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CURSO DE PSICOLOGIA
SÃO PAULO
2022
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CURSO DE PSICOLOGIA
SÃO PAULO
2022
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RESUMO
A presente pesquisa tem como objetivo responder à questão: o que a Batalha da Matrix tem a
ensinar à Psicologia? A partir da compreensão de características deste movimento, que é
articulado com o outro maior, o Hip Hop, bem como da compreensão da promoção de saúde
a partir da determinação social racial. Desde a pesquisa documental de livros acadêmicos
sobre o Hip Hop, o Rap e a própria Batalha da Matrix, todos escritos por MCs, e portanto
configurando-se enquanto conhecimentos situados; e da pesquisa documental de produções
da Saúde Coletiva sobre os determinantes sociais de saúde e o Racismo à Brasileira - e suas
implicações na saúde da população brasileira, foi possível tecer a trama teórica e temática
necessária para a discussão. Foi possível, então, entender a Matrix como um espaço público
de saúde, racialmente centrado, que promove em seus integrantes possibilidades de
deslocamento em relação à alienação colonial e, portanto, promove deslocamento das
relações de poder desiguais, o que acarreta, necessariamente, na promoção de saúde. Por fim,
a partir desse entendimento da Matrix, foi possível refletir sobre a ética necessária no fazer e
pensar psicologia em contexto brasileiro: é fundamental que esta esteja comprometida com a
justiça, e baseada no princípio da equidade e da retomada de protagonismo pelo próprio povo,
seja na Universidade, seja nas práticas profissionais da psicologia, em qualquer que seja o
campo.
Palavras chave: Psicologia Social; Hip Hop; Saúde; Relações Raciais; Juventude;
Colonialidade.
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SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO 4
2 METODOLOGIA 9
3 O ABC DO RAP 11
3.1 De Jamaica a São Bernardo/Do Hip Hop à Matrix: um breve mapeamento histórico e
ideológico do Hip Hop e do Rap 11
3.2 Batalha da Matrix e ações subversivas: a periferia no centro 17
4 DETERMINANTES SOCIAIS DE SAÚDE E BRASIL 24
4.1 Determinantes Sociais de Saúde 24
4.2 Racismo à brasileira: éticas necessárias nas práticas de cuidado no Brasil 26
5 SAÚDE NA MATRIX 31
6 O QUE A PSICOLOGIA TEM A APRENDER COM A BATALHA DA MATRIX 34
7 ABERTURAS 36
REFERÊNCIAS 38
4
1 INTRODUÇÃO
Uma jovem, ainda adolescente, em busca de lazer e letramento político vai à Praça da
Matriz de sua cidade, São Bernardo do Campo, às 19h de uma terça-feira de 2015. Nesse
espaço-tempo acontece a Batalha da Matrix1, uma batalha de rimas que reúne jovens
periféricos, em volta de um banco de concreto da praça, para acompanharem - e julgarem - o
duelo de MC's, até que haja um campeão. Ela se encanta com o poder criativo e político desse
elemento do Hip Hop, que está na rua, sendo construído por e para jovens, desde suas
próprias realidades, e passa a frequentar o encontro, durante alguns anos. Criando e
reforçando vínculos afetivos, aprendendo muito sobre arte, poética, história, política,
organização coletiva, violência de Estado, amor e raiva. Também sobre colonialidade e
racismo, sem ainda estar apropriada desses termos. É lá, inclusive, a primeira vez que
compreende seu corpo como um corpo branco, que se olha como uma sujeita racializada,
processo historicamente rejeitado por este nosso grupo racial.
Este é o primeiro contato que eu, Verônica, tive com a Batalha da Matrix, tema central
da presente pesquisa. E acho fundamental iniciar o trabalho a partir dele, pois é possível,
dessa forma, apresentar brevemente sobre o pesquisado e a pesquisadora. Como exporei a
seguir, a universidade e o conhecimento acadêmico são instrumentos coloniais, serventes
historicamente à produção e reprodução de estruturas de poder que promovem desigualdades
nas diferenças.
