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(em quarentena)
Ensayos En Lectura. Inutilidad, soledad y conversación. 2020.
Carlos Skliar
(em quarentena)
A comunidade da infância
David Kennedy
NEFI Edições
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Reitor: Ricardo Lodi Ribeiro
Vice-Reitor: Mario Sergio Alves Carneiro
Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação: Luís Antônio Campinho Pereira da Mota
Programa de Pós-Graduação em Educação (PROPEd)
Coordenadora: Ana Chrystina Venancio Mignot
Vice-Coordenador: Guilherme Augusto Rezende Lemos
Núcleo de Estudos de Filosofias e Infâncias (NEFI)
Coordenador: Walter Omar Kohan
Alejandro Ariel Cerletti, Univ Buenos Aires e Univ Nac Gral Sarmiento Alice Pessanha Souza de Oliveira
Alexandre Filordi de Carvalho, UNIFESP, Brasil Allan Rodrigues
Alexandre Simão de Freitas, UFPE, Brasil Arthur Henrique F. de Almeida
Barbara Weber, University of British Columbia Daniel Gaivota Contage
Beatriz Fabiana Olarieta, UERJ, Brasil Fabiana Martins
Carlos Bernardo Skliar, FLACSO, Argentina Felipe Froes Pereira Trindade
César Donizetti Leite, UNESP, Rio Claro, Brasil Marcelly Custodio de Souza
Claire Cassidy, University of Strathclyde, Escócia Ocimar Castro Maximo
Fabiana Fernandes Ribeiro Martins, (Colégio Pedro II, Brasil) Robson Roberto Lins
Gregorio Valera-Villegas, Univ. Experimental Simón Rodríguez, Venezuela Simone Berle
Gustavo Fischman, Arizona State University, Estados Unidos da América
Jason Wozniak, West Chester University, Estados Unidos da América Capa:
Juliana Merçon, Universidad Veracruzana, México Marcelly Custodio de Souza
Junot Cornelio Matos, UFPE, Brasil
Karin Murris, Cape Town University, África do Sul Diagramação:
Lara Sayão, Sedec RJ, Brasil Arthur Henrique F. de Almeida
Magda Costa Carvalho, Universidade dos Açores, Portugal Marcelly Custodio de Souza
Maria Reilta Dantas Cirino, UERN, Brasil Simone Berle
Marina Santi, Università degli Studi di Padova, Itália
Maristela Barenco Corrêa de Mello, UFF, Brasil Revisão técnica deste livro:
Maximiliano Durán, Universidad de Buenos Aires, Argentina Magda Costa Carvalho
Olga Grau, Universidad de Chile, Chile
Óscar Pulido Cortés, Universidad Tecnológica y Pedagógica de Colombia
Paula Ramos de Oliveira, UNESP - Araraquara, Brasil
Pedro Pagni, UNESP - Marília, Brasil
Renato Noguera, UFRRJ, Brasil
Roberto Rondon, UFPB, Brasil
Rosana Fernandes, UFRGS, Brasil
Rosimeri de Oliveira Dias, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil
Sílvio Donizetti de Oliveira Gallo, UNICAMP, Brasil
Virgínia Kastrup, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil
Walter Omar Kohan, UERJ, Brasil
Wanderson Flor do Nascimento, UnB, Brasil
“A comissão para avaliação cega dos trabalhos da Coleção Ensaios em 2021 foi integrada por Maria Reilta Dantas
Cirino e Magda Costa Carvalho.”
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
David Kennedy
ISBN: 978-65-991017-2-4
1. Infância, 2. comunidade de investigação filosófica, 3. educação
4. filosofia 5. filosofia para crianças. I Título. II Série.
CDD 370.1
Prólogo................................................................................................... 11
Bernardina Leal e Rosana Fernandes
2. Reconstruindo a Infância................................................................. 43
A infância está desaparecendo?............................................................. 43
Criança como sujeito marginalizado...................................................... 45
Criança como propriedade..................................................................... 45
Criança como economicamente desprovida.........................................46
Criança como outro ontológico..............................................................46
Criança como epistemicamente incompleta.........................................48
Criança como excluída da cultura...........................................................49
A criança como caso especial do outro marginalizado......................... 50
O surgimento da forma moderna de colonização da criança: uma
explicação psico-histórica....................................................................... 53
O privilégio epistêmico das crianças......................................................60
Começando: Elementos de uma reconstrução emergente da relação
criança-adulto.......................................................................................... 62
O modo da mudança...............................................................................68
Referências........................................................................................... 205
Prólogo
11
Bernardina Leal e Rosana Fernandes
escapa, que foge ao domínio da escrita. David parece nos alertar para
algo que permanece infantilmente sem palavra na linguagem.
David não se apresenta de imediato. Sua escrita, em voltas, por
aproximações e distanciamentos, revela conhecimentos e saberes
acerca da infância para tocar aquilo que infantilmente deixou de ser
enunciado e escapa à apreensão adulta dos dizeres acadêmicos. Depois
de afastar-se do que foi dito, quando retorna, é pelo avesso. Nesse
deslocamento necessário de um tempo presente, adulto, ele alcança
uma temporalidade infantilmente disponibilizada, escrevendo sobre
a infância como se estivesse por aprender a fazê-lo a cada vez. Até
quando reconstrói o que se sabe sobre a infância, produto do traba-
lho sistemático da humanidade, ele o faz abrindo espaços para novas
inscrições e entendimentos.
Vive-se. Coisas acontecem. Infâncias ocorrem. Acompanhar o
que se passa nesses acontecimentos infantis implica em movimentar
a escrita, colocar tudo na roda. Com o pensar incessante e questiona-
dor das crianças a escrita adulta de David, transformada em estudo,
descreve, questiona e interfere nos modos de entendimento das
crianças, lealmente.
David chega à lealdade de buscar o acontecido, o que se passou,
o que houve. Quando, onde e de que modo ocorreram as experiências
do pensar entre crianças. E, com a mesma precisão, o que se passou
na mediação docente, nas intervenções filosóficas e pedagógicas, no
fazer educativo escolar. O cuidado que emprega aos detalhes das ocor-
rências, na recuperação de gestos e atitudes, na minúcia das palavras,
no tom das falas, na diversidade dos modos expressivos, como um
perito que se detém no rastro, provoca no leitor a responsabilidade
pela resposta. Reconhecimento, restituição.
Repensar os modos de entendimento que estruturam as relações
entre educação e infância é o que David nos impele a fazer por meio de
sua escrita. Pensar a infância de cada um e, ao mesmo tempo, pensar
uma infância coletiva ou indeterminada. E, mais do que isso, pensar um
estado infantil principiador de novos saberes e relações, na intensidade
de estar com o outro.
Entrar na obra de David implica em buscar novos entendimentos
para os problemas que ele coloca, procurar saídas e rotas de fuga para
12
Prólogo
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Bernardina Leal e Rosana Fernandes
14
Prólogo
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Origem dos textos
17
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18
1. Os movimentos das crianças pequenas:
comunidade de investigação filosófica emergente
no discurso da primeira infância
19
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1
Collected Papers of Charles Sanders Peirce, C. Hartshore, P. Weiss e A. Burks, ed,
Cambridge: Harvard University Press, 1935, 1958, vol. 4, par. 05.
20
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24
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2
Para uma pequena discussão sobre a relação entre abdução e juízo conceitual, assim
como abdução e “qualquer universo dado do discurso”, ver Robert S. Corrington,
Nature and Spirit. An essay in Ecstatic Naturalism (New York: Fordham University Press,
1992, p. 83-85).
25
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26
A comunidade da infância
27
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Tanya: Eu também mudei de ideia. Melhor não ter a mesma língua. Eis o
porquê: seja quando for que este mundo teve a mesma língua,
todos iriam dizer que queriam que sua língua fosse aquela que
todos terão que ter. Então, todos iriam culpar alguém por dar a
eles a língua errada.
Akemi: Se todos falassem Japão, todos têm que morar lá. Meu país
pequeno demais para a grande América.
Warren: Todos podem vir para a China. Ela é bem maior. Deixa o chinês
ser a língua. Não, eu mudei de ideia. Deixa minha mãe e meu
pai falarem inglês todo o tempo. (retirado de Wally’s Stories, p.
119-120).
28
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29
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3
F. Schiller, On the Aesthetic Education of Man, ed. E.M. Wilkinson & L.A. Willoughby
(Oxford University Press, 1982).
30
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4
Michael L. Raposa, Peirce’s Philosophy of Religion. Bloomington: Indiana University
Press, 1989, p. 47. Para ampla, bem documentada organização das noções de Peirce de
Tychism, especulação e jogo, ver p. 31-32, 74, 126-133.
31
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5
Matthew Lipman, “Critical Thinking: What can It Be”, in: Educational Leadership 46,
I, 1988, p. 38-43. Lipman identifica quatro aspectos do pensamento crítico em grupos:
fundamentação em critérios, sensibilidade ao contexto, busca de juízo sobre algum
assunto e autocorreção.
6
Robert S. Corrington, Nature and Spirit, p. 144.
32
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33
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A comunidade da infância
35
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Algumas conclusões
7
Para uma análise acurada de “pensamento transicional”, ver D.H. Winnicott, Playing
and Reality. New York: Basic Books, 1971.
36
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8
James Gleick, Chaos: Making a New Science. New York: Viking, 1987, p. 56-74.
