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Análise Psicológica (2010), 2 (XXVIII): 269-280

Ressonâncias do narcisismo na clínica


psicanalítica contemporânea

ELIANA RIGOTTO LAZZARINI (*)


TEREZINHA DE CAMARGO VIANA (**)

Temos observado uma crescente preocupação, neste artigo um breve retorno ao processo de
por parte de psicólogos e psicanalistas contem- constituição do sujeito psíquico e aos funda-
porâneos, com a modificação do perfil da mentos básicos da psicanálise para que possamos
demanda clínica, dando conta da ocorrência de delinear e compreender um pouco mais a
um progressivo deslocamento dos quadros respeito dos processos subjetivos contempo-
neuróticos clássicos para as patologias do narci- râneos e suas vicissitudes. Estamos cientes de
sismo. Diagnósticos cada vez mais freqüentes de que apesar de ser uma problemática da clínica
depressão, drogadição, anorexia, bulimia e não podemos abandonar a idéia de que esse
síndromes mais complexas constituem reflexos processo se encontra mediado por algo também
de uma cultura que passa por momentos de da cultura calcada na própria crise da subjetivi-
indefinição e mudança com relação a valores dade pós-moderna, portanto, ambas, cultura e
sociais rompendo com aspectos que eram consi- clínica inter-relacionadas no estabelecimento do
derados primordiais desde tempos anteriores. perfil atual da demanda clínica.
Desta feita, pensamos que uma revisão nos A maioria dos autores com os quais trabalha-
aspectos relacionados a essa nova demanda e a mos, e que são citados no corpo do presente
clínica da atualidade se faz pertinente. artigo, admite que pode haver uma falha básica
As subjetividades contemporâneas refletem na constituição do eu narcísico ou mesmo nas
certo grau de fragmentação do sujeito e conse- instâncias ideais desses sujeitos, ou seja, uma
qüências desse processo sobressaem em seu falha no recalcamento primário atribuída a uma
sofrimento psíquico que ganha novos contornos. espécie de insuficiência (ou ineficiência) dos
A fim de refletir sobre tais condições propomos cuidados maternos na primeira infância. Como
conseqüência, a escolha do objeto (o outro da
(*) Doutora, Pesquisadora Associada da
relação) se daria com base na eleição narcisista
Universidade de Brasília, SHIS QL 08, conjunto 09, na qual ocorre a identificação. Na impossibili-
casa 13, Brasília DF, Brasil; Tel.: 55615773272/ dade de escolha do objeto externo elege-se o
99895103; E-mail: elianarl@terra.com.br objeto a partir da imagem e semelhança do
(**) Doutora, Professora Associada do Instituto de próprio eu transformado em seu próprio ideal
Psicologia da Universidade de Brasília, Pesquisadora que se converteu em substituto do investimento
bolsista do CNPq, SQN 208, Bloco B, apto. 603,
70853-020 Brasília DF, Brasil; Tel.: 55613475484/ erótico. Supõe-se que é pela identificação narci-
556181984205; E-mail: tcviana@unb.br. sista com o objeto que o investimento libidinal

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retorna ao eu não se direcionando ao objeto recalcamento, na qual o retorno do reprimido dá
externo como esperado ficando, portanto, estag- origem ao sinal de angústia.
nado. A impossibilidade do estabelecimento dos Entendemos que determinados escritos de
processos terciários (Green, 2001) não poderia Freud sobre o narcisismo e a idealização são
se dar e conseqüentemente a saída da condição essenciais para a compreensão dessas formas de
narcísica para a condição edípica, substrato da constituição das subjetividades contemporâneas.
alteridade, também não se daria. Em Freud evidenciamos algumas dessas
questões já antecipadas no artigo de 1914, Á
guisa de introdução ao narcisismo e no artigo de
AS CONFIGURAÇÕES 1921, Psicologia de grupo e análise do ego. No
NARCÍSICAS ATUAIS: texto de 1914, Freud levanta considerações a
CIRCUNSCREVENDO O FENÔMENO respeito dos mecanismos de idealização, subli-
mação e identificação que foram posteriormente
A grande parte das queixas que vemos repensadas em 1921.
aparecer na clínica nas últimas décadas diz de Neste artigo Freud analisa o comportamento
um mal estar difuso e invasor, um sentimento de dos grupos como simples manifestações dos
vazio interior. Dito de outra forma, as configu- mesmos, mas podemos ver implícita no texto,
rações subjetivas contemporâneas tendem a como pano de fundo, a realidade social na qual
apresentar um sujeito que trás um sofrimento Freud está inserido, qual seja, o final da primeira
psíquico que parece estar menos relacionado a guerra mundial em 1918, a revolução soviética
conflitos neuróticos clássicos, regulados pela em 1917 e a ascensão do movimento nazista e
lógica da castração e do desejo. O que tende a fascista na Alemanha, na Áustria e em toda a
aparecer na clínica é algo da ordem do desam- Europa. Um momento histórico marcado por
paro primordial, como ressaltado por Freud. A intenso stress psicológico caracterizado pelos
maioria dos sintomas neuróticos clássicos que traumas de guerra recentes, pelas questões
correspondem em grande parte a uma sociedade segregacionistas que se engendram na sociedade
mais repressiva, tirânica, autoritária e puritana e pela violência psicológica do cerceamento dos
deram lugar às desordens narcisistas que são valores e ideais de cada um.
mais coerentes com uma sociedade permissiva e Nos dias de hoje, o que podemos dizer de uma
também mais eclética em suas manifestações, sociedade como a nossa que se vê compelida por
como a que vivemos na atualidade. Os pacientes uma revolução calcada nos avanços científicos e
não sofrem tanto de sintomas fixos e exuberantes tecnológicos, muitas vezes, em descompasso
na sua forma, mas, sim, de perturbações vagas, com a possibilidade de apreensão imediata pelo
sentimentos de vazio e uma queixa freqüente que indivíduo; uma sociedade competitiva que pode
se reflete na incapacidade de sentir as coisas e as gerar o empobrecimento da experiência coletiva
pessoas. Como observa Lipovetsky (2005): “A e valorizar os interesses e as demandas íntimas?
patologia mental obedece à lei da época (...): a Que bases essa sociedade estaria oferecendo
crispação neurótica foi substituída pela flutuação para a constituição da individuação/subje-
narcísica” (p. 55). tivação? E mais, o que dizer dos sujeitos, estes
No consultório clínico falamos daqueles não estariam sendo sobrecarregados e
pacientes cujas dinâmicas psíquicas se apre- prejudicados pelos padrões de eficiência dessa
sentam pautadas pelo mecanismo da clivagem, sociedade altamente desenvolvida? E qual o
mais do que pelo recalcamento, e cuja caracte- destino desse sujeito?
rística é a de ser uma reação básica à atitude do Como aludido por Freud nos artigos
outro da relação primordial (o objeto primitivo) supracitados, nos momentos de indefinições, de
que pode ser dupla: ou a falta de ligação ou um grandes e rápidas mudanças o sujeito esboça um
excesso de fusão. No mecanismo da clivagem, movimento regressivo, um movimento narcísico
como salientado por Green (2001), o retorno dos direcionado a si próprio, ou seja, o eu deste
elementos segregados se acompanha de grave sujeito se comporta como objeto de seu próprio
ameaça de desamparo, o que é diferente do investimento o qual se caracterizaria por uma

