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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICANÁLISE

CURSO DE MESTRADO ACADÊMICO

RAFAEL LIMA SANTANA

Da segregação à implicação: uma investigação sobre a história da psicanálise e


seus encontros com a pobreza.

Linha de Pesquisa: Problemas teóricos-metodológicos e conexões da psicanálise.

Possível Orientador: Vinicius Anciaes Darriba.

Rio de Janeiro, RJ

2021
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INTRODUÇÃO

Atualmente o Brasil atravessa a realidade de 40% da população vivendo ameaçada


pela escassez do alimento (IBGE, 2019). O real da pobreza alcança quase metade dos
brasileiros e podemos nos servir das mais diversas explicações e pressupostos para
compreensão deste. Percorrendo direções fundamentais, como as que apontam os
autores que tratam sobre o colonialismo e o escravismo, entendemos que muito do que
se vive no território brasileiro hoje, é consequência nefasta dos terrores coloniais. No
entanto, para investigarmos o fenômeno da pobreza neste trabalho, nos serviremos do
que a psicanálise até o momento pode nos mostrar sobre os modos de funcionamento
social e o que resta para os sujeitos que habitam esta civilização.
Em O mal estar na cultura (1930/2014), Freud traduz o sentimento de mal estar
presente nos sujeitos que existem em paralelo ao progresso social. O texto aponta para
os atravessamentos que o desenvolvimento civilizatório propõe à economia psíquica
daqueles que experimentam viver neste tempo. A demanda para estar e se relacionar em
uma cultura desenvolvimentista aparecia, então, pela via da renúncia pulsional. Desta
forma, segundo o vienense, aqueles que se propõe a ter um relacionamento com meio
social de forma harmônica e legal diante da lei, devem renunciar aos desejos que se
opõem a moralidade e se a ver com o preço cobrado. Entre sintomas, sublimação, ter
barrado o que se deseja e a busca pelo que é adequado nas relações sociais, os viventes
na cultura pagariam o avanço da civilização com o seu mal estar.
À frente, na Proposição de 9 de Outubro de 1967 sobre o psicanalista na Escola,
Lacan (1967/2003) sugere a visada para o ocorrido nos campos de concentração que o
nazismo instaurou. O fato de um conjunto de pessoas que se autoproclamavam raça pura
decidir quais grupos sociais deveriam ser separados e morrerem, e quais grupos
poderiam viver, partia do principio de que o direito à vida era julgado por um saber
amparado pelo desejo da universalidade de uma raça única. Sendo assim, o progresso da
ciência unido à expectativa de um indivíduo puro e universal, foram as ferramentas
ideais utilizadas pelo nazismo para constituir um discurso de separação de pessoas e
coletivos, tendo como crivo de partição a noção de desenvolvimento para uma
determinada raça e aniquilamento do restante.
Em relação a isto, Brunhari e Darriba (2018) anunciam que Lacan localizou o que
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não se finalizou com a queda formal do regime nazista, mas aquilo que está para além
do mal estar da cultura anunciado por Freud em 1930/2014: a estrutura do fenômeno da
segregação. Neste sentido, Askofaré (2009) avança apontando para a noção de
segregação introduzida por Lacan como a forma em que a civilização contemporânea
opera frente aos efeitos do discurso da ciência, esmiuçando, deste modo, esta noção a
