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Dora hipermoderna: ainda a histeria?

Vera Lopes Besset e Marina Vieira Espinoza

Por onde andarão as histéricas de outrora, essas mulheres maravilhosas, as Anna O., as
Emmy von N.? Elas representavam não apenas um certo papel, mas um papel social certo.
Quando Freud se pôs a escutá-las, foram elas que permitiram o nascimento da psicanálise.
Foi a partir de sua escuta que Freud inaugurou um modo inteiramente novo na relação
humana. J. Lacan. (2007/1997, p. 17).

Não se fazem mais histéricas como antigamente?

Ao oferecer um espaço de escuta para o sofrimento das histéricas, Freud faz ‘falar’

o corpo doente que desafia o saber médico de seu tempo. Como pontua Lacan em sua

conferência de Bruxelas: “O inconsciente se origina do fato de que a histérica não sabe o

que diz, quando de qualquer maneira ela diz alguma coisa com as palavras que lhe faltam”

(2007/1997: 17).

Atualmente, vários sintomas que implicam diretamente o corpo nem sempre se

apresentam com um endereçamento ao Outro, não portam um sentido nem se oferecem à

decifração. Ao mesmo tempo, em consonância com o domínio do discurso do mestre

contemporâneo (Vieira & Besset, 2008), a classificação psiquiátrica em voga (DSM IV)

reduziu as manifestações psicopatológicas a “transtornos” e expurgou a histeria das

categorias nosográficas. Em seu lugar, encontramos o Transtorno de Somatização,

“caracterizado por uma combinação de dor, sintomas gastrointestinais, sexuais e

pseudoneurológicos”, na categoria “Transtornos Somatoformes” (APA, 2002: 469).

Efetivamente, o prestígio do discurso da ciência faz com que, cada vez mais, a

solução para o mal-estar psíquico expresso no corpo seja buscada em termos de fatores

1
Citação: Besset, V. L. & Espinoza, M.P.V. (2012). Dora hipermoderna: ainda a histeria? In J.
Vilhena & J. Novaes (Orgs). Corpo para que te quero? Usos, abusos e desusos. (pp. 303-313).
Rio de Janeiro: PUC-Rio: Appris.

1
neurofisiológicos. A nova forma de configuração dos sintomas é condizente com a

caracterização da época em que vivemos como a do ‘Outro que não existe’ (Laurent &

Miller, 2006) na qual se observa o declínio da função paterna, da autoridade e a queda

dos ideais. Esse cenário também favorece o incremento da avaliação e dos protocolos

como forma de universalizar e padronizar a partir da média, que acaba por excluir o que

há de particular em cada ser falante (Miller & Milner, 2006). Nesse contexto, entendemos

que a inclusão da dimensão subjetiva no tratamento de doenças e sofrimentos no corpo

pode contribuir para o avanço do conhecimento em relação às novas formas de

sofrimentos corporais. Como no caso das dores corporais 'imotivadas’ que não

apresentam causa orgânica definida, ou persistem após a cura dos males físicos aos quais

se atrelavam.

Tradicionalmente, o tratamento proposto pela medicina para as dores corporais

visa o apaziguamento ou a eliminação da dor através do tratamento farmacológico.

Todavia, os casos em que a dor não cede ante o uso de remédios e outros bastante

numerosos levaram à criação das Clínicas da Dor (Besset, V. L., Gaspard, J.-L., Doucet,

C., Veras, M. A. S. & Cohen, R. H. (2010); Santos; R.A. 2009). Isto, porque a dor passou

do estatuto de sinal de uma doença à entidade a ser tratada em si mesma. Para nós, na

psicanálise, o sofrimento das dores crônicas é um desafio e as reflexões nesse campo

somente se iniciam, tanto no Brasil como em outros países, notadamente na França. De

todo modo, sabemos que, em alguns casos, a tentativa de eliminação da dor pode

desacomodar o sujeito em sua solução sintomática.

