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Ensinar filosofia e a filosofar:

necessidade urgente
Títulos da Coleção Ensaios

A escola dos sentimentos. 2018.


Giuseppe Ferraro
Manifesto por uma escola filosófica popular. 2018.
Maximiliano Lionel Durán; Walter Omar Kohan
(em quarentena)
Ensayos En Lectura. Inutilidad, soledad y conversación. 2020.
Carlos Skliar
filosofia para crianças: a (im)possibilidade de lhe chamar outra coisa. 2020.
Magda Costa Carvalho
Ensayos para una didáctica filosófica. 2020.
Alejandro Cerletti
entre apostas e heranças. contornos africanos e afro-brasileiros na educação e
no ensino de filosofia no brasil. 2020.
Wanderson Flor do Nascimento
Infancia y Género. Exclusiones que nos rondan. 2020.
Olga Grau Duhart
Interculturalidade, natureza e educação. Afetos filosóficos. 2020.
Juliana Merçon
A comunidade da infância. 2020.
David Kennedy
Paulo Freire: um menino de 100 anos. 2021.
Walter Omar Kohan
Crianças em filosofia. 2022.
Giuseppe Ferraro
Uma vida ensinando a pensar. Una vida enseñando a pensar.
Edição bilíngue. 2023.
Matthew Lipman
Ensinar filosofia e a filosofar: necessidade urgente. 2023.
Marcos Antônio Lorieri
Coleção Ensaios

Ensinar filosofia e a filosofar:


necessidade urgente

Marcos Antônio Lorieri

NEFI Edições
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Reitor: Mario Sergio Alves Carneiro
Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação: Luís Antônio Campinho Pereira da Mota
Programa de Pós-Graduação em Educação (PROPEd)
Coordenadora: Rita Frangella
Vice-Coordenador: Alexandra Garcia
Núcleo de Estudos de Filosofias e Infâncias (NEFI)
Coordenador: Walter Omar Kohan
Conselho Científico (NEFI/UERJ) Conselho Editorial (NEFI/UERJ)
Alejandro Ariel Cerletti, Univ. Buenos Aires e Univ. Nac Gral Sarmiento Alice Pessanha Souza de Oliveira
Alexandre Filordi de Carvalho, UNIFESP, Brasil Allan Rodrigues
Alexandre Simão de Freitas, UFPE, Brasil Arthur Henrique F. de Almeida
Barbara Weber, University of British Columbia Daniel Gaivota Contage
Beatriz Fabiana Olarieta, UERJ, Brasil Fabiana Martins
Carlos Bernardo Skliar, FLACSO, Argentina Felipe Froes Pereira Trindade
César Donizetti Leite, UNESP, Rio Claro, Brasil Marcelly Custodio de Souza
Claire Cassidy, University of Strathclyde, Escócia Ocimar Castro Maximo
Fabiana Fernandes Ribeiro Martins, (Colégio Pedro II, Brasil) Robson Roberto Lins
Gregorio Valera-Villegas, Univ. Experimental Simón Rodríguez, Venezuela Simone Berle
Gustavo Fischman, Arizona State University, Estados Unidos da América
Jason Wozniak, West Chester University, Estados Unidos da América Capa:
Juan Pablo Álvarez, Universidad sw Playa Ancha, Chile Marcelly Custodio de Souza
Juliana Merçon, Universidad Veracruzana, México
Junot Cornelio Matos, UFPE, Brasil Diagramação:
Karin Murris, Cape Town University, África do Sul Arthur Henrique F. de Almeida
Lara Sayão, Sedec RJ, Brasil Revisão:
Laura Viviana Agratti, Universidad Nacional de La Plata, Argentina Arthur Henrique F. de Almeida
Magda Costa Carvalho, Universidade dos Açores, Portugal
Maria Reilta Dantas Cirino, UERN, Brasil
Marina Santi, Università degli Studi di Padova, Itália
Maristela Barenco Corrêa de Mello, UFF, Brasil
Maximiliano Durán, Universidad de Buenos Aires, Argentina
Olga Grau, Universidad de Chile, Chile
Óscar Pulido Cortés, Universidad Tecnológica y Pedagógica de Colombia
Paula Ramos de Oliveira, UNESP - Araraquara, Brasil
Pedro Pagni, UNESP - Marília, Brasil
Renato Noguera, UFRRJ, Brasil
Roberto Rondon, UFPB, Brasil
Rosana Fernandes, UFRGS, Brasil
Rosimeri de Oliveira Dias, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil
Sílvio Donizetti de Oliveira Gallo, UNICAMP, Brasil
Simone Berle, Universidade Federal Fluminense, Brasil
Virgínia Kastrup, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil
Walter Omar Kohan, UERJ, Brasil
Wanderson Flor do Nascimento, UnB, Brasil

“A comissão para avaliação cega dos trabalhos da Coleção Ensaios em 2023 foi integrada por Felipe Ceppas e Magda
Costa Carvalho.”
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Lorieri, Marcos Antônio


Ensinar filosofia e a filosofar : necessidade urgente.
Marcos Antônio Lorieri. -- 1 ed. -- Rio de Janeiro :
NEFI, 2023.
139 p. ; 21 cm. -- ( Coleção Ensaios; 13 )
ISBN: 978-65-998966-3-7

1. Educação – Filosofia. 2. Filosofia – Estudo e Ensino. I. Associação Nacio-


nal de Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF). II. Título. III. Série.
L872e CDD 370.1

Catalogação na Publicação: Bibliotecária Ana Paula Benetti Machado – CRB 10/1641


Índice para catálogo sistemático:
1. Educação: Filosofia 370.1
© 2023 Marcos Antônio Lorieri
© 2023 Núcleo de Estudos de Filosofias e Infâncias (NEFI/UERJ)
Site: http://filoeduc.org/nefiedicoes
Email: publicacoesnefi@gmail.com
Apresentação da Coleção

O Núcleo de Estudos de Filosofias e Infâncias da Universidade do Estado


do Rio de Janeiro (NEFI/UERJ), como qualquer grupo de trabalho de uma
universidade pública, dedica seus esforços ao ensino, à pesquisa e à extensão
da universidade fora dos seus muros. Seu foco temático são as relações entre
infância, educação e filosofia, tanto no que diz respeito a experiências filosófi-
cas com crianças e à formação de professoras em escolas públicas quanto ao
estudo e ao exercício mais amplos possíveis da categoria de infância. Desde
2003 o NEFI tem estabelecido parcerias de trabalho com grupos de distintos
países e acolhido as mais diversas pesquisas com muitas formas institucio-
nais: trabalhos de fim de curso, ou seja, monografias, dissertações e teses de
estudantes da UERJ, missões de estudo e de trabalho com outras instituições
nacionais e internacionais; pesquisadores visitantes; estâncias de pós-douto-
rado… o NEFI ensaia uma vida acadêmica outra, a errar no duplo sentido de
se equivocar e de vagar em busca dessa vida outra.
Assim, a Coleção “Ensaios” é um convite a ensaiar-se, na escrita, na leitu-
ra, na vida. Os trabalhos que compõem esta coleção são cheios de erros e
de errância e chamam leitores e leitoras a ensaiar e ensaiar-se na leitura e
também na escrita, confiando no valor educativo tanto do equivocar-se quan-
to do andar atento aos sinais do caminho.
Desde março de 2020 fomos surpreendidos por uma pandemia que
se alastra pelo Brasil ajudada pela indecência de um governo que privilegia
uma economia para poucos sobre a vida de todos. A pandemia colocou-nos
também em evidência o sem sentido de uma forma de vida que aceitávamos e
vivíamos. Nas universidades públicas um desafio nos foi colocado: precisamos
inventar outras formas de vida em comum, dentro e fora da universidade. O
vírus tem nos entregado a oportunidade de um tempo para pensar na vida
que estamos vivendo em nome da educação. Em que, pese a irresponsabilida-
de do governo federal, alguns temos o privilégio de poder ficar em casa, como
suspendidos no tempo. Estávamos habituados a “não ter tempo”, a ter tanto
para fazer “em pouco tempo”, a ter que correr daqui para lá, a “perder horas”
no trânsito, a ocupar o tempo em exigências administrativas e burocráticas
e, de repente, temos tempo para o esquecido, como o cuidado quotidiano
das filhas e dos mais velhos, e, sobretudo, temos tempo para pensar a vida
presente atravessada pela pandemia e a vida que queremos viver quando a
pandemia passar, se é que de fato ela vai passar.
No NEFI pensamos que parte dessa tarefa diz respeito a ler, escrever,
estudar… com o cuidado que o momento merece e com a atenção voltada
para uma realidade devastadora como a imposta pelo governo fascista que
padecemos. E pensamos que a coleção Ensaios poderia ser um espaço para
fortalecer esse cuidado e essa atenção, consolidando nossas bibliotecas. Por
isso, convidamos amigas e amigos a nos oferecer suas obras, suas tentati-
vas, seus ensaios, entre filosofia, educação e infância. É nesses tempos que a
coleção “Ensaios” encontra seu tempo “em quarentena”. Tempos de pensar
em outras formas de vida.

Walter Omar Kohan


Núcleo de Estudos de Filosofias e Infâncias (NEFI)
Rio de Janeiro, abril de 2020
Sumário
Nota inicial..........................................................................................................9
Apresentação..................................................................................................... 11
Elisete M. Tomazetti

Prefácio
Da necessidade e urgência (da obra e do exemplo) de Lorieri: minha singela
homenagem ao amigo Marcos.............................................................................13
Patrícia Del Nero Velasco

Introdução.........................................................................................................17
Capítulo 1
A constituição da área de ensino de filosofia no Brasil: memórias de um
encontro......................................................................................................... 21

Capítulo 2
Fazer filosofia como educação: argumentos quanto às suas possibilidades
formativas...........................................................................................................39
Capítulo 3
Posicionamentos meus relativos ao ensino de filosofia.......................................65

Capítulo 4
Aulas de filosofia podem ajudar para o respeito às diferenças............................. 79

Capítulo 5
A proposta de ensino de filosofia de Matthew Lipman.......................................89

Capítulo 6
Ética no ensino de filosofia: contribuição para a formação do jovem................ 101

Capítulo 7
Filosofar é um direito por ser uma necessidade: filosofia e formação no ensino
superior.............................................................................................................. 113

Referências.......................................................................................................123
Posfácio............................................................................................................129
Uma obra importante de um grande educador
Walter Omar Kohan

Anexo 1
Boas lembranças de Matthew Lipman................................................................133

Anexo 2
Catherine e o Programa de Filosofia para Crianças no Brasil..............................135
Nota inicial

No dia 13 de outubro de 2021 foi realizado um encontro de professores de filo-


sofia, de forma virtual, através do canal ANPOF Oficial, no YouTube1. O encon-
tro foi promovido pelo Grupo de Trabalho da ANPOF: “Filosofar e ensinar a
filosofar”, tendo à frente a Profa. Dra. Patrícia Del Nero Velasco.
Tema do encontro: Memórias da constituição da área de Ensino de
Filosofia no Brasil: homenagem ao Prof. Marcos Antônio Lorieri e foi coorde-
nado pelo Prof. Dr. Walter Omar Kohan.
O livro traz, no primeiro capítulo, a transcrição de algumas das falas do
encontro e mais seis capítulos de minha autoria abordando alguns aspectos
que julgo relevantes a respeito do ensino de filosofia e, em especial, de sua
necessidade/importância. Registro necessidade e importância juntos porque
penso que a importância do ensino de filosofia decorre da necessidade do filo-
sofar na existência das pessoas. Procuro mostrar isso nos capítulos do livro.

1
ANPOF Oficial. Memórias da constituição da área de Ensino de Filosofia no Brasil. YouTube,
13 de outubro de 2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=S4HoLgNNd9A.

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Apresentação

Ao ler este livro o leitor e a leitora reconhecerão a trajetória de uma vida dedi-
cada ao ofício de professor de filosofia e ao ofício de filósofo da educação;
uma vida que buscou pensar e colocar em ação modos de possibilitar o encon-
tro de crianças e jovens com a filosofia. Sim, Marcos Lorieri tem uma vida dedi-
cada à filosofia, ou como ele mesmo diz: “Uma vida de uma nota só: Filosofia,
Filosofia, Filosofia… até hoje. Tenho gostado muito, mas muito mesmo, do
que tenho feito em minha vida de educador profissional, na qual o cerne tem
sido o ‘ser professor’ e, em especial, ser professor de filosofia” (Entrevista à
REFILO, 2017).
Ao final dos anos 1960, ele iniciava sua trajetória como professor de filo-
sofia em escolas da cidade de São Paulo e, posteriormente, como professor
universitário. Em seus estudos de mestrado e doutorado, dedicou-se ao ensi-
no da filosofia a partir da construção de relações prodigiosas entre filosofia e
educação, dois campos de conhecimento que, pela qualidade de seu trabalho
intelectual, nos oferecem modos singulares de estudo, de análise e de prática
docente. É a partir desse escopo que Marcos Lorieri produziu sua Filosofia da
Educação, com olhar voltado à escola, à sala de aula e ao ensino – seus objetos
de pensamento filosófico. Nosso autor foi um dos pioneiros, no Brasil, dos
estudos sobre ensino da filosofia na Educação Básica.
Ensino da filosofia foi e continua sendo seu tema predileto, mas a ampli-
tude com que sempre o abordou em seus artigos, livros e conferências é
sua marca, e reforçamos esta compreensão quando lemos os capítulos que
compõem seu sumário: ensino de filosofia para jovens, ensino de filosofia no
Ensino Superior, proposta de Mattew Lipman de Filosofia para Crianças, ensi-
no de filosofia a partir de alguns pensadores, aulas de filosofia e respeito às
diferenças, enfim, uma riqueza de abordagens e referências filosóficas. Por
isso, apresentar Ensinar filosofia e a filosofar: necessidade urgente à comunida-
de filosófica e educacional tem um duplo sentido: primeiro, porque é um livro-
-homenagem ao seu autor, que formou gerações de professores e professoras
de filosofia especialmente vinculados à escola básica. Também porque produ-
ziu reflexões filosóficas fundamentais sobre o ensino da filosofia que ajuda-
ram a formar pesquisadores e pesquisadoras comprometidos com a constru-
ção do campo de conhecimento ensino de filosofia, que era algo inimaginável

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Ensinar filosofia e a filosofar: necessidade urgente

há algumas décadas atrás no Brasil. E, segundo, porque é um livro que reúne


textos que permanecem atuais, cuja leitura nos fortalecerá, como comunida-
de, na vigilância às recorrentes tentativas mercadológicas e conservadoras de
eclipsar a potência formadora da filosofia para as novas gerações.
É uma alegria apresentá-lo aos colegas e às colegas que acompanham o
trabalho do professor Marcos Lorieri e nele se inspiraram para levar adiante
sua prática docente, suas pesquisas e todas as lutas em prol da filosofia esco-
lar no Brasil. Além disso, é um ato de reconhecimento e admiração apresen-
tá-lo não apenas às novas gerações de professores e professoras de filosofia,
bem como às novas gerações de pesquisadores e pesquisadoras do ensino de
filosofia para que recolham ideias que mobilizem com força seu pensamento
filosófico no tempo presente.

Elisete M. Tomazetti, UFSM, fevereiro de 2023

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Prefácio
Da necessidade e urgência (da obra e do exemplo) de Lorieri:
minha singela homenagem ao amigo Marcos

Prefaciar um livro de Marcos Antônio Lorieri, além de um privilégio, é para


mim a oportunidade de uma viagem no tempo. Para um tempo em que a filo-
sofia tinha seu valor formativo discutido em uma série de eventos acadêmicos,
firmava-se como possibilidade de iniciação reflexiva com crianças, constava
como disciplina obrigatória de inúmeros cursos de graduação em diferentes
áreas de conhecimento e pleiteava um espaço no currículo obrigatório do
Ensino Médio. Mais especificamente, minhas lembranças se voltam para o fim
dos anos de 1990, momento em que eu terminava minha graduação em filoso-
fia na PUC-SP e percebia, tal qual diversos colegas meus, que nada sabia sobre
a minha atuação futura na área.
Por mais que os ensinamentos socráticos sobre a sabedoria envolvida na
consciência da própria ignorância sejam uma parte bastante significativa da
minha formação, não teria qualquer segurança de entrar em sala de aula se
não tivesse tido a chance de, no último ano da minha graduação, ter conheci-
do o trabalho do autor da obra que ora temos em mãos. Eu não tenho dúvida
alguma que a minha trajetória acadêmica é demarcada pelo antes e depois
do convívio com Marcos Lorieri, exemplo de professor, de pesquisador, de
amigo, de ser humano.
A despeito da usual falta de receptividade da temática do Ensino de
Filosofia nos departamentos e programas de pós-graduação em Filosofia,
Lorieri – então lotado no Departamento de Educação da PUC-SP – sempre
cuidou para que a formação docente fosse significativa às/aos estudantes
que, como eu, tiveram a oportunidade de participar de seus cursos. Com ele,
as aulas de Prática de Ensino de Filosofia, Estágio Supervisionado em Filosofia
e Filosofia da Educação tornavam-se não só momentos privilegiados de apren-
dizado de como nos tornamos professoras e professores de filosofia, mas
também de imersão em uma literatura até então pouco usual nas graduações
em filosofia e imprescindível para as reflexões sobre o ofício docente – e,
especificamente, sobre a docência em filosofia.
Textos como “Sobre o ensino de Filosofia”, de Celso Favaretto, “História
da Filosofia: centro ou referência?”, de Franklin Leopoldo e Silva, “A Filosofia na

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Ensinar filosofia e a filosofar: necessidade urgente

formação do educador”, de Dermeval Saviani, e a obra “Filosofia da Educação:


construindo a cidadania”, de Antônio Joaquim Severino, assim como os livros
didáticos Filosofando, de Maria Lúcia de Arruda Aranha e Maria Helena Pires
Martins, e Convite à Filosofia, de Marilena Chauí, eram por nós discutidos em
um exercício dialógico de investigação filosófica – uma prática reflexiva que
igualmente se constituía um aprendizado de como trabalhar com a filosofia
em sala de aula. As questões didático-metodológicas eram sempre acompa-
nhadas do imprescindível debate teórico que as ampara. Nesse sentido, em
seu ofício de professor formador de professoras e professores, Lorieri sempre
procurou garantir que pudéssemos – como defende Cerletti – “ensinar em
condições diversas, e não só porque [teríamos] que idear estratégias didáti-
cas alternativas, mas também porque [deveríamos] ser capazes de repensar,
no dia a dia, os próprios conhecimentos, [nossa] relação com a Filosofia e o
marco que [pretendemos] ensiná-la” (2009, p. 11).
Em grande medida, muitos dos problemas e das teses defendidas por
Cerletti em O ensino de filosofia como problema filosófico (2009) – obra que
hoje orienta muitos de nossos cursos de licenciatura e de nossos programas
de mestrado profissional na área – eram debatidas por Lorieri em sala de aula.
Ademais, torna-se impossível não pensar nas aulas do Marcos como exemplo
vivo daquilo que o filósofo argentino defende como tarefa de ensinar e apren-
der filosofia, a qual:

não poderia estar nunca desligada do fazer filosofia. Filosofia e filosofar se


encontram unidos, então, no mesmo movimento, tanto o da prática filosófica
como o de ensinar a filosofar, conformam uma mesma tarefa de desdobra-
mento filosófico, em que professores e alunos compõem um espaço comum
de pensamento (2009, p. 19).

A prática docente de Lorieri incitava-nos a filosofar e a pensar – coleti-


vamente – o ensino de filosofia como problema filosófico; um problema com
inúmeras especificidades, bem como emaranhado em outras tantas proble-
máticas filosóficas. Cabe notar que a abordagem filosófica do ensino de filo-
sofia que perpassava as aulas de Marcos Lorieri, na década de 1990, trinta
anos depois ganhou estatuto de pesquisa – sendo disseminada e discutida
em inúmeros eventos de filosofia. Professores-pesquisadores como Marcos
Lorieri inauguraram um debate e abriram portas para que novas gerações de

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Marcos Antônio Lorieri

professoras e professores pudessem pesquisar filosoficamente o ensinar e o


aprender filosofia no Brasil.
A prática de sala de aula que experienciei com Marcos em muito reme-
te, também, à ideia de comunidade de investigação presente na proposta do
filósofo norte-americano Mathew Lipman. (Uma proposta, aliás, que dá título
a um dos capítulos da obra que o leitor e a leitora têm em mãos; uma obra
que traz ainda, em um de seus deliciosos anexos, um relato de Lorieri sobre
as passagens de Lipman pelo Brasil.) A construção conjunta de conceitos e
significados, por meio do diálogo, não se constituiu somente mais uma teoria
pedagógica em minha formação docente; antes, configurou-se exemplo de
prática filosófica. Uma prática que, de tão viva, enraizou-se no meu modo de
ser professora e nos caminhos docentes que desde então percorri. Devo ao
Marcos o contato com o Centro Brasileiro de Filosofia para Crianças (CBFC),
no qual fiz todos os cursos oferecidos pelo CBFC, e meu primeiro emprego: o
de professora de filosofia no Ensino Fundamental da Fundação Instituto de
Educação de Barueri. Este gesto de Lorieri é propalado por inúmeros de seus
estudantes: sua generosidade não só intelectual, mas no cuidado em abrir
portas, em indicar empregos, em sugerir editoras, em convidar para eventos
e bancas. Sou extremamente grata a cada um dos gestos que Marcos teve
comigo (e, posso dizer em tom de exclamação, não foram poucos!) e com
nossos pares.
Nesse sentido, Marcos Lorieri é exemplo de professor e pesquisador
tanto quanto de “ser gente” e de “ser gente boa” – temáticas que lhe são tão
caras e que discute no último capítulo do presente livro. Um livro que, ao ser
lançado, já é leitura obrigatória para licenciandas e licenciandos, professoras
e professores, pesquisadoras e pesquisadores da filosofia e de seu ensino.
Desde que fui aluna de Lorieri, passaram-se cerca de vinte e cinco anos.
Nesse período, a obrigatoriedade da filosofia no Ensino Médio foi conquista-
da em 2008; todavia, devido às políticas educacionais impostas sem qualquer
consulta pública ou processo democrático de construção, antes que pudes-
se completar uma década, o lugar da filosofia nas escolas passou a ser o de
“estudos e práticas”. No momento em que acirramos a militância política em
prol da revogação das políticas educacionais instauradas desde o golpe que
destituiu a presidente Dilma, a chegada da obra de Marcos Antônio Lorieri
não poderia ser mais oportuna.

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Ensinar filosofia e a filosofar: necessidade urgente

O livro Ensinar filosofia e a filosofar: necessidade urgente, já em seu título,


clama pela indispensabilidade e urgência do ensino de filosofia; este, entendi-
do na indissociabilidade entre ensinar filosofia e ensinar a filosofar. Uma inse-
parabilidade que sempre foi marca característica das aulas de Marcos, agora
tematizada em sua mais recente obra. Uma publicação que se inicia com a
reescrita da participação do autor em uma mesa virtual em sua homenagem,
na qual, em diálogo com Walter Kohan, Lorieri comenta sobre sua própria
trajetória, costurando-a com as memórias da constituição da área de Ensino
de Filosofia no Brasil. Este texto, assim como os posicionamentos do autor
sobre os demais temas presentes na obra, são valiosas contribuições para o
movimento – iniciado em 2019 – de busca de reconhecimento institucional do
Ensino de Filosofia como campo de conhecimento.
Os demais capítulos, por sua vez, são leitura obrigatória para todas aque-
las e todos aqueles que se dispõem a ensinar filosofia. Não devemos entrar
em sala de aula sem saber argumentar em prol do sentido formativo da filoso-
fia, seja na Educação Básica, seja no Ensino Superior. É desejável, igualmente,
que tenhamos nos debruçado sobre os fundamentos filosófico-pedagógicos
do ofício docente – crucial reflexão para analisarmos nossas práticas em sala
de aula, avaliando-as e reavaliando-as sempre. Por fim – em qualquer época,
mas prioritariamente em tempos em que a filosofia e a democracia são postas
em xeque – cabe defendermos, praticarmos e disseminarmos a ideia de que o
filosofar pode ajudar para o respeito às diferenças. Uma ideia minuciosamen-
te explorada no capítulo escolhido para finalizar o presente livro, mas cuja
força certamente advém de um modo de “ser gente boa” que permeia e cons-
titui cada gesto de Marcos Lorieri: de seu ofício docente às suas produções,
de sua trajetória acadêmica à partilha do saboroso pão que cuidadosamente
prepara para presentear amigas e amigos. Mas o famoso pão do professor
Marcos mereceria um capítulo especial, à parte. Por ora, deliciemo-nos com
seu texto, igualmente primoroso e apetitoso – contribuição tão necessária e
urgente quanto o exemplo de vida de seu autor.

Patrícia Del Nero Velasco, São Paulo, março de 2023

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Introdução

Devo dizer algumas coisas inicialmente: primeiro, de minha honra e satis-


fação por ter tido alguma participação nos primeiros movimentos da criação
do GT Filosofia e Ensinar a Filosofar da ANPOF. Até onde me foi possível, parti-
cipei de suas atividades e fico feliz ao acompanhar a continuidade das ações
deste Grupo que luta pela presença, tão necessária (por isso, importante),
do ensino de filosofia e do filosofar em todos os níveis da Educação Escolar.
Quero aqui prestar minha homenagem a todas e todos participantes deste
Grupo, registrando-os nominalmente de acordo com o agrupamento em
núcleos feito pelo GT desde 2018:
NÚCLEO DE SUSTENTAÇÃO: Adriana Mattar Maamari (UFSCar);
Alessandro Pimenta (UFPI); Alexandre Jordão Baptista (UFMA); Américo
Grisotto (UEL); Christian Lindberg (UFS); Dante Augusto Galeffi (UFBA); Elisete
Medianeira Tomazetti (UFSM); Filipe Ceppas (UFRJ); Flávio José de Carvalho
(UFCG); Joana Tolentino (Colégio Pedro II); José Benedito de Almeida Júnior
(UFU); Junot Cornélio Matos (UFPE); Leoni Maria Padilha Henning (UEL);
Marcelo Senna Guimarães (UNIRIO); Marcos de Camargo von Zuben (UERN);
Marta Vitória de Alencar (Escola de Aplicação da USP); Patrícia Del Nero
Velasco (UFABC); Paula Ramos de Oliveira (UNESP); Pedro Ergnaldo Gontijo
(UnB); Renata Pereira Lima Aspis (UFMG); Renato Noguera dos Santos Jr.
(UFRRJ); Roberto Rondon (UFPB); Rosely Cabral Giordano (UFPA); Silvio
Ricardo Gomes Carneiro (UFABC); Wanderson Flor do Nascimento (UnB).
NÚCLEO DE APOIO: Antonio Edmilson Paschoal (UFPR); Dalton José
Alves (UNIRIO); Edgar Lyra (PUC-Rio); Edmilson Paschoal (UFPR); Geraldo
Horn (UFPR); Giselle Seco (UFRGS); Humberto Aparecido de Oliveira Guido
(UFU); Ivan Maia de Mello (UNILAB); Márcio Danelon (UFU); Marcos Antônio
Lorieri (Uninove); Pedro Angelo Pagni (UNESP); Rodrigo Barbosa Lopes
(UNESP); Rodrigo Pelloso Gelamo (UNESP-Marília); Ronai Rocha (UFSM);
Sérgio Augusto Sardi (PUCRS); Sílvio Donizetti de Oliveira Gallo (Unicamp);
Simone Freitas da Silva Gallina (UFSM); Sonia Maria Ribeiro de Souza (UNIP);
Wanderley José Deina (UTFPR); Walter Omar Kohan (UERJ); Walter Matias
Lima (UFA).
A história deste GT, desde suas origens em 2006, consta do livro Filosofar
e Ensinar a Filosofar: registros do GT da ANPOF 2006-2018 (2020), de autoria

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Ensinar filosofia e a filosofar: necessidade urgente

de Patrícia Del Nero Velasco, e está disponível gratuitamente no site da


NEFI-Edições2.
Walter Kohan, um de seus idealizadores, diz sobre este GT:

[…] esse grupo de trabalho nasceu com a força da diferença e do atrevimen-


to. Passaram-se quase quinze anos desde a criação do Grupo de Trabalho
“Filosofar e Ensinar a Filosofar” na Associação Nacional de Pós-Graduação
em Filosofia (ANPOF) e o grupo só alimentou essa paixão (apud Velasco,
2020, p. 16).

A este Grupo de Pessoas agradeço sensibilizado o encontro do dia 13 de


outubro de 2021, no qual fui homenageado com o aval dos seus participantes
e, em especial, o empenho de Patrícia Velasco e Walter Kohan para sua reali-
zação, bem como a participação especial de Elisete Tomazetti.
Agradeço ainda a participação de tantos colegas, amigos e parentes neste
encontro e as mais de 900 visualizações no Canal da ANPOF, no YouTube3.
Além deste registro/homenagem, devo dizer algo sobre os capítulos
do livro. À exceção do capítulo 1, que é uma transcrição editada de falas do
encontro realizado em 13 de outubro de 2021, os demais capítulos são textos
produzidos e publicados ao longo de vários anos. Foram escolhidos por mim,
revistos, atualizados e, em boa parte, modificados. Refletem o que hoje penso
sobre filosofar e ensinar a filosofar.
O capítulo 2, “Fazer filosofia como educação: argumentos quanto às
suas possibilidades formativas”, é uma retomada de texto anteriormente
elaborado, mas não publicado. Foi revisto e atualizado.
O capítulo 3, “Posicionamentos meus relativos ao ensino de filosofia”,
é um texto, com alguns ajustes, do meu depoimento constante de um capí-
tulo do livro A escola pública aposta no pensamento (2012), de Walter Kohan e
Beatriz Fabiana Olarieta.
O capítulo 4, “Aulas de filosofia podem ajudar para o respeito às dife-
renças”, retoma partes de ideias presentes nos seguintes textos: “Pensando

2
Disponível em: http://filoeduc.org/nefiedicoes/editora.php.
3
ANPOF Oficial. Memórias da constituição da área de Ensino de Filosofia no Brasil. You-
Tube, 13 de outubro de 2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=S4HoLg-
NNd9A.

18
Marcos Antônio Lorieri

igualdade e diferenças e o ensino de filosofia”4, “Ensino de filosofia e diversi-


dade”5 e “Interculturalidade e direitos humanos”6.
O capítulo 5, “A proposta de ensino de Filosofia de Matthew Lipman”,
retoma o capítulo “Matthew Lipman, Filosofia e Ensino de Filosofia”, publi-
cado no livro organizado por Patrícia Del Nero Velasco: Ensino de – qual? –
Filosofia: ensaios a contrapelo7.
O capítulo 6, “Ética no ensino de filosofia: contribuição para a formação
do jovem”, retoma, com pequenas alterações, um artigo com o mesmo título,
publicado em 2011, na Revista Primus Vitam8.
O capítulo 7, “Filosofia é um direito por ser uma necessidade: filosofia e
formação no Ensino Superior”, reproduz parte de um artigo com título igual,
com ajustes e alguns acréscimos, publicado na Revista Páginas de Filosofia9.
Se as ideias aqui apresentadas colaborarem para que a presença do ensi-
no de filosofia e do filosofar seja mantida e expandida, dou-me por muito bem
pago e me sentirei feliz por isso.

4
Cf. OLIVEIRA, Marcus Vinícius Xavier de; DANNER, Leno Francisco; DANNER, Fernando;
DORRICO, Julie. (org.). As diferenças no ensino de filosofia: reflexões sobre filosofia e/da
educação. Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2017. p. 93-114.
5
Cf. DANNER, Fernando; DANNER, Leno Francisco. (org.). Ensino de Filosofia, Gênero e Diver-
sidade: Pensando o Ensino de filosofia na escola. Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2014. p. 30-51.
6
Cf. CAVALHO, Adalberto Dias de. (org.). Interculturalidade, educação e encontro de pessoas
e povos. Porto, PT: Edições Afrontamento, 2013. p. 193-203.
7
Cf. VELASCO, Patrícia Del Nero. Ensino de – qual? – Filosofia: ensaios a contrapelo. Ma-
rília, SP: Oficina Universitária; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2019. p. 253-278 com ajustes
e acréscimos.
8
Cf. LORIERI, Marcos Antônio. Ética no ensino de filosofia: contribuição para a formação
do jovem. Revista Primus Vitam, São Paulo: Mackenzie, v. 1, p. 1-12, 2011.
9
Cf. LORIERI, Marcos Antônio. Filosofia e formação no Ensino Superior. Revistas Páginas
de Filosofia, UFABC, São Paulo: São Bernardo do Campo, v. 2, n. 1, p. 47-60, jan.-jun. 2010.

19
Capítulo 1

A constituição da área de ensino


de filosofia no brasil:
memórias de um encontro

Vejo como feliz o tema do encontro: “Memórias da constituição da área de


Ensino de Filosofia no Brasil”, e me sinto participante, com muitos outros, da
constituição desta memória. Aceitei agradecido a homenagem a mim presta-
da10, dividindo-a com todas as Professoras e todos os Professores de filosofia
(de ontem, de hoje e de sempre) e com todas as pesquisadoras e todos os
pesquisadores que têm, como seu objeto de pesquisa, o ensino de filosofia e
do filosofar.
Senti-me muito honrado, agradecido e feliz por ter a participação do
Grupo de Trabalho da ANPOF “Filosofar e ensinar a filosofar”, que luta brava-
mente pelo ensino de filosofia, por ter a professora Patrícia Del Nero Velasco
à frente deste evento, pela presença amiga do professor Walter Omar Kohan
e pela participação especial da professora Elizete Medianeira Tomazetti.
Agradeço também a presença das amigas, amigos, colegas e parentes.
Uma área de conhecimento não se constitui do nada. Ela se constitui da
prática daqueles que pesquisam/produzem conhecimentos relativos a ela e
dos que fazem acontecer o objeto dessas pesquisas – no caso, o ensino de

10
O encontro “Memórias da constituição da área de Ensino de Filosofia no Brasil”, reali-
zado virtualmente em 13 de outubro de 2021, teve também como finalidade prestar-me
uma homenagem por ocasião dos meus 80 anos de vida, sendo quase 60 deles dedicados
ao ensino de filosofia. Daí minha gratidão e a ideia da organização deste livro.

