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MÁRCIA ROSA

“Por onde andarão


as histéricas de outrora?”
Um estudo lacaniano sobre as histerias

1ª Edição

Belo Horizonte
Edição da autora
2019
Copyright 2019 – Márcia Rosa, 2019 Coleção Cartas de Psicanálise
Direitos Reservados. Lei 9.610, Editora: Dra. Márcia Rosa (UFMG)
de 19/02/1998 Projeto Gráfico: VCS Propaganda
A “Coleção Cartas de Psicanálise”, cujo Diagramação: Wemerson Felix
volume n.º 1 estamos lançando aqui, Capa: Enyaly C. Poletti
visa publicar trabalhos produzidos a
Ilustração Capa: Francisco Xavier
partir de pesquisas de pós-graduação,
além de material vindo da comunidade Revisão: Luiz Gonzaga Morando Queiroz
psicanalítica que atenda aos objetivos do
“Laboratório Transdisciplinar: família, Conselho Editorial
parentalidade e parcerias sintomáticas Dr. Antônio Márcio Teixeira (UFMG)
(LABTRANSUFMG), vinculado ao Dra. Angélica Bastos (UFRJ)
Depto de Psicologia da UFMG. Dr. Carlos Enrique Luchina (FHEMIG/
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dêmicos através dos quais oferecemos Dra Cristina Moreira Marcos (PUC-MG)
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de modo a manter viva a presença da Dr. Marcelo Veras (UFBA)
psicanálise no horizonte de nossa época. Dra. Rita Manso (UERJ)
Dr. Paulo Siqueira (ECF-Paris)

  Rosa, Márcia, 1953-


G789p Por onde andarão as histéricas de outrora?: um estudo lacaniano sobre
2019 as histerias / Márcia Rosa. – Belo Horizonte: edição da autora, 2019.
  209 p. : il.; 23 cm. – (Cartas de Psicanálise, 1)

  Inclui bibliografia.
ISBN: 978-65-900551-0-1
   
  1. Psicanálise. 2.  Histeria. 3. Psicologia. 4. Sexo. 5. Sexualidade
6. Lacan, Jacques, 1901-1981. I. Título.
    CDD: 150.1952
CDU: 159.964.2

Ficha elaborada pelo Bibliotecário: Bruno Moreira de Mores – CRB -6/3270


Publicação sob a chancela do LABTRANSUFMG
Universidade Federal de Minas Gerais: Departamento de Psicologia
Laboratório Transdisciplinar: família, parentalidade, parcerias sintomáticas
Av. Pres. Antônio Carlos, 6627 - Pampulha
Belo Horizonte - MG, 31.270-901 - Brasil
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Fone: (31) 99617.6443
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Histeria ou psicose:
Anna O. e Emmy von N.
Márcia Rosa

Ao nos debruçarmos sobre os casos apresentados em Estudos sobre a histeria


(FREUD, 1893-1895/1974), não poucas vezes encontramos entre os seus
leitores uma diferenciação entre as histéricas apresentadas por Breuer e Freud,
de tal modo que Anna O. e Emmy von N. são retomadas com o diagnóstico
de psicose, enquanto que para Katharina, Elizabeth von R., Lucy R. e mesmo
Dora o diagnóstico de histeria é consensual. Com isso, a pergunta formulada
por Lacan em 1977, na “Conferência de Bruxelas” – “Por onde andarão as
histéricas de outrora?” –, encontra mais uma resposta. Algumas daquelas his-
téricas andam atualmente sob o diagnóstico de psicose, mais especificamente
de esquizofrenia.
Começamos constatando que a histeria e os sintomas histéricos variam de
acordo com a cultura, com a moda e, em especial, com a presença da psiquia-
tria e da psicanálise no horizonte de cada época. Isso ocorre, em princípio,
porque a histérica não vai sem o seu Outro, seja esse Outro o psiquiatra, o psi-
canalista, o mestre, o pai etc. Portanto, as várias formas que esse Outro toma
não são sem implicações e consequências no modo como a própria histeria se
apresenta. Em que pese isso, se as manifestações da histeria variam, supomos
haver algo no seu campo que, apesar de se encarnar de modo variado, em
cada uma das histéricas ao longo do tempo, constituiria um núcleo invariável
o qual diria, inclusive, do funcionamento da neurose enquanto tal.
Que muitas das histéricas de outrora tenham mudado de categoria diag-
nóstica, isso nos coloca diante de uma discussão clínica, mas também
epistêmica. Qual é o estatuto das classificações diagnósticas? Se nos refe-
renciarmos ao Lacan estruturalista, essas categorias terão uma realidade
ontológica, pré-existindo ao sujeito que será classificado. No entanto, a essas
classificações, entre elas as de neurose e psicose, podemos também conferir o
estatuto de semblantes, ou seja, de ficções conceituais com as quais tratamos
o real, questões sobre as quais retornaremos nas considerações finais dessa
série de artigos.
Dois aspectos nos interessam e organizam o que se segue: a discussão do diag-
nóstico diferencial dos casos de Emmy von N. e de Anna O. e a indagação
sobre a possibilidade de reler a histeria a partir das formulações propiciadas
pelo encontro de Lacan com a psicose de James Joyce, ou seja, a partir do que
poderíamos nomear como uma histeria sinthomática.

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2 Histeria ou psicose: Anna O. e Emmy von N.

2.1 A tese inicial de Breuer e Freud: “as histéricas


sofrem de reminiscências”
Associar a histeria ao sofrimento por reminiscências (ROSA, 2007) é algo
que se localiza nos primeiros escritos freudianos. A primeira formulação desta
tese encontra-se em «Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos:
Comunicação preliminar” (1893-1895), daqui em diante denominada
“Comunicação preliminar”, escrita por Breuer e Freud. A questão é apresen-
tada nos seguintes termos:

podemos inverter a máxima ‘cessante causa cessat effectus’ [‘cessando a causa


cessa o sofrimento’] e concluímos dessas observações que o processo deter-
minante continua a atuar de uma maneira ou de outra durante anos – não
indiretamente, através de uma corrente de elos causais intermediários,
mas como uma causa diretamente liberadora – da mesma forma que um
sofrimento psíquico que é recordado no estado de vigília ainda provoca uma
secreção lacrimal muito após o fato. Os histéricos sofrem principalmente de
reminiscências (FREUD, 1893-1895/1974, p. 48).

Para explicar a sobrevivência dessas lembranças, que parece não estarem sujei-
tas a um desgaste ou esvanecimento, Freud e Breuer sustentam que um corpo
estranho opera incessantemente como causa estimulante da doença até que o
sujeito se liberte dele ou, em outros termos, os pacientes histéricos sofrem de
traumas psíquicos incompletamente ab-reagidos (ibid., p. 47-50).
À guisa de exemplo, Freud menciona o caso da mãe de uma criança adoen-
tada que, quando a filha adormeceu, concentrou toda a sua força de vontade
em manter-se imóvel a fim de não acordá-la. Por causa disso, produziu um
ruído estalejante com a língua (um exemplo de contravontade histérica) que
se repetiu em uma ocasião subsequente na qual ela desejava manter-se perfei-
tamente imóvel. Daí surgiu “um tique que, sob a forma de um estalido com
a língua, ocorreu durante um período de muitos anos sempre que se sentia
excitada” (ibid., p. 45).
Para os autores da “Comunicação preliminar”, o trauma psíquico (a doença
do filha) – ou mais precisamente a lembrança do trauma – atua como um
corpo estranho que, mesmo muito depois de sua entrada, deve continuar
a ser considerado como um agente provocador, pois ainda se acha em ação
(ibid., p. 46). Freud, que nos idos de 1893 está apresentando a sua terapêutica
ao mundo científico, sugere então que “o processo psíquico que original-
mente ocorreu deve ser levado de volta ao seu status nascendi e então receber

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e­ xpressão verbal” (ibid., p. 47). Portanto, é preciso que o sujeito evoque a lem-
brança do fato (a doença do filha) que provocou o sintoma (o estalido com a
língua) e desperte a emoção que o acompanhou, traduzindo-a em palavras.
Para os estudiosos da histeria, se a reação foi recalcada, a emoção permanece
vinculada à lembrança e, nesse sentido, ab-reagir, reagir posteriormente, pode
implicar em ir “das lágrimas a atos de vingança” (ibid., p. 48). Todavia, conti-
nua ele, “a linguagem serve de substituto para a ação, (...) falar é por si mesmo
o reflexo adequado, quando, por ex., essa fala corresponde a um lamento ou
a enunciação de um segredo atormentador, por ex., uma confissão” (ibid., p.
48). Ele observa que a linguagem reconhece a distinção entre uma ofensa que
foi revivida, até mesmo por meio de palavras, e aquela que teve que ser aceita.
Curiosamente, ele destaca o fato de que o uso linguístico descreve uma injú-
ria que foi sofrida em silêncio como “uma mortificação” (Kränkung), termo
que, em alemão, se presta a um jogo significante com o “fazendo adoecer”
(ibid., p. 49).
Essas manifestações levam Freud (1893-1895/1974) a postular que a divisão
da consciência, tão marcante nos casos clássicos conhecidos sob a forma de
double conscience, encontra-se presente em um grau rudimentar na histeria
(ibid., p. 53). Assim, “um grave trauma (tal como ocorre na neurose trau-
mática) ou uma supressão laboriosa (como de uma emoção sexual, por ex.)
pode ocasionar uma separação de grupos de ideias mesmo em pessoas que
são, sob outros aspectos, não afetadas; e isso seria o mecanismo da histeria
psiquicamente adquirida” (ibid., p. 52). Em vista disso, ele conclui que,

se a lembrança do trauma psíquico deve ser considerada tão atuante quanto


um agente contemporâneo, como um corpo estranho, muito depois da sua
entrada forçosa, e se, não obstante, o paciente não tem nenhuma consciência
de tais lembranças ou do surgimento delas – então devemos admitir que
ideias inconscientes existem e são atuantes (ibid., p. 276).

Freud mostra os poderes da palavra. Se o esquecimento vai ganhar o estatuto


de ato falho e fazer parte das formações do inconsciente, as reminiscências
parecem ter, nesse momento, estatuto semelhante, uma vez que são determi-
nadas de modo inconsciente: – o sintoma não surge ligado a impressões recen-
tes, mas em conexão com lembranças delas. O que se atesta aí, formulado em
uma linguagem lacaniana, não é senão a divisão do sujeito. Existe um ‘não
saber’ em jogo e ele divide o sujeito. Existe, além disso, uma descontinuidade
psíquica e temporal entre a causa e o efeito, ou seja, há uma hiância entre (o

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2 Histeria ou psicose: Anna O. e Emmy von N.

trauma ou a emoção sexual) e (a lembrança) de tal modo que é a retroação


de sobre que faz com que sofra o efeito de recalcamento. Em outros
termos, temos aí o esquema da significação em geral, no qual só ao final da
frase pode-se perceber o que ela visava desde o início, e da temporalidade do
sintoma histérico, aquele do a posteriori.
A afirmação de que “os histéricos sofrem de reminiscências” (FREUD, 1893-
1895/1974, p. 48) é reescrita na sequência da teoria freudiana nos trabalhos
sobre A interpretação de sonhos e sobre a Metapsicologia (principalmente no
texto “O inconsciente”). Pode-se supor que a concepção do desejo como
indestrutível levou Freud à conclusão de que o inconsciente ignora o tempo.
No entanto, cabe indagar e, até mesmo, colocar a trabalho a possibilidade
de o sujeito livrar-se dessa a-temporalidade do inconsciente uma vez que
as reminiscências, assim sustentadas, abrem caminho para a repetição. Em
vista disso, deparamo-nos com a questão: até que ponto a histérica é capaz
de esquecer?
De qualquer modo, nessas formulações pré-psicanalíticas importa realçar-
mos a constatação de uma divisão da consciência e da sua apresentação na
forma de “uma segunda consciência” ou, nos termos de Charcot, de “uma
condição segunda” (FREUD, 1893-1895/1974, p. 57), estado responsável
por muitas das manifestações sintomáticas em questão, mas também pelo
questionamento sobre a categoria diagnóstica a atribuir às manifestações tão
exuberantes de alguns desses casos.
No tocante à teorização e à clínica da histeria, mais do que um recenseamento
linear e sistematizado segundo uma lógica temporal, tomaremos a questão
das classificações diagnósticas e do diagnóstico diferencial como orientadora
do que se segue.