É nesse cenário que surge nossa proposta de discutir a função que as dores

corporais crônicas imotivadas podem adquirir para um ser de fala. Pois, se para alguns a

dor crônica se configura como o sintoma freudiano, uma mensagem a ser decifrada, para

outros, apresenta-se como um sintoma mudo (Miller, 1997), por não fazer um

2
endereçamento ao Outro e não se oferecer à decifração. Em outros casos, ainda, as dores

corporais crônicas ‘imotivadas’ podem servir de suplência ou enlaçamento, funcionando

como nomeação. Assim, em cada caso, a dor pode ser considerada como solução para um

ser de fala, se a considerarmos como um sintoma, entendido, como propõe Cristiane

Alberti, modo possível com que um falasser pode lidar com o excesso, com o “demais de

sua vida” (2008).

Os sintomas contemporâneos, ao invés de interpelarem os sujeitos, apresentando-

se como enigmas, funcionam como respostas, nomeações oriundas do Outro da ciência –

déficit de atenção, fobia, entre outros – ao vazio identificatório que os caracteriza. São

signos da não-relação sexual e fazem valer, predominantemente, sua vertente de

satisfação pulsional. Frente a esse valor de gozo do sintoma, o desafio que se apresenta

ao psicanalista é fazer valer o seu valor de sentido.

Segundo Miller (1997) tais patologias afastadas da palavra tem a ver com o estado

atual da cultura. Esse autor destaca a importância do conceito de recalque e da repressão

social na estruturação da sociedade na época de Freud, onde a interdição que veicula

aponta para a falta como condição do desejo (Magalhães, 2005). No entanto, na

atualidade, há um visível aumento da escolha da via do gozo, do sem palavras, da ausência

de laço social, que tem como decorrência os novos sintomas silenciosos.

Nesse contexto, verifica-se o lugar de destaque que o corpo ocupa. Trata-se de

práticas como implantes, cirurgias, tatuagem, escarificações, body modification. Nota-se,

também, uma maior variedade em relação ao sofrimento psíquico que afeta o corporal: os

ataques de pânico com seus efeitos espetaculares, as obesidades, anorexias, bulimias,

cortes no corpo, toxicomanias.

Estamos distantes, certamente, do século de Freud e da histeria ‘freudiana’ da qual

Dora é paradigma. No entanto, a histeria persiste especialmente em seu caráter de desafio

3
ao Outro. Em tempos de hipermodernidade (Lipovetsky, 2004), o sofrimento localizado

no corpo continua a representar um desafio para a psicanálise. Por vezes, apresentam-se

em sua vertente de sintoma ‘mudo’ e nem sempre se alojam na histeria, embora

invariavelmente digam respeito ao feminino. Eles instigam nossa investigação, apontando

os limites de nosso saber.

Acreditamos que a psicanálise precisa estar atenta às mudanças do tempo como

proposto por Lacan, quando indica que um analista deve “alcançar a subjetividade e sua

época” e “não depor suas armas diante dos impasses crescentes da civilização” (1953:

322). Com isso entendemos ser importante ter no horizonte a subjetividade da época em

que se vive e as vicissitudes de seu tempo. Tal como Freud e Lacan que, ao longo de sua

obra e ensino, respectivamente, fizeram reformulações em suas teorias em relação a

conceitos fundamentais, de acordo com os obstáculos que surgiam em suas clínicas.

Uma visão da atualidade

Fobia social, TDAH, Transtorno Depressivo, Stress. Alguns nomes utilizados nos

dias de hoje pelos especialistas e pela ciência para o que Freud chamou mal-estar (Freud,

1930). Atualmente, nos chegam facilmente novidades produzidas pela ciência e

difundidas pela rede mundial da Internet - terapias, remédios, livros de autoajuda. Sem

contar as inúmeras opções que têm por objetivo eliminar todo e qualquer desconforto que

possa ser experienciado pelo sujeito: temos como exemplo o consumo exacerbado de

bens. Objetos que são elevados ao status de portadores da solução contra o mal-estar. Isso

porque esses objetos são tomados como capazes de tamponar a falta que caracteriza o

sujeito do inconsciente, para a psicanálise. No entanto, tais objetos não sustentam essa

função e o mal-estar retorna. Assim, no lugar de se haver com a condição de ser faltante,

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o sujeito recorre a diversos objetos que o façam esquecer sua condição de imperfeito,

faltoso.