Para compreender este lugar da academia, é preciso primeiro entender qual a
realidade que o Brasil está inserido. Nossa história começa antes de 1500, quando mais de
300 povos indígenas habitavam essa terra. A partir desse período, com a invasão européia e a
colonização e escravização dos povos indígenas, africanos e asiáticos, a cultura moderna
começa a se formar. Ela está baseada no encobrimento do Outro (Dussel, 1993), no qual o
colonizador, ao se encontrar com esses povos - indígenas, africanos e asiáticos -, não os
compreende como alteridade, como um ser diferente e legítimo. Ao contrário, os compreende
como o Outro, projetando neste aspectos de si próprio que não deseja se encontrar: o
emocional, o primitivo, a aberração (Dussel, 1993). Esse falso espelho impede que o sujeito
branco se enxergue e se compreenda na totalidade, ao mesmo tempo que impede o encontro
com esses outros povos e pessoas diferentes. O resultado histórico é a dominação, opressão e
exploração desses sujeitos não-brancos e de seus territórios, no que conhecemos
historicamente por Período Colonial.
1
A caracterização do movimento está aprofundada no capítulo 3.2
5
2
Epistemicídio é a aniquilação de outras epistemologias que não caberiam, necessariamente, nos
moldes da ciência moderna. Ou seja, são epistemologias não hegemônicas, que negam esse lugar
binário, colonial, positivista, etc. E que são literalmente aniquiladas, apagadas, deslegitimadas, em
prol desse "lugar científico" que detém as verdades universais. É um termo cunhado por Boaventura
Souza Santos (2009).
7
dos cruéis mecanismos simbólicos que mantêm as estruturas desiguais. Ou, em outras
palavras, da necessidade de construção de uma ciência a partir da realidade histórica-cultural
do país. Portanto, através de epistemologias e metodologias desde os povos do sul. Da
necessidade de uma construção comprometida com a efetiva reparação histórica e retomada
daqueles que são violentados pelas estruturas sociais acima discutidas. Num país como o
Brasil, isso implica, necessariamente, em colocar a questão colonial e racial em centralidade -
e transversalidade constante - ao se pensar e fazer psicologia.
Ainda, para superar esse lugar (se é que é possível, mas o caminho não pode ser outro
que o da tentativa), é preciso que passemos a produzir conhecimento desde nossas vivências,
conhecimentos, portanto, particularizados.
Fundamental então, me localizar enquanto pessoa branca, pessoa branca produzindo
conhecimento em ambiente acadêmico. É desse lugar que falo nessa pesquisa. A importância
dessa delimitação diz respeito ao comprometimento ético dessa pessoa e estudante/futura
profissional para com a emancipação de nosso povo, que é negro e indígena e sofre, material
e simbolicamente, diariamente nessas terras que nomearam Brasil, graças ao racismo.
Um dos alicerces do racismo estrutural3 é, justamente, a compreensão imaginária de
que as pessoas brancas representam a universalidade. Em outras palavras, ao falarmos sobre
"humanos", na dimensão universal, falamos sobre os brancos. Aos negros e indígenas são
impostos os lugares de particularidade. Eles são sempre um grupo, outro, particular e
específico. Por isso me especifico nessa pesquisa. Também o faço, porque estou trazendo um
movimento da juventude negra do ABC paulista, um movimento do Hip Hop, cultura negra
de histórica resistência e luta.
O terreno é, portanto, frágil. E sabendo disso, cuidarei de como pisar. Um desses
cuidados/responsabilidades é trazer o próprio movimento para falar sobre si, através de
produções autorais postadas nas redes sociais e de produções acadêmicas de pessoas que
compõem o Hip Hop.
Minha pretensão, portanto, é deslocar a psicologia ao lugar de aprendiz. Nessa
pesquisa, ela irá escutar jovens periféricos do ABCDMRR4 organizados na Batalha da
Matrix. Eu, a partir de meu lugar de jovem, branca e de classe média, mas frequentadora e
admiradora dos encontros; e de meu lugar acadêmico, produzirei conhecimento a partir da
3
“O racismo estrutural demonstra que os preconceitos, as discriminações e os atos de racismo estão
vinculados a uma estrutura social. Entender como o capitalismo no Brasil funciona, entender como se
dão as estruturas de poder no país. Enfim, há todo um mecanismo de que normativa, naturaliza os
comportamentos preconceituosos” (Dennis de Oliveira, 2022).
4
Sigla que contempla as sete cidades da região metropolitana de São Paulo: Santo André, São
Bernardo do Campo, São Caetano do Sul, Diadema, Mauá, Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra.
