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Anais do Simpósio da International Brecht Society, vol.1, 2013.

VESTÍGIOS EM LIXO: TEATRO DIALÉTICO E O SENTIDO DA TEORIA E DA


PRÁXIS NA CENA CONTEMPORÂNEA.

OLIVEIRA, Natássia Duarte Garcia Leite de1

RESUMO

Este trabalho pretende apresentar uma discussão sobre o Teatro Dialético e


sentido da teoria e da práxis na cena da nossa contemporaneidade, a partir da
Teoria Crítica, dialogando com o processo de montagem
cata(dores)recicláveis. Orientado pela diretora, pesquisadora e professora
Natássia Garcia, o espetáculo teatral vem sendo pensado a partir da
experiência com o projeto de pesquisa Educação socioambiental: combate ao
preconceito, consumismo e violência no contexto familiar dos filhos de
trabalhadores com material reciclável de Goiânia, coordenado pela professora
Silvia Zanolla (FE/UFG) entre os anos de 2009 a 2011. cata(dores)recicláveis,
projeto aprovado no Prêmio Funarte de Teatro Myriam Muniz 2012, tem como
principal objetivo estudar, discutir e encenar as categorias de exploração do
trabalho humano, preconceito, consumo, barbárie e Indústria Cultural no
contexto dos trabalhadores de materiais recicláveis. Neste sentido, o grupo
vem estudando as contribuições do Teatro Dialético, proposto por Bertolt
Brecht (Alemanha), e do Teatro do Oprimido, proposto por Augusto Boal
(Brasil) para a composição da dramaturgia. A escolha do cenário, do figurino e
dos objetos de cena do espetáculo está sendo pautada na coleta e reciclagem
de materiais recolhidos durante a pesquisa.

Palavras-chaves: Teatro Dialético. Teoria e Práxis. Recicláveis

1
Professora Assistente da Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade Federal de
Goiás; e do curso de Especialização em Educação Infantil (NEPIEC/FE/UFG). Atualmente é
coordenadora do Grupo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Interações Artísticas –
SoloS de Baco; e pesquisadora do Diretório CNPq, nos grupos: Grupo Interdisciplinar de
pesquisa em teatralidade e espetacularidade na cena contemporânea; e Cultura e
Fundamentos da Educação (Linha Teoria Crítica, cultura e educação).
Anais do Simpósio da International Brecht Society, vol.1, 2013.

TRACES IN GARBAGE: DIALECTICAL THEATRE AND SENSE OF THEORY


AND PRAXIS IN CONTEMPORARY SCENE

ABSTRACT

This paper will discuss the Dialectical Theatre and theory and praxis sense in
the condition of our times, based on the Critical Theory, in dialogue with the
cata(dores)recicláveis creating process. Guided by director, researcher and
professor Natássia Garcia, the stage show has been planned based on the
experience with the research project: Environmental education: combating
prejudice, violence and consumerism in Goiânia's recicling worker's childrens
familiar enviroment, coordinated by Dr Silvia Zanolla (FE/UFG) between the
years 2009 to 2011. cata(dores)recivláveis project approved in Prêmio Funarte
de Teatro Myriam Muniz 2012, has as main objective to study, discuss and
enact the categories of exploiration of human labor, prejudice, consumerism,
barbarianism and Cultural Industry in recycling workers context. Therefore, the
group has been studying the contributions of Dialectical Theatre, proposed by
Bertolt Brecht (Germany), and the Theatre of the Oppressed, proposed by
Augusto Boal (Brazil) for the composition of dramaturgy. The choice of scenery,
costumes and props from the show was based on the collection and recycling of
materials collected during the search.

Keywords: Dialectical Theatre. Theory and Praxis. Recyclable


Anais do Simpósio da International Brecht Society, vol.1, 2013.

