exterior’, como transcendente. Para o indivíduo que está experimentando desta
qualidade do Self, as características duais da imanência e da transcendência não
são, de forma alguma, contraditórias ou polarizadas. E o Self, que finalmente foi
criado no Rosarium, não é apenas uma fonte de identidade; é um guia contínuo -
sentido no tempo e no espaço em vez de inferido pelos sonhos ou detectado
intuitivamente - e é conhecido como o próprio objetivo final. O Self que emerge na
‘Ressurreição’ é um guia para o destino que pode romper com as convenções
coletivas, caso isso seja necessário. Este Self é um centro e uma circunferência do
ser que se diferencia, de maneira significativa do Self do cristianismo, ou de
qualquer outra construção religiosa que favorece a vida espiritual em relação à
corporal.
A última xilografia do Rosarium, ‘Ressurreição’, é, portanto, a conquista da
opus que confere a coroação. Considerando que, no sistema de crenças
predominantemente cristãs, a ressurreição é um ato de fé, na alquimia
renascentista, a ressurreição é uma experiência contínua, pessoal e interior. A
imagem cristã do Self é principalmente uma construção espiritual, enquanto a
imagem alquímica do Self possui um espírito e um corpo. Ao invés de um Self que é
confinado a assuntos espirituais e floresce apenas em uma atmosfera de repressão,
em que as paixões devem ser sublimadas e as relações entre os indivíduos
cuidadosamente proscritas, o Self alquímico é forjado tanto individualmente, quanto
também no fogo ralacional da paixão e da loucura.
Sofrendo através de inúmeras sequências de estados de união-morte e
lutando com as instâncias de loucura que sempre levam o indivíduo ao limite da sua
coragem e da própria força, o processo alquímico, na vigésima xilografia, também
conduz a uma consciência contínua e a uma experiência do ‘reino intermediário’ do
corpo sutil. Sem o conceito de corpo sutil / campo interativo, a vida humana torna-se
estéril – semelhante a quando foca sobre um mundo de coisas materiais – ou se
torna espiritualizada em um mundo de divisão mente-corpo. Certamente, a cultura
ocidental esvaziou estas opções.
A vigésima xilografia do Rosarium indica a existência do reino sutil em que
pode florescer um Self que combina atributos espirituais e físicos e que nos
aproxima do transcendente, bem como, das experiências pessoais mais íntimas.
‘Ressurreição’ significa a criação de uma fé contínua na existência do Self no reino
de corpo sutil, portanto, é um termo maravilhoso para esta fase final; de fato, sinaliza
uma fé acesa e sustentada pela experiência. O lema que acompanha a imagem
afirma:

Após a minha paixão e os múltiplos tormentos, ressuscitei novamente, sendo


purificado e limpo de todas as manchas.
210

A nigredo deixa de ser catastrófica e, mais significativamente, essa evolução


positiva ocorre dentro, não apenas de um indivíduo, mas também de uma relação.
Manter uma estrutura do Self é muito difícil quando devemos nos confrontar
com um ataque emocional de outro indivíduo ou com atitudes coletivas. Os
indivíduos envolvidos em uma relação, em que sofrem traições, têm dificuldades
para manter um sentido do Self e uma consciência consciente de suas experiências
de campo. A estrutura do Self da alquimia oferece estabilidade em meio a tais
experiências tão caóticas, mas esta estrutura alquímica do Self não é concedida
pela graça. Nem é o resultado de uma visão mística. Esta iluminação acompanha
somente o início do processo pelo qual é criado o estado de 'Ressurreição'. Em
última análise, apenas as experiências de união e morte, forjadas através do
sofrimento, da visão e da coragem, podem criar o Self alquímico

10

APRECIAR O MISTÉRIO DA RELAÇÃO

A vigésima segunda e última imagem do grande trabalho alquímico, o


Splendor Solis, representa uma cena mítica que simboliza a essência do
entendimento alquímico da transformação, tanto individual, quanto das relações (Fig.
31). A pintura é dominada pela imagem do pôr do sol, olhando para a esquerda com
uma expressão séria e madura. O primeiro plano da pintura contém as árvores
quebradas e queimadas de uma paisagem devastada, bem como, as novas plantas
em crescimento. Em segundo plano, tem uma cidade celestial construída sobre uma
colina com um pináculo que sobe sobre o grupo dos edifícios. Em frente à cidade,
existe um lago com uma casa solitária na margem esquerda. O lago dá origem a um
fluxo que escorre para o primeiro plano. Esta pintura contém muitos elementos
simbólicos de uma consciência transformada.
O pôr-sol, pronto para encontrar a terra em uma união final e grande, é um sol
purificado, análogo à consciência transformada do processo alquímico (McLean,
1981). A paisagem queimada, consequência de um fogo excessivo - como nas
paixões, se tornaram selvagens e destrutivas - é uma lembrança de como a morte é
essencial para o processo alquímico. A expressão séria e madura no rosto do sol
reflete a experiência das duras provas e dos tormentos da transformação.
O encontro do sol com a terra é paralelo à união desta consciência
transformada e à experiência quotidiana. Enquanto o sol representa a consciência,
também é um grande símbolo do Self e a realização coroada da criação de um tipo
particular de estrutura do Self. O Self, alquimicamente nascido do Splendor Solis
não é apenas pessoal, mas está também conectado ao transcendente. Uma nova
vida foi forjada nas fornalhas alquímicas da coagulação e da dissolução das velhas
211

formas de ser que, para ser transformadas, devem morrer, renascer e morrer
novamente. Esta sequência de morte-renascimento no processo alquímico de
transformação constitui a destilação contínua com a finalidade de criar uma
consciência purificada e uma estrutura do Self.
A sequência de um novo tipo de ordem e, portanto, a morte dessa ordem é a
dinâmica de transformação alquímica. O pensamento alquímico reflete o fato de que
não importa o quão exaltado seja o estágio de qualquer processo na vida; esse
estágio vive no contexto de todo o desespero e os fracassos que acompanharam a
sua criação. Assim, na última imagem do Splendor Solis, dois estados - um Self
criado e a sua consciência purificada - não se juntam apenas com a vida e o corpo,
mas também com uma história de desespero e fracassos.
A combinação no primeiro plano da pintura, de uma qualidade de morte com a
vida emergente das plantas – que significa novo crescimento - caracteriza uma
consciência madura do presente. O aqui e agora da existência não é idealizado em
termos de ‘o que pode ser’. Em vez disso, as experiências de fracasso, morte, perda
e de oportunidades, nunca são esquecidas. Ao mesmo tempo, o novo crescimento
que emerge no aqui e agora também é reconhecido. Porque as formas antigas da
existência estão muito desenvolvidas, a experiência de sua devastação e da sua
excessiva utilidade excessiva, impregna o presente de profunda maturidade. Como
evidência de que se pode conseguir desejando a transcendência, atrás de todas as
outras coisas representadas na pintura, existe uma cidade celestial – a verdadeira,
transcendente morada do Self.
As relações não são somente formas de troca de energia e de função entre
indivíduos, mas também estruturas vivas que harmonizam o sentido da identidade e
o bem-estar de uma pessoa. Dois indivíduos, ou um único que faz do trabalho
criativo, ou uma pessoa com uma organização coletiva criam, inevitavelmente, uma
relação dotada de caráter e dinâmica própria. Uma vez que se entra
conscientemente nesta relação, a autonomia de cada uma é reduzida a tal ponto
que os interesses e os sentimentos do outro devem, agora, ser considerados
juntamente com os próprios. Este ingresso consciente em uma relação pode ser
experimentado como um ato de liberdade no sentido de uma intenção expressa de
amar a outra pessoa ou de ser leal a uma organização ou ao próprio processo
criativo. No entanto, quando as partes interessadas não têm um sentido suficiente
de identidade individual para permanecer separadas e vitais nos próprios direitos, o
ingresso consciente em uma relação pode ser vivido como um perigo e uma
armadilha, ou mesmo como uma forma de escravidão.
Sendo formas vivas de troca, as relações fazem mediação entre uma pessoa
e sua psique inconsciente, realidade espiritual, sistema familiar, local de trabalho e
vida cultural. Todas estas formas de troca são as bases das relações que abrangem
um amplo espectro da experiência, do extremo do comportamento ‘profano’ ou
compulsivo, automático, até o outro extremo da vida ‘sagrada’ ou reflexiva de
envolvimento com a alma. Se a forma de troca for, antes de tudo, uma forma em
que dois indivíduos se exploram mutuamente para satisfazer as demandas
narcisistas, então a relação se reduz a proporcionar uma arena para realizar
212

