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Prelúdios

Prelúdio 01 – Dominique Fingermann


PSICANALISTAS: “mais um esforço!”[1]
RESPONSABILIDADE DO DISCURSO DO
PSICANALISTA NA ATUALIDADE
“Psicanalista, mais um esforço para ser contemporâneo!”
É comum ouvirmos entre nós: o Discurso do Psicanalista é incompatível com o Discurso do
Capitalista; o sujeito da modernidade que possibilitou o “acontecimento Freud” já não seria
mais condizente com o sujeito do mundo contemporâneo. Os tempos que correm, a
maquinação da ciência com o mercado conspiram para não nos deixar psicanalisar
tranquilamente como outrora.

Uma outra versão desta mesma desconfiança é dizer que a psicanálise, inventada no século XIX,
não combina mais com a temporalidade do século XXI. “Psicanalista, mais um esforço para ser
contemporâneo!”: abram seus círculos fechados e viciosos, ventilem seus velhos conceitos,
renovem seus jargões, avaliem a sua eficácia, democratizem suas instituições, encurtem e
barateiem as vias de formação, facilitem o acesso dos jovens analistas ao “mercado”.

Os problemas cruciais da psicanálise na atualidade consistiriam em uma questão de adequação


ou inadequação do psicanalista ao discurso contemporâneo (ou seja, à modalidade de
tratamento do gozo que o século XXI oferece).

Com mais de vinte anos de distância, Lacan, atento à questão da extensão da psicanálise no
mundo, enuncia quase a mesma sentença imperiosa e zelosa, ligando a permanência do
Discurso Psicanalítico no mundo à presença efetiva dos analistas responsáveis pela posição do
inconsciente.

Em “Função e campo da fala e da linguagem” (1953), Lacan condiciona a permanência da práxis


analítica conectada ao “horizonte da subjetividade da época”, à formação do analista, “o fim da
análise didática”: “longa ascese subjetiva”.[2] Lembramos o rigor de seu imperativo, que almeja
proteger a prática da psicanálise de sua obsolescência: “Que antes renuncie a isso, portanto,
quem não conseguir alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época”.[3]

Em 1974, na “Nota Italiana”, Lacan persevera, e sua injunção assesta precisamente o famoso
“autorizar-se de si mesmo”, que causa tantos mal-entendidos na comunidade analítica a
respeito da orientação lacaniana: “Que ele não se autorize a ser analista, porque nunca terá
tempo de contribuir para o saber sem o que não há chance de que a análise continue a dar
dividendos ao mercado”.[4]Autorizar-se de si mesmo é um acontecimento ético que só pode
acontecer ao cabo de uma demonstração lógica. “Autorizar se de si mesmo” é um ato ímpar,
oriundo da prova da solidão e de singularidade de quem não se apoia mais no saber e na
garantia do Outro mas no saber do inconsciente, que ele precisa fazer valer em cada caso, cada
ocasião que a demanda analisante atualiza. Será desde esta solidão que o psicanalista deve
“contribuir ao saber” da psicanálise e explicitar frente a alguns outros as “razões da sua clínica”.

Psicanalistas, mais um esforço!: “Para que a psicanálise torne-se um ato por vir ainda”[5]
O problema crucial da psicanálise na atualidade é a manutenção de sua posição atópica (a
posição do inconsciente), e a perseverança da subversão topológica de seu laço ao avesso do
bom senso e da moral do mundo.

O problema crucial da psicanálise permanece sendo a formação do analista capaz de inventar a


radicalidade de seu ato ímpar, do qual ele precisa dar prova. A prova de analista é o seu estilo, a
sua distinção, a sua resposta singular, seu sinthoma dirá Lacan, isto é, sua resposta à “não
relação sexual”.

Freud estabeleceu a “regra de três” dessa provação: análise didática, estudo da teoria,
supervisão. Lacan inscreveu a Escola como lugar dessa prova e da garantia da manutenção das
condições do ato. A deformação do analista, subsequente à sua subversão pela sua análise
pessoal, precisa ser garantida pela sua provação permanente; sua maneira de praticar o estudo
da teoria e de se arriscar na supervisão será suficiente se, e somente se, permanecerem
necessárias e não cessarem de se inscrever.

Qual seria a urgência da manutenção da presença da psicanálise no mundo?

A finalidade da experiência da psicanálise, que a vetoriza até seu fim, consiste em proporcionar
uma via de acesso à singularidade, ao “Há Um”, que causa cada Um como ímpar,
diferentemente do universal da castração e das suas incidências particulares.

Daí decorre a urgência e a dimensão eminentemente política da psicanálise, que pode fazer
frente ao mal-estar da civilização da atualidade.

Freud, em seu tempo, não deixou de se preocupar em relação aos cataclismos da humanidade
que assombravam a sua atualidade. Lacan, por sua vez, desde a sua apreensão clínica da
estrutura do humano, pôde infelizmente antecipar o que estava por vir dos acontecimentos da
nossa atualidade.

Não por acaso, no texto princeps que interpela e orienta a formação do analista, ele alerta a
respeito do mal-estar contemporâneo: “Nosso futuro de mercados comuns encontrará seu
equilíbrio numa ampliação cada vez mais dura dos processos de segregação”.[6]

A responsabilidade do Discurso do Psicanalista hoje é a sua consideração fundamental, a


contracorrente do Discurso comum pela angústia e o sintoma, sinal do real e signo da marca
singular da estrutura no sujeito. Quando esta marca não é mais relevante para a ex-sistência de
cada Um, então a universalização acachapante e a segregação dos excluídos do mercado e da
sua globalização colocam em xeque o melhor que pode acontecer quando alguém consegue
pôr em jogo, no jogo da civilização, a causa da sua singularidade.

_______________________________

[1] SADE, Marquês de. (1795). A filosofia na alcova. São Paulo: Illuminuras, 1999, p. 454. “(…)
Franceses, mais um esforço se quereis ser republicanos”.

[2] LACAN, Jacques (1953). “Função e campo da fala e da linguagem” In: Escritos, op. cit., p. 322

[3] Ibid.
[4] LACAN, Jacques (1974). “Nota italiana” In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
2003, p. 314.

[5] LACAN, Jacques (1968). “Introdução de Scilicet” In: Outros escritos, op. cit., p. 293.

[6] LACAN, Jacques (1967). “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola”
In: Outros escritos, op. cit., p. 263. Outras referências sobre o tema podem ser encontradas no
texto Petit discours aux psychiatres (inédito, pronunciado em 11/10/1967).
Prelúdio 02 – Antônio Quinet
Política do sinthoma – uma questão crucial
Neste momento de grande turbulência política no Brasil, pergunta-se frequentemente: qual a
relação do psicanalista com a política? Devem os psicanalistas permanecerem “neutros” no
espaço público para que seus pacientes – os que pensam diferente – não tenham suas análises
abaladas? Não seria este pensamento um tanto contaminado pelo estereótipo do “analista” e
por outros discursos alheios à psicanálise? Mas atenção, Lacan nos deixou a pergunta: “E
quando a psicanálise houver deposto as suas armas diante dos impasses crescentes de nossa
civilização que serão retomadas por quem?” (Lacan, “A psicanálise. Razão de um fracasso”). Não
esperemos chegar a esse ponto, temos as nossas armas – as que nos fornecem a teoria e a
clínica psicanalíticas.

“A intensão no político só pode ser feita ao se reconhecer que é só do gozo que há discurso”
(Lacan, Seminário XVII). A política é uma forma de tratamento do gozo: modalidade de dominar
e regular o gozo. Esse tratamento, no discurso capitalista – que é o falso laço social que
determina os impasses atuais da nossa civilização – é “a espoliação do gozo”. Marx a designa
como a mais-valia, “um memorial do objeto a, mais-gozar”. Assim a mercadoria é fabricada
como objetos a forjados. Daí que a política do discurso capitalista é transformar o mais de gozar
de cada um em mais-valia para o gozo do capitalista.

Para a política do psicanalista, o discurso capitalista como laço social não se opõe ao socialismo
e sim a todos os outros discursos que são os verdadeiros laços. Mas o capital contamina todos
os discursos com seu luxo prometido e seu lixo embutido. O discurso do mestre corrompendo
os governos e os políticos que vendem a representatividade (de quem neles votou) às empresas
(desde o financiamento de campanha até o fim do mandato). O discurso universitário
privatizando a educação, preparando os alunos para o mercado espoliando seu gozo,
colocando o conceito de produtividade à frente da excelência. E ainda contamina o discurso
histérico fazendo do sujeito um consumidor contumaz em seu desejo insatisfeito por uma
melhor aparência e status para melhor se fazer desejar. E pode também contaminar o discurso
do analista que não esteja prevenido e advertido de não se deixar guiar por tudo o que não seja
o próprio do desejo do analista: o de levar cada sujeito à sua pura diferença.

O que a psicanálise nos ensina é que tem algo do gozo que não é coletivizável, na medida em
que é aquilo que cada sujeito tem de mais singular. É o que não faz plural, mas não deixa de
fazer parceria. E isto é uma questão a ser levada em conta na política. A singularidade é o modo
como cada um goza de seu inconsciente, ou seja, seu sinthoma. A política da psicanálise é a
política dosinthoma. E ao levá-la para o mundo e poder se defrontar com a “civilização”, o
analista estará se situando politicamente contra os discursos que fazem obstáculo ao sinthoma
de cada um, que hierarquizam formas de parcerias sexuais, que discriminam determinadas
maneiras de gozar, que excluem fala-a-seres por suas opções, cor, credos, classe social e suas
aspirações e sinthomas. O psicanalista não pode ser preconceituoso e deixar-se contaminar pela
moral, religião ou o discurso da ciência que foraclui o sujeito. A psicanálise é antirracista, pois
admite que o estrangeiro habita o âmago de cada um e o diferente (heteros) é parte de si. Cabe
ao analista fazer entrar a consideração pelo gozo do sinthoma, com sua singularidade, no
discurso de sua polis. E no espaço público e no privado, trazer a política que sua prática ensina.
Prelúdio 03 – Jairo Gerbase
Semantofilia
Há similaridade ou contiguidade entre os significantes do poema de Leminsky, ferve água, frita
ovo, pinga pia. São esses dois aspectos da linguagem de que um usuário da língua lança mão
para fazer um poema.

O mesmo pode-se dizer do chiste que, enquanto formação do inconsciente, é feito de


significantes, como se pode notar em legado-delegado.

Também se pode dizer o mesmo do ato falho. Alguém queria dizer que um parente próximo
adoeceu de Alzheimer, mas errou e disse que adoeceu de Aids. É facilmente notável que houve
aí uma troca de palavras, uma palavra por outra, um significante por outro.

O sonho igualmente é feito de palavras, mesmo que seja pictórico, interessa nele o fato de que
é uma formação de significantes. Alguém sonhou que teve cinco filhas que eram tão
pequeninas que cabiam dentro de um envelope de cartas. Eram filhas-cartas.

Porém, a tarefa inquietante consiste em demonstrar que isso também acontece com o sintoma,
que a angústia é um trocadilho de significantes, que a tristeza é um jogo de palavras, que a
alucinação é uma estrutura sintática.

Alguém me disse que tem medo de entrar sozinha no elevador, que talvez isso se deva a uma
praga de mãe: “atrevida desse jeito, você vai acabar sozinha”. De fato, aos sessenta anos, ela é
uma pessoa só, sem parceiro, sem filhos, segregada e com medo. O medo de elevador traduz a
frase “não posso ficar sozinha”, do mesmo modo que a neuralgia do trigêmeo de Cecília traduz
a frase “foi como uma bofetada no rosto”.

Aristóteles disse que falamos para significar, mas não é isso que acontece quando fazemos um
chiste. E me impressiona que se possa provocar no corpo do outro o afeto do riso com um jogo
de palavras.

O chiste joga com a homonímia, como em alegria-alergia, e afeta o corpo. É propriedade de um


significante afetar um corpo, mas Aristóteles não quer que seja assim, ele quer que o
significante apenas signifique, ele quer demonstrar o princípio da não contradição por meio de
uma série de equivalências tomadas como evidências, ou seja, que falar é dizer algo, dizer algo
é significar algo, significar algo é significar algo que tenha um sentido, e só um, o mesmo para
si e para o outro, enquanto que um sofista, tal como Górgias, diz que há significado nas
palavras, mas há também outra coisa, que é o significante. O significante produz efeitos sobre o
corpo que são afetos.

Freud conseguiu indicar, em cada caso, o significante que afetava o corpo, o significante-
sintoma. Hoje, torna-se mais difícil demonstrar que a angústia, a tristeza e a alucinação são
afetos provocados pelo significante.

Reuni esses três afetos porque são ao mesmo tempo sintomas, estão situados como em uma
superfície unilátera, são afetos-sintomas ou são sintomas-afetos. Eles comparecem quando falta
um significante para nomeá-los. Assim é a teoria da angústia, que diz que a presença do objeto,
que é o mesmo que dizer a presença do real, que é o mesmo que dizer a presença do inefável
provoca a angústia. Por outro lado, a falta do objeto, a perda do objeto provoca a tristeza. A
presença do objeto inefável provoca a angústia, o que hoje se denomina ansiedade. A ausência
do objeto indizível provoca a tristeza, o que hoje se denomina depressão. A perda real do
objeto suscita a perda do objeto real. Faz o objeto a comparecer como o verdadeiro objeto
perdido. E esse objeto, quando está radicalmente perdido, foracluído, aparece desde fora como
uma voz, o que se denomina alucinação.

Por isso reuni os três efeitos da impotência do significante (S1) de dizer ou da impossibilidade
do objeto (a) de se deixar dizer, a angústia, a tristeza e a alucinação. Eles podem ser reunidos a
partir dessa lógica. Eles são sintomas. O que queria mostrar é que eles são trocadilhos como o
chiste. O que é notável na alucinação: “Porca. Eu venho do açougueiro”. Há, nessa estrutura
sintática, prótase e apódose, como no exemplo: “Cocorocó. Galinha do Pelô”, ou
emAugenverdreher, meus olhos estão tortos, quer dizer, fui enganada. É mais fácil notar na
alucinação que o sintoma é feito de significantes.

Quisera poder fazer observar que o mesmo acontece na angústia, na tristeza, na iteração de
uma frase como don’t let me down, que denominamos obsessão, etc.

Um problema crucial da psicanálise na atualidade é, quero crer, a resistência em praticar essa


logologia, e, ao contrário, nossa preferência por umasemantologia, nossa amizade ao sentido,
nossa semantofilia[1].

Lacan propôs que retornássemos aos textos canônicos de Freud. Em Freud, o sentido do
sintoma se situa no complexo paterno. As cinco grandes análises indicam isso. Klein faz o giro
teórico para o cuidado da mãe, para a “falta básica” que deve ser preenchida pelo “primary
love”. A falta do amorprimário é o motivo de todos os problemas morais. Um dos seus alunos
deduz que a mãe deve ser suficientemente boa.

Quando Lacan entra em cena com Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise, lança
seu aforisma “O inconsciente é estruturado como umalinguagem” e, dessa maneira, muda o
paradigma da prática analítica. Daí porque penso que é perda de tempo analisar a relação do
significante com seu referente, o significado. É preciso analisar a relação de um significante (S1)
com um outro significante (S2), relação na qual o sujeito ($) é representado. Os exemplos dessa
relação são inesgotáveis: maca cama, ferve água, pinga pia, Sigmund Signorelli, etc.

A questão é saber se, tal como podemos promover o afeto do riso por intermédio de um
significante, podemos desfazer um sintoma através de um significante. Preciso do sentido do
significante para desfazer o sintoma ou basta a nomeação do significante para diz-solver o
sintoma.

Estamos habituados a pensar que o saber depende do sentido, mas o saber é um significante
colocado na posição dois (S2), então, é o mesmo significante (S1) colocado em outra posição
como o mesmo e o outro significante. O saber é um significante, mas estamos habituados a
tratá-lo como um sentido.

Cassin[2] foi quem explicitou melhor para mim o conceito de decisão do sentido de Aristóteles.
Falar é significar uma coisa unívoca para quem fala e para quem ouve. Querer dizer algo é, para
Aristóteles, a condição para que um homem possa se dizer homem, isto é, um animal dotado de
logos, o que os latinos traduzem por ratio razão e oratio discurso.

Ao contrário, para os antifilósofos ou sofistas há alguma coisa no falar, um logos que não
depende do sentido das palavras, mas do som da voz e das palavras. Daí porque recomendam
não falar para significar, mas falar pelo prazer de falar.
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[1] Cf. THAMER, E. Contra a semantofilia. Stylus 7, p.98-107, 2003.p.98.