21
Ensinar filosofia e a filosofar: necessidade urgente

filosofia e do filosofar. Tem sido muito demorado o reconhecimento desta


área, seja pelos Departamentos de Filosofia das Universidades, seja pelas
agências de apoio a pesquisas ou de avaliação da produção acadêmica.
A dificuldade em reconhecer a importância da pesquisa relativa ao ensi-
no de filosofia e do filosofar talvez se deva, em grande parte, a certa tradição
de pensamento segundo a qual, para ensinar, basta o domínio do conheci-
mento ou do fazer a ser ensinado. Nesse sentido, não haveria necessidade de
se ter conhecimentos de didática geral (relativos ao como ensinar), metodo-
logias, procedimentos e estratégias de ensino; tampouco conhecimentos de
didáticas específicas, assim como metodologias, procedimentos e estratégias
de ensino adequadas a cada campo do saber e do fazer.
Esta tradição insere-se no que se convencionou denominar Pedagogia
Tradicional, que tem como uma de suas características básicas a centralização
do ensinar na pessoa do professor que “dita” aulas ou, simplesmente, expõe
o que sabe ou conhece de cada área do conhecimento (caraterística traduzida
pela expressão latina magister dixit).
Pesquisar a respeito das melhores maneiras de levar a cabo processos
de ensino em cada campo do saber e das suas relações intrínsecas com esses
campos é algo mais necessário do que nunca, vistas as reações não tão novas
(vide Montaigne, século XVI, e Comenius, século XVII) e as mais recentes (em
especial, as do século XX e as atuais) à “pedagogia tradicional”.
No campo do saber filosófico, as questões relativas ao seu ensino têm
merecido interesse especial nos últimos tempos (talvez nos últimos cinquen-
ta anos ou um pouco mais) e, recentemente, têm suscitado investigações
produtivas a respeito do caráter filosófico desse ensino. Trata-se de uma área
especial de saber que já tem uma história considerável de produções e que
oferece aportes importantes para suas complexidades específicas, como o
caráter filosófico desse ensino. Além de ser uma área que tem caminhado
com produções importantes no tocante à necessidade de todas as pessoas
aprenderem filosofia e a filosofar, ou “aprenderem filosofia filosofando”,
merece prosseguimento e aprofundamento de pesquisas.
A prática de ensinar filosofia e de ensinar a filosofar com vistas à supera-
ção, neste âmbito, das limitações da “pedagogia tradicional”, tem indicado a
realização das aulas como “aulas de experiências de pensamento filosófico”,
nas quais se busca o aprendizado de conteúdos filosóficos ao mesmo tempo

22
Marcos Antônio Lorieri

em que se busca o aprendizado do exercício do filosofar. Para isso, professo-


res precisam, primeiro, saber realizar essas experiências e, em segundo lugar,
saber desenvolver aulas nas quais tais experiências de pensamento filosófico
possam ser aprendidas pelos alunos. Daí a necessidade de lhes oferecer uma
formação inicial – nas licenciaturas – e continuada – ao longo da vida – que os
capacitem para isso.
Não se trata, nessa perspectiva, de apenas ensinar/aprender conte-
údos de filosofia (necessários) nem apenas de ensinar/aprender a pensar
filosoficamente (também necessário). Trata-se de buscar fazer acontecer
ambas as coisas.
E aqui entramos no que foi proposto por mim para este encontro:
conversarmos a respeito da necessidade de as pessoas aprenderem filosofia e
a filosofar e, por consequência, a respeito da necessidade da presença desses
dois aprendizados já na educação escolar básica, a fim de trocarmos possíveis
argumentos justificadores dessa necessidade.
Não só: penso na necessidade de levarmos estes argumentos para
pessoas que não são da área da filosofia e do ensino de filosofia, pois nós
já estamos convencidos. Faz-se necessário levá-los para pais, famílias,
gestores escolares, responsáveis por políticas públicas educacionais e
demais pessoas.
Penso ser esclarecedor o exemplo de um aluno meu, do doutorado em
educação, administrador de empresas com mestrado na área nos EUA, que,
após algumas semanas de aulas de Filosofia da Educação, disse-nos que não
se perdoava por nunca ter estudado filosofia tendo chegado aos 52 anos de
idade. Isso lhe fazia muita falta e pensava em dedicar-se a este estudo daí
para frente.
Como também são esclarecedoras estas palavras (enviadas em e-mail) de
uma coordenadora pedagógica de escola pública de São Paulo que foi minha
aluna no mestrado: “Tenho visto, agora na coordenação, o quanto o sistema
anula a vivência pedagógica. […] Poucos são os (professores) que percebem
a necessidade da filosofia na educação, achando que exercitar o questiona-
mento é ser idealista e estar distante da realidade”. Ela diz, a certa altura,
que busca forças para mostrar a todos a importância da filosofia, ao recupe-
rar “as vivências das aulas que tivemos na linha de pesquisa em Filosofia da
Educação”. Trata-se de uma coordenadora que não teve formação filosófica

23
Ensinar filosofia e a filosofar: necessidade urgente

na graduação e teve aulas de Filosofia da Educação no mestrado, as quais,


como dá a entender, lhe mostraram a importância dessa formação.
Quando as pessoas percebem do que se trata o filosofar e o que significa
fazer experiências de pensamento filosófico, elas percebem a necessidade e
importância do ensino e do aprendizado da filosofia e do filosofar. Elas passam
a perceber que fazer filosofia não é “viver no mundo da lua”; não é somen-
te “navegar em abstrações” desvinculadas da existência. Pelo contrário, é
algo muito concreto, pois a filosofia está presente, de alguma maneira, nas
pessoas, seja como portadora das grandes referências para suas vidas, seja na
forma de doutrinas inculcadas ideologicamente, seja ainda em alguma forma
assumida conscientemente.
O início do encontro me oportunizou dizer o que resumi até aqui, tendo
havido, além disso, uma introdução do encontro por parte do professor
Walter Kohan. Ele tem tido uma participação especial na trajetória da área
do ensino de filosofia no Brasil, desde que veio da Argentina e se fixou no
mundo acadêmico brasileiro, a começar por sua atuação no desenvolvimen-
to de ações relacionadas ao Programa de Filosofia para Crianças, proposta
pensada e criada por Matthew Lipman e trazida para o Brasil por Catherine
Young Silva na década de 198011.
Muitos de nós nos envolvemos em estudos e em muitas ações relacio-
nados a este Programa, levando a proposta a mais de duas mil escolas, tendo
oferecido a mais de cinco mil professoras e professores alguma preparação
para o trabalho em salas de aula com ele. Isso resultou no fato de, até hoje,
muitas escolas terem, nas suas propostas pedagógicas, o ensino de filosofia
e do filosofar também no Ensino Fundamental. O professor Walter tem sido
uma das referências teóricas fundamentais para toda esta prática, além de
promover ações concretas como o projeto desenvolvido em Duque de Caxias,
na baixada fluminense do Rio de Janeiro, em escolas públicas, que tem um
título muito sugestivo: “Em Caxias a Filosofia Em-Caixa?”12.

11
Para os interessados em conhecer esta proposta, há diversas publicações a respeito. Su-
gere-se a leitura de livros da coleção “Filosofia na Escola”, da Editora Vozes, em especial
o primeiro volume. Cf. KOHAN, W. O; WUENSCH, A. M. (orgs.). Filosofia para crianças: a
tentativa pioneira de Matthew Lipman. Petrópolis: Vozes, 1999.
12
Para saber mais a respeito sugere-se o livro: KOHAN, Walter; OLARIETA, Beatriz Fabiana
(orgs.). A escola pública aposta no pensamento. Rio de Janeiro: Autêntica Editora, 2012.

24
Marcos Antônio Lorieri

A consideração a respeito da importância do trabalho teórico desenvol-


vido por Walter indica que tanto a prática como a teoria não são suficientes
para constituição de uma área do saber. Teorias só podem existir se existe o
acontecer da realidade, a “prática”. Teoria é o olhar para o que acontece, o
olhar para a prática, olhar que se organiza procurando representar, da melhor
maneira possível (nas teorias), tudo o que ocorre e, no caso das práticas
educacionais, tudo o que nelas acontece, oferecendo-lhes entendimentos e
possíveis direções ou sentidos.
O ensino de filosofia e do filosofar é uma prática educativa fundamen-
tal pela contribuição que oferece na humanização das pessoas. É uma práti-
ca que necessita do olhar teórico resultante nos e dos estudos e pesquisas a
respeito dela e que já conta com um vasto acervo que produz entendimentos
e orientações para sua cada vez melhor realização.
Este acervo teórico a respeito do ensino de filosofia/do filosofar e sua
contínua produção nas pesquisas é o que constitui a área “Filosofia e seu
ensino”. Área que é necessária visto que trata de oferecer, como já dito,
entendimentos e orientações para que o aprendizado de filosofia e do
filosofar aconteçam, dada sua importância, como ajuda na humanização
das pessoas.
Walter, a partir da afirmação de que a filosofia é importante como
ajuda na humanização das pessoas pergunta: “Por que uma vida sem filo-
sofia perde uma dimensão significativa? O que a filosofia traz para existên-
cia humana?”.
Inicialmente, reafirmo algo que sempre repito: a filosofia é importan-
te porque é necessária na vida de todas as pessoas, como espero mostrar a
seguir. Sua importância decorre de sua necessidade.
Pensando nos professores e nas professoras de filosofia que estão
se iniciando na docência, ou que estão se preparando para ela, penso que
deveriam refletir sobre o seguinte: mesmo que não se queira, mesmo que
não se saiba, todos nós, desde que nascemos, recebemos de nossas famí-
lias, e depois nas escolas, alguma orientação filosófica de como viver, de
como agir, bem como representações ou entendimentos, por exemplo,
sobre o que é o ser humano; quem são os seres humanos que devemos
considerar importantes e quem são aqueles que não precisamos considerar
importantes, ainda que isso não seja dito de maneira clara. Isso me espanta

25
Ensinar filosofia e a filosofar: necessidade urgente

e me preocupa, pois são representações e entendimentos com conteúdos


“filosóficos” ajustados ideologicamente e transmitidos e assimilados sem
nenhuma reflexão sobre sua validade e veracidade. Essas “orientações”
vêm dos pais, dos avós, dos padrinhos, dos demais parentes, dos profes-
sores, dos colegas, das mídias sociais. Há como que uma “naturalização”
destas referências que podem estar equivocadas. Elas estão agregadas ao
que denominamos de senso-comum, que é uma fonte forte de orientações
para a maioria das pessoas.
Isso, por si só, já recomenda um trabalho de reflexão crítica por parte de
todos, que precisa ser aprendido. É necessário aprender a colocar sob o crivo
da reflexão filosófica tudo o que “habita” nossas mentes, seja para confir-
mar, seja para rejeitar, seja para substituir: sempre com bons argumentos.
Aprendizado que vale a pena ser iniciado o mais cedo possível com as crianças
e com os jovens. Se possível, levar este aprendizado para os adultos que não o
tiveram. Lembro aqui a passagem de um livro de Marilena Chauí ao responder
à pergunta sobre a utilidade da filosofia:

Se abandonar a ingenuidade e os preconceitos do senso comum, for útil; se


não se deixar guiar pela submissão às ideias dominantes e aos poderes esta-
belecidos, for útil; se conhecer o sentido das criações humanas nas artes, nas
ciências e na política, for útil; se dar a cada um de nós e à nossa sociedade os
meios para serem conscientes de si e de suas ações numa prática que dese-
ja a liberdade e a felicidade para todos, for útil, então podemos dizer que a
Filosofia é o mais útil de todos os saberes de que os seres humanos são capa-
zes (Chauí, 2003, p. 24).13

É necessário (portanto, importante) refletir criticamente sobre o que


é uma pessoa. O que é um ser humano e quem é ser humano. Porque nem
sempre todas as pessoas são consideradas como pessoas, como seres huma-
nos dignos de todo e profundo respeito. Esse me parece ser o principal cami-
nho para que sejam resolvidos muitos problemas da humanidade. Não existe
nenhum ser humano que é mais importante ou menos importante que outro
ser humano.
Como disse Terezinha Rios em um de seus comentários neste encontro:

13
CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ed. Ática, 2003.

26
Marcos Antônio Lorieri

Perguntar pelos seres humanos, pela vida, pelos valores, é mesmo coisa de
se aprender. Chega a hora em que a gente descobre que filosofar, para nós,
é como respirar. E tem hora que a gente fica sem ar…

Filosofar aprende-se para se poder respirar humanidade com mais facili-


dade, ainda que este aprendizado não seja fácil. Um aprendizado que convida
a perguntar muito e de maneira profunda pelos seres humanos, pela vida,
pelos valores, como diz Terezinha e, pode-se acrescentar, pelo conhecimento
e pela sua veracidade, tantas vezes negada por interesses nada bons. E mais:
perguntar-se pela beleza, por tudo que nos afeta e como nos afeta, pois
somos movidos por nossa afetividade, por nossas emoções que merecem
sempre atenção cuidadosa para que não nos percamos na sua força, muitas
vezes avassaladora, mas necessária e boa.
Posso dar um exemplo de convite à reflexão crítica com uma experiência
que tive em uma escola pública de São Paulo da qual fui diretor. No começo
do ano, fui a todas as salas para conversar com as crianças e me apresentar.
Em uma delas, de um segundo ano do Ensino Fundamental, disse às crianças
que eu era o novo diretor da escola. Perguntei: “O que vocês acham que é um
diretor de escola?”. Uma menina disse: “O diretor é aquele que manda em nós”.
“Como assim?”, disse eu. “O que eu mando?” E ela: “Você manda a gente estu-
dar, manda a gente calar a boca, ficar quieto, ser obediente e outras coisas”. Eu
disse, então: “Eu não mando nada”. E ela: “Então você não pode ser diretor. O
diretor tem que mandar”. E eu: “Por quê?”. E ela: “Porque você é mais importan-
te do que a gente. Porque você tem mais autoridade”. Perguntei, então, para
outras crianças. Algumas concordavam, outras não, outras ficavam em dúvidas.
Nesse momento, fiz um convite para que pensassem comigo o seguinte:
eu sou o diretor da escola, assim como a professora é professora desta escola,
e assim como as pessoas que fazem a limpeza e as que trabalham na cozinha
também fazem parte da escola. Todos nós trabalhamos para vocês. Um menino
disse: “Vocês trabalham para nós?”. “Sim”, disse eu. “E quem vocês acham que
paga os nossos salários?” Um aluno disse: “É o governo”. “Pois bem: e onde o
governo arruma o dinheiro?” “Ele deve arrumar em algum lugar”, alguém disse.
E eu: “Sim”. E expliquei que esse dinheiro vinha dos impostos e que impostos
são “pedacinhos” do valor que todos nós pagamos quando compramos arroz,
feijão, batata, outros alimentos, roupas e outras coisas. E que os pais deles,

27
Ensinar filosofia e a filosofar: necessidade urgente

quando fazem estas compras, já pagam este imposto. E que, portanto, quem
dava o dinheiro para o governo pagar o meu salário eram os pais deles.
Aí, um desses alunos mais espertos, pensou um pouco e disse: “Se é
nossa família que dá o dinheiro para pagar você, então é nossa família que
manda em você. E você tem que fazer o que eles querem”.
“Pois é”, disse eu. “E o que seus pais querem que eu faça aqui na esco-
la?” Respostas: “Que você cuide bem da escola”, “Cuide bem da gente para
a gente estudar”.
“E o que eu tenho que fazer para vocês poderem estudar?” Resposta do
aluno: “Aquilo que a menina disse antes: você tem que mandar a gente estu-
dar direito, mandar a gente obedecer a professora e várias outras coisas”.
Pararam um pouco e começaram a dizer algo assim: “É legal pensar
nisso. Não é que você seja mais importante. Todo mundo aqui é importante.
Todo mundo ajuda”.
Nesse momento, aproveitei para explicar um pouco a importância do
“público”. “Esse é um serviço público, dirigido ao público. E vocês, suas famí-
lias e nós da escola fazemos parte do público. A escola pública é de todos nós
e para todos nós”, e fiz algumas considerações a este respeito.
Em uma reunião com as professoras e os professores, comentei esta
conversa e coloquei um desejo meu que, na verdade, indica uma convicção:
nesta escola, eu não gostaria que fôssemos chamados de “funcionários públi-
cos”, e sim “funcionários do público”. O público é o povo, é a sociedade e nós
temos que agir de acordo com as necessidades deles; no caso de uma escola,
de acordo com as necessidades educacionais deles. Há muitos outros aspec-
tos a pensar sobre isso e, nem sempre, o senso comum (inclusive o nosso) dá
conta de pensar adequadamente a respeito.
Quero crer que este é um exemplo de reflexão filosófica que parte da
realidade de pessoas que não percebem certos aspectos que são subjacentes
às nossas vidas e às nossas práticas e, em especial, não percebem as razões
pelas quais as coisas acontecem, as razões pelas quais certas ideias estão
nas nossas mentes, as razões pelas quais devemos respeitar os outros, ou
as razões pelas quais se deve agir de determinada maneira considerada boa
em vez de outra considerada não boa. Quando as pessoas podem (é o que se
espera), primeiro, entender e, a seguir, fazer suas escolhas, isso significa um
salto qualitativo em sua humanidade.

28
Marcos Antônio Lorieri

Quando penso no que seja filosofia, penso nisso: ser capaz de buscar
razões para compreender por que tudo ocorre. Ou ser capaz de buscar
razões em virtude das quais certas pessoas afirmam o que afirmam. Sempre
há razões para o que ocorre e para o que as pessoas afirmam. Buscar saber
dessas razões é fundamental para nossas decisões. E decisões são encaminha-
mentos de ações, de como agir vivendo a vida.
Penso que isso deve ser feito já no ensino Médio (e mesmo antes). Com
esta maneira de trabalhar no ensino de filosofia, pode-se abordar questões
relativas à ideologia, à dominação simbólica, ou seja, à inculcação de ideias
nas mentes das pessoas e questões outras relativas não apenas às formas de
exploração e de dominação, mas também relativas a todos os demais aspec-
tos da realidade já mencionados anteriormente.
Prestar este serviço como professor de filosofia é fundamental para a
formação das crianças e dos jovens e, por consequência, para a formação da
futura sociedade, pois as crianças e os jovens de hoje serão as pessoas que
constituirão as futuras sociedades.
Matthew Lipman, em uma passagem do livro Filosofia na sala de aula
(1994), aponta algo muito interessante quanto às contribuições formati-
vas da filosofia, ao comentar que, geralmente, as pessoas aceitam passiva-
mente ideias dominantes a respeito de tudo e, como pais ou educadores,
acabam transmitindo às novas gerações esta passividade ou conformismo.
Eles se tornam exemplos deste conformismo passivo e o ensino de filosofia
pode ser um antídoto a esta passividade, fazendo com que as crianças de
hoje não sirvam, no futuro, deste tipo de modelo exemplar às novas gera-
ções. Diz ele:

Para muitos adultos a experiência de se admirar e refletir nunca exerceu


nenhuma influência sobre suas vidas. Assim, estes adultos deixaram de ques-
tionar e de buscar os significados da sua experiência e, finalmente, se torna-
ram exemplos da aceitação passiva que as crianças acatam como modelos
para sua própria conduta. Desse modo a proibição de se admirar e questio-
nar se transmite de geração para geração. Em pouco tempo, as crianças que
agora estão na escola serão pais. Se pudermos, de algum modo, preservar o
seu senso natural de deslumbramento, sua prontidão em buscar o significado
e sua vontade de compreender o porquê de as coisas serem como são, have-
rá uma esperança de que ao menos essa geração não sirva a seus próprios
filhos como modelo de aceitação passiva (Lipman, 1994, p. 55).

29
Ensinar filosofia e a filosofar: necessidade urgente

Isso parece ser um aspecto comum em todos os tempos, como se pode


ver nas ideias impostas às pessoas, por exemplo, ao longo da história, no
Império Romano e na Idade Média, e na dificuldade das lutas contra as imposi-
ções ideológicas, das quais as épocas anteriores e posteriores as duas mencio-
nadas não escaparam.
Exemplos não faltam, temos a “naturalização” de certas posições rela-
tivas ao autoritarismo, ao racismo, às diversas formas de discriminação que
teimam em permanecer “passivamente” nas mentes que as desposam e
violentamente nas ações das pessoas, seja contra os que julgam “insubordi-
nados” (no caso dos autoritários), seja contra os “diferentes” (no caso dos
que “naturalmente” discriminam).
A formação filosófica oferecida em aulas de Filosofia pode ser uma força
importante na luta contra estas acomodações.
O que foi dito até aqui são algumas ideias a respeito do papel formati-
vo da Filosofia. Como professor de filosofia, estou convencido de que este
é um trabalho fundamental que visa despertar aquilo que é denominado de
senso crítico, de análise crítica da realidade na qual vivemos: algo progressivo,
pois não se tem consciência clara de tudo de forma imediata, e sim de forma
mediatizada – e o ensino é uma das mediações. Trata-se de ajudar no progres-
so da tomada de consciência das razões pelas quais a vida (ou o existir) é
desta maneira e na tomada de consciência das razões pelas quais, se necessá-
rio, isso pode ou deve ser mudado.
Vejo que este é um papel fundamental da filosofia na vida das pessoas
que é, ao mesmo tempo, doloroso, porque nos faz colocar em questão ideias
e posicionamentos que nos foram transmitidos e que estão enraizados em
cada um de nós. Desenraizar isso dói; mas, quando o fazemos e levamos isso
ao nível da consciência, podemos começar a pensar por nossa conta e risco.
Por um lado, podemos concordar com o que aí está por razões que elabo-
ramos; por outro, também por razões nossas, podemos discordar e buscar
outras maneiras de agir, de pensar ou de viver.
Estes são argumentos que utilizo para defender a necessidade da forma-
ção filosófica. Há outros argumentos, de outros pensadores, que constarão
em um capítulo específico, após essas ideias decorrentes da “roda de conver-
sa”, dentre as quais ainda vale acrescentar algumas coisas.

30
Marcos Antônio Lorieri

Walter Kohan comentou o relato sobre minha conversa com as crianças,


dizendo que provocou várias perguntas, além de afirmar que a forma como as
crianças foram tratadas mostra uma sensibilidade que ele denomina de boni-
ta e que deve ser sempre a forma de tratamento com as crianças. Eu acres-
centaria: sem perder o necessário rigor nos momentos em que a autoridade
do adulto se faz necessária para a indicação, também, de limites às crianças,
acompanhada, esta indicação, das razões desses limites. Pois aquilo para o
que não há razões não merece ser considerado.
Fiz, em seguida, um comentário sobre Paulo Freire ter escrito, em
novembro de 1987, um pequeno texto como prefácio a um livro, também
pequeno, que alunas do curso de Pedagogia da PUC-SP haviam produzido.
A escrita do texto ocorreu em uma de minhas aulas da qual ele participou por
alguns momentos e a pedido delas. Dele destaco o seguinte:

Há coisas, Eliana (aluna que organizou o livro), que a gente precisa dizer
e redizer, sempre com força, convicção. Há uma que tenho dito e escrito
muitas vezes e vou agora repetir: o espontaneísmo não é o contrário positivo
da manipulação e vice-versa. Se não sou, por princípio, por coerência políti-
ca, manipulador, não posso ter, no espontaneísmo, o meu caminho. Como
professor, nem posso deixar os alunos entregues a eles mesmos, nem fazer
deles meros pacientes de minha competência, não importa se trabalho com
crianças, ou adultos. Nem só a liberdade deles que, sem minha autoridade, vira
licença, nem só a minha autoridade que, sem a liberdade deles, vira autoritaris-
mo (Itálicos meus).14

Neste texto de Freire fica bem clara sua posição quanto a não concor-
dar com autoritarismos nem com a falta da indicação de limites (devidamente
justificados) para as educandas e os educandos.
Walter diz que teria sido muito mais fácil, mesmo discordando do que as
crianças disseram com relação à função de “mandar”, ter explicado por que
não era isso. Mas o que foi feito fez com que as crianças, através de pergun-
tas, pensassem no que haviam dito, olhassem para dimensões da realidade
para as quais não haviam olhado e percebessem alguns aspectos do problema
que não haviam considerado. As crianças aprenderam que ninguém é superior

14
Não consegui localizar o “pequeno livro” ao qual me refiro. Mantenho comigo uma cópia
reprografada do manuscrito de Freire, cujo original ficou, por direito, com as alunas.

31
Ensinar filosofia e a filosofar: necessidade urgente

a ninguém, não apenas nas falas de um adulto, mas também porque viveram
isso na forma como foram escutadas e consideradas.
Eu penso que trabalhar com as crianças convidando-as a pensar e repen-
sar suas falas, portanto, a refletir, é uma maneira “filosófica” de auxiliá-las no
desenvolvimento do seu pensamento reflexivo e crítico que é uma das carate-
rísticas fortes da maneira de pensar filosófica. E isso pode ser feito de maneira
respeitosa e alegre como disse Terezinha Rios, ao comentar a afirmação de
Jorge Larrosa, na qual faz um lindo elogio do riso e lembra que a alegria é irmã
da seriedade (Larrosa, 2004, p. 170).
Dalva Garcia, no tocante a provocações para que crianças pensem ou
se sintam convidadas a pensar dessa maneira, comentou sobre uma situação
ocorrida em sala de aula com crianças que desenvolviam atividades propostas
no Programa de Filosofia para Crianças de Matthew Lipman, afirmando que,
naquela ocasião, teríamos ajudado as crianças “a alterar o estado de dúvida
em pergunta”. Ou de dar à pergunta o estado de dúvida.
Neste momento, foi posta uma pergunta: que diferença há entre pergun-
ta e dúvida? Não consegui dizer. Mas busquei saber, fui indagar, pois pergun-
tar tem a ver com interrogar ou mesmo indagar para esclarecer a dúvida. Já a
dúvida diz respeito a alguma hesitação, a alguma incerteza em relação a algo,
ou a alguma dificuldade de compreensão.
O interrogar ou indagar do perguntar pode, se a pergunta força a neces-
sidade da resposta, levar à investigação, à pesquisa. Já a dúvida pode, pela
indecisão que provoca, ser paralisante da ação. No caso da ação de buscar
respostas, a dúvida, se não paralisa a investigação, a dificulta. Dificulta até o
momento em que se consegue transformar o estado de dúvida em um estado
de indagação, ou de pergunta.
Exemplificando: se estou em dúvida quanto a que decisão tomar no
tocante à compra de uma geladeira, posso transformar esta dúvida em uma
ou mais perguntas, como “que tipo de geladeira necessito em minha casa?”,
“qual seu tamanho?” (pensando no espaço disponível), “qual sua capacida-
de?” (pensando no que pretendo nela guardar), “qual seu consumo médio
de energia?”, “qual o preço?” etc. Tendo as perguntas, posso desencadear
uma pesquisa, uma ou várias investigações que poderão me proporcionar a
superação do estado de dúvida, levando-me à compra, ou não, da geladeira.
O “não comprar”, por exemplo, devido ao preço e devido às minhas possi-

32
Marcos Antônio Lorieri

bilidades de pagamento, é uma solução que me retira do estado de dúvida.


Assim como “o comprar”, caso seja esta a solução obtida. Caso o estado de
dúvida se mantenha, haverá sempre o incômodo da situação do “entre uma
coisa ou outra”. Não haverá uma decisão.
A palavra “de-cisão”, assim desmembrada, indica algo interessante:
quando a tomamos, fazemos uma “cisão” (um corte) “de” ou em relação a
outras possibilidades. E, ao mesmo tempo, podemos deixar “em aberto” a
busca futura das demais possibilidades.
Esta conversa gerou novas considerações como, por exemplo, a neces-
sidade em transformar perguntas que mais afirmam em perguntas que mani-
festam indagações.
As boas perguntas são aquelas que nos fazem pensar, nos fazem refletir
na busca de respostas. Às vezes conseguimos elaborar respostas com ideias
ou com informações ou com conhecimentos de que já dispomos. No entanto,
por vezes, não temos ideias, nem informações e menos ainda conhecimentos
para elaborar uma resposta. Nesse último caso, se precisamos da resposta,
temos que ir à luta para a busca de dados, de informações, de subsídios com
os quais possamos elaborar alguma resposta. Esta “luta”, ou esse trabalho de
busca, é a própria investigação. São vários os caminhos (ou métodos, pois a
palavra método significa “caminho para”) para o desenvolvimento de inves-
tigações. Fazemos isso instintivamente para sobreviver, para obter informa-
ções relativas às necessidades e urgências da vida, para produzir um mínimo
de entendimentos que nos ajudem a nos situarmos nas diversas realidades
das quais participamos e das quais dependemos (normalmente, nesse nível,
produzimos uma forma de conhecimento que é comum a todas as pessoas – o
“senso-comum”). Desenvolvemos caminhos, ou métodos, para este tipo de
investigação. E a Humanidade, ao longo da História, desenvolveu outros cami-
nhos/métodos para outras formas de conhecimento (para a forma de conhe-
cimento denominada de Filosofia, para a forma de conhecimento científico,
para a forma de conhecimento artístico, e ainda outras formas, como o mito
ou o conhecimento religioso).
O aprimoramento dos métodos ou caminhos do conhecer é algo impor-
tante e seus resultados podem ser aprendidos nas várias formas de educa-
ção. Na forma de educação que denominamos de “educação escolar” (por ser
realizada em escolas), ensina-se/aprende-se ciências e filosofia, por exemplo,

33
Ensinar filosofia e a filosofar: necessidade urgente

e pode-se/deve-se ensinar/aprender, também, os métodos de se fazer ciên-


cia e de se fazer filosofia. Aprender filosofia e aprender a filosofar são dois
aprendizados que não se separam e, isso é importante de se dizer, podem ser
aprendidos e fazem bem às pessoas que os aprendem.
Buscamos mostrar, nessa conversa, motivos, razões ou argumentos
que sustentem que ensinar/aprender filosofia e a filosofar “faz bem” e que
esse ensino/aprendizagem deve ocorrer já na Educação Básica, no mínimo no
Ensino Médio.
Um dos aprendizados básicos para se aprender filosofia e a filosofar
(isso vale para as ciências) é aprender a fazer ou a elaborar boas perguntas,
ou seja, perguntas que desencadeiem investigações capazes de nos ajudar na
obtenção das necessárias respostas. Quem não tem perguntas, geralmente,
não aprende. Não por acaso, Paulo Freire, juntamente com Antônio Faundez,
escreveu um livro com o título Por uma pedagogia da pergunta15.
Lembro-me de uma entrevista de um médico oftalmologista da Faculdade
de Medicina da USP para uma repórter, por volta do ano 2000, na qual ele
disse algo sobre degeneração da mácula. A repórter lhe perguntou: “Doutor,
o que é mácula? Eu não sei o que é”. Antes de responder, o médico lhe disse:
“Gostei do fato de que fez uma pergunta, pois este é o caminho do aprender.
Só aprende quem tem perguntas”.
Pode ser. É certo, porém, que o perguntar é uma via de ouro para se
aprender. E o perguntar é uma das grandes marcas do filosofar.
Penso que tudo isso tem a ver com a palavra “ad-miração” (do grego:
thaumazein). Talvez a melhor palavra seja espanto. A gente fica espantado
com tudo, com a imensidão da realidade e sua complexidade. Com o fato
maravilhoso da vida e, em especial, com a vida humana que apresenta tantas
possibilidades e variações, boas e não boas. Tudo isso nos espanta, causa-nos
admiração, intriga-nos. Já desde pequenos, como posso ilustrar no exem-
plo a seguir.
Tenho um neto de 8 anos. Quando tinha 3 ou 4 anos, estando em uma
festinha, ele colocou a mão para fora da janela e sentiu pingos de chuva. Disse
então: “Vovô, olhe, estão caindo pingos. Pingos de água. De onde vem isso?”.

15
FREIRE, Paulo; FAUNDEZ, Antônio. Por uma pedagogia da pergunta. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1985.

34
Marcos Antônio Lorieri

De onde vêm os pingos de água? Começou aí uma conversa bem interessante.


Sentamo-nos e começamos a conversar de onde vem a chuva. Começamos
por dizer que aquilo se chamava chuva e como ela se forma. Isso foi algo que
o espantou, que o intrigou e o fez perguntar. A conversa foi longa e, espero,
houve aprendizados.
Em outra ocasião, em uma cidade em que estávamos passeando, ele me
disse: “Vovô, olha que lindo”. “Lindo o quê?”, lhe disse. “O céu.” “E o que
tem o céu?” “Tem azul e nuvens brancas. Olhe como é bonito. Não é bonito?”
Isso é espanto. É admiração.
Nós, de modo geral, não prestamos atenção nas crianças, nas suas falas,
nos seus espantos, nas suas perguntas.
Nesse caso, ele estava chamando a atenção para algo admirável, para
algo que merece admiração. Para algo espantoso, que nos intriga. E o que nos
intriga não são apenas coisas maravilhosas, mas também as coisas horrorosas
da vida como a pobreza, a miséria, a dominação, a exploração e outras coisas
que teimam em continuar a acontecer como as guerras, por exemplo. A histó-
ria, olhada por este prisma, é uma história de tragédias e isso nos deve deixar
espantados não de maneira passiva, mas de maneira ativa, buscando entender,
compreender para poder buscar soluções, sempre dentro do possível histórico.
Com relação às coisas maravilhosas, devemos buscar ações que as mantenham.
Walter comenta o que eu disse e afirma que isso nos ajudou a encontrar
outro motivo ou outra razão quanto à necessidade do filosofar, pois a filosofia
nos oferece ou nos apresenta um mundo cheio de assombros, cheio de encan-
tamentos, cheio de dúvidas e não apenas um mundo de perguntas que muitas
vezes pode esconder mais certezas que dúvidas.
Na verdade, penso eu, não é ela que nos oferece isso, mas, sim, o próprio
mundo; e a atitude filosófica é justamente não deixar desapercebidos esses
assombros, esses encantamentos, essas dúvidas, convidando-nos a perguntar
sobre e a partir deles e delas, e a refletir criticamente (à moda filosófica) na busca
de possíveis respostas. Por mais que as respostas a estas perguntas sejam difí-
ceis ou mesmo pareçam impossíveis16, elas nos obrigam a buscá-las incessan-

16
Uma filósofa, Hannah Arendt, no livro A vida do espírito, diz das perguntas impossíveis
que, mesmo sabendo-as impossíveis de responder definitivamente, nos obrigam a enfren-
tá-las com os recursos do filosofar, pois precisamos de alguma luz para os caminhos da vida
humana por entre tantos assombros (Arendt, 1995, p. 42-51).

