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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE -UFF

CAMPUS UNIVERSITÁRIO DE RIO DAS OSTRAS –CURO

REBECA LIMA ANDRADE

A PRÁTICA COMO UM ATO POLÍTICO

Comentando Sobre o Quefazer do Psicólogo apontado por Martín-Baró

Rio das Ostras –RJ

2020.2
No artigo “O papel do psicólogo”, Martín-Baró (1996) faz uma crítica à prática da
psicologia, que estaria voltada para as classes dominantes e restrita ao individual. E, em
seguida, aponta para um horizonte que deve guiá-la, independente da área que se trabalhe,
visando uma intervenção efetiva no meio social. Assim, o processo de conscientização é
elencado como esse horizonte. Segundo o autor, o papel do psicólogo consiste em intervir nos
processos subjetivos que sustentam e viabilizam as estruturas de injustiça social.

Na década de 70 e 80, período que antecede a publicação de Baró, começaram a


surgir na América Latina críticas mais sistematizadas a respeito dos novos rumos que a
psicologia social deveria seguir, pois esta estava refém de eixos internacionais que pouco
representavam a realidade dos países ditos periféricos (DE SOUSA, 2009) . A psicologia
sócio-histórica foi um forte rumo que emergiu nesse período e é em meio a essa tradição
crítica que Martín-Baró se pôs a pensar sobre a prática do psicólogo e seus impactos sociais.

Em primeiro lugar, o autor coloca holofotes sobre as três principais problemáticas que
têm permeado a população centro-americana: 1) a injustiça social, provocada por uma grande
desigualdade socioeconômica e pela consequente violação dos direitos humanos; 2) a
situação política instável provocada pelas guerras e ameaças de guerras revolucionárias; 3) a
perda da soberania nacional, consequência direta da política estadunidense de combate ao
comunismo em prol da “segurança nacional”. Desenhado esse cenário, é posta em questão a
legitimidade da psicologia tradicional, que se volta para o atendimento de setores sociais mais
abastados e, focando no processo individual e esquecendo o social que o permeia, acaba por
servir de instrumento à ordem dominante para a reprodução do sistema de injustiças.

Portanto, o autor (MARTÍN-BARÓ, 1996) defende que a prática da psicologia deve


ser voltada para servir à causas sociais. Segundo ele, não compete ao psicólogo intervir nos
mecanismos sócio-econômicos diretamente, mas sim nos processos de subjetivação que
sustentam e possibilitam a existência desses mecanismos. E isto só seria possível através da
conscientização da realidade psicossocial em relação com a consciência coletiva, pois
qualquer prática individual que não promova uma transformação social, é essencialmente
estéril na visão do autor. Uma vez que a sociedade não é apenas uma soma de indivíduos,
assim como o todo não se restringe à soma das partes, trabalhar com um único indivíduo
isoladamente sem que isso se relacione de alguma forma com a consciência coletiva, é um ato
que nada diz respeito à resolução dos conflitos sociais, ou seja, a uma verdadeira intervenção.
Segundo o Autor:
“Ao assumir a conscientização como horizonte do quefazer psicológico, reconhece-
se a necessária centralização da psicologia no âmbito do pessoal, mas não como
terreno oposto ou alheio ao social, mas como seu correlato dialético e, portanto,
incompreensível sem a sua referência constitutiva. Não há pessoa sem família,
aprendizagem sem cultura, loucura sem ordem social; portanto, não pode tampouco
haver um eu sem um nós, um saber sem um sistema simbólico, uma desordem que
não se remeta a normas morais e a uma normalidade social.” (1996, p. 17)

Portanto, o processo de conscientização sempre é algo que traz uma repercussão


coletiva. Esse processo se baseia em três etapas (MARTÍN-BARÓ, 1996). A primeira diz
respeito à transformação do homem implica na modificação da realidade, o que se dá através
do diálogo num processo dialético. A partir daí temos a segunda etapa, que consiste na
“decodificação” da realidade, em que o homem deixa seu estado de alienação e se depara
com os mecanismos de opressão. Isto leva à terceira etapa: uma nova visão de si e da posição
social que se ocupa, visão essa mais autêntica. Através de um processo de conscientização
coletiva, essas visões se articulam de forma a promover verdadeira mudança de contextos.
Segundo o autor:

Com base nisto, o artigo aponta dois exemplos de aplicação prática desse novo modo
de atuação. O primeiro consiste na abertura clínica a esses grupos majoritários que tem
sofrido com os conflitos bélicos, o que se daria através da conscientização de sua identidade
social e sobre os processos que se dão na raíz da guerra. E o segundo se refere à orientação
escolar, que, ao invés de contribuir para a reprodução do sistema, deveria proporcionar o
despertar da consciência crítica. Ainda é importante ressaltar que, o autor não propõe que a
psicologia se restrinja a uma única área, mas que, independente da área de atuação, possa ser
direcionada por um objetivo maior da prática. Baró o chama de “quefazer”, ou seja “que fazer
do ser psicólogo?”. O “quefazer” para o autor é transformação das injustiças através da
conscientização.

Ignácio Martín-Baró (1942-1989) foi um grande estudioso da psicologia social e


também padre jesuíta nascido na Espanha. Ele trouxe muitas contribuições acadêmicas para
as ciências humanas e, como se vê no artigo analisado, possui uma postura de confrontação
política embasada pela filosofia de Marx. Este compromisso social ressaltado pelo autor está
muito ligado os novos rumos traçados pela psicologia social nas últimas décadas, que visa
trazer um cunho político ao procurar intervir na realidade, uma vez que a entende responsável
por sofrimentos ético-políticos (SAWAIA, 2009), ou seja, aqueles que vão além das
angústias inerentes à própria existência por conta das injustiças sociais. Mas essa visão
política não se restringe à psicologia. Segundo os estudos de Silvia Lane (DE SOUSA, 2009),
a fronteira das ciências humanas devem ser flexíveis, ligando-se através de uma ótica que
compreenda o homem em sua complexidade sócio-histórica, pois só assim será possível uma
aproximação com a realidade, possibilitando a intervenção desta. Portanto, pode-se
compreender que essa tendência focada na intervenção social é muito mais ampla e vem
sendo delineada muito antes até que se repensasse a psicologia social em si, correspondendo
a um atravessamento político fortemente ideológico de confrontação com a ordem dominante.

Rebeca Lima, acadêmica do curso de Psicologia da Universidade Federal Fluminense -


Campus de Rio das Ostras (CURO).

REFERÊNCIAS

MARTÍN-BARÓ, Ignácio. O papel do psicólogo. Estudos de psicologia, v. 2, n. 1, p. 7-27,


1996.

DE SOUSA, Esther Alves. Silvia Lane: uma contribuição aos estudos sobre a Psicologia
Social no Brasil. Temas em Psicologia, v. 17, n. 1, p. 225-245, 2009.

SAWAIA, Bader Burihan. Psicologia e desigualdade social: uma reflexão sobre liberdade e
transformação social. Psicologia & Sociedade, v. 21, n. 3, p. 364-372, 2009.

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