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GRUPO ZAYN EDUCACIONAL

CÍCERO PEREIRA BATISTA

A TRANS FORMAÇÃO DA CIDADANIA:


a Psicanálise nos limites do público e do privado

Piracema – MG
2024
CÍCERO PEREIRA BATISTA

A TRANS FORMAÇÃO DA CIDADANIA:


a Psicanálise nos limites do público e do privado

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao


Grupo ZAYN como requisito para obtenção do título
de especialista em Psicanálise.

Piracema – MG
2024
RESUMO

A transexualidade, ao ser analisada sob a perspectiva freudiana da psicanálise,


revela nuances complexas que permeiam a formação da cidadania, delineando
fronteiras entre o dito público e aquilo alcunhado como privado. Assim, a psicanálise,
como abordagem teórica, proporciona uma compreensão aprofundada das
dimensões individuais e sociais envolvidas no processo de aceitação e integração
das pessoas trans ou aquelas inseridas às margens na esfera cidadã. Cabe
considerar que, ao explorar o inconsciente e as dinâmicas psicológicas, a
psicanálise destaca a importância da identidade de gênero na construção da
subjetividade e, por conseguinte, na participação ativa na sociedade. Por tais
razões, este artigo tem a meta profícua de discorrer sobre a aproximação de
conceitos que sempre permearam a sociedade, como a transexualidade, a noção de
público e de privado e a perspectiva freudiana da psicanálise, a fim de se contribuir
para os debates mais hodiernos sobre esses temas. Os resultados indicaram que o
enfrentamento de preconceitos internalizados, tanto no indivíduo quanto na
sociedade, é uma tarefa complexa que demanda uma abordagem psicanalítica
sensível e reflexiva. Portanto, a análise sob o prisma da psicanálise nos limites do
público e do privado proporciona uma perspectiva voltada à psique para
compreender e abordar as complexidades envolvidas na transexualidade e sua
interação com a cidadania.

Palavras-chave: Cidadania. Transexualidade. Psicanálise.


SUMÁRIO

RESUMO..................................................................................................................... 3

SUMÁRIO.................................................................................................................... 4

1. INTRODUÇÃO...................................................................................................... 5

2. DESENVOLVIMENTO.......................................................................................... 6

2.1. A psicanálise como uma nova abordagem de pesquisa ..................................6


2.2 Transformações do público e do privado: margens e bordas..........................10
2.3 Sujeitos sexualizados; assuntos negados .......................................................13
3. CONCLUSÃO......................................................................................................15

4. REFERÊNCIAS...................................................................................................16
6

1. INTRODUÇÃO

Sob o prisma freudiano da psicanálise, a transexualidade se desdobra como


um fenômeno intrincado, implicando não apenas questões biológicas, mas
profundamente enraizado na psique humana. Seguindo Sigmund Freud, o pai da
psicanálise, a formação da identidade e a expressão da sexualidade são processos
complexos moldados pela interação dinâmica entre o inconsciente e os elementos
conscientes da mente.
Freud desenvolveu a teoria das fases psicossexuais, onde a libido, energia
sexual fundamental, é direcionada para diferentes zonas do corpo em fases
específicas do desenvolvimento. A fase fálica, crucial para a compreensão da
transexualidade, envolve a curiosidade da criança em relação aos órgãos genitais e
o complexo de Édipo. Na transexualidade, a identidade de gênero pode ser
influenciada por experiências nessa fase, contribuindo para a formação de uma
identidade de gênero divergente do sexo biológico. Nessa linha, entende-se que “[...]
o desejo é a realização de um anseio inconsciente” (ROUDINESCO, 1998).
No contexto público, a transexualidade, quando observada através da lente
freudiana, destaca a importância do reconhecimento e aceitação social para a
formação de uma cidadania plena (SANTOS, 2001). A sociedade desempenha um
papel significativo na internalização das normas culturais e na construção da
autoimagem. Nesse sentido, a discriminação e o estigma social podem impactar
negativamente a saúde mental e a integração dos indivíduos trans na esfera pública.
Há de se considerar que a psicanálise freudiana pode oferecer ferramentas para
compreender essas pressões sociais e promover a conscientização sobre a
necessidade de uma cidadania que respeite a diversidade de identidades de gênero,
já que “[...] os direitos da personalidade são instransponíveis e irrenunciáveis,
impedem que a vontade do titular possa legitimar o desrespeito à condição humana
de indivíduos” (NOBRE JÚNIOR, 2000).
No âmbito privado, a psicanálise freudiana destaca a importância das
relações familiares na formação da identidade. As interações com figuras parentais,
especialmente durante as fases cruciais do desenvolvimento, podem influenciar a
autoimagem e a aceitação da identidade de gênero. Com isso em tela, a psicanálise
freudiana sugere que a resolução bem-sucedida dos conflitos psicossexuais pode
levar a uma identidade de gênero congruente com o sexo biológico, mas também
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reconhece a complexidade dessa formação, especialmente no contexto da


