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UFPR - SACOD - DeArtes


Disciplina OA851
História da Música Brasileira I 2023 I
Professor José Estevam Gava

Atividade: fichamento nº 3

VITÓRIA CAROLINA CUNHA

Endereço eletrônico: vitoria.cunha98@gmail.com

Identificação do artigo aqui resumido: Modinha: as primeiras confluências entre o erudito e o


popular na música brasileira

A música brasileira: suas dicotomias e a questão da miscigenação


A pesquisadora Elizabeth Travassos, em seu livro Modernismo e a música brasileira,
aponta que, desde o século XIX, há uma confusão no que diz respeito à identidade da música
brasileira, a qual se vê em dúvida sobre seguir determinados padrões europeus ou criar seu
próprio caminho. Dessa dicotomia, surge uma outra: o universo do erudito e o do popular. Ambas
as tensões foram geradas a partir de um processo de miscigenação racial que ocorreu no Brasil –
típico de países colonizados. Assim, o efeito dessas misturas de povos na cultura foi o
desenvolvimento de manifestações artísticas híbridas, produtos de uma fusão que caminhou para
a singularidade.
Por esses hibridismos fazerem parte da construção de nossa cultura, ao longo do século
XX, modernistas e pós-modernistas debateram diversos tópicos dicotômicos nesse sentido:
nacional e internacional, identidade e alteridade, erudito e popular. Durante esse processo,
enxergaram tais misturas de maneiras diferentes, por vezes julgando-as como algo positivo, de
grande valor cultural e, por outras, marginalizando-as. A grande questão era, basicamente, entre
valorizar a miscigenação cultural, e aceitá-la como nossa, ou ir em busca de uma identidade
originalmente brasileira, rejeitando as influências externas.

A origem da modinha: popular ou erudita?


Em busca de uma melhor compreensão de como se deu o entendimento e a divisão entre
erudito e popular, é interessante retornar ao século XVIII, pois pode-se encontrar essa dicotomia
já nos gêneros iniciais de música brasileira. Para isso, a análise de diferentes visões a respeito da
origem da modinha corrobora perfeitamente para a discussão, visto que ela é um ótimo exemplo
da transculturação musical que ocorreu no Brasil, além de ser considerada o primeiro gênero de
música popular nacional.
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Já sobre a formação do estilo, há controvérsias por parte de historiadores e musicólogos.


Mozart de Araújo, por exemplo, acreditava que as origens da modinha remontam ao último
quartel do século XVIII, enquanto José Ramos Tinhorão defendia a já existência de um provável
antecessor da modinha no fim do século XVII. Há um consenso, no entanto, a respeito da
relevância e importância do carioca Domingos Caldas Barbosa – mestiço, cantor e tocador de
viola – para o gênero: se não foi o inventor, foi um grande divulgador do mesmo em terras
portuguesas. Ele foi para Portugal em 1775 e levou à metrópole, segundo Mozart de Araújo, “a
primeira manifestação da sensibilidade e do sentimento musical do povo brasileiro – o lundu e a
modinha”.
Outra questão de discordância entre os pesquisadores diz respeito à proveniência popular
ou erudita da modinha. Tinhorão acreditava que se trata de um gênero popular, em sua essência,
visto que Caldas Barbosa apenas havia entrado em contato com negros, mestiços e tocadores de
viola, mas nunca com músicos do universo erudito, os quais praticamente não circulavam em
terras brasileiras na época. Bruno Kiefer, em contrapartida, argumenta que a proximidade de
Domingos com afrodescendentes e tocadores de viola é uma mera especulação. Ele também cita
alguns exemplos de compositores os quais vieram de um ensino musical erudito e, apesar disso,
compunham modinhas – é o caso, por exemplo, do padre José Maurício Nunes Garcia e, também,
do português Marcos Portugal, que musicou, inclusive, poesias de Barbosa.

Fluxo e refluxo: na realidade, tudo se mistura.