partir de dois marcadores: o princípio da segregação e os efeitos segregativos. Para o
psicanalista, o primeiro se apresenta como o aspecto estrutural que fundamenta a
extração de um gozo na constituição do sujeito; enquanto o segundo se inscreve,
justamente, a partir do princípio segregativo e manifesta-se na prática de separação de
corpos por uma falta, esta determinada de modo imperativo e apontada pelos dedos do
saber científico.
Se num primeiro momento vemos este efeito sendo organizado nos campos de
concentração, posteriormente, Lacan em O pequeno discurso aos psiquiatras (1967),
apresenta-nos o exemplo de como o especialismo da psiquiatria expõe historicamente
atrás dos muros dos hospitais psiquiátricos sua lógica de distinção de pessoas,
fundamentada pelo poder do saber médico e imperativa àqueles que não performavam
serventia para a cidade. Portanto, a partir dos apontamentos supracitados realizados
pelos psicanalistas, observa-se que a segregação se expande a partir do alastramento do
discurso científico que categoriza e separa os corpos entre os eficazez e os de não
serventia.
Safatle (2020) nos ajuda a enxergar com mais clareza a ideia deste fenômeno na
contemporaneidade quando aponta-nos para o neoliberalismo enquanto sistema
econômico hegemônico que produz um mal estar e simultaneamente gerencia este
produto. Este mal estar apresenta-se na ideia de um desenho de pessoas que buscam o
ideal de sujeitos empreendedores de si mesmos. Percebe-se que o plano forjado nesta
modulação de um ideal perpassa o intimo da estrutura psiquica dos viventes e busca
uma generalização da forma de se estar em sociedade a partir de um imperativo
trabalhista, lucrativo e empresárial.
Dessa forma, qual o lugar para aqueles que não conseguem ocupar a posição
empresa-sujeito idealizada pelo neoliberalismo? Rosa (2018), ajuda-nos a pensar a
resposta para esta questão apontando para a ideia de que os sujeitos inadequados pela
lógica neoliberal ocupam a condição de resto na estrutura social. Esta condição,
segundo a psicanalista, caracteriza-se pela impotência que o deslocado ocupa diante do
Outro, que insiste em barrar acesso à condição de sujeito desejante.
Ora, pensando agora no Brasil enquanto território onde a expectativa de vida está
diretamente atrelada com o território geográfico que se vive e a cor de pele que se tem,
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pode-se perceber que a separação dos corpos opera pela via da interdição velada dos
sujeitos-resto aos bens de consumo, assim como com os serviços de saúde pensados a
partir do modelo neoliberal.
É pensando a noção de segregação e seus efeitos, o fenômeno da pobreza e a
posição de resto imposta aos sujeitos inadequados no sistema econômico vigente na
contemporaneidade, que nos propomos a analisar como a psicanálise se posicionou
historicamente ante a realidade de pobreza, passeando pelo momento inicial de
formulação da teoria psicanalítica até sua prática no Brasil do século XXI. Não
perdendo de vista a pontuação de Rosa (2018) sobre a não suficiencia no constatar os
efeitos subjetivos devastadores da separação dos corpo, como também a necessidade da
implicação nas modificações das estruturas político-sociais que a escuta psicanalítica
poderia oferecer.
Seria o trabalho psicanalítico hoje, e historicamente, um dispositivo usado para as
modificações das estruturas de segregação?

