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A GRANDE MÃE, SEU FILHO,


SEU HERÓI E O PUER

James Hillman
Capítulo 4 do livro “Pais e Mães”, organizado por James Hillman.

Talvez não seja dizer demais que os problemas mais cruciais do indivíduo e da sociedade se reportem ao modo da
psique funcionar em relação ao espírito e à matéria.
(C.Jung, CW 8, 251)

A Grande Mãe Natureza provou ser a mais potente... até o dia de hoje. É “ela” que não dá saltos, que tem aversão
pelo vácuo, é Die gute Mutter, toma partido com unhas e dentes, “nunca traiu um coração que a amou”, elimina os
desadaptados, cresce para formas de vida cada vez mais altas, determina, propõe, adverte, castiga e consola ... De
todo o Panteon, a Grande Mãe Natureza tem sido a mais difícil de matar. - C.S. Lewis, Studies in Words ( Cambridge,
1962), págs. 41-42.

APOLOGIA AO LEITOR

O artigo que se segue constitui um capitulo de um livro longo e ainda inacabado sobre o arquétipo do puer
arternus, e portanto não se pretendeu originariamente que permanecesse isolado. Alguns de seus temas referem-se a
outros capítulos desse trabalho, onde são desenvolvidos mais adequadamente, e tanto o método quanto o estilo de
expressão pertencem a um todo mais amplo. No entanto, senti que havia uma razão urgente para publicar esse
capítulo, mesmo dissociado de seu contexto: a idéia do “complexo materno” ainda predomina da análise dos homens
jovens. É ainda considerada o fundamento do “problema do puer” e do “desenvolvimento do ego”. Creio que se trata
de um terrível engano, com conseqüências individuais e coletivos. Ver apenas neurose do complexo materno no
fenômeno do puer significa tornar o espírito doente e ignorar as oportunidades de movimento a que o espírito incita
na psique coletiva através de sua incarnação nos homens dominados pelo puer. Pois acredito que as características
do puer podem ser melhor compreendidas nos termos de uma fenomenologia e de uma psicopatologia do espírito, que
é de enfoque principal do livro. Deste, algum material já foi publicado: “Senex and Puer: An aspect of the Historical
and Psychological Present”, Eranos Jahrbuch XXXVI (1967) e novamente em Art International XV/1, 1971, pág.69-
82. E também, no que se segue, estou admitindo alguma familiaridade com as concepções clássicas da psicologia
analítica com respeito à fenomenologia ao puer, como por exemplo a apresentada por M.-L. von Franz em The
Problem of the Puer Aeternus ( Spring publ. 1970); H. G. Baynes, “The Provisional Life”em seu Analytical
Psychology and the English Mind (London: Kegan Paul, 1950) e várias outras obras listadas na Referência 5 do meu
artigo “Senex and Puer”.

Procuramos apresentar o puer dentro de uma estrutura que o reconheça primariamente como um fenômeno
espiritual. Nós diferenciaríamos puer, herói e filho e, ao contrário da concepção analítica clássica, sugeriríamos que,
tanto o filho que sucumbe quando o herói que vence, definem-se através do relacionamento com a magna mater,
enquanto o puer define-se dentro da polaridade senex-puer. A nova dominante da consciência emergente que rege o
estilo da personalidade do ego pode ser determinada pelo puer (e senex), ou pelo filho e herói (e Deusa).

O mitologema de Horus (discutido em outro capítulo), que ascende como um falcão por sobre o pai para
redimi-lo é um exemplo no qual as aspirações são primariamente masculinas, pertencendo a um padrão puer-senex. O
motivo de Horus é paradigma de muitas situações pai-filho semelhantes, onde o objetivo não é vencer e matar a mãe,
mas redimir o pai sobrepujando-se a ele. A Deusa inclusive encoraja a ambição do puer e a instrumental para a reunião
senex-puer. Nesse padrão a mãe pode ser relativamente secundária; a ênfase é sobre a necessidade do puer: redimir o
pai. Na vida de um homem jovem, talvez em qualquer vida, o puer representa a necessidade de busca do espírito
gerador, a capacidade de gerar enquanto pai. A imagem de Horus voando cada vez mais alto e cada vez mais longe tem
a conotação de uma geração espiritual. E o movimento, com sua carga libidinal tão abrasadora, reflete a insuportável
tensão no interior do arquétipo senex-puer.

Não obstante, a psicologia analítica, na maior parte dos casos, tem admitido que o puer e a grande mãe
pertencem um ao outro: O homem-puer tem ou é um complexo materno. O puer sucumbe à mãe; o herói luta e vence-
a.

Henderson faz uma distinção digna de nota - e de refutação. Associa somente o puer aeternus negativo ao
complexo materno, e acertadamente aponta ao relacionamento deficiente com a anima a principal lacuna psicológica
do homem-puer. Mas, uma vez que deriva do complexo materno essa peculiaridade de anima, sua concepção também
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começa e termina com a concepção inicial de Jung: a consciência puer é função de uma psicologia vinculada à mãe. A
distinção de Henderson entre o puer aeternus “positivo” e outro “negativo” é, qualquer modo, duvidosa, uma vez que
divide na moralidade da mente o que não está dividido na realidade da psique. Rótulos de positivo e negativo afixados
a eventos psíquicos oferecem a ilusão de que há aspectos positivos e negativos de um arquétipo em si, e que os sinais
mais ou menos que lhe atribuímos são descrições válidas. Mas os sinais são relativos, colocados pela fantasia do ego e
decisões suas em termos de valores e realidades. Jung nunca nos deixa esquecer que os postos da psique contêm um ao
outro, e portanto toda virtude pode ser vício e todo vício uma virtude. Declarar negativo um complexo é congelá-lo no
inferno. O que pode ele fazer, aonde pode ir? Não é apenas a idéia de puer negativo e positivo que deve ser repensada,
mas também a questão crucial do puer em relação à mãe precisa de um novo exame.

Na mitologia clássica esse especial enlaçamento do espírito com o mundo materno é ilustrado pela Grande
Deusa e seu jovem consorte, seu filho, seu amante, seu sacerdote. Atis, Adonis, Hipólito, Faetonte, Tamuz, Endimião e
Édipo são exemplos desse vínculo erótico. Cada figura em cada lenda mostra a sua própria variante; o complexo de
Édipo é apenas um modelo da relação entre filho e mãe que produz aqueles entrelaçamentos fatais do espírito com a
matéria que, no século XX, aprendemos a chamar de neuróticos. O verdadeiro desespero da neurose mostra como são
fortes as suas necessidades mútuas, e que as tentativas para desatar esse nó primordial são verdadeiramente, no sentido
antigo, agoniadas e trágicas. O laço original de espírito e matéria é personificado pelo abraço apertado ou pela
conjunção erótica entre mãe e filho.

A Alquimia - o mais completo e preciso fundamento até agora elaborado dos processos de trabalho analítico -
apresenta um motivo semelhante: a extração do espírito da matéria e sua posterior reunião. Mas a tradição alquímica
emparelha a figura do puer principalmente com a do senex (como jovem e velho Mercúrio, o Cristo puer et senex, o
Rei e o Filho do Rei) , e não com a mãe!

Há muitos alquimistas e muitas alquimias. Há dragões, devoramentos e dissoluções. No começo o material é


freqüentemente feminino e a criança, no final, freqüentemente masculina. No entanto, a Grande Deusa (enquanto
matéria prima), não é o principal fator constelador do puer aeternus da renovação. A criança divina, chamada
renovatus in novun infantum, puellus regius, fifius philosoforum, é um novo espírito nascido de um espírito velho. O
processo é principalmente de masculino para masculino e para hermafrodita, e somente se dá dentro do feminino como
material e receptáculo. Parece haver uma sutil e no entanto fundamental diferença entre a concepção alquímica do
movimento do espírito ( puer) e esse mesmo movimento nos mitos do herói e nos contos de fada heróicos. Nestes, o
herói é inconcebível sem sua oposição à Grande Deusa, de uma maneira ou outra.

O espírito parece imaginado diferentemente na Alquimia, implicando uma teoria diferente da neurose e do
movimento psíquico. Nos mitos do herói e psique move-se principalmente através da vontade, para uma ampliação da
ordem racional. Na Alquimia, parece ser uma ampliação da imaginação, uma libertação da fantasia de diversas
literalizações aprisionadas. Quando Jung mudou a principal analogia para o processo de individuação do mito do herói
em Symbols of Transformation ( em alemão, 1911) para o Psychology and Alchemy em alemão, ensaios Eranos
1936 e 1937), um dos resultados foi também uma mudança das faculdades racionais e voluntariosas da alma para sua
terceira faculdade, a imaginação ou memória.

Deve haver muitas razões históricas e filosóficas para a representação alquímica do puer sem a grande mãe
como contraparte principal, entre as quais a Doutrina Cristã de um Deus que é ao mesmo tempo Pai e Filho é
certamente das mais relevantes. Além dessas influências sobre as formulações do puer na Alquimia, são também
significativas as fantasias espontâneas da psique expressas nas formulações alquímicas sobre a redenção. Na Alquimia,
também, o abraço do espírito e da matéria é um sofrimento e um mal, que chamamos agora de neurótico. No entanto, a
saída desse abraço é diferente. Não se dá apenas em termos de uma batalha heróica entre mãe e filho, para a qual São
Jorge e o Dragão se tornou o principal paradigma ocidental. Na Alquimia o Dragão é também o Mercúrio criador,
assim como uma figuração (ou prefiguração) do puer . Matar o dragão no mito heróico significa nada menos do que
matar a imaginação, o verdadeiro espírito que é o caminho e a meta. O dragão, lembremo-nos, não é uma serpente e
nem um animal. É um animal fictício, um instinto imaginário e dessa forma o instinto da imaginação, ou a imaginação
como uma força vital e instintiva. Mesmo a luta com o dragão, na apreciação alquímica de Jung (CW 12, § 437), difere
do comportamento de São Jorge. O Herói alquímico é devorado pelo dragão, ou como diríamos, a imaginação vence.
Em seguida, vem a atividade de discriminação dentro do estômago, em que o nous separa e faz distinções dentro das
literalizações da physis, as fantasias fisicamente concretas. Esse processo de discriminação é imaginado da Alquimia
como cortar o ventre da besta de dentro para fora.
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Além disso, o mito do herói é apenas um motivo entre as centenas de motivos alquímicos, apenas um modo de
procedimento, uma operação útil num momento específico ou dentro de uma constelação; ao passo que o mito do herói
na psicologia moderna tornou-se o fundamento interpretativo dominante na psicologia do puer.

Há ainda outra diferença entre nosso modo comum de pensar, tipo ego-heróico, sobre o espírito e a matéria (
puer e mãe) e as imagens da Alquímica. Nesta, o espírito não é apresentado principalmente dentro de uma fantasia
darwiniana e o modelo não é, em geral, de geração, ou de espírito nascido de matéria materna. A techné alquímica visa
uma outra espécie de relacionamento entre matéria e spiritus, na qual as polaridades se tornam complementaridades,
diferentes mas iguais e unidas, como rei e rainha - a íntima união é um incesto que é uma virtude. Édipo é inteiramente
irrelevante aqui, porque o processo todo não é heróico, nem literalizado, nem concebido pela consciência de ego.

Em geral, também, a geração do novo não se dá através de um par real produzindo a criança divina, um puer,
como terceira figura. A geração do novo na Alquimia não é diretamente linear, nem um declive ou uma descida. A
geração tende a ser circular: o novo é pré-figurado desde o começo no velho, e o rei é ele mesmo tanto senex quanto
puer. Nesse sentido, a representação alquímica do desenvolvimento parece nunca distanciar-se da unidade do arquétipo.
O desenvolvimento da consciência puer não se dá para fora da matéria (mãe) nem contra ela, mas é sempre um
trabalho mercurial envolvido com ela. O puer-et-senex necessita da matéria para a sua amálgama, para a sua
substância, pois é a “fisicalidade” que dá à sua imaginação um material literal a partir do qual se pode fantasiar.

Poderíamos considerar a Alquimia, então, como uma disciplina não concebida dentro do complexo materno,
pois sua concepção de espírito não é a de um derivativo da matéria. Sua psicologia difere da psicologia da ciência, e
portanto a Alquimia e a ciência oferecem diferentes fundamentos para a psicologia. Uma vez que a fantasia da ciência
implica na conquista da matéria, ela trabalha dentro do arquétipo da grande mãe. E quando observamos a psique de
maneira científica, nossa consciência tende a ser possuída pela grande mãe arquetípica. A fantasia do alquimista é
menos contida pelas “leis” da matéria e por considerações quantitativas. A mudança qualitativa e sua precisão são mais
importantes. O percurso alquímico através do material da mãe é a disciplina da fantasia, e a psicologia alquímica é
dominada pelo par puer-senex, suas tensões e seus problemas e sua relação com a anima.

Em nossas vidas, o complexo mãe-filho é formulação personalizada ( dentro daquela linguagem familiar tão
orgulhosamente constelada pelo mesmo arquétipo mãe-filho ) da relação entre matéria e espírito. “Complexo materno”
é outra maneira de dizer que o espírito não pode se apresentar, não tem efeito ou realidade, exceto no que se refere à
matéria. Só se conhece em contraste com a matéria. Se o espírito é heróico, o contraste é apresentado como uma
oposição. Se é materialista e terreno, está a serviço daquele complexo. De qualquer modo, seu primeiro fascínio é pela
transformação da matéria, revolução do mundo, planejamento d cidades; atos espirituais são materializados em algum
aspecto da realidade concreta. O “complexo materno” é uma neurose tão difundida, o espírito está tão imerso no corpo
material, aí se deliciando ou contorcendo-se para sair, que dificilmente podemos descobrir outras interpretações do
espírito - tal como a Alquimia - exceto dentro de uma polaridade com a matéria. Sempre que pensamos no espírito
nesses termos, estamos no “complexo materno”.