2.2 Loucura histérica ou esquizofrenia?


Em “O tratado sobre as alucinações”, publicado em 1973, Henry Ey discute a
reabsorção da histeria na categoria da esquizofrenia:

não ignorando a estrutura psicoplástica da histeria, suas formas antigas não


desapareceram realmente, mas elas mudaram de nome e de campo. Essa
massa de fatos clínicos foi reabsorvida em muitos transtornos que os clínicos
superficiais denominam psicose, esquizofrenia, etc. (EY apud MALEVAL,
1981/2005, p. 293).

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Diante disso, e na medida em que nossa discussão concerne às classificações


diagnósticas e ao diagnóstico diferencial, parece-nos importante ver como
essa questão se formula no discurso da psicopatologia.
Jean-Claude Maleval, em seu livro Locuras histéricas y psicosis disociativas,
publicado em 1981, defende uma tese bastante clara. Ao se colocar em desa-
cordo com as leituras contemporâneas, para as quais Anna O. e Emmy von N.
estariam simplesmente inseridas no campo da esquizofrenia, Maleval propõe
o resgate daquilo que foi denominado “loucura histérica”. Sua argumentação,
extremamente bem construída, diga-se de passagem, visa demonstrar que não
podemos abrir mão dessa categoria diagnóstica, a qual incluiria manifestações
das grandes histerias do tipo Anna O. e Emmy von N. O que isso quer dizer?
Ao ler os relatos clínicos em Estudos sobre a histeria, vemos que a nascente
psicanálise, ainda não operando com a noção de inconsciente, define como
“estado segundo” ou “segunda consciência” (ibid., p. 57) as manifestações de
dissociação psíquica que dão lugar à divisão entre um funcionamento oficial
e um funcionamento marginal, ou segundo. Trata-se, portanto, de vivências
de dissociação manifestando-se como dupla consciência, como estados de
divisão subjetiva. Anna O., por exemplo, fica completamente enlouquecida
à noite, fora de si, embora durante o dia se comporte bem, digamos assim.
Além disso, nesses estados segundos a presença de ideias delirantes e alucina-
ções é bastante marcante.
Ao incluir essas manifestações histéricas em um funcionamento onírico,
Maleval (1981/2005) e alguns outros psicanalistas, entre eles Karl Abraham
e o próprio Sigmund Freud, aproximam o enlouquecimento histérico do
funcionamento do sonho, de tal modo que teríamos nesses casos um estado
confusional onírico que não estaria determinado pelo que Lacan denomina
forclusão. Maleval insiste em que não há nesses casos de “loucura histérica”
manifestações que sustentem uma forclusão, seja do Nome-do-Pai ou da
significação fálica. Se elas estivessem presentes, localizaríamos movimentos
de deslocamento metonímico a partir da presença do furo da forclusão. Na
sua concepção, as manifestações aí são metafóricas e, com isso, introduzem a
proximidade com o estado onírico.
Maleval indaga por que essa entidade da psicopatologia denominada “lou-
cura histérica” desapareceu? No horizonte contemporâneo, encontraríamos
as pequenas manifestações da histeria, tais como a do caso Dora, enquanto o
que Freud denominava grandes histerias, tais como as de Anna O. e Emmy
von N., são reabsorvidas no campo da esquizofrenia. Como isso se processa,
indaga Maleval?

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2 Histeria ou psicose: Anna O. e Emmy von N.

Bleuler introduziu o conceito de esquizofrenia por volta de 1911, e, a partir


daí, as grandes histéricas foram desaparecendo aos poucos. Isso ocorre tam-
bém no texto freudiano. Se até 1911 delírios e alucinações eram manifesta-
ções comuns nas histerias da época, desde 1908, sob a influência da escola de
Zurick, onde estavam Bleuler e Abraham, observa-se que a entidade ‘histeria’
vai se dispersando. Nesse contexto, Abraham chega a dizer que são muito
poucos os pacientes neuróticos que ele recebe e para os quais indica análise
porque a maior parte da sua clínica é constituída pelo que ele diagnostica
como demência precoce, a qual posteriormente será caracterizada por Bleuler
como esquizofrenia. No entanto, o próprio Abraham publicará em 1910,
um pouco antes de Bleuler estabelecer o conceito de esquizofrenia, o artigo
“Os estados oníricos histéricos”, no qual estenderá o campo da histeria,
reincluindo aí casos que haviam se deslocado para a demência precoce e que,
posteriormente, serão considerados esquizofrênicos.
Nos seus Selected Papers, publicados em 1927 por Leonard e Virginia Woolf
em Londres, Karl Abraham apresenta dois ensaios que abordam a questão
da histeria, um deles destacando os estados oníricos (dream-states). No
interessantíssimo artigo de 1910, “Hysterical dream-states”, ele parte do
pressuposto de que esses estados seriam um tipo de tradução dos impulsos
sexuais em uma forma mental. Eles são, então, associados às experiências
masturbatórias infantis e aos devaneios, bem como à posição fantasmática
do sujeito. Os estados oníricos são descritos como seguindo uma sequência de
quatro etapas: na primeira, temos a tendência espontânea de alguns sujeitos
a fantasiar; na segunda, esse fantasiar já estaria marcado por alterações no
campo da consciência; na terceira, haveria uma espécie de “branco mental”,
no qual o sujeito sente que os seus pensamentos pararam, ele experimenta
um vazio na cabeça. Finalmente, ocorre um estado de depressão, no qual há
sentimentos de ansiedade ou angústia, com seu acompanhamento normal de
vertigem, palpitação etc. Posto isso, Abraham apresenta alguns casos e suas
manifestações sintomáticas, tais como estreitamento de consciência, estados
crepusculares etc.
No primeiro dos ensaios, publicado em 1908, “The psycho-sexual differen-
ces between hysteria and Dementia”, Abraham afirma que a característica
em comum mais importante entre as duas entidades clínicas é a sua natureza
sexual, e indaga sobre aquilo que as diferencia. Para evidenciar a diferença,
ele mostra como a conduta sexual do neurótico implica a transferência de
amor e libido para os objetos, enquanto na demência precoce essa capacidade
de transferência estaria destruída.

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Márcia Rosa

A introdução do conceito de esquizofrenia por Bleuler (1911) apresenta uma


espécie de critério estrutural que tende a estabelecer parâmetros para que
um clínico possa fazer um diagnóstico diferencial entre a histeria e a psicose.
Seguindo as elaborações de Maleval, observamos que Bleuler tinha uma noção
de esquizofrenia extremamente ampla, de tal modo que, nesse primeiro tempo,
praticamente todas as categorias serão, de algum modo, subsumidas pela noção
de esquizofrenia. Nunca se tinha visto tantos esquizofrênicos! Com isso vemos
como os diagnósticos são função do tempo e da elaboração da teoria e da clínica
de cada época. A partir de um pressuposto geral, a Spaltung psíquica, a divisão
do psiquismo, manifestações da neurose obsessiva, da mania, da melancolia,
foram incluídas como esquizofrenias, as quais Bleuler divide em esquizofrenias
paranoides, catatônicas, hebefrênicas e simples. O pressuposto de que o ele-
mento principal é a Spaltung torna alucinações e delírios como secundários, não
sendo, portanto, considerados determinantes para o diagnóstico. É interessante
anotar isso, até para observar que, com a formulação lacaniana de forclusão,
atualmente localizamos alucinações, em especial as audioverbais, e os delírios,
no campo da psicose. A primeira consequência dessa amplitude do conceito de
esquizofrenia proposto pelo Bleuler em 1911 é que a maior parte das grandes
histerias passou a ser diagnosticada como esquizofrenia.
Freud coloca em suspeita a extensão do conceito bleuliano de esquizo-
frenia, mostrando que a Spaltung não seria suficiente para, a partir dela,
estabelecermos uma nosologia. A propósito, ele argumenta que a Spaltung
está presente na esquizofrenia, na histeria, na neurose obsessiva, no fetichismo
– e também nesses quadros ela constitui grupos autônomos de funciona-
mento. Além disso, pode-se notar que, entre consciente e inconsciente, há
uma Spaltung, ou seja, o funcionamento onírico nos sonhos ou nos estados
confusionais é diverso do funcionamento consciente. Freud mostra ainda ser
possível se servir da noção de divisão do psiquismo para pensar o fetichismo,
no qual uma divisão separa e constitui duas posições subjetivas diferentes: o
sujeito sabe que a mãe não tem o falo, mas mesmo assim acredita que ela o
tem, desmentindo, por um lado, aquilo que ele constatou por outro.
Posto isso, Maleval propõe operarmos com o conceito de loucura histérica,
escamoteado desde o início do século XX, mais especificamente a partir dos
anos 1908. Ele mostra que nas “psicoses dissociativas” a deformação se deve
a uma deriva metonímica da cadeia significante, suscitada por um vazio que
o sujeito não pode dizer, ou seja, pelo buraco da forclusão, enquanto na “lou-
cura histérica” temos uma metaforização cujo sentido pode ser resgatado nas
associações do sujeito. Nos delirantes, localizaríamos o buraco da forclusão,

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2 Histeria ou psicose: Anna O. e Emmy von N.

enquanto nos sujeitos histéricos as lacunas da memória podem ser tratadas


via associação.
Essas histéricas, as primeiras histéricas, as loucas que sofrem de reminiscên-
cias, que alucinam, que deliram, que padecem de vivências que as dividem
de tal modo que elas se dissociam, ficaram lá no final do século XIX, início
do século XX? Não existem mais? A hipótese em exame aqui é que elas ainda
habitam a clínica contemporânea. Menciono a propósito dois casos bastante
exuberantes, que deixam em aberto o diagnóstico diferencial com a esquizo-
frenia, casos trazidos respectivamente por Maleval e por Augustin Menard.
Maria inicia sua análise aos 24 anos, depois de ter sido internada em um
hospital psiquiátrico no ano anterior devido a um quadro de depressão.
Nascida na Guiana francesa, ela é a caçula dos quatro filhos de um pai negro
e uma mãe mestiça. Estudante de Filosofia, ela morava à época na cidade
universitária, onde trabalhava. Ela atribui seus transtornos, sua dificuldade de
ser, a problemas sentimentais, à solidão, ao distanciamento de seu país, mas
também a algo a mais, que não conseguiu localizar e tratar com as abordagens
terapêuticas anteriores.
Sob transferência, a “loucura histérica”, ou “grande histeria” de Maria, nos ter-
mos de Maleval (1981/2005, p. 18-19), nos brinda com alucinações, tendências
a passar ao ato etc. No divã, ela apresenta episódios de regressão nos quais volta
a ser um “bebê muito pequeno”, vive “êxtases fetais”, tem visões, grita, soluça, é
sacudida por espasmos, receia que o analista a mate, diz querer matá-lo, tem a
impressão de ter sido engravidada pelo analista em uma sessão em que estivera
silenciosa etc. Em que pese a exuberância das manifestações, Maleval localiza
aí os elementos que permitem formalizar o caso com o Discurso da Histérica,
e sustenta haver aí uma estrutura histérica cujos desdobramentos ele efetua no
decorrer do seu livro.
Para ele, a dificuldade de Maria em ser, patologia muito frequente nas histerias
contemporâneas, mostra-se como o sintoma ( ) com o qual ela se endereça ao
analista ( ), cujo saber ( ) ela solicita e destitui ao mesmo tempo. Realçando
a dimensão metafórica das falas de Maria, que chega a dizer explicitamente
que “seu sofrimento é uma reivindicação”, Maleval mostra como a presença
do eu-ideal e do Ideal-do-Eu é completamente discernível neste caso: o eu-i-
deal mostra-se no seu delírio de ser um OVNI ou em seu fantasma relativo
ao strip-tease; já o Ideal-do-Eu mostra-se no seu desejo de ser analista ou
uma educadora especializada. Se se tratasse de uma psicose, conclui ele, essas
duas instâncias, que dependem da inscrição do traço unário e da extração do
objeto , não estariam tão claramente presentes e discerníveis.
“Por onde andarão as histéricas de outrora?” 47
Márcia Rosa