O projeto de pesquisa Educação socioambiental: combate ao


preconceito, consumismo e violência no contexto familiar dos filhos de
trabalhadores com material reciclável de Goiânia (2009), teve como principal
objetivo desenvolver um projeto multidisciplinar junto aos filhos dos catadores
de recicláveis de Goiânia e adjacências, com o intuito de combater a exclusão
e investigar aspectos psicossociais de combate à violência, ao consumismo e
ao preconceito, a partir de ações voltadas para a valorização do trabalho
socioambiental, visando melhoria geral da qualidade de vida e das condições
socioeconômicas dessa população. Contudo, no andamento da pesquisa foi
preciso integrar os pais das crianças envolvidas, uma vez que a formação dos
adultos interferiria definitivamente na formação das mesmas. Ou seja,
participaram da pesquisa os filhos e os próprios trabalhadores.
A pesquisa com os recicladores e catadores inicialmente foi pensada
para ser desenvolvida em seis cooperativas de catadores de material reciclável
de Goiânia. E no planejamento do projeto de pesquisa, entre agosto a outubro
de 2011, estavam programadas oficinas – de contação de história e de
educação física – e apresentações teatrais nestas cooperativas. Devido ao
andamento da pesquisa, foi possível a realização destas oficinas e das
apresentações em apenas quatro cooperativas.
Dentre as oficinas programadas inicialmente estava a Oficina de Teatro,
a qual seria coordenada pela professora Natássia D. G. L. de Oliveira. As
oficinas, ocorridas aos sábados, teriam cerca de 3 horas de duração por
cooperativa, sendo divididas entre as áreas de Educação Física e Artes. Em
decorrência do limite de tempo para a execução do projeto como um todo,
tivemos uma restrição de tempo para a realização de cada uma das atividades
previstas no programa que gostaríamos de contemplar devido o entendimento
de sua importância. Por isso, depois de um diálogo com a coordenação,
achamos mais proveitoso apresentarmos cenas teatrais curtas em que
estivessem contempladas as principais temáticas que compunham o corpo do
projeto. Neste formato, pensamos poder alcançar os objetivos de trabalhar com
apreciação estética e, concomitantemente, desenvolver o conhecimento sobre
a linguagem teatral, com ênfase na formação de um olhar crítico para a cena e
com a cena.
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Assim, de agosto a outubro de 2011, um coletivo de artistas2 – orientado


pela também atriz, diretora, dramaturga e pesquisadora Natássia Garcia –
iniciou um processo de estudo e investigação teatral, pautado no conceito de
indústria cultural3 (HORKHEIMER; ADORNO, 1985), abordando os temas: violência,
exploração do trabalho humano, preconceito e consumismo. A partir de
proposições, discussões e reflexões dialogadas entre os integrantes do grupo
de artistas chegamos aos diálogos, os quais compuseram dois quadros
cênicos, com duas curtas sequências de cenas. Estas foram apresentadas em
quatro cooperativas e discutidas junto aos trabalhadores de materiais
recicláveis. Com elas tentamos levar aos catadores, aos recicladores e seus
respectivos filhos, um pouco da nossa angústia sobre a violência, a exploração
do trabalho humano, o preconceito e o consumismo.
O grupo pôde, dessa forma, conhecer essa categoria da classe
trabalhadora, percebendo seu espaço de atuação e suas condições de
trabalho; debater sobre a indústria cultural e ouvir diversos relatos de
experiência das comunidades envolvidas na pesquisa.

A experiência com o teatro no contexto do trabalho com materiais


recicláveis

No processo, incitados inicialmente pelo método de trabalho proposto na


obra Teatro do Oprimido e Outras Poéticas Políticas (1977), proposto pelo
teórico de teatro, diretor, dramaturgo e dramaturgista brasileiro Augusto Boal,
partimos da ideia de que o personagem é também objeto de forças econômicas
e sociais (MARX & BRECHT apud BOAL, 1977). E buscamos coletar e formar
imagens que flagrassem as contradições acerca da violência, do trabalho
humano, do preconceito e do consumismo no cotidiano das gentes comuns.

2
Neste período do processo, compunham o coletivo: o estudante de Artes Cênicas Jackson
Douglas Leal (Emac/UFG) e os integrantes do Grupo Plenluno Teatro (Alinne Vieira, Jairo
Molina, Jonathan Sena e Lorena Fonte).
3
Cf. A indústria cultural (ADORNO, 1986, p.92-99). Adorno explicita nesta segunda publicação,
que o termo indústria cultural foi empregado pela primeira vez no livro Dialética do
Esclarecimento [Dialektik der Aufkärung], escrito por ele e Horkheimer. Segundo o autor “A
indústria cultural é a integração deliberada, a partir do alto, de seus consumidores. Ela força a
união dos domínios, separados há milênios, da arte superior e da arte inferior” (ADORNO, 1986,
p.92-93).
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Estas imagens colaboraram para a elaboração do passado e não só das


