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O afastamento das gerações do contato com a natureza é uma realidade que tem
preocupado muitos pesquisadores e educadores. O crescente processo de
urbanização e a vida moderna têm contribuído para que as crianças passem cada
vez menos tempo ao ar livre e em contato com a natureza. Richard Louv (2016)
aponta que esta falta de contato com a natureza pode gerar o “transtorno de déficit
de natureza”, caracterizado pela diminuição da criatividade, do foco e da atenção,
além de aumentar o risco de problemas de saúde. Neste contexto, os professores de
Artes Visuais têm o papel fundamental de estimular o contato consciente de crianças
com a natureza e seus elementos. Nesta monografia, do tipo qualitativa exploratória,
elaboro uma pesquisa autobiográfica alicerçada em uma revisão bibliográfica,
refletindo sobre a minha relação com a natureza e como isso me moldou na certeza
de ser um arte-educador visual. As práticas artísticas podem ser um meio para o
despertar da curiosidade e da criatividade, além de contribuir para o
desenvolvimento da percepção sensível e da consciência ecológica desde a
infância. A pandemia do COVID-19 reforçou a importância de se promover práticas
que envolvam a natureza e seus elementos, principalmente no Ensino Fundamental,
uma vez que muitas crianças ficaram privadas de atividades ao ar livre em um
período importante do seu desenvolvimento. Por meio de relatos da minha história
pessoal e de análise de práticas de estágio, é possível avaliar a efetividade da
sensibilização proporcionada por ambientes naturais e evidenciar a importância do
imaginário e da experimentação nesse processo. Dessa forma, considero que a
pesquisa pode contribuir para a reflexão sobre a importância do contato consciente
das crianças com a natureza e seus elementos e para a adoção de práticas
pedagógicas que valorizem essa conexão na formação dos estudantes.
The distancing of generations from contact with nature is a reality that has concerned
many researchers and educators. The growing process of urbanization and modern
life have contributed to children spending increasingly less time outdoors and in
contact with nature. Richard Louv (2016) points out that this lack of contact with
nature can generate "nature deficit disorder", characterized by a decrease in
creativity, focus, and attention, as well as an increased risk of health problems. In this
context, Visual Arts teachers have the fundamental role of stimulating conscious
contact between children and nature and its elements. In this exploratory qualitative
research, I develop an autobiographical research based on a literature review,
reflecting on my relationship with nature and how it shaped me in the certainty of
being a visual art/educator. Artistic practices can be a means of awakening curiosity
and creativity, as well as contributing to the development of sensitive perception and
ecological awareness from childhood. The COVID-19 pandemic has reinforced the
importance of promoting practices that involve nature and its elements, especially in
primary education, since many children were deprived of outdoor activities during an
important period of their development. Through my personal story and analysis of
internship practices, it is possible to evaluate the effectiveness of the sensitization
provided by natural environments and to highlight the importance of imagination and
experimentation in this process. Therefore, I believe that this research can contribute
to reflection on the importance of conscious contact between children and nature and
its elements, as well as to the adoption of pedagogical practices that value this
connection in the education of students.
INTRODUÇÃO ..........................................................................................................06
REFERÊNCIAS .........................................................................................................63
Origens
Deste modo eu tive tempo, e não perdi tempo como, por vezes, confesso que
pensei. Tive tempo de amadurecer, processar tudo que eu já havia vivido, mesclar
conhecimentos adquiridos em outros cursos até perceber todos os caminhos que
trilhei tentando me encontrar, todas as diferentes linhas que tracei convergiram
sempre para o mesmo ponto, o contato com a natureza.
Um ponto de ruptura importante aconteceu durante esse processo e me
ajudou a me entender melhor. Outra desaceleração, esta bem forçada, causada pela
pandemia. Tudo mudou de repente. As aulas presenciais foram pausadas após a
primeira semana de aulas e eu, que estava acampando, nem cheguei a entrar em
sala. O novo cenário que passou a se apresentar pedia cuidado, sair na rua não era
recomendado. Eu morava em um condomínio com blocos de prédios, ainda lembro
do olhar de julgamento das vizinhas pela janela quando eu saía com o cachorro para
ele fazer suas necessidades. O apartamento que eu dividia com outro estudante
começou a encolher à medida que os dias se passaram. O pouco espaço para criar
nunca havia me incomodado, mas eu também nunca havia parado para pensar que
não era só ali no cantinho que eu montei para esculpir que eu criava. A frase que me
descrevia no Instagram era: “Coletando coisas por aí, eu vou montando meu
universo artístico”. Porém, aquilo era tão natural: fugir para matas e cachoeiras,
coletar galhos, pedras ou qualquer coisa que me chamasse atenção por sua forma;
levar para casa; e lá, esquecendo-me do resto que me cercava, ressignificar aquele
material fazendo pertencer ao meu mundo. Percebi, então, que as peças novas
eram como chaves que me transportavam para além das quatro paredes, mas antes
de trazê-las para meu mundo eram elas que me levavam para o mundo delas.