37
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9
C. S, Peirce, Collected Papers, vol. 2, par. 646.
10
C. S. Peirce, Collected Papers, vol. 2, par. 397.
40
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41
2. Reconstruindo a infância
43
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1
The Disappearance of Childhood. New York: Delacorte, 1984.
44
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2
Freire, P., Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1970.
3
de Mause, L. The Evolution of Childhood. In: deMause, L. (org.), The History of
Childhood. New York: Harper, 1974.
45
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4
Aristóteles, Ética a Nicómaco I ix, 1099b33-1100a5; VI xiii, 11445-10 ; VII xii, 1153a30;
Física, II 6, 197b7-8.
46
A comunidade da infância
Para ser um verdadeiro pai, você tem que ter controle absoluto de todo o
ser de seu filho; e sua preocupação principal deve ser com aquela parte do
caráter dele que o distingue dos animais e está perto de refletir o divino…
Assim, o que nós podemos esperar do homem? Ele certamente será um
ser bruto improdutivo, a menos que imediatamente e sem demora seja
sujeitado a um processo de intensiva instrução.6
5
Aristóteles, Física II vi, 197b; Ética a Nicómaco I ix, 1100a.
6
On Education for Childhood. In: Rummel, E. (org.), The Erasmus Reader, trad. ingl.
Toronto: University of Toronto Press, 1990, p. 67-69.
7
Foucault, M., Discipline and Punish, trad. ingl. New York: Vintage, 1979, p. 198.
47
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8
Jung, C. G. & Kerenyi, K., Essays on a Science of Mythology: The Myth of the Divine
Child and Mysteries of Eleusis. Princeton: Princeton University Press, 1963.
9
Esta interpretação particular deficitária é mais característica das interpretações de
Piaget feitas por psicólogos e educadores durante a década de 80, do que da própria
obra de Piaget, a qual apresenta uma concepção mais rica em nuances.
48
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10
Piaget, J., Biology and Cognition. In: Inhelder, B. & Chipman, H. H. (org.), Piaget and
His School, trad. ingl. New York: Springer Verlag, 1976, p. 52.
49
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11
Werner, H., The Concept of Development from a Comparative and Organismic Point
of View. In: Harris, D. B. (org.), The Concept of Development. Minneapolis: University of
Minnesota Press, 1957, p. 126.
50
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51
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12
Reconstructing Childhood: A Critique of the Ideology of Adulthood. In: Traditions,
Tyranny and Utopias: Essays in the Politics of Awareness. Delhi: Oxford University
Press, 1987, p. 61. Nos Estados Unidos, a mais flagrante, proeminente e recente ex-
pressão deste conjunto de pressuposições, talvez seja o relatório da Comissão Nacional
em Excelência de Educação, A Nation at Risk: The Imperative for Educational Reform.
Washington D.C.: U.S. Government Printing Office, 1983, o qual começa: “Nossa nação
está em risco. Nossa outrora inquestionada proeminência no comércio, indústria, ci-
ência e inovações tecnológicas está sendo ultrapassada por competidores por todo o
mundo.”
13
Nota do tradutor: o autor se refere a decisões de juízes que devolveram as crianças
a pais que tinham abusado delas, mesmo com risco físico para as crianças. Muitas delas
acabaram perdendo a vida.
52
A comunidade da infância
14
Pedagogia do Oprimido, p. 70.
15
Ibid., p. 83.
53
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16
Elias, N., The Civilizing Process: State Formation and Civilization, trad. ingl. Oxford:
Blackwell, 1994 [1939], p. 475.
17
Centuries of Childhood: A Social History of Family Life, trad. ingl. New York: Knopf,
1962.
18
Elias, N., The Civilizing Process: The History of Manners, trad. ingl. Oxford: Blackwell,
1994 [1939], p. 134-178. Cf. Shahar, Sh., Childhood in the Middle Ages London: Routledge,
1990.
54
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19
Martin, L., Gutman, H. & Hutton, P. H., (org.), Technologies of the Self: A Seminar
with Michael Foucault Amherst: University of Massachusetts Press, 1988.
20
Elias, The History of Manners, p. 204. Cf. p. 205-215.
55
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21
Cf. ONG, W., Orality and Literacy: The Technologizing of the Word. New York:
Methuen, 1982.
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22
Elias, N., The History of Manners, p. 115.
23
Foucault, M., The History of Sexuality, trad. ingl., v. I, extraído de Rabinow, P. (org.),
The Foucault Reader. New York: Pantheon, 1984, p. 267.
57
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58
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28
The Evolution of Childhood, p. 3.
29
Ibid, p. 6.
30
Ibid., p. 6-7.
59
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31
Cf. Gadamer, H-G., Truth and Method, trad. ingl. New York: Crossroad, 1975; e
Ricoeur, P., The Hermeneutical Function of Distanciation. In: Hermeneutics and the
Human Sciences, trad. ingl. Cambridge: Cambridge University Press, 1987, p. 143.
32
Harding, S., Whose Science? Whose Knowledge? Thinking from Women’s Lives.
Ithaca, NY: Cornell University Press, 1991, p. 124, 131.
60
A comunidade da infância
Uma vez que sejam permitidas às crianças serem mais que os porta-
dores de projeções parentais, elas podem se tornar, para os seus pais,
uma fonte inesgotável de conhecimento sobre a natureza humana.
Sensualidade, prazer com o próprio corpo, prazer no afeto demons-
trado por outra pessoa, a necessidade de se expressar, de ser ouvido,
visto, compreendido e respeitado, não ter que suprimir a raiva e a ira e
ser permitido expressar também outros sentimentos como pesar, temor,
inveja e ciúme…35
33
Ibid., p. 307.
34
Ricoeur, P., “The Hermeneutical Function of Distanciation”, p. 144.
35
Thou Shalt Not Be Aware: Society’s Betrayal of the Child, trad. ingl. New York:
Meridian, 1986, p. 154.
61
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36
Ibid, p. 144.
37
The Evolution of Childhood, p. 3.
62
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38
Cf. Keniston, K., Psychological Development and Historical Change. In: Rabb, T. K.
& Rotberg, R. I, The Family in History: Interdisciplinary Essays. New York: Farrar, Straus &
Giroux, 1976. Ele caracteriza o desenvolvimento psicológico como “uma estrada muito
áspera, marcada com obstruções, entremeada com ruas sem saída, e com paradores
sedutores.” (p. 149).
63
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39
Misgeld, D., “Self-Reflection and Adult Maturity: Adult and Child in Hermeneutical
and Critical Reflection”. Phenomenology + Pedagogy v. 3, n. 3 (1985), p. 199.
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40
Para uma ideia da criança jovem como uma profeta involuntário contra a redução
ontológica da natureza implícita no materialismo filosófico, ver Kennedy, D., Fools,
Young Children, Animism, and the Scientific World Picture. Philosophy Today, v. 33, n. 4
(1989), p. 374-381.
41
Dewey, J., Democracy and Education. New York: Macmillan, 1916, p. 43
42
Citado em Kennedy, D. The Hermeneutics of Childhood. Philosophy Today, Vol. 36,
n. 1 (1992), p. 44 -58.
65
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aquilo que o sujeito marginalizado sabe, o sabe porque ele não sabe
algo mais, isto é, o conhecimento tácito da estrutura dominante ou
“nativa”. Se este princípio é correto, ele também opera em outra dire-
ção e problematiza a noção de um conhecimento unificado, ou pelo
menos separado do diálogo ilimitado como um princípio epistêmico
fundamental. Nandy traz esse ponto para o problema da revogação da
projeção, fazendo a conexão entre a cultura da infância e a cultura dos
povos oprimidos, e as relações respectivas delas com o colonialismo
patriarcal branco. Ele diz:
43
“Reconstructing Childhood”, p. 73, 75.
66
A comunidade da infância
44
Ibid., p. 75
67
David Kennedy
cia uma cultura do silêncio. A voz da criança torna-se uma voz desde
as margens, associada a uma natureza “essencial”, à animalidade, à
loucura, à criminalidade, ao divino45, isto é, ao sem voz. O tipo de refle-
xão que a filosofia figura - especialmente a filosofia feita em diálogo
comum ou “comunidade de investigação” - oferece uma oportunidade
ideal para os adultos garantirem a prerrogativa epistêmica das crianças,
reconhecerem uma fala diferente da sua própria, defrontarem- se com
uma cultura que “representa nossos outros eus”, viverem o outro lado.
O modo da mudança
45
Assim J. Derrida diz: “O homem se chama homem só traçando limites que excluem
seu outro do jogo da suplementaridade: a pureza da natureza, da animalidade, do pri-
mitivismo, da infância, da loucura, da divindade. A aproximação para estes limites é
temida imediatamente como uma ameaça de morte, e desejada como acesso a uma
vida sem diferença”. Of Grammatology, trad. ingl. Baltimore: Johns Hopkins Press, 1976,
p. 245.
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A comunidade da infância
1
Lao-tsé, Tao-te ching. Trad. de Stephen Mitchell. New York: Harper & Row, 1988,
par. 55.
2
Marcos, 10, 13.
3
Bales, Eugene. Recordação, esquecimento e a revelação do ser em Heidegger e
Plotino. Philosophy Today. v. 34, n. 2, 1990, p. 142.
