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A comunidade da infância

Títulos da Coleção Ensaios

A escola dos sentimentos. 2018.


Giuseppe Ferraro

Manifesto por uma escola filosófica popular. 2018.


Maximiliano Lionel Durán; Walter Omar Kohan

(em quarentena)
Ensayos En Lectura. Inutilidad, soledad y conversación. 2020.
Carlos Skliar

filosofia para crianças: a (im)possibilidade de lhe chamar outra


coisa. 2020.
Magda Costa Carvalho

Ensayos para una didáctica filosófica. 2020.


Alejandro Cerletti

entre apostas e heranças. contornos africanos e afro-brasileiros


na educação e no ensino de filosofia no brasil. 2020.
Wanderson Flor do Nascimento

Infancia y Género. Exclusiones que nos rondan. 2020.


Olga Grau Duhart

Interculturalidade, natureza e educação. Afetos filosóficos.


2020.
Juliana Merçon

A comunidade da infância. 2020.


David Kennedy

Paulo Freire: um menino de 100 anos. 2021.


Walter Omar Kohan

Crianças em filosofia. 2022.


Giuseppe Ferraro
Coleção Ensaios

(em quarentena)

A comunidade da infância

David Kennedy

Prólogo: Bernardina Leal e Rosana Fernandes

NEFI Edições
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Reitor: Ricardo Lodi Ribeiro
Vice-Reitor: Mario Sergio Alves Carneiro
Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação: Luís Antônio Campinho Pereira da Mota
Programa de Pós-Graduação em Educação (PROPEd)
Coordenadora: Ana Chrystina Venancio Mignot
Vice-Coordenador: Guilherme Augusto Rezende Lemos
Núcleo de Estudos de Filosofias e Infâncias (NEFI)
Coordenador: Walter Omar Kohan

Conselho Científico (NEFI/UERJ) Conselho Editorial (NEFI/UERJ)

Alejandro Ariel Cerletti, Univ Buenos Aires e Univ Nac Gral Sarmiento Alice Pessanha Souza de Oliveira
Alexandre Filordi de Carvalho, UNIFESP, Brasil Allan Rodrigues
Alexandre Simão de Freitas, UFPE, Brasil Arthur Henrique F. de Almeida
Barbara Weber, University of British Columbia Daniel Gaivota Contage
Beatriz Fabiana Olarieta, UERJ, Brasil Fabiana Martins
Carlos Bernardo Skliar, FLACSO, Argentina Felipe Froes Pereira Trindade
César Donizetti Leite, UNESP, Rio Claro, Brasil Marcelly Custodio de Souza
Claire Cassidy, University of Strathclyde, Escócia Ocimar Castro Maximo
Fabiana Fernandes Ribeiro Martins, (Colégio Pedro II, Brasil) Robson Roberto Lins
Gregorio Valera-Villegas, Univ. Experimental Simón Rodríguez, Venezuela Simone Berle
Gustavo Fischman, Arizona State University, Estados Unidos da América
Jason Wozniak, West Chester University, Estados Unidos da América Capa:
Juliana Merçon, Universidad Veracruzana, México Marcelly Custodio de Souza
Junot Cornelio Matos, UFPE, Brasil
Karin Murris, Cape Town University, África do Sul Diagramação:
Lara Sayão, Sedec RJ, Brasil Arthur Henrique F. de Almeida
Magda Costa Carvalho, Universidade dos Açores, Portugal Marcelly Custodio de Souza
Maria Reilta Dantas Cirino, UERN, Brasil Simone Berle
Marina Santi, Università degli Studi di Padova, Itália
Maristela Barenco Corrêa de Mello, UFF, Brasil Revisão técnica deste livro:
Maximiliano Durán, Universidad de Buenos Aires, Argentina Magda Costa Carvalho
Olga Grau, Universidad de Chile, Chile
Óscar Pulido Cortés, Universidad Tecnológica y Pedagógica de Colombia
Paula Ramos de Oliveira, UNESP - Araraquara, Brasil
Pedro Pagni, UNESP - Marília, Brasil
Renato Noguera, UFRRJ, Brasil
Roberto Rondon, UFPB, Brasil
Rosana Fernandes, UFRGS, Brasil
Rosimeri de Oliveira Dias, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil
Sílvio Donizetti de Oliveira Gallo, UNICAMP, Brasil
Virgínia Kastrup, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil
Walter Omar Kohan, UERJ, Brasil
Wanderson Flor do Nascimento, UnB, Brasil
“A comissão para avaliação cega dos trabalhos da Coleção Ensaios em 2021 foi integrada por Maria Reilta Dantas
Cirino e Magda Costa Carvalho.”
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

David Kennedy

A comunidade da infância. David Kennedy. – 1 ed. – Rio de Janeiro: NEFI,


2020 – (Coleção Ensaios; 9).

ISBN: 978-65-991017-2-4
1. Infância, 2. comunidade de investigação filosófica, 3. educação
4. filosofia 5. filosofia para crianças. I Título. II Série.
CDD 370.1

Índice para catálogo sistemático:


1. Educação: Filosofia 370.1
© 2022 David Kennedy
© 2022 Núcleo de Estudos de Filosofias e Infâncias (NEFI/UERJ)
Site: http://filoeduc.org/nefiedicoes
Email: publicacoesnefi@gmail.com
Apresentação da Coleção

O Núcleo de Estudos de Filosofias e Infâncias da Universidade do


Estado do Rio de Janeiro (NEFI/UERJ), como qualquer grupo de traba-
lho de uma universidade pública, dedica seus esforços ao ensino, à
pesquisa e à extensão da universidade fora dos seus muros. Seu foco
temático são as relações entre infância, educação e filosofia, tanto no
que diz respeito a experiências filosóficas com crianças e à formação
de professoras em escolas públicas quanto ao estudo e ao exercício
mais amplos possíveis da categoria de infância. Desde 2003 o NEFI tem
estabelecido parcerias de trabalho com grupos de distintos países e
acolhido as mais diversas pesquisas com muitas formas institucionais:
trabalhos de fim de curso, ou seja, monografias, dissertações e teses de
estudantes da UERJ, missões de estudo e de trabalho com outras insti-
tuições nacionais e internacionais; pesquisadores visitantes; estâncias
de pós-doutorado… o NEFI ensaia uma vida acadêmica outra, a errar
no duplo sentido de se equivocar e de vagar em busca dessa vida outra.
Assim, a Coleção “Ensaios” é um convite a ensaiar-se, na escrita,
na leitura, na vida. Os trabalhos que compõem esta coleção são cheios
de erros e de errância e chamam leitores e leitoras a ensaiar e ensaiar-
-se na leitura e também na escrita, confiando no valor educativo tanto
do equivocar-se quanto do andar atento aos sinais do caminho.
Desde março de 2020 fomos surpreendidos por uma pandemia
que se alastra pelo Brasil ajudada pela indecência de um governo que
privilegia uma economia para poucos sobre a vida de todos. A pande-
mia colocou-nos também em evidência o sem sentido de uma forma
de vida que aceitávamos e vivíamos. Nas universidades públicas um
desafio nos foi colocado: precisamos inventar outras formas de vida
em comum, dentro e fora da universidade. O vírus tem nos entregado
a oportunidade de um tempo para pensar na vida que estamos vivendo
em nome da educação. Em que, pese a irresponsabilidade do governo
federal, alguns temos o privilégio de poder ficar em casa, como suspen-
didos no tempo. Estávamos habituados a “não ter tempo”, a ter tanto
para fazer “em pouco tempo”, a ter que correr daqui para lá, a “perder
horas” no trânsito, a ocupar o tempo em exigências administrativas
e burocráticas e, de repente, temos tempo para o esquecido, como o
cuidado quotidiano das filhas e dos mais velhos, e, sobretudo, temos
tempo para pensar a vida presente atravessada pela pandemia e a
vida que queremos viver quando a pandemia passar, se é que de fato
ela vai passar.
No NEFI pensamos que parte dessa tarefa diz respeito a ler, escre-
ver, estudar… com o cuidado que o momento merece e com a atenção
voltada para uma realidade devastadora como a imposta pelo governo
fascista que padecemos. E pensamos que a coleção Ensaios poderia ser
um espaço para fortalecer esse cuidado e essa atenção, consolidando
nossas bibliotecas. Por isso, convidamos amigas e amigos a nos ofere-
cer suas obras, suas tentativas, seus ensaios, entre filosofia, educação e
infância. É nesses tempos que a coleção “Ensaios” encontra seu tempo
“em quarentena”. Tempos de pensar em outras formas de vida.

Walter Omar Kohan


Núcleo de Estudos de Filosofias e Infâncias (NEFI)
Rio de Janeiro, abril de 2020
Esta coleção de textos é dedicada a Walter Kohan, amigo de longa
data e incansável colaborador na busca da conversa Norte-Sul/Sul-Norte, e
às colegas Bernardina Leal, Rosana Fernandes e Magda Costa Carvalho que
trabalharam na edição em português.
Sumário.

Prólogo................................................................................................... 11
Bernardina Leal e Rosana Fernandes

Origem dos textos..................................................................................17

1. Os movimentos das crianças pequenas: comunidade de investigação


filosófica emergente no discurso da primeira infância...................19
Primeira conversação: Mágica e Ciência................................................ 22
Segunda conversação: Língua e Política................................................ 27
Terceira conversação: o Sobrenatural, o Bem e o Mal.......................... 32
Algumas conclusões................................................................................ 36

2. Reconstruindo a Infância................................................................. 43
A infância está desaparecendo?............................................................. 43
Criança como sujeito marginalizado...................................................... 45
Criança como propriedade..................................................................... 45
Criança como economicamente desprovida.........................................46
Criança como outro ontológico..............................................................46
Criança como epistemicamente incompleta.........................................48
Criança como excluída da cultura...........................................................49
A criança como caso especial do outro marginalizado......................... 50
O surgimento da forma moderna de colonização da criança: uma
explicação psico-histórica....................................................................... 53
O privilégio epistêmico das crianças......................................................60
Começando: Elementos de uma reconstrução emergente da relação
criança-adulto.......................................................................................... 62
O modo da mudança...............................................................................68

3. Notas sobre a filosofia da infância e a política da


subjetividade...........................................................................................71
A criança e a segunda harmonia..............................................................71
A criança e o eu dividido......................................................................... 74
A criança e a política da subjetividade................................................... 77

4. Pensar por si mesmo e com outros................................................. 83

5. Las cinco comunidades...................................................................... 93


La comunidad de gesto...........................................................................94
La comunidad de lenguaje......................................................................98
La comunidad de mente........................................................................102
La comunidad de amor..........................................................................105
La comunidad de interés....................................................................... 108
Algunas interrelaciones......................................................................... 110
Crisis.........................................................................................................112
Diálogo.................................................................................................... 114
Juego...................................................................................................... 115
Teleología................................................................................................117
Conflicto................................................................................................. 118
Disciplina..................................................................................................121
Conclusión.............................................................................................. 123

6. A Escola do Terceiro Reino Alegre................................................ 125

7. A partir de espaço sideral e do outro lado da rua: a dupla visão


de Matthew Lipman..............................................................................145

8. Aión, kairós and chrónos: fragmentos de uma conversa


infindável sobre infância, filosofia e educação............................. 169
Filosofia e educação.............................................................................. 169
Perguntas............................................................................................... 173
Educação................................................................................................178
Alegria – desejo..................................................................................... 180
Escolaridade e filosofia..........................................................................183
Por que filosofia para crianças?............................................................ 188
com Walter Kohan

9. Incêndios: infância e infantia.........................................................193


A infância como uma faca na garganta.................................................193
Incêndios e a noção de infantia de J.-F. Lyotard.................................. 196
A elusão de infantia................................................................................201
com Walter Kohan

Referências........................................................................................... 205
Prólogo

Bernardina Leal e Rosana Fernandes

Escrever sobre a escrita de David Kennedy é relembrar a amizade


que se inscreve na investigação filosófica com crianças; é enveredar
pelos movimentos infantis do pensar solidário e colaborativo; é encon-
trar a generosidade do diálogo; é perceber o outro em sua diferença,
na proximidade que somente o respeito possibilita; é aprender como
a construção conceitual da infância ocorre e agir; é lidar com os jogos
lógicos e lúdicos que envolvem o pensar; é saber-se infantil diante de
novas culturas, idiomas, valores e escrituras; é questionar a adultez;
é tanto mais, quanto mais se torna difícil dizê-lo. Por isso é preciso
ler o que David escreve; é importante conhecê-lo; é urgente parti-
lhar seus textos.
David escreve e sua escrita faz presente não o autor, mas o
saber que vem de sua escritura. David escreve e o conteúdo de sua
escrita o supera, apresenta-se maior do que ele. Sua presença é
sutil. É que suas palavras concordam com seus gestos, harmonizam-
-se com seu jeito de ser, conformam um lugar de acolhimento. Suas
atitudes, em qualquer tempo, correspondem ao seu modo de inscre-
ver-se na vida. Antes ou depois da escrita, presente está aquele que
escreve, honestamente.
Em nosso idioma, para nossa alegria, aqui estão reunidos alguns
de seus textos. Partilhados em disciplinas acadêmicas, lidos em encon-
tros de estudo ou desfrutados silenciosa e isoladamente, eles fizeram
parte da história da Filosofia da Infância em diversos espaços educa-
tivos brasileiros. Escritas partilhadas, experiências de pensar com o
outro, por si mesmo, foi o desafio aceito por nós. Agora estamos diante
do que conseguimos recuperar verbalmente daquilo que deu suporte
teórico ao que vivenciamos.
Um livro segue sendo uma bela maneira de agregar amizades na
escrita. Este livro é a forma encontrada para assegurar a presença de
David Kennedy entre nós, que tanto o admiramos. Entretanto, resta
algo que não se sabe dizer sobre David Kennedy. Como algo que

11
Bernardina Leal e Rosana Fernandes

escapa, que foge ao domínio da escrita. David parece nos alertar para
algo que permanece infantilmente sem palavra na linguagem.
David não se apresenta de imediato. Sua escrita, em voltas, por
aproximações e distanciamentos, revela conhecimentos e saberes
acerca da infância para tocar aquilo que infantilmente deixou de ser
enunciado e escapa à apreensão adulta dos dizeres acadêmicos. Depois
de afastar-se do que foi dito, quando retorna, é pelo avesso. Nesse
deslocamento necessário de um tempo presente, adulto, ele alcança
uma temporalidade infantilmente disponibilizada, escrevendo sobre
a infância como se estivesse por aprender a fazê-lo a cada vez. Até
quando reconstrói o que se sabe sobre a infância, produto do traba-
lho sistemático da humanidade, ele o faz abrindo espaços para novas
inscrições e entendimentos.
Vive-se. Coisas acontecem. Infâncias ocorrem. Acompanhar o
que se passa nesses acontecimentos infantis implica em movimentar
a escrita, colocar tudo na roda. Com o pensar incessante e questiona-
dor das crianças a escrita adulta de David, transformada em estudo,
descreve, questiona e interfere nos modos de entendimento das
crianças, lealmente.
David chega à lealdade de buscar o acontecido, o que se passou,
o que houve. Quando, onde e de que modo ocorreram as experiências
do pensar entre crianças. E, com a mesma precisão, o que se passou
na mediação docente, nas intervenções filosóficas e pedagógicas, no
fazer educativo escolar. O cuidado que emprega aos detalhes das ocor-
rências, na recuperação de gestos e atitudes, na minúcia das palavras,
no tom das falas, na diversidade dos modos expressivos, como um
perito que se detém no rastro, provoca no leitor a responsabilidade
pela resposta. Reconhecimento, restituição.
Repensar os modos de entendimento que estruturam as relações
entre educação e infância é o que David nos impele a fazer por meio de
sua escrita. Pensar a infância de cada um e, ao mesmo tempo, pensar
uma infância coletiva ou indeterminada. E, mais do que isso, pensar um
estado infantil principiador de novos saberes e relações, na intensidade
de estar com o outro.
Entrar na obra de David implica em buscar novos entendimentos
para os problemas que ele coloca, procurar saídas e rotas de fuga para

12
Prólogo

o que já foi construído sobre a infância. Traduzir a possibilidade trans-


formadora das inscrições infantis nos modos adultos de dizer a infância
é o desafio posto. A desnaturalização das formas adultas da pesquisa
sobre a infância se revela na paciência de David ao detalhar seus encon-
tros com crianças e professores. Ainda que percorra caminhos traça-
dos pela história do conhecimento, por modos complexos de elabora-
ção de sentidos associados à infância, David cria trajetos e deixa pistas
de seus deslocamentos.
Acompanhar as trajetórias configuradas por David Kennedy
implica, portanto, em movimentar-se desde as conversas realizadas
entre crianças e professores de séries escolares iniciais até os aspec-
tos historiográficos da construção do conceito “infância”, passando
por políticas de subjetividade, tipos de comunidades de investiga-
ção filosófica e paragens nas compreensões acerca do tempo, entre
outras travessias.
David parece atestar o entendimento de que é preciso estar com
o tempo, humildemente deixando-se levar por ele, sem a pretensão de
tê-lo. Desnaturalizar o que se sabe sobre a infância significa também
questionar o que se julga saber sobre o tempo. Afinal, apenas na
presença de marcadores cronológicos expressões comumente empre-
gadas fazem sentido: ter tempo, ganhar tempo, dispor de tempo,
tempo de infância, tempo passado, sem tempo, com tempo, ainda dá
tempo, não há tempo, data limite… Essas e várias outras composições
associam o tempo à ideia de medição ou propriedade. Assim também
tem acontecido com a infância.
Alterar os modos de entendimento da infância exige, David nos
alerta, questionar profunda e honestamente nossos interesses, gestos,
modos de pensar e amar e, mais, inventar modos expressivos infantis.
Se ainda nos escapa algo do que a infância tem para dizer de si mesma,
talvez seja porque as palavras, expressões ou arranjos verbais chegam
muito depois, somente após a apreensão do que já existe. E antes,
o que terá sido?
Sim, esse deve ser o caminho para chegar ao que David esconde:
buscar o que ele ainda não escreveu; o que ele não conseguiu dizer
sobre as infâncias que pesquisou. Investigar o que ele não conseguiu
expressar do que acompanhou e inquirir sobre as dúvidas que perma-

13
Bernardina Leal e Rosana Fernandes

necem a instigá-lo após tantos escritos. Perguntar pelo que aconteceu


antes dos textos tornarem-se seus. Sim, David nos dá muito com o que
escreve, mas exige, em resposta, muito mais!
Nossa inscrição responde à hospitalidade do modo de ser de
David. Especialmente nos momentos sombrios que temos vivenciado,
diante de ameaças à nossa dignidade pessoal e profissional, além dos
riscos à nossa saúde física, psíquica e emocional, escrever sob e sobre
acolhimentos é uma alegria!
Contar a experiência partilhada com David por meio de seus textos
é resistir aos modos de dominação que tentam se interpor no fazer
educativo que realizamos em diferentes espaços, modos e tempos.
Ao narrar o que vivencia em seus estudos, David faz permanecer viva
sua inscrição nos modos infantis de existência. Suas palavras ressoam
o que foi vivenciado com crianças em experiências do pensar em comu-
nidades investigativas filosóficas, com educadores em atividades labo-
rais cotidianas, com pesquisadores de diferentes partes do mundo em
congressos, cursos e encontros. Tanto o já feito e tanto mais o que
pode vir a ser de novo!
Prescindimos de alternativas para escaparmos a ameaças inibido-
ras da fala. Não podemos nos submeter a discursos constrangedores,
normativos e hierarquizantes do dizer. Nos resta inventar maneiras,
encontrar saídas. É na aventura do dizer que deixamos que as pala-
vras brotem, que a amizade aconteça; na coragem inventada que o
momento exige, é que nos desvencilhamos de medos.
A palavra escrita por David é forte e impactante, destemida.
Ela revela uma relação íntima entre o leitor e o texto, resultado dos
encontros que a permearam. David se faz sério, lógico e investigativo,
mas sua escrita deixa pistas de uma criança a brincar de ser um adulto
assim. É como se depois de anos de pesquisa, estudo e dedicação sobre
a infância, ela se apresentasse, brincalhona, por entre as paredes de
suas palavras. Será?
Também brincantes, entre gavetas, prateleiras e arquivos nos
lançamos na procura do que havia sido e ainda é a presença de David
entre nós. A releitura dessa reunião de textos está acompanhada da
presença, lembrança e aprendizados de um início que remonta a vinte
e poucos anos atrás até o projeto de extensão “Filosofia na Escola”,

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Prólogo

desenvolvido em escolas públicas do Distrito Federal. Anotações, cader-


nos, dossiês, composições curriculares de cursos de extensão e espe-
cialização documentam a intensidade do encontro com David. Nesses
textos há pistas, ideias, conhecimentos precisos e agudos, palavras que
ensinam generosamente, apontam, esclarecem, problematizam e nos
forçam a pensar. O olhar, a escuta e a voz do David são acolhedoras,
atentas, sem pressa. Voz e escrita comportam as pausas que decorrem
quando há pensamento e criação. Seus cursos, suas aulas, sua escrita
têm rigor e afeto, expressam uma vida de comprometimento com o filo-
sofar com as crianças, com a infância e o exercício do pensamento.
É outono. Estamos em 2020. Em meio ao isolamento social em
função do novo coronavírus, as leituras são intercaladas por afazeres
domésticos, trabalho remoto, cuidados com a família, amigos e gente
desconhecida que precisa de amparo, além das instabilidades políticas
com seus variados desdobramentos. Embora seja difícil conjugar tudo
isso, ler David, agora, em companhia de amigos e companheiros de
vida, produz uma força e um sentimento de estar junto e o entendi-
mento de que há, no mundo, muito mais do que o que vemos e conhe-
cemos, que há numerosos modos de existência, atuais e virtuais. Ler
David, ler sobre a infância e acompanhar os medos, anseios e ansieda-
des de crianças e adultos nesta pandemia, exige respostas acuradas,
não reações imediatas. Exercitar a honestidade e a pausa, para pensar-
mos juntos e vivermos, juntos, essa infância que se apresenta diante de
nós e nos toma, de súbito, é o que o momento exige.
Os textos de David Kennedy nos lembram que filosofar com crian-
ças é também criar respostas novas mediante os desafios e as questões
de nossos tempos, novas relações adulto–criança. Sempre que a pala-
vra e o já conhecido não podem mais abarcar o vivido, somos convoca-
dos a pensar de novo, a suspender o que não conseguimos mais dizer e
suspeitar, criar, infanciar.
Ler David, hoje, nos ajuda no exercício de perguntar, de criar
novas maneiras de convívio, de rejeitar postulados e decisões insti-
tucionais e governamentais acerca dos modos de trabalho e de vida.
As palavras de David nos colocam diante da responsabilidade de criar
possibilidades de acolher e acompanhar as crianças em seus questio-
namentos e suposições, aumentando, mutuamente, nossa potência

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Bernardina Leal e Rosana Fernandes

de pensar, agir e viver. Essas leituras têm sido um respiro, embora às


vezes falte fôlego, pois nos perguntarmos pelo que importa, pela vida
que queremos viver, pelo que devemos aprender. Modificar hábitos
cotidianos e modos de estar no mundo é desafiador e exige trabalho,
atenção, critérios e tempo. Corremos riscos. Assim temos atravessado
fluxos de infância.
Ler, eleger, entre tantas escritas, aquelas que possibilitam novas
inscrições, que nos dão força e nos potencializam é o que nos ocorre
agora. Os textos aqui reunidos nos ajudam a cuidar das conversações,
a nos ocuparmos do que importa, a exercitarmos o pensamento crítico,
criativo, colaborativo. Com David Kennedy, na amizade da leitura, fica
o apelo à partilha da admiração pela infância; fica também o desafio de
vivenciar infâncias nesse mundo novo que se apresenta.

Brasília e Porto Alegre, maio de 2020

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Origem dos textos

1. “Os movimentos das crianças pequenas: Comunidade de


Investigação Filosófica Emergente no Discurso da Primeira Infância”
foi publicado como “Young Children’s Moves: Emergent Community of
Inquiry in Early Childhood Discourse.” Critical and Creative Thinking 4, 1,
1996, p. 28-42.

2. “Reconstruindo a infância” foi publicado como “Reconstructing chil-


dhood”, Thinking 14, 1, 1998, p. 29-37.

3. “A filosofia da infância e a política subjetividade” foi publicado como


“Notes on the Philosophy of Childhood and the Politics of Subjectivity.”
The Paideia Archive: Twentieth Century World Congress of Philosophy 18,
1998: p. 12-19. https://doi.org/10.5840/wcp20-paideia199818343

4. “Pensar por si mesmo e com outros” foi publicado in: Kohan, W.


& Leal, B. (Eds.), Filosofia para crianças em debate. Petrópolis: Vozes,
1999, p. 39-48.

5. “Las Cinco Communidades.” Foi publicado em castelhano, tradu-


zido por Vera Waksman, in: Kohan, W.; Waksman, V. (Eds.), ¿Qué es
Filosofia para Niños? Ideas y Propuestas para Pensar la Educación. Buenos
Aires: Oficina de Publicaciones del CBC (UBA), 1997. Em inglês: “The
Five Communities.” Analytic Teaching 15, 1 (November 1994, p. 3-16)
[também publicado em Inquiry 16,4 (Summer 1997)]

6. “A escola do terceiro reino alegre” foi publicado in: Kohan, W. (Org.),


Lugares da infância: filosofia. Rio de Janeiro: DP & A, 2004.

7. “Desde um espaço sideral e do outro lado da rua: a dupla visão de


Matthew Lipman” foi publicado em inglês como: “From outer space
and across the street: Matthew Lipman‘s double visión”. Childhood &
Philosophy, 7, 13, jan.-jun., 2011, p. 49-74.

17
David Kennedy

8. “Aión, kairós and chrónos: fragmentos de uma conversa infindável


sobre infância, filosofia e educação” (com Walter Kohan) foi publicado
em inglês em Childhood & Philosophy, ISSN-e 1984-5987, 4, 8, 2008, p.
5-22. Em português, foi publicado em: (Re) tratos da infância e da educa-
ção. Belem, PA: Açai, 2009, p. 131-159.

9. “Incêndios: infância e infantia” (com Walter Kohan) foi publicado


em inglês como: On Knives, Infantia, and the Inhuman: A Lyotardian
Reading of Incendies. Childhood & Philosophy. 12, 23, 2016, p. 137-154.

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1. Os movimentos das crianças pequenas:
comunidade de investigação filosófica emergente
no discurso da primeira infância

O que acontece quando um pequeno grupo de crianças de cinco anos


se senta com um professor com sensibilidade filosófica para conver-
sarem sobre magia e ciência, sobre linguagem ou bruxas e fadas? É
possível identificar algumas estratégias recorrentes de argumentação
filosófica ou “movimentos” que permitem construir um argumento
emergente maior? Quero tentar seguir uma suspeita que tenho de que
a natureza do diálogo coletivo é tal que, quando crianças de quatro
anos conversam em grupos, e quando alguma estrutura é oferecida
por um facilitador do diálogo minimamente capacitado, o pensamento
do tipo crítico, criativo e colaborativo acontece mais ou menos espon-
taneamente e que há uma estrutura emergente de argumentação que
forma o horizonte de cada discussão crítica.
Defendo o pressuposto de que, de acordo com a natureza da
linguagem enquanto estrutura lógica e comunicativa, quando conversa-
mos – e especialmente quando falamos colaborativamente em turnos
sobre um determinado assunto –, fazemos espontaneamente pelo
menos alguns dos movimentos do pensamento crítico. A estrutura da
língua e do discurso comum nos leva a classificar e categorizar, a fazer
generalizações, a prover exemplos e ilustrações, a definir termos, a
construir analogias e a formular hipóteses. Fazer nosso caminho com a
língua implica trabalhar com critérios, consistência e contradição, cone-

19
David Kennedy

xões parte-todo e ambiguidade. Em um nível básico, e desde que não


estejamos inibidos por um conflito extremo ou por alguma outra influ-
ência deformadora, não temos que nos propor a trabalhar as ideias dos
outros, a corrigir nossas próprias ideias através do diálogo ou a propo-
sitadamente trabalharmos para produzirmos um juízo justificável sobre
o tema em discussão. Estou sugerindo que pelo menos alguns destes
movimentos e atitudes estarão presentes em qualquer discurso grupal,
seja de modo fraco ou forte dependendo dos membros do grupo e de
suas experiências neste tipo de conversação.
Também quero fazer um apelo de maior alcance acerca de o efeito
geral destes movimentos ser sistêmico: cada movimento está relacio-
nado, de alguma forma, com todos os que vieram antes dele e com
todos os que se seguem, ainda que apenas como elemento único de
uma sequência diacrônica. A conversação é uma estrutura discursiva
emergente, continuamente em construção por seus participantes. Não
importa quão efêmero, caótico ou entrópico seu estado corrente ou
final seja, a conversação nunca pode perder sua identidade sistêmica.
A noção de Peirce sobre a indução de acordo com a “lógica das rela-
ções”, ou “relativos”, pode nos auxiliar a compreender este caráter
construtor de sistemas inerente ao diálogo grupal:

A indução, de acordo com a lógica comum, surge da contemplação de


uma amostra de uma classe para a de toda a classe; mas, de acordo com
a lógica dos “relativos”, ela surge da contemplação do fragmento de um
sistema para o vislumbramento de um sistema completo.1

O modo como procede o “sistema completo” da discussão do


grupo – quer seja se constituindo, se dissipando ou em qualquer outro
estado caótico intermediário - é o que intento traçar aqui. Como um
sistema emergente e não-linear, podemos esperar que ele seja, em
certa medida, auto-organizador, que tenha um nível razoavelmente
alto de imprevisibilidade e que se propague em contínua transforma-
ção através de desequilíbrio. Em uma conversação de caráter filosófico

1
  Collected Papers of Charles Sanders Peirce, C. Hartshore, P. Weiss e A. Burks, ed,
Cambridge: Harvard University Press, 1935, 1958, vol. 4, par. 05.

20
A comunidade da infância

ou crítico, cada rodada do diálogo pode ser caracterizada como um


“movimento”, um fragmento do sistema completo. Um movimento
pode deixar o sistema mais ou menos como estava, mas nunca exata-
mente como estava. Uma taxionomia de movimentos e seus efeitos
é impossível de fazer aqui, mas podemos afirmar de uma forma geral
que cada movimento age, em maior ou menor grau, para lançar o
sistema em desequilíbrio. Dependendo da sua natureza, e de onde ele
surja, o movimento pode atuar tanto para romper um corrente equi-
líbrio, quanto para estabelecer um novo equilíbrio. Contudo, estas
duas ações são intercambiáveis, já que uma leva à outra. O sistema,
por si só, inclui todos os movimentos e usa todos os movimentos no
interesse do seu objetivo, que é a coordenação de todas as perspec-
tivas, o que, em termos de sistemas, significa entropia e, em termos
humanos, significa o esforço para a unidade na diversidade, isto é,
a comunidade. Esta unidade é apreendida indutivamente na lógica
das relações que é guiada por um intuitivo “vislumbramento de um
sistema completo”.
Nas transcrições de conversações curtas entre pequenos grupos
de crianças de cinco a sete anos, que apresento a seguir, tento iden-
tificar os movimentos envolvidos e ver como estes fazem avançar a
discussão. Também identifico padrões dinâmicos e mais amplos de
argumentação, que poderiam ser descritos como estilos dialógicos ou
formas básicas de padronização do jogo particular de linguagem que é
um grupo investigativo. O que eu estou tentando realizar aqui é realçar
a estrutura da emergência das conversações, identificando elementos
recorrentes e pensando sobre como eles operam. Escolhi três conver-
sações para análise, todas elas conduzidas, gravadas e transcritas por
Vivian Lussey Paley, uma professora do pré-escolar, e publicadas em
seu livro Wally`s Stories (Harvard University Press, 1981). Em cada caso,
suas intervenções parecem ser essenciais para a emergência da discus-
são, mas elas parecem-se mais com um andaime para os movimentos
que as crianças realizam espontaneamente, do que com um chamado
específico ou uma modelagem destes movimentos. Deste modo, a
professora mostra como uma facilitação habilitada é necessária, mas
não suficiente, para a emergência da comunidade de investigação
entre crianças pequenas.

21
David Kennedy

Primeira conversação: Mágica e Ciência

Um pequeno grupo de alunos da segunda série está discu-


tindo sobre mágica.

Professora: Uma vez, um garoto do jardim de infância disse à turma


que queria se tornar a mãe de um leão quando crescesse. Ele
disse que faria isto praticando mágica.
Thalia: Mágica não faz as coisas que as pessoas querem ser.
Professora: Há, afinal, algum uso para a mágica?
Thalia: Há truques de mágica. Você pode aprender truques.
Harry: Bem, ele poderia colocar um disfarce e, então, poderia haver um
gravador ao lado dele de um leão e as pessoas pensariam que
ele era um leão de verdade.
Thalia: Mas isso ainda seria um truque.
Stuart: Como o estojo de mágica que minha irmã me deu. As bolas não
desaparecem mesmo. Elas estão nas xícaras todo o tempo.
Harry: O único tipo de mágica que realmente existe é a força sobre-
humana. Isto é que é realmente verdade.
Allan: Se você sabe como fazer coisas mágicas, você tem que continuar
a praticar até que você saiba como fazê-las realmente bem.
Thalia: Mas ainda são apenas truques, Allan.
Allan: Nem todas as coisas são truques, Thalia.
Professora: Mesmo que você praticasse durante anos, você poderia
aprender a tornar-se um animal?
Allan: Não, mas talvez alguma outra coisa.
Stuart: Meu amigo faz isto – não é mágica, mas é como mágica. Como
uma vez ele acreditou tão intensamente que seu pai lhe daria
algo e quando aquele dia chegou seu pai realmente lhe deu o
que ele acreditou.
Professora: Isso é como desejar?
Stuart: Não. Ele estava apenas acreditando em sua mente que seu pai
lhe daria algo.
John: Este garoto na sua turma. Era apenas algo que ele queria
mesmo que acontecesse, mas não podia acontecer. Foi uma
fantasia.

22
A comunidade da infância

Harry: Cientistas podem trabalhar muito e elaborar uma fórmula para


transformar alguém em leão.
Thalia: O único tipo de mágica sobre a qual eu ouvi falar são milagres.
Professora: Isso será parecido com o amigo do Stuart acreditando,
com muita força, em algo?
Thalia: Um pouco diferente. É como você desejar que algo vai
acontecer, mas você sabe que não acontecerá e, então, de
repente, acontece.
Sally: Eu penso que pode haver uma poção algum dia. Eu não acredito
que possa acontecer. Eu quero dizer, uma poção para
transformar alguém em um leão. Mas pode acontecer.
Harry: Eles poderiam ser capazes, não de transformá-los em um
leão, mas fazê-lo parecer um leão, com todos os médicos
esforçando-se muito para isto.
Sally: Você quer dizer parecer um leão, mas não falar como um leão.
Não rugir, nem nada. Mas isto não seria mágica. Isto teria algo
a ver com ciência.

O primeiro movimento dessa conversação, o da professora,


é uma questão exemplar. Ela é seguida por uma proposição, neste
caso uma declaração negativa da Thalia: “Mágica não faz as coisas
que as pessoas querem ser”. Ela poderia ser padronizada assim:
“Nenhum ato de mágica é um ato capaz de transformar as pessoas
em algo ou alguém diferente”. A mágica, diz a Thalia, não é real, mas
é a arte da ilusão ou truques. Dois exemplos são oferecidos, um por
Harry, aplicado à pergunta original da professora, e um exemplo
pessoal do Stuart.
Então o Harry introduz uma nova ideia: a de que há mágica real e
verdadeira – a “força sobre-humana”. Esta ideia está assimetricamente
paralela à reivindicação de Allan de que a mágica poderia tornar-se
“real”, não apenas “truques”, se você os praticasse durante um tempo
suficiente. Em outras palavras, a diferença entre a mágica “real” e
“truques” seria uma diferença de grau mais que de tipo.
Thalia assegura que é realmente uma diferença de tipo: “São
apenas truques, Allan”. Mas Allan se apega à possibilidade de que
possa haver uma mágica que não seja apenas truques. Pode não ser

23
David Kennedy

uma muito precisa ou altamente desenvolvida. Por exemplo, transfor-


mar-se em um animal pode ser muito difícil, mas talvez, depois de anos
de prática, você possa tornar- se “alguma outra coisa”.
Stuart, ainda extraindo algo de sua experiência pessoal, introduz
um novo conceito – “acreditar, mesmo”. Ele distingue isto de mágica,
mas reivindica que é “como mágica”, isto é, algo análogo. John contra
argumenta que isto também não é “real”: não é um truque, mas uma
autoilusão, um enganar-se a si mesmo.
Harry e Thalia introduzem duas outras novas ideias que sinteti-
zam o que veio antes. Harry apresenta uma ciência-mágica “real” que
se afasta bem das especulações de Allan. Ele diz “cientistas poderiam
trabalhar bastante e elaborar uma fórmula para transformar alguém
em um leão”. Thalia reage tanto ao desafio de Allan de que deveria
haver uma mágica “real” quanto à proposta de Harry da ciência como,
pelo menos, algo análogo à “mágica real”, oferecendo o milagre como
um caso de mágica “real” e, então, a distingue (com o auxílio da profes-
sora) do “acreditar” de Stuart.
Sally entra na discussão. Ela retorna à sugestão de Harry sobre a
aproximação mútua entre mágica e ciência. “Eu penso que pode haver
uma poção algum dia. Eu não acredito que possa acontecer. Eu quero
dizer, uma poção para transformar alguém em um leão. Mas pode acon-
tecer”. Ela está reunindo o “Continue praticando até que você saiba
como fazê-lo realmente bem” do Allan, o “anos de prática” da profes-
sora, o “cientistas trabalhando bastante para elaborar uma fórmula” do
Harry, e resumindo as posições deles com a noção de contínuo avanço
científico e tecnológico que poderia conduzir à descoberta. Sally usa
a palavra “poção” que evoca, perfeitamente, as históricas conexões
entre mágica e ciência.
Harry responde a este movimento integrativo: “Eles podem ser
capazes de não o transformar em um leão, mas fazê-lo parecer com
um leão, com todos os médicos esforçando-se para isso”. Em outras
palavras, seria ainda um “truque”. Harry está abordando a questão
relativa à mudança ontológica que está implícita na especulação de
Sally. De fato, ele está negando o poder de qualquer coisa transfor-
mar um tipo ontológico em outro, o que reduziria o que a ciência
poderia realizar a simples mudanças de aparência. Sally, então, se

24
A comunidade da infância

autocorrige por meio da recolocação de seu apelo: “Você quer dizer


parecer com um leão, mas não falar como um leão. Não rugir, nem
nada”. E acrescenta: “mas isto não seria mágica. Seria algo que teria
a ver com a ciência”. Aqui Sally reintegra a questão implícita em toda
a discussão desde que a noção de ciência foi introduzida por Harry,
isto é, as similitudes e diferenças entre mágica e ciência. As crianças
parecem estar se movendo em direção ao mais amplo juízo de que a
mágica se relaciona à mudança ontológica, que não é possível, e que
a ciência se relaciona à mudança dentro de categorias ontológicas, o
que é possível.
Que padrões de argumentação emergem dessa pequena discus-
são? Primeiro, ela representa uma recolha de dados marcadamente
rápida. Em poucos minutos de fala representados aqui e com o auxí-
lio habilidoso e parteiro da professora, são introduzidas e examinadas
nada menos que quatro definições de mágica ou de coisas análogas à
mágica. Essas quatro definições emergem no contexto de duas gran-
des questões ontológicas mais abrangentes: se há algo como mágica
“verdadeira” e as diferenças e similaridades entre mágica e ciência.
Outro modo de descrever este movimento será como proliferação,
seja de exemplos, de membros de uma classe ou de hipóteses. É um
movimento enciclopédico, operando através de associação e analogia.
Frequentemente é dirigido pela experiência pessoal, como, por exem-
plo, com Stuart, que cita ambos o estojo mágico que sua irmã lhe deu
e seu amigo que “acreditava, mesmo”. Esta é uma estratégia do que
Peirce denominou “abdução”2 e que, em oposição à indução ou dedu-
ção, procura superar os dados imediatos e incorporar categorias mais
gerais. O esforço da abdução está em ajustar-se aos signos com os quais
ela está trabalhando em um universo de discurso, ou jogo de lingua-
gem, e que irá satisfazer a todos. Estas crianças estão construindo (ou
reconstruindo) o jogo de linguagem sobre mágica/ciência/tecnologia,
que é parte de um jogo da linguagem ainda mais vasto sobre causali-
dade e categorias ontológicas.

2
  Para uma pequena discussão sobre a relação entre abdução e juízo conceitual, assim
como abdução e “qualquer universo dado do discurso”, ver Robert S. Corrington,
Nature and Spirit. An essay in Ecstatic Naturalism (New York: Fordham University Press,
1992, p. 83-85).

25
David Kennedy

Proliferação não é, de forma alguma, tudo o que está ocorrendo


nesta amostra, como deveria ser em uma conversação que fosse dedi-
cada, de forma autoconsciente, a um “brainstorming”. Os processos
fundamentais de construção de sentido de juízos ativamente procura-
dos – fazer comparações, exemplificar, avaliar analogias, etc. – apreen-
dem e guiam o movimento do argumento. O resultado é uma estrutura
emergente de juízos locais, que crescentemente implicam em outros
mais inclusivos e universais. Poderíamos compará-lo à construção cole-
tiva da estrutura de “unidade de bloco”, na qual cada pessoa acres-
centa um pedaço diferente, conduzindo a relações espaciais tanto
simétricas quanto assimétricas, mas todas estruturalmente conecta-
das. Cada pedaço que não se equilibra aos outros é dialogado até que
se equilibre ou seja descartado.
A analogia com a “unidade de bloco” não é inteiramente
adequada. Por um lado, a estrutura é sempre provisória e nunca está
completamente em equilíbrio. Esta estrutura está sempre em busca
de equilíbrio, mas cresce apenas através da perda de equilíbrio. Os
padrões deste movimento geral podem ser descritos com palavras
como ramificações, justaposição, trama, síncope, todas em referência
a uma emergência da discussão localmente caótica, mas em última
análise ordenada. Por exemplo, um falante pode introduzir uma nova
ideia, mas o falante seguinte manterá ou retornará a uma ideia ante-
rior. No entanto, a nova ideia não estará perdida – ela reaparecerá
momentos depois, integrada na discussão maior, seja pelo mesmo ou
por outro falante. Uma ideia que, quando primeiramente introduzida,
parece não estabelecer qualquer conexão ou apenas uma pequena
conexão com as ideias precedentes, aparecerá, depois de algumas
rodadas, completamente conectada. Um momento de integração
virá – como acontece com a entrada de Sally na conversação acima
transcrita – no qual se encaixam elementos que estavam apenas
vagamente conectados até então e a discussão se auto clarifica.
Isto ocorre por conta de sua qualidade recursiva e integradora, de
sua tendência a circular e a incorporar elementos anteriores em sua
próxima vaga constelatória.

26
A comunidade da infância

Segunda conversação: Língua e Política

Instigada por observar Akemi, uma criança pré-escolar japonesa


que está preocupada em aprender inglês, Paley já envolveu as crian-
ças em várias questões sobre línguas: “Por que há tantas línguas dife-
rentes?” e “Por que há tantos alfabetos diferentes?” Agora, em uma
terceira conversação, ela levanta outra questão. Um dos participantes,
Warren, é chinês-americano. Ele fala apenas inglês, mas seus pais falam
inglês e chinês. Em uma conversação anterior, ele havia informado ao
grupo: “Eu irei a uma escola chinesa aos sábados quando eu comple-
tar seis anos”. Akemi é um imigrante japonês recente que, depois
de um período de rejeição, está, agora, intensamente envolvido em
aprender inglês.

Professora: Se você estivesse no comando do mundo, você faria apenas


uma língua ou várias línguas, do jeito que é agora?
Tanya: Uma língua. Oh, sim! Então eu poderia entender todas as
pessoas no mundo inteiro.
Eddie: Não, deixa continuar deste jeito, assim diferentes países
continuarão a ser diferentes. Então você viaja para ver como
aqueles países são e como eles falam.
Ellen: Eu gosto do mundo do jeito que ele é, mas eu não gosto de luta.
Professora: Será porque eles possuem línguas diferentes?
Ellen: Bem, se eles não podem se entender uns aos outros, eles podem
pensar que boas palavras soam como palavrões.
Wally: Ela quer dizer como se alguém diz: “vamos brincar” em francês,
então em chinês eles podem pensar que ele disse “vamos
lutar”.
Warren: Deixa estar deste jeito porque se você é chinês você deverá
aprender inglês.
Professora: O inglês tem que ser a língua que todos aprendem?
Warren: Eu não sei o que Deus gosta de falar. Espere, eu mudei de
ideia. Deixa todos dizerem a mesma língua. Então quando
minha mamãe e meu papai conversarem quietinhos, eu poderei
entendê-los.

27
David Kennedy

Tanya: Eu também mudei de ideia. Melhor não ter a mesma língua. Eis o
porquê: seja quando for que este mundo teve a mesma língua,
todos iriam dizer que queriam que sua língua fosse aquela que
todos terão que ter. Então, todos iriam culpar alguém por dar a
eles a língua errada.
Akemi: Se todos falassem Japão, todos têm que morar lá. Meu país
pequeno demais para a grande América.
Warren: Todos podem vir para a China. Ela é bem maior. Deixa o chinês
ser a língua. Não, eu mudei de ideia. Deixa minha mãe e meu
pai falarem inglês todo o tempo. (retirado de Wally’s Stories, p.
119-120).

Tanya inicia esta série de movimentos retomando a pergunta do


tipo “se-então” da professora com uma afirmação: ela está disposta a
mudar o mundo a fim de entender todos nele. Eddie argumenta, com
o fundamento de que a variedade é preferível à mesmidade em língua
e cultura. Mas Ellen imediatamente relaciona variedade a conflito
humano: “Eu gosto do jeito que está, mas não gosto de lutas”.
A professora Paley volta a circular com uma questão esclare-
cedora para a Ellen, conectando o tema diferença/conflito, que ela
havia levantado, à questão da língua em particular: “[As pessoas
lutam] porque elas possuem línguas diferentes?” Ellen aproveita
a dica e oferece um exemplo de como diferentes línguas poderiam
levar ao conflito: “elas poderiam pensar que boas palavras soam
como palavrões”. Wally segue com um exemplo ainda mais concreto:
“Vamos brincar”, dito em francês, poderia soar como “Vamos
lutar”, em chinês.
Warren, o menino chinês-americano, cujos pais falam chinês
e também inglês, volta à parte da questão de “se você estivesse no
comando do mundo”, para introduzir os aspectos políticos associados
à língua. A política, é claro, é sobre conflito. Sua experiência em “ter
que”, ou seus pais “terem que”, aprender inglês, o leva a prever que a
língua que todos poderiam ser coagidos a aprender seria o Inglês. Este,
como sabemos, não é um prognóstico assim tão improvável. Paley
novamente levanta uma questão clarificadora: por que seria o Inglês a
única língua, se houvesse apenas uma?

28
A comunidade da infância

Sua questão leva o Warren a procurar, além de sua experiência


indutiva, outros critérios mais abrangentes para a escolha da única
língua que todos falariam, caso houvesse apenas uma. Ele chega até
Deus como o fundamento e origem da língua. Mas, mesmo indo até
Deus, ele compreende que é epistemicamente impossível: “Eu não sei
o que Deus gosta de falar”, ele diz. E como em uma celebração irônica
da aporia resultante, confrontado com o paradoxo de não haver crité-
rio pelo qual escolher, ele retorna à sua própria experiência concreta.
Mas o retorno é uma brincadeira desvirtuada, tal como sinalizado pela
ostentação retórica: “Deixa todos dizerem a mesma língua”, que apre-
senta a reversão de sua posição. Warren parece estar realizando uma
brincalhona reductio ad absurdum. Na verdade, ele está dizendo: “Já
que é impossível decidir qual a língua que deve ser, que seja aquela
do meu interesse”. Sua reflexão irônica invoca a política da infância na
qual os pais não se sentem envergonhados de falar sobre coisas que
eles não querem que seus filhos saibam na presença deles, meramente
ao trocar a língua utilizada.
Tanya ecoa a expressão de Warren: “Mudei de ideia”, mas não
para brincar com destreza como Warren. Ela retorna e auto corrige
sua primeira exaltação à unidade à luz da questão relativa ao conflito
político sobre a língua, que havia sido levantada: “Todos irão dizer
que querem que sua língua seja aquela que todos terão que ter. Então
todos irão culpar alguém por dar-lhes a língua errada”. A autocorreção
de Tânia é também uma integração, pois ela conecta as contribuições
de Ellen, Warren e Paley e reafirma o amplo modo “se-então” modo
pelo qual a conversação teve início.
Agora Akemi se pronuncia: “Se todos falassem Japão, todos têm
que morar lá. Meu país pequeno demais para a grande América”. Sua
afirmação retoma a associação de Eddie entre línguas e os países para
os quais é possível “viajar e ver como os países são e como eles falam”.
Ela usa a conexão que o comentário dele evoca entre língua, identi-
dade cultural e nacional e lugar para comparar as duas línguas e luga-
res que ela conhece e perceber suas maiores diferenças. Sua sentença
“se-então” está fundamentada na proposição “todos os falantes do
japonês moram no Japão”. Isto logicamente tornaria impossível a exis-
tência de apenas uma língua, já que nem todas as pessoas do mundo

29
David Kennedy

caberiam no território japonês – apesar de que Akemi possa ainda não


estar segura de que isto não aconteceria na “grande América”, que é
enorme na comparação.
Finalmente, Warren realiza uma rápida exemplificação análoga à
comparação de tamanho feita por Akemi, usando a China, em vez do
Japão, “Todos podem vir para a China. Ela é muito maior” - e, desse
modo, apresentando outra vívida comparação. Em seguida, ele nova-
mente se apossa de sua brincadeira irônica com a noção de estar “no
comando do mundo”, ao repetir, pela terceira vez: “eu mudei de ideia”
e, novamente, usando o majestoso e soberano imperativo “deixa”.
Esta conversação parece mais centrífuga que a primeira, que cons-
truía uma estrutura bastante rígida. Talvez isto se deva, não apenas à
menor idade das crianças (cinco em vez de sete anos de idade), mas
também a quem são os participantes, assim como ao assunto da
conversa e ao fato de a professora tê-la apresentado com uma proposi-
ção contrafactual. As contribuições de Warren, em particular, introdu-
zem na estrutura uma lógica irônica e humorística/paradoxal. Porém,
todas as crianças parecem favorecer um estilo de jogo combinatório.
Há uma grande quantidade de fala contrafactual brincalhona nesta
conversação, isto é, modificando hipoteticamente a situação e vendo
o que acontece. É como a proliferação, apesar de mais metodicamente
dialética, no sentido de aprender a manter sistematicamente semelhan-
ças e diferenças entre si, a fim de explorar o assunto. Peirce refere-se
a esta tendência para jogos combinatórios como “consciência espor-
tiva”. Ela está conectada à sua ideia de “especulação interpretativa”
baseada na “Spieltrieb” de Schiller, ou instinto de jogo.3
A habilidade para jogar pressupõe a lógica das relações, pois
aquela que joga se dá à dinâmica e estrutura do jogo, assim como a um
contexto mais amplo, um todo implícito em cuja estrutura emergente
ela implicitamente confiou. Daí também a conexão entre especulação
e a noção caótica de “tiquismo” (tychism) – ou o papel do acaso, não
apenas na evolução, mas no desenvolvimento da investigação – combi-
nada com o “sinequismo” (synechism), isto é, a continuidade última e

3
  F. Schiller, On the Aesthetic Education of Man, ed. E.M. Wilkinson & L.A. Willoughby
(Oxford University Press, 1982).