O aumento da oferta desses produtos é fruto da cultura de exaltação do prazer a

qualquer custo em que estamos inseridos, em consonância com a lógica da sociedade de

consumo, que incentiva a aquisição e o descarte de bens (Lipovetsky, 2004; Bauman,

2003; Miller, 2004). Lipovetsky (2004) chama a época em que vivemos de hipermoderna,

em conjunto com outros autores que concordam e apoiam a sua tese (Bauman, 2003;

Miller, 2004; Recalcati, 2004). Notamos nos trabalhos desses autores, pontos em comum

no que diz respeito a uma mudança na subjetividade e nos modos de relação entre os

sujeitos. Tais autores destacam que esse período caracteriza-se por uma fluidez, pela

flexibilidade e movimento. É um momento onde os sujeitos encontram-se indiferentes

aos princípios estruturantes da modernidade, isto é, os ideais que antes orientavam e

funcionavam como balizas para o psiquismo hoje se encontram pluralizados e

fragmentados (Besset, V. L, Cohen, R. H. P., Coutinho, L. G. & Rubim, L.M., 2007).

Na modernidade, tempo em que Freud formulou a sua teorização, podemos pensar

em um tripé que caracterizava o período: o individualismo, o mercado e a escalada técnico-

científica. Esses seriam os princípios fundamentais constitutivos dessa época. Lipovetsky

(2004) propõe a nomeação de tempos hipermodernos por acreditar que nesse intervalo de

tempo não houve substituição de princípios. Aqueles da modernidade foram radicalizados.

A globalização e a sociedade de consumo aceleram esse processo do hiper, ressaltando

que não existem outros modelos que façam frente a esse tripé radicalizado. Os ideais

universais que na modernidade serviam de exemplo e referência para a conduta do sujeito,

hoje se encontram enfraquecidos. Um autor contemporâneo (Forbes, 2006), prefaciando o

livro Você quer mesmo ser avaliado (Miller; Milner, 2006), faz um breve relato sobre a

cena contemporânea. Lá é apresentado que, após a globalização, as pessoas ficaram

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perdidas quanto ao seu valor, sem os referenciais que antes serviam de orientação na

construção de suas identidades. Esse abalo nos ideais é notado no enfraquecimento ou

eliminação das hierarquias, representadas principalmente pelas instituições tradicionais –

Estado, família, Igreja; além da exacerbação do individualismo e da atenuação da fronteira

entre o público e o privado (Lipovetsky, 2004).

O sujeito se vê cada vez mais senhor de sua existência e encontra-se mais

desamparado sem uma proteção coletiva ou das instituições. Ele está entregue a si mesmo,

o que o torna mais frágil. Diante da responsabilidade de assumir o que deseja, o sujeito

recua. Notamos esse fato no aumento do consumo de medicamentos, de diagnósticos como

depressão, transtornos de ansiedade e na busca em estar inserido em um rótulo que

justifique as escolhas e atitudes.

Tal contraponto da atualidade com as referências do tempo de Freud nos auxilia a

entender o que hoje se apresenta de maneira diferente quanto à cultura. No entanto,

estamos longe de trabalhar baseados em um saudosismo com a época em que a psicanálise

foi criada. Trata-se, antes, de construirmos novas ferramentes para avançarmos com os

desafios e limites em relação ao nosso saber e às novas formas de demanda e de

apresentação do sofrimento psíquico que toca o corporal. Seguiremos comentando alguns

casos clínicos que apontam as diferentes funções que o corpo e a dor podem adquirir para

um ser de fala.

Corpo e dor

Alguns autores nos servem de guia em nossa pesquisa. Entre outros, Castellanos

(2009) para quem a dor crônica de causa orgânica não definida pode ser considerada como

uma “experiencia subjetiva, como una manifestación de los lenguajes del cuerpo” (p.18).

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Apresentaremos casos de dores imotivadas, com funções distintas, para avançarmos em

nossa discussão.

Castellanos (2009), em seu livro “El dolor y los lenguajes del cuerpo”, nos dá

como exemplo o caso de uma jovem que sentia uma intensa dor no joelho que a impedia

de caminhar e trabalhar. Esta dor, segundo a moça lhe relatava, se estendia por seu corpo,

lhe trazia um grande cansaço, além de insônia. Depois de investigar as possíveis causas

orgânicas desse padecimento, nada foi encontrado. Ao perguntar à jovem sobre o que

havia acontecido, a moça lhe responde que seu pai havia falecido e ela tinha sido a forte

da família. Ele intervém, então, pedindo que a moça fale sobre isso. Sua hipótese era que

se a paciente não conseguia falar sobre esse acontecimento, talvez o corpo o estivesse

fazendo.

