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Corpo em psicanálise e obesidade vem refletindo, ao longo dos anos, uma mudança da
influência dos processos terciários na cultura. Um destes traços de mudança que verificamos é
o modo como o corpo tem sido concebido culturalmente e os efeitos disto para o sujeito.
Teóricos contemporâneos observam que a nossa cultura atual tem contribuído para aumentar
a angústia do sujeito que tende a não cultivar a interiorização e a reflexão sobre si mesmo,
passando a buscar formas para tentar sedar a angústia que sente muitas vezes isto se
traduzindo em adoecimento psíquico.
Delineando a questão
O corpo aparece como uma das certezas que o indivíduo tem, ou seja, seu
pertencimento ao mundo das coisas o torna locus privilegiado na cultura para se constituir um
porto seguro. Sennett (2001) observa que, no mundo contemporâneo, a aceleração dos
acontecimentos e a voracidade do consumo faz com que o tempo seja insuficiente para a
formação das subjetividades, e o corpo torna-se passivo, sofrendo diante de tantas
transformações. Neste cenário, o corpo fica cada vez mais voltado para suas próprias
necessidades e prazeres, fechado para a entrada do outro. Tal modo de hipervalorização do
corpo, na era atual, transforma os homens em seus próprios escravos, e o que impera é a força
da imagem. Consequentemente, a vida interior, o outro e os laços que podem se estabelecer
na troca de experiências, passam a ser valores pouco encontrados. Isso, de certa forma, parece
ser um bom terreno para a angústia e o adoecimento. Diante dos desencadeamentos
contemporâneos encontramos, hoje, indivíduos marcados pelo sofrimento em seus próprios
corpos e com dificuldades significativas para narrá-las.
McDougall (1983) faz notar que a forma como o sujeito vive seu corpo informa a
respeito da natureza de sua relação com o mundo, ou seja, quando o corpo não é capaz de
significar a diferença entre o eu e o outro, interior e exterior, quando o sujeito tem dificuldade
em habitar seu corpo, as relações com os outros correm o risco de se tornarem confusas. De
acordo com a autora, “é a maneira como a pessoa pensa o próprio corpo, assim como a
posição que ela assume em relação a esse corpo, o que naturalmente irá influenciar de forma
marcante a relação eu/mundo” (1983, p.155). O sujeito busca no corpo uma consciência de si,
ou seja, fazer com que o corpo exista por si mesmo para que possa estimular sua reflexão e
reconquistar sua interioridade. O corpo não é apenas um meio de locomoção, mas um
organismo vivo, corpo sexuado, marcado pelas pulsões, fonte de prazer (e também de dor:
sensações) que necessita ser cuidado por seu possuidor. O corpo marca sua presença na
psicanálise contemporânea, não somente no que diz respeito às doenças psicossomáticas e à
hipocondria, mas também porque encontra outras formas de se manifestar. E uma dessas
formas é a de um movimento narcísico, no qual o corpo vai ser lugar de investimento libidinal.
Se a época de Freud foi marcada pela repressão sexual, como salientado acima, a era atual se
caracteriza por um movimento contrário. Não é da repressão que se fala, mas da dificuldade
de lidar com os limites e os contornos de si. A barreira, quando colocada, é feita de modo
incisivo, muitas vezes mantendo o sujeito ilhado em um mundo fechado ao acesso do outro.
Há, portanto, uma incapacidade no estabelecimento e manutenção de laços mais amplos, o
que coloca em evidência o retorno ao momento psíquico primordial de instalação do eu: a
etapa narcísica. Lazzarini e Viana (2006) observam a necessidade de refletir sobre esta
condição, pela forma como o corpo é visto tradicionalmente pela psicanálise, ou seja, em
paralelo ao discurso da linguagem. Porém, como coloca Fernandes (2002), quando a
psicanálise se vê enredada com o adoecer do corpo, a tendência é realizar uma ampliação de
seu campo clínico, resultando, necessariamente, em uma ampliação de seu campo teórico: “a
inclusão de novos conceitos ao arsenal do saber psicanalítico permitiu uma fertilização da
escuta do corpo na clínica para além das somatizações, abrindo campo para as aproximações e
diferenças entre determinados quadros clínicos e as neuroses clássicas, as toxicomanias, os
transtornos alimentares, as perversões etc.” (p. 53).
