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O psicanalista-celebridade e o psicanalista-militante: variantes do

tratamento padrão?
Sobre os efeitos e a extensão de atuar publicamente como psicanalista

Gabriel Inticher Binkowski

Nomear-se psicanalista em ato público

Há uma tendência por aí, no espírito do tempo, compondo a paisagem de novos


lugares aos quais os psicanalistas e aqueles que falam em nome da psicanálise se sentem
convocados a ocupar. Não é exatamente um lugar de escuta, está mais para um lugar de
discurso. Tampouco parece se tratar de um lugar de fala, na verdade, está mais para uma
posição em que se pode dizer.
No lugar de um analista que seria um suposto mestre da interpretação, ou que
sustentaria certas teorias sobre o complexo de Édipo, a interpretação dos sonhos ou a
sexualidade infantil, encontramos uma oferta de psicanálise que fala de assuntos variados, em
muitos lugares. Deparamo-nos cada vez mais com sujeitos se apresentando como psicanalistas
na mídia impressa, televisiva ou radiofônica, em canais de produção de conteúdo para redes
sociais, plataformas de streaming, debates públicos, movimentos político-partidários,
coletivos militantes por causas específicas, espaços de contestação marcados por segmentos
identitários ou por princípios que tentam dar relevo aos efeitos nocivos das conjunturas
estruturantes de nossa sociedade.
Encontramos no Brasil uma grande fecundidade de possibilidades para que pessoas
nomeando-se de psicanalistas intervenham em espaços públicos. Aqui também reconhecemos
grande profusão de dispositivos ética e tecnicamente orientados pela escuta psicanalítica,
marcados por admirável criatividade e por produzir vias de escuta e de intervenção
desprendidas do setting tradicional.
Há uma miríade de exemplos de clínicas públicas, intervenções de rua ou em
agrupamentos sociais variados (indígenas, imigrantes, pessoas em situação de rua, jovens e
adolescentes em vulnerabilidade e exclusão, minorias segregadas ou submetidas a violências
contínuas, ocupações de espaços públicos ou rurais, sujeitos vítimas de desastres ambientais,
sujeitos trans), sendo que essas modalidades de intervenção e de dispositivo não são objeto
deste ensaio. Decalcamos os efeitos de uma abertura cultural e social para a psicanálise aqui
nessas terras tupiniquins, o que nos coloca como um laboratório para a psicanálise e a
extensão de seus efeitos. Porém é importante que tal permissividade seja constantemente
problematizada. Sempre temos de buscar escutar o avesso do discurso e de sua constituição,
pois lá corre o rio de lava do inconsciente, caso contrário, cairíamos numa celebração
deslavada dessa suposta diferença e mesmo de uma suposta influência cultural da psicanálise
no Brasil.

O discurso do psicanalista, seus efeitos e limiares

Freud cotejou o que chamou de “efeito geral de nosso trabalho”, depositando nele
esperança: sociedades inteiras sofrem com neuroses, com sintomas apontando para satisfações
substitutivas que nada acrescentam na busca por uma vida supostamente melhor1, por sua
vez, há uma autoridade social indireta do psicanalista, munindo-o de chaves para reconhecer e
nomear conflitos cujos sintomas derivados correspondem a um grande gasto de energia.
Assim, os “indiscretos esclarecimentos psicanalíticos”2 teriam por efeito o reconhecimento
das forças pulsionais dominantes em certas situações, com sua satisfação ou renúncia
ocorrendo num espírito de maior tolerância social.
Tais possibilidades não viriam, contudo, sem grandes resistências, uma vez que a
própria resistência da sociedade no reconhecimento de sua parte na confecção dos sintomas
aponta diretamente para a complexa maquinaria social envolvendo repressão, recalque e
outras modalidades de defesa, encontradas tanto no sujeito como no grupo ou na massa. O
gozo é a razão principal da vida em sociedade3, sendo este estranho combo de satisfação e
insatisfação que anima as relações de um sujeito com seus objetos de investimento, com o
outro. Com efeito, é inevitável reconhecermos que tais resistências, deformações e mesmo
impossibilidades atuam nas próprias instituições, associações e agrupamentos de formação
dos próprios psicanalistas.
Essa dificuldade fora apontada por Jacques Derrida em Estados da alma da
psicanálise4, interrogando os efeitos da psicanálise sobre a cultura, a partir da hipótese da
pulsão de morte e do limiar do sujeito em relação à sua própria aniquilação, na repetição cujo