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idealização de si, uma forma de se sentir pleno. ditos “estados limites” (ou borderlines) que
Pensamos que o destino do sujeito hoje, em falam de estados diferenciados dos casos
nossa sociedade, seria uma volta a si marcada clássicos freudianos, estes pautados na neurose.
pelo retorno à constituição da perfeição narcísica Um dos seguidores de Freud e representante
e a proteção e satisfação da vivência simbiótica desse momento é Fairbairn (1980) que na década
com o objeto primordial alojado dentro de si. de 40 se interessava pelas configurações clínicas
Se por um lado um modo narcísico de derivadas do processo regressivo constituído
subjetivação na contemporaneidade está por fortes desestruturações egóicas, dependência
sinalizado pela descontração nos relaciona- absoluta do outro e impossibilidade de
mentos e nos ambientes, no culto ao natural, na individuação, modos que marcavam os pacientes
rapidez das demandas, na mudança dos valores e descritos pelo autor.
numa ética mais tolerante e permissiva, também É uma das temáticas clínicas clássicas que
são sinais inerentes a essa subjetivação o stress e sobrevêm no final da década de 30 e início de
a depressão e uma inclinação à angústia e ansie- 40, possivelmente fundamentada numa situação
dade mais profundas causadas pelo desapego da social conturbada que ressurge nos dias de hoje,
coisa externa. Nesta condição, o sujeito vê não referenciado a um conflito único e de grande
ameaçado seu projeto de vida pela impossibili- porte como naquela época, mas de pequenas
dade de poder vivenciar plenamente suas lutas cotidianas, geradoras de intenso stress, e de
experiências. A subjetivação na pós-moderni- magnitude semelhante. De acordo com Amaral
dade poderia se definir por uma disjunção na (2000) surge “como um efeito especular das
qual entra em cena uma espécie de incapacidade tendências sócio-culturais à fragmentação e das
de enfrentamento das instâncias públicas, angústias narcísicas” contemporâneas (p. 06).
fazendo com que o sujeito encontre mais espaço O que tem predominado atualmente na cena
em seu mundo interiorizado. Nestes termos psicanalítica clínica são as chamadas “neuroses
falamos de uma subjetividade mais narcísica. mistas”, nas quais as manifestações do eu do
O indivíduo na sociedade atual tem sido indivíduo aparecem, freqüentemente, fragmen-
convocado para a busca do perfeito: corpo, tadas e descentradas. Trata-se de indivíduos
status, trabalho, eficiência, estilo e modo de praticamente impossibilitados de se individua-
vida. Como escapar dessa solicitação? Podemos rem e que se apresentam incapazes, muitas
formular a resposta de que a forma mais comu- vezes, de enfrentar uma situação analítica
mente encontrada é a de tentar banir os afetos clássica. Configuram sua subjetividade baseada
humanos básicos como a angústia e a tristeza do numa falta de apoio interno necessária a uma
luto procurando dispositivos para sedá-los. As vivência plena, característica de uma carência de
drogas, lícitas e ilícitas, ganham espaço e, não é natureza narcísica oriunda de falhas nas etapas
sem razão, que a droga mais difundida na de desenvolvimento mais precoce, portanto,
atualidade, para esse propósito, sejam os anti- anterior ao desenvolvimento do complexo
depressivos. As pessoas procuram cada vez mais edípico e a vivência da castração, no sentido
os consultórios médico-psiquiátricos na busca da freudiano.
solução rápida para aplacar sua dor. Solução Acrescido a isso esses indivíduos parecem
indolor, artificial, paliativa. não encontrar na cultura respaldo e amparo
De tal sorte que a clínica psicanalítica necessários para conseguir superar suas dificul-
contemporânea se vê confrontada por configura- dades internas. Como evidenciamos anterior-
ções psicopatológicas diferenciadas, mas que mente e como coloca Safra (1999) “nossa cultura
encontra parâmetros de comparação nos escritos está tão impregnada pela idolatria da individua-
psicanalíticos freudianos e de seguidores da lidade que perde de vista que o homem é um ser
psicanálise, especialmente no período compre- singular que abriga o coletivo” (p. 145).
endido entre as duas grandes guerras mundiais, Green (2001) tem trabalhado na clínica a
período esse contemporâneo aos escritos respeito das formas narcísicas de constituição do
freudianos da segunda tópica. Daquela época sujeito contemporâneo desde a década de 60.
específica temos registro de relatos de casos Tais formas são configuradas por este autor no

