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allan de carvalho rodrigues

simone berle
walter omar kohan (orgs.)

filosofia e educação em errância:


inventar escola, infâncias do pensar

coleção eventos

rio de janeiro
nefi, 2018
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Reitor: Ruy Garcia Marques
Vice-Reitora: Maria Georgina Muniz Washington
Sub-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação: Egberto Gaspar de Moura
Programa de Pós-Graduação em Educação (PROPEd)
Coordenadora: Maria Isabel Ramalho Ortigão
Vice-Coordenadora: Fernando Pocahy

Núcleo de Estudos de Filosofias e Infâncias (NEFI)


Coordenador: Walter Omar Kohan

Conselho Científico Conselho Editorial (NEFI/UERJ)

Alejandro Ariel Cerletti, Universidad de Buenos Aires, Argentina Alessandra Lopes


Alexandre Filordi de Carvalho, UNIFESP, Brasil Alice Pessanha Souza de Oliveira
Alexandre Simão de Freitas, UFPE, Brasil Allan Rodrigues
Barbara Weber, University of British Columbia Fabiana Martins
Beatriz Fabiana Olarieta, UERJ, Brasil Marcelly Custodio de Souza
Carlos Bernardo Skliar, FLACSO, Argentina Simone Berle
César Donizetti Leite, UNESP - Rio Claro, Brasil
Claire Cassidy, University of Strathclyde, Scotland Capa:
Gregorio Valera-Villegas, Universidad Experimental Simón Rodríguez, Marcelly Custodio de Souza
Venezuela
Gustavo Fischman, Arizona State University, Estados Unidos da América Diagramação:
Jason Wozniak, West Chester University, Estados Unidos da América Marcelly Custodio de Souza
Juliana Merçon, Universidad Veracruzana, México Simone Berle
Junot Cornelio Matos, UFPE, Brasil
Karin Murris, Cape Town University, África do Sul
Magda Costa Carvalho, Universidade dos Açores, Portugal
Maria Reilta Dantas Cirino, UERN, Brasil
Marina Santi, Università degli Studi di Padova, Itália
Maximiliano Durán, Universidad de Buenos Aires, Argentina
Olga Grau, Universidad de Chile, Chile
Óscar Pulido Cortés, Universidad Tecnológica y Pedagógica de Colombia,
Colômbia
Paula Ramos de Oliveira, UNESP – Araraquara, Brasil
Pedro Pagni, UNESP – Marília, Brasil
Rosana Fernandes, UFRGS, Brasil
Sílvio Donizetti de Oliveira Gallo, UNICAMP, Brasil
Wanderson Flor do Nascimento, UnB, Brasil

D a do s I nt e r na ci o na i s de Ca t al o g a ç ã o na Publ ica ç ã o ( CI P)
( Câ m a r a Br a s il e i r a do Li vr o , SP, Bra s i l)
allan de carvalho rodrigues; simone berle e walter omar kohan (orgs.)

Filosofia e educação em errância: inventar escola, infâncias do


pensar./allan de carvalho rodrigues; simone berle e walter omar kohan
(orgs.). – 1 ed – Rio de Janeiro: NEFI, 2018 – (Coleção Eventos).

ISBN: 978-85-93057-15-1

1. Educação. 2. Filosofia. 3. Infâncias. I. Título. II Série.


CDD 37

Índice para catálogo sistemático:


1. Educação 37

© 2018
© 2018 Núcleo de Estudos de Filosofias e Infâncias (NEFI/UERJ)
Site: www.filoeduc.org
Email: publicacoesnefi@gmail.com
à marielle franco,
ao que ela simboliza:
até quando?
sumário

apresentação: inventar escola, infâncias do pensar .......................................... 9


allan rodrigues; simone berle; walter kohan

experiências escolares com filosofia


philosophia ludens per bambini. una proposta per giocare e pensare ............. 21
annalisa caputo
a propósito da infância: errância ...................................................................... 41
carla silva
filosofia na escola pública: ensaiando um canto de resistência em tempos de
dissolução............................................................................................................ 57
edna olímpia da cunha; vanise gomes dutra
“meriendas filosóficas” en la biblioteca popular, carilafquen. pensar la
experiencia. la experiencia del pensar .............................................................. 69
maría silvia rebagliati
olimpíadas filosóficas uruguayas. reflexiones sobre una experiencia. ......... 83
marisa berttolini; christian burgues; ana duboué; mauricio langón; adelina pintos
the making of a circle: building a community of philosophical enquiry in a
post-apartheid, public school in cape town, south africa. ............................ 103
rose-anne reynolds

estéticas do corpo, gênero, sexualidade e pedagogia


o corpo profano da experiência estético-educativa....................................... 119
adriana maria da silva
outras filosofias da educação na filosofia da educação brasileira: educar os
corpos em fluxo para além do imaginário do carbono. ................................ 137
alexandre simão de freitas
do que pode lançar mundos no mundo. da representação à pedagogia da
montagem ......................................................................................................... 153
isaac pipano
vigilar y castigar (los cuerpos): la enseñanza de la filosofía frente al sistema
de opresión sexo/genéro. ................................................................................ 169
luciana carrera aizpitarte
la cuestión de la identidad: política sexual y cuerpo infantil ....................... 181
olga grau
o ingovernável dos corpos e das multidões na escola: formação ética,
resistência e alteridade radical ........................................................................ 195
pedro a. pagni
sexualidades e infâncias: (des)viar conversas que afirmam uma infância,
para fiar preocupações com a novidade da criança em aparecimentos. ..... 213
sílvio gallo; alexsandro rodrigues

a escola, o mundo, a vida


escuela y vida buena. sentido común y prudencia política ......................... 233
gladys madriz ramírez
the emancipatory rhythms of scholé................................................................ 247
jason wozniak
impedir que el mundo se deshaga. con algunas escenas escolares y una
conversación sobre la transmisión, la comunización y la renovación del
mundo. .............................................................................................................. 261
jorge larrosa
matar al maestro un ejercicio -¿no habitual?- de educación ........................ 277
malena ivone bertoldi
a espiritualidade da democracia e a defesa da escola................................... 289
marcelo senna guimarães
escrita, leitura e o tempo de atenção .............................................................. 303
maria alice gouvêa campesato; elisandro rodrigues; betina schuler
figuras de la alteridad-autoridad-autorización entre filosofía y educación.
una aventura narrativa. ................................................................................... 317
maría beatriz greco

um lugar para ensinar... filosofia?


uma proposta de ensino poético-filosófica. ................................................... 327
andré luís borges de oliveira
roda de conversa e exercício do pensamento: uma aposta experienciada com
o pibid/unirio................................................................................................... 341
evelin sousa da silva; renata alves
el arte de enseñar. sócrates maestro de amor ................................................ 353
gregorio valera-villegas
el error sabio ..................................................................................................... 367
gustavo ruggiero
filosofía y educación en errancia: ¿paseantes, vagabundas, peregrinas? ... 383
laura agratti

invenções: mapas, cartografias, devires


inventividade nas imagens errantes: micropolítica estética e devir-infância.
............................................................................................................................ 397
alexandre filordi de carvalho; césar donizetti pereira leite
mapas invisíveis e viajantes cegos: ensaio para uma escola do oculto. ...... 411
daniel gaivota contage
pesquisa-docência da diferença: encontros e composições para um método
labiríntico em jogo............................................................................................ 423
diego winck esteves; máximo daniel lamela adó
potência inventiva, infância e devir-música da educação ............................ 437
regina marcia simão santos; pablo de vargas guimarães; neila ruiz alfonzo
três dispositivos para uma formação inventiva de professores:
deslocamentos em companhia de michel foucault. ...................................... 457
rosimeri de oliveira dias; heliana de barros conde rodrigues
pensar a infância. desusos, usos e abusos em michel foucault .................... 471
heliana de barros conde rodrigues; rosimeri de oliveira dias
a circularidade entre a atenção cartográfica e a aprendizagem inventiva. . 483
virginia kastrup

arquipélago afro, indígena, popular


(des)colonialidade e insurgência zapatista: alternativa pedagógica e
pensamento de fronteira .................................................................................. 497
cheron zanini moretti
comunicação ancestral e filosofia indígena: a educação da mãe terra ........ 515
renata machado
“um pouquinho de cada”: os indígenas ensinam a educar.......................... 523
kércia priscilla figueiredo peixoto; reinaldo matias fleuri
outras paisagens no ensino de filosofia: do continente ao arquipélago ...... 543
luís carlos ferreira; eduardo oliveira
educação popular: um projeto em movimento para a superação da ordem
hegemônica ....................................................................................................... 555
márcia mara ramos
igualdade, militância e educação na escola popular de simón rodríguez .. 571
maximiliano durán
temporalidade, memória e ancestralidade: enredamentos africanos entre
infância e formação .......................................................................................... 583
wanderson flor do nascimento
apresentação: inventar escola, infâncias do pensar

allan rodrigues
allancr@id.uff.br
simone berle
simone_berle@yahoo.com.br
walter kohan
wokohan@gmail.com
nefi/uerj

Vivemos tempos difíceis no Brasil e, em particular, no Estado do


Rio de Janeiro. Configurado e legitimado, na República, o cínico Golpe
de Estado pelas instituições dos três poderes, com o alicerce das
grandes corporações midiáticas, o Governo do Estado do Rio de
Janeiro explicitou nos últimos anos, com um cinismo que se assemelha
ao do Governo Federal, a sua mais absoluta falta de sentido público e
político em relação à educação em geral e, em particular, à
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), a principal
instituição de ensino superior do Estado e uma das principais do país.
Em 2016, a UERJ deixou de receber os repasses mínimos para seu
funcionamento básico, os salários de professores e funcionários
passaram a ser pagos com atraso e em parcelas, os alunos mais
necessitados pararam de receber suas bolsas e, por conseguinte, ela
passou a trabalhar em condições extremamente precárias. Teve,
inclusive, que parar de funcionar e, embora as atividades tenham sido
retomadas até se aproximarem gradativamente de certa
“normalidade” hoje, os danos causados por uma política pública
infame do governo do Estado foram e continuam sendo sensíveis. No
vizinho munícipio de Duque de Caxias, na chamada Baixada
Fluminense, a situação é semelhante, com uma paralela mostra de
desprezo do poder público pela educação pública. Em suma, vivemos
uma situação vergonhosa e indigna, inadmissível para qualquer
sociedade dita democrática. Vale perceber que a crise política, com
matizes e singularidades próprias de cada contexto, não é
exclusividade do Brasil, mas se estende com força e, salvo algumas
exceções, por toda América Latina.
Nessa conjuntura, o Núcleo de Estudos de Filosofias e Infâncias
(NEFI) da UERJ afirma, com uma atividade acadêmica cada vez mais
intensa, seu compromisso na defesa ativa e militante da universidade
e da educação públicas. Uma mostra disso é a organização, de 1 a 5 de
outubro de 2018, do IX Colóquio Internacional de Filosofia e Educação
com mais de 1200 participantes. Trata-se de colocar em prática o
compromisso da Universidade Pública com a geração de um espaço

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allan rodrigues, simone berle e walter kohan

aberto de pensamento para propiciar uma vida mais reflexiva e


colocar coletivamente em questão a vida de nosso tempo.
O colóquio, que se realiza ininterruptamente a cada dois anos
desde 2002, engendra, assim, um encontro coletivo de ideais, saberes,
pensamentos, modos de vida a partir dos afetos experimentados por
corpos sensíveis às seguintes questões: como problematizamos, no
contexto político que é o nosso, o sentido da educação e,
consequentemente, o sentido da própria atividade docente? Como é
possível resistir aos ataques à educação pública delineando relações
mais alegres e potentes entre nós nos acontecimentos de aprender e de
ensinar? Por quais descaminhos novas estéticas ensinantes e
aprendentes conseguem se esboçar firmando outras potências da vida?
Que contrapontos traçamos entre nossas errâncias educativas e o
eterno retorno das forças que diferem?
O colóquio é acompanhado de uma série de produções textuais
que buscam prolongar no tempo seus efeitos. Com trabalhos
apresentados também nessa IX edição do colóquio, publicamos: a) um
dossiê temático na revista childhood & philosophy; b) os Anais de
comunicações e c) o presente livro com trabalhos de mesas, minicursos
e sessões especiais, além de uma seleção de comunicações
recomendadas para publicação pelos pareceristas do evento.
Assim, os textos que configuram as seis seções desse livro
tornam-se passíveis de serem intensivamente experienciados por
práticas diferenciais de leitura-escrita conformados a partir de
diversas lógicas de encadeamento, capazes de entretecer
possibilidades outras para o percurso (movimentos, pousos, conexões,
quebras/rupturas, pontos diversos de entrada e saída, reingresso,
espera, repouso, decolagem). Eles se afirmam errantes, inventivos,
propiciadores de movimentos inesperados e impensados no pensar.
Antes de apresentar os textos que compõem o livro, vale um
esclarecimento: optamos por publicá-los em sua língua original.
Sabemos os riscos. Mas, também, as potências, os desafios, as forças e
as errâncias que essa diversidade de escritas acadêmicas pode
inaugurar; leiam as leitoras e leitores esse gesto como um convite a
desabitar os lugares cômodos e fáceis demais de se fixar no mundo do
pensamento e se instalar no movimento que as escritas aqui presentes
procuram promover. Errem com elas.
A primeira seção, Experiências escolares com filosofia,
apresenta experiências concretas de práticas filosóficas em diversos
contextos, línguas e estilos. Annalisa Caputo, em “Philosophia ludens
per bambini. Una proposta per giocare e pensare” descreve um projeto
de extensão e pesquisa universitárias nascido na Universidade de Bari,
Itália, junto à escola pública da mesma cidade italiana. O texto
combina um relato de algumas atividades e propostas práticas do
projeto Philosophia ludens (PhL) per bambini com uma fundamentação

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apresentação: inventar escola, infâncias do pensar

teórica do mesmo. O específico do projeto passa por quatro elementos:


a) sua dimensão hermenêutica (P. Ricouer); b) o uso de outras
linguagens além da conceitual; c) uma dimensão crítico/utópica; e,
finalmente, d) uma dimensão lúdico-agônica, que Annalisa considera
a mais original e singular do projeto. Já Carla Silva continua a primeira
seção com “A propósito da infância: errância”. O texto parte de
vivências recentes com crianças em algumas escolas públicas de
periferias de Maceió no estado de Alagoas, Brasil. A infância é
afirmada aí como início de práticas que potenciam o pensar entendido
como uma forma de dança. Em “Filosofia na escola pública: ensaiando
um canto de resistência em tempos de dissolução”, Edna Olímpia da
Cunha e Vanise Gomes Dutra refletem, desde a singularidade de uma
escola de periferia no município de Duque de Caxias, Rio de Janeiro,
sobre formas de resistir às brutalidades do (des)governo contra a
escola pública: essa escrita emoção, escrita sentimento, escrita ousadia
afirma-se na importância, no valor e na comoção que gera o perguntar
nas participantes de um filosofar que já não são crianças cronológicas,
mas habitam a infância de uma educação de jovens e adultos que quer
se constituir num espaço de problematização da vida dentro e fora da
escola. Já com “’Meriendas Filosóficas’ en la Biblioteca popular,
Carilafquen. Pensar la experiencia. La experiencia del pensar”, de
María Silvia Rebagliati e a equipe do projeto “Meriendas filosóficas”
(Lanches filosóficos), entramos num projeto na Biblioteca Popular
Carilafquen de Villa Los Coihues, Patagónia argentina. O texto narra,
de forma muito concreta, alguns encontros filosóficos que acontecem
numa Biblioteca Popular de um bairro de Bariloche. A relação com os
textos, o sentido das perguntas e do perguntar, a forma da
conversação são algumas das questões que, a partir de sua própria
prática, o texto convida a pensar. A presente seção oferece a seguir um
texto sobre as Olimpíadas de Filosofia no Uruguai, talvez o país com a
tradição mais firme de ensino de filosofia na escola média da América
do Sul: “Olimpíadas Filosóficas Uruguayas. Reflexiones sobre una
experiencia”, escrito pelos colegas uruguaios Marisa Berttolini,
Christian Burgues, Ana Duboué, Mauricio Langon e Adelina Pintos.
Para os que duvidam da própria possibilidade de algo como
Olimpíadas de Filosofia, o texto mostra em que medida, no cenário
uruguaio, as Olimpíadas são um espaço de articulação de uma
educação filosófica formal e informal, ou seja, elas contribuem a
alcançar os sentidos da filosofia na escola e fora dela. Apresenta uma
experiência concreta com as Olimpíadas na localidade de Sauce, os
intrigantes “campamentos filosóficos” com crianças e jovens e
mergulha no impacto que a filosofia tem nos jovens que participam
dela. Finalmente, a seção é concluída com um texto em inglês de uma
professora de escola pública da cidade de Cape Twon, na África do
Sul. Nele, Rose-Anne Reynolds explora o círculo como forma de

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allan rodrigues, simone berle e walter kohan

ocupar o espaço da sala de aula. Desde uma perspectiva


posthumanista, analisa como se faz o círculo e os materiais, discursos e
dispositivos que o compõem. Coloca especial atenção nas relações
entre o humano e o que está para além do humano.
A segunda seção do livro, Estéticas do corpo, gênero,
sexualidade e pedagogia, apresenta textos relativos às temáticas do
corpo, sexo, gênero, desde perspectivas filosóficas e políticas. Adriana
Maria da Silva abre a seção com “O corpo profano da experiência
estético-educativa”. Nele, busca tecer conexões a partir do saber
proveniente do corpo seguindo uma linha iniciada por Maurice
Merleau-Ponty com proposições da artista brasileira Lygia Clark,
“para quem a arte contemporânea enreda-se na experimentação do
corpo e na ressensibilização da existência”. O que Adriana propõe é
pensar a dimensão estética da educação a partir do corpo para além
dos dispositivos de disciplina e controle que conformam as
instituições. O também pernambucano Alexandre Simão de Freitas
trabalha na mesma tessitura. Em “Outras filosofias da educação na
filosofia da educação brasileira: educar os corpos em fluxo para além
do imaginário do carbono”, problematiza o governamento liberal dos
corpos a partir de uma interlocução com tradições outras de
pensamento. É uma busca especulativa por pensar a formação humana
desde uma lógica diferente, descolonizadora; de tornar visíveis
cosmologias, ontologias e epistemologias outras para afirmar uma
política da verdade diferente do discurso filosófico da modernidade,
“buscando adensar a resistência aos efeitos perversos da
criminalização, sexualização e racialização de corpos, vidas, espaços,
práticas e instituições”. Já em “Do que pode lançar mundos no mundo.
Da representação à pedagogia da montagem”, Isaac Pipano muda de
cenário e de interlocutores. É a vez do cinema, a partir de sua força
criadora, como uma pedagogia da montagem que amplia o campo dos
possíveis. É também o cinema como forma pedagógica, montando,
com suas imagens, esses blocos de espaço-tempo que permitem a
emergência de modos de existência outros. Por sua vez, em “Vigilar y
castigar (los cuerpos): la enseñanza de la filosofía frente al sistema de
opresión sexo/género”, Luciana Carrera Aizpitarte, a partir de
exemplos de práticas com crianças de oito anos de um colégio de
aplicação da Universidad Nacional de La Plata, Argentina, mostra
como a experiência da filosofia na escola pode desnaturalizar e libertar
os corpos da violência dos dispositivos que os atam ao dualismo como
o de varão/mulher. Ao mesmo tempo, reflete sobre o papel docente,
seja na reprodução ou na problematização dessa violência. Muito
próxima dessa temática, Olga Grau estuda também a identidade de
gênero e mais especificamente a questão da identidade trans-gênero
de crianças em “La cuestión de la identidad: política sexual y cuerpo
infantil”. O texto problematiza uma questão com dimensões filosófica,

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apresentação: inventar escola, infâncias do pensar

política, educativa, psicossocial e jurídica, em particular no que diz


respeito ao cenário pedagógico em que ela se manifesta, no Chile
neoliberal de nossos dias. Já em “O ingovernável dos corpos e das
multidões na escola: formação ética, resistência e alteridade radical”,
Pedro Pagni estuda o papel dos corpos ingovernáveis e das multidões
na escola: foco de um aprendizado ético que resiste à moralidade
presente na instituição escolar em nosso tempo. O texto ensaia
também refletir sobre o papel de uma educação filosófica para
“acolher a resistência do ingovernável das vidas errantes que aí
transitam e a alteridade radical que facultam, na medida em que
catalisam certa fragilidade dos corpos e das multidões que escapam ao
atual governo das diferenças”. Finalmente, Sílvio Gallo e Alexsandro
Rodrigues, em “Sexualidades e infâncias: (des)viar conversas que
afirmam uma infância, para fiar preocupações com a novidade da
criança em aparecimentos”, estudam a irrupção da sexualidade
infantil no cotidiano escolar, como o caso das crianças (des)viadas que
mostram o que a sociedade não quer ver. A partir de autores como
Foucault, Schérer, Deleuze e Guattari pensam a criança para além da
tutela e da interdição.
Os textos da terceira seção, A escola, o mundo, a vida, tratam da
relação da escola com o mundo e a vida. Gladys Madriz Ramírez, em
“Escuela y vida buena. Sentido común y prudencia política”, estuda as
figuras do “sem razão” e de quem “se vai de boca” para problematizar
o senso comum de nossa época e mostrar a importância de uma escola
que precisa afirmar e ensinar a viver uma vida boa, bonita, justa e
elevada. Em “The emancipatory rhythms of scholé”, Jason Wozniak
mostra como diversos estudos sobre a noção grega de scholé associam
ela ao tempo na escola e parecem ter esquecido a questão do ritmo.
Assim, nesse texto, a escola como scholé aparece menos associada ao
tempo livre do que a uma interrupção da economia do tempo
dominante que permite a emergência de novos ritmos na educação e,
com eles, novas possibilidades de existência. Jorge Larrosa, em
“Impedir que el mundo se deshaga. Con algunas escenas escolares y
una conversación sobre la transmisión, la comunización y la
renovación del mundo”, trabalha com algumas categorias de Hannah
Arendt e diversas cenas escolares para problematizar o sentido da
escola e o para que vamos a ela: para ser felizes e aprender coisas úteis
ou para impedir que o mundo se desfaça? Já em “Matar al maestro un
ejercicio -¿no habitual?- de educación”, Malena Ivone Bertoldi também
trata dessa questão: para que vamos à escola, em particular, quando
somos professoras? O texto compreende e desdobra essa pergunta a
partir de uma sucessão de mortes (a do modelo, a do produto, a das
perguntas velhas) para poder ser a professora que se é. Em “A
espiritualidade da democracia e a defesa da escola”, Marcelo Senna
Guimarães discute a ideia de educação democrática afirmada por Gert

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allan rodrigues, simone berle e walter kohan