verdades, mas, sobretudo, das aparentes verdades contidas na história dos
sujeitos. Como elucida Boal “estávamos mais interessados em mostrar “como
as coisas são verdadeiras” do que em “revelar como verdadeiramente são as
coisas”” (BRECHT apud BOAL, 1977, p.187). Fugimos, ou ao menos tentamos,
de somente “reproduzir rigorosamente o mundo da percepção quotidiana [sic]”
(ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p.118). Isso porque não queríamos cair na
mimese irrefletida e, tampouco, levar o espectador a uma identificação imediata
com uma camuflagem de realidade. Então, por meio, dessas imagens
cotidianas retratadas em memória desejávamos, sobretudo, poder ir ao
encontro das relações contraditórias de trabalho em que estão envolvidas a
reciclagem e a coleta de materiais. Entretanto, antes do momento da
oficina/apresentação, a pesquisa não contemplava o contato direto entre os
artistas e os catadores, os recicladores e seus respectivos filhos para
trabalharmos de maneira que eles pudessem também atuar na concepção e na
composição da cena. Estava dada a tensão entre o singular e o universal.
Desta forma, no período do mês de agosto de 2011, formamos o corpo
do trabalho cênico que seria exposto ao grupo de catadores e recicladores,
dando relevo àquilo que achávamos relevante comparecer nas conversações
com as crianças e os adultos das cooperativas. Com humor, ironia e um tanto
de seriedade exageramos nos elementos de obviedade tanto na atuação
quanto na encenação. Sobre o óbvio, Bertolt Brecht propõe:
Em relação aos acontecimentos e comportamentos da época
atual, o ator deve usar a mesma distância que é mantida pelo
historiador. Êle [sic] deve nos distanciar êstes [sic]
acontecimentos e estas pessoas. Os acontecimentos e as
pessoas cotidianas, do meio ambiente em que se vive, nos são
[aparentemente] naturais porque nos são habituais. O
distanciamento tem a finalidade de chamar a atenção sôbre
eles [sic]. A técnica deve se irritar diante dos acontecimentos
corriqueiros, “óbvios”, dos quais não se duvida, foi
desenvolvida pela ciência e nada impede que a arte também
adote esta posição que é extremamente útil (BRECHT, 1967,
p.166 – aspas do autor).

Induzido pelo distanciamento necessário e, não menos receoso em falar


do preconceito recorrente nas ações desumanas com a agressão que lhe é
pertinente, o grupo de artistas buscou afirmá-lo. Com interrupções entre as
cenas, provocamos e mediamos a discussão entre os “espectatores” (BOAL,
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1977) – o que quer dizer: os atores passam a ser sujeitos no processo de


construção da cena. Então, partindo da concepção de Boal partilhamos da
defesa de Brecht: a liberdade na relação entre o ator e o público também
consiste em compreender que o público não pode ser considerado uma massa
uniforme, bem como os propositores da cena e o público nem sempre
compartilham de uma concordância una na elaboração de seu pensamento
assim como na manifestação de suas emoções (BRECHT, 1967).
Na experiência com os catadores e recicladores, assombramo-nos e nos
emocionamos concomitantemente com a fala de uma catadora: “É importante a
vinda do grupo de teatro aqui... Alguém poderia perguntar: mas o que um grupo
de teatro vai debater e fazer com essas pessoas?” A trabalhadora continua sua
exposição fazendo uma avaliação positiva sobre a experiência com o teatro na
cooperativa. Experiência que na visão dela marca: marca o respeito para com o
trabalho realizado pelos trabalhadores de materiais recicláveis e sua relevância
na preservação com o meio ambiente; marca a confiança na capacidade de
elaboração crítica dos trabalhadores; marca na medida em que aponta outras
possibilidades de organização do grupo na continuidade do trabalho realizado;
marca na medida em que ela declara o reconhecimento de si própria como
sujeito histórico.
A mesma catadora que falou sobre a participação do grupo de teatro na
pesquisa foi quem nos mostrou – a pedido da professora de teatro – o espaço
da cooperativa e contou um pouco mais sobre o funcionamento desta e a
organização dos materiais. A trabalhadora apresentou detalhadamente as
máquinas e como era feita a separação de cada material, que se dividia em
papel, vidro, plástico de um tipo ou de outro, etc. Assim que finalizou, ela expôs
sua revolta diante da situação social dos catadores e da falta de
responsabilidade das indústrias. Disse, na época, que para cada grande saco
prensado de material ganhavam em torno de R$ 1,20. O material comprado por
uma empresa era vendido para outra empresa de São Paulo, a qual já
transforma os recicláveis em matéria prima. Esta matéria prima, a Coca-cola,
por exemplo, compra e refaz as embalagens de seus produtos. O que isso
significa? Que as indústrias pagam pela matéria prima, mas não se
responsabilizam em remunerar os trabalhadores de materiais recicláveis e,
tampouco, responsabilizam-se pela produção de seu próprio lixo. E, no caso da
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Coca-cola, especificamente – responsável por uma série de produtos