No entanto, não existe por acaso outro espírito, ou outros espíritos, da natureza, dos mares, das florestas e
montanhas, dos vulcões flamejantes, do mundo subterrâneo, que vêm dos Deuses inferiores (Poseidon, Dionísio, Hades,
Hefaístos, Pã) e que são masculinos ou hermafroditas? E não existe um Hermes e um Zeus etônico? Nem tudo o que é
de baixo, da natureza e da escuridão tem que ser mãe. E espírito pode se descobrir através de outro espírito, masculino
com masculino como paralelos, ou amigos e inimigos; desse modo, também, o espírito pode ter como oposto e
companheiro a alma ou o corpo, nenhum deles se constituindo como Grande Deusa. Nem tampouco somos obrigados a
pensar geneticamente, como se o único correlato a “filho” fosse “Mãe” , de modo que a causa e as origens do espírito
devam ser detectadas em algum princípio material. A matéria não é pois o único princípio com o qual o espírito pode
ser acoplado para então se definir. Podemos perguntar inclusive se o espírito pode se conhecer, tornar-se consciente,
dentro da polaridade mãe-filho. A cegueira de Édipo indicaria o contrário. Por fim, a necessidade do puer de um
masculino correspondente (senex), do etônico e da alma e do corpo enquanto contrapartes - mais do que da Grande
Deusa - oferece temas ainda a serem desenvolvidos na psicologia profunda, devido ao predomínio desta através de
complexo materno. É precisamente a perda dessas outras polaridades para o espírito que causou sua condição de filho,
seu espírito subjugado e frustradamente rebelde que continuamente funde todos os fenômenos dentro do mesmo molde,
e força-nos a continuar concebendo o puer em termos da mãe. Se a psicologia tem que se libertar para outras fantasias,
a fim de compreender a imensa amplitude dos acontecimentos da psique, deve primeiro libertar o puer da mãe, ou o
espírito da psicologia não pode fazer nada mais do que repetir e confirmar o que a mãe lhe mandou fazer.
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A neurose não pode ser separada da Weltanschauung, que sempre é uma expressão de uma ou outra variedade
do problema espírito e matéria, e assim tem que arcar com a problemática arquetípica da relação entre a grande mãe e o
puer . Por essa razão, os terapeutas de neuroses, como Jung apontou, são e devem ser também doutores em filosofia. A
relação entre o puer e a grande mãe é também um problema filosófico que pode ser expresso em linguagem filosófica.
O puer não poder ser um órgão psicológico que funcione sem ter seus efeitos ideacionais. Se os terapeutas de neuroses
fosses doutores em filosofia, deveriam ser capazes de ver não só o neurótico em toda a filosofia, mas também o filósofo
em toda a neurose. Idéias metafísicas dificilmente são independentes em suas raízes. Logo, podem ser focos de doenças
e parte de uma síndrome arquetípica. Por exemplo, não é o materialismo de uma ciência natural uma filosofia de
matriarcado da qual o cientista, quer queira quer não, se torna um filho sacerdotal ou heróico? O Vedanta e sua
transcendência da matéria por acaso não se reflete um espírito tão enredado na grande mãe do mundo que tem, que se
recorrer a exercícios disciplinados para encontrar sua liberação? Na nossa metafísica expressamos nossas fantasias
sobre o físico e sua transcendência. Uma afirmação metafísica pode ser tomada como uma fantasia psicológica sobre a
relação matéria-espírito. Essas afirmações são fantasias cujo autor é a “neurose arquetípica” de puer e mãe, refletidas
na filosofia em termos de espírito e matéria. A neurose arquetípica é coletiva, afetando todas as pessoas com uma
aflição metafísica. Resolver essa aflição é assunto individual, o que torna a terapia um engajamento metafísico no qual
idéias e não somente sentimentos e complexos passam por processos e mudanças. O aparecimento de figuras do tipo
puer, particularmente nos sonhos de mulheres, traz novo ímpeto e novas batalhas também no campo das idéias,
indicando transformações da Weltanschauung em relação a tudo o que se incluiu no termo physis.

Agora devemos pesquisar mais precisamente essa contaminação arquetípica da mãe e do puer. O que
acontece quando o puer, enquanto estrutura fundamental da psique, perde sua auto-identidade, sua posição dentro da
totalidade senex-puer, e é sutilmente substituído pela figura do filho da grande mãe?

Quando o pai é ausente, caímos mais prontamente nos braços da mãe. E na verdade o pai está faltando, Deus
está morto. Não podemos caminhar para trás sustentando uma religião do senex. O pai que falta não é o seu ou o meu
pai pessoal. É o pai ausente de nossa cultura, o senex vivo que fornece não o pão de cada dia, mas o espírito, através
do significado e da ordem. O pai que falta é o Deus morto que se constituía em foco de tudo o que é espiritual. Sem
esse foco, voltamo-nos para sonhos e oráculos, mais do que para oração, código, tradição e ritual. Quando a mãe
substitui o pai, a mágica substitui o logos, e os filhos sacerdotes contaminam o espírito do puer.

Incapazes de voltar atrás para reviver o pai morto da tradição, caminhamos para baixo, para dentro da mães do
inconsciente coletivo, procurando uma compreensão que tudo abarque. Pedimos ajuda para atravessar os desfiladeiros
apertados sem prejuízos: o filho quer a invulnerabilidade. Pedimos proteção e premonição. Oramos à noite que nos
mande um sonho, ao amor para que nos dê compreensão, a um pequeno rito ou exercício por um momento de
sabedoria. Acima de tudo queremos a certeza através de uma visão antecipada de que tudo vai dar certo. Aqui temos o
motivo de proteção, de novo, e proteção significativa: invulnerabilidade, previsão, garantia de que tudo estará bem, não
importa o que.

Justamente aqui percebemos de relance uma diferença entre puer e filho. Garantias existenciais são dadas
pelas mães. Lealdade a ela proporciona sua lealdade de volta. Ela não o trairá se você permanecer leal a ela. A mãe
garante segurança e dá vida, mas não dá o verdadeiro espírito que vem da incerteza, do risco e do fracasso - aspectos do
puer. O filho não precisa do pai. Já o puer procura reconhecimento dele, um reconhecimento do espírito pelo espírito
que conduz à eventual paternidade no próprio puer. Como não podemos chegar ao pai através da mãe, assim também
não podemos chegar ao quente sêmen de logos através de suas imitações na magia lunar.

Psicologia não é dissolução em magia psíquica; a psicologia e um logos da psique; ela requer espírito. Não
avança somente através de filosofias da mãe: evolução em crescimento e desenvolvimento, naturalismo, materialismo,
adaptação social de um humanismo carregado de sentimento, comparações com o reino animal e reduções a
simplicidades emocionais tais como amor, sexualidade e agressão. A psicologia requer outros modelos para o progresso
de seu pensamento e também outros portadores arquetípicos, tais como o puer, que poderia liberar a fantasia
especulativa da psicologia e insistir em seu significado espiritual.

Sem o pai perdemos também aquela capacidade que a igreja reconheceu como “discriminação dos espíritos”: a
habilidade para reconhecer um chamado quando o ouvimos e para discriminar as vozes, atividade tão necessária para
uma psicologia precisa do inconsciente .Mas o espírito que não tem pai não tem guia para tais minúcias. A divisão entre
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o senex e o puer acaba com a discriminação espiritual; no lugar dela temos uma promiscuidade de espíritos
(astrologia, ioga, filosofias espirituais, cibernética, física atômica, junquianismo, etc. - todos atualmente apreciados) e
sua indiscriminação face à mãe todo-compreensiva. A mãe encoraja o filho: vá adiante, abrace tudo. Para ela, tudo
significa todas as coisas. A instrução do pai, ao contrário, é: tudo significa nada - a menos que o tudo seja precisamente
discriminado.

O reino da Grande Deusa, é caracterizado por : Inércia passiva e dinâmica compulsiva da natureza; ciclo
protetor, alimentador e gerador nos animais e nas plantas, desde a semente até a morte; uma afinidade com a beleza, a
intemporalidade e a emocionalidade; uma preferência por opacidade, obscuridade, coagulação e escuridão; uma mística
do sangue per se, ou em laços de parentesco. Todas essas áreas sob o domínio da Grande Deusa, com apenas uma leve
mudança de ênfase para o espiritual, poderiam também ser refletidas pelo puer. Assim, o impulso desse último é
exagerado pelo complexo materno. A contaminação de qualquer dos dois arquétipos pode reforçar a ambos ou
despotencializar um em favor do outro. No caso especial da confluência da mãe e do puer, a primeira parece ganhar,
não somente despotencializar o espírito mas exagerando-o. A mãe, enquanto aquela de dá e alimenta, enquanto a
própria vida natural, fornece ao puer uma dose excessiva de suprimento energético e, reforçando alguns traços básicos
dele, exige que se comporte como filho dependente.

Quando a mãe se apodera desses traços, leva-os ao extremo. A reflexidade do puer torna-se um devaneio
ineficaz; a morte torna-se não mais um terror, mas um conforto natural e bem acolhido; a imperfeição, em vez de ser
uma aventura para a vulnerabilidade humana, torna-se, exagerada pela mãe, uma castração, uma paralisia, um suicídio.
Os vôos verticais tão autênticos para a raiz de Horus do puer torna-se em vez disso um planar desdenhoso sobre o
mundo corrupto e inferior: o problema familiar adquire uma mística religiosa e os membros da família se tornam
personagens de uma epopéia matriarcal. E então até mesmo a eternidade, em vez de ser um aspecto dos acontecimentos
e o modo pelo qual a consciência do puer percebe o significado arquetípico, é distorcida para um desprezo pelo tempo
e até para uma negação de todas as coisas temporais. Ou então um oportunismo materialista aparece no lugar do
genuíno senso de oportunidade do puer, seu modo de proceder por palpite e por sorte, sua ambição transportada pelo
jogo e por Mercúrio. Há também materialismo num concretismo peculiar de idéias metafísicas (que devem ser impostas
à força e expressas no corpo, nas roupas e na comunidade), na ética, na sexualidade, no dinheiro, na dieta, na medida
em que a matéria da mãe, reprimida, retorna através de literalizações das abstrações do puer. O ciclo da natureza (que
na consciência do puer é um campo do qual retira metáforas com as quais faz piadas, brincadeiras e experiências) na
consciência do filho torna-se uma devota natureza “exterior”, uma casinha no mato, roupas sujas, Hatha ioga; e a
beleza, que para o puer reflete ideais platônicos e é uma revelação da essência do valor, amesquinha-se em vaidades de
minha própria imagem, minhas próprias produções e sensibilidade estética.

A íntima associação entre mãe e filho na psique é imaginação como incesto e experimentada como êxtase e
culpa. O êxtase segue as duas direções verticais, a divina e a infernal, mas a culpa não encontra alívio. A grande mãe
transforma a dívida do puer para com o transcendente - o que deve aos deuses por seus dons - numa dívida de
sentimento, numa culpa em relação aos seus símbolos na vida material. Ele paga a mais para a sociedade através da
família, do emprego, dos deveres civis, e evita seu destino. Através dela, sua relação com a vida material oscila entre
saltos extáticos para fora de seus vínculos ou submissão culposa a eles. Na esfera sexual, os psicanalistas chamaram a
isso de oscilação, o contínuo recuo e avanço entre luxúria e culpa, culpa e luxúria.

O aspecto extático num homem possuído pelo duplo arquétipo de mãe e filho afasta-o ainda mais das inibições
de ordem e limite impostas pelo pai. Êxtase é uma das maneiras da Deusa seduzir o puer, removendo-o de sua conexão
com o senex. Ao superar limites, a consciência do puer sente que vence o destino que impõe e é o próprio limite. Em
vez de amar o destino e ser dirigido por ele, ascendendo como Horus para redimir o pai, há uma fuga do destino num
vôo mágico e extático. As aspirações do puer são alimentadas por um novo combustível: o combustível potente dos
impulsos sexuais e de poder, cuja fonte está no domínio instintivo da Grande Deusa. Esses exageros do impulso do
puer incendeiam-no. Ele é a tocha, a flecha e a asa, o filho de Afrodite, Eros. Parece capaz de realizar na sua vida
sexual e em sua carreira todos os desejos de suas fantasias onipotentes da infância. E tudo se torna real. Seu ser é um
falo mágico, forte e luminoso, todos os seus atos são inspirados, todas as suas palavras prenhes de profunda sabedoria
natural. A Grande Deusa nos bastidores passou-lhe esse extático condão. Ela governa tanto o desejo animal quando o
mundo horizontal da matéria, sobre os quais oferece a promessa de consquista.

Devido à emocionalidade da grande mãe, a dinâmica do filho é singularmente instável e dependente da


emoção. A inspiração não pode mais se distinguir do entusiasmo, nem a correta e necessária ascensão pode se
distinguir do êxtase. O fogo fulgura e então se extingue, abafado e esfumaçado, obstruindo a visão e afligindo a todos
com o ar nocivo do mau humor. A dependência do espírito em relação ao humor, descrita em linguagem vertical
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(alturas e profundezas, glória e desespero) tem sua contrapartida arquetípica nos festivais de Atis, filho de Cibele, que
eram chamados de hilaria e tritia.

Quando a direção vertical para a transcendência é mal orientada por causa da grande mãe, o puer já não é mais
autêntico. Ele toma então seu papel através do relacionamento com o feminino. Êxtase e culpa são duas partes do
modelo filial. Mais importante ainda é o heroísmo. Quer como herói-amante, ou herói-eremita que nega a matéria
enquanto se aconchega no seio da natureza, ou herói-consquistador que mata o dragão esverdeado de um mal público
qualquer, ou como Baldur, tão imperfeito e tão incapaz de estancar o sangue de suas bela ferida, o puer perdeu sua
liberdade. Não há mais acesso direto ao espírito; é preciso drama, tragédia, heroísmo. A vida torna-se uma façanha
representada através de um papel no relacionamento com o eterno feminino que se coloca atrás de todos os filhos desse
tipo: mártir, messias, devoto, herói e amante. Exercendo tais papéis, fazemos parte do culto da Grande Deusa. Nossas
identidades derivam da representação desse papéis e assim tornamo-nos seus filhos, uma vez que a nossa vida depende
do papel que ela nos dá. Ela pode então afetar inclusive o modo pelo qual o puer procura o senex: exagerando a
relação entre discípulo e mestre, a jactância do batalhador contra a velha ordem, a exclusividade do messias cuja nova
verdade refuta tudo o que existiu antes. O complexo materno embaça a precisão do espírito: as questões se tornam
rapidamente do tipo “isso ou aquilo”, uma vez que a Grande Deusa não tem muita compreensão do espírito. Ela apenas
o apreende no relacionamento com ela; isso é, o complexo materno deve fazer do espírito algo relacionado. Ele deve
ter efeitos no mundo da matéria: vida, mundo, pessoas. Isto soa “humano” e cheio “senso comum”, novamente termos
que costumam expressar o sentimentalismo do complexo materno. Mesmo que um homem reconhecesse a mãe em seus
atos e fugisse de seu “relacionamento” refugiando-se em abstrações sublimes e amplas fantasias impessoais, ele
continuaria sendo o filho impregnado pelo animus da Deusa, seu pneuma, sua respiração e seu vento. E ele a serve
melhor fazendo tais divisões entre sua luz e a escuridão dela, seu espírito e a matéria da Deusa, entre seu mundo e o
dela.

