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Da técnica e da política lacaniana

Marcus André Vieira

0.
Qual a posição de Lacan com relação à técnica? Com o termo, resumo todo o
universo do know-how, de receitas de “como fazer” para obter tal e tal efeito.
Não se fala muito de técnica no mundo lacaniano, como nos congressos de
psiquiatria, por exemplo, que sempre apresentam protocolos, condutas pré-
fixadas. É fácil perceber como isso é incompatível com a psicanálise se
assumimos que ela se propõe a encontrar um caminho próprio para cada um,
uma solução personalizada.
Reservamos para isso o termo singularidade. Os caminhos do sujeito em análise
são singulares, como dizemos. É um caminho único, só dele. A mudança que vai
acontecer na vida daquela pessoa ou o ponto onde ela vai chegar na sua análise é
só dela, só para ela.

1.
Não basta dizer isso, ainda é vago. Há toda uma diferença entre particular, singular
e universal (que Lacan explora a partir de Aristóteles e Kant) que tem um valor
clínico fundamental e que não se percebe de saída.
O singular não é bem o que é só meu. Afinal, nada é só nosso. Quase tudo
recebemos do Outro. Nosso jeito de falar e pensar e sentir, inclusive. Tudo o que
se sente ou vive já foi vivido e publicado em mil exemplares. Então não será nem
minha história, nem meus amigos, nem minhas ações que vão constituir minha
singularidade.
É coisa bonita de falar, mas não é fácil de atingir, essa tal de singularidade, a
capacidade de lidar com o que há de singular em nós. A singularidade não é um
dado, ela escapa. Insiste, mas não consiste em nada que se diga. É mais uma
marca, um jeito, um não-sei-quê que faz com que alguma memória ou
experiência, nem tão original assim, nos apareça com a certeza de que ali está o
que nos faz únicos.
O mais próximo que se tem disso na experiência quotidiana, se apreende, por
exemplo com a roupa velha.
É aquela roupa muito usada que por isso mesmo ganha um toque de
singularidade. Sentimos que aquilo não serve a mais ninguém do mesmo jeito. E é
como se ali, nela, estivéssemos no que somos de forma única. Vemos que a
experiência do singular não é coisa do outro mundo, mas também não é bem
desse mundo.
Já ganhamos uma certeza: a singularidade vem por acréscimo, não é uma coisa é
mais um verbo, em análise a gente se singulariza.

2.
De todo modo, vemos como preceitos técnicos podem ser problema, pois não há
receita para fazer com que uma roupa velha seja aquela que me dá uma sensação
de singularidade que nenhuma outra me dá – mesmo outras também velhas.
A receita visa o que da subjetividade é típico, mas visamos, analistas, o atípico.
Antes de detalhar a proposta lacaniana, vale contrastá-la com a montagem
clássica da relação entre esses dois aspectos da experiência de si na vida, a do
típico e a do atípico.
É uma articulação em dois tempos. Imaginou-se que era preciso em uma análise,
para começar, seguir caminhos conhecidos até chegar aos meandros mais
próprios, individuais. Seria preciso o diagnóstico e as categorias, histeria e
obsessão, por exemplo, para ter um mapa que nos levasse à singularidade. Neste
momento, seria a hora de improvisar, de abandonar os diagnósticos.
Fica muito rachado. Falamos coisas como alguém que “como boa histérica”
deixou o parceiro na impotência, “criou um desejo insatisfeito”, que é uma
“histérica de livro”. Não é mentira, as pessoas são típicas. Na hora, porém, de lidar
com o ponto cego do livro, da história, do ponto singular, como fazer? Decoramos
o que há de universal em cada um para esquecer tudo na hora agá. De um lado a
receita e, de outro, a tal da invenção? Esse é um tema tipicamente romântico que
Lacan vai recusar.
A receita, o manual não têm como produzir novidade. Uma receita de bolo não
traz um novo bolo, mas sempre o mesmo. Não é à toa que estamos sempre
comprando o último manual. A partir daí, tendemos a situar a novidade na
maneira de aplicar essa técnica ao paciente. É quando cada praticante fica
autorizado a improvisar como der, no escuro. O tema do caso-a-caso, do um-por-
um vem, muitas vezes, nesse ponto apenas encobrir nossa ignorância. Como não
há manual para o singular, o praticante vai, então, falar em intuição e outros temas
levemente místicos, sem poder dizer o que fez e porque.