transexualidade.
Posto isso, sob a perspectiva freudiana da psicanálise, esta pesquisa se
justifica, pois a compreensão da transexualidade e sua consistência na formação da
cidadania requer uma análise profunda das dinâmicas psíquicas individuais e
sociais. A promoção da aceitação, tanto no âmbito público quanto no privado, torna-
se um componente crucial para a construção de uma cidadania que respeite e
abrace a diversidade de expressões de identidade de gênero.
Dessa forma, este estudo objetiva principalmente discorrer sobre a
aproximação de conceitos que sempre permearam a sociedade, como a
transexualidade, a noção de público e de privado e a perspectiva freudiana da
psicanálise, a fim de se contribuir para os debates mais hodiernos sobre esses
temas. Para isso, pauta-se em uma perspectiva bibliográfica (MACEDO, 1995) e
toma mão de análises orientadas pelo conteúdo (BARDIN, 2011), para discorrer
sobre seções como A psicanálise como uma nova abordagem de pesquisa, que
busca apresentar a teoria da alma de Freud, considerando as posturas de Lacan
sobre a psicanálise e demais concepções históricas; Transformações do público e
do privado: margens e bordas, que almeja discorrer sobre a noção de público e
privado, assumindo as concepções de Roig e Hinkelammert e de Hugo Zemelman
no que tange aos processos de luta; e Sujeitos sexualizados; assuntos negados, que
tem como escopo abordar a questão invisível das identidades sexuais a partir das
concepções de Hinkelammert e Butler.

2. DESENVOLVIMENTO

2.1 A psicanálise como uma nova abordagem de pesquisa

A psicanálise surgiu como uma ruptura com os métodos empiristas de


observação, ausculta, diagnóstico e tratamento da medicina do século XIX, que
buscava alcançar, também no campo da psicoterapia, um conhecimento objetivo.
Freud veio nos trazer a notícia de que todo conhecimento passa pela subjetividade,
sendo gerado por um sujeito atravessado pela linguagem e imerso em imensas
lacunas do não saber (HERRMANN, 2002).
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Na interação com seus pacientes, a questão do inconsciente tornou-se cada


vez mais central para Freud. Seus histéricos não apenas falavam de seus sintomas,
mas também narravam suas vidas, compartilhavam seus sonhos, produziam atos
fracassados, mostravam-se em sua vulnerabilidade e expunham-lhe sua vida
emocional e intimidades. Tudo isso mostrava que possuíam “[...] um conhecimento
que não se conhece” (MORIN, 1999), tinham manifestações subjetivas que
ultrapassavam os limites do seu registro consciente.
O ambiente terapêutico foi, aliás, o ambiente ideal para o surgimento do
inconsciente, visto que possuía a legitimação social que justificava o diálogo dos
pacientes com o médico com a maior liberdade possível: tratava-se de buscar a cura
para incômodos desagradáveis. Com isso, a revolução epistemológica de Freud o
levou a perceber que o pesquisador afeta o objeto de sua pesquisa, e isso ocorreu
em meio a uma luta para se livrar das concepções de ciência e de conhecimento
válido vigentes em sua época. Freud (1895) escreve que:

Nem sempre fui exclusivamente psicoterapeuta. Pelo contrário, pratiquei


inicialmente, como outros neurologistas, diagnóstico local e reações
eléctricas, e dá-me uma impressão singular ver que os meus registos
clínicos carecem, por assim dizer, do estrito selo científico, apresentando
antes um aspecto literário. Mas consolo-me pensando que esse resultado
depende inteiramente da natureza do objeto e não das minhas preferências
pessoais. O diagnóstico local e as reações elétricas são completamente
ineficazes na histeria, enquanto uma exposição detalhada dos processos
psíquicos, como estamos acostumados a encontrar na literatura, permite-me
chegar a um certo conhecimento da condição por meio de algumas fórmulas
psicológicas. uma histeria. Tais histórias clínicas [...] têm a vantagem de nos
revelar a íntima relação entre a história do paciente e os sintomas em que
ela se manifesta (FREUD, 1895, p. 124, tradução nossa).

A esse respeito, e de modo coadunado, Erdheim (2003) afirma que o “[...]


caráter romanesco dos registros clínicos deriva do fato de serem um produto repleto
de arte, que desperta no leitor riqueza de associações e o coloca, dessa forma, em
contato com seu próprio inconsciente" (ERDHEIM, 2003, p. 7, tradução nossa).
Freud criaria uma série de conceitos e esquemas para explicar a consistência do
aparelho psíquico e o funcionamento dos sujeitos, embora sem sistematizar
diretamente a questão da subjetividade. Ao longo de sua obra desenvolveria dois
tópicos distintos destinados a explicar a vida da alma: no primeiro tópico postularia a
existência dos sistemas consciente, pré-consciente e inconsciente e, no segundo, a
do Id, Ego e Superego.
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De qualquer forma, as explicações de Freud apresentavam o inconsciente


(em diferentes fases do desenvolvimento de seus postulados) como uma qualidade
do psíquico e/ou uma instância da psique contendo um reservatório de energia e
traços de memória que precisavam ser explorados. manifestações subjetivas, como
sonhos, atos fracassados, lapsos de língua e piadas. Com isso, a concretização dos
conceitos teóricos de Freud, bem como os modos de operar que se tornavam mais
claros e adequados para acessar o inconsciente, estavam diretamente ligados ao
tratamento de seus pacientes. Freud destacou que certos comportamentos que ele
definiu como “transferências” eram:

[...] reedições, reformulações de impulsos e fantasias que durante o


andamento da análise devem ser despertadas e conscientizadas e que são
expressão de uma tendência, típica da espécie, de substituir uma pessoa
com quem se relacionava • experiência anterior do médico. Dito de outra
forma: toda uma série de experiências psíquicas precoces são
reencenadas, vividas não como ligadas ao passado, mas como resultantes
da relação atual com a pessoa do médico (FREUD, 1905, p. 180, tradução
nossa).

Freud, pressionado por uma de suas pacientes que o instou a deixá-la falar
sem que ele lhe desse orientações ou sugestões prévias, implementou o método da
associação livre, de falar após ocorrências espontâneas, que gerava cadeias de
afirmações que davam conta de fantasias inconscientes. Em contrapartida, o
analista escutaria com a chamada “atenção flutuante”, que consiste em se deixar
levar pela fala do paciente sem focar conscientemente um tema acima dos outros,
usando sua intuição, sua sensibilidade, sua própria inconsciente.
Freud estabeleceu os traços fundamentais que marcam o papel do simbólico,
do interacional e da linguagem na decifração do desejo e dos motivos inconscientes
do sujeito. De modo mais distenso, Lacan, por sua vez, enfatizaria formulações mais
diretamente relacionadas ao tema. O jovem Lacan já percebeu como o
conhecimento que se diz científico deixava de lado o assunto. A partir de uma
releitura de Freud, ele articularia a questão da subjetivação com a aquisição da
linguagem e a inserção em uma ordem cultural e enfatizaria o papel dos
significantes como elementos-chave, portadores do inconsciente, aludindo ao
simbólico. Sua afirmação de que “[...] o inconsciente é estruturado como uma
linguagem” (LACAN, [1957-1958] 1999, p. 477) é bem conhecida.
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Lacan, posteriormente, postularia o registro do real e o impacto do gozo. Em