necessidades sexuais, agressivas e econômicas. As relações, no entanto, também


podem dignificar e modificar o comportamento de cada um para com o outro,
formando estruturas de contenção invisíveis, mas poderosas, realidades vivas que
podem transformar-se de estados que criam comportamentos compulsivos e
irreflexivos, em estados que criam e promovem o cuidado da alma.
A contenção na relação age em favor de uma variedade de propósitos, os
quais nem sempre incentivam e criam um novo crescimento nos parceiros. Uma
relação pode, facilmente, servir o status quo, incentivando secretamente cada
pessoa a evitar mudanças, criando assim uma contenção que se manifesta como
uma estrutura fundida e co-dependente. Basicamente, as relações são formas de
segurança que sufocam o crescimento, tanto em uma relação pessoal, quanto em
uma relação corporativa em que um indivíduo faz parte de uma estrutura
organizacional rígida e dominadora que, em troca da promessa de segurança, exige
quase total obediência na atitude e talvez, até no pensamento. Estas relações co-
dependentes, sejam elas pessoais ou corporativas, servem invariavelmente, para
facilitar qualquer tipo de comportamento dependente, hábito ou que ainda mata a
alma.
À medida que cada parceiro colide com o outro, esse estado colusivo é um
lugar que produz a êxtase e incentiva o medo da mudança. Essas qualidades de
contenção são extremamente sedutoras para qualquer relação - mesmo destrutiva -
é sempre experimentada como uma entidade maior que qualquer um dos parceiros.
Muitas vezes, uma relação fundida tem um poder que se torna algo como uma
imagem de uma divindade que é servida secretamente, com potenciais
consequências devastadoras, e podem exibir uma aparência de apoio muito
unificada enquanto, na verdade, abriga uma díade inconsciente sadomasoquista em
que os parceiros se enfraquecem mutuamente de modo sutil, quando não em um
modo disfarçado. Abandonar uma relação co-dependente e procurar outras relações
com qualidades de contenção positivas podem ser sentidas como perigosas e,
muitas vezes, resiste-se tenazmente. Geralmente, protegendo o parceiro de
conhecer a própria loucura, as relações estáticas reduzem a probabilidade de
qualquer um dos parceiros de ser verdadeiramente envolvido por aquela loucura.
Indivíduos que alcançaram uma integração espiritual considerável, mesmo se
com um percurso solitário podem, no entanto, descobrir-se ser totalmente infantis ou
extremamente defensivos quando entram em uma relação com outra pessoa.
Porque eles vivem uma relação como perigosa e ameaçadora, não se sentem
suficientemente seguros e separados como indivíduos, para arriscar a encontrar os
aspectos profundos e os poderes de sua vida espiritual interior. Eles têm
necessidade de ser endurecidos pelo processo do estágio da rubedo da
transformação alquímica, caso queiram evitar a tragédia de uma vida solitária
indesejada ou de uma vida criativamente ou espiritualmente empobrecida, vivida
dentro de uma relação. Mesmo que uma relação, baseada em compromisso pode
proteger os indivíduos de estados mentais perigosos e, pode às vezes, parecer
suficientemente adequada para os próprios propósitos, ao longo do tempo, tal
213

relação rouba a determinação e o entusiasmo e favorece a covardia diante das


próprias profundidades interiores e em a face da própria vida.
Todos necessitam de um parceiro no esforço para identificar se esse caminho
de integração deve incluir amor, agressão e vida corpórea, juntamente com um
centro espiritual de valores e de objetivos. Raramente, mesmo fazendo algumas
vezes, uma pessoa pode entrar no caminho da criação e transformação de um Self
sem o fogo e o desafio de uma relação duradoura. Porque o percurso de uma
relação conduzido através de novas criações de experiência e de aspirações, se
torna mais do que uma interpretação da história passada. Qualquer relação profunda
tem seus elementos de céu e de inferno; mas quando é um processo caracterizado
por uma estabilidade de confiança e significado, duramente conquistado por muitas
tentativas de traição e de falhas em atender às demandas de intimidade, uma
contenção resiliente que torna cada um dos parceiros melhor, em melhor condição
de viver em meio às turbulências, às tragédias, a alegria e as dificuldades da vida.
Quando os parceiros conhecem e se experimentam através do caos e a destruição,
bem como, através da beleza e do crescimento, eles criam uma contenção que
favorece e sustenta o processo de individuação e que se torna a propriedade mais
sagrada de cada um.
Até que um indivíduo não satisfaça as necessidades, as demandas e a
consciência de outra pessoa no ambiente entrelaçado da relação, ele sempre
permanecerá em um nível de consciência muito espiritualizado ou superficial. A
relação com outra pessoa traz, inevitavelmente, o lado negativo de alguém - os
desejos infantis, regressivos que nos fazem sentir inconscientemente que o parceiro
é um grande perigo, uma força que tenta separar das nossas imagens interiores
maternas ou paternas. Uma relação profunda pode interromper esses estados
internos de fusão e forçar um indivíduo a reconhecer aqueles aspectos regressivos
de si que não quer mudar e que são, muitas vezes, projetados para o parceiro na
tentativa de renunciá-los. Ainda que um indivíduo expresse sua raiva e o próprio
ódio para o parceiro, porque não encarna as imagens genitoriais idealizadas, ou
ainda que se comporte de uma maneira que cria, na experiência com o parceiro, a
ilusão do genitor idealizado, este indivíduo pode esforçar-se para usar a relação
para empreender o trabalho árduo de integrar tais lados escuros e sombrios da
personalidade do ego. Até que um indivíduo não conheça estes lados sombrios e
destrutivos de seu ser, o ego estará sempre em uma condição enfraquecida que
torna a relação uma perigosa aventura. Assim, em vez de aumentar a consciência, a
relação obscurece a consciência e promove a regressão. No entanto, sem uma
relação analítica ou pessoal, é muito difícil chegar a um acordo com os aspectos
sombrios de próprio ser.
Muitas pessoas entram em contato com um estado espiritual através da
oração ou da meditação, mas este estado pode, de fato, ser experimentado como
uma realidade ‘externa’ que é transcendente, em vez de uma realidade interna
encarnada. O estado encarnado exemplifica o Self expresso pela alquimia - por
exemplo, o Self expresso pela vigésima segunda imagem do Splendor Solis ou o
Self da vigésima xilografia do Rosarium Philosophorum. Uma espiritualidade
214