1
FREUD, Sigmund. As perspectivas futuras da terapia analítica [1910]. In. ______. Obras completas. São
Paulo: Companhia das Letras, 2013. v.9 (1909-1910), p. 228.
2
Id., ibid., p. 230.
3
POMMIER, Gérard. Freud apolitique? Paris: Flammarion, 1998.
4
DERRIDA, Jacques. États d’âme de la psychanalyse. Adresse aux États Généraux de la Psychanalyse. Paris:
Galilée, 2000.
gozo leva à sua própria destruição psíquica e corporal, ao desligamento de sua relação com os
seus objetos de investimento. Caberia então aos psicanalistas levar às últimas consequências
essa hipótese da pulsão de morte, no que ela é capaz de oferecer para pensar em nossos
operadores sociais, como a jurisprudência, o sujeito do direito, a política, e também a
propósito do próprio funcionamento da psicanálise e de sua transmissão.
Não é à toa que o ensino de Jacques Lacan fora tão mobilizado pelas questões ligadas
à formação, à transmissão e às políticas da própria psicanálise, uma vez que o surgimento do
chamado campo freudiano (o discurso freudiano, o inconsciente em Freud) guardava em sua
gênese um consequência do cogito cartesiano, de uma modalidade de produção do
conhecimento, no caso, a da ciência moderna, que tenta a todo custo afastar a angústia do
cientista5. Sustentar uma tentativa sempre parcial de saber e de prática em torno desse real
abjetado do sujeito do pesquisador acaba sendo o objeto de trabalho do movimento
psicanalítico, cuja forja é a de uma experiência de suporte, de reconhecimento e de encontro
com o sujeito do inconsciente, em sua estranheza e em seus efeitos desestabilizadores que o
ligam ao real.
Esse real é o que está em jogo nas sociedades de psicanálise, naqueles agrupamentos
que se dão por missão cultivar a possibilidade da experiência circunscrita no discurso
freudiano. A hiância do inconsciente, marca da descoberta freudiana, contesta a ideia de
progresso da modernidade e a presunção de que somos senhores de nossa própria morada, do
Eu. Ao introduzir o que deduz como uma psicanálise em extensão e uma psicanálise em
intensão, Lacan6 situa, na primeira, os efeitos da psicanálise e de seu discurso sobre outros
campos disciplinares e sociais. Já a intensão diz respeito à formação de psicanalistas, em
como estes são preparados para lidar com seus operadores conceituais e técnicos e para levar
adiante essa prática, numa necessidade de reinvenção para com as amarras da instituição, esta
marcada pela captura imaginária, e as possibilidades de o sujeito analista sustentar, através de
seu desejo, a hiância do inconsciente.
Para avançar, nomeamos aqui duas figuras, reconhecendo que essa nomeação é
marcada pela hipérbole, pelo exagero, mas o fazemos com vistas a situar dois lugares de
produção discursiva que, pensamos, os psicanalistas têm ocupado, ao menos no Brasil,
particularmente quando nos referimos à tão em voga expressão psicanálise e política: o de
psicanalista-celebridade e o de psicanalista-militante.

5
LACAN, Jacques. A ciência e a verdade [1966]. In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
6
LACAN, J. Proposition du 9 octobre 1967 sur la psychanalyse de l’École. In. ______. Autres écrits. Paris:
Éditions du Seuil, 2001.
Ao interrogarmos sobre essa relação entre psicanálise e política a partir da figuração
pública do psicanalista, consideramos que se evidencia que o psicanalista faz discurso ou,
muitas vezes, faz performance, de modo a sustentar uma viabilidade para a continuidade da
existência da psicanálise no mundo de hoje. Operamos na clínica a partir dos registros do real,
do simbólico e do imaginário, sendo que o essencial para nós é esse duro dever de tornar
aquilo que não cessa de não se inscrever, o real, algo que produza efeitos legítimos e possíveis
para um sujeito, possíveis porque apontam para o inconsciente enquanto hiância, abertura que
faz rasgo na fantasia.
Na clínica, essa operação se dá como ato analítico na transferência, sendo que a
própria evolução da psicanálise foi concebendo variações criativas para lidar com
transferências estendidas, com grupos, famílias, organizações, instituições. Contudo, o
decalque do discurso analítico sobre o qual escolhemos escrever aqui é aquele dos limiares da
própria extensão da psicanálise, posto que, ao fazer fala (ou escrito) a um público ou ao fazer
ato público (como na militância), temos pouco ou nenhum controle sobre os efeitos de nosso
discurso. Diante disso, salientamos que se trata de considerar que estejamos diante de um
limiar do próprio discurso do psicanalista, das possibilidades da psicanálise, e precisamos aí
adentrar de modo a entender o que é possível se fazer quando essas modalidades de produção
discursiva são convocadas.