35
Ensinar filosofia e a filosofar: necessidade urgente

temente. Tendo-as e concordando com elas, nos orientamos (ou somos orien-
tados) sobre como viver. Não concordando, buscamos alternativas. E esta é a
luta filosófica: a busca continuada de respostas às perguntas irrespondíveis e a
busca, daí decorrente, de exame reflexivo e crítico das respostas que se apre-
sentam como definitivas. É a luta pelos sentidos ou significados de tudo: do
mundo, do ser humano, de sua existência, da vida em sociedade, dos valores
morais, dos valores políticos, dos valores estéticos, dos critérios de verdade
para nossas afirmações. Este é o espaço do filosofar sempre necessário para os
humanos. Os outros animais não necessitam dele, nem os anjos ou os deuses!
Vê-se, pois, que o espaço do filosofar é necessário e importante, assim como
são necessários e importantes o ensino e o aprendizado do filosofar.
Alguns participantes da roda de conversa (do chat) comentaram sobre
os exemplos de conversas com as crianças e me perguntaram sobre quando
comecei a prestar mais atenção às falas delas.
Acho que comecei a prestar mais atenção nas crianças quando comecei
a trabalhar com o Programa de Filosofia para Crianças criado por Matthew
Lipman. Isso ocorreu em 1988. Até então eu não havia imaginado a riqueza
que é esta vida da infância. Walter não trabalha o tema da infância apenas com
relação às crianças, mas também com o sentido de sempre “novos começos”.
Penso que todos nós carregamos, ao longo da vida, algo de criança em
nós. Somos uma mistura de adultez e de infância: há momentos em que a
gente é uma criança pura e há outros em que a gente é uma criança não tão
boa. Há momentos nos quais somos adultos (bons, ou não tão bons) e há
outros nos quais somos crianças que brincam, que perguntam muito, que
buscam e também oferecem aconchegos.
Penso que o nosso grande esforço é estar “de bem”. Uma expressão
que me agrada: estar de bem com a vida, com as pessoas, com os amigos,
com os inimigos, se existirem, de bem com a natureza (com o inverno, com a
primavera, com o verão, com o outono, com os dias de sol ou de chuva etc.).
Este “estar de bem” acho que é um estado de infância, um estado de crianci-
ce: está tudo bem, vamos brincar. Brincar é a coisa mais importante para as
crianças (dizem, e eu concordo) e cada um de nós pode e deve brincar.
Meus alunos dizem que minhas aulas são divertidas porque brinco nelas.
Isso até me preocupa, pois temo certa perda do rigor acadêmico. Por que
tudo tem que ser assim “tão sério”?

36
Marcos Antônio Lorieri

Com relação a estas falas, Walter disse ver nelas mais um argumento
para levar a filosofia à praça pública, como colocou Patrícia Velasco em uma
pergunta, visto que a Filosofia nos coloca em certo estado de infância, de
criancice, como foi dito, um certo estado de leveza, um tempo que não é um
tempo de relógio, um tempo do cronômetro, um tempo apressado, mas um
tempo demorado a ser degustado prazerosamente.
Diz ele que viu nas falas algo implícito relativo não só à filosofia para crian-
ças, para a infância, mas, na verdade, algo que nos faz pensar em infância para a
filosofia, pois a filosofia precisa de infância para nos oferecer uma certa leveza,
um certo sorrir, uma certa doçura, uma certa maneira de habitar o mundo como
“infantil”, uma certa forma que é também um tempo, um tempo que não se
preocupa com o relógio, mas que se preocupa em perguntar a partir da dúvida
e entender ações, em questionar. Parece que, nessas falas, diz ele, a filosofia
oferece, exige e chama para uma certa infância. Para uma certa maneira infan-
til de habitar o mundo e as relações com os outros. E como foi dito, de uma
certa humildade: humildade de perguntar por que não sabe e se deseja saber.
Habitamos o mundo de uma maneira muito adultizada, conclui Walter.
Nesse momento, lembrei-me de uma fala de Saramago na qual ele diz
que, quando morrer, quer ter a certeza de nunca ter desonrado a criança que
sempre foi e que gostaria de levar com ele essa criança17.
Essas caraterísticas da doçura, da leveza, da humildade podem ser faci-
litadoras do esforço de levar o filosofar para todos os alunos e de levar argu-
mentos a favor do ensino de filosofia e do filosofar “à praça pública”. Talvez
seja um dos caminhos: isso é uma resposta possível à pergunta de Patrícia
Velasco. Ela perguntou assim: “Como levar a Filosofia à praça pública hoje? E
como convencer os ‘ímpares’ (já que os ‘pares’ sabem disso) do valor formati-
vo da Filosofia e de seu ensino?”.
Esta pergunta e outras considerações motivaram algumas pessoas
a perguntar sobre como pensar o espaço para o ensino da filosofia e do
filosofar no atual Ensino Médio, tendo em vista o início de medidas que
visam o cumprimento das novas orientações para este nível de ensino que

17
Estas falas constam de um vídeo gravado pouco antes de sua morte. Disponível em:
http://caderno.josesaramago.org. Acesso em: 18 jun. 2010.

37
Ensinar filosofia e a filosofar: necessidade urgente

fazem parte do documento Base Nacional Comum Curricular para o Ensino


Médio (BNCC/EM).
Cumpre lembrar que este documento aponta a obrigatoriedade da
presença de vários componentes curriculares no Ensino Médio e deixa de indi-
car outros, dentre eles o componente curricular filosofia. Não há proibições
quanto à sua presença, a decisão ficando a cargo dos estados ou municípios,
ou ainda, dos responsáveis por escolas particulares.
Um dos caminhos para que haja a decisão da presença do ensino de filo-
sofia no Ensino Médio pode estar na significativa presença de professores de
Filosofia nas escolas públicas e particulares do Brasil, decorrente, em grande
parte, da obrigatoriedade deste ensino definida por uma legislação de 2008.
Esses professores podem dialogar com os gestores educacionais e lhes apre-
sentar as razões ou os argumentos que sustentem a afirmação da necessida-
de do ensino de filosofia.
Nesse sentido, buscamos, na conversa de hoje, trazer alguns destes
argumentos.
Além disso, é possível ver, nos termos da BNCC, indicações de resulta-
dos educacionais desejados para os quais a filosofia pode trazer contribuição
significativa.
Até aqui apresentamos alguns trechos da roda de conversa que julga-
mos mais significativos. A seguir, virão outros capítulos: a começar por um
no qual há um apanhado de argumentos a favor do ensino de filosofia e do
filosofar no Ensino Médio apresentados por diversos pensadores. A finalida-
de é apresentá-los para conhecimento, consideração e avaliação. E, ainda,
para que possam alimentar outras rodas de conversa a respeito da necessi-
dade e importância da presença do ensino e da aprendizagem da filosofia
e do filosofar nas nossas escolas. Rodas de conversa que cada um de nós
pode provocar em diversas situações, a começar pelas escolas nas quais
trabalhamos.
Para finalizar, quero reiterar meus profundos agradecimentos por esta
oportunidade de expor algumas ideias e, principalmente, de trocá-las com os
participantes desta roda de conversa.

38
Capítulo 2

Fazer filosofia como educação:


argumentos quanto às suas possibilidades formativas

Diversos autores têm se posicionado a respeito das possibilidades formativas


do ensino de filosofia, apresentando razões ou argumentos para suas posi-
ções. Este capítulo apresenta algumas dessas posições, comentando-as, com
o intuito de trazer mais esclarecimentos a respeito das possibilidades forma-
tivas do ensino de filosofia, agregando mais argumentos a favor da presença
desse ensino na educação escolar.
Para Celso Favaretto (2004, p. 44-45), pelo fato de as pessoas terem
necessidade de “sistemas de significação” que as ajudem a situar-se na
heterogeneidade da realidade e de concepções sobre ela, a filosofia pode
contribuir para que o aluno, no caso do Ensino Médio, ingresse, conforme
diz Lebrun,

na experiência reflexiva pela passagem do heterogêneo ao homogêneo, do


disperso ao uno, da variedade dos fatos, acontecimentos e opiniões a uma
ordem de pensamento, lei ou estrutura que lhe permita a produção da inteli-
gibilidade (1976 apud Favaretto, 2004, p. 45).

Isso pode parecer muito abstrato, mas esta é uma linguagem apropriada
para textos acadêmicos da área. Um dos bons resultados da educação esco-
lar básica é (ou deveria ser) a preparação de pessoas capazes de dominar,
também, este tipo de linguagem que é própria dos denominados conheci-
mentos filosófico e científico.

39
Ensinar filosofia e a filosofar: necessidade urgente

Para efeito de uma das finalidades deste livro, que é de oferecer estas
ideias a um público que, por diversas razões, não teve acesso a este tipo de
linguagem, penso que se pode dizer com outras palavras o que o autor diz na
linguagem que utiliza. Vejamos.

• As pessoas têm necessidade de “sistemas de significação” que as


ajudem a situar-se na heterogeneidade da realidade e de concep-
ções sobre ela.

Todos nós vivemos em uma realidade heterogênea, isto é, muito diversifi-


cada, apresentando uma grande variedade de aspectos: há variedade de climas,
de paisagens, de países, de línguas, de costumes, de valores, de conhecimen-
tos, de acontecimentos e de muitas outras coisas. Há variedade de pessoas,
cada uma com seu jeito de ser. Por vezes, nos sentimos como que “perdidos”,
tendo dificuldades de nos situarmos nessa variedade, não para negar sua rique-
za, mas para nela fazermos escolhas com certa base de segurança. Precisamos,
diz o autor, de “sistemas de significação” para aí nos situarmos.
Um sistema de significação é um conjunto de ideias que nos ajuda a
colocar esta variedade em uma maneira de pensar dentro da qual tudo pode
fazer sentido, ter significação: isso não é fácil. Normalmente temos crenças
ou opiniões que formam esse conjunto de pensamentos que utilizamos para
nos orientarmos de alguma maneira. Nem sempre, porém, crenças e opiniões
dão conta de nos ajudar a entender de uma forma razoavelmente clara esta
realidade tão variada, tão heterogênea. Por conta disso, a humanidade criou
a Filosofia e as Ciências, buscando conjuntos de ideias que ofereçam, para os
seres humanos, estes tais “sistemas de significação”, ou conjunto de ideias ou
de pensamentos mais bem organizados (sistematizados).
Na verdade, as Ciências oferecem sistemas de explicações para seres,
objetos, fatos, situações, com o foco mais em aspectos particulares ou espe-
cíficos. Isso dificulta para a organização de um sistema geral de significação,
mas é com esta contribuição importante das ciências que é possível juntar
muitas ideias e elaborar um conjunto que dê às pessoas mais segurança para
se orientarem neste mundo heterogêneo.
As bases de conhecimentos científicos são oferecidas na educação esco-
lar desde a Educação Infantil, até o Ensino Médio. São treze anos que cons-

40
Marcos Antônio Lorieri

tituem o que é denominado Educação Básica. Todas as pessoas deveriam ter


recebido esta Educação Básica com os conhecimentos das várias ciências
(Matemática, História, Geografia, Biologia, Física, Química, Artes, Educação
Física, estudos da língua materna – no caso brasileiro, Língua Portuguesa –
etc.). Infelizmente nem todas puderam ou podem cursar todos esses anos de
escolarização. E isso faz falta para termos uma sociedade na qual as pessoas
possam pensar não apenas com base em crenças e opiniões, mas também
com base nos conhecimentos científicos.
E a filosofia? Ela é uma forma de conhecimento bem cuidada, bem-orga-
nizada, bem sistematizada que elabora conjuntos de ideias, de pensamentos,
a respeito não de fatos, seres, objetos, situações, de alguma forma isolados,
mas, sim, oferece conjuntos de pensamentos sobre aspectos mais amplos da
realidade em geral e da realidade humana em especial. Esses aspectos mais
amplos aparecem nas perguntas que todos nós nos fazemos e fazemos uns
aos outros, como as que vêm a seguir.

O que é a realidade? Por que existe tudo o que existe?


Existe somente isso que vemos ou experimentamos com nos-
sos sentidos (com a visão, com a audição, com o tato, com o
olfato, com o paladar), ou existe alguma outra realidade além
desta?
Por que os seres humanos têm diferenças em relação aos outros
seres da natureza, como a linguagem articulada, a racionalidade,
as emoções?
Por que eles têm religiosidade, têm regras de conduta para viver
em sociedade (têm alguma moral), produzem obras de arte e as
apreciam?
Por que eles produzem ciências e filosofia? Os seres humanos são
seres especiais?
Por que nascem e por que morrem? Há algum sentido para a exis-
tência humana?

Buscar respostas para estas e outras perguntas, assim tão amplas, tem
sido o trabalho da filosofia (ou do filosofar), e este trabalho tem produzido
respostas variadas.

41
Ensinar filosofia e a filosofar: necessidade urgente

A questão é que estas respostas filosóficas, que são organizadas em


conjuntos denominados de “sistemas filosóficos”, têm sido adotadas em
sociedades diversas ao longo da história e podem ser diversas até em uma
mesma época histórica.
Como são “sistemas de significação”, ao serem adotados, tornam-se
guias orientadores das maneiras de pensar e de agir das pessoas dessas
várias sociedades. Tornam-se concepções das quais as pessoas têm neces-
sidade, como diz Celso Favaretto. Esta necessidade as faz buscar algu-
ma filosofia.
Por um lado, isso é bom porque oferece sentidos ou significações para
as pessoas. Por outro lado, não é tão bom quando estes sistemas de significa-
ção são impostos sem que elas sejam ajudadas a compreendê-los, a analisá-
-los criticamente para poderem decidir se querem seguir as orientações que
decorrem desses sistemas de significação ou não.
Pior ainda quando alguma sociedade adota uma filosofia (um sistema de
significações), reserva para os mais poderosos o conhecimento profundo desta
filosofia e não apenas não permite que as demais pessoas tenham acesso a esse
conhecimento, como também impõe este sistema de significações através de
meios de comunicação que se tornam propriedade dos poderosos, os quais
fazem propaganda ideológica: isso impede que a maioria possa analisar o siste-
ma criticamente a fim de decidir se adotará essas significações ou outras.
Nas sociedades verdadeiramente democráticas, as coisas não devem
ocorrer assim. Deve haver uma Educação Escolar Básica para todas as pesso-
as, na qual, além dos conhecimentos científicos, elas aprendam a filosofar em
aulas de filosofia, nas quais todos possam compreender o que seja filosofia,
possam conhecer os vários sistemas filosóficos (os vários sistemas de signi-
ficação), possam aprender a analisar sistemas de significação criticamente
e possam, a partir daí, decidir por quais significações querem orientar suas
vidas. Melhor ainda se, além do acesso à Educação Escolar Básica, todas as
pessoas pudessem ter acesso à Educação Escolar Superior. Não é proibido
sonhar e nem é proibido lutar para a realização dos sonhos.

• Favaretto diz que a filosofia pode contribuir para nos ajudar a ter
algum sistema de significação que contribua para que possamos
realizar experiências reflexivas que nos deem uma organização de

42
Marcos Antônio Lorieri

pensamento, ou ter algo em nossas mentes como uma estrutu-


ra que nos permita a “produção da inteligibilidade”, isto é, a pro-
dução de algum entendimento dentro do qual tudo faça sentido.
Esse “entendimento dentro do qual tudo faça sentido” é o que se
pode chamar de sistema de significação.
• Para conseguir isso, diz ele, podem ser feitos exercícios de pensa-
mento reflexivo buscando fazer a “passagem do heterogêneo ao
homogêneo, do disperso ao uno, da variedade dos fatos, aconte-
cimentos e opiniões” (Lebrun, 1976 apud Favaretto, 2004, p. 45)
a alguma organização de pensamento que produza em nós cer-
ta inteligibilidade. Parece complicado, mas não muito. Passar do
“heterogêneo ao homogêneo” significa passar da dificuldade da
variedade para alguma facilidade de sentir e entender tudo dentro
de alguma concepção geral na qual tudo faça sentido igualmente,
ou homogeneamente. Não que tudo seja igual: não. Tudo faz sen-
tido igualmente no conjunto variado desse todo que é também
rico em variedade. Por isso ele diz que precisamos passar do dis-
perso (do que parece estar espalhado) para o uno (para o fazer
sentido dentro do todo, pois a realidade é uma totalidade e, den-
tro dela, tudo faz sentido).
• Ele repete de outra maneira o que já disse, afirmando que apren-
der filosofia e aprender a filosofar contribuem para que sejamos
capazes de fazer a passagem da “variedade dos fatos, aconteci-
mentos e opiniões” (Favaretto, 2004, p. 45) a alguma organiza-
ção de pensamento que produza em nós certa inteligibilidade. É
isso que nos ajuda a ter alguma organização de pensamento que
produza em nós entendimentos mais claros, o que ele chama de
certa inteligibilidade.
• Esta “certa inteligibilidade”, ou certa maneira organizada de pen-
sar a realidade, pode nos ajudar na orientação de nossas ações no
mundo.

Esta é uma contribuição formativa importante do filosofar que pode ser


ensinado/aprendido, por exemplo, no Ensino Médio, que é um momento no
qual os jovens estão na busca de sentidos para suas vidas.

43
Ensinar filosofia e a filosofar: necessidade urgente

Não se trata de oferecer algum sentido já pronto e de acordo com algu-


ma doutrina, seja ela religiosa seja filosófica. Isso seria doutrinação e não
ajudaria na formação de pessoas com autonomia de pensamento (capazes
de pensar por si mesmas), que é outro bom resultado do desenvolvimento do
pensamento reflexivo e crítico para o qual o ensino de filosofia e do filosofar
contribui e muito.
Mas como este ensino contribui na formação dos jovens?
Favaretto responde assim: oferecendo “diretrizes conceituais e estilos de
interrogação que permitam ao aluno orientar-se no pensamento” (2004, p. 45).
Como assim?, pode-se perguntar. O autor explica um pouco mais, dizen-
do que o aprendizado do filosofar através do estudo de maneiras de pensar
filosóficas presentes em quem já praticou muito bem o filosofar, que são os
filósofos, pode ajudar e muito. Esses filósofos desenvolveram “diretrizes
conceituais e estilos de interrogação” e este estudo gera possibilidades de
intervenção na realidade ao auxiliar os jovens a:

[…] descobrir o funcionamento e o sentido das configurações (teorias, ideo-


logias e mitologias, religiosas, científicas, tecnológicas, artísticas); significa
interrogar, formular questões e objeções. Para isso, reafirmando, os jovens
utilizam os sistemas de referência constituídos no curso de filosofia, como
uma experiência (acima de tudo, sobre os processos enunciativos) de uma
diversidade significativa de trabalhos filosóficos (Favaretto, 2004, p. 46).

O que está dito na citação é um aspecto formativo, a par de outros, que


auxilia os jovens do Ensino Médio na descoberta do funcionamento e dos
sentidos das “configurações”. Uma configuração é uma organização na qual
diversos elementos são organizados em certa ordem, ou em certo conjunto
de relações. Aqui o autor está se referindo a configurações de ideias sobre a
realidade que colocam em certa ordem os entendimentos a respeito dessa
realidade (aquela que é heterogênea e que, ao pensar de certa maneira, as
pessoas a representam de forma mais ou menos homogênea). Há configura-
ções da realidade que precisam ser bem analisadas para que possamos deci-
dir se concordamos ou não com elas. Ele cita algumas: “teorias, ideologias e
mitologias religiosas, científicas, tecnológicas, artísticas”.
Essas configurações ou elaborações trazem “dentro delas” informações,
orientações, indicações, interesses, propostas que ninguém deve simples-

44
Marcos Antônio Lorieri

mente aceitar sem antes examinar reflexiva e criticamente. Por isso o autor
diz que o ensino de filosofia auxilia os jovens a saber produzir, em relação às
organizações, interrogações, questões e objeções.
Isso é importante para que eles possam se apoderar de uma linguagem
de segurança própria, trabalhada e articulada com os recursos da reflexão e
da criticidade que o exercício do filosofar lhes pode proporcionar. Neste exer-
cício, o trabalho com textos filosóficos é um recurso importante, pois neles
“estão os temas, os problemas, os conceitos, os métodos, os procedimentos”
(Favaretto, 2004, p. 52) a serem aprendidos, além da possibilidade de aprender

procedimentos gerais de pensamento, entendidos como princípios metodo-


lógicos da atividade intelectual – desenvolvimento das capacidades de análi-
se e leitura; de técnicas de raciocínio e argumentação; de métodos de ques-
tionamento, problematização e expressão (Favaretto, 2004, p. 53).

Esses aprendizados compõem o conjunto formativo que a filosofia pode


oferecer, segundo este autor.
Pode-se perguntar: para que tudo isso?
Uma resposta pode ser esta: para ajudar a formar pessoas que sejam
capazes de deslocarem-se “da apreensão imediatista da realidade para uma
posição esclarecida” (Favaretto, 2004, p. 53). A apreensão imediatista da
realidade é dada, por exemplo, pela crença ou pela opinião. Já uma posição
esclarecida pode ser dada pelas ciências e pela filosofia.
Uma apreensão imediatista da realidade é, por exemplo, aceitar de pron-
to o que uma teoria apresenta como verdade, sem antes a examinar criterio-
samente. Ou aceitar o que algum discurso “interessado” (uma ideologia, por
exemplo) nos passa, ou alguma doutrina, ou alguma obra de arte. São expres-
sões simbólicas (que simbolizam ou indicam algo) sobre a realidade, sobre o
ser humano, sobre os modos de agir, sobre a sociedade. Tudo isso merece
ser bem considerado antes de ser aceito como verdadeiro ou como bom. E o
filosofar ajuda nisso. E aí estaria sua “utilidade” na expressão de Chauí (2003,
p. 24), conforme já citada no capítulo 1 deste livro.
Se o trabalho com filosofia, no caso, no Ensino Médio, for realizado na
perspectiva de oferecer ajuda para que os alunos se desloquem “da apreensão
imediatista da realidade para uma posição esclarecida”, no dizer de Favaretto,
ou para que abandonem a ingenuidade e os preconceitos do senso comum e

45
Ensinar filosofia e a filosofar: necessidade urgente

não se deixem guiar pela submissão às ideias dominantes e aos poderes esta-
belecidos, de acordo com Chauí, e, além disso, para que conheçam o sentido
das criações humanas nas artes, nas ciências e na política e tenham meios
para serem conscientes de si e de suas ações numa prática que deseja a liber-
dade e a felicidade para todos, então pode-se afirmar que a filosofia é um
saber altamente formativo desses alunos.
Pode-se ver, nestas falas, argumentos bastante provocativas, no mínimo
para que se pense se estes benefícios formativos podem mesmo ser produzi-
dos pelo ensino de filosofia, por qualquer ensino de filosofia, ou por determi-
nado tipo de ensino de filosofia.
Outro autor, José Auri Cunha (2011), aponta, como uma das funções
formativas importantes do Ensino Médio, o desenvolvimento de uma cultura
racional como a que está presente nas ciências, nas tecnologias e na filosofia.
Ele acrescenta, além das ciências e da filosofia, as tecnologias como mais uma
área de entendimentos próprios de uma cultura racional.
Pode-se dizer que as tecnologias são conhecimentos derivados das
ciências voltados diretamente para a elaboração de meios de intervenção na
realidade. Hoje, ninguém nega a importância das tecnologias e a necessidade
de as compreendermos; em especial, a necessidade de os jovens terem uma
boa compreensão delas e de seu papel na vida humana. Eles, mais do que os
jovens de outras gerações, serão os utilizadores das tecnologias no mundo e
precisam saber criticamente a respeito do seu funcionamento e das finalida-
des (os sentidos) de sua utilização.
Esta cultura racional precisa ser desenvolvida em todas as pessoas,
juntamente ao desenvolvimento das emoções, que são fundamentais para a
realização dos seres humanos. A educação precisa cuidar de ambas.
A cultura racional (a cultura que envolve o conhecimento das ciências, da
filosofia, das tecnologias) e sua utilização, guiada por valores bem pensados,
exige tanto o desenvolvimento de atitudes (aqui entram os valores) quan-
to de procedimentos lógico-metodológicos (aqui entra o pensamento bem
pensado), “sem os quais a aprendizagem e prática do pensamento conceitual
não se sustenta” (Cunha, 2011, p. 1).
O pensamento conceitual é o pensamento que trabalha quase apenas
com ideias, com conceitos: tudo aquilo que as pessoas dizem ser muito abstra-
to e “distante da realidade”.

46
Marcos Antônio Lorieri

Sim: trata-se de um pensamento, de certa maneira, “distante” porque


se tomou distância para examinar melhor e para organizar as informações
da realidade em uma forma “mais sintetizada” (mais “resumida” depois de
muitas análises) que nos ajude a apreender esta realidade nas suas “configu-
rações” ou estruturas básicas, como diz Favaretto, citado acima. Isso é difícil,
mas precisa ser feito porque a realidade, por ser heterogênea e complexa,
também não é fácil de ser entendida, tampouco é fácil lidar com ela de manei-
ra que traga benefícios para todos os seres em vez de malefícios.
Um exemplo dramático de elementos e forças da realidade que exigem
não apenas um conhecimento aprofundado, mas também um manuseio
cuidadoso é o urânio, um mineral que está “tranquilo” na natureza. Os seres
humanos o descobriram e descobriram sua força potente tanto para coisas
boas – como para produzir energia –, quanto para produzir coisas nada boas –
como bombas que geram uma destruição terrível. Uma boa cultura racional em
relação a este mineral é ter conhecimento sobre ele, saber lidar com ele (tecno-
logias) e ter atitudes corretas no seu uso, guiadas por valores bem pensados.
Talvez seja muito complicado ter valores bem pensados. Valores são o
mesmo que preferências que estabelecemos em relação a objetos, a lugares,
a pessoas, a atitudes. Preferências estabelecidas, veja-se bem, com base em
critérios sabiamente definidos. A palavra filosofia traz nela a sabedoria (sofia),
pois define-se como “benquerença” (filo) da sabedoria. O filosofar é funda-
mental para a definição sábia dos critérios, no caso, que embasam as prefe-
rências valorativas.
Quando são preferências em relação a atitudes, trata-se de valores
morais (ou éticos). A cultura racional é necessária para sabermos avaliar
nossas preferências, ou nossos valores, inclusive e especialmente nossos
valores morais (ou éticos).18
O jovem do ensino médio já é capaz de aprender e dominar de forma
mais elaborada a cultura racional e, portanto, de pensar assim, abstratamen-
te, conceitualmente.
Mas não basta ser capaz: é preciso aprender a pensar assim e a exerci-
tar essa maneira de pensar para poder compreender, por exemplo, textos

18
Ver, neste livro, o capítulo sobre Ética, no qual há uma discussão sobre valores e valores
morais em especial.

47
Ensinar filosofia e a filosofar: necessidade urgente

das aulas das várias ciências, para compreender matemática mais avançada,
para entender certos filmes e determinados tipos de literatura. Não se pode
negar esta formação a eles. Eles merecem se desenvolver assim para se torna-
rem adultos autônomos e capazes de decisões bem pensadas ao longo de
suas vidas.
Segundo Auri Cunha, este desenvolvimento encontra, na filosofia, “uma
condição particularmente privilegiada”, pois é próprio do seu exercício “ques-
tionar a verdade das crenças e a sustentação argumentativa dos princípios e
regras morais ou políticas” (2011, p. 1). É próprio do seu discurso ser

reflexiva e crítica, colocando sob o crivo da permanente refutabilidade as


estruturas intelectuais e cognitivas que lastreiam a compreensão, a explica-
ção e o modelamento da realidade, entendendo esta enquanto experiência
comum vivida, objetivada em conceitos (Cunha, 2011, p. 1).

Diz ele que, para ter acesso a este tipo de pensamento conceitual, não é
possível “prescindir das técnicas, artifícios e métodos da reflexão e da crítica
filosófica” (Cunha, 2011, p. 1).

Criar a atitude de autorreflexão e de questionamento crítico é a primeira


tarefa-objeto do ensino de filosofia na educação média, uma vez que é neste
momento que ocorre a iniciação nos procedimentos mais formais da apren-
dizagem do conhecimento e dos princípios ou regras apresentados como
verdadeiros, legitimados pela história das discussões críticas, no afã de refu-
tá-las e corrigi-las (Cunha, 2011, p. 2).

Vale repetir o que ele diz na citação: “É neste momento que ocorre a
iniciação nos procedimentos mais formais da aprendizagem do conhecimento
e dos princípios ou regras apresentados como verdadeiros”. Além de apren-
der conceitos básicos das ciências e da filosofia e conjuntos de pensamen-
tos elaborados por vários filósofos a respeito de temas filosóficos (tudo isso
faz parte de pensamentos conceituais e da cultura racional), é necessário
o aprendizado concomitante dos procedimentos mais formais (abstratos)
da aprendizagem do conhecimento e dos princípios ou regras de produção
desses conhecimentos.
Com relação ao desenvolvimento do pensamento conceitual e à contri-
buição da filosofia nessa direção, diz Matthew Lipman, em A filosofia vai à

48
Marcos Antônio Lorieri

escola (1990a, p. 58): “A Filosofia é a investigação conceitual na sua forma


mais pura e essencial”. O domínio do pensamento conceitual é, segundo este
autor, fundamental para o alcance de certos desempenhos como o enten-
dimento e a produção de “princípios, critérios, argumentos, explicações”
(Lipman, 1995a, p. 72), como caminho de análise e de esclarecimento dos
conceitos, o que contribui “para facilitar sua utilização na compreensão e no
julgamento” (Lipman, 1995a), além de ser uma função importante na compre-
ensão de conteúdos das mais diversas ciências que utilizam um vasto conjun-
to de conceitos fundamentais que são trabalhados e esclarecidos no exercício
do pensamento filosófico.

A filosofia contém, além de muitas outras coisas, um núcleo de conceitos. Estes


conceitos são incorporados e ilustrados em todas as áreas humanas, mas é na
filosofia que são analisados, discutidos, interpretados e esclarecidos. Muitos
destes conceitos representam valores humanos profundamente importantes,
como a verdade, o significado e a comunidade. […] Sem a filosofia, há uma
tendência para que os comportamentos que estes conceitos representam
permaneçam inarticulados e sem expressão (Lipman, 1995a, p. 240-241).

Nas palavras de Lipman, há duas indicações relativas à contribuição


formativa do ensino de filosofia para o desenvolvimento do pensamento
conceitual: primeiro, a importância desse desenvolvimento, visto que o filo-
sofar se dá pensando-se conceitualmente ou, nas palavras dele, realizando
uma “investigação conceitual”; em segundo, o ensino de filosofia contribui no
esclarecimento e na formação de certos conceitos que estão presentes não
apenas em todas as ciências, mas também nas nossas falas de todos os dias,
das quais nem sempre há entendimentos claros e mesmo corretos.
Ou seja: o filosofar nos ajuda na compreensão de vários conceitos (de
várias abstrações) que iluminam atividades, sentimentos e valores que são
“muito concretos”, como se verá a seguir com alguns exemplos.
Primeiro exemplo: “conhecimento” é uma palavra que expressa um
conceito. Todas as ciências (outra palavra que exprime outro conceito) são
formas de conhecimento, assim como a filosofia, o senso comum, as artes, os
mitos, as doutrinas religiosas. Na nossa maneira comum de falar, utilizamos
com frequência esta palavra ao dizer, por exemplo: “Você tem conhecimento
do que aconteceu em tal lugar?”. “As pessoas não têm muito conhecimento

49
Ensinar filosofia e a filosofar: necessidade urgente

e, por isso, erram bastante.” “Meus filhos vão à escola para aprender conhe-
cimento ou conhecimentos.”
Mas o que é conhecimento? Em aulas de Filosofia, os alunos aprendem
o que é conhecimento em uma parte da programação que é denominada de
“Teoria do Conhecimento”. Isso os ajudará a compreender o que é conheci-
mento e a entender vários aspectos que estão envolvidos no conhecimento.
Segundo exemplo: o mesmo ocorre com palavras/conceitos como
“verdade”/“falsidade”, “objetividade”/“subjetividade”, “valores”, “valo-
res morais”, “ética”, “política”, “sociedade”, “cultura”, “artes”/“estética”
dentre outras. Nós utilizamos estas palavras/conceitos com frequência e
nem sempre sabemos o que significam. Nas aulas de filosofia, estas palavras/
conceitos são trabalhadas para ajudar os jovens a saberem do que estão falan-
do quando as utilizam em suas conversas; quando leem textos nos quais elas
aparecem; ou quando as ouvem nas falas de comunicadores tão presentes
nos meios de comunicação de massa.
A par da contribuição relativa ao desenvolvimento do pensamento
conceitual e ao aprendizado de procedimentos racionais, “o estudo da filoso-
fia envolve também um tipo especial de questionamentos, justamente um rol
daquelas questões que, a rigor, são irrespondíveis” (Cunha, 2011, p. 2).
Há várias “questões irrespondíveis” que nos “perseguem” sempre,
como diz Hilton Japiassu:

As grandes interrogações que os filósofos do passado fizeram, permanecem


no presente: os homens de hoje continuam a se colocar problemas sobre eles
mesmos, sobre a vida, sobre a sociedade, sobre a cultura, sobre o transcen-
dente etc., que constituem verdadeiros desafios à nossa atividade reflexiva
(1997, p. 104).