[2] CASSIN, B. Jacques le Sophiste Lacan, logos et psychanalyse. Paris: Epel, 2012. p.121.
Prelúdio 04 – Glaucia Nagem
Forum – Cartel e Escola – Passe
O cartel e o passe são a base para a Escola proposta por Lacan. Um problema crucial para a psicanálise é,
desde Freud, como formar um analista e Lacan se ocupou deste problema durante todo o seu ensino. “Me
preocupo por saber se aqueles psicanalistas a quem ensinei algo transmitiram propriamente o que disse”
afirma Lacan na aula do dia 2 de fevereiro de 1966. O que transmitem? De onde se transmite? Essas
perguntas nos apontam para os dispositivos de Lacan.

Sabemos que para a base de sua Escola Lacan propõe dois dispositivos: o cartel e o passe. Seriam esses
dispositivos uma tentativa de tratar o problema da formação dos analistas em sua Escola? A partir desse
mínimo podemos articular as bases do que se construiu como a IF-EPFCL? Podemos pensar na
vizinhança dos fóruns com os cartéis e da IF com o passe?

O infantil nos ensina a cada volta da psicanálise. Nele jogamos com coisas sérias. Quem não lembra do
passa-anel e do telefone-sem-fio? No primeiro temos um jogo que faz circular um anel. No segundo uma
pessoa diz no ouvido da outra uma frase. Esta segunda dirá para a seguinte o que ouviu e assim
sucessivamente até que a última diga como a frase chegou até ela. Este jogo faz circular as palavras, seus
equívocos e a tentativa de escutar o que foi dito e transmitir essa escuta.

Proponho que pensemos o cartel como tendo essa pegada do jogo do passa-anel. O cartel-passa-anel é
esse dispositivo que faz circular o saber um a um. Dobradiça que movimenta, que não permite que se fixe,
que se cristalize, pois ele d’escola. Afinal, sem dobradiça uma porta vira um muro.

Para o passe, pensemos o telefone-sem-fio. Nele o desejo do analista é posto a circular como voz, de um a
um até que uma nomeação seja sacada. O Passe é uma aposta de Lacan para recolher em sua Escola o que
é possível transmitir do desejo do analista em uma análise.

No momento da Cisão de 98 temos mais um passo de aposta: Ao invés de uma Escola com uma sede e
uma direção, apostou-se numa Escola que se constitui de fóruns.

Fóruns-passa-anel. Proposta de um conjunto regulado por dois princípios básicos: a iniciativa e a


solidariedade, reunindo-se de diversas formas. Parece que a ideia de montar uma estrutura onde os fóruns
não são Escola, mas tem a sua Escola, segue a aposta lacaniana onde os dispositivos apontam sempre para
o movimento e para o furo. IF-EPFCL, esse é o nome que demos para esse conjunto que se supõe furado
e que aposta na orientação pela Escola.

Na carta de Princípios, os Fóruns, como os cartéis, são a dobradiça para movimentar os laços da
psicanálise em seus três eixos: “a crítica, a articulação com os outros discursos e a polarização em direção
a uma Escola de Psicanálise”. Porém, a mesma carta nos adverte que “Esses fóruns do Campo Lacaniano
não são Escola, e não outorgam nenhuma garantia analítica”. Como pensar então a formação e a garantia?

Escola-telefone-sem-fio. Da Escola e de seus membros se espera: 1) sustentar “a experiência original” em


que consista uma psicanálise e permitir a formação dos analistas; 2) outorgar a garantia dessa formação
pelo dispositivo do passe e pela habilitação dos analistas “que deram suas provas”; 3) sustentar “a ética da
psicanálise que é a práxis de sua teoria”. Ora, isso nos convoca a refletir que há uma responsabilidade nos
passos dirigidos aos diferentes espaços de nossa organização. Topamos montar nossa estrutura sobre os
princípios propostos por Lacan. Assim, temos passos importantes a serem dados e responsabilidades a
serem assumidas. Da Escola, como do passe, esperamos que algo se transmita da psicanálise. Algo que
sustente a formação e convoque as provas “de analista” em jogo na transmissão apoiada na ética que nos
orienta.

Estamos no mundo. Esperamos que os fóruns cumpram sua função de movimentar a crítica, a articulação
com os outros discursos e a polarização em direção a uma Escola. Esperamos que da Escola seus
membros sigam a responsabilidade ética da transmissão da psicanálise em sua dimensão de formação
contínua e que deem a prova, a cada vez em que a transmissão esteja em jogo.

E os tais problemas cruciais para a psicanálise na atualidade? Afinal, o que está na berlinda a cada vez é a
formação dos psicanalistas. A cada vez a aposta de que os fóruns sigam articulando e movimentando sua
Escola e que a Escola siga seu compromisso ético da transmissão. Ainda hoje, só esse compromisso ético
na formação dos analistas pode tratar os problemas cruciais para a psicanálise.

Glaucia Nagem – psicanalista membro da IF-EPFCL – FCL- São Paulo 


Prelúdio 05 – Christian Ingo Lenz Dunker
Ideias Verdes Incolores Dormem Furiosamente
É com esta frase que Lacan abre o seminário sobre Problemas Crucias da Psicanálise (1964-
1965), ao longo do qual aborda quatro problemas. A estrutura do tratamento psicanalítico
segundo o modelo da Garrafa de Klein. A renovação da teoria do significante à luz da crítica à
concepção de linguagem proposta por Chomsky e segundo o método de Frege para formalizar
a teoria dos números. A concepção de fantasia à luz do caso clínico de Serge Leclaire e seu
sintagma fundamental: “poord´jely”. O problema da produção de simulacros em Platão e sua
relação com a verdade para redefinir o psicanalista como “a presença do sofista em nossa
época”.

Meio século depois disso podemos tomar distância da parcialidade das questões assim
colocadas, mas também de seu valor antecipatório.

A discussão sobre a regularidade de procedimentos que poderiam definir o método


psicanalítico tornou-se candente. Sem que exista alguma comensurabilidade entre as diferentes
experiências a que chamamos psicanálise é possível que nossa idiossincrasia epistemológica nos
transforme em um capítulo de literatura mal feita. Contudo, o caminho do modelo lógico
matemático continua minoritário diante das estratégias operacionalizantes e indutivistas. Nem
nossa escrita de casos nem nossa acumulação de relatos de passe conseguem produzir uma
diferença contável.

Nosso debate com as ciências da linguagem curiosamente inverteu sua direção. Hoje são as
análises de discurso e as teorias da enunciação que se vale dos conceitos de Lacan, enquanto
nossa fundamentação deixou de lado os avanços das novas concepções de linguagem e suas
interessantes consequências para a poética e para as artes.

A teoria do final de análise depende tanto do entendimento que se tenha do conjunto do


tratamento, de seus limites e variedades, quanto da matriz de formalização que se pretenda
extrair da linguagem ou da lógica. Quanto a ela pouco se fez, apesar dos esforços em distinguir
finais de análise, no lado homem, no lado mulher, ou quiçá no transgênero.

Finalmente, quanto ao lugar do psicanalista na cidade, ele nunca foi tão próximo do sofista.
Político ou crítico é em sua extração social que a psicanálise permanece como um discurso de
resistência, não sem reconhecer que toda resistência é de discurso. Quanto a este problema
ainda nos deparamos com os efeitos deletérios da concepção acósmica de mundo, sua
constituição endogâmica, ou em estrutura de condomínio. A expansão da lógica segregativa
não foi capaz de criar uma nova topologia da experiência de mundo. O mito de Édipo foi objeto
de revisão simbólica pela antropologia pós-estrutralista. A identificação ainda remanesce como
problema imaginário entre a massa, o grupo e a classe.

Ou seja, os problemas cruciais da psicanálise hoje, ainda são os de cinquenta anos atrás, mas
com o agravante de que suas respostas envelheceram. Nossos interlocutores mudaram. De
Chomsky emergiram as neurociências, de Frege a filosofia analítica, de Platão os novos filósofos
“lacanianos”. Quanto a Leclaire, o primeiro caso clínico lacaniano, este terá sido apenas o início
de uma série, cuja razão extrema e média harmônica ainda está por ser calculada.

As ideias verdes de Lacan ainda dormem, cada vez mais furiosamente, incolores mas não
indolores.
Prelúdio 06 – Andréa Brunetto
“Apesar de tudo, temos nossas riquezas,
esse vento doce, essa noite de primavera.”
Quando fiz minha primeira viagem à Alemanha, na década passada, fui ao sul, à Baviera. Para
mim, uma viagem tem de ser um pouco histórica, pelo menos. Essas viagens que vou lhes
contar hoje foram muito históricas. No sul da Alemanha, perto de Munique, estava às voltas
com marcos da Segunda Guerra Mundial: O Campo de Concentração de Dachau e o Adlerhorst
– O Ninho da Águia, fortaleza dada de presente a Hitler como presente de cinquenta anos. Para
as pessoas a quem eu perguntava como ir até essa fortaleza, respondiam-me “Para que ir até lá?
Esqueça isso de guerra, vá para Berlim”. Não foi nem uma ou duas vezes. O nazismo ainda é um
assunto muito difícil, os alemães preferem pensar no futuro, e o futuro é Berlim.

Não consegui ir à Fortaleza, mas ao Campo de Concentração de Dachau sim. É considerado um


campo mais ameno, pois para lá foram enviados, além dos judeus, os presos políticos e muitos
padres que no começo do governo de Hitler, se opuseram a ele. Nos pavilhões onde ficavam os
presos, hoje é um museu, com muitas fotos, com recortes de jornais e charges que retratavam
bem o que foi a campanha política que elegeu Hitler. Foi uma aula de história e pude entender
que Hitler não foi um candidato do povo, e sim o preferido dos grandes empresários da
Alemanha da época. Os jornais faziam uma campanha em que era preciso elegê-lo para livrar a
Alemanha do perigo do comunismo, da esquerda. Inúmeras charges de monstros vermelhos
comendo criancinhas saíam nos jornais. O horror que a revolução bolchevista fez com a família
real russa estava representado nas charges com frases como ‘se aconteceu com eles, pode
acontecer com vocês, fora comunistas’. Andei pelo Campo de Concentração, inclusive pela
construção onde foi projetada a Solução Final. Os judeus eram levados como se fossem para
banheiros, com chuveiros no teto, entravam e as portas eram trancadas e dos “chuveiros” saía o
gás. Saí desse museu de horror dizendo a mim mesma chega!, visitar uma coisa como essa
nunca mais. Foram dias para me recuperar do impacto. Sonhava que estava novamente naquele
banheiro/crematório em que os judeus entravam achando que iriam tomar banho.

Na páscoa de 2011 estava na Cracóvia, perto da cidade de Oswiecim, onde foi construída
Auschwitz. Na sexta-feira da paixão, estive em Auschwitz com minhas amigas Alba Abreu Lima e
Carla Storino. No trem que pegamos na Cracóvia, em direcão a Oswiecim, já escutávamos as
várias línguas do mundo. Nos folhetos que guiam o passeio – se é que se pode chamar isso de
passeio – os poloneses contam que os moradores de todas as seis aldeias, Oswiecim e seus
arredores, foram transformados de construtores do campo em prisioneiros dele: 60% eram
judeus e os outros 40% não-judeus – ciganos, presos políticos, e os que divergiram do regime.

Começamos a visita de forma errada, mas isso acabou nos dando uma lógica diferente, ao final.
A visita começaria com Auschwitz I, onde tem o museu e os campos de trabalho, com várias
construções que foram oficinas. Em Auschwitz II- Birkenau ficavam os fornos; em Auschwitz III-
Monowitz também. Enfim, na estação de trem, tomamos um caminho errado e perdemos de
pegar o ônibus que percorria três quilômetros até Auschwitz I. Assim, chegamos direto ao lugar
dos fornos crematórios. Em Birkenau, os fornos crematórios foram destruídos pelos nazistas no
momento final, quando os aliados estavam chegando, tentando esconder os rastros. Mas é
simplesmente horrível chegar lá. Na entrada, os trilhos do trem bifurcam-se em três e as três
direções vão dar na mesma: a morte. No lugar onde foram os crematórios estão as construções
derrubadas, ruínas, pó e destroços da barbárie. A memória do acontecido está por tudo: nas
fotos das pessoas, nas cifras dos números de mortos, nas placas de homenagens.
Mas o pior veio depois, em Auschwitz I, o museu. Entrando lá, de início, os judeus não deviam
achar que morreriam. Acho que essa era uma constatação a posteriori, no dia a dia das
atrocidades. Digo isso porque na entrada tem a placa tão conhecida, pois estava em todos os
campos, “o trabalho liberta”. Nada de questionar, trabalhe; nada de pensar em crise, trabalhe. E
o campo tinha muitas árvores, ainda tem hoje, e muitos blocos, bem construídos, e calçadas e
flores – pelo menos agora, na primavera, não é feio. O horror é quando você entra e vê as fotos,
a história contada, os objetos pessoais, as malas com objetos pessoais dos que nunca voltaram,
os cabelos das mulheres. E artigos de toalete. É uma guerra, as mulheres vão para um campo de
trabalho, mas levam mala com roupas, escovas, batons. Nunca imaginavam o que estava por vir.

Havia dois blocos “especiais”, um deles dedicado aos poloneses. Uma fila de fotos dos
poloneses, fotos de médicos, engenheiros, operários, torneiros, enfim, das profissões mais
simples até as supostamente mais elitizadas, fotos tiradas já nos campos, e o que era comum a
todos: a agonia, o horror de saber que iriam morrer e que ali tinham perdido sua humanidade. E
o outro bloco era dedicado aos experimentos que Mengele fez com as crianças, o horror feito
com as crianças. Nesse não entrei.

Em Birkenau, ao lado das ruínas dos fornos destruídos, tinha várias placas, cada uma em um
idioma para que nunca esqueçamos. Tinha uma em português. Mas foi na placa em francês que
fiz meus questionamentos. Nela tinha uma coroa de flores colocada pelo grupo de teatro de
Aumônerie e pela Escola de Musica de Chateaudun. E, na placa, eles escreveram assim em
frances: tant qu il y aura des etoiles. É a letra de uma música, que teria mais ou menos o sentido
em português: mas haverá estrelas. Por que essa letra exatamente aqui? Por que achar que
diante desse real, dessa barbárie inominável, a contemplação da natureza ameniza a dor? Por
que as estrelas? Transcrevo um trecho da letra da música a seguir: “Vivemos com a barriga vazia
e em uma rua sem fim… morremos de frio e de fome. Mas apesar de tudo temos as nossas
riquezas, esse vento doce, essa noite de primavera. Tudo isso é nosso. Aqui com as estrelas.
Seremos sempre felizes. Enquanto há estrelas sob as abóbadas do céu”. Letra e música de Tino
Rossi.

Andando sob o sol ardente, nessa sexta-feira da paixão, lembrava de Elie Wiesel, Primo Levi,
Jorge Semprun, Simone Weil, Viktor Frankl, Anne Frank, e sobretudo Imre Kertész, meu escritor
preferido. Alguns destes sobreviveram a Auschwitz, para se suicidar depois. Anne Frank pereceu
lá. Aliás, Kertész faz uma lista de todos que se suicidaram depois de sobreviverem a Auschwitz.

Saí de Auschwitz I com uma grande curiosidade e uma pergunta, que deixo em aberto. No
portão de entrada estava pregada uma fitinha com um numero: 36377. Entendi como o número
de alguém que sobreviveu ou pereceu no campo. Era uma homenagem. Em um dos pavilhões,
havia livros e livros com os números dos prisioneiros e seus nomes. Fiquei procurando o 36377
e não encontrei. Aliás, desisti depois do primeiro livro. Quem é o 36377? Por que não se
nomear? Por que manter esse número que foi dado pelo outro, o opressor? Vou responder com
o título de crônica de Clarice Lispector: “você não é um número”. O ser humano é maior, é
inexprimível até mesmo em palavras, quanto mais em números.

Essa é a minha crônica da semana por alguns motivos que creio são maiores do que dizer a
vocês que precisam ir à Polônia e conhecer Auschwitz. Auschwitz está em nós, como
humanidade. Tudo isso me veio à lembrança semana passada, pois escrevi sobre a Cracóvia e
são acontecimentos da mesma viagem. Porém entre a crônica da semana passada e essa
aconteceram três coisas que me tocaram profundamente. Uma fronteira de nosso Estado que
de seca passou a vermelha: facções criminosas guerreando e se matando na rua, com
armamento pesado e arriscando a vida da população de dois países. Mais um conflito indígena
no Estado, desta vez em Caarapó: resultou na morte de Clodiode Rodrigues de Souza, um índio
jovem, de 26 anos, agente de saúde, e em ferimentos em mais seis índios, um deles ainda
criança. E ainda há todas as mortes da Boate Pulse, em Orlando. Quase cinquenta mortos, mais
de cinquenta feridos em um ataque cruel, violento.