encarnada requer uma consciência do mal, das qualidades renegadas e opostas à


vida, do próprio ser, que desabrocham, sobretudo, para destruir e minar a coragem
de viver e de crescer. Sem a integração dos elementos mais escuros e destrutivos
do ser, os próprios aspectos espirituais permanecem, geralmente, uma realidade
puramente potencial. Todavia, quando são transformados, estes elementos
destrutivos fornecem um contrapeso enraizado na limitação da infinita dimensão
espiritual da psique.
Porém, as relações, como espaços para a integração de elementos da
sombra, são importantes veículos para a criação da consciência, uma presença
invisível que orienta e nutre a alma. No entanto, para que este estado exista, as
próprias relações devem transformar-se dos estados de união precoce em formas
mais maduras que têm consciência do poder e da realidade de uma díade que
define o lado inconsciente da relação.
O estado da união que existe nas relações, geralmente envolve os elementos
inconscientes de ambos, em vez dos elementos mais conscientes. Em nível
consciente, dois indivíduos podem parecer amorosos e cooperativos, mesmo
enquanto a sua díade inconsciente, que pode ser o principal locus da união entre
eles, se comporta de modo significativamente diferente da imagem consciente e dos
valores aos quais ambos aderem. Por sua natureza, o casal ‘escuro’ subjacente ao
casal ‘consciente’ é estranho e geralmente desagradável. Por exemplo, o casal
sombrio pode ser como dois animais malignos entrelaçados em uma luta de vida e
morte, ou como descrito na Turba Philosophorum, dois amantes entrelaçados em
um abraço – um ser humano e uma serpente. Infelizmente, as energias de tais
conflitos são, muitas vezes, tão intensas e tão rejeitadas pelos casais conscientes,
de modo a ser virtualmente irreprimíveis. Portanto, eles se infiltram de modo sutil e
gradual no ambiente, afetando os outros, por exemplo, os filhos em um sistema
familiar. Adquirir a visão necessária para ver as próprias díades inconscientes requer
que os casais se esforcem para absorver a ferida narcísica, envolvida na admissão
da existência de tais qualidades malignas e desagradáveis dentro de si, sem se
rebelar na defesa e na acusação do outro.
O ato de crescimento e de maturidade requer que ambas as partes sejam
capazes de sofrer as feridas narcísicas sem reagir com posições de poder, como
culpar o outro, ou sentir raiva, ou retirar-se. Perceber a díade inconsciente e
reconhecer o poder dá lugar ao processo da descoberta de ter agido com
modalidades que, de fato, são inconscientes, pulsionais e destrutivas, mesmo
quando acreditamos que o oposto seja exatamente o verdadeiro.
As relações podem amadurecer somente quando se transformam, somente
quando englobam um ritmo de morte e renascimento. Para tanto, as relações
seguem a mesma lógica do processo alquímico. Assim, a contínua preocupação
narcísica de uma sociedade não só torna inadmissíveis os estados de união e as
mudanças de qualquer tipo, mas tal preocupação narcísica também está
diretamente contra o potencial transformador da experiência da morte estrutural
inerente às relações. A cultura ocidental é, de fato, dominada não só pelo medo da
morte, mas também pelo medo da morte das relações. Por exemplo, a própria
215

possibilidade de perder um emprego, um casamento, uma amizade ou uma conexão


com uma organização profissional pode, por si só, tornar-se em si, um fator de
estresse terrivelmente poderoso.
As mesmas reflexões são válidas para os indivíduos e para o local de
trabalho. Um ambiente de trabalho sempre possui uma espécie de cultura ou atitude
que o distingue de outros ambientes. Mas a cultura, especialmente de uma grande
corporação, também possui um lado sombrio, um conjunto de valores inconscientes
que não são evidentes à luz da atividade cotidiana, como se pode perceber no lado
escondido, particularmente negativo das empresas produtoras de tabaco que, por
anos, mentiram sobre os efeitos nocivos dos cigarros. Qualquer um que trabalhe
para essa empresa é envolvido em uma relação que possui um aspecto consciente,
oxalá, repleto de lealdade e bons sentimentos; mas pode também estar sujeito a
outro aspecto inconsciente, talvez uma díade muito escura, em que o poder do mal
está presente. As relações entre dois indivíduos ou entre indivíduos e instituições
crescem e amadurecem, somente se os parceiros tornam-se conscientes da
existência e da relativa autonomia de uma díade inconsciente, em que participam,
pois esta díade sempre afeta a ambos em algo semelhante à influência das
correntes mais profundas de um oceano sobre as ondas da superfície.
Tanto a díade inconsciente dentro de uma relação, quanto os níveis em que
as pessoas conhecem conscientemente e experimentam a relação, variam em
intensidade. Por um lado, um indivíduo em uma relação com uma grande
corporação e com o seu chefe pode não experimentar nenhum sentido consciente
de união com essa instituição ou com a autoridade. Em situações impessoais
semelhantes, mesmo enquanto uma pessoa pode se sentir quase insignificante em
meio à massa de funcionários, ela pode ter um forte vínculo diádico inconsciente
com os colegas de trabalho ou com a instituição em si. Por outro lado, pode-se
imaginar um vínculo muito forte entre pessoas ou entre uma pessoa e uma
instituição caracterizada por amor, fidelidade e uma variedade de outras emoções
poderosas. Mas em todas as relações, independentemente do nível de consciência
e da intensidade, ambos os parceiros, em algum momento, viverão inevitavelmente
uma morte do estado de união, pois esse é o caminho da natureza, como diria o
alquimista; e ao invés de resistir a esta morte, a atitude alquímica a acolhe como
veículo de crescimento e de transformação.
A união de estados diferentes, geralmente dominada por fatores
inconscientes na psique individual ou a união da psique de dois indivíduos, é
caracterizada pela criação de algo novo que, muitas vezes, a personalidade
consciente só vislumbra como um momento fugaz e especial. Nesta epifania, as
pessoas podem, de repente, experimentar a si mesmas em um estado não ordinário,
como se o espaço e o tempo fossem suspensos e surgisse um tipo diferente de
energia e um sentido de expansão. Depois, essa visão geralmente desaparece
rapidamente, do mesmo modo em que ocorreu. O fato de que o estado criado é
mais do que um amálgama das partes que se uniram, é um aspecto central do
mistério da união.
216

De acordo com o pensamento alquímico, o locus para a transformação do


Self é a profundidade e o mistério de uma relação empreendida em um campo
interativo que é tanto consciente, quanto inconsciente e que é estruturado por uma
díade inconsciente. Encontrar essa díade como uma ‘terceira área’ entre os dois
parceiros, requer a entrega do controle do ego e o estabelecimento da confiança em
um processo mútuo que é, contemporaneamente, assustador e emocionante.