São denominadas “questões irrespondíveis” não porque não tenham


respostas, mas porque não há, para elas, respostas definitivas. Daí o contínuo
esforço da humanidade na sua busca. O filosofar é o caminho da razão huma-
na nessa busca e os resultados alcançados tornam-se, muito frequentemente,
orientações básicas para a organização das sociedades e para os modos de
agir e de conhecer das pessoas.
As respostas presentes nas produções filosóficas dizem respeito a aspec-
tos importantes da existência humana, a começar pelo seu sentido, passando

50
Marcos Antônio Lorieri

por questões relativas ao verdadeiro, ao belo, ao bem, à vida em socieda-


de, ao poder, dentre outras. Essas questões podem ser entendidas como as
“Perguntas da vida”, como diz um filósofo espanhol de nossos dias em um
livro que tem este título (Savater, 2001).
Refletir criticamente sobre ou a partir destas questões e sobre as respos-
tas a elas, presentes no ambiente social e cultural onde se vive, e sobre a
adesão, ou não, a essas respostas são aspectos que devem fazer parte da
formação das pessoas pelo fato de as respostas, produzidas ou aceitas, torna-
rem-se indicativas de rumos, direções, ou sentidos para o seu existir, como
já foi dito.
O existir é o que forma as pessoas19 e, dependendo da forma do existir,
as pessoas que dele participam terão uma “forma” humana, ou uma “forma-
ção humana”, em muitos aspectos, de acordo com esta forma de existir. E as
respostas produzidas e assumidas, dadas às questões de fundo (às perguntas
da vida), é que oferecem direções ou sentidos para as formas de existir. Por
não se tratar de respostas definitivas e pelo fato de, quando assumidas por
determinados grupos sociais, gerarem disputas em relação a outras respos-
tas, assumidas por grupos diferentes, torna-se necessário e importante proce-
der à análise crítica delas.
Aulas de filosofia são espaços necessários para se aprender e para
se realizar esta análise crítica, com vistas a oferecer aos alunos recursos
intelectuais para que eles procedam a esta análise e para que façam suas
escolhas. Não se trata, pois, de imposições de respostas: quando isso ocor-
re, não há aulas de Filosofia, e sim doutrinação filosófica. Temos que ser
contra isso.
O aprendizado do filosofar e o aprendizado de conteúdos filosóficos,
presentes nas produções filosóficas, são recursos importantes como cami-
nhos formativos dos seres humanos e, por esta razão, precisam ser garanti-
dos a todas as pessoas.
Mas as pessoas precisam mesmo desses caminhos formativos? Se sim,
como ajudá-las com o aprendizado da filosofia e do filosofar?

19
Afirmar isso: que “o existir é que forma as pessoas”, é uma posição filosófica aqui ado-
tada. Há posições diferentes a este respeito. A Filosofia coloca em questão tanto esta po-
sição quanto as outras, para, a partir daí, cada pessoa poder fazer sua escolha de maneira
esclarecida.

51
Ensinar filosofia e a filosofar: necessidade urgente

Como já foi dito, com ajuda para entender e analisar criticamente o


pensamento de alguns filósofos, buscando nesse pensamento os proble-
mas que provocaram neles o esforço filosófico, comparando esses proble-
mas de fundo com os problemas atuais (há muitos problemas semelhan-
tes e outros novos, próprios de nossa época) e buscando aprender, com
as reflexões desses filósofos, procedimentos gerais de pensamento, enten-
didos como princípios metodológicos da atividade intelectual conforme
apontado acima.
É uma perspectiva que contempla ideias de Auri Cunha quando aponta,
como finalidade do Ensino Médio, o desenvolvimento de uma cultura racional
presente nas ciências e na filosofia, que implica o desenvolvimento de atitu-
des e de procedimentos lógico-metodológicos, que são condições para um
necessário pensamento conceitual. A filosofia pode, aí, oferecer contribui-
ções formativas, pois é próprio do seu exercício o questionamento das cren-
ças, dos princípios e das regras morais ou políticas, bem como o exercício da
reflexão e da crítica, que coloca “sob o crivo da permanente refutabilidade as
estruturas intelectuais e cognitivas que lastreiam a compreensão, a explica-
ção e o modelamento da realidade” (Cunha, 2011, p. 1).
É uma maneira de pensar o ensino de filosofia que está de acordo com
o que se deseja da formação filosófica que, no dizer de Chauí (2003, p. 4),
pode ajudar para que os jovens abandonem a ingenuidade e os preconceitos
do senso comum e não se deixem guiar pela submissão às ideias dominantes
e aos poderes estabelecidos e, além disso, possam conhecer o sentido das
criações humanas nas artes, nas ciências e na política, e tenham meios para
serem conscientes de si e de suas ações numa prática que deseja a liberdade
e a felicidade para todos.
Aí está indicada a ajuda formativa de certo tipo de pessoas: de pesso-
as que sejam capazes de se colocar de maneira ativa, reflexiva e crítica na
sociedade da qual participam e não sejam apenas autômatos treinados para
cumprir ordens ou para repetir mecanicamente procedimentos, seja nos siste-
mas produtivos, seja nos relacionamentos do dia a dia. O que se pensa, aqui,
em ajudar a formar, são pessoas autônomas e, ao mesmo tempo, responsá-
veis pelos considerados bons caminhos da convivência humana.
Pessoas formadas dessa maneira poderão pensar por si mesmas, de
maneira reflexiva e crítica, as questões que dizem respeito a aspectos funda-

52
Marcos Antônio Lorieri

mentais da existência humana para que não sejam nem levadas a adotar
respostas interessadas ou “interesseiras” nem manipuladas nas direções de
suas vidas, o que geraria uma deformação delas.
Como fazer isso, especialmente no trabalho com os jovens?
Fazer isso é buscar fazer filosofia como educação, pois a filosofia é a
educação da humanidade, como diz Chauí no livro de Olgária Matos, Filosofia:
a Polifonia da Razão, de 1997. Nele, diz ela: “Não leremos ‘filosofias da educa-
ção’, mas veremos o projeto da filosofia como educação” (Matos, 1997, p. 5).
Matos, nesse livro, refere-se aos gregos e diz que eles não se enganaram ao
propor o exercício do filosofar. Aponta o pensar bem do filosofar como uma
medicina (pharmakon) da alma. “A filosofia forma almas fortes pelo exercício
da análise de si e do pensamento autônomo” (Matos, 1997, p. 7). Se o ensino
de filosofia caminhar nas perspectivas mencionadas, ele pode ser um bom
aliado do processo formativo de “almas fortes”.
Almas ou espíritos fortes capazes de “decisão de não aceitar como natu-
rais, óbvias e evidentes as coisas, as ideias, os fatos, as situações, os valores,
os comportamentos de nossa existência cotidiana; jamais aceitá-los sem
antes havê-los investigado e compreendido” (Chauí, 2003, p. 17-18). As pesso-
as, os jovens em particular, precisam e, por isso, têm o direito de ser “fortes
de espírito”. Para isso, é fundamental que aprendam a ser reflexivos, críticos,
rigorosos, radicais e abrangentes na análise das “questões de fundo” e na
análise das respostas a essas questões com que se defrontam no seu meio
cultural. Além disso, devem ser capazes de produzir suas próprias respostas
quando as que encontram prontas não satisfazem suas necessidades atuais
de direções bem fundamentadas.
Para a realização deste exercício formativo é necessário, segundo
outro filósofo brasileiro, Antônio Joaquim Severino, desenvolver as sensibi-
lidades epistêmica, ética, estética, política e antropológica, pois, dentro da
perspectiva aqui adotada, o desenvolvimento dessas sensibilidades é uma
exigência do processo formativo em geral. Suas ideias, além de se soma-
rem às dos autores já citados, trazem contribuições específicas na busca
de argumentos que possam reforçar a afirmação relativa às possibilidades
formativas da filosofia. Ao tratar da necessidade da filosofia na educação,
o autor fala em desenvolvimento dessas variadas formas de sensibilidade:
da sensibilidade para a compreensão da existência humana (sensibilidade

53
Ensinar filosofia e a filosofar: necessidade urgente

antropológica); da sensibilidade ou percepção de conceitos (epistêmica);


da sensibilidade relativa aos valores morais e estéticos (ética) e aos valores
políticos. “É toda esta esfera do exercício da dimensão subjetiva da pessoa
que nos torna efetivamente humanos” (2002, p. 185), diz ele, entendendo a
dimensão subjetiva como a:

Capacidade que temos de poder identificar, de atribuir sentidos ou signifi-


cações às coisas e situações e de poder agir de acordo com esses sentidos
e não mecanicamente por força dos instintos ou de outros fatores físicos,
químicos, biológicos, psíquicos, ou melhor, a capacidade de sobrepor a esses
fatores naturais um elemento diferenciado, um motivo significador, que dá
sentido a nossos atos (Severino, 2002, p. 186).

Ora, se toda forma de educação visa à formação humana, se a formação


humana implica também a capacidade de atribuir ou produzir significações
e se a filosofia é uma forma de conhecimento especial para essa produção,
é forçoso concluir pela sua necessidade no processo educacional. “É por
tudo isso que não pode haver educação, verdadeiramente formativa, sem a
participação, sem o exercício e o cultivo da filosofia, em todos os momen-
tos de formação de pessoas, do ensino fundamental ao superior” (Severino,
2002, p. 187).
É importante observar que a filosofia foi descrita como uma forma de
conhecimento especial voltada para a atribuição e produção de significados.
Há significações produzidas por “conhecimentos religiosos”, mas essas signi-
ficações não são compartilhadas por todas as pessoas, mas sim por deter-
minados grupos de lideranças culturais que as transmitem como doutri-
nas, normalmente tidas como dogmas. Além disso, ainda há a presença de
significações na forma de conhecimento denominada senso comum, a qual,
mesmo comportando um núcleo de bom senso, apresenta-se de modo geral
como uma maneira de pensar assumida pelas pessoas de forma não refleti-
da e crítica.
Outros autores apresentam mais argumentos aos já apontados até aqui.
Gallo e Kohan indicam duas razões para oferecer o ensino de filosofia, as
quais decorrem da própria finalidade do filosofar ou do “para quê” da filosofia
que “envolve a dimensão do sentido. […] Essa é sua função social principal”,
dizem (2000, p. 188-189) e acrescentam que, além disso, a Filosofia contribui

54
Marcos Antônio Lorieri

para que os jovens desenvolvam um pensamento autônomo, que é condição


necessária para que se tornem pessoas capazes de escolhas. Daí a necessi-
dade do que denominam “experiências de pensamento” pelas quais todo
educando deve passar.

[…] é importante que todo jovem, ao ter contato com a filosofia, possa
desenvolver experiências de pensamento, aprendendo a reconhecer e a
produzir, em seu nível, conceitos, a fazer a experiência da crítica e da radicali-
dade sobre a sua própria vida, a desenvolver uma atitude dialógica frente ao
outro e ao mundo e, fundamentalmente, possa aprender uma atitude inter-
rogativa frente ao mundo e a si mesmo. Pensamos que uma educação para a
autonomia, no sentido da formação de indivíduos que possam escolher por
si mesmos em que mundo querem viver, só pode ser tal se nela tiver lugar a
filosofia (Gallo e Kohan, 2000, p. 195).

Escolher por si mesmos em que mundo querem viver envolve frequente


reflexão crítica sobre sentidos ou significações que estão, de alguma manei-
ra, presentes nos jovens inseridos e influenciados pela cultura da qual partici-
pam. Isso os ajuda a avaliar tais significações e, a partir daí, fazer suas próprias
escolhas: sejam as de concordar com estas significações e de querer pautar
suas vidas por elas, sejam as de querer buscar por outras direções. Todas as
pessoas, incluindo crianças e jovens, devem poder participar da avaliação e
da construção das referências significativas para suas vidas. Daí que todas as
pessoas devam poder, de alguma forma, participar investigativamente e cola-
borativamente da produção delas.
Trata-se de uma participação que necessita ser aprendida: daí a necessi-
dade de um ensino de filosofia que promova este aprendizado. Uma “educa-
ção filosófica” deve ocorrer se se deseja formar gerações não conformis-
tas e sim participativas: construtoras de referências claras e consistentes,
porque bem pensadas por todos, para que não haja o risco de indesejáveis
doutrinações.
Daí a proposta de propiciar, progressivamente, maior envolvimento
com o questionamento filosófico e de, ao mesmo tempo, estimular o desen-
volvimento dos instrumentos de pensamento e as disposições necessárias e
requeridas para o trato competente com este questionamento. A investiga-
ção filosófica, por sua própria natureza, provoca o desenvolvimento do que
se denomina de pensamento reflexivo e crítico. Reflexão exige parada para

55
Ensinar filosofia e a filosofar: necessidade urgente

pensar. Parada que se opõe ao imediatismo tão presente atualmente e que


traz danos diversos.
Parar para pensar: na verdade, parar para pensar bem. Pensar de forma
reflexiva e crítica. A criticidade é qualidade do bem pensar, que diz respeito ao
exame rigoroso dos achismos e de colocá-los em crise (daí a palavra crítica),
ou seja, em dúvida, até que se obtenha razões suficientes para torná-los sabe-
res mais garantidos por meio de bons argumentos.
Contudo, há falta disso nas pessoas de modo geral. É necessário come-
çar a superar esta falta já nas crianças. Dentro desse contexto, a iniciação filo-
sófica delas pode ser um bom e importante caminho a ser iniciado no Ensino
Fundamental, uma etapa importante da Educação Básica, e a ser continuado
no Ensino Médio.

O estudante que aprende apenas os resultados da investigação não se torna um


investigador, mas apenas um estudante instruído. Esta afirmação aponta para
um dos propósitos educacionais da filosofia: todo estudante deve tornar-se (ou
continuar a ser) um investigador. Para a realização desta meta não há melhor
preparo que o que é dado pela filosofia. A filosofia é investigação conceitual,
que é a investigação na sua forma mais pura e essencial (Lipman, 1990a, p. 58).

Cunha, em Filosofia na Educação Infantil (2002, p. 24), caminha nessa dire-


ção ao afirmar o seguinte, no caso, para as crianças, mas aplica-se também
aos jovens:

As crianças, de fato, julgam e escolhem espontaneamente, porque possuem


atividade mental, tanto no plano afetivo quanto no cognitivo. O aprimora-
mento de suas competências para julgar e escolher corresponde a julgar e
escolher de maneira mais atenta, mais criteriosa e mais significativa. Buscar
pensar “mais atentamente, mais criteriosamente e mais significativamente”
é pensar investigando. Filosofar se transforma, assim, em colocar em ques-
tão crenças, valores, significados e investigar as bases argumentativas dos
julgamentos e escolhas.

Ou seja, aprimorar o que já é natural nas crianças envolve o julgar e o


escolher de maneira mais atenta, mais criteriosa e mais significativa. Fazer
isso é realizar experiências de pensamento reflexivo e crítico: é isso o que se
espera do ensino de filosofia. Nessa direção, o filosofar deve estar presente
na Educação Básica, já desde os anos iniciais.

56
Marcos Antônio Lorieri

Desse modo, sendo a filosofia imprescindível subsídio de formação, ela pode


e deve estar presente desde o momento em que a pessoa tenha condições
para começar a pensar. Parece, então, totalmente acertada a proposta de
ensino de filosofia para crianças, desde os tempos da escola fundamental,
pois toda criança é sensível à justificação, ou seja, não só é capaz de pensar,
mas também de compreender o pensamento. Daí a pertinência dos esfor-
ços que vêm sendo feitos, partindo da pressuposição das capacidades das
crianças, com vistas a estimular a e a desenvolver essa dimensão reflexiva do
pensamento já com elas, no ensino fundamental, na linha de uma educação
para o pensar, pois, o que se tem em mente é justamente ajudar a criança a
se apropriar de conceitos e valores, a praticar seu pensamento, no sentido
mesmo de exercer sua subjetividade lógica, ética e estética. E isso é essen-
cialmente formativo (Severino, 2002, p. 189).

Nessa perspectiva, não cabe separar filosofia e educação. E, se educa-


ção é necessidade óbvia, óbvia se torna a necessidade da filosofia que dela
não pode se desprender, pois ambas se perguntam pelo ser humano a ser
“formado” e isto depende de uma interpretação do ser humano, da socie-
dade, do seu tempo. Sem esta interpretação não há educação: sem filosofia
não há sentido e direção para a educação. E nem para vida. Ainda que tal
direção não esteja clara para quem educa e para quem vive, há sempre algu-
ma! É necessário saber qual. É necessário avaliá-la. É necessário definir-se
por uma. É preferível, e mais digno, construí-la ou participar de sua constru-
ção. Mas, para participar, é preciso saber fazer: daí a necessidade de todos
sabermos fazer filosofia. E este saber é favorecido pelo ensino de filosofia
nas escolas.
Nossa época dá muito prestígio à informação. Mas é necessário saber
utilizá-la, saber avaliar sua veracidade, pois há uma avalanche de informações
falsas, saber da sua pertinência para os problemas que são postos pela vida.
Este saber necessário depende de uma formação que auxilie no desenvolvi-
mento da criticidade, a qual, por sua vez, pode indicar que apenas informa-
ções não são suficientes, como diz Savater:

Somos informados pelas ciências da natureza, pelos técnicos, pelos jornais,


por alguns programas de televisão […], mas não há informação “filosófi-
ca”. […] A filosofia é incompatível com as notícias e a informação é feita de
notícias. Muito bem, mas é só informação que buscamos para entendermos
melhor a nós mesmos e o que nos rodeia? (2001, p. 5).

57
Ensinar filosofia e a filosofar: necessidade urgente

Diz este autor que não. Precisamos das informações, mas precisamos,
além de avaliá-las criticamente, saber articulá-las para construir entendimen-
tos, explicações e significados. Para isso, há necessidade de momentos de
experiências de pensamento e de trabalho do pensamento como julgamos
que deva ocorrer em aulas de filosofia desde os estágios iniciais. Um trabalho
que demanda certas qualidades: a reflexão, a criticidade que inclui a proble-
matização, o rigor, a profundidade (radicalidade, que é ir às raízes profundas
de tudo o que se pensa), a contextualização. A filosofia ajuda nesta direção e
é um espaço fundamental de construção, de preferência coletivo, dos neces-
sários significados para o existir humano.
Saramago (2010), pouco antes de sua morte, escreveu o seguinte sobre
a necessidade da Filosofia:

Acho que na sociedade actual nos falta filosofia. Filosofia como espaço, lugar,
método de reflexão, que pode não ter um objectivo determinado, como a
ciência, que avança para satisfazer objectivos. Falta-nos reflexão, pensar,
precisamos do trabalho de pensar, e parece-me que, sem ideias, não vamos a
parte nenhuma (Saramago, 2010).

Na sociedade atual falta-nos filosofia, diz sabiamente este importante


pensador do Século XX, não por acaso agraciado pelo Prêmio Nobel. Esta
falta pode ser superada com a ajuda do ensino de filosofia, o qual, como
diz Chauí, é principalmente a educação da própria humanidade em cada
ser humano.
Edgar Morin traz, também, contribuições para a reflexão sobre a neces-
sidade da Filosofia na educação. Ele propõe que se recupere a importância
da filosofia, que faz parte da cultura humanista. “A cultura humanista é uma
cultura geral que, por meio da filosofia, do ensaio e da literatura coloca proble-
mas humanos fundamentais e incita à reflexão” (Morin, 2002, p. 17).
Ele diz ainda que o “conveniente desta cultura” é o “interrogar-se
sobre o homem, a sociedade, o destino, a vida, a morte, o outro lado”
(Morin, 2000, p. 29). E “é uma cultura que permite reflexão, meditação.
É uma cultura que permanece num nível de problemas em que o conheci-
mento está ligado à vida de cada um e à sua vontade de se situar no univer-
so” (Morin, 2002, p. 30). Dois importantes papéis educativos do filosofar:
provocar e manter vivo o interesse pelos problemas humanos fundamen-

58
Marcos Antônio Lorieri

tais e provocar para a reflexão, para a crítica, para o exame rigoroso das
ideias. Não só provocar, mas também ajudar a desenvolver esta forma de
pensamento.
Um aspecto interessante a salientar no pensamento do autor é a impor-
tância que dá à dimensão filosófica do pensar:

A filosofia deve contribuir eminentemente para o desenvolvimento do espírito


problematizador. A filosofia é, acima de tudo, uma força de interrogação e de
reflexão, dirigida para os grandes problemas do conhecimento e da condição
humana. A filosofia, hoje retraída em uma disciplina quase fechada em si mesma,
deve retomar a missão que foi a sua – desde Aristóteles a Bergson e Husserl – sem,
contudo, abandonar as investigações que lhe são próprias. Também o professor
de filosofia, na condução de seu ensino, deveria estender seu poder de reflexão
aos conhecimentos científicos, bem como à literatura e à poesia, alimentando-se
ao mesmo tempo de ciência e de literatura (Morin, 2002, p. 23).

Estas ideias fazem parte de sua proposta para formação de pessoas que
pensem bem: ele diz que é “preciso valorizar o ‘pensar bem’” (Morin, 2002,
p. 23), que pode ser entendido como estimular um pensamento interroga-
tivo e reflexivo, além de outras qualidades deste “pensar bem”. “Trata-se,
desde cedo, de encorajar, de instigar a aptidão interrogativa e orientá-la para os
problemas fundamentais de nossa própria condição e de nossa época” (Morin,
2002, p. 22, grifos do autor).
Lidia Maria Rodrigo (2009), em livro que trata do ensino de filosofia no
Ensino Médio, após interessante discussão sobre as polêmicas relativas à
democratização da filosofia (ou do saber filosófico), assim se posiciona sobre
a importância desse ensino:

Poder-se-ia entrar nessa discussão brandindo argumentos em sua defesa,


mas a questão prática da sua viabilidade decide-se menos no âmbito da retó-
rica que na definição de uma postura política. Trata-se, portanto, de tomar
como premissa a adesão ao princípio político da democratização do saber,
em geral, e da filosofa, em particular (Rodrigo, 2009, p. 21).

A autora diz, aí, que há a necessidade (nessa perspectiva) de um esforço


para viabilizar o acesso ao saber filosófico para todos os jovens e se pergunta:
“O que justificaria esse esforço?”. Ela aponta duas finalidades deste ensino
como justificativas.

59
Ensinar filosofia e a filosofar: necessidade urgente

Primeiro:

[…] propiciar a todos a oportunidade de desenvolver sua humanidade em termos


de um pensamento racional que lhes permita pensar a relação consigo mesmo,
com o outro e com o mundo, de modo que estejam aptos a exercer o pensamen-
to na perspectiva de uma cidadania democrática (Rodrigo, 2009, p. 21).

Segundo, concordando em parte com ideias do pensador francês Michel


Tozzi (2001) sobre não haver dúvida de que o ensino de filosofia contribui,
sempre nos limites de sua competência, “para qualificar positivamente a
participação na vida democrática na medida em que pode […] desenvolver o
espírito crítico, a capacidade de argumentação no debate de ideias” (Rodrigo,
2009, p. 21) e, citando Tozzi, na

busca de uma verdade universalizável, portanto partilhável, o gosto pelo


consenso sobre uma base racional e não passional. Exercendo ainda uma
vigilância frente aos abusos demagógicos da persuasão (tipo publicidade ou
propaganda (Tozzi et al., 2001 apud Rodrigo, 2009, p. 21).

A esta argumentação, ela acrescenta considerações sobre as reais difi-


culdades da maioria dos alunos do Ensino Médio quanto aos mais diversos
aprendizados (dentre eles o da filosofia), para os quais eles não possuem
requisitos suficientes. Então, posiciona-se, penso que adequadamente, apon-
tando que, sejam quais forem as razões desta situação, “se o aluno não possui
esses requisitos, é preciso, juntamente com os conteúdos filosóficos, investir
na sua aquisição, ou seja, na capacidade de ler, interpretar, abstrair, argumen-
tar, redigir etc. (Rodrigo, 2009, p. 23). E acrescenta:

Além do mais, o ensino de filosofia apresenta condições muito propícias para


esse tipo de trabalho. Como lembra Stefano Martini, a filosofia é um saber
dotado de valor educativo porque permite não só adquirir conhecimentos, mas
também, por meio de tais conteúdos, aprender habilidades, métodos, atitudes
de pesquisa e modelos de racionalidade (Martini apud Rodrigo, 2009, p. 23).

A conclusão desta argumentação é interessante e a reforça:

A aquisição de noções introdutórias de filosofia, aliada a certas habilidades


intelectuais, oferece ao estudante condições para ampliar sua compreensão

60
Marcos Antônio Lorieri

de algumas realidades, amadurecer certas concepções, valores, decisões,


bem como emitir juízos mais bem fundamentados sobre os dilemas com que
vier a se defrontar (Rodrigo, 2009, p. 24).

O livro de Lídia Maria Rodrigo é uma obra valiosa (única no gênero


àquela altura no Brasil, conforme diz Sílvio Gallo no Prefácio, p. XIII), voltada
a oferecer, aos professores de Filosofia no Ensino Médio, argumentos que
os auxiliem na justificativa deste fazer educativo necessário (por isso impor-
tante, é bom sempre repetir). Estes argumentos que são apresentados espe-
cialmente na primeira parte, bem como indicam caminhos possíveis para o
alcance dos bons resultados educativos do ensino de filosofia. Na indicação
desses caminhos (métodos, procedimentos, estratégias), na segunda parte,
os argumentos são retomados reforçando a importância da presença do
começar a aprender filosofia e do aprender a começar a filosofar neste nível
da educação escolar.
Sílvio Gallo é autor de um segundo livro brasileiro, relativo ao ensino
de filosofia no Ensino Médio, com foco especialmente em uma metodologia
inovadora para a disciplina. Trata-se de Metodologia do ensino de filosofia: uma
didática para o ensino médio (2012). Nos argumentos iniciais, relativos à sua
proposta metodológica quanto à necessidade (importância) do ensino de filo-
sofia, ele traz também argumentos que reforçam a necessidade da filosofia
(do filosofar) na vida das pessoas e na vida dos jovens que cursam o Ensino
Médio. Coloca-se a pergunta: “Será o tempo em que vivemos propício ao
exercício filosófico?” (2012, p. 22). Ele adota a denominação “tempos hiper-
modernos”, dada por Gilles Lipovetsky (2004), conforme sua citação:

Nasce toda uma cultura hedonista e psicologista que incita à satisfação


imediata das necessidades, estimula a urgência dos prazeres, enaltece o
florescimento pessoal, coloca no pedestal o paraíso do bem-estar, do confor-
to e do lazer. Consumir sem esperar; viajar; divertir-se; não renunciar a nada;
as políticas do futuro radiante foram sucedidas pelo consumo como promes-
sa de um futuro eufórico (Lipovetsky, 2004, p. 61 apud Gallo, 2012, p. 22-23).

Trata-se de tempos de uma sociedade da pressa, ou da “aceleração”,


como diz Gallo, que está presente em nossas salas de aula. Diante disso, ele
se pergunta: “Onde está o tempo para a leitura, o tempo para a meditação,
para a reflexão? Tudo são fluxos cada vez mais acelerados […]. Tudo é frui-

61
Ensinar filosofia e a filosofar: necessidade urgente

ção imediata, sem tempo para o pensamento organizado” (Gallo, 2012, p. 23).
E acrescenta:

Ora, sabemos que o pensamento é um exercício de paciência. […] Exercitar


o filosofar em nossos dias é, pois, uma forma de resistir a essa aceleração,
a essa fluidez, a essa falta de tempo para o conceito. Ensinar o exercício da
filosofia é uma forma de militar nessa resistência, ampliando-a para muitas
pessoas (Gallo, 2012, p. 23).

Ele aponta, ainda, para uma segunda resistência para a qual o exercício
do filosofar traz uma grande contribuição: a resistência contra o “achismo”,
ou seja, contra a terrível mania de muitas pessoas se apoiarem apenas em
opiniões (nos “eu acho”), ao invés de se apoiarem em saberes bem funda-
mentados (nos “eu sei”, com base nos argumentos). Diz a este respeito:

Praticar filosofia, ensinar o exercício filosófico em nossos dias é, pois, uma


segunda resistência: a resistência contra a opinião, que anuncia pôr ordem
no mundo. O exercício filosófico é assim um exercício de desestabilização,
de saída da falsa segurança na opinião e de mergulhar no caos do não pensa-
mento para, pensando, produzir equilíbrios possíveis, sempre instáveis,
sempre dinâmicos” (Gallo, 2012, p. 25).

Filosofar pode mesmo ser “mergulhar no caos do não pensamento”


(que é o caos da opinião, do achismo) para, “pensando” à moda filosófica,
“produzir equilíbrios possíveis”. No entanto, sempre difíceis, visto a realidade
ser algo sempre em movimento, povoada de mudanças, gerando incertezas
que desafiam nossos equilíbrios a duras penas conquistados, desafiando-nos,
por sua vez, a buscar novos equilíbrios através de saberes bem fundamenta-
dos, dentre eles, os filosóficos, talvez os que encerrem maiores dificuldades.
Apesar dessas dificuldades, trata-se de um saber necessário ao qual temos
que nos dedicar com paciência. O ensino de filosofia nas escolas é este ensi-
no da paciência do pensamento necessário. Necessário para todos e todas, é
sempre bom repetir.
Há mais argumentos possíveis de serem buscados e analisados, mas,
para a finalidade deste texto, penso que, por agora, isso é suficiente para
alimentar nossas reflexões e nossos diálogos a respeito da necessidade da
presença do ensino da filosofia e do filosofar nas escolas para que as crian-

62
Marcos Antônio Lorieri

ças e os jovens de hoje não sejam “pacatos cidadãos” que tudo aceitam sem
nenhum questionamento e, por isso, a tudo se submetem sem nenhuma luta.
Não queremos isso para nossos filhos e netos.

63
Capítulo 3

Posicionamentos meus relativos


ao ensino de filosofia20

A primeira ideia de que parto para trabalhar com filosofia, seja no meu próprio
filosofar, seja no estudo de produções dos denominados “Filósofos” ou
“Grandes Filósofos”, seja no ensino de filosofia (ou do filosofar) para e com
crianças, jovens e adultos, é a da necessidade do filosofar e do exame reflexi-
vo e crítico de produções filosóficas, em especial as que se apresentam hege-
monicamente na sociedade de que fazemos parte.
Vejo, pois, três formas de trabalho filosófico que se interpenetram: o do
meu filosofar, o do exame dos resultados do filosofar de outras pessoas e o
trabalho do ensino da filosofia e do filosofar (não os separo).
“Ensino a filosofar” buscando ajudar meus alunos a compreenderem
conceitos básicos das áreas específicas da filosofia, a verem que há aspectos
próprios da investigação filosófica, que em cada aspecto há questões específi-
cas e que estas questões são de interesse de todas as pessoas, dada a necessi-
dade que se verifica de os seres humanos as colocarem e buscarem respostas
a elas. Estas são as que, em outros capítulos deste livro, são denominadas
“questões de fundo”, ou “questões fundamentais”, ou, ainda, “perguntas da
vida”, explicitando-as.

20
Considerações a partir de texto apresentado no encontro “VI Experiência de Formação:
pensando com outros os sentidos do filosofar”, realizado em Ilha Grande, no estado do
Rio de Janeiro, de 10 a 14 de março de 2011, promovido pelo Núcleo de Estudos Filosóficos
da Infância (NEFI) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Coordenação de
Walter Omar Kohan.

65
Ensinar filosofia e a filosofar: necessidade urgente

Busco auxiliar os alunos a filosofar fazendo-os ver a existência de produ-


ções filosóficas ocorridas historicamente e ainda em curso, oportunizando a
eles acesso a algumas dessas produções, auxiliando-os para que as compreen-
dam, percebam aproximações com a realidade deles e coloquem em discus-
são as respostas dadas a elas por diversos filósofos. A partir deste exercício,
tento buscar com eles identificar questões de fundo que a realidade na qual
vivemos nos apresenta e realizar algum exercício reflexivo e crítico de busca
de respostas a estas questões, trazendo contribuições de pensamentos de
filósofos que já produziram reflexões sobre as mesmas questões.
Penso que, através deste caminho, seja possível provocar nos alunos
alguma aproximação do que seja filosofar, esperando que este exercício
tenha continuidade em suas vidas com os aprofundamentos possíveis. Esta
é uma maneira de fazer aulas de filosofia como “experiências de pensamen-
to”, julgo eu.
Um dos meus pontos de partida para o ensino de filosofia (e que procuro
mostrar aos alunos) está no fato de que os seres humanos produzem várias
formas de conhecimento ou de saberes por necessidade de explicações,
entendimentos e significados para suas vidas. Indico seis formas de conhe-
cimento ou de saberes: o conhecimento mítico, o conhecimento religioso, o
conhecimento do senso comum, o conhecimento científico, o conhecimen-
to filosófico e o conhecimento artístico. A todos denomino conhecimento
porque todos produzem explicações, entendimentos e significados. Não há
um aprofundamento nas especificidades de cada um; apenas noções iniciais
para ajudar os alunos a situarem o conhecimento filosófico.
Faço isso da seguinte maneira: primeiro procuro ajudar os alunos a
entenderem que a filosofia é igual às outras formas de conhecimento porque
ela é um conjunto de procedimentos da consciência humana que, ordenados
de certa forma, procura produzir respostas, as mais garantidas possíveis, para
as questões com as quais os seres humanos se deparam em suas vidas, espe-
cialmente quando se põem a pensar mais atentamente.
Ao mesmo tempo, busco que percebam que a Filosofia é diferente das
demais formas de conhecimento porque ela trabalha principalmente e priori-
tariamente com e sobre certas questões, utilizando uma maneira própria de
abordá-las, tendo em vista uma produção de respostas que nunca se fecha,
porque são continuamente questionadas e recolocadas.