Continuamos muito despreparados para conviver com nosso próximo, quando o vemos como
estrangeiro, seja judeu, cigano, homossexual, negro, índio, mulher, criança. Volto à música de
Tino Rossi que li no Campo de Concentração de Auschwitz, deixada por alguém que foi fazer
uma homenagem: “vivemos com a barriga vazia, em uma rua sem fim.” Essa minha crônica é
para que não seja esquecido o que não pode ser esquecido.
Prelúdio 07 – Kátia Botelho
“A Prátoca psicanalítica no Zeitgeist da virtualidade”
“Ó polegada de natureza!”
George Wilkins

A atualidade, sabemos todos, é o virtual.

Vivemos nosso dia a dia, assim como nossa noite adentro, imersos no mundo virtual. Hoje, não
se espera chegar em casa ou ao escritório para se ter acesso aos correios eletrônicos. O mundo
virtual se adiantou a nós: estamos todos siderados; os I-phones e Androids estão acoplados aos
nossos corpos, se tornaram parte integrante de nossa existência “real”, isso é inelutável! É fato
irreversível!

Os gadgets comunicacionais nos alcançam onde quer que estejamos, com seus avisos
perturbadores – suas campainhas de alerta – a informação chega e nos constrange, quer que
nos ocupemos com ela… impossível resistir!

E-mails de trabalho, grupos de WattsApp os mais diversos, redes sociais, facebook, twitter,
instagram, facetime, inúmeros aplicativos que se fizeram imprescindíveis para a vida no século
XXI!

Muitos já nem se ocupam de olhar para os lados ao atravessar uma rua, estão ligados na tela
dos celulares. E as novas leis de proteção aos pedestres vieram oferecer um chão seguro para
essas incursões “urgentes”, inadiáveis. Não sem mencionar os fones acoplados aos ouvidos e
microfones colados à boca falante.

Como não lembrar o dizer de Freud em 1929, em seu sempre atual “O mal estar na civilização”?
Comentando as coisas que o homem fez surgir na Terra – lugar onde ele aparece “como um
débil organismo animal”, desamparado e, a seguir, alcançando as vantagens que a realização de
todos foi se constituindo como “aquisição cultural sua” – Freud nos adverte de que esse mesmo
homem formou uma concepção ideal de onipotência e onisciência que corporificou em seus
deuses, os quais constituíam ideais culturais. (Freud, 1929-30, p.111) Com os avanços científicos
e seus derivados tecnológicos, o homem se tornou uma espécie de “Deus de prótese”, cada vez
mais fascinado pelo exercício da fantasia de onipotência infantil! E Freud acrescenta: “Quando
faz uso de todos os seus órgãos auxiliares, ele é verdadeiramente magnífico; esses órgãos,
porém, não cresceram nele e, às vezes, ainda lhe causam muitas dificuldades… As épocas futuras
trarão com elas novos e inimagináveis grandes avanços nesse campo da civilização e
aumentarão ainda mais a semelhança do homem com Deus”. (Idem, p.112)

Curioso como essa escrita me remeteu a um livro antigo, de 1964: ” Os meios de comunicação
como extensões do homem”, de Marshall Mcluhan. Interessante sua leitura do mito de Narciso,
que vem da palavra grega narcosis, entorpecimento: “ O jovem Narciso tomou seu próprio
reflexo na água por outra pessoa. A extensão de si mesmo, pelo espelho, embotou suas
percepções até que ele se tornou o servomecanismo de sua própria imagem prolongada ou
refletida”. Mcluhan (1964, p.59) explica que os homens logo se tornam fascinados por qualquer
extensão de si mesmos em qualquer material que não seja o deles próprios. E que “… os meios,
como extensão de nossos sentidos, estabelecem novos índices relacionais, não apenas entre os
nossos sentidos particulares, como também entre si, na medida em que se inter-relacionam”.
(Idem, p.72)
Foi a partir daí que passou a circular entre os intelectuais o aforismo: O meio é a mensagem; na
medida em que é ele que configura e controla a proporção e a forma das ações e associações
humanas, enquanto que o conteúdo ou uso desses meios são tão diversos quanto ineficazes na
estruturação dessas mesmas formas. (Idem, p.23) Além disso, Mcluhan nos explica que os meios,
ou extensões do homem, são agentes “produtores de acontecimentos”, mas não agentes
“produtores de consciência”.

Mas, o que isso tem a ver com a psicanálise, o psicanalista e os problemas cruciais na
atualidade?

No V Encontro da Escola que ocorrerá em julho/2016 lemos essa apresentação do tema a ser
trabalhado pelos analistas: “O DESEJO DE PSICANÁLISE, OU “A EXPANSÃO DO ATO ANALÍTICO”.
Esse tema, “o desejo de psicanálise” visa a presença da psicanálise no discurso atual, o que
chamamos habitualmente “a extensão”. Mas é necessário precisar, conforme a definição dada
por Lacan, que não se trata da difusão do discurso sobre a psicanálise, nem mesmo da
multiplicação dos psicanalistas autodeclarados, mas “da expansão do ato”. É a condição para
que haja falantes que se analisam. Dito de outro modo, trata-se da psicanálise “em intensão”,
inseparável de seu “horizonte” de extensão, pois é em ato que ela deve fazer a diferença em
relação às psicoterapias polimorfas.

Destaco a frase: É a condição para que haja falantes que se analisam.

A expansão do ato é a condição. Ou seja, mais além dos efeitos terapêuticos de uma análise,
mais além de uma transmissão aos moldes das sociedades psicanalíticas promotoras da lógica
do Um, o que está em causa na Escola de Lacan é a produção de uma verdadeira novidade:
analistas transformados pela experiência de uma análise.

Lacan se colocava essa questão crucial, a de comprovar em quê o saber psicanalítico


acrescentaria ou não, como efeito de sua prática, algo novo à cultura.

Na “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola” Lacan apontava o fato


de que “…nenhum ensino fala do que é psicanálise”, isto é, fora da sua Escola; nos outros
lugares, cuidava-se apenas de que ela fosse conforme, uma “cooptação de doutos”. (Lacan,
1967, p.250) No intuito de remediar tal cooptação, promotora de um retorno ao “status de
imponência”, que conjuga “pregnância narcísica” com “astúcia competitiva”, trata-se de eliminar
tal negligência reconhecendo a falha que recai sobre a prática da psicanálise. O que aponta para
a articulação inseparável entre “… psicanálise em extensão…função de nossa Escola no mundo, e
psicanálise em intensão…que prepara operadores para ela”. E nos leva ao ponto crucial do
problema: “…constituir a psicanálise como uma experiência original, levá-la ao ponto em que
nela figure a finitude, para permitir o a posteriori efeito de tempo, que, como sabemos, lhe é
radical”. (idem, p.251)

O que distingue a psicanálise das psicoterapias polimorfas será esse analista – objeto produto
de uma análise – que pode dizer como foi a experiência que resultou dessa operação sobre o
amor e o desejo, a partir de um saber que produz algo novo, radicalmente distinta da
terapêutica, que se dirige “… ao restabelecimento de um estado primário”. (idem, p.251)

Encontra-se na revista CULT de maio de 2015 um dossiê intitulado “ Psicanálise: Marginal?”, cuja
leitura recomendo vivamente. Os 12 verbetes arrolados nesse dossiê podem ser “…tomados
como um instantâneo do que pensam alguns psicanalistas que atualmente exercem a
psicanálise nos mais variados contextos em São Paulo, independentemente de serem iniciantes
na prática ou já terem um consolidado percurso”. ( CULT, ano 18, maio 2015)
Dentre eles sublinho o verbete Internet, que começa assinalando o quanto a mesma desafia a
psicanálise expondo a inconsistência de sua unidade da clínica à política, passando pelas teorias,
a partir da incessante circulação de saberes que ela veicula, fazendo vacilar o suporte de
qualquer discurso que afirme “isto é psicanálise”. O fato de que todas as escolas e sociedades
ditas psicanalíticas estejam listadas no Google faz esse significante “explodir em possibilidades
de sentido, dado que a Internet propicia uma profusão de outros significantes a partir dos quais
esse possa se significar”. (idem, p.45) Tal fato pode nos levar a pensar que o Google “sabe” o
que é psicanálise, ou pelo menos denunciar as equivalências entre as verdades proclamadas
pelas várias instituições. Entretanto, no parágrafo seguinte, o autor retoma esse aspecto de
inconsistência da psicanálise apontada pela tecnologia, na vertente de sua materialidade, ou
seja, na sua dimensão de “meio” que se infiltra a passos largos na prática psicanalítica. Alude
timidamente ao WhatsApp como meio para remarcação de uma sessão e ao Skype como meio
para reposição de uma sessão. Mas ouve-se aqui e ali que alguns analistas, seja lá de onde
forem, se lançam mais além dessa inocente incursão via gadgets, em suas práticas clínicas. O
que leva o autor do verbete a colocar certas questões que pareciam estar resolvidas: “o estatuto
do corpo em uma análise; a emergência de um analista onipresente; a clínica atravessada pelas
ferramentas de seu tempo; o lugar da imagem e do olhar em uma análise; e outras variáveis do
setting analítico”.

Faço aqui uma provocação/convocação: que os analistas da Escola de Lacan apresentem relatos
e articulações concernentes às suas experiências nesse novo tempo de sideração virtual. O
verbete em questão termina dizendo que a psicanálise na Internet é objeto, e está à mercê da
virulência que infesta a rede. Quanto a esse ponto, sabemos, não é nem privilégio nem fardo
apenas para a psicanálise!

O que importa sobretudo para nós, analistas da Escola – particularmente da EPFCL – é pensar,
conversar e escrever sobre o que a Internet, assim como todos os gadgets, tem sido e poderão
vir a ser na prática da psicanálise – essa que se distingue das psicoterapias – por levar ao
incurável e irreversível produto de um saber novo: um analista!

Referências Bibliográficas

FREUD, S. (1929-30) O mal estar na civilização. in Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v.XXI, p. 111-112.

LACAN, J. (1967) Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola, in Outros


Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 248-264.

McLUHAN, M. Os meios de comunicação como extensões do homem. São Paulo: Editora Cultrix
Ltda.

LEITE, N. & Goldenberg, R. Dossiê Psicanálise: Marginal? in Cult – Revista Brasileira de Cultura.
São Paulo: Editora Bregantini, Maio 2015, Ano 18, p.32-48
Prelúdio 08 – Andréa Franco Milagres
“Problemas cruciais para a psicanálise na atualidade”

“Aqui vocês atendem transexuais”?


Uma pergunta à psicanálise.

A sequência de alguns acontecimentos causou a escrita desse prelúdio, colocando-me uma


questão: o que responde um psicanalista frente à demanda de cirurgia para redesignação ou
readequação sexual?

Na clínica-escola da universidade onde leciono recebi uma jovem de 19 anos com a seguinte
pergunta: “Aqui vocês atendem transexuais?” Não desejava propriamente um tratamento
psicológico, mas um laudo que a autorizasse a iniciar a terapia hormonal para então se
submeter a uma mastectomia bilateral (ressecção das mamas) e posteriormente a ressecção de
ovários e útero. Surpresa com a firme decisão de alguém tão jovem, respondi que não poderia
lhe fornecer o laudo, mas que poderia escutá-la para melhor entender sua demanda. Nas
poucas entrevistas que se seguiram nada me autorizou a pensar numa psicose, senão numa
histeria, onde o sujeito reivindicava pela via cirúrgica o apagamento de todos os traços
femininos de maneira que seu corpo se adequasse melhor ao desejo sexual que sentia pela
moça que a acompanhava na consulta. Pouco tempo depois, convocada pela universidade,
participei de uma reunião cuja pauta consistia na possibilidade de parceria com o SUS para a
implantação do Serviço de Atenção Especializada no Processo Transexualizador para
acompanhamento de transexuais e travestis. Conforme a portaria 2.803 de novembro de 2013,
psicólogos e psiquiatras devem compor necessariamente as equipes multiprofissionais para
acompanhamento das etapas que compreendem o pré e o pós-operatório.

A convicção íntima de habitar um corpo que não lhe pertence não é uma novidade para a
psicanálise. Se tomarmos como referência o caso de Schreber o transexualismo foi quase
sempre considerado na clínica psicanalítica sinônimo de psicose, visto que a prerrogativa de
mudar de sexo não está de modo algum aberta a todos os sujeitos, senão aos que estão fora da
norma fálica, como atestou esse caso exemplar comentado por Freud. Todavia, os tempos são
outros: a ciência cada vez mais se empenha em modificar o real. Podemos dizer que os
transexuais que desejam mudar de sexo são sempre psicóticos? Parece pouco provável. A esse
respeito, recomendo assistir ao documentário “De gravata e unha vermelha” de Miriam
Chnaiderman, diretora de cinema e psicanalista. O testemunho dos sujeitos entrevistados por
Miriam mostra que o discurso da ciência gera hoje ofertas que antes eram impensáveis. Pode-se
dizer que o muro que impedia o trânsito entre os sexos caiu, não só em função da alteração dos
padrões morais, mas pelo que o bisturi pretende modificar. O mal-estar, a estranheza ou o
sentimento de inadequação que se pode ter com o próprio sexo encontrou uma solução. No
campo da sociologia as teorias de gênero respondem à questão dos direitos humanos
permitindo, por exemplo, que os transexuais sejam reconhecidos por seu nome social e não por
seu nome de registro civil visto que este último é motivo de embaraço e escárnio. Um ganho
evidente, pois o direito de mudar o nome em consonância com o gênero ao qual o sujeito diz
pertencer mantém certamente as coisas nos limites do simbólico.

Todavia, no que diz respeito à cirurgia de redesignação já não se trata mais da nomeação, senão
de ultrapassar o limite dado pelas bordas: fenda peniana, buraco da vagina. Ainda que a
legislação dos SUS inclua nas equipes multiprofissionais psicólogos e psiquiatras, solicitando-
lhes ratificar e garantir a certeza que o sujeito extraiu de seu gozo, eu me pergunto em que
medida estaria um psicanalista em condição de avalizar uma intervenção dessa ordem. Por hora,
na ausência de uma resposta e sem ter podido ainda acompanhar estes sujeitos nas suas
soluções, apelarei para o tempo.

Belo Horizonte, julho de 2016


Prelúdio 09 – Maria Luisa Rodriguez
“O empuxo à criação na clinica da psicose”
Desde a convocação lacaniana de não recuar diante da psicose, com a teorização sobre a
Metáfora Paterna e sua função no estabelecimento da norma fálica, até a elaboração do
conceito de sinthoma, constituiu-se uma comunidade analítica lacaniana com uma considerável
experiência da clinica da psicose. Acumulamos uma importante discussão do que vem a ser o
sujeito na psicose e formulamos a questão da transferência e do manejo no seu tratamento
possível, onde o analista deve se posicionar não pela via da interpretação, mas como
testemunha, secretário ou garantia do que lhe é endereçado.

A expressão secretário do alienado, utilizada por Lacan para referir-se à posição do analista
diante da psicose, foi usada inicialmente por Jean-Pierre Falret, justamente para criticar as
práticas descritivas da psiquiatria de sua época e para propor a importância de dar voz aos
pacientes. Mais tarde foi retomada por Lacan, que ressaltará a necessidade de que o analista se
deixe ensinar pelo analisante, acolhendo a sua produção e abstendo-se de interpretações na
clínica da psicose.

Tomar a psicose a partir dessas premissas significa avançar na trilha aberta por Freud, em sua
posição ética que situa a psicose, não a partir de seus déficits e de sua desordem, mas
reconhecendo-a como uma ordem. Freud indica que o sujeito deve ser buscado na sua
produção psicótica e na análise do caso Schreber demonstra que o que o sujeito reinterpreta no
seu delírio é o Outro. É essa reinterpretação do Outro que dá a ele, Schreber, o lugar de sujeito.

Colette Soler, em seu livro A Psicanálise na Civilização, propõe a ocorrência de um empuxo à


criação na psicose, devido à não inscrição do Nome-do-Pai, considerando que, se por um lado,
essa não inscrição pode produzir efeitos desorganizadores que se manifestam nos fenômenos
de perda da realidade, de passagens ao ato, e outros, também pode, por outro lado, funcionar
como um starter para produções inéditas (SOLER, 1998).

Aqui temos uma importante indicação no que diz respeito ao tratamento da psicose. Sem
dúvida, observamos esse empuxo à criação na trajetória dos grandes criadores, artistas e
cientistas que sofrem da estrutura psicótica, como Joyce ou Rousseau; ou mesmo de sujeitos
que estruturam um delírio monumental, como é o caso do Presidente Schreber. Mas esse
empuxo à criação também se apresenta no dia a dia da clínica, guardadas as devidas
proporções, na produção de ideias delirantes que tentam ordenar o gozo do Outro sem barra.
Isto porque o “empuxo à criação” é um traço da estrutura psicótica, efeito da ausência da norma
fálica, que pode ser observado nas construções delirantes desses sujeitos, no cotidiano da
clinica.

