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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E DA SAÚDE

CURSO DE PSICOLOGIA

VERÔNICA BARROS CARNEIRO

Hip Hop e Saúde


O que a Batalha da Matrix tem a ensinar à Psicologia

SÃO PAULO

2022
1

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E DA SAÚDE

CURSO DE PSICOLOGIA

VERÔNICA BARROS CARNEIRO

Hip Hop e Saúde


O que a Batalha da Matrix tem a ensinar à Psicologia

Trabalho de conclusão de curso como exigência parcial para a graduação no curso de


Psicologia, sob orientação do Prof. Dr. Marcelo Camargo Batistuzzo

SÃO PAULO

2022
2

“Hip Hop e Saúde: o que a Batalha da Matrix tem a ensinar à Psicologia?”

7.07.05.00-3 - Psicologia Social


Orientanda:Verônica Barros Carneiro
Orientador: Prof Dr. Marcelo Camargo Batistuzzo

RESUMO

A presente pesquisa tem como objetivo responder à questão: o que a Batalha da Matrix tem a
ensinar à Psicologia? A partir da compreensão de características deste movimento, que é
articulado com o outro maior, o Hip Hop, bem como da compreensão da promoção de saúde
a partir da determinação social racial. Desde a pesquisa documental de livros acadêmicos
sobre o Hip Hop, o Rap e a própria Batalha da Matrix, todos escritos por MCs, e portanto
configurando-se enquanto conhecimentos situados; e da pesquisa documental de produções
da Saúde Coletiva sobre os determinantes sociais de saúde e o Racismo à Brasileira - e suas
implicações na saúde da população brasileira, foi possível tecer a trama teórica e temática
necessária para a discussão. Foi possível, então, entender a Matrix como um espaço público
de saúde, racialmente centrado, que promove em seus integrantes possibilidades de
deslocamento em relação à alienação colonial e, portanto, promove deslocamento das
relações de poder desiguais, o que acarreta, necessariamente, na promoção de saúde. Por fim,
a partir desse entendimento da Matrix, foi possível refletir sobre a ética necessária no fazer e
pensar psicologia em contexto brasileiro: é fundamental que esta esteja comprometida com a
justiça, e baseada no princípio da equidade e da retomada de protagonismo pelo próprio povo,
seja na Universidade, seja nas práticas profissionais da psicologia, em qualquer que seja o
campo.

Palavras chave: Psicologia Social; Hip Hop; Saúde; Relações Raciais; Juventude;
Colonialidade.
3

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO 4
2 METODOLOGIA 9
3 O ABC DO RAP 11
3.1 De Jamaica a São Bernardo/Do Hip Hop à Matrix: um breve mapeamento histórico e
ideológico do Hip Hop e do Rap 11
3.2 Batalha da Matrix e ações subversivas: a periferia no centro 17
4 DETERMINANTES SOCIAIS DE SAÚDE E BRASIL 24
4.1 Determinantes Sociais de Saúde 24
4.2 Racismo à brasileira: éticas necessárias nas práticas de cuidado no Brasil 26
5 SAÚDE NA MATRIX 31
6 O QUE A PSICOLOGIA TEM A APRENDER COM A BATALHA DA MATRIX 34
7 ABERTURAS 36
REFERÊNCIAS 38
4

1 INTRODUÇÃO

Uma jovem, ainda adolescente, em busca de lazer e letramento político vai à Praça da
Matriz de sua cidade, São Bernardo do Campo, às 19h de uma terça-feira de 2015. Nesse
espaço-tempo acontece a Batalha da Matrix1, uma batalha de rimas que reúne jovens
periféricos, em volta de um banco de concreto da praça, para acompanharem - e julgarem - o
duelo de MC's, até que haja um campeão. Ela se encanta com o poder criativo e político desse
elemento do Hip Hop, que está na rua, sendo construído por e para jovens, desde suas
próprias realidades, e passa a frequentar o encontro, durante alguns anos. Criando e
reforçando vínculos afetivos, aprendendo muito sobre arte, poética, história, política,
organização coletiva, violência de Estado, amor e raiva. Também sobre colonialidade e
racismo, sem ainda estar apropriada desses termos. É lá, inclusive, a primeira vez que
compreende seu corpo como um corpo branco, que se olha como uma sujeita racializada,
processo historicamente rejeitado por este nosso grupo racial.
Este é o primeiro contato que eu, Verônica, tive com a Batalha da Matrix, tema central
da presente pesquisa. E acho fundamental iniciar o trabalho a partir dele, pois é possível,
dessa forma, apresentar brevemente sobre o pesquisado e a pesquisadora. Como exporei a
seguir, a universidade e o conhecimento acadêmico são instrumentos coloniais, serventes
historicamente à produção e reprodução de estruturas de poder que promovem desigualdades
nas diferenças.
Para compreender este lugar da academia, é preciso primeiro entender qual a
realidade que o Brasil está inserido. Nossa história começa antes de 1500, quando mais de
300 povos indígenas habitavam essa terra. A partir desse período, com a invasão européia e a
colonização e escravização dos povos indígenas, africanos e asiáticos, a cultura moderna
começa a se formar. Ela está baseada no encobrimento do Outro (Dussel, 1993), no qual o
colonizador, ao se encontrar com esses povos - indígenas, africanos e asiáticos -, não os
compreende como alteridade, como um ser diferente e legítimo. Ao contrário, os compreende
como o Outro, projetando neste aspectos de si próprio que não deseja se encontrar: o
emocional, o primitivo, a aberração (Dussel, 1993). Esse falso espelho impede que o sujeito
branco se enxergue e se compreenda na totalidade, ao mesmo tempo que impede o encontro
com esses outros povos e pessoas diferentes. O resultado histórico é a dominação, opressão e
exploração desses sujeitos não-brancos e de seus territórios, no que conhecemos
historicamente por Período Colonial.
1
A caracterização do movimento está aprofundada no capítulo 3.2
5

No entanto, a partir do momento que essa época é fundamento de nossa cultura


moderna, em certo ponto, ainda a vivemos. Não mais representada pela dominação territorial,
com a dependência da colônia à sua metrópole, mas representada por todos os binarismos
deixados como heranças: homem-mulher; branco-não branco; racional-emocional;
natureza-cultura. Bem como pelas desigualdades - e suas justificativas - produzidas a partir
desses binarismos.
Ao mesmo tempo, a partir desses binarismos, uma norma ideal para o ser humano foi
criada. Este é homem cishetero, branco, adulto e racional. Modos de vida normativos também
decantam dessa norma do que é ser humano. Àqueles que não se encaixam, é relegado o lugar
de não-humano, e assim justificada sua dominação, opressão e exploração.
O conhecimento produzido na academia não está isolado da realidade em que esta
está inserida. No caso do Brasil, colonial e desigual. Ao contrário, hegemonicamente a
reforça a partir da construção de um ‘modelo correto de ser’ universal, que deve ser
reproduzido por todos os povos. Assim, as ciências sociais, enquanto construção
eurocentrada, são um dispositivo de conhecimento colonial e imperial. É, portanto, também a
partir das ciências, que a colonialidade opera. Produz o modelo normativo, através da
legitimidade acadêmica, e mais ainda, produz as formas de o medir e o impor. Ou, como tão
bem explicitado por Lander (2005):

[...] precisamente pelo caráter universal da experiência histórica européia, as


formas do conhecimento desenvolvidas para a compreensão dessa sociedade
se converteram nas únicas formas válidas, objetivas e universais de
conhecimento. As categorias, conceitos e perspectivas (economia, Estado,
sociedade civil, mercado, classes, etc.) se convertem, assim, não apenas em
categorias universais para a análise de qualquer realidade, mas também em
proposições normativas que definem o dever ser para todos os povos do
planeta. [...]

Esta é uma construção eurocêntrica, que pensa e organiza a totalidade do


tempo e do espaço para toda a humanidade do ponto de vista de sua própria
experiência, colocando sua especificidade histórico-cultural como padrão de
referência superior e universal. Mas é ainda mais que isso. [...] Uma forma
de organização e de ser da sociedade transforma-se mediante este
dispositivo colonizador do conhecimento na forma “normal” do ser humano
e da sociedade (p. 13).
6

Assim, as ciências sociais, hegemonicamente, garantem a manutenção das


desigualdades de poder sem a necessidade de violência física exemplificado em períodos de
não democracia mais explícita e autoritária, como na Ditadura Militar. Nesse sentido, Jessé
Souza (2015) indica que as concepções de intelectuais brasileiros servis ao poder - ou seja,
aquelas que, apesar de críticas, ainda hegemônicas - através da fragmentação do
conhecimento, funcionam como a “violência simbólica” necessária para a manutenção das
desigualdades grotescas em nossa estrutura de poder:

Indivíduos e classes sociais inteiras têm que, efetivamente, ser feitos de


“tolos” para que a reprodução de privilégios tão flagrantemente injustos seja
eternizada. Daí ser fundamental compreender como intelectuais e
especialistas distorcem o mundo para tornar todo tipo de privilégio injusto
em privilégio merecido ou, na maior parte dos casos, privilégio invisível
enquanto tal. Os poucos que controlam tudo precisam desses intelectuais e
especialistas [...]. Eles são seu “exército de violência simbólica” assim como
os coronéis do passado possuíam seu “exército de violência física” (p. 11).