Diante disto, passei a ter um amadurecimento; o período que forçou com que
ficássemos isolados gerou uma internalização e muitos questionamentos. As
respostas eu fui buscando em uma caixa com galhos “especiais”, que, antes,
quando podia buscar outros por aí, eu deixava guardados, por ainda não me sentir
pronto para entalhar e com medo de não conseguir tirar deles a forma que já via, e
eles ficavam esperando. Ter então que trabalhá-los gerou um aperfeiçoamento na
minha técnica. As respostas que eu buscava não vieram dos galhos especiais, eles
só me trouxeram momentos de fuga em meio a tudo que estava acontecendo. Na
verdade, as respostas nem vieram, o que veio foi uma grande pergunta quando os
galhos acabaram: O que vou fazer agora? Eu sabia do que precisava, só não tinha
pensado ainda como aquilo era importante para mim. Essa inquietação e essa busca
que me direcionou para uma rotina mais constante com a natureza é o que norteia
esse trabalho. Minha vivência e as referências que venho lendo apontam que esta
também seria uma possível ferramenta para a educação, colaborando com a
formação de seres mais conscientes de tudo aquilo que os cercam.
Em um mundo cada vez mais tecnológico e com acesso a recursos digitais,
querer trabalhar distante disto pode parecer arcaico, mas, antes mesmo de
acontecer esse período de restrição mundial, a preocupação com a privação do
contato das crianças com a natureza já estava sendo pensada. Richard Louv, no
livro que se intitula “A última criança na natureza” (2016, p. 54), nos diz: “Como a
maioria de nós, muitos pesquisadores consideraram o vínculo entre criança e
natureza como algo garantido. Como algo tão atemporal mudou em um período tão
curto?”
Na linha de raciocínio apresentada pelo autor, este distanciamento do natural,
que era analisado por ele como gradativo, se tornou repentino quando a maioria de
nós experimentou a reclusão na pandemia. Todos sentimos os efeitos disto, mas
para os jovens, em fase de desenvolvimento, foi ainda maior. Longe das escolas e
com toda atribulação de adaptação ao modelo de ensino a distância, tanto para
alunos quanto para professores, uma lacuna foi aberta na aprendizagem trazendo
consequências que ainda estão sendo dimensionadas, porém já são sentidas no
retorno às atividades presenciais.
Tentando simplificar para nós e expondo sua preocupação, Louv (2016, p. 58)
denomina:
As raízes são estruturas que fazem parte de quase todos vegetais. Estão
localizadas na base, colaborando com a sustentação, e têm como principal
função promover a absorção de água e nutrientes presentes no meio externo, tendo
assim influência direta no desenvolvimento das plantas. Em sentido figurado, as
raízes podem ser algo que provoca um acontecimento, as origens de algo, ou
também um vínculo estabelecido com algum lugar onde se nasce ou se vive.
Brincando com a relação entre homem e planta, para falar da importância do
contato com a natureza, pensarei sobre as “minhas Raízes” analisando como fui
nutrido por essa proximidade com atividades estruturadas no campo, mas também
com liberdade para explorar diversos ecossistemas, avaliarei como isto reverbera
em mim ainda hoje. Trago aqui neste capítulo, autobiográfico, uma divisão por
ciclos, começando pelas primeiras lembranças, o período que vivi ligado à vida rural,
que chamei de Germinação, analisando o período posterior quando já vivia em uma
grande metrópole, falo da importância do deslocamento entre e campo e cidade
tratando isto como Reposições de Solo, prática importante na jardinagem para
fortificar os vegetais, e que para mim foi um complemento essencial, diria que até
necessário para que eu pudesse sustentar minhas ramificações. Então, na última
parte, explicarei como cheguei até aqui, alicerçado e trazido por Fortes Ventos, que
fazem com que a raiz de uma arvore se fixe com maior profundidade e, quando ela
já é madura, ajudam a espalhar suas sementes.
1.1 - Germinação
Nessa linha de raciocínio esta vivência, dos meus anos iniciais, foi ainda
dentro da “segunda fronteira”. A vida campeira proporcionou sobretudo um contato
direto com a produção de alimentos e criação de bichos, não que uma coisa se
separe da outra, mas, além do cotidiano de tirar leite das vacas todos os dias de
manhã, recolher ovos do galinheiro ou cultivar hortaliças, eu ainda participava do
que Louv chama de “os aspectos mais brutais da produção de alimentos”. Sempre
gostei de dia de abate, principalmente de ovelha; ficava observando tudo de perto,
as galinhas e os cachorros vinham para a volta em festa disputar o sangue que
escorria, e não tinha o peso de morte que alguns pensariam. Lembro-me de esperar
a hora de carnear para pegar um graveto e ir brincar com as tripas, achava muito
curioso elas seguirem parecendo ter vida por mais algum tempo mesmo ali,
espalhadas no chão.
Meus pais foram criados em fazendas, e a chácara possibilitava, de certa
forma, reproduzir um pouco do que eles viveram para me passar. Essa infância
cercada de uma vida rural me permitiu experimentar um contato que certamente me
sensibilizou positivamente. Além de ovelhas e galinhas, que exigiam uma rotina de
cuidados, sempre tivemos muitos cachorros, alguns ficavam soltos e
acompanhavam as aventuras (Figura 2), enquanto outros ficavam presos em locais
estratégicos. O lugar quase mantinha uma subsistência com ajuda do seu Vidalmiro,
à direita da imagem (Figura 2). Ele ia todos os dias ordenhar suas vacas, elas
pastoreavam lá em troca de um pouco de leite para nosso consumo; observando-o
construí alguns conhecimentos, já que ele também cultivava algumas coisas em uns
canteiros cercados na ponta do bosque, do mesmo jeito, deixava algumas coisas
para nós e ficava com o restante para ele. Na minha infância, tais hábitos eram
banais, porém, “Hoje a terapia com animais, ou zooterapia, se juntou a horticultura
terapêutica como abordagem aceita de cuidados com a saúde, especialmente para
idosos e crianças” (LOUV, 2016, p. 67).