66
Marcos Antônio Lorieri

Ofereço ajuda para que tomem consciência do seguinte: se as pessoas


não se ocuparem das tais “questões de fundo”, buscando a construção coleti-
va de respostas a elas, e não se ocuparem da análise crítica das respostas que
sempre existem em qualquer sociedade, elas terão respostas dadas e impos-
tas, de alguma maneira, por aqueles que dispõem de poder e têm interesse
em que todos pensem e ajam orientados pelas respostas dadas por eles. Isso
traz um risco sério de a maioria das pessoas ser enganada quanto a melhor
direção para suas vidas. Há sempre direções, ou significados, presentes em
qualquer formação histórico-social e isso precisa ser percebido e analisado
criticamente, gerando posicionamentos a serem assumidos.
Quanto às “certas questões” que vejo como específicas do filosofar,
aponto-as mais adiante. Antes disso, julgo interessante dizer algo não raro
que é dito na forma de pergunta: pensar e filosofar são a mesma coisa?
Filosofar é sempre pensar, mas nem todo pensar é filosofar. Fazer ciên-
cia é pensar, assim como produzir entendimentos ou explicações com os
recursos do conhecimento do senso comum, ou da arte, ou do mito ou do
conhecimento religioso. São todas formas de conhecimento ou de saberes
que se produz pensando.
Sem a “oficina do pensamento” não há conhecimentos ou saberes, mas,
para cada forma de conhecimento, há maneiras próprias de pensar. Ou cami-
nhos próprios do pensamento para cada uma. Por exemplo: no conhecimen-
to científico, esta maneira própria de o pensamento caminhar é chamada de
método científico, no qual há uma conjugação do pensamento crítico e do
pensamento criativo, com expressão mais acentuada do pensamento crítico.
Já no conhecimento produzido no âmbito das artes, as duas formas de pensa-
mento também estão presentes, mas com acentuada força do pensamento
criativo. No conhecimento filosófico, ambas as maneiras de pensar também
estão presentes, ressaltando-se a maneira reflexiva e crítica, que não dispensa
maneiras criativas de pensar. O conhecimento do senso comum tem também
suas maneiras de caminhar para saber, a seu modo, das “coisas da vida”, mas
não da mesma maneira que lhes querem saber as ciências e a filosofia. Nesta
forma de conhecimento, há caminhos cruzados de pensamento criativo com
pensamento crítico e até mesmo de pensamento reflexivo, mas nem sempre
é um pensamento bem ordenado ou rigoroso, nem muito profundo. Contudo,
é a forma mais frequente de o pensamento caminhar na maioria das pessoas.

67
Ensinar filosofia e a filosofar: necessidade urgente

Costuma-se dizer que é uma maneira de pensar opinativa, isto é, produtora de


opiniões e não de conhecimentos muito bem fundamentados.
Opinião, costuma-se dizer, não é saber. Será que não? Pode não ser um
saber com muitas garantias, mas ele não é desprovido de algumas delas. Por
isso se diz da validade da “sabedoria popular” que, em muitos casos, acerta
nas suas análises. Há algo no conhecimento do senso comum que é deno-
minado “bom senso”, alimentado por uma boa dose de reflexão, de cuida-
dos nas análises (um quase-rigor), de profundidade, de certa criticidade e de
muita criatividade.
Não por acaso, dizemos de certas pessoas que elas são sábias porque
pensam muito antes de opinar, isto é, antes de emitir algum juízo a respeito
de algo, a respeito de certos fatos ou acontecimentos, a respeito de pessoas,
a respeito de modos de agir e a respeito de outros aspectos da realidade. É
uma forma de pensar que, por todos os seus acertos (e não por seus erros – a
forma de conhecimento científica nunca errou?), deve ser levada em conside-
ração. E assim ela o é, como comprovam as recomendações de se levar em
conta a opinião pública e a de levar a “júri popular” julgamentos relativos a
possíveis crimes considerados de forte impacto na vida social.
Estas considerações sobre os caminhos do pensar, presentes nas diver-
sas formas de conhecimento, cabem também com relação às outras duas
formas de conhecimento ainda não mencionadas: a forma de conhecimento
religioso e a forma de conhecimento mitológico.
Pensar, como foi dito acima, é a “oficina dos saberes”, a oficina na qual
os conhecimentos são processados como pensamentos com certas formas.
Todo processo de conhecer é uma forma ou maneira de pensar. Daí as várias
formas de conhecimento.
Duas delas têm merecido apreciação especial pelo fato de disporem
de maneiras de pensar consideradas mais seguras para conseguirem aqui-
lo que desejam conhecer, ou seja, para conhecerem os seus objetos de
conhecimento. São elas as ciências e a filosofia, muitas vezes denominadas
conhecimentos “melhor elaborados”. Penso que é isso mesmo: são manei-
ras de conhecer “melhor elaboradas” para produzirem entendimentos,
compreensão, significados. Mas muita coisa fica fora de seu alcance. Isso
que fica fora do seu alcance busca ser alcançado com as demais formas de
conhecimento.

68
Marcos Antônio Lorieri

Esta consideração pode nos levar a pensar que o ideal é que todas as
formas de conhecimento cooperem juntas na busca da compreensão da reali-
dade na qual todos vivemos.
Quando todas as formas de conhecimento “conversam” entre si, elas
praticam o que é denominado “interdisciplinaridade”. Quando escolas traba-
lham o aprendizado das disciplinas de maneira isolada umas das outras, elas
não praticam a “interdisciplinaridade”. E isso não é bom para o aprendizado de
modo geral nem para o desenvolvimento de uma maneira de pensar interligada
a respeito da realidade. Tudo na realidade está ligado, ou relacionado, a tudo.
Pensar de maneira interligada, ou de maneira interdisciplinar, é pensar bem.
Precisamos do pensar bem. Não por acaso mães e pais sábios (avós
também) dizem a seus filhos (e netos) quando os veem tomando decisões:
“Minha filha, meu filho (minha neta, meu neto), pensem bem antes de tomar
a decisão”.
Sábio conselho, pois pensar é articular ideias produzindo explicações,
entendimentos, significados. Ao pensar, articulamos ideias que são originárias
de nossas sensações e percepções, de nossa imaginação e dos processos de
comunicação com outras pessoas. Ideias que dizem respeito a nós mesmos e
a tudo que está presente na realidade da qual fazemos parte. Sem ideias não
há pensamento. Sem realidade não há ideias. Sem realidade e ideias não há
pensamento.
Pode-se dizer que filosofar é uma maneira específica de pensar, de arti-
cular ideias relativas a nós mesmos e à realidade, a partir de certas questões
que nossas vidas e a realidade nos colocam e sugerem.
O conteúdo do filosofar são estas “certas questões”. Ou as tais
“perguntas da vida”. São questões que nós nos colocamos e que pedem
algo mais que apenas constatações, descrições, explanações, quantificações,
causas próximas.
Elas nos pedem posicionamentos amplos e, ao mesmo tempo, significati-
vos, de tal forma que nos ofereçam sentidos, quer como grandes explicações,
quer como rumos de vida ou como direções. Podemos chamar a estes posicio-
namentos de referências, de princípios, de significações.
Há necessidade de que esses princípios ou essas significações sejam
bem argumentados e, por isso, tenham plausibilidade de ser bons explica-
dores, referenciadores e orientadores de nossas existências. Mas, ao mesmo

69
Ensinar filosofia e a filosofar: necessidade urgente

tempo, sabemos que eles não são absolutamente garantidos como verda-
deiros. Daí uma busca contínua em torno deles, com uma constante repo-
sição e retomada das questões de diversas perspectivas. A este movimen-
to desafiador e instigante, denominamos investigação filosófica. Filosofar é
uma maneira de pensar, dentre outras, mas dirigida à busca de respostas a
certas questões.
É uma necessidade profundamente humana nos envolvermos com e
nestas questões e estarmos atentos criticamente em relação às “respostas”
que são dadas a elas no ambiente cultural de que sempre fazemos parte.
Essas “respostas” acabam, algumas delas, tornando-se princípios que pautam
a forma de condução de determinadas sociedades e, muitas vezes, de toda
uma época, para determinadas formações sociais.
Veja-se, como exemplo, o Liberalismo (Filosófico, Político e Econômico)
na formação histórica denominada Capitalismo. Não que as ideias desta filoso-
fia tenham vindo antes de as sociedades capitalistas se formarem: elas foram
produzidas e, de alguma forma, mantidas com ajustes, no próprio processo
de constituição e de manutenção dessas sociedades.
As “respostas” às tais “certas questões” que fazem parte dos pensa-
mentos do Liberalismo tornam-se princípios orientadores, ou referências,
ligadas, sempre, a determinados interesses que podem não ser os de todos,
como ocorre com outras filosofias em outras formas de sociedade.
Não há sociedade humana sem alguma referência significativa, seja
produzida por alguma filosofia, seja produzida por alguma forma de conheci-
mento religioso; ou produzida por conhecimentos mitológicos, ou ainda por
alguma forma de sincretismo.
Princípios orientadores ou referências ligadas a determinados interes-
ses, que podem não ser os de todos, fazem parte do cultural de cada socie-
dade. Há inclusive princípios e referências conflitantes dentro de uma mesma
sociedade ou de um mesmo cultural. O conjunto destes princípios ou de refe-
rências pode ser denominado ideologia ou ideologias.
Uma das tarefas importantes da reflexão filosófica é a de examinar refle-
xiva e criticamente as ideologias. E isso se aprende em aulas de filosofia. Ou
deveria ser aprendido.
Como já afirmado, os princípios ou referências decorrem das respostas
dadas, em cada sociedade, às “certas questões” ou às “questões de fundo”,

70
Marcos Antônio Lorieri

as quais, reunidas em grandes temas, constituem as áreas da investigação


filosófica.
São questões sobre a realidade em geral e seu possível sentido: área da
ontologia, sobre o ser humano e o significado de sua existência; área da antro-
pologia filosófica, sobre o conhecimento, sua importância, sua possibilidade
objetiva de nos dizer verdadeiramente do mundo e de nós mesmos; área da
teoria do conhecimento, sobre o processo de valoração em geral; área da
axiologia, sobre o processo de valoração moral (de valoração de modos de
agir); área da ética, sobre o processo de valoração a respeito da sensibilidade
humana e de suas manifestações (por exemplo, as artísticas); área da esté-
tica, sobre a sociabilidade e, nela, sobre o poder e, por consequência, sobre
a liberdade; área da filosofia social e política; e outras questões e temáticas,
como a da linguagem, da história, do raciocínio e argumentação (área da lógi-
ca), da educação (Filosofia da Educação) etc.
Quando a investigação filosófica se debruça sobre a educação e a
examina à luz de todos os aspectos filosóficos que a envolvem, temos o
campo da Filosofia da Educação. Outro campo ou área específica da investi-
gação filosófica é a que diz respeito ao próprio ensino de filosofia. Há neces-
sidade de se fazer filosofia do ensino de filosofia, o que, na verdade, já se
faz, como o mostra o grande conjunto de produções teóricas já existente
a respeito.
Mas há algo ainda a considerar para se entender o que é o conhecimento
filosófico: é uma maneira própria de se abordar as questões de fundo.
A Filosofia se caracteriza e, portanto, se diferencia das demais formas de
conhecimento, também pelo método (ou pelos métodos), pelos procedimen-
tos que utiliza para buscar respostas.
Fazer filosofia é realizar um processo investigativo e reflexivo que seja
crítico, rigoroso, profundo, abrangente (que busca totalidades referenciais
significativas), sobre ou a partir daquelas certas questões anteriormente
mencionadas.
Há, por certo, controvérsias a respeito deste entendimento de Filosofia.
É, porém, o que adoto aqui. A proposta é que se pense a respeito se é neces-
sário mesmo que as pessoas sejam boas investigadoras e pensadoras reflexi-
vas, críticas, rigorosas, profundas e abrangentes (capazes de pensar de forma
contextualizada).

71
Ensinar filosofia e a filosofar: necessidade urgente

A proposta de ensino de filosofia para todas as pessoas, desde o mais


cedo possível, parte da ideia de que é fundamental que todos participem
desta produção tão importante para suas vidas. Só assim as pessoas apren-
derão a avaliar criticamente quaisquer respostas àquelas questões de fundo
que sempre se colocam e poderão participar da produção das respostas que
lhes convenham verdadeiramente, ou que, ao menos, assim lhes pareçam
pelos argumentos produzidos. Convenham porque atendem não a interesses
mesquinhos, mas às suas necessidades de significações de vida.
Crianças e jovens, enquanto pessoas, colocam-se também, a seu modo,
questões próprias do âmbito da investigação filosófica; deparam-se e são
“envolvidos” culturalmente com “respostas” e têm o direito de serem inicia-
dos no trato e no processo de avaliação crítica destas respostas. Esta é uma
justificativa, mais do que plausível, para o trabalho com o ensino de filosofia21.
Além disso, este ensino, no caso especialmente de crianças e jovens,
oferece oportunidade rica de desenvolvimento do pensamento reflexivo,
crítico e criativo necessário em todos os demais domínios do conhecimento
para toda a vida.
Outra preocupação frequente no tocante ao ensino de filosofia e do
filosofar é quanto ao preparo ou à formação dos docentes para esta missão
importante.
É fundamental que sejam pessoas que filosofam, pois, não o sendo, não
são capazes de serem bons professores de filosofia e de filosofar: aí está o
começo de tudo. É fundamental, também, que tenham conhecimentos de
conteúdos básicos da área e que dominem a maneira própria de se produzir
conhecimento filosófico. Além disso, precisam de formação pedagógica, na
qual se inclui ou didática ou conhecimentos a respeito do como ensinar em
geral e do como ensinar filosofia e filosofar em especial. Há cursos destinados
a esta formação que são hoje denominados Licenciatura em Filosofia.
Prefiro os formados nesses cursos para serem professores de filosofia
e do filosofar em qualquer nível de ensino. E vejo também como necessária
a complementação dessa formação acadêmica na sua prática, a ser pensa-
da por eles como objeto de contínua avaliação e, se possível, de avaliação

21
Ver capítulo sobre a proposta de Filosofia para Crianças de Lipman.

72
Marcos Antônio Lorieri

compartilhada com outros colegas e com outros especialistas em educação,


além de buscas de cursos de formação continuada.
Minhas considerações e posicionamentos partem de alguns pressupos-
tos que penso ser importante colocar aqui.
Primeiro, um pressuposto ontológico: realidade é tudo o que existe,
ou, ao menos, tudo o que podemos afirmar, com certa segurança, que exis-
te. Existe este imenso universo (ou pluriversos?) dentro do qual se situa o
planeta Terra do qual fazemos parte como seres, ao mesmo tempo, natu-
rais e culturais. Somos naturalmente culturais e culturalmente naturais, ou
seja, naturalmente fazemo-nos humanos nas relações que estabelecemos
entre nós e com os demais seres e fenômenos. Esta realidade é constituída
por dimensões materiais e por dimensões que, até agora, nos parecem não
materiais, como as ideias, os valores, as crenças etc. De minha parte, não
nego a possibilidade de existência de outras realidades não materiais exis-
tindo em planos diversos do plano do universo no qual habitamos. Indago,
a meu modo, sobre isso e não tenho posição a respeito. Penso que, como
parte da realidade do nosso universo e, nele, do planeta Terra, temos muito
o que fazer para que tudo ocorra da melhor maneira possível para o bem
de todas as pessoas e de todos os demais seres. E isso exige de nós pensa-
mentos cada vez mais bem elaborados que sejam iluminadores de nossas
maneiras de agir.
Em segundo lugar, um pressuposto antropológico: o ser humano é um
ser deste universo, como os demais seres. Como os demais seres, ele tem
algumas caraterísticas próprias que o distinguem e que lhe permitem relacio-
nar-se com o conjunto desta realidade de forma a contribuir para sua manu-
tenção e, se necessário, para ajustes. Este relacionamento se dá não de forma
isolada para cada ser humano, mas de forma coletiva: os seres humanos reali-
zam-se nas relações que estabelecem com o conjunto da realidade, com os
demais seres e entre si. Para isso, um recurso natural básico é o conhecimen-
to, ou os saberes que são capazes de produzir para lhes proporcionar bons
entendimentos sobre suas maneiras de ser. Esta produção é responsabilidade
do conjunto dos humanos e de cada um em particular, pois disso depende sua
sobrevivência biológica, social, psíquica, imbricadas umas nas outras.
Em terceiro lugar, um pressuposto epistemológico: o ser humano
pode produzir conhecimentos (explicações, entendimentos, compreen-

73
Ensinar filosofia e a filosofar: necessidade urgente

são) com certa garantia e pode produzir significações (indicações plausí-


veis de direções para sua existência individual e coletiva), também com
certa garantia. Este é um trabalho árduo, nunca absolutamente conclusivo,
mas necessário de ser feito continuamente. Sem conhecimentos e signifi-
cações, direções ou sentidos, os seres humanos se perdem como huma-
nos no seu existir. Ideias bem pensadas, portanto, explicações, entendi-
mentos, compreensão e significações são necessidade humana básica, a
par de outras. O trabalho com filosofia, na educação, é uma grande ajuda
na satisfação dessa necessidade humana juntamente às outras formas de
conhecimento.
Há um fato, neste aspecto, parte de pressupostos epistemológicos, que
merece atenção especial: a existência de enganos e de procedimentos enga-
nosos ou manipuladores de alguns seres humanos sobre outros, em função
de interesses particulares. Trata-se da realidade das ideologias no sentido de
falsa consciência. Este fato exige atenção crítica de todas as pessoas, pois
manipulações ideológicas são parte significativa de processos de dominação
de uns sobre outros. Aprender sobre isso e aprender a avaliar reflexiva e criti-
camente ideologias é uma necessidade que pode ser satisfeita com o ensino
de filosofia e do filosofar.
Em quarto lugar, um pressuposto ético-político: as gerações adultas têm
o dever de proporcionar educação/formação para as novas gerações e um dos
aspectos fundamentais da formação humana é o cuidado com o pensamento
e com a maneira de pensar de crianças e jovens, pela importância já afirmada
desse aspecto na vida humana. Trabalhar com filosofia na educação responde
a uma parte desse dever.
Em quinto lugar, é no filosofar, de maneira especial, que as análises sobre
princípios e critérios relativos ao agir ou às condutas (aspectos éticos) podem
ser feitas com as características já apontadas.
Da mesma forma, em sexto lugar, tenho como pressuposto que é no
trabalho do filosofar que certas análises podem ser feitas em relação à vida
em comum e à presença do poder nesse contexto, o que remete às discus-
sões sobre a liberdade e aos afrontamentos a ela (por exemplo, o exercício,
não raro, da dominação de uns sobre outros). E, ainda, remete às discussões
e às decisões sobre as formas de exercício de certos poderes no interior das
sociedades, como as formas de governo.

74
Marcos Antônio Lorieri

Por último um pressuposto estético: a sensibilidade é uma característica


do humano, que tem necessidade de fruí-la e de manifestá-la. Manifestamos e
fruímos nossa sensibilidade através dos sentimentos e das emoções e criamos
obras que também manifestam e ampliam a fruição como, por exemplo, as
obras de arte (penso aqui nas artes plásticas, nas literárias, nas musicais, nas
cênicas, dentre outras). Pensar sobre este fato, ser capaz de bons julgamen-
tos estéticos é algo de que a educação das pessoas não pode descuidar e a
filosofia tem um papel importante aí.
Pressupostos são “postos” ou posicionamentos, ou princípios, colo-
cados antes de outros posicionamentos. São pontos de partida a partir dos
quais afirmamos (ou negamos) ideias, valores, escolhas políticas, maneiras de
agir, dentre elas, as maneiras de agir ao oferecer ajuda educacional às novas
gerações. É importante que todos pensemos sobre isso: de onde partimos
para pensar o que pensamos e para agir da forma como agimos? Filosofar é
um caminho privilegiado para nos ajudar nisso e todas as pessoas devem ter
acesso a este privilégio.
E este acesso deve ser garantido às pessoas desde crianças.
Quanto a isso, devo dizer que recebi grande influência das ideias de um
pensador e educador norte-americano: Matthew Lipman. Não tenho nada
contra a “nacionalidade” das ideias, desde que sejam “boas ideias” que nos
ajudem a viver bem. Penso ser o caso.
Quando conheci as ideias e a proposta de Lipman, em 1985, já era profes-
sor de Filosofia no Ensino Médio por mais vinte anos e no Ensino Superior
por mais de onze anos. As ideias de Lipman fizeram-me ver a possibilidade
desse trabalho com crianças e ver também uma nova maneira de trabalhar
no Ensino Médio e até mesmo no Ensino Superior. Passei a utilizar principal-
mente as indicações relativas à Comunidade de Investigação Filosófica: uma
proposta não de transmitir doutrinas filosóficas prontas, mas de ajudar crian-
ças e jovens a filosofar juntos, dialogando a partir de questões ou de pergun-
tas que elas e eles sempre têm sobre a realidade, sobre o ser humano, sobre
como agir, sobre as ideias e o conhecimento, sobre regras, o poder, o funcio-
namento da vida em comum, sobre as emoções, sobre artes (pode-se perce-
ber aí áreas da investigação filosófica). Pensar investigando reflexiva, crítica e
criativamente juntos sobre ou a partir destas questões é realizar a comunida-
de de investigação filosófica.

75
Ensinar filosofia e a filosofar: necessidade urgente

O conjunto dessas ideias me marcou muito, assim como me marcaram


suas falas sobre a importância de as crianças e os jovens pensarem criticamen-
te as referências que cada sociedade lhes oferece.
Lipman concretizou suas ideias em uma proposta que ele denominou
“Programa de Filosofia para Crianças”, que envolve o estímulo para o “pensar
bem” (pensamento reflexivo, crítico, criativo e cuidadoso, como ele diz) e o
trato investigativo filosófico sobre ou a partir das “questões de fundo” (já
suficientemente mencionadas nos textos anteriores).
Vejo este Programa como uma proposta de “iniciação filosófica” de
crianças, visto que elas se colocam as questões que considero específicas
do filosofar já desde bem pequenas. O que sinto ocorrer é que elas perdem
este comportamento indagativo muito cedo por diversas circunstâncias. Uma
delas está na educação escolar, que não trabalha na direção da investigação e
sim apenas na direção da oferta de respostas prontas. No caso das perguntas
relativas às áreas da investigação filosófica, nada se faz. A presença de um
espaço inicial de investigação filosófica pode ajudar a manter e a desenvolver
o espírito investigativo filosófico nas crianças e pode ajudá-las no desenvol-
vimento de maneiras de pensar que são necessárias para o enfrentamento
dessas questões filosóficas. Penso que, com o tempo e com a continuidade
desse trabalho, as crianças paulatinamente poderão ser introduzidas em ativi-
dades investigativas filosóficas mais sofisticadas e poderão, no Ensino Médio,
iniciar um trabalho com as produções dos denominados grandes filósofos.
Isso as preparará para avanços futuros.22
Para tudo isso, há de haver professores capazes de realizar estas tarefas.
Penso ser possível preparar bons professores, com percursos bem pensados
de formação e, de preferência, que tenham formação filosófica específica em
cursos de filosofia.
O objetivo deste capítulo foi indicar os “pontos de partida”, ou os pres-
supostos que têm orientado minha prática de professor, na esperança de que
essas indicações possam contribuir para reflexões dos iniciantes neste impor-
tante/necessário serviço educacional do ensinar filosofia e a filosofar.

22
Para mais informações e reflexão sobre a proposta de Matthew Lipman, ver capítulo
específico neste livro.

76
Marcos Antônio Lorieri

Foram muitas as fontes (bibliográficas, ou não) das quais recebi influên-


cias importantes, trabalhadas e retrabalhadas ao longo de minha caminhada.
Não sinto necessidade de elencá-las aqui. Talvez nem consiga. Sou grato a elas.

77
Capítulo 4

Aulas de filosofia podem ajudar para o


respeito às diferenças

Uma das áreas da filosofia é a Antropologia Filosófica. Nela indaga-se sobre


o que é o ser humano. Sobre o que é ser gente. Sobre o que é ser gente boa.
Sobre o que é ser uma pessoa e sobre como as pessoas devem ser tratadas.
Uma das indagações importantes desta área é sobre um fato que chama aten-
ção: todos os seres humanos são gente, são pessoas, mas há diferenças entre
eles. Há diferenças de gênero, diferenças de etnias, diferenças de cor da pele,
diferenças culturais, diferenças de convicções ético/políticas, diferenças de
línguas faladas, diferenças religiosas, diferenças de costumes, diferenças de
vestimentas, diferenças de gostos, diferenças de maneiras de pensar etc.
Ao mesmo tempo, todos os seres humanos são iguais enquanto seres
humanos: somos todos humanos; somos todos pessoas. Somos todos igual-
mente pessoas humanas e, ao mesmo tempo, apresentamos diferenças em
nossas maneiras de ser.
Para alguns, as diferenças incomodam e, por vezes, são motivos para
discriminações. As discriminações chegaram a tal ponto que foi necessário
não apenas criar leis que proíbam discriminar pessoas, mas também leis que
considerem discriminações como crimes, passíveis de punições severas.
A Constituição Brasileira de 1988 trata deste assunto e, em vários
de seus artigos, traz indicações e determinações que merecem tanto ser
conhecidas pelas crianças e pelos jovens quanto ser analisadas reflexiva e
criticamente por abordagens filosóficas. No seu Título 1, há a indicação dos
“princípios fundamentais” que são a base de onde se parte para as deter-

79
Ensinar filosofia e a filosofar: necessidade urgente

minações legais que devem orientar certas condutas dos brasileiros. Dentre
esses princípios, no artigo 1º, inciso III, consta a afirmação da “dignidade da
pessoa humana”.
Princípios! Por que são colocados e por que são adotados?
Esta é uma pergunta importante e merece ser respondida a partir de
reflexão crítica. São aceitos como pontos de partida: daí serem “princípios”,
isto é, o que vem primeiro, ou no início de uma argumentação; não gratuita-
mente, mas por conta de algumas razões.
Quais seriam? Isso é algo que convém ser colocado sob análise crítica
nas aulas de filosofia. Partimos de vários princípios para justificar maneiras
de ser, de pensar e de agir, mas raramente nos perguntamos pelas razões
que temos para adotá-los. Um deles é o da “dignidade da pessoa humana”,
que não pode ser desrespeitada. Com base nesse princípio, a Constituição
Brasileira, no Título II, Capítulo I, que trata dos “Direitos e deveres individu-
ais e coletivos”, aponta a igualdade de todas as pessoas no Artigo 5º, como
um desses direitos:

Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantin-
do-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade
do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos
termos seguintes (Brasil, 1988, p. 13).

Seguem 78 itens indicando direitos e deveres que cabem igualmente


a todas as pessoas, dentre os quais alguns serão registrados mais adiante.
Antes, porém, convém salientar a determinação legal da igualdade de todas
as pessoas perante a lei, “sem distinção de qualquer natureza”.
Para afirmar e determinar isso, a base é o princípio da “dignidade da
pessoa humana”, de todas as pessoas, não cabendo nem devendo haver
distinção ou discriminação de qualquer natureza.
Para que um princípio como este e afirmações e determinações como
estas possam ser compreendidas e levadas à prática por todos, há necessida-
de de compreensão e de reflexão crítica que ajudem no encaminhamento das
ações correspondentes. Aulas de filosofia, nas escolas, são fundamentais para
isso. E são fundamentais, ainda, para a compreensão, internalização e efetiva-
ção prática de todos os itens que explicitam o princípio e o que está dito no
referido Artigo 5º. Em especial os seguintes itens:

80
Marcos Antônio Lorieri

I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos


desta Constituição;
III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou
degradante;
VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o
livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção
aos locais de culto e a suas liturgias;
VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de
convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obriga-
ção legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada
em lei;
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pesso-
as, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorren-
te de sua violação;
XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem
consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre,
ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial;
[…]
XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito
à pena de reclusão, nos termos da lei (Brasil, 1988, p. 13-16).

A pergunta é: por que aceitamos este princípio e esta lista de suas


decorrências?
Um caminho a ser percorrido, para talvez clarear um pouco mais a ideia
de dignidade humana, seja refletir sobre o que esta expressão significa. Somos
todos igualmente dignos de respeito, dignos de direitos, dignos de liberdade
e de tantas outras coisas. Igualmente dignos.
Ser digno é ser merecedor. Dizemos que somos todos portadores
do direito fundamental de sermos respeitados em nossa dignidade. Todos
temos igualmente o direito de respeito à nossa dignidade por sermos pesso-
as: trata-se do direito à dignidade humana. Em relação a este direito, somos
todos iguais, pois somos todos igualmente humanos.
E há mais: todos temos igualmente o direito de sermos diferentes na
realização de nossa humanidade comum ou igual. A riqueza do humano resi-
de na diferenciação de maneiras de realizar a sua igualdade básica. Daí a ideia
de que, sendo diferentes na maneira de realizarmos nossa igual humanidade,
todos somos igualmente seres humanos e, por isso, merecedores ou dignos de
respeito. Todos temos direito de que seja respeitada nossa dignidade humana,
independentemente da maneira que escolhemos realizar nossa humanidade.

81
Ensinar filosofia e a filosofar: necessidade urgente

Talvez seja útil, para diálogos investigativos e reflexivos em aulas de filo-


sofia, algumas considerações de Dalmo de Abreu Dallari, jurista e coordenador
da Cátedra Unesco/USP de Educação para os direitos humanos, paz, democra-
cia e tolerância. Comentando a Declaração Universal dos Direitos Humanos da
ONU (1948), declara que ela tem, como fundamento, “a afirmação do valor
essencial da pessoa humana” (Dallari, 2004, p. 38). Valor esse traduzido na
palavra “dignidade da pessoa”, que é a base a partir da qual toda a discussão
relativa aos direitos das pessoas, ou aos direitos humanos, se desenrola. É a
base, o princípio aceito como ponto de partida para as demais considerações
e afirmações, como ele diz:

Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Essa é a base


da organização social que será considerada justa, isto é, aquela que reconhe-
ce e pratica a afirmação dos direitos inerentes à condição humana. Deve-
se destacar particularmente a afirmação – até então inédita - da dignidade
humana como valor fundamental. A dignidade é postulada como essencial
aos seres humanos. Eles não podem, pois, ser submetidos a situações em que
essa dignidade não seja reconhecida e respeitada (Dallari, 2004, p. 37-38).

Seria este o principal e primeiro direito de todas as pessoas indepen-


dentemente de fazerem parte de culturas diversas? O que significa dizer
que todas as pessoas têm o direito de serem respeitadas em sua dignidade
humana? Em que consiste a dignidade humana? A palavra dignidade deriva de
“digno” que, segundo Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, em O Dicionário
da Língua Portuguesa (1999), significa “merecedor”. Dignidade tem a ver, no
caso das pessoas, com o merecimento que lhes é intrínseco, que faz parte da
natureza humana, de serem respeitadas como pessoas. Basta ser pessoa para
ter o merecimento, para ser digno ou portador de dignidade. No Dicionário
de Filosofia, Abbagnano (1970) reporta-se à ideia de Kant sobre a dignidade
humana nos seguintes termos:

Como “princípio da dignidade humana” entende-se a exigência enunciada


por Kant como segunda fórmula do imperativo categórico: “Age de forma
que trates a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer
outro, sempre também como um fim e nunca unicamente como um meio”
(1970, p. 259).

82
Marcos Antônio Lorieri

Ao comentar esta afirmação de Kant, Abbagnano diz que isto indica que
todo ser humano é um fim em si mesmo e, portanto, “possui um valor não rela-
tivo”. Isto é, nada se iguala a um ser humano. Nada vale o que ele vale. Nada
pode ser trocado por ele, nem ele por coisa alguma. Nada. Sua dignidade está
acima de qualquer outra coisa. A pessoa está acima de qualquer equivalência, de
qualquer comparação. A pessoa humana não é relativa a nada: é humana e vale
por si mesma enquanto tal e não em relação à sua classe social, à cor de sua pele,
ao seu gênero, às suas posses, ao cargo que ocupa em governos, instituições ou
empresas, ou a qualquer outro aspecto que não seja o fato de ser uma pessoa.
A citação anterior, de Dallari, diz isso ao afirmar que a dignidade humana
é algo a ser posto antes de qualquer coisa: “A dignidade é postulada como
essencial aos seres humanos. Eles não podem, pois, ser submetidos a situa-
ções em que essa dignidade não seja reconhecida e respeitada”.
Que provas científicas temos para afirmar o direito de respeito à digni-
dade humana? Talvez não as tenhamos, mas é possível argumentar a favor
deste postulado, ou princípio. Norberto Bobbio (2004) utiliza, como um forte
argumento, o fato de haver um “quase consenso” das nações do mundo em
relação a ele ao se referir à Declaração Universal dos Direitos do Homem nos
seguintes termos:

Trata-se, certamente, de um fundamento histórico e, como tal, não absoluto:


mas esse fundamento histórico do consenso é o único que pode ser factual-
mente comprovado. A Declaração Universal dos Direitos do Homem pode ser
acolhida como a maior prova histórica até hoje dada do consensus omnium
gentium sobre um determinado sistema de valores (2004, p. 27).

É um consenso verdadeiramente de todas as pessoas (omnium


gentium23)? Ou é um quase consenso? Bobbio diz aqui tratar-se de um
consenso, mas, em outros momentos de sua obra, relativiza afirmando
tratar-se de um quase consenso, o que nos parece ser mais verdadeiro.
Realmente, nem todos os países assinaram, através de seus representantes,
esta Declaração. Mas foi a maioria. Mesmo assim, nem todas as pessoas de
todos esses países adota de fato este princípio e, o que é mais preocupante,

23
Expressão latina que pode ser traduzida por: consenso de todas as pessoas.

83
Ensinar filosofia e a filosofar: necessidade urgente

mesmo entre os que o adotam, nem sempre se servem dele nas suas práti-
cas diárias.
Segundo muitos autores que se debruçam sobre este tema, aí está
um grande problema: respeitar, através de ações concretas, esta proclama-
da dignidade. Bobbio é otimista ao dizer que, após longos anos depois de
1948, os direitos da pessoa humana passaram do apenas “serem pensados”
para a sua formalização “concreta” em normas jurídicas. Ou seja, em leis de
muitos países.
É um grande avanço sem dúvidas. Mas, como ele mesmo diz, ainda
resta uma grande luta política para que todas as pessoas pensem favoravel-
mente sobre o direito à dignidade humana e para que elas realizem ações
concretas de respeito a este direito. Bobbio insiste nesta necessidade ao
dizer que “são coisas diversas mostrar o caminho e percorrê-lo até o fim”
(2004, p. 31).
Se cada pessoa não se imbuir desse pensamento favorável aos direi-
tos humanos e dos princípios que os sustentam (o da igual dignidade de
todos) e, mais ainda, não se dispuser a levar este pensamento à prática nas
relações do dia a dia de suas vidas, a “era dos direitos” (título do livro de
Bobbio) não terá efetivamente chegado a todos, pois, conforme ele mesmo
alerta: “uma coisa é a consciência do meio, outra a sua realização” (Bobbio,
2004, p. 31).
Sem a consciência, porém, torna-se praticamente impossível buscar
os meios para a realização efetiva dos direitos. A consciência da dignidade
da pessoa humana é o pressuposto de qualquer outra tomada de consciên-
cia neste campo, assim como o é a consciência da dignidade igual de todas
as pessoas.
Nesse aspecto, a educação tem um importantíssimo papel e, dentro
dela, as aulas de filosofia na educação escolar também desempenham crucial
responsabilidade quando as professoras e os professores, consciente e efeti-
vamente, convidam seus alunos para refletir crítica e profundamente sobre
este tema e para, além disso, pensar em ações que possam ajudar a garantir a
realização do respeito a este direito.
De acordo com Barroso (2010), há hoje um grande consenso em rela-
ção ao princípio da dignidade humana no Direito, mas faltam ações concre-
tas. Diz ele:

84
Marcos Antônio Lorieri

A dignidade da pessoa humana tornou-se, nas últimas décadas, um dos gran-


des consensos éticos do mundo ocidental. Ela é mencionada em incontáveis
documentos internacionais, em Constituições, leis e decisões judiciais. No
plano abstrato, poucas ideias se equiparam a ela na capacidade de seduzir
o espírito e ganhar adesão unânime. Tal fato, todavia, não minimiza – antes
agrava – as dificuldades na sua utilização como um instrumento relevante na
interpretação jurídica. Com frequência, ela funciona como um mero espelho,
no qual cada um projeta sua própria imagem de dignidade (p. 3).

