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Rio de Janeiro, RJ
2021
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INTRODUÇÃO
não se finalizou com a queda formal do regime nazista, mas aquilo que está para além
do mal estar da cultura anunciado por Freud em 1930/2014: a estrutura do fenômeno da
segregação. Neste sentido, Askofaré (2009) avança apontando para a noção de
segregação introduzida por Lacan como a forma em que a civilização contemporânea
opera frente aos efeitos do discurso da ciência, esmiuçando, deste modo, esta noção a
partir de dois marcadores: o princípio da segregação e os efeitos segregativos. Para o
psicanalista, o primeiro se apresenta como o aspecto estrutural que fundamenta a
extração de um gozo na constituição do sujeito; enquanto o segundo se inscreve,
justamente, a partir do princípio segregativo e manifesta-se na prática de separação de
corpos por uma falta, esta determinada de modo imperativo e apontada pelos dedos do
saber científico.
Se num primeiro momento vemos este efeito sendo organizado nos campos de
concentração, posteriormente, Lacan em O pequeno discurso aos psiquiatras (1967),
apresenta-nos o exemplo de como o especialismo da psiquiatria expõe historicamente
atrás dos muros dos hospitais psiquiátricos sua lógica de distinção de pessoas,
fundamentada pelo poder do saber médico e imperativa àqueles que não performavam
serventia para a cidade. Portanto, a partir dos apontamentos supracitados realizados
pelos psicanalistas, observa-se que a segregação se expande a partir do alastramento do
discurso científico que categoriza e separa os corpos entre os eficazez e os de não
serventia.
Safatle (2020) nos ajuda a enxergar com mais clareza a ideia deste fenômeno na
contemporaneidade quando aponta-nos para o neoliberalismo enquanto sistema
econômico hegemônico que produz um mal estar e simultaneamente gerencia este
produto. Este mal estar apresenta-se na ideia de um desenho de pessoas que buscam o
ideal de sujeitos empreendedores de si mesmos. Percebe-se que o plano forjado nesta
modulação de um ideal perpassa o intimo da estrutura psiquica dos viventes e busca
uma generalização da forma de se estar em sociedade a partir de um imperativo
trabalhista, lucrativo e empresárial.
Dessa forma, qual o lugar para aqueles que não conseguem ocupar a posição
empresa-sujeito idealizada pelo neoliberalismo? Rosa (2018), ajuda-nos a pensar a
resposta para esta questão apontando para a ideia de que os sujeitos inadequados pela
lógica neoliberal ocupam a condição de resto na estrutura social. Esta condição,
segundo a psicanalista, caracteriza-se pela impotência que o deslocado ocupa diante do
Outro, que insiste em barrar acesso à condição de sujeito desejante.
Ora, pensando agora no Brasil enquanto território onde a expectativa de vida está
diretamente atrelada com o território geográfico que se vive e a cor de pele que se tem,
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pode-se perceber que a separação dos corpos opera pela via da interdição velada dos
sujeitos-resto aos bens de consumo, assim como com os serviços de saúde pensados a
partir do modelo neoliberal.
É pensando a noção de segregação e seus efeitos, o fenômeno da pobreza e a
posição de resto imposta aos sujeitos inadequados no sistema econômico vigente na
contemporaneidade, que nos propomos a analisar como a psicanálise se posicionou
historicamente ante a realidade de pobreza, passeando pelo momento inicial de
formulação da teoria psicanalítica até sua prática no Brasil do século XXI. Não
perdendo de vista a pontuação de Rosa (2018) sobre a não suficiencia no constatar os
efeitos subjetivos devastadores da separação dos corpo, como também a necessidade da
implicação nas modificações das estruturas político-sociais que a escuta psicanalítica
poderia oferecer.
Seria o trabalho psicanalítico hoje, e historicamente, um dispositivo usado para as
modificações das estruturas de segregação?
JUSTIFICATIVA TEÓRICA
poderia fazer para com essa população. O lugar de separação dos corpos entre os que
poderiam pagar por seu cuidado e aqueles impossibilitados, neste momento da teoria,
era fortemente sublinhado. O dinheiro, ou a falta dele, eram marcadores essenciais
daqueles que poderiam acessar este serviço de escuta, com algumas poucas exceções
que caminhavam pelo viés da caridade ou de instrumentalização de sujeitos
desafortunados para estudo do psiquismo – revelando o próprio autor que dedicava
algumas poucas horas de seu dia para atender esses sujeitos, com o intuito de estudo e
avanço do saber teórico.