A paciente rapidamente entendeu a proposta do analista e seguiu relatando sobre

o falecimento de sua irmã e do adoecimento de seu irmão, por HIV, três anos antes. Nessa

época, outro sintoma corporal já havia lhe acometido: uma calvície, o que não é um

sintoma qualquer para uma atriz. Sua imagem se viu afetada, então, ante o insuportável

de sua experiência de vida. As dores do joelho, anos depois, apesar de não serem fruto de

uma lesão corporal, provocavam uma grande incapacidade. Castellanos (2009) explica

que foi necessário um trabalho de elaboração do luto para que esse sintoma cedesse, “allí

donde los analgésicos no habían demonstrado eficacia alguna.” (p.15)

Entendemos que, nesse caso, a dor corporal sem causa orgância indicava seu

caráter de mensagem a ser decifrada, remetendo a uma série de perdas que a paciente não

teve oportunidade de elaborar. Revela-se um sintoma freudiano: tem relação com a

história do sujeito, tem um sentido e se oferece à decifração (Freud, 1916-1917).

Castellanos adverte que “en la experiencia del tratamiento del dolor siempre hay

algo que escapa a la lógica de la eficacia del fármaco o del daño orgánico, y qualquier

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médico com experiencia sabe que la subjetividad opera de forma decisiva.” (idem: 17).

Segundo definição mais aceita até o momento, apresentada pela Associação Internacional

para o Estudo da Dor (IASP), “el dolor es una experiencia sensorial y emocional

desagradable, asociada a una lesión real o potencial o descrita en términos de dicha

lesión” (idem). Essa definição inclui, portanto, um caráter subjetivo à experiência da dor.

Ebtinger (2007) contribui para essa discussão e apresenta um caso em que a dor

parece ter uma função distinta. Trata-se de um paciente atendido em um Centro de

Atenção e Avaliação da Dor, devido a fortes dores nas costas que impediam o retorno ao

trabalho e restringiam suas atividades de vida diária. As dores começaram depois de um

acidente de carro que aconteceu em dois tempos. Na primeira batida, mais leve, o homem

manteve-se bem. No entanto, com a segunda batida, mais forte e inesperada, o homem

perdeu a consciência por alguns instantes e viveu um sentimento de irrealidade, acreditava

estar morto. Quando os lugares que sofreram choque começam a doer, o paciente diz que

pôde compreender que estava vivo. Naquele instante da batida, ele perdeu a percepção de

seu corpo que se traduziu por um sentimento de irrealidade do mundo. As dores tinham

para esse homem, então, uma função: “sinto dor, estou vivo”. A dor fazia a aliança entre

corpo, realidade e vida. A dor tornou-se a amarração de existência desse homem.

Este último caso nos remete ao de Luciana, que sofre de dores crônicas. É

encaminhada por sua reumatologista com o diagnóstico de ansiedade e fibromialgia

severa. De saída, percebe-se que a medicina já lhe oferecera um nome para sua dor:

fibromialgia (Besset et al, 2010). A fibromialgia é considerada uma síndrome

caracterizada por dores crônicas e generalizadas, que inclui em sua sintomatologia fadiga,

sono, indisposição, entre outros. No entanto, sua etiologia permanece obscura sem que

nenhuma causalidade orgânica tenha sido detectada.

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Essa apresentação da doença permite uma aproximação com a histeria, como já o

fizeram alguns autores (Slompo & Bernardino, 2006). Ao mesmo tempo, mais

recentemente, outros autores nos convidam a não reduzir as dores da fibromialgia, como

as dores crônicas ‘imotivadas’ em geral, à sintomatologia da histeria (Besset, V.L.,

Zanotti, S. V., Tenenbaum, D., Schimidt, N., Fischer, R.P., Figale, V. (2010). Pois, se

Freud desvelou o sentido oculto de um sintoma no corpo, as ‘novas’ formas de

apresentação do sofrimento indicam que é preciso prosseguir na investigação dos modos

como uma dor física se inscreve na realidade subjetiva. Sobre isso, apoiado na orientação

lacaniana e em dados da clínica, Ebtinger (2007), entre outros, nos lembra que o

fenômeno da conversão não esgota a questão do determinismo psíquico da dor.