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que denomina de configurações narcísicas ou de um núcleo psicótico atuante no indivíduo dito
casos limites (também chamado de estados neurótico e, inversamente, ter reconhecido a
limites ou borderlines) e tem sido um autor existência de uma parte neurótica no psicótico. O
interessado nas questões sociais às quais procura autor pondera que fatores culturais devem ser
dar ênfase por acreditar que estejam cada vez levados em consideração na elucidação desses
mais no centro das preocupações da clínica na pacientes limites cuja denominação nosológica
atualidade. Green (2001) descreve os pacientes de sua enfermidade pode receber o nome de:
narcísicos como sendo pessoas cuja capacidade neuroses-mistas, casos-limites, neuroses de
de fantasiar é muito mais utilizada como forma caráter, personalidades narcísicas, etc.
de preenchimento do vazio; são pessoas que Figueiredo (2003) se refere a essa modalidade
possuem um retardo afetivo acentuado, isto é, clínica como a clínica dos pacientes difíceis
têm horror aos apetites sexuais e orais e, neste com uma fenomenologia psicopatológica e
caso, se encontra, por exemplo, a questão da exigências técnicas específicas. Figueiredo
anorexia. Para ele, esse paciente vai se consti- articula o que ele considera ser a nova clínica,
tuindo como sendo aquele que está diante de com os determinantes históricos e culturais dos
uma enorme vergonha de ser um sujeito processos de subjetivação contemporânea e com
pulsional, libidinal, submetido ao desejo e a os mecanismos metapsicológicos predominantes.
excitação do corpo. Segundo Green, nesses O autor justifica trazendo para o contexto a
pacientes, a questão do corpo é complicada metapsicologia de Fairbairn, ou seja, a metapsi-
porque o corpo, na sua materialidade, é algo cologia da esquizoidia fairbairniana que fala de
difícil de suportar. Aquilo que aponta para o fato uma experiência analítica situada histórica e
de que este sujeito é mortal, que está submetido culturalmente. O autor acrescenta ainda que essa
ao desejo, à lei, ao limite, à velhice, à feiúra, posição metapsicológica de Fairbairn diz mais da
tudo isso, é insuportável, pois precisamente o experiência contemporânea do que diria a
que está em jogo é a purificação, a tentativa de metapsicologia de Freud, pois essa experiência
atingir um limite do ascetismo, do puro, daquele contemporânea, qual seja, uma subjetivação
que não necessita de nada, que não é esquizóide e fragmentada, se daria exatamente
contaminado. pela característica histórico-cultural do ultra-
Anzieu (2000) observa que a clínica individualismo contemporâneo, que promove
psicanalítica se encontra confrontada nestas mais o afastamento das pessoas do que sua
últimas décadas com a necessidade de delimitar ligação. Figueiredo vai falar de uma nova pato-
os distúrbios narcísicos de personalidade (que logia denominada sociofobia sugerindo uma
são muitas vezes ligados às neuroses de caráter) ressonância entre o que Fairbairn dizia a respeito
e os estados limites. O autor complementa que do futuro em sua época e o que estaria
em ambas as categorias, trata-se de pacientes acontecendo atualmente, ou seja, os fenômenos
com experiências ruins de individuação e sociais experimentados no final do século XX e
separação. Segundo ele, certas características princípio do século XXI. Segundo Figueiredo na
de funcionamento psíquico decorrem daí: são clínica contemporânea as melancolias clássicas
pessoas que não se sentem seguras; que vivem baseadas na culpa, as auto recriminações severas
no aqui e agora; cujo modo de comunicação e os ataques clássicos de angústia tendem ao
específico é a narração, contam o fato e não a desaparecimento e no seu lugar aparece uma
emoção que sentiram; que tendem a não espécie de desconforto consigo mesmo. Não se
aprender pela experiência vivida pessoal; com trata de uma fala vazia, segundo ele, mas de uma
dificuldade de se desprender intelectualmente de dor, de um grito que vem de dentro, que afeta o
seu vivido; que na vida social permanecem sujeito.
grudadas (no sentido de fusão) aos outros ou, Fairbairn (1940/1980) faz uma diferenciação
excessivamente afastadas e que temem a quando se refere à depressão como uma espécie
penetração seja ela do olhar ou sexual. de reação defensiva contra uma estrutura endo-
Pontalis (2005) considera uma conquista da psíquica básica, contra a esquizoidia. Segundo
psicanálise o fato de ter reconhecido a existência ele, a esquizoidia provoca uma sensação de