Sobre os dois decalques

Circunscrevemos, hipoteticamente, dois decalques da relação entre psicanálise em


intensão e extensão. No primeiro caso, o psicanalista-celebridade, que faz enunciados sobre a
psicanálise e sobre elementos do social e da cultura a partir de sua trajetória, de sua
legitimidade (científica, institucional), até mesmo de sua fama (midiática), ou seja, de lugares
em que é convidado a ocupar devido a certo merecimento (a celebração de sua trajetória) e
habilidade comunicacional. No segundo, nos referimos a um psicanalista que também ocupa
um lugar de produção de discurso não exatamente enquanto um psicanalista que milita, mas
um psicanalista-militante, empregando suas ferramentas de psicanalista em prol de uma causa
à qual se sente ligado afetiva, identitária e/ou intelectualmente. Seria, desse modo, uma causa
que parece fazer parte de sua forja enquanto sujeito de desejo e que, assim, poderia também
localizar seu desejo como analista, desejo do analista.
O que nos anima na escrita deste ensaio é algo empírico que temos constatado nos
últimos anos, notadamente a partir de 2016 e 2017, quando este autor volta a realizar
atividades no Brasil depois de um longo período na França. A constatação passa pelo fato de
que muitos dos comentários a propósito de dúvidas conceituais teóricas sobre a ética e a
clínica psicanalítica que temos ouvido em atividades Brasil afora parecem se apoiar cada vez
menos em escritos, como livros, trabalhos acadêmicos, artigos, capítulos de livro ou cursos
formais e cada vez mais em intervenções públicas feitas por psicanalistas, em entrevistas à
grande mídia, em programas de televisão e rádio, em lives, plataformas de streaming ou em
postagens em redes. O fenômeno também pode ser constatado no discurso de pacientes, que
falam de seus encontros com esse tipo de conteúdo e a forma como se sentem tocados quando
algum psicanalista fala sobre psicofármacos, maternidade, burnout, depressão,
questionamentos identitários ou outra das tantas questões que apontam para os malfadados
efeitos do mal-estar.
A presente atualidade, de uma virtualização mais agressiva de nossa sociabilidade, de
trabalho remoto e da circulação da cultura em espaços online durante o longuíssimo
confinamento, dada a pandemia de Covid-19, parece ter acelerado esse processo. A saúde
mental tornou-se uma pauta presente e que tangencia outros nódulos problemáticos da
sociedade brasileira, como as gritantes diferenças no trabalho (os que podem e os que não
podem escolher se confinar), o ensino remoto, o acesso a informações fiadas pela ciência (ou
a exposição às correntes de mensagens e de fake news), assim como os operadores conceituais
que vêm servindo de baliza para que a sociedade pense em seus mecanismos de segregação.
Temos aí a visibilidade de inúmeros paradoxos e contradições da sociedade, a que
veio se somar uma crescente sensação de cisão que já produzia efeitos na sociedade brasileira
ao longo de toda a última década, quando atravessamos uma série de eventos catárticos e
confusos – as mobilizações de junho de 2013, a clivagem social da eleição presidencial de
2014, o impeachment de Dilma Rousseff em 2016 e a polêmica eleição de Jair Bolsonaro em
2018, logo depois da prisão do então candidato mais cotado nas pesquisas, o ex-presidente
Luís Inácio Lula da Silva. O ódio se tornou um afeto social predominante7, acentuando
diferenças e gerando uma sensação de que os intelectuais, e aí nesse bojo foram incluídos os
psicanalistas, precisavam se posicionar, seja através da construção de dispositivos de escuta e
intervenção, ou de modo mais ferrenho, com uma participação política que sustentava que seu
fazer se pautaria também pela, na e com a psicanálise. Tais possibilidades de intervenção,

7
ROSA, Miriam Debieux; ALENCAR, Sandra; MARTINS, Raonna. Licença para odiar: uma questão para a
psicanálise e a política. In. ROSA, Miriam D.; COSTA, Ana Ma. Medeiros da; PRUDENTE, Sérgio. As
Escritas do ódio: psicanálise e política. São Paulo: Fapesp: Escuta, 2018. p.15-31.
discursivas e em ato, constituem variantes do suposto tratamento padrão ou seriam extensões
dos efeitos da psicanálise?