Esse é o pensamento do tipo animus do filho, encontrado tanto nos homens quanto nas mulheres. É um
pensamento em coagulações e oposições entre as mesmas, mais do um pensamento através de distinções entre
perspectivas. Pois não é uma questão de que a mão ou o puer sejam isso ou aquilo, ou seja, objetos descritíveis ou
coisas, mas sim ambos se constituem como modos de perceber. Mais ou menos os mesmos “fatos” podem ser
encontrados no puer e no filho da grande mãe, e portanto a real diferença entre eles reside num modo como percebemos
esses fatos. Mas a mãe não quer que olhemos através dela. Ela lança seus véus de escuridão, sua opacidade e sua
emocionalidade, e apresenta divisões cruas e materializadas entre Deus e César, esse mundo e o que há de vir, tempo e
eternidade, sagrado e profano, introvertido e extrovertido, e assim por diante, ad infinitum, mantendo seu filho - animus
eternamente ocupado, impedindo que atinja uma eternidade de outra espécie. Essa eternidade do puer veria através de
todos esses opostos a sua semelhança fundamental enquanto modo de pensar. O movimento do filho para o puer, isto é,
o movimento de restauração da visão puer original, ocorre quando olhamos através do desafio de opostos com que a
Grande Deusa nos confunde de tal modo que podemos nos recusar a lutar com ela no campo de seus emaranhados
dilemas. Não quero dizer com isso que a visão do puer seja a de um super-homem nietzcheano, além do bem e do mal.
Quero, sim, dizer que a visão do puer, por causa de sua conexão inerente com o senex, pode viver dentro desse campo,
enquanto campo de necessidade, simplesmente olhando através daquela ambigüidade que é a identidade dos opostos.
Não há necessidade de forçar escolhas, como faz o filho-herói, nem se construir uma teologia do conflito ao modo do
filho-sacerdote. A visão do puer é transcendente e superior, no sentido de que ele não é capturado pelo jogo literal do
animus da mãe; em conseqüência a consciência do puer deve ser literalmente transcendente, como deixar a cena,
desligar-se, partir.

Há também o anti-herói, ou o herói às avessas, que é outro substituto do puer, outra forma do filho da Grande
Mãe. Ele vive no seu regaço e fora do regaço da mãe. Em vez de todo falo, é todo castração-fraco, gentil, rendido à
vida e aos seus golpes. Escolhe perder e é suave sua resposta à ira, cujo espírito não é capaz de confrontar sem o pai.
Seu caminho segue a natureza, o caminho da menor resistência, eventualmente para dentro do pântano primitivo,
atolado. Como a água corre para baixo, desliza para fora de vista e tem efeitos subterrâneos e assim, como a água,
evoca a criança divina nas correntezas. Mas esse filho não é separado da água por um berço, cesta ou bote; ele é a água.
Dá ilusão de estar no caminho certo, contornando obstáculos como o Tao, que é chamado de água e de criança. Mas,
diferente de Ícaro, não mergulha na água verticalmente, nem serve aos princípios arquetípicos de Olimpo com
entusiasmo derramado como faz Ganimedes, o servidor. Apenas segue o que se move, como uma corrente deslizando
através do grande corpo da mãe natureza, acabando por fim no estuário amniótico, dentro de uma beatitude oceânica.
Quer seja imperativo com heroísmo e com êxtase, que passivo, o fluxo de energia resulta do arquétipo materno. No
último caso, o anti-herói parece ser uma tentativa de resolução do complexo puer através da degradação de energia. O
indivíduo segue à frente, deixando as coisas acontecerem, evitando as exigências feitas ao ego Herói. Faz poucas
exigências até para si próprio, querendo e necessitando cada vez menos. Quando as tensões se estabilizam, acredita-se
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num raro equilíbrio, tornando-se mais frio e menos pessoal. Suas imagens e idéias tornam-se cada vez mais
arquetípicas, refletindo níveis universais do inconsciente coletivo

Como parece haver um processo espiritual nas idéias visuais, poéticas e metafísicas, o termo “regressão” é
recusado como impróprio. Regressão significa retorno a padrões de comportamento mais infantis ou historicamente
mais primitivos. No entanto, nesse caso parece óbvio que se está fazendo um progresso espiritual em direção a valores
e símbolos gerais sempre mais amplos, progredindo através da filosofia perene para verdades de todas as religiões -
mesmo se às vezes houver necessidade de apoio vegetariano ou reforço alucinógeno. Dificilmente podemos estar
“regredindo” citanto Hesse, Gurdjieff, Tagore, Eckehart e Sócrates. A filosofia, no entanto, tem uma conotação
defensiva, fornecendo um escudo protetor contra o heroísmo, a vontade e o esforço. Por exemplo, o antiheroísmo de
Ramakrishna: “Quanto mais perto você está de Deus, menos ele dá prá você fazer”. Esses traços e padrões previsíveis
do anti-herói - o que ele fará, lerá e dirá em seguida - revela que no seu progresso espiritual está realmente seguindo a
degradação da energia em sua direção entrópica que é, em outra linguagem, como Freud apontou, o Nirvana - ou a
morte. A intropia num sistema é caracterizada por esfriamento e descenção, aumento da probabilidade estatística,
eqüalização da tensão, generalização (acaso), degradação de formas superiores de descrição de energia e crescente
desordem. Tudo isso aparece no comportamento individual, assim como no comportamento de qualquer complexo
quando “desiste”.

Embora o tema de “desistir” pertença a um outro capítulo do livro sobre a consciência puer e não possa ser
integralmente tratada aqui, podemos ressaltar uma diferença entre puer e herói ou anti-herói a esse respeito. O puer
desiste por causa de um senso inadequado de sobrevivência, isto é, devido a uma dinâmina que não sabe se defender ou
como manter-se em ordem no sentido do senex. O herói/anti-herói desiste devido à mãe. O elemento herói (e seu
oposto, o anti-herói) num complexo, faria com que este desaparecesse. No entanto, como Jung aponta, os complexos
são a mãe da energia psíquica e conquistá-los, vencê-los ou curar-se deles é outra maneira de tentar se livrar da mãe.

O puer no complexo é autodestrutivo porque lhe falta psique - controle, reflexão, envolvimento. E falta-lhe,
quando separado do senex, a habilidade para gerar-se, para colocar um teto sobre sua cabeça e um muro em volta de
sua propriedade. A autodestrutividade do puer em qualquer complexo aparece porque este não se compreende; ele vê,
sabe e faz - mas não se vê, nem se conhece, nem se faz a si mesmo. Há uma ausência de reflexão psíquica do espírito e
uma ausência de realização espiritual dentro da psique.

O herói é autodestrutivo porque não se interessaria mais pelo complexo, o que pode ocorrer de vários modos.
Pode aparecer como um idealismo do eros, a inspiração para transformar os complexos em totalidades. Pode aparecer
como esfriamento anti-heróico dos complexos, despotenciando tudo de qualquer tensão ou seu inverso, queimando tudo
com o entusiasmo. Pode aparecer como a cura da aceitação do amor - que também é um desejo de morte, revelando
quão próximos estão eros e tanatos. Pois ter encontrado a cura e a totalidade através do amor ou desistir da tensão
através da morte estão na verdade próximos. Ambos rejeitam o complexo como uma necessidade fundamental da vida
psíquica, cuja única cura é a morte. Só a morte põe um fim aos complexos, que são “fenômenos normais da vida” e,
como a mãe, o fundamento de cada existência individual. Somos seres complexos e a natureza humana é uma
composição de complexidades. Sem complexos não há realidade viva, apenas um transcendente Nirvana de Buda, cujas
supostas últimas palavras apontam para a complexidade da psique como um dado primário da vida : “A decadência é
inerente a todas as coisas compostas - trabalhai para a vossa salvação com diligência”.

Livrar-se e desistir dessa complexidade através de uma fórmula qualquer para superar os opostos, ou cair fora,
ou curar, omite a realidade psíquica. A terapia psicológica, é menos uma superação e um livrar-se do que uma
decadência, uma decomposição do modo como estamos compostos. Os alquimistas chamaram a isso putrefactio, o lento
processo temporal de transformação através da aflição, perda e horror moral. Tanto o heróico livrar-se quanto o passivo
entregar-se tentam acelerar a decadência e não se interessar mais por ela: evitam o trabalho da realidade psíquica
através de uma fuga para a salvação espiritual. Mas a cura é a decadência.

Quando o puer é autêntico face a sua estrutura, há um odor da decadência, uma apaixonada fixação à sua
própria desordem, que é parte de sua resistência à analise. Nesse sentido, o puer, - aparentemente tão rápido e
flamejante - é lento para mudar, não apresenta desenvolvimento, parece estancado nos mesmos maus hábitos de sempre.
Sua putrefação está nos seus sintomas intratáveis de males no cólon e indigestão, de eczema e acne, de hemorróida, em
seus longos resfriados e sinusites, em sua sexualidade, em suas peculiaridades com relação a dinheiro e em seu fascínio
pelo submundo. Essas coisas a análise tem erradamente atribuído à repressão da sombra devido ao complexo materno.
Ele está vinculado à mãe de uma maneira materialista compensatória e não pode livrar-se. Mas contra o pano de fundo
da decadência, a lentidão e a sujeira do puer podem ser vistas como um modo de seguir o caminho da putrefação para
encontrar o senex . Como tal, é um processo digestivo e fermentativo que não deveria ser heroicamente apressado.
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Também não deve ser forçado como um tratamento para integrar a sombra. O puer não é um cachorro; a consciência
puer não precisa ser invadida. O que lhe falta não é um calço, mas um novo afinamento de sua sensibilidade aos odores
de sua própria decadência. Sua individuação está no próprio processo de patologização e não no seu esforço heróico de
superar.

Não podemos nos livrar de maneira alguma dos complexos; eles é que desistem de nós. Seu tempo de
decadência é mais longo que a vida da personalidade individual, uma vez que continuam numa espécie de existência
autônoma muito tempo depois de terem saído de cena; os complexos são parte da herança psíquica de nossos filhos e
dos filhos, destes, tanto naturais quanto espirituais. Os complexos são nossa base de pecado, nosso karma, que se
abandonado é cumprido em outro lugar. Na análise dos homens chamados puer necessita-se de um faro para a
decadência, para o refugo, para a ruína. Ao cultivar esse caos, mantemos o puer , vivo e em contato com a matéria-
prima; ao desculpar tudo com suave aceitação (desistir) ou acelerar o andamento do processo (livrar-se), colocamos o
espírito autêntico na velha garrafa rotulada “Mãe”.

Em nosso estudo sobre o puer e a mãe deveríamos examinar, mesmo que brevemente, Dionísos. Ele tem sido,
é claro percebido como um típico filho da Grande Mãe. Suas armas, o leite, a emocionalidade, a dança, seu
comportamento não heróico, e sua ausência de armas, sua suavidade e seu afeminamento, o favorito das mulheres - tudo
isso significou para as nossas assim chamadas mentes psicológicas simplistas nada mais do que um notável exemplo
arquetípico do complexo materno.

Mas Dionisos também pode ser considerado dentro de uma estrutura puer-senex. Seu nome significa Zeus-
Filho; seus mitologemas são em muitos aspectos intercambiáveis com os de Zeus Cretense, e na história de um dos seus
nascimentos é libertado da coxa de seu pai, masculino nascido de masculino. É qüestionável se podemos chamar
Dionisos de puer em nosso sentido psicológico moderno, mesmo que puer tenha sido um de seus epítetos latinos.
Como Dionisos era um dos jovens deuses, apresentado em seu culto, especialmente nos últimos períodos da
antigüidade, sob a forma de criança, ele possui traços relevantes para a presente reflexão, mesmo que a qualidade de
sua masculinidade seja diferente daquilo que nosso consciência histórica, sob as dominantes heróicas greco-romanas e
judaico-cristãs, decidiu que é masculino. Assim, creditamos o “dionisíaco” à mãe, e com isso omitimos o significado
espiritual sugerido por Dionisos puer e mal interpretamos o vinho, o teatral e sua tragédia, o estilo de loucura e de
falicismo, e outros aspectos de sua natureza e de seu culto que se relacionam à consciência puer. O puer pode
encontrar em Dionisos um fundamento para os traços e experiências que não devem ser tomados literalmente nem
desempenhados em grupos de dança com tamborins, mas que oferece um outro meio mais suave para reunião do puer
com o senex, do pai com o filho. Dionisos mostra a renovação espiritual na natureza ou a renovação natural do espírito,
abarcando em si mesmo os traços cíclicos e regenerativos da mãe natureza com a cultura, inspiração e excitação
irracional da consciência puer.

Dionisos, dizem, tem várias mães. Elas têm sido diversamente chamadas de Demeter, Io, Dione, Perséfone,
Lete e Semele, e o relacionamento entre suas mães é descontínuo. Semele é morta por Zeus enquanto ainda grávida;
Zeus é a sua segunda Mãe; é criado por ninfas numa caverna, por Perséfone, por sua avó Rea, que une de novo as partes
desmembradas de seu corpo. Essa descontinuidade na mãe é exclusiva de Dionisos. Outros deuses e heróis são “sem
mãe”, isto é, abandonados, amamentados por animais, criados por mães adotivas ou amas, tendo desaparecido ou
morrido a mãe natural. A psicanálise promoveu muito esse tema das “duas mães”. Tornou-se o seio bom e mau, e Jung,
também dedicou uma grande parte de seu Symbols of Transformation à “mãe dupla”, que significa dois lados da mesma
figura, um aspecto positivo estimulador e outro negativo e ameaçador.

No entanto, eu consideraria as duas (ou mais) mães de um outro ângulo, não como diferentes espécies ou faces
de uma figura, mas como uma interrupção na relação entre mãe e filho. Minha sugestão é que a ruptura na continuidade
natural (Semele não chegando ao termo da gravidez) oferece outra maneira de ver a relação entre mater e puer.
Devido à intervenção dos raios de Zeus - ou qualquer outra invasão espiritual na continuidade natural entre mãe e filho,
quer do Faraó (Moisés), quer do oráculo (Édipo) - o filho não tem que forçar um rompimento com a mãe. Ele acontece.
É dado com a sua condição. Ele já não é mais apenas seu filho. O apenas natural quebrou-se porque o espiritual
interviu, e então uma separação da consciência puer da mãe ocorre sem necessidade de um corte ou uma morte.
Evidentemente outro arquétipo é atividade, ao qual o filho também pertence, sendo este um sinal de seu destino, assim
como o é a mãe da qual é separado.

Para tornar esse aspecto mais claro, voltemo-nos para Leonardo da Vinci. O acontecimento crítico nas suas
primeiras lembranças (como Freud e Neumann escreveram), foi na verdade o pássaro que baixou sobre ele no berço.
Leonardo viveu com sua avó e duas sucessivas mães adotivas; sua mãe natural casou-se de novo e parece ter
desaparecido de sua vida. Ele teve uma fantasia, da qual fala como se fosse uma lembrança verdadeira, de infância, de
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que um nibio abriu sua boca com a cauda e golpeou-o várias vezes em seus lábios. Esse pássaro não era um abutre,
como Freud e depois Neumann consideraram. Este último, apesar de ter percebido e corrigido o erro de Freud, reteve
no entanto a tradução incorreta de nibio como abutre, para apresentar Leonardo em termos de complexo materno. Não.
O pássaro que veio a Leonardo em sua visão era um gavião, um parente do falcão, e, com este, uma variedade do
gênero falconidade. (Falcão é o termo mais amplo; gavião é uma de suas variedades). Temos aqui um símbolo que
pode ser amplificado a partir do Egito, para onde Freud se voltou em sua adequação simbólica abutre = mãe. Mas a
equação é antes: falcão, gavião = Horus = puer. O falcão solar baixava sobre os reis em sua coroação e era uma alma-
espírito, um ka, e, numa série de outros contextos (que exponho em outro capítulo deses trabalho sobre o puer), o
falcão é um emblema do puer por excelência.