A psicologia, ciência cujo objeto de estudo é o indivíduo que produz e que é


produzido por essa sociedade, tem papel fundamental nesse processo. Em todo o Sul político,
importamos saberes do Norte, colonizando nosso pensar e fazer psicológico bem como
nossos sujeitos e seus corpos, impondo o padrão normativo branco, europeu e racional; e
(re)produzindo teorias e práticas que sustentam a ideia de meritocracia. Criamos, a partir da
lógica hegemônica ocidental, um sujeito-pedagógico que deve ser reproduzido na escola,
como preparação para o sujeito-trabalhador, ambos colonizados e disciplinados. Os que
resistem, os institucionalizamos em manicômios, prisões ou abrigos, utilizando, entre outras,
da ideia de periculosidade enquanto justificativa.
A psicologia, portanto, é justamente a ciência que forja o sujeito universal, criando e
legitimando padrões normativos que dizem respeito a um grupo específico de pessoas -
europeus/brancos, homens, cisheterossexuais, racionais e adultos. E os impondo a outros
diversos grupos.
Sendo assim, nós, enquanto acadêmicos, necessitamos urgentemente de um giro ético
e epistemológico que vise a superação do epistemicídio2 (Santos, 2009) e o desmascaramento

2
Epistemicídio é a aniquilação de outras epistemologias que não caberiam, necessariamente, nos
moldes da ciência moderna. Ou seja, são epistemologias não hegemônicas, que negam esse lugar
binário, colonial, positivista, etc. E que são literalmente aniquiladas, apagadas, deslegitimadas, em
prol desse "lugar científico" que detém as verdades universais. É um termo cunhado por Boaventura
Souza Santos (2009).
7

dos cruéis mecanismos simbólicos que mantêm as estruturas desiguais. Ou, em outras
palavras, da necessidade de construção de uma ciência a partir da realidade histórica-cultural
do país. Portanto, através de epistemologias e metodologias desde os povos do sul. Da
necessidade de uma construção comprometida com a efetiva reparação histórica e retomada
daqueles que são violentados pelas estruturas sociais acima discutidas. Num país como o
Brasil, isso implica, necessariamente, em colocar a questão colonial e racial em centralidade -
e transversalidade constante - ao se pensar e fazer psicologia.
Ainda, para superar esse lugar (se é que é possível, mas o caminho não pode ser outro
que o da tentativa), é preciso que passemos a produzir conhecimento desde nossas vivências,
conhecimentos, portanto, particularizados.
Fundamental então, me localizar enquanto pessoa branca, pessoa branca produzindo
conhecimento em ambiente acadêmico. É desse lugar que falo nessa pesquisa. A importância
dessa delimitação diz respeito ao comprometimento ético dessa pessoa e estudante/futura
profissional para com a emancipação de nosso povo, que é negro e indígena e sofre, material
e simbolicamente, diariamente nessas terras que nomearam Brasil, graças ao racismo.
Um dos alicerces do racismo estrutural3 é, justamente, a compreensão imaginária de
que as pessoas brancas representam a universalidade. Em outras palavras, ao falarmos sobre
"humanos", na dimensão universal, falamos sobre os brancos. Aos negros e indígenas são
impostos os lugares de particularidade. Eles são sempre um grupo, outro, particular e
específico. Por isso me especifico nessa pesquisa. Também o faço, porque estou trazendo um
movimento da juventude negra do ABC paulista, um movimento do Hip Hop, cultura negra
de histórica resistência e luta.
O terreno é, portanto, frágil. E sabendo disso, cuidarei de como pisar. Um desses
cuidados/responsabilidades é trazer o próprio movimento para falar sobre si, através de
produções autorais postadas nas redes sociais e de produções acadêmicas de pessoas que
compõem o Hip Hop.
Minha pretensão, portanto, é deslocar a psicologia ao lugar de aprendiz. Nessa
pesquisa, ela irá escutar jovens periféricos do ABCDMRR4 organizados na Batalha da
Matrix. Eu, a partir de meu lugar de jovem, branca e de classe média, mas frequentadora e
admiradora dos encontros; e de meu lugar acadêmico, produzirei conhecimento a partir da
3
“O racismo estrutural demonstra que os preconceitos, as discriminações e os atos de racismo estão
vinculados a uma estrutura social. Entender como o capitalismo no Brasil funciona, entender como se
dão as estruturas de poder no país. Enfim, há todo um mecanismo de que normativa, naturaliza os
comportamentos preconceituosos” (Dennis de Oliveira, 2022).
4
Sigla que contempla as sete cidades da região metropolitana de São Paulo: Santo André, São
Bernardo do Campo, São Caetano do Sul, Diadema, Mauá, Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra.
8

tentativa de tecer essa escuta com algumas produções no campo da Saúde Coletiva acerca de
promoção de saúde. Essa trama final irá, portanto, nos trazer o necessário para respondermos
a pergunta inicial: o que a Batalha da Matrix tem a ensinar à Psicologia?
9

2 METODOLOGIA
No presente trabalho, foi realizada uma pesquisa documental a partir de livros
acadêmicos de rappers e documentos produzidos pela Batalha da Matrix, como entrevistas
dadas pelos organizadores, vídeos publicados em suas redes sociais com registros das
batalhas etc, a fim de compreender o que é a Matrix e quais suas articulações com o Hip Hop;
quais práticas e ideários estão ali presentes, e de que maneira promovem saúde,
compreendendo essa a partir do campo da Saúde Coletiva e da noção de Determinantes
Sociais de Saúde.
Para tal, a intenção foi trazer as vozes dos próprios protagonistas desse movimento.
Deixar que eles próprios contem sua(s) história(s). Para isso, foram usadas produções
acadêmicas dos rappers Felipe Choco e Jorge Hilton. O livro de Felipe Campos, o Choco, do
ABC Paulista: Rap, Cultura e Política: Batalha da Matrix e a estética da superação
empreendedora, de 2020, resultado de sua dissertação de mestrado em Estudos Culturais na
USP; e os dois primeiros capítulos do livro de Jorge Hilton, de 2020: Branquitude, Música
Rap e educação: Compreenda de uma vez o racismo no Brasil a partir da visão de rappers
brancos, nos quais discorre sobre a influência negra na origem da música Rap e a relação da
luta antirracista com a construção da arte no Brasil.
Ainda, foram trazidas falas do movimento da Matrix: de seus organizadores, público e
MC's. Essas falas foram retiradas de entrevistas e de registros das batalhas, que se encontram
em suas redes sociais.
A pesquisa documental já se inicia, então, nesse primeiro momento, apresentando, no
trabalho, a Batalha da Matrix e o Hip Hop desde seus próprios protagonistas. A intenção
inicial era realizar uma pesquisa empírica, entrevistando integrantes dos diferentes elementos
da batalha, porém, com a pandemia da Covid-19, parte do material para a pesquisa foi
coletado a partir das atuações do movimento nas redes sociais, no Instagram e no Youtube.
Posteriormente, a pesquisa documental se debruçou sobre produções acerca do que é
saúde e de quais modos ela pode ser promovida, ou não. A partir das produções de Rita
Barata, foi traçado um panorama de como as desigualdades sociais influenciam a saúde.
Então, a partir das referências oferecidas pelo próprio movimento social e cultural estudado, e
com base no livro de Renan Rocha, Monica Torrenté e Maria Thereza Coelho (2020): Saúde
Mental e Racismo à Brasileira: Narrativas de Trabalhadoras e Trabalhadores da Atenção
Psicossocial, chegou-se num lugar de defesa da centralidade da raça para pensar em
promoção de saúde no Brasil, bem como os efeitos do racismo na saúde de nossa população.
10

Finalmente, a partir da articulação desses diferentes conhecimentos produzidos,


buscou-se explicitar o que faz da Batalha da Matrix um ponto de promoção de saúde na
cidade de São Bernardo do Campo.
11

3 O ABC DO RAP

Antes de iniciar esse capítulo, é importante pontuar que, na busca pelo protagonismo
dos integrantes desses movimentos durante a pesquisa, buscou-se, enquanto referências,
livros acadêmicos sobre a temática escritos por mcs. Bem como as produções da própria
Batalha da Matrix: entrevistas dadas pelos organizadores, textos, fotos e vídeos das
produções nas redes sociais do movimento.
Ainda, é preciso explicar que, nesse capítulo, o número de citações será
significativamente maior. Isso porque, como explicado na introdução, a intenção do trabalho
é fazer com que a Psicologia ouça e aprenda desses movimentos. Assim sendo, faz sentido
manter as falas daqueles que compõem o Hip Hop e a Batalha da Matrix do jeito como foram
faladas, no esforço de trazer, assim, suas vozes para dentro do ambiente acadêmico.

3.1 De Jamaica a São Bernardo/Do Hip Hop à Matrix: um breve mapeamento


histórico e ideológico do Hip Hop e do Rap

As batalhas de rima são movimentos que fazem parte de um elemento do Hip Hop: o
Rap. Assim sendo, é importante que a contextualização da Matrix passe por uma breve
contextualização do Hip Hop e do Rap. Segundo Jorge Hilton Miranda (2020), rapper e
pesquisador baiano:

O Rap é um estilo musical que não pode ser entendido fora do seu contexto
elementar de composição do Hip-Hop, que é uma manifestação de caráter
sociopolítico que se desdobra entre Cultura e Movimento. A Cultura
simboliza a dimensão artística-profissional e o Movimento, a política
ativista. Como dito, o H25 é formado por cinco elementos: Rap, Dança de
Rua, Graffiti, DJ e Conhecimento; esse último, estabelecido em sua origem
como princípio interdisciplinar e consolidador da Cultura de Rua. Agrega os
elementos artísticos, imprimindo um caráter de comprometimento
político-pedagógico e histórico (p. 27).

O autor ainda indica um ponto que explicita o caráter político e de enfrentamento às


violências produzidas pelo capitalismo e pela colonialidade, presentes nas batalhas
produzidas pelo Hip Hop, ainda em momento mais originário, nos Estados Unidos:

5
Sigla para Hip Hop.
12

Um dos principais “venenos” do capitalismo é o estímulo à competição. A


sabedoria do Hip-Hop foi utilizar de uma forma positiva desse “veneno” que
estava levando muitos jovens negros a morrerem em brigas violentas entre
gangues. Assim, a competição passou a ser entre as equipes de Breaking e
Graffiti, disputando através de suas artes qual era a melhor equipe. Essas
“batalhas” tornaram-se essência do Hip Hop no mundo. Foi o que permitiu o
Hip Hop se expandir a elevado nível de profissionalismo, tornando
alternativa de sobrevivência entre seus adeptos (MIRANDA, 2006, p.6 apud
MIRANDA, 2020, p. 32).