Posta a hipótese, segundo a qual as histerias viraram esquizofrenias e passa-


ram a ser tratadas com antipsicóticos e internação, interessa-nos examinar
o outro caso, trazido por Augustin Menard (2012/2015). Trata-se de Noel,
um jovem de 18 anos que chega ao analista depois de longa estadia em uma
clínica psiquiátrica, na qual foi diagnosticado como psicótico delirante e
tratado com fortes doses de neurolépticos. Tal situação surgiu depois de ele
ter passado por um estado de agitação agudo, do tipo maníaco, ao qual se
seguiram fases depressivas e tentativas de suicídio. Nesse período, em que
elementos dissociativos se manifestaram, foi assinalada a presença de um
delírio erotômano, pois ele apresentava-se convicto de ser amado por uma
jovem que encontrou no colégio, embora ela o tivesse recusado.
Sobre esse encontro com uma mulher, no desenrolar do tratamento posterior
com Menard, ficamos sabendo que, ao encontrar essa menina, ela lhe foi
antipática desde o início, mas, ao vê-la com um de seus amigos, teve ciúmes e
armou uma pantomima para chamar a sua atenção: brilhar intelectualmente,
excessos e extravagâncias nas roupas (que fizeram com que seus colegas o
chamassem de “garota”), poemas, a construção e encenação de um enredo
teatral etc. Em um momento em que ela não se mostrava mais indiferente a
ele, ao invés de convidá-la, ele inventa um pretexto e se esquiva. Daí, observa
Menard, “inflama-se o delírio: ‘ela me ama e é o colega que a afasta de mim’”,
e surge a primeira tentativa de suicídio.
Ao se referir a este episódio posteriormente, nas sessões de análise, constata-se
que ele não tinha a certeza delirante do amor dela, tal como se supôs inicial-
mente, configurando-se mais uma esquiva histérica do que uma erotomania.
Nesse momento, ele teve a possibilidade de retomar o contato com ela, se
angustiou muito e, ao receber dela uma recusa definitiva, a angústia desa-
pareceu e ele se disse aliviado. Com isso, pôde-se perceber que aquilo, que
se expressava aparentemente como delirante, era da ordem de um acting out,
portador de uma verdade que não se podia dizer, algo relativo a um desejo
homossexual pelo colega em questão. No decorrer das sessões, a questão
sobre o que quer uma mulher se enunciou, mostrando o sujeito instalado no
discurso histérico, o que possibilitou que ele fosse considerado um caso de
histeria em um homem, e tratado como tal.
Com esses dois relatos, deparamo-nos com questões sobre o diagnóstico
diferencial entre histeria ou psicose. Com relação a elas, Roberto Mazzuca
(2012/2014), no texto “Los excesos de la histeria”, estabelece uma diferen-
ciação entre a loucura histérica e a esquizofrenia. Para nos orientarmos nesse
campo, bastante delicado e difícil clinicamente, ele propõe quatro elementos.

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2 Histeria ou psicose: Anna O. e Emmy von N.

O primeiro deles seria o modo de desencadeamento. Na psicose, o desen-


cadeamento associa-se à presença de Um pai no real, introduzindo uma
instância terceira na relação imaginária do sujeito com seu parceiro. Aqui
Mazzuca se serve do Lacan (1959/1998) do texto “De uma questão prelimi-
nar ao tratamento possível da psicose”, ou seja, de uma concepção clássica da
psicose. Aqui temos Schreber como paradigma: nomeado para o Tribunal, e
não conseguindo simbolizar essa nomeação, ele desencadeia a psicose. Já na
loucura histérica, o desencadeamento ocorreria quando condições erógenas
mobilizam a culpabilidade inconsciente. Veremos, portanto, uma condição
erógena dividindo o sujeito e gerando um campo sintomático. Isso é claro
nos casos freudianos: a histérica que, na cabeceira do pai doente, escuta uma
música e tem vontade de estar em uma festa e não ali, cuidando de um
doente. Isso é suficiente para produzir uma vivência sintomática de paralisa-
ção, por exemplo.
Mazzuca (2012/2014) inclui um segundo ponto entre os elementos aos quais
é importante dar atenção: a modalidade do delírio. Na psicose, o delírio
responde a mecanismos dissociativos, automatismos mentais, alterações na
estrutura da linguagem (no caso das esquizofrenias). No campo dos auto-
matismos mentais, podemos localizar as alucinações audioverbais, quando a
voz do pensamento está sonorizada e o sujeito a escuta como vindo do outro,
como vindo de fora, de forma automática. Na loucura histérica teríamos
delírios oniroides, com alterações do registro imaginário e a presença de
significados inconscientes.
Além disso, para o diagnóstico diferencial importa considerar a evolução do
delírio no sentido da desagregação ou não.
Enfim, é importante se orientar pelas respostas sob transferência, posto que
o Outro do psicótico é diferente do Outro da histérica. Com relação a isso,
nota-se que as loucuras histéricas comportam-se como as outras formas de
histeria, ou seja, são susceptíveis ao tratamento analítico, tal como ocorreu
desde as primeiras histéricas freudianas.

2.3 Armadura do amor ao pai na clínica nodal


e o enlouquecimento histérico
A ideia de que o amor ao Pai funciona como uma armadura sinthomática que
mantém enlaçados os registros Imaginário, Simbólico e Real, proposta por
Lacan em seu Seminário L’insu que sait (Lição 14.12.1976), permite pensar
que, dependendo do modo como o corte incide na amarração sinthomática,

“Por onde andarão as histéricas de outrora?” 49


Márcia Rosa

pode haver um momento de desenlaçamento dos registros manifesto clinica-


mente como enlouquecimento, seja na forma de desencadeamentos drásticos
ou moderados.
Para desenvolvê-lo, vou seguir passo a passo as formulações feitas por Lacan
sobre a histeria a partir da clínica nodal, em especial na Lição acima men-
cionada, servindo-me para tal de Fabián Schejtman no livro, compilado por
ele, Elaboraciones lacanianas sobre la neurosis (2012/2014), em especial no
capítulo de sua autoria “Reversiones teóricas: histeria y obsesión”. Neste, ao
retomar as figuras topológicas propostas por Lacan em 1976 para escrever a
histeria, Schejtman acrescenta suas contribuições para uma discussão sobre o
enlouquecimento histérico.
Ao trazer a clínica nodal para o campo das neuroses, Schejtman (2012/2014)
observa que Lacan aborda a cadeia histérica com a figura de dois toros
abraçados, sendo que um deles está revertido sobre o outro, tendo como con-
sequência que a figura final (Figura 1) inclui o toro revertido em seu interior.

Figura 1: Cadeia histérica para Lacan

Fonte: SCHEJTMAN (2012/2014, p. 373)

Lacan joga aí com as ressonâncias entre torique (tórico), trique (garrote), hys-
térique (histérica), às quais ele acrescentará a historique (histórica). Ele afirma:

a histérica (hystérique) está sustentada em sua forma de garrote (trique)


por uma armadura (armature), distinta de seu consciente, que é seu amor
por seu pai. Tudo o que conhecemos dos casos enunciados por Freud
concernentes a histeria, que se trate de Anna O., de Emmy von N., ou de
não importa qual outra, a outra von R.,..., o engaste (monture) é algo que
designei a pouco como cadeia, cadeia das gerações (LACAN, 1976-1977.
Lição 14.12.1976).

Lacan segue deixando insinuado poder haver alguma outra coisa que faça
cadeia; trata-se de ver como isso, na ocasião, fará garrote (trique) com relação
ao amor ao pai. Com isso, observa Schejtman, ele abre a possibilidade de
se acrescentarem mais ligações no ensaio da cadeia histérica anteriormente

50 “Por onde andarão as histéricas de outrora?”


2 Histeria ou psicose: Anna O. e Emmy von N.

escrita, para a qual partiu de dois toros abraçados com a reversão de um


deles, o que o levou ao garrote (trique) histérico (hystérique) (cf. Fig. 1). Uma
nova alternativa escrever-se-ia como na Figura 2, na qual temos uma cadeia
olímpica de três anéis, a partir da qual são possíveis duas reversões, como
ilustrado a seguir.

Figura 2: Cadeia olímpica de tres anéis e suas reversões

Fonte: SCHEJTMAN (2012/2014, p. 374).

Outra possibilidade: um nó olímpico de quatro anéis no qual seria possível


efetuar reversões, tal como se mostra na Figura 3:

Figura 3: Nó olímpico de quatro anéis e suas reversões

Fonte: SCHEJTMAN (2012/2014, p. 374).

Posto ser possível, como Lacan o demonstra naquela mesma Lição, rever-
ter um dos anéis de uma cadeia borromeana de três ligações, Schejtman
conclui poder supor que o laço entre os anéis da cadeia-garrote histérica
sejam borromeanos. Isso leva a considerar a possibilidade de que a arma-
dura do amor ao pai (AAP) seja um quarto elo de ligação em uma cadeia
borromeana tetrádica que, revertida, envolve os três registros lacanianos.

“Por onde andarão as histéricas de outrora?” 51


Márcia Rosa

Se isto procede, a armadura do amor ao pai (AAP) como sinthome provê


a histérica de estabilidade e consistência, amarrando de modo envolvente
o imaginário, o simbólico e o real (Fig. 4). O encadeamento propriamente
histérico estaria escrito assim:

Figura 4: Armadura do amor ao pai na histeria (AAP)

Fonte: Schejtman (2012,2014, p. 376).

Posto não se tratar de reduzir o sinthome histérico ao sintoma, Schejtman


subscreve a ideia de que tanto o sintoma, quanto a inibição e a angústia
poderiam operar essa função de enodamento. Portanto, a armadura decidirá
o membro do trio freudiano que estará fazendo a função de amarração, ou
seja, de sinthome: o imaginário na inibição; o simbólico no sintoma; o real na
angústia. Posto o primeiro enlace (1), os outros (2 e 3) podem permutar suas
posições.
Schejtman nos indica então um modo possível de concebermos os desen-
cadeamentos drásticos e moderados na histeria. Se efetuarmos um corte
longitudinal ou transversal (Fig. 5) em um toro, obteremos efeitos bastante
diversos.

Figura 5: Cortes longitudinal e transversal no toro

Fonte: SCHEJTMAN (2012/2014, p. 378).

52 “Por onde andarão as histéricas de outrora?”


2 Histeria ou psicose: Anna O. e Emmy von N.

O corte transversal sobre o toro invertido ou sobre o nó de três, tal como


indicado pela segunda seta, não libera as ligações envolvidas (Fig. 6); já o
corte longitudinal, concêntrico ao buraco central ou à alma do toro, dissol-
verá o nó borromeano de três. Inclusive, no estado de toro, as duas figuras ali
envolvidas se dissolvem (Fig. 7).

Figura 6: Corte transversal

Fonte: SCHEJTMAN (2012/2014, p. 378).

Figura 7: Corte longitudinal

Fonte: SCHEJTMAN (2012/2014, p. 379).