Devido ao significado específico de puer desse pássaro o tema da mãe dupla em Leonardo Da Vinci, sobre o
qual Freud e Newmann baseiam suas interpretações de seu gênio, pode melhor e mais corretamente ser entendido em
termos de uma descontinuidade na relação que se deve à precoce intervenção do arquétipo do puer em sua aparição
como um gavião e que Leonardo guardou como valiosa lembrança. (Não examinei o material biográfico o suficiente
para dizer se há intervenção da imagem do níbio ocorreu precisamente no intervalo entre duas de suas muitas mães.
Mas não creio que o aspecto literal de descontinuidade seja tão importante como dois outros fatores: a intervenção do
puer e a descontinuidade das mães).

O interesse de Leonardo da Vinci pelo vôo, seu amor pelos pássaros, assim como seus supostos
vegetarianismo e homossexualidade, podem então ter um “falcão” nos bastidores mais que um “abutre”, e podem ser
apreendidos como parte da fenomenologia do puer mais do como um complexo materno. Os vários empregos da
palavra “gavião” em inglês ( Kite ) enfatizam as implicações do puer. “Kite” (papagaio, pipa), é um brinquedo
triangular, voador de estrutura leve, favorito dos meninos pequeno e também é “alguém que pilha os outros”. O termo
refere-se também à vela mais alta de um navio, só usada com o vento leve

Além disso, o “acaso” de Leonardo parece um paradigma para a psicologia arquética em geral, assim como
para a psicologia do gênio em particular. Ao ignorar o verdadeiro significado de uma imagem ( no caso, falcão-gavião),
um acontecimento fundamental de uma vida pode ser erradamente atribuído a uma constelação arquetípica imprópria. E
então o gênio não é considerado autenticamente em termos do espírito e seu precoce chamado, sendo antes atribuído a
peculiaridades do destino da mãe. Devido ao fato de que a discussão entre falcão e abutre é responsável pelo conflito
nas perspectivas entre mãe e puer, podemos perceber como foi importante o investimento que a psicanálise fez sobre o
arquétipo materno e como houve uma conseqüente percepção errada e uma repressão do puer, que somente agora
começa a ser revalorizado.

Uma lição que podemos tirar dos exemplos de Dionisos e Leonardo é que o que vemos é determinado pelo
nosso modo de olhar, que por sua vez é determinado por nossa posição. Colocados dentro da consciência, influenciada
principalmente pela grande mãe, todo fenômeno do puer parece derivado do complexo materno, e até mesmo nossa
própria consciência torna-se “seu filho”, uma resultante da matriz primordial do inconsciente. No entanto, não existe
uma coisa como o “complexo materno”. Para sermos estritos e não apenas conduzidos por uma linguagem fácil, os
complexos não pertencem a nenhum arquétipo específico. Os complexos - poder, dinheiro, doença, sexo, medo,
ambição, ciúmes, autodestruição, conhecimento, etc - que formam núcleos energéticos que fornecem a substância de
fantasia de nossas aflições e transformações, não pertencem a nenhum Deus único.

Em primeiro lugar, não há Deuses únicos. No politeísmo, cada Deus implica e envolve outros. Teos e deus
(assim como as raízes célticas e nórdicas de nossa consciência de Deus) aparecem num contexto politeísta, onde a
referência a Deus sempre significa um campo de muitos Deuses. Um único deus sem outros é inconcebível. Mesmo
nosso segundo mandamento judaico-cristão faz essa afirmação, ainda que de modo negativo (“não tereis outros deuses
diante de mim”). Segundo, os deuses se interpenetram, assim como os arquétipos se confundem. Os arquétipos não
regem esferas separadas do ser mas, da mesma forma que os deuses, regem conjuntamente a mesma esfera, esse nosso
mundo. Mas eles produzem distinções dentro desse mundo, diferentes maneiras de ver as coisas, diferentes modelos de
tornar psíquicos os instintos, diferentes tipos de consciência . Logo, em terceiro lugar, os complexos não vinculados
seja por definição ou por natureza, a padrões arquetípicos específicos. Qualquer complexo pode, uma vez ou outra,
estar sob a égide desta ou daquela dominante, e qualquer dominante pode em qualquer momento apoderar-se deste ou
daquele complexo. Por exemplo, o dinheiro pode parecer ligado à avidez de Saturno, aquele que cunhava moedas, ou a
Mercúrio, o negociante, ou ao saque do herói; ou também a Zeus, que pode aparecer como uma chuva de ouro; pode ser
o ouro de Apolo, ou fazer parte da constelação de Midas, ou então apontar um caminho para o subterrâneo psíquico,
pois o outro nome de Hades era Plutão (riqueza). Portanto, o mesmo acontece com a sexualidade, que adquire
características inteiramente diferentes quando Apolínea, Dionisíaca, Priápica, ou a serviço de Hera.
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Mesmo a oralidade do puer - aparentemente o complexo que sem dúvida se liga ao arquétipo da mãe - pode
ser focalizada de outra maneira. A psicologia tem surpreendentemente pouca coisa a dizer sobre gosto, comida, fome,
comer, exceto “oralidade”. Desde que a “fase oral” foi estabelecida por Freud, tudo o que se refere a boca, estômago,
comida, cozinhar e beber, a fomes de qualquer espécie têm a ver com a mãe e seus seios (ou mamadeira). Mas o
comportamento alimentar do puer pode apresentar asctismo, por exemplo, do tipo órfico-pitagórico. Pode revelar uma
sensibilidade para aromas estéticos vinculados (na tradição mágico-astrológica da picatrix) a Vênus e não à Lua. Ou a
fome do puer, que em geral não é só de alimentos, relaciona-se mais propriamente a Saturno e sua voracidade, ao lobo,
Moloc, Boga, um voraz ato de devorar o mundo.

A mudança de embasamento arquetípico de um complexo é uma experiência suficientemente comum quando


um nó problemático e habitual é afrouxado de repente, e uma perspectiva inteiramente nova é aberta. É como se o
complexo tivesse sido redimido pela graça ou ponto de vista de outro Deus. Conhecemos também o inverso: quando
uma virtude subitamente é experimentada através de outro arquétipo e torna-se então “destrutiva” e “um problema de
sombra”. Às vezes essa mudança de um arquétipo para outro ocorre como um colapso. O que antes sustentava o
complexo de ego - digamos, a anima nínfica, ou o ardente eros inspirador, ou o autofarisaísmo conservador do Saturno
moralista - perde a sua influência. Então, um colapso e uma revolução ocorrem até que o complexo possa reconhecer
seu novo senhor, encontrando uma nova sanção arquetípica.

Ao associarmos um complexo a um único arquétipo, nós o condenamos a uma visão única; e este é um
diagnóstico feito muito freqüentemente na análise. (Isro é seu animus espiritual, seu pai negativo, sua criança
negligenciada, etc.). Isso frusta o movimento do complexo por entre Deuses, fixando-o por definição, frustando suas
possibilidades Herméticas de transformação através de um movimento de perspectiva. Ao fixar um complexo a apenas
um arquétipo, apenas uma só espécie de percepção interior pode surgir. É essencialmente importante encarar a
melancolia, por exemplo, não só como tipicamente puer, mas também tipicamente anima, mãe, e também um artifício
do poder da sombra, e até mesmo do senex. Assim como Eros não pertence apenas a Afrodite porque há muitas
espécies de amor, e como a luta pode ser governada por Ares, Atenas, Nike, Apolo, Hércules e as Amazonas, e como a
loucura pode ser trazida e levada embora por uma variedade de dominantes, qualquer complexo pode ser tributário da
Grande Mãe e ao mesmo tempo, afinar-se com o puer-senex.

Não pretendo com isso negar os fenômenos do complexo materno negativo. A “mãe negativa” aparece nos
mitos da feminilidade destrutiva (Hécate, Górgona, Kali e outras grandes deusas que devoram e devastam). Ela também
é evidente na esterilidade da gentileza coletiva, estruturas sem leite, costumes sem tradição numa civilização que não
oferece nenhum tipo de apoio e nada de natural. A “mãe negativa” é visível nas vozes das mulheres falando com seus
filhos, nas faces de lábios frios e olhos vazios, no ressentimento e no ódio. É um milagre que alguém sobreviva através
dos seus primeiros anos quando o amor materno surge com seu reverso, o ódio materno. Vivemos, é claro, numa era
das Mães, porque a cultura é secular e o comum dos mortais deve carregar as cargas arquetípicas sem auxílio dos
deuses. As mães têm que sustentar nossa subsistência, quando elas mesmas não têm sustentação alguma; têm que ser
como Deusas, com tudo ao extremo; e nos sacrificam à sua frustração, enquanto nós, à medida que nos tornamos pais e
mães, sacrificamos nossos filhos à mesma civilização.

O modo de “resolver o complexo materno” seria não propriamente desligar-me de minha mãe mas romper o
antagonismo que me faz heróico e, a ela, negativa. “Resolver o complexo materno” do puer significa remover o
fenômeno puer da mãe, não mais concebendo os problemas do puer como causados pela mãe nem vinculados a ela.
(Pois, em nossa civilização, o que é que não se pode atribuir à mãe?). Em vez de separar homem e mãe, devemos antes
separar a necessidade arquetípica de associação dos dois e considerar a fenomenologia do puer como uma coisa em si.
Então poderemos nos voltar para cada aspecto do puer e perguntar-lhe a quem pertence, conforme o procedimento
corrente na Grécia Antiga ao consultar um oráculo. “A que deus ou herói deve rezar ou sacrificar para conseguir tal e
tal propósito?”. A que modelo arquetípico devo relacionar meu problema? Dentro de que fantasia posso compreender
meu complexo? Uma vez colocado o problema sobre o altar adequado, podemos nos relacionar com ele de acordo com
suas próprias necessidades e através dele nos ligar ao Deus correspondente. (Se Freud e Neumann tivessem seguido
esse método, não teriam colocado o gênio de Leonardo no altar das mães, tomando por engano o gavião por um abutre
e mantendo o erro de maneira a que se adequasse à teoria).

Ao tomar como certo que os fenômenos puer pertencem à grande mãe, a psicologia analítica deu puer um
complexo materno. Os fenômenos puer têm recebido um parece justificado. Ao colocar o complexo no altar da grande
mãe, em vez de manter sua conexão com a unidade ‘senex-et-puer”, destruímos nosso próprio terreno espiritual,
atribuindo à Deusa o nosso eros, nossos ideais e inspirações, acreditando que em última análise se enraízam no
materno, seja a mãe pessoal ou a matéria, ou um campo mundano casualmente condicionado chamado sociedade,
economia, família, etc.. Fazendo do espírito seu filho, tornamos neurótico o próprio espírito. Ao considerar as
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fragilidades e loucuras juvenis, necessárias a todos os começos do viver espiritual, meramente como infantilidades do
complexo materno, sufocamos no nascedouro qualquer possibilidade de renovação em nós mesmos e na sua cultura.
Essa concepção só serve para perpetuar a neurose, impedindo a reunião do senex e do puer. O puer parece inimigo do
senex e os tempos corretamente caracterizados pelo que Freud sugeriu, ou seja, um complexo de Édipo universal, filho
contra o pai por causa da mãe.

No indivíduo, essas distorcões do puer se evidenciam no complexo materno pessoal. Na sociedade,


acontecem distorcões nos objetivos e significados espirituais, porque um desenvolvimento do ego ambiciosamente
heróico tem sido a receita para a resolução da síndrome do puer. Presumir que o puer seja basicamente o mesmo que o
filho da grande mãe é confirmar as distorcões patológicas como um estado de ser autêntico. A distorção do puer em
filho é perpetuada pelo arquétipo materno que prefere o mito do herói como modelo para o desenvolvimento do ego,
uma vez que tal modelo retrata o ego como primordial e necessariamente enredado com ela. Nossas principais teorias
psicológicas ocidentais repousam sobre um modelo que mais ou menos declara a dinâmica da psique como derivada da
família e da sociedade, que são o reduto da mãe. A própria psicologia é sua vítima, não somente na sua terapêutica do
desenvolvimento do ego, mas mais fundamentalmente: o espírito da psicologia é deformado pelo materialismo, pelo
literalismo, e por um concepção genética do seu próprio objeto, a psique. A natureza espiritual e o propósito da
psicologia não emergem nunca porque o puer nunca emerge da mãe. Ou emerge ainda ligada por um cordão umbilical:
a psicologia como missão heróica do filho sacerdote, cujo anseio é ou difundir o Si-mesmo (self) através do mundo, ou
tornar-se Si-Mesmo apesar do mundo.

A psicologia como institui Jung, sempre reflete nossa condição psíquica. Uma psicologia que vê mãe em tudo
é um depoimento sobre a psique do psicólogo e não apenas um depoimento baseado na evidência empírica. Para
desenvolver a psique através de seu complexo materno coletivo, a psicologia deve também progredir em sua auto-
reflexão, de modo que seu objeto, a alma, não seja mais dominado pelo naturalismo nem pelo materialismo, e que as
metas para essa alma não sejam mais formuladas via arquétipo materno como “crescimento”, “adaptação social”,
“relacionamento humano”, “totalidade natural”, etc...

Nossas idéias sobre a psique afetam a psique. As idéias podem ser envenenadoras ou terapêutica. As idéias
psicológicas são particularmente importantes, uma vez que informam a psique sobre ela mesma, fornecendo um espelho
no qual ela pode ver seus próprios acontecimentos. Os conceitos psicológicos podem agir como transformadores que
trazem a liberação, oferecendo uma nova visão do que até então tinha sido condenado ou mal percebido. Como disse
Jung: “A psicologia inevitávelmente funde-se com o próprio processo psíquico”- e, certamente, como o processo
psíquico move-se, continua a produzir novos aspectos da psicologia. Em nenhum outro campo o estado do agente está
mais envolvido com o objeto do que em psicologia. Operador e material são indistingüíveis; psicologia é Alquimia em
nova roupagem. Quanto mais complicada e diferenciada se torna a vida psíquica, mais anacrônico é continuar com
considerações simplórias em termos de bioquímica, sociologia, psico-dinâmica e genética familiar. Além disso,
considerações psicológicas inadequadas interferem na diferenciação psíquica, tendo um efeito nocivo sobre a alma,. Por
esta razão, entre muitas outras, a psicologia se volta para a mitologia. Considerações mitológicas são as mais abertas,
exploratórias e sugestivamente sutis, ainda que precisas, permitindo à alma a mais ampla imaginação para seus
complexos.