8
tentativa de tecer essa escuta com algumas produções no campo da Saúde Coletiva acerca de
promoção de saúde. Essa trama final irá, portanto, nos trazer o necessário para respondermos
a pergunta inicial: o que a Batalha da Matrix tem a ensinar à Psicologia?
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2 METODOLOGIA
No presente trabalho, foi realizada uma pesquisa documental a partir de livros
acadêmicos de rappers e documentos produzidos pela Batalha da Matrix, como entrevistas
dadas pelos organizadores, vídeos publicados em suas redes sociais com registros das
batalhas etc, a fim de compreender o que é a Matrix e quais suas articulações com o Hip Hop;
quais práticas e ideários estão ali presentes, e de que maneira promovem saúde,
compreendendo essa a partir do campo da Saúde Coletiva e da noção de Determinantes
Sociais de Saúde.
Para tal, a intenção foi trazer as vozes dos próprios protagonistas desse movimento.
Deixar que eles próprios contem sua(s) história(s). Para isso, foram usadas produções
acadêmicas dos rappers Felipe Choco e Jorge Hilton. O livro de Felipe Campos, o Choco, do
ABC Paulista: Rap, Cultura e Política: Batalha da Matrix e a estética da superação
empreendedora, de 2020, resultado de sua dissertação de mestrado em Estudos Culturais na
USP; e os dois primeiros capítulos do livro de Jorge Hilton, de 2020: Branquitude, Música
Rap e educação: Compreenda de uma vez o racismo no Brasil a partir da visão de rappers
brancos, nos quais discorre sobre a influência negra na origem da música Rap e a relação da
luta antirracista com a construção da arte no Brasil.
Ainda, foram trazidas falas do movimento da Matrix: de seus organizadores, público e
MC's. Essas falas foram retiradas de entrevistas e de registros das batalhas, que se encontram
em suas redes sociais.
A pesquisa documental já se inicia, então, nesse primeiro momento, apresentando, no
trabalho, a Batalha da Matrix e o Hip Hop desde seus próprios protagonistas. A intenção
inicial era realizar uma pesquisa empírica, entrevistando integrantes dos diferentes elementos
da batalha, porém, com a pandemia da Covid-19, parte do material para a pesquisa foi
coletado a partir das atuações do movimento nas redes sociais, no Instagram e no Youtube.
Posteriormente, a pesquisa documental se debruçou sobre produções acerca do que é
saúde e de quais modos ela pode ser promovida, ou não. A partir das produções de Rita
Barata, foi traçado um panorama de como as desigualdades sociais influenciam a saúde.
Então, a partir das referências oferecidas pelo próprio movimento social e cultural estudado, e
com base no livro de Renan Rocha, Monica Torrenté e Maria Thereza Coelho (2020): Saúde
Mental e Racismo à Brasileira: Narrativas de Trabalhadoras e Trabalhadores da Atenção
Psicossocial, chegou-se num lugar de defesa da centralidade da raça para pensar em
promoção de saúde no Brasil, bem como os efeitos do racismo na saúde de nossa população.
10
3 O ABC DO RAP
Antes de iniciar esse capítulo, é importante pontuar que, na busca pelo protagonismo
dos integrantes desses movimentos durante a pesquisa, buscou-se, enquanto referências,
livros acadêmicos sobre a temática escritos por mcs. Bem como as produções da própria
Batalha da Matrix: entrevistas dadas pelos organizadores, textos, fotos e vídeos das
produções nas redes sociais do movimento.
Ainda, é preciso explicar que, nesse capítulo, o número de citações será
significativamente maior. Isso porque, como explicado na introdução, a intenção do trabalho
é fazer com que a Psicologia ouça e aprenda desses movimentos. Assim sendo, faz sentido
manter as falas daqueles que compõem o Hip Hop e a Batalha da Matrix do jeito como foram
faladas, no esforço de trazer, assim, suas vozes para dentro do ambiente acadêmico.
As batalhas de rima são movimentos que fazem parte de um elemento do Hip Hop: o
Rap. Assim sendo, é importante que a contextualização da Matrix passe por uma breve
contextualização do Hip Hop e do Rap. Segundo Jorge Hilton Miranda (2020), rapper e
pesquisador baiano:
O Rap é um estilo musical que não pode ser entendido fora do seu contexto
elementar de composição do Hip-Hop, que é uma manifestação de caráter
sociopolítico que se desdobra entre Cultura e Movimento. A Cultura
simboliza a dimensão artística-profissional e o Movimento, a política
ativista. Como dito, o H25 é formado por cinco elementos: Rap, Dança de
Rua, Graffiti, DJ e Conhecimento; esse último, estabelecido em sua origem
como princípio interdisciplinar e consolidador da Cultura de Rua. Agrega os
elementos artísticos, imprimindo um caráter de comprometimento
político-pedagógico e histórico (p. 27).