Sobre um tratamento que opera um psicanalista e suas variantes

São inúmeros os exemplos de fenômenos sociais, culturais e políticos que se tornaram


objeto de análise, constando-se uma inscrição do social na psicanálise brasileira. Como
defende Contardo Calligaris na famosa coletânea Clínica do social: Ensaios, contrariamente
ao discurso político, que, como na neurose, opera através de consertos que não dão certo,
sustentar um projeto desejoso de “intervir discursivamente no sintoma social seguindo uma
ética compatível com a ética da psicanálise”8 constitui um ato de uma prática discursiva “sem
promessa de consertos nem de pacificação [...], [cuja] situação prévia seja de se aventurar nos
lugares ocultados das contradições onde a nossa organização simbólica e seus corolários
imaginários parecem se originar”9.
Diversos grupos e psicanalistas passaram sistematicamente a fazer estudos nesse
âmbito, mesmo que situados mais frequentemente num registro universitário, de modo a
produzir pesquisas em que temas como o social, a saúde coletiva e os mal-estares
contemporâneos eram investigados com a discursividade freudiana. Foram preciosos os
aportes de psicanalistas quanto à retomada da democracia no Brasil, a criação de um Sistema
Único de Saúde, o movimento da Reforma Psiquiátrica, as mudanças em políticas de cuidado,
proteção e educação de crianças e adolescentes e outras pautas mais recentes, como as
políticas e os dispositivos contra violência de gênero, feminicídio, as violências raciais e as
tentativas dar relevo à violência de Estado do governo militar ditatorial.
O essencial, no escopo pretendido no presente ensaio, é que houve de modo
abrangente um diagnóstico da estrutura patológica das formações políticas no Brasil10, algo
que avançou em relação à ampliação e à extensão da presença de um discurso psicanalítico
como moeda corrente na sociedade, resultando tanto em intervenções que partem dos
discursos como outras que agem sobre discursos, práticas e instituições. Como apontamos
acima, há em nossos dias uma legitimidade que envolve o trabalho psicanalítico com
dispositivos clínicos em contextos sociais e institucionais variados. Como escreve Miriam
Debieux Rosa:

8
CALLIGARIS, Contardo. Liminar. In. ARAGÃO, Luiz Tarlei de et al. Clínica do social: ensaios. São Paulo:
Escuta, 1991. p. 14.
9
Id., ibid., p. 15.
10
AB’SÁBER, Tales. Michel Temer e o fascismo comum. São Paulo: Hedra, 2018.
O psicanalista trabalha com base na demanda e no sintoma referido pelos
agentes institucionais. Convoca a instituição para, em um posicionamento
implicado, rever a cena institucional onde o que está em jogo são os lugares
de cada um, os discursos e a relação entre o instituído e o instituinte. Elucida
as trajetórias institucionais dos usuários, técnicos e gestores e seus efeitos,
seja de ofertar um lugar simbólico, seja em induzir identidades imaginárias.
Estas últimas, em lugar de histórias que podem ser contatadas, produzem
silêncio e impedimento.11