industrializados os quais não levam somente a marca da Coca-cola – ela
distribui uniformes para os catadores e recicladores das cooperativas; e, com a
assepsia do marketing que lhe é próprio, faz propagandas extremamente
elaboradas sobre a sua contribuição no trabalho de reciclagem, afirmando sua
responsabilidade com um mundo sustentável.
– “Ih, professora, tem coisa muito pior...” diz a trabalhadora da
cooperativa.
Não acabamos! A cereja do bolo é demonstrada no mais alto grau de
perversidade: a Coca-cola dá prêmio para o trabalhador/catador mais
produtivo. A catadora concluiu sobre a brutal violência da seguinte forma: “E
eles ainda contratam um ator pra fazer o nosso papel na propaganda, porque
não tem coragem de vir aqui pegar alguém que mexe com lixo mesmo”.
Para Brecht (1967), a engrenagem é determinada pela ordem social a
qual julga o que é bom ou ruim para manter a ordem estabelecida. Com isso,
ele pontua que

A sociedade só absorve por meio da engrenagem apenas o


que necessita para sua perpetuação. Isto quer dizer que só é
permitida uma “inovação” capaz de conduzir a uma renovação,
mas nunca a uma transformação da sociedade – quer esta
forma de sociedade seja boa ou má (BRECHT, 1967, p. 56).

O encenador ainda afirma que “O vício reside no fato das engrenagens


não pertencerem à comunidade: os meios de produção não são ainda a
propriedade daqueles que produzem, de modo que o trabalho tem a
característica de uma verdadeira mercadoria, submetida às leis do mercado”
(BRECHT, 1967, p. 56-57).
Na experiência com os catadores e recicladores, a professora, sentindo-
se mais esclarecida e não menos ingênua conclui: “Vou fazer um artigo
denunciando isso... isso da Coca-cola...”. A trabalhadora, sem graça, mas sem
receio indaga: “Ô professora, mas você acha que é só a Coca-cola? Olha em
volta”. Em meio aos vestígios, vimos uma diversidade de produtos
industrializados de diversas origens irresponsáveis. Com isso, pensamos e
compreendemos a degradante condição de miséria humana. Identificamos o
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sujeito que tem o sentimento de ser autônomo devido a sua individualidade,


quando na verdade quem tinha razão era Adorno:
Se as massas são injustamente difamadas do alto como tais, é
a própria indústria cultural que as transforma nas massas que
depois despreza e impede de atingir a emancipação para qual
os homens estariam tão maduros quanto as forças produtivas
da época o permitiram (ADORNO, 1986, p.99).

Neste sentido, realçamos a relevância de falar do trabalho artístico, e


sentido do envolvimento político do artista com suas obras; e, sobretudo, a
formação e responsabilidade do espectador diante destas.
Por isso, ainda no período em que o grupo esteve apresentando nas
cooperativas, os artistas, participantes ativos no desenvolvimento da pesquisa
em seu sentido formativo, sentiram a necessidade da criação de um espetáculo
que expusesse a realidade dos catadores e recicladores no contexto do
trabalho com materiais recicláveis; e problematizasse na cena teatral as
contradições de tal realidade. Portanto, com o objetivo de estudar, discutir e
encenar o cotidiano de catadores e de recicladores surgiu, simultaneamente,
um desdobramento da pesquisa inicial: o projeto do espetáculo
cata(dores)recicláveis.