5
Sigla para Hip Hop.
12
Essa fase dura até 1982, quando um novo cenário batizado como
“new school” ou “nova escola” é inaugurado, caracterizando-se pelo Rap
voltado à crônica-denúncia social e racial [...] (p. 32).
Em relação a esse novo cenário, a “nova escola”, dois grupos tiveram destaque:
N.W.A. (Niggers With Atitud10) e Public Enemy11. Esse último, como aponta Shetara (2001)
apud Miranda (2020) tomado pelos ideais de Malcolm X e dos Black Panthers:
9
Organização responsável por fundar o Hip Hop enquanto Movimento organizado, em 1974.
10
Tradução: Negros com Atitude
11
Tradução: Inimigo Público
14
Essa trajetória nos aponta como o Rap é extremamente artístico, diverso e subversivo
e como, em seu desenvolvimento, carrega
Seus precursores são herdeiros da Black Music brasileira dos anos 1970,
cena fortemente inspirada pelo contexto de luta política e cultural
estadunidense. Nesse enredo anterior, as composições dos artistas negros
locais refletiam cada vez mais consciência da sua cidadania e negritude,
com valorização da estética afro, revolta contra opressão e incentivo à
mudança de comportamento (p. 34).
Assim como nos Estados Unidos, “nas periferias das grandes cidades brasileiras,
proliferaram bailes Black marcados principalmente pela trilha sonora do Soul e Funk
(Miranda, 2020, p. 34)”. Na especificidade brasileira “o Soul teve um desenvolvimento
único, talvez a concretização do sonho “conscientizante” de todos os ideólogos do
Movimento Negro Brasileiro (Hemano Vianna, 1987, apud Miranda 2020, p. 35)”.
Sobre esse terreno político e cultural, o Rap vai se desenvolvendo no Brasil com certa
similaridade com os EUA: as primeiras letras de grupos brasileiros seguiam a tendência da
“velha escola”, trazendo dimensões da diversão, da zoação e da contação de histórias
(Miranda, 2020). Porém, a cena brasileira é fortemente influenciada pela “nova escola” e os
grupos referenciais citados acima (N.W.A e Public Enemy) impactaram marcadamente a
mentalidade e postura dos MCs por aqui (Miranda, 2020).
Assim, a música Rap brasileira foi se desenvolvendo com fortes influências das
origens estadunidenses, mas também com uma construção verdadeiramente nacional, se
referenciando em líderes como Zumbi dos Palmares, Dandara e em ritmos como o samba e a
embolada (Miranda, 2020). Ainda, segundo Campos (2022):
15
o Rap seria a crônica dos anos 1990, falando para e pelos moradores de
periferia, figurando como “sociólogos sem diploma” e pertencentes ao
universo da cultura popular de um mundo globalizado (p. 32).
Por fim, é fundamental nos debruçarmos sobre a questão das “Posses” do Hip Hop.
Uma vez que, já em território paulista, no ABC, a Posse Haussa iria se formar no início dos
anos 90 (Campos, 2020), iniciando um movimento que, mais tarde, culminaria na Batalha da
Matrix, o que será retratado mais adiante no trabalho.
Em inglês, a palavra Posse remete à agrupamento, equipe, pelotão (Miranda, 2020, p.
40). Sobre seu nascimento no Hip Hop, o N.W.A. inaugura o conceito político cultural em
seu primeiro álbum 'N.W.A. and the Posse' (1987). Ainda, alguns atribuem a expressão,
simbolicamente, à Zulu Nation - já citada no trabalho -, como a primeira Posse de Hip Hop,
mesmo sem o uso do termo por seus fundadores. O que parece ser bastante apropriado se
associado com o sentido brasileiro do conceito, segundo Miranda (2020).