Esse tipo de dispositivo descrito por Rosa é chamado de clínico-político. Num


contexto que apresenta diferença em relação ao chamado setting psicanalítico tradicional, ele
se baseia na localização discursiva dos diferentes agentes envolvidos numa cena social. Trata-
se de uma aposta que é radicalmente psicanalítica, a de que há sujeito a ser escutado, um
sujeito que é efeito do lugar no qual é colocado em relação ao campo social, ao discurso do
Outro, de tal feita que se torna uma operação psicanalítica localizar o gozo.
Um psicanalista deve saber manter o ouvido aberto, e isso constitui um trabalho a
partir dessas variantes do tratamento padrão, ou, como escreve Lacan, “uma psicanálise,
padrão ou não, é o tratamento que se espera de um psicanalista”12. O famoso artigo “Variantes
do tratamento padrão”, assinado por um Lacan envolvido em querelas com as vozes e as vias
oficiais da IPA, se contrapunha à sedutora ideia de que haveria uma forma padrão, tipificada,
que garantiria o trabalho analítico, ou seja, uma modalidade organizadora para o desenrolar
do tratamento, a formação de psicanalistas e sobre a qual se assentaria confortavelmente a
organização institucional de uma sociedade que se afirmava verdadeiramente psicanalítica.
Em 1953, Henry Ey faz convites para publicar algumas das vozes da psicanálise parisiense a
propósito do chamado tratamento-padrão (cure-type13), tendo sido o artigo de Lacan
publicado em 1955 e constituindo uma resposta crítica ao artigo “La cure type” de Maurice
Bouvet, personagem de grande estima na época14.

11
ROSA, M. D. A clínica psicanalítica em face da dimensão sociopolítica do sofrimento. São Paulo: Fapesp:
Escuta, 2016. p. 195.
12
LACAN, J. Variantes do tratamento-padrão [1955] In. ______. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p.
331.
13
Ressaltamos que Lacan escreveu essa expressão com um hífen, cure-type, diferentemente de Bouvet; para nós,
foi uma tentativa de promover um decalque conceitual ao termo, mostrando que este – la cure-type – se tornara
não apenas uma forma de falar no tipo de tratamento dito clássico em psicanálise, mas numa posição política que
apontava para uma ortodoxia e um acirramento para as possibilidades de manejar um tratamento e de separar o
que poderia e, principalmente, o que não poderia ser considerado psicanálise.
14
BOUVET, Maurice. La cure type. In: ENCYCLOPEDIE médico-chirurgicale: Psychiatrie. Paris: Elsevier,
1954.
Reunido com outros artigos no volume La cure psychanalytique classique15, o aspecto
datado do texto entrega uma psicanálise cuja técnica defendida é manejada com rigor,
evitando desacordos e mal-entendidos com o paciente, ou melhor, com seu Eu. Bouvet
salienta a importância de um diagnóstico fechado, avaliando o prognóstico do paciente e uma
evolução de tratamento através da interpretação das resistências, com a análise das defesas do
Eu precedendo a dos conteúdos. Outro dos aspectos marcantes em Bouvet é de não se deixar
levar por um otimismo já comentado por Freud em “Análise finita e infinita”16, apontando
que o futuro da pesquisa psicanalítica se situaria precisamente na “delimitação exata dos
poderes da terapêutica que ela funda e da qual ela se alimenta”17.
O texto de Bouvet parece impregnado de algo que Lacan cita e ironiza no artigo de
1955, a suposta “extraterritorialidade oculta de que provém a psicanálise”18, que é tratada à
maneira de um tumor, extirpada e exteriorizada. No caso da posição de figuras como Bouvet e
de outros que constituíam o cânone da psicanálise de meados do século XX, o tratamento
psicanalítico só deveria conceber variações da técnica e tratá-las como analíticas se elas
funcionarem em favor de uma objetificação completa do tratamento e das relações de objeto
na transferência, levando-as a reduzir-se à neurose de transferência, com o objetivo de
modificar o Eu do paciente diante de seus objetos (ou do analista-objeto).
Ao lançar mão da noção de extraterritorialidade para pensar a psicanálise, Lacan se
mantinha crítico desta, que é descrita como um lugar limítrofe em relação ao saber
(científico), não podendo haver uma objetificação total da técnica e das operações possíveis
com a psicanálise. Mesmo assim, também se faz necessária a manutenção de uma “ficção
jurídica portanto simbólica (a extraterritorialidade)”19 para que o psicanalista opere no lugar
em que se encontra – aqui se referindo ao seu lugar para com as ciências, o mundo jurídico e
toda a argamassa social na qual habitamos e da qual se tece nosso simbólico – uma vez que
trabalhamos com algo que insiste a partir da intimidade-estrangeira.
A extraterritorialidade na psicanálise é explicada por Lacan a partir de referências ao
judaísmo, a fé nas tradições e a autossegregação. Para o movimento psicanalítico, contudo, tal
extraterritorialidade corre o risco de funcionar como defesa de uma subversão essencial: em