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tédio e depressão porque supõe uma separação e descompensar tende a funcionar de uma forma
distanciamento do sujeito com ele mesmo. O negativa (na acepção de Green) com produções
estado depressivo em Fairbairn difere da queixa de sintomas psicossomáticos, explosões no
melancólica grave, ou seja, a depressão em corpo, pânico e condutas aditivas de toda ordem;
Fairbairn aparece como uma falta de interesse uma tendência a valorizar a incidência das
pelas coisas externas, de desligamento do mundo características dos vínculos intersubjetivos e
e de retorno a si. suas falhas, relativas à épocas bastante precoces
O que caracteriza a psicopatologia de de constituição do eu. Tais sujeitos funciona-
Fairbairn é o fato de estar calcada nos estados riam, em termos psíquicos, de acordo com uma
esquizóides e nos estados depressivos que se organização mais primitiva ou mesmo mais
referem, respectivamente, à perda do eu e à fusional em relação ao outro complementar (o
perda do objeto. Em sua teoria os estados objeto psíquico).
esquizóides se devem à psicogênese do eu e não Para tentarmos compreender um pouco a
são fatores que acontecem ocasionalmente. Para respeito desta dinâmica psíquica vamos seguir as
Fairbairn a base da psicogênese são as relações etapas de constituição do eu procurando defini-
de objeto, pois as mesmas são fundamentais em -las em termos da série de objetos parciais que
função da dependência absoluta do ser humano vão se sucedendo.
ao nascer com relação às pessoas que dele
cuidam. E essa dependência, segundo ele, se
deve ao desamparo com o qual todos nós nos A EXPERIÊNCIA TORNADA OBJETO
deparamos. A psicogênese do desenvolvimento
da subjetividade, ou utilizando um termo mais “A completude narcisista não é signo de saúde,
próprio de Fairbairn, o desenvolvimento da mas miragem de morte, ninguém é sem objeto.
personalidade, deve passar dessa dependência Ninguém é o que é sem objeto”
absoluta com respeito aos objetos e ir em direção André Green (1988, p. 211)
a uma independência mais madura. Interessante
observar, mais uma vez, que a teoria de Fairbairn Em trabalho anterior (Lazzarini, 2006)
foi escrita num tempo em que a necessidade e a fizemos referência ao conceito de eu e de corpo
sobrevivência física das pessoas estava em em psicanálise observando que a instância eu e a
evidência e era herdeira desse estado de coisas. instância corpo, do ponto de vista psíquico, não é
Desta feita, a clínica contemporânea pode ser algo dado a priori e nem tampouco de forma
caracterizada, utilizando a expressão de Green completa e absoluta, mas que se constitui na
(1988) como uma clínica do vazio relacionada experiência e nas vivências apreendidas com o
aos estados limites cuja característica é a outro (o objeto primordial). É o outro que
presença de configurações narcísicas. As concede e possibilita o nascimento do corpo do
questões do narcisismo estão em primeiro plano. sujeito e, portanto, a constituição de seu eu. No
Ou seja, pode-se perceber um desinvestimento entanto, se o outro/objeto não propicia suficien-
muito forte do sujeito, ou melhor, um temente contato com o bebê, por uma ausência,
investimento no eu, mas que visa uma redução a por exemplo, via depressão (Aulagnier, 2002), o
um nível zero de tensão. desinvestimento poderá provocar saídas que são
Na análise empreendida pelos autores acima expressas nas várias formas de dissociação,
citados, evidenciamos que tais patologias afetam desde as mais amenas até as mais graves.
o sentido e o valor do eu. Verifica-se nesses Teoricamente, o nascimento do bebê colocaria
casos um tipo de escolha de objeto de tipo um fim à experiência de auto-suficiência e união
narcísico na qual as relações com o objeto narcísicas. As repetidas experiências, na relação
apresentam uma característica peculiar: uma mãe/bebê, de gratificação e a expectativa de
forma de funcionamento defensivo que privile- seu retorno devem dar ao bebê a confiança
gia os mecanismos de recusa, apresentando um íntima para tolerar a fome e o desconforto
processo limitado de elaboração psíquica mais emocional. Ao mesmo tempo, essa série de
próximo da condição neurótica, mas que ao se experiências também deveria reforçar a sua

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consciência de separação, ou seja, tornar claro o O terceiro momento trata da constituição do
que está fora, a fonte de gratificação e o que está não-eu quando a ausência da mãe já começa a se
dentro, a necessidade e seu desejo. O bebê deve tornar tolerável. Em Freud (1920) o jogo da
passar, pouco a pouco, a compreender que as bobine, o jogo do Fort-da, é a condição elevada
suas vontades não controlam o mundo. Em a paradigma dos jogos infantis constituintes.
suma, a separação do nascimento naturalmente Sua operação é universal e marca a possibilidade
deve ser seguida por experiências adicionais de de simbolizar o corpo da mãe em sua ausência.
separação que vão constituindo o sujeito humano Winnicott (1951, 1975) com os conceitos de
quanto a sua capacidade criativa que unicamente “fenômeno transicional” e de “objeto transi-
ele é capaz de suscitar. cional” pontua igualmente a construção criativa
Segundo Green (1988), o objeto materno da primeira possessão não-eu criando um espaço
transformado em estrutura é conseguido quando intermediário de experiência. Para Winnicott a
o amor do outro/objeto é considerado seguro mãe, na medida em que dá suporte às necessi-
para desempenhar esse papel: pode-se suportar a dades básicas de seu bebê, assegura a este a
espera e mesmo a depressão temporária. A possibilidade de se relacionar com os objetos e,
criança se sentindo segura mesmo que o objeto assim fazendo, possibilita ao bebê a ampliação
materno não esteja lá presente. Quando o espaço de seu mundo real. Esse é um processo que
é assim enquadrado a garantia da presença da marca o início da separação do eu e do não eu,
mãe, em sua ausência, pode ser preenchida por onde o objeto vai constituir o símbolo da união
fantasias de todos os tipos, inclusive agressivas, bebê-mãe.
que não colocarão em risco este continente. Nesse momento, o bebê passa a adquirir uma
gestalt corporal e passa ao início do jogo lúdico
Green ressalta que esse espaço constitui o
com a própria imagem. No momento anterior, a
receptáculo do eu, circunscreve um campo vazio
criança necessitava da identidade com a mãe
que servirá para ser ocupado pelos investimentos
para suas vivências, mas como a mãe não estava
eróticos e agressivos sob a forma de represen-
disponível o tempo todo, isso propiciava à cri-
tações de objeto: “desempenha então o papel de
ança, fortuitamente, encontrar outros caminhos
uma matriz primordial dos investimentos
para integrar seus processos o que ocorre através
futuros” (1988, p. 265).
do encontro da imagem especular. É no jogo do
O outro/objeto, na acepção do bebê, nunca é espelho, no qual a imagem é submissa às
total num primeiro momento. Os passos na vontades do bebê, que a onipotência se revela.
constituição do sujeito psíquico são traçados Ao iniciar-se o processo de identificação já
em termos da série de objetos parciais que vão se começa a existir a possibilidade de experimentar
sucedendo. O primeiro momento corresponde ao os papéis sociais através do imaginário. O bebê
contexto da indiferenciação e da dependência passa a reincorporar as vontades anteriores,
total do bebê ao objeto/mãe que ainda não é experimentando-as em contraposição às suas
percebido como tal. Pelo movimento de próprias. A condição de realidade impede, em
incorporação do leite e de contato com o seio o função do grau de resistência, a fantasia
bebê tem a possibilidade de recriar o objeto em onipotente do bebê. O objeto caracteriza a zona
sua ausência pela imagem alucinada do seio. de ligação através da qual se faz a comunicação
Em um segundo momento, se daria a entre interno e externo: uma zona de não
instauração do narcisismo primário e a incipiente repetição, de imaginação e criação que significa
constituição do eu, no qual o eu e o outro/objeto a possibilidade de aprendizagem.
estão começando a se diferenciar. Nesse De acordo com Winnicott (1975) a tarefa de
contexto a presença da mãe e, principalmente o aceitação da realidade nunca é completada. Para
olhar materno, tem um papel crucial de o autor, nenhum ser humano está livre da tensão
espelhamento da imagem do bebê – esse objeto de relacionar a realidade interna e externa. Para
narcísico que faz ser eu – quando as vicissitudes, ele, o alívio dessa tensão é proporcionado por
as pulsões, a dor e o desamparo venham ameaçar uma área intermediária de experiência que não é
a existência do pequeno ser. contestada (artes, religião). Esta área interme-