Apesar das diferentes visões que os autores apresentados anteriormente têm sobre a
modinha, eles concordam, de formas distintas, que esse gênero musical ultrapassava os limites
entre erudito e popular, conversando com os dois universos, tanto musicalmente quanto
socialmente. Além desses pesquisadores, Mikhail Bakhtin e Roger Chartier, estudiosos sobre
cultura popular, também defenderam a circulação e influência mútua entre as culturas eruditas e
populares. Nesse sentido, é possível afirmar que ambas as classes dominante e dominada podem
ser heterogêneas e que as trocas de determinados bens culturais não necessariamente estão
associadas ao recorte econômico.
Novamente, Caldas Barbosa é um ótimo exemplo desse fluxo de bens culturais entre a
“alta” e a “baixa” cultura. Quando foi para Portugal, suas modinhas tiveram um grande sucesso
entre as classes sociais mais ricas e, por esse motivo, muitos compositores eruditos passaram a,
também, compor músicas desse gênero. Segundo Tinhorão, a modinha teve um caráter popular
em seu início, no século XVIII, depois, tornou-se “erudita” ao conquistar o gosto das elites
portuguesas e, apenas nos últimos anos do século XIX, retornou à tradição popular. Já Kiefer
acredita que a modinha se iniciou no “erudito”, mas que a vinda da Corte portuguesa para o
Brasil ajudou o estilo a ser difundido tanto nos espaços da elite quanto, também, rapidamente,
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entre as camadas populares. Ambos os autores, assim, explicitam em seus trabalhos, esses fluxos
sociais e culturais da modinha, apesar de suas diferentes visões do processo.
Além disso, outra maneira de discutir esse intercâmbio cultural é pensar que tanto a elite
quanto o povo podem se apropriar de objetos, ideias e comportamentos da cultura um do outro,
ressignificando esses bens culturais e trazendo uma outra interpretação a eles, que façam mais
sentido dentro do seu próprio contexto. O autor Roger Chatier utiliza esse conceito, da
apropriação, como base de suas obras. É necessário, porém, tomar um certo cuidado para não
entender essas trocas de maneira equilibrada, pois ainda existe uma relação de imposição e
dominação cultural de um povo em relação a outro – principalmente, quando se trata de um caso
como o Brasil, onde se deu um longo processo de colonização. Stuart Hall define tal fluxo
desigual de apropriação como a dialética da luta cultural. Segundo ele, existe uma luta contínua
por parte da cultura dominante a fim de reorganizar a cultura popular e encaixá-la dentro de suas
próprias formas. Assim, a cultura dominante se deixa influenciar pela dominada, mas também a
influencia profundamente, ao impor essas adequações à sua maneira de se manifestar no mundo.
Nessa lógica, pode-se dizer que o lundu-canção – gênero híbrido entre a modinha e a
dança lundu – é produto desses cruzamentos culturais. Da mesma forma que a modinha, é,
também, da obra de Domingos Caldas Barbosa a mais antiga notícia do lundu-canção. Suas
composições nesse estilo eram marcadas por um caráter extremamente transgressivo para a
época, pois declaravam uma ruptura com antigas formas de canção, além de confrontar a própria
moral das elites. O que mais chocou os europeus da corte, a partir do contato com Domingos, foi
a malícia de seus versos, bem como a maneira descontraída e direta com que ele se dirigia às
mulheres. No entanto, nada disso o impediu de atingir um enorme sucesso por meio de sua
música na metrópole. Pode-se dizer, então, que suas canções experimentaram as possibilidades
subversivas do popular, atuando de maneira a se apropriar da cultura do outro, além de expandir
os limites da sua própria cultura.

O caráter ideológico das dicotomias e o seu problemático juízo de valores


As dualidades nacional e internacional, identidade e diferença, erudito e popular sempre
explicitaram algo por trás: as relações de poder entre as classes. No Brasil, por exemplo, é muito
clara a maneira como as classes dominantes marginalizaram culturas subordinadas, especialmente
as africanas e as ameríndias, impondo sua própria visão sobre elas. Dessa forma, o conceito de
cultura popular acabou sendo associado àquilo que não é parte da classe dominante. Chatier, a
respeito disso, ainda afirma que a cultura popular é, propriamente, uma categoria erudita, pois foi
criada por intelectuais ocidentais com o intuito de se distanciar da classe dominada, considerada
hierarquicamente inferior, e manter seu próprio status quo.
Portanto, pode-se dizer que as categorias de povo e de elite como grupos bem definidos
e homogêneos são meras construções simbólicas e sociais, recheadas de viés ideológico. O
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aprofundamento a respeito da modinha deixa isso muito claro, sendo fácil perceber, ainda, o lugar
político e ideológico do qual cada autor escreve ao defender uma origem popular ou erudita do
gênero – em especial, Tinhorão e Kiefer. Assim, pensar que o consumo de uma música
considerada “erudita” e de “alto nível” é um privilégio de classes dominantes é tão problemático
quanto pensar o oposto – mesmo porque a própria definição de uma música de alto nível é algo
extremamente subjetivo e discutível. Desse modo, deve-se evitar toda e qualquer classificação
que generalize e banalize as inúmeras especificidades de um gênero musical, como a divisão
entre música erudita e popular. Repletas de juízos de valor, tais categorias apenas servem para
manter viva uma visão elitista da cultura, a qual visa à continuidade das hierarquias já existentes.

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