Ao falarmos de fibromialgia, doenças e dores no corpo, remetemo-nos sem

dificuldades à noção de conversão histérica. A ideia de base é que os sofrimentos no corpo

são portadores de uma verdade a ser decifrada, remetendo a uma fala do sintoma, como

postulou Freud e, nos primeiros tempos de seu ensino, Lacan. No entanto, nem sempre o

tratamento proposto pela psicanálise se aplica a todos os casos de sintomas à primeira

vista histéricos. Pois fracassa em sua tentativa de tornar o sofrimento um enigma para um

sujeito, um sintoma analítico. Algumas vezes, o paciente não avança no sentido de uma

‘retificação subjetiva’ em relação à sua queixa. Pelo contrário, insistir nessa direção pode

levar ao pior: uma desestabilização ou mesmo um desencadeamento psicótico.

Nesses casos, cuja “roupagem” remete à neurose, é necessário atenção aos

indícios e particularidades que esse ser de fala traz em relação a seu sofrimento. O desafio

que se apresenta, de pronto, é delinear uma resposta às perguntas: É uma neurose? É uma

psicose? Essa questão coloca-se muitas vezes em relação ao corpo: seria um sintoma

histérico ou essa desordem no corpo refere-se à psicose? Ela não comparece como pano

de fundo de uma identificação narcísica ao corpo, própria da histeria, nem com o os

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fenômenos elementares no corpo, bastante evidentes, de uma psicose extraordinária

(Miller, 2010).

São casos em que se “não reconhecem sinal evidente de neurose e, assim, são

levados a dizer que é uma psicose dissimulada, uma psicose velada. Uma psicose difícil

de reconhecer como tal, mas que deduzo de pequenos indícios variados” (Miller, 2010:

7). Trata-se de uma categoria que exige atenção aos detalhes (Miller, 2010; Solano-

Suarez, 2006). Miller propõe a psicose ordinária como uma “categoria lacaniana” (2010:

1) que tem um uso prático e é extraída do último ensino de Lacan: a psicose ordinária não

é tomada como uma nova estrutura clínica, como a neurose e a psicose, mas é uma

categoria que auxilia na direção do tratamento.

Essa indicação nos remete ao caso ao qual aludimos há pouco e nos auxilia refletir

sobre a especificidade da dor para essa paciente. Apesar das dores difusas, Luciana

destaca as dores no joelho como aquelas que mais lhe incomodam. São dores que

atrapalham seu trabalho, que inclui ficar a maior parte do tempo em pé. De tempos em

tempos, ela pede licença do trabalho para tratar de suas dores que acabam mobilizando e

afetando todos os aspectos de sua vida. Conta que tais dores apareceram quando

participava de um grupo na igreja em que frequentava, onde tinha um papel bastante ativo

no cumprimento e disseminação da doutrina religiosa. No entanto, nesse momento, algo

irrompe. Luciana é invadida por pensamentos que considerava impróprios e que a

obrigavam a se confessar. Passou, então, a buscar a Igreja para poder se confessar

inúmeras vezes ao dia. Qualquer assunto que passasse pela sua cabeça e que considerasse

errado a obrigava a buscar o padre para confessar-se. Conta que esse período foi permeado

por muita angústia e tristeza. Por fim, tal comportamento fez com que o grupo a afastasse

de suas funções. A partir daí, ela buscou uma ajuda terapêutica que a ajudou a controlar

os pensamentos, mas ganhou a dor como resto dessa operação. As dores do joelho eram

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as mais fortes, segundo ela, e lamentava-se porque a partir de então ficou justamente

impedida de ajoelhar-se no banco da Igreja. Isso era o que mais lhe fazia falta.