E, no entanto, a mitologia, com toda sua precisão de detalhes, dá lugar a ambigüidades em relação aos
princípios fundamentais, uma vez que as próprias figuras, com os arquétipos, são dei ambigui. Encontramos a figura di
herói, do puer e do filho não tão claramente distintas quanto desejariam nossas mentes monoculares. O mito oferece
possibilidades para a percepção, mas não fatos para se elaborar um caso, a fim de se provar que o puer é isto e o filho
ou herói é aquilo. Provar não é o objetivo do mito; este não visa apresentar um argumento, para explicar, ou demonstrar
uma só linha de pensamento sobre qualquer tema. Além disso, a grande mãe está em todo lugar, porque o permear está
na essência dessa dominante. Logo não é a independência da mãe que separa o puer do filho-herói, mas independência
em nossa concepção do puer.

Talvez a questão - puer ou filho, espírito autêntico ou derivado da mãe - nunca possa ser respondida na forma
de tais alternativas precisas, que também revelam um tipo de consciência que busca respostas claras e cortantes, e
codificaria a psique dentro do pensamento linear do dogma sacerdotal. Horus não tem que escolher entre pai e mãe; ele
é herói, puer e filho, tudo.

Herói, puer e filho pertencem a uma mesma circunstância básica: a juventude. A juventude é portadora do
significado de vir a ser, crescimento autocorretivo, e superar-se a si próprio (ideais), uma vez que suas realidades estão
em status nascendi .Logo, é fundamental o modo como focalizamos essa juventude, quer incarnada numa pessoa
jovem, como uma figura de sonho, ou qualquer potencial jovem da alma, uma vez que essa juventude é a emergência do
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espírito dentro da psique. Assim como há Deuses e heróis jovens, e jovens de gênio, que não podem ser entendidos em
termos da Grande Deusa, há também homens e figuras jovens em nossos sonhos que não podem ser interpretados
através do complexo materno. Apolo, Hermes e Dionisos têm muitas características tipicamente puer que não podem
ser atribuídas à mãe e que implicam uma autêntica consciência puer baseada em sua autenticidade enquanto deuses
plenos e distintos. De modo inverso, há homens jovens que têm complexos maternos verdadeiros no sentido da
psicologia moderna, além do que não apresentam autênticas características puer. Não há fogo, nem espírito, nem meta;
as tendências destrutivas e iconoclastas não estão presentes; a fantasia é fraca, e a ferida não é tão grande assim - traços
característicos do puer (que abordamos em outros capítulos). Assim, o terapeuta ideal da linha arquetípica observaria
cuidadosamente, não chamando de puer o que é um vínculo materno e não chamando de complexo materno o que é
puer. E os mitos poderiam ajudá-lo a perceber as diferenças.

O cosmos em que colocamos a juventude e através do qual tentamos compreendê-la influencia seus modelos
de formação. Da perspectiva da mãe, o jovem associa-se ao feminimo como consorte, é parte integrante de sua
fertilidade e crescimento natural, de seu impulso à cultura heróica e de seu reino da morte. Da perspectiva do senex, o
jovem é renovação, como esperança ou como ameaça, o idêntico e o diverso em uma só figura, uma dinâmica que
requer ordem, uma inocência pedindo conhecimento e uma possibilidade a ser realizada através do tempo e do trabalho.

Embora essas duas visões de juventude descrevam tipos de consciência, não precisamos fazer uma hierarquia
desses tipos, a demonstrar que matriarcado é anterior a patriarcado, ou que filho, herói e puer refletem níveis de
desenvolvimento. Níveis de consciência implicam em progresso. Eles desprendem da mãe e da matéria o heroísmo
espiritual do autodesenvolvimento e o impelem à iluminação. (Freqüentemente a subida e a grande iluminação estão
ainda no terreno dela e são um dom de sua oralidade óptica, sua recompensa por sermos bons e a amarmos). Não é uma
questão do que está certo em termos do que vem primeiro. Não estamos preocupados com as “origens e história da
consciência” ou com as origens do filho, do herói, do puer, ou dos Deuses. A procura das origens tem que conduzir de
volta à mãe, de qualquer maneira, que deve sempre vir “primeiro”, uma vez que a análise genética, ou análise em
termos de origens, é uma obediência a ela, sendo determinada pelo seu tipo de consciência. É suficiente perceber que a
introspecção pode mudar a perspectiva de uma base arquetípica para outra, e que os fenômenos, ora parecendo ser do
filho, podem mover-se para outro lugar e oferecer outro tipo de movimento psicológico.

Ao deixar de lado a noção de que o puer é apenas o filho da grande mãe, podemos também abandonar as
noções anteriores do desenvolvimento do ego. Liberação através da batalha contra uma mãe opressora não é mais o
único caminho. O herói da vontade, que tem desaparecido do drama e da ficção e também da história política, não é
sempre um papel viável para o ego, nem a batalha deve ser o caminho. O dragão exige batalha, e o mito do herói
mostra-nos como proceder. Mas, suponhamos que tivéssemos que nos afastar inteiramente da grande mãe, de Jocasta e
de édipo, e dos heroísmos cegos e exaustivos que tão freqüentemente matam o oposto feminino - não só “fora” no
inimigo, mas também dentro da própria psique heróica.

Se Emerson considerou herói aquele que estava centrado de maneira imóvel (que pode ser invertido para
significar aquele que está tão fixado no centro que perdeu a sua mobilidade), poderíamos definir o herói como aquele
que mutilou a feminilidade. Em compensação, a psicologia analítica tem se concentrado há muito tempo na anima
como terapia para a identificação com o ego (ou com a persona). Mas as noções básicas de anima e o sentimentalismos
terapêutico a seu respeito são por sua vez o resultado dos esforços dessa mesma psicologia para fortalecer o ego. A
anima não teria que ser a portadora de sentimento, feminilidade, alma, imaginação, introversão, sutileza, e o que for, se
o ego não fosse tão vinculado com o mito do herói, tão fixado em seu foco central sobre a “realidade”, “problemas”, e
“escolha moral”.

Suponhamos que não tivéssemos mais que conceber a relação do ego com seu desenvolvimento nem com o
espírito segundo o modelo heróico, realizado através da luta, do manter-se em forma, do confiar no braço direito,
vencendo a escuridão com a iluminação do ego sobre o ID. Será esse o único caminho para a consciência e para a
cultura?

Freud assim definiu a intenção da psicanálise: “...fortalecer o ego, faze-lo mais independente do super ego,
ampliar seu campo de percepção e aumentar sua organização de modo que possa se apropriar de novas porções do ID.
Onde havia ID deve haver Ego. É um trabalho de cultura”. Édipo, herói e rei, determina não só o conteúdo da
psicanálise mas também seu ímpeto, seu heroísmo cultural, de forma que o herói da cultura é o homem completamente
analisado, sublimado, integrado, total consciente. E a análise enquanto meio para atingir este objetivo, torna-se uma
sofrida peregrinação ou um julgamento através da provação do herói. Se Freud tinha razão que o Édipo é a substância
da neurose, então segue-se o corolário de que os atos heróicos de Édipo são a dinâmica da neurose. Heroísmo é então
uma espécie de neurose e o ego heróico é o ego neurótico. Espírito criador e matéria fértil estão nele entrelaçados e em
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batalha para mútua destruição. O desenvolvimento do ego que tem como modelo o herói terá como parte desse modelo
a sombra do mesmo - alienação ao feminino e masculinidade compulsiva - prefigurando o senex amargo e estéril como
resultado do percurso heróico.

A solidão errante de figura como Jalão, Belerofonte, Édipo ( e talvez Orestes, que viveu até os 70 anos )
depois de executadas suas grandes façanhas, assim como seu fracasso pode ser vista de dois modos diferentes. Por um
lado, a solidão errante é temporal, pertencendo ao percurso heróico que desemboca no velho rei exausto.

O herói - ou era ela um puer ? - de Scott Fitzgerald em Tender is The Night decai lentamente, sem destino
como Belerofonte, perambulando por cidades cada vez menores, através das grandes planícies). Mas, por outro lado,
podemos considerar ao mesmo tempo esse traço de comportamento como aspecto senex do puer desde o começo, seu
invariável companheiro.

O herói e o puer parecem tem que caminhar sozinhos (não como Dionisos, às vezes forasteiro solitário, mas
geralmente acompanhado de uma multidão). Sim, essa característica revela de fato algo de renegado, de psicótico, de
esquizóide; no entanto, se for um atributo do senex na figura do puer, a tentativa de socializar o jovem que segue um
puer viola o estilo de sua individuação, assim como a integração da componente senex-Deixe-o só, diz o próprio estilo.
O ímpeto socializador é de novo aquele da mãe, enquanto o espírito na verdade sopra em rajadas, livre, por onde quer,
e muitas vezes onde ninguém pode acompanhá-lo. Para a mãe isso é difícil de agüentar, pois ela está “por natureza” em
qualquer lugar, e não quer nenhuma fase, nenhuma parte seguindo seu próprio curso, desconcertada, fora do alcance.
Assim com o mito pode ser interpretado de duas maneiras: desenrolado numa série de eventos sucessivos, ou
condensado, onde todas as partes estão presentes ao mesmo tempo, também podemos olhar uma vida da mesma forma.
A masculinidade assertiva resulta em falta de objetivo, ou é resultante da falta de objetivo. Devido à proximidade do
puer e do senex, não podemos distinguir o que vem primeiro.

A masculinidade assertiva é suspeitosa. De alguma forma sabemos que deve ser uma reação a uma fixação
feminina. Os níveis míticos da psique confirmam a suspeita porque neles se repete sempre que o herói e o oponente
feminino são inseparáveis. Embora encontrem-se na batalha, poderiam também estar na cama gemendo, porque a
batalha com a mãe é uma espécie de incesto. Quer como amante, quer como inimigo, seu papel é determinado por seu
oposto, sua polaridade, com a mãe. Quando esta determina o papel, então, a despeito do modo como este é exercido,
sua essência é sempre a mesma: filho. E, como Jung diz do heroísmo assertivo: “Infelizmente, no entanto, sua façanha
heróica não tem efeitos duradouros. Sempre o herói deve renovar sua batalha, e sempre sob o símbolo da libertação da
mãe...A mãe é então o daimon que desafia o herói para suas façanhas e coloca em seu caminho a serpente venenosa que
irá atingi-lo”. Na medida em que a psicoterapia é concebida em termos de desenvolvimento do ego, esse
desenvolvimento não será nunca forte o suficiente, e sua tarefa nunca será cumprida. Em vez de sermos terapeutas da
psique, somos terapeutas (servos e devotos) da mãe.

Até mesmo a imitatio Christi - e em especial como é exibida no programa contemporâneo da cristandade em
ação social - sustenta o ego heróico e mantém-no enredado em briga acalorada com a mãe arquetípica. A “Igreja em
Ação” pertence ao mito do herói da cultura, uma absorção hercúlea de Jesus, em que Jesus desaparece dentro dos
modelos arquetípicos mais velhos de Gilgamesh, Shamash e Hércules, perdendo a especial relação do Pai e do Filho
que as próprias palavras de Jesus enfatizam tanto. Além disso, Jesus traz uma espada à maneira heróica, e essa lâmina,
desde o começo da era cristã até agora, mergulha século após século, no corpo do dragão, significando ora isto ora
aquilo, mas a consciência é sempre definida através dessa carnificina. Se no heroísmo cristão tradicional a faca mata o
mal, no pensamento mítico grego a faca é o mal. Será que fomos longe o suficiente quando refletimos sobre nossa
história ocidental de incrível derramamento de sangue somente em termos de agressão e do instinto agressivo em
animais? Isso coloca o mal justamente fora da psique, colocando-a a salvo em algum campo objetivo qualquer.
Vejamos pelo menos uma vez a faca (que os animais não têm) de perto e interiorizemos, psicologizemos a agressão em
termos de nossa definição de consciência : a espada de logos da discriminação nas mãos do ego heróico em sua
missão de limpar o mundo incivilizado da mãe. O que temos tomado por consciência também tem sido determinado
pela mãe. Ser consciente tem significado e continua a significar: matar.

A discriminação é essencial, a espada somente um instrumento secundário. A consciência requer


discriminação, pois como Jung disse, não há consciência sem percepção de diferenças. Mas essa percepção pode usar a
delicadeza dos dedos, a sensibilidade do ouvido, dos olhos e do gosto, um sentimento por valores, tons e imagens. Pode
haver, distinções estéticas puer sem espadas. O puer tem esse talento de artífice em seu repertório - José, o carpinteiro,
Dédalo, o inventor (cf. CW 5, § 515) - esses pais usam a faca com outra finalidade.
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Hércules é uma figura primordial de masculinidade assertiva e o herói da cultura matador, por excelência. Seu
culto era o mais amplamente observado na antigüidade grega, e no entanto, seu nome significa apenas a Glória de Hera.
Embora essa Deusa agisse como sua inimiga antes de seu nascimento, e desde o seu berço, para onde havia serpentes a
fim de matá-lo, é ela que estimula suas façanhas como herói da cultura. Na loucura de Hércules descrita por Eurípedes,
o herói proclama que foi levado para além dos limites da sanidade até os extremos heróicos por Hera, que importunou
sua vida toda. E no entanto, ele é explicitamente seu servidor, indo mesmo em seu auxilio quando esta foi atacada por
Sileno, e recebe como esposa, em recompensa final, Hebe, que não é outra senão a própria Hera em sua forma sedutora,
mais jovem e mais suave.

Hércules é meramente um dos heróis impelidos por essa Grande Deusa a realizar façanhas a serviço de sua
civilização. Hera manda a Esfinge para Édipo; ela ( Juno) é a perseguidora específica de Enéias e está por trás das
explorações de Jasão. Hera, dizem as lendas, gerou o monstro Tião e alimentou a Hidra e o leão de Neméia. Fez parte
das perseguições e da morte de Dioniso. Hera é a “consorte do Inimigo”. Seus próprios filhos são Ares da fúria
guerreira e Hefaisto, o ferreiro, o vulcão.

Estamos tão acostumados a aceitar que o filho da grande mãe apareça como um inútil atraente que colocou
seus testículos no altar da deusa e alimenta o solo desta com seu sangue, e estamos tão acostumados a acreditar que o
modelo heróico conduza para longe da mãe, que perdemos de vista o papel da Grande Deusa no que nos é mais
próximo: nossa formação do ego. O ego adaptado à realidade está sob sua “canga”, um significado de Hera, assim
como as palavras herói e Hera são consideradas por muito estudiosos como cognatas, Quando a vida, externa ou
interna, é concebida como uma peleja para a luz, uma arena de batalhas, êxito versus malogro, resistência versus
colapso, trabalho versus sono, prazer e amor, então somos filhos de Hera. E o ego resultante é o complexo materno
num suporte atlético.

Minha posição aqui é inverter a ordem habitual: o puer é fraco e vinculado à mãe; o herói é forte e livre da
mãe. Se o herói é realmente o filho, e reforça o que a mãe quer, então devemos olhar a fraqueza do puer de uma
maneira diferente.