A nossa horta oferecia muito mais do que lazer ou terapia, foi também um
laboratório onde eu pude descobrir sensações. Lá comecei a observar as plantas e
aprender a identificá-las nos canteiros. Lembro que cenoura foi uma das primeiras
que aprendi a distinguir, ver se estava boa, para então retirar da terra e roer na hora.
As minhas raízes se fortaleceram com toda essa riqueza de nutrientes, já
haviam se espalhado para além do cercadinho de madeira do galpão, estavam
quase dominando o espaço todo da chácara, então fui transplantado. Meus pais se
separaram e eu fui morar com minha mãe em Porto Alegre; outro capítulo da minha
vida se iniciou.
A beira das rodovias pode não ser perfeita como um cartão postal. Mas,
por um século, a primeira noção das crianças de como as cidades e a
natureza se encaixam vinha do banco de trás: a casa de fazenda vazia no
limite de uma cidade; a diversidade da arquitetura, aqui e ali; as arvores e
os campos e água para além das fronteiras descuidadas – tudo isso estava
disponível aos olhos. (LOUV, 2016, p. 85).
Tendo conhecimento desta ideia apresentada pelo autor, vejo que meu
entendimento sobre limites urbanos realmente foi formado através da janela de um
ônibus. Eram seis horas de viagem entre as duas cidades, o que eu fazia
acompanhado da minha babá que ia ver a família. Nesse trecho eu decorei as
cidades pelas quais passávamos para saber o quanto faltava para chegar. Era um
tempo diferente, os vidros dos ônibus ainda abriam, a climatização era feita pelo
vento, dava para sentir os cheiros que vinham de fora. Também não tinha aparelhos
de mídia para passar o tempo na viagem, a relação com o que se passava no
horizonte era outra. Eu gostava de observar a velocidade através das árvores
passando na janela, ficava brincando com a relação de como pareciam quase
estáticas quando estavam longe, mas como passavam voando, mal dando a chance
de ser analisadas de perto.
Vivendo em uma metrópole eu pude ser enriquecido com nutrientes que não
estavam disponíveis na vida no interior. Recordo de a minha mãe me levar ao teatro
com frequência; íamos ao cinema, e também no parque da Redenção e no Brique
ver as antiguidades e os artesanatos. Passei a ter contato com coisas que meus
novos colegas de escola já estavam bem familiarizados. O caso mais curioso de
quando eu era uma criança recém-chegada na cidade grande foi um acidente na
escada rolante do shopping: corri para subir na frente e sentei no degrau, na
chegada tive a camiseta e a bermuda mastigadas e a nádega beliscada. Em
contrapartida, eu ficava impressionado quando descobria que algumas crianças não
subiam em árvores.
Posso afirmar que não me faltaram momentos assim, desde uma cavalgada
em pelo no lombo do cavalo (Figura 3), acompanhado por cachorros campeiros,
vivenciando a cultura gaúcha, até passar dias em uma bolanta (Figura 4), no meio
da lavoura enquanto meu pai trabalhava nivelando os campos para o plantio do
arroz.
2
CHAWLA, Louise. “Ecstatic Places”. Children´s Environments Qarterly3, n. 4 (inverno de 1986).
Figura 3: Antônio Azambuja Cavalgada em pelo, fotografia analógica, 1993.
Figura 10: Antônio Azambuja, Pescaria em dia chuvoso, fotografia analógica, 1993.
Em Porto Alegre, por mais concreto que tivesse ao redor, nunca me afastei
muito das brincadeiras ao ar livre e da natureza. Depois do primeiro endereço,
passamos a morar sempre nos arredores do Parcão. Lá eu também me sentia livre,
dava voltas de bicicleta sozinho, subia em árvores, fazia amigos. Dificilmente eu
usava a pracinha do jeito habitual, estava sempre procurando um jeito mais
desafiador de explorar os equipamentos (Figura 11).
Figura 11: Marlete Farias, Escalada nas traves, fotografia analógica, 1995.
A vida na cidade grande não foi ruim para mim, sei que fui privilegiado pelos
lugares que morei. Lembro de um prédio que tinha um amplo espaço para jogar bola
em cima dos estacionamentos, o qual em alguns momentos até usei para tentar
andar de roller. Porém, o que eu gostava mesmo era de pular para onde tinha
árvores e pedras (Figura 12), era uma faixa ao redor de todo prédio, onde eu
brincava de alpinismo, inventava esconderijos e colhia amoras.
Figura 12: Berenice Netto, Soltando filhote de passarinho na amoreira, fotografia analógica,
1996
As diferenças entre mim e meus colegas que haviam sido criados sempre na
cidade ficavam muito evidentes quando tínhamos liberdade para inventar novas
brincadeiras ao ar livre. Não tão ao acaso fui tendo mais afinidade com os colegas
cujas famílias tinham sítios, inclusive meu melhor amigo, Gabriel, morava em um
sítio em Viamão, onde o pai dele tinha um aviário. Muitos finais de semana eu
passava na casa dele; tinha até uma maleta de aventura para ir para lá – era uma
caixa de ferramentas que ganhei para colocar materiais de pesca, mas acabei a
ampliando para itens de sobrevivência na natureza.
