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Corpo em psicanálise e obesidade

Eliana Rigotto Lazzarini

Carolina França Batista

Terezinha de Camargo Viana

Os transtornos alimentares são expressões de casos da demanda clínica


contemporânea, os quais conjugam a cultura nas manifestações do corpo e na imagem
corporal suas prerrogativas. A experiência com tais pacientes, a reflexão a respeito dos pilares
da prática clínica e de suas questões teóricas colocam em pauta o questionamento sobre as
especificidades destes casos e os casos clássicos da época de Freud. A semelhança entre eles
reside na pertinência da sexualidade como sustentação da descoberta psicanalítica do
inconsciente e, ainda hoje, o mal-estar destes sujeitos estaria relacionado à alteridade trazida
na experiência psíquica do sexual e como o modo de lidar com ela. Este texto é um dos
produtos da pesquisa Transtornos Alimentares, psicopatologias narcísicas e obesidade, que
vem sendo desenvolvida no Laboratório de Psicanálise e Subjetivaçáo – Lapsus, Universidade
de Brasília. Pesquisa apoiada pelo CNPq, com bolsa de produtividade em pesquisa e bolsa de
mestrado.

Corpo em psicanálise e obesidade vem refletindo, ao longo dos anos, uma mudança da
influência dos processos terciários na cultura. Um destes traços de mudança que verificamos é
o modo como o corpo tem sido concebido culturalmente e os efeitos disto para o sujeito.
Teóricos contemporâneos observam que a nossa cultura atual tem contribuído para aumentar
a angústia do sujeito que tende a não cultivar a interiorização e a reflexão sobre si mesmo,
passando a buscar formas para tentar sedar a angústia que sente muitas vezes isto se
traduzindo em adoecimento psíquico.

Delineando a questão

A escuta do sofrimento dos indivíduos que passam por alguma modalidade de


transtorno alimentar convoca o olhar e a análise psicanalítica pelo modo como o corpo é
concebido na atualidade. A pertinência da psicanálise nestes casos reside em seu modo de
questionar o discurso ao qual este indivíduo encontra-se adaptado e do qual queixa sentir-se
excluído. É neste ponto que a psicanálise apresenta o desafio da inquietação a quem quer que
a pratique e com ela dialogue teoricamente, aspecto que deve ser levado em consideração na
obesidade. Tal inquietação gera questionamentos: quais seriam os fundamentos encontrados
na cultura para o alto índice de casos de obesidade? Em que critérios se fundamentam seu
diagnóstico e qual a sua pertinência para a escuta psicanalítica do sujeito? Qual posição este
sujeito ocupa e qual sua influência na produção do mal-estar? Permeando estas questões
encontramos a importância de uma análise da cultura e dos discursos contemporâneos como
co-produtores de novas manifestações de sofrimento.