30
A comunidade da infância

relacional de todas as pessoas, coisas e ideias. A investigação se origina


em uma forma de jogo abdutivo com os conceitos em discussão, e varia-
ções casuais que conduzem a compreensões não previstas e conexões
que, eventualmente, levam a uniformidades novas e mais altas do que
aquelas originalmente violadas: “a mudança gera ordem”. A especula-
ção interpretativa é um tipo de deslizamento sobre o jogo da lingua-
gem e pensamento, abastecido pelo instinto para o poder da conexão
imprevista, na fé implícita de que “as ideias tendem naturalmente a se
generalizar, a constituir associações… a “crescer” ou evoluir.”4
O contexto evolutivo desta conversação, dentro da qual estas
crianças jogaram, parece estar relacionado ao interjogo das duas ques-
tões implícitas na questão original de Paley: 1) O que significaria ter o
poder de realizar algo tão global como mudar a língua que as pessoas
falam? 2) Como seria uma língua única mundial? O contexto, fornecido
por estas duas questões, não é apenas um contexto em evolução,
mas é também um contexto autorregulador. A introdução de cada
novo elemento provoca, de algum modo, uma mudança no todo. Ele
perturba um equilíbrio corrente e inicia o percurso para o reequilíbrio,
e assim por diante, em um processo evolutivo sempre em mudança, em
expansão e imprevisível.
Este diálogo também possui momentos interessantes de exempli-
ficação, em particular os dois exemplos de como diferenças de língua
poderiam conduzir a lutas, nos quais Wally ilustra o exemplo de Ellen
mais concretamente. E, então, há o claro exemplo de autocorreção,
isto é o exemplo da Tanya, que mostra como sua primeira entusiástica
aprovação de uma língua mundial única é moderada pela discussão
sobre políticas da língua que decorre de sua afirmação original. A auto-
correção de Warren é brincalhona, irônica e retórica. Sua brincadeira se
refere ao papel do interesse pessoal fora de considerações enormes,
globais. Mas, mesmo fazendo isto, ele está demonstrando sua própria
reflexão sobre a relação entre os dois, bem como provendo um comen-
tário irônico sobre política, acerca do qual grande parte da conversa-

4
  Michael L. Raposa, Peirce’s Philosophy of Religion. Bloomington: Indiana University
Press, 1989, p. 47. Para ampla, bem documentada organização das noções de Peirce de
Tychism, especulação e jogo, ver p. 31-32, 74, 126-133.

31
David Kennedy

ção trata. Mas, mesmo fingindo autocorreção, Warren está reconhe-


cendo-a como fundamentalmente importante.
O processo de autocorreção opera tanto em indivíduos quanto
no grupo como um todo5 e parece ser governado pelo esforço social
e cognitivo para produzir estruturas de entendimento que reconhe-
cem cada perspectiva individual e harmoniza mais completamente
cada uma com um ponto ômega de uma perspectiva em direção à qual
todos estão caminhando, em constelações cada vez mais integradas.
Corrington, seguindo Peirce e Josiah Royce, caracteriza isso como um
percurso implícito de uma comunidade de intérpretes em trabalhar
para “adaptar o eu e a comunidade a uma rede de significados temática
e inteligível”, através de um processo de “libertar interpretações passa-
das da opacidade” e permitir a emergência de novos significados.6

Terceira conversação: o Sobrenatural, o Bem e o Mal

Um pequeno grupo pré-escolar da professora Paley está discu-


tindo “a fada do dente”.

Professora: Eu me pergunto por que as pessoas falam em uma fada do


dente e não em uma bruxa do dente…
Jill: Uma fada do dente vem através da parede e uma bruxa tem que
bater na porta.
Wally: Se uma bruxa viesse, ela poderia roubar a criança.
Eddie: Jill, eu não penso que uma bruxa bateria na porta – ela a
arrombaria. Ela poderia até roubar a mãe.
Jill: A fada do dente deixaria 25 centavos e, então, a bruxa vem e rouba
o dinheiro. Mas, então, você faz o desejo novamente.
Warren: Uma bruxa levaria embora o travesseiro. Espere, primeiro ela
coloca sua vara mágica debaixo do travesseiro, então ela faz o

5
  Matthew Lipman, “Critical Thinking: What can It Be”, in: Educational Leadership 46,
I, 1988, p. 38-43. Lipman identifica quatro aspectos do pensamento crítico em grupos:
fundamentação em critérios, sensibilidade ao contexto, busca de juízo sobre algum
assunto e autocorreção.
6
  Robert S. Corrington, Nature and Spirit, p. 144.

32
A comunidade da infância

travesseiro desaparecer, aí a vara machuca sua cabeça. Então


sua mãe tem que vir e dormir com você porque você pode estar
sangrando.
Deanna: Bruxas do dente deixariam aranhas no dinheiro.
Kim: Não existem bruxas do dente.
Deanna: Eu sei, quero dizer se existissem.
Kim: Bruxas não podem ser invisíveis. Então só uma fada pode ser uma
fada do dente.
Deanna: Fadas são sempre boas. Se elas fizerem algo ruim, elas se
tornam bruxas. Então, em seiscentos anos, uma bruxa pode ser
fada de novo.
Wally: Ah! Então é assim que existem fadas boas no Mágico de Oz.
(retirado de Wally’s Stories, p. 44-45)

A questão do que é igual e do que é diferente entre fadas e bruxas


está implícita na pergunta de abertura de Paley. Jill imediatamente
fornece uma distinção: fadas são sobrenaturais, ou pelo menos imate-
riais, enquanto que bruxas são reais, pessoas de carne e osso. Wally
acrescenta, então, que bruxas e fadas têm motivos diferentes. Bruxas
são, de fato, maliciosas, enquanto, entende-se, fadas do dente vêm
para realizar boas transações com as pessoas.
Eddie continua a construir o argumento ao moderar as inter-
venções de Jill e Wally. Ele atribui poderes às bruxas que, se não são
sobrenaturais são, pelo menos, sobre-humanas: bruxas conseguem
arrombar portas e, até mesmo, roubar pessoas grandes. Jill, voltando
à distinção entre as motivações de bruxas e fadas, exemplifica-as
descrevendo a primeira roubando o dinheiro deixado pela outra. Mas
Jill também acrescenta um elemento cômico à história ao introduzir a
ideia de que, mesmo se a bruxa roubar o dinheiro, seria possível tê-lo
de volta apenas desejando-o de novo.
Construindo sobre o motivo da bruxa roubando o dinheiro deixado
pela fada do dente, Warren elabora, em forma de história, uma cadeia
especulativa causal: a bruxa coloca sua vara mágica debaixo do traves-
seiro, presumivelmente para apanhar o dinheiro. A vara faz o traves-
seiro desaparecer, sua cabeça cai na vara, você se machuca, sua mãe
vem e dorme com você se você se você estiver sangrando. Como no

33
David Kennedy

diálogo anterior, Warren está brincando com intensos sentimentos


relativos aos seus pais, com ideias sobre contingência e com a lógica
do absurdo, todas em um contexto de eventos casualmente encadea-
dos. Ele tem um jeito de pensar em voz alta ou deixar seu pensamento
desabrochar e assisti-lo ironicamente. Quando ele pensou na bruxa
colocando sua vara debaixo do travesseiro, ele já estava pensando no
travesseiro desaparecendo e na cabeça da criança caindo na vara e ela
se machucando? Provavelmente, não. É como a lógica selvagem do
humor de Chaplin, pintada por Chagall.
Deanna retorna à questão original de Paley (talvez ela tenha
estado se debatendo com isto ao longo das últimas rondas): se fadas
do dente fossem bruxas do dente, elas deixariam dinheiro com aranhas
nele. Seria dinheiro ruim, assustador. Kim a relembra que a proposição
“Nenhuma bruxa é fada do dente” já havia sido feita e aceita. Deanna
assegura a ela estar especulando com uma proposição contrafactual.
Porém, como se para enfatizar e recapitular a discussão realizada até
então, Kim repete o motivo pelo qual a proposição “nenhuma bruxa
é fada do dente” foi aceita: bruxas são materiais e visíveis e fadas do
dente fazem coisas imateriais, invisíveis, como atravessar paredes. Na
verdade, ela está oferecendo um silogismo:

Todas as fadas são seres invisíveis


Nenhum ser invisível é bruxa
Nenhuma bruxa é fada

Kim também está introduzindo a ideia de que fadas do dente são


apenas um membro da classe de fadas. Deanna apanha esta ideia e a
desenvolve com uma afirmação que coloca em modo proposicional a
primeira observação realizada por Wally sobre as motivações das fadas
e bruxas em modo proposicional: “Todas as fadas são seres bons”. Ela,
então, introduz a questão sobre se a diferença entre fadas e bruxas é
uma diferença de grau ou tipo, ao oferecer a hipótese de que todas
as fadas são boas, mas podem tornar-se más, pelo que são punidas
tornando-se bruxas, com a possibilidade de conquistarem sua condição
de fada depois de um longo período de tempo. Os pares contrastantes
implícitos, através dos quais ela formula esta hipótese, estão em uma

34
A comunidade da infância

forma mais ou menos análoga inacabada: bom/espiritual/invisível–mau/


material/visível.
Como se isto não fosse suficientemente complexo, Wally (em
referência a quem o livro de Paley é intitulado) faz outra transição: se
fadas e bruxas representam uma diferença de grau, então deveria ser
possível dizer que “Todas as fadas são bruxas boas” e “Todas as bruxas
são fadas ruins”. Isto ocorre a ele como a solução de uma questão que,
de fato, o vem preocupando desde que se familiarizou com O Mágico
de Oz, onde há bruxas boas. Isto é, a hipótese de Deanna serve para
explicar, pelo menos, este último caso. E, aqui, infelizmente, para nós,
a transcrição acaba.
Esta conversação oferece um bom exemplo de recorrência e inte-
gração, na medida em que o fim do diálogo é um retorno ao início, de
forma mais explícita e proposicional. Parece haver em andamento um
contínuo girar, relacionar e entrelaçar, ou a recapitulação do argumento
do grupo em cada indivíduo. Há sempre um todo implícito, uma cons-
trução sintética. Outro aspecto interessante deste fragmento é que
as generalizações seguem os exemplos. Jill e Wally primeiro apresen-
tam suas proposições como casos concretos: chegar através de uma
parede para indicar que fadas são invisíveis e imateriais, e ao roubar
para indicar que bruxas são más, em vez de boas. Depois de cinco roda-
das, através de Kim, os dois apelos se afirmam como o mais proposi-
cionalmente possível: “Não existem bruxas do dente”, “bruxas não
podem ser invisíveis” e “fadas são sempre boas”. É como se a propo-
sição não estivesse ainda em forma consciente e emergisse através do
jogo dialético da exemplificação. Isto suscita questões interessantes
sobre a relação lógica e temporal entre um exemplo e a generalização
que ele exemplifica.
Finalmente, é digno de atenção que esta conversação demonstre
crianças elaborando hipóteses na forma de declarações proposicio-
nais, como se fossem fatos. O exemplo mais dramático é a afirmação
de Deanna sobre bruxas, fadas e seiscentos anos. Este tipo de pensar é
característico de crianças pequenas, sob vários aspectos. Primeiro, é um
tipo de proliferação abdutiva: reunir tudo o que todos já ouviram, leram
etc. sobre bruxas e fadas. A validação empírica não é tanto a questão
(ainda que algumas vezes seja e possa ser a qualquer momento, se uma

35
David Kennedy

criança a levantar), quanto elaborar um argumento que junte bem as


peças. Em segundo lugar, é um tipo de jogo dramático. Este grupo está
brincando de conhecer tudo, que é frequentemente a maneira com a
qual crianças de cinco anos de idade percebem os adultos. Então, de
certo modo, nós poderíamos dizer que elas estão jogando a história de
uma comunidade de investigação. Em terceiro lugar, e relacionado ao
jogo-história, representa a tendência a presumir-se que qualquer coisa
que você possa pensar pode ser verdade só porque você pode pensá-
-lo, o que é característico da qualidade “transicional” do espaço psico-
lógico do jogo da criança pequena, no qual as fronteiras entre fantasia
e realidade, interior e exterior, ainda não estão claramente definidas7.
Tão frequentemente quanto as crianças contestam declarações selva-
gens como as que Deanna faz sobre bruxas e fadas, elas também cons-
troem sobre elas, assim como vemos Wally fazendo aqui. O valor da
verdade tem a ver tanto com uma coerência total – um senso de corre-
ção moral e estética – como com qualquer verificabilidade empírica. Ou
seja, a verdade é uma história sobre algo que faz sentido.

Algumas conclusões

Estou sugerindo que nós olhemos para os movimentos e tendên-


cias que eu identifiquei neste artigo – o esforço para o juízo, a proli-
feração espontânea de dados, a díade proposição-exemplificação,
jogo combinatório, ramificações, recapitulação e integração, a sobre-
posição assimétrica de temas e ideias, auto-organização e autocorre-
ção - como ocorrências em grupos discursivos de modo espontâneo e
caoticamente ordenado. Isto ocorrerá, em graus maiores ou menores,
sempre que um grupo de pessoas, quaisquer que sejam suas idades,
se sentem e busquem realizar juízos sobre algo que os interesse. Mas
há estruturas mais amplas emergindo através do jogo de movimentos
menores e tendências? Ou eles acontecem apenas localmente e a sua
combinação em padrões mais amplos é, pelo menos entre crianças

7
  Para uma análise acurada de “pensamento transicional”, ver D.H. Winnicott, Playing
and Reality. New York: Basic Books, 1971.

36
A comunidade da infância

pequenas, casual? Estas transcrições são curtas demais para responder


a estas questões. Mas uma aplicação da teoria de sistemas não-linea-
res e da epistemologia da comunidade de investigação de Peirce – isto
é, lógica das relações, abdução, sinequismo, especulação interpreta-
tiva e tiquismo – sugeririam que, mesmo que elas se formem casual-
mente, elas são sistêmicas e, numa visão mais ampla, são perceptíveis
padrões recorrentes.
Mas é quando chegamos a “uma visão mais ampla” que a teoria
do caos e a epistemologia da comunidade de investigação de Peirce
podem acompanhar-se. De acordo com a última, há um movimento
evolucionário, fundado no sinequismo e no agapismo, ou um amor,
que trabalha crescentemente para entrelaçar o universo de pessoas e
ideias, que dá forma à investigação. Em termos de investigação grupal,
isto está expresso no esforço do grupo em desenvolver um discurso
que é comum a todos, adequado a cada indivíduo e que permite um
entendimento do mundo sobre o qual está falando. Trata-se, em outras
palavras, de um movimento teleológico em direção a uma verdade que
– de acordo com o que grupo implicitamente acredita –, será desco-
berta, a longo prazo, mesmo que este “longo prazo” seja infinito. De
acordo com a teoria do caos, constelações de ordem podem formar-se
através da ordenação caótica da investigação e elas podem repetir-
-se e, mesmo, formar uma ordem mais ampla quando vista sob várias
instâncias. Mas a ordem é cíclica, mais do que orientada por objetivos.
As estruturas que a teoria do caos descobre na matéria e em processos
biológicos são padrões altamente complexos, intrincados e “infinita-
mente profundos” que se tornam evidentes dentro da aparente desor-
dem após um elevado número de rodadas de discussão8. Pode ser,
de fato, possível encontrar estes padrões em discussões grupais após
várias rodadas. Mesmo que assim seja, a teoria não parece levar em
conta os elementos de intencionalidade e transcendência no discurso
humano que impulsiona uma crescente coordenação de perspectivas
individuais. Ao contrário, ela pode distinguir um padrão complexo e
intrincado de temas e conceitos recorrentes, bifurcados, “fractados”,
mas eles não possuem qualquer significação além de seus arranjos e

8
  James Gleick, Chaos: Making a New Science. New York: Viking, 1987, p. 56-74.

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David Kennedy

eles sempre devem aparecer depois do fato, algo como conteúdos do


inconsciente, como revelados em sonhos ou outros fenômenos que
apenas se apresentam apenas através de sinais indiretos.
Também não é evidente se dinâmicas não-lineares podem ajudar-
-nos a entender os momentos decisivos que deslocam a discussão “em
direção a” ou “para longe de” seu objetivo implícito de coordenação
de perspectivas. Estes momentos parecem depender, fundamental-
mente, de cada pessoa individualmente e do caráter habitual de sua
ação dentro do grupo e - pelo menos em grupos de crianças peque-
nas - das ações habituais do facilitador. De fato, no caso da maioria das
crianças de cinco anos, é possível que, sem a convocação da professora
e sua supervisão do grupo, conversações como estas aqui transcritas
nunca acontecessem ou, se acontecessem, seriam efêmeras. Os movi-
mentos de Paley, por exemplo, tendem a convidar, mas nunca a forçar
a recapitulação, a integração e a autocorreção. Eles agem para prepa-
rar os participantes em movimentos reflexivos e metacognitivos, que
propiciam aparições rápidas da estrutura emergente da discussão e a
cristalizar seu esforço implícito em direção ao juízo. Tais movimentos
não são facilmente aprendidos – eles não consistem apenas em soli-
citações de resumos. A professora deve dar-se, a si mesma, ao jogo
da discussão tanto quanto os estudantes, mas ela age como repre-
sentante da estrutura lógica implícita da tradição discursiva na qual o
grupo opera. Ela representa a aplicação consciente dos movimentos
críticos que as crianças estão realizando de forma mais espontânea,
menos consciente.
Em que medida o progresso da discussão depende dos indivíduos
no grupo – suas idades, temperamentos e outros aspectos do estilo
pessoal, suas experiências e as tradições discursivas de suas famílias?
Até que ponto cada criança foi exposta a um tipo de conversa que, mais
ou menos conscientemente, aspire a proceder de forma crítica? Em
cada uma das conversações descritas acima, há algumas crianças que
agem para cristalizar estruturalmente a discussão: Kim, na conversação
sobre a fada do dente; Harry e Sally, na conversação sobre mágica; e
Tanya, na conversação sobre língua e política. Serão fortuitos os seus
movimentos ou, se tivéssemos mais exemplos, poderíamos encontrar
estas mesmas crianças realizando-os de forma claramente consciente?

38
A comunidade da infância

Minha experiência em conversações com crianças pequenas me


levaria a levantar a hipótese de que em qualquer grupo pode haver
algumas crianças que são relativamente menos influenciadas por
interesses pessoais ou modos altamente concretos de pensar e que,
regularmente, realizam movimentos que conduzem a discussão em
direção a níveis mais altos de generalização. Pelo contrário, crianças
como o Warren podem não realizar contribuições que conduzam
diretamente à recorrência e integração, mas a criatividade, paixão,
senso de ironia e jogo lógico que ele traz são igualmente essenciais
ao movimento da discussão. A implicação parece ser que cada grupo
de pessoas é uma constelação dinâmica única e que cada indivíduo
em tal grupo traz seu estilo distintivo para contribuir com a emergên-
cia da discussão.
Outra implicação pode ser que nem todo grupo é suposto funcio-
nar como uma comunidade de investigação – pelo menos não para
uma comunidade de investigação filosófica ou uma que seja dominada
pelo discurso linguístico e lógico. A emergência de uma comunidade
de investigação filosófica ou científica poderia ser fortemente determi-
nada pela presença de certos tipos de pensadores e de falantes e pelo
modo como eles interagem ou não. Por outro lado, a regra das propor-
ções parece indicar que várias formas de inteligência e muitos níveis
de desenvolvimento de inteligências lógicas e verbais estão represen-
tados em qualquer grupo estatisticamente normal. Então pode ser
que praticamente qualquer grupo, na medida em que sejam reconhe-
cidas e permitidas todas as modalidades individuais no jogo, seja um
contexto possível para a comunidade de investigação. Finalmente, há
a questão de como uma comunidade de investigação se parece, age
e sente quando está em modos que não sejam os verbais e lógicos
como, por exemplo, entre artistas ou poetas, dançarinos ou buscado-
res espirituais. Esta questão está relacionada às diferenças culturais.
Qual é o papel do estilo discursivo cultural ou da tradição discursiva
na formação da comunidade de investigação? Como pensaria e conver-
saria sobre mágica um grupo de crianças de rua, brasileiras, de cinco
anos de idade, ou crianças iranianas ou crianças americanas nativas?
Seriam óbvios os mesmos movimentos e padrões de argumentação se
elas estivessem conversando livremente?

39
David Kennedy

Dado que elas estão utilizando a língua e a língua está enraizada


em algumas relações lógicas básicas e considerando que elas estão
conversando em um grupo pelo menos semipermanente e em movi-
mento, e que a lógica, como Peirce destacou, “está enraizada no prin-
cípio social”9, nós podemos esperar que os mesmos tipos de coisas
aconteçam: proliferação, proposição e exemplificação etc. Talvez o
que possa diferir dramaticamente sejam os tipos de juízo em direção
aos quais elas se constroem. Elas seriam influenciadas, não apenas
por preconceitos ontológicos e epistemológicos da cultura particular,
mas por questões que compelem significados para aquelas crianças.
O que, por exemplo, é intrinsecamente importante investigar para um
grupo de crianças brasileiras de rua? Para crianças em idade escolar no
Irã revolucionário? Para um grupo de crianças Navarro que dificilmente
deixa suas reservas? Além disso, seria esta forma de investigação deli-
berativa de grupo valorizada do mesmo modo ou para os mesmos
propósitos que a tradição filosófica e científica euro-norte- americana?
Se não, qual seria uma forma análoga nessas outras culturas que
constituiria uma função social similar, isto é, a elaboração de juízos deli-
berativos? Pode ser que em culturas nas quais a dúvida é menos tole-
rada, a investigação de qualquer tipo seja relativamente suprimida, pois
a investigação é uma resposta adaptativa à dúvida. E a dúvida começa
com o isolamento, o questionamento e a análise de crenças10. É possí-
vel que para uma cultura como a do Irã revolucionário ou mesmo na
cultura Navarro, um tal modo de funcionamento grupal seja entendido
como inerentemente destruidor da cultura e da comunidade. Se esse
for o caso, então pode ser chauvinista tentar exportar o modo crítico
euro-norte-americano de realizar juízos.
Qualquer que seja a verdade ou lógica destas especulações sobre
a universalidade dos movimentos discursivos de crianças pequenas
sobre diferenças individuais, grupais e culturais, nós as encontramos
operando em algumas escolas dos Estados Unidos da América. Dado
que eles são encontrados, isto é, que eles acontecem espontanea-
mente em discussões de grupo – tanto quanto resultam de instrução

9
  C. S, Peirce, Collected Papers, vol. 2, par. 646.
10
  C. S. Peirce, Collected Papers, vol. 2, par. 397.

40
A comunidade da infância

ou mesmo modelagem – me parece educacionalmente importante que


professores aprendam a reconhecê-los. Quando professores consegui-
rem fazê-lo, eles estarão na melhor posição para reforçá-los e utilizá-los
na facilitação da emergência de estruturas mais amplas de discussão.
Dada a necessidade de o professor inserir-se no jogo da discussão a fim
de saber qual o melhor movimento a realizar, pode ser que a facilitação
de uma comunidade de investigação seja sempre uma arte – ou, pelo
menos, um artifício – mais que uma ciência.
A teoria de sistemas não-lineares nos leva a acreditar que qual-
quer intervenção terá resultados inesperados, se não “no lugar de”,
pelo menos “em acréscimo a”, aqueles esperados. A discussão joga
e o professor experiente é um jogador experiente, em um jogo no
qual crianças pequenas, elas mesmas vivendo na era dourada do jogo,
não são inábeis.

41
2. Reconstruindo a infância

A infância está desaparecendo?

O “desaparecimento” da infância tem sido um tema contínuo de espe-


culação cultural nos Estados Unidos durante, pelo menos, os últimos
20 anos. A noção de que a criança está “desaparecendo” é tanto uma
descrição de uma mudança cultural percebida quanto uma reação
cultural implícita a isto. Ela assume, antes de mais nada, que há um
fenômeno normativo chamado “infância” que tem certas característi-
cas identificáveis que são, pelo menos potencialmente, evidentes em
todas as crianças. Também assume que tal fenômeno é histórico-cultu-
ral, uma vez que é capaz de: ou não estar mais lá ou ter mudado a sua
forma - não está claro qual das duas coisas. Se for o primeiro caso, uma
suposição adicional parece ser que se, e quando, a “criança” “desapa-
rece”, o que permanece é um “adulto”.
O que faz esta suposição problemática é que “criança” e “adulto”
são, de qualquer maneira, um par contrastante: assim como não
há nenhuma noção de “velho” sem uma noção correspondente de
“jovem”, assim também “criança” é inconcebível separado de “adulto”.
Se todos nascêssemos e permanecêssemos como “crianças”, não terí-
amos mais nenhum uso para o termo, e o mesmo aconteceria se todos
nascêssemos e ficássemos “adultos”. Assim, pareceria que se a infân-
cia vai desaparecer, então a adultez vai desaparecer também. Qualquer
mudança em um dos termos necessariamente parece implicar uma

43
David Kennedy

mudança no outro. Seus aparecimentos mediados cultural e historica-


mente são inseparavelmente ligados.
Há algo que podemos saber sobre infância à parte deste apareci-
mento histórico e cultural. “Criança” também é uma categoria bioló-
gica bem definida, determinada por altura, peso, tamanho e função de
órgãos, configuração hormonal e estado neurológico, como também
- embora em um sentido mais fraco que este último -, também carac-
terísticas cognitivas, linguísticas, afetivas e psicomotoras. A criança
biológica nunca “desaparecerá”, pelo fato de que ela parece ser um
aspecto permanente de como a espécie se reproduz. O que pode
desaparecer normalmente é descrito em termos como “inocência”,
significando tipicamente ignorância de coisas que os adultos prefe-
rem manter segredo até mesmo uns dos outros, como sexo, morte,
loucura e vício. O que também pode aparecer e desaparecer são atri-
buições de competência, responsabilidade ou inteligência. Por exem-
plo, Neil Postman interpreta as características do que hoje chamamos
“infância” como um efeito que a imprensa escrita provocou quando
substituiu o ambiente de informação do mundo medieval – oral e
acessível às crianças – , pela palavra impressa, levando assim a impor
s crianças o longo aprendizado de uma habilidade difícil e, consequen-
temente, um novo estatuto de classe enquanto marginal cultural.1
O argumento de Postman tem sentido histórico, mas de fato a subs-
tituição da oralidade por um ambiente de informação letrada é apenas
uma entre uma série de fatores que conduziram à relativa marginaliza-
ção da criança no mundo moderno. Deve-se também ter em mente que,
dada a inseparabilidade dos conceitos de “criança” e “adulto”, todas
estas mudanças também refletem uma alteração do que significa ser um
adulto. Quero argumentar que, de uma perspectiva histórica dialética, a
condição da relação criança-adulto no fim do segundo milênio oferece
a possibilidade de uma alteração dos limites dentro desse par contras-
tante e, por conseguinte, um momento para uma ação histórica da parte
dos que se preocupam, não somente com as crianças e a infância, mas
também com a reconstrução da adultez.

1
  The Disappearance of Childhood. New York: Delacorte, 1984.

44
A comunidade da infância

O papel da educação nesta ação histórica é um papel crítico,


particularmente o que Freire2 chama “educação problematizadora”,
ou “diálogo”, pois aqui é possível o locus de uma real mutualidade
entre adulto e criança. Mas antes de explorar a estrutura daquela
mutualidade, é necessário levar em conta a posição atual da criança
no mundo social.

Criança como sujeito marginalizado

Do que podemos encontrar acerca de crianças no registro histó-


rico, elas parecem, desde os tempos mais remotos, ter sido sujeitadas à
mesma marginalização e estatuto de excluídas sociais que encontramos
tão frequentemente quando investigamos o estatuto da mulher, dos
escravos, das minorias étnicas ou raciais, dos loucos ou dos oprimidos
economicamente. Crianças são, seguramente, um caso especial deste
outro marginalizado, mais perto das mulheres no fato de a subjugação
delas pelos centros de poder patriarcais se dá através de elementos
que são encontrados e, depois, reinscritos no e sobre o corpo. A dificul-
dade em estudar a história da infância é que as crianças, assim como as
mulheres, estão, em muitos casos, simplesmente ausentes dos regis-
tros, e assim faz- se necessário tirar conclusões através de evidências
indiretas. Essa dificuldade em si mesma, em combinação com as refe-
rências que encontramos às crianças, oferece-nos uma pista forte de
que as crianças sempre ocuparam a seguinte posição ou estatuto face
à maioria dos adultos.

Criança como propriedade

Nas casas da Grécia e Roma antigas, o pai tinha o poder de vida ou


morte sobre suas crianças. Quando Lloyd deMause caracteriza a rela-
ção parental primitiva de pai/filho como “infanticida”13, parece estar se

2
  Freire, P., Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1970.
3
  de Mause, L. The Evolution of Childhood. In: deMause, L. (org.), The History of
Childhood. New York: Harper, 1974.

45
David Kennedy

referindo a essa atitude fundamental de possessão não mitigada, tal


que a criança não é percebida como possuidora de qualquer humani-
dade para além da humanidade projetada que o adulto lhe concede.
Até que ponto as crianças ainda são interpretadas como proprie-
dade material de seus pais é indicado hoje pela ambiguidade à volta
da questão da custódia da criança, dos casos de infanticídio parental
ou homicídio, dos casos em que a criança é vítima de abuso sexual e,
provavelmente, aborto. No caso de abuso, a criança é frequentemente
entregue de volta à custódia dos pais que a ofenderam, quando isto
é claramente contrário aos seus melhores interesses, às vezes resul-
tando na morte dela. Na medida em que as crianças são propriedade,
podemos dizer que elas são como os escravos e, até bastante recente-
mente no Ocidente, como as mulheres.

Criança como economicamente desprovida

Tradicionalmente, as crianças não têm qualquer direito à proprie-


dade e a trabalho significante, exceto pela vontade de seus pais ou guar-
diões. Crianças não têm qualquer meio econômico em nossa sociedade,
à parte de tarefas servis extremamente mal remuneradas. Em épocas
históricas nas quais as crianças eram uma parte da força de trabalho,
elas parecem ter desempenhado uma tarefa relativamente importante
em economias agrárias ou pastoreiras; ou, em cenários industrializa-
dos, tornaram-se escravas exploradas por baixíssimos salários.

Criança como outro ontológico

Aristóteles identifica as crianças com animais, escravos e mulhe-


res.4 À criança, ele afirma, falta a capacidade de escolha, ou “agên-
cia moral”, ou vontade, ou seja, lhe falta a habilidade para se envolver
deliberadamente em uma ação que vise uma finalidade, ou “algum

4
  Aristóteles, Ética a Nicómaco I ix, 1099b33-1100a5; VI xiii, 11445-10 ; VII xii, 1153a30;
Física, II 6, 197b7-8.

46
A comunidade da infância

tipo de atividade da alma em conformidade com a virtude”. Por isso,


a criança não pode ser chamada “feliz”; e se a chamarmos feliz, “nós
fazemos isso por causa das esperanças que temos para o futuro dela”.5
Aristóteles parece estar empenhado na sub- especiação ou na atri-
buição da diferença ontológica para membros de grupos marginais
ou estranhos culturais. A criança poderia até ser considerada um tipo
de proto-teratologia, no sentido em que qualquer coisa não comple-
tamente humana – numa acepção adulta, masculina, nascida-livre
da palavra – é um tipo de monstro, i.e., um ser que não atingiu ou é
incapaz de atingir a “substância” humana. A criança se enquadra no
primeiro caso: o que faz da criança um perigo não é tanto que ela seja
um monstro, mas o fato de ela possuir todas as chances de se tornar
um monstro sem o amoldamento dos adultos. Assim, Erasmus, 1800
anos depois de Aristóteles, nos fala:

Para ser um verdadeiro pai, você tem que ter controle absoluto de todo o
ser de seu filho; e sua preocupação principal deve ser com aquela parte do
caráter dele que o distingue dos animais e está perto de refletir o divino…
Assim, o que nós podemos esperar do homem? Ele certamente será um
ser bruto improdutivo, a menos que imediatamente e sem demora seja
sujeitado a um processo de intensiva instrução.6

O teor desta passagem poderia ser interpretado como um mero


exagero retórico se não fosse o fato de termos encontrado, junto com
a emergência do modernismo do qual Erasmus é um fundador cultu-
ral, evidência do surgimento de uma tecnologia disciplinar aplicada ao
criminoso, ao louco e à criança na forma de confinamento em institui-
ções, castigo severo e sistemático, vigilância constante e “tratamento”
na forma de psicologias e pedagogias rígidas e objetivantes. A criança
do primeiro período moderno é entendida como necessitante de ser
forjada, como Michel Foucault afirma, em um “corpo dócil que pode
ser sujeitado, usado, transformado e melhorado.”7

5
 Aristóteles, Física II vi, 197b; Ética a Nicómaco I ix, 1100a.
6
  On Education for Childhood. In: Rummel, E. (org.), The Erasmus Reader, trad. ingl.
Toronto: University of Toronto Press, 1990, p. 67-69.
7
  Foucault, M., Discipline and Punish, trad. ingl. New York: Vintage, 1979, p. 198.

47
David Kennedy

A criança como outro ontológico também pode ser interpretada


positivamente, por exemplo, na noção do Alto Romantismo da infân-
cia como um estado natural de “gênio”, como o “primitivo”, à parte
da consciência corrupta e vã da sociedade. Ou a “criança divina” do
mito e da religião, representada na infância do deus ou herói da Idade
de Bronze, no “eroti” hermafrodita da Grécia helenística ou o Jesus
infante da Alta Arte Renascentista. Aqui a criança age como tela para
projeções, não do sub mas do superhumano, de um estado não divi-
dido de consciência que, para o adulto, é projetado tanto no passado
quanto no futuro. C.G. Jung chegou ao ponto de identificar a “criança
divina” como um arquétipo fundamental do inconsciente, ou seja, uma
imagem transcultural que se manifesta em sonhos, mito, arte, psico-
terapia.8 A alteridade física, linguística e comportamental da criança
extrai do adulto a projeção, tanto positiva quanto negativa, do seu
próprio sentimento de diferença.

Criança como epistemicamente incompleta

Se nós entendermos o “déficit” epistêmico da criança como estru-


tural e ontogenético, tal qual nós o encontramos nas formulações
piagetianas,9 ou como social no sentido de não ter ainda adquirido as
convicções epistemológicas e ontológicas de sua cultura, o resultado é
o mesmo: a criança é o outro irracional, o pensador mágico, o “nativo”.
Novamente, há nesta projeção um lado positivo e um lado negativo: do
ponto de vista de educar a criança pequena dentro das convicções da
idade, é uma ausência a ser preenchida, uma ignorância ou um primiti-
vismo a ser superado. Do ponto de vista do protesto romântico contra
o universo epistêmico racionalizado do Iluminismo, é uma janela que
se abre para outra forma de conhecimento, o qual é capaz, como as
formas de conhecer dos místicos, dos xamãs, das mulheres, dos loucos,

8
  Jung, C. G. & Kerenyi, K., Essays on a Science of Mythology: The Myth of the Divine
Child and Mysteries of Eleusis. Princeton: Princeton University Press, 1963.
9
  Esta interpretação particular deficitária é mais característica das interpretações de
Piaget feitas por psicólogos e educadores durante a década de 80, do que da própria
obra de Piaget, a qual apresenta uma concepção mais rica em nuances.

48
A comunidade da infância

etc., de render informação significante sobre o mundo. Para a contra-


cultura epistemológica, a noção de Piaget do adulto como sujeito epis-
têmico descentrado, que “encontrou nas estruturas lógico-matemáti-
cas um instrumento de integração crescentemente independente da
experiência”, pelo qual “conquista” o “ambiente experienciado”10,
representa uma forma do preconceito objetivista ocidental, uma hiper-
trofia da divisão cartesiana entre sujeito e objeto, emblemática da
subjetividade alienada do modernismo.

Criança como excluída da cultura

É característico daquela forma de infância, que se afirma estar


desaparecendo, que as crianças sejam assiduamente mantidas afasta-
das dos conhecimentos próprios dos adultos, principalmente assuntos
como sexo, morte, mas também de realidades sociais e econômicas
difíceis e dos aspectos mais obscuros da alma humana. Pais e educa-
dores frequentemente se dizem temerosos de que, se as crianças
souberem “demais” sobre, por exemplo, as realidades de exploração
e opressão política e econômica, conflitos de classes, racismo e etno-
centrismo, genocídio, violência e abuso sexual, abuso generalizado
de poder pela autoridade política, etc. pode ser um fardo demasiado
pesado para elas aguentarem, e pode conduzi-las ao cinismo, a deses-
perança ou a depressão. Muitos adultos são até céticos sobre a introdu-
ção do “pensamento crítico” na educação, visto que, em suas opiniões,
poderia ocorrer uma erosão das relações corretas de autoridade entre
a criança e o adulto, o que, segundo eles, poderia ser consequência de
se encorajar essas crianças a “pensar por si mesmas”. Assim, a criança é
estrangeira em relação à cultura do adulto, um estatuto que, no mundo
moderno, é reproduzido institucionalmente no fato de que as crian-
ças são segregadas nas escolas (e também são segregadas por idade
dentro das escolas), excluídas dos lugares de trabalho dos adultos e
forçadas a ficar em áreas recreativas criadas para que elas brinquem e

10
  Piaget, J., Biology and Cognition. In: Inhelder, B. & Chipman, H. H. (org.), Piaget and
His School, trad. ingl. New York: Springer Verlag, 1976, p. 52.

49
David Kennedy

socializem Para além disso, são objetivadas pelo “establishment” cien-


tífico como unidades de estudo, sujeitas a uma barragem de classifica-
ções normativas e são atribuídas a elas estatutos semi-médicos quando
se afastam da norma (“incapaz de aprendizagem”, “hiperativo”, etc.).

A criança como caso especial do outro marginalizado

É muito mais fácil defender a existência dessas formas de margi-


nalização e objetificação no caso de adultos marginais – quer sejam as
pessoas de cor, os doentes mentais, “os primitivos”, “os pobres” ou
os criminosos. A reivindicação de que a criança pode se agrupar entre
eles é complicada pelo fato de que ela parece ser um caso especial de
marginal. Afinal de contas, há um ciclo de vida dos organismos, huma-
nos ou outros. O ciclo de vida humano tem, de fato, certos padrões
distintivos, fases aparentes com limitações e possibilidades próprias de
cada um. Há uma trajetória de desenvolvimento que pode ser descrita
empírica e biologicamente, um processo de “formação” ou “ortogé-
nese”, que tipicamente pode ser entendido como um movimento
da “imaturidade” até a “maturidade” ou, na formulação clássica de
Werner, de “um estado de relativa globalidade e indiferenciação para
um estado de crescente diferenciação, articulação e integração hierár-
quica.”11 A criança está cronologicamente situada na extremidade infe-
rior deste “continuum”.
Dados estes limites biologicamente determinados, nós notamos
pelo menos as seguintes regularidades, algumas das quais podem
provavelmente ser pensadas também para justificar, pelo menos em
princípio, as formas de marginalização citadas acima, ou pelo menos
explicar por que elas acontecem com tal regularidade:

A criança precisa de proteção por causa do seu tamanho mais


pequeno, peso mais baixo e musculatura mais fraca – em relação aos

11
  Werner, H., The Concept of Development from a Comparative and Organismic Point
of View. In: Harris, D. B. (org.), The Concept of Development. Minneapolis: University of
Minnesota Press, 1957, p. 126.

50
A comunidade da infância

adultos e às crianças mais velhas – fato que a torna uma potencial


vítima daqueles que são maiores e mais fortes que elas e menos capaz
que os adultos para executar muitos tipos de trabalho necessários
à sobrevivência.
A criança precisa de proteção devido à sua relativa falta de experi-
ência, que lhe impede de ter uma base indutiva de exemplos concretos
por meio dos quais ela possa, resolver problemas ou fazer juízos.
Muitas crianças experimentam intensos períodos de instabilidade
emocional que, combinados com uma carência comparativa de um
locus de controle interno, as fazem mais sujeitas a “excessos” compor-
tamentais, tanto na forma de “ação transgressora” quanto de trans-
torno emocional. Assim, a criança poderia ser perigosa para ela mesma
ou para outros.
Muitas crianças não têm a disposição ou o aparelho de juízo para
um trabalho continuado no interesse da sua sobrevivência. As crian-
ças podem trabalhar e trabalham de fato, sendo que nas economias
agrícolas e pastoris são bastante capazes de desempenhar cabalmente
algumas funções econômicas necessárias. Mas, em sociedades indus-
triais, os períodos em que pudemos observar o tratamento das crian-
ças como adultos capazes de trabalho, testemunhamos uma explora-
ção dramática do trabalho infantil e maus tratos infringidos por aqueles
que controlavam o trabalho delas.
Concedendo o estatuto especial de desenvolvimento das crian-
ças, elas ainda podem ser definidas como sujeitos marginalizados, até
o ponto em que as precauções tomadas pelos adultos para protegê-las
dos resultados potencialmente prejudiciais deste estatuto, em muitos
casos, ou não as protegem ou as “superprotegem”, com resultados
igualmente negativos para ela. Não vejo nenhuma outra explicação
– excetuando-se o fato de que até certo ponto todas as pessoas nas
sociedades ocidentais são, em maior ou menor grau, marginalizadas –
para as seguintes situações contemporâneas nas vidas de crianças:
• A “guetorização” contínua e crescente de crianças em institui-
ções – escolas e creches – e a completa exclusão de crianças
dos locais de trabalho dos adultos.
• O desaparecimento sempre crescente dos espaços públicos
para a sociabilidade e brincadeiras das crianças, exceto aque-

51
David Kennedy

les criados especificamente para tal propósito, i.e., “reservas”


para brincadeiras.
• A apropriação contínua da criança pelo Estado e por institui-
ções educacionais poderosas as transformam em “matéria-
-prima” para usos econômicos, militares e políticos, ou, como
Ashis Nandy afirma, para “uma versão inferior, fraca, mas
utilizável do ser humano completamente produtivo e realiza-
dor que possui o mundo moderno.”12 Quando a retórica dos
“recursos humanos” é combinada com o crescente subfinan-
ciamento da educação infantil por parte de instituições públi-
cas, a própria falta de coerência identifica esta retórica como
racionalização. Uma forma normativa de educação “bancária”
que continua ignorando o potencial de desenvolvimento das
crianças e fazendo delas o objeto de uma tecnologia educacio-
nal desumanizante e pseudo-científica, embora haja uma abun-
dante evidência contrária.
• A relativa insensibilidade da sociedade para o abuso contra a
criança, nas suas mais variadas formas, análoga à sua insensibi-
lidade aos abusos que o homem infringe à mulher nas relações
conjugais. Este fato é comprovado nas decisões dos tribunais13,
como também nas reações cotidianas dos adultos que teste-
munham negligências ou abusos cometidos contra as crianças
em espaços públicos.
• A disciplina secular da psicologia do desenvolvimento que,
predominantemente, ainda interpreta a criança como “orga-

12
  Reconstructing Childhood: A Critique of the Ideology of Adulthood. In: Traditions,
Tyranny and Utopias: Essays in the Politics of Awareness. Delhi: Oxford University
Press, 1987, p. 61. Nos Estados Unidos, a mais flagrante, proeminente e recente ex-
pressão deste conjunto de pressuposições, talvez seja o relatório da Comissão Nacional
em Excelência de Educação, A Nation at Risk: The Imperative for Educational Reform.
Washington D.C.: U.S. Government Printing Office, 1983, o qual começa: “Nossa nação
está em risco. Nossa outrora inquestionada proeminência no comércio, indústria, ci-
ência e inovações tecnológicas está sendo ultrapassada por competidores por todo o
mundo.”
13
  Nota do tradutor: o autor se refere a decisões de juízes que devolveram as crianças
a pais que tinham abusado delas, mesmo com risco físico para as crianças. Muitas delas
acabaram perdendo a vida.

52
A comunidade da infância

nismo”, isola e nega-lhe sua subjetividade em teorias dos está-


gios e em taxonomias objetificantes.
O fato de estas formas de colonização também serem impostas
aos adultos - como na marginalização dos trabalhadores pelas corpo-
rações do capitalismo, na marginalização das pessoas de cor por
políticas racistas e etnocêntricas, e das mulheres por atitudes, políticas
e práticas machistas e patriarcais -, não mitigam ou servem de escusa
à situação das crianças. Poder-se-ia dizer que, em um mundo de gene-
ralizada objetificação e “normalização” da vida humana através dos
aparatos operados pelo Estado, o locus estratégico para recuperarmos
o que Paulo Freire denomina de nossa “vocação ontológica de Ser Mais
[humanos]”14, – a partir das “tecnologias disciplinárias” perpetuadas
pelas instituições governamentais, corporativas, científicas e educacio-
nais –, está no âmbito da criação e educação das crianças, seja expressa
dentro da família e da comunidade local, ou da educação na escola.
Isto porque a relação adulto–criança é o lugar interpessoal onde a
formação mais fundamental de autocompreensão toma assento: onde
o equilíbrio entre o consciente e o inconsciente, instinto e repressão,
socialização e não-socialização, liberdade e auto-restrição, é formado
e praticado. O caráter desse equilíbrio determina a capacidade de os
seres humanos de qualquer época ou cultura seguirem sua “vocação,
como seres que não podem autenticar-se fora da busca e da trans-
formação criadora”15, o que parece ser a condição necessária para se
resistir à colonização.

O surgimento da forma moderna de colonização da criança: uma


explicação psico-histórica

Um olhar psico-histórico para a relação adulto-criança sugere


que há, por natureza, uma relação de projeção complexa entre adul-
tos e crianças, que revolve ao redor da economia de instinto e repres-
são ou, como o historiador cultural Norbert Elias caracterizou, uma

14
  Pedagogia do Oprimido, p. 70.
15
  Ibid., p. 83.

53
David Kennedy

“interação” mutável entre os níveis conscientes e os níveis incons-


cientes da personalidade.16 Parece característico do ciclo da vida
em geral que a “criança” representa o inconsciente, o irracional, o
outro não socializado que o adulto carrega dentro de si. A criança é
o “ego primitivo” do adulto, presente nesse adulto como um traço e
como um potencial.
Nas sociedades em que a relação entre a expressão instintiva e a
repressão favorece a expressão, a criança e o adulto são menos dife-
renciados e são tidos como representativos de diferenças de tipo em
vez de diferenças de grau. Assim, por exemplo, no período medieval,
durante o qual as manifestações da agressividade e de libidos eram
menos coibidas na população em geral, não existia, de acordo com
Philippe Ariès17, qualquer concepção de “criança” como temos hoje;
tão logo elas adquiriam linguagem e mobilidade, partilhavam da vida
dos adultos. Correlativamente, os adultos eram mais “infantis”, tal
como hoje se entende. Eles viviam com uma concepção estreita de
privacidade em comparação com a que nós possuímos hoje. O adulto
típico daqueles tempos carregava menos um senso de si mesmo como
um indivíduo e mais como membro de uma coletividade. O que Elias
se refere como a “fronteira do pudor” estava mais distante. Funções
corporais, por exemplo, eram menos protegidas da visão pública; a
nudez não era entendida como embaraçosa ou vergonhosa na mesma
proporção em que é hoje; arranjos para dormir eram casuais, muito
comumente envolvendo dois ou mais estranhos dormindo na mesma
cama.18 E as crianças, que partilhavam do que Ariès se refere como um
ambiente social “polimorfo”, eram encontradas em todos os lugares
nos quais os adultos estavam, engajados nos mesmos tipos de ativida-
des, jogando os mesmos jogos e ouvindo as mesmas histórias que os
adultos ouviam.

16
  Elias, N., The Civilizing Process: State Formation and Civilization, trad. ingl. Oxford:
Blackwell, 1994 [1939], p. 475.
17
  Centuries of Childhood: A Social History of Family Life, trad. ingl. New York: Knopf,
1962.
18
  Elias, N., The Civilizing Process: The History of Manners, trad. ingl. Oxford: Blackwell,
1994 [1939], p. 134-178. Cf. Shahar, Sh., Childhood in the Middle Ages London: Routledge,
1990.

54
A comunidade da infância

As mudanças econômicas, políticas, tecnológicas, demográficas


e religiosas que deram lugar à mudança de uma economia instintiva
para a repressão são demasiado numerosas e complexas para serem
enumeradas aqui. Combinando as interpretações psico-históricas
de Elias e Foucault, encontramos a expansão, iniciada pela classe da
“Corte” e tendo os mesmos limites da ascensão das monarquias abso-
lutas do começo da Europa moderna, de um ideal clássico de intros-
pecção referido por Foucault como o “cuidado” ou a “tecnologia”
do eu.19 Este “eu” do período moderno emergente, universalizado
pela ascendente classe média, é um indivíduo antes de ser membro
de qualquer comunidade. Ele é privado, autoconsciente, solitário
dentro do novo Cosmos descentrado copernicano e da epistemolo-
gia baconiana da ciência empírica e instrumental. Ele é o que Elias
chama de “homo clausus”: “Seu núcleo, seu ser, seu verdadeiro eu
aparece […] como algo dividido dentro dele por uma parede invisível,
isolando-o, assim, de todas as coisas exteriores, inclusive de qualquer
outro ser humano.”20
A reorganização do polimorfismo social do mundo medieval
resulta tanto no incremento da interdependência social quanto na
separação psicossocial – um paradoxo histórico que não deveria ser
difícil de entender para nós, que vivemos em sociedades industrializa-
das do final do século XX. Uma recente separação de classes articulada
vem acompanhada de uma crescente centralização estatal e controle
das populações, e resulta em lugares separados, porém relacionados
– a casa, a escola, o lugar de trabalho adulto, a prisão, o manicômio,
o quartel. Relações de poder e poder coercitivo dentro da sociedade
se refletem em relações de poder dentro do eu, girando em torno do
equilíbrio entre repressão e vida instintiva e impulsiva. O eu moderno
torna-se “sujeito” em duas formas: tanto no sentido de que formaram-
-se fronteiras mais nitidamente definidas e menos permeáveis entre si
próprio e seu ambiente natural e social, conduzindo para uma “subje-
tividade” mais privada e introspectiva; quanto no sentido de estar

19
  Martin, L., Gutman, H. & Hutton, P. H., (org.), Technologies of the Self: A Seminar
with Michael Foucault Amherst: University of Massachusetts Press, 1988.
20
 Elias, The History of Manners, p. 204. Cf. p. 205-215.

55
David Kennedy

“sujeito a” uma nova disciplina de circunspecção pessoal e interpessoal


pela sociedade.
Este novo sujeito moderno observa a si mesmo cuidadosamente
e escreve manuais de etiqueta que podem ser lidos, hoje, tal como os
manuais endereçados às crianças em fase de socialização. Atitudes e
comportamentos comuns entre os adultos da idade média passaram a
ser vistos como vulgares e infantis. Antes de mais nada, o novo adulto
é um “leitor”. Ele lê a si mesmo, aos outros e às situações e, em vez de
ir à praça pública para informar-se através de intercursos verbais com
os outros, ele se isola nos símbolos abstratos e silenciosos do sistema
impresso, o qual pode deslocar a linguagem e o pensamento para fora
do tempo e para além do mundo comunicativo cotidiano.21
O resultado do aparecimento do “sujeito” moderno é que a criança
permanece atrás e se torna nossa “criança” moderna. Considerando
que adultos e crianças tinham antes compartilhado, em larga medida,
tanto o mundo da vida privada, quanto o mundo da vida social, agora
ambos têm experimentado uma separação. Diferenças entre adultos
e crianças têm se tornado diferenças de tipo em vez de diferenças de
grau. Doravante, as crianças têm que fazer-se adultos através da educa-
ção. Como Elias diz:

…o modelo emergente [no começo do período moderno] é caracteri-


zado por uma profunda discrepância entre o comportamento dos chama-
dos adultos e das crianças. Mas, precisamente por este aumento da pros-
crição social de qualquer impulso, pela repressão destes impulsos da
superfície da vida social e da consciência, a distância entre a estrutura da
personalidade e do comportamento dos adultos em relação às crianças
foi necessariamente ampliada. […] As crianças têm que, num espaço de
poucos anos, alcançar o elevado nível de vergonha e repulsa que se tem
desenvolvido ao longo de muitos séculos. Sua vida instintiva tem de ser
rapidamente sujeitada ao controle estrito e amoldamento específico que

21
  Cf. ONG, W., Orality and Literacy: The Technologizing of the Word. New York:
Methuen, 1982.

56
A comunidade da infância

dão à nossa sociedade a sua feição, e que se desenvolveu muito lenta-


mente ao longo dos séculos.22

A característica principal deste “controle rígido e amoldamento


específico” é resumido no termo foucaultiano “disciplina”, ou “fórmu-
las de dominação”, impostas no interesse da formação de um “corpo
dócil”, ou (na terminologia rousseauniana) de um “cidadão”. O corpo
dócil tem sido “sujeitado”, isto é, re-ajustado para atender os propósi-
tos da economia e política modernas através “do controle, intensifica-
ção e da distribuição de forças, do ajuste e da economia das energias”23.
Numa cultura ajustada para ser repressiva, a criança é o “corpo
selvagem” por excelência, até mesmo mais do que a mulher, o louco
ou o criminoso, pois ela representa a natureza e a origem, e cada uma
das suas expressões instintivas é uma lembrança viva dos próprios
impulsos reprimidos dos adultos. A criança tem se tornado um outro
transgressivo, a fonte de perigo emocional, análogo ao perigo episte-
mológico do louco, o perigo social do pobre, o perigo sexual do sexo
feminino. Refiro Elias numa extensa citação:

À medida que o padrão de delicadeza e pudor aparece aos adultos


como mais “natural” e quanto mais se tomar como garantida uma
restrição civilizada aos impulsos instintivos, mais incompreensível se
torna para os adultos que as crianças não tenham esta delicadeza e
pudor “naturalmente”. […] As crianças esbarram, necessariamente e
por repetidas vezes, nos limites da delicadeza dos adultos e, uma vez
que elas ainda não estão adaptadas, infringem os tabus da sociedade,
cruzam a fronteira do pudor adulto e penetram em zonas emocionais
perigosas, que o adulto, ele próprio, apenas pode controlar com dificul-
dade. […] A ansiedade se apossa dos adultos quando veem ameaçada a
estrutura de sua própria vida instintiva, tal como é definida pela ordem
social. Qualquer outro comportamento significa perigo. Isto conduz a
um meio-tom emocional associado a demandas morais e a uma seve-

22
  Elias, N., The History of Manners, p. 115.
23
  Foucault, M., The History of Sexuality, trad. ingl., v. I, extraído de Rabinow, P. (org.),
The Foucault Reader. New York: Pantheon, 1984, p. 267.