Assim como Louv, também encontro sentido nas palavras, sem comprovação,
de Jerry Hirshberg, diretor, fundador e presidente da Nisan Design International,
centro de design da empresa automobilística japonesa nos Estados Unidos. Acredito
que a liberdade que tive na infância, as brincadeiras exploratórias na natureza e
também com elementos naturais que eu levava para casa, me fizeram compreender
o mundo de outra forma, mais criativa e mais inventiva. Certamente isso também
tem influências dos meus pais, que dividiram momentos de suas infâncias comigo,
me contando como faziam pra se divertir quando ainda não havia energia elétrica na
casa deles. Isso me encorajou a fazer meus próprios brinquedos.
Dessa forma, sendo criado não em um vaso, mas em um canteiro que era
enriquecido com reposições de solo, tive meu desenvolvimento na capital gaúcha.
Fui amadurecendo e minhas raízes absorvendo nutrientes. No Ensino Médio minhas
habilidades manuais se apresentaram como algo que eu deveria explorar na vida
adulta. Meus galhos estavam tomando forma, minhas ramificações estavam
crescendo, então jardineiros entraram em ação para tentar guiá-los com um tal de
teste vocacional.
Eu fui soprado pelo vento. Em casa nunca fui cobrado sobre um destino na
minha vida ou questionado sobre qual seria a minha formação. Cresci em liberdade,
com raízes que se estendiam para além das fronteiras reais, eu chegava longe e me
nutria. As vivências ligadas à natureza me deram bagagem e impulsionaram o
crescimento de meus ramos. Naturalmente fui desenvolvendo muitas habilidades.
Eu era inventivo e, no espaço reduzido de um apartamento, eu acabava brincando
com miniaturas – assim acabei desenvolvendo uma boa habilidade manual.
A escola que frequentei no Ensino Médio tinha uma preocupação com os
números de aprovados no vestibular, o que repercutia na reputação da instituição
como boa formadora, e essa preocupação era passada para os alunos. Diferente de
outras plantinhas naquele canteiro, eu não sabia qual função eu queria ter –
algumas ali acho que nem tiveram escolha, tinham que seguir a orientação de suas
famílias que já haviam traçado planos para elas. Eu fiz alguns testes vocacionais.
Não me lembro se nas opções de resultado tinha algum caminho direto que levasse
às artes, assim, a opção que se apresentou mais apropriada para mim foi a
odontologia. Os jardineiros que trabalhavam ali na missão de orientar faziam podas
ao seu gosto, estaqueavam e amarravam as mudinhas para que crescessem em
direção ao status. Eu até cheguei a me imaginar dentista, pensava que esculpir
sorrisos poderia ser legal. Quando chegou a hora de prestar vestibular eu não tinha
dúvidas, era isso.
Após a germinação de uma sementinha, ela passa muitos anos crescendo e
amadurecendo até conseguir dar bons frutos. Durante os primeiros processos de
frutificação é comum acontecerem abortos espontâneos, depois ela gera pequenas
frutinhas e tende a ir melhorando ano após ano. Para acelerar isso e tornar o cultivo
mais rentável, principalmente na horticultura, existe hoje a prática do enxerto, que
basicamente consiste em podar a pequena muda em sua base e inserir ali um galho
com a carga genética de uma planta adulta e madura para que ela comece sua
produção em poucos anos. Metaforicamente, o que quero falar é que muitos jovens
hoje também recebem não só uma influência da família, ou do meio em que vivem,
mas são tantas informações voltadas à produção que chegam a deixar de viver suas
próprias vontades para se encaixar em algum modelo tido como apropriado. Krenak
(2020) critica estas formatações, que tratam o mundo como mercadoria e tentam
predestinar o futuro. Sobre as crianças, ele afirma:
Essa magia das casas na árvore para mim foi libertadora, me fez pensar no
que eu realmente gostava. A possibilidade de trabalhar com paisagismo era mais um
atrativo desta profissão que já estava me parecendo interessante. Então, com uma
visão romântica, ingressei na arquitetura, pensando em criar projetos em harmonia
com a natureza e quem sabe um dia fazer uma residência habitável em cima de uma
árvore.
O início do curso foi uma maravilha; já no primeiro semestre, consegui um
bom dinheiro fazendo maquetes para os colegas. Eu tinha facilidade em projetar, só
não gostava muito das orientações de projeto, quando os professores definiam
mudanças sem muita explicação, apenas por gostos pessoais estéticos que suas
experiências faziam valer. Isso não era difícil de driblar, mas logo busquei estágio na
área e meu desencanto pela profissão começou. O escritório em que eu estagiava
era conceituado; além do chefe que dificilmente aparecia, tinham outros quatro
arquitetos que batiam ponto e, assim como eu, não saíam da frente do computador
digitalizando os projetos e tentando decifrar os traços a lápis feitos por cima das
plantas baixas. Raras vezes um dos arquitetos saía para fazer acompanhamento de
obra e, quando saía, me chamava para ir junto. Eu ficava auxiliando com
levantamento de métrico e invejando o trabalho dos pedreiros que estavam fazendo
tudo acontecer. Não me contentei com aquilo e fiz estágio em outros três lugares,
dois eram quase iguais ao primeiro, e o terceiro era diferente, na Secretaria do
Patrimônio Histórico, muito mais chato. Minha experiência em acompanhar as obras
se fez valer porque apenas o que eu fiz lá foi tirar e anotar medidas de prédios
antigos, depois passar para o computador.