Em contexto brasileiro, como aponta Miranda (2020), sob influência do álbum do
N.W.A. - acima citado-, dois anos após seu lançamento:
As Posses foram então se espalhando pelo Brasil, porém com uma atuação diferente
das originais norte americanas, que eram mais ligadas a objetivos profissionais:
Em seu livro, Campos (2020) se baseia no estudo de Elaine Nunes de Andrade sobre a
Posse Hausa, que se articula no início dos anos 90 na cidade de São Bernardo do campo:
O contexto, bastante resumido, da criação da Posse Hausa foi o seguinte: era início
dos anos 1990 e o “Movimento de Rua” vinha promovendo encontros na Pista Velha de São
Bernardo. Cansados de investidas policiais e da marginalização do movimento, procuram o
Departamento de Cultura Municipal e conseguem articulação com a prefeitura. Em 1992,
essa articulação resulta no lançamento do primeiro livro contendo letras de Rap no Brasil,
intitulado ABC Rap (Campos, 2020) - referenciado no título do presente capítulo.
Com a mudança no governo municipal e a ameaça da não continuidade do
projeto, o Movimento Negro Unificado entra em cena: “A fim de pensar os caminhos dessas
movimentações em torno da música Rap a partir da mudança da administração municipal, a
entidade promoveu o I Encontro de Posses do ABC (Campos, 2020, p. 155).” Em 1995, a
articulação com o Departamento de Cultura foi oficialmente rompida (Campos, 2020).
É então nesse cenário que, em 26 de junho de 1993, surge a Posse Hausa,
nomeada em referência ao grupo africano majoritário na Revolta dos Malês, os hauçás, e com
o lema: “Hip Hop com Responsabilidade Racial” (Campos, 2020). ”Inicialmente como um
núcleo de base, não tardando em tornar-se um dos grupos de trabalho (GT) do MNU (p.
157)”, a Posse Hausa possibilita a leitura do Hip Hop enquanto representante da quinta fase
17
do movimento negro brasileiro rodapé: para detalhamento das 5 fases, verificar página 157 da
referência (Campos, 2020).
Entre 1997 e 1998, a Posse Hausa decidiu parar as atividades e,
consequentemente, se desligou do MNU. Assim, os encontros que aconteciam desde 1994 na
sede do Projeto Meninos e Meninas de Rua de São Bernardo do Campo (PMMR) pausaram
até 2008, quando o espaço voltou a ser usado para encontros ligados ao movimento Hip Hop,
desta vez pela articulação do Fórum de Hip Hop de SBC (FH2):
Um indígena de pele bem clara com seu arco, e um bandeirante com sua
espingarda, posam como “grandes aliados” ao lado do brasão da cidade de
São Bernardo do Campo, com a escritura “mãe de todas terras Paulistas” em
latim ao centro. Não acreditamos nessa bandeira. A história real não foi tão
amistosa como a imagem original retrata. Na nossa releitura da bandeira,
quem domina é o nativo brasileiro, não o homem branco e sua arma. Assim
como na Batalha da Matrix, a independência do nosso povo foi conquistada
com luta. Este é um fragmento de resistência, para relembrar que desde os
nossos antepassados, a luta nunca foi em vão.
12
@batalhadamatrix
21
[PÚBLICO]
Não!!!
[PÚBLICO]
Com som! Com som! Com som! Com som!...
[ENTREVISTADOR]
Teve muita resistência até o negócio firmar ali?
[VALE]
Muita mano, nossa história foi pautada nisso aí por muitos
anos, tá ligado? Hoje a gente gosta de falar que a nossa história é
existência. Hoje a gente preza pelo existir mesmo. Chega de ficar
pedindo pra existir, chega de ficar batendo a cara na mesa, tá ligado?
Chega de ficar trocando ideia com político. Agora o bagulho nós
estamos aqui mano. É isso, vamo existir, vamo fazer o bagulho
potencializar quem ta aqui, mostrar os MCs, tá ligado levar o
bagulho pra outros lugares do mundo memo. Hoje é isso né, hoje é
essa a métrica. Hoje a gente trampa pra isso, mas por muito tempo
foi só bancada e resistência mesmo, tá ligado mano? Uns bons 4 anos
e meio assim.
[ENTREVISTADOR]
Porque gera um preconceito né, mano?
[VALE]
Ah imagina mano [...] um lugar mais central, ta ligado, que
tem apartamentos que tem o metro quadrado mais caro. A gente tá
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todo mundo que tá lá? Cê acha que a gente tem algum controle da
vida das pessoas? A gente só tá organizando uma batalha de rima.