Como consequência, não é indiferente o tipo de corte que se efetua sobre a


armadura do amor ao pai (AAP). O corte longitudinal libera os três registros
(R.S.I.) de sua envoltura e os solta; por sua vez, com o corte transversal isso
não ocorrerá. Schejtman propõe, então, que o modo de corte sobre a arma-
dura do amor ao pai (AAP) é decisivo para abordarmos a clínica diferencial
das crises histéricas. Para tal, interessa considerar o valor do acontecimento
em questão, de modo a avaliar se ele produz uma comoção radical na arma-
dura do amor ao pai ou apenas uma crise moderada.
Na Figura 8, na qual temos dois ângulos diferentes do mesmo diagrama,
vemos que, se se cortam transversalmente, as ligações S.R.I. se tornam inde-
pendentes, mas se mantêm enlaçadas pela armadura do amor ao pai (AAP).
Escrevemos assim os desencadeamentos moderados da histeria:

“Por onde andarão as histéricas de outrora?” 53


Márcia Rosa

Figura 8: Desencadeamentos moderados na histeria

Fonte: SCHEJTMAN (2012/2014, p. 381).

Já nos desencadeamentos mais drásticos, o corte não apenas solta os compo-


nentes como também lhes retira a envoltura do amor ao pai (AAP). Portanto,
cada um dos quatro elos se solta. Isso se escreveria tal como na Figura 9
abaixo:

Figura 9: Desencadeamentos drásticos na histeria

Fonte: SCHEJTMAN (2012/2014, p. 382).

2.4 Uma histeria sinthomática?


Posto que a escritura nodal da histeria que acabamos de comentar, Lacan a
faz no Seminário L’insu que sait (1975-1976), momento no qual ele já tem a
seu dispor as formulações sobre o sinthoma, torna-se possível indagar sobre a
relação entre a histeria e o sinthoma, ou seja, indagar por uma histeria cuja
amarração se faria não exatamente pelo Nome-do-Pai, pelo amor ao pai, mas
pelo sinthoma. Essa questão foi tratada por Marie-Hélène Brousse em 1997
sob o título “Hysteria and sinthome”, texto no qual, além de levantar algumas
questões teóricas suscitadas por essa aproximação, ela relata um caso clínico

54 “Por onde andarão as histéricas de outrora?”


2 Histeria ou psicose: Anna O. e Emmy von N.

cuja leitura e direção de tratamento se beneficia ao colocar no horizonte a


aproximação entre a histeria e a clínica do sinthoma.
Ao destacar que, com a noção de sinthoma, Lacan assinala a presença no
sintoma daquilo que não se reduz à sua determinação estrutural, à sua deter-
minação langagière, Brousse indaga a possibilidade de nos servirmos dessa
noção, que Lacan formulou a partir da psicose de James Joyce, na clínica da
histeria definida segundo parâmetros estruturais. Quais aberturas a introdu-
ção da noção de sinthoma traria para a questão histérica sobre o feminino não
mais articulado apenas em relação ao falo, mas também ao não-toda?
Para abordá-lo, trazemos o relato clínico apresentado por ela.

2.4.a Uma poeta não-toda fálica


Esta jovem mulher, em torno dos seus trinta anos, chega à análise há quatro
anos por problemas profissionais e de relacionamento. Além de, desde há
algum tempo, não conseguir mais ter um orgasmo, tinha fracassado em um
exame e sua relação amorosa se lhe tornara insuportável. Além dessas queixas
sintomáticas vagas, ela era dominada pela angústia quando anoitecia. Então,
tinha que estar acompanhada ou tinha que ir para casa.
Nascida na França, ela vem de uma família oriunda do Norte da África. O
pai tem uma vida dupla: se por um lado é muito estrito com relação aos
princípios da religião judaica, por outro a vida inteira traiu a sua mulher,
chegando a apresentar a sua amante, uma mulher não judia, à própria filha.
Esse pai (cuja paranoia é possível localizar) é muito violento e já chegou à
agressão física e ameaça de morte contra sua mãe e contra ela própria.
A mãe, com quem a analisante tem uma relação fácil, é objeto de constantes
ataques e opressões pelo pai. Os ataques surgem na forma de insultos, por
meio dos quais ele mostra o horror que ela, sua mulher, lhe provoca, tratan-
do-a como sendo “suja”, “nojenta”, “um buraco aberto”. Sobre a filha, diz que
é gorda e feia. Aqui Brousse se refere ao comentário de Lacan (1973-1974)
em seu seminário 22, R.S.I., daqui em diante nomeado Seminário R.S.I.,
sobre os efeitos forclusivos que algumas versões do pai podem ter sobre o
sujeito quando elas concernem a um gozo do pai que não está pai-versamente
orientado, ou seja, quando ele não faz de sua mulher a causa de seu desejo.
A análise produz efeitos terapêuticos: a analisante atravessa a fantasia que
a fazia identificar os homens com torturadores e consegue inscrever a sua
relação com um deles em um marco simbólico através do casamento; na

“Por onde andarão as histéricas de outrora?” 55


Márcia Rosa

vida profissional, finalmente consegue escrever e publicar o que escreve. No


entanto, há um elemento que não se modifica. Ele se relaciona à angústia ao
cair da tarde e ao fato de que, na rua, no prédio, nas calhas, em casa, ela vê
animais mortos. A visão desses cadáveres, aos quais ela não associa qualquer
significação, lhe é totalmente enigmática. Este sintoma, o qual afeta a percep-
ção da realidade, começou em um momento em que ela se preparava para um
exame muito difícil, ao qual o pai dava muita importância e que, por isso, seria
um modo de se fazer reconhecer por ele. Uma manhã de inverno, enquanto
ainda estava escuro, ela ia para uma aula de preparação para o exame, quando
viu, na praça, o cadáver de um animal espetado nos trilhos de uma cerca;
era um cachorro atropelado por um carro. Embora não tenha olhado demo-
radamente, o cachorro lhe deu a impressão de ser meramente uma pele sem
carne, um pelo. Tendo visto de relance, correu horrorizada. Desde então, e
com o fracasso no exame, ao cair da noite uma forma obscura – tal como tiras
de tecido usadas em calhas, restos de cartão ou papel vislumbrados em um
calçamento ou na rua – podem dar lugar a uma visão semelhante.
Qual o estatuto dessas visões, indaga Brousse? Embora elas tenham em
comum com as alucinações psicóticas o fato de haver aí um retorno no real de
algo que não foi assimilado no simbólico, fato assinalado pela angústia e pelo
vazio de significação ( ), a analista sustenta que essas visões não são alucina-
ções psicóticas. Não há nelas um outro implicado, seja ele um semelhante ou
perseguidor. Além disso, a visão dos animais mortos não concerne ao corpo
do sujeito, o qual está fora do jogo aqui. Essas visões também não concernem
a uma ausência ou mutilação, mas à presença de um objeto, o qual não é um
semelhante e o qual, tal como veremos, pode mobilizar significações. Passível
de ser negado, ele pertence à ordem simbólica, mas, ao mesmo tempo, há aí
uma invasão do campo da realidade pelo real capaz de afetá-lo. Para Brousse,
esse pelo de animal espetado na cerca, essa pele enquadrando um vazio, evoca
a significação fálica ( ) dos fenômenos que são suscitados a partir daí.
Por um lado, o desencadeamento das visões está claramente associado ao
eu-ideal (a imagem com a qual ela queria impressionar o pai); por outro,
está conectado ao encontro com o real, sobre o qual são as associações que
nos orientam. O fenômeno das visões terminará se restringindo ao encontro
com a escuridão em casa e ao momento de criação literária; portanto, restará
associado ao seu trabalho de escrita. A analisante destaca então uma alter-
nância entre o dentro e o fora, o estar em casa e na rua. Ao escrever poemas
que cobrem e separam um dentro de um fora, encontramos a pele cobrindo,
ou não, a carne, com a qual ela se deparou no primeiro encontro com o

56 “Por onde andarão as histéricas de outrora?”


2 Histeria ou psicose: Anna O. e Emmy von N.

cadáver do animal morto, que ela rejeitou nos termos do “não quero saber
nada disso”. Por outro lado, pelas associações ficamos sabendo que ela sofreu
durante a adolescência com problemas de pele, os quais a fizeram desafiar a
sua imagem naquela época. Finalmente, um texto poético que ela escreveu
foi intitulado “Carne” (Meat) e constitui-se em uma tentativa de amarrar,
se nos arriscamos a dizer isso, comenta Brousse, a alma (soul) à carne (flesh):
esta carne (flesh) que no animal nunca é culpada. As cadeias significantes
se estreitam em torno de um par significante: pele/pelo – skin/fur –, carne
(alimento)/carne (sensualidade) – meat/flesh. Com isso, os distúrbios na
percepção são organizados pela cadeia significante e demonstram uma possi-
bilidade de equivocação metafórica.
Se o eu-ideal implica o pai, à parte do Ideal do Eu essas percepções visuais
implicam o par significante skin/flesh (pele/carne): pele (skin), o significante
referido a i(a), à imagem narcísica unificada da significação corporal, e carne
(flesh), evocando a sexualidade na forma da fornicação no seu aspecto menos
idealizado, na forma prostituída ( ). Ao mesmo tempo, um objeto inominá-
vel (objeto a) velado pela pele. Aqui é interessante lembrar que, na época em
que os distúrbios de visão surgiram, ela tinha um parceiro amoroso a quem,
para o seu pesar e fascinação, ela associava o comércio de prostitutas. Através
dele, ela colocava em questão a sua relação com as outras, mulheres nomeadas
prostitutas. Uma escansão do termo francês, sua língua materna, prostituée
nos conduz a tué, morto, que a carne do animal veio imaginarizar. Por meio
da criação poética, as formas vagas e amedrontadoras são transformadas em
letras e relacionadas ao simbólico e ao retorno do recalcado. As visões asso-
ciam-se às faltas do pai, em função de suas inúmeras amantes. No entanto,
algo resiste à falicização, ao trabalho de associação e interpretação, o qual
reduziria as visões ao campo do sentido.
Para abordar isso que resta, Brousse se refere a um comentário de Lacan: “Na
busca incessante do que é ser mulher, ela [a histérica] só pode enganar seu
desejo, já que esse desejo é o desejo do outro, por não ter satisfeito a identi-
ficação narcísica que a teria preparado para satisfazer um e outro na posição
de objeto” (1957/1998a, p. 453-454). Destacam-se as dificuldades da jovem
analisante com a sua identificação narcísica, a recusa de sua própria imagem,
a rejeição de qualquer um que tenha a ousadia de comentar essa imagem ou
de se interessar por ela e, enfim, a fragilidade do seu desejo sexual, inclusive
pelo seu marido. Em que pese isso, trata-se de alguém que cuida muito da
própria imagem, que é muito bonita e elegante e que parece bastante impli-
cada em encarnar o mistério fálico em sua própria imagem, observa Brousse.

“Por onde andarão as histéricas de outrora?” 57


Márcia Rosa

As dificuldades com sua própria imagem corporal são associadas ao modo


como o pai, repetidamente, se refere ao corpo e à aparência de sua mulher, a
mãe da analisante, bem como ao modo como essa mãe cuida da casa: “suja”
e “bagunçada”. Na fala repetida pelo pai, o corpo da mãe é um “buraco
nojento”. Portanto, debaixo da pele há carne, movimento inverso ao da fali-
cização de uma imagem. Nesse ponto, localizam-se os efeitos forclusivos do
pai. Na medida em que ele não consegue ter acesso ao feminino através de
uma fantasia, a mãe não é colocada na posição de um objeto que lhe causa o
desejo; neste lugar, há apenas um vazio circundado por pelo, uma besta, uma
fera, nenhum desejo humanizou o objeto feminino.
A hipótese formulada por Brousse é a de que esta impossibilidade paterna
barrou o acesso da filha ao tratamento do seu próprio corpo por uma
significação, o que se mostra na sua incapacidade de se representar em um
corpo. Para ela, então, a imagem corporal está ligada, antes e acima de tudo,
ao seu trabalho de escrita e de publicação de poesia. Seus textos giram em
torno dos significantes carne (alimento) – carne (sensualidade) – carniça;
para tal, ela se serve de um poeta cuja inspiração o leva a visitar regularmente
o necrotério. Portanto, conclui Brousse, suas visões estão ligadas ao seu sin-
thoma, escrever. Os efeitos forclusivos localizam-se nesta rejeição do objeto
real que ela é para o outro.
A escritura dessa jovem poeta lhe dá um corpo capaz de ser nomeado, f(x),
x sendo os poemas (peau-aime) e seus versos. A busca, na poesia, por um
nome de mulher que pudesse identificá-la, serve como uma suplência à
incapacidade do Nome-do-Pai de transmitir um desejo que localizaria o
feminino como objeto causa de um desejo. Em vista disso, ela busca atra-
vés do sinthoma encontrar a letra que lhe daria uma identidade feminina,
letra impossível de se encontrar. No entanto, com isso ela contrabalança
as visões que mobilizam a imagem de um corpo não-todo falicizado. As
visões, sintoma e escritura, sinthoma, complementam-se uma à outra; ela
o noticia ao dizer que as imagens de morte nunca são mais fortes do que
quando ela está escrevendo. Assim, essas imagens são usadas a serviço da
escrita; as visões são, neste caso, uma apresentação daquilo que no corpo
não foi simbolizado, e a escrita uma tentativa de elevar este ponto de não
simbolização ao lugar de um nome. Enfim, se Lacan diz que uma letra
– (x) na fórmula f(x) – condensa o gozo para um dado sujeito, no caso
desta analisante é uma imagem que cumpre esta função. A questão que se
coloca, finaliza Brousse, é a seguinte: sob quais condições uma imagem é
uma letra?