71
David Kennedy
Elas são o que nós fomos; elas são o que nós devemos tornar-nos nova-
mente. Nós fomos natureza assim como elas, e nossa cultura, mediante
a razão e a liberdade, deve conduzir-nos de volta para a natureza. Elas
são, portanto, não só a representação da nossa infância perdida, […] mas
são, também, representações da nossa realização mais elevada no ideal.5
4
Citado In: Abrams, M. H. Natural Supernaturalism: Tradition and Revolution in
Romantic Literature. New York: W. W. Norton, 1971, p. 380.
5
Von Schiller, Friedrich. Naive and Sentimental Poetry and On the Sublime. New York:
Frederick Unger, 1966, p. 85.
6
Sobre a divina criança no mito e na psicanálise. ver Jung, C. G., Kerenyi, C. Essays
on a Science of Mythology: The Myth of the Divine Child and the Mysteries of Eleusis.
Princeton, NJ: Bollingen, 1963.
7
Diels-Kranz. Fragmento 52.
72
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8
Saint Augustine, Confessions. Trad. R. S. Pine-Coffin. Harmonsworth: Penguin Books,
1961, p. 177 [trad. brasileira pela Vozes].
9
Klein, Melanie. The Psycho-analysis of Children. London: Hogarth Press, 1980, p. 7, 9.
10
Gadamer, Hans-Georg. Truth and Method. Trad. Ingl. New York: Continuum, 1975,
p. 92 [trad. pela Vozes].
73
David Kennedy
A criança e o eu dividido
11
Winnicott, D. W. Playing and Reality. New York: Basic Books, 1971, p. 41.
12
Brown, N. O. Life Against Death. Middletown, CT: Wesleyan University Press, 1959,
p. 38.
13
Schiller, Friedrich. On the Aesthetic Education of Man. New York: Frederick Ungar,
1965, p. 74.
14
The Republic of Plato. Trad. de F. M. Cornford. London: Oxford University Press,
1941, p. 125.
74
A comunidade da infância
15
Republic, p. 125, 138.
16
Platão, Laws. In: Hamilton, E., Cairns. H. (eds.) Collected Dialogues. Princeton, NJ:
Bolingen, 1961, p. 1379.
17
Aristóteles. Physics. In: Ackrill, J. L. (ed.). A New Aristotle Reader. Princeton, NJ:
Princeton University Press, 1987, 197b7-10, p. 104. Ver no mesmo volume Eudemian
Ethics, 1224a27-29, p. 492- 493.
18
Aristóteles. Nichomachean Ethics. Trad. M. Ostwald. Indianapolis, In: Bobbs-Merrill,
1962, 1099b:25-1100a:5, p. 22-23.
19
Eudemian Ethics, 1239a:1-6.
75
David Kennedy
lino, nascido livre e regido pela razão – mas não são. Elas combinam
os mesmos elementos numa mistura diferente e deficiente. É bem
verdade que a criança, se não tiver nascido escrava ou do sexo femi-
nino, tem a oportunidade de virar um adulto – isto é, razão em correta
proporção com vontade e apetite -, ao passo que a mulher e o escravo
nunca conseguirão. Mas a transição torna-se problemática. Na reali-
dade, segundo Platão, algumas crianças nunca se tornam “adultos” no
sentido de uma harmonia do eu tríplice: “Algumas, eu diria, nunca se
tornam racionais, e a maioria só em idade avançada.”20 Faz-se necessá-
ria uma tecnologia para atingir a condição adulta, ou seja, a educação,
que Aristóteles define, na linha de Platão, como ser “instruído a partir
da infância para sentir prazer e dor nas coisas adequadas; pois isto é
educação correta”21. A educação como treinamento apresenta-se,
então, como um ritual de força e uma absoluta necessidade cultural.
O eu tríplice de Platão e Aristóteles não é tanto um eu plural
quanto uma comunidade estrutural de funções, na qual a obtenção da
condição adulta indica que as partes alcançam um equilíbrio norma-
tivo, colocando-se os “elementos afinados uns com outros ajustando
a tensão de cada um na intensidade certa”22. A metáfora viaja pela filo-
sofia ocidental do eu até formulações do século XX como as de Freud
e Erikson. A criança do racionalismo patriarcal ocidental representa a
ambiguidade do que é dado como o humano no princípio do ciclo vital
e a possibilidade da construção de um eu ideal em que “cada parte da
sua natureza exercita sua função apropriada, de reger ou ser regida”23.
Esta construção tem prosseguimento na vida adulta no que Foucault
chamou “as tecnologias do eu”24. A unidade do eu só é conseguida
por meio da eterna vigilância da razão sobre o apetite e a vontade,
sendo um produto de constante autoexame e reajuste por autodisci-
plina. Este sistema de dominação interna é reproduzido macrocosmi-
20
Republic, p. 138.
21
Nichomachean Ethics, 1104b, p. 37.
22
Republic, p. 102.
23
Republic, p. 141.
24
Martin, L., Gutman, H., Hutton, P. H. (eds.). Technologies of the Self: A Seminar with
Michael Foucault. Amherst: University of Massachusetts Press, 1988.
76
A comunidade da infância
25
Dumezil, Georges. The Destiny of the Warrior. Chicago: University of Chicago Press,
1970.
26
Golden, Mark. Children and Childhood in Classical Athens. Baltimore, MD: Johns
Hopkins University Press, 1990, p. 44.
77
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78
A comunidade da infância
27 Lyotard, J-F, Larochelle, G. What Which Resists, After All. Philosophy Today. v. 36,
n. 4, 1992, p. 416.
28
Lyotard, J-F. Mainmise Philosophy Today, v. 36, n. 4, 1992, p. 421. Ver, na mesma
edição, Lindsay, Cecile. Corporalidade, ética, experimentação: Lyotard nos anos 80,
p. 389-401. Ver também Lyotard, J-F, The Inhuman. Trad. G. Bennington e R. Bowlby.
Stanford, CA: Stanford University Press, 1991.
29
Nandy, Ashis. Reconstructing Childhood: A Critique of the Ideology of Adulthood.
In: Traditions, Tyranny and Utopias: Essays in the Politics of Awareness. New Delhi: Oxford
University Press, 1987, p. 57.
79
David Kennedy
30
Freud, S. Five Lectures on Psychoanalysis. In: Strachey, J. (ed.). The Standard
Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud, 24 vols. London:
Hogarth Press, 1957, v. 11, p. 48.
31
Brown, N. O. Life Against Death, e Love’s Body. Berkeley: University of California
Press, 1966.
80
A comunidade da infância
1
Harding, Sandra. Whose Science? Whose Knowledge? Thinking from Women’s Lives.
Ithaca, NY: Cornell University Press, 1991, p. 124-131.
2
Kristeva, Julia. Desire in Language. New York: Columbia University Press, 1980, p. 135;
e The Powers of Horror: An Essay on Abjection. New York: Columbia University Press,
1987, p. 65.
3
Marchak, Catherine. The Hoy of Transgresion: Bataille and Kristeva. Philosophy
Today, v. 34, n. 4, 1990, p. 354-363.
81
David Kennedy
4
Schiller. Naive and Sentimental Poetry, p. 85.
5
Merleau-Ponty, Maurice. Sense and Nonsense. Evanston, IL: Northwestern
University Press, 1964, p. 63.
6
Nandy, p. 75.
82
4. Pensar por si mesmo e com outros
83
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84
A comunidade da infância
85
David Kennedy
A luz que permite deparar-se com alguma coisa distinta do eu faz com
que ele se depare com essa coisa como se esta proviesse do ego. A luz, o
brilho, é em si mesmo inteligibilidade; fazendo com que tudo provenha de
mim, ela reduz toda experiência a um elemento de recordação. A razão
está sozinha. E neste sentido o conhecimento jamais se depara com nada
verdadeiramente distinto no mundo. Eis a verdade profunda do idealismo.
86
A comunidade da infância
7
A ausência deste conhecimento pode ser uma das fontes do contentamento e dos
terrores da subjetividade infantil, ou do que Freud chamava “narcisismo primário”.
87
David Kennedy
88
A comunidade da infância
89
David Kennedy
90
adulto-criança e adulto-adulto? E uma estrutura administrativa baseada
no diálogo adulto-adulto, adulto-criança e criança-criança? Com certeza
nós temos alguns indícios proféticos na obra de educadores como A. S.
Neil, George Dennison, Chris Meroviglio, e diversos outros experimen-
tadores brilhantes e heróicos, a maioria não renomados, mormente
do último século. Mas ainda há vozes clamando no deserto, enquanto
a nossa civilização empenha-se em elaborar uma filosofia da infância
digna da visão daquelas. A obra de Lipman marca um momento deci-
sivo nesse empenho, o que sua enganosa simplicidade parece desmen-
tir. Nós não podemos deixar de acreditar que ela representa o futuro
da relação adulto-criança e a sua institucionalização nas escolas.
91
A comunidade da infância
1
Michael L. Raposa, Peirce’s Philosophy of Religion, (Bloomington: Indiana University
Press), 1989, p. 154.
93
David Kennedy
La comunidad de gesto
94
A comunidade da infância
2
James M. Edie, “Prefacio” en Maurice Merleau-Ponty, Conciousness and the
Acquisition of Language, trad. Hugh J. Silverman (Evanston, Il: Northwestern University
Press, 1973), p. xiii-xiv
3
Cf. Howard Gardner, Frames of Mind (New York: Basic Books, 1985).