A chave para descobrir o mistério transformador da relação e do Self é


sempre a intenção. Talvez dois indivíduos pretendam entrar nestas águas
turbulentas, nas quais a individualidade e a consciência de cada um estão sujeitas
ao poder de amplificação e à intensidade da ‘terceira área’? Mas mesmo que um
empenho semelhante pela transformação pessoal venha a ferir, invariavelmente, o
narcisismo, esse sacrifício é indispensável para a criação de uma relação com um
significado sagrado.
O sucesso na aventura de descobrir e de experimentar uma ‘terceira área’ é,
muitas vezes, passageiro. No entanto, como o elixir alquímico, um olhar e um
registro emocional ou físico da presença do campo têm um forte efeito. Relacionar-
se com as profundidades de uma ‘terceira área’ é como perceber o movimento de
um animal ou de um pássaro em uma floresta – pode desaparecer logo que se tenha
visto. Quando caminhamos na floresta e ouvimos o canto de um pássaro, podemos
observar uma árvore em particular para encontrar o pássaro e descobriremos que o
canto já desapareceu, talvez para reaparecer em outro lugar. Mas agora, é o mesmo
pássaro? Ainda que permaneça sempre a incerteza, o fato de ter ouvido,
inquestionavelmente o ‘canto do pássaro’, nos mantém conectado a esta
experiência.
A arte de se relacionar com as ‘terceiras áreas’, consiste em escutar
continuamente, em vislumbrar uma visão passageira e em confiar na imaginação.
Geralmente, dois indivíduos podem identificar a fonte das imagens da ‘terceira área’
melhor do que um indivíduo sozinho, pois um indivíduo poderá facilmente
materializar uma percepção e manter fixa uma imagem ou ideia, em vez de sentir
que ela se dissolve na confusão e na desorientação. É mais provável que dois
indivíduos estejam mais propensos a passar da questão ‘Para onde aquele pássaro
foi?’, à dúvida: ‘Talvez nunca estivesse lá’.
E é importante lembrar que na floresta se escondem muito mais criaturas
aparentemente inofensivas, do que parece. Para ter sucesso no estabelecimento da
existência de uma ‘terceira área’ no próprio processo, os dois indivíduos devem
entrar em um domínio em que a loucura é um aspecto sempre presente. Nós todos
temos áreas de loucura, áreas de nossa personalidade em que nos comportamos,
em relação a nós mesmos, ou em relação aos outros, de um modo que mata a alma.
A loucura que surge na nossa psique e as estruturas narcísicas regressivas que se
tornam dominantes em resposta a essa loucura são, talvez, os maiores obstáculos à
mudança nas relações.
Apreender a existência de uma área de loucura da psique requer o mesmo
estado de alerta e a mesma tenacidade exigida pela caça selvagem escassa. Mas
217

no caso da psique, a caça não se volta para uma ‘coisa', por exemplo, uma imagem,
ou para uma atmosfera ao redor da imagem. O objeto da caça - e na alquimia se
encontra a metáfora de caça a um leão - pode tornar-se invisível com a mesma
rapidez com que aparece, novamente, como se fosse pela primeira vez. Do ponto de
vista alquímico, o valor de caçar uma ‘coisa’ ou ‘animal’ misterioso, não consiste
tanto na caça em si, mas na capacidade da atividade de diminuir a intensidade do
foco e de incluir o espaço que circunda a percepção, em torno da ‘coisa’ ou ‘animal’
procurado. Neste ato imaginal de diminuir o próprio foco ‘solar’ e aumentar, em seu
lugar, um tipo de visão ‘lunar’, o próprio campo interativo em si, se torna objeto de
atenção. Quando a área explorada se torna o espaço entre as percepções, a
aceitação da confusão e da perda do foco se torna uma parte natural do processo
em questão.
Na procura da vida e do processo de uma ‘terceira área’, é melhor dirigir-se
sob um percurso intermediário entre a objetividade do método científico e a
subjetividade da imaginação, isto é, entre ocupar-se, exclusivamente com as
projeções e ocupar-se, exclusivamente com os campos interativos. Esse ‘duplo
foco’, exige que um indivíduo esteja disposto a vislumbrar a vida da ‘terceira área’ e
refletir sobre o seu processo caótico ou ordenado em termos de projeções
consideradas em um esquema evolutivo, e também com a imaginação focada no
campo em si. Nenhum dos dois focos deve dominar o outro, pois ambos são
necessários e têm o próprio lugar. Mas se o foco que é inserido em uma relação
consiste em penetrar no desconhecido, ‘olhar sem ver’ ou ‘ver sem olhar’, então a
abordagem científica – que enfatiza como as falhas evolutivas e as ‘fixações’
associadas são evidenciadas no aqui e agora - pode ser limitado pela sua própria
metodologia. O caminho científico, com a sua tentativa de certeza objetiva, pode
atuar como um escudo contra a retraumatização pelas projeções do parceiro e
contra a visão quando nega reconhecer a validade das partes loucas da psique.
Então, o caminho alquímico de perceber os estados interiores no parceiro ou
imaginar a sua existência percebendo imaginalmente a própria inferioridade, torna-
se o foco de um esforço consciente para transformar a ‘o chumbo em ouro’. Mas
sem a abordagem científica, o caminho imaginário da alquimia se degenera em uma
generalidade que perde a particularidade dos indivíduos envolvidos.
Se o processo de descoberta contém tanto o ritmo ‘científico’, quanto o
'imaginário', e se existe confiança na natureza fugaz das percepções imaginativas
sem materializá-las, então dois indivíduos experimentam a sua relação como um
vaso que contém ambos. Ambos, ao procurar vislumbrar o mistério de sua relação
são, alternativamente, cientistas e alquimistas, percebendo, por um lado, com
objetividade e, por outro, com a visão da imaginação. Quando estão conscientes
reconhecem do que cada um é, tanto racional, quanto louco, estão preparados para
entrar na ‘terceira área’ que possui seu próprio mistério e que é muito mais ampla do
que o todo dos dois.
Uma pessoa que se ocupa com as ‘terceiras áreas’ deve aprender a ‘ver’ de
forma diferente, para ver através dos olhos do inconsciente, e especialmente,
através da visão do Self. Se dois indivíduos, no seu processo interativo, reconhecem
218

a necessidade de uma forma mais abrangente de visão, eles estarão se movendo na


direção à criação de um Self, que pode, simultaneamente, ver ambos os opostos.
Nas relações, dois indivíduos podem aprender sobre a eficácia da paixão ao
encontrar um caminho entre esses opostos. A paixão para criar a alma em relação à
paixão para a criatividade em si é uma força motriz que pode transcender a loucura
dos duplos vínculos e a loucura em que as pessoas se escondem para evitar o
desafio da individuação. O caminho alquímico de transformação, que engloba os
perigos e as qualidades curativas da paixão, pode revelar tanto a covardia da
timidez diante de desejo, quanto a loucura que acompanha a atuação da paixão com
toda a sua energia criativa e destrutiva.
A sensibilidade em relação à ‘terceira área’ e seus processos é, portanto, a
chave para o mistério de relação. Antes de tudo, ambos os indivíduos devem estar
preparados para lidar com suas partes loucas que distorcem e negam a realidade do
outro. Entrar na realidade desconhecida do inconsciente e arriscar a experiência da
loucura, a própria ou a do outro, é um ato corajoso, muitas vezes recompensado
pela percepção momentânea de uma energia numinosa dentro do campo
compartilhado. Esta pode ser duradoura para aqueles que escolhem lembrar e,
lembrando, renovar a experiência.
Explorar e envolver a própria loucura, na relação com a loucura de outro no
contexto de uma experiência de campo interativo, é extremamente desafiador tanto
nas relações analíticas, quanto nas não analíticas. O modelo analítico deve superar
duas realidades fundamentais que podem limitar a profundidade e o alcance da
relação: primeiro, a desigualdade básica da relação por causa da existência de uma
diferença inerente de poder entre analista e analisando; em segundo lugar, as
possibilidades de intimidade e compromisso nas relações não analíticas, que vão
para além do modelo analítico. Apesar dessas limitações, a relação analítica ou
clínica apresenta distintas vantagens sobre a relação não analítica ou pessoal em
relação à capacidade de construir uma presença contida, sustentável também em
meio ao inevitável conflito de culpa e de contra-ataques que, inevitavelmente,
ocorrem quando as partes loucas da pessoa saudável são ativadas no campo
interativo.
A análise é uma relação vista sob um poder de amplificação, geralmente
ausente nos discursos quotidianos; é também uma relação em que os parceiros se
reúnem para trabalhar em direção ao objetivo de criar um Self, devolvendo a
consciência dos processos inconscientes e da função do Eros sobre a destruição.
Uma relação analítica proporciona a segurança dos limites e do interesse focado
que permite descobrir uma ‘terceira área’ e relacionar-se com ela. Uma relação não
analítica não apresenta a mesma característica, em que tudo o que se diz é
respeitado e se torna objeto de reflexão, mesmo que sejam feitas declarações muito
desagradáveis e acusatórias. Além disso, a relação analítica possui limites que não
devem ser ultrapassados. Porém, o analisando e o analista são não amigos no
mundo externo, e os procedimentos estabelecidos, definem os seus encontros. Esta
configuração de limites confere um sentido de segurança e de confiabilidade que as
relações não analíticas raramente alcançam.
219