Nesse caso, a dor teve a função de promover uma nova aliança entre o corpo e a

realidade. Como no caso clínico apresentado por Ebtinger (2007), em que o autor

considera a dor não somente como uma sequela física após um acidente de carro, mas

como um selo, uma amarração de existência para o sujeito em questão. A noção de um

enlaçamento vem da atualização das ferramentas clínicas de Lacan, a partir da inclusão

cada vez mais do real no tratamento, em seus últimos seminários. Essa vertente inicia a

chamada clínica borromeana, que está além da clínica estrutural, que faz a distinção entre

neurose e psicose em função da presença ou da ausência desse operador que é o Nome-

do-Pai. Essas novas ferramentas, então, nos permitem orientar o tratamento perguntando-

nos o que mantém juntos os três registros R, S, I (Real, Simbólico, Imaginário) da

estrutura, o que os poderia manter juntos, sem nos orientarmos somente pela foraclusão.

(Castanet & De Georges, 2009) Entretanto, cabe ressaltar que essa ferramenta não exclui

o diagnóstico estrutural, agrega-se a este e amplia as possibilidades de tratamento de

diversos casos clínicos que não se localizam de maneira evidente na organização ter ou

não ter o Nome-do-Pai tal como formulado no primeiro ensino de Lacan.

Nesse, o que faz a distinção entre neurose e psicose é a inscrição do Nome-do-Pai

como substituto do Desejo da Mãe. O Nome-do-Pai é, então, entendido como nome

próprio, fruto da ordem simbólica, que funciona como balizador e ordena o mundo do

sujeito. Nessa concepção, o psicótico não teria o Nome-do-Pai como função ordenadora,

e a metáfora delirante assumiria essa função de ordenação do mundo. No final de seu

ensino, Lacan afirma que toda a ordem simbólica é um delírio, que atribuir sentido é

delirante, já que a vida não tem nenhum sentido (Miller, 2010). Essa mudança altera o

estatuto do Nome-do-Pai: “não é mais um nome próprio, mas um predicado definido na

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lógica simbólica” (Miller, 2010: 12). É um elemento que funciona como um Nome-do-

Pai para um sujeito. Esse elemento é o princípio que ordena o seu mundo.

Pensando no caso de Luciana, nos perguntamos se as dores teriam essa função

para ela. Como um elemento capaz de fazer um enlaçamento entre os registros e ordenar

seu mundo. Esses meios artificiais, podemos entendê-los como um elemento suplementar

que faz função de Nome-do-Pai. A dor poderia ser um Nome-do–Pai na relação de

Luciana com seu corpo? Caso afirmativo, deveríamos pensar que no acompanhamento

que essa moça faz de sua doença, com vários especialistas, não seria o caso de extinguir

com sua dor, tendo em vista a função que ela desempenha? Trata-se, antes, de permitir

que a partir do seu trabalho com a fala, Luciana possa construir outra experiência a partir

de seu corpo.

O último Lacan para entender a função da dor.

Sem desconsiderar nenhuma das duas vertentes freudianas do sintoma, mensagem

e satisfação, Lacan prioriza em seu ensino a segunda delas (Tizio, 2009) através do

conceito de gozo, que atravessa todos seus seminários. Nos primeiros, há uma prevalência

do simbólico orientando sua clínica e construções teóricas. Ao final de seu ensino, Lacan

avança cada vez mais em direção ao real e propõe um enfoque maior na articulação entre

sintoma, corpo e gozo. O trabalho a partir do sintoma, tomando-o como o que há de mais

íntimo, permite demarcar os pontos de gozo do falasser. “O sintoma para além da

formação significante, da mensagem cifrada dirigida ao Outro, é visto pelo último Lacan

como uma forma de organização do gozo, um resto que persiste.” (Cohen, 2009: 1) E dá

o nome de sinthome a essa formação significante perpassada de gozo.

No livro A loucura entre nós (Veras, 2010), o autor fala sobre a “clínica do

sinthoma, mais além da saúde mental”. Essa proposta inclui pensarmos o sinthoma para

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além dos casos de psicoses extraordinárias, através do modo de amarração que cada

falasser constitui para si. Já de início Veras nos faz uma indicação sobre o uso que

podemos fazer desse aparato teórico proposto no derradeiro ensino de Lacan (1975-

1976): “Com a clínica do sinthoma, muitas vezes se trata de investigar, e não de tratar,

aquele que, mesmo não podendo se apoiar no Nome-do-Pai para evitar o

desencadeamento, não enlouquece.” (Veras, 2010: 184)

Nessa perspectiva, deixa de haver a primazia do simbólico em detrimento de uma

homogeneização dos três registros: real, simbólico e imaginário, dando início à chamada

clínica borromeana. O que marca essa nova concepção é o fato de que os três registros

“se tornam completamente independentes uns dos outros e, principalmente, que eles não

se confundem, mantendo permanentemente uma distinção não hierarquizada” (idem:

182). O nó borromeano de três círculos é um arranjo onde, se um círculo se rompe, a

unidade é perdida e os outros dois também se separam.