O filho disfarça-se como o hiperativo herói cultural da civilização, cujas conquistas todas, glórias, triunfos e
espólios de guerra servem em ultima análise à mãe da civilização material. O herói da antigüidade orgulhava-se tanto de
seus troféus. A consciência heróica tem que ter algo para mostrar; o ego tem que ter sua prova concreta, porque tal é a
sua definição da realidade. A batalha tem sido sempre pela pressa e não somente pelo prazer de lutar e pelo orgulho da
vitória. Mas o saque e os espólios logo decoram a cidade e tornam-se acessórios da vida doméstica, e o herói começa a
acumular posses. ( Um objeto votivo de Hera em Paestum era uma pequena domus, casa, de terracota). Com a
domesticação dos saques, o aventureiro sem cuidados finalmente se transforma através do casamento, em mimetismo
não o do seu arquétipo mas do da Deusa, isto é, o hieros gamos com Zeus, e, no caso de Hércules e Hebe, um lugar no
mundo de cima do lado dela ( Hércules era casado ou consorte de Hera “desde o começo”, antes de Zeus, de forma que
Hebe é o denouement que fecha o círculo da lenda. O herói e o puer diferem consideravelmente, uma vez que as
explorações do primeiro mostram uma preponderância de virtudes civilizadoras, a saber: Hércules, Jasão e Teseu. A
tarefa do puer é mais uma odisséia do espírito, um vagar que jamais traz de volta para casa, em nenhum lar ou cidade.
(Novamente devemos antecipar aqui nossa exploração sobre a perambulação e o tema da saudade na psicologia do
puer, uma vez que pertence a outro capítulo).

Estas considerações sobre a relação herói/mãe devem levar em conta o aspecto mais essencial do herói: a
morte. Referir-se a qualquer elemento na psicologia do herói como “essencial” é sempre objeto de contra-argumentos.
Além do mais, o herói tem sido o enfoque principal dos historiadores da religião grega e dos psicólogos, cujos escritos
sobre esse tema atingem proporções heróicas, como se o mesmo impulsionasse seu estudioso para esforços
espetaculares de maestria. Entre os principais temas que caracterizam o herói, analisados e resumidos por Brelich,
Farnell, Fontenrose, Kerényi, Nock, Campbell, Harding, Neumann e Rohein ( estender a lista também nos levaria além,
rumo ao heroísmo), podemos apontar o culto do túmulo como foque central do mito do herói. É claro que os
extraordinários poderes mânticos e curativos do herói, sua virtude e sua força, suas façanhas culturais, seu papel como
modelo na iniciação e como fundador de cultos, cidades, clãs e famílias não poderiam ser superestimados, mas a
maioria dos escritores concorda que o culto do herói está vinculado a um local distinto que é indicado por uma colina
que é um túmulo.

Quando uma referência é feita a um herói da antigüidade, é sempre uma evocação de algo morto; não há heróis
presentes, não há heróis agora, vivendo no tempo atual. Para ser um herói ( um herói às avessas, como o anti-herói),
deve-se estar “morto”. O herói está morto porque é um poder imaginário, uma fantasia. Ele está presente não na
atualidade mas como uma projeção psíquica através de seu culto, em seu túmulo local onde está enterrado, e somente
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“após” os eventos e através de suas lendas. O próprio herói foi transladado para as Ilhas dos Bem Aventurados,
removido, distante, fora. O herói é um espírito do além, que fornece uma fantasia para o que o complexo puder consigo
mesmo. Ele nos dá um modelo para aquele processo peculiar sobre o qual a nossa civilização repousa: dissociação. Nós
referenciamos o impulso do complexo e rejeitamos sua inércia. A esta chamamos de inconsciente, regressivo, dragão,
mãe; ao impulso chamamos de consciência. Todos nós, cujas “famílias” e “cidades” são fundadas sobre a consciência
heróica e cuja iniciação é modelada pelo herói, somos assombrados pelo espírito do além que toma o elemento básico
da vida psíquica, o complexo, apenas por um lado, a direção ascendente negentrópica, chamando o movimento
dinâmico que libera, de “ego”. Desta maneira, o complexo civiliza-se através de realizações, empurrando sua inércia
para dentro do inconsciente. O heróico apresenta-se como um espírito ascendente, ativo em sua procura e transcendente
à vida ( morto ) , e situado nas Ilhas do Bem-Aventurados. Essas características são também (como expomos em outros
capítulos) temas do puer. Por esta razão, este último é facilmente apanhado pelo heroísmo. Mas há uma diferença, e
essa diferença pode ser concebida em relação `a morte o elemento que consideramos central à idéia do herói.

O filho, o herói e o puer podem todos morrer a mesma morte. Mas eu arriscaria uma sugestão sobre as
diferenças: a “morte “ do filho é para a mãe ( por exemplo Atis); a “morte “ do herói por causa da mãe ( Héracles e
Hera, Baldur e Frigg, Aquiles e Tétis, Hipólito e Fedra-Afrodite), ou a mãe ajuda o herói em seu translado para a
estatura heróica, constituindo-se sua portadora (para as Ilhas dos Bem-Aventurados) ou mantendo-o sagrado depois da
morte, isto é, mantendo a morte mais sagrada do que a vida (cf. Os Jardins de Adonis, os Bosques Sagrados de
Hipólito, Orfeu enterrado pela Musas, suas Tias); a morte do puer é independente da mãe. Essas distinções são
novamente uma atitude, uma perspectiva, e não um “fato” mítico, e indicam o lugar que a morte não um “fato” mítico, e
indicam o lugar que a morte ocupa na psique do filho, do herói e do puer. Onde a morte significa sacrifício (filho) ou
vitória (herói) - “morte, onde está o seu aguilhão” - a mãe está exercendo um papel significativo. A morte ligada ao
senex, sua sobrevivência, sua depressão, sua introspecção penetrante, apresenta outra imagem e outra emoção.

O filho e a grande mãe se metamorfoseiam em herói e serpente - ou não? Jung diz que o herói e o dragão que
ele vence são irmãos ou mesmo um só; o homem que tem poder sobre o demoníaco é ele mesmo tocado pelo
demoníaco. Harrison afirma que a serpente, como daimon, é o sósia do herói; o herói primitivo tem forma de serpente,
e mesmo os mais altos deuses ( Ares, Apolo, Hermes, Zeus) têm seu aspecto de serpente, como também Deméter e
Atenas. Se Herói e serpente são um só, então a batalha faz o herói voltar-se contra a sua própria natureza. Mas contra
quem se volta ele e como é que o sósia animal de sua própria estrutura, esse daimon, dragão ou serpente se torna “a
mãe?” O enfoque psicológico desse motivo é geralmente em termos de desenvolvimento. “Desenvolvimento” tem sido
a chave mestra para todos os enigmas não desvendados na psicologia moderna, assim como “fertilidade” outrora
desvendou o que não entendíamos em mitologia e arqueologia. O suposto desenvolvimento da consciência vai de um
nível obscuro até um mais claro, de matéria para espírito, de natureza para cultura. Esse “desenvolvimento da
consciência”, supõe-se que ocorre historicamente em civilizações, filogeneticamente nas espécies e nas raças, e
ontogeneticamente em cada indivíduo, da vinculação materna à autoconfiança paterna. O herói contra a serpente é
então o paradigma da estrutura central de nossa consciência pessoal e coletiva.

Se fôssemos entrevistados por um astrólogo aborígene da Austrália sobre nosso “sonho”, nossos “Deuses” e
nossa “cosmologia”, esta seria a história que contaríamos. Falaríamos da batalha de cada dia do Ego contra a
Depressão, a Sedução e a Confusão, para manter o mundo a salvo do Caos, do Mal e da Regressão, que o envolvem
como uma opressiva Serpente Devoradora. Isso dará idéia ao nosso interlocutor de nossas peculiaridades
irracionalidades: porque limpamos as ruas, porque pagamos taxas, porque vamos à escola e para a guerra - tudo com
uma energia ritualística compulsiva, como se para manter a serpente acuada. Esta é a nossa verdadeira cosmologia; para
o Ego, que muda o curso dos rios e voa até a Lua, que não age impulsionados pela fome ou pelos deuses ou por
perseguições tribais, como o pesquisador aborígene poderia imaginar em sua mente selvagem, tão inerte e tão
preguiçosa, vinculada ao Uroboros maternal, como seu “ego fraco”. Não; o ativismo excessivo de nossa civilização é
para afastar a noite da Serpente, precisando para isso uma simples ingenuidade monoteística, um dinamismo ciclópico
de todos os deuses que Ela e o Ego dividem entre si num banquete ocidental que dura três mil anos e talvez esteja
chegando agora ao seu final indigesto, na medida em que o Ego enfraquece no que chamamos de “neurose” e os Deuses
engolidos movem-se de novo na escuridão imaginária da sombra do go e do ventre da Serpente. Ego inconsciente,
Herói e Serpente, Filho e Mãe, sua batalha, sua cama e seu banquete - este é o mito sustentador que devemos contar
para explicar nossos estranhos modos de ser: por que estamos sempre em guerra, por que temos devorado o mundo, por
que temos tão pouco poder imaginativo, por que temos um só Deus e Ele está tão longe.

Serpente e dragão não são idênticos. A serpente é parte da natureza e representa bem a existência instintiva,
especialmente nos movimentos de difícil apreensão da libido introvertida. Mas o dragão, como apontamos acima, não
existe na natureza externa. É um instinto de fantasia, ou o instinto da fantasia, que o herói mata, tornando-se então o
ego simplista da vontade do poder. Se a serpente é o daimon da psique instintiva, o dragão, que lança fogo pela boca e
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pelos olhos, que brilha em cores e controla as águas, que vive debaixo do nosso mundo diário, mas que poderia também
com suas asas habitar o céu, é o daimon de nossa psique imaginativa. A espada masculina da razão, nas mãos
masculinas da vontade, mata a serpente e o dragão, que são ambos instinto e imaginação, em combate diário em que o
ego encena nosso mito central.

Sem dúvida o dragão tem associações lunares; e a serpente tem conotações femininas nos materiais
mitológicos e psicológicos, podendo ser encontrada em nossa cultura associada à Grande Deusa. Mas também pode se
achar junto de heróis, reis e deuses. É fortemente sexual, fálica mesmo, e no entanto transcende ao gênero masculino.
Aparece na relegião do homem primordial (Adão também tem sua serpente). Assim como a natureza, o instinto, a libido
ou o mercurius da alquimia - todos representados por ela - a serpente é uma forma primordial de vida, ou vida em sua
primordialidade, Ur. A serpente é a própria primordialidade, que pode transformar em qualquer coisa, de modo que
podemos experimentá-la na sexualidade, projetá-la para trás no tempo, como o fantasma de nossos ancestrais, visualizá-
la sobre a terra ou debaixo dela, ouvir sua sabedoria e temer sua morte. É um poder, uma “numinosidade”, uma
primordialidade da religião. Seus significados renovam-se com sua pele e descamam quando tentamos retê-los. ( As
várias cabeças do dragão dizem que não podemos confrontá-lo com uma só idéia ). O fluxo escorregadio de
significados faz com que a Grande Deusa e o Daimon se confundam, percam suas diferenças de modo que através da
serpente (Hera enviando as serpentes para Hércules bebê) a mãe chega ao puer e fá-lo cair no heroísmo. Ela o tenta
para uma luta que o liberte dela. Ao sucumbir ao desafio, ele é libertado de seu próprio daimon. Como Beowulf, morre
quando mata o dragão. A luta com o dragão é sua desgraça.

Na mistura das três componentes - homem, mãe, serpente - esta última perde a vida, o homem perde sua
serpente, mas a mãe tem seu herói. Isso deixa-os sem sabedoria, sem profundidade ctônica, sem imaginação vital, ou
consciência fálica, um herói solar a unilateral para uma civilização governada pela mãe ou pelo senex, cujas serpentes
foram para os esgotos. Perdendo a consciência ctônica, que significa sua raíz daimon psicóide aprofundando-se até os
ancestrais no Hades, perde sua raiz na morte, tornando-se a verdadeira vítima da “Batalha pela Libertação”, e pronto
para Hebe. Uma vez que o trajeto heróico para o espírito vai contra a serpente , constitui-se secretamente em
autodestruição.

Ao voltar-se contra a serpente, a consciência heróica também tende a perder os outros animais do mundo
materno, especialmente a vaca da natureza. Com isso vai-se o calor, o focinho e os olhos, a ruminação e a vagareza, as
pastagens para a alma, Hera como Hathor, o sagrado da vida e seu ritmo. Na luta por independência e auto-afirmação
ele não pode mais voltar ao estábulo sem temer a decomposição (Hércules limpa os estábulos). Logo, a consciência
heróica não pode conseguir nada, como contam os contos de fada, sem o animal auxiliador. Uma consciência que não
se tenha definido recusando o animal em primeiro lugar, jamais estaria nessa categoria, de peso do auxílio animal, de
sua segurança e seu conhecimento da sobrevivência.

Além disso, a consciência heróica constela seu oposto fundamental como feminino e inimigo. As grandes
figuras sobre cujos modelos construímos nossa força do ego - Édipo e Hércules, Aquiles, Hipólito e Orfeu - opuseram-
se ao feminino de diversas maneiras e foram suas vítimas. Não poderíamos tentar de um outro jeito? Não poderíamos
nos tornar conscientes sem essa luta? O desenvolvimento do ego tem sido há tanto tempo concebido através do
heroísmo da agressão violenta, misoginia paranóide, egísmo e distância do sentimento, tão típicos do filho da grande
mãe, que negligenciamos outros caminhos abertos pelo puer.

Deve o feminino continuar sendo o inimigo primordial, engrandecido como magna mater à qual sucumbimos
ou veneramos, e combatemos, e que guardadas as diferenças, nunca colocamos nosso plano? Sempre que somos filhos
desse Grande Feminino, o feminino é experimentado como “grande”. A mulher é idealizada. É investida do divino
poder de salvar ou destruir. Procuramos a mulher maravilhosa que será nossa salvação, o que então constela, o outro
lado, traição e destruição. Toda idealização do feminino é apenas ocasião propiciatória para seus outros componentes:
as Amazonas, as Fúrias, as Graças, as Sereias, as Hárpias, Circe, Fedra, Medéia, Baubo, Perséfone, Hécate, Górgona e
Medusa. A expectativa de ser salvo por uma mulher caminho de mãos dadas com o medo de ser destruído por uma
mulher.

