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RESUMO
Este artigo resulta de pesquisa cujo objetivo é investigar a influência da música negra na
formação da identidade cultural da população afrodescendente americana. Para tal, foram
verificados os processos de hibridação cultural e de representação social imbricados na
produção e socialização dos gêneros musicais soul e rap, utilizando-se a seguinte
metodologia: revisão bibliográfica e pesquisa documental, seguida de análise e interpretação
dos dados. Os resultados parciais da pesquisa demonstram que o soul e rap não constituem
gêneros musicais puros, ao contrário, são permeados por uma série de hibridações culturais
vindas da Europa, África e das Américas do Norte e Latina. Características como as letras
engajadas, as batalhas de freestyle e o resgate de elementos musicais originalmente africanos
são utilizadas nos referidos gêneros como símbolo do orgulho negro, da identidade cultural e
como forma de demarcar e reforçar as diferenças e fronteiras entre grupos sociais distintos.
PALAVRAS-CHAVE: Identidade Cultural; Hibridação Cultural; Representações Simbólicas;
Soul Music; Rap.
INTRODUÇÃO
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Mestranda em Música (UFG), Graduanda em Educação Musical (UFG) e Graduada em Serviço Social (PUC
Goiás). E-mail: cricafleury@hotmail.com
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Professora do Programa de Pós-graduação em Música (UFG), Doutora em História Cultural (UnB), Mestre em
Música (UFG), Especialista em Música (UFG) e Bacharel em piano (UFG). E-mail: anagsou@yahoo.com.br
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DESENVOLVIMENTO
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Termo utilizado para designar a música afro-americana nos Estados Unidos. Atualmente o termo é amplamente
conhecido pelo mundo e engloba diversos gêneros musicais surgidos na América e derivados de elementos da
cultura africana, tais como blues, soul, rhythm and blue, jazz, hip-hop e funk.
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fortemente influenciado pela cultura européia por meio dos spirituals que, apesar de se
caracterizarem como hinos religiosos afro-americanos, herdaram seus acordes básicos da
harmonia das canções religiosas da Europa protestante. Ao final da Segunda Guerra Mundial,
quando muitos negros deixaram a região sul dos Estados Unidos em direção ao norte e aos
guetos do oeste, surge o gênero rhytm and blues, que nada mais era do que a urbanização do
blues, que fora adaptado ao novo contexto.
A formação dos guetos nas cidades mais populosas dos Estados Unidos, a
exemplo de Chicago e Nova Iorque, teve seu início no século XX, pós Primeira Guerra
Mundial, período em que o trabalho não qualificado dos negros era força-motriz do
desenvolvimento econômico das metrópoles fordistas. Nesta ocasião, um grande fluxo de
negros migrou para as cidades industriais norte-americanas, assinala Wacquant (2004). Tal
processo foi o grande responsável pela consolidação, e até mesmo “institucionalização”, da
segregação racial que até então ocorria na informalidade. Rígidos padrões de demarcação
étnico-racial foram aplicados nos mais diversos equipamentos sociais, tais quais escolas,
hospitais, sistemas de transporte, estendendo-se também à economia e à política. Frente a esse
cenário, uma das soluções encontradas pela comunidade afro-americana para continuar a
viver nas metrópoles, foi refugiar-se em aglomerações, formando os chamados Black Belts
(em português, cinturões negros). Era o início do que, posteriormente, seria conhecido como
“gueto”.
No processo de formação do gueto está embutida a construção de uma identidade
coletiva. Muito embora a ação coercitiva e discriminatória não lhe tenha dado outra opção que
não o isolamento social e territorial, a comunidade negra sentia orgulho por ter estruturado a
vida no gueto com características culturais próprias. Este orgulho e reconhecimento
identitário da comunidade negra, provocado pelo fenômeno da guetização, foi imprescindível
para o surgimento da black music e, portanto, do soul e, posteriormente, do rap. O sentimento
de identidade negra promovido pelo gueto em seus moradores foi definido por Castells (2002)
como “profunda noção de significado coletivo”.