O principal desafio aos limites das relações não analíticas é que cada um dos
parceiros deve respeitar a relação o suficiente de modo a se abster em compartilhá-
la em certos âmbitos que a colocam em jogo, enquanto se busca, em outros lugares,
outros níveis de intimidade. Tais limites liberados nunca criam um espaço seguro o
suficiente para o ato de descoberta de um campo interativo comum. Mas mesmo
que os limites do compromisso sejam seguros, é necessário vontade e desejo para
explorar áreas sensíveis em que qualquer indivíduo pode estar emocionalmente,
fora de controle, e claramente louco. Mesmo se o foco da exploração pode ser um
parceiro, é necessária uma convicção implícita de que tudo o que for descoberto
sobre sua psique inconsciente, afetará brevemente também o outro parceiro.
Somente dessa maneira, ambos podem aprender que vivem em um domínio mais
amplo de relações.
De certo modo, as relações analíticas podem ser as precursoras das relações
pessoais. A relação analítica, mais segura e delimitada, pode ser um campo de
treinamento para outras relações. É possível que indivíduos, dentro das relações
pessoais, se tornem conscientes da ‘terceira área’ e empenham-se nela, mesmo
sem beneficiar-se da experiência analítica, mas podem encontrar muito mais difícil
manter um sentindo da própria identidade ao estabelecer a existência de uma
‘terceira área’ em que ocorre grande quantidade do processo recíproco.
As relações que não estabeleceram uma ‘área de processo recíproco, não
conseguem aceitar estados de não-conexão radical – em que se revela impossível a
autêntica empatia pelo outro - sem julgar negativamente esta ausência e sem
prefigurar um desastre da relação. A vantagem das relações analíticas é que o
analista pode suportar a consciência do potencial significado e propósito destes
estados mentais de total não relação. Com efeito, o analista pode ‘estar atento e
colocar provisoriamente à parte’, enquanto em uma relação não analítica, é mais
provável que ambos os indivíduos possam ficar submersos em sentimentos de
desespero e abandono. Mesmo na relação analítica, o analista, muitas vezes,
necessita da ajuda do analisando quando se apresentam estes estados tão difíceis,
como uma falta total da conexão. Em última análise, o sucesso nas relações
analíticas ou não analíticas - depende da coragem e da capacidade dos indivíduos
envolvidos. Com coragem e capacidade adequadas, qualquer relação voltada a
experimentar as profundidades e o mistério presentes nela, pode potencialmente,
alcançar níveis de compromisso e de foco semelhantes aos do esforço analítico.
A fim de construir uma contenção suficientemente forte para envolver a
loucura pessoal e mútua que é invariavelmente ativada no campo interativo, uma
relação – seja ela analítica ou não analítica - deve seguir os três passos a seguir.
O primeiro passo exige que os parceiros levem as percepções uns dos outros
a sério e reconheçam a verdade ou a falácia destas percepções através de um
processo sério de busca de almas. Cada um deve sentir-se livre para articular
queixas específicas sobre ações e atitudes do outro que possam ser consideradas
prejudiciais ou irresponsáveis; e cada um deve comprometer-se a ouvir atentamente
as queixas sem reagir defensivamente. Essa receptividade requer de ambos os
parceiros, uma vontade que vai além da atitude de culpar e de criar um bode
220

expiatório, que pode tão facilmente ocorrer, e a vontade de abraçar as profundezas


do ser a fim de descobrir áreas de personalidade inimagináveis, ou áreas que não
acreditava que estivessem normalmente ativas. A menos que exista boa vontade
para dar este passo inicial, uma relação não pode se transformar de forma criativa.
Na verdade, nem todas as relações viabilizam esta dinâmica.
Tendo alcançado a consciência das percepções do outro sobre si mesmo, o
segundo passo é perceber os próprios sentimentos sobre o parceiro e articular
essas percepções. A troca mútua de percepções com o parceiro pode levar à
consciência de que uma díade imaginal pode ser construída a partir das percepções
de cada uma sobre o outro, como se estas percepções fossem realizadas por um
parceiro inconsciente. Qualquer coisa que um parceiro vê no outro, pode, e de fato
deve, ser considerada seriamente como parte da psique do outro. Cada um dos
parceiros deve estar disposto a se apropriar do que o outro percebeu. Este ato de
reflexão interior contribui para alcançar um estado de objetividade, que permite uma
redução do estado de fusão na relação.
O terceiro passo requer que ambos permitam que a díade que descobriram
exista como uma qualidade do campo entre eles. Em outras palavras, devem
reconhecer que compartilham uma qualidade de campo definida pela díade que
descobriram. Com este movimento em direção a um estado da verdade interior, a
relação pode se tornar limpa da defensividade narcísica. Uma ‘terceira coisa’, da
qual ambos partilham e que ambos podem sentir e imaginar permite com que o
casal sinta a realidade psíquica de sua relação. Concentrar-se no campo em si
mesmo é um de submissão posterior. Além de poder aceitar as percepções do outro,
agora cada um pode permitir-se estar sujeito à experiência do campo como uma
‘terceira coisa’ dotada de vida. Neste processo, o indivíduo faz com que a base
metafórica de uma díade possua uma vida própria.
Assim, ouvir realmente as queixas de um indivíduo sobre o outro permite com
que ambos dêem um salto imaginal de reconhecimento para ver se o conflito entre
eles é a metáfora de uma díade inconsciente que cada um pode experimentar. Cada
um então consegue perceber que pode ser uma parte ou outra dessa díade. Desse
modo, assim que um parceiro dirige a mesma acusação ao outro e descobre que
este escuta profundamente tal acusação, abre-se improvisamente o caminho para
que o acusador reconheça que é capaz de um comportamento exatamente igual
àquele criticado, e pode ser culpado muitas vezes, também ele. Muito mais do que
um processo de projeção e de reconhecimento das próprias projeções, é uma janela
para um terceiro, campo sutil. Através desta janela, o casal pode vislumbrar, ainda
que brevemente, a poderosa natureza metafórica de sua relação. A metáfora,
afirmou Baudalaire, pode mover o mundo. Através do alcance da metáfora viva de
uma ‘terceira área’ da relação, ambos os indivíduos se tornam sensibilizados ao seu
maior significado e ao seu poder de avançar por caminhos que podem ser novos e
assustadores, mas repletos de significado.
Esta realidade psíquica da ‘terceira área’ é um limite que permite viver através
dos estados muito difíceis de não-conexão que afligem as relações. Um sentimento
de afinidade pode emergir apenas quando o terrível vazio de amor e de compaixão
221