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diária, diz Winnicott, está em continuidade direta distância e/ou ausência de figuras idealizadas
com a área do brincar que é necessária para o que possam ser objeto de identificação. A ilusão
início de um relacionamento entre o bebê e o de totalidade do eu especular, quando compar-
mundo. O adulto conservaria esta zona tilhada pelos pais e pela criança, mantém uma
intermediária que no bebê constitui a maior ilusão de continuidade e de reciprocidade dos
parte de experimentação, através da vivência desejos. Neste momento, é essa ilusão que
intensa que diz respeito à religião, ao viver deverá ser mantida igual, cotidianamente, pela
imaginativo e ao trabalho científico. A manipu- criança, pois a instabilidade introduzida pela
lação do objeto, assim como a imagem do ausência da mãe torna a criança carente dessa
espelho funcionam, neste caso, como substitutos presença. Para crianças muito pequenas, a
da mãe ausente que a criança domina e faz separação da presença encarnada da mãe muito
aparecer e desaparecer. Isso pode ser conside- prolongada pelo tempo, torna-se insuportável e
rado a reprise, a repetição e tem como função pode ser considerada por ela como um
exteriorizar as vivências subjetivas de perda e desaparecimento definitivo que é, muitas vezes,
levar a criança a se reconhecer como represen- sentido como um abandono. O retorno posterior
tação de si própria que lhe vem de fora e que da mãe pode provocar uma reação de estranha-
reforça a imagem subjetiva dentro de si. mento, com reações agressivas, indiferença ou
O quarto momento corresponde à instauração não reconhecimento. A criança pensará a mãe
da castração que vai ressignificar retroativa- como “morta”, o que nesse momento se traduz
mente as sucessivas perdas e separações e o como “nunca ter existido”. Nesse caso, a criança
reconhecimento das diferenças sexuais. Segundo se esforça por manter cativa a imagem da mãe,
Green (2000) “A perda do objeto e a sua
lutando contra seu desaparecimento “vendo
elaboração chegarão à separação mãe-criança e à
reavivarem-se alternadamente as marcas
tomada de consciência da existência efetiva do
mnêmicas do amor perdido com nostalgia e as da
pai como outro objeto. É (...) uma condição
experiência da perda, que se traduz pela
indispensável se se quiser falar de Édipo
impressão de uma dolorosa vacuidade” (Green,
precoce. O pai aparece posteriormente, como o
1988, p. 266).
separador, mas também como outro objeto a se
Anterior à instalação do que chamamos acima
amar. Donde um período de vaivém, por parte da
criança, entre a mãe e o pai”(pp. 142-143). Esse o terceiro momento da constituição do sujeito,
corte dará a criança a possibilidade de outros portanto entre o segundo e o terceiro momento,
destinos pulsionais que não o incestuoso, podemos examinar a questão da realidade do
instaurando a condição do desejo. Para esses borderline. Green (2001) observa que com
desdobramentos o sistema narcisista do eu é respeito ao princípio da realidade, o aparato
insuficiente. Será pela operação de incorporação psíquico tem que decidir se o objeto está ou não
do supereu, constituído pela interdição ao está presente: sim ou não. A contribuição que
incesto, pela instauração da censura e do limite, Green traz quanto a essa questão, diz respeito a
que essa descontinuidade vai se dar. A uma posição que seria prerrogativa do
intervenção do pai, como representante da borderline, ou seja, esse paciente diante da
cultura, possibilitará à criança o amparo para que questão da ausência ou presença do objeto
ela possa suportar o vazio e, ao mesmo tempo, responderia nem sim, nem não. Essa alternativa,
preenchê-lo com sua própria história. segundo Green, seria uma recusa em decidir o
É justamente o segundo momento que nos destino do outro/objeto. Pensamos que esta
interessa para entendermos as condições de ambigüidade seria tanto uma salvaguardada para
estabelecimento dos distúrbios narcísicos e a lidar com uma intrusão excessiva pela presença
precária estruturação egóica dos sujeitos. Os maciça do objeto, quanto estaria também
distúrbios narcísicos de personalidade terão possibilitando uma proteção da ausência total do
como ponto de partida justamente as falhas do objeto, que é sentida como uma perda para
adulto em responder às necessidades de sempre. Para este sujeito faz falta diferenciar
reconhecimento e espelhamento assim como a presença, ausência e perda.