1973, enfatizaria que o inconsciente não consiste no ser pensando, mas no fato de
que ele gosta de falar, sem se importar em saber mais nada sobre isso. Isso traria a
questão do inconsciente para o campo do encontro entre sujeitos, imersos na cultura
e sem saber.
Como espécie, os indivíduos são confrontados com a predominância do
irracional das suas vidas, o que se torna evidente na medida em que, como seres
singulares, estão sujeitos ao Outro cultural em cujo seio nasce e que os marca, os
desafia e fala através de cada um. Confirma-se dia a dia a imensidão da ignorância
comparada às minúcias do conhecimento, a subsistência do caos, do acaso, do
risco, ao lado da previsibilidade. A vida de sujeitos vulneráveis, fragmentários, em
constante mudança, obriga-os a tolerar viver sem saber, e ainda assim continuam a
procurar conhecimentos possíveis, a aproximá-los de verdades que ajudem a dar
sentido à sua existência, mesmo que sejam parciais e provisórias.
O conhecimento sobre a subjetividade, sobre o sujeito, é um conhecimento
que vai além da racionalidade, que leva ao inexprimível, ao desconhecido, mas
experiencial, registrável, mobilizador de nossas vidas e vinculado ao gozo, esse
conceito-chave em Lacan.
São sujeitos oscilando entre a urgência da carne e o continente da linguagem,
entre a sensação e a palavra, entre o caos criativo ou destrutivo e as tramas de
sentido com as quais os ajudam a continuar vivendo. Passam do desconhecido ao
simbólico, da imaginação à abertura vitalizante ou letal, e nesse ir e vir entre as
diversas âncoras do nosso ser, investigam, criam explicações que descrevem como
científicas sobre modos de vida e do ser.
A psicanálise é, entre outras coisas, um método psicoterapêutico que surge
na interação de dois sujeitos em circunstâncias criadas para promover uma troca
dialógica que inclui a comunicação de inconsciente para inconsciente. Trata-se de
criar um espaço de abertura onde, através de uma série de figuras e da troca de
significados, se promova um bom encontro. Trabalhamos, a partir do
relacionamento, na elaboração do luto e dos elementos traumáticos, objetivando
criar um vínculo social sólido e flexível que substitua elementos não simbolizados.
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2.2 Transformações do público e do privado: margens e bordas

As reivindicações que se tornaram visíveis a partir dos “sujeitos vivos” ao


longo da história da humanidade foram desdobradas em campos específicos a nível
social e político, mas também entraram claramente em campos simbólicos de
disputa, onde as reivindicações sociais adquiriram uma procura valor para
reconhecimento e legitimação de sua existência.
Foram estas lutas organizadas por grupos marginalizados, como a população
LGBTQIA+, as mulheres e a população negra, que desafiaram valores e categorias
nocionais tão abrangentes quanto insuficientes para a sua realização, como os dos
sujeitos, dos direitos humanos, da democracia e da cidadania. Por que insuficiente?
Porque cada um deles demonstrou deixar de fora grande parte dos grupos mais
vulneráveis, sendo capturados nos seus sentidos e significados pelos centros
hegemônicos de poder que os colocam ao serviço dos seus interesses.
A visibilidade destas lutas de grupos subalternalizados trouxe as suas
reivindicações para o espaço público, ganhando notoriedade pelo cumprimento dos
seus objetivos. A sua reivindicação proclamada em termos de igualdade de direitos
tem sido acompanhada pelo sofrimento que a ausência dessa igualdade acarreta
para cada sujeito vivo, e que isoladamente poderia surgir no espaço privado da
clínica.
São esses processos que têm levado as pessoas trans das últimas gerações
a encontrarem nas antigas travestis militantes, aquelas que carregam em seus
corpos abjetos as consequências do petróleo industrial para parodiar “o feminino”,
identificando modelos, seja para tomá-los como exemplos ou não para segui-los.
Foram também estes processos que colocaram sob tensão as noções de
cidadania, em alguns casos explodindo o binarismo oferecido pelo sujeito sexual e
outras vezes reafirmando-o nas suas versões mais conservadoras. Ao mesmo
tempo, os sujeitos vivos que transitam pelos espaços públicos e privados o fazem de
determinadas maneiras, exibindo suas particularidades e em cada exposição
produzindo efeitos que provocam transformações do público e do privado.
A título de exemplo, podemos pensar como as restrições impostas ao livre
exercício da sexualidade dos homens gays enquanto grupo transformam um espaço
público de lazer (um parque à noite, uma praia solitária etc.) num local destacado do
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coletivo social onde se pode liberar sua libido reprimida. O sujeito negado ou
reprimido que Roig e Hinkelammert (2006) ecoam opera:

[...] uma transformação do espaço no processo de sua emergência e


afirmação e, em particular, do espaço público. A consideração do espaço
público envolve discernir o significado do público, uma operação que
inevitavelmente requer colocá-lo em relação e em tensão com o privado
(ROIG; HINKELAMMERT, 2006, p. 57, tradução nossa).

De tal modo, grupos sexuais dissidentes, a população negra e, ainda,


mulheres colocaram em jogo uma clara transformação do espaço público, e como
Sidekun (2003) expressou anteriormente, quando o público é discernido, o privado
fica tenso, em todas as suas expressões, sendo o espaço clínico uma das quais
será fortemente sublinhado por este discernimento. Parte deste discernimento do
“público” foi claramente influenciado pelos movimentos sociais, que organizaram a
sua luta de protesto tornando visíveis as suas reivindicações contra a situação
desvantajosa que sofrem e que persiste de diferentes maneiras.
Isto significou uma estratégia de apropriação do espaço público como palco
de expressão cidadã. Neste processo, há um sentido de ressignificação da
cidadania em termos de exclusão, ou seja, de dar conta dos níveis de desigualdade
que ela contém, apresentando de forma oculta níveis de tolerância às condições de
desigualdade perante aqueles que acessam determinados direitos e aqueles que
que são marginalizados deles.
Uma sociedade disciplinar que só aceita como cidadãos aqueles que
correspondem ao estereótipo pré-determinado pelo grupo hegemônico dominante,
deixa arbitrária e injustamente grandes parcelas da população fora da cidadania.
Historicamente, esse estereótipo de cidadão tem sido o do homem branco-
proprietário. As instituições patriarcais são concebidas em torno deste ideal e,
portanto, a ciência, o direito, a política e a religião dogmática alimentam-no. Nas
lutas dos referidos grupos vê-se o desejo de transformação que permita o
reconhecimento necessário para passar de sujeito em sujeito.
Cabe considerar que a transformação do cidadão (ROUSSEAU, 2003) em
sujeito (HOBBES, 1998) implica a anulação do espaço público, uma vez que os
sujeitos, isolados no íntimo reduto privado da sua casa (quando ainda têm a sorte de
aí permanecer), são transformados no público.
Nesse sentido, a clínica constituiu (e em alguns casos, ainda persiste) um
repositório privado do sofrimento causado pela marginalização e pela discriminação,
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tanto externa quanto internalizada, ao mesmo tempo em que ofereceu um espaço de


disciplina e normatividade para que as pessoas se conformassem ao que é
socialmente esperado.
Este processo de lutas envolveu também um caminho de
autorreconhecimento e autoafirmação que os seus protagonistas percorreram, o que
os levou a construir um “nós”. A construção deste “nós” é o que alimentou o
sentimento de pertencimento coletivo que permitiu que aqueles que foram excluídos
das categorias universalistas se tornassem sujeitos. É nesse mesmo devir que
ocorre a construção do sujeito, longe de ser uma meta a ser alcançada. Ou seja, não
se mobiliza para alcançar o estatuto de sujeito, mas é no próprio ato de mobilização
que se produz o sujeito coletivo.
Tornar-se sujeito não é uma opção frívola, mas uma necessidade de
sobrevivência num sistema. É um sujeito que se determina na sua própria ação.
Mais do que uma ação, é um processo de busca de autoafirmação. Ser sujeito não é
um a priori, mas o processo é histórico, social e categórico, surge a posteriori e não
é uma substância dada.
Nos termos de Sidekun (2003), referindo-se às obras de Roig e
Hinkelammert, esses autores tiveram “[...] a sensibilidade de registrar 'o protesto' ou
'o grito' do sujeito, bem como seus 'começos' e 'recomeços' e de elaborar
intelectualmente a problemática do sujeito envolvido nessas interpelações da
realidade social” (p. 59)
Esta afirmação do ser humano como sujeito nas práticas sociais em curso na
América Latina implica um discernimento crítico dos atores sociais, das
identificações produzidas pelos poderes dominantes como práticas de sujeição ou
império como condição e efeito da autoconstrução de identidades:

[...] as identificações são fornecidas pelo sistema social de dominação. As


identidades, por outro lado, formam processos de autoconstituição dos
sujeitos sociais e humanos em lutas que os confrontam com o sistema e
com as identificações que ele proporciona (SIDEKUN, 2003, p. 61).

As identificações que as instituições têm produzido sobre grupos de


dissidência sexual (gays, lésbicas, bissexuais, pessoas trans, pessoas intersexuais),
bem como sobre mulheres e a população negra, é o que tem entrado em tensão
com a necessidade de sujeitos específicos alcançarem identidades próprias,
provocando o que Zemelman chama a dissidência (CADAVID, 2014).
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Hugo Zemelman propõe pensar o desacordo como um estado emancipatório


que promove mudança e ação, permitindo o desmantelamento de estados de
inércia. A partir da necessidade, produz-se um ato de pensar, e Zemelman (1998)
chama isso de potencialidade. Neste sentido, tem sido este potencial que promove o
reconhecimento dos direitos violados em consequência de um estado de dominação
e opressão, reconhecimento que se torna uma necessidade e isso se torna um
motivador de ação para mudança.
Quando esta necessidade se traduz num estado de desacordo que motiva a
pessoa a procurar alternativas de mudança que a levem ao espaço clínico único
para fazer “uma consulta”, é aí que surge a necessidade de o psicoterapeuta
estabelecer ligações, ou seja, permitir que se compreenda o sofrimento dos outros
de uma forma abrangente.

2.3 Sujeitos sexualizados; assuntos negados

A construção do sujeito da humanidade tem sido tarefa de setores


hegemônicos, que a caracterizam de tal forma que resulta em privilégios para si. O
sujeito racional cartesiano e o sujeito transcendental de Kant (1983) foram
traduzidos em um sujeito branco, heterossexual, de classe alta e masculino. A tarefa
de desconstrução deste sujeito tem feito parte da tarefa dos setores que foram
subalternalizados desde o início porque não se enquadravam nos parâmetros por
ele definidos. Estes parâmetros implicam maior ou menor acesso a determinados
direitos na vida social e implicam estar em diferentes posições mais ou menos
marginalizadas em relação a uma centralidade privilegiada.
Os grupos trans, como as mulheres biológicas e a população negra em geral,
têm sido exemplos paradigmáticos de exclusão de direitos e de exercício cidadão,
principalmente como efeito da vigência de um sujeito com determinadas
características que delimita o trânsito por determinados espaços sociais, como o
trabalho, a educação, a família, gerando diversos mecanismos de expulsão que os
colocaram à margem do sistema de qualquer tipo de relações, exceto as do
comércio sexual.
Ao mesmo tempo, os efeitos deste sujeito provocam formas singulares de
apropriação, trânsito e ocultação de espaços públicos e privados. Estes efeitos são
transmitidos através de um sistema de instituições que servem à legitimação de
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certas formas de vida e não de outras. A relação entre sujeito e instituições é


decisiva para a afirmação do ser humano.
Nesse sentido, Hinkelammert (1986) afirma que:

[...] a tensão fundamental na constituição do ser humano como sujeito é


produto de sua relação conflituosa com o direito (instituição, estrutura ou
sistema). O ser humano deve recorrer à mediação das instituições para
poder afirmar-se como sujeito, mas a lógica institucional que se potencia
quando as instituições são totalizadas pode deslocar o ser humano,
ocupando o seu lugar e eventualmente negando-o (HINKELAMMERT, 1986,
p. 20-21)