que caracteriza a não-relação pode ser entendido por ambos os indivíduos como
parte de um processo de transformação; e é exatamente este sentimento de
parentesco que nutre, sustenta e gradualmente fortalece o casal e a relação em si.
Esse processo transformador pode ser realizado somente se existe a confiança,
imaginação e se formos educados para isso. O poder penetrante da imaginação,
necessário para apreciar o potencial transformador da relação em uma experiência
de campo interativo, é comparável à iluminação espiritual que é essencial para o
processo transformador da alquimia.
A combinação do sol e da paisagem devastada na vigésima segunda e última
pintura do Splendor Solis é fundamental para a compreensão alquímica da
transformação das relações. Todas as relações e todos os processos interativos
compartilham a experiência de um estado de união em que são forjadas novas
estruturas relacionais para si mesmos e para os outros, seguidas pela experiência
da morte desta criação. Esta sequência coniunctio-nigredo, inspirada por uma lei
fundamental da natureza em que a nova vida não é possível sem a morte das
formas antigas, é a essência da transformação segundo o pensamento alquímico.
A morte de um estado de união pode assumir várias formas, como o término
de um emprego, a traição de uma relação conjugal, uma doença ou a morte de um
parceiro, a conclusão de um trabalho criativo ou a incapacidade de terminar esse
trabalho. Em cada caso, os sintomas da nigredo incluem desespero, depressão,
perda da auto-estima e raiva. As tentativas de lidar com tais sintomas podem incluir
fugas maniacais para restaurar a relação como era antes, a loucura do auto-engano
e a arrogância que nega qualquer motivo ou significado de sombra, ou ainda os
pressupostos grandiosos de que, se o parceiro apenas mudasse sua atitude, o
sentimento catastrófico de perda desapareceria. Tais preocupações narcisistas não
somente tornam os estados de união inadmissíveis para a vida consciente, mas
também estão diretamente contra o potencial transformador da experiência da morte
estrutural inerente às relações.
Enquanto base da transformação, o estágio da nigredo assume muitas formas
diferentes quando emerge nas relações. Pode parecer como se fosse do nada,
seguir um período intenso de paixão e proximidade, quando de repente e sem razão
aparente, o interesse pelo outro diminui. Ou então, a nigredo pode fluir ao longo do
tempo, minando gradualmente a doçura da esperança e da conexão que já existiam.
Em ambos os casos, se verificará uma experiência de morte em qualquer relação
que, para o bem ou para mal, a transformará.
Esta transformação desafia seriamente os indivíduos envolvidos em uma
relação a tornar-se conscientes da falta de conexão. O medo da nigredo, muitas
vezes, impulsiona o casal a mostrar, de modo forçado, a aparência de estar
conectado, quando, de fato, se cada um deles ousasse olhar profundamente para
dentro de si, reconheceria que não existe conexão. Ambos vivem em universos
paralelos, e podem também falar línguas estrangeiras um para o outro. Para aqueles
que sofrem a nigredo sem se culparem mutuamente pelos problemas do desespero,
de loucura e da falta de relação que lhe persegue e é fonte de abandono, uma nova
vida pode, então, entrar na relação.
222

A tendência da mídia de idealizar e maquiar ou promover a expectativa de


que o sucesso nas relações seja um produto que se aprende em workshops ou
seguindo padrões de comportamento ou de convicções simplistas, torna ainda mais
difícil aos indivíduos aceitar uma falta fundamental de conexão sem sentir também
uma irresistível humilhação por esse ‘fracasso’. No entanto, este ‘fracasso’ nas
relações, e, certamente a impossibilidade de relacionar-se em certos momentos no
decorrer de um processo, é uma parte indispensável do mistério e da transformação
das relações profundas. Enquanto as abordagens científicas geralmente ensinam os
indivíduos a procurar uma ‘nova solução’ para negar a própria angústia e encontrar
formas para restabelecer a sensação de conexão o mais rápido possível, sem sofrer
através da fase da nigredo, as abordagens alquímicas, geralmente ensinam os
indivíduos a trabalhar no contexto da sua realidade, especialmente quando a
qualidade do campo interativo é uma ausência do sentimento de conexão. Além
disso, o caminho alquímico ensina que o desânimo pertence à relação; o problema
está no desânimo devido ao desânimo. A nigredo se torna a função transformadora
central se os parceiros na relação não só percebem a própria sensação individual de
perda e desânimo, mas começam também a perceber que a relação em si, como já
é conhecida, morreu - um momento sempre tênue e assustador.
Assim como a paisagem na vigésima segunda pintura do Splendor Solis, os
estados mais escuros de desânimo, perda, fracasso, dor e sofrimento são
características criativas importantes da vida. Enquanto o sol não transformado do
narcisismo só conhece valores inflacionados ou deflacionados, o sol purificado
representa um estado em que a idealização defensiva se transforma em compaixão
pela própria imperfeição e pela imperfeição de outro. À luz da compaixão, culpa,
ansiedade e vergonha deixam de ser conectadas ao que os outros podem pensar
em um indivíduo. Estas emoções, porém, vistas através da compaixão, sinalizam,
para o ego, o seu fracasso, do qual deve tomar consciência, e reconhecer e
relacionar-se de acordo com as exigências do Self interior.
Pode-se, portanto, criar a capacidade de respeitar e perceber o outro, quer se
trate do Self transcendente ou do mistério da outra pessoa. De fato, quando o sol
encontra a terra, internaliza-se um Self espiritual. Porque agora, profundamente
dentro de um indivíduo, existe um ‘espelho’, a necessidade de um ‘espelhamento’
exterior não é mais uma preocupação incessante, nem uma necessidade muito
perigosa de se reconhecer. Um indivíduo assim é capaz de suportar que as próprias
necessidades sejam vistas por outro, de modo sério e profundo. Igualmente, agora é
capaz de sentir essa empatia pela outro. Agora existe a capacidade de cumprir tais
atos empáticos porque fora criado um ‘espelho interior limpo’, purificado dos
impulsos regressivos e narcisistas. Um indivíduo assim pode agora espelhar o
outro, refletindo profundamente um Self interior e o espelhamento não é mais uma
questão de ‘usar as vestes do outro’, mas constitui em si um resultado de menor
valor. Em vez disso, um novo e mais autêntico tipo de espelhamento emerge, que
reflete do ponto de vista do Self.
Através da nigredo, ambas as pessoas em uma relação podem começar a
criar e a experimentar uma qualidade da relação muito mais profunda e repleta de
223

significado. Através da morte da união, a relação pode, gradualmente, assumir um


caráter sagrado e simbólico. Subjacente à imagem da vigésima segunda pintura do
Splendor Solis, a cidade celestial (presumivelmente Jerusalém) com um campanário
que atinge a esfera do sol, ressoa como a contrapartida terrena do sol descendente.
A cidade celestial sugere a presença de uma atitude interior que indica que um
‘objeto subjacente’ que está emergindo, traz consigo o tom da sensação e a imagem
da aspiração mais elevada do indivíduo - tornar-se um Self de modo mais profundo e
mais completo.
Quando os indivíduos, nas relações, aprendem a lidar com as demandas de
crescimento, incluindo as experiências de humilhação e morte da estrutura anterior
da relação, as formas culturais podem ser afetadas. Na interação com as estruturas
sociais, a consciência individual transformada, exerce um efeito multiplicador que
pode levar outros indivíduos a se tornarem abertos a um caminho transformador.
Este efeito multiplicador de uma vida transformada e reflexiva e de uma capacidade
mais profunda de relação possui um valor central no pensamento alquímico.
Somente através da transformação metafórica de ‘chumbo em ouro’, o
mistério da relação pode ser praticado e experimentado de modo mais amplo.
Somente através da transformação metafórica de ‘chumbo em ouro’, os indivíduos
podem ser auxiliados a apreciar a profundidade incomensurável da relação, o seu
papel sutil em favor da individuação, o seu abraço dos estados mentais imprevisíveis
e caóticos, e o seu fundamento sobre a capacidade terapêutica do amor.

BIBLIOGRAFIA

Adler, Alfred. 1964. The Individual Psychology of Alfred Adler, edited by Heinz and
Rowena Ansbacher. New York: Harper.

Bateson, Gregory et al. 1972. ‘Towards a Theory of Schizophrenia.’ In Beyond the


Double Bind, edited by Milton Berger, 5–27. New York: Brunner Mazel.

Bion, Wilfred. 1970. Attention and Interpretation. London: Maresfield.


224

Burkert, Walter. 1987. Ancient Mystery Cults. Cambridge, Massachusetts: Harvard


University Press.