Se o psicótico encontra um lugar de endereçamento de sua produção delirante poderá construir


uma alternativa para a foraclusão através de uma criação delirante inédita, que faça suplência ao
Nome-do-Pai ausente na estrutura. Isso pode ocorrer sem que o sujeito esteja em análise, como
é o caso do Presidente Schreber ou de Joyce. Pode ocorrer sempre que se constitua um lugar
de endereçamento. Na clinica, a presença do analista deve garantir o espaço de endereçamento,
se o analista se deixa ensinar pela experiência radical da psicose, recolhendo sua produção
simbólica.

Sabemos que nos dias de hoje, a neurociência avança de forma muito potente, aliada aos
interesses da acumulação de capital da indústria química, propondo a medicalização
generalizada como forma de tratamento do mal estar na psicose. Uma intervenção que amenize
a invasão alucinatória delirante pode ser muito eficiente para criar a possibilidade de uma
existência menos avassalada pelo Outro, mas jamais tomará o lugar que cabe ao sujeito de
buscar a maneira especifica pela qual encontrará a sua estabilização. Para isso é preciso o desejo
decidido do analista que sustente a aposta na clinica da psicose e propicie, ao sujeito psicótico,
esse lugar de trabalho e produção.

Bibliografia

BERCHERIE,P. Os fundamentos da clinica: história e estrutura do saber psiquiátrico. Rio de


Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1989

FREUD, Sigmund. (1919) “Nuevos caminos de la terapia psicoanalitica” . Em: Obras Completas,
vol. XVII. Buenos Aires: Amorrortu editores, 1996.

LACAN, J. (1956) “O Seminário, livro III: As Psicoses” . Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, (1985)

________. (1958) “De uma questão preliminar a todo o tratamento possível da psicose”. Em:
Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996

QUINET, Antonio. (Org.) Psicanalise e Psiquiatria. Controvérsias e convergencias. Rio de Janeiro:


Rios Amb
Prelúdio 10 – Lia Silveira
“A psicanálise nos tempos do Coléra”
“Aceitem as regras e estarão conectados!”, informou uma das organizadoras do evento
enquanto a mesa, composta por reconhecidos nomes da psicanálise, se acomodava. A frase
dizia respeito a um probleminha que tinha ocorrido com a rede de wifi e que agora precisava
ser registrada para que pudéssemos acessá-la. Mas lembrada a posteriori, parece mais um
prenúncio do que se seguiria.

Freud, em 19 de abril de 1935[2], escreveu numa carta à uma mãe de um jovem homossexual:

“(…) Não tenho dúvidas que a homossexualidade não representa uma vantagem, no entanto,
também não existem motivos para se envergonhar dela, já que isso não supõe vício nem
degradação alguma. Não pode ser qualificada como uma doença e nós a consideramos como
uma variante da função sexual, produto de certa interrupção no desenvolvimento sexual. Muitos
homens de grande respeito da Antiguidade e Atualidade foram homossexuais, e dentre eles,
alguns dos personagens de maior destaque na história como Platão, Miguel Ângelo, Leonardo
da Vinci, etc. É uma grande injustiça e também uma crueldade, perseguir a homossexualidade
como se esta fosse um delito.”

Nem precisávamos desse posicionamento explícito do pai da psicanálise para deduzirmos que o
campo do saber por ele inventado rechaça qualquer interpretação da sexualidade humana
como normatizada: a sexualidade infantil perverso-polimorfa, a variedade ampla do objeto da
pulsão, a bissexualidade originária, a dupla vertente do édipo, enfim.

Por isso, passados mais de 80 anos da carta mencionada acima, tendemos a pensar (pelo menos
entre quem está engajado em uma comunidade de analistas) que a transferência com a
psicanálise, por si só, seria uma garantia de um posicionamento mais aberto acerca da
desnaturalização da sexualidade humana. Especialmente entre os ditos “lacanianos”,
acostumados que estão com a leitura da entrada no simbólico como subvertendo tudo que
pudesse ser tomado como instintual.

Mas o trabalho apresentado por Antonio Quinet no IX Encontro da IF/ EPFCL Brasil em Medellin,
Colômbia, alertou a uma plateia, atônita, que não é bem assim. Reunindo trechos de textos e
falas proferidas em entrevistas por alguns analistas contemporâneos, Quinet mostrou como tem
sido frequente o recurso de certos psicanalistas à teoria para se posicionarem contrariamente a
temas da atualidade como o casamento homoafetivo e a adoção homoparental.

Um afeto de horror atravessou a plateia que, entre “ohhhs” e “uhhhs”, ouvia os relatos de
declarações homofóbicas (ou homoterroristas, como chamou o autor do trabalho) que
reduziam a diferença sexual à anatomia e o Édipo Freudiano à noção de família nuclear
burguesa “com pai, mãe e filho natural registrado em cartório e batizado”. Algumas declarações
chegavam a associar a homossexualidade a uma perversão inata a esses sujeitos e a comparar a
adoção de crianças por casais homoparentais às ações do “Estado Islâmico”. (Isso enquanto
ouvíamos pelos corredores do evento as notícias sobre o atentado ocorrido no dia anterior em
Nice e ainda guardávamos na lembrança o pesadelo do ocorrido em Orlando).

Durante a apresentação, o sistema de som (ou de tradução) falha temporariamente. Um real


que se atravessa? Quinet resume o que já havia apresentado e rebate todas as teses
homofóbicas com argumentos brilhantemente ancorados na obra freudo-lacaniana e na sua
própria experiência com a psicanálise.
Enquanto o escuto, suas palavras vão encontrando e afetando outras memórias. Uma delas
ecoava mais forte: o assassinato de uma criança, João Donati, de 18 anos, na cidade goiana de
Inhumas. O jovem teve suas pernas quebradas, foi torturado e enforcado. Em sua boca
encontraram um bilhete, escrito pelo assassino, que fazia menção ao fato de ele ser
homossexual.

Até escrever esse texto, não sabia porque essa memória tinha se presentificando com tanta
força ao ouvir a apresentação de Quinet. Talvez porque soube dela como uma invasão do real
(estamos todos conectados, para o bem e para o mal): acessava a linha do tempo do Facebook
e, sem ter tempo de decidir se queria mesmo ver aquilo, aparece-me uma foto do corpo do
rapaz como foi encontrado em um terreno baldio, desfigurado, ao lado de uma foto de seu
perfil na rede social. Podia ser meu filho, podia ser o filho de um amigo. Foi demais.

Mas ao pesquisar para falar aqui desse caso, lembrei o que dizia o bilhete encontrado no corpo
de João: “Vamos acabar com essa praga”. Foi esse significante “praga” que encadeou minha
lembrança à fala de Quinet que, por sua vez ressoava com outro comentário proferido, também
no Encontro Internacional da IF/EPFCL em Medellin, por Colette Soler: a psicanálise não se
transmite pelo saber, ela é, antes epidêmica, transmitida como uma praga. Já disse Freud
quando ia visitar os americanos: “Eles não sabem que estou indo lá levar a peste”.

De um lado, o objeto de ataques terroristas (e homoterroristas) do outro, a psicanálise. O que


eles tem em comum? Ambos convocam o real, ambos tocam a peste. Mas não, certamente, da
mesma maneira. O discurso analítico é o único que permite fazer algo frente a isso que irrompe
como diferença insuportável, mas que habita o cerne do nosso ser. Permite tocá-lo sem precisar
destruí-lo, aniquilá-lo, torturá-lo e matá-lo.

Por fim, uma outra epidemia entra na minha cadeia associativa. Enquanto passeava pelas ruas
mágicas de Cartagena (ali entendemos de onde vem o realismo fantástico de Gabriel Garcia
Marques[3]) lia nas horas de descuido “O Amor nos Tempo do Cólera”. Ao ser tomada pelas
histórias de Fermina Daza, Florentino Ariza e Juvenal Urbino e fazê-las encontrar com o que ouvi
na apresentação de Antonio Quinet, lembrei da frase de um desses personagens: “…lhe tinha
amor bastante para vê-la com olhos de verdade.”[4]

Não é qualquer amor que permite ver o outro com olhos de verdade, é o que nos diz Gabo. No
que diz respeito às parcerias amorosas, aceitar as regras não é garantia de que estejamos
conectados. Há sempre um gozo estranho que se atravessa e que é impossível de conectar.

Fica a pergunta: seria possível hoje, em tempos de surto de cólera (do afeto, mais que da
bactéria), pensarmos uma psicanálise que responda à questões da atualidade como uma
possibilidade de um novo amor, um amor que seja bastante para que possamos ver o outro
com os olhos da verdade, sem que isso nos leve a querer destruí-lo? A apresentação de Quinet
me faz acreditar que sim, sob o preço de que não nos calemos e de que não façamos da
psicanálise uma justificativa para nos adequarmos às regras.

Fortaleza, 20 de Julho de 2016

[1] Este texto foi escrito após assistir à apresentação de Antonio Quinet no IX Encontro da IF/
EPFCL Brasil em Medellin, Colômbia, intitulado “Parcerias amorosas e laços sociais”.

[2] Freud, S. (1967). Lettre de Freud à Mrs N. N…: Correspondance de Freud 1873-1939. Paris:
Gallimard. (Originalmente publicado em 1935). P43
[3] Categoria que ele mesmo rejeitava: “é só realismo. A realidade é que é mágica. Não invento
nada. Não há uma linha nos meus livros que não seja realidade. Não tenho imaginação”.

[4] Marques, Gabriel Garcia. O Amor nos Tempos do Cólera. Rio de Janeiro, Record, 1985.
Prelúdio 11 – Sônia Campos Magalhães
“Austismo: uma questão crucial proposta à psicanálise”
No momento em que a Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil escolhe,
como tema de seu XVII Encontro, “Problemas cruciais da psicanálise na atualidade”, pareceu-nos
que poderíamos considerar o autismo como uma questão crucial proposta à psicanálise.

Sabemos que, desde que o psiquiatra austríaco Leo Kanner descreveu, em 1943, a
sintomatologia do autismo infantil, o interesse pelas questões relativas ao autismo não cessou
de crescer.

Ao descrever o comportamento particular de um grupo de crianças autistas em sua clínica em


Viena, em 1944, Hans Asperger trouxe à luz dados surpreendentes em relação a algumas dessas
crianças o que suscitou, mais ainda, o interesse pelas questões relativas ao autismo.

Pelo mistério que envolve o autismo, em torno dele vem se travando uma batalha entre modos
de saber bem diferentes. As questões que suscita têm mobilizado praticamente todos os ramos
da biologia, da medicina, da psicologia, da educação, da filosofia, das teorias da aprendizagem,
assim como a psicanálise em suas várias orientações.

O autismo vem colocar questões a serem discutidas por todos aqueles que se preocupam com
os problemas cruciais que se situam em um mundo marcado pelas mais diversas intolerâncias e
por preconceitos.

Enfrentando as pressões daqueles que visam descartar a psicanálise do atendimento a autistas,


a clínica psicanalítica referente ao autismo tem propiciado o surgimento de inúmeros trabalhos
trazendo contribuições importantes. Entre os analistas que buscam dizer quais seriam os pontos
nodais em torno dos quais se articula a abordagem psicanalítica do autismo à luz dos
ensinamentos de Freud e Lacan, devemos destacar Rosine e Robert Lefort.

Entre muitas outras contribuições vindas de psicanalistas, gostaríamos de chamar atenção para
o que nos diz Jean-Daniel Causse, em Les paradoxes de l’autisme[1]. Referindo-se ao autismo
como um paradoxo, Causse recorre ao sentido etimológico do termo paradoxo: o que se opõe à
doxa, isto é, o que coloca a opinião comum diante de um impasse conceitual. O paradoxo vai de
encontro à razão estabelecida, ou a transtorna, desnorteia. Segundo Causse, é neste ponto
preciso que se deveria situar a questão do autismo não só a partir do que nos dizem os grandes
teóricos e clínicos, como Leo Kanner, Hans Asperger, Frances Tustin e tantos outros, como
também quando nos colocamos à escuta dos testemunhos de sujeitos autistas ou que lhes são
próximos, como Jim Sinclair, Temple Grandin, Donna Williams e outros.

Causse afirma que o paradoxo conduz a uma ética, mais ainda, o paradoxo é, em si mesmo,
ética, porque o paradoxo considera o singular, o cada “um”, e permanece avesso à ideia de um
indivíduo redutível aos traços que o compõem. A singularidade da criança autista se mostra
tanto mais viva, mais frontal e, também, tão mais delicada a assumir, uma vez que ela se isenta
do mundo simbólico de troca que é organizado pelo que falta a todos. O sujeito autista não se
inscreve no espaço comum; sob esse aspecto, ele é a-típico porque é sem lugar, a-topos, o que
fazia Jim Sinclair dizer em Toronto, em 1993: “as pessoas autistas são ‘estrangeiras’, seja qual for
a sociedade em que estejam [2]”.
Diante desse paradoxo, desse mistério, dessa estranheza referentes ao autismo, pareceu-nos
interessante destacar um fragmento de Les paradoxes de l’autisme onde Causse faz as seguintes
considerações:

[…] a criança autista é, sempre “um estrangeiro e viajante sobre a terra”[3]. A singularidade
dessa criança vem colocar em questão a nossa cultura. Por sua maneira de estar aí sem estar, ela
vem desvelar as concepções contemporâneas de saúde, de bem-estar que nos conformam a
modelos e a comportamentos. Por efeito de engodo, todo um discurso atual faz passar como
alteridade e uma promoção de diferenças o que não é senão a construção multiforme do
“mesmo”. Nós nos pensamos múltiplos e somos levados ao idêntico e aostandard. Aliás, em um
tempo que é o do culto da performance, da rentabilidade, da mercantilização extrema, o sujeito
autista atesta, de uma maneira talvez exemplar, o “por nada” de cada existência, o inútil e o não
avaliável. Eis porque ele nos interroga – ele que não coloca questão alguma – sobre o que
constitui um mundo humanizado, portanto, um mundo, simplesmente. [4]

Em face das questões que o autismo vem situar para os psicanalistas, convém lembrar que
Freud, no exercício de sua prática clinica, ao forjar os conceitos fundamentais da teoria
psicanalítica, se deu conta de que a psicanálise lida com um ser que, além de dispor da fala, é,
pode-se dizer assim, um ser de fala. Na vertente dessa orientação vinda de Freud, Lacan dirá
que um determinismo inconsciente organiza a existência do ser falante e que tal determinismo
vai se revelar como o da própria linguagem.

Em seu livro Atos de fala, Jairo Gerbase nos diz:

Há um corpo que fala. Falar não é aprendido. É da natureza ou do real desse corpo falar.
Queremos saber como Freud percebeu a especificidade do corpo falante a ponto de formular
uma terapêutica baseada nesta especificidade.[5]

Falar implica uma escolha do sujeito. No que diz respeito à criança autista, muito cedo ela
mostra sua escolha de não se deixar alienar nos significantes do campo do Outro,
contrariamente ao que se passa com a maior parte dos bebês.

Em alguns autistas, pode-se observar uma relação bem particular que eles entretêm com um
objeto que, diferentemente do objeto transicional, é um objeto autístico. São diferentes as
modalidades de um autista vir a lidar com este objeto ao qual ele se cola, objeto que se torna
essencial, inseparável do sujeito.

Muitas vezes, diante deste objeto estranho eleito pelo autista, os pais e também aqueles que
lidam com esse mistério, se sentem confrontados com um enigma desafiador.

Uma pergunta insiste: como vem o analista se situar diante deste mistério do corpo falante que
é o autismo?

Seguindo os passos de Freud e Lacan e de tantos estudiosos e pesquisadores das questões


cruciais que o autismo está a colocar, acreditamos poder dizer que o psicanalista vem se situar,
conforme a ética da psicanálise, com o Desejo do analista, em uma neutralidade que implique
estar aí de uma forma tal como se não estivesse, um estar aí que, de forma inventiva e não
invasiva, venha dar lugar a uma possível passagem à fala, a um acesso à voz para o autista.

É a nossa aposta.

___________________________________________
[1] CAUSSE, Jean-Daniel. Avant-propos: paradoxe et éthique In: CAUSSE, Jean-Daniel; REY-
FLAUD, Henri (Dir.). Les paradoxes de l´autisme. Université Paul Valéry, Montpellier III/Centre de
Recherches Interdisciplinaires de Sciences Humaines et Sociales (CRISHS). Toulouse: Éditions
Érès, 2011. p.13.

[2] CAUSSE, Jean-Daniel. Avant-propos: paradoxe et éthique, op. cit., p. 14 (Tradução livre
nossa).

[3] Epístola aos Hebreus (Apud CAUSSE, Jean-Daniel. Avant-propos: paradoxe et éthique, op.cit.
(Tradução livre nossa).