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Unidos, nos guetos norte-americanos o que se ouvia era a soul music, que tinha em James
Brown um de seus mais expressivos representantes. James Brown, conhecido pela autoria de
letras que abraçam a causa negra, influenciava multidões ao cantar: Say it loud, I’m black and
proud! (diga alto: sou negro e tenho orgulho disso!). Além de James Brown, o soul de Ray
Charles, Wilson Pickett, Otis Redding, Aretha Franklin e Sam Cooke também compunha a
trilha sonora que impulsionava a luta pelos direitos civis. Segundo Ribeiro (2008, p.96) “a
soul music demarca os limites com a América branca ao utilizar uma linguagem específica
denominando-se irmãos (brothers) e irmãs (sisters) que se reunia em uma comunidade
solidária e fraternal que brilhava pela alma (soul)”.
A soul music ajudou a criar a atmosfera na qual o orgulho negro cresceu. Junto com
o movimento pelos direitos civis, com a expectativa de crescimento econômico e o
crescente idealismo da época, a soul music refletia e incitava o avanço dos negros.
Tanto o publico branco quanto o negro experimentavam a música como uma
expressão daquela qualidade subjetiva chamada autenticidade emocional, definida
como ‘soul’ (alma). (FRIEDLANDER, 2006, p. 241-242).
Ao final dos anos 1960, mesmo com a conquista de alguns direitos civis, a
população negra dos Estados Unidos ainda era considerada uma subclasse. A segregação se
estendeu aos imigrantes latinos com suas peles de cor morena. Vindos de países como a
Jamaica, Porto Rico e México em busca de oportunidades, esses grupos acabaram empurrados
para os guetos que abrigavam os afro-descendentes. É em meio a essa mistura de
descendentes de escravos africanos e imigrantes latinos que surge o rap.
Enquanto a soul music cantava o orgulho negro, o rap surgia no Bronx4 como
mais uma expressão musical afrodescendente. O termo é uma abreviação da expressão rhythm
and poetry (ritmo e poesia). Até onde foi possível verificar, as idéias musicais que deram
origem ao rap começaram a surgir no final da década de 1960, quando o jamaicano Kool Herc
migrou para os Estados Unidos e, como a maioria dos afro-descendentes naquele país, foi
morar em um gueto. A partir de então, Herc passa a difundir a técnica do toast pelo Bronx. O
toast é uma maneira de se fazer música utilizando os sound systems5, técnica bastante popular
na Jamaica, principalmente na capital Kingston, cidade em que a língua inglesa é
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Gueto estadunidense habitado por afro-americanos e imigrantes vindos, em sua maioria, das ilhas caribenhas.
Constitui um dos cinco distritos de Nova Iorque, sendo considerado o mais pobre e violento da cidade.
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Em português, sistemas de som. Muito populares na década de 1960 nas grandes cidades jamaicanas.
Consistem em um conjunto sônico composto por dois toca-discos, dois potentes amplificadores e um microfone.
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quebrada) que logo atraiu todos para a dança, fato que mais tarde iria dar origem à break
dance (dança quebrada).
Inspirados pelo mais novo fenômeno urbano, muitos Dj’s surgiram e com eles
novas técnicas de manipulação dos discos. Um exemplo é o Dj Grandmaster Flash, que
introduziu a Quick Mix Theory (teoria da mixagem rápida), além de outros conceitos como o
backspin (voltar o disco manualmente), o phasing (manipulação da velocidade dos aparelhos
de som), o scratching (movimentar o disco para frente e para trás gerando sonoridades que
sugerem “arranhões” na música ) e o cutting (técnica em que se consegue mudar de uma
música para outra sem que se “perca” a batida.
