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FILOSOFIA
LATINO-AMERICANA
Comitê Editorial da

Aldir Araújo Carvalho Filho (UFMA)


Dante Ramaglia (UNCUYO - Argentina)
Yamandú Acosta (UDELAR - Uruguai)
Fernando Vergara Henríquez (Universidad Católica
Silva Henríquez – Chile)
Gilberto Mendonça Teles (PUC-RJ)
Márcio José Silveira Lima (UFSB)
Marcos Carvalho Lopes (UNILAB)
Rafael Hadock-Lobo (UFRJ)
Renato Noguera (UFRRJ)
Ronie Alexsandro Teles da Silveira (UFSB)
Susana de Castro (UFRJ)
Charles Feitosa (UNIRIO)
Wanderson Flor Nascimento (UNB)
Ivan Melo (UNILAB)
Sérgio Schaefer (UNISC)
FILOSOFIA
LATINO-AMERICANA

Ronie Alexsandro Teles da Silveira


Diagramação: Marcelo Alves
Capa: Gabrielle do Carmo
Fotografia / Imagem de Capa: Leonardo Worm Vieira

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

S587f Silveira, Ronie Alexsandro Teles da

Filosofia latino-americana [recurso eletrônico] / Ronie Alexsandro Teles da


Silveira. – Cachoeirinha : Fi, 2023.

v. 1 ; 356p.

ISBN 978-65-85725-43-9

DOI 10.22350/9786585725439

Disponível em: http://www.editorafi.org

1. Filosofia – Latino-americana. I. Título.

CDU 14(81/899)

Catalogação na publicação: Mônica Ballejo Canto – CRB 10/1023


Dedico esse livro para meu amor Melissa Worm
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO 13
Ronie Alexsandro Teles da Silveira

1 14
A FILOSOFIA LATINO-AMERICANA DA SUPERFICIALIDADE
INTRODUÇÃO ......................................................................................................................................................... 14
HISTÓRIA ORGÂNICA E SUJEIÇÃO .................................................................................................................... 19
UM MUNDO SEM HISTÓRIA ................................................................................................................................ 25
PERTINÊNCIA FILOSÓFICA .................................................................................................................................. 33
A FILOSOFIA LATINO-AMERICANA DA SUPERFICIALIDADE ...................................................................... 38
REFERÊNCIAS .......................................................................................................................................................... 43

2 46
A RACIONALIDADE DO BRASIL
TEMPO E ESCRITA .................................................................................................................................................. 46
RACIONALIDADE E MONOTEÍSMO ................................................................................................................... 50
A EXPERIÊNCIA NÃO HISTÓRICA DA HISTÓRIA ............................................................................................ 57
A RACIONALIDADE DO BRASIL .......................................................................................................................... 63
O PAÍS QUE NÃO SE RESUME ............................................................................................................................. 71
REFERÊNCIAS .......................................................................................................................................................... 74

3 76
CULTURA E FILOSOFIA LATINO-AMERICANA NO SÉCULO XXI
1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................................... 76
2 A FILOSOFIA CONTRA A PÓS-MODERNIDADE .......................................................................................... 83
3. A CULTURA DA FILOSOFIA LATINO-AMERICANA .................................................................................... 93
REFERÊNCIAS ........................................................................................................................................................ 100

4 102
A HIPOCRISIA DA FILOSOFIA LATINO-AMERICANA
REFERÊNCIAS ........................................................................................................................................................ 120
5 122
A COLONIAL FILOSOFIA BRASILEIRA
REFERÊNCIAS ........................................................................................................................................................ 144

6 145
REALIDADE E FICÇÃO NA AMÉRICA LATINA
INTRODUÇÃO ....................................................................................................................................................... 145
ESPÍRITO PRÁTICO E FANTASIA SEM PROVEITO ......................................................................................... 154
UNILATERALIDADE E PROMESSA .................................................................................................................... 159
CONCLUSÃO ......................................................................................................................................................... 163
REFERÊNCIAS ........................................................................................................................................................ 168

7 170
LA ORIGINALIDAD DE LA FILOSOFÍA BRASILEÑA
INTRODUCCIÓN ................................................................................................................................................... 170
DE LA FILOSOFÍA PARA LA FILOSOFÍA BRASILEÑA ................................................................................... 173
DESMOVILIZACIÓN Y SECTARISMO ................................................................................................................ 176
LA FILOSOFÍA BRASILEÑA NO ES HISTORIA DE LA FILOSOFÍA .............................................................. 179
LA NECESIDAD DEL AMOR ............................................................................................................................... 181
LA ORIGINALIDAD DE LA FILOSOFÍA BRASILEÑA ...................................................................................... 183
CONCLUSIÓN ........................................................................................................................................................ 192
REFERÊNCIAS ........................................................................................................................................................ 194

8 196
CAMINHO PARA A AMÉRICA LATINA
INTRODUÇÃO ....................................................................................................................................................... 196
SUJEITOS E INDIVÍDUOS .................................................................................................................................... 204
O GOZO IMEDIATO ............................................................................................................................................. 211
CONCLUSÃO ......................................................................................................................................................... 221
REFERÊNCIAS ........................................................................................................................................................ 225

9 227
PROBLEMAS DE FILOSOFIA BRASILEIRA
INTRODUÇÃO ....................................................................................................................................................... 227
FORMA E CONTEÚDO......................................................................................................................................... 229
FILOSOFIA E CULTURA ....................................................................................................................................... 240
REFERÊNCIAS ........................................................................................................................................................ 251
10 252
A AMÉRICA LATINA COMO FRONTEIRA
INTRODUÇÃO ....................................................................................................................................................... 252
A FRONTEIRA INTERNA DO MUNDO EUROPEU .......................................................................................... 253
A FRONTEIRA EXTERNA DO MUNDO EUROPEU ......................................................................................... 259
NEM DO LADO DE DENTRO, NEM DO LADO DE FORA ............................................................................ 267
CONCLUSÃO ......................................................................................................................................................... 270
REFERÊNCIAS ........................................................................................................................................................ 276

11 277
DIREITOS HUMANOS E CULTURA BRASILEIRA
INTRODUÇÃO ....................................................................................................................................................... 277
DEMOCRACIA E DEMOCRACIA FORMAL ...................................................................................................... 278
A CONTRADIÇÃO ENTRE CIDADANIA E PRIVILÉGIO .................................................................................. 286
A OUTRA RACIONALIDADE DA CULTURA BRASILEIRA ............................................................................. 290
A POLÍTICA DA DEMOCRACIA NÃO DEMOCRÁTICA ................................................................................. 296
REFERÊNCIAS ........................................................................................................................................................ 300

12 302
A AMÉRICA LATINA ENTRE O MACONDISMO E O MORALISMO
O MACONDISMO ................................................................................................................................................. 302
O FUNDAMENTO MORAL DA MODERNIDADE ............................................................................................ 307
O MORALISMO ..................................................................................................................................................... 310
OPACIDADE E TRANSPARÊNCIA DA AMÉRICA LATINA ............................................................................ 316
A MATÉRIA FLEXÍVEL DA AMÉRICA LATINA ................................................................................................. 322
REFERÊNCIAS ........................................................................................................................................................ 326

13 329
O FUTURO DA FILOSOFIA BRASILEIRA
INTRODUÇÃO ....................................................................................................................................................... 329
A FILOSOFIA IMITATIVA ..................................................................................................................................... 331
A FILOSOFIA BRASILEIRA ................................................................................................................................... 348
CONCLUSÃO ......................................................................................................................................................... 354
REFERÊNCIAS ........................................................................................................................................................ 355
APRESENTAÇÃO
Ronie Alexsandro Teles da Silveira

O leitor tem diante de si um livro que é o resultado de alguns anos


de trabalho dedicado à filosofia latino-americana. Mais precisamente se
tratam de artigos publicados entre os anos de 2017 e 2023. A despeito de
serem obrigatoriamente unidades separadas de sentido, em função do
formato de artigos, os textos possuem conexões que não passarão
desapercebidas. Inclusive porque todos eles versam sobre a América
Latina.
Nunca é demais esclarecer que não se trata de um livro sobre
História da Filosofia Latino-Americana e sim de uma tentativa de se
promover uma leitura filosófica acerca dessa região do planeta. Isso não
exclui, inclusive, a necessidade de se redefinir o sentido da Filosofia que
se pratica por aqui, como se verá.
Se perceberá também que há textos específicos sobre o Brasil.
Minha única justificativa para isso é que sendo brasileiro e vivendo aqui
possuo maior familiaridade com esse país. Por isso ele aparece em
destaque, embora não possa ser entendido fora de sua própria inserção
geográfica e cultural latino-americana.
Os textos estão sendo publicados aqui com o mesmo conteúdo dos
atigos originais, apenas com algumas correções que puderam ser
identificadas. Foi realizada somente uma unificação formal do sistema
de citações e referências para fornecer uma unidade ao material.
1
A FILOSOFIA LATINO-AMERICANA
DA SUPERFICIALIDADE

INTRODUÇÃO

Durante uma viagem científica ao Brasil, entre 1865 e 1866,


Elisabeth e Luis Agassiz escreveram um diário. Nele, eles registraram
não apenas questões diretamente ligadas aos seus interesses em
ciências naturais como também aspectos gerais da cultura do país. Em
um desses registros eles afirmam que “existe uma falta de harmonia
entre as instituições e o estado da nação” de tal forma que a Constituição
Nacional “se assemelha a uma vestimenta arranjada que não foi feita
sob medida para o tamanho de quem a usa e lhe fica sobrando por todos
os lados” (2000, p. 281).
Esse desajuste entre o corpo que nos constitui e a vestimenta
política que sobre ele foi colocada revela uma característica básica da
situação latino-americana. Característica que é um resultado do
processo de colonização, ao propiciar contato entre culturas diferentes,
que aparentemente não estabeleceram entre elas uma relação integrada
e orgânica.
Uma relação integrada e orgânica seria aquela que teria resultado
em alguma forma harmônica de síntese ou ajuste entre seus elementos
constituintes. A metáfora da vestimenta inadequada ao corpo faz
referência à inexistência dessa relação de plena integração entre os
elementos da vida América Latina. Ela possui a vantagem de permitir a
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 15

percepção sintética da nossa situação ainda no início do Século XXI: há


elementos culturais justapostos uns ao lado dos outros, sem que entre
eles se note alguma forma de adequação plena. Nossa situação é um tipo
de desajuste entre diferentes elementos culturais.
Lançando mão da mesma metáfora, agora aplicada à relação entre
a prática política vigente na Argentina e o conhecimento de teorias
sociais de sua época, o poeta Esteban Echeverría (1874) afirmou que:

Todo el saber e ilustración que poseemos no nos pertenece; es un fondo, si


se quiere, pero no constituye una riqueza real, adquirida con el sudor
de nuestro rostro, sino debida á la generosidad estranjera. Es una vestidura
hecha de pedazos diferentes y de distinto color, con la cual apenas podemos
cubrir nuestra miserable desnudez (p. 627).

Podemos notar que se afirma aqui não apenas uma inadequação


entre a vestimenta e o corpo, como também que aquela é composta por
elementos diversos, sem qualquer traço de uma composição harmônica
que forneça unidade ao conjunto. O caráter artificial do arranjo é
destacado por Echeverría a ponto de lhe parecer que o conhecimento
que daí resulta não é “real”.
Já no Século XX, o filósofo mexicano Leopoldo Zea lançou mão da
mesma metáfora ao tratar da existência de uma filosofia americana. Diz
ele que “nos sentimos como bastardos que usufructúan bienes a los que
no tienen derecho. Nos sentimos igual al que se pone un traje que no es
suyo, lo sentimos grande. Adaptamos sus ideas pero no podemos
adaptarnos a ellas” (1942, p. 67). Ao polemizar com Zea, Salazar Bondy
(1967, p. 25) usa quase as mesmas palavras: “Nos sentimos igual al que
se pone un traje que no es suyo, lo sentimos grande”.
16 • Filosofia Latino-Americana

Parece-me significativo que a mesma metáfora tenha sido


utilizada com grande intervalo de tempo em pelo menos três
circunstâncias distintas e por observadores tão diferentes. Embora se
trate de uma metáfora —que possui típicos defeitos metafóricos— sua
utilização me parece adequada como instrumento para apresentar uma
possibilidade alternativa à maneira como os intelectuais latino-
americanos têm reagido a esse sentimento de inadequação cultural.
Lançarei mão dela aqui com esse propósito específico.
Um dos defeitos mais evidentes dessa metáfora é sugerir que me
refiro a dois elementos separados, como se estivéssemos lidando com
duas substâncias. Entendo que isso não retrata adequadamente o
problema. Não estamos tratando com duas substâncias, mas com
conjuntos diversos de fenômenos humanos mutáveis. Seja a
Constituição política de um país, uma teoria social ou o conjunto de
valores que estruturam uma forma de vida, lidamos com elementos
humanos em transformação. Então, aquele corpo de que trata a
metáfora não deve ser entendido como um dado definitivo, uma
substância, mas sim, mais modestamente, como aquilo que temos sido.
Por sua vez, a vestimenta possui a mesma característica: se trata de algo
estabelecido, mas não de algo permanente e fixo.
Há, inclusive, algumas situações empíricas na América Latina em
que a vestimenta parece se assentar muito bem ao corpo, assim como
há outras em que nem percebemos sua presença sobre ele, tal é a
situação de nudez. Abstraindo-se essas circunstâncias particulares, que
são inevitáveis em função do estado de mudança e variabilidade
constante dos fenômenos culturais, podemos lidar com essa metáfora
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 17

com certa generalidade prudente. Seu poder de informação acerca


daquele sentimento de desarmonia me parece saliente.
Outra má compreensão sugerida por essa metáfora, e que deve ser
afastada aqui, é o da separação entre natureza e cultura. Nesse caso, a
questão não é de desajuste entre alguma suposta natureza latino-
americana e a cultura europeia introduzida pela colonização. Não
parece fazer nenhum sentido postular a existência de tal natureza
separada de toda influência cultural (Geertz, 2008), como se a cultura
tivesse começado com a conquista europeia. O que me parece relevante
na metáfora – e que gostaria que o leitor preservasse— é que o conjunto
de elementos da vida latino-americana não é o resultado de um
desenvolvimento orgânico, de uma constituição harmônica que assuma
o aspecto de uma unidade integrada. Assim, ela permite visualizar um
conjunto desarticulado de elementos diversos que causa um sentimento
de desconforto.
Sabemos que a América Saxônica resolveu esse aspecto do
problema colonial na medida em que domesticou ou eliminou o
elemento que corresponderia ao seu corpo metafórico. Isso permitiu
que a roupa europeia lhe caísse perfeitamente bem, ou porque o corpo
tornou-se europeu ou porque a violência simplesmente o eliminou. O
fato é que a inadequação entre o corpo e a vestimenta foi resolvida por
um gesto que permitiu que se instalasse uma relação harmônica entre
as partes envolvidas. Assim, o resultado desse gesto parece ser a
obtenção de uma continuação orgânica da cultura europeia na América.
Leopoldo Zea (1942) sugeriu que os asiáticos não possuem aquele
sentimento latino-americano de inadequação, apresentado pela
18 • Filosofia Latino-Americana

metáfora da vestimenta, porque não cogitam na possibilidade de abrir


mão de seu corpo cultural. Assim, as adaptações que fizeram, quando
em contato com o mundo europeu, restringiram-se a aspectos técnicos.
Isto é, eles conseguiram operar um tipo de síntese em que preservaram
sua milenar cultura e absorveram elementos europeus sem que isso
produzisse aquele efeito de inadequação latino-americano.
Talvez essa sugestão possa explicar também a adaptação realizada
pelo Japão após a Segunda Guerra Mundial no sentido de se
ocidentalizar. Não notamos nessa adaptação nenhuma inadequação
explícita, embora saibamos que o núcleo de valores culturais asiáticos
não foi abalado por ela. Ou seja, nessa síntese japonesa parece que os
valores europeus foram acomodados do lado de fora do núcleo asiático,
em alguma região periférica em que não parece ter produzido impactos
significativos. A solução aqui teria sido a de “apropriarse la técnica del
estranjero sin enajenar su alma” (Gaos, 1943, p. 80). Daí também uma
certa sensação de estarmos diante de uma absorção ingênua no trato
com os elementos ocidentais: eles estão ali, mas não são
experimentados da mesma forma que no ocidente moderno. Embora
ocidentalizados, os japoneses não parecem ter sido definitivamente
atingidos pelo ocidente. A ingenuidade parece decorrer desse arranjo
que implicou em experimentar o ocidente como um elemento periférico
de sua própria cultura.
A situação latino-americana é diversa da asiática na medida em
que não parece haver aqui algum núcleo que tenha sido preservado do
embate colonial. Nesse caso, não parece ter ocorrido algum tipo de
arranjo periférico semelhante ao japonês em que um cerne tenha sido
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 19

preservado. Da mesma maneira, parece evidente que na América Ibérica


a cultura europeia não foi suficientemente capaz de domar o corpo
original, nem de eliminá-lo como o fez a América Saxônica.
Claro que isso não significa endossar a tese da ausência de
violência nas relações coloniais latino-americanas. Uma compreensão
equivocada da cordialidade brasileira (Buarque de Holanda, 1984) parece
mesmo sugerir algo semelhante à presença de relações humanizadas na
colonização da América Latina. Entretanto, essa versão é muito
obviamente falsa para nos determos nela (Castro, 1998). Tratam-se
apenas de duas formas distintas de violência.
Para verificar em que consiste a especificidade da inadequação
metafórica entre corpo e a vestimenta acompanharei aqui o relato geral
apresentado por Zea (1942; 1974). Esse relato expressa meu próprio
ponto de vista com relação ao significado da situação latino-americana
de inadequação cultural (Silveira, 2015). Mais especificadamente, ele diz
respeito à maneira peculiar como experimentamos a história. Essa
estratégia expositiva me permitirá obter um ponto de apoio para
descrever posteriormente uma alternativa a como os intelectuais
latino-americanos têm interpretado e reagido à “increíble
heterogeneidade” (Guirin, 1999, p. 2) e inadequação cultural que tem nos
constituído.

HISTÓRIA ORGÂNICA E SUJEIÇÃO

Hegel (1989) parece ter produzido um dos relatos mais influentes


sobre a modernidade europeia. De fato, a noção da história como a
20 • Filosofia Latino-Americana

conquista gradual da liberdade humana tornou-se quase um consenso a


partir de sua formulação no início do Século XIX. Hoje, dificilmente
alguém julgaria razoável a adoção do ponto de vista inicial do próprio
Hegel e de alguns de seus contemporâneos com relação a um possível
destino da Europa. Essa perspectiva hegeliana inicial entendia a missão
da civilização europeia como a reconstituição do mundo grego (Silveira,
2001). Isso significa dizer que o futuro da Europa deveria consistir na
concretização de um mundo semelhante ao que vigorou na Grécia
Antiga, uma espécie de reconstituição desse mundo antigo.
Não só essa perspectiva de uma possibilidade de reconstituição
prática do passado foi abandonada por Hegel, como ela se tornou
absolutamente estranha ao ambiente ocidental criado pelo relato
hegeliano definitivo: aquele que entende a história humana como um
processo de acumulação orgânica em direção ao futuro. Com efeito, esse
relato orienta o relato histórico de uma maneira decisiva e
unidirecional. Para ele, só há sentido no futuro e só deste o significado
autêntico dos acontecimentos pode emergir.
Assim, a história consiste em uma tomada de consciência gradativa
do ser humano, de tal forma que o significado verdadeiro de cada evento
particular se revela apenas por ocasião da produção da autoconsciência
plena —que é o ápice desse processo. Esse relato tornou-se hegemônico
a ponto de a civilização ocidental ter se habituado a “pensar-se a si
mesma como um agregado contínuo” (Costa, 1991, p. 31). Na verdade, o
ocidente não parece capaz de pensar a si mesmo de outra forma.
O que estaria em jogo na história humana seria a obtenção do
significado verdadeiro sobre nós mesmos, somente alcançável através da
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 21

produção de uma autoconsciência. Assim, os eventos do passado não são


eventos mortos ou simplesmente descartáveis. Eles são o material sobre
o qual a consciência deve se debruçar para recuperar/gerar o significado
verdadeiro sobre si mesma. De certa forma, há duas histórias. Uma
história dos eventos dispostos na situação empírica em que ocorreram,
expressando significados imediatos e contextualmente vinculados às
suas respectivas ocorrências. Outra história, a história verdadeira, aquela
que recolhe os eventos da primeira de acordo com uma conexão
integradora capaz de verificar o que cada um deles significa para a
produção da autoconsciência europeia livre (Labarrière, 1979).
Através desse relato hegeliano não só se tornou sem sentido uma
história que buscasse a restituição de um mundo passado como também
uma história de eventos desconexos, que não conduzem à posse de um
significado superior ao meramente acontecidos. Trata-se, portanto, da
afirmação de que o relato verdadeiro é uma história orgânica, na medida
em que os eventos necessitam ser incorporados a uma narrativa
superiora em que se recuperam/produzem seu significado verdadeiro.
Assim, a forma do relato histórico tem de articular o passado ao presente
e esse ao futuro como dimensões diferentes que colaboram entre si para
um mesmo propósito já que o significado verdadeiro somente se revela
ao término do movimento histórico, na autoconsciência da sua própria
totalidade. Não há nada de significativo em eventos isolados, fora do
processo integrador e orgânico da história verdadeira.
Com isso, se entende que a ação humana se desenvolve em um
contexto de ganhos graduais em direção a uma finalidade superior, mas
não independente do próprio processo que lhe deu origem. Observe que
22 • Filosofia Latino-Americana

essa finalidade só ganha sentido através do processo que a produz: para


Hegel, a história é verdadeira. O que importa, então, não é o contexto
imediato das ocorrências fatuais, a aparência inicial dos fenômenos,
mas o significado que eles revelam para o desenlace do processo de
obtenção/produção de autoconsciência. Trata-se, portanto, de uma
superação do tempo imediato em benefício da transfiguração de um
conteúdo que gera o significado autêntico.
Esse panorama histórico gera uma disposição permanente para
ações de longo prazo, porque orientadas para o futuro em que a verdade
deve se manifestar. Ações cujo significado superior são sempre uma
promessa por realizar. Assim, faz sentido o esforço continuado em uma
mesma direção, a constância e a disciplina na ação que poderão fazer
emergir o desenlace, o acabamento da autoconsciência e do
aperfeiçoamento das sociedades e dos indivíduos. Faz sentido utilizar o
futuro como justificativa. É a possibilidade sempre presente de uma
melhoria em vias de se atualizar, de um futuro superior e significativo,
que torna possível a disciplina, o ordenamento gradual e constante do
mundo, da vida e da personalidade individual. A história hegeliana que
se tornou o relato expressivo da modernidade europeia é o relato da
constância na ação e do esforço orientado que aprimora o mundo e o
sujeito em direção a um estágio superior da existência.
Assim como uma civilização específica só adquire um sentido pleno
quando é assimilada pela narrativa da história universal, uma ação
humana deve se orientar tendo em vista seu significado potencial para
o engrandecimento do sujeito que age. Se há um projeto imanente que
se realiza na história universal, também há um projeto individual que
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 23

se realiza no plano das ações humanas em direção ao aperfeiçoamento


do sujeito. É com esse propósito que Rodó (s. d.) disse que “solo somos
capaces de progreso en cuanto lo somos de adaptar nuestros actos a
condiciones cada vez más distantes de nosotros, en el espacio y en el
tempo” (p. 33). Cada um deve orientar a totalidade de suas ações como
momentos de uma gradual tomada de consciência e enriquecimento
existencial de si mesmo. Uma ação desvinculada desse contexto
orgânico, uma ação que não pode ser integrada ao processo de melhoria
individual, é gratuita ou sem sentido.
Somente por meio desse ordenamento para uma finalidade
superior, a vida individual pode adquirir um significado autêntico. É a
falta de consciência de si, a fragmentação da consciência em momentos
desconexos, que deve ser combatida através de ações orientadas para
uma finalidade superior. Nesse contexto, parece muito natural que
aquela característica “descontínua”, típica do pensamento latino-
americano e identificada por Salazar Bondy (1967, p. 10), só possa ser
identificada como uma forma de indisposição para a história. A ação
empírica isolada e gratuita não passa de falta de orientação histórica,
de incapacidade de assumir compromisso com valores superiores. Ela
caracteriza uma vida destituída de significado e finalidade, da carência
de condições pessoais para tornar-se melhor e mais consciente de si
mesmo para tornar-se um sujeito capaz de forjar sua integridade.
Assim, um sujeito é um homem dotado de um projeto que se lança
em direção a sua realização através da conquista do domínio integral de
si mesmo. Ele é um sujeito porque se mostra capaz de se sujeitar a uma
finalidade superior, de gerir-se de maneira autoconsciente, de
24 • Filosofia Latino-Americana

encaminhar-se para esse objetivo tanto mais decidido quanto possa ser.
Um sujeito é um homem que se coloca em condições de administrar sua
própria vida. Elias (2011) descreveu esse processo de civilização ou
sujeição do homem europeu no início da modernidade europeia. O que
está em questão nesse processo é a capacidade humana de dar-se uma
unidade, de forjar um domínio de si mesmo, de fazer chegar o eu a si
mesmo —cuja realização é chamada de liberdade. Observe que essa
noção de liberdade equivale à de autodomínio, ao controle de si mesmo
tendo em vista o ordenamento da personalidade para uma vida
superior. Nesse sentido, Hegel não se distanciou da noção kantiana de
autonomia (Kant, s. d.), embora tenha expandido suas dimensões além
daquelas típicas da moralidade individual.
Um exemplo desse processo de integração de si é a exposição, feita
por Hegel (1997) acerca da emergência do Estado europeu moderno. Para
ele, o Estado é uma solução orgânica para os conflitos existentes na
sociedade civil. Ou seja, o Estado reúne e soluciona as tensões sociais
existentes em um patamar superior de realização da vontade humana.
Isso ilustra as soluções modernas como esquemas de unificação
integradora das diferenças em um patamar superior de
aperfeiçoamento, a solução dos conflitos elaborada na história através
de um aprofundamento em direção ao futuro.
Destaco aqui a importância da noção de profundidade para esse
relato. É ela quem permite a proposição de uma solução futura para o
conflito, a fragmentação e a diferença. Quando há um projeto de
aperfeiçoamento em curso, ocorre naturalmente uma disjunção entre
um estado de coisas atual e um ideal, um futuro a ser realizado. A
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 25

profundidade é o elemento que permite que a unificação se torne capaz


de angariar a diversidade em direção a uma resolução definitiva e
superior. É a profundidade de perspectiva que fornece a forma da
superação em que um elemento é ultrapassado sem ser eliminado. A
famosa suprassunção (Aufhebung) hegeliana (Hegel, 2008) só ocorre no
ambiente da profundidade em que o futuro promete uma reconciliação
harmônica dos elementos dispersos. O tempo hegeliano moderno
europeu possui profundidade. A ilustração do movimento histórico
como uma espiral é a afirmação da necessidade da profundidade para o
esquema do relato hegeliano e para toda a modernidade europeia.
Afinal, sem ela não é possível uma espiral, nem a integração gradativa
dos elementos que a constituem.

UM MUNDO SEM HISTÓRIA

Esse relato hegeliano acerca da história tornou-se hegemônico na


velha Europa. Por meio da (re)colonização cultural, ele tornou-se
também o relato predominante para a intelectualidade da América
Latina. Em função disso, não é incomum ainda hoje, que a história
latino-americana seja narrada como alguma modalidade de nossa
incapacidade para tomar consciência de nós mesmos. Isso significa que
tudo se resolveria se atendêssemos ao chamado para a constituição de
nossa própria história. História que, nesse caso, significaria a plena
aceitação e adoção do relato hegeliano como parâmetro. Esse tipo de
chamamento não chega a espantar, já que somos —nós os intelectuais—
educados nos termos da cultura europeia. Assim, a interpretação de
26 • Filosofia Latino-Americana

nossa história que predomina entre nós é exatamente a mesma que um


europeu poderia apresentar dela (Silveira, 2016): a de uma história
fracassada, de uma recusa (consciente ou não) em produzir/obter nossa
própria integração cultural.
Na verdade, a história latino-americana é uma não história. Há
uma percepção corrente, um sentimento generalizado, que afirma que
o que ocorre aqui é uma espécie de reencenação de motivos já
conhecidos, que reaparecem continuamente sem jamais se resolverem
definitivamente. Ela refere-se à constatação de que os momentos do
tempo latino-americano estão justapostos. Essa sensação corresponde
a algo que tem nos constituído. Zea refere-se à América Latina como a
um mundo “ajeno a la realidade histórica” (1974, p. 7). A persistência
anacrônica de alguns traços coloniais, como o personalismo, a
corrupção endêmica, o paternalismo etc. constituem-se como símbolos
de um passado ainda não resolvido. Passado que se justapõe a eventos
típicos da modernidade europeia, como relações jurídicas impessoais e
eleições livres e universais.
Um passado não resolvido exige como contrapartida necessária um
presente estendido em que todos os elementos ainda possuem algum
significado vigente, já que eles não foram superados. Se nada do passado
foi cancelado ou perdeu validade, então tudo ainda é. Assim, “tenemos
aún en la epidermis al conquistador y al conquistado, al colonial, al
liberal romântico y a todo esto que fue nuestro passado” (1974, p. 20). O
passado que não se consolidou não deixou de ser, mas persevera ainda.
Se ele não se tornou uma dimensão efetivamente ultrapassada, o
presente teve que se ampliar de maneira a conter também todo o seu
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 27

conteúdo, porém sob sua própria modalidade atual. Tudo aquilo que em
um relato histórico europeu teria se convertido em passado, na América
Latina ainda é presente. Daí nossa situação não histórica: “La escritura
de la historia puede comenzar solo cuando el presente se ha dividido del
passado” (Conley citado por Pizarro, s. f., p. 70).
Na verdade, se ainda temos o passado em nosso presente, isso quer
dizer que não se aplica aqui o esquema histórico que distingue uma
dessas dimensões temporais da outra. Só há o presente na medida em
que nada foi resolvido, nada se aperfeiçoou ou foi superado, nada
realmente perdeu o significado em benefício de uma verdade superior
integradora. Não se operou um aperfeiçoamento ou se revelou um
significado superior de uma ação determinada que teria, assim, deixado
de ser o que era. Não houve uma distensão histórica, um desdobramento
em novas situações que se apresentaram através da decadência das
antigas. Só há a perseveração do presente segundo a forma do presente.
Ao contrário de uma história, podemos falar mais propriamente do
paralelismo dos “tiempos plurales de la cultura de América Latina”
(Pizarro, s. f., p. 129).
Daqui decorre também aquela sensação de sermos uma promessa,
uma potência que ainda não se realizou plenamente. Temos esse aspecto
jovem, típico das civilizações que ainda não consolidaram um passado
mesmo 500 anos após a colonização e a despeito do contraexemplo dos
Estados Unidos: tão jovem quanto nós, porém historicamente mais
velho. A solidificação de um passado é o que fornece os limites do futuro,
na medida em que estipula parâmetros para o que poderá ser realizado
em função do que existe isso se seguirmos uma lógica histórica
28 • Filosofia Latino-Americana

consequente. A consolidação de um passado limita as possibilidades de


futuro em função da organicidade que se institui: o que virá necessita
articular-se com o que foi sob pena de flutuar no ar como uma
fantasmagoria sem significado. Só podemos nos tornar algo que esteja
conectado ao que já realizamos no passado.
Ser consequente é viver dentro do esquema da história em que os
atos do passado configuram padrões de comportamentos possíveis para
o futuro, de tal forma que entre elas se estabeleça uma relação de
continuidade. Porém, 28ort “este pasado nuestro aún no se convierte en
auténtico pasado, sigue siendo un presente que no se decide a ser
historia” (Zea, 1974, p. 21). Como na América Latina o passado não se
consolida, não há relações de consequência, de continuidade e
integração entre os elementos culturais. O que ocorre é que essas
relações de consequência não se estabelecem e se recusa o processo de
aperfeiçoamento gradativo. Recusa-se o abandono da juventude em
benefício da idade madura. O presente não quer fazer concessões ao
passado, de tal forma que temos sido um “continente del futuro”
(Elizalde, 2007, p. 2).
Os elementos culturais não se articulam em uma sequência
consequente de aprimoramento, isto é, como acontecimentos
propriamente históricos. Eles se ordenam uns ao lado dos outros não
porque são de várias idades distintas, mas justamente porque
compartilham do momento presente. Não há, portanto, típicas atitudes
velhas ou ultrapassadas. Não se trata de preservação museológica do
que está culturalmente morto, mas de uma cultura em que tudo ainda
possui valor e sentido potencial, tudo está disponível. Todos os
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 29

elementos culturais encontram-se no mesmo patamar de validade,


todas possuem a mesma potencialidade para virem a ser utilizadas,
nada foi definitivamente superado. Assim, todas elas encontram-se
dispostas umas ao lado das outras sem adotarem aquela perspectiva
histórica de profundidade.
Quando nos movemos dentro dessa situação de justaposição de
elementos culturais não nos movemos historicamente, do passado para
o futuro, mas saltamos indistintamente de um conteúdo ao outro, sem
nenhuma preocupação com alguma ligação consequente entre elas. Os
saltos de qualidade são, portanto, nossa maneira inorgânica de resolver
problemas. Quando algo se apresenta como uma dificuldade, não se
articulam soluções consequentes que levam a um amadurecimento
gradual, a um aperfeiçoamento histórico do homem ou do ambiente.
Simplesmente saltamos para dentro de uma solução, sem integrá-la às
suas supostas condições históricas de possibilidade. A transposição aqui
é imediata, sem que se estabeleça uma distância entre o hoje e o ontem,
entre condições dadas e ideais propostos. As transposições são
historicamente inconsequentes.
Essa desconexão histórica forneceu ao pensamento latino-
americano uma tendência mal compreendida. Ela diria respeito a certa
predominância de preocupações práticas, pedagógicas, políticas e
sociais em detrimento de questões de princípio, ontológicas ou
metafísicas. Assim, não haveria metafísica e ontologia latino-
americanas porque teríamos um pendor prático (Baeza, 2016). Porém,
não se trata de nenhuma vocação para o mundo prático. Se fosse assim,
teríamos transformado substancialmente a realidade social e política
30 • Filosofia Latino-Americana

latino-americana. Gaos é mais preciso em sua formulação acerca dessa


mesma tendência:

Los temas característicos, en fin, del pensamiento hispanoamericano son:


estéticos, políticos, pedagógicos-ocasionales, circunstanciales, por ende,
variados, tomados e dejados hasta el punto de hacer una impresión de
versatilidad, de volubilidad y de ligereza, de superficialidad, de falta de
“principios”, que se liga con el ametodismo; o el suma, asistemáticos (1943, p.
64) (grifos meus).

Como se pode ver, trata-se na verdade do caráter superficial


presente na maneira como postulamos e resolvemos problemas: eles
não envolvem elementos derivados de princípios através de um método
orgânico e integrativo, nem compõem uma totalidade sistemática da
qual emergem de maneira explícita. Não possuímos nenhuma vocação
prática e sim uma tendência para dispor os conteúdos sob uma
modalidade superficial e não histórica. Por isso, nossas ações ocorrem
por meio de procedimentos assistemáticos e destituídos de
profundidade. Uma vocação para questões práticas teria que ser
acompanhada por uma capacidade efetiva de alteração do mundo e essa
exigiria ações articuladas de transformação do mundo. Porém, isso não
ocorre. Nossa suposta tendência para assuntos práticos é, na verdade,
uma tendência para a superficialidade.
Daí aquele caráter súbito de nossas soluções, a que já me referi. Isso
torna razoável acreditarmos que um gesto de prestidigitação, uma
torção imediata de significado, um golpe semântico certeiro resolve um
problema. Quando ocorre de um problema não se resolver diante desse
golpe certeiro, isso não é atribuído a um erro do mecanismo
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 31

inconsequente de se produzirem soluções, mas a mero erro


circunstancial: um novo golpe mais certeiro certamente obterá o
sucesso desejado. Assim, as recorrentes mudanças de direção são a
maneira tradicional como se resolvem problemas na América Latina
desde a presidência de um Estado à direção de um time de futebol. Daí
também a nossa permanente tentação de recriar inteiramente o mundo
social e político, de propor medidas sem conexão com um mundo
existente, um mundo passado já consolidado. As interrupções em
qualquer processo social ou político tem sido uma norma latino-
americana. Note, entretanto, que o termo interrupção constitui parte
do legado terminológico do pensamento histórico europeu e supõe sua
própria validade.
Na verdade, sem um passado sólido temos que reconhecer que
também não há um mundo permanente e substantivo que possa servir
de base para a ação humana. De certa forma, nossas ações possuem um
caráter estético. Isto é, elas não se caracterizam como alterações de um
mundo existente, como ocorre com as alterações tecnológicas por
exemplo. Pelo contrário, o que elas buscam é moldar um mundo ainda
sem forma definitiva. Só um mundo passado pode ser dado. O mundo do
presente é sempre um mundo que ainda não é plenamente, um mundo
por ser feito.
Se há um crime imperdoável na América Latina, trata-se do crime
de ter razão. Ter razão significa retirar de todos os outros a
possibilidade de agirem esteticamente para elaborar um mundo ainda
indefinido. Dizer a última palavra torna o significado fixo e cria um
passado. Diante de um significado fixo, perde sentido a atividade
32 • Filosofia Latino-Americana

estética, submerge-se em um elemento positivo que nos aprisiona a um


estado de coisas fixo. A tendência latino-americana a travar debates
destruidores, sejam intelectuais ou políticos, diz respeito ao fato de
neles lutarmos pela nossa capacidade estética de dar um significado
para o mundo. Lutamos para não perdemos a capacidade de termos um
mundo que é só nosso, do qual somos os verdadeiros criadores.
Ninguém quer tornar-se vítima de um significado definido por outrem,
ninguém quer ser submetido porque todos são igualmente autores de
seu próprio mundo. Ninguém quer ser um sujeito.
A crença em um significado superior coletivo, em um elemento que
funciona como base de apoio para dirimir discussões a crença em um
dispositivo democrático, portanto constitui uma verdadeira ameaça
para a vida não histórica da América Latina. O reconhecimento da
validade de um patamar superior de significados envolve a abdicação do
poder estético de criar um mundo. Dessa perspectiva, a sujeição que é
própria do dispositivo democrático e moderno do ocidente histórico
europeu não aparece sob tão belas cores. Isso ocorre justamente porque
ela traz consigo a destituição do indivíduo de seu papel estético, de sua
capacidade de dar-se um mundo de acordo com sua própria vontade e
interesse, de sua eterna juventude. Isso que chamaríamos, de um ponto
de vista europeu tradicional, de promover um autoengano nada mais é,
de um ponto de vista latino-americano, do que usufruir do poder de
viver plenamente segundo sua própria individualidade. Ou seja, trata-
se de viver em um mundo plenamente ajustado ao próprio indivíduo.
Como se pode notar facilmente, essas considerações possuem
consequências que não posso explorar adequadamente aqui em função
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 33

da brevidade desse texto. Porém, acredito que a essa altura a


constatação da ausência de história na América Latina não seja uma
afirmação assustadora ou problemática. Explicitei algumas
características dessa constituição cultural, apenas com relação ao
Brasil, em outra ocasião. Assim, me permito remeter o leitor ainda em
dúvida para o livro Apresentação do Brasil (Silveira, 2015) em que ele
poderá encontrar mais elementos a esse respeito. Gostaria de ocupar-
me agora com a típica reação dos intelectuais latino-americanos à
ausência da história entre nós.

PERTINÊNCIA FILOSÓFICA

A constatação de que a América Latina é um mundo sem história não


é de todo insólita, como vimos acima. Leopoldo Zea apresentou elementos
bastante eloquentes a esse respeito. Entendo que essa constatação é outra
forma de expressar o conteúdo daquela metáfora da vestimenta. Daí sua
importância expositiva. Interessa-me, agora, caracterizar a reação típica
dos intelectuais latino-americanos a essa situação não histórica. Como
protótipo dessa reação, cito o mesmo autor:

Sí, en verdad, no queremos repetir las experiencias de nuestro pasado


viviéndolas como algo presente, es menester que las vivamos como historia,
como pasado que es. Y la mejor manera es la de la asimilación, debemos
asimilar nuestro pasado, hacernos conscientes de él. Tal es lo que siempre
ha hecho Europa, tal ha sido la tarea de sus historiadores y filósofos (1974,
p. 25).

Observe que a proposta de Zea é de que assimilemos a maneira de


ser da Europa, que nos tornemos conscientes do nosso passado e
34 • Filosofia Latino-Americana

ingressemos em um mundo histórico. Isso significa que o único


caminho para a América Latina seria promover a negação de sua não
história para tornar-se um capítulo da história europeia. Certamente
um capítulo com suas próprias especificidades e, quem sabe, até com a
possibilidade futura de tomar a dianteira do mundo histórico europeu.
Essa é a posição da grande maioria dos intelectuais latino-
americanos acerca de nossa situação não histórica. Galindéz (2016, p. 3)
afirma que é “uma necesidad urgente tomar consciencia de nuestro
passado”. De maneira hegemônica se afirma que a não história é um
mundo a ser erradicado, uma maneira de ser que deve se tornar
europeia e ceder o passo à histórica. Trata-se, enfim, de “modernizar
América Latina” (Moreno, 2007, p. 162). Zea sugere, inclusive, que nossa
maneira de ser é uma modalidade de inconsciência, reafirmando a
validade incondicional do relato hegeliano que identifica história e
consciência. Claro que essa avaliação é feita adotando-se o ponto de
vista da história, da Europa. Essa é a mesma perspectiva que nós,
intelectuais, temos adotado há 500 anos, pelo menos desde a chegada
dos jesuítas à América Latina. A catequização dos indígenas ou a
conscientização do proletariado são apenas duas formas de afirmar a
necessidade de ingressar no mundo da autoconsciência europeia, de nos
tornarmos cristãos ou conscientes isto é, europeus.
No final do Século XX e início do XXI, ainda adotamos o mesmo
ponto de vista crítico: aquele que avalia o que somos a partir do ponto
de vista europeu. Assim, todas as avaliações, de uma forma ou de outra,
terminam indicando o que devemos fazer para nos tornarmos europeus.
Afinal, comparados com a Europa e a partir da Europa, sempre resta
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 35

algum aspecto em que ainda não somos plenamente europeus, há algo


que nos falta, há uma carência a ser preenchida, um fracasso a ser
superado. Somos uma “conciencia fundamentalmente defectiva”
(Gallardo, 1977, p. 187). Claro que essa perspectiva de avaliar a não
história da América Latina do ponto de vista da história europeia é
logicamente correta. Tão logicamente correta quanto avaliar a história
europeia do ponto de vista da nossa não história.
A questão que acredito que deveria preocupar aos intelectuais
latino-americanos é, na verdade, prática e não lógica. Depois de 500
anos de avaliações majoritariamente elaboradas do ponto de vista da
história europeia sobre nossa não história, não parece fazer sentido
exercer o mesmo padrão de avaliações. Afinal, já sabemos de antemão
exatamente a que chegaremos quando promovemos esse tipo de
julgamento. Esse padrão tornou-se simplesmente redundante. Através
dessas repetições críticas chegamos a repetidas indicações de nossas
deficiências, já que invariavelmente chegamos à constatação de que não
somos europeus ou de que ainda não somos plenamente europeus.
Enfatizo que essa redundância não se constitui como uma
alternativa desprovida de lógica. Ela apenas tem demonstrado não
possuir qualquer pertinência. Tais avaliações críticas já se tornaram
uma espécie de ruído de fundo sem nenhuma consequência prática, um
discurso que se realiza do lado de fora da vida latino-americana. Por sua
vez, essa redundância crítica é a demonstração de que a filosofia latino-
americana tem sido inócua e incapaz de dizer algo de significativo na
linguagem dos latino-americanos.
36 • Filosofia Latino-Americana

A crítica redundante à nossa maneira não histórica de ser deriva


invariavelmente para uma afirmação de como deveríamos ser em
benefício de uma modalidade europeia de vida. Assim, ainda pensamos
em termos de identidade europeia quando afirmamos que a nossa ainda
é uma “identidad contraditória” (Ramos, 2003, p. 122).
Nada haveria de inadequado nessas proposições críticas se não
fossemos filósofos. A defesa de uma alteração na maneira de ser dos
latino-americanos, feita por filósofos, é problemática porque envolve a
afirmação implícita de uma liderança cultural por parte da filosofia. Se
os filósofos se julgam em condições de indicar qual é o caminho para
solucionar o problema (não histórico) da América Latina é porque se
julgam de posse de um critério especial para avaliar distintas formas de
vida. Eles se julgam em condições de liderar culturalmente a América
Latina em direção à história. Essa é uma versão muita antiga do papel
cultural da filosofia e não creio que alguém ainda a endosse
serenamente no início do Século XXI.
Depois dos adventos traumáticos das duas Guerras Mundiais do
Século XX, em que emergiram os dispositivos de administração social
totalitários, seria imprudente que a filosofia realimentasse o mesmo
padrão de iniciativas colocando-se em condições de liderança cultural.
Essas iniciativas totalitárias derivaram sua legitimidade justamente de
uma leitura superior e privilegiada do mundo, da posse de um critério
não cultural que tornava sociedades particulares administráveis. Não
apenas essas leituras propiciavam avaliações críticas, mas o direito de
administrar tais formas de vida do ponto de vista privilegiado que
julgavam possuir. Com isso, quero dizer que foi a crença de se estar de
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 37

posse de um ponto de vista privilegiado com relação a diferentes


culturas que tornaram possíveis os desastres civilizatórios do Século
XX. Foi a crença de possuirmos um critério especial que justificou a
eliminação daqueles que não se enquadravam no que se entendiam
serem as legítimas necessidades sociais.
Não me parece oportuno, para dizer o mínimo, que nós filósofos
latino-americanos continuemos a promover avaliações e realizando
juízos de valor cujo padrão operativo forneceu justificativa para o
sofrimento de milhares de seres humanos. Certamente que as
limitações epistemológicas de uma capacidade crítica transcultural
podem ser logicamente eliminadas. Porém, as danosas implicações
políticas e morais contidas no dispositivo crítico me parecem muito
explícitas para corrermos o risco de perpetuar esse tipo de discurso.
Além dessa atitude ser uma imprudência, observe que esse
discurso historizador e crítico não produziu uma transformação
europeizante plena no nosso modo de vida latino-americano, mesmo
após séculos de uma influência monopolista. Ele já foi, inclusive,
assimilado em nosso ambiente como um discurso redundante e
moralista: aquele que não é capaz de produzir resultados efetivos.
Assim, para a filosofia, a questão que se coloca é de manter ou não
o discurso crítico padrão, que tem se mostrado ineficaz do ponto de
vista de sua capacidade comunicativa com a sociedade latino-americana
ou mover-se na direção dos elementos não históricos que tem nos
constituído de modo a articular-se de alguma maneira com eles.
Defendo essa segunda direção como sendo a mais promissora.
38 • Filosofia Latino-Americana

A FILOSOFIA LATINO-AMERICANA DA SUPERFICIALIDADE

Pela exposição anterior, a situação que se apresenta é a seguinte:


há um modo de vida latino-americano não histórico e um discurso
filosófico moralizante que o critica em função de sua carência de
história ou de autoconsciência. Esse discurso, sob suas várias formas
civilizadoras, tem se mostrado incapaz de produzir uma interação
efetiva com a América latina e tem redundado naquele sentimento de
inadequação. Por isso, aquela metáfora da vestimenta inapropriada ao
corpo ainda nos descreve muito bem. Para superar a distância entre o
discurso filosófico latino-americano e o que temos sido, proponho
desenvolver uma aproximação com relação a esse último.
Claro que essa aproximação não pode se operacionalizar do ponto
de vista filosófico tradicional, isto é, do ponto de vista de nossa
formação europeia historicizante. Já sabemos que procedendo dessa
maneira não conseguiremos contornar as limitações críticas da filosofia
europeia e terminamos exatamente onde começamos: pelas indicações
de nossas supostas carências, pela indicação de nossa situação não
histórica. Portanto, torna-se necessário abandonar o ponto de vista
tradicional da filosofia europeia para articular um discurso que seja
pertinente com aquilo que a América Latina tem sido.
A adoção desse ponto de vista filosófico não crítico em relação à
nossa situação não histórica corre, de saída, um enorme risco: o de
adotar uma perspectiva endógena. Trata-se da possibilidade de
saltarmos para fora dos mecanismos da velha Europa para cairmos
dentro da jovem América Latina e substituir os critérios de avaliação
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 39

históricos pelos critérios não históricos. Assim, terminaríamos tecendo


elogios à especificidade latino-americana, ao nosso modo de ser
específico. Entretanto, isso se constituiria apenas em outra forma de
redundância nesse caso, a redundância do elogio que viria a substituir a
redundância da crítica.
O que me parece necessário é que abandonemos o posicionamento
crítico a partir da história a respeito da não história. Porém, isso deveria
ser realizado sem resvalar para um elogio da não história a partir da não
história. Nesse último caso apenas inverteríamos a tautologia.
A redundância e a falta de pertinência dos julgamentos de matriz
europeia acerca da nossa situação latino-americana me parecem
bastante evidentes. Então, deveríamos retirar nosso pé de apoio desse
dispositivo redundante. Entretanto, isso por si só já exige um enorme
esforço, pois se trata da neutralização da educação filosófica que temos
recebido da Europa. A anulação desse véu crítico europeu nos permitirá
uma aproximação não moralista com nossa própria maneira de estar
sendo.
Tem ocorrido um movimento de alinhamento intelectual quase
automático entre a constatação de nossa maneira não histórica de ser e
a adoção de uma posição moralista, indicando o que deveríamos ser: um
mundo histórico e consciente de si. Isso está presente, por exemplo, no
deslocamento realizado por Zea (1974) entre a constatação acerca de
nossa situação efetiva não histórica e a defesa da necessidade de nos
assimilarmos à Europa —como indiquei acima. Ele é apenas um dos
expoentes de um grande movimento de alinhamento com a história
europeia.
40 • Filosofia Latino-Americana

Em função desse tipo de alinhamento automático, não temos


conseguido desenvolver uma compreensão mais apurada da
especificidade de nossa não história. E isso só parece estar ocorrendo
em função de não cogitarmos que possa existir uma lógica específica em
operação na maneira de estar sendo latino-americana. Com isso quero
dizer que tem faltado à filosofia latino-americana atenção ao modo de
ser superficial que temos adotado: aquela disposição dos valores e
crenças sem relações estabelecidas de profundidade, aquela maneira de
ser contígua, ilustrada pela metáfora da vestimenta que não se assenta
bem ao corpo e que não desenvolve relações orgânicas e integradoras
entre seus elementos culturais.
A possibilidade de construirmos uma “tangente gnoseológica”
(Mosello, 2000, p. 123) com relação ao ocidente moderno não parece
frutífera. Isso porque essa possibilidade também afirma que a filosofia
latino-americana deve ser uma forma de posicionar-se com relação ao
ocidente, aproveitando de alguma forma aquilo que já foi produzido por
ele. Espero ter tornado evidente que isso não é possível na medida em
que a superficialidade não se constitui como uma forma tangencial da
profundidade. Ela é simplesmente a disposição de conteúdos culturais
sob outra forma. Então, não faz sentido afirmar que “hay que intentar
hacer simplemente filosofía, que lo americano se dará por añadidura”
(Zea, 1989, p. 44) porque o cultivo da história não nos tornará aptos a
compreender a não história. Afinal, capacitarmo-nos para a
profundidade não nos habilita a compreender e a tratar com pertinência
da superficialidade.
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 41

O modo de ser que temos adotado não é uma modalidade histórica,


para o bem ou para o mal. Portanto, a filosofia latino-americana não
pode ser um capítulo da filosofia europeia, se pretende comunicar-se
com o que temos sido. É verdade que os conteúdos históricos podem ser
absorvidos sob uma forma não histórica. Aliás, essa é a forma
predominante em que essa relação tem se estabelecido: por meio de uma
transposição da profundidade europeia em superficialidade latino-
americana. Trata-se de reconhecer que aqui “la cultura transpuesta de
Europa se transforma en exterioridad” (Silva, 1993, p. 37). Entretanto,
essa interpretação superficializante não é uma mera tangência com
respeito ao dispositivo histórico. Afinal ela opera uma modalidade de
preservação do conteúdo histórico sob uma forma não histórica ao
promover uma “recodificación semántica y funcional” (Guirin, 2001, p.
40) dos elementos que interpreta. Uma forma tangencial só poderia ser
alguma forma de apropriação histórica da América Latina. O que tem se
estabelecido como uma relação latino-americana com a Europa e sua
história é essa recodificação superficializante, essa deshistoricização da
história.
Tradicionalmente os filósofos possuem uma aversão à
superficialidade. Essa ojeriza pode ser explicada se considerarmos que
há 2000 anos a filosofia ocidental tem lutado de maneira hegemônica
contra ela. Estamos lidando com hábitos intelectuais já sedimentados
em função de nossa educação europeia. Entretanto, a familiaridade com
os mecanismos típicos que permitem estruturar uma forma de vida
superficial é um benefício que já possuímos em função de sermos
latino-americanos. É bem verdade que essa familiaridade não pode
42 • Filosofia Latino-Americana

gerar automaticamente uma atitude compreensiva em função da


interferência daqueles hábitos milenares. Algum esforço é necessário se
queremos aproximar a filosofia latino-americana da maneira como
temos sido.
Chamo a atenção para o fato de que esse deslocamento para o ponto
de vista da superficialidade não se constituir como uma necessidade de
alinhamento da filosofia com um substrato ontológico. Ele é somente
uma aproximação do discurso filosófico com aquilo que temos sido, de
forma a tornar a filosofia pertinente para a América Latina. A filosofia
latino-americana da superficialidade promove, portanto, apenas um
ajuste de pertinência que pode retirar o discurso filosófico padrão
acerca da América Latina de sua situação atual de redundância cultural.
O deslocamento para a perspectiva da superficialidade não deve
cegar nossos olhos para aquilo que vier a se apresentar como deficiência
desse modo de vida. Afinal, a filosofia é uma atividade que se caracteriza
também por gerar relatos alternativos aos que são hegemônicos. O
problema é que a distância existente entre a crítica histórica e o que
temos sido transformou essa crítica em uma atitude moralista e inócua.
A base da crítica europeia, o mundo histórico, encontra-se tão distante
do nosso modo de ser latino-americano atual que a filosofia converteu-
se em uma atitude inoperante e culturalmente irrelevante. Sua
linguagem tornou-se tão distante de qualquer possibilidade real de
interferência que ela naufragou em uma inaptidão comunicativa. Ela
nada consegue dizer de pertinente acerca da América Latina, porque o
que afirma é a necessidade do sacrifício e da anulação dessa maneira de
ser: a história, o ponto de vista que ela tem adotado e do qual não
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 43

pretende abrir mão, só pode se constituir pela eliminação de nossa não


história.
Uma filosofia latino-americana da superficialidade é, portanto, um
discurso filosófico que busca articular-se com o que temos sido. Assim,
ela é uma tentativa de agregar pertinência ao discurso filosófico latino-
americano e torná-lo significativo dentro do contexto cultural
fornecido por nossa maneira de ser. Isso não significa promover aquela
identificação entre a atividade filosófica e nosso modo de vida existente
o que significaria o fim da filosofia como responsável por algum
discurso alternativo. Isso significa retirar a filosofia da distância
estratosférica da história europeia e trazê-la para uma distância em que
a comunicação com a América Latina se torne possível. Para tornar-se
latino-americana, a filosofia deve encarar a possibilidade de um modo
de vida superficial. Não há como a filosofia se tornar culturalmente
relevante para a América Latina sem se deixar contaminar-se pela
superficialidade que temos sido.

Publicado originalmente em Cuadernos de Filosofia


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2
A RACIONALIDADE DO BRASIL

TEMPO E ESCRITA

Antes de iniciar a caracterização da maneira específica como o


Brasil tem utilizado a racionalidade, é necessário esboçar algumas
características do modo como ela tem sido concebida no ocidente.
Somente após esse esboço geral será possível verificar as diferenças
entre a racionalidade ocidental e a brasileira.
De acordo com nossa concepção habitual do tempo, aquela que nos
serve de referência no dia-a-dia, nós o consideramos como uma das
dimensões essenciais da vida humana. Isso significa que não
poderíamos nos compreender de maneira apropriada senão quando nos
representamos como seres imersos na condição temporal. De acordo
com essa forma de pensar, qualquer vida humana só faria sentido na
medida em que pudesse ser retratada como um tipo de fenômeno que
ocorre no tempo. Assim, uma pessoa que não se representa como
localizada no tempo estaria destituída de algo fundamental para sua
própria compreensão e seria dotado de uma espécie de falsa consciência
sobre si mesmo.
Entretanto, sabemos que a experiência concreta da temporalidade
não é homogênea. Aquilo que é vivido como tempo pelas pessoas em
diferentes situações não significa a mesma coisa (Eliade, 1992). Mesmo
nesse caso, em que levamos em conta a variabilidade da experiência
temporal, ainda assim ela parece ser fundamental para que a pessoa
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 47

adquira uma representação adequada de si mesma. A centralidade da


experiência do tempo para a autocompreensão parece ser válida mesmo
se se concebe a temporalidade como uma estrutura circular, como
ocorre em algumas religiões orientais (Bergson, 1939; Zimmer, 1986).
Isso implica que a autorrepresentação deveria incluir tal circularidade
como um de seus componentes essenciais.
Como parece haver uma conexão íntima entre temporalidade e
autorrepresentação ou autopercepção, podemos rastrear a ocorrência
do surgimento de uma experiência ou percepção temporal em
particular por meio de alterações no modo como nos compreendemos.
Nesse caso, essa seria um indício daquela. Quando consideramos o
ponto de vista tradicional segundo o qual a história tem início com o
advento da escrita, somos levados a pensar que existe algo em comum
entre a escrita e o tempo. E, de fato, há algo em comum entre eles que
interessa diretamente a esse texto.
A escrita cria ou fortalece a possibilidade de uma leitura temporal
linear e unidirecional do significado. Ela reforça a possibilidade de que
um discurso seja analisado de uma perspectiva que supõe que haja uma
unidade dada de sentido. A suposição dessa unidade nos leva a acreditar
que as partes de um discurso escrito fazem parte de um mesmo
conjunto. A mesma suposição aplicada ao tempo nos conduz à noção de
que vários instantes diferentes se articulam como momentos de uma
mesma temporalidade. Assim, ao lermos um discurso, podemos fazer a
análise retroagir ou avançar da introdução às conclusões, por exemplo,
supondo sempre que se trata de uma mesma totalidade de sentido sobre
a qual as partes estão dispostas e com a qual elas se articulam.
48 • Filosofia Latino-Americana

Na verdade, a própria disposição psicológica para a leitura já é um


efeito não só da suposição daquela unidade como também da direção em
que o sentido se apresenta: do início para o fim. Por isso, avançamos na
leitura em uma única direção, da introdução às conclusões e não em
várias direções diferentes e simultâneas ou em uma direção inversa –
do fim para o início. Não é ocasional que tenham sido realizados ensaios
artísticos que alteraram essa ordem linear da leitura e da compreensão
de um texto (Cortazar, 2009). Tais alternativas oriundas do campo da
arte só fazem sentido dentro de um ambiente cultural em que
predomina uma disposição psicológica unidirecional para decodificar
textos. Só nesse contexto essas alternativas adquirem uma função –
enquanto destacam a lógica predominante em função da oposição que
geram.
A leitura típica que realizamos nesse ambiente cultural letrado é
guiada pelo princípio geral de se submeter o sentido a uma expectativa
semântica unitária, de tal maneira que nenhuma parte possa se mostrar
inconsistente com o todo. Ou seja, por meio dessa leitura o texto é
interpretado como estando subordinado à exigência de unidade de tal
forma que cada parte se submete a uma mesma estrutura de significado,
enquanto adquire e exerce sua função de parte.
O que é relevante observar aqui é que, diferentemente de uma
narrativa oral cuja parte inicial já mergulhou no esquecimento por
ocasião da audição do seu desfecho, as partes de uma narrativa escrita
permanecem disponíveis para inspeção mesmo após o seu
encerramento. A escrita possibilita um movimento de idas e vindas, de
comparações e confrontos internos, submetidos a um mesmo padrão
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 49

unitário que se constitui através da própria leitura (Havelock, 1996;


Silveira, Cervi e Krewer, 2000).
Ao atuar dessa forma, a leitura exerce uma força unificadora sobre
o sentido do texto, jungindo as partes que o compõem – e que passam a
compô-lo de maneira ainda mais intensa em função desse movimento
de articulação que se estabelece. Ao adotar uma disposição psicológica
baseada na identificação de uma mesma unidade de sentido reforça-se
a demanda por textos cada vez mais unificados, mais organicamente
articulados. Isso significa que ao adotarmos uma orientação unitária de
leitura estamos fortalecendo também um padrão de qualidade e um
critério de valor para qualquer texto escrito. Podemos entender essa
disposição psicológica como um efeito produzido sobre os indivíduos
por uma cultura letrada.
É justamente essa disposição baseada em uma unidade
articuladora da diversidade que o tempo possui em comum com a
escrita. A história, compreendida como uma narrativa composta por
vários trechos menores, consiste em uma estrutura que articula suas
partes sob a exigência da unidade. O tempo único é aquilo que nos
permite um deslocamento intelectual – na leitura ou na experiência do
mundo – para frente e para trás. Ele permite definir uma localização
precisa, como em uma viagem em que sempre podemos saber onde
estamos em função de havermos adotado como referência um
parâmetro específico.
O tempo e o sentido de um texto unificados garantem que viajamos
sempre em uma mesma dimensão. Ambos impedem que saltemos daqui
para lá sem uma direção perceptível e sem condições de nos
50 • Filosofia Latino-Americana

identificarmos contra um pano de fundo homogêneo. Não é ocasional


que a consciência já tenha sido definida como a possibilidade de viajar
no tempo (Tulving, 1985). Observe que a capacidade de nos
identificarmos individualmente é operada justamente pela disposição
de realizar uma viagem para frente e para trás supondo uma unidade
fundamental sobre a qual deslizamos.
O que podemos notar até aqui é que nem a obtenção de sentido em
uma cultura letrada nem a experiência do tempo são experiências de
deslocamentos em direções aleatórias, em saltos para qualquer lado.
Ambos implicam em operações que geram processos de unificação de
uma multiplicidade que estaria originalmente dispersa. Interessa-me
destacar aqui, sem a necessidade de uma discussão exaustiva sobre os
detalhes, uma orientação geral para a produção de sínteses igualmente
presente nessas duas formas de experiência. Assim, tanto na maneira
como dispomos eventos particulares no interior de uma mesma história
como no modo como buscamos apreender o sentido de partes de um
texto percebemos a presença de uma tendência geral para a síntese e
para a unidade.

RACIONALIDADE E MONOTEÍSMO

Esse padrão de busca por unidade, essa propensão para a produção


de sínteses, é típico de todas as narrativas históricas e também dos
padrões cognitivos produzidos pela cultura letrada. Na verdade, esse
padrão sintetizador faz parte dos requisitos fundamentais da
racionalidade humana. Quando os primeiros filósofos ocidentais
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 51

inauguraram uma investigação racional sobre a natureza, se


perguntando sobre a origem comum de todas as coisas, o que faziam era
pensar com base na suposição de que a diversidade do mundo poderia
ser compreendida por meio de uma unidade subjacente (Kirk, Raven e
Schofield, 2007). É essa orientação para a unificação do múltiplo que faz
parte da caracterização da racionalidade.
Parece óbvio que essa suposição geral é a mesma que fazemos
quando tentamos compreender o sentido de um texto ou quando
investigamos os processos históricos à procura de sua lógica subjacente.
Em todos esses casos, procuramos a unidade ou racionalizamos a
diversidade. De fato, todas essas iniciativas (e certamente muitas
outras) supõem o mesmo padrão de operações orientadas para a
obtenção de um elemento que seja capaz de fornecer unidade ao
conjunto de elementos com os quais estamos lidando, sejam trechos de
um texto, eventos temporais isolados ou seres particulares que
supomos fazerem parte de uma totalidade.
A busca por um princípio, seja ele de que tipo for, é uma tentativa
de fornecer unidade a um conjunto de elementos que possui
inicialmente uma aparência caótica ou desordenada. Essa procura
implica na adoção de uma postura racional diante desse conjunto de
elementos dispersos. Com efeito, a racionalidade expressa um
procedimento de unificação, de conexão de elementos sob uma mesma
ordem de valores, de tal maneira que essas partes passem a ser
efetivamente compreendidas como partes. Estritamente falando, as
partes só se tornam partes por meio dos procedimentos de
racionalização que as submetem a um requisito de unidade. Antes de
52 • Filosofia Latino-Americana

serem submetidas a tal requisito elas não são partes, mas meros
elementos desconectados uns dos outros.
Um esclarecimento terminológico se faz necessário nesse ponto.
Não é necessário admitir aqui que a racionalidade seja exclusivamente
um tipo de operação cognitiva caracterizada pela introdução da unidade
como um requisito fundamental do seu procedimento típico. Porém,
tudo indica que essa tendência a produzir sínteses seja, de fato, um de
seus componentes básicos. Então, para os objetivos desse texto só é
necessário reconhecermos que a racionalidade também envolve
procedimentos orientados para a produção de sínteses.
Além dessa precaução, também parece mais prudente nos
referirmos a diversos graus de intensidade de unificação existentes nos
processos de racionalização. Isso torna possível falar de processos que
seriam caracterizados por graus diferentes de exigência com respeito à
unificação dos elementos em questão em cada caso. A expressão parece
mais adequada do que tratar da racionalidade como se fosse um golpe
súbito a partir de uma situação hipotética totalmente destituída do
requisito da unidade. Afinal, parece pouco crível uma situação marcada
por pelo grau zero de racionalidade, que funcionaria como suporte para
o início de operações de síntese.
Nesse último caso, meramente hipotético, teríamos que
compreender a racionalidade como um evento discreto que não possui
graus e teria emergido como um evento súbito nos procedimentos
explicativos utilizados pelos seres humanos. Dessa maneira, parece
mais razoável nos referirmos a uma gradação nos processos de
racionalização na mesma proporção em que se intensificariam as
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 53

exigências cognitivas por unificação de uma variedade originalmente


dispersa de fenômenos.
Podemos observar a presença desses graus de racionalização nas
diferentes formas de síntese que são geradas a partir de um mesmo
conjunto original de fenômenos. Se tomarmos um texto qualquer como
exemplo, sabemos que seu sentido pode ser resumido a uma página, a
um parágrafo, a uma frase e talvez a duas ou três palavras-chave. Essas
várias camadas de unificação do sentido são, na verdade, diferentes
graus de racionalização a que se pode submeter um conteúdo específico.
Assim, falar de processos de racionalização parece mais adequado do
que afirmar a ocorrência da racionalidade como um evento súbito que
ocorreria sobre uma situação que jamais teria sido antes submetida à
síntese.
Como se tratam de processos em andamento, podemos observar
como eles são tensionados por diferentes forças. Há eventos culturais
que exercem uma tensão clara na direção de se valorizarem a adoção de
procedimentos mais racionais. O advento do monoteísmo certamente
propiciou a intensificação das exigências por racionalidade, na medida
em que criou um ambiente cultural propício à ação de forças
explicativas centrípetas.
A consolidação de um ambiente religioso unificado cria condições
para a ampliação dos demais processos de síntese que podiam, antes
disso, ser experimentados como supérfluos. Nesse caso específico, do
impacto cultural do monoteísmo, precisamos nos remeter àquela
situação em que a religião ocupava o centro da cultura e exercia
influência decisiva sobre outros aspectos da vida humana, como a
54 • Filosofia Latino-Americana

moralidade, a política, as atividades produtivas, a arte etc. (Hegel, 1984).