[4] CAUSSE, Jean-Daniel. Les paradoxes de l’autisme, op.cit., p. 14

[5] GERBASE, Jairo. Atos de fala. Salvador: Associação Científica Campo Psicanalítico, 2015. p.30.
Prelúdio 12 – Marcia de Assis
“Antes de mais nada, que haja psicanalístas {1}”
O porvir, uma ilusão? Inicio com a interrogação que me acompanhou enquanto assistia, na telinha, às
cenas impactantes do horror acontecido em Nice, quando a fúria desenfreada atropelou centenas de
pessoas (dentre elas, várias crianças) na Promenade des Anglais.Desvarios da sociedade contemporânea e
do capitalismo que vigora com seu empuxo à universalização e efeito segregador subsequente,
comprometendo os laços sociais.

Freud {2} não dissimulou o seu pessimismo em relação à humanidade e à civilização, asseverando
encontrar-se presente em todos os seres falantes uma inclinação agressiva, disposição pulsional originária,
traço indestrutível do humano, obstáculo à civilização. Tomou o desenvolvimento cultural como uma luta
pela vida, com a seguinte ressalva: Quem poderá prever o desenlace?

Lacan{3} também lançou os seus avisos ao dizer que não pintaria um futuro cor-de-rosa, advertindo sobre
o aumento do que se enraíza na fraternidade do corpo, o racismo. Alguns anos antes, já deixara seu apelo
em forma de questão acerca do futuro da psicanálise: por quem serão retomadas as indicações de meus
Escritos, quando a psicanálise houver deposto as armas diante dos impasses crescentes da civilização?{4}
Isso nos convoca, certamente.

O que fazer? Extrair da prática a ética do bem-dizer, fazendo funcionar o saber no lugar da verdade para
ser digno da transferência. Dito de outro modo, posicionar o Inconsciente.

O que é um psicanalisante? Um sujeito com sua questão – o que sou? Um sujeito colocado em questão,
isso não implica que haja psicanalista em sua função de causa? O que nos liga àquele que embarca
conosco nessa aventura singular e se posiciona como analisante? Nessa aventura embarcam os filhos do
discurso. É daí que nasce “nosso irmão transfigurado”.{5}

Que o real insista, confirmando a lei da castração, que leva o sujeito a enveredar pela via do desejo, indo
buscar no Outro um objeto que lhe reponha a perda. O resultado do investimento libidinal outorga o
brilho desejável à imagem virtual, conferindo valor erótico ao parceiro eleito para ocupar o lugar de
semblante do objeto perdido. Eis o que permite mirá-l(a) com olhos de verdade. {6}

A aposta é feita na experiência, no discurso analítico enquanto laço social determinado por uma prática, e
nos seus efeitos para além dos terapêuticos. O psicanalista talvez possa produzir uma saída do discurso
capitalista ao provocar/convocar o sujeito desejante, aquele que se encontra amordaçado no discurso
vigente, caso a aposta seja mantida na experiência original e que dela possam surgir sujeitos capazes de
sustentar outro desejo, resultado da travessia analítica. Seremos poatas o suficiente?

Referências:

{1} Lacan, J. (1966) Do sujeito enfim em questão. In. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 1998, p. 237.

{2} Freud, S. (1930) El malestar em la cultura. In. Obras Completas. Buenos Aires: Amorrortu Editores,
1988, vol. XXI.

{3} e {5} Lacan, J. (1971-72) O seminário, livro 19: … ou pior. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de
Janeiro: Zahar, 2012, p. 227.

{4} Lacan, J. A psicanálise. Razão de um fracasso. In. Outros Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p. 349

{6} Dialogando com o prelúdio da colega Lia Silveira sobre uma frase do livro O amor nos tempos do
cólera de Gabriel García Márquez.
Niterói, 2 de agosto de 2016
Prelúdio 13 – Sandra Berta
“Atualidade do Saber em psicanálise”
O caminho de uma analise se realiza na fronteira sensível entre o saber e a verdade. Lembremos
que Lacan nos advertira disso em várias oportunidades, mas que ao propor o Campo Lacaniano
ele localizou uma posição diferenciada no discurso do analista anunciando que ele esperava
uma mudança no “assentamento do saber”.

Nas conferências “O saber do psicanalista”, 1971-1972, Lacan diz que o desejo de saber que o
analista promove no analisante deve sustentar-se numa questão no tocante ao saber. Não será
suficiente – mas é necessário como condição – que uma análise produza um saber sobre o valor
de verdade dos sintomas que respondem pela posição subjetiva. Será preciso ir além dessa
ficção mentirosa para extrair do sintoma uma letra de gozo, uma cifra singular “para além do
(eu) gozo-sentido [joius-sens][1]”. Dito de outro modo – e citando aqui Veríssimo nesta manhã
de domingo – um saber mais além das “circunstâncias, essas serpentinas em que a gente vive se
enredando[2]”.

Há na psicanálise uma temporalidade paradoxal na qual aquilo que se produz em ato responde
por uma invenção. Passagem do Sujeito suposto saber que inaugura a transferência para o
saber que se inventa no final do jogo.

Voltemos à Nota aos italianos e ao “sicut palea”, expressão tomada de Santo Tomás que
pronunciara essas palavras quando estava finalizando sua Suma Teológica. Santo Tomás
precisou da palavra de Deus para dar por terminada sua obra. A verdade revelada por Deus
colocou ponto final ao saber fragmentado. Furo no saber que deixa para a iluminação Divina o
que a razão não podia decidir. Lacan toma esta expressão para indicar os limites da elucubração
de um saber e precisar o lugar da verdade que “não serve para nada senão criar o lugar onde se
enuncia esse saber[3]”. Mas o saber que toca o real e que modifica a relação ao gozo não se
define pela sua elucubração.

Esse saber que se inventa “passa em ato[4]”. O saber que se inventa é do (a)sexuado, um por
um. Este é o legado que Lacan nos deixou ao propor a Escola e o Passe. Para que esse saber
seja transmitido, para não retirar dele sua dignidade, será preciso continuar com o debate a céu
aberto sobre a atualidade do discurso analítico. Isso significa fazer valer o dizer que passa nas
ranhuras do saber quando o simbólico tece fugazmente no real a letra singular, aquilo que o
dizer como sinthoma poderá sustentar.

Como transmitir isso senão na sustentação de cada cura e, portanto, na sustentação do discurso
analítico? E ainda, como transmitir isso senão por uma posição dupes do real com a qual
deveríamos responder em cada caso clínico e em nossos laços? Isso não é se fazer de bobo, mas
ter uma disposição ao encontro (contingência). Lembremos o que aponta Lacan: dar prevalência
à “lógica da contingência[5]” para a qual é condição “abandonar o recurso a qualquer
evidência[6]”.

__________________________________________

[1]Lacan, J. (1973) …ou pior. Relatório do Seminário de 1971-1972. In: Outros Escritos. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p. 549.

[2] Veríssimo. Na ponta da Língua. In: Jornal O Estado de São Paulo. Caderno 2. Domingo 14 de
agosto de de 2016. P.12.
[3]Lacan J. (1973). Nota Italiana. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p. 315.

[4] Lacan J. (1970). Alocução sobre o ensino. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
2003, p. 310.

[5] Lacan, J. (1974). Televisão. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p. 537.

[6] Ibid, 537.


Prelúdio 14 – Roseli Maria Rodella de Oliveira
“A responsabilidade do psicanalista com as crianças no
campo social”
Lendo Hannah Arendt (2004) para apreender suas considerações sobre o conceito de
segregação me deparo com outro tema que a autora desenvolve – a responsabilidade. Este
tema me leva a pensá-lo sob a ótica da psicanálise com crianças e sobre os problemas cruciais
de nosso tempo, sobre a responsabilidade do campo social aos quais as crianças estão
concernidas.

Comumente os psicanalistas lacanianos abordam o tema da responsabilidade quando falam do


início de uma análise. Lacan (1951/1998) nos mostrou que na análise produz-se uma retificação
subjetiva, indicando a participação do sujeito na desordem da qual ele se queixa, conforme
pontuou a partir do caso Dora. O analisante, levado a reposicionar-se diante de suas queixas,
quando caem seus álibis imaginários, já não pode mais culpar o outro, pois não se trata mais do
desconhecimento de sua posição diante do que vem se queixar, demonstrando sua
responsabilidade e resgatando o lugar de sujeito desejante.

Quando Hannah Arendt (1999) trata do que chamou de banalidade do mal comenta sobre a
recusa das pessoas comuns em assumir a responsabilidade no que resultou na crueldade
institucionalizada durante o extermínio na segunda guerra. Sua constatação é que a crueldade
não é excepcional, é atual, está entre nós e, às vezes, torna-se tão natural, como se a ela
devêssemos nos conformar. Em Responsabilidade e Julgamento (2004), a autora demonstra a
incapacidade das pessoas comuns de pensar e julgar por conta própria, além de não assumir
responsabilidades políticas e pessoais pelas próprias ações.

No capítulo sobre o Little Rock, a autora faz uma reflexão a partir de uma fotografia de jornal
onde uma menina negra saindo de uma escola é “perseguida por uma turba de crianças
brancas” (2004, p. 261). Sobre esta foto Arendt revela a situação que afetou as crianças pela
ordem da decisão da Suprema Corte Americana que pretendeu resolver a questão da
segregação dos negros nos estados sulistas através de uma lei que obrigava que elas poderiam
frequentar as mesmas escolas públicas que os brancos. Ela demonstra que essa decisão
provocou o deslocamento da “responsabilidade dos ombros dos adultos para o das crianças […
e que] há todo um empreendimento, uma implicação de tentar evitar a questão real” (p. 262),
afirmando ainda que não se pode esperar que as crianças saibam lidar com esses problemas e
que não deveriam ser colocadas no centro dessa batalha política.

De forma semelhante, hoje, fazemos o mesmo com nossas crianças e adolescentes ao transferir
algumas responsabilidades da sociedade e, portanto, dos adultos para eles. Como exemplo, cito
a ideia bastante divulgada na mídia brasileira da tentativa de resolver os problemas da violência
social através da redução da maioridade penal. Ou quando a vítima de abuso sexual, menor de
idade, é responsabilizada socialmente como provocadora do ato violento a que foi submetida.
Ainda me vem à mente a recente lei que determina a inclusão das crianças com necessidades
educativas especiais em escolas despreparadas para acolhê-las, empurrando para as crianças a
dificuldade do campo social em conviver com as diferenças, podendo até recrudescer a
segregação.

Transferem-se as responsabilidades do campo social, consequentemente dos adultos, para as


crianças e adolescentes colocando-os como objeto de maus-tratos e negligências, apesar de
termos uma das leis mais atuais sobre o cuidado com as crianças, o ECA. Julien (2000) também
nos chama à responsabilidade sobre elas:

Se é verdade que toda criança nasce na fragilidade e no desamparo de não poder ‘se virar’ por
si mesma, […] As pessoas à volta da criança têm, portanto, o dever de saber o que lhe falta para
poder a isso responder sem demora (p. 24).

Pensar nos problemas cruciais para a psicanálise na atualidade me fez refletir também sobre a
responsabilidade da psicanálise com crianças. Segundo Rouanet (2004) a psicanálise tem
“instrumentos teóricos para pensar as formas contemporâneas assumidas pelo mal-estar na
civilização”, o que dá a ela uma responsabilidade intransferível.

Desde que Freud chamou a atenção para lapsos e atos falhos – esses acontecimentos da vida
cotidiana –, nós, psicanalistas, passamos a prestar atenção em detalhes que parecem triviais,
estranhos, seja no discurso ou em nosso entorno. Ele nos mostrou que os detalhes,
aparentemente sem importância, no campo do inconsciente têm uma importância essencial. A
psicanálise tem a responsabilidade do desvelamento do trivial, ela pode ir além do explícito no
discurso porque ela tem ferramentas para isso, desvelando esses mecanismos de transformação,
no campo social, do essencial no trivial.

Assim concluo: qual o lugar que a criança ocupa no “mal-estar” da civilização atual? Quais são
os problemas cruciais de nossa época para os psicanalistas que se ocupam de crianças que
estão adormecidos, apagados, velados?

REFERÊNCIAS

____________________________

ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo:


Companhia das Letras.1999

_______. Responsabilidade e Julgamento. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

JULIEN, F. Abandonarás teu pai e tua mãe. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2000.

LACAN, J. (1951). Intervenção sobre a transferência. In: Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1998.

ROUANET, P. S. (2004). Dupla utopia psicanalítica. Percurso, n. 33, 2º semestre, Disponível em:
http://www2.uol.com.br/percurso/main/pcs33/33Entrev.htm, acesso em 22/07/2016.
Prelúdio 15 – Silvana Pessoa
“Situação da psicanálise em 2016 e formação dos
psicanalistas”
Preparando o próximo Espaço Escola em São Paulo
Lacan fundou uma Escola. Ele fez Escola. Até o final da sua vida acompanhou diversas pessoas em
análise, formou muitos analistas. Nós, do Campo Lacaniano, um dos herdeiros da sua transmissão,
decidimos constituir Fóruns cujoprincipal objetivo “é sustentar uma Escola de Psicanálise que permita
assegurar o estudo da psicanálise e orientar sua prática. ” [1] Em 2016, sessenta anos após o texto de
Lacan A situação da psicanálise em 1956 e a formação dos psicanalistas,[2] gostaríamos de dar conta,
para um público maior, da situação real e da formação dada, como desejou outrora Lacan no texto
supracitado e que inspira este prelúdio.

A nossa Escola foi criada em Paris há 15 anos, por ocasião do II Encontro Internacional dos Fóruns. Ela
foi nomeada de Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano e, orientada pelo ensino de Freud
e Lacan, tem por objetivo específico o retorno às finalidades da Escola de Lacan: apoiar a elaboração e a
transmissão da psicanálise, a crítica de seus fundamentos, a formação dos analistas, a garantia de sua
qualificação e a qualidade de sua prática. Para dar conta deste intento, mantivemos na nossa Escola seus
dois pilares fundamentais: o cartel e o passe.

Aqui no Brasil, podemos testemunhar que novos carteis cessam de não se inscrever e muitos deles
chegam ao seu termo em até dois anos. Provocam deslocamentos, desfazem efeitos imaginários, não
negam o real em jogo na formação do psicanalista e favorecem a produção de trabalhos. Mais além das
Jornadas de carteis já existentes, inventamos na nossa comunidade diversas modalidades para entender
melhor o dispositivo, a fim de nos engajarmos nele e acolher as suas produções: Cafés, Debates, Rodas,
Seminários, Conversas, Espaços Escola … Tantos e diversos são os “com, de, sobre…” carteis que a
palavra circula, provoca ritornelos, desejo de saber e convoca o trabalho. No final de 2015 tínhamos
aproximadamente 300 pessoas retomando as indicações dos Escritos nos 59 carteis existentes, número
sempre crescente por aqui. Isso é bom, mas o melhor é o movimento necessário de enlaçamentos e
rupturas que geram novos enlaçamentos, rupturas…

Quanto ao Passe, ele está entre nós, muitas vezes falando baixinho, mas em franco funcionamento. Nos
diversos Fóruns do nosso campo brasileiro e da América Latina norte e sul, os delegados e coordenadores
trabalham em diversos textos conceitos cruciais, tais como o desejo de analista, final de análise ou
nomeação, que por vezes provocam em alguns o desejo do testemunho.

Os AMEs, por sua vez, trabalham a direção da cura e escutam nas suas análises “sinais do fim” e o sutil
instante em que algo se decanta em cada um e provoca, quando possível, a indicação de um passador.
Estes, quando designados e sorteados, executam seriamente a sua função. Escutam e se transformam com
a escuta. O testemunho colhido e transmitido ao Cartel do Passe reverbera na sua análise, traz nova
perspectiva. Aquele a quem escutaram, ser ou não nomeado, não faz a menor diferença. O que importa foi
ter sido afetado pela experiência e que os integrantes dos Carteis produzam algo a respeito, como vem
sendo feito regularmente.

Diante deste cenário, podemos dizer que a situação da psicanálise neste campo “vai bem, obrigado”. Mas,
o que nos faz, ainda, interrogar num encontro nacional sobre os problemas cruciais para a psicanálise na
atualidade e colocar “na berlinda”, a cada vez, a formação dos psicanalistas? Interroga-se em um dos
prelúdios. A resposta é dada: uma “aposta de que os fóruns sigam articulando e movimentando sua Escola
e que a Escola siga seu compromisso ético da transmissão.” Eu acrescentaria: fazendo entre nós e “alguns
outros”, uma crítica assídua dos seus fundamentos, da difícil tarefa de transmissão da psicanalise e do ato
analítico. Assim tem sido.