A tensão entre teoria e práxis no teatro dialético

A partir das experiências com a realidade dos catadores e recicladores


no contexto do trabalho com materiais recicláveis, pudemos constatar a
relevância da teoria e da práxis no teatro dialético. Também no percurso da
montagem do espetáculo cata(dores)recicláveis, perguntamo-nos até que
ponto é pertinente e possível “reproduzir” a realidade dos catadores e
recicladores na cena teatral. E, ainda, indagamo-nos sobre a forma como
transpor a experiência vivida, sem cair numa mimese irrefletida, e sem
enredarmos um discurso fechado sobre o sistema que envolve o trabalho com
os materiais recicláveis no Brasil.
Brecht (1967), a partir das contribuições do dramaturgo Friedrich
Dürrenmatt (1921-1990), indaga dialeticamente se o mundo moderno poderia
ser reproduzido pelo teatro. Ele não pergunta se o teatro poderia representar o
mundo atual, mas sim, se poderia reproduzi-lo. A resposta de Brecht é, pois,
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sua própria práxis: ele afirma que não podemos continuar reproduzindo
modelos vigentes e, por esse motivo não podemos desistir do teatro como
conhecimento. O incômodo da utilização do método marxista na teoria
brechtiana foi e é geral. O medo de que o método pudesse criar um modelo
universal de criação, suprimindo a liberdade artística foi, e ainda é, o pretexto
para a rejeição ao trabalho de Brecht. Sobre tal receio, ele respondeu:

Esse protesto pela supressão da liberdade de configuração


artística era de se esperar, numa época de produção
anárquica. Porém, também nessa mesma época se encontra,
em certos domínios, uma continuidade na evolução; na técnica
e na ciência, por exemplo, adotam-se as inovações fecundas, e
existe o standard [padrão]. E os artistas dramáticos que
“gozam de liberdade de criação” não estão, ainda assim, tão
livres como parecem, bem vistas as coisas. São eles,
habitualmente, os últimos a libertarem-se de preconceitos,
convenções e complexos centenários (BRECHT, 1978, p.178).

A atualidade brechtiana ainda reside nesse problema da reprodução. A


noção de teatro dialético, proposta por Brecht (1967), diferencia-se justamente
por tencionar a práxis. Inclusive, o autor se dedicou a escrever especificamente
sobre A práxis no teatro (BRECHT, 1978, p.165). A partir da teoria marxista, a
práxis no teatro brechtiano traz consigo uma transformação na dramaturgia, na
atuação, na representação e na recepção, sobretudo, busca refletir acerca da
estrutura social, a fim de transformá-la. Mais que enunciar sobre a teoria e a
prática, Brecht discorre, inclusive, em teoria e práxis.
É neste sentido que Terry Eagleton (2011) afirma que, no teatro de
Brecht, a peça passa a ser menos um reflexo da realidade social e mais uma
reflexão das condições sociais, porque o papel do teatro não é “refletir” (leia
reproduzir) uma realidade fixa, mas apresentá-la a partir da materialidade
cênica como uma ação e uma personagem são produzidas historicamente.
Nada obstante, na busca da práxis, Brecht idealiza a arte ao dizer que “é
precisamente o teatro, a arte e a literatura que têm de formar a ‘superestrutura
ideológica’ para uma reformulação prática, sólida, da maneira de viver de
nossa época” (1967, p. 41). Acreditamos que a arte não é suficiente para que
haja uma mudança na estrutura ideológica, pois como o próprio Brecht afirma,
vivemos numa época em que toda a produção artística pode ser transformada
em mercadoria, o que é processo e resultado de uma práxis irrefletida.
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Por esse motivo, assim como Brecht, Adorno (1995a) em Notas