No sexto semestre da faculdade de Arquitetura, eu me esgotei. Não
conseguia mais sonhar com projetos de casinhas na árvore. As realidades que eu
passei a viver e, consequentemente, a imaginar para o futuro como arquiteto
deixaram de ser agradáveis. Dificilmente eu conseguiria liberdade para criar um
projeto sem nenhuma interferência e, mais do que isso, eu não me contentaria
apenas em projetar e não executar. Como diz Krenak (2020), essa ruptura com o
tipo de existência que eu imaginava me desestabilizou, em consequência eu adoeci.
Tranquei o curso e passei um tempo perdido. Caí em um abismo mesmo, como diz o
autor. Precisei de ajuda para me reencontrar. Tive que dar muito mais do que doze
passos para conseguir enxergar outras realidades possíveis para mim.
Como neste aforismo de Peter Handke, que Larrosa (2022) traz, eu precisei ver
outra realidade válida para não sucumbir. Desta vez, minhas raízes estavam
fortalecidas e uma ramificação inventiva já havia se desenvolvido. Quando o terceiro
semestre de Agronomia estava começando, eu já estava com tudo pronto para pedir
transferência de curso para Artes Visuais. Passei a esculpir no apartamento e deixei
de ir às aulas mesmo antes de sair o resultado da transferência. Impulsionado pelo
meu imaginário e pelas histórias dos meus pais, que faziam seus próprios
brinquedos, fiz mais três esculturas criando um universo em bonecos de madeira
com a série Amigos (Figura 15).
Figura 15: Jerônimo Azambuja, Série Amigos, entalhe em madeira 2,5 x 2,5 x 30 cm,
fotografia digital, 2023.
Uma pausa quase impossível nos tempos de hoje, como Larrosa (2022) fala,
mas que durante a pandemia foi forçada. Assim tive tempo, um tempo sem
cobranças, sem pensar que o mundo estava girando e eu não poderia ficar parado.
No início não me permiti desacelerar, usei o tempo para produzir esculpindo e me
desafiar em esculturas mais elaboradas que requeriam mais calma e dedicação. A
esta altura eu já colecionava esculturas em madeira, mas ainda não tinha percebido
que elas não eram apenas objetos, elas eram fruto de momentos em que eu estive
em contato com a natureza e minha sensibilidade captou algo especial nelas me
levando a querer evidenciar aquilo. Esta percepção começou a se fazer clara à
medida que a matéria-prima que eu tinha estocado no apartamento se esgotava e a
necessidade de ter contato com a natureza começou a aparecer.
Com isso, fui para Jaguarão algumas vezes me isolando em um campo e
ficando acampado só eu e minhas duas cadelas. Imerso em meio a uma imensidão
verde, que ao longe era cortada por máquinas agrícolas, reencontrei-me com o
menino que germinou lá em uma chácara. Como um garoto, consegui realmente
desacelerar e reparar em tudo a minha volta; fiquei alguns dias sem me preocupar
com nada, apenas desfrutando do lugar. Sem luz e sem muitos recursos, fazia um
fogo de chão na hora das refeições e me reconectava com uma essência que estava
apenas no inconsciente.
Voltando às palavras do Larrosa (2022), aquela experiência possibilitou que
algo me acontecesse. Retornei mais sensível e mais forte, ciente de que o contato
diário com a natureza me proporcionava um bem-estar, mais que isso, me nutria por
completo e fazia eu me sentir com mais energia para criar, para estudar, enfim, para
viver seja a realidade que for. O apartamento em que eu morava em Pelotas não
oferecia nesse sentido mais do uma área de serviço lotada de vasos e plantas. Eu
precisava mais, precisava ter um pátio. Assim fui caminhando para o local onde vivo
hoje.
Primeiro, mudei do apartamento para uma casa com quintal grande, mas
ainda no centro. Depois, conquistei um espaço maior, longe do centro e com
bastante áreas naturais em volta. Vim morar no Laranjal ainda durante a pandemia e
aqui eu me achei, aqui a vida tem um ritmo menos acelerado, com barulhos de
pássaros e não de motores. Eu consegui estabelecer uma conexão com o local que
me serve de grande motivação, não só pelo pátio grande que me permite ter horta e
cuidar da terra vendo as plantas se desenvolverem ao seu tempo, ou pela grande
quantidade de matéria-prima para minhas obras que eu encontro pelas esquinas
sem fazer nenhum esforço, mas porque eu acho que entendi o poder da conexão
com a natureza, o poder de me sentir fazer parte de um todo apenas por respirar e
se sentir presente. Quando isso se torna complicado, caminho até a beira da lagoa e
fico observando sua grandiosidade.
Como diz Krenak (2022, p. 99), “Para além da ideia de ‘eu sou a natureza’, a
consciência de estar vivo deveria nos atravessar de modo que fôssemos capazes de
sentir que o rio, a floresta, o vento, as nuvens são nosso espelho da vida.” Assim, o
vento que não para de soprar agora balança uma planta já madura, que teve tempo
para florescer e agora precisa dele para espalhar suas sementes em um terreno
fértil para que outras possam germinar.