A alta incidência de casos de transtornos alimentares e o lugar que eles ocupam


socialmente é expressão, segundo Lazzarini (2006), de uma subjetividade afetada por um
mundo em constante mutação, do qual ela mesma também é veículo e agente desta mudança.
Tal particularidade remete à emergência em esquadrinhar que fatores culturais atuais são
contingências determinantes à constituição deste sujeito. Frente às características da
subjetividade contemporânea, dentre as quais pode ser salientada a exacerbação narcísica,
torna-se necessário que tanto o sujeito contemporâneo como o pesquisador e o psicanalista,
imersos como estão nesta cultura, possam sair da posição de massificação, a qual tende a
impedir a construção de um olhar a respeito das condições atuais de subjetivação e, assim, ter
um olhar diferenciado que permita ampliar a compreensão destes novos modos de
subjetivação. Uma das contingências do momento atual é a ocorrência de um encurtamento
dos tempos históricos, pela rapidez com que os eventos se atualizam na cena contemporânea.
Tal incidência ocasiona uma maior exposição dos sujeitos aos efeitos de acontecimentos
importantes, ocorridos recentemente na história humana. Isto pode, em consequência, gerar o
encurtamento do tempo subjetivo, promovendo uma tendência ao imediatismo. Este
encurtamento é influenciado também pelos avanços tecnológicos decorrentes de um
progresso civilizatório, o que tende a tornar os novos produtos rapidamente obsoletos e
consequentemente descartáveis. No entanto, este descarte, como se vê atualmente, não diz
de uma experiência de perda justamente pela possibilidade de um objeto melhor vir a
substituí-lo. Este aspecto produz implicações na temporalidade psíquica, que pela falta da
vivência de um processo de perda e de seu consequente luto, resulta cada vez mais na
dificuldade de simbolizar e elaborar os fatores culturais, sociais e também psíquicos. Logo, as
transformações sociais, históricas e culturais recentes mostram suas consequências no modo
de condução e compreensão dos elementos constituintes da clínica psicanalítica, ou seja, nos
efeitos produzidos no tratamento destes sujeitos. Esta exposição do sujeito contemporâneo
marca uma diferença dos casos e da cultura na época de Freud, onde o sofrimento do sujeito
estava ligado à culpa pela transgressão de uma lei e de um limite. O conflito se centrava na
renúncia que o processo civilizatório exigia das satisfações pulsionais, demandando a
repressão destas pulsões. Logo, o sofrimento e a regulação pulsional destes sujeitos seria
regida pelo recalque. Considerando que a clínica freudiana foi construída e estruturada
tomando por fundamento a neurose e a castração como referência, questiona-se se há uma
diferença entre o sexual da clínica freudiana e a sexualidade tal qual temos acesso
contemporaneamente e, por tal, em que aspecto podemos distinguir os casos atuais dos
antigos. É importante salientar que a questão da sexualidade remete à necessidade de
delimitação do que é essencial à psicanálise, do que permaneceria em sua passagem por esta
nova construção do social.

Corpo em psicanálise e obesidade

A descoberta de Freud e as transformações do sexual no laço social

De acordo com autores psicanalíticos contemporâneos, a clínica psicanalítica, da forma


como formulada por Freud, tem sofrido mudanças face as diferentes modalidades de mal-
estar apresentadas pelos sujeitos que procuram análise. Esta diferença está intimamente
ligada à mudança de um contexto social e cultural que lhe era específico, entre o final do
século XIX e início do século XX, período da criação dos fundamentos psicanalíticos. As