95
David Kennedy
4
Estos patrones fundamentales de regulación mutua pueden trazarse desde la situa-
ción interlocutiva primaria del lactante y la madre. La madre y el bebé son una persona
en la medida en que el bebé carece de la capacidad de regular su propio afecto vital
y, en consecuencia depende de la madre para su autorregulación. El modo en que la
madre “baila” con el niño para hacer esto es internalizado por el niño y se convierte en
un marco de referencia para los gestos que ha de esperar, un estilo particular de bailar
que puede ser más o menos inhibido, más o menos armónico, etc. Ver Daniel Stern,
The Interpersonal World of the Infant, New York: Basic Books, 1985, especialmente el
capítulo 7, donde describe lo que llama “afecto armonizador”.
5
Paul Schilder, The Image and the Appearance of the Human Body: Studies in the
Constructive Energies of the Psyche (New York: International Universities Press, 1950),
p. 235-273
96
A comunidade da infância
6
John Dewey, How We Think, (Buffalo(New York: Prometheus Books, 1991 [1910]),
p. 171.
7
Merleau-Ponty, p. 45-46.
97
David Kennedy
8
Ibid., p. 12.
9
Ibid., p. 95.
10
Ibid., p. 42-43.
98
A comunidade da infância
11
Schilder, p. 286.
99
David Kennedy
La comunidad de lenguaje
12
Merleau-Ponty, p. 12.
13
Esto parece relacionarse con la paradoja señalada por Russell: la paradoja de la
clase que no puede incluirse a sí misma (e.g. la clase de las sillas no es en sí misma una
silla).
100
A comunidade da infância
14
Siempre quise conducir una reunión de comunidad de cuestionamiento e investiga-
ción sin palabras, sólo con gestos.
101
David Kennedy
La comunidad de mente
102
A comunidade da infância
15
Raposa, p. 38, 131.
103
David Kennedy
16
John Dewey, Ibid., p. 39, 34, 79, 80, 211.
17
Raposa p. 18, 25.
18
Robert S. Corrington, The Community of Interpreters (Macon: GA; Mercer University
Press, 1987) p. 3.
104
A comunidade da infância
La comunidad de amor
19
Herbert Marcuse, Eros and Civilization (Boston: Beacon Press, 1955) cap. 10, “The
Transformation of Sexuality into Eros”.
105
David Kennedy
20
Ver Ann Sharp, “Peirce; Feminism and Philosophy for Children”, Analytic Teaching
(14, 1), 1993, p. 58
21
Raposa, p. 83.
22
Peirce lo identificó como algo más. Para él es, de hecho, el principio de “amor evo-
lutivo” por el cual tanto la naturaleza y la mente, o el pensamiento, tienden hacia la
unidad y la totalidad. Dada la metafísica freudiana, “instinto” debe haber sido la única
manera en que él podía llamarlo.
23
Rechazo deliberadamente cualquier tipo de distinción final entre eros y agape. Los
considero formas, modos o dimensiones de lo mismo.
106
A comunidade da infância
24
Corrington, p. 43.
25
Ibid, p. 17.
26
En Collected Papers 2.654. Citado en Raposa, p. 23.
107
David Kennedy
La comunidad de interés
27
Corrington, p. 26.
108
A comunidade da infância
28
Ibid, p. 47, 67.
109
David Kennedy
Algunas interrelaciones
29
En el último, el gesto va por delante de la mente y la guía.
110
A comunidade da infância
cados por una idea; una contribución que ciñe la discusión, también nos
ciñe alrededor de la mesa.
El amor y el interés dan forma a las energías y modalidades más
fundamentales del gesto, por cuanto, biológicamente, el movimiento
se arraiga en el deseo y el miedo (nos acercamos hacia uno y nos aleja-
mos del otro), que se manifiestan en los objetivos, catexis, antipatías,
seguridades e inseguridades del yo y sus relaciones. El interés y el deseo
se reflejan y expresan también en la danza intersubjetiva que tiene
lugar entre los individuos y algunas veces entre los subgrupos, danza
que puede ser erótica, tímida, agresiva, juguetona, abstracta, ambigua,
formal, no decisiva, etc.
El lenguaje, sólo por ser una traducción de la mente, es ya una
distorsión, aunque pueda ser una distorsión coherente. Esto también
ocurre con sus efectos en las otras comunidades. En cada caso, el costo
que se extrae de traducir cosas en palabras es la dimensión misma que
hace a la comunidad ser lo que es. Aunque lo poético, en la medida
en que es un desorden del lenguaje, rompe esta sujeción a la lógica
de la gramática, sólo permite una visión limitada del estado “puro” de
la mente, el deseo y el interés, y no una traducción sistemática, pues
eso nos retrotraería una vez más a un sistema lingüístico. Además, la
comunidad de cuestionamiento e investigación no puede mantener
durante mucho tiempo lo poético como una forma de discurso, pues
es un discurso transgresor, asimétrico, individualista y por lo tanto
adverso a la necesidad de la comunidad para construir un universo de
signos comunes.
La mente, el lenguaje y el gesto son estadios o pantallas o espacios
expresivos donde es representada y actuada la disimulación del eros,
del ágape y de las ambigüedades de la personalidad individual y de la
voluntad de poder. Como has llegado a conocerme por mis ideas, por
mi manera característica de hablar acerca de mis ideas y por mi presen-
cia postural y kinésica, entiendes cada vez más que todo esto apunta a
una característica cualitativa del yo, a una manera que tengo de llevar
mi identidad a lo largo del tiempo; que a su vez se conecta con formas
características de interés y amor, i.e. una manera de trascenderme
(llegando o no) a un vos, a un otro, y a una comunidad como un todo más
amplio, del cual yo mismo me siento parte. ¿Qué busco realmente? ¿A
111
David Kennedy
qué estoy dispuesto a renunciar para alcanzarlo? ¿De qué modo formo
parte de este grupo? ¿Cómo lo estoy usando? ¿Cómo estoy permitiendo
que el grupo me use a mí? ¿De qué tipo de amor soy finalmente capaz?
Esto es verdad para las formas características del amor y el interés, no
solamente de los individuos sino también de los subgrupos y del grupo
como un todo. El interjuego entre el amor y el interés es complejo y
está cargado de vicisitudes y auto-disimulación y su intersección hace
de la comunidad de cuestionamiento e investigación una comunidad de
justicia o injusticia, de impulsos y prácticas realmente democráticas o
de sutiles tiranías. Esto se vuelve particularmente problemático cuando
los temas de la justicia en la escuela, en la comunidad o en la sociedad
llegan a ser tan apremiantes que la comunidad de cuestionamiento e
investigación, para mantener su identidad ética, debe asumirlos como
uno de los elementos de su propia investigación.30
A las relaciones entre las comunidades, se suman patrones típica-
mente dinámicos e interactivos que recorren la totalidad del proceso
de desarrollo de la comunidad de cuestionamiento e investigación, que
vemos representarse una y otra vez. Hasta qué punto una determi-
nada comunidad de cuestionamiento e investigación permanece junta,
crece y alcanza juicios que son significativos depende en gran medida
de cómo sus miembros transitan estos patrones – cómo los sopor-
tan, cuánto obedecen a sus limitaciones, cuánto los dominan, cómo
aprenden a tomar una dirección (o a evitarla) por medio de ellos. He
identificado seis.
Crisis
30
Para un ejemplo de este dilema, ver Marguerite y Michael Rivage-Seul, “Critical
Thought and Moral Imagination: Peace Education in Freireian Perspective”, en
McLaren, P. & M. Lankshear (eds.), The Politics of Liberation (South Hadley, MA: Bergin
and Garvey, 1994).
112
A comunidade da infância
31
Matthew Lipman, Thinking in Education, Cambridge: Cambridge University Press,
1991, p. 232.
32
Raposa, p. 96. En la p. 104 se refiere a “un sistema completo de opiniones, hábitos
de pensamiento que pueden considerarse instintivos o, en palabras de Peirce, ocasio-
nados en el aprendizaje infantil y la tradición.”
33
Dewey, p. 11.
34
Esto lo señala Raposa, p. 95. Distingue esta forma de duda de la duda cartesiana
de creencia igual a cero, que es una suerte de patología intelectual, o al menos un fa-
natismo.
35
En How we think, Dewey dice “ningún objeto es tan familiar, tan obvio, tan común,
como para que no pueda presentar, en una situación nueva, algún problema.” (p. 120)
113
David Kennedy
Diálogo
36
Hans-Georg Gadamer, Truth and Method, New York: Crossroad, 1975, p. 318.
37
Raposa, p. 78 y 83.
38
Para una brillante fenomenología de la dialéctica, ver H.-G. Gadamer, The Idea of
the Good in Platonic-Aristotelian Philosophy, New Haven: Yale University Press, 1986.
Para un resumen de estos argumentos, ver mi “Hans-Georg Gadamer’s Dialectic of
Dialogue and the Epistemology of the Community of Inquiry” in Analytic Teaching 11,
1, 1990, p. 43-51.
114
A comunidade da infância
Juego
39
Corrington, p. 41 y 42.
40
Corrington, p. 8.
41
Raposa, p. 32, 74; Corrington, p. 126.
115
David Kennedy
42
Raposa, p. 131. Peirce también dijo “las más grandes verdades sólo pueden sen-
tirse.” (ibid)
43
Ibid, p. 218-219.