Ainda, como conta Campos (2020):

Spensy Pimentel (1997;1999) apontava o Hip Hop como uma


Utopia. De acordo com o autor, o Hip Hop que emergiu no fim de um século
tão desencantado, seria um movimento que afirma a identidade do jovem da
periferia, propõe a ação, o autoaperfeiçoamento, a expressão e o
autodidatismo. Autêntica utopia em meio a uma aridez sem precedentes no
espírito mundial, é capaz de aglutinar em torno de si dezenas, talvez
centenas de milhares de jovens que se tratam por “manos”, deixando de
transparecer essa espécie de fé tênue que lhes traz a sensação de fraternidade
(Pimentel, 1999, p. 106 apud p. 32).

A história do H2 se inicia nos anos 1970, em um Estados Unidos marcado por


enormes desigualdades sociais. Ela começa com os DJs: uma arte de origem jamaicana. Os
DJs Kool Herc e Afrika Bambaataa são os maiores destaques desse cenário de origem. O
primeiro, leva duas importantes tradições da Jamaica - lugar onde morou até a adolescência,
antes de se mudar para o Bronx, em Nova York. São elas os sound systems6 e o hábito de
falar em cima de bases rítmicas, remontando aos toasters7 e griots 8
africanos (Miranda,
2020).

Estabelecia-se ali o ponto central para uma verdadeira revolução


[...] Um estilo de vida estava em desenvolvimento. [...] Kool Herc animava
o público com músicas e com suas falas ao microfone. No geral, eram frases
de efeitos para entreter, que se tornaram cada vez mais elaboradas, com o
6
sistemas de som
7
tradição do reggae em que os músicos falam e cantam de improviso sobre trechos
instrumentais
8
lideranças religiosas de alguns países africanos, que, através da arte e oralidade, passam de
geração para geração as tradições do seu povo
13

uso de rimas. Desse improviso, nasceram os primeiros Raps sobre bases


rítmicas negras do Soul e Funk (MIRANDA, 2014). Essa era a forma de
lazer de jovens negros/as e latinos/as marginalizados/as, que cada vez mais
foi se relacionando com outras linguagens artísticas (p. 30).

Mas, para além das influências artísticas, culturais e estéticas jamaicanas, o


Hip Hop tem também forte influência dos movimentos pelos direitos civis do povo negro nos
EUA, dos 1950 e 1960. Afrika Bambaataa, por exemplo, “através da herança deixada pelo
Movimento dos Black Panthers e Black Power, juntamente com outros amigos que
assimilavam essa influência política, fundou, em 12 de outubro de 1973, a Universal Zulu
Nation9 (Miranda, 2020, p. 31)”.
É, portanto, a partir desses improvisos dos DJs sobre bases rítmicas negras, em
festas da juventude periférica de Nova York - fortemente influenciada pelos movimentos
negros dos anos 50 e 60-, que nascem os primeiros Raps e, com eles, o terreno de origem
desse elemento. Mas, apesar dessa forte influência política relatada, é apenas mais adiante
que as primeiras letras de denúncia ao racismo surgem, como nos conta Miranda (2020):

A espontaneidade que marcou o princípio desse estilo musical se


traduzia primeiro na reivindicação ao lazer e diversão, e depois pelo poder
de se evitar mortes com o estímulo à competição artística, ao invés da
competição violenta entre gangues. Esse momento é conhecido como “old
school” ou “velha escola” [...]

Essa fase dura até 1982, quando um novo cenário batizado como
“new school” ou “nova escola” é inaugurado, caracterizando-se pelo Rap
voltado à crônica-denúncia social e racial [...] (p. 32).

Em relação a esse novo cenário, a “nova escola”, dois grupos tiveram destaque:
N.W.A. (Niggers With Atitud10) e Public Enemy11. Esse último, como aponta Shetara (2001)
apud Miranda (2020) tomado pelos ideais de Malcolm X e dos Black Panthers:

inaugura um estilo de Rap diferenciado pelas críticas contundentes ao poder


branco norte-americano. Defendia uma América para os negros e seus
shows articulavam rimas agressivas, com performance de dançarinos
uniformizados de militares (p. 38).

9
Organização responsável por fundar o Hip Hop enquanto Movimento organizado, em 1974.
10
Tradução: Negros com Atitude
11
Tradução: Inimigo Público
14

Essa trajetória nos aponta como o Rap é extremamente artístico, diverso e subversivo
e como, em seu desenvolvimento, carrega

uma riqueza estética e variedade temática que engloba, dentre outras, a


dimensão da descontração, da denúncia crítica e do duelo (batalha artística).
É uma tendência em crescimento, destacando-se com as suas músicas de
protesto, sobretudo de raça e classe (GILROY, 2001 apud Miranda 2020, p.
33).”

Portanto, segundo o Miranda (2020), é fundamental a compreensão de todas as


manifestações do Hip Hop, enquanto expressão do movimento negro, fortemente ligado com
a luta antirracista. Aqui no Brasil, o Rap surge nos anos 80:

Seus precursores são herdeiros da Black Music brasileira dos anos 1970,
cena fortemente inspirada pelo contexto de luta política e cultural
estadunidense. Nesse enredo anterior, as composições dos artistas negros
locais refletiam cada vez mais consciência da sua cidadania e negritude,
com valorização da estética afro, revolta contra opressão e incentivo à
mudança de comportamento (p. 34).

Assim como nos Estados Unidos, “nas periferias das grandes cidades brasileiras,
proliferaram bailes Black marcados principalmente pela trilha sonora do Soul e Funk
(Miranda, 2020, p. 34)”. Na especificidade brasileira “o Soul teve um desenvolvimento
único, talvez a concretização do sonho “conscientizante” de todos os ideólogos do
Movimento Negro Brasileiro (Hemano Vianna, 1987, apud Miranda 2020, p. 35)”.
Sobre esse terreno político e cultural, o Rap vai se desenvolvendo no Brasil com certa
similaridade com os EUA: as primeiras letras de grupos brasileiros seguiam a tendência da
“velha escola”, trazendo dimensões da diversão, da zoação e da contação de histórias
(Miranda, 2020). Porém, a cena brasileira é fortemente influenciada pela “nova escola” e os
grupos referenciais citados acima (N.W.A e Public Enemy) impactaram marcadamente a
mentalidade e postura dos MCs por aqui (Miranda, 2020).
Assim, a música Rap brasileira foi se desenvolvendo com fortes influências das
origens estadunidenses, mas também com uma construção verdadeiramente nacional, se
referenciando em líderes como Zumbi dos Palmares, Dandara e em ritmos como o samba e a
embolada (Miranda, 2020). Ainda, segundo Campos (2022):
15

o Rap seria a crônica dos anos 1990, falando para e pelos moradores de
periferia, figurando como “sociólogos sem diploma” e pertencentes ao
universo da cultura popular de um mundo globalizado (p. 32).

Por fim, é fundamental nos debruçarmos sobre a questão das “Posses” do Hip Hop.
Uma vez que, já em território paulista, no ABC, a Posse Haussa iria se formar no início dos
anos 90 (Campos, 2020), iniciando um movimento que, mais tarde, culminaria na Batalha da
Matrix, o que será retratado mais adiante no trabalho.
Em inglês, a palavra Posse remete à agrupamento, equipe, pelotão (Miranda, 2020, p.
40). Sobre seu nascimento no Hip Hop, o N.W.A. inaugura o conceito político cultural em
seu primeiro álbum 'N.W.A. and the Posse' (1987). Ainda, alguns atribuem a expressão,
simbolicamente, à Zulu Nation - já citada no trabalho -, como a primeira Posse de Hip Hop,
mesmo sem o uso do termo por seus fundadores. O que parece ser bastante apropriado se
associado com o sentido brasileiro do conceito, segundo Miranda (2020).
Em contexto brasileiro, como aponta Miranda (2020), sob influência do álbum do
N.W.A. - acima citado-, dois anos após seu lançamento:

surge, em São Paulo, a primeira Posse brasileira, denominada Sindicato


Negro. No início, reunia-se na Praça Roosevelt e não considerava a questão
racial um tema diretamente relevante. Até que batidas policiais foram se
tornando constantes e levaram o grupo a repensar essa questão. Um dos
integrantes era filho de um advogado da ONG Geledés e militante do
Movimento Negro, através do qual houve o alerta de que aquele tipo de ação
policial era comum, principalmente contra pretos e mestiços; e de que
deveriam buscar se conscientizarem a respeito do racismo no Brasil (p.43).

As Posses foram então se espalhando pelo Brasil, porém com uma atuação diferente
das originais norte americanas, que eram mais ligadas a objetivos profissionais:

Em solo brasileiro, esses núcleos que envolviam artistas, ativistas e


simpatizantes do Hip Hop - e que potencializaram as ações de enfrentamento
ao racismo e às desigualdades sociais - tinham uma motivação
essencialmente política e pedagógica. As reuniões eram espaços de formação,
onde se assistiam palestras, filmes, estimulava-se a leitura e planejavam-se
atividades das mais diversas, dentre elas, elaboração de informativos
impressos, realização e participação em oficinas, debates, seminários,
congressos, workshops, articulação com diferentes instituições [...] e
16

intervenção frente ao poder público para efetivação de políticas públicas


(Miranda, 2020, p. 45).

