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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS


Centro de Artes
Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais

Dissertação de Mestrado

Esmaltes Cerâmicos de Cinza:


um dispositivo relacional como possibilidade de reconexão
ser humano/natureza por meio da arte

Angélica de Sousa Marques

Pelotas, 2023

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Angélica de Sousa Marques

Esmaltes Cerâmicos de Cinza:


um dispositivo relacional como possibilidade de reconexão
ser humano/natureza por meio da arte

Dissertação apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Artes Visuais do Centro
de Artes da Universidade Federal de Pelotas,
como requisito parcial à obtenção do título de
Mestre em Artes Visuais, na linha de pesquisa
Processos de Criação e Poéticas do Cotidiano.

Orientadora: Profa. Dra. Angela Raffin Pohlmann

Pelotas, 2023

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2023 Esmaltes Cerâmicos de Cinza: um dispositivo relacional como
possibilidade de reconexão ser humano/natureza por meio da arte

Revisão
Adriana Schein
Paulo Damé

Diagramação
Camila Cuqui

Capa
Fotografia digital
Tatiana Pureza

Contracapa
Fotografia digital
Angélica Marques

Universidade Federal de Pelotas / Sistema de Bibliotecas


Catalogação na Publicação

M357e Marques, Angélica de Sousa


MarEsmaltes cerâmicos de cinza : um dispositivo relacional
como possibilidade de reconexão ser humano/natureza por
meio da arte / Angélica de Sousa Marques ; Angela Raffin
Pohlmann, orientadora. — Pelotas, 2023.
Mar238
236 f. : il.

MarDissertação (Mestrado) — Programa de Pós-Graduação


em Artes Visuais, Centro de Artes, Universidade Federal de
Pelotas, 2023.

Mar1. Cerâmica. 2. Esmaltes de cinza. 3. Dispositivo


relacional. 4. Arte colaborativa. 5. Respigagem. I.
Pohlmann, Angela Raffin, orient. II. Título.
CDD : 738.1

Elaborada por Leda Cristina Peres Lopes CRB: 10/2064

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Angélica de Sousa Marques

Esmaltes cerâmicos de cinza: um dispositivo relacional como


possibilidade de reconexão ser humano/natureza por meio da arte

Dissertação aprovada, como requisito para obtenção do título de Mestre em Artes Visuais, Programa de
Pós-Graduação em Artes Visuais, Centro de Artes, Universidade Federal de Pelotas.

Data da defesa da dissertação: 30/03/2023

Banca examinadora
__________________________________________________________________________
Profa. Dra. Angela Raffin Pohlmann (Orientadora) – PPGAV/CA/UFPel
__________________________________________________________________________
Profa. Dra. Ana Elisa de Castro Freitas – ProfCiAmb/UFPR
__________________________________________________________________________
Prof. Dr. Cláudio Tarouco de Azevedo – ILA/Furg
__________________________________________________________________________
Prof. Dr. Clóvis Martins Costa – PPGAV/CA/UFPel
__________________________________________________________________________
Prof. Me. Gustavo Tirelli Ponte de Sousa - Ceart/Udesc

6
Agradecimentos

Agradeço a todos que direta ou indiretamente contribuíram no processo desta pesquisa.

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Resumo
MARQUES, Angélica de Sousa. Esmaltes cerâmicos de cinza: um dispositivo relacional como
possibilidade de reconexão ser humano/natureza por meio da arte. Orientadora: Angela Raffin
Pohlmann. 2023. 236p. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais) – Centro de Artes, Universidade Federal
de Pelotas, Pelotas, 2023.

Esta pesquisa tem como tema a criação de processos de produção de esmaltes cerâmicos à base de
cinzas de vegetais e propõe a investigação desses processos a partir do conceito de dispositivo relacional
(BOURRIAUD, 2009; HOLMES, 2006), gerando encontros de pessoas para a troca de saberes e o encontro
da obra de arte com o espectador. A sindemia da covid-19, presente desde antes do ingresso no mestrado,
fez refletir sobre a necessidade de desenvolver novas práticas ecológicas, micropolíticas e microssociais,
associadas às práticas estéticas. Nesse cenário, o tema mostrou-se significativo, pois corroborou a
importância de práticas ecosóficas nos registros ecológicos do meio ambiente, nas relações sociais e
na subjetividade humana (GUATTARI, 1990). Sendo assim, a pesquisa apresenta práticas de coleta de
barro selvagem e uso das cinzas como forma de reaproveitamento de um resíduo. A autora discorre
sobre o contexto do território que passa a habitar, que se tornou seu lar e ateliê, e procura mostrar
que, por meio da relação desse território e da arte cerâmica, é possível nos encantarmos (KINCELER,
2008) e estabelecer uma reconexão com os ciclos da natureza. A trajetória é descrita desde o encontro
com a arte cerâmica e com os processos colaborativos até o ingresso no Programa de Pós-graduação
em Artes Visuais (PPGAV) da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Foram utilizadas como suporte
metodológico a cartografia, a autobiografia – com ênfase na autoetnografia –, e a pesquisa bibliográfica,
que se complementaram no decorrer da pesquisa. Para pensar sobre a coleta dos materiais utilizados
nesta pesquisa, o processo artístico é apresentado com o conceito de respigagem (VARDA, 2000) das
cinzas vegetais e do barro selvagem sob a perspectiva da cultura visual (LODDI; MARTINS, 2009). O fogo
é considerado como um elemento determinante no processo, que também ressalta a necessidade de
reconexão do ser humano com o cosmos, fazendo um entrelaçamento da cerâmica e da estética wabi-
sabi (IKISHI, 2018; KEMPTON, 2018; KOREN, 2019; SAINT CLAIR; RIBEIRO, 2016) com a espiritualidade.
São apresentadas algumas das produções artísticas individuais da autora e produções coletivas, como a
proposição poética Compartilhamentos, acompanhada do conceito de “coisa” (INGOLD, 2015).

Palavras-chave: Cerâmica. Esmaltes de cinza. Dispositivo relacional. Arte colaborativa. Respigagem.

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Abstract
This research’s theme is the creation of production processes for ceramic glazes based on vegetable ashes
and proposes the investigation of these processes from the concept of relational device (BOURRIAUD,
2009; HOLMES, 2006), generating meetings of people for the exchange of knowledge and the meeting of
the work of art with the spectator. The covid-19 syndemic, already in course before my admission at the
master’s degree, led to reflection on the need to develop new ecological, micropolitical and microsocial
practices, associated with aesthetic practices. In this scenario, the theme proved to be significant, as it
corroborated to the importance of ecosophic practices in the ecological records of the environment, in
social relations and in human subjectivity (GUATTARI, 1990). Therefore, the research presents wild clay
collection practices and the use of ashes as a way of reusing waste. The author discusses the context
of the territory she starts to inhabit, which has become her home and studio, and seeks to show that,
through the relationship between this territory and ceramic art, it is possible to become enchanted
(KINCELER, 2008) and establish a reconnection with the nature cycles. The trajectory is described from
the encounter with ceramic art and collaborative processes until entering the PostGraduate Program in
Visual Arts (PPGAV) at the Federal University of Pelotas (UFPel). Cartography, autobiography – with an
emphasis on autoethnography – and bibliographical research were used as methodological support,
which complemented each other during the research. To think about the collection of materials used in
this research, the artistic process is presented with the concept of gleaning (VARDA, 2000) of vegetable
ashes and wild clay from the perspective of visual culture (LODDI; MARTINS, 2009). Fire is considered a
key element in the process, which also highlights the need to reconnect human beings with the cosmos,
interweaving ceramics and wabi-sabi aesthetics (IKISHI, 2018; KEMPTON, 2018; KOREN, 2019; SAINT
CLAIR; RIBEIRO, 2016) with spirituality. Some of the author’s individual artistic productions and collective
productions are presented, such as the poetic proposition Shares (Compartilhamentos, originally),
accompanied by the concept of “thing” (INGOLD, 2015).

Keywords: Ceramics. Ash glazes. Relational device. Collaborative art. Gleaners.

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Sumário
Carta ao fogo ____________________________________________________________ 13
Introdução _______________________________________________________________________ 19
1 O Território ____________________________________________________________ 33
1.1 Nas vivências do território, a reconexão com os ciclos da natureza __________ 33
1.2 Desdobramentos das vivências no Território ______________________________ 40
2 Encantamento: o germinar de uma pesquisa __________________________________ 50
2.1 Germinações na caminhada: proposições em arte relacional e colaborativa __ 52
2.1.1 Geodésica Cultural Itinerante ____________________________________ 52
2.1.2 Em torno do torno ______________________________________________ 58
2.2 Vidrado cerâmico: da sabedoria oriental à alquimia das cinzas vegetais _____ 67
3 Cerâmica esmaltada: os processos do barro e da cinza ________________________ 77
3.1 O encontro: entendendo as matérias-primas ______________________________ 79
3.2 Respigando cinzas e barro selvagem: duas forças que vêm do território _____ 93
3.3 Coletando e preparando as cinzas de madeira _____________________________ 110
3.4 Preparo e aplicação dos esmaltes de cinzas vegetais _______________________ 115

10
4 A boca do dragão ____________________________________________________________ 124
4.1 Construindo o forno ___________________________________________________ 124
4.2 Conhecendo o forno por meio das queimas ______________________________ 133
4.3 A transformação pelo fogo: o fogo como coautor __________________________ 144
4.4 Espiritualidade no fazer cerâmico e a estética wabi-sabi ___________________ 149
5 Processo artístico: a cerâmica e o esmalte de cinza como dispositivos relacionais___ 155
5.1 Processos colaborativos: compartilhando saberes _________________________ 157
5.2 Oficina de preparação de esmaltes cerâmicos a partir de cinzas vegetais _____ 174
5.3 Compartilhamentos _____________________________________________________ 177
Carta aos leitores ______________________________________________________________ 221
Referências ____________________________________________________________________ 229

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O oleiro que pela primeira vez conseguiu, graças ao calor
do Fogo, endurecer as formas que dera à argila, acabava
de descobrir um agente de transmutação. O Fogo era um
meio não só de trabalhar a Natureza mais depressa, mas
também através do Fogo se faziam coisas diferentes das
que a Natureza faz. Por isso, o Fogo era considerado uma
força mágico-religiosa que não pertencia ao mundo do
homem. Assim, as sociedades arcaicas atribuíam a aqueles
que trabalhavam com o Fogo, como o oleiro e o ferreiro,
poderes sobrenaturais. Hoje, apesar de todos os avanços da
tecnologia e da ciência, o Fogo ainda conserva seus mistérios
e não perdeu seu caráter mágico e ardente.

(NAKANO, 1989, p. 105)

12
Carta ao fogo
13
Pelotas, inverno de 2021.

Querido fogo,

Espero que te encontres quente!

Tenho pensado muito em nossa história. Na minha infância afastada de ti, por me dizerem
que eras perigoso, e como foi assim também na adolescência. Não sei se te lembras de como
eu era obediente. Ah! Se eu pensasse, naquela época, como penso agora!!!

Embora sejas uma das primeiras tecnologias dominadas pela humanidade, somente depois
da faculdade consegui chegar mais perto de ti, nas lareiras das duas casas em que morei
em Bagé. Minha memória não está muito boa, mas acredito que tenha sido nessa época que
aprendi a te chamar. Depois disso, só me recordo de te reencontrar, com frequência,
quando conheci o fazer cerâmico, o barro, o torno, o esmalte de cinza e os fornos, quando
então pude me aproximar, conversar, observar tua existência, tuas cores, tua dança, tuas
emoções, te alimentar, me aquecer junto a ti, enfim, conviver.

Ainda posso lembrar da emoção que senti ao te encontrar na primeira queima do nosso forno
cerâmico a lenha. Te alimentar, te ver crescer, ouvir tuas diferentes vozes. E quando
chegastes em torno dos 1.200 0C, pude ouvir um som difícil de descrever, pois era como se a
tempestade de chamas tivesse passado e agora entravas em uma calmaria, em um outro estágio
de tua existência.

Acredito que saibas, que embora afastados, sempre me fascinaste e tiveste a minha mais
profunda admiração e respeito.

Agora que nossos caminhos voltaram a se encontrar com uma periodicidade bem maior e és
um dos protagonistas desta história que começo a escrever na pesquisa sobre esmaltes de
cinza, resolvi investigar um pouco mais sobre a tua história.

Fiz mais algumas descobertas a teu respeito, revisitando alguns documentos que estavam
guardados já há algum tempo.

Sempre ouvi falar que, para existires, são necessários três elementos: o combustível - que

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fornece energia para a queima; o comburente - que é a substância que reage quimicamente
com o combustível; e o calor - que é necessário para iniciar a reação entre o combustível
e o comburente.

Explico um pouco mais para veres se entendi bem a teu respeito: o combustível seria tudo
que é suscetível de entrar em combustão: madeira, papel, pano, estopa, tinta e alguns
metais, entre outros. O comburente está associado quimicamente ao combustível e é capaz
de fazê-lo entrar em combustão, sendo o oxigênio o principal comburente. A energia de
ativação, ou ignição, é o calor necessário para iniciar a reação e, após a ignição, a
própria reação torna-se fonte de calor.

Essa sempre foi a explicação que encontrei, com algumas variantes, dependendo do autor
que a escrevia.

Então, voltando a falar dos documentos que reencontrei essa semana; entre eles estava uma
entrevista em vídeo que me chamou a atenção, dada pelo físico Richard Feynman à British
Broadcasting Corporation (BBC), em 1983, intitulada De onde as árvores realmente vêm e
como o fogo funciona (tradução nossa). É uma história que vai um pouquinho mais fundo na
tua vida e que eu ainda não havia lido sobre ela.

Feynman diz mais ou menos assim, a partir de uma livre tradução nossa:

“Os átomos gostam uns dos outros em diferentes graus. O oxigênio presente no ar, por
exemplo, gostaria de estar bem próximo ao carbono e, se eles ficam próximos um do outro,
se encaixam. Se não estão muito próximos, se repelem e então se separam, pois eles não
sabem que podem se encaixar.

É como se tivéssemos uma bola subindo uma encosta, tentando chegar na cratera profunda de
um vulcão. Se a velocidade da subida não for alta, a bola sobe um pouco e volta a descer.
Mas, se a velocidade for alta o suficiente, chegará um momento em que a bola alcançará o
topo e entrará no buraco do vulcão.

Fazendo um paralelo com a madeira e o oxigênio: há carbono na madeira e o oxigênio vem


e bate no carbono, mas não com força e calor suficientes, então ele simplesmente vai

15
embora novamente.

O ar está sempre chegando e nada acontece. Se conseguirmos fazer isso rápido o suficiente,
aquecendo-o de alguma forma, o oxigênio se aproxima o necessário do carbono e então
se encaixam. Isso dá muito movimento oscilante, que pode atingir alguns outros átomos,
fazendo-os andar mais rápido para que possam ir para cima e colidir com outros átomos
de carbono; dessa forma se agitam, fazendo outros se agitarem. Tem-se uma catástrofe
terrível. E todas essas coisas estão indo cada vez mais rápido, estalando, e a coisa toda
está mudando.

Essa catástrofe é o fogo, é você!

Então essa é a bagunça da madeira e, quando vemos que é isso que acontece, pensamos em
descobrir como começou. Porque a floresta ficou parada todo esse tempo com o oxigênio em
torno dela e nada aconteceu antes. Então, de onde tiramos isso?

A matéria da árvore é o carbono, e o que vem do ar é o dióxido de carbono. As pessoas olham


as árvores e dizem que elas vêm da terra. Mas a maior parte delas vêm do ar. O dióxido de
carbono do ar vai para a árvore e se altera, separando o oxigênio do carbono, deixando o
carbono e a água na árvore. A água saiu do solo, só para ter que voltar para lá novamente.

A água também vem do ar, desce do céu pela chuva. Quase toda a árvore vem do ar. Há um
pouco do solo, alguns minerais.

É claro que o carbono e o oxigênio estão bem ligados. Como a árvore é tão esperta para
conseguir tirar o carbono do dióxido de carbono do ar tão bem combinado, de uma maneira
tão fácil?

Ah! A vida tem uma força misteriosa que consegue fazer isso! Não!

O sol está brilhando e é a luz do sol que desce e afasta o oxigênio do carbono, levando luz
do sol para a planta funcionar. Então o sol está, todo o tempo, trabalhando para separar
o oxigênio do carbono, como se o oxigênio fosse um terrível subproduto, que é cuspido
novamente no ar, e deixa o carbono, a água e outras coisas para formar a matéria da
árvore.

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Então pegamos a matéria da árvore em um pedaço de madeira e colocamos na lareira, e lá
está o oxigênio gerado por essas árvores e todo o carbono que gostaria de estar junto com
o oxigênio mais uma vez. E quando começa o calor e a atividade novamente eles estão se
unindo, e essa luz vem à tona e tudo recomeça a se desfazer. O carbono e o oxigênio voltam
a ser dióxido de carbono e a luz e o calor que estão saindo são a luz e o calor do sol que
entrou. Então, o fogo é uma espécie de sol armazenado que sai quando se queima um tronco.”

Quando ouvi essa história sobre ti, fiquei encantada. Comecei a fazer relações que não
tinha pensado antes. Perguntas como por que, ao queimarmos um tronco, o volume de cinza é
bem menor do que a quantidade da madeira que foi queimada? Penso, agora, que é pelo motivo
de a maior parte das árvores saírem do ar e a menor parte sair da terra. As cinzas são os
minerais que sobram da parte da terra, e a fumaça, com o dióxido de carbono, é a parte da
árvore que sai do ar. A vida é maravilhosa, não é? Tudo se transforma!

Querido fogo, possuis essa magia da química, essa alquimia da natureza, que gera um
encantamento impossível de se descrever. Esse encantamento me impulsiona a querer
novamente o desafio de conviver contigo, para então te conhecer melhor.

Até a próxima chama,

até as próximas cinzas!

17
Como diz Schopenhauer, quando você analisa sua
vida em retrospecto, tem a impressão de que seguiu
um enredo, mas, no momento da ação, parece o caos:
uma surpresa atrás da outra. Depois, mais tarde,
você vê que foi perfeito. E tenho uma teoria: se você
estiver seguindo seu próprio caminho, as coisas virão
até você. Como é seu próprio caminho, e ninguém o
percorreu antes, não existe um precedente; logo, tudo
que acontece é uma surpresa, e na hora certa.

(CAMPBELL, 2003, p. 67)

18
Introdução
A escrita que segue, e que se configura no conteúdo desta dissertação, procura ligar os caminhos de
um percurso que me conduziu, pelo viés da arte, ao encontro com o barro e com o fogo, guiando-
me até a pesquisa sobre esmaltes cerâmicos de cinza de vegetais. Nesse percurso, os encontros, os
entrelaçamentos e as novas direções foram surgindo sem que eu os idealizasse. Alguns desses momentos
aqui descritos são parte de minhas experiências, ou seja, do conhecimento e aprendizado obtidos por
meio de minhas práticas, de minhas vivências, e que se tornam a base para uma produção de sentido.
Por tangenciar diversas áreas do conhecimento, esta pesquisa se configura em uma proposição de arte,
caracterizada principalmente pela condição de ser interdisciplinar, transdisciplinar e, por que não dizer,
indisciplinar1.

Após a formação em Engenharia Civil em 1991, desenho uma trajetória de encontros e desencontros,
lugares e não lugares, inquietações e ressignificações. Passo por novas experiências em salas de aula,
tanto como docente como discente, que foram cruciais para minha caminhada. Nesse percurso, destaco
três experiências que foram fundamentais para o que aqui apresento: os estudos e as práticas de Yoga,
a partir dos quais surge uma intensa conexão com a cultura oriental; os estudos em Educação Ambiental
e a especialização em Gestão de Resíduos Sólidos Urbanos. Os primeiros contatos com esses saberes
passam a nortear meus pensamentos e ações. Entrelaço nesta escrita a espiritualidade (praticada por
meio do Yoga), que me acompanha e me alimenta nesta jornada terrestre. Trago-a como um desafio, no
sentido de conciliar o cotidiano de um mundo que nos insere em uma vida agitada, com a vontade e a
necessidade de reconexão comigo mesma, com o outro e com o cosmos.

1
Luiz Sérgio de Oliveira disse “[...] pensar a arte de maneira indisciplinar” na oficina Arte Pública em Processo, ministrada durante
o Festival Internacional de Arte e Cultura José Luiz Kinceler (FIK), realizado na Universidade Estadual de Santa Catarina (Udesc),
em 6 de fevereiro de 2018.

19
Figura 1 – Intervenção do Coletivo Geodésica Cultural Itinerante em frente ao Museu Victor Meirelles. Fonte: Lucas
Kinceler. Acervo pessoal.

O caminho nos leva aos encontros, e foi assim que, em setembro de 2014, ao visitar o Museu Victor
Meirelles, em Florianópolis (SC), conheço o Coletivo Geodésica Cultural Itinerante2. Um coletivo de arte
2
O Coletivo Geodésica Cultural Itinerante possui o objetivo de ativar criativamente diferentes contextos e espaços públicos,
visando a reinvenção de relações sociais, culturais e ambientais. São realizadas atividades de caráter transdisciplinar, como
oficinas, conversas, ações artísticas e ambientais que buscam a produção de sentido a partir da experiência. Um espaço de
múltiplos usos, aberto, que incentiva a criatividade compartilhada, a imaginação, a experimentação e o diálogo, valorizando
trocas de experiências, saberes e desejos entre as pessoas. Na época, faziam parte do coletivo José Luiz Kinceler, Paulo Damé,
Isabela Sielski, Lucas Kinceler, Leonardo Lima, Tatiana Rosa, Paulo Vilhalva, Gustavo Tirelli, Aires Souza e Helton Patrício, entre
outros colaboradores.

20
Figura 2 – Queima cerâmica de raku durante a intervenção do Coletivo Geodésica Cultural Itinerante. Fonte: Lucas
Kinceler. Acervo pessoal.

colaborativa, composto por artistas que utilizam uma cúpula geodésica como dispositivo relacional
itinerante. O coletivo fazia uma intervenção (Figuras 1 e 2) em frente ao museu em um fim de semana,
como parte da programação da 8ª Primavera de Museus. Aquele foi meu primeiro contato com a arte
relacional complexa (KINCELER, 2008) e a arte colaborativa (KESTER, 2006), a cerâmica e o torno3. Fiquei
encantada com aquela forma de fazer arte que privilegia a experiência a partir de proposições que
germinam no encontro. Nesse mesmo dia, passo a fazer parte desse coletivo, iniciando também uma

3
Torno cerâmico: também conhecido como roda de oleiro, é uma forma milenar de produção de peças cerâmicas. Consiste em
uma roda (que pode ser de madeira ou metal) impulsionada de várias formas, para que o barro possa ser modelado a partir do
giro constante dessa roda sobre seu eixo.

21
relação com a arte cerâmica.

O caminho percorrido na arte cerâmica trouxe-me ao Mestrado em Artes Visuais, dando continuação à
pesquisa iniciada em 2015, que procura investigar a elaboração de esmaltes cerâmicos à base de cinzas
de vegetais, considerando esse processo um dispositivo relacional (BOURRIAUD, 2009; HOLMES, 2006),
pela possibilidade de formação de redes colaborativas de troca de saberes e afetos.

Na época do ingresso no mestrado, o mundo encontrava-se em plena sindemia4 da covid-19, momento que
fez refletir sobre a necessidade de desenvolver novas práticas ecológicas, micropolíticas e microssociais,
associadas às práticas estéticas. Nesse cenário, o tema da pesquisa mostrou-se significativo, pois
corroborou a importância de práticas ecosóficas nos registros ecológicos do meio ambiente, nas relações
sociais e na subjetividade humana (GUATTARI, 1990). Dessa maneira, a pesquisa apresenta práticas de
coleta do barro selvagem e o uso das cinzas como forma de reaproveitamento de um resíduo.

A pesquisa teve como objetivo inicial a busca de um esmalte cerâmico confeccionado a partir das cinzas
de vegetais, experimentando o que a natureza tem a nos oferecer, reduzindo ao máximo o uso de
aditivos comerciais.

4
Sindemia é a união das palavras sinergia e pandemia. O termo foi criado por Merrill Singer, pesquisador da área da
Antropologia Médica, nos anos 1990. As sindemias são caracterizadas por interações biológicas e sociais entre condições e
estados, interações que aumentam a suscetibilidade de uma pessoa a prejudicar ou piorar seus resultados de saúde. Guilherme
Henn, médico infectologista, em entrevista ao Jornal O Povo, aponta que “a compreensão que a sindemia traz é de que existem
outras doenças, normalmente não transmissíveis, que podem ter seu efeito naturalmente maléfico multiplicado quando temos
uma doença como a covid-19 em andamento”. Muitos tratamentos contra o câncer, por exemplo, foram paralisados, tanto
pela falta de infraestrutura e equipe médica (direcionada para o combate ao vírus) como pela necessidade de isolamento dos
pacientes durante a quarentena. Portanto, renomear a situação do mundo com relação à covid-19 como sindemia faz todo
sentido. (FIOCRUZ, 2020).

22
Nossas perguntas iniciais foram:

• Que vegetais da nossa região nos


convidam a experimentar as suas cinzas
nesta pesquisa?

• Que cinzas já existiam como resíduo


de algum processo de queima próximo
a nós?

• De que forma o esmalte cerâmico


de cinza poderia funcionar como um
dispositivo relacional?

23
Fonte: Tatiana Pureza. Acervo pessoal.

24
Nesse contexto de aproximação dos materiais disponíveis no entorno, trago o conceito de respigagem
de Agnès Varda (2000)5, em seu filme Os respigadores e a respigadora (com título original, em francês, Les
Glaneurs et la glaneuse), sob a perspectiva da cultura visual (LODDI; MARTINS, 2009), que é utilizado para
investigar o ato dos respigadores de objetos que apanham nas ruas o material para as suas criações
artísticas. Esse conceito é relacionado aqui para pensar sobre a coleta das cinzas vegetais e do barro
selvagem6 e também sobre alguns outros materiais utilizados nesta pesquisa.

Durante o processo de coleta das cinzas, minha curiosidade torna-se aguçada. Fico imaginando quais
elementos químicos e quais óxidos estarão presentes ali e quais colorações, texturas, nuances, sutilezas
e surpresas poderão se revelar. Os mesmos materiais rejeitados e descartados, tidos por muitos
como inúteis, após serem ressignificados pelo fogo, adquirem características que os enobrecem. Suas
partículas, por serem tão pequenas, só podem ser reveladas pela magia – a magia do fogo.