44
Dewey, p. 219.
45
Ibid, p. 75.
116
A comunidade da infância
Teleología
46
Ibid, p. 217
117
David Kennedy
Conflicto
47
Corrington, p. 12.
48
Ibid, p. 47.
49
Ibid, p. 66.
118
A comunidade da infância
50
Ibid, p. 4.
51
Ibid, p. 64
119
David Kennedy
52
Raposa, p. 90
53
Ibid, p. 57.
54
Ibid, p. 64.
55
Ibid, p. 66.
56
Raposa, p. 89.
120
A comunidade da infância
Disciplina
57
Ibid, p. 64.
121
David Kennedy
58
Corrington, p. 43.
59
Ibid, p. 77.
122
A comunidade da infância
Conclusión
123
David Kennedy
124
6. A Escola do Terceiro Reino Alegre1
1
Tradução de Juliana Merçon. Título original: “The School of the Third Joyous
Kingdom”.
2
Friedrich von Schiller, 1954 [1795], p. 78, 75.
3
John Dewey, 1988 [1922]), p. 70.
125
David Kennedy
4
Erik H. Erikson, 1963, p. 259.
5
“A sublime melancolia da nossa espécie consiste em que todo Tu deve se tornar um
Isso em nosso mundo. Não importa quão exclusivamente presente ele tem estado no
relacionamento de direção – assim que o relacionamento tiver feito o seu percurso ou
for permeado pelo meio, o Tu se torna um objeto entre outros, possivelmente o mais
nobre deles e ainda um deles, atribuída sua medida e fronteira. A atualização do tra-
balho envolve uma perda de atualização… Todo Tu no mundo está condenado por sua
natureza a se tornar uma coisa ou pelo menos a entrar para o domínio das coisas uma
e outra vez… O Isso é a crisálida, o Tu a borboleta. Só que nem sempre esses estados
se alternam com clareza; muitas vezes é uma série de eventos intrincadamente entre-
laçada que é tortuosamente dual” Martin Buber, 1970 [1922], p. 68-69.
126
A comunidade da infância
6
John Dewey, 1988 [1922], p. 50.
7
Ibid., p. 50, 70 e 52.
127
David Kennedy
8
Ibid., p. 73.
9
D. W. Winnicott, 1989 [1971], p. 102, 103, 107 e 114.
128
A comunidade da infância
129
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130
A comunidade da infância
10
Yi-Fu Tuan, 1977, p. 116, 112.
131
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11
Erik H. Erikson, 1963, p. 259.
132
A comunidade da infância
12
Trabalhos principais que se dirigem ao design institucional diretamente ou por im-
plicação são: Christopher Alexander, A Pattern Language (New York: Oxford University
Press, 1977); Meyer Spivak, Institutional Settings: An Environmental Design Approach
(New York: Human Sciences Press, 1984); e Carol Simon Weinstein and Thomas G. David
(eds.), Spaces for Children: The Built Environment and Child Development (New York:
Plenum Press, 1987).
13
Michel Foucault, 1979, p. 26.
133
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14
J. Dewey, 1988 [1922], p. 47.
15
1979, p. 190.
134
A comunidade da infância
135
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136
A comunidade da infância
16
Para duas visões históricas breves da pedagogia de projetos, cf. See H. Warren
Button and Eugene F. Provenzo, Jr., History of Education and Culture in America
(Englewood Cliffs NJ: Prentice Hall, 1983), p. 257-259, e Lawrence A. Cremin, The
Transformation of the School: Progressivism in American Education, 1876-1957 (New
York: Alfred A. Knopf, 1961), p. 216-220. Para o seu surgimento inicial, cf. William Heard
Kilpatrick, “The Project Method,” Teachers College Record v. 19, n. 4 (September 1918),
e sua elaboração em Foundations of Method (New York: Macmillan, 1925). Para uma
formulação mais recente, veja Lilian G. Katz and Sylvia C. Chard, Engaging Children’s
Minds: The Project Approach (Norwood NJ: Ablex, 1991).
17
Para descrições da prática de Reggio Emilia, veja Carolyn Edwards, Lella Gandini e
George Forman (eds.), The Hundred Languages of Children: The Reggio Emilia Approach
to Early Childhood Education, especialmente Capítulos 10 e 11, que são relatos deta-
lhados de projetos específicos. Também cf. Rebecca New, “Excellent Early Education:
A City in Italy Has It”, Young Children, v. 45, n. 6 (September 1990), p. 4-10.
137
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18
John Dewey, 1959, p. 49.
138
A comunidade da infância
19
John Dewey, 1987 [1916], p. 79.
20
Para uma argumentação eloqüente a favor da prioridade do “sentido e significado”
[meaning] e “ponderação” [thoughtfulness] com relação à “racionalidade” na estru-
tura e design educacionais, cf. Matthew Lipman, Ann Margaret Sharp and Frederick S.
Oscanyan, 1980, p. 4-11.
139
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142
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143
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144
7. A partir de espaço sideral e do outro lado da rua:
a dupla visão de Matthew Lipman
1
Todas as referências são de Matthew Lipman, A Life Teaching Thinking. Montclair,
NJ: IAPC. 2008.
145
David Kennedy
146
A comunidade da infância
cia do medo, não só de cair, mas também de pular, como se ele fosse
empurrado por uma mão invisível para a morte – é um tema miste-
rioso no relato de Lipman sobre o começo de sua vida, que envolve
uma profunda contradição. Em cada caso ele diz “um aspecto compli-
cado era minha tendência a ‘esquecer’ ou ‘reprimir’ ter escolhido ficar
bem na beira de um lugar elevado, de modo que, de fato, eu estava
me desafiando ou me provocando a me jogar”. E o fio conduz, com
um surpreendente contratempo de espelhismo e correspondência
simbólica, à experiência da filosofia – mas é a filosofia que o resolve.
No final das contas, aos dois anos ele soube que não podia voar, mas
o desejo de voar persistiu como uma negação – como um desejo de
morte – até encontrar aquela nobre preocupação que, ele acha, o leva
às alturas sem o perigo de autoimolação. Quando vivia em licença na
Inglaterra durante o conflito, Lipman deparou-se com uma edição da
Ética de Spinoza em “uma pequena livraria de Londres”. Aos vinte e
dois anos, sua voracidade intelectual pelejou com ela e “quando final-
mente terminei, foi como se tivesse chegado ao topo de uma grande
montanha, e ao olhar para baixo visse o vale se espraiando em todas as
direções.” (p. 79)
Mais tarde, Lipman conecta diretamente a experiência da leitura
de Spinoza à subida na catedral de Ulm, que de fato havia sido ater-
rorizante: “A escada espiralada, cada vez mais estreita, ao redor da
coluna central, enquanto que a abertura das janelas oprimia mais de
perto à medida que se subia” (p. 48); mas levado ao ápice pela Ética de
Spinoza (amor Dei intellectualis!), seu amor e medo de altura se trans-
formou. Ele descobriu que a filosofia tem ligação com os lugares altos
porque permite ver ao longe, e fazer filosofia é uma espécie de voo –
sem queda, mas voando. É o olho voando, a mente voando por sobre
o mundo apreendido, provocado, pelo que ele chama “conhecimento
adequado”, o panóptico epistemológico, a ruptura noética, o ponto
arquimediano. “Eu estava magnetizado pela ideia” escreve Lipman:
147
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crianças dos subúrbios das classes média e baixa em meados dos anos
60, e se há referência ao lado sombrio da vida de suas famílias, é de
forma indireta. Isso é o que surpreende e intriga no livro: as crianças
podem ser “normais”, mas estão falando de filosofia, e fazendo-a sem
grandes palavras ou frases complicadas. Em outras palavras, o anor-
mal é que, apresentadas desta maneira, as conversas pareçam inteira-
mente normais, até que se caia na conta de que elas de modo algum o
são, ou não precisam sê-lo. Aqui as crianças falam sobre a mente e o
corpo, sobre a beleza, a arte e a natureza, sobre religião, ciência, sobre
a própria investigação de modo crivelmente inacreditável, ou vice e
versa. O que Lipman inventou em seu porão suburbano foi uma nova
forma de novela filosófica, cujos tópicos foram escritos com o que ele
chama “uma linguagem de dupla função que pode ser compreendida
pelos adultos em um nível e compreendida pelas crianças, de certo
modo, em um nível diferente.” (p. 108) É uma novela que pode ser facil-
mente discutida por adultos e crianças, e, portanto, representa uma
ponte entre a infância e a adultez, um espaço de conversa intergeracio-
nal. Ele inventou uma forma de literatura filosófica.