transformações históricas e sociais sempre afetam o processo de questionamento que permite
a produção teórica e a prática psicanalítica, consequentemente, as novas perspectivas
apresentadas à psicanálise dizem de uma transformação na cultura no que concerne à
sexualidade e aos modos de satisfação. Importante salientar que a fundação da psicanálise se
deu pela escuta da histeria, fato que coloca em cena a expressão do mal-estar e do sofrimento
corporal na neurose. O fundamento da vivência do corpo pela histérica, expressiva em seus
sintomas conversivos, remete à formulação da noção de sexualidade infantil. É por meio da
fala das pacientes histéricas que Freud pôde observar que estes sintomas diziam respeito a
uma divergência entre a sexualidade em suas manifestações e a moral vigente. Lazzarini e
Viana (2006) discutem que a elaboração freudiana do inconsciente, em seus princípios, esteve
relacionada à sexualidade, pela via da noção de trauma concebido, neste período, como um
acontecimento factual ocorrido na história do sujeito. Os sintomas histéricos instauravam-se
por um significado sexual que se encontrava recalcado e, por tal, inconsciente . Por não poder
encontrar expressão pela via consciente, esta tendência pulsional manifestar-se-ia por
sintomas corporais. Deste modo, o campo psicanalítico foi instaurado pelo sentido subversivo
da sexualidade, que encontrava entraves à sua expressão pelas tendências repressivas do
contexto cultural no qual este discurso emergia. Estes obstáculos seriam expressão da ameaça
que a sexualidade apresentava ao eu do indivíduo. O texto de Freud, Moral sexual civilizada e a
doença nervosa moderna, de 1908, coloca o acento da origem da neurose na característica
repressiva, autoritária e puritana da moral da civilização. A capacidade sublimatória seria,
assim, dessexualizada e direcionada para a produção com fins ao progresso civilizatório.
Birman (2009) expõe que a ênfase encontra-se na possibilidade de extirpação da sexualidade,
para uma finalidade terapêutica e civilizatória que promoveria uma tentativa de harmonização
do sujeito e da sociedade. A psicanálise freudiana no texto de 1908 apostaria na possibilidade
de encadeamento pela representação das exigências pulsionais, de modo a promover um
completo abarcamento pelo simbólico do registro real e pulsional. Já no texto Mal-estar na
civilização de 1930, Freud expõe o conflito civilização versus pulsão e, na impossibilidade da
cura do desamparo pela psicanálise, o resultado seria um compromisso do sujeito com a sua
gestão, para toda a vida. Birman (2009) observa que a crítica freudiana à modernidade e à
evolução científica localiza-se, justamente, na impossibilidade de resolução da condição de
desamparo e de fragilidade do sujeito, pois a ciência funda-se na razão, e ela nada poderia
fazer para impedir a morte. Este é um conceito chave no redirecionamento de Freud sobre a
constituição do sujeito e sobre a questão da sua origem. A elaboração do conceito de
desamparo permite uma mudança da submissão do sujeito às exigências de um progresso
civilizatório, para uma nova noção da relação com o Outro, via construção do laço social.
Enquanto o discurso da primeira elaboração freudiana - identificado à ciência, que muitas
vezes se presta ao progresso – era fundado em uma tentativa de espiritualização, de
separação entre o sujeito, sua sexualidade e erotismo, logo de seu corpo, no segundo
momento, há uma mudança desta verticalização para a horizontalização da sexualidade, já que
somente pela sua construção intermediada por um Outro é que o sujeito poderia se
estruturar.