Nesse sentido, considero o fogo como um elemento determinante no processo, no qual passo a
chamá-lo de coautor. E, ainda, ressalto a necessidade que sinto de uma reconexão comigo mesma
e com o cosmos. Para isso, procuro fazer um entrelaçamento da cerâmica e de um ideal estético
japonês, o wabi-sabi7 (IKISHI, 2018; KEMPTON, 2018; KOREN, 2019; SAINT CLAIR; RIBEIRO, 2016),
que possui raízes no zen-budismo, e no qual a beleza das coisas imperfeitas e não convencionais se

5
O conceito de respigagem será aprofundado no Capítulo 3.
6
Barro selvagem: argila/barro encontrado na natureza em seu estado bruto, sem tratamento ou beneficiamento, apresentando
naturalmente características adequadas à prática cerâmica, como cor, plasticidade e resistência a altas temperaturas.
7
O wabi-sabi já se tornou uma estética comercial no Ocidente, assim como tantos outros aspectos da cultura oriental que
passaram a ser bens de consumo, esvaziados do seu sentido original. Aqui nesta pesquisa procuramos trazer a essência desse
conceito. Nas referências utilizadas na pesquisa, sua grafia é encontrada com e sem hífen. Neste texto, optamos por escrevê-la
com hífen.

25
coaduna com os conceitos de impermanência e simplicidade. Esse é um dos vieses de minha reconexão
com a espiritualidade.

Não tenho aqui a intenção de reproduzir a estética wabi-sabi, mas somente buscar inspiração nesse
conceito. De acordo com o professor de Antropologia Social na Universidade de Aberdeen e um dos
antropólogos mais influentes da atualidade nos campos da Arqueologia, da Arte, da Arquitetura e das
relações entre humanos e meio ambiente, o britânico Tim Ingold (2012, p. 26), a arte “[...] não busca
replicar formas acabadas e já estabelecidas, seja enquanto imagens na mente ou objetos no mundo. Ela
busca unir-se às forças que trazem à tona a forma”.

Neste texto, descrevo um pouco minha trajetória até o ingresso no Programa de Pós-graduação em Artes
Visuais (PPGAV) da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) a partir do encontro com a arte cerâmica,
o vidrado de cinzas e com os processos colaborativos e o desejo de aprofundar esses processos, que
me levou à pesquisa poética no caminho da arte relacional e colaborativa como forma de valorização
da experiência. Destaco alguns dos contextos de minha atuação e trago algumas ações desenvolvidas
antes e durante o mestrado.

O suporte metodológico utilizado nesta pesquisa foi a cartografia, acompanhada da autoetnografia


com ênfase na autobiografia, métodos que se complementaram no decorrer do processo. A pesquisa
bibliográfica também foi utilizada como procedimento metodológico, por meio da investigação em sites
bibliográficos e bibliografia de acervo particular.

A cartografia, como um método comprometido com o acompanhamento de um processo como


um todo (DELEUZE; GUATTARI, 1995), permitiu que a pesquisa tivesse um desenvolvimento mais
orgânico e aberto, na qual a experiência do pesquisador é valorizada tanto quanto as próprias interações
que o constituem como sujeito. Esse método enfatiza o processo e não os objetivos dados a priori
(PASSOS; KASTRUP; ESCÓSSIA, 2009).

26
Sendo um processo de descoberta e mapeamento, a cartografia, nessa abordagem, esteve diretamente
ligada aos registros que foram feitos em cadernos de campo, nas fotografias, nos vídeos, nas cerâmicas
e em conversas com outros colaboradores/pesquisadores ao longo da pesquisa. Essas ferramentas
documentaram a trajetória investigativa com o suporte da autoetnografia, auxiliando na análise dos
dados e na organização dos registros do processo artístico.

A autoetnografia foi escolhida com a finalidade de resgatar experiências biográficas e trazê-las em uma
narrativa autobiográfica, apresentando meus antecedentes, ou seja, as atividades que fizeram parte
da minha formação, dos meus interesses pessoais. Por meio da autoetnografia pude dar visibilidade
ao percurso, desde meu encontro com a arte cerâmica e os processos colaborativos até os detalhes
que compuseram o próprio desenvolvimento da pesquisa e as interações com os colaboradores/
pesquisadores. A autoetnografia foi utilizada como prática de observação na reorganização da
memória (SANTOS, 2017) com os grupos sociais – artistas/ceramistas – que fizeram parte das vivências
transcorridas em minha trajetória, auxiliando na obtenção de elementos sobre essas vivências.

A articulação dessas abordagens foi fundamental nas considerações para o desenvolvimento do


processo. Os outros resultados obtidos deram-se por ações em oficinas ministradas, participação em
projetos de extensão e de pesquisa e em exposições coletivas realizadas antes e durante o curso de
mestrado.

No decorrer da escrita trago alguns autores de diferentes áreas do conhecimento que marcaram minha
caminhada até aqui, deixando rastros que me impulsionaram nas decisões que foram tomadas nas
encruzilhadas do caminho e que me guiaram até este momento.

Gostaria, também, de pontuar a valiosa contribuição dos professores da banca de qualificação, Dra. Ana
Elisa de Castro Freitas, Dr. Cláudio Azevedo, Dr. Clóvis Martins Costa, M.e Gustavo Tirelli, juntamente
com minha orientadora, Profa. Dra. Angela Raffin Pohlmann, e meu companheiro, Prof. Dr. Paulo Renato

27
Viegas Damé, que me auxiliaram a enxergar os fluxos em um emaranhado de caminhos existentes – o
que permitiu que o texto fosse permeado pelas suas falas e ideias – e, dessa maneira, enriquecendo-o.

Dessa forma, esta pesquisa se desenvolve não apenas pelas minhas mãos, ideias e pensamentos,
mas também com a colaboração, participação, interação, observação e atravessamentos de amigos,
familiares, colegas, professores, autores, não autores, animais, pássaros, abelhas, árvores, flores,
açudes, o sol, a lua, as estrelas, a chuva, o vento, o fogo, os perfumes, os sons, as cores, os livros, as
imagens, os trabalhos, as exposições visitadas, os e-mails recebidos, entre outros tantos encontros.

Sendo assim, a partir dos processos artísticos desenvolvidos com grupos de ceramistas, com amigos/
colaboradores da pesquisa e espectadores, com a coautoria e colaboração da orientadora, da banca
de qualificação, dos participantes dos grupos de pesquisa e extensão e, ainda, dos autores que foram
trazidos para conversar, passo a considerar a autoria compartilhada, ou seja, a substituição do “eu” pelo
“nós” (OLIVEIRA, 2016). E busco, também, nas palavras de Santos (2013, p. 17), “[...] enfatizar de fato o
aspecto coletivo de toda empreitada que se queira investigativa na universidade [...]”.

Esta dissertação, permeada por uma narrativa visual que não se encontra totalmente referenciada no
texto, está dividida em cinco partes, iniciando com o capítulo O território, em que apresento o contexto
do território que passo a habitar e que se tornou meu lar e ateliê, para que o leitor possa compreender o
quanto esse lugar influencia parte de meus processos artísticos. E que, ainda, por meio desse território e
da arte cerâmica, é possível uma reconexão com os ciclos da natureza. Concluo trazendo três trabalhos
que foram inspirados por esse território.

No segundo capítulo, intitulado Encantamento: o germinar de uma pesquisa, passo a narrar o meu
encontro com o barro, descrevendo o nascimento da pesquisa sobre esmaltes cerâmicos de cinza de
vegetais juntamente com três desdobramentos que germinaram no percurso, em proposições em arte
relacional complexa e colaborativa. Nesse capítulo, trago uma breve revisão bibliográfica a respeito

28
do vidrado cerâmico, sua função e composição e a história do seu surgimento. Discorro ainda sobre a
relevância de formular os próprios esmaltes e de preparar as pastas cerâmicas.

No terceiro capítulo, Cerâmica esmaltada: os processos do barro e da cinza, descrevo o seguimento


da pesquisa, falando sobre a coleta e preparação das cinzas, a elaboração dos esmaltes cerâmicos e
os procedimentos de esmaltação, assim como a escolha das argilas e sua preparação para chegarmos
na massa cerâmica utilizada. Apresento o processo de recolhimento das cinzas no campo queimado e
a coleta de barro selvagem, tecendo uma aproximação com o conceito de respigagem de Agnès Varda
(2000).

No capítulo quatro, A boca do dragão, relato a construção colaborativa do forno cerâmico a lenha
como um dispositivo relacional (BOURRIAUD, 2009) de troca de saberes. Comento e analiso alguns
resultados sobre as 20 queimas realizadas nesse forno até a conclusão da pesquisa. Apresento o fogo
como coautor do processo e falo da minha percepção sobre a conexão com a espiritualidade no fazer
cerâmico por meio de um entrelaçamento da cerâmica e de um ideal estético japonês, o wabi-sabi.

No último capítulo, Processo artístico: a cerâmica e o esmalte de cinza como dispositivos


relacionais, descrevo meu processo artístico em cerâmica e a confecção dos esmaltes de cinza, pensados
a partir do conceito de dispositivos relacionais (BOURRIAUD, 2009; HOLMES, 2006) e processos nas
práticas artísticas relacionais e colaborativas. Falo sobre as ações que constituem o processo artístico do
fazer cerâmico e sobre o quanto de alma e vida são colocadas nesse fazer, ressignificando o meu próprio
ser e afetando os que compartilham do meu cotidiano ou que atravessam ou são atravessados pelo
trabalho. Entre os trabalhos colaborativos que apresento no último capítulo, dois foram desenvolvidos
durante o mestrado: a oficina de preparação de esmaltes cerâmicos a partir de cinzas vegetais e a
proposição poética Compartilhamentos, na qual me aproprio do conceito de “coisa” do autor Tim Ingold
(2012, 2015).

29
31
“Fugi da cidade, descobri a vida, qual é a vida?
É a natureza.”
(FRANS Krajcberg..., 2018)

32
1 O Território
1.1 Nas vivências do território, a reconexão com os ciclos da natureza
Antes de falar da pesquisa em si, considero
importante que o leitor conheça um pouco do
território no qual desenvolvo meu processo
artístico.

Em 2016 volto a morar no Rio Grande do Sul,


alternando residência entre Pelotas e a zona
rural de Encruzilhada do Sul (Figura 3). Nessa
época, entre 2016 e 2018, a maior parte do tempo
ficamos, eu e Paulo, residindo na zona rural. A
Casa Redonda8 era meu novo lar e ateliê.

Morando mais próxima da natureza, observando


Figura 3 – Mapa do trajeto Pelotas - Casa Redonda. Fonte:
a diversidade de espécies que habitam esse Google maps.
território em particular, pude compreender
melhor que, como seres humanos, estamos em constante evolução. As mudanças acompanham essa
evolução, pois, para avançarmos em nossa caminhada terrena e espiritual, acredito ser preciso deixar
para trás o que não nos serve mais – e isso nos transforma.

Retornar ao Rio Grande do Sul, no interior, em contato com a cerâmica, fez com que eu me reconectasse

8
Projeto doutoral de Paulo Damé no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade do Estado de Santa
Catarina (Udesc) em 2018, na linha de pesquisa Processos Artísticos Contemporâneos, intitulado Casa Redonda. Consiste na
bioconstrução de uma casa, com paredes de superadobe e telhado verde, com cultivo agroecológico em seu entorno. Construída
de forma relacional e colaborativa, na busca de uma vida com autonomia e maior equilíbrio com a natureza.

33
comigo mesma e com a natureza de uma forma diferente das lembranças de minha infância na fazenda
de meu avô. Fui surpreendida por uma satisfação plena e por um sentimento de como se tivesse vivido
ali sempre. Ao mesmo tempo, era como ver pela primeira vez cada pássaro, flor, galho, árvore, açude,
capim, entardeceres únicos, que ressoavam em mim uma sensação de renascimento, de vida, de
completude.
Em um mundo em devir, no entanto, até mesmo o comum, o mundano ou o intuitivo
causam espanto – o tipo de espanto que advém da valorização de cada momento,
como se, naquele momento, estivéssemos encontrando o mundo pela primeira vez,
sentindo seu pulso, maravilhando-nos com a sua beleza e nos perguntando como
um mundo assim é possível. (INGOLD, 2015, p.112).

A presença no mundo, de maneira plena, pode permitir ver além do que os olhos podem enxergar,
independentemente do lugar onde estou. Até mesmo o comum, o mundano, se transforma em algo
especial – o maravilhamento de um momento visto por meio de um olhar que olha como se fosse pela
primeira vez. E, assim como Ingold (2015), me pergunto: um mundo assim é possível? Se estiver presente,
com inteireza e conexão com sua essência, utilizando o respirar como essa via de conexão, sim, posso
afirmar que um mundo assim é possível.

Nessa nova experiência espacial, nesse outro território que agora habito, nasce uma ceramista,
pesquisadora e criadora, inserida no sistema das artes visuais contemporâneas, que não fez parte de
sua trajetória de educação formal.

Me atrevo a tentar descrever esse território, que embora sendo o espaço/lugar no qual transito
cotidianamente, é para mim desafiador, exatamente por essa proximidade e complexidade sutil na
produção de sentido, principalmente por me encontrar imersa em suas brumas.

Esse território de vida, que pulsa, está em constante mudança e é percebido envolto por fronteiras
permeáveis, sendo as artes visuais uma dessas fronteiras. O tempo nesse território se desenvolve em

34
uma velocidade diferente da qual se está acostumada no cotidiano das cidades que costumo habitar.

O filósofo, ensaísta, professor e tradutor húngaro, residente no Brasil, Peter Pál Pelbart (2000), em
seu livro A vertigem por um fio: políticas da subjetividade contemporânea, diz que parte das vertigens
contemporâneas se devem à brusca alteração em nosso regime temporal, pois estamos enfrentando
com espanto e inquietação uma temporalidade mutante.

Compreendo o tempo nesse território, com base na afirmação que Pelbart (2000) faz de que o tempo
não existe, pelo menos não enquanto tal, não em sua essência, mas sim a partir de seus operadores,
das tecnologias que permitem a produção da experiência no tempo, sua vivência, sua ideia e sua forma.

Assim como a obra, durante o processo artístico se instaura em um tempo singular e subjetivo do artista.
Aqui em especial, também nesse tempo dilatado, característico do processo cerâmico, em diálogo
iminente com o barro, é que esse território vai se constituindo no interstício entre arte e vida (KINCELER,
2008). Nesse processo artístico existe muito do acaso ou, ainda, de resultados provocados por causas
que desconheço, influências do território.

Sua cor é de terra. Possui tons terrosos, diversos matizes que variam do branco, passando pelo bege,
ocre e vermelho, indo em direção ao negro. Cores que se transformam quimicamente, das quais, no
momento do processo de criação, tenho apenas uma percepção conceitual, pois o aspecto visual se
revela somente no final do processo, envolvendo diversas variáveis que modificam o resultado. O
ambiente também está inundado pelo azul do céu, os verdes das pequenas matas nativas, o dourado
do sol e o prateado das águas. Seu cheiro é de terra molhada, após a benção de uma chuva; da colheita
de uma cenoura ao amanhecer, envolta por essa mesma terra que a nutriu e a fez crescer e que vai
nos alimentar para que possamos, então, sentir novamente o cheiro da terra nutrindo o perfume das
alfazemas, das primaveras e das madressilvas que crescem ao redor da casa/ateliê. No entanto, também
há momentos em que esse cheiro é invadido pelo perfume de um incenso de sândalo. Todos esses

35
cheiros contrastam com o cheiro da queima das peças cerâmicas, do barro em transformação química,
seguida do cheiro denso de uma fumaça negra ocasionada pela redução do oxigênio tingindo o céu azul.
Esse território é permeado pela natureza.

Entre todos os açudes, existe nesse território um em especial (Figura 4), no qual, em seguida da margem,
há uma árvore. Essa árvore hoje possui seu tronco submerso até determinada altura. Embora saiba
que ela está morrendo, ao olhar para ela, vejo vida. Ela hospeda uma vegetação, espécies de parasitas,
que se desenvolvem em determinadas árvores da região, abriga pássaros, é o berço de bromélias, e
sua imagem espelhada na água é como se estivesse banhando-se faceira. Costumo sentar à margem,

Figura 4 – Açude com árvore parcialmente submersa. Fonte: A autora. Acervo pessoal.

36
diante desse espelho. No chão coberto de capim nativo fico observando a fauna e a flora que ali vivem.
Ao entardecer, a dança dos pássaros me encanta. Esse local específico me é muito caro, por ser um dos
lugares onde me abasteço de energia. São momentos nos quais posso sentir o quanto a vida pulsa e o
quanto tenho a aprender com ela.

Estar nesse lugar, nesse refúgio, desenvolvendo processos criativos me conecta comigo mesma,
é uma forma de meditação, “me-editar”, religare, (des)construção, constante reconstrução e de
reencantamento.

Nancy Unger (1991), em seu livro O encantamento do humano: ecologia e espiritualidade, fala sobre
reencantamento a partir da ideia de desencantamento. Diz que o desencantamento do mundo
é o desencantamento do olhar, porque a Natureza mantém os seus encantos e os seus valores
independentemente do que se pensa a respeito dela. E diz ainda: [...] “reencantar o mundo [...] é, na
verdade, reencantar o nosso olhar. O reencantamento do mundo significa redescobrirmos aquilo que
nos constitui, reencantar o mundo é poder novamente ter uma vivência da realidade que não se reduz
à reificação.” (UNGER, 1991, p. 56).

É excepcional poder experienciar/desenvolver essas práticas de conexão e reencantamento com


minha essência, em tranquilidade e em solitude, imersa em um silêncio que é permeado pelo canto
dos pássaros, pela sinfonia das águas, pelo crepitar do fogo e pelo assobio do vento. Unger (1991) diz
que a sabedoria está no saber viver de acordo com as leis cósmicas, a própria expressão do sagrado,
experienciando o Todo, como habitante deste cosmos9.

9
No meu entender, essa sabedoria do saber viver de acordo com as leis cósmicas de que fala Unger existe para todos, é
universal; independe do lugar onde estamos, no qual vivemos ou do qual nos afastamos. Basta, para isso, estarmos conectados
com nós mesmos, inteiros em nosso ser, seja em grandes centros urbanos, em grandes áreas industriais ou em qualquer outro
lugar do cosmos.

37
É a partir desse saber viver que procuro acompanhar o fluxo da vida como habitante deste cosmos, em
uma profunda e sincera integração entre espiritualidade, arte, vida e natureza.

Marcel Duchamp (2004, p. 72) disse que “aparentemente, o artista funciona como um ser mediúnico
que, de um labirinto situado além do tempo e do espaço, procura caminhar até uma clareira”. É nessa
caminhada que os elementos pertencentes ao caminho me fazem perceber a quietude em mim. A
potência criativa que emerge de uma mente tranquila, sem certezas, sem seguranças, sem definições,
embora acompanhada de inúmeras decisões, que também fazem parte desse processo artístico de
criação, sendo em sua maioria intuitivas. Assim como diz Duchamp (2004, p. 72), “todas as decisões
relativas à execução artística do seu trabalho permanecem no domínio da pura intuição e não podem
ser objetivadas em uma autoanálise, falada ou escrita ou mesmo pensada”.

A equanimidade entre a essência do ser e de um corpo/mente – ambos habitando o mesmo mundo, em


uma profunda integração comigo mesma e com o cosmos, me fazem experienciar minha humanidade,
encontrando consistência nesse fazer poético e que acaba se configurando em um “ateliê de si”. Esse
é o lugar onde me sinto com potência para a criação, pois, quando estou em completa união comigo
mesma, é que me sinto inteira para desenvolver meu processo artístico.

Esse território possui uma configuração de coisas nas quais torna-se possível encontrar a plenitude de
minha potência. Trago toda uma inspiração que constitui o meu próprio território. Me abasteço nesse
território. Me desconstruo e me reencanto a cada instante. As matas nativas, os açudes, as minúsculas
flores do campo que são inimagináveis se pensarmos na escala do entorno –, os pássaros construindo
seus ninhos, entre tantos outros pássaros construtores que compõe uma sinfonia que me acompanha,
enriquecendo a experiência nesse lugar.

38
Fonte: Tatiana Pureza. Acervo pessoal.

39
1.2 Desdobramentos das vivências no Território
Partindo das singularidades desse território, trago um trabalho em vídeo (2020-2021), resultado de
algumas de minhas vivências nesse lugar.

A magia da vida em quatro elementos foi elaborado primeiramente como uma vídeo-carta, trabalho
realizado na disciplina de Arte, Ecologia e Saúde10 ministrada pelo professor Cláudio Azevedo no PPGAV,
no segundo semestre de 2020.

Sendo a cerâmica um processo de transformação “[...] em que Terra e espírito do Homem se cristalizam
pela ação do Fogo” (NAKANO, 1989, p. 37), trago nessa vídeo-carta, além do ser humano/ceramista, a
terra, a água, o ar e o fogo como constituintes desse processo.

Busco ainda, para reflexão por meio dos quatro elementos presentes em cenas do cotidiano e nas
práticas cerâmicas, conexões que possam auxiliar a ver e a entender o ser humano como um todo,
não podendo ser dissociado do restante do planeta – o ser humano como parte indissociável do meio
ambiente, esse meio ambiente do qual dependemos para a nossa sobrevivência. (GUATTARI, 1990).

Em 2021, começo a fazer parte do grupo ARTƎECOS: núcleo de estudos e práticas artísticas ecosóficas11,
coordenado pelo professor Cláudio Azevedo. Dentre as atividades do grupo, é organizada a Exposição
Virtual Coletiva Olhares Ecosóficos, vinculada ao grupo de pesquisa ARTƎECOS, realizada pelo projeto de
cultura Espaço INcomum – Galeria de Arte da Furg, do Curso de Artes Visuais do Instituto de Letras e Artes
(ILA) da Universidade Federal do Rio Grande (Furg). Exponho esse vídeo, elaborado a partir da vídeo-
carta, agora intitulado Quatro elementos (Figura 5). Logo a seguir, o grupo é convidado pela Secretaria
Municipal de Cultura (Secult) do município de Rio Grande (RS) para a Exposição Olhares Ecosóficos, com

10
As disciplinas cursadas no mestrado foram todas ministradas em ambiente virtual.
11
Os encontros do grupo ocorreram virtualmente.

40
a produção dos convidados e integrantes do grupo de pesquisa ARTƎECOS, na Sala Multiuso da Secult,
em Rio Grande. Acesse: https://bit.ly/OlharesEcosoficos

Em agosto de 2022, o grupo ARTƎECOS: núcleo de estudos e práticas artísticas ecosóficas recebe convite
do coordenador do grupo, professor Cláudio Azevedo, para uma exposição coletiva (Figura 6) organizada
em parceria com o professor Sandro Mendes, da Universidade Federal do Pampa (Unipampa), e com o
grupo PhotoGraphein, a ser realizada na Galeria Intercultural Magliani (GIM), da Unipampa, na cidade

Figura 5 – Frame do vídeo Quatro elementos. Fonte: Marques (2020).

41
de Jaguarão (RS), no período de 23 de setembro a 7 de outubro de 2022. O tema da exposição é Fluxos
nos espaços em tempos pandêmicos.

Inspirada por esse mesmo território que acabo de descrever, desenvolvo um trabalho a partir da fotografia
tirada da árvore no açude (Figura 7). Penso no tema – fluxos nos espaços em tempos pandêmicos – e
traço uma relação da árvore que está morrendo à beira do açude com as pessoas em meio à sindemia.

Refletindo sobre as lógicas dos trabalhos que são realizados na natureza, como a agricultura, parece
existir uma inversão de pensamento quando se fala que a produção de alimentos exige o uso de tantos
venenos. O pensamento humano se opõe às verdadeiras lógicas da vida.

A árvore em questão ficou imersa à beira do açude pela


necessidade de elevar seu nível de água e foi a partir dessa
elevação que ela não conseguiu sobreviver em um meio adverso
à sua natureza. Seria preciso “desinvestir” para salvá-la.

Essa árvore poderia ter sido poupada se o nível do açude não


tivesse sido alterado. A vida não é prioridade em diversas
decisões tomadas pelo homem. Como eu contemplava, com
frequência, essa paisagem na qual a árvore está inserida,
me sensibilizaram as decisões que a levaram a ficar imersa
na água e, por consequência, morrer. Poderia ter sido
encontrada uma outra forma que não prejudicasse a sua vida,
o que poderia ser mais oneroso ou simplesmente teria que
ser pensado, mas as soluções costumam ser norteadas pelo
Figura 6 – Cartaz de divulgação da Exposição
Fluxos nos espaços em tempos pandêmicos. que é mais rápido e barato. A decisão pela vida não é um
Fonte: Acervo do grupo ARTƎECOS.
critério considerado, normalmente.

42
Figura 7 – Desinvertir el paisaje. Fonte: A autora. Acervo pessoal.
43
Parece um contrassenso, mas creio que a lógica do pensamento humano está invertida. E, para darmos
continuidade a uma vida plena, seria necessário desinverter essa lógica. Segundo Bachelard (1990, p.
225), “tudo começa, mesmo na experiência, por imagens”. E ainda, nos falando de suas leituras, “[...]
encontrou a imagem de uma árvore que crescia ao contrário, cujas raízes, como uma leve folhagem,
tremulavam nos ventos subterrâneos enquanto os ramos enraizavam-se fortemente no céu azul.”
Bachelard (1990, p. 225).

Assim como em suas leituras, imagino a possibilidade de inverter novamente o pensamento humano
e, começando por imagens, decido inverter a fotografia da árvore no açude, fazendo um giro de 180°.
Dessa forma, o reflexo da árvore na água ficou na parte de cima da imagem, como se estivesse flutuando
no céu azul.

44
Como a exposição seria realizada em uma cidade de fronteira do Brasil com o Uruguai, em um interstício
bilíngue, busquei, em espanhol, uma palavra que sugerisse a ideia de desinversão, mesmo que essa
fosse uma palavra inventada, chegando ao título Desinvertir el paisaje12, com a ideia de tornar a inverter
o que estava invertido. Acredito que é preciso desfazer nossos invertidos conceitos em relação à maneira
que estamos vivendo conosco mesmos, com o outro e com o planeta.

Para o trabalho, foi feita a impressão colorida em papel fotográfico fosco da fotografia digital tirada
anteriormente, nas dimensões de 60 cm x 45 cm.

12
A palavra desinvertir, aqui nesse contexto, quer expressar a ideia de desinverter a paisagem, um trocadilho com a palavra
no idioma hispânico; em espanhol, desinvertir tem o significado de desinvestir, deixar de investir, alienar ou destituir.
(DESINVERTIR..., 2022).

45
Em outubro de 2021, participei da Exposição Virtual Coletiva Insurgências da Memória, na mostra de
alunos do PPGAV, no X Seminário de Pesquisa do Mestrado em Artes Visuais (SPMAV), com o trabalho
Fecundus (fotografia digital).

Inspirada na magia da arte cerâmica existente há milhares de anos, trago a imagem de um pote cerâmico
esmaltado com cinza, queimado pelo fogo, sendo carregado, repleto de terra vegetal, em frente a uma
vegetação (Figura 8). Nessa imagem, procuro estabelecer uma relação entre a terra, o ser humano e a
natureza.