57
David Kennedy

ridade agressiva e ameaçadora que as sustentam, visto que a quebra


das proibições coloca em posição de instável equilíbrio de repressão
todos aqueles para os quais o modelo de sociedade se tornou uma
“segunda natureza”.24

Isto explica a severidade, na modernidade, do ensino das boas


maneiras às crianças desde muito novas em casa, mas especialmente
nas escolas, quando nós entendemos que o projeto é, de fato, corri-
gir a natureza humana ao serviço do que se apresenta, por si mesmo,
como o mais alto e evoluído ideal da natureza humana. Lloyd deMause
refere-se a dois tipos de introdução de boas maneiras às crianças que
predominaram no começo do período moderno como “ambivalente”
e “intrusiva”. Para o primeiro tipo, a criança é ainda “um receptáculo
de perigosas projeções” de sua própria vida instintiva, conduzindo seus
pais a sentirem a necessidade de, forçosamente, “moldar”, mais tipica-
mente através de castigos físicos, as crianças “dentro de uma forma”.
Com o estabelecimento do modo intrusivo, os pais têm removido suas
próprias projeções para mais longe: a criança é menos ameaçante, mas
os pais ainda continuam precisando “dominar sua mente, com vista a
controlar seu interior, sua raiva, suas necessidades, sua masturbação,
sua própria vontade”25.
A formulação de deMause a respeito dos modos de criação de
crianças, dos quais ele teoriza seis,26 consiste no que ele descreve
como a “teoria psicogenética da história”, a qual postula um avanço27
24
  Elias, N., The History of Manners, p. 137.
25
  deMause, L., The Evolution of Childhood, p. 153.
26
 Em The Evolution of Childhood, p. 53, deMause identifica os seguintes modos,
os quais afirma seguirem um progresso evolutivo através da história: Infanticida
(Antigüidade até séc. IV d.C.), Abandono (séc. IV a séc. XII), Ambivalente (séc. XIV
a séc. XVII), Intrusivo (séc. XVIII), Socialização (séc. XIX até a metade do séc. XX) e,
Cooperação (começa no meio do séc. XX).
27
  Não é necessário ler a teoria de deMause como evolucionista para que ela fun-
cione. De fato, Peter Peschauer sugeriu que todos os seis modos estejam presentes em
qualquer determinada sociedade humana, expressados em práticas que podem variar
através da história e cultura. Ele ressalva o aparecimento de uma cultura evolucionária
pela sugestão de que um modo particular é predominante em cada período, e que a
direção ou progresso dos modos indicam que a criança é uma projeção completa do
próprio material instintivo do adulto, evoluindo para modos nos quais está aumen-
tando a separação entre os dois. Cf. “The Childrearing Modes in Flux: An Historian’s
Reflections”, The Journal of Psychohistory 17 (1), 1989, p. 1-41.

58
A comunidade da infância

evolutivo na capacidade de os pais nutrirem e assegurarem seus filhos.


Esse avanço, segundo deMause, ativa a capacidade dos adultos “de
regredir à idade psíquica de suas crianças e trabalhar através das ansie-
dades próprias àquela idade de uma maneira melhor neste segundo
embate do que quando eles o fizeram durante sua própria infância. O
processo é similar à psicanálise, a qual também envolve regressão e
uma segunda chance de enfrentamento das ansiedades infantis”28.
Por seu lado, o sucesso desta “regressão ao serviço da criança”
gira em torno da consciência do adulto de sua própria relação proje-
tiva com a criança. O adulto, quando “confrontado com uma criança
que necessita de algo”, ou aproxima a criança como uma tela para a
projeção de seu próprio material inconsciente (reação projetiva); como
um substituto de um adulto em seu passado, com quem seu relacio-
namento é, ainda, não resolvido (reação inversa); ou é capaz de sentir
empatia pelas necessidades instintivas da criança e fazer alguma coisa
no intuito de satisfazê-las (reação de empatia).29
A teoria de deMause tende a confirmar tanto a análise de Elias
como a de Foucault sobre a moderna relação adulto-criança. O que é
particularmente interessante acerca de sua teoria é um pressuposto
que parece paradoxal: a dinâmica fundamental da evolução da relação
adulto-criança envolve tanto uma abordagem mais próxima à criança,
isto é, a habilidade para identificar-se com suas necessidades instin-
tivas, quanto uma separação, tal como representada pela noção de
retirada da projeção. A reação de empatia torna-se possível porque
o adulto é capaz de se separar da ansiedade produzida pela “zona
de perigo emocional” que a criança desencadeia através da sua rela-
tiva falta de repressão ao instinto. Isto é, ele pode, nas palavras de
deMause, “regredir ao nível das necessidades da criança e identificá-las
corretamente sem uma mistura de suas próprias projeções”, e assim
“mantendo distância suficiente da necessidade com o intuito de ser
capaz de satisfazê-la”30.

28
  The Evolution of Childhood, p. 3.
29
  Ibid, p. 6.
30
  Ibid., p. 6-7.

59
David Kennedy

Isto parece indicar um movimento dialético. A possibilidade de


mais íntimas aproximações às crianças por parte dos adultos é criada
somente como resultado de uma separação inicial, a qual é represen-
tada pelo aparecimento da “fronteira do pudor” assinalada por Elias,
isto é, o novo equilíbrio entre instinto e repressão no adulto moderno.
É através deste novo equilíbrio que o adulto moderno se torna um ser
hermenêutico, ele é agora um “leitor” da vida e do outro e um leitor é,
por definição, alguém que interpreta. Esse intérprete deve interpretar
porque está afastado da situação, ou do “texto” – se tornou estran-
geiro através da transformação do tempo. Mas é somente esta situa-
ção de mudança ou relativo desembaralhamento que torna o diálogo
possível; e este diálogo resulta numa “fusão de horizontes”, seguido
por, nas palavras de Paul Ricoeur, uma “apropriação”, ou reconstitui-
ção do texto dentro do entendimento do leitor, que ele caracteriza
como “entendimento na e através da distância”31. Aplicado à relação
adulto-criança, o processo hermenêutico é o que deMause se refere
como uma revogação da projeção através do distanciamento psicoló-
gico, seguida pela identificação, ou a habilidade de “regredir ao nível
da necessidade da criança e identificá-la corretamente sem se lhe
acrescentar as próprias projeções do adulto.” É nesse momento que o
adulto desperta para a voz da criança.

O privilégio epistêmico das crianças

Estar desperto para a voz da criança significa que essa criança é


entendida como portadora de novas informações para a autocompre-
ensão do adulto. Como outro afastado, a situação da criança é análoga
ao ponto de vista que as teóricas feministas descrevem como “valio-
sos ‘estranhos’ para a ordem social”, ou “marginalizados de dentro”32.

31
  Cf. Gadamer, H-G., Truth and Method, trad. ingl. New York: Crossroad, 1975; e
Ricoeur, P., The Hermeneutical Function of Distanciation. In: Hermeneutics and the
Human Sciences, trad. ingl. Cambridge: Cambridge University Press, 1987, p. 143.
32
  Harding, S., Whose Science? Whose Knowledge? Thinking from Women’s Lives.
Ithaca, NY: Cornell University Press, 1991, p. 124, 131.

60
A comunidade da infância

Como as mulheres, pessoas de cor ou outros marginalizados pelo


construto individual, interpessoal e social, eurocêntrico e patriarcal,
o lugar da criança no mundo natural e social proporciona a ela uma
“prerrogativa epistêmica”. Uma vez que ela vive antes, ou às margens,
da economia dos instintos do adulto, sua relação com essa economia
é inerentemente transgressiva. Dado que ela não é, como descreve
Sandra Harding, uma “nativa”33, ela percebe situações que os nati-
vos não percebem.
O que acontece ao adulto que escuta a voz da criança é que, atra-
vés dessa relação com a criança, redescobre a sua própria infância ao
ter consciência dos limites do instinto e da repressão resultantes da
sua própria formação de infância. Sendo consciente de sua própria
“criança”, o adulto recupera a si mesmo num nível mais alto: incor-
porando conteúdos inconscientes à consciência. O processo de fazer
consciente o inconsciente é, como temos aprendido tanto de Freud
como de Jung, o objetivo inerente do desenvolvimento psíquico, quer
seja formulado como “aonde o id estava, lá o ego estará” (Freud), ou
como a crescente abertura da consciência aos conteúdos do incons-
ciente (Jung). De uma perspectiva ricoeuriana, o resultado do processo
hermenêutico é uma “metamorfose do ego”, por meio da qual, atra-
vés de “um momento de distanciamento na relação do ego para si
mesmo”34, esse ego recupera-se a si próprio num novo equilíbrio. Alice
Miller o coloca de forma mais concreta:

Uma vez que sejam permitidas às crianças serem mais que os porta-
dores de projeções parentais, elas podem se tornar, para os seus pais,
uma fonte inesgotável de conhecimento sobre a natureza humana.
Sensualidade, prazer com o próprio corpo, prazer no afeto demons-
trado por outra pessoa, a necessidade de se expressar, de ser ouvido,
visto, compreendido e respeitado, não ter que suprimir a raiva e a ira e
ser permitido expressar também outros sentimentos como pesar, temor,
inveja e ciúme…35

33
  Ibid., p. 307.
34
  Ricoeur, P., “The Hermeneutical Function of Distanciation”, p. 144.
35
  Thou Shalt Not Be Aware: Society’s Betrayal of the Child, trad. ingl. New York:
Meridian, 1986, p. 154.

61
David Kennedy

Uma vez que que ir entrando em diálogo com a voz da criança


resulta numa maior integração psicológica por parte do adulto, isto é
então refletido na expansão de uma forma de educação das crianças
que reconhece a importância de satisfazer as “necessidades narcísi-
cas” delas, “tais como o respeito, ver-se em espelho, ser compreen-
dida e ser levada a sério”36. Isto, por sua vez, conduz ao desenvol-
vimento de adultos que experimentam um relacionamento mais
saudável e criativo entre os elementos conscientes e inconscientes da
personalidade, e são, portanto, mais capazes de “investigação e trans-
formação criativa”.

Começando: elementos de uma reconstrução emergente da


relação criança-adulto

A possibilidade de uma mudança positiva dos limites entre


“criança” e “adulto” parece depender especialmente das condições
materiais da civilização. DeMause insiste em que aquilo que ele chama
de “pressão geracional para mudança psíquica”, a qual guia (e é guiada
pela) a evolução dos modos de criação das crianças, “ocorre de forma
independente das mudanças sociais e tecnológicas”37. Porém, achados
do estudo da história da infância continuam a confirmar a importância
do aperfeiçoamento das relações adulto-criança no crescimento e esta-
bilidade política e econômica, no relativamente sofisticado conheci-
mento, prática e acessibilidade médicas e epidemiológicas, na formação
e manutenção de um ambiente de informação que produza “leitores”
(ou “hermeneutas”) num amplo sentido. Além disso, qualquer argu-
mento para uma mudança histórica modelada na dialética hegeliana é
um pouco suspeito. A interação variável entre os níveis consciente e
inconsciente na personalidade modal de qualquer cultura é por demais
complexa para ser consignada em um movimento histórico “progres-
sivo” e linear, e afigura-se ser caracterizada na vida cotidiana pela assi-

36
  Ibid, p. 144.
37
  The Evolution of Childhood, p. 3.

62
A comunidade da infância

metria, espiralamento, regressão, patologia, fracasso, acidente, boa ou


má “sorte”, etc.,38 como também por ser influenciada por incontáveis
e únicas, porém relativamente previsíveis, variáveis locais e regionais.
Pode-se reconhecer abertamente, pelo menos, que o projeto de “revo-
gação da projeção”, que conduz à “relação de empatia”, parece ser um
elemento chave para a capacidade de os seres humanos de conviverem
com a diferença e, então, articula-se profundamente com a superação
do sexismo, do racismo, do etnocentrismo, do classicismo, da homofo-
bia, da intolerância religiosa e do nacionalismo agressivo. O que parece
se seguir aos argumentos apresentados acima é que a relação adulto-
-criança é o ambiente interpessoal onde qualquer economia instintiva
de um indivíduo se produz; e que é o caráter de tal economia que confi-
gura a capacidade humana de tolerar a diferença, de valorar as neces-
sidades narcísicas dos outros, de se desenvolver psicologicamente e
na qualidade chamada “razoabilidade”, a qual, como nosso século tem
mostrado, não depende apenas de racionalidade.
Como iria se parecer uma cultura que tivesse internalizado o ideal
de empatia? Existem indicações de que esta mudança já tenha come-
çado a se insinuar, pelo menos no ocidente pós-moderno. A preocupa-
ção com a “criança interna” na psicoterapia contemporânea parece ser
uma delas. Constitui um índice de revogação da projeção, no sentido
em que o adulto que reconhece a criança interna reconhece sua
unidade ontológica com a criança e está consciente de que o contínuo
adulto-criança está presente em cada época do ciclo da vida. Isto está
relacionado à recente tendência em teoria psicanalítica - implícita em
Freud, mas explicitada na psicologia do ego pós-Freudiana -, ao inter-
pretar o processo de desenvolvimento como vitalício. Neste ponto, o
adulto é sempre ainda criança. Dieter Misgeld apresentou esse enten-
dimento eloqüentemente:

38
  Cf. Keniston, K., Psychological Development and Historical Change. In: Rabb, T. K.
& Rotberg, R. I, The Family in History: Interdisciplinary Essays. New York: Farrar, Straus &
Giroux, 1976. Ele caracteriza o desenvolvimento psicológico como “uma estrada muito
áspera, marcada com obstruções, entremeada com ruas sem saída, e com paradores
sedutores.” (p. 149).

63
David Kennedy

… em vez de localizar crianças e adultos como estando em estágios dife-


rentes dentro de uma sequência de desenvolvimento, como um ponto
final fixo como se fosse um padrão imutável válido para a avaliação da
sequência, uma orientação propriamente auto-reflexiva coloca em ques-
tão a existência de entidades adultos e crianças definitivamente locali-
záveis. É um questionamento no qual a comunidade do adulto e criança,
seu pertencer conjunto, é trazida à tona. Isto apenas acontece no reco-
nhecimento de que, enquanto adulto, não se é mais do que o movimento
de volta à criança e, daí em diante, até o ponto onde se começou o movi-
mento. Ter sido uma criança é ainda uma possibilidade que se vive, algo
a que se tem que regressar com vista a estabelecer a si mesmo como
um adulto. Se gera, reflexivamente, uma comunidade de adultos e
crianças na qual princípios e regras são debatidos em ambos os lados,
na qual estar amarrado à norma como um adulto pode ser questionado
fazendo-se referência às crianças como possuidoras de mais princípios
do que os adultos. Porque as crianças, às vezes, podem parecer menos
vinculadas à norma do que os adultos, por isso parecendo mais adultas
do que os próprios adultos… Um interesse nas crianças não é indepen-
dente de um interesse em estabelecermos para nós mesmos quem nós
somos, como adultos, e o que nós devemos encaminhar a fim de viven-
ciar nossa adultez.39

Tal mudança de perspectiva tem implicações óbvias para a educa-


ção, uma vez que estabelece o trabalho de base para uma pedagogia
fundada no diálogo entre o adulto e a criança. Também tem impli-
cações para a psicologia da criança, já que se torna problemática a
direção do desenvolvimento no qual todas as teorias adultistas dos
estágios são baseadas - a ideia de um “ponto de chegada fixo” da auto-
-possessão racional cartesiana, ou do sujeito epistêmico descentrado
piagetiano. Assim, tal mudança aponta para possibilidade, dentro das
ciências humanas, de uma metodologia dialógica preferivelmente a
uma objetivante.

39
  Misgeld, D., “Self-Reflection and Adult Maturity: Adult and Child in Hermeneutical
and Critical Reflection”. Phenomenology + Pedagogy v. 3, n. 3 (1985), p. 199.

64
A comunidade da infância

Reconhecer a unidade também envolve reconhecer a diferença. O


descentramento do adultismo implica o entendimento de que a criança
ocupa uma perspectiva através da sua colocação frente aos outros, a
qual não é completamente acessível aos adultos – essa perspectiva é
informada não somente pela diferença orgânica, mas pelo posiciona-
mento no mundo social e suas relações de poder e, também, no mundo
natural. Ampliar os privilégios epistêmicos para a criança implica
colocar entre parênteses as normas epistemológicas dos adultos e a
postura de perceber o que a criança pode saber, não somente por sua
posição de “estranho de dentro”, mas também por causa do seu baixo
nível de socialização do estoque de conhecimentos por ela recebido,
isto é, a ausência de uma visão de mundo cristalizada, ou de uma onto-
logia e epistemologia recebidas.40 Um exemplo poderia ser a abertura
da criança a outras espécies e outras formas de vida; ou o que Dewey
se refere como um “poder maravilhoso de atrair a atenção cooperativa
de outros” através de uma “habilidade flexível e sensitiva […] de vibrar
empaticamente com as posturas e ações em torno dela”41. E Coleridge
identificou a criança pequena com o que ele chamou de “razão intui-
tiva”, a qual descreveu como “aquela intuição das coisas que surge
quando nos possuímos como seres em conjunto com o todo”, em
contraste com “aquilo que se apresenta quando […] nos pensamos
enquanto seres separados e colocamos a natureza em antítese à
mente, o objeto ao sujeito, coisa ao pensamento, morte à vida”42.
O reconhecimento de que existem muitas coisas que a criança não
sabe e o adulto sim, mas de que também há coisas que a criança sabe
e o adulto não, se opõe à noção de “déficit teórico” da infância. Esse
reconhecimento também introduz outra fissura no edifício epistemoló-
gico objetivista ocidental, em adição àquelas fissuras introduzidas pelo
feminismo e pelas epistemologias multiculturais. Pareceria indicar que

40
  Para uma ideia da criança jovem como uma profeta involuntário contra a redução
ontológica da natureza implícita no materialismo filosófico, ver Kennedy, D., Fools,
Young Children, Animism, and the Scientific World Picture. Philosophy Today, v. 33, n. 4
(1989), p. 374-381.
41
  Dewey, J., Democracy and Education. New York: Macmillan, 1916, p. 43
42
  Citado em Kennedy, D. The Hermeneutics of Childhood. Philosophy Today, Vol. 36,
n. 1 (1992), p. 44 -58.

65
David Kennedy

aquilo que o sujeito marginalizado sabe, o sabe porque ele não sabe
algo mais, isto é, o conhecimento tácito da estrutura dominante ou
“nativa”. Se este princípio é correto, ele também opera em outra dire-
ção e problematiza a noção de um conhecimento unificado, ou pelo
menos separado do diálogo ilimitado como um princípio epistêmico
fundamental. Nandy traz esse ponto para o problema da revogação da
projeção, fazendo a conexão entre a cultura da infância e a cultura dos
povos oprimidos, e as relações respectivas delas com o colonialismo
patriarcal branco. Ele diz:

A cultura do mundo adulto cruza e, às vezes, confronta o mundo da


criança. Idealmente, esse compartilhamento de espaço deveria aconte-
cer na base do respeito mútuo. Que isto não aconteça é uma medida do
nosso medo de perder nossa própria individualidade através dos nossos
contatos próximos com culturas que ousam representar nossos outros
eus, assim como também uma medida do nosso medo da liminaridade
entre o adulto e a criança que muitos carregamos dentro de nós mesmos.
Esta é a liminaridade que Freud trabalhou em sua interpretação da psico-
patologia. Esta é, também, a liminaridade que Gandhi teve de enfrentar
abertamente em sua batalha contra a ideologia do colonialismo… O teste
final de nossa habilidade em viver uma existência bicultural ou multicul-
tural talvez ainda seja nossa habilidade em vivermos com nossas crianças
em reciprocidade.43

O ambiente originário e principal para a interseção e confronta-


ção, a que se refere Nandy, será sempre a família nuclear, independen-
temente de quão isolada e marginalizada ela possa se tornar. Contudo,
o papel potencial da escola, nessa “partilha de um espaço […] na base
do respeito mútuo”, não pode ser subestimado. Este potencial só pode
ser realizado através de uma reorientação por parte do sistema educa-
cional, o qual, até o momento presente é - assim como a maioria da
população de pais aos quais serve -, orientado, ainda que apenas por
omissão, para a criança-como-matéria- prima, um modelo deficiente.

43
  “Reconstructing Childhood”, p. 73, 75.

66
A comunidade da infância

Compreender a escola como um lugar de socialização mútua,


onde, para citar Nandy, “nossos vínculos mais liberalizantes podem
ser com as crianças não socializadas”,44 pareceria significar mudanças
tão profundas como quase inimagináveis em nossa presente situação.
Significaria, pelo menos, o desmantelamento da estrutura de poder
hierárquica adulta das escolas, a qual procedem para manter o modelo
de produção educacional; uma reformulação completa de um sistema
objetivante de apreciação e avaliação, o qual veicula o sistema curri-
cular e pedagógico “bancário” ao qual serve; e uma reconstrução da
criança como sujeito - como ativo e competente protagonista em seu
próprio processo de aprendizado e de desenvolvimento. Mesmo num
sentido genérico, isto implicaria uma reintegração dos mundos vividos
pelas crianças e adultos, e uma superação da guetorização das crian-
ças dentro das escolas e creches. Ambas se dariam através da reestru-
turação dos espaços de trabalho e através da reclamação de espaço
público para que as crianças brinquem e socializem.
A importância do pensamento crítico, ou filosofia, na redefinição
da criança como sujeito que sabe, é particularmente crucial para a trans-
formação tanto da relação adulto-criança quanto da escola, porque sua
atividade característica está no âmago de uma educação problematiza-
dora e dialógica. A filosofia é a disciplina que emerge mais diretamente
do sentido humano fundamental de espanto, e que também suscita o
questionamento, tanto da realidade, quanto do nosso conhecimento
acerca de tal realidade. Com a prática do conhecimento questionador -
tanto do próprio quanto dos outros - promete ser a cunha epistêmica e
curricular que abre a experiência da infância à reflexão, tanto por parte
das crianças quanto dos adultos.
Parece ser mais do que coincidência o fato de que a valoração
negativa do poder de juízo, de raciocínio e de reflexão da criança tem
legitimado a marginalização das crianças desde Aristóteles até Piaget.
O que isto significa do ponto de vista da criança é que o adulto não
pode “escutar” sua forma de razão, tanto no que esta forma tem de
similar como de diferente da do próprio adulto, o que faz da infân-

44
  Ibid., p. 75

67
David Kennedy

cia uma cultura do silêncio. A voz da criança torna-se uma voz desde
as margens, associada a uma natureza “essencial”, à animalidade, à
loucura, à criminalidade, ao divino45, isto é, ao sem voz. O tipo de refle-
xão que a filosofia figura - especialmente a filosofia feita em diálogo
comum ou “comunidade de investigação” - oferece uma oportunidade
ideal para os adultos garantirem a prerrogativa epistêmica das crianças,
reconhecerem uma fala diferente da sua própria, defrontarem- se com
uma cultura que “representa nossos outros eus”, viverem o outro lado.

O modo da mudança

Qualquer que seja a causa formal ou eficiente, é provavelmente


seguro (e talvez confortável) dizer que a transformação positiva da rela-
ção adulto-criança não está realmente sob nosso controle. As vicissitu-
des da dialética histórica que esbocei neste trabalho foram, sem dúvida,
simplificadas demais, e, como conhecimento retrospectivo, não têm,
necessariamente, qualquer valor preditivo. De fato, nossa época está
assombrada pelo espectro do que Postman chama de “adulto-criança”,
isto é, uma personalidade modal, produzida e mantida pela televisão,
com a “idade mental de treze anos”, quer ela tenha oito ou trinta anos
de idade, que sorri maliciosamente diante das mesmas piadas sexuais
em séries televisivas e vibra diante da mesma violência (quer real ou
representada – isto nem sempre é claro), que veste as mesmas roupas
e assiste aos mesmos eventos esportivos. Do ponto de vista do reequi-
líbrio da economia instintiva, isto pareceria análogo àquilo que os estu-
dantes de culturas bilíngues chamam de “semilinguismo”, erosão da
competência linguística em ambas as línguas que a pessoa fala.
Uma mudança histórica do tipo aqui discutida parece acontecer
de modo fragmentado e se caracteriza por períodos, possivelmente

45
  Assim J. Derrida diz: “O homem se chama homem só traçando limites que excluem
seu outro do jogo da suplementaridade: a pureza da natureza, da animalidade, do pri-
mitivismo, da infância, da loucura, da divindade. A aproximação para estes limites é
temida imediatamente como uma ameaça de morte, e desejada como acesso a uma
vida sem diferença”. Of Grammatology, trad. ingl. Baltimore: Johns Hopkins Press, 1976,
p. 245.

68
A comunidade da infância

muito longos, de avanços, de retrocessos, de supressão, de reação


e, de repente, de saltos imprevisíveis. O único controle real que nós
possuímos sobre ela é provavelmente no campo da educação. Mas o
caráter colonizador da educação patrocinada pelo Estado parece estar
ainda profundamente entranhado na corrente principal. Enquanto isso,
os esforços na descentralização escolar, dominados como são por inte-
resses próprios econômicos, religiosos e de classe, tendem a reproduzir
o modelo hegemônico. Como quer que seja, a emergência da teoria e
prática educacionais dialógicas centradas na criança parece oferecer a
esperançamais concreta para a possibilidade de reconstrução social
através da reconstrução dialética da relação adulto-criança.

69
A comunidade da infância

3. Notas sobre a filosofia da infância


e a política da subjetividade

A criança e a segunda harmonia

A criança aparece pela primeira vez, nos textos antigos conheci-


dos, não como um princípio, mas como um fim. Ela representa a ideia de
efetivação do crescimento espiritual como inversão do ciclo da vida. No
século VI a.c. Lao-Tsé diz: “Ele que está em harmonia com o Tao é como
uma criança recém-nascida. Seus ossos são brandos, seus músculos são
fracos, mas o aperto da sua mão é poderoso… O poder do Mestre é
assim. Ele deixa todas as coisas virem e irem sem esforço, sem desejo”.1
Jesus fala da obtenção de maturidade espiritual como “tornar-se como
criancinhas”2. Plotino compara crianças com adultos “cujas aptidões
e atividades mentais estão ocupadas com grande número de assun-
tos passando rapidamente por todos, sem demorar-se em nenhum”.
Já entre as crianças, por outro lado, os objetos “ganham presença”,
porque a atenção da criança não está “espalhada”, dispersa no mundo
de multiplicidade.3

1
 Lao-tsé, Tao-te ching. Trad. de Stephen Mitchell. New York: Harper & Row, 1988,
par. 55.
2
  Marcos, 10, 13.
3
  Bales, Eugene. Recordação, esquecimento e a revelação do ser em Heidegger e
Plotino. Philosophy Today. v. 34, n. 2, 1990, p. 142.

71
David Kennedy

Nesse magnífico e eterno mito ocidental, a criança representa


uma unidade ontológica original de ser e conhecimento, pensamento e
experiência – identidade realizada. A criança é pré-moral, o adulto reali-
zado é pós-moral. O relato da viagem de um para outro começa com
uma Queda na divisão. Essa é, segundo o relato, uma queda necessária,
pois ela inaugura uma viagem psicológica e espiritual que – se a pessoa
não morrer no deserto da adultez – promete auto-reintegração em um
nível superior. A lógica da história de Hegel reproduz este mito univer-
sal do ciclo vital do indivíduo. Por isso, ele pode dizer: “A harmoniosi-
dade da infância é um dom da mão da natureza: a segunda harmonia
deve resultar do afã e do cultivo do espírito”4.
Não apenas em Hegel, mas em seus contemporâneos românti-
cos, o mito da árdua jornada psicológica da unidade recuperada deixa
suas amarras religiosas e de outra dimensão e entra no tempo. Schiller
exprimiu em 1795 o ideal romântico em referência às crianças:

Elas são o que nós fomos; elas são o que nós devemos tornar-nos nova-
mente. Nós fomos natureza assim como elas, e nossa cultura, mediante
a razão e a liberdade, deve conduzir-nos de volta para a natureza. Elas
são, portanto, não só a representação da nossa infância perdida, […] mas
são, também, representações da nossa realização mais elevada no ideal.5

Unidade original, eu e natureza dados como um, o universal


concreto. O Romantismo redescobre a “divina” arquetípica criança da
mitologia6 bem aqui na terra como um profeta, um vidente silencioso,
um enigmático sinal de vida sem divisão, sem differance. A linguagem
desse profeta é a brincadeira. Heráclito diz: “O tempo é uma criança
movendo fichas num jogo. Seu reino é o de uma criança”7. Agostinho,

4
  Citado In: Abrams, M. H. Natural Supernaturalism: Tradition and Revolution in
Romantic Literature. New York: W. W. Norton, 1971, p. 380.
5
  Von Schiller, Friedrich. Naive and Sentimental Poetry and On the Sublime. New York:
Frederick Unger, 1966, p. 85.
6
  Sobre a divina criança no mito e na psicanálise. ver Jung, C. G., Kerenyi, C. Essays
on a Science of Mythology: The Myth of the Divine Child and the Mysteries of Eleusis.
Princeton, NJ: Bollingen, 1963.
7
  Diels-Kranz. Fragmento 52.

72
A comunidade da infância

em crise, andando de um lado para outro em frenética agonia pelo


jardim, ouve a “voz de uma criança numa casa próxima”, cantarolando
“pega-a e lê, pega-a e lê”. Agostinho abre a Bíblia que está na sua mão,
na passagem que muda para sempre a sua compreensão da vida.8 Em
1933, Cartier-Bresson fotografa um grupo de 12 crianças em idade esco-
lar brincando nas ruínas de uma casa em Nápoles. Emoldurados por
um buraco que se abre numa parede de argamassa, sua diversão exta-
siante parece tanto uma dança celebratória como uma escaramuça de
guerra, quando eles se agarram, fogem, riem, gritam, ameaçam, dão
risadinhas, correm, fitam, choram. No quadro “Virgem e Menino com
Santa Ana”, de Leonardo (c. 1508, Louvre), o Cristo menino, nu, brinca
com o cordeiro que representa seu assassínio sacrificial. Em “Virgem no
Roseiral”, de Stefan Lochner (c. 1450, Colônia), o pequeno Menino nu
segura na mão uma bola de ouro, que lhe é apresentada por um anjo.
O jogo, diz Melanie Klein, é “o mais importante meio de expressão da
criança”. Visto que seu “consciente está por ora em íntimo contato
com seu inconsciente”, a linguagem do jogo é a mesma “com que
nós estamos familiarizados nos sonhos”.9 Para a imaginação român-
tica, o jogo exprime um princípio ontológico. Ele é a atividade em que
convergem o universal e o particular, o possível e o dado, o aleatório
e o determinado, acaso e destino, contingência e objetivo, é e deveria
ser, tempo e eternidade. O mundo da natureza brinca e a brincadeira
humana representa essa brincadeira e transforma-se nela, superando,
assim, a nossa separação do mundo. No jogo, a tirania de meios e fins é
quebrada, e a causalidade dá lugar à sincronicidade. O jogo implica um
diferente relacionamento sujeito- objeto, eu-mundo, interior-exterior.
“Os jogadores”, diz Gadamer, “não são os sujeitos do jogo: ao contrá-
rio, o jogo meramente alcança apresentação por meio deles.”10 O jogo
situa-se no que Winnicott, descrevendo crianças pequenas, chamou
“espaço transicional”, que é também o espaço da arte, da fantasia e
da emoção profunda, onde os limites do ego tornam-se permeáveis e

8
  Saint Augustine, Confessions. Trad. R. S. Pine-Coffin. Harmonsworth: Penguin Books,
1961, p. 177 [trad. brasileira pela Vozes].
9
  Klein, Melanie. The Psycho-analysis of Children. London: Hogarth Press, 1980, p. 7, 9.
10
  Gadamer, Hans-Georg. Truth and Method. Trad. Ingl. New York: Continuum, 1975,
p. 92 [trad. pela Vozes].

73
David Kennedy

o muro que nós construímos entre realidade e imaginação é tempora-


riamente transposto. Posto que o jogo não está “dentro” nem “fora”11,
ele é vivenciado como o casamento do princípio de prazer com o prin-
cípio de realidade. N. O. Brown chama isto “significado psicanalítico
da história”: “O nosso indestrutível desejo inconsciente de retorno à
infância, nossa profunda fixação na infância é um desejo de retorno
ao princípio de prazer, de uma recuperação do corpo do qual a cultura
nos aliena, e de brincar, em vez de trabalhar”12. O jogo é pura presença,
acesso a uma vida sem diferença. Schiller o expressa claramente: “O
impulso a brincar visaria a extinção do tempo a tempo e a reconciliação
do devir com o ser absoluto, da variação com a identidade”13.

A criança e o eu dividido

Platão e Aristóteles inserem a criança num tempo permanen-


temente resistente à extinção no tempo. Fazendo isso, eles colocam
a criança como unidade original e símbolo da segunda harmonia,
sujeita à supressão.
A criança entra pela primeira vez no tempo ocidental na teoria
platônico-aristotélica do eu tríplice e suas vicissitudes. Na criança,
o equilíbrio entre as três dimensões do eu – apetite, vontade ou “o
elemento vivaz”, e razão – está ontogeneticamente desbalançado. A
criança carece de razão. Por isso Platão considerava que as crianças
eram modelos do apetite indomado e da vontade descontrolada. Elas
são propensas – junto com mulheres, escravos e a “multidão inferior”
– à “grande quantidade de apetites, prazeres e sofrimentos diversos”
próprios dos naturalmente imoderados.14 “Elas estão cheias de senti-

11
  Winnicott, D. W. Playing and Reality. New York: Basic Books, 1971, p. 41.
12
  Brown, N. O. Life Against Death. Middletown, CT: Wesleyan University Press, 1959,
p. 38.
13
  Schiller, Friedrich. On the Aesthetic Education of Man. New York: Frederick Ungar,
1965, p. 74.
14
  The Republic of Plato. Trad. de F. M. Cornford. London: Oxford University Press,
1941, p. 125.

74
A comunidade da infância

mentos exaltados já desde o nascimento.”15 “O menino… justamente


porque, mais do que qualquer outro, tem uma fonte de inteligên-
cia nele que ainda não tem ‘funcionado sem embaraços’,… é o mais
ladino, malicioso e indisciplinado dos brutos. Por isso a criatura deve
ser mantida sob controle…”16. A única virtude das crianças parece ser
o fato de serem “facilmente moldadas”, isto é, elas podem ser trans-
formadas em adultos. Isto requer uma certa forma de educação como
necessidade pessoal e social – daí que a República é o primeiro sistema
educacional do Ocidente.
Aristóteles desenvolve o raciocínio de Platão mostrando como a
comunidade do eu está desviada nas crianças. A preponderância da sua
natureza apetitiva resulta na ou da falta de capacidade de escolha ou
“ação moral”, isto é, a habilidade para engajar-se propositadamente
em uma ação visando uma finalidade.17 Por esta razão, a criança não
pode ser considerada “feliz”, porque a felicidade resulta de “atividade
de acordo com a virtude”, que é um estado em que a função execu-
tiva da razão controla instinto e vontade. A felicidade requer bondade
plenamente adulta e uma vida completa. As crianças não preenchem
os requisitos de uma “vida completa”. Se nós dizemos que uma criança
é feliz, “é em razão das esperanças que temos para seu futuro”18.
Também não podemos chamar uma criança de “amigo”, embora possa-
mos amá-la: “Seria absurdo um homem ser amigo de uma criança”19.
As formulações de Aristóteles e Platão são primeiras manifesta-
ções de uma simbolização permanente, pela qual a criança é ao mesmo
tempo deficiência e perigo. Aristóteles poderia até ser lido como uma
teoria implícita de monstros, no sentido de que as crianças “parecem”
humanas – entendendo-se por “humano” adulto, de sexo mascu-

15
  Republic, p. 125, 138.
16
 Platão, Laws. In: Hamilton, E., Cairns. H. (eds.) Collected Dialogues. Princeton, NJ:
Bolingen, 1961, p. 1379.
17
 Aristóteles. Physics. In: Ackrill, J. L. (ed.). A New Aristotle Reader. Princeton, NJ:
Princeton University Press, 1987, 197b7-10, p. 104. Ver no mesmo volume Eudemian
Ethics, 1224a27-29, p. 492- 493.
18
 Aristóteles. Nichomachean Ethics. Trad. M. Ostwald. Indianapolis, In: Bobbs-Merrill,
1962, 1099b:25-1100a:5, p. 22-23.
19
  Eudemian Ethics, 1239a:1-6.

75
David Kennedy

lino, nascido livre e regido pela razão – mas não são. Elas combinam
os mesmos elementos numa mistura diferente e deficiente. É bem
verdade que a criança, se não tiver nascido escrava ou do sexo femi-
nino, tem a oportunidade de virar um adulto – isto é, razão em correta
proporção com vontade e apetite -, ao passo que a mulher e o escravo
nunca conseguirão. Mas a transição torna-se problemática. Na reali-
dade, segundo Platão, algumas crianças nunca se tornam “adultos” no
sentido de uma harmonia do eu tríplice: “Algumas, eu diria, nunca se
tornam racionais, e a maioria só em idade avançada.”20 Faz-se necessá-
ria uma tecnologia para atingir a condição adulta, ou seja, a educação,
que Aristóteles define, na linha de Platão, como ser “instruído a partir
da infância para sentir prazer e dor nas coisas adequadas; pois isto é
educação correta”21. A educação como treinamento apresenta-se,
então, como um ritual de força e uma absoluta necessidade cultural.
O eu tríplice de Platão e Aristóteles não é tanto um eu plural
quanto uma comunidade estrutural de funções, na qual a obtenção da
condição adulta indica que as partes alcançam um equilíbrio norma-
tivo, colocando-se os “elementos afinados uns com outros ajustando
a tensão de cada um na intensidade certa”22. A metáfora viaja pela filo-
sofia ocidental do eu até formulações do século XX como as de Freud
e Erikson. A criança do racionalismo patriarcal ocidental representa a
ambiguidade do que é dado como o humano no princípio do ciclo vital
e a possibilidade da construção de um eu ideal em que “cada parte da
sua natureza exercita sua função apropriada, de reger ou ser regida”23.
Esta construção tem prosseguimento na vida adulta no que Foucault
chamou “as tecnologias do eu”24. A unidade do eu só é conseguida
por meio da eterna vigilância da razão sobre o apetite e a vontade,
sendo um produto de constante autoexame e reajuste por autodisci-
plina. Este sistema de dominação interna é reproduzido macrocosmi-

20
  Republic, p. 138.
21
  Nichomachean Ethics, 1104b, p. 37.
22
  Republic, p. 102.
23
  Republic, p. 141.
24
  Martin, L., Gutman, H., Hutton, P. H. (eds.). Technologies of the Self: A Seminar with
Michael Foucault. Amherst: University of Massachusetts Press, 1988.

76
A comunidade da infância

camente, não só na República de Platão, mas no sistema sociopolítico


indo-europeu como um todo, onde reis (razão) controlam guerreiros
(vontade intrépida) que, por sua vez, exercem domínio sobre as classes
agrárias (apetite).25

A criança e a política da subjetividade

Não é coincidência que a filosofia da infância divida espaço com a


filosofia do eu e da construção da subjetividade. A criança sempre tem
tido uso simbólico como enunciado probatório para concepções da
“natureza” humana – quer na depravação original da criança dos puri-
tanos, na totalidade primordial da criança dos românticos ou no evolu-
cionismo de estágios na versão da infância da psicologia biologizante.
Mas cada “criança” representa também um correspondente “adulto”.
Dada a inseparabilidade dos dois conceitos, dizer o que é uma criança
é, ao mesmo tempo, dizer o que um adulto é, ainda que seja dizendo o
que ele não é. Dizer o que é uma criança é também dizer como torna-
mo-nos adultos; e dizer o que é um adulto é dizer que relacionamento
temos com a nossa infância.
Eu gostaria de sugerir que a narrativa que tem informado os rela-
cionamentos entre os elementos desse par contrastante, pelo menos
desde Aristóteles e Platão, é a história do relacionamento incômodo
entre desejo e razão nos adultos. A criança é ambivalente na imagina-
ção adulta porque ela representa uma condição limítrofe do humano.
Como o louco, o divino, o animal - ou, no patriarcado, a mulher -, todos
representações do desejo em alguma forma “pura”, a liminaridade da
criança ao mesmo tempo a exclui e a privilegia. Por isso era uma criança
que ia ao encontro do Deus antes dos adoradores, nos mistérios secre-
tos de Elêusis.26

25
  Dumezil, Georges. The Destiny of the Warrior. Chicago: University of Chicago Press,
1970.
26
  Golden, Mark. Children and Childhood in Classical Athens. Baltimore, MD: Johns
Hopkins University Press, 1990, p. 44.

77
David Kennedy

Em nossos tempos, Freud adotou esta conhecida narrativa e


descreveu-a como a relação entre instinto e repressão. Ele deu conti-
nuidade à concepção platônica do desenvolvimento como o esforço
para integrar uma subjetividade dividida por uma disputa fundamental.
A importância de Freud para a filosofia da infância está no fato de ele
inaugurar uma filosofia do eu cujo resultado é combinar as duas simbo-
lizações da infância – a unidade ontológica original e a deficiência peri-
gosa – e mostrar seu inter- relacionamento.
A unidade original que a criança representa na visão de Freud é
descrita no que ele chama “narcisismo infantil”, o paraíso de desejo
onde os limites do eu são os limites do mundo. Na primeira infância,
pensamento e ato são um só, eu e mãe/outro [(m)other] são um só.
A serpente neste Jardim é a natureza dual e contraditória do desejo
– Eros e Tanatos. Eros não pode concluir seu impulso pela unidade no
tempo e em multiplicidade. Somente a Morte e seu agente, a Agressão,
podem atingir a homeostase final que é a meta do Amor.
No relato mítico de Freud, a Queda da criança na divisão está
inscrita no corpo. Primeiro, o desmembramento do prazer na separação
ontogênica das zonas – boca, ânus, genitais. A crise edípica cimenta a
fixação do prazer nos genitais e estabelece a proibição do desejo como
um princípio de propriedade. A criança cai lenta, mas infalivelmente,
afastando-se do estado de graça da sexualidade polimórfica, da exis-
tência como jogo erótico espontâneo, da mágica simbiose de sujeito e
objeto, eu e mundo, interior e exterior.
Para Platão, Aristóteles e Freud, a infância desaparece quando a
razão ou o Ego assumem a sua função executiva, só que para Freud
o Ego não é inteiramente razão; ele é, em parte, consciente e, em
outra parte, inconsciente. Também não é dominante, mas um media-
dor, uma quarta função que cresce como resultado da interação entre
os outros e que tenta integrá-los. Além do mais, na medida em que a
neurose – isto é, crônica falta de integração das funções do eu – é a
condição humana, a experiência do narcisismo infantil continua a ser
uma irracionalidade existencial. Lyotard refere-se a essa irracionalidade
como infantia, ou “aquilo que resiste, apesar de tudo”. Ele diz: “Mas
alguma coisa nunca será derrotada, ao menos enquanto os humanos
nascerem bebês, infantes. Infantia é a garantia de que continua a existir

78
A comunidade da infância

um enigma em nós, uma opacidade não facilmente comunicável – que


resta alguma coisa que permanece, e que nós devemos dar testemu-
nho dela”27. A “deplorável e admirável indeterminação” da primeira
infância é, para Lyotard, aquilo que pode resistir ao ideal Iluminista
de “emancipação”, o “inumano” da sistematização e complexificação
disfarçado de “desenvolvimento”. A meta da emancipação é “garantir
plena posse de conhecimento, vontade e sentimento; de modo a dar-se
a si mesmo a autoridade do conhecimento, a lei da vontade e controle
sobre os próprios afetos”28.
O adulto realizado “emancipado” do Iluminismo é inaugurado no
Ocidente por Platão e Aristóteles. Ele (sic) domina o apetite através
da razão, que se utiliza da vontade como os governantes indo-euro-
peus usam das tropas para controlar as massas. Para obter controle,
a criança e o “nativo”, ambos representando vida instintiva, apetite,
prazer, o corpo – isto é, a transgressivo – devem ser excluídos e subju-
gados. Ashis Nandy analisa o relacionamento entre o que ele chama
“ideologia da condição adulta” e o colonialismo:

Na medida em que a condição adulta em si é valorizada como um símbolo


de totalidade e um produto final do crescimento ou desenvolvimento,
a infância é vista como um estado transicional imperfeito na rota para a
vida adulta, a normalidade, a completa sociabilização e condição humana.
Esta é a teoria do progresso aplicada ao ciclo de vida do indivíduo. Dela
resulta o uso frequente da infância como modelo de imaturidade cultural
e política ou, o que dá no mesmo, de inferioridade. Boa parte da influên-
cia da ideologia colonialista e boa parte do poder da ideia de moderni-
dade podem ser atribuídas às implicações evolucionárias do conceito da
criança na visão de mundo do Ocidente.29

27  Lyotard, J-F, Larochelle, G. What Which Resists, After All. Philosophy Today. v. 36,
n. 4, 1992, p. 416.
28
  Lyotard, J-F. Mainmise Philosophy Today, v. 36, n. 4, 1992, p. 421. Ver, na mesma
edição, Lindsay, Cecile. Corporalidade, ética, experimentação: Lyotard nos anos 80,
p. 389-401. Ver também Lyotard, J-F, The Inhuman. Trad. G. Bennington e R. Bowlby.
Stanford, CA: Stanford University Press, 1991.
29
  Nandy, Ashis. Reconstructing Childhood: A Critique of the Ideology of Adulthood.
In: Traditions, Tyranny and Utopias: Essays in the Politics of Awareness. New Delhi: Oxford
University Press, 1987, p. 57.

79
David Kennedy

Freud vaticina uma ruptura nesse quadro de colonização interna e


externa. Na sua formulação, as políticas do eu mudam, e a criança e a
vida instintiva que ela representa ficam reposicionadas. A criança não
mais está dominada, apagada, sujeita a supressão na personalidade
adulta, mas passa a representar a voz sempre presente das demandas
do id. Estas demandas são vivenciadas tanto no interior como no exte-
rior: como a lembrança obsessiva da experiência da onipotência aluci-
natória do processo primário na própria infância da pessoa; e como
o relacionamento do adulto com a criança real – o eu do desejo em
conflito e diálogo com a “razão” – na parentalidade e na educação. As
políticas da subjetividade são também as políticas de educação infantil
e as da diferença.
O quadro fica complicado por causa de uma ambivalência arrai-
gada. Para o Freud “civilizado”, a criança é a voz da neurose. O neuró-
tico recusa-se a abrir mão das demandas da infância, da possibilidade
de um mundo indiviso. O adulto que privilegia a sua “criança” torna-se
pueril, isto é, incivilizado. A própria possibilidade de civilização baseia-
-se na repressão. Em certo momento, Freud definiu a psicanálise como
“uma prolongação da educação visando superar os resíduos da infân-
cia”30. Para esse Freud a criança é ainda a deficiência perigosa.
Para o Freud “selvagem” e seus intérpretes, esses mesmos resí-
duos são a nossa única esperança de sermos libertos do traço inumano
do “progresso”, ou da sistematização e complexificação. Freudianos
radicais como Brown31 desenterram o romantismo de Freud e reve-
renciam a criança como a voz do desejo que não será sufocada ou
apagada por um racionalismo contaminado pelo que ele reprime. Para
o modernismo que se desintegra no pós-moderno, a criança é mais um
outro excluído – com as mulheres, os loucos, os “desencaminhados”,
os “nativos” – mais uma voz das margens da subjetividade platônica
patriarcal. Ela ocupa seu lugar com os outros “estranhos privilegiados”

30
  Freud, S. Five Lectures on Psychoanalysis. In: Strachey, J. (ed.). The Standard
Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud, 24 vols. London:
Hogarth Press, 1957, v. 11, p. 48.
31
  Brown, N. O. Life Against Death, e Love’s Body. Berkeley: University of California
Press, 1966.

80
A comunidade da infância

da epistemologia feminista,1 que representam, pela sua própria limi-


naridade, a nossa única esperança de desmantelamento de uma noção
de subjetividade baseada na dominação.
Em Freud, as políticas da subjetividade voltam-se para o desman-
telamento da hierarquia. Seu modelo cria uma abertura para mudar
relações de poder, para intriga, para transgressão, para diálogo entre os
elementos do eu. Neste sentido ele está, mais do que afastando-se de
Platão e Aristóteles, prenunciando as relações dentro da comunidade
do eu, em sua complexidade e seu paradoxo. Ele abre o caminho para o
que Kristeva chama “sujeito-em-decurso”, ou o eu entendido como um
pluralismo de relacionamentos em vez de uma “organização constituída
por exclusões e hierarquias”2. A infância simboliza a “jouissance”, a
experiência do “tempo esquecido” pré-edípico, momentos de êxtase
em que o modelo socialmente construído da linha divisória entre eu
e mundo exterior é desconstruído em benefício da auto-reconstrução
ininterrupta.3 Se Platão está certo ao dizer que o estado é o mandado
do eu em grande escala, quais são as consequências deste novo
modelo de subjetividade para os sistema políticos do mundo? O fato de
a repressão e a dominação dentro da comunidade do eu serem proble-
matizadas e criticadas leva ao mesmo resultado para a dominação e
repressão econômica e política?
O elo crítico entre a política no interior da pessoa e a política exte-
rior que a circunda poderia ser a educação infantil. Quando o sujeito-em-
decurso dialoga com a infantia, ele dialoga também com a criança real.
Na ideologia da educação infantil pós-moderna, Eros vence Tanatos
com diálogo e integração. O adulto sujeito-em-processo reconhece
a voz da diferença, do Outro, que a criança real representa. Como o
artista e o gênio, a criança sugere-nos, com seu próprio desequilíbrio,

1
  Harding, Sandra. Whose Science? Whose Knowledge? Thinking from Women’s Lives.
Ithaca, NY: Cornell University Press, 1991, p. 124-131.
2
  Kristeva, Julia. Desire in Language. New York: Columbia University Press, 1980, p. 135;
e The Powers of Horror: An Essay on Abjection. New York: Columbia University Press,
1987, p. 65.
3
  Marchak, Catherine. The Hoy of Transgresion: Bataille and Kristeva. Philosophy
Today, v. 34, n. 4, 1990, p. 354-363.

81
David Kennedy

novas maneiras de nos equilibramos. A criança é o gênio ingênuo-na-


tivo da espécie. Voltando a Schiller:

A modalidade ingênua de pensamento pode… ser atribuída apenas às


crianças e àqueles de temperamento infantil… Todo verdadeiro gênio
tem de ser nativo, ou não é gênio. Só a sua ingenuidade contribui para
seu gênio, e ele não pode repudiar moralmente aquilo que ele é intelec-
tual e esteticamente… Somente ao gênio é dado estar à vontade para
além do costumeiro e estender o alcance da natureza sem ir além dela.4

A criança – dentro e fora – é o profeta da futuridade, o ser expe-


rimental que oferece-nos indícios de como “estender a natureza sem
ir além dela”. Isto lembra aquilo que Merleau-Ponty descreveu como
“a tarefa do nosso século… A tentativa de explorar o irracional e inte-
grá-lo numa razão expandida”5. Outros poderiam falar em recupera-
ção do corpo ou sublimação não repressiva, ou em vencer o patriar-
cado, a dominação e a colonização, tanto do interior como do exterior.
“Nossos laços mais liberadores”, diz Nandy, “podem ser os que mante-
mos com nossas crianças subsocializadas. E a prova final para nossa
capacidade de viver uma existência bicultural ou multicultural talvez
ainda seja nossa aptidão para viver com nossas crianças em relação de
interdependência”6. Enquanto isso, as crianças brincam.