58 “Por onde andarão as histéricas de outrora?”


2 Histeria ou psicose: Anna O. e Emmy von N.

Posta a hipótese de uma histeria sinthomática, nos deslocamos agora para


a outra ponta das leituras sobre a histeria, a sua ponta inicial, ou seja, os
Estudos sobre a histeria, dos quais destacaremos os casos de Emmy von N.
e de Anna O., buscando levar em conta a distinção entre neurose e psicose,
sem desconhecer as questões trazidas pela clínica do sinthoma ao tratamento
e leitura estrutural da histeria.

2.5 As tempestades (storms) mentais de Emmy von N.


Emmy von N. foi atendida por Freud em 1888 durante sete semanas e, um
ano depois, durante oito semanas. Ela foi o primeiro caso de histeria no
qual Freud se serviu da hipnose para investigar e propiciar a ab-reação das
experiências traumáticas responsáveis pelos sintomas histéricos. Em Estudos
sobre a histeria, publicado quase uma dezena de anos depois, Freud (1893-
1895/1974) descreveu detalhadamente as duas fatias de trabalho clínico e
acrescentou a elas uma longa discussão (p. 91-152).
Emmy (Fanny Moser) casou-se aos vinte e três anos com um homem de
muitas posses, quase quarenta anos mais velho do que ela. Viveram juntos, e
muito bem, durante três anos, período no qual tiveram duas filhas. A segunda
era recém-nascida quando o marido faleceu repentinamente, morte pela qual
ela foi investigada, a pedido dos filhos do primeiro casamento, posto ter se
tornado herdeira de uma das maiores fortunas da Europa. Ao final das inves-
tigações, ela foi inocentada. Freud a atendeu aproximadamente doze anos após
a morte do marido; nessa época, ela se queixava de um sofrimento bastante
intenso: depressão, insônia e era muito atormentada por dores. Sua fala era
interrompida, de tempos em tempos, por espasmos que a faziam gaguejar e,
no rosto e pescoço, apresentava movimentos convulsivos, tiques. Ela emitia de
tempos em tempos um estalido com a boca e, embora seu discurso fosse coe-
rente e bem-construído, a cada dois ou três minutos ela se calava subitamente,
contorcia o rosto com uma expressão de horror e nojo e exclamava: “Fique
quieto! – Não diga isso! – Não me toque!”. Para Freud, ocasionalmente ela
ficava sob a influência de uma alucinação de natureza apavorante, servindo-se
da fórmula protetora como um modo de manter imobilizado o material
intruso. A essas interpolações, depois das quais ela retomava o fio discursivo
normalmente, provavelmente sem ter sequer notado a interrupção, Freud dá
o estatuto de “delírio histérico”, observando que esse delírio “alternava com
a consciência normal, da mesma forma que um verdadeiro tique força a sua
entrada num movimento voluntário sem com ele interferir, e sem se misturar
com o mesmo” (FREUD, 1893-1895/1974, p. 93).

“Por onde andarão as histéricas de outrora?” 59


Márcia Rosa

Ao rastrear as experiências que a teriam assustado, Freud encontra histórias


medonhas sobre animais, tais como a de um menino que morrera de susto,
quando alguém lhe colocara um rato branco na boca. Tendo ouvido do Dr.
K. que ele enviara uma caixa cheia de ratos brancos para Tiflis, ao narrá-lo
ela mostra sinais de horror e repete a sua fórmula protetora, acrescentando:
“Imagine só uma criatura dessas na cama!”, “Pense só, quando for aberta! Há
um rato morto entre eles – um que foi ro-í-do!” (FREUD, 1893-9595/1974,
p. 95). Pela hipnose Freud tenta eliminar as alucinações, bem como as ideias
delirantes sobre as quais, diga-se de passagem, ela acrescentara os ratos bran-
cos que não existiam na notícia do jornal sobre a morte do menino.
Rastreando as causas desencadeadoras traumáticas, surgem os relatos de
uma cena aos cinco anos, na qual os irmãos lhe atiravam animais mortos,
ocasião dos primeiros espasmos e desmaios. Aos sete anos, novo susto ao
ver a irmã morta no caixão; aos oito, assustara-se com o irmão enrolado em
lençóis como um fantasma; aos nove, vira o queixo da tia, morta no caixão,
cair. Essas cenas, revistas com muita intensidade, Freud buscava eliminá-las
por hipnose e sugestão. Ele localizava a causa desencadeadora de cada uma
dessas manifestações, sejam o estalido, a fórmula protetora, os tiques faciais,
a gagueira etc., de modo a que, localizadas as reminiscências patogênicas,
ela pudesse ab-reagi-las. Em nota posterior ao caso, Freud diz ter estado
naquele momento a procurar uma origem psíquica para todos os sintomas
em casos de histeria, desconhecendo que a abstinência sexual dessa jovem
viúva provavelmente gerava aí um quadro de neurose de angústia (FREUD,
1893-1895/1974, p. 109).
Um ano depois da primeira etapa do tratamento, Emmy retorna a Freud livre
de parte dos sintomas anteriormente tratados por hipnose, mas queixando-se
de constantes estados de confusão – “storms in her head” (“tempestades em
sua cabeça”) –, insônia, tristeza etc. Gaguejava e emitia o estalido com muita
intensidade, apresentava sintomas de anorexia. O tratamento hipnótico da
recusa em comer dá lugar aos relatos de “náusea” e “repulsa” originadas em
situações infantis quando era obrigada pela mãe a comer uma carne fria e
gordurosa. O temor de ser contaminada mostra-se, neste momento, associado
ao fato de o irmão, adoecido com tuberculose, deixar a escarradeira à beira da
cama (FREUD, 1893-1895/1974, p. 127).
Freud abre a discussão do caso com a questão diagnóstica, apresentando jus-
tificativas para o diagnóstico: delírios e alucinações suaves que não afetavam
as outras atividades mentais; a modificação da personalidade em estado de
sonambulismo artificial, a anestesia na perna dolorida, dados da anamnese,

60 “Por onde andarão as histéricas de outrora?”


2 Histeria ou psicose: Anna O. e Emmy von N.

além da neuralgia ovariana indicavam a natureza histérica de Emmy. Pequena


quantidade de conversão marca o caso, ou seja, pouca transformação da
excitação psíquica em sintomas somáticos crônicos. Os sintomas psíquicos
eram alterações no temperamento (ansiedade, depressão melancólica), fobias
e abulias, essas duas últimas determinadas por experiências traumáticas. A
partir daí, Freud retoma e discute, uma a uma, as manifestações da doença,
sua causa desencadeadora e o mecanismo de constituição.
Para o que nos interessa, o estudioso da histeria observa que nos estados de
delírio, suscitados por momentos aflitivos, havia uma limitação da consciência
e uma compulsão a associar semelhante à que ocorre nos sonhos; alucinações e
ilusões eram facilitadas no mais alto grau. Esse estado, comparável ao de alie-
nação alucinatória, representava um acesso histérico e poderia ser associado
a uma situação de “confusão alucinatória”. Havia também uma alternância
entre um estado de delírio, no fundo do qual se localizavam lembranças
traumáticas, e o estado normal: “esses dois estados estavam entrelaçados sem
prestar nenhuma atenção um ao outro” (FREUD, 1893-1895/1974, p. 142).
A partir do relato do caso feito em Estudos sobre a histeria, uma literatura
extensa e várias orientações já se produziram. Ao examinar os escritos psi-
canalíticos de revisão do caso Emmy, indexados pela American Psychology
Association (APA), Brida e Mello Neto (2015) observam que, nos artigos
publicados entre as décadas de 1950 e 1980, há uma ênfase na revisão do
diagnóstico dado por Freud ao caso. Entre esses revisores, que dão a Emmy o
diagnóstico de esquizofrenia, estão Bleuler (1912), Brunswick (1928), Macal-
pine e Hunter (1953) etc.
É interessante anotar que, entre os diagnósticos aventados na releitura do
caso de Emmy, surge inclusive um que localiza seus sintomas no quadro de
um distúrbio motor e comportamental fixado entre as idades de 2 e 14 anos,
denominado Doença de Gilles de la Tourette (PAPPENHEIM, 1888-1890
apud BRIDA; MELLO NETO, 2015). Já nos artigos catalogados pela APA
entre os anos 1990 e 2000, o interesse pelo diagnóstico cede lugar a uma
discussão do valor histórico do caso para a construção do método, da teoria e
clínica psicanalítica. Para os autores, o interesse na catalogação e na discussão
diagnóstica parece típico dos anos 1950, época em que a psicanálise estaria
bastante influenciada pela psiquiatria: em 1952, a Classificação Internacional
de Doenças, a CID-6, passa a incluir uma seção com os distúrbios mentais e,
nesse mesmo ano, a American Psychiatric Association (APA) publicou a pri-
meira versão do DSM. Naquela época, concluem Brida e Mello Neto (2015),
há uma tendência em excluir sintomas psicóticos do diagnóstico de histeria.

“Por onde andarão as histéricas de outrora?” 61


Márcia Rosa

Deixando de lado as discussões da APA, retomaremos o debate sobre o caso


Emmy a partir da leitura feita por dois psicanalistas de orientação lacaniana,
Serge André (1986/1987) e Nieves Soria (2015). Embora compartilhem da
mesma orientação teórica e clínica (ambos são psicanalistas de orientação
lacaniana), eles fazem leituras divergentes do caso.
Entre os analistas que vão operar com a hipótese de histeria, temos Serge
André no capítulo “Emmy e a repulsa” de seu livro O que quer uma mulher?
Para André, nessas manifestações exuberantes da histérica louca temos
um quadro de confusão alucinatória, o qual opera na forma de fenômenos
oníricos. Ao manter a tese da aproximação da exuberância dos fenômenos
da histeria e o funcionamento do sonho, André coloca-se ao lado de Karl
Abraham e também de Freud. Que a loucura histérica funcione como se
estivesse no estado onírico não quer dizer que isso seja um estado psicótico
organizado pela forclusão, afirma ele. As manifestações oníricas presentes aí
dizem de uma inserção do significante no imaginário do corpo e não, como
seria no caso da psicose, dos significantes operando no real (1986/1987, p.
96-97).
Ao se referir ao caso, André afirma que, “se há furo na fala e lacuna na
memória, o discurso de Emmy os envolve num verdadeiro fluxo de formações
significantes que o ponto de vista psiquiátrico classificaria como fenômenos
alucinatórios, mas que devem ser distinguidos das alucinações na psicose”
(1986/1987, p. 96). A propósito das construções delirantes com os animais (o
rato, o sapo morto etc.), Freud fala em delírio e mostra que essas associações
oníricas delirantes chegam a constituir vivências alucinatórias. André retoma
o comentário de Freud segundo o qual haveria aí uma “compulsão às asso-
ciações semelhantes àquelas constatadas no sonho, onde as alucinações e as
ilusões são extremamente facilitadas” (FREUD apud ANDRÉ, 1986/1987,
p. 97). Há fenômenos oníricos acompanhados por um forte sentimento de
realidade e, tal como já dito, a inserção do significante no imaginário do
corpo e não no real, como seria no caso da psicose.
Ao retomar com Freud a conexão entre o recalcado e o sexual, André sustenta
que “o sintoma responde ao trauma por uma verdadeira proliferação de
significação fálica”. Seguindo nessa linha, ele continua: “o que é recalcado
é o rato enquanto símbolo sexual do pênis, mas o que faz trauma é que esse
símbolo se desmancha e deixa aparecer o dejeto imundo que tem por função
encobrir: o rato morto” (ANDRÉ, 1986/1987, p. 94). Para o nosso autor, o
caso Emmy é paradigmático no sentido de nos permitir ler a função primária
da repulsa na histeria: ele “está ligado à presentificação de um certo estado do

62 “Por onde andarão as histéricas de outrora?”