Capítulo 2 - crianças PLANTAS EM VASOS
2.1 - Substrato
Figura 16: Professora Roberta, Analisando imagens de pinturas rupestres com a turma, fotografia
digital, 2022
Tendo dois sextos anos para assumir, em diferentes dias, dei início a minha
primeira experiência com a turma que eu já havia observado. Buscando diminuir as
conversas paralelas e ficar no centro das atenções, pedi para que os estudantes
sentassem em um semicírculo. Então, partindo de perguntas investigativas, tentando
calcular o conhecimento dos alunos sobre arte na pré-história e despertar a
curiosidade deles, comecei minha aula expositiva. Como a escola não possui
recursos de mídia, levei impresso seis imagens de pinturas rupestres em cavernas.
Para que elas pudessem ser analisadas, circulei com as folhas impressas na mão,
depois as colei lado a lado no quadro (Figura 14). Após a contextualização,
incentivei a análise e pedi para comentarem o que viam e achavam de cada uma
delas, passando para uma conversa sobre as possíveis motivações das pinturas.
Em um segundo momento, voltei a fazer provocações tentando alimentar a
curiosidade da turma, perguntando sobre os pigmentos usados nas pinturas
rupestres, como achavam que eram feitos e como nós poderíamos tentar fazer em
aula. As crianças tinham alguma noção de possíveis cores usando pigmentos
naturais; um menino disse que poderíamos fazer o vermelho com sangue, outra
menina se lembrou da cor rosa da beterraba. Continuei a aula dando razão para eles
e explicando sobre possível adição de aglutinantes para fixar os pigmentos.
Sugerindo que também poderíamos usar barro, falei dos ocres, explicando que eram
argilas com óxidos usados como pigmento para pintura. Então puxei de dentro da
minha mochila um tacape e alguns torrões de argila laranja. A cara de encantamento
dos estudantes refletiu em mim e me deu tranquilidade para apresentar a proposta
prática.
Assim como Ana Mae (2014) sugere, meu plano de aula estava bem
organizado. Já havia passado da parte que eu julgava mais desafiadora, tinha
conseguido prender a atenção dos alunos sem grandes dificuldades durante o
momento expositivo, então para maior envolvimento no fazer artístico tentei criar um
cenário lúdico. Usei a clava com que bato nos formões para entalhar madeira,
mostrei a eles e disse que era uma ferramenta para esmagar torrões de argila como
se fôssemos pessoas pré-históricas.
Eu estava encantado pelo encantamento deles, a sensibilização tinha dado
certo e eles estavam ávidos pelo que viria. Coloquei meus materiais em uma mesa
no centro do semicírculo e, antes que eu pudesse acabar a explicação, de como
esfarelar a argila, já estava cercado por alguns querendo experimentar aquela
brincadeira. Instruí os primeiros que se aproximaram como macetar o barro laranja;
também mostrei outro barro cinza que já estava em pó, dividi em alguns potes e
exemplifiquei as diferentes texturas que se conseguia colocando mais água, ou mais
barro novamente nos potes.
Eles estavam naturalmente divididos em pequenos grupos por afinidade, não
me preocupei com quem já estava com o pigmento e comecei a chamar quem não
tinha se aproximado ainda e incentivar que participasse. A agitação estava grande,
mas eu estava envolvido em mediar a construção do pigmento com todos, no meu
planejamento estava tudo indo muito bem, até que um dos meninos me chama
incomodado e diz: “Tio, ele me sujou!” Aquilo fez com que eu levantasse a cabeça e
me assustasse com a sujeira. Em seguida, vieram alguns pedidos para ir ao
banheiro se lavar. Eu não poderia liberar todos, achei que tinha perdido o controle
da aula. Querendo retomar alguma ordem, pedi que todos sentassem em seus
lugares. Pensando em amenizar a situação, distribuí os pedaços de papelão que eu
havia levado para eles trabalharem e anunciei: “Esse papelão é a parede da caverna
e vocês têm pigmentos nas mãos”. Minha fala foi suficiente para fazer todos
esquecerem que queriam se lavar e voltarem para a atividade.
Eu estava muito satisfeito com o resultado da aula; apesar de um momento
de descontrole e da sujeira que isso resultou, consegui criar um cenário lúdico e os
estudantes imergiram na ideia. Como Ferraz e Fusari (1993, p. 89) sugerem no livro
em que me inspirei, “A experimentação, a criação, a atividade lúdica e imaginativa
que sempre estão presentes nas brincadeiras, no brinquedo e no jogo, são também
os elementos básicos das aulas de arte para criança”.
Não houve o enunciado de uma proposta, eu não pedi que eles desenhassem
com os pigmentos, era minha intenção, mas eu não tive tempo para estruturar isso.
Assim, as experiências da turma resultaram em papelões com camadas de argila
(Figura 17); uma menina que estava experimentando apenas com a argila vermelha
me surpreendeu ao dizer: “Vou apagar o que fiz, para fazer outro”. Eu fiquei meio
sem entender como ela apagaria, mas, observando-a cobrir todo papelão com o
pigmento, percebi a intensão dela, que logo pegou o outro tom e voltou a desenhar
por cima do fundo vermelho. Quando a aula acabou eles ainda estavam entretidos e,
como era o último período, não tivemos problema com horário. Eu acabei ficando
mais tempo para ajudar a limpar a sala.