Biesta, para pensar em uma espiritualidade própria à democracia e à


escola como um lugar especial para a realização dos exercícios
espirituais que possam permitir efetivar essa vida democrática.
Finalmente, em “Figuras de la alteridad-autoridad-autorización entre
filosofía y educación. Una aventura narrativa”, María Beatriz Greco
oferece um trabalho teórico-prático de diálogo entre saberes filosóficos
e educativos que dá lugar a uma alteridade recriadora da tradição; um
trabalho do pensamento que, na esteira de J. Rancière, des-identifica,
re-arma, para fazer lugar ao que não tem parte. Finalmente, em
“Escrita, leitura e o tempo de atenção”, Maria Alice Gouvêa
Campesato, Elisandro Rodrigues e Betina Schuler problematizam as
relações entre escrita, leitura e tempo na escola em tempos que
nomeiam de “dispersão hiperconectada”. O texto busca tirar a escrita
escolar do lugar de comunicação, registro, moral, avaliação e
julgamento para reterritorializá-la com uma função etopoiética: uma
escrita escolar de palavras que aproxime a escola da vida e do mundo,
e que ao mesmo tempo passe pela pele de escritores e escritoras.
A seguinte seção, Um lugar para ensinar... filosofia?, contém
textos que tratam mais especificamente do ensino de filosofia e uma
educação filosófica. Em “Uma proposta de ensino poético-filosófica”,
André Luís Borges de Oliveira estuda o lugar da palavra poética em
relação ao saber e ao conhecer nas práticas de ensino de filosofia
escolarizadas. Já em “El arte de enseñar. Sócrates maestro de amor”,
Gregorio Valera-Villegas oferece uma leitura hermenêutica que coloca,
novamente, Sócrates como mestre do amor no centro da cena
pedagógica para ajudar a pensar o que não podemos deixar de pensar
em nosso tempo. Por sua vez, em “Roda de conversa e exercício do
pensamento: uma aposta experienciada com o Pibid/UNIRIO”, Evelin
Sousa da Silva e Renata Alves apresentam experiências do bem
sucedido e recentemente extinto Programa Institucional de Bolsa de
Iniciação à Docência, PIBID, para levar estudantes de licenciatura de
universidades a escolas públicas. O texto apresenta a Roda de
Conversa como espaço de partilha, horizontalidade, igualdade,
afetividade e alteridade, propício para um filosofar que permite
escutar as narrativas infantis e movimentar o pensamento. Em “El
error sabio”, Gustavo Ruggiero retoma as temáticas do texto inicial
dessa seção a partir de C. Castoriadis, para pensar o lugar da razão
poética numa educação emancipadora. A questão de fundo é a mesma
do último Paulo Freire: a dos saberes necessários para uma tal
educação. Finalmente, Laura Agratti, em “Filosofía y educación en
errancia: ¿paseantes, vagabundas, peregrinas?”, trata essas figuras
errantes para pensar a própria trajetória de um projeto de extensão e
formação universitária de educação pública em La Plata, Argentina.
Tratar-se-ia de um espaço para dar lugar a uma filosofia inacabada e

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apresentação: inventar escola, infâncias do pensar

inacabante perante as pretensões presentes de mostrar o mundo como


acabado.
A quinta seção do livro, Invenções: mapas, cartografias, devires,
contém textos mais concentrados nos caminhos ou métodos. Mas eles
também desbordam inventivamente os caminhos e, talvez, a invenção
seja o conceito comum a todos eles. Em “Inventividade nas imagens
errantes: micropolítica estética e devir-infância”, Alexandre Filordi de
Carvalho e César Donizetti Pereira Leite inventam e apresentam o
conceito de imagocracia para descrever o que as crianças fazem. Para
desdobrá-lo e ilustrá-lo, mostram alguns blocos de imagens e
experimentam, com eles, um pensar infantil. Em “Mapas invisíveis e
viajantes cegos: Ensaio para uma escola do oculto”, Daniel Gaivota
Contage retoma seu trabalho sobre a escola-viagem para visitar o que
a escola oculta. Assim, viajar ganha o sentido de experimentar o que
está oculto. Em “Método Labiríntico: encontros e composições em jogo
para uma pesquisa-docência da diferença”, Diego Esteves e Máximo
Lamela Adó desdobram a ideia de viagem na trama do labirinto: a
vertigem labiríntica é apresentada como um método e estilo de afirmar
diferenças ao habitar a pesquisa-docência. Em “Potência inventiva,
infância e devir-música da educação”, Regina Marcia Simão Santos,
Neila Ruiz Alfonso e Pablo de Vargas Guimarães compõem uma
pedagogia musical da multiplicidade, aberta, rizomática. A partir de
aúdios e vídeos de uma criança de 4 anos, mostram exercícios de uma
aprendizagem ao mesmo tempo constrangida e inventiva, em que a
música escapa do molar e se reterritorializa no molecular das linhas de
fuga, de uma educação musical “menor”. Rosimeri de Oliveira Dias e
Heliana de Barros Conde apresentam dois textos. Em “Três
dispositivos para uma formação inventiva de professores:
deslocamentos em companhia de Michel Foucault”, focam sua escrita
e pensamento numa formação outra de professores que afirma,
justamente, a invenção como seu motor. A partir de três dispositivos
(aula, problema, ética) inspirados em Michel Foucualt, o ato de formar
e formar-se integra-se “às artes libertárias de viver, pensar, agir e
ser....neste mundo”. Já em “Pensar a infância. Desusos, usos e abusos
em Michel Foucault”, problematizam um eventual desuso do trabalho
de Michel Foucault no que diz respeito aos estudos sobre a infância no
Brasil. Provocador e instigante, o texto procura afirmar-se foucaultiano
no sentido que o próprio Foucault caracteriza: abusado, indócil,
infame. Finalmente, “A circularidade entre a atenção cartográfica e a
aprendizagem inventiva” de Virginia Kastrup oferece um
desdobramento de seu pensamento e escrita potentes a respeito do
trabalho do cartógrafo. O foco é nas possibilidades e desafios de uma
aprendizagem inventiva da atenção. O texto lida com uma pergunta
ao mesmo tempo difícil e necessária: como uma tal aprendizagem é
possível sendo a atenção, a uma vez só, a sua condição e sentido?

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allan rodrigues, simone berle e walter kohan

A sexta e última seção do livro, Arquipélago afro, indígena,


popular, traz palavras e mundos “outros”. Em “(Des)colonialidade e
insurgência zapatista: alternativa pedagógica e pensamento de
fronteira”, Cheron Moretti estuda o zapatismo como um movimento
de resistência, justamente através dos conceitos de alternativa
pedagógica e pensamento de fronteira que apresenta. A partir desse
marco, o texto mostra como a insurgência zapatista tensa, confronta e
resiste a colonialidade do poder/ser/conhecer dominante. Também
sobre a condição e vida indígenas trata “’Um pouquinho de cada: os
indígenas ensinam a educar” de Kércia Priscilla Figueiredo Peixoto e
Reinaldo Matias Fleuri. O foco aqui é uma outra educação baseada na
interculturalidade e dialogicidade que o princípio “um pouquinho de
cada” permite construir. Trata-se de uma abertura à alteridade a partir
do respeito aos diferentes modos de ser e de viver historicamente
oprimidos. Em “Comunicação ancestral e filosofia indígena: A
educação da Mãe Terra”, Renata Machado apresenta a relação dos
povos originários com a terra como princípio e eixo da educação
indígena. O texto busca contribuir para a quebra dos discursos
coloniais dominantes a partir das narrativas da memória de culturas
indígenas. Em “Educação popular: um projeto em movimento para a
superação da ordem hegemônica” é a vez de Márcia Mara Ramos,
quem apresenta pontos em comum entre a educação popular do
mestre venezuelano Simón Rodríguez e a Pedagogia do MST. Em que
pesem as diferenças de contexto, Márcia revela muitas similaridades
na luta por uma escola de e para iguais, e de uma educação pública e
social como direito de todos. Afinal, o que aproxima os dois projetos é
a luta pela igualdade e liberdade dos povos oprimidos. Simón
Rodríguez é também a inspiração de Maximiliano Durán em
“Igualdade, militância e educação na escola popular de Simón
Rodríguez”, que estuda a vida do mestre de Bolívar a partir das ideias
de igualdade e militância. O filósofo francês Alain Badiou inspira o
próprio conceito de ideia para, a partir de um exemplo concreto do
mestre inventor, mostrá-lo como alguém que encarna a ideia de
militante da igualdade e uma figura inspiradora para pensar o papel
hoje de educadores e educadoras. Já em “Outras paisagens no ensino
de filosofia: do continente ao arquipélago”, Luís Carlos Ferreira e
Eduardo Oliveira, inspirados no pensador caribenho Édouard
Glissant, abrem o território do ensino de filosofia aos conceitos de
paisagem e arquipélago que reterritorializam a filosofia e possibilitam,
de um lado, a errância, o devir e a deriva e, do outro, a multiplicidade
e uma relação inventiva com o todo-mundo. Finalmente, em
“temporalidade, memória e ancestralidade: enredamentos africanos
entre infância e formação”, Wanderson Flor do Nascimento articula
percepções advindas do continente africano em torno da infância com
a imagem elaborada por Nietzsche em seu Assim falou Zaratustra, no

16
apresentação: inventar escola, infâncias do pensar

discurso “Das três metamorfoses”. O texto permite pensar os


processos formativos de maneira muito diversa se, em vez de partir de
uma imagem da criança sem memória, sem passado e iniciadora, como
a nietzscheana, aproxima ela das ideias de temporalidade, memória e
ancestralidade. Assim, esse ensaio pode ser lido como uma
provocação antirracista para potencializar os encontros entre infância,
filosofia e educação.
Esses são os textos que compõem o livro Filosofia e educação em
errância. Lemos eles como escritas de filosofia e de errância que
movimentam as práticas educativas em tempos difíceis no Brasil e na
América Latina. Eles são gritos afirmativos; formas de enfrentar
políticas de silenciamento e negação; escritas-convite a leituras
filosóficas e errantes que inventem escola e afirmem uma infância do
pensar.
O livro, e seus textos, já está nas suas mãos. Agora é a sua vez.

Rio de Janeiro, setembro de 2018

17
18
experiências escolares com filosofia
philosophia ludens per bambini. una proposta per giocare e
pensare

annalisa caputo
università di bari
annalisa.caputo@uniba.it

perché la filosofia dovrebbe interessarsi ‘anche’ dei bambini?

I bambini danno a pensare, donne à penser1. Dietro questa


espressione c’è un gioco di parole, suggerito e analizzato in altri
contesti da Paul Ricoeur: infatti in francese ‘donne à penser’ significa sia
‘dare a pensare’ (mettere in questione, far riflettere, spingere
all’interrogazione) sia ‘fare un dono’ (donne) al pensiero2.
Allora, da un lato i bambini danno a pensare: cioè sono un possibile
oggetto d’interrogazione della filosofia, come ogni argomento, fatto,
questione (perché lasciare l’argomento dell’infanzia solo alla
pedagogia?). Dall’altro lato i bambini sono (possono essere) soggetti del
pensare e in questo senso fare un dono al pensiero. Perché i bambini ci
costringono a ripensare le nostre categorie di filosofia, arte, letteratura,
politica, in una parola: la nostra idea di vita. Il che non significa
necessariamente mutare tutte le nostre categorie adulto-centriche, o
buttarle a mare, ma implica per lo meno la possibilità (forse necessità)
di riconoscerle nella loro pre-comprensione.
Il bambino è l’altro per eccellenza rispetto alla filosofia e rispetto
al soggetto filosofico comunemente inteso (adulto, logico-razionale). Il
nostro linguaggio e le sue sedimentazioni ce lo dicono chiaramente3.
L’infanzia è in-fans: senza-parola (senza capacità di parlare, ‘fari’,
in latino). L’infanzia è il senza-logos, appunto (e quindi senza
‘razionalità’, senza capacità concettuale). Se la filosofia è lavoro del
logos (e lo è), non è pratica dell’infanzia (nel senso soggettivo del
termine).
Oppure, prendiamo la parola ‘bambino’. C’è chi fa risalire
l’etimologia all’onomatopea, la ripetizione di quelle labiali, B–M, che

1 Rimandiamo, su questo tema, al nostro: Quando i bambini danno a pensare, in Children


for Philosophy, volume monografico della rivista Logoi (www.logoi.ph), Mimesis, n. II,
6, 2016, pp. 9-20.
2 Cfr. P. Ricoeur, Il simbolo dà a pensare, tr. it. Morcelliana, Brescia, 2002.
3 «Il mostro dei filosofi è l’infanzia. Ma essa è anche il loro complice»: J.-F. Lyotard, Il

postmoderno spiegati ai bambini, tr. it. Feltrinelli, Milano, 1987, p. 113.

21
annalisa caputo

sono le prime lettere che il bambino impara a pronunciare; c’è chi la fa


risalire al greco βαµβαινω (bambàino), balbettare (parola comunque
onomatopeica). Il rimando è quasi all’inarticolato prima della parola.
Ancor di più lo scarto rispetto al logos emerge nella terza ipotesi
etimologica, secondo la quale ‘bambino’ sarebbe collegato a ‘bambo’
inteso come sciocco, babbeo (e, dunque, anche in questo caso, senza il
‘logos’ della ragione).
Il bambino è ‘meno’ dell’uomo/soggetto? Una certa tradizione
metafisico-occidentale ci dice di sì. In ogni caso, il bambino è ‘altro’
rispetto a noi.
Davanti all’alterità abbiamo sempre due rischi: soggiogarla,
eliminarla, rimuoverla (per affermare la nostra identità), o esaltarla,
idealizzarla, in una sorta di mitizzazione della differenza.
La storia della filosofia mostra in maniera evidente di aver
attraversato questi due rischi nei confronti dell’infanzia e di viverli
ancora oggi.
Rimozione: perché l’infanzia non è un tema centrale della
filosofia. O comunque il bambino è sempre il ‘minore’, che deve
kantianamente uscire dalla minorità per arrivare all’adultezza. E
quindi è l’essere-adulto il criterio e il valore. Il criterio e il valore sono
la razionalità, la pienezza umana, la responsabilità. Diciamo che, a
partire da Aristotele (e in parte già da Platone), fino al Novecento, lo
schema classico del razionalismo occidentale, rimuovendo l’alterità (la
molteplicità, il divenire, le differenze, il genere, la razza, ecc.), ha
rimosso anche l’alterità dell’infanzia, riducendola alla prima tappa di
un cammino che ‘è’ solo per essere superato4.
D’altro canto, l’altro rischio. L’esaltazione. Vico, Rousseau, i poeti
romantici. Il fanciullo è il genio, il vero filosofo: in lui risiede
l’immaginazione, la poesia, la verità intuitiva. È lui la terra perduta e
quella promessa, a cui nostalgicamente tendere5.
Lo schema rischia di rimanere lo stesso: o al bambino manca il
logos e lo deve sviluppare; oppure, proprio perché non ce l’ha, va
idealizzato e dobbiamo tendere a tornare così. Insomma il rischio è o

4 Su questo argomento, cfr. C. Calliero - A. Galvagno, Abitare la domanda: Riflessioni per


un’educazione filosofica nella scuola di base, Morlacchi Editore, Perugia, 2010. E G.
Massara, La domanda filosofica nell’infanzia. Quadri teorici ed esperienze didattiche, Ibis,
Como-Pavia, 2009.
5 Non ultimo su questa scia, V. Hösle, Infanzia e filosofia, in K. Nota - V. Hösle,

Aristotele e il dinosauro, Einaudi, Torino, 1999, pp. 187-190. Potremmo discutere anche
del fanciullo come tappa finale de Le tre metamorfosi dello Zarathutra di Nietzsche: un
recupero di quanto rimosso dalla tradizione razionalista.

22
philosophia ludens per bambini. una proposta per giocare e pensare

adultizzare i bambini o bambinizzare gli adulti6… (e per certi versi


questo è anche un rischio della filosofia per bambini7).
Invece, a nostro avviso, il primo passo decisivo è quello di
riconoscere l’alterità e conservarla. Il dialogo adulto / bambino,
filosofia da adulti / filosofia da bambini, è un dialogo possibile solo se
si conserva la differenza tra i due poli. I bambini fanno un dono alla
filosofia (e a noi adulti che facciamo filosofia) perché non sono adulti
(che fanno filosofia); e noi forse possiamo fare qualcosa per l’infanzia
solo se e perché conserviamo la nostra diversità. Allora l’imparare può
essere mutuale e il dono reciproco; altrimenti c’è sempre un rischio o
di dominio o di riduzione o schiacciamento8.
Ecco perché ci è piaciuto coniare un’espressione un po’
paradossale: ‘Bambini per la filosofia’9, che va tenuta insieme a: Filosofia
per i bambini. Là dove questo ‘per’ non indica tanto o solo o
innanzitutto i destinatari, ma una possibile finalità interna della
filosofia stessa. Insomma il duplice dono: della filosofia all’infanzia e
dell’infanzia alla filosofia. Lo diciamo con le parole di Marina Santi:
«forse, allora, filosofia e infanzia, anziché temere una reciproca
riduzione potrebbero finalmente godere di una mutua moltiplicazione,
ove la filosofia fa crescere i bambini e i bambini la filosofia»10. Un

6 Da questo punto di vista, ci pare preziosa l’analisi puntuale fatta da O. Brenifier dei
rischi che corrono gli adulti che si dedicano alla filosofia con i bambini e che lo fanno
per coprire o guarire le loro cicatrici: cfr. O. Brenifier, Filosofare come Socrate. Teorie e
forme della pratica filosofica con i bambini e gli adulti, Ipoc, Milano, 2015, pp. 99-114.
7 Per un’analisi dei rischi legati alle diverse visioni del bambino e quindi alla filosofia

con i bambini, cfr. W. O. Kohan, Infanzia e filosofia, Morlacchi, Perugia, 2006.


8 «Noi, quelli che ‘già sappiamo’, i soggetti dell’esperienza, mettiamo le nostre

migliori intenzioni nel disegnare il mondo che vogliamo per coloro che, pensiamo,
non sanno o ancora non sono vissuti abbastanza a lungo. Possiamo azzardare un po’
di più, predisporre un altro luogo per l’infanzia e osare pensare con l’infanzia, anziché
pensare per suo conto. Perché non partire dall’infanzia e proseguire con essa, anziché
al di sopra di essa? Smettere di pensare per essa (al suo posto e per suo conto) per
lasciarci pensare dall’infanzia, lasciare cioè che sia l’infanzia a pensarci»: W. Kohan, È
possibile che un bambino pratichi la filosofia nella scuola? Su un punto di vista infantile
riguardo al senso del filosofare, in AA. VV. (a cura di L. Rossetti e C. Chiapperini),
Filosofare con i bambini e con i ragazzi. Atti delle giornate si studio di Villa Montesca (31
marzo – 3 aprile 2005), Morlacchi, Perugia, 2006, p. 45.
9 Questo il titolo del volume monografico della nostra rivista Logoi, Children for

Philosophy / Bambini per la filosofia, (www.logoi.ph), Mimesis, n. II, 6, 2016.


10 M. Santi, Filosofia e bambini. Condizioni e possibilità di incontro, in Id. (a cura di),

Philosophy for Children: un curriculum per imparare a pensare, Liguori, Napoli, 2005, p.
233.

23
annalisa caputo

circolo che può diventare virtuoso, se è vissuto in questa duplice


dimensione11.
Abbiamo quindi una risposta alla domanda da cui è partito
questo paragrafo: perché è interessante dal punto di vista teoretico
interessarsi di filosofia e bambini (e di filosofia per bambini)? Perché
questo tipo di pratica e di esperienza ci costringe a ripensare (o per lo
meno ci aiuta a ridefinire) il senso del nostro fare filosofia. Lo diciamo
con le parole di un docente di Filosofia teoretica, Luca Illetterati:
si tratta forse di chiedersi se lo svilupparsi di diverse
tipologie di itinerari e discorsi che chiamano in causa la
filosofia non dica qualcosa alla filosofia. (…) In questo
senso, al di là del valore che essa può avere in se stessa,
una esperienza come quella della Philosophy for
Children è in realtà anche un’occasione per la filosofia
per pensare ancora una volta a se stessa, per non dare
per scontato ciò che essa non può strutturalmente dare
per scontato, per metterci ancora e sempre nuovamente
in questione, per chiedersi ciò che all’interno dei saperi
disciplinati non ci si chiede e non c’è necessità di
chiedersi12.
Esperienze come quelle dei caffè filosofici, del couseling
filosofico, dei vari festival, ma, nello specifico, per quello che ci
interessa, della filosofia per/con i bambini13, ci costringono a chiederci:
ma queste ‘altre’ cose sono ancora filosofia? E quella che insegniamo
all’università, se è filosofia, perché lo è? Che differenza c’è tra la
filosofia accademica e le altre filosofie? E quindi: che cos’è la filosofia,
se può essere qualcosa per i bambini (dei bambini) e non solo degli

11 «Pensiamo che la filosofia abbia un impegno con l’infanzia, non solo con quella dei
bambini e con quella di qualsiasi persona aperta alla possibilità di un altro modo di
esistere, ma anche con l’infanzia del mondo. (…) Il mondo e l’infanzia in cui (non)
siamo meritano questo sforzo»11: W. O. Kohan, Questioni filosofico-politiche nella filosofia
con i bambini, in M. Santi (a cura di), Philosophy for Children: un curriculum per imparare a
pensare, cit., p. 192. Per un quadro più ampio, rimandiamo a W. O. Kohan – V.
Waksman, a cura di M. Santi, tr. it. di S. Monica, Fare filosofia con i bambini: Strumenti
critici e operativi per il lavoro in classe con e oltre il curricolo ‘Philosophy for Children’,
Liguori, Napoli, 2013.
12 L. Illetterati, La doppia natura del filosofo, in Philosophy for Children: un curriculum per

imparare a pensare, cit., p. 198.


13 Non entriamo nel merito della distinzione delle preposizioni. Come è noto, M.

Lipman utilizzava per lo più l’espressione ‘for’ children, che di fatto corre il rischio
(nella lettera forse più che nelle reale intenzioni lipmaniane) di essere un lavoro
pensato dagli adulti e rivolto ad i bambini (come destinatari). Così già negli anni ’90 E.
Martens (in italiano si può vedere: Filosofare con i bambini. Un’introduzione alla filosofia.
tr. it. Bollati Boringhieri, Torino, 2007) sottolineava il limite del ‘per’ e proponeva di
parlare di una filosofia ‘con’: mit Kindern (con i bambini).

24
philosophia ludens per bambini. una proposta per giocare e pensare

(per gli) adulti, o comunque dei/per i giovani? Di che filosofia stiamo


parlando? Tutte le forme di filosofia sono ‘utilizzabili’ con/dai
bambini? E, se no, perché? È chiaro che la filosofia per/con i bambini è
una sfida per il pensiero, innanzitutto.

dalla philosophy for children ad altre forme di filosofia per/con i


bambini

Negli anni ’70, come sappiamo, nasce grazie a Matthew Lipman


la Philosophy for Children (P4C). È indubbiamente necessario conoscerla
e studiarla, se si vuole lavorare filosoficamente con i bambini. Non ci
si distacca se non da ciò che si conosce e se lo si conosce: siamo sempre
nani sulle spalle di giganti.
La nostra proposta (su cui arriveremo tra breve) non si pone sul
solco della P4C. Ci limitiamo a dire qualche motivo per cui ci
accodiamo a iverse cuole ed esperienze che cercano di andare oltre
Lipman14, tanto che qualcuno ha parlato di post-P4C15.