Sem isso se torna difícil reconhecer a importância da religião dentro
dos diversos aspectos da vida humana e a força que ela podia exercer
sobre as demais esferas da cultura.
Dentro dessa circunstância, que certamente não existe mais, seria
de se espantar se o advento do monoteísmo não tivesse impulsionado os
procedimentos explicativos na direção de sínteses mais intensas, isto é,
de formas mais racionais de compreensão do mundo. A ordenação do
mundo sob uma autoridade máxima e exclusiva, um único princípio
explicativo, não só dotado de sentido, mas fornecedor de sentido para
todas as instâncias da vida, certamente promoveu a necessidade de
submissão da diversidade à unidade. Compreender o significado de uma
parte do mundo equivalia a ser capaz de conectá-la com os desígnios
divinos submetidos a uma mesma autoridade.
Lembremo-nos que a característica marcante do monoteísmo é o
fato de que nele Deus aparece como um ser destituído de biografia. Em
todas as religiões monoteístas não se narra as aventuras de Deus antes
da conquista do poder supremo, sua origem ou dados de sua vida
pregressa (Kaufmann, 1989). Isso ocorre nas narrativas monoteístas
porque se entende que Deus é incondicional e, como tal, não alcançou
sua posição por meio de estratégias ou lutas contra outros deuses
inimigos. Ele é o que é e, como tal, ocupa o lugar que é seu na ordem das
coisas, sem a necessidade de tê-la conquistado. Dessa maneira, Deus se
apresenta como uma fonte de sentido incondicional – e não como um
ser que chegou a obter seu poder através da força ou da inteligência.
Nesse contexto cultural, a necessidade dos processos de unificação
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 55

adquire maior vigor, justamente porque ela não depende de


circunstâncias particulares, mas toma impulso a partir de uma ordem
superior e incondicional de valores.
É claro que uma religião politeísta, como a grega, estava pouco apta
para levar adiante um processo intenso de racionalização. Ela
certamente não estava destituída de um impulso unificador em função
da hierarquia existente no mundo religioso, subordinado ao poder
predominante de Zeus. Entretanto, a representação típica do mundo
religioso grego é a de um conflito entre várias referências morais que
não se encontravam devidamente sintetizadas sob uma unidade
imperiosa (Vernant, 1990).
Dentro desse ambiente cultural politeísta as tragédias gregas
relatam situações de conflito em que os seres humanos não podiam
obter referências morais exclusivas, de forma a poderem evitar o
sofrimento ao longo da vida. O que se representa nelas são situações em
que qualquer das opções de comportamento disponíveis desencadeia
consequências desastrosas para os seres humanos. Isso porque eles se
encontram incapacitados de se orientar em mundo composto por
referências múltiplas e em permanente estado de choque.
Se o mundo não possui unidade, os seres humanos não têm de onde
retirar um sentido que seja capaz de orientar sua existência dentro dele.
Embora existisse uma hierarquia naquele mundo politeísta, não havia
exclusividade por parte de uma referência moral capaz de garantir a
unidade, seja na ação, seja no pensamento. Ao contrário, o sofrimento
aparece como uma consequência quase inevitável dos acontecimentos,
56 • Filosofia Latino-Americana

sem que seja dada ao homem a oportunidade efetiva de 56ortu-lo por


meio da adoção de uma única referência moral (Sophocle, 1993).
O advento da filosofia na Grécia Antiga pode ser identificado, então,
como respondendo à necessidade cultural de lidar com um ambiente
cultural fraturado (Lima Vaz, 1981) por diversas referências. Ela seria
responsável por recompor os elementos que aparecem em choque na
situação cultural originária e fornecer-lhes uma unidade. O importante
aqui é destacar o componente existencial envolvido nesse processo de
racionalização: os procedimentos adotados pela filosofia funcionam aí
como uma solução unificadora que permite eliminar o sofrimento
presente na experiência de um mundo fragmentado em múltiplas
referências morais. Eles visam fundamentalmente soldar os fragmentos
culturais submetendo-os a uma nova instância superiora de valores.
Os processos de racionalização são, nesse mesmo sentido, um
bálsamo para uma situação trágica em que o ser humano não pode obter
referências sólidas. Tal processo não vale por si mesmo. Ele só vale na
medida em que libera o ser humano das dificuldades experimentadas
diante dos fragmentos culturais. Observe, entretanto, que a própria
experiência negativa diante dos fragmentos já supõe algum grau de
racionalização. Afinal, sem a sua atuação os elementos díspares não
seriam sentidos como problemáticos. Já há aqui, nessa fase inicial em
que a multiplicidade é experimentada como um problema, uma evidente
demanda por uma síntese. É essa necessidade por unidade que produz o
sofrimento diante dos fragmentos e não os fragmentos por si mesmos.
É somente tendo por base a necessidade de unidade que a fragmentação
torna-se dolorosa e problemática.
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 57

Daqui se pode notar a contribuição do monoteísmo no que diz


respeito à adoção de um alto padrão de unificação nos procedimentos
de explicação do mundo e, portanto, para a racionalização. Ele cria as
condições culturais necessárias para fazê-la deslanchar, na medida em
que fornece a visão e a experiência de um mundo ordenado sob uma
autoridade exclusiva. Afinal, se só há um Deus verdadeiro, então o
mundo, apesar de sua aparência caótica, possui um sentido. E é esse
sentido único que permite ao ser humano traçar uma rota com direção
certa, adotar um estilo de vida ajustado à ordem superiora e a um
padrão moral referendado por princípios cósmicos. Ele passa a ser um
elo da grande cadeia do ser (Taylor, 2010). Tem-se aqui, como resultado
da contribuição entre o monoteísmo e os processos de racionalização, a
possibilidade de alinhar o comportamento humano a padrões morais
superiores – o que, na prática, o retira daquela impossibilidade trágica
de se orientar no mundo que caracterizava o politeísmo grego.

A EXPERIÊNCIA NÃO HISTÓRICA DA HISTÓRIA

O Brasil ocupa uma posição ímpar quando comparado com esses


movimentos de intensificação dos processos de racionalização que tem
caracterizado o mundo ocidental. Esses processos permitem identificar
uma tendência clara de racionalização crescente – seja do ponto de vista
religioso (do politeísmo ao monoteísmo), seja do ponto de vista
cognitivo (o fortalecimento de uma cultura letrada e a consequente
adoção da unidade de sentido como padrão avaliativo), seja do ponto de
vista explicativo (a consolidação de uma temporalidade única), seja do
58 • Filosofia Latino-Americana

ponto de vista científico (a afirmação de leis gerais do universo) etc. Isso


não exclui mesmo as perspectivas que identificam a falência relativa
dessa tendência (Lyotard, 2002). Como críticas, elas confirmam
justamente a existência de uma tal tendência.
Tenho defendido a tese de que o Brasil não é um país ocidental
(Silveira, 2018) justamente porque não creio que ele esteja alinhado com
esse padrão geral de racionalização crescente – que equivale à
ocidentalização ou à modernização. Aqui apenas posso sumarizar essa
afirmação visando fornecer aos leitores os elementos necessários para
destacar a maneira como o país tem lidado com a racionalidade e,
portanto, com esses processos de síntese que parecem caracterizar o
andamento dos valores no ocidente nos últimos séculos.
Passo a referir aqui então, muito sumariamente, ao caráter não
histórico da existência do Brasil. Amaral me parece ter sido um dos
primeiros a ter afirmado explicitamente essa face do país. Ele afirmou
que

Dentro da nossa agricultura actual se encontram todas as phases que ella já


viveu no Brasil, como dentro deste século ainda se vivem, sob o nosso céu,
todos os outros séculos. No Brasil, o tempo não se mede por séculos, nem
por annos: mede-se por kilometros. Longe dos principaes centros, longe do
progresso. (sic) (Amaral, 1939, p. 53).

Observe como aquela unidade dos processos históricos, típica do


ocidente, cede terreno à lógica espacial da justaposição de elementos
heterogêneos. Ou seja, quando nos movemos de uma mentalidade
histórica para dentro do Brasil, notamos que nesse último os elementos
se ordenam de uma forma não temporal – ou, se preferirmos, não
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 59

convencionalmente temporal. Afinal, se o tempo é medido por


quilômetros com relação aos centros mais progressistas, ele não segue
uma lógica temporal tradicional. Mais do que isso: os momentos
temporais estão dispostos no Brasil de maneira espacial, uns ao lado dos
outros – o que é diferente de estarem organizados uns após os outros e,
por isso, não poderem coexistir.
Bastide referiu-se igualmente à “justaposição de épocas históricas”
existente no Brasil.

Ao mesmo tempo, porém, que êstes fragmentos do passado se justapõem,


também se misturam [...] ao presente e ao impulso para o futuro. [...] não é
de espantar que os sociólogos brasileiros tenham caracterizado o Brasil
como reunião de elementos antagônicos e harmonização de contrastes
(Bastide, 1971, p. 123).

Embora as palavras sejam diferentes, se afirma aí que o cerne da


maneira como o Brasil dispõe dos momentos de sua vida é não histórico.
Na verdade, se avança um pouco mais ao caracterizar a feição cultural
brasileira como uma harmonização de contrastes, certamente já
levando em consideração o fato do tempo ter se estilhaçado, rompendo-
se a conexão unitária que organizava os momentos em uma ordem
propriamente sucessiva.
Do ponto de vista das consequências dessa ausência de
historicidade, pode-se detectar uma contínua interrupção de um ponto
de vista unificado. Assim, Capistrano de Abreu (2000, p. 214) chama a
atenção para o aspecto da descontinuidade das ações no Brasil. Segundo
ele “Um indivíduo podia tentar uma empresa e levá-la a bom êxito; com
a sua ausência ou com a sua morte perdia-se todo o trabalho, até vir
60 • Filosofia Latino-Americana

outro continuá-lo passados anos, para afinal colher o mesmo resultado


efêmero”. Isso expressa a maneira não histórica de se realizar as ações
humanas, de tal forma que uma delas não se conecta com a outra,
passando a fazer parte de uma linha sucessória unificada.
Disso também se pode apreender o pleno sentido da afirmação de
Tavares Bastos (1996, p. 396) de que no Brasil “tudo está por fazer” em
função do espírito predominante de descontinuidade que jamais dá por
encerrada uma etapa ou por sedimentada uma camada histórica. Do
ponto de vista prático, não se pode perceber que exista um mesmo
processo em execução no Brasil, de tal forma que por toda parte uma
mesma transformação esteja se operando com um objetivo identificável.
Há certamente transformações em curso, porém elas não
compõem uma totalidade perceptível, não passam a sensação de um
mesmo processo em andamento ou com uma série de eventos dotados
de uma direção identificável. O que existe é a interrupção, de tal forma
que cada elemento se esgota em si e não gera um efeito contínuo além
de si mesmo. Poderíamos mesmo dizer que não há consequências, na
medida em que um evento não leva a outro, não se articula com seu
sucessor e não inaugura uma relação histórica.
Lévi-Strauss (1995, p. 309) afirmou que “a noção de tempo não tinha
lugar no universo em que eu penetrava” referindo-se ao contínuo
adiamento da jornada de sua caravana de exploração no Mato Grosso.
Na verdade, sua caravana avançava em um ritmo não histórico. Os
Agassiz, também quando em viagem de estudos pelo Brasil,
descreveram o que lhes pareceu nosso “pitoresco desmantelo” (Agassiz
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 61

e Agassiz, 2000) dado o aspecto geral de inacabamento e imprevidência


que dominava o país durante o Segundo Império.
Esse quadro parece-me suficientemente robusto para caracterizar
uma tendência da cultura brasileira a não ser guiada por um ritmo
histórico. Claro que isso possui muitas e diferentes implicações. Elas
perfazem um modo de vida não histórico sobre o qual, em minha
opinião, os intérpretes do Brasil pouco têm se detido. Acredito que há
muito mais a dizer sobre essa situação cultural do que eu seria capaz
nesse texto. Embora essa afirmação seja um recurso retórico já muito
gasto, creio que ela tem todo sentido aqui. Assim, me concentrarei
somente naquilo que é imprescindível ao meu objetivo aqui.
Esse ritmo de vida não histórico pode levar algum intérprete
desavisado a imaginar que a cultura brasileira desenvolveu uma
maneira oposta de viver com relação ao ritmo histórico da velha Europa.
De fato, o ritmo é outro, como parecem evidenciar as referências acima.
Porém, o nosso ritmo não é o oposto do ocidental.
O Brasil não é um país que tem evitado ou resistido ao ritmo
histórico e suas exigências racionalizadoras. O que ocorre, na verdade,
é que o ritmo histórico é experimentado e adquire vigência de acordo
com nosso próprio ritmo – que é não histórico. Então, o que está em
curso no Brasil é uma experiência não histórica da história.
O que tem se passado é que o Brasil não foi efetivamente inserido
no ocidente por ocasião da colonização europeia. Ao contrário, o Brasil
inseriu o ocidente em si mesmo. Há uma brutal diferença nessa situação
em que trocamos a voz passiva – da colonização – pela ativa – em que o
Brasil é um agente. Por meio dessa apropriação brasileira do ocidente,
62 • Filosofia Latino-Americana

aquelas demandas racionalizadoras foram enclausuradas em um


sistema de referências que reduziram sua eficácia cultural original.
Assim, embora a história se faça presente, ela não dispõe do mesmo
vigor que possuía no contexto europeu.
Nesse transplante do aparato sintetizador do ocidente para o
Brasil, sua energia original foi enclausurada e submetida a outros
requisitos culturais. É óbvio que o Brasil tem sido influenciado pelas
forças históricas, pelas energias racionalizadoras, inclusive por sua
participação em uma situação internacional em que prevalece esse
conjunto de valores. Porém, e essa é a questão essencial, o ocidente não
dispõe aqui das condições para florescer plenamente e só exerce sua
força de maneira circunstancial e muito restrita.
Com efeito, no Brasil não está em operação uma negação ou
oposição aos valores ocidentais. Isto é, não se trata de que a cultura
europeia chegue ao Brasil com seu conteúdo distorcido por eventuais
efeitos da transposição. A situação é um pouco mais sutil. Os valores
ocidentais exercem seus efeitos em situações específicas e geram
resultados que, de fato, têm modernizado o país. Entendo que a
modernização é uma forma de ocidentalização. Porém, o Brasil não tem
se tornado efetivamente ocidental e moderno em função do impacto
produzido pela assimilação desses valores. Isso ocorre porque o país tem
aceitado e absorvido tais valores apenas na proporção em que restringe
sua dimensão e seu impacto cultural original.
Por meio dessa absorção, o Brasil anula a energia original daqueles
valores. Ele o faz sem resistência e de maneira suave e branda. Ele
derrete o metal duro e transforma-o em um magma líquido e
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 63

manipulável segundo uma maneira não histórica de ser. Nesse processo


de absorção não se apresenta nenhuma relação de resistência, exclusão
ou aversão ao ocidente. Trata-se antes de uma anulação afetuosa e
receptiva.
No contexto nacional está em operação um tipo de receptividade
que submete os valores do ocidente, em função da abundância das
próprias disposições brasileiras e não por resistência e negação ao que
é exterior ou por limitação e defesa contra o que não somos. Não se
notam nesse processo aqueles gestos típicos de defesa e sensação de
incompatibilidade que são próprios de qualquer mecanismo de oposição
tradicional.
Eu diria que esse processo de recepção e de anulação relativa,
levado a cabo pelo Brasil diante do ocidente, é comparável à disposição
amorosa que aceita o que lhe é diferente. A metáfora é pertinente desde
que se considere que se trata de uma disposição amorosa brasileira ao
que lhe é diferente, porém exercida segundo seu próprio modo de ser.
Assim, não se trata de produzir uma negação da história, mas de
experimentar a história no interior de um modo de ser não histórico.

A RACIONALIDADE DO BRASIL

Feito esse esboço da maneira pela qual o Brasil tem absorvido o


ocidente, passo a analisar o modo mais específico pelo qual ele se
relaciona com os processos de racionalização que caracterizei acima. Ou
seja, passo a tratar da forma como a racionalidade tem existido no Brasil
em função da absorção particular produzida por ele. Vimos que os
64 • Filosofia Latino-Americana

processos de racionalização tendem a gerar e/ou obter reforço em


disposições sintéticas, sejam elas religiosas, explicativas, cognitivas etc.
Já estamos em condições de perceber, em função do que já foi dito,
que tal absorção não ocorre de uma maneira tradicional – como
entendemos esse termo. Isto é, como mera transplantação de um
conteúdo a outro ambiente. A maneira peculiar pela qual os processos
de racionalização são absorvidos no Brasil é o que se pode denominar
de instrumentalização funcional da racionalidade. Isso porque o que de
fato está em operação é uma instrumentalização brasileira dos
mecanismos sintetizadores do ocidente.
Se o padrão de síntese unificadora estivesse agindo sobre o país
com sua energia original, ele já teria adquirido uma feição histórica e
todos aqueles elementos típicos da interrupção e da falta de
continuidade já teriam se extinguido ou, no mínimo, dando sinais
evidentes de que ingressam em uma temporalidade efetivamente
histórica. Como tudo indica que não é esse o caso, podemos afirmar que
ainda não somos históricos, nem tão cedo o seremos.
Quando transpomos tal afirmação acerca da historicidade para os
processos de racionalização, resulta que também não temos sido um
país efetivamente racional. Isto não significa que temos sido um país
irracional e sim que esses processos são experimentados aqui de uma
forma tal que anula parte de sua energia unificadora original – seu
poder de síntese é obstruído em alguma medida. Por isso, parece
apropriado falar de uma instrumentalização funcional da racionalidade
em curso, que visa justamente absorver a racionalidade a partir de uma
disposição que não é propriamente racional.
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 65

Considerando-se como válida a identificação relativa que sugeri


entre a racionalização e os processos de unificação, veremos que isso
resultará na percepção de que a cultura brasileira tem se caracterizado
por gerar sínteses destituídas de hegemonia sistemática. Isso significa
que as operações de síntese produzidas nesse ambiente cultural não tem
sido capazes de chegar a níveis de concentração em que se possa obter
uma visão unificada e simples de um complexo de elementos. Ou seja,
as sínteses brasileiras não chegam ao ponto de excluírem a validade de
outras sínteses alternativas. Elas não são sínteses sistêmicas, aquelas
que se mostram capazes de se mostrar válidas para todo um conjunto
de elementos. Isso ocorre justamente em função de certa disposição
brasileira de não adotar posturas hegemônicas, já que isso exigiria a
afirmação de um único princípio como válido para toda a diversidade de
elementos em questão.
Sínteses são efetivamente produzidas nas nossas terras, há
processos de racionalização em todas as áreas da vida nacional. Porém,
a questão relevante é que esses processos de racionalização não
assumem o mesmo estatuto epistemológico de seus similares ocidentais
típicos. A diferença é que esses últimos visam sempre a obtenção de um
elemento sintético hegemônico, isto é exclusivo para um conjunto de
elementos. Nesse caso, a racionalização adquire um aspecto sistemático.
Por isso, ela é capaz de funcionar como uma unificação universal,
abrangente de todo o conjunto relevante. A racionalização ocidental
visa a subordinação absoluta da totalidade dos elementos pertinentes
em cada caso. Nesse sentido, observe que uma lei científica visa a
totalidade de comportamentos possíveis de determinados seres e não
66 • Filosofia Latino-Americana

alguns desses comportamentos em situações específicas. Ela tende à


universalidade estrita ou à racionalização sistemática.
Exemplos significativos para o Brasil a respeito do mecanismo de
instrumentalização funcional da racionalidade podem ser obtidos a
partir do exercício da função pública e da execução do direito, ambos
dispositivos europeus adaptados. Carvalho Franco (1983) analisou as
bases do processo de corrupção existentes nas relações políticas na
região de Guaratinguetá, no estado de São Paulo, no Século XIX. No
estudo sobre o exercício das funções públicas administrativas, a autora
afirma que

Viu-se que o próprio conceito de cargo público e o seu exercício foram


reelaborados instrumentalmente pelos membros do grupo local, passando a
ser definidos e usados conforme as normas e os propósitos seus. Assim
sendo, embora impostos de fora os novos modelos de organização
administrativa e embora tomadas as providências para garanti-los
praticamente, criando estímulos e controles de atuação de seus
funcionários, não se logrou produzir uma “moralidade” (correspondente
grifo meu) (1983, p. 151).

O que se descreve aqui, para esse local e circunstância, sumariza o


que venho denominando de instrumentalização funcional do sistema de
valores ocidentais pelo Brasil. Isso significa que nos processos de
assimilação dos dispositivos de poder e de administração pública
europeus ao Brasil ocorre a interferência de um agente que reelabora
esses mecanismos de acordo com seus próprios valores. Trata-se de um
agente porque ele efetivamente opera.
Exatamente o mesmo padrão de atuação de um agente que realiza
uma adaptação se estabelece no plano da execução da justiça, pois esta
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 67

estava ameaçada, antes de qualquer coisa, pela incapacidade dos jurados


utilizarem com propriedade os instrumentos de sua administração. Não
raro, escapava-lhes o jogo de prescrições técnicas que deveriam observar
no exercício de suas atribuições e enredavam-se na incompetência para
ajustar adequadamente as informações ao processo, o seu próprio juízo e os
requisitos formais a que deviam atender para tornar adequadamente
expresso e válido o seu veredito. Réus confessos saíram absolvidos, graças
a essas confusões (Carvalho Franco, 1983, p. 252).

A torção ou efeito instrumental exercido sobre os regulamentos


jurídicos europeus chega ao ponto de inverter aquilo que seria o
veredito proferido pelo corpo de jurados. O regramento original
acomoda-se, por força dessa ação de absorção, ao fundo cultural em que
o próprio crime é redefinido em termos muito diferentes daqueles em
que era originalmente prescrito.
Entretanto, observe na citação acima como a autora tende a
identificar na ação de instrumentalização funcional uma “incapacidade”
em se seguirem as normas de acordo com o espírito dessas mesmas
normas. Ou seja, ela interpreta a instrumentalização funcional como uma
incapacidade de copiar integralmente o modelo e sua função europeia
originais. Desse ponto de vista, parece que algo “escapava” ao corpo de
jurados a ponto deles se tornarem “incompetentes”. Talvez lhes faltasse
justamente aquele espírito europeu responsável por colocar em prática
um dispositivo legal europeu. Essa é a apreciação que se pode fazer
quando se avalia a execução brasileira do conjunto de valores europeus
do próprio ponto de vista europeu.
Como tais valores não adquirem perfeita vigência prática no Brasil
procura-se identificar o que não funcionou nessa adaptação, como se o
68 • Filosofia Latino-Americana

que ocorresse fosse um ruído, uma interferência danosa que impediu


que o modelo gerasse as consequências práticas previstas em um meio
inócuo. Isso só faz sentido se a perspectiva é verificar o que ocorre com
o modelo europeu quando transplantado ao Brasil do ponto de vista
europeu. Isto é, se trata sempre de identificar se há plena adequação –
ou disfuncionalidade em função da inaptidão do meio.
Porém, observe que o que é tomado como critério de avaliação para
se identificar disfuncionalidades é justamente o conjunto original de
valores europeus que tenta se implantar no Brasil. Nesse aspecto, a
crítica à incompetência ou incapacidade brasileira na adaptação prática
desses valores é apenas uma tautologia que os toma como critérios, de
acordo com seus próprios padrões de operação originais. Quer dizer, se
trata de uma mera repetição estribada nos valores europeus originais.
Chamo a atenção nesse ponto para a rotação de perspectiva que
estou propondo com respeito à adaptação da racionalidade operada pelo
Brasil. Quando me refiro a uma instrumentalização funcional tento
destacar o fato de que há um agente operando no processo. Um agente
que produz aquele efeito de anulação relativa dos procedimentos
universalizantes e unificadores originalmente contidos nos dispositivos
europeus. E se há um agente operando, que é diverso com relação ao
dispositivo original, deve haver uma diferença resultante dessa ação
sobre tal dispositivo. Já que não se trata de um meio inócuo, o resultado
é uma forma de apropriação ativa ou de instrumentalização funcional
da racionalidade e não sua mera repetição do mesmo dispositivo em
outro ambiente.
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 69

Assim, os mesmos eventos não assumem os mesmos significados


para essas duas perspectivas. Do ponto de vista que leva em
consideração a lógica interna da assimilação do ocidente elaborada pelo
Brasil, não se nota nenhuma “incompetência” no trato com os valores
europeus. O que se nota é uma adaptação ativa que altera o sentido
original que eles possuem.
O mesmo tipo de absorção que ocorreu nos mecanismos de
administração pública e execução da justiça europeia também pode ser
notado na economia. Daí a importância de se constatar que há um
agente operando uma instrumentalização funcional. Nesse caso, se
trata de um agente que promove uma instrumentalização visando
submeter o dispositivo de gerar sínteses à sua maneira de ser.
Dificilmente se pode entender a perseverança de traços
econômicos coloniais no Brasil sem a devida observação dessa
considerável capacidade de instrumentalização funcional dos
dispositivos originais europeus. Nesse espírito, Martins (1975, p. 25)
afirma que

A estrutura colonial de circulação das mercadorias, restringindo os custos


de sua produção e fazendo com que no setor agrário se acumulassem os
riscos e irracionalidades da sociedade capitalista (...), foi funcionalmente
incorporada pelo processo de industrialização do país e de constituição da
economia nacional.

Isso quer dizer que o mecanismo colonial continua a operar por


dentro dos processos de industrialização, de tal forma que o setor
agrário continua, mesmo após o fim da relação colonial, a dar
sustentação aos demais setores da economia. Ou seja, não se operou uma
70 • Filosofia Latino-Americana

autêntica modernização do Brasil, mesmo no interior do processo de


industrialização. Se preferirmos, podemos denominar essa
perseverança de modernização sem modernidade. Ele indica a
existência de um processo moderno de industrialização deslocado de
sua lógica histórica original.
Do ponto de vista histórico a industrialização cancela as relações
econômicas existentes em uma sociedade tradicional. Portanto, sua
existência significa a morte das velhas relações sociais. Do ponto de
vista não histórico, a industrialização pode existir ao lado dessas
mesmas relações sociais tradicionais. Isso ocorre porque nessa situação
a modernização não possui energia suficiente para controlar de
maneira hegemônica a totalidade da vida social. Por isso ela não gera a
eliminação de relações sociais economicamente incompatíveis com a
industrialização. Essas últimas são preservadas ao lado da
industrialização. Daí que se pode gerar uma modernização não moderna
da sociedade ou se pode perceber uma industrialização ao lado de
relações econômicas tradicionais.
O Brasil, não apenas nesse aspecto particular, fagocita o elemento
europeu, de tal forma que esse passa a existir de acordo com as
intenções daquele. A instrumentalização funcional opera como um
vírus que leva uma célula a reproduzir outros vírus e não a própria
célula original. De uma forma distinta daquela que caracteriza os
processos que geralmente chamamos de resistência, o elemento
brasileiro adquire predomínio sobre o europeu, sem afirmar uma
relação tradicional de predomínio (Silveira, 2014).
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 71

O PAÍS QUE NÃO SE RESUME

No caso brasileiro, a racionalização não visa à plena hegemonia


explicativa porque ela não impõe necessariamente sobre todos os
elementos que estão em questão. Ela subordina a alguns desses
elementos, por isso sua validade é limitada, mas não exclui outras
racionalizações alternativas. Daí a aparência (enganosa e orientada pelo
viés europeu) de debilidade dos dispositivos racionalizantes do universo
cultural brasileiro. Não se trata de debilidade ou incapacidade de replicar
a racionalidade europeia. Trata-se de adotar um padrão de racionalidade
sem a obsessão da universalidade, sem a sede de domínio absoluto sobre
aquilo que ela subordina. E sem essa compulsão por domínio, a
temporalidade é liberada da necessidade de que uma de suas etapas se
sobreponha às outras e todas elas passam a existir umas ao lado das
outras. Dessa forma, todas as etapas da temporalidade são liberadas para
coexistir com as demais de tal forma que uma não nega as demais.
Nesse ambiente, uma explicação racional é válida, mas sua validade
não exclui outras explicações possíveis. A subordinação que ela produz
não é excludente nem hegemônica com relação às alternativas, ela não
se expande aos confins do sistema em questão, nem recobre a totalidade
dos elementos de uma classe. Ela opera dentro de limites estreitos, sem
se projetar sobre a máxima extensão possível e sem abarcar a totalidade
possível em cada caso. A validade desse dispositivo racionalizante não
exclui outras validades possíveis.
É justamente a partir desse aspecto da instrumentalização
funcional da racionalidade que adquire sentido nossa tendência para
72 • Filosofia Latino-Americana

acomodar diferenças ou capacidade para conciliar elementos


incompatíveis em um mesmo quadro. Essa propensão conciliatória –
equivocadamente identificada com um pendor democrático – não
subordina as explicações alternativas. Ela simplesmente as justapõe
umas ao lado das outras. Ao contrário, um dispositivo efetivamente
democrático submete todos os elementos do mesmo modo como um
processo de racionalização europeu típico que visa obter hegemonia
plena. A instrumentalização funcional da racionalidade, produzida pelo
Brasil, permite a vigência de várias racionalidades, agora destituídas de
sua vocação hegemônica ou totalizante.
Isso significa que essa adaptação da racionalidade efetuada pelo
Brasil produz um ambiente fragmentado em que os seus componentes
não visam a obtenção de hegemonia explicativa. A função da
racionalidade que tem se produzido no Brasil não é a de sintetizar uma
diversidade sob a exigência monolítica de um princípio explicativo, mas
de sintetizar diversidades sob exigências múltiplas, de justapor
elementos díspares sem ocupar-se com o quadro geral que poderia
72ortugu-los de maneira decisiva.
Para manter os termos já utilizados aqui, o que está em operação
no caso dessa instrumentalização é uma racionalização de matriz
politeísta. Quer dizer, uma atitude que visa a racionalização e a redução
do múltiplo à unidade, porém sem a intenção de produzir reduções
extremas, sem a pretensão de unificar definitiva e completamente a
diversidade sob um conjunto unitário de valores.
Por isso o Brasil adquire um aspecto fragmentário na medida em
que a totalidade da sua superfície não é redutível a um princípio comum.
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 73

Nela convivem vários princípios alternativos, cada um deles dotado de


sua lógica própria, redutível a princípios diferentes dos demais. O Brasil
é uma legião. Disso decorre a impossibilidade de resumirmos o país a
uns poucos termos que sejam suficientemente capazes de explicar todas
as suas nuances, todos os seus subconjuntos. O Brasil não admite uma
explicação exclusiva. Por isso, ele realmente não é para principiantes,
muito menos para aqueles obcecados por explicações racionais – para
os quais o país sempre parecerá irracional em algum aspecto.
Para concluir, gostaria de insistir com relação a um aspecto
fundamental que tentei explicitar acima. Como tenho adotado aqui os
processos de racionalização ocidentais como referência – e não poderia
ser diferente, pois é com eles que temos de lidar no ambiente cultural
de que o Brasil participa – pode parecer que a instrumentalização
funcional da racionalidade exercida pela cultura brasileira seja, afinal,
apenas uma racionalidade inacabada. Isto é, ela pode parecer uma
versão deficiente com relação à racionalidade europeia.
Essa é uma versão equivocada do que se passa no Brasil e está
ligada à perpetuação do processo de colonização que nos habituou, e
ainda habitua, a ver o mundo através de olhos europeus. No caso dos
intelectuais brasileiros isso ainda é mais dramático porque quase
nenhuma categoria analítica presente nos seus processos de formação
possui origem não europeia. É por isso que os intelectuais brasileiros
falam como europeus, pensam como europeus, julgam como europeus.
Por isso mesmo, aquela narrativa da carência é repetida à exaustão,
sempre sem obter nenhum tipo de sucesso prático. Afinal, do próprio
74 • Filosofia Latino-Americana

ponto de vista europeu nossa racionalidade só pode mesmo ser


inacabada ou malsucedida – já que ela não é europeia.
Chamo a atenção aqui justamente para a perspectiva alternativa: o
fato de que se trata de uma racionalidade plenamente aculturada às
necessidades do Brasil e elaborada tendo-as em consideração. A
instrumentalização funcional da racionalidade que temos produzido
expressa muito bem nossa disposição em não adotar dispositivos
explicativos ou valorativos hegemônicos e excludentes. Nossa aptidão
para gerar sínteses não hegemônicas é a expressão mais evidente de que
operamos com um ponto de vista diverso. Talvez ele não seja – nem se
tornará um dia – superior, como querem alguns, mas ele certamente é
diferente. E isso é o que nos basta: reconhecer que a racionalidade que
adaptamos ativamente às nossas necessidades é diferente da
racionalidade dos europeus.

Publicado originalmente em E-Latina, v. 17, p. 22-35, 2019.

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3
CULTURA E FILOSOFIA
LATINO-AMERICANA NO SÉCULO XXI

1 INTRODUÇÃO

De um ponto de vista geral, que adoto nesse texto, parece haver


atualmente duas possibilidades de orientação para o exercício de uma
filosofia latino-americana. O mais óbvio e, por isso mesmo mais
acessível, é compreender o trabalho de um filósofo latino-americano
como uma atividade filosófica qualquer, sem que a questão local
interfira nela de maneira significativa.
Nesse sentido, não haveria nada de particular no exercício da
filosofia na América Latina que pudesse exercer alguma influência, seja
no seu conteúdo, seja na sua forma. Está subentendido nessa ideia que
o ambiente cultural em que nos encontramos não oferece nenhuma
dificuldade adicional, tendo por referência aquele modo tradicional de
operar da filosofia de matriz europeia. Modo esse que nos é familiar em
função de nossa exposição a ele durante os anos de formação. Em outras
palavras, dedicar-se à filosofia latino-americana consistiria no mesmo
tipo de exercício intelectual realizado na tradição da velha Europa, da
qual seríamos um capítulo ou uma extensão natural.
Esse ponto de vista é defendido abertamente ou é adotado
implicitamente pela grande maioria dos filósofos latino-americanos.
Nesse texto me interesso mais pelo aspecto implícito dessa crença do
que por aquelas modalidades de defesa explícita de que a prática da
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 77

filosofia latino-americana consiste simplesmente em uma filosofia sem


mais (Zea, 1989). O aspecto implícito me interessa de maneira especial
aqui justamente porque entendo que é ele que tem caracterizado a
prática filosófica predominante entre nós.
Assim, o fato de não nos ocuparmos, na grande maioria das vezes,
com a necessidade de uma discussão acerca da especificidade da prática
filosófica latino-americana já é a expressão daquela crença implícita de
que o que fazemos consiste na continuação de uma longa tradição
ocidental. Continuação que não exige nenhum tipo de reparo ou
adequação de nossa parte. Com efeito, a dedicação a qualquer ramo da
atividade filosófica entre nós, sem a discussão prévia acerca da eventual
necessidade de ajustes formais ou de conteúdo ao ambiente latino-
americano, reafirma a noção de que estamos diante de um ramo daquela
atividade tradicional europeia, nesse caso realizada na América Latina.
Com isso, se afirma indiretamente que essa última é uma manifestação
americana daquela tradição filosófica, uma versão particular da
filosofia sem mais.
Essa crença implícita supõe algo mais genérico: que a relação da
filosofia latino-americana com a filosofia ocidental seria análoga à
relação da cultura latino-americana com a cultura ocidental. Em certo
sentido, estaríamos encampando alguma versão da tese hegeliana
(Hegel, 1989; 1990) acerca da participação das figuras particulares em
uma história de escopo mais abrangente. Essas versões afirmam que o
sentido verdadeiro de qualquer uma das figuras particulares só pode ser
apreendido na medida em que ela é compreendida como expressão de
um momento daquela história universal. Assim, a filosofia latino-
78 • Filosofia Latino-Americana

americana, para se tornar efetivamente significativa, deveria forjar


uma figura própria que contribuísse para o sentido geral da filosofia de
matriz europeia. Isso, evidentemente, apenas no caso de tentar
promover sua própria originalidade. Nesse caso, ela deveria se esforçar
por tornar-se uma das figuras que participam daquela linha filosófica
universal elaborada pela velha Europa. Nesse caso, ter um significado
relevante e original implica em posicionar-se no interior de uma
história filosófica já consolidada pelo ambiente europeu. Ou seja, tornar
o nosso exercício profissional significativo envolve torna-lo
significativo para a filosofia de matriz europeia.
É claro que existe sempre a possibilidade, nunca desejável, de
adotarmos uma prática filosófica insignificante, se não conseguirmos
formular uma figura original que nos garanta uma participação efetiva
naquela história filosófica europeia. Se não conseguirmos ser originais
no sentido indicado, se não propusermos um passo adiante com respeito
ao que já foi realizado dentro daquele escopo, estaríamos condenados
ao exercício de uma prática inessencial, de uma atividade filosófica
meramente erudita e improdutiva.
Nesse caso, poderíamos tanto estar diante de uma filosofia que
repete as verdades já formuladas – uma forma tautológica – como de
uma atividade que afirma princípios incompatíveis com aquela história
filosófica – uma variante solitária e destituída da capacidade de
articulação com a filosofia de matriz europeia. Em ambos os casos se
trataria de uma filosofia incapaz de articular-se verdadeiramente com
a tradição europeia e, portanto, destituída de um sentido autêntico. O
resultado dessa filosofia se limitaria à repetição, ao interesse
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 79

meramente museológico, às cansativas monografias conceituais ou, por


outro lado, diria respeito a proposições incapazes de estabelecer
qualquer tipo de diálogo com a tradição europeia.
A despeito dessa possibilidade de se tornar insignificante diante da
matriz europeia, na grande maioria das vezes a prática da filosofia entre
nós adota implicitamente alguma variação daquela tese hegeliana no
sentido positivo. Isto é, se atua na expectativa de que possamos
efetivamente contribuir com algo significativo dentro do escopo da
história da filosofia ocidental já consolidada e que, portanto, somos uma
parte natural dela.
Essa disposição majoritária não deve nos surpreender, já que a
transposição de um tipo de atividade do ambiente europeu para o
latino-americano é uma espécie de caminho natural a ser adotado. Isso
se considerarmos que o processo de formação dos filósofos latino-
americanos ocorre justamente através do estudo da tradição europeia.
E nada é mais simples do que estender o exercício intelectual típico do
período de formação, para a prática profissional posterior. Exercer a
atividade filosófica nos termos europeus seria tão fácil como andar de
bicicleta, depois daquele período inicial em que adquirimos essa
habilidade. Nesse caso, o período de preparação profissional termina
fornecendo não apenas os meios conceituais, mas também os fins de
toda a atividade filosófica posterior.
De certa maneira, isso também é induzido pelos processos de
trabalho em ensino e investigação no interior das nossas universidades
– local de alocação majoritária da mão de obra filosófica na América
Latina. Em função de encontrar-se inserida nesse ambiente supõe-se
80 • Filosofia Latino-Americana

que a atividade filosófica é uma prática científica particular, de tal


forma que os dispositivos de trabalho e financiamento operam do
mesmo modo em ambos os casos – no filosófico e no científico. Desde a
participação da filosofia nos processos universitários de formação das
diferentes carreiras, à concessão de bolsas de iniciação científica,
passando pela formação de grupos de pesquisa e avaliação da pós-
graduação, os parâmetros a que a filosofia acadêmica se submete são
exatamente os mesmos das demais ciências particulares.
Nesse ambiente científico parece haver ocorrido uma adaptação do
trabalho filosófico latino-americano a uma tradição europeia já
consolidada. Do mesmo modo, isso também não soa absurdo, já que se
trata de características da instituição universitária transplantada do
contexto europeu para a América, no interior da qual se pratica a filosofia.
Assim, a filosofia latino-americana está inserida na tradição
europeia de maneira muito natural, seja do ponto de vista da inserção
de novos pro fissionais no exercício profissional, seja da perspectiva da
rotina de seu exercício posterior dentro das universidades onde ela é
praticada.
Pelos vários ângulos que se possa analisar a situação, parece
incontornável reconhecermos que estamos diante de uma filosofia
latino-americana plenamente adaptada ao ambiente acadêmico do
Século XXI e, portanto, à tradição europeia na qual a universidade e a
produção do conhecimento adquiriram um sentido no passado e um
impulso para o futuro. Isso é verdadeiro mesmo que essa adaptação à
matriz europeia esteja sendo realizada de maneira implícita e não esteja
sendo tematizada como um problema pelos filósofos latino-americanos.
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 81

Assim, podemos notar que não apenas adotamos os ensinamentos


do período de formação como determinantes da prática filosófica
posterior como nos adaptamos ao ambiente universitário – cujas
características atendem às necessidades de especialização e
investimento em pesquisa científica de interesse dos Estados nacionais,
ambas manifestações orgânicas da matriz cultural europeia.
Em função de se constituir como uma situação hegemônica do
nosso exercício profissional, adotarei aqui como ponto de partida essa
primeira perspectiva segundo a qual a filosofia latino-americana é um
capítulo da filosofia ocidental. Não creio que faça muito sentido
estabelecer uma comparação crítica com o ponto de vista contrário, que
defenderia a existência de alguma suposta vocação relativa à nossa
particular situação latino-americana. A apresentação dessa segunda
perspectiva sobre a filosofia latino-americana consistiria não apenas no
exercício de uma crítica externa com respeito à visão anterior, mas
envolveria também uma pressuposição exagerada acerca do seu poder
de convencimento no interior da comunidade filosófica latino-
americana. Nesse caso, os efeitos retóricos seriam mínimos.
De fato, como as crenças que prevalecem no interior dessa
comunidade sobre o que é a prática filosófica são implícitas, acredito
que uma crítica explícita teria pouco valor. Ela não estaria habilitada
para alterar um ponto de vista que se consolidou ao longo do tempo em
função de haver promovido uma adequação ao ambiente cultural de
matriz europeia. Em geral, alterações de crenças consolidadas não
ocorrem através de processos de esclarecimento, mesmo no caso da
filosofia – uma forma de conhecimento que se supõe requerer uma
82 • Filosofia Latino-Americana

vontade superior orientada para a exposição de pressupostos de toda


ordem.
Me refiro aqui ao peso e à substância dos valores que adotamos em
nossa prática cotidiana como filósofos. Trata-se de uma tese polêmica,
mas não creio que os filósofos possuam condições de saltar sobre o
conjunto de valores que caracteriza a prática filosófica europeia e
aterrissar em um outro planeta em que se pratica outro tipo de filosofia.
O convencionalismo é poderoso mesmo no interior de uma comunidade
que se caracteriza abertamente pelo exercício de um senso crítico agudo.
O próprio fato de se tratar de uma comunidade já afirma a validade de um
etos estável, da aceitação implícita de um modo básico de operar.
Embora isso tenha importantes implicações metodológicas que
não posso explorar adequadamente aqui em função do espaço
disponível, suponho que existe uma cultura filosófica latino-americana.
Isto é, existem crenças não tematizadas sobre o que é a filosofia e como
se deve praticá-la. Mais do que isso, em função dos elementos
apresentados acima, sabemos que essas crenças são oriundas da matriz
filosófica europeia.
Prefiro deter-me na análise das condições requeridas por essa
abordagem orgânica da filosofia latino-americana. Denomino-a de
orgânica na medida em que se supõe implicitamente que ela consiste
em uma figura particular e articulada com a história da filosofia
europeia, da qual seria uma expressão particular. Adoto, como ponto de
partida a ser analisado, aquele ponto de vista convencional acerca da
atividade filosófica exercida na América Latina: como se, nesse caso, se
tratasse de uma filosofia sem mais.
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 83

Como se verá adiante, a análise desenvolvida aqui a partir dessa


perspectiva convencional propiciará elementos esclarecedores sobre a
prática da filosofia latino-americana – qualquer que seja ela. Isso
implicará na adoção de uma segunda perspectiva, porém não
apresentada como crítica da primeira, mas resultante de sua própria
análise. Nesse caso, os elementos a serem introduzidos dirão respeito a
características internas dessas crenças convencionais sobre a filosofia.
Isso permitirá obter senão uma crítica interna – e por isso mesmo mais
ajustada – ao menos a caracterização de um impasse crucial com o qual
a filosofia latino-americana terá de lidar a partir da situação cultural
em que ela se encontra atualmente.

2 A FILOSOFIA CONTRA A PÓS-MODERNIDADE

Seguindo essa forma de exposição, a questão que deve ser objeto


imediato de nossa atenção a partir de agora é a de avaliar se alguma
versão da narrativa hegeliana ainda pode ser adotada no contexto da
cultura europeia, da qual nos assumimos como uma decorrência
natural. Ou seja, trata-se de avaliar se ainda faz sentido representar o
trabalho filosófico latino-americano como um capítulo da filosofia
europeia, dentro daquelas condições estabelecidas pela versão orgânica,
sem interpor a isso nenhuma alegação sobre supostas especificidades
americanas. Com isso, evitamos introduzir demandas exteriores que
sejam estranhas ao ambiente europeu contornando aqueles típicos
defeitos das críticas externas e inúteis como estratégias de
convencimento.
84 • Filosofia Latino-Americana

Desde o final do Século XX a cultura europeia passou a apresentar


sinais de exaustão no que diz respeito à adoção de narrativas do tipo
hegeliano. Isso não significa exaustão dessa cultura, mas certo cansaço
com relação ao uso daquele tipo de estratégia. Lyotard (2011) chamou a
atenção para isso, fazendo referência a um movimento de fragmentação
epistemológica em curso já no final dos anos de 1970. Posteriormente se
consolidou um termo polissêmico – e por isso mesmo de difícil
definição – que pode auxiliar a compreender essa exaustão: a pós-
modernidade. Independentemente da discussão sobre a presença ou não
de uma ruptura entre essa nova fase histórica (ou pós-histórica) e a
própria modernidade, o seu sentido básico pode ser identificado com
relativa precisão.
A pós-modernidade indica uma situação cultural em que o
significado de uma determinada prática social (científica, moral,
epistemológica etc.) não depende mais de sua submissão a uma
narrativa abrangente, da qual aquela seria uma parte ou uma figura
particular. Ou seja, as posições pós-modernas abandonaram a
necessidade de extrair o significado de um elemento particular por
meio de arranjos conceituais que o submetiam a princípios universais
e, em geral, teleológicos. Era comum que as narrativas abrangentes do
tipo hegeliano envolvessem princípios finalistas desse tipo – como a
narrativa do progresso histórico da humanidade em direção à liberdade.
A afirmação de Nietzsche (2018, p. 20) sobre uma indisposição em
plantar árvores para as gerações futuras já antecipava, no Século XIX,
esse tipo de cansaço com relação a fazer o significado depender de uma
corrente de sentido abrangente.
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 85

Uma desvantagem essencial trazida pelo fim das convicções metafísicas é


que o indivíduo atenta demasiadamente para seu curto período de vida e
não sente maior estímulo para trabalhar em instituições duráveis,
projetadas para séculos; ele próprio quer colher a fruta da árvore que
planta, e portanto não gosta mais de plantar árvores que exigem um
cuidado regular durante séculos, destinadas a sombrear várias seqüências
de gerações.

Esse cansaço relativo a um significado transcendente ao indivíduo


força todos os possíveis sentidos relevantes na direção da dimensão
particular. O ambiente cultural é restringido e, ao mesmo tempo,
intensificado nessa direção, pois tudo o que importa se passa no seu
interior: no período de tempo disponível para uma vida humana, na sua
situação geográfica existencial, no seu próprio domínio epistemológico
original, na sua condição moral particular etc.
De um ponto de vista geral, o sentido relevante passa a ser derivado
das próprias práticas e não de sua eventual inclusão em uma narrativa
abrangente capaz de subsumi-la. De certo modo, o próprio Hegel (1989,
p. 697) já havia se referido a uma insatisfação latente do indivíduo,
mesmo no interior da substância moral do Estado em que, a princípio,
ele deveria sentir-se plenamente realizado. Quer dizer, ele indicava uma
tendência da particularidade individual para mostra-se inquieta,
mesmo quando acolhida no interior de uma estrutura de significado que
lhe fornecia um mundo estruturado sob a forma da cidadania gerada
pelo Estado moderno.

Não contente com que prevaleçam os direitos racionais, a liberdade da


pessoa e da propriedade; não contente com que haja uma organização do
Estado, e dentro do seu círculo, a vida civil, (...) O liberalismo opõe a tudo
86 • Filosofia Latino-Americana

isso o princípio dos átomos, das vontades individuais: tudo isso deve ser
obra de seu poder expresso e de sua aprovação expressa. Com este
formalismo da liberdade, com essa abstração, os liberais não deixam
consolidar-se nada na organização. Às distintas disposições do governo,
opõe-se em seguida a liberdade; (...). Continuam, pois, o movimento e a
intranquilidade. Esta colisão, este nó, este problema é o que a história terá
que resolver nos tempos vindouros.

Tudo indica que esse princípio liberal de que fala Hegel


permaneceu agindo no interior da cultura de matriz europeia, fazendo
ruir lentamente a validade das instâncias universais de legitimação e
validação de um sentido superior. O sistema de significação mais amplo
foi sendo devorado por aquela necessidade de assentimento individual
para todas as coisas. A insistência de suas demandas tem solapado
gradualmente as disposições permanentes, os sentidos duradouros, os
valores substantivos.
Se seguirmos as indicações de Berlin (1999), poderemos verificar
que essa tendência liberal foi forjada no ambiente romântico e se
desenvolveu no interior do modernismo e também da pós-
modernidade. Parece haver se estabelecido uma tendência na qual o
próprio arranjo hegeliano seria somente um meio termo. Aquela típica
condição de equilíbrio hegeliano entre o particular e o universal, após
superadas as contradições, consistiria somente em um estágio
intermediário rapidamente alterado pela energia despendida pelo
princípio liberal. Ou seja, a balança ultrapassou a situação de harmonia
e rapidamente tendeu em direção à particularidade do indivíduo.
Mesmo operando contra sua própria maneira convencional de
pensar, a descrição feita por Hegel acerca desse processo parece
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 87

enfatizar uma situação de desequilíbrio em que o indivíduo europeu


solicita mais e mais para si. Isto é, o próprio Hegel parece estar
indicando na passagem acima a presença de uma tendência que avança
contra o equilíbrio entre a particularidade e a universalidade que
constitui a base de suas narrativas e a viga mestra de sua dialética. Essa
tendência seria a responsável por tornar as narrativas do tipo hegeliano
ultrapassadas na medida em que configura um mundo em que a
particularidade solapa as bases da universalidade e destrói aquele
equilíbrio.
Esse mesmo movimento de intranquilidade da particularidade com
respeito às instâncias superiores de significado pode ser observado não
apenas do ponto de vista moral e político, quanto também do ponto de
vista epistemológico (Silveira, 2015). Curiosamente, o nó a ser resolvido
pela posteridade, segundo Hegel, é justamente aquilo que tornou sua
narrativa típica inadequada com relação às novas necessidades do
presente pós-moderno. Isso significa, entre outras coisas, que todo
hegeliano consequente não deveria ser adepto de Hegel – já que seu
pensamento expressa um equilíbrio passageiro erigido pela realidade
europeia do século XIX e certamente ultrapassado pela marcha da
cultura no Século XXI.
Independentemente dessa questão, pretendo ressaltar aqui a
presença de uma tensão produzida pela pós-modernidade contra todas
as narrativas de tipo hegeliano, na medida em que ela promove a
validade de significados no interior da dimensão particular, sem
conectá-las com a universalidade típica de uma narrativa abrangente.
Nesse sentido, parece muito claro que não há compatibilidade possível
88 • Filosofia Latino-Americana

entre essas duas frentes culturais com respeito ao procedimento a


partir do qual se possam estabelecer valores válidos. É inevitável
reconhecer que aquela intranquilidade liberal, de que fala Hegel,
terminou por eliminar a demanda por instâncias de legitimação
universais – incluída aí a típica narrativa hegeliana.
A questão que me interessa, ainda dentro daquele ponto de partida
inicial da versão orgânica do exercício da filosofia, pode ser agora
formulada da seguinte maneira: qual o sentido de nos representarmos
– nós, os filósofos latino-americanos – como um capítulo da filosofia
europeia no ambiente cultural pós-moderno? Ou ainda: qual o sentido
em adotarmos uma meta-narrativa filosófica em um contexto cultural
claramente avesso a ela? Observe que a versão orgânica sobre a filosofia
latino-americana aciona uma narrativa de tipo hegeliano, na medida em
que ela se define como uma figura particular instalada em uma história
abrangente.
Parece evidente que não há mais nenhum sentido nessa tentativa
de compreendermos o trabalho filosófico na América Latina como
subordinado ou internamente conectado à tradição europeia. Isso
justamente porque, em função da corrosão pós-moderna, essa tradição
está em colapso e não se requer mais que ela abrigue sob si aquilo que
era entendido antes como suas figuras particulares (a filosofia inglesa,
a filosofia francesa etc.). O ponto central e relevante para nós – filósofos
latino-americanos – é que não se requer mais que a história da filosofia
ocidental abrigue o conjunto de atividades filosóficas particulares. Por
isso, a filosofia não pode mais ser compreendida como um diálogo
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 89

transcultural entre as filosofias particulares no interior de uma


totalidade fundada a partir da velha Europa.
Enfatizo aqui que essa constatação não se sustenta sobre o
reconhecimento de alguma especificidade de nossa parte, seja de que
tipo for. Uma que nos colocaria em condições de sermos filosoficamente
originais diante da velha Europa. Trata-se de algo muito mais
fundamental e que diz respeito à incapacidade dessa mesma tradição
em continuar a nos abrigar como um de seus elementos particulares.
Por outro lado, precisamente em função dessa falência estrutural da
narrativa europeia, não há mais necessidade de lançarmos mão de
algum dispositivo de justificação para o nosso caso. Em função das
mutações culturais por que passa a velha Europa é que nos encontramos
por nossa conta e risco, desejemos isso ou não.
Em outras palavras, não é mais requerido pelas circunstâncias
culturais em que nos encontramos – e que tendem a se acentuar à
medida que a pós-modernidade se intensifica – que uma prática social,
como é a atividade filosófica, procure obter legitimação por meio de sua
subordinação a algum tipo de narrativa abrangente – como, por
exemplo, aquele suposto diálogo filosófico iniciado na Grécia Antiga e
estendido em direção ao oeste. Essa inclusão em um substrato
abrangente não é mais uma reivindicação culturalmente pertinente da
parte da própria filosofia europeia. Então, porque ela deveria ser
importante para nós, filósofos latino-americanos?
Podemos utilizar uma metáfora para expressar essa ideia de outra
forma, talvez mais nítida. A situação não é comparável à de um filho (a
filosofia latino-americana) que se rebela contra o pai (a filosofia de
90 • Filosofia Latino-Americana

matriz europeia) e decide se aventurar pelo mundo, buscando realizar


algo compatível com seus próprios desejos e de acordo com suas
necessidades específicas. Essa seria uma daquelas rebeliões contra o pai
que são, por isso mesmo, ainda relativas ao pai. Não se trata de nenhum
movimento de emancipação e de independência que venha a atender
anseios de libertação por parte do filho.
Ela se assemelha, ao contrário, à derrocada da casa paterna, de tal
forma que o filho se veja obrigado a procurar outro ambiente em que
possa habitar e, quem sabe, adotar outro estilo de vida fundado em suas
próprias necessidades. Nesse caso não há mais um abrigo seguro onde
os jovens possam se recolher, na medida em que a pós-modernidade o
tem solapado sistematicamente. Por isso, não faz mais sentido a
tentativa de se conectar ao mundo europeu, como se isso nos fornecesse
algum tipo de direito à filosofia, como se a continuidade de uma tradição
fosse algo necessário e que pudesse tornar legítima nossa atividade na
América Latina. Embora isso não soe exatamente como resultado de
gestos heroicos da parte dos filósofos latino-americanos, essa parece
ser uma boa descrição de nossa condição atual dentro do contexto
cultural em que nos encontramos. Nós somos os filhos que foram
abandonados à própria sorte.
Esta situação a que chegamos consiste, portanto, em um resultado
do próprio ambiente propiciado pela cultura contemporânea de matriz
europeia. A filosofia, sejam quais forem as suas particularidades, não
possui mais uma instância de atuação garantida nesse ambiente – algo
a que ela deveria se subordinar para tornar-se efetivamente legítima
aos olhos de todos. Não há mais uma articulação desejável com
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 91

elementos universais que venha a tornar essa prática intelectual


legítima e justificada. Como não existe mais uma estrutura sólida de
significados em cujo interior a atividade filosófica possa se inserir de
maneira apropriada, ela encontra-se desprotegida e abandonada a si
mesma.
De certa forma, isso torna evidente que a filosofia se encontra
sempre articulada com o ambiente cultural mais amplo e que seu
sentido depende, em último caso, da existência de necessidades
externas. Com isso, não pretendo afirmar que a filosofia seja externa à
cultura – o que seria um contrassenso. Com esse termo apenas reforço
o fato de que o sentido da atividade filosófica depende de diferentes
necessidades culturais que se fazem sentir em cada caso. Ela exerce uma
função no interior de um sistema de valores que expressa necessidades
próprias e que ela vem suprir. Caso a filosofia ignore essas necessidades
mais amplas, ela se torna uma atividade culturalmente irrelevante.
Afinal, a pós-modernidade não produz um vazio de significados, mas
uma necessidade de renovação constante de valores.
Isso certamente contraria certa versão ingênua do trabalho
filosófico, segundo a qual ele só deveria prestar contas a si mesmo.
Entendo que há um período de ajuste entre a filosofia e a cultura na qual
ela se encontra, um processo de articulação sem o qual a filosofia não
adquire o espaço necessário para sua plena realização. Sem atentar para
essas necessidades do ambiente cultural mais amplo, a filosofia só
poderá ser exercida como uma prática sem pertinência – isto é, como
erudição e como conhecimento desconectado com relação a seu
ambiente. Após esse período de ajuste, acredito que seja verdade que a
92 • Filosofia Latino-Americana

filosofia adquira uma independência relativa, devendo prestar contas


apenas às variantes do debate interno que consegue promover. Porém,
é aquela articulação inicial com o restante da cultura que provê o
oxigênio necessário para que ela se desenvolva plenamente como uma
atividade relativamente independente e relevante.
Retornando ao que nos interessa diretamente aqui, é em função do
efeito corrosivo da pós-modernidade que parece não fazer mais sentido
a necessidade de se estabelecer uma conexão com aquela narrativa
universal relativa a um diálogo transcultural entre as figuras
filosóficas. Assim, as práticas filosóficas particulares não necessitam
mais mostrarem-se articuladas e subordinadas a valores superiores.
Elas não necessitam se qualificar de maneira especial para esse tipo de
diálogo. Isto é, elas não precisam se mostrar justificadas ou legitimadas
por qualquer tipo de critério especial.
De fato, o que a situação pós-moderna promove é uma atividade
filosófica articulada com seu ambiente cultural particular imediato,
uma vez que se corroeu o extrato geral que sustentava aquela narrativa
universal. Isso quer dizer que agora se requer uma filosofia que se ocupe
com aquilo que lhe é próximo, sem a necessidade de articular esse
conteúdo com algo mais distante e geral e que viesse a lhe proporcionar
um sentido superior e definitivo.
Porém, essa liberação com relação ao contexto geral é também,
como vimos antes, a intensificação de uma atividade voltada para sua
própria particularidade. Nesse ambiente, a filosofia latino-americana
não pode ser realizada sem que se alterem elementos importantes de
seu antigo modo de operar. Ela necessita adaptar seus processos de
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 93

operação para essas novas necessidades que, agora, passam a se mostrar


relevantes.