Burland, Cottie. 1980. The Aztecs. New York: Galahad Books.

Cameron, Anne. 1981. Daughters of Copper Woman. Vancouver: Press Gang


Publishers.

Casteñeda, Carlos. 1971. A Separate Reality. New York: Simon and Schuster.

Corbin, Henri. 1969. Creative Imagination in the Sufism of Ibn Arabi, translated by
Ralph Manheim. Princeton: Princeton University Press.

Couliano, Ioan P. 1987. Eros and Magic in the Renaissance. Chicago: University of
Chicago Press.
Damrosch, L. 1980. Symbol and Truth in Blake’s Myth. Princeton: Princeton
University Press.

De Rola, Stanislas Klossowski. 1973. Alchemy: The Secret Art. London: Thames and
Hudson.

Detienne, Marcel. 1989. Dionysos at Large. Cambridge, Massachusetts: Harvard


University Press.

Edinger, Edward. 1985. Anatomy of the Psyche. La Salle, Illinois: Open Court.

Eigen, Michael. 1986. The Psychotic Core. New York: Jason Aronson.

Fabricius, Johannes. 1973. ‘The Symbol of the Self in the Alchemical “Proiectio”.’
Journal of Analytical Psychology 18, no. 1:47–58.

——1976. Alchemy. Copenhagen: Rosenkilde and Bagger.

Ferenczi, Sandor. 1938. ‘Thalassa: A Theory of Genitality.’ The Psychoanalytic


Quarterly.

——1955. Final Contributions to the Problems and Methods of Psycho-analysis,


edited by M.Balint and translated by E.Mosbacher et al. London: Hogarth Press and
the Institute of Psychoanalysis.

Fordham, Michael. 1969. ‘Technique and Countertransference.’ Journal of Analytical


Psychology 14, no. 2:95–118.

——1974. ‘Jung’s Conception of the Transference.’ Journal of Analytical Psychology


19, no. 1:1–21.

von Franz, Maria-Louise. 1966. Aurora Consurgens. London: Routledge and Kegan
Paul.
225

——1970. A Psychological Interpretation of the Golden Ass ofApuleius. Zurich:


Spring Publications.

——1974. Number and Time. Evanston, Illinois: Northwestern University Press.

——1975. C.G.Jung: His Myth in Our Time. New York: Putnam.

——1979. Alchemical Active Imagination. Irving, Texas: Spring Publications.

——1980. Alchemy. Toronto: Inner City Books.

Frazer, Sir James George, trans. 1989. V, Fasti, by Ovid. London: William
Heinemann Ltd.

Freud, Sigmund. 1958. The Standard Edition of the Complete Psychological Works
of
Sigmund Freud, translated by James Strachey, vol. 12. London: Hogarth Press.

Green, André. 1975. ‘The Analyst, Symbolization and Absence in the Analytic
Setting.’ International Journal of Psycho-Analysis 56:1–22.

——1993. On Private Madness. Connecticut: International Universities Press.

Grotstein, James. 1981. Splitting and Projective Identification. New York: Jason
Aronson.

——1990. ‘Nothingness, Meaninglessness, Chaos, and the “Black Hole” I.’


Contemporary Psychoanalysis 26, no. 2:257–90.

Guntrip, H. 1969. Schizoid Phenomena, Object Relations and the Self. New York:
International Universities Press.

Hillman, James. 1972. The Myth of Analysis. New York: Harper.

——1980. ‘Silver and the White Earth (Part One).’ In Spring, edited by J.Hillman, 21–
31. Irving, Texas: Spring Publications.

——1981. ‘Silver and the White Earth (Part Two).’ In Spring, edited by J.Hillman, 21–
66. Irving, Texas: Spring Publications.

Holmyard, E.J. 1990. Alchemy. New York: Dover.

Hubback, Judith. 1983. ‘Depressed Patients and the Coniunctio.’ Journal of


Analytical Psychology 28, no. 4:313–27.

Huizinga, Johan. 1954. The Waning of the Middle Ages. New York: Doubleday.

Irigaray, Luce. 1987. ‘Sexual Difference.’ In French Feminist Thought, edited by Toril
Moi, 118–30. London: Basil Blackwell.
226

Jacobi, Jolande, ed. 1951. Paracelsus. Princeton: Princeton University Press.

Jacoby, Mario. 1984. The Analytic Encounter. Toronto: Inner City Books.

Jung, C.G. 1953. Symbols of Transformation: Collected Works, vol. 5. Princeton:


Princeton University Press.

——1954. ‘The Psychology of the Transference’ [1946]. In The Practice of


Psychotherapy, Collected Works, vol. 16:165–323. Princeton: Princeton University
Press.

——1960. The Structure and Dynamics of the Psyche: Collected Works, vol. 8.
Princeton: Princeton University Press.

——1963. Mysterium Coniunctionis: Collected Works, vol. 14. Princeton: Princeton


University Press.
——1967. Alchemical Studies: Collected Works, vol. 13. Princeton: Princeton
University Press.

——1968. Psychology and Alchemy: Collected Works, vol. 12. Princeton: Princeton
University Press.

——1969. Psychology and Religion: West and East: Collected Works, vol. 11.
Princeton: Princeton University Press.

——1973. Memories, Dreams and Reflections, edited by Aniele Jaffe. New York:
Pantheon.

——1988. Nietzsche’s Zarathustra, edited by James L.Jarret, 2 volumes. Princeton:


Princeton University Press.

Kerenyi, C. 1949. ‘The Myth of the Divine Child and the Mysteries of Eleusis.’ In
Essays on a Science of Mythology, edited by C.G.Jung and C.Kerenyi, 101–51. New
York. Harper and Row.

——1976. Dionysos. Princeton: Princeton University Press.

Kirk, G.S. and J.E.Raven. 1969. The Presocratic Philosophers. Cambridge, England:
Cambridge University Press.

Kohut, Heinz. 1971. An Analysis of the Self. New York: International Universities
Press.

Lacan, J. 1977. Écrits, translated by A.Sheridan. New York: Norton.

Lévi-Strauss, Claude. 1966. The Savage Mind. London: Weidenfeld and Nicolson.

Lindsay, Jack 1970. The Origins of Alchemy in Graeco-Roman Egypt. Great Britain:
Frederick Muller.
227

Mansfield, Victor and Marvin Spiegelman. 1989. ‘Quantum Mechanics and Jungian
Psychology.’ Journal of Analytical Psychology 34, no. 1:179–202.

McGuire, William and R.F.C.Hull. 1977. C.G.Jung Speaking. Princeton: Princeton


University Press.

McLean, Adam, ed. 1980. The Rosary of the Philosophers. Edinburgh: Magnum
Opus Hermetic Source works.

——1981. The Splendor Solis, translated by Joscelyn Godwin. Edinburgh: Magnum


Opus Hermetic Source works.

——1991. A Commentary on the Mutus Liber. Michigan: Phanes Press.

Mead, G.R.S. 1919. The Subtle Body, London: Stuart and Watkins.
Melville, Herman. 1962. Moby Dick. New York: Hendricks House.

Monk, Ray. 1990. Ludwig Wittgenstein: The Duty of Genius. New York: Penguin
Books.

Ogden, Thomas. 1982. Projective Identification and Psychotherapeutic Technique.


Northvale, New Jersey: Jason Aronson.

——1994. Subjects of Analysis. Northvale, New Jersey: Jason Aronson.

Otto, W. 1965. Dionysos: Myth and Cult, translated by R.Palmer. Bloomington,


Indiana: Indiana University Press.

Paglia, Camille. 1990. Sexual Personae. New Haven: Yale University Press.

Patai, Raphael. 1994. The Jewish Alchemists, Princeton: Princeton University Press.