14 «Come in ogni movimento, la filosofia per i bambini ha generato le reazioni più


diverse, sia al suo interno che al di fuori. Difensori e detrattori. Ortodossi ed
eterodossi. Filosofia per i bambini e filosofia con i bambini. Filosofia e filosofare.
Bambini, ragazzi, bambine, ragazze. Pratiche filosofiche. America latina, Europa,
Africa, Oceania, Asia: tutto il mondo si è interessato a questo progetto che si è diffuso
da ogni parte nel pianeta. In Italia il progetto ha una forza singolare»: W. O. Kohan, Il
bambino e la filosofia nella comunità di ricerca, Da presupposto a domanda, in “Educazione
democratica”, III, 6, 2013, pp. 70-88.
Per quanto riguarda l’Italia, cfr. quanto già scrivevano L. Rossetti e C. Chiapperini,
nell’Introduzione al volume (curato da loro) Filosofare con i bambini e con i ragazzi. cit.,
p. X: «L’esigenza di ‘guardarsi attorno’ e cercar di capire la direzione che poteva
prendere questo inedito philosophein con dei bambini (e, talvolta, dei ragazzi) era ed è
accentuata dalla constatazione che in Italia coesistono una modalità (…) consolidata e
divulgata, la cosiddetta Philosophy for Children, e una varietà di altre forme che non
fanno riferimento a quel modello e che, a seconda dei casi, si accompagnano alla
elaborazione di altri modelli o al consapevole rifiuto di ogni modellizzazione per
timore di ‘togliere respiro’ a sessioni che devono invece rimanere aperte e creative». In
Italia, con Livio Rossetti e non solo, si muove da tempo in alternativa alla P4C
l’Associazione “Amica sofia”. Possiamo inoltre segnalare i lavori di A. M. Iacono e S.
Viti (cfr. Le domande sono ciliegie. Filosofia alle elementari, Manifestolibri, Roma, 2000; Id.,
Per mari aperti. Viaggi tra filosofia e poesia nelle scuole elementari, Manifestolibri, Roma
2004). Ed inoltre la Fondazione Collegio San Carlo, che organizza iniziative legate alla
filosofia con i bambini dal 2010
(http://filosofiaconibambini.fondazionesancarlo.it/fondazione/Viewer?cmd=default
). Tra i volumi pubblicati, Piccole ragioni. Filosofia con i bambini, ed. F. Cosimo Panini,
Modena, 2012; FilosoFare, Ed. Artebambini, Bologna, 2015. Rimandiamo inoltre ai testi
citati nella nostra nota 26.

25
annalisa caputo

La matrice della P4C è chiaramente deweyana (pragmatista, in


questo senso) e per certi versi analitica. Lipman insegnava appunto
Logica. E la finalità è chiara: ‘chiarire’ il mondo dell’esperienza e
sviluppare il più possibile le capacità logico-cognitive dei ragazzi. Non
è un caso se la prima esperienza di P4C è fatta da Lipman con ragazzi
di 11 anni16, perché egli sa bene, con Piaget, che, prima di quell’età,
non sono sviluppate un certo tipo di abilità. Poi, Lipman è andato ‘a
ritroso’, verso le fasce d’età più piccole: perché la P4C può preparare il
terreno a questo sviluppo17. Ma la finalità non è cambiata: una sorta di
avvicinamento e avviamento al pensiero logico18; anche in vista del
bisogno di favorire quell’atteggiamento dialogico-partecipativo che è
alla base della dimensione democratica. La comunità di ricerca
filosofica è preludio e modello della comunità sociale e politica che
siamo chiamai a co-costruire. E lo scenario americano risuona
potentemente anche in questo19.

15 Il riferimento è all’espressione adoperata da S. Bevilacqua e P. Casarin in Philosophy


for children in gioco, esperienze di filosofia a scuola: le bambine e i bambini ci pensano (a cura
di), Mimesis, Udine – Milano, 2016.
16 Il racconto di riferimento è Harry Stottlemeier’s Discovery, Il Prisma dei perché

(adattamento e cura di A. Cosentino), Liguori, Napoli, 2004.


17 Il curriculum si è infatti arricchito e composto di diversi testi, riadattati e tradotti

anche in italiano. Per la scuola dell’infanzia: L’ospedale delle bambole, (adattamento e


cura di M. Striano), Napoli, 1999, Liguori. Per la Prima e Seconda classe della Scuola
Primaria: Elfie, (adattamento e cura di M. Striano), Liguori, Napoli, 1999; Elfie.
Manuale. Mettiamo insieme i pensieri, (adattamento cura e tr. di M. Striano), Liguori,
Napoli, 2000. Per la Terza e la Quarta: Kio e Gus, (adattamento e cura di M. Santi, tr. di
P. Pizzi), Liguori, Napoli, 1999. Per la Quarta e la Quinta: Pixie, (adattamento, cura e
tr. di A. Cosentino), Liguori, Napoli, 1999; Pixie. Manuale. Alla ricerca dei significati,
(adattamento, cura e tr. di A. Cosentino), Liguori, Napoli, 2000. E seguono anche altri
testi per il biennio scuola secondaria superiore e il triennio.
18 In realtà ovviamente il discorso è molto più ampio rispetto a quello a cui lo stiamo

‘riducendo’ per ragioni di sinteticità. L’obiettivo è più l’attenzione ad un pensiero


complesso che un pensiero meramente e astrattamente logico. Come è noto, il
pensiero per Lipman ha una componente critica, una creativa e una emozionale-
valoriale. Cfr. M. Lipman, Educare al pensiero, Vita e Pensiero, Milano, 2005. Su questo
rimandiamo a M. Santi, Ragionare con il discorso. Il pensiero argomentativo nelle
discussioni in classe, Liguori, Napoli, 2006.
19 Cfr. W. O. Kohan, Il bambino e la filosofia nella comunità di ricerca, cit.; «(…) è chiaro

che, in ultima istanza, il criterio per giudicare una ricerca filosofica è, secondo
Lipman, capire in che misura contribuisce ad una società migliore. (…) Quando si
moralizza il pensare, quando si concepisce il pensare in termini di buono o cattivo
pensare, quando la logica o la democrazia sono il fondamento o il senso dei valori
assegnati al pensiero, quando il senso del pensare viene già ‘pensato’, già non è più
tanto facile pensare (…). Quando questioni come la logica e la democrazia si
postulano come presupposti o significati, come quelli che orientano l'inizio e la fine

26
philosophia ludens per bambini. una proposta per giocare e pensare

Ora: la domanda che ci poniamo, che ci siamo posti quando


abbiamo iniziato a pensare ad una alternativa e che ancora oggi
riproponiamo è se questo sia l’unico modo possibile di fare filosofia; e
se queste siano le uniche finalità possibili per la filosofia. Ce lo
chiediamo in senso ‘teoretico’ forte e generale (prima di arrivare ai
bambini): perché dietro c’è sempre la questione fondamentale: che
modello di filosofia ho in testa?
Se ho un modello pragmatista, analitico, logico, se credo che la
filosofia sia chiarificazione del linguaggio e del concetto e che serva a
creare un modello di società democratica (stile statunitense, magari!),
va benissimo Lipman. Ma se non ho in testa questo modello di
filosofia? È possibile una Filosofia per/con i bambini diversa? Magari più
legata alla filosofia continentale che a quella lipmaniana? Con una
diversa metodologia e finalità?
Ecco: molte sperimentazioni che sono nate negli ultimi 15 anni (e
forse anche prima) si muovono in questa direzione. Anche Philosophia
ludens per bambini.

philosophia ludens per bambini: lo scenario ermeneutico-


esistenziale

Una premessa, prima di arrivare alla proposta concreta. Molti


studiosi in Italia non parlano letteramente di ‘filosofia’ con/per i
bambini, ma di Filosofare. Sottolineando il -Fare (e quindi la
dimensione pratica, di pratica filosofica…)20; e più in generale
sottolineando la verbalità dell’espressione ‘filosofare’, il ‘verbo’ con
rimando esplicito al greco philosophein21. Ecco, personalmente ci

del pensiero, invece di facilitare il pensare, possono renderlo impossibile nella sua
forma più positiva e interessante». Cfr. anche Id., Lipman y la Filosofía. Notas para
pensar un concepto, in Felix G. Moriyon (ed.), Matthew Lipman. Educación y Filosofía,
Ediciones de la Torre, Madrid, 2002, pp. 49-69.
20 Cfr. per esempio A. Volpone (a cura di), FilosoFare, politica e società, Liguori, Napoli,

2008; AA. VV., FilosoFare, cit.


21 Cfr., su questo, già dal titolo, il già citato: Filosofare con i bambini e i ragazzi. In

particolare possiamo richiamare il saggio di F. Cambi (Un processo in corso: dalla


filosofia insegnata alle ‘pratiche filosofiche’ vissute), che alle pp. 9-10 scrive: «Questo
rilancia l’anthropos al centro del philosophari (…) e un’idea del philosophari
antropologica in vista della formazione»; e ancora, in ivi: A. Cosentino, Il filosofare
come pratica sociale. Il modello della ‘Philosophy for Children’, pp. 15 sgg.: «La proposta è
rendere più esplicitamente oggetto di cura didattica il filosofare e di invertire lo
schema: partiamo dal ‘filosofare’ e arriviamo alla disciplina, andiamo ‘verso’ la
disciplina (…). La proposta è: partire dal filosofare, perché se la filosofia è uno
standard selettivo, il filosofare non lo è. Con ogni probabilità il ‘filosofare’ è

27
annalisa caputo

riconosciamo molto in questa scelta. Poi concretamente, per brevità,


per comodità possiamo anche lasciare il sostantivo e continuare a
parlare di ‘filosofia’ per/con i bambini; ma è sempre utile mettere
come premessa (proprio per quello che dicevamo all’inizio) che non si
tratta di una ‘filosofia’, se non (come diceva Piaget22) in senso
metaforico lato. Perché invece è un filosofare. E, questo, per rispetto
della diversità: delle esperienze, dei ruoli, e anche delle pratiche.
Possiamo difendere un filosofare (prefilosofico, preconcettuale,
interrogativo, simbolico, ludico…) con i bambini se difendiamo
insieme il nostro serio e adulto, professionale far filosofia (magari
all’Università).
E però…: c’è un però. Ci sono molti però. E, proprio per questo,
ci rendiamo conto (sempre più) che diventa sempre più necessario il
confronto con questa alterità che è l’infanzia.
Lo diciamo con le parole di Giuseppe Ferraro, perché non ne
potremmo trovare di migliori:
questa è stata la mia esperienza. Tutto cominciò con una
domanda. C’è un momento nella vita di ognuno in cui ci
si chiede se continuare a fare quello che si sta facendo o
smettere. (…) O persistendo in una professione si debba
farlo come fino a quel momento o se non cambiare
forme e indirizzo. Insegno filosofia da troppi anni per
poter dire da sempre. Un sapere che è piuttosto una
disciplina, una scienza che ha nel rigore, nell’esattezza
la sua espressione. A un certo punto si può smettere. Lo
si deve, per capire. Ed è stato a quel punto che mi sono
detto: se la filosofia si occupa di questioni estreme, se si
chiede delle ragioni e del senso che ha la nostra vita, (…)
allora è sui luoghi estremi che occorre portarla per
sentire che cosa ha da dire, e se tace smetterla. (…)
Anche l’età è un confine. (…) Così mi ritrovai tra i
bambini23.
È così. Ti ritrovi tra i bambini perché capisci che hai bisogno di
metterti in gioco: per dare senso a quello che, altrimenti, sarebbe solo
muffa sui libri, corridoi bui, lotte di potere accademico. Ti ritrovi tra i
bambini perché cominci a pensare che anche lì (e certo non solo) ci
sono quei confini estremi su cui i dialoghi diventano più difficili,

accessibile a tutti e, quindi, anche ai bambini». Cfr. anche ivi, pp. 19 sgg: Il domandare
come pratica specifica del filosofare.
22 J. Piaget, Children’s Philosophies, in C. Murchison (a cura di), A Handbook of Child

Psychology, Univ. Press, Worcester Mass., 1931, pp. 377-391.


23 G. Ferraro, Fare sapere. La filosofia da privilegio a diritto, in Filosofare con i bambini e

ragazzi, cit., pp. 23-33. Cfr. più in generale Id., La filosofia spiegata ai bambini, Filema,
Napoli, 2000.

28
philosophia ludens per bambini. una proposta per giocare e pensare

l’altro è il più diverso; e perciò forse puoi imparare di più. E magari


anche puoi dare di più.
Possiamo, quindi, dopo questa ulteriore premessa, venire alla
nostra proposta concreta: Philosophia ludens (PhL) per bambini. In che
cosa consiste – non ci piace dire l’originalità (come se dovessimo
essere originali a tutti i costi), ma – la sua specificità? In che cosa ci
sembra che si differenzi dalle altre proposte di ‘filosofia’ (sempre tra
virgolette) con/per i bambini?
Indichiamo brevemente quattro elementi caratteristici, in parte
già emersi24.
a) La dimensione (o lo scenario) ermeneutico: e qui
intendiamo sostanzialmente l’ermeneutica di Paul Ricoeur25:
- il suo porre in maniera dialettica il rapporto tra sé e l’altro;
- il suo recuperare e rilanciare l’orizzonte del dialogo,
orizzonte aperto e sviluppato da H. G. Gadamer;
- il suo mettere insieme l’ontologia heideggeriana (e la sua
via breve) in rapporto con gli altri saperi e altri linguaggi (la via lunga
dei diversi linguaggi);
- il suo lavoro con la dimensione pre-concettuale, metaforica
e simbolica, di cui è fortemente debitore ai maestri del sospetto e in
particolare a Nietzsche. Ci vorrebbe un libro a sé su tutto questo e non
ci fermiamo. Lo diciamo per onestà intellettuale: il nostro riferimento è
Ricoeur e non Dewey.
b) E quindi (secondo elemento distintivo della proposta PhL
per bambini): l’uso continuo di linguaggi ‘altri’ rispetto a quello
concettuale. Nella nostra proposta (come in molte proposte di
filosofare con i bambini) c’è
- un uso forte della dimensione visiva, sia in uscita (per la
spiegazione: e quindi uso di immagini, foto, video, iconologia); ma
anche uso delle immagini in entrata (cioè produzioni visive da parte
dei bambini);
- e poi la dimensione fisica, corporea, teatrale: pensiamo
all’uso di oggetti, l’importanza delle maschere; o degli emoticon; e
anche all’uso di drammatizzazioni e piccoli giochi di ruolo; la
‘vestizione’ dei bambini, ecc.

24 Per una visione più globale del progetto e delle sperimentazioni rimandiamo a A.
Caputo, Philosophia ludens per bambini. Lo scenario teorico e la proposta
operativa, in Children for Philosophy - Logoi (www.logoi.ph), Mimesis, n. II, 6, 2016 pp.
143-169.
25 Su questo autore ci permettiamo di rimandare al nostro Io e tu: una dialettica fragile e

spezzata. Percorsi con P. Ricoeur, Stilo ed., Bari, 2009.

29
annalisa caputo

c) E poi, terzo elemento distintivo, la dimensione


critico/utopica; quello che ci piace chiamare lo scenario ‘inattuale’
della proposta. Ci torneremo alla fine del saggio.
d) Quarto elemento distintivo, forse il più ‘originale’, del tutto
differente alle altre proposte: e cioè la dimensione ludico-agonica, il
gioco di squadra e di squadre.
Sappiamo benissimo che questo può essere un punto di forza ma
anche di debolezza della proposta e non andiamo ad edulcorare. Lo
presentiamo così com’è.
Anche in questo caso la matrice è evidentemente ermeneutico-
gadameriana: il gioco come via extra-metodica di esperienza della
verità26. Per il bambino via del tutto naturale.
Certo, anche nelle altre proposte di filosofia coi bambini si può
dire che c’è del gioco, se intendiamo il termine in senso lato come un
immaginare, creare, far finta che27…
Però noi lo intendiamo anche nel senso competitivo della gara a
squadre.
Questa è esperienza iniziata nel 2003 con le Scuole medie
superiori (ricordiamo che in Italia la filosofia è materia obbligatoria di
studio per gli adolescenti che scelgono i Licei). Philosophia ludens non
nasce come un metodo o un curriculum per i bambini. Anzi, con tutta
sincerità, dobbiamo dire che per lungo tempo abbiamo dovuto
‘difendere’ la proposta da questo fraintendimento. Philosophia ludens

26 Cfr., per approfondire, il nostro Possibili risvolti didattici della teoria gadameriana del
gioco. Per un’introduzione alle ‘Schede di gioco sulla filosofia antica’, in “Comunicazione
filosofica”, giugno 2007, n. 18
27 Per la P4C, cfr. M. Santi e A. Dal Bianco in Filosofare e giocare. la dimensione ludica

nella e della Philosophy for Children, in “Childhood & Philosophy”, Rio De Janeiro, v.9,
n. 17, jan-jun. 2013, pp. 107-127.
Altre esperienze con il gioco sono per esempio quelle di:
- i Ludosofici (Ilaria Rodella e Francesco Mapelli): http://www.ludosofici.com/;
Tu chi sei? Manuale di filosofia, domande ed esercizi per bambini e adulti curiosi (a cura di
Socrate e i Ludosofici), Corradini ed., Mantova, 2014.
- ‘Ludosophy for Children’: A. Di Pietro, Verso una ‘ludosophy for children’, in
“Rivista di psicologia, pedagogia ed epistemologia delle scienze umane”: Scienze del
pensiero e del comportamento (www.avios.it/spc.html).
- I. de Puig e A. Sàtiro, Giocare a pensare. Filosofia per bambini, ed. Junior,
Bergamo, 2006.
- E. Di Marco, Attivamente. 101 giochi per piccoli filosofi, La nuova frontiera Junior,
Bergamo, 2014 e anche A. Vivarelli, Pensa che ti ripensa, Piemme, Milano, 2014.
- Infine ricordiamo i lavori di Luca Mori (http://www.giocodelle100utopie.it/);
Giochi filosofici, Erickson, Torino, 2018; Utopie di bambini. Il mondo rifatto dall’infanzia,
ETS, Pisa, 2017.
In nessuno di questi casi, però, si tratta di proposte di giochi a squadre con i bambini.

30
philosophia ludens per bambini. una proposta per giocare e pensare

nasce per far giocare gli studenti ‘grandi’, delle Scuole Secondarie di
Secondo grado, con la storia della filosofia. E i giochi inventati sono
per lo più ‘inapplicabili’ ai bambini. Su questo rimandiamo ai nostri:
A. Caputo, Philosophia ludens: 240 attività per giocare in classe con la storia
della filosofia, Meridiana, Molfetta, 2011; F. De Natale, A. Caputo, A.
Mercante, R. Baldassarra, Un pensiero in gioco. Storie, teorie ed esperienze
di didattica ludica in filosofia, Stilo, Bari, 201128.
Le proposte di PhL sono pensate come supporto per i docenti
che vogliano sperimentare ‘autonomamente’ una didattica di tipo
ludico-creativo, con strumenti da usare insieme (e non in alternativa) a
quelli tradizionali (lezione frontale, interrogazione, studio del
manuale, lettura di classici, ecc.).
I giochi sono presentati come gare (tra gli studenti di una classe,
divisi in squadre), pensate per vivere in maniera divertente (ma anche
rigorosa) il dialogo con i pensatori del passato, con le loro proposte e
letture della vita, con i loro scritti. I gruppi giocano gareggiando tra
loro: questo consente di unire le dinamiche proprie dello stile
collaborativo (dentro la squadra) con le dinamiche proprie della
competizione (tra le squadre). Nell’unione tra spirito di collaborazione
e spirito di competizione consiste non solo la novità della metodologia
d’apprendimento, ma anche la miscela vincente della proposta, come
le verifiche del progetto stesso hanno mostrato29.
Ora, la proposta per i bambini si radica ‘in’ tutto questo.
Chiaramente differenziandosene, ma anche traendo tutta l’esperienza
e la forza del progetto stesso.
Una cosa è certa: per i bambini, ancor più che con gli adolescenti,
è indispensabile chiarire le finalità del gioco dall’inizio. Per questo, nel
nostro percorso, la prima ora di laboratorio è dedicata
‘esclusivamente’ al ‘senso’ del giocare. Non si può cominciare un
percorso di PhL dalla filosofia, ma è necessario iniziarlo dal gioco.

28 Il lavoro è stato ‘esportato’ anche all’estero, in Spagna e Germania (A. Caputo,


Philosophia ludens: Spielerische Laboratorien für höhere Schulen, “Zeitschrift für Didaktik
der Philosophie und Ethik”, 2015, 4, pp. 88-96; Id., Philosophia ludens, in AA. VV.,
Diotima o de la dificultad de enseñar filosofía, Akróasis, Madrid, 2016). E la rivista Logoi
(www.logoi.ph) continua a pubblicare contributi di sperimentazioni in questa
direzione.
29 In questi 15 anni abbiamo inventato circa 300 giochi, articolati e articolabili in alcune

‘tipologie’ principali [giocare (a) con i problemi; b) con le astrazioni; c) con il linguaggio; d)
per visualizzare i concetti; e) per immedesimarsi negli Autori; f) per riflettere sul presente; g)
con i testi; h) giocare con i giochi], che rimandano ultimamente a dinamiche proprie
della filosofia stessa.

31
annalisa caputo

Infatti, come potrete vedere leggendo la prima scheda PhL a cui


rimandiamo30, la filosofia viene introdotta come una grande gioco (un
gioco composto da diversi giochi). Per cui, nel primo laboratorio di
PhL è essenziale scoprire e capire che esistono delle regole da
condividere (per giocare in generale e poi per giocare alla filosofia). E,
soprattutto, nel gioco è importante il lavoro di squadra.
E questo è un altro elemento importante di specificità della
proposta, strettamente legato alla dimensione ludica: Il lavoro di
squadra. Con questa espressione intendiamo innanzitutto il lavoro
svolto all’interno dei sotto-gruppi dei bambini. Un laboratorio a cui
partecipano tanti studenti (e le classi di Primaria in Italia ormai sono
numerose…) non consente sempre a tutti i bambini di esprimersi; i più
timidi rischiano di rimanere nell’ombra; si rischia disattenzione e calo
di interesse. Lavorare invece in piccoli gruppi/squadra (di massimo 7-
8 persone) rende l’attività qualitativamente molto intensa, consente
una reale partecipazione di tutti (perché la parola è data a tutti i
bambini, all’interno della squadra, facendoli parlare a turno) e aiuta ad
includere anche i più timidi e persino i bambini con handicap,
disturbi specifici dell’apprendimento e bisogni educativi speciali31).
C’è un prezzo per tutto questo? Sì. È appunto un altro punto di
forza e di debolezza della proposta. Philosophia ludens con i bambini
non può essere fatta da un solo insegnante. Sono necessari tanti
insegnanti quanti sono i piccoli gruppi/squadra. Generalmente noi
andiamo in classe come minimo in tre.
È certo un punto di debolezza, perché significa ‘una quantità’
ingente di forze e investimento. Ma a nostro avviso è anche un grande
punto di forza, non solo, come già detto, per il lavoro più capillare che
può essere svolto, ma soprattutto per l’arricchimento degli insegnanti
stessi.
Gli insegnanti PhL sono loro innanzitutto un gruppo, una
squadra. Non c’è ‘un’ leader-facilitatore. C’è un gruppo di ‘professori’
di filosofia, che si mette in gioco con i bambini. Gli insegnanti a turno
introducono le dinamiche e i giochi. E i bambini imparano a conoscere
i professori ‘insieme’ e a rispettarli come un insieme.
Vi assicuriamo che questo è molto bello, prima che istruttivo. Tra
l’altro consente un aiuto costante tra gli insegnanti (dove non arriva
l’uno, arriva l’altro; l’abilità di uno si intreccia con quella dell’altro). E
alla fine di ogni laboratorio è molto più facile la verifica,

30 A. Caputo, Introduzione alla filosofia: schede didattiche ‘Philosophia ludens per bambini

‘(I-III), in Children for Philosophy - Logoi (www.logoi.ph), Mimesis, n. II, 6, 2016, pp.
170-182.
31 Questo lo abbiamo fatto esplicitamente in diverse nostre sperimentazioni.