Junto a isso surgem algumas postulações no texto de 1913/1996 que direcionam a
teoria psicanalítica e o criador da psicanálise à ideia de que sujeitos pobres são forçados
a uma vida árdua e de labuta, e esse seria o motivo desta população ser menos dominada
pela neurose. A partir desta máxima, que se apresenta no texto enquanto uma crença,
Freud aposta nas afirmações que revelam a ideia de uma diferença na economia
psíquica do sujeito pobre para o sujeito não pobre. Nesta dualidade se afere que o pobre
quando produz uma neurose, apenas com movimento de muita dificuldade se permite
ser livrado dela, afinal de contas, a neurose em sujeitos com a realidade de pobreza
presta excelentes bens secundários, podendo o sujeito se eximir de seu trabalho e luta
diária de combate às mazelas da realidade precária a partir da sua doença psíquica. A
partir disto, percebe-se que o apontado pelo autor justifica a posição de impossibilidade
do trabalho em psicanálise para sujeitos pobres, os responsabilizando por isso. Uma vez
que a estes a neurose é de serventia, não urge, então, a necessidade de cuidado aos
sofrimentos imputados por ela.
Um ano depois da publicação do texto citado, fora deflagrada a Primeira Guerra
Mundial na Europa, que duraria até 1918 e teriam alguns efeitos perpétuos no modo de
construção da teoria e prática psicanalítica. Danto (2019) revela parte da realidade de
precariedade vivida por Freud e pelos vienenses. A condição de escassez emergia e se
apresentava como inescapável, faltava toda sorte de elementos, inclusive o alimento.
Ao findar da Primeira Guerra emerge, então, a necessidade de elaboração dos
horrores sociais causados por ela. É nesse momento que o discurso freudiano sobre o
fazer psicanalítico se desloca do já anunciado “pouco se pode fazer” no que diz respeito
à precariedade social e sujeitos pobres, para um lugar de possíveis no enfrentamento
desta realidade. Em 1919 no texto Linhas de progresso na terapia psicanalítica, o autor
anuncia que a psicanálise deve lugar na sociedade humana e junto a isso assinala que o
sofrimento por neuroses é comum ao sujeito, independente de sua colocação de classe
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Pode-se perceber que, apesar dos avanços que tocam na realidade da pobreza e o
tratamento para esses sujeitos enquanto possível, Freud retoma a ideia de que os pobres
possuem maiores dificuldades em renunciar as suas neuroses, e junto a sua proposta de
ampliação de atendimento para essa população, o vienense aponta para o que Arruda
(2020) chama de híbrido da psicanálise com a sugestão direta, elemento esse que fora
abandonado pelo próprio vienense logo nos princípios de sua teoria. Sendo assim, no
fim da obra de 1919 ainda que se progrida em alguns aspectos na visada de classe,
sociedade e sintoma, o que se sugere ofertar aos que não podem pagar não seria
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hegemônica se deslocou da posição teórica que contava com o clima e a raça como
fatores determinantes em uma nação, e partiu para o caminho de instrumentalização da
psicanálise em psicodiagnosticar o povo brasileiro enquanto possuídor de um “ID
primitivo”, sendo este o responsável dos desvios comportamentais e da sexualidade
não civilizada, provocando degenerações nervosas mentais, como o alcoolismo,
crimes, prostituição e desvio de conduta. Frente a isto, se via como solução possível a
implementação de condições educacionais favoraveis ao desenvolvimento interior do
sujeito em seu ego, promovendo, então, um “ego civilizado”.
Fora neste esteio, como nos mostra Castro (2014), que em 1926 fora inaugurada
uma clínica psicanálitica na Liga Brasileira de Higiene Mental. Essa liga fora criada
com o objetivo de melhorar a assistência aos moradores de instituições psiquiátricas,
no entanto, já em 1926 percebe-se que a sua prática corria pela lógica do controle
social e sua função era pautada na prevenção de degeneração de pessoas consideradas
normais, que ocorreria pela existência de insalubridade no meio em que se vivia. Neste
momento era falado sobre uma eugenia “preventiva” e a pobreza, tão como a
imoralidade, era classificada enquanto algo “disgênico”.
Neste contexto torna-se válido ressaltar que o controle social neste período corria
com tamanha rigidez que aqueles que resistiam em seu estado primitivo, desapareciam,
como fora o caso de sujeitos considerados vagabundos, prostitutas, alcoolistas e todos
os outros que não se adequavam no projeto de civilização e modernização do país. A
psicanálise, neste momento, estava unida com a possibilidade de inserção em projetos
que apontavam para soluções que possibilitavam o país a adentrar o mundo civilizado.