Aqui chegamos a mais uma diferença entre o puer e o filho heróico. O engrandecimento do complexo materno
é sinal seguro de que estamos escolhendo o papel heróico, cujo propósito é menos espírito é menos espírito e psique do
que o ego tradicional, seu fortalecimento e seu desenvolvimento. Os dramas épicos em que o herói é incumbido de
tarefas impossíveis, com armas milagrosas, inimigos esmagadores, e onde a mãe é um dragão, bruxa ou Deusa, podem
muito bem fazer um homem esquecer a mãe comum, no caso. Mas em muitas lendas a mãe é meramente humana, ou
uma ninfa modesta, lembrando à cosciência a sua banalidade. Atendo-nos a essa mãe humana pessoa e comum, com
suas falhas patológicas específicas e suas graças únicas, podemos manter atrás de nós, como suporte, o sentido de
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banalidade humana dado pelos limites de nosso complexo materno real, o que ela passa para nós, como descendemos
dela e como lhe somos gratos. Ela é nossa história e é do seu simples regaço que caímos (casus) como um caso.
Mantendo-a em justa proporção, podemos reservar a magnificatio para o próprio arquétipo do puer, seu narcisismo e
suas elevadas ambições de criar. A hybris do herói aparece de sua identidade oculta com a mãe; a superbia (soberba do
puer reflete sua arrogante convicção de que só tem haver com o pai, um filho do espírito que carrega sua mensagem .
(Mas a respeito desse seu necessário ascensionismo não podemos falar aquí, porque pertence a um capítulo separado).

Libertado dessas místicas do filho-grande Mãe, o feminino poderia revelar outras individualidades, como na
Odisséia. Nesta, o feminino exerce vários papéis: Deusa (Atenas ), Amante (Calipso), Devoradora (Cila e Caribde),
Enfeitiçadora ( Circe ), Mãe-Filha (Arete Nausicaa ), Mãe Pessoal ( Anticléia ), Salvadora (Ino ), Sedutoras (Sereias),
Ama (Euricléia), e Esposa ( Penélope ). Com cada uma o homem encontra maneiras individuais de chegar a um acordo,
amar e ser favorecido. Aquí, o feminino não ameaça a aproximação final entre pai e filho. (Mas Ulisses, como a figura
do rei na Alquimía, é ele mesmo senex-et-puer). O feminino na Odisséia trabalha do começo ao fim para a reunião da
casa dividida de Ítaca, dando-nos um modelo pelo qual as figuras femininas podem fazer combinar o puer e o senex,
mais do dividi-los ainda mais, através da inclinação da Grande Mãe pelo heroísmo, que a engrandece como principal
preocupação de um homem, literalizando sua realidade psíquica, obscurecendo a sua visão puer, e distraindo-o de suas
necessidade puer.

Se pudesse sintetizar num só principal pensamento as várias idéias que abordei, seria o seguinte. Jung faz uma
clara distinção do papél do arquétipo materno como regressivo e devorador de um lado, e matriz criadora de outro.
Coloca essa dualidade dentro de uma fantasia de outra dualidade - a primeira e a segunda metade da vida. Para a
consciência jovem, “entrar dentro da mãe” é um incesto fatal; Para a consciência velha, é o caminho da renovação e até
mesmo o que chama de caminho de individuação. Não precisamos tomar essa importante idéia de Jung dentro do
contexto de sua apresentação. Primeira e segunda metades, jovem e velho, são uma outra maneira de colocar a
dualidade, puer- senex, que são estruturas da consciência sempre válidas, não sómente quando divididas entre a
primeira e segunda metades da vida. Como nossa cultura parece estar agora num período em que seu ego heróico
atingiu o apogeu, em que a dominante senex, e portanto também, seu complemento puer adquiriu extrema relevância a
própria consciência coleitva está no que Jung chamaria “a segunda metade”. Para qualquer pessoa nessa cultura e nesse
tempo, a batalha com a mãe e a posição heróica das primeiras metades só pode ser Arquetípicamente errada, a despeito
da idade da pessoa. Essa posição é anacrônica no verdadeiro sentido de estar fora de sintonia com o tempo, e toda a
vitória sobre a mãe é uma derrota face à tarefa fundamental da cultura atual: tornar-se consciente do senex em todo o
seu significado Arquetípico e a ele relacionar a fenomenologia do puer.

Notas e referências.

As principais observações de Jung sobre o puer aeternus em relação ao complexo materno estão em CW 5, § 393: “A
encantadora aparição do puer aeternus é infelizmente uma forma de ilusão. Na realidade ele é um parasita da mãe, uma
criatura de sua imaginação, que só vive quando enraizado no corpo materno” Cf.: CW 5,392, 394, 526 (mas também
passim no volume sobre o filho da Grande Mãe e o Herói); CW 9, i, “Psichological Aspectis of the Mother Archetype”,
“The Psychology of the Child Archetype”, “On the Psychology of the Trickster Figure” são importantes para a psicolgia
do puer em relação à mãe e contraposição à ela; CW 16, § 336 (“Vida Provisória”). CW 13, “The Spirit Mercurius” é
oportuno para uma fenomenologia do puer, independente do complexo materno; para casos clássicos do complexo
materno no filho, ver por exemplo, CW 7, §§ 167 e seguintes segs. e também, de J. Jacobi, “Symbols In An Individual
Analysis” em Man and His Symbols, Ed. C. G. Jung (London: Audus, pág. 272 e segs. Este último caso poderia
parecer bastante diferente se fosse focalizado através da constelação puer-senex.

Seguindo a mesma concepção inicial (pré-Alquímica) de Jung sobre o Puer temos, de M. L. Von Franz: “Com o
conceito do eterno joven, puer aeternus, nós em psicologia descrevemos uma fórmula definida de neurose no homen
que se distingue pela fixação ( Steckenbleiben ) na adolescência como resultado de um vínculo materno
demasiadamente forte. As principais característica são, em consequência, aquelas correspondentes às elaborações de
C.G.Jung em seu ensaio sobre o complexo materno...” em seu Über religiöse Hintergrunde des Puer-Aeternus-Problems
em The Archetype, ed. A. Guggenbühl-Craig (Basel: Karger, 1964), Pag. 141 (trad. Do autor); e J.L.Henderson,
Thresholts of Initiation ( Middletown: Wesleyan Univ. Press, 1967) pag. 24: “...podemos conjecturar que quando as
coisas vão mal com o Arquétipo do puer aeternus, é porque a mãe é muito solicitadora ou muito rejeitadora, frustrando
assim o jovem em sua orientação normal para o princípio feminino enquanto função da anima, ou porque o jovem, por
alguma outra razão cai numa atitude passivo-dependente com respeito à mãe ou seu substituto). Na mesma linha:
E.Neumann e N.E.Harding, cujas obras são citadas abaixo, nos lugares relevantes, e também G.F.Heyer, “Die Grosse
Mutter Im Seelenleben des Heutigen Menschen”, Eranos-Jahrbuch VI (1938) (Zurich: Rhein, 1939), págs. 454, 474.
18

Para sugestões de uma nova concepção do puer, agora em conexão com Artemis (em vez de com a mãe): R. Malamud,
“The Amazon Problem”, Spring 197l ( N.Y. e Zurich: Spring Publi., 197l), págs. 9 a 19.

Nem todas as figuras de homens jovens seguem o mesmo padrão. Por exemplo Hércules é ameaçado por Hera
e queixa-se mesmo de ter ficado louco por causa dela, enquanto Ícaro está totalmente com o pai; Ganimedes e Jacinto
são amados por figuras masculinas, Zeus e Apolo. A atuação das mães no caso de Aquiles, Teseu e Perseu é mais
protetora do que erótica, e da mesma forma, no caso do Nórdico Baldur, de Moisés, Jacó e Jesus. Nesses últimos
exemplos em que a proteção e o incentivo ao filho são as preocupações da mãe, o emaranhamento através da libido
incestuosa não é o tema principal. Cada mitologema conta uma história. As diferenças são mais importantes para um
destino individual que as generalizações sobre o “complexo materno”.

Há também diferenças entre os heróis. Vário tipos têm sido classificados: Herói messiânico, herói da cultura,
mártir sofredor, herói que usa a esperteza, etc.. Assim como a palavra herói da mitologia tornou-se a palavra ego da
psicologia, do mesmo modo ha uma variedade de estílos heróicos, como uma variedade de estilos do ego. O que é
característico em ambos é a importância central da ação. A ação pode ser expressa por façanhas, pela importância da
honra e da reputação, por uma tragetória fora do comum, ou, ao inverso, por um desolado e importante sofrimento. Para
a ação, a específica atitude psicológica da literalização é necessária. Ambos, herói e ego, não importa a variedade de
estilos e as diferenças entre, digamos, o herói-Vênus, o herói-Marte e o herói-Apolo, requerem a literalização do
desafio. A donzela deve ser conquistada, o dragão vencido, a cultura produzida, a morte realizada. O literalismo, na
minha opinião, é um traço mais fundamental na psicologia do herói do que a compulsão para agir.

Cf. Minha discusão sobre esse tema em The Myth of Analysis (Evanston: Northwestern Univ.Press 1972), pág. 169 a
190 e em linhas “Terry Lectures” em Yale (1972), no prelo (New York : Harper and Row), § “The Imaginal Ego”.

CW 16, § 181.

Sobre o pai (e o senex) como significado e ordem, vide meu “On Senex Consciousness”, Spring 1970 e o artigo de
A.Vitale no presente Volume.

“Estes são os três aspectos essenciais da mãe: sua bondade protetora e nutridora, sua emocionalidade orgiástica, e suas
profundezas Estigianas”, e, como Jung continua, não “conhecimento discriminativo” (CW 9, i, § 158).

CW 5 § 199.

R.B. Onians, Origins of European Thought, (Cambridge: Univ. Press, 1954), págs 349 a 395).

Cf. J. Fontenrouse, Python: A Study of Delphic Miyth (Berkeley: Univ. Calif. Press 1959), pag 582, para referencias ao
tema Vênus-Sereia, relevante para a contaminação da mãe e da anima.

“As cerimônias romanas em honra de Attis durante o mês de março eram divididas em duas partes principais: tristia,
comemoração da paixão e morte de Attis, e Hilaria, festividades de seus seguidores, que acreditavam que o Deus vem à
vida de novo, depois de um longo sono invernal. “M.J. Vermaseren, The Legend of Attis in Greek and Roman Art.
(Leiden, 1966), pag 39. Attis é outro Deus que aparece e desaparece, cujo retorno cíclico tem sido interceptado como o
rítmo vegetativo e Hilaria e Tristia, em última análise como rituais de fertilidade. Substituindo “libido” por
“fertilidade” podemos transpor o modelo todo do nível externo e natural para o interno e psicológico. Então Tristia e
Hilaria se referem ao rítmo da libido, as descontinuidades (idas e vindas) do impulso puer a cujo aparecimento nos
alegramos e sentimos a primavera e em cuja ausência há a tristeza do inverno, que Attis também representava (i. é, o
seu lado senex). Estas estações e esta fertilidade não estão sómente “fora” na Natureza, mas “dentro”, experimentadas
como o ciclo natural da energia psíquica.

É curioso como o arquétipo materno tomou posse de àreas que antes pertenciam a outros arquétipos. A terra, na
mitologia Egípcia antiga, era Gebe, um deus (não uma deusa). O mar, tomado tão estereotipadamente na interpretação
analítica dos sonhos como um “símbolo” (e partir daí “signo”) do inconsciente coletivo como matriz e portanto como o
elemento materno, era antigamente a província do Pai Oceâno, que era a fonte de todas as coisas (Homero) e os rios da
vida eram Deuses Paternos, por ex. Aquelous, Poseidon (Helikon) Cf. K. Kerényi, “Man and Mask” in Spiritual
Disciplines, Papers from the Eranos Yearbooks (London: Routledge, 1961), pag 158.
19

Na obra de Jung, em inglês, Collected Works, o único arquétipo que recebe consistentemente letras maiúsculas é a
Grande Mãe, uma honra não oferecida ao velho sábio, anima, animus, nem ao próprio Si-mesmo (Self); os “deuses” e
“deusas” também são escritos em minúsculas.

Cw 8, §§ 211, 213.

O melhor tratamento moderno sobre Dionisos em inglês é o de W.F.Otto, Dionysus: Myth and Cult, Trad. De R.Palmer
(Bloomington: Indiana Univ., Press 1965). Indiquei referências suplementares sobre Dionisos em meu The Myth of
Analysis, pags 258 a 281 e estudei um modo como Jung aborda essa figura em meu “Dionysus in Jung’s writings”,
Spring 1972 (New York e Zurich: Spring Publi 1972) pags 191 a 205.

E. Neumann, cuja linha mestra de pensamento (ou sentimento?) está dentro do arquétipo materno, certamente coloca
Dionisos no séquito do mesmo. Ele se refere ao quadro de Leonardo sobre Baco (pag 70, vide nota 16 abaixo para
referência) como um retrado puer aeternus: “o modo relaxado e indolente do deus hermafrodita descansar no campo
está totalmente de acordo com a antiga concepção de Dionisos... Leonardo, incoscientemente sem dúvida, retratou uma
figura central do mundo do mistério matriarcal, intimamente ligada à deusa abutre. Pois Dionisos é o deus do mistério
da existência feminina.” E assim continua por vários parágrafos; sua tese é de que Dionisos é outro “filho luminoso da
Grande Mãe”. Eu não desiludiria o leitor da concepção de Neumann: qualquer arquétipo pode ser considerado a partir
de qualquer perspectiva, de modo que os eventos de Dionisos podem bem ser vistos como matriarcais. Apenas
desiludiria o leitor do argumento de Neumann como se fosse baseado da evidência. O abutre não tem nada a ver nem
com Dionisos nem com o puer, o Egito é apenas uma das muitas áreas “estrangeiras” e “limítrofes” das quais dizem
que Dionisos e seu culto brotaram. Dionisos não chegou “tarde à Grécia”( Neumann) pois já aparece mesmo na
primitiva cultura cretense. Afirmações míticas sobre os arquétipos têm de qualquer maneira que ser lidas mítica e
psicologicamente e não histórica e literalmente.

Há uma diferença significativa entre Jung e Neumann com respeito à natureza puer de Dionisos. Embora em certa
ocasião Jung coloque Dionisos (Iaco/Zagreu) como puer aeternus dentro do culto dos mistérios de Elêusis, e assim
dentro do arquétipo materno (CW 5, § 526-27), ele observou já em 1911 (CW 5, § 184): “A dupla figura de Dionisos
adulto e criança”, falando dele no contexto do “gigante e anão”, “grande e pequeno”, “pai e filho”. Assim, Jung viu o
que Neumann não viu: Dionisos é ele mesmo um senex-et-puer, e tanto pode ser observado a partir dessa perspectiva,
como da perspectiva da mãe.

Cf.M.P.Nilsson, “The Dionysiac Mysteries of the Hellenistic and Roman Age”. Skkrift. Utgv. Svennnska Instit. Athen 8,
V, (Lund, 1957), pág. 111.

S.Freud, “Leonardo da Vinci and a Memory of his Childhood”, Stand. Ed. XI; E.Neumann, “Leonardo da Vinci and the
Mother Archetype”em seu Art and the Creative Unconscious, trad. R. Manheim (New York: Pantheon Bollingen,
1959).