O corpo na contemporaneidade e o corpo na psicanálise

O corpo aparece como uma das certezas que o indivíduo tem, ou seja, seu
pertencimento ao mundo das coisas o torna locus privilegiado na cultura para se constituir um
porto seguro. Sennett (2001) observa que, no mundo contemporâneo, a aceleração dos
acontecimentos e a voracidade do consumo faz com que o tempo seja insuficiente para a
formação das subjetividades, e o corpo torna-se passivo, sofrendo diante de tantas
transformações. Neste cenário, o corpo fica cada vez mais voltado para suas próprias
necessidades e prazeres, fechado para a entrada do outro. Tal modo de hipervalorização do
corpo, na era atual, transforma os homens em seus próprios escravos, e o que impera é a força
da imagem. Consequentemente, a vida interior, o outro e os laços que podem se estabelecer
na troca de experiências, passam a ser valores pouco encontrados. Isso, de certa forma, parece
ser um bom terreno para a angústia e o adoecimento. Diante dos desencadeamentos
contemporâneos encontramos, hoje, indivíduos marcados pelo sofrimento em seus próprios
corpos e com dificuldades significativas para narrá-las.

McDougall (1983) faz notar que a forma como o sujeito vive seu corpo informa a
respeito da natureza de sua relação com o mundo, ou seja, quando o corpo não é capaz de
significar a diferença entre o eu e o outro, interior e exterior, quando o sujeito tem dificuldade
em habitar seu corpo, as relações com os outros correm o risco de se tornarem confusas. De
acordo com a autora, “é a maneira como a pessoa pensa o próprio corpo, assim como a
posição que ela assume em relação a esse corpo, o que naturalmente irá influenciar de forma
marcante a relação eu/mundo” (1983, p.155). O sujeito busca no corpo uma consciência de si,
ou seja, fazer com que o corpo exista por si mesmo para que possa estimular sua reflexão e
reconquistar sua interioridade. O corpo não é apenas um meio de locomoção, mas um
organismo vivo, corpo sexuado, marcado pelas pulsões, fonte de prazer (e também de dor:
sensações) que necessita ser cuidado por seu possuidor. O corpo marca sua presença na
psicanálise contemporânea, não somente no que diz respeito às doenças psicossomáticas e à
hipocondria, mas também porque encontra outras formas de se manifestar. E uma dessas
formas é a de um movimento narcísico, no qual o corpo vai ser lugar de investimento libidinal.
Se a época de Freud foi marcada pela repressão sexual, como salientado acima, a era atual se
caracteriza por um movimento contrário. Não é da repressão que se fala, mas da dificuldade
de lidar com os limites e os contornos de si. A barreira, quando colocada, é feita de modo
incisivo, muitas vezes mantendo o sujeito ilhado em um mundo fechado ao acesso do outro.
Há, portanto, uma incapacidade no estabelecimento e manutenção de laços mais amplos, o
que coloca em evidência o retorno ao momento psíquico primordial de instalação do eu: a
etapa narcísica. Lazzarini e Viana (2006) observam a necessidade de refletir sobre esta
condição, pela forma como o corpo é visto tradicionalmente pela psicanálise, ou seja, em
paralelo ao discurso da linguagem. Porém, como coloca Fernandes (2002), quando a
psicanálise se vê enredada com o adoecer do corpo, a tendência é realizar uma ampliação de
seu campo clínico, resultando, necessariamente, em uma ampliação de seu campo teórico: “a
inclusão de novos conceitos ao arsenal do saber psicanalítico permitiu uma fertilização da
escuta do corpo na clínica para além das somatizações, abrindo campo para as aproximações e
diferenças entre determinados quadros clínicos e as neuroses clássicas, as toxicomanias, os
transtornos alimentares, as perversões etc.” (p. 53).

A concepção psicanalítica do corpo tem sua particularidade por estar em uma posição
de fronteira entre os diferentes registros da experiência psíquica, logo, por poder ser tomada
pelo registro real, simbólico e imaginário. Conforme mencionado trata-se de uma perspectiva
inaugurada pela histeria, que concede à ele um lugar radicalmente diferente do concebido
como objeto de estudo de outras ciências. A leitura psicanalítica do corpo permite o seu
questionamento para além do lugar que lhe é fixado numa suposta realidade social, uma vez
que traz no nascimento de seu discurso a sexualidade como seu centro. Trata-se de uma
perspectiva que fundamenta o trabalho da psicanálise em sua dimensão outra, que é alheia às
conformidades que um saber de leis rígidas ou universais dispõe. Lazzarini e Viana (2006)
comentam que o corpo na psicanálise, em sua primeira formulação de corpo erógeno, é
atravessado pela pulsão, estrutura-se em confronto ao corpo da necessidade na medida em
que a linguagem nele faz efeito, inserindo-o na representação, significação e lembrança. O
corpo seria então, pela sexualidade, articulado à história do sujeito, situando-o no imaginário
social pela representação. A teoria freudiana, portanto, permite colocar em evidência que o
somático habita um corpo que é também lugar de realização de um desejo inconsciente.
Fernandes (2002) pontua que o corpo psicanalítico se apresenta ao mesmo tempo como o
palco onde se desenrola o jogo das relações entre o psíquico e o somático e como personagem
integrante da trama das relações. De fato, esse corpo é regido segundo uma dupla
racionalidade: a do que é somático e do que é psíquico. Para Lacan (1949) a importância do
estádio do espelho se dá pelo que instaura o momento inaugural da constituição do eu. O
infans, pela visão e percepção de sua própria imagem, da imagem de seu corpo no espelho,
prefigura uma totalidade corporal que é corroborada pelo outro, que a reconhece como
verdadeira. Deste modo, ou seja, para a criança poder se apropriar de sua imagem, é
necessário a presença de um outro que a confirme para que ela possa, assim, interiorizá-la. A
criança tem neste momento uma vivência de unidade, que estabelece a passagem do corpo
despedaçado e não diferenciado do corpo de sua mãe para um corpo próprio. Tal momento,
no qual o indivíduo se identifica imaginariamente, faz parte do seu processo de constituição,
que, aos poucos, pela incidência do simbólico, pode apartar-se das identificações primárias e
construir sua verdade.