JUSTIFICATIVA TEÓRICA

Em 1913/1996, no texto Sobre o inicio do tratamento, Freud direcionou seu olhar


para a realidade da pobreza presente na Europa e os possíveis atravessamentos que a
teoria psicanalítica poderia ter com esse cenário. Nesta obra são trilhados alguns
caminhos curiosos no que diz respeito ao dinheiro no setting analítico. Em primeiro
momento, o vienense aponta para o dinheiro enquanto honorário de um cirurgião, e
considerando o fato de que o psicanalista não irá lucrar tanto quanto um médico de
qualquer especialidade, seria importante não perder de vista o reconhecimento das
próprias necessidades do analista no momento de estipulação do quanto será pago no
processo de análise. Esse movimento, como indicado por Freud, deveria ser anterior à
tentativa de desempenhar o papel de filantropo, afinal de contas, não se devia atender
gratuitamente, pois além de utilizar o tempo que se ganha o pão para fazer caridade,
havia também a hipótese de que o tratamento gratuito aumentaria a resistência da
neurose.
Aliado a essa formulação, o autor lança o olhar para a ideia de que o valor do
tratamento analítico precisava ocupar o estatuto de caro, sendo os baixos honorários
possíveis inimigos do progresso terapêutico, podendo apontar para um movimento
psíquico de desvalorização do paciente para com o tratamento. Mas, então, qual seria o
lugar dos sujeitos pobres na terapia analítica em 1913? A resposta para essa questão
aparece mais a frente no próprio texto quando o autor se refere à psicanálise enquanto
forma de cuidado que seria quase inacessível para pessoas pobres e o quão pouco se
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poderia fazer para com essa população. O lugar de separação dos corpos entre os que
poderiam pagar por seu cuidado e aqueles impossibilitados, neste momento da teoria,
era fortemente sublinhado. O dinheiro, ou a falta dele, eram marcadores essenciais
daqueles que poderiam acessar este serviço de escuta, com algumas poucas exceções
que caminhavam pelo viés da caridade ou de instrumentalização de sujeitos
desafortunados para estudo do psiquismo – revelando o próprio autor que dedicava
algumas poucas horas de seu dia para atender esses sujeitos, com o intuito de estudo e
avanço do saber teórico.
Junto a isso surgem algumas postulações no texto de 1913/1996 que direcionam a
teoria psicanalítica e o criador da psicanálise à ideia de que sujeitos pobres são forçados
a uma vida árdua e de labuta, e esse seria o motivo desta população ser menos dominada
pela neurose. A partir desta máxima, que se apresenta no texto enquanto uma crença,
Freud aposta nas afirmações que revelam a ideia de uma diferença na economia
psíquica do sujeito pobre para o sujeito não pobre. Nesta dualidade se afere que o pobre
quando produz uma neurose, apenas com movimento de muita dificuldade se permite
ser livrado dela, afinal de contas, a neurose em sujeitos com a realidade de pobreza
presta excelentes bens secundários, podendo o sujeito se eximir de seu trabalho e luta
diária de combate às mazelas da realidade precária a partir da sua doença psíquica. A
partir disto, percebe-se que o apontado pelo autor justifica a posição de impossibilidade
do trabalho em psicanálise para sujeitos pobres, os responsabilizando por isso. Uma vez
que a estes a neurose é de serventia, não urge, então, a necessidade de cuidado aos
sofrimentos imputados por ela.
Um ano depois da publicação do texto citado, fora deflagrada a Primeira Guerra
Mundial na Europa, que duraria até 1918 e teriam alguns efeitos perpétuos no modo de
construção da teoria e prática psicanalítica. Danto (2019) revela parte da realidade de
precariedade vivida por Freud e pelos vienenses. A condição de escassez emergia e se
apresentava como inescapável, faltava toda sorte de elementos, inclusive o alimento.
Ao findar da Primeira Guerra emerge, então, a necessidade de elaboração dos
horrores sociais causados por ela. É nesse momento que o discurso freudiano sobre o
fazer psicanalítico se desloca do já anunciado “pouco se pode fazer” no que diz respeito
à precariedade social e sujeitos pobres, para um lugar de possíveis no enfrentamento
desta realidade. Em 1919 no texto Linhas de progresso na terapia psicanalítica, o autor
anuncia que a psicanálise deve lugar na sociedade humana e junto a isso assinala que o
sofrimento por neuroses é comum ao sujeito, independente de sua colocação de classe
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social no mundo. Do rico ao pobre, o risco de adoecimento psíquico e de sofrimento