O nascimento da cerâmica se dá pela transformação da rocha milenar em argila, juntamente com a


intervenção do ceramista e dos quatro elementos da natureza – argila/terra, água, fogo e ar. Nakano
(1989) ressalta que a natureza faz parte do processo na realização da obra cerâmica. Pois essa cerâmica
nasce da terra pela ação do ser humano/ceramista, que faz emergir o elo de ligação dessa relação. Somos
“[...] filhos da terra” (BACHELARD, 1990, p. 228), ou seja, também somos natureza. E é essa mesma terra
da qual somos filhos que se oferece também para a produção de nosso alimento.

46
Figura 8 – Fecundus, obra da autora. Fonte: Paulo Damé (2021).

47
48
Trinta raios convergentes no centro
Tem uma roda,
Mas somente os vácuos entre os raios
É que facultam seu movimento.
O oleiro faz um vaso, manipulando a argila,
Mas é o oco do vaso que lhe dá utilidade.
Paredes são massas com portas e janelas,
Mas somente o vácuo entre as massas
Lhes dá utilidade –
Assim são as coisas físicas,
Que parecem ser o principal,
Mas o seu valor está no metafísico.
(LAO-TSÉ, 2005, p. 47)

49
2 Encantamento: o germinar de uma
pesquisa
Entregar-se em um ato de religar, no refúgio, em um lugar no território permeado pela vida pulsante, é
o que faz brotar o encantamento no qual a motivação desta pesquisa está enraizada.

Desse refúgio/território passo a narrar meu encontro com o barro, o desenvolvimento da pesquisa
sobre esmaltes cerâmicos de cinza e os desdobramentos que foram surgindo no percurso. Escrevo esta
narrativa entrelaçando minha trajetória e ensinamentos recebidos com as práticas artísticas relacionais
e colaborativas que, além de me encantarem, reverberam nessas semeaduras.

Para Walter Benjamin (1993), só consegue narrar aquele que passa por uma experiência, ou seja, só é
possível narrar os fatos porque foram experienciados. Segundo ele, a experiência estética encontra lugar
na paralisação das imagens pelo pensamento, assim como na narrativa (ainda que em extinção), que
instrui sem dominar e deixa a história aberta a novas significações e sentidos. Além disso, a narrativa,
para o autor,
[...] é ela própria, em um certo sentido, uma forma artesanal de comunicação. Ela
não está interessada em transmitir o “puro em si” da coisa narrada como uma
informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em
seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a
mão do oleiro na argila do vaso. (BENJAMIN, 1993, p. 205).

Da mesma forma que a mão do oleiro deixa marcas na argila do vaso, esta narrativa teve seu início
marcado no ano de 2014, quando fui apresentada à prática da arte cerâmica. Nesse encontro, foi
plantada em mim uma semente que germinaria no barro, mostrando indícios do surgimento de uma
nova e desafiadora jornada – a poética da cerâmica esmaltada com esmalte de cinzas de vegetais.

50
Meu primeiro contato com o barro, uma terracota13, foi no torno cerâmico apresentado por Paulo Damé.
Ao me apresentar o barro e o torno, semeou junto devires, que fizeram brotar em mim encantamento.
Kinceler (2008) diz que encantamento é quando são geradas uma série de descontinuidades na
realidade; “é abrir um entre, um intervalo, uma pausa dinâmica na realidade, um espaço-tempo de
atuação capaz de provocar devires; [...] devires que abrem em potência outras formas de reinventar o
cotidiano.” (KINCELER, 2008, p. 1.797).

Naquele dia, abria-se uma nova forma de reinvenção do meu cotidiano. Embora ainda não soubesse ser
capaz de qualquer habilidade com o barro, tinha plena consciência de que essa jornada que se iniciava
me levaria a uma caminhada de muito trabalho e diálogo com a materialidade cerâmica; o barro era
um material novo para mim e, como todo material, possui características próprias, que precisavam ser
conhecidas e entendidas, para que eu pudesse estabelecer uma relação “amigável” e criativa com ele.

13
Terracota: argila de cor avermelhada por conter óxido de ferro em sua composição; também é o nome dado à cerâmica que
sofreu a primeira queima.

51
2.1 Germinações na caminhada: proposições em arte relacional
e colaborativa
2.1.1 Geodésica Cultural Itinerante
Alguns processos colaborativos em arte relacional complexa e colaborativa surgiram no decorrer desta
trajetória, desde o meu encontro com o barro e minha participação no Coletivo Geodésica Cultural
Itinerante, em Florianópolis.

Um desses processos, intitulado Banco Onda (Figura 9), foi uma proposição do Coletivo Geodésica

Figura 9 – Imagem do momento em que o coletivo terminou a construção do Banco Onda no Centro de Artes da Udesc, para a 5ª
Bienal Brasileira de Design, em Florianópolis. Fonte: Lucas Kinceler. Acervo pessoal.

52
Cultural Itinerante em 2015, com a construção colaborativa de um banco para a 5ª Bienal Brasileira
de Design (Figura 10). O coletivo, nessa época, contava com os seguintes colaboradores: Adelino Neto,
Adson Loth, Angélica Marques, Aires Sousa, Gustavo Tirelli, Helton Patricio, João Calligaris, Isabela
Sielski, José Kinceler, Leonardo Silva, Lucas Kinceler, Mário Beerli, Paulo Damé e Tatiana Rosa.

O banco coletivo Onda foi projetado e realizado de forma colaborativa, segundo princípios
transdisciplinares, nos quais o convívio, o compartilhamento do processo criativo e a geração de
descontinuidades que permitem a prática projetual do design de índole sustentável e radical, suscitem
“acontecimentos”, ou seja, propiciem não somente a materialização de um produto, mas conjunta
e simultaneamente ativem a produção de processos de subjetivação. (BIENAL..., 2015, p. 155).

Figura 10 – Imagem do Banco Onda no jardim do Centro Integrado de Cultura (CIC) de Florianópolis, na 5ª Bienal Brasileira de Design.
Fonte: Bienal... (2015).

53
O projeto do Banco Onda (Figuras 11,
12 e 13), idealizado por José Kinceler,
teve seu início no 5º Encontro da
Casa Redonda, em março de 2015.
O protótipo do banco (Figura 14) foi
construído colaborativamente durante
esse encontro, utilizando madeiras
de trama14 de antigas cercas e que
se encontravam abandonadas na
propriedade. O banco foi finalizado
Figuras 11 e 12 – Imagens dos croquis do Banco Onda, no 5º
durante o encontro e é utilizado desde Encontro da Casa Redonda. Fonte: Lucas Kinceler. Acervo pessoal.
então.

14
Madeiras que já tinham sido utilizadas em Figura 13 – Imagem da maquete do Banco Onda. Fonte: Lucas Kinceler. Acervo
cercas. pessoal.

54
Figura 14 – Imagem do protótipo do Banco Onda no 5º Encontro da Casa Redonda, em Encruzilhada do Sul (RS). Fonte: Lucas
Kinceler. Acervo pessoal.

55
Outro entrelaçamento aconteceu em 2018. O Coletivo Geodésica Cultural Itinerante foi convidado a
participar da 5ª edição do Projeto Claraboia, na Mostra Desterro Desaterro arte contemporânea em
Santa Catarina no Museu de Arte de Santa Catarina (Masc), em Florianópolis, com a ocupação intitulada
Zé Kinceler e o Coletivo Geodésica – em descontinuidade (Figura 15). Os colaboradores/propositores foram
Ágata Tomaselli, Angélica Marques, Gustavo Tirelli, Isabela Sielski, Jade Sapucahy, Leonardo Silva, Lucas
Kinceler, Paulo Damé e Tatiana Rosa.

Figura 15 – Imagem de um momento de participação coletiva no evento intitulado Zé Kinceler e o Coletivo Geodésica – em descontinuidade,
na 5ª edição do Projeto Claraboia, na Mostra Desterro Desaterro arte contemporânea em Santa Catarina. Fonte: Lucas Kinceler. Acervo
pessoal.

56
Nesse evento, o público foi convidado a construir, modelar, interagir e colaborar com a proposição.
Um dos propósitos da mostra era gerar convívio. Uma das proposições consistia em um grande bloco
de argila de um metro cúbico, que permaneceu úmida durante o tempo do evento. O motivo não era
somente dar forma ao bloco de argila, mas “estabelecer” relações entre os participantes.

As pessoas iam interagindo em torno do bloco, modelando, conversando, trocando experiências. Era
um laboratório. Foram disponibilizadas sementes para plantação em potes feitos com a argila do
bloco, ou no próprio bloco; livros dispostos sobre uma mesa; dispositivos para gerar descontinuidades.
Proposição que instigava processos criativos e vivências de descontinuidades a partir dos temas “Terra”,
“Dispositivo relacional” e “Como fazer um amigo por meio da arte?”.

57
2.1.2 Em torno do torno
Por meio desses encontros eu começava a conhecer melhor as práticas da arte relacional complexa
e da arte colaborativa. Essas experiências apontavam para uma outra perspectiva, me sensibilizando
e abrindo meus sentidos para diferentes modos de fazer arte. Paralelamente a esses processos, eu
observava e experienciava os saberes sobre o fazer cerâmico no torno de José Kinceler e Paulo Damé.
Experiências que me impulsionaram a incorporar a prática do torno cerâmico ao meu cotidiano. A magia
da roda me encantava a cada momento, tanto ao tornear como ao observar alguém torneando.

“O torno foi provavelmente uma das primeiras tecnologias desenvolvidas para a produção em grande
escala. Com ele uma pessoa poderia, sem maiores dificuldades, produzir recipientes para toda uma
comunidade.” (TORTORI, 2007, p. 1). Além das características que as produções no torno, por si só,
podem conferir à peça, como velocidade, escala e simetria, o ato de tornear também gera encantamento
na maioria das pessoas que entram em contato com esse processo do fazer cerâmico.

Como disse o professor Reginaldo Tavares15 após uma intervenção com torno cerâmico proposta por
ele em praça pública no centro da cidade de Pelotas (Figura 16): “A cerâmica tem uma força poética e
uma magia ancestral contagiante, algo que nos aproxima, [...] que nos prende a prestar atenção à roda
girando – sensação semelhante à que tenho quando presto atenção no fogo de uma lareira.” (TAVARES,
2019).

A partir de 2018, encontros semanais no Ateliê de Cerâmica do Centro de Artes da UFPel produziram
sentido para um fazer cerâmico colaborativo. Nesse convívio coletivo/participativo/colaborativo de
criação em arte, e com o torno passando a ser um amigo que me acompanhava durante muitas horas
dos meus dias, dentro e fora do Ateliê de Cerâmica do Centro de Artes da UFPel, emergiram proposições

15
Prof. Dr. Reginaldo Tavares, professor da Universidade Federal de Pelotas. Depoimento compartilhado por e-mail
(TAVARES, 2019).

58
Figura 16 - Registro de um momento da intervenção com torno cerâmico no centro da cidade de Pelotas Fonte: Reginaldo Tavares.
Acervo pessoal.

inspiradas nas práticas de torno desenvolvidas pelo professor José Luiz Kinceler16 em seus projetos,
nos cursos de Artes Plásticas do Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc).
Essas proposições passam a ser um vetor do entrelaçamento que é tecido a partir da arte do fazer
cerâmico no torno, compartilhadas comigo por Kinceler e Damé, e dos processos artísticos que começo
a desenvolver – e que podem ser vistos no desdobramento do trabalho Em torno do torno.

16
Kinceler possuía uma metodologia para ensinar a prática no torno cerâmico que será descrita mais adiante.

59
O trabalho intitulado Em torno do torno foi uma proposição desenvolvida no ano de 2019, no contexto
do Ateliê de Cerâmica do Centro de Artes da UFPel. Um momento estabelecido de convívio coletivo/
participativo/colaborativo de criação em arte (Figuras 17 e 18).

Nessa proposição, faço um convite à artista visual e amiga Eduarda Lenzi, a Duda, para me acompanhar

Figura 17 – Imagem de um momento de demonstração no torno. Fonte: Paulo Damé. Acervo pessoal.

60
nesse projeto. A tática utilizada foi em formato de oficina e consideramos esses encontros como um
estar em arte, e não somente um fazer arte (CADU, 2012).

Os autores/colaboradores/participantes compuseram o público nesse processo – aos poucos e de


acordo com a iniciativa de cada um, as pessoas presentes participavam do ato de criação artística.

Figura 18 – Imagem de um momento da oficina, com alguns participantes usando o torno. Fonte: Paulo Damé. Acervo pessoal.

61
Essa proposição, inspirada nas práticas de torno desenvolvidas pelo professor Kinceler, envolve algumas
etapas, organizadas em seis lições, que foram propostas durante a oficina. Iniciando com a preparação
e a sova do barro, para homogeneização de suas partículas com a água de mescla; em seguida, a
centralização da argila sobre a placa do torno. Nesse momento são necessárias uma velocidade alta e
uma postura firme por parte do oleiro. A centralização do barro faz com que suas partículas se orientem
no sentido da rotação do torno, produzindo algo parecido como a trama formada pela superposição
das escamas de um peixe, tornando assim a resistência da peça ainda maior; a seguir, é preciso abrir
a peça e fazer um cilindro. Nesse momento, a velocidade do torno deve ser bem mais lenta do que
a utilizada na centralização. Grande parte das peças torneadas são feitas a partir de um cilindro; na
sequência, segue-se para o fazer uma forma aberta, como uma tigela, e depois uma forma fechada,
como uma garrafa; e, por último, o retornear, que consiste em voltar com a peça ao torno, em um
estado semisseco, chamado de ponto de couro17, para retirar o excesso de argila da sua base e dar o
acabamento final (MARQUES et al., 2021).

Complementando esses passos, a prática de torno, de acordo com Kinceler, consiste em não avançar
para a próxima etapa sem antes ter dominado a anterior. Ao aprender, progressivamente, o aprendiz
assume o compromisso de passar o conhecimento adquirido por meio de sua experiência para mais
três pessoas.

Entendemos que, por meio desse processo, onde cada um que aprenda passe adiante sua experiência,
é criado um compromisso coletivo. Os que possuem maior domínio de uma parte do processo podem,
assim, auxiliar aos outros, e vice-versa, criando uma rede de ensino-aprendizado.

Ponto de couro: é o estado de secagem do barro que se assemelha ao couro. A argila já perdeu a plasticidade, não está mais
17

maleável, porém ainda permite ser trabalhada, pois ainda não está totalmente seca, quando então passa a ser chamada de
ponto de osso.

62
Kester (2005) fala que os artistas que buscam criar outras relações com o público, por meio de suas
práticas, por meio de sua “abordagem performativa e com base-em-processos, [...] são ‘fornecedores de
contextos’ em vez de ‘fornecedores de conteúdos’ [...].” (KESTER, 2005, p. 1, tradução nossa).

Na oficina Em torno do torno a intenção não era simplesmente passar o conteúdo por meio das seis
lições sobre o torno, e sim estabelecer convívio e troca de saberes entre os participantes, baseados em
suas percepções desde os momentos iniciais.

Tornear é um ato que nos conecta conosco, principalmente por meio de nossa respiração e do que
sentimos ao tocar o barro. No texto Performing life, Allan Kaprow (2010) se dedica a pensamentos sobre
o ato de respirar. Ele diz que essa consciência sobre o que fazemos e sentimos no cotidiano, a relação
com a experiência do outro e com a natureza que nos rodeia torna-se, de modo real, a performance
da vida. É preciso estar em equilíbrio para que qualquer tipo de processo/relação comece a nascer,
a se performar. Estar consciente do momento presente, ancorado em nossa respiração e em nossos
sentimentos, é fundamental para que isso ocorra.

Nesse contexto, podemos considerar que, quando nos conectamos com a técnica do tornear, nos
conectamos com o nosso ser, com o outro e com o mundo. Considero que esses são os momentos em
que a arte se aproxima da vida.

63
Fonte: Tatiana Pureza. Acervo pessoal.

64
Continuando minha caminhada no aprendizado cerâmico, em 2015 passo a frequentar o Ateliê
DESinútil, em Florianópolis, do artista, professor, ceramista e amigo Gustavo Tirelli. Nesses encontros,
me sentia como quando criança, em meus primeiros dias de aula. Todos os assuntos preenchiam
meu espírito e chamavam minha atenção. Naqueles dias, pude trabalhar com modelagem, torno e
esmaltação, com todo um contexto de conversas sobre a arte cerâmica que enriqueciam aquelas
tardes.

Foi em uma dessas tardes especiais que ouvi Gustavo Tirelli falar pela primeira vez sobre esmaltes
cerâmicos feitos a partir de cinza de vegetais. Jamais esquecerei sua empolgação e o brilho em seus
olhos ao falar sobre o assunto.

Fiquei encantada ao saber da possibilidade de reutilização das cinzas e reconhecer que essa técnica
teve origem na China – uma das culturas orientais que me inspira já há algum tempo – fez surgir em
mim uma motivação singular, uma sensação de empoderamento que estava há muito esquecida.
Pensar em criar um esmalte feito de cinzas, ou seja, do resíduo da queima de vegetais, apresentou-
se também como uma maneira de me reinventar – naquele momento que passo a tecer as
experiências que já faziam parte da minha história, com a arte relacional complexa e colaborativa, o
fazer cerâmico e a produção de arte no coletivo. Um desafio que me propus a participar, uma forma
de interação com a natureza – o reaproveitamento de um resíduo propiciando sua transformação
na cobertura vítrea de um corpo cerâmico.

Só é possível, verdadeiramente, nos dedicar a algo que faça sentido para nós. Para sabermos com
certeza sobre estarmos encantados com o que fazemos, dessa fascinação que invade nosso ser ao
materializarmos nossos desejos, Kinceler nos diz que

65
[...] basta o reconhecimento de novamente desejar entrar em processo de
repetição do ato criativo. Não para afirmar o já conquistado, o que levaria a um
processo estéril e sem produção de sentido, mas sim com o intuito de encontrar
novas diferenças que auxiliem a construir um processo de subjetividade
(KINCELER, 2008, p. 1.797).

E foi assim – com esse desejo de repetir o ato criativo, com o intuito de descobrir novas diferenças –
que naquele momento, de alguma maneira, algo que estava adormecido em mim acordou e fez com
que, desde então, eu passasse a me interessar e pesquisar sobre o assunto – provocação diária que
me acompanha até hoje e que se tornou objeto de estudo de pesquisa e inspiração da minha prática
artística.

66
2.2 Vidrado cerâmico: da sabedoria oriental à alquimia das cinzas
vegetais
Na confecção de peças em cerâmica, o vidrado ou esmalte cerâmico é uma cobertura vítrea sobre um
corpo cerâmico – sua função, além dos aspectos estéticos, é a de impermeabilizar e conferir maior
resistência às peças (FERNÁNDEZ CHITI, 1986).
A base para formação do esmalte cerâmico é
a sílica (óxido de silício), que está presente,
entre outros materiais, no quartzo e também
nas cinzas de madeiras e de outros vegetais.

O esmalte ou vidrado cerâmico (Figura 19)


é composto por minerais que, para serem
utilizados nas peças cerâmicas, são reduzidos
a pó, formulados e então aplicados de diversas
maneiras sobre as peças de cerâmica. Ao
receber calor, essa mistura de minerais funde-
se, transformando-se em vidro.

De acordo com Phil Rogers (1991), para que


uma peça saia do forno esmaltada (Figura
20), esse pó, que é o esmalte/vidrado, deve
conter uma quantidade suficiente de óxidos
formadores de vidro – dos quais a sílica é
Figura 19 – Um yunomi, ou xícara de chá, com esmalte de
a mais importante –, uma quantidade de
cinzas de pinheiro. Fonte: Rogers (2007).

67
Figura 20 – Cerâmica de alta temperatura com esmalte de cinza, com queima em forno a lenha, feita pela autora. Fonte:
A autora. Acervo pessoal.

fundentes alcalinos para fundir a sílica e um estabilizador, o óxido de alumínio (alumina), que atua como
uma ligação entre a sílica e os fundentes alcalinos para criar um vidrado estável.

O vidrado de cinza surgiu na China durante a dinastia Shang, por volta de 1500 a.C. Entretanto, esses
esmaltes foram produzidos acidentalmente. As cinzas da madeira eram carregadas através do forno pela

68
corrente de ar do fogo, depositando-se sobre as
peças. Assim que a temperatura alcançava em
torno de 1.170 °C, a cinza reagia com a superfície
da massa cerâmica e formava um vidrado áspero
e, muitas vezes, escorrido (ROGERS, 1991). Essa
técnica passou pela Coreia e, por influência dos
ceramistas coreanos, chegou até o Japão (Figura
21), onde se tornou tradicional e sobrevive até os
dias de hoje.

Segundo Murakawa (2013), no Brasil, a técnica


foi introduzida por imigrantes japoneses após
o término da Segunda Guerra Mundial. Desde
então, vem sendo utilizada por vários ceramistas,
Figura 21 – Detalhe do esmalte de cinzas de palha de
que a adaptaram aos materiais disponíveis arroz escorrido. Fonte: Wazen (1852).

em suas regiões, o que atribui à cerâmica


características próprias de determinado local18.

Formular os próprios esmaltes e preparar as pastas cerâmicas permite ao ceramista resgatar um saber
que confere criatividade e originalidade (FERNÁNDEZ CHITI, 1986) aos potes cerâmicos e garante ao
artista o conhecimento dos componentes das pastas e dos esmaltes que utiliza, propiciando eliminar
elementos tóxicos como o chumbo19 e o cádmio, presentes em muitas fórmulas comerciais. Esse fazer

18
Parte desse texto foi apresentado no resumo Esmalte de cinza: dispositivo artístico para despertar encantamento, durante o IX
Seminário de Pesquisa em Artes Visuais do Mestrado em Artes Visuais da UFPel, em 2020.
19
Existe um consumo considerável de chumbo quando ele faz parte da composição do esmalte cerâmico usado em utilitários,
principalmente em contato com ácidos – o que, a longo prazo, pode causar danos irreversíveis à saúde (BARACHO et al., 2012).

69
possibilita ao ceramista a confecção do seu próprio esmalte, conferindo-lhe, dessa forma, autonomia,
no que se refere aos fabricantes comerciais. Não é uma autonomia que dispensa o coletivo, mas sim
uma autonomia que potencializa a troca de saberes.

O ceramista Phil Rogers fala em seu livro Ash glazes:

[...] Recentemente, parece que perdemos esse forte vínculo com nossos
materiais. As mudanças de gostos e tendências sociológicas em nossa sociedade
determinaram um movimento em direção a cores brilhantes na cerâmica, o
tipo de cores que não são facilmente alcançadas com materiais preparados
pelo próprio ceramista, mas aqueles obtidos de maneira rápida e fácil com
produtos que satisfazem a estética do rápido e do liso. Preguiça e conveniência
na nossa sociedade descartável, onde tudo que vem fácil, vai fácil, também
desempenharam seu papel. (ROGERS, 1991, p. 8, tradução nossa).

Nessa estética pasteurizada, o artista ceramista não conhece mais os materiais com os quais trabalha,
sendo para ele muito mais fácil comprar no comércio algo que já está pronto. Somente quando há
conhecimento suficiente dos materiais escolhidos é que os objetos cerâmicos feitos a partir deles
realmente começam a se evidenciar (ROGERS, 1991). É por esse viés que procuramos desenvolver
nosso processo artístico, conhecendo, mesmo que minimamente, os materiais utilizados e buscando
atitudes que estabeleçam um equilíbrio e uma conexão entre o homem, a terra e o cosmos. A partir
disso, sentimos a necessidade do cuidado que devemos ter com os elementos que fazem parte desse
processo, “encontrar esses materiais na paisagem é dialogar com o tempo – passado, presente e futuro
– das matérias naturais e de fazeres ancestrais”20.

Esse conhecimento sobre os materiais evidencia a possibilidade de se produzir processos artísticos


que constituem formações permanentes, qualificando o domínio de técnicas e saberes, reavaliando as

Frase extraída do texto escrito por mim e Humberto Levy em um artigo (não publicado) entregue para a disciplina Seminário
20

de Estética e Cultura Visual no PPGAV da UFPel, em setembro de 2021.

70
formas do viver em sociedade, tendo na arte e no artista um meio para se refletir o tempo presente e
recriar campos possíveis (MARQUES et al., 2020).

Além da possibilidade de criar nosso próprio material, o processo do fazer cerâmico e da elaboração da
própria massa cerâmica partindo de barros selvagens e das cinzas para a confecção de vidrados de cinza
nos confere experiência, e experiência com autonomia.

O amigo e colega ceramista Humberto Levy lembra que, para Jorge Larrosa Bondía (2002), a experiência
é um estado de atenção lento, raro, nos tempos contemporâneos que vivenciamos. A cerâmica e todo
processo envolto nessa arte não só despertam a atenção, como a requerem. A cerâmica precisa desse
acompanhamento atento, do detalhe, do tempo pequeno.21

Parágrafo extraído do artigo entregue para a disciplina Seminário de Estética e Cultura Visual no PPGAV da UFPel, em setembro
21

de 2021.

71
Fonte: Tatiana Pureza. Acervo pessoal.

72
Concordo com Luiz Fuganti22 (2013) quando nos fala que a arte não apenas faz parte da vida, mas ela
funciona como a vida, ela é vida. Nessa perspectiva, para me acompanhar na jornada, fiz o convite a
Paulo Damé para buscarmos a possibilidade de obtenção de um esmalte cerâmico a partir das cinzas de
vegetais dentro da nossa realidade, experimentando o que a natureza tem a nos oferecer.

Ao iniciarmos a pesquisa, entramos em contato com a produção bibliográfica impressa e digital de


alguns ceramistas que utilizavam os esmaltes de cinza. Adquirimos alguns livros sobre o assunto, um
do ceramista inglês Phil Rogers23 (1991), outro do ceramista norte-americano Robert Tichane24 (1998) e,
ainda, um outro de Bernard Leach25 (1981). No Brasil não existem muitas referências bibliográficas sobre
esse tema, mas acessamos, por indicação de Gustavo Tirelli, o trabalho de dissertação da ceramista
Vanessa Murakawa (2013), que, além da pesquisa com esmaltes de cinza do bagaço da cana-de-açúcar,
fala sobre ceramistas brasileiros que utilizam esmaltes de cinza e também conta um pouco da origem e
história dos esmaltes cerâmicos de cinza no Brasil e no Oriente.

Outra referência que temos no Brasil são vídeos e relatos de ceramistas que possuem seus ateliês
localizados principalmente na cidade de Cunha (SP), influenciados pela cerâmica japonesa. Nesse local
existem alguns fornos tradicionais japoneses, chamados noborigama26 (Figura 22).