15
BOUVET, M. La cure psychanalytique classique. Paris: PUF, 2007.
16
FREUD, S. Análisis terminable e interminable [1927]. In. ______. Obras completas 3. Buenos Aires: Ed. El
Ateneo, 2003.
17
BOUVET, M. La cure psychanalytique classique, op. cit., p. 104. Tradução nossa.
18
LACAN, J. Variantes do tratamento-padrão, op. cit., p. 331.
19
MEZZA, Martín. Função social da psicanálise: os psicanalistas e a política (brasileira). Estudos de
Psicanálise, Belo Horizonte, n. 50, p. 115-122, dez. 2018. p. 120.
tempos dogmáticos, mostrar-se liberal e vice-versa20, como se essa busca de uma posição
limítrofe se tornasse um lugar, um vão no qual caem os psicanalistas, colocando-se contra
transformações sociais, contra a própria participação de psicanalistas em tentativas de intervir
no mundo. Isso acaba geralmente levando aos discursos psicanalíticos que encontramos vez
por outra na mídia e em publicações especializadas, clamando que as mazelas da civilização
são sintomas da decadência da função paterna – uma tese de Durkheim, seguida por Lacan
entre 1938 e 1953, já ultrapassada tanto na sociologia como em outros campos disciplinares21.
Serge Leclaire, discípulo muito próximo de Lacan, julgou a extraterritorialidade como
uma fantasia que estaria em contradição com as transformações do mundo22, uma vez que o
desaparecimento dos mestres deixava um lugar em aberto, que acabava sendo ocupado por
instituições cujo funcionamento teria pouco ou nada de analítico, sem espaço para um terceiro
que operaria como uma referência estabelecedora de Lei. Não vamos aqui entrar em detalhes
de algumas das propostas de Leclaire, especialmente seu desejo de propor uma instância
ordenadora para os psicanalistas. O movimento por ele capitaneado visava responder e
debater os paradoxos do reconhecimento tanto da psicanálise (enquanto prática, corpo teórico
e enquadre profissional) como dos próprios psicanalistas enquanto praticantes de algo (para
Leclaire uma “arte”) que não pode dispensar o conflito e o desejo como motores para atuar e
se reconhecer.
A busca de extraterritorialidade justifica um lugar de exceção que fomenta uma
relação narcísica com os cocares que simbolizam a prática da psicanálise. Com isso,
neutralidade e indiferença acabam ensejando uma posição política de afronta à diferença, de
superioridade e, por fim, de isenção para com as exigências que a realidade impõe. Como
lembrou algumas vezes Lacan, o ouvido é um orifício que não se fecha, no entanto, nada
impede que aquilo que entra por um ouvido saia pelo outro, como diziam os antigos. Em
“Variantes do tratamento-padrão”, o que está em jogo é a chamada imaginarização da
psicanálise, um fenômeno, naquele momento do movimento psicanalítico, decorrente de um
recorte do pós-freudismo que deixava de fora aspectos importantes da primeira tópica e
abrandava a segunda, fazendo da teoria e da prática analítica algo mais palatável ao mundo
ocidental capitalista e com uma referência um tanto mais central à pessoa do psicanalista no
transcorrer de uma análise.

20
DUPONT, Sébastien. L’autodestruction du mouvement psychanalytique. Paris: Gallimard, 2014.
21
ZAFIROPOULOS, Markos. Lacan et les sciences sociales: le déclin du père (1938-1953). Paris: PUF, 2001.
22
LECLAIRE, Serge. Débat avec P. Guyomard et A. Finkielkraut. Le Feuillet, n. 22, Été 1990, Convention
Psychanalytique, Strasbourg.
Evidentemente, sabemos que essa tendência de imaginarizar a psicanálise, seus
conceitos, técnicas e mesmo seus efeitos segue bastante viva, uma vez que é parte dessas
construções auxiliares que são os sintomas, os quais funcionam a partir dos elementos sociais
e culturais derivados da própria tessitura simbólico-imaginária na qual existimos, que
tampona o real. Todavia, isso se interpõe para o questionamento que tentamos esboçar: como
sustentar uma ética psicanalítica quando somos convidados e convocados a produzir um
discurso analítico que seja fala, que produza invariavelmente muito discurso, repetição,
apresentações, escritas, intervenções, ou seja, quando, diferentemente de produzir atos
analíticos em transferência, falamos para plateias, organizações, massas e outros que,
usualmente em silêncio, aguardam respostas e esclarecimentos? Ainda, o que se dá quando
falamos àqueles que não querem escutar nada do que é dito, mas apenas confrontar, combater
ou dizimar qualquer fala que aponte para um discurso que se baseie nesses ideais
democráticos tão necessários à existência da própria psicanálise?