Com o objetivo de se dedicar mais às técnicas de Dj, Kool Herc deixou de recitar
os versos ao microfone, repassando esta função a outros jovens. Desta maneira, foi
estabelecida uma nova formação musical: enquanto Herc realizava as remixagens, outra
pessoa era convidada a assumir o microfone, tendo a responsabilidade de improvisar o texto.
Este modelo passou a ser adotado também por Afrika Bambaataa e Grandmaster Flash.
A improvisação de versos, que no início não passava da declamação de ditados
populares, foi se tornando cada vez mais elaborada, fazendo com que os improvisadores
fossem chamados de master of ceremony (mestre de cerimônia), dando origem ao termo Mc.
A expressão também é uma referência à outra função assumida por quem estava ao
microfone: além da improvisação de versos, os Mc’s eram os responsáveis por recepcionar o
público, comandar o andamento da festa e interagir com os jovens presentes. As figuras do
Mc e do Dj, juntas, formam um gênero musical denominado Rap e, juntamente com a dança
(break) e as artes visuais (grafite) representam os quatro elementos da cultura hip-hop6
(MAGALHÃES; SOUZA, 2009).
Segundo Martins (2005), o rap leva à ascensão de dois elementos de herança
africana: o griot e o drum. Griot é o nome dado aos contadores de história das comunidades
localizadas no norte do continente africano, uma tradição de séculos que perdura até os dias
de hoje em países como o Senegal, Guiné, Gâmbia e Mali. Tidos como sábios, os griots (que
recebem nomes diferentes devido aos diversos dialetos africanos) são verdadeiros depositários
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O hip-hop consiste em uma cultura de rua surgida no Bronx, em Nova Iorque, que contempla em seus quatro
elementos constitutivos - Dj, Mc, Grafite e Break – diferentes formas de expressão: música, poesia, artes visuais
e dança. Assim, o hip-hop se firma como um movimento articulador de quatro campos de produção artística,
conseguindo se comunicar por meio de diferentes manifestações que comungam de uma mesma ideologia.
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de tradições, e, acompanhados pelo Corá7, contam suas histórias com narrativas que se situam
entre a fala e o canto, com características recitativas semelhantes às interpretações da
commedia dell’arte, ds cantos do repente nordestino ou mesmo do sprechgesang criado por
Schoenberg.
A história narrada pelo griot não deve ser contada de qualquer maneira. Deve, ao
contrário, ir ao encontro do drum, ou seja, a batida do tambor. O tambor na cultura africana se
constitui em meio fundamental de expressão e comunicação, uma representação da batida
vital do coração. O griot e o drum são elementos da cultura africana que emergem nos
Estados Unidos de forma ressignificada, por meio do Mc e do Dj (o narrador da história e a
batida rítmica, respectivamente) – uma relação de complementaridade em que um elemento
dá sentido ao outro.
A partir do referencial teórico de Bourdieu (1998), nota-se que grupos sociais
buscam sua definição identitária na demarcação e valorização das diferenças e divisões.
Assim, os gêneros musicais soul e rap surgem como materialização destes confrontos e
tensões sociais travados no plano simbólico. Estes confrontos simbólicos foram denominados
por Bourdieu (1998) como “lutas de representação”.
As lutas em torno da identidade étnica ou regional, quer dizer, em torno de ... marcas
que lhes são correlatas, como, por exemplo, o sotaque, constituem um caso
particular das lutas entre classificações, lutas pelo monopólio do poder. O móvel de
todas essas lutas é o poder de impor uma visão do mundo social através dos
princípios de divisão que, tão logo se impõem ao conjunto de um grupo,
estabelecem o sentido e o consenso sobre o sentido, em particular sobre a identidade
e a unidade do grupo, que está na raiz da realidade da unidade e da identidade do
grupo. (BOURDIEU, 1998: p. 108)
No momento em que o grupo formado por jovens moradores do gueto (um espaço
socialmente excluído) apropria-se do espaço urbano para cantar rap (pois o rap é uma música
concebida, executada, ouvida e dançada nas ruas) e imprime sua marca e identidade na
propriedade pública, ocorre uma invasão simbólica do gueto/periferia rumo ao centro urbano,
configurando-se como uma disputa simbólica pelo poder.