Fazemos também Escola quando nos colocamos perguntas e nos deslocamos entre outros, dentro e fora
do Campo Lacaniano, para pensar e fazer a psicanálise circular pelas atividades de pesquisa e transmissão
nos Fóruns, Diagonais Epistêmicas, Encontros Nacionais, Internacionais, Universidades e/ou nos meios
de comunicação. Todas essas atividades orientadas por uma ética que circula e movimenta o campo em
extensão, que faz a transmissão da letra da doutrina freudiana e que resulta na formação dos analistas,
dispersos e disparatados, sustentada num corpo de trabalhadores decididos advertidos de onde vem a fala
e dos princípios do seu poder.

“Avanços” medidos pelos resultados, mas nem de perto uma situação de conforto. Mesmo tendo
“atravessado” algumas das críticas levantadas por Lacan neste texto de 1956 aos colegas da IPA, e,
apostando permanentemente no compromisso ético e na crítica assídua para tratar dos problemas cruciais
para a psicanálise, convocamos a todos que circulam pelo nosso campo lacaniano, nas bordas e no centro
do turbilhão, a colocarem sua voz, apresentarem seu texto e sua reflexão, no próximo Espaço Escola em
São Paulo, cujo tema será A situação da psicanálise em 2016 e a formação do psicanalista.

Queremos ouvir o que têm a dizer sobre o tema geral e debater com os interessados as estratégias para
manter as finalidades da Escola, os efeitos recolhidos nestes 15 anos de existência, 60 anos após o texto
de Lacan A situação da psicanálise em 1956, quanto à garantia da qualificação dos analistas e a qualidade
de sua prática; o desejo de analista (o desejo inédito, posto que advindo de uma análise), a experiência no
passe e a sua incidência na clínica e na política na nossa Escola; os avanços e impasses da psicanálise nas
instituições e das instituições psicanalíticas.

As propostas de trabalho deverão ser dirigidas para a CLEAG, para o e-mail cleag.1416@uol.com.br até
o dia 30 de setembro. O trabalho final deverá ter 7.500 caracteres (com espaço) e ser entregue até o dia 30
de outubro.

O desafio está lançado! Que tomem para si os que desejarem!

São Paulo, 28 de agosto de 2016

______________________________________________

[1] http://www.champlacanien.net/public/4/ifPresentation.php?language=4

[2] LACAN, J. A situação da psicanálise e a formação do psicanalista em 1956. In: Escritos – Rio de
Janeiro: Jorge zahar, Ed., 1998. pp 461-495.
Prelúdio 16 – Sonia Alberti
“Problemas cruciais para psicanálise na atualidade”
Que linda a abertura das Olimpíadas na sexta-feira, dia 5 de agosto de 2016!

Exatamente naquele dia era queimado vivo um adolescente em cela incendiada por protestos
contra o excesso de menores infratores internados (eram 346 para 120 lugares previstos), na
mesma Cidade Maravilhosa[1]. Agentes queimavam suas mãos no desespero de abrir celas
trancadas com cadeados para liberarem os jovens sem possibilidade de escaparem à fumaça e
às chamas.

O adolescente que não sobreviveu – “respondia por fato análogo ao tráfico de drogas”[2] – já
havia sido liberado, mas sua mãe, sem saber o que fazer para tirá-lo do mundo das drogas,
pediu ao Juiz que o mantivesse internado para que fosse educado na dita medida sócio-
educativa. Problema crucial para a psicanálise e para a cidade, o trabalho com aqueles que se
revezam na função de Outro para os jovens, parece não ter luz no fim do túnel. Ou o Juiz não
tem a menor condição de exercer o seu cargo por não querer saber como andam as coisas de
fato ou por criar realidades apenas a partir dos textos, ou continuamos na antiga situação que
eu já denunciava em 2004, quando observava que, em relação aos jovens, há muitas vezes um
desejo de morte.

Poderíamos abordá-lo também por um outro viés, o do gozo. Somente a partir de não crermos
que após a vida há infinitas vidas infinitamente felizes, conforme o raciocínio de Pascal
revisitado por Lacan, podemos reconhecer uma primeira condição necessária para um
psicanalista: entre psicanálise e religião, Freud operou a disjunção que impõe que a castração
do Outro implica o gozo apenas na vida – e não nas infinitas vidas infinitamente felizes.
Comumente, o gozo é associado ao bem estar, à alegria e ao que é bom, no escamoteamento
de tudo o que ele implica de dominação, usufruto, egoísmo e, particularmente, de pulsão –
acéfala e, não raramente, mortífera. Pode ser que haja muita gente que não o reconhece, já que
todo sujeito é, por definição, aquele que sofre com o real, sujeito do pathos, e no discurso
comum não se reconhece facilmente o gozo desse sofrimento. Mas é crucial, para a psicanálise,
poder divulgá-lo e demonstrá-lo para os outros saberes, não apenas pela sobrevivência dela, é
crucial para que ela promova, no mundo, a percepção do mal-estar inerente à cultura, de modo
a contribuir com a garantia da vida daqueles que, em outros discursos, são tratados como
rebotalhos. Crer na verdade que mantém um adolescente confinado numa medida sócio-
educativa, testemunha da ignorância de que aquela é somente um meio dizer. Lacan nos ensina
que é apenas a partir de um insabido que um ato pode sustentar um sujeito.

Eis o que me parece crucial para a psicanálise em 2016: sustentar cada ser falante num mundo
em que muitas vezes as diferentes formas de existir são segregadas em nome de ideais que não
levam em conta – ou mesmo anulam – as circunstâncias, nem os próprios recursos que cada
falasser terá se puder lançar mão deles. Estariam os psicanalistas aptos a transmiti-lo frente aos
desafios da época que vivemos?

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[1] http://g1.globo.com/rj/regiao-serrana/noticia/2016/08/morre-adolescente-de-petropolis-rj-
queimado-em-rebeliao-no-degase.html

[2] Idem.
Prelúdio 17 – Vera Pollo
“A criança no imaginário e o imaginário da criança”
Por que motivo, justo no encerramento de uma Jornada sobre as psicoses da criança, Lacan se
pôs a falar da “entrada de um mundo inteiro no caminho da segregação” (1967/2003, p.367)? E
por que, nesse momento, define como “enganosa” a ideia de “escolha” da estrutura, seja ela a
neurose, a psicose ou a perversão? Por que, enfim, privilegia o termo “criança” em detrimento
de “infância” ou “infantil”?

São muitas as questões que se podem levantar de uma reflexão conjunta sobre as psicoses e a
criança. No esforço de produzir esta breve elaboração de um problema crucial para a psicanálise
– conforme o tema proposto para o nosso Encontro Nacional -, oscilei justamente entre
escrever sobre o tratamento possível das psicoses e a prática psicanalítica com crianças, um e
outra sendo indubitavelmente campos em permanente construção e, por isso mesmo, de fácil
propensão a desvios.

No primeiro caso, o campo das psicoses, bastaria lembrarmos quanto tempo os psicanalistas
recusaram-se a aceitar sujeitos psicóticos em análise, e o quanto é polêmica a discussão sobre
autismo, a tal ponto que se passou a falar em “espectro dos autismos”, assinalando desse modo
os diferentes empregos do vocábulo “autismo”. No campo da psicanálise com crianças,
produziram-se muitas confusões em torno de uma suposta etapa pré-verbal do
desenvolvimento da criança, produziram-se e ainda se produzem confusões em torno da ideia
de “harmonia do habitat materno”, esta ainda mais suposta. Como se os significantes não
ordenassem a nossa vida do princípio ao fim! Como se toda mãe não fosse, também ela, um ser
atravessado pela linguagem e pelo inconsciente!

Ao escrever a segunda versão de “O estádio do espelho”, em 1949, Lacan reconheceu que varria
com ele alguns preconceitos sobre a função do imaginário, mas seguiu acentuando a
permanente tensão erótico-agressiva característica das relações ditas “duais” e criticou as
interpretações pretensamente analíticas que desconsideravam a incidência do simbólico.
Consequentemente, pensou-se que Lacan não via com bons olhos o registro do imaginário, o
qual se assemelharia a um “saco de gatos” ou, no mínimo, um elo desprezível cujo
descarrilamento anuncia o delírio. Forjou-se o equívoco de que se poderia, e até se deveria,
zerar o imaginário. Equívoco que só se dissolveria ao final do ensino de Lacan, quando ele
decidiu cotejar a leitura da obra de Joyce e o estudo dos nós. Quid do corpo próprio, do amor e
do ódio sem o enlace do imaginário sobrepondo-se aos demais registros?

Talvez possamos dizer, parafraseando a observação de Lacan, em 1958, acerca do complexo


imaginário das mulheres que “as imagens e os símbolos na criança não podem ser isolados das
imagens e símbolos da criança.” As crianças querem ser “as populares” e nós lhes entregamos
brinquedos ditos “transformers”, para que comecem a sonhar com um corpo sem limites de
forma e de textura. Pois hoje, alteramos desde a coloração da pele aos órgãos ditos “genitais” e,
claro, volume dos seios, nádegas e abdome.

No ano que vem, a conferência de Lacan sobre as psicoses da criança completará meio século.
Constatamos diariamente a “previsão” lacaniana de estarmos em uma “época planetária” de
múltiplos imperialismos e de uma “segregação sem precedentes”, a qual separa “massas
humanas fadadas ao mesmo espaço.” Nem toda criança é sinônimo de “infância”, menos ainda
de “infantil”. Como objeto a, ela pode ser causa-de-desejo ou objeto mais-de-gozar. E como
ser-para-o-sexo, que diremos enquanto psicanalistas?
Prelúdio 17 – Vera Pollo
“A criança no imaginário e o imaginário da criança”
Por que motivo, justo no encerramento de uma Jornada sobre as psicoses da criança, Lacan se
pôs a falar da “entrada de um mundo inteiro no caminho da segregação” (1967/2003, p.367)? E
por que, nesse momento, define como “enganosa” a ideia de “escolha” da estrutura, seja ela a
neurose, a psicose ou a perversão? Por que, enfim, privilegia o termo “criança” em detrimento
de “infância” ou “infantil”?

São muitas as questões que se podem levantar de uma reflexão conjunta sobre as psicoses e a
criança. No esforço de produzir esta breve elaboração de um problema crucial para a psicanálise
– conforme o tema proposto para o nosso Encontro Nacional -, oscilei justamente entre
escrever sobre o tratamento possível das psicoses e a prática psicanalítica com crianças, um e
outra sendo indubitavelmente campos em permanente construção e, por isso mesmo, de fácil
propensão a desvios.

No primeiro caso, o campo das psicoses, bastaria lembrarmos quanto tempo os psicanalistas
recusaram-se a aceitar sujeitos psicóticos em análise, e o quanto é polêmica a discussão sobre
autismo, a tal ponto que se passou a falar em “espectro dos autismos”, assinalando desse modo
os diferentes empregos do vocábulo “autismo”. No campo da psicanálise com crianças,
produziram-se muitas confusões em torno de uma suposta etapa pré-verbal do
desenvolvimento da criança, produziram-se e ainda se produzem confusões em torno da ideia
de “harmonia do habitat materno”, esta ainda mais suposta. Como se os significantes não
ordenassem a nossa vida do princípio ao fim! Como se toda mãe não fosse, também ela, um ser
atravessado pela linguagem e pelo inconsciente!

Ao escrever a segunda versão de “O estádio do espelho”, em 1949, Lacan reconheceu que varria
com ele alguns preconceitos sobre a função do imaginário, mas seguiu acentuando a
permanente tensão erótico-agressiva característica das relações ditas “duais” e criticou as
interpretações pretensamente analíticas que desconsideravam a incidência do simbólico.
Consequentemente, pensou-se que Lacan não via com bons olhos o registro do imaginário, o
qual se assemelharia a um “saco de gatos” ou, no mínimo, um elo desprezível cujo
descarrilamento anuncia o delírio. Forjou-se o equívoco de que se poderia, e até se deveria,
zerar o imaginário. Equívoco que só se dissolveria ao final do ensino de Lacan, quando ele
decidiu cotejar a leitura da obra de Joyce e o estudo dos nós. Quid do corpo próprio, do amor e
do ódio sem o enlace do imaginário sobrepondo-se aos demais registros?

Talvez possamos dizer, parafraseando a observação de Lacan, em 1958, acerca do complexo


imaginário das mulheres que “as imagens e os símbolos na criança não podem ser isolados das
imagens e símbolos da criança.” As crianças querem ser “as populares” e nós lhes entregamos
brinquedos ditos “transformers”, para que comecem a sonhar com um corpo sem limites de
forma e de textura. Pois hoje, alteramos desde a coloração da pele aos órgãos ditos “genitais” e,
claro, volume dos seios, nádegas e abdome.

No ano que vem, a conferência de Lacan sobre as psicoses da criança completará meio século.
Constatamos diariamente a “previsão” lacaniana de estarmos em uma “época planetária” de
múltiplos imperialismos e de uma “segregação sem precedentes”, a qual separa “massas
humanas fadadas ao mesmo espaço.” Nem toda criança é sinônimo de “infância”, menos ainda
de “infantil”. Como objeto a, ela pode ser causa-de-desejo ou objeto mais-de-gozar. E como
ser-para-o-sexo, que diremos enquanto psicanalistas?
Prelúdio 18 – Robson Melo
“De onde vem o desejo de psicanálise”
“Bichos e Parangolés”
Parto da questão central: de onde vem o desejo de psicanálise? Mas também podemos colocar:
o que não se pode deixar de lado quando o que se deseja é que a psicanálise continue com a
força de sua “sega cortante” na atualidade neurocientificista, essa última que, todo tempo, se
esforça para fazer calar a verdade que o sintoma analítico traz consigo, propondo, cada dia mais
e mais, a ampla, geral e irrestrita medicalização como a solução para todo tipo de padecimento
humano? De onde extraímos entusiasmo e animação para seguirmos trabalhando de forma
decidida, erotizando os laços na pólis? Como conseguimos encontrar forças para, todo tempo,
lidarmos com a vertente destrutiva e desagregadora da pulsão de morte – essa sempre
amalgamada à pulsão de vida? Vejo, aqui, alguns problemas cruciais para a psicanálise no nosso
tempo.

Claro que, de largada, temos de partir da proposição freudiana acerca do tripé da formação do
analista (A questão da análise leiga, 1926): análise pessoal, estudo continuado e a supervisão.
Decanto essa premissa colocando o acento grave no primeiro item – a psicanálise em intensão
(pelo viés do analisante). Mas jamais desconectada da extensão. Sei bem que aqui há um
mundo. Algumas vezes, e para alguns, também há um muro!

Apostamos no trabalho no âmbito de um Fórum do Campo Lacaniano. Apostamos na Escola de


Lacan porque queremos seguir com a formação. Trabalho e desejo: desejo de trabalho! A
formação é, e deverá ser percebida, antes, formação do inconsciente. Eis a plataforma da
viagem do sujeito.

E, se a tonicidade do desejo de psicanálise recai sobre a questão da análise pessoal, também


podemos dela desdobrar algumas outras questões do tipo “problemas cruciais”, como por
exemplo: como operar de modo que a simples queixa se transforme em sintoma analítico,
possibilitando a entrada em análise, e, dentro, o que fazer e como fazer para que se queira levar
esta experiência a seu termo? Ok. Agora convidamos também o analista para o centro da roda
da conversa. Onde ele sempre tem de estar. Combinemos que não estamos falando de sua
pessoa em carne, naturalmente. Mas, sim, do lugar que ele ocupa, do qual ele não deverá sair, e
do seu enigmático desejo – desejo do psicanalista – depurado e recolhido em sua própria
análise levada até o fim. Estamos falando do real que daí advém, e que contribuirá para que se
estabeleça um “bom encontro”. Que ele esteja todo tempo advertido da sua posição de objeto
causa de desejo. Tal e qual os objetos “bichos” de Lígia Clark e os “Parangolés” de Hélio Oiticica,
parafraseando Adriana Calcanhoto ( Parangolé Pamplona.In Marítimo), esse objeto “o analisante
(em sua análise) mesmo faz!”. Que esteja disposto a dar tratamento e a suportar a resistência
que, porventura, irrompe na análise e que conduz ocasionalmente à transferência negativa. Mas
lembremos que não é possível que o tripé suporte bem a formação sem que aquele que se
apresente para as entrevistas preliminares consinta e aceda ao trabalho analítico, pois afinal, é
dele a tarefa analisante.

De onde vem o desejo e o entusiasmo do psicanalista? Da experiência analítica, ela mesma.


Dessa viagem por muitos lugares e de longa duração (o tempo necessário para elaborar e
concluir um saber que se recolhe após acumulação do tempo!).
Não menos: temos também de falar dessa experiência com “inventividade”. Reinventemo-nos
naquilo que poderá ser reinventado – sempre importante lembrarmos do estabelecimento dos
laços com os sujeitos na pólis, bem como com outros saberes, na via mesma da transmissão.