32
philosophia ludens per bambini. una proposta per giocare e pensare

Anche questo ci sembra un bel messaggio, se l’obiettivo è


realmente creare ‘comunità’ di ricerca: mostrare da subito ai bambini
che i professori che fanno con loro filosofia sono una comunità,
lavorano insieme e insegnano insieme.
Per noi è stata ed è un’esperienza forte e arricchente, anche per
questo.
E, dunque, possiamo arrivare al progetto, così come è articolato
nelle diverse schede.

il progetto concreto: percorsi e schede

Al momento abbiamo pensato, sperimentato e pubblicato sulla


nostra rivista “Logoi.ph” (dal numero II, 6, 2016 a IV, 10, 2018) circa 25
schede. Le schede-base (cioè che proponiamo per prime alle scuole),
sono le prime sette schede32, articolate in tre percorsi:
- Introduzione alla filosofia: schede didattiche I-III, in Children for
Philosophy - “Logoi” (www.logoi.ph), Mimesis, n. II, 6,
2016, pp. 170-182.
- Identità e diversità in gioco: schede didattiche IV-V, in Ivi, pp. 192-
198.
- Attualità e inattualità: schede didattiche VI-VII, in Ivi, pp. 208-214
Di queste diremo di seguito qualcosa. Le altre sono ulteriori
approfondimenti, pensati per un percorso più lungo, o comunque di
secondo livello (percorsi sul tema della verità e dell’illusione;
dell’autoconoscenza, auto-definizione e autoritratto; sull’esperienza
del bello; sulla dimensione politica; sulla domanda metafisica
fondamentale: perché c’è qualcosa e non il nulla?).
Tutto è disponibile gratuitamente on line nella nostra rivista
“Logoi.ph”, perché crediamo che un serio progetto di ricerca debba
mettere nelle mani di tutti la proposta e i risultati in itinere.
Nel Progetto33 potrete trovare in maniera dettagliata:
- finalità (riprese dalle Indicazioni nazionali italiane per il
curricolo della scuola dell’infanzia e del primo ciclo
d’istruzione);
- obiettivi specifici (e competenze che si intendono
sviluppare);
- metodologie adoperate.
Nelle Schede34 troverete invece:

32 Si tratta di tre percorsi e 7 schede in cui abbiamo ripensato le sperimentazioni

svolte. Riteniamo che l’ideale sia avere due ore per ogni scheda.
33 Cfr. l’home page di Logoi, in cui viene presentato il progetto, rinnovato di anno in

anno (www.logoi.ph)

33
annalisa caputo

- occorrente per i giochi;


- destinatari e prerequisiti necessari;
- tempi
- descrizione dello svolgimento del percorso, nelle sue
diverse fasi, che prevedono:
§ momenti in semicerchio (l’idea di fondo è ripresa dal
setting della P4C ma l’apertura del cerchio in semicerchio consente
agli insegnanti di stare in piedi, muoversi liberamente, scrivere su
cartelloni, maneggiare oggetti, ecc.);
§ momenti di gioco a squadra, in cui i bambini, divisi in
sotto-gruppi, si siedono formando un piccolo cerchio, guidati da un
insegnante PhL;
§ indicazioni per il debriefing finale e la conclusione
Nei Resoconti35 delle attività troverete:
- la narrazione di quanto detto e fatto dai bambini;
- materiale fotografico e risultati dei laboratori;
- ripensamento critico delle attività.
In questa sede vorremmo provare a spiegare come nasce una
scheda (e dunque un percorso) PhL per bambini. Dovrebbe essere già
chiaro da quanto detto fin qui: nasce da quei temi/chiave che si
vogliono mettere in gioco:
Per rendere chiaro tutto questo, prendiamo il caso specifico del
Primo percorso, che è sostanzialmente una Introduzione alla filosofia.
Da qui i nuclei concettuali:
- Filosofia e thaumazein
- La filosofia come domandare originario
- L’articolazione delle domande filosofiche
- La filosofia come molteplicità di punti di vista
- Il filosofare come ‘proprio’ dell’uomo
A questi passaggi abbiamo premesso (come detto) un nucleo di
base relativo al rapporto tra filosofia e gioco. Da qui sono nate le ‘fasi’
che vedrete proposte nelle Schede.
Ad ogni fase è collegato un nucleo tematico e un autore (o più
autori) della storia della filosofia. Per aiutare i bambini a lavorare a
livello pre-concettuale, poi, ad ogni nucleo è associato un simbolo (è
chiaro qui lo sfondo ricoeuriano; il simbolo ‘donne à penser’:
preconcettualmente; e quindi può diventare fondamentale per il
lavoro con i bambini). Non c’è bisogno con i bambini di ‘spiegare’ il

34 Come già detto, in ogni numero di Logoi ci sono nuove schede, nella specifica

sezione: PhL per bambini.


35 Ad ogni scheda segue anche sempre il resoconto della sperimentazione, ad opera

degli insegnanti PhL per bambini.

34
philosophia ludens per bambini. una proposta per giocare e pensare

simbolo: e infatti non l’abbiamo fatto quasi mai. Il simbolo dà a


pensare… da sé, soprattutto se si lavora a livello esperienziale.
Dal nucleo tematico e dai simboli connessi sono nate poi le
concrete dinamiche laboratoriali: di tipo ludico/esperienziale.
L’introduzione di ogni nucleo e la conclusione di ogni passaggio
è segnata da un dialogo con il gruppo classe, guidato dall’insegnante.
Il dialogo iniziale è fatto con domande-stimolo, che servono a
sollecitare e incanalare l’interesse dei bambini rispetto al tema. Il
dialogo finale, invece, serve per interpretare insieme l’esperienza
vissuta e discuterla. Dall’esperienza ingenua iniziale… all’esperienza
finale arricchita: attraverso la domanda, il simbolo, il gioco.
Facciamo solo un esempio, relativo all’avvio del percorso. Il
resto potrete leggerlo nelle schede, se vorrete.
Il primo nucleo (del primo percorso) è relativo al rapporto
gioco/filosofia. Partendo dalla precomprensione fornitaci da una certa
corrente ‘ermeneutica’ novecentesca (in particolare da Gadamer e dal
Wittgenstein delle Ricerche filosofiche) abbiamo introdotto la filosofia
come un grande gioco, il gioco dei giochi.
La dimensione ‘visiva’ è sempre importante per i bambini e
dunque dall’inizio in classe abbiamo posto due cartelloni; su uno c’era
scritto ‘Gioco’ e sull’altro ‘Filosofia’. Non abbiamo ‘spiegato’ la
presenza dei cartelloni: l’esperienza (in questo caso visiva) precede
l’articolazione dei contenuti e la sollecita.
Il percorso viene presentato, quindi, simbolicamente, come
l’ingresso nel regno magico della filosofia; e viene introdotta una
grande scatola-magica, da cui di volta in volta gli insegnanti tirano
fuori delle cose (saranno o dei libri di filosofia, o degli oggetti che
serviranno concretamente per giocare).
È chiaro che questa scatola serve sia da catalizzatore
dell’attenzione dei bambini sia come simbolo del thaumazein originario
della filosofia, quello che nasce delle ‘cose’ e dalle esperienze, prima
che dai concetti. E il fatto che il setting si crei – lasciando emergere
stupore, attesa, ma anche paure – è evidente dalle loro reazioni (c’è chi
vuole subito alzarsi e andare a vedere cosa c’è dentro la scatola; c’è chi
ha timore che possa venir fuori… un coniglio [ed è allergico ai
conigli!]; c’è chi vorrebbe iniziare a raccontare le sue esperienze con la
magia…). Ma la prima cosa che viene fuori dalla scatola è… un
microfono rotto (o comunque senza pile né filo).
Ancora una volta, solo un ‘simbolo’. Lo abbiamo chiamato il
microfono-passa-parola, facendo da subito capire ai ragazzi che è
importante parlare solo se lo si ha in mano. Ed è importante ascoltare
chi parla, aspettando il proprio turno, e chiedendo la parola. Ci è
sembrato molto utile, soprattutto all’inizio, per abituare i bambini ad
esprimersi con ordine.

35
annalisa caputo

Abbiamo poi scelto un simbolo per l’intero percorso di


introduzione alla filosofia (schede 1-3), che è stato il punto
interrogativo. Il simbolo l’abbiamo posto sui cartellini segnanome dei
ragazzi; e non l’abbiamo ‘spiegato’ fino all’inizio della seconda tappa
(seconda scheda), quando è diventato centrale il discorso sulla
domanda.
L’ingresso al regno magico della filosofia è stato segnato dalla
proiezione di una mappa dell’immaginario regno della filosofia. Le
diapositive in ppt della mappa contenevano il nome dei diversi giochi
che componevano il primo percorso.
La curiosità dei ragazzi viene dunque sollecitata, e tenuta in
‘tensione’ fino a che non vengono fatti ‘tutti’ i giochi annunciati.
Leggendo le schede e i resoconti, potrete farvi un’idea più
precisa del tutto. Qui vogliamo esplicitare invece schematicamente la
correlazione che abbiamo creato tra nuclei tematici, autori di
riferimento, simboli e/o dinamiche utilizzate.
Questo lo schema del primo percorso (le prime tre schede), di
introduzione alla filosofia:

NUCLEO AUTORE O SIMBOLO DINAMICA


LIBRO LUDICO-
ESPERIENZIALE
La filosofia come Wittgenstein Due cartelloni:
gioco Gadamer gioco e filosofia
Stupore filosofico Aristotele Scatola magica
Silenzio/ascolto/ Gadamer Microfono (non
Parola Funzionante)
La filosofia come Wittgenstein, Mappa del regno
gioco dei giochi Ricerche dei giochi (ppt)
filosofiche
- Gli elementi Wittgenstein - Palette per Gioco a squadre:
fondamentali di un ‘votare’ le regole Regoliamoci!
gioco Gadamer, (con emoticon
- L’importanza delle Verità e metodo sorridente da un
regole lato e corrucciato
- Chi non gioca è un dall’altro)
guastafeste - Regole scritte su
un cartellone
Una regola che non Kant, Critica Palette per votare
è accettata e assunta della ragion
non serve pratica
La filosofia ‘regina’ Aristotele, Iconologia della Gioco a squadre:
di questo regno Metafisica Filosofia di Cesare Occhio ai particolari
- dimensione Ripa
metafisica
-dall’interrogazione

36
philosophia ludens per bambini. una proposta per giocare e pensare

sulle cose prossime


a quella sulle cose
remote
L’importanza della Socrate[Platone], Storiella delle Drammatizzazione
domanda Apologia di domande degli insegnanti
Socrate dell’extraterrestre
adattata da
J. Gaarder, C’è
nessuno?
Le domande più Aristotele -Parole-magiche Gioco a squadre:
profonde e difficili per formulare le La domanda che
domande; arriva al cielo
- Fogli a forma di
gradini;
- Cartellone a forma
di scala
- La filosofia come Ricoeur Storiella
pensare ‘altrimenti’ dell’astronauta e
del pianeta senza
filosofia
(rivisitazione della
Favola dei mille Re,
delle ‘Favole
filosofiche’) 36
L’apertura della Heidegger Gioco a squadre:
domanda Che cos’è?
Il filosofare come Jaspers Uno scettro; un Ci ‘vestiamo’ come
proprio di ogni vestito a forma di la filosofia di
uomo scala; dei libri Cesare Ripa

Come avrete intuito, è proprio l’uso della dimensione simbolica,


visiva (iconologia della filosofia), esperienziale e narrativa che
consente di ‘mediare’ i contenuti (senza ridurli) alla portata dei
bambini.
E la loro risposta è stupefacente. Potremmo scrivere un libro solo
con le domande che sono riusciti a tirare fuori (come per esempio:
perché nasce un bambino? Cos’è l’amore? Com’è la tua vita? Quando
sono felice? Perché ci sono razze di uomini? ecc.). E anche le
definizioni di filosofia che ci forniscono alla fine del primo laboratorio
sono sempre preziose (come, per esempio: è un bel gioco divertente,
per tutti, grandi e piccoli; un indovinello con le domande; uno
strumento; un’attività; una fantastica lezione e anche una storia; porsi

36 La favola è riadattata da: Favole filosofiche: http://www.favolefilosofiche.com/

37
annalisa caputo

domande; pensare con il proprio cervello; la filosofia è per diventare


grandi…).
Il secondo percorso, invece, come anticipato, è sul tema Chi sono
io? Chi sei tu? Per scoprire le uguaglianze e accogliere le differenze: e
dunque sul rapporto tra identità e differenza, singolarità e alterità,
sull’importanza dell’accoglienza delle differenze come ricchezza
comune.

Questo lo schema (relativo alle Schede 4-5)

NUCLEO AUTORE O SIMBOLO DINAMICA


LIBRO LUDICO-
ESPERIENZIALE
- Chi sono? Chi - Il mio animale Gioco: Se fossi
vorrei essere? preferito Gioco: Indovina
- Come sono gli - L’animale preferito chi è?
altri? degli altri Gioco: La sfilata
degli animali
Che cosa significa Aristotele Confrontiamo gli
uguale e che cosa animali ‘uguali’…
significa diverso?
Siamo tutti diversi e Nietzsche, Su Gioco: Siamo tutti
tutti uguali… verità e uguali e diversi
menzogna… perché…
Ricoeur
La singolarità, il Nietzsche Maschere bianche Indossiamo le
volto e la maschera Levinas, tutte uguali maschere
Totalità e
infinito
Difficoltà e ricchezza Derrida - Una maschera nera Piccoli giochi di
nell’accoglienza Levinas - Altri oggetti per ruolo guidati
delle diversità Ricoeur ‘rappresentare’ un
bambino con
disabilità, un
bambino siriano, un
bambino senza giochi
elettronici…
L’unità delle Ricoeur Un cartellone / Gioco: La bellezza
differenze puzzle dell’essere uguali e
diversi

Composizione di
un puzzle

38
philosophia ludens per bambini. una proposta per giocare e pensare

Tra le tante risposte, ricordiamo, per esempio, che bambini di 8


anni sono stati capaci di dire e insegnarci che le persone sono tutte
uguali in ciò che possono ‘avere’ (sia dal punto di vista fisico che di
beni materiali), ma sono tutte diverse per le loro specificità (corporee,
caratteriali), per le diverse abilità, per le diverse relazioni sociali che
hanno (amici diversi, case diverse, giochi diversi, famiglie diverse),
nonché di genere e cultura. E per i diversi sogni e le diverse paure.
Il terzo percorso (su attuale/inattuale) è per noi il più importante.

Questo lo schema della programmazione (schede 6-7).

NUCLEO AUTORE O SIMBOLO DINAMICA


LIBRO LUDICO-
ESPERIENZIALE
- Che cosa significa Nietzsche - Foto di scuole e città Gioco a squadre:
‘attuale’? - Palette per votare e Com’è? Cosa si fa?
- Come sono la schede di voto Ci piace?
scuola e la città
‘attuali’?
Le utopie dei Platone, Timeo Immagini delle città
filosofi Campanella, ideali dei filosofi
Città del sole
Tommaso
Moro, Utopia
- Che cos’è Nietzsche, Colori, fogli colorati, Gioco: Il mondo
l’inattuale? Considerazioni colla, forbici, ecc. inattuale che vorrei
- Città e scuola inattuali
inattuali

Nei resoconti abbiamo sempre messo le foto di tutti i cartelloni


dei bambini. Perché è meraviglioso vedere con le loro immagini come
è il mondo che desiderano, la scuola che desiderano, la città che
desiderano. E vedrete le loro proposte di scuole e città inattuali, che
mescolano
- elementi propriamente fiabeschi e immaginifici: castelli, re, regine,
mostri; case di dolci, di Pandora e di Vulcano; cascate di cioccolato;
pioggia di polpette giganti; fiori più alti delle persone; animali mai
esistiti e spesso parlanti (e cose che cadono dal cielo per farli mangiare
senza usare soldi); sirene e castelli marini; sfingi, orologi, macchine del
tempo, ecc.
- aspetti di fantascienza tecnologica: robot, macchine e biciclette
volanti, scuole a forma di torta; case e negozi a forma di animali o a
forma di pallone (in cui giocare a calcio senza rompere nulla); ma

39
annalisa caputo

anche scuole antisismiche, che si spostano da sole se c’è il terremoto;


cabine di vetro sugli zoo, per osservare senza paura gli animali feroci;
- intuizioni estetico-ecologiche ed etico-politiche: palazzi colorati,
geometrici o romanticamente dipinti con cuori e fiori; giardini cittadini
(tanti e puliti); sacchetti per i rifiuti (con su scritto: ‘tossico schifoso’);
bandiere della ‘libertà’; parchi dell’amicizia; ospedali di riserva (se
quelli principali sono pieni); cucine pubbliche con i silos pieni di cibo,
dove ognuno può prendere gratuitamente quello che vuole e non si
lavora (è evidente che i bambini sono rimasti colpiti dalle proposte dei
filosofi, raccontate dagli insegnanti PhL); sindaci incorrotti e generosi;
case con materiali che si ‘auto-riciclano’ (da una parte escono le scorie
e dall’altra rientra il materiale riciclato); scuole piene di giochi, bagni
puliti, piscine…
Ma anche aspetti incredibilmente artistici e letterari. Pensiamo alla
squadra che ha voluto disegnare ‘la città delle cose strane’ (che ci
ricorda molto le Città invisibili di Italo Calvino) e ha scritto: è la città più
strana del mondo perché ha le case tutte uguali. Un bambino ha scritto: se
fosse così come l’abbiamo disegnata sarebbe strana! Viva la scuola dei bambini
piccoli e grandi. Oppure pensiamo alla bambina che ha disegnato
oggetti e cappelli volanti alla Magritte; o al bambino che ha
immaginato uomini con la faccia a forma geometrica, alla Klee.
Insomma, se è vero, per dirla con Nietzsche, che «filosofo è chi
costantemente vive, vede, sente, intuisce, spera, sogna cose
straordinarie» (Al di là del bene e del male, af. 292), questo ‘filosofare pre-
filosofico’ non può non stupire, e non dare da pensare.

40
a propósito da infância: errância

carla silva
nefi/uerj
carlaphilos@hotmail.com

no início: infância

Todos nós estamos começando um novo pensamento. E essa


corda representa o pensamento que a gente tá sendo passado.
A gente tá passando pensamento pra cada um. Essa corrente
vai continuar correndo o pensamento...

(Criança de 8 anos, 4º ano, Escola Nossa Senhora


Aparecida)

Há muitas perspectivas em relação à infância. Nesse mar de


horizontes, optamos por partir da infância como errância, pois ela é
considerada pelas vivências teóricas e práticas que tem nos ocupado
como um “início do pensamento” criativo. Desde a noção de vivência
encontrada em Assim Falou Zaratustra (1883-1885), partimos da
concepção de infância como “início do pensamento” ou “potência do
pensamento” porque temos a hipótese de que vida é outro nome dado
à infância do pensamento. Dadas as diversas concepções de vida
encontradas na filosofia nietzschiana, ocupamo-nos de pensá-la a
partir da concepção de vivência devido o modo como temos vivenciado
pensamentos com crianças em algumas escolas públicas da capital
alagoana.
Pensar filosoficamente com crianças e em escolas públicas37 é
uma tentativa de superação de um pensar que, ao privilegiar o
conhecimento analítico, acaba por desprezar a vida. Assim, a partir da
perspectiva da unidade vida e pensamento em Nietzsche, é preciso
inverter essa noção e colocar o intelecto a serviço da vida. É
distanciando-se, portanto, de qualquer concepção filosófica que esteja
longe da vivência, da vida própria e de outros, que nos ocupamos de
pensar a infância em errância através de algumas atividades que estão

37 As atividades apresentadas nesse texto são parte das reflexões do estudo de


doutorado “’OUTRA CANÇÃO PARA DANÇAR’: uma filosofia com crianças (espírito
livre) que vem anunciar outro ritmo à dança do educativo no município de
Maceió/AL”. Em linhas gerais, o estudo tem se ocupado do que significa pensar a
filosofia como dança do pensamento a partir das palavras do contexto próprio das
crianças em escolas públicas municipais de Maceió, AL.

41
carla silva

sendo feitas com crianças de 1º ao 5º ano em algumas escolas públicas


localizadas em diversas periferias de Maceió/AL, cuja mobilização
ocorre pelo desejo de pensar e testemunhar, junto às crianças,
pensamentos ainda não pensados desde o seu lugar de origem e suas
vivências, por entender como radicalmente filosófica a acepção
segundo a qual “algumas almas jamais descobrimos, a não ser que
antes as inventemos” (NIETZSCHE, 2011, p. 42).
Com o desafio de que é preciso inventar condições para
descobrir e encontrar com pensamentos que, antes de mais nada, é
uma atividade criadora38, a infância de crianças nos parece um início
muito interessante e desafiador para que inventemos novos e
múltiplos pensamentos. De acordo com as intenções do estudo,
procurar pelos pensamentos de crianças em escolas de periferias de
Maceió/AL é dizer que buscamos encontrar com pensamentos que
possam reconfigurar o modo como pensamos sempre em relação à
filosofia e à educação de crianças. Por isso, “deixai vir a mim o acaso:
ele é inocente como uma criança!” (ibidem, p. 167).
Para elucidar como essas atividades têm sido feitas e o que
advém delas, apresentamos duas atividades que ocorrem em duas
escolas39 com crianças de 1º, 3º e 4º anos, localizadas em bairros
diferentes da capital alagoana. Ao todo, são 35 crianças40 envolvidas
nessas duas atividades. O primeiro material com que apresentamos os
pensamentos das crianças é através do desenho, feito por crianças de

38 Semelhante a essa disposição, Kohan (2007) relata sobre a possibilidade do trabalho


com crianças, ao receber o convite do projeto Filosofia para crianças, coordenado e
idealizado por Matthew Lipman. Em uma entrevista, narra o que o motivou a aceitar:
“[...] a perspectiva de trabalhar com crianças configurava-se aos meus olhos como
uma dimensão primária da atividade filosófica. Além disso, eu sempre amei as
crianças, por isso me senti terrivelmente atraído por aquela proposta (p. 15).
39 As escolas que tem as atividades relatadas são: Nossa Senhora Aparecida,

localizada no bairro Prado, um dos mais antigos do município de Maceió o qual é


banhado pela Lagoa Mundaú. Lagoa essa que é fonte de renda para muitas famílias
da região, incluindo a família das crianças com quem temos pensado. A outra escola é
a Silvestre Péricles. Localizada no bairro Pontal da Barra que fica entre o mar e a
Lagoa Mundaú. Nesse bairro, ainda é preservada uma tradição antiga em que os
homens pescam e as mulheres fazem artesanato. O artesanato feito pelas moradoras é
um dos mais visitados na região Nordeste. As crianças com as quais temos pensado,
são filhas e filhos dos pescadores e artesãos que vivem dessas especificidades laboral,
as quais são bastante comuns nesse município e, na maioria das vezes, são realizadas
precariamente no que diz respeito às condições de trabalho, especialmente em relação
à pesca.
40 As crianças têm entre 6 e 12 anos.