A concepção psicanalítica do corpo tem sua particularidade por estar em uma posição
de fronteira entre os diferentes registros da experiência psíquica, logo, por poder ser tomada
pelo registro real, simbólico e imaginário. Conforme mencionado trata-se de uma perspectiva
inaugurada pela histeria, que concede à ele um lugar radicalmente diferente do concebido
como objeto de estudo de outras ciências. A leitura psicanalítica do corpo permite o seu
questionamento para além do lugar que lhe é fixado numa suposta realidade social, uma vez
que traz no nascimento de seu discurso a sexualidade como seu centro. Trata-se de uma
perspectiva que fundamenta o trabalho da psicanálise em sua dimensão outra, que é alheia às
conformidades que um saber de leis rígidas ou universais dispõe. Lazzarini e Viana (2006)
comentam que o corpo na psicanálise, em sua primeira formulação de corpo erógeno, é
atravessado pela pulsão, estrutura-se em confronto ao corpo da necessidade na medida em
que a linguagem nele faz efeito, inserindo-o na representação, significação e lembrança. O
corpo seria então, pela sexualidade, articulado à história do sujeito, situando-o no imaginário
social pela representação. A teoria freudiana, portanto, permite colocar em evidência que o
somático habita um corpo que é também lugar de realização de um desejo inconsciente.
Fernandes (2002) pontua que o corpo psicanalítico se apresenta ao mesmo tempo como o
palco onde se desenrola o jogo das relações entre o psíquico e o somático e como personagem
integrante da trama das relações. De fato, esse corpo é regido segundo uma dupla
racionalidade: a do que é somático e do que é psíquico. Para Lacan (1949) a importância do
estádio do espelho se dá pelo que instaura o momento inaugural da constituição do eu. O
infans, pela visão e percepção de sua própria imagem, da imagem de seu corpo no espelho,
prefigura uma totalidade corporal que é corroborada pelo outro, que a reconhece como
verdadeira. Deste modo, ou seja, para a criança poder se apropriar de sua imagem, é
necessário a presença de um outro que a confirme para que ela possa, assim, interiorizá-la. A
criança tem neste momento uma vivência de unidade, que estabelece a passagem do corpo
despedaçado e não diferenciado do corpo de sua mãe para um corpo próprio. Tal momento,
no qual o indivíduo se identifica imaginariamente, faz parte do seu processo de constituição,
que, aos poucos, pela incidência do simbólico, pode apartar-se das identificações primárias e
construir sua verdade.
Birman (2009) complementa dizendo que o corpo em psicanálise pode ser definido
como sendo um corpo sujeito, marcado pelo outro, pela linguagem. Esse corpo, de acordo com
o autor, deixa de ser corpo como condição de organismo e se assujeita, isto é, passa a ser
habitado pelo outro, implicando uma condição relacional – eu/outro. Com esse percurso,
podemos asseverar que desde Freud o corpo encontra espaço na psicanálise, pois foi o próprio
Freud quem inaugurou esta escuta, ao ouvir o corpo das histéricas, encontrando um caminho
que possibilitou livrá-las de seu sofrimento.
Corpo e obesidade
Considerações finais
Referências
Birman, J. (2003). Dor e sofrimento num mundo sem mediação. Estados Gerais da
Psicanálise: II Encontro Mundial, Rio de Janeiro 2003.
Birman, J. (2009). Mal-estar na atualidade: a psicanálise nas novas formas de
subjetivação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.