4
 Schiller. Naive and Sentimental Poetry, p. 85.
5
  Merleau-Ponty, Maurice. Sense and Nonsense. Evanston, IL: Northwestern
University Press, 1964, p. 63.
6
  Nandy, p. 75.

82
4. Pensar por si mesmo e com outros

A peculiaridade mais característica da teoria e da prática da comunidade


de investigação filosófica (CIF), que à primeira vista parece contraditó-
ria, é o modo como ela tanto favorece o significado comum, intersubje-
tivo, como estimula as pessoas a pensar por si mesmas. Pensamos, em
geral, que as duas coisas, se não são opostas, não estão especialmente
relacionadas. O ato de pensar por si mesmo é geralmente associado ao
Iluminismo ocidental do século XVIII – à problematização automática
de crenças sustentadas coletivamente –, ao ceticismo e ao individua-
lismo. A comunidade é geralmente associada à afirmação de crenças e
pressupostos sustentados coletivamente, e ao necessário sacrifício da
opinião individual por um bem maior.
A CIF combina o individual e o coletivo, de uma forma que,
mais do que nova, tem estado sempre presente entre nós, mas
surgiu historicamente associada ao tipo de discurso intersubjetivo
chamado diálogo. A atenção explícita e centrada numa teoria do
diálogo é, pelo que sei, própria do século XX, embora ela tenha suas
raízes filosóficas no idealismo alemão que começa em Kant e passa
por Fichte, Hegel e Feuerbach. É de Feuerbach que tomamos a frase
“Eu e Tu”, que Rosenzweig, na sua metafísica do diálogo entre Deus,
o mundo e a pessoa, legou a Buber. A filosofia do diálogo viaja, de
três maneiras muito diferentes, no existencialismo em Levinas, na
fenomenologia em Merleau-Ponty, e na hermenêutica e na teoria do
jogo em Gadamer.

83
David Kennedy

Gadamer chamou o diálogo socrático de um “viajar separadamente


que visa a unidade”, o que exprime perfeitamente a aparente antino-
mia associada à estrutura e à dinâmica da CIF. O diálogo assume duas
coisas ao mesmo tempo: a radical incomensurabilidade das perspecti-
vas individuais, e uma disposição a ter a própria perspectiva mudada
pela interação com outro. No diálogo, nós estamos posicionados num
espaço existencial e interpretativo que Buber (1970) e outros têm
denominado o “entre” – um espaço que, em termos hermenêuticos,
não é o do intérprete nem o do interpretado, não é o espaço do sujeito
nem o do objeto. Diálogo é a própria estrutura de acontecimento de
um espaço de diferença, de uma interrogação do outro – ou do objeto
de investigação – ou ambos – que é necessariamente também uma
auto-interrogação. Ele é uma situação intersubjetiva singular e signi-
ficativa. Buber evoca este espaço interpretativo na sua descrição do
momento do surgimento da objetivização e da categórica tipificação
da experiência que ele chama de relação “Eu-Tu”. Levinas denomina-o
“desorientação”, “rompimento” que resulta na “ruptura do eu-egoísta
e no seu recondicionamento face ao Outro” (Levinas 1987: 17). O recon-
dicionamento leva-nos a reconhecer o outro na sua individualidade
como “aquele que é singular” – aquele que anula ou foge de todas as
projeções do ego, e existencialmente vem até antes do ego. A teoria
do diálogo baseia o sujeito não apenas no outro, mas nos limites da
sua própria subjetividade – onde ele só pode conhecer-se em relação a
um processo dialético intersubjetivo de transformação mútua. Daí que
mesmo quando individualiza o outro, o diálogo cria comunidade entre
o eu e o outro.
A estrutura de intersubjetividade característica do diálogo comum
exige, não o abandono, mas a expansão da estrutura do dialógico para
o multilógico. Corrington (1987) usa a semiologia de Peirce para desen-
volver a ideia de CIF como comunidade de signos, ou de “matriz de
signos”. Numa comunidade de interlocutores, nenhuma afirmação está
isolada daquelas que a precederam, nem é indeterminada pela afirma-
ção a que ela responde e, por consequência, pela afirmação a que ela
dará origem. Isto implica uma totalidade – um sistema emergente de
signos, mas dado que o discurso intersubjetivo dá-se no tempo, o cará-
ter integral da matriz nunca estará presente, salvo como uma espécie

84
A comunidade da infância

de Gestalt implícita, ou um horizonte. O pensamento dialógico é uma


“série ilimitada”, na qual um signo dado qualquer – isto é, uma ideia
ou proposição - desde que “é indeterminado tanto por seus antece-
dentes como por seus consequentes”, jamais terá um valor de verdade
totalmente determinável. “Somente num futuro ideal a série de signos
alcança plena convergência e total transparência” (Corrington 1987:
12, 13). Na CIF, somos atraídos para esse horizonte, que representa a
coordenação de todas as perspectivas individuais num juízo comum
que podemos chamar de “verdade”, mas que, como é característico
dos horizontes, embora sempre presente, nunca chega. Na verdade,
da CIF, o juízo final está sempre surgindo, sempre pendente, sempre a
insinuar-se. Se não tivéssemos uma sólida noção disto, nós não o farí-
amos. Mesmo com essa noção, nós agimos em meio a um paradoxo
do tipo: a “plena convergência e total transparência” é prometida
somente se cada perspectiva mantiver a sua integridade finita e locali-
zada isto é, só se cada pessoa “pensar por si mesma”. No entanto, nós
iniciamos o “entre” do diálogo, a experiência da diferença, o desafio
de pensar com outros, com a promessa de superação da nossa fini-
tude, em busca daquela verdade “do longo prazo”, que será a verdade
de todos. Como podem esses dois impulsos coexistir e, muito menos,
fomentar-se mutuamente?
Kant fornece-nos uma outra via para penetrar esta aparente anti-
nomia do individual e do coletivo, com a sua ideia de sensus comunis logi-
cus, ou senso comum lógico (como oposto ao senso comum estético,
ou “gosto”). Em sua Critique of Judgment (Crítica do juízo, 1987: 160-161),
ele nos fornece três “máximas” da “compreensão comum humana”:
1) Pensar por si mesmo; 2) Pensar do ponto de vista de todo
mundo; e 3) Pensar sempre consistentemente. As três máximas corres-
pondem, respectivamente, a um modo de pensar sem preconceitos,
ampliado e consistente.
A primeira máxima, que Kant denomina “a máxima da compreen-
são”, está para ele associada, na verdade, ao Iluminismo, e envolve o
abandono do que ele chama “razão passiva”. O maior preconceito, no
entender dele, “consiste em pensar que a natureza não está sujeita às
regras que a compreensão, mediante suas próprias leis essenciais, esta-
belece como base da própria natureza” (p. 161). Na realidade, ele chama

85
David Kennedy

esse preconceito de “superstição”. Aquele que pensa sozinho obedece


apenas à sua compreensão, termo com o qual, segundo eu suponho,
Kant alude ao que o eu transcendental pode saber, e à medida em que
esse eu transcendental é capaz de ligar, mediante a imaginação, suas
intuições empíricas às suas estruturas conceituais. Quem pensa por si
mesmo aceita somente o que faz sentido para ela. Aqui, pensar por si
mesmo é uma disposição cognitiva que reflete o subjetivismo parado-
xal da razão categórica “pura”, que “estabelece a base da natureza”,
isto é, que entende ser dadora da natureza e não dada por ela. Ela só
não é um solipsismo graças a sua invocação de uma “lei essencial” e
universal da compreensão, da qual não podemos afastar-nos sem cair
na “superstição”. Sem a máxima seguinte, este tipo de convicção signi-
fica em si quase que uma superstição. É idealismo radical no nível de
Fichte, no qual o “eu” pressupõe o não-eu. Em termos de intersubjeti-
vidade, é uma condição pré-dialógica, a modalidade especulativa que
Levinas (1987: 68) descreve, de forma diversificada, como “inteligibili-
dade”, “razão” e “conhecimento”. Ele diz:

A luz que permite deparar-se com alguma coisa distinta do eu faz com
que ele se depare com essa coisa como se esta proviesse do ego. A luz, o
brilho, é em si mesmo inteligibilidade; fazendo com que tudo provenha de
mim, ela reduz toda experiência a um elemento de recordação. A razão
está sozinha. E neste sentido o conhecimento jamais se depara com nada
verdadeiramente distinto no mundo. Eis a verdade profunda do idealismo.

A segunda máxima – “pensar do ponto de vista de todo mundo”


– é chamada por Kant de máxima do “juízo”, pois ela nos exorta a refle-
tirmos sobre o nosso juízo “de um ponto de vista universal” (p. 161). Ela
é realmente uma impossibilidade (como é também, aliás, a primeira),
um ideal de transparência intersubjetiva ou permutabilidade em dire-
ção ao qual o “entre” do diálogo representa o limite mais distante. Eu
só posso pensar do ponto de vista do outro reproduzindo os signos
que ele produz – quer sejam verbais ou não-verbais – como sendo
meus signos. O signo “recebido” por mim não é igual ao signo que foi
“enviado”, e sim a minha reprodução desse signo, que é um outro signo
na série. Seria, portanto, mais correto falar, como fazemos na teoria da

86
A comunidade da infância

comunidade de investigação, em uma “coordenação de perspectivas”,


ou pontos de vista, ou juízos. A singularidade de cada ponto de vista
jamais é anulada, porque ela está fundada no corpo vivido, no fato de
eu estar aqui, agora, neste lugar e tempo e você, aí, agora, nesse lugar
e tempo; ela é uma função de finitude existencial.
Por outro lado, eu só me conheço na minha finitude por meio da
minha relação com outras finitudes, e com um mundo caracterizado
pela finitude, que já é, ao menos, uma superação parcial da finitude.7 E
se eu aceito a noção de que a reflexão, a mente – a própria consciência
de si mesma – só é possível quando passo a ver-me como um outro, é
impossível não “pensar do ponto de vista de todo mundo”. “É quando
assume a atitude do outro”, diz Mead (1934), “que o indivíduo conse-
gue perceber-se como um eu” (p. 194). Isto é uma completa inversão
do idealismo fichteano, no qual o eu pressupõe o outro; neste caso, eu
sou dado a mim mesmo por um outro – por certo um outro internali-
zado, mas um outro –, primeiro um outro individual (mãe, pai), depois
um outro universal, categórico.

Todo eu individual dentro de uma dada sociedade ou comunidade social


reflete, na sua estrutura organizada, todo o modelo relacional de compor-
tamento social organizado que essa sociedade ou comunidade apresenta
ou está levando adiante e a sua estrutura organizada é constituída por
esse modelo… A estrutura de cada eu individual é constituída diferente-
mente por esse modelo. O indivíduo está continuamente reagindo contra
essa sociedade. Toda adaptação envolve alguma mudança na comuni-
dade, à qual o indivíduo adapta-se (Mead, p. 202).

O raciocínio de Mead entrelaça a primeira e a segunda máximas


de Kant. Ele mostra como ambas são possíveis e, também, como é
resolvida a aparente antinomia do individual e o coletivo. O eu já vem
“outrificado” – trazendo o outro universal como o ângulo de visão
pelo qual ele mesmo se firma. A sua “contínua reação contrária” é a
atualidade dinâmica percebida que é fonte da necessidade e da capa-

7
  A ausência deste conhecimento pode ser uma das fontes do contentamento e dos
terrores da subjetividade infantil, ou do que Freud chamava “narcisismo primário”.

87
David Kennedy

cidade de pensar por si mesmo. A posição a partir da qual ele reage é


a do “alguém singular”, a posição irrepetível da sua finitude. Ninguém
mais pode achar-se nesse lugar e nesse tempo em particular, mas esse
lugar e esse tempo estão relacionados com todos os outros lugares
e tempos finitos de todos os sujeitos, como signos numa matriz de
signos e, nessa relação, o eu experimenta a infinitude. Portanto, assim
como é impossível superar a minha finitude e adotar um ponto de vista
universal, é impossível penetrar completamente na minha finitude,
exceto de um ponto de vista universal. Contudo, esta segunda máxima
também representa uma condição pré-dialógica, porque não é o eu
pressupondo o outro, mas o eu pressuposto pelo outro, e em nenhum
dos casos há um “entre”.
Tampouco é a terceira máxima de Kant – a máxima do pensa-
mento coerente, ou “razão” – inerentemente dialógica, pois diálogo
é um acontecimento, um movimento, não uma forma de discurso ou
argumentação. Parece-me que a terceira máxima representa aquilo
que nós chamamos de “razoabilidade”, isto é, a disposição a dar e
pretender razões para os juízos, e a pretender de si mesmo e de outros
que elas sejam coerentes num arcabouço maior de razões, quer aque-
las razões se chamem “fatos”, “crenças” ou “argumentações”. Kant
diz que “é a mais difícil de atingir e, na verdade, só pode ser atingida
depois que a repetida obediência a uma combinação das duas primei-
ras tenha se tornado uma habilidade adquirida” (p. 161-162). É difícil
saber exatamente a que Kant está se referindo com essa “habilidade”
de combinar o pensar por si mesmo com o pensar do ponto de vista
do outro. Talvez ele queira dizer um introduzir na prática consciente a
situação de intersubjetividade descrita por Mead na citação. Mead diz:
“O indivíduo está continuamente reagindo contra essa sociedade. Toda
adaptação envolve alguma mudança na comunidade, à qual o indivíduo
adapta-se.” Eu aprendo a “reagir” a partir da minha finitude, que é uma
forma de adaptação à comunidade e, também, mediante essa reação,
a comunidade readapta-se como um todo, o que, por sua vez, causa
outra reação contrária e adaptação da minha parte e assim por diante.
Kant parece estar dizendo que só quando isto se torna uma praxis para
mim eu sou capaz de pensar “consistentemente”. Eu sugeriria que essa
é a “habilidade” fundamental do diálogo.

88
A comunidade da infância

Certamente ela não abrange o conceito de diálogo completa-


mente, mas aqui eu estou pensando no diálogo apenas na estrutura
de discurso da CIF. O que ela me sugere é que diálogo é a coisa para-
doxal de ir além de pensar por si mesmo, mas só enquanto se pensa
por si mesmo ou mediante o ato de pensar por si mesmo. Talvez isto
seja o que Gadamer quer dizer com “viajar separadamente visando a
unidade”. Nós aferramo-nos à nossa compreensão mesmo reconhe-
cendo que ela vem de além de nós mesmos – que ela surge de um
encontro do eu e do outro num espaço discursivo que não pertence
a nenhum dos dois. Este espaço discursivo é simbolizado fisicamente
pelo espaço do círculo que fazemos quando estamos sentados no piso
de uma sala de aula ou em torno de uma mesa. Trata-se de um vazio de
tipo pleno, do qual cada um de nós forma um limite exterior, mas cujo
círculo interior apresenta-se infinito. E o diálogo que estamos viven-
ciando está desenrolando-se em múltiplas modalidades – postural,
cinética, gestual, auditiva, visual, fonêmica, musicalmente (extremo
de tensão e conjuntura).
O nível ao qual damos mais atenção na comunidade de investiga-
ção filosófica é, por certo, o conceitual. E, nesta dimensão, é a lógica
que desempenha o papel principal na operacionalização da terceira
máxima de Kant. Em nosso discurso comum, a lógica funciona como
um juiz, árbitro, disciplinador, um conjunto de regras ou uma estrutura
operativa – ou como medidas, forma, disposição, linhas de contorno,
etc. da área onde o jogo do diálogo filosófico é jogado (ou joga-se por
si mesmo). É a lei da contradição – lei fundamental de qualquer lógica –
que exige a habilidade de combinar as duas primeiras máximas. É onde
as duas primeiras máximas encontram-se na linguagem: onde o pensar
por si mesmo deve ser articulado em termos universais e onde o pensar
que se entende ser universal deve ser articulado em termos que o ser
singular possa compreender. Daí que o discurso da CIF realize duas
coisas: ele promove a diferenciação do indivíduo em relação ao cole-
tivo mas, ao mesmo tempo, é a afirmação desse logos que Heráclito
(fragmentos 1, 2, 89) diz ser “comum a todos” e reforça a responsabili-
dade de cada indivíduo por seu “único mundo em comum”, pela “inte-
ligência” do “que o circunda”. E a lógica é que traça este movimento
diferenciador e unificante.

89
David Kennedy

A afirmação de Mead segundo a qual “toda adaptação envolve


alguma mudança na comunidade à qual o indivíduo adapta-se”, também
traz à baila mais uma característica da CIF, que é a sugestiva facilidade
com que ela se presta à explanação pela teoria de sistemas. Qualquer
comunidade de pessoas compreende um sistema desse tipo, que está
continuamente a surgir pela interação das duas primeiras máximas de
Kant, dentro do contexto discursivo da sua terceira máxima. Quando a
interação indivíduo-comunidade virou uma “habilidade” na qual todo
membro é cada vez mais eficiente, o processo de autocorreção atra-
vés do qual o sistema se desenvolve torna-se mais claro, mais palpá-
vel, mais positivo. É a autocorreção o que distingue uma comunidade
meramente homeostásica de uma comunidade dialógica. O diálogo
pressupõe autocorreção e, no diálogo comum, autocorreção individual
é também autocorreção comum, porque qualquer adaptação de uma
perspectiva individual é também uma adaptação da coordenação de
perspectivas, que inclui a perspectiva de todo mundo.
Em resumo, o diálogo humano é a posição intersubjetiva onde são
possíveis o individual e o comum, o eu e o outro, o pensar por si mesmo
e o pensar com outros. Uma característica do diálogo é que ele nunca
é automático – pois esse é um sinal certo de objetificação, da relação
eu- aquilo. O diálogo sempre envolve risco, porque ele é um processo
contínuo de reconfiguração mútua. Ele é apenas tão previsível quanto
a próxima resposta e, se a resposta pode ser prevista, o diálogo acabou
ou está perdendo vigor.
Na teoria e na prática da filosofia para crianças é impossível evitar
as implicações educacionais mais amplas deste modelo. Uma vez que
a noção de diálogo é introduzida na práxis educacional, como ocorreu
neste século com o trabalho de Freire e Lipman, o status hegemônico
da forma de pedagogia tradicional, transmissionista, é permanente-
mente posto em dúvida. A pedagogia da CIF não pode ser separada
de uma visão educacional mais ampla baseada no diálogo. No caso das
escolas em geral e de suas práticas, o conceito de diálogo tem implica-
ções importantes, não apenas para a transformação do currículo, mas
também para a transformação do conjunto da comunidade deste cole-
tivo criança-adulto, desta forma de comunidade intencional que chama-
mos de escola. Como seria um currículo planejado mediante o diálogo

90
adulto-criança e adulto-adulto? E uma estrutura administrativa baseada
no diálogo adulto-adulto, adulto-criança e criança-criança? Com certeza
nós temos alguns indícios proféticos na obra de educadores como A. S.
Neil, George Dennison, Chris Meroviglio, e diversos outros experimen-
tadores brilhantes e heróicos, a maioria não renomados, mormente
do último século. Mas ainda há vozes clamando no deserto, enquanto
a nossa civilização empenha-se em elaborar uma filosofia da infância
digna da visão daquelas. A obra de Lipman marca um momento deci-
sivo nesse empenho, o que sua enganosa simplicidade parece desmen-
tir. Nós não podemos deixar de acreditar que ela representa o futuro
da relação adulto-criança e a sua institucionalização nas escolas.

91
A comunidade da infância

5. Las cinco comunidades

Quienes han experimentado la alegría y el terror de la formación


intensiva de una comunidad de cuestionamiento e investigación
(comunidad de cuestionamiento e investigación) durante un cierto
período de tiempo comprenden intuitivamente que se trata de un
proceso de desarrollo que tiene estructuras y patrones caracterís-
ticos. Podemos intentar glosarlos de diferentes maneras: siempre
serán metáforas, ya que cualquier momento en la vida de la comu-
nidad de cuestionamiento e investigación es un instante de verti-
ginosa libertad.
Un primer supuesto de la comunidad de cuestionamiento e inves-
tigación es que su forma, que incluye sus estructuras características y
sus patrones dinámicos, no es meramente fortuita o sólo una manera
de llegar a la verdad. Tiene la forma que tiene porque el mundo está
construido de tal modo que el individuo no puede conocer la reali-
dad adecuadamente; en consecuencia, la investigación debe ser una
aventura comunitaria. La verdad, tal como lo formuló Charles Sanders
Peirce, es “aquello que la ilimitada comunidad de investigadores habrá
descubierto que es el caso en el largo plazo”.1 Sólo así llegamos a la
verdad que es adecuada para nosotros, mediante un largo y a menudo
tortuoso proceso de construcción, reorganización y rearticulación de

1
  Michael L. Raposa, Peirce’s Philosophy of Religion, (Bloomington: Indiana University
Press), 1989, p. 154.

93
David Kennedy

los sentidos que se anuncian de manera incipiente por todas partes a


nuestro alrededor.
Las cinco dimensiones estructurales de la comunidad de cuestio-
namiento e investigación que identifico podrían quizás agruparse de
otro modo y se les podría dar otros nombres. De hecho, estoy forzando
la separación para entenderlas mejor, pero en realidad son una sola
cosa, o al menos, están inextricablemente superpuestas, son interde-
pendientes e interactivas. Las llamo gesto, lenguaje, mente, amor e
interés. Quiero, además, llamarlas “comunidades” porque cada una
de ellas es la expresión de un proceso comunicativo, interpretativo
que converge en un cuerpo común de signos. Cada una participa de
un proceso de cambio en desarrollo, en el cual aunque cada miem-
bro determina de alguna manera el sentido del grupo, el todo tiene
un carácter emergente que trasciende a cada individuo en particular.
No se puede interpretar acabadamente cada comunidad sin tener en
cuanta a las otras. El gesto y el lenguaje tienen cierta primacía, por
cuanto son los sistemas exotéricos a través de los cuales se expre-
san los cuerpos de signos más esotéricos de la mente, el interés y el
amor, pero esa expresión es en todos los casos sólo una traducción
y, se puede afirmar que, en un sentido más profundo, tanto el gesto
cuanto el lenguaje pueden originarse en las otras tres comunidades.
Quiero asimismo identificar algunos patrones dinámicos de inter-
subjetividad que atraviesan cada una de estas comunidades – modos en
que nuestras conversaciones parecen funcionar, cosas que nos encon-
tramos pensando, diciendo y haciendo una y otra vez. Una es crisis,
que proviene de la palabra usada en griego para juicio y que trae como
componentes inseparables el riesgo y la oportunidad. Otros temas que
habré de caracterizar son diálogo, juego, teleología, conflicto y disci-
plina. Pero primero, las cinco comunidades.

La comunidad de gesto

Esta es quizás la forma de comunidad más obvia y, sin embargo, la


más ignorada. Me refiero al nivel somático y kinestésico fundamental
de intersubjetividad “previo” al lenguaje, que fundamenta, enmarca

94
A comunidade da infância

y se manifiesta en los niveles de interacción verbales y noéticos. Aun


antes de abrir la boca, ya estamos produciendo sentido juntos. Antes
de los signos que representan ideas o incluso objetos en el mundo,
están los signos más fundamentales de los estados mentales sintientes
del cuerpo – James Edie se refiere a esto como “la aparición física del
sentido” – y este signo del mundo, como el signo del mundo que es el
lenguaje, es un signo compartido, interactivo.2
El gesto es un signo mundano de una intervisibilidad intensa,
continua. Todos nos sentamos mirándonos las caras alrededor de la
mesa – estamos directa o periféricamente, en la mira del otro. Pero
lo visual es sólo una especie de conducto para los procesos liminares
y subliminares que Howard Gardner ha caracterizado como una inteli-
gencia sobre uno mismo – lo kinestésico-corporal.3 En este nivel, todo
ocurre simultáneamente y todo tiene un efecto: cambiar de postura,
levantar la mano, tensar la espalda y el cuello, mover la cabeza y los
ojos al hablar, al escuchar, etc. Este constante diálogo postural, kines-
tésico, es inmediato, simultáneo y completamente inevitable. Desde el
momento en que estás en mi espacio físico, tanto si estamos abrazados
o si nos damos la espalda o algún punto intermedio, siento y percibo
mi presencia física de modo diferente de cuando estoy solo, y estamos
involuntariamente en una situación de armonía o desarmonía, en un
juego de mutua instigación, en el cual, es cierto, podemos ser más o
menos sensibles, más o menos dispuestos, pero nunca neutrales. En
toda nuestra interacción gestual – proxémica, kinésica, expresión
facial, mirada, modulación de la voz y tiempo concedido al respon-
der – estamos continuamente controlando y actuando para alterar los
afectos vitales de cada uno, lo cual, especialmente en la comunidad
de cuestionamiento e investigación, mantiene y refuerza nuestra inte-
racción lingüística y noética. Esta danza depende también del género:
cada miembro aporta a la discusión el lenguaje corporal característico

2
  James M. Edie, “Prefacio” en Maurice Merleau-Ponty, Conciousness and the
Acquisition of Language, trad. Hugh J. Silverman (Evanston, Il: Northwestern University
Press, 1973), p. xiii-xiv
3
  Cf. Howard Gardner, Frames of Mind (New York: Basic Books, 1985).

95
David Kennedy

de su sexo así como las sutiles diferencias gestuales de la interacción


intra e inter géneros.4
No sólo hay una mutua regulación pulsional dentro de la comu-
nidad del gesto, sino también una co-construcción de las imágenes
corporales. Cuando vos, con quien he pasado horas sentado alrededor
de una mesa hablando, compartiendo y no compartiendo los puntos
de vista, esforzándonos para expresar ideas, al hablar, levantás la
cabeza, te encontrás con mis ojos de una determinada manera, una
manera que al principio me resultaba extraña, pero que ahora espero
y comprendo como significativas del mismo modo que vos lo hacés,
física y gestualmente, es decir, más o menos inconscientemente.
Entonces yo, en mi propio acomodamiento gestual, te permito tener
una nueva comprensión de tu propio gesto. Así, en nuestra danza
gestual nos revelamos nuevamente a nosotros mismos. Creo que esto
es lo que Paul Schilder quiere decir cuando afirma que “cada uno cons-
truye su propia imagen corporal en contacto con otros”, y su referencia
a esto como un “esfuerzo constructivo continuo”. Dice que hay “un
constante ir y venir inconsciente de otras personalidades dentro de
nosotros… un continuo movimiento de personalidades y de imágenes
corporales hacia nuestra propia imagen corporal…” En otro lugar se
refiere a este proceso como un “diálogo” de imágenes corporales.5
Estamos ubicados en esta constante co-construcción, porque nuestra
propia imagen corporal es incompleta si se la toma por separado; en un
nivel gestual, el otro conoce más sobre nosotros que nosotros mismos.
Así pues, estamos inmersos en un interminable proceso de autocom-

4
  Estos patrones fundamentales de regulación mutua pueden trazarse desde la situa-
ción interlocutiva primaria del lactante y la madre. La madre y el bebé son una persona
en la medida en que el bebé carece de la capacidad de regular su propio afecto vital
y, en consecuencia depende de la madre para su autorregulación. El modo en que la
madre “baila” con el niño para hacer esto es internalizado por el niño y se convierte en
un marco de referencia para los gestos que ha de esperar, un estilo particular de bailar
que puede ser más o menos inhibido, más o menos armónico, etc. Ver Daniel Stern,
The Interpersonal World of the Infant, New York: Basic Books, 1985, especialmente el
capítulo 7, donde describe lo que llama “afecto armonizador”.
5
  Paul Schilder, The Image and the Appearance of the Human Body: Studies in the
Constructive Energies of the Psyche (New York: International Universities Press, 1950),
p. 235-273

96
A comunidade da infância

prensión en un nivel somático por medio de la identificación, la proyec-


ción y otros procesos por los cuales partes de nosotros y partes de los
otros interactúan, se comunican y manifiestan energías constructivas y
destructivas, dominantes, sumisas e igualitarias, inclusivas y exclusivas.
Lo que siempre falta, sin embargo, en el encuentro, lo que lo hace para
siempre incompleto, lo que lo convierte en el drama de lo oculto y lo
revelado, es el irremisible residuo de ocultamiento, de opacidad frente
a vos – mi aislamiento radical – pues hay aspectos de quién soy yo que
están presentes en el mundo natural de signos de mis gestos, pero que
son desconocidos tanto para vos como para mí. Ese juego de lo que se
oculta y lo que se revela crea el drama de nuestro diálogo gestual.
Este esfuerzo constructivo incesante está dado también por su
carácter incipiente. La danza que expresa este entrenamiento mutuo,
aunque se fundamente y se comente en un discurso oral, es en sí mismo
un discurso sin palabras. Es un hablar natural, aquello que Dewey llamó
signos “naturales” como opuestos a “intencionales”.6 Entonces, así
como una nube representa la lluvia, aunque no intente representarla,
ruborizarse, estirar la boca, representa algo más allá de nuestras inten-
ciones. En esto estamos expuestos a todos los involuntarismos de
nuestra naturaleza social animal: sincronización del gesto, impregna-
ción postural, modos de mirar y varias formas de armonización afectiva
y contagio, a través de la “mímica motora” – reflejos, ecos y cosas por
el estilo –, experimentada por nosotros, tal como la describió Merleau
Ponty, como magia o “acción a distancia”. Experimentamos una partici-
pación colectiva en aquello que denomina una “corriente de experien-
cia psíquica indiferenciada… un estado de permanente ‘histeria’ (en
cuanto a la indistinción que se da entre lo que es vivido y aquello que
es sólo imaginado entre el yo y los otros).7 Negar nuestra ubicación en
este espacio de contagio, de transgresión, “construcción”, “mezcla”
y “expansión” involuntarias (términos de Schilder), de incalculables
efectos, es negar una forma de conocimiento cuya fuente no podemos
identificar o controlar, pero que no por eso deja de ser una fuente de

6
  John Dewey, How We Think, (Buffalo(New York: Prometheus Books, 1991 [1910]),
p. 171.
7
  Merleau-Ponty, p. 45-46.

97
David Kennedy

conocimiento. La estructura de discurso lingüístico de la comunidad


de cuestionamiento e investigación tampoco puede existir separada-
mente, por cuanto es su fundamento y su vehículo. “El discurso emerge
del ‘lenguaje total’ tal como lo constituyen gestos, mímicas, etc.” dice
Merleau-Ponty.8 No solamente el discurso en general, sino también los
elementos funcionales del diálogo – elaboración, reparación, tiempo y
armonización – están fundamentados aquí en el cuerpo.
¿Existe en el desarrollo de la comunidad de cuestionamiento
e investigación un proceso de construcción colectiva definible, una
gestalt gestual grupal? Schilder dice que no se produce cosa tal como
una imagen corporal colectiva, sino sólo lo que él llama una comuni-
dad parcial de imágenes corporales, pero estamos tentados de afirmar
que una gestalt colectiva gestual es un análogo necesario del proceso
colectivo de mente y lenguaje – i.e. la Discusión – que es más fácil de
ver, porque deja huellas, porque no es “mudo”. Merleau-Ponty sugiere
al menos una coordinación grupal de perspectivas fisionómicas cuando
afirma que “en la actividad del cuerpo, como en el lenguaje, existe una
lógica ciega, pues en la comunidad de sujetos hablantes se observan
leyes de equilibrio sin que ningún miembro sea consciente de ello.”9
Quizás podamos aproximarnos a esta idea, nuevamente con la ayuda
de Merleau-Ponty, por medio de la idea de “estilo” que él define como
una “manera que aprehendo y luego imito” de otras personas, aun
cuando sea incapaz de definirla”, a través del poder comprehensivo de
mi corporeidad.”10
A medida que pasa el tiempo en la comunidad de cuestiona-
miento e investigación, dado que nos entendemos con nuestros
cuerpos y en coordinación con las realidades del lenguaje, la mente,
el poder y el deseo, construimos juntos una manera de sentarnos a la
mesa que es la suma de todos nuestros hábitos posturales, faciales,
de nuestros modos de mirar y movernos y también algo mayor que
la suma. Como la relación que tienen nuestras imágenes corporales
entre sí, este todo está continuamente en construcción; hay, como

8
  Ibid., p. 12.
9
  Ibid., p. 95.
10
  Ibid., p. 42-43.

98
A comunidade da infância

dice Schilder del diálogo de imágenes corporales individuales, “un


examen continuo para averiguar qué partes encajan en el plan y en
el todo”.11 Este todo incompleto da forma tanto al movimiento de
la Discusión al tiempo que ésta da forma a aquél, en el sentido de
que cuando los movimientos son “buenos” el todo se va tejiendo y
hay un sentimiento de excitación compartida que se expresa gestual-
mente. Se producen constantemente alteraciones que dependen de
cuán descansadas están las personas, por su estado de salud y por las
diferentes energías de deseo e interés – ya sea conflictos, expansión,
sutilezas de eros, dominación, intimidación, confusión, etc. Cuando
un “grande” se dirige a nosotros – en general un maestro del lenguaje
y del intelecto (aunque esa maestría tenga también una contraparte
gestual) – nos sentamos, nos movemos, hablamos de manera dife-
rente. Cuando una bala perdida, un “vago” (crónico, momentáneo
o episódico) nos molesta, nos confunde o nos infecta, el estilo de
nuestro todo grupal cambia. Aquellos que están dotados kinestésica
y corporalmente nos mueven gestualmente alrededor de la mesa,
con un efecto profundo, aunque sutil. Como una comunidad de amor,
instintivamente trabajamos para asimilar individuos que son gestual-
mente incongruentes – que son demasiado expresivos o muy poco
expresivos, que no sincronizan del todo bien en cuanto a los aspectos
gestuales del mantenimiento y el reparo conversacional – dentro
de un estilo gestual más amplio, que se construye por la interacción
continua y que a su vez es influido por ellos. Y como la comunidad
de cuestionamiento e investigación practica otras formas expresi-
vas, como el compartir comidas, bailar, hacer música, teatro, beber,
hacer ejercicio, jugar, viajar, pasar tiempo juntos, etc., esa experiencia
acumulativa, muda pero expresiva, vuelve a traerse a la ronda, donde
sus cambios sutiles pero inalterables agregan su efecto. Entonces, la
comunidad gestual, como las otras, se desarrolla con el tiempo en la
dirección de una mayor interactividad y coordinación, o pérdida de
coordinación o alguna cosa intermedia.

11
  Schilder, p. 286.

99
David Kennedy

La comunidad de lenguaje

Ya he citado a Merleau-Ponty cuando dice “el discurso emerge del


‘lenguaje total’ constituido por gestos, mímicas, etc.” Luego continua
diciendo: “Pero el discurso se transforma. Por empezar, usa los órga-
nos de fonación para una función que no les es natural – en efecto,
el lenguaje carece de órganos. Todos los órganos que contribuyen al
lenguaje ya tienen otra función… El lenguaje se introduce como una
superestructura, esto es, como un fenómeno que ya es testigo de otro
orden.”12 En tanto testigo de “ese otro orden”, el lenguaje como comu-
nidad de signos tiene primacía dentro de la comunidad de cuestiona-
miento e investigación. Lo gestual – levantar los hombros, una mano
que tiembla, una ceja que se levanta, el rubor o la palidez, inclinar la
cabeza hacia adelante o hacia atrás al escuchar una idea, etc. – intro-
duce un elemento permanente de ambigüedad en cualquier acto de
habla. Lo gestual puede debilitar los actos de habla – el temblor de
la mano cuando se dicen palabras ciertas –, apoyarlos o comentarlos
irónicamente. Los gestos pueden glosar lo lingüístico hasta el punto
de hacer que las palabras signifiquen exactamente lo contrario de su
sentido habitual. Con todo, las palabras, al menos en la comunidad
de cuestionamiento e investigación, siempre se elevan y apuntan más
allá del gesto hacia el pensamiento. La paradoja reside en que nunca
pueden delinear, aprehender o expresar el pensamiento completa-
mente, porque son una parte inextirpable del pensamiento y no pueden
delinearse, aprehenderse o expresarse por sí mismas.13
A pesar de esta debilidad, tanto el gesto como la mente, que
están respectivamente “por debajo” y “por encima” de las palabras,
se enfrentan con el problema de que dependen de las palabras para
su expresión completa, aunque la expresión completa sea imposible.
El gesto, tan natural como opuesto a un signo intencional, es rudimen-

12
  Merleau-Ponty, p. 12.
13
  Esto parece relacionarse con la paradoja señalada por Russell: la paradoja de la
clase que no puede incluirse a sí misma (e.g. la clase de las sillas no es en sí misma una
silla).

100
A comunidade da infância

tario e inacabado fuera de la palabra que emerge de él14, y la mente,


aparte de su fundamento en el gesto, ese mundo de signos sintiente
e involuntario, y fuera de su iconografía más mística en las artes, sólo
emerge de alguna manera por medio de las palabras. Las palabras,
al menos en la práctica de la poesía, de la filosofía y del diálogo real
son un fenómeno fronterizo. El discurso oral y la escritura emergen
frente al pensamiento, encuentran a la mente en algún lugar interme-
dio; nunca saben si están encontrando y expresando a la mente o si
la están creando.
Todas estas paradojas de expresión indican la función de media-
ción o traducción del lenguaje en la comunidad de cuestionamiento e
investigación. Es cierto que todas las comunidades están en un proceso
continuo de inter-traducción, pues cada una trata de llegar a ser trans-
parente en términos de la otra. Pero las palabras, como “testigos de
otro orden” están preeminentemente entre las comunidades, esforzán-
dose por traducir los sentidos de cada una a una lengua ideal. La comu-
nidad de lenguaje siempre está tentada de pensar que, cualquiera sea
el tema, hay una proposición formal a mano – una manera de “decirlo
todo”. Este rol presuntuoso del lenguaje como la esfera objetiva, la
comunidad en la que se puede hablar, a menudo nos impide ver cuánta
traducción se necesita constantemente dentro de la misma comunidad
discursiva. De modo más evidente, la traducción es necesaria entre la
variedad de lenguajes que se hablan dentro de la comunidad, cada uno
de los cuales tiene una manera particular de poner los pensamientos
en palabras, así como particulares protocolos interlocutivos y mane-
ras habituales de combinar la palabra y el gesto características. Cada
miembro de un grupo de lenguaje debe trabajar para traducir, no sólo
las palabras, sino también estas características más fundamentales del
discurso del otro grupo. Cuando en un grupo existen dos o más lengua-
jes, esto llega a ser una tarea crítica.
Entre los hablantes de un mismo idioma, existen diferentes géne-
ros y vocabularios (filosófico, poético, narrativo, histórico, etc.) que dan
forma, a menudo inconscientemente, a la manera en que las personas

14
  Siempre quise conducir una reunión de comunidad de cuestionamiento e investiga-
ción sin palabras, sólo con gestos.

101
David Kennedy

hablan y piden intertraducción. Hay también estilos expresivos (circu-


lar, lineal, aforístico, sistemático, elíptico, alusivo, inspirado, irónico,
etc.) que caracterizan no solamente a los individuos sino también a los
tipos de lenguajes necesarios para expresar (al tiempo que influenciar,
en proporciones incalculables) ciertos tipos de pensamiento.
Por último, tenemos la música del énfasis, del desafío, del
contorno y de la articulación, que actúa como un suelo aún más esen-
cial para el discurso que el gesto. Imaginemos una voz en el teléfono, o
hablando por detrás de una pantalla: puede comunicar independiente-
mente del gesto, de hecho en ocasiones más intensamente, sin compli-
carse por las opacidades y las ambigüedades del gesto y la fisionomía.
El elemento musical del discurso es esencial al sentido, desde lo más
genérico, el trazo melódico de la pregunta, la orden, la advertencia, la
tranquilidad, etc., hasta la sutileza particular, por ejemplo, la calidad
de la persona comunicada por la voz. Si, por medio de un fenómeno
conocido como “enmascaramiento” disfrazáramos el contenido del
discurso de la comunidad de cuestionamiento e investigación y sola-
mente escucháramos la melodía, seguiríamos teniendo registro de
una reunión, en las subidas y bajadas, los ritmos, las pausas, las inten-
sidades de los interlocutores. El nivel musical del lenguaje está en rela-
ción con el gesto, con las palabras, con los patrones de pensamiento,
con el amor y las relaciones de poder, i.e. con todas las comunidades;
y como ocurre con todas las comunidades, las expresa a todas y es
incompleta sin ellas.

La comunidad de mente

La comunidad de mente opera en un continuo desde el pensa-


miento deliberativo, disciplinado de la lógica Occidental, con una volun-
taria sumisión a sus leyes, hasta la cualidad de cuidado por el todo, un
campo emergente de ideas, que se encuentra a sí mismo moviéndose
extrañamente más allá de la ley de contradicción y del tercero excluido.
El borde principal de este emergente se llama, a veces, la “discusión”,
que por medio de un proceso dialéctico, dialógico, busca un horizonte
que se aleja constantemente. El borde emergente implica un todo,

102
A comunidade da infância

que es aprehendido por cada individuo tanto estética y emocional


como lógicamente. Lo capto de acuerdo con mi capacidad para inte-
grarlo, y su calidad total cambia cada vez que actúo dentro de él. Es
vulnerable frente a la confusión cuando la discusión se pierde, pero la
misma calidad de emergencia, de sentir autocorrectivamente el propio
camino, es necesaria para su progreso. Quizás más que cualquier otra,
la comunidad de mente requiere cierto coraje, o disciplina de juego,
una confianza en el despliegue de la discusión por medio del conflicto y
el intercambio de perspectivas.
Todos tenemos la impresión de que la mente, o el pensamiento,
está en alguna medida fuera del tiempo; un sistema de signos – natu-
rales, intencionales, icónicos, establecidos o lingüísticos – lo introduce,
si bien imperfectamente, en el tiempo. Pero esto no quiere decir que
separada del lenguaje sea pura, etérea o “espiritual”, pues como lo
señala Peirce, “la materia de la mente es el sentimiento, ya que las
ideas no son más que continuos de sentimientos vivos”. Porque “el
sentimiento vago es el estado primordial de la mente” y los senti-
mientos son pensamientos vagos, la comunidad de cuestionamiento
e investigación es tanto un fenómeno emocional cuanto mental. Tanto
la mente como el sentimiento operan por asociación, expansión, cone-
xiones y uniones. La discusión siempre lleva a un estado de sentimiento
tanto como a un juicio puramente cognitivo. “Las más altas verdades
sólo pueden sentirse”15; y la emoción fuerte, aunque vaga, siempre
acompaña el tipo de reflexión más abstracta.
La comunidad de mente es como la comunidad de gesto, en la
medida en que por una cosa el pensamiento es específico. Como señala
Dewey, “diferentes cosas sugieren sus propios sentidos apropiados,
cuentan sus propias historias únicas y hacen esto de muchas mane-
ras diferentes con diferentes personas”. Entonces, el estilo de pensa-
miento de una persona es tan idiosincrásico, tan ligado a la cosa parti-
cular que esa persona está pensando, como un gesto está ligado a una
persona determinada, un momento, un sentimiento o una interacción
postural y kinésica.

15
  Raposa, p. 38, 131.

103
David Kennedy

La mente se parece al gesto en que – una vez más en palabras de


Dewey – “no somos nosotros quienes pensamos, en algún sentido acti-
vamente responsable; el pensamiento es, más bien, algo que ocurre
en nosotros”. Como la danza gestual en la que estamos envueltos,
la inexorable dialéctica del pensamiento llega a su fin en nosotros,
individualmente y como grupo. Estamos familiarizados con su doble
movimiento, desde lo finito, parcial, confusamente dado hasta el todo
que involuntariamente se sugiere a sí mismo, que luego apela a casos
adicionales a los que ese mencionado todo ha dirigido nuestra aten-
ción. La investigación grupal consiste en acortar distancias, unir, avan-
zar y retroceder, por un proceso de análisis y síntesis, entre lo obser-
vado y lo condicional. Aunque rudimentario y tortuoso, el movimiento
se dirige siempre hacia la generalización, abarcando y uniendo elemen-
tos que previamente eran entendidos como separados, dispares.16 Así,
la lógica ordinaria – la lógica de clases – opera bajo lo que Peirce carac-
teriza como la “atracción” del todo, que se siente vagamente como
un sentido liberado de las restricciones locales y es comprendido sola-
mente por medio de otro tipo de lógica, que él llama “lógica de rela-
ciones”. La última intuitivamente comprende su propia posición como
moviéndose del fragmento al sistema, procediendo hacia sistemas de
relaciones cada vez más abarcativos.17 Este movimiento a menudo conl-
leva lo que Corrington llama “un salto más allá de los datos corrien-
tes [en un] intento por alcanzar una expansión genérica mayor”.18 Las
ideas surgen espontáneamente, se expanden, son afectadas unas por
otras y forman ideas más generales.
Pero aunque seamos intuitivamente concientes de que no hay
pensamiento aislado y que cualquier estructura noética dada que
contemplemos es un fragmento de un todo mayor, ese todo está más
allá de nosotros. Y puesto que el pensamiento sólo puede expresarse
por signos y todo signo está determinado por lo que venía antes de él
y por lo que viene después, la mente está intrínsecamente impedida en

16
  John Dewey, Ibid., p. 39, 34, 79, 80, 211.
17
  Raposa p. 18, 25.
18
  Robert S. Corrington, The Community of Interpreters (Macon: GA; Mercer University
Press, 1987) p. 3.

104
A comunidade da infância

su movimiento; es falible, siempre discutible, en riesgo. La dirección de


la discusión emerge solamente por medio de ensayos tentativos y siem-
pre es visible sólo parcialmente. Pero la sensación de que nos atrae un
summum bonum – una coordinación de perspectivas, un estado tanto
emocional, gestual y perceptual cuanto cognitivo –, nos mantiene en
un estado de oscura excitación al seguir la discusión.

La comunidad de amor

La comunidad de cuestionamiento e investigación es un grupo


de romance, cuyo eros es tanto sexual, platónico (en el sentido del
eros del Banquete) como agápico. El eros sexual de la comunidad de
cuestionamiento e investigación se experimenta no solamente en las
varias atracciones mutuas entre individuos o combinaciones de indi-
viduos, captadas en varios niveles de sublimación o desublimación,
sino también como un movimiento grupal hacia la unidad en un nivel
somático, que se inicia y se sostiene en la comunidad de gestos. La
finalidad de la comunidad de investigación puede plantearse como
aquello que Marcuse describe como la “transformación de la sexuali-
dad en eros”, por medio de la emergencia de la “sublimación no repre-
siva”.19 Los miembros del grupo experimentan esta transformación
como un sentido vívido de belleza, energía y afinidad mutua, así como
un camino hacia la revelación, la vulnerabilidad y el cuidado mutuo,
donde adquiere dimensiones agápicas. Es análogo al movimiento de
la comunidad noética hacia la coordinación de perspectivas implícita
en la captación del todo, y de la comunidad gestual hacia la perfecta
ejecución de la danza kinésica, proxémica, epidérmica y atenta. Los
riesgos que la comunidad de amor enfrenta incluyen la permanente
posibilidad de desintegración personal y social por medio de la explota-
ción personal y/o sexual y los sentimientos de celos, de amor no corres-
pondido, de antagonismo, de excesiva reserva, etc., todos los cuales
están asociados a las vicisitudes que tienen lugar dentro de la comu-

19
  Herbert Marcuse, Eros and Civilization (Boston: Beacon Press, 1955) cap. 10, “The
Transformation of Sexuality into Eros”.

105
David Kennedy

nidad de interés. También está asociada con la comunidad de amor la


“ilusión grupal”, i.e. la percepción de una armonía que es por ahora una
expresión de deseo. Pero la comunidad de amor ofrece la oportunidad
de curar, en el sentido de hacer un todo, de recobrar un tipo de equili-
brio emocional en el cual el individuo experimenta que su identidad es
completada por el grupo y viceversa.
La comunidad de amor es tanto noética como emocional. La razón
puede entenderse como una forma de amor, 20 un ansia para la cual
sentido y belleza son sinónimos. Todas las personas tienen un deseo
natural, como una forma de curiosidad, de ampliar su ámbito de familia-
ridad con las personas y las cosas. Instintivamente comprendemos que
no estamos completos mientras estamos solos, que la experiencia de
una persona no es nada si permanece sola.21 Este impulso a asociarse
es el Eros que Freud llamó un instinto,22 la fuerza creativa, empática
que nos lleva a la relación [con otro] como una forma de autorrealiza-
ción y nos conecta a unos con otros, así como conecta las ideas unas
con otras. En sus dimensiones agápicas,23 el amor elimina las cualidades
más concretas, sensuales y sexuales de lo erótico y es experimentado
como una influencia mediadora, que, análoga a la ley de la mente, nos
proyecta en la independencia y nos envuelve en la armonía.
Pero por medio de todas las modalidades del amor la comunidad
de investigación se junta, se mantiene unida, trabaja en el conflicto,
emprende conjuntamente la disciplina y crece en unidad tanto como
en complejidad. En el amor comprendemos a la comunidad de cues-
tionamiento e investigación como un “yo más grande” en formación.
En la comunidad de amor, como dice Corrington, “los horizontes indi-
viduales de sentido se abren unos a otros de tal modo que la plenitud

20
  Ver Ann Sharp, “Peirce; Feminism and Philosophy for Children”, Analytic Teaching
(14, 1), 1993, p. 58
21
  Raposa, p. 83.
22
  Peirce lo identificó como algo más. Para él es, de hecho, el principio de “amor evo-
lutivo” por el cual tanto la naturaleza y la mente, o el pensamiento, tienden hacia la
unidad y la totalidad. Dada la metafísica freudiana, “instinto” debe haber sido la única
manera en que él podía llamarlo.
23
  Rechazo deliberadamente cualquier tipo de distinción final entre eros y agape. Los
considero formas, modos o dimensiones de lo mismo.