3. A CULTURA DA FILOSOFIA LATINO-AMERICANA

A filosofia tem se movido tradicionalmente no ambiente da


universalidade, justamente em função de ter-se colocado como
responsável, desde seu início grego, por recompor os elementos
culturais fragmentados (Lima Vaz, 1981). Isto é, ela foi criada na Grécia
Antiga como um dispositivo que visava à unidade da diversidade
cultural, justamente porque a pluralidade era sentida, naquela ocasião,
como problemática. Lembremo-nos que os filósofos pré-socráticos se
ocuparam fundamentalmente com a questão do princípio unificador da
multiplicidade natural (Kirk, Raven e Schofield, 2007).
Isto é, o problema a ser resolvido, de acordo com os requerimentos
da cultura grega, era o da unificação da diversidade visando converter
essa última em um mundo (Koyré, 2006). Qualquer tentativa de
compreensão adequada desse ambiente original da filosofia ocidental
deve partir da noção de cosmos: de um mundo hierarquizado, finito e
unificado. Ele constitui um horizonte ao qual a filosofia grega busca
articular-se e que lhe serve de modelo de ação. Com efeito, o cosmos
apresenta à filosofia uma finalidade que, por sua vez, exige
determinados procedimentos intelectuais – todos eles orientados para
a promoção da unidade e da síntese, para a articulação de diferentes
elementos sob uma mesma ordem, para a sistematização e a produção
de uma cosmovisão (Silveira, 2020).
94 • Filosofia Latino-Americana

A situação pós-moderna converteu essa antiga pretensão filosófica


de estabelecer a unidade no seio de uma cultura dispersa em uma
orientação supérflua. Isso simplesmente não é mais um requisito
cultural ao qual a filosofia deve dedicar-se e a partir da qual ela deve
derivar seus procedimentos e estratégias. Assim, são as velhas
pretensões históricas da atividade filosófica que agora estão sendo
corroídas pelo ambiente cultural mais amplo – aquele que, em último
caso, estabelece o que faz e o que não faz sentido para todas as
atividades práticas e intelectuais. Esse ambiente tem afirmado a falta
de necessidade e até o inconveniente de dispositivos que visam
promover uma compreensão universal e unitária de determinado
conjunto de elementos.
De uma forma ou de outra, observe que a filosofia tem sido
empurrada pela cultura pós-moderna para circunstâncias particulares,
para uma situação de fragmentação. Observe, nesse sentido, que a
reivindicação pela existência de uma filosofia africana não expressa
somente o desejo de obtenção de status intelectual, típicos do ocidente
(Appiah, 1997). Ela explora uma situação nova e relevante do ponto de
vista cultural: as novas necessidades e possibilidades criadas pela
fragmentação das narrativas promovida pela pós-modernidade.
Também aqui, o essencial não é nos concentrarmos sobre a
reivindicação pela valorização de uma forma própria de ser, mas
fundamentalmente sobre o resultado da falência dos dispositivos
abrangentes europeus que deixa em aberto a possibilidade para a
prática de novas modalidades de atividade filosófica.
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 95

Assim, podemos compreender que nós, filósofos latino-


americanos, estamos sendo empurrados para a América Latina pelas
próprias circunstâncias culturais em que vivemos. Isto é, supondo que
sejamos ocidentais e europeus – duas teses bastante discutíveis, mas
assumidas aqui como elementos daquela versão orgânica que adotei no
início – é justamente por isso que não nos cabe alternativa que não seja
tornarmo-nos cada vez mais latino-americanos. O trajeto que vai da
filosofia sem mais para a filosofia latino-americana não demanda
nenhum tipo de compromisso nacionalista, nem qualquer alegação
macondista (Volek, 2007) acerca de nossas supostas especificidades
ontológicas, essências ou naturezas próprias. Podemos, inclusive,
compreender que é o declínio das narrativas abrangentes que tem
aberto o espaço para as alegações nacionalistas e macondistas. Nesse
caso, essas últimas também expressam de uma maneira inapropriada a
reivindicação por especificidade tornada possível em função do impacto
das novas necessidades culturais pós-modernas.
No mais recôndito universalismo de um filósofo colombiano, por
exemplo, repousa a sombra cada vez mais nítida da América Latina. Isso
porque todo universalismo tende a desaguar em particularismo se a
filosofia seguir o padrão cultural pós-moderno de converter essa última
instância em determinante com relação a todo significado relevante.
Gostemos ou não da situação pós-moderna, devemos
reconhecemos que há um movimento cultural que orienta a atenção da
atividade filosófica para seu respectivo entorno cultural – na mesma
proporção em que enfraquece o discurso que concerne a uma filosofia
sem mais, desvinculada das situações em que se exerce. A questão que,
96 • Filosofia Latino-Americana

acredito, deveria nos ocupar nessa nova situação é identificar como


podemos orientar a atividade filosófica nesse novo ambiente. Ou seja,
como exercemos uma prática filosófica cujo objetivo é mostrar-se capaz
de estabelecer um diálogo com sua cultura mais imediata?
Já sabemos que não faz sentido adotarmos aquela velha perspectiva
que visava, antes de qualquer coisa, promover a subordinação dos
elementos fragmentados, submetê-los à ordem, organizar um mundo.
Foi essa disposição que nos promoveu – a nós, filósofos – àquela
situação especial diante de outras atividades humanas, na medida em
que nos reservava condições hierárquicas especiais. Desde Platão e
talvez mais claramente desde Aristóteles (1982), a filosofia tem sido
encarregada de forjar a cúpula da cultura, de dotá-la de um acabamento
unificado e fornecer-lhe um ponto de apoio final sintético e responsável
pela integração de seus elementos. Essa função só se tornou mais aguda
no interior de ambientes marcados pelo monoteísmo.
Disso decorrem todas as necessidades por fundamentação
historicamente assumidas como necessárias pela atividade filosófica.
Observe, inclusive, que a filosofia até o presente tem suposto que a
questão do fundamento seja importante. Ela simplesmente assume tal
problema como necessário em função das demandas culturais externas,
e não a partir de uma justificação radical própria. Se a filosofia fosse
efetivamente independente de quaisquer circunstâncias deveria ter se
ocupado com a justificação da questão do fundamento – coisa que
jamais tentou realizar.
Ao invés disso, ela se ocupou em como a questão do fundamento
tinha que ser conduzida, mas nunca com a própria necessidade dessa
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 97

estratégia, justamente porque a necessidade do fundamento era o que


garantia a necessidade da filosofia. Uma discussão hipotética
efetivamente independente do restante da cultura – se isso fosse
possível – deveria ter envolvido o debate acerca da própria necessidade
da filosofia como uma atividade intelectual autônoma. O fato disso
nunca ter sido tentado revela de maneira clara que a filosofia assumiu,
desde seu início, como sendo sua a tarefa específica de levar adiante
necessidades culturais existentes em seu ambiente.
Observe que a filosofia obteve para si essa função especial de
obtenção de legitimação através da fundamentação não porque a impôs
a uma cultura que jamais a teria reivindicado por si mesma. Ao
contrário, a filosofia assumiu essa missão apenas porque se tratava de
uma necessidade solicitada pelo ambiente cultural grego antigo
(Silveira, 2020). A filosofia veio a ocupar uma função hierárquica e, por
consequência adquirir um status intelectual especial, na medida em que
se encarregava daquele acabamento unificador requerido pela cultura.
Nesse sentido, a filosofia cumpriu com o objetivo cultural que se
esperava dela. Por isso, ela tornou-se filosofia primeira, rainha das
ciências etc. Ela se tornou aparentemente independente da cultura,
justamente porque ressoava aquela requisição cultural por uma
unificação definitiva – um fundamento existente em si e por si. É por
isso, inclusive, que essa independência é aparente já que, ao adotá-la a
filosofia na verdade, atendia a necessidades culturais externas. Ou seja,
ao se tornar uma atividade intelectual independente, ela realizava sua
plena dependência com relação ao ambiente cultural em que se
encontrava.
98 • Filosofia Latino-Americana

No momento atual, essa necessidade não é mais sentida. Por isso,


a atividade filosófica não pode se exercer a partir de um ambiente
particular, a América Latina, visando aquele mesmo objetivo
tradicional. Isto é, o objetivo da atividade filosófica não se apresenta
agora constrangido pela necessidade de promover a nossa condição
particular à condição de figura de uma narrativa mais ampla – naquele
sentido hegeliano. Adotar a velha postura nessas novas circunstâncias
seria deixar-se guiar por velhos hábitos adquiridos no passado e
desconectar-se das novas necessidades culturais.
Observe, então, que o empuxo da vida contemporânea não nos
remete apenas para uma dimensão particular da cultura. Ele exige uma
redefinição do sentido da atividade filosófica a partir dessa nova
condição. O problema não consiste apenas em refazer a atividade
filosófica de dentro da América Latina – não se trata somente de
promover uma filosofia desde nossa América, como se costuma dizer
(Cerutti Guldberg, 2000). O problema diz respeito ao que fazer a partir
desse ambiente, dado que a velha orientação em direção à unificação dos
elementos dispersos não possui mais valor. A questão é que a filosofia
como tem sido feita até agora perdeu inteiramente sua função cultural.
Acredito que a filosofia latino-americana encontra-se em uma
encruzilhada prática. Ela pode tender a preservar os velhos objetivos
culturais em uma situação que se mostra claramente incompatível com
eles. Nesse sentido, ela se desligaria das demandas culturais e
permaneceria estacionada ao longo do caminho, tentando promover um
tipo de atividade que se tornou culturalmente desnecessário. Esse
desligamento com respeito ao contexto cultural é bastante comum na
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 99

história da humanidade e os filósofos não seriam os primeiros nem os


últimos a se tornarem culturalmente irrelevantes e a optarem pela
tentativa de manutenção do status adquirido no passado.
Não creio que adotar esse tipo de postura saudosista faça muito
sentido – embora seja compreensível que se proceda dessa forma em
função das circunstâncias envolvidas e dos velhos hábitos adquiridos.
Ela consiste em acusar a cultura pós-moderna de decadência e,
simultaneamente, desejar a recomposição de um mundo que não existe
mais, justamente aquele que tornava a atividade filosófica tradicional
necessária e digna de reverência. Não creio que esse seja um caminho
promissor na medida em que ele tende a definir a atividade filosófica
orientando-a contra as tendências existentes no restante da cultura.
Esse tipo de disposição ultra combativa parece-me própria de
seitas milenaristas, mas não de uma atividade intelectual que se
desenvolve sob a forma de um diálogo com outras instâncias culturais.
Para quem julga que a filosofia é uma atividade independente que nada
deve à cultura, o milenarismo pode parecer uma posição razoável. Como
tenho tentado destacar aqui, acredito que a filosofia só se tornou
filosofia em função de atender a requisitos culturais específicos e que é
um contrassenso dar as costas ao ambiente da pós-modernidade. Isso
não significa atuar no sentido de referendar a cultura existente e sim
de articular uma prática filosófica que faça sentido para ela.
Parece-me especialmente preocupante ter que admitir que a
filosofia não esteja preparada para adentrar em um ambiente cultural
cada vez mais pluralista. Seria realmente lamentável termos que
reconhecer que a atividade filosófica requer como uma de suas
100 • Filosofia Latino-Americana

condições necessárias uma cultura hierarquizada, a partir da qual ela


possa obter um sentido e uma referência que lhe garantam não apenas
a exclusividade, mas uma posição especial de autoridade. Requerer esse
ambiente para si equivale a defender condições em que podem
prevalecer valores de autoridade tradicionais e avessas às condições de
uma vida democrática.

Publicado originalmente na Revista Latinoamericana de Filosofia,


v. 49, p. 23-40, 2023.

REFERÊNCIAS

Appiah, K. Na casa de meu pai. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

Aristóteles (1982), Metafísica (Madrid: Gredos, 1982.

Berlin, I. The roots of Romanticism. Princeton: Princeton University Press, 1999.

Cerutti Guldberg, H. Filosofar desde nuestra América. México: Porrúa, 2000.

Hegel, G. W. F. Lecciones sobre la filosofía de la historia universal. Madrid: Alianza, 1989.

Hegel, G. W. F. Princípios da filosofia do direito. Lisboa: Guimarães, 1990.

Kirk, G. S., Raven, J. E., e Schofield, M. The presocratic philosophers. Cambridge:


Cambridge University Press, 2007.

Koyré, A. Do mundo fechado ao universo infinito. Rio de Janeiro: Forense Universitária,


2005.

Lima Vaz, H. C. O problema da filosofia no Brasil, Síntese, 30: 11-25.1981.

Lyotard, J.-F. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olympio, 2011.


Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 101

Nietzsche, F. Humano, demasiado humano. São Paulo, Companhia de Bolso, 2018. URL =
<http://www.netmundi.org/home/wp-content/uploads/2017/05/Humano-
Demasiado-Humano.pdf > [Consultado em 13/5/2021].

Silveira, R. A. T. O florescimento da subjetividade contemporânea. Filosofando, 3(2): 131-


142, 2015.

Silveira, R. A. T. Uma mirada sobre a América Latina. In: D. Ramaglia e R.A.T. Silveira.
Miradas filosóficas sobre América Latina. Porto Alegre: Fi, 2020, pp. 164-188).

Volek, E. Anverso y reverso del 101ortuguês de la soledad: Octavio Paz y cien años de
Macondo, Cuadernos del CILHA, 8(9): 131-143, 2007.

Zea, L. La filosofía latinoamericana como filosofía sin más. Mexico: Siglo Veintiuno, 1989.
4
A HIPOCRISIA DA FILOSOFIA LATINO-AMERICANA

Não há nenhuma atividade filosófica latino-americana que possa


evitar um acerto de contas com a crítica. Ela é um dispositivo intelectual
que afirma a virtude de juízos realizados de forma desengajada, como
se fossem emitidos à certa distância. Por isso, ela supõe a capacidade
epistemológica de projetar-se para fora de qualquer situação e
102ortug-la de um ponto de vista não comprometido com os elementos
que a caracterizam. A origem e o desenvolvimento desse dispositivo se
confunde com a própria filosofia ocidental.
Afinal, a pergunta dos primeiros filósofos gregos acerca do
princípio de todas as coisas já exigiu um salto para fora das
circunstâncias imediatas do mundo físico (Kirk, Raven e Schofield,
2007). Esse questionamento postulava a possibilidade de identificar um
elemento do qual procederia tudo o que é aparente. Ele postula uma
dimensão da realidade capaz de unificar a multiplicidade aparente,
mesmo sendo distinta dela.
Essa mesma perspectiva desengajada foi fortalecida pelos
procedimentos monoteístas do Cristianismo que visavam unificar a
totalidade do mundo sob uma única autoridade transcendente. Uma
característica básica dessa atitude é a necessidade de suprimir todas as
formas de politeísmo, concentrando a diversidade sob um único
princípio, hierarquicamente superior e distinto do mundo sensível
(Agostinho, 2000). O monoteísmo afirma a natureza não material de um
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 103

Deus único que é a origem de tudo o que existe. Esse Deus não nasceu
de algo preexistente, mas se originou de si mesmo. Como um princípio
superior auto fundante, sua natureza não se mistura com as
circunstâncias da existência espacial e temporal.
Muito mais tarde, o exercício individual de submeter a escrutínio
as próprias crenças conduziu esse tipo de impulso a um novo patamar
(Descartes, 2018). Impulso que pode ser compreendido como uma
característica de toda a Filosofia Moderna e seu intuito de avaliar a
capacidade humana de conhecer (Locke, 1983; Hume, 2004; Kant, 1994).
A crítica aqui está voltada contra o próprio sujeito que critica, de tal
maneira que exige que ele se afaste epistemologicamente de si mesmo,
se separe de si para, então, poder melhor avaliar sua capacidade de
conhecer.
De uma maneira geral, podemos falar de um dispositivo crítico que
perpassa grande parte da filosofia e da própria cultura ocidental e que
visa aprimorar uma perspectiva desengajada de análise, uma forma
distanciada de avaliar. Ele valoriza aquela dimensão de independência
de um ponto de vista epistemologicamente superior como um requisito
para a emissão de juízos de valor não comprometidos ou estritamente
científicos.
Esse dispositivo crítico é uma espécie de pedra de toque contra o
qual a filosofia latino-americana deve ser contraposta ou um espelho
contra o qual ela adquire uma forma visível. Isso na medida em que a
filosofia latino-americana define-se com relação a esse dispositivo
fundamental da filosofia europeia. Afinal, a existência da filosofia no
ambiente cultural latino-americano se deve ao impulso promovido pela
104 • Filosofia Latino-Americana

colonização europeia. Por isso, a crítica se apresenta como um pano de


fundo para todo pensamento latino-americano. Mesmo que seja para
promover alguma forma de recusa – total ou parcial – dos
procedimentos críticos, uma filosofia latino-americana deve propiciar
um acerto de contas com esse dispositivo. Deixá-lo de lado significaria
tangenciar a própria filosofia latino-americana.
Isso quer dizer que uma filosofia latino-americana necessita
ajustar as contas com a velha Europa, mãe da crítica. Porém, nesse caso,
não se trata apenas de enfrentar um conjunto de valores que, em
determinado momento específico do passado nos constituiu. Trata-se
também de nos darmos conta do quanto nos tornamos críticos.
Isso porque não nos tornamos estritamente críticos. Se isso tivesse
ocorrido, teríamos nos tornado europeus, tanto do ponto de vista de
nossos hábitos racionais quanto de nossa experiência existencial, de
nossas rotinas diárias de vida. As evidências acerca dessa carência
relativa de criticidade estão por toda parte na maneira como vivemos.
Apenas para mencionar um exemplo, observe que nossas
diferenças sociais são gritantes no início do Século XXI e que não fomos
capazes de forjar sociedades democráticas e inclusivas após 200 anos de
Independência política. O Estado representa, no âmbito político, aquela
instância superior e desengajada capaz de ordenar uma diversidade de
interesses individuais. Ou seja, ele exibe uma funcionalidade crítica no
plano político do mesmo modo que o Deus cristão o faz no plano da
salvação.
De fato, o objetivo do Estado é promover a disciplina da sociedade
na proporção em que afirma a validade independente do bem-comum –
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 105

a despeito da variedade e do conflito entre os interesses particulares. O


objetivo do Estado, o bem-comum, não é o bem de nenhuma parte, mas
se coloca acima dela. Ele é um bem desengajado e distinto de todos
aqueles que expressam interesses imediatos. Por isso, o modo como
nossas sociedades latino-americanas se estruturam caracteriza uma
forma não inteiramente crítica de viver. O Estado aqui não cumpre
inteiramente sua função crítica.
Por outro lado, seria ingênuo pensar que não somos críticos, como
se tivéssemos passado incólumes pela experiência colonial e pela longa
exposição ao dispositivo crítico. Desde que os europeus desembarcaram
na América trouxeram suas armas e suas cruzes – os aríetes críticos do
Estado e do Cristianismo. Uma longa exposição a essas estruturas
críticas deixaram suas marcas entre nós, mas não consolidaram uma
hegemonia a ponto de nos confundirmos com o modo de vida dos
colonizadores.
Para perceber a presença desses traços críticos entre nós, basta
verificar que nossas sociedade se organizam com base em Estados
Nacionais que, em tese, incorporam aquele dispositivo no plano político.
Em função disso, somos e não somos críticos – o que torna nossa
situação muito particular e faz da crítica uma pedra de toque para nos
compreendermos.
Um exemplo mais específico de nossa situação é o dos processos de
formação de filósofos. Ainda hoje uma formação em filosofia se dá por
meio de estudos de História da Filosofia Europeia. Além disso, o
ambiente universitário em que essa formação ocorre sofre a influência
decisiva do sistema de produção do conhecimento, forjado com a
106 • Filosofia Latino-Americana

expansão da ciência ocidental. Aliás, todas as práticas derivadas desses


processos de formação científicas, promovidos pelas universidades,
passam por uma regulamentação estatal que disciplina o exercício
profissional. Sem a devida autorização as atividades profissionais são
consideradas ilegais. Esse mecanismo de ordenamento do trabalho se
estrutura em torno da capacidade de fazer valer aquela instância
independente que regula e organiza a totalidade dos aspectos da vida
sem se misturar a ela.
Porém, nenhum desses processos funciona do mesmo modo como
seus congêneres europeus, alterando a função crítica que eles possuem.
Para dizer o mínimo, a formação em filosofia europeia tem pouco a dizer
sobre as realidades específicas da América Latina. Essa desconexão
reforça a atmosfera colonial que caracteriza a relação entre essas duas
culturas. Por seu lado, os sistemas de produção de conhecimento
científico refletem essa mesma disjunção, adotando um formato elitista
distantes do ideal democrático da ciência europeia.
Disso resulta que somos e não somos críticos: as instituições são
idênticas às europeias, mas sua funcionalidade não segue à risca o
roteiro crítico. Assim, podemos avançar um pouco mais e afirmar que a
filosofia latino-americana necessita realizar um ajuste de contas com a
sua ambiguidade crítica. Ela diz respeito ao fato de havermos assumido
um modelo civilizatório europeu e, ao mesmo tempo, não o levarmos a
termo. Isso caracteriza um estado geral de deslocamento entre as
intenções das instituições e dispositivos e sua realização prática, entre
o que é declarado e o que é feito, ao qual retornaremos adiante.
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 107

A partir do reconhecimento daquela necessidade de verificar a


relação que estabelecemos com a crítica, devemos tentar compreender
como temos lidado contraditoriamente com ela. Afinal, se o conjunto de
dispositivos críticos tivesse obtido pleno sucesso no seu transplante
colonial para a América Latina, hoje não seria necessário tratar da
especificidade de uma filosofia latino-americana. Se essa transposição
tivesse ocorrido com sucesso, não faria sentido a discussão sobre nossas
especificidades filosóficas. Afinal, nesse caso a filosofia latino-
americana seria um capítulo da filosofia europeia desenvolvido na
América Latina. No máximo, discutiríamos como esse capítulo em
particular expressa, a seu próprio modo, o vigor e o sucesso da filosofia
da velha Europa na América.
Como sabemos que isso não ocorreu, que não nos tornamos
europeus, algo deve ter se processado com a crítica na América que não
um mero transplante para outra região. Algum tipo de ajuste ou
adaptação foi realizado com a implantação da crítica nas novas terras.
E é esse modo específico que caracteriza uma maneira de pensar, um
tipo de operação que tem nos definido, uma apropriação particular da
crítica – que a tomou como um padrão para as nossas atividades
filosóficas, transformando sua funcionalidade original.
Há certo drama nesse reconhecimento de uma situação ímpar da
filosofia latino-americana diante da crítica. Isso se deve a que todos os
filósofos latino-americanos foram educados naqueles cânones
europeus a que nos referimos acima. Em algum momento de suas
carreiras intelectuais deve se tornar patente para cada um duas
possibilidades: primeiro que seu trabalho consistiria em uma sucursal
108 • Filosofia Latino-Americana

europeia na América. Isso não é nada animador porque nos colocaria em


uma posição subalterna, constrangidos a tentar repetir os temas, os
problemas e as soluções para, em algum momento, estarmos aptos a
contribuir com algo original para o mundo europeu.
Mas essa alegada originalidade potencial jamais poderia ser uma
originalidade propriamente falando, já que consistiria em alguma forma
de contribuição individual a um projeto cultural europeu. Aqui se trata
mais do sentimento individual de se sentir devidamente integrado ao
típico trabalho do filósofo europeu do que de alguma forma de
articulação efetiva entre a filosofia latino-americana e a europeia.
Obviamente não há nada de errado com esse desejo de integração
pessoal. Ele apenas não parece refletir uma posição cultural que possa
se tornar promissora já que diz respeito a projetos de realização
profissional individuais. Se é verdade que uns poucos filósofos latino-
americanos se tornaram filósofos europeus também o é que a América
Latina continua não sendo a Europa.
A segunda possibilidade diz respeito à sensação de que algo de
terrivelmente desastroso teria acontecido nos nossos processos de
formação filosófica, no modo como compreendemos a filosofia europeia
na América Latina. E se algo assim se passou, então jamais poderíamos
realmente contribuir, porque tomamos um caminho errado em alguma
bifurcação no trajeto filosófico que vem da velha Europa. Nesse caso,
seríamos algo como uma variante ainda sem uma forma particular, uma
deriva desconectada do tronco principal. E, como toda deriva, essa pode
ser promissora ou dar em nada.
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 109

Vimos que não somos uma sucursal europeia bem sucedida, já que
a América Latina não é uma Europa transplantada para outro
continente. Então, parece que a segunda hipótese é a mais ajustada para
descrever os eventos que já aconteceram na América Latina. Digo isso,
porque aquelas hipóteses não são dois projetos alternativos, mas duas
formas de contar uma história já acontecida ou em vias de acontecer. A
questão que parece se impor para a Filosofia Latino-americana é a de
verificar se sua situação com relação à crítica expressa um fracasso,
uma promessa de originalidade ou alguma outra coisa. O que não parece
razoável é acreditar que tenhamos nos tornado um capítulo bem
integrado da narrativa europeia mais ampla.
É evidente que o reconhecimento de um fracasso é sempre mais
difícil de ser aceito. Parece mais confortável apostar na possibilidade de
sermos originais, embora sem saber exatamente em que consistiria essa
originalidade. Nesse ambiente, a crença na superioridade da
mestiçagem cultural parece inevitável, porque o seu oposto é o
reconhecimento de que a América Latina não passa de um fracasso –
civilizatório e filosófico. Através da mestiçagem cultural refiro-me ao
fato de que a cultura europeia não colonizou inteiramente o mundo
americano – ao contrário do que ocorreu na América Anglo-Saxã. A
mestiçagem racial está incluída aqui como uma espécie de substrato
biológico dessa mestiçagem cultural, mas essa é bem mais ampla que
aquela e inclui mesmo um país como a Argentina, povoada por três
quartos de imigrantes europeus.
A mestiçagem cultural poderia nos permitir compreender a
absorção parcial do dispositivo crítico como uma vantagem, como uma
110 • Filosofia Latino-Americana

deriva promissora do mundo europeu. Mas para nos colocarmos nessa


posição e apresentar uma narrativa de eventos passados teríamos que
aguardar até que a promessa se cumpra. Ou seja, essa convicção só faria
um sentido concreto depois que a deriva latino-americana da crítica já
houvesse se tornado efetivamente um ramo dotado de vitalidade própria.
Infelizmente isso não ocorreu ainda e nem sabemos se ocorrerá.
É evidente que qualquer um pode defender um projeto otimista
desse tipo, em que a deriva latino-americana da crítica possa gerar
frutos invejáveis e, quem sabe, contribuir decisivamente para a História
da Humanidade ou para a Marcha do Espírito em direção a uma
finalidade de ordem superior. Porém, deixo isso para aqueles que são
realmente otimistas ou que têm talento para cultivar versões do futuro.
A princípio, um projeto me parece valer tanto quanto qualquer outro, a
depender da dose de otimismo com o qual o delineamos.
Me interesso mais pelos resultados, pela narrativa daquilo que já
aconteceu ou que está acontecendo, sem ser necessariamente
pessimista. Podemos falar aqui de um otimismo de resultados ou de um
otimismo tardio, aquele que surge quando as coisas já se materializaram
nesse mundo. Assim, por falta de opção e de talento, enveredamos por
um caminho que nos leva a inquirir sobre o que já aconteceu com a
crítica na América Latina.
Na proposição desse tipo de tarefa filosófica, que envolve avaliar o
caminho que a deriva latino-americana tomou diante dos efeitos da
crítica, parece haver algo que nos escapou até o momento. Ao avaliar a
posição relativa da filosofia latino-americana com relação à crítica,
colocamo-nos em uma posição epistemológica muito particular. Ou
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 111

seja, mesmo quando nos propomos a verificar qual é o resultado da


nossa relação colonial com a crítica, aí mesmo replicamos o mecanismo
crítico da avaliação desengajada.
Ao adotarmos essa perspectiva, lançamos mão do dispositivo
crítico. Porém ele faz parte da equação de como nos relacionamos com
a crítica. Então, terminamos por cair em um tipo de círculo lógico em
que o procedimento que adotamos aqui já é parte daquilo que
pretendemos investigar. Mas, se agirmos assim, estaremos supondo a
validade dos procedimentos que pretendemos avaliar. E isso não parece
muito acertado.
Na verdade, ao agir assim estamos adotando a perspectiva crítica
como um procedimento para avaliar nossa relação com a própria crítica.
De maneira implícita estamos referendando a crítica como estratégia
para pensar o que ocorreu com ela própria por ocasião de seu
transplante para a América Latina. Além de cairmos em evidente
circularidade, também deslizamos para uma confusão entre a atividade
filosófica e a crítica, como se não houvesse mais nenhuma maneira de
analisar nossa questão que não fosse esse último dispositivo.
Em função dessa confusão entre crítica e filosofia, notamos que os
filósofos têm se ocupado com a questão latino-americana como se
dependesse deles uma resposta a como devemos interpretar nossa
maneira de ser. Ou seja, os filósofos latino-americanos se colocam em
condições de estabelecer o significado do transplante da modernidade
crítica para a América Latina. Com essa atitude, a filosofia latino-
americana tem se afirmado com uma instância especialmente capaz de
estipular o sentido geral de toda a nossa cultura e de sua relação ambígua
112 • Filosofia Latino-Americana

com o mundo europeu. Ou seja, ela tem encampado o discurso crítico sem
nenhum tipo de questionamento sobre sua propriedade ou pertinência
para a América Latina – como se o que vale lá também vale aqui, como se
a forma da filosofia já realizada valesse para toda circunstância.
De fato, essa postura afirma implicitamente que a filosofia que
praticamos está dotada de um poder especial de constituir um sentido
que ainda não existe nas demais áreas da cultura. Esse poder especial
derivaria daquela disposição de considerar a totalidade da cultura de um
ponto de vista desengajado, típico da crítica. Em função desse ponto de
vista muito elevado é que caberia aos filósofos latino-americanos a
missão de liderar a obtenção de um sentido para aquilo que resultou na
transposição da crítica para a América. E isso se justificaria porque nós
estaríamos especialmente dotados de...capacidade crítica!
Parece que temos todos os motivos para suspeitar de qualquer um
que queira analisar a feição assumida pelo estatuto crítico na América
Latina em função de se declarar melhor aparelhado com relação ao uso
desse mesmo estatuto. O círculo é muito evidente para não levantar
suspeitas sobre a totalidade desse processo de avaliação. Em último
caso, estaríamos usando a crítica para interpretar e estabelecer o
sentido da interação da crítica com o ambiente latino-americano.
Esse tipo de atitude teórica apenas reafirma a base geral de
conhecimentos adquiridos nos processos de formação fornecida pela
História da Filosofia Ocidental. Ou seja, o que se opera aqui é uma
tomada de posição dentro de um quadro de referências cerrado, que não
admite interferências diferentes daquelas que já se encontram
consolidadas. Esse é um resultado – criticamente deficitário – da
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 113

circularidade crítica fechada dentro do ambiente da velha Europa. Não


se trata somente de circularidade, mas de uma forma de circularidade
que perpetua o mesmo sistema de crenças predominante desde a
chegada dos europeus. Ou seja, o que nós, os filósofos latino-
americanos, temos realizado é uma extensão de conceitos europeus
mesmo quando nos dispomos a pensar os efeitos produzidos pela crítica
na América Latina. Mesmo sabendo que o que ocorreu aqui não foi um
mero transplante, mas alguma forma de deriva adaptativa, mesmo
assim não adotamos nenhuma prudência ao lançar mão de um ponto de
vista tradicional crítico. Reincidimos, portanto, em práticas intelectuais
coloniais: seguimos pensando a América Latina a partir da Europa,
mesmo quando nos sobrecarregamos de boas intenções críticas. Como
se pode ver, o inferno da filosofia latino-americana parece estar repleto
de boas intenções europeias!
Um dos postulados que servem de base para essa circularidade é a
pressuposição de que a filosofia estaria especialmente dotada da
capacidade para liderar a definição de um sentido geral para a cultura
latino-americana. Isso decorreria, obviamente, de sua alegada condição
crítica, da grande distância epistemológica que ela pode adotar com
relação ao que a cerca. Isso a tornaria especialmente dotada para avaliar
o modo de vida latino-americano. O que ocorre, nessa postura geral por
parte da filosofia latino-americana, é a adoção de uma crença implícita
na sua capacidade de falar em nome de todos os demais atores culturais,
de se tornar uma espécie de porta-voz geral da cultura. Tudo sugere que
a capacidade de se colocar em uma posição desengajada, típica da
crítica, foi convertida em uma autorização para liderar. Uma capacidade
114 • Filosofia Latino-Americana

de análise converteu-se em poder de liderança ou em poder para


exercer o poder.
Evidentemente não me refiro aqui ao exercício do poder como
ocupação de postos institucionais de mando. Me refiro a uma conotação
simbólica que implica que o crítico estaria melhor habilitado para
indicar os rumos a serem tomados pela cultura, pelos valores que
fundamentam o modo de vida predominante de uma comunidade.
Trata-se do poder de ditar valores, certamente maior do que o poder de
exercer funções específicas de autoridade. Afinal, essa última forma de
poder depende do resultado daquela. Essa atitude não é estranha à
atividade filosófica ocidental, pelo menos desde Platão (1993).
Nos termos aqui propostos, isso significa que a nossa assimilação
do dispositivo crítico tem se revelado como uma tentativa de repetição
desse dispositivo, já que assume os mesmos pressupostos do modelo
original. Entretanto, vimos acima como esse não é o caso, que a América
Latina não é uma parte da Europa. Então, os valores que estamos
assumindo ao postular a perspectiva crítica como método filosófico está
em contradição frontal em relação ao que aconteceu e acontece aqui.
Nós, os filósofos, seguimos pensando como se estivéssemos na Europa
mesmo quando nos revestimos de boas intenções descolonizadoras.
Uma forte evidência de que ainda nos movemos no interior desse
universo crítico pode ser observado ao constatarmos que ser crítico
ainda é considerado uma virtude intelectual, no mesmo sentido
expresso pela filosofia ocidental. Não se trata aqui somente de lançar
mão de um dispositivo inadequado para compreender um objeto de
estudo. Se trata de lançar mão de um método que contradiz o conteúdo
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 115

daquilo que se tenta entender e avaliar. Se a cultura latino-americana


não é crítica – naquele sentido que indicamos acima – para que serviria
115ortug-la de uma perspectiva crítica?
Talvez somente para obter a sensação reconfortante de seguir
utilizando os mesmos procedimentos adquiridos durante os anos de
formação em filosofia ocidental. Talvez para enfatizar que mantemos os
padrões originais de pureza crítica no contexto de uma realidade em
que ela não funciona. Seja como for, essa persistência subterrânea da
crítica parece fazer ressoar muito mais um certo conforto subjetivo do
que um procedimento escolhido por meio de um juízo realmente crítico.
Ela está mais ligada à necessidade de segurança por parte dos filósofos
em lançar mão de procedimentos já consolidados do que em aventurar-
se em seu próprio mundo (ainda desconhecido).
Não é ocasional, portanto, que grande parte das discussões sobre
filosofia latino-americana sejam tipicamente historiográficas. Essa
linha de trabalho possui uma verdadeira compulsão pelos debates
filosóficos que foram realizados no passado. Ao deslocar o debate para
essa dimensão, o sentido da crítica na América Latina torna-se de
maneira sutil uma questão de história da filosofia. Além disso, com essa
estratégia, certamente inconsciente, os filósofos creem permanecer no
controle de tudo o que é relevante sobre a América Latina: a história da
filosofia latino-americana. Mas o que tem escapado à filosofia latino-
americana é justamente aquilo que ainda não faz parte de história da
filosofia: a maneira disfuncional das operações críticas realizadas na
América Latina. Se preferirmos, podemos chamar essa situação de
116 • Filosofia Latino-Americana

perturbações críticas para enfatizar o modo pouco crítico de operar a


crítica – ou os modos pouco europeus da América Latina.
Certamente daqui emergiu aquele conhecido constrangimento em
se utilizar os termos filosofia brasileira ou filosofia colombiana – por
exemplo – e a opção por filosofia no Brasil ou filosofia na Colômbia para
evidenciar a continuidade com relação ao mundo europeu e o
desconforto na proposição de uma outra direção a ser adotada, mais
afeita às modalidades latino-americanas.
Mesmo quando a questão não é tipicamente historiográfica, ela
tende a se restringir a uma tomada de posição dentro do espectro de
teorias filosóficas existentes, porque esse é o quadro de referências que
faz parte de toda a formação filosófica disponível. Então, os problemas
da filosofia latino-americana têm se definido, algumas vezes, pela
discussão se devemos adotar uma postura fenomenológica ou histórica
ou analítica etc. Observe aqui a restrição que é produzida quase de
maneira automática: a prática da filosofia latino-americana torna-se
uma tomada de posição dentro do conjunto de opções filosóficas
europeias disponíveis – ou por meio de uma adaptação dessas
referências. Isto é, definir o que é a filosofia latino-americana resume-
se a assumir uma posição particular dentro do quadro de opções
fornecido pela história da filosofia europeia. Saber como a crítica
funciona na América Latina tem sido uma questão formulada nos
termos da filosofia europeia. Isso porque, como vimos acima, na própria
análise que nos propomos a realizar já adotamos procedimentos críticos
– logo europeus.
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 117

Um resumo panorâmico da situação pode sugerir dois tipos de


circularidade: a análise da crítica realizada por meio do dispositivo
crítico e a análise da filosofia latino-americana realizada por meio dos
dispositivos filosóficos europeus já existentes. Em ambos os casos se
nota o mesmo tipo de fechamento dentro de um quadro de referências
preexistentes. Uma circularidade que, por definição, não pode chegar
muito longe das opções de que se parte.
A questão que quero ressaltar não é a de falta de disposição para a
originalidade, como se tudo se resumisse a escolher que teoria seguir.
Isso se resolveria através da adoção de outra disposição para se
aventurar em busca de uma filosofia latino-americana autóctone.
Quero destacar aqui algo um pouco mais sutil: mesmo quando se
opta pela tentativa de originalidade, se assume uma compreensão de
que a filosofia é uma atividade que ocorre dentro de limites críticos pré-
definidos Assim, se entende que o problema da adaptação da crítica na
América é uma questão filosófica. E, com isso, que as eventuais soluções
terão que ser filosóficas, criadas e desenvolvidas por filósofos. Ou seja,
se replica aquela crença da posição especial do poder cultural, que seria
uma atribuição específica dos filósofos. Caberia a eles liderarem
qualquer processo de descolonização – desde que isso implique um
movimento para fora da Europa e para dentro da América Latina.
Nesse caso, mesmo quando nos propomos a seguir em direção a
uma desejada originalidade não alteramos aquela posição crítica
especial da filosofia ocidental. Portanto, se trata de uma modalidade de
originalidade de cartas marcadas, de um avanço dentro das velhas
fronteiras da crítica europeia, de uma aventura em direção ao que já
118 • Filosofia Latino-Americana

sabemos. Nesse caso, nos movimentamos em direção à América Latina


adotando os velhos parâmetros da filosofia crítica europeia.
É evidente que isso não se expressa como uma teoria explícita por
parte dos filósofos latino-americanos. Estamos nos movendo aqui no
interior daquele conjunto de procedimentos implícitos que fazem parte
do dia-a-dia da atividade filosófica. Mas essa avaliação acerca da
natureza dos debates e dos procedimentos metodológicos que são
adotados restringe o problema latino-americano a uma questão contida
nos limites da atividade filosófica. Em função disso e do peso da
tradição, a questão desliza suavemente para o interior da atividade
filosófica europeia.
Entendo que essa compreensão endógena da atividade filosófica é
equivocada em função do elitismo e das restrições indevidas que ela
produz. O elitismo é patente na medida em que nela a filosofia coloca-
se em uma posição de liderança cultural. Essa liderança não é justificada
e nem é o resultado de alguma experiência histórica latino-americana.
Não se discute aqui que essa função de liderança já tenha sido
reivindicada e exercida por solicitação da própria cultura, como na
Grécia Antiga (Silveira, 2020).
Mas a extensão automática dessa função de liderança para outras
situações culturais não possui justificativas explícitas. Ela se deve
exclusivamente a um hábito intelectual fundado em uma certa definição
de filosofia e extrapolado para outras situações. Nesse ponto parece
evidente que a compreensão da atividade filosófica como
essencialmente crítica é um hábito corporativo que se intrometeu em
toda a atividade filosófica – evidentemente por falta de crítica. É como
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 119

se essa alegada virtude crítica, da qual tanto nos orgulhamos, não fosse
devidamente colocada em prática. Daí a carência de crítica na maneira
como exercemos a filosofia latino-americana, nossa hipocrítica ou
nossa hipocrisia involuntária.
Pior que essa conotação elitista do exercício filosófico são as
consequências danosas para a própria filosofia. Uma filosofia que se
detenha dentro dos muros de sua própria disciplina recai sempre em
alguma forma de historiografia. Ela passa a viver da sua própria riqueza
já consolidada, das conquistas do passado. Mas isso não garante a ela
nenhum tipo de capacidade para articular-se com o restante da cultura.
Ao contrário, esse hábito em alimentar-se apenas de si mesmo torna-a
gradualmente inapta ao diálogo, à expansão de seus horizontes e à sua
própria redefinição em contato com outros mundos. Toda filosofia
dotada de vitalidade necessita comer os outros.
Ou a filosofia latino-americana dialoga com outras áreas da cultura
ou definha em culto à sua própria tradição, logo em filosofia ocidental.
Definha porque sua vitalidade depende da capacidade de dizer algo de
relevante para o restante do universo não filosófico. O valor de uma
determinada atividade não se estabelece em função de características
tidas como excelentes pelos que a praticam. Ele se estabelece pela
capacidade de afetar o mundo externo, de estabelecer conexões e
mostrar-se importante para os outros. O fato da filosofia ocidental ter
se mostrado importante para alguém em alguma ocasião não faz dela
algo importante para todos e sempre.
Não há opção a esse reconhecimento exterior dos outros que não
conduza a algum estreitamento da atividade filosófica. Acredito que
120 • Filosofia Latino-Americana

temos caído nessa tentação em função do modelo pedagógico que


privilegia o estudo da história da filosofia em detrimento de uma
participação efetiva no debate cultural mais amplo. Mas esse modelo
pedagógico não é um acidente de percurso. Ele reflete a suposta
capacidade crítica da filosofia, sua crença de que ela já está dotada da
chave que abre todas as portas. Essa ilusão nos leva a crer que bastaria
continuar tentando encontrar as fechaduras certas para uma chave
mágica que se encontra no nosso bolso.
Não submeter a crítica a crítica, não significa somente perpetuar o
predomínio de categorias europeias já assimiladas – alinhar-se a uma
certa forma de colonialismo epistemológico. Não submeter a crítica à
devida crítica também é uma forma de conforto intelectual e de
hipocrisia. Nesse sentido, mesmo as boas intenções descolonizadoras
podem estar sendo vítimas da carência de crítica.
A porta de entrada para uma filosofia latino-americana menos
hipócrita está no reconhecimento de que somos e não somos críticos, de
que somos e não somos europeus. Para nós, filósofos latino-americanos,
é muito fácil acreditarmos que somos filósofos europeus, o difícil é
descobrir que não somos. E, mais árduo ainda, é perceber que somos e
não somos.

Publicado originalmente na Revista Disertaciones, v. 12, p. 7-22, 2023

REFERÊNCIAS

Agostinho. A Cidade de Deus. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2000.


Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 121

Descartes, R. Discours de la méthode pour bien conduire sa raison et chercher la vérité dans
les sciences. Disponível em http://lyc-sevres.ac-versailles.fr/eee.13-14.docs/
descartes.discours.texte.integral.pdf Consultado em 17/4/2021

Hume, D. Investigações sobre o entendimento humano e sobre os princípios da moral. São


Paulo: Editora UNESP, 2004.

Locke, J. Ensaio sobre o entendimento humano. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

Kant, I. Crítica da razão pura. Lisboa: Fundação Calouste-Gulbenkian, 1994.

Kirk, G. S.; Raven, J. E.; Schofield, M. The presocratic philosophers. Cambridge: Cambridge
University Press, 2007.

Platão. A República. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1993

Silveira, R.A.T. Uma mirada sobre a América Latina. IN: Ramaglia, D.; Silveira, R. A. T.
(Orgs.) Miradas filosóficas sobra a América Latina. Porto Alegre: FI, 2020. pp. 164-188.
5
A COLONIAL FILOSOFIA BRASILEIRA

A filosofia brasileira é colonial, mesmo que não estejamos mais


vivendo no período histórico que é assim denominado. Esse caráter da
nossa atividade filosófica não está ligado à época histórica em que
vivemos e sim ao fato da filosofia ser praticada desconsiderando aquilo
que é próprio da vida do Brasil – e tendo em vista preferencialmente os
problemas da cultura de matriz europeia. Isso ocorre porque a filosofia
entre nós não surgiu de uma demanda interior da própria cultura
brasileira. A atividade filosófica foi acrescentada ao nosso ambiente sem
ser precedida de nenhuma necessidade interior, sem um período
apropriado de gestação.
Na verdade, o próprio país constituiu-se como um acréscimo
enxertado na base original indígena. Em função do desembarque
abrupto dos europeus nessas terras o mundo ocidental foi enxertado na
planta nativa. É natural que, nesse contexto, atividades próprias da
cultura europeia tenham se transplantado para o Brasil, por mera
extensão da origem metropolitana e sem qualquer tipo de conexão
íntima com o que antes havia aqui. Essa enxertia é um gesto de força,
uma sobreposição de extratos culturais diferentes, uma colagem
externa. Daí a violência que caracteriza todo o dispositivo colonial e que
se funda na experiência de diferenças irreconciliáveis. Dada a
impossibilidade de relações orgânicas entre elementos culturais tão
díspares, o choque e a justaposição tornaram-se as únicas formas de
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 123

conexão possíveis. Ambas as possibilidades – o choque ou a justaposição


das diferenças – fazem emergir a violência ou reafirmam a
desigualdade. Desigualdade que nada mais é que outra forma de
violência.
Em função do processo de colonização, nada no Brasil foi gestado
por forças endógenas, por meio de uma evolução interna ou por
amadurecimento gradual. Tudo por aqui foi sobreposto ao que já havia
sem maiores considerações ou avaliações de pertinência, articulação ou
propriedade. O mesmo também ocorreu com a filosofia importada das
práticas intelectuais europeias, em que ela havia se estabelecido por
força de um enraizamento cultural de longa data.
Como se pode perceber pela situação histórica da conquista
europeia, a sociedade brasileira não gestou a necessidade de um
dispositivo estatal que resolvesse os problemas efetivamente vividos
pelos brasileiros. Nesse caso, ao contrário daquela narrativa hegeliana
(Hegel, 1986) acerca do emergência do Estado europeu a partir das
contradições da sociedade civil, no Brasil o Estado é anterior à
sociedade. Ele não somente a antecedeu, mas tomou para si a tarefa de
criar uma sociedade. Uma sociedade dispersa não permitia a
experiência urbana e as relações típicas da vida estatal europeia. Por
isso, o Estado promoveu os vários sistemas de redução da população
indígena e as iniciativas de catequese cristã visando obter membros
para uma sociedade civil que não existia.
No mesmo espírito, mas em sentido contrário, essa mesma
sociedade criada pelo Estado jamais requisitou soluções filosóficas para
seus problemas. No Brasil não houve a necessidade de nenhuma
124 • Filosofia Latino-Americana

discussão para legitimar o regime colonial, diferentemente do que


ocorreu com o Império Espanhol. Mas mesmo aí, após os primeiros anos
de colonialismo, a violência exercida contra a população asteca e inca
tornou-se um fato consumado (Ricard, 1986). O sistema de repartimento
da população sob o regime espanhol de encomiendas simplesmente
tornou ultrapassada a discussão sobre a humanidade ou não dos
indígenas.
Essa situação cultural muito específica do colonialismo na
América, marcada pela justaposição de estratos de vida original e de
camadas ocidentais sobrepostas, revela a natureza de nossas práticas
intelectuais e, entre elas, a da filosofia que praticamos. O sentimento,
disperso na comunidade filosófica, de que sua atividade não possui o
devido reconhecimento social origina-se dessa circunstância cultural.
Não há como existir reconhecimento social com relação a uma atividade
que não está encarregada de algo culturalmente significativo, que não
foi gestado como solução de problemas sentidos como essenciais. Daí a
marca de artificialidade cultural que marca a filosofia brasileira – o
gosto pela erudição e o bacharelismo (Azevedo, 1963).
Em função da poderosa influência dos dispositivos de pensamento
europeu, tendemos a analisar situações culturais a partir de uma
perspectiva orgânica ou sistemática, similar àquela descrição hegeliana
sobre a gênese do Estado europeu. Isso significa que adotamos uma
postura de não avaliar nada em separado, como se a parte não existisse
nem significasse nada por si mesma. Desse ponto de vista, qualquer
aspecto de um complexo cultural deve ser analisado tendo em conta o
pano de fundo contra o qual se destaca. Essa perspectiva orgânica
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 125

parece muito prudente e supõe reconhecer que a cultura possui algum


aspecto vital: uma certa unidade que conforma as partes em alguma
medida, de tal forma que tratamos sempre de um sistema, de um
conjunto de elementos articulados e não de partes isoladas ou
frouxamente conectadas.
Se adotamos essa perspectiva europeia para analisar a cultura
brasileira teríamos que atentar para a consistência das partes, a
coerência interna do todo, a adequação dos elementos que fazem parte
dela e que caracterizariam seu conjunto. Essa perspectiva é orgânica
justamente porque tenta avaliar a partir da suposição de que existe um
sistema cultural articulado em que os elementos que se colocam em
questão são partes de uma mesma totalidade. Por isso, esse ponto de
vista tende a ser unitário e sintético.
No caso da filosofia brasileira, isso significa que uma avaliação
ajustada acerca dela passaria por verificar suas relações com o restante
da cultura brasileira, de tal maneira que fosse possível perceber suas
conexões internas. Porém, como acabamos de ver a filosofia brasileira,
em função do processo colonial que a gestou, não está conectada com a
vida do país. Como ela não surgiu de uma necessidade interna do nosso
modo de vida, como ela não manifesta uma relação de integração com o
restante de nosso modo de ser, ela é uma atividade decorativa,
sobreposta e desconectada dos demais aspectos que fazem parte do
Brasil.
O problema com aquela maneira de pensar europeia de viés
orgânico é que ela supõe uma circunstância cultural que não é a nossa.
No Brasil, a conquista criou uma situação ímpar em que não ocorreu a
126 • Filosofia Latino-Americana

emersão de instituições em função de uma maturação social mais ou


menos lenta. A sobreposição forjou um panorama fracionado em que a
aparente razoabilidade de uma perspectiva orgânica deixa de fazer
sentido.
Além do mais, a estrutura da sobreposição não é somente um gesto
de força original. Ele se consolidou como um dispositivo responsável
por acomodar os vários extratos culturais de formação do Brasil, mesmo
após a conquista, fazendo perseverar a característica colonial para além
daquele momento histórico. Por isso, os demais aspectos daquilo que
temos nos tornado também assumiram a feição de elementos culturais
desconectados.
Com isso quero dizer que a situação cultural colonial persevera
ainda hoje, por haver se tornado um modo de ser, uma forma de
articular a sociedade, as relações humanas que ocorrem por aqui. Me
refiro, assim, ao fato do país ainda estar sendo colonial no início do
Século XXI. Por isso o caráter colonial de nossa filosofia que não escapou
do dispositivo colonial até o momento.
Em função da vigência desse dispositivo cultural de conexão
exterior de elementos diversos não faz sentido adotar uma perspectiva
de análise e interpretação que tome uma direção contrária, orgânica.
Esse modo de pensar não se ajusta à estrutura predominante da
sociedade brasileira e, portanto, não nos ajuda a 126ortugu-la. Ele
certamente torna possível a crítica com relação ao Brasil, porém se trata
sempre de uma crítica exterior que, como tal, parte de um ponto de vista
distanciado com relação ao que existe. Sendo assim, não faz sentido
demandar da atividade filosófica brasileira um tipo de vínculo com o
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 127

restante da vida brasileira que é estranha à maneira como nossa cultura


tem se caracterizado. A artificialidade da filosofia não é um defeito, mas
uma modalidade de pensamento plenamente adaptada ao nosso
ambiente cultural.
Com isso quero dizer que a expectativa de se realizar uma avaliação
orgânica da filosofia brasileira, conectando-a com o restante do país,
está fadada ao insucesso. Isso porque nada encontraremos aqui que não
seja uma carência de articulação entre elementos culturais, um
desajuste e uma sobreposição de diferenças – e não um sistema cultural.
Dessa perspectiva – em que ajustamos a avaliação da filosofia brasileira
aos valores hegemônicos do Brasil – é inevitável concluir que ela nada
diz sobre o país, mas também que ela não deveria dizê-lo. Afinal, ela é
uma atividade europeia, exportada para um ambiente estranho com o
qual ainda não se conectou internamente. Como tantos outros
elementos culturais brasileiros, ela não emergiu de um solo comum, de
uma maturação orgânica, mas de um gesto de violência.
Não parece necessário deter-me aqui na consideração desse
aspecto colonial do pensamento filosófico brasileiro – de que ele ainda
não está habilitado para pensar organicamente o Brasil. A discussão
sobre a pertinência e a amplitude do que seria uma filosofia brasileira,
levada a cabo pela comunidade filosófica brasileira na Coluna da ANPOF
(Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia) no ano de 2017
parece-me ilustrar satisfatoriamente essa situação.
A afirmação da necessidade de postergar a prática filosófica
brasileira para que se produza uma discussão prévia sobre ela, é um
sinal evidente do desconforto causado pela tematização filosófica do
128 • Filosofia Latino-Americana

país. Isso me parece revelar justamente o quanto a percepção da prática


intelectual desconectada com o restante do país ainda é percebida como
algo que deveria ser superado. E esse projeto só faz sentido se
reconhecermos que aquela perspectiva orgânica ainda parece ser um
ideal que perseguimos implicitamente e que está em contradição com a
nossa situação cultural atual. Ou seja, desejamos pensar a cultura de
nosso país de um modo articulado e fazer com que a filosofia caminhe
na direção de estabelecer organicidade com o restante do ambiente.
Porém, essa direção está destinada ao fracasso em função do ambiente
cultural no qual predomina a fragmentação.
Se existisse uma articulação entre a filosofia e o restante da cultura
brasileira, expressa por efetivas conexões, não haveria tal desconforto
nem o sentimento de que dedicar-se a pensar filosoficamente o Brasil
poderia ser algo problemático. O fato de que haja a percepção de uma
dificuldade em se orientar a filosofia para pensar o Brasil indica algum
reconhecimento de que essa relação não é natural, de que há alguma
ruptura ou princípio contra o qual deveríamos lutar para 128ortu-la
válida.
Acredito que esse desconforto revela justamente a existência de
uma situação cultural fragmentária em que há uma justaposição entre
a filosofia e o Brasil e, ao mesmo tempo, um sentimento que demanda
outra coisa: a sistematicidade. Mas não faz sentido adotarmos uma
perspectiva que supõe aquela organicidade como algo natural e como
um ponto de partida válido para compreender a totalidade de nossa
situação, já que nada por aqui nos permite 128ortuguês128-la. E se esse
ponto de vista orgânico não é apropriado, temos que nos mover para
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 129

outro que seja pertinente – no sentido de levar em conta o caráter


fragmentário de nossa situação cultural (Silveira, 2015).
Quando nos dispomos a aproximar a filosofia da realidade
brasileira, estamos agindo com a expectativa de estabelecer
organicidade. Porém, a organicidade não reflete uma característica do
ambiente brasileiro, mas sim do europeu. Assim, nossa intenção de
fazer a filosofia aproximar-se do nosso país está pautada por um
dispositivo de pensamento europeu. Quando mais desejamos ser
filósofos brasileiros autênticos é que nos revelamos mais europeus e,
portanto, mais colonialistas. Há nessa disposição de se fazer uma
filosofia ajustada organicamente ao Brasil a presença de certa
intransigência em manter padrões de pensamento, hábitos mentais
consolidados, mesmo em situações em relação aos quais eles não se
mostram promissores, como é o caso da nossa cultura.
O curioso é que é precisamente a tentativa de estabelecer relações
orgânicas entre a filosofia brasileira e o Brasil que manifesta a
inorganicidade de nossa maneira de pensar – contra nossas melhores
intenções. Com essa determinação de conectar a filosofia e o Brasil
estamos tentando unir coisas que não possuem conexões internas e
reforçamos o dispositivo colonial da justaposição entre elementos
culturais. É o desejo por organicidade que reforça as relações coloniais
entre a filosofia e o país. É ele que instiga a reprodução do colonialismo.
Como a forma de constituição e organização da sociedade
brasileira não expressa necessidades internas, não faz sentido adotar
uma perspectiva teórica sistemática e nem desenvolver uma
expectativa de ajuste derivado dessa última. Se, ainda assim, insistimos
130 • Filosofia Latino-Americana

nessa perspectiva sistemática como um modo de avaliar a atividade


filosófica brasileira, estaremos lançando mão de um artifício teórico
condenado ao fracasso, na medida em que ele tenta fazer valer um
conjunto de maneiras de pensar que não se aplicam à condição colonial
brasileira. Nesse caso, mantemos os dispositivos europeus de pensar em
uma realidade que não se ajusta a ela – justamente enquanto buscamos
esse ajuste. Permanecemos inflexíveis em nossos procedimentos
teóricos contra tudo aquilo que experimentamos no dia-a-dia, na vida
cotidiana brasileira. Ao agir dessa forma, nos distanciamos ainda mais
daquilo que é relevante para a nossa cultura, isolamos a atividade
filosófica, nos desconectamos do entorno e fortalecemos o dispositivo
colonial no âmbito filosófico.
O que revelamos com a demanda de aproximação entre a filosofia
e o Brasil é, na verdade, o desejo de que o país se converta em um tipo
de realidade que possa ser pensado pelo esquema europeu da
organicidade cultural. Essa demanda mostra uma indisposição e uma
má vontade com o modo de ser atual do país. Não parece sensato
solicitar que o país seja mais sensível aos modos de se fazer filosofia
europeia. A única atitude razoável nessa situação é decidir-se a fazer
uma filosofia ajustada ao país, portanto uma atividade que leve em
consideração a nossa maneira de ser colonial, inorgânica e
desarticulada.
O país não será o que queremos que ele seja porque assim o
desejamos. Esse desejo civilizatório já produziu as loucuras da violência
genocida, da escravidão, da conversão forçada ao Cristianismo à base do
cepo e do açoite e outras tantas formas de desconsideração pelos
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 131

dispositivos culturais existentes. Esse é o mesmo desejo insano que


alimenta a situação colonial e a violência.
Afinal, de que serviria avaliar uma situação contra um pano de
fundo que, ao pretender realizar uma avaliação sistemática faz
justamente o contrário – ao ampliar a fragmentação entre o que há e
como pensamos? A questão é que a perspectiva sistemática não é
apropriada para realizar uma análise da vida nacional, porque ela supõe
algo que não existe: uma conexão orgânica entre as partes da sociedade
brasileira, uma situação em que as instituições e os procedimentos são
gestados como soluções para situações preexistentes. Assim, embora a
perspectiva orgânica pareça muito sensata de um ponto de vista
tradicional europeu, ela não deveria se aplicar ao Brasil. Agir dessa
forma é certamente uma opção dentro do quadro de referências
existentes. Mas isso apenas fortalece os traços coloniais que já são
hegemônicos.
Para ilustrar a situação, me deterei rapidamente em algumas
questões de natureza política. Não me ocuparei com o assunto tentando
identificar uma causa para a nossa fragmentação cultural, o que me
parece poder ser realizado por historiadores mais bem preparados.
Ocupo-me com ele de maneira a elucidar uma situação dada, sem
pretender refazer sua origem. Meu propósito é tornar especialmente
evidente para o leitor a existência de um panorama cultural brasileiro
fraturado em elementos justapostos. Isso é fundamental para
destacarmos como a demanda por ajuste entre a filosofia e a cultura
brasileira consiste em um mecanismo de reprodução do aspecto colonial
do Brasil.
132 • Filosofia Latino-Americana

Desde a chegada dos portugueses até o final do Segundo Império,


as relações produtivas no Brasil foram baseadas na mão de obra escrava.
Nesse período, o sistema produtivo nacional era inteiramente voltado
para trocas no mercado internacional, principalmente de açúcar e café.
Tudo o que era economicamente relevante nesse período passava, no
Brasil, pelas relações escravistas. Foi através dessa modalidade de
trabalho que o país foi inserido na economia mundial.
A maioria da população livre não podia ser integrada a esse
processo produtivo de predomínio de relações escravistas. Isso porque
haviam poucas funções produtivas que ela podia exercer preservando-
se essa condição de liberdade. De certa forma, era a própria liberdade
que implicava uma posição social marginal – no sentido dela impedir
uma integração plena ao sistema de produção escravista. Nessas
condições, a simples adoção do trabalho braçal pela população livre
implicava uma diminuição da dignidade humana (Nabuco, 1988). Além
disso, uma efetiva integração ao sistema escravagista envolvia algo
altamente indesejável: a perda da liberdade.
Existia uma barreira social que impossibilitava uma plena
integração das pessoas livres a um mercado de trabalho
majoritariamente escravista. Como nesse regime produtivo o trabalho
típico é escravo, não é possível participar dele sem abdicar da condição
de liberdade – ou sem sacrificar parte da dignidade que lhe é própria ao
se adotar o trabalho braçal.
Em 1850 o Império promulgou a Lei de Terras que restringiu o
acesso às terras devolutas. Na prática, a Coroa brasileira tornou-se
proprietária de todas as terras não ocupadas. A partir de então, elas só
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 133

poderiam ser utilizadas através de compra realizada da mão do Estado


brasileiro. A situação anterior à promulgação dessa lei permitia a
ocupação e a posse, sem nenhuma exigência legal, prosseguindo uma
lógica de expansão contínua da população para o oeste e o norte.
Em função da alteração contida nessa nova legislação, ocorreram
alguns distúrbios sociais fundados no temor de que o Império pretendia,
com a redução do acesso à posse da terra, transformar homens livres
em escravos. Isso porque não podendo mais ocupar novas terras, a
população livre não teria como prover sua sobrevivência e teria que se
abrigar no interior das relações produtivas existentes. Isto é, se criou o
temor de que a população livre teria que se integrar ao regime escravista
em vigor – obviamente sob a modalidade de escravos.
Esse temor da conversão de pessoas livres em escravos tem sentido
dentro de um panorama cultural em que o sistema produtivo
predominante estava fundado na mão de obra escrava. Desnecessário
acrescentar aqui que essa modalidade de integração social não
funcionava como um atrativo para a população livre. Isso revela como
essa população existia à parte do regime produtivo e, por isso, à margem
da sociabilidade predominante. Podendo deslocar-se continuamente
para novas terras, numa situação em que o território disponível era
praticamente inesgotável, a população livre podia afastar-se das
relações sociais baseadas no trabalho escravo, livrando-se de seu peso
por meio de uma espécie de fuga e afastamento contínuo. Com a Lei de
Terras esse movimento de fuga foi bloqueado, forçando o extrato social
livre a integrar-se ao sistema produtivo escravagista. Com a nova lei o
134 • Filosofia Latino-Americana

sistema de escape das relações sociais escravagistas foi eliminado e as


pessoas livres teriam, agora, de se integrarem ao sistema vigente.
Na verdade, a situação existente previamente à lei permitia uma
convivência de duas modalidades de sociedade que mal se tocavam. De
um lado, havia a sociedade baseada no trabalho escravo e, de outra, a
sociedade dos homens livres em que se cuidava da sobrevivência ou da
ascensão à posse de escravos para, então, adotar-se o único papel social
possível para homens livres no interior do sistema escravista: o de
proprietário de escravos (Franco, 1983).
Daí se pode perceber como a funcionalidade da sociedade
brasileira, baseada na produção escrava, promoveu uma forma de
desarticulação social como mecanismo básico de reprodução. Ou seja, a
população livre não desempenhava nenhuma atividade econômica
relevante – que não fosse contribuir para o regime escravagista, seja
como donos de escravos, seja como feitores, seja como trabalhadores
especializados marginalmente integrados a alguns processos
produtivos, como o do açúcar.
Todas essas categorias de participação, possíveis no sistema
produtivo escravista, fortaleciam o próprio sistema ou, de um ponto de
vista mais geral, fortaleciam a desarticulação entre os diferentes
extratos sociais. Quanto maior o número de pessoas livres integradas ao
sistema de produção escravista (apenas possível sob a forma de
proprietários) maior a desintegração e o fosso social cavado entre livres
e escravos. Desse modo, a forma de articulação entre os diferentes
extratos sociais pode ser definido como um sistema de desarticulação.
O que esse sistema produzia não era uma sociedade mais orgânica,
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 135

unificada sob determinados valores, mas uma sociedade fragmentada,


cindida em partes diferentes.
O importante a salientar aqui é o fato de que tal regime reproduzia
uma cisão social que era impossível de ser superada dentro do quadro
geral vigente. Nesse sentido, aquele temor de que o Império gestava um
projeto de redução de homens livres à condição escrava, através da
legislação de terras de 1850, é muito eloquente. A população livre adotou
uma modalidade de existência baseada na não participação em uma
sociedade que lhe parecia ameaçadora – portanto, a solução se dava por
meio da fuga com relação à sociabilidade escravagista vigente. Essa
população estava excluída da vida econômica e dela só podia fazer parte
adotando o papel de proprietários de mão de obra no sistema de
produção escravagista. Pelo menos até que a ameaça de converter a
todos em escravos foi ativada pela Lei de Terras.
É interessante notar que a população livre percebia o regime social
vigente como uma ameaça constante à sua própria liberdade, como um
perigo iminente de ampliação da escravidão até a sua própria absorção.
Portanto, a atitude consequente para as pessoas livres diante dessa
forma de sociabilidade era manter-se à parte, distanciar-se para uma
condição de vida segura, fora das relações escravagistas, não se deixar
integrar.
Como já disse, não era impossível tornar-se dono de escravos e
integrar-se ao sistema. Muitos pequenos lavradores os possuíam até o
momento em que os escravos tornaram-se muito caros. Mas esse tipo
de inserção social alimentava justamente a roda social da fragmentação
e da desarticulação em que não havia, de um ponto de vista global, como
136 • Filosofia Latino-Americana

manter a liberdade e tornar-se simultaneamente membro dessa


sociedade. Ser um proprietário de escravos foi se tornando
gradualmente um privilégio para poucos, na mesma medida em que as
pessoas livres eram empurradas para as margens, para fora do sistema
escravagista.
Podemos entender essa dinâmica como a manifestação mais
significativa de um tipo de sociabilidade que não possui nenhuma
vocação para integrar seus membros. O sistema escravagista tende
justamente a fazer perseverar as enormes diferenças que são sua
condição de existência. Sua base é a crença de que alguns seres humanos
possuem algum tipo muito agudo de inferioridade com relação àqueles
que se proclamam seus proprietários. Assim, o sistema escravagista não
pode abdicar dessa crença fundamental sem gerar uma contradição
mortal consigo mesmo. Por isso, ele se alimenta e reproduz diferenças
sociais profundas sem as quais não poderia existir.
O que resulta dessa estrutura social é a necessidade, por parte da
população livre e sem posses, de manter-se separado dela, estar nela –
porque afinal, se estava nela fisicamente querendo ou não – sem
inserir-se aí em função do seu aspecto permanentemente ameaçador. A
maneira como essa sociedade integrava a população livre a si mesma
gerava a desintegração como resposta. Por outro lado, a integração
através da escravidão não pode ser efetivamente considerada uma
forma de sociabilidade diferente daquela, justamente porque ela supõe
a submissão incondicional do escravo – uma forma de cisão social.
Nessa relação, o escravo é integrado através da desintegração, em
função da subtração forçada de sua condição de liberdade e da diferença
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 137

hierárquica estabelecida com relação aos proprietários. De fato, na


relação mercantil escravagista existente no Brasil colônia, o escravo é
uma mercadoria (Novais, 1986). E não pode haver integração social entre
pessoas e mercadorias.
Por isso, nós ainda temos no Brasil uma sociedade que se estrutura
adotando mecanismos de exclusão, processos que geram formas de
sociabilidade desintegradoras. Podemos falar de estratos sociais
diferentes, de elementos justapostos que raramente se tocam e que,
quando isso ocorre, reforçam os mecanismos de exclusão, reinstalam a
separação em outros termos.
De um ponto de vista temporal mais amplo podemos descrever a
sociedade brasileira como dotada da capacidade de perpetuar a exclusão
em outros termos que não mais os escravistas. Apesar da abolição da
escravidão, o dispositivo da desintegração ou da justaposição social
permanece como forma hegemônica de reprodução social.
Essa capacidade de mover-se ao longo do tempo perpetuando o
dispositivo básico de exclusão permite que o Brasil se modernize sem se
modernizar, adote relações produtivas industriais sem se industrializar
(Martins, 1975) etc. Isso permite que a sociedade brasileira resista às
mudanças modernizadoras porque adotou como regra fundamental a
justaposição de elementos culturais. Esse arranjo impede que a eventual
introdução de um elemento novo, dotado de poder destruidor ou de um
aspecto negativo diante da configuração existente, impacte a totalidade
da vida brasileira. Sua energia modernizadora é contida e anulada em
uma fração reduzida do ambiente cultural e, com isso, seus efeitos não
se dissipam.
138 • Filosofia Latino-Americana

Esse dispositivo defensivo caracteriza uma espécie de segmentação


ou, mais genericamente, de “blindagem ontológica” (Silveira, 2015, p. 90)
no sentido de englobar elementos contraditórias dentro de um arranjo
geral que subsiste intocado na sua totalidade. A estrutura geral
certamente se altera pela absorção desse elemento ameaçador, porém
de tal maneira que a nova configuração não significa uma mutação que
a leve a efetivamente adotar a forma alienígena como hegemônica. A
novidade é incorporada sem impactar a totalidade do arranjo, porque se
trata sempre de uma inovação restrita a um determinado domínio
particular, contida, anulada na sua capacidade de promover mudanças
substanciais amplas. Isso porque o dispositivo predominante é a
fragmentação e o isolamento das partes. Qualquer capacidade
integradora é negada não em abstrato, mas em sua capacidade de
integração. O mundo colonial resiste à integração porque isso
eliminaria as desigualdades de que ele se alimenta.
Retomemos agora nosso ponto principal, ligado ao modo de se
avaliar a filosofia brasileira. Projetar sobre uma sociedade desintegrada
e que adquiriu a capacidade de reproduzir a desintegração – como
acabamos de verificar – aquela perspectiva avaliativa sistemática que
supõe uma conexão íntima das partes não faz sentido no Brasil. O fato
de que a atividade filosófica se faz de costas para a vida do Brasil reflete,
no seu próprio âmbito, o aspecto da desintegração geral predominante
na sociedade brasileira.
Podemos certamente desejar que as coisas não fossem assim, que
a sociabilidade brasileira promovesse processos efetivos de integração,
que os dispositivos estatais de poder refletissem necessidades orgânicas
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 139

da vida nacional etc. Porém, esse sonho europeu em nada altera o fato
da desintegração ter sido e estar sendo a norma da sociabilidade
brasileira.
Nesse mesmo sentido, corresponde à filosofia assimilar essa
situação de desintegração cultural na sua prática intelectual, ajustar-se
ao país e não desejar que o país se ajuste a ela. Isso explica o motivo pelo
qual essa atividade intelectual ainda se faz de costas para o Brasil: ela
espelha o dispositivo de justaposição de extratos culturais diversos e de
perpetuação da desintegração. Nossa prática filosófica é colonial na
medida em que isso expressa o que tem sido a cultura brasileira.
O que ganhamos ao perceber que estamos sendo vítimas desse
ambiente cultural colonial – e não sujeitos ativos? Por meio da
percepção do fato de que a filosofia brasileira adota os mesmos padrões
culturais vigentes no Brasil, acredito que nós – os filósofos brasileiros
– eliminamos certa visão ingênua acerca do nosso próprio trabalho.
Essa visão supõe que o fato de alguém dedicar-se à filosofia libera-o
automaticamente das conexões culturais mais imediatas, retira-o do
raio de influência do ambiente em que se está inserido. Isso certamente
faz ressoar alguma noção relativa ao isolamento de matriz cartesiana
que perdura em parte da atividade filosófica brasileira –
equivocadamente convertido de método temporário em situação
existencial permanente. Para não tomarmos um grande desvio de rota,
observemos apenas que essa visão equivocada da liberdade de
pensamento faz passar por desinteresse o que é um interesse muito
particular pelo desinteresse.
140 • Filosofia Latino-Americana

Assim, percebemos que a filosofia brasileira se realiza hoje dentro


dos mesmos padrões culturais vigentes no Brasil. O fato dela declarar-
se uma atividade livre e dedicar-se a questões sem pertinência com o
ambiente brasileiro é justamente o indício mais forte de sua brasilidade.
Essa filosofia é tanto mais brasileira quanto se ocupa com qualquer
outra coisa, menos com o Brasil (Silveira, 2016). Ser culturalmente
desconectada faz parte de sua brasilidade.
Para todos os efeitos, a atividade filosófica realizada no Brasil
adquiriu a única forma de existência compatível com os nossos padrões
culturais: ela é realizada sem relações de organicidade com o restante
do Brasil. E, ao se constituir assim, ela reflete no seu próprio nicho
específico de atuação aquela desintegração geral que tem nos
caracterizado. E isso faz dela uma filosofia colonial.
Consideramos que o regime colonial é um dispositivo que forjou e
forneceu as condições de sobrevivência de uma sociedade desintegrada.
Não estou me referindo ao momento em que essa condição de atividade
teórica desvinculada do chão da vida nacional se torna consciente e
pode ser tematizado explicitamente – que é a pretensão desse texto.
Estou me referindo a uma situação anterior, podemos dizer assim, em
que a situação predominante é a de uma atividade filosófica que leva em
conta qualquer coisa, menos o próprio ambiente no qual ela está
inserida. E, justamente por não 140ort-lo em conta é que ela o replica e
o fortalece. De certa forma, a cultura brasileira é a maldição da filosofia
brasileira: aquela que retorna mesmo quando é reprimida e retorna
tanto mais fortemente quanto maior é a repressão exercida contra ela.
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 141

Quanto menos atentamos para a cultura brasileira ao fazer filosofia,


mais acentuamos as marcas coloniais de nossa sociedade.
A despeito dessa disjunção existente entre o que se vive e se
experimenta, de um lado, e aquele extrato de valores e instituições, de
outro, essas últimas chegaram ao Brasil através da figura do
colonizador. Essa situação original estabeleceu um ambiente artificial
sobre o qual passamos a desenvolver também a filosofia. Se o Estado e a
filosofia tem sido entes artificiais no Brasil, isso se deve a que não se
estabeleceu ainda – se é que se estabelecerá um dia – uma conexão
íntima entre o que se criava gradualmente e as condições sobre as quais
se criavam tais dispositivos práticos e teóricos. Observe que não há
nenhuma diferença significativa entre teoria e prática aqui. O modo
como e Estado tem se relacionado com a sociedade brasileira é idêntico
à maneira como a filosofia tem sobrevivido entre nós: sob uma
modalidade artificial.
Nesse sentido, a prática filosófica brasileira e a vida política são
duas expressões dessa mesma situação de desconexão entre condições
e realizações posteriores. Claro que há outras manifestações culturais
que são derivadas dessa mesma situação. Utilizo aqui o Estado apenas
pela facilidade comparativa que ele propicia. Mas o leitor pode, por si
mesmo, realizar essa comparação com outros elementos de nossa
cultura.
Embora pareça bastante frustrante notar que continuamos
enredados em uma situação colonial que já deveria ter exaurido sua
energia – o que certamente fere nossas suscetibilidades de brasileiros
142 • Filosofia Latino-Americana

como um povo livre e autodeterminado – acredito que a situação no


Século XXI seja ainda a expressão de nossas origens coloniais.
Sabemos que a conquista da América no Século XVI ocorreu
impulsionada pela necessidade mercantilista de tornar viável o sistema
econômico então nascente na velha Europa. A mobilização da terra, de
suas riquezas naturais e do homem – que aqui vivia ou que foi
importado para o trabalho escravo – foram iniciativas cujo objetivo era
garantir para as metrópoles as condições necessárias para tornarem-se
Estados Nacionais. Assim, jamais foi tentada na América Latina uma
colonização do território. Isto é, em nenhum momento se cogitou na
hipótese de povoar a América para que aqui se constituísse um mundo
importado e dotado de vida própria. A colonização que foi tentada foi a
incorporação das terras conquistadas para que servissem de
fornecedores de mercadorias que a Europa não poderia produzir por si
mesma. Ou seja, a colonização jamais se apresentou como uma autêntica
colonização, mas sempre como uma forma de saque e expropriação pura
e simples. A tal ponto que a situação geral da época da conquista foi
definida como uma “desordenada codicia” (Gomez, 2009, p. 95).
O Estado europeu desembarcou em terras americanas para cuidar
dos interesses do Estado europeu – o que é, na verdade, uma trivialidade
sobre a qual é necessário insistir. Então, é bastante óbvio que a América
e os indígenas americanos jamais solicitaram do mundo europeu
instituições ou modos de vida que viessem a resolver seus problemas ou
conectar-se intimamente com suas necessidades. Todo o aparato
cultural colonizador foi mobilizado e adaptado visando promover a
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 143

inclusão subalterna da América, isto é, uma integração por meio da


desigualdade.
A questão relevante é que a acomodação por justaposição tem sido
a norma na cultura brasileira. Isso vale tanto para os dispositivos
materiais como para aqueles mais abstratos, por assim dizer. Acredito
que isso se deve em grande medida ao fato gerado por uma colonização
que jamais visou colonizar, mas meramente expropriar o mais rápido
possível as terras americanas. Porém, o problema das intenções
originais não é decisivo aqui. O que importa é o resultado do processo
de colonização europeia. É com ele que temos que lidar agora, seja na
filosofia, seja em qualquer outro tipo de atividade humana.
Reconhecer a situação colonial que caracteriza a vida brasileira não
implica em assumir essa condição como a forma apropriada de se fazer
filosofia. Afinal, uma filosofia que tenta aproximar-se do Brasil baseada
nas relações orgânicas tende a reforçar o dispositivo colonial.
Reconhecer a nossa situação colonial deve nos proporcionar uma
perspectiva mais ajustada para fazer filosofia. Não sei o que essa
filosofia seria, nem possuo receitas sobre como proceder para
143ortugu-la. Acredito que a partir do reconhecimento do chão colonial
em que vivemos, várias formas filosóficas são possíveis, todas elas
conectadas ao seu modo com aquilo que existe e, portanto, igualmente
capazes de romper com a situação colonial que agora nos caracteriza.