Racker, Heinrich. 1968. Transference and Countertransference. New York:


International Universities Press.

Reich, Wilhelm. 1973. The Function of the Orgasm. New York: Touchstone Books.

Reed, Henry. 1996a. ‘Close Encounters in the Limninal Zone: Experiments in


Imaginal

Communication. Part I.’ Journal of Analytical Psychology 41, no. 1:81–116.

——1996b. ‘Close Encounters in the Limninal Zone: Experiments in Imaginal


Communication. Part II.’ Journal of Analytical Psychology 41, no. 2:203–26.

Rosen, Steven. 1995. ‘Pouring Old Wine into a New Bottle.’ In The Interactive Field
in Analysis, edited by Murray Stein, 121–41.

Wilmette, Illinois: Chiron Publications, de Rougement, Denis. 1983. Love in the


Western World. Princeton: Princeton University Press.
228

Ruland, Martin. 1984. A Lexicon of Alchemy [1612], edited by A.E.Waite. York


Beach, Maine: Samuel Weiser.

Samuels, Andrew. 1985. ‘Symbolic Dimensions of Eros in


Transferencecountertransference: Some Clinical Uses of Jung’s Alchemical
Metaphor.’ International Review of Psycho-Analysis 12:199–214.

Sass, Louis A. 1992. Madness and Modernism. New York: Basic Books.

Schwartz-Salant, Nathan. 1969. ‘Entropy, Negentropy and the Psyche.’ Diploma


Thesis, C.G.Jung Institute, Zurich.
——1982. Narcissism and Character Transformation. Toronto: Inner City Books.

——1984. ‘Archetypal Factors Underlying Sexual Acting-out in the Transference/


Countertransference Process.’ In Transference and Countertransference, edited by
Nathan Schwartz-Salant and Murray Stein. Wilmette, Illinois: Chiron Publications.

——1986. ‘On the Subtle Body Concept in Analytical Practice.’ In The Body in
Analysis, edited by Nathan Schwartz-Salant and Murray Stein, 1–31. Wilmette,
Illinois: Chiron Publications.

——1988. ‘Archetypal Foundations of Projective Identification.’ Journal of Analytical


Psychology 33:39–64.

——1989. The Borderline Personality: Vision and Healing. Wilmette, Illinois: Chiron
Publications.

——1990. ‘The Abandonment Depression: Developmental and Alchemical


Perspectives.’ Journal of Analytical Psychology 35:143–60.
——1992. ‘Anima and Animus in Jung’s Alchemical Mirror.’ In Gender and Soul in
Psychotherapy, edited by Nathan Schwartz-Salant and Murray Stein, 1–24. Wilmette,
Illinois: Chiron Publications.

——1993. ‘Jung, Madness and Sexuality: Reflections on Psychotic Transference and


Countertransference.’ In Mad Parts of Sane People in Analysis, edited by Murray

Stein, 1–35. Wilmette, Illinois: Chiron Publications.

——1995a. ‘The Interactive Field as the Analytic Object.’ In The Interactive Field in
Analysis, edited by Murray Stein, 1–36. Wilmette, Illinois: Chiron Publications,

——ed. 1995b. Jung on Alchemy. London: Routledge.

Searles, Harold. 1965. Collected Papers on Schizophrenia and Related Subjects.


New York: International Universities Press.

Segal, Hanna. 1975. Introduction to the Work ofMelanie Klein. London: Hogarth
Press. Sheldrake, Rupert. 1991. The Rebirth of Nature. New York: Bantam.
229

Spiegelman, J.Marvin. 1988. ‘The Impact of Suffering and Self-Disclosure in the Life
of the Analyst.’ In Jungian Analysts: Their Visions and Vulnerabilities, edited by
J.Marvin Spiegelman. Phoenix, Arizona: Falcon Press.

Spiegelman, J.Marvin and Victor Mansfield. 1996. ‘On the Physics and Psychology of
the Transference as an Interactive Field.’ Journal of Analytical Psychology 41, no. 2:
179–202.
Stolorow, Robert, Bernard Brandshaft and George Atwood. 1987. Psychoanalytic
Treatment: An Intersubjective Approach. Hillside, New Jersey: Analytic Press.

Turner, Victor. 1974. Dramas, Fields and Metaphors. Ithaca, New York: Cornell
University Press. Vermaseren, Maarten J. 1977. Cybele andAttis, translated by
A.M.H.Lemmers. London: Thames and Hudson.

Waite, A.E., ed. 1973. The Hermetic Museum, volumes 1 and 2 [1678]. London:
Robinson and Watkins.

Westfall, Richard S. 1980. Never at Rest: A Biography of Isaac Newton. Cambridge,


England: Cambridge University Press.

Whyte, Lancelot Law. 1960. The Unconscious Before Freud. New York: Basic Books.

Winnicott, Donald W. 1971. Playing and Reality. London: Tavistock.

ANEXOS
(Imagens que constam no livro)
230

Fig. 1 - Primeira imagem do Splendor Solis


231

Fig. 2 – Primeira imagem do Mutus Liber


232

Fig. 3 – Michel de Morolles: Imagem do caos alquímico


233

Fig. 4 – Fonte Mercurial - Primeira xilografia


do Rosarium Philosophorum
234

Fig. 5 – Sisiutl, o deus dos Kwakiutl


235

Fig.6 – Coniunctio da Turba Philosophorum


236

Fig. 7 – Décima Primeira imagem do Splendor Solis


237

Fig. 8 – Nona imagem do Splendor Solis


238

Fig. 9 – Contato com a mão esquerda – Segunda xilografia


do Rosarium Philosophorum
239

Fig. 10 – Verdade Nua – Terceira xilografia


do Rosarium Philosophorum
240

Fig. 11 - 'Imersão no banho': quarta xilografia


do Rosarium Philosophorum
241

Fig. 12 – Coniunctio - quinta xilografia


do Rosarium Philosophorum
242

Fig. 13 - Versão de Mylius da primeira xilografia


do Rosarium Philosophorum
243

Fig. 14 - Sarcófago da Concepção e Putrefação – sexta xilografia


do Rosarium Philosophorum
244

Fig. 15 - Extração e Impregnação da Alma - sétima xilografia do


Rosarium Philosophorum
245

Fig. 16 - Queda do Orvalho - oitava xilografia


do Rosarium Philosophorum
246

Fig. 17 - Retorno da Alma – nona xilografia


do Rosarium Philosophorum
247

Fig. 18 - Rebis - décima xilografia


do Rosarium Philosophorum
248

Fig. 19 - Sexta imagem do Splendor Solis


249

Fig. 20 - Décima imagem do Splendor Solis


250

Fig. 21 - Fermentação - décima primeira xilografia


do Rosarium Philosophorum
251

Fig. 22 - Iluminação - décima segunda xilografia


do Rosarium Philosophorum
252

Fig. 23 – Nutrição - décima terceira xilografia


do Rosarium Philosophorum
253

Fig. 24 - Fixação - décima quarta xilografia


do Rosarium Philosophorum
254

Fig. 25 – Multiplicação - décima quinta xilografia


do Rosarium Philosophorum
255

Fig. 26 - Revificação - décima sexta xilografia


do Rosarium Philosophorum
256

Fig. 27 – Perfeição - décima sétima xilografia


do Rosarium Philosophorum
257

Fig. 28 - Mortificação do matrimônio celeste - décima oitava


xilografia do Rosarium Philosophorum
258

Fig. 29 - Assunção e Coroação - décima nona xilografia


do Rosarium Philosophorum
259

Fig. 30 – Ressurreição - vigésima xilografia


do Rosarium Philosophorum
260

Fig. 31 - Vigésima segunda pintura do Splendor Solis

Você também pode gostar