Celebrar a própria diferença e resistir à do outro

Já no final da vida, já às portas do exílio e da Segunda Guerra Mundial, Freud se


interrogou sobre a possível necessidade de uma “higiene mental aperfeiçoada” para o analista,
em razão da carga psíquica excessiva que este deve elaborar23. A carga psíquica excessiva, em
psicanálise, é efeito da sideração e do trauma, de algo que rompe as possibilidades de
simbolização e atinge os arcabouços da constituição lógica do sujeito, em seus diferentes
tempos e naquilo que mantém o arcaico reservado pelo véu da fantasia.
O psicanalista atua nessa interpolação entre o atual e aquilo que retorna, desvelando as
marcas das operações lógicas que são fundantes para o sujeito: o recalque, a recusa ou a
forclusão. A psicanálise oferece um tratamento para isso, ela não necessariamente antecipa,
ou melhor, sua ética passa por evitar antecipar ou prognosticar transformações. Esta é uma
lição importante para todos nós, a de que não buscamos transformar o outro, assim sendo,
tanto o prognóstico (que se segue ao diagnóstico) quanto o desejo de curar (ou seja, de
transformar) o outro acabam sendo motores para as resistências à, da e na psicanálise.
Consequentemente, o desejo de transformar o outro leva ao fim da própria psicanálise, pois só
existe quando reafirma o rasgo, que é o aparecimento do inconsciente em sua estrangeiridade,
em sua diferença.

23
FREUD, S. Análisis terminable e interminable. op. cit.
Temos distinções importantes aqui, visto que, quando um analisando resiste, ele está
em seu papel, o que é diferente da resistência do próprio psicanalista; esta, um entrave à
análise. Entre as resistências da psicanálise, figura-se a própria imaginarização de seus
efeitos, um caso de espelhismo, quando um analista crê saber sobre as transformações
possíveis em um paciente, fazendo com que a interpretação e o ato analítico deixem de
apontar para aquilo que transpõe a barra do significante, que é o sentido latente (do sonho, do
sintoma), tornando-se assentamento de sentido, no caso, um sentido dado e pré-visto pelo
próprio analista. Esse risco já era apontado por Lacan quando discorria sobre variantes do
tratamento padrão e também nos próprios discursos isolados no Seminário 1724. Temos
frequentemente situações em que o discurso do senhor faz par com o discurso universitário,
quando se quer que o outro faça algo (laço social produzido no discurso do senhor/mestre) ao
querer saber algo sobre aquilo que é do outro (laço social resultado do discurso do
universitário/da ciência)25.
A configuração acima exposta é frequentemente encontrada em diversas modalidades
de organização social, seja na política ou na educação, expondo formas de gozo específicas a
respeito de como se faz a gestão do outro e de sua subjetividade através do domínio e do saber
sobre ele, saber o que é “melhor” para alguém, como o outro deve viver e mesmo morrer. No
presente ensaio, nossa tentativa foi de decalcar duas figuras hipotéticas que marcariam formas
contemporâneas de estriamento de lugares para o discurso operado por psicanalistas no social.
Chamamos de psicanalista-celebridade esse tipo de discurso em que a posição de fala é a de
tentar explicar ou falar de psicanálise oferecendo-a como algo que diga sobre aquilo do qual
se sofre, sobre as mazelas da sociedade ou sobre as vicissitudes da sociedade. Já o
psicanalista-militante é a formação discursiva que emprega ferramentas psicanalíticas para
produzir laço social e operar no laço, tentando desvelar, nesse ato, as próprias condições
alienantes da produção do sujeito.
Cabe aqui reiterarmos que não se trata de uma crítica a esses posicionamentos, e sim
de entender quando eles podem ser considerados variantes do tratamento padrão que, em
última instância, renovam as possibilidades de fazer laço social com o discurso do
psicanalista. Ao escrever posicionamento, afirmamos que um discurso e seu equivalente, o
laço social que nele/dele resulta, se estruturam, como apresentou Lacan, a partir do lado do
agente e do lado do outro. A novidade (cultural) do discurso do psicanalista é que o objeto a,
que é o objeto causa do desejo, é colocado no lado do agente e no lugar daquele que põe