Penso que, se queremos lançar um olhar especial para a psicanálise e seus problemas crucias,
também não nos esqueçamos de articular o nascedouro desse desejo no encontro do sujeito
com o analista.

Também sou de acordo que devemos pensar um pouco mais sobre o que poderemos recolher
daquilo que se estabelece no hiato entre significante do sujeito e o significante qualquer do
analista ao qual o primeiro se dirige, e que, ao final, levará o sujeito/analisante a deslizar por sua
cadeia significante munido do desejo de saber/desejo de decifrar a verdade constitutiva do seu
sintoma. Estamos aqui, realmente, aludindo ao algoritmo da transferência proposto por J. Lacan.

Talvez também seja interessante falarmos mais em nossos encontros sobre o real presente no
trauma – sempre infantil – que sempre possibilita ao analisante a transferência. Que colabora e
a atualiza, dando boa sustentação a todo o trabalho. Estariam aí os elementos para o dito “bom
encontro” entre analista/analisante?

Talvez esse desejo de psicanálise, que a todo tempo nos anima e entusiasma e que nos põe ao
trabalho diuturnamente pela transmissão já estivesse presente desde o momento do trauma
(cena traumática). Na análise o sujeito consegue lhe dar outro estatuto, resgatando-lhe toda a
sua potência erótico-transformadora – que sempre deseja tocar outro falante.

“Metamorfose”.
Prelúdio 19 – Elyne Barros Lima
“Luz, camera, ação!”
Em 2006, no Fórum Fortaleza, criamos a atividade “Cinema e Psicanálise”. Naquela época, Lia
Silveira e eu ficamos responsáveis por coordenar essa atividade que nos encantava muito e
serviu para aproximar muita gente do Fórum e também nos aproximar da comunidade de uma
forma geral. Mas não somente para isso. Serviu para conversarmos com outras pessoas e outros
saberes e para mim, particularmente, uma oportunidade de ampliar os horizontes. O cinema
tem essa beleza.

Bem, naquele ano, exibimos o filme O Espelho, do cineasta russo Andrei Tarkovski, e para tornar
a discussão mais interessante, Lia me encaminhou uma cópia em francês do livro dele, Esculpir o
tempo. Na época traduzi um capítulo, O tempo impresso, ou na minha tradução, Fixar o tempo,
que me pareceu dizer mais das ideias de Tarkovski sobre o tempo e o cinema, e também, claro,
sobre o tempo e a psicanálise.

Não lembro o que discutimos naquele dia, mas a leitura do trecho do livro do cineasta me
impressionou profundamente, sobretudo pelas aproximações que essa concepção sobre o
tempo guarda em relação àquela da psicanálise. Relendo o livro, publicado em português um
pouco depois, destaquei algumas dessas aproximações. Segue agora um pequeno trailer sobre
elas:

Trailer:

Para Tarkovski o grande diferencial do cinema – o que o distingue das outras artes, como a
literatura e o teatro – é a capacidade de se “registrar uma impressão do tempo”[i]. Não só isso,
mas “a possibilidade de reproduzir na tela esse tempo, e de fazê-lo quantas vezes se
desejasse…” Ele diz ainda que “o tempo registrado em suas formas e manifestações reais, é esta
a suprema concepção do cinema enquanto arte.” O diretor problematiza dizendo que se tem
usado o cinema como reprodutor de outras artes, como a literatura e o teatro. Porém, para ele,
isso retira o potencial do cinema que é “imprimir em celuloide a realidade do tempo”[ii]. Diz
ainda que “o que leva as pessoas ao cinema é o tempo: o tempo perdido ou ainda não
encontrado”[iii]. Se pararmos para pensar um pouco, muitas das queixas que escutamos ao
receber os pacientes no fundo tratam disso, de “um tempo perdido”. Tempo perdido com a
força inibidora da neurose que fixa o sujeito num mesmo tempo e que se repete de outras
formas, com outros personagens. Mas, no entanto, é o mesmo clichê. E é comum ouvirmos:
“Quero sair dessa”. “Não aguento mais! É sempre a mesma história! Você pode me ajudar? ”

Tarkovski em seu livro se pergunta então em que se constitui a tarefa de um diretor. Qual sua
essência? E responde: “esculpir o tempo”. Ele deve pegar o “bloco de tempo” constituído por
muitos fatos, cortar e rejeitar tudo aquilo que não necessita e reter apenas o que será o
elemento de um futuro filme. Nesse ponto, qualquer semelhança não é mera coincidência, pois
Freud[iv] já dizia que a psicanálise, assim como a escultura, “funciona per la via di levare pois
retira da pedra tudo o que encobre a superfície da estátua nela contida”. Revelar o inconsciente
é tarefa árdua! Lidar com as resistências é como trabalhar esculpindo pedra, um trabalho
artístico feito no um a um.

Assim, Lacan nos lembra com Freud que o artista em sua matéria sempre precede o
psicanalista[v], e Tarkovski, podemos dizer assim “freudiano”, valendo-se também do tradicional
gênero da poesia japonesa, o haicai[vi] (tal como Eisenstein observou), percebeu que a
combinação de três elementos separados – princípio que está na base desse gênero – é capaz
de criar algo novo, diferente de cada um dos versos. E transpôs isso para o cinema, porém com
uma diferença: ao contrário da prosa e da poesia, que fazem uso das palavras, o cinema parte
da observação direta da vida. A observação direta não quer dizer reprodução direta, segundo
Tarkovski, mas o que vai compor o filme é aquilo que se justifica como essencial à imagem. Para
nós, psicanalistas, o que interessa também não é a sucessão dos acontecimentos, a cronologia
dos fatos, esse não é o ponto mais importante. Freud já tinha se dado conta disso havia muito
tempo quando escreveu a Fliess em carta de 21 de setembro de 1897[vii] dizendo que não
acreditava mais na sua neurótica, dando assim um passo em direção à construção da fantasia.
Freud, e depois Lacan, fazem um percurso que vai do mito à ficção e depois à fixão, neologismo
inventado por Lacan[viii] para falar desse ponto irredutível, do impossível que fixa o sujeito pela
estrutura de linguagem, operando uma redução das ficções do seu romance familiar.

Tarkovski termina esse capítulo dizendo que “o cinema deve ser o meio de explorar os
problemas mais complexos de nosso tempo”[ix]. A direção para isso está, segundo ele, em
sermos capazes de apreender com a mais segura precisão qual a especificidade do cinema[x] e,
quem sabe assim, encontrar a chave que nos abra as portas. Será que não podemos também,
tomando o exemplo de Tarkovski, usar como chave para os problemas cruciais da psicanálise,
nos atermos à especificidade de sua ética e estarmos à altura daquilo a que esse tempo nos
convoca? Penso que a recomendação de Lacan “estar na hora de Freud” (estilo) esaber
“desmontar o relógio”[xi] (savoir y faire) é atualíssima.

The end

_______________________________________________________

[i] Tarkovski, A. Esculpir o tempo. São Paulo: Martins Fontes, 2010, pág. 71

[ii] Idem, pág. 71

[iii] Idem, pág.72

[iv] Freud, S. Sobre a Psicoterapia. In: S. Freud. Edição standard brasileira das psicológicas
completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, vol.11, pág. 67-142.

[v] Lacan, J. Homenagem à Marguerite Duras pelo arrebatamento de Lol V. Stein. In: Outros
Escritos. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 2003, pág. 198 à 205

[vi] Exemplos de haicai citados por Eisenstein in: Tarkovski, A. Esculpir o tempo. São Paulo:
Martins Fontes, 2010, pág. 76: A lua brilha fria;/Perto do velho mosteiro/Um lobo uiva.

[vii] Freud, S. Carta 69. In: S. Freud. Edição standard brasileira das psicológicas completas de
Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, vol. 1

[viii] Lacan, J. O aturdito. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 2003, pág. 480

[ix] Op. cit, pág. 94

[x] Grifo meu

[xi] Lacan, J. A direção da cura e os princípios do seu poder. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar
Editor, 2003.
Prelúdio 20 – Ana Laura Prates
“A terra salgada faz litoral ou #somostodosíndi(c)os”
Entre centro e ausência, entre saber o gozo, há litoral. (Jacques Lacan)

E era como se naquele imenso mar se desenrolassem os fios da história, novelos antigos onde
nossos sangues se haviam misturado. Eis a razão por que demorávamos na adoração do mar:
estavam ali nossos comuns antepassados, flutuando sem fronteiras.

– Somos da igual raça, Kimdzu: somos índicos

(Mia Couto)

Por mais distante, o errante navegante, quem jamais te esqueceria. Terra, Terra. (Caetano
Veloso)

Em O sal da terra (Wenders, 2015), somos brutalmente confrontados com o que não queremos
ver. O olhar de Salgado recortou a realidade indicando um real. Até que seu olhar caiu e ele
perdeu a fé no homem, após testemunhar e fotografar um dos maiores genocídios do século 20
e ver, no olhar do outro, a perda da perspectiva de qualquer utopia. Ele havia publicado em
Êxodos (2000) o que nomeou de “história da humanidade em trânsito”. O relatório Global
Trends aponta 65,3 milhões de pessoas deslocadas por guerra e conflitos até o final de 2015.
Sabemos que a noção moderna de Estado Nação criou um mundo com fronteiras.

Por sua vez, a falsa promessa da Globalização através da pretensa unificação promovida pelo
capital e pela informação leva ao que Milton Santos chama de esquizofrenia do espaço,
apontando para o fato de que nessa nova ordem mundial, e apesar das aparências, o Estado se
torna mais forte e mais presente, a serviço da economia dominante. A face fascista do Estado e
seu sintoma mais obsceno – o nacionalismo – nunca esteve tão explícito, inclusive no Brasil. Essa
lógica só faz recrudescer o racismo, a segregação sistemática e seu corolário: o campo de
concentração generalizado, tal como previsto por Lacan e sistematizado por Agamben na noção
de homo sacer. Talvez o caso brasileiro mais dramático e obsceno seja o dos Guarani-Kaiowá no
Mato Grosso do Sul. Ora, nós, que nos declaramos publicamente analistas, não podemos nos
alinhar aos piores cegos. Fazendo jus ao efeito feminizante da letra que experimentamos no
divã, podemos propor outro topos e, pelo princípio de solidariedade, precisamos sustenta-lo na
polis.

A experiência analítica nos ensina a inventar esse outro topos a partir do caráter estrangeiro
d’alíngua, tal como Lacan transmite em Lituraterra. Na pena de Saramago, em Ensaio sobre a
cegueira, a mulher é a única a ver a devastação e o gozo que a civilização encobre. Ela que, na
continuação da trama Ensaio sobre a lucidez, é morta justamente por enxergar longe demais.
Saramago revira o lugar da “visão interior” de Tirésias, projetando o olhar para fora, mas nem
por isso tornando-o mais visível. O analista tampouco pode deixar seu olhar mortificar-se pela
visão do terror. Lacan nos indica: o que o sintoma institui, com sua política, é passível de
interpretação.

Salgado, após depor seu olhar, dá uma volta a mais nesse outro espaço topológico que
atravessa territórios e fronteiras, não pelo capital, mas pelo litoral. Lacan distingue a fronteira do
litoral que é fundante da letra, enquanto borda do furo no saber, desenhando a margem com o
gozo. A partir desse outro topos, Salgado conclui que “a raça humana é somente uma” e
inventa um novo território.
O litoral de Salgado é traçado com as letras de seu nome: “o sal da terra”. E Wenders é o
passador desse sal que aduba o renascimento das fontes. A partir das terras secas herdadas do
pai e das vidas secas que fotografou, Salgado promove o escoamento das águas, sedimentando
seu sal e fazendo brotar a vida na terra. A vida na Terra. Afinal, #somostodosíndi(c)os
Prelúdio 21 – Andréa Hortélio Fernandes
“O sonho via régia do inconsciente real?”
A descoberta da psicanálise é consecutiva com a interpretação dos sonhos via régia do
inconsciente. Na descrição do trabalho dos sonhos Freud põe em destaque uma nova definição
do inconsciente que será atualizada por Lacan ao definir o inconsciente como estruturado como
uma linguagem.

No tratamento dado à interpretação dos sonhos, Freud se confronta com o umbigo do sonho
como algo que resiste à interpretação. Com Lacan, o umbigo do sonho seria o ponto de real
inscrito no simbólico do sonho e que aponta para a impossibilidade da tradução do
inconsciente meramente em termos de sentido.

Com o dispositivo do passe, em funcionamento na nossa Escola, cabe examinar, na atualidade,


se os sonhos seriam a via régia do inconsciente real quando para o parlêtre esgota-se a
demanda de sentido articulando isso ao umbigo do sonho.

Desde a “Interpretação de Sonhos” (1900) a decifração inconsciente não se restringiu a busca de


sentido. Desde sempre, o umbigo do sonho demarcou o ponto em que o gozo opaco atravessa
o sujeito ultrapassando a lógica significante. A descrição do umbigo do sonho já aponta na
direção do inconsciente real.

“Mesmo o sonho mais minuciosamente interpretado, é freqüente haver um trecho que tem de
ser deixado na obscuridade; é que, durante o trabalho de interpretação, apercebemo-nos de
que há nesse ponto um emaranhando de pensamentos oníricos que não se deixar desenredar…
Esse é o umbigo do sonho, o ponto onde ele mergulha no desconhecido” (FREUD, 1900, p. 560).

O sonho tomado como via régia do inconsciente pode promover a associação livre do
analisante. Os sonhos nos testemunhos de passe trazem à luz um problema crucial para a
psicanálise, eles podem se revelar como a via régia pela qual “algo passe” de “um pedaço de
real” ( FARIAS, 2010, p. 14).

Nesta perspectiva, o passe pode fazer avançar a psicanálise. Tanto para os passantes como para
os passadores, os sonhos que o passe desencadeia revelam uma reabertura do inconsciente.
Porém, os sonhos “não são sonhos que aparecem como enigmas que pedem interpretações,
não se dirigem ao Outro, não se abrem ao deciframeto” ( FARIAS, 2010, p. 16). São sonhos que
relançam a questão sobre a formação do analista e as formações do inconsciente (MAZZUCA,
2012). No sentido em que os sonhos no passe vivificam o axioma de Lacan segundo o qual “o
analista só se autoriza de si mesmo” (LACAN, 2003, p. 248),
mas não sem os outros.

No passe, o relato de sonhos, algumas vezes, pode permitir destacar, no só depois, o momento
decisivo do final da análise. É desta forma que um gozo opaco pode ter seu tratamento por
advir como letra de alíngua sobre a qual se depositou uma série de equívocos do sujeito. É
desta forma que se aproximarmos o umbigo do sonho, em Freud, à alingua, em Lacan, os
sonhos como formações do inconsciente podem contribuir para fazer avançar a psicanálise
naquilo que não se traduz, mas que é transmissível por revelar o inconsciente real, que não tem
nenhuma espécie de sentido, mas de onde tudo parte.

Referências:
FARIAS, F. “Sonhos dos analisante, sonhos do passante” (2010) in: Wunsch – Boletim
Internacional da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, nº 12, janeiro 2011.

FREUD, S. “A interpretação dos sonhos” in: Edição Standard das Obras Completas Brasileiras de
Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1974, p. 560.

LACAN, “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola” in: Outros Escritos.
Rio de Janeiro: Zahar, 2003.

MAZZUCA, M. “O analista analisante” (2012) in: Wunsch – Boletim Internacional da Escola de


Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, nº 12, junho 2012.
Prelúdio 22 – Maria Anita Carneiro Ribeiro
“Prelúdio”
O Seminário, livro XII, Problemas cruciais para a psicanálise (1964-65), ocupa um lugar
estratégico no ensino de Lacan e evocá-lo em um Encontro Nacional, neste momento de nossa
história, é mais do que oportuno, é também estratégico.
No primeiro semestre de 1964, Lacan, atendendo à demanda de seus alunos, retoma seu
seminário após a “excomunhão” da IPA. Ele o faz empreendendo seu segundo “retorno a
Freud”: inconsciente, pulsão, transferência e repetição… Os quatro conceitos fundamentais da
psicanálise (Seminário, livro XI) renovam os votos do “Discurso de Roma”, mas exigem um passo
a mais. Depois de dez seminários construindo cuidadosamente os conceitos de sujeito e objeto
da psicanálise, sob a égide do aforismo “o inconsciente estruturado como uma linguagem”, é o
momento de começar a interrogar a própria relação da psicanálise com a ciência.

