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Psicologia USP

ISSN: 0103-6564
revpsico@usp.br
Instituto de Psicologia
Brasil

Nadeje Pereira Barbosa, Maria; Osmo, Alan; Kupermann, Daniel


Dossiê: Testemunho e Cura
Psicologia USP, vol. 27, núm. 1, 2016, pp. 6-7
Instituto de Psicologia
São Paulo, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=305145376002

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Psicologia USP http://dx.doi.org/10.1590/0103-6564D20162701

Apresentação
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Dossiê: Testemunho e Cura


Maria Nadeje Pereira Barbosa
Alan Osmo
Daniel Kupermann
Universidade de São Paulo, Instituto de Psicologia, Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica,
Laboratório de Pesquisa e Intervenções Psicanalíticas. São Paulo, SP, Brasil

O século XX foi marcado pelo horror de guerras e modalidade de vivências, este dossiê também introduz o
de genocídios, por governos autoritários e totalitários, e por debate transdisciplinar, que pode se perfilar como um ins-
tentativas deliberadas e sistemáticas de se apagar o hor- trumento de reflexão imprescindível para uma práxis psi-
ror que acontecera, munindo-se de um aparato burocrático canalítica mais adequada aos desafios que lhe são impostos
para distorcer os fatos do passado e reescrever a História. pela contemporaneidade.
O século XXI, até o momento, com suas guerras e confli- Embora a cura psicanalítica seja concebida como
tos internos sangrentos, não parece indicar ainda uma mu- uma cura pela palavra, ela pode também ser concebida
dança significativa de rumos em relação ao século anterior como, segundo a expressão de Janine Altounian (2000),
no que diz respeito a pôr fim aos ciclos de violência. “salvação pelas palavras”; palavras estas apagadas pela
Nesse contexto, passou a ser de grande importân- impostura das “urgências cotidianas” que terminam por
cia a reflexão sobre o testemunho, que é visto tanto como perpetuar, por décadas a fio, certo “não querer saber” acer-
uma forma das pessoas que viveram de perto os traumas ca das atrocidades do passado e do presente. Os trabalhos
políticos e as catástrofes coletivas lidarem melhor com seu que ora apresentaremos podem servir de pistas para essas
passado, quanto como uma forma de se buscar preservar a questões ofuscadas pela cultura, mas desde sempre presen-
memória do que aconteceu e, assim, lutar para que eventos tes em nossa clínica cotidiana.
semelhantes não se repitam. No primeiro trabalho, assinado por Paulo Endo,
O compartilhamento desse tipo de experiência tem o leitor encontrará uma reflexão acerca das vicissitudes
grande complexidade, tendo em vista que ela está relacio- do sonho e do sonhar, lá onde se apresentam como resto
nada ao horror, à violência pura, a algo muito difícil de ser diurno as experiências catastróficas, como repetição do in-
colocado em palavras. Os esforços feitos para expressar o suportável. O autor recorre à significativa contribuição de
traumático por meio da linguagem são, na maior parte das Charlotte Beradt (2004), deduzindo que é como se “os so-
vezes, bastante dolorosos e, frequentemente, permanecem nhos alertassem que lá longe há experiência a descoberto,
insuficientes para representar o que aconteceu. que convocam a linguagem e o desejo de falar”, de compar-
É possível afirmar, porém, que a melhor forma de tilhar. É nessa perspectiva que Paulo Endo aborda a questão
uma pessoa lidar com um trauma político ou uma catástro- dos desaparecimentos forçados, desde a única perspectiva
fe coletiva é falando sobre o passado de horror? Haveria que resta, ou seja, daqueles que ficam, inseridos na ótica
um componente terapêutico no testemunho? Assim, qual da (im)possível convivência com a impunidade, o qual im-
seria o estatuto da cura psicanalítica no caso de pacientes põe a necessidade premente do “dever da memória social”.
em que o percurso individual foi marcado por catástrofes e Densa e pertinente abertura que nos convida à leitura e a
traumas? Por que meios a contribuição da Psicanálise pode prosseguir com os trabalhos seguintes.
favorecer o tratamento de sobreviventes de campos de con- Jô Gondar e Diego Frichs Antonello refletem sobre
centração ou de extermínio, daqueles que sofreram tortura, o lugar da testemunha como um lugar terceiro que, na clí-
e de indivíduos que vivem submergidos na sombra da vio- nica do traumático, o analista pode ter a disponibilidade de
lência, sem correr o risco de generalizações totalizantes? sustentar, o qual o converte como alguém capaz de teste-
Quais elementos da memória presentes na literatura e nas munhar pelo testemunho. Os autores nomeiam esse espa-
artes podem contribuir para o trabalho elaborador dos pa- ço terceiro como “espaço potencial”: admitindo que toda
cientes e (também é preciso notar) de seus analistas? Que narrativa testemunhal envolve um paradoxo e as condições
posicionamento ético é exigido dos psicanalistas pelas ca- de possibilidade do espaço potencial é o reconhecimento
tástrofes coletivas e políticas na sua clínica cotidiana? desse paradoxo. Analisando detidamente o comentário
O objetivo do dossiê “Testemunho e Cura” é o de que Pier Paolo Pasollini realiza da Divina Comédia, de
propor uma reflexão consequente com os destinos que a Dante, intitulado “A sobrevivência dos vagalumes” (Didi-
modalidade do testemunho vem adquirindo em nossa cul- Huberman, 2011), os autores postulam que o lugar susten-
tura nos últimos anos, sobretudo considerando os traba- tado e suportado pelo analista é poroso o suficiente para
lhos –concluídos recentemente – da Comissão Nacional possibilitar a elaboração do traumático ou, segundo suas
da Verdade. É, também, o de estabelecer uma discussão palavras, que as “memórias traumáticas (ultraclaras)” pos-
sobre o devir da clínica psicanalítica no tratamento de víti- sam ser “obscurecidas”.
mas das violências traumáticas e das catástrofes coletivas. Caterina Koltai, em “Entre psicanálise e história: o
Além da discussão sobre a especificidade clínica dessa testemunho”, assinala que o testemunho deve ser concebi-