24
LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.
25
O matema dos quatro discursos aparece logo mais abaixo no texto.
ordem no discurso. Essa é a razão para a posição do analista ser usualmente marcada pelo
silêncio, com o outro aparecendo, nesse laço social, como sujeito marcado pela barra ($),
sujeito que acaba por buscar os próprios significantes primordiais que o sustentam (S1)26.

Cumpre-se a ética do psicanalista quando o desejo do analista, seja numa análise


propriamente dita, seja na análise do funcionamento dos discursos do social e das
modalidades de subjetividade e de gozo deles decorrentes, serve como bússola para o desejo
de saber do outro, saber do inconsciente. Questionando diretamente sobre a possibilidade de
fazer psicanálise sem contar com dispositivos próprios de intervenção, como os que
conseguimos sustentar e manejar na clínica e em suas variedades, o que no resta é pensar,
com Lacan, que o discurso analítico é aquele que mede a extensão dos efeitos de sua fala.
Quanto às posições que viemos isolando, ambas são formas de atuar na sociedade a
partir da convocação da fala ou do fazer do analista, mas que visam efeitos diferentes: o
psicanalista-celebridade busca produzir e oferecer algo com a performatividade do que diz,
enquanto o psicanalista-militante visa oferecer algo ao outro que tente ajudá-lo a se localizar
no discurso social. Não nos cabe julgar ou supostamente classificar de psicanalíticas ou não
tais ou tais posicionamentos, com exemplificações. Isso seria contraproducente porque a
recente abertura cultural brasileira para a psicanálise pode fazer com que a psicanálise seja
mais um dos recursos de problematização e de mapeamento de como são produzidos os
sujeitos, em seus laços e discursos.
Nossos atos públicos, quando somos convocados a produzir falas, discursos e
intervenções, devem se pautar por uma reserva de celebrar as nossas próprias diferenças

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Fonte do esquema: D’AGORD, Marta Regina. Do grafo do desejo aos quatro discursos de Lacan. Psicologia
USP, v. 24, n. 3, set./dez. 2013. p.443.
enquanto sujeitos. Para clarear, quando nos colocamos como depositários de um saber (sobre
o outro, o social, a cultura, a política), acabamos por resistir ao outro e, no final, por obliterar
aquilo que a própria psicanálise tenta fazer, que é deixar agir esse rasgo que é o inconsciente.
Assim, o que nos importa é tentar fazer laço a partir da e com a diferença do outro em seu
tempo, em suas modulações, pois devemos sempre nos isentar da tentação de preencher as
faltas do outro e, em última instância, as nossas próprias.
Nosso desejo de saber, que é o que nutre o fazer de cada psicanalista, se transformaria
em desejo de encher, de ocupar, com elementos imaginários da própria psicanálise, aquilo que
mobiliza a própria existência do outro. Mais ainda, o grande abismo que nos cerca é de
celebrar a nossa própria diferença, apontando as faltas do outro e preenchendo-as com nosso
próprio saber, cujo sentido é imaginário. A psicanálise estaria morta e sepultada, e o que é
feito acaba não passando de celebração narcísica do Eu do próprio analista, entretido agora
em sua própria ecolalia.

Sobre o autor:

Gabriel Inticher Binkowski é psicanalista e Professor Colaborador da USP; mestre em Clínica


Transcultural e doutor em Psicologia pela Université Sorbonne Paris Nord; pesquisador pós-
doutorando no PPG de Psicologia Clínica da USP; membro do Laboratório de Psicanálise, Sociedade e
Política (PSOPOL) e da Unité Transversale de Recherche Psychogenèse et Psychopathologie
(UTRPP). Faz parte do comitê editorial da Revue L’autre: Cliniques, Cultures et Sociétés. É
supervisor clínico no Grupo Veredas: Psicanálise e Migração e um dos coordenadores do Relapso –
Grupo Interuniversitário de Pesquisa em Religião, Laço Social e Psicanálise.

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Obs.: Redução de 44.750 caracteres com espaço para 36.155.,

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