Figura 17: Professora Roberta, Experimentação prática do Sexto A, fotografia digital, 2022
Como uma bebida doce num dia quente, esse entretenimento deixa
as crianças desejando mais – estímulos mais rápidos, mais intensos
e mais violentos. Esse tipo novo e traiçoeiro de tédio é um dos
motivos para o aumento de problemas psiquiátricos entre crianças e
adolescentes, de acordo com um artigo de Ronald Dahl, professor de
pediatria do Centro Médico de Pittsburg, para a Newsweek. Dahl
sugere que essa síndrome faz com que mais médicos prescrevam
Ritalina e outros “estimulantes para lidar com a falta de atenção na
escola ou antidepressivos para ajudar com a perda de interesse e
alegria na vida”. (LOUV, 2016, p. 186).
Não são somente os jovens, todos nos encontramos nessa era acelerada na
qual estar desconectado, para alguns, traz a sensação de alienação ou, o que é pior,
deixa um vazio parecido com a solidão. Quando falo que a informação está tomando
conta do lugar da experiência, baseio-me no que Larrosa (2022, p. 18) afirma:
A lacuna que se formou durante a pandemia não foi por falta de informação. A
informação chegou, e, mesmo os estudantes que não tiveram acompanhamento
remoto, tiveram acesso de outra forma, seja através de televisores ou, o mais
comum hoje, dos smartphones. As pequenas plantinhas estão crescendo
condicionadas a receberem sais de fácil acesso e de absorção rápida.
Krenak (2021) critica o modelo de educação que temos hoje. Segundo ele,
não só os aparelhos eletrônicos, mas todo o nosso sistema limita o
desenvolvimento. Uso as palavras dele para pensarmos sobre as crianças limitadas
pelas telas. Acredito que algumas delas estão tendo as experiências virtuais como
“experiências totais”. A desconexão total e forçada de muitas atividades causada
pelo isolamento ainda agravou isso de uma maneira séria, já que realmente durante
dois anos tivemos que nos acostumar com o mundo virtual usando-o como uma
saída para enfrentar o difícil momento.
Durante a última aula que ministrei para uma das turmas, uma situação
mexeu comigo e me levou a refletir, mas o desfecho dela também me deixou
satisfeito. Eu já tinha decorado o nome de quase todos os alunos, e também sabia
localizar a posição que sentavam na sala, próximo de seus grupinhos. Sempre há
alguns alunos que acabam marcando mais e esse havia me marcado. Na primeira
aula, ele participou do momento de sujeira, que me fez repensar a metodologia que
aplicaria para a segunda turma, se envolveu bastante e havia voltado empolgado
para o segundo encontro. Senti a falta dele em sala quando comecei a aula. Já
havia iniciado há mais de meia hora quando ele chegou; sem pedir autorização,
abriu a porta, entrou, sem olhar para nada, fechou a porta quase batendo, caminhou
com cara fechada até o fundo da sala, passando reto por um colega que estendeu a
mão para cumprimentá-lo, e sentou na última fileira. Nesse momento, fiquei
hesitante em parar a aula e falar com ele ou até mesmo cobrar uma postura de
respeito ao entrar, mas fiquei contido e continuei a aula do ponto em que estava.
Quando passou o momento inicial e eu pedi que se reunissem em grupos, fui
falar com ele. Cheguei de leve, perguntando como ele estava e se havia entendido o
que era para fazer. No canto onde ele sentou, afastado dos demais, comecei a
introduzir para ele o conteúdo da aula e aproveitei para conversar e saber o que
tinha acontecido. Ele me contou que estava em casa vendo vídeos no celular e que
não queria ter parado de assisti-los para ir à escola, e que por conta disto havia
brigado com sua mãe. O tema que eu desenvolveria, a pedidos da professora titular
da turma, era conscientização através de lambe-lambe. A proposta prática era que
em grupos eles pensassem em mensagem que gostariam de transmitir aos outros e
planejassem um cartaz que seria aplicado com cola na parede da escola.
Enquanto explicava a aula individualmente para o J.V., fui perguntando quais
vídeos ele ficava assistindo em casa, se ele preferia ver os vídeos a ir para escola
ou se foi só naquele dia. Ele me respondeu que via diferentes vídeos na internet e
que gostava da aula, mas naquele dia a mãe dele brigou com ele porque observou
que ele havia passado a manhã toda com o celular dela. Para me colocar ao lado
dele na situação, contei que quando eu era criança acontecia o mesmo comigo, mas
era para eu sair da frente da televisão, depois considerei: “Telas em excesso podem
nos fazer mal”. As outras crianças da turma estavam me chamando, agitadas em
pequenos grupos, então não pude continuar a conversa.
Enquanto passava nas mesas para ver as produções, impressionei-me
positivamente com o que estava sendo desenvolvido, realmente a informação havia
chegado de algum modo, havia diferentes cartazes com variados temas, o que tem
maior relevância para esta discussão tinha o tema preservação (Figura 19). Fiquei
imaginando que estes outros temas sensíveis estavam sendo passados e intendidos
por eles. Podemos construir muitos conhecimentos em sala de aula, mas já não
temos mais domínio sobre o que chega para eles através das telas.