Nestas palavras, há a indicação de que não bastam os bons postulados


tampouco só o consenso em relação a eles, ainda que necessários: há dificul-
dades na sua utilização como um instrumento de interpretação jurídica e há
dificuldades quanto à prática das proteções necessárias à garantia dos direi-
tos humanos daí derivados.
Bobbio (2004) também aponta estas dificuldades para a efetivação de
ações garantidoras dos direitos assumidos consensualmente como necessá-
rios em termos práticos.

Quando se trata de enunciá-los (os direitos), o acordo é obtido com relativa


facilidade […]; quando se trata de passar à ação, ainda que o fundamento
seja inquestionável, começam as reservas e as oposições. O problema funda-
mental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto o de justificá-los,
mas o de protegê-los. Trata-se de um problema não filosófico, mas político
(Bobbio, 2004, p. 23).

Ainda que possamos concordar com Bobbio quanto às dificuldades


apontadas, é necessário dizer que o problema filosófico persiste quando
a formação filosófica das novas gerações passa a não ser valorizada como
o mostram certas decisões de não haver aulas de filosofia nas escolas. Elas
são necessárias para chamar a atenção das crianças e dos jovens tanto para
este aspecto fundamental que é o respeito à dignidade da pessoa huma-
na quanto para tantos outros aspectos, apontados em outros capítulos
deste livro.
A tomada de consciência da importância de certas ideias, de certos prin-
cípios não é, por certo, uma “varinha mágica” que tudo transformará. Mas é
um primeiro e necessário passo na direção das necessárias ações com vistas
a novas maneiras de os seres humanos conviverem. Na busca de pensar cami-

85
Ensinar filosofia e a filosofar: necessidade urgente

nhos para esta tomada de consciência, penso serem úteis, ainda, as conside-
rações que seguem.
Uma das diferenças que existe entre os seres humanos é a de gênero:
há seres humanos masculinos e seres humanos femininos. Ambos igualmente
seres humanos e, portanto, dignos de respeito igual. Na Língua Portuguesa,
temos duas palavras para nos referirmos a cada um desses dois gêneros:
mulher e homem. Mas, quando queremos nos referir a ambos os gêneros,
dizemos, costumeiramente, os homens.
Poderíamos dizer, nesses casos, ao invés de “homens”, seres humanos
ou pessoas. Nem sempre o fazemos. Por quê?
Como uma provocação para se pensar sobre isso, talvez valha observar
que, na língua grega, há três palavras para designar as pessoas, ou seja, os
seres humanos: antropos (o ser humano em geral), guiné (o ser humano femi-
nino) e andrós (o ser humano masculino).
Algo a se pensar. Se estou correto em relação ao que afirmei sobre a língua
grega, parece-me que, nela, há uma indicação clara de que tanto seres huma-
nos masculinos quanto seres humanos femininos e seres humanos de demais
gêneros são, ao mesmo tempo, diferentes e iguais. As diferenças são manifes-
tações singulares da fundamental igualdade dos seres humanos que se espa-
lham pelo planeta Terra, os quais, como igualmente humanos, manifestam a
riqueza de possibilidades deste “igual ser humano”: igual como humano, igual
como merecedor (digno) de respeito por ser humano, e de ser respeitado no
seu direito de ser humano à sua maneira, isto é, diferenciadamente. Seja com
quais gêneros se identificar; seja como criança, jovem, adulto, idoso; seja como
pertencente a etnias ou raças diferentes; seja como falante de línguas diversas;
seja como membro/produtor de culturas variadas; seja com maneiras diversas
de pensar e de se expressar; seja como participante de religiões diferentes ou
mesmo sem participar de nenhuma delas; seja filiado a este ou àquele partido
político; seja por qualquer outra diferenciação na maneira de ser gente.
Na base, no fundamental, no âmago do humano, somos todos igualmen-
te dignos de respeito. Este é o princípio aqui defendido e que rebate no segun-
do princípio: o do direito de realizar a igual humanidade de maneiras diversas;
o direito à diversidade, que é um direito igual para todos os humanos.
Edgar Morin traz outras contribuições para se pensar esta temática ao
afirmar que as diferenças são a grande riqueza do humano, que é uno enquan-

86
Marcos Antônio Lorieri

to humano e diverso nas suas manifestações. Ele afirma algo que se pode
propor aqui como um convite para a reflexão filosófica em geral e, em espe-
cial, para o ensino de filosofia:

A pátria terrestre não é abstrata, porquanto foi dela que saiu a humanidade. O
próprio do que é humano é o unitas multiplex: é a unidade genética, cerebral,
intelectual, afetiva do homo sapiens demens que exprime as suas virtualida-
des incontáveis através da diversidade das culturas. A diversidade humana é
o tesouro da unidade humana, a qual é o tesouro da diversidade humana. Daí
o duplo imperativo: reencontrar e cumprir a unidade humana na manifesta-
ção das diversidades. Salvar singularidades e diversidades e ao mesmo tempo
instituir um tecido comum (Nair; Morin, 1997, p. 34, grifos dos autores).

Diz ele que o próprio do humano é o unitas multiplex, expressão latina que
pode ser traduzida por “unidade multíplice” ou, ainda, por “unidade variada ou
diversificada”. Há uma multiplicidade de manifestações do humano. É sempre
o mesmo humano presente nas suas variadas manifestações. “A diversidade
humana é o tesouro da unidade humana, a qual é o tesouro da diversidade
humana”, diz também. São dois tesouros a respeitar: o da unidade humana e
o da diversidade, também humana. São dois tesouros “dignos de respeito”,
merecedores de respeito. Respeita-se a unidade humana ao se tratar qualquer
pessoa, qualquer ser humano, com o respeito que merece, simplesmente por
ser humano, independentemente da maneira como realiza sua humanidade.
Respeita-se, ainda, o humano nas pessoas, quando se percebe que, em certas
condições de existência, elas estão degradadas em sua igual humanidade, e
luta-se para ajudá-las a superar esta situação. Exemplos: pessoas que vivem na
miséria têm o direito de assim não viver e há uma obrigação moral de ajudá-las
a não viver assim. Isso por conta do princípio assumido de respeito à dignidade
da pessoa humana. Pessoas que são exploradas de alguma maneira: elas têm
o direito de ser ajudadas a sair da situação de exploradas. Pessoas que sofrem
qualquer forma de opressão, a mesma coisa. Ou então de discriminação, idem.
Uma pergunta: quem deve oferecer esta ajuda e de que forma? Com certe-
za, cada sociedade e, dentro dela, cada pessoa de acordo com suas possibilida-
des. Uma dessas possibilidades é oferecer apoio às medidas sociais já tomadas
e pressionar para que outras medidas sejam implantadas. Obviamente que,
no tocante à responsabilidade social para superar as situações de desrespei-

87
Ensinar filosofia e a filosofar: necessidade urgente

to à dignidade das pessoas, cabe ao Estado, através dos governos de plantão,


desenvolver e fazer acontecer políticas públicas nesta direção, assim como
cabe a cada cidadão apoiá-las e ampliá-las de acordo com suas possibilidades.
Este é outro tópico que merece esclarecimentos e debates em aulas de
filosofia. Pensa-se, aqui, em um indicativo de escolhas de apoio a certas políti-
cas públicas sociais. Não é possível não ser político! Respeita-se a diversidade
humana lutando, com todos os recursos possíveis, contra toda forma de discri-
minação. A começar pela luta contra todas as formas de preconceito, inclusi-
ve os que “aparecem” dentro de cada pessoa. Eles “aparecem” porque estão
dentro das pessoas. Mas não aprecem “do nada”: aí estão por influências
culturais que precisam ser identificadas e combatidas. Isso se faz com o exercí-
cio da reflexão crítica, profunda e rigorosa, para a qual a filosofia é uma grande
ajuda. Se é assim, este deve ser um tema a ser tratado em aulas de filosofia.
Trata-se, como afirmado no início deste texto, de tema próprio de uma das
áreas da filosofia, que é a Antropologia Filosófica. Tema, infelizmente, secun-
darizado – quando não ausente – seja das programações de ensino de filosofia,
seja dos livros didáticos, seja, ainda, de diretrizes curriculares para o ensino de
filosofia oferecidas no nível Federal e na maioria dos estados brasileiros.
Se não refletirmos com nossas crianças e nossos jovens sobre o ser
humano e sobre este princípio do respeito à dignidade humana, como espe-
rar que o internalizem e busquem indicações para ações voltadas ao respeito
das pessoas?
E mais: sem a reflexão proporcionada pelas contribuições da Antropologia
Filosófica, dentre as quais vale realçar a reflexão sobre o sentido da existência
humana e sobre as variadas respostas presentes nos espaços culturais em que
vivemos – respostas que, por vezes, dizem não haver nenhum sentido –, a
existência de cada um de nós fica como que à deriva, sem rumo, sem alguma
significação que a oriente. Que seres humanos queremos ou devemos ser?24

24
Ao concluir este texto, vi, em um jornal da TV, uma reportagem dizendo que uma criança
negra de cinco anos não queria mais ir à escola de educação infantil porque outras crianças
a chamavam de “cocô”. A mãe disse em entrevista que conversou com ele e que foi à
escola para propor às educadoras e aos educadores fazerem um trabalho com as crianças
contrário à discriminação. Crianças tão pequenas já trazem nelas este preconceito. Não
nasceram com ele: o adquiriram nas relações sociais nas quais estão envolvidas. Isso em 20
de setembro de 2022. Se nada for feito, que adultos serão? Gostaremos de conviver com
eles? Serão modelos preconceituosos para seus filhos?

88
Capítulo 5

A proposta de ensino de filosofia


de Matthew Lipman

Julgo importantes, como contribuições para o debate relativo ao ensino de


filosofia, as ideias de Matthew Lipman e as considerações a partir delas. Este
capítulo apresenta Matthew Lipman, o Programa de Filosofia para Crianças
por ele criado, alguma notícia sobre o Centro Brasileiro de Filosofia para
Crianças que foi uma instituição, no Brasil, que se dedicou ao trabalho com o
Programa de Lipman e algumas “falas” de Lipman sobre o ensino de filosofia,
acompanhadas de alguns comentários.
Matthew Lipman é um pensador norte-americano25 que decidiu inves-
tigar não apenas as razões de tantos jovens universitários apresentarem
dificuldades relativas ao que ele denominou “pensar bem”, mas também as
razões do desinteresse destes jovens pela filosofia, tal como a via ensinada
nas universidades nas quais também era professor.
Nas investigações realizadas a partir de 1969, chegou à ideia de que
o ensino da filosofia era uma necessidade nos anos anteriores à univer-
sidade: tanto como contribuição formativa educacional básica, quanto
para uma educação voltada ao “pensar bem”. Daí deriva sua proposta

25
Matthew Lipman nasceu em 1923 na cidade de Vineland, Nova Jersey, EUA. Douto-
rou-se em Filosofia na Universidade Columbia, em Nova York, em 1953. Fez pós-doutorado
na França e foi o fundador do IAPC (Instituto para o Desenvolvimento de Filosofia para
Crianças), sediado na Universidade Estadual de Montclair, Nova Jersey. Faleceu em 26 de
dezembro de 2010 em Montclair.

89
Ensinar filosofia e a filosofar: necessidade urgente

também conhecida como Programa de Filosofia para Crianças-Educação


para o Pensar.
Publicou livros e artigos e criou os materiais básicos do Programa de
Filosofia para Crianças. Diversos deles estão traduzidos no Brasil.

O Programa de Filosofia para Crianças de Lipman (PFC)

Este programa propõe oferecer às crianças e aos jovens um espaço


investigativo-dialógico no qual busquem maior e melhor compreensão de
temáticas filosóficas e, ao fazê-lo, possam desenvolver sua capacidade de
“pensar bem” através da metodologia da “comunidade de investigação”.
Isto significa defender que as salas de aula devam ser espaços investigati-
vo-dialógicos em vez de continuarem a ser espaços, apenas, de preleções e
demonstrações.
A denominação “Filosofia para Crianças” vem daí: trata-se de um progra-
ma de iniciação filosófica de crianças e jovens que visa manter vivas, nas
pessoas, desde o mais cedo possível, as questões filosóficas e a disposição
para investigá-las continuamente.
“Questões filosóficas” são aquelas, como já apontado em outros capí-
tulos, que todos os seres humanos se fazem e de cujas respostas se servem
para orientar sua forma de ser gente, sua forma de agir, sua forma de pensar,
sua forma de valorar, sua forma de organizar a vida social. O conjunto destas
questões constitui o conteúdo privilegiado que vem desafiando a reflexão
filosófica da humanidade que tem, nas produções filosóficas, seus melho-
res exemplares. Todas as pessoas as colocam por necessidade humana e,
também, a partir das respostas que encontram prontas no ambiente cultural
do qual participam. É no confronto das perguntas que são postas, bem como
das repostas a elas dadas que há um espaço privilegiado de ajuda que pode
ser oferecido às crianças e aos jovens para que não deixem desaparecer neles
o interesse pelas questões filosóficas, o interesse pelas respostas a elas e,
principalmente, o interesse em se envolver investigativamente tanto com as
questões, quanto com as respostas com as quais se deparam.
É neste espaço que uma “educação filosófica” precisa estar presente se
queremos gerações não conformistas e, portanto, participativas na constru-

90
Marcos Antônio Lorieri

ção de um mundo com referências mais claras e mais consistentes, porque


mais bem pensadas por todos, conforme diz Lipman (1994, p. 55).
Uma das formas de fazê-lo é criar momentos nos quais as crianças e
os jovens são incentivados a explicitar seus questionamentos filosóficos.
Nestes momentos, profundamente educativos do ponto de vista da forma-
ção humanística básica, são diversos os recursos possíveis: situações vividas
que podem ser retomadas; peças teatrais; filmes; pequenos textos; pequenas
histórias etc.
No PFC, inicialmente e, em alguns locais, ainda hoje, são utilizadas, como
recurso básico, histórias ou, como as denomina Lipman, “novelas filosóficas”,
nas quais os/as personagens são crianças e jovens que se colocam as questões
filosóficas, defrontam-se com respostas variadas a elas e colocam sob análise
investigativa tanto as questões, quanto as respostas.
As “novelas filosóficas” de Lipman são identificadas pelo nome do seu/
sua personagem principal que, nas versões brasileiras, foram estes/estas:
Rebeca (para 6/7 anos); Issao e Guga (para 7/8 anos); Pimpa (para 9/10 anos);
A descoberta de Ari dos Telles (para 11/12 anos) e Luísa (para 13/14 anos).
Cada uma delas vem acompanhada de um Manual do Professor. Há, ainda,
as “novelas” Mark e Suki, não traduzidas no Brasil e que se destinam ao
Ensino Médio.
Nesta proposta, o que se busca não é um trato direto com as produções
dos denominados “grandes filósofos” e sim refletir investigativamente e criti-
camente a partir das questões filosóficas, de tal modo que as crianças e os
jovens se sintam, com o tempo, convidados ao exame da produção filosófica
acumulada historicamente, sabendo servir-se dela criteriosamente.
Faz parte, ainda, do PFC, um conjunto de esforços intencionais, tendo
em vista desenvolver a capacidade de “pensar bem”, buscando incentivar as
crianças e os jovens a exercerem um pensamento reflexivo, rigoroso e crítico,
profundo, criativo, cuidadoso, contextualizado e autocorretivo.
O esforço filosófico inclui necessariamente o exame de como pensa-
mos e de como conhecemos: há naturalmente, na Filosofia, um convi-
te à metacognição que, quando exercida, nos leva ao pensar reflexivo e
autocorretivo.
Mas há mais: pode-se saber melhor dos instrumentos ou “ferra-
mentas” do pensar, que são o que ele denomina habilidades de pensa-

91
Ensinar filosofia e a filosofar: necessidade urgente

mento. Há que se criar condições para seu aprimoramento ou desenvol-


vimento. Lipman indica a metodologia da comunidade de investigação
como sendo o processo e o âmbito privilegiado para tanto. Isso porque,
neste espaço dialógico-investigativo, as habilidades são solicitadas natu-
ralmente e de forma integrada, provocando sua utilização por parte de
todos os membros do grupo e propiciando um processo de autocorre-
ção tanto das afirmações feitas, quanto dos argumentos utilizados para
justificá-las.

O Centro Brasileiro de Filosofia para Crianças (CBFC)

No Brasil, o PFC ficou conhecido através de Catherine Young Silva que,


no final de 1984, promoveu, na PUC-SP, uma palestra de Ann Margareth Sharp
(principal colaboradora de Lipman). As pessoas que estiveram presentes
passaram a estudar a proposta e fundaram, juntamente de Catherine Young
Silva, o Centro Brasileiro de Filosofia para Crianças (CBFC). Esta instituição
traduziu e adaptou os materiais do PFC de Lipman, os editou por vários anos
e organizou centenas de cursos de formação de professores para o trabalho
com o referido programa em escolas até o encerramento de suas ativida-
des em 2005.
Pode-se dizer que o trabalho com o Programa de Filosofia para Crianças
de Lipman, a partir de 1985, foi o desencadeador da existência do ensino de
filosofia e do filosofar no Ensino Fundamental. Outras iniciativas surgiram e
têm sido responsáveis por experiências nesta direção.
No momento em que este texto é escrito (2022), o CBFC não mais existe e
nem há mais edições das “novelas” filosóficas de Lipman. As ideias de Lipman,
concretizadas na proposta do Programa de Filosofia para Crianças, continuam
a ser veiculadas através de seus escritos, de estudos desenvolvidos sobre eles
– resultando em artigos, capítulos de livros e livros –, e através de diversas
experiências denominadas ou Filosofia para Crianças ou Filosofia no Ensino
Fundamental. Há alguns núcleos que desenvolvem atividades relacionadas às
ideias de Lipman, seja em cursos de formação de educadoras e de educadores
que se interessam em trabalhar no ensino de filosofia referenciando-se a elas,
seja levando-as ao conhecimento público através de publicações a seu respei-

92
Marcos Antônio Lorieri

to26. Há também escolas públicas e particulares que mantêm filosofia no


Ensino Fundamental, levando em conta as contribuições de Lipman. Em diver-
sas Universidades, em seus Programas de Pós-Graduação, tem havido uma
produção considerável de Dissertações de Mestrado e de Teses de Doutorado
como resultado de investigações a respeito das ideias de Lipman e de práticas
desenvolvidas em escolas e de análises críticas à proposta do PFC.27

Ideias de Lipman sobre o ensino de filosofia

São várias as passagens em obras de Lipman sobre este tema, indicando


sempre a necessidade do ensino de filosofia, partindo, é claro, de sua concep-
ção de filosofia, como ele expressa nesta passagem do livro Natasha: diálogos
vygotskianos (1997). Nela, como em todo o livro, Lipman dialoga com uma
personagem fictícia que quer saber o que pensa ele sobre o que é filosofia.
Resposta de Lipman:

“Bem, acho que devo deixar bem claras duas funções da Filosofia”, respon-
di. “Uma é analítica. Cada disciplina é reflexiva e, pois, crítica quanto a seu
próprio conhecimento. A filosofia engloba a crítica dessas críticas median-
te uma análise permanente dos critérios e padrões utilizados. […] A outra
função”, disse eu, ainda tateando por onde ia, “é mais síntese do que análise,
mais especulativa do que empírica. Em certa medida, cada filósofo procura,
como fez Spinoza, construir um sistema de ideias com o qual tudo quanto
acontece seja coerente” (1997, p. 100).

A filosofia, aqui, é entendida como uma atividade intelectual de análise


permanente dos critérios e padrões utilizados em qualquer processo cogni-
tivo (inclusive nos seus) e como uma atividade intelectual especulativa de
síntese que busca um sistema de ideias que sirva de referência significativa e
abrangente, no qual tudo ganhe coerência.

26
Dentre estes núcleos, podem ser citados: Instituto de Filosofia e Educação para o Pensar –
Fundação Sidónio Muralha (fsm.ifep@philosletera.org.br) e Centro de Educação para o Pensar/
Editora Sophos. Disponível em: https://editorasophos.com.br/pensar/login/index.
27
Em levantamento realizado em maio de 2022, foram encontradas mais de 100 produções
acadêmicas entre Dissertações e Teses de Doutorado.

93
Ensinar filosofia e a filosofar: necessidade urgente

Em outra passagem, Lipman afirma a função necessária da filosofia de


“produtora de sentidos”, além de sua função de “preparadora de pessoas melho-
res pensantes”. Nela, indica uma “diferença” sua em relação a Dewey: ele privile-
gia a investigação filosófica em relação à investigação científica. São suas palavras:

Quando, no final da década de 60, decidi tentar abordagem nova do currículo


da escola elementar, tinha simpatia pela recomendação de Dewey de que
cada disciplina fosse reconstruída sob a forma de investigação científica, de
modo que cada aluno pudesse tornar-se um investigador. Não obstante, meu
palpite era que as crianças estavam preocupadas principalmente em adquirir
significado – e por isso é que tantas vezes condenavam a escola como sem
sentido – e queriam significados que pudessem verbalizar.
Nisto é que a investigação científica era menos promissora do que a investiga-
ção filosófica. Eu via a filosofia como a disciplina por excelência para dar sentido
às coisas e preparar os alunos para pensar nas disciplinas mais específicas. No
entanto, a experiência dos professores com a filosofia acadêmica tradicional fora
tudo, menos satisfatória. A filosofia podia ser indispensável para a reestrutura-
ção da educação, mas para fazer com que isso acontecesse, ela mesma tinha que
ser reestruturada. Teria que ser uma versão mais brilhante, mais legível, da filoso-
fia, em que as grandes ideias continuassem a cintilar enquanto proporcionassem,
como nada mais pode fazer, o tão necessário fortalecimento do raciocínio das
crianças, sua capacidade de formação de conceitos e seu julgamento (1997, p.15).

Lipman reforça a ideia do filosofar como esforço de produção de signifi-


cado ou de sentido, sem minimizar a importância dos conhecimentos científi-
cos na educação escolar.
Por isso mesmo, a filosofia não pode continuar ausente dos currículos
escolares, como ele insiste em outra obra: A Filosofia vai à escola (1990a). Aí
ele diz: “A filosofia oferece um fórum no qual as crianças podem descobrir,
por si mesmas, a relevância, para suas vidas, dos ideais que norteiam a vida de
todas as pessoas” (1990a, p. 13).
Descobrir a relevância dos ideais que norteiam a vida significa colocar
em discussão, no fórum filosófico, os significados presentes no cultural das
pessoas de tal forma que elas possam avaliá-los e não apenas recebê-los pron-
tos: “Por si mesmas”, ele diz.
Nesta mesma obra ele afirma a necessidade de a filosofia ou de o seu
ensino estar presente já no início da educação escolar: “Talvez em nenhum
outro lugar a filosofia seja mais bem-vinda do que no início da educação esco-
lar, até agora um deserto de oportunidades perdidas” (1990a, p. 20).

94
Marcos Antônio Lorieri

Esta afirmação, quanto ao adequado lugar da filosofia no início da educa-


ção escolar, não é aceita tranquilamente e Lipman sabe disso. Daí a discus-
são que enfrenta no capítulo 2 deste livro. Inicia-a perguntando se Platão
condenou a Filosofia para jovens. Constata que sim, citando passagem de A
República, no Livro VII, na qual Platão alerta para o uso inadequado que os
jovens poderiam fazer do domínio da dialética, isto é, do jogo das ideias, utili-
zando-a para contradizer, pura e simplesmente quem quer que fosse (1990a,
p. 29). Mas, apesar de aconselhar que se tome em sua devida consideração
o alerta platônico, apresenta considerações a favor do trabalho filosófico
sério com crianças e jovens no qual o objetivo, além do desenvolvimento dos
processos de ajuizamento e argumentação (que por si sós não bastam), deve
ser a busca constante da compreensão e produção dos significados.

Seria realmente estranho se Sócrates (que considerava da maior urgência o


exame compartilhado dos conceitos essenciais à conduta devida) tivesse se
contentado em equiparar essa busca importantíssima com os procedimentos
áridos, técnicos, da argumentação dialética.
O que Sócrates enfatiza é o prosseguimento ininterrupto da investigação
filosófica, seguindo o raciocínio para onde quer que ele conduza (confiante
de que, seja onde for, a sabedoria se encontra naquela direção) e, não, o
ofegar e o tinir de armaduras em batalhas dialéticas, onde o prêmio não está
na compreensão, mas na vitória.
O meio de cultura do amoralismo é o treinamento de técnicos que supõem
que os fins são dados (ou que não importam), de modo que suas preocupa-
ções são simplesmente com os meios, com as táticas, com as técnicas.28
Se às crianças não é dada a oportunidade de pesar e discutir tanto os fins
quanto os meios e suas interrelações, elas provavelmente tornar-se-ão céti-
cas a respeito de tudo, exceto de seu próprio bem-estar, e os adultos não
tardarão a condená-las como “pequenos relativistas estúpidos”.
Pode-se prontamente conjecturar, portanto, que o que Platão estava conde-
nando no livro sétimo da República não era a prática da filosofia pelas crianças
enquanto tal, mas a redução da filosofia aos exercícios sofísticos na dialética
ou retórica, cujos efeitos sobre as crianças seriam particularmente devasta-
dores e desmoralizantes. Existe melhor maneira de garantir o amoralismo no
adulto do que ensinando à criança que uma crença é tão defensável quanto
qualquer outra? Que o certo deve ser o produto do poder de argumentação?
Se esse é o modo pelo qual a filosofia é colocada à disposição das crianças,

28
Veja-se, no capítulo relativo à necessidade da formação filosófica no Ensino Superior, o
que é dito sobre a necessidade dessa formação para os formados nas áreas técnicas.

95
Ensinar filosofia e a filosofar: necessidade urgente

Platão poderia ter dito, é muito melhor, então, que elas não tenham filosofia
alguma (Lipman, 1990a, p. 30-31).

Lipman quer dizer que a compreensão não resulta, apenas, da argumen-


tação, mas sim da busca que se dá no processo investigativo comprometido
com encontrar a verdade, o bom, o justo, o belo etc. Há “verdades”, “bens”,
“justos”, “belos” apresentados como tais nos vários momentos históricos e
nas várias culturas. Eles sempre resultam de algum tipo de investigação e, no
cotejo entre si, são sempre colocados em questão com vistas à sua melhor
compreensão. Este tem sido o trabalho histórico da investigação filosófica e é
este tipo de investigação que Lipman está propondo que se faça com crianças
e jovens desde o mais cedo possível.
Fazer investigação filosófica é buscar também corrigir e aprimorar
respostas a estas questões sem perder-se em ceticismos que nada indicam ou
em relativismos que indicam pobremente (porque são particularistas). “[…]
o problemático é inesgotável e se reafirma desumanamente, quaisquer que
sejam nossos esforços” (Lipman, 1990a, p. 51).
É interessante considerar o que ele diz sobre justificativas para o ensino
da filosofia: há justificativas restritas e amplas. Sobre estas últimas diz:

A justificativa mais ampla apoia-se no modo pelo qual paradigmaticamen-


te representa a educação do futuro como uma forma de vida que não foi
ainda percebida e como um tipo de práxis. A reforma da educação tem de
ter a investigação filosófica compartilhada na sala de aula como um modelo
heurístico (Lipman, 1990a, p. 34).

Um modelo heurístico e não erístico: o primeiro significa pesquisa ou


investigação; o segundo significa “a arte de batalhar com as palavras, isto
é, de vencer nas discussões” (Abbagnano, 1970, p. 322). Lipman denomina o
segundo pseudofilosofia.

O estudante que aprende apenas os resultados da investigação não se torna


um investigador, mas apenas um estudante instruído. Esta alusão aponta para
um dos propósitos educacionais da filosofia: todo estudante deve tornar-se (ou
continuar a ser) um investigador. Para a realização desta meta não há melhor
preparo que o que é dado pela filosofia. A filosofia é investigação conceitual,
que é a investigação na sua forma mais pura e essencial (Lipman, 1990a, p. 58).

96
Marcos Antônio Lorieri

Em outro livro, A Filosofia na sala de aula (1994), no qual Lipman é coau-


tor, há reiteradas afirmações sobre a necessidade da Filosofia na educa-
ção escolar.

A filosofia é uma disciplina que inclui a lógica e, portanto, se ocupa em intro-


duzir os critérios de excelência no processo do pensar para que os estudantes
possam caminhar do simples ato de pensar para o pensar bem. Ao mesmo
tempo, a tradição filosófica desde o século VI a C. tem sempre lidado com um
conjunto de conceitos considerados importantes para a vida humana ou rele-
vantes para o conhecimento humano. Exemplos desses conceitos são: justiça,
verdade, liberdade, bondade, beleza, mundo, identidade pessoal, personali-
dade, tempo, amizade, liberdade e comunidade. Sem conceitos como esses,
funcionando como ideias reguladoras, teríamos muito mais dificuldade em
dar sentido à nossa experiência. […] É indispensável que as crianças adquiram
esses conceitos se querem dar sentido aos aspectos sociais, estéticos e éticos
de suas vidas. Existe uma ideia errônea de que as crianças não estão interes-
sadas nas noções filosóficas e querem apenas divagar sobre trivialidades ou
dominar as informações (Lipman; Oscanyan; Sharp, 1994, p. 47-48).

No capítulo 3 deste livro, que tem como título “Filosofia: a dimensão


perdida da Educação”, os autores, além de constatar e lamentar a ausência
da filosofia na Educação Escolar, procuram mostrar duas coisas. Primeiro, que
sua ausência produziu gerações de adultos conformistas. Segundo, que o
natural é que seres humanos e, especialmente, as crianças, se coloquem ques-
tões filosóficas. Com relação ao conformismo das gerações adultas dizem:

Para muitos adultos a experiência de se admirar e refletir nunca exerceu


nenhuma influência sobre suas vidas. Assim, estes adultos deixaram de ques-
tionar e de buscar os significados da sua experiência e, finalmente, se torna-
ram exemplos da aceitação passiva que as crianças acatam como modelos
para sua própria conduta (Lipman; Oscanyan; Sharp, 1994, p. 55).

Com relação ao fato de as crianças se interessarem por questões ou


por significados filosóficos, argumentam que há significados que podem ser
chamados de científicos (tentam explicar como as coisas são), ou simbóli-
cos (como os que estão presentes, por exemplo, nos contos de fada). E há,
também, os que podem ser chamados de filosóficos (seriam aqueles produzi-
dos pelo esforço de responder às questões filosóficas). Crianças interessam-
-se por todos eles. No tocante aos “significados filosóficos”, é dito:

97
Ensinar filosofia e a filosofar: necessidade urgente

Finalmente, as crianças buscam significados que não sejam nem literais (como
as explicações científicas) nem simbólicos (como os contos de fadas) mas
significados que possam ser chamados de filosóficos. É possível que as crian-
ças façam muitos tipos de perguntas que podem ser consideradas filosóficas
e que demandam respostas filosóficas (Lipman; Oscanyan; Sharp, 1994, p. 61).

Ou seja, na ideia dos criadores do PFC, fazer filosofia é realizar um gran-


de esforço indagativo, reflexivo e dialógico, tendo como foco as “questões de
fundo”, e propor filosofia na educação escolar é propor que não se sonegue
das crianças e dos jovens a oportunidade de eles serem iniciados nesse esfor-
ço por todas as razões acima apontadas.
No livro O pensar na educação (1995b), mesmo não sendo um livro escrito
por Lipman para tratar do Programa de Filosofia para Crianças, mas sim de sua
proposta de uma educação para o pensar bem, ele não deixa de insistir nas
ideias que expõe em outras obras sobre o importante papel da filosofia na
educação, bem como indica sua principal função educativa.

A filosofia contém, além de muitas outras coisas, um núcleo de conceitos.


Estes conceitos são incorporados e ilustrados em todas as áreas humanas,
mas é na filosofia que são analisados, discutidos, interpretados e esclareci-
dos. Muitos destes conceitos representam valores humanos profundamente
importantes, como a verdade, o significado e a comunidade. […] Sem a filo-
sofia, há uma tendência para que os comportamentos que estes conceitos
representam permaneçam inarticulados e sem expressão (1995b, p. 240-241).

Logo a seguir, Lipman propõe que este esforço de questionamento


dialógico dos referidos conceitos seja feito com crianças desde cedo e de um
modo especial:

A filosofia na escola primária fornece um espaço que possibilita às crianças


refletirem sobre seus valores, assim como sobre suas ações. Graças a estas
reflexões, as crianças podem começar a perceber maneiras de rejeitar aque-
les valores que não estão à altura dos seus padrões e de guardarem aque-
les que estão. A filosofia oferece um espaço no qual os valores podem ser
submetidos à crítica. Esta é, talvez, a principal razão para sua exclusão, até
agora, da sala de aula da escola primária, e uma razão fundamental para que
seja, agora, finalmente incluída (1995b, p. 241).