Publicado originalmente na Revista Opinião Filosófica, v. 13, p. 1-


16, 2022
144 • Filosofia Latino-Americana

REFERÊNCIAS

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Universidade de Brasília, 1963.

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Nabuco, J. A escravidão. Recife: FUNDAJ/Editora Massangana, 1988.

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Ricard, R. La conquista espiritual de México. México: Fondo de Cultura Económica, 1986.

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Silveira, R. A. T. Apresentação do Brasil. Santa Cruz Cabrália: Ronie A. T. Silveira, 2015.


6
REALIDADE E FICÇÃO NA AMÉRICA LATINA

INTRODUÇÃO

Uma advertência se torna necessária aqui em função do uso ambíguo


do termo nós, que o leitor encontrará nesse texto. Não foi possível evitar
essa ambiguidade criada pela situação de inserção de vários países dentro
do subcontinente latino americano. Algumas questões tratadas aqui se
aplicam originalmente pelos autores referidos a países latino americanos
em particular, outras a toda a América Latina. Daí certa ambiguidade
emerge do uso do termo quando considerado genericamente. Em cada
caso particular tal ambiguidade não existe e a designação referida pelo
nós encontra-se devidamente registrada.
No início do Século XXI, ainda parece possível conceber que a
América Latina expressa a capacidade para realizar um projeto integral
de humanidade. Esse projeto é entendido como a possibilidade de que
seria possível tornar real uma civilização sem as limitações tradicionais
impostas pelos padrões vigentes nas culturas anteriores, especialmente
a ocidental.
De certa forma, essa potencialidade latino americana para uma
realização humana integral se beneficia do fato de que, até o momento,
nenhum projeto civilizatório em particular parece estar sendo colocado
em prática. Com efeito, não é perceptível que a América Latina esteja
implementando intencionalmente um conjunto de valores que moldaria
um tipo específico de cultura e de sociedade.
146 • Filosofia Latino-Americana

Como nenhum projeto efetivo, em termos de uma civilização latino


americana específica, parece estar sendo realizado, se preserva uma
potência indeterminada para a adoção de qualquer padrão possível de
civilização. Se fosse perceptível que um projeto em particular estivesse
em processo de realização, certamente que aquela possibilidade
universal estaria prejudicada. Nesse caso, o estado efetivo de
determinação de uma realização em curso eliminaria a indeterminação
da qual se partiu. Curiosamente, tudo indica que é mesmo a percepção
de que estamos sem um rumo claro, do ponto de vista da implantação
de um conjunto de valores hegemônicos para a América Latina, que nos
abre a possibilidade de anunciar nossa capacidade para uma realização
integral do ser humano para além de todos os limites existentes.
A concepção de que somos um subcontinente jovem expressa essa
mesma ideia de uma capacidade quase infinita para realizações futuras.
Isso porque, sendo jovens, possuímos um potencial para várias coisas
diferentes. Inclusive para a concretização de valores mais amplos, sem
as limitações tradicionais e visíveis em tudo o que existe. Tivéssemos
nós, latino americanos, após o período de independência no Século XIX,
tomado um rumo em particular e moldado um tipo de civilização, não
estaríamos agora aptos para nos colocar em condições de realizar um
potencial tão amplo. A adoção de um projeto civilizatório particular
teria nos indicado qual seria nosso lugar no mundo, nossa posição
específica dentro da cultura – ocidental ou até mesmo fora dela.
Adotando tal projeto, teríamos inevitavelmente estabelecido um
compromisso com alguns valores e nos colocado a caminho de sua
realização.
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 147

É o compromisso com um conjunto de valores que nos retira


daquela situação de potência sempre futura e nos coloca em condições
que nos limitam e deixam transparecer nossas virtudes e nossos
defeitos contra o pano de fundo do resto da humanidade. A juventude é
uma promessa cujo sentido é derivado do fato de que ela ainda não
realizou nada de concreto. A sensação de potência é uma consequência
da situação de inacabamento e de promessa com relação ao que ainda
não foi feito, mas que, por isso mesmo, sempre poderá vir a ser.
Uma comparação com a América Anglo-Saxã pode tornar isso mais
evidente. Afinal, embora da mesma idade que nós, ela é culturalmente
muito mais velha. Sua idade cultural mais avançada diz respeito ao fato
de ter optado por aprofundar a civilização europeia. Assim, ela assumiu
o compromisso explícito de levar adiante aquele conjunto de valores que
foi transposto para a América por ocasião da conquista. Em função de
se constituir como uma afirmação desse conjunto de valores é que ela
possui uma idade considerável – derivada de uma história iniciada na
Europa e continuada na América. Justamente em função desse
compromisso é que sua potência para encampar novos projetos de
civilização encontra-se prejudicada. É visível que há um processo de
sedimentação daquilo que ela efetivamente já realizou: a transposição e
a continuidade da cultura europeia para o continente americano. Essa
diferença expressa-se concretamente como uma diferença no
tratamento dados aos indígenas, por exemplo:

Na América espanhola, os indígenas são indivíduos para serem subjugados


e escravizados, mas que se gostaria de assimilar para catequizá-los [...] na
América anglo-saxônia, os indígenas são estrangeiros que se mantêm à
148 • Filosofia Latino-Americana

parte, com os quais se estabelecem relações diplomáticas por meio de


tratados ou, mais freqüentemente, relações de fôrça que os fazem recuar,
ou os exterminam. (Lambert, 1972, p. 77).

Por isso, a América Anglo-Saxã não é tão jovem como a América


Latina. Seus compromissos com o mundo de matriz europeia impedem-
na de dar grandes guinadas para um lado ou para outro.
Nessa comparação entre juventude latina e maturidade anglo-saxã
não vai nenhuma dose de avaliação ou de crítica. Qualquer um dos lados
que se tome como referência para uma apreciação implicará em um
prejuízo imediato para seu extremo oposto. Se hipoteticamente
valorizarmos as realizações típicas da maturidade anglo-saxã, é claro
que o estado indeterminado da juventude latino americana parecerá um
defeito. O contrário também é verdadeiro e, nesse caso, a juventude será
louvada frente à inevitável esclerose da maturidade.
De qualquer modo, a maneira de pensar que nos representa – a nós,
latino americanos – como povos jovens e promissores é debitaria em
alguma medida da situação de indeterminação cultural em que nos
encontramos ainda na virada Século XX para o Século XXI. Mas essa não
é uma situação nova que tenha se apresentado nesse momento. Ela já é
perceptível mesmo no século das independências. Foi nessa época, mais
precisamente em 1900, que o uruguaio José Henrique Rodó publicou
“Ariel”.
Nessa obra, Rodó defende que a América Latina adote um projeto
civilizatório que não se limite aos padrões existentes, na tentativa de
realizar o ideal de uma humanidade integral. Trata-se da possibilidade
de uma
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 149

cultura en el que ninguna facultad del espíritu sea desenvuelta


prescindiendo de su relación con las otras. — En el alma que haya sido
objeto de una estimulación armónica y perfecta, la gracia íntima y la
delicadeza del sentimiento de lo bello serán una misma cosa con la fuerza y
la rectitud de la razón. (2017, p. 13).

Para afirmar a existência de uma vocação latino americana para


essa possibilidade, Rodó a contrapõe justamente à América Anglo-Saxã,
que lhe parecia haver adotado um estilo de civilização prático e vulgar.
Com efeito, ele define o que chamou de “espíritu de americanismo”
como uma opção civilizatória que levou os Estados Unidos a serem
“considerados la encarnación del verbo utilitário” (2017, p. 22).
A avaliação negativa de Rodó acerca da cultura da América anglo-
saxã não corresponde à simples indicação de um erro histórico. Quer
dizer, não se trata de que os norte americanos tenham tomado um
caminho errado em termos de civilização, quando poderiam ter optado
por outro. Trata-se, antes, de afirmar que é a própria opção que
desfigura a potencialidade humana para uma realização integral. A
questão toda se resume, portanto, a uma cultura que possui a disposição
para afirmar alguns valores em particular em prejuízo de todos os
demais. Se o espírito prático norte americano lhe parece vulgar, não é
porque seja prático, mas porque sendo somente prático prejudica a
capacidade humana para desenvolver-se plenamente também como um
espírito teórico, fantasioso, artístico etc. Poderíamos dizer que, para
Rodó, o problema da civilização norte americana é que ela é unilateral e
descaracterizou, ao adotar tal unilateralidade, o potencial de realização
integral do ser humano.
150 • Filosofia Latino-Americana

Em contraposição à adoção dessa unilateralidade prática, ele


defende a potência latino americana para a concretização de uma vida
humana plena, um projeto integral de humanidade. Esse último não
consiste na mera negação do espírito prático, mas na superação de todas
as unilateralidades, permitindo uma realização superior em que essa
faceta utilitária encontre-se reconciliada com seus opostos, sejam eles
artísticos, teóricos, fantasiosos etc.
Impossível não perceber aqui os traços do hegelianismo (Hegel,
1992) de Rodó com relação à crença na possibilidade de uma civilização
que garanta a realização humana plena sem as limitações e as oposições
de valores tradicionais. Também se pode notar essa influência em
função da crítica à unilateralidade dos valores norte americanos e a
possibilidade de uma síntese superiora de elementos que ultrapassa as
oposições estabelecidas. Certamente sua posição também é debitaria de
algumas ideias românticas que procuram estabelecer uma “aliança de
beleza e de razão” (Maurois, 1923, p. 94). Ela certamente é uma variante
da tentativa de Schiller (Berlin, 1999, p. 85) de recuperar a época de uma
“maravilhosa unidade humana, uma idade de ouro onde a paixão não
estava separada da razão, e a liberdade não estava separada da
necessidade” na qual o próprio hegelianismo se inspirou.
Essa crença em nossa – latino americana – condição especial para
a superação de unilateralidades parece reforçada por aquela situação de
juventude a que me referi antes. Fosse outra a situação cultural,
certamente as proposições que nos descrevem como latino americanos
seriam outras. Porém, dado que ainda não realizamos um conjunto de
valores particulares, que não levamos adiante, do ponto de vista prático,
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 151

uma civilização dotada de características específicas – e unilaterais –


parece explicável a adequação de nossa auto avaliação a essa situação.
Isto é, adotamos como solução ajustar-nos ao nosso mundo passando a
considerar esse estado difuso de ausência de validade hegemônica de
um conjunto de valores como uma virtude especial. É claro que isso
implica necessariamente posicionar-se criticamente contra aqueles que
encarnam os valores contrários: as civilizações maduras e unilaterais,
como faz Rodó.
Observe que aquilo que pode ser compreendido, de um ponto de
vista europeu, como uma incapacidade para a realização de um projeto,
como impotência diante de um mundo que resiste à intenção e à ação
consequente de transformação por parte da humanidade, encontra aqui
seu perfeito reverso. Para a perspectiva latino americana é justamente
essa impotência que se transforma em virtude, pois é ela que nos
garante a situação permanente de indeterminação e de capacidade
permanente para grandes coisas novas: a juventude.
Essa crença certamente verberou e reverbera pela América Latina
ainda hoje, até porque ela consiste em uma adequação esperada de nossos
juízos sobre nós mesmos – como já vimos. Não é raro expressarmos a
crença de que somos uma espécie de civilização do futuro, uma profecia
ainda não realizada, mas que promete sempre um mundo mais radiante
do que qualquer outro que existe ou que existiu até o momento. Essa
noção expressa certa dose de etnocentrismo latino americano.
Com efeito, o compromisso com a noção de uma realização que
elimine as barreiras existentes para um pleno florescimento humano
aparece aqui e ali nas avaliações acerca da América Latina. A
152 • Filosofia Latino-Americana

antropofagia de Oswald de Andrade (2000, p. 228) é uma versão desse


mesmo sentimento, inclusive no que diz respeito à contraposição com
relação ao espírito prático norte americano:

nós brasileiros, campeões da miscigenação tanto da raça como da cultura,


somos a Contrarreforma, mesmo sem Deus ou culto. Somos a Utopia
realizada, bem ou mal, em face do utilitarismo mercenário e mecânico do
Norte. Somos a Caravela que ancorou no paraíso ou na desgraça da selva,
somos a Bandeira estacada na fazenda. O que precisamos é nos identificar
e consolidar nossos perdidos contornos psíquicos, morais e históricos.

Observe que Oswald aponta para algum tipo de consolidação futura


desse conjunto variado de valores criado pela situação da miscigenação
racial e cultural. É claro que essa síntese será superior a qualquer outra
anterior, em função da diversidade dos elementos que ela deverá levar
em consideração como material de base a ser processado e integrado. O
estado atual da América Latina não é definitivo, ele requer uma
integração de seus elementos originais. Esses elementos culturais são
muitos e encontram-se fracionados. Para Oswald, resta a nós a
possibilidade de realizarmos uma síntese superior sem resvalar para o
tipo de erro dos norte-americanos – que optaram por uma versão
unilateral de civilização, descaracterizando as possibilidades humanas.
Poderíamos imitar os europeus e os norte-americanos, mas isso
apenas redundaria em algum outro tipo de unilateralidade que também
nos desfiguraria eliminando nossa potência e destruindo nossa
diversidade original. Projetos como os de Sarmiento (1973), para a
Argentina, tomam claramente essa direção ao apontarem para a
necessidade de substituição da diversidade cultural por uma
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 153

uniformidade de matriz europeia. Nesse caso, a opção pela


unilateralidade parece ainda mais inadequada, em função da dimensão
do sacrifício que ela exigiria de nossa – latino americana – parte. O
impacto da opção por um projeto civilizatório particular e unilateral
para a América Latina seria destruidor de nossa enorme riqueza
cultural. Para preservar essa diversidade, apenas uma síntese mais
elevada seria possível, porque somente ela seria capaz de preservar esse
patrimônio que a juventude nos proporcionou. Essa síntese superiora
consiste, portanto, em uma espécie de estratégia para envelhecer
resguardando intactos o frescor e a potência típicos da juventude.
Por meio dessa metáfora, se pode notar as dificuldades envolvidas
nesse tipo de proposição. Trata-se, nada mais nada menos, de
envelhecer sabiamente de tal modo que se mantenha a juventude e a
flexibilidade. Uma integração entre velhice e juventude parece
corresponder ao projeto da síntese superior da diversidade cultural e
racial da América Latina. Essa integração tornaria possível criar as
instituições necessárias para lidar com o que seria originalmente um
“continente desconjuntado” (Martí, 2011, p. 23).
Interessa-me aqui retomar o problema da aparente oposição entre o
espírito prático e o espírito integral a que Rodó (2017) e Oswald (2000) se
referiram de maneiras distintas. Isso porque meu objetivo é tentar
dissipar uma armadilha contida na disjunção entre duas formas gerais de
disposição para a avaliação e a ação quando aplicada à América Latina – a
disjunção entre ficção e realidade. Parece-me que essa disjunção ainda
funciona como parâmetro intelectual para várias avaliações e projetos
atuais acerca da América Latina. Por isso, pretendo me deter nela.
154 • Filosofia Latino-Americana

Para abordar essa disjunção lançarei mão do filósofo brasileiro


Cruz Costa (1945) que parece haver se rendido de uma maneira muito
peculiar a essa forma de pensar. Isso me permitirá destacar como a
oposição entre ficção e realidade não se aplica efetivamente à nossa
situação. Consequentemente, pensar a América Latina por meio dela
consiste em perpetuar uma armadilha intelectual pela qual andamos e
andaremos permanentemente em círculos. Como se poderá observar
adiante, uma melhor compreensão filosófica da América Latina exige
um conjunto de parâmetros conceituais diferentes daqueles que
compõem essa disjunção ocidental tradicional.

ESPÍRITO PRÁTICO E FANTASIA SEM PROVEITO

Cruz Costa (1945, p. 25) afirmou que a “filosofia portuguesa é


essencialmente prática. Nela prepondera o sentido prático e positivo da
vida”. E como o Brasil foi colonizado pelos portugueses lhe pareceu
muito natural que nós – brasileiros – tivéssemos herdado algo dessa
maneira de pensar, sentir e agir. Na verdade, nesse caso Cruz Costa
refere-se à filosofia em um sentido amplo, como concepção de vida e
como cosmovisão. Então, não é a filosofia acadêmica que é
“essencialmente prática”, mas o modo como os portugueses se situavam
em face do mundo.
A transposição desse espírito prático para o Brasil teria ocorrido
naturalmente por meio da conquista, de tal forma que

nossa verdadeira “vocação” é um realismo bem português. O espírito


brasileiro, em boa parte, recebeu forte dose do saudável espírito português,
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 155

que nunca se afastou muito do concreto, do real. Nós e os nossos


antepassados, os portuguêses, sempre fomos bem “terra a terra”... Nunca
foram as grandes abstrações o nosso traço intelectual (Cruz Costa, 1945, p.
121).

Diferentemente de Rodó (2017) que se ocupou basicamente de um


projeto de futuro, Cruz Costa tentou apreender a especificidade daquilo
que temos sido. Por isso, um olha para o futuro e o outro para o passado
e para o presente. Aquele se ocupa com o projeto de uma contribuição
latino americana à cultura ocidental, lançando mão de nossa suposta
juventude. Então, não parece fazer sentido simplesmente contrapor a
condenação de Rodó ao espírito prático anglo-saxão e essa afirmação de
Cruz Costa de que nós, brasileiros, também seríamos dotados de um
espírito prático. Isso apenas embaralharia nossos termos de maneira
confusa. De qualquer modo, não deixa de ser problemática a afirmação
de Cruz Costa de que seríamos dotados de uma modalidade de espírito
prático.
A mera condição de viver no Brasil parece desmentir cabalmente
essa afirmação. Afinal, se fôssemos efetivamente dotados de um espírito
prático, isso seguramente deveria implicar uma maior capacidade para
propor e resolver questões do cotidiano de nossas vidas. Afinal, se há
algo que parece caracterizar adequadamente um espírito prático é seu
talento para eliminar os entraves materiais da existência e remover as
dificuldades diárias que ela nos apresenta – como se expressa no
utilitarismo anglo-saxão.
Imagino que seria de se esperar de um país dirigido pelo espírito
prático uma melhor situação econômica, estradas em bom estado de
156 • Filosofia Latino-Americana

conservação, um bom sistema de atendimento à saúde, uma educação


igualmente eficiente, a conservação adequada do patrimônio público, a
universalização do saneamento, a utilização do orçamento público para
finalidades públicas, uma administração racional do sistema judiciário,
uma melhor distribuição da riqueza nacional, índices de pobreza
menores, o mesmo para os padrões de delinquência etc. Como nada
disso parece corresponder ao que existe no Brasil, é realmente estranho
que Cruz Costa tenha afirmado a existência daquele espírito prático
entre nós – supostamente herdado da cultura portuguesa.
Não se trata certamente de um deslize momentâneo de Cruz Costa.
Sua percepção da existência de um espírito prático português constitui
uma noção bem assentada. Assim, ele se referirá “Ao espírito positivo,
realista do português, inclinado à observação da natureza” (1945, p. 138) e
ao fato de que “o espírito português, a exemplo do que realizara nos
mares, se orientava em outros domínios pelo critério da moderna ciência.
O sentido da experiência, a observação, o verdadeiro espírito científico já
é corrente nos portugueses cultos do século XVI” (idem, p. 142).
Então, não apenas ele afirma a existência de um espírito prático
português como também de um espírito científico baseado na
observação da natureza, pelo menos entre alguns membros da
intelectualidade. Certamente podemos amenizar essas afirmações e
156ortu-las mais palatáveis.
O fato de que o espírito científico existia entre “portugueses
cultos” pode nada significar quando consideramos aquilo que se
cristalizou como hegemônico na cultura portuguesa – que, se sabe,
nunca foi efetivamente marcada por traços de cientificismo em função
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 157

da forte influência dos Jesuítas e da Escolástica. Também podemos


pensar que Cruz Costa foi conduzido à afirmação desse espírito prático
no Brasil por desconsiderar as contribuições indígenas e africanas à
consolidação de uma cultura brasileira.
Não parece insignificante, por exemplo, que tenhamos falado a
língua geral (o nheengatu) por mais de 250 anos, quando só então o
português se impôs no uso diário como língua padrão. Esses elementos
poderiam ter sugerido a ele que no Brasil nunca se tratou de uma mera
transposição de valores europeus para a América e que o processo de
adaptação da cultura da metrópole foi repleto de alterações, rupturas e
adaptações de toda ordem. Mesmo assim, a afirmação de Cruz Costa
parece suspeita diante das largas evidências em contrário. Evidências,
bem entendido, também disponíveis para um filósofo brasileiro vivendo
no Brasil na década de 40 do século XX, como foi seu caso.
Para tornar a situação ainda mais estranha, há um pequeno
capítulo no livro a que estou me referindo aqui (Cruz Costa, 1945)
chamado “Da Fantasia sem Proveito”. Nele Cruz Costa destoa de sua
própria tese acerca daquele suposto espírito prático brasileiro herdado
de Portugal. Segundo ele, a “fantasia sem proveito” foi um termo
cunhado pelo Rei português D. Duarte e equivaleria aos “excessos de
sensibilidade”, “destemperos da imaginação” e “carência de disciplina
interior e de equilíbrio” que caracterizavam seus súditos. Essa
característica portuguesa interessa a Cruz Costa justamente porque
para ele nós, brasileiros, possuímos a mesma característica pois “se
trata do mesmo fenômeno, nos descendentes americanos dos súditos de
D. Duarte” (1945, p. 111).
158 • Filosofia Latino-Americana

A questão imediata, que parece ocorrer a qualquer um, é saber


como se pode conciliar aquele alegado espírito prático com essa fantasia
sem proveito – ambos de origem portuguesa e transplantados para o
Brasil. Ao contrário do espírito prático, não podemos, certamente,
refutar a presença marcante da fantasia sem proveito na cultura
brasileira. Isso quando consideramos as evidências culturais bem
palpáveis como o Carnaval (Silveira, 2016) e o Futebol (Silveira, 2014) –
para ficar nos exemplos mais óbvios relativos à propensão brasileira
para a festa e a comemoração gratuita e alegre da vida. Apenas esses
dois elementos, de grande significação popular, já dão corpo à validade
da presença da fantasia sem proveito entre nós.
Entretanto, como vimos, não parece possível reunir qualquer tipo
de evidência em benefício da presença daquele suposto espírito prático
na cultura brasileira. Poderíamos pensar que se trata de um simples
erro de avaliação de Cruz Costa, mesmo contra todas as evidências
disponíveis e contrárias à existência de tal espírito prático brasileiro.
Porém, afirmar que se trata de um erro de avaliação não nos levaria
muito longe em termos daquilo que interessa aqui. Identificar erros em
obras filosóficas pode apenas destacar certa sagacidade analítica e fazer
bem ao ego do autor, mas nada além desse objetivo limitado e pouco
significativo. Parece preferível tentar ampliar essa discussão tentando
identificar o tipo de mentalidade que conduziu Cruz Costa a propor a
existência entre os brasileiros de um espírito prático, mesmo diante da
evidência da presença de nossa inegável fantasia sem proveito e do fato
de ambos serem irreconciliáveis. Com isso, podemos obter uma visão
sobre um tipo de mentalidade persistente no ambiente intelectual
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 159

latino americano e que, me parece, tem viciado nossas percepções e


avaliações sobre a América Latina.

UNILATERALIDADE E PROMESSA

As teses a que Cruz Costa foi levado a endossar dizem muito sobre
o que ele entendia serem as opções interpretativas sobre a América
Latina – o Brasil incluso, obviamente. Como vimos, ele afirmou que os
portugueses exibiam um espírito científico e eram dotados de um
pendor prático. Segundo ele, pelo menos esse último teria sido nos
deixado de herança. Por outro lado, ele detectou a presença nos
portugueses e em nós, brasileiros, daquela fantasia sem proveito.
Para afirmar que os portugueses eram científicos, Cruz Costa
supõe que eles faziam uma distinção entre o mundo objetivo dos fatos e
as ficções e interpretações humanas. Essa é uma condição básica de todo
espírito científico baseada no expurgo de qualquer traço espiritual do
mundo natural (Taylor, 2010; 2013). Após esse processo cultural de
separação, essa mentalidade distingue um mundo objetivo, de um lado,
de um mundo fantasioso, de outro: o que as coisas são e as
interpretações humanas, certas ou erradas, que se podem fazer.
No conjunto, se trata de opor o mundo dos fatos ao mundo da
fantasia, a constatação do que efetivamente há no mundo e do que aí
poderia haver de acordo com o livre fluxo de nosso desejo e imaginação.
Esse tipo de oposição binária entre realidade e aparência tem
funcionado como um grande sistema de avaliação filosófico no mundo
ocidental, pelo menos desde Platão (1979). Como sua história envolve
160 • Filosofia Latino-Americana

praticamente a própria história da filosofia, apenas posso referi-la


genericamente aqui.
O que me interessa é notar que é muito natural que Cruz Costa
tenha lançado mão dessa disjunção entre ficção e realidade para tentar
entender o Brasil. Rodó (2017) também utiliza o mesmo conjunto de
valores ao opor o espírito unilateral utilitário da América Anglo-Saxã à
promessa de um espírito integral latino americano. Esse último é um
projeto de futuro, uma possibilidade contraposta àquilo que
efetivamente existe. De um ponto de vista epistemológico, todo projeto
é uma forma de ficção, já que não se propõe a descrever o que é, mas
afirmar o que poderá ser.
O eixo sobre o qual giram essas duas interpretações da América
Latina está fixado sobre a distinção entre a realidade, os fatos, o mundo
objetivo sobre a qual opera o espírito prático – de um lado – e a ficção,
o mundo subjetivo em que a fantasia e a promessa de um futuro
indeterminado dominam – de outro lado. É ela que permite colocar em
um mesmo quadro de referências Rodó, Oswald, Sarmiento etc.
Assim, para Rodó (2017) e Oswald de Andrade (2000), dado o que é a
America Latina, um subcontinente culturalmente diverso e fragmentado,
parece-lhes razoável a proposição de um futuro caracterizado por aquela
síntese superiora. Ela lhes parece ser a única porta de saída para o
problema latino americano da diversidade e da fragmentação já que “el
regionalismo no es sólo político. A menudo es social, racial, linguístico y
econômico.” (Tannenbaum, 1972, p. 25). Porém, essa saída é uma saída
ocidental, que supõe a validade e a aplicabilidade de um mesmo esquema
civilizatório na Europa e na América.
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 161

Com isso quero dizer que um subcontinente fracionado não pode


ser submetido a uma descrição coerente como se supõe ser a natureza
dentro de um escopo explicativo científico, nos padrões ocidentais
modernos. Afinal, por meio desses padrões se espera que a natureza seja
um grande sistema organizado e autônomo, regido por leis objetivas.
Entretanto, quando esse requisito explicativo científico – baseado na
separação entre ficção e realidade – é transposto para um ambiente
fracionado, ele deixa de funcionar de maneira adequada. A natureza é
um grande sistema unificado de leis e processos concatenados, porém
isso não vale para um mundo fracionado em instâncias desintegradas.
Observe como essa incompatibilidade entre o esquema explicativo
e a América Latina opera. Para Cruz Costa (1945), o que somos é
expressão de uma fantasia sem proveito. Porém, isso soa difícil de
aceitar como nossa autoimagem – até porque os portugueses
conquistaram meio mundo por meio das navegações, o que parece
pressupor certa capacidade de realização prática. Daí a necessidade,
sentida por Cruz Costa, de introduzir algum grau de praticidade na
equação daquilo que herdamos, nós os brasileiros, de Portugal e que nos
tornamos posteriormente. Mesmo assim, não há como dar unidade ao
conjunto fracionado entre esse (muito suspeito) espírito prático e a
fantasia sem proveito. Assumir apenas o aspecto da fantasia sem
proveito como característica marcante da brasilidade envolveria uma
espécie de suicídio da racionalidade científica – o que parece uma
demanda excessiva para qualquer intelectual. Isto é, para qualquer um
formado nos valores de matriz ocidental. Assim, se pode notar como o
esquema explicativo que supõe a disjunção entre realidade e ficção
162 • Filosofia Latino-Americana

entra em choque com um ambiente cultural fragmentado e gera


movimentos de acomodação erráticos que nem sempre fazer sentido.
Na verdade, em todos os autores que estamos analisando
diretamente ocorre um caso semelhante: há uma tensão entre o modelo
explicativo que distingue o mundo objetivo e a fantasia, por um lado, e
a realidade latino americana fragmentada, por outro.. No caso de Rodó
(2017) e Oswald (2000) para tornar o resultado final aceitável e
consistente, o princípio fantasioso é remetido para um futuro
promissor – aquilo que a América Latina pode se tornar. Esse arranjo
diminui a tensão existente em se tomar pé na situação efetiva da
América Latina, por meio da proposição de uma síntese superior futura.
No caso de Cruz Costa (1945), a situação é diferente porque sua
preocupação é identificar o que temos sido. Por isso, a figura geral se
torna composta de elementos dissonantes e irreconciliáveis, já que
seríamos práticos e fantasiosos – nós, os brasileiros. De fato, na América
Latina as estruturas estão sempre em crise (Veliz, 1970). Ao tentar
recuperar esses elementos da herança portuguesa notamos como o
quadro resultante é inconsistente. Também podemos identificar, nesse
caso, uma clara necessidade exterior de ajustar o esquema explicativo,
incluindo nele um elemento prático contra todas as evidências em
contrário. Em Cruz Costa há uma vantagem analítica importante: como
ele não se ocupa com um projeto de futuro para a América Latina ou para
o Brasil, os elementos da equação entram em choque de forma explícita e
o arranjo explicativo todo se revela imediatamente desajeitado.
Por meio dele também se revela como a promessa de uma síntese
superiora ou de um futuro grandioso tem permitido um ajuste falso do
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 163

esquema explicativo com a América Latina. Não fosse essa estratégia de


camuflagem, não intencionalmente utilizada por Rodó e Oswald, o
arranjo teria se mostrado igualmente inconsistente.

CONCLUSÃO

O que me interessa destacar especialmente aqui é que todos esses


autores lançam mão da mesma disjunção entre o que é e o que poderia
ser, entre um mundo objetivo e um mundo de interpretações, entre
realidade e ficção. Através da adoção desse tipo de mecanismo básico
explicativo, esses autores se movem dentro de um esquema comum
dentro do qual eles certamente adotam posições diferenciadas. Porém,
o mecanismo fundamental é o mesmo e seguramente ele não se adéqua
ao que pretende explicar, criticar, planejar.
O esquema comum é uma modalidade do velho eixo central da
filosofia ocidental platônica que tenta equacionar o problema da
aparência e da realidade. Dado os termos básicos que foram adotados,
isso envolve identificar quase sempre a América Latina com uma forma
de aparência ou de um mundo ainda não totalmente real – um mundo
colorido pela fantasia. É como se a maneira como existimos, na América
Latina, fortalecesse o elemento ilusório e não utilitário da vida. A partir
dos mesmos pressupostos, trata-se em seguida de conduzir a América
Latina para a realidade, para lidar objetivamente com seus problemas,
para a adoção de uma mentalidade mais objetiva e menos mágica. Todo
o sentido dessas propostas são uma consequência de nos movemos
dentro daquela disjunção básica entre realidade e ficção.
164 • Filosofia Latino-Americana

Não é por outro motivo que a implementação de um conjunto de


valores civilizatórios tem de ser remetido para o futuro de uma
realização integral que eliminaria os defeitos atuais da fragmentação –
como pretendem Rodó e Oswald. Ou também pode ocorrer que sejamos
irreconciliavelmente práticos e fantasiosos, como Cruz Costa parece ter
sugerido ao se limitar ao que temos sido.
Dentro dessa mentalidade que separa a realidade da ficção, há
sempre algo na América Latina que necessita ser eliminado para que nos
tornemos finalmente o que poderíamos ou deveríamos ser. Há sempre
uma carência a ser suprida, seja por meio de uma realização integral ou
pela eliminação de aspectos indesejados que parecem obstaculizar
nosso destino – como parece ser o caso da fantasia sem proveito.
Em todas essas avaliações e diagnósticos oscilamos entre os polos
da realidade e da fantasia, hora tentando tomar pé em um, hora em
outro – com exceção de Cruz Costa (1945), que parece ter ficado perplexo
no meio deles e, dessa forma, revelado mais explicitamente a natureza
desses pressupostos. Para evitar as unilateralidades da diversidade
cultural nos projetamos em direção a um futuro superior – uma
fantasia. Quando, por outro lado, tentamos compor um quadro geral
com nossas características existentes, ele parece inconsistente, pois
espírito prático e fantasia sem proveito não possuem liga comum. O
esquema gera movimentos de tentativa de ajuste, embora nenhum
pareça poder chegar a um termo feliz segundo os seus próprios
pressupostos. Isso sugere também que um quadro completo, uma
moldura definitiva, uma apreensão unitária e objetiva do que há na
América Latina não parece ser possível.
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 165

De fato, tudo parece indicar que a América Latina apresenta um


desafio especial para aquela mentalidade que separa distintamente a
realidade da ficção. Considerando-se que há uma série de tentativas de
sistematização do que temos sido e do que poderíamos ser, feitas por
intelectuais formados dentro dessa disjunção ocidental, talvez seja o
caso de nos questionarmos sobre a própria mentalidade que tem
dirigido essas iniciativas.
Com isso quero dizer que em face da situação de ineficácia e
inoperância de nossas avaliações e projetos para a América Latina,
talvez devêssemos começar a suspeitar não do objeto e sim dos
instrumentos que estamos utilizando nas nossas avaliações. Talvez esse
objeto em particular tenha características que solicitam outro tipo de
abordagem, distinta daquela feita a partir da distinção ocidental
clássica entre aparência e realidade.
Se considerarmos que todos os intelectuais latino americanos são
formados na cultura ocidental e, só depois de terminado esse processo
de preparação profissional, é que se habilitam como intérpretes e
críticos, podemos obter uma visão mais clara do que estou tentado
afirmar. Pode estar ocorrendo algo como uma tentativa de enquadrar a
América Latina dentro de categorias sem qualquer pertinência. Não
quero dizer com isso que as categorias sejam erradas. Quero dizer que
elas podem não ter uma ligação íntima com o nosso modo de vida e que
estejam forçando distinções que não podem ser aplicadas aqui com
sucesso prático. Claro que elas sempre podem ser aplicadas à força ou
de maneira totalmente inadequada. Mas aplicadas assim elas nada
166 • Filosofia Latino-Americana

geram de conectado organicamente com o mundo de que tratam – são


simples gestos de violência.
A questão central é que, tudo indica, essas categorias não possuem
aquele mínimo de conexão com seu objeto, de modo a estarem em
condições de afirmarem algo de significativo para esse mundo. Assim é
que na América Latina as avaliações, os projetos e as soluções se
sobrepõem sem que a realidade se altere de maneira substantiva. Pode
estar ocorrendo que a maneira como se produzem essas avaliações,
projetos e soluções não possui conexão com aquilo de que tratam. Daí
não ser exatamente uma surpresa se eles não se mostrarem capazes de
alterar um conjunto de valores com os quais não desenvolveram uma
relação de pertinência mínima. Só a presença dessa última relação pode
indicar se um projeto possui as condições de ser colocado em prática –
mesmo que fracasse. Sem ela, não há elementos em comum que
permitam a comunicação fundamental com o conjunto de valores que
se deseja alterar.
Sabemos, por exemplo, que há inúmeras avaliações acerca do que
a América Latina deve fazer para se tornar um subcontinente
economicamente desenvolvido (Casas, 1993). Não deve mais haver, a esta
altura, nenhuma revelação original sobre o que deve ser feito nessa
direção. Há diagnósticos nacionais e regionais disponíveis há bastante
tempo e em número significativo. Há mão de obra qualificada nos
melhores centros de formação de recursos humanos para colocar em
prática as soluções que são julgadas apropriadas em cada situação
empírica. A única dificuldade aparentemente diz respeito a estarmos
em condições práticas de realizar aquilo que vários países da Europa já
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 167

realizaram no passado. Se essas proposições e projetos não funcionam


é razoável pensar que há algo aqui que terá que ser feito de outra forma,
em função da especificidade daquilo que temos sido e do que nos
tornamos capazes.
Essa suspeita de que há algo na América Latina que exige atenção
especial e outro sistema de avaliação e diagnóstico ganha força em
função justamente da ineficácia das proposições feitas a partir daquela
mentalidade de matriz europeia. Isso não significa uma mera recusa
voluntarista da cultura ocidental. Ao contrário, isso significa uma
recusa já tardia da cultura ocidental, em função de que as proposições
de civilização daí originárias já terem se tornados largamente
fracassadas na América Latina.
Não deve mais surpreender a ninguém a constatação de que não
faz mais sentido continuar a tentar ser um europeu latino americano.
Isto é, não parece fazer sentido continuar tentando adaptar valores
europeus na América Latina, como já foi feito na América Anglo-Saxã –
mesmo contra a opinião de alguns latino americanos para quem “nós,
que nos designamos americanos, não somos outra coisa do que
europeus nascidos na América.” (Alberdi, 1994, p. 69). Se ainda não
chegamos a tal objetivo, não se trata de incompetência na maneira como
tentamos imitar a Europa. Se trata de uma inadequação com o conjunto
de valores dessa matriz.
Com base na mentalidade filosófica ocidental tradicional não
temos produzido nada de significativo para a América Latina (Silveira,
2016). Então, romper com ela não é um gesto voluntarioso e arbitrário,
mas uma necessidade para gerarmos um pensamento conectado e
168 • Filosofia Latino-Americana

pertinente com o que temos sido. Não se trata de se decidir a saltar fora
do ocidente e caminhar por um terreno civilizatório perigoso e
desconhecido. Trata-se de reconhecer a falência da adequação entre um
tipo de mentalidade e a América latina e fazer as alterações de rumo que
se fazem necessárias em função dessa falência. Deve ser significativo
que depois de 500 anos da conquista ainda lutemos para estabelecer um
padrão de agricultura compatível com o meio ambiente e a população
que existia no Império Inca (Mazoyer e Roudart, 2010), por exemplo. Isso
deve significar que estamos tentando resolver os problemas de uma
maneira inadequada.
A mentalidade que estamos utilizando – nós os intelectuais latino
americanos – só consegue fazer panoramas inconsistentes ou prometer
um futuro superior brilhante, assim como qualquer outra seita
milenarista. Por isso, abandonar a maneira filosófica ocidental de tratar
a América Latina é uma necessidade derivada de uma situação de
fracasso histórico da cultura ocidental entre nós. Isso significa algo
muito simples: que um conjunto de valores não se aplica
indistintamente a todos os lugares e a todas as situações humanas.

Publicado originalmente na Revista Orbis Latina, v. 7, p. 4-19, 2017

REFERÊNCIAS

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UNICAMP, 1994.

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Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 169

Berlin, I. The roots of romanticism. Princeton: Princeton University Press, 1999.

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Cruz costa. A filosofia no Brasil. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1945.

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Mazoyer, M.; 169ortugu, L. História das agriculturas no mundo: do neolítico à crise


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Veliz, C. América Latina: estruturas em crise. São Paulo: IBRASA, 1970.


7
LA ORIGINALIDAD DE LA FILOSOFÍA BRASILEÑA

INTRODUCCIÓN

No forma parte de los objetivos de este texto llevar a cabo una de


aquellas tradicionales defensas incondicionales de las virtudes de la
filosofía, y menos de la filosofía brasileña en particular. En general, ese
tipo de argumentación se centra en presentar los motivos por los cuales
la filosofía debería ser imprescindible para la humanidad y por qué la
filosofía brasileña habría de serlo para los brasileños. Si tomáramos lo
anterior como línea de argumentación de este trabajo, el problema
sobre la originalidad de esta última debería presentar alguna supuesta
necesidad de practicarla. Sin embargo, no seguiré dicha línea
argumental porque preguntar acerca de la necesidad incondicional de
la filosofía no tiene sentido.
Una pregunta actual y válida sobre la necesidad de la filosofía sólo
puede cobrar sentido dentro de un contexto cultural específico, gracias
al cual la actividad filosófica puede establecer una conexión que le
ofrezca algún tipo de apoyo y arraigo. Es precisamente ante el conjunto
de valores culturales específicos vividos efectivamente por una
sociedad humana, que la actividad filosófica puede o no ser considerada
como necesaria y original.
Por lo anterior, no creo que la filosofía posea ninguna vocación
libertaria incondicional que haga de su práctica una ganancia
incuestionable para la humanidad. Basta convivir cierto tiempo con
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 171

filósofos para mostrar que no estamos frente a un conjunto de personas


dotadas de disposiciones morales especialmente elevadas e
indispensables para los demás. Esto parece dejar en claro que el ejercicio
de la filosofía por sí solo - la filosofía como tal (Zea, 2005) - no mejora
necesariamente a los seres humanos.
Por otro lado, no considero que el resultado de la investigación
filosófica, por sí mismo, implique una mejora de calidad para aquellos
seres humanos que lo adoptan como guía de su existencia. De esta
forma, no resulta extraño constatar que el conocimiento filosófico se
utilice para justificar regímenes totalitarios, racismo, xenofobia,
colonialismo, diferencias de género, distintas formas de discriminación
etcétera.
En función de esta utilización, la propia convivencia de la filosofía
como modo de vida democrático se ha vuelto problemática. El filósofo
norteamericano Richard Rorty (1999) sugirió que la filosofía debería
ocuparse de la libertad y dejar que la verdad se cuide a sí misma. Al final,
poseer la verdad implica el abandono y la eliminación de todas las
demás creencias que, por exclusión, tendríamos que considerar como
falsas y, por lo tanto, inferiores. Tal exclusión que exige la lógica de la
verdad, difícilmente puede articularse con un modo de vida
efectivamente democrático. Después de todo, como el propio término
deja claro, excluir implica la expurgación de los elementos que no
encuadran en el concepto o en el comportamiento sometido a
evaluación. Un dispositivo orientado a obtener la verdad, como ha sido
la filosofía occidental en gran parte de su historia, parece obstaculizar
la vigencia de un modo de vida plenamente democrático.
172 • Filosofia Latino-Americana

En fin, ni el continuo ejercicio de la filosofía ni poseer sus


resultados son indicadores de que se trate realmente de un tipo de
conocimiento que, en función de sus virtudes intrínsecas o de sus
resultados, conduzca al ser humano a un pedestal más elevado de su
condición - independientemente de lo que esto signifique en cada caso.
En tal sentido, ni siquiera las supuestas virtudes del pensamiento
crítico, del que la filosofía tanto se enorgullece, resultan
incondicionalmente deseables (Silveira, 2016).
De hecho, toda búsqueda de objetividad y distanciamiento
constituye el abandono de toda perspectiva comunitaria y orgánica. Es
decir, la adopción de un punto de vista crítico implica que el filósofo —
o cualquier otro investigador— anule las relaciones de pertenencia
social. Adoptar un punto de vista distanciado y someter el contenido de
los valores vigentes a la experiencia del extrañamiento es un requisito
imprescindible de la crítica. No sorprende que dicha experiencia se
considere un paso esencial. Para ello, los valores vigentes, objetos de
creencia usados comúnmente por una sociedad, deben colocarse bajo
sospecha, someterse a alguna forma de duda.
La experiencia de este distanciamiento se presenta como un gesto
que elimina la relación de pertenencia del investigador con su
respectiva comunidad cultural. Esto en beneficio de un punto de vista
supuestamente superior —y seguramente enajenante. Así, el sistema de
valores por medio del cual sentimos, creemos y validamos la vida en
situaciones cotidianas, tiene que ceder terreno a la necesidad de
construir una perspectiva crítica que se muestre capaz de obtener
valoraciones consideradas superiores y más próximas a la verdad.
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 173

DE LA FILOSOFÍA PARA LA FILOSOFÍA BRASILEÑA

Desprenderse de los valores vigentes en una sociedad es un


movimiento explícito en el esfuerzo cartesiano de fundar el
conocimiento en condiciones absolutamente seguras (Descartes, 1973;
1983), es decir, sobre bases distintas de las que normalmente comparten
los seres humanos que viven en determinada sociedad. O para decirlo
de manera más clara, este movimiento de depuración psicológica que
debe hacer el investigador para alcanzar la perspectiva crítica, se
convirtió en el prototipo del proceso de iniciación en la práctica de la
ciencia moderna, al eliminar a los ídolos epistemológicos (Bacon, 1984).
Al final, para alcanzar dicho punto de vista, era necesario fundir al
becerro de oro y así ser dignos del Dios verdadero.
La acusación de que este desprendimiento de toda circunstancia
social, supuestamente superior y neutro, consiste en un acto político de
adopción unilateral de un punto de vista interesado, es incontrovertible
(Foucault, 1988). De esta manera, lo que en el pasado se entendía como
la obtención de una virtud crítica se volvió objeto de otra crítica, en
función de la falta de compromiso político con el ambiente social que
rodea a cada investigador en su propia circunstancia.
El supuesto distanciamiento del pensamiento crítico se convirtió
en una posición política que echaba mano de la universalidad para
ocultar su interés particular. Esto significa afirmar que la crítica
siempre habría ocultado su parcialidad y que una verdad auténtica
jamás podría convertirse en objeto de conocimiento.
174 • Filosofia Latino-Americana

De tal manera, la crítica de la crítica (Silveira, 2016) parece haber


tornado obsoletas todas las estrategias de justificación incondicional de
la filosofía en función de cualquiera de sus supuestas virtudes
intrínsecas, porque es la propia estrategia de obtener una justificación
universal la que carece de sentido en este contexto. Y precisamente por
eso la filosofía se volvió altamente sospechosa de tener intereses no
declarados y de ser parcial.
En este contexto de sospecha generalizada, la crítica de la crítica
puede haber dado la impresión de ser la única posibilidad de obtener
una dirección válida para la actividad filosófica. Sin embargo, su tarea
es eminentemente destructiva: se ocupa fundamentalmente de desvelar
los intereses particulares ocultos bajo la capa del distanciamiento
crítico. Al desenmascarar esas pretensiones sólo queda recomenzar un
proceso semejante que evidencie los intereses ocultos en toda supuesta
universalidad. La crítica de la crítica siempre debe recomenzar el
proceso de desenmascarar las distintas formas de ocultamiento. La
repetición de esta tarea terminará por allanar el ambiente
epistemológico, de tal manera que cada pretensión crítica de elevarse a
un punto de vista superior se revele como mera extrapolación de
intereses particulares.
En este ambiente, una justificación de la filosofía como tal —esto es,
como ejercicio de obtención de la verdad— no es ni más factible ni más
deseable. Al final, se trata de iniciar un proceso cuyo resultado se halla,
desde el inicio, contaminado. Así pues, sólo queda analizar cuál podría ser
la justificación para la actividad filosófica dentro de condiciones
culturales específicas y nunca más desde fuera o interfiriendo con los
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 175

valores humanos vigentes en una sociedad dada. Por lo tanto, la cuestión


sobre el sentido de la actividad filosófica solamente resulta promisoria
bajo la forma particular que asume cuando se confronta con el propio
contexto en el cual se inserta. En nuestro caso, el problema del sentido de
la filosofía pasa a ser, por lo tanto, el problema del sentido de la filosofía
brasileña porque la cultura brasileña es el ambiente en el que se
desarrolla esta actividad intelectual..
Ciertamente, para no ser exhaustivamente repetitivo, descarto la
posibilidad de limitar definitivamente la filosofía a aquel ejercicio de
crítica de la crítica en función de su carácter tautológico. Después de
todo, no tiene sentido defender que la actividad filosófica se limita a ser
tautológica y que nunca podría producir novedades. La revelación
repetitiva del mecanismo de ocultamiento bajo la capa de la
universalidad se muestra como una actividad sin interés y aburrida, por
la que pocos filósofos se inclinarían.
Vimos que la cuestión sobre el sentido de una filosofía brasileña no
puede ocurrir en el ambiente universal de los temas relacionados con la
filosofía como tal. En dicho ambiente ya no es posible obtener una
respuesta satisfactoria para el tema de la necesidad de la filosofía. Dicha
cuestión sólo puede adquirir algún sentido a partir del contexto
particular en que es ejercida. Esto no significa que la filosofía tenga que
limitarse a cuestiones particulares; más bien quiere decir que
únicamente puede mostrarse dotada de sentido si es capaz de tomar en
cuenta la situación cultural en la que se ejerce.
Me gustaría enfatizar que esta sustitución del problema de la
filosofía por el problema de la filosofía brasileña no ocurre en función de
176 • Filosofia Latino-Americana

que el autor sea brasileño o que se interese por la filosofía brasileña. La


verdad, este dislocamiento es el único movimiento promisorio dentro del
entorno contemporáneo creado por la crítica de la crítica. Resalto
nuevamente que aquella posibilidad alternativa de limitar la filosofía a
una actividad repetitiva fue dejada de lado en función de la falta de interés
general que suscita. Esto no excluye la posibilidad de que algunos la
consideren una actividad digna de esfuerzo. Sin embargo, no resulta
razonable limitar todas las actividades filosóficas a dicha tarea mecánica.

DESMOVILIZACIÓN Y SECTARISMO

Es cierto que este cambio de perspectiva, en dirección a un ejercicio


filosófico culturalmente orgánico, desmoviliza la acción política
(Castro-Gómez, 2005). Después de todo se trata de dejar la perspectiva
crítica y, por consiguiente, abandonar un dispositivo que prometía la
posesión de una verdad especial, de un conjunto de valores que
funcionaría como una atalaya desde la que se facilitaría la visualización
y la promoción política de formas alternativas de sociedad. Nadie puede
negar que la altura nos permite ver más lejos. En la planicie, la acción
política se quedó sin un punto de apoyo movilizador a partir del cual
rasgar el velo ilusorio de las falsas creencias, la hipocresía y las formas
injustas de organización social.
Sin los criterios superiores que le permitan separar la verdad de
las creencias ilusorias, la crítica perdió el ímpetu para una acción
política orientada. Es decir, la revolución se convirtió en una empresa
difícil de realizar, ya que le faltaron la certeza y la confianza tan
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 177

necesarias para ejercer una militancia vigorosa. Los intelectuales ya no


tienen garantizado el apoyo a partir del cual preparar y encabezar
revoluciones populares.
En el mismo sentido de la pérdida del candor revolucionario, la
decadencia de la crítica condujo a una alteración substancial del perfil
del héroe intelectual. Este cambio significó el abandono de una imagen
propia fundada en la idea de ser un individuo blindado de certezas en
beneficio de la adopción de la figura de un ser humano atravesado por
la indecisión, que duda incluso sobre el significado de la propia
actividad filosófica. La mimetización de los procedimientos científicos
con los filosóficos es tan sólo la punta visible de este iceberg, ya que
otorga una salida fácil al nuevo problema. La voluntad fuerte e
inflexible, común en los héroes cinematográficos de Hollywood, cedió
su lugar a un ser humano fragmentado e inseguro. Este nuevo héroe
ahora forma parte de un mundo en el que es probable que el mal no sea
vencido ni se presente como el enemigo principal. Un mundo en el que
el bien entra en conflicto con el bien, en donde Batman lucha contra
Superman.
Entender este movimiento de pérdida de energía crítica como una
nueva configuración, creada por el avance de los procesos democráticos,
facilita aceptar la consecuente reducción de la capacidad revolucionaria
del intelectual y de su regreso a la atmósfera planetaria, cambio
especialmente dramático para nosotros, intelectuales
latinoamericanos.
Tendemos naturalmente a comprender el movimiento de
retracción del espacio crítico como una ola de pensamiento
178 • Filosofia Latino-Americana

conservadora y al mismo tiempo reformista. Y no es raro que esto


termine revigorizando en nosotros la disposición para un
enfrentamiento crítico aún más exacerbado, como si el problema fuera
causado por nuestra falta de vigor o por el fortalecimiento de los
sectores enemigos anticríticos. Pero como no se trata de eso, el discurso
sobre la necesidad de adoptar un mayor vigor crítico se reviste de poca
pertinencia social, alejándose de la posibilidad de comprensión y
aceptación general. Es decir, se instituye un proceso que tiende a
generar el aislamiento social del filósofo, en función de su incapacidad
para adaptarse a un ambiente relativamente democrático.
En este punto ocurre una de las peores combinaciones posibles en
la relación del filósofo con la sociedad: cuando menos es escuchado, más
piensa que debe hablar fuerte, ya que supone que los otros están
quedándose sordos. Y cuanto más alto habla, menos es escuchado en
función de su agresividad y falta de delicadeza, muestras de su
incapacidad para comunicarse con la sociedad. Este proceso alimenta el
círculo vicioso del milenarismo y del sectarismo y transforma un
discurso de movilización política en discurso de carácter profético de
difícil comprensión. Tal es, por ejemplo, la situación existente en
muchas universidades brasileñas. En ellas predomina cierta versión del
marxismo, la lengua franca de la intelectualidad brasileña (Unger, 1999),
tan difundida como incapaz de establecer un diálogo con las
circunstancias sociales en que está inserta.
Por ahora no se aprecia un intento por retomar una postura crítica
después de que ésta fuera lanzada a la hoguera por sospechosa. Sin duda
retomar tal postura podría empezar por construir un posible discurso
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 179

dentro del marco general que esquematicé más arriba, pero en el


momento actual no lo considero un camino viable ni promisorio. Al
contrario, exacerbar la crítica en dicho contexto sólo produce
sectarismo e incapacidad de comunicación.