42
a propósito da infância: errância

1º ano41, cuja ocasião elegemos pensar por sugestão de uma delas - a


lagoa Mundaú, que faz parte da vivência do bairro e, por sua vez,
dessas crianças. A lagoa, que divide o seu ambiente natural com 7
ilhas, fica do outro lado da rua onde a escola está localizada. A outra
atividade testemunha o que começamos a pensar com crianças de 3º e
4º anos, o que significa pensar e pensamento. Após isso, consideramos as
seguintes palavras para desenvolver os sentidos que demos42 a elas:
lagoa, praias, pesca, sururu e peixes, escola, violência e quintal.
A partir da inspiração filosófica de que a vida é material
filosófico, reforça-se a maneira pela qual procuramos filosofar com as
crianças com o que chamamos de prática educativa potenciadora do
pensamento ou de filosofia como dança do pensamento. A opção que tem
essa filosofia como atividade educativa assemelha-se à concepção de
vida como obra de arte em Nietzsche, pensada por Dias (2011), quer
dizer, é uma atividade educativa que não visa a nada fora dela mesma.
Sobre isso, a autora elucida: “é assim que a educação, tal como
Nietzsche a concebe, investe num projeto de singularização do
indivíduo” (ibidem, p. 14) na qual “[...] ele não pretende conduzir os
jovens para um frio e estéril conhecimento dobrado sobre si mesmo,
indiferente do mundo que o rodeia, mas, sim, educá-los para uma
humanidade rica e transbordante de vida” (ibidem). Essa inspiração
educativa é o que nos tem possibilitado vivenciar pensamentos em
errância junto à infância de crianças em escolas públicas, uma vez que
considera o pensamento como início e a vida um lugar central da
prática filosófica. Assumida desde essa perspectiva, a infância em
errância é uma dança que, com suas idas e vindas, com o seu avançar e
recuar, é o que movimenta o pensamento; a vida.

infância do pensamento em zaratustra: errância

Céus! Que invenção tão especial é a vida!

(Carta a Heinrich Köselitz, em 16 de março de 1883)

41 Todas as crianças dessa turma de 1° ano ainda não estão alfabetizadas. Por isso, a

forma com que apresentam mais disposição para expressar o pensamento é através de
desenhos, seguido de alguns pensamentos sobre o que pensam ao representar a lagoa
da maneira como fazem.
42 Sempre que eu me referir às atividades, me coloco junto das vivências, uma vez que

as atividades são desenvolvidas com as crianças. Então, participo desde a elaboração


até o encontro efetivo com as crianças cujas palavras podem ser sugeridas por mim e
por elas.

43
carla silva

Os sentidos que revestem o termo “vivência” na filosofia de


Nietzsche são tão abundantes quanto controversos ao longo do qual se
constitui esse tipo de experiência em seu pensamento. Não que
acreditamos haver, na filosofia nietzschiana, univocidade ou
linearidade relativas à noção de vivência, mas, de modo mais
complexo e afirmativo, reflexões que motivam seus primeiros
trabalhos, uma concepção de pensamento vivo, ávido por manifestar-
se filosoficamente pelo corpo. O fato de que vivência é pensada como
experiência estética articulando-se com os impulsos vitais apresenta o
interesse por um exercício prático em que se procura compartilhar
algo com o qual pensa, deseja, dos quais podem ser internos ou
exteriores ao próprio corpo. O corpo, portanto, é o lugar onde as
vivências têm autoridade, uma vez que não há vida e pensamento que
não passem por ele. Assim, a vivência é uma experiência estética, quer
dizer, uma prática que tem o corpo como pensamento que pensa a
vida.
A compreensão do pensamento nietzschiano necessariamente
deve passar pela compreensão de como as vivências são tematizadas
por ele ao longo da sua filosofia. Como dissemos, não há uma
univocidade entre elas, uma vez que Nietzsche a trabalhou tanto
numa perspectiva da estética quanto orgânica, quer dizer, há vida em
expansão por toda parte, não somente no corpo humano. No caso de
Zaratustra, vivência traz uma concepção educativa no sentido de que
são construídas sem nenhuma finalidade exterior a ela mesma. Sobre
esta experiência em Zaratustra, Nietzsche (2006) escreve: “Quando,
certa vez, o doutor Heinrich von Stein se queixou honestamente por
não ter entendido uma palavra sequer do meu Zaratustra, eu lhe disse
que isso estava em ordem: ter entendido seis frases desse livro – quer
dizer vivenciá-las – já elevaria a um nível mais alto da escala mortal,
mais alto do que homens “modernos” jamais poderiam alcançar”
(NIETZSCHE, 2006, p. 70) e que “para aquilo que a gente não alcança
através da vivência, a gente também não tem ouvidos” (ibidem, p.71,
grifo do autor).
É claro que a vivência como experiência não diz respeito a
qualquer vivência, ou qualquer forma de vida, bem como nenhuma
vivência pode ser uma repetição da vivência do outro, pois cada uma é
singular. Assim, é fundamental, ao nosso ver, enxergar, na incansável
dedicação do filósofo, estendida por todas as áreas e épocas de sua
vida, a construção de uma filosofia assentada sobre valores não
reconhecidos – em que se incluam a vivência, no que nos compete aqui
– um ato de profundo inconformismo do qual decorre uma proposta
profundamente radical; diríamos infantil pelo inconformismo, a
linguagem criadora, a tentativa do não enclausuramento do
pensamento.

44
a propósito da infância: errância

Acerca da radicalidade do pensamento nietzschiano, a criança é


um exemplo. Anunciada após o prólogo, Nietzsche (2011) deixa muito
claro no que implica a vivência como criação, quando diz que é
necessária a geração de novos sentidos para a terra que, por sua vez,
traz uma beleza filosófica incomparável, que é a convivência com a
inocência da criança manifestada na sua vontade que é um sagrado dizer-
sim. Nas palavras de Zaratustra:
Inocência é a criança, e esquecimento; um novo começo,
um jogo, uma roda a girar por si mesma, um primeiro
movimento, um sagrado dizer-sim. Sim, para o jogo da
criação, meus irmãos, é preciso um sagrado dizer-sim: o
espírito quer agora sua vontade, o perdido para o
mundo conquista o seu mundo. (NIETZSCHE, 2011, p.
29).
Nessa alegoria, criação é a vontade inocente expressa no dizer-
sim da criança que é sempre novo, pois ao invés dizer-sim ao peso que
pode vir junto com as vivências do mundo, conquista o seu mundo
que é sempre inaugural. Assim, o início como um jogo de criação é
uma vontade criadora que tem a ver com a inocência da criança. A
criança, ou o jogo com que joga, está perdida para o mundo, uma vez
que não há lugar para ela devido o seu modo de proceder. Desse
modo, a infância em errância nas vivências de Zaratustra, encontra-se
viva, ainda que perdida para um mundo que não é o seu. Com feito,
inauguramos com crianças de duas escolas, um novo começo, uma
oportunidade para novos pensamentos e vivências educativas através
das suas vivências.

vivências com crianças em escolas públicas: dizer-sim

A partir da compreensão de que pensar tem a ver com inícios, a


infância é pensada também nessa dimensão. Do mesmo modo, errância
é uma atividade educativa que tem a infância como ponto de partida
e, por isso, pode gerar experiências muito ricas em termos de criação
ou aparição de pensamentos ainda não pensados. Assim, as atividades
que têm sido feitas juntinho de crianças, em escolas públicas, tem
criado uma atmosfera filosófica que diz respeito a pensar pelas
perguntas a partir das próprias palavras das crianças, do próprio
lugar. Temos observado que essa vivência tem inaugurado uma
maneira peculiar de viver e pensar nessas escolas, bem como de
pensar a própria filosofia com que temos dialogado nesse estudo.
Há algumas infâncias em errância que vem sendo compartilhadas
através de atividades que temos iniciado em algumas escolas públicas
de Maceió/AL. Duas delas são apresentadas aqui. Na escola Silvestre
Péricles, antes da atividade a que vamos nos deter, tivemos 3
encontros com as crianças. No primeiro encontro, nos conhecemos,

45
carla silva

compartilhamos nossos gostos, o que fazemos. E resumidamente


contei para elas a razão de estarmos ali e porque nos encontraríamos
mais vezes para “brincar uma brincadeira chamada filosofia”. No
segundo encontro, dando continuidade ao primeiro, procuramos nos
aproximar ainda mais das crianças no sentido de construir uma
relação de amorosidade, próxima, pois não somos professoras dessas
crianças, ou tínhamos qualquer relação com essa escola, ou com a
professora da turma. Por isso, escolhemos na literatura uma história
cujo nome é “Se eu fosse...”. Nessa história, o personagem principal
não fica claro, seja para quem a lê ou para quem a ouve. Em
consequência disso, poderia ser qualquer pessoa, inclusive uma
criança dizendo que “se eu fosse um relógio, às vezes eu pararia o
tempo”. “Se eu fosse uma nuvem, ficaria viajando por aí”. “Se eu fosse
uma mala, também viajaria por aí”. “Se eu fosse uma chave, abriria
sempre a porta para você!” Se eu fosse a noite acordaria de manhã.”
“Se eu fosse o mar, iria viver na praia.” “Se você fosse eu, eu não seria
eu!” E se eu fosse você, eu não seria eu!”
As crianças com quem compartilhamos essa segunda vivência
vinham de uma das creches do bairro que, segundo a professora, era
um ambiente muito diferente da escola atual para justificar a
inquietação das crianças. A dificuldade inicial sempre foi a da escuta e
a da conversa coletiva após a contação de histórias. Para o momento
dessa história, não definimos o que pensaríamos juntos, uma vez que
esperávamos que as crianças trouxessem alguma coisa dessa história
para que todos compartilhassem dela. No decorrer e no término da
contação muitas sorriam, achando algumas partes engraçadas e outras,
confusão! Até que eu perguntei: “Quem pode nos contar o que achou
massa na história?” A maioria delas disse: “legal!” Outras:
“engraçada!”. Enquanto algumas conversavam entre si sobre outras
coisas. Quando havia interação, essa era voltada para mim e não para
as outras. Então sugeri: “que tal se nós desenhássemos o que cada um
seria se não fosse você mesmo?” Não houve resistência a essa proposta
de modo que iniciamos.
Após o desenho, o tempo da atividade com elas acabou e
tivemos que deixar o compartilhamento dos desenhos para o próximo
encontro. No quarto encontro, recuperamos os desenhos e buscamos
fazer com que as crianças falassem sobre os pensamentos contidos
neles. Houve muita timidez, pois muitas não quiseram falar. Mas
alguns relatos dão a imensidão de alguns pensamentos sobre “Se eu
fosse...” que se tornou outro “se eu fosse...” ainda que algumas
crianças tivessem repetido algumas expressões da história narrada.
Narramos abaixo algumas:
Se eu fosse uma sereia, moraria na praia.
Se eu fosse uma borboleta, voaria por aí.

46
a propósito da infância: errância

Se eu fosse um tubarão, moraria na lagoa.


Eu seria uma sereia para poder nadar.
Outra criança achou muito estranho o fato de um tubarão morar
na lagoa e perguntou: “e tubarão mora na lagoa? Ele num mora no
mar?” A criança que desenhou querer ser um tubarão que moraria na
lagoa respondeu: “se eu fosse um tubarão, seria um tubarão que
moraria em qualquer lugar!” A criança que estranhou a reposta e fez a
pergunta já estava em outro tempo, apontando para o desenho de
outra criança. Além disso, vemos que o mar, a lagoa e nadar como
palavras que estão no universo dos pensamentos das crianças, porque
são elementos próximos das suas vivências.
Uma das crianças que gostaria de ser um tubarão e que moraria
na lagoa, ou em qualquer lugar, sempre que chega à biblioteca, local
onde as atividades acontecem, fica em uma das janelas, olhando em
direção à lagoa. A biblioteca da escola fica no primeiro andar, onde dá
para ver a lagoa, algumas embarcações e pescadores conversando. No
momento em que as crianças começavam a dispersar, ele pergunta
como se estivesse irritado: “porque num vamos pra lagoa?” Eu
perguntei: “E por que você quer ir pra lagoa?” Ele respondeu: “por
que eu nunca fui!” O encontro terminou, eles voltaram para a sala de
aula e eu fiquei pensando no que disse aquela criança. Uma das razões
para estarmos nessa escola, dava-se justamente pela razão de ela ser
vizinha de uma lagoa; filosoficamente, desde os pré-socráticos, a água
é um elemento natural que dá muito o que pensar.
No encontro seguinte, uma nova vivência: uma história chamada
“ABC da água”. É uma nova contação a partir da literatura infantil que
lembra um dicionário que de A a Z relaciona palavras ligadas à água,
dando-as novos sentidos. Comecei a narrar a história, mas, naquele
dia, as crianças pareciam não querer ouvir, pois estavam bastante
inquietas. Foi então que eu disse: “Olha só! Vou somente dizendo as
letras que estão aqui e vocês podem ir criando uma historinha com as
imagens que eu vou mostrando. Certo?” Nesse tempo, elas iam
apontando para as imagens e esboçando algumas palavras e frases
como: “bacia”, “olha, ele tá tomando banho na chuva!” “a torneira tá
pingando!” “a lágrima tá triste”. Ao término, eu perguntei: “Quem
gostaria de contar para os colegas algo que viu e lhe pareceu estranho,
legal na história?” Ouvimos silêncio seguido de mais inquietação.
Então, eu disse: “Vocês se lembram que um colega nosso perguntou
por que não vamos à lagoa? Que tal se desenhássemos ela para nos
inspirar? Assim, podemos compartilhar como ela é em nós!”
A lagoa Mundaú foi pensada pelas crianças de várias formas,
ainda que alguns pensamentos fossem semelhantes aos pensamentos
de outras. Nos desenhos havia sereia, tubarão, a água
predominantemente pintada de azul, a cor das águas das praias do
estado. Esses dois momentos, especialmente, nos têm feito pensar

47
carla silva

algumas questões: 1) vivenciar pensamentos como início é


experimentar a errância como infância que tem a ver com uma noção
de tempo, cuja experiência falta na escola. Ainda que a proposta
educativa com a qual temos vivido acabe por suspender o tempo
vivido pelas crianças cotidianamente nesse lugar, o tempo da escola é
muito presente; 2) as vivências com essas crianças têm sugerido que
pensar com elas tem a ver com pensar desde a vida que está do outro
lado da rua da escola, ou seja, na lagoa, em meio as embarcações,
conversando com pescadores, etc.; 3) o pensamento como início, e a
infância em errância, apesar da recusa aparente, tem convidado a
pensar pelas vivências, mas também as vivências com o mundo lá
fora, no seu ambiente natural; 4) como temos respondido ao convite da
infância que olha através da janela da escola e quer vivenciar a sua
vontade, viver o seu mundo?
A próxima vivência é na Escola Nossa Senhora Aparecida43 com
duas turmas de 3º e 4º anos. As atividades passaram a acontecer
juntas, porque enquanto em uma turma as crianças eram mais
comunicativas, na outra o mesmo fato não acontecia. Então, sugerimos
nos juntar para que as reflexões fossem mais dinâmicas para as duas
turmas. No início das atividades, dissemos que a nossa brincadeira
precisava do exercício de três palavras ou expressões: pensar, escutar,
trocar os pensamentos. A troca de pensamentos é o que podemos
traduzir por compartilhar com os colegas da roda, algo que tenha os
feito pensar em relação ao que pensamos nos momentos em que
estamos juntos. Dado esse contexto, iniciamos a atividade com duas
palavras ao centro da roda: pensar e pensamento. A sugestão para o
nosso reencontro começar por essas palavras é que, como já havíamos
percebido nos encontros anteriores, “a brincadeira com a filosofia”
pedia para que nos ocupássemos disso.
Do encontro anterior, recapitulamos o que vínhamos pensando.
Os últimos pensamentos giravam em torno de duas palavras que
apareceram em outros encontros anteriores: o nada e violência. O nada
surgiu como reflexão de uma atividade onde as crianças comentaram
sobre o que gostavam, o que as fez representar em forma de desenho e
palavras. Contudo, uma criança nada desenhou ou escreveu. Alguns
desses desenhos foram colocados na roda para pensarmos
coletivamente sobre eles. Uma das representações era uma folha em

43 Até essa atividade, estávamos há 1 mês sem nos encontrar, devido as paralisações
de greve dos(as) professores(as) que ocorriam sempre no dia das nossas atividades.
Por isso a sugestão para que recomeçássemos por essas palavras e ao invés de as
atividades continuarem individualmente em cada turma, como vinham sendo feitas,
nos juntamos no pátio da escola, como de costume, já que é o espaço mais interessante
para o tipo de atividade que fazemos.

48
a propósito da infância: errância

branco, porque uma das crianças não quis desenhar ou escrever, o que
gerou estranhamento entre elas. Pedi para que uma delas lesse para as
demais as palavras que estavam escritas nos papéis. Quando chegou
no momento da folha em branco, uma criança disse: “tia, tem uma
folha em branco aqui”. Eu perguntei: “E como podemos ler ela?”. A
resposta veio seguida de um sorriso meio confuso: “não sei!”.
Algumas das questões pensadas desde esse estranhamento gerado de
uma folha em branco são resgatadas nesse momento:

O nada:
Criança 144: Minha conclusão é que o nada é a nossa imaginação!
Eu: Hum... o nada é nossa imaginação. Tu chegasse a essa conclusão?
Criança 1: Sim!
Eu: Alguém teve alguma conclusão além do W.? Ou teve alguma outra
conclusão ou parecida com a dele de que o nada é a nossa imaginação?
Criança 2: O nada é alguma coisa que a pessoa ainda não criou.
Eu: hum...
Criança 2: Porque antes de eu pensar nele ele ainda não existia.
Eu: Hum...
Criança 1: É uma imaginação não criada!
Eu: Uma imaginação não criada ainda?
Eu: Alguém que está ouvindo essa história aí, gostaria de pensar sobre o
que os colegas estão pensando?
A criança da primeira reflexão insiste no seu pensamento, mas
dessa vez com um exemplo:
Criança 1: os fantasmas são transparentes!
Eu: Os fantasmas são transparentes e, por isso, ...?
Criança 1: podem ser vistos.
Eu: podem ser vistos?
(Todos riem)
Uma das professoras pergunta: e se é transparente?
Criança 1: o que faz o fantasma ser visto é tinta!
Uma professora: E é?
Eu: Você já fez esse experimento pra chegar a essa conclusão?
Criança 2: ele viu nos desenhos!
Eu: quem cria os desenhos?
Menino 3: Deus!
(Muitos risos!)
Criança 4: os animadores!
Eu: olha, e os animadores num são pessoas? O que fazem as pessoas?
Algumas crianças respondem ao mesmo tempo: pensam!
Eu: então usam a imaginação?

44 A criança 1, em todos os diálogos, corresponde à mesma criança.

49
carla silva

Algumas crianças: usam!


Eu: a tia Carla achou tão legal essa ideia de que o nada é imaginação!

violência:
Eu: outra questão que apareceu foi a violência. Quem gostaria de
resgatar o que pensamos?
Criança 1: violência é quando a gente agride alguém com a mão ou com
alguma parte do corpo.
Criança 2: ou uma barra de ferro.
Criança 1: é. Algum instrumento. Tipo madeira, ferro.
Eu: alguém tem alguma perguntar pra fazer ao colega sobre o que ele
disse? Ou ao invés de responder sobre o que é violência, a gente pode fazer
perguntas. Quais perguntas a gente poderia fazer?
Criança 1: minha mãe, sempre que eu fazia alguma coisa, assim... ela
sempre me agredia com alguma coisa, um instrumento.
Houve um silêncio nesse momento. Após o silêncio, retomei:
Eu: olha, só, a tia acha que a violência tem a ver com sentimento. Eu
acho. Não sei o que vocês acham.
Criança 1: eu não!
Criança 2: a raiva é um sentimento que provoca a violência.
Eu: alguém discordou. Alguém aqui discorda que a violência é um
sentimento? Quem aqui discorda que a violência é um sentimento?
Criança 1: eu discordei, mas concordei!
(Todos riem da aparente confusão)
Eu: discordou, mas concordou? Explica pra gente como é.
Criança 1: é que eu quando lembrei... eu recapitulei e pensei... a raiva
também pode ser parte desse sentimento. Então, eu acho que tem a ver.
Criança 1: o sentimento da inveja provoca a violência!
Criança 2: o sentimento da inveja provoca morte!
Criança 1: morte faz parte da agressão!
Criança 2: a raiva leva a inveja e a inveja leva a morte!
Eu: mas isso é sempre?
Criança 3: tem casos que é diferente. Porque as vezes se tu morre só
porque a mãe bate.
Eu: Qualquer pessoa pode ser violenta?
Criança 1: o nome Pablo é um nome violento. Eu conheço dois Pablos
que são agressivos?
Eu: mas isso significa que todos os Pablos são violentos?
Criança 1: não sei!

No encontro seguinte, procuramos pensar sobre o que havíamos


feito no encontro anterior: pensar, reunindo vários pensamentos sobre
O nada e violência. Para isso, levei um barbante colorido e sugeri que
considerássemos que aquela linha era como os pensamentos pensados.