Vocês tinham que ver nois como uma Frente Cultural, tá ligado.
Então por muito tempo a gente teve que esquivar das balas, e aí
justifica o nome Matrix né, desviando das bala, tá ligado? [...]
levantar pontos importantes para se pensar em efetiva equidade e consequente promoção justa
de saúde.
Importante pontuar que essa visão eugenista da sociedade brasileira foi sustentada
fortemente pela medicina da época (Rocha, Torrenté e Coelho, 2020). Com a Escola Nina
Rodrigues, por exemplo, fundamental para a construção do pensamento médico brasileiro13,
pela via dos estudos sobre a miscigenação racial, a mestiçagem, os mestiços, os negros e os
seus efeitos nefastos na produção da degenerescência, da criminalidade e da loucura,
buscou-se traçar caminhos para a reconstrução e higienização da sociedade brasileira (Rocha,
Torrenté e Coelho, 2020). A categorização daqueles que seriam perigosos e dos que
13
“a tentativa de compreender o fenômeno da miscigenação racial no Brasil resultou, entre as últimas
décadas do século XIX e as primeiras do século XX, na consolidação de um pensamento
médico-eugênico fundamentado na degenerescência da raça negra, calcado na teoria do darwinismo
social, amplamente defendido pelo antropólogo e psiquiatra brasileiro Nina Rodrigues” (Rocha,
Torrenté e Coelho, 2020, p. 70).
29
Como apontado por Rocha, Torrenté e Coelho (2020), toda essa discussão nos leva à
necessidade de novas práticas de cuidado, que permitam o aparecimento do sofrimento dos
sujeitos a quem ofertamos cuidado sem enquadramentos psicopatológicos restritivos e sem o
apagamento dos elementos da vida cotidiana que também causam "dor", "ansiedade",
"angústia" e "desespero", sem necessariamente estarem categorizados e sistematizados em
manuais de Psiquiatria e/ou Saúde Mental.
Assim sendo, parece estar explícita a pertinência e a urgente necessidade de olharmos
para o fenômeno do racismo no Brasil, ao se pensar e fazer saúde. É necessário compreender
que a saúde não está desalinhada da distribuição de poder e das dinâmicas de controle e
31
dominação presentes na nossa sociedade, bem como traçar éticas de cuidado que vão na
contramão destas, que confrontam a iniquidade. Ou melhor, legitimando os discursos
daqueles que são diariamente oprimidos e os convocando para serem agentes ativos de sua
saúde e de sua história, na direção da retomada do poder e da humanidade.
32
5 SAÚDE NA MATRIX
Como exposto no capítulo 3.1, nas batalhas presentes no início do Hip Hop o estímulo
capitalista à competição era transformado em competição artística, diminuindo inclusive as
mortes entre gangues da periferia de Nova York (Miranda, 2006, p.6 apud Miranda, 2020, p.
32). Essa capacidade de subverter valores capitalistas em denúncia e reivindicação social, de
transformar a competição violenta entre jovens negros e periféricos em competição artística e
afirmativa, concebida nas batalhas de dança e arte plástica - com o Graffiti, num primeiro
momento, e apropriadas pela fala rimada, que nos direciona a pensar a condição de promoção
de saúde da Batalha da Matrix, ponto principal nessa pesquisa.
Mas isso acontece através de diversos processos. Um deles pode ser visto na
promoção de encontro entre os jovens, propiciando um momento de sociabilidade e lazer -
direitos importantes na promoção de saúde e negados aos jovens periféricos do ABCDMRR e
garantido pela Matrix. Além disso, esse encontro promove a apropriação afirmativa, por
parte da juventude negra, de identidade, cultura e estética negras. Como vimos no capítulo
4.2, com Souza (1983) apud Rocha, Torrenté e Coelho (2020), as referências do povo negro,
a partir do fenômeno do racismo no Brasil, foram linkadas com uma categorização
inferiorizada e, inclusive, patológica. Assim, esse processo é fundamental ao se pensar no
determinante social de saúde racial, pois promovem a autoestima e o pertencimento, negada a
essa população no processo de colonialidade, e o deslocamento de valores racistas que
colocam pessoas não brancas em intenso sofrimento.