Seguindo essa concepção da clínica borromeana, Lacan (1975-1976) propõe o

sinthoma como o quarto nó que ‘grampeia’ os outros três, Real, Simbólico e Imaginário.

Diz-nos Lacan: “É na medida em que o sintoma volta a se ligar ao inconsciente e o

imaginário se liga ao real que lidamos com alguma coisa da qual surge o sinthoma”.

(ibidem: 53) É esse quarto elemento que permite “reparar a cadeia borromeana no caso

de não termos mais uma cadeia” (ibidem: 90). Essa teoria, que se orienta pelos

enlaçamentos possíveis que mantém os registros psíquicos reunidos, nos faz questionar

se a dor corporal imotivada poderia ter a função de sinthoma, de grampo, para

determinados casos.

Nessa perspectiva dos sintomas que implicam o corpo, Solano-Suarez (2006)

lembra a importância de um tempo preliminar de demarcação de alguns elementos, no

início de todo tratamento analítico. Essa orientação é bastante relevante no que concerne

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a formulação de uma hipótese diagnóstica no intuito de delinearmos a direção do

tratamento. Em cada caso, como sublinha a mesma autora, a atenção aos detalhes pode

ser imprescindível no balizamento do nó próprio a cada sujeito (idem).

É por essa via, da atenção aos detalhes para pensar o enlaçamento próprio a cada

ser de fala, que buscamos refletir sobre a função que o sofrimento no corpo pode ter para

um sujeito, e sobre as ferramentas que a psicanálise nos oferece para operar com esses

sintomas que não se oferecem ao sentido nem a interpretação. Isso, tomando a fala como

instrumento privilegiado da prática clínica e considerando que esta incide sobre o corpo

do ser falante. Mantemos, para tal, a referência a Freud e aos princípios da prática

analítica tais como indicados na orientação lacaniana. (Laurent, 2006). Ou seja, buscamos

abordar essas outras formas de uso do corpo a partir de ‘novas’ ferramentas

metodológico-conceituais, mas assentadas na tradição da clínica freudiana, no respeito ao

ensino de Lacan.

Considerações finais

As demandas de tratamento para casos de fibromialgia e dores corporais, por

vezes encaminhados pelos médicos, nos instigam, em cada caso, a investigar a função da

dor. Entendemos que esses sofrimentos, apesar de suas semelhanças com as conversões

histéricas, podem ser encontrados também em casos que não se enquadram na estrutura

neurótica. As dores, então, podem funcionar como enigma, como uma compensação ou

mesmo evitar o desencadeamento de uma psicose. Como nos casos apresentados, onde

discutimos diferentes funções que a dor pode adquirir, em casos de neurose e psicose. No

caso de Luciana, as dores pareciam lhe dar um lugar, algo que orientava sua vida e

mediava suas relações no laço social. Nesse caso, o diagnóstico da fibromialgia parece

funcionar como uma nomeação para esse sujeito.

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Parece-nos interessante, pois, que a partir do caso a caso, seja possível investigar

a função do sintoma. A sutileza é que essas dores, tal como os sofrimentos das histéricas

no início do século passado, não apresentam substrato orgânico e, ao mesmo tempo,

resistem às ‘soluções’ à disposição da medicina. E são justamente elas, as dores, que

parecem dar um lugar no mundo para esse ser de fala. Desse modo, entendemos que esses

casos fazem sobressair a adequação do que nos ensina a psicanálise: em cada caso, levar

em consideração a particularidade do sujeito no lugar de buscar a simples eliminação do

sintoma. Em outras palavras, respeitando a orientação freudiana: evitar a preocupação

terapêutica em nosso fazer na clínica.

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