98
Marcos Antônio Lorieri

As ideias de Lipman, relativas ao ensino de filosofia, apontam para


três direções que podem ser debatidas quando se discute a necessidade da
presença desse ensino.
A primeira direção é a da necessidade da sua presença na educação esco-
lar básica, a partir do início do Ensino Fundamental. A segunda direção indica
a mais forte razão para esse ensino: iniciar crianças e jovens na investigação
reflexiva e dialógica das temáticas filosóficas básicas e manter vivo, nelas e
neles, o interesse por tais temáticas, por todas as razões que Lipman apre-
senta. A terceira direção diz respeito ao fato de a reflexão filosófica ser, por
excelência, recurso privilegiado para o desenvolvimento do “pensar bem”,
que é o pensar reflexivo, crítico, sistemático ou metódico, profundo, autôno-
mo, criativo e abrangente ou contextualizado.
Com relação à segunda direção, que aponta a necessidade de manter
vivo em crianças e jovens o interesse pelas temáticas filosóficas, é fundamen-
tal pensarmos todos na importância de haver ideais reguladores, ou referên-
cias, na vida de todas as pessoas.
Quantos pensadores têm alertado, ultimamente, para o fato de que uma
das sérias crises de nosso tempo está na ausência de referências ou, no míni-
mo, na fragilidade das referências de que dispomos. Se isto é verdade, urge
que todos retomemos, especialmente com nossas crianças e nossos jovens, a
investigação reflexiva e sistemática a respeito delas. O âmbito por excelência
desta investigação é a filosofia.
Com relação à terceira direção, não são poucos os pensadores que a têm
apontado como fundamental e necessária. Lipman a destaca com tal ênfase,
a ponto de ter denominado sua proposta também de Programa de Filosofia
para Crianças-Educação para o Pensar. Com certeza, o desenvolvimento de
um pensamento reflexivo, crítico, autônomo, abrangente, rigoroso, profun-
do, autocorretivo ganha e muito com o exercício do filosofar. São muitos
os pensadores hoje que reclamam pela presença da filosofia nas escolas,
também em nome da necessidade de uma educação para o pensar. Dentre
eles podem ser mencionados Gallo e Kohan (2000, p. 188-189 e p. 195), Lorieri
(2002), Matos (1997, p. 10), Morin (2002, p. 17; 19-20; 23; 30; 54); Ramos-de-
Oliveira (2004), Rouanet (2002, p. 14-15); Savater (2001, p. 5); Severino (2002,
p. 189). Todos citados em capítulos deste livro.

99
Ensinar filosofia e a filosofar: necessidade urgente

Defendemos isso também, ainda que seja preciso dizer que não é a filo-
sofia a única forma de saber que promove um pensar com as características
acima mencionadas. Mas, com certeza, como diz Lipman, ela é um espaço
privilegiado para isso.
Quando pensamos nos caminhos da boa formação humana na educa-
ção escolar, não podemos mais deixar de pensar em todas as contribuições
da filosofia.

100
Capítulo 6

Ética no ensino de filosofia:


contribuição para a formação do jovem

Introdução

Há grande necessidade de se discutir e, mais ainda, refletir, sobre valores


morais, que é o campo da Ética, próprio da filosofia. Diz-se que as pessoas
perderam de vista certos valores morais ou que elas “não têm mais ética”. O
que isso quer dizer realmente?
Um primeiro passo é obter esclarecimentos a respeito de termos como:
valores, valores morais, moral, ética, buscando ideias no campo da filoso-
fia no qual esta temática é investigada. A filosofia é sempre requisitada nos
momentos de crise, de “confusões”, de perplexidade. Estamos num desses
momentos no tocante a vários aspectos da existência humana, como, por
exemplo, questões sobre o que é ser gente; sobre o conhecimento; sobre o
que é mesmo uma vida social boa e justa; sobre os valores em geral e, em
especial, sobre os valores morais.
Afirma-se, ainda, que estamos numa época de crise de paradigmas, isto
é, de crise de referências amplas, ou crise de modelos, dos quais nos servimos
tanto para abarcar significativamente nossas vidas e a realidade como um
todo quanto nos servimos para orientar nossa maneira de agir.
Na verdade, há referências amplas a respeito do que é bom, justo,
certo, correto etc., mas muitas dúvidas pairam no tocante a elas. Não só:
nem sempre há coerência entre o modo de agir de pessoas e as referên-
cias ou os modelos que são declarados o que ocorre tanto em círculos

101
Ensinar filosofia e a filosofar: necessidade urgente

restritos de suas vidas como quando têm visibilidade e responsabilida-


des públicas.
Há necessidade de reflexão sobre esses diversos aspectos do existir
humano e, no caso, sobre os que dizem respeito à Ética. É o que se propõe
este capítulo com o convite para que estas reflexões sejam feitas com as
novas gerações, através do ensino de filosofia.

Noção de valor/valores

Valor é uma relação de importância, de preferência, ou de não-indife-


rença que se estabelece entre o ser humano e os objetos, os fatos, as situ-
ações, as atitudes, os comportamentos etc. Esta relação se estabelece
quando avaliamos algo como importante ou como nada importante; como
preferível ou como detestável; como bom ou como ruim. Em resumo: como
não-indiferente.
“Algo” pode ser uma coisa, um objeto, um fato, uma situação, algum
lugar, uma atitude ou um comportamento. Valorar algo implica ter uma rela-
ção de não-indiferença na qual este algo é visto como tendo qualidades boas
ou não boas para o atendimento a necessidades humanas.
No caso das atitudes, há as que valoramos positivamente porque apre-
sentam qualidades que atendem necessidades nossas. Pensemos na atitude
de alguém ser honesto. Ela é valorada positivamente porque atende necessi-
dades relativas à boa convivência e é preferida ao invés da atitude desonesta.
A atitude desonesta, por ser prejudicial à necessidade da boa convivência, é
valorada negativamente. Nós não a preferimos.
Isso se pode afirmar das atitudes de roubar e de não roubar; de matar e
de não matar; de agredir e de não agredir; de ser solidário e de não ser soli-
dário; de discriminar pessoas e de não discriminar, dentre outras. Em todos
estes casos, há uma relação de não-indiferença entre o ser humano e estas
atitudes. Não ficamos indiferentes: faz diferença se alguém mata ou rouba, se
alguém é solidário ou honesto.
Valoramos positivamente ou negativamente estas atitudes. Vale esclare-
cer que o termo valorar é tomado aqui não como sinônimo do termo valori-

102
Marcos Antônio Lorieri

zar. Valorizar tem sempre uma conotação positiva. Já valorar, tal como enten-
dido aqui, não tem nem conotação positiva nem negativa. Quando valoramos,
avaliamos algo como importante (positivo) ou como não importante (nega-
tivo); como preferível (positivo) ou como detestável (negativo); como bom
(positivo) ou como ruim (negativo). Daí é necessário dizer valorar positiva-
mente e valorar negativamente.
Os valores formam o conjunto que explicita nossas relações de não-indi-
ferença, ou nossas relações de preferência ou de não-preferência, estabeleci-
das com algo.

Tipos de valores

Interessam-nos, aqui, os valores morais. Eles dizem respeito às nossas


preferências ou não-preferências em relação às atitudes. Veremos melhor a
seguir. Antes, porém, consideremos outros tipos de relações de preferência
ou de não-preferência. Outros tipos de valores.
Valores de uso. Dizem respeito à preferência, ou não preferência, para
utilizar certos objetos tendo em vista finalidades práticas da vida. Preferimos
um serrote para cortar madeiras a um ferro elétrico; um ferro elétrico para
“passar” (desamassar) roupas a um martelo; um martelo para bater pregos a
uma faca. Um lápis também não serve para esta finalidade, mas vale positiva-
mente para escrevermos.
Esses objetos têm propriedades que atendem a alguma necessidade
nossa. Temos necessidade de bater pregos: martelos têm propriedades que
permitem que os utilizemos para esta finalidade. Há uma relação aí: de um
lado, a necessidade do sujeito humano; de outro, as propriedades do obje-
to que podem ser utilizadas para atender essa necessidade. O sujeito toma
consciência da própria necessidade e das propriedades do objeto; estabelece
uma relação entre sua necessidade e as possibilidades do objeto: uma relação
de preferência no tocante ao uso do objeto. Ele valora positivamente o obje-
to. Mas não o valora positivamente para outras necessidades para as quais o
objeto “não serve”, isto é, para as quais não dispõe de propriedades. Nesse
caso, sujeito o valora negativamente. Valoração, tanto positiva quanto nega-

103
Ensinar filosofia e a filosofar: necessidade urgente

tiva, é o que dizemos ser uma relação de não-indiferença. Não havendo valo-
ração positiva ou negativa, há então indiferença.
Valores econômicos. Dizem respeito à valoração econômica, isto é, à
possibilidade de um determinado objeto ter uma apreciação em relação a
outro, propiciando uma comparação que leve a uma troca. A troca de um
objeto por outro implica comparação entre suas propriedades em relação a
necessidades humanas. Daí nascem as relações comerciais. Nelas, os objetos
transformam-se em mercadorias. Passam a ser apreciados positivamente ou
negativamente pelo que valem, ou pelo peso que têm nas trocas (no comér-
cio) entre si. Passam a ser valorados economicamente.
Valores religiosos. Dizem respeito a apreciações, a escolhas, a preferên-
cias feitas com base em razões de ordem religiosa. Certos objetos, lugares ou
atitudes são valorados positiva ou negativamente em função dessas razões
religiosas. Daí se diz que algo é sagrado ou profano. Ou que atitudes são
piedosas ou não piedosas. Ou ímpias.
Valores afetivos. Dizem respeito a relações de não-indiferença que esta-
belecemos com qualquer coisa, pessoa, lugar etc. por razões afetivas; porque
as ligamos aos nossos afetos de benquerença ou de aversão; ou porque as
amamos ou odiamos; ou porque nos remetem a relações amorosas ou odiosas.
Valores morais. São aqueles que dizem respeito às atitudes, aos compor-
tamentos, às maneiras de agir. Valoramos positivamente a honestidade, a
veracidade, a solidariedade, o respeito à dignidade das pessoas, não discrimi-
nar pessoas, e valoramos negativamente atitudes opostas a estas. Valoramos
com base em certos critérios, em certos princípios.
É no campo filosófico da Ética que são estudados os valores morais e os
princípios e critérios que utilizamos para valorar positivamente ou negativa-
mente as maneiras de agir. O conjunto das normas do agir, decorrente dos
princípios, dos valores ou dos critérios elaborados pela reflexão ética, é o que
se pode denominar Moral.
A valoração envolve julgamentos ou juízos. Julgamos ou ajuizamos com
base em critérios, princípios ou valores. Juízo é toda afirmação (ou negação)
que fazemos a respeito de algo. As afirmações que fazemos dizendo o que
algo é (ou não é), como é e porque é (como não é e porque não é), são deno-
minadas “afirmações/negações de fato” ou juízos de fato. As afirmações/
negações que fazemos avaliando, apreciando, atribuindo importância/não

104
Marcos Antônio Lorieri

importância ou preferência/não preferência, valorando, portanto, são deno-


minadas juízos de valor.
A segurança quanto à possível verdade de um juízo depende dos argu-
mentos que os sustentam. Os argumentos são buscados em processos de
investigação que devem ser rigorosos tanto na busca das provas, quanto na
maneira de avaliá-los, isto é, nos procedimentos, nos métodos de pesquisa.

Ética/Moral

Há entendimentos que tomam Ética e Moral como palavras sinônimas.


Defende-se aqui uma diferenciação entre os dois termos e sua estreita rela-
ção. Esta posição é apresentada na citação a seguir:

Os homens não só agem moralmente (isto é, enfrentam determinados


problemas nas suas relações mútuas, tomam decisões e realizam certos
atos para resolvê-los e, ao mesmo tempo, julgam ou avaliam de uma ou de
outra maneira estas decisões e estes atos) mas também refletem sobre esse
comportamento prático e o tomam como objeto da sua reflexão e do seu
pensamento. Dá-se assim a passagem do plano da prática moral para o da
teoria moral; ou, em outras palavras, da moral efetiva, vivida, para a moral
reflexa. Quando se verifica esta passagem, que coincide com os inícios do
pensamento filosófico, já estamos propriamente, na esfera dos problemas
teórico-morais ou éticos (Vázquez, 1980, p. 7).

Ética, neste sentido, diz respeito à reflexão e investigação sobre as


condutas humanas, sobre as regras utilizadas para orientá-las e sobre os prin-
cípios e critérios que são utilizados como referências para a definição das
regras de conduta. Trata-se de uma área da filosofia.
Nesta área são colocados em discussão os critérios, os princípios,
as normas, os valores de onde se parte para definir regras de conduta e,
por consequência, quais condutas devem ser consideradas boas e quais
não devem. Além disso, investiga-se sobre o próprio fato da moralidade,
isto é, o fato de existir moral ou “morais”. Quando falamos de Ética, esta-
mos falando de algo mais amplo, mais geral, mais profundo, que deve ser
levado em conta na definição das regras de conduta num determinado
tempo e lugar.

105
Ensinar filosofia e a filosofar: necessidade urgente

Em artigo publicado no jornal Folha de São Paulo em 14 de março de 1999,


Caderno Mais, Marilena Chauí diz:

[…] “ética” é aquela parte da Filosofia que se dedica à análise dos próprios
valores e das condutas humanas, indagando sobre seu sentido, sua origem,
seus fundamentos e finalidades. Sob essa perspectiva geral, a ética procura
definir, antes de mais nada, a figura do agente ético e de suas ações e o conjun-
to de noções (valores) que balizam o campo de uma ação que se considere
ética. […] A ação ética é balizada pelas ideias de bem e de mal, justo e injusto,
virtude e vício. Assim, uma ação só será ética se consciente, livre e responsável
e será virtuosa se realizada em conformidade com o bom e o justo.

Lipman e Sharp oferecem entendimento igual quando dizem:

A ética é um ramo da Filosofia que busca entender a conduta moral.


Representa uma investigação objetiva e imparcial de problemas e situações
morais. Seu objetivo não é doutrinar, mas sim ajudar as pessoas a entende-
rem, mais claramente, quais são as opções morais e como tais opções podem
ser avaliadas criticamente (Lipman; Sharp, 1995, p. 1).

No livro A Filosofia vai à Escola, Lipman reitera esse entendimento:

Embora os valores morais representem apenas uma categoria de valores


entre muitas, seria difícil negar que a ética é a área mais crucial para a educa-
ção de valores. A ética, um dos principais ramos da Filosofia, é considerada a
teoria da conduta moral. Isto é, a conduta humana está sujeita a um tipo de
apreciação, a que chamamos moral, que resulta em determinados tipos de
conduta as quais denominamos de melhores, piores, erradas, boas, ruins, etc.
A ética representa a tentativa filosófica de examinar as bases racionais de tais
estimativas e de delinear teorias que, entre outras coisas, sugerissem modos
em que princípios éticos pudessem vir a auxiliar as condições morais da vida
humana (Lipman, 1990, p. 69).

Partindo da posição explicitada acima, em consonância com o que


pensam os autores citados, pode-se dizer, em síntese, o que se entende por
moral e por ética.
Moral é o conjunto de regras de conduta de uma sociedade qualquer.
Regras que indicam como se deve agir (porque preferível, ou mais valioso) e
como não se deve agir (porque não preferível, ou não valioso); o que importa
e o que não importa, em termos de atitudes. Este conjunto de regras indica o

106
Marcos Antônio Lorieri

que já foi julgado certo ou errado em termos de comportamentos. É o resulta-


do do ajuizamento feito relativo ao modo de agir.
Mas quem fez tal ajuizamento? Quem julgou quais atitudes devem
ser consideradas boas ou más? Que princípios deram base para tal
julgamento?
Quando fazemos estas perguntas, nossas indagações vão além da
moral: propomos a nós mesmos uma reflexão sobre os fundamentos, sobre
as razões, sobre os princípios, sobre os critérios de que se partiu para se ter
tal moral. E mais: queremos saber se os princípios, as razões, os critérios são
garantidos e com que fundamentação.
Ética é o nome que damos a este esforço investigativo a respeito dos
princípios, das razões, dos fundamentos, dos critérios de toda e qualquer
moral. Ética é, também, o conjunto das reflexões e dos seus resultados,
que se expressam em doutrinas éticas, bem como é o conjunto dos estu-
dos que buscam compreender as várias doutrinas éticas e as razões de suas
diferenças.
É, além disso, o esforço que todos podemos e devemos fazer para
compreender as regras morais que temos, se são suficientes ou não, se são
adequadas ou não, e, se não o são, que outras regras precisamos ter.
É, ainda, a reflexão sobre a necessidade, ou não, de haver regras de
conduta. Adotar simplesmente regras de conduta já dadas no nosso contex-
to cultural, sem que tenhamos atentado suficientemente para os seus funda-
mentos, significa adotar uma moral sem atenção aos princípios que a justi-
ficam. Significa aceitar regras sem justificativas claras. Significa deixar que
outros imponham regras para nossas condutas. Significa renunciar à nossa
autonomia moral.
É fundamental que as pessoas estejam atentas às razões pelas quais
aderem a certas regras morais e sejam capazes de um exame crítico de
tais razões. Nesse sentido, a reflexão filosófica é de grande valia. Os prin-
cípios, os valores, conforme dito acima por Chauí, “balizam o campo de
uma ação que se considere ética” (1999). É imprescindível que estas balizas
sejam bem avaliadas. Daí a necessidade e a importância de uma formação
filosófica para todas as pessoas a ser iniciada já na Educação Básica, atra-
vés do ensino de filosofia. Este ensino nunca deve estar ausente da educa-
ção escolar.

107
Ensinar filosofia e a filosofar: necessidade urgente

Papel formativo do ensino de filosofia e, nele, da investigação ética

Este é o convite do filosofar que é proposto a todas as pessoas para que


o façam constantemente e costumeiramente. O exercício do filosofar deve ser
proposto às crianças e aos jovens como forma de habituá-los a este necessário
processo de reflexão sobre as “razões de fundo” que temos para tudo o que
fazemos e pensamos. E, se não as temos com clareza, que as investiguemos,
pois há sempre razões presentes nas regras, nas orientações e nas determina-
ções relativas à nossa maneira de agir. É necessário que as identifiquemos e
que as coloquemos sob a mira de um pensamento reflexivo, crítico, rigoroso,
profundo e abrangente. Ou seja, sob a mira do pensamento filosófico.
Temos abdicado, irresponsavelmente, desta tarefa profundamente
humana que é a reflexão sobre os sentidos ou sobre as significações de nossas
vidas e de nossas condutas. E temos abdicado do esforço de convidar crianças
e jovens a realizar esta reflexão. As significações são referências necessárias:
talvez, por não estarmos envolvidos na busca e na decisão a respeito delas, é
que estejamos, hoje, nesta situação de crise de referências.
Reclamamos que os jovens “estão perdidos”; dizemos que a sociedade
perdeu o rumo; afirmamos não saber o que fazer com nossos alunos que “não
querem nada”.
Talvez valha perguntar aos educadores e futuros educadores: como
temos nos empenhado no nosso papel de “convidadores” para a busca refle-
xiva das referências? Parece que temos sido coniventes com algumas deci-
sões, por exemplo, que ocorrem no sistema educativo escolar. Nele, têm sido
eliminadas com muita facilidade, dos currículos, as disciplinas que convidam
à reflexão, especialmente a Filosofia, a Sociologia, a Psicologia, a História, a
Geografia, a Literatura. Temos deixado que o trabalho com a língua materna,
com a matemática, com as ciências naturais seja um trabalho apenas instru-
mental a serviço de uma preparação tão só para o “mercado de trabalho”.
Esquecemo-nos que o grande e importante “mercado”, no qual as pessoas se
realizam, é aquele das trocas ou das relações humanas que têm enorme peso
na sua constituição como pessoas. E o que fazemos?
Temos todos, especialmente pais e educadores profissionais, que nos
dedicarmos a momentos de profunda reflexão sobre as referências que estão
implicadas no nosso modo de agir para avaliá-las seriamente e para, se for o

108
Marcos Antônio Lorieri

caso, reformulá-las. E temos que ser capazes de convidar e de interessar as


novas gerações para este esforço reflexivo.
A reflexão profunda e consistente sobre os princípios e os valores que
são a referência das regras de conduta é o esforço da Filosofia Moral ou da
Ética. É a partir deste esforço reflexivo que podemos avaliar a pertinência,
ou não, de uma regra de conduta e sua conformidade com este ou aquele
princípio. E de avaliar a validade dos próprios princípios. Trata-se de uma
avaliação ética.
Uma coisa é a avaliação moral: verificar se uma conduta está, ou não, de
acordo com uma determinada regra de uma determinada moral. Outra coisa
é uma avaliação ética: verificar se uma ou mais regras de uma determinada
moral está, ou estão, de acordo com os princípios éticos assumidos e até se
esses princípios éticos assumidos têm bases seguras.

Algumas considerações ético-pedagógicas

Conforme foi dito acima, é necessário envolver crianças e jovens no


esforço de reflexão sobre as razões das regras de conduta, pois apenas ofere-
cer-lhes regras prontas não basta. Só assim poderemos esperar que eles as
adotem por convicção própria.
E se as crianças e os jovens não encontram boas razões para as regras de
conduta que lhes são apresentadas e as rejeitam? O que fazer?
O caminho poderá ser os adultos nas escolas saberem destas razões e as
apresentarem para os educandos, propondo-lhes refletir sobre elas, analisá-
-las criticamente e, se convencidos, assumi-las como referências para as regras
morais (as regras de conduta) a serem seguidas no seu agir. Se não houver o
convencimento, o processo deve se estender na busca de razões convincen-
tes. Este é o árduo trabalho do filosofar, no qual crianças e jovens devem ser
iniciados para o continuar como adultos. O trabalho do filosofar não termina
nunca, mas é necessário, pois sem ele não é possível pensar-se nem em auto-
nomia intelectual nem em autonomia moral. Este é um exercício na direção
das tão proclamadas e desejadas autonomia intelectual e autonomia moral.
O que entender por autonomia moral e, seu contrário, a hetero-
nomia moral?

109
Ensinar filosofia e a filosofar: necessidade urgente

As considerações a seguir podem ser úteis na busca de alguma resposta.


Autonomia moral é a situação de quem recebe comunicados a respeito
de regras de conduta já existentes na sociedade da qual faz parte, escuta as
razões, os critérios, os princípios, a partir dos quais tais regras foram adotadas
e, ao mesmo tempo, é convidado a se pronunciar a respeito, tomando decisão
pessoal de adesão, ou não, a essas regras. É, ainda, a capacidade de as pesso-
as “se darem”, por si mesmas, as regras de conduta, caso não aceitem regras
de conduta já existentes na sociedade.
A palavra “autonomia”, de origem grega (autós = eu mesmo e nomia =
regras, regulação), pode ser entendida com este significado de “eu mesmo”;
no caso da moral, me dar regras de conduta.
Heteronomia moral é a situação de quem recebe comunicados a respei-
to de regras de conduta já existentes na sociedade da qual faz parte e as
aceita passivamente, sem buscar sequer entender as razões delas. Se alguém
apenas recebe comunicados a respeito de regras que deve obedecer e acata
passivamente a elas, este indivíduo está se subordinando moralmente a outra
pessoa ou a outrem.
Este pode ser o significado da palavra heteronomia, também de origem
grega (hetero = outrem e nomia = regras, ou regulação): as regras ou as regu-
lações de minha conduta me são dadas por outrem.
Importante considerar que, dependendo da opção que as educado-
ras e os educadores façam para ajudar as gerações mais novas no tocante
à autonomia moral ou à heteronomia moral, dois tipos de educação moral
podem ocorrer:

a) A Educação Moral que comunica as regras de conduta e que, além


disso, apresenta as razões dessas regras e convida crianças e jo-
vens a dialogar a respeito delas manifestando seu entendimento,
sua concordância, ou não, relativamente a elas é uma educação
voltada à autonomia moral.
b) A Educação Moral que comunica as regras de conduta e que exige
e vigia para que elas sejam cumpridas e não explicita nem discute
os motivos ou as razões das referidas regras é uma educação pau-
tada na heteronomia moral.

110
Marcos Antônio Lorieri

Com qual tipo de educação moral queremos trabalhar com nossas crian-
ças e nossos jovens? Qual dos dois julgamos apresentar um caráter formati-
vo positivo?
São questões que, como educadoras e educadores, temos necessidade
de nos colocarmos, como muitos filósofos e outras educadoras e educado-
res o fizeram.
Vale verificar a presença das indagações éticas, por exemplo, em obras
de filósofos, pois impressiona a quantidade de obras produzidas ao longo da
história do pensamento humano sobre o tema da moral e da ética. Além da
quantidade, há a recorrência das preocupações aí presentes que são muito
semelhantes às colocadas por nós, nos dias de hoje.
Platão (427–347 a.C.) o faz enfaticamente em vários de seus diálogos.
Aristóteles (384-322 a.C.) dedica duas obras ao assunto: Ética a Nicômaco
e Ética a Eudemo. Estóicos e Epicuristas, nos primeiros séculos depois de
Cristo, trataram do tema. O mesmo fizeram Agostinho (354-430) e Tomás
de Aquino (1226-1274). Só aí já temos mais de mil e setecentos anos de
história e de registros escritos em que a preocupação com ética e moral e
com a com a educação moral das pessoas aparecem. Na Época Moderna,
a produção a respeito é abundante. Descartes (1596-1640), nas Meditações
Metafísicas, trata do certo e do errado e, no Discurso do Método, trata da
moral provisória. Espinoza (1632-1677) tem uma obra inteira sobre o assun-
to, Ética. Assim como Hume (1711-1776), que escreveu Uma investigação
sobre os princípios da moral. Kant (1724-1804) trata do tema de maneira
exaustiva. Obras como Fundamentação da metafísica dos costumes e Crítica
da Razão Prática e Metafísica dos costumes mostram o quanto ele se dedi-
cou ao assunto. Nietzsche (1844-1900) tem famosas reflexões sobre moral
e ética. Sua obra mais conhecida é Genealogia da Moral. Mais recentemente,
outros pensadores, como Foucault, especialmente nos volumes de História
da Sexualidade; Habermas, que escreve Consciência Moral e agir comunica-
tivo; Adolfo Sánchez Vázquez, que escreve Ética; e Fernando Savater, que
escreve Ética para meu Filho (2001). Por este rápido panorama, vê-se que a
preocupação com o tema perpassa mais de dois mil e quinhentos anos de
história da humanidade.

111
Capítulo 7

Filosofar é um direito por ser uma necessidade:


filosofia e formação no ensino superior

Necessidade da filosofia

Nunca é demais retomar, talvez com outras palavras, algo já afirmado, nos
capítulos anteriores, relativo à necessidade da filosofia. Ela é uma necessida-
de porque é através dela que as pessoas podem produzir, de maneira refle-
xiva, crítica, metódica, abrangente e profunda, algum significado, algum
sentido, para suas existências, o que engloba produzir algum significado ou
sentido para a realidade de que fazem parte. E isso inclui produzir significado
ou sentido para suas ações, para o próprio esforço de busca de conhecimen-
tos, para sua atitude de dizer que algo é belo ou não belo, para o esforço de
dizer da “vida-com-os-outros” e da necessidade, ou não, da regulação da vida
em comum etc.
Ao afirmar isso, parte-se do pressuposto de que as pessoas necessitam
de sentidos ou significados para suas vidas.29

29
As religiões são formas de conhecimento que oferecem sentidos ou significados, mas
não são produções que se oferecem a um exame reflexivo e crítico: são doutrinas que
pedem adesão pela fé e não pela compreensão a que chamamos de “racional”. Não julgo
atitudes de fé, em geral, como irracionais. Há argumentos racionais que podem, de alguma
forma, justificar ter alguma fé religiosa. O que não me parece justificável é o sectarismo,
a doutrinação impositiva, as crendices e a utilização de doutrinas religiosas para a domi-
nação e exploração de pessoas.

113
Ensinar filosofia e a filosofar: necessidade urgente

Na atual situação histórica da humanidade, marcada pela maneira


ocidental de pensar a existência humana, de pensar a realidade em geral e as
produções humanas nela (a vida social, a organização do poder, as morais, os
conhecimentos, as manifestações artísticas, a linguagem, a própria História),
os sentidos ou significados hegemônicos têm sido “dados” pela produção filo-
sófica. Quando uma produção filosófica se torna hegemônica como “doadora
de sentidos”, constitui-se como uma ideologia. Exemplo marcante é a ideolo-
gia liberal: é dentro dela e “de dentro dela” que são veiculados os significados
ou os sentidos para tudo o que se refere à existência humana e à realidade
na qual ela acontece. É uma “grande referência”. Assim foi, também, a visão
teológico-filosófica da Escolástica medieval.
Ora, se é verdade que as grandes referências de uma época como a nossa
são “dadas” por uma filosofia que se tornou ideologia, nada mais urgente e
necessário, para todas as pessoas, que uma compreensão desta mesma ideo-
logia e da capacidade de examiná-la reflexivamente, criticamente, metodica-
mente, profundamente; ou seja, à maneira filosófica.
Ou as pessoas fazem esta análise e decidem se querem ou não tal “filo-
sofia”, ou ainda outra (seria possível não querer nenhuma?); ou elas a recebe-
rão “dada” por uma imposição nada clara: a imposição possibilitada pela força
da persuasão publicitário-ideológica e possibilitada, mais ainda, pela falta de
condições de análise filosófica, à qual as pessoas são condenadas. Não tem
sido permitido que as pessoas possam aprender a filosofar. Não tem sido
permitido que as pessoas possam aprender a analisar as “respostas” filosófi-
cas referentes às questões de fundo, nem que as pessoas tomem e retomem
essas questões, sem as escamotear, e aprendam a colocá-las e recolocá-las
cada vez de forma melhor30. Tudo isso precisa ser permitido. Tudo isso precisa
acontecer porque é uma necessidade participar da construção das referências
que indicam sentidos ou direções para a vida das pessoas. Compete a cada um,
somado sempre aos outros, viver sua vida. Viver a vida implica, também, em
decidir pelos seus sentidos ou direções. Implica, pois, em filosofar. Filosofar é
um direito por ser uma necessidade.

30
Um exemplo desta “não permissão” está nos vários momentos em que grupos que
estão no exercício do poder político teimam em retirar dos currículos escolares a disciplina
filosofia.

114
Marcos Antônio Lorieri

Necessidade da filosofia na formação do jovem universitário

Filosofar se aprende. Os jovens, de modo geral, e os universitários, em


particular, precisam e, por isso, têm o direito de aprender a serem reflexi-
vos, críticos, rigorosos, radicais e abrangentes na análise das “questões de
fundo” e na análise das “respostas aprontadas” com que se defrontam no seu
contexto cultural, como já afirmado anteriormente.
Severino afirma que a presença da Filosofia na formação dos jovens
universitários é “uma exigência do processo formativo em geral e não de uma
formação específica, em particular” (Severino, 2006, p. 1). Para isso, diz ele,
é necessário “partir de uma concepção muito clara do que vem a ser essa
formação humana geral, que deve estar envolvida em qualquer outra moda-
lidade de formação técnico-profissional e por ela pressuposta” (Severino,
2006, p. 1). Indica, a seguir, como concebe o processo formativo de modo
geral e, dentro dele, aponta características da formação universitária.
Formação, diz ele, “é processo do devir humano como devir humaniza-
dor, mediante o qual o indivíduo natural devém um ser cultural, uma pessoa”
(Severino, 2006, p. 1). A educação em geral e a educação escolarizada em parti-
cular é “uma mediação universal e insubstituível dessa formação”. A escola-
rização em nível superior faz parte da escolarização em geral e do processo
formativo das pessoas e pode ser entendida assim, segundo ele:

mediação intencional e sistemática de uma educação voltada para a qualifica-


ção científica e técnica, com vistas à preparação de profissionais dos diversos
campos da atividade humana, incluindo daqueles profissionais que vão se
dedicar ao próprio exercício de construção e disseminação do conhecimento
científico. Prepara, então, os cientistas, os técnicos, os especialistas, todos
direcionados para atuar no universo da produção material, no âmbito da vida
social e na esfera da cultura simbólica, os três grandes espaços em que se dão
as práticas fundantes do existir humano (Severino, 2006, p. 2).

Mas isso não esgota a necessidade formativa dos jovens universitários.


Há algo que é necessário para eles como seres humanos e que se deve somar
a sua formação científica e técnica. Este algo é o que Severino denomina
“desenvolvimento ao máximo da sensibilidade ética e estética das pessoas,
com vistas ao delineamento do telos da vida e da própria educação, o que
só pode ser feito graças a uma profunda percepção da condição humana”

115
Ensinar filosofia e a filosofar: necessidade urgente

(Severino, 2006, p. 3, grifo do autor). Em outros textos, Severino dirá também


sobre a necessidade de desenvolvimento das sensibilidades antropológica,
epistêmica e política.
Ora, desenvolver as sensibilidades antropológica (voltada à percepção
da condição humana), epistêmica, ética, estética e política nada mais é que
desenvolver-se com a ajuda da formação filosófica. Pois, como dito antes,
responde a uma exigência do processo formativo em geral. As pessoas têm
necessidade, em sua formação, de desenvolverem em si mesmas estas “sensi-
bilidades”. Profissionais formados em nível superior são pessoas que, com
mais razão ainda, as devem ter desenvolvidas. Pessoas que dispõem desse
tipo de desenvolvimento podem delinear com mais clareza as finalidades ou
direções de suas vidas e, nelas, de suas ações. Podem delinear com mais segu-
rança o que Severino aponta anteriormente como o telos (a finalidade, ou
finalidades) da vida.
Pensemos em um profissional da área das engenharias. Mais especifi-
camente, um engenheiro civil que deverá orientar a construção de residên-
cias. Ele deve, com certeza, ser capaz de se perguntar pela segurança dos
conhecimentos que utiliza (sensibilidade epistêmica), pela honestidade na
definição de ambientes nos quais as pessoas vão morar ou trabalhar (sensi-
bilidade ética e antropológica), pelas condições de os edifícios serem provo-
cadores de sensações positivas quanto a diversas satisfações relacionadas
ao gosto (sensibilidade estética), pela definição de padrões de moradia, por
exemplo, que auxiliem tanto no acesso das pessoas a este direito, quanto
na facilidade de relações de boa vizinhança entre os moradores (sensibilida-
de política).
Pensemos nestes mesmos aspectos em relação à formação de médicos.
São óbvias as implicações éticas desta formação. Mas devem ser ressaltadas,
também, as implicações do desenvolvimento das demais sensibilidades. Não
se pode pensar um médico que não se preocupe com a segurança dos conhe-
cimentos de que dispõe para diagnosticar o que afeta a saúde das pessoas e
para indicar, ou não, medicação. Assim como não se pode pensar um médi-
co que não seja sensível ao debate e aos melhores encaminhamentos possí-
veis sobre o que significa respeito às pessoas e sobre o que significa ser uma
pessoa, ou às implicações políticas dos cuidados com a saúde e seu papel dife-
renciado nesses cuidados.