Outra forma de “luta de representação” encontrada no rap é a modalidade
denominada freestyle. As “batalhas de freestyle” ocorrem quando um grupo de rappers
formam um círculo em espaço público (ruas, calçadas, praças ou edifícios abandonados) com
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Instrumento de cordas muito difundido na África Ocidental. Com suas vinte e uma cordas, o instrumento possui
semelhanças com a harpa e com o alaúde.
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o objetivo de praticar a improvisação de versos. A disputa pode ser realizada com vários
integrantes, com “rodadas” em que cada um terá a sua oportunidade de improvisação. Porém,
a forma tradicional é aquela em que apenas dois integrantes vão ao centro da roda e iniciam a
disputa, que se assemelha bastante às disputas de “repente” do nordeste brasileiro ou ao
“samba de roda”, também chamado de “partido alto”.
Geralmente a improvisação musical ocorre nas recitações, ou seja, a batida rítmica
principal (executada por um Dj ou realizada pela técnica do beatbox8) permanece a mesma,
ditando o mesmo pulso e andamento e repetindo a mesma célula rítmica do início ao fim da
batalha. Enquanto isso, variações rítmicas são criadas sobre a batida principal por meio do
jogo de palavras e acentuações de sílabas dos versos recitados. O desafio está em improvisar
frases que possuam acentuações rítmicas interessantes e que sejam coerentes dentro do
tema/contexto narrativo de cada batalha, sem sair da pulsação.
Uma batalha de Freestyle pode ser bem divertida e bem humorada, com críticas
político-sociais ou mesmo mais pesada, chegando à troca de ofensas entre os que estão na
disputa. Os cantores de rap se alternam de maneira que um sempre deve iniciar sua
improvisação a partir do “gancho” temático proposto pelo outro. Ganha aquele que for mais
criativo, tiver maior rapidez de raciocínio para improvisar sem sair do ritmo e declamar rimas
difíceis, inusitadas e bem elaboradas.
Observa-se que as lutas de representação são mais evidentes no rap do que no
soul, uma vez que o primeiro gênero é mais crítico e agressivo. Este fato é evidenciado não só
nas letras das músicas, mas também na forma de interpretação e entonação da voz. O soul, por
sua vez, faz uso de representações simbólicas que evidenciem características positivas dos
afrodescendentes e que promovam o orgulho e a auto-estima deste segmento.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir do exposto, pode-se concluir que tanto o gênero soul, quanto o rap
constituem expressões musicais híbridas, que atuam como forma de representação de poder da
população afro-descendente. Características como as letras engajadas, as batalhas de freestyle,
8
O beatbox, cuja tradução literal seria “caixa de batida”, consiste na técnica de percussão vocal utilizada no rap
como forma de recriar os sons produzidos pelos Dj’s em seus equipamentos de discotecagem.
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REFERÊNCIAS
CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas Hibridas: estratégias para entrar e sair da modernidade.
São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2003.
CASTELLS, Manuel. O Poder da Identidade. 3 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
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FRIEDLANDER, Paul. Rock and roll: uma historia social. Rio de Janeiro: Record,2006.
HOBSBAWM, Eric. J. História Social do Jazz. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
MAGALHÃES, Maria Cristina P. F.; SOUZA, Ana Guiomar Rêgo. Aspectos do Movimento
Hip-Hop: matrizes culturais e elementos constitutivos. In: Seminário Nacional de Pesquisa em
Música, 9, 13-16 out, 2009. Goiânia, 2009. p. 92-96.
MARTINS, R. Hip-Hop: O estilo que ninguém segura. Santo André: ESETec Editores
Associados, 2005.
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