106
A comunidade da infância

horizontal puede reemplazar la autorreferencia narcisista de la vida


precomunicativa.”24 La comunidad de cuestionamiento e investiga-
ción es por definición una comunidad de personas que son amigas
o en proceso de llegar a serlo, quienes frente a las poderosas fuer-
zas del interés propio y del miedo, experimentan un crecimiento en
la razonabilidad que es tanto ético, como estético, social , emocional
y también cognitivo.
Estas relaciones se logran después de un largo trabajo. En todo
grupo existe una conexión previa, en la cual el amor y el interés están
entremezclados (nunca llegan a estar completamente separados) y el
trabajo de la comunidad de cuestionamiento e investigación consiste
en forjar relaciones de amor fuera de esta conexión ya existente. En un
cierto punto en nuestra formación, enfrentamos la crisis de desarrollo
de la “ilusión grupal” mencionada más arriba, y en ese momento, una
ruptura es necesaria, algo que rompa el falso sentido de la armonía y nos
confronte con nuestras diferencias, nuestras distancias, de un modo
realista hasta el punto en que lo que aparece como amor es interés
propio disfrazado. Y esa no es la única crisis. El éxito de la comunidad
de amor debe ser, en muchas oportunidades, rescatado de las garras
de lo que Corrington llama las “fuerzas corrosivas del solipsismo y del
individualismo agresivo”,25 a costa del conflicto, una cuidadosa autodis-
ciplina y numerosos actos de sacrificio, pequeños y grandes. Pero este
trabajo, aunque progrese por medio del sacrificio, es en última instan-
cia aliado de la comunidad de interés, porque se sostiene por nuestra
comprensión intuitiva de que el amor no es irracional: es por el contra-
rio la más alta lógica, que, de acuerdo con Peirce, “inexorablemente
requiere que nuestros intereses no sean limitados. No debe detenerse
en nuestro propio destino sino abarcar la comunidad toda… La lógica
se arraiga en el principio social.”26

24
  Corrington, p. 43.
25
  Ibid, p. 17.
26
 En Collected Papers 2.654. Citado en Raposa, p. 23.

107
David Kennedy

La comunidad de interés

La comunidad de interés podría también caracterizarse como la


comunidad del interés de cada yo, o simplemente del yo o como la
comunidad política. Es la comunidad de individuos que buscan poder
e invulnerabilidad a través de la amistad, la alianza, la puesta en prác-
tica, la influencia, la dominación, la jerarquía, el favor especial, etc. Cada
individuo es llevado a “ser alguien”, a contar, a tener importancia y
para lograrlo está continuamente, de manera, casi inconsciente, nego-
ciando la influencia y el reconocimiento tanto con el grupo como todo,
como con diferentes subgrupos y con cada individuo dentro del grupo.
La negociación se construye socialmente, con relaciones de
poder que en todos los casos, de manera tácita o no, ya están defini-
das, pero siempre en proceso de cambio y variación. Esto es necesario
en la medida en que ser un yo significa pasar por series continuas de
interpretaciones que se derivan en parte de la estructura comunitaria
y, entonces, mi autocomprensión depende en gran medida de cómo
el grupo me comprende a mí. Por otra parte, es una necesidad trágica,
puesto que lo que la hace completamente necesaria es mi radical fini-
tud, un solipsismo involuntario que subyace a la “autoreferencia narci-
sista de la vida precomunicativa” mencionada más arriba. Estoy atra-
pado en mi propio horizonte y ese horizonte está arraigado en aquello
que Corrington llama una “voluntad de vivir descontrolada y sin guía..
que se encuentra en todos los seres, que los obliga a luchar unos contra
otros por la dominación… dando lugar a una lucha trágica que, en su
forma extrema, hace imposible la comunidad.”27
Esta finitud trágica da cuenta de los elementos patológicos y
disfuncionales que con tanta facilidad perturban a la comunidad de
cuestionamiento e investigación – individuos o subgrupos que deten-
tan mucho o muy poco poder, o que luchan con resentimiento o
exclusión; individuos comprometidos con conflictos personales o con
necesidades o ambiciones que tienen un efecto disruptivo dentro del
grupo, etc. En una atmósfera semejante, el rumbo de la comunidad

27
  Corrington, p. 26.

108
A comunidade da infância

hacia una transparencia semiótica se distorsiona inevitablemente. Se


manifiesta no sólo en el tipo de luchas y de tensiones ya mencionadas,
sino también en la politización del propio proceso hermenéutico: el
resultado es que los individuos, algunos grupos o el grupo entero, ya
no siguen la investigación adonde ella conduce, sino que inconcien-
temente orquestan argumentos para convalidar estructuras ideológi-
cas previas o para glorificarse a sí mismos de manera aún más directa.
Dada esta situación trágica, cargada de inconsciencia y ambigüedad, la
tarea de una verdadera coordinación de perspectivas surge como una
tarea infinita y ardua, por cuanto implica la crucifixión de los elemen-
tos solipsistas del propio horizonte.28 También es cierto que, el mayor
regalo que se hace a la comunidad de cuestionamiento e investigación
es la individualidad de cada miembro, en toda su finitud; y podría ser
que el interés sea la fuerza que conduce el desarrollo de la comunidad
desde un extremo, mientras que el amor lo atrae desde el otro. Mi
inerradicable individualidad es tanto mi trágica debilidad, por la cual
me encuentro a mí mismo en un estado de fragmentación horizontal,
cuanto mi “falla feliz”, que me lleva a superar mi separación a través
del diálogo. Es de nuestro mayor interés seguir la discusión, la cual
promete superar las distorsiones que crea la individualidad, porque
promete la superación de la distorsión y la división y representa así la
completitud del yo.
La comunidad de cuestionamiento e investigación se toma muy
en serio la tarea de llegar a ser una comunidad que incluya a todos,
no favorezca a ninguno y limite las tendencias de los individuos domi-
nantes o disruptivos. Cuanto más lazos estrecha un grupo, mayor es el
peligro de disrupción, en el movimiento de cada individuo por la afirma-
ción y el poder. Esto es así porque el amor nos lleva a una autorrevela-
ción, pero esa autorrevelación incluye la revelación de nuestra radical
finitud, de lo oscuro y lo abyecto que hay en cada uno de nosotros, de
nuestras particulares formas de egoísmo. Cuanto más miramos dentro
de nosotros, más necesitamos tolerar. Pero también hay cosas en cada
uno que necesitamos, no sólo tolerar, sino también perdonar: condi-
ciones de aislamiento moral e intelectual que, en la medida en que la

28
  Ibid, p. 47, 67.

109
David Kennedy

comunidad de cuestionamiento e investigación es un proceso transfor-


mador, deben ser superadas o el grupo entero se ve comprometido. Se
trae otra vez al individuo dentro del grupo por medio del sacrificio y la
confrontación. Pero el resultado nunca está garantizado y el proceso
de transformación del individuo aislado y disruptivo a través del amor
del grupo está repleto de ambigüedades y puntos oscuros. Allí donde
pensamos que la discusión puede estar perdiendo su rumbo, puede ser
precisamente el lugar donde debemos seguirla; entonces, una disrup-
ción individual, aparentemente solipsista, puede ser exactamente lo
que el todo necesita para superar el solipsismo colectivo, aunque este
hecho no necesariamente mitigue los orígenes solipsistas del compor-
tamiento individual disruptivo. Lo que sí parece claro es que la comu-
nidad de cuestionamiento e investigación avanza más genuinamente
por medio de los actos, pequeños y grandes, de la autodisciplina y el
sacrificio, que rompen el encanto del interés y apuntan al punto omega
de la comunidad de amor – cada individuo fundiendo su individualidad
empáticamente con sus compañeros.

Algunas interrelaciones

Quisiera explorar ahora algunas de las relaciones analógicas, las


armonizaciones expresivas y las influencias mutuas entre las cinco
comunidades; sin olvidar que la descripción de estas interrelaciones
corresponde siempre a “un modo de decir”, dado que en la experiencia
las cinco comunidades son inseparables.
El gesto y el lenguaje están siempre en alguna relación de mutuo
ir y venir, aunque las modalidades de ese ir y venir puedan ser irónicas,
contradictorias o ambiguas. El gesto también interactúa con la mente,
en un reflejar o expresar su movimiento generalizador y dialéctico
dentro de nosotros y entre nosotros, en un signo natural cuya forma
más intencional es la danza.29 Entonces, el pensamiento nos mueve:
nuestros rostros brillan, se contraen, estamos posturalmente electrifi-

29
  En el último, el gesto va por delante de la mente y la guía.

110
A comunidade da infância

cados por una idea; una contribución que ciñe la discusión, también nos
ciñe alrededor de la mesa.
El amor y el interés dan forma a las energías y modalidades más
fundamentales del gesto, por cuanto, biológicamente, el movimiento
se arraiga en el deseo y el miedo (nos acercamos hacia uno y nos aleja-
mos del otro), que se manifiestan en los objetivos, catexis, antipatías,
seguridades e inseguridades del yo y sus relaciones. El interés y el deseo
se reflejan y expresan también en la danza intersubjetiva que tiene
lugar entre los individuos y algunas veces entre los subgrupos, danza
que puede ser erótica, tímida, agresiva, juguetona, abstracta, ambigua,
formal, no decisiva, etc.
El lenguaje, sólo por ser una traducción de la mente, es ya una
distorsión, aunque pueda ser una distorsión coherente. Esto también
ocurre con sus efectos en las otras comunidades. En cada caso, el costo
que se extrae de traducir cosas en palabras es la dimensión misma que
hace a la comunidad ser lo que es. Aunque lo poético, en la medida
en que es un desorden del lenguaje, rompe esta sujeción a la lógica
de la gramática, sólo permite una visión limitada del estado “puro” de
la mente, el deseo y el interés, y no una traducción sistemática, pues
eso nos retrotraería una vez más a un sistema lingüístico. Además, la
comunidad de cuestionamiento e investigación no puede mantener
durante mucho tiempo lo poético como una forma de discurso, pues
es un discurso transgresor, asimétrico, individualista y por lo tanto
adverso a la necesidad de la comunidad para construir un universo de
signos comunes.
La mente, el lenguaje y el gesto son estadios o pantallas o espacios
expresivos donde es representada y actuada la disimulación del eros,
del ágape y de las ambigüedades de la personalidad individual y de la
voluntad de poder. Como has llegado a conocerme por mis ideas, por
mi manera característica de hablar acerca de mis ideas y por mi presen-
cia postural y kinésica, entiendes cada vez más que todo esto apunta a
una característica cualitativa del yo, a una manera que tengo de llevar
mi identidad a lo largo del tiempo; que a su vez se conecta con formas
características de interés y amor, i.e. una manera de trascenderme
(llegando o no) a un vos, a un otro, y a una comunidad como un todo más
amplio, del cual yo mismo me siento parte. ¿Qué busco realmente? ¿A

111
David Kennedy

qué estoy dispuesto a renunciar para alcanzarlo? ¿De qué modo formo
parte de este grupo? ¿Cómo lo estoy usando? ¿Cómo estoy permitiendo
que el grupo me use a mí? ¿De qué tipo de amor soy finalmente capaz?
Esto es verdad para las formas características del amor y el interés, no
solamente de los individuos sino también de los subgrupos y del grupo
como un todo. El interjuego entre el amor y el interés es complejo y
está cargado de vicisitudes y auto-disimulación y su intersección hace
de la comunidad de cuestionamiento e investigación una comunidad de
justicia o injusticia, de impulsos y prácticas realmente democráticas o
de sutiles tiranías. Esto se vuelve particularmente problemático cuando
los temas de la justicia en la escuela, en la comunidad o en la sociedad
llegan a ser tan apremiantes que la comunidad de cuestionamiento e
investigación, para mantener su identidad ética, debe asumirlos como
uno de los elementos de su propia investigación.30
A las relaciones entre las comunidades, se suman patrones típica-
mente dinámicos e interactivos que recorren la totalidad del proceso
de desarrollo de la comunidad de cuestionamiento e investigación, que
vemos representarse una y otra vez. Hasta qué punto una determi-
nada comunidad de cuestionamiento e investigación permanece junta,
crece y alcanza juicios que son significativos depende en gran medida
de cómo sus miembros transitan estos patrones – cómo los sopor-
tan, cuánto obedecen a sus limitaciones, cuánto los dominan, cómo
aprenden a tomar una dirección (o a evitarla) por medio de ellos. He
identificado seis.

Crisis

Se ha convertido casi en un lugar común de las teorías del desar-


rollo que, en cualquier proceso dialéctico, el movimiento hacia adelante
implica una ruptura del equilibrio previo de manera que permita estab-

30
  Para un ejemplo de este dilema, ver Marguerite y Michael Rivage-Seul, “Critical
Thought and Moral Imagination: Peace Education in Freireian Perspective”, en
McLaren, P. & M. Lankshear (eds.), The Politics of Liberation (South Hadley, MA: Bergin
and Garvey, 1994).

112
A comunidade da infância

lecer un nuevo equilibrio en un nivel superior. La investigación avanza


a través de continuas disrupciones; Lipman lo compara con el caminar
“en el que sólo se avanza perdiendo constantemente el equilibrio.”31
Duda y creencia – una compleja red de creencias y supuestos instinti-
vos, en su mayoría vagos y muchos de ellos, en algún momento dado,
totalmente inconscientes32 – permanecen en un estado de constante
tensión dinámica. Cuando estas creencias-hábitos entran en crisis,
cuando la experiencia las arroja a un estado de perplejidad, el acto de
búsqueda, de investigación comienza. Como dice Dewey, “el pensa-
miento comienza en el punto donde los caminos se bifurcan.”33 Al igual
que la necesidad de apoyar el otro pie, el movimiento para recobrar el
equilibrio, para volver a un estado de creencia es irresistible.34
La experiencia superlativa de la comunidad de cuestionamiento
e investigación es la clara sensación de que el sentido ha sido intensifi-
cado al ser confrontado con un problema que no es un mero ejercicio,
sino que llama genuinamente la atención. La comunidad de cuestio-
namiento e investigación es un lugar aparte, en el que hemos llegado
juntos a experimentar esta crisis de sentido. Es el espacio de problemati-
zación, de cuestionamiento, de cambio, donde la falta de comprensión,
la ausencia parcial de sentido que habita aun lo más familiar y conocido,
ya no es rutinariamente suprimida, sino elevada como aquello en lo que
más nos fijamos.35 Esto requiere cierto coraje, renuncia y habilidad para
resistir. Hace del espacio gnoseológico, psicológico y social de la comu-
nidad de cuestionamiento e investigación un lugar extraordinario, un
lugar de agon del que salimos modificados.

31
  Matthew Lipman, Thinking in Education, Cambridge: Cambridge University Press,
1991, p. 232.
32
  Raposa, p. 96. En la p. 104 se refiere a “un sistema completo de opiniones, hábitos
de pensamiento que pueden considerarse instintivos o, en palabras de Peirce, ocasio-
nados en el aprendizaje infantil y la tradición.”
33
  Dewey, p. 11.
34
  Esto lo señala Raposa, p. 95. Distingue esta forma de duda de la duda cartesiana
de creencia igual a cero, que es una suerte de patología intelectual, o al menos un fa-
natismo.
35
 En How we think, Dewey dice “ningún objeto es tan familiar, tan obvio, tan común,
como para que no pueda presentar, en una situación nueva, algún problema.” (p. 120)

113
David Kennedy

Diálogo

La crisis se precipita por medio de otro. El diálogo comienza en


el reino de la “segundidad” de Peirce, donde la experiencia contra-
dice nuestras perspectivas y requiere a su vez una mediación, cuyo
proceso da como resultado juicios que llevan a una coordinación cada
vez mayor de las perspectivas. Entonces, el diálogo comienza en lo que
Gadamer llama un “momento de negatividad”36 de contradicción por
otro, cuando otro nos contradice y así se profundiza la complejidad. Es
un proceso en el cual algunos elementos de mi perspectiva se confir-
man y otros se vuelven dudosos; por esta razón, requiere lealtad a la
creencia de que la experiencia de la contradicción, emprendida con
buena fe, me llevará a fortalecer mi propia perspectiva y una posterior
coordinación de nuestras perspectivas; de tal modo que, de acuerdo
con Peirce, la evolución se dirige hacia una mayor variedad y diversifi-
cación y una mayor regularidad, de la legalidad. “Aunque ´lo homogé-
neo dé lugar a lo heterogéneo´, estos elementos diversos son llevados
hacia una relación armónica en otro nivel y llegan a ser coordinados
dentro de un sistema de relaciones algo más general. Desde esta pers-
pectiva, la variedad no es nunca mero caos, la simple ruptura del orden;
de manera más esencial, es un necesario catalizador del crecimiento
de la razón.” La comunidad de cuestionamiento e investigación puede
pensarse como una persona más amplia, y el crecimiento de las perso-
nas nunca es mera adición, sino una continua diversificación y armoni-
zación, una con la otra, de sistemas aún más complejos…”37
El diálogo tiene la paradójica característica de “viajar por sepa-
rado hacia la unidad”.38 La discusión progresa cuando se enreda en
una contradicción. Esto es inevitable, en tanto la comunicación es
asimétrica – la misma recepción de un signo por otra persona significa

36
  Hans-Georg Gadamer, Truth and Method, New York: Crossroad, 1975, p. 318.
37
  Raposa, p. 78 y 83.
38
  Para una brillante fenomenología de la dialéctica, ver H.-G. Gadamer, The Idea of
the Good in Platonic-Aristotelian Philosophy, New Haven: Yale University Press, 1986.
Para un resumen de estos argumentos, ver mi “Hans-Georg Gadamer’s Dialectic of
Dialogue and the Epistemology of the Community of Inquiry” in Analytic Teaching 11,
1, 1990, p. 43-51.

114
A comunidade da infância

su transformación irrevocable en otro signo y es imposible volver al


sentido original previo a la interpretación. La discusión sigue su camino
a través de este interminable proceso de interpretación y reinterpre-
tación, por medio del cual los sentidos llegan a ser verdaderamente
compartidos por la comunidad.39 Aunque la perspectiva de cada miem-
bro es, en su finitud, irreductible a la de otro, cada perspectiva puede
llegar a ser parte de una perspectiva mayor, que surgirá siempre de
la continua reformulación de posiciones como un resultado del inter-
juego de perspectivas.

Juego

Como un momento de negatividad, de la contradicción que tiene


lugar, el diálogo es un trabajo de los más profundos, aun como aquello
a lo que se refería Sócrates en el Fedón como “práctica para la muerte”.
Desde el punto de vista del campo de sentidos emergentes que crea,
el diálogo es profundamente lúdico, porque rompe la rutina de lo
instrumental, la “voluntad de vivir descontrolada y sin guía”. Al abrir-
nos nosotros mismos a la perspectiva del otro, estamos arrojados a un
espacio de emergencia y transformación, en el que la discusión ya no
surge de ninguna persona en particular sino del intercambio entre las
personas. A través de lo que Peirce llamó la “reflexión interpretativa”,
“permitimos que los signos se desplieguen en patrones nuevos y crea-
tivos,”40 y a menudo lo inesperado, la combinación azarosa permite
que la discusión progrese.
Según la noción de “tychismo” (del griego týche = azar) de Peirce,
el azar genera orden, ya que en su espontaneidad, en su diferencia, en
su variación, actúa como un catalizador en la producción de niveles más
elevados de uniformidad, rompiendo viejos hábitos y estimulando el
desarrollo de nuevos hábitos de comportamiento.41 El tychismo es una
función de la lógica de relaciones que opera por medio de la asociación

39
  Corrington, p. 41 y 42.
40
  Corrington, p. 8.
41
  Raposa, p. 32, 74; Corrington, p. 126.

115
David Kennedy

de elementos aparentemente disímiles, que luego se encuentran rela-


cionados dentro de marcos de referencia más amplios. Estos patrones
llegan a ser visibles cuando en la comunidad de lenguaje, de mente e
incluso de gesto, se admite el impulso al juego. Porque si, como dice
Peirce, “la emoción es un pensamiento vago, imperceptible,”42 el juego
es la respuesta del sentimiento a las ideas, a la unidad de un horizonte
de sentido más allá de nosotros, que funciona como una atracción, por
cuanto el sentido mismo del jugar entra y responde con todo nuestro
ser a algo más grande que nosotros.
Tanto Peirce cuanto Dewey asocian la “falta de propósito y el
desinterés” del impulso lúdico a la actitud científica.43 La actitud
mental ideal es “ser lúdico y serio al mismo tiempo”, en tanto “el
juego mental libre implica seriedad, un seguimiento comprometido
del desarrollo del tema en cuestión”, mientras que el “puro interés por
la verdad coincide con el amor por el libre juego del pensamiento.”44
Cuando jugamos con ideas en la comunidad de cuestionamiento e
investigación, permitimos que la estructura de la comunidad de mente
se cristalice y se articule más allá de nosotros, partiendo de cada uno y
atravesándonos a todos.
El abandono de nosotros mismos al juego intrínseco de relaciones
siempre emergentes de la comunidad de mente requiere del coraje de
dar, en palabras de Dewey, un envión, un salto, la propiedad de aquello
que no puede ser absolutamente garantizado de antemano, indepen-
dientemente de las precauciones que se tomen.”45 Se necesita disci-
plina para suspender el juicio y cultivar una variedad de sugerencias
alternativas sin establecer una prematuramente. Aprendemos a balan-
cear el foco de atención entre la investigación como algo que fluye
momento a momento y algo que promete una culminación, un resul-
tado. Sabemos que estamos jugando cuando nos encontramos a noso-
tros mismos observando la belleza de las relaciones internas, del surgi-

42
  Raposa, p. 131. Peirce también dijo “las más grandes verdades sólo pueden sen-
tirse.” (ibid)
43
  Ibid, p. 218-219.
44
  Dewey, p. 219.
45
  Ibid, p. 75.

116
A comunidade da infância

miento de la mente en la lógica de relaciones, mientras se vislumbra su


última dirección como un horizonte, inminente aunque infinitamente
lejano. A través de los movimientos que nos transportan, tenemos un
sentido estético de su estructura, pues más allá de nosotros se forma
un lazo de continuidad que reúne los estadios sucesivos. Esto nos da la
fuerza y la confianza para seguir la discusión adonde nos lleve a través
de un caos aparente, evitando lo que Dewey llamó “pavear” que, en un
tono excesivamente festivo lleva a la disipación y a la desintegración de
la investigación.46
Me he concentrado en el juego de la comunidad de mente, pero
el juego esta presente, por cierto, en el lenguaje, que gusta jugar con
el sonido, el sentido y la estructura; en el gesto, donde la imitación y el
comentario inconsciente de la postura, el movimiento y la expresión,
entran en un permanente intercambio; en el interés y el amor, ya que
ambos buscan de manera espontánea y generalmente inconsciente, la
expresión lúdica en las relaciones de tipo erótico, compasivo, de domi-
nación o sumisión y de intriga que se establecen con los otros. Todas
estas formas no sólo son análogas, sino que también son elementos
del juego de la comunidad de mente, en tanto cada comunidad es una
traducción dinámica y reflexiva de las otras.

Teleología

Somos capaces de entregarnos al juego del diálogo en la comu-


nidad de cuestionamiento e investigación porque confiamos implíci-
tamente en que hay una formación inmanente y un despliegue tanto
del pensamiento como de la estructura relacional entre nosotros.
Sentimos que estamos embarcados juntos en un movimiento hacia una
coordinación de perspectivas, a través de la cual nuestro universo de
sentido será transformado, incluyendo la relación fundamental entre
el individuo y el grupo, i.e. la estructura óntica de la comunidad misma.
Este télos se presenta como lo que Corrington llama una “fuente incon-
dicional de valor” que desde adentro, nos conduce y desde afuera, nos

46
  Ibid, p. 217

117
David Kennedy

atrae. Promete un estado de perfecta razonabilidad, de unidad inclu-


siva y de apertura radical,47 i.e. de superación de la finitud trágica que
perturba y distorsiona nuestra investigación, así como nuestras rela-
ciones. Entonces, cada acto interpretativo individual apunta más allá
de sí mismo hacia un todo en formación, hacia una perspectiva más
abarcadora en la que todos los signos se ubican unos en relación con
otros. Cada acto interpretativo es, en definitiva, juzgado por ese hori-
zonte infinito que prometía una verdad total o “un largo plazo infinito
que garantiza la validación de los actos interpretativos.”48Aunque no
podemos evitar operar atraídos por este horizonte infinito, siempre
excede el horizonte de lo que puede estar presente ante nosotros en
un momento dado; entonces tenemos solamente verdades parcia-
les, destellos de la verdad que manifiesta aspectos de sí misma en el
discurso humano; no podemos deducir de antemano cómo se verá.
Como plantea Corrington, “ninguna serie [de signos] alcanzará la tota-
lidad, aunque ninguna serie dejará de anhelar la integración completa
(encompassment).” Algo así como un ansia genérica anima cada serie
cuando se mueve hacia la Integración misma.”49

Conflicto

El conflicto en la comunidad de cuestionamiento e investigación


está habitualmente asociado con la comunidad de interés – con luchas
personales, divisiones ideológicas o actitudes o comportamientos
presuntuosos, insensibles y difamantes. Pero así la razón entra necesa-
riamente en contradicciones que le permiten desarrollarse: el conflicto
es un tema universal de la comunidad de cuestionamiento e investiga-
ción. La experiencia de la investigación siempre acarrea un elemento
negativo, una necesidad de ser refutado para aprender lo que no se
sabe. El dia de dialéctica representa el proceso de diferenciación, de

47
  Corrington, p. 12.
48
  Ibid, p. 47.
49
  Ibid, p. 66.

118
A comunidade da infância

un ir a través en el que las cosas se separan, lo cual implica siempre un


cierto grado de conflicto.
El conflicto es un resultado de la resistencia de la segundidad, los
no-yo, lo particular y disruptivo, a nuestras expectativas. La resisten-
cia es un elemento clave en el progreso de la discusión, pues a través
de ella, la realidad resiste las pretensiones de cualquier teoría que se
vuelve presuntiva e intenta explicar más de lo que realmente puede;
en consecuencia los caminos falsos son eliminados.50 Pero el hecho de
que todo conflicto sea un aspecto central, necesario de todo proceso
dialéctico no reduce el importante riesgo que representa para la comu-
nidad de cuestionamiento e investigación. Este riesgo aumenta por
nuestra tendencia a sostener un modelo homeostático o de “orden”
del proceso grupal, que entiende el conflicto como inherentemente
malo y desintegrador, y que en consecuencia debe ser evitado o supri-
mido a cualquier precio. Pero así como el conflicto cognitivo transforma
la comunidad de mente, el conflicto social transforma las comunidades
de amor e interés y produce discernimiento moral. Cuando se atraviesa
el conflicto con la humildad que viene del discernimiento que puede
ser transformador, el individualismo se modera y la relación individuo-
-grupo se va alterando gradualmente.
¿Qué es lo que provoca conflicto social en la comunidad de
cuestionamiento e investigación? Todas las personas tienen la
experiencia de sí mismas como parte de un todo mayor, pero también
experimentamos una irreductible dimensión de discontinuidad, pues
cada uno de nosotros ocupa un horizonte que nos conecta tanto como
nos separa . Rara vez llegamos a probar y articular nuestro propio
horizonte – de hecho, como dice Corrington «es parte de la lógica de los
horizontes olvidar que es un horizonte.» Además, hay un movimiento
desde cada horizonte individual para llegar a ser general; Corrington lo
llama «el ansia de cada horizonte de expandirse hacia lo genérico y de
abarcar, su deseo de llegar a ser idéntico al mundo mismo.»51 Esta ansia
está relacionada con la “falta feliz” mencionada antes – el movimiento
hacia la unidad que, combinado con el atractivo del “abarcar”, nos lleva

50
  Ibid, p. 4.
51
  Ibid, p. 64

119
David Kennedy

hacia la coordinación de perspectivas. Es siempre un movimiento ambi-


valente, pero sólo es demoníaco cuando persiste en la otredad, la inde-
pendencia, la fuente de su impulso hacia la unidad. En palabras de Peirce
“la individualidad es el lugar del mal si se construye como término más
que como momento o fase del movimiento circular del amor”.52
Este olvido de mi propio horizonte – e incluso de que ocupo un
horizonte – no lleva en general a la perversión sino más bien a diversas
formas de rigidez e inercia o a compromisos ideológicos que “perju-
dican el movimiento abierto de la articulación de signos.”53 Mi olvido
no puede ser superado desde el interior de mi propio horizonte sino
sólo al ser, de una manera u otra, humillado: son los golpes, las ruptu-
ras que experimento por medio del diálogo, los que sirven para clari-
ficar mi horizonte para mí mismo, y en consecuencia, permiten una
coordinación posterior con los horizontes de los otros. Mi horizonte
nunca será completamente transparente a mí mismo – eso parece ser
una imposibilidad ontológica. Pero cuando choca con un horizonte
ajeno, lo que está oculto en él se revela y se ve forzado a una nueva
autorreflexividad.54
El carácter irrevocable de nuestra finitud constituye un elemento
inexpugnable de ocultamiento mutuo de los individuos. Esta “última
rebeldía por parte de los horizontes a manifestar sus aspectos pecu-
liares y malvados”55 es un elemento trágico de la vida en comunidad.
Pero desde el punto de vista del movimiento dialéctico en el que nos
sentimos comprometidos como comunidad, esta búsqueda radical
de individualidad aparece como el momento negativo necesario en el
desarrollo creativo del amor.56 La tensión entre las irreductibles oscu-
ridades de nuestro propio horizonte y el horizonte de los horizontes
que nos atrae requiere de una disciplina para la cual nos encontramos a
nosotros mismos aptos gracias al amor.

52
  Raposa, p. 90
53
  Ibid, p. 57.
54
  Ibid, p. 64.
55
  Ibid, p. 66.
56
  Raposa, p. 89.

120
A comunidade da infância

Disciplina

La disciplina es la virtud operativa de la comunidad de cuestiona-


miento e investigación, en tanto implica un mínimo nivel de autocon-
trol individual y colectivo que hace posible sobrellevar los conflictos y
vicisitudes, no sólo de la discusión sino del proceso social del grupo, sin
perder la sinceridad, sin volverse introvertido, sin tratar de dominar,
sin quedarse estancado en un conflicto ideológico, sin esperar de la
comunidad más de lo que es capaz de dar en un momento dado. Cada
comunidad de cuestionamiento e investigación necesita su particular
forma de expresión de esta virtud, que depende de los individuos parti-
cipantes, pero lo que parece ser genérico a todas sus modalidades es el
autocontrol y la perseverancia.
La comunidad de mente requiere la disciplina de la lógica de
clases y también la disciplina más amplia, más rigurosa de soportar el
suspenso psicológico que precisa el pensamiento crítico. En el ámbito
de la expresión de ideas, existe una disciplina necesaria por el hecho de
que, en palabras de Dewey, “la descarga o expresión directa o inme-
diata de una tendencia impulsiva es fatal para el pensamiento. Sólo
cuando el impulso es, de alguna manera, controlado y contrarrestado,
surge la reflexión.”57 Esto es cierto no solamente para el individuo sino
también para el grupo, por cuanto al seguir la discusión donde nos
lleve, se busca mantener un rumbo que a menudo nos exige contener
un pensamiento o una contribución cuando no existe una razón obvia
o intrínseca para hacerlo, excepto que en todo momento en la comu-
nidad de cuestionamiento e investigación hay tantos contribuyentes
posibles como miembros y cada uno puede reclamar llevar adelante la
discusión, aun cuando (recordando el principio del tychismo) parezca
una disgresión. La disciplina que me pide que contenga mi contribución
en beneficio de otro se vuelve más rigurosa cuando la contribución del
otro me parece confusa, ofuscatoria, fuera de lugar o incluso si simple-
mente me parece que desvía la discusión de un tema con el que yo creo
que aún no hemos terminado. Para ser capaz de practicar esta disci-

57
  Ibid, p. 64.

121
David Kennedy

plina, debo tener confianza en el carácter evolutivo de la comunidad


de cuestionamiento e investigación – que aunque “a la razón le gusta
esconderse”, la discusión, como el agua que busca su nivel, eventual-
mente superará todos los obstáculos que le impiden avanzar.
En las áreas del amor y el interés, la misma disciplina es necesaria
para proteger el espíritu de la investigación de los riesgos de mono-
polización, agresividad, competitividad, seducción, timidez, intimida-
ción, sobreexcitación, disipación, negativismo, parálisis, trivialización
y otros. Además, cualquier discusión dada genera su propia lógica y
ritmo, que no puede anularse por un método mecánico. El entendi-
miento debe esperar el kairós, el momento oportuno y no forzar el
diálogo hacia patrones predeterminados.58 Cada miembro de la comu-
nidad de cuestionamiento e investigación debe llegar a entender y a
practicar los sacrificios, grandes y pequeños, que son necesarios para
animar y proteger ese momento oportuno. Esta habilidad de sacrificio
se expresa de manera muy concreta cuando los miembros aprenden
a retener su participación porque perciben que algo más importante
emerge del horizonte discursivo, a convertir en pregunta lo que iba a
ser una afirmación positiva o a dejar de lado la posibilidad de continuar
un intercambio que limita la participación de los otros. Esta disciplina
está bajo el signo cristiano de la crucifixión o el principio de que nada
se transforma sin una muerte o una pérdida – en este caso la pequeña
muerte de nuestra potencial intervención. Actúa minando las formas
más extremas de individualismo y purificando progresivamente las
distorsiones hermenéuticas individuales o subjetivas,59 lo que a su
vez aumenta la agudeza del juicio y, de ese modo la disciplina. Cuanto
mejor percepción tengo de la discusión en todo momento, más fácil me
resulta suprimir mi propia participación por el momento, pues soy intui-
tivamente consciente de que puedo participar en más de una oportuni-
dad. Así, Dewey decía que cuando se concibe a la disciplina en términos
intelectuales, se la “identifica con la libertad en su verdadero sentido.”
Entonces, la disciplina de la comunidad de cuestionamiento e investiga-

58
  Corrington, p. 43.
59
  Ibid, p. 77.

122
A comunidade da infância

ción se vuelve menos costosa y más alegre a medida que la comunidad


se desarrolla. El entusiasmo de seguir la discusión adonde lleve recom-
pensa nuestros esfuerzos tenaces y pacientes y nuestras continuas
escaramuzas con la confusión y el retraso. Ese entusiasmo nos recuerda
que estamos siendo transformados, individualmente y en términos de
nuestras relaciones mutuas, por un incesante proceso dialéctico.

Conclusión

Aun antes de ser una comunidad de signos naturales e intenciona-


les, la comunidad de cuestionamiento e investigación es un contexto
comunicativo, un terreno de intersubjetividad dinámica, que está
continuamente creciendo, cambiando, ocupada en nacer o en morir.
Su investigación no es meramente cognitiva, sino lingüística, personal,
social, emocional, política, erótica, festiva. Si se desarrolla bien, está
abierta en todos estos niveles a la emergencia de algo, en un movi-
miento dialéctico, autocorrectivo que parece interminable. Lo que la
mantiene en funcionamiento es el impulso erótico hacia la sabiduría
y este eros hace posible los sacrificios que demanda. El amante del
todo sacrifica sus reclamos peculiares en pos de la transformación del
grupo que, a su vez, lo transformará a él. Este principio recorre como
un filamento rojo todas las dimensiones de la comunidad de cuestiona-
miento e investigación. En la comunidad de mente, debemos aceptar
el desmembramiento de nuestra opinión, abandonar una conclusión
provisoria para permitir que la discusión continúe y llegar juntos a un
nivel superior. La naturaleza misma del diálogo implica este extraviarse
para poder llegar allí. En la comunidad de gesto, el ego más fuerte
aprende, en el intercambio de afecto vital, a retener y permitir que
el otro comience a andar, de modo de alcanzar una plenitud compar-
tida. En la comunidad de lenguaje, aprendemos a preguntar más que
a declamar, a clarificar más que a reproducir opiniones. En la comuni-
dad de interés, aprendemos que nuestro fortalecimiento personal, el
reconocimiento por parte del grupo de quienes somos y de quienes
queremos ser, depende en última instancia de nuestro reconocimiento
de la individualidad irreemplazable del otro y de nuestro respeto de esa

123
David Kennedy

individualidad como si manara de algo más allá de ese individuo. En la


comunidad de amor, descubrimos las complejas disciplinas afectivas y
eróticas que permiten desarrollar una capacidad para alcanzar niveles
más profundos de amistad.
Nos parece que estos sacrificios valen la pena, pues percibimos la
relación entre ellos y la noción socrática de la filosofía como “prepa-
ración para la muerte.” Intuimos que nada se mejora o se transforma
sin muerte. La relación trágica entre el individuo y el grupo se resuelve
por medio del sacrificio y, a través de este, el individuo vuelve a encon-
trarse a sí mismo en un contexto más amplio. El riesgo es que el sacri-
ficio no lleve a ninguna parte – que uno se reprima por una verdad que
nunca emerge o que sea saboteado por aquellos (incluido él mismo)
que están demasiado interesados en lo propio, o carecen de disciplina
para retenerse. Pero tan inevitable como el riesgo, el impulso hacia
la transformación individual y colectiva es aún mayor y su promesa
siempre nos atrae.

124
6. A Escola do Terceiro Reino Alegre1

Reimaginar a prática escolar significa pensar uma instituição que crie


as condições para uma relação dialógica entre as formas de intencio-
nalidade da infância e da adultez. O filósofo romântico Friedrich von
Schiller entendia “o terceiro reino alegre da brincadeira” como repre-
sentando uma reconciliação dialética entre “ideias racionais” e “o
interesse dos sentidos,”2 ou razão e desejo, e – entendido tanto como
sinônimo quanto como analogia – processo primário e secundário,
conteúdos inconscientes e conscientes, impulso e hábito, e por fim, ego
e si mesmo [self]. Entender a escola como um laboratório, um estúdio,
ou uma zona cultural experimental – o espaço transicional no qual esta
reconciliação ocorre contínua e perenemente – pede um lugar onde os
adultos inventam, mantêm e medeiam uma estrutura de atuação inte-
rativa que, como diz Dewey, “permite que o impulso imaturo exercite
suas potencialidades reorganizadoras”3 no hábito. Imaginar a prática
educacional desta maneira de nenhuma forma supera a função perene
da escola como lugar onde as “fronteiras dos egos” são expandidas
para incluir “ferramentas e habilidades,” onde nós primeiro experien-
ciamos, como Erik Erikson coloca, “o prazer de completar um trabalho

1
  Tradução de Juliana Merçon. Título original: “The School of the Third Joyous
Kingdom”.
2
  Friedrich von Schiller, 1954 [1795], p. 78, 75.
3
  John Dewey, 1988 [1922]), p. 70.

125
David Kennedy

através da atenção fixa e dedicação perseverante,” ou onde as crianças


“recebem alguma instrução sistemática”.4 A diferença entre entender
a escola como um lugar para reconstrução cultural em oposição a um
lugar para reprodução cultural está, não na supressão do mundo de
instrumentalidade, mas na introdução do diálogo como um princípio
mediador fundamental.
Assim como está a escolarização, tal qual a sabemos, seus obje-
tivos implícitos, em sua maior parte, estão em direta contradição com
uma condição principal para o diálogo – que é possível somente em
um contexto de relações não-instrumentais. A apresentação de Buber
do relacionamento complexo, emergente e incontrolável entre rela-
ções dialógicas e instrumentais nos pares básicos de palavras “Eu-Tu”
e “Eu-Isso” torna claro que as relações dialógicas e instrumentais são
mutuamente dependentes e até mesmo mutuamente implicativas.5
O mundo instrumental de “uso” é, de fato, o que tipicamente quere-
mos dizer com o “mundo como experiência” em oposição ao “mundo
de relação”. Não obstante, a escola está hoje em dia implicitamente
construída, não apenas como um reflexo involuntário, mas como uma
reificação intencional daquele mundo-de-uso – como um mundo da
reprodução calculada do “cidadão”, do “trabalhador”, e do “consu-
midor”, sendo que no último está também implícito o “consumidor-
-de-informação”, isto é, alguém que aceita o relato da mídia estatal
acerca do mundo – não importa se por “estado” se entende o governo
ou as corporações que, em uma economia globalizada, o controlam.
A escola como a sabemos simplesmente não pode se entender senão
como uma arma colonizadora do estado, tomada em seu sentido mais

4
  Erik H. Erikson, 1963, p. 259.
5
  “A sublime melancolia da nossa espécie consiste em que todo Tu deve se tornar um
Isso em nosso mundo. Não importa quão exclusivamente presente ele tem estado no
relacionamento de direção – assim que o relacionamento tiver feito o seu percurso ou
for permeado pelo meio, o Tu se torna um objeto entre outros, possivelmente o mais
nobre deles e ainda um deles, atribuída sua medida e fronteira. A atualização do tra-
balho envolve uma perda de atualização… Todo Tu no mundo está condenado por sua
natureza a se tornar uma coisa ou pelo menos a entrar para o domínio das coisas uma
e outra vez… O Isso é a crisálida, o Tu a borboleta. Só que nem sempre esses estados
se alternam com clareza; muitas vezes é uma série de eventos intrincadamente entre-
laçada que é tortuosamente dual” Martin Buber, 1970 [1922], p. 68-69.

126
A comunidade da infância

amplo para incluir, não apenas formas legais, políticas e econômicas,


mas também sociais, culturais e relacionais – desde a forma da comu-
nidade à forma da família e à forma da organização sexual individual e
da moralidade sexual.
Como uma instituição colonizadora, é tarefa da escola produzir,
através do que Dewey descreve como “convertendo uma docilidade
original frente ao novo em uma docilidade para repetir e se confor-
mar”,6 um sujeito adulto que manterá essas formas. A maneira como
a escola cumpre isso é colocando impulso e hábito, razão e desejo, em
desacordo, e assim separando a conexão dialética entre eles, que é o
local do potencial para a reconstrução individual e social.
O que é reproduzido na própria estrutura e intento da escolariza-
ção tradicional é, sejam quais forem as boas intenções de seus opera-
tivos, “o divórcio social entre hábito de rotina e pensamento, entre
meios e fins, prática e teoria.” De fato, Dewey chega a desconstruir os
interesses por detrás daquelas “boas intenções” em poucas sentenças:
“Aqueles que desejam um monopólio do poder social acham desejável
a separação entre hábito e pensamento, ação e alma, tão característica
da história. Isto porque o dualismo os capacita para fazer o trabalho
do pensamento e do planejamento, enquanto os outros permanecem
como dóceis, mesmo se inábeis, instrumentos de execução. Até que
este esquema seja mudado, a democracia está fadada a ser pervertida
em sua realização.”7
Embora superar as relações instrumentais que estão inscritas na
escola como uma instituição de reprodução social de nenhuma maneira
implique negar a escola como uma preparação para o mundo do traba-
lho, implica sim a reconstrução do mundo do trabalho tanto quanto do
mundo do lazer e do mundo da política – e, por implicação ainda mais
profunda, a reconstrução da subjetividade humana. O adulto que não
é sujeitado à “mecanização prematura” carrega consigo a sua infân-
cia, no que aprendeu sobre uma maneira de ser, um padrão para coor-
denar meios e fins, de unir ação e alma por “utilizar constantemente

6
  John Dewey, 1988 [1922], p. 50.
7
  Ibid., p. 50, 70 e 52.

127
David Kennedy

um impulso não usado para efetuar uma reconstrução contínua.”8


Este sujeito adulto oferece a promessa histórica de construir, coletiva
e individualmente, novas abordagens para o mundo instrumental que
implicam novas abordagens com relação à ética do trabalho, à justiça
social, à construção do poder. O indicador de uma cultura orientada à
reconstrução e não à reprodução será uma estrutura educacional que
encoraja um tipo de vida individual e social que busca sempre casar fins
e meios, hábitos e pensamentos, prática e teoria. O psicanalista britâ-
nico D. W. Winnicott chamou a forma de subjetividade caracterizada
pelo espaço transicional ou potencial de “terceira área de experiência
cultural” ou “terceira maneira de viver”, “sagrada para o indivíduo”, à
qual ele opôs o sujeito em um relacionamento de uso-do-objeto com o
mundo externo no qual o objeto é uma realidade fixa; ou, inversamente,
no qual o sujeito é um “si unitário”, caracterizado pela “membrana deli-
mitadora” de fronteiras discretas. Ele encontra esta área intermediária
de experiência no relacionamento mãe-infante, e a descreve como uma
forma de subjetividade na qual o dentro e o fora estão ainda em uma
relação fluida, um espaço “potencial entre o subjetivo e aquilo que é
percebido objetivamente.” Ele associa a terceira maneira de viver, não
apenas com a experiência da infância ou com a primeira infância, mas
também com a cultura e a criatividade, com a arte, a religião e a filo-
sofia na vida adulta.9 E como a escola tem sido o lugar para a reprodu-
ção de uma forma de subjetividade, a escola é o espaço lógico para a
sua transformação através da reconstrução da vida em comunidade do
trabalho e da brincadeira.
Quais são as diretrizes práticas fundamentais para esta escola?
Há só uma maneira para construir esta escola ou há múltiplas? Afirmar
o precedente promete a imposição de ainda um outro “melhor único
sistema”. O único conjunto de critérios que podem ser consistente-
mente aplicados sem o perigo de totalitarismo são os princípios do
diálogo, que podem ser identificados como: 1) uma abordagem herme-
nêutica com relação a si mesmo [self] e ao outro, isto é, o reconheci-

8
  Ibid., p. 73.
9
  D. W. Winnicott, 1989 [1971], p. 102, 103, 107 e 114.

128
A comunidade da infância

mento e aceitação da distância e da relação em um processo dialético;


2) a afirmação da identidade única e insubstituível do outro, a qual se
identifica com a “alteridade”; 3) uma ênfase em relações não instru-
mentais, que neste caso implica um respeito e uma atenção para com
as percepções, interesses, e objetivos da infância e das crianças indivi-
dualmente; 4) uma atenção contínua para as relações de poder equita-
tivas, o que implica autonomia política e autogoverno, ambos dentro
da escola – o que inclui a própria “sala de aula” – e na relação da escola
com associações maiores das quais ela pode ser uma parte. A autono-
mia política e o autogoverno são requisitos fundamentais para a forma-
ção da democracia social.
Uma escola da “terceira maneira de viver” deve ser entendida
como uma coletividade autônoma e autogovernante em sua relação
com corpos ou associações maiores. Nenhum currículo ou padrão
acadêmico ou profissional será exigido de cima para baixo a ela por
nenhum grupo que presuma saber objetivos e interesses dela mais do
que ela própria. Tudo o que o estado pode prover à escola é uma aloca-
ção nivelada de taxas monetárias, que pertencem às pessoas como um
todo – as “pessoas”, supõe-se, sendo comprometidas eticamente, em
seus próprios melhores interesses e de acordo com os dois domínios
de valores comuns mencionados acima, acesso educacional igualitá-
rio e oportunidade para todos os seus membros. Além de oferecer o
suporte financeiro, o estado pode certamente trabalhar como um gera-
dor e disseminador de ideias e materiais educacionais, mas nenhum
desses deve ser imposto.
Os pais dos estudantes são entendidos como parte do “comitê
do todo” da comunidade escolar, e participam diretamente no
governo e administração da escola, assim como o fazem professo-
res, estudantes, outros funcionários, e qualquer outra pessoa que
expresse um desejo por ser parte da comunidade escolar. Como um
princípio geral, não há administradores permanentes, embora qual-
quer membro da comunidade, incluindo estudantes e pais, tanto indi-
vidualmente ou como partes de grupos administrativos, possa servir
nesta função por períodos de tempo extensos – sempre a critério da
comunidade como um todo. As decisões sobre dimensões cruciais da
escola como o currículo, agrupamentos, horários, funcionários e até

129
David Kennedy

mesmo questões disciplinares são tomadas democraticamente, atra-


vés de investigação e de deliberação mútua, e, finalmente, através do
julgamento coletivo ou do comitê do conjunto. Em termos práticos,
isto significa que o espaço e o tempo alocados nestes processos, na
forma de espaços de encontro apropriadamente preparados e de um
horário que permita tempo pago adequado para a investigação cola-
borativa e a deliberação, são admitidos como sendo tão essenciais
para a qualidade de vida da escola como o espaço e o tempo alocados
para a instrução.
A escola é uma comunidade de investigação para os adultos – um
laboratório para a democracia social entre adultos – tanto quanto o é
para as crianças, e os processos de investigação, deliberação e julga-
mento são partilhados por ambos. Em alguns lugares há interseção
entre estes processos, em outros, eles operam separadamente, ou em
paralelo, ou em conjunto. A vocação profissional do educador é enten-
dida como uma indagação contínua sobre a melhor relação entre teoria
e prática, uma investigação contínua sobre a relação adulto–criança, e
– mantendo a sugestão de Dewey de que é entre os jovens que a socie-
dade é reconstruída – sobre a reconstrução social em colaboração com
a própria juventude. Neste tipo de comunidade intencional de adultos
e crianças, uns e outros são co-investigadores, e esta co-investigação
se aplica a ambos aspectos da comunidade, o acadêmico e o político
(ou relacionado ao poder).
Os professores são preparados para a escola da terceira maneira
através de uma forma reconstruída de enculturação e construção de
habilidades: a academia se muda para a escola, que agora se torna
o lugar primário para a preparação em pedagogia, desenvolvimento
de currículo, e dinâmicas de grupo. Aulas, seminários, ensino dos
estudantes, consultas e tutorias ocorrem primeiramente na escola,
e estas classes, seminários, oficinas, projetos, episódios de pesquisa,
etc. são implicitamente entendidos como abertos em geral para todos
os membros da comunidade, incluindo as crianças. Pré-professores
ou estagiários participam na vida da escola em todos os níveis,
incluindo a organização e governo. Isto representa uma repetição de
um padrão, iniciado no começo do século XX nos Estados Unidos e
abandonado na última metade, de “escolas laboratório” nas universi-

130
A comunidade da infância

dades; o que é diferente, neste caso, é que a escola hospeda a univer-


sidade e não o inverso. Professores de pedagogia passam tarefas que
incluem a residência em determinadas escolas, que envolvem, por
sua vez, responsabilidades de ensino em sala de aula e orientação de
crianças, colaboração com professores no desenvolvimento e imple-
mentação de currículo, coordenação e mediação da ação e pesquisa
de campo, e investigação filosófica e dialógica com professores e
outros funcionários.
A reconstrução do espaço físico para acomodar esta reconstrução
na prática e na relação teoria-prática é um aspecto crucial da própria
mudança. As práticas institucionais são moldadas e determinadas tanto
pelo design do ambiente construído como pelas atividades que nele
têm lugar; de fato, os dois são inseparáveis. O ambiente construído é
uma reificação no espaço – em fronteira, calçada, parede e setor – dos
papéis sociais e relacionamentos que o causam – que, em troca, são
influenciados e determinados pelo ambiente construído, e assim por
diante, em um círculo. O filósofo da arquitetura Yi-Fu Tuan se refere ao
espaço construído como “um texto que codifica as regras de compor-
tamento e até mesmo toda uma visão do mundo”, “que demarca e
intensifica as formas de vida social” dentro dele.10 O espaço construído
dá forma, identifica e determina o campo de possibilidade das ativida-
des daqueles que ele contém. Para a criança, o ambiente construído
da escola é um primeiro e decisivo texto social em forma arquitetô-
nica, que forma e instrui a experiência vivida e cria, para toda a vida,
um molde psicológico para a funcionalidade, possibilidade, conforto e
beleza do ambiente de trabalho.
Um espaço dedicado a ambos, crianças e adultos, e à sua inte-
ração deve levar em consideração as diferenças na experiência vital
do espaço das crianças e dos adultos, deve identificar as interseções
e as trajetórias do desenvolvimento dos dois, e equilibrar as distin-
tas necessidades dos dois. O projeto mais fundamental da criança é
“assenhorar-se” do mundo – aprender a controlá-lo e manipulá-lo e
preservá-lo e expandi-lo com ferramentas e habilidades emergentes
– através da brincadeira, ou “brincantemente”. A brincadeira é uma

10
  Yi-Fu Tuan, 1977, p. 116, 112.

131
David Kennedy

forma de atividade na qual o meio e o fim estão em harmonia, o que


significa efetivamente que eles se fundiram, por ser a atividade da
brincadeira experienciada como um fim em si própria. A criança não
abandonou a convicção de que o trabalho deve ser brincadeira, e que
qualquer distinção exagerada entre os dois é problemática. No traba-
lho brincante, o domínio é obtido através da participação no mundo
da tarefa, através do engajamento neste mundo como um interlocu-
tor no espaço transicional. Como um resultado da interação, algo é
produzido, e este objeto é tanto uma transformação do mundo quanto
uma representação da transformação interna, que em termos de
desenvolvimento pode ser entendida como maior diferenciação, arti-
culação, integração funcional e controle centralizado, isto é, “domí-
nio”. Como o artista, o encontro da criança com o mundo produz não
apenas objetos para uso, não apenas artefatos, mas também símbo-
los do seu próprio desenvolvimento interior. A criança no estado de
latência é, nas palavras de Erikson, orientada na direção de “ajustar
a si mesma às leis inorgânicas do mundo da ferramenta”11 – o que é
o mesmo que tornar-se adulto – através de um processo semelhante
ao do artista. O resultado é uma maior distância e uma maior relação
dentro do ambiente: como resultado do processo de trabalho brin-
cante, o organismo se torna melhor adaptado ao ambiente através
da mudança que imprime ao ambiente e no processo de mudá-lo, é
ele mesmo mudado.
A intencionalidade transicional da criança e do artista promete
a reunificação do trabalho e da brincadeira. Ambos brincam em uma
unidade diferenciada com o mundo, em benefício da comunhão e da
integração. O ambiente com suas demandas e exigências provê o desa-
fio, ou o “alimento” para este processo, ou seja, para a sua própria
transformação. Para a criança assim como para o artista, o produto que
emerge do engajamento e que representa o encontro com o ambiente
é relativamente inesperado, porque ele emerge através de um processo
interativo que possibilita resultados criativos. Não é uma parte do que
Heidegger chama a “reserva estável” – o produto de estratégias de
dominação, a ser extraído do mundo e ordenado e estocado – mas um

11
  Erik H. Erikson, 1963, p. 259.

132
A comunidade da infância

símbolo de transformação. Ele se situa em uma relação de significado


diferente frente ao ambiente. Ele resiste ao status de reserva estável,
é “ininquadrável” – uma transformação e não uma colonização do
mundo e da relação com o mundo-de-si.
O plano físico de uma escola dedicada à realização de um espaço
voltado à reunificação do trabalho e da brincadeira incluirá espaços
que são planejados para tipos variados, para o trabalho, a brincadeira
e o encontro de ambos, crianças e adultos. A configuração de salas de
aulas, escritórios, auditórios, oficinas e estúdios, salas e cantinas, gran-
des e pequenas áreas de encontro, deve ser imaginada dentro de um
contexto mais amplo de variáveis de design como a construção geral
de calçadas e rotas, a interface entre espaços internos e externos e a
construção concomitante de uma combinação de luz natural e artifi-
cial, a justaposição de espaços “aberto” e “fechado”, “barulhento” e
“quieto”, “duro” e “macio”, público, semipúblico e privado – de espa-
ços planejados para grandes grupos, pequenos grupos, grupos íntimos
e indivíduos. Estes princípios óbvios, concretos de design geral têm
sido virtualmente ignorados por arquitetos de escolas, sob o marco
da economia e um argumento espúrio a favor da “eficiência.” 12 Esta
insensibilidade dramática com relação aos efeitos ou possibilidades do
ambiente construído é um indicador, não apenas de adultismo, mas
também da função da escola como um lugar de colonização. O prédio
de escola tradicional é uma reificação do modo intrusivo, e surgiu no
fim do século XVIII, como Foucault afirmou, com a prisão, os quartéis,
o hospital, o asilo e o prédio de escritório, construindo um ambiente
planejado para os propósitos de vigilância, classificação e “normaliza-
ção” da população.13 A normalização serve ao controle social através da
produção de um “corpo dócil”, “um corpo tanto produtivo como sujei-
tado”, um sujeito que tem, no mesmo uso que Dewey faz da palavra,

12
  Trabalhos principais que se dirigem ao design institucional diretamente ou por im-
plicação são: Christopher Alexander, A Pattern Language (New York: Oxford University
Press, 1977); Meyer Spivak, Institutional Settings: An Environmental Design Approach
(New York: Human Sciences Press, 1984); e Carol Simon Weinstein and Thomas G. David
(eds.), Spaces for Children: The Built Environment and Child Development (New York:
Plenum Press, 1987).
13
  Michel Foucault, 1979, p. 26.