Em seu livro, Campos (2020) se baseia no estudo de Elaine Nunes de Andrade sobre a
Posse Hausa, que se articula no início dos anos 90 na cidade de São Bernardo do campo:

Elaine Nunes Andrade (1996;1999) buscou afirmar o Hip Hop como um


movimento negro juvenil, a partir de sua pesquisa sobre a Posse Hausa de
São Bernardo do Campo. Observação que anos depois foi feita também por
Petrônio Domingues (2007, p.119) [...]. Como movimento negro juvenil o
Hip Hop figuraria como um movimento que daria sequência às lutas do
povo negro organizado desde o período escravista, no tempo
contemporâneo. Organizados em torno da música Rap e na relação direta
com o Movimento Negro Unificado (MNU) - já que a Posse Hausa entre
1995 e 1997 atuou como um Grupo de Trabalho (GT) do MNU - os jovens
rappers são-bernardenses em sintonia com as dinâmicas do Hip Hop na
cidade de São Paulo, participaram do processo de aproximação da camada
mais pauperizada do povo negro - o segmento plebeu de acordo com Clóvis
Moura - e as pessoas e as agendas do movimento negro brasileiro.

O contexto, bastante resumido, da criação da Posse Hausa foi o seguinte: era início
dos anos 1990 e o “Movimento de Rua” vinha promovendo encontros na Pista Velha de São
Bernardo. Cansados de investidas policiais e da marginalização do movimento, procuram o
Departamento de Cultura Municipal e conseguem articulação com a prefeitura. Em 1992,
essa articulação resulta no lançamento do primeiro livro contendo letras de Rap no Brasil,
intitulado ABC Rap (Campos, 2020) - referenciado no título do presente capítulo.
Com a mudança no governo municipal e a ameaça da não continuidade do
projeto, o Movimento Negro Unificado entra em cena: “A fim de pensar os caminhos dessas
movimentações em torno da música Rap a partir da mudança da administração municipal, a
entidade promoveu o I Encontro de Posses do ABC (Campos, 2020, p. 155).” Em 1995, a
articulação com o Departamento de Cultura foi oficialmente rompida (Campos, 2020).
É então nesse cenário que, em 26 de junho de 1993, surge a Posse Hausa,
nomeada em referência ao grupo africano majoritário na Revolta dos Malês, os hauçás, e com
o lema: “Hip Hop com Responsabilidade Racial” (Campos, 2020). ”Inicialmente como um
núcleo de base, não tardando em tornar-se um dos grupos de trabalho (GT) do MNU (p.
157)”, a Posse Hausa possibilita a leitura do Hip Hop enquanto representante da quinta fase
17

do movimento negro brasileiro rodapé: para detalhamento das 5 fases, verificar página 157 da
referência (Campos, 2020).
Entre 1997 e 1998, a Posse Hausa decidiu parar as atividades e,
consequentemente, se desligou do MNU. Assim, os encontros que aconteciam desde 1994 na
sede do Projeto Meninos e Meninas de Rua de São Bernardo do Campo (PMMR) pausaram
até 2008, quando o espaço voltou a ser usado para encontros ligados ao movimento Hip Hop,
desta vez pela articulação do Fórum de Hip Hop de SBC (FH2):

As atuações do Fórum de Hip Hop de SBC desdobram em alguns


projetos, eventos e atividades permanentes como o Sarau do Fórum, desde
agosto de 2010. Centralizou as ações de Hip Hop na cidade, até ser iniciado
em maio de 2013 o evento Batalha da Matrix e em agosto do mesmo ano a
Casa do Hip Hop de São Bernardo do Campo [...]

O que vale registrar é que uma postagem de internet na rede


Facebook logo após o primeiro encontro intitulado Batalha da Matrix,
acompanhada da hashtag rapabc (#rapabc) [...], deu identidade ao que
usualmente é reconhecido pelos grupos e MCs de Rap das sete cidades da
região como o Rap ABC (ou Rap ABCDMRR) (Campos, 2020, p. 164).

Fica evidente, portanto, a longa e complexa trajetória do movimento político cultural


Hip Hop, e sua fundamental articulação com o Movimento Negro, até chegar à cidade
paulista de São Bernardo do Campo e desembocar na criação da Batalha da Matrix.

3.2 Batalha da Matrix e ações subversivas: a periferia no centro

Organizada pela Sociedade Alternativa de Campom (S.A.C.), a Batalha da Matrix é


um evento que reúne jovens em torno de um banco em uma praça no centro da cidade de São
Bernardo do Campo. Como nos conta Campos (2020):

Desde maio de 2013 ocorre na Praça da Matriz de São Bernardo do


Campo a Batalha da Matrix. O evento consiste em ser um duelo de até três
rounds entre MCs que têm 30 segundos cada para cativar o público, o qual
concede a vitória a um/a dos/as oponentes por meio do barulho. Dedicados
às rimas de improviso, denominadas freestyle dentro do universo da música
Rap, movimentam o centro da cidade todas as terças-feiras no período das
18

19h30 às 22h, com uma média de público calculado em torno de 600


pessoas (p. 28).

Assim, as batalhas de rap se configuram como:

um duelo de MCs que fazem rimas improvisadas para atacar um ao outro,


30 segundos de cada vez. Os MCs tem 2 ou 3 rounds para mostrar suas
rimas ao público, que por sua vez, decide qual dos dois é o vencedor
fazendo barulho, e assim o duelo segue de modo eliminatório até haver um
campeão (Campos, 2020, p. 133).

Como explicitado em nota de rodapé pelo autor, essa modalidade, na qual um MC


ataca o outro, é denominada “Batalha de Sangue”, e é o modelo principal promovido pela
Matrix.
Segundo Campos (2020), os objetivos da Sociedade Alternativa de Campom para a
realização da Batalha da Matrix são:

1.Propagar a cultura Hip Hop em espaço público na cidade de São Bernardo do


Campo, tanto na área central (às terças-feiras) quanto na periferia (Projeto Matrix nas
Quebradas).
2.Exercer o direito de ocupar o espaço público para fins culturais, sem que haja
burocracia dos eventos culturais de praxe da cidade. Simplesmente fazer.
3.Criar um ambiente aberto e confortável para que as pessoas se conheçam, conheçam
o evento e se interessem pela cultura Hip Hop, por meio do elemento MC/Rap.
4. Iniciar os MCs que se interessam, motivá-los e introduzi-los ao meio Hip Hop/Rap.
5. Proporcionar não só premiações, mas também oportunidades aos MCs para que
entendam como o meio profissional funciona, para que tenham contato com DJs,
B-Boys/B-Girls, grafiteiros, beat-makers, produtores e outros envolvidos no meio musical.
6. Expandir o movimento para o maior número de pessoas no mundo, tornando-o uma
vitrine cada vez mais forte e unida.

Ainda, o autor aponta um ponto bastante importante para a compreensão do


movimento:

É preciso salientar que um membro importante e de destaque na organização


desta atividade semanal, a entende enquanto um “movimento cultural” e
como um “movimento politizado” que busca mudanças em duas frentes: no
campo musical e cultural, assim como no campo político (p. 20).
19

Fundamental, nesse momento, trazer algumas produções da Matrix, para ilustrar o


dito até o momento. É importante apenas pontuar, antes disso, que as imagens que seguem os
vídeos transcritos fortalecem a percepção da força do movimento. Assim sendo, sugiro
fortemente àquele que lê, que os acessem através do link indicado nas referências, sempre
que possível.
A primeira será a imagem, abaixo apresentada, da comemoração do aniversário de 4
anos da batalha, ou, o 4º Festival de Resistência da Matrix. Como publicado no Instagram do
movimento:
Decidimos fazer uma releitura da bandeira de São Bernardo, não
acreditamos que essa simbologia suja nos represente. Bandeirantes
assassinos escravocratas? Não é a história que a gente quer contar. Um índio
branco? O que eles querem dizer? Essa bandeira pode fazer jus à essa cidade
racista, aos governantes que odeiam tanto a cultura do povo. Mas a gente diz
foda-se pra cada explorador que pisou nessa terra fundada com sangue.
Fodam-se os atuais exploradores também. Somos mais os índios e os pretos!
Somos mais o POVO! Design feito por @dymittre (Batalha da Matrix,
2019) .

Figura 1. Instagram @batalha da matrix

A figura 2 se refere à bandeira de São Bernardo, referida no texto e também presente


na postagem, enquanto segunda e última imagem:
20

Figura 2 Instagram @batalhadamatrix

Ainda, na loja online da batalha, o texto de apresentação de uma camiseta que


estampa a releitura da bandeira da cidade diz:

Uma releitura do brasão de São Bernardo do Campo, a estampa


Resistência se tornou um símbolo nas ruas do ABC

Um indígena de pele bem clara com seu arco, e um bandeirante com sua
espingarda, posam como “grandes aliados” ao lado do brasão da cidade de
São Bernardo do Campo, com a escritura “mãe de todas terras Paulistas” em
latim ao centro. Não acreditamos nessa bandeira. A história real não foi tão
amistosa como a imagem original retrata. Na nossa releitura da bandeira,
quem domina é o nativo brasileiro, não o homem branco e sua arma. Assim
como na Batalha da Matrix, a independência do nosso povo foi conquistada
com luta. Este é um fragmento de resistência, para relembrar que desde os
nossos antepassados, a luta nunca foi em vão.

A segunda, será a transcrição de um vídeo publicado no Instagram da Batalha12 no dia


20 de março de 2022, um dia após a realização de uma edição marcada pela tentativa de
sabotagem por parte da Prefeitura de São Bernardo, representada pela Guarda Civil
Metropolitana. Com a impossibilidade de brecarem o evento de acontecer, pela ilegalidade do
ato e pela grande quantidade de pessoas na praça - o que reduz a possibilidade de repressão
violenta -, a GCM não liberou o uso de caixas de som naquele dia, a fim de pressionar o
movimento da forma que foi possível. Em resposta, os organizadores - e alguns aliados -
conversaram com o público, cenário retratado no vídeo:

12
@batalhadamatrix
21

[VALE - organizador da Matrix]


Hoje, nois vai ter que dar um exemplo, mano. Nois vai ter que
dar um exemplo de organização, tá ligado? Porque hoje vai ser muito
fácil, muito fácil ter repressão. Então aqui ó, você que é nosso
público que já viveu isso, nois vai ter que dar uma aula de
organização, certo?