pela via da neurose é inerente a existência de qualquer sujeito.
Todavia, Freud aponta para a especificidade de uma condição a qual nomeia como
miséria neurótica e pontua sobre a talvez não necessidade desse tipo de sofrimento em
larga escala, podendo ser combatido pelo caminho do cuidado analítico. O autor se
atenta à necessidade de oferecer aos abastados financeiros e aqueles que pouco
possuem, e aponta que sendo a psicanálise um saber e prática não atenta a esta
população, este campo seria testemunha de um real social onde sujeitos padeceriam de
suas misérias neuróticas, mesmo sendo precursora de uma alternativa que possibilitaria
a quebra de repetição desse mal maior.
A partir disso, o autor pontua uma ideia que auxilia na guinada da proposição da
psicanálise ao social da pobreza, presumindo algum tipo de organização, que
inicialmente seria sustentada pela caridade dos analistas e posteriormente pelo estado,
onde se conseguiria aumentar o número de atendimento aos sujeitos desejosos por
análise e tratar consideravelmente a grande parte da população. Para isso, entretanto,
seria necessário atenção para a maneira como a psicanálise seria realizada nesse
contexto de massa e população pobre. Freud aponta as especificidades de uma clínica
para sujeitos com pouca instrução, onde seria necessário adaptar o que se é dito para o
registro do facilmente inteligível e indica que o trabalho deverá ser feito a partir da
adaptação das técnicas psicanalíticas a estas novas condições. Todavia, destacamos que
no último parágrafo do texto que estamos citando é colocado:

Veremos, provavelmente, que os pobres se acham ainda menos dispostos a


renunciar a suas neuroses do que os ricos, porque a difícil vida que os espera
não os atrai, e a doença significa, para eles, mais um título à assistência
social. (...) É também muito provável que na aplicação em massa de nossa
terapia sejamos obrigados a fundir o puro ouro da análise com o cobre da
sugestão direta, e mesmo a influência hipnótica poderia ter aí seu lugar, como
teve no tratamento dos neuróticos de guerra (FREUD, 1919, p. 292).

Pode-se perceber que, apesar dos avanços que tocam na realidade da pobreza e o
tratamento para esses sujeitos enquanto possível, Freud retoma a ideia de que os pobres
possuem maiores dificuldades em renunciar as suas neuroses, e junto a sua proposta de
ampliação de atendimento para essa população, o vienense aponta para o que Arruda
(2020) chama de híbrido da psicanálise com a sugestão direta, elemento esse que fora
abandonado pelo próprio vienense logo nos princípios de sua teoria. Sendo assim, no
fim da obra de 1919 ainda que se progrida em alguns aspectos na visada de classe,
sociedade e sintoma, o que se sugere ofertar aos que não podem pagar não seria
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psicanálise, mas a mistura de velhos elementos outrora substituídos, metaforizado como