O polo cerâmico de Cunha teve seu começo em 1975, quando um grupo de artistas/ceramistas formado
pelo casal de japoneses Mieko e Toshiyuki Ukeseki, pelo português Alberto Cidraes e os irmãos Vicente
Cordeiro (Vicco) e Antônio Cordeiro (Toninho) se instalaram na cidade, no prédio de um antigo matadouro
22
Filósofo, pensador nômade da filosofia da diferença, idealizador da Escola Nômade de Filosofia.
23
Phil Rogers (1951-2020), nascido em Newport, Inglaterra, sempre acreditou no valor dos ceramistas que usam materiais
naturais, provenientes de seus próprios arredores.
24
Robert Tichane (1925-2017) nasceu em Hawthorne, Nova Jersey (EUA). Ph.D. em Química, trabalhou por muitos anos no
Sullivan Park for Corning, Inc., onde se tornou um especialista em microscopia eletrônica. Depois de se aposentar, perseguiu
sua paixão pela pesquisa e escrita científica, estudando a arte e a ciência de reproduzir os antigos esmaltes cerâmicos de cinza.
25
Bernard Leach (1887-1979), ceramista britânico e professor de arte, é considerado o pai da cerâmica britânica.
26
Noborigama: forno cerâmico de alvenaria que possui câmaras interligadas em desnível. Para atingir temperaturas acima de
1.300 °C, é necessário que seja alimentado por, no mínimo, 34 horas ininterruptas.

73
Figura 22 – Forno noborigama, do Ateliê Suenaga e Jardineiro, em Cunha (SP), pode atingir até 1.400 ºC. Fonte: Suenaga e Jardineiro
[20--].

cedido pela prefeitura. Deram início ao primeiro ateliê, chamado Ateliê do Antigo Matadouro, construindo
o primeiro forno noborigama de Cunha. Essa iniciativa atraiu a atenção de jovens aprendizes locais que
hoje são ceramistas renomados, criando também o Instituto Cultural da Cerâmica que existe até hoje,
responsável por formar ceramistas da região. Cunha se transformou no maior polo brasileiro cerâmico de
alta temperatura. Dos 20 fornos noborigama espalhados pelo Brasil, seis estão em Cunha.
Durante o mestrado fizemos planos para conhecer a cidade de Cunha, os ceramistas, seus ateliês e também
participar de uma abertura de fornada – o que se tornou um evento na cidade. Infelizmente, devido à
sindemia, nosso projeto de viagem a Cunha teve que ser adiado.

74
75
A redução da matéria à massa fluida, informe – barro –
corresponde no nível cosmogônico à situação primordial
– o caos. Da desordem surge a ordem, do caos nasce a
forma, como na criação do mundo. E, por um momento,
participamos do mito de criação. E o mais importante: por
um momento tocamos no divino.
(NAKANO, 1989, p. 85)

76
3 Cerâmica esmaltada: os processos
do barro e da cinza
Neste capítulo, faço um resgate de nossas memórias para descrever os processos desenvolvidos durante
a pesquisa. Esses processos envolvem desde a busca das argilas e do barro selvagem para elaboração
das massas cerâmicas, passando pela coleta e respigagem das cinzas, como também pela maneira de
proceder sua lavagem e preparação, e encerram na elaboração e aplicação do esmalte cerâmico de
cinzas – nosso objeto de pesquisa – nas peças de cerâmica, criando, assim, os dispositivos relacionais.

77
Fonte: Tatiana Pureza. Acervo pessoal.

78
3.1 O encontro: entendendo as matérias-primas
Ao mesmo tempo em que trabalhávamos27 no projeto de construção do forno28 começamos a pesquisar
sobre as argilas da região, pois precisávamos obter um corpo cerâmico que pudesse ser queimado a
temperaturas elevadas, compatível com a temperatura de fusão do esmalte29.
Começamos nossa pesquisa partindo da premissa de que, na prática cerâmica, a massa cerâmica30,
o esmalte e o forno (temperatura) devem estar perfeitamente ajustados entre si para que o processo
tenha êxito (FERNÁNDEZ CHITI, 1986). Assim, era preciso conhecermos esses elementos para promover
os ajustes necessários.
Já havíamos pesquisado e sabíamos que os esmaltes de cinza, para fundirem, necessitavam que o
forno alcançasse temperaturas entre 1.230 °C e 1.300 °C. Diante disso, decidimos pela construção de
um forno adequado ao trabalho com altas temperaturas, bem como a elaboração da massa cerâmica
compatível com essas temperaturas.
A partir de visitas em jazidas comerciais localizadas em Pantano Grande (RS), região próxima da nossa
residência, identificamos algumas argilas que serviriam para o propósito da pesquisa. Nessas visitas,
coletamos várias amostras para testes (Figuras 23 e 24).

27
Retorno aqui a ideia de substituição do pronome “eu” pelo “nós”, conforme explicada na Introdução.
28
A construção do forno será abordada no próximo capítulo.
29
Temperatura de fusão do esmalte: é o ponto de maturação do esmalte ao transformar-se em vidrado.
30
Massa cerâmica: também conhecida como pasta cerâmica, é construída com a mescla de diversas argilas e outros materiais
cerâmicos; em nosso caso, massas que suportem temperaturas superiores a 1.230 °C, que são necessárias para o trabalho com
o esmalte de cinzas.

79
Figura 23 – Coleta de amostras de argila vermelha em jazidas da região. Fonte: Paulo Damé. Acervo pessoal.

80
Figura 24 – Coleta de amostras de argila em jazida da região de Pantano Grande – RS. Fonte: A autora. Acervo pessoal.

81
Figura 25 – Moagem das amostras de argila.
Fonte: A autora. Acervo pessoal.

Determinadas amostras estavam moídas


e outras em estado bruto, sendo que foi
necessário processá-las – algumas foram
moídas para posterior hidratação e outras foram
hidratadas sem a sua moagem (Figuras 25, 26 e
27). A hidratação foi feita adicionando a argila à
água; aguardamos umedecer completamente
para somente depois misturá-la.

Figura 26 – Hidratação das argilas em estado bruto. Figura 27 – Hidratação das argilas moídas.
Fonte: A autora. Acervo pessoal. Fonte: A autora. Acervo pessoal.

82
Figura 28 – Retirada de excesso de umidade das argilas em Figura 29 – Argilas secando.
superfície absorvente. Fonte: A autora. Acervo pessoal. Fonte: A autora. Acervo pessoal.

Na sequência, esperamos o excesso da água


evaporar para então colocá-las em uma
superfície absorvente. Na época ainda não
tínhamos placas de gesso, que aceleram
o processo de secagem, então utilizamos
jornais para a absorção da água (Figuras 28
e 29).
As argilas foram sovadas e estavam prontas
para os testes (Figura 30).

Figura 30 – Argilas sovadas e prontas para serem utilizadas.


Fonte: A autora. Acervo pessoal.

83
Figura 31 – Testes das amostras de argila para verificar o índice de contração. Fizemos testes em diferentes
Fonte: Paulo Damé. Acervo pessoal.
temperaturas, utilizando um
dos fornos elétricos do Ateliê
de Cerâmica do Centro de
Artes da UFPel. Nesses testes,
foram avaliados o índice de
contração (Figura 31) e o ponto
de maturação31 das argilas, sendo
possível confirmar a informação
do fornecedor de que as argilas
suportavam até 1.300 °C.
Entretanto, ao tornear algumas
amostras, verificamos que não
possuíam estrutura para a conformação das peças. Por isso, foi necessário adicionar chamote32 para
conferir a elas uma melhor estrutura. Porém, a adição de chamote fez com que a argila perdesse
plasticidade, ficando quebradiça. Fizemos misturas entre as diferentes amostras de argila e, por serem
muito semelhantes, a estrutura e a plasticidade se mantiveram as mesmas. Então, para aumentar sua
plasticidade33, adicionamos bentonita34.

31
Ponto de maturação: ponto ideal de queima de uma massa cerâmica, geralmente 100 °C abaixo do ponto de fusão
(FERNÁNDEZ CHITI, 1986).
32
Chamote é a argila calcinada, triturada ou moída e peneirada, que é incorporada nas argilas para garantir determinados
atributos (FERNÁNDEZ CHITI, 1986).
33
Plasticidade é a maleabilidade, a capacidade de trabalho, que é a propriedade das argilas e massas de aceitarem formas sem
rachar. Tem relação com os componentes minerais, o formato das partículas, a umidade, etc. Quanto mais plástica a argila,
maior será o seu encolhimento (FERNÁNDEZ CHITI, 1986).
34
Bentonita é uma argila bastante maleável, de granulação muito fina, que possui alto índice de retração por ser muito
plástica. Absorve água em quantidade 20 vezes superior a seu peso. Não é usada isoladamente e sim como agente plastificador

84
Entre as argilas testadas, elegemos duas que se comportaram dentro das nossas expectativas e
necessidades: por suportarem altas temperaturas, por terem características constantes e por serem
abundantes na nossa região. A proximidade dessas jazidas de nossa residência também contribuiu para
a redução dos custos energéticos com o transporte do material.
Adquirimos 10 t dessas argilas em pó. O transporte foi feito em um caminhão, com 10 bags de
1.000 kg cada.
Aproveitamos uma máquina que se encontrava na propriedade para descarregar os bags no galpão
onde as argilas ficariam armazenadas.
Essas duas argilas tornaram-se a base da massa cerâmica utilizada na pesquisa. Conforme avançávamos
no trabalho e nas experimentações, fomos aperfeiçoando seu processo de preparação.
Esse processo consiste em colocar as argilas para hidratar em um tanque com água (caixa-d’água) e
deixá-las lá em torno de seis meses, para “envelhecerem”.
O próximo passo é misturá-las no próprio tanque com um batedor (Figura 32).

Após ser misturada, essa argila é então peneirada em consistência cremosa (Figuras 33 e 34), em um
tanque feito de tijolos cerâmicos, para secagem.

quando misturada a barros magros. Também é usada na composição de esmaltes como aditivo de suspensão, para evitar o
endurecimento e o depósito no fundo do balde (FERNÁNDEZ CHITI, 1986).

85
Figura 32 – Mistura das argilas no tanque após período de hidratação. Fonte: A autora. Acervo pessoal.

Figuras 33 e 34 – Peneiramento das argilas no tanque para secagem. Fonte: Paulo Damé. Acervo pessoal.

86
Quando chega no ponto de ser sovada, a
argila é retirada do tanque e é adicionado
o chamote (Figura 35), e essa mistura
é passada na maromba35 (Figura 36).
Normalmente, bastam três passadas
na maromba para que a argila esteja
homogeneizada.

Maromba: máquina usada para misturar e sovar


35 Figura 35 – Massa cerâmica com chamote adicionado ao seu redor
massas cerâmicas. Fonte: A autora. Acervo pessoal.

Figura 36 – Passando as argilas com chamote na maromba. Fonte: Tatiana Pureza. Acervo pessoal.

87
Para nos certificarmos de que a argila já está homogeneizada, cortamos uma seção do cilindro de
argila extrusado (que sai da maromba) para análise do ponto da argila. Quando a argila não está bem
misturada, é possível ver o chamote mais concentrado em alguns pontos da seção cortada. Nesse caso,
é necessário refazer o processo.

Ao saírem da maromba, os cilindros foram embalados em sacos plásticos (Figura 37) para que a argila
permanecesse úmida por mais tempo; pronta para ser utilizada na modelagem ou no torno.

Figura 37 – Processo de embalagem da massa cerâmica. Fonte: Tatiana Pureza. Acervo pessoal.

88
Fonte: Tatiana Pureza. Acervo pessoal.

89
Retomando uma de nossas perguntas iniciais:

Que cinzas já existiam como resíduo de algum processo de queima próximo a nós?

Com essa pergunta em mente, elegemos, em um primeiro momento, a cinza do fogão a lenha da nossa
casa. Esse fogão é utilizado para o cozimento dos alimentos, o aquecimento do ambiente interno e
também para o aquecimento da água utilizada no banho e na pia da cozinha. A madeira usada como
combustível desse fogão é proveniente de árvores que estão mortas e/ou caídas no campo, tanto árvores
nativas quanto acácias e eucaliptos.

Essas cinzas foram classificadas de acordo com a origem das diversas madeiras utilizadas no fogão,
pois suas características variam conforme o tipo de cada
árvore. Por esse motivo, passamos a chamá-las de cinzas
de madeiras diversas. Após a primeira queima no forno a
lenha, começamos também a coletar e utilizar essas cinzas na
preparação dos esmaltes.

Entre outras opções36 que tínhamos, pensamos nos resíduos


da queima da casca de arroz dos engenhos da indústria
arrozeira, utilizada como combustível em seus secadores.
Embora essa cinza tenha alto teor de sílica, em torno de 98%
(TICHANE, 1998), e a nossa região, no Sul do Estado, tenha
uma grande quantidade de indústrias arrozeiras, entre os
motivos pelo qual não a utilizamos está o elevado ponto de
fusão desse material, que necessita de temperaturas mais Figura 38 – Garrafa retangular, com molde,
esmaltação tenmoku sobre nuka, de Shoji
altas, a partir de 1.300 °C, e, consequentemente, um forno e Hamada (1966). Fonte: Leach (1999, p. 26).

36
As demais opções, como as cinzas coletadas em campo queimado, serão abordadas a seguir.

90
uma massa cerâmica adequados para essa temperatura. O que na época ainda não sabíamos era que o
nosso forno chegaria a uma temperatura superior a 1.300 °C, indicada por meio dos cones pirométricos
que dobraram no interior do forno, o que ocorreu nas duas últimas queimas que fizemos em dezembro
de 2022. Essa informação nos permite dar continuidade à pesquisa, experimentando também as cinzas
de casca de arroz, pois o esmalte resultante dessas cinzas, chamado nuka, é um dos esmaltes que
gostaríamos de produzir.

Fazemos aqui um rápido desvio para falar sobre esse esmalte. Sua cor não é facilmente descritível,
mas varia entre tons e matizes de azul, verde, bege, branco cremoso e cinza. Cada cerâmica esmaltada
com nuka é diferente. É possível dizer que seu caráter um tanto aleatório é uma de suas principais
características (SHUSTER, 2015). Sua superfície também varia de alto brilho a macio, semifosco.

O nuka teve sua origem no Japão, séculos atrás, onde os oleiros tradicionalmente faziam esse esmalte
usando cinzas de cascas de arroz queimadas (ROGERS, 1991). Essas cinzas eram ricas em sílica, então
alguns esmaltes nuka podiam ser feitos quase inteiramente com cinzas.

A Figura 38 mostra uma garrafa de cerâmica esmaltada com nuka, feita pelo ceramista japonês Shoji
Hamada (1894-1978), um dos mais brilhantes ceramistas japoneses do século XX. Conhecido por
desenvolver sua arte cerâmica com maestria, Shoji Hamada desenvolveu seu trabalho inspirado em seu
ambiente natural e usava materiais que coletava localmente.

Em alguns momentos, no decorrer da pesquisa, abastecemos o fogão somente com uma espécie de
madeira, para testar o resultado de cinzas específicas. Nossos testes foram feitos com cinza de eucalipto,
bambu e cinamomo. Porém, os resultados ainda estão inconclusivos, sendo necessário repetir os testes.

No começo da pesquisa com cinzas de vegetais como matéria-prima dos esmaltes cerâmicos, poderíamos
ter feito alguns experimentos iniciais. No entanto, decidimos usar as cinzas diretamente na composição
de um esmalte sem testá-las previamente. Sobre a metodologia no procedimento a ser utilizado,

91
Rogers (1991) faz algumas considerações bastante pertinentes, quando escolhe um tipo de cinza para a
elaboração de um vidrado:
Eu preciso que meu esmalte fique no pote! Isso pode parecer óbvio, mas quando
se trata de esmaltes de cinzas, é uma consideração importante. No entanto,
não quero o esmalte tão estático que se torne chato. Deve haver movimento
suficiente no esmalte para que ele destaque qualquer decoração na argila,
acumulando-se em cavidades e fugindo das bordas. Essa qualidade em um
esmalte significa, necessariamente, que estamos muitas vezes no fio da navalha
entre fluidez suficiente e fluidez demais. (ROGERS, 1991, p. 53, tradução nossa).

Naquele momento da pesquisa, nosso objetivo principal era a elaboração de um esmalte cerâmico de
cinzas que funcionasse, sem escorrer, ou seja, que não fosse fluido demais. Não estávamos inicialmente
preocupados com o resultado de suas cores ou texturas, mas sim, com a capacidade do vidrado dar uma
cobertura de qualidade à peça cerâmica. No entanto, também precisávamos considerar os diferentes
métodos de mistura de materiais para fins de experimentação.

92
3.2 Respigando cinzas e barro selvagem: duas forças que vêm
do território

... A chama é
o fósforo será
a cinza foi
mas se assoprar...
Iconopoema (Ana Elisa de Castro Freitas)37

Ao retomar aqui o encontro das argilas e a coleta das cinzas, vejo que não estávamos somente almejando
a matéria-prima para os esmaltes cerâmicos de cinza para a feitura das peças, mas sim, estávamos
impregnados pelas suas energias ao resgatar essas duas forças que vêm do território. Além disso,
visávamos a experimentação de outras possibilidades para a cerâmica, priorizando igualmente o menor
impacto possível ao ambiente.
Além do barro adquirido nas jazidas de Pantano Grande, começamos também a utilizar argilas selvagens38
encontradas nas escavações de açudes39, córregos e em beiras de estradas nas proximidades de nossa
casa.
Com relação às cinzas, uma outra opção que se mostrou viável para nós foi a área queimada para limpar
a galharia que sobrou de uma plantação de acácias após o corte e o carregamento da madeira (Figura
39). Esse local fica próximo a nossa casa, na zona rural de Encruzilhada do Sul. Nessa região, existem
vários campos de florestamento40, tanto de eucaliptos como de acácias.
Esse campo mostrou-se uma oportunidade para obtenção de cinzas de uma única espécie de árvore.

37
Freitas, Wirth e Jardini (2020, p. 151).
38
Barro/argila selvagem, também chamado de barro/argila local.
39
Açude: lago artificial, formado pelo represamento da água da chuva.
40
Florestamento: plantação de árvores florestais.

93
Figura 39 – Ação coletiva de coleta de cinzas em um campo queimado, em 2019. Fonte: Sérgio Silva41. Acervo pessoal.

footnote 41

Com isso, foi possível experimentarmos uma cinza com características diferentes da cinza que estávamos
utilizando até então.
Segundo Rogers (1991, p. 8, tradução nossa) “as cinzas de madeira e vegetais variam imensamente de

41
Sérgio Silva, amigo e parceiro colaborador em nossas pesquisas.

94
planta para planta e de espécie para espécie. Os resultados raramente são previsíveis e muitas vezes
difíceis de repetir, mas é o inesperado que fornece o encantamento”. O encantamento que surgiu no
primeiro momento do meu contato com o barro se estendeu ao vidrado de cinza. O encantamento é
gerado para além dos resultados estéticos, pois inclui também uma abordagem ética de reutilização de
resíduos. Além disso, a produção de vidrados a partir das cinzas se torna uma alternativa para evitar o
consumo de esmaltes prontos.
Para Kinceler (2008, p. 1.797), “estar encantado é a mola propulsora que impulsiona o artista a desejar
que ‘outros’ também se encantem, se empoderem e gerem as devidas descontinuidades para que este
mundo seja mais digno de ser vivenciado”. O resgate dos resíduos que foram gerados pela destruição ou
pela queima das matérias vegetais e sua transformação em um novo elemento a ser inserido no processo
fazem parte dos procedimentos artísticos que, para nós, se tornam tão importantes quanto o resultado
final, nesse desejo de encantar e empoderar o outro, gerando descontinuidades e deslizamentos na
realidade.
Podemos nos referir aqui ao conceito de operatividade trazido por Chico Machado (2019) para enfatizar
essas operações com os materiais como intrínsecas aos processos de criação e ao sentido que é dado
ao próprio trabalho realizado, priorizando o modo como essas ações são feitas e também pela maneira
como elas atuam no próprio “assunto” da obra:

A operatividade apresenta-se quando o processo de criação parte de operações


do fazer material e prático, tornando-se parte essencial do sentido do trabalho
artístico, quando o modo como algo é feito é tão ou mais importante do que o
que é feito, ou do efeito que uma obra pode causar. Este conceito atua quando o
pensamento do fazer do trabalho participa de modo incisivo do assunto da obra
(ao menos para os que a fazem), ou, pelo menos, quando o modo de proceder é
parte importante da motivação do artista. (MACHADO, 2019, p. 63).

O conceito de operatividade pode ser visto na ação da Figura 39, em que apresentamos uma das etapas
do processo. Embora não seja visível no resultado, a consideramos essencial para a construção do

95
sentido do trabalho artístico; ou, ainda, que a maneira como fazemos algo é tão importante quanto o
resultado final do que foi feito.

Nessa ação, nos apropriamos do resíduo da destruição. Pelo viés químico e político, é possível dizer que,
como matéria-prima, utilizamos o resíduo e transformamos as partículas da destruição (problema) e as
resgatamos, por meio do reaproveitamento das sobras, transformando a situação. No momento em
que coletamos e ressignificamos o barro selvagem e as cinzas, entendemos a situação como um estado
de arte.

Nesse processo de recolhimento das cinzas no campo queimado e da coleta de barro selvagem é possível
tecer uma aproximação com o conceito de respigagem de Agnès Varda (2000). Segundo Loddi e Martins,
Os catadores da cultura visual não somente recolhem fragmentos como criam
narrativas paralelas e alternativas. Assim, para Hernández, a metáfora de catar,
respigar, apanhar, recolher pedaços de coisas para levá-las a outros contextos
traz a potência de reinvenção e transformação, “distanciada de dualismos,
subordinações e limites [...]”. (LODDI; MARTINS, 2009, p. 10).

Quando a forma desaparece, nos apropriamos do resíduo e, por meio da respigagem, recolhemos o que
sobrou, dando a ele uma nova forma. Os materiais recolhidos de diferentes locais contam sua própria
história, que serão reunidas com outras histórias de outros materiais, que serão amalgamados para
serem levados ao fogo alquímico, onde essências serão reveladas nessa multiplicidade de óxidos que,
reunidos, reagirão, determinando a interação entre o corpo cerâmico e sua cobertura vítrea.

O barro das jazidas de Pantano Grande que utilizamos nesta pesquisa é um barro bastante puro,
apresentando reduzidas porcentagens de contaminantes, embora sua cor, quando ainda cru, seja cinza
escuro devido à presença de carvão mineral, que desaparece após a queima, tornando a peça branca.

Nossa opção foi por não acrescentar óxidos metálicos ou outros pigmentos minerais industrializados42

42
Esses óxidos ou pigmentos poderiam ser utilizados como alternativa para produzir diferentes acabamentos estéticos nas
peças cerâmicas.

96
para dar cor aos esmaltes que produzimos. Decidimos explorar somente as reações químicas dos
esmaltes com as massas cerâmicas e com o forno de chama viva.

Uma das características do processo cerâmico é que os resultados estéticos são decorrentes da interação
química e física entre a massa, o esmalte, a temperatura, a atmosfera do forno, bem como o fogo
propriamente dito. Por isso, começamos a procurar por argilas selvagens que possuíssem naturalmente
contaminações por óxidos e/ou outros minerais, a fim de viabilizar a interação dos componentes e,
dessa forma, produzir resultados imprevisíveis.

Prospectar argilas e materiais locais não é uma atividade nova. “A história da cerâmica confunde-se com a
da própria civilização, pois o barro tem raízes em quase todas as culturas [...].” (LEVY; SHIBATA; SHIBATA,
2022, p. 8, tradução nossa). Perpetuando essa atividade, durante alguns períodos de estada na zona
rural, acompanhamos o trabalho de abertura de açudes na propriedade. No leito e nas encostas desses
açudes, conforme a escavação se aprofundava, surgiam terras com colorações e texturas distintas. A
transformação da paisagem revelava as matérias-primas da cerâmica (Figuras 40 e 41).

97
Figura 40 – Escavação para
a abertura do açude.
Fonte: Paulo Damé.
Acervo pessoal.

98
Figura 41 – Corte
revelando as argilas
selvagens de diversas
cores. Fonte: Paulo Damé.
Acervo pessoal.

99
Da mesma forma que procedemos com os testes das argilas de Pantano Grande, separamos algumas
amostras dos barros selvagens encontrados (Figuras 42 e 43) e realizamos alguns testes de plasticidade
e queima. Nos testes de plasticidade identificou-se a capacidade de trabalho das argilas, selecionando
as que apresentavam maior maleabilidade, que são mais adequadas para compor as pastas cerâmicas

Figura 42 – Separação de amostras do barro selvagem. Fonte: Paulo Damé. Acervo pessoal.

100
Figura 43 – Coleta de barro selvagem. Fonte: Paulo Damé. Acervo pessoal.

que estávamos elaborando. Já nos testes de queima foi possível identificar a coloração das argilas, sua
resistência térmica e mecânica43.

Além das contaminações da massa com a utilização do barro selvagem, contendo altos teores de óxido

43
Essas argilas foram recolhidas em locais aleatórios, aos quais possivelmente não teremos mais acesso.

101
Figura 44 – Esmalte de cinza sobre detalhe em engobe vermelho, por Paulo Damé. Fonte: A autora. Acervo pessoal.

de ferro, também usamos essas argilas locais na preparação de engobes44 que, aplicados nas superfícies
das peças, reagem com o esmalte, gerando outras cores e texturas (Figura 44).

Da mesma forma, fomos surpreendidos com os resultados do esmalte de cinza em massas que não

Engobe: argila em estado líquido, usado como elemento decorativo em peças cruas ou biscoitadas, com diversas tonalidades.
44

Pode ser acrescido de óxidos corantes e/ou pigmentos para produzir outras tonalidades.

102
Figura 45 – Esmalte de cinza em massa cerâmica branca, pela autora. Fonte: Ágata Tomaselli. Acervo pessoal.

continham quantidades significativas de óxido de ferro (Figura 45).

Esse é um conhecimento alquímico45, e não químico. Nós não realizamos uma análise química desses
materiais, apenas constatamos empiricamente alguns dos seus componentes, como óxido de ferro, cal
e carbonatos. Essa alquimia só será revelada na boca do dragão (Figura 46), como se refere a amiga e
ceramista Amparo Drummond ao falar do forno cerâmico.

Alquimia, escreve Elkins (2000, p. 23 apud INGOLD, 2012, p. 36), “é a antiga ciência de lidar com os materiais, e não entender
45

muito bem o que se passa com eles”.

103
Figura 46 – Imagem do forno cerâmico a lenha durante uma queima. A “boca do dragão”, como o chama Amparo Drummond. Fonte:
A autora. Acervo pessoal.

104
Ainda com relação às contaminações naturais, Phil Rogers (1991) diz que os ceramistas orientais
trabalham felizes com os materiais que estão à mão, aceitando suas impurezas como um fato inevitável
da vida e, ao mesmo tempo, trabalham em harmonia com eles. É a partir dessa visão que procuramos
desenvolver nosso processo artístico, não nos opondo ao que a natureza tem a nos oferecer, mas
aceitando e buscando, com respeito, uma forma de entrarmos em sintonia com os materiais que nos
são oferecidos por ela.