50
a propósito da infância: errância

Em seguida, jogo o novelo para uma criança que levantava a mão


sinalizando que querer iniciar.
Criança T.: o pensamento... (pausa) posso passar?
Eu aceno com a cabeça que sim!
Criança 1: todos nós estamos começando um novo pensamento. E essa
corda representa o pensamento que a gente tá sendo passado. A gente tá
passando um pensamento pra cada um e cada um vai falando a resposta. E os
que não tiverem assim... meio encorajados, não vão conseguir; vão passar o
novelo. Mas essa corrente vai continuar correndo o pensamento.
Criança 2: eu acho que o novelo pode representar o pensamento porque
quando a gente pensa é... o conhecimento pode ir acumulando e se
transformar numa ideia.
Eu: depois que M. falou, eu fiquei aqui pensando: será que o
pensamento é uma linha que faz com que a gente tenha alguma ideia sobre
qualquer coisa? Alguém ficou pensando sobre mais alguma coisa?
Criança 1: vou acrescentar uma coisa: a M. disse que... assim que a
gente... como ela... o que ela disse? A gente tá iniciando um novo pensamento
e esse pensamento se torna uma ideia. E essa ideia pode ser uma boa ideia. A
gente pode ter uma conclusão... uma nova conclusão pra saber o que é
pensamento e o que é pensar.
Eu: e essa conclusão pode gerar outra conclusão?
Criança 1: pode!
Eu: pode? Por que pode?
Criança 1: pode ser que a gente tenha novos pensamentos a partir da
conclusão que pode criar outra e dá resposta do que é pensamento e do que é
pensar.
Eu: então a conclusão pode ser um início também?
Criança 1: pode ser também!
Outra noção muito curiosa é dita:
Criança T: o pensamento é uma coisa que a gente pensa. O pensamento
é uma coisa que a gente pode pensar. É uma coisa da vida da gente...

Em seguida, no sentido de pensarmos coisa da vida da gente como


disse o menino T., distribui papéis com as seguintes palavras: lagoa,
praias, pesca, escola, quintal, sururu e peixes, violência.

Praias – Criança 1: o ponto turístico mais visitado de Alagoas é a praia


do Francês. E todos vão pra lá. Até eu, as vezes vou. Eu falei porque eu vou
muito pra praia.
Quintal – Criança 2: eu tenho uma tartaruga que vive no meu
quintal... e eu penso muito nela. Ai eu pensei... como seria se eu morasse num
quintal maior... eu teria um cachorro... ai não ficava sozinho.
Eu: o quintal é um lugar pra brincar? Lugar de ser feliz?
Criança 3: quintal é... a gente pode estender roupas também... porque lá
na casa da minha tia, não tem muito espaço, aí ela só pode estender roupa. No

51
carla silva

quintal a gente pode criar animal, mas ela não tem como criar. Quando ela
ganha animais, ela leva pra casa da na minha avó porque lá tem casa de
cachorro, galinheiro.
Violência: ela me ajudou (apontando pra colega do lado) a pensar
é... sobre a violência. É uma palavra muito ruim... e aí a gente pensou que
violência é uma pessoa agredindo outra. Violência traz morte também e medo.
E violência é coisa... tipo... uma coisa violentada... ameaçada, espancada.
Criança 1: Eu tenho uma pergunta!
Eu: quem tem uma pergunta?
Criança 1: Mas, eu tenho uma pergunta pra você. Como é que você
conseguiu pensar quando você logo que ver a palavra? Você, tipo, olhou pra
palavra e ficou pensando alguma coisa? Foi?
Criança 3: Fiquei pensando em todas as coisas que eu, que eu... é...
disse!
Eu: eu tenho uma pergunta também. Diferente dos outros colegas que
falou antes de você, tu dissesse que pensou com a colega. É diferente a gente
pensar junto e pensar sozinho?
Criança 3: é diferente porque ela pensa em uma coisa e eu penso em
outra.
Criança 1: vários pensamentos fazem uma ideia e essa ideia faz um
começo, meio e fim.
Eu: que a gente pensou antes que pode ser um início também, né?
Criança 3: e aí a gente pode desenvolver.
Escola – Menina 4: na escola a gente aprende coisas novas, tem os
colegas... (silêncio)
Eu: isso aqui que a gente tá fazendo tem a ver escola?
Algumas crianças: tem!
Eu: o que a gente tá fazendo aqui?
Criança 3: pensando...
Eu: a gente faz isso na escola?
Criança 3: não!
Criança 4: sim!
Criança 1: escola é pra se aprender com os amigos e colegas.
Eu: a gente também pode ensinar na escola?
Criança 1: sim!
Eu: alguém aqui aprendeu com alguma coisa que alguém falou aqui
hoje?
Criança 5: na escola a gente desenvolve pensamento.
Eu: olha que legal o que ele disse! A gente vem para escola pra
desenvolver pensamentos e não pra aprender pensamentos.
(Silêncio)
Pesca – Criança 2: na pesca a gente pode pescar peixe, camarão e
muitas outras coisas que a gente se alimenta; que vem do mar.
(silêncio)
Eu: tem alguém aqui que tem alguém na família que faz essa atividade?

52
a propósito da infância: errância

Criança 7: alguns pesca pra sustentar a família e outros pra se divertir.


Criança 3: Lá na minha casa nem precisa comprar nada porque a minha
casa é perto da lagoa e quase todo dia o meu vô vai pescar. A gente também
tem frango e galinha.
Criança 6: eu conheço um cara que sai de madrugada e só volta no
outro dia. Ele dorme a tarde e vai a noite. Só volta no outro dia.
Criança 6: ele pesca na praia do Sobral pra sustentar a família.

As palavras sururu, peixe e lagoa também não são estranhas às


crianças, pois apesar da timidez, esboçam familiaridade entre elas. A
familiaridade e a estranheza com que as crianças lidam com as
palavras pensadas coletivamente é uma grandeza filosófica e
educativa incomensurável. Por tanto, não mensuramos se esses
pensamentos construídos em comum são diálogos ou conversas, uma
vez que nenhuma delas comportam a experiência que temos nos
colocado em todos esses momentos. Dizer que o pensamento é uma
coisa da vida da gente ou que todos nós estamos começando um novo
pensamento é algo do qual eu gostaria de ter pensado e dito sem medo
do erro ou do equívoco. O nada45, por exemplo, é uma reflexão que
compete somente à filosofia madura participar, muitos sustentam.
Com efeito, ganha novo sentido no entendimento de uma das crianças.
Para uma delas, O nada é alguma coisa que a pessoa ainda não criou porque
antes de eu pensar nele ele ainda não existia. Esse ponto de partida que
indica que o nada só existe quando passamos a pensar nele é muito rico
desde a concepção de infância que temos considerado, uma vez que
indica que o pensamento é o início para criar qualquer coisa, inclusive
algo como o nada. Desse modo, o pensamento, ao invés de imobilizar,
movimenta outros pensamentos. Em consequência disso, com as
crianças, é possível pensar qualquer coisa, em outras palavras, é o que
chamamos de pensamento ainda não pensado.
Essas trocas de pensamentos têm nos ensinando que pensar tem
a ver com duas experiências com a infância: o início e a errância. As
crianças, apesar da timidez ou devido a não vivência com esse tipo de
exposição educativa, tem nos ensinado que pensar tem a ver com essas
duas dimensões do pensamento. Desse modo, o exercício do
pensamento tem a ver com correr riscos, pois a cada novo encontro,
temos iniciado o pensamento como se estivéssemos fazendo pela
primeira vez, já que um elemento novo pode nascer de algum
pensamento pensado e compartilhado, ainda que retomemos do ponto
inicial.

45Não entraremos na discussão sobre quais filósofos pensaram e como trataram sobre
esse tema, uma vez que não é o interesse desse estudo traduzir o pensamento das
crianças a partir da maneira com que alguns filósofos se ocuparam.

53
carla silva

Esse exercício que apresentamos acima, bem como a maneira


pela qual essas crianças têm se colocado a pensar, assim como a
intimidade com que narram as vivências e pensam através delas, é
muito semelhante ao sentimento da criança em Zaratustra: “um jogo,
uma roda a girar por si mesma, um primeiro movimento, um sagrado
dizer-sim.”

o pensamento é uma coisa que a gente pode pensar. é uma coisa da


vida da gente...

A infância como início de pensamento é uma vivência em


errância: uma prática educativa da atividade filosófica. Isso ocorre
porque atribuímos outros valores à vida e ao pensamento. Como a
proposta da vivência em Zaratustra, essa sugestão inverte o
pensamento filosófico, cuja narrativa é feita a partir do homem teórico
que, por julgar ser o conhecimento da ordem da verdade, olha a vida
como inferior. Com efeito, junto às crianças, temos vivido outra
dimensão da atividade filosófica, quer dizer, temos experimentado um
tipo de atividade em que o pensamento é qualquer coisa que a gente
pode pensar e, se assim é, pensamos os pensamentos da vida da gente
sem demarcar o que é pensar e o que é pensamento sem as separar da
vida. Com isso, temos pensado a vida, vivendo.
Com isso, temos testemunhado que a filosofia não pode estar em
outro lugar senão sendo parte da vida; da vida de cada infância e na
infância da vida. Desse modo, as vivências que temos compartilhado
com várias crianças em contextos de escola pública têm testemunhado
as complexidades da natureza do pensamento que tem a infância
nessas perspectivas, ou seja, o lugar dos inícios e da errância. Pensar
com crianças tem nos dado a percepção de que, assim como a
atividade filosófica, o pensamento é fonte inesgotável quando entra
em relação com vivências que, ainda que sejam comuns, têm suas
singularidades.
Assim como o autor de Zaratustra quer ser um começo, com as
crianças temos tido a oportunidade de vivenciar inícios. Desse modo,
segundo Marton (2014), a maneira como Nietzsche (2011) narra os
pensamentos feito experiência em Zaratustra, a faz “[...] jamais
lançando mão da linguagem conceitual, as posições que avança
tampouco se baseiam em argumentos ou razões; assentam-se em
vivências” (p. 116-117).
As atividades que temos compartilhado com as crianças
assentam-se em errâncias por serem praticadas nas vivências. Por isso
que a infância é sempre um início, porque comporta a acepção
segundo a qual pensar implica entrar na complexidade que é a própria
atividade do pensamento: escutar, pensar, compartilhar pensamentos
e voltar ao início novamente. Assim, as atividades que chamamos de

54
a propósito da infância: errância

prática educativa potenciadora do pensamento ou de filosofia como dança do


pensamento não têm como princípio valorativo argumentar as razões
de as vivências compartilhadas serem pensadas dessa ou daquela
forma, mas pensar, sobretudo, pensar com elas partilhando o que é
comum, oportunizando pensar os pensamentos mais diversos que
surjam. Do mesmo modo que o estranhamento diante de um papel em
branco provocou reflexão acerca de algo que tinha o pensamento como
condição de sua existência e inexistência, filosofar a própria vida, viver
a própria filosofia tem provocado o nascimento de uma educação
infantil estranha, viva.

referências

DIAS, Rosa Maria. Nietzsche, a vida como obra de arte. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2011.
KOHAN, O. Walter. Infância, estrangeiridade e ignorância. Ensaios de filosofia e
educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.
MARTON, Scarlet. Nietzsche e a arte de decifrar enigmas. Treze conferências
europeias, 1. ed. São Paulo: Loyola, 2014. (Coleção Sendas & Veredas).
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. Tradução de Paulo César de
Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo: de como a gente se torna o que a gente é.
Tradução, organização e notas de Marcelo Backes. Porto Alegre: L&M, 2006.
PARMEGGIANI, Marco (org.). Correspondência IV. Enero 1880 – Diciembre 1884.
Traducción, introducción, notas y apéndices de Marco Parmeggiani. Madrid:
Trotta, 2010.

55
56
filosofia na escola pública: ensaiando um canto de
resistência em tempos de dissolução

edna olímpia da cunha


smede/duque de caxias, rj
nefi/uerj
dinha2rj@hotmail.com
vanise gomes dutra
smede/ duque de caxias, rj
nefi/uerj
vanisedutragomes@gmail.com

introdução

[...]Porém na hora exata cantarei


Eu venho vindo, ainda não cheguei.

Esta escrita surge num olho de furacão, num turbilhão de


emoções. É um canto arrancado na comoção que os últimos
acontecimentos provocam. Tem muito soluço e água com sabor de sal
escorrendo na pele. Talvez nela se possa sentir ecoar uma certa nota de
banzo. Ela parte de um lugar, de um país, de um canto onde se tem
derramado sangue todos dias, mas sobretudo sangue negro, de gente
do povo pobre. É uma escrita que tenta fazer da palavra luto um verbo
encarnado. Verbo para ser conjugado no plural, na conjunção de forças
que buscam resistir aos tempos sombrios de um contexto pós-golpe de
estado, que violentou a escolha de milhões de brasileiros e brasileiras.
Quando a brutalidade nos ronda e a cara da morte nos espreita,
buscamos, mais uma vez, ir a contrapelo, para insistir em perguntar o
que nos faz resistir quando a vida é atacada. Ensaiamos aqui uma
sôfrega e frágil tentativa de nos debruçarmos sobre nossas
experiências, em tempos de desmonte, como professoras da educação
pública, no projeto de filosofia na escola Joaquim da Silva Peçanha em
parceria com Uerj. De que modo(s) a filosofia nos ajuda a resistir? O
que significa resistir hoje na escola pública constantemente atacada? O
que nos faz resistir? A que desejamos e necessitamos resistir? Que
sentidos emergem da relação entre filosofia e escola que podem
afirmar modos de vida, de vidas que resistem?

perguntar, perguntar-se como exercício de resistência?

“Qual é a importância da filosofia para vida de vocês?” Foi com


essa pergunta que Vitória, uma estudante do sexto ano, provocou

57
edna olímpia da cunha; vanise gomes dutra

muitos comentários em nossa roda de conversa, num encontro com a


professora Carolina, que veio da Colômbia para conhecer o projeto de
filosofia em nossa escola. Estavam também presentes três bolsistas do
projeto e as professoras Edna e Vanise. A pergunta de Vitória faz
pensar e, mais do que repostas, a sua pergunta chama outras
perguntas. Poderíamos inverter infantilmente as palavras e,
deslocando-as um pouco, fazer outra pergunta da pergunta de Vitória:
Qual a importância da vida para a filosofia? Qual a importância da
vida presente, das vidas presentes, numa escola e universidade
públicas, para a filosofia?
A filosofia na escola, em parceria com a Uerj, tem provocado
perguntas, tem nos convidado permanentemente e escutá-las no
movimento com os outros. Seria a pergunta um dos modos de
resistência da filosofia? Uma pergunta como a de Vitória, que
relaciona a própria filosofia com a vida que vivemos. Na escola, desde
criança, nos dão muitas perguntas para serem respondidas.
Aprendemos para obter respostas. Em nossas experiências de
pensamento, as perguntas nem sempre têm respostas, muitas vezes
não as fazemos para serem respondidas. Elas surgem nas idas e vindas
do pensar, nas reviravoltas do pensamento... É como se a vida do
pensamento mais ganhasse vida com o movimento das perguntas.
Seria possível uma filosofia sem perguntas? O que seria viver uma
vida sem perguntas? Talvez, um dos principais modos de resistência, a
que o projeto de filosofia tem convidado, seja justamente a nos manter
perguntando, atentos a este movimento. Perguntar, perguntar-se como
exercício de pensamento, como exercício de resistência... A filosofia
que temos experienciado não seria um modo de resistência? De
resistência às tentativas de uniformização, de captura de sentidos que
visam, de um jeito ou de outro, asfixiar, “matar” a nossa
singularidade?
Há uma frase que nos inspira e da qual partimos, em muitos
encontros, para convidar diferentes grupos, quais sejam professores
ou estudantes, para uma experiência de pensamento. Sócrates afirma
que “uma vida sem exames não é digna de ser vivida pelo ser
humano”. Vida e exame, vida e pergunta estão imbricadas de tal modo
que uma não pode ser pensada sem a outra. Esta talvez seja uma das
dimensões mais potentes das experiências de pensamento: não
permitir a separação entre perguntar e viver, viver e perguntar, a
disjunção entre a vida que se vive e as perguntas que fazemos...
Também não é o número de perguntas que fazemos a questão mais
importante aqui. O mais relevante, por assim dizer, é pensar os modos
através dos quais as experiências de pensamento têm aprofundado e
intensificado a relação entre as nossas perguntas e a vida que vivemos.
Esse é um campo de estudos que consideramos fecundo, inesgotável, a

58
filosofia na escola pública: ensaiando um canto de resistência em tempos ...

partir das experiências com o projeto em nossa escola em parceria com


a Uerj.

“tudo isso para não ter uma resposta!”

O autor da frase é o pequeno Lorenzo que, em prantos,


expressou sua decepção, ao final de uma experiência de pensamento,
com sua turminha de primeiro ano, num encontro46 numa escola
pública cidade de São Mateus. Foi o momento mais comovente do
encontro, deu muito o que pensar para os participantes da experiência
, entre eles a professora da turma, professoras integrantes de Secretaria
Municipal de Educação e um mestrando do programa de pós-
graduação da UFES. Conversamos um pouco mais com Lorenzo,
acolhemos sua frustração e fizemos dela nossa também. Choramos
com ele, pensamos nas muitas perguntas que ainda não têm resposta e
no movimento ilusório que vivemos nos bancos escolares quando
somos ensinados a dar sempre respostas às perguntas... Lorenzo, com
todo o intempestivo da sua infância, nos faz pensar que a filosofia
também possa carregar uma força de resistência a partir de um certo
sentimento de vazio, provocado nas situações que nos escapam ao
controle. É como se a experiência da impotência, paradoxalmente,
trouxesse também a potência de uma aventura às cegas... Em alguns
momentos é preciso não ver para ver... Do mais agudo silêncio de uma
pergunta sem resposta pode vibrar algo dentro de nós... Quem sabe o
próprio enigma do nascimento de uma pergunta já seja o começo de
uma experiência que nos desloca para um vazio potente...
Nos momentos de grande perplexidade, como o que vivemos no
tempo presente, resistir talvez seja acolher o vazio das perguntas sem
resposta, as perguntas que gritam por uma resposta e ainda não
conseguimos escutá-las com a alma, encontrar coragem para arrancar
o véu de ilusões que, por tanto tempo, nos mantivemos agarrados.
Uma escola onde não haja espaço para as perguntas sem respostas
talvez não passe de uma fábrica de ilusões...
Existe uma certa tradição na filosofia que defende que o filosofar
é um preparar-se para a morte. Há muitos modos de morrer, há
muitos modos de nascer e renascer das próprias cinzas, como uma
misteriosa Fênix. As perguntas sem respostas são a própria Fênix, elas
têm algo de vida e de morte, não como um antagonismo estéril, mas
como uma potência que convida a resistir... A resistir à ilusão das

46“Filosofar com Crianças, Infância do Pensar: movimentos nas escola públicas de São

Mateus”, dezembro de 2017 (Encontro organizado pelo professor Jair Miranda de


Paiva, da UFES, em parceria com o NEFI/UERJ). As experiências de pensamento
ocorreram no campus da UFES e numa escola pública da cidade de São Mateus, ES.

59
edna olímpia da cunha; vanise gomes dutra

repostas fácies, à ilusão de uma estrada sem curvas. As perguntas sem


resposta são as que insistem em viver.... Resistem como um ato
rebelde de afirmação da vida dentro da morte, atravessando o tempo e
inquietando o pensamento. Elas desafiam o tempo, a celeridade fabril
que absorve as horas. Criam outro tempo, interrompem e criam
também outro ritmo. O pequeno Lorenzo parou, ao final da
experiência, para dar vazão ao seu choro, à sua perplexidade e o
compartilhou conosco. O menino traz a infância que interrompe, se
expõe e se dispõe ao outro. Não seria está também uma dimensão das
experiências de pensamento que se converte num exercício de
resistência, na medida que a fragilidade de um se torna também a
fragilidade de outros?
Marina não é uma criança, ela é uma jovem estudante da EJA.
Assim como Lorenzo, ela se entrega ao tempo da experiência de
pensamento e expõe, num choro emocionado, sua fragilidade diante
das perguntas que surgiram na roda de conversa47. São perguntas que
ressoam em Marina a tal ponto que ela não pode fazer outra coisa a
não ser escutá-las e compartilhar toda a inquietação que elas lhe
provocaram... São perguntas feitas por outros que se tornaram
também de Marina, ao escutá-las, ao permitir-se invadir por elas. Ela
se encoraja a falar do que nunca falara antes... Em letras quase
incompreensíveis, dias depois, como nunca havia feito, aventura-se
numa escrita, registrando a importância daquele encontro numa noite
de 2017 em nossa escola48:
Eu ficava nervosa[...] precisava falar, e foi um alívio
quando estava falando, eu acho que foi muito bom falar.
Eu queria me aproximar mais, eu tenho muita
dificuldade de comunicar, escrever... na aula de
filosofia, eu aprendi muita coisa que quero levar para o
resto da minha vida, para fazer foi um desafio[...]mas o
que mudou a minha vida foi a aula de filosofia[...]
A escrita, segundo o que nos narrou Marina, sempre lhe fora um
espaço de negação, o nó em sua garganta, o motivo de muitos
dissabores em seu percurso escolar. A coragem de compartilhar sua
fragilidade nos faz pensar que uma das dimensões da filosofia na
escola, que nos convida a resistir, encontra-se também neste outro
possível paradoxo, que é a potência que carrega a coragem da

47 Experiência com uma das turmas da EJA que inspirou a escrita do texto “Abraçar
com a alma: uma experiência filosófica na Escola Joaquim da Silva Peçanha, Duque de
Caxias, Rio de Janeiro, Brasil” (GOMES; CUNHA; KOHAN, 2018).
48 A transcrição do texto de Marina foi feita com a ajuda de professora Roseni Maria

Nascimento Bento, regente da classe da turma de alfabetização na Educação de Jovens


em adultos em nossa escola, no ano de 2017.

60
filosofia na escola pública: ensaiando um canto de resistência em tempos ...

fragilidade, a coragem da vulnerabilidade... Lorenzo e Marina, cada


uma com sua infância, resistem pelo que é compartilhado, na coragem
com que se entregam às perguntas, às perguntas que movem o
pensamento...

escrever resistindo, resistir escrevendo: uma escrita co-movente?

Em mais de uma década de existência do projeto de filosofia na


escola, um dos principais desafios que temos experenciado é pensar e
repensar a nossa relação com a escrita49. O que é uma escrita que
resiste? De que modos podemos resistir com, na, pela escrita em
tempos sombrios, de repressão e silenciamento. Escrever por que e
para quê? Na escola, também na academia, a escrita parece capturada
por uma lógica hegemônica que as experiências de pensamento têm
colocado em questão. A escrita que surge no interior do projeto
reivindica o lugar da experiência (LARROSA, 2014, p. 264-298), de
uma atenção ao que nos acontece e nos afeta. Traz a potência das
experiências de pensamento, da escuta de muitas vozes, da
intensidade de um movimento coletivo de pesquisa, de estudos que
envolvem muitas pessoas diferentes, de diversos lugares, de diversos
países, inclusive. É uma escrita estrangeira que, entre outras questões,
debruça-se sobre a pesquisa, sobre os sentidos da pesquisa em
educação na universidade, pensa o lugar do pesquisador e do
pesquisado, de quem escreve sobre o quê ou quem, a partir de que
lugar. Faz reverberar, em alguns momentos, a pergunta de Foucault: O
que é um autor? (2001, p. 264-298) A noção de autor, na análise do
filósofo, carrega com ela o traço da “ individualização da história das
ideias”, responsável pela correlação que se costuma fazer entre autor e
um nome próprio. As escritas que têm surgido desde o interior do
projeto de filosofia, pela potência de um movimento coletivo, nas
experiências de pensamento, parecem se aproximar do que Foucault
chamou de “exterioridade desdobrada”, pois “ela está sempre em vias
de transgredir e de inverter a regularidade que ela aceita e com a qual
se movimenta: a escrita se desenrola como um jogo que vai
infalivelmente além de suas regras, e passa assim para fora.” (2001, p.
268). Nesse sentido, desequilibra uma ordem, os modos como
tradicionalmente nos habituamos a pensar a escrita, ou seja, há uma

49Em tese de doutorado, vol. II da Coleção Teses e Dissertações do NEFI, a professora


Maria Reilta escreve: “O que se concretiza nesse exercício de escrita não teve um
roteiro pré-definido, a pesquisa imersa nos cenários e nas cenas da experiência foi se
estabelecendo também em uma delicada cilada para o contexto de uma pesquisa
acadêmica na qual devemos tomar posições, demarcar limites...” (CIRINO, 2016,
p.19.)