Este momento de captação do imaginário, funda-se pela função de continência da


condição de desamparo e de imaturidade física. Trata-se de um momento na constituição do
infans em que o outro cuidador acolhe o sujeito em sua prematuridade. A constituição do
narcisismo do sujeito é resultado, portanto, da presença ativa de um outro, realizada neste
período, pelo qual a criança poderá apreender-se em seu corpo pela obtenção de um contorno
nítido e definido. O corpo é, portanto, lugar da passagem do outro, lugar de onde nasce o
sujeito. Sendo assim, pode-se dizer que a grande inovação da psicanálise foi, precisamente,
considerar essa dupla racionalidade como articulada pelo desejo inconsciente, mas cuja leitura
também se dá no corpo.

Birman (2009) complementa dizendo que o corpo em psicanálise pode ser definido
como sendo um corpo sujeito, marcado pelo outro, pela linguagem. Esse corpo, de acordo com
o autor, deixa de ser corpo como condição de organismo e se assujeita, isto é, passa a ser
habitado pelo outro, implicando uma condição relacional – eu/outro. Com esse percurso,
podemos asseverar que desde Freud o corpo encontra espaço na psicanálise, pois foi o próprio
Freud quem inaugurou esta escuta, ao ouvir o corpo das histéricas, encontrando um caminho
que possibilitou livrá-las de seu sofrimento.

Corpo e obesidade

No plano da cultura e sociedade atual, momentos de indefinição e mudança com


relação a valores e papéis sociais sobrecarregam os indivíduos expondo-os à angústia e ao mal
estar. Com isto, o cuidado de si e de seu corpo fica prejudicado. Birman (2003) observa que no
cotidiano as pessoas se apresentam cada vez mais com queixas difusas localizadas no corpo,
que vão desde dores diversas e inespecíficas até sensações de completo esgotamento.
Queixam-se também de stress constante e uma dificuldade em limitar a carga física ou
emocional que podem suportar. O autor enfatiza a incapacidade crescente dos sujeitos de lidar
de forma produtiva com seu corpo, sendo surpreendidos constantemente por manifestações
corporais diversas, das quais são incapazes lidar e de subjetivar. Neste cenário, o corpo tem
adquirido mais destaque e sofre sob os efeitos da doença, da fragilidade e do stress. A partir
desta perspectiva, a concretude do corpo aparece como uma das certezas para o sujeito e, em
contrapartida, o registro metafórico da linguagem é cada vez mais pobre, visto que o discurso
fica esvaziado em sua dimensão simbólica (Lazzarini, 2006). A psicanálise, por sua vez, procura
dar voz ao sujeito e a seu corpo em sua singularidade, para além das demandas corporais
relacionadas à dor. Trata de lidar com um corpo diferente do corpo biológico e dar voz a um
corpo que é atravessado pela linguagem e marcado por vivências do sujeito.

A escuta da fala do paciente obeso em psicanálise evidencia algo de um mal estar


localizado no corpo (dores e sensações corporais desagradáveis, paralisias, amortecimentos),
mas que deve encontrar ressonância psíquica. Em sua fala, vemos ser ressaltada uma condição
de imobilidade, de impedimento à ação causada por sua própria limitação e que caracteriza
um estado de inércia, uma falta de vontade ou incapacidade para agir, de fazer a vida andar e
de nela se sentir presente. Apesar de ser um dos temas centrais de seu discurso, o corpo não é
nomeado: em seu discurso o que aparece é uma fala sobre suas dores e incômodos mais do
que do corpo como unidade e pertencimento. Apesar de ser um corpo grande e expressivo, ele
não tem contorno, delimitação e fica referenciado a uma massa disforme. Há uma oscilação
entre se sentir cheio e se sentir vazio, e esta é a referência que apresentam. Não podemos
deixar de nos referenciarmos, neste momento, ao “estádio do espelho” de Lacan. Ou seja,
parece que estamos falando do processo de constituição deste sujeito, o que nos remete à
problemática dos limites e das fronteiras da vida psíquica (Cardoso, 2004; Figueiredo, 2003): a
delimitação entre o eu e o outro, o dentro e o fora, incluindo aí também os limites da própria
simbolização que parece, nestes casos, ser sempre precária. Nessa configuração subjetiva o
corpo é sentido como um peso e não como unidade e posse, sendo então qualquer sensação aí
localizada um enigma a ser decifrado, um acontecimento para o qual não estão preparados
para lidar. Não se observa um estado de desintegração corporal, como visto na psicose, mas
um estado no qual a unificação é frágil e provisória. O que se constata é que o sujeito convive
com uma imagem corporal pouco delimitada, marcada por equilíbrio precário prestes a
desmontar. Constata-se que quando apresentam certo senso de corpo, não é nessa totalidade
que se reconhecem e o corpo é raramente reconhecido como próprio. Há também um
sentimento de estranheza com relação às sensações e percepções e até mesmo uma negação
da realidade objetiva do corpo, verificando-se a alteração na capacidade de nomeação das
sensações corporais. O obeso fica sem condição de traçar uma imagem de si, pois não se fixa
nela. Seu olhar poderia auxiliá-lo a formar uma imagem psíquica mais sólida e consistente, mas
é um olhar que se desvia. Com isto, perde a possibilidade de se ver com seus contornos e seu
tamanho real, passando a imaginá-los. Em seu relato o paciente obeso traz uma sensação
desagradável de se sentir devassado pelo olhar do outro, uma sensação de insegurança
quando observa que não passa despercebido.