[Ewerton Carvalho - advogado]


Agora a gente vai exercitar a democracia aqui agora. Olha ao
redor: tem casa? Olha ao redor, tem casa nessa porra?

[PÚBLICO]
Não!!!

[Ewerton Carvalho - advogado]


Então eu vou perguntar o seguinte: vocês querem que seja
feita [a Batalha] com som ou sem som?

[PÚBLICO]
Com som! Com som! Com som! Com som!...

[Ewerton Carvalho - advogado]


O poder é do povo e emana do povo. Vocês são o poder. Não é
a força armada do Estado, tá ligado?

É fundamental pontuar o momento presente que esse movimento vive, contexto da


cena acima narrada. A Prefeitura da cidade, representada atualmente por Orlando Morando,
vem, desde o retorno do evento, em março de 2022 (que não realizou os encontros desde o
início da pandemia da covid-19), tentando impedir que a batalha aconteça na praça, espaço
onde acontece há 9 anos. Para tal, utiliza de estratégias burocráticas e de negação de diálogo
das Secretarias de Segurança Pública e de Cultura, bem como do uso do aparato
jurídico-policial municipal para intimidação dos organizadores e frequentadores da batalha.
22

A justificativa oficial é que ocorre a venda e consumo de drogas ilícitas durante o


evento, bem como o consumo de bebida alcoólica por menores de idade; o vandalismo a
comércios da região; e o incômodo dos moradores da região devido ao som alto - que não
ultrapassa as 22h (Diário do Grande ABC, 2022). Entretanto, resumir a Batalha da Matrix,
nessa tentativa de criminalização desse amplo movimento político e cultural, aparenta ser
apenas estratégia de marketing. A verdadeira razão parece estar no racismo e no elitismo
promovidos pela população - branca - que habita o centro da cidade e que se sente ameaçada
com a presença da periferia; bem como no modelo de política realizado pelo prefeito Orlando
Morando (PSDB), marcado pelo neoliberalismo, pelo genocídio - simbólico e físico - da
população negra, e pela consequente criminalização de movimentos populares.
Apesar da intensificação dessa perseguição nesse momento “pós”-pandêmico, ela não
é de hoje. Como conta Vale - um dos organizadores do movimento - em trecho de sua
participação no Podcast Solta Pai, postado no Instagram da Matrix em 13 de julho de 2021:

[ENTREVISTADOR]
Teve muita resistência até o negócio firmar ali?

[VALE]
Muita mano, nossa história foi pautada nisso aí por muitos
anos, tá ligado? Hoje a gente gosta de falar que a nossa história é
existência. Hoje a gente preza pelo existir mesmo. Chega de ficar
pedindo pra existir, chega de ficar batendo a cara na mesa, tá ligado?
Chega de ficar trocando ideia com político. Agora o bagulho nós
estamos aqui mano. É isso, vamo existir, vamo fazer o bagulho
potencializar quem ta aqui, mostrar os MCs, tá ligado levar o
bagulho pra outros lugares do mundo memo. Hoje é isso né, hoje é
essa a métrica. Hoje a gente trampa pra isso, mas por muito tempo
foi só bancada e resistência mesmo, tá ligado mano? Uns bons 4 anos
e meio assim.

[ENTREVISTADOR]
Porque gera um preconceito né, mano?

[VALE]
Ah imagina mano [...] um lugar mais central, ta ligado, que
tem apartamentos que tem o metro quadrado mais caro. A gente tá
23

numa praça gigantesca, que é simbólica e histórica da cidade desde a


fundação [...] é uma praça simbólica mano, acontecia toda aquela
greve dos metalúrgicos do ABC, a fundação do PT, tudo acontece ali.
É perto do sindicato. Tudo acontece ali, é uma cidade muito
simbólica São Bernardo do Campo também. Durante a ditadura, os
militantes iam pra dentro da igreja, o padre passava um pano, tá
ligado, eles se escondiam lá.

Pensa no misticismo desse lugar já, tá ligado. A gente tá na


rua Marechal Deodoro, coração comercial da cidade mano. É uma
avenidona de alguns km, tá ligado. Então ali a gente tem
comerciantes que podem não gostar de nós, porque acham que tem
tráfico de drogas, o pessoal sai vandalizando a loja dele, que vai ter
estupro e os carai. Os cara falava isso pra gente. Tem morador que
acha que fica violento e não pode andar, que acham que fica à mercê
dos vagabundos. E aí tem a polícia autoritária, a GCM autoritária,
que por muito tempo foi autoritária lá, até que a gente se impôs, tá
ligado. E aí eles trocaram ideia de igual pra igual a partir desse
momento.

Então é muito misticismo em volta ali e a gente no meio desse


bagulho né. A gente quando fez lá no 7 de maio de 2013, a gente
jamais imaginou que a gente tava no meio dessa linha de tiro, a gente
era uns mlk querendo fazer umas rimas e tomar uns drinks e dar
risada, tá ligado. Então a gente se viu nessa situação e percebeu que
tinha que aprender, tá ligado. Opa mano, qual que é o lugar que eu
ocupo aqui, que porra é essa que ta acontecendo aqui? Essa galera
toda aqui, porque que tem um prefeito querendo falar comigo, porque
tem um promotor me mandando carta em casa. [...]

Já rolou intimação, por exemplo, da gente ter que depor [...]


no Narcóticos da Civil, pra falar que a gente não financiava o
bagulho, que a gente não tinha a ver com o tráfico. [...] e aí nois
falou: mano, cês tão confundindo nois. Nóis tá fazendo batalha de
rima ali, a rapaziada se tromba e é isso. Cê acha que a gente sabe
24

todo mundo que tá lá? Cê acha que a gente tem algum controle da
vida das pessoas? A gente só tá organizando uma batalha de rima.
Vocês tinham que ver nois como uma Frente Cultural, tá ligado.
Então por muito tempo a gente teve que esquivar das balas, e aí
justifica o nome Matrix né, desviando das bala, tá ligado? [...]

[Hoje] Ta suave. Nunca é 100% tranquilo, né. A gente sempre


espera que tenha algum bagulho, alguma dificuldade que venha a
acontecer, tá ligado. Mas já tem um bom tempo que a gente conseguiu
conquistar esse espaço mesmo e o poder público entender que a gente
realmente conquistou aquele espaço e não ficar de pirraça, ta ligado,
querendo conflitar.

Infelizmente, é nítido o retrocesso sentido pela organização nessa relação com


o Poder Público. Hoje, em 2022, eles são forçados a voltar à condição de resistência, quando
já a haviam superado e passado a existir, como apontado por Vale, acima. Ao mesmo tempo,
fica nítida a capacidade de organização dessa juventude - frente ao poder autoritário do
Estado-, e de subversão dessa tentativa de aniquilamento, ao transformar o momento em
pedagogia política para os frequentadores da batalha, como explicitado no diálogo de Vale e
de Ewerton com o público.
Assim, espera-se ter sido possível uma introdução do que é a Batalha da Matrix, bem
como de sua articulação com o Hip Hop. Ela pode ser compreendida enquanto movimento
político cultural, da juventude, que promove encontros que proporcionam entre outros, lazer,
descontração, conscientização, profissionalização, educação crítica etc. A Matrix traz as
periferias do ABCDMRR ao centro de São Bernardo semanalmente, promovendo a cidadania
de jovens periféricos e a continuidade do movimento negro, mesmo que indiretamente, na
realidade pública e política da cidade.
25

4 DETERMINANTES SOCIAIS DE SAÚDE E BRASIL

É importante ressaltar, nesse momento, a preocupação com a aproximação dos


referenciais utilizados no trabalho com a realidade que o mesmo pretende estudar. Assim,
serão utilizados conhecimentos críticos produzidos desde a América Latina, em busca de
coerência e do comprometimento ético-epistemológico, já discorrido anteriormente.

4.1 Determinantes Sociais de Saúde

O debate, no âmbito da Saúde Coletiva, sobre os determinantes sociais de saúde não é


algo novo. Ele parte, primeiramente, da compreensão das estruturas sociais - como a
colonialidade, o patriarcado e o capitalismo - como sendo desiguais e promotoras de
desigualdades sociais. Em segundo lugar, da compreensão de que essas desigualdades
produzem diferenças no estado de saúde entre grupos definidos por características sociais,
tais como riqueza, ocupação, raça, gênero, entre outros (Barata, 2009).
É, portanto, uma concepção histórica, que compreende que o processo saúde-doença é
determinado pelas condições estruturais e conjunturais da vida da sociedade humana. Assim,
falamos sobre diferenças que são injustas, uma vez que estão associadas a características
sociais que colocam, sistematicamente, alguns grupos em desvantagem com relação à
oportunidade de ser e se manter sadio, física e mentalmente (Barata, 2009).
Rita Barata (2009) discorre acerca de algumas das teorias que buscam compreender
como as desigualdades afetam a saúde. Assim, nos traz que a teoria ecossocial e a teoria do
modo de vida representam o esforço de articular outras três teorias - a estruturalista, a
psicossocial e a determinação social - considerando os padrões de saúde e doença como as
consequências biológicas dos modos de vida e trabalho próprios de cada grupo social,
determinados pela organização econômica e pelas prioridades políticas da sociedade.
A conta, segundo a autora, é mais ou menos essa: as relações políticas, sociais e
econômicas afetam tanto a forma como as pessoas vivem, como o próprio contexto ecológico
- em outras palavras, o contexto natural-, moldando os padrões de distribuição de doenças.
Assim, portanto, não faz sentido falar em doenças sociais e doenças não sociais, uma vez que
toda e qualquer doença, bem como sua distribuição, são produtos da organização social.
Isso nos leva a compreender como as desigualdades no estado de saúde - produto das
desigualdades da organização social - refletem o grau de iniquidade existente em cada
sociedade (Barata, 2009). Ao mesmo tempo que nos leva a compreender o lugar
26