LA FILOSOFÍA BRASILEÑA NO ES HISTORIA DE LA FILOSOFÍA

Optar por el aislamiento y la pérdida de capacidad para


comunicarse con el amplio sector social son opciones totalmente
inadecuadas para la filosofía (Silveira, 2013). Dado que la filosofía es una
actividad que requiere mantener la disposición al diálogo y a ampliar la
capacidad de una mínima comprensión de la cultura en la que estamos
insertos. Lo anterior no significa el acomodo o la ausencia de relaciones
conflictivas con la cultura. Al contrario, se trata de reconocer que la
filosofía es una forma de discurso que requiere interlocutores y que sólo
puede obtenerlos en el contexto cultural del cual hace parte. Esto
significa, de nuevo, que la filosofía brasileña debe volverse interlocutora
de la cultura brasileña.
Por supuesto, el diálogo y la comunicación no siempre conducirán
a situaciones de pleno entendimiento, no se trata de eso. La filosofía no
es un discurso transhistórico que ocurre entre filósofos de épocas
diferentes. Dicha actividad es propia de la historia de la filosofía: un
diálogo imaginario en el que un filósofo conversa con otros filósofos del
pasado sobre asuntos que le interesarían a la humanidad como tal.
Desde el punto de vista de la interlocución que lo anterior implica,
no puede haber dos cosas tan distintas como la historia de la filosofía y
180 • Filosofia Latino-Americana

la filosofía. Esta última establece un diálogo con la cultura, la cual le


proporciona motivos y, quién sabe, quizá demanda su intervención o,
por lo menos, la toma en consideración, dada su pertinencia y
disposición comunicativa. Sin esta base, la filosofía sería una práctica
académica enquistada y aislada y no habrá filosofía relevante (Silveira,
2016). Sin la interlocución cultural, no habrá una filosofía capaz de
dialogar con su tiempo, ni de elaborar una forma de comprensión que
resulte útil. Sin este diálogo, podrá haber erudición, historia de la
filosofía, diletantismo etc., pero ciertamente no una filosofía que se
muestre capaz de establecer conexiones con su contexto.
Tensar el discurso más allá de la capacidad de comprensión de los
interlocutores, como si éstos no fueran aptos o no estuvieran a la altura
de la filosofía, significa eliminar el diálogo y optar por la impotencia
pedagógica, además de condenarse al culto privado de la rabia y la
amargura. Huelga decir hasta qué punto este enquistamiento inutiliza
una vida dedicada a la actividad intelectual que debería involucrar la
enseñanza, la discusión y la alegría. Por lo tanto, es razonable pensar
que la filosofía debe preservar su capacidad de comunicación con el
resto del contexto social en el que se desarrolla, a menos que pretenda
cometer una modalidad de suicidio cultural. En otras palabras,
considero que la filosofía no debe perder su pertenencia cultural. Así,
considero que mantener los parámetros tradicionales de la crítica
creados por la Ilustración del siglo xviii y madurados por el
cientificismo del siglo xix no es una estrategia promisoria para la
actividad filosófica del siglo xxi.
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 181

LA NECESIDAD DEL AMOR

Volviendo al punto de partida, ahora es posible explicar el motivo


por el cual decidimos centrarnos en la necesidad y la originalidad de la
filosofía brasileña y no de la filosofía como tal. Solamente este enfoque
permite la pertinencia cultural y la capacidad de comunicación,
características fundamentales de la actividad filosófica del día de hoy.
Contrariamente, preguntar por la necesidad de la filosofía como tal nos
remite a un ambiente de sospecha que oscurece su entorno y pretende
estar exento de intereses y compromisos políticos. Contrastar la
filosofía con sus circunstancias culturales responde, por tanto, a una
necesidad de dejarla en condiciones de dialogar con el ambiente que ella
misma produce.
A partir de lo anterior, la actividad filosófica debe apartarse de
aquella circunstancia que arriba denominé “historia de la filosofía”.
Aunque sea esencial para enseñar a las nuevas generaciones la práctica
filosófica, dicho ambiente se vuelve artificial y perverso cuando
sustituye la actividad filosófica. La práctica filosófica es la capacidad de
pensar el entorno y reflexionar sobre el mundo en el que se vive.
Restringir la filosofía a su historia, a la necesidad de
procedimientos de argumentación y prueba ya canonizados, a la
imitación de las referencias consagradas, a tartamudear sobre lo ya
sabido y autorizado, propicia un ambiente asfixiante (Silveira, 2016). No
es necesario enfatizar lo claustrofóbico que resulta dicho ambiente al
contrastarlo con una práctica filosófica como actividad culturalmente
comunicativa.
182 • Filosofia Latino-Americana

La filosofía que se constituye como un diálogo con su propia


cultura no se ocupa de asuntos previos sobre qué hacer o qué postura
adoptar frente a la misma. Utiliza el diálogo que requiere un mínimo de
comprensión previa, sin la cual la interlocución no sería posible. Existe
un horizonte común que es necesario compartir y del cual se parte en
toda comunicación. Así, la filosofía tiene que tomar en consideración
sus propias circunstancias culturales, en cuanto que éstas constituyen
dicho horizonte.
La comprensión inicial no puede establecerse sin cierta dosis de
afecto, ya que éste sólo puede generarse por la empatía. Cuando nos
referimos a la necesidad del amor por el objeto inmediato de la actividad
filosófica, logramos notar de manera especialmente nítida lo lejos que
estamos de aquella postura crítica a la que me he referido, postura que
alardea su alejamiento.
Tal vez esta necesidad de afecto significa retomar parte de la
antigua definición griega de filosofía en la que se hacía referencia a un
sentimiento de aproximación (filos) en relación con el conocimiento
(sofía). Si este último implicó después un distanciamiento crítico con
relación a su objeto, quiere decir que, en algún momento, los elementos
de la vieja ecuación comenzaron a chocar, señalando así la necesidad
ambigua de alejarse o aproximarse. Esta tensión aún resulta válida para
constituir una filosofía capaz de comunicarse. Por ello, es necesario
recuperar algo del amor y de la proximidad con su propia cultura,
reforzando la disposición original de aproximación.
El asunto sobre la necesidad de la filosofía brasileña debe
considerar, por lo tanto, algunos elementos básicos de su circunstancia
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 183

cultural. Sin ellos no es posible establecer un diálogo, ser pertinente ni


comunicar socialmente.
Una vez establecido que, en el siglo xxi, la filosofía sólo puede
constituirse como una forma de interlocución con la cultura de su
entorno, sabemos que la de Brasil debe tomar la forma de una filosofía
brasileña. Lo anterior nos obliga a verificar qué tipo de actividad
específica demanda el ambiente brasileño. Al final, no tendría sentido
defender la necesidad de interlocución con la cultura brasileña y
mantener el mismo patrón de actividad intelectual sedimentado por la
historia de la filosofía occidental.
Defender la necesidad de dicho diálogo y creer que el patrón
histórico de la actividad filosófica pudiera utilizarse para conducirlo,
sería una forma grosera de hipocresía. Si adoptáramos dicho patrón,
estaríamos de acuerdo en la forma pero no concederíamos los términos
de los procedimientos prácticos comunicativos. Así, antes de cualquier
cosa, es necesario verificar cuál es la función específica que la filosofía
brasileña podría desempeñar en nuestro ambiente. Es decir, se trata de
verificar cuál podría ser la originalidad de la filosofía brasileña.

LA ORIGINALIDAD DE LA FILOSOFÍA BRASILEÑA

Para tranquilizar nuevamente al lector, debo decir que no pretendo


establecer aquí los temas, los métodos ni los objetivos de una filosofía
brasileña. Hacerlo sería un exceso de pretensión que hablaría en contra
de la capacidad de este autor y de las posibilidades de este texto. Se trata,
más modestamente, de verificar qué tipo de necesidad aflora de las
184 • Filosofia Latino-Americana

condiciones particulares de la cultura brasileña y también de ver qué


debería tomarse en cuenta para darle un sentido orgánico a la misma.
La originalidad surge de la percepción de cuáles son las demandas
propias de la cultura brasileña.
Se sabe que la actividad filosófica occidental se ha ocupado
fundamentalmente de unir aquellos elementos que se encuentran
fragmentados en sus circunstancias culturales. El intento jónico de
llevar a cabo una investigación que pretende aprehender la unidad
subyacente a la diversidad del mundo aparente es una forma obvia de
dicha empresa unificadora (Kirk, Raven y Schofield, 1990). Del mismo
modo lo es la adopción que hace el discurso filosófico de los requisitos
de coherencia y transparência (Vernant, 1990). La coherencia atiende las
demandas relativas a la unidad de sentido que se hace posible a través
de la claridad y de la posibilidad de revisar el discurso escrito cuantas
veces sean necesarias, por medio de la comparación de sus partes y de
la verificación de la existencia de inconsistencias internas. Tanto desde
el punto de vista semántico como desde el punto de vista de la
estructura argumentativa, la filosofía occidental se ha caracterizado
por concitar la síntesis unificadora.
Aun cuando, en fases posteriores a la filosofía antigua, la
preocupación cosmológica cedió terreno a otros asuntos, los requisitos
relacionados con la consistencia permanecieron. Por ejemplo, Hegel
caracterizó al mismo esquema que busca la integración de los elementos
como algo propio de la actividad filosófica, sin lo cual ésta no podría
existir (Hegel, 2003). Más tarde, el propio Henrique Lima Vaz (1984)
propuso el mismo requisito precisamente en un artículo sobre el
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 185

sentido de la filosofía brasileña. En dicho texto, Lima Vaz considera que


la cultura brasileña es parte de la civilización occidental, en función de
la conquista llevada a cabo por los europeos. Tal creencia lo llevó a
postular la necesidad de que en Brasil se replique aquel típico trabajo
filosófico iniciado en la Grecia antigua. Es decir, proceder a una lectura
igualmente integradora de nuestros dispersos elementos culturales.
Como parte de la civilización occidental, le correspondería a la filosofía
brasileña seguir el mismo tipo de actividad intelectual que caracterizó
a la filosofía desde su nacimiento: promover la síntesis. Lo anterior
permitiría que el país fuera representado, comprendido y se volviera,
por lo mismo, objeto de una visión general unificada. En función de las
operaciones sintéticas involucradas, esta actividad filosófica
convertiría a Brasil en “objeto de planificación”, racionalmente
manipulable en función de poseer una unidad perceptible y
referenciable. En otras palabras, la filosofía brasileña debería
emprender la misión occidental modernizadora de auxiliar en el
desarrollo nacional. Esto último sólo podría llevarse a cabo en función
de la integración efectiva entre sus partes, lo que volvería al país uno y,
por ello, propicio a mejoras de todo orden.
Nótese que no puede haber progreso o modernización sin unidad.
De hecho, el progreso requiere planificación y unidad. Por ejemplo,
hacer efectiva la justicia social requiere una serie de acciones que tienen
que llevarse a cabo de manera articulada y consecuente a lo largo del
tiempo, con el propósito de obtener resultados deseados. La existencia
de injusticias sociales es el resultado más palpable de una situación en
que los valores culturales no se encuentran debidamente integrados. En
186 • Filosofia Latino-Americana

dicho caso, la sociedad se muestra conformada por diferentes conjuntos


de valores, como un archipiélago de privilegios, es decir, se presenta
fragmentada. La justicia social sólo puede ser promovida en condiciones
de unidad o de unificación epistemológica.
Lo anterior nos permite caracterizar de manera rápida, por el
alcance de este texto, la extrema fragmentación de la situación cultural
brasileña. Tal peculiaridad fue destacada por varios intérpretes de la
realidad nacional. Gilberto Freyre se refirió a la esquizofrenia brasileña
(1933). Se pueden percibir las dificultades epistemológicas presentes en
este mismo tipo de situación al notar que estamos frente a un “objeto
abierto e infinito” (Lestringant 1983, p. 29), dado que no se deja
aprehender ni definir con facilidad. No podemos someter tal objeto a una
definición clara, lo que hace evidente lo incompleto de cualquiera de sus
interpretaciones y posibilidades de manipulación. Exactamente en
función de dicha dificultad es que comprendemos la defensa, propuesta
por Oswald de Andrade, de la necesidad de una futura síntesis que se
muestre capaz de integrar elementos tan dispares generados por nuestro
mestizaje cultural y racial (Oswald de Andrade, 1990). Sólo una síntesis
más poderosa podría ser capaz de soldar elementos tan fragmentados.
En la constitución de este estado fragmentario no puede ignorarse
la importancia del proceso de colonización en localidades aisladas unas
de otras (Oliveira Vianna, 1938). La forma en la que se instituyó el
proceso de colonización semifeudal, por lo menos desde el punto de
vista político, de las capitanías hereditarias, ilustra este componente de
la diversidad de la cultura brasileña. Por dicho motivo, no resulta
extraño que tal característica nacional haya generado obras con el
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 187

sugestivo título de Brasil, tierra de contrastes (Bastide, 1971), donde el


país aparece como una yuxtaposición geográfica de distintas fases de la
historia. Al no ser susceptible de una interpretación histórica
tradicional, Brasil tampoco es susceptible de progreso, planeación o
desarrollo, pues estas acciones demandan la vigencia de una unidad
temporal sobre la cual articularse.
La percepción de que oscilamos continuamente entre la anarquía y
la dictadura también refleja la inestabilidad de un arreglo político
complejo, que carece de una unión ética sólida y duradera (Faoro, 1975)
que permita la maduración gradual de las instituciones. En fin, es
posible describir la vida brasileña a partir de la noción de que la mayor
parte del tiempo funciona bajo un régimen de excepción, ya sea jurídica,
política, económica o ética (Silveira, 2015). Es decir, estamos frente a un
verdadero archipiélago de elementos no integrados a partir de algún
valor específico.
Nótese que la defensa que hizo Lima Vaz de la necesidad de aquella
función unificadora de la actividad filosófica brasileña solamente es
posible desde un punto de vista que encuadra a la cultura brasileña a
partir de la filosofía. La orientación fundamental de esta propuesta se
enfoca en el modo tradicional de hacer filosofía y la necesidad
subsiguiente de aplicar dicho modo a la realidad del país. Así, se da por
hecho que la filosofía brasileña debe ser una modalidad de la filosofía
occidental, porque la cultura brasileña es una modalidad de la cultura
occidental. En realidad se trata de subsumir el caso particular brasileño
bajo la historia universal de la filosofía y la cultura. En este sentido, la
posición de Lima Vaz en relación con la misión de la filosofía brasileña
188 • Filosofia Latino-Americana

expresa un punto de vista que se deriva completamente de la filosofía


occidental en dirección a Brasil.
Justamente por ese motivo la filosofía brasileña que resulta de este
arreglo adquiere un cariz no pertinente en nuestra cultura. La cuestión no
es qué debe hacerse en términos de la filosofía brasileña, teniendo en
cuenta lo que se ha hecho en términos de la filosofía occidental. Considero
que la cuestión debería ser: lo que la cultura brasileña solicita que sea
realizado en términos de la actividad filosófica, de tal forma que podamos
garantizar que se establezca una conexión entre ellas. Así, el punto de vista
de una filosofía brasileña adecuada necesita ser desplazado, en un primer
momento, de la filosofía a Brasil. Después de verificar las peculiaridades
del país, estaremos en condiciones de articular con ellas una filosofía que
tematice de modo apropiado lo que hemos sido. Se trata de orientar la
actividad filosófica con base en la mencionada relación afectiva con Brasil,
considerándolo como tema y tomándolo como interlocutor prioritario,
que habla cotidianamente sobre su manera de ser.
En verdad, la perspectiva que se mueve del exterior (Occidente)
hacia el interior (Brasil) no deja de ser una modalidad de colonización
que intenta conformar la cultura nacional a partir de los mismos
requisitos históricos que motivaron las colonizaciones occidentales
anteriores. Al final, se trata de dar forma a un mundo de acuerdo con el
conjunto de valores de los colonizadores europeos. Por lo tanto, adoptar
el requisito filosófico de promover la unidad de los elementos culturales
brasileños significa, en último caso, promover una nueva colonización
occidental de Brasil. Se trata de repetir aquí lo que ya fue hecho allá, sin
ningún gesto de aproximación o de atención al modo como hemos sido.
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 189

Uno de los defectos principales de esta interpretación acerca de la


tarea de la filosofía brasileña es que se trata de un discurso
absolutamente ineficaz. Su estructura básica, repetida hasta el
cansancio, trae consigo las instrucciones de lo que sería necesario llevar
a cabo para convertirnos plenamente en occidentales, modernos y
desarrollados. La propuesta de que la filosofía brasileña debe hacer suya
la misión de pensar el país bajo el requisito discursivo y epistemológico
de la integración, posee exactamente esa misma orientación básica
occidentalizante. La ineficacia práctica de esta propuesta se hace
patente cuando notamos que sistemáticamente ha sido repetida sin
generar ningún tipo de occidentalización efectiva. En verdad, es tan
repetida como incapaz de operar cambios efectivos en nuestra manera
de ser. Esta repetición inocua fue iniciada en el primer siglo de
colonización por Manoel da Nóbrega (2006), sacerdote jesuita
portugués, y su intento de convertir a los gentiles brasileños. En su obra
se lamentaba de la disponibilidad incondicional y de la inconstancia de
los indígenas para ser efectivamente cristianizados. Pese a la
reiteración insistente en todas las instancias de la vida nacional
seguimos siendo un país que no se occidentalizó plenamente.
No es excepcional pensar que esto se debe a alguna deficiencia
estructural de la manera en que la cultura brasileña se ha constituido.
Por ello, se afirma con cierta frecuencia que Brasil es un país
predestinado al fracaso civilizatorio. Fracaso civilizatorio occidental,
sería la manera correcta de decirlo. Mientras tanto, es más sensato
creer que no nos occidentalizamos plenamente en función de una
resistencia cultural que opera contra los intentos de colonizar al país.
190 • Filosofia Latino-Americana

De esta manera, no hablaríamos de incompetencia o de no ser apto, sino


de poseer una indisposición básica en relación con el conjunto de
valores occidentales-integradores.
La filosofía brasileña puede ignorar ciegamente esta indisposición
cultural contra su modo de actuar, seguir intentando una nueva
colonización del país y mantener su alineamiento con los requisitos de la
filosofía occidental. Mientras, después de quinientos años de una
exposición sistemática y eventualmente violenta a dicho conjunto de
valores, parece razonable volver la mirada a los motivos que llevan a dicha
resistencia. Esto permitirá verificar la naturaleza del proceso que desvía
la energía colonial de su propósito original, anulándolo parcialmente.
Es evidente que los brasileños no percibimos como un problema la
falta de integración entre los elementos de la vida. Es decir, la
percepción que tenemos de la falta de unidad no la sentimos como una
exigencia de algún tipo de desenlace. Y si la situación cultural brasileña
no resiente la necesidad imprescindible de unificación, entonces no
tiene sentido postular dicha necesidad como parte de o como el sentido
mismo de la filosofía brasileña. Lo anterior sería equivalente a asumir
como nuestros algunos objetivos que nada nos dicen, más allá de seguir
las normas de un padrón de actividad filosófica sin conexión con
nuestras necesidades culturales efectivas.
Nótese que la importación de dicha necesidad es justamente la
típica actividad realizada por la filosofía que hemos hecho con base en
los procedimientos occidentales. Si tal necesidad no es requerida en los
propios términos de la cultura brasileña, si no es exigida de forma
verdadera, entonces la actividad filosófica guiada por dicha finalidad
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 191

unificadora se convierte en un discurso inocuo para el ambiente


brasileño. Es decir, una actividad filosófica que intenta llevar adelante
una solución no solicitada, para un problema no padecido, sólo puede
percibirse como erudición, como discurso irrelevante.
El brasileño no es un hombre trágico. No tenemos la experiencia
de desintegración moral que padece el hombre griego delante de la
diversidad y el conflicto entre valores que orienta las acciones diarias,
como vemos en las tragedias de Sófocles, por ejemplo. Nosotros
navegamos tranquilamente entre referencias distintas y hasta sacamos
ventaja de ellas, sin que nos duela pasar de una a outra (Silveira, 2015).
El brasileño nunca está en peligro real porque puede estar siempre de
un lado o del otro en un conflicto ético. Así, no puede ser acorralado por
referencias fijas pues, de una u otra manera, logra esquivarlas,
moldearlas y absorberlas, pues acepta la diversidad y la fragmentación
sin permitir que las partes choquen entre sí. El brasileño se comporta
dentro de los dos parámetros de una “simpatía transigente y
comunicativa” que impide cualquier posibilidad de sufrimiento
(Buarque de Holanda, 1984, p. 36).
Por lo tanto, la fragmentación no se convierte en un problema
cultural que necesite solución. Nosotros ya lo resolvimos, no por medio
de algún procedimiento de síntesis que altere los términos del
problema, sino a través de la adaptación a la situación fragmentaria que
deja los términos tal y como se presentan. No tiene sentido intentar una
solución unificadora para una situación fragmentaria a la que ya nos
adaptamos.
192 • Filosofia Latino-Americana

CONCLUSIÓN

La originalidad de la filosofía brasileña se halla en el acto de asumir


las peculiaridades de la cultura brasileña como tema. Aunque esto parezca
una trivialidad, en la práctica la adopción de este tipo de postura
intelectual es más ardua de lo que a primera vista podría parecer.
Contra ella existe una gran limitación relacionada con el proceso de
formación de los filósofos brasileños. Nos hemos formado
mayoritariamente en la historia de la filosofía y pocos estamos
preparados para una práctica filosófica efectiva. Dado que la situación ya
es como se describe, para adoptar una actividad filosófica brasileña
tenemos que preparar el terreno. Se trata de adoptar un ejercicio de
práctica filosófica que considere a Brasil como motivo, no de elaborar una
historia de la filosofía brasileña. Ésta tiene su propósito y razón de ser
particulares, así que no debemos confundir la práctica con la historia.
Filosofía brasileña no es lo mismo que historia de la filosofía brasileña.
Existe una segunda dificultad considerable para hacer filosofía
brasileña: la necesidad de abandonar el conjunto de categorías de
análisis y los procedimientos que caracterizan las típicas operaciones
de la filosofía occidental. La sutileza aquí estriba en reconocer que las
demandas implícitas en estas operaciones no siempre son pertinentes o
compatibles con el ambiente cultural brasileño. Si no nos percatamos
de ello corremos el peligro de tomar pseudocuestiones como problemas
legítimos e ignorar los que desde la cultura son realmente percibidos
como tales.
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 193

En dicho sentido, creo que una filosofía brasileña no puede tomar


como establecida aquella orientación por la integración que atraviesa el
discurso filosófico occidental, como si su aceptación plena no
involucrara la importación de un valor absolutamente extraño a
nuestro medio. No se trata aquí de una preferencia personal o de la
inclinación por ciertas líneas de pensamiento, sino de ver la
incompatibilidad relativa de tal demanda filosófica occidental con la
cultura brasileña. Lo anterior deja de manifiesto la necesidad de que los
filósofos brasileños se dejen influir por cierta dosis de afecto por Brasil.
De alguna forma, es necesario salir del conjunto de las categorías
filosóficas occidentales para pensar a Brasil desde su propio punto de
vista o de un punto de vista mínimamente conectado con él. En ese
movimiento, corremos siempre el riesgo de adoptar una forma parca de
nacionalismo en función de la pérdida de las referencias filosóficas
tradicionales. Tal nacionalismo indeseado nos llevaría al interior de
Brasil y lejos de la filosofía, pues nos convertiríamos en defensores
incondicionales de todo lo nacional. Lo anterior ciertamente no es lo
que se desea cuando se defiende la necesidad de considerar al país con
una buena dosis de afecto.
El punto de vista de una filosofía brasileña necesita trasladarse al
centro de la cultura brasileña, adoptando una aproximación que
comprenda lo que hemos sido. Sin embargo, por otro lado, se trata de
una actividad filosófica que necesita hacer suya una tarea específica, sin
la que no podría existir. Las cuestiones filosóficas relevantes serán
aquellas que se muestren pertinentes para la cultura brasileña.
Obviamente no cabe que ningún autor por sí mismo proponga una lista
194 • Filosofia Latino-Americana

de estas cuestiones de forma que delimite una tarea única para la


filosofía brasileña.
Aun así, resulta posible afirmar que la originalidad de la filosofía
brasileña se encuentra delineada por la alteración del punto de vista que
describí antes. A partir de su efectiva adopción estaremos en
condiciones de producir una filosofía culturalmente relevante: ni mera
erudición, ni mera apología de lo que Brasil ha sido.

Traducción del portugués por Luis Humberto Muñoz Oliveira


Publicado originalmente em Cuadernos Americanos, v. 163, p. 97-
115, 2018

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8
CAMINHO PARA A AMÉRICA LATINA

INTRODUÇÃO

São muitas as dificuldades que se apresentam quando se tenta


definir o que viria a ser um pensamento latino americano ajustado às
nossas condições. Essas dificuldades, embora variadas, são o resultado
de uma única e mesma forma de desilusão colonial. Por sua vez, essa
desilusão decorre de haver reconhecido a incapacidade do pensamento
de matriz europeia em fornecer uma visão unitária e útil da América
Latina. Trata-se de admitir que só um conhecimento latino americano
de si e por si pode se mostrar ajustado ao que temos sido. Por ajustado
entendo que essa maneira de pensar deve ser pertinente - e não
necessariamente coincidente - com o estado de coisas que tem nos
caracterizado.
Quando se tenta pensar o que temos sido, a despeito das diferentes
perspectivas disciplinares, se revela que o processo colonial produziu
uma situação na qual os valores de matriz europeia tem exercido uma
energia substantiva sobre o ambiente latino americano. Porém, essa
energia em quase nenhuma situação concreta conseguiu gerar um
corpo plenamente unificado sob a hegemonia dos parâmetros
metropolitanos. Ou seja, há uma espécie de resquício dissonante
presente nas tentativas de implantação de valores europeus na América
Latina – algo que pode ser ilustrado por uma roupa que não se ajusta ao
corpo (Silveira, 2017a). Nisso consiste a desilusão colonial: a constatação
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 197

de que os valores europeus não obtiveram na América Latina o sucesso


civilizatório que obtiveram na sua condição de origem. Daí também que
o pensamento de matriz europeia nos pareça sempre de um modelo ou
de um tamanho inadequado.
A desilusão colonial diz respeito, assim, ao fato de se reconhecer
que não temos tido interesse ou sucesso em nos tornarmos plenamente
europeus. Claro que o desejo de chegarmos a sociedades igualitárias e
desenvolvidas sempre é uma possibilidade que não pode ser eliminada
do horizonte de um ponto de vista estritamente lógico. A desilusão a que
me refiro envolve haver restringido o amplo universo de possibilidades
lógicas para aquilo que efetivamente temos sido historicamente capazes
de realizar em termos de sociabilidade nos últimos 500 anos.
Assim, embora o ideal civilizatório europeu seja viável enquanto
uma possibilidade lógica, o contexto histórico imediato indica que há
limitações óbvias com relação à sua implantação prática. Por contexto
histórico imediato refiro-me àquilo que temos realizado - e não ao que
temos desejado ser. Parece-me desnecessário enfatizar que o que temos
sido não constitui uma natureza e, portanto, uma situação definitiva a
que estaríamos condenados, mas apenas certo estado de coisas mais ou
menos duradouro.
A diferença dessas duas perspectivas – a lógica e a histórica - é que
na segunda focamos o olhar sobre uma dimensão temporal específica:
nosso presente e nosso passado mais próximo. Esse ponto de vista
assume que nossas possibilidades futuras encontram-se limitadas, mas
não determinadas, por algumas características do que temos sido.
Aquilo que poderemos ser está ligado àquilo que temos sido, pois é a
198 • Filosofia Latino-Americana

partir desse último que tomamos impulso em direção ao futuro. Assim


como ninguém salta a partir do vácuo, mas toma impulso em alguma
situação em que se encontra, parece razoável considerar a função desse
sistema inicial de valores que funciona como trampolim com respeito a
tudo o que poderemos ser.
Esse sistema é aquilo que fornece a base existencial a partir da qual
repudiamos ou assimilamos os valores predominantes no ambiente
internacional. Assim, mesmo quando adotamos arranjos institucionais
oriundos da matriz europeia, o fazemos a partir de um conjunto de
disposições básicas. Essas disposições estabelecem parâmetros a partir
dos quais as assimilações ou recusas se tornam possíveis. Elas certamente
não determinam o conteúdo dessas assimilações, mas balizam os limites
de como essas últimas podem se tornar efetivas. De certo modo, essas
disposições funcionam como condições de possibilidade.
Ao levar essas condições em consideração, não parece razoável
esperar – por exemplo - que a transposição da democracia para a América
Latina resulte em práticas sociais idênticas àquelas existentes na Europa
ou na América do Norte. Não ter tal expectativa faz sentido justamente
quando levamos em consideração esse efeito de distorção produzido pelas
condições culturais atuantes por aqui. Embora pareça muito sensato
incluí-lo em nossa maneira habitual de pensar, na prática esse efeito tem
sido sumariamente ignorado por analistas e por governos que insistem
em lidar com parâmetros sociais, econômicos, morais etc., supondo que
as condições latino americanas são idênticas àquelas que produziram a
civilização europeia. A língua franca econômica acerca de produtos
internos brutos ou superávits em balanças comerciais são outra
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 199

ilustração dessa desconsideração pelo contexto presente em nossos


telejornais diários. Isso na medida em que se age supondo-se a validade
da sua aplicação indiscriminada à América Latina.
Nesse espírito pouco afeito às diferenças, não é raro que se defenda
que basta copiar um dispositivo institucional europeu para que se
gerem os mesmos resultados na América Latina. O sistema de cópias
institucionais internacionais – no sentido da cultura europeia para a
América Latina - possui uma história tão extensa quanto infrutífera.
Essa preferência por deixar de lado nossas condições certamente está
ligada ao fenômeno histórico da colonização e é provável que seja um
elemento residual de um complexo de inferioridade arraigado. Em uma
medida que é difícil precisar, o espelho com que nos olhamos parece ser
ainda o do velho colonizador europeu.
Embora o remédio seja amargo, como o são todas as decepções,
ainda assim me parece salutar adotar aqui uma boa dose daquela
desilusão colonial. Ela permite acercar-se mais de perto ao que tem sido
a América Latina e, dessa maneira, propiciar uma avaliação mais
pertinente ou ajustada a nosso respeito. Seu sabor amargo se destaca no
nosso paladar quando notamos que isso implica no abandono do sonho
de sermos europeus.
Mais espantoso é notar que essa disposição para desconsiderar ou
minorar nossas próprias disposições – ou nossas capacidades
efetivamente existentes – permanece atuando mesmo em casos em que
o que se pretende é torná-las explícitas. Com isso quero dizer que essa
indisposição para tomar pé a partir de nossas condições se apresenta
200 • Filosofia Latino-Americana

com frequência mesmo no interior de algumas de nossas pretensões


intelectualmente honestas para nos entendermos plenamente.
Ao perceber essa situação, temos de reconhecer que o colonizador
obteve mais sucesso do que poderia parecer inicialmente. Isso porque,
se parece evidente que ele fracassou do ponto de vista prático, ao
transpor plenamente o mundo europeu para a América Latina, não se
nota o mesmo insucesso do ponto de vista teórico – em função de nossa
perseverança em seguir utilizando os seus velhos critérios de avaliação.
Talvez isso tenha colaborado para consolidar uma noção
fantasmática acerca da América Latina. Afinal, se mesmo quando
pretendemos nos compreender adotamos uma perspectiva inicial que
desconsidera o que somos, é porque aquilo que somos já se constitui
como alguma desconsideração por nós mesmos – em benefício do
colonizador. Assim, o que somos parece ser também, em alguma
medida, uma recusa acerca de como somos, uma forma de não ser.
Isso gera uma situação que é, para dizer pouco, singular: quando
procuramos nos conhecer, assumimos como ponto de partida uma
ignorância parcial acerca do que somos. Então, ao nos conhecermos a
partir dessa perspectiva, terminamos por nos ignorar parcialmente. Ou
ainda: o conhecimento que tentamos obter de nós, adotando esse ponto
de vista, é aquele que se produz da perspectiva da matriz europeia a
nosso respeito – justamente porque nos foca de uma perspectiva alheia.
Essa pretensão de autoconhecimento gestada em uma situação de
ignorância parcial parece-me o nó górdio de nossa capacidade (ou não)
de produzirmos um pensamento ajustado ao que temos sido.
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 201

Como um ponto de estrangulamento, é natural que dependa dele


tudo o que se pode seguir em termos de possibilidade de um
conhecimento adequado de nós mesmos. Assim, parece obrigatório
saber, antes de qualquer outra coisa, se essa situação de nos enredarmos
permanentemente em um conhecimento inadequado acerca de nós
mesmos, em função da distorção causada pela ótica do colonizador, é
algo que pode ser afastado do caminho ou não.
Por isso, me parece que o que compete a qualquer interessado em
verificar a possibilidade de um pensamento latino americano ajustado
a nossas condições é verificar se o efeito de distorção do ponto de vista
europeu é um componente inevitável ou se ele pode ser removido
através de algum procedimento de depuração. Nesse último caso, o que
se obteria seria uma libertação ou uma descolonização em função do
abandono dos critérios europeus de análise e crítica que tem
caracterizado o pensamento da América Latina.
O ponto de vista obtido seria aquele que nos permitiria chegar a
um conhecimento sobre nós, produzido de um ponto de vista adequado
a nós – ou ajustado a nossas próprias circunstâncias culturais. Em
função da adequação interna desse conhecimento às nossas
peculiaridades, podemos denominá-lo de autoconhecimento ajustado.
Enfatizo, também aqui, que isso não diz respeito à recuperação de uma
natureza latino americana não histórica, mas a algo mais modesto: a
uma adequação entre o que sabemos de nós e o que temos sido.
Creio que essa questão não é meramente teórica, na medida em que
ela demanda não a descrição de um suposto processo de catarse
libertadora ou de um método que poderia nos afastar do ponto de vista
202 • Filosofia Latino-Americana

europeu em nosso benefício. Trata-se, na verdade, de uma questão


prática, na medida em que ela solicita a demonstração de nossa
capacidade para gerar um autoconhecimento por nossa conta ou uma
compreensão do que somos segundo o que somos.
O leitor deve estar se perguntando se essa demonstração prática não
é uma tautologia em função dos termos que utilizo – afinal se trata de
produzir uma compreensão de nós segundo o que temos sido. É verdade
que se trata mesmo de uma tautologia. Porém, seu mérito é que ela visa a
substituir outra tautologia. Afinal, o ponto de vista convencional, que em
geral temos adotado para nos compreendermos, é europeu. Note que, ao
contrário do que parece, quando esse ponto de vista se aplica aos seus
autores europeus ele não resulta em uma apreciação isenta. Ele redunda
em um conhecimento sobre os europeus produzido da perspectiva
europeia, portanto em uma tautologia europeia. Para nós, trata-se
simplesmente de saber se podemos substituir uma tautologia europeia
por outra – uma que seja latino americana.
Não é uma dificuldade aqui contornar o procedimento tautológico
porque, nesse caso, ele já é a regra do jogo. Trata-se somente de saber
se estamos capacitados para produzir uma tautologia sobre nós mesmos
que é diversa da tautologia que o europeu produziu de si e que, pela
força inercial dos dispositivos coloniais, tem sido a nossa. Por isso,
insisto em que se trata de uma questão prática, porque ela deságua em
nossa capacidade ou não de gerar uma autocompreensão alternativa de
acordo com o que somos.
Tentei essa autocompreensão com relação ao Brasil em outra parte
(Silveira, 2016) e pretendo aqui ensaiar algo um pouco mais modesto.
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 203

Como vimos, há uma reincidência quase compulsiva em retomarmos a


perspectiva europeia, mesmo em ocasiões em que parecemos
honestamente procurar um autoconhecimento ajustado de nós mesmos.
Nesse texto, tento verificar o que ocorre em uma situação em que,
mesmo tentando gerar uma autocompreensão ajustada, produzimos um
juízo inadequado, justamente em função da nossa compulsão por
readotar o velho olho europeu. O meu objetivo aqui é tornar evidente o
mecanismo dessa reincidência, através de um caso particular, de tal
forma que o leitor possa perceber não só a operação desse mecanismo
subterrâneo, mas também as dificuldades envolvidas no seu desejável
abandono.
Como esse objetivo envolve tratar da América Latina na sua
totalidade, não posso me estender em casos particulares referentes a
cada região ou país – o que tornaria esse texto inviável em função do
seu tamanho. Assim, tomarei como exemplo uma única tentativa de
autoconhecimento que me parece não só honesta, mas dotada de um
relativo sucesso dentro daquilo que ela se propos. Essa tentativa de
autocompreensão latino americana diz respeito à análise de Galligaris
(1992) sobre o Brasil. Embora o autor seja um italiano, isso em nada
compromete sua análise ou o uso que pretendo fazer dela aqui. A
nacionalidade do analista é absolutamente irrelevante nesse caso. Ao
contrário, não o são nem seu ponto de vista nem os mecanismos de que
lança mão para produzir uma compreensão da América Latina.
O meu objetivo, portanto, é analisar um caso particular em que se
ensaia uma tentativa de produzir um conhecimento ajustado sobre a
América Latina. Com isso, viso identificar a maneira sutil como nos
204 • Filosofia Latino-Americana

reacomodamos à maneira europeia de pensar mesmo no interior de


tentativas de nos compreendermos plenamente. Através desse exemplo,
pretendo ressaltar as dificuldades existentes no caminho para um
conhecimento adequado da América Latina e mesmo algumas das
rupturas que ele demanda.

SUJEITOS E INDIVÍDUOS

As limitações que indicarei abaixo não são definitivamente


comprometedoras com relação ao conteúdo da autocompreensão da
América Latina apresentada por Galligaris (1992). Os defeitos que
indicarei dizem respeito à adoção de uma perspectiva que, embora
simpática ao que temos sido, não é adequada para tratar das condições
latino americanas. Dessa maneira, esses defeitos ilustram as dificuldades
existentes no ajuste entre essas condições e um conhecimento ajustado
ao que temos sido. Não tenho interesse em exercer uma crítica exaustiva
acerca da análise de Galligaris, mas tomá-la como um exemplo ilustrativo
das dificuldades ligadas a um pensamento latino americano ajustado.
Apenas nesse sentido ocupo-me com ela.
Embora trivial, é verdade que em função da colonização e da
influência exercida ao longo do tempo, alguns dos valores e dispositivos
europeus moldaram a América Latina. As instituições democráticas são
um exemplo disso. Porém, como explicitei antes, aqueles valores
raramente foram capazes de demonstrar a eficácia que demonstraram
nas condições europeias originais em que foram aplicados. Quando
transpostos, eles perderam sua capacidade de dar uma forma uniforme
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 205

à América Latina. Podemos falar, então, de um processo de ambientação


sofrido por aqueles dispositivos democráticos.
Em outra ocasião, denominei essa apropriação específica de
instrumentalização funcional (Silveira, 2017b) enfatizando o significado
cultural dessa adaptação. Como se poderá notar, essa diferença em
termos de intencionalidade dos valores e dispositivos - entre sua
situação europeia e latino americana - redunda em uma diferença
gritante ao final.
A análise de Galligaris (1992) chama a atenção para alguns dos
resultados de nossa colonização incompleta. Assim, ele se refere à
ausência de subjetivação no ambiente brasileiro. Essa carência de
subjetividade se expressa como uma indisposição geral para se adotar
qualquer tipo de afiliação. Ela assume a forma de “um sujeito psicológico
maciço, cuidadoso da sua convicção de liberdade e autonomia. Um
sujeito às vezes impermeável à indicação de uma determinação
simbólica que o ultrapasse.” (p. 107).
Para evitar equívocos de terminologia, considere que um sujeito
impermeável não é um sujeito propriamente falando, mas um
indivíduo. Afinal, se ele não se subordina a nada que possa lhe parecer
definitivamente superior ou que o ultrapasse, é porque assumiu uma
ojeriza universal ao processo de sujeição. Dessa maneira, reservo o
termo sujeito para os indivíduos europeizados, aqueles que
efetivamente se sujeitaram a esferas simbólicas transcendentes ou
superioras. Já o termo indivíduo designa aqui uma pessoa sem
subjetividade e, portanto, avessa à afiliação.
206 • Filosofia Latino-Americana

Essa indisposição para fazer reverência a algo superior impede que


no interior do indivíduo se estabeleça uma distinção entre dois níveis
hierárquicos. Nesse caso, temos um indivíduo que é psicologicamente
plano, na medida em que suas relações simbólicas se estabelecem em
um ambiente sem profundidade, ao contrário da situação que
caracteriza o sujeito. Na verdade, somente a profundidade pode
propiciar a condição requerida para o estabelecimento da subjetividade,
na medida em que ela permite que se diferencie a instância que sujeita
(acima) e a que é sujeita (abaixo). Sem profundidade não há como a
instância superiora apropriar-se do controle das dimensões que
necessitam ser subordinadas e impor a elas um controle unificado. Na
ausência de profundidade, o sujeito não pode estender uma ação de
domínio consequente sobre si mesmo, em função da ausência do
ambiente psicológico hierarquizado. Nota-se, assim, como o sujeito é
alguém que exerce uma ação de monitoramento, na proporção em que
se descolou de si e pode, desse ponto de vista superior, colocar-se sobre
si. Também se nota, por contraposição, o efeito contrário produzido
pelo caráter plano do indivíduo.
Não me parece inviável universalizar a toda a América Latina essa
indisposição do indivíduo para a reverência. Como mera ilustração
dessa falta de sujeição, na impossibilidade já referida de me deter em
cada circunstância particular de cada particularidade nacional, cito o
perfil do mexicano traçado por Octávio Paz (1959). A solidão do
mexicano é uma forma específica de individualidade. Também seria
essa mesma indisposição com relação à sujeição que produziria uma
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 207

adaptação distorcida do dispositivo democrático na América Latina


(Lagos, 2000) – para mencionar outro exemplo geral já referido.
Sem o reconhecimento prático do valor superior da lei, não há
sujeição nem respeito pelos ritos democráticos. A democracia é
justamente aquele tipo de arranjo político em que todos se encontram
equidistantes com relação a uma mesma lei ou em que essa é
universalmente reconhecida como dotada de autoridade válida por si.
Para termos democracia plena é necessário haver subordinação
integral, isto é, reconhecimento de algo que nos escapa e que está acima
de nós – assim como a subjetividade o requer. Trata-se de um requisito
psicológico em que o dispositivo político pode ou não, a depender da
situação, deitar raízes.
De qualquer modo, parece-me perfeitamente aceitável a tese da
inexistência da sujeição quando tratamos dos indivíduos latino
americanos em geral. A ausência de subjetividade plena é o indício desse
estado de coisas (Sousa, 1999; Associação Psicanalítica de Porto Alegre,
2005).
Uma das limitações perceptíveis na análise de Galligaris (1992) é o
caráter pouco representativo de algumas das figuras que ele opta por
destacar. Em sua análise ele se concentra nas figuras do colonizador e
do colono. O primeiro seria o proprietário das novas terras descobertas
que foi obrigado a cortar os elos de pertencimento com sua localidade
natal e emigrar para a América, visando construir um novo mundo a
partir de si mesmo. O segundo seria o imigrante posterior, aquele que
só poderia obter a terra subordinando-se às prerrogativas já obtidas
pelo colonizador em função de uma chegada anterior.
208 • Filosofia Latino-Americana

Observe que no caso do Brasil, que é o objeto da análise de Galligaris


(1992), a relação entre colonizador e colono só se estabeleceu efetivamente
após 1850. É desse ano a promulgação da lei nº 601, conhecida como Lei
de Terras. Antes dessa lei era permitida a qualquer um a posse de uma
parcela de terra devoluta. Na verdade, o Estado não exercia um efetivo
domínio das terras, já que nem as dimensões do próprio território
nacional estavam devidamente estabelecidas. Tratava-se, antes de 1850,
de uma condição permanentemente mutável, na medida em que o
território se ampliava constantemente (Oliveira Lima, 2000).
Com efeito, as repetidas expansões territoriais geralmente foram
motivadas por mero interesse de iniciativas individuais, sem qualquer
tipo de planejamento ou ação colonizadora por parte do Estado
brasileiro. Um dos exemplos mais característicos dessa situação de
expansão contínua sem a presença da intencionalidade do Estado é a
ocupação da região de Cuiabá (Buarque de Holanda, 1994) levada a cabo
pelos paulistas em busca de ouro. Sem a delimitação precisa do
território e com a possibilidade dele ser ocupado por qualquer um, sem
nenhum tipo de concessão estatal explícita, não faz sentido falar em
propriedade de terras por parte do Estado ou mesmo de terras
devolutas. O que há é um território legalmente indeterminado em que
qualquer um pode ser proprietário.
Existia um processo de concessão estatal de terras desde o período
colonial, porém altamente assistemático e ineficaz. Não era raro que
ocorressem concessões legais sobrepondo as mesmas parcelas de terra.
Além disso, a demarcação era sempre imprecisa e muito propícia a dar
origem a desavenças resolvidas por meios não legais (Filho e Fontes,
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 209

2009; Síntese Social, 1960). Na prática, o território era incerto e livre,


devendo o interessado remover eventuais obstáculos ao uso da terra por
conta própria.
Algum constrangimento real só se torna considerável no momento
em que o Estado brasileiro proibiu a mera posse das terras. Foi essa
proibição que o tornou efetivamente o proprietário. A partir de 1850, a
propriedade passou a se tornar legítima apenas através da compra de
um lote de terras pelo cidadão diante do Estado. Essa alteração na
legislação ocorreu em função da falência iminente do sistema
escravagista e da consequente necessidade do uso de mão de obra livre.
O que se acreditava que iria garantir o uso de mão de obra livre
seria a proletarização. Essa condição requeria a criação de um obstáculo
no que diz respeito à posse dos meios de produção - nesse caso, a terra.
De fato, com fartas terras disponíveis, a mera importação de mão de
obra livre não garantiria oferta de força de trabalho, já que essa última
tenderia naturalmente a se ocupar em processos produtivos próprios. A
expropriação prévia constitui-se como um passo necessário na
efetivação do uso assalariado de mão de obra livre (Martins, 1981;
Guimarães, 1964; De Janvry, 1981).
Portanto, as figuras de colonizador e colono, mesmo se
consideradas na sua função estritamente simbólica, só passam a ser
significativas na história brasileira a partir de 1850. Além disso, há
importantes restrições territoriais para essa função já que o fluxo
migratório europeu se restringiu às regiões sul e sudeste do país.
Observe também que o colonizador e o colono são duas figuras
simbólicas europeias. Não há, na análise de Calligaris (1992), funções
210 • Filosofia Latino-Americana

simbólicas para os indígenas americanos ou para os negros africanos


extraditados à força para o trabalho escravo. Se for verdade que o colono
teme a possibilidade da escravidão, em função de não deter a
propriedade da terra e encontrar-se desvalido, o que dizer dos indígenas
ou africanos – esses últimos já chegados na condição escrava? Não
parece fazer sentido supor que a ameaça da escravidão exerceu um
efeito simbólico superior à escravidão efetiva.
Essa restrição dos papéis simbólicos só se justifica quando
consideramos que a perspectiva de análise adotada por Calligaris (1992)
é europeia. Afinal, é somente para esta que o risco da escravidão é
significativo, mas não para o próprio escravo – para o qual a escravidão
já é uma forma de vida concreta, com a qual ele tem de lidar
cotidianamente. Assim, é eloquente que em um capítulo intitulado
“Escravo”, Calligaris trate não da situação estabelecida da escravidão,
mas justamente da ameaça que paira sobre o colono europeu. Isso
contraria claramente o reconhecimento de que “A marca da escravidão
na história brasileira é profunda e deixou vestígios em nós” (Slavutzky,
1999, p. 143). Marcas que certamente deveriam ser objeto de atenção por
parte da psicanálise, área em que se desenrola a análise de Calligaris.
Essa preocupação acerca do temor da escravidão, historicamente
tardia e tipicamente europeia, é ilustrada pela narrativa de Davatz (s.
d.), citada por Calligaris (1992). Tratam-se das memórias de um suíço
que emigrou para o Brasil para trabalhar no sistema de parceria nas
lavouras de café da fazenda Ibicaba do Senador Vergueiro. Após
retornar para a Europa em função de uma revolta de colonos ocorrida
em Ibicaba, Davatz redigiu um relato sobre a situação dos imigrantes
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 211

europeus que vieram trabalhar em São Paulo. Davatz refere-se à


preocupação de que, em função do crescente endividamento dos
colonos, “Nada impede que amanhã os filhos dos colonos imigrados da
Europa sejam tratados como os pretos, nem mais nem menos.” (p. 120)
e também que “os colonos, em certos lugares, se veem em maior
dificuldade para se libertarem do que os próprios escravos pretos.” (p.
122). Ou seja, da perspectiva europeia, a ameaça mais assustadora era
ser reduzido à condição servil. Trata-se, portanto, de uma preocupação
tipicamente europeia só levada em consideração em função da condição
europeia de Davatz. Condição distinta da maioria efetivamente
escravizada da população brasileira da época, mas que nem por isso
entra no foco da análise de Calligaris.
Espero ter evidenciado duas limitações, que considero secundárias,
mas significativas, da perspectiva analítica de Calligaris (1992). Por um
lado, as funções de colonizador e colono que ele prioriza só se tornaram
parcialmente significativas após 1850. Muito tardiamente, portanto. Por
outro lado, as figuras simbólicas de que ele lança mão dizem respeito
prioritariamente ao temor da escravidão por parte do imigrante
europeu, mas nada dizem sobre a experiência existencial da escravidão
então existente e predominante.

O GOZO IMEDIATO

Passo a considerar o aspecto que me parece mais revelador da


perspectiva analítica de Galligaris (1992): o fato de ela inviabilizar a
adoção de um ponto de vista ajustado à condição latino americana.
212 • Filosofia Latino-Americana

Refiro-me à sua impossibilidade de pensar adequadamente o gozo


imediato.
Obviamente não estou supondo que esse autor tenha se proposto a
gerar uma compreensão do gozo de um ponto de vista latino americano
e não tenha atingido esse objetivo. Ele declaradamente não possui essa
pretensão e seria injusto imputar-lhe isso. Basta atentar para o
subtítulo do livro: “notas de um psicanalista europeu viajando ao Brasil”
para perceber que se trata de uma tentativa prudente de se aproximar
de uma realidade com as devidas precauções que a distância cultural
impõe. A questão é que, ainda com toda prudência que se tome, trata-se
de um ponto de vista que inviabiliza um conhecimento ajustado da
América Latina.
A questão não se resolve pela declaração prudente de que a
América Latina está sendo analisada por um olhar europeu. Se isso fosse
suficiente, bastaria dar um desconto relativo ao ponto de vista
alienígena para se chegar a um resultado final aceitável. Nesse caso, é
como se o débito do ponto de vista europeu preservasse algo de válido
mesmo que produzido sob uma perspectiva inadequada. Com isso, quero
dizer simplesmente que não há como anular o efeito de distorção
produzido pela perspectiva europeia.
Galligaris (1992) identifica o que considera ser a base da pedagogia
europeia no “gosto pelo esforço” ou no valor positivo da interdição: “o
gozo do corpo materno é impossível e o gozo que te é permitido é
relativo ao exercício dos teus esforços (vãos) para atingi-lo. E a
excelência de uma vida é relativa à nobreza dos esforços” (p. 47). Desse
modo, a vida civilizada europeia torna-se um exercício de assumir as
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 213

interdições como limites contra os quais se luta sem chance de sucesso


definitivo. O que se conquista, de fato, nesse processo é a capacidade de
superar pelo esforço as limitações assumidas no início e construir uma
vida dentro das fronteiras que se impuseram sobre o sujeito. É
justamente a assunção dessas limitações que requerem as disposições
subjetivas. Aquelas só podem ser devidamente assimiladas no interior
dessas últimas.
A essa noção da pedagogia europeia se oporia uma psicologia latino
americana em função de nossas disposições individualistas, logo planas.
Como vimos acima, tratam-se das características de uma psicologia do
indivíduo - que se indispõe contra toda limitação, no sentido de se
recusar a vivenciá-las interiormente. Ou seja, o indivíduo não adia a
realização do desejo para um futuro provável, não assume como suas as
imposições externas e os impedimentos de toda ordem. Ele não os
interioriza e nem reconhece limites externos definitivos. Tampouco ele
assume a condição de um desejante limitado por forças superiores a si.
Quando Calligaris (1992) trata do indivíduo, adota um tom
relativamente simpático, mas que revela uma incompreensão de fundo
diante de uma possibilidade de ser que, de seu ponto de vista, não parece
fazer sentido: “tudo acontece como se o único motor da ação humana
pudesse ser o apetite de um gozo direto da coisa” (p. 60). No mesmo
sentido, um pouco adiante, ele deixa evidente o desconforto com a
figura do indivíduo ao afirmar que “como se reconhecer um fiozinho de
filiação pudesse privar-nos de algum gozo” (p. 74). É essa possibilidade
de viver o gozo imediato sem interdições que lhe parece difícil de
compreender e mesmo reconhecer a existência. De fato, essas
214 • Filosofia Latino-Americana

afirmações parecem supor que as limitações são necessárias e que o


indivíduo é um absurdo, um impossível que existe.
Mas quais seriam as dificuldades vinculadas a uma vida baseada no
gozo imediato? As dificuldades estão ligadas ao modo como esse gozo é
compreendido pela análise psicanalítica de Calligaris (1992). O seu ponto
de vista é o de que a tentativa de fundar uma vida significativa baseada
no gozo imediato termina em uma espécie de corrida fatigante que não
conduz a lugar nenhum que não seja o esgotamento do indivíduo. Trata-
se de um movimento que só leva ao vazio. Assim, a possibilidade de uma
vida baseada na individualidade é a própria impossibilidade do nada. A
passagem que melhor ilustra essa noção é a seguinte:

Qual seria um sujeito que estendesse indefinidamente esta voracidade de


leitão? Se significantes paternos transitassem diariamente pelo seu corpo
como amanteigados na boca de um boxer, como conseguiria se apoiar firme
num deles e qual? O remédio evidentemente seria escolher como valor
nacional a voracidade mesma. (1992, p. 35).

Assim, o gozo imediato levaria sempre à falta de condições de se


obter apoio “firme” em função da voracidade que ele sempre implica.
Como o gozo imediato conduz a uma nova necessidade assim que é
satisfeito, ele deságua em uma espécie de regressão contínua em que nada
é preservado. Não se pode encontrar a satisfação plena do desejo nessas
condições. Trata-se de uma espécie de roda desejante que gira para
sempre voltar à situação inicial de carência de onde ela partiu. Assim, a
vida baseada no gozo imediato é uma vida fadada ao nada, à carência de
um desejo inesgotável, à falta de um ponto de apoio sólido onde se possa
ancorar. Ou seja, uma vida à deriva e sem um sentido possível.
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 215

Essa crítica de Calligaris (1992) à lógica interna do gozo imediato


reverbera uma outra bem mais antiga. Refiro-me às afirmações de
Santo Agostinho (1996, p. 381) no combate ao politeísmo romano. Para
ele, o problema com o politeísmo é que a diversidade de deuses não
fornece um suporte decididamente sólido para a frágil vida humana.
Assim, ter vários deuses equivale a adotar uma forma de felicidade
“brilhante como o vidro e como ele frágil” de tal forma que “vive-se no
terrível receio de que de repente se estilhace”.
Aqui, como em Calligaris (1992) o problema está ligado à fragilidade
do que é objeto do desejo imediato, de uma felicidade que, por ser
inconstante, pode conduzir à infelicidade e ao que é volátil. Em ambos
os casos, o ponto de vista determinante do qual se parte é a demanda
por uma felicidade sólida, por um ponto de apoio “firme”, por algo
substantivo e que não se esgote na imediatez – seja o gozo imediato ou
os pequenos deuses do politeísmo antigo.
Não se trata, como a análise de Calligaris (1992) certamente deu a
entender antes, de que o gozo imediato seja autocontraditório e termine
colapsando em função de seu próprio peso. Na verdade, a questão é que,
diante da necessidade por um ponto de apoio definitivamente sólido, o
gozo pareça frágil. A avaliação negativa com relação ao gozo imediato,
de Agostinho (1996) e Calligaris, está baseada no fato de que ambas as
perspectivas tomam pé em exigências temporais muito específicas. De
fato, ambas partem do pressuposto de que é necessária uma base de
apoio constante para a vida humana, de que necessitamos de algo que
seja durável e não se quebre com a facilidade do vidro. Algo que seria
durável o suficiente para nos retirar do reino da voracidade que teima
216 • Filosofia Latino-Americana

em fazer o desejo renascer sempre, esvaziando-se a si mesmo. Enfim,


seria necessária uma âncora diante da volatilidade do tempo.
Observe como a crítica, em ambos os casos, parte do pressuposto
de que essa demanda existencial por apoio é universal e de que a
inconstância e a imediatez constituem um problema para a natureza
humana. Não se trata, portanto, de verificar que o gozo imediato leva a
um impasse de acordo com seus próprios termos, como é sugerido. Na
verdade, o que se trata de constatar é que o gozo imediato leva a uma
condição de vida que é inaceitável de um ponto de vista que assumiu a
necessidade de um apoio “firme”, de uma felicidade inquebrável.
Somente para essa perspectiva é que o gozo imediato é problemático, na
exata medida em que ele se choca com aquela necessidade.
Porém, podemos compreender o gozo imediato de outro ponto de
vista que lhe seja mais afeito e que não parta de pressupostos estranhos
a ele. Assim, considerando-se que ele seja, de fato, um componente da
psicologia individualista, como sugere Calligaris (1992), talvez o gozo
imediato possa ser melhor compreendido da perspectiva de sua própria
imediatez. Isso certamente se aproximaria mais de um conhecimento
ajustado à psicologia latino americana. Ou seja, podemos verificar o
significado do gozo imediato do ponto de vista da própria imediatez,
sem projetar sobre ele aquela demanda por firmeza e durabilidade que
lhe são estranhas.
Quando analisamos o gozo imediato de um ponto de vista temporal
extenso, aquele que caracteriza a voracidade, sobrepomos ao seu
conteúdo uma condição temporal que lhe é originalmente estranha.
Com o perdão da trivialidade, o que é próprio do gozo imediato é que ele
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 217

é imediato. Sua aparente fragilidade surge apenas quando ele é


compreendido contra o pano de fundo temporal de uma duração longa.
É esse gesto comparativo que obscurece, de saída, o próprio conteúdo
do gozo imediato.
Com efeito, o que é imediato não pode ser devidamente
compreendido pelo olhar lançado da eternidade ou de um tempo longo
– que é aquela temporalidade requerida pelo apoio “firme” de Calligaris
(1992). Se a felicidade parece ser de vidro e o gozo expressa fragilidade é
porque ele é considerado de uma temporalidade alongada que não é
originalmente a sua. Ou seja, por meio de um golpe de força ele é
submetido a uma necessidade que não lhe é própria e se interpõe uma
temporalidade que não é a sua. Dessa forma, ele é submetido a uma
condição analítica projetada sobre ele.
A operação que se realiza dessa forma, com respeito ao gozo
imediato, é uma mera análise exterior – aquela que nada possui em
comum com o que analisa. Por meio dela se tenta subordinar um objeto
a critérios de avaliação que lhe são estranhos e nada dizem acerca de
sua condição de existência específica. A conclusão de que o gozo conduz
à voracidade e, portanto, a sua própria falta de sentido consiste somente
na constatação de que ele não supre uma demanda prévia já estipulada
desde o início - por eternidade ou por um apoio “firme”. Ou seja, tudo
se resume a verificar que o gozo imediato não é compatível com o
pressuposto do valor superior da durabilidade. Observe como se trata
de um círculo (vicioso), porque significa somente que um objeto não
corresponde aos conceitos que são utilizados para compreendê-lo. Isso
tanto pode querer dizer que esse objeto é inadequado como pode
218 • Filosofia Latino-Americana

significar que ele não é verdadeiramente compreendido. Nesse caso, o


conhecimento é caracterizado por uma recusa das especificidades do
objeto.
A dificuldade que emerge para esse tipo de crítica externa gira em
torno de saber se essa demanda por eternidade ou por apoio firme é
superiora, em qualquer sentido, à condição própria e imediata do gozo.
Prefiro não me ocupar com ela aqui e me basta ter indicado o caráter
exterior da crítica de Calligaris (1992) e, lateralmente, a do próprio
Agostinho (1996).
O que me interessa destacar é que a constatação de uma crítica
externa permite uma melhor aproximação com relação ao sentido
adequado da experiência do gozo imediato e do que deve ser levado em
consideração por uma psicologia da individualidade. Isto é, a crítica
externa ilustra as dificuldades implicadas em qualquer tentativa de
conhecimento ajustado da América Latina. Observe o resvalo para a
perspectiva europeia, caracterizada por uma temporalidade alongada,
que ressurgiu quando Calligaris (1992) tentou obter uma compreensão
da psicologia lda individualidade.
A perspectiva de compreensão mais adequada do gozo imediato
implica adotar o ponto de vista da própria imediatez. Nesse caso, não se
nota nenhuma voracidade nem curto circuito de significado. O gozo
imediato coloca-se temporalmente dentro de um instante e somente
nessa condição ele se define como uma experiência existencial
específica. Assim, qualquer consideração temporal para além do
instante não leva em consideração o caráter instantâneo do próprio
gozo. A procura pelo gozo imediato não conduz a um beco sem saída,
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 219

mas a uma renovação permanente, de instante a instante. Não há uma


regressão ao vazio e sim uma renovação constante em que cada
experiência de gozo reafirma a potência do indivíduo, sua completude,
seu sentimento de ser pleno junto a si mesmo, imediatamente. O vazio
não surge do próprio gozo imediato, ele emerge da temporalidade
alongada e da eternidade – introduzida como mecanismo que visa
promover uma interpretação externa. Só contra essa última é que a
imediatez torna-se problemática.
De seu próprio ponto de vista, a procura pelo gozo imediato conduz
somente ao gozo que é presente e não a outros tantos instantes
anteriores ou posteriores a ele. O que é próprio da imediatez é que ela é
uma experiência que não ocorre no tempo. Assim, a experiência do gozo
não implica comparações entre um instante e outro instante, na medida
em que isso requer justamente uma alienação com relação ao presente
imediato e a adoção de um ponto de vista exterior. O gozo imediato não
pode, portanto, ser objeto de uma avaliação fundada na temporalidade,
porque essa exigiria uma subordinação ao tempo. Isto é, essa avaliação
exige a negação da imediatez do gozo ou a destruição de seu objeto. Com
isso aquela análise externa revela o que ela é: uma negação do gozo.
Uma avaliação temporal do gozo imediato será sempre, por
definição, uma tentativa de subordinação injustificada a um ponto de
vista inadequado. Uma análise temporal do que não se encontra
originalmente disposto no tempo só pode gerar negações e
falseamentos.
Afirmar que o gozo imediato inviabiliza uma sociedade organizada
sob o império da lei (Calligaris, 1992) é apenas uma espécie de avaliação
220 • Filosofia Latino-Americana

unilateral ou uma tentativa de apreender uma forma de vida sob


critérios que lhe são estranhos. Claro que se pode avaliar as
consequências sociais do gozo imediato, desde que esteja evidente que
se trata de uma avaliação que desconsidera o que é específico daquilo
que se avalia – e que pode, em função disso, ter seu valor colocado sob
suspeita. Parece mais legítimo avaliar algo de um ponto de vista que leve
em consideração os aspectos que lhe são próprios – ou que lhe tem sido
próprios - e que possa, assim, estabelecer com ele algum tipo de
conexão.
Não há como contornar o fato de que a tentativa de subordinar a
experiência do gozo imediato ao critério da temporalidade seja um gesto
de força. Nesse sentido, ele apenas revela incompreensão e uma
disposição para a subordinação unilateral que reafirma as velhas
disposições coloniais com as quais temos tentado compreender a
América Latina de uma perspectiva europeia. Com isso quero dizer que
o complexo colonial não é mais um problema da nossa relação com as
nações colonizadoras. Ele é um problema na nossa relação com o que
temos sido e da maneira como orientamos nosso pensamento.
A possibilidade de uma avaliação mais pertinente da América
Latina passa por uma compreensão de sua maneira de estar sendo. A
repetição do esquema lógico de subordinar um corpo estranho a uma
roupa inadequada conduz sempre à constatação de que essa não se
ajusta àquele. Ou seja, isso sempre conduz à indicação daquilo que falta
à América Latina – sempre de uma perspectiva europeia,
evidentemente.
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 221

CONCLUSÃO

Seguindo a lógica da carência, Calligaris (1992) refere-se à superação


da condição latino americana, porque dessa perspectiva se trata
simplesmente de promover uma negação do que temos sido em função
dos pressupostos assumidos. Essa superação, diz respeito a que se
“devolva ao sujeito um verdadeiro estatuto simbólico” (1992, p. 114) já que
se supõe que ele deveria tê-lo. Isso significa que dado que há um indivíduo
que não se subjetiva dentro das expectativas psicanalíticas, ele passa a ser
compreendido como um sujeito incompleto – tendo em vista o roteiro
subjetivante que, se presume, também deveria ser o nosso.
A epígrafe de Freud, usada por Calligaris (1992) ilustra essa atitude
com clareza: “podemos esperar que, um dia, alguém se aventure a se
empenhar na elaboração de uma patologia das comunidades
culturais...”. Estando o indivíduo fora do roteiro subjetivante da
psicanálise, Calligaris o toma como dotado de uma condição que deve
ser superada. Porém, a própria constatação dessa condição se operou
com base na projeção de uma temporalidade que lhe é estranha. A essa
altura, a simpatia do analista nada pode fazer pelo indivíduo, já
devidamente recoberto por aquela projeção temporal do modo de
pensar da velha Europa.
Uma tentativa de compreensão simpática não poderia mesmo
conduzir o analista a suspeitar do esquema explicativo de que ele lança
mão. Ao fim, em função de seus pressupostos, aquela tentativa só
propicia a catalogação de formas excepcionais ou excêntricas de seres
humanos a serem superadas em benefício do sujeito. Entre esses dois
222 • Filosofia Latino-Americana

polos que estabelecem uma zona de tensão – o indivíduo, de um lado, e


a psicanálise, de outro - Calligaris (1992) opta pela última. Isso porque a
simpatia não permite chegar além do umbral em que se entrevê outra
realidade – que lhe parece inadequada. Ela não conduz a um passo
adiante, para dentro da América Latina.
Aqui chegamos ao ponto em que podemos reconhecer como a
interferência do ponto de vista europeu interdita o acesso a um
conhecimento latino americano ajustado à América Latina. Mesmo as
precauções do analista, expressas na adoção de um “medíocre
racionalismo” (Calligaris, 1992, p. 125), podem conduzir a um ponto de
vista ajustado à realidade analisada. Não se trata, obviamente, de uma
limitação pessoal do próprio analista, mas de uma questão estrutural
contra a qual ele dificilmente pode lutar em função de ter se proposto
uma análise psicanalítica. Para se chegar à América Latina é necessário
sair antes da velha Europa e do tempo histórico em que ela habita.
A noção freudiana de uma “patologia das comunidades culturais”
expressa muito bem o alcance restrito da análise de Calligaris (1992)
sobre o Brasil – e sobre a América Latina - e ilustra o mecanismo que
me parece importante explicitar aqui. A psicanálise é uma abordagem
que foi desenvolvida tendo como parâmetros os processos europeus de
civilização. Em função disso, sua pretensa universalidade deveria ser
encarada com extrema cautela. Mesmo no interior do próprio contexto
europeu é discutível sua amplitude explicativa.
Hacking (2000) chamou a atenção para a conexão existente entre a
psicanálise e seu contexto social. A disponibilidade de tempo livre
requeridos pelo processo terapêutico psicanalítico é incompatível com
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 223

o padrão de vida de operários da época de sua criação – por exemplo. Ao


contrário, ela é compatível com o modo de vida da burguesia vienense.
Daí se segue as diferenças de abordagem entre a psicanálise e a hipnose
de Binet. Essa última foi desenvolvida na mesma época e se mostrava
mais eficaz na resolução rápida de problemas dos operários, obviamente
sem tempo livre para se dedicar ao processo terapêutico psicanalítico.
O fato da psicanálise estar ligada a um contexto social específico
não significa que ela é dependente desse contexto. Porém, isso
certamente significa que ela emerge de um contexto para o qual ela
representa uma resposta viável. Ou seja, que há uma relação de ajuste
entre o contexto cultural e social e a própria necessidade desse tipo de
abordagem explicativa. Não parece pertinente a tentativa de ampliar a
validade da psicanálise a contextos culturais com os quais ela não possui
essa relação de ajuste. Imagino ter se tornado claro sua inaptidão para
compreender adequadamente o significado do gozo imediato em função
da especificidade psicológica que esse último implica. Afinal, trata-se de
considerar que a individualidade esteja “excluída do universo de
significação psicanalítico” (Pastori, s. d., p. 8) com o qual ela claramente
não possui pertinência.
A questão volta-se para o ponto de vista inicialmente assumido
pela psicanálise. Afinal, os psicanalistas estão “acostumados a lidar com
os fragmentos e deles escutar uma forma narrativa” (Pereira, 2005, p.
52) (grifo meu). Ou seja, nela se trata de compreender tudo o que é dito
sob uma narrativa unificada ou tomar como válida “uma posição
discursiva ordenada pela suposição de um pai único” (Chnaiderman,
2005, p. 72). E é justamente essa ordenação sob a forma de uma narrativa
224 • Filosofia Latino-Americana

que, vimos antes, projeta-se como temporalidade alongada ou como


eternidade exclusiva sobre a individualidade.
Parece-me que a leitura de Calligaris (1992) com relação ao Brasil e
a América Latina é um caso particular de um tipo de análise que resvala
justamente nas suas pretensões de universalidade. Porém, mais
importante que esse caso particular é observar como tais pretensões
fazem parte da prática intelectual de perspectiva europeia exercida
sobre a América Latina. Nesse sentido, qualquer outra tentativa baseada
nos mesmos pressupostos, redundaria em um resultado semelhante de
inadequação.
Saliento que essa reivindicação em benefício de uma compreensão
latino americana da América Latina não toma impulso em um princípio
de que constituímos um mundo à parte que, em função de sua
especificidade, demanda um aparato conceitual diferente do europeu.
Porém, como o presente caso ilustra, uma análise mais cuidadosa da
maneira como nos constituímos tem chegado a isso. Há uma grande
diferença entre reivindicar essa especificidade como ponto de partida
ou como uma conclusão.
Como acabamos de perceber, uma consideração latino americana
ajustada à América Latina demanda o rompimento com o ponto de vista
europeu. Para que se possa chegar a uma autêntica compreensão de si
latino-americana é necessário saltar para fora da perspectiva europeia.
Não há como subtrair o efeito europeu de distorção para se chegar à
América Latina. Uma psicologia latino americana ajustada a nossas
condições deve ser conduzida através de um caminho próprio, que não
passa por aquele conhecido atalho pela floresta europeia.
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 225

Publicado originalmente em Psicología para América Latina, v. 29,


p. 96-112, 2017.