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ASPECTOS METAPSICOLÓGICOS E Na condição do sujeito narcísico o eu parece
CLÍNICOS DOS FENÔMENOS NARCÍSICOS não encontrar condições de se enriquecer na
relação de objeto e por isto faz um retorno a si
Para a construção de uma compreensão meta- tornando-se um eu cujo autocentramento impede
psicológica dos fenômenos narcísicos, subjacente a permanência do outro. Dessa forma corre o
à constituição do sujeito borderline, podemos risco de perder o vínculo com a realidade. O
refletir sobre três aspectos: a constituição do eu sujeito narcisista encontra satisfação no seu
corporal, as condições de instalação do auto- empobrecimento interior, pois entende que dessa
-erotismo e a relação pré-edipiana mãe/bebê. forma ele é melhor, em função de ter conse-
Como vimos acima, o que vai construindo guido, através de seu ascetismo, eliminar a
para o sujeito a imagem de seu corpo e, conse- dependência do objeto. O ideal do eu desses
qüentemente, sua identidade é o investimento sujeitos está impregnado por um desejo de
materno pela escuta e interpretação das suas renascimento, individualização, diferenciação.
sensações corporais. O bebê está impossibilitado Green (1988) ressalta que ao se colocarem longe
de suprir suas necessidades mais básicas de dos apetites humanos, orais e sexuais, não pela
sobrevivência e, sendo assim, sua dependência a sublimação, que implicaria sua aceitação, mas
esse outro se instala. A função alimentar tem aí pela recusa, estão convencidos de sua
um destaque primordial na constituição do corpo superioridade sobre todos os mortais.
erógeno, cujo funcionamento é fruto das Essa dependência do corpo encontrada no
primeiras relações mãe/bebê. Uma falha na narcisismo tem suas raízes, como vimos, na
possibilidade de constituição desse corpo e no relação com a mãe. Freud (1926[1925]) observa
estabelecimento de fronteiras protetoras podem que a ausência da mãe constitui uma situação
estabelecer fissuras no eu que tenderão a impedir traumática, dessa forma tornando-se possível
o estabelecimento da “metaforização do amor demonstrar que sem uma função materna de
materno” (Amaral, 2000, p. 7) fundamental para pára-excitação o incipiente aparelho psíquico
a constituição do eu do sujeito. do bebê ficaria a mercê das forças pulsionais.
De acordo com Green (1988), caso essa função Freud, em Formulações sobre os dois princípios
protetora não ocorra o corpo, como aparência, do funcionamento mental (1911), ressalta que se
fonte de prazer, sedução e de conquista do outro, é as necessidades internas do bebê quando não
banido. O corpo próprio, segundo ele, nesses satisfeitas a tempo ou, quando não satisfeitas da
casos, é o outro que ressurge, ou seja, o eu/corpo forma habitual ou enfim satisfeitas de forma
se faz presente como parte do corpo materno. alterada por razões diversas, geram uma espécie
Portanto, o sujeito narcisista estará impregnado de desapontamento no bebê que é por este vivido
deste outro em seu próprio eu, vivenciando o muito intensamente. O psiquismo do bebê tende
fato como uma ameaça de anulação de si. Como então a um re-direcionamento. E este re-
conseqüência, o processo de constituição do direcionamento torna-se estruturante na medida
mundo simbólico se vê fragmentado induzindo o em que o bebê deverá se adaptar as exigências
sujeito para uma existência falsa. da realidade além das suas próprias.
Podemos pensar que nesses sujeitos a Os sujeitos narcísicos são sujeitos que tem na
capacidade de investimento libidinal não vai se figura do objeto/mãe uma grande identificação e
exercer, ou vai se exercer de maneira muito idealização e tanto a cumplicidade quanto a
precária, pois o objeto deve a todo custo ser sedução são atribuídas à ela. Há uma forte
desinvestido pela própria condição de superin- relação de dependência com a mãe, dependência
vestimento. O sujeito desinveste seu corpo ambivalente, que são deslocados para todos os
passando a ser seu ideal um corpo purificado, outros objetos. O recuo para o mundo interno
sem marcas de sexualidade afastando a pode ser uma das tentativas de lidar com essa
possibilidade de ser um sujeito dotado de vida dependência, ou seja, o afastamento pode ser
pulsional. O ideal buscado de corpo puro seria o uma função reguladora que serviria como
ideal de libertação da marca do outro. Isto salvaguarda da identidade: uma forma de
constitui uma conduta ascética. proteção contra uma ameaça de invasão do eu e a