cobre, em mistura com o puro ouro do fazer psicanalítico.
Danto (2019) concorda com o fato deste texto de Freud ser fator propulsor para a
criação do que hoje conhecemos como as clínicas públicas de psicanálise e que esta
obra aponta para a direção esperançosa de que a consciência da sociedade iria se
despertar frente ao cenário de disparidade social entre o rico e pobre. É neste contexto
que se dá início, então, a construção das clínicas públicas em diversas cidades do velho
continente. A psicanálise surgia neste momento enquanto alternativa de cuidado
possível para população pobre, na contramão da lógica econômica liberal crescente na
Europa pós guerra na década de 20.
Já no Brasil, Mandelbaum, Frosh e Lima (2021) apontam que é a partir da década
de 1910 que a psicanálise inicia a sua existência a partir do meio intelectual, modernista
e na prática da psiquiatria. Os autores salientam que a cultura psicanalítica cresceu no
território da América Latina envolta a contextos sociais e históricos específicos,
evidenciando assim, consequências diretas no fazer psicanálise daquele tempo. Torna-se
válido ressaltar que o datado para o permear da psicanálise em solo brasileiro fora o
cerca de 22 anos após a promulgação da lei Áurea. Costa (2015) revela que neste
momento o Brasil vivia as migrações de ex-escravizados das regiões de fazendas do
interior do país, migrações essas caracterizadas em grande parte como expulsão desses
sujeitos, para regiões que aparentavam uma vida mais promissora, como em Santos, São
Paulo, Rio de Janeiro e Grande Rio. O autor mostra que a realidade encarada pela
imensa maioria dos migrantes fora a de segregação em diversos níveis como o social,
racial e espacial, restando a esses sujeitos a ocupação da cidade pelo que restava na
marginalização dos morros.
Tendo São Paulo e Rio de janeiro como porta de entrada no Brasil,
Mandelbaum, Frosh e Lima (2021) mostram que a psicanálise em seus primórdios
nessas duas grandes cidades era destinada para os abastados financeiros, onde se
oferecia uma nova terapia que ofertava o tratamento da neurose. No entanto, aos
sujeitos pobres era ofertado a promessa de um tratamento que iria civilizar e educar o
povo, iniciando, com isso, um processo de evolução que libertaria o país de um
funcionamento primitivo.
Castro (2014) lança luz nesta visada sob os brasileiros dos anos 20, expondo que
o primitivismo citado revelava a consideração de haver no Brasil uma raça que se
apresentava enquanto incapaz de produzir sua civilização, conhecida por estar em um
estágio inicial do seu próprio desenvolvimento civilizatório. Este primitivismo
brasileiro era caracterizado por seus movimentos brutos, comportamentos sexuais
desviantes e sem controle. Sendo assim, neste período, o saber e prática da psiquiatria
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hegemônica se deslocou da posição teórica que contava com o clima e a raça como
fatores determinantes em uma nação, e partiu para o caminho de instrumentalização da
psicanálise em psicodiagnosticar o povo brasileiro enquanto possuídor de um “ID
primitivo”, sendo este o responsável dos desvios comportamentais e da sexualidade
não civilizada, provocando degenerações nervosas mentais, como o alcoolismo,
crimes, prostituição e desvio de conduta. Frente a isto, se via como solução possível a
implementação de condições educacionais favoraveis ao desenvolvimento interior do
sujeito em seu ego, promovendo, então, um “ego civilizado”.
Fora neste esteio, como nos mostra Castro (2014), que em 1926 fora inaugurada
uma clínica psicanálitica na Liga Brasileira de Higiene Mental. Essa liga fora criada
com o objetivo de melhorar a assistência aos moradores de instituições psiquiátricas,
no entanto, já em 1926 percebe-se que a sua prática corria pela lógica do controle
social e sua função era pautada na prevenção de degeneração de pessoas consideradas
normais, que ocorreria pela existência de insalubridade no meio em que se vivia. Neste
momento era falado sobre uma eugenia “preventiva” e a pobreza, tão como a
imoralidade, era classificada enquanto algo “disgênico”.
Neste contexto torna-se válido ressaltar que o controle social neste período corria
com tamanha rigidez que aqueles que resistiam em seu estado primitivo, desapareciam,
como fora o caso de sujeitos considerados vagabundos, prostitutas, alcoolistas e todos
os outros que não se adequavam no projeto de civilização e modernização do país. A
psicanálise, neste momento, estava unida com a possibilidade de inserção em projetos
que apontavam para soluções que possibilitavam o país a adentrar o mundo civilizado.
Sendo assim, pode-se perceber que neste cenário de ameaça e instrumentalização do
saber, a prática analítica em seus primeiros anos em solo brasileiro objetivava a
harmonia social, se inscrevendo, desse modo, a partir do discurso eugênico, racista e
higienista, como nos apontam Guerini e Costa (2019).
Mais à frente, em 1964, o país atravessava o obscurantismo político com o inicio
formal da ditadura civil militar. Gondar (2017) aponta que este período se inscreve no
Brasil pela via do trauma, reencenando, no período ditatorial, o que não fora elaborado
do período colonial, tendo, deste modo, uma política de Estado que promovera a
intimidação, morte e tortura para aqueles que se posicionassem contrários ao poder
vigente. Ainda que a psicanálise tenha sido apropriada pela psiquiatria na década de 20
(Castro, 2014) e na década de 30 tenha sido popularizada entre as elites sendo utilizado
o nome Freud e possíveis relações de amizade com o vienense como objeto de prestígio
e autopromoção (Plotkin 2021), Russo (2006) nos mostra que é justamente no período
de maior repressão social brasileira que a psicanálise inicia um movimento de maior
popularidade junto às camadas médias das cidades a partir de sua aparição na TV. Lima
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(2021), aponta para o fato de que essa expansão da psicanálise é correlata a