61
edna olímpia da cunha; vanise gomes dutra

ruptura com a ideia de uma escrita para transmitir uma verdade de


um sujeito, se aproximando do que Foucault defende como uma
escrita que provoca transformação, num movimento de pensar o não
pensado, de acolher o inusitado, o acaso, o que nos escapa ao controle.
Uma escrita que nos convida a suspender nossas certezas para fazer
do ato de escrever também um exercício de pensamento, no coletivo
das rodas de conversa, da escuta das nossas perguntas com o outro.
Diferentemente do que acontece nas salas de aula na escola, nas
experiências de pensamento os estudantes não escrevem para obter
uma nota, para atender a uma avaliação elaborada por um (a)
professor (a). No projeto de filosofia, a escrita tem se transformado
num exercício no qual todos se convertem em estudantes. Professores
(as) e alunos(as) escrevem como um modo também de experienciar
um espaço de igualdade, de abertura ao desconhecido, ao que não
sabemos e desejamos saber... Desse modo, poderíamos pensar numa
escrita co-movente, cuja tessitura se dá nos desdobramentos, nas
marcas de um mover coletivo que abriga muitas diferenças e desafios.
Seria este um dos modos de resistir com, na e pela escrita no projeto de
filosofia na escola? Resistir às hierarquizações, aos jogos de poder, aos
dispositivos que determinam quem pode ou não escrever?
Poderíamos, assim, ousar em pensar, num movimento inaugural que
talvez possa estar apontando para um começo, uma infância, uma
nova configuração ética, estética e política nas escritas que surgem a
partir da aproximação da universidade com a escola básica? Esse
modo de habitar a educação pública, na escola e/ou na universidade
talvez carregue também algo de uma iconoclastia infantil, pela
potência dos movimentos de ruptura que provoca e nos convida a
inventar, a transbordar os limites...
A filosofia que vivemos, estrangeira na máquina burocrática da
escola e da academia, também nos provoca à invenção de uma escrita
estrangeira, colocando-nos numa condição de estranhamento do
mundo, das nossas práticas e de nós mesmos. Seria possível uma
escrita outra se não nos tornamos outros de nós mesmos? Resistir aos
ditames de uma lógica preponderante e excludente não seria também
um exercício de estranhar a si mesmo, de criar, inventar uma outra
língua?
Compor juntos, compor com o outro, este tem sido um
permanente exercício com as escritas que surgem no interior do
projeto. As diferentes infâncias coabitam o espaço do texto. Crianças,
jovens, adultos, professores e estudantes da escola e da universidade
conversam e escrevem como um modo de resistir aos isolamentos, ao
insulamento das práticas dentro das instituições. Esse modo singular
com que temos vivido o filosofar na escola desafia barreiras, muros
invisíveis, demarcações traçadas pelas áreas do conhecimento, dos que
sabem, ou supõem saber, e dos que não sabem. A filosofia desafia as

62
filosofia na escola pública: ensaiando um canto de resistência em tempos ...

fronteiras, resiste às marcas identitárias e nos convida a desprender as


amarras.... Nesse sentido, a escrita no interior do projeto converte-se
num deslocamento para fora, para fora de uma ordem de discursos,
para fora de marcas identitárias, para fora das fronteiras, para fora de
nós mesmos. Uma escrita que pergunta e se pergunta, numa
composição coletiva, na busca de encontrar seu próprio estilo... Quem
sabe seja esta uma das mais marcantes e fecundas dimensões dos
modos de resistência na escola pública em tempos de desmonte e
dissolução...

“vai ter filosofia hoje? vamos conversar sobre isso na sala de


filosofia? ”

Nestes quase onze anos de projeto de filosofia na escola,


vivenciamos muitas situações interessantes que nos convidam a
pensar as condições, os modos pelos quais possamos estar resistindo
até agora. São muitos pedidos dos alunos que carinhosamente sempre
nos perguntam: “E a filosofia? Vamos ter filosofia hoje? ” Precisamos
conversar sobre isso na sala de filosofia! ”
Trazemos aqui, da memória, dentre vários episódios de anseio
dos alunos pela filosofia, um momento que nos inquieta a pensar
sobre o que faria o projeto de filosofia resistir na escola. Seria a força
das infâncias dos alunos que, atravessados por um outro modo a eles
oferecido, de habitar a escola, podem dar voz e escuta a seus
pensamentos? Seria este espaço/tempo tão potente que, afetados, os
estudantes de todas as etapas da escolaridade desejam e pedem
incansavelmente pela filosofia na escola?
Outro dia, em sala de aula, no momento de leitura
compartilhada, atividade com a qual sempre início minhas aulas, João
Vitor, 7 anos, interrompe a leitura e intempestivamente faz a pergunta:
“Tia, onde está a poesia?” Logo em seguida, Kaycke Lucas, também 7
anos, outro menino inquieto que, trazendo a força de sua infância, e
acolhendo a pergunta do amigo, propôs imediatamente que
conversássemos sobre esta pergunta na aula de filosofia. Perguntei aos
alunos o porquê de levar a pergunta para a sala de filosofia, e se seria
possível esse encontro ali mesmo na sala de aula. As crianças agitadas
repetiam e pediam que se fizesse em sala de aula, deveríamos fazer
igual fazíamos na sala de filosofia.
A filosofia, para a turma, se apresentava como um espaço/
tempo de pensar uma pergunta que inquietava a todos e para a qual
não teriam uma resposta imediata. Os alunos também afirmavam que
na conversa que fazemos na sala de filosofia sempre podemos falar e
escutar com atenção o que estamos pensando. Essa proposta agitou a
turma e imediatamente tive que acolher a sugestão dos alunos e fiquei
me perguntando: Que espécie de força essas crianças percebem,

63
edna olímpia da cunha; vanise gomes dutra

sentem no projeto de filosofia na escola que as fazem querer, desejar


estar juntas para pensar?
Essa inquietude dos estudantes, essa paixão pela filosofia na
escola, esse desejo do nosso encontro na sala de filosofia, esse pedido
amoroso tem soado e ressoado em nós como um som retumbante, uma
música polifônica, um canto insistente, resistente, que nos convida a
continuar, a não desistir diante de qualquer tentativa de enfraquecer,
despotencializar os movimentos da filosofia na escola. É o
disparadouro para enfrentar todas as propostas que tentam encerrar
as atividades do projeto de filosofia. Dar escuta e atenção às vozes dos
estudantes desde a educação infantil, primeiro e segundo segmentos
do ensino fundamental até a EJA tem sido um potente modo de
resistência da filosofia na nossa escola?
Essa escuta ainda se apresenta para nós, participantes do projeto,
como um convite afirmativo para continuar filosofando na escola, se
apresenta também como um jogo inquietante e enigmático necessário
para nos tornarmos atentos ao outro, ao mundo, à vida, a nós mesmos.
O interessante é que essa possibilidade de sermos convidados a
esse exercício, por meio do filosofar com o projeto na escola, se tornou
uma aventura ao desconhecido que nos permite habitar nossos
potentes silêncios como uma maneira de reverberar os sentidos e os
sons possíveis da palavra, da linguagem, mesmo que não
imediatamente acessíveis.
Nas experiências com a turma 502, no ano de 2014, havia um
menino, ruivo, chamado Luan que curiosamente sempre provocava:
“quero convidar alguém aqui para sair do silêncio”. Parece querer
saber: o que se sente no silêncio? O que se encontra no silêncio? E o
que se pensa no silêncio?
Nós, praticantes do projeto de filosofia na escola, temos a
possibilidade de sempre estar ainda por vir a ser afetados pelo tom e
timbre das perguntas que nos atravessam, colocando-nos em questão
diante das verdades e certezas.
Parece que esse jogo enigmático e instigante tem atravessado os
alunos participantes do projeto na escola e os impulsionado a desejar
viver as experiências de pensamento, muitas vezes, materializando
esse desejo através do insistente pedido: “vamos fazer filosofia hoje?”
Conforme aprendemos com Giuseppe: “O hospede do convite
torna quem hospeda convidado a uma troca” no encontro com o outro
que “não te julga e nem te justifica. Te pensa”. (KOHAN; OLARIETA,
2012, p.191-192)
Talvez este “convidar” insistente e apaixonado desses
estudantes, nos encontros de um filosofar na escola, expresse um
desejo, uma disposição de troca, de tradução do intraduzível, como
um canto de resistência que afirma uma vontade amorosa de estudar
com... de experienciar com... de filosofar com...

64
filosofia na escola pública: ensaiando um canto de resistência em tempos ...

“o que faço para recuperar meu grande amor?”

A pergunta acima esteve durante um bom tempo perdida na


memória... Eis que ela surge numa reunião de professores em nossa
escola na qual pensávamos as condições atuais da Educação de Jovens
e Adultos – EJA. Quem a resgatou foi o professor de Ciências,
Eduardo Jorge, participante do projeto de filosofia, que mencionou um
episódio que, no transcorrer de algumas aulas, um aluno nos
interrompera para perguntar: “Professor, o que faço para reconquistar,
recuperar meu grande amor?”. Eduardo lembrou que não tinha sido o
único a ser interpelado pelo estudante. Sob o impacto da surpresa da
pergunta, ensaiamos algumas palavras que pudessem, de algum
modo, ajudar o aluno apaixonado a pensar uma alternativa para seu
próprio drama. Naquela época, não poderíamos imaginar que a
pergunta pudesse voltar no tempo, com a força persistente de uma
flecha. O que esta pergunta, pinçada lá atrás, nos ajuda a pensar o
tempo presente e os possíveis modos de resistência ensaiados pela
filosofia em nossa escola? A pergunta carrega em si duas palavras-
chave: o nome de um sentimento e um verbo, amor e recuperar. Em
sua etimologia, a palavra filosofia traz também o nome de um
sentimento, que pode ser traduzido como amor, amizade ao saber.
Filosofar como um exercício amoroso... como um modo de recuperar
um amor... O que faz uma vida valer a pena de ser vivida? Poderia ser
um grande amor, uma paixão? O que faz valer a pena uma vida,
muitas vidas numa escola pública? São perguntas que podem nos
oferecer pistas para pensar modos de resistir em tempos de
brutalidade e desencanto. Vem do Mêno de Platão (HADOT, 2006, p.
132) o pensamento de que “aprender não é outra coisa senão
recordar”. Filosofar, assim, seria também um exercício de recuperar as
coisas perdidas, de permitir vir à memória o que, em outros tempos,
potencializou nosso estado de enamoramento, de apaixonamento pela
vida.
Num momento em que tantas vidas estão sendo mutiladas, no
contexto pós-golpe, a palavra recordar - que em sua etimologia quer
dizer “voltar ao coração” - pode nos inspirar a dar essa volta, a fazer
essa viagem ao coração para escutarmos os sons dos batimentos da
vida... Não seria esse um interessante e fecundo exercício de
resistência? Recuperar, recordar o que ou quem foi capaz, em nossa
trajetória existencial, de fazer nosso coração vibrar, bater mais forte,
trazendo mais vida à vida? Que movimentos, esculpidos em nossos
encontros, têm nos afetado? Nosso mestre maior, Paulo Freire,
recorda:
Não sei se você reparou que, de modo geral, quando
alguém é indagado em torno de sua formação

65
edna olímpia da cunha; vanise gomes dutra

profissional, a tendência do perguntado, ao responder, é


arrolar suas atividades escolares, enfatizando sua
formação acadêmica, seu tempo de experiência na
profissão. Dificilmente se leva em consideração, como
não rigorosa, a experiência existencial maior. A
influência, às vezes, quase imperceptível que recebemos
desta ou daquela pessoa com quem convivemos, ou
deste ou daquele professor ou professora... No fundo, a
experiência profissional se dá no corpo da existência
maior. Se gesta nela, por ela é influenciada e sobre ela,
em certo momento, se volta influentemente.(2013, p.131)
O que ou quem nos moveu, comoveu e ainda pode nos mover,
co-mover? Recuperar como recordar é movimento que convida a
deslocar nossa atenção para os afetos, ao que nos afeta, ao modo como
temos nos afetado uns aos outros com a vida que vivemos. Pensar
sentindo, sentir pensando.... Pensar, afetar e ser afetado é o que temos
experienciado com o projeto de filosofia na nossa escola. É preciso, é
necessário estar atento, reparar...”Não sei se você reparou...”, é desse
modo que Freire inicia o parágrafo, ele nos convoca a reparar, outra
palavra-chave potente para pensar os desafios do momento e as
diferentes dimensões do filosofar como movimento de resistência. O
professor e escritor angolano Gonçalo M. Tavares vem em nosso
socorro:
Outra palavra interessante, para falar do mesmo
assunto, é reparar. Gosto muito dessa palavra. Reparar é
re-parar, ou seja, eu paro e continuo parado diante da
mesma coisa. O que significa, por exemplo, reparar num
quadro(...) Reparar é parar diante de um quadro e
permanecer um tempo olhando para ele. Às vezes acho
que estamos perdendo essa noção(...)Além disso, a
palavra reparar tem um duplo sentido: é dar atenção a
uma coisa, mas também consertar algo, como consertar
um automóvel. E, para mim, é cada vez mais claro que a
única forma de reparar as coisas que estão avariadas, é
reparar nelas, é dar atenção a elas. Se o motor não
funciona, para repará-lo é preciso dar atenção. A única
maneira de repararmos uma relação amorosa é darmos
mais atenção a ela. (2014, p.186-187)
O duplo sugerido pela palavra reparar pode estar apontando
para mais uma importante dimensão da filosofia na escola. Nas
experiências de pensamento somos convidados a re-parar, a parar
uma e outra vez para pensar nossos pensamentos, a mudar o que
pensávamos antes, a pensar o ainda não pensado. Re-parar já não
traria consigo um modo de resistir? De resistir à celeridade do mundo,
de resistir às tentações que nos distraem, desviando nossa atenção do
que nos afeta e torna nossa existência mais interessante? A philía
filosófica nos convoca a re-parar o mundo, as coisas do mundo, os
homens... Re-parar como o fazem os amantes, os apaixonados...Re-
66
filosofia na escola pública: ensaiando um canto de resistência em tempos ...

parar como recuperar o(s) sentido(s) pelos quais uma vida vale a pena
de ser vivida. Re-parar para resistir ao utilitarismo, ao simulacro, à
mentira e ao embrutecimento que correm as relações...
De um certo modo, perguntar sobre “como recuperar um grande
amor”, conforme as palavras de um estudante da EJA, é a pergunta
que talvez atravesse os sentidos que buscamos dar, não só dentro da
escola - em nosso percurso profissional ou acadêmico - mas à vida que
vivemos. No contexto presente, de profundo desrespeito e indiferença
à vida, à coisa pública, com a política instaurada pelo golpe de estado,
o exercício de recuperar, de recordar as intensidades encarnadas por
aqueles e aquelas que nos inspiram converte-se também em exercício
de esperança, de militância pela educação, de defesa da filosofia como
uma questão pública, que faz vibrar nossos afetos.
Será a filosofia, experienciada no projeto, um convite a viver um
amor, um grande amor? O que torna um amor um grande amor? A
philía seria, por assim dizer, a potência intensiva capaz de transformar
um amor num grande amor? Um amor no singular em amor no plural,
que acolhe as singularidades, rompe os isolamentos e buscar
compartilhar, encontrar, estar junto? Seria isto viver um grande amor?
Temos experimentado algo assim em dez anos de filosofia na escola,
em nossas vidas? Se sim, encontramos aqui outra dimensão de
resistência? Um grande amor que resiste... uma resistência amorosa...
Assim, muitas vezes nos advém a sensação de que
permanecemos habitando o impossível como se fosse possível numa
escola pública que insiste em apostar na dança do pensamento...
Pensar junto talvez seja, sim, viver um amor que transita pela órbita
entre o possível e o impossível... Quem sabe somente um grande amor
possa habitar esse espaço de enigma, de sonho, esse intermezzo...?
Quem sabe desse lugar, desse canto ainda estranho, ousemos
transformar a palavra luto num verbo potente que, por amor à vida,
denuncia e anuncia... Amamos o que fazemos? É possível resistir sem
amar? Tem sido a educação pública um grande amor em nossas vidas?
Até onde nos dispomos a ir por amor à escola pública, por amor à
filosofia, por amor à vida que afirmamos a partir da vida que vivemos
dentro e fora da escola?
“Para viver um grande amor, não basta ser apenas bom sujeito; é
preciso também ter muito peito — peito de remador” (1984, p. 130),
escreve o poeta Vinícius de Moraes...Para se ter peito de remador é
preciso muito esforço, muito exercício... Remar, exercitar o
pensamento, pensar, resistir, amar...
Remar para seguir pensando...
Resistir para seguir remando...
Pensar para seguir resistindo...
Amar para seguir amando...

67
edna olímpia da cunha; vanise gomes dutra

referências

CAMARGO, Oswaldo. Quinze Poemas Negros. São Paulo. Edição da Associação


Cultural do Negro, 1963.
CIRINO. Maria Reilta Dantas. Filosofia com crianças: cenas de experiência em
Caicó(RN), Rio de Janeiro(RJ) e La Plata(Argentina). Rio de Janeiro: NEFI, 2016.
FOUCAULT, Michel O que é um autor? In: _______. Estética: literatura e
pintura, música e cinema. Ditos & escritos III. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2001, p. 264-298.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 2011.
FREIRE, Paulo. Cartas à Cristina: Reflexões sobre minha vida e minha práxis. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 2013.
GOMES, Vanise Cássia Dutra; CUNHA, Edna Olímpia; KOHAN, Walter
Omar. Abraçar com a alma: uma experiência filosófica na Escola Joaquim da
Silva Peçanha, Duque de Caxias, Rio de Janeiro, Brasil. In: MORIYÓN, Félix et
al. Parecidos de familia. Propuestas actuales en Filosofía para niños. Madrid,
Anaya, 2018, p. 391-401.
HADOT, Pierre. O Véu de Ísis: Ensaio sobre a história da ideia da natureza. São
Paulo, Loyola, 2006.
KOHAN, Walter Omar; OLARIETA, BEATRIZ F. (orgs.). A Escola Pública aposta
no pensamento. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.
LARROSA. Jorge. Tremores: Escritos sobre experiência. Belo Horizonte: Autêntica,
2014.
MORAES, Vinicius. Para viver um grande amor: Crônicas e Poemas. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1984.
TAVARES. Gonçalo M. O imperativo da literatura. In: GONÇALVES, José
Eduardo (org.). Ofício da palavra. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.

68
“meriendas filosóficas” en la biblioteca popular,
carilafquen. pensar la experiencia. la experiencia del pensar

maría silvia rebagliati


universidad nacional de río negro
silviareb.rebagliati3@gmail.com

los inicios..., habitar, pensar la experiencia.

Nuestros inicios abrazan íntimamente, gratitud y memoria a


nuestra querida y entrañable compañera y amiga, Arianne
Hecker. En la Biblio, un estante con sus libros la recuerda
siempre y nos acompaña esas tardes de extrañas experiencias
en encuentros con la infancia, con el pensar…Su eterna
sonrisa nos sostiene e inspira a ir por más infancia y nuevos
comienzos cada vez…50

La experiencia es un asombro aún indefinido, una claridad


un tanto destemplado por ello de ser algo de luz. Y no hay
pensamiento anterior a la experiencia, ni en la experiencia,
sino a partir de ella.
La experiencia nos incita a pensar, presupone el pensar.

C. Skliar (2005, p. 27)

Vivimos esta experiencia, la habitamos, nos disponemos a


pensarla y compartirla.
Se trata de una experiencia de extensión universitaria, que desde
el año 2014, echamos a andar junto a Arianne, el Proyecto de Extensión
de la Universidad Nacional de Río Negro: El derecho a la palabra de
niñas, niños y adolescentes: Experiencias del filosofar entre infancias y
adolescencias en espacios públicos de la comunidad, coordinado por
Arianne Hecker y María Silvia Rebagliati, con asesoramiento de
Walter Kohan (UERJ, Brasil). 51

50 Equipo de Meriendas filosóficas: Marcela Moreno, Fabiana Carbajales, Sofía


Azzarri, Claudina Hitta, M. Silvia Rebagliati, Joaquin Conte Mac Donell, Alejandro
Verne. Agradezco al Equipo por sus aportes y miradas para la elaboración de este
texto.
51 Durante años 2015, 2016, 2017 y 2018, desde el desarrollo actual del Proyecto de

Extensión de la Universidad Nacional de Río Negro, (Resolución UNRN Nº 553/17)

69
maría silvia rebagliati

Entonces, nos propusimos habitar otros espacios públicos,


además de las escuelas, con niños, niñas y adolescentes, creando
condiciones para dar apertura a experiencias infantiles de filosofar,
hacia la conformación de comunidades de niños, niñas y adolescentes con
pensamientos propios.
Con Arianne, anduvimos por años juntas, recorriendo caminos,
enlazando amistades, por bellos lugares de nuestro país y
Latinoamérica, en potentes encuentros con el filosofar, el pensar juntos
y juntas y, sobre todo, en andar en infancia, haciendo escuela, desde,
entre, con niños, niñas, adolescentes, maestras, maestros,
profesores/as en la Patagonia.
A través de investigaciones, formación, acciones de extensión y
de un trabajo compartido en El Bolsón y en Bariloche (Patagonia,
Argentina) y, en otros recorridos, hemos constatado la potencia del
filosofar con la infancia en el desarrollo social, cultural, personal y
educación integral, de niñas y niños, desde muy pequeños.
Saboreamos ese proceso de elaboración de pensamiento
reflexivo, de habilidades comunicativas en la expresión, el potencial
del pensar juntos, pero no igual, la problematización, comprensión,
atención, la creación e interpretación de otros lenguajes (simbólicos,
sensibles, poéticos, artísticos), la apertura al acto creativo, la apertura a
la diferencia entre pensamientos circulando, en un plano de igualdad.
Siempre nos gustó la idea que la filosofía con niños y niñas, desde
un posicionamiento de igualdad, se contrapone a por lo menos, a tres
exclusiones: la generacional :filosofar desde la infancia, no solo como
tarea exclusiva de adultos, la socioeconómica y cultural: para todas y
todos, ya que todas y todos pensamos y podemos filosofar, sin
importar género, etnia, posición social y la discursiva : no solamente
para estudiosos, para filósofos, pues filosofar no es privativo del
discurso académico-.
El acto de pensar juntos, contiene una acción democrática
potente, basada en uno de los derechos especialmente considerado en
la Convención de los Derechos del Niño: el derecho a la libre
expresión de niñas, niños y adolescentes.
Por un lado, reconocemos al acto del pensamiento, como un acto
político: el empoderamiento de la infancia y adolescencia en ciudades,
en espacios públicos. Y, a su vez, al acto político (parresia griega), en
ese hablar libremente, atrevidamente, en ese dar apertura a la palabra
de la infancia en territorio propio, junto a adultos, en auténtica

en curso: El derecho a la palabra de niñas, niños y adolescentes en espacios públicos UNRN.