Se ele tivesse feito apenas isso, então Harry Stottlemeier’s
Discovery teria sido apenas uma charmosa curiosidade da literatura
ocidental, muito provavelmente esquecida. Mas a novela é o começo
daquela mudança de vida que ele chamou para si, e a primeira arma
com a qual a iniciativa do Herói avançou pelo terreno inflexível e
perigoso da educação norte-americana. Embora o estilo autobiográ-
fico de Lipman seja modesto e delicadamente irônico, mesmo assim
se percebe uma inquietação no relato de abandonar para sempre o
prêmio acadêmico, o Departamento de Filosofia de Columbia College,
que naquele momento de sua crise estava à mão. Em vez de isso, ele
aceita trabalhar em escola normal bastante provinciana, Montclair State
College, pois havia a promessa de apoiar seu projeto. Ele passou quase
quarenta anos reunindo colaboradores e colegas ao seu redor, escre-
vendo novelas e para cada uma escrevendo um manual, que de fato são
livros enormes de questões filosóficas, desenvolvendo uma pedago-
gia pós-socrática para facilitar a conversa comunitária das novelas em
sala de aula (“Eu estava determinado a ser radicalmente inventivo… é
preciso uma nova pedagogia? Invente-a!”) (p. 116), organizando proje-
155
David Kennedy
156
A comunidade da infância
sua vida. Eis aqui um acadêmico apaixonado que não tinha qualquer
interesse particular em psicologia, epistemologia genética, desenvolvi-
mento cognitivo e análise sistemática do pensamento das crianças, ou
da história da educação, que leva os seus interessados a um movimento
que fornece não só insight, mas também inúmeros dados para todos
aqueles campos e ilumina o núcleo da tradição progressiva em educa-
ção. Como afirmado com simplicidade e eloquência em seu primeiro
livro teórico sobre o assunto, Philosophy in the Classroom, ele sugere
uma revolução na educação que substitui o objetivo de “aprender”
pelo objetivo de “significar.” Isso resulta em uma metodologia de sala
de aula – apelidada por ele de comunidade de investigação – que opera-
cionaliza a reivindicação de Freire de o diálogo como fulcro fundamen-
tal da teoria e da prática pedagógicas. Ao ser aquele que desenvolveu
o trabalho de Dewey até o ponto em que seu pensamento estivesse
suficientemente focado para encontrar Freire, o trabalho de Lipman
representa a ponte metodológica entre os dois filósofos da educação
mais influentes do século XX.
O que o levou a fazer isso? Foi a fascinação provocada pelos
encontros com crianças pequenas – por exemplo, com a garotinha de
dois anos no Jardim de Luxembourg – onde ele com frequência passe-
ava, sentava, lia e ouvia escondido durante “dois anos maravilhosos de
aventura” em Paris – que, quando seus pais pediram que ela se escon-
desse, (“Cache-toi!, eles lhe disseram”) ela fechou os olhos bem aper-
tado? (p. 70) Foi a preocupação com a educação de seus filhos que, diz
ele, ocupou “uma parte considerável do meu pensamento” no início e
meados dos anos 60? Foi ter lido Reflections on Little Rock de Hannah
Arendt que “primeiro me mobilizou profundamente quanto à questão
dos direitos à educação”? (p. 94) Ou suas conversas com o eminente
esteta Rudolph Arnheim sobre a arte infantil, enquanto passeavam
pelos bucólicos arredores de Sarah Laurence onde ambos eram profes-
sores visitantes? Foi seu ensinar para crianças do terceiro ano na escola
dominical da igreja unitariana de Montclair que ele frequentava com sua
família birracial? Foi seu encontro com uma exposição de arte das crian-
ças da escola Summerhill que ele visitou no Museu de Arte Moderna de
Nova Iorque no final dos anos 60, quando seus olhos se abriram para
“uma profundidade do pensamento das crianças que eu não pensava
157
David Kennedy
ser possível”, onde ele viu “o processo criativo delas como uma forma
de pensamento”, e pensou “Não poderia haver certos tópicos nos
quais o pensamento das crianças se aproximasse ou mesmo excedesse
o pensamento dos adultos?” Ou, finalmente, os anos 60 – aquela época
torturante, retalhada, aterrorizada e repetidas vezes atônita com a
violência por todos os lados e experimentos sociais impetuosos, aquele
período de transformação cultural, em que a profunda angústia, raiva,
insatisfação e falta de sentido da cultura americana dominante não
podia mais ser contida pelo que pareciam forças repressivas esmaga-
doras – que nele geraram, à medida que a década “andava torta e aos
tropeços” (p. 107), uma resposta para o seu próprio tempo repleta de
sua “estranha confiança” e de seu “otimismo crônico”? (p. 159)
Eu não podia deixar de refletir sobre tudo que pudesse ser uma opor-
tunidade, para transformações pedagógicas não por intermédio de
meias medidas microscópicas, mas medidas dramáticas e transversais
que afetassem não apenas os estudantes universitários de amanhã, mas
também os professores de depois de amanhã. O que era preciso, pensei,
era uma educação que tornasse as crianças mais razoáveis e mais capaci-
tadas para exercer bons juízos. (p. 107)
158
A comunidade da infância
e quão pouco elas podem fazer a esse respeito”. Ele conta que come-
çou a “ver a importância da liberdade de investigação, não apenas para
os professores, mas também para as crianças. Os direitos acadêmicos
que os estudantes universitários gozavam não se estendiam às crianças
nas escolas, e eu estava me dando conta do quanto era necessário algo
deste tipo. O que pode ser feito, me perguntei, para ajudar as crianças
não simplesmente a pensar, mas a pensar por elas mesmas?”
Em outras palavras, o que motivou Lipman não foi só a isca da
curiosidade epistemológica das crianças e sua capacidade para o jogo,
mas uma preocupação genuinamente política. Um grão de ativismo
democrático se esconde no que parece ser a atividade meramente
acadêmica da P4C (filosofia com crianças) e está nela desde que era
uma ideia na mente de seu idealizador – na realidade, este radicalismo
implícito brilhava nos olhos daqueles que acudiam à Alderice House. O
Herói sentiu necessidade de “contribuir”, fazer alguma coisa “radical”
que, somada à percepção de que as crianças eram uma classe oprimida
e marginalizada, o levou a um processo de construção e reconstrução
que “Eu não tinha a menor dúvida… tinha que ser radical.” (p. 112)
“A educação teria que significar algo novo e diferente, e o lugar para
começar não poderia ser o mundo adulto – o mestre, o professor ou
os pais – pois nenhum destes estava a pedir uma luta. Ela teria que vir
do questionamento da base do sistema social, a criança… (p. 110) Ele
teria que inventar um currículo e uma pedagogia voltados a proteger
as crianças “contra a ambiguidade e a imprecisão na sala de aula, uma
vez que isso poderia protegê-las da manipulação da propaganda e da
publicidade” (p. 108) e desse modo municiá-las com as ferramentas
necessárias para reconstruir sua relação com o mundo adulto, e mais
tarde, o mundo adulto em si mesmo.
O projeto alquímico de Lipman se orientou frutiferamente em
quatro direções: a prática de filosofia para crianças, por ele inventada e
que espontaneamente coloca um desafio, tão impressionante quanto
há duzentos anos foi o de Rousseau, para um segundo campo, a filo-
sofia da educação. Em terceiro lugar, conduziu a um campo teórico da
chamada filosofia da infância, no qual a prática da filosofia para crian-
ças é um tipo de ação-meditação, estimulando os adultos a refletirem
sobre as diferença e semelhanças entre crianças e adultos, no mesmo
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bre sua vida privada através de umas poucas frases sem interesse –
“Nós nos tornamos ‘o casal do campus’ e mais de um comentário no
campus fez referência ao prazer de que ‘eles tivessem se encontrado’.
Teri era um apoio também no meu trabalho” – sugere um conto peri-
goso demais para ser contado, ou a pouca atenção que dava à sua vida
privada: um efeito colateral de ser, como ele mesmo se descreve, um
adicto ao trabalho que o levou a ser pego de surpresa pelo pedido de
divórcio de Wynona.
Lipman sobreviveu às duas esposas – Wynona faleceu de câncer e
Teri de uma overdose de remédios para dormir – e ele foi ficando com o
corpo e a discursividade, antes prodigiosa, progressivamente compro-
metidos pela doença de Parkinson, cujo início ele relata no livro. Estas
memórias de fato foram escritas antes que fosse tarde demais, durante
horas, dias, semanas, meses e anos em que a gradual e devastadora
debilidade exigiu que o cuidado de seu corpo fosse confiado a pessoas
virtualmente estranhas – o que representa o último gesto do Herói.
Então ele embarcou em sua última Tarefa, a tarefa mais filosófica - a
tarefa estóica de manter seu “otimismo crônico” e que ele descreve,
no fim do livro, como sendo seu amor pela filosofia, e seu “amor [pelo]
mundo que produziu algo tão belo como a filosofia.” (p. 170) O tom
das memórias de Lipman, modesto e despojado, e mesmo seu título
despretensioso, são as marcas de seu último labor. “O que é grande”,
escreveu Sêneca,
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8. Aión, kairós and chrónos:
fragmentos de uma conversa infindável
sobre infância, filosofia e educação
Filosofia e educação
1
In: Tuukka Tomperi; Hannu Juuso (eds.). Sokrates koulussa Itsenäisen ja yhteisöllisen
ajattelun edistäminen opetuksessa. Tampere: Niin & Näin, 2008, p. 130-155.
2
Nota de tradução: no original: “realm”, que também significa reino ou domínio.
3
Liddell, Henry; Scott, Robert. A Greek English Lexicon. Oxford: Clarendon Press,
1966, p. 45.
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4
Ibid., p. 859.
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5
“Uma criança que se disfarça como outro expressa sua mais profunda verdade”
Paul Ricoeur, Hermeneutics and the Human Sciences, John B. Thompson trans. and ed.
(Cambridge: Cambridge University Press, 1981), p. 187.
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Perguntas
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Educação
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Nota de tradução: no original “buzz”, palavra que se refere ao barulho produzido
por insetos.