É possível considerar, dentro da pesquisa, três tipos de contaminação: as contextuais, as naturais


(aleatórias) e os atravessamentos. O primeiro tipo, a sindemia, é contextual, e não temos muito mais a
falar sobre isso.

O segundo, que estamos tratando neste capítulo, são as contaminações que acontecem naturalmente
ou que são provocadas por nós durante o processo, como a inserção de argilas de composições diversas
para que ocorram reações inesperadas e aleatórias; o que sempre tem provocado encantamento e tem
diferenciado não só uma peça da outra, mas, também, uma fornada da outra. Essa gama de variáveis
agregadas ao processo, como os tipos de argilas que compõem as massas cerâmicas, são misturas
que apresentam um grau de aleatoriedade e, é claro, corremos o risco de que erros aconteçam. Por
exemplo, o aparecimento de rachaduras durante a secagem ou no momento da queima ou, ainda, uma
textura muito grossa devido ao excesso de chamote, dificultando o processo de tornear. As cinzas de
madeiras diversas também apresentam um coeficiente de acaso no processo, mas que sempre traz
boas surpresas.

O terceiro tipo de contaminação é da ordem do acontecimento, dos encontros, dos atravessamentos. A


antropóloga Anna Tsing (2022, p.73) pergunta: “Como um encontro se transforma em ‘acontecimento’,
isto é, algo maior que a soma de suas partes?”. Ela responde: “Contaminação é uma possível resposta”.
E continua: “Somos contaminados por nossos encontros; eles transformam o que somos, à medida

105
que abrimos espaço para o outro”. As transformações que acontecem na pesquisa provocadas pela
ação dos colaboradores com percepções e pensamentos outros, que muitas vezes desestabilizam as
certezas e as verdades, contribuem para que a pesquisa avance por caminhos incertos, propiciando
outras descobertas. Anna Tsing (2022, p.73) ainda diz: “colaboração significa trabalhar por meio das
diferenças, o que leva à contaminação”.

Nossas ações de coleta de barro selvagem e de recolhimento das cinzas de madeira no campo
potencializam o “diálogo” com o material e o encantamento do fazer cerâmico, que estão presentes
durante todo o fazer artístico. Esse processo torna-se tão potente quanto o resultado do objeto de arte
em si. O caminho agrega significado ao resultado final, potencializando o objeto cerâmico e conferindo-
lhe sentido. Dessa forma, compactuamos com Ingold (2015) quando cita Flusser e passamos a considerar
esse objeto transformado como “coisa”:

“Um ‘objeto’”, escreve o filósofo do design Vilem Flusser, “é o que fica no


caminho”: em pé diante de nós como um fato consumado, completo em
si mesmo, ele bloqueia nosso caminho. Para continuarmos ou temos que
contorná-lo, ou removê-lo, ou conseguir rompê-lo (FLUSSER, 1999, p.58). A
“coisa”, ao contrário, nos atrai, pelos caminhos mesmos da sua formação. Cada
um, por assim dizer, é um “acontecimento” – ou melhor, um lugar onde vários
acontecimentos tornam-se entrelaçados. (INGOLD, 2015, p. 307).

Toda essa alquimia só pode ser vivenciada por aqueles que colaboraram no processo e, conforme
diz Ingold (2015), atraídos pelos caminhos mesmos da sua formação, enquanto que um espectador
tradicional tem acesso somente ao resultado. A ação do espectador é daqui para frente, quando ele
faz uso da “coisa” (INGOLD, 2015), ou seja, faz uso do objeto no seu cotidiano, onde passou a carregar
significado e vários acontecimentos se entrelaçam.

A Figura 47 mostra a fotografia enviada por Ágata Tomaselli utilizando a peça cerâmica criada por mim
para tomar café durante uma queima em seu ateliê.
Nesse sentido, concordamos com Oliveira (2015) quando diz que o que lhe interessa é pensar a arte no

106
Figura 47 – Objeto relacional: peça de cerâmica feita
pela autora e enviada a Ágata Tomaselli em 2022.
Fonte: Ágata Tomaselli. Acervo pessoal.

107
momento em que se apresenta em seu preciso instante de instauração:

[...] nos interessa pensar a arte como processo, como fluxo a ser experimentado
no próprio processo de criação, algo que tem a duração de um sopro, o sopro da
criação, e que se apresenta para quem está presente no momento da criação,
no momento presente da instauração da arte no processo criativo. É aí, no exato
instante do próprio ato da criação, que a arte encontra sua existência e seu
sentido. (OLIVEIRA, 2015, p. 5).

Os processos artísticos colaborativos são mais complexos porque a figura do artista e do espectador,
agora também colaborador, se entrelaçam. Para Marcel Duchamp (2004), o ato criador envolve o
artista, a obra e o espectador; dessa forma, em processos colaborativos, podemos dizer que a figura
do espectador se confunde com a do artista propositor, dando continuidade à criação ao estabelecer
contato entre a obra de arte e o mundo.
Nos dias de hoje, a globalização e o pensamento capitalista massificado incentivam o consumo de bens
diretamente do comércio, não dando valor aos produtos de maior qualidade que podem ser desenvolvidos
a partir de matérias-primas coletadas e conhecidas pelo próprio artista. Já na década de 1990, o filósofo
Félix Guattari (1990) dizia que, se os desequilíbrios ecológicos não fossem corrigidos, ameaçariam a vida
na superfície do planeta. Dizia também que nossa maneira de viver vinha em uma crescente degradação;
a vida doméstica corrompia-se pela mídia, que acabava por padronizar comportamentos. Hoje, mais de
30 anos após essa publicação, seu pensamento segue atual, ajudando a enxergar a importância da
articulação ético-política, chamada por ele de “ecosofia”, nos registros ecológicos do meio ambiente,
nas relações sociais e na subjetividade humana (GUATTARI, 1990). Também a sindemia da covid-19 nos
alerta sobre a necessidade de desenvolvermos novas práticas ecológicas, micropolíticas e microssociais,
com nossas práticas estéticas. Nas palavras de Guattari:

[...] parece-me que essa é a única via possível para que as práticas sociais e
políticas saiam dessa situação, quero dizer, para que elas trabalhem para a
humanidade e não mais para um simples reequilíbrio permanente do universo
das semióticas capitalistas. (GUATTARI, 1990, p. 35).

108
A coleta do barro selvagem e o uso das cinzas em forma de reaproveitamento de um resíduo imprimem
uma quantidade menor de marcas em nosso ambiente, considerando, mesmo que minimamente, em
microescala, uma atitude de consumo consciente que transforma um sistema linear em um sistema
cíclico, procurando eliminar do cotidiano os desperdícios.
Como ceramistas, procuramos fazer cerâmica em diálogo com as paisagens, observando as suas
transformações e os resultados dessas mudanças, que para nós são como frutos que podem ser colhidos,
ou respigados, como o barro e a cinza, que farão parte do ciclo do processo cerâmico. O ato de encontrar
a matéria-prima dá mais valor e sentido ao nosso trabalho, que começa bem antes da construção de
uma peça. Todo esse movimento do fazer cerâmico potencializa o encantamento do processo artístico,
que é o momento em que a arte se manifesta46.

Parágrafo escrito por mim e Humberto Levy em um artigo (não publicado) entregue para a disciplina Seminário de Estética e
46

Cultura Visual no PPGAV da UFPel, em setembro de 2021.

109
3.3 Coletando e preparando as cinzas de madeira
O primeiro passo para se elaborar os esmaltes cerâmicos de cinza é a coleta das cinzas. Ao serem
manuseadas devemos tomar alguns cuidados, entre eles o uso de luvas, óculos e máscara, devido ao
fato de a cinza ser cáustica 47. A coleta pode ser feita com uma pá e um recipiente para depositar as
cinzas (Figura 48).

Figura 48 – Recolhimento das cinzas do fogão a lenha. Fonte: Paulo Damé. Acervo pessoal.

47
As substâncias cáusticas são aquelas que causam danos ao contato com as superfícies do corpo.

110
Após as cinzas serem coletadas existem duas possibilidades a serem exploradas na sua preparação.
Elas podem ser lavadas previamente ou não lavadas. Uma das diferenças entre elas é que as cinzas não
lavadas têm a tendência a escorrer mais durante a queima, pelo “[...] fato de que parte da capacidade
fundente das cinzas de madeira é perdida na operação de lavagem” (TICHANE, 1998, p. 58, tradução
nossa). Além do que, há o inconveniente de, ao peneirar as cinzas secas, gerar uma nuvem de poeira
fina das suas partículas. A partir do conhecimento desses fatos, decidimos iniciar a pesquisa utilizando
as cinzas lavadas.
Após a coleta, as cinzas são colocadas em um recipiente com água. Mexemos bem com uma pá de
madeira e deixamos decantar. Com uma peneira, retiramos os pedaços de carvão e pedaços de madeira
não queimada e similares da superfície da água (Figura 49).

Figura 49 – Retirando com a peneira os pedaços de carvão, pedaços de madeira não


queimada e similares. Fonte: Paulo Damé. Acervo pessoal.

111
Figura 50 – Peneirando as cinzas. Fonte: Paulo Damé. Mexemos novamente, peneiramos48 o material
Acervo pessoal.
(Figura 50) e deixamos decantar mais uma vez. A
água, que então se encontrava na parte superior do
recipiente, é retirada (Figura 51) e, posteriormente,
acrescentamos mais água. Repetimos essa
operação de três a quatro vezes49. Para o ceramista
Bernard Leach (apud ROGERS, 1991), as cinzas
deveriam ser lavadas até a água ficar limpa,
transparente e praticamente sem cheiro. Na última

lavada, passamos a cinza misturada com a água


em uma peneira de malha 5050.

Após decantar, retiramos a água e colocamos as


cinzas para secar. As cinzas podem ser colocadas
em baldes e bacias, para a evaporação da água,
ou em superfícies absorventes, como cerâmicas
biscoitadas ou placas de gesso (Figura 52).
Figura 51 – Retirando a água após a cinza decantar. Fonte: Paulo
Depois de seca, está pronta para ser pesada e Damé. Acervo pessoal.

48
A cada lavada, passamos as cinzas por uma peneira comum.
49
Essas operações variam de ceramista para ceramista. Durante a pesquisa, mesmo lavando as cinzas até sete vezes, não foram
observadas diferenças significativas no resultado do esmalte a partir da variação do número de lavagens.
50
Malha ou mesh: número de fios por polegada quadrada, determinando a espessura da abertura da peneira. Alguns ceramistas
utilizam peneira de malha 80 ou 100.

112
misturada aos outros materiais. Figura 52 – Processo de secagem das cinzas em cerâmica
biscoitada. Fonte: A autora. Acervo pessoal.
No início do nosso processo, passávamos a cinza
(depois de seca) pela peneira, antes de formular o
esmalte. Hoje, como moemos o esmalte no moinho
de bolas51 (Figura 53), a cinza não é mais peneirada
após a secagem. Peneiramos somente o esmalte

após a moagem (Figura 54), quando todos os


materiais que o compõem já estão misturados
e hidratados.
Figura 53 – Moinho de bolas. Fonte: Tatiana Pureza. Acervo pessoal.
O ceramista Phil Rogers (1991) também utilizava
a cinza lavada para a elaboração de seus
esmaltes, porém, o desenvolvimento de seu
processo era um pouco diferente. Ele pesava
a cinza antes de ser lavada, na quantidade
necessária para a receita do lote de esmalte
que estava preparando, adicionando em torno
de 25% a mais da cinza. Esse acréscimo se dava
Figura 54 – Passando o esmalte pela peneira após ser agitado no
moinho de bolas. Fonte: Tatiana Pureza. Acervo pessoal. porque a cinza bruta ainda continha pedaços

51
Moinho de bolas: equipamento elétrico que movimenta um tanque de porcelana com esferas do mesmo material, de diversos
diâmetros, usado para diminuir o tamanho das partículas do material a ser moído.

113
de carvão, madeiras não queimadas, pregos, entre outros. Depois da pesagem, a cinza era lavada e
peneirada, sem secar, para então ser misturada aos outros materiais que faziam parte da receita. Com
isso o processo era agilizado, pois pulava-se a etapa da secagem antes da pesagem da cinza.

Além disso, para Rogers (1991), peneirar a cinza bruta não é uma tarefa agradável, embora tenha
relatado já ter feito isso ao trabalhar com outro ceramista. “Mesmo usando máscara e sendo o mais
cuidadoso possível, a poeira fina entra nos meus olhos e cabelos enquanto fornece a essas partículas
mais finas outra oportunidade de escapar” (ROGERS, 1991, p. 54, tradução nossa). Já o ceramista Robert
Tichane (1998) usava a cinza sem lavar, embora admitisse alguns inconvenientes durante o processo. Ele
cita como exemplo a extrema alcalinidade da cinza, o que inviabiliza que seja manipulada com as mãos
sem o uso de proteção adequada.

Os processos de preparação das cinzas para serem utilizadas na elaboração dos vidrados cerâmicos
variam de ceramista para ceramista, dependendo do objetivo que cada um quer alcançar. Até o
presente momento, o processo que estamos desenvolvendo tem se mostrado adequado aos fins a que
nos propusemos.

114
3.4 Preparo e aplicação dos esmaltes de cinzas vegetais
Trabalhar com esmaltes de cinza é mergulhar em um universo de infinitas possibilidades. O ceramista
japonês Shoji Hamada (apud ROGERS, 1991, p. 23, tradução nossa) já dizia que “esmaltes de cinza
são os mais complexos dentre todos os esmaltes cerâmicos, [...] porque com cinzas estamos lidando
com a mistura da natureza”. Phil Rogers, se referindo à mesma questão, nos diz que “[...] é a extrema
complexidade da estrutura química de uma cinza que insiste em que o material deva ser tratado de
maneira simples” (ROGERS, 1991, p. 23, tradução nossa).
Rogers (1991) nos fala, ainda, que ao lidarmos com as cinzas de madeira, estamos mexendo com um
coquetel mineral e químico altamente complexo; uma mistura que torna a formulação de uma análise
média uma perda de tempo, se não uma impossibilidade. Por esse motivo, ele acredita haver pouco
sentido em nos preocuparmos com o conteúdo exato de uma cinza, mas sim no que aquela cinza em
particular fará por nós.
Para começarmos a entender a dinâmica dos esmaltes de cinza, é preciso analisarmos determinadas
características. A ceramista Ágata Tomaselli52 nos lembra que existem três pilares na composição de um
esmalte: os vitrificantes, os estabilizantes/refratários e os fluxos/fundentes. A relação e proporção entre
esses três componentes é o que determina a faixa de temperatura de fusão de um vidrado.
Os vitrificantes são os formadores de vidro – sílica (SiO2) e boro (B2O3); os estabilizantes são os que
impedem o escorrimento do esmalte, proporcionam aderência ao biscoito53, ajudam a endurecer e
também a dar viscosidade durante a fusão – alumina (Al2O3); e os fundentes reduzem o ponto de fusão
do esmalte para uma temperatura específica. Alguns componentes dos esmaltes podem atuar em mais

52
Ágata Tomaselli: ceramista por trás da Áter Cerâmica (https://www.aterceramica.com.br), formada em Licenciatura em Artes
Visuais pelo Centro de Artes da Udesc, foi aprendiz na roda de oleiro tradicional (de chute) da Escola de Oleiros Joaquim Antônio
de Medeiros, em São José (SC), e desde 2018 estuda a composição e formulação de esmaltes cerâmicos.
53
Queima biscoito: primeira queima da argila sem a aplicação de esmalte. É quando a argila/barro se transforma em cerâmica.
Normalmente é uma queima de 800 °C a 900 °C. É comum chamarmos a peça após essa primeira queima de biscoito.

115
de um desses pilares e terem mais de uma função.
Nossas análises dos componentes do esmalte de cinzas foram realizadas a partir dos três pilares de
sua composição: a cinza como vitrificante, que além da sílica, pode conter também alumina e alguns
fundentes; a argila como estabilizante/refratário, que contém alumina e outros componentes, e o
feldspato como fluxo/fundente.
Após pesquisarmos algumas composições54 (receitas) (Figura 55) e preparações de esmaltes de cinza,
decidimos experimentar duas receitas.

Receita 1:
50 partes de cinza
50 partes de feldspato potássico

Receita 2:
40 partes de cinza
40 partes feldspato potássico
20 partes argila

Após alguns testes e pesquisas, decidimos


utilizar a fórmula que continha argila
(Receita 2). A argila contém sílica e Figura 55 – Registro em caderno de campo das receitas utilizadas.
Fonte: A autora. Acervo pessoal.
alumina, com pequenas quantidades
de outros elementos, como cálcio e ferro, em proporções variadas, dependendo do local de onde foi

As cinzas também são usadas na composição de diversas receitas de outros esmaltes, que podem incluir materiais cerâmicos
54

adicionais em sua composição.

116
extraída. Adicionando argila ao vidrado, obtivemos algumas vantagens mesmo antes de considerarmos
quaisquer efeitos que pudessem existir na qualidade do esmalte após a queima. Uma quantidade de
argila na receita ajuda na suspensão das partículas na água, evitando a compactação do esmalte no
fundo do recipiente. A argila também torna o esmalte mais opaco, ao mesmo tempo que aumenta sua
viscosidade ao fundir, auxiliando na prevenção de seu escorrimento (ROGERS, 1991).

Além desses materiais, utilizamos também o CMC55 (carboximetilcelulose), para que o pó do esmalte na
superfície da peça não saia com facilidade quando for manipulada. Também é utilizado, assim como a
argila, para auxiliar na permanência das partículas em suspensão.

Na preparação do CMC, segundo Fernández Chiti (1986), são diluídos: 10 gramas de CMC em um litro de
água limpa. Deixa-se de molho e, em seguida, aquece-se em fogo baixo até chegar à fervura suave por
dois ou três minutos, para que resulte em um xarope fluído e cristalino. Depois de esfriar, peneira-se
para retirar os grumos, se necessário. Aplica-se 10 ml dessa solução em um litro de esmalte.

A quantidade de água varia na preparação do esmalte. Normalmente, a medimos no mesmo peso


do material seco utilizado na receita56, mas reservamos um pouco para ir adicionando no decorrer da
preparação, até encontrar a densidade ideal.

Em um recipiente, colocamos a água e em seguida o material seco, que já está previamente misturado.
Esperamos hidratar e então seguimos mexendo. A partir daí, observamos a necessidade de acrescentar
mais água ou não.

Em nosso processo artístico muitas coisas são feitas intuitivamente, e uma delas é o uso do CMC. Um
pouco diferente do processo de preparação do ceramista Fernández Chiti (1986), dissolvemos uma

55
CMC (carboximetilcelulose): é uma cola usada em alimentos e, na cerâmica, funciona como adesivo, fixando os esmaltes à
peça cerâmica, facilitando a sua colocação no forno.
56
Por exemplo, se o material seco (cinza, feldspato e argila) pesa cinco quilos, separamos cinco litros de água, mas começamos
a mistura com três ou quatro litros.

117
colher de sopa de CMC em um litro de água morna, misturamos bem com um batedor e coamos. Após
colocarmos a água no recipiente para a preparação do esmalte, despejamos um pouco do CMC já
preparado. Essa quantidade varia de acordo com o volume de esmalte que vamos preparar.

A consistência desse esmalte é baseada em nossas experiências. Ao misturá-lo, conseguimos saber se


ainda está denso e se há a necessidade de acrescentarmos mais água. Isso também pode ser observado
quando esmaltamos uma peça. Se o esmalte estiver denso demais, é possível identificar a espessura
grossa de sua camada.

O processo de esmaltação é bastante simples. Após as peças estarem biscoitadas, devem ser lavadas
ou receber jato de ar ou, ainda, ser passada uma esponja limpa e úmida. Esses procedimentos são
realizados para a retirada do pó, gordura ou de qualquer outro elemento que esteja em sua superfície.
Essa limpeza deve ser feita para possibilitar uma boa fixação do esmalte na superfície da peça. Se
as peças forem lavadas, é indicado que se aguarde sua secagem completa para então proceder a
esmaltação. Isso é necessário, pois o esmalte é o resultado dos minerais em pó em suspensão na água.
Ele fica aderido à peça porque a peça biscoitada absorve a água do esmalte, deixando uma camada
depositada em sua superfície. Se a peça biscoitada estiver úmida demais, a água não conseguirá ser
absorvida e, como consequência, a parte sólida do esmalte não vai se depositar como deveria na peça
e irá escorrer.

Existem diferentes formas de esmaltação. Em nosso processo, utilizamos


a esmaltação por banho (Figuras 56 e 57), por imersão (Figuras 58, 59)

118
Figuras 56 e 57 – Esmaltação por banho.
Fonte: A autora. Acervo pessoal.

Figuras 58 e 59 – Esmaltação por imersão.


Fonte: A autora. Acervo pessoal.

119
e com pincel (Figura 60).

Além da esmaltação na peça biscoitada, existe a possibilidade de realizarmos a esmaltação nas peças
cerâmicas ainda cruas, em ponto de couro, chamada de monoqueima. A monoqueima consiste na
sinterização57 da massa cerâmica e fusão do esmalte em uma única queima58. Esse processo se apresenta
também como uma forma de economia de energia. No procedimento da monoqueima, observamos
que o esmalte deve ter densidade maior e, consequentemente, uma quantidade menor de água, pois a
peça crua está menos absorvente do que o biscoito.

Figura 60 – Esmaltação com pincel. Fonte: A


autora. Acervo pessoal.

57
Sinterização: é o processo de fechamento dos poros da cerâmica durante a queima pela sua contração; quanto mais alta a
temperatura, mais fechados ficam os poros.
58
Normalmente as peças cerâmicas são submetidas a, no mínimo, duas queimas. A primeira queima, biscoito, e a segunda,
para fusão do esmalte. As peças ainda podem ser submetidas a outras queimas, caso seja necessário.

120
Esse tipo de esmaltação requer alguns cuidados e conhecimento do comportamento da massa cerâmica.
Conforme explicado anteriormente, o esmalte adere à peça cerâmica conforme a água é absorvida. No
caso de a peça estar crua, é preciso conhecer a massa e o momento adequado para a esmaltação – a
peça não deve estar muito molhada, pois, nesse caso, não irá absorver a água do esmalte, e nem seca
demais, pois a tendência é se desmanchar ao entrar em contato com a água do esmalte59. Nos processos
de banho e imersão, devemos ter o cuidado de não deixar a peça em contato com o esmalte por muito
tempo. Quando utilizamos o pincel, o cuidado também deve existir, porém, fica mais fácil observar o
seu comportamento.

59
Embora a bibliografia e a maioria dos ceramistas relatem que a peça crua totalmente seca não é indicada para a monoqueima,
fizemos alguns testes e fomos bem-sucedidos.

121
122
[...] todos os complexos ligados ao fogo são, afinal, complexos
dolorosos, complexos ao mesmo tempo neurotizantes e
poetizantes, complexos reversíveis: podemos encontrar o
paraíso em seu movimento ou em seu repouso, nas chamas
ou nas cinzas.
(BACHELARD, 1994, p. 163)

123
4 A boca do dragão
4.1 Construindo o forno
Partindo da necessidade de queimar as peças cerâmicas em alta temperatura, decidimos construir um
forno a lenha adequado para alcançar essas temperaturas. Encontro na tese de Paulo Damé uma síntese
da construção colaborativa do forno. Trago aqui suas palavras:

Em um dos encontros reunimos a experiência em construção de fornos


cerâmicos do Gustavo, do Paulinho e a minha, e, com a colaboração dos demais
presentes, fizemos o planejamento, dimensionando e elegendo o modelo de
forno mais eficiente para as nossas necessidades. A construção foi realizada
em dois encontros e essa experiência foi registrada em imagens fotográficas e
vídeos. (DAMÉ, 2018, p. 184).

O projeto foi iniciado após analisarmos nossas necessidades e os diferentes tipos de fornos. Definiu-se
por um modelo de forno a lenha de tiragem invertida60, com abertura frontal e teto de arco pleno. Essa
construção, realizada de forma colaborativa durante esses encontros61 na casa/ateliê Casa Redonda,
envolveu ações propositivas com a colaboração de várias pessoas (Figuras 61 e 62).

60
No forno de tiragem invertida, a chaminé inicia na altura do chão da câmara de queima. O calor do fogo sobe pela câmara e,
para sair, terá que descer também por ela, até chegar à entrada da chaminé, na parte inferior. A chaminé tem aproximadamente
quatro vezes a altura do forno, fazendo com que o forno não perca tanto calor.
61
Esses encontros eram a forma de organização do projeto doutoral de Paulo Damé, intitulado Casa Redonda.

124
Figura 61 – Início da
construção colaborativa
do forno a lenha, etapa
do alicerce. Fonte: A
autora. Acervo pessoal.

Figura 62 – Construção
colaborativa do forno a
lenha, etapa da câmara
de cocção do forno.
Fonte: Tatiana Pureza.
Acervo pessoal.

125
Figura 63 – Momento de confraternização durante a abertura do forno. Fonte: A autora. Acervo pessoal.

Nas etapas de discussão, elaboração do projeto e construção do forno colaboraram mais efetivamente
com suas experiências Paulo Silva, o Paulinho, que é um experiente construtor, amigo e colaborador
em diversos projetos que temos realizado; o amigo Gustavo Tirelli, que possui uma vasta gama de
conhecimentos – entre outros saberes, sobre queimas e construção de fornos cerâmicos, e Paulo Damé,
parceiro na pesquisa e que também possui experiência em construção de fornos a gás e a lenha.

O forno (Figura 63), desde a sua idealização, funciona como um dispositivo relacional62 (BOURRIAUD,

62
Esse conceito será abordado no Capítulo 5.

126
2009) de troca de saberes em um projeto colaborativo, em uma produção de sentido que acrescenta
algo que a realidade por ela mesma não está preocupada em representar (KINCELER, 2008). Esse projeto
artístico colaborativo foi instaurado por meio das singularidades, saberes e processos criativos dos
colaboradores, fazendo surgir uma descontinuidade nas formas de entender e praticar essa realidade,
proporcionando experiências artísticas em grupo.

É essa realidade tomada como princípio para o fazer arte que nos impulsiona a
desenvolver o processo artístico em colaboração com o outro (Figura 64), gerando

Figura 64 – Abertura do forno a lenha durante um encontro na Casa Redonda, em 2019. Fonte: Ágata Tomaselli. Acervo pessoal.

127
descontinuidades que, por sua vez, reinventam maneiras de como o sujeito se percebe no
mundo.

Com o forno pronto para utilização, a pesquisa se intensificou com as experimentações dos
esmaltes de cinza e as massas cerâmicas que vínhamos preparando, bem como a observação
das diferenças entre as queimas em forno elétrico 63 e forno a lenha.