3.
A solução elegante de Lacan a essa questão vai envolver uma nova dialética, outro
jogo entre o mesmo e o novo, o igual e o diferente. Aqui minha referência é o texto
“A palavra que fere” de J. A. Miller.
Uma análise não muda nunca com relação ao seu objetivo. Vamos sempre querer
chegar à mesma coisa, o fazer da análise é sempre o mesmo, por isso meu título.
Fazer análise é sempre a mesma coisa, só que os caminhos para fazer essa coisa
vão variar tanto quanto os sujeitos que nos chegarem.
O fazer da análise é sempre igual, no sentido formal, claro, mas o como fazer da
análise varia para cada um. É outra relação entre mesmice e novidade. A mesmice
é a do resultado, mas não o de ganhar isso ou aquilo. É uma mesmice
exclusivamente formal.
Precisamos de uma definição disso que é sempre o mesmo em nossa prática. A
mais geral que pude enunciar é a seguinte:
Fazer análise é sempre fazer com que o inconsciente se apresente e isso mude a
vida (fazer “a coisa rodar de outro modo”, como afirma Lacan no Seminário 19).
E logo vamos também propor uma definição de inconsciente, para deslocar nossa
noção senso comum com o aporte lacaniano mais essencial, o objeto a.
O inconsciente não é o não-consciente, mas sim o resto.
É o resto no sentido de que os elementos que o constituem são feitos do que, da
vida, foi excluído da vida, porque não se podia viver. A perturbação que eles iam
causar seria destruidora e, dessa forma, ficam de fora, excluídos, recalcados.

4.
Fazer análise, então, é sempre trazer os restos à cena para que a perturbação que
eles causam reconfigure essa cena. É o que Lacan chama de subversão.
Não é à toa que, para caracterizar isso que é sempre o mesmo em uma análise
Lacan usa o termo política. É nossa política no sentido em que trazemos à cidade
o real do inconsciente freudiano, feito dos poderes do resto.
O poder do resto tem dois aspectos. O primeiro é o de subversão no sentido que
vimos, de perturbação que força um acontecimento, uma nova situação, uma
reordenação das cartas. O segundo é o de promover a singularidade. Os restos, já
vimos com a roupa velha, têm sempre mais poder de singularidade do que é belo
e novo, unanimidade.
De resto em resto a gente, em análise, vai se aproximando de alguma coisa que é o
mínimo múltiplo comum de todos os restos de uma história. Para ir rápido diria
que é o estilo. É o que produz uma análise: as subversões vão progressivamente
depositando o que não tenho como dizer de mim, que se apresenta em tudo o que
digo sem que seja dito, mas que faz ressoa em minha fala um estilo.
O poder do resto é o de conferir estilo. Essa é a política lacaniana.

5.
A solução elegante de Lacan, então, é a da proposta de grande liberdade na
prática, no “como fazer” e pouquíssima na visada, em “o que fazer”.
Este foi, inclusive, parâmetro do próprio ensino de Lacan que fez tudo
diferentemente de Freud para fazer o mesmo que este fazia em seu tempo. Por
isso, a célebre frase lacaniana: “façam como eu, não me imitem”.
A política lacaniana da singularidade é toda uma ética. O modo que me parece o
mais clínico de falar dela é como orientação, termo proposto por J. A. Miller para
seu modo de ler Lacan.
Então, em vez de técnica, uma orientação clínica lacaniana.
Mas não seguiremos nenhuma indicação técnica? Vale-tudo?
Apesar dessa orientação, sempre a mesma, não ficamos no vale-tudo com
relação ao “como fazer”. Isso, porque Lacan distribui em três planos a margem de
liberdade no analista, três patamares.
No plano da sessão, do encontro, da confrontação de corpos fazemos como dá,
como quisermos, desde que seja na direção do que a política do tratamento
psicanalítico exige. Lacan designou este plano como o da tática, onde reina a
interpretação. Interpretamos como der.
Entre a política de um lado e a tática de outro, porém, Lacan introduz um terceiro
termo, um terceiro patamar, entre os dois. É o da direção do tratamento, que ele
chama de estratégia. A estratégia do tratamento se orienta pela política da
psicanálise, sua ética, mas delimita como direcionar a sequência de sessões.
Temos, neste plano, alguns roteiros de caminhos mais ou menos pré-definidos.
Se quero trazer os restos à cena em um contexto obsessivo, por exemplo, a pior
coisa é querer “trocar ideia”, querer explicar o que seja, porque provavelmente
serei convencido por a+b de meus erros pelo analisante. Terei de ouvir uma teoria
melhor do que muitas do que é o resto e quais são seus poderes. Ser levado por
uma defesa que consiste em fazer o resto perder seus poderes de singularidade.
Nesse plano intermediário é que entra a transferência. É na lida com a
transferência que poderei, como no exemplo do obsessivo, ter alguma efetividade
com relação à orientação de uma análise. É neste plano, igualmente que entra a
supervisão, para destacar o que sou, analista, como objeto na transferência.

6.
Resumindo para concluir: “vale-tudo” na sessão desde que submetido, orientado
pela estratégia do tratamento e ela também orientada pela política da psicanálise,
a de um desejo muito especial, que é a de fazer o inconsciente ir produzindo
surpresas em nossas vidas até que a gente descubra nosso jeito próprio de se
surpreender com o que faz nosso estilo.

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