2 Histeria ou psicose: Anna O. e Emmy von N.

corpo – o do cadáver ou da carne em decomposição – ou à passagem súbita


de um estado de coisa para o estado do corpo” (ibid., p. 97). Tais encontros
seriam traumáticos na medida em que fazem surgir um real dessexualizado;
a função real, orgânica, do corpo irrompe, produzindo uma queda do erótico
ao funcional, e isso causa repulsa no sujeito histérico.
Já Nieves Soria (2015) pensa Emmy no campo da psicose, mais especifica-
mente da paranoia. A psicanalista observa que as associações no caso se refe-
rem preferencialmente à morte e não à sexualidade. Como está o elemento
sexual, pergunta ela? Poder-se-ia dizer que há uma etiologia sexual nesse caso
de histeria? O único elemento que faria pensar em uma histeria seria o nojo
de tomar água, atribuído ao fato de ter visto a governanta dando água para
um animalzinho no copo. Isso está associado também ao irmão doente cuja
escarradeira ficava ao lado da cama. Para Nieves, este último elemento diz de
uma vivência persecutória de contaminação via a ingestão de alimentos.
Nieves observa ainda que, nos delírios sobre os animais, ela passa do real para
o alucinado sem transição. Além disso, a transferência torna-se paranoide:
Emmy acusa o Dr. N. e Freud pela enfermidade da filha (uma paranoia) e
rompe o tratamento com Freud solicitando-lhe que se desvincule dela como
paciente, por escrito. Com esses elementos em consideração, Soria aventa a
hipótese da paranoia.
Aqui não deixa de ser interessante abrir um parêntese e introduzir alguns
dados biográficos, atualmente disponíveis. Freud chegou a acrescentar uma
nota ao relato inicial do caso, introduzindo a hipótese de que parte da sin-
tomatologia provavelmente se devia ao fato de ela ser uma jovem viúva em
abstinência sexual. Ele diz que ela lhe trouxera no decorrer do tratamento,
“sem dúvida, uma editio in usum delphini [uma edição expurgada] da história
de sua vida” (FREUD, 1893-1895/1974, p. 149). Com isso, a influência do
elemento sexual na sintomatologia de Emmy é tratada pela via da abstinên-
cia. No entanto, historiadores e biógrafos, entre eles Ola Anderson (2000),
não deixam dúvidas quanto ao fato de que Fanny Moser, o verdadeiro nome
de Emmy von N., não era uma viúva abstinente. Pelo contrário, Moser, a
mulher mais rica da Europa na época, benfeitora das artes e da ciência, cos-
tumava hospedar na sua mansão os seus amantes, em geral médicos, que ela
consultava nas instâncias ou instalava em sua residência, a título de médico
particular (ANDERSON, 2000, p. 315). Para os costumes vigentes, a vida
sexual dela era considerada muito extravagante. Embora riquíssima, ela era
pouca aceita na aristocracia devido à suspeita de ter envenenado o marido,
fato pelo qual circulara na literatura policial, embora tenha sido provado que

“Por onde andarão as histéricas de outrora?” 63


Márcia Rosa

ela não o fizera. Em suma, o elemento sexual não estava tão ausente como
Freud fora levado a supor.
Anderson observa que, na época em que procura Freud, Fanny Moser atri-
buía sua doença à morte prematura do marido e às dificuldades na educação
de suas duas filhas, que estavam com 14 e 16 anos, e que se mostravam vul-
neráveis a perturbações nervosas (ibid., p. 310). Retomando os comentários
de Estudos sobre a histeria, o biógrafo confirma que ela se sentiu aliviada de
sua angústia ao final do primeiro tratamento com Freud; portanto, a cura
teria sido bem-sucedida. Em que pese isso, esteve em tratamento com outros
terapeutas nos anos posteriores, tendo se submetido inclusive à sonoterapia.
Segundo consta, a relação com as filhas permaneceu bastante conflituosa
e chegou a ser fonte de litígios judiciais, tendo em vista a administração do
patrimônio.
Depois de ter tido vários amantes, perto dos seus setenta anos ela se apaixonou
por um rapaz bem mais jovem e decidiu não se casar com ele, o que era sua
intenção, ao concluir que, além de não amá-la, ele havia lhe extorquido boa
parte de sua fortuna. Com isso, ela passou a ser assolada pelo temor de ficar
arruinada e mergulhar na miséria; chegava a se convencer de que estava pri-
vada de tudo, até mesmo da comida diária. Conforme comenta seu consultor
financeiro da época, era difícil então fazê-la entender que, apesar da perda
financeira, ainda lhe restavam alguns milhões (ibid., p. 317). A não ser neste
momento específico, Fanny Moser era considerada por aqueles com quem
conviveu apenas como excêntrica e nunca como mentalmente perturbada.
Sobre isso é interessante ressaltar que não há qualquer registro de internação
por doença mental, observa seu biográfo.
Sobre as discussões diagnósticas, Anderson observa que, nesse como em
outros casos nos quais o diagnóstico é retrospectivo, é imprescindível levar
em conta a relatividade no tempo dos critérios e das definições. Em vista
disso, propõe que, mais do que saber se o diagnóstico de Freud era certo ou
errado, o interessante dessa discussão está em “confrontar as denominações
e classificações de 1889 com as atuais, fruto de outro quadro descritivo e
explicativo” (ibid., p. 317). Dentro do campo da psicanálise freudiana, ela
própria, encontraríamos diferenças se avançássemos no tempo até as formula-
ções psicanalíticas dos anos 1920 em diante. Contudo, um neuropatologista
moderno e bem informado dos anos 1889 teria tido razão em fazer um
diagnóstico de histeria, tal como mais de um deles o fez. Em suma, Anderson
conclui que “não possuímos os dados necessários ao estabelecimento de um
diagnóstico se nos baseamos em um referencial atualizado” (ibid., p. 318).

64 “Por onde andarão as histéricas de outrora?”


2 Histeria ou psicose: Anna O. e Emmy von N.

Freud, ele próprio, ao responder a uma das filhas de Fanny Moser em 1918,
observou que, nas duas ocasiões em que a teve em tratamento, não tinha
uma compreensão apurada do seu caso. Ele centra seu pós-escrito ao caso
em dois elementos: o fato de a hipnose, usada na época, ser um método sem
sentido e sem valor, bem como o fato de não ter se dado conta de que ela
“amava as filhas com tanta ternura quanto as odiava intensamente” (FREUD
apud ANDERSON, 2000, p. 319). Ao segundo aspecto ele, então, denomina
como ambivalência. Ela era uma mulher estimável e séria, além de moral-
mente austera e guiada por um senso de dever, cuja nobreza de caráter pode
ter sido estragada pelos conflitos não resolvidos ao longo da vida, finalizou
ele (ibid., p. 319).

2.6 As nuvens (clouds) de Anna O.


No momento em que Freud e Breuer publicaram Estudos sobre a histeria, em
1895, o tratamento de Anna O., conduzido por Joseph Breuer, já havia sido
concluído há aproximadamente 13 anos. No final de 1880, Breuer fora cha-
mado para atender uma paciente de 21 anos por causa de uma tussis nervosa.
Ele a acompanhou até meados de 1882, tendo estado com ela ainda algumas
vezes após o término do tratamento.
O próprio Breuer (1893-1895/1974, p. 63-90) apresenta o curso da doença em
quatro estágios: uma incubação latente de meados de julho a 10 de dezembro
de 1880; a doença manifesta; um período de sonambulismo, alternando-se
com estados normais, com grande número de sintomas crônicos que perdu-
raram até dezembro de 1881; a cessação gradual dos estados e sintomas até
junho de 1882, quando o tratamento foi encerrado.
Com o adoecimento do pai em julho de 1880, Anna se dedicou fervorosa-
mente a cuidá-lo, embora não tenha conseguido salvá-lo: em abril de 1881
ele veio a falecer. Nesse afã de cuidar do pai, ela adoece com anemia, aversão
pelos alimentos e desenvolve uma tussis nervosa muito intensa. Com isso, teve
que abandonar a cabeceira do doente. Seis meses depois de ter iniciado o cui-
dado do pai, desenvolveu um estrabismo convergente e, de dezembro a abril,
permaneceu acamada. Nesse período, surgiram graves perturbações, dores de
cabeça, diplopia, afecção do nervo ótico, perturbações da visão, paresias etc.
Nesse momento, Breuer começou a atendê-la. Ela apresentava dois estados
de consciência distintos que se alternavam: em um deles, ela reconhecia o
ambiente, estava melancólica e ansiosa, mas normal, no outro, tinha alucina-
ções, ficava ofensiva, arrancava botões da roupa de cama e das peças íntimas.

“Por onde andarão as histéricas de outrora?” 65


Márcia Rosa

Queixava-se de lacunas na sequência de seus pensamentos conscientes, de que


estava ficando louca; acusava as pessoas de prejudicá-la e de deixá-la em um
estado de confusão. Parava no meio de uma frase, repetia as últimas palavras
e, após uma pausa, continuava a falar. Surgiram alucinações com cobras
negras, que era como via seus cabelos e fitas, embora ficasse dizendo a si
mesma que eram apenas seus cabelos que estava vendo. Aos poucos, surgiram
uma profunda desorganização funcional da linguagem, uma dificuldade
de encontrar as palavras e, por fim, a perda do domínio da gramática e da
sintaxe – só usava infinitivos. Com o tempo, juntava penosamente quatro ou
cinco idiomas, tornando-se quase ininteligível. Por fim, passou a falar apenas
em inglês.
Com a morte do pai, “o trauma psíquico mais grave que possivelmente pôde
experimentar” (FREUD; BREUER, 1893-1895/1974, p. 68), ela alternou
um estado de estupor e de excitação. Depois, começou a não reconhecer as
pessoas, “todas as pessoas que via pareciam figuras de cera, sem qualquer liga-
ção com ela” (ibid., p. 68). Experimentava absences alucinatórias, via figuras
aterradoras, caveiras e esqueletos. A ordem das coisas era tal que, durante o
dia, era perseguida por alucinações e, se no final da tarde tivesse, sob hipnose,
atravessado essas clouds (nuvens), como as denominava, acordava e perma-
necia tranquila e desanuviada no decorrer da noite. Nessa época, surgiram
impulsos suicidas e ela começou a ser medicada com cloral à noite.
Esse foi o quadro que Breuer tratou dia a dia, convidando-a a narrar alguma
história, as quais ela construía no estilo de Hans Anderson, histórias que
começavam com uma moça sentada à cabeceira de um doente. Breuer a
hipnotizava ao anoitecer e ela construía histórias que, com o agravamento
do quadro, se transformaram em uma cadeia de alucinações medonhas e
terrificantes.
Com Breuer ela desenvolveu a talking cure, tal como ela mesma a nomeou,
e ele, Breuer, um método terapêutico no qual cada sintoma era considerado
isoladamente e trabalhado na ordem inversa de seu aparecimento. Uma vez
feito esse percurso, o sintoma desaparecia. Dessa forma, e seguindo esse
método, Breuer chegou a uma compreensão do quadro de Anna O., apre-
sentado por ele em Estudos sobre a histeria com os diagnósticos de “psicose
histérica” (ibid., p. 88), bem como de “histeria traumática” (p. 85).
Em 1972, o psiquiatra e historiador canadense H. F. Ellenberger publicou,
no periódico de Psicologia Clínica e Psicopatologia Geral, intitulado L’Evo-
lution Psychiatrique, o artigo “L’histoire d’“Anna O.”: Étude critique avec
documents nouveaux”, o qual trouxe novos elementos ao caso. Já de posse da
66 “Por onde andarão as histéricas de outrora?”
2 Histeria ou psicose: Anna O. e Emmy von N.