276
subseqüente ameaça de desintegração. A A saída para o impasse da diferenciação se
conseqüência dessa impossibilidade de obter daria na medida em que se instala para o bebê a
uma experiência satisfatória precoce na relação possibilidade de um olhar para uma outra cena (o
sujeito/objeto pode levar o sujeito ao fracasso quarto momento aludido acima). Freud (1925)
rumo ao Édipo genitalizado. observa que na medida em que a libido é
Na “patologia narcísica” haveria uma deslocada do objeto primordial para outros
impossibilidade de elaboração satisfatória da objetos instala-se um campo de identificação
etapa do narcisismo que ocupa lugar essencial no com o objeto original marcado pela ambiva-
processo de separação/individuação da criança lência que é instaurada. O destino do Édipo se
pequena em relação ao adulto. Isso é importante dará, segundo ele, conforme o desenlace da
no sentido de pensarmos que se nesse confronto relação primeira com a mãe e a entrada do pai
com a figura do objeto/mãe totalizante a configurando a identificação sexual para além da
possibilidade das etapas do auto erotismo e do determinação biológica do corpo sexuado. A
narcisismo não puderem se instalar, o bebê possibilidade de vivência do Édipo e sua
estaria desamparado para lidar também com sua finalização instaurariam novas identificações
ausência. E, se tal ausência não puder ser que iriam orientar a catexia do sujeito para um
atenuada pelo recurso à satisfação auto erótica, tipo particular de objeto posteriormente. Mas a
ela será dificilmente suportada. O auto erotismo, duplicidade narcísica pode criar um obstáculo no
conforme salienta Freud, vem em resposta à acesso ao objeto ficando, dessa forma, a catexia
perda do objeto que antes dava garantias à inibida no sujeito.
satisfação, ou seja, é a partir dessa condição que Com o narcisismo a estrutura se desdobra em
a ausência toma toda a sua dimensão traumática
uma dupla exigência de direções opostas: por um
pela impossibilidade do bebê de lidar com as
lado, a exigência de ser um, exclusivo, perfeito,
vicissitudes das pulsões, e sua conseqüente
mas por outro, trata-se de ser único para um
fusão.
outro, para o objeto, ocupado pela função
Portanto, a função materna é a de proteger,
materna. Ocorre que esse objeto/mãe se divide
mediar, mas também libidinizar o bebê. E se isso
entre o olhar que dirige para o filho e o olhar que
falhar o mecanismo de introjeção não poderá se
dirige para a cena ocupada pelo pai (ou quem
dar ficando o sujeito restrito às condições do
processo de incorporação que é mais primário. A estiver exercendo sua função). O sujeito deseja
introjeção, como mecanismo secundário, se reverter a esta cena, deseja estar lá e, ao
facilitaria para o bebê, posteriormente, o enfren- mesmo tempo, em seu lugar. Esse é um conflito
tamento de suas necessidades e o exercício de que deverá ser superado pela ascendência ao
sua autonomia. Édipo. Podemos dizer que a identificação
Em suma, todas essas questões relacionadas a narcísica seria a tentativa de ser um em dois
um investimento materno precário e a lugares e ao mesmo tempo (o que seria
conseqüente dificuldade de introjeção da função impossível!), enquanto que a identificação
de pára excitação por parte do bebê, ou por outro edípica seria uma defesa contra esta dublagem.
lado um investimento materno demasiadamente A função paterna é um operador estruturante
intrusivo (a mãe dos dois extremos) vai perturbar essencial para qualquer sujeito. No Édipo a
a constituição da identidade do bebê e todas as possibilidade de reorientação da libido para
vivências a ela relacionadas: percepção, catexizar novos objetos se daria na medida da
representação e sentimento de corpo próprio. O frustração no confronto com o objeto primordial,
bebê passa a viver a situação como uma situação ou seja, a escolha segundo um modelo paterno
de perigo, como colocado por Freud seria uma escolha objetal e segundo um modelo
(1926[1925]), perigo de perda do objeto, perigo narcísico uma escolha narcísica, como espécie
da castração, perigo da morte. São vivências de identificação regressiva. A escolha objetal
muito extremas que levam o sujeito a se teria como função orientar o desejo no sentido de
defender contra elas numa tentativa de se buscar no objeto/pai o que falta no objeto/mãe e
salvaguardar e se diferenciar. conseqüentemente em si mesmo.

277
A separação mãe/criança depende de um A noção de desamparo em Freud aponta para
duplo consentimento, um contrato de duas partes uma condição que é inerente ao ser humano.
que relaciona o objeto/mãe e a criança com Inicialmente Freud configura o desamparo como
referência a um terceiro em potencial – o predominantemente relacionado à fragilidade
objeto/pai – que deve estar presente desde o física e psíquica própria do início da vida. Em
início na psique da mãe. Esse processo é gradual 1926 [1925] Freud situa o desamparo em relação
e se acompanha de fases periódicas de reunião à separação do objeto como constituinte da
com o objeto e de fases nas quais a criança trata situação de perigo geradora de ansiedade. Ele
de restabelecer a fusão com o objeto materno. observa que o registro mnêmico das experiências
Estabelece-se, assim, em função das frustrações de insatisfação deixa marcas no sujeito e
inevitáveis do processo de crescimento, que a inaugura o sistema de angústia no aparelho
criança tolere sentimentos de bem estar ao lado psíquico. Os estados de ansiedade, segundo
de sentimentos de ira que estão fixados de forma Freud, são considerados como uma reprodução
arcaica. Só dessa forma é que ambos, mãe e da condição de separação do nascimento e
criança serão separadas gradualmente. surgem, originalmente, como uma reação a um
No caso dos estados limites a tentativa de estado de perigo e é reproduzida sempre que o
separar falha e, em lugar de se promover a estado de perigo tornar a ocorrer.
separação entre o eu e o objeto, vai se dar uma
Freud considera a situação do nascimento
clivagem, que no caso resulta em uma exclusão
como a primeira situação de perigo pela qual o
radical. A clivagem nestes casos ressalta Green
indivíduo passa, mas o perigo mais propício a
(2001), produz uma amputação no eu, pois ela
gerar ansiedade, posteriormente, é o da
não consegue segregar somente as represen-
castração. A situação de perigo que Freud supõe
tações pulsionais destrutivas,segrega também
iniciar-se no nascimento reaparece frente a
partes importantes do eu. No caso da recalca-
mento, mais característico da neurose, a energia situações nas quais a criança sente que perdeu
psíquica continua ligada e os nexos permanecem algo: quando é deixada sozinha pela mãe ou
intactos e se recombinam com outras represen- quando sente a dor da fome, sentimentos que são
tações ou afetos derivados dele. experimentados como uma ameaça à própria
existência.
Freud supõe que a experiência de desamparo,
A CONDIÇÃO PRIMORDIAL oriunda da separação, tende a ser dolorosa
DO DESAMPARO E O MECANISMO porque é precedida da satisfação oceânica do
DA CLIVAGEM NOS CASOS LIMITES útero materno e está atrelada a incapacidade do
indivíduo se prover, de modo autônomo, dos
Essa distinção é importante, pois na medida meios para sua sobrevivência, física e mental.
em que avançamos na compreensão dos estados Mas o mais importante talvez seja considerar
limites nos acercamos ao conceito de desamparo que é a condição de situação de perigo o que
freudiano (Freud, 1926[1925]) relacionados aos constitui a ameaça de separação do objeto e é o
primeiros momentos de vida. Pensamos que a que vai lançar o sujeito na situação de desam-
condição subjetiva destes sujeitos o aproxima da paro ao longo da vida. Green (1991) ressalta que
vivência do desamparo uma vez que a busca de nos estados em que o sinal de angústia é
um semelhante está mais motivada pela ultrapassado por uma sobrecarga do psiquismo,
necessidade de um encontro com um objeto que ele perde sua função semântica e dispara tarde
venha suprir as necessidades mais básicas e demais. Não se trata, neste caso, segundo Green,
prioritárias, do que pela busca de um encontro de antecipar o perigo, mas de vivenciar os danos
com o objeto do desejo sexual. Como expressa de um cataclisma. O autor observa que diante
Mc Dougall (1983) Narciso vai desempenhar um desse quadro “as transformações do aparelho
papel mais importante que o Édipo; a sobre- psíquico dão à angústia de castração a aparência
vivência ocuparia um lugar mais fundamental no de angústia social que não é mais nada do que
inconsciente que o conflito edípico. angústia frente ao superego” (p. 58).