133
David Kennedy

se convertido da “docilidade verdadeira” do jovem – que ele descreve


como “ser ávido para aprender todas as lições da experiência ativa,
investigativa e expansiva” – à “sujeição àquelas instruções dos outros
que refletem os hábitos atuais deles… uma disposição para seguir
para onde os outros apontam, em conformidade, constrição, entrega
ao ceticismo e experimento”.14 Em sua arqueologia das práticas disci-
plinares, Foucault relata a emergência de um desenho arquitetônico

para permitir um controle interno, articulado e detalhado – para tornar


visíveis aqueles que estão dentro dele; em termos mais gerais, uma arqui-
tetura que operaria para transformar indivíduos: para agir naqueles que
ela abriga, para prover um freio em sua conduta, para levar os efeitos
do poder diretamente a eles, para tornar possível o saber sobre eles,
para alterá-los. 15

Esta é de fato a arquitetura da escola como a conhecemos.


A escola da terceira maneira assume um ambiente físico que
acomoda um equilíbrio emergente, sistemático de pedagogias e currí-
culos múltiplos, desde as formas mais abertas até as mais fechadas
de estrutura e organização. A perspectiva teórica abrangente, atra-
vés da qual este equilíbrio é determinado, seria baseada, não em uma
unidade imposta ou um continuum hierárquico, mas na afirmação
da diferença radical ou alteridade. Na educação, isto levaria a uma
teoria da aprendizagem – e, portanto, do ensino – baseada em teorias
construtivistas do desenvolvimento por estágios e da inteligência por
campos, sendo que ambas implicam uma ênfase primária na indivi-
dualização da aprendizagem e da instrução dentro de um contexto
social. A teoria que justifica esta abordagem tem sido considerada
pelo menos desde que o trabalho sobre inteligência e motivação
humanas começou, por volta de cem anos atrás com Binet, foi desen-
volvida e articulada em Piaget, ligada ao impulso e à psicologia do ego
em Rogers, Maslow e Bruner, reconstruída como múltipla e não-linear
através de Gardner, entendida como implicitamente social e dialógica

14
  J. Dewey, 1988 [1922], p. 47.
15
  1979, p. 190.

134
A comunidade da infância

em Vygotsky, e operacionalizada por praticantes em uma diversidade


de maneiras, desde currículos baseados em planos instrucionais indi-
vidualizados na educação especial até currículos diretamente basea-
dos em inteligências múltiplas, até todo tipo de aprendizados basea-
dos na investigação.
O princípio agrupador da terceira maneira é baseado na afirma-
ção de que a escola é uma comunidade intencional ao invés de um
coletivo forçado ou colônia do estado planejada para a produção da
“alta conquista” grupal e individual, ou especificamente para “armar”
a população para fins da economia ou do “mercado”. Como uma comu-
nidade intencional, ela é concebida por definição como normativa – ou
seja, ela é tanto experimental e emergente como guiada por ideais
normativos; ela não é uma comunidade que “simplesmente acontece”,
nem é uma comunidade que é determinada do alto, por uma hierar-
quia de poder. É uma comunidade que explora muito conscientemente
as possibilidades da relação entre adultos e crianças em benefício do
surgimento da auto-atualização individual e da reconstrução social, as
quais são inseparáveis. E a forma de reconstrução social que qualquer
comunidade intencional baseada no diálogo necessariamente envolve
será democrática, o que implica uma comunidade intencional dedicada
à construção das atitudes, disposições, conhecimento e habilidades
características de uma democracia social.
O que até agora tem impedido a realização prática da teoria de
desenvolvimento construtivista são os currículos e uma pedagogia
correspondente baseada na lógica da dominação – uma lógica inscrita
não apenas na atividade e interação da sala de aula, não apenas nas
relações de poder entre adultos e crianças e adultos e adultos nas esco-
las, mas também no design físico das próprias escolas. A reconstrução
dos currículos, da pedagogia e das relações de poder – e, portanto, dos
padrões de governo – demandam a reconstrução do espaço no qual
eles são desenvolvidos, articulados e atualizados. As atividades grupais
e os espaços nos quais elas acontecem são mutuamente interativos e
determinantes. Começar a reimaginar como grupos e indivíduos são
organizados para o trabalho e para o encontro na escola reconstru-
ída é, necessariamente, começar a reimaginar a organização material,
física, daqueles espaços.

135
David Kennedy

Não há senso comum óbvio ou razão instrucional empiricamente


provada para regularmente agrupar estudantes por idade ou atuação
acadêmica, ou para regularmente colocar estudantes em grupos de
mais de quinze pessoas – sejam aqueles grupos baseados na idade ou
determinados por algum outro critério. Onde a unidade de medida e
análise acadêmica é o indivíduo e seu interesse e atuação, planejar ativi-
dades e espaços para essas atividades baseando-se unilateralmente em
um modelo de instrução de grupos grandes é, se não contraintuitivo,
então simplesmente dramaticamente ineficiente. O princípio do espaço
transicional pede a construção de espaços físicos que se prestam ao
“entre” de qualquer encontro, seja este encontro entre membros de
grupos grandes, medianos ou pequenos, incluindo tríades, duplas, ou o
“entre” intrassubjetivo do estar só. Um currículo, um plano de agrupa-
mento, um sistema de horário, um sistema de orientação, um sistema
de instrução e investigação e deliberação individual, de grupo grande
ou pequeno, um sistema de autogoverno coletivo e de desenvolvi-
mento profissional – todos estes deveriam se encaixar em um espaço
planejado para favorecer, até o melhor grau possível, as formas especí-
ficas destas práticas.
Um currículo que é tanto dialógico quanto completamente indi-
vidualizado é melhor construído operacionalmente como uma combi-
nação de projetos individuais e grupais, de instrução de habilidades
individuais e em pequenos grupos, e vários tipos de investigação em
grupos, relacionados tanto a projetos em andamento quanto a áreas
de disciplinas usuais que podem ser aplicadas a eles. Em termos de
áreas de conteúdo, o currículo deve incorporar todas as disciplinas
tradicionais, incluindo as artes, línguas, matemática, educação física
e as ciências naturais e humanas. A “pedagogia de projetos”, que
tem estado presente como conceito desde o movimento da escola
progressista do começo do século XX, apresenta a mais óbvia possi-
bilidade de uma reconstrução dialógica e emergente do currículo e
da pedagogia. Ela favorece abordagens múltiplas tanto em função
do número de estudantes envolvidos em qualquer projeto, quanto
para o fato do tema ou assunto do projeto ser o resultado de uma
negociação entre o professor – cujo interesse está em comunicar e
transmitir o conteúdo e processos das disciplinas – e o interesse do

136
A comunidade da infância

estudante.16 Um projeto pode ser uma investigação individual ou cola-


borativa, e uma certa proporção de cada dia é devotada a ele. Ele com
freqüência exige “viagens de campo”, e requer espaços de oficina,
estúdio, laboratório e biblioteca suficientes para a sua implementa-
ção. Como os recentemente implementados nas escolas de Reggio
Emilia, os projetos seguem naturalmente três categorias: aqueles que
surgem diretamente do interesse de uma criança ou das crianças,
aqueles que refletem interesses mútuos de professores e crianças, e
aqueles escolhidos por professores com certos conceitos cognitivos
e sociais em mente.17
O efeito de tal currículo emergente é diversificar as práticas de
agrupamento, e desta forma também as estratégias pedagógicas. A
qualquer momento durante o dia da escola, grupos que variam em
tamanho, desde uma a vinte pessoas, podem ser encontrados reuni-
dos, isso para não falar nas assembleias da escola-toda que se dedicam
a vários propósitos. Cada um destes agrupamentos terá um espaço
apropriado no qual se encontrarão – um espaço que em um nível ótimo
contém, encoraja e favorece a estrutura da atividade específica na qual
o indivíduo ou grupo está engajado. Os professores estarão engaja-
dos em uma variedade de atividades pedagógicas correspondentes –
desde a palestra ou exercício para a mediação de grupos pequenos ou
grandes até a instrução guiada de habilidades para indivíduos, grupos
pequenos ou grandes. Alguns estudantes estarão engajados em traba-
lhos de projeto, sozinhos ou em pequenos grupos, alguns reunidos em

16
  Para duas visões históricas breves da pedagogia de projetos, cf. See H. Warren
Button and Eugene F. Provenzo, Jr., History of Education and Culture in America
(Englewood Cliffs NJ: Prentice Hall, 1983), p. 257-259, e Lawrence A. Cremin, The
Transformation of the School: Progressivism in American Education, 1876-1957 (New
York: Alfred A. Knopf, 1961), p. 216-220. Para o seu surgimento inicial, cf. William Heard
Kilpatrick, “The Project Method,” Teachers College Record v. 19, n. 4 (September 1918),
e sua elaboração em Foundations of Method (New York: Macmillan, 1925). Para uma
formulação mais recente, veja Lilian G. Katz and Sylvia C. Chard, Engaging Children’s
Minds: The Project Approach (Norwood NJ: Ablex, 1991).
17
  Para descrições da prática de Reggio Emilia, veja Carolyn Edwards, Lella Gandini e
George Forman (eds.), The Hundred Languages of Children: The Reggio Emilia Approach
to Early Childhood Education, especialmente Capítulos 10 e 11, que são relatos deta-
lhados de projetos específicos. Também cf. Rebecca New, “Excellent Early Education:
A City in Italy Has It”, Young Children, v. 45, n. 6 (September 1990), p. 4-10.

137
David Kennedy

grupos de tamanhos variados para tutoria ou instrução de habilidades


em disciplinas como matemática ou línguas estrangeiras; alguns esta-
rão escrevendo ou engajados em edição ou escrita cooperativa, alguns
estarão trabalhando na produção de uma peça de teatro, ou praticando
música; alguns estarão fazendo artesanato em uma oficina ou estúdio,
alguns engajados em uma crítica grupal de uma obra de arte, alguns
engajados em observar as estruturas celulares em um laboratório, e
alguns engajados em uma investigação literária ou histórica e filosófica
comum, que inclui a investigação dialógica.
Se há um conjunto de expectativas com relação ao conteúdo que
forma a espinha conceitual e a abrangência e sequência do currículo, ele
é entendido como uma dimensão da estrutura na qual os estudantes e
professores entram em diálogo para produzir um currículo emergente.
Se os adultos decidem, por exemplo, que alguns conhecimentos e
habilidades literários, numéricos, musicais, artísticos, computacionais,
sinestésicos ou outros são críticos para a noção escolar do que é uma
“boa educação”, então o princípio do diálogo requer que eles encon-
trem uma maneira de trazer aqueles conhecimentos e habilidades para
o contexto do interesse dos estudantes. O “interesse” dos estudantes
não implica necessariamente seus interesses de prazer – não há uma
relação necessária entre interesse e “divertimento” – assim como não
implica que não haverá conflitos de interesses entre adultos e crianças a
serem continuamente trabalhados. Entende-se também que em certas
áreas da vida ou mundo há uma autoridade diferenciada entre adultos
e crianças, assim como se entende que em certas áreas há responsabi-
lidades diferenciadas. O argumento para este diferencial está dado na
experiência cotidiana, e na grande maioria dos casos é tão óbvio para
as crianças como o é para os adultos. Os pontos nos quais isto não é
óbvio são os próprios pontos do diálogo e da reconstrução, e o coletivo
adulto–criança da escola, como uma “vida comunitária embrionária”,18
é o lugar lógico para este diálogo. A escola da terceira maneira é, nas
palavras de Dewey, uma “comunidade progressiva”, porque ela “se
esforça para dar forma à experiência dos novos para que, ao invés de

18
  John Dewey, 1959, p. 49.

138
A comunidade da infância

reproduzirem hábitos presentes, melhores hábitos sejam formados, e


assim a sociedade do futuro adulto será um melhoramento da deles”.19
Se, por exemplo, depois de uma deliberação cuidadosa, sensível
ao contexto, os adultos decidirem que habilidades e entendimentos
de aritmética, álgebra e geometria serão, na avaliação da sua escola,
considerados um objetivo, então estratégias curriculares serão adota-
das ou desenvolvidas para operacionalizar este objetivo em contextos
múltiplos. Estas estratégias podem ser amplamente categorizadas em
três grupos: 1) Estratégias para a incorporação do estudo e do domínio
de habilidades e conceitos matemáticos nos projetos. Isto representa
a adaptação daquelas habilidades e conceitos aos interesses espontâ-
neos, nativos, e emergentes das crianças. 2) Estratégias de instrução
individualizada, e em grupos pequenos e grandes, que podem muito
bem envolver leitura, exercícios, estudo individual com livros, progra-
mas de computador e assim por diante. 3) Estratégias para investiga-
ção colaborativa crítica e dialógica no campo filosófico – neste caso,
epistemológico, ontológico e metafísico – da matemática.
A investigação filosófica é da maior importância para o caráter
geral e para a estrutura da escola da terceira maneira, porque, quando
ela é conduzida em comunidade e dialogicamente, ela representa
uma metodologia através da qual as crianças se tornam capazes de
encontrar por elas mesmas as questões fundamentais que oferecem
uma base racional para estudar matemática – ou qualquer umas das
outras áreas de conteúdo – em um nível mais profundo do que o de
sua aplicação prática. A questão da ausência da aplicação prática é
usualmente apresentada como fonte da não satisfação das crianças
com a escola, mas, de fato, a questão é a ausência da presença dos
questionamentos próprios das crianças na construção daquilo que
é estudado – isto é, a questão do sentido e significado. 20 Quando a
matemática – ou a história, ou as artes, ou a linguagem, ou a ciência –
é abordada criticamente em busca das pressuposições inerentes que

19
  John Dewey, 1987 [1916], p. 79.
20
  Para uma argumentação eloqüente a favor da prioridade do “sentido e significado”
[meaning] e “ponderação” [thoughtfulness] com relação à “racionalidade” na estru-
tura e design educacionais, cf. Matthew Lipman, Ann Margaret Sharp and Frederick S.
Oscanyan, 1980, p. 4-11.

139
David Kennedy

subjazem suas crenças e suas pretensões normativas, então sua iden-


tidade como um corpo de conhecimento estático, já-estabelecido,
imposto externamente, é desatada, e se revela a medida até a qual
cada disciplina é ela própria um produto de investigações prévias.
Como resultado, as crianças se tornam capazes de conectar a disci-
plina – um artefato organizado – com seus próprios questionamentos
espontâneos e interessados.
As atitudes, motivos e interesses contidos na experiência da
criança que identificam a criança e o currículo como dois limites que
definem um só processo não têm, em um nível mais profundo, a ver
com a aplicação prática, ou com a questão do “como posso usar isso na
vida real?”. Aquela questão é simplesmente o primeiro desafio de uma
criança com relação à pedagogia e ao currículo da colonização, e um
primeiro ato de rebelião cognitiva contra uma forma de educação que
separa o trabalho do sentido e significado. Ela não seria sequer pergun-
tada em uma escola que verdadeiramente valorizasse os interesses
da criança. Ao invés disso, as atitudes, motivos e interesses ligados ao
questionar revolvem em torno da investigação, que – como a episte-
mologia genética construtivista, começando com Dewey e Piaget, tem
cada vez mais indicado no decorrer do último século – é a categoria
fundamental de um tipo de aprendizado conduzido pelo aprendiz e
não imposto sobre ele. Dito de forma simples, a investigação é uma
resposta ao desequilíbrio no sistema cognitivo, e a investigação bem
sucedida resulta na reconstrução do sistema, da forma que é mais
adequada ao ambiente que colocou o sistema em desequilíbrio em um
primeiro momento.
A investigação se apresenta na forma de uma pergunta. Uma
pergunta é um indicador do desequilíbrio do sistema. Um currículo
intrusivo se apresenta na forma de uma série de proposições. O obje-
tivo do currículo intrusivo não é colocar o mundo em questão, mas
afirmar uma série de proposições já aceitas sobre o mundo. Mas se a
criança vai se encontrar com o currículo no nível do sentido e signifi-
cado, isto deve ocorrer com uma pergunta; porque se o aprendizado
autoiniciado acontece em benefício da reconstrução do sistema cogni-
tivo dela, então a reconstrução implica um estado prévio de desequilí-
brio, que é indicado por uma pergunta.

140
A comunidade da infância

O movimento natural que a investigação aberta faz do descritivo


ao normativo assegura que a dimensão de investigação ética e moral
esteja presente no currículo como um elemento permanente, e que
esta seja integrada a todas as áreas de conteúdo. Ele também define
a escola como um lugar no qual a instrução serve à investigação, e não
o inverso. Tal ênfase não terá nenhum poder reconstrutivo real a não
ser que o mesmo tipo de investigação deliberativa em comunidade
que é praticada ao longo do currículo seja também praticada dentro
da comunidade escolar como um todo. Como nós já vimos, a escola da
terceira maneira é o lugar principal para o treinamento e desenvolvi-
mento dos professores. Professores universitários têm escritórios lá,
e participam em grupos de níveis múltiplos – grupos de crianças, de
professores–estudantes e aprendizes, e dos professores da escola. A
escola como um todo é entendida como uma comunidade de investi-
gação – investigação sobre aprendizagem, ensino, construção do currí-
culo, governo escolar, avaliação, e outras questões de ordem e disci-
plina. Em qualquer momento dado durante o dia, pode-se encontrar
grupos de adultos – que podem incluir crianças – de tamanhos varia-
dos, um discutindo um tratado recente ou clássico sobre educação
ou alguma outra disciplina; um outro grupo engajado em um curso de
estudo inovador em matemática ou literatura ou arte; um outro cons-
truindo um projeto curricular interdisciplinar; um outro deliberando
sobre uma série de observações feitas por professores ou estagiários
sobre uma criança em particular ou um grupo de crianças específico,
com o propósito de gerar um currículo ou algum outro tipo de inter-
venção como resposta; um outro discutindo um incidente recente de
conflito ou violação percebida de pessoas, espaço ou rotina; um outro
avaliando um projeto ou projetos em processo; um outro discutindo
um problema crônico no horário ou na dinâmica do grupo; um outro
composto por pais e professores engajado em algum tipo de delibe-
ração. Estes tipos de atividades devem ser entendidas como sendo de
igual importância com relação ao “tempo instrucional”, porque são um
aspecto tão crucial na vida de uma “comunidade embrionária” como
qualquer outro.
Uma escola que tenha desconstruído e diversificado os padrões
grupais, descentralizado e individualizado as práticas de aprendizado

141
David Kennedy

e instrução, e assim reconstruído a disposição da supervisão e “espaço


do lar”, pede uma abordagem ao design do espaço, tempo, atividade
e interação que seja diferente do modelo tradicional. Uma escola pode
adotar um sistema de supervisão baseado em um aconselhamento
individual. Assim sendo, um professor entra, por exemplo, em uma
relação de orientação com dez a quinze crianças da mesma ou de dife-
rentes idades, que desta forma constitui um grupo “lar”. Estes grupos
podem ser reunidos através do uso de vários critérios: com base em um
interesse disciplinar – por exemplo, o grupo poderia ser interessado
em linguagens, nas artes, ou ciências ou matemática; com base em um
interesse mais imediato, como um projeto de longo prazo no qual eles
todos expressaram interesse; ou com base no nível de habilidade no
aprendizado da matemática ou da escrita e leitura (o que não significa
necessariamente que todos os estudantes estariam no mesmo nível);
com base em uma análise sociométrica, ou alguma outra. O profes-
sor mentor ou orientador se encontraria com este grupo no começo
e no fim do dia escolar, e geraria e/ou monitoraria, para cada criança,
planos individuais ou para pequenos grupos. E talvez haja outros perí-
odos durante o dia ou semana nos quais este grupo esteja junto – para
instrução individualizada, para investigação colaborativa, para traba-
lho de projeto, para tutoria feita por um colega, pequenos grupos de
trabalho de vários tipos, ou para algum outro tipo de atividade de solu-
ção de problemas.
O espaço “lar” do grupo seria construído para tornar possível, não
apenas o conferenciar, como também o estudar e comer junto. Tais
espaços lar estariam espalhados pela escola, e cada um proveria luga-
res macios – isto é, áreas encarpetadas e poltronas e cadeiras macias
– uma mesa para seminários, espaço apropriado para a preparação de
comida e para comer, lugar para estocagem e apresentação de mate-
riais, e áreas individuais de estudos na forma de pequenas mesas indivi-
duais [carrels]. Cada um desses lugares seria contíguo ao escritório do
professor orientador, e acessaria também um jardim ou terraço inte-
rior ou exterior. Durante o curso do dia, as crianças se aventurariam
para fora dessas bases lar para uma variedade de espaços que provêm
estúdio, oficina, laboratório, recurso, ensino, seminário, e eventos de
encontros com o grande grupo. Alguns desses espaços seriam fecha-

142
A comunidade da infância

dos, alguns parcialmente fechados, e algumas áreas abertas para as


calçadas que conectam a todos eles. Quanto mais nova a criança, estes
espaços e encontros seriam mais concentrados em uma área ou seção
em torno dos espaços lar, mas, como princípio geral, o território a ser
dominado progressivamente por cada criança é toda a escola, em toda
a sua complexidade e variedade. Isto representa uma diferença radical
frente ao modelo tradicional de entendimento da relação entre o local
e o global na escola. Neste último modelo, o território da criança é a sua
sala de aula, e o resto é espaço anônimo e administrado, requer passes,
exceções ou rebeldia para ser explorado. Mas o espaço da escola deve-
ria ser entendido a partir da metáfora de uma vila, ou colmeia, ou labi-
rinto, em oposição a um espaço “disciplinado” ou “normalizado”, no
qual um princípio ou estilo de organização e uso espacial é imposto ao
todo. Ambos, grupos lar e indivíduos dentro deles, são na nova escola
tanto autônomos como interdependentes, locais e globais, dentro de
todo o sistema.
Finalmente, em uma escola da terceira maneira simplesmente
não há lugar para um tipo de avaliação que não é diretamente relacio-
nada com a ajuda que pode ser dada às crianças para que cheguem
melhor aos objetivos que foram negociados entre elas e os adultos
com quem estão colaborando. O teste padronizado constrói o conhe-
cimento como uma mercadoria ou um bem de consumo, e a atuação
do conhecimento como um ato de competição, sendo ambos comple-
tamente irrelevantes aos objetivos da educação, e amplamente perni-
ciosos em seus resultados. O aparato do teste padronizado é, exceto
por seu possível valor como instrumento de pesquisa, simplesmente
um anacronismo opressivo, um puro instrumento de colonização com
nenhuma relevância educacional genuína. Em uma escola reimaginada,
a unidade de análise é o indivíduo, e os critérios para a análise são a
habilidade para se chegar aos objetivos. Assim sendo, todos os atos de
avaliação devem, em princípio, incluir a participação, de alguma forma,
daquele que é avaliado, todos os julgamentos avaliativos devem envol-
ver perspectivas múltiplas, toda avaliação deve ser conduzida na forma
que é apropriada para o tipo de conhecimento envolvido, e o obje-
tivo principal de qualquer procedimento de avaliação deve ser capa-
citar aqueles sendo avaliados para que apliquem eles próprios aque-

143
David Kennedy

les mesmos procedimentos reflexivos e avaliativos. Não há razão, por


exemplo, para não avaliar a atuação na matemática usando critérios e
métodos puramente quantitativos, mas o mesmo algoritmo pelo qual
a atuação de um estudante é avaliada deve ser uma parte do próprio
currículo de matemática, e seus princípios implícitos de conhecimento
e julgamento – neste caso, a estatística – devem ser em algum ponto
no currículo de matemática um objeto da investigação filosófica. E se a
avaliação não pode ser significativa, que não haja nenhuma, exceto na
forma que surge natural e espontaneamente dos tipos de atividades
cheias de propósito nas quais as crianças estão engajadas.
A escola não tem mudado porque é a principal instituição para
a “sujeição” – a reprodução social de uma forma de subjetividade –
para as ideologias e economias hegemônicas modernas, e assim sendo
nunca mudará meramente através da introdução de novas técnicas ou
tecnologias ou metodologias, mas somente através de um acesso a
uma nova forma de experiência vivida – isto é, novas formas de subje-
tividade, e assim formas de relações humanas reorganizadas – que
depende, por sua vez, de novas formas de subjetividade. A questão da
causalidade na transformação ou evolução histórica da subjetividade
é discutível porque é tanto circular como sobredeterminada; mas se
a subjetividade é construída em grande medida através da relação
adulto–criança, então deve-se perguntar, o que entra neste sistema ou
o que muda dentro do sistema para que se mude o seu ciclo de repro-
dução e como se dá esta mudança? Onde está o caminho, não importa
quão tortuoso seja, que vai de uma repressão excessiva a uma ordem
não repressiva? A escola da terceira maneira é um lugar para se come-
çar a procurá-lo.

144
7. A partir de espaço sideral e do outro lado da rua:
a dupla visão de Matthew Lipman

Lipman escreveu tarde sua autobiografia1 – muito tarde para um homem


que estava correndo contra a doença que vinha devorando sua memó-
ria e sua formidável capacidade discursiva. A doença de Parkinson é de
uma crueldade suave e implacável; ela trabalha lenta, mas definitiva-
mente, ao destruir os neurônios como um apagador ao passar sobre
um quadro-negro repleto. Mas talvez este processo de apagamento
também revele algo inscrito mais profundamente, pois há uma viva-
cidade de proximidade em suas primeiras lembranças, como se todos
os afetos ainda estivessem presentes. E, já no final, todos o notavam, a
luz de seus olhos e seu sorriso – que aparecem nas fotografias de seus
últimos anos como uma claridade quase hiperativa – intensificaram-se
e profundaram-se num brilho firme e benevolente. Seus interlocutores
sentiam como se ele não se dirigisse pessoalmente a eles, elevando seu
olhar para algum lugar além dele mesmo, mas que era inteiramente ele,
que era seu corpo, suas células.
Sua primeira lembrança tem a ver com a exploração da possibili-
dade humana de voar. Ele não tinha ainda dois anos. Ele está em pé, no
alto da escada, olhando fixamente para o pouso abaixo:

1
  Todas as referências são de Matthew Lipman, A Life Teaching Thinking. Montclair,
NJ: IAPC. 2008.

145
David Kennedy

A escada tem um tapete e no pouso há uma estante de livros com uma


porta de vidro. Paro com os pés na beira do degrau. Deslizo um pouco um
pé para fora. Agora começo a deslizar o outro. Com uma mão no corre-
dor, avanço novamente para adiante. Tento manter o equilíbrio, mas de
repente estou caindo para frente pelos degraus, chorando frustrado.
Meu experimento não tinha dado certo! Eu não voei! Quando meu pai
chegou em casa para o jantar, minha mãe lhe mostrou a porta da estante
quebrada – um acaso da minha queda. Minha mãe ralha comigo, meu
pai conserta a porta… Várias noites eu tinha o mesmo tipo de sonho
– voar pelos ares no meu triciclo. No meu sonho todos me olham com
admiração. (p. 1)

Após seu “incidente decisivo”, como ele o chama, o tema do


voo reaparece pelo menos quatro vezes em sua autobiografia, como
um tema musical em uma longa sinfonia que é a vida de cada pessoa,
e cada variação sucessiva aproxima tanto do amor quanto do medo
de altura. Aos oito anos, com frequência ele distrai a atenção de seu
professor tentando subir por uma janela do segundo andar para uma
escada de incêndio. Adolescente, na escola judaica, pula de uma sala
de aula do primeiro andar, “batendo a cabeça na esquadria da janela
com um sonoro ‘CRACK’. Eu dei umas risadinhas e corri para casa sem
sofrer nenhum dano sério, mas o rabino ficou furioso.” (p. 17) Na facul-
dade, sua carreira universitária é interrompida pela “casa de horrores”
chamada Segunda Guerra Mundial, aos dezoito anos começa o trei-
namento básico e se encontra escalando uma ribanceira íngreme na
Carolina do Norte em fila indiana com outros soldados em treinamento
e atormentado pela “opção” de saltar de uma escarpa do penhasco. Ele
quer saltar, mas também está aterrorizado. Por um lado, pensa que se
pular estaria ajudando seus companheiros, dos quais ele vagarosamente
fica para trás devido à angústia física. E, finalmente, como a “última boa
guerra” está terminando, ele, o escriturário e responsável pela corres-
pondência da sua companhia no exército, se encontra como um turista
no pináculo da catedral bávara de Ulm, querendo subir ao topo, que o
aterroriza, e novamente lutando com o desejo de pular.
A raiz dourada desses incidentes – em que o desejo de voar, após
a primeira frustração enquanto pequeno, converte-se em experiên-

146
A comunidade da infância

cia do medo, não só de cair, mas também de pular, como se ele fosse
empurrado por uma mão invisível para a morte – é um tema miste-
rioso no relato de Lipman sobre o começo de sua vida, que envolve
uma profunda contradição. Em cada caso ele diz “um aspecto compli-
cado era minha tendência a ‘esquecer’ ou ‘reprimir’ ter escolhido ficar
bem na beira de um lugar elevado, de modo que, de fato, eu estava
me desafiando ou me provocando a me jogar”. E o fio conduz, com
um surpreendente contratempo de espelhismo e correspondência
simbólica, à experiência da filosofia – mas é a filosofia que o resolve.
No final das contas, aos dois anos ele soube que não podia voar, mas
o desejo de voar persistiu como uma negação – como um desejo de
morte – até encontrar aquela nobre preocupação que, ele acha, o leva
às alturas sem o perigo de autoimolação. Quando vivia em licença na
Inglaterra durante o conflito, Lipman deparou-se com uma edição da
Ética de Spinoza em “uma pequena livraria de Londres”. Aos vinte e
dois anos, sua voracidade intelectual pelejou com ela e “quando final-
mente terminei, foi como se tivesse chegado ao topo de uma grande
montanha, e ao olhar para baixo visse o vale se espraiando em todas as
direções.” (p. 79)
Mais tarde, Lipman conecta diretamente a experiência da leitura
de Spinoza à subida na catedral de Ulm, que de fato havia sido ater-
rorizante: “A escada espiralada, cada vez mais estreita, ao redor da
coluna central, enquanto que a abertura das janelas oprimia mais de
perto à medida que se subia” (p. 48); mas levado ao ápice pela Ética de
Spinoza (amor Dei intellectualis!), seu amor e medo de altura se trans-
formou. Ele descobriu que a filosofia tem ligação com os lugares altos
porque permite ver ao longe, e fazer filosofia é uma espécie de voo –
sem queda, mas voando. É o olho voando, a mente voando por sobre
o mundo apreendido, provocado, pelo que ele chama “conhecimento
adequado”, o panóptico epistemológico, a ruptura noética, o ponto
arquimediano. “Eu estava magnetizado pela ideia” escreve Lipman:

de que se pudesse achar, pelo menos teoricamente e com esforço e paci-


ência suficientes, o critério que entrelaçado com outro critério, que se
entrelaça com outro critério, até chegar ao ponto em que o mundo todo
pudesse ser explicado. Os seres humanos desde os gregos perseguiram

147
David Kennedy

este critério. Não, ainda não chegamos à resposta, mas o processo de


tentar capturá-lo é intrigante, excitante, iluminador. (p. 59)

Mas a filosofia fez mais do que livrar Lipman do intrincado desejo


de morte. De fato, no espaço de poucas páginas da crônica de seu
ingresso, pós-guerra, como estudante na universidade de Columbia,
abundam no seu livro imagens, metáforas e exultações sobre sua
entrada na estrada real da filosofia. Ela lhe propiciou (“e até certo
ponto”) o “entendimento objetivo do mundo” que estava buscando.
“Ela abriu minha visão das coisas” (p. 59), diz ele, “foi como descobrir
a câmera que produz fotografias muito mais belas e claras do que qual-
quer coisa jamais vista” (p. 107). Foi “como aprender a falar e a escre-
ver numa língua diferente, era uma língua das línguas” – não apenas a
possibilidade de um ponto arquimediano, mas uma Pedra de Roseta.
Era o contentor para “várias formas lógicas que podiam ser dissolvi-
das na língua que todos nós falamos”. (p. 60) Ela também satisfez, ele
confessa, seu lado de “ambição social” – era uma maneira de “elevar a
conversa”, recorrendo não só a juízos sobre um evento artístico, mas
exigindo critérios para aqueles juízos. Era uma forma de poder social
que ele, sempre com a intenção idealista de “provocar uma mudança
real no mundo”, podia respeitar (p. 105).
Este é um amor de criança pela filosofia – sempre como se ele
acabasse de tê-la descoberto, sua beleza, seu poder e sua utilidade.
Um de seus primeiros usos foi fornecer um marco para a problemá-
tica posta pela sua experiência juvenil da Segunda Guerra. Os elemen-
tos subjacentes, que eu interpreto como binários, são: 1) a extraordi-
nária crueldade, estupidez, imoralidade, desperdício extravagante e
a destrutividade maliciosa e gratuita dos seres humanos na guerra,
que inspirou nele “um horror interminável… quanto à crueldade e à
violência” e um ardente desprezo, geralmente escondido, quanto à
hipocrisia ignorante que a sanciona; e 2) o otimismo extraordinário e
a generosidade de uma geração e de uma nação que podia reclamar
os benefícios de ter vencido a única (como foi pensado) “guerra justa”
do século – o otimismo do império norte-americano em ascensão. Ele
havia deixado a casa dos pais muito jovem, em condições bem determi-
nadas pela Depressão, devido a uma falência financeira que não tinha

148
A comunidade da infância

qualquer relação lógica com a inteligência, inventividade e tenacidade


do duro trabalho de seu pai (seu pai, tal como ele, foi um inventor) e
sem dinheiro para se matricular na universidade que queria: Columbia.
Voltou para casa no clima de euforia nacional com uma bolsa para
Columbia, através da lei G. I. Bill, para um doutorado que ele teria que
fazer em cinco anos, como o fez.
O primeiro elemento da problemática – a guerra e seus efeitos
posteriores – o levou a desejar “efetuar uma mudança real no mundo”,
viver o máximo possível para o “ato exemplar”, buscar aquela vida
de “princípios práticos” que ele identifica como sendo o patrimônio
psicológico de seu pai. Então, quando em 1952 casou-se – no Paris City
Hall com uma norte-americana afrodescendente, estudante como
ele (“Eu me apaixonei pela linda Wynona”) – ele (e ela) puderam ser
considerados como tendo afirmado a recompensa da vitória sobre o
fascismo. “Eu senti”, escreve ele, “que de uma maneira ou de outra,
mais cedo ou mais tarde, eu teria que tomar a iniciativa e não esperar
pelos outros para dar o exemplo do que era preciso fazer.” (p. 80) O
segundo elemento – que ele fornece no contexto de uma oportuni-
dade percebida como dramática, um tipo de equivalente cultural dos
“destroços da guerra” que, após tantas divagações juvenis picares-
cas sobre o caótico e turbulento teatro global da guerra, reforçou sua
crença na própria capacidade, não só de sobreviver, mas de vencer – foi
a confiança na própria sorte.
Quando era uma criança pequena, ele estava preocupado em
voar. Durante a infância “Eu preferia brincar a estudar, e havia muitas
oportunidades para brincar” (p. 9) na pequena cidade de imigrantes
judeus russos de classe média, Woodbine, onde seu pai tinha uma loja
de máquinas até que a Depressão o levou à falência. Nos anos de escola
secundária “embora fosse o mais novo da minha turma, eu era o líder
das travessuras” (p. 7), e de fato, três semanas antes da formatura,
foi expulso da escola no último ano porque “Eu aprontava um pouco
demais, e o diretor da escola, Sr. Foley, interpretou meu comporta-
mento como sendo tão pouco cooperativo ao ponto de ser insolente”.
(p. 29) Sua tia, influente na pequena cidade e com quem ele estava
morando temporariamente, conseguiu ajeitar as coisas com o diretor
a tempo de que o turbulento inconsequente recebesse o diploma, mas

149
David Kennedy

com notas muito “inexpressivas” que lhe impediram de ser aceito na


Universidade de Rutgers. Então, aos vinte anos, veio a interrupção para
a guerra em solo estrangeiro, na qual participou como simples escrivão
da Companhia E, II Batalhão, Regimento de Infantaria 14.
Lipman caracteriza-se a si próprio como sendo um “anti-herói”
na guerra – aquele que encontrou um lugar longe das balas voado-
ras e que, a meio caminho do conflito, decidiu não carregar seu rifle
de maneira alguma. Em vários pontos do relato de sua juventude ele
se refere a si mesmo como estoico, modesto, reservado, fleumático,
tímido, inexperiente, ingênuo, com traços de uma “autodestrutividade
passiva”, cujos dotes surpreendiam a ele mesmo e cujo sucesso foi
sempre sentido como, pelo menos em parte, não merecido. Sua pode-
rosa capacidade analítica era dirigida não só a si mesmo ou às suas rela-
ções, mas também ao mundo da filosofia e da arte.
Dado o fato de como sua vida acabou transcorrendo, sugiro que
a autonarrativa de Lipman está organizada não só em torno de uma
resposta à problemática que ele colocou para si por ter participado
da guerra, mas de uma narrativa arquetípica maior, não de um anti-
-herói, mas do Herói entrelaçada com a do Louco – pois estas duas
figuras narrativas estão frequentemente reunidas em interação. O
Louco, exaustivamente tematizado no Tarot, é, no folclore e nas histó-
rias russas e alemães, dos três filhos o mais novo, o que era o caso de
Lipman. Com frequência, o Herói ainda jovem tem uma doença, no
caso de Lipman uma miopia progressiva durante a infância, o que não o
impediu de devorar os livros de seus pais – ele “releu repetidas vezes”
o conjunto de dez volumes de Mark Twain e Edgar Allen Poe, leu cinco
vezes The Education de Henry Adams, e carregou uma bolsa de lona
com seus livros prediletos e uma máquina de escrever por toda Europa
durante quatro anos.
O Herói se depara cedo com vicissitudes. A família de Lipman
foi ameaçada pelo embargo e pela falência e no meio de sua infância
o pai sofreu um infarto. No momento em que ele estava preparado
para a faculdade, a guerra estourou. O Louco apresenta-se com um
entusiasmo ilimitado, mas indefinido, e supera o perigo e o infortúnio
por meio de uma inocência pura e desajeitada e um bom coração. Ao
se aventurar pelo mundo para aprender as suas lições, desconhece

150
A comunidade da infância

as desventuras que encontrará. O Herói desafia a sorte e a necessi-


dade em busca de seu destino, que no final das contas está dentro
dele. A busca de Lipman foi exemplificada pela sua sede insaciável da
“riqueza” de “experiências preciosas” de poesia, romance, filosofia,
música, arte, cursos acadêmicos e amizades intelectuais. O Louco se
encontra com reis, sempre de modo pouco provável. Então Lipman,
um jovem algo tímido com imenso entusiasmo e uma gigantesca
capacidade para o trabalho intelectual, ao terminar a universidade
recebe uma bolsa Fulbright de pós-doutorado, viaja para Paris (ele
conhece Wynona no barco, e eles se ligam imediatamente) e encon-
tra Madame Marc Chagall (o pintor não estava presente na ocasião).
Ela o convida para jantar “animadamente, numa família-estilo-Re-
noir”. Ele deixou passar a oportunidade – “devido, eu refleti então,
à minha timidez, mais do que por falta de amizade pela família” – e,
portanto, perdeu a oportunidade de conhecer o eminente pintor. (p.
72) Ele conheceu Merleau-Ponty, Bachelard e inúmeros outros artis-
tas, poetas e intelectuais proeminentes. Merleau-Ponty, que teve
notícia de um de seus artigos, o convidou para uma recepção em que
o Louco, como Percival na casa do Rei Pescador, conhece sua linda
sobrinha, que, ele suspeita:

ter sido encarregada de me fazer sentir confortável na soirée. Parecia


que a noite perfeita se desenrolava justo diante de meus olhos e eu era
incapaz de lidar com isso. De repente, me senti envergonhado do meu
francês deficiente, das minhas roupas sovadas e amarrotadas. Eu queria
desesperadamente ficar e conversar mais um pouco, ou pelo menos
saber, de minha bela anfitriã, se poderia vê-la novamente. Mas tudo que
consegui fazer foi tartamudear uma desculpa esfarrapada e, a despeito
de seus esforços para que eu ficasse, fugi… Quando por fim eu estava
diante de uma situação em que a cultura que queria possuir se oferecia
a mim, e até mesmo ostentava sua beleza em frente dos meus olhos, eu
não conseguia fazer nada com polidez, engenho ou charme.

Após dois anos em Paris, o Herói – este modesto, profundamente


ambicioso jovem judeu intelectual do interior de Nova Jersey, filho de
imigrantes de princípios, cultos e inventivos, trabalha nos Estábulos

151
David Kennedy

de Áugias da academia na grande Nova Iorque durante uma década e


meia e em uma série de outras posições instáveis – Columbia College of
Pharmacy, Mannes School of Music, City College of New York e Brooklyn
College – escrevendo seu árduo trabalho de filosofia em estética,
campo no qual ele não se achava particularmente talentoso: “Eu não
tinha muita confiança em mim como filósofo tradicional.” Ele não acei-
tou a oferta da Reed College e da Universidade de Arkansas. “Eu não
queria deixar a cidade”, ele explica, “pois me parecia duvidoso que um
casamento interracial pudesse florescer fora de Nova Iorque naquela
época. Então, gradativamente, as ofertas para sair da cidade desapare-
ceram” (p. 150).
Com o passar do tempo, ele conseguiu um cargo de professor assis-
tente no Departamento de Filosofia de Columbia College of Pharmacy,
que suplementou durante oito anos lecionando uma disciplina,
Civilização Contemporânea, no reputado curso de educação geral para
graduandos, além de um curso de lógica em vários lugares da cidade.
No momento de realizar seu sonho de assumir um cargo perma-
nente no Departamento de Filosofia de Columbia – o santuário de sua
juventude, lar do próprio John Dewey, autor da primeira obra filosó-
fica que ele leu e com o qual havia estabelecido uma tênue e acanhada
amizade durante o doutorado (ele enviou sua dissertação para Dewey)
– prestes a alcançar o sucesso para o qual havia trabalhado por tanto
tempo, o Herói entra em crise. Ele e Wynona moravam em Montclair,
Nova Jersey, para onde se mudaram quando ela lá conseguiu trabalho
em uma escola secundária.
Obrigado a viajar diariamente para o trabalho pela necessidade
de dar outros cursos além do cargo em Columbia College of Pharmacy
(“o estresse de sair de Montclair dirigindo diariamente e a correria por
vários lugares da cidade, vagarosamente foi me desgastando”), além
de assumir uma nova responsabilidade com a família quando Wynona
se envolveu na política de Nova Jersey – ela viria a ser senadora pelo
estado de Nova Jersey, cargo que assumiu durante trinta anos – e cada
vez mais assediado pela necessidade sempre presente de “fazer uma
contribuição significativa para o mundo” – quando então, com seu
filho de três anos no carrinho, escorregou em uma calçada com neve e
quebrou o tornozelo.

152
A comunidade da infância

Seu tornozelo foi imobilizado e ele precisou de muletas. Treinando


como usar as muletas perdeu o equilíbrio, caiu e lesionou a coluna.
Passou cinco dias no hospital onde leu O vermelho e o negro de
Stendhal. Capturado pelo “momento impressionante” em que o herói,
Julian Sorel, arrisca a vida ao segurar a mão de sua amada enquanto
seu truculento marido está sentado ao lado com um revólver, Lipman
se deu conta de que:

eu também tenho que mudar de vida – não um pouquinho, mas mudá-la


completamente. É preciso entender que eu não estava desiludido com
nada – Wynona e eu íamos bem, eu dedicava todo o tempo livre que
sobrava ajudando-a nas suas campanhas, as crianças eram um deleite, e
eu gostava de dar minhas aulas em Nova Iorque. No entanto, estranha-
mente pensei isso não pode continuar. Eu tenho que mudar de vida. Teria
sido algo que eu havia lido em Rilke, ou Camus ou Gide? Não importa. As
coisas não podiam continuar daquela maneira. Ou os sentidos da minha
vida eram os sentidos errados para mim ou minha vida não tinha qual-
quer sentido. Eu estava infeliz com a minha felicidade. Continuei neuroti-
camente: tenho que começar de novo. Mas o único novo começo que eu
conseguia pensar era fazer algo a mais (o que seria um aspecto negativo
de um novo começo), mas também algo diferente (o que seria o aspecto
positivo de um novo começo). (p. 98)

Isto é provavelmente o mais próximo que se poderia encontrar da


voz de Deus soando dentro de alguém que era um acadêmico secular
da grande Nova Iorque do pós-guerra. Mas Lipman – que na infância
estava “intelectualmente confortável” sem o sentido de divindade
(que se funda na mente das crianças pequenas pela noção de onis-
ciência) e cujos pais frequentavam a sinagoga “não apenas por que
era o esperado, mas também por que isto dava um toque de mistério
e elegância às suas vidas” (p. 8) – ao descrever sua grande virada,
atribui suas referências à grande tradição existencialista europeia.
No entanto, persiste a questão do que exatamente o moveu a reali-
zar este imperativo de “algo diferente” ao elaborar uma confluência
entre o currículo da escola básica e a pedagogia, tão óbvia e original
que, de um só golpe, constrói o marco para uma teoria da educação

153
David Kennedy

radicalmente nova. A práxis educacional que surgiu da sua iniciativa,


com toda a sua aparente simplicidade, operacionaliza um ponto de
vista epistemológico pós-colonial em relação à infância e à criança,
abala o fundamento que sustenta a escola como um aparelho ideoló-
gico do Estado, e empodera a sala de aula do ensino básico, por ele
considerada o primeiro espaço para a teoria e prática democrática.
Certamente a infância teve muitos interlocutores, conhecidos
e desconhecidos, na sala de aula e fora dela. Bronson Alcott, Tolstói,
Kornei Chukovsky, George Dennison, John Holt para nomear alguns,
mas não Peirce, nem Dewey em particular, não os mentores de Lipman:
Meyer Shapiro e Justus Buchler – não os seus heróis intelectuais. Onde
em sua vida estão os modelos para esta corajosa tarefa? Ao ser questio-
nado sobre seus predecessores, aqueles dos quais ele seria o herdeiro,
Lipman não cita linhagem alguma. Ele é o exemplo de um homem que
cruza para outra zona totalmente diferente – de acadêmico intelectual
esteta e metafísico um tanto abstruso, a radical inventor de currículos
– e não só isso, mas também protagonista incansável na proposição
deste currículo. O extraordinário entusiasmo e persistência empre-
endedora com que ele escreveu, publicou, operacionalizou e difun-
diu sua invenção enganosamente simples, são sinais de um esforço
extremamente focado, de uma completude de realização, do poder
da ideia ou ideal de outra forma e comportamento, que sugerem o
Herói. Capturado pelo imperativo “Tenho que mudar a minha vida!”,
ele cozinhou em fogo lento, mexendo devagar, sua primeira novela,
Harry Stottlemeir’s Discovery, os dezessete capítulos foram escritos em
dezessete semanas, em uma mesinha que ele pôs no porão, ao mesmo
tempo consciente e inconsciente, no calor da criação, de que o que ele
estava organizando em um livro infantil eram os principais elementos
do Curso 101 de Filosofia que durante anos havia ministrado para estu-
dantes universitários.
Decididamente, e mesmo marcadamente, Harry não é fantasia,
simplificação de ideias complexas, nem uma transposição não didá-
tica dos “grandes filósofos”. Ele é de fato inteiramente composto de
conversas entre crianças. Nenhum nome de filósofo é mencionado e
nenhuma terminologia filosófica é utilizada. As crianças são “normais”
– elas dão a impressão de ser crianças de Queens ou Nova Jersey,

154
A comunidade da infância

crianças dos subúrbios das classes média e baixa em meados dos anos
60, e se há referência ao lado sombrio da vida de suas famílias, é de
forma indireta. Isso é o que surpreende e intriga no livro: as crianças
podem ser “normais”, mas estão falando de filosofia, e fazendo-a sem
grandes palavras ou frases complicadas. Em outras palavras, o anor-
mal é que, apresentadas desta maneira, as conversas pareçam inteira-
mente normais, até que se caia na conta de que elas de modo algum o
são, ou não precisam sê-lo. Aqui as crianças falam sobre a mente e o
corpo, sobre a beleza, a arte e a natureza, sobre religião, ciência, sobre
a própria investigação de modo crivelmente inacreditável, ou vice e
versa. O que Lipman inventou em seu porão suburbano foi uma nova
forma de novela filosófica, cujos tópicos foram escritos com o que ele
chama “uma linguagem de dupla função que pode ser compreendida
pelos adultos em um nível e compreendida pelas crianças, de certo
modo, em um nível diferente.” (p. 108) É uma novela que pode ser facil-
mente discutida por adultos e crianças, e, portanto, representa uma
ponte entre a infância e a adultez, um espaço de conversa intergeracio-
nal. Ele inventou uma forma de literatura filosófica.
Se ele tivesse feito apenas isso, então Harry Stottlemeier’s
Discovery teria sido apenas uma charmosa curiosidade da literatura
ocidental, muito provavelmente esquecida. Mas a novela é o começo
daquela mudança de vida que ele chamou para si, e a primeira arma
com a qual a iniciativa do Herói avançou pelo terreno inflexível e
perigoso da educação norte-americana. Embora o estilo autobiográ-
fico de Lipman seja modesto e delicadamente irônico, mesmo assim
se percebe uma inquietação no relato de abandonar para sempre o
prêmio acadêmico, o Departamento de Filosofia de Columbia College,
que naquele momento de sua crise estava à mão. Em vez de isso, ele
aceita trabalhar em escola normal bastante provinciana, Montclair State
College, pois havia a promessa de apoiar seu projeto. Ele passou quase
quarenta anos reunindo colaboradores e colegas ao seu redor, escre-
vendo novelas e para cada uma escrevendo um manual, que de fato são
livros enormes de questões filosóficas, desenvolvendo uma pedago-
gia pós-socrática para facilitar a conversa comunitária das novelas em
sala de aula (“Eu estava determinado a ser radicalmente inventivo… é
preciso uma nova pedagogia? Invente-a!”) (p. 116), organizando proje-