indispensável do princípio da equidade na promoção de saúde, que será explicada mais a


seguir.
Essa compreensão, como Barata (2009) nos relembra, também se expressa no campo
da saúde no Brasil. A partir da Constituição Federal de 1988, decidiu-se que a saúde é um
direito de todos e deve ser garantida por meio de políticas públicas. Ainda, apontou-se que os
princípios gerais que o sistema nacional de saúde deveria ter seriam: a universalidade, a
integralidade e a equidade.
Segundo a autora, a equidade na oferta de serviços de saúde tem dois pontos: a
equidade horizontal, que diz respeito ao acesso e utilização de todos, independente do grupo
social ao que pertençam, dos serviços indispensáveis para resolver as suas demandas de
saúde; e a equidade vertical, que trata sobre como “aqueles que apresentam maior
vulnerabilidade em decorrência de sua posição social devem ser tratados de maneira diferente
para que a desvantagem inicial possa ser reduzida ou anulada”.
Portanto, ao olharmos para a saúde a partir da noção dos Determinantes Sociais,
situando as práticas de saúde na realidade sócio-histórica-cultural as quais estão inseridas,
tomamos o corpo - e o sujeito - enquanto totalidade semântica e devemos enxergar as
múltiplas dimensões que o constituem na relação com a experiência sensível do vivido,
revelando que o corpo afeta e é afetado continuamente pela ambiência - social, histórica e
economicamente entrelaçada - em que se encontra inserido (Rocha, Torrenté, Coelho, 2020).
Assim, podemos entender a inegável relação entre saúde e poder. Segundo os autores,
o poder se apresenta sempre no âmbito das relações entre os sujeitos, como prática
sócio-histórica, socialmente constituída; tal qual o fenômeno da loucura (Foucault, 1979,
apud Rocha, Torrenté, Coelho, 2020).
O biopoder, enquanto uma "tecnologia de poder", visa controlar e regular os corpos e
as populações, na defesa retórica de proteção da vida. A biopolítica é uma de suas derivações
e pode ser classificada, segundo Danner (2010) apud Rocha, Torrenté e Coelho (2020), como
a maneira que a sociedade se estrutura a partir do comando de ideologias dominantes de
exercício de poder e a forma como estas acabam por constituírem-se, baseadas no discurso de
saberes hegemônicos sobre a vida humana, em uma macroestrutura de influência, controle e
dominação coletiva.
Uma vez que a promoção de saúde, ou de doenças, está tão intimamente relacionada à
organização social e política de uma sociedade e à maneira como essa distribui o poder, será
necessário compreender quais são algumas das características estruturais de nosso país, para
27

levantar pontos importantes para se pensar em efetiva equidade e consequente promoção justa
de saúde.

4.2 Racismo à brasileira: éticas necessárias nas práticas de cuidado no Brasil


Como dito na introdução, este trabalho irá focar o olhar no determinante racial de
saúde. Ele é um dentre outros igualmente importantes como o gênero, a idade ou a classe.
Mas por quê, então, utilizar como enfoque o determinante racial?
No livro Saúde Mental e Racismo à Brasileira: narrativas de trabalhadoras e
trabalhadores da atenção psicossocial, Rocha, Torrenté e Coelho (2020) partem da noção de
raça/cor como a semente geradora de todas as demais desigualdades, uma vez que a
desigualdade racial influencia na distribuição de renda, na distribuição do patrimônio, no
capital simbólico, e no tratamento que os indivíduos terão nas instituições de âmbito público
ou privado.
Ainda, os autores apontam um pressuposto básico para aqueles que pretendem estudar
o racismo transversalizado com diferentes campos do conhecimento: é fundamental um
resgate histórico, tanto pela compreensão da conformação da sociedade brasileira, como
quanto essa realidade histórica ainda se faz presente atualmente.
Para tal, primeiramente, será pensado sobre a colonialidade. Aníbal Quijano (2009),
sociólogo peruano, junto ao grupo latino americano modernidad/colonialidad, construiu o
termo, fundamental para se pensar a realidade histórica brasileira. Segundo ele, a
Colonialidade foi, sem dúvida, engendrada dentro do Colonialismo e, mais ainda, sem ele não
poderia ser imposta na intersubjetividade do mundo tão enraizado e prolongado:

Em pouco tempo, com a América (latina) o capitalismo torna-se mundial,


eurocentrado, e a colonialidade e modernidade instalam-se associadas como
eixos constitutivos do seu específico padrão de poder, até hoje (2009, p. 73).

Ainda, a colonialidade é elemento intrínseco do modo de produção capitalista e um se


fortalece com o outro (Quijano, 2009). Através de dicotomias entre sujeito/coletivo;
indivíduo/sociedade; razão/emoção e, principalmente, através da racialização (
branco/não-brancos), imperam normas acerca do dever ser e acerca do que é considerado
humano, e o que pertence unicamente ao campo da natureza. Assim, operam em todos os
campos da vida, e produzem e reproduzem relações de poder desiguais, principalmente
através da noção de raça, assim como seus dispositivos de manutenção.
28

A colonialidade, na realidade brasileira, se expressa, por exemplo, na tendência


eugenista que os poderosos da época pós abolição articulavam em seu projeto de sociedade.
Essa tendência pode ser observada em diversos documentos da época, mas escolho aqui
trazer o quadro Redenção de Cam, de Modesto Brocos (1895), exposto abaixo que expressa
explicitamente o percurso de embranquecimento que a burguesia brasileira buscava naquela
época, e que mantém sua influência nos tecidos sociais até os dias de hoje.

Figura 3. Quadro Redenção de Cam (1895).

Importante pontuar que essa visão eugenista da sociedade brasileira foi sustentada
fortemente pela medicina da época (Rocha, Torrenté e Coelho, 2020). Com a Escola Nina
Rodrigues, por exemplo, fundamental para a construção do pensamento médico brasileiro13,
pela via dos estudos sobre a miscigenação racial, a mestiçagem, os mestiços, os negros e os
seus efeitos nefastos na produção da degenerescência, da criminalidade e da loucura,
buscou-se traçar caminhos para a reconstrução e higienização da sociedade brasileira (Rocha,
Torrenté e Coelho, 2020). A categorização daqueles que seriam perigosos e dos que

13
“a tentativa de compreender o fenômeno da miscigenação racial no Brasil resultou, entre as últimas
décadas do século XIX e as primeiras do século XX, na consolidação de um pensamento
médico-eugênico fundamentado na degenerescência da raça negra, calcado na teoria do darwinismo
social, amplamente defendido pelo antropólogo e psiquiatra brasileiro Nina Rodrigues” (Rocha,
Torrenté e Coelho, 2020, p. 70).
29

apresentariam características positivas para o ideal que a burguesia buscava era


intrinsecamente relacionada à categorização racial.
A verdade é que a colonialidade opera em todos os lugares, em todas as instituições. E
ela é estrutura fundamental de nosso imaginário, de nossa cultura e de nossos valores. Assim
sendo, parece bastante pertinente, ao se pensar sobre saúde no Brasil, colocar a questão racial
em centralidade. Num país que está há séculos baseado na colonialidade para constituir sua
sociedade e sociabilidade, o racismo está, necessariamente, junto nesse alicerce.
Entretanto, no Brasil, a partir de discursos históricos, científicos e políticos, foi se
produzindo e entranhando no imaginário social a compreensão da dissolução do fenômeno
racista, com a justificativa na intensa miscigenação presente na formação histórica da
sociedade brasileira (Rocha, Torrenté e Coelho, 2020). Esse produto infundado é fundamental
para a manutenção da lógica racista, uma vez que invisibiliza o racismo. Assim, diversos
estudiosos do campo (como Telles, Munanga, Batista, Werneck e Lopes, entre outros)
pensam sobre a especificidade do racismo brasileiro: é, ao mesmo tempo, silencioso e
gritante, discreto e cortante, sutil e violento (Rocha, Torrenté e Coelho, 2020). É daí que vem
a expressão Racismo à Brasileira, proposta por da Matta, ampliada em Telles e apropriada por
Rocha, Torrenté e Coelho (2020).
No Brasil, portanto, o racismo é, apesar de intrínseco à formação de nossa sociedade,
e fortemente presente em nosso imaginário e cotidiano, silenciado, negado e, portanto, mais
difícil de ser alcançado e combatido. A maior expressão dessa nossa especificidade está no
Mito da Democracia Racial, noção reproduzida em discursos políticos, midiáticos e,
inclusive, acadêmicos e já bastante difundida no campo das relações raciais.
Ainda, o próprio Estado brasileiro tem um modo de operar racista. Os autores nos
apresentam, alguns estudos que apontam para agravos à saúde oriundos da iniquidade
resultante do fenômeno do racismo, como em Faro e Pereira, em Laura Cecília López ou em
Suzana Kalckmann e colaboradores. Esses últimos dirão sobre o Racismo Institucional, uma
tendência, por parte do Estado Brasileiro, de manutenção das estruturas históricas do racismo
na base das principais instituições sociais e públicas, resultando na instituição do próprio
racismo como um mecanismo intrincado nas ações ofertadas pelo aparato
estatal-governamental (Rocha, Torrenté e Coelho, 2020).
Ao compreender o lugar e o modo de operar do racismo na formação da sociedade
brasileira, é possível tecer algumas reflexões sobre a Saúde Mental no país. Há um paralelo
possível entre o modo de operar contra as pessoas negras e o modo de operar contra as
pessoas loucas. Suas experiências são consideradas como descartáveis e relegadas à morte,
30

simbólica e física. Aqui, a noção de periculosidade é fundamental para justificar a


necessidade da morte desses sujeitos: são perigosos, por isso precisam ser presos, sedados e
controlados.
Ainda, é fundamental pensar na saúde e na saúde mental de nossa população, que é
majoritariamente não branca, negra e indígena. Rocha, Torrenté e Coelho (2020) nos
apresentam dados do Boletim Epidemiológico de 2015, que apontam a persistência de
barreiras de acesso a diversos espaços e direitos para as pessoas negras, o que reflete em suas
condições de vida, moradia, trabalho, renda e acesso a serviços públicos. E assim, conclui
que "as diferenças encontradas podem estar relacionadas não somente com a saúde, mas com
outros determinantes que sobre ela exercem impacto direto, como educação, renda e cultura,
entre outros” (BRASIL, 2015, p.34 apud Rocha, Torrenté e Coelho, 2020, p. 42).
Para refletir mais especificamente sobre a Saúde Mental, os autores buscam na
importante referência Neusa Santos Souza (1983) fundamentos para tal reflexão:

[A autora] fundamentará a compreensão de que a rejeição sentida pelo negro


deriva de uma rejeição socialmente construída aos aspectos que marcam e
demarcam seu corpo, sua aparência, sua história, sua cultura e seus modos de vida.
Isto não apenas representa a própria produção social de uma “patologização” dos
elementos afrocentrados, como representa também que, se tratamos de um
processo de construção de identidade (ou subjetividade, a depender da corrente
teórica que se assuma), será demandado das mulheres e homens negros um forte
investimento psíquico e de reconfiguração de sua própria experiência e psiquê ante
o mundo que os circunscreve. Neusa Santos Souza (1983) apontará que o desenho
social e histórico desse fenômeno só poderá produzir às negras e negros brasileiros
adoecimento e sofrimento psíquico ante a vida (p. 48).