Estranhamento da imagem na obesidade


Freud (1914) vai ressaltar também a importância do olhar na constituição do eu do
sujeito, o que vai lhe propiciar para o resto da vida uma maior sensação de unidade e
completude. A teoria do narcisismo em Freud mostra que é pela idealização do próprio eu
mediante o narcisismo dos pais, o qual vai libidinizar o eu da criança, relegando-a à alienação
das imagos parentais cujos defeitos e incompletudes foram apagados. É por esta alienação que
se forma o eu consciente da criança, tal qual Freud (1923) o concebe: instância corporal e
superfície de projeção psíquica. É importante refletir sobre as implicações da aderência do
indivíduo ao discurso atual e a própria função do narcisismo na economia psíquica do sujeito,
de modo a lançar questionamentos a respeito da particularidade desta forma de subjetivação,
na qual se inclui a obesidade. A imagem do gordo causa, sem dúvida, um estranhamento.
Apesar do ideal da saúde apresentar-se como moral para todos, as pessoas identificadas como
obesas são especialmente vistas e criticadas, por supostamente não se submeterem a um
regime restritivo do prazer e de seus corpos. Pois bem, é frequente também na fala de
pacientes obesos de que quando eram magros, tampouco eram felizes. E é neste momento
que o sujeito pode questionar-se a respeito de sua alienação promovida no momento do
estádio do espelho, tal qual o cunha Lacan (1949), nesta mudança assumida pelo sujeito à
medida em que ele se identifica a uma imagem que é sua. É no momento de questionamento
que estes sujeitos têm a possibilidade de sair do lugar de exclusão, justamente por
compreender que sua posição de sujeito é descentrada, longe dos aportes imaginários
promovidos pela sua constituição narcísica. Frequentemente, assim, os obesos são
representantes no imaginário social de significados em uma identificação a um gozo num
excesso, posição que assumem em muitos momentos, mas que lhes é alheia pois não se trata
de identificação consciente. São pessoas que muitas vezes não sabem da onde advém tanta
rejeição e gordura. Este processo de questionamento pode ser realizado pelo confronto com
os significantes de sua história, abrindo a possibilidade de um espaço de indeterminação que
permita a dialetização, a escolha e a responsabilização pela posição que ocupa em sua
fantasia.