Também se dá através da organização política coletiva, que puxa todos os
participantes da batalha para a ação prática e a tomada de decisões. O voto ao final de cada
duelo talvez seja a expressão mais nítida disso: é o grito de cada pessoa do público que
decide quem levou a batalha. Assim, as decisões construídas ali têm as mãos de cada um que
participa do evento, sem separações hierárquicas de saber, numa horizontalidade que atua na
direção da promoção de saúde.
Um outro processo que me parece importante para a construção de saúde na e pela
Matrix é o de acolhimento e organização das emoções, principalmente da agressividade, tão
patologizada na psicologia. Como sabido, a psicologia e a psiquiatria tendem a categorizar o
33
14
Necropolítica é um termo cunhado por Achille Mbembe, em contraponto com a noção de
biopolítica, de Foucault. Ele diz respeito a uma política da morte, que define o modo como as
pessoas vão viver e morrer e, mais ainda, quem deve morrer. Então diz respeito a como o poder
político se apropria da morte como gestão. Consultar o livro Necropolítica para maior
aprofundamento.
15
“O fatalismo é a compreensão da existência humana em que o destino de todos está
predeterminado e todo fato ocorre de modo inescapável. Aos seres humanos não resta nada mais
além de acatar seu destino e submeter-se à sorte que é prescrita por sua sina. [...]
A compreensão fatalista sobre a existência é atribuída a amplos setores dos povos
latino-americanos e pode ser compreendida como uma atitude básica, como uma maneira de
situar-se diante da própria vida (Martín-Baró, 1942-1989, p.175).”
36
saber, mas trazer a pessoa para junto do processo, a fim de horizontalizar a relação
profissional de saúde-paciente.
Por fim, mas não menos importante, esses jovens nos ensinam que é preciso uma ética
comprometida com a devolução social, ou em outras palavras, com a retomada do poder,
material e simbólico, pelo nosso povo, que é negro e indígena. E que, para conquistar a
transformação da sociedade e o consequente acesso à saúde, é estritamente necessária a
prática e a defesa de ações subversivas como essa.
Assim, a Matrix nos relembra que se há revolução possível, essa não está na
Universidade, mas na Rua, na organização política independente e subversiva. São a esses,
portanto, que a produção de saberes e práticas deve servir. Isso acarreta, em um
comprometimento ético daqueles que hoje ocupam a universidade, mas para além e,
principalmente, na defesa e na luta pela ocupação, desse espaço pelo povo. Isso porque, num
país desigual como o Brasil, é impossível pensar em saúde sem pensar na superação do
aprisionamento da maioria numa condição desigual de existência.
De um ponto de vista pessoal, a Batalha da Matrix me ensinou o que é utopia, me
fazendo sentir ela no corpo (muito antes de eu inclusive conhecer e compreender essa
palavra). Me ensinou a importância da luta e a mesma importância do lazer. Ao mesmo
tempo que legitimou minhas raivas. Me ensinou que às vezes é preciso ficar em silêncio –
para escutar - e às vezes é preciso gritar – para votar. Me ensinou que o calor dos corpos
juntos também aquece.
Gostaria de terminar com uma – das tantas – frases emblemáticas que ouvi na Matrix.
Ela é de um dos organizadores do movimento, Lucas Fonseca do Vale que também é MC e
compõe o grupo MR-13:
Sem saber que era impossível vim aqui e fiz16 (V.A.L.E, 2019).
16
Parte de letra da música A Origem, do grupo MR-13, lançada no ano de 2019.
37
7 ABERTURAS
A partir do presente trabalho foi possível conhecer o movimento Batalha da Matrix,
alinhado com o movimento Hip Hop, de origem afro-estadunidense e apropriação e
construção próprias brasileiras. Como exposto, se constituem enquanto um espaço público de
promoção de saúde ao promoverem o acesso ao lazer, a possibilidade de um modo de ser
criativo e a participação na construção social e na luta política.
Também se pode compreender o lugar da questão racial na promoção de saúde no
Brasil. Ao partir da determinação social da saúde foi possível olhar para as influências das
desigualdades sociais no processo de saúde, bem como seus efeitos, históricos e cotidianos,
na produção de sofrimento, de alienação, de produção de morte.
Essa compreensão, então, leva a pensar sobre o lugar da academia no processo de
colonialidade, bem como nas éticas necessárias ao se construir a psicologia - e promover
cuidado -, seja no pensar, seja na prática. No horizonte, deve-ser haver a justiça. O
comprometimento, portanto, é com a equidade, ou em outras palavras, com o deslocamento
do poder desigual.