Como apontado por Rocha, Torrenté e Coelho (2020), toda essa discussão nos leva à
necessidade de novas práticas de cuidado, que permitam o aparecimento do sofrimento dos
sujeitos a quem ofertamos cuidado sem enquadramentos psicopatológicos restritivos e sem o
apagamento dos elementos da vida cotidiana que também causam "dor", "ansiedade",
"angústia" e "desespero", sem necessariamente estarem categorizados e sistematizados em
manuais de Psiquiatria e/ou Saúde Mental.
Assim sendo, parece estar explícita a pertinência e a urgente necessidade de olharmos
para o fenômeno do racismo no Brasil, ao se pensar e fazer saúde. É necessário compreender
que a saúde não está desalinhada da distribuição de poder e das dinâmicas de controle e
31

dominação presentes na nossa sociedade, bem como traçar éticas de cuidado que vão na
contramão destas, que confrontam a iniquidade. Ou melhor, legitimando os discursos
daqueles que são diariamente oprimidos e os convocando para serem agentes ativos de sua
saúde e de sua história, na direção da retomada do poder e da humanidade.
32

5 SAÚDE NA MATRIX

No capítulo anterior, foi possível compreender como as desigualdades sociais


causadas pelo capitalismo e pela colonialidade fazem mal à saúde de nossa população. A
partir dessa condição e da apresentação anterior do que é a Batalha da Matrix, podemos tecer
algumas reflexões sobre como esse movimento produz saúde.

Como exposto no capítulo 3.1, nas batalhas presentes no início do Hip Hop o estímulo
capitalista à competição era transformado em competição artística, diminuindo inclusive as
mortes entre gangues da periferia de Nova York (Miranda, 2006, p.6 apud Miranda, 2020, p.
32). Essa capacidade de subverter valores capitalistas em denúncia e reivindicação social, de
transformar a competição violenta entre jovens negros e periféricos em competição artística e
afirmativa, concebida nas batalhas de dança e arte plástica - com o Graffiti, num primeiro
momento, e apropriadas pela fala rimada, que nos direciona a pensar a condição de promoção
de saúde da Batalha da Matrix, ponto principal nessa pesquisa.
Mas isso acontece através de diversos processos. Um deles pode ser visto na
promoção de encontro entre os jovens, propiciando um momento de sociabilidade e lazer -
direitos importantes na promoção de saúde e negados aos jovens periféricos do ABCDMRR e
garantido pela Matrix. Além disso, esse encontro promove a apropriação afirmativa, por
parte da juventude negra, de identidade, cultura e estética negras. Como vimos no capítulo
4.2, com Souza (1983) apud Rocha, Torrenté e Coelho (2020), as referências do povo negro,
a partir do fenômeno do racismo no Brasil, foram linkadas com uma categorização
inferiorizada e, inclusive, patológica. Assim, esse processo é fundamental ao se pensar no
determinante social de saúde racial, pois promovem a autoestima e o pertencimento, negada a
essa população no processo de colonialidade, e o deslocamento de valores racistas que
colocam pessoas não brancas em intenso sofrimento.
Também se dá através da organização política coletiva, que puxa todos os
participantes da batalha para a ação prática e a tomada de decisões. O voto ao final de cada
duelo talvez seja a expressão mais nítida disso: é o grito de cada pessoa do público que
decide quem levou a batalha. Assim, as decisões construídas ali têm as mãos de cada um que
participa do evento, sem separações hierárquicas de saber, numa horizontalidade que atua na
direção da promoção de saúde.
Um outro processo que me parece importante para a construção de saúde na e pela
Matrix é o de acolhimento e organização das emoções, principalmente da agressividade, tão
patologizada na psicologia. Como sabido, a psicologia e a psiquiatria tendem a categorizar o
33

sofrimento e suas expressões em indicadores psicopatológicos, e com a herança da Escola


Nina Rodrigues, tendem a patologizar também pessoas, corpos e experiências negras, como
vimos com Rocha, Torrenté e Coelho (2020). Os próprios autores apontam a necessidade de
novas práticas de cuidado, sem enquadres psicopatológicos e sem o apagamento de elementos
do cotidiano que causam sofrimento (p.10). O acolhimento da agressividade, emoção
resultante de sofrimentos, sua legitimação e consequente organização, apontam na direção de
uma prática de cuidado nesse molde. Através do duelo de sangue ou dos gritos necessários
para o voto, a Batalha dá voz à revolta legítima e a organiza em forma de poesia, gestos e
danças, gritos etc.
Não é apenas a revolta que ganha voz. Os próprios MCs em cima dos bancos, e
também o público, estão ali retomando o direito de falar, negado historicamente pelos
processos de colonialidade e racismo. Sobre as coisas e sobre si. O que nos leva a um dos
processos centrais, ao meu ver, na promoção de saúde a qual a Matrix é produtora: a
possibilidade que ela cria daqueles que frequentam o movimento se deslocarem em relação à
Alienação Colonial - termo pensado pelo psiquiatra afro-caribenho, Frantz Fanon, que se
deteve, principalmente, às consequências subjetivas das relações sociais coloniais. Segundo
Nkosi (2016), Fanon chama de Alienação Colonial:

“A impossibilidade da gente se constituir enquanto sujeito da nossa história.


Então, se eu estou numa relação social onde eu não tenho as possibilidades
para me constituir como sujeito, eu estou numa situação alienada, mesmo
que eu tenha consciência de tudo que está acontecendo, saiba quem são os
inimigos etc.”.

Sendo assim, não adianta a conscientização, por parte do sujeito, do processo de


alienação colonial, seus mecanismos e agentes, mas ações do sujeito para transformar esse
processo. É da luta prática que se efetiva a desalienação. E na Matrix, ou através dela, a luta
prática acontece.
É possível observar, no já exposto, como na Matrix os seus integrantes estão em local
muito mais apropriados de si, suas histórias, autoestima etc. Para além do sensível e rigoroso
processo de conscientização ali construído, os sujeitos estão no verdadeiro duelo contra a
realidade que os aliena. Os confrontos de resistência do movimento contra o Estado e a classe
branca alta da cidade demonstram essa busca por transformações do processo de
assujeitamento da população negra e periférica.
Assim, invertem a lógica e o fluxo da subsequente desvantagem perante o acesso aos
recursos - materiais e simbólicos-, necessários para se construir saúde, a qual essa população
34

é imposta historicamente. Talvez um dos principais pontos na beleza e na efetividade dessa


promoção de saúde produzida pelo movimento esteja justamente no fato dela promover a
equidade. E ao promoverem equidade, promovem justiça. Ponto fundamental ao se pensar
saúde pública e coletiva.
Como exposto no capítulo 4.1, com Rocha, Torrenté e Coelho (2020), é fundamental
pensar na distribuição de poder para pensar saúde. E a equidade se debruça justamente nesse
ponto. Assim sendo, promover equidade é promover justiça, pois compensa distribuições
desiguais de poder. Podemos, portanto, compreender a Batalha da Matrix como um espaço de
saúde pública. Através da maneira como se organizam, do espaço político-geográfico que
ocupam, e de sua articulação com o Hip Hop, produzem a retomada do poder de jovens
negros e periféricos.
35

6 O QUE A PSICOLOGIA TEM A APRENDER COM A BATALHA DA MATRIX

Finalmente, chegou o momento de respondermos à pergunta: afinal, o que a Batalha


da Matrix tem a ensinar à psicologia? Talvez, uma das contribuições mais nítidas que a
Batalha da Matrix tem a dar à psicologia é a não negação e não disciplinarização de emoções
como a agressividade, muitas vezes encarada na psicologia como sintoma patológico ou
expressão de potencial periculosidade. A revolta contra um sistema - e seus efeitos na carne -
necropolítico14 (Mbembe, 2016) é legítima. Em um povo que é violentado histórica e
diariamente, a existência da agressividade é quase parte fundamental da sanidade. O que a
Matrix nos ensina é que, para além de não discriminá-la, e acolhê-la é preciso organizá-la,
seja em forma de poesia, de organização política ou ocupação de espaços, em prol de uma
efetiva ação confrontadora desse sistema que causou o sofrimento que a desencadeou.
Desse modo, os sujeitos conseguem se apropriar de suas histórias em totalidade, longe
de possíveis moralismos e criminalizações. E assim, saem de um lugar de fatalismo
(Martín-Baró, 1987)15 - bastante útil à manutenção das desigualdades - e produzem
enfrentamentos reais à alienação colonial referida por Frantz Fanon e explicada no capítulo
anterior.
Essas narrativas apropriadas sobre si, são sobretudo poéticas e de enorme
complexidade criativa. No jogo das rimas improvisadas, não há espaço para ensaios ou
escritas. Ele é feito de maneira oral e quase espontânea. Outro ponto importante a se aprender
com a Matrix. O lugar, na construção de saúde, da criação, do improviso, da oralidade, da
espontaneidade.
Nos ensinam que para se promover saúde, é necessário colocar a equidade no centro.
E mostram que isso é possível. Assim, nos relembram que a justiça deve pautar nossas ações
no mundo - no nosso caso, a ação pela psicologia -, e que a organização coletiva e a
sustentação de contradições nos ajudam com essa tarefa. A Matrix, portanto, nos indica que a
psicologia não deve ocupar um lugar meramente prescritivo, de imposição de um suposto