Sendo assim, pode-se perceber que neste cenário de ameaça e instrumentalização do
saber, a prática analítica em seus primeiros anos em solo brasileiro objetivava a
harmonia social, se inscrevendo, desse modo, a partir do discurso eugênico, racista e
higienista, como nos apontam Guerini e Costa (2019).
Mais à frente, em 1964, o país atravessava o obscurantismo político com o inicio
formal da ditadura civil militar. Gondar (2017) aponta que este período se inscreve no
Brasil pela via do trauma, reencenando, no período ditatorial, o que não fora elaborado
do período colonial, tendo, deste modo, uma política de Estado que promovera a
intimidação, morte e tortura para aqueles que se posicionassem contrários ao poder
vigente. Ainda que a psicanálise tenha sido apropriada pela psiquiatria na década de 20
(Castro, 2014) e na década de 30 tenha sido popularizada entre as elites sendo utilizado
o nome Freud e possíveis relações de amizade com o vienense como objeto de prestígio
e autopromoção (Plotkin 2021), Russo (2006) nos mostra que é justamente no período
de maior repressão social brasileira que a psicanálise inicia um movimento de maior
popularidade junto às camadas médias das cidades a partir de sua aparição na TV. Lima
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Expansão das Universidades Federais (Reuni), que tinha como objetivo ampliar o acesso
e permanência no ensino superior. É nesse contexto que Oliveira (2021) aponta para o
período de 1990 até 2010, como sendo o da psicanálise adquirir a noção de uma clínica
brasileira, a partir dos investimentos nas universidades, nas pesquisas e no campo
teórico. Ora, tendo em visto a ampliação de entrada no ensino superior e,
consequentemente, com a entrada de pessoas pobres nas universidades, território este
responsável pelo alargamento do contato desses sujeitos com a teoria psicanalítica, a
autora lança mão de que de 2010 até o presente momento a psicanálise retorna para a
cidade, com a presença de analistas coordenando clínicas políticas e sociais, atentos com
a realidade externa a da psiquê.
Frente ao exposto, podemos entender que os fatores políticos e sociais do
território em que o cuidado da análise é ofertado implica diretamente na maneira como a
psicanálise irá acessar aqueles que chegam até a ela. Tendo em vista exemplos não só
brasileiros, como a virada conceitual e prática de Freud em relação à pobreza, realizada
somente após do mesmo experiênciar a realidade de falta que a guerra lhe proporcionou,
percursando sobre a psicanálise em seus primeiros tempos no Brasil, onde o saber era
marcado pelas elites e seus planos de civilização e atravessando o período de ditadura
militar, onde os analistas se negavam a compreender o quanto de político havia nos
divãs, pode-se perceber que somente nos dias de hoje, nos posteriores dos
estabelecimentos de políticas de acesso as universidades brasileiras, e consequentemente
ampliação dos encontros de sujeitos pobres com a psicanálise, é apontado enquanto o
período de implicação da psicanálise com o meio social (2021).
Desta maneira, assim como Roudinesco (1995) aponta para condições
fundamentais para que a psicanalise se estabeleça em algumas regiões geográficas, é
trazido como hipótese no presente trabalho a necessidade de um encontro da psicanálise
com a pobreza, para que assim, o saber e prática psicanalítica se implique com a
realidade social da falta material e se desloque da posição de segregação ofertada pelo
silencio frente a este fenômeno.
É neste esteio de movimentação social progressista pós-ditadura e políticas sociais
emergindo nos últimos 30 anos, que se encontra um movimento, estendido até os dias de
hoje, de implicação da psicanálise com a realidade da pobreza brasileira. A partir de
ações como as clínicas públicas de psicanálise no Brasil e coletivos de psicanalistas que
objetivam a oferta pública do cuidado psicanalítico, o país se depara com ações tímidas
(GUIMARÃES, 2017) de democratização da escuta psicanalítica.
Tendo em vista os apontamentos realizados neste trabalho, percebemos a
necessidade de um movimento teórico que localize ao longo da história da psicanálise a
posição deste campo teórico-prático ante o fenômeno estrutural da pobreza, e quais as
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possíveis movimentações práticas estão sendo realizadas para a população atravessada
por esta realidade.
OBJETIVOS
I - GERAL
II - ESPECÍFICOS
METODOLOGIA
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