verdadeira identidade da paciente, Bertha Pappenheim, revelada por Ernest


Jones em 1953, Ellenberger teve acesso ao relatório escrito por Breuer em
1882, intitulado “Evolução da doença durante a estadia em Bellevue de 12
de julho de 1882 a 29 de outubro de 1882”, relatório constante dos arquivos
do sanatório no qual ela estivera internada e reproduzido por ele quase ipsis
literalis no seu texto dos Estudos sobre a histeria.
O historiador Borch-Jacobsen (1995), em seu livro Souvenirs d’Anna O.: une
mystification centenaire, se serve da revisão crítica feita por Ellenberger e de
outros documentos para mostrar como improcedente a lenda de que, depois
de encontrar a sua paciente sofrendo as dores do parto, devido a uma pseu-
dociese, Breuer teria engravidado a sua mulher em uma viagem a Veneza.
A inexatidão desse dado é facilmente verificável pela data do nascimento
da última filha de Breuer. No entanto, o relatório de Breuer (1882) deixa
bastante claro “o amor verdadeiramente apaixonado pelo pai” (BREUER
apud ELLENBERGER, 1972, p. 710), além de observar que, no decorrer
da internação, “frequentemente ela passava horas diante do retrato de seu
pai e falava em ir visitar seu túmulo em Pressburg” (ibid., p. 712). Destaca
ainda a irritação desagradável de Anna contra sua família, seus julgamentos
denegrindo a eficácia da ciência em relação ao seu sofrimento e sua falta de
crítica com relação à gravidade de sua doença.
Nos arquivos do Sanatório Bellevue surpreende, sobretudo, a longa lista de
medicamentos prescritos à paciente, nos últimos seis meses antes da internação,
devido a uma neuralgia facial grave, entre os quais fortes doses de cloral e de
morfina. Com a sua entrada no Sanatório, a dose de morfina foi reduzida; no
entanto, o agravamento das dores fez com que ela voltasse a ser administrada
tal como na prescrição anterior. Portanto, ao sair de Bellevue em outubro de
1882, Anna O. recebia doses de 7 a 10 miligramas por dia de morfina. Essas
informações sobre o efeito de dependência química gerada pelas altas doses de
medicamentos deu origem ao artigo “Revisiting Anna O.: a case of chemical
dependence”, publicado por Sérgio de Paula Ramos, psiquiatra e professor no
Departamento de Psiquiatria na Universidade Federal de São Paulo (UFSP),
no periódico History of Psychology, em 22 de dezembro de 2013.
Ramos (2013) retoma as dosagens de medicamentos com as quais Anna
chega a Bellevue: 80 mg/dia de morfina, divididos em duas injeções, e 5g em
dose única noturna de cloral. Como a paciente apresentou sintomas de pri-
vação, a dose de morfina foi aumentada e mantida em 100mg/dia. Segundo
Ramos (2013), a dose de cloral, um sedativo não barbitúrico, é dez vezes
maior do que a dose terapêutica e só é usada em pacientes já de há muito

“Por onde andarão as histéricas de outrora?” 67


Márcia Rosa

dependentes da droga, pois seria uma dosagem potencialmente letal para


pacientes normais. O mesmo se aplica às 10 ampolas diárias de morfina, que
seriam o indício de uma dependência química que não teria sido gerada da
noite para o dia. Frente a isso, ele aventou a hipótese diagnóstica de psicose
tóxica. Ramos chega a listar os sintomas presentes no caso de Anna, índices
de dependência/abstinência de morfina e/ou hidrato de cloral: flutuações de
humor; cefaleia; alterações abruptas de consciência; alucinações e pseudoalu-
cinações terroríficas; anorexia; anemia; emagrecimento; tentativas de suicídio
e síndrome de privação.
No tocante ao artigo de Ellenberger, é interessante anotar a sua observação
de que o relatório redigido por Breuer em 1882 deixa perceber que o diag-
nóstico de histeria não foi postulado de início por ele, senão por exclusão
com um quadro orgânico. De qualquer modo, conclui ele, o protótipo de
uma cura catártica, para retomar os termos dos Estudos sobre a histeria, não
foi nem uma cura, nem uma catarse. Anna O. tornou-se uma morfinômana
grave, que tinha conservado uma parte de seus sintomas, os mais manifes-
tos.” (ELLENBERGER, 1972, p. 717). O pesquisador canadense retoma a
hipótese, já apresentada em seu livro The Discovery of the unconscious (1970),
segundo a qual a doença de Anna O. era bastante semelhante a uma das
grandes ‘doenças magnéticas’ da primeira metade do início do século XIX.
Nesses casos, observa ele, “a doença é a criação mito-poética do paciente com
o encorajamento e a colaboração involuntária do terapeuta” (ELLENBER-
GER, 1972, p. 717), o que, traduzido para os nossos termos, quer dizer
apenas que a histérica não vai sem o Outro, sem seu interpretante.
Ao desdobrar o comentário de Ellenberger, Borch-Jacobsen (1995) menciona
o alvoroço provocado em Viena nessa época pelas demonstrações do hip-
notizador Carl Hansen, as quais geraram “um verdadeiro acesso de febre
mesmero-hipnótica” (BORCH-JACOBSEN, 1995, p. 69). Para ele, não é
surpreendente que Anna tenha desenvolvido sintomas semelhantes, traço
por traço, às demonstrações efetuadas nessa ocasião por Hansen: contraturas
obstinadas, anestesias, amnésias pós-hipnóticas, alucinações positivas e nega-
tivas, problemas de visão, afasias etc. (ibid., p. 70). No que toca aos outros
sintomas, tais como a dupla personalidade, o dom de línguas, a relação eletiva
com Breuer, a cura pela palavra e, enfim, a hipermnesia hipnótica, todos eles
faziam parte da panóplia corrente das curas magnéticas alemãs na primeira
metade do século XIX, algumas das quais ele cita e retoma (ibid., p. 71).
O período entre o final de 1882, quando ela deixa o Sanatório Bellevue, e 1888
foi marcado por, além das várias internações, uma visita aos primos, durante a

68 “Por onde andarão as histéricas de outrora?”


2 Histeria ou psicose: Anna O. e Emmy von N.

qual Bertha é estimulada pela prima Anna Ettlinger (a qual havia sido educada
pelos pais de modo mais liberal e com aberturas para uma vida profissional,
o que lhe possibilitara recusar várias propostas de casamento e permanecer
solteira) a empreender trabalhos de enfermagem e literários (GUTTMANN,
2001, p. 94). Em 1887, Ernest Jones menciona como ela ainda experimentava
uma duplicidade: permanecia bem durante o dia e à noite ainda padecia de
estados alucinatórios. A permanência de menos de um mês de internação em
Inzersdorf, em junho de 1887, na qual ela foi diagnosticada com “histeria” e
“sintomas somáticos”, terminou e ela foi novamente considerada “curada”. Esta
foi sua última internação.
No ano seguinte, 1888, ela publicou, anonimamente e às suas próprias
custas, seu primeiro livro de contos de fadas, recentemente traduzido para
o inglês com o título Little Stories for children (1888/2008) e, em 1890, sob
o pseudônimo de Paul Berthold, publicou um livro de contos, recentemente
traduzido para o inglês sob o nome In the junk shop (1890/2008). Em 1895,
quando Breuer e Freud publicaram seus Estudos sobre a histeria, ela havia
se deslocado de Viena para Frankfurt e estava já bastante inserida na sua
carreira de assistente social, ajudando mulheres e crianças que fugiam dos
pogroms no leste da Europa.
Ellenberger conclui seu artigo de 1972 associando a doença de Anna O. ao
fato de essa jovem mulher não poder exteriorizar suas energias físicas e men-
tais, nem satisfazer seus ideais elevados. Ele mostra-se admirado que ela tenha
atravessado suas provações, sublimado sua personalidade e se tornado uma
das grandes militantes dos direitos das mulheres e fundadora dos trabalhos
de assistência social.
Para Melinda G. Guttmann (2001), em sua biografia The enigma of Anna
O., A biography of Bertha Pappenheim, a publicação do seu primeiro livro e
dos outros que vieram propiciou que ela se deslocasse do seu teatro privado
para um teatro público. Depois da primeira publicação, ela nunca mais esteve
doente a ponto de precisar ser internada. Guttmann conclui que a doença
de Bertha durou dos 22 aos 29 anos, período em que tradicionalmente um
casamento era esperável. Desse momento de turbulência nenhum sinal teria
restado visível na sua bela face, senão os cabelos precocemente embranqueci-
dos (GUTTMANN, 2001, p. 100).
Por esses dados, podemos concluir que a escrita e as causas sociais, tomadas
como ideais orientadores da sua vida cotidiana, ocuparam os lugares antes
habitados pela doença. Não há nas biografias relatos sobre como ela atravessou
o vício da morfina e do cloral, bastante intenso nos últimos anos da doença.
“Por onde andarão as histéricas de outrora?” 69
Márcia Rosa

Tal como no caso de Emmy von N., o caso de Anna O. é revisitado tendo
em consideração o diagnóstico diferencial: histeria ou esquizofrenia. Aqui as
leituras divergem. Se nos atemos às leituras do caso feitas por Serge André,
Moustapha Safouan e Nieves Soria, psicanalistas de orientação lacaniana,
veremos que enquanto os dois primeiros entendem termos aí um quadro
de histeria, a terceira assinala a presença de índices claros de uma psicose
esquizofrênica.
André segue para Anna O. a mesma argumentação já exposta para o caso de
Emmy von N., ou seja, também neste caso ocorre uma passagem brusca de
um estado a outro: do inanimado ao animado, ou uma passagem que corres-
ponde a uma mutação da coisa real para a coisa significante, ou o inverso. Em
suma, é o recobrimento do real pelo significante que é, a cada vez, recolocado
em questão. Isso vai incidir sobre o próprio corpo e gerar situações em que o
sujeito histérico se vê decaído de sua imagem corporal e, mais radicalmente, da
possibilidade de sustentar essa imagem pela fala (ANDRÉ, 1986/1987, p. 95).
Moustapha Safouan (1988), em seu artigo “L’histoire d’Anna O.: une révi-
sion”, se serve de uma construção em estilo ficcional feita por Lucy Freeman
(1972), biógrafa de Anna O. no seu livro The story of Anna O. Trata-se da
história de uma pobre orfãzinha que não tinha família e que vagava por uma
casa desconhecida à procura de alguém a quem pudesse amar. Ela percebe que
o pai sofre de uma doença incurável e espera a morte. Sua mulher não tinha
mais esperanças. Mas a orfãzinha, recusando-se a acreditar que o homem
estava condenado, assenta-se ao lado dele, noite e dia, proporcionando-lhe
todos os cuidados. Pouco a pouco, ele se recupera e lhe fica tão agradecido
que a adota. Assim, ela passa a ter alguém a quem amar (FREEMAN apud
SAFOUAN, 1988, p. 12-13). Safouan lê aí a posição fantasmática de Bertha,
aquela de um sujeito para quem o Amor deve vencer Thanatos, o inimigo.
Essa glorificação do amor e, em especial, do amor ao pai, iria junto com o
não desenvolvimento do elemento sexual.
Embora dê notícias de estar a par das revisões críticas do diagnóstico no
sentido da esquizofrenia, Safouan defende que o estado de Bertha seria
resultante de uma posição subjetiva que tende a “uma reivindicação que
abole todo limite designável à lei do coração: a saber, em direção à forclusão,
no sentido de um ‘nada querer saber da mortalidade do pai’” (ibid., p. 15).
Ao impulsionar seu amor ao pai até a idolatria, ela o reduz a não ser senão
uma figura na qual se refletiria seu amor ilimitado por ela mesma e nada
mais, conclui ele. Em vista disso, a morte iminente de seu pai bem-amado
lhe fez tocar com o dedo a sua própria impotência, levando-a a reivindicar a

70 “Por onde andarão as histéricas de outrora?”