63
As queimas em forno elétrico foram realizadas no Ateliê de Cerâmica do Centro de Artes da UFPel.

128
Fonte: Tatiana Pureza. Acervo pessoal.

129
Um dos primeiros motivos para a escolha do combustível do forno foi a disponibilidade e facilidade de
obtenção de madeira nos florestamentos de acácia e eucalipto da região, além das árvores que estão
mortas na propriedade. Porém, essa não foi a única razão. O esmalte cerâmico de cinzas foi descoberto
e vem sendo usado em diferentes regiões do Oriente desde a Antiguidade, em fornos tradicionais a
lenha; os resultados desses esmaltes se tornam bem mais potentes quando queimados em atmosfera
redutora64, que pode ser gerada em fornos de chama viva (Figura 65).
Em nossa pesquisa, os resultados da queima a lenha
refletem o que almejávamos inicialmente. Uma
estética65 que se aproxima da natureza, possuindo
simplicidade, irregularidades, imperfeições e
variações em suas texturas.

As queimas de biscoito foram realizadas em forno


elétrico, no Ateliê de Cerâmica do Centro de Artes
da UFPel, onde também foram feitas algumas
queimas de esmalte nas quais obtivemos bons Figura 65 – Peça feita pela autora, queima em forno de chama
resultados. Porém, em uma atmosfera oxidante , 66 viva – a lenha. Fonte: A autora. Acervo pessoal

a massa cerâmica elaborada com as argilas de


Pantano Grande e esmaltada com o vidrado de cinza67 tem um resultado bastante previsível e monótono.
Para modificar essa realidade, produzimos algumas peças contendo detalhes esmaltados com óxidos

64
Atmosfera redutora: quando a atmosfera do forno (ambiente) apresenta redução da quantidade de oxigênio na queima. Essa
atmosfera pode ser gerada em fornos de combustão a lenha, gás ou óleo, também sendo possível em fornos elétricos, embora,
neste último caso, possa diminuir a vida útil dos resistores.
65
Essas características serão descritas no final deste capítulo.
66
Atmosfera oxidante: quando há presença de oxigênio na câmara de cocção do forno.
67
Sem a adição de óxidos colorantes.

130
Figura 66 – Esmaltação com esmalte de cinza e detalhes com colorantes (Figuras 66).
óxido de cobre, queima em forno elétrico, feita pela autora.
Fonte: A autora. Acervo pessoal. Partimos para duas linhas de experimentação,
que nos levaram ao encontro de resultados
específicos. Nas Figuras 67 e 68, é possível vermos
duas peças que foram feitas com o mesmo
barro – de Pantano Grande – esmaltadas com o
mesmo vidrado de cinza, e queimadas em fornos
de tecnologias diferentes – um de chama viva e
outro elétrico; atmosfera redutora e oxidante,
respectivamente.

Figura 67 – Peça feita pela autora, com argila de Pantano Grande Figura 68 – Peça feita pela autora, com argila de Pantano Grande
queimada em forno a lenha. Fonte: A autora. Acervo pessoal. queimada em forno elétrico. Fonte: A autora. Acervo pessoal.

131
As mesmas experimentações em forno a lenha e
elétrico desenvolvidas com argilas que possuem
contaminações, como a terracota, resultam em
efeitos diferentes (Figuras 69 e 70) dos testes feitos
com a argila anteriormente utilizada, de Pantano
Grande.

Ao retomarmos aqui a questão sobre o tipo de forno


a ser usado, constatamos que as escolhas dependem
do que o ceramista deseja de seu processo
artístico, visto que são inúmeras as possibilidades
e os resultados, conforme os diferentes modos de
queima. Figura 69 – Peça feita pela autora, com argila vermelha e
esmalte de cinza, queimada em forno a lenha. Fonte: A
Com a finalização da construção do forno a lenha, autora. Acervo pessoal.

seus primeiros resultados confirmaram que esse


era realmente o caminho a ser seguido para que a
arte cerâmica fosse incorporada ao meu cotidiano
e, dessa maneira, eu pudesse ressignificá-lo.

Figura 70 – Peça feita pela autora, com argila vermelha e


esmalte de cinza, queimada em forno elétrico. Fonte: A
autora. Acervo pessoal.

132
4.2 Conhecendo o forno por meio das queimas
Os momentos de queima são aprendizados repletos de emoção, alegria, entusiasmo, calor, cansaço,
suor, esperança, trabalho árduo, colaboração, parceria, e nos enriquecem e fortalecem a cada fagulha.

Desde o término da construção do forno a lenha até hoje, já foram realizadas 20 queimas. Todas elas
distintas umas das outras, embora o objetivo fosse sempre o mesmo: revelar a magia da cerâmica e dos
esmaltes de cinza. Em algumas, contamos com a colaboração de amigos, colegas, visitantes, familiares
(Figura 71) e, em todas, tínhamos a companhia do céu, do sol, das estrelas, do frio, do calor.

Figura 71 – Registro realizado durante uma das queimas. Fonte: A autora. Acervo pessoal.

133
Nesses encontros, no território, ao redor do forno, foi possível sentirmos toda a energia que emana das
pessoas reunidas, a energia do queimar juntos, que se une à energia do fogo queimando o barro e a
cinza que são oriundos desse mesmo território. Em outras ocasiões, estávamos somente nós, Paulo e
eu, nos revezando ao redor do forno para alimentá-lo (Figuras 72 e 73).

Figura 72 – Abastecimento do forno ao final de uma queima. Fonte: Tatiana Pureza. Acervo pessoal.

134
Figura 73 – Abastecimento do forno com lenha fina para elevar a temperatura. Fonte: Paulo Damé. Acervo pessoal.

Temos muitas recordações dos momentos de queima. Em uma delas, um fato inusitado ocorreu. Após
estarmos acompanhando o fogo durante umas 12 horas, Paulo e eu estávamos sentados em dois sacos
cheios de serragem, um pouco afastados do forno. De repente ouvimos um barulho na prateleira acima
de nós, olhamos para cima e vimos uma cobra preta com tons amarelos em sua parte inferior, de
aproximadamente um metro de comprimento. Já a havíamos visto antes em outras partes do campo.

135
O cansaço era tal, que simplesmente continuamos a admirá-la e acompanhamos com nosso olhar sua
descida até o tanque de lavar roupas, que fica ao lado do forno, arrastar-se por trás dos sacos onde
estávamos sentados e ir embora. Ela era linda. Essa é uma, entre tantas, das memórias que permanecem
vivas em nós.

Queimar em forno a lenha é travar uma batalha tendo o fogo como parceiro, mas que também faz suas
exigências. Essa é uma das diferenças da queima com forno elétrico, no qual podemos programar, entre
outras coisas, a subida da temperatura desde seu início até a temperatura final, os patamares que se
deseja criar, sendo também possível estabelecer o decréscimo da temperatura ao final da queima.

Para proceder durante uma queima em forno a lenha, existem algumas táticas a serem usadas. Quando
precisamos que a temperatura aumente, por exemplo, podemos definir o fechamento ou a abertura
do registro da chaminé e a colocação de mais ou menos lenha em determinada abertura da fornalha.
Algumas vezes, pode acontecer de o forno se comportar completamente fora do padrão que se espera
dele, ou seja, não é uma tarefa fácil controlarmos os resultados na queima a lenha.

Nosso forno possui três bocas em sua fornalha, uma principal e duas secundárias, por onde é possível
dispor a lenha. No início, colocávamos a lenha diretamente no piso da fornalha. Após algumas queimas,
observamos o acúmulo de brasa que se formava durante a queima, o que prejudicava a combustão e,
consequentemente, não permitia que a temperatura subisse. Com isso, nos demos conta da necessidade
de entrada de oxigênio na câmara da fornalha. Como solução, providenciamos a colocação de uma grelha
de ferro fundido, com altura aproximada de 20 cm. As queimas seguintes, já com a utilização da grelha,
fluíram melhor, pois a combustão tornou-se mais efetiva, não acumulando brasas e, consequentemente,
atingindo temperaturas mais altas.

Antes de iniciarmos uma queima, é preciso prepararmos a fornalha. Isso é feito dispondo troncos
grossos na entrada principal do forno, em torno de 80% do total, e terminamos de completar com

136
troncos médios e finos. Da mesma maneira procedemos com as entradas secundárias.

Em nossa primeira queima tínhamos somente peças cruas para biscoitar. Para proceder esse tipo de
queima é necessário iniciarmos o fogo lentamente. Essa necessidade se deve ao fato de que até os 100 °C
parte da água de mescla é eliminada e, caso a temperatura suba muito rapidamente nesse intervalo,
as peças podem rachar ou apresentar outros defeitos. Na sequência, até os 400 °C, são eliminados os
vapores de água; entre os 650 °C e 700 °C a água química68 é eliminada, sendo o momento no qual
a argila passa a ser cerâmica. Deve-se proceder da mesma forma quando são queimadas peças em
monoqueima, pois também estão cruas.

Quando as peças já estão biscoitadas, esmaltadas ou não, é possível conduzir a queima de maneira que
a temperatura inicial suba mais rapidamente.

Para começar as queimas, costumamos iniciar o fogo na parte externa da entrada principal da
fornalha. Nas olarias, esse procedimento é chamado de “esquente”, ou seja, um fogo mais ameno
para ir esquentando o forno aos poucos. Normalmente, a média de elevação da temperatura é de
100 °C a cada hora.

Conforme a lenha da fornalha vai sendo consumida, alternamos o abastecimento entre as três bocas,
procurando sempre mesclar madeiras grossas e duras, que servem para manter a temperatura, e
madeiras finas e macias para elevá-la. É necessário a presença dos dois tipos, pois, se usarmos somente
a lenha fina, haverá queda da temperatura, ao passo que se só usarmos a grossa, a temperatura tende a
não subir. Outra questão importante que fomos aprendendo durante o processo é a colocação de pouca
lenha a cada abastecimento, para que a temperatura continue a se elevar.

Com relação aos tipos de madeira, pudemos observar que a lenha de cinamomo possui baixo poder

68
Água química: também chamada de água de constituição, é aquela que faz parte da molécula da argila e, quando eliminada,
altera a argila quimicamente.

137
calorífico, podendo ser usada até certa etapa da queima se misturada com outras madeiras. Também
se caracteriza por gerar muita cinza. Já as madeiras de acácia, pínus e eucalipto são boas para a queima,
bem como as de árvores nativas, entre elas cambará, guajuvira, coronilha e aroeira. Salientamos aqui
que essas últimas somente são utilizadas pela situação de as encontrarmos mortas no campo.

Nas primeiras queimas, o forno apresentava uma diferença interna de temperatura, entre 40 °C e
50 °C, da sua parte superior para a inferior. Isso afetava diretamente o resultado do esmalte nas peças,
pois era preciso uma temperatura de aproximadamente 1.230 °C para que o esmalte de cinzas chegasse
em seu ponto de fusão. Quando essa temperatura era atingida na parte inferior do forno, na parte de
cima o esmalte ainda não tinha fundido. Por outro lado, se deixássemos a temperatura na parte de
cima alcançar os 1.230 °C, na parte de baixo a temperatura passava do ponto de fusão do esmalte,
requeimando-o.

Para solucionar essa questão, de início colocamos as peças a serem biscoitadas na parte superior,
pois, sendo a primeira queima, não precisavam de uma temperatura muito alta. Porém, mesmo com
a diferença de temperatura, as peças biscoitadas ficavam requeimadas. A variação da temperatura no
forno não se mostrava ideal para esse tipo de aplicação. Assim sendo, passamos a utilizar outro esmalte
sem uso de cinza para as peças que seriam colocadas na parte superior do forno. Elegemos a base
Elena69 (FERNÁNDEZ CHITI, 1986), pois funde a uma temperatura mais baixa, 1.190 °C, mas também
suporta 1.230 °C. Dessa forma, ambos os esmaltes passaram a fundir satisfatoriamente.

Conduzimos esse procedimento por algumas queimas, porém, continuávamos pesquisando uma
maneira de solucionar esse inconveniente. Após conversarmos com alguns amigos, chegamos
à conclusão de que reformando o rompe chamas70, talvez o problema pudesse ser resolvido. E

69
Base Elena: fórmula de esmalte desenvolvida pelo pesquisador argentino Jorge Fernández Chiti.
70
O rompe chamas é uma barreira com refratários, utilizada para que as chamas não atinjam diretamente as peças, além de
direcionar o calor para a parte superior do forno.

138
foi somente depois dessa reforma que as temperaturas da parte superior e inferior do forno se
aproximaram. Nas últimas queimas, a diferença ficou em torno de 10 °C. Dessa maneira, está
sendo possível queimar as peças com esmaltes de cinza também na parte superior do forno.

Com relação à abertura do forno, é sempre uma experiência ímpar (Figuras 74,

Figura 74 – Observando e fotografando peça durante o processo de saída do forno. Fonte: Ágata Tomaselli. Acervo pessoal.

139
75, 76, 77 e 78), um momento de expectativa, encantamento e algumas
vezes também de frustrações 71 .

Figura 75 – Familiares acompanhando a abertura do forno. Fonte: A autora. Acervo pessoal.

71
Essas ideias serão retomadas no final deste capítulo, no item 4.4, sobre a estética wabi-sabi.

140
72

Figura 76 – Yta72 segurando uma peça ainda morna recém-saída do forno. Fonte: A autora. Acervo pessoal.

72
Yta Mar, nossa neta, parceirinha nos processos cerâmicos.

141
Figura 77 – Momento de alegria diante do resultado da queima após a abertura do forno. Fonte: A autora. Acervo pessoal.

142
Figura 78 – Tati, a autora e Paulo, posando para a fotografia durante abertura do forno. Fonte: Acervo pessoal.

143
4.3 A transformação pelo fogo: o fogo como coautor
[...] as questões do fogo... o fogo, a transformação... se formos pensar no próprio
processo de transformação de uma cinza, que era um resto de um fogo anterior e
que se transforma no vitrificado do próximo fogo que ela vai participar, isso não é
maravilhoso?

Angela Raffin Pohlmann73

Escrever a Carta ao fogo, apresentada no início deste trabalho, com relatos de minha experiência, fez
com que eu me sentisse ainda mais próxima a ele. Talvez essa sensação de proximidade com o fogo tenha
aflorado, não só pelo “convívio” nas queimas do processo cerâmico, mas também pelo entendimento de
algumas das descobertas que fiz a seu respeito e que continuam instigando a minha curiosidade.

Cientificamente, o amor é a primeira hipótese para o nascimento do fogo, pois “antes de ser filho da
madeira, o fogo é filho do homem” (BACHELARD, 1994, p. 39). Logo, o ceramista, ao manipular o fogo,
acaba por se encontrar com ele mesmo, em uma constante interação ao alimentá-lo – dando, dessa
forma, energia e vida à terra.

Mais um dos conceitos encontrados sobre o fogo, além dos apresentados na Carta ao fogo, é: o fenômeno
que consiste no desenvolvimento simultâneo de calor, de luz e de chama produzido pela combustão viva
de certos corpos, como a madeira, o carvão, etc. (FOGO..., 2021). Para nós, esse conceito se expande: em
cores que se alteram durante a queima, sons que vibram com as diferentes temperaturas, a energia, a
atração, a transformação, a cristalização, a alquimia, a geração de um novo elemento. E ainda,
para além do estudo das infinitas técnicas, a proximidade alquímica com o
fogo nos revela sonhos, vontades e nos desvela mundos mágicos. Magia que
se revela no deslumbre, pelo seu poder em transformar a terra em cerâmica,
transmutar matérias, sentimentos, endurecer e solidificar o que antes era frágil.
O fogo nos ensina também sobre a ação do tempo e sobre a eternidade. É o
espírito que anima a cerâmica. (FREITAS; WIRTH; JARDINI, 2020, p. 148).

73
POHLMANN (2021).

144
Essa magia que é revelada no deslumbre do encontro da argila – matéria-prima para o ceramista –
com o fogo, agente de transmutação, transformando-se em cerâmica, nos mostra seu retorno à forma
de rocha. Esse barro, essa argila, é a terra composta por diversos minerais. Minerais esses que são
absorvidos pelos vegetais ao longo da sua existência. Esses vegetais, ao serem submetidos ao fogo,
tem sua parte orgânica consumida, restando nas cinzas os minerais que farão parte da composição dos
esmaltes cerâmicos de cinza, e que serão transformados em um próximo fogo.

Transformação é metamorfose, mudança de uma forma para outra. A cinza que renasce da transformação
da queima da madeira, proveniente de uma árvore ou de um outro vegetal, sofre um processo
metamórfico que altera sua estrutura molecular ao se encontrar novamente com o fogo (Figura 79).

A partir dessas transformações, dessa metamorfose, e dos resultados que nos surpreendem a cada
queima, a cada abertura do forno, consideramos o fogo coautor no processo cerâmico. É o fogo que dá
o acabamento final às peças.

A coloração da imagem da Figura 80 nos faz lembrar do mito de fênix. Em algumas culturas, a ave fênix

145
Figura 79 – Detalhe do interior do forno cerâmico a lenha no momento da queima a aproximadamente 1.000 °C, sendo possível ver
as silhuetas das peças incandescentes. Fonte: A autora. Acervo pessoal.

é representada em cor vermelha e alaranjada, fazendo uma alusão ao sol. O texto de Ovídio, retomado
por Bulfinch (2002), conta a história dessa ave que ressurge das próprias cinzas:

A maior parte dos seres nasce de outros indivíduos, mas há uma certa espécie
que se reproduz sozinha. Os assírios chamam-na de fênix. Não vive de frutos
ou flores, mas de incenso e raízes odoríferas. Depois de ter vivido quinhentos
anos, faz um ninho nos ramos de um carvalho ou no alto de uma palmeira.
Nele ajunta cinamomo, nardo e mirra, e com essas essências constrói uma
pira sobre a qual se coloca, e morre, exalando o último suspiro entre os

146
Figura 80 – Detalhe da fornalha no forno cerâmico a lenha – um templo, um altar do sol, o sol armazenado na madeira.
Fonte: A autora. Acervo pessoal.

aromas. Do corpo da ave surge uma jovem fênix, destinada a viver tanto
quanto a sua antecessora. Depois de crescer e adquirir forças suficientes,
ela tira da árvore o ninho (seu próprio berço e sepulcro de seu pai) e leva-o
para a cidade de Heliópolis, no Egito, depositando-o no templo do “Sol”.
(BULFINCH, 2002, p. 363).

Morrer é incandescer, é queimar junto, se transformando em cinza e renascendo. Segundo Richard


Feynman74 (1983), conforme mencionado na Carta ao fogo, o fogo é o sol armazenado; e assim como

Informação retirada do vídeo Imagination, physics, fire & trees, com Richard Feynman, originalmente filmado em película de
74

16 mm na casa de Feynman em Altadena, na Califórnia (EUA), e transmitido pela primeira vez na BBC2 em julho de 1983.

147
a fênix tira da árvore seu ninho e leva-o para ser depositado no templo do “Sol”, em nosso processo
artístico retiramos o barro e as cinzas e os depositamos no forno cerâmico – um templo, um altar do
sol – no qual ocorre a liberação do sol armazenado na madeira (Figura 80).

Prometeu, outro mito grego (BULFINCH, 2002), também fala sobre o fogo. Epimeteu, filho de Zeus, criou
o homem do barro, mas não tinha mais habilidades destinadas a ele, pois as tinha gasto na criação
dos animais. Prometeu, seu irmão, se compadeceu da humanidade, subiu ao céu e acendeu sua tocha
no carro do sol, roubando assim o fogo de Zeus, e o entregou aos seres humanos. Dessa maneira foi
assegurada a superioridade do ser humano sobre os outros animais, permitindo-lhe, entre outras ações,
a construção de armas para dominar os animais e de ferramentas para cultivar a terra e se aquecer.

Manejar o fogo foi um salto na evolução e adaptação do ser humano, tendo também um valor simbólico
espiritual. Muitas culturas incluíram, desde a Antiguidade, o elemento fogo em suas práticas religiosas
ou mitológicas – somos centelhas divinas.

A mitologia do Alto Rio Negro, dos indígenas da etnia Tariana, conta o surgimento do fogo deixado
pelo Moço, que foi juntado com cuidado e colocado sobre uma pedra e alimentado com lenha para
que não apagasse – o chamaram de Mãe do quente. Todos na comunidade estavam impressionados e
curiosos para saber de onde tinha vindo o fogo. Nesse mito, o fogo traz conforto para a humanidade e
pode também ser associado ao simbolismo de bons sentimentos. Mostra também o cuidado com esse
elemento, para que não apague ou deixe de existir (SANTOS; ALEIXO, 2022). Esse mesmo cuidado existe
nos momentos da queima cerâmica, onde nossa atenção está voltada para a boca do dragão ou, de
acordo com os Tariana, a Mãe do quente.

O fogo, que tudo contém, é uma possibilidade total de vida, de existência, de renascimento – pois sem
o sol, não sobreviveríamos.

148
4.4 Espiritualidade no fazer cerâmico e a estética wabi-sabi
Em determinado momento da pesquisa, antes mesmo de ingressar no mestrado, quando buscava
material sobre alguns ceramistas japoneses, tive a grata surpresa de me deparar com um texto sobre
a estética wabi-sabi, particularmente os dois seguintes trechos. “O wabi-sabi é uma beleza das coisas
imperfeitas, transitórias e incompletas. É a beleza das coisas modestas e simples. É a beleza das coisas
não convencionais.” (KOREN, 2019, p. 9). E o outro: “Wabi-sabi é um estado do nosso coração. É uma
inspiração profunda e uma expiração lenta. É sentido em [...] um momento perfeito em um mundo
imperfeito.” (KEMPTON, 2018, p. 24).

Recordo-me da sensação de ter encontrado um tesouro. Acredito já ter acontecido com a maioria das
pessoas, quero dizer, de lermos sobre um assunto e nos identificarmos com ele a tal ponto de termos a
impressão de já o conhecermos. Nessas situações, as palavras ecoam de forma única, refletindo o que
é realmente verdade para nós. Foi assim quando conheci o Yoga e a arte cerâmica. Quanto mais eu os
estudava, mais eu tinha convicção do desejo de incluí-los em minha vida. O mesmo ocorreu ao ler sobre
a estética wabi-sabi.

Em nosso processo artístico, procuramos buscar inspiração nesse ideal estético, embora saibamos que
seja impossível compreendê-lo sob o ponto de vista ocidental. Essa abordagem é uma tradução de um
aspecto dessa cultura, por meio de um olhar ocidental distanciado do fazer cerâmico do Oriente, não
sendo possível existir um compromisso com essa realidade, apenas uma inspiração em seu conceito.
Visto que

a tradução é sempre um ato de traição, no sentido de nunca conseguirmos


transmitir exatamente a semântica de uma palavra de uma cultura a outra,
e isso se agrava sobretudo no campo artístico. Por conseguinte, quando se
trabalha com a transmissão de ideais estéticos entre culturas muito distintas,
como a ocidental e a oriental, o desafio é ainda maior. (IKISHI, 2018, p. 174).

149
Não tenho propriedade para me aprofundar e discorrer aqui sobre a estética wabi-sabi, mas gostaria
de compartilhar esse conceito e convidá-los a enxergar o mundo com outros olhos, conectando-se à
natureza e apreciando a beleza na simplicidade.

De acordo com a inglesa Beth Kempton75 (2018), na cultura japonesa wabi-sabi existe na linguagem
falada e em alguns poucos livros, mas é nos corações e nas mentes que esse ideal permanece vivo. Os
próprios japoneses, ao serem questionados sobre o que é o wabi-sabi, respondem que é muito difícil de
explicar, sendo que a maioria não vê necessidade de expressar um significado. Kempton (2018, p. 30)
esclarece que “para realmente apreciar a sabedoria dessa cultura, precisamos saber que muitas vezes
a verdadeira mensagem está no que não é dito”. Diferente de nós, ocidentais lógicos e racionais, ávidos
por explicações exatas, os japoneses possuem uma compreensão intuitiva76, nos mostrando ser possível
existirem outras maneiras de pensar e aprender.

O ideal estético wabi-sabi tem suas raízes na cerimônia do chá e no zen-budismo. O chá matcha,
associado à cerimônia do chá, foi levado da China em 1191, na dinastia Song, pelo monge Myoan
Eisai, fundador da escola Rinzai do zen-budismo no Japão. Nessa época, o Zen e a filosofia do chá se
difundiram rapidamente77.

Na segunda metade do século XVI, a cerimônia do chá era um evento social importante, no qual os
poderosos mostravam suas fortunas. Nessa época, um dos chefes guerreiros mais famosos do Japão,
Toyotomi Hideyoshi, tinha Sen no Rikyu78 como seu homem de negócios e mestre do chá. A sala de chá de

75
Beth Kempton é mestra em língua japonesa, viveu e trabalhou por décadas no Japão, considerando-o sua segunda casa.
76
“[...] é relevante apontar a necessidade de certo cuidado ao se usar as expressões “intuitivo e perceptivo” para estudar
elementos da cultura japonesa, visto que o uso indiscriminado delas pode acarretar o perigo de desvirtuamento
semântico, pela abrangência que possuem, como se esses vocábulos bastassem para explicar as peculiaridades nipônicas.”
(IKISHI, 2018, p. 177).
77
“Até o século XV, o monge e mestre do chá Murata Shuko reconhecia que o ato de preparar e beber a infusão poderia refletir
os princípios do Zen.” (KEMPTON, 2018, p. 33).
78
“Com o tempo, Sen no Rikyu ficaria conhecido como o verdadeiro pai da cerimônia do chá.” (KEMPTON, 2018, p. 33).

150
Hideyoshi era toda de ouro e cheia de objetos caros, importados da China; Sen no Rikyu começa então
uma grande mudança, com o objetivo de transformar os fundamentos dos ideais estéticos relacionados
à cerimônia, ficando somente com o necessário. Reduziu o tamanho da sala de chá, criando um outro
tipo, como uma cabana, de paredes de lama irregulares e telhado de palha (KOREN, 2019). E, entre as
mudanças, “Rikyu substituiu o vaso caro de porcelana, para guardar as flores, por um recipiente de
bambu e a tigela chinesa também foi trocada por outra, feita por um ceramista chamado Chojiro79”
(KEMPTON, 2018, p. 34). Com isso, Rikyu tinha como objetivo estabelecer o mínimo necessário dentro
de um local para uma reunião, interagindo com a natureza, com implementos básicos para a preparação
do chá e tempo de dedicação; trazendo novamente a filosofia da simplicidade e da beleza natural, em
uma experiência compartilhada naquela ocasião especial. “É, assim, uma estética que surge baseada
no desapego material e afetivo, na beleza da simplicidade natural buscada no cotidiano dos inja80, em
conjunção com o desenvolvimento da cerimônia do chá” (IKISHI, 2018, p. 180).