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pensar o que deveria ser pensado, para fazer o que deveria ser feito e
para viver da forma que todos deveríamos viver.
Eu não sei qual forma afirmativa esse tipo de educação levaria;
na verdade, eu não quero saber, porque exatamente na antecipação
disso, nós podemos estar inibindo algo extraordinário que isso pode-
ria trazer, a exata dimensão de seu poder subversivo. E, é claro, a
questão mais mundana que permanece é se alguma “outra” forma de
educação – ou educação do “outro” – é possível na escola moderna
como conhecemos.
Por um lado é impressionante o quão diferentes parecem essas
duas abordagens da educação – tão opostas, tão estranhas, tão alheias,
que uma parece afirmar o que mata a outra. E eu não penso que nós
precisamos considerar todos os detalhes da escolaridade contemporâ-
nea aqui, dada a forte crítica já desenvolvida a partir de uma perspec-
tiva foucaultiana das instituições educacionais como instrumentos de
controle e disciplina. Não é um problema nacional. Eu acho que foi o
sociólogo de educação inglês Basil Bernstein quem salientou o quão
surpreendentemente similares as escolas parecem através do tempo
e espaço. Eu gostaria apenas de sugerir um pouco mais, o quão bem
a escolaridade se adaptou às nossas sociedades neocapitalistas globa-
lizadas, dentro e fora de seus prédios modernos e através das novas
tecnologias e meios de comunicação de massa. Por outro lado, uma
escola é uma coleção de pessoas e nós nunca sabemos o que pode
emergir de onde seres humanos pensam juntos. Apesar de não parecer
estar emergindo nada promissor da escolaridade, quem sabe? Como
podemos ter tanta certeza de que é um caminho sem rumo? Em outras
palavras e para voltar à infância desta conversa, poderíamos ainda
perguntar: Uma escola aionica é realmente possível? Isso não seria uma
contradição, em termos? Pode parecer dessa forma, mas também pode
ser interessante questionar essa aparente contradição.
Se o que eu disse nos parágrafos anteriores faz sentido, ao invés
de procurar por uma nova forma de escolaridade para a infância, nós
devemos considerar a procura por uma nova infância da escolaridade,
o que pode muito bem significar a total inexistência de escolas. Ou não!
Nós não sabemos. Qualquer que seja o caso, nós devemos abrir insti-
tuições educacionais onde possamos trabalhar – escolas, universida-
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Alegria – desejo
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Nota de tradução: no original “sublation”, palavra em inglês que se refere ao termo
alemão Aufhebung, utilizado na filosofia de Hegel.
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ele esteja em conflito com seus desejos a longo prazo. Isso pode até ser
verdade em algum nível e em várias instâncias, mas não é o suficiente
para explicar a taxa de homicídios da espécie e os níveis de crueldade
e indiferença. E se um reclama que a taxa de homicídios, crueldade e
indiferença têm a ver com a sujeição e encerramento e impedimento
do desejo, com a “tristeza” da qual você fala, com o totalitarismo e
o fascismo, bem, nós não seremos entregues ao fascismo por aque-
les amamentados por seu leite envenenado. Deve haver uma atividade
cultural mediadora que ofereça a oportunidade de uma quebra na
estrutura das coisas.
Eu sugeriria que como atividade prática, e especialmente quando
conduzida coletivamente, como diálogo comunal, filosofia é – entre
outras coisas, para ser preciso – exemplo desta atividade mediadora.
Para usar uma metáfora crua e vívida, filosofia é sobre o diálogo entre
os três cérebros da espécie humana: o “réptil”, ou tronco cerebral do
instinto, o “mamífero”, ou região límbica da emoção, e o córtex cere-
bral, ou “razão”. No modelo Platônico, no qual três partes do mesmo
– logistikós, epithymía e thymós – correspondem bastante sugestiva-
mente à tripartição cerebral, diálogo não é uma possibilidade. Sem o
controle estrito da “razão” e da classe dominante que personifica isso,
o inferno se abre. Agora nós percebemos que esta é a economia do
patriarcado e o complexo de Édipo, quintessência de uma forma ociden-
tal clássica de submissão e subjugação, a qual cria um inferno com a
intenção suprimir isso. Um novo modelo do eu, que já tem nomes varia-
dos – “eu nômade”, o “sujeito em processo” ou o que eu chamei de
“inter-sujeito” – desconstrói a hierarquia Platônica e inicia o “desejo
produtivo” de Deleuze e Guattari, o qual eu entendo em um sentido
muito amplo como a reconstrução em curso do desejo.
Por que a filosofia comunal, dialógica – filosofia como um evento,
como agón colaborativo e jogo deliberado – é tão exemplar do desejo
produtivo? Porque filosofia é sobre o normativo – o córtex cerebral
procurando por regras e princípios e heurística – e o normativo é sobre
o que deve ser. O normativo é o mundo do como-se, do mundo para-
-além-do-que-é, que implicitamente julga e por isso vai mais além do que
é. O normativo é o mundo do distintivamente humano – do animal de
cérebro enorme, criatura da neotenia, aquela que nunca para de crescer
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Neste sentido eu iria argumentar que não há tal coisa como filo-
sofia como tal, ou educação como tal. Filosofia é algo plural. Existem
filosofias. Sócrates é apenas uma possibilidade. E educação é também
plural. Existem educações. Também não estou tão certo sobre a comu-
nidade de investigação. Não é isso muito Socrático, muito normativo,
muito certo sobre onde esta indo e como chegar lá e quem está dentro
e quem está fora, etc.? A própria ideia de um programa para fazer filo-
sofia com crianças não me parece tão subversiva assim. Para colocar em
seus termos e na forma de uma questão, eu perguntaria: onde e qual é
o lugar para o incalculável, o imprevisível, o incontrolável em qualquer
prática filosófica e pedagógica dada? Quão preparados nós estamos
para pensar o que nós não devemos pensar? Quão dispostos estamos
a indisciplinar nosso pensamento? Deixe-me ainda colocar em outras e
provavelmente mais provocativas palavras: por que estamos tão inte-
ressados em dar voz às crianças? Por que queremos que elas falem?
O que queremos ouvir delas? Nós já sabemos o que elas vão dizer? Eu
estou certo, irmão, que você vai gostar de tomar uma dessas questões.
David: Por que estamos tão interessados em dar voz às crianças?
Porque a infância é a forma de linguagem que é a linguagem do mundo.
É a linguagem do Tolo que imita a linguagem dos pássaros, árvores e
trovoadas e coisas como essas. Mas por que estaríamos interessados
em ouvir isso? Porque é o momento no Ocidente quando a desconstru-
ção da subjetividade Platônica e Cartesiana nos abre a possibilidade de
novas versões do eu, as quais não se definem de acordo com a medida
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muito significativa. Meus cuidados podem ser sem sentido se, afinal de
contas, crianças forem, como você bem disse, uma forma do inconquis-
tável e insubjugável. Mas eu ainda argumentaria em favor da infância da
educação e para reconsiderar o que você chama “necessidade existen-
cial”. Eu ainda fico chocado com a ideia de que crianças precisam falar
como adultos. Quem precisa disso? É muito arriscado – muito irrespon-
sável, você pode dizer – então pense essa educação infantil em termos
de ajudar o outro a falar outra língua, a pensar de outra maneira, a viver
outra vida? De qualquer forma, obrigado por uma conversa tão intensa,
irmão, e, por favor, nos apresente algumas palavras finais.
David: Bem, crianças nunca serão feitas para falarem como adul-
tos, mas adultos também não falam como adultos – eles não fazem
mais do que aproximarem-se. Apenas deuses falam como adultos. E ao
mesmo tempo em que adultos fazem demandas de razão no diálogo
filosófico, as crianças fazem as suas: que as ouçam falar, realmente
ouçam e que não as tratem como casos de um livro, como “organis-
mos em formação”, mas como pessoas com plenos direitos que sabem
muito bem como pensar quando lhes é dada a chance e se permitidas a
fazer de sua própria maneira. Isto é um diálogo no fim das contas, e no
diálogo ambos os lados são considerados igualmente valiosos de serem
escutados. E o fim resulta neste tipo de diálogo, no qual a representa-
ção de filosofia com crianças é exatamente, como você sugeriu, falar
outra língua, pensar de outra maneira, viver outra vida – uma lingua-
gem nem de animal nem de Deus, do mundo ou da mente, do adulto
ou da criança, mas do humano, a qual em sua realização mais profunda
é polivocal e polissêmica, múltipla e pronta para a transformação: um
modo de vida que inclui as três experiências de tempo com as quais
você iniciou esta conversa. E filosofia como diálogo – junto com muitos
outros tipos de atividades humanas – oferece continuamente a possi-
bilidade do kairós que abre espaço para um encontro com aión. Essa
possibilidade pode ser traída de muitas maneiras – através da “progra-
mação” disso, através da assimilação de formas previamente mortas
ou sem mente, através da banalização, ainda apenas através da obriga-
ção disso. Mas eu não acho que a possibilidade vai embora algum dia,
porque é parte do que Freire chamou de “vocação ontológica” do ser
humano, e como tal é inerradicável.