2 Histeria ou psicose: Anna O. e Emmy von N.

toda-potência sem restrições (ibid., p. 18). Pelo resto, continua Safouan, tudo
nos assinala a presença de uma histeria arquetípica, desde o estilo de vida
consagrado à demanda até a posição absolutamente insolente com a qual ela
tratava os homens, entre os quais ela não apenas teve admiradores bem como
propostas de casamento.
Para Nieves Soria (2015), se nos referirmos ao ensino de Lacan, Anna O. esta-
ria entre as estruturas psicóticas. Apesar de uma sintomatologia que sugere
a histeria, manifestações corporais, susceptibilidade à hipnose etc., quatro
elementos sugerem a psicose como estrutura. O primeiro deles, a ausência
absoluta de desenvolvimento do elemento sexual. Uma vez que, para Freud, a
etiologia das neuroses é sexual, é importante observar que esse elemento está
ausente no caso de Anna O. Nos desdobramentos de sua história, através da
sua biografia, constatamos que ele continuará ausente.
Em sua discussão, Breuer faz referência a uma psicose histérica que apresenta
alucinações no marco de uma profunda desorganização da linguagem. Em
Anna O. a desagregação é muito clara. Há elementos que dão conta da
presença de um buraco forclusivo no simbólico, isto é, de uma forclusão
do Nome-do-Pai, P0, a qual vai produzir uma profunda desorganização do
campo da linguagem. Para Soria, temos como exemplos disso: as pessoas se
converterem em figuras de cera sem nenhuma relação com ela, um fenômeno
próximo aos homens feitos às pressas na paranoia de Schreber.
Além disso, ocorrem intensos impulsos suicidas; houve, inclusive, uma
época em que a família teve que se mudar de casa porque ela começara a ter
passagens ao ato que diriam de uma “desordem provocada na juntura mais
íntima do sentimento de vida do sujeito” (LACAN apud SORIA, 2015, p.
52). Com esta frase, extraída do texto de Lacan “De uma questão preliminar
a todo tratamento possível da psicose”, Jacques-Alain Miller construiu a
teoria da psicose ordinária. Soria se serve desta mesma referência para pensar
as passagens ao ato de Anna O. enquanto desordens no sentimento de vida,
desordens que levam o sujeito em direção à morte. Ao fazê-lo ela estaria
abrindo a possibilidade de considerarmos a hipótese da psicose ordinária para
o caso de Anna O., não fosse o fato de que as manifestações da doença neste
caso são atestados evidentes de um desencadeamento, seja ele histérico ou
psicótico.
Além disso, continua Soria, a presença alucinatória das serpentes diria de um
retorno no real do falo forcluído. Essas serpentes se apresentaram enquanto
ela cuidava do pai: estava com o braço em cima da cabeceira do doente e a
partir do seu braço ela vê uma serpente enquanto os dedos viram pequenas
“Por onde andarão as histéricas de outrora?” 71
Márcia Rosa

serpentes. Percebe-se aí que não há significação fálica, que o elemento sexual


está excluído. Quando surge algo que, em uma histeria, recolocaria o ele-
mento sexual, ‘cobra = falo’ por exemplo, isso dará lugar a uma alucinação,
tal como essa das serpentes. Localiza-se aí uma elisão do falo e da significação
imaginária, bem como o retorno do falo no real, , enquanto elemento
forcluído no simbólico.
Finalmente, enquanto índice da psicose, há a sensação, relatada por ela,
de que tudo aquilo que viveu naquela época foi uma dissimulação. Nieves
associa isso com o falso self e a ilegitimidade do narcisismo esquizofrênico. A
psicanalista mostra que a tese do tratamento bem-sucedido cai por terra com
a evolução imediatamente posterior do caso.
Sobre a evolução do caso, é interessante insistir a respeito do que já foi colo-
cado antes, ou seja, depois do tratamento com Breuer, a partir do qual foi
considerada curada, Anna O. passou por um período de seis a sete anos de
muita instabilidade e de várias internações psiquiátricas. Ela só se estabili-
zou quando começou a escrever. Ironicamente, isso que é considerado uma
talking cure, uma cura pela palavra, na realidade parece ter sido uma writing
cure, ou seja, uma cura pela escrita. Além disso, ela se organizou e se estabi-
lizou a partir dos ideais – tornou-se uma assistente social avant la lettre, uma
militante feminista e consagrou sua vida à defesa da causa das crianças órfãs
e das mulheres, em especial daquelas vendidas e traficadas como escravas
brancas e das crianças geradas neste contexto.

2.6.a Bertha Pappenheim e sua writing cure


Embora os dois modos que Anna O./Bertha Pappenheim encontrou para se
estabilizar – a cura pela escrita e a luta e defesa dos ideais – não deixem de
ser modos clássicos de estabilização da psicose, se nos debruçamos sobre os
seus escritos não encontramos no campo da linguagem elementos evidentes e
manifestos de uma esquizofrenia. De modo a entrarmos um pouco mais na
sua writing cure, remetemo-nos a um desses escritos.
Em 2008, um setor de Estudos do Pensamento, Cultura e Literatura Austríaca
da Universidade de Emory, em Atlanta, nos Estados Unidos, traduziu para
o inglês, com o título In the Junk Shop and Other Stories, os dois primeiros
escritos publicados por Bertha Pappenheim. Os escritos de 1888, Little Stories
for Children, compõem-se de cinco contos de fadas, dos quais ela se serve
no sentido de possibilitar que as crianças aprendessem seus modos e seus
lugares. Esses escritos para crianças estavam dentro de uma tradição de peças

72 “Por onde andarão as histéricas de outrora?”


2 Histeria ou psicose: Anna O. e Emmy von N.

de aprendizagem que advertiam contra uma vida de licenciosidade, bebidas


e desordem. Por um lado, os contos traduziam um moralismo conservador,
ao mesmo tempo em que antecipavam, de modo ímpar, o movimento em
direção à individuação da criança, movimento ao qual Bertha dará vida com
seus trabalhos sociais com as crianças órfãs.
Nos escritos de 1890, In The Junk Shop (Na loja de coisas usadas, em tradução
livre), encontramos uma espirituosa escritora que se serve da literatura para
apresentar problemas sociais e a sua solução potencial. “Todos os escritos, dos
contos para crianças aos contos de moralização social, são experimentos pro-
postos ao pensamento dos leitores: como poderia ser o mundo? E as respostas,
é claro, estavam construídas nos contos eles mesmos” (PAPPENHEIM,
2008, p. 15). As concepções de Bertha sobre a cultura judaica e a possibilidade
de sua transformação naquela época (leia-se: a de serem aculturados) eram,
ao mesmo tempo, conservadoras e muito “iluminadas”. Seus escritos contam
essa história, embora de modo sutil: o que aconteceria se? (ibid., p. 17).
Na loja de coisas usadas de Bertha, são os próprios objetos que tomam a
palavra e contam suas histórias. Entre eles temos um pedaço de renda antiga,
uma bonequinha, uma gaiola de pássaros, um pince-nez, uma caixinha de
música etc. Apaixonada pelas rendas antigas, ela abre os contos dando a pala-
vra a um desses pedaços de renda. Ele conta a história de como foi parar na
loja de usados, começando por dizer que era parte do ornamento das roupas
de um bebê, mas, depois de uma tempestade com trovões e raios, dos quais
o bebê se salvou por milagre, ele foi doado a uma igreja e passou a ornar os
paramentos de um padre nas celebrações. Daí, ele foi escolhido pela igreja
como uma peça preciosa a ser exposta em um museu, cujos visitantes, bem
como as suas conversas diante do stand no qual estava exposto, ele descreve
etc. O conto é construído com humor e ironia:

“Qualquer um de vocês já foi alguma vez exibido em um museu?”, pergun-


tou o pedaço de renda [dirigindo-se aos outros objetos usados], convencido,
sem dúvidas, de ter sido o único a ter tido essa experiência. Todos ficaram
reverencialmente silenciosos até que uma figurinha de porcelana falou com
uma voz fininha e disse ter estado em uma exibição de cerâmica.
Então o pedaço de renda antiga riu desdenhosamente. “O que é uma exibição
de cerâmica, onde as coisas mais sem gosto são expostas, cestos de palha e
espadas, comparada à significação de um museu de artes e trabalhos manu-
ais cujo propósito é criar o gosto e a apreciação pelo belo!” (PAPPENHEIM,
2008, p. 41. Tradução minha.)

“Por onde andarão as histéricas de outrora?” 73


Márcia Rosa

Aqui nos lembramos do comentário de Lacan sobre o colecionador que,


no filme de Jean Renoir, A regra do jogo, exibe uma caixinha de música,
objeto precioso que lhe causa o desejo e cuja exibição o faz corar (LACAN,
1958-1959/2016, p. 100). No caso de Bertha, ela denuncia aí seu apego
pelos trabalhos manuais e, em especial, o seu amor pelas rendas antigas,
objeto de uma coleção particular que ela exibia em algumas ocasiões2
e, em última instância, o seu amor pelo belo.
A história contada pelo pedaço de renda, aos outros objetos da loja de usados,
é bastante inusitada: trata-se de um objeto, de um resto, que é colocado como
testemunha e narrador da história daqueles que o possuíram e dos lugares por
onde passou. Ou seja, é uma história contada do ponto de vista daquilo que
sobra, daquilo que resta, em suma, do ponto de vista do objeto. Resta uma
pergunta: em que medida Bertha Pappenheim estaria identificada a esses
objetos da loja de usados, ou seja, estaria na posição de objeto ela própria?
Enfim, ao retomar as questões propostas neste artigo não é difícil encontrar
pontos de conexão entre as histerias de Emmy von N., por exemplo, e aquela
da analisante apresentada por Brousse, o que nos leva a indagar a possibili-
dade de articulação entre a histeria e o sinthoma, ou seja, entre os casos dos
Estudos sobre a histeria e a clínica nodal. Com isso, leríamos os Estudos sobre
a histeria com as formulações lacanianas trazidas pela psicose sinthomática de
Joyce. Logicamente, essa “histeria sinthomática” coloca em suspenso a ideia
do critério estrutural como o melhor modo de tratar as junções e disjunções
entre os dois campos, aqueles da histeria e da psicose. Com a proposta de
resgate das noções de ‘psicose dissociativa’ e de ‘loucura histérica’, de algum
modo Jean-Claude Maleval já acenara com esta questão e contribuíra com
este debate. No entanto, se terminou relativizando o critério categorial, ele
não chegou a postular uma articulação entre as histéricas freudianas e as psi-
coses sinthomáticas, ao invés disso, ele se propôs a resgatar uma classificação
da nosologia clássica anterior. As questões que a aproximação das histéricas
freudianas e as psicoses sinthomáticas sugerem, serão reabertas com a noção
de “histeria rígida”, trazida por Lacan em O Seminário, livro 23, O Sinthoma,
daqui em diante denominado Seminário do Sinthoma.

2 Em 2007, o Museum of Applied Arts de Viena expôs a coleção de rendas de Bertha Pappenheim com
o título “Lace and soon”. Disponível em: <https://www.mak.at/em/lace_and_so_on>. Acesso em: 27
dez. 2018.

74 “Por onde andarão as histéricas de outrora?”

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