155
David Kennedy

tos e pesquisas piloto, iniciando, organizando e mantendo os progra-


mas atuais de Filosofia para Crianças em escolas locais e nacionais,
buscando e obtendo subvenções, intercedendo junto a figuras influen-
tes da educação e da filosofia, escrevendo e editando vários volumes
teóricos, fundando e editando um periódico dedicado à Filosofia para
Crianças, organizando conferências, desenvolvendo programas acadê-
micos, organizando cursos de verão (cuja pedagogia é exatamente a
utilizada com crianças, i.e., leitura e discussão em grupo dos tópicos
filosóficos das novelas como fazem as crianças na sala de aula), rece-
bendo estudantes e colaboradores de outros países e procurando a
Associação Americana de Filosofia, ano após ano, para argumentar a
favor de crianças fazendo filosofia, com filósofos acadêmicos céticos e
esnobes que, na maioria das vezes, faziam ouvidos moucos.
Ele foi adiante contínua e incansavelmente, passando os dez
primeiros anos em um trailer no campus e quando o projeto prosperou
transferiu a operação para uma pequena casa do outro lado do campus
– Alderice House, internacionalmente conhecida, sede central do
Instituto para o Progresso da Filosofia para Crianças, com sua cozinha,
a gata Ellie que lá morava (a qual Lipman observava, mimava e com
ela conversava), sua sala de seminário e alguns escritórios. Durante
as décadas de 70, 80 e 90, Alderice House foi um espaço comunitá-
rio acolhedor para receber o fluxo contínuo de professores e alunos
visitantes – filósofos, pedagogos e outros, pelo menos metade deles
de outros países – atraídos, como por uma melodia invisível, pelas
ideias de Lipman e pelo seu magnetismo pessoal. Tinha-se a impres-
são que cada novo professor que chegava à porta de Alderice House
tinha a mesma luz no olhar e era guiado pela mesma investigação,
quaisquer que fossem as combinações destes três elementos: filosofia,
infância e educação.
Mas a questão biográfica persiste: por que crianças e filosofia? O
que o impulsionou à reconstrução radical da filosofia como diálogo, e
ainda mais diálogo entre crianças? O que o levou a escolher a infância
como espaço para a democratização radical da disciplina? Percebe-se
em seu livro que, com sua modéstia típica e de forma incompleta, ele se
coloca a mesma questão. Sua abordagem à questão é refinada, alusiva
e ilusiva, como convém a um filósofo refletindo tardiamente sobre a

156
A comunidade da infância

sua vida. Eis aqui um acadêmico apaixonado que não tinha qualquer
interesse particular em psicologia, epistemologia genética, desenvolvi-
mento cognitivo e análise sistemática do pensamento das crianças, ou
da história da educação, que leva os seus interessados a um movimento
que fornece não só insight, mas também inúmeros dados para todos
aqueles campos e ilumina o núcleo da tradição progressiva em educa-
ção. Como afirmado com simplicidade e eloquência em seu primeiro
livro teórico sobre o assunto, Philosophy in the Classroom, ele sugere
uma revolução na educação que substitui o objetivo de “aprender”
pelo objetivo de “significar.” Isso resulta em uma metodologia de sala
de aula – apelidada por ele de comunidade de investigação – que opera-
cionaliza a reivindicação de Freire de o diálogo como fulcro fundamen-
tal da teoria e da prática pedagógicas. Ao ser aquele que desenvolveu
o trabalho de Dewey até o ponto em que seu pensamento estivesse
suficientemente focado para encontrar Freire, o trabalho de Lipman
representa a ponte metodológica entre os dois filósofos da educação
mais influentes do século XX.
O que o levou a fazer isso? Foi a fascinação provocada pelos
encontros com crianças pequenas – por exemplo, com a garotinha de
dois anos no Jardim de Luxembourg – onde ele com frequência passe-
ava, sentava, lia e ouvia escondido durante “dois anos maravilhosos de
aventura” em Paris – que, quando seus pais pediram que ela se escon-
desse, (“Cache-toi!, eles lhe disseram”) ela fechou os olhos bem aper-
tado? (p. 70) Foi a preocupação com a educação de seus filhos que, diz
ele, ocupou “uma parte considerável do meu pensamento” no início e
meados dos anos 60? Foi ter lido Reflections on Little Rock de Hannah
Arendt que “primeiro me mobilizou profundamente quanto à questão
dos direitos à educação”? (p. 94) Ou suas conversas com o eminente
esteta Rudolph Arnheim sobre a arte infantil, enquanto passeavam
pelos bucólicos arredores de Sarah Laurence onde ambos eram profes-
sores visitantes? Foi seu ensinar para crianças do terceiro ano na escola
dominical da igreja unitariana de Montclair que ele frequentava com sua
família birracial? Foi seu encontro com uma exposição de arte das crian-
ças da escola Summerhill que ele visitou no Museu de Arte Moderna de
Nova Iorque no final dos anos 60, quando seus olhos se abriram para
“uma profundidade do pensamento das crianças que eu não pensava

157
David Kennedy

ser possível”, onde ele viu “o processo criativo delas como uma forma
de pensamento”, e pensou “Não poderia haver certos tópicos nos
quais o pensamento das crianças se aproximasse ou mesmo excedesse
o pensamento dos adultos?” Ou, finalmente, os anos 60 – aquela época
torturante, retalhada, aterrorizada e repetidas vezes atônita com a
violência por todos os lados e experimentos sociais impetuosos, aquele
período de transformação cultural, em que a profunda angústia, raiva,
insatisfação e falta de sentido da cultura americana dominante não
podia mais ser contida pelo que pareciam forças repressivas esmaga-
doras – que nele geraram, à medida que a década “andava torta e aos
tropeços” (p. 107), uma resposta para o seu próprio tempo repleta de
sua “estranha confiança” e de seu “otimismo crônico”? (p. 159)

Eu não podia deixar de refletir sobre tudo que pudesse ser uma opor-
tunidade, para transformações pedagógicas não por intermédio de
meias medidas microscópicas, mas medidas dramáticas e transversais
que afetassem não apenas os estudantes universitários de amanhã, mas
também os professores de depois de amanhã. O que era preciso, pensei,
era uma educação que tornasse as crianças mais razoáveis e mais capaci-
tadas para exercer bons juízos. (p. 107)

Talvez fosse uma percepção, no caldeirão em lume brando que foi


a década de 60, de que a repressão do afeto, da criatividade, da cons-
ciência social e do pensamento autônomo – que se anunciava clara-
mente por todos os lados ao seu redor e que subitamente se tornara
alarmante e até mesmo grotesca na nova era pós-colonial – seria de
algum modo mantida por meio da sua capacidade de enganar as crian-
ças, a todos certamente, mas as crianças antes de tudo.
Nesta primeira fase do que retrospectivamente parece quase um
processo alquímico, Lipman foi demovido de suas tendências “gradati-
vas” e de “melhoramento” em relação às reformas educacionais, pelos
cáusticos eventos das insurreições estudantis em 1968. Eles o levaram
à convicção de que um “plano inteiramente novo, uma prática intei-
ramente nova, uma teoria inteiramente nova – tudo isso teria que ser
planejado e posto em ação virtualmente naquele instante”. Ele estava
“profundamente tocado”, dizia, “pela forma como as crianças sofrem,

158
A comunidade da infância

e quão pouco elas podem fazer a esse respeito”. Ele conta que come-
çou a “ver a importância da liberdade de investigação, não apenas para
os professores, mas também para as crianças. Os direitos acadêmicos
que os estudantes universitários gozavam não se estendiam às crianças
nas escolas, e eu estava me dando conta do quanto era necessário algo
deste tipo. O que pode ser feito, me perguntei, para ajudar as crianças
não simplesmente a pensar, mas a pensar por elas mesmas?”
Em outras palavras, o que motivou Lipman não foi só a isca da
curiosidade epistemológica das crianças e sua capacidade para o jogo,
mas uma preocupação genuinamente política. Um grão de ativismo
democrático se esconde no que parece ser a atividade meramente
acadêmica da P4C (filosofia com crianças) e está nela desde que era
uma ideia na mente de seu idealizador – na realidade, este radicalismo
implícito brilhava nos olhos daqueles que acudiam à Alderice House. O
Herói sentiu necessidade de “contribuir”, fazer alguma coisa “radical”
que, somada à percepção de que as crianças eram uma classe oprimida
e marginalizada, o levou a um processo de construção e reconstrução
que “Eu não tinha a menor dúvida… tinha que ser radical.” (p. 112)
“A educação teria que significar algo novo e diferente, e o lugar para
começar não poderia ser o mundo adulto – o mestre, o professor ou
os pais – pois nenhum destes estava a pedir uma luta. Ela teria que vir
do questionamento da base do sistema social, a criança… (p. 110) Ele
teria que inventar um currículo e uma pedagogia voltados a proteger
as crianças “contra a ambiguidade e a imprecisão na sala de aula, uma
vez que isso poderia protegê-las da manipulação da propaganda e da
publicidade” (p. 108) e desse modo municiá-las com as ferramentas
necessárias para reconstruir sua relação com o mundo adulto, e mais
tarde, o mundo adulto em si mesmo.
O projeto alquímico de Lipman se orientou frutiferamente em
quatro direções: a prática de filosofia para crianças, por ele inventada e
que espontaneamente coloca um desafio, tão impressionante quanto
há duzentos anos foi o de Rousseau, para um segundo campo, a filo-
sofia da educação. Em terceiro lugar, conduziu a um campo teórico da
chamada filosofia da infância, no qual a prática da filosofia para crian-
ças é um tipo de ação-meditação, estimulando os adultos a refletirem
sobre as diferença e semelhanças entre crianças e adultos, no mesmo

159
David Kennedy

tempo e no mesmo espaço discursivo. Embora a filosofia da infância


há muito estivesse presente na crítica literária e em alguns temas da
fenomenologia (durante seu idílico pós-doutorado em Paris, Lipman
assistiu na Sorbonne uma ou duas conferências de Merleau-Ponty
sobre psicologia da criança), a filosofia da educação de Lipman forçou
um encontro com a filosofia da infância que contornou aquelas discipli-
nas – psicologia do desenvolvimento cognitivo e sociologia – há muito
mantidas numa escravidão positivista. Finalmente, sua prática também
desafiou de modo implícito as filosofias da criança, paradigmaticamente
representadas pela obra de Piaget, The Child’s Conception of the World,
que concebe a epistemologia da infância como evidência de várias
teorias genéticas e epigenéticas baseadas no desenvolvimento cogni-
tivo por estágios, das quais a mais amplamente conhecida é a Teoria
da Recapitulação.
A filosofia da infância aparece pela primeira vez em uma coleção
fascinante de ensaios e textos históricos reunidos em uma edição espe-
cial de Thinking: The Journal of Philosophy for Children, periódico que ele
fundou e manteve pessoalmente por quase trinta anos, e que quase
não é mencionado no livro. Ao longo de sua carreira, Lipman deixou a
cargo de Gareth Matthews, professor de filosofia da Universidade de
Massachusetts, a articulação da perspectiva filosófica da criança que
ele assumiu, e se concentrou realmente na prática de escrever para
crianças e, nos seus textos teóricos, defender a presença da filosofia
no currículo regular do ensino básico. Matthews, desde o ponto de
vista filosófico, tentou articular uma crítica à perspectiva piagetiana,
que dominava as instituições educativas, segundo a qual a criança não
raciocinava; procurou argumentar que as crianças como pensadores
morais, o que Kohlberg, o discípulo intelectual de Piaget, refutara por
meio de uma teoria excessivamente simplista dos estágios do desen-
volvimento; e oferecer claras evidências da curiosidade epistemológica
e metafísica das crianças.
As lembranças de Lipman de sua própria infância, fragmentárias
e modestamente apresentadas, têm a vividez de “lembranças enco-
bridoras”, no sentido pós-freudiano de serem símbolos de todas as
profundidades da experiência infantil – incidentes contendo todo um
mundo de experiências primevas.

160
A comunidade da infância

De maneira resumida e lacónica, ele evoca o mundo sem restri-


ções da pequena cidade: as brincadeiras infantis fora de casa, não vigia-
das e quase que ininterruptas (agora consideradas um idílio reservado
às gerações passadas) e nos dá uma visão infantil de energia prome-
téica da loja de máquinas de seu pai, onde ele adorava ficar depois
das aulas. Lá havia “Um enorme e poderoso motor elétrico na altura
do teto e rodas, que eram conectadas por meio de tiras de couro às
máquinas individuais” e a jovem criança “nunca se cansava de olhar
os pedacinhos enroscados de metal azuis e quentes rodopiando para
fora daquelas máquinas de cortar e afiar” ou de maravilhar-se com
as “impressionantes manobras” de seu pai – que em casa era gentil
e bem humorado – trabalhando na forja, “aquecendo um pedaço de
metal e depois curvando-o e dando-lhe forma na bigorna com sua
pesada marreta”.
Ao ler estes serenos e brilhantes fragmentos de lembranças, é
difícil não sentir, dado o que se seguiu, que o amor de Lipman pela
filosofia, que ao final de sua adolescência o guiou como um canto de
sereia, se baseia, ao menos em parte, em seu potencial de conservar
a infância. Talvez o que ele chama “via estranha” (p. 23) da filosofia
tenha sido para Lipman – como Rilke disse em relação aos artistas –
uma maneira de continuar criança, no sentido de estar sempre perto
de um começo ou começando e recomeçando, uma vocação que se
traduz em amor pela investigação, nunca presumindo seu fim – além
de, como muitas crianças, ser de certo modo perseguido pelo espanto.
A infância é também a representação da unidade de ser e existência –
da capacidade de agir que Lipman demonstrou de maneira paradigmá-
tica no início e na consumação de seu trabalho. Uma vez a tarefa posta,
o Herói trabalha inteiramente orientado por aquela ideia fixa, com total
dedicação, como se aquele trabalho fosse inseparável do seu brincar.
Em Lipman, o princípio de praticidade que admirava no pai e por ele
adotado como seu próprio modus vivendi assume a forma exemplar.
A “pureza de vontade”, diz Kierkegaard, é “querer uma só coisa”. A
infância faz isso tão sem esforço como parece tê-lo feito Lipman.
Há outras dimensões narrativas nesse livro de esquetes, anedotas
intrigantes e meditações de autoquestionamento que convidam a um
olhar especulativo – por exemplo, narrativas de questões raciais, étni-

161
David Kennedy

cas e de classe de uma pequena cidade de judeus imigrantes ao sul de


Nova Jersey que ele rememora. Mais misteriosas e, sem dúvidas, mais
difíceis de interpretar são as súbitas e momentâneas divagações juvenis
sobre mulheres “especiais” em meio ao teatro global da guerra. Essas
também têm as qualidades de “lembranças encobridoras”, que apare-
cem com uma claridade arquetípica surpreendente, cada breve encon-
tro provocando uma cuidadosa contenção que só aumenta sua força
romântica. Por exemplo, durante seus primeiros meses no exército, em
um acampamento em uma montanha na Califórnia, pegou uma carona
até Los Angeles, na qual entabulou “uma conversa estimulante com a
charmosa mulher que dirigia durante o longo percurso.” (p. 26) Num
outro fim de semana em Los Angeles, ao voltar para o acampamento,
tomou o ônibus em vez de pegar carona:

Cheguei cedo para pegar o ônibus, eu era o primeiro de uma pequena


fila, e tinha escolhido meu assento, no meio do ônibus, junto à janela.
Logo depois, entrou uma moça extremamente atraente que teria mais
ou menos a minha idade (20). Ela esperou um pouco para ver quais os
assentos livres e veio sentar-se ao meu lado. Eu havia tido muitas experi-
ências atestando a hospitalidade californiana, mas aquilo superou todas
as expectativas. Quase que imediatamente nos viramos um para o outro
e começamos a conversar. Ela me disse que desceria em Santa Barbara.
Eu não disse nada, mas quando o ônibus parou em Santa Barbara, fiquei
pensando no que teria acontecido se eu tivesse descido com ela e trans-
gredido meu período de licença. (p. 26)

Essas mulheres continuaram aparecendo durante os anos de


guerra, cada uma das quais parecia ter sido enviada para intimidar o
cortês Percival advertindo-o com uma misteriosa visita. Por exem-
plo, nas últimas semanas da guerra, estando aquartelado em uma
pequena cidade alemã:

Encontrei uma jovem mulher que me fitava e ela me perguntou se pode-


ríamos conversar. Levou-me à sua casa e me mostrou uma fotografia de
seu marido, eu parecia quase idêntico a ele. Ela não sabia dele há alguns
anos: ele era soldado no front oriental e ela estava profundamente

162
A comunidade da infância

abalada pela experiência de ter me visto. Se as nossas ordens não tives-


sem mudado repentinamente e tivéssemos de nos mudar, eu gostaria de
ter ficado mais algum tempo. Antes de partir, olhei novamente a fotogra-
fia. A semelhança de fato era impressionante. Talvez ele tenha voltado
para casa, para sua atraente mulher e seus filhos e neste momento esteja
escrevendo suas memórias.

Talvez, de algum modo, esses fragmentos sejam breves evoca-


ções da economia erótica dos tempos de guerra. Quando a distância
entre a vida e a morte é pequena, a desconfiança natural entre os
sexos igualmente diminui. Na autobiografia como narrativa mítica,
sugere-se o aparecimento de Deusas – a Musa – ao predestinado, o de
olhos cheios de estrelas, o Louco que será transformado em Herói por
meio da unificação da sua vontade. Dado o secularismo obstinado de
Lipman, sua insistência na navalha de Ockham em todas as situações,
elas são oferecidas com uma aura de fatualidade que cria um contraste
surpreendente. Se elas são tão fáticas, por que seriam lembradas tão
vividamente, ou sequer lembradas sessenta anos depois?
Igualmente característicos são os relatos circunspectos sobre
seus sombrios desejos e recusas. Ele conta que, em 1950, estava em
um “período sombrio” exacerbado pelo advento da guerra (da Coréia)
que, pensava ele, os Estados Unidos não deveriam ter travado, em
conjunção com uma “desastrosa” defesa da tese de doutorado (leia-
-se ele foi atacado pela banca), Lipman reescreveu tudo novamente,
quando somente lhe havia sido pedido que revisasse a introdução.
Tendo perdido o respeito pela banca, entregou o trabalho revisado na
biblioteca de Columbia sem sequer informar ao seu orientador. Mais
tarde, seu orientador o parou no corredor e se desculpou, e Dewey lhe
escreveu uma nota de consolo: “Nunca me pareceu correto fazer uso
das opiniões dos avaliadores como medida do trabalho do aluno.”
Durante esse período, diz ele, teve uma “série de encontros com
uma mulher, nada admiráveis.” Se algum tema os caracteriza seria
algo como surtos de irritação, uma súbita descoberta do negativo, que
talvez seja o lado sombrio da energia implícita na unidade da vontade,
o trabalho inflexível e tenaz sobre sua vocação que também o carac-
teriza. De fato, ele conta ao longo do livro ter sentido momentos de

163
David Kennedy

rebeldia, arrogância e antirrealismo insolente e até mesmo certo grau


de crueldade ou indiferença.
Num incidente que Lipman relata, “havia estabelecido uma
amizade agradável com uma moça que também era aluna de graduação
de filosofia”. Ela tinha decidido se casar com um estudante de direito
que ela pensava ser capaz de lhe garantir uma segurança econômica
que Lipman não podia. Lipman argumentou repetidas vezes com ela a
partir de boas razões (aparentemente, não de seu próprio desejo), ela
acabou por mudar de ideia e terminou o noivado, e ele então brusca-
mente lhe informou “não quero mais continuar nossa relação.” Outro
incidente, quando estava trabalhando na livraria de Columbia:

onde eu passava várias horas conversando com uma funcionária muito


atraente, estudante de antropologia, como seu namorado. Penso que
invejei o relacionamento seguro e estável deles, porque me lembro de
ela dizer que gostava de Prokofiev, então eu lhe enviei uma gravação de
seu concerto para violino sem indicar o remetente. Quando ela me per-
guntou se havia sido eu quem o enviara, prontamente respondi que não
tinha nada a ver com aquilo. Penso que o prazer que tirei daquilo foi que
em suas especulações ela pensasse ter um admirador secreto. No outono
de 1950, que eu estava passando na França com a bolsa Fullbright, ela me
enviou uma carta amável e lhe eu respondi resmungando como um velho
urso. Ela nunca me havia feito nada de mal, e minha impertinência foi
totalmente imerecida. (p. 64)

Esses incidentes têm uma aura de inexperiência juvenil – as pele-


jas, golpes, colisões e contra-ataques entre sexos, involuntariamente
conduzidas pelo desejo, do mundo social de Ivy League dos anos vinte
e alguma coisa. É possível perguntar-se, então, por que eles marcaram
tanto sua memória a ponto de serem tema de uma confissão tardia,
quando seu relato dos trinta anos de relação com sua mulher, Wynona,
é tão breve e comedido. Wynona tornou-se senadora pelo estado
de Nova Jersey, o que exigiu sua mudança para Newark e Lipman
permaneceu em Montclair para “atender à minha própria carreira.”
(p. 126) Nenhum dos dois pensou nisso como uma separação, apenas
uma inconveniência temporária. Mas “após algum tempo”, Wynona

164
A comunidade da infância

“resolveu colocar ordem na nossa relação; ela decidiu pedir o divór-


cio.” De início, ele ficou “chocado.” “Uma decisão como esta, refleti,
eu não teria conseguido tomar. Mas, por fim, concluí que ela deveria
ter pensado que o divórcio seria para o bem de ambos. É concebível, e
mesmo provável, que ela o tenha feito isso por minha causa.” A relação
deles se manteve “amistosa e afetuosa, uma relação que nós, bem ou
mal, considerávamos ‘esperada’ entre acadêmicos.” (p. 126)
A neutralidade cuidadosa dessa descrição – do ponto de vista
afetivo, o tom é de quem, infelizmente, e não por sua culpa, tivesse
perdido o trem – é por si mesma sugestiva. Lipman era o primeiro
a chegar e o último a sair de Alderice House, e era conhecido por se
sentir como um peixe fora d’água nas situações em que o coleguismo
descambava para uma sociabilidade mais irrestrita. Assim, seria fácil
interpretar este momento – 1972, em que ele estava lançando o projeto
que virtualmente viria ocupá-lo nos próximos quarenta anos –, como o
encerramento de sua vida social e erótica em favor da vida profissional.
Mas, neste exato momento, 1972, o Herói encontra sua alma gêmea,
com quem muitos anos depois se casa, uma estudante trinta anos mais
jovem do que ele chamada Theresa:

… Ela era… visivelmente alegre, radiante e saudável… Eu nunca havia


encontrado antes alguém como Teri. Na presença de uma ideia filosófica,
seu rosto brilhava… Foi minha primeira experiência com tal radiância,
produto, creio eu, da alegria e insight espiritual … profunda amizade …
que eventualmente se desenvolveu como um amor simples e puro…
e todos aqueles anos que pareciam nos separar, a diferença de idade
provou ser insignificante e o casamento continuou sendo uma grande
felicidade e completude para nós durante muitos anos.

Não se pode evitar especular que Lipman, na história de sua


própria narrativa erótica, tivesse reencontrado a moça do ônibus de
1952 que ele encontrou como o Louco, mas a qual, como um Herói,
acabou por encontrar e vencer sem ter transgredido sua licença. Seu
casamento intergeracional – ela tinha vinte anos e ele cinquenta – é
tão exemplar quanto o primeiro, interracial, mas o que ele exempli-
fica é mais ambíguo. E o véu de obscuridade com que Lipman reco-

165
David Kennedy

bre sua vida privada através de umas poucas frases sem interesse –
“Nós nos tornamos ‘o casal do campus’ e mais de um comentário no
campus fez referência ao prazer de que ‘eles tivessem se encontrado’.
Teri era um apoio também no meu trabalho” – sugere um conto peri-
goso demais para ser contado, ou a pouca atenção que dava à sua vida
privada: um efeito colateral de ser, como ele mesmo se descreve, um
adicto ao trabalho que o levou a ser pego de surpresa pelo pedido de
divórcio de Wynona.
Lipman sobreviveu às duas esposas – Wynona faleceu de câncer e
Teri de uma overdose de remédios para dormir – e ele foi ficando com o
corpo e a discursividade, antes prodigiosa, progressivamente compro-
metidos pela doença de Parkinson, cujo início ele relata no livro. Estas
memórias de fato foram escritas antes que fosse tarde demais, durante
horas, dias, semanas, meses e anos em que a gradual e devastadora
debilidade exigiu que o cuidado de seu corpo fosse confiado a pessoas
virtualmente estranhas – o que representa o último gesto do Herói.
Então ele embarcou em sua última Tarefa, a tarefa mais filosófica - a
tarefa estóica de manter seu “otimismo crônico” e que ele descreve,
no fim do livro, como sendo seu amor pela filosofia, e seu “amor [pelo]
mundo que produziu algo tão belo como a filosofia.” (p. 170) O tom
das memórias de Lipman, modesto e despojado, e mesmo seu título
despretensioso, são as marcas de seu último labor. “O que é grande”,
escreveu Sêneca,

é uma alma inabalável, serena na adversidade, uma alma que aceita


todos os acontecimentos como se eles tivessem sido desejados … O
que é grande é … lembrar que se é um homem; isto é, quando feliz
dizendo para si mesmo que não será feliz para sempre. O que é grande
é ter a alma nos lábios, pronta para partir; quando então se é livre, não
das leis da cidade, mas das leis da natureza. (Sêneca, Questões naturais)

Na mais ampla narrativa de sua vida, a determinação estóica de


Lipman diante da ferocidade da sentença sombria de Parkinson, está,
para mim, ligada ao momento do fim da guerra em que, podemos
supor, foi lançado o solo para a transformação do Louco em Herói. Em
uma passagem, em que ressoa a inteligência analítica e a determina-

166
A comunidade da infância

ção lacônica características de Lipman, ele narra a profunda mudança


metafísica que o fim da guerra lhe anunciou:

Para alguns veteranos, a guerra que eles experimentaram tinha em


si certa insularidade; outras lembranças mantiveram estes veteranos
distantes da guerra. É quase como se o tempo que eles serviram na
guerra pertencesse, ou de fato fosse, da vida de outra pessoa… Daí a
relutância de vários soldados em discutir suas vidas, pois esse é um perí-
odo que podia ser compartilhado com outros veteranos, mas dificilmente
com mais alguém.
Para outros veteranos, a experiência dos tempos de guerra veio a ser um
momento definitivo em suas vidas. Toda realidade alegada teria que inevi-
tavelmente ser comparada àquela experiência. Para estes veteranos ou a
guerra era o critério de realidade ou então o critério da última irrealidade.
Sua autenticidade substituía todas as outras autenticidades; sua irreali-
dade substituía todas as outras irrealidades.
Essas estão longe de serem as únicas possibilidades experimentadas
pelos veteranos. Houve, como é sabido, os céticos para os quais nada é
crível, e aqueles para os quais tudo parecia um sonho, inclusive os sonhos.
Também houve alguns que conceberam a realidade como uma questão
de intensidade, de tal modo que o real era qualquer coisa que evocasse
horror, terror, pesar e outras experiências igualmente extremas. Para
mim parecia haver algo de errado nessas posições e eu não podia deixar
de concordar como uma resposta alternativa à questão “O que é o real?”
A resposta era: “Tudo”. (p. 47)

É a “resposta alternativa” de Lipman – “Tudo” – que eu suponho


advir do encanto extraordinário por ele demonstrado sob a pressão
dos últimos anos de sua vida em seu quarto numa casa de idosos e
que representa a completude pessoal de uma promessa da filosofia:
a promessa de vir a ser livre “não pelas leis da cidade, mas das leis da
natureza.” E como tal foi seu ato exemplar final e supremo. Sua capaci-
dade de fitar o abismo, combinado à sua profunda generosidade – uma
espécie de piedade filial em larga escala – dirigida ao mundo inteiro e a
todas as suas espécies, repousa no final das contas sobre aquele amor
à filosofia que o cativou na adolescência e que o impulsionou adiante

167
David Kennedy

com o que ele chamou “minha estranha confiança no que eu estava


fazendo” (p. 113); um sentido de completa segurança, uma concentra-
ção focada que testemunha um sentido mais amplo de destino, uma
espécie de maestria por trás de si mesmo na que ele sempre confiou
implicitamente.
“Eu sinto pela filosofia”, escreve ele no último parágrafo de seu
último livro, “o que um astronauta deve sentir ao ver a Terra, toda
verde, marrom e azul, como é vista de uma estação espacial.” Ele
então expressa a esperança de que a filosofia para crianças “construa
um mundo melhor e mais razoável para que nele vivam nossas crianças
e as crianças delas: um mundo que pareça tão bonito desde o outro
lado da rua como é desde o espaço distante.” (p. 170) Lipman era fiel
não só ao mundo, mas às suas mais altas possibilidades. Suas memórias
são um testemunho modesto de uma trajetória de vida extraordinária
e um exemplo de que o filósofo é alguém com um tipo de dupla visão –
vendo a vida desde o espaço sideral e desde o outro lado da rua – isto
é talvez a mais profunda vocação da filosofia.

168
8. Aión, kairós and chrónos:
fragmentos de uma conversa infindável
sobre infância, filosofia e educação

com Walter Kohan

Filosofia e educação

Esta conversa aconteceu em inglês em 2006, quando childhood &


philosophy tinha apenas um ano de idade. E foi publicada em finlan-
dês, como “AION”1.

Walter: Em seu maravilhoso fragmento 52, Heráclito diz, “Tempo


(é) uma criança brincando, seu poder2 é o de um menino”. Em grego
existem apenas algumas palavras nesse fragmento: aión país esti paízon,
paídos he basileíe. Aión é uma palavra de tempo, assim como são chró-
nos e kairós. Em suas aplicações mais antigas, aión designa a intensi-
dade do tempo na vida humana – o destino, a duração, um movimento
inumerável, não sucessivo, mas intenso3. Diferente de aión é chrónos
que preside sobre a continuidade do tempo sucessivo. Se aión é dura-

1
 In: Tuukka Tomperi; Hannu Juuso (eds.). Sokrates koulussa Itsenäisen ja yhteisöllisen
ajattelun edistäminen opetuksessa. Tampere: Niin & Näin, 2008, p. 130-155.
2
  Nota de tradução: no original: “realm”, que também significa reino ou domínio.
3
  Liddell, Henry; Scott, Robert. A Greek English Lexicon. Oxford: Clarendon Press,
1966, p. 45.

169
David Kennedy

ção, Platão define chrónos como “a imagem móvel de eternidade (aión)


que se move de acordo com o número” (Timeu, 37d). Para os atenien-
ses, tempo, como chrónos, só é possível neste mundo imperfeito devido
uma de suas mais imperfeitas marcas: movimento. O mundo perfeito
das ideias é aionico, anacrônico, sem tempo crônico. Algumas décadas
mais tarde, Aristóteles definiu chrónos como “o número de movimen-
tos de acordo com o ‘antes e depois’” Física (IV, 220a). A terceira pala-
vra de tempo é kairós, que significa ‘medida’, ‘proporção’ e, em relação
a tempo, ‘tempo crítico’, ‘estação’, ‘oportunidade’4.
Vamos voltar para aión e Heráclito. Existe uma dupla relação afir-
mada nesse fragmento: o tempo da infância e o poder da infância. A
quarta palavra do fragmento, a forma verbal paízon, significa a ativi-
dade de uma criança. Algumas traduções dizem “brincando”, o que faz
sentido, mas se nós tivéssemos uma, nós poderíamos também utilizar
uma palavra denotando apenas o modo de ser criança, não necessaria-
mente identificado com brincar. A última palavra basileíe, é uma palavra
de poder que significa “reino”. Heráclito também usa uma forma dessa
palavra (basileús) no fragmento 53, como um atributo de pólemos, a
guerra eterna. Finalmente a palavra anterior, paídos, uma vez mais
relacionada à criança, é um genitivo possessivo, mostrando que tem a
posse de, ou mais propriamente em aión.
O fragmento parece significar, entre outras coisas, que tempo –
tempo da vida – não é apenas uma questão de movimento numerá-
vel, e que existe outra maneira de viver o tempo que poderia ser vista
como um modo infantil de ser, um que pertence a uma criança. Se uma
lógica do tempo – a lógica de chrónos – se movimenta de acordo com
o número, outra – a de aión – move o numerável para uma dimensão
inumerável da existência. Em outras palavras, o fragmento sugere que,
em relação ao tempo, uma criança é mais poderosa do que qualquer
outro ser. Se em termos de chrónos uma criança está no início, em um
primeiro, não desenvolvido estágio de ser, em termos de aión, não há
ser mais realizado que uma criança.
Eu não estou lendo o fragmento de Heráclito desta forma com o
objetivo de sustentar uma concepção romântica ou idealista de crianças

4
  Ibid., p. 859.

170
A comunidade da infância

e infância, mas, ao invés disso, para sugerir que o pressuposto inques-


tionado de que a infância é o primeiro estágio do desenvolvimento
humano, que baseia a maioria dos discursos pedagógicos contemporâ-
neos, teve seus desafiadores desde tempos antigos.
O que é uma criança? O que é a infância? As duas perguntas podem
estar relacionadas, mas não são a mesma questão. Mantendo o frag-
mento de Heráclito, se concordamos que uma criança é mais poderosa
em termos de aión do que de chrónos, então uma experiência de tempo
não-cronológica, aionica, emerge e, juntamente com um não-cronoló-
gico conceito de infância: de acordo com isso, então, a infância pode
muito bem ser não apenas um período da vida, mas uma forma especí-
fica de experiência na vida. Em outras palavras, infância parece ser uma
possibilidade, uma força, um vigor, uma intensidade, ao invés de um
período de tempo.
O que Heráclito sugere é que infância é algo relacionado a poder,
poder como uma forma de tempo e tempo como uma forma de poder.
No parágrafo anterior, eu introduzi algumas ideias relacionadas à natu-
reza de poder e tempo “infantil”. Neste contexto, infância não é um
período de tempo, mas uma experiência específica de tempo; e não,
como é pensado frequentemente, uma ausência de poder, mas um
modo singular de praticar o poder. Além disso, quais os sentidos e
significados dessas relações? Em outras palavras, infância é um tempo
para que? E poder para que? Ou a questão de sentido e significado é
uma questão não-infantil?
Eu vejo que neste último parágrafo meu próprio discurso mudou
e eu me encontro tendo entrado no tempo e poder do questiona-
mento. E no fim das contas, crianças são frequentemente associa-
das a perguntas. O link parece ser direto. Ele é? Existe uma especial
e intensa forma de discurso associada à infância? Seria o questiona-
mento a infância (dimensão aionica) da linguagem? Seria a infância
– etimologicamente, a carência de linguagem, de fato não a carên-
cia, mas um poder específico da linguagem? Ao invés da ausência
de linguagem, seria a infância outra forma de linguagem? Caso seja,
qual é essa forma?
David: Eu diria que infância é a forma de linguagem que é a língua
feita pelo mundo. É a linguagem do Tolo, que imita a linguagem dos

171
David Kennedy

pássaros, das árvores, das trovoadas e coisas como essas. Tolos de


contos e dramas, ele ou ela, que está na experiência da infância, vive
em uma condição de imediatismo psicológico que é perigosa para a
construção adulta de tempo e poder porque não retém nada, o que
para os adultos equivale ao estado de psicose. A linguagem de pássa-
ros, árvores e trovoadas é, em termos humanos, a linguagem do
inconsciente, um código múltiplo, polissêmico, a linguagem do desejo,
o discurso do Todo, que é não-linear, permanentemente anacrônico, o
qual é completamente escondido porque não tem nada a esconder. O
código ontológico fundamental da natureza em manifestação simples
e expressiva. Não está na dupla relação de significado que começa na
idade adulta. Está e não está apontando para alguma outra coisa. Está
apontando para o que é, o que na dialética da existência, é também
aquilo que não é.5
É claro que a linguagem da infância é imediatamente comprome-
tida e somos capazes de identificá-la apenas quando não existe mais,
mas ela retorna em kairoi. A lei do pai, do pai tempo, chrónos, crucifica
isso eternamente. Momentos de êxtase – exstase – e todas as formas
de jogos profundos trazem à tona um domínio que escapa à Chrónos.
O kairoi abre o mundo dentro do espaço transitório da experiência
estética: são momentos de ruptura cronológica, no qual o binário de
dentro/fora, interno/externo, eu-pessoal, eu do outro é “tornado
estranho”, isso é, no qual seus limites tornam-se fluidos, negociáveis,
reconstruíveis, no qual descobrimos o quão limitada é a causa e efeito
cronológico. A arte nos ensina sobre esse espaço psicológico, como faz
a experiência erótica e experiências relacionais intensas, que podem
ser desencadeadas por drogas psicotrópicas e certas experiências de
oração e meditação, assim como sonhos e orgias selvagens ou expe-
riências de estar no total deserto, etc. Essa forma de descentraliza-
ção através da experiência-limite transgressora quebra a hierarquia
hegemônica de uma forma ego-dominada da subjetividade e abre

5
  “Uma criança que se disfarça como outro expressa sua mais profunda verdade”
Paul Ricoeur, Hermeneutics and the Human Sciences, John B. Thompson trans. and ed.
(Cambridge: Cambridge University Press, 1981), p. 187.

172
A comunidade da infância

um espaço para o projeto da grande intimidade e a reconciliação da


mente/corpo/mundo.
Mas eu vejo que esqueci sua questão sobre perguntas. Uma
criança realmente questiona? O que é uma pergunta? A pergunta de
uma criança difere do questionamento de um adulto? Existem ques-
tões na existência aiónica afinal? Uma pergunta não implica que algo
pode ser diferente do que é, o que implica movimento numerável, o
que implica raciocínio e o subjuntivo, divisão, distinção, o normativo,
em resumo, o centro excluído – enquanto para aión é apenas um
mundo cantando, falando, respirando, carne gloriosa do mundo, a qual
é minha carne e sua carne também? Mas pode ser que eu não tenha lhe
entendido. Fale novamente, irmão.

Perguntas

Walter: O que é uma pergunta? Isso é uma boa pergunta, mas


deveríamos exercitar a cautela aqui, isso soa como uma questão
característica da metafísica Socrático-Platônica que tem marcado a
história da chamada tradição Ocidental. Porque estamos interessa-
dos em perguntar “o que”? O que estamos procurando? A natureza?
A definição? A essência? A ideia? E por que não estamos procurando
pelo “quem” e o “para que”? Em outras palavras, pode ser interes-
sante não apenas focar no que é uma pergunta, mas em quem está
perguntando e do que o processo de questionamento esta atrás. Isso
implica que uma pergunta é interessante não tanto pelo que é ou pode
ser, mas por causa do movimento que pode gerar no questionador e
no questionado.
Deixe-me dar um exemplo. Algumas pessoas tentam encon-
trar filosofia em tipos específicos de perguntas. Nós podemos até
pensar em alguns critérios de acordo com os quais identificamos uma
pergunta como filosófica – que seja “comum, central e contestável”,
por exemplo, como Lipman e Sharp fazem. E podemos até identificar
temas aos quais pensamos que as perguntas filosóficas devem reme-
ter, como amizade, verdade, o bom e os chamados temas “eternos”
da filosofia. Esta estratégia para filosofar pode ser interessante, mas

173
David Kennedy

é aplicada apenas para filosofia como teoria, conhecimento ou um


sistema de pensamento, não é apropriado para filosofia como expe-
riência. Como conhecimento o que importa é uma relação filosófica
com perguntas, não importa o quão comuns, centrais e contestáveis
elas sejam. Uma experiência filosófica pode ser desencadeada por uma
pergunta aparentemente simples, concreta e ingênua, e uma experi-
ência não filosófica com uma pergunta aparentemente sofisticada.
Portanto, precisamos pensar sobre os propósitos pelos quais fazemos
perguntas na filosofia como experiência, não importando o conteúdo
destas. Filosofia como experiência não é um conteúdo dado ou pensa-
mento em si mesmo, mas uma relação com outros e com nosso conhe-
cimento e pensamento. O mesmo poderia ser dito sobre perguntar:
uma pergunta não é filosófica em seu conteúdo, mas através de certa
relação que é estabelecida com a pergunta. Que tipo de relação? Bem,
não é simples dizer, pois como acabei de sugerir, perguntar não é um
conteúdo, mas algo que permitimos que a pergunta faça com nosso
pensamento, as portas que nós a permitimos abrir, os caminhos que
nós a permitimos trilhar, assim uma pergunta pode fazer o que espe-
ra-se que elas façam: perguntar! Isto significa colocar em movimento
algo que está fixo, dando vida a algo que está morto e assim por diante.
Como tal, não há coisa tal como perguntas filosóficas ou não-filosófi-
cas. Em vez disso, existem perguntas com as quais podem ser estabele-
cidas relações filosóficas ou não-filosóficas, de tal forma que perguntas
aparentemente simples e inocentes podem desenvolver relações filo-
sóficas, enquanto perguntas aparentemente centrais ou importantes
podem não desenvolver nada. Obviamente não existem receitas certas
ou métodos para estabelecer uma relação filosófica com uma pergunta
e ninguém pode ensinar isso a ninguém, visto que experiência não
pode ser ensinada, apenas dividida.
Isso nos leva ao que você estava dizendo há pouco: “uma
pergunta implica que algo poderia ser outra coisa além do que é”.
Neste sentido, o que poderia ser outra coisa além do que ele ou ela é,
é precisamente aquele que está perguntando: em sua dimensão mais
interessante, perguntar não é um processo externo, algo que um faz
ao outro, mas um auto-questionamento (e é claro, nós não precisa-
mos assumir o eu egocêntrico que você estava criticando há pouco).

174
A comunidade da infância

Se fazemos uma pergunta e não nos sentimos perturbados, tocados,


movidos, descentrados por ela, parece que estamos perdendo uma das
mais interessantes e poderosas possibilidades da pergunta: a transfor-
mação que ela provoca. Se perguntar é filosófico – eu estou tentado
a dizer infantil – o questionador nunca vai ser o mesmo uma vez que
o processo da pergunta tenha início. O questionamento é como a
parteira da diferença.
Isso faz sentido, infância deve ser não apenas a atividade de
perguntar, mas um tipo especial de relação com as perguntas, que abre
o questionador para um movimento que ele ou ela não pode controlar
nem antecipar. Infância deve ser um tipo de experiência onde pergun-
tar abre experiências para não-experimentados, pensamento para os
não-pensantes, vida para os não-vividos.
Agora que eu li minha resposta para você, eu imagino porque
comecei a pensar sobre filosofia quando estava pensando sobre
infância. De fato, perguntas são tipicamente relacionadas à filosofia
tanto quanto à infância. Neste sentido, eu não gosto realmente do
usual desprezo às respostas na filosofia, como se elas não fossem
importantes. De fato, a filosofia não tem interesse para mim sem elas.
Novamente não é uma questão de perguntas ou respostas, mas de
relação entre elas: uma espécie de dialética – para usar uma palavra
que você gosta – de perguntar e responder, onde perguntar inaugura
um movimento que clama por certas respostas e perguntar inaugura
um movimento que dá nova vida às perguntas. Filósofos e criança,
ambos perguntam e respondem.
Você acha que existe uma dialética específica filosófica e/ou infantil
de perguntar e responder? Se existe, como você a caracterizaria? Existe
um caminho comum na experiência filosófica e infantil de perguntar (e
responder)? Você deve estar tentado a me acusar de reformular suas
próprias perguntas. Eu vou reconhecer minha culpa com prazer, desde
que isso não o impeça de responder!
David: Nenhuma culpa é necessária, irmão – ou ainda, mesmo que
você seja culpado, nunca terá que pagar, pois não lembro de minhas
perguntas desde que ouvi as suas, pois as suas as mudaram. E minha
resposta imediata é que o bebê, a jovem criança, até mesmo algumas
crianças mais velhas, assim como pintores, dançarinos, dramaturgos

175
David Kennedy

e músicos, e provavelmente uma boa parte dos banqueiros, carpintei-


ros, etc. perguntam com seus corpos – ou, mais precisamente, com
suas mentes-incorporadas/corpos-mentalizados. O bebê no berço
tenta alcançar o celular pendurado balançando sobre ele, não como
uma apropriação, mas como uma pergunta. Isto é que é interessante
a respeito da noção de inteligência “sensório motor” de Piaget e a
sugestão de que é um tipo de interação com o mundo, o qual é base
para todas as futuras operações lógicas. Eu gosto dessa ideia porque
implanta lógica no corpo vivido.
Implícita na pergunta do bebê ou da jovem criança está, primeiro,
a liberdade em relação à mãe. Porque a mãe é o lugar onde todas as
questões já foram respondidas e mesmo que não tenham sido, isso não
importa, pois elas entraram no reino aionico do gozo, onde nenhum
significado está faltando. Então a primeira pergunta do bebê deve
acompanhar o dramático “Não!” dele ou dela para a mãe. Seu “Não!”
para o pai chega depois, com maior risco. A pergunta acompanha o
momento de separação e, conforme você sugeriu, auxilia no nasci-
mento da diferença.
A pergunta é ainda o momento de desconstrução, de desmontar,
que está relacionado também ao fort-da, jogo da presença e ausên-
cia e à outridade ou alteridade que acompanha a emergência da dife-
rença. A jovem criança constrói uma torre de blocos e tão essencial a
essa experiência é o momento em que ela derruba a torre. Nas mãos
de ambos, criança e filósofo a pergunta é uma ferramenta e às vezes
uma arma, levantada contra a máquina monolítica da lei. Como tal, é
sempre transgressiva e desobediente, mas é fiel da forma que uma
simples recusa ou negação não é – leal à possibilidade de reconstrução
do que questiona e até mesmo à colaboração com o que questiona em
desenvolver uma resposta ao invés da substituição da pergunta. E é
leal à diferença também, para isso abre uma fissura na experiência que
revela a discrepância radical entre o mundo e nossos mapas do mundo.
Isso nos lembra que não apenas o mundo poderia ser diferente, como,
de fato, é diferente – cada mapa cognitivo é diferente. Uma vez que a
criança ou o filósofo tenha feito a pergunta – uma pergunta genuína
– fica implicitamente entendido que há mais de uma resposta, pois há
mais de um mapa do mundo.

176
A comunidade da infância

Ao invés de tentar pesquisar a forma como a criança e o filósofo


são o mesmo, eu preferiria pesquisar como cada pessoa humana em
uma certa maneira de pensar e falar é um filósofo e afirmar que, na
medida que cada pessoa é um filósofo, ele ou ela é uma criança. Indo
mais longe, ele ou ela voltou àquelas questões que são perguntadas
com o corpo todo e que tem sede do jogo de construção e recons-
trução, e para quem o tempo é uma criança brincando, i.e divertida-
mente construindo e reconstruindo o mundo. E eu posso também dizer
“artista” bem como “filósofo”, pois tanto quanto o filósofo carrega
para a adultez uma maneira infantil de questionar, o artista carrega
para a adultez um modo infantil de atuar no mundo, e ambos agem
para transformar o mundo. Mas ambos, devemos ser lembrados pelas
autoridades, são crianças “más”: eles fugiram do jardim (do Éden) por
fazerem uma pergunta e eles não podem voltar jamais – existem anjos
com espadas do costume e da lei e privilégio e hierarquia guardando
o portão. Para a “boa” criança, não existem perguntas ou apenas
perguntas catequéticas, que não são perguntas de todo. E adultos são
boas crianças se eles seguem a religião tomada em seu sentido mais
amplo, o que significa que eles renunciam às perguntas, eles as sacri-
ficam pelo bem da ordem: eles “crescem”. Eles lutam para manter o
Mesmo, porque tem medo de desordenar, o que a Diferença parece
implicar. O problema é que a desordem vem de qualquer forma, pois
a diferença só pode ser suprimida através de assassinato em massa. É
claro que houve e continua a ser repleto disso.
Eu não estou – pelo menos penso que não estou – fugindo do
tópico aqui; que é, se queremos abordar em algum ponto deste
diálogo, o assunto da criança, do filósofo e da escola. Porque a
escola – em meu país de qualquer forma – é onde o Mesmo conso-
lida seu aperto mortal e sonâmbulo, onde as pessoas são ensinadas
a evitar, até mesmo esmagar a questão, quando a pergunta vem
como um convidado bêbado, ou um parente indesejado há tempos
perdido, aquele que não foi convidado de forma bastante incisiva
para a celebração familiar, mas que inevitavelmente aparece, como
o retorno do reprimido. Se este é o caso, então quais são as perspec-
tivas para a filosofia, infância e educação? Mas leve isso aonde você
vai, meu irmão.

177
David Kennedy

Educação

Walter: Eu vou levar isso aonde a pergunta me leva, em dire-


ção a algum destino desconhecido. Pode ser que nós tenhamos que
mover as coisas adiante para encontrar um novo começo para filoso-
fia, infância e educação. Nós temos pensado na educação das crianças
no padrão Platônico, inspirada no modelo de educação dos guardiães
em A República: educação como formação dos recém-chegados ao
mundo por aqueles que já estão no mundo, a fim de alterar a ordem
social para o Belo, o Bom e o Justo. Infância tem sido tema de mirí-
ades políticas, estéticas e sonhos éticos da república aristocrática de
Platão (em seu sentido grego) para as nossas sociedades democráticas
contemporâneas.
Parece que precisamos de um novo começo para educação e infân-
cia. Nós devemos olhar para a infância não como algo que deveria ser
formado e educado, mas como algo que forma a si mesmo, como na
perspectiva Romântica. Mas nós devemos ir mais adiante e considerar
educação não como formação – não importando se a infância é formada
ou formadora – mas como um espaço de de-formação, um campo que
permite a afirmação da alteridade. Educação é um campo facilmente
seduzido ou intimidado por modas de um ou outro tipo. Palavras apare-
cem e de repente saturam o discurso educacional como vírus de rápida
proliferação, e eventualmente elas começam a perder sentido. Tal é o
caso – pelo menos na América Latina – com termos como “criativo”,
“crítico” e coisas do gênero. Eles aparecem na maioria dos manifestos
de reforma educacional, juntamente com uma imagem de pensamento
que é diretamente ligada a “destrezas”, “habilidades” e “competên-
cias”. Em tempos como os nossos, cansados como estamos de nossa
obediência escrava aos interesses do mercado e do capital, e da preva-
lência da competição, da docilidade, consumismo e eficiência, essas
palavras educacionais incômodas6 tornam-se menos interessantes do
que elas poderiam ser de outra forma. Em vez disso, poderíamos muito
bem criar espaços de incompetência, desobediência e inabilidade para

6
  Nota de tradução: no original “buzz”, palavra que se refere ao barulho produzido
por insetos.

178
A comunidade da infância

pensar o que deveria ser pensado, para fazer o que deveria ser feito e
para viver da forma que todos deveríamos viver.
Eu não sei qual forma afirmativa esse tipo de educação levaria;
na verdade, eu não quero saber, porque exatamente na antecipação
disso, nós podemos estar inibindo algo extraordinário que isso pode-
ria trazer, a exata dimensão de seu poder subversivo. E, é claro, a
questão mais mundana que permanece é se alguma “outra” forma de
educação – ou educação do “outro” – é possível na escola moderna
como conhecemos.
Por um lado é impressionante o quão diferentes parecem essas
duas abordagens da educação – tão opostas, tão estranhas, tão alheias,
que uma parece afirmar o que mata a outra. E eu não penso que nós
precisamos considerar todos os detalhes da escolaridade contemporâ-
nea aqui, dada a forte crítica já desenvolvida a partir de uma perspec-
tiva foucaultiana das instituições educacionais como instrumentos de
controle e disciplina. Não é um problema nacional. Eu acho que foi o
sociólogo de educação inglês Basil Bernstein quem salientou o quão
surpreendentemente similares as escolas parecem através do tempo
e espaço. Eu gostaria apenas de sugerir um pouco mais, o quão bem
a escolaridade se adaptou às nossas sociedades neocapitalistas globa-
lizadas, dentro e fora de seus prédios modernos e através das novas
tecnologias e meios de comunicação de massa. Por outro lado, uma
escola é uma coleção de pessoas e nós nunca sabemos o que pode
emergir de onde seres humanos pensam juntos. Apesar de não parecer
estar emergindo nada promissor da escolaridade, quem sabe? Como
podemos ter tanta certeza de que é um caminho sem rumo? Em outras
palavras e para voltar à infância desta conversa, poderíamos ainda
perguntar: Uma escola aionica é realmente possível? Isso não seria uma
contradição, em termos? Pode parecer dessa forma, mas também pode
ser interessante questionar essa aparente contradição.
Se o que eu disse nos parágrafos anteriores faz sentido, ao invés
de procurar por uma nova forma de escolaridade para a infância, nós
devemos considerar a procura por uma nova infância da escolaridade,
o que pode muito bem significar a total inexistência de escolas. Ou não!
Nós não sabemos. Qualquer que seja o caso, nós devemos abrir insti-
tuições educacionais onde possamos trabalhar – escolas, universida-

179
David Kennedy

des, etc. – a experiência transformadora sem antecipar seu ponto de


chegada. Eu acho que estamos novamente de volta ao poder.
Como você disse, infância é a linguagem do corpo. Eu ainda estou
encantado pela forma como você colocou isso em palavras “mãe é o
lugar onde todas as questões já foram respondidas”. A escola escolheu
o corpo como um lugar privilegiado para suas respostas, onde cada
questão foi respondida pelo pai, o legislador, que é um tipo diferente,
inquestionável. Neste sentido a escola esta farta de totalitarismo e
nosso maior desafio, no meu ponto de vista, é dar espaço a maneiras
não-totalitárias de lidar com o outro, com o corpo do outro, que é, em
um último sentido, nosso corpo.