Essa beleza da simplicidade natural, da qual Ikishi (2018) fala, para nós brota do ordinário que está
à nossa volta, ao mesmo tempo que emerge nas forças que vêm do território – o barro e a cinza –,
refletindo a natureza que envolve e norteia nosso processo artístico. Essa beleza é encontrada nos
detalhes de cada peça, em sua aspereza, nas irregularidades do esmalte, nas cores em tons terrosos,
nas erupções das pedras que afloram na superfície da massa, nos grãos de areia que vitrificam e são
expulsos pelo calor, nas manchas produzidas pelo fogo, nas reações que ocorrem nos relevos e em suas
arestas, entre tantas outras “imperfeições”.

O que muitas vezes não enxergamos é que, por trás dessa realidade do processo cerâmico, se encontra

79
“De origem humilde, Chojiro foi pioneiro na fabricação de tigelas de chá raku e estabeleceu a família Raku no final do século
XVI, que se tornou a única a preservar a tradição da cerâmica raku-yaki.” (KEMPTON, 2018, p. 243).
80
“Inja: literalmente “a pessoa que se oculta”, “refere-se àquele que, através do retiro, abandona o mundo terreno e dedica-se
à prática da disciplina espiritual, livre de qualquer compromisso com a sociedade” (MIKI, 1983, p. 246, apud YOSHIDA, 1997,
p. 119).

151
um aprendizado para a vida. Só se decepciona ou se frustra aquele que cria uma expectativa diferente.
A cerâmica e o vidrado de cinza nos ensinam, assim como a natureza, a aceitação incondicional de
cada momento. Wabi-sabi refere-se a essa aceitação, pois “[...] reflete a verdadeira natureza das coisas
como elas são, [...] a beleza que nos faz lembrar de como tudo é transitório, imperfeito e incompleto”
(KEMPTON, 2018, p. 86).

Nossas expectativas excessivas podem gerar decepção e frustração. Fomos entendendo isso ao longo
do processo. Ao fazermos a queima, tínhamos sempre essa expectativa, e quando abríamos o forno
éramos invadidos por um sentimento de decepção ao vermos alguns resultados. Era necessário passar
algum tempo e então, ao olharmos com outros olhos, nos encantávamos com os mesmos resultados,
sendo possível ver a beleza na imperfeição. Foi preciso aprender a enxergar além da beleza. A partir
dessa experiência, e pesquisando mais fundo, foi possível entender que wabi-sabi não se refere somente
a um ideal estético, pura e simplesmente, pois seu conceito é mais profundo:

Wabi-sabi vai além da beleza de qualquer objeto ou ambiente. E se refere à


reação de alguém a essa beleza profunda. Wabi-sabi é um sentimento intangível.
O wabi-sabi de uma pessoa não é o mesmo de outra, porque cada um de nós
vivencia o mundo de forma única. Sentimos wabi-sabi quando entramos em
contato com a essência da beleza autêntica, despretensiosa e imperfeita, que
fica ainda melhor justamente por isso. Essa sensação é gerada por uma beleza
natural austera e sem adornos. (KEMPTON, 2018, p. 38).

Compreender que a imperfeição que faz parte da nossa vida nos dá a oportunidade de nos reconciliarmos
com essa beleza autêntica que compõe cada detalhe. O conceito de wabi-sabi nos ajuda a entender esse
sentimento intangível.

No Japão, a cerâmica tem um nível de apreciação estética ímpar (Figuras 81 e 82); na filosofia usada
nos tratados de cerâmica, como o Zen, o oleiro desenvolve o espírito juntamente com a habilidade para
adquirir algo além da técnica (Murakawa, 2013). Os materiais utilizados são considerados expressivos,
por isso ocorre todo o ritual de escolha do barro, cinzas e tipo de forno.

152
Figura 81 – Tigela de chá do Museu Nacional de Tóquio – Figura 82 – Tigela de chá com esmalte irregular e inclusões
simples, áspera, modesta, com asperezas e formas imperfeitas. visíveis nas superfícies ásperas e não esmaltadas – incorpora
Fonte: Muza-chan (2015). perfeitamente a estética japonesa do wabi-sabi – beleza na
imperfeição. Fonte: Kiyoko (2000).

153
154
5 Processo artístico: a cerâmica e o
esmalte de cinza como dispositivos
relacionais
Encontrar e coletar o barro, dissolver, peneirar, deixar secar, talvez misturá-lo com outro barro, se
necessário incorporar outros materiais, sovar, sovar, sovar… retirar o pedaço que se deseja modelar,
imaginar, criar, modelar, retardar sua secagem para voltar em um próximo momento, retomar a
modelagem, observar a peça, sentir sua textura, umidade, algumas vezes esperar, esperar, interferir
no acabamento – pintar com argilas de cores/tons diferentes – subtrair e acrescentar partes – brunir –
esperar mais uma vez e/ou quantas forem necessárias, retomar o acabamento, aguardar sua secagem,
levar ao forno para biscoitar, fogo, fogo, esperar a temperatura baixar, retirar as peças, analisar e aplicar
o processo – lixar, lavar – quebrou! descartar – o que a peça precisar, o que ela pedir, se necessário
esmaltar – preparar o esmalte – aplicar – dar acabamento à esmaltação – levar ao forno novamente,
fogo, fogo, fogo, esperar a temperatura baixar, retirar as peças, dar acabamento... repetir, repetir,
repetir. Nesses ciclos de repetições são percebidas sutilezas determinantes para o aprofundamento da
compreensão do ato de criação. Essas são algumas das ações que constituem o processo artístico do
fazer cerâmico.

O trabalho com o barro possui, como todo material, características próprias, que precisam ser conhecidas
e entendidas para que se possa estabelecer uma relação com ele no decorrer da jornada artística.

Nessa caminhada, sinto que é o movimento de dar vida que me anima, com ênfase na criação
compreendida como processo, especificamente aqui, no que tange ao processo do fazer cerâmico. Paul

155
Klee (apud INGOLD, 2012) falava dos processos de gênese das formas enfatizando o momento de sua
criação como o principal momento de vida e movimento:

Em seus cadernos, o pintor Paul Klee defendia, e demonstrava através de


exemplos, que os processos de gênese e crescimento que produzem as formas
que encontramos no mundo em que habitamos são mais importantes do que
as próprias formas. “A forma é o fim, a morte”, escreveu ele; “o dar forma é
movimento, ação. O dar forma é vida.” (INGOLD, 2012, p. 26).

Talvez, além de querer dar alma e vida às peças que faço, eu queira dar alma e vida a mim mesma,
ressignificando o meu próprio ser e, dessa forma, afetar os seres que compartilham do meu cotidiano
ou, ainda, aqueles que atravessam ou são atravessados pelo trabalho. Sinto que esse processo artístico,
de transformação, assim como a palavra ânimo81, traz com ele o significado de animar82, dar vida, ou
imprimir ação, movimento.

Crio as peças com o desejo de que possam vir a fazer parte do cotidiano do outro. A configuração de
suas formas me leva a desenvolvê-las de maneira a serem apreciadas e utilizadas nas mais diferentes
situações do dia a dia. Esse processo artístico chega até o espectador como um indício da arte. E, de
acordo com Oliveira,

[...] entendemos que o objeto artístico se revela como vestígio e memória


do processo de arte, sendo esse processo de arte exatamente onde a
arte reside em sua fluidez e imaterialidade. [...] A arte manifesta-se no
processo de criação, naqueles exatos momento e lugar em que a arte se faz.
(OLIVEIRA, 2015, p. 4).

Esse vestígio contém a energia do processo de criação, podendo disparar no receptor uma reação, uma
sensibilidade, um deslocamento em sua realidade, funcionando assim como um dispositivo.

O processo e o vestígio da arte cerâmica são tratados aqui como dispositivos relacionais, gerando
81
A palavra ânimo vem do latim animus, que significa a alma, os pensamentos. Em português, o animus seria a alma, a mente,
o coração (ÂNIMO..., 2021).
82
Animar: significa dar vida, dar ânimo, tornar mais vivo (ANIMAR..., 2021).

156
encontros de pessoas para a troca de saberes, e o encontro da obra de arte com o espectador. Essa
abordagem converge com a reflexão de Holmes (2006, p. 162, tradução nossa) sobre dispositivos,
quando ele afirma que “a arte tem se convertido em um complexo ‘dispositivo’: um laboratório móvel
e um teatro experimental para a investigação e a instigação da transformação social e cultural”. Aqui, o
sentido do dispositivo não está no objeto em si, mas nas possibilidades deflagradas a partir do objeto.
Para Bourriaud (2009, p. 42), “uma obra pode funcionar como dispositivo relacional com certo grau de
aleatoriedade, máquina de provocar e gerar encontros casuais, individuais ou coletivos”.

5.1 Processos colaborativos: compartilhando saberes


Em 2018 e 2019, durante o projeto de extensão83 realizado no Ateliê de Cerâmica do Centro de Artes da
UFPel, tive a oportunidade de ministrar oficinas sobre esmaltes de cinza. Considero essas proposições
em forma de oficinas como parte de um processo artístico, sendo essa uma forma de gerar encontros,
nos quais emergem processos criativos a partir de um dispositivo relacional.

A Figura 83 apresenta o registro de um desses momentos coletivos/colaborativos de criação em arte. O


processo de preparação e compartilhamento da formulação de esmaltes de cinza é tratado aqui como
um dispositivo relacional.

83
Projeto de Extensão Simultaneidades afetivas em oficinas cerâmicas: compartilhando saberes na construção de um ambiente
educativo (2018-2019), coordenado pelo professor Paulo Damé.

157
Figura 83 – Oficina sobre esmaltes de cinza no Ateliê de Cerâmica do Centro de Artes da UFPel, em 2019.
Fonte: Paulo Damé. Acervo pessoal.

158
Figura 84 – Trabalho de esmaltação com vidrados de cinza na casa/ateliê Casa Redonda, em 2019. Fonte: Paulo Damé. Acervo pessoal.

Da mesma forma, durante alguns encontros na casa/ateliê Casa Redonda foi possível compartilhar
processos de prática artística em momentos de criação coletiva em arte. A Figura 84 mostra um desses
momentos de compartilhamento do processo criativo no trabalho de esmaltação.

159
Como desdobramento do trabalho nos projetos de pesquisa84 e extensão desenvolvidos no Ateliê de
Cerâmica do Centro de Artes da UFPel, Paulo e eu fomos convidados, em 2019, pela professora Ana Elisa
de Castro Freitas para participar do Ciclo de Estudos Intensivos em Cerâmica na Universidade Federal
do Paraná. O evento foi vinculado ao Projeto de Extensão Cerâmica: magia, técnica, arte e política,
promovido pelo Laboratório de Interculturalidade e Diversidade (LaID) e pelo Grupo de Programa de
Educação Tutorial (PET) Litoral Indígena, sediados na Universidade Federal do Paraná – Setor Litoral, na

84
Projeto de Pesquisa Casa Redonda: arte pública, colaborativa e relacional em tempos de isolamento social (2020-2024),
coordenado pelo professor Paulo Damé.

Figura 85 – Oficina de esmaltação a base de cinzas em Matinhos (PR), 2019. Fonte: Acervo do projeto.

160
cidade de Matinhos (PR). Nessa ocasião, tivemos a oportunidade de ministrar algumas oficinas, entre
elas, Do barro ao prato: criação de peças utilitárias em cerâmica e Esmaltação a base de cinzas (Figura 85).

Considero também esse evento um compartilhamento do processo artístico pelo viés da arte relacional
complexa (KINCELER, 2008) e colaborativa. Nessa ocasião, lavamos as cinzas, preparamos o esmalte, mas
não foi desenvolvido o processo de esmaltação e queima. A semana que permanecemos em Matinhos
foi muito rica e saímos transformados do encontro.

Ainda em 2019, fomos convidados para uma mostra de arte dentro de uma feira de agronegócio, em
Pelotas. O grupo era formado por artistas/professores e alunos da UFPel, ceramistas participantes do
projeto de extensão do Ateliê de Cerâmica do Centro de Artes da universidade e participantes do grupo
de pesquisa Arte e Engenharia85, também da UFPel, coordenado pelos professores Reginaldo Tavares e
Angela Raffin Pohlmann. Esse convite se dá no auge das discussões sobre o agronegócio86 em relação à
destruição e todos os danos ambientais por ele gerados, exaltados pelo governo federal da época. Essa
experiência foi vivenciada no Parque de Exposições da Associação Rural durante a 93ª Expofeira Pelotas,
no contexto de uma exposição coletiva87, na qual participamos com o trabalho intitulado Rádio Cochicho.

Em princípio, o convite para a exposição foi feito a um dos artistas participantes do grupo. A ideia inicial,
por parte da organização do evento, era expor esculturas de grande porte, pensando na configuração
de arte mais tradicional, ornamentando as áreas externas do parque durante a Expofeira, projeto para o

85
Projeto de pesquisa Gravura artística e engenharia digital: o trabalho em equipe em experiências multidisciplinares; grupo de
pesquisa Percursos poéticos: procedimentos e grafias na contemporaneidade (CNPq/UFPel).
86
As feiras de agronegócio/expofeiras, em seu contexto, são feiras com o objetivo de expor animais de raça para a venda;
apresentar as tecnologias de ponta para a produção rural (com técnicas de alto impacto ambiental), implementos agrícolas
e agroindústria, entre outros, atraindo e incentivando cada vez mais agricultores, pecuaristas e investidores para o setor. O
agronegócio, tanto agropecuária como agricultura, produz um grande impacto ambiental, entre outros motivos, devido ao
amplo uso de agrotóxicos. Somente em 2020, mesmo durante o isolamento social da covid-19, foram publicados os registros
de 118 novos produtos (GRIGORI, 2020).
87
Essa exposição coletiva fez parte do evento Arte na Rural 2019, lugares, memórias e sonhos, organizada pela Pró-Reitoria de
Extensão e Cultura da UFPel e Associação Rural de Pelotas.

161
qual a organização não dispunha de recursos. A partir desse contexto, houve uma negociação e surgiu a
proposta de participação coletiva, que já vinha sendo discutida no grupo de pesquisa Arte e Tecnologia,
ficando acordado que a participação no evento não seria individual, mas sim de um coletivo.

Faríamos a exposição da Rádio Cochicho, uma instalação/intervenção coletiva composta por peças
cerâmicas e equipamentos eletrônicos reutilizados, produzidos pelos integrantes do grupo de pesquisa.
Consideramos essa negociação como parte do trabalho. Decidimos, assim, atuar diretamente no espaço
real como uma materialização da realidade.

A proposição para o evento procurava se aproximar da utopia (BREA, 1996) e se afastar do ornamento.
Queríamos trazer à discussão as questões de autonomia, com a possibilidade de construir objetos
com os recursos disponíveis e reutilizar componentes eletrônicos que seriam descartados por estarem
obsoletos, ao implementar a criatividade nos fazeres cotidianos. Não pretendíamos simplesmente
decorar o evento com peças prontas, produzidas em ateliê, o que converge com o que Ardenne fala: “a
natureza ‘processual’ da arte contextual vem contradizer a primazia do objeto simbólico da obra de arte”
(ARDENNE, 2006, p. 37, tradução nossa).

Naquele momento, o coletivo estava investigando algumas possibilidades de utilização de peças


cerâmicas88 como amplificadores de som (Figura 86). Verificávamos os sons gerados pelas diferentes
formas cerâmicas, pensando em uma rádio com alto-falantes em caixas acústicas cerâmicas e que
pudesse contar com a interação do público com essas tecnologias.

88
Esmaltadas com vidrado de cinza.

162
Figura 86 – Registro de uma reunião do grupo de pesquisa Arte e Tecnologia, no Ateliê de Cerâmica do Centro de Artes da UFPel.
Fonte: Acervo pessoal.

163
Figura 87 – Peças feitas em cerâmica, servindo como amplificadores de som. Fonte: A autora. Acervo pessoal.

A proposta foi disponibilizar ao público visitante da Expofeira objetos cerâmicos (Figura 87) que serviriam
de dispositivos para amplificar o som de seus aparelhos celulares, por meio de uma instrução (Figura
88), oportunizando compartilhar com os demais visitantes músicas e outros sons de suas playlists. Dessa
forma, prevendo a possibilidade de dar voz ao espectador/participante, configuravam-se os participantes
como colaboradores da proposição.

Além desses materiais, foram levados também instrumentos musicais e um torno cerâmico, para que

164
Figura 88 – Registro da instrução para que o público pudesse interagir com a Rádio Cochicho. Fonte: Paulo Damé. Acervo pessoal.

o público visitante pudesse interagir com o barro (Figura 89). A ideia era transpor o laboratório que
acontecia durante os encontros do grupo de pesquisa – nesse caso, a Rádio Cochicho – para a exposição,
gerando outras realidades, pois agora as experimentações poderiam ser feitas com o público, de uma
forma ampliada.

Experimentar a ressonância gerada pelas caixas acústicas feitas em cerâmica servindo como
amplificadores e perceber a modificação dos sons pela diversidade de formas das peças cerâmicas.

165
Figura 89 – Registro de uma vista da exposição na área externa do parque, onde estavam o torno cerâmico e instrumentos musicais.
Fonte: Eduarda Lenzi. Acervo pessoal.

Na interação com o público, isso acontecia de maneira eficiente – e a eficiência nem sempre era um
som mais limpo e mais claro, era a eficiência com a provocação dessas outras realidades, de outras
possibilidades, de outras formas. Talvez essa fosse a eficiência, pois não estávamos buscando um
objetivo específico, estávamos propondo experimentações; era tudo experiência.

Os trabalhos apresentados na Rádio Cochicho não eram só as cerâmicas, não eram só os dispositivos
eletrônicos, éramos nós também, era a nossa performance. Era a conversa que se estabelecia, a relação

166
que estabelecíamos: arte relacional complexa (KINCELER; ALTHAUSEN; DAMÉ, 2007) – relações com o
público e com nós mesmos. Relação da pessoa com a pessoa por meio de um dispositivo de encontro.

A exposição se dava também com a ação, participação e colaboração do público. Fomos para a
confrontação direta com o espectador, onde existe uma performação (MELIM, 2008) quando o
espectador participa realizando uma performance nas Artes Visuais.

Em processos artísticos relacionais e colaborativos, não só o artista ou propositor – como vamos tratá-lo
aqui – tem acesso à arte, mas todo colaborador que contribuiu com o processo. Já na arte tradicional, a
experiência artística se dá em momentos solitários e silenciosos no interior do ateliê, e o que é exibido
em museus e galerias é a obra de arte como reminiscência do processo artístico.

Falando ainda sobre a obra de arte/objeto artístico, Ardenne diz que

[...] Como afirma Jan Świdziński, cuja obra privilegiará intervenções, confrontos
diretos com o espectador, performances participativas, “a arte contextual
se opõe à exclusão da arte da realidade como um objeto autônomo de
contemplação estética”. (ARDENNE, 2006, p. 29, tradução nossa).

Na arte tradicional, o artista vivencia a arte sozinho em seu ateliê. Enquanto que no salão principal do
Parque de Exposições da Associação Rural (Figura 90) eram expostas as obras finalizadas, podemos
dizer que nossa proposta de arte colaborativa mostrava o avesso da arte (FERVENZA, 2006), o alinhavo,
o processo – barro, torno, água, bacia, elementos eletrônicos. Nós expusemos o avesso de nossa arte na
Expofeira. É importante afirmar que, em nossas pesquisas, estamos interessados também em apresentar
os bastidores da arte, da tecnologia, da cerâmica, do evento, em vez de somente o trabalho finalizado. É
importante deixar uma margem, uma abertura para a participação do espectador, para que se alcance
o que não é previsto, para que se mantenha uma abertura para o inusitado.

De acordo com Ardenne (2006), na arte/obra processual o caminho é muito mais interessante, é muito
mais potente, muito mais significativo do que a própria obra em si. A experiência acontece no agora, no

167
Figura 90 – Exposição ao ar livre propõe apresentar o avesso da arte e, ao fundo, é possível visualizar a edificação do salão principal,
onde acontecia uma vernissagem. Fonte: A autora. Acervo pessoal.

fazer imediato, naquele momento de espaço-tempo.

No dia da abertura do evento, pelo motivo de a varanda não ter o tamanho necessário para a nossa
instalação, de maneira que o público conseguisse chegar até nós e interagir, optamos pela área externa.
A organização do evento, em comum acordo conosco, propôs que ocupássemos o gramado lateral. Esse
espaço ficava mais afastado do salão principal e podíamos manter um ambiente mais informal. Foram
usados, além de uma mesa, o chão – com um tecido estendido – como suporte para expor algumas
peças cerâmicas, remetendo a uma conformação de feira de rua. Fizemos uma feira dentro da feira –
uma feira de rua dentro da feira do agronegócio.

168
Não ocupamos o espaço expositivo do salão principal (interno), mas o espaço “fora”. A Rádio Cochicho
se configurava, então, em uma low-tech, funcionando como uma espécie de resistência ao pensamento
hegemônico. Não tínhamos as condições, mas tínhamos as competências. Com poucos recursos, os
integrantes do grupo acessaram as tecnologias necessárias para viabilizar a nossa permanência89. O
pequeno público que por ali passou pôde interagir com as cerâmicas como dispositivos, usar o torno
cerâmico e também dialogar conosco.

Ardenne (2006) fala sobre o contexto, em que cada momento é um momento específico, com suas
particularidades, o público, os cheiros, barulhos, sabores e sensações diversas. O contexto define a
forma como a presença do artista será afetada e de como o público poderá decodificar a mensagem
emitida pelo artista. Sentimos exatamente isso nessa experiência com a Rádio Cochicho.

Vamos para o parque quando existe toda uma potência de vida para ser compartilhada, quando não
estamos preocupados com a espetacularização da arte, mas sim com uma ação/atuação naquele
contexto, preservando a nossa opinião política, estética e científica do que estava acontecendo ali. Nós
já estávamos escapando do próprio espaço, lá na rua, à margem, como nos foi proposto – mas foi
proposto com uma ideia de espetacularização, de grandes trabalhos, de grandes esculturas instaladas
no parque para ornamentar o evento.

O nosso próprio posicionamento espacial no evento já era algo que gerava espanto ou estranhamento,
um deslizamento naquela realidade. Mesmo quem não chegou perto para ver do que se tratava nos
viu. O público, que podemos chamar de não espectador (DAMÉ, 2007), era de pessoas que, por alguma
razão, não se aproximaram de onde estávamos instalados e, mesmo assim, os consideramos como um
público em potencial para o trabalho.

89
O local era escuro, não tinha iluminação, e não nos foi fornecida uma mínima estrutura. Para solucionar esse problema, um
dos colaboradores disse que, se tivéssemos uma lâmpada, ele conseguiria instalá-la com o auxílio de uma bateria que havíamos
levado para ligar o torno cerâmico. Providenciamos a lâmpada e o local ficou iluminado.

169
Não existia nada pronto, tudo estava em processo, sendo construído. Não sabíamos onde iríamos
chegar, o que não importava realmente. O que importava era experienciar, participar, fazer as coisas
juntos, interagir com o público.

Aproveitamos o convite para participar do evento e negociamos nossa participação, na qual pudemos
propor o que pode ser considerado por nós como uma atuação válida e potente, e assim chegamos na
configuração de feira de rua. E foi nesse contexto que a apresentação ganhou potência, e todos que
estavam ali participando tinham trabalhos envolvidos e trabalhos que estavam ainda em transformação,
que poderiam sofrer interferência tanto do espectador como do próprio grupo. Realizamos a nossa
proposição e é claro que, embora reduzida, houve expressiva participação do público. Nosso sentimento
era de plena realização, de êxito total, de uma energia boa, de estarmos avançado nas experimentações
e reflexões no compartilhamento de nossa proposição.

Mesmo sendo final de tarde, horário no qual já estávamos cansados de um dia intenso de trabalho,
a apresentação foi montada com todo cuidado. Por motivo de disponibilidade de tempo, nossa
participação ficou restrita somente ao dia da inauguração, da vernissagem, porque não fazia sentido
somente os objetos expostos sem a nossa presença.

Ao analisarmos nossa atuação, percebemos que depois de termos ido embora, ficou uma ideia de vazio
naquele lugar que ocupamos – a ideia de vazio que o próprio agronegócio propicia ao mundo – ideia de
vazio, de morte, de espaço em branco.

Em fevereiro de 2020, fomos surpreendidos pela sindemia. Nossa vida “normal” precisou se adaptar a
uma normalidade diferente da que estávamos acostumados. Os processos colaborativos precisaram
ser alterados, pois, no momento em que o isolamento social foi instaurado, houve a necessidade de
modificar a forma desses encontros. O ambiente virtual foi adotado não somente para os processos
colaborativos, mas para toda e qualquer interação que se fizesse necessária. A partir dessa nova maneira

170
de entrarmos em contato uns com os outros, os encontros e as trocas foram se ampliando no espaço
da web90 ao agregarem pessoas de outros lugares, ao passo que o encontro físico precisou ser afastado
de nossas práticas cotidianas. Nesse momento, qualquer projeto presencial estava impossibilitado de
execução.

A partir dessa nova realidade, iniciou-se um processo de fazer cerâmico distanciado; um outro modelo
de praticar a realidade, instalando novas pautas de produção de sentido, alterando a lógica de como uma
proposta em arte pode ser legitimada (KINCELER, 2008). “As práticas colaborativas [...] estão fundadas
na noção de encontros, de parcerias e de diálogo entre artistas e não artistas” (OLIVEIRA, 2016, p. 37),
e a potência dos encontros está na experimentação de processos de subjetivação e na possibilidade de
emergirem coisas que não podem ser previstas de acontecerem.

As experiências então passaram a ser narradas e permearam-se durante encontros virtuais. A partir
desses encontros criamos um coletivo, chamado Encruzilhadas de Barro, dentro do Projeto de Pesquisa
Casa Redonda: arte pública, colaborativa e relacional em tempos de isolamento social, para que nossas
experiências, agora individuais e locais, pudessem continuar sendo compartilhadas, gerando novas
propostas em arte.

Além da troca de saberes e experiências, esse novo ambiente virtual (Figura 91) tornou-se uma forma de
motivação para dar continuidade aos processos que se encontravam mais isolados durante o período
2020-2022. Esse coletivo colaborativo era formado por artistas, ceramistas, graduandos, mestrandos e
doutorandos em Artes, Arqueologia e Engenharia, pessoas da comunidade acadêmica ou não. A partir
dos saberes singulares de cada participante, somos atravessados pela arte e pelo outro, gerando uma
descontinuidade que, de acordo com Kinceler (2008, p. 1.793), “[...] está fundada em nossas experiências

90
Web: World Wide Web (www), ou rede de alcance mundial, em português; designação da rede que conecta ou une os
computadores do mundo inteiro (WEB..., 2021).

171
Figura 91 – Imagem da tela do computador de uma reunião virtual do coletivo Encruzilhadas de Barro. Fonte: Acervo do coletivo.

de vida”.