REFERÊNCIAS

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226 • Filosofia Latino-Americana

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Sousa, E. Psicanálise e colonização: Leituras Do Sintoma Social No Brasil. Porto Alegre:


Artes E Ofícios, 1999.
9
PROBLEMAS DE FILOSOFIA BRASILEIRA

INTRODUÇÃO

Estamos comemorando em 2022 os 100 anos da realização da


Semana de Arte Moderna. Talvez minha linha de pensamento - se
pudermos chamá-la de linha - destoe bastante daquilo que se espera de
uma tentativa de interpretar a disposição antropofágica da Semana de
22. Mas o que seria da filosofia sem essa falta de tato para tratar dos
mais diferentes assuntos? Um filósofo é basicamente uma pessoa que
não entende as perguntas que lhe são feitas.
Estou considerando aqui que o significado da Semana de Arte
Moderna seja a explicitação do interesse das produções artísticas e
intelectuais tematizem o Brasil. Que suas intenções girem em torno de
desenvolver algum interesse pelo nosso país. Me refiro àquele país que
resultou da intervenção violenta do conquistador português, da leva de
escravizados africanos trazidos à força para o trabalho e dos indígenas
que já habitavam o lugar desde muito tempo. Todos eles dotados de suas
respectivas línguas, costumes e valores, com suas dinâmicas próprias
que foram abruptamente alteradas pela chegada do europeu. Uma
situação tão complexa que torna quase pueril datar o começo do país em
1500. Mas, enfim, fazemos mesmo isso e dizemos que o Brasil começou
nesse ano da Graça de Nosso Senhor. Vamos considerar, para todos os
efeitos, que essa datação sobre o início do país é uma daquelas
228 • Filosofia Latino-Americana

simplificações grosseiras que permitem o início de um assunto – e nada


mais do que isso.
O fato é que esperar tanto tempo para nos propormos
explicitamente a tratar do Brasil – como quis a Semana de 1922 – pode
não parecer muito salutar, quando olhamos o processo daqui, do
presente, em direção à história do país. Por outro lado, dadas as
condições efetivas da produção cultural e intelectual vigentes até a
Semana, a proposta de alteração de perspectiva foi fundamental. Ela foi
uma proposta de revolução tardia, mas ainda assim uma revolução.
Como se pode verificar ainda hoje, a filosofia não acompanhou esse
movimento de ocupar-se com nossos próprios assuntos. É verdade que
em 1922 não havia filosofia institucionalmente estabelecida no país.
Ainda assim, mesmo posteriormente creio que a filosofia não se deixou
abalar pelas proposições da Semana no sentido de enveredar pelo
cultivo de um interesse pelo Brasil. Nossos modelos de atividade
intelectual seguem sendo majoritariamente europeus sob todos os
critérios que se possa utilizar para analisar o que se produz por aqui. Só
mais recentemente estamos começando a dar os primeiros passos na
direção de pensar o Brasil.
Não sou um historiador da filosofia e ainda menos um historiador
da filosofia brasileira, então meu ponto de vista é bastante limitado
acerca das tendências gerais que caracterizam essa atividade. Assim,
vou me ocupar aqui com algo que decorre de algo bastante empírico e
limitado: minha própria experiência pessoal tentando produzir filosofia
brasileira. Entretanto, não creio que uma provável resolução dos
problemas que indicarei seja algo que se imponha com necessidade
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 229

antes do trabalho com filosofia brasileira. Parece mais acertado


acreditar que esses problemas e suas possíveis soluções ocuparão
espaço na agenda filosófica mais cedo ou mais tarde. Se forem antes,
melhor.

FORMA E CONTEÚDO

Durante a minha formação jamais em uma só disciplina, seja na


graduação ou na pós-graduação, presenciei referências a qualquer texto
que tomasse o Brasil como objeto de discussão filosófica. Mesmo
autores brasileiros que produzem material efetivamente utilizado nos
processos de formação de filósofos nas universidades definem e
enquadram os problemas a partir de uma moldura europeia.
Se o impulso fundamental da Semana de Arte Moderna foi o de
voltarmos nosso olhar para o Brasil, creio que nós, os filósofos
brasileiros, ainda estamos no início do Século XX ou talvez em pleno
Século XIX. Só depois do período de formação e de maneira bastante
tacanha e irresponsável fui me dispor a intentar algo que pudesse ser
denominado de filosofia brasileira: um tipo de exercício intelectual que
articulasse o trabalho convencional que realizávamos nas universidades
com a cultura brasileira. Observe que se tratou de uma aventura: nada
na minha formação me qualificava para esse tipo de empreendimento.
O avanço – se é que ele ocorreu – teria que ser feito por um tatear a
esmo, na esperança de encontrar algum rumo e um sentido.
Esse tipo de articulação se mostrou problemático em vários
sentidos e tentarei tratar de alguns deles aqui na sequência desse texto.
230 • Filosofia Latino-Americana

Meu objetivo não é, como já afirmei, elencar uma história desses


problemas, mas narrar como eles surgiram no contexto particular de
uma tentativa de pensar o meu país a partir de uma disposição
filosófica. Como se verá, há uma limitação natural nesse ponto de vista:
o da experiência direta. Ela fornece o material e os limites.
Uma primeira tentação equivocada ao fazer filosofia brasileira
consiste exatamente em tomar o que acabo de dizer como centro desse
trabalho: tomar questões brasileiras como tema. É como se
preservássemos o método de trabalho filosófico que já se encontra
relativamente consolidado desde o período de formação europeia e
introduzíssemos nele o Brasil. A solução parece fácil e simples - só
parece.
Hegel (1992) já havia alertado para o que significa o uso sistemático
de um método: o ato de mergulhar conteúdos diferentes dentro de um
mesmo líquido. Com essa metáfora, ele se referia à homogeneização a
que esse processo parece conduzir. Tudo fica com a mesma aparência,
com a mesma cor e, quem sabe, com o mesmo sabor. O uso de um mesmo
método para assuntos diversos envolve homogeneização e encobre as
diferenças de conteúdo, como se tudo tivesse que apresentar-se de uma
mesma forma, seguindo um padrão idêntico.
Nesse sentido, essa disposição de tomar o Brasil como algo a ser
pensado pela filosofia consiste em passar a considerá-lo como objeto de
estudo dentro de uma tradição já consolidada. E essa tradição -
justamente por ser uma tradição - possui seus próprios maneirismos,
sua própria etiqueta, sua própria metodologia, sua linguagem, seu ethos
profissional. Então, ao final das contas, o interesse filosófico pelo Brasil
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 231

pode significar um movimento que não leva a nenhum lugar: tudo


permaneceria tal e qual, exceto que agora estaríamos filosofando sobre
o nosso país. Afinal, estaríamos praticando uma extensão metodológica
da velha filosofia europeia mais do que qualquer outra coisa.
Com isso quero dizer que a mudança de perspectiva que conduz da
filosofia tradicional europeia, ensinada nas nossas universidades, para
a filosofia brasileira pode se mostrar como uma mera ampliação
metodológica que passa a inclui o nosso país. Nesse caso, observe que
nada de substantivo se acrescenta. Para mantermos a metáfora, seria
como mergulhar o Brasil nas velhas categorias filosóficas europeias ou
fazê-lo submergir no interior daqueles procedimentos já consolidados
pela tradição dessa área de estudos. O resultado desse procedimento
parece conduzir à perda de especificidade de nosso objeto de estudo, à
sua homogeneização dentro de um meio preexistente, sua dissolução e
perda de especificidade em função do meio. Ao final desse processo
obtemos um país sem seu sabor, sua cor, sua textura.
Não creio que esse parco resultado mereça o esforço de se fazer
filosofia brasileira. E talvez esse seja um dos motivos pelos quais poucos
se interessam pelo assunto. Afinal, visto dessa maneira, o assunto não
parece mesmo muito promissor e interessante. Qualquer extensão
metodológica a novos conteúdos é, antes de tudo, uma rotina intelectual
que elimina justamente a novidade sugerida pelos novos objetos a serem
encampados. Ela é mais do mesmo sob outra aparência.
Vamos a uma ilustração disso. Podemos analisar a corrupção do
sistema político brasileiro como uma forma desvirtuada de
funcionamento do sistema representativo ocidental. Tomamos o
232 • Filosofia Latino-Americana

sentido clássico europeu da representação política como critério de


funcionamento saudável da relação entre eleitores e eleitos e daí
analisamos o que não funciona no Brasil. Podemos avançar em direção
às causas para esse mal funcionamento, mas o decisivo é mesmo o
critério que usamos e que se encontra consolidado pela tradição
filosófica europeia - que estabeleceu a norma saudável dessa relação. O
referencial aqui é aquilo que a filosofia europeia produziu a partir da
especificidade de sua experiência histórica na constituição dos Estados
modernos e do seu sistema de funcionamento político.
Observe que nesse tipo de interpretação do problema da corrupção
não se acrescentou nada relativo à especificidade do país. Por exemplo,
não se disse uma palavra sobre o substrato cultural original indígena
em que as nossas relações políticas, importadas da Europa, se fixaram.
Assim, por exemplo, a dispersão do poder, a ausência de chefias
autênticas, a intensidade das relações familiares, a reciprocidade como
princípio da sociabilidade, o padrão de organização fundado na
modularidade, tudo o que é próprio do substrato cultural original da
América foi deixado de lado.
Esse mesmo padrão de análise é bastante comum nas tentativas de
se pensar filosoficamente o país. Podemos generalizá-lo com certa
prudência. O que se opera através dele é aquele movimento que indiquei
acima: com base nos conceitos filosóficos europeus já usuais, passamos
a analisar também o Brasil. Esse tipo de trabalho filosófico é bastante
confortável porque exige pouco do filósofo: basta deslocar seu olhar
para outro objeto, mantendo tudo o mais no seu devido lugar. Eu diria
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 233

que se trata de olhar para outra coisa, mantendo a cabeça exatamente


na mesma posição. Os olhos não se movem.
É como se a filosofia brasileira se resumisse em adotar a boa
vontade de olhar para um lado para o qual não se olhava antes. Nesse
caso, se trataria somente de desviar o olhar de uma região do mundo
para a outra. Na verdade, o Brasil é introduzido aqui como um caso
particular de uma lei geral ou de um conjunto de critérios que
supostamente valem para todos os casos particulares. Ou seja, se trata
de mera aplicação de critérios já consolidados ou de uma regra universal
a um caso.
Claro que o resultado desse tipo de empreendimento intelectual é
sempre alguma forma de conclusão defectiva. Como o país não
corresponde aos conceitos europeus – sejam aqueles relativos à
corrupção ou quaisquer outros já sedimentados no trabalho filosófico
europeu – a conclusão se resume a indicar quais são os defeitos do país
ou em que sentido ele carece de alguns elementos. Então, de maneira
geral, essa tendência da filosofia brasileira se consolida com a indicação
do sentido em que o país fracassa ou como ele se desvia de um padrão
estabelecido - seja lá que aspecto particular se tome como objeto
particular de análise. O padrão geral utilizado, o critério de medida, é
aquele que é fornecido pela tradição filosófica europeia.
Tenho denominado essa disposição geral da filosofia brasileira de
moralismo. Ela consiste em supor que os filósofos (de formação
europeia) já estão naturalmente dotados do que necessitam para
adentrar no âmbito da filosofia brasileira. Esse procedimento termina
ou passa sempre por algum tipo de diagnóstico negativo. Nele se trata
234 • Filosofia Latino-Americana

de dizer sempre que o Brasil não funciona, segundo aqueles critérios


adquiridos quando de nossas formações intelectuais europeias.
Pode parecer tacanho e uma proposição que visa estreitar a
atividade filosófica afirmar que os conceitos tradicionais europeus não
deveriam se aplicar aqui. Como se cada país devesse ter seus próprios
critérios de avaliação para que ela fosse justa, para que se pudesse
apreciar adequadamente o que somos. A questão delicada aqui é a dos
critérios da análise filosófica ou o conjunto de elementos que permite
que se faça apreciações de valor. Assim, o problema parece se resumir a
qual dos dois lados assumir como referência dessas avaliações: o de fora
ou o de dentro.
Se tomamos os critérios clássicos da filosofia europeia como
ferramentas de análise, o Brasil termina sempre como uma figura
defeituosa, semieuropeia, semibárbara, subqualquer coisa. Poderíamos
dizer que isso ocorre porque as categorias são externas ao que somos e
esse distanciamento, ao invés de gerar a desejada distância crítica, só
produz miopia e incompreensão.
O tema da crítica é mesmo muito sensível para os filósofos, de tal
modo que eles chegam a confundir a filosofia com ela. Parece razoável
reconhecer que distância demais nubla a visão, desfoca a perspectiva e
que categorias tão díspares com respeito à realidade que se tenta
analisar só geram falta de entendimento e – por que não dizer –
amargura dos analistas perpetuamente frustrados com as distâncias
que aparecem. Quando esses elementos (categorias e realidade) são
muito diferentes, é previsível que nada de produtivo resulte de seu
confronto e que a tristeza geral do desarranjo contamine o próprio
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 235

analista. Em função desse distanciamento extremo, gera-se o


isolamento e, por isso, o moralismo: uma modalidade de crítica tanto
enérgica quanto inútil.
Outro dos resultados dessa procedimento é que o criticado mostra-
se incapaz de absorver a crítica, justamente em função dos anos luz que
separam a situação fatual dos critérios usados na crítica. Essa
incapacidade é exclusivamente produzida pelo excesso de distância e
coloca a crítica em uma posição inalcançável, lá no cume das verdades
longínquas que não podem se realizar. Enquanto isso, aqui embaixo, o
mundo segue tal e qual. Esse é o princípio básico do moralismo: excesso
de distância entre a crítica e seu objeto, inoperância na ação e
incapacidade comunicativa. Daqui se derivam ainda a amargura do
crítico sempre incompreendido e a indiferença defensiva do criticado.
Essa dupla alimenta a irrelevância social da atividade filosófica.
Mas se fizermos o movimento contrário, em direção ao interior da
situação que analisamos, notaremos que categorias caseiras possuem
tanta intimidade com o que avaliam que podem perder a eficácia crítica.
Com efeito, aqui temos um efeito reverso gerado por uma empatia
extrema: a proximidade excessiva também desfoca aquilo que se tenta
ver. Ninguém consegue julgar se não é capaz de estabelecer algum
distanciamento mínimo que permita a definição do foco. No caso do
Brasil, conceitos demasiadamente afeitos ao que somos tendem a
resultar em autoelogios, redundâncias, imobilidade e festa – essa
modalidade de gozo ligado ao que existe. Ou, se preferirmos, isso parece
comprometer a própria atividade filosófica em função de se supor que
236 • Filosofia Latino-Americana

ela é dotada de uma natureza crítica. Com efeito, se há algo que torna a
filosofia desnecessária é a festa.
Fundamentalmente se trata aqui de sacrificar a capacidade crítica
em benefício da compreensão. Através de um deslocamento de fora para
dentro, de uma aproximação que visa à compreensão, se chega à
aceitação plena. Nesse caso, abandonamos o moralismo pela
conformidade: essa redundância que aceita tudo o que existe em uma
tentativa de estabelecer empatia e aproximação.
Chamo a atenção do leitor para algo que ocorreu aqui, bem nas
nossas costas: ao propor uma disposição mais compreensiva da
atividade filosófica brasileira com relação ao nosso país, deslocamos a
discussão para além do conteúdo. Acima afirmei que uma filosofia
brasileira começava como uma intenção de tomar o Brasil como objeto.
Agora estamos verificando que isso seria insuficiente e que alguma
alteração de forma também é necessária. Quero dizer, com isso, que
começamos a propor que alguma alteração na forma da atividade
filosófica se faz necessária quando pretendemos tratar do Brasil. Que a
cabeça precisa se deslocar para ver melhor o que se passa, que os olhos
precisam se movimentar.
Claro que isso não elimina o caráter problemático daquela
dicotomia entre o fora e o dentro, entre categorias de análise estranhas
e as caseiras, entre crítica e compreensão. Se a filosofia é crítica, não há
problema em manter-se o distanciamento. Isso me parece inteiramente
legítimo como proposição de uma atividade filosófica tradicional. A
questão aqui me parece ser a repetição e inoperância a que o moralismo
nos conduz. O Brasil não correspondeu, até o momento, às expectativas
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 237

produzidas a partir das categorias clássicas da filosofia europeia. Por


exemplo, com relação à corrupção política – para manter aquele
exemplo anterior. A crítica da corrupção não abalou a sua prática
corriqueira nas relações políticas e sequer inspirou um movimento
sólido e coordenado de combate a ela. A crítica da corrupção é uma
falação. O que a filosofia agrega ao assunto é um mero adjetivo: ela se
torna uma falação filosófica.
Não creio que um ajuste do país possa ser feito de modo a que ele
se adegue àquelas noções sedimentadas da crítica, em função das
diferenças abissais que existem entre ambos os polos. Aproveito para
sugerir enfaticamente que não somos exatamente europeus (Silveira,
2018). Perceber isso nos libertaria do moralismo e dos efeitos mais
extremos da crítica, aproximando-nos do nosso próprio país. Mas isso
nos obriga a algum tipo de movimento quando consideramos que o
nosso ponto de partida é a filosofia da velha Europa.
De qualquer forma, limitar o exercício da filosofia brasileira à
crítica terminará sempre naquela mesma afirmação de que não somos
o que deveríamos ser. E o que deveríamos ser é o que a filosofia afirma
sobre a política, a moralidade, a epistemologia etc., tendo em conta a
tradição europeia.
O que é especialmente desapontador, nesse caso, é que já sabemos
todas respostas para nossas perguntas. A filosofia brasileira seria um
trabalho redundante que consistiria em mostrar como ainda não somos
o que deveríamos ser: europeus. Pessoalmente, não tenho nenhuma
simpatia por um exercício intelectual fadado à impotência prática e à
repetição. Ele conduz o intelectual comprometido à frustração e à
238 • Filosofia Latino-Americana

amargura dos incompreendidos em seu próprio país e não o recomendo


para ninguém. Decidir-se a viver exilado nas terras etéreas da filosofia
não me parece uma boa solução existencial para os filósofos brasileiros.
Claro que não há nada de teoricamente errado em realizar esse tipo de
trabalho. Ele é um trabalho intelectual que pode ser realizado. Apenas
não creio que ele fará qualquer diferença para o nosso país.
A esta altura, como sugeri acima, o leitor estará se perguntando se
essa mesma redundância da crítica não se apresenta na situação
contrária, quando a filosofia brasileira utiliza categorias mais próximas
do país visando analisá-lo. Observe, de saída, que esse é um tipo de
problema que só adquire sentido quando nos dispomos a alterar a forma
com que se faz filosofia.
Porém, creio que a resposta a ele tem de ser positiva: sim, quando se
analisa algo sem nenhuma distância crítica, o resultado é concluir que
tudo está como deveria ser, que não há diferença entre critérios e fatos e
que podemos festejar o que somos. Ou seja, tudo se resumiria a afirmar,
ao final, que tudo está muito bem como está. Desse tipo de dispositivo se
obtém uma espécie de discurso laudatório que se resume a elogiar o que
existe. A filosofia brasileira seria uma espécie de defesa do que somos,
uma afirmação da maneira brasileira de viver, uma comemoração do
cotidiano elevado subitamente à categoria da perfeição.
Essa é uma tentação em que se pode cair com facilidade: quando
notamos que se torna importante ter empatia com o que analisamos,
abdicamos de qualquer tentativa de crítica e nos limitamos à mera
apresentação do que temos sido. Ou seja, o trabalho filosófico se torna
uma modalidade de exibição do que existe. Aqui a filosofia termina
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 239

quando começa a festa e festejar não significa nada em termos


filosóficos, senão a própria abdicação da filosofia. Quem se limita a
apresentar, quem festeja o Brasil, nada tem a dizer sobre ele. Um
filósofo que festeja é uma contradição em termos – certamente uma
contradição divertida.
Mas não precisamos ser tão extremistas e adotar uma postura
caricata a que minha exposição até aqui parece nos conduzir. Afinal, não
necessitamos simplesmente eliminar a distância crítica como se
adotássemos uma lógica de tudo ou nada. Podemos simplesmente
diminuí-la, de modo a preservar algo de sua disposição original, na
mesma medida em que nos acercamos ao Brasil. Claro que isso requer
tomar o nosso país como conteúdo da análise filosófica, mas implica
também em alterar a forma como realizamos essa aproximação. Nem
tanto à festa, nem tanto à filosofia.
Sem querer ser aristotelicamente piegas, tudo parece indicar que a
alternativa mais razoável para a filosofia brasileira seja tomar o
caminho do meio. E isso envolve alterar o modo como essa atividade
vem se realizando tradicionalmente nos termos europeus. Ou seja,
aquela mera alteração do conteúdo - olhar para o Brasil - não resulta
em filosofia brasileira. Alguma adequação dos critérios também se faz
necessário de modo a permitir a diminuição da distância crítica, sem
sua eliminação.
Pode parecer difícil trilhar um caminho tão estreito, mas ter a
percepção adequada do desafio que isso implica já é um passo
importante. Na vida sempre se corre o risco de deslizar abismo abaixo.
Isso exige da parte do filósofo brasileiro uma boa dose de criatividade
240 • Filosofia Latino-Americana

na elaboração de categorias que sejam pertinentes – e que evitem o


precipício da redundância festiva. Assim, se pode ser crítico sem
moralismo e sem se tornar um filósofo laudatório.
O desafio consiste em desenvolver essa alternativa. Creio que
existem várias na verdade: diferentes maneiras de dotar a atividade
filosófica de simpatia pelo nosso país sem resvalar para a aceitação
plena do que ele tem sido. O moralismo, é desnecessário dizer, é um
extremismo que não conduz a nada além de si mesmo. A filosofia
brasileira precisa de empatia pela Brasil. A dose de empatia é que é a
prova dos nove. Será ela que definirá a dimensão da crítica pertinente
ou do fracasso festivo.

FILOSOFIA E CULTURA

A partir dessa pequena conclusão - a compreensão de que a


filosofia brasileira precisa alterar a forma como ela é realizada e não
apenas seu objeto – podemos dar um passo adiante. Na nossa época
tornou-se ilegítimo postular que algo valha por si mesmo, de forma
independente das circunstâncias em que se realiza, como se pairasse no
ar. Nesse novo ambiente, a filosofia, que sempre teve um pendor pela
estratosfera, deve se reajustar para manter-se como uma atividade
relevante para além de sua comunidade de praticantes. Essa mutação na
maneira como passamos a entender determinados eventos e ações, nos
permite evidenciar uma característica da filosofia europeia que sempre
preferimos deixar de lado. Me refiro à sua vinculação cultural com o
mundo de onde emergiu.
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 241

Para ser breve como é necessário aqui, vou me deter muito


esquematicamente nas origens gregas da filosofia europeia, de maneira
a evidenciar essa vinculação cultural. Afinal, a pretensa universalidade
da filosofia deriva justamente de suas origens. A pretensão de ser uma
filosofia como tal, inclusive, está marcada pelo contexto cultural
originário.
A filosofia grega nasceu de um impulso de unificação de todos os
fenômenos do mundo. Qualquer manual de história da filosofia
europeia começa por postular a pergunta de Tales de Mileto: qual a
origem de todas as coisas? A busca por um princípio revela um impulso
de unificação da dispersão aparente do mundo, uma necessidade de
produzir uma leitura que enfatize a unidade além de toda
multiplicidade imediatamente aparente. De maneira convencional, esse
impulso passou a ser interpretado como revelando uma espécie de
pendor humano, de tendência natural em direção a um entendimento
racional do mundo.
Com essa interpretação que visava generalizar tal impulso, se
buscou universalizar também a atividade filosófica, fazendo-a passar
por uma necessidade humana incontornável. Quer dizer, incontornável
para todos aqueles que pretendam ser plenamente homens. O
desinteresse pela filosofia, pela unificação do universo sob um princípio
básico, tornou-se sinônimo de desumanidade, de falta de
reconhecimento de parte daqueles que só podiam ser classificados como
incapazes de filosofia – logo, incapazes de uma humanidade plena.
Através desse tipo de raciocínio, senão exatamente esse, deixou-se
de lado o vínculo existente entre essa definição de filosofia e a cultura
242 • Filosofia Latino-Americana

grega. Vamos tentar rastrear agora essa ligação, de modo sumário como
é possível aqui. Mais detalhes podem ser encontrados em outra parte
(Silveira, 2020).
A religião grega antiga era politeísta. Entretanto, seu politeísmo é
problemático, ao contrário de outras formas desse mesmo tipo de
religião. Qualquer uma das tragédias gregas ilustra esse aspecto
problemático do politeísmo a que me refiro. Em qualquer uma delas,
ocorre um choque entre princípios morais antagônicos. O ser humano,
no interior dessas narrativas, é atirado contra os rochedos de uma
moralidade conflituosa que ele desconhece na sua totalidade, porque só
vislumbra elementos morais particulares. Mesmo sendo fiel ao seu deus
preferido, mesmo consagrando sua vida inteiramente a um
determinado padrão de moralidade, o ser humano não consegue
perceber a lógica profunda do antagonismo moral que rege mundo. Essa
parcialidade, dada a incapacidade de gerar uma leitura unitária dos
antagonismo, produz cegueira e, portanto, más decisões e sofrimento.
De fato, a instabilidade no mundo é encarada como fonte de
sofrimento em função da instabilidade moral que ela produz. Aristóteles
(2014) chamou a atenção para o fato de que nem mesmo um homem morto
poderia estar seguro de ser feliz, justamente em função dessa oscilação
constante de tudo o que nos cerca. Mesmo tendo conduzido sua vida com
moralidade, ninguém poderia estar certo do que faria sua descendência.
Ela poderia desonrá-lo, anulando seu esforço em conduzir-se de maneira
adequada durante sua passagem por esse mundo.
Com efeito, movendo-se através de suas referências sempre
parciais, o ser humano termina invariavelmente deparando-se com a dor
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 243

e com a cegueira. Cegueira indicativa da posse de uma visão parcial do


mundo, sempre unilateral e incapaz de apreender a totalidade do mundo
e, a partir daí, um itinerário existencial seguro. Ao aferrar-se a qualquer
unilateralidade, que é tudo o de que o ser humano dispõe para orientá-lo,
se vive o drama de um sofrimento inevitável. A multiplicidade equivale
aqui à incapacidade de viver uma vida boa, construída sobre princípios
sólidos, livrar-se do mal e da insegurança. A diversidade é vivida como
uma fonte constante de instabilidade e sofrimento.
Por isso, a experiência grega antiga é a de um politeísmo
problemático, de uma diversidade de referências morais em choque
permanente, pressionando o ser humano contra a unilateralidade,
atirando-o à dor que não pode evitar de maneira definitiva. A
eliminação desse sofrimento só poderia vir de uma leitura do mundo
que o tornasse unificado, que o apresentasse como um edifício dotado
de uma cúpula que ordenasse o que aparece como desordenado daquela
perspectiva limitada. O que falta no politeísmo problemático é
justamente a unidade da cúpula, já que nessa modalidade de religião, a
diversidade resulta em dor. Claro, há outros politeísmos em que a
diversidade não resulta em sofrimento, mas esse não é o caso da religião
grega antiga. O grego antigo requeria a unidade como escapatória ou
resolução de um conflito vital ao qual se era especialmente sensível.
Em função desses elementos religiosos, podemos notar que a cultura
grega tendia para soluções unificadoras. Ela demandava uma organização
do mundo que permitisse ao homem evadir-se da diversidade, colocar-se
sobre ela e em condições de viver sem ser conduzido pala cá e para lá às
cegas. Se notarmos bem, a pergunta filosófica que busca identificar um
244 • Filosofia Latino-Americana

princípio originário de todas as coisas, coloca o ser humano justamente


sobre as coisas – em uma posição crítica. Acima delas e em condições de
orientar-se no meio da diversidade, manobrando no meio da tempestade,
porém com os olhos no princípio exclusivo que tudo rege e que possibilita
a harmonia e a vida feliz. Nesse contexto, a unidade era uma solução
intensamente desejada.
A partir desse ponto de vista universal, a superioridade
inquestionável da unidade com relação às particularidades, o homem
poderia estruturar uma vida sem correr o risco de cometer equívocos e
produzir sofrimento. Ele poderia viver, tendo a segurança de que seus
atos não acarretariam desonra e imoralidade involuntárias. É a
sabedora advinda do entendimento da unidade superior que funciona
como esse guia, independentemente das situações concretas em que
alguém se encontre. Na verdade, é a unidade que finalmente pode tornar
o homem senhor de seu próprio destino, já que ela é a base de uma
sabedoria possível, uma âncora em um oceano de dor, a unidade que
dissolve os antagonismos aparentes.
Me parece bastante evidente, dessa forma, que o ímpeto por
unidade, a tendência à formulação de um tipo de conhecimento que reúne
as particularidades das situações em um nível superior, é uma tendência
plasmada das necessidades da cultura grega. A filosofia de pendor
universalista não é uma ruptura com essa situação cultural, mas sua
realização plena. A filosofia grega antiga faz parte das soluções para os
problemas mais graves gestados naquele ambiente cultural particular.
O caráter universalista da filosofia grega antiga não é uma
revolução ou algum tipo de desinteresse dos filósofos pelo mundo que
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 245

os cercava. Muito pelo contrário. A filosofia grega foi um tipo de evento


que se tornou possível porque respondeu às demandas culturais de sua
época e só pode ser bem compreendida como uma resposta à pergunta
produzida pelas experiências de sua época. Com isso quero dizer que a
filosofia grega não se tornou universalista através de uma ruptura com
o ambiente cultural grego antigo, por meio de algum movimento de
desvinculação, de arremesso de si mesma para fora do mundo. Ela
também não se lançou a resolver problemas humanos, como se
houvesse algo assim, independentemente da experiência humana
cotidiana.
Ela se plasmou como uma atividade de tendências unificadoras
justamente na medida em que respondia às demandas culturais
particulares do mundo grego antigo. Se ela se atirou para fora, em
direção a referências universais, foi somente por assumir como sua
responsabilidade aquela demanda cultural grega por unidade. Nem o
Bem de Platão, nem o Motor Imóvel de Aristóteles ou qualquer outro
postulado unificador do cosmos grego antigo, envolvia uma negação da
diversidade. O que se buscava era organizar o caos, ordenar um mundo
que era culturalmente percebido como problemático na sua diversidade.
A filosofia tentou responder a uma pergunta que foi gestada pelo
contexto cultural em que ela germinou.
Não faz sentido identificar esse problema como sendo humano,
simplesmente porque nem todo politeísmo é problemático, nem toda
diversidade é experimentada como fonte de dor, nem toda
multiplicidade é decodificada como caótica. O que também não faz
sentido, é identificar esse tipo de resposta particular a uma situação
246 • Filosofia Latino-Americana

cultural dada, a toda forma de filosofia. A solução para um caso não é


solução para todos os casos, porque os casos são diversos.
Essa hipóstase de uma atividade cujas características são
claramente particulares é um equívoco que ainda hoje cometemos com
frequência, até porque isso justifica a filosofia como uma atividade
humana, isto é, necessária. Não creio que nós, filósofos, precisemos
apelar para tamanha dose de corporativismo profissional. Estamos em
condições de assumir honestamente que a filosofia é um tipo de
atividade que responde ou dialoga com a cultura, sem ter de perder nada
de nosso orgulho profissional. Não é necessário apelar para a
humanidade da filosofia, mas certamente podemos nos apoiar no
caráter humano das filosofias.
O que me interessa aqui, entretanto, é chamar a atenção para o
vínculo entre a cultura e a filosofia. Claro que isso não significa que a
filosofia ande a reboque da cultura e sim que ela mantém um
intercâmbio com as instancias não filosóficas da vida, como a arte, como
as narrativas usuais de uma época, como o entretenimento, como o
sistema de produção, como a religião etc. Ela está em contato com essas
atividades, como não poderia deixar de ser. O isolamento com relação a
outros interesses humanos só pode se estabelecer em situações
artificiais, mas não torna a filosofia uma atividade culturalmente
pertinente. O contato com outras produções humanas é o percurso
natural de desenvolvimento da filosofia.
Agora podemos retornar à filosofia brasileira em melhores
condições de propor um dos desafios centrais que ela deve encarar. O
desafio aqui é especialmente difícil na medida em que envolve algum
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 247

tipo de diálogo entre a cultura brasileira e a atividade filosófica. Isso


parece necessário, promissor e saudável, pelo que acabamos de verificar
com o exemplo grego antigo.
Porém, para isso temos que ser capazes de identificar quais são as
necessidades culturais do Brasil. Ou, se preferirmos, deveríamos ser
capazes de definir que tipo de problemática o ambiente brasileiro
postula como sendo um desafio a que a filosofia poderia se dedicar.
Assim, poderíamos obter uma filosofia brasileira: uma que se coloque
em condições de participar do debate cultural, de propor soluções ou
problemas que sejam compatíveis com o mundo que a cerca.
Novamente aqui é necessário enfatizar o aspecto ativo da filosofia
nessa relação. Ela pode responder a uma questão já elaborada ou
somente subentendida, mas ela também pode postular algo novo, desde
que isso reverbere pelo restante da cultura em que se encontra. Não se
trata de tornar-se passiva, mas de se mostrar capaz de dizer coisas que
tenham implicações para além de si mesma. Como uma forma de
atividade cultural entre tantas outras, a filosofia não se encontra no
vácuo e nunca esteve nele senão de maneira espúria e formal. As formas
de exílio cultural filosófico têm sido gestadas pelas atitudes dos
filósofos e não por indiferença social.
Se ainda mantivermos sob os olhos o exemplo grego, veremos que
a articulação da filosofia com a cultura brasileira pode se mostrar
bastante problemática. Vimos que o que marcou a atividade filosófica
grega foi a condução da tendência cultural à unificação do mundo. Nesse
caso, a filosofia conduziu a elaboração de uma solução para um
problema prévio detectável no ambiente grego.
248 • Filosofia Latino-Americana

Porém, esse tipo de necessidade não existe entre nós. Me refiro ao


fato de que a diversidade não é um problema para os brasileiros,
Nenhum aspecto de nossa cultura expressa uma aversão pela diferença,
uma necessidade de unidade ou uma compulsão pela ordem e pelo
progresso (Silveira, 2018). Nós não estamos sofrendo em um mundo
caótico. Então, a nossa filosofia não pode ser orientada por esse
movimento em direção à unidade, como os gregos antigos o entendiam.
Ilustro essa situação, ainda no âmbito da religião. Nós, brasileiros,
não somos exclusivistas ou dogmáticos. Transitamos entre distintas
religiões sem muito constrangimento (Silveira e Lopes, 2016). Sempre
que possível, apelamos para diferentes divindades, sem expressar
preocupação com a formação de um panteão organizado de divindades,
sem considerar as contradições evidentes entre princípios tão diversos.
Muitas das nossas religiões mais populares são claramente politeístas e
mesmo o monoteísmo católico que praticamos é muito pouco restritivo
na sua prática diária. A profusão de santos e as intervenções constantes
da Virgem Maria e outras divindades (a princípio) secundárias
terminam ofuscando a validade plena de um monoteísmo cristão.
Ou seja, não parece perceptível na cultura brasileira nenhum tipo
de apelo à unificação, naquele sentido grego antigo a que me referi
acima. Isso parece indicar, no mínimo, que uma atividade filosófica
brasileira não pode tomar o rumo da sua congênere grega – e, a
depender de uma avaliação caso a caso, até de suas congêneres
europeias. Tudo sugere que devemos ser capazes de formular uma
filosofia que não se deixa guiar pela busca incessante por unidade, já
que nosso ambiente não parece reivindica-la. Não sendo uma demanda
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 249

concreta de nossa cultural, não faz sentido tentar forjar unificações,


organizar o mundo, ordenar o caos – que sequer é percebido como tal.
Claro que a interpretação de que demandas são essas é uma
questão relativamente polêmica e que já deve fazer parte dos resultados
de investigações da filosofia brasileira. Não sou eu o intérprete
exclusivo dessas necessidades, mas certamente posso ser um deles.
Estabelecer um tipo de procedimento que conduz ao desenvolvimento
de uma atividade – como a filosofia brasileira – não conduz a nenhum
tipo de exclusivismo interpretativo ou de finalização de um debate.
Nesse caso concreto, trata-se justamente de tornar possível uma
discussão a ser feita com várias respostas possíveis – e até simultâneas.
Interpretar as demandas da cultura brasileira é uma etapa essencial na
constituição de uma filosofia brasileira pertinente.
Articular a filosofia com a cultura brasileira envolve uma série de
discussões e problemas que devem ser resolvidos mais de uma vez.
Afinal, como um conjunto de discussões em aberto, a filosofia sempre
retorna às suas conclusões provisórias. Isso já faz parte do nosso
trabalho tradicional europeu, mas nunca é demais enfatizar.
Estou postulando que a filosofia precise ser culturalmente
relevante. Mas ela sempre o foi! O problema é que a relevância para uns
não é relevância para todos e ao deslocar a filosofia de um ambiente
cultural para outro muito pode se perder, inclusive o interesse humano
por ela.
A questão aqui é tornar a filosofia relevante para o nosso país.
Pessoalmente, qualquer um pode se dedicar a qualquer tipo de atividade
filosófica sem nenhuma restrição, desde que se decida a abrir mão da
250 • Filosofia Latino-Americana

conexão estreita entre filosofia e cultura – e, portanto, da relevância


cultural do seu trabalho. Tudo o que se mostra altamente problemático
– a definição de uma filosofia brasileira – só o é em função de se postular
a possibilidade de um diálogo efetivo com a nossa cultura. Sem essa
pretensão, não há nenhum problema a ser resolvido.
Uma filosofia desconectada do seu entorno é possível, embora seja
culturalmente irrelevante. Dedicar-se a algo irrelevante não é o fim do
mundo, é apenas o fim do mundo que interessa aos demais. Mas não
creio que a maioria dos meus leitores tenha interesse em uma filosofia
sem relevância cultural. Ela se tornaria um exercício formal, uma forma
de erudição, sem nenhum tipo de implicação com seu entorno, sem
consequências, um jogo intelectual.
Como aqui se trata de problemas de filosofia brasileira, creio que
esse segundo elemento conectado à necessidade de encontrar um ponto
de inflexão que garanta relevância cultural para essa atividade é o mais
importante. Infelizmente não tenho uma resposta para ele nem creio
que caiba a uma pessoa formulá-la com exclusividade. De qualquer
maneira, me parece muito evidente que a filosofia brasileira necessita
atentar para as mudanças na forma como essa atividade se realiza. Até
porque, não havendo efetivamente filosofia desconectada da cultura, a
conexão com outras culturas envolve alguma forma de desconexão com
a nossa. Ninguém encontra-se realmente no éter, mesmo aqueles que se
dedicam a uma filosofia como tal trabalham em conexão com demandas
culturais alheias - que talvez desconheça.
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 251

Publicado originalmente em Prometeus, Filosofia em Revista, v. 40,


p. 191-207, 2022

REFERÊNCIAS

Aristóteles. Ética a Nicômaco. São Paulo: Edipro, 2014.

Hegel, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. Trad. Paulo Meneses. 2 vols. Petrópolis: Vozes,


1992.

Silveira, R. A. T. Filosofia Brasileira. Porto Alegre: Fi, 2018.

Silveira, R. A. T. “Uma mirada sobre a América Latina”. IN: RAMAGLIA, D.; silveira, R.
Miradas filosóficas sobre América Latina. Porto Alegre: Fi, 2020. pp. 164-188.

Silveira, R. A. T.; LOPES, M. (Orgs.). A religiosidade brasileira e a filosofia. Porto Alegre: Fi,
2016.
10
A AMÉRICA LATINA COMO FRONTEIRA

INTRODUÇÃO

Afirmar que a América Latina é uma fronteira da civilização


europeia pode não significar muita coisa, pelo menos antes de sermos
capazes de explicitar o que isso significa. Por um lado, isso pode querer
dizer que somos uma espécie de vanguarda do mundo europeu, por nos
situarmos adiante dela, nos limites mais avançados de seu movimento
de expansão. Nesse caso, seríamos uma fronteira no sentido de
estarmos incluídos na civilização europeia e, além disso, nos colocarmos
em uma situação privilegiada de levar adiante os seus valores básicos.
Por outro lado, ser a fronteira do mundo europeu pode significar
justamente o contrário, indicando a peculiaridade de nossa situação a
partir da qual se iniciaria outro regime de valores. Nesse caso, a América
Latina seria compreendida como um ambiente culturalmente distinto
do europeu. Estaríamos não só fora do conjunto de valores europeus
como nossa existência demarcaria sua incapacidade para se expandir
além de certo ponto. Isto é, seríamos uma espécie de muro de contenção
cultural em relação à civilização europeia.
Como se pode notar, afirmar que a América Latina é uma fronteira
da civilização europeia pode significar coisas diferentes e até mesmo
opostas. É possível que essa falta de clareza acerca de nossa situação
fronteiriça esteja ligada à carga semântica do termo fronteira. Porém,
não me interesso aqui pela questão exclusivamente conceitual
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 253

envolvida e sim pela configuração cultural que a condição fronteiriça da


América Latina possui. Ou seja, interessa-me aqui o modo de vida ou o
conjunto de valores efetivamente experimentados pelo nosso
subcontinente.
Embora esse tipo de objeto seja de difícil definição e apreensão, me
parece aceitável lidar com ele com certa generalidade e liberalidade
epistemológicas. Sabemos que algo como um tal modo de vida latino-
americano tem existido mais em função de sua manifestação concreta
na existência empírica do que como decorrência de nossa maior ou
menor habilidade em defini-lo com precisão.
Qualquer projeto ligado ao futuro da América Latina passa
necessariamente pelo reconhecimento de seu modo de vida atual. Daí a
importância do significado do que vem a ser latino-americano e,
portanto, do esclarecimento do problema da fronteira indicado acima.

A FRONTEIRA INTERNA DO MUNDO EUROPEU

Por um lado, pode parecer que fazemos parte da civilização europeia.


Nesse caso, nossas opções com relação ao futuro dizem respeito a
estabelecer como conduzir o impulso civilizatório que nos foi transmitido
por meio da colonização europeia. Seria o caso, dentro dessa situação, de
darmos um passo adiante a partir de um conjunto de valores
historicamente sedimentados e de assumir nossa condição enquanto um
capítulo particular dentro de uma trama histórica mais ampla.
Adotar esse último ponto de vista pode nos auxiliar a remover uma
série de obstáculos que passam, então, a não mais se mostrarem
254 • Filosofia Latino-Americana

problemáticos. Afinal, se formos um capítulo do ocidente, todas as


características sociais, políticas e morais que se mostrarem
incompatíveis com o conjunto de valores europeus devem ser
removidas do caminho. Não se trataria de equacionar ou compatibilizar
valores que entram em choque ou se contradizem, mas de expurgar
aqueles que não se mostram compatíveis com a matriz europeia – que
constituiria o núcleo de nossa civilização.
Nesse sentido, o esclarecimento de nossa relação com o mundo
europeu – o problema de fronteira – é fundamental no que diz respeito
a qualquer orientação futura da América Latina. Tomar uma decisão
com relação a ele define uma atitude de nossa parte com respeito a
valores particulares.
Os exemplos que caracterizam essa perspectiva, que nos entende
como membros do mundo europeu, são muitos e só posso ilustrá-la
aqui. O “Ariel” do uruguaio Rodó (s. d.) é certamente um exemplar desse
ponto de vista que nos inclui como participantes da história da Europa.
Ele não apenas assume integralmente a identidade entre o conjunto de
valores do mundo europeu e a América Latina como destaca nossa
posição privilegiada para conduzi-lo adiante. Para isso, teríamos que
contornar a variável pragmática encarnada pela América Anglo-Saxã e
valorizar uma forma superior de humanismo, para a qual seríamos mais
bem talhados.
A Antropofagia do brasileiro Osvald de Andrade (2011) também
pode ser incluída nessa perspectiva relativa à América Latina. O que é
relevante na proposta antropofágica é que se preserva ao mundo latino-
americano a possibilidade de elaboração de uma síntese superiora
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 255

àquela de que seria capaz o mundo europeu. Assim, a capacidade


brasileira para experimentar elementos culturais díspares e
aparentemente inconciliáveis, não inviabiliza a possibilidade de
fornecer uma futura e mais ampla unidade à totalidade. Pelo contrário,
justamente por sua dispersão característica esse modo de vida
excessivamente fragmentário promete uma síntese mais alargada que
qualquer iniciativa semelhante já levada a cabo no ambiente europeu.
Nesse sentido, somos os continuadores da Europa, dotados de uma
capacidade para expandi-la além de suas possibilidades propriamente
europeias. Ou seja, a dispersão que caracteriza a maneira brasileira de
ser nos possibilita a formulação de uma unidade que abrangerá, em
algum momento do futuro, os valores europeus e outros mais.
Na verdade, nossa vocação seria a indicação de uma limitação
injustificada dos dispositivos sintéticos da Europa. Dispositivos que
conduziríamos, por nossa conta e risco, além de si mesma, por meio da
antropofagia cultural universalizada. Dessa maneira, preservaríamos o
ímpeto europeu para as sínteses, conduzindo-o a um patamar que só
poderia ser atingido pela América Latina. Seríamos, desse ponto de vista,
uma autêntica vanguarda cultural responsável por gestar um mundo que
não poderia ser obtido pela Europa nos seus próprios termos.
Tanto em Rodó (s. d.) quanto em Andrade (2011) a América Latina
aparece como uma fronteira sobre a qual nos elevamos como uma
promessa de futuro além das possibilidades existentes e limitadas da
velha Europa. Dessa perspectiva, nos colocamos como seus
continuadores e herdeiros, incluídos como membros em um conjunto
mais amplo de valores em comum. Se há uma divergência entre esses
256 • Filosofia Latino-Americana

dois autores, ela consiste na questão do rumo que se dá aos valores já


existentes – veja-se a crítica de Rodó ao materialismo norte-americano
– ou a superação necessária para lidar com os diferentes elementos que
compõem a formação da sociedade latino-americana – no caso de
Oswald de Andrade.
Um aspecto negativo de nos compreendermos hoje como inseridos
na civilização europeia é o reconhecimento histórico e prático, que
gradualmente vai se impondo à América Latina no início do século vinte
e um, de que somos não a sua vanguarda, mas sua retaguarda. Isso quer
dizer que embora possamos pretender reproduzir a Europa na América
Latina, há algum tipo de resistência local que parece reclamar
continuamente seus direitos e se interpõe à realização plena do mundo
europeu. Talvez o exemplo mais expressivo dessa situação seja o da
história Argentina entre os séculos dezenove e vinte. De uma promessa
de nação latino-americana civilizada (Sarmiento, 1973; Alberdi, 1994),
ela passou a incorporar a média de atribulações políticas e sociais do
subcontinente (Lambert, 1969; Casas, 1993).
Não parece adequado justificar essa disparidade prática entre o
efeito dos valores europeus na Europa e na América Latina em função
deles haverem chegado tardiamente aqui. Não se trata de que aquilo que
veio a se impor na América Latina já não gozava mais de sua vitalidade
original quando desembarcou nas caravelas dos colonizadores. A
percepção crescente de um descompasso entre o mundo latino-
americano e o europeu parece dever-se principalmente ao efeito
produzido pelas nossas próprias condições. Assim, parece-me crescente
a percepção do fracasso dos processos de modernização da América
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 257

Latina. Junto a essa constatação, parece-me cada vez mais saliente a


constatação de que isso se deve às peculiaridades de nossas próprias
condições culturais – distintas das europeias. Tais condições é que
seriam determinantes para esse fracasso e não um enfraquecimento do
ímpeto dos valores europeus.
Uma pequena observação terminológica é necessária aqui. A
expressão fracasso é, nesse caso, inteiramente inadequada para descrever
a situação descrita. Se os valores europeus não se enraizaram com o
mesmo vigor na América Latina e isso se deve à nossa condição cultural,
trata-se de incompatibilidade entre dois elementos e não de fracasso de
um deles em tornar-se dominante diante do outro. Podemos, inclusive,
descrever esse processo como sendo de resistência por parte do elemento
latino-americano, mas certamente não como um fracasso dos valores
europeus. Por isso, sugiro evitar o termo a partir de agora.
Retomando nosso fio narrativo, embora pudéssemos constituir a
fronteira interna do mundo europeu, não nos caberia senão refletir de
maneira tênue o conjunto de seus valores, como uma cópia analógica
diante de seu original, como um mundo refletido em uma superfície
opaca. Para restituir o brilho original seria necessário anular o efeito
das próprias condições latino-americanas ou eliminar a interferência
da nossa cultura em benefício de uma colonização plena.
Observe que todas as iniciativas de modernização da América Latina
adotam alguma modalidade da compreensão básica de que fazemos parte
do mundo europeu, cabendo-nos somente um esforço para se obter um
alinhamento definitivo com ele. O que é relevante em todas elas é que,
para todos os efeitos, o alinhamento é possível para nós.
258 • Filosofia Latino-Americana

Se houve uma transposição eficaz de valores europeus para a


América, isso ocorreu na América Anglo-Saxã, justamente em função da
indisposição para a negociação com as condições locais e os valores das
comunidades originais indígenas. Ou seja, o sucesso na transposição
atlântica da civilização europeia se tornou possível em função de certo
grau de intolerância cultural – que levou ao extermínio da população
original e/ou à circunscrição dos valores indígenas a uma situação de
marginalidade social e política. O sucesso na reprodução do mundo
europeu na América Anglo-Saxã passou por remover do caminho as
condições culturais preexistentes ou interferentes que poderiam
perturbar o reflexo apropriado da cultura europeia.
O fato disso não ter ocorrido na América Latina não significa
necessariamente que ela não faça parte do ocidente. Isso significa, no
mínimo, que nossa situação com relação ao ocidente é distinta daquela
que se instituiu na América Anglo-Saxã. Essa diferença entre as
modalidades de colonização pode ser conciliada com uma dupla filiação
ao mundo europeu – cada uma das Américas a seu próprio modo – sem
que isso implique necessariamente o fato de não fazermos parte do
mundo europeu.
De qualquer modo, o ponto frágil de nos colocarmos no interior da
fronteira do mundo europeu é a sensação, que parece tornar-se
gradualmente evidente ao longo das últimas décadas, de que não faz
sentido o empenho para nos tornarmos plenamente europeus. Afinal,
com maior ou menor esforço, a história dos últimos quinhentos anos da
América Latina pode ser resumida a uma longa tentativa de
europeização. Assim, é inevitável que vá se tornando cada vez mais
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 259

perceptível que algum arranjo adicional precisa ser tentado – que não
seja a mera transposição cultural da Europa além do Atlântico.
A percepção da existência de uma resistência prática em se
instituir uma réplica europeia na América Latina é a maior fragilidade
para a defesa de que efetivamente somos uma fronteira interna desse
mundo.
O que se levanta contra essa hipótese é justamente o fato de que
ainda não termos nos tornamos europeus, mesmo após quinhentos anos
de história colonial. Parece razoável acreditar que isso não se deve a um
fracasso europeu e sim a uma resistência latino-americana. E se há uma
resistência é porque existe alguma incompatibilidade cultural entre os
valores envolvidos. Nesse caso, só nos cabe reconhecer que essa
incompatibilidade reflete uma diferença intransponível. Essa diferença
indica justamente que não fazemos parte da cultura europeia e que
somos sua fronteira externa.

A FRONTEIRA EXTERNA DO MUNDO EUROPEU

Se assumirmos a hipótese que não fazemos parte da civilização


europeia e que ocupamos o lado externo dessa fronteira, se segue que é
parte do nosso destino desenvolver alguma forma de originalidade
cultural por nossa própria conta e risco. Embora essa crença, de que não
fazemos parte da Europa, seja uma possibilidade aparentemente válida,
ela possui consequências muito específicas e mesmo perigosas. Isso se
torna explícito quando levamos em consideração minha afirmação
anterior de que uma decisão sobre de que lado da fronteira nos
260 • Filosofia Latino-Americana

colocamos sempre está ligada a alguma modalidade de projeto para a


América latina.
Refiro-me ao risco contido na adoção de uma rota civilizatória
original. Observe que, nesse caso, é necessária uma escolha acerca da
modalidade de regime político, de valores particulares a serem objeto
de reverência, do que é relevante ou não para uma nação, de uma
moralidade individual etc. Todos esses elementos que constituem um
modo de vida teriam que ser estabelecidos pelo exercício de certo
espírito de aventura, diante de um destino inteiramente aberto diante
de nós. Afinal, se estamos do lado de fora da fronteira europeia, também
estamos do lado externo da sua história e de sua cultura. Todos os seus
exemplos, todo o seu passado e tudo o que se pode aprender com sua
velha tradição, de nada nos valeria em função de não partilharmos
valores em comum. Nesse caso, as velhas lições de nada nos serviriam e
deveríamos nos colocar na posição de um recomeço integral.
Claro que isso pode ser interpretado naquele espírito de
maioridade defendido por Kant (1974) como um passo adiante na
conquista de nossa independência autêntica. Porém, não tratamos aqui
de um rompimento individual com relação a valores tradicionais em
uma situação particular. Tratamos, isso sim, do rompimento
civilizatório de um subcontinente com relação a uma história da qual
nos desvincularíamos para fazer justiça à cultura que nos constitui e
que inviabiliza nossa integração plena à cultura colonizadora. A
dimensão do problema é diferente do mero movimento individual de
busca por autonomia descrito por Kant.
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 261

De um ponto de vista subcontinental, nosso único compromisso, já


que não faríamos parte da história europeia, seria com nossa própria
singularidade. Se tomarmos um caminho alternativo à civilização
europeia, em qualquer direção que seja, não faz sentido promover uma
avaliação crítica dos resultados obtidos do ponto de vista daqueles
valores que abandonamos como referência. Eles já não podem mais nos
servir de exemplo ou de critério de avaliação nem balizariam nossa
maneira de ser.
Permito-me ilustrar esse ponto remetendo o leitor à situação atual
da Venezuela, um dos primeiros países da América Latina a obter a
independência das metrópoles europeias (Robertson, 1929). Como se
pode tomar conhecimento através de qualquer jornal diário, a situação
política e social venezuelana hoje é dramática. Faltam gêneros
alimentícios básicos, a inflação é galopante, há uma verdadeira onda
imigratória para os países vizinhos, um ordenamento democrático
mínimo já não existe mais e as instituições republicanas perderam
totalmente a funcionalidade. Para todos os efeitos, vive-se sob um
regime ditatorial.
O que me interessa nesse exemplo é chamar a atenção para o fato
de que, colocados do lado de fora da fronteira da história europeia, tudo
o que se passa na Venezuela nesse momento pode ser legitimado por
meio de uma justificativa específica. É óbvio que não possuo interesse
em promover tal justificativa. Porém, a questão é que as condições de
possibilidade de uma justificativa desse tipo se estabelecem justamente
em função de nos colocarmos fora dos parâmetros do mundo europeu.
O que me parece merecer destaque na situação venezuelana atual é que,
262 • Filosofia Latino-Americana

se nos desgarrarmos da história europeia e de algum apego a certa linha


de valores que aí prevalece, colocamo-nos diante da possibilidade de
justificar qualquer estado de coisas em função de nossa presumida
originalidade.
Pode ser simplesmente que um regime ditatorial possua mais
afinidades com nosso substrato cultural de valores do que um regime
democrático. Isso explicaria, inclusive, nosso retorno pendular a
dispositivos políticos autoritários, como se eles refletissem valores
subjacentes que vez e outra adquirem energia suficiente para emergir
ao mundo político institucional. Nosso elitismo crônico (Stein e Stein,
1977) poderia, assim, ser justificado em função de sua afinidade com
aquele substrato. Isso tornaria possível afirmar o caráter natural de
procedimentos ditatoriais e elitistas, por exemplo.
Chamo a atenção para o fato de que do lado de fora da fronteira
europeia, onde nos colocamos seguindo essa segunda hipótese, não faz
sentido criticar uma situação política e social latino-americana
apelando para um valor superior reconhecido - como o da dignidade
humana. Afinal, a alta consideração por esse valor é derivada do mundo
europeu, mais particularmente das revoluções americana e francesa.
Assim, quando nos colocamos fora desse conjunto de valores, perde o
sentido continuar a lançar mão de suas bases de apoio para condenar
situações empíricas. Do lado de fora da fronteira os valores podem ser
outros e as avaliações têm de levar em conta outros critérios que não
àqueles com os quais estamos habituados em função de nossa formação
intelectual europeia (Silveira, 2017).
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 263

Ou seja, tudo o que se passa na Venezuela hoje ou quaisquer outros


eventos que nos parecem condenáveis de um ponto de vista (europeu)
tradicional podem ser legitimados em função de nossa alegada
originalidade cultural. Isso faz parte da própria condição de aventura:
quem se coloca fora de um conjunto de valores consolidados corre o
risco de encontrar novos valores que passam, então, a guiar novas
práticas sociais. Não se pode buscar um destino próprio sem correr
riscos e, eventualmente, até cometer erros. Embora, a princípio, não
existam erros em uma situação de aventura. Pelo menos até que um
novo conjunto de critérios se consolide e se torne possível, a partir
deles, identificar eventos discrepantes. Até que uma nova tradição se
consolide, nada pode ser criticado ou considerado inadequado, já que
não há valores fixos que possam exercer a função de critérios.
Em uma situação de aventura em que assumimos que já não
fazemos parte da civilização europeia, estamos à procura de referências
diferentes. Então, por exemplo, o que ocorre hoje na Venezuela pode ser
simplesmente caracterizado como um efeito colateral dentro de um
quadro em que se procura gestar um novo mundo. Mais do que isso, o
que ocorre pode ser legitimado por um novo conjunto de valores
civilizatórios como eventos corriqueiros e perfeitamente ajustados a
essa nova configuração cultural. Ou seja, um regime ditatorial pode ser
revestido de um aspecto de naturalidade e, portanto, de aceitabilidade
em função da adoção de um conjunto de valores distintos dos europeus.
O que não faz sentido é lançar-se a uma aventura do lado de fora da
fronteira europeia sem abrir mão do conjunto de valores que a
caracterizam, porque isso equivale a colocar-se, na prática, ainda
264 • Filosofia Latino-Americana

dentro de seus limites. Isso significaria que a situação real equivale a


posicionar-se do lado de dentro da fronteira europeia – e não fora dela
como se declara.
A radicalidade implicada na adoção do lado exterior da fronteira
europeia não pode ser amenizada, porque ela envolve necessariamente a
disposição para uma aventura que conduziria o subcontinente para outra
direção desconhecida. Com isso, quero dizer que colocar-se fora da
fronteira com relação à Europa envolve a possibilidade de não possuir
mais um conjunto de critérios que nos permita avaliar adequadamente a
situação da América Latina em circunstâncias concretas.
Se os índices de mortalidade infantil do subcontinente nos
parecem elevados, isso só é um problema enquanto eles entram em
choque com o valor que atribuímos à dignidade humana. Valor que, de
ponto de vista europeu, deve ser respeitado. Porém, quando nos
colocamos fora dos valores da civilização europeia não podemos mais
utilizá-lo para caracterizar a existência de um problema social. Assim,
ficamos sem um critério de avaliação das situações efetivas em que
vivemos. Não é o índice de mortalidade infantil que é problemático por
si mesmo. O que é problemático é a contradição que se estabelece entre
o índice e um valor que se supõe inquestionável. Essa contradição só
pode se estabelecer contra o pano de fundo do valor da dignidade
humana e apenas sob essa condição a mortalidade infantil é um
problema. Sem a operatividade de tal valor, não há contradição e
qualquer índice de mortalidade infantil pode ser aceitável sem sinal de
perturbação ou sensibilização das pessoas. Essa é uma lição trivial
contida na noção de relatividade cultural e não deveria chocar a
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 265

ninguém constatar que a mortalidade infantil é aceitável em


determinadas situações.
Não existem problemas como tais. Só existem problemas quando
dispomos de valores que são experimentados como gerando uma
reverência especial de nossa parte. Sem eles não há contra o que
identificar problemas. Interessa-me aqui constatar que essa é uma
consequência de uma típica situação de aventura, quando nos
colocamos fora da fronteira dos valores estabelecidos. Pode ocorrer
também que se consolidem novos valores, após o período de aventura,
que descaracterizem velhos problemas e os redefinam. Isso de tal forma
que alguns eventos passem a não mais serem considerados
problemáticos dentro de uma nova configuração de valores. Ou, ao
contrário, que alguns novos problemas surjam justamente em função
dos novos valores que se passa a dotar.
Na hipótese que estamos explorando, de que ocupamos o lado
externo da fronteira do mundo europeu, a situação política venezuelana
ou um índice elevado de mortalidade infantil podem se mostrar não
problemáticos. Assim, a aceitação plena de que não fazemos parte da
civilização europeia nos remete para uma situação de falência absoluta
do conjunto de valores que a caracterizam e que nos são tão familiares.
É verdade que nos horroriza a possibilidade de abrir mão desses
valores. A mera possibilidade de que a morte de crianças ou o
sofrimento de outro ser humano sejam justificados e se tornem eventos
naturais nos causa repulsa. Ou seja, a hipótese de nos colocarmos do
lado de fora da fronteira da Europa agride nossa sensibilidade atual
forjada com base em valores europeus. Assim, em função de suas
266 • Filosofia Latino-Americana

consequências aparentemente desastrosas e perigosas do ponto de vista


coletivo, tudo indica que essa hipótese deve ser afastada do nosso
horizonte.
Assumi-la integralmente nos lançaria em uma situação de
incerteza que contém a possibilidade de gerar sofrimento de milhões de
seres humanos. Isso faz sentido se já nos confessamos de retorno para
o lado interno da fronteira, dentro de uma perspectiva tradicional
(europeia) de pensar. Pois o que define o sentido referido de sofrimento
é essa matriz de valores. Embora pareça razoável que uma pessoa passe
por uma crise existencial e redefina seu sistema de referências – como
no caso kantiano da busca por autonomia – essa não parece uma
experiência que se possa sensatamente defender como uma atitude a
ser adotada por um subcontinente. Assim, colocar-se fora da fronteira
do mundo europeu não parece uma possibilidade válida para nós. Pelo
menos não parece uma possibilidade que se possa defender de maneira
honesta diante de suas consequências potencialmente desastrosas.
A crueldade implicada na disposição para abrir mão do conjunto de
valores europeus parece ferir profundamente nossa sensibilidade
consolidada. Embora essa seja uma hipótese teoricamente viável, seu
impacto sobre nós parece inaceitável. Como não podemos sair de nossa
pele para experimentar o mundo, também não parece possível adotar
essa hipótese na prática – que equivaleria a abandonar nossas crenças
mais básicas para obter uma suposta originalidade. Um grau mínimo de
responsabilidade e solidariedade pelos demais seres humanos que
habitam esse subcontinente nos parece razão suficiente para afastar do
horizonte essa hipótese de nos colocarmos fora do mundo europeu.
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 267

Se não isso, o mero cálculo egoísta também pode nos levar à mesma
conclusão. Afinal, em uma situação de aventura cultural ninguém pode
saber se um futuro conjunto de valores não irá transformar a si mesmo
em um pária social ou em uma figura indesejável. Pode ser que nesse
futuro estado de coisas, os professores de filosofia barbudos e bonitos
seja tipos sociais condenáveis sob todos os aspectos. Em tal situação de
insegurança não há como saber para onde tenderão os novos valores a
serem adotados e, portanto, também os novos tipos de preconceitos.
Qualquer um, pensando apenas em si mesmo, deveria considerar a
possibilidade de um prejuízo definitivo para sua pessoa gerado pela
aventura cultural fora da segurança representada pelos valores
europeus. Seria, assim, mera questão de interesse próprio e de instinto
de sobrevivência colocar-se sob o signo desses valores.