278
A noção do estado de desamparo articula-se capacidade do paciente de estar só, mas na
com a não dimensão do estabelecimento da solidão povoada pelo jogo1.
alteridade e a conseqüência psíquica resultante. Green (2001) atesta ainda que no caso desses
A questão do estabelecimento da alteridade, ou pacientes é cada vez maior o número de analistas
seja, o reconhecimento do outro, carrega em si que tendem a reintroduzir a presença potencial
um duplo aspecto: esse outro é o que protege o do objeto/pai, não por referência explícita a ele,
indivíduo contra o desamparo, mas é igualmente senão pela simples introdução de um elemento
invasor, em função da situação de passividade da terceiro nesta dualidade comunicativa que se
criança. Ou seja, o indivíduo estaria à mercê constitui a experiência analítica.
desse outro e, conseqüentemente, diante da No caso do paciente borderline pensamos que
constatação de sua fragilidade, vai se posicionar se acrescenta algo ao processo analítico ao se
diante de um paradoxo: necessita do outro para sugerir o estabelecimento de um espaço entre
sua proteção e, portanto dele não pode se analista e analisando que sirva à criação; um
separar, mas, ao mesmo tempo esse outro que o espaço de reserva potencial que talvez seja um
protege pode também ameaçá-lo com sua algo a mais na condução da análise de tais paci-
intrusão. O indivíduo diante disso, poderá vir a entes, pois criaria a condição para o surgimento
fazer uso de mecanismos defensivos arcaicos, das condições básicas de manutenção do processo
principalmente a clivagem, para fazer frente a analítico. Desta forma podemos pensar que todas
essa situação. as variáveis do setting analítico serão consideradas
a favor da análise se estiverem comprometidas
com a criação e a conservação destas reservas.
CONCLUSÃO Refletindo sobre essa questão pensamos que
no sujeito borderline o que seria vital no
caminho em direção a independência (no sentido
À guisa de uma conclusão sucinta podemos
da não dependência) não seria uma continuação
fazer alusão à algumas reflexões a respeito do
da experiência de onipotência, mas o restabele-
tratamento. Acreditamos que no tratamento desses
cimento da capacidade criativa, pois acreditamos
sujeitos nós devemos ter em mente que os
como Winnicott que, em contraste com o
sintomas característicos dessas patologias foram
reconhecimento de um mundo que é percebido
gerados anterior à fase edípica e que, desta forma apenas como algo que exige adaptação,
o analista deveria assumir a função de objeto deveríamos definir a experiência criativa como
transicional (no sentido winnicottiano) um objeto uma sensação de que “a vida é digna de ser
que sirva para possibilitar relações objetais. vivida” (1975, p. 95).
Podemos pensar com Winnicott que se
tivermos a oportunidade de oferecer um setting 1 No artigo A capacidade de estar só (1958)
terapêutico que permita estabelecer um ambiente Winnicott observa que “Embora muitos tipos de
suficientemente bom, sustentador e específico experiência levem à formação da capacidade de ficar
para cada paciente, estaremos criando a só, há um que é básico, e sem o qual a capacidade de
possibilidade de emergir um vínculo de presença ficar só não surge; essa é a experiência de ficar só
como lactente ou criança pequena na presença da
e de disponibilidade necessários e, conseqüente- mãe. Portanto é um paradoxo: capacidade de ficar só
mente de esperança. A técnica winnicottiana na presença de alguém. [...] ficar só nesses termos é
que se constitui em outorgar lugar ao enquadre, quase sinônimo de maturidade emocional. [...] estar só
na presença de alguém pode ocorrer num estágio bem
recomenda a aceitação de estados informais e a precoce, quando a imaturidade do ego é naturalmente
atitude não intrusiva, procurando suprir compensada pelo apoio do ego da mãe. À medida que
verbalmente as carências dos cuidados maternos o tempo passa o indivíduo introjeta o eu auxiliar da
mãe e dessa maneira se torna capaz de ficar só sem
para assistir a emergência de uma relação com o apoio freqüente da mãe ou de um símbolo da mãe.
eu e com o objeto até o momento em que o ana- ‘Estar só’ é uma decorrência do ‘eu sou’, dependente
lista possa converter-se em objeto transicional e da percepção da criança da existência contínua de uma
o espaço em espaço potencial de área de jogo e mãe disponível cuja consistência torna possível para a
criança estar só e ter prazer em estar só, por períodos
área de ilusão. De acordo com Winnicott a limitados” (1958, pp. 33-34). Em Winnicott, O
análise talvez não seja outra coisa que a ambiente e os processos de maturação, 1983.

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cultura contemporânea, sob o signo do narcisismo; e
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no campo da psicanálise isso aparece freqüentemente
Editora.
através das referências ao crescimento das patologias
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Janeiro: Imago Editora. que o conceito de narcisismo em psicanálise é
essencial para a compreensão das formas de
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distinção anatômica entre os sexos. Edição
Palavras-chave: Narcisismo, Psicanálise, Subjetivi-
Standard Brasileira das Obras Completas de
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Completas de Sigmund Freud (vol. XX). Rio de
Janeiro: Imago Editora. The statement that we live under the sign of
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morte. São Paulo: Editora Escuta Ltda. reference has occurred frequently as a result of the
increase of the so-called narcissistic pathologies. We
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have sought to demonstrate that the narcissistic
Janeiro: Imago Editora.
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