marginais sobre teoria e práxis, ao não falar de teoria e de prática, e sim teoria
e práxis, afirma tanto a relevância da teoria quanto da práxis. Para o autor, há
uma aversão ao termo práxis; e uma concomitante falta de autorreflexão,
principalmente por parte dos ativistas e artistas engajados. Não proferir a práxis
é impedir a finalidade da práxis; e quando não, falar da antítese entre e teoria e
práxis, trata-se de uma forma de denunciar a teoria (ADORNO. 1995a).
Reafirmando o pensamento adorniano: a práxis pode ser compreendida como
a teorização de uma prática crítica e reflexiva. Não só olhar o objeto de
conhecimento e o contato com este possibilita a transformação, como também
refletir sobre o objeto pode levar à transformação. “Práxis corretamente
compreendida – na medida em que o sujeito é, por sua vez, algo mediado – é
aquilo que o objeto quer: ela resulta da indigência dele” (ADORNO, 1995b, p.
211).
Para Adorno (1995a), a práxis nasceu do trabalho; e alcançou “seu
conceito quando o trabalho não mais se reduziu a reproduzir diretamente a
vida, mas sim se pretendeu produzir as condições desta: isso colidiu com as
condições então existentes.” (ADORNO, 1995a, p.206). Para o autor, esse fato
acompanhou o movimento da não-liberdade do homem, levando-o a agir
“contra o princípio do prazer a fim de conservar a sua própria existência”
(ADORNO, 1995a, p.206). O trabalho passou a ser um meio para suprir as
necessidades individuais, onde o homem aprisionado se torna alheio à
atividade que exerce e é, portanto, infeliz. Adorno (1995a) relembra que Marx
havia prevenido acerca da iminente recaída na barbárie na revolução. O
filósofo explicita que uma efetiva práxis seria um esforço para sair da barbárie,
mas com a distensão desta na sociedade industrial, ficou ainda mais difícil
superá-la. Sobre isso, Adorno alerta: “Ou a humanidade renuncia ao olho por
olho da violência, ou a práxis política supostamente radical renovará o velho
horror” (ADORNO, 1995a, p.215). Por tudo isso, para o autor, a práxis sem a
teoria limita o conhecimento; enquanto ela deveria ser a forma para se evitar a
racionalização irrefletida, uma forma de barbárie.
No caso da realização do espetáculo cata(dores)recicláveis, ao nos
descolarmos da realidade dos catadores e recicladores para iniciarmos a
produção do espetáculo, optamos por expor as contradições do processo de
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criação artística na própria obra. Entendemos que desta forma, podemos


tencionar a idealização que existia em produzir um espetáculo “aceitável”, mas
que trata de assuntos tão indigestos. Além de trabalharmos com a coleta de
materiais recicláveis para a confecção do cenário e do figurino, o espetáculo é
a própria materialização das experimentações com os vestígios do lixo.
Compusemos a dramaturgia a partir das histórias de coletores e recicladores,
entreamando com os acontecimentos históricos que demonstram como se
relacionam a produção de lixo e a exploração do trabalho humano no contexto
dos trabalhadores com materiais recicláveis.
Exposta a ideia, concordamos que embora o teatro seja aprendido
também por técnicas e, em alguma medida por imitação, esta pode ser
percebida ora como meio de aprendizagem, que envolve uma prática
reproduzida: ora sendo prática reprodutiva, ora práxis criadora. Entendemos
que, contraditoriamente, a extinção da mimese não é possível se quisermos
conservar a consciência da luta de classes. Os resíduos, as sobras e os restos
são o nosso o assunto porque acreditamos na possibilidade de superação da
pobreza humana por meio da consciência humana. Neste caso, passa pela
memória de homens e de mulheres marcados pela invisibilidade social.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ADORNO, Theodor. A indústria cultural. In: Theodor W. Adorno – Sociologia.


COHN, Gabriel (organizador) e FERNANDES, Florestan (coordenador). Tradução
de Flávio R. Kothe, Aldo Onesti, Amélia Cohn. São Paulo: Editora Ática, 1986,
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________. Palavras e Sinais: modelos críticos. Tradução Maria Helena


Ruschel. Supervisão Álvaro Valls. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995a.

BRECHT, Bertolt. Teatro dialético. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.

________. Estudos sobre teatro. Tradução Fiama Pais Brandão. Rio de


Janeiro: Nova Fronteira, 1978.

BOAL, Augusto. Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas. Rio de Janeiro:


Civilização Brasileira, 1977.
Anais do Simpósio da International Brecht Society, vol.1, 2013.

EAGLETON, Terry. Marxismo e crítica literária. Tradução Matheus Corrêa. São


Paulo: Editora Unesp, 2011.

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