compreensão de novos modos de sofrer que o brasileiro estava experimentando,
possibilitando, com isso, a nomeação do sofrimento vivido.
No entanto, Oliveira (2017) revela que apesar dessa popularização entre a classe
média ter como pano de fundo o intenso investimento nos consultórios privados, a
posição de psicanalistas considerados como vozes potentes na cena analítica frente ao
totalitarismo ditatorial brasileiro foi a de neutralidade, a qual se amparava pelas quatro
paredes dos settings tradicionais, baseando-se no “aqui e agora” em detrimento de uma
visada política e social.
À frente, em 1970, Victor e Aguiar (2011) nos mostram que o Brasil vivia o
período de reforma sanitária e a criação do Sistema Único de Saúde, que conta com o
principio da universalidade no que diz respeito à oferta de serviço. A partir deste
momento afere-se a entrada de psicanalistas nos dispositivos de saúde pública
brasileiro, onde a escuta psicanalítica surge enquanto método de cuidado possível para
os sujeitos que não poderiam arcar financeiramente com o serviço oferecido nos
consultórios pensados a partir do modelo neoliberal.
No entanto, Lima (2021) mostra que fora em 1980 que ocorrera o Simpósio
Psicanálise e Política na PUC-RJ, um espaço para debate sobre a posição do saber e
prática psicanalítica frente a política e as implicações sociais daquele tempo. Mesas
como “Psicanálise e Fascismo”, e “psicanálise e sua inserção no modelo capitalista”,
foram realizadas neste evento e serviram como disparadores para diagnósticos precisos
no que dizia respeito a realidade da prática psicanalítica naquele tempo e em tempos
anteriores da ditadura civil militar brasileira. O simpósio fora marcado por denúncias ao
campo psicanalítico como a dos barões da psicanálise, que apontava para psicanalistas
que cobravam valores exorbitantes por sessões de análise, dominação pela via da
gerontocrácia nas instituições psicanalíticas e a não politização desses analistas. Como
também a denúncia de Almicar Lobo, psicanalista, membro da equipe de tortura do
exército brasileiro e acusado de torturar um dos membros da plateia.
À frente, Carvalho e Júnior (2020) apontam que o final do século XX no Brasil
fora marcado pela criação de políticas públicas submetidas à uma agenda neoliberal e
com isso as políticas destinadas à educação foram colocadas em segundo plano.
Somente em 2002, com a assunção de um governo de esquerda, presidido por Luís
Inácio Lula da Silva (2003-2010), há o fortalecimento de políticas sociais destinada ao
ensino como o Programa Universidade para Todos (PROUNI) e Fundo de
Financiamento ao Estudante de Ensino Superior (FIES) e a criação de novos programas
como o Plano Nacional de Educação (PNE) que visava a expansão das universidades
federais para o interior do Brasil e o Plano de Apoio a Planos de Reestruturação e
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Expansão das Universidades Federais (Reuni), que tinha como objetivo ampliar o acesso
e permanência no ensino superior. É nesse contexto que Oliveira (2021) aponta para o
período de 1990 até 2010, como sendo o da psicanálise adquirir a noção de uma clínica
brasileira, a partir dos investimentos nas universidades, nas pesquisas e no campo
teórico. Ora, tendo em visto a ampliação de entrada no ensino superior e,
consequentemente, com a entrada de pessoas pobres nas universidades, território este
responsável pelo alargamento do contato desses sujeitos com a teoria psicanalítica, a
autora lança mão de que de 2010 até o presente momento a psicanálise retorna para a
cidade, com a presença de analistas coordenando clínicas políticas e sociais, atentos com
a realidade externa a da psiquê.
Frente ao exposto, podemos entender que os fatores políticos e sociais do
território em que o cuidado da análise é ofertado implica diretamente na maneira como a
psicanálise irá acessar aqueles que chegam até a ela. Tendo em vista exemplos não só
brasileiros, como a virada conceitual e prática de Freud em relação à pobreza, realizada
somente após do mesmo experiênciar a realidade de falta que a guerra lhe proporcionou,
percursando sobre a psicanálise em seus primeiros tempos no Brasil, onde o saber era
marcado pelas elites e seus planos de civilização e atravessando o período de ditadura
militar, onde os analistas se negavam a compreender o quanto de político havia nos
divãs, pode-se perceber que somente nos dias de hoje, nos posteriores dos
estabelecimentos de políticas de acesso as universidades brasileiras, e consequentemente
ampliação dos encontros de sujeitos pobres com a psicanálise, é apontado enquanto o
período de implicação da psicanálise com o meio social (2021).
Desta maneira, assim como Roudinesco (1995) aponta para condições
fundamentais para que a psicanalise se estabeleça em algumas regiões geográficas, é
trazido como hipótese no presente trabalho a necessidade de um encontro da psicanálise
com a pobreza, para que assim, o saber e prática psicanalítica se implique com a
realidade social da falta material e se desloque da posição de segregação ofertada pelo
silencio frente a este fenômeno.
É neste esteio de movimentação social progressista pós-ditadura e políticas sociais
emergindo nos últimos 30 anos, que se encontra um movimento, estendido até os dias de
hoje, de implicação da psicanálise com a realidade da pobreza brasileira. A partir de
ações como as clínicas públicas de psicanálise no Brasil e coletivos de psicanalistas que
objetivam a oferta pública do cuidado psicanalítico, o país se depara com ações tímidas
(GUIMARÃES, 2017) de democratização da escuta psicanalítica.
Tendo em vista os apontamentos realizados neste trabalho, percebemos a
necessidade de um movimento teórico que localize ao longo da história da psicanálise a
posição deste campo teórico-prático ante o fenômeno estrutural da pobreza, e quais as
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possíveis movimentações práticas estão sendo realizadas para a população atravessada
por esta realidade.