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9. Incêndios: infância e infantia
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que não vai cicatrizar até que a própria infância, com dificuldade (isto é,
por meio de um trabalhoso processo envolvendo algum tipo de viagem
da memória), seja removida. Nossa tentativa é ir um pouco mais longe,
atrás ou antes, um atrás e um antes que não são tópicos nem cronoló-
gicos, mas ontológicos. Nas palavras de J.-F. Lyotard, nossa tentativa
é passar da infância à infantia, aquele primeiro movimento anterior a
qualquer movimento humano, aquele primeiro nascimento antes de
nascer na terra.
No caso do filme, a remoção requer encontrar o terror sublime e
numinoso de nossas origens quase míticas e, por implicação, as origens
profundas do que constitui cada um de nós, expressado na terminolo-
gia freudiana como o mito de Édipo, a diferença sexual, a castração da
mãe, o tabu do incesto, a sexualidade pré-genital, ou nas associações
antigas de incesto com os deuses e as figuras semidivinas, como em
práticas antigas da realeza, ou qualquer outra fórmula que se refira a
esse primeiro golpe, antes que passemos a ser nós mesmos.
A garganta é o local onde se origina a fala humana, e onde a dife-
rença crítica entre infans (não falante) e adulto é mais concreta. Mas
também é o lugar onde a infância fala sem falar, ou além do discurso.
Na teoria chakra, é o local energético, não apenas de discurso, mas de
expressão, comunicação aberta e, na verdade, revelador, ou parrhesia.
É o lugar onde o afeto-sensorial, expressivo e comunicativo se mani-
festa no corpo. É o local no corpo onde se situam a poesia e a canção –
atos consumados de expressão – misturando-se com a respiração. Em
experiências de emancipação, individual e social, a garganta é aberta,
e a linguagem derrama-se livremente como verdade espontânea. Por
exemplo, em setembro de cada ano, ainda hoje e após mais de duzen-
tos anos, os mexicanos se reúnem nas praças para, através d’O Grito
comemorarem o processo que deu início a sua independência.
Se a infância é uma condição e não uma fase da vida humana, então
a metáfora da infância como uma faca que fere nossa garganta e que
não pode ser (“facilmente”) removida, pode ser lida como o inumano
do humano e sugere tanto que não existe (“facilmente”) vida humana
sem o inumano, que não há vida verdadeira sem corpo, quanto que
a cultura e a sociedade são, de certa forma, tentativas frustradas de
abandonar e esquecer a infância. Como Lyotard (1999, p. 52) aponta:
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um. Mais ainda: dois tem sido um em sua história. Eles são um em rela-
ção ao abjeto sofrido pela sua mãe. Como nas tragédias gregas não
há vontade, nenhuma intenção, nenhuma consciência. A mãe, Nawal
Marwan, foi violada por seu filho, seu irmão-pai, que também não
“sabia” que ela era sua mãe. Para os gêmeos, crescer significa aceitar
que são parte de uma história horrível, inumana. As mulheres, a mãe e
a irmã, Nawal e Jeanne, são ambas matemáticas. Em matemática um
mais um não pode ser igual a um. Na vida humana, um irmão não pode
ser pai. Sua história é histórica e matematicamente – racionalmente –
inaceitável. E eles têm que aceitá-la, a fim de viver uma vida humana, a
fim de ter um novo nascimento.
O que faz então Incêndios tão difícil de digerir é que, no filme, cres-
cer não é como na vida comum “civilizada”, simplesmente uma ques-
tão de aceitar maduramente a própria história, mas uma questão de
enfrentar o horror do abjeto (Kristeva, 1982): o indiferenciado, incestu-
oso, estranho, perigoso, proibido, impuro, objeto de tabus, uma alte-
ridade inominável como parte de nossa própria história. Como afirma
o matemático, é um “problema insolúvel”, cuja investigação leva a
“problemas mais insolúveis”, e, finalmente, fundados sobre o para-
doxo de 1 + 1 = 1.
Da mesma forma que o matemático não pode aceitar o para-
doxo de 1 + 1 = 1, uma sociedade racional e civilizada não pode aceitar
o abjeto, a irracionalidade que constitui a identidade do pai e do irmão.
Ela não pode viver com a memória do que desafia sua própria base. A
sociedade precisa esquecer a infantia e as sociedades neoliberais pare-
cem ter desenvolvido dispositivos mais e mais sofisticados, a fim de
atingir esse objetivo.
Em Incêndios, o problema é duplo: esta “família”, se podemos
assim chamá-la, tem de superar uma infância difícil e não esperada,
e ao mesmo tempo uma infantia silenciosa, invisível, mas inevitável,
que permanece como uma dupla sombra de uma infância impossível.
A tentativa da mãe de resolver o duplo problema espelha sua ruptura
interna, que a divide entre o filho torturador e estuprador e aquele
nascido de seu primeiro e belo amor. Eles não se conhecem entre
si. Nunca conhecerão um ao outro. O único momento em que ela os
encontra juntos – um corpo nu à beira da piscina –, ela não pode se
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conectar com esse corpo. Para ela, eles são dois, eles não podem ser
um. Ela não pode estar em qualquer forma de relação humana com
eles. Não há nenhuma família, nenhuma sociedade, nenhuma cultura
possível com o abjecto.
Na última parte do filme, o filho assassino sociopata perde de vista
os gêmeos, a prole de sua vontade monstruosa de violar e destruir;
enquanto o filho amado permanece inocente perante o túmulo de sua
mãe. O problema não foi resolvido. O conflito não pode ser superado.
A excepcionalidade da mãe, a “mulher que canta” consiste em ter
incorporado – através do seu amor redentor – o abjeto na forma do
impossível um = dois; um = pai + filho; o bebê inocente e o assassino
sociopata; vida e morte; amor e ódio: todos os opostos são um em
Incêndios. Nenhuma ciência, nenhuma racionalidade, nenhuma ordem
social é possível com eles. Só a arte, para nos ajudar a lembrar a infantia.
Mais ainda, a forma de “superação” do conflito por Nawan, na
verdade, o aceita e o alimenta. Ajuda os espectadores a se lembrar
dele. Nawan é “a mulher que canta”. Ela canta uma canção impossível
de cantar e de lembrar; ninguém que tenha ouvido o seu canto em Kfar
Ryat consegue lembrar suas canções, apesar de sua beleza. A impos-
sibilidade de se lembrar de seu canto faz-nos lembrar o que não pode
ser esquecido. Sua música é o sublime, o corpo estético impossível, a
infantia. A mulher que canta inscreve em nós um resto, uma opacidade
não transmissível que nunca será derrotada, enquanto os seres huma-
nos nasçam infantes.
Os gêmeos não são crianças e também não são adultos, simples-
mente porque eles não podem viver nem na infância nem na idade
adulta, eles não podem habitar uma vida humana, eles (quase) não
são seres humanos. O notário diz a eles que só através da pesquisa da
“verdade” (o registro, como mantido pelos seus depositários, o notá-
rio, o adulto, a sociedade, a lei) vão se tornar adultos. Mas, na verdade,
eles não estão à procura de sua infância, eles estão à procura de suas
origens, de sua condição, do que os torna humanos, num sentido mais
profundo que a vida civilizada e confortável do seu mundo capitalista;
de fato, a sua infância na civilizada classe média canadense é perfeita-
mente bem lembrada e bastante confortável: uma vida “normal” que
qualquer ser humano desejaria viver.
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[…] O que mais resta para a ‘política’ senão a resistência a esse inumano?
E o que mais resta para resistir, senão a dívida que cada alma tomou da
miserável indeterminação da sua origem, e que não deixa de nascer? Isto
é, com o outro inumano? Esta dívida que temos com a infância não é
paga. Mas não esquecê-la pode ser o suficiente, a fim de resistir e, talvez,
para não ser injusto. Esta é a tarefa da escrita, pensamento, literatura,
artes: se aventurar para testemunhar isso. (Lyotard, 1999, p. 7)
Basta não esquecer a dívida com a infância a fim de não ser injusto,
afirma Lyotard (1999). Resistir ao inumano da ordem neoliberal,
lembrando o inumano do qual nascemos, como uma forma de lembrar
o “potencial inumano dérèglement, para desfazer as regras instituídas
das forças de aculturação” (Lindsay, 1992, p. 391). Política, então, é a
resistência ao inumano da ordem, lembrando o inumano do qual toda
ordem emerge. É uma espécie de resistência à pretensão de qualquer
forma em perpetuar-se através da memória do que faz qualquer ordem
possível. As sociedades neocapitalistas não deixam de pretender impor
cada vez mais seu controle por todo o planeta e até para além dele. A
fim de fazê-lo, elas precisam silenciar o que poderia questionar a sua
universalidade, normalidade e naturalidade, o que, como infantia, pode
mostrá-las como arbitrárias, artificiais, anormais e interromper o que
elas pretendem mostrar como claro e inevitável.
Radicaria nisso a dimensão política de uma possível leitura de
Incêndios? Em testemunhar o outro inumano, o inumano de infantia?
Uma lembrança da aporia da existência humana em sua dupla dimen-
são da impossibilidade de cicatrizar a dupla ferida da infância monstru-
osa e da infantia silenciada? Uma resistência política a qualquer preten-
são de naturalizar a existência humana?
É esta, também, uma tarefa política da escrita, ao mesmo tempo
impossível e necessária. É uma tarefa impossível, porque escrevemos
para dar forma a uma infância e uma infantia que em nenhum caso
podem ser escritas. Necessária como tarefa política de lembrar e afir-
mar a forma de inumano que é silenciada, negada pela outra forma do
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Referências
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