NEM DO LADO DE DENTRO, NEM DO LADO DE FORA

Não creio que a América Latina possa se colocar do lado de fora da


fronteira do mundo europeu. Mesmo que pudéssemos hipoteticamente
nos lançar em uma aventura civilizatória nas dimensões envolvidas por
essa condição exterior, não parece possível acreditar que abriríamos
mão do conjunto de valores europeus. Nossa sensibilidade encontra-se
de tal maneira marcada por aqueles valores que recuaríamos
horrorizados diante da mera possibilidade de que a mortalidade infantil
ou a fome não sejam mais consideradas como problemas sociais a serem
combatidos – por exemplo.
268 • Filosofia Latino-Americana

Quero dizer, com isso, que me parece inviável que a América Latina
– ou mesmo uma de suas nações – coloque de lado o mundo europeu e
se lance para fora desse passado comum. Essa possibilidade exigiria um
desgarramento tão radical com respeito a tudo o que temos sido desde
a colonização que não parece possível do ponto de vista prático e
coletivo. O grau de ruptura necessário para isso não poderia ser
realizado sem um custo humano enorme. Assim, simplesmente não
parece fazer sentido defender a hipótese de que a América Latina
mergulhe em alguma modalidade de aventura cultural inteiramente
fora dos parâmetros europeus.
Embora qualquer governo possa lançar mão da justificativa de que
determinado estado de coisas é, na verdade, uma consequência da busca
por originalidade política do lado externo do mundo europeu, não é
razoável imaginar que essa legitimação possa perdurar nas mentes e na
prática por muito tempo. Ou seja, embora essa justificativa possa surgir
esporadicamente aqui e ali, ela não pode se sustentar como uma posição
política durável para a dimensão integral da cultura latino-americana,
em função do compromisso já estabelecido por esta última com a matriz
de valores europeus.
Por outro lado, quando nos colocamos do lado de dentro da
fronteira da cultura europeia somos obrigados a concluir também que
somos uma configuração resistente a tais valores – como vimos antes.
Isto é, como ainda não atingimos parâmetros sociais e institucionais
semelhantes aos da Europa, só nos resta nos representarmos como uma
configuração europeia que, por algum motivo, resiste a se tornar
plenamente europeia.
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 269

Aquela promessa de tornarmos os valores europeus ainda mais


agudos do que são na própria Europa – seja nas versões ilustrativas de
Rodó (s. d.) e Andrade (2011) ou em quaisquer outras – não parece passar
de um tipo de bravata que contamos a nós mesmos diante de uma
realidade difícil de ser explicada. Ela somente parece justificável diante
da dura constatação de que ainda não somos europeus, mas apenas
como um gesto de autoafirmação.
Do lado de dentro da fronteira e em face dessa nossa condição de
resistência, parece possível pensar que ainda não nos tornamos
europeus, mas que em breve poderemos nos tornar. Pelo menos é isso
que os governos de qualquer posição no espectro político latino-
americano insistem em afirmar por meio de discursos ou práticas
políticas. Embora divirjam nas estratégias, todos eles orientam suas
ações para a modernização. Isto é, para a europeização. Essa
possibilidade efetivamente existe, mas os resultados históricos não a
têm confirmado e começam a conduzir o prato da balança para o lado
de uma simples impossibilidade.
O que se pode verificar empiricamente, olhando para nosso
presente e para nosso passado, é que não nos faltaram oportunidades
para nos tornarmos efetivamente europeus, mas algo em nós parece ter
tomado a decisão de nos conduzir a outra situação. Aparentemente há
algo em nós que age contra esse propósito. Os resultados indicam
claramente que não somos inteiramente europeus. Então, para todos os
efeitos, não estejamos inteiramente do lado de dentro da fronteira do
mundo europeu. Já vimos que também não podemos nos colocar
inteiramente do lado de fora dessa mesma fronteira. Esta condição de
270 • Filosofia Latino-Americana

estar dentro, mas não estar constitui o problema da fronteira da


América Latina com relação à Europa.

CONCLUSÃO

Considerando tudo o que foi dito até o momento, podemos


perceber que não estamos efetivamente nem do lado de dentro nem do
lado de fora do mundo europeu. Cabe, então, tentar esclarecer em que
consiste nossa situação com relação à velha Europa. Embora pareça
paradoxal, como vimos antes, efetivamente encontramo-nos do lado de
dentro e do lado de fora do mundo europeu.
Encontramo-nos do lado de dentro porque somos um resultado da
intervenção histórica dos valores da Europa – através da colonização.
Vimos como nos causa repulsa a mera possibilidade de lançarmo-nos
em uma aventura para fora dos valores de matriz europeia. Mas também
é verdade que ainda não chegamos a ser europeus, embora em algumas
circunstâncias particulares a imitação tenha sido muito bem encenada
e quase acreditamos nela. Isso significa que somos outra modalidade de
europeus – ou, se preferirmos, uma modalidade de europeus não
europeus.
Antes de tentar desembaraçar a dificuldade, é necessário observar
que estamos diante de uma forma de vida. Não faz nenhum sentido
julgar se uma forma de vida é legítima ou possível, já que ela existe. Não
se discute a legitimidade do que existe, já que existe, senão no contexto
de alguma patologia ligada à arrogância intelectual. Se essa forma de
vida extrapola nossa maneira habitual de pensar, em função de sua
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 271

configuração paradoxal, isso deve nos levar a revisar nosso pensamento


e não a julgá-la como algo impossível ou inviável. Embora esse
esclarecimento pareça supérfluo, ele é necessário para nos permitir
compreender adequadamente o paradoxo aparente da situação
fronteiriça sem resvalar para alguma forma de arrogância intelectual e
de condenação da América Latina – como se se tratasse de um
subcontinente impossível.
Se há uma lição fundamental que nossa relação com a Europa nos
fornece é que não podemos pensá-la com os recursos intelectuais
europeus tradicionais de que dispomos. Ela constitui-se como um
desafio especial justamente porque nela encontramo-nos, ao mesmo
tempo, dentro e fora da fronteira cultural do mundo europeu. Ou seja,
para sermos capazes de compreender nossa situação efetiva, devemos
abrir mão do conjunto de elementos que têm dirigido nossa forma de
pensar europeia atual. Só nos remetendo para uma condição alternativa
de pensamento é que seremos capazes de compreender em que medida
somos parte do mundo europeu e em que medida, ao mesmo tempo, não
o somos. Não podemos atingir uma compreensão adequada do que
somos com base nos instrumentos conceituais tradicionais da velha
Europa. Isso não significa que nos colocamos fora dela, mas somente
que nos colocamos dentro de nossa própria situação com a finalidade de
pensar o que temos sido. Porque o que temos sido não equivale a uma
configuração externa nem interna ao mundo europeu.
Mas o que, afinal, significa exatamente a nossa situação fronteiriça
com respeito à Europa? Sabemos que os valores europeus nos moldaram
historicamente. Por isso, somos um resultado inegável de sua atuação.
272 • Filosofia Latino-Americana

Porém, também sabemos que esses valores não exerceram aqui o


mesmo efeito que na velha Europa em função de nossa resistência
estabelecida.
Essa resistência não é do tipo que exclui o conteúdo a que resiste,
deixando-o do lado de fora ou mesmo afirmando a necessidade de sua
exclusão – talvez uma forma singela de nacionalismo que visa impedir
a influência estrangeira. Ao contrário, trata-se de uma resistência
sofisticada que tem subordinado o conteúdo cultural europeu ao seu
próprio modo de operação. Com isso, quero dizer que na América Latina
não está em operação uma resistência tradicional que visa meramente
excluir os valores europeus. Essa resistência opera por uma anulação
relativa dos valores adventícios.
Fundamentalmente, o que se tem anulado na América Latina é o
aspecto universalista da cultura europeia. O universalismo europeu é
um dispositivo que tem a tendência a impor um domínio exclusivo sobre
determinado conjunto de elementos. Essa é a estrutura da formação
histórica dos Estados Nacionais europeus por meio da unificação da
língua e do território que se encontrava disperso. Ela também é a
maneira pela qual se chegou à monetarização da economia (Elias, 2011).
Sob a mesma modalidade ela opera o processo psicológico de
subjetivação visando dotar o indivíduo do pleno domínio sobre todas as
esferas de sua vida ou a constituição moral da autonomia (Schneewind,
2005). Em todas essas situações tornou-se necessário promover uma
integração da diversidade. Essa unificação se tornou possível através da
subordinação a uma esfera postulada como superiora: o Estado, a lei
moral, o valor exclusivo de uma moeda, a língua mãe, o patrimônio
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 273

nacional, a integridade do sujeito constituída sobre seus pensamentos e


ações etc. Em todos esses dispositivos há uma mesma estrutura
integradora atuando. Sua função é unificar a dispersão através da
autoridade reconhecida de um princípio superior.
E é justamente essa tendência à integração da diversidade que tem
sido anulada pela cultura latino-americana, mas não os próprios valores
europeus como tais. Assim, embora esses valores europeus estejam
sendo internalizados por meio da colonização – que é um processo
cultural contínuo - eles ainda não o foram plenamente. Com isso, quero
dizer que tais valores não assumiram na América Latina a forma
universalista de que gozam na Europa. O que se nota não é a ausência
desses valores em nosso subcontinente, mas sua ineficácia prática, sua
incapacidade de exercer um domínio pleno sobre o nosso modo de vida,
sua incapacidade enquanto agentes integradores de um panorama
diversificado.
Se é efetivamente assim, então aquele aparente paradoxo se dissipa
porque estamos do lado de dentro da fronteira - já que compartilhamos
os mesmos valores básicos com a Europa - mas também estamos do lado
de fora- na medida em que esses valores jamais assumem o controle
pleno da totalidade de nossa configuração cultural.
Não há nenhum mistério implicado nessa situação paradoxal. O
que há é um efeito de anulação latino-americano da tendência
universalista, típica da cultura europeia. Porém, esse efeito nunca se
apresenta como uma resistência explícita, na medida em que ele não se
impede que os valores exerçam sua força no ambiente latino-
americano. O que se impede é somente que eles exerçam sua plena
274 • Filosofia Latino-Americana

potência universalista ou integradora. Então, a situação efetiva na


América Latina é a de um jogo de forças permanente entre valores
universalistas e energias desagregadoras. Essa tensão adota diferentes
configurações empíricas em que a europeização está atuando, porém
também está sendo anulada no que diz respeito à sua universalidade.
Não tenho interesse nem capacidade para rastrear aqui a origem
desse dispositivo de resistência sofisticado que opera na América
Latina. Parece-me suficiente destacar aqui esse quadro geral de tensão
entre valores europeus, que visam a obtenção da integração sob um
princípio, de um lado, e um mecanismo latino-americano de resistência
à universalidade, de outro. Esse quadro pode ser identificado por
qualquer observador atento em sua própria circunstância empírica e
dentro de sua própria área de conhecimento.
Em geral, na América Latina não há recusa ou aversão pelo mundo
europeu. Mas também não há uma mobilização interior que poderia
levá-lo a tornarse predominante no âmbito prático da América Latina.
Isso certamente não significa que exista algo como aquela deficiência
colonizadora por parte dos valores europeus – o que é desmentido pela
configuração da América Anglo-Saxã. O que há, de fato, é uma
resistência a qualquer processo que possua a pretensão de impor sobre
a superfície latino-americana uma só e mesma feição.
Esse jogo de forças é certamente uma configuração cultural gerada
pelo processo de colonização. Tudo indica que nos adaptamos à situação
de colonização desenvolvendo uma modalidade de resistência que
consegue conviver com a imposição de valores estranhos, sem curvar-
se inteiramente a eles. Ou seja, esse mecanismo parece permitir uma
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 275

subserviência aparente a valores impostos. É inegável o aspecto plástico


dessa capacidade que nos permite absorver valores alienígenas sem
adotar sua gravidade original integradora. Trata-se de uma forma de
receptividade enganadora, capaz de adotar feições distintas de acordo
com a energia empregada em cada circunstância colonizadora enquanto
preserva uma disposição para não se deixar integrar.
Se esse dispositivo de resistência efetivamente funciona dessa
forma, parece necessário redefinir o sentido do processo de colonização.
Afinal, essa resistência sofisticada só é possível em um ambiente
colonizado em que valores externos exercem continuamente uma força
integradora. Com efeito, estar sendo colonizados é nossa situação vital,
porém essa condição não consiste simplesmente em receber a
influência poderosa de efeitos externos. Esse é um de seus
componentes, mas estar sendo colonizados é fundamentalmente
exercer a anulação relativa do impacto original da forma integradora
dos valores externos preservando seu conteúdo. Estar sendo
colonizados significa colocar-se ao mesmo tempo do lado de dentro e do
lado de fora da fronteira da cultura europeia. Compreender que essa é
nossa situação pode ser um passo decisivo na maneira como lidamos
com a colonização e com a velha Europa.

Publicado originalmente em Epistemologias do Sul, v. 2, p. 190-210,


2018
276 • Filosofia Latino-Americana

REFERÊNCIAS

Alberdi, J. Fundamentos da organização política da Argentina. Campinas: Editora da


UNICAMP, 1994.

Andrade, O. A utopia antropofágica. São Paulo, Globo, 2011.

Casas, J. Um novo caminho para a América Latina. Rio de Janeiro: Record, 1993.

Elias, N. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.

Kant, I. Textos seletos. Petrópolis: Vozes, 1974.

Lambert, J. América Latina. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969.

Robertson, W. The life of Miranda. Chapel Hill: The University of North Carolina Press,
1929.

Rodó, E. Ariel. S. l. (s. d.). Disponível em http://www.scribd.com/people/view/3502992-


jorge Consultado em 13/9/2017

Sarmiento, D. Facundo. Buenos Aires: Editorial Atlântida, 1973.

Schneewind, J. A invenção da autonomia. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2005.

Silveira, R. A. T. O intelectual latino-americano. Pacarina del Sur, ano 8, n. 31, 2017.

Stein, S.; Stein, B. A herança colonial da América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1077.
11
DIREITOS HUMANOS E CULTURA BRASILEIRA

INTRODUÇÃO

O objetivo desse artigo é responder à seguinte pergunta: o que tem


significado a luta pela ampliação dos direitos humanos no Brasil?
Entretanto, essa questão não deve ser compreendida como se referindo
a problemas empíricos e sim a elementos de natureza cultural. Então, o
foco da atenção aqui não será relativo ao cômputo de perdas e ganhos
do processo que tenta intensificar o respeito aos direitos humanos no
Brasil ou à descrição de suas particularidades ao longo dos embates
práticos que inevitavelmente se apresentaram e se apresentam.
A questão diz respeito, isso sim, ao significado que a tentativa de
afirmar a plena validade dos direitos humanos adquire quando se
realiza no ambiente cultural brasileiro. Em função desse significado
específico, que se impõe devido às nossas circunstâncias, será
necessário abordar também os limites ligados às expectativas dos
militantes que estão envolvidos na ampliação dos direitos humanos no
Brasil.
A própria formulação do problema supõe que exista um sentido
particular ligado ao processo de ampliação dos direitos individuais nas
condições culturais nacionais. De fato, ela implica na afirmação de que
essa especificidade não permite agregar o que se passa aqui a outras
circunstâncias igualmente ligadas ao processo de ampliação dos
direitos humanos. Essa última perspectiva permitiria incluir o caso
278 • Filosofia Latino-Americana

brasileiro em uma história mais geral acerca da consolidação dos


direitos humanos no mundo, por exemplo. Porém, em função do efeito
exercido por nossas particularidades culturais, essa perspectiva parece
equivocada e não será adotada aqui.
A diferença no efeito produzido pelas tentativas de ampliação da
validade dos direitos humanos no Brasil é promovida por nossas
especificidades culturais, de tal forma que a intencionalidade original
dessa iniciativa é contida e revertida a um significado diverso do
originalmente pretendido. Por isso, não se trata de uma diferença
identificável no âmbito das características das tentativas de ampliação
dos direitos humanos propriamente falando e sim na dimensão do
contexto cultural em que elas se realizam. Assim, a pergunta enunciada
acima necessita levar em consideração, de maneira especial, o conjunto
de valores brasileiros em que aquele processo de ampliação tenta se
estabelecer e no interior do qual ele tenta fazer prevalecer os valores
que promove.

DEMOCRACIA E DEMOCRACIA FORMAL

A característica mais saliente do processo de ampliação dos


direitos humanos no Brasil é que ele ocorre em um ambiente cultural
que tem se mostrado avesso à democracia. Evidentemente existe por
aqui um regime político relativamente livre: eleições periódicas,
registro partidário sem restrições ideológicas, liberdade de
candidaturas, voto universal etc. Embora esse regime político seja uma
condição necessária para a existência da democracia, ele não é a sua
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 279

razão suficiente. O ponto central que desejo destacar é que não pode
haver democracia efetiva em um ambiente cultural elitista - como o que
tem se caracterizado o Brasil.
A democracia enquanto uma experiência de vida e um sistema de
valores exige a experiência existencial da igualdade diante da lei, a
vigência da crença de que nos encontramos na mesma condição em que
nossos semelhantes se encontram. Ela não se resume a condições
institucionais específicas, embora não possa existir sem elas. Afinal,
essas últimas podem se fazer presentes mesmo na ausência dos
requisitos culturais necessários para que possam cumprir plenamente
com suas finalidades – como parece ser o caso do Brasil. Nesse sentido
- em que as instituições existem sem que sejam acompanhadas de
sentimentos e crenças pertinentes – podemos falar, na melhor das
hipóteses, em democracia formal. Para evitar ambiguidades, prefiro
deixar claro que essa situação existencial não se caracteriza como
efetivamente democrática.
No Brasil, temos orientado nossas vidas fundamentalmente na
direção da obtenção de privilégios sociais. Isto é, temos nos ocupado na
grande maioria das vezes em conquistar vantagens que nos coloquem
em condições diferenciadas no que diz respeito à distribuição da riqueza
social, do poder e do status. Não temos nos esforçado por nos
diferenciar dos demais a partir de um parâmetro universal igualitário,
que funcionaria como um ponto de partida válido para todos. Pelo
contrário, temos tentado obter e preservar benefícios sociais
independentemente de quaisquer outras circunstâncias. Nossos
esforços têm se dirigido a criar mecanismos de obtenção e de
280 • Filosofia Latino-Americana

preservação de benefícios, a despeito de como funciona o sistema que a


distribui no interior de nossa sociedade.
Na prática, isso significa que temos colocado em permanente
questão o próprio sistema de regras do jogo social em função da atenção
e do esforço que temos dedicado aos nossos interesses particulares. A
democracia efetiva exige outro padrão comportamental em que se tenta
obter vantagens sociais dentro de um regime de respeito às regras
pactuadas coletivamente. A diferença com relação ao nosso padrão de
valores consiste em que no ambiente democrático as regras não fazem
parte da própria disputa. Elas funcionam como uma instância
independente dos interesses existentes e regulam os conflitos que se
estabelecem.
A democracia não é uma forma de vida isenta de conflitos,
portanto. Ela configura uma situação em que os conflitos são regrados
por um estrato superior de valores. Há uma diferença hierárquica entre
essas dimensões que não pode passar despercebida, na medida em que
é ela que garante o efetivo modo de vida democrático. De fato, é a alta
consideração e até mesmo a internalização dos valores que regram o
jogo social, por parte de cada cidadão, que garante que eles serão objetos
de respeito coletivo mesmo em face de um intenso choque de interesses.
Nesse caso, há uma enorme diferença entre o estatuto da regra que
é objeto da consideração de todos e o interesse de uma parte, mesmo
que se trate de um interesse detentor de grande poder, riqueza ou
status. Pode-se dizer que a democracia exige uma espécie de diferença
de natureza entre a regra e o interesse, de tal forma que aquela paire
efetivamente acima do jogo empírico de influências. Ela propõe um
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 281

mundo político ontologicamente diferenciado – embora isso não seja


imediatamente perceptível, talvez em função da insistência sobre o
caráter igualitário da democracia.
No caso brasileiro, as regras do jogo não se consolidaram como
independentes e têm sido entendidas como dispositivos cuja função é
promover vantagens estratégicas de um interesse sobre o outro. Assim,
é comum que lutemos pela alteração das regras que possam nos
beneficiar e não pelo próprio benefício social gerado a partir delas e do
respeito a elas. Isto é, lutamos por regras que possam servir aos nossos
interesses e não por benefícios adquiridos por meio das regras já
existentes. É por isso que em um sistema não democrático como o nosso
não se afirma uma equidistância efetiva por parte dos participantes com
relação às regras do jogo. Essas últimas tendem a se tornar parte das
próprias disputas políticas e, por isso, a se converterem em prêmios
adquiridos de uma situação original de tensão permanente. Em
ambientes desse tipo se luta fundamentalmente para que as regras
garantam condições diferenciadas para um ou outro dos grupos de
interesse.
No Brasil, a luta pelas regras do jogo social e político está em pleno
vigor e isso torna o ambiente tumultuado e oscilante, na medida em que
uma institucionalização efetiva é evitada a todo custo. Afinal, caso
ocorresse, ela seria responsável por tornar válido um sistema de regras
em particular, um conjunto de elementos capazes de regular de maneira
relativamente estável o jogo social. Ou seja, ela decretou o início de uma
disputa social baseada em algum conjunto de regras – o início da
validade da isenção da lei e do pacto político que a torna possível. Ela
282 • Filosofia Latino-Americana

criaria um efetivo regime de subordinação dos interesses particulares,


base da democracia.
Não é ocasional no Brasil que ocorram, por exemplo, tantas
tentativas de resolver problemas concretos por meio de alterações ou
acréscimos na legislação (Silveira, 2018a). Isso diz respeito ao fato de que
acreditamos que as regras são as responsáveis por propiciar as
condições básicas para a resolução dos problemas da vida social. E nisso
temos plena razão, pelo menos do nosso próprio ponto de vista não
democrático. Se o que está em questão na ausência de democracia
brasileira é a tentativa de exercer poder sobre as regras, isso significa
que nelas consiste a resolução dos problemas.
O que é típico do sistema de valores brasileiros vigente é que as
resoluções não se constroem a partir de instituições já consolidadas,
mas por meio de sua contínua renovação. Assim, não causa espanto que
tenha existido o Ministério da Desburocratização durante o último
regime militar no Brasil – algo que revela algo de nossas crenças
peculiares acerca da institucionalidade. De certa forma, a ausência de
democracia efetiva envolve uma enorme criatividade institucional, uma
verdadeira proliferação de dispositivos sociais destinados a não
resolverem problemas práticos, já que se limitam a redefinir
continuamente a sua própria intencionalidade. Isso faz parte daquela
nossa conhecida vocação teórica: a razão ornamental (Buarque De
Holanda, 1984) que vive de remoer projetos e soluções jamais colocados
em prática. Chamo a atenção para o fato de que há uma concordância
desses valores, uma espécie de organicidade cultural, que permite
perceber que em cada uma das instâncias de nossa vida se expressa
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 283

diferentemente um mesmo padrão de operações. Assim, a razão


ornamental responde às necessidades de nosso atual regime de vida não
democrático.
Podemos compreender a ausência de democracia efetiva como uma
situação em que as regras do jogo social ainda não se consolidaram
como um estrato relativamente autônomo e digno de respeito aos olhos
dos membros de uma sociedade. É por isso que cada indivíduo não
experimenta nenhuma reverência por elas, na mesma medida em que
tenta orientá-las em direção a suas próprias conveniências. Nessa
situação lidamos com pouco ou nenhum valor transcendente com
relação aos interesses particulares, na medida em que nos sentimos
habilitados a forjar um mundo inteiramente de acordo com nossas
próprias necessidades. Não se apresenta aqui aquela diferença de
natureza, aquela cisão entre duas dimensões ontológicas que permite
traçar um círculo defensivo em torno das regras do jogo social e, assim,
fundamentar o respeito moral diante de sua independência ontológica.
Assim, a orientação de nosso comportamento social básico está
voltada para a instrumentalização das regras do jogo social e das
instituições segundo o nosso próprio interesse. De um ponto de vista
moralista, podemos descrever essa situação como a de um sistema
político corrupto. Na verdade, se trata de um sistema político que
expressa um modo de vida em que vigora uma única dimensão ontológica,
sem a afirmação de qualquer tipo de hierarquia preliminar. É óbvio que
as diferenças se afirmam em um ambiente não democrático à medida que
diferentes padrões de força e de interesse se afirmam no ambiente social.
Porém, essas diferenças são consequências de uma situação original
284 • Filosofia Latino-Americana

desprovida de hierarquia e de motivos para a reverência e a subordinação.


Em situações culturais democráticas, ao contrário, aceitamos a validade
independente de princípios e tentamos nos adaptar às circunstâncias
criadas por eles, colocando-nos sob seu abrigo permanente. Essa
disposição de aceitar as regras do jogo e subordinar-se a elas é
denominada de cidadania. Chamo a atenção para o fato de que a cidadania
envolve disposições ativas e passivas por parte do cidadão. A atividade
pode ser percebida na necessidade de reconhecimento da superioridade
da regra vigente. Trata-se de projetar essa última para uma situação de
relativa transcendência, na medida em que ela deve assumir um estatuto
que independe de cada interesse particular. Por seu turno, a passividade
pode ser observada na medida em que nos colocamos sob a proteção da
regra e abrimos mão da vingança lateral ou da compensação pessoal
direta. Nesse aspecto é que se observa uma consolidação institucional da
democracia efetiva, já que os dispositivos devem se mostrar capazes de
proteger as pessoas umas das outras. Essa consolidação é inversamente
proporcional àquele padrão de ação em que se tenta a obtenção da
compensação de maneira lateral.
Vemos, então, que o que está em questão do ponto de vista das
vantagens sociais em uma democracia real é de como nos diferenciamos
dos demais estando, todos nós, subordinados às mesmas regras e
compartilhando o estado universal da cidadania. Por outro lado, o nó
górdio em um ambiente não democrático é saber como interferimos nos
regulamentos sociais, implícitos ou não, de tal forma que possamos
obter vantagens de acordo com nosso interesse particular. Como tais
vantagens estão ligadas ao conteúdo de regras de convivência, elas
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 285

tendem a permanecer vigentes ao longo do tempo (a despeito do choque


permanente de interesses particulares em ação e da turbulência que
provocam) sob a forma de privilégios.
A diferença entre uma democracia efetiva e uma democracia
aparente ou meramente institucional, como a brasileira, diz respeito a
considerar qual é o foco do comportamento individual que tem
prevalecido de maneira preponderante. Se esse comportamento se
orienta fundamentalmente para a obtenção de privilégios, isso ocorre
porque não há condições existenciais para a consolidação da cidadania.
Essa última exige reverência em relação a valores universais
compartilhados e considerados superiores à individualidade.
Em situações empíricas nem sempre essa distinção pode ser tão
nítida como a estou apresentando aqui, em função de seu grau de
generalidade. Entretanto, esse quadro pode servir como critério de
distinção se levarmos em consideração certa prudência empírica
relativa a situações em que pode haver uma ambiguidade intencional
por parte dos indivíduos quando observados pelo lado de fora – o que é
uma condição típica da observação de elementos intencionais. De fato,
é difícil saber em cada caso particular se um agente está agindo por
força de reverência à superioridade de regras ou em função de seu
interesse próprio. Não cabe nesse caso nenhuma expectativa de se
chegar a bom termo com a distinção que apresentei acima.
Entretanto, do ponto de vista genérico que adoto aqui, essa
distinção permitirá caracterizar elementos fundamentais sobre as
tentativas de ampliação dos direitos humanos no Brasil. Esse
esclarecimento acerca da aparente democracia brasileira visa
286 • Filosofia Latino-Americana

estabelecer as bases para que o leitor compreenda o significado da


questão que me proponho a tentar responder abaixo. A distinção
certamente não pretende ser uma exposição exaustiva sobre o assunto.
Como não posso promovê-la aqui, em função do pouco espaço
disponível, remeto o leitor a uma versão que me parece satisfatória
sobre o assunto (Lagos, 2000). Desse ponto de vista, trata-se de avaliar
a democracia não apenas a partir do regime institucional existente, mas
considerando o modo como tais elementos cristalizados são
experimentados no dia a dia das pessoas.

A CONTRADIÇÃO ENTRE CIDADANIA E PRIVILÉGIO

Feito tal esclarecimento preliminar, aquela pergunta inicial pode


ser agora traduzida em uma fórmula mais transparente: o que significa
a ampliação dos direitos humanos em um ambiente não democrático?
Considere que a tentativa de promover essa ampliação atua no sentido
de tornar efetiva a cidadania em um ambiente (parcialmente)
desprovido dela.
De um ponto de vista convencional e muito difundido somos
levados a pensar que a contradição apresentada acima se resolve por si
mesma, quase que naturalmente e por força dos elementos que se
encontram em choque no seu interior. Assim, se a luta pela consolidação
dos direitos humanos é um processo claramente ligado à ampliação da
democracia, então o fato dela ocorrer em um ambiente não democrático
não a compromete. Ao contrário, é exatamente isso que define o seu
sentido. Afinal, se trata de uma luta pela instalação de uma democracia
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 287

plena, em um ambiente que, obviamente, ainda não é democrático. A


tentativa de fazer valer os direitos humanos só possui sentido na
medida em que o ambiente em que ela ocorre ainda não é democrático.
Se se trata da ampliação desses direitos é porque nesse ambiente eles
ainda não predominam.
Dessa maneira, aquele ponto de vista convencional acerca do
conflito entre democracia e não democracia envolve a crença de que
existe uma contradição estabelecida e, mais importante ainda, que ela
se resolverá pela força da ação militante em benefício da democracia. A
resolução que se supõe dever ocorrer é que a marcha do país em direção
à democracia plena se consolide, seguindo um processo histórico de
amadurecimento institucional e existencial do país. É com base nessas
crenças que faz sentido a tentativa de ampliar a validade dos direitos
humanos no Brasil.
Assim, se acredita que existe uma tendência a que a contradição se
resolva na medida em que um dos elementos contrários ceder espaço ao
outro. Sendo otimistas, isso deve significar que a luta pela ampliação da
democracia no Brasil levará à retração do sistema de privilégios
estabelecido. Seja como for, temos a propensão a pensar que aquela
contradição entre cidadania e privilégio é insustentável ao longo do
tempo e que as nossas ações desempenham um papel fundamental no
seu desenlace.
Acreditamos nisso porque supomos que as contradições são
logicamente impossíveis. E se for mesmo assim, também parece que elas
devem ser igualmente inviáveis na realidade social. Observe que nessa
representação convencional acerca do desenlace da tensão, um dos
288 • Filosofia Latino-Americana

oponentes ganha o terreno diante de seu antagonista e o neutraliza.


Como há uma contradição estabelecida entre as forças em jogo, parece
razoável pensar que uma delas se sobrepõe à outra, tomando para si a
dimensão originalmente ocupada pela facção derrotada. Nesse caso,
uma delas se tornará hegemônica em função de conquistar o espaço
institucional e existencial da sua antagonista. Essa é a maneira
convencional por meio da qual compreendemos situações sociais que
envolvem tensões entre elementos incompatíveis. A própria disposição
pessoal para alinhar-se à luta pela ampliação dos direitos humanos só
faz sentido baseada no pressuposto de que se trata de uma tentativa de
se obter uma hegemonia para tais valores em prejuízo do sistema de
privilégios.
Ou seja, se parte do princípio de que a militância em benefício dos
direitos humanos fortalece a democracia e, por conseguinte, enfraquece
o estado de coisas que prevalece hoje no Brasil. O sentido da própria
militância a favor dos direitos humanos supõe a crença de que há uma
espécie de balança em que a alteração em um dos lados implica em uma
mudança inversa do lado oposto. Trata-se, portanto, de fazer
predominar um dos lados sobre o outro – na medida em que eles estão
ligados e são inversamente proporcionais. O aumento da democracia
conduz inevitavelmente à diminuição do domínio do privilégio.
A conhecida noção dialética de que de um conflito surgirá um
terceiro elemento, a síntese (Marx, 2001), que superará aos dois anteriores
pode ser incluída dentro dessa mesma perspectiva ligada aos pratos da
balança. Nesse caso, se supõe que a tensão existente entre a tese e a
antítese também é insustentável ao longo do tempo e que isso levará, de
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 289

maneira necessária, a um desenlace em função dos próprios elementos de


que a equação se compõe. Apesar da formulação ser diferente, observe
que também aqui se acredita que a tensão entre elementos contraditórios
não pode se manter ao longo do tempo. Isso conduzirá a uma solução,
senão em benefício de um dos lados em disputa, em prol de um terceiro
elemento que aparece como uma figura superior às anteriores, como um
desfecho para aquela tensão preexistente.
Novamente nesse caso se apresenta a mesma noção fundamental
acerca do caráter inviável, do ponto de vista lógico e prático, da
contradição. Em ambos os casos – seja de uma perspectiva analítica ou
dialética – a contradição é compreendida como um arranjo condenado
a desaparecer pela força interna dos conflitos que estabelece. Ela só
pode ser concebida, desse ponto de vista, como uma situação passageira
destinada a ser resolvida ou superada pela ação das energias interiores
que desencadeia. Seja qual for a forma que ela assume em cada caso, a
contradição traz em si sua própria morte, o germe de sua destruição.
Ela é simplesmente uma figura lógica e prática inviável.
E é justamente em função do caráter inviável da contradição que
se milita em favor dos direitos humanos no Brasil. A energia exercida
em benefício de sua implantação plena se justifica porque se acredita
que com o avanço da democracia haverá uma reversão do sistema de
privilégios estabelecido. Assim, se espera que o avanço do lado
democrático implique automaticamente no recuo do lado não
democrático no espectro existencial e político do Brasil. Essa parece ser
uma maneira muito razoável de se pensar. Na verdade, ela é uma
290 • Filosofia Latino-Americana

maneira muito razoável de se pensar do outro lado do Atlântico, do


ponto de vista da velha Europa.

A OUTRA RACIONALIDADE DA CULTURA BRASILEIRA

Entretanto, essa maneira convencional de pensar não exprime


adequadamente aquilo que tem ocorrido no Brasil. De fato, não parece
que esse ponto de vista seja capaz de dar conta do modo como as tensões
entre elementos contraditórios têm se resolvido no nosso ambiente
cultural. Pelo contrário, o que essa forma de representar a situação da
luta pela ampliação dos direitos humanos no Brasil parece expressar são
crenças que fazem sentido apenas em ambientes europeus. Algumas
dessas crenças parecem ter sido herdadas de uma longa tradição ligada
à racionalidade humana (Aristóteles, 1970). Outras constituem-se como
resíduos de uma modalidade de leitura ligada ao progresso do Espírito
ou à marcha histórica da humanidade em direção à liberdade e à sua
plena consciência (Hegel, 1989).
Não pretendo abrir aqui um debate acerca da correção dessas
ideias já consolidadas na tradição filosófica da Europa. Isso não é
necessário. Com efeito, podemos inclusive supor que não há nada de
definitivamente errado com essas crenças ligadas ao aspecto
insustentável das contradições. O ponto central aqui é que elas parecem
expressar apenas pressupostos sobre como contradições se resolvem
em condições ideais – derivadas do mundo europeu. De fato, aqui é
relevante apenas observar que esse esquema de pensamento não faz
justiça ao que tem ocorrido no Brasil. Isto é, no ambiente cultural
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 291

brasileiro a contradição se comporta de maneira anômala - se tomamos


como referência aquela maneira convencional de pensá-la.
Pretendo partir de um ponto de vista diferente aqui que leva em
consideração a cultura brasileira em sua própria dinâmica e que,
justamente por isso, não permite entender nossas contradições como
uma anomalia. Isto é, trata-se de fazer concessões à racionalidade ou ao
modo de lidar com as contradições que operam na cultura brasileira.
Com isso corro o risco de interpretar o Brasil. Porém, parece-me que o
risco é inteiramente justificável na medida em que a posição
convencional a esse respeito implica em aceitar aquelas noções
produzidas no ambiente europeu sem qualquer tipo de consideração de
prudência com respeito à sua aplicabilidade no Brasil.
As alternativas são as seguintes: por um lado, podemos utilizar
aquelas velhas ideias europeias supondo uma correspondência com o
ambiente brasileiro – em função de preconceitos herdados de nossa
formação de matriz europeia. Por outro lado, podemos interpretar
nosso próprio país, verificando aí a existência de alguma especificidade
que possa até mesmo se mostrar incompatível com aqueles
pressupostos. Em ambos os casos existem riscos.
Tenho defendido a superioridade afetiva dessa segunda opção, na
medida em que me parece que há muito a ser obtido de um ponto de
vista mais próximo a nossas especificidades sem, no entanto, resvalar
para nenhuma forma de nacionalismo tacanho. Esse último implicaria
em substituir uma preferência por ideias europeias por alguma alegada
superioridade de critérios brasileiros (Silveira, 2018a). Não se trata,
portanto, de evitar velhos hábitos mentais com o objetivo de adotar
292 • Filosofia Latino-Americana

novos. Trata-se fundamentalmente de não se deixar trair por formas


convencionais de pensamento.
Há realmente um risco contido em se promover uma interpretação
mais afeita à cultura brasileira. Porém, é certo que também há um risco
em repetir aquelas velhas ideias europeias sobre a contradição em
outros contextos. A suposição de que os riscos envolvidos nessa segunda
opção são menores é claramente uma ilusão produzida pelo conforto
intelectual e por maneiras de pensar sedimentadas. De fato, não há nada
mais confortável - e anti-filosófico – do que resolver uma dificuldade
com base em categorias já consolidadas.
Assim, assumindo essa disposição de interpretar o que tem
ocorrido no Brasil, se pode verificar que as nossas contradições não têm
se resolvido ao longo do tempo. Pelo contrário, o Brasil tem expressado
uma capacidade de perpetuar conflitos e contradições sem que eles se
resolvam. Assim, o país pode ser explicado pela sua enorme capacidade
de justapor épocas históricas, umas ao lado das outras, sem que elas
desaguem em uma solução (Amaral, 1939; Bastide, 1971). Por seu lado, a
própria dificuldade de se obter uma descrição unitária do país também
expressa a dificuldade de se promover uma síntese. Por isso é que se diz
que o Brasil não é para principiantes ou que, por aqui “tudo é, a
princípio, possível” (Peixoto, 1996, p. 110). Com esses termos se faz
referência a uma cultura que não se resume em fórmulas sintéticas ou
a princípios racionais de fácil apreensão.
Com efeito, se analisarmos as sínteses que o país tem sido capaz de
formular, veremos que em nenhum caso elas expressam uma solução –
pelo menos naquele sentido convencional em que geralmente se pensa
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 293

a contradição com as categorias da velha Europa. Observe que não me


refiro a sínteses propostas por autores brasileiros. Trata-se de sínteses
formuladas pela cultura nacional. Essas sínteses expressam, portanto,
os elementos culturais que têm exercido vigência no ambiente
brasileiro enquanto resultados práticos.
Assim, podemos verificar a especificidade da síntese religiosa
(Silveira, 2016a), da síntese carnavalesca (Silveira, 2015), da síntese
esportiva (Silveira, 2014) e da síntese produtiva (Silveira, 2018b) – por
exemplo. Em todas essas dimensões da cultura brasileira o que
predomina são arranjos em que se preservam as contradições, em que as
tensões se encontram presentes de maneira aguda por longos períodos de
tempo – contrariando as expectativas racionais convencionais sobre seu
inevitável desenlace. Nesse sentido, falamos em sincretismo religioso
(com respeito ao fenômeno religioso), em liberdade poética (no que tange
às frouxas conexões estabelecidas pelos enredos de carnaval), em futebol
arte (para expressar a conjugação entre exibicionismo individual e jogo
coletivo) e em dualidade funcional (para explicar as combinações
produtivas existentes no Brasil desde o Século XVI).
Todas essas figuras revelam arranjos de elementos que não podem
ser adequadamente pensados de um ponto de vista racional
convencional. Em geral, elas revelam contradições em ato que
perduram por longos anos. Elas são configurações impraticáveis que
tem existido. Na prática, isso significa que qualquer avaliação racional
do Brasil tende a obter a conclusão de que o país é inviável ou
impossível. Porém, isso apenas revela aquela outra inviabilidade ligada
ao modo como temos tentado pensá-lo. O que se mostra aqui não é a
294 • Filosofia Latino-Americana

inviabilidade do país – que segue existindo – mas do modo de pensar


que tem sido utilizado.
Baseados nessa possibilidade de inadequação das ferramentas
racionais tradicionais para pensarmos o Brasil, temos que verificar se a
própria luta pela ampliação dos direitos humanos não se encontra
igualmente contaminada por pressupostos teóricos desajustados ao
ambiente. De fato, em função da maneira como a cultura brasileira tem
promovido arranjos entre diferentes sistemas de valores, temos que
considerar seriamente a possibilidade de que a contradição entre o
ambiente não democrático e a luta pela consolidação dos direitos
humanos não se resolva por um longo período de tempo. Parece-me que
há no Brasil uma solução já realizada para esse conflito, mas não uma
solução no sentido indicado por aquela nossa maneira europeia e
convencional de pensar – como se se tratasse de um desfecho inevitável
ou de um encerramento da tensão em benefício de um dos lados em
disputa ou de um terceiro elemento superior.
A solução que me parece estar dentro do nosso horizonte cultural
envolve uma espécie de sedimentação dos direitos humanos no
ambiente brasileiro não democrático. Essa solução já realizada consiste
na afirmação dos elementos democráticos em um ambiente não
democrático. Observe que não se trata aqui da proposição teórica de
uma solução, mas da constatação de que ela já foi produzida por
operações práticas realizadas pela cultura brasileira. Então, o arranjo
para o qual chamo a atenção não é uma teoria e sim uma solução
existente, uma maneira de ser, uma forma de vida vigente no ambiente
brasileiro.
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 295

Não se trata, portanto, de defender uma proposta alternativa de


pensar, como o leitor pode ser levado a acreditar em função de minha
falta de habilidade. Trata-se, ao contrário, de reconhecer o fato de que
a cultura brasileira opera com parâmetros não convencionais. Isto é,
trata-se de perceber que ela opera de maneira não lógica – no sentido
convencional do termo.
Ao indicar a especificidade da situação brasileira, refiro-me a um
estado de coisas que só pode ser formulado como uma contradição: uma
democracia não democrática. Ela consiste em uma modalidade de
eliminar dificuldades por meio da acomodação de forças contraditórias
dentro de um mesmo arranjo existencial e institucional. Esse arranjo só
pode ser descrito sob alguma modalidade contraditória, na medida em
que ele afirma um outro tipo de relação entre os elementos que se
apresentam.
Poderíamos supor que essa flagrante infração à lógica não faz
nenhum sentido. Entretanto, esse juízo parece se esquecer qual é uma
das missões principais da filosofia: pensar o mundo em que ela está
inserida. Assim, abdicar do interesse pela lógica típica do Brasil
equivaleria a abdicar da própria filosofia. Essa abdicação significaria
abandonar o país e a situação em que nos encontramos em benefício de
nossas ideias tradicionais sobre a contradição. Porém, isso soa
novamente como um juízo derivado de nosso conforto intelectual.
Assim, nos obrigamos a pensar o Brasil. E nos obrigando a pensar
o Brasil, nos constrangemos à situação altamente desconfortável de
pensarmos o que não pode ser pensado com as categorias convencionais
– aquelas que preveem a morte inevitável dos contraditórios. Então,
296 • Filosofia Latino-Americana

temos que nos mover na direção do modo como a cultura brasileira


produz suas sínteses contraditórias.

A POLÍTICA DA DEMOCRACIA NÃO DEMOCRÁTICA

Vimos acima que a cultura brasileira age visando a promoção de


arranjos contraditórios. Com base nisso, se pode afirmar que a
tendência natural desse ambiente é produzir uma síntese entre
cidadania e privilégio. Isso significa que a militância que tenta tornar
efetivos os direitos humanos não deve levar de roldão o sistema
instituído de privilégios no Brasil. Ou seja, é provável que a ação da
militância em benefício dos direitos humanos não desague na extinção
do privilégio dada a capacidade de conjugação de elementos
incompatíveis exibida hoje pela cultura brasileira.
De fato, se trata da conjugação de privilégios e direitos humanos,
de tal forma que a universalidade desses últimos esteja comprometida
em alguma medida e o sistema geral da cidadania se caracterize pelas
exceções. Além disso, algo mais fundamental está em ação na situação
brasileira. A experiência efetiva do usufruto dos direitos humanos não
envolve o requisito democrático da subordinação ao regramento social.
Ou seja, do ponto de vista de quem acede aos direitos humanos o que se
obtém não é a aquisição da cidadania, mas um tipo de exceção – mesmo
que justificada por um processo histórico de exclusão.
Essa é uma situação sutil e que não pode passar despercebida na
medida em que é ela que caracteriza o modo como efetivamente se
experimentam os valores democráticos em um ambiente não
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 297

democrático. Aqui a noção de democracia formal faz todo sentido


justamente porque se opera a institucionalização dos direitos humanos
na nossa sociedade sem os elementos culturais requeridos para que ela
adquira um enraizamento profundo na mentalidade e nos sentimentos
das pessoas. Ela aponta para um tipo de processo de democratização que
encontra-se limitado por dentro, pelo lado dos valores de quem são os
beneficiários da plena vigência dos direitos humanos no Brasil.
Vejamos como esse tipo de arranjo tem se configurado em função
dessa tendência cultural já consolidada. Embora isso possa parecer
altamente hipotético, se trata de uma descrição fundamentada naquele
padrão de síntese típica da cultura brasileira, descrita acima e presente
em várias instâncias da vida nacional. Na verdade, se trata de uma
hipótese que leva em consideração a típica operação de acomodação de
contrários de que tem sido capaz a cultura brasileira – o nosso
pensamento jeitoso (Silveira, 2018b).
Essa síntese contraditória tem sido capaz de conjugar a cidadania
e o privilégio, de tal forma que em alguns casos prevalece a cidadania,
em outros prevalece o privilégio. Isto é, a militância pela validade dos
direitos humanos no Brasil produz ganhos efetivos em termos de
cidadania, porém não possui as condições para obter sua validade
universal. Fundamentalmente o que não se apresenta aqui é uma
disposição para a plena integração da sociedade brasileira sob um
conjunto exclusivo de valores.
A tendência estabelecida pelas nossas condições culturais é que
prevaleça algum tipo de combinação de cidadania e privilégio, sem que
nenhum dos dois extremos obtenha um domínio integral da vida
298 • Filosofia Latino-Americana

brasileira. Assim, em função do padrão estabelecido para a resolução de


contradições na cultura brasileira, temos que admitir o fracasso por
parte da luta pela validade plena dos direitos humanos no Brasil. Mas
esse sentimento de fracasso só faz sentido a partir de um ponto de vista
que pressupõe a possibilidade do domínio exclusivo de um único
sistema de valores – a democracia.
Desse ponto de vista tradicional, a preservação de ilhas de
privilégio no Brasil é uma derrota. Porém, do ponto de vista daquela
tendência estabelecida na cultura brasileira, os ganhos com relação à
cidadania só podem ser parciais. Isso porque o padrão estabelecido diz
respeito à produção de sínteses contraditórias. No caso, ela tende a
gerar uma democracia não democrática ou um sistema de
cidadania/privilégio em que o domínio pleno de um dos extremos é
contornado em benefício da manutenção da tensão entre os opostos.
Portanto, um dos opostos ou uma síntese superior não podem
prevalecer aqui de maneira a exercer um domínio social hegemônico.
De um ponto de vista convencional, aquele que julga que as
contradições são inaceitáveis, se cria a necessidade de que se estabeleça
a plena universalidade dos valores democráticos. Por isso, ele sempre
entenderá a situação contraditória como um fracasso produzido por
alguma incapacidade – da vontade da militância, dos métodos utilizados
etc. Do ponto de vista que tem predominado na cultura brasileira, esse
juízo não procede justamente porque a própria contradição é
compreendida como uma solução. Nesse caso, se trata de que o estado
de coisas que combina cidadania com privilégio seja efetivamente
experimentada como uma solução.
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 299

Não podemos confundir aqui aquilo que desejamos que ocorra e


aquilo que o conjunto de valores vigentes tem condições de realizar. Nos
movemos sempre no interior de condições sociais e a perspectiva que
estou propondo adotar aqui diz respeito a aproximar-se delas. Assim,
podemos certamente desejar um país dotado de cidadania universal,
porém não podemos saltar sobre o fato de que não tem sido esse o
padrão de soluções gestado no Brasil. As sínteses que temos produzido
são contraditórias. Isso sugere que um arranjo democrático não
democrático é aquilo a que tendemos dadas as nossas atuais condições.
Com isso não pretendo afirmar que essas condições não podem ser
alteradas – seja em função do próprio tempo ou de uma mudança mais
efetiva do ponto de vista dos valores brasileiros. Quero apenas destacar
o fato de que as alterações no nosso modo de vida não se fazem em
condições abstratas e universalmente receptivas, mas em contextos em
que já vigoram padrões de solução – ou condições de possibilidades
culturais.
Ignorar essas condições de possibilidade é o caminho mais curto
para a decepção. Ignorar que existe uma tendência latente na cultura
brasileira para produzir sínteses contraditórias é assumir como ponto
de partida que a implantação plena dos direitos humanos consiste
exclusivamente na derrota do seu antagonista, o sistema de privilégios.
Porém, isso significa mirar no alvo errado ou propor-se um tipo de
disputa política que não pode ser levada àquele termo tradicional
exclusivista.
A adoção da perspectiva interna às condições nacionais pode
parecer conservadora se confrontada com a tentativa de imposição
300 • Filosofia Latino-Americana

exclusiva de um sistema de valores democráticos no Brasil. Isso é


verdade. Porém, as questões que nos propomos em termos políticos tem
de envolver o universo das possibilidades estabelecidas, elas têm de ser
possíveis. E, nesse sentido, a tentativa de fazer valer os direitos
humanos no Brasil hoje de maneira plena não é uma alternativa política
válida. Ela é um sonho na medida em que destoa do conjunto dos valores
estabelecidos. Obviamente cada um tem o direito de sonhar com o
mundo que desejar. Porém, a ação política viável tem de levar em conta
as limitações com que se lida quando se opera com um dado sistema de
valores estabelecido. Nesse sentido, uma ação política consequente que
visa tornar mais intenso o respeito pelos direitos humanos no Brasil
necessita começar a avaliar a possibilidade de uma democracia não
democrática. Esse é um tipo de arranjo cultural possível que se encontra
ao alcance de nossas ações.

Publicado originalmente em Capoeira, Revista de Humanidades e


Letras, v. 1, p. 103-119, 2022

REFERÊNCIAS

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Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 301

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Futebol e a Filosofia. Campinas: PHI, 2014, pp. 7-40.
12
A AMÉRICA LATINA ENTRE
O MACONDISMO E O MORALISMO

O MACONDISMO

O macondismo é uma tese acerca das peculiaridades da América


Latina que pode ser ilustrada pelo realismo fantástico de García
Márquez (1985). Na verdade, o macondismo é uma crença bastante
difundida entre os intelectuais latino-americanos. Sua presença tanto
pode ser identificada em autores como Martínez Estrada (1953), Paz
(1992) e Rodó (2012) como se encontra dispersa em nossa mentalidade e
postura política sem ser claramente formulada. As crenças e valores
macondistas tendem a ver a América Latina como um mundo que escapa
aos processos de modernização em função de sua constituição
específica. Nesse sentido, elas se apresentam como uma explicação
acerca da situação atual da América Latina, particularmente no que diz
respeito à modernização.
Entendo que a modernização é uma forma de introduzir a
racionalidade na vida, de tal forma que os processos existenciais, a
relação de um ser humano com os demais e com a natureza passam a
ser mediados por prescrições universais. É verdade que a modernidade
é um processo complexo que pode até mesmo ser descrito como
modernidades (Eisenstadt, 2013), a depender da perspectiva analítica
adotada. Porém, de um ponto de vista geral que adoto aqui, a
característica principal desses processos é produzir a subordinação de
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 303

elementos particulares sob uma estrutura universal — operação


tipicamente racional. Nessa direção, a modernidade constitui-se como
espécie de desfecho desejável dos processos de racionalização.
A operação típica da racionalização equivale à imposição de ordem
a uma dada diversidade por meio da subordinação dos seus elementos.
Uma simples conceituação já se constitui como o ato de subordinar
seres particulares a categorias e, portanto, de ordená-los sob elementos
universais. Sabemos que as pessoas nem sempre adotam padrões de
racionalidade estritos, lidando frequentemente com conceitos difusos
(Mervis e Rosch, 1981). Ainda assim, é inegável a força exercida pelos
processos de racionalização em várias instâncias de nossa vida. Nesse
sentido, a modernidade é uma época em que a racionalização
intensificou aquela atitude de subordinação da diversidade, tornando-
se uma forma determinante da estrutura cultural no Ocidente.
De forma mais particular, podemos dizer que a modernidade
política afirma a validade da lei sobre as várias instâncias de uma
sociedade, obtida por meio da figura hegemônica do Estado nacional.
Ou, no mesmo sentido, que a modernidade epistemológica adota
condições homogêneas para se obter o conhecimento e impor um
domínio humano sobre a natureza, independentemente das condições
em que as investigações ocorrem etc. A modernização é a expressão da
absorção gradual da racionalidade pelas várias dimensões da cultura.
Aos diferentes estágios de modernização, correspondem distintas
etapas da assimilação da racionalidade no ambiente social.
Sinteticamente, a modernidade consiste na racionalização da vida —
304 • Filosofia Latino-Americana

mesmo que ela jamais tenha existido na sua plenitude e estejamos


apenas diante de uma metáfora extremamente eficaz (Eisenstadt, 2013).
Observa-se ainda que a subordinação envolvida na modernidade
não elimina a diversidade ou a reduz à homogeneidade. Ao contrário,
ela cria as condições para que a diversidade propriamente dita se
estabeleça, na medida em que estabelece os parâmetros comuns
necessários para isso. Sem a subordinação, não há diversidade, pois não
há parâmetros comuns de comparação e avaliação. Não há
compatibilidade possível entre elementos absolutamente distintos, só
entre aqueles que podem ser comparados de uma forma ou de outra. E
isso exige justamente algum elemento comum. Assim, a diversificação
só pode ocorrer no interior de um sistema relativamente unificado em
que já domina alguma subordinação capaz de oferecer uma plataforma
homogênea de valores. Portanto, a diferenciação é um estágio avançado
da modernidade, e não seu contrário.
Feito esse rápido esclarecimento sobre a modernidade e a
modernização, podemos agora retornar ao macondismo. Para ele, a
América Latina seria ontologicamente avessa à modernização. Nosso
subcontinente consistiria em uma forma de vida que recusaria os
processos de subordinação implicados pela modernidade. “Macondo
sería la metáfora de lo misterioso, o mágico-real, de América Latina; su
esencia innombrable por las categorías de la razón y por la cartografía
política, comercial y científica de los modernos” (Brunner, 1996, p. 315).
Haveria uma espécie de aversão entre o que a América Latina é e a
modernidade, já que o que somos constitui sempre uma “situación
excepcional” (Maíz, 2012, p. 228), sempre irredutível à razão ou não
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 305

subordinável a ela. Trata-se de uma espécie de incompatibilidade entre


naturezas distintas.
Um macondista acredita que a América Latina possui uma
natureza tal que impede que ela possa absorver plenamente os
procedimentos modernos. Trata-se de alegar uma “heterogeneidad
cultural de los latinoamericanos” (Von der Walde, 1996, p. 12) com
relação ao Ocidente moderno. Em função do efeito perturbador dessa
heterogeneidade, faz sentido falarmos em uma modernidade latino-
americana incompleta, periférica (Sarlo, 2003) ou simplesmente
impossível. O macondista é:

aquel que no quiere renunciar a hacer de América una tierra de portentos


prometidos. Tierra de sueños y utopías; nuevo mundo desde donde surgirá
una “racionalidad alternativa” para Occidente, despojada del carácter
instrumental, calvinista y faustiano de la racionalidad de la modernidad.
(Brunner, 1996, p. 316).

Como se pode ver, não está fora de mira do macondismo a


proposição de padrões de modernidade alternativos, desde que eles
sejam compatíveis com a realidade mágica da América Latina. Em
último caso, é a especificidade ontológica desta última que determina o
que poderemos e o que não poderemos ser.
Volek (2007) acredita que a adoção do macondismo deve ser
compreendida como uma estratégia escapista para lidar com o fracasso
civilizatório da América Latina no século XIX, após os processos
políticos de independência nacional. Esse fracasso civilizatório pode ser
detectado na constatação de que adotamos a modernidade apenas sob
uma modalidade formal e discursiva, enquanto “en la práctica
306 • Filosofia Latino-Americana

institucional política y econômica […] se mantuvieron estructuras


tradicionales y/o excluyentes” (Larrain, 2018, p. 1).
Diante dessa situação de fracasso, seria de se esperar que os
intelectuais — esses racionalizadores da vida — indicassem as
limitações existentes e oferecessem alternativas que tornassem
efetivamente possível um processo de modernização plena, superando
as resistências. Ou seja, seria razoável esperar que nos tornássemos
responsáveis por assumir o ônus de conduzir adiante a modernização,
fazendo as adaptações necessárias de acordo com os obstáculos próprios
da América Latina e, se fosse o caso, de cada país ou região — como, por
exemplo, parecem propor Bravo e Martín (2010). Porém, o macondismo
preferiu tomar uma direção divergente.

Al no haber encontrado reconocimiento y respeto en el mundo real, América


Latina parece buscarlos —y encontrarlos— en el mundo ilusorio del
“macondismo” y del “realismo mágico”. El macondismo aparece como el
reverso cultural —embellecido por las ficciones literarias— de la modernidad
limitada, frustrada o fracasada en el continente (Volek, 2007, p. 134).

Na prática, isso significa que se abdicou da possibilidade de realizar


a modernização em função de dificuldades que se apresentaram durante
as tentativas do século XIX. Desse ponto de vista, o macondismo é um
subterfúgio inventado para lidar com nossa incapacidade para assumir
plenamente as condições existentes na América Latina e conduzi-la a
uma efetiva modernização.
Ele seria uma estratégia defensiva adotada pela impotência e
incapacidade dos latino-americanos diante do desafio da modernização.
Isso envolve uma opção pela fuga e pela negação diante daqueles
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 307

elementos tradicionais que deveriam ser efetivamente enfrentados e


substituídos pela modernização. O macondismo é uma evasão literária
das ex-colônias, através da construção de um mundo ilusório em que
podemos eliminar a tensão entre a tradição de nossas sociedades e
nosso desejo de nos tornarmos europeus. Ele é uma fuga para um
mundo ilusório em que abdicamos da modernidade e, ao mesmo tempo,
preservamos uma autoimagem elevada de nós mesmos.

O FUNDAMENTO MORAL DA MODERNIDADE

Observa-se, entretanto, que a atitude de manter o rumo dos


processos de modernização mesmo em face das resistências concretas
que se apresentaram — postura sugerida por Volek (2007) — é uma
disposição que só faz sentido do interior da própria modernidade. De
fato, a perseverança é uma atitude moderna no sentido de envolver a
fixação de uma direção do comportamento que visa à subordinação de
um determinado domínio. Sem essa disposição perseverante, não há
como se obter um ordenamento unificado sob um valor, não há como
subordinar o mundo segundo leis universais, não há como racionalizar.
De fato, a racionalização supõe a adoção dessa disposição rígida da
vontade para levar adiante o processo de subsunção da multiplicidade
sob um único valor. A integração do múltiplo só pode se realizar através
do impulso dessa disposição ética. Se a modernização pode ser
apresentada como se constituindo como um conjunto de ações fundadas
no pressuposto epistemológico do ordenamento da multiplicidade, esse
passo ainda requer outro, ainda mais fundamental: a disposição ética da
308 • Filosofia Latino-Americana

perseverança. Podemos notar aqui a necessidade de um elemento ético


sem o qual os dispositivos integradores típicos da modernidade não
podem operar. Isto é, no fundo da modernidade, encontra-se o elemento
ético da perseverança, requisito de todo ímpeto racional e ordenador da
multiplicidade.
Estritamente falando, podemos identificar a modernidade com
essa disposição ética, já que ela é sua condição mais fundamental. A
racionalização é uma consequência do domínio efetivo exercido pela
vontade perseverante, dessa disposição de superar a dispersão e obter a
unidade e a síntese. Com efeito, se há um elemento central da
modernidade, é essa disposição da vontade que visa à integração
completa da diversidade. Sem tomar pé nesse pressuposto ético, a
modernidade perderia seu impulso original mais básico — seu instinto
cultural para as sínteses, por assim dizer.
Esse aspecto ético da modernidade aparece claramente formulado
por Descartes (2002; 1902) quando ele afirma a necessidade da adoção do
método para a obtenção da verdade. Se todas as verdades podem se tornar
acessíveis ao ser humano, inclusive as mais difíceis de serem obtidas, isso
depende de nos colocarmos em uma marcha cautelosa e contínua, de tal
forma que a ordem das razões possa ir se revelando paulatinamente. Se
nossa vontade fraquejar durante o trajeto, ficamos no meio do caminho,
sem obter as verdades mais distantes e básicas, aquelas que
potencialmente possuem maior poder explicativo. Somente uma vontade
rígida e determinada pode ser capaz de obter sucesso nesse tipo de
empreitada epistemológica, na medida em que só ela pode fornecer as
condições necessárias para submeter todo o conhecimento existente a
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 309

uma crítica e reorganizar a totalidade do âmbito epistemológico sob uma


nova ordem inteiramente racional. Uma vontade robusta e orientada não
é um elemento secundário nesse contexto.
Esse aspecto moral de conotações ascéticas, requerido pela
empreitada modernizadora, também pode ser encontrado no
pensamento de Bacon (1999), um dos sintetizadores das bases da ciência
ocidental. O processo de purificação espiritual requerido pela ciência e
expresso na eliminação dos ídolos que obstruem o caminho para a
verdade equivale àquele mesmo tipo de requisição ética prévia. Sem
uma firme disposição da vontade, não é possível eliminar os ídolos que
obstruem o caminho para o conhecimento verdadeiro. O trabalho de
purificação com relação aos ídolos é preliminar à investigação
propriamente dita. Isto é, o esforço moral é um requisito anterior ao
trabalho propriamente epistemológico. Sem aquele, este não existiria.
De um ponto de vista interno à modernidade, a falta de
perseverança é um defeito. E esse defeito indica uma fragilidade do
caráter (Silveira, 2015). Afinal, são os elementos fixos do caráter que
permitem adotar um rumo invariável nas ações e, por meio de seu efeito
contínuo, obter a integração do comportamento. Por isso, a constituição
do caráter é uma virtude fundamental para a modernidade, já que, sem
ela, os processos de integração tendem a ficar a meio termo e não se
concretizarem. A ligação do caráter com a racionalização da vida é clara:
sem sua presença, não se obtém a perseverança na ação.
O sujeito, portanto, é um indivíduo dotado de caráter ou unificado
sob determinado valor. Ele é um indivíduo integrado sob si mesmo,
sujeitado e, portanto, moderno. Nesse caso, a partir de um olhar
310 • Filosofia Latino-Americana

retrospectivo, podemos ver que o arquipélago da individualidade


dispersa foi colonizado por uma unidade autoimposta e desse processo
emergiu o sujeito propriamente dito. Só a racionalização do indivíduo
pode produzir a sua sujeição por meio de uma disposição unificadora. É
esta última que gera a subjetividade e impõe ao indivíduo um rumo de
ações constante. A disposição ética para a unificação e para a síntese —
a perseverança — encontra-se em todas as iniciativas da modernidade.
Observa-se que, ao contrário do indivíduo, o sujeito exige a
dimensão psíquica da profundidade, na medida em que é ela que
permite as operações de subordinação de elementos inferiores pelos
superiores. Nesse caso, o superior é um valor integrador, o operador das
sínteses graduais que integram os elementos particulares e
relativamente inferiores. Sem essa diferença entre os níveis, sem
hierarquia e profundidade, não é possível arregimentar os elementos
esparsos da individualidade e ordená-los sob si. A profundidade torna-
se necessária como uma espécie de espaço em que a hierarquização
requerida pela integração subjetivante pode se estabelecer.