SEÇÃO PERCURSIVA DO AUTOR


Chamo-me Rafael Lima Santana, sou morador da Baixada Fluminense,
Belford Roxo, e hoje Psicólogo, formado pela Universidade Federal Fluminense –
UFF, com graduação sanduíche pela Universidade do Algarve – Ualg, Portugal.
Meu processo de graduação foi turbulento por diversos motivos que
atravessaram os anos em faculdade. Entre o cair de paraquedas em um curso em uma
universidade federal e ser barrado pelo real que a pobreza propõe aos que se
aventuram em estudar, e não só trabalhar, percebi que encontrava algo de inédito no
que os professores de Psicologia e Psicanálise transmitiam. Percebia sensibilidade,
quase unanime, em escutar sobre a dor, se deparar com o sofrimento, e quais
estratégias possíveis podiam ser tomadas para lidar com o que devasta. Entre o misto
de ver beleza neste novo, e estranhar o porquê deste serviço parecer incomum para
mim, pude perceber que a sensação de ineditismo não era só minha. Morando onde é
conhecido como periferia, vi que os sujeitos do meu bairro, amigos e familiares (a
maioria tendo estudado até o ensino médio) também não dimensionavam a existência
daquilo que hoje conheço como Psicanálise.
A não popularidade da Psicanálise entre os sujeitos com quem eu constituía
laço tornara-se, em primeiro momento, entrave para compreender este saber
enquanto um possível. O jargão “A psicanálise é elitista” acompanhava minha
resistência com a teoria psicanalítica, e fora desaguado em meu processo de análise
pessoal enquanto um dos diversos motivos que compunham a sensação de
inadequação com a possibilidade de, um dia, ser analista. Parti, então, neste
momento, para um novo marcador. Se anteriormente estava na posição de ineditismo,
pude, desfrutando do cuidado da análise, me deparar com as fantasias e os reais que
perpassavam a possibilidade de um homem periférico operar enquanto analista.
A partir de então, entre incômodos e desejo, ocupando espaços de formação,
grupos de estudo, análise e supervisão, pude me aproximar da Psicanálise e produzir
na sensação de inadequação a curiosidade pela pesquisa. Fora, então, que me deparei
com os textos psicanalíticos de Freud que privilegiavam a visada da sociedade por
uma ótica psicanalitica, assim como O mal estar na cultura, Moral sexual civilizada e
doença nervosa moderna, Totem e Tabu, entre outros. Nesses textos pude perceber
que seria possível compreender de uma realidade que poderia parecer com a que meu
corpo experienciava no meio social.
A partir de então, em busca de maior aproximação com pares que se
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dispusessem a pensar pobreza e psicanálise, como também analistas que tinham seus
corpos atravessados pela pobreza, criei o grupo de estudos A clínica também do
pobre, formado por analistas das cinco regiões do Brasil que se debruçaram na leitura
de discussões de textos que corriam pela discussão do colonialismo, teoria e técnica
psicanalítica. Passeando por Boaventura, as clínicas públicas e psicanálise, Lélia
Gonzales, Gradah Kilombo e Frantz Fanon, as discussões do grupo privilegiavam
temáticas que custam caro para a cultura brasileira.
Com o passar do tempo e com as inúmeras questões de atravessamentos que o
período de pandemia ofertou, o grupo precisou de uma pausa em seu seguimento. No
entanto, pude perceber que o que havia sido trabalhado em seu período de
funcionamento foram questões altamente marcadas pelos efeitos da segregação. Fora
aí o meu encontro com a noção de segregação introduzida por Lacan em seu texto de
1967, dando contorno, então, para questões que estavam comigo desde a sensação de
ineditismo apontada anteriormente, passando pela minha atuação clínica, onde a
maioria da população atendida é com baixa renda e hoje desaguando no desejo e
escrita desta proposta de pesquisa.