14
Necropolítica é um termo cunhado por Achille Mbembe, em contraponto com a noção de
biopolítica, de Foucault. Ele diz respeito a uma política da morte, que define o modo como as
pessoas vão viver e morrer e, mais ainda, quem deve morrer. Então diz respeito a como o poder
político se apropria da morte como gestão. Consultar o livro Necropolítica para maior
aprofundamento.
15
“O fatalismo é a compreensão da existência humana em que o destino de todos está
predeterminado e todo fato ocorre de modo inescapável. Aos seres humanos não resta nada mais
além de acatar seu destino e submeter-se à sorte que é prescrita por sua sina. [...]
A compreensão fatalista sobre a existência é atribuída a amplos setores dos povos
latino-americanos e pode ser compreendida como uma atitude básica, como uma maneira de
situar-se diante da própria vida (Martín-Baró, 1942-1989, p.175).”
36

saber, mas trazer a pessoa para junto do processo, a fim de horizontalizar a relação
profissional de saúde-paciente.
Por fim, mas não menos importante, esses jovens nos ensinam que é preciso uma ética
comprometida com a devolução social, ou em outras palavras, com a retomada do poder,
material e simbólico, pelo nosso povo, que é negro e indígena. E que, para conquistar a
transformação da sociedade e o consequente acesso à saúde, é estritamente necessária a
prática e a defesa de ações subversivas como essa.
Assim, a Matrix nos relembra que se há revolução possível, essa não está na
Universidade, mas na Rua, na organização política independente e subversiva. São a esses,
portanto, que a produção de saberes e práticas deve servir. Isso acarreta, em um
comprometimento ético daqueles que hoje ocupam a universidade, mas para além e,
principalmente, na defesa e na luta pela ocupação, desse espaço pelo povo. Isso porque, num
país desigual como o Brasil, é impossível pensar em saúde sem pensar na superação do
aprisionamento da maioria numa condição desigual de existência.
De um ponto de vista pessoal, a Batalha da Matrix me ensinou o que é utopia, me
fazendo sentir ela no corpo (muito antes de eu inclusive conhecer e compreender essa
palavra). Me ensinou a importância da luta e a mesma importância do lazer. Ao mesmo
tempo que legitimou minhas raivas. Me ensinou que às vezes é preciso ficar em silêncio –
para escutar - e às vezes é preciso gritar – para votar. Me ensinou que o calor dos corpos
juntos também aquece.
Gostaria de terminar com uma – das tantas – frases emblemáticas que ouvi na Matrix.
Ela é de um dos organizadores do movimento, Lucas Fonseca do Vale que também é MC e
compõe o grupo MR-13:
Sem saber que era impossível vim aqui e fiz16 (V.A.L.E, 2019).

16
Parte de letra da música A Origem, do grupo MR-13, lançada no ano de 2019.
37

7 ABERTURAS
A partir do presente trabalho foi possível conhecer o movimento Batalha da Matrix,
alinhado com o movimento Hip Hop, de origem afro-estadunidense e apropriação e
construção próprias brasileiras. Como exposto, se constituem enquanto um espaço público de
promoção de saúde ao promoverem o acesso ao lazer, a possibilidade de um modo de ser
criativo e a participação na construção social e na luta política.
Também se pode compreender o lugar da questão racial na promoção de saúde no
Brasil. Ao partir da determinação social da saúde foi possível olhar para as influências das
desigualdades sociais no processo de saúde, bem como seus efeitos, históricos e cotidianos,
na produção de sofrimento, de alienação, de produção de morte.
Essa compreensão, então, leva a pensar sobre o lugar da academia no processo de
colonialidade, bem como nas éticas necessárias ao se construir a psicologia - e promover
cuidado -, seja no pensar, seja na prática. No horizonte, deve-ser haver a justiça. O
comprometimento, portanto, é com a equidade, ou em outras palavras, com o deslocamento
do poder desigual.
E então, devido a essa realidade sócio histórica, e a essa consequente ética necessária,
o pesquisador deverá se haver, invariavelmente, e criticamente, com seu lugar nesse mundo
desigual e partir dele para fazer pesquisa, para produzir conhecimento e para seu fazer psi.
Entretanto, compreendendo o caráter processual - e em eterna lapidação - da produção
de conhecimento, acho importante finalizar a discussão indicando aberturas - ou brechas -
identificadas durante o processo de realização dessa pesquisa.
Uma delas diz respeito às questões de gênero. Elas têm papel fundamental na
estrutura da máquina necropolítica que é essa nossa sociedade capitalista, colonial e
patriarcal. Assim, como foi realizado um esforço durante todo o trabalho de destacar a
impossibilidade de se pensar saúde sem uma ética que vise a superação das desigualdades
estruturais, seria fundamental pensar também nessas questões.
Por isso foi de fundamental importância pontuar essa abertura, a qual não foi possível
dar conta durante o trabalho. Isso porque este se propôs a refletir sobre a questão racial na
saúde, a partir de inquietações que surgiram anteriormente ao meu ingresso na academia e,
portanto, mais reais e maturadas. Mesmo que o patriarcado esteja, inseparavelmente,
articulado à colonialidade - e portanto, raça e gênero também o estão -, bem como as questões
de gênero também estruturam a Batalha da Matrix, a separação foi didática e organizadora à
pesquisadora.
38

É importante também dizer que existem batalhas de rima que trazem essa questão
como central, como a Batalha Dominação, que acontece na saída do metrô São Bento, na
cidade de São Paulo, às segundas-feiras, às 19h. A Dominação é uma Batalha de
Conhecimento17, na qual apenas mulheres e pessoas trans - não binaries incluses - podem
batalhar.
Um outro ponto importantíssimo diz sobre a própria questão racial. Enquanto
pesquisadora branca pesquisando um movimento marcadamente negro como o Hip Hop, em
possíveis continuidades nessa pesquisa, o foco do objeto pode estar justamente na
branquitude dentro do movimento. Esse ponto dialoga com outros já trazidos durante a
introdução do trabalho, como o conhecimento situado e especificado, desde a própria
pesquisadora, e com o enorme limite e fragilidade de pesquisadoras brancas ao olhar para
movimentos negros ou indígenas. Ao mesmo tempo dialoga com o fato dessa mesma
branquitude pesquisadora não investir o esforço necessário para pesquisar e refletir sobre si,
suas próprias contradições e seu lugar na reprodução de violências estruturais.

17
As Batalhas de Conhecimento se iniciaram no Rio de Janeiro, com o MC Marechal (Campos,
2020). Elas se configuram pela determinação prévia, pelo público ou por sorteio, geralmente, de um
tema a ser debatido em batalha. Nelas, ao contrário das batalhas de sangue, o objetivo principal não
é atacar o outro MC, mas trazer as melhores rimas sobre a temática em questão. Muito comumente,
os temas giram em torno de problemas sociais.
39

REFERÊNCIAS

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[livro eletrônico]. / Rita Barradas Barata. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2009.

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superação empreendedora. São Paulo: Hucitec, 2020.

DUSSEL, Enrique. 1492: o encobrimento do outro: a origem do mito da modernidade:


Conferências de Frankfurt. Petrópolis - RJ: Vozes, 1993.

HELENA, Carolina. Batalha de rima gera polêmica em São Bernardo. Diário do Grande
ABC. 10 de maio de 2022. Disponível em:
https://www.dgabc.com.br/Noticia/3864591/batalha-de-rima-gera-polemica-em-sao-bernardo

INTRODUÇÃO ao pensamento de Frantz Fanon - Deivison Nkosi. CyberQuilombo.


lab.Experimental, 2016. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=mVFWJPXscm0&t=528s

MARTÍN-BARÓ, Ignácio, 1942-1989. Crítica e libertação na Psicologia: estudos


psicossociais. Organização, notas e tradução de Fernando Lacerda Júnior. Petrópolis - RJ:
Vozes, 2017.

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@batalhadamatrix. Disponível em:
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MATRIX, Batalha da. São Bernardo do Campo, 20 de abril de 2020. Instagram:


@batalhadamatrix. Disponível em:
https://www.instagram.com/reel/Cck7E8JlGqs/?igshid=YmMyMTA2M2Y=

MATRIX, Batalha da. São Bernardo do Campo, 13 de julho de 2021. Instagram:


@batalhadamatrix. Disponível em:
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MATRIX, Batalha da. São Bernardo do Campo. Uma releitura do brasão de São Bernardo
do Campo, a estampa Resistência se tornou um símbolo nas ruas do ABC. Loja Online
Batalha da Matrix. Disponível em:
https://batalhadamatrix.com.br/produto/camiseta-basica-resistencia-matrix-cinza-mescla/ .
Acesso em: 13 de junho de 2022.
40

MBEMBE, Achille. Necropolítica. Artes & Ensaios Revista do ppgav/eba/ufrj, Rio de


Janeiro, n. 32 p. 123-151, 2016. Disponível em:
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de uma vez o racismo no Brasil a partir da visão de rappers brancos. 1. ed. / Jorge
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SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular


pela elite. São Paulo: LeYa, 2015.

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