E então, devido a essa realidade sócio histórica, e a essa consequente ética necessária,
o pesquisador deverá se haver, invariavelmente, e criticamente, com seu lugar nesse mundo
desigual e partir dele para fazer pesquisa, para produzir conhecimento e para seu fazer psi.
Entretanto, compreendendo o caráter processual - e em eterna lapidação - da produção
de conhecimento, acho importante finalizar a discussão indicando aberturas - ou brechas -
identificadas durante o processo de realização dessa pesquisa.
Uma delas diz respeito às questões de gênero. Elas têm papel fundamental na
estrutura da máquina necropolítica que é essa nossa sociedade capitalista, colonial e
patriarcal. Assim, como foi realizado um esforço durante todo o trabalho de destacar a
impossibilidade de se pensar saúde sem uma ética que vise a superação das desigualdades
estruturais, seria fundamental pensar também nessas questões.
Por isso foi de fundamental importância pontuar essa abertura, a qual não foi possível
dar conta durante o trabalho. Isso porque este se propôs a refletir sobre a questão racial na
saúde, a partir de inquietações que surgiram anteriormente ao meu ingresso na academia e,
portanto, mais reais e maturadas. Mesmo que o patriarcado esteja, inseparavelmente,
articulado à colonialidade - e portanto, raça e gênero também o estão -, bem como as questões
de gênero também estruturam a Batalha da Matrix, a separação foi didática e organizadora à
pesquisadora.
38
É importante também dizer que existem batalhas de rima que trazem essa questão
como central, como a Batalha Dominação, que acontece na saída do metrô São Bento, na
cidade de São Paulo, às segundas-feiras, às 19h. A Dominação é uma Batalha de
Conhecimento17, na qual apenas mulheres e pessoas trans - não binaries incluses - podem
batalhar.
Um outro ponto importantíssimo diz sobre a própria questão racial. Enquanto
pesquisadora branca pesquisando um movimento marcadamente negro como o Hip Hop, em
possíveis continuidades nessa pesquisa, o foco do objeto pode estar justamente na
branquitude dentro do movimento. Esse ponto dialoga com outros já trazidos durante a
introdução do trabalho, como o conhecimento situado e especificado, desde a própria
pesquisadora, e com o enorme limite e fragilidade de pesquisadoras brancas ao olhar para
movimentos negros ou indígenas. Ao mesmo tempo dialoga com o fato dessa mesma
branquitude pesquisadora não investir o esforço necessário para pesquisar e refletir sobre si,
suas próprias contradições e seu lugar na reprodução de violências estruturais.
17
As Batalhas de Conhecimento se iniciaram no Rio de Janeiro, com o MC Marechal (Campos,
2020). Elas se configuram pela determinação prévia, pelo público ou por sorteio, geralmente, de um
tema a ser debatido em batalha. Nelas, ao contrário das batalhas de sangue, o objetivo principal não
é atacar o outro MC, mas trazer as melhores rimas sobre a temática em questão. Muito comumente,
os temas giram em torno de problemas sociais.
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REFERÊNCIAS
BARATA, Rita Barradas. Como e Por Que as Desigualdades Sociais Fazem Mal à Saúde
[livro eletrônico]. / Rita Barradas Barata. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2009.
HELENA, Carolina. Batalha de rima gera polêmica em São Bernardo. Diário do Grande
ABC. 10 de maio de 2022. Disponível em:
https://www.dgabc.com.br/Noticia/3864591/batalha-de-rima-gera-polemica-em-sao-bernardo
MATRIX, Batalha da. São Bernardo do Campo. Uma releitura do brasão de São Bernardo
do Campo, a estampa Resistência se tornou um símbolo nas ruas do ABC. Loja Online
Batalha da Matrix. Disponível em:
https://batalhadamatrix.com.br/produto/camiseta-basica-resistencia-matrix-cinza-mescla/ .
Acesso em: 13 de junho de 2022.
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ROCHA, Renan Vieira de Santana; TORRENTÉ, Mônica de Oliveira Nunes de; COELHO,
Maria Thereza Ávila Dantas. Saúde Mental e Racismo à Brasileira: Narrativas de
Trabalhadoras e Trabalhadores da Atenção Psicossocial. Salvador: Devires Editora, 2020.