OBJETIVOS

I - GERAL

Demonstrar, com bases em estudos psicanalíticos, a pobreza enquanto marcador


fundamental de acesso aos consultórios de psicanálise e localizar para quem foi e está
sendo ofertada a escuta psicanalítica, de modo que se faça compreender de maneira
mais acurada se a prática dos analistas apontou e aponta para direções possíveis de
tratamento para aqueles quecompõem cerca de 40% da população nacional.

II - ESPECÍFICOS

 Explorar a temática da pobreza em Freud e a noção de segregação em Lacan;


 Esmiuçar estudos sobre o enlace da história da psicanálise com a pobreza na
Europa;
 Investigar as produções referentes à chegada da psicanálise no Brasil,
privilegiando uma leitura crítica sobre a sociedade da época;
 Revisar a bibliografia referente ao cenário psicanalítico frente à ditadura civil
militar no Brasil;
 Recorrer a autores psicanalistas contemporâneos que pensam a sociedade e os
efeitos do neoliberalismo, bem como a autores da sociologia que podem
contribuir à temática;
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 Percorrer obras de autores da teoria decolonial para endossar a pesquisa a partir
de uma lógica brasileira e latina americana.

METODOLOGIA

Tendo em vista os objetivos supracitados, este trabalho constituir-se-á de uma


revisão bibliográfica de autores clássicos da psicanálise como Freud e Lacan, nos
possibilitando a leitura acerca da noção da pobreza, segregação e a intersecção da
psicanálise com essas duas noções. Bem como, uma pesquisa a autores contemporâneos
que alargam os estudos sobre os efeitos do neoliberalismo na clínica psicanalítica.

Além desta revisão sobre a noção de segregação, lançaremos mão de uma


pesquisa bibliográfica sobre os modos em que a prática psicanalítica se deparou com o
fenômeno da pobreza, tendo como marcadores de referência a criação da teoria
psicanalítica; a formação das clínicas públicas de psicanálise; a chegada da teoria
psicanalítica ao Brasil; a psicanálise durante a ditadura militar e a atuação psicanalítica
atual, no campo da saúde coletiva, políticas sociais e nos consultórios tradicionais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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