Essa realidade virtual que surge em 2020 em decorrência da instauração da sindemia da covid-19 e do
desejo de continuar produzindo arte coletivamente propiciou experiências artísticas em grupo. Essas
experiências e minha participação nos projetos de pesquisa e extensão91 também me motivaram a
ingressar no PPGAV, para dar sequência à pesquisa sobre esmaltes cerâmicos de cinza, que já vinha se
desenvolvendo nesses projetos.

Os encontros virtuais continuaram acontecendo em 2020 e 2021. Ao longo desse período, o grupo foi se
modificando. Alguns participantes não conseguiram mais comparecer e outros se juntaram ao coletivo.

As experiências individuais de cada um eram compartilhadas a cada reunião virtual. Isso nos motivava

91
Em 2020 teve início o Projeto de Extensão Encruzilhadas de barro: compartilhando saberes cerâmicos.

172
a continuar a pesquisa e a sonhar com o momento no qual poderíamos nos reencontrar pessoalmente.
Isso ocorreu no primeiro semestre de 2021, quando foi possível retornar à universidade mantendo
o distanciamento social e com o uso de máscaras. As pesquisas puderam prosseguir e os processos
colaborativos foram sendo retomados aos poucos.

173
5.2 Oficina de preparação de esmaltes cerâmicos a partir de cinzas
vegetais
Em outubro de 2022, como proposta artística
na pesquisa de mestrado, realizei no Ateliê
de Cerâmica do Centro de Artes da UFPel a
oficina intitulada Oficina de preparação de
esmaltes cerâmicos a partir de cinzas vegetais
(Figura 92), a convite de Paulo Damé. O
público que participou das oficinas era de
pessoas da comunidade, integrantes dos
cursos de extensão do Ateliê de Cerâmica e
alunos dos cursos de Artes Visuais da UFPel.
Fiz um convite ao artista, ceramista e amigo
Nilson Antunes, doutorando do Programa
de Pós-Graduação em Ciência e Engenharia
de Materiais (PPGCEM) da UFPel, para
apresentar sua pesquisa intitulada Cinzas:
reutilização de resíduos lignocelulósicos como
componente vítreo, na forma de frita natural,
Figura 92 – Cartaz de divulgação do curso. Fonte: A autora. Acervo
para revestimento de materiais cerâmicos. pessoal.

174
Durante a oficina (Figuras 93 e 94), os participantes/colaboradores tiveram a oportunidade de preparar
esmaltes de cinza, aplicá-los e verificar seus resultados em uma queima em forno elétrico. Foram
utilizados três diferentes tipos de cinza: de bananeira, de eucalipto e uma cinza trazida de Antônio Prado
(RS) por Taís Beltrame92, proveniente do fogão a lenha da casa de seus avós.

Figura 93 – Participantes analisando resultados do esmalte cerâmico de cinza. Fonte: Tatiana Pureza. Acervo pessoal.

92
Taís Beltrame, amiga, ceramista e arquiteta.

175
Figura 94 – Processo de lavagem das cinzas entre os participantes da oficina. Fonte: Tatiana Pureza. Acervo pessoal.

176
5.3 Compartilhamentos
Compartilhamentos é o título de um trabalho em andamento. São feixes de forças em movimento que
ainda não estão acabadas e que talvez nunca venham a se acabar. Por ora, essas forças em movimento
tecem relações como “coisas vivas” (INGOLD, 2012, 2015), ideia que tomo por empréstimo de Tim Ingold.
Segundo Ingold (2012), vivemos em um mundo cheio de objetos, mas os conteúdos do mundo já estão
“trancados em suas formas finais, fechados em si mesmos”. O ideal seria retomarmos a ideia de que
“habitar o mundo [...] é se juntar ao [seu] processo de formação” (INGOLD, 2012, p. 31).

Ingold (2015) diz que um objeto obstrui nosso trajeto e é preciso retirá-lo de alguma
forma para continuarmos. A “coisa”, por outro lado, convida a participar da sua formação,
“[...] é um ‘acontecimento’, ou melhor, um lugar onde vários acontecimentos tornam-se
entrelaçados” (INGOLD, 2015, p. 307), como um “parlamento de fios” (INGOLD, 2012, p. 29).
Vista dessa forma, a “coisa” se caracteriza não como fechada em si, mas por um “[...] nó
cujos fios constituintes [...] deixam rastros e são capturados por outros fios noutros nós.”
(INGOLD, 2012, p. 29).

Em determinadas ocasiões, após presentear algumas pessoas com peças cerâmicas confeccionadas por
mim, começo a receber fotografias dessas peças sendo usadas por elas em seu cotidiano (Figuras 95,
96, 97, 98, 99, 100 e 101).

177
tiê93

Figura 95 – Uma refeição no campo. Fotografia compartilhada por Figura 96 – Tiê93 dando vida à cerâmica.Fotografia
Liliane Abero. compartilhada por Gabriela Damé.

93
Tiê, nossa neta, irmã da Yta, filhas da Gabriela Damé.

178
Figura 97 – Cerâmica e cristais.
Fotografia compartilhada por
Roberta Almeida.

Figura 98 – Cerâmicas
prontas para uso. Fotografia
compartilhada por Gabriela
Damé.

179
Figura 99 – Preparando o jantar. Fotografia compartilhada por Isabela Marques Sartori.

180
Figura 100 – Almoço na cumbuca. Fotografia compartilhada por Figura 101 – Hora do cafezinho. Fotografia compartilhada por
Maria Amália Sousa. Márcia Marques.

181
Apresenta-se aqui uma oportunidade de deslocar as peças e expô-las – não como em uma galeria de arte,
onde seriam objetos, mas, ao contrário, colocá-las em seu uso cotidiano, dando a elas um significado
ou, ainda, ressignificando-as. Percebo, assim, a possibilidade de que essas peças estão sendo “coisas
vivas” (INGOLD, 2012) a partir do seu uso. Por esse viés, a proposta de compartilhamento dessas peças
no cotidiano e na casa das pessoas recebe, em contrapartida, registros fotográficos94, que de uma forma
espontânea já haviam sido instaurados.

Faço então um convite a algumas pessoas, entre colegas, colaboradores, professores, amigos e familiares,
enviando peças cerâmicas, em sua maioria cumbucas, acompanhadas de uma carta, na qual descrevo
uma síntese do processo cerâmico utilizado por nós e do que se trata a proposta Compartilhamentos.

A proposta tem como intenção incluir o público na experimentação, no próprio processo artístico, pela
interação de cada um com o dispositivo artístico, com o convite aos espectadores (participantes) a
darem vida às peças por meio do seu uso.

Essa ideia encontra eco nas palavras de Ingold (2012) e de Benjamin Alberti (2007, apud INGOLD, 2012),
ao falarem sobre a cerâmica:

Seria um erro presumir que a cerâmica é um objeto fixo e estável, que traz a
marca da forma cultural sobre a matéria “dura” do mundo físico (ALBERTI, 2007,
p. 211). [...] as evidências sugerem que os potes eram tratados como corpos e,
com a mesma preocupação [...], as cerâmicas não são mais estáveis que corpos;
são constituídas e mantidas no lugar dentro de fluxos de materiais. Deixados
ao léu, os materiais fogem do controle. Potes se quebram, corpos desintegram.
Esforço e vigilância são necessários para manter as coisas intactas, sejam elas
potes ou pessoas. (INGOLD, 2012, p. 36).

94
Os registros fotográficos recebidos podem ser vistos no final deste capítulo.

182
Esse esforço e vigilância necessários para preservarmos as cerâmicas pode ser visto também no desejo
do ceramista americano Warren MacKenzie95 (WARREN..., 2010), que relatava querer que suas peças
fossem utilizadas no dia a dia do seu público, para serem lavadas, manuseadas, servidas para comer
e beber e olhadas com frequência. Dessa forma, pode ter contato constante com quem adquiriu o seu
trabalho. Essas peças, obras de arte cerâmica, das quais Warren MacKenzie (2010) nos fala, podem ser
vistas como “coisas” e não simplesmente objetos.

Ingold (2012) insiste em dizer que uma obra de arte não é um objeto, mas uma “coisa”. “A obra convida
o espectador a juntar-se ao artista como companheiro de viagem, a olhar com ele enquanto desdobra-
se no mundo, em vez de por detrás dele, para uma intenção originária da qual ele é o produto final
(INGOLD, 2012).

Pensando Compartilhamentos por meio das ideias de Ingold (2012), como artistas devemos trazer a
forma de nosso trabalho à vida, e isso é feito quando acompanhamos as forças e os fluxos dos materiais.
Ocupamos um mundo que se encontra repleto de objetos prontos, estanques neles mesmos, e que
travam a nossa caminhada; é preciso entendermos que, para habitá-lo, é necessário nos unirmos ao seu
processo de formação, sendo esse mundo habitado um ambiente sem objetos (ASO). Ao enviar as peças
cerâmicas como dispositivos relacionais, proponho um novo modo de repensar os objetos de nosso
cotidiano, de modo que possam ser vistos como “coisas vivas”, como acontecimentos. Deixarão marcas,
assim como as contaminações que ocorrem nos processos colaborativos, nos quais somos capturados
pelo saber do outro e nas descontinuidades geradas em nossa realidade, provocando devires para
reinventarmos nosso cotidiano.

Warren MacKenzie (1924-2018) foi aluno de Bernard Leach. A arte de MacKenzie no torno cerâmico é fortemente influenciada
95

pela estética de Shoji Hamada (1894-1978) e pela cerâmica coreana. É creditado a ele ter levado o estilo japonês de cerâmica
Mingei para Minnesota, nos Estados Unidos. Ambos, Warren MacKenzie e Bernard Leach, estudaram cerâmica no Japão.

183
Kinceler (2008), falando sobre esse tipo de prática artística, nos diz que

nas práticas artísticas contemporâneas, fundadas na complexidade, gerando


processos de convívio e troca de saberes, [...] o processo de legitimação passa a
implicar outros componentes que aqueles tradicionalmente normalizados pelos
fluxos na instituição arte, que podem colocar o artista submisso a uma certa
lógica de representação cultural [...]. (KINCELER, 2008, p. 1.791).

Então, de acordo com Kinceler (2008), surge a pergunta: como processos criativos que não se preocupam
com a reprodução de códigos, mas em praticar este mundo de forma complexa, são legitimados?

184
Imagens recebidas na proposição Compartilhamentos.

185
Fotos
compartilhadas
por Amparo
Drummond

186
187
Fotos
compartilhadas por
Ana Elisa de Castro
Freitas e Eduardo
Harder

188
189
Foto compartilhada por
Angela Raffin Pohlmann

190
Fotos compartilhadas por Isabela Sielski e Lucas Kinceler
191
Fotos compartilhadas por Elisabete Klaus Correa

192
Foto compartilhada
por Carlos Oliveira

193
Fotos compartilhadas por Brenda Santos

194
195
Fotos compartilhadas
por Carolina
Pohlmann

196
Foto compartilhada por Carolina Rochefort

197
Fotos
compar-
tilhadas
por Cilene
Espindola

198
Fotos
compartilhadas
por Cláudio
Azevedo

199
Fotos compartilhadas por Eduarda Lenzi

200
Fotos compartilhadas por Eduardo
Dickie e Fabiola Godoy

201
Fotos compartilhadas por Flávia Maria e Gustavo Tirelli

202
203
Fotos compartilhadas por Donald Kerr e Alberto Coelho

204
Fotos compartilhadas por Taís Beltrame e
Humberto Levy

205
Foto compartilhada
por Lívia Damé

206
Fotos compartilhadas por Lua Reis e Maíra Coelho

207
Foto compartilhada por Nádia Senna e Úrsula Silva

208
Fotos compartilhadas por Nilson Antunes

209
Fotos compartilhadas por Rafaela Ribeiro
210
Foto compartilhada por Reginaldo Tavares

211
Fotos compartilhadas por Silvia Fuentes Silva

212
Fotos compartilhadas por Uill Maciel

213
Fotos compartilhadas por Gabriela Damé

214
215
Fotos compartilhadas por Helena Pelissari

216
Fotos compartilhadas por Paulo Silva e Sérgio Silva

217
Fotos compartilhadas por José Luiz Pellegrin e Pedro Costa

218
219
Foto compartilhada por Tatiana Pureza

220
Carta aos leitores
221
Pelotas, verão de 2023, 37 oC.

Caros leitores,

É com imensa alegria que escrevo esta carta, que passa a concluir a escrita desta dissertação.
Espero que tenham tido uma experiência agradável durante a leitura. Tenham certeza de
que fiz o melhor, dentro daquilo que foi possível, e saio profundamente transformada e
feliz dessa caminhada, por essa capacidade de autotransformação, crescimento e revolução
constantes.

No início dessa escrita apresentei meus antecedentes, ou seja, as atividades que fizeram
parte da minha formação, dos meus interesses pessoais e que me trouxeram até esse momento,
de modo que vocês pudessem compreender melhor - e para que fizesse sentido - o caminho
que percorri ao longo desses oito anos de pesquisa, dois deles no mestrado.

Minha ideia inicial, quando ingressei no programa de pós-graduação, era o entrelaçamento


da cerâmica esmaltada com cinzas (pesquisa que já vinha sendo realizada) com a natureza e
a espiritualidade, temas pelos quais tenho procurado orientar minha vida nestes últimos
anos. Essa escolha, que também é o tema desta dissertação, se deu por uma vontade de
apresentar uma possibilidade de mudança perante nossa maneira de viver.

Para isso, é preciso repensar nossas atitudes diariamente, mudando a nossa percepção;
e isso pode começar a ser feito se estivermos ancorados nas ideias de alguns autores
que trouxemos para conversar durante a escrita. Guattari (1990) nos diz que, por meio
da ecosofia, os seres são vistos como um todo e não apartados do planeta; mas nós, seres
humanos “normais”96, começamos a pensar no planeta e em nós mesmos como sendo separados

Normose, a doença de ser normal, é um termo cunhado pelo psicólogo e antropólogo brasileiro Roberto
96  

Crema, pelo filósofo, psicólogo e teólogo francês Jean-Ives Leloup e pelo psicólogo francês Pierre
Weil, na década de 1980. É caracterizada por um conjunto de hábitos considerados normais pelo consenso
social e que, na realidade, são patogênicos em graus distintos e nos levam à infelicidade, à doença e à
perda de sentido na vida. (NORMOSE..., 2022). O professor e mestre José Hermógenes, precursor do Yoga
no Brasil, escreveu: “O mundo ‘normal’ nos atrai. Enquanto atrai, nos distrai. E porque nos distrai,
nos trai. Se nos deixamos trair, ele nos destrói. É hora de despertar! Sinceramente: Deus me livre
de ser normal.” (HERMÓGENES..., 2005).

222
e assim, ninguém mais sabe o verdadeiro sentido do que seja o ser humano. Só consegui
enxergar uma saída para essa visão distorcida, criada por nós mesmos, na espiritualidade
e na arte.

Utilizando o conceito de malha, em Ingold (2015), procurei entrelaçar a espiritualidade que,


para mim, permeia toda e qualquer relação - não só da pesquisa, mas de todos os momentos
de minha vida - com os saberes de outros autores e, dessa forma, nortear todo o texto.

Entendo a espiritualidade como uma conexão comigo mesma e com o cosmos e procurei
compartilhar nesta escrita alguns conceitos que me ajudaram a estabelecer essa conexão.
O primeiro deles, o de wabi-sabi (IKISHI, 2018; KEMPTON, 2018; KOREN, 2019; SAINT CLAIR;
RIBEIRO, 2016), está intimamente ligado a uma relação fundamental com a natureza; para
os japoneses, viver com a natureza significa amá-la, e esse é um de seus principais
ensinamentos. A partir dele se ramificam outros tantos, mas o amor vibra em todos eles -
e o mundo passa a ser muito diferente quando aprendemos a enxergá-lo e a vivenciá-lo a
partir do coração.

Outro conceito trazido foi o de encantamento (KINCELER, 2008), que é gerado ao abrir um
espaço-tempo de atuação capaz de provocar devires que abrem, em potência, outras formas
de reinventar o cotidiano. E, ainda, o conceito de reencantamento (UNGER, 1991), no qual,
para reencantar o mundo, é preciso reencantarmos nosso olhar, pois a natureza mantém os
seus encantos e valores, independentemente do que pensamos a respeito.

Esses autores nos mostram, por meio de suas abordagens, uma maneira singular de interação
com o cosmos, com o planeta; e nos permitem entender que somos natureza e que, no
momento em que a destruímos, estamos nos destruindo também. É preciso a aceitação de
cada momento, que reflete a verdadeira natureza das coisas, e que nos faz lembrar de
como tudo é transitório. A sabedoria está no saber viver de acordo com as leis cósmicas,
experienciando o Todo, como habitante desse cosmos (UNGER, 1991). É a partir desse saber
viver que procuro acompanhar o fluxo da vida como habitante - em uma profunda e sincera
integração entre espiritualidade, arte, vida e natureza.

223
Ao longo do texto, foram apresentados processos de produção de esmaltes cerâmicos à base
de cinzas de vegetais a partir do conceito de dispositivo relacional em Bourriaud (2009) e
Holmes (2006), para gerar encontros de pessoas para a troca de saberes, de maneira que o
espectador também fosse incluído no processo artístico.

Procuramos aplicar possibilidades ecosóficas em nossas práticas ecológicas com o meio


ambiente durante o processo, lidando com as cinzas ou madeiras que estavam à disposição,
próximas do nosso local. Esse reaproveitamento dos resíduos torna possível deixar uma
quantidade menor de marcas em nosso ambiente - assim, como o conceito de respigagem
(VARDA, 2000), que também nos ajudou a pensar nossa própria ação e metodologia de coleta
dessas madeiras, dessas cinzas e do barro selvagem - considerando, mesmo que minimamente,
em uma microescala, uma atitude de consumo consciente que transforma um sistema linear
em um sistema cíclico, procurando eliminar do cotidiano os desperdícios, como forma de
trabalhar e habitar melhor o mundo (BOURRIAUD, 2009).

Esse resgate dos resíduos gerados pela destruição ou pela queima das matérias vegetais
e sua transformação em um novo elemento a ser inserido no processo fazem parte dos
procedimentos artísticos que, para nós, se tornam tão importantes quanto o resultado
final. Como dimensões micropolíticas, vimos essas ideias da coleta do barro selvagem e da
cinza em forma de reaproveitamento de um resíduo no sentido não só de reaproveitar o
que é tido como resíduo, mas de ressignificação da ideia de resíduo e da reinvenção dessa
materialidade que se reinventa pela mão do ceramista.

O uso desses materiais disponíveis próximos a nós nos dá autonomia e encantamento e


alimenta o desejo de encantar e empoderar o outro, gerando descontinuidades e deslizamentos
na realidade. É uma coleta, mas ao mesmo tempo é um processo criativo, um processo de
reinvenção, de ressignificação, que está acontecendo na interação com a matéria - e isso
faz com que eu, além de encantada, também me sinta transformada.

A pesquisa de mestrado, caracterizada como interdisciplinar/transdisciplinar/


indisciplinar, trouxe o dispositivo relacional como linhas de interação ou, ainda, relações
(INGOLD, 2012) ao longo das partes que compõem esta dissertação. Esse dispositivo, por meio

224
dos esmaltes cerâmicos de cinza e das próprias peças cerâmicas esmaltadas, se conecta ao
longo da pesquisa aos diferentes contextos - nas oficinas, exposições, diálogos, encontros
e compartilhamentos.

Lancei então a proposição Compartilhamentos, para que as peças cerâmicas fossem enviadas
e passassem a fazer parte do cotidiano de quem as recebesse. Assim, o “público” foi incluído
na experimentação, dando vida às peças. Utilizei para isso o conceito de “coisa” que está
em Ingold (2015) e, assim, o objeto recebido foi ressignificado, transformando-se em
uma “coisa viva” a partir da relação estabelecida ao longo do cotidiano de cada pessoa
que fez parte desse encontro; deixando marcas assim como as contaminações que ocorrem
nos processos colaborativos. Neste compartilhamento, as pessoas enviaram seus registros
fotográficos e essas imagens passaram também a fazer parte da dissertação.

Então, retomo aqui a pergunta de Kinceler (2008, p. 183): “Como processos criativos que não
se preocupam com a reprodução de códigos, mas em praticar este mundo de forma complexa,
são legitimados?”

Mesmo que as respostas sejam importantes, nem sempre elas são definitivas e, muitas vezes,
elas enunciam novas perguntas. Então, me junto à pergunta de Kinceler e pergunto: nossas
propostas artísticas precisam ser legitimadas? Talvez eu ainda não tenha uma resposta.
Mas será que esses processos artísticos que propõem modos alternativos de posicionamento
diante do campo estabelecido pelo sistema das artes precisam ser legitimados? Por quem?
“Em que contextos? Em que medida não envolvem reprodução desses mesmos códigos? Será
que não? Envolvem? Não envolvem? Que tipo de códigos? Que tipo de reprodução? E que
medida? Como poderíamos problematizar isso?”97.

A ideia de encantamento em Kinceler (2008) permeou toda a pesquisa, no sentido de que em


vários momentos se abriram intervalos, pausas dinâmicas na realidade, outras formas de
reinventar o cotidiano. E, nessas outras maneiras de reinvenção do cotidiano, fomos sendo
atravessados pelos detalhes de cada peça, em suas “imperfeições”. Um outro olhar se abre

Respondo a pergunta com trechos da fala do professor Cláudio Azevedo durante sua arguição na banca
97  

de qualificação desta dissertação, mesclados com minhas ideias sobre o assunto que foi abordado.

225
para a beleza da simplicidade natural, que para nós brota do ordinário que está à nossa
volta, ao mesmo tempo que emerge nas forças que vêm do território - o barro e a cinza -
refletindo a natureza que envolve e norteia nosso processo artístico. Passamos a aceitar
suas impurezas como um fato inevitável da vida e, ao mesmo tempo, trabalhando em harmonia
com eles. É a partir dessa visão que procuramos desenvolver nosso processo artístico, não
nos opondo ao que a natureza tem a oferecer, mas aceitando e buscando, com respeito, uma
forma de entrarmos em sintonia com os materiais que nos são oferecidos por ela.

Passei a incorporar o conceito de wabi-sabi no meu cotidiano, mesmo sabendo que para
nós, ocidentais, permanece ainda como um “enigma fascinante” (KEMPTON, 2018), mas que se
oferece a revelar uma sabedoria para quem desejar recebê-la.

Neste mestrado nem tudo saiu exatamente como eu gostaria, como havíamos previsto, mas vejo
também que esse foi o caminho possível encontrado - em meio à sindemia, com as limitações
de uma circunstância, de uma situação que ninguém escolheu, sendo o tempo implacável e,
por mais que eu desejasse ter mais tempo, sempre há o limite dos prazos. Contudo, estou
satisfeita com o modo como tudo ocorreu e com os resultados obtidos.

A pesquisa poética no caminho da arte relacional e colaborativa em busca de um esmalte


cerâmico confeccionado a partir das cinzas de vegetais nos fez rever e aprofundar
processos, desconstruirmos a nós mesmos, nos esvaziarmos de conceitos e, assim, nos
reconstruirmos novamente, para então seguir em frente e enxergar a verdadeira beleza
da vida, que só pode ser vista por meio da simplicidade. É assim também, com a experiência
na cerâmica, quando moldamos o barro, da mesma forma somos moldados por ele, saindo
ressignificados da experiência.

Foi uma verdadeira batalha queimar em forno a lenha, tendo o fogo como parceiro, ao mesmo
tempo que ele fazia suas exigências. Não foi uma tarefa fácil controlarmos seus resultados.
Vários aprendizados foram absorvidos na “boca do dragão”. A utilização da grelha, tornando
a combustão mais efetiva e nos possibilitando atingir temperaturas mais altas; a reforma
do rompe chamas, que fez com que a temperatura no interior da câmara se tornasse mais
homogênea; a forma de abastecer a fornalha, que foi mais um aprendizado importante, ao

226
mesclar madeiras grossas e duras para manter a temperatura e madeiras finas e macias
para elevá-la; e, ainda, o aprendizado de colocar pouca lenha a cada abastecimento, para
que a temperatura continuasse a se elevar.

O modelo do forno, as queimas e toda a experiência que ganhamos ao operá-lo nos surpreendeu
em vários aspectos - como os resultados obtidos com os esmaltes e as temperaturas alcançadas
acima de 1.300 oC. Essa informação nos permite dar continuidade à pesquisa, experimentando
também as cinzas de casca de arroz, pois o nuka é um dos esmaltes que gostaríamos de
produzir, sendo a casca de arroz um material abundante em nossa região.

Desejamos as contaminações e aceitamos as impurezas no processo como um fato inevitável


da vida e, ao mesmo tempo, trabalhamos criativamente com eles, como nos ensina o conceito
de wabi-sabi sobre a aceitação incondicional de cada momento. Do mesmo modo, ocorreram as
contaminações (TSING, 2022) da ordem do acontecimento, dos encontros, dos atravessamentos,
pois fomos contaminados por esses encontros, saímos transformados à medida que abrimos
espaço para o outro. As percepções e pensamentos que desestabilizam as certezas e as
verdades contribuíram para que a pesquisa avançasse por caminhos incertos, propiciando
outras descobertas.

No início da pesquisa, queríamos que o vidrado desse uma cobertura de qualidade à peça
cerâmica, e que funcionasse sem escorrer. Esse objetivo foi não somente alcançado
como superado, pois obtivemos mais do que somente uma cobertura de qualidade. Surgiram
paisagens, lágrimas (gotas que ficam no esmalte), escorrimentos, falhas bem-vindas em sua
cobertura e outras tantas reações, as quais não esperávamos. E isso foi apenas o começo
de um aprendizado sobre esmaltação com cinzas.

Ao finalizar esta escrita, chegamos a um lugar dentro da pesquisa, com a certeza de que
ainda existe muito a investigar. Sabemos que encontramos e colocamos um bom alicerce
nessa investigação, definindo os materiais, adequando as pastas e esmaltes que desejávamos
trabalhar e também aferindo os equipamentos, principalmente o forno, para alcançar os
resultados que tanto nos encantaram e às pessoas que compartilharam desse processo.

227
A conclusão desta dissertação que se estendeu ao longo de múltiplas linhas deixa para
“frente” inúmeras pontas soltas, as quais poderão ser a continuidade de várias outras
pesquisas, mesmo que não seja eu a pesquisadora a desenvolver todas elas. Considero que
esta dissertação abre caminhos para outros pesquisadores e, para mim, é isso que constitui
uma pesquisa.

Quando nossas ações partem do coração, o mundo se apresenta para nós de forma diferente.
Isso acontece porque começamos a emitir um outro tipo de vibração. E é dessa forma também
que enxergo os acontecimentos em nossa vida, somos nós mesmos que os permitimos ou não.
Basta, para isso, vivermos aquilo que acreditamos.

E aqui me despeço,

Com o desejo de que a arte e a natureza estejam sempre presentes em seu cotidiano

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