Em 1953, Lacan apostava na possibilidade de inscrever a psicanálise junto à antropologia e à


linguística estruturais no campo das ciências conjecturais. Em 1964, retomando o nascimento da
ciência moderna com Descartes, ressalta a especificidade da lógica da psicanálise. Nas
operações lógicas de causação do sujeito – alienação e separação – as operações aristotélicas
de reunião e interseção são atravessadas pela lógica da castração:

Nem a bolsa, nem a vida: a escolha inevitável da vida traz em si inscrita a morte como destino.
Nem o ser, nem o sentido: a escolha inevitável pelo sentido tem como destino último o não–
sentido. Nem do sujeito, nem do Outro: o objeto, para sempre perdido, cai entre os dois
conjuntos faltosos e não pertence a nenhum deles.

A descoberta freudiana do inconsciente se inscreve no Aulfklarung do cogito de Descartes à


condição de subverte-lo. O Seminário, livro XII, de1964 a 1965, prossegue neste caminho,
interrogando os limites do sentido, da significação, do não–sentido (nonsense) e da ausência de
sentido (absense). Com base no princípio freudiano da não contradição, que rege o
inconsciente, Lacan retoma a lógica do paradoxo para mostrar que, diferentemente do
silogismo aristotélico em que:

Se A=B
e B=C
Donde A=C,
no inconsciente,
A é diferente de A
e se eu digo: “ Eu minto”,
eu é diferente de eu.
Finalmente, na primeira lição do Seminário, livro XIII, O objeto da psicanálise, que constitui o
texto que encerra seus Escritos “ A ciência e a verdade”, Lacan traça com clareza o lugar da
psicanálise com relação não só à ciência, mas também à magia e à religião. Um lugar de
interseção, mas não de sobreposição ou de subserviência.

No momento em que vivemos, no Brasil e no mundo, a disseminação de uma faceta do discurso


da ciência que ignora o sujeito do inconsciente (que é o próprio cientista), é acompanhada pela
explosão do fundamentalismo religioso. Esta combinação malsã espraia certezas paranoicas,
exclusão e segregação. Enfim, um discurso de ódio que se reduz à pura manifestação da pulsão
de morte.

Em 1972, nas Conferências Italianas que proferiu em Milão, Lacan chama a atenção para a
foraclusão do laço social no discurso capitalista. A foraclusão do laço social significa o
esvaziamento da libido das relações entre os homens, restando a pulsão de morte, em nome de
certezas delirantes quer científicas, religiosas ou políticas.

Ao lado do discurso da histérica, somente o discurso analítico recupera o lugar do amor no laço
social. Porém, ali onde a histérica ama e conclama o mestre para que ele produza um saber, o
discurso do analista produz transferência: amor ao saber.

Assim, toda reunião de analistas, como nosso Encontro Nacional, que faça ecoar este discurso
produzindo ondas que se propagam é, como disse, mais do que oportuno, estratégico.
Prelúdio 23 – Vera Iaconelli
“Banho de água fria”
Comparo o trabalho como analista a um mergulho em água fria em dia de muito calor.

Haja coragem para enfrentar o atordoamento dessa outra di(t)mensão e, ainda assim, tão revigorante!

Quase todo dia, quase o dia todo, sair da pasmaceira morna e cômoda em direção ao campo de maior
densidade, de correntes insuspeitas, onde vigoram outras regras. Nadar, boiar, quase se afogar…

Lacan chamará de aberração esta escolha de ser analista, escolha de se deixar enredar de novo. Mas desta
vez pelo enredo do outro, para que este outro, quiçá, se desenrede e decida o que fazer com sua rede, até
então camisa de força.

Que estranha convicção se renova nesta escolha de se oferecer ao laço transferencial, não pelo lado da
avidez da demanda, mas pelo lado do semblante. Assumindo este lugar, dedico-me a escutar
diuturnamente o que os ditos trazem, ainda que o tragam para fazer esquecer que algo diz. Me pergunto o
que sou capaz de escutar? Por que desta vez um pouco mais, de outra um pouco menos?

Um paciente em grande sofrimento diz: não desisto da psicanálise porque não sei desistir, ao que escuto,
não sabe de existir?

Tampouco sei de existir, mas sei de escutar a insistência do que ex-siste, sendo o fim de minha análise
marcado pela desistência diante do impossível, escapando do logro da impotência/onipotência, de tentar
saber da ex-sistência pelo beco sem saída da verdade.

No momento de concluir minha análise, fui a uma exposição dos desenhos de Francis Bacon. Desenhos
que Bacon fez no fim da vida para seu jovem amante, escondido da pressão da fama e das exigências da
galeria com quem tinha contrato de exclusividade, e contrariando suas próprias declarações de que não
desenhava. Figuras terrivelmente belas, que para meus olhos leigos soaram deslumbrantes. Desenhos que
contradizem as expectativas sociais, econômicas e as próprias expectativas do artista e que remetiam ao
início de sua carreira. A análise contraria a expectativa do analisante, embora revele o que lhe diz mais
respeito desde a origem.

A experiência com estes desenhos me atraiu em direção ao terrível, ao estranhamente familiar, e me


remeteu a uma das maravilhas que sujeitos são capazes de produzir a partir do real.

A análise é uma outra possibilidade de apontar para sua direção.

Que escolha aberrante é esta, se não a dos que sentem ternura pelo espanto, como nos diz Lispector no
conto Amor (1977).

Esta fresta do inumano, tão assustadora, quanto atraente. Tão gelada, tão refrescante!

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FRANCIS BACON Exposição Italian Drawings.


Paço das Artes Cidade Universitária São Paulo, de 16 de julho à 07 de setembro de 2014.

LISPECTOR, C. Laços de família, São Paulo: Editora José Olympio, 1977.


Prelúdio 24 – Rosane Melo
“Prelúdio 24”
Um dos problemas cruciais hoje na clínica com crianças é o fenômeno de patologização e da
medicalização da infância, à medida que tudo que foge à normalidade roteirizada passou a ser
tratado como doença a ser medicada. Acompanhamos um processo de biologização do
cotidiano a partir do discurso da biociência e de pretensão de um controle cada vez maior da
vida, acompanhado de um discurso que incentiva a medicalização da sociedade em geral e, em
particular, do campo educacional. Em “Ciência e verdade”, Lacan já nos advertia das
consequências das tentativas da ciência, em nome da verdade, recobrir tudo com o simbólico. A
ciência foraclui a verdade, foraclui a verdade do desejo e da fantasia na constituição do sujeito
assujeitando-o aos seus métodos. Verificamos a convergência histórica de entidades
nosológicas que provêm das avaliações médicas: a disritmia cerebral a dislexia, a lesão cerebral
mínima, a disfunção cerebral mínima, o transtorno do déficit de atenção com hiperatividade. No
DSM5, a comorbidade mais frequente apontada para o TDAH é com o Transtorno de Oposição
Desafiante (TOD), além do Transtorno Específico de Aprendizagem. Logo, legitima-se a
medicalização das dificuldades de aprendizagem pela afirmação da comorbidade dos quadros.

O binômio infância e escola emerge na cultura ocidental atravessado pelo processo de


racionalização e diferenciação institucional característico das sociedades modernas ocidentais e
por uma concepção de desenvolvimentismo que edifica as perspectivas evolucionistas e
normatizadoras dessa época. A cronologização do curso da vida traz implicações discursivas e
tecnologias disciplinares fundamentadoras das práticas de cuidados e tutelares sobre a infância
e a adolescência. A escola emerge nesse contexto como local privilegiado para preparar o
futuro das novas gerações na conquista de estágios sucessivos de aperfeiçoamento pessoal,
pois os atributos infantis espelham o não adulto: irracional, vulnerável, imaturo e dependente. É
interessante observar que toda essa epidemia divulgada e exponencialmente multiplicada de
transtornos, que inclui as chamadas “doenças do não aprender”, ou seja, os “transtornos de
aprendizagem”, ocorre quando a avaliação da qualidade das escolas pública e privada atinge
seus piores níveis no nosso país[2]. Tratar o TDAH e as dificuldades de aprendizagem com
psicotrópicos que têm numerosas e graves reações adversas é desconsiderar as inúmeras
pesquisas que indicam a necessidade de mais estudos para o uso de tais medicamentos, que
por sua vez têm o mesmo mecanismo de ação que as anfetaminas e a cocaína: poderosos
estimulantes do sistema nervoso central que aumentam a atenção e a produtividade, enfim o
desempenho de funções executivas que auxiliam na realização de tarefas escolares e
acadêmicas, além de diminuir a fadiga.

O uso do metilfenidato, por ser um estimulante derivado da anfetamina, tem sido utilizado por
estudantes, profissionais e pesquisadores com o objetivo de se manter mais tempo acordados e
concentrados na tarefa a ser realizada. O tema ganhou maiores proporções no meio acadêmico,
a partir dos artigos publicados em 2008 pela Revista Nature sobre o uso do metilfenidato para
melhoria do desempenho profissional. Escândalo por quê? Ora, sabe-se da existência de
anfetaminas de uso não-médico, sintetizadas em laboratórios clandestinos, conhecidas como
ecstasy, ice e crystal . Alguns neurologistas e psiquiatras disseminaram que o metilfenidato
funciona como amplificador cognitivo, ou seja, afirmam que a droga aumenta a capacidade de
aprendizagem e concentração. Outros advertem que é mais um dopping intelectual, pois o
sujeito fica focado demais em uma única atividade. O uso recreativo do metilfenidato decerto
que aumenta a procura pela droga. Muitos usuários acabam suspendendo por conta própria a
ingestão das drogas por se sentirem como zumbis, os zombie-like.
A psicanálise mantém nesse contexto um questionamento ético e político, ao preconizar um
tratamento que leve em conta o sofrimento psíquico de um sujeito criança ou adolescente, sua
história, seus laços sociais dentro e fora da escola, quer dizer, um tratamento que inclui seu
sintoma em seu processo de escolarização. Hiperatividade, desatenção, não-aprendizagem
podem ser sintomas e como tais expressam uma angústia que assinala o que há de mais
particular do sujeito dentro dos laços sociais. Não podemos nos esquecer de que na
modernidade, lançadas às vitrines, a infância e a adolescência tornaram-se alvo da cultura do
consumo, inclusive de remédios.

A medicalização da infância e da adolescência pode ser interpretada como mais uma


modalidade discursiva de elisão do desejo e foraclusão do sujeito na cidade dos discursos. A
infância e a adolescência roteirizadas e ficcionadas encontram-se fixadas no Outro do discurso
dentro de uma sociedade hiperativa. Nesse caminho, há um empuxo à intervenção imediata,
sem levar em conta o tempo para compreender, uma espécie de impulsividade diagnóstica. O
discurso do analista, por ser aquele que reinstaura o lugar do sujeito, pode instaurar a política
da falta – falta-a-ser; falta-a-saber; falta-de-saber – para contrapor esses discursos que
pretendem assegurar a onipotência do Outro. A psicanálise ao interpretar os discursos vigentes
interroga o status regulamentador de um dado discurso e suas formas de tratamento dos
desvios e das anomalias. Cabe na conexão psicanálise e educação interrogar o quanto o saber
pedagógico se alia às leis do mercado que a ciência moderna sustenta ao contribuir para
fabricação dos fármacos, para a proliferação das doenças e de doentes. Ademais, podemos
apostar no retorno do que vetorializa toda e qualquer concepção de escola, qual seja uma
referência à elaboração do saber, um saber-não-todo, colocando em cena o sujeito e o que se
transmite.

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[1] O presente texto trata de reflexões oriundas das minhas incursões pelo campo da educação,
algumas já indicadas em textos como o artigo publicado na revista Marraio intitulado “O avesso
do ato na psicologia das massas e no discurso capitalista: reflexões sobre a medicalização da
infância” (MELO, 2012), e um capítulo do livro pela Rede de pesquisa Psicanálise e Infância do
FCL-SP, cujo título é o mesmo do presente prelúdio.

[2]O Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB), de 2013 mostrava um IDEB nacional
de 5,2, enquanto em 2011 havia sido de 5,0 (Ver também http://www.inep.gov.br). Em 2015, a
Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) divulga um dos mais
completos rankings globais de qualidade de educação. Nele, o Brasil aparece apenas em 60º
lugar entre 76 países estudados.
Prelúdio 25 – Colette Soler
“Problema crucial na psicanálise”
Os psicanalistas sempre tiveram a ideia de que a psicanálise era melhor antes. O tema apareceu
sob a pluma do próprio Freud, em torno de 1920, e Lacan o abordou, ele que tanto denunciou
que os analistas de seu tempo estavam desbussolados. Daí que o hoje de «a psicanálise hoje» já
dura muito. É tão sem data que já foi o título da obra que Lacan tomava como exemplo de sua
degradação em «A Direção do tratamento». Para os cientistas, é a ideia contrária que domina,
eles pensam estar sempre no avanço, o que me leva a concluir que o declinismo dos
psicanalistas tem certamente uma razão que não diz respeito apenas à insuficiência das pessoas.

Essencialmente, ele se deve à fala que faz o falasser – de ainda e sempre sem dúvida – no
entanto está sujeita ao tempo e a suas evoluções. Temos por adquirido, com Lacan, que as
regulações dos laços sociais que são os discursos estão inscritas no real, estruturando a
realidade – histórica, familiar, social, econômica, política – que precede todos os sujeitos
tomados nela. «Discurso sem fala», dizia Lacan, para marcar a anterioridade dessa ordem
discursiva. Por outro lado, para ser assujeitado, a-sujeito de um discurso, é preciso dele se
apalavrear[1]. Ação que supõe, em retorno, a margem de «liberdade» sem a qual o Humano não
é pensável e se converte em máquina, cerebral, hormonal, genética etc., é ela que torna possível
as evoluções históricas, com «o que caminha nas profundezas do gosto» (Lacan, 1963/1966)
tanto quanto com os sobressaltos manifestos das ditas revoluções. É possível questionar o
caminho percorrido desde a tradição pré-científica do discurso do mestre até o capitalismo
financeiro dos dias de hoje? O mesmo ocorre com a psicanálise: seu discurso está à mercê dos
sujeitos que dela se apalavreiam.

Mas os psicanalistas, ao se inquietarem, com razão, e ao temerem que os sujeitos, seduzidos


com tantas promessas espocando na atualidade, podem não mais querer se apalavrear à
psicanálise. Que isso sempre ainda seja possível é assegurado se a transferência, efeito não do
discurso mas da linguagem, «se motiva suficientemente do traço unário»[2], como o diz Lacan.
Mas é preciso mais do que o possível. Ora, quanto a esses sujeitos, os analistas nada podem
enquanto eles não entrarem no dispositivo do tratamento inventado por Freud, isso é certo,
donde: de quem poderia depender o futuro da análise se não dos próprios analistas e da
maneira como a fazem operar?

Evoca-se frequentemente a frase de Lacan a propósito do analista que deve conjugar-se à


subjetividade de sua época. Ora, quem não vê que na relação com as pulsões e, ainda mais, com
o sexo, alguma coisa mudou desde Freud? Ele pensava o laço entre o ICS e o sexo em termos
de recalque, imputável ao que denominava defesa, em nossos termos, a verdade articulada do
sujeito. Lacan, por sua vez, chegou junto em relação aos costumes que se espalham atualmente
em todo lugar, quando, no final, ele marcava, ao contrário, a divisão entre o romance familiar e
o real das fixões contingentes do gozo, diante das quais a verdade nada pode. Ajustar a prática
a essa nova perspectiva, é esse, a meus olhos, o problema crucial dos psicanalistas hoje.

Referências:

LACAN, J. (1958). A Direção do tratamento e os princípios do seu poder. In: Escritos. Rio de
Janeiro, J. Zahar.

LACAN, J. (1969-70). O Séminário, livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro, J.Zahar, 1992.

LACAN, J. (1963/1966). Kant com Sade. In: Escritos. Rio de Janeiro, J. Zahar.
LACAN, J. Compte Rendu sur L’acte analytique. In: Ornicar? , no. 29. Disponível em
http://www.lutecium.org/wp-content/uploads/2010/12/J-Lacan-Comptes-rendus-
denseignement-1969-Ornicar-29.pdf. Acesso em 26/10/2016.

SOLER, C. (2010). Estatuto do significante mestre no campo lacaniano. Conferência proferida por
COLETTE SOLER* no Séminaire du Champ Lacanien A peste, São Paulo, v. 2, n. 1, p. 255-270,
jan./jun. 2010. Disponível em revistas.pucsp.br/index.php/apeste/article/download/12086/8759.
Acesso em 26/10/2016.

SOLER, C. Sujets apparolés au capitalisme. Seminário do Campo Lacaniano em Paris, 2014.

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[1] «É isso que ele [Lacan] diz desde o início de O Avesso da Psicanálise, [1969-70] precisando
que o discurso é uma ordem que me precede, um aparelho (p. 13) sem palavras, portanto, com
que o sujeito não faz mais que se apalavrear (apparoler)» (Soler, 2010). Ver também Soler, 2014.

[2] Lacan, J. Relatório sobre «O Ato psicanalítico».

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