Neumann, op.cit., pág.14: “Contra o pano de fundo das relações arquétipas, o pássaro da fantasia de infância,
considerado em sua unidade criativa “Urobórica” de seio da mãe e falo, do pai, é simbolicamente um abutre, mesmo
que Leonardo o tenha chamado de “Nibio”... Por essa razão estamos plenamente justificados ao retermos o termo
“abutre”, que Freud escolheu “por engano”, porque foi através desse próprio “erro” que sua intuição acurada penetrou
no cerne da questão ...” ( i é , “a simbólica eqüação abutre = mãe (pág. 7).

Esse abutre foi visto por Oscar Pfister no quadro de Leonardo de Sant’Ana e a Virgem com Cristo criança, como uma
forma em negativo na roupa azul que envolve e une as figuras. Jung também “viu” um abutre naquele quadro. Numa
carta para Freud (17 de junho de 1910) (traduzida por R.F.C.Hull e mostrada a mim por Wm.McMcGuire que está
editando essas cartas para uma publicação da Princeton University Press), Jung escreve que viu um abutre (Geier em
alemão) num lugar diferente daquele visto por Pfister. O abutre de Jung tem o “bico precisamente na região pública”.

Strachey, que editou as obras de Freud para a Standard Edition, diz que a idéia do abutre oculto deve ser abandonada à
luz do gavião-falcão (Nibio) , que foi o verdadeiro pássaro de Leonardo. Mas Neumann responde a isso dizendo que em
Pfister, Freud e também em Leonardo, “a imagem simbólica da Grande Mãe revelou-se mais forte que a verdadeira
imagem do “gavião” (64 a 66). O poder da imagem arquetípica da Grande Mãe certamente dominou a interpretação
psicanalítica em todos os comentadores, mas isso não estabelece que tenha dominado Leonardo da mesma maneira.
20

Para um esboço mais completo da mobilidade do complexo através de diferentes dominantes arquetípicas e suas
perspectivas, vide The Myth of Analysis, de minha autoria, op. Cit., págs. 40 a 49, onde apresento a noção (e o
complexo) de criatividade em sua manifestação através de sete estruturas arquetípicas diferentes.

H.W.Parke, Greek Oracles (London, 1967), pág. 87.

CW 8, § 223.

CW 8, § 429.

O trabalho clássico de Jung, Symbols of Transformation (CW 5), fornece uma descrição completa do desenvolvimento
da consciência em termos da luta do herói com a mãe. Mais ou menos na mesma linha estão as obras de E.Neumann,
The Origins and History of Consciousness (New York: Pantheon, Bollingen, 1954) esp.págs.44 a 52, e M.E.Harding,
Psychic Energy: Its Source and Goal (New York Pantheon, Bollingen, 1947). É contra esse pano de fundo da literatura
junguiana clássica que deve ser lida a minha crítica ao heroismo.

Freud, “New Introductory Lectures”, Stand. Ed. XXII, pág. 80.

CW 5, § 540.

Sobre as identificações de Cristo com Hércules, vide E.R. Goodenough, Jewish Symbols in the Greco-Roman Period,
vol. 10 (New York: Pantheon, Bollingen, (1964), págs. 122 e 123 com notas, e M. Simon, Hércules et le Christianisme
(Paris, 1955): também G.K. Galinsky, The Herakles Theme, (London, 1972).

K. Kerényi: “O mal na mitologia grega pode ser simbolizado pela faca...”Um homem deseja matar-se e ele é “mal” , e
essa é a natureza do mal”. “The Problem of Evil in Mithology”em Evil (Evanston: Northwestern Univ. Press, 1967)
pág. 15 e seg.

Cf. P. Slater, The Glory of Hera (Boston: Beacon, 197l). O livro apresenta uma resenha das principais figuras míticas
gregas, especialmente os heróis, e os vê todos a partir da sociologia do complexo materno, representado por Hera. Os
deuses e os heróis de que trata são em última análise projeções de diferentes estilos do complexo materno. Sua
concepção não é arquetípica, isto é, ele não aprendeu com Jung que: “... Somos obrigados a inverter nossa seqüência
causal racionalista, e em vez de derivar essas figuras de nossas condições psíquicas, devemos derivar nossas condições
psíquicas dessas figuras.” (CW 13, § 299).

Kerényi, Heroes, op. Cit, pág.193.

Fontenrose, Python, op. Cit., págs. 156 a 260.

Para recentes reflexões sobre a importância psicológica de Ares, vide R. Grinnell “Reflections on the Archetype of
Consciousness”, Spring 1970 (New York e Zurich, 1970), págs. 25 a 28, e E.C.Whitmont, “On Agression”, pág.52 e
segs. No mesmo volume, também R. Malamud, “The Amazon Problem”, Spring 197l, págs. 5-6, 8,15.

Sobre a importância psicológica de Hefaisto, vide M. Stein, “Hephaistos: A Pattern of Introversion”em Spring 1973.

W.K.C.Guthrie, The Greeks and their Gods ( London: Methuen, 1968), pág.70: a Hera de Argos era chamada de
“Deusa da Canga”.

Fontenrose, Python, op.cit., pág. 119, nota 53 . Além disso, sobre o nome de Hércules, vide M.P.Nilsson, The
Mycenean Origin of Greek Mithology (Cambridge, 1932) págs. 189 e segs. Nilsson, no entanto, não considera o fato
psicológico de que os opostos são um só, quando escreve que Herakles é certamente composto de Hera e Kles, mas
acha “forçado e improvável” que Hércules pudesse ser chamado “a fama de Hera”, “quando essa deusa desferiu os mais
severos golpes contra ele e lhe impôs dor, tristeza e trabalho”.

Podemos ler a descrição que se segue do herói à luz dos ideais da psicologia de “força do ego”: “... o herói homérico
amava a batalha, e lutar era sua vida... uma atividade heróica... é concentrada no tipo de ação mais desafiante, a
guerra...” “o herói deve usar suas qualidades superiores para distinguir-se e ganhar aplauso ... ele faz da honra o seu
principal código, e da glória a força motriz e o objetivo de sua existência ... seus ideais são coragem, persistência, força
21

e beleza ... ele conta com sua própria habilidade para fazer o mais amplo uso de seus poderes”. A “perspectiva heróica
acaba com as superstições e tabus primitivos, mostrando que o homem pode fazer coisas surpreendentes por seu próprio
esforço e por sua própria natureza; na verdade, que quase pode ultrapassar sua própria natureza ...” M.Grant, Myths of
the Greeks and Romans ( New York : Mentor Books, 1962), págs. 45 a 47. Essa descrição abarca a consciência heróica
como tal e não apenas suas manifestações extrovertidas. As mesmas atitudes e as mesmas batalhas podem ter lugar no
interior de um consultório quando a atitude heróica luta introvertidamente com “o inconsciente” , tentando erguer-se
acima de sua própria natureza.

J.E.Harrison, Themis ( Cambridge: Univ. Press. 1927), pag.491; Guthrie, The Greeks,, op. Cit. Pág.66n.

A . Brelich, Gli eroi greci (Roma. 1958); L.R. Farnell, Greek, Hero cults and ideas of Immortality (Oxford, 192l);
J.Campbell, The Hero with a Thousand Faces (New York, 1949); M.E.Harding, “The Inner conflict: The Dragon and
Hero” em Psychic Energy (New York, 1947); E. Neumann, The Origins and History of Consciousness ( New York,
1954); G.Roheim, “The Dragon and the Hero”, American Imago 1,2,3, 1940. Essa lista de modo algum pretende ser
completa, a especialmente não se estende pela área da literatura heróica (épica) ou do herói em vários tipos de tradição,
nem refere-se à figura do heróica ( épica ) ou do herói em vários tipos de tradição nem refere-se à figura do herói em
contextos não clássicos, por ex. Contos de fada e folclore nas culturas exóticas etc.. Para um estudo comparativo do
herói na poesia e o estilo heróico, vide a volumosa obra de C.M.Bowra, Heroic Poetry (London: McMillan, 1961 - 2ª
ed.).

Freqüentemente o herói é transladado para as Ilhas dos Bem-Aventurados sem ter “morrido”. Ele simplesmente “sai de
cena”, porque um Deus o favorece, e é removido para o isolamento (Cf. E. Rohde, Psyche, London: Routledge, 8ª
ed.,1925, págs.64-76). Muitas vezes é a mãe que eleva o herói à imortalidade - Faeton por Afrodite, Telégonos por
Circe, Aquiles por Tétis, Memnon por Eos, mas Hércules foi alçado de sua flamejante pira funerária às alturas por
Zeus. As Ilhas dos Bem-Aventurados são governadas por Cronos (o senex), de modo que até nesse mitologema recorre-
se ao motivo da reunião com o senex, sendo a mãe, nesses casos, o desvio (através do heroismo) e depois a ajudante
necessária.

A causa manifesta de Aquiles é Apolo (ou Páris), mas o lugar atingido é seu calcanhar, o lugar que Tétis segurou
enquanto o mergulhava (para torná-lo invulnerável) no rio Estígio. A causa última de sua morte foi o lugar em que ela o
tinha tocado e segurado.

CW 5, § 575,580,593,671; Cf. Harding, op.cit.,págs. 259 e segs. Harding torna o tema do Herói e do Dragão
excessivamente moral, como se estivesse ela própria numa versão cristã daquele mito, falando da afinidade entre dragão
e matador de dragões: “o renegado no homem está intimamente ligado em sua natureza ao aspecto preguiçoso do
dragão, enquanto o elemento heróico e ativo nele se relaciona mais de perto com a energia do dragão. Assim, o ser
humano que conquistou o dragão e assimilou o seu poder, provando o seu sangue ou comendo o seu coração torna-se
um super-homem.” Se o dragão for traduzido como “o inconsciente”, que altas esperanças, que esperanças
nietzscheanas a análise pressagia ao esforçado ego! Se o mesmo for traduzido como “imaginação” ou “vitalidade”, ou
“Mercúrio”, que devastação!

Sobre as formas de serpente assumidas por Deuses e heróis, vide Harrison, Themis, seção “Daimon and Hero”; E.
Kuster, Die Schlange in der Criechischen Kunst und Religion Giessen, 1913); Fontenrose, Pynthon passim.
Artemidorus (Onirocriticus f. 13) diz que “a serpente é símbolo de todos os deuses aos quais é sagrada, por ex. Zeus,
Sabasio, Hélio, Deméter, Core, Hécate, Euculápio e os Heróis”. Sobre Apolo e a Serpente, K. Kerényi, “Apolo-
Epiphanien”, Eranos-Jahrbuch XIII (1945) (Zurich: Rhein, 1946), págs. 11 a 48.

CW 5, Parte 2, Capítulo VI.

Cf. A nota abaixo para detalhes

Cf. W. B.Stanford, Capítulo IV, “Personal Relationships” em seu The Ulysses Theme (Oxford: Blackwell, 1963). Outro
trabalho, numa perspectiva junguiana, veio ao meu conhecimento muito tarde para ser incluído aqui, exceto como uma
citação: P.Zabrishie, Odysseus and the Great Godesses. (Diss) C.G. Jung Institute, Zurich, 1973. Em contraste com
ULISSES examinemos a relação com as figuras femininas em outros heróis gregos. ÉDIPO pertencia à raça dos
Espartanos, “povo do Dragão”, supostamente um matriarcado sem princípio paterno. Ele não reconhece o seu próprio
gerador, e isso é o que torna possível o patricídio: (J.J.Bachofen, Myth, Religion and Mother Right, trad. Por R.
Manheim, Princeton: Princeton Univ. Press, Bolligen, 1967, págs. L80,181). Como ÉDIPO é concebido na linhagem
dos Dragões, é inconcebível sem o complemeto mãe/dragão, primeiro como Esfinge (enviada por Hera, ou sua
22

fantasia), depois como Jocasta. As relações de HÉRCULES com as mulheres foram resumidas por Bachofen (pág.176):
“É característico que Hércules apenas, entre todos os heróis, tenha permanecido nas margens do Argo e censurado seus
amigos por deitarem-se com as Amazonas. ..Em todos os seus mitos ele é o antagonista irreconciliável do matriarcado,
o infatigável lutador contra as Amazonas, o misógino em cujo sacrifício nenhuma mulher toma parte, por cujo nome
nenhuma mulher jura, e que finalmente encontra a morte por causa da roupa envenenada de uma mulher”, AQUILES,
dos heróis gregos em Tróia, o único que era filho de uma Deusa (Kerényi, Heroes, op. Cit. Pág. 347), foi finalmente
vencido por uma flecha de Páris, o favorito de Afrodite e amante de Helena. Embora uma figura inteiramente não
heróica e não militar, Páris das “suaves e gentis maneiras”(R.Bespaloff, On the Iliad, New York: Panheon, Bollingen,
1947, pág. 64) é o que vence AQUILES. Páris é o calcanhar de Aquiles do herói. HIPÓLITO foi morto por vingança de
Afrodite, a quem tinha rejeitado. ORFEU, como Virgílio e Ovídio o descrevem, evitava inteiramente a companhia das
mulheres (depois que perdeu Eurídice - ou será que sua misogínia causou a perda de Eurídice pela mordida da
serpente?) (W.K.C.Guthrie, Orpheus and Greek Religion, London: Methuen, pág. 31). Ele não permitia nenhuma
mulher no seu culto; e assim, “na tradição estabelecida são as mulheres da Trácia que fazem-no sua vítima: (ibid. Pág.
32). Ésquilo, que é a fonte inicial da lenda de sua morte, apresenta as Mênades de Dionisos como suas assassinas. Mas,
como aponta Guthrie (ibid. Pág.33), outras lendas contam diferentes: as próprias mulheres excluídas pela misogínia
órfica vingaram-se. Além disso, as evidências mais antigas em vasos mostram-no não despedaçado(estilo das mênades),
mas transpassado, cortado e apedrejado por mulheres num ataque de fúria feminina, antes que num ritual dionisíaco. De
qualquer modo que o encaremos, a questão permanece: as figuras femininas eram suas inimigas e acabaram com ele. O
filho de Aquiles, NEOPTOLENO(“renovador da guerra”) , também chamado de PIRRO (cabeça vermelha)
(M.Delcourt, Pyrrhos et Pyrrha: Recherches sur les valeurs du feu dans les légends Hélleniques, Bibl. Faculte Philos
er Lettres, Univ. De Liége, Paris, 1965, cap. II) é um dos que mata Priamo de Tróia e o pequeno menino que seria o
continuador de sua linhagem (Eurípedes, Trojan Women). “As pinturas em vasos muitas vezes combinam a morte do
velho rei e a de seu neto nas mãos de Neoptolemo (M.L.Scherrer, The Legends of Troy, London: Phaidon, 1964 pág.
123). Esse renovador do espírito de Aquiles é o assassino de um par senex-puer, e segue o modelo heróico,
encontrando a morte nas mãos de mulheres: quer por instigação das sacerdotisas da Pitia, quer na forma de um Pirro, rei
de Épiro, é morto por uma mulher que lhe arremessa uma telha de cima do telhado. O que vem primeiro: morto por uma
mulher, sua natureza feminina assassina, ou seu assassinato do par senex-puer? Que contraste com Ulisses!CW 5,§ 459.

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