Em vários países, o Estado, ao longo da sua história, moldou uma sociedade


através de instituições onde foi promovida uma forma de cidadania que tendia a
manter privada qualquer forma de diferença sexual. Esta divisão entre o público e o
privado regulou a formação de identidades sexuais, marginalizando as identidades
sexuais dissidentes, levando as suas práticas para os espaços mais íntimos,
produzindo um efeito em todo o Ocidente denominado “tolerância opressiva”;
enquanto a dissidência permanecer dentro de quatro paredes e não ocupar o
espaço público, o que acontece não é problema do Estado nem de ninguém.
Estas formas de produção subjetiva provocaram diretamente certas formas de
“estar em público” que claramente tentavam evitar ser “descobertas” pelos
mecanismos de regulação e vigilância do género heteronormativo. Freitas (2011)
relata que:
Quando entrei no ensino médio aos 17, era à tarde, era terceiro ano, e aos
doze eu impus minha voz, disse alô! como você está?... e eu meio que
tentei ter uma voz profunda, não gesticulei, estava com as mãos nos bolsos,
tentei não mexer as mãos, e bom, eu estava realmente muito reprimido e eu
era um péssimo professor, eu acho, mas eu era um péssimo professor
porque ele sofria muita repressão e vivia muito mal (FREITAS, 2011, s/p,
tradução nossa).

Isto, que poderia perfeitamente parecer um motivo de consulta no campo


clínico, desdobra-se em vários níveis de análise: em primeiro lugar, dá conta da
natureza performativa do gênero, algo que Butler (1990) postulou brilhantemente.
Por outro lado, dá-nos conta de como o conjunto de representações sociais em torno
da homossexualidade é internalizado através de diferentes mecanismos
reguladores, produzindo uma forma de ser, sentir e pensar no mundo baseada na
repressão homofóbica. E por outro lado, como o que poderia ser um sintoma (ser um
péssimo professor) está falando de um problema social, o que nos leva ao fato de
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que o sintoma pode transcender o indivíduo e encontrar seu fundamento no campo


sociocultural.

3. CONCLUSÃO

Em conclusão, a análise da transexualidade e sua relação com a formação da


cidadania, sob o prisma freudiano da psicanálise, revela uma interconexão intricada
entre o indivíduo e a sociedade. A teoria de Freud destaca a importância das fases
psicossexuais no desenvolvimento da identidade, evidenciando como as
experiências nesses estágios podem influenciar a expressão da identidade de
gênero. No entanto, a compreensão da transexualidade não se limita à esfera
individual, estendendo-se para os domínios público e privado.
Na esfera pública, a abordagem freudiana destaca a necessidade de
reconhecimento e aceitação social para a construção de uma cidadania inclusiva. A
discriminação e o estigma social podem impactar negativamente a saúde mental dos
indivíduos trans, evidenciando a importância de promover uma sociedade que
respeite a diversidade de identidades de gênero. A psicanálise freudiana oferece
insights sobre como a sociedade pode contribuir para a formação de uma cidadania
que acolhe e valoriza as experiências transexuais.
No âmbito privado, a análise freudiana destaca a influência das relações
familiares na formação da identidade de gênero. A compreensão das dinâmicas
familiares durante as fases psicossexuais cruciais é crucial para entender os
desafios enfrentados pelos indivíduos trans na aceitação de sua identidade. A
promoção de ambientes familiares compreensivos e de apoio torna-se essencial
para facilitar uma identidade de gênero congruente e saudável.
Em síntese, a psicanálise freudiana oferece uma abordagem rica e
multifacetada para compreender a transexualidade e sua interação com a formação
da cidadania. Ao destacar a complexidade dos processos psicossexuais e sua
relação com a esfera social, essa perspectiva proporciona uma base sólida para a
promoção da aceitação, compreensão e respeito, tanto nos âmbitos público quanto
privado. A formação de uma cidadania verdadeiramente inclusiva exige uma
abordagem integrativa que reconheça e celebre a diversidade de identidades de
gênero, contribuindo para uma sociedade mais democrática.
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4. REFERÊNCIAS

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performative. Genders, 1990, no 9, p. 1-18.

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v. 11, n. 1, p. 142-151, 2014.

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Editores, Buenos Aires, 1993, Tomo I, 1895.

FREUD, Sigmund. Personajes psicopáticos en el teatro. Obras completas, 1905, vol.


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