Figura 19: Professora Roberta, Trabalho prático terceira aula, fotografia digital, 2022.
Figura 20: Jerônimo Azambuja, cartaz do J.V., terceira aula, fotografia digital, 2022
Quando defini o tema desta pesquisa, ainda não tinha consciência de quão
profundo ele poderia ser. Uma pesquisa autobiográfica tem um poder quase
terapêutico para o autor, que revive fatos e atinge ressignificações. Eu vim aqui para
falar da natureza e de como este contato foi sensibilizador para mim. Entretanto,
entendendo o que a pesquisadora em Artes Cláudia Mariza Mattos (2012) fala sobre
o imaginário, pude perceber o quanto esta “ferramenta” foi importante em todo o
processo, inclusive na hora de organizar imagens fotográficas, fatos e emoções para
contar a minha história.
Realmente para mim o imaginário funciona como um motor, ele que me move
e me impulsiona nas minhas buscas, mas o combustível para que ele tenha força de
propulsão são as experiências que vivi, todas elas, em especial as que me
permitiram desfrutar dos encantos de lugares naturais, locais onde encontrei o
êxtase e registrei no meu arquivo mesmo que inconscientemente. Essas vivências e
contatos tiveram força para me nutrir.
As pesquisas trazidas nos mostram que a criatividade e a imaginação têm
origem em grande parte nas experiências na natureza. Neste sentido, fui
privilegiado, germinei em um terreno muito fértil com todos os nutrientes necessários
para desenvolver as raízes da minha criatividade. Com ela, tive alicerce para não
tombar com os temporais, desvencilhei-me de amarras e criei fortes ramificações
que hoje formam um universo real, enfeitado por flores lúdicas que dão um colorido
especial.
Trazendo tudo isto para o consciente e entendendo o que me impregna,
movimento-me agora para ser um educador em Artes Visuais. A experiência de
estágio me deu mais convicção de um caminho a trilhar. Como relatei, intuitivamente
misturei o lúdico com o barro nas primeiras aulas. Analisando todo processo, eu
percebi a potência deste elemento natural, o qual serviu mais do que um pigmento,
deixou espaço para uma experimentação. Além de toda sensibilização e do cenário
que criei, o encantamento se fez no contato livre das mãos com o barro.
Assim, a natureza pode ser transportada para a sala de aula. As práticas
artísticas envolvendo seus elementos podem ser uma forma de despertar a
curiosidade e a criatividade ajudando na sensibilização e apreciação do mundo
natural. Entretanto, também podemos transportar as crianças para um universo mais
natural, não apenas propondo passeios reais nos pátios das escolas, mas
transportando-as de forma lúdica e auxiliando a se familiarizarem com o natural ao
mesmo tempo em que exercitam o imaginário. As histórias que ouvi quando
pequeno, os “causos” dos meus pais, fizeram este papel na minha vida. Mas para
quem não tem estas vivências, a leitura pode ser um artifício, diferente das
informações prontas de telas; ler sobre a natureza para as crianças pode criar um
encantamento e estimular uma imaginação livre, sem direções ditadas.
Deste modo, a ideia de aliar a natureza nas aulas de artes pode ser ampliada,
mas em um contexto pós-pandêmico não podemos esquecer que muitas crianças
ficaram privadas de quaisquer atividades ao ar livre por um tempo considerável,
também sem essa rica bagagem para preencher seus universos. Temos agora que
usar artifícios e criar propostas que desloquem seus olhares para fora de suas
casas, mesmo que seja estimulando que enxerguem pela janela ao invés da tela, ou
até solicitar que coletem alguns tipos de materiais, fazê-los perceber as naturezas
que os cercam, quem sabe despertar um interesse por explorar livremente o que
estiver à disposição deles.
Infelizmente, não é possível garantir que todas as crianças experimentem um
contato mais direto com a natureza em toda sua amplitude de possibilidades, mas
devemos saber a importância que isso pode ter e incentivar sempre que possível a
conexão dos alunos com o mundo natural. Através das artes, diferentemente de
outras disciplinas que voltam o olhar do aluno para a natureza, pode ser dada a
liberdade da experiência, organizando atividades sem estruturar a ponto de interferir
no que possa vir a acontecer, deixando que aconteçam coisas, que a experiência se
faça, talvez com o mínimo de informação, mas sem deixar de ser significativa.
Como um jardineiro, não pretendo cultivar as plantinhas em vasos nem em
canteiros. Acredito que seja possível uma agrofloresta, uma espécie de sistema em
que as diversidades colaborem positivamente para o fortalecimento conjunto, sem
estacas que direcionem ramificações, mas amparando para que possam se
desenvolver em segurança.
REFERÊNCIAS:
BARBOSA, Ana Mae Tavares Bastos. A imagem no ensino da arte: anos 1980 e
novos tempos / Ana Mae Barbosa. São Paulo: Perspectiva 2014. – (estudos; 126/
dirigida por J. Guinsburg)
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. (Nova edição). São Paulo.
Editora Companhia das letras, 2019.
KRENAK, Ailton. Avida não é útil. São Paulo. Editora Companhia das letras, 2021.
SIMÃO, Márcia Buss; LESSA, Juliana Schumacker. Um olhar para o (s) corpo (s)
das crianças em tempos de pandemia. Florianópolis. Zero-a-seis, v. 22, p. 1420-
1445, 2020.