Alegria – desejo

Ao mesmo tempo, devemos considerar a questão do fascismo.


Neste contexto eu penso que o conceito de alegria em um sentido de
Spinoziano e Deleuziano deve ajudar a nos inspirar: alegria como “tudo
o que consiste em preencher uma força” e seu oposto – tristeza – o
resultado de quando alguém “é separado de uma força da qual ele ou
ela acreditava ser capaz”. Se nós queremos viver em um mundo cheio
de alegria, se queremos experiências alegres e experiências de alegria,
se faz sentido viver para a alegria, então devemos fazer algo a respeito
daqueles espaços tristes onde pessoas são impedidas de fazer aquilo
que podem, de executar ou perceber suas forças. Infelizmente, esco-
las são predominantemente lugares muito tristes, apesar de muitas
pessoas parecerem estar rindo dentro delas, precisamente no sentido
de que as pessoas parecem estar sistematicamente impedidas de perce-
ber e expandir suas forças. Esse impedimento sistemático, que cria uma
tristeza tão profunda na vida, não é apenas totalitário, mas fascista.
Sob meu ponto de vista, o principal desafio para aqueles que pensam
e trabalham em instituições educacionais é expulsar o totalitarismo e o
fascismo delas. Novamente eu não sei se isso é, de fato, possível.
O que você pensa, irmão? Eu lhe levei para muito longe de onde
você estava pensando? Caso eu o tenha feito, traga-me de volta para

180
A comunidade da infância

algum outro lugar. Não hesite em colocar em prática as forças do seu


pensamento. (sorrindo alegremente)
David: Nós devemos perguntar, então, exatamente o que é a
“força” que você fala em um sentido Deleuziano e Spinoziano e, uma
vez que está conectada aos nossos propósitos, que relação ela tem, se
existe alguma, com a infância e educação? Seu uso da palavra “alegria”
levanta outra questão – isso realmente tem uma relação necessária
com a percepção da força? Ou, colocado de forma ligeiramente dife-
rente, não teriam os assassinos de Columbine, para usar um entre uma
miríade de exemplos, sentido “alegria” enquanto executavam seu
plano de massacre? Ou que tal sobre a “alegria” daquele narcotrafi-
cante colombiano enquanto ele amorosamente cuida de sua adorável
família em sua casa enorme?
Walter: Eu não chamaria aquilo de alegria, uma vez que não preen-
che qualquer força, pelo contrário, separa outros de suas forças, inibe
a realização do outro. Eu não vejo nenhuma alegria em qualquer forma
de imperialismo ou colonialismo.
David: Então a alegria da qual você fala é, na verdade, um fenô-
meno coletivo e intersubjetivo. Este é um qualificador crucial, que
torna o conceito completamente ético. E, de fato, educação como
uma força positiva é – e aqui eu concordo com você absolutamente –
sobre a realização coletiva de um desejo, sobre aprender a entrar na
“permanente revolução” juntos, e a recolher habilidades para subver-
ter as formas hegemônicas do Mesmo social, sexual e econômico, sob
as quais a maioria de nós está preso como borboletas semi-mortas em
um quadro de exposição. Mas é também – e aqui deve ser reconhecido
como Bildung – sobre a reconstrução do desejo. Esta é uma reconstru-
ção em curso e, da forma que vejo isso neste exato momento, envolve
principalmente a superação7, sublimação (ou ambos) da agressão, ou
o desejo morto, ou “antiprodução”, ou o “lado negro”, ou como você
preferir chamar. Eu não posso mais aceitar a sugestão de Sócrates de
que o mal são apenas pessoas fazendo escolhas baseadas na insufici-
ência de informação, ou atraídas por um desejo imediato, mesmo que

7
  Nota de tradução: no original “sublation”, palavra em inglês que se refere ao termo
alemão Aufhebung, utilizado na filosofia de Hegel.

181
David Kennedy

ele esteja em conflito com seus desejos a longo prazo. Isso pode até ser
verdade em algum nível e em várias instâncias, mas não é o suficiente
para explicar a taxa de homicídios da espécie e os níveis de crueldade
e indiferença. E se um reclama que a taxa de homicídios, crueldade e
indiferença têm a ver com a sujeição e encerramento e impedimento
do desejo, com a “tristeza” da qual você fala, com o totalitarismo e
o fascismo, bem, nós não seremos entregues ao fascismo por aque-
les amamentados por seu leite envenenado. Deve haver uma atividade
cultural mediadora que ofereça a oportunidade de uma quebra na
estrutura das coisas.
Eu sugeriria que como atividade prática, e especialmente quando
conduzida coletivamente, como diálogo comunal, filosofia é – entre
outras coisas, para ser preciso – exemplo desta atividade mediadora.
Para usar uma metáfora crua e vívida, filosofia é sobre o diálogo entre
os três cérebros da espécie humana: o “réptil”, ou tronco cerebral do
instinto, o “mamífero”, ou região límbica da emoção, e o córtex cere-
bral, ou “razão”. No modelo Platônico, no qual três partes do mesmo
– logistikós, epithymía e thymós – correspondem bastante sugestiva-
mente à tripartição cerebral, diálogo não é uma possibilidade. Sem o
controle estrito da “razão” e da classe dominante que personifica isso,
o inferno se abre. Agora nós percebemos que esta é a economia do
patriarcado e o complexo de Édipo, quintessência de uma forma ociden-
tal clássica de submissão e subjugação, a qual cria um inferno com a
intenção suprimir isso. Um novo modelo do eu, que já tem nomes varia-
dos – “eu nômade”, o “sujeito em processo” ou o que eu chamei de
“inter-sujeito” – desconstrói a hierarquia Platônica e inicia o “desejo
produtivo” de Deleuze e Guattari, o qual eu entendo em um sentido
muito amplo como a reconstrução em curso do desejo.
Por que a filosofia comunal, dialógica – filosofia como um evento,
como agón colaborativo e jogo deliberado – é tão exemplar do desejo
produtivo? Porque filosofia é sobre o normativo – o córtex cerebral
procurando por regras e princípios e heurística – e o normativo é sobre
o que deve ser. O normativo é o mundo do como-se, do mundo para-
-além-do-que-é, que implicitamente julga e por isso vai mais além do que
é. O normativo é o mundo do distintivamente humano – do animal de
cérebro enorme, criatura da neotenia, aquela que nunca para de crescer

182
A comunidade da infância

que está continuamente refazendo a si mesma. Mas para escolaridade


sob o patriarcado (e eu percebo que nós já temos dois termos, totalita-
rismo e fascismo, mas eu quero introduzir outro, sem saber exatamente
a relação semântica entre os três), o normativo é a Serpente no Jardim
do Éden, que sussurra (para a mulher), “a autoridade realmente diz isso,
ou significa isso? Isso não pode ser interpretado de maneira diferente?”
Para o patriarcado este é o primeiro princípio de Satã – questionar a
autoridade – e isso é tudo o que a filosofia faz.
A escola patriarcal está interessada em reprodução, não em
transformação, e em mudança quantitativa, não qualitativa (e.g. “A
economia precisa de mais pessoas com habilidades computacionais”).
Ela é também a principal instituição para a construção de um corpo
dócil do trabalhador – seja com as mãos ou mente – e para a libidi-
nosa economia da repressão excedente. Como outra Serpente em
outro jardim paralelo, ela diz para o animal de cérebro grande, “Não
crie confusão, não questione, não proponha alternativas, não siga o
seu desejo, e as coisas irão muito bem para você. Um bom carro está
esperando por você, e uma casa e abundância de alimentos, bebidas,
viagens e entretenimento, incluindo tanto prazer sensual quanto você
puder suportar.”
Walter: Há algum tempo eu vi uma fotografia maravilhosa
no jornal, a qual é o perfeito exemplo dessa luta. Foi tirada durante
uma destas manifestações em protesto contra o encontro do G8, em
Gleneagles, Escócia, e mostra uma mulher beijando o escudo de um
policial. Ela estava sorrindo, ele estava muito sério. Ela parecia muito
forte, ele parecia deprimido. Eu a vejo como uma metáfora da força da
resistência, da rebelião contra o Império, uma força cheia de alegria; e
ele como a imagem deste triste neocapitalismo, este poder repressivo,
totalitário fascista.

Escolaridade e filosofia

David: Sim, é uma imagem interessante – especialmente uma vez


que o beijo é a linguagem do corpo, e é estranhamente ambivalente
que a mulher esteja beijando a arma concreta da opressão, o escudo.

183
David Kennedy

Em um nível isso me faz lembrar um gesto de submissão e de profunda


perversão – beijar as botas do conquistador – mas aqui nós imediata-
mente o reconhecemos como um gesto de poder: com seu beijo, ela
dissolve a repressão, que é recolhida como uma força material do
escudo. Mas vamos imaginar que é com este policial que a Serpente
está falando nesse Jardim do Éden paralelo. “Não se iluda pensando
que a chave para a felicidade humana é outra que não a prosperidade
universal. Todos os grandes trabalhos de arte e todos os grandes siste-
mas de pensamento são possibilitados por excedentes econômicos. E
o excedente econômico vai ser atingido apenas ao custo do sacrifício
de determinadas classes e determinados indivíduos em determina-
dos períodos. Pode até ser você quem precise ser sacrificado, mas eu
estou certo que você aceitará seu destino com dignidade e lealdade,
visando a prosperidade universal, rumo à qual o Mercado está vaga-
rosamente, mas certamente nos guiando, e a paz universal que é o
objetivo do Império. E apenas no caso de você não estar persuadido,
deixa-me acrescentar isso: o tipo de liberdade e indeterminação que
você está imaginando vai libertar o lado negro humano. Na verdade, se
você apenas olhar ao seu redor, você vai ver que isso já começou”. E
ao contrário do par no primeiro Jardim, o policial e sua Eva não saem.
Eles planejam mudanças quantitativas – aprovadas, é claro, pelo Chefe
e auxiliadas pro seus Anjos – no Jardim, conformado com seu sacrifí-
cio, justificado, satisfeito com cada aparente suspensão da repressão –
como filmes de sexo explícito se tornando livremente disponíveis para
o público em geral, por exemplo. “Você vê?”, diz a Serpente, “você se
submeteu ao regime de repressão excedente a fim de criar abundância
para todos, e agora a repressão está suspensa. Agora você pode ter o
seu bolo e comê-lo também. Agora você confia em nós? Mas acima de
tudo, evite a filosofia.”
Isso tudo é uma maneira um pouco pesada de dizer que a filoso-
fia representa uma ruptura em uma forma de escolaridade que está a
serviço do Império. Ela não pode ser apenas remendada. Mas eu não
quero dizer apenas filosofia, eu quero dizer filosofia como conversa
e, ainda mais especificamente, como diálogo. Nós parecemos concor-
dar que as escolas representam os elementos totalitários da cultura
contemporânea, e totalitarismos odeiam diálogo tanto quanto um gato

184
A comunidade da infância

odeia água, porque o diálogo abre a dimensão normativa. Eu às vezes


surpreendo um fraco sentimento de escândalo – sempre tão fraco
quanto um cheiro ruim malmente perceptível – de alguns professores
enquanto assistem crianças fazendo filosofia. Ou isso, ou eles às vezes
parecem considerar o fato totalmente trivial, apenas um bate papo,
sem a menor implicação substantiva: o que de fato é apenas total-
mente trivial e improdutivo se não moralmente perigoso, sentar por
aí e deliberar em conjunto sobre coisas tais como pessoas e animais e
subjetividade e justiça e beleza e conhecimento e linguagem e mente e
corpo e assim por diante – para não mencionar a aplicação mais prática
desses conceitos mais gerais em conversas sobre mentiras e conflitos e
o que é justo e amizade e assim por diante.
Crianças, por outro lado – algumas, é verdade, mais do que outras
– e também, é preciso acrescentar, vários professores, tanto jovens
quanto velhos – enxergam o ponto imediatamente: que é sobre a
reconstrução do desejo e que isso tem implicações imediatas para a
reconstrução da escola. Os dois não podem ser separados, visto que
humanos são, como você diz, orientados para “perceber e expandir
suas forças” e a criança-adulta coletiva da escola representa um plane-
jamento ideal para este mais fundamental projeto. Mas a educação
totalitária diz às crianças, “Você não nos vai reconstruir – isso seria
contra Deus e a Natureza – em vez disso, nós vamos reconstruir você
– ou, mais especificamente, nós vamos reproduzir nossa imagem em
você, a imagem do Mesmo.” Portanto, eu posso apenas concluir que a
filosofia representa a melhor esperança para transformação educacio-
nal e também o índice do fato de que esta transformação é impossível
– ou mais propriamente eu deveria dizer, incalculável.
Eu estou certo de que você percebeu que eu pareço estar emper-
rado em um binário, no qual tudo desaba (sobre mim) da aporia apre-
sentada pela relação entre mudança quantitativa e qualitativa. A
acumulação da primeira eventualmente leva à segunda, como Marx
sugeriu? Ou a segunda é sempre a incalculável, a imprevisível, a incon-
trolável? Visto que filosofia é sobre imaginar a reimaginar o eu, o outro
e o mundo, pareceria que ela se enquadra no domínio do qualitativo.
Então, falando otimistamente pareceria que a prática da comunidade
de investigação filosófica nas escolas representa a ruptura na estrutura

185
David Kennedy

hegemônica, um lugar por onde a luz entra, onde a voz da criança é


ouvida pela vez. Mas você mesmo tem sido o primeiro a criticar até a
santificada abordagem de Lipman à comunidade de investigação filo-
sófica como mera transmissão de habilidades e socialização dentro de
uma determinada consciência de classe – uma posição com a qual eu
não concordo inteiramente, mas a qual eu vejo como bastante aplicá-
vel ao que pode ser feito com a abordagem de Lipman em escolas –
maneiras como isso pode ser, por assim dizer, desarmado, suprimido
e expurgado com muito pouco esforço. Tudo o que é necessário são
pessoas praticando isso para fazer outra coisa – seja o “pensamento
crítico”, “esclarecimento de valores”, “educação moral” ou mesmo
“aprendizagem cooperativa” – enquanto protestam eles estão fazendo
filosofia, ou ao menos o mais próximos que eles podem chegar do que
quer que eles pensem que filosofia deve ser. E talvez isso nos traga
de volta ao entrono da primeira questão levantada por sua categoriza-
ção de diferentes tipos de temporalidade. Se a afinidade infantil com o
tempo aionico faz dela algo como um filósofo “natural”, chrónos faz do
adulto exatamente o oposto, por isso é só através de uma reapropria-
ção da própria infância e de sua forma de temporalidade, que o adulto
se torna um filósofo. E quais programas educacionais para professores
podem trazer isso, visto que foram programas educacionais, que de
uma forma ou de outra lhes causaram o esquecimento? Mas, eu escrevi
demais, de volta para você, irmão.
Walter: Sim, realmente parece que temos estado preocupados
com o quantitativo e o qualitativo desde o começo desta conversa.
Afinal de contas, chrónos é quantitativo enquanto aión é qualitativo; e
também força e poder, alegria e tristeza. Voltando a Heráclito, eu não
acho que devemos nos livrar das oposições se elas podem nos ajudar
a pensar. Você mencionou Sócrates e eu gostaria me fixar um pouco
sobre essa figura. Sócrates é a imagem de um “herói” nas chamadas
filosofias democráticas ou progressivas da educação, uma metáfora
para o ensino não-diretivo, aberto, dialógico; alguém que, enquanto
reconhecedor de que não sabia nada, ajudou outras a fazerem nascer
seu próprio conhecimento. Esta imagem é muito romântica e certa-
mente baseada no maravilhoso retrato de seu mestre desenhado por
Platão. Mas se chegarmos perto o suficiente dos Diálogos, outras faces

186
A comunidade da infância

de Sócrates emergem. É verdade que Sócrates é aparentemente não-di-


retivo, mas não é menos verdade que, coincidentemente, ele tortura
seus oponentes incansavelmente até que eles cheguem ao mesmo
lugar aonde ele havia chegado: o ponto em que eles reconhecem que
sabem aquilo que pensavam saber, isto é, o lugar onde eles reconhe-
cem que o conhecimento mais poderoso é o conhecimento filosófico
– em outras palavras, que Sócrates é, como o Oráculo diz – o homem
mais sábio de Atenas. Os chamados diálogos Socráticos mostram isso
muito claramente: enquanto algumas pessoas sabiam algo no início do
diálogo, ninguém sabe nada no final. E este “saber nada” é o truque
de Sócrates, pois é precisamente o que ele sabe e, em todas as ocasi-
ões é o mesmo conhecimento, seu conhecimento da (pseudo) ignorân-
cia, sua sabedoria. Neste aparente movimento negativo, Sócrates leva
todos para a sua casa, para o seu lugar. Como um professor, Sócrates
sabe o que todos deveriam saber e escolariza seus alunos precisamente
neste conhecimento – seu conhecimento, o que ele considera conhe-
cimento. Não há espaço para criação ou invenção do outro. Como um
filósofo e como uma metáfora para a relação entre filosofia e política,
Sócrates é certo tipo de estranho estrangeiro – o que quer persuadir
todos os nativos a falarem a sua língua ao invés da deles. Sócrates não
aprende, nem faz qualquer esforço para aprender a língua dos outros.
O resultado é trágico: a única vida que ele considera valer a pena viver
não pode levá-lo senão à morte. E quando ele expande a vida filosófica
para a vida da política em Apologia, é descoberto que a única política
que uma vida filosófica pode oferecer é oposta à – não tem lugar – na
política da polis.
Se filosofia é oposta a outras formas de conhecimento e vida –
como política, poesia e artesanato – nós podemos apenas denunciar
a pobreza deles, seu mundo interior não é tão alegre quanto parece à
primeira vista. Na verdade, Sócrates foi um dos primeiros modelos da
hegemonia do Mesmo, cultivada nos domínios da filosofia e educação
a partir de seus nascimentos. Sócrates, nosso pai, é modelo de uma filo-
sofia e uma educação do mesmo, a qual conforma outros ao mesmo.
Como acabamos de salientar, espera-se que todo mundo que fala com
Sócrates chegue ao mesmo ponto ao qual ele chegou – que, como todo
mundo sabe é a pessoa mais sábia de Atenas – já é. É claro que Sócrates

187
David Kennedy

não é apenas isso, e há outras várias direções interessantes implícitas


no que ele faz. Mas é surpreendente como a chamada história da filo-
sofia da educação no Ocidente tem negligenciado esta dimensão da
prática Socrática. O principal movimento de Platão foi institucionalizar
Sócrates, instalá-lo dentro do pensamento e da escola. E nós devemos
reconhecer seu sucesso. Com poucas exceções, filosofia e educação
têm colocado sua confiança neste movimento de Platão até os dias de
hoje. Nossas escolas colocam. Suas escolas colocam.

Por que filosofia para crianças?

Neste sentido eu iria argumentar que não há tal coisa como filo-
sofia como tal, ou educação como tal. Filosofia é algo plural. Existem
filosofias. Sócrates é apenas uma possibilidade. E educação é também
plural. Existem educações. Também não estou tão certo sobre a comu-
nidade de investigação. Não é isso muito Socrático, muito normativo,
muito certo sobre onde esta indo e como chegar lá e quem está dentro
e quem está fora, etc.? A própria ideia de um programa para fazer filo-
sofia com crianças não me parece tão subversiva assim. Para colocar em
seus termos e na forma de uma questão, eu perguntaria: onde e qual é
o lugar para o incalculável, o imprevisível, o incontrolável em qualquer
prática filosófica e pedagógica dada? Quão preparados nós estamos
para pensar o que nós não devemos pensar? Quão dispostos estamos
a indisciplinar nosso pensamento? Deixe-me ainda colocar em outras e
provavelmente mais provocativas palavras: por que estamos tão inte-
ressados em dar voz às crianças? Por que queremos que elas falem?
O que queremos ouvir delas? Nós já sabemos o que elas vão dizer? Eu
estou certo, irmão, que você vai gostar de tomar uma dessas questões.
David: Por que estamos tão interessados em dar voz às crianças?
Porque a infância é a forma de linguagem que é a linguagem do mundo.
É a linguagem do Tolo que imita a linguagem dos pássaros, árvores e
trovoadas e coisas como essas. Mas por que estaríamos interessados
em ouvir isso? Porque é o momento no Ocidente quando a desconstru-
ção da subjetividade Platônica e Cartesiana nos abre a possibilidade de
novas versões do eu, as quais não se definem de acordo com a medida

188
A comunidade da infância

de que devem esquecer a linguagem dos pássaros e árvores e trovoa-


das, e por essa razão a voz das crianças se torna tão interessante de ser
ouvida quanto as vozes dos poetas ou cientistas ou artistas ou filósofos.
Mas se oposições nos ajudam a pensar, nós não devemos nunca
permitir que elas se percam de vista, pois fazer isso é uma forma de
reificação. Na verdade não se pode pensar “disciplina” separada de
“indisciplina”, ou quantitativo separado de qualitativo, ou subversão
separada de ordem, ou o Mesmo separado da Diferença. Eu também
não penso que seja necessária a existência de uma “síntese” ou terceiro
mediador de binários, presente em qualquer tempo dado – por exem-
plo, a mediação entre o mesmo e o diferente, nem que um pólo de
oposição venha antes do outro, tanto psicológica quanto ontologica-
mente. Ao contrário, eles são co-presentes um para o outro, ambos
emergem no mesmo momento, e são parte de uma rede muito mais
complexa de múltiplos conceitos e sentimentos e valores – várias posi-
ções em um sistema, que está em um estado permanente de contra-
dição parcial e que está sempre a caminho de reconstruir a si mesmo,
a fim de encontrar algum tipo de balanço viável e que nunca é bem
sucedido em fazer isso.
Eu aplicaria a mesma análise para a relação criança-adulta em três
de suas formas: 1) A relação entre o adulto e o seu ou a sua própria
“infância”, i.e, seu próprio tempo aionico, que tem a ver com uma
forma de subjetividade adulta; 2) A relação entre os pais e a criança; 3)
e a relação entre o pedagogo e a criança. Cada uma dessas três formas
de relação – as quais, certamente, são interelacionadas – está repleta
de oposições. No terceiro, o papel do adulto é de fato disciplinar, tentar
normalizar a voz da criança, para promover o mesmo, para ensinar a
criança a falar como um adulto e o papel da criança é de fato subverter
e reinventar esse processo para lembrar aos adultos da linguagem do
corpo e do mundo e assim engatilhar o surto do tempo aionico, e assim
a reconstrução da subjetividade e a humanização das espécies. E digo
por experiência que há sempre uma tensão entre esses dois, mesmo
quando o adulto presume nunca impor, nunca disciplinar, e mesmo
quando a criança presume ser a “criança perfeita” (i.e o pequeno
adulto). Em uma pedagogia humanizada é uma tensão criativa, uma
tensão através da qual, ambos, criança e adulto são enriquecidos, e

189
David Kennedy

cujas promessas de reconstruir a cultura tal qual, como Coleridge disse


sobre a educação ideal, “os sentimentos” da infância sejam retidos em
“poderes” da adultez. E nós devemos acrescentar, para não fazer do
“poder” da vida adulta o poder do mesmo, mas ao contrário, aquilo
que você se referiu como “força”, ou “energia”, ou “alegria”, ou até
mesmo, eu sugeriria “gozo”. Através desta tensão existe a possibili-
dade da emergência de novas vozes adultas, aquelas que lidam com a
oposição entre Mesmo e Diferente de maneiras alternativas.
Logo, o que você critica em Sócrates – bem como em Filosofia
para Crianças – eu aceitaria como uma necessidade existencial. Como
um pedagogo, é meu papel encorajar e bajular crianças para “darem
conta”, para darem razões, para pensarem criticamente. Eu ouso fazer
isso porque eu acredito (talvez você me ache ingênuo) que o discurso
filosófico – e eu não quero dizer em sua forma apodíctica, mas em sua
forma dialógica, a forma para a qual Sócrates pelo menos nos deu
algumas orientações preliminares – permite o intercurso e até mesmo
tradução entre as diferentes formas de temporalidade, as quais você
descreve no começo do seu diálogo. Certamente isso não revela tempo
aionico do jeito que a arte faz e o discurso poético não é constrangido
pelo elencus, em todo caso a tradução nunca tem o mesmo valor do
original, mas o maior princípio da comunidade de investigação filosó-
fica é maiusis, o qual assume espontaneidade e emergência, a esta é
a dimensão da força, alegria e amor. Dito de outra forma, eu tenho
coragem de confrontar crianças com disciplina, ordem e o mesmo,
porque eu sei que elas – ou pelo menos a infância como aión – são
inconquistáveis e insubjugáveis e me confrontam com o incalculável,
o imprevisto, o incontrolável, diferença e simples desordem no evento
de nosso encontro. É o diálogo que esta confrontação promete o que
também promete o permanente “desejo produtivo” que é a promessa
das espécies. E agora, caro irmão, que eu revelei o meu lado totali-
tário…? O que segue?
Walter: Eu acho que suas memórias sobre o começo anunciam o
fim desta conversa. Nada segue após totalitarismo. Ou, para ser mais
afirmativo e menos dramático, se o seu pensamento opositivo ainda
tem sentido. Quem sabe? Eu realmente acho que a maneira como você
acabou de desenhar a relação entre educação, filosofia e infância é

190
A comunidade da infância

muito significativa. Meus cuidados podem ser sem sentido se, afinal de
contas, crianças forem, como você bem disse, uma forma do inconquis-
tável e insubjugável. Mas eu ainda argumentaria em favor da infância da
educação e para reconsiderar o que você chama “necessidade existen-
cial”. Eu ainda fico chocado com a ideia de que crianças precisam falar
como adultos. Quem precisa disso? É muito arriscado – muito irrespon-
sável, você pode dizer – então pense essa educação infantil em termos
de ajudar o outro a falar outra língua, a pensar de outra maneira, a viver
outra vida? De qualquer forma, obrigado por uma conversa tão intensa,
irmão, e, por favor, nos apresente algumas palavras finais.
David: Bem, crianças nunca serão feitas para falarem como adul-
tos, mas adultos também não falam como adultos – eles não fazem
mais do que aproximarem-se. Apenas deuses falam como adultos. E ao
mesmo tempo em que adultos fazem demandas de razão no diálogo
filosófico, as crianças fazem as suas: que as ouçam falar, realmente
ouçam e que não as tratem como casos de um livro, como “organis-
mos em formação”, mas como pessoas com plenos direitos que sabem
muito bem como pensar quando lhes é dada a chance e se permitidas a
fazer de sua própria maneira. Isto é um diálogo no fim das contas, e no
diálogo ambos os lados são considerados igualmente valiosos de serem
escutados. E o fim resulta neste tipo de diálogo, no qual a representa-
ção de filosofia com crianças é exatamente, como você sugeriu, falar
outra língua, pensar de outra maneira, viver outra vida – uma lingua-
gem nem de animal nem de Deus, do mundo ou da mente, do adulto
ou da criança, mas do humano, a qual em sua realização mais profunda
é polivocal e polissêmica, múltipla e pronta para a transformação: um
modo de vida que inclui as três experiências de tempo com as quais
você iniciou esta conversa. E filosofia como diálogo – junto com muitos
outros tipos de atividades humanas – oferece continuamente a possi-
bilidade do kairós que abre espaço para um encontro com aión. Essa
possibilidade pode ser traída de muitas maneiras – através da “progra-
mação” disso, através da assimilação de formas previamente mortas
ou sem mente, através da banalização, ainda apenas através da obriga-
ção disso. Mas eu não acho que a possibilidade vai embora algum dia,
porque é parte do que Freire chamou de “vocação ontológica” do ser
humano, e como tal é inerradicável.

191
David Kennedy

E onde nós estamos, caro irmão? Meu sentimento é de que apenas


começamos a abrir as diferenças entre nós, mas que este fato nos
tornou ainda mais próximos do que éramos. Certamente, você tem me
levado rapidamente e diretamente aos limites do meu próprio pensa-
mento, e gentilmente me obriga a olhar através deles. O que eu vejo
é indistinto – contornos com formas móveis – mas estar no limite é o
suficiente, e quando o momento chegar, eu sei que vou me encontrar já
naquele novo território que você pinta para mim como uma paisagem
Zen – uma linha aqui, um golpe ali, uma curva, um ponto. Enquanto
isso, tem a força, a alegria e o prazer de nossa relação…

192
9. Incêndios: infância e infantia

com Walter Kohan

Este texto foi escrito por um duplo corpo-máquina, afetado pelos


mistérios evocados por Incêndios, filme canadense escrito e dirigido por
Denis Villeneuve, adaptado da peça de mesmo título do libanês Wajdi
Mouawad. No início de Incêndios – como um enigma que vai atravessar a
escura e serena paisagem dramática do filme – nos é dito que: “A infân-
cia é uma faca presa na garganta. Ela não pode ser facilmente remo-
vida”. Este ensaio é uma tentativa de desdobrar algumas das possíveis
hipóteses e inferências que se escondem nesta declaração, e rastreá-
-las através do labirinto de Creta dos paradoxos, reversões e aporias da
história. Nossa guia será a noção de infantia de J.-F. Lyotard, a partir da
qual esperamos oferecer uma linha heurística até o santuário monstru-
oso do arquétipo Minotauro, apreciando, assim, uma das possíveis leitu-
ras das dimensões estéticas e políticas do filme.

A infância como uma faca na garganta

A primeira parte da mencionada declaração de abertura do filme


poderia invocar a imagem da infância como uma ferida que é infligida
à própria vida adulta – e não apenas uma ferida, mas uma ferida que
nunca vai cicatrizar, ou, se atentarmos à segunda parte da declaração,

193
David Kennedy

que não vai cicatrizar até que a própria infância, com dificuldade (isto é,
por meio de um trabalhoso processo envolvendo algum tipo de viagem
da memória), seja removida. Nossa tentativa é ir um pouco mais longe,
atrás ou antes, um atrás e um antes que não são tópicos nem cronoló-
gicos, mas ontológicos. Nas palavras de J.-F. Lyotard, nossa tentativa
é passar da infância à infantia, aquele primeiro movimento anterior a
qualquer movimento humano, aquele primeiro nascimento antes de
nascer na terra.
No caso do filme, a remoção requer encontrar o terror sublime e
numinoso de nossas origens quase míticas e, por implicação, as origens
profundas do que constitui cada um de nós, expressado na terminolo-
gia freudiana como o mito de Édipo, a diferença sexual, a castração da
mãe, o tabu do incesto, a sexualidade pré-genital, ou nas associações
antigas de incesto com os deuses e as figuras semidivinas, como em
práticas antigas da realeza, ou qualquer outra fórmula que se refira a
esse primeiro golpe, antes que passemos a ser nós mesmos.
A garganta é o local onde se origina a fala humana, e onde a dife-
rença crítica entre infans (não falante) e adulto é mais concreta. Mas
também é o lugar onde a infância fala sem falar, ou além do discurso.
Na teoria chakra, é o local energético, não apenas de discurso, mas de
expressão, comunicação aberta e, na verdade, revelador, ou parrhesia.
É o lugar onde o afeto-sensorial, expressivo e comunicativo se mani-
festa no corpo. É o local no corpo onde se situam a poesia e a canção –
atos consumados de expressão – misturando-se com a respiração. Em
experiências de emancipação, individual e social, a garganta é aberta,
e a linguagem derrama-se livremente como verdade espontânea. Por
exemplo, em setembro de cada ano, ainda hoje e após mais de duzen-
tos anos, os mexicanos se reúnem nas praças para, através d’O Grito
comemorarem o processo que deu início a sua independência.
Se a infância é uma condição e não uma fase da vida humana, então
a metáfora da infância como uma faca que fere nossa garganta e que
não pode ser (“facilmente”) removida, pode ser lida como o inumano
do humano e sugere tanto que não existe (“facilmente”) vida humana
sem o inumano, que não há vida verdadeira sem corpo, quanto que
a cultura e a sociedade são, de certa forma, tentativas frustradas de
abandonar e esquecer a infância. Como Lyotard (1999, p. 52) aponta:

194
A comunidade da infância

“a ferida da qual falamos […] sangra incessantemente e exige, natural-


mente, ser tratada, mas também não deve ser tratada, ser respeitada
[…].”. Como veremos, esta é a principal dimensão política do filme:
nos lembrar que não há vida humana possível sem sangramento ou,
em termos mais conceituais, que uma vida humana digna de ser vivida
exige uma certa relação com essa infância primordial. Nesse sentido,
Incêndios é um chamado a viver uma vida plenamente humana, isto é, a
não esquecer da infantia.
Seguindo Lyotard (1997) também podemos identificar a lei, que
proíbe a infância enquanto corpo estético, corpo governado pelo afeto
de “matéria imaterial”, como uma tentativa de curar a ferida. A lei
considera a infância, o corpo-estético “remanescente que não pode ser
assimilado por formas discursivas e representacionais de significação”
(Locke, 2012) – como carne criminosa que escapa da razão e a frustra.
Em virtude de uma das voltas paradoxais da história, remover a faca
da garganta seria “recuperar” a infantia, reconhecendo suas origens
no desumano e no sublime, numa experiência de dor e prazer que está
para além do bem e do mal.
No filme, os gêmeos – que são praticamente duas formas de uma
mesma subjetividade – recuperam o inumano através de sua viagem
memorial pela sua infância, em pelo menos dois sentidos: como infân-
cia, com sua verdadeira biografia histórica, nascidos na prisão de Kfar
Ryat (onde sua mãe ficou detida por 15 anos) e também como infantia,
um enigma, uma condição não resolvida que passa pela busca aparen-
temente resolvida na trama. Como Lyotard deixará claro, “existe algo
que nunca será derrotado enquanto os seres humanos nasçam infan-
tes. Infantia é a garantia de que permanece um enigma em nós, uma
opacidade não facilmente transmissível – algo que permanece, e deve-
mos testemunhá-lo” (Lyotard; Larochelle, 1992, p. 416).
A história de Nawal Marwan e a resolução do quebra-cabeça
por ambos os gêmeos, testemunha também o enigma da condição
humana, reforçado ao longo da resolução da história: eles, como adul-
tos que conhecem sua história “verdadeira”, estão em dívida com o
infans de infantia: quando há infantia, não é possível nenhuma ordem
humana, nenhuma vida social, nenhum estado de coisas, nenhuma
lei, nenhuma forma de estar juntos; mas, ao mesmo tempo, não há

195
David Kennedy

vida estética ou política, se não tenta testemunhar essa mesma infan-


tia… este é o significado da tentativa final de Nawal com as cartas,
este é o objetivo da busca dos gêmeos, esta é a imagem do dois = um,
Nihad de Maio / Abu Tarek no final do filme: ele foi encontrado, ele lê
as cartas, mas quando volta a buscar seus irmão-irmã-filha-filho, já não
pode encontrá-los; não há reconciliação, não há vida possível juntos;
a dívida que o ser humano (adulto) deve ao inumano de infantia não
pode ser reparada, mas apenas lembrada; e, finalmente, a condição
de infans, de “indeterminação miserável e admirável”, o corpo esté-
tico, a espiritualidade da carne, é tudo o que resta na resistência a
uma outra forma do inumano. Contudo, talvez seja necessário escla-
recer algo do vocabulário conceitual de Lyotard para seguir lendo o
filme em questão.

Incêndios e a noção de infantia de J.-F. Lyotard

Infantia é uma palavra polissêmica na obra de J.-F. Lyotard (cf.


Locke, 2012). Por um lado, Lyotard trabalha a partir da noção freudiana
de infantia e a reinscreve como uma presença “monstruosa” em um
corpo que vai para além dos corpos antropomórficos. Nesse sentido,
Lyotard liga a infantia às artes e à política, segundo mostra Locke (2012),

como uma zona em que o ‘trabalho’ na arte é transmitido através de um


gesto inaudível que toca e altera a temporalidade. Ele estende as fron-
teiras do corpo para incluir a infância como uma zona de puro afeto que
opera dentro do objeto de arte. Esta zona mobiliza a capacidade de ser
tocado do exterior pela arte como um afeto sensorial.

Em outro aspecto, infantia pode ser descrita como a diferença


entre o que pode e o que não pode ser dito, o indizível, algo perdido
que habita, imperceptivelmente, o dizível como sua sombra, o seu
lembrete, algo tácito que trabalha como a condição de possibilidade
para que algo significativo possa ser dito.
Ainda do ponto de vista de Lyotard (1997), podemos fazer uma
distinção entre a infância, como temporal, e a infantia, como atem-

196
A comunidade da infância

poral: a infância não pode ser facilmente removida em si mesma de


um ser humano, pois ela é uma dimensão inevitável, inescapável que
habita qualquer vida humana como sua condição. Na verdade, o “facil-
mente” parece fora do lugar. Nem fácil, nem dificilmente: a infância
como infantia não pode ser removida da vida humana de forma alguma.
Pode ser lembrada ou esquecida, mas uma vida sem infantia não seria
uma vida humana.
Esse entendimento confronta o que normalmente evoca a infân-
cia, especialmente no discurso educacional, em que a escolarização
tem sido proposta como uma maneira de remover ou abandonar a
infância. A infância é, nesse esquema, compreendida ou assumida
como uma fase da vida humana, que por sua vez é entendida como
um traçado retilíneo de movimento evolutivo irreversível, sucessivo,
consecutivo e constante. Neste contexto, como é possível remover
a infância? “Crescendo”, é a resposta do discurso educacional; e a
escola será uma das instituições sociais privilegiadas, responsáveis ​​por
ajudar as crianças, de modo que a remoção da infância possa ser a mais
simples possível, de acordo com as aspirações que sustentam a insti-
tuição social e cultural da escola. Todas as escolas, de todos os tempos
e espaços, partilham esta ambição: propiciar o abandono da infância
com o mínimo de dor e o máximo de utilidades possíveis para as aspira-
ções sociais dominantes.
Dessa forma, a escolaridade é o caminho cultural de conversão da
infância até a idade adulta, por meio dos dispositivos sociais da disci-
plina e do controle, através das características tópicas de cada uma
delas, a fim de esquecer infantia: nas chamadas sociedades ocidentais,
é uma transformação de uma experiência do tempo (de aion para chro-
nos); do pensar (de perguntar para responder); do estar no mundo (do
jogo ao dever).
Precisamos crescer. No filme, o notário (o responsável pelo regis-
tro, o adulto exemplar, o funcionário leal, a Lei) pede a Simon duas
vezes para crescer. Simon tende a resistir e parece mais convencido
a abandonar seu estado infantil pela emoção de sua irmã do que pela
racionalidade do apelo do notário. E que, para Simon – também para
Jeanne, sua irmã gêmea – crescer significa aceitar a realidade do impos-
sível, do monstruoso, do abjeto em que um mais um pode ser igual a

197
David Kennedy

um. Mais ainda: dois tem sido um em sua história. Eles são um em rela-
ção ao abjeto sofrido pela sua mãe. Como nas tragédias gregas não
há vontade, nenhuma intenção, nenhuma consciência. A mãe, Nawal
Marwan, foi violada por seu filho, seu irmão-pai, que também não
“sabia” que ela era sua mãe. Para os gêmeos, crescer significa aceitar
que são parte de uma história horrível, inumana. As mulheres, a mãe e
a irmã, Nawal e Jeanne, são ambas matemáticas. Em matemática um
mais um não pode ser igual a um. Na vida humana, um irmão não pode
ser pai. Sua história é histórica e matematicamente – racionalmente –
inaceitável. E eles têm que aceitá-la, a fim de viver uma vida humana, a
fim de ter um novo nascimento.
O que faz então Incêndios tão difícil de digerir é que, no filme, cres-
cer não é como na vida comum “civilizada”, simplesmente uma ques-
tão de aceitar maduramente a própria história, mas uma questão de
enfrentar o horror do abjeto (Kristeva, 1982): o indiferenciado, incestu-
oso, estranho, perigoso, proibido, impuro, objeto de tabus, uma alte-
ridade inominável como parte de nossa própria história. Como afirma
o matemático, é um “problema insolúvel”, cuja investigação leva a
“problemas mais insolúveis”, e, finalmente, fundados sobre o para-
doxo de 1 + 1 = 1.
Da mesma forma que o matemático não pode aceitar o para-
doxo de 1 + 1 = 1, uma sociedade racional e civilizada não pode aceitar
o abjeto, a irracionalidade que constitui a identidade do pai e do irmão.
Ela não pode viver com a memória do que desafia sua própria base. A
sociedade precisa esquecer a infantia e as sociedades neoliberais pare-
cem ter desenvolvido dispositivos mais e mais sofisticados, a fim de
atingir esse objetivo.
Em Incêndios, o problema é duplo: esta “família”, se podemos
assim chamá-la, tem de superar uma infância difícil e não esperada,
e ao mesmo tempo uma infantia silenciosa, invisível, mas inevitável,
que permanece como uma dupla sombra de uma infância impossível.
A tentativa da mãe de resolver o duplo problema espelha sua ruptura
interna, que a divide entre o filho torturador e estuprador e aquele
nascido de seu primeiro e belo amor. Eles não se conhecem entre
si. Nunca conhecerão um ao outro. O único momento em que ela os
encontra juntos – um corpo nu à beira da piscina –, ela não pode se

198
A comunidade da infância

conectar com esse corpo. Para ela, eles são dois, eles não podem ser
um. Ela não pode estar em qualquer forma de relação humana com
eles. Não há nenhuma família, nenhuma sociedade, nenhuma cultura
possível com o abjecto.
Na última parte do filme, o filho assassino sociopata perde de vista
os gêmeos, a prole de sua vontade monstruosa de violar e destruir;
enquanto o filho amado permanece inocente perante o túmulo de sua
mãe. O problema não foi resolvido. O conflito não pode ser superado.
A excepcionalidade da mãe, a “mulher que canta” consiste em ter
incorporado – através do seu amor redentor – o abjeto na forma do
impossível um = dois; um = pai + filho; o bebê inocente e o assassino
sociopata; vida e morte; amor e ódio: todos os opostos são um em
Incêndios. Nenhuma ciência, nenhuma racionalidade, nenhuma ordem
social é possível com eles. Só a arte, para nos ajudar a lembrar a infantia.
Mais ainda, a forma de “superação” do conflito por Nawan, na
verdade, o aceita e o alimenta. Ajuda os espectadores a se lembrar
dele. Nawan é “a mulher que canta”. Ela canta uma canção impossível
de cantar e de lembrar; ninguém que tenha ouvido o seu canto em Kfar
Ryat consegue lembrar suas canções, apesar de sua beleza. A impos-
sibilidade de se lembrar de seu canto faz-nos lembrar o que não pode
ser esquecido. Sua música é o sublime, o corpo estético impossível, a
infantia. A mulher que canta inscreve em nós um resto, uma opacidade
não transmissível que nunca será derrotada, enquanto os seres huma-
nos nasçam infantes.
Os gêmeos não são crianças e também não são adultos, simples-
mente porque eles não podem viver nem na infância nem na idade
adulta, eles não podem habitar uma vida humana, eles (quase) não
são seres humanos. O notário diz a eles que só através da pesquisa da
“verdade” (o registro, como mantido pelos seus depositários, o notá-
rio, o adulto, a sociedade, a lei) vão se tornar adultos. Mas, na verdade,
eles não estão à procura de sua infância, eles estão à procura de suas
origens, de sua condição, do que os torna humanos, num sentido mais
profundo que a vida civilizada e confortável do seu mundo capitalista;
de fato, a sua infância na civilizada classe média canadense é perfeita-
mente bem lembrada e bastante confortável: uma vida “normal” que
qualquer ser humano desejaria viver.

199
David Kennedy

Jeanne e Simon afirmam maneiras diferentes de confrontar o


desafio, distintos estilos de existência. Jeanne parece mais preparada
para enfrentar o inevitável. Simon tenta atrasá-lo. Ele critica sua mãe:
ela nunca viveu na normalidade. Ele questiona o advogado. Ele discorda
da sua irmã. Mas, finalmente, ambos juntam-se ao confrontar o abjeto
como uma dimensão incontornável da sua tentativa de viver uma vida
humana. Ele acaba, finalmente, ouvindo a verdade da parte de um
outro homem. Não poderia ser diferente em uma sociedade machista.
A verdade sairá do líder do grupo político, pelo qual Nawan assassinou
e se sacrificou durante mais de quinze anos em prisão. Este não é um
detalhe: Nawan era um corpo estético e político na prisão de Kfar Ryat.
Ela estava lá por causa de sua militância política e fez dessa estadia uma
militância estética.
De modo que Jeanne e Simon viveram uma vida “civilizada” muito
“normal”, até descobrirem a verdade. Mas essa vida normal é falsa, não
sabe de suas verdadeiras origens. Este é o paradoxo do filme: eles não
podem deixar de procurar uma verdade que, uma vez descoberta, irá
mostrar as diversas dimensões de sua monstruosidade. O caminho para
si – para o que “realmente” são – também é um caminho inevitável que
os leva para fora de si – o que os constitui como uma sombra, uma dimen-
são esquecida, um resto. Eles são expoentes, de uma forma radical e
exagerada, da aporia humana: não há vida humana sem infância, mas
também não há vida sem a inumanidade de infantia. Não há nenhuma
maneira de viver sem infância, mas também sem infantia.
Na verdade, os gêmeos são uma só subjetividade, que quer tanto
afastar-se da pesquisa (Simon) quanto levá-la onde quer que ela os leve
(Jeanne). O fato de eles conseguirem resolver o enigma e entregarem
a seu pai-irmão as cartas que a mãe havia escrito para ele/s permite que
o nome da mãe apareça em sua lápide e seu rosto seja “virado para o
sol”. Esse ato também é aquele que os torna adultos. Eles extirpam o
abjeto incorporando-o. A sociedade de consumo agora vai aceitá-los
para continuar suas vidas desumanas. A infância foi legitimada em sua
forma abjeta pela Lei e redimida pela ordem administrativa. A infan-
tia permanece na sombra. Incêndios realiza a tarefa política da escrita:
testemunhar o que permanece como um enigma em nós (Lyotard;
Larochelle, 1992, p. 416).

200
A comunidade da infância

A elusão de infantia

Como Lyotard (1991) coloca, infantia é uma condição latente que


está por trás de cada palavra pronunciada por qualquer ser humano, e
ela própria é uma forma do inumano. Mas o que é o inumano? Lyotard
(1991) distingue duas formas de inumano: o inumano enquanto sistema
desumano, chamado de “desenvolvimento”, “competitividade”,
“democracia representativa”, “mercado”, “mundo livre”, ou simples-
mente “capitalismo”; e o inumano que cada alma humana carrega pelo
fato de ter nascido, forçada a abandonar a indeterminação onde estava
a fim de se determinar como uma vida particular, sem poder fazer nada
para evitá-lo. Essa segunda forma de inumano habita cada ser humano
como a passagem do não ser ao ser, a partir da qual todo ser humano
nasce sem escolher. Fomos todos obrigados a nascer, a nenhum ser
humano foi perguntado se queria vir ao mundo. Neste sentido todos
nascemos do inumano.
Essas duas formas do inumano são opostas. Considere-se, por
exemplo, com respeito ao tempo. O primeiro inumano, o capitalismo,
impõe a necessidade de correr atrás do tempo, para fazer um uso
bom, produtivo, do tempo; para ser eficiente, eficaz, a fim de seguir
os movimentos extensos, sucessivos, consecutivos, e irreversíveis que
constituem a imagem sistemática do tempo cronológico dominante.
O segundo não corre atrás do tempo, deixa o tempo se perder em
rotas não lineares, mas polimorfas, intensivas, repetitivas e comple-
xas, procurando de maneira distraída o tempo perdido, especial-
mente naquele tempo remoto da indeterminação em um movimento,
no qual o passado nem sempre precede o presente e o futuro não,
necessariamente, sucede ao presente. É o tempo circular do eterno
retorno, dos ciclos.
No campo da economia, abre-se um caminho para a política. Se a
primeira forma de desumano procura impor o capital em todas as suas
variantes como a única ideia triunfante e hegemônica, com a consequ-
ência lógica de que não haveria possíveis alternativas para o sistema
e nenhuma outra ideia seria viável além do próprio capital, Lyotard
(1999) acredita que a única política possível pode ser a resistência
a esta forma capitalista de inumano em nome da memória da outra

201
David Kennedy

forma de inumano esquecida, a de uma alma que constantemente


lembra a dívida com o inumano de onde nasceu. Em suas palavras:

[…] O que mais resta para a ‘política’ senão a resistência a esse inumano?
E o que mais resta para resistir, senão a dívida que cada alma tomou da
miserável indeterminação da sua origem, e que não deixa de nascer? Isto
é, com o outro inumano? Esta dívida que temos com a infância não é
paga. Mas não esquecê-la pode ser o suficiente, a fim de resistir e, talvez,
para não ser injusto. Esta é a tarefa da escrita, pensamento, literatura,
artes: se aventurar para testemunhar isso. (Lyotard, 1999, p. 7)

Basta não esquecer a dívida com a infância a fim de não ser injusto,
afirma Lyotard (1999). Resistir ao inumano da ordem neoliberal,
lembrando o inumano do qual nascemos, como uma forma de lembrar
o “potencial inumano dérèglement, para desfazer as regras instituídas
das forças de aculturação” (Lindsay, 1992, p. 391). Política, então, é a
resistência ao inumano da ordem, lembrando o inumano do qual toda
ordem emerge. É uma espécie de resistência à pretensão de qualquer
forma em perpetuar-se através da memória do que faz qualquer ordem
possível. As sociedades neocapitalistas não deixam de pretender impor
cada vez mais seu controle por todo o planeta e até para além dele. A
fim de fazê-lo, elas precisam silenciar o que poderia questionar a sua
universalidade, normalidade e naturalidade, o que, como infantia, pode
mostrá-las como arbitrárias, artificiais, anormais e interromper o que
elas pretendem mostrar como claro e inevitável.
Radicaria nisso a dimensão política de uma possível leitura de
Incêndios? Em testemunhar o outro inumano, o inumano de infantia?
Uma lembrança da aporia da existência humana em sua dupla dimen-
são da impossibilidade de cicatrizar a dupla ferida da infância monstru-
osa e da infantia silenciada? Uma resistência política a qualquer preten-
são de naturalizar a existência humana?
É esta, também, uma tarefa política da escrita, ao mesmo tempo
impossível e necessária. É uma tarefa impossível, porque escrevemos
para dar forma a uma infância e uma infantia que em nenhum caso
podem ser escritas. Necessária como tarefa política de lembrar e afir-
mar a forma de inumano que é silenciada, negada pela outra forma do

202
A comunidade da infância

inumano dominante: o consumismo, o capitalismo, formas neoliberais


de ordem social.
Escrever para testemunhar a infantia é necessário e impossível,
como também são para a humanidade, a filosofia, a própria infantia,
uma espécie de sobrevivente, uma entidade que deveria estar morta,
mas ainda está viva (Lyotard, 1997, p. 63). Esta é, provavelmente, a
força estética e política de Incêndios: apresentar, através da “mulher
que canta”, um apelo para lembrar o inumano silenciado, aquilo de
onde viemos e que nossa vida social tornou tão esquecido.
A infantia como sobrevivente é também uma esperança: “no caso
de uma possível mudança radical no fluxo que empurra as coisas para
repetir o mesmo” (Lyotard, 1997, p. 62). Infantia nomeia algo que “já”
é, mas sem ser ainda “algo”, uma espécie de espanto, que introduz o
ser humano no mundo, uma forma de inumano que ainda não pode
ser identificada; infantia é o nome de um milagre, a interrupção do não
ser das coisas pela entrada de seu outro, o outro de ser. Pode ser o
suficiente não esquecer infantia “a fim de resistir e, talvez, para não
ser injusto”, diz Lyotard (1999, p. 7). Poderia ser o suficiente? A leitura
deste trabalho ajudou a qualquer um de seus leitores a não esque-
cer a infantia, tal como é fomentada pelos nossos dispositivos sociais
contemporâneos, nas sociedades neoliberais? Se assim for, podería-
mos considerar essa resistência a nossa principal tarefa política como
escritores? Não temos certeza. Olhando para as várias outras formas
da infância em nosso tempo, não sabemos se é o suficiente; mas, quem
sabe, pode ser um começo. Um leitor sensível à infância e à infantia,
certamente, vai ajudar-nos a pensar sobre isso.

203
A comunidade da infância

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