116
Marcos Antônio Lorieri

Pensemos na formação dos advogados, ou dos juristas de modo geral.


Quanto de implicações não apenas éticas, mas também de implicações epistê-
micas, antropológicas e políticas estão presentes na sua atuação e, por conse-
guinte, devem estar presentes na sua formação. Há, por exemplo, uma forte
influência das referências epistêmicas positivistas no entendimento do direito
naquilo que se convencionou denominar “juspositivismo”. Essas referências
estão presentes de maneira muito forte nos manuais de Introdução ao Direito,
que são utilizados nos anos iniciais dos Cursos de Direito. Há análises e deba-
tes suficientes capazes de esclarecer os futuros bacharéis em Direito sobre
esta referência epistêmica que acabará por rebater nas referências éticas do
trabalho importantíssimo do advogado?
Hoje, mais do que nunca, é urgente ser capaz de realizar profundas refle-
xões e análises críticas a respeito dos impactos das novas tecnologias na vida
das pessoas. Abordagens filosóficas são necessárias na formação de tantos
especialistas nestas áreas e não faltam, na literatura filosófica, produções a
respeito que devem ser oferecidas aos estudantes dos cursos superiores para
os auxiliarem nestas reflexões.
Que dizer então dos cursos que se propõem formar educadoras e educa-
dores? Educadores, por exemplo, de escolas, precisam ser sensíveis a muitís-
simos aspectos que envolvem o conhecimento (epistemologia), as regras do
bom agir (moral e ética), o que significa ajudar a formar pessoas (antropolo-
gia), as influências sociais e políticas na educação e, por sua vez, as implica-
ções sociais e políticas de toda ação educativa (filosofia social e política) e a
necessidade de uma boa formação estética para crianças e jovens (e para os
educadores).
Podemos pensar em todos os campos da atividade humana: todos, sem
exceção, exigem das pessoas que neles atuarão uma formação que implique o
desenvolvimento das sensibilidades mencionadas sob pena de a Universidade
prestar-se a formar sonâmbulos, no dizer de Hanna Arendt. Segundo ela,
pessoas que não pensam e refletem criticamente sobre o que ela denomi-
na “perguntas irrespondíveis” (aqui denominadas “questões de fundo” ou
“as perguntas da vida”) são pessoas que se tornam banais e que banalizam
o mundo e as relações que nele se estabelecem. São pessoas em que faltam
estas sensibilidades. Dentre elas, a sensibilidade epistêmica, que é condição
para as demais. Em A vida do espírito, diz ela: “Uma vida sem pensamento

117
Ensinar filosofia e a filosofar: necessidade urgente

é totalmente possível, mas ela fracassa em fazer desabrochar sua própria


essência – ela não é apenas sem sentido; ela não é totalmente viva. Homens
que não pensam são como sonâmbulos” (Arendt, 1995, p. 143). Pensamento,
ainda segundo a autora, é a busca e a produção do significado, por sua vez
distinto do conhecimento, que é o processo de busca e de produção de verda-
des. Sobre esta distinção ela diz:

Quando distingo verdade e significado, conhecimento e pensamento, e quan-


do insisto na importância desta distinção, não quero negar a conexão entre a
busca de significado do pensamento e a busca da verdade do conhecimento.
Ao formular as irrespondíveis questões de significado, os homens afirmam-se
como seres que interrogam. Por trás de todas as questões cognitivas para
as quais os homens encontram respostas escondem-se as questões irres-
pondíveis que parecem inteiramente vãs e que, desse modo, sempre foram
denunciadas. É bem provável que os homens – se viessem a perder o apetite
pelo significado que chamamos pensamento e deixassem de formular ques-
tões irrespondíveis – perdessem não só a habilidade de produzir aquelas
coisas-pensamento a que chamamos obras de arte, como também a capa-
cidade de formular todas as questões respondíveis sobre as quais se funda
qualquer civilização (Arendt, 1995, p. 48).

Ou seja, o pensar é fundamental para a vida humana e é necessário para


todos, mas possível de não acontecer a contento: é necessário cuidar para que
aconteça. Deve haver esforços que ajudem na sua realização, pois “homens
que não pensam são como sonâmbulos”. E não queremos médicos sonâmbu-
los, nem advogados, nem engenheiros, nem especialistas nas áreas tecnológi-
cas mais diversas. Muito menos queremos educadores sonâmbulos.
Sem a contribuição da filosofia, o desenvolvimento a contento da capa-
cidade de pensar bem pode não acontecer. A Universidade deve prover esta
formação a todos os profissionais que por ela passam, pois a educação univer-
sitária não pode se restringir apenas à formação científica e técnica e, menos
ainda, apenas à preparação técnica dos futuros profissionais que atuarão na
sociedade. Até porque nenhum profissional atuará apenas como técnico: ele
atuará como cidadão, como alguém que se posiciona politicamente, estetica-
mente, antropologicamente, epistemologicamente, eticamente, inclusive na
educação de seus filhos e netos.
Adorno (2003) já alertava para o fato de que “os homens se incli-
nam a considerar a técnica como sendo algo em si mesma, um fim em si

118
Marcos Antônio Lorieri

mesmo, uma força própria, esquecendo-se que ela é a extensão do braço


dos homens” (p. 132). Quando pensam assim, tendem à sua supervaloriza-
ção e ao esvaziamento dos pressupostos humanizadores da ação humana
e caem no que é denominado racionalidade instrumental. Esta racionali-
dade instrumental é a que levou os engenheiros e técnicos, a serviço do
nazismo, a projetarem “um sistema ferroviário para conduzir as vítimas a
Auschwitz com maior rapidez e fluência, [e] a esquecer o que acontece com
estas vítimas em Auschwitz” (Adorno, 2003, p. 133). A Universidade não
pode querer que os profissionais formados por ela sejam desprovidos da
sensibilidade antropológica e ética, que rebatem necessariamente na sensi-
bilidade política.
Vivemos numa época em que se dá muito prestígio à tecnologia, mas é
necessário saber utilizá-la, saber da sua pertinência para os problemas que
nos são postos pela vida.
Necessitamos das tecnologias e do trabalho do pensamento que deman-
da certas qualidades: a reflexão, a criticidade que inclui a problematização,
o rigor, a profundidade, a contextualização, como já anteriormente afirma-
do. A filosofia contribui para isso e é um caminho de construção de signifi-
cados fundamentais para a vida das pessoas. Profissionais formados nas
Universidades têm necessidade de significados fundamentais para suas vidas,
como todas as pessoas.
Sérgio Paulo Rouanet, em artigo publicado no “Caderno Mais” do jornal
a Folha de São Paulo (2002), discute, dentre outros assuntos, a quantidade de
informações que nos chegam e que nos levam a reagir a elas mecanicamente,
como autômatos e não como pensadores autônomos (Rouanet, 2002, p. 14).
Ou como sonâmbulos. Isso ocorre também no tocante às tecnologias, espe-
cialmente quando não nos perguntamos pelas consequências de seus usos,
baseando-nos apenas nas informações relativas às suas funcionalidades. O
conhecimento de funcionalidades, na verdade, é apenas o tomar ciência delas
como informes. Não é um conhecimento que questiona finalidades, que ques-
tiona o uso de meios, que coloca necessidades humanas fundamentais acima
de puros êxitos técnicos ou funcionais. Um conhecimento realmente humano
não pode ser apenas um processamento de informações sem o concurso da
reflexão que é promovida de maneira especial pelas humanidades e, dentro
delas, pela filosofia. Diz ele:

119
Ensinar filosofia e a filosofar: necessidade urgente

Finalmente, para que o conhecimento não se limite à ciência natural e à técni-


ca, o que daria traços odiosamente tecnocráticos ao novo modelo de socieda-
de, transformando-a num paraíso de engenheiros e de analistas de sistemas,
é preciso dar uma ênfase idêntica a outros tipos de conhecimento, como as
ciências humanas, a filosofia e as humanidades (Rouanet, 2002, p. 15).

Nada contra os engenheiros e os analistas de sistema bem formados na


perspectiva acima colocada. Tudo contra os profissionais de qualquer área
que não tenham esta boa formação.

Nenhum profissional será efetivamente em sua prática histórica, apenas um


técnico; ele será necessariamente um sujeito interpelado pela história, pela
sociedade, pela cultura e pela humanidade, devendo dar-lhes respostas que
vão muito além de seu desempenho puramente operacional no âmbito da
produção (Severino, 2006, p. 3).

Se faltar a “boa formação” aos profissionais preparados em nível supe-


rior (a formação que abrange o desenvolvimento de todas as sensibilidades
anteriormente mencionadas), há riscos de desumanização devido a este
processo acelerado de tecnização e de fragmentação da informação, que tem
sua fonte na tecnização e na fragmentação da própria vida ou da maneira
como a produzimos.
O convite ao pensamento que interliga e que produz referências amplas
e que as avalia constantemente é característica básica do filosofar que, por
esta razão, deve fazer parte da boa formação humana. A educação não pode
ficar alheia a ela.
Severino (2002) argumenta que se a educação procura oferecer aces-
so a informações, conhecimentos, valores, normas de conduta etc., isso só
faz sentido se forem apresentadas justificativas que possam ser assimiladas
compreensivamente pelos estudantes. No tocante, por exemplo, aos conhe-
cimentos, ele diz:

Assim, se os conhecimentos científicos nos ajudam a entender as coisas, são


os conhecimentos filosóficos que nos ajudam a compreendê-las, ou seja,
a situá-las no conjunto de sentidos que norteiam a existência humana, a
atribuir-lhes um sentido articulado numa rede maior de sentidos dessa exis-
tência, em sua complexa condição de unidade e de totalidade (Severino,
2002, p. 189).

120
Marcos Antônio Lorieri

Gallo e Kohan, recorrendo a Larrosa, em citação já feita em outro capítu-


lo, caminham na mesma direção ao dizerem que filosofia “envolve a dimensão
do sentido”. “A filosofia contribui para se manter aberta e sempre presente à
pergunta pelo sentido de como vivemos e do que fazemos. Essa é sua função
social principal” (Larrosa, 1994 apud Gallo; Kohan, 2000, p. 188-189).
Estes autores apontam que a filosofia é necessária numa educação que
se propõe ajudar a formar pessoas autônomas, como o reclama Rouanet. Só
podem ser pessoas autônomas aquelas que tenham passado por experiências
de pensamento reflexivo, crítico, radical e criativo.
Por todas essas razões, pode-se ver e justificar a necessidade da filosofia
na formação dos jovens no Ensino Superior: “A justificativa da necessidade da
filosofia no Ensino Superior encontra-se nessa finalidade intrínseca da educa-
ção como formação integral das pessoas, à vista de seus compromissos com
a própria humanidade” (Severino, 2006, p. 4).
Dados da realidade mundial, colhidos pela UNESCO já neste século XXI,
numa grande enquete feita junto a Universidades de quase todos os países, inclu-
sive o Brasil, apontam que há um quase consenso a respeito da necessidade da
presença da Filosofia nos cursos superiores. A enquete não se restringiu ao Ensino
Superior. Buscou ver a presença da Filosofia em todos os níveis de ensino escolar.
Seus resultados estão apresentados em uma publicação da UNESCO, que tem
como título “La Philosophie, une école de la liberté: enseignement de la philoso-
phie et apprentissage du philosopher; état des lieux et regards pour l’avenir”31.
No capítulo sobre a presença da Filosofia no Ensino Superior, é dito o seguinte:

No nível do ensino superior, a filosofia porta-se muito bem e está presente


de maneira generalizada: disciplinas sob a denominação “filosofia” são ensi-
nadas quase em todos os lugares. Das pessoas que responderam ao ques-
tionário, somente onze disseram que a Filosofia não figura como disciplina
específica no ensino superior em seu paíse. São eles: África do Sul, Burundi,
El Salvador, Emirados Árabes Unidos, Guiana, Irlanda, Jordânia, Mônaco,
Uganda, Venezuela e Vietnan. (2007, p. 105, tradução livre nossa).

Mesmo assim, ressalta o relatório, nesses países há o ensino de conte-


údos de Filosofia com outras denominações. Ou seja, sua presença é pratica-

31
Disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000153601?posInSet=1&queryI-
d=96371cc0-73e3-405e-adcc-2dfc79fd6439.

121
Ensinar filosofia e a filosofar: necessidade urgente

mente total no Ensino Superior no mundo. O que indica o reconhecimento de


sua importância na formação dos jovens que demandam este nível de educa-
ção. Acresça-se a isso o fato de 70% dos que responderam ao questionário
terem afirmado que não veem ameaças de redução da duração deste ensino e
que 85% excluem qualquer risco de sua supressão. E a análise conclui: “Apesar
de certas dificuldades, a Filosofia na Universidade é percebida como sólida
e estável e apenas em alguns casos particulares é vista como ameaçada por
políticas ministeriais ou acadêmicas”.32
Esta pesquisa da UNESCO e os dados do relatório publicado trazem-nos
bons elementos para reflexão. Um deles é a constatação da importância dada
por esta organização internacional ao ensino da Filosofia em geral e, em parti-
cular, ao seu ensino na Universidade. Em segundo lugar, a constatação do
reconhecimento da importância da Filosofia na formação dos jovens universi-
tários em praticamente todos os países do mundo.
Mas o documento não deixa de mencionar preocupação com o entendi-
mento do papel da filosofia nessa formação, com os conteúdos que são traba-
lhados no seu ensino e com a forma como são trabalhados.
Há sempre grandes questões envolvendo a filosofia. Cabe-nos não as
temer e não nos deixar intimidar pelos perigos de políticas ministeriais e
acadêmicas, como mencionado no relatório da UNESCO. Cabe-nos continuar
os diálogos a respeito da necessária formação filosófica de todas as pessoas
e de a oferecermos no Ensino Superior da melhor maneira. Este é um desa-
fio, de certa forma, novo para os Departamentos de Filosofia de todas as
Universidades.

32
Infelizmente, esta expectativa da continuidade da presença da filosofia nos cursos supe-
riores nos diversos países tem sido frustrada recentemente. Em vez de desânimo, porém,
esta notícia deve ser tomada como mais um incentivo pela luta por sua presença na for-
mação dos jovens universitários.

122
Referências

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127
Posfácio
Uma obra importante de um grande educador

Marcos Lorieri é um grande professor. É também um extraordinário ser


humano. Conheci ele em dezembro de 1992, num encontro de formação do
então Centro Brasileiro de Filosofia para Crianças (CBFC), em São Paulo. Eram
épocas em que compartilhávamos uma fé quase religiosa na filosofia para
crianças. Marcos era – sempre tem sido – uma peça-chave nessa organização
e na introdução do programa criado por Matthew Lipman e Ann Sharp no
Brasil: alguém que dava respaldo e legitimidade acadêmica à proposta, além
de um engajamento constante na formação de professoras e professores.
De fato, ele nunca perdeu essa fé, como alguns dos escritos aqui apresenta-
dos testemunham com muita clareza. Contudo, sua atuação nunca se restrin-
giu à filosofia para crianças. Marcos tem sido um militante incansável a favor
do ensino de filosofia ou de uma educação filosófica em sentido mais amplo,
em diversas idades e para todos os níveis da educação.
Nesse sentido, os escritos aqui apresentados abarcam um amplo espec-
tro temático e foram produzidos durante um período de aproximadamente
dez anos, os mais recentes da produtiva vida filosoficamente educadora de
Marcos Antônio Lorieri. Todos eles têm sido revisados pelo próprio autor
e a maior parte deles modificados para a presente edição. Como o próprio
Marcos afirma, os capítulos deste livro refletem o seu pensamento presen-
te sobre o filosofar e o ensinar a filosofar. O livro ainda contém dois textos
inéditos: o primeiro capítulo, “A constituição da área de Ensino da Filosofia
no Brasil: memórias de um Encontro”, transcrição revisada pelo autor de sua
intervenção em evento da ANPOF, na sua homenagem em outubro de 2021;
e o segundo capítulo, “Fazer filosofia como educação: argumentos quanto
às suas possibilidades formativas”. Estamos, portanto, perante um material
importante, atual, significativo para todas e todos os interessados no ensino
de filosofia.
Para elencar outros adjetivos ao presente livro, talvez seja necessário
convidar outras mãos à escrita. Vou fazê-lo através de uma confidência indis-
pensável. Os livros da NEFI edições passam por dois pareceristas anônimos.
Embora saibamos que o livro de Marcos não precisaria desse processo e que
seria muito difícil preservar o anonimato do texto, preferimos mantê-lo dentro

129
Ensinar filosofia e a filosofar: necessidade urgente

da dinâmica geral da editora, como também sabemos que ele teria preferido.
Um dos pareceristas, de quem agora podemos desvelar a identidade, foi o
Filipe Ceppas, professor da UFRJ, e uma das referências na área de ensino de
filosofia no Brasil. Ele começava assim o seu parecer:

O livro do prof. Lorieri não deveria passar por análise de parecerista. Ele
é um livro necessário por muitos motivos. Primeiro, por ser um livro do
prof. Lorieri – e, enquanto tal, impossível de tornar-se “anônimo”. Qualquer
parecerista da área o reconheceria. Sendo uma coletânea de textos do prof.
Lorieri, trata-se de livro indispensável da área, uma vez que o autor é um de
seus mais constantes e importantes interlocutores. Por fim, os ensaios que
compõem o livro constituem contribuições valiosas para o tema do ensinar
e aprender a filosofia e o filosofar, além de serem um testemunho vivo não
apenas da importância da trajetória do prof. Lorieri, mas também de sua
simpatia e generosidade. Essas virtudes não são um mero adendo irrelevante
na perspectiva teórica do prof. Lorieri, perspectiva sempre intimamente refe-
rida à (e construída a partir da) prática. Elas são um instrumento fundamental
no jeito mesmo do prof. Lorieri fazer com que a análise teórica sobre o ensi-
nar e o aprender a filosofar tenha um alcance imediato a não importa quem
se interesse pelo assunto.

Importante, generoso e justo o parecer do Filipe, de quem tomo as pala-


vras para remarcar tanto a importância do professor Lorieri para a área quan-
to do livro que estamos posfaciando. Filipe destaca como as ideias de Marcos
tem estado sempre afincadas e enraizadas na prática. Ressalta também o
caráter amplo e estendido dos estudos de Lorieri. O outro parecer foi o da
professora Magda Costa Carvalho, da Universidade dos Açores. Transcrevo, a
seguir, uma parte do seu parecer:

Considero tratar-se de uma obra de grande relevância sobre o ensino da


Filosofia (com especial incidência no contexto brasileiro, mas cujos argumen-
tos se podem extrapolar para outros contextos geográficos), apresentando
uma variada e rica panóplia de razões a seu favor. É uma obra que contribuirá
de forma aprofundada para o fortalecimento do debate sobre se a Filosofia
deve ou não constar da oferta curricular de escolas (de diferentes níveis de
ensino) e de Universidades (em distintos departamentos), mas também que
se apresenta como de grande pertinência para a consolidação do Ensino
da Filosofia como área de estudos académicos. É, assim, uma obra que tem
em vista uma diversidade de públicos – mais especializados, como sejam
estudantes de graduação e de pós-graduação, assim como investigadores
em centros de pesquisa; e também público em geral, no caso de qualquer
pessoa que se preocupe com a necessidade social e política de promover um

130
Marcos Antônio Lorieri

pensamento crítico e fundamentado sobre o que nos envolve e constitui. A


escrita do seu autor é cativante porque apresenta as questões e problemáti-
cas de um modo vivo e dinâmico, engajando os seus potenciais leitores nos
assuntos sobre os quais versa. Mesmo no que respeita a questões um pouco
mais densas (e, por vezes, técnicas) em torno de diferentes posições e auto-
res que se debruçaram acerca do ensino da Filosofia, o livro procura sempre
um registo didático e mobilizador das suas leitoras e dos seus leitores.

A professora Magda – criadora e coordenadora de um excelente mestra-


do acadêmico em filosofia para crianças na Universidade dos Açores – faz
muito bem em destacar como a escrita de Marcos não é apenas relevante
para o Brasil nem só para o contexto da defesa da presença curricular da filo-
sofia nas escolas e universidades, mas também para a consolidação do ensino
de filosofia como uma área de singular relevância acadêmica. A professora
Magda também enfatiza o caráter aprofundado e ao mesmo tempo simples
da escrita do Marcos, sempre atento à dimensão didática e educacional das
suas reflexões.
A dimensão ética do ensino de filosofia; a formação das professoras e dos
professores de filosofia são outras duas questões muito presentes em vários
dos textos que compõem o livro. Esses temas fazem parte do arcabouço das
preocupações mais recorrentes de Marcos junto a outras também presentes
neste livro: o respeito às diferenças, a formação ética de professores e estu-
dantes, a pesquisa no ensino de filosofia, o filosofar como dimensão insubsti-
tuível do ensino de filosofia, o papel fundamental da filosofia enquanto culti-
vo do pensamento crítico nas práticas educacionais tão pronto quanto seja
possível pelo seu impacto na vida das pessoas. Não pretendemos esgotar as
temáticas que uma leitura interessada encontrará neste, sem dúvidas, riquís-
simo material. Apenas pretendemos dar uma amostra que inspire buscas mais
específicas das leitoras e dos leitores.
Para terminar sua apresentação, o professor Marcos Lorieri escreve:

Se as ideias aqui apresentadas colaborarem para que a presença do ensino de


filosofia e do filosofar seja mantida e expandida, dou-me por muito bem pago
e me sentirei feliz por isso.

Não podemos garantir o pagamento almejado pelo professor Marcos.


Infelizmente, a presença do ensino da filosofia e do filosofar nos currículos
está sujeita às arbitrariedades das políticas públicas educacionais, mais sensí-

131
Ensinar filosofia e a filosofar: necessidade urgente

veis entre nós aos interesses do capital de que a uma educação como a sonha-
da nestas páginas por Marcos Lorieri. Porém, esperemos que ele se sinta, pelo
menos, um pouco feliz ao saber que muitos dos que lutamos pela presença de
um ensino de filosofia filosofante encontramos, nestas páginas, inspiração e
incentivo para seguir lutando.

Walter Omar Kohan


Rio de Janeiro, maio de 2023

132
Anexo 1
Boas lembranças de Matthew Lipman

Lipman chegou primeiro entre nós com a ideia de Filosofia para Crianças apre-
sentada por Catherine Young Silva numa reunião na Secretaria da Educação
de São Paulo (1984) e, em seguida, numa palestra na PUC-SP organizada por
ela e proferida por Ann Margaret Sharp em novembro de 1984. Convidado
por Catherine, levei meus alunos do Curso de Filosofia. Entre eles, Ana Luíza
Falcone e Sylvia J. Hamburger Mandel, futuras tradutoras das novelas e manu-
ais. Em fevereiro de 1985, foi fundado o Centro Brasileiro de Filosofia para
Crianças, que promoveu um curso de um mês, neste ano, em São Paulo; foi
quando conhecemos Lipman pessoalmente. Ele e Ann M. Sharp trabalharam
na formação dos primeiros professores de Filosofia que se dedicaram ao estu-
do e a preparação de monitores do Programa de Filosofia para Crianças (PFC).
Nos intervalos do curso, Ana Luiza, Sylvia e eu fomos com ele a três escolas
públicas da periferia de São Paulo onde já trabalhávamos com o Programa.
Ele participou de algumas aulas com as crianças (Sylvia e Ana Luiza serviam
como intérpretes), dialogou com elas sobre a “novela” Pimpa e fez revela-
ções sobre sua vida ao responder a uma das crianças que lhe perguntou se era
casado. Respondeu que sim e pela segunda vez. Uma das crianças perguntou-
-lhe se havia feito as histórias e o Programa de Filosofia para Crianças pensan-
do primeiro nas crianças ou na sua carreira. Surpresa geral. Lipman lhe disse
que realmente havia pensado na sua carreira, mas junto havia sim pensado
nas crianças. Gostaria que todas pudessem filosofar, pois julgava isso muito
importante. Nesse mesmo dia, à noite, fez uma conferência na PUC-SP. Disse
aos presentes que tinha ficado muito bem impressionado com as crianças
pela sua curiosidade e pelo interesse e fez o seguinte comentário: “Os olhos
dessas crianças são diferentes dos olhos das crianças pobres de países ricos
por onde tenho andado; nesses olhos vejo esperança, o que não vejo em meu
país. Talvez porque os pobres de lá já não enxergam saída para sua condição”.
Numa das escolas, Lipman experimentou bolo de mandioca: apreciou-o muito
e repetiu, elogiando a mãe do aluno que o havia feito.
Ele voltou ao Brasil por mais duas vezes: em 1988, para um Congresso
em Maringá, no Paraná. Foi uma oportunidade para todos nós de conversar-
mos muito com ele. De volta a São Paulo, pediu para verificarmos a possibili-

133
Ensinar filosofia e a filosofar: necessidade urgente

dade de uma conversa sua com Paulo Freire. Com a ajuda de Moacir Gadotti,
a conversa aconteceu. Em 1994, veio participar do I Encontro Nacional de
Educação para o Pensar, em Florianópolis, Santa Catarina. Passando, na volta,
por São Paulo, encontrou-se novamente com Paulo Freire.
Com uma bolsa de estudos, participei em Mendham de um Seminário de
vinte dias, em 1991, coordenado por Lipman. Pedi a ele para nos dizer de suas
principais referências teóricas, o que não lhe agradou muito. Mas, em um dos
dias, entregou-me duas folhas manuscritas com os nomes de pensadores que
o tinham especialmente influenciado.
As ideias de Lipman chegaram primeiro que sua pessoa. Sua pessoa se
foi. Suas ideias continuam entre nós: é uma maneira de ele ficar conosco.

134
Marcos Antônio Lorieri

Anexo 2
Catherine e o Programa de Filosofia para Crianças no Brasil

Conheci Catherine Young Silva em 1984 na Secretaria de Educação do Estado


de São Paulo e na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)
numa noite de outubro, ao convidar eu e meus alunos para uma conferên-
cia sobre Filosofia para Crianças. Dentre os alunos, duas pessoas se tornaram
importantes para Filosofia para Crianças no Brasil: Ana Luíza Falcone e Sylvia
Judith Hamburger. A conferencista era Ann Margaret Sharp, principal parceira
de Matthew Lipman.
Catherine, na ocasião, explicou que havia estudado Filosofia na
Universidade de São Paulo, que estava transferindo-se para PUC-SP e que
havia concluído os estudos de mestrado na Montclair State Univesity.
Segundo soube mais tarde, através de sua grande amiga Marion,
Catherine havia lido uma notícia sobre o PFC em uma revista norte-americana
por indicação desta sua amiga. Interessou-se pelo PFC e foi a Montclair para
saber mais a respeito. Foi aí que conheceu Lipman e Ann Sharp, decidindo-se
por fazer os estudos do mestrado.
Ao final da conferência de Ann na PUC-SP, Catherine convidou os presen-
tes a participarem de reuniões para melhor conhecerem o PFC. As reuni-
ões seriam realizadas na sede do Yazigi (Instituto de Idiomas da família de
Catherine), que se localizava na Av. Nove de Julho, 3166, em São Paulo. Este
foi o endereço do Centro Brasileiro de Filosofia para Crianças até o encerra-
mento de suas atividades em 2005.
Dois professores da PUC-SP (Ivo Assad Ibri e Benedito Elizeu Cintra),
eu e as duas alunas acima citadas, passamos a participar das reuniões com
Catherine no Yazigi. Isso ocorreu nos meses de novembro e dezembro de 1984.
Outros professores e professoras foram se agregando ao grupo por convite de
Catherine. Seu filho Ricardo Young Silva também participava das reuniões.
Em janeiro de 1985 Catherine, os dois professores e as duas alunas da
PUC-SP e, acho, Ricardo foram para Montclair e participaram de Seminário em
Mendham. Em fevereiro de 1985, concordamos com a ideia de Catherine de
criação do Centro Brasileiro de Filosofia para Crianças.
Logo em seguida à criação do CBFC, Catherine me pediu para verificar a
possibilidade de realizar uma experiência em uma escola pública com a “nove-

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Ensinar filosofia e a filosofar: necessidade urgente

la” Pimpa. Conseguida a escola e a autorização dos dirigentes, iniciamos um


trabalho com quatro professoras: duas da terceira série e duas da quarta série
do Ensino Fundamental. Além das professoras, participávamos do grupo:
Ricardo, Ana Luíza, Sylvia e eu. Catherine realizava a preparação das professo-
ras e de nós quatro (foi aí que aprendi as primeiras lições sobre o PFC) durante
duas horas, às terças e quintas-feiras. Em seguida, íamos todos para as salas
de aula junto com as professoras. Cada um de nós ia para uma sala participar
com os alunos. Isto foi feito durante todo o ano de 1985. Foi o primeiro envol-
vimento de um grupo de professoras e de membros do CBFC num trabalho
prático com o PFC em escola pública no Brasil (Escola Estadual de Primeiro
Grau Santos Dumont) e com a “novela” Pimpa em português. Outra experiên-
cia havia sido iniciada em uma escola particular, até onde sei, com o material
de Ari dos Telles em inglês. O professor Benedito Elizeu Cintra acompanhou
este trabalho.
O trabalho na Escola Santos Dumont ficou conhecido por vários profes-
sores e a notícia deste trabalho chegou à imprensa (jornais, revistas e TV). Isto
levou, no início, outras duas escolas públicas da periferia de São Paulo a ter
interesse pelo PFC. Catherine e eu fomos a elas e iniciamos o mesmo trabalho,
juntamente com Sylvia, Ana Luíza e Ricardo.
Foi neste ano de 1985, por esforços de Catherine, que Lipman falou
na PUC-SP, na Secretaria da Educação do Governo do Estado de São Paulo,
na USP, na Universidade Estadual de Campinas, na Universidade Federal de
Vitória, no Rio de Janeiro e no Maranhão. Além do curso de um mês para futu-
ros monitores do Programa ministrado por Lipman e Ann Sharp.
Catherine era a alma do grupo: muitas reuniões de estudo, muito diálo-
go, e acompanhamento atento do trabalho que realizávamos. Nunca conheci
uma alma assim tão radiante, tão boa e tão profissionalmente séria!
Em 1986, conseguimos um apoio importante do Governo do Estado de
São Paulo: podíamos trabalhar com quarenta escolas com alunos de 1ª a 4ª
série do Ensino Fundamental. Foram adquiridos os materiais para os alunos
(novelas: Issao e Guga e Pimpa) e os manuais para os professores e nós, sempre
com Catherine, fizemos a preparação dos professores. O grupo de monitores
já era maior. Este trabalho durou três anos. Depois, com a mudança de gover-
nantes e devido a muitas dificuldades de manutenção dos professores nas
escolas, o projeto maior acabou. Mas várias escolas o mantiveram.

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Marcos Antônio Lorieri

A partir do conhecimento ampliado do PFC, muitas escolas particulares


interessaram-se por Filosofia para Crianças. Catherine ia a todas para falar da
proposta: era incansável. Viajava por todo o Brasil. Eu a acompanhei em várias
viagens e escolas.
Um acontecimento importante foi o Congresso sobre Educação para
o Pensar, idealizado por Catherine e organizado em Maringá (estado do
Paraná). Nele estivaram presentes pessoas de vários países e contamos com
as presenças de Lipman, Ann Sharp e Fred Oscanian. Ela era, a esta altura,
Presidente do ICPIC.
Um grande trabalho de Catherine foi o de promover a ida de professores
a Montclair (Mendham) para conhecerem mais de perto o que era a proposta
do PFC. Eu mesmo fui incentivado por ela para participar de um destes semi-
nários em 1991, juntamente de mais três brasileiros. Catherine nos acompa-
nhou e nos deu total apoio e ajuda neste evento. Muitos dos custos financei-
ros do CBFC foram pagos pessoalmente por Catherine.
Em 1991, conversando com ela sobre como o PFC havia se multiplicado
por todo o Brasil e como se tornava difícil acompanhar tudo o que se fazia
para tentar garantir sua melhor qualidade, ela me disse que esta era uma de
suas preocupações, mas que não havia muito o que fazer neste sentido. O
importante era confiar nos professores. Contou-me que tinha tido um sonho:
estava com uma criança no colo; de repente, a criança cresceu e saiu correndo
e não mais voltou. Ela me disse que o trabalho com Filosofia para Crianças era
esta criança.
Num dos cursos de formação de professores, conseguimos que alguém
fizesse uma filmagem do curso e gravasse uma entrevista com ela, na qual ela
diz aos professores: “Quando comecei a falar de Filosofia para Crianças, muita
gente dizia que eu era louca. Somente os professores e as professoras acredita-
ram em mim. E foi por isto que hoje temos tantas escolas trabalhando com esta
proposta e estamos aqui com quarenta professores fazendo este curso”.
A Universidade Brasileira, de modo geral, não aceitou a proposta do
PFC. Na PUC-SP, conseguimos um apoio da Faculdade de Educação. Nunca do
Departamento de Filosofia. Mas algo curioso aconteceu e continua aconte-
cendo: em muitas Universidades foram produzidas dissertações e teses sobre
o PFC. Pelo que pude coletar nas bibliotecas digitais de teses e dissertações,
são mais de 100 produções.

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Ensinar filosofia e a filosofar: necessidade urgente

Catherine, infelizmente, faleceu em 1992. Neste ano e nos anos seguin-


tes, o PFC cresceu muito no Brasil. Depois de 1997, no entanto. começou a
declinar o interesse por ele. Muitas outras propostas de filosofia para crianças
surgiram em muitas escolas que têm hoje filosofia na Educação Infantil e no
Ensino Fundamental. Catherine tem tudo a ver com isso.

São Paulo, outubro de 2005

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