O MORALISMO

Não passa despercebido, então, que aquela crítica de Volek (2007) ao


macondismo só é possível de ser formulada de dentro do conjunto de
valores modernos — como afirmei anteriormente. Isto é, ela só faz
sentido se supormos a validade da virtude da perseverança e, por
decorrência, da própria modernidade. Em último caso, é o conjunto de
valores modernizadores que nos diz que a postura recomendável a ser
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 311

adotada é a da perseverança. O que não é aconselhável é fazer concessões


a uma excepcional ontologia latino-americana — base do macondismo —
, porque isso agride a perseverança e institui um regime de exceções. Ou
seja, trata-se de uma crítica orientada por valores morais modernos que
indicam que conjunto de ações deveria ser adotado pelos latino-
americanos que visam à promoção da modernidade.
Entendo que esse tipo de crítica é moralista. Com esse termo,
refiro-me ao fato de que essa crítica ao macondismo consiste, em última
instância, em um juízo moral. Por certo, ela é o resultado de uma
avaliação que se exerce a partir do pressuposto de que a modernização
deveria guiar as ações dos latino-americanos interessados na
modernidade da América Latina.
Vimos que, para Volek (2007), a adoção de um discurso macondista é
uma espécie de compensação sublimada pelo fracasso prático da
modernização latinoamericana, uma verdadeira “racionalización del
fracaso” (p. 140). Para ele, não há nada de excepcional com relação à nossa
situação cultural, cuja experiência é, inclusive, compartilhada por outras
sociedades atuais ou passadas. Ao contrário, a insistência acerca de uma
excepcionalidade latino-americana já seria, ela mesma, uma justificativa
de que lançamos mão para compensar nossa falta de disposição para
levarmos adiante a modernização. Parece mais cômodo adotar a estratégia
de alegar que o fracasso é motivado pelas limitações ontológicas de uma
especificidade latino-americana do que assumir o ônus de reconhecer que
estamos diante de algum tipo de incapacidade ligada ao modo como
tentamos ser modernos. Ou seja, parece mais confortável atribuir o
fracasso às circunstâncias do que ao próprio agente.
312 • Filosofia Latino-Americana

O macondismo seria, portanto, um sinal não apenas de nosso


fracasso prático com relação à modernização, mas também de nosso
fracasso ético em admitirmos que se trata efetivamente de um fracasso.
Ele ocultaria o que somos de nós mesmos e criaria um véu para
compensar nossa incapacidade de transformar a América Latina. Essa
crítica afirma que o problema é que não temos aquelas disposições
vigorosas do caráter e que temos sido incompetentes no trato com os
processos de modernização — e incompetentes com nossa
incompetência.
O significado moral da tese de Volek (2007) se torna evidente: o
macondismo que adotamos decorre de uma fragilidade na consolidação
do caráter latino-americano. Tudo considerado, o problema
fundamental está ligado à fragilidade de nossa vontade e àquela
incapacidade para manter um curso de ação no meio das adversidades
da modernização. O problema vincula-se à nossa falta de perseverança.
Observe que essa crítica ao macondismo consiste em um círculo
vicioso, uma tautologia em que a conclusão que se obtém equivale ao
que é afirmado desde o início. Com efeito, a crítica de Volek (2007) obtém
seu apoio a partir de um quadro de valores modernos, na medida em que
se trata de indicar que o macondismo consiste basicamente em desistir
da modernização diante das dificuldades práticas que ela envolve. Ou
seja, trata-se de um defeito moral especialmente não moderno: a falta
de perseverança na racionalização da vida. O ponto nevrálgico é o
seguinte: a América Latina não se modernizou porque possui uma
vontade fraca. Logo, o problema da modernização é um problema de
caráter, uma questão de moralidade.
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 313

A plataforma de valores que permite a avaliação negativa acerca da


falta de caráter baseia-se no reconhecimento implícito de que a
perseverança é uma virtude superiora — à ação errática, por exemplo.
De fato, essa plataforma supõe que a virtude se encontra do lado heroico
da constância de caráter e o defeito moral do lado da inconstância e da
oscilação do comportamento.
Esse tipo de avaliação moralista não é uma novidade. Manuel da
Nóbrega (2006), um jesuíta que veio para o Brasil em 1549 a fim de
catequizar os indígenas, diante das dificuldades aqui encontradas,
afirmou que “Huma cousa tem esses [índios] pior de todas, que quando
vem à minha tenda, com hum anzol que lhes dê, os converterei a todos,
e com outros os tornarei a desconverter, por serem inconstantes, e não
lhes entrar a verdadeira fee nos coraçõis” (p. 5). Ou seja, o obstáculo que
impedia a devida conversão dos índios ao cristianismo era a ausência de
um solo firme em sua alma, uma condição ética robusta, que permitisse
que a semente da cristianização germinasse, crescesse e frutificasse. O
solo não possuía a consistência necessária para permitir que os novos
valores fossem adotados como integradores de uma personalidade
agora cristã. Não existiam as condições para que se estabelece um
domínio efetivo da personalidade por parte desses valores.
O defeito indicado por Nóbrega é o da ausência daquele requisito
ético que permite que determinado valor funcione como elemento
agregador da diversidade. Ou seja, ele se refere ao fato de que os indígenas
não possuíam profundidade psíquica, de tal forma que tanto se
convertiam como se desconvertiam com a mesma facilidade. Observe que
ele não se refere a algum sentimento de repulsa dos índios pelos valores
314 • Filosofia Latino-Americana

cristãos, como se eles fossem incompatíveis com suas crenças religiosas


anteriores. Esse não é o problema. A dificuldade reside, ao contrário, na
ausência de caráter, em uma existência calcada na superficialidade e não
na profundidade moderna da vontade (Silveira, 2017).
Nessas condições psicológicas, simplesmente não é possível que o
processo de conversão frutifique ao longo do tempo, já que a vontade é
frágil e as disposições psicológicas oscilam. Assim, do mesmo modo que
o gentio se convertia ao cristianismo, ele retornava a suas crenças
originais, sem que isso envolvesse resistência ou incompatibilidade
entre as crenças monoteístas cristãs e suas práticas politeístas
preexistentes. A vontade oscilava entre esses extremos sem que se
estabelecesse um domínio pleno.
O problema relevante, a questão sensível que Volek (2007) visa em
última instância, é exatamente a mesma: se trata de indicar que o
macondismo expressa o defeito moral da inconstância, de não nos
decidirmos verdadeiramente por manter um rumo modernizante em
nossas ações e em nossas políticas públicas, por adotar um rumo
civilizatório e racionalizante persistente de nossa cultura. É esse defeito
moral que gera a fuga macondista da realidade, como expressão de uma
incapacidade para encarar as dificuldades de nossa situação. Daí
também emana certa conotação psicanalítica da crítica de Volek, no
sentido de o macondismo ser interpretado como compensação, como
uma hipótese ad hoc que nos salva de encarar nossa falta de caráter,
como um gesto de acomodação defensiva diante do fracasso — uma
torção nos valores para permanecermos confortavelmente instalados
em nossa maneira de ser.
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 315

O que julgo pertinente destacar aqui é que esse padrão de crítica


tentada por Volek é uma encenação contemporânea de um velho
discurso colonial. Mas a questão que me parece digna de atenção não é
que o discurso seja velho, porque ele poderia ser tão velho quanto
verdadeiro — e nós tão equivocadamente resistentes quanto os
indígenas do século XVI.
O que me parece revelador é que essa modalidade de discurso
moralista é ineficiente — como todo moralismo. E a ineficiência do
moralismo advém de que a crítica que ele é capaz de formular é sempre
externa, na medida em que se exerce a partir de um conjunto distinto
de valores com relação àqueles que são criticados. Como há uma
diferença de grandes proporções entre esses dois conjuntos de valores,
a crítica que se obtém afirma somente incompatibilidade e
incompreensão. De fato, o que o moralismo efetivamente expressa é
uma desconsideração pela lógica interna daquilo que ele critica, tal é a
distância analítica que ele adota. O moralismo não se ocupa em
estabelecer um horizonte hermenêutico mínimo que torne possível o
contato entre seu próprio sistema de valores e aquele que é objeto de
sua crítica. Daí sua irrelevância cultural e sua inoperatividade prática.
A inutilidade desse tipo de procedimento crítico encontra-se
inscrita já na distância inicial adotada e que o separa daquilo que é
criticado. Na verdade, o moralismo equivale a uma mera declaração de
incompreensão e não a uma crítica propriamente falando. A
incompreensão apenas indica aquilo que constitui a diferença entre o
conjunto de valores a partir dos quais se critica e aqueles que são
criticados. Somente em função de oferecer uma ocasião reveladora de
316 • Filosofia Latino-Americana

seus próprios valores é que a crítica moralista pode se mostrar


marginalmente proveitosa. De fato, o que o moralismo expressa é
sempre ele mesmo e nisso consiste sua limitação: ele é incapaz de
entabular um diálogo efetivo. Em função dessa incapacidade crônica, a
tendência é que suas críticas não promovam alterações em nenhum
estado de coisas e se mostrem propícias apenas a expressar alguma
forma de indignação pessoal.

OPACIDADE E TRANSPARÊNCIA DA AMÉRICA LATINA

A despeito das aparências, não tenho interesse em defender o


macondismo das críticas do moralismo. Por isso gostaria de tomar uma
direção diferente a partir desse ponto. Julgo que ambos as perspectivas
acerca da América Latina estão equivocadas. Não creio que o
macondismo faça sentido, assim como não acredito que críticas
moralistas sejam promissoras no que diz respeito a se obter uma melhor
compreensão da América Latina.
O limite a que uma crítica moralista pode chegar é revelar uma
diferença inconciliável de pontos de vista — e apenas isso. Assim, o que
se nota é que esse tipo de crítica se exerce de dentro de valores
modernos com respeito à América Latina. Isso resulta em uma
tautologia de princípios ou em uma crítica exterior que não está
capacitada para alterar o estado de coisas vigentes. Ela exprime uma
falta de capacidade para se conectar com um sistema de valores
estranho ao seu ponto de partida e assume a forma de um dogmatismo
estreito.
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 317

Em sentido contrário, o limite a que o macondismo pode chegar é


a outra tautologia, dessa vez invertida, que justifica o que somos em
função do que somos. Ou seja, a América Latina não teria se
modernizado porque ela não pode se modernizar. O limite definitivo de
nossas ações e nossas políticas modernizadoras encontra-se dado pelas
propriedades ontológicas da América Latina. A postura correta, diante
desse quadro, seria adotar uma atitude contemplativa, voltada para
aquilo que já somos. Isso que somos seria um limite além do que não
podemos ir. As ações positivas que poderiam ser realizadas seriam
somente reparadoras no sentido de eliminar aquilo que não se mostra
compatível com o que somos. Em último caso, tudo começa e termina
na afirmação do conjunto de valores que já possuímos, de tal forma que
nenhuma alteração substantiva pode ocorrer também nesse caso.
Ambos os pontos de vista nos deixam exatamente onde estamos e
nenhum deles parece expressar um ponto de vista que permita
operacionalizar ações e políticas modernizadoras e que façam sentido
para a América Latina. Um deles nos torna contemplativos ou
restauradores do passado e o outro nos torna indignados, mas
igualmente incapazes de promover mudanças.
Creio que o problema central do macondismo sejam suas alegações
realistas. Ele supõe a existência de uma ontologia latino-americana que
seria incompatível com os processos de modernização. Entretanto, já
sabemos que não há muito sentido em alegações realistas na medida em
que não existe a possibilidade de termos acesso direto a qualquer
ontologia preexistente. Tudo a que podemos ter acesso é ao
conhecimento de que dispomos e não à própria realidade. Kant (2001)
318 • Filosofia Latino-Americana

tornou evidente esse tipo de limitação das possibilidades do


conhecimento humano.
A questão sensível com o realismo é a suposição errada de que
poderíamos comparar nosso conhecimento com a própria realidade. Na
verdade, não dispomos nunca da realidade como um critério contra o
qual poderíamos avaliá-lo. Para obter tal critério exterior, teríamos que
ser capazes de chegar a ele por fora de nossas habilidades
epistemológicas. E isso claramente não faz nenhum sentido.
De fato, não podemos contornar tais limitações com vistas a obter
um conhecimento apropriado da realidade, tal como se supõe que ela
seja em si mesma, porque não podemos deixar de conhecer do ponto de
vista dos seres humanos. Então, não há um conhecimento da realidade
em si mesma, apenas conhecimento da realidade segundo nossas
capacidades humanas para conhecer. Tudo o que podemos fazer nesse
caso é lidar com a realidade segundo a maneira como ela aparece para
nós de uma perspectiva humana — e não como ela supostamente seria
para si mesma.
Isso não implica nenhum tipo de relativismo subjetivista, mas algo
bem mais ameno: um relativismo do ponto de vista dos seres humanos.
A realidade a que podemos ter acesso é aquela que já foi apreendida por
nosso conhecimento, ou seja, uma realidade para nós. Assim, tudo o que
podemos fazer é comparar o conhecimento já consolidado de que
dispomos com novas propostas epistemológicas. A realidade em si
mesma, se é que ela existe, é algo com que não podemos contar para
fazer avaliações com relação à propriedade ou impropriedade de nossos
conhecimentos.
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 319

Nesse sentido, as alegações do macondismo caem no vazio visto


que não se pode apresentar efetivamente um conteúdo do que seria a
América Latina em si mesma. Tudo o que pode ser dito acerca dela são
proposições que visam descrevê-la tal como ela aparece para nós. Não
há algo que seja a América Latina para si mesma, um conteúdo obtido
sem a intervenção humana que poderia funcionar como um critério de
avaliação exterior a todas as interpretações humanas acerca dela. O que
temos são somente essas interpretações e tudo o que pode ser feito de
maneira significativa é compará-las umas com as outras.
Nessa direção, a fragilidade do macondismo é prometer uma
ontologia que ele não pode nos apresentar. Mesmo se concedêssemos ao
macondismo que a modernização é incompatível com a América Latina
em função do que ela essencialmente é, jamais obteríamos dele o
conteúdo do que ela é em si mesma. Em último caso, os macondistas
terão que apelar defensivamente para um conteúdo ontológico que
sempre escapa a nossas interpretações, como um horizonte que se
afasta na mesma proporção em que caminhamos em direção a ele. É
desnecessário enfatizar que um horizonte que se afasta sempre não
pode se tornar um critério de avaliação contra o qual poderíamos
contrapor os processos de modernização.
O macondismo contém uma promessa nunca realizada: uma
ontologia latino-americana. Ela é uma miragem que caminha sempre
para longe de nós. Então, em último caso, trata-se de uma ontologia
evanescente: alegada, porém jamais apresentada — sugerida, mas
nunca exibida. Uma América Latina fantasmática e telúrica.
320 • Filosofia Latino-Americana

O realismo macondista possui ainda outro elemento dificilmente


aceitável. Ele diz respeito a interpretar eventos culturais de maneira
substantiva. A afirmação de que a modernização é incompatível com a
América Latina supõe não somente uma realidade, mas uma realidade
imóvel. Se a tese do macondismo se limitasse a defender posições
realistas, ainda assim poderíamos conceber que isso não compromete
inteiramente a possibilidade da modernização da América Latina.
Afinal, poderíamos compatibilizar hipoteticamente a defesa de uma
ontologia latino-americana própria com sua mutabilidade, logo com a
possibilidade da modernização. O problema mais significativo do
macondismo é a defesa do caráter substantivo da América Latina e,
portanto, a afirmação implícita de que ela não pode ser alterada.
O moralismo possui justamente o defeito contrário. Com efeito, ele
supõe que a América Latina não possui nenhum tipo de especificidade
que poderia produzir dificuldades com relação à modernização. Isto é,
não tratamos com nenhum tipo de limitação própria quando tentamos
modernizar a América Latina. Não há nada que se apresente como um
obstáculo típico dessa região do planeta e que poderia, em função disso,
opor-se de maneira especial à modernidade.
As limitações com relação à efetiva modernização latino-
americana dizem respeito exclusivamente à maneira como esse
processo é conduzido por nós. A partir daqui, abandonamos o terreno
ontológico e adentramos no plano ético. As limitações à modernização
não estariam ligadas àquilo com que se lida, mas com a maneira como
se lida. Como vimos antes, é a fragilidade da vontade dos latino-
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 321

americanos e sua falta de constância na ação que se apresentam como


problemáticos para uma efetiva modernização.
Como se pode notar, a ênfase do moralismo recai no caráter e, mais
genericamente, no modo como as ações e as políticas são realizadas. A
América Latina aparece nesse contexto como uma condição cultural
insignificante, já que ela não interpõe ao problema da modernização
nenhum tipo de obstáculo especial — ao contrário dos agentes latino-
americanos. Ela aparece aqui como uma massa amorfa, como um meio
transparente e inteiramente receptivo, como a matéria informe sobre a
qual pode se projetar a criatividade do demiurgo modernizador.
Se tomarmos como referência a alegação ontológica do
macondismo, veremos que o moralismo se encontra no outro extremo
do espectro da flexibilidade cultural. De um lado, estamos diante da
alegação de que nada pode ser feito em termos de modernização em
função da opacidade da substância latino-americana e de que tudo o que
for tentado nesse sentido fracassará em função de encontrar aqui uma
resistência ontológica, um mundo dotado de uma constituição própria.
De outro, estamos diante da alegação de que tudo pode ser feito em
termos de modernização diante de um meio inerte e transparente que
não opõe nenhuma resistência à ação. Nesse caso, todo fracasso no que
diz respeito à modernização dos países latino-americanos tem de ser
colocado na conta de nossos problemas morais.
322 • Filosofia Latino-Americana

A MATÉRIA FLEXÍVEL DA AMÉRICA LATINA

Apresentada dentro desse espectro de posições — que vão de uma


substância imóvel e opaca, do lado macondista, à matéria informe e
transparente, do lado moralista — parece-me que podemos obter uma
perspectiva mais promissora acerca da modernização da América
Latina.
Não creio que faça muito sentido endossar uma posição
substancialista quando lidamos com fenômenos humanos — e talvez até
mesmo com relação ao reino mineral. Não me refiro necessariamente à
historicidade que pode não ser, de fato, uma característica de todas as
sociedades. Refiro-me apenas à mutabilidade que parece se constituir
como marca de qualquer sociedade humana, mesmo aquelas
consideradas como tradicionais.
Uma sociedade é o resultado de um conjunto de relações humanas
que se consolidam em instituições e que tendem inegavelmente a gerar
núcleos de permanência cultural. Isso é uma reação esperada diante do
sentido devastador da temporalidade. Porém, isso não implicou (até o
momento) em nenhuma circunstância conhecida, na supressão estrita
da temporalidade. As instituições sociais, os costumes, crenças e valores
tendem a estabilizar a sociedade, mas não a petrificá-la em uma
substância atemporal. Nenhuma sociedade totalitária parece ter
apresentado até agora tal grau de eficiência, em que pese o uso abusivo
e sistemático que possa ter feito da violência.
Com isso apenas pretendo ilustrar que as alegações do
macondismo não constituem um conjunto de crenças promissoras,
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 323

simplesmente porque ignoram a fluidez das sociedades humanas. Se


instituições, hábitos, crenças e valores não possuem uma modalidade
substantiva de existência, isso não significa que eles não produzam
efeitos. É inegável que as criações de uma sociedade funcionam como
limitadores com relação àquilo que pode ser feito, sentido, acreditado,
experimentado etc. Ou seja, a cultura funciona como um mecanismo de
produção de condições de possibilidades para estilos de vida. Viver em
uma cultura implica sair do campo das possibilidades infinitas do que
poderia ser uma vida humana e adentrar no plano mais particular do
que pode ser uma vida no interior de uma dada sociedade.
Nesse sentido, a cultura é uma espécie de abertura que torna
possível um mundo em particular. Ela tanto abre um conjunto de
possibilidades quanto delimita um campo de visão específico — como
uma janela, por exemplo. Desconsiderar o efeito restritivo de uma dada
sociedade com relação aos processos de modernização também não
parece fazer sentido — e isso me parece ser a principal deficiência do
moralismo. Reconhecer que a cultura latino-americana interpõe
limitações aos processos de modernização não envolve o reconhecimento
de uma substancialidade própria. Isto é, reconhecer a presença de
condições culturais da América Latina não requer a afirmação de uma
ontologia própria nem implica afirmações substancialista.
O que estou propondo é adotar um ponto de vista intermediário no
interior daquele arco que vai da inflexibilidade cultural do macondismo
à matéria infinitamente plástica do moralismo. Assim, podemos
reconhecer que existem limitações ligadas aos sistemas de crenças e
sentimentos vigentes na América Latina, mas que isso não impossibilita
324 • Filosofia Latino-Americana

necessariamente a modernização. O quadro-geral da situação da


modernização da América Latina poderia ser descrito como um cenário
tensionado em que os processos de modernização exercem uma energia
que é diferencialmente recebida e reelaborada.
No Brasil, país que conheço um pouco melhor, essas diferenças são
inegáveis. Quando nos deslocamos de Sul a Norte, por exemplo,
podemos notar claramente as diferenças nos padrões culturais de
reelaboração de elementos modernos. Os enclaves de imigração
europeia fazem sentir sua influência mais no Sul do que no Norte
(Silveira, 2015). Esse único e simples exemplo, por si só, já nos obriga a
reconhecer que a América Latina não interpõe aos processos de
modernização uma oposição substantiva, assim como não se comporta
como uma matéria amorfa e infinitamente maleável. Ela não é
meramente mimética com respeito à modernidade, “sino que responde a
una lógica interna” (Morse, 2005, p. 11).
Essa lógica interna expressa limitações e condições que lhe são
próprias. Ao adotar esse quadro marcado por tensões diferenciadas,
devemos evitar a representação — talvez muito conveniente, porém
falsa — de que se trate de uma oposição entre elementos internos e
externos. Para o bem ou para o mal, a matéria flexível que nos constitui
já é o resultado da influência dos valores modernos. Ou seja, a cultura
latino-americana não é flexível a partir de hoje. Isso significa que o que
somos nesse momento já se apresenta como um resultado de interações
diversas, de outras tensões passadas, de incorporações diversificadas de
valores europeus, africanos e autóctones — a depender de cada caso.
Não se trata, portanto, de uma tensão estática, mas de uma tensão que
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 325

se opera sobre outras tensões passadas — resolvidas ou não. Podemos,


então, falar de um “continuum cultural” (Barbero, 1998, p. 34) constituído
por tensões passadas e presentes.
Isso também não significa que só é possível compreendermos esse
quadro tensionado se adotamos um ponto de vista comprometido com
cada situação. O meu raciocínio não implica demonstrar que não há algo
como a América Latina, já que só circunstâncias culturais muito mais
particulares poderiam ser bem compreendidas. Creio que
generalizações são possíveis dentro desse quadro-geral marcado pela
tensão entre elementos modernizadores e tradicionais — desde que
consideremos que a tradição já se constitui como resultado de tensões
anteriores.
Pontos de vista mais ou menos gerais são legítimos a depender
daquilo que já prevalece como consensual no interior de diferentes
modalidades de conhecimento. Não será alguma suposta condição do
objeto de investigação que limitará ou orientará a adoção exclusiva de
uma perspectiva mais ou menos genérica sobre a América Latina. Isso
diz respeito às práticas científicas — que também podem ser passíveis
de alteração de acordo com suas próprias circunstâncias políticas
internas. Não faz sentido opor problemas relativos ao objeto e
problemas relativos à perspectiva epistemológica — nos termos de
Barbero (1998), por exemplo. As limitações ligadas ao objeto de estudo
são, na verdade, sempre limitações decorrentes da perspectiva
epistemológica. Portanto, minhas afirmações não afirmam que as
interpretações da situação latino-americana exigem um padrão
específico de generalidade — nesse caso, um padrão particularista.
326 • Filosofia Latino-Americana

Minha preocupação aqui foi destacar as possibilidades que se


abrem se evitarmos os debates entre as posições extremas do
macondismo e do moralismo. Nenhuma delas parece propícia a criar
oportunidades de nos compreendermos melhor e, quem sabe, de agir de
maneira pertinente com relação ao que temos sido. O macondismo nos
leva a adotar posturas rígidas em função de suas alegações
substancialista. O moralismo nos conduz a aceitar o peso moral da
incompetência e do fracasso como ponto de partida. Se adotarmos uma
posição intermediária, que assume a relativa flexibilidade da cultura
latino-americana, podemos nos colocar em melhores condições de
estabelecer um discurso e uma ação pertinentes com relação ao mundo
em que nos encontramos. Se isso pode ou não conduzir à alguma
modernização, essa é uma questão prática que não pode ser resolvida de
antemão por intelectuais omniscientes.

Publicado originalmente em Cuadernos de Filosofia


Latinoamericana, v. 43, p. 65-83, 2022

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13
O FUTURO DA FILOSOFIA BRASILEIRA

INTRODUÇÃO

Nesse texto se pretende tratar do futuro da filosofia brasileira. Se


tenta realizar isso em uma época em que a futurologia ainda não é uma
disciplina reconhecida como válida e sequer possui uma comunidade
suspeita de praticantes. Por isso, o trabalho deve parecer ao leitor uma
empreitada bastante arriscada.
Entretanto, o que se propõe aqui não é uma mera adivinhação
abstrata, seguindo exclusivamente as ideias do autor sobre a filosofia
brasileira. Se trata, ao contrário, de uma adivinhação construída a partir
de uma base, seguindo as tendências que hoje são perceptíveis no
exercício dessa atividade intelectual. A diferença entre a simples
adivinhação e essa derivação de tendências que ensaio aqui, é que esta
última envolve um processo de indução a partir de um estado de coisas
existente. Ela é o desdobramento esperado daquilo que se apresenta
hoje, a partir da maneira como estamos praticando a filosofia brasileira
(Silveira, 2019).
Nesse sentido, o texto não se propõe a fazer uma revisão de
literatura acerca da situação atual da filosofia brasileira. Isso faria
sentido se o objetivo fosse verificar o que já foi feito. Há, inclusive, bom
material publicado acerca desse panorama histórico. A questão que nos
ocupará aqui é voltada para as perspectivas de futuro tornadas possíveis
pelas condições culturais existentes.
330 • Filosofia Latino-Americana

Como a dimensão do trabalho é hercúlea, se adota um grande grau


de generalização, de tal maneira que faça sentido referir-se à filosofia
brasileira na sua totalidade. Isso não impede, entretanto, que se respeite
algumas distinções relativas às distintas linhas de ação das atividades
filosóficas desenvolvidas no Brasil. Não se apresenta aqui uma
classificação exaustiva, mas protótipos dessas linhas de ação.
Embora o objetivo seja revelar tendências, sabe-se que coisas
inesperadas podem acontecer. O rumo dos acontecimentos futuros não
depende somente das situações existentes nesse momento, mas
também daquelas variáveis que ainda não se apresentaram. Mesmo
assim, o que pode acontecer depende das disposições atuais do mundo.
Nada pode ocorrer que não tenha se tornado possível em função da
constituição das coisas em um dado momento.
O que denominamos de eventos inesperados é somente aquilo que
excede nossas capacidades de previsão, mas certamente não o que
excede a capacidade de desdobramento do próprio mundo. Tudo o que
pode ocorrer está contido, de uma maneira ou de outra, no que existe.
Para a existência só é impossível o que nunca poderá existir. Por isso,
estabelecer uma conexão entre o que é e o que será constitui-se como
uma modalidade de adivinhação derivada. Ela é distinta daquelas
adivinhações tradicionais, guiadas somente pela livre imaginação do
adivinho.
Como se pode demonstrar que as adivinhações derivadas
estabelecem algum tipo de conexão com as tendências do presente? Isso
certamente não pode ser feito de antemão, como se uma declaração
metodológica inicial pudesse fornecer ao leitor a garantia que ele
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 331

certamente busca. Sequer sei se efetivamente possuo o talento necessário


para deslizar das tendências do presente em direção ao futuro da filosofia
brasileira. Além disso, não há ainda uma metodologia consistente para
realizar tal procedimento. Somente os resultados e o próprio futuro
poderão dizer algo a respeito dos resultados das adivinhações atuais.
Nesse sentido, somente o futuro poderá dizer se o que aqui é previsto
deriva efetivamente ou não das potencialidades do presente

A FILOSOFIA IMITATIVA

Creio que parte da atividade filosófica brasileira se encontra em uma


fase imitativa com relação à filosofia de matriz europeia. Ela encontra-se
nessa situação porque não percebemos em nossa situação cultural alguma
peculiaridade que conduza à necessidade de uma filosofia própria. Porém,
isso ocorre não porque tal peculiaridade não exista e sim por falta de
atenção de nossa parte com relação ao que nos cerca.
A justificativa para emparelhar a filosofia brasileira com a filosofia
europeia, alegando que não há nada de específico em nosso modo de vida,
reflete a desatenção com a qual temos lidado com o Brasil. Assim, a partir
da compreensão de que somos uma manifestação tardia do ocidente - mas
ainda assim um de seus ramos - nada justificaria investir energia em
desenvolver um tipo de filosofia ajustada ao que somos. Se podemos nos
contentar em realizar uma atividade filosófica em termos europeus é
porque nos sentimos europeus. Desse ponto de vista, o que se ajusta a nós
é a mesma filosofia que se pratica em qualquer ambiente de matriz
europeia. E seu fundamento é a crença em uma espécie de unidade
332 • Filosofia Latino-Americana

antropológica entre nós e os europeus. Ao nos colocarmos como partes de


um mesmo mundo, como seres humanos entre outros seres humanos,
indicamos que não é necessário desenvolver uma filosofia própria.
Essa vertente imitativa é perfeitamente justificável, considerando-
se a formação colonial do país. Sabemos que faz parte do complexo
colonial uma disposição do colonizado em se identificar com os valores
do colonizador. Afinal, se trata fundamentalmente de reverter uma
derrota prática através da identificação com o vencedor. Os derrotados
tendem naturalmente a minimizar os danos da derrocada cultural que
os tornou colonizados, adotando os valores dos colonizadores. Isso
permite enterrar um evento passado doloroso e problemático ao mesmo
tempo em que capacita para um novo estilo de vida ajustado aos valores
do vencedor (Rocha, 1970).
Não pode soar estranho, então, que nos identifiquemos com o
mundo europeu porque isso nos habilita para um tipo de superação dos
problemas coloniais. Identificar-se com os colonizadores permite-nos
soterrar as dificuldades criadas pelo embate de forças coloniais, de tal
forma que os problemas de ajuste entre os valores que se enfrentam
deixam de fazer sentido para nós. Ao nos sentirmos europeus na
América, atiramos para fora as dificuldades concernentes à postulação
de uma dimensão cultural problemática – que não seria nem a europeia
nem a original americana.
Não se trata somente de recusar uma possibilidade cultural
certamente mais problemática em função da integração de valores
marcados por imensas diferenças. Se trata também de que - nesse e em
casos semelhantes - a tendência que prevalece é se afirmar a
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 333

supremacia dos valores vencedores, justamente porque se mostraram


vencedores.
Embora essa seja uma resposta justificada e esperada em função do
choque cultural que lhe deu origem, ela não é capaz por si mesma de
eliminar os problemas coloniais. Ela teria sido capaz de se apresentar
como uma boa solução se a colonização tivesse obtido pleno sucesso.
Nesse caso, a opção pelos valores do colonizador se teria feito
acompanhar por sua hegemonia cultural plena, eliminando assim
qualquer tipo de traço remanescente da cultura originária. Se teria
produzido, nesse caso, uma efetiva integração cultural com base nos
valores europeus de modo a conformar a totalidade do modo de vida
brasileiro sob os valores europeus.
Mas sabemos que essa substituição da cultura indígena pela
europeia não se concretizou inteiramente. Isso porque os valores
europeus não se mostraram capazes de tornar o Brasil um ambiente
estritamente europeu. Eles não foram culturalmente eficazes a ponto de
produzirem uma situação integrada. Não creio que isso requeira
demonstrações além de uma simples observação do modo como vivemos
hoje. Qualquer um pode verificar por si mesmo em que sentido os
valores europeus se incorporam em situações brasileiras de modo a
originar uma multiplicidade de efeitos não integrados (Silveira, 2015).
Isso quer dizer que eles são perceptíveis por toda parte, assim como sua
ineficácia em conformar uma cultura que lhes seja inteiramente
subordinada. Eles não adquiriram hegemonia em função da resistência
dos valores autóctones – que, por sua vez, não possuem a propensão
para a integração.
334 • Filosofia Latino-Americana

O fato de não havermos nos tornado um país plenamente


civilizado, nos mesmos termos existentes na Europa, deveria nos dizer
algo acerca de nossas capacidades imitativas. Se parte das ex-colônias
atingiram padrões de civilização semelhantes aos europeus e nós não,
isso deve significar que temos tomado um rumo diverso que impede a
concretização integral do mundo europeu entre nós. Se trata da adoção
de outra direção que não envolve a realização do mesmo conjunto de
valores nos mesmos termos.
Em função dessa especificidade no modo como os valores europeus
foram assimilados é que se pode perceber a falsidade da suposição
acerca daquela unidade antropológica. Ela está presente por toda parte
no cotidiano da vida brasileira. Mesmo assim, é verdade que muitos de
nós se sentem europeus e, por isso, se decepcionam com o que se
entende ser alguma incapacidade para nos tornarmos integralmente
europeus. Por isso, muitos permanecem nessa fase imitativa da filosofia
brasileira.
Me refiro aqui, por exemplo, à possibilidade de que os filósofos se
insiram com sucesso nas comunidades praticantes de filosofia europeia.
Todas as sociedades internacionais que promovem o estudo de autores
ou temas permitem esse tipo de integração profissional por parte dos
brasileiros. Vários filósofos possuem trabalhos nesse sentido e
encontram-se devidamente inseridos em discussões marcadas pelo
predomínio de temáticas tipicamente europeias.
Não me parece haver nada de filosoficamente errado nesse tipo de
atividade. Se trata somente de um tipo de exercício em que se supõe uma
condição de identidade antropológica que não parece corresponder aos
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 335

rumos vigentes na cultura brasileira. Claro que essa opção pode ser
atenuada através da afirmação de que o Brasil ainda não se tornou
totalmente europeu – mas que o fará em algum momento futuro. Por
isso, uma filosofia imitativa seria desejável em face desse progresso em
vias de concretizar nossa condição europeia. Uma filosofia imitativa
estaria, inclusive, alinhada com nosso futuro europeu – embora não
com o nosso presente.
Seja como for, essa atividade filosófica imitativa pode se mostrar
viável, mas não pode se apresentar como ajustada ao que o país tem sido.
Ela realmente pode ser desenvolvida com base na esperança de nosso
futuro europeu, mas não no reconhecimento do que o Brasil tem sido.
Se trataria, portanto, de um estilo de filosofia calcado na expectativa de
que o país venha a ser algo que ele ainda não é. Ressalto que não parece
haver nada de filosoficamente errado com a posição imitativa. A
fragilidade desse tipo de atividade filosófica se apresenta quando
analisamos sua falta de aderência ao restante do país. Não há como
evitar que ela reflita problemas que não são os nossos, simplesmente
porque adota um ponto de partida segundo o qual somos europeus.
Assim, se verificarmos com cuidado, veremos que uma filosofia
imitativa só obtém repercussão em alguma instância particular da
cultura brasileira. Isso permite que ela estabeleça um diálogo com
aquela dimensão da vida nacional que já se encontra alinhada com o
mundo europeu: o próprio ambiente acadêmico universitário, por
exemplo. Como nele predominam os valores típicos da atividade
científica europeia, é perfeitamente esperado que a filosofia imitativa
obtenha reconhecimento e chancela nesse ambiente restrito. Porém,
336 • Filosofia Latino-Americana

sua limitação surge ao se observar que ela não interfere no restante da


vida do país e tem se restringido a essa situação. Ela é uma flor de estufa
(Silveira, 2016).
Com efeito, se há uma deficiência óbvia na prática de uma filosofia
imitativa do mundo europeu, trata-se da limitação da sua capacidade de
diálogo com o restante da cultura. Ela se assume, desde o início – em
função do seu postulado fundamental - como uma atividade de baixo
impacto cultural, restrita a uma situação artificial e limitada. Seu
impacto potencial está sempre delimitado pelo ambiente em que ela se
propôs a interferir desde o início: o ambiente acadêmico das sociedades
filosóficas.
É verdade que essa restrição nas suas ambições conduz a um certo
profissionalismo da filosofia. Essa contenção da atividade filosófica no
interior do mundo acadêmico permite a obtenção de certo direito à
prática filosófica. Porém, não se pode ocultar que essa conquista é
obtida através da redução das ambições culturais dessa atividade. A
aquisição de uma metodologia ajustada ao ambiente acadêmico – logo
científico – por parte da filosofia não pôde ser realizada sem a
desistência de suas pretensões de interferir na totalidade da cultura
brasileira. Sua adaptação a um estilo profissional de filosofia implica em
perda de capacidade de diálogo com o ambiente mais amplo.
Por isso, não faz sentido optar por uma prática filosófica imitativa
e reivindicar simultaneamente um reconhecimento pela importância
cultural desse trabalho. Afinal, ao se adotar esse tipo de prática
restritiva, se promove a recusa em interagir com as dimensões culturais
mais amplas. A redução do escopo da atividade filosófica não é causada
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 337

por falta de reconhecimento social, mas por uma opção em realizar uma
atividade imitativa, incapaz de estabelecer um diálogo com o restante
do nosso país.
Insistir na prática de uma filosofia de matriz europeia, como a
maioria de nós tem feito até aqui, implica em adotar um
comportamento imitativo, como se nada de diferente houvesse no país
com respeito ao mundo europeu. Ou, se se reconhecem tais diferenças,
se crê que podemos nos converter definitivamente em europeus em
algum momento futuro. Nesse caso, as diferenças são reconhecidas
como características indesejadas, como imperfeições que devem ser
superadas durante o progresso em direção à Europa.
De fato, essa última expectativa envolve reconhecer alguma
deficiência de nossa vontade no sentido de realizarmos aqui, na prática,
o mundo europeu. Por isso, tudo o que devemos fazer é perseverar na
prática de uma filosofia semelhante à europeia. Ao final, se espera que
essa perseverança conduzirá a resultados culturais semelhantes aos
europeus. O estado em que nos encontramos deve ser uma fase
intermediária de desenvolvimento de um processo cultural europeu –
que repetiremos tardiamente aqui. Como fomos colonizados estaríamos
reconstruindo aqui, nos mesmos termos que lá, os processos de
maturação que na Europa levaram milênios. Somos um país jovem, por
isso seria natural algum atraso na obtenção prática de um mundo
europeu na América.
Assim, se observa que o que se quer dizer com essa prática
imitativa é que a filosofia é uma só, de que o melhor para o país é
esforçar-se por se tornar plenamente europeu – o que requer uma
338 • Filosofia Latino-Americana

vontade robusta orientada pelo projeto civilizatório europeu. Por isso,


os filósofos brasileiros devem se esforçar para obter interlocução
internacional europeia, porque através dela demonstramos que
podemos ser europeus vivendo na América.
Essa interlocução é entendida pela vertente imitativa como sinal
evidente de qualidade filosófica, justamente porque falar com europeus
é falar com os interlocutores mais desejados: os que são os melhores,
tais como queremos ser. E só conseguimos falar com esses
interlocutores especiais na medida em que o que falamos se mostra
interessante para eles. Não é ocasional, portanto, que a
internacionalização seja um critério de avaliação de programas de pós-
graduação no Brasil e de publicações – não só em filosofia. Observe que
o critério não é a capacidade de diálogo por si, mas a capacidade de
diálogo com o conhecimento filosófico produzido no interior da cultura
de matriz europeia. O fundamental da perspectiva imitativa é nos
mostrarmos capazes de dialogar com a Europa.
A maior fragilidade desse ponto de vista é que o juízo de valor que
o fundamenta é assumido sem que se realize qualquer análise das
condições brasileiras. Para reputar essas últimas como idênticas às
condições europeias, deveríamos ser capazes de traçar as correlações
existentes entre os dois ambientes. Só a segurança obtida com relação a
essa identidade poderia nos fornecer a condição requerida para
praticarmos uma filosofia imitativa sem o risco de exercer uma
atividade desconectada do nosso próprio ambiente cultural e sem apelar
para potencialidades de futuro não reveladas pelo nosso modo de vida
vigente.
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 339

Aquilo que poderia surgir como uma conclusão legítima de uma


análise cuidadosa acerca do Brasil – sua identidade cultural com a
Europa - não passa, na prática, de um preconceito sedimentado por
parte da filosofia imitativa. Na verdade, se trata de um exercício
filosófico circular que se desenrola em um ambiente inteiramente
familiar e caracterizado pelo conforto. Esse conforto é perceptível
quando notamos que aquela alegada identidade é uma afirmação
formulada no interior do próprio mundo europeu. Afinal, a formação
intelectual predominante entre os filósofos brasileiros foi obtida por
meio de estudos de filosofia europeia. Então, o juízo de que não há nada
no Brasil que solicite uma filosofia própria é suspeito porque
reatualizada a base filosófica em que já nos movimentamos desde o
período de formação intelectual. Aquela pressuposição avança no
sentido de constituir um círculo fechado sobre si mesmo: seu desfecho
ocorre exatamente sobre seu ponto de partida, de tal maneira que nada
de qualitativamente distinto se agrega no percurso. Saímos de uma
formação em filosofia europeia para uma atividade filosófica
desenvolvida dentro dos parâmetros de matriz europeia.
Com isso quero dizer que a base que sustenta a prática filosófica
imitativa não passa de um exercício calcado em um prejuízo acerca de
quem somos. Não é necessário alegar aqui nenhuma grande
característica nacional que nos tornaria imediatamente únicos no
mundo para fragilizar a postura filosófica imitativa. A afirmação de que
somos – nós, os brasileiros - seres humanos dotados de uma natureza
especial, não é necessária aqui.
340 • Filosofia Latino-Americana

Basta reconhecer que ainda não investigamos adequadamente


nossas características culturais para nos darmos conta que concluir em
favor de uma prática filosófica imitativa é um atropelo infundado. Ou
seja, que esse tipo de atividade filosófica decorre de nossa pouca
disposição para olhar para o Brasil e passar pelo desconforto de
reconhecer que há algo nele que não se ajusta àquelas categorias
fornecidas pela história da filosofia ocidental.
Há ainda nessa postura imitativa uma certa carência de crítica,
pois se trata de recusar a submeter a conexão entre a filosofia europeia
e o Brasil a uma análise. Ela passa por alto a verificação da existência de
um ajuste efetivo entre nossas práticas culturais e os procedimentos
filosóficos que adotamos da velha Europa. A afirmação de que não há
nada aqui de específico que mereça atenção é precipitada e só se
justifica em função de nos garantir uma prática filosófica definida em
função dos elementos ocidentais que já dominamos.
Tudo indica que a imitação está fundada na manutenção do
conforto intelectual gerado pela atividade filosófica de matriz europeia
e em indisposição para perceber o que tem ocorrido no Brasil. Não
acredito que isso constitua um erro, uma modalidade de atividade
condenada ao fracasso, mas uma opção por desenvolver uma filosofia
em um ambiente extremamente restrito.
A expansão da filosofia sobre o Brasil
Um momento distinto da atividade filosófica brasileira envolve o
abandono das práticas imitativas. Não se trata de uma fase superior ou
de um amadurecimento com relação à primeira – em qualquer sentido.
Embora pareça simples, esse é um passo decisivo para o futuro dessa
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 341

atividade, justamente porque implica no abandono da imitação como


procedimento básico.
De fato, para avançar nessa direção é necessário reconhecer que
existem especificidades culturais brasileiras que solicitam um
tratamento filosófico autônomo. Em alguma medida, isso demanda que
tenhamos reconhecido que nosso país não tem sido – e não será em um
futuro próximo - um ramo do mundo europeu. Exatamente por isso é
que a filosofia deveria atentar para essa especificidade de modo a
tornar-se uma prática relevante.
Poucos filósofos se recusariam a reconhecer que a filosofia
consiste em um tipo de apreciação acerca daquilo que nos cerca – apesar
da extrema generalidade da afirmação. E o que nos cerca de maneira
imediata é o nosso próprio país. Portanto, o Brasil é o objeto
imediatamente acessível a qualquer discussão filosófica realizada por
filósofos brasileiros. Fica evidente que o fato de não o tomarmos como
objeto prioritário da atividade filosófica é um efeito que decorre de
nossas predisposições europeias. Certamente isso não está ligado à falta
de disponibilidade do Brasil em tornar-se objeto de nossa atenção. A
simples aceitação de uma definição muito genérica de filosofia - como
a anterior - nos induz automaticamente a tomar o país como objeto de
discussão, contrariando a inércia daquelas predisposições.
Nesse segundo tipo de filosofia, nos inclinamos para o Brasil no
sentido de adotarmos a intenção de introduzir o país em que vivemos
em nossas atividades intelectuais. Trata-se de fazer concessões
temáticas, de tal forma que nossa atenção possa enveredar pelas
peculiaridades da cultura brasileira. Esse segundo momento implica em
342 • Filosofia Latino-Americana

adotar uma perspectiva filosófica que se aproxima do Brasil de modo a


encampá-lo e introduzir alguma especificidade cultural no campo da
filosofia. Isso supõe a crença de que essa atividade pode se aplicar sobre
objetos que não aqueles originalmente visados em suas discussões
tradicionais - europeias.
Segundo essa alteração do ponto de vista, a filosofia funcionaria
como um método ao qual tudo poderia se submeter, a despeito de
possíveis diferenças existentes entre os objetos visados em cada caso.
Ela seria como uma forma universal capaz de subordinar vários objetos
distintos de modo a absorver até mesmo nossas especificidades
culturais no seu interior.
O avanço aqui é evidente, quando confrontamos essa disposição com
aquele momento imitativo anterior. Afinal, agora se reconhece que o país
merece atenção filosófica e se constitui como um objeto digno de nossa
atenção e energia. Talvez pudéssemos denominar esse ponto de vista de
filosofia sobre o Brasil, para sermos mais precisos. Afinal, se trata da
filosofia europeia – dotada das ferramentas conceituais e dos
procedimentos de análise dessa tradição - porém orientada para questões
e temas brasileiros. Não se pretende, nesse caso, refundar ou redefinir a
atividade filosófica, mas fazê-la abarcar nosso país. O conjunto de
elementos conceituais e metodológicos europeus obtidos no período de
formação dos filósofos brasileiros é preservado integralmente aqui. O
passo adiante consiste em fazer a filosofia aproximar-se desse novo
objeto, o Brasil, sem alterar os dispositivos tradicionais.
Esse tipo de investigação ocupa-se com o Brasil, sem entretanto,
deixar-se afetar por ele. Na prática, isso significa que a filosofia é
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 343

utilizada como uma forma de pensar já consolidada que se desdobra, a


partir de agora, sobre esse novo ambiente e passa a se dedicar também
ao nosso país. Tudo o que se faz aqui é uma espécie de concessão com
respeito àquilo de que trata o discurso filosófico, mas não ao como se
pratica a filosofia.
Um exemplo pode facilitar a apreensão desse segundo momento.
Podemos nos dedicar a investigar a cultura brasileira começando por
uma de nossas manifestações mais evidentes: o futebol (Silveira, 2014).
Esse assunto, em função do grande interesse nacional que desperta,
torna-se assim um tema de reflexão da filosofia. Porém, nada se agrega
à própria atividade filosófica que não seja a introdução desse novo
objeto. Nenhuma alteração substantiva se produz no modo como se
realizam as atividades filosóficas, nos conceitos fundamentais e nos
procedimentos analíticos que se utiliza. O tema é brasileiro, porém o
modo de pensar é o filosófico ocidental tradicional. O que se introduz
aqui são as atividades tradicionais, conduzidas com as mesmas
ferramentas conceituais acerca de um novo objeto.
O que se obtém dessa perspectiva é um tipo de exercício filosófico
em que o tema é genuinamente nacional, mas o ponto de vista é o usual,
típico da filosofia de matriz europeia. O resultado desse movimento de
aproximação com relação ao Brasil é uma espécie de ilustração da
filosofia europeia por meio de temas brasileiros. Em outras palavras, o
que se obtém daqui é uma aplicação da filosofia europeia à cultura
nacional. Talvez se opere nessa ação sobre o Brasil um enobrecimento
dos nossos temas em função de sua aceitação no ambiente filosófico.
344 • Filosofia Latino-Americana

Através desse passo adiante do ponto de vista receptivo por parte da


filosofia, o Brasil passa a se mostrar digno de atenção filosófica.
Contudo, observe que não se trata de uma efetiva aproximação da
filosofia com o Brasil e sim de uma nova forma de colonização do país
que, nesse caso, passa a fazer parte das práticas filosóficas tradicionais
– nos próprios termos dessa última. É como se esse tipo de trabalho
demonstrasse que o país está dotado da dignidade necessária para ser
incorporado ao mundo filosófico europeu. Não se trata, portanto, de que
o Brasil tenha afetado a filosofia em algum sentido e sim de que ela pode
demonstrar, a partir de agora, sua capacidade de encampar também o
nosso país no interior de suas práticas.
Mais do que ocupar-se com o Brasil, o que se faz aqui é considerar
que a filosofia também pode se exercer sobre um país que - em função
do ajuste automático das categorias tradicionais da filosofia às nossas
circunstâncias – também é europeu. Não se opera aqui uma efetiva
aproximação filosófica com relação ao Brasil, mas um aproximação
brasileira em relação à filosofia. Afinal, o que ocorre é que essa última
ganha em extensão e passa a se aplicar também ao Brasil. É suposto por
essa extensão que essa aplicação da filosofia à nossa cultura pode ser
realizada sem nenhum salto ou ruptura, porque os procedimentos que
valem para a Europa também devem valer para nós.
O que estou denominando de colonização aqui é justamente o
ímpeto de incorporar a cultura brasileira por meio dos procedimentos
tradicionais da filosofia europeia. Nessa modalidade de aproximação, o
Brasil fornece os temas mas não as categorias ou os procedimentos de
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 345

análise. Trata-se, portanto, de uma extensão formal da filosofia


europeia sobre conteúdos brasileiros.
Aparentemente nessa etapa se produz uma melhoria na
autoestima dos filósofos brasileiros, na medida em que eles passam a
avaliar que o nosso país já está à altura da filosofia. Em último caso se
trata de reconhecer que o país pode fornecer elementos interessantes
para uma atividade filosófica que passa a se desenvolver aqui como lá,
na velha Europa. A mudança que se apresenta diz respeito ao modo
como o Brasil é pensado pelos filósofos: ele pode ser considerado como
um objeto de estudo legítimo, um campo de aplicação para as categorias
europeias, um mundo que também pode ser tematizado pela filosofia.
Assim, essa situação realiza uma expansão dos procedimentos
filosóficos da tradição europeia sobre o Brasil. Nesse sentido, podemos
identificar essa ação como uma extensão muito natural dos
procedimentos coloniais. Afinal, o que marca o colonialismo é a busca
pela eliminação de enormes diferenças culturais, preferencialmente
sem mediações ou traduções de parte a parte. Sua disposição básica é
promover a hegemonia de um conjunto de valores, supostamente
dotado de algum tipo de superioridade, sobre uma diversidade de
situações.
Dessa disposição a integrar as diferenças sob si é que decorre a
violência implicada nos contatos coloniais. Uma expansão da filosofia
sobre o Brasil adota exatamente esse mesmo mecanismo de supressão
de diferenças em benefício da hegemonia de valores alegadamente
universais. Afinal, através dessa aproximação não está em questão
qualquer transformação da atividade filosófica, mas certa concessão da
346 • Filosofia Latino-Americana

atenção senhorial da filosofia ao país. Aparentemente, o que se diz aqui


é que o Brasil está em condições de se tornar objeto da filosofia, que ele
possui as características necessárias para ser revestido pelo mesmo
tratamento filosófico fornecido às sociedades europeias. Poderíamos
aproximar esse reconhecimento das condições do Brasil para ser
encampado pela filosofia daquele outro reconhecimento relativo à
humanidade dos indígenas americanos (Las Casas, 1929).
Afinal, em ambos os casos se trata de reconhecer a existência das
capacidades necessárias para que algo ou alguém seja devidamente
absorvido por um conjunto de valores alegadamente superior. Desse
ponto de vista, comum às duas situações, o que se promove é a
capacidade – dos indígenas e do Brasil – de serem absorvidos pela
cultura europeia. Ele se apresenta como uma alternativa a que a
diferença cultural seja objeto de uma negação simples, de destruição,
pelo fato de não se mostrar capacitada para a absorção. O que se coloca
em questão é a possibilidade do extermínio ou da absorção
incondicional em função das enormes diferenças culturais. Por isso, se
trata de um gesto filosófico que replica traços coloniais.
Novamente aqui notamos a presença de certa indisposição com
relação à crítica por parte da atividade filosófica que temos praticado –
e a presença de outro ciclo de conforto. Nesse caso, o percurso parte dos
elementos consolidados da filosofia europeia e passa a se exercer sobre
o Brasil. Porém, o próprio exercício filosófico não se altera ou sequer se
coloca em questão em função dessa nova circunstância. Trata-se de uma
mera ampliação geográfica do exercício filosófico, de tal maneira que
agora o nosso país pode ser um objeto legítimo da filosofia. Partimos da
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 347

filosofia europeia e chegamos a uma filosofia europeia exercida também


sobre o Brasil.
O avanço que se pode detectar aqui é que finalmente os filósofos
europeus desembarcaram das caravelas que ficaram quinhentos anos
ancoradas na costa brasileira. É verdade que esse desembarque
representa um processo de enriquecimento da temática filosófica, no
sentido de ampliar o universo cultural do qual ela trata. A inclusão de
temas brasileiros pode tornar a filosofia mais pertinente do que ela tem
sido naquela condição imitativa. Afinal, ao tratar de questões nacionais
a filosofia passa a obter um grau de repercussão inexistente naquela
situação anterior. Agora ela adquire um lastro de experiências mais
amplo, se depara com situações que não equivalem às do ambiente
original em que ela se desenvolveu – a despeito de suas próprias
intenções originais. Ela certamente se liberta da contenção temática do
mundo europeu e se lança à descoberta de novos mundos.
Essa relativa disponibilidade pode fornecer situações em que as
categorias e os procedimentos convencionais não se mostram como os
mais adequados para se promoverem discussões e análises filosóficas.
Mas essas mesmas situações também podem ser uma ocasião para se
promover a negação da especificidade cultural e a prática de gestos de
força que visam a eliminar os traços de desajuste entre a filosofia e o
Brasil.
Afinal, quando se descobrem mundos novos, se corre o risco de
supor que neles devem predominar as velhas formas de pensar típicas
dos velhos mundos de onde viemos – uma extrapolação impulsionada
pela familiaridade e pelo conforto. Ou seja, mais uma vez, se corre
348 • Filosofia Latino-Americana

aquele risco da adoção de fórmulas consagradas e de indisposição com


relação à autocrítica. Mas também se pode simplesmente desprezar os
desajustes entre as diferenças culturais alegando alguma deficiência
crônica por parte do Brasil. Nesse caso, terminamos desqualificando o
país como um objeto filosoficamente válido por um gesto de recusa.

A FILOSOFIA BRASILEIRA

A fase anterior já anuncia um novo passo que terá que ser tentado
na sequência. Ele terá que ser tentado porque aquele momento anterior
não concretiza a totalidade do movimento a que se propôs inicialmente.
Se a filosofia se dispõe a tratar do Brasil, ela terá que perceber em algum
momento que o país não está ajustado a seus conceitos convencionais.
E isso decorre do fato do Brasil não ser um país europeu, de que há
diferenças antropológicas que precisam ser consideradas pela atividade
filosófica. A filosofia pode certamente tomar outros rumos, como de
fato tem tomado, mas ela não pode ignorar permanentemente o
ambiente cultural em que está inserida. Ao se dispor a dar um passo
adiante em direção ao Brasil, a filosofia não pode mais suspender os pés
do chão e congelar-se no ar. Ela terá que efetivamente caminhar em
direção ao país.
Não se trata, nesse terceiro momento, de promover um estilo de
filosofia mais verdadeiro ou superior. Se trata de reconhecer que há algo
que solicita a atenção, mas não enquanto um objeto que requer os
mesmos tratamentos de sempre, forjados para dar conta de situações
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 349

originais europeias. Esse algo que acena permanentemente com a


promessa de uma interlocução possível é o nosso país.
Por isso, é que esse passo adiante terá que se apresentar no futuro,
porque ele se impõe como algo que se pode recusar eventualmente, mas
não em definitivo. A filosofia brasileira não pode recusar o Brasil para
sempre porque ele é um dado para ela, algo com o que ela terá que lidar
porque é realizada por filósofos brasileiros. Em algum momento, a
filosofia brasileira será contaminada pelo Brasil. Ele está aí fornecendo
as evidências diárias de que não é mais do mesmo, de que não nos
encontramos na Europa e, por isso mesmo, se requer algo da filosofia
que ela ainda não possui.
O objetivo da fase anterior era escapar do mecanismo imitativo e
aproximar-se do Brasil. Vimos que nela a filosofia passa a ocupar-se do
Brasil, embora mantendo seu caráter europeu. Nesse caso, a
aproximação é superficial – por assim dizer. Ela implica somente na
incorporação filosófica do Brasil, sem nenhuma alteração significativa
de seus procedimentos. Porém, para colocar-se em uma condição de
diálogo efetivo para obter pertinência cultural e remover seus traços
coloniais, a filosofia necessita introjetar-se no ambiente, tornar-se
diferente do que tem sido para ter acesso ao Brasil nos próprios termos
desse último.
Caso isso não se realize, ela persistirá inacabada no sentido de não
obter proximidade e ajuste cultural e permanecerá como uma prática
tipicamente europeia em um ambiente estranho, restrita e de baixo
impacto. Porém, essa possibilidade a mantém fora das condições de se
realizar plenamente como filosofia brasileira. É o seu próprio conceito,
350 • Filosofia Latino-Americana

aquele passo inicial com respeito ao Brasil, que demanda esse segundo
passo adiante no sentido de se estabelecer uma atividade filosófica
pertinente. Somente ele possibilita a realização de uma filosofia
brasileira – algo que vá além da imitação e de uma atividade sobre o
Brasil.
Se a proposição da segunda etapa era promover uma atividade
filosófica que tematizasse o Brasil, agora será necessário que o país
altere os procedimentos vigentes da filosofia europeia. Se o passo
anterior envolvia o aspecto material de fazer a filosofia se expandir
sobre um novo objeto, agora se trata naturalmente de que a filosofia seja
afetada formalmente por esse novo objeto do qual ela se aproximou. Por
isso, é da própria dinâmica da filosofia brasileira tornar-se, em algum
momento, brasileira. É por isso que se pode derivar com certa segurança
essa previsão das condições atuais de nossa prática filosófica.
Essa transformação implica que a atividade filosófica adquire um
espírito mais intensamente receptivo. Se dá um passo adiante aqui em
relação àquela absorção de novos objetos que ainda não haviam sido
tematizados. Ao realiza-lo, a filosofia deu mostras de sua capacidade de
adaptação a novos ambientes – embora tenha mantido intactos os seus
procedimentos históricos já consolidados.
Agora se torna necessário dar outro passo adiante em relação à
mera expansão da filosofia para as novas terras tropicais recém
descobertas. E isso envolve a alteração dos procedimentos formais da
filosofia quando confrontada com novas necessidades da parte do seu
objeto. Isso significa que a filosofia brasileira não pode se definir
somente como uma filosofia europeia sobre o Brasil, pois isso implicaria
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 351

em ficar a meio caminho de realizar o objetivo a que se propôs – e que a


retirou da fase imitativa.
Ela requer um outro tipo de espírito em que as nossas
circunstâncias culturais ditem o ritmo da atividade filosófica. Ou seja, a
filosofia necessita se flexibilizar em função da especificidade desse novo
objeto, de tal maneira que se estabeleça alguma modalidade de diálogo
efetivo entre eles. Propriamente falando, a filosofia brasileira nessa
nova situação terá que se mostrar capaz de dialogar com o Brasil. Isso
significa que ele não será mais considerado como um objeto - no sentido
tradicional em que usamos o termo, como algo a ser subordinado por
categorias preexistentes e a receber um determinado tratamento
padronizado.
Uma filosofia pertinente ao Brasil, uma filosofia brasileira,
necessita reavaliar-se em função do ambiente que tematiza de modo a
promover um ajuste. Trata-se de promover uma articulação com a
cultura brasileira e, portanto, da aquisição de procedimentos e
conceitos de que ela ainda não dispõe. Para se tornar efetivamente
brasileira a filosofia necessita deixar de ser o que tem sido e orientar-
se pelo Brasil.
Com isso quero dizer que não faz sentido realizar uma atividade
filosófica sobre o Brasil que desconsidera os modos de operação e a
funcionalidade dos valores vigentes em nossa cultura. Isso implicaria
em perda de capacidade de diálogo, em desconsideração pela
especificidade do seu interlocutor, em imposição de formas conceituais
inadequadas ao novo ambiente – em alguma modalidade de práticas
coloniais. Se apesar de tudo insistirmos em uma atividade filosófica
352 • Filosofia Latino-Americana

desconectada da nossa cultura estaremos somente renovando


declarações de boas intenções e nada de novo se produzirá dessa
situação.
Não se trata de dotar a filosofia de capacidade criativa, rompendo
com suas conexões originais com o mundo europeu, libertando-a de
constrangimentos históricos ou algo semelhante. Se trata de conectar a
atividade filosófica com um modo de vida distinto do europeu e que, por
isso mesmo, requer outros procedimentos. Esses procedimentos não
são objetos de criação livre da parte dos filósofos. Eles são certamente
objetos de uma criação inspirada nas soluções e nos problemas já
formuladas em nosso ambiente cultural. Não se trata, portanto, de uma
liberação da filosofia com relação ao seu contexto original europeu, mas
da substituição de sua conexão cultural.
Afinal, a filosofia europeia possui suas próprias conexões culturais
que tendemos a passar por alto com a justificativa de que se trata de
uma atividade universal que se aplicaria a qualquer contexto. Essa
suposição certamente tornou mais fácil a aproximação entre a filosofia
europeia e qualquer ambiente cultural – como se estivéssemos diante
de problemas essencialmente humanos. O fato de termos assumido a
validade dessa universalidade da filosofia tornou fácil a acomodação no
interior daquelas práticas imitativas. Mas a filosofia europeia jamais foi
realmente universal e se o foi em algum momento, isso se deu como uma
resposta a determinada circunstância cultural. De fato, o que catapultou
a filosofia para a universalidade foi uma configuração de valores que
não se apresenta no Brasil (Silveira, 2020).
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 353

Esse passo adiante da filosofia com relação à cultura brasileira é


decisivo no sentido de produzirmos uma articulação efetiva entre
ambas. Quando nos dispomos ao diálogo não podemos fazer calar nosso
interlocutor, suas necessidades tem de ser levadas em consideração –
porque é isso o que está envolvido em um diálogo e no desenvolvimento
da pertinência com o que tem sido dado.
Por outro lado, isso também impede a manutenção da filosofia
como um mero agregado à cultura brasileira, destinada a se converter
em uma atividade redundante com relação aos valores vigentes. A
filosofia não pode se apresentar como culturalmente relevante se ela se
apresenta como uma atividade em permanente acordo com a cultura
brasileira, comprometida permanentemente com o que existe. Isso
consistiria antes na eliminação da atividade filosófica do que na sua
adaptação à cultura brasileira.
Para escapar da redundância, é necessário orientar a atividade
filosófica para as necessidades da cultura brasileira, permitir que essas
ressoem nas nossas práticas conceituais, mas não no sentido de se
imporem como definitivamente determinantes. Ser dotada de
relevância cultural implica em dizer algo de pertinente para o Brasil,
sem resvalar para a mera reafirmação do que tem existido. Afinal, as
necessidades culturais são necessidades de seres humanos com os quais
se supõe que a filosofia tenha alguns compromissos muito básicos.
Fazer com que essas necessidades humanas sejam tratadas pela
atividade filosófica não equivale a obter um alinhamento automático
entre ambas. Uma filosofia pertinente é uma caixa de ressonância de
elementos culturais, mas não uma caixa de redundância.
354 • Filosofia Latino-Americana

CONCLUSÃO

Para promover um ajuste ao ambiente cultural mais amplo, a


filosofia terá que ser redefinida levando-se em consideração as novas
necessidades que são típicas do Brasil. Ela pode, certamente,
permanecer como uma atividade imitativa da filosofia europeia. Porém,
os apelos para o diálogo estão por toda a parte e não cessarão de bater à
porta da filosofia reivindicando o início de alguma forma de
interlocução. Afinal, somos filósofos e vivemos no Brasil. Isso deve nos
obrigar a deslocar nossas intenções filosóficas para o nosso país.
Depois de dar um primeiro passo nessa direção, não há mais como
reverter a dinâmica implicada no próprio conceito de filosofia
brasileira. Mesmo uma extensão da atividade filosófica sobre o Brasil,
envolverá gradualmente a percepção de que é a filosofia que necessita
ser redefinida em função do diálogo com a cultura brasileira. Essa é a
linha de ação que se tornará gradualmente perceptível à medida que
avançarmos na direção do Brasil.
Obviamente, não pretendo apresentar aqui uma agenda para uma
filosofia ajustada ao ambiente brasileiro. Uma filosofia brasileira deve
ser capaz de fomentar atividades diferentes, porém todas igualmente
conectadas com o nosso país. Não há uma forma exclusiva de tornar a
filosofia que praticamos efetivamente brasileira. Há certamente uma
linha de ação, que pode adquirir uma multiplicidade de facetas distintas.
A indicação da linha de ação, que estou propondo aqui, não envolve
estabelecer qual deve ser a feição específica e obrigatória de cada
possibilidade filosófica. Ela também não está associada a uma forma
Ronie Alexsandro Teles da Silveira • 355

filosófica exclusiva, supostamente mais verdadeira ou dotada de alguma


virtude especial.
Há várias formas possíveis de ser obter uma filosofia pertinente
com relação ao Brasil. Pode ser que muitas delas se revelem inadequadas
– mesmo no interior de um efetivo diálogo entre a filosofia e a cultura
brasileira. A condição requerida para que a filosofia brasileira se torne
efetivamente brasileira é que ela se mostre capaz de se articular com o
país, redefinindo-se em função do que temos sido. Para isso, ela
necessita dar um passo adiante com relação à sua disposição de
encampar o Brasil e dois passos adiante com relação à imitação da
filosofia europeia.

Publicado originalmente em Problemata: Revista Internacional de


Filosofia, v. 14, p. 108-121, 2023.

REFERÊNCIAS

Las Casas, B. Historia de las Indias. Madrid: Gonçalo de Reparaz, 1929.

Rocha, G. Der leone have sept cabezas. Brasil, 95 min, 1970.

Silveira, R. A. T. Uma mirada sobre a América Latina. In: Ramaglia, D.; Silveira, R.A.T.
(Orgs.). Miradas filosóficas sobre América Latina. Porto Alegre: FI, p. 164-188, 2020.

Silveira, R. A. T. Filosofia brasileira. Porto Alegre: FI, 2019.

Silveira, R. A. T. A brasileiríssima filosofia brasileira. Síntese, v. 43, p. 261-278, 2016.

Silveira, R. A. T. A síntese carnavalesca. Capoeira, v. 2, p. 37-53, 2015.

Silveira, R. A. T. (Org.) O futebol e a filosofia. Campinas: PHI, 2014.


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