Considerações finais

O sujeito que constitui sua subjetividade neste período pós-moderno, confronta-se e


se estrutura em um momento de exacerbação das condições que favorecem o lançamento à
sua condição primitiva de desamparo: a pluralidade de objetos ofertados. Estes objetos
mascaram a esta condição do sujeito, característica de seu desenvolvimento primitivo, no qual
se encontrava no estado de prematuração física, impossibilitado de ter prazer por si mesmo e
de acalmar suas necessidades e demandas. Há neste ponto algumas bases para se pensar
como, na atualidade, a constituição da imagem e corpo fixa-se numa demanda de identificação
a um objeto perfeito, único e completo, por meio do qual capta sua imagem. Trata-se de uma
demanda que encontra lugar no discurso capitalista contemporâneo, pela oferta de
dispositivos aos quais o indivíduo identifica-se, no intuito de restabelecer uma suposta relação
dual perdida e pela qual tenta resgatar uma parcela de seu narcisismo. Este objeto serviria,
portanto, para obliterar a falta própria ao seu processo de constituição como sujeito. Esta
procura e alienação no objeto remetem à tentativa de adequação ao seu Eu ideal, momento
de sua constituição em que era massivamente investimento pelo narcisismo parental. A gestão
do próprio desamparo ocorre no encontro com a diferença, que promoveria uma quebra da
construção imaginária e fantasística do mundo conhecido ao eu, onde as crenças do sujeito
foram sedimentadas e contornadas pelo seu narcisismo (Birman, 1999). A manutenção desta
posição ilusória e autocentrada, além de exigir um alto dispêndio econômico, torna-se uma
solução precária e autoritária na evitação do desamparo. Nesse sentido, o que se verifica na
atualidade é uma profusão de ofertas que se fundam no saber de um discurso capitalista,
apresentando soluções para o aplacamento da angústia, do mal-estar pela sedação do sujeito.
Lacan (1958) coloca que o fundamento da alienação do sujeito à cadeia significante, pelo qual
a demanda confunde-se à satisfação das necessidades - o que na sociedade moderna encontra
seu apoio nos dispositivos como a comida, as drogas, objetos tecnológicos, objetos prontos
para o consumo - tem seu fundamento na primeira relação de amor do sujeito, que o colocava
no estado de completude por ele vivenciado, no qual seu Eu se bastava, onipotentemente.
Trata-se de um amor que mais se assemelha à paixão, pela sua modalidade de investimento no
qual se organiza principalmente pela zona erógena oral, relacionando-se com o objeto
amoroso mediante a voracidade que caracteriza a introjeção. Diante disto, pode-se
compreender que o caráter epidêmico da obesidade e de outras modalidades de sofrimento
como a toxicomania, a anorexia, a bulimia, depressões, entre outros, mostram sua relação
com a configuração da cultura contemporânea, pois, a instabilidade deste período histórico
favoreceria a regressão destes sujeitos às suas constituições narcísicas: o eu assumiria o lugar
do objeto do próprio investimento libidinal que dele emana. O eu torna-se idealizado,
agarrando-se à ilusão de completude que os objetos fornecem. Lazzarini e Viana (2010) a este
respeito comentam que há uma tendência dos sujeitos de regredirem aos seus narcisismos, de
modo a se sentirem perfeitos e seguros, gozando da fusão com o objeto primitivo, que se
encontra localizado dentro de si. Portanto, pode-se conceber que a atualidade promove as
condições para uma modalidade de sofrimento orientada pelo narcisismo, que Freud chamou
em alguns momentos, de neurose narcísica. A delimitação destes casos possibilita o
estabelecimento de relações entre as suas particularidades e as características da cultura e da
sociedade contemporânea. Uma mudança do período cultural de Freud que pode ser
caracterizada por um aumento da tolerância aos excessos: excesso do consumo, mas também
da violência, da intolerância, da insegurança e do stress, situações nas quais a tradição não
surte o seu efeito coercitivo e limitador como no período freudiano. Considerando a
delimitação da neurose narcísica, podemos articulá-la aos casos de transtornos alimentares.
Inseridos neste contexto contemporâneo, a vivência do excesso pulsional encontra expressão
nestes casos. Os casos de queixa de obesidade trazem para primeiro plano a problematização
da experiência psíquica do corpo. O mal-estar destes sujeitos manisfesta-se pela sua
corporeidade, na dor física ou por meio de atuações que implicam uma intervenção neles.
Logo, fazendo com que estes indivíduos busquem terapias intervencionistas, seja por uma
suposta cura do incômodo por habitar seu próprio corpo, seja pelo vazio que nele há e frente
ao qual não parece haver outra possibilidade.

Referências

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