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Apresentação – Testemunho e Cura
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do como um “ato de linguagem, uma palavra que requer a mento” que lhe é inerente. A autora analisa as condições
presença psíquica do outro como ser singular a represen- de possibilidade de metabolização do trauma a partir da
tante do conjunto”. A partir de duas precisões sobre o teste- narração, onde a fantasia revelaria sua potência criado-
munho, uma histórica e a outra enquanto “analista cidadã”, ra. A memória, como mecanismo de funcionamento do
a autora postula uma “ética da leitura” dos testemunhos da testemunho, o converte em literatura, entendido, por sua
Shoah, supondo “imaginar o incompreensível” e “acreditar vez, como correlato da transmissão, ou seja, como apro-
no inacreditável”. Interrogando-se acerca da continuidade priação coletiva do Real. Para plasmar essas instigantes
do humano, apesar de tudo, Koltai entende que é o compo- questões, a autora propõe um diálogo com determinados
nente da amizade entre aqueles submetidos ao mesmo des- trabalhos de Rodrigo Braga, artista brasileiro, em sua ex-
tino de vida e de morte que sustenta e constitui o humano, posição Mais Força que Necessário, realizada na Bélgica
que também pode encontrar seu lugar na situação analítica em 2010.
(Prado de Oliveira, 2012). Reflexão que remete à discussão Por último, a contribuição de Márcio Seligmann-
sobre a posição do analista no atendimento de pacientes -Silva – autor de obras de referência sobre a questão do
que exigem dele uma proximidade maior que as neuroses testemunho desde as mais variadas perspectivas –, acer-
de transferência. ca do fenômeno dos antimonumentos como forma de fa-
Transpondo a discussão para o campo da Literatura, zer trabalhar a memória e resistir contra o esquecimento
Maria Nadeje Pereira Barbosa e Daniel Kupermann busca- (Seligmann-Silva & Nestrovski, 2000). Para empreender
ram analisar as relações entre sublimação e traumatismo a tal tarefa, o autor toma como ponto de partida a análise da
partir do estudo da produção testemunhal, literária, poética antiga “arte da memória” em Simônides de Ceos para su-
e autobiográfica do escritor turinês e ex-deportado Primo blinhar que a memória não é somente um “bem”, dado que
Levi. Postulou-se que a escritura da Levi, ao mesmo tempo nela também se insere uma “carga espectral” que muitas
em que expressa capacidade de sublimação e a possibilida- vezes queremos esquecer. É precisamente devido à dificul-
de de sobrevivência psíquica, também configura um hia- dade de elaborar o luto decorrente do passado doloroso,
to como marca da insuficiência do trabalho sublimatório. mas também do desejo ativo em recordá-lo, que surgem os
Conclui-se o trabalho depreendendo, a partir da leitura de antimonumentos, apesar da dor. O autor apresenta e discu-
O que resta de Auschwitz, de Agamben (2008), que o proje- te detalhadamente as obras dos principais representantes
to de destruição perpetrado pelos nazistas sobre os judeus dos antimonumentos como os alemães Jochen Gerz, Horst
não se insere na ordem apenas do “indizível”, mas também Hoheisel e Andreas Knitz, o argentino Marcelo Brodsky e
do “inaudível” que, no contexto da vida e da obra de Primo a brasileira Fulvia Molina.
Levi, encontraria seus efeitos numa cultura que não estava Ao final desse percurso, acreditamos que o leitor
disposta a lhe dar ouvidos. de Psicologia USP sairá enriquecido pelo acompanhamen-
O ensaio de Tania Rivera aborda o testemunho to dos trabalhos que compõem este dossiê, em particular,
como “posição discursiva” e explora seus avatares no pelo entendimento de que as condições de possibilidade
processo de transformação do traumático em fantasia. para o trabalho analítico com pacientes que foram vítimas
Segundo a autora, o testemunho, enquanto trabalho de de catástrofes coletivas e de traumas políticos encontram
memória, incluindo sua transmissão e os efeitos que lhes na vertente transdisciplinar uma via de grande pertinência,
são subjacentes, encontra na ficcionalização um “procedi- valor e atualidade.

Referências
Agamben, G. (2008). O que resta de Auschwitz. São Paulo, Prado de Oliveira, L. R. (2012). O sentido da amizade em
SP: Boitempo. Ferenczi: uma contribuição à clínica psicanalítica. Rio
Altounian, J. (2000). La survivance. Paris: Dunod. de Janeiro, RJ: Uapê.
Beradt, C. (2004). Revêr sous Le IIIe. Reich (P. Saint- Seligmann-Silva, M., & Nestrovski, A. (Orgs.). (2000).
German, trad.). Paris: Petite Bibiothèque Payot. Catástrofe e representação. São Paulo, SP: Escuta.
(Trabalho original publicado em 1966)
Didi-Huberman, G. (2011). Sobrevivência dos vaga-lumes.
Belo Horizonte: Ed. UFMG.

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