(2017- 2018)

70
“meriendas filosóficas” en la biblioteca popular, carilafquen...

disposición de saber, de poder y querer escuchar, en ese mero estar ahí


(Kusch, 1978), haciendo algo juntos.
En octubre del 2014, bien venimos a Walter Kohan, (UERJ),
desde Brasil, en nuestro suelo: El Bolsón y Bariloche, donde
compartimos juntos, experiencias filosóficas de formación que
continuamos desarrollando, bajo su asesoramiento y generosidad de
siempre.
Desde este impulso nacen las llamadas, Meriendas filosóficas en
Bariloche, a partir de la conformación de un equipo que, nutrido de
pasión, inventa esa idea y propone el espacio público de la Biblioteca
Popular Carilafquen del Barrio Villa Los Coihues, en Bariloche.

¿quiénes somos?

y si entendemos el pensar como apertura, y


apertura en primer lugar hacia el otro,
hacia aquello que (me) excede sin límites?
¿Cómo apertura en la cual la tierna seguridad del yo tiembla
y vacila?
¿Y si entendemos que el pensar en este temblor, en este
vacilar, nos enseña,
o nos dispone, mejor dicho, a la escucha de este otro
como otro, de este otro en su alteridad radical?
Sin vacilar, se juega en esta apertura, un gesto decisivo
que la época nos reclama, nos exige: una disposición del
cuerpo y
del alma, que ponga en entredicho la ceguera de las
dogmáticas
que buscan anular, aniquilar las diferencias (de suelo,
sexuales, religiosas, etc.)
Jean –Luc Nancy (2010, p.3)

Integrantes de la Biblioteca Popular Carilafquen de Villa Los


Coihues, se proponen invitar a niñas y niños del barrio, y de otros
lugares, a participar los sábados de las nombradas: Meriendas filosóficas
(de los cafés filosóficos para adultos, a las meriendas filosóficas para niños
y niñas)
Se inauguran en marzo en el 2015, junto al Equipo de Filosofía e
Infancia de Universidad Nacional de San Juan.
Al año siguiente, con la llegada de otras y otros compañeros, se
afianza aún más, el equipo, en apasionados encuentros de trabajo. Ya,
nuestra compañera querida compañera Arianne, no podía
acompañarnos debido a su enfermedad y, en esa primavera, la
despedimos con profundo dolor. La extrañamos cada vez y siempre.
Conformamos un potente grupo interdisciplinario, diverso en
campos de formación, desarrollos profesionales y trabajos: en

71
maría silvia rebagliati

educación, filosofía, antropología, psicología, arte, cuerpo y danza,


unidos por el mismo entusiasmo, desde una fuerza que impulsa más
allá de los propios ámbitos laborales.
Acordamos compartir tardes filosóficas entre mates y ganas de
continuar formándonos, nutriéndonos mutuamente entre lecturas,
lenguajes propios y ajenos, conversando ideas, sueños, pasiones,
acordando y discordando, para tejer juntos/as, tramas que estimulen
pensar entre nosotros/as y escoger aquello que creemos, provocará
dar a pensar a niñas y niños. Nos desafía una constante apertura a
lenguajes sensibles, simbólicos, que configuran mundos posibles, que
abren y despiertan algo que no sabemos.
En esos encuentros, analizamos también, aquello que acontece
en las experiencias de las Meriendas, encontrando algunas marcas
propias que compartimos:
Los círculos del pensar (los terminamos nombrando así) se
conforman cada vez por grupos diferentes de niñas y niños, que no
siempre se conocen entre sí; que vienen no sólo del barrio, sino de
otros puntos de ciudad; son de diferentes edades (entre 5 años a 12
años); van porque desean, los familiares y adultas/os que los
acompañan quieren quedarse (acordamos que no); se crea un clima de
comunidad y confianza, relajado y a la vez, atento y profundo. Ese
pensar como apertura a la diferencia, que se compone en el vaivén de
pensamientos circulando ahí, lo llamamos pensamiento circular. Cada
vez, al finalizar la sesión, disfrutamos muchísimo de una merienda
compartida.

sentido de las consentidas meriendas

Como compartimos, nos proyectamos desde el ámbito de la


extensión universitaria, entendiendo a la misma como práctica política
dinamizadora de transformación social. Un alargar las acciones más
allá de la universidad y en este caso más allá de la escuela, que, en
todo caso, se trata de acciones de extensión universitarias de hacer
escuela fuera de la escuela.
Nos propusimos entonces, enlazar acciones y fundamentos del
terreno de la filosofía e infancia, para dar forma a la propuesta de
componer experiencias de pensamiento entre niños, niñas y adolescentes
en espacios públicos de la ciudad. Poner en movimiento la acción de
filosofar como modo vivo de relacionarse con los saberes, como forma de
experiencia en el pensar, que transforma lo que sabemos y como pensamos…Y
dar lugar a la...infancia como sensibilidad, como otra voz, como palabra con
una intensidad que irrumpe, que interpela nuestra atención y nuestra
escucha… (Kohan, 2009, p. 6-7)
¿Qué significa filosofar con niños y niñas en ámbitos públicos?
¿Por qué? ¿En qué espacios, además de las escuelas?

72
“meriendas filosóficas” en la biblioteca popular, carilafquen...

Dar lugar al pensamiento infantil en el mundo actual, es romper


con la invisibilización de niños, niñas y adolescentes, en otros espacios
posibles, en las mismas escuelas y más allá de las escuelas.
Es impulsar la fuerza de la infancia y su potencial emancipador,
para crear condiciones, espacios y tiempos para que voces otras, tonos,
gestos, cuerpos, movimientos, palabras de infancia irrumpan, habiten
calles, plazas, centros deportivos, escuelas, centros de salud,
bibliotecas.
Es escuchar y atender un llamado poniendo en acto sus derechos
a participar, a ser escuchados, a expresarse, a compartir sus ideas
propias.
Es asumir nuestra responsabilidad como adultos, de hacernos
cargo definitivamente, de los derechos que son de ellos/as, en tanto
principio de eleidad, sostenido en el suelo de la Convención de
Derechos del Niño (Bustelo, 2007).
Es crear las condiciones, abrir al encuentro para pensar juntos,
conversar, expresarse desde su propio lugar, su propia niñez,
reafirmando su subjetividad, su modo de vivir el presente. ¿De qué se
tratan esas condiciones (a ser cuidadas) que diferencian estos ámbitos
de otros?
En dar apertura y creación a ambientes de libertad de asistencia
y permanencia y de voluntad incondicionada, en otros tiempos, sin
duración inexorable, sin “timbres”, sin cronos, tiempos no controlados,
tiempos cargados de incertidumbre, suspendidos, en tiempo aiónico,
en intensidad…Allí hay adultos, hay niños, hay niñas, más no
maestros, ni alumnos, ni alumnas.
Como experiencias que atravesar, se trata de la acción de
filosofar con, entre, desde niños y niñas, hacia la conformación de
comunidades cada vez, con pensamientos propios, de diferentes
edades, diferentes lugares, diferentes historias, que no siempre se
conocen, que no son compañeros ni compañeras.
Atravesar los muros más allá de la escuela, filosofar en ámbitos
públicos, es una posibilidad ofrecida a las infancias, todas lejos,
lejísimos de invalidar el potencial de filosofar en la escuela (donde,
siempre que se desee, es posible irrumpir e instalar lo instituyente)
En este sentido, concebimos al ámbito de lo público con
potencias políticas diferentes, únicas, de alcance general y, por lo
tanto, garante de un derecho infantil universal, el del acceso a pensar
entre varios, a la palabra, a morar lugares comunes, abiertos, colmados
de voces a ser escuchadas, a la plenitud de su ciudadanía. Espacios de
encuentro, alteridad e igualdad. Encuentros con el filosofar,
encuentros con la infancia, aperturas a tocar lo que acontece, lo que
está de ese tiempo, allí, cada vez. Jorge Larrosa escribe:
Una imagen del otro es una contradicción. Pero quizá
nos quede una imagen del encuentro con lo otro. En ese

73
maría silvia rebagliati

sentido no sería una imagen “de” la infancia, sino una


imagen “a partir” del encuentro con la infancia. Y en
tanto que ese encuentro no es ni una apropiación ni un
mero reconocimiento en el que se encuentra lo que ya se
sabe o lo que ya se tiene, sino un auténtico cara a cara
con el enigma, una verdadera experiencia, un encuentro
con lo extraño y lo desconocido que no puede ser
reconocido ni apropiado. (2000, p. 178)
Hoy, haciendo un recorrido de pensamiento a partir de nuestra
experiencia de las Meriendas Filosóficas, nos acercarnos al
acontecimiento, a conocer algo más de nuestro lenguaje, nuestro
ambiente /escenario, nuestros invitados e invitadas, nuestros textos.
En suspenso, mirando con otros ojos lo que pasa y nos pasa, nos
preguntamos:
¿Qué hace que niñas y niños respondan a nuestro llamado, a
nuestra invitación a encontrarnos a pensar juntos/as y a compartir
una merienda? ¿Por qué llamarlas consentidas?
Según el diccionario, consentir, es permitir a una persona que
haga una cosa o, no oponerse a que la haga. Consentir significa darla
aprobación para ser partícipe en una actividad y también, permitir que
ocurra algo. El origen etimológico de consentir, proviene del latín
consentiré: con sentir y también acordar.
Desde este lugar, tanto padres, familiares, adultos, como niños y
niñas, consienten, aprueban, acuerdan, en ser partícipes de la propuesta
de las llamadas meriendas filosóficas como apertura al pensar y, cada
una/o, desde lo propio, transmite este consentimiento. Habría algo
así, como un permiso (implícito, misterioso) a que algo ocurra, una
especie de complicidad. Aún la primera vez que vienen, los niños y
niñas, algo intuyen al respecto.
Por otra parte, hay que reconocer que, por momentos, tienen
algo de consentidas en el sentido de mimadas, permitirle a cada
Merienda que haga un poco lo que quiera.
Cuando pensamos en algo que no se encuentre en la
materialidad de las palabras, vamos en busca del sentido; otras
márgenes, otros horizontes. Entonces buscando el significado de
merienda, encontramos que, desde su etimología, el vocablo procede de
merenda, palabra latina, que, derivada del verbo merere, con el
significado de merecer, ganarse algo, pero también desde su origen dice:
hacerse merecedor de una parte o participar en un reparto: lo que debe
repartirse por merecerse. A su vez, el verbo merere se forma a partir de
una raíz indoeuropea, que da con el significado de compartir.
Estos sentidos nos van muy bien, pues nos parece muy
merecida, una rica merienda compartida, después de tan importante y
profunda tarea de pensar, crear, atender. La misma adquiere un sabor
vital diferente, …el sentido es el acontecimiento vivo de las palabras.
(López, 2008, p.78)

74
“meriendas filosóficas” en la biblioteca popular, carilafquen...

Como decíamos, nos encontramos con lo que enriquece el saber,


en evocar a través de la memoria, pero fundamentalmente recurriendo
al pensar, que nos habla del sentido, en tanto acontecimiento, en tanto
acto. Buscar sentido es producir acontecimiento, es recorrer caminos
que nos sorprendan y capturar el instante donde se produce,
escucharlo, sentirlo, tal vez verlo. A propósito, volvemos a pensar
¿Cuál es el sentido de nuestras consentidas meriendas?
Cada vez es esa vez, cada lazo con lo misterioso del pensamiento
nos lleva a algo original, secreto, que no habríamos podido predecir,
que nos obliga a saber, pero fundamentalmente a recorrer un camino,
encontrando en el devenir un deseo de continuar pensando. Se trata
de atravesar experiencias que se componen desde otros lenguajes,
metáforas, miradas, preguntas, cuerpos, gestos, tonos, silencios,
juegos, risas, sentimientos, asombros, emociones, pasiones, sueños,
poemas, imágenes, objetos, movimientos, aromas, sonidos, escenas.
Lenguajes simbólicos que, a su vez configuran mundos, con sentidos
otros, que no se preocupan por lo que el mundo “es”, sino de lo que
“significa”, de sus sentidos y de otros mundos posibles..
En esa sensibilidad del lenguaje, se pone a rodar la ficción,
configurando a su vez, un lenguaje político, en tanto derecho, como
construcción y producto cultural, como acto creativo. Así, en los
encuentros de la Meriendas, venimos creando nuestros lenguajes,
desde con, junto a niñas y niños.
Se trata de lenguaje político, un lenguaje sensible del orden de lo
poético, que, como dice Chiqui González (2007, p.8)
[...] invita a reponer un orden ético y estético,
embelleciendo para restituir la posibilidad objeto en
extraño y sin embargo, conocido y atrayente, manera
peculiar de interrumpir lo cotidiano de convertirse en el
acto político de liberar las palabras; […] …ese arte de
convertir un y el estado habitual de las cosas...
Y las meriendas acontecen en “La Biblio” (Biblioteca popular
Carilafquen), que lleva años contando su historia, construyendo con
cada persona que la recorre, memorias nuevas y transformando en
movimiento a los que tenemos el gusto de visitarla.
Allí irrumpimos, rompiendo lo cotidiano y cada Merienda es
nacimiento de encuentros nuevos. Encuentro de ese mundo que tiene
pies colectivos y camina hace años, y el de muchos piecitos que
muchas veces llegan por primera vez sin conocer. Encuentro con
muchos, otras y otros.
Tiempo y espacio se transforman y nos transforman,
haciéndonos cómplices de un movimiento más amplio, mientras
juntos hacemos circular la palabra en libertad, ejercitando la escucha
atenta y activa, en un proceso expansivo que se contagia, de ideas

75
maría silvia rebagliati

nuevas que construyen otras realidades posibles, desandan fronteras y


repiensan el mundo.
¿Qué es lo que hace que lo que allí acontece cada vez, propicie (o
al menos intentamos) un dialogo que llamamos filosófico?
Como dijimos, nos encontramos en una relación no solo con la
infancia, sino también con el saber, con el pensar, con la palabra
propia, con la pregunta, la escucha, la atención, en tonos, gestos,
miradas, que circulan, que dan a componer una experiencia, que la
buscamos filosófica.
Componer y ser parte de una experiencia filosófica, una
experiencia que atraviesa lo que somos, implica dar mucho énfasis a la
potencia de pensar juntos, que provoque un problematizar, un crear.
Cuidamos que ese pensamiento circular (el que se compone en el círculo
del pensar) nos envuelva, en una trama hecha de otro tiempo y otro
espacio.
Es una invitación a conversar, a provocar un encuentro con lo
enigmático, con algo que (nos) inquiete (un texto), y que torne
necesario el preguntar, preguntarse. No llamando a preguntas
externas, sueltas, sólo para ser respondidas, ni por el sólo hecho de
preguntar, sino preguntas que nos impliquen, preguntas que nos
toquen…
Encontramos diferencias con otros diálogos grupales, en el que
se hacen preguntas y se conversa, se entablan diálogos, se responden o
no preguntas, se tratan problemas, buscando llegar a resolver algo, o
concluir algo.
Aquí, sin embargo, es necesaria una relación con la pregunta,
una relación que invite, que provoque un conversar diferente, atento,
cuidadoso, profundo, paciente, sin apuro por llegar a…
Por cierto, preguntar no es andar formulando interrogantes, sino
sumergirnos con todo, en una experiencia que no sabemos, en tanto
que es en el auténtico preguntar que zozobran las certezas. (Kohan;
Olarieta, 2013)
En el dialogo filosófico el contenido de lo que se discute está
vinculado a la manera cómo se discute: no sólo palabras, sino gestos,
silencios, otros lenguajes circulan. En esa capacidad de pensar al
mundo, de problematizar, de conceptualizar, crear, inventar, podemos
imaginar otros mundos, nuevos mundos.
Como retoma Deleuze (2005), respecto de Nietzsche, podemos
imaginar al pensamiento como flechas que se tiran al vacío para que
otros las agarren y las tiren en otras direcciones.

la experiencia del pensar: mover pensamiento, despertar apetito.

Para pensar tiene que haber algo que provoque el pensamiento,


que lo mueva a pensar. En nuestras experiencias filosóficas nos

76
“meriendas filosóficas” en la biblioteca popular, carilafquen...

valemos de distintos textos para provocar el pensar, entendiendo que,


no cualquier cosa provoca, mueve o da a pensar.
Cabe señalar, que cuando hablamos de texto, lo hacemos en un
sentido amplio, en cuanto a la variedad de cosas que pueden
funcionar como tal en una ronda filosófica: cuentos, poesías, imágenes,
objetos, y, a su vez, entendemos el texto como signo, tal como lo sugiere
López (2008).
Buscamos que los textos contengan un aspecto enigmático, cierta
belleza, que nos inviten a pensar un aspecto del mundo no como algo
dado, ordenado, sino como algo que necesita ser pensado, porque no
nos revela una verdad acerca de él, sino que nos lo muestra con su
infinidad de posibilidades, de interpretaciones, de enigmas, misterios
y puntos de vista posibles.
El texto como signo, se nos presenta como anterior a cualquier
determinación, y presenta un mundo infinito, indeterminado, incierto,
caótico
[…] El signo apunta hacia ese lugar donde los contornos
se superponen, multiplican, se confunden, ese lugar
heterogéneo, anterior al establecimiento de cualquier
criterio que permita distinguir una cosa de otra, un
rasgo de otro. Lo que el signo nos muestra es la
naturaleza infinita del mundo. López (2008, p. 78.).
Ante esta apertura del signo, el texto nos interroga, nos pone ante
la necesidad de desentrañar su sentido, de explicarlo, de
comprenderlo.
Cuando en el equipo, buscamos nuevas, otras lecturas posibles,
de los textos que proponemos en las experiencias (meriendas)
filosóficas, intentamos corrernos de las interpretaciones establecidas y
abrirnos a lo problemático y complejo, para dar lugar a otras
interpretaciones, explicaciones e interrogantes desde cada una de las
subjetividades que participamos. Para que un problema tenga sentido,
debiera ser creado por nosotros, ser propio, no es posible preguntar
por el otro, preguntar siempre es un preguntar-se, implica poner en
cuestión la propia subjetividad.
Es por ello que consideramos que el carácter enigmático,
inacabado, de apertura de los textos, es fundamental para provocar el
pensamiento propio, para que las preguntas y problemas que se
plantean sean potentes, para un preguntar auténtico, que no puede ser
transferido ni universalizado. Una experiencia da cuenta de nuestra
mirada:
En una ocasión, en el año 2015, nos visita a la Biblio,
Maximiliano López (UFJF, Brasil), coordina una de las Meriendas,
proponiendo una historia, que es leída por los niños y niñas en ronda.
Dicha historia, provoca una intensa conversación, aconteciendo un
camino de búsqueda y problematización, dando lugar al finalizar, a la

77
maría silvia rebagliati

creación de preguntas propias, entre niñas y niños de 5 a 12 años, que


registramos:
¿Es posible pensar cuando, por ejemplo, imaginamos formas en
la madera, o en las nubes? ¿Cómo surgen los pensamientos? ¿Cómo es
ese proceso del pensar, de donde salen los pensamientos? ¿Cómo son?
¿Dónde aparecen? ¿Es lo mismo estar atentos, que pensar? ¿Es lo
mismo pensar que imaginar? ¿Es posible pensar cuando hacemos
algo? ¿Pensamos como si nuestra mente fuese una máquina? (gestos
tratando de explicar el mecanismo) ¿Dónde están los pensamientos?
¿De dónde vienen? ¿A dónde van? (señalando la cabeza)
Pensar el pensar, pensar sobre los pensamientos. Sin que la
historia apuntara a esa problematización, la misma sacudió por allí, y
provocó esa búsqueda propia, así como podría haber sido otra.
En el proceso de diseñar, imaginar, proyectar cada merienda,
nos implicamos en una búsqueda: búsqueda de textos que den a
pensar, que abran otros mundos posibles. Búsqueda de atrevernos a
crear espacios que se constituyan con cierta intimidad, confianza, que
abracen la posibilidad del pensamiento, que recorran los recónditos
espacios de los presentes y permee las durezas del cuerpo, dando
lugar a la repercusión de los ecos que emiten los otros y otras.
Aquellos que acompañan caminos, otros recorridos, que es algo más
que hacer preguntas o traducir información para convertirla en algo
útil. Es una difícil tarea de contraponer, de desandar, de romper, de
encontrar en la ecuación de un mundo enseñado, los recovecos donde
vive la voz más propia, aquella escondida, tímida, que a veces no sale
y dar lugar a lo no-absoluto y a la no única verdad.
En este sentido, buscamos des-institucionalizar los textos,
cambiar los planos, los modos tradicionales de pensarlos, concebirlos,
usarlos: imágenes en el piso o colgadas, relojes en el centro de la
ronda, cuentos leídos con distintas voces, un perfume, sonidos,
escenas, nos invitan movernos, a mirar, observar, escuchar desde otras
variaciones y lugares posibles, irrumpen, nos interrogan e incomodan,
tornan extraño al mundo, potencian el pensamiento.
Se trata de un camino de búsqueda, de pensar con otros y otras,
problematizar el sentido, no como algo estanco e inmutable,
permanente, sino impredecible, cambiante en función de la relación
entre las palabras (que le prestan su cuerpo) y el mundo. Unos
sentidos que se modifican, que no son los mismos, que cambian frente
a quienes pronuncian las palabras, que cambian frente a quienes las
escuchan, también según dónde y cuándo se escuchan. Buscar,
indagar, recorrer, hurgar atrevido, osado, audaz, valiente, que abre
ventanas para a dar vuelo.
Apertura a unas primeras preguntas simples para alcanzar otras
más esenciales que complejizan, que enriquecen e interesan sobre
temas o situaciones que inquietan e incomodan, no para arribar a

78
“meriendas filosóficas” en la biblioteca popular, carilafquen...

conclusiones. Aquello que intenciones, que impulse a inventar muchos


otros espacios-tiempos, desde el derecho a pensar, preguntar,
cuestionar y hacerlo con otros y otras.
Compartimos una escena recortadísima, de una de las Meriendas
filosóficas:
Una fría tarde de otoño del 2016, invita a sumergirse en el calor
de la Biblio: veinte pares de zapatillas, botas, en la puerta. En el piso
imágenes, fotos (seleccionadas cuidadosamente como texto
provocador), una música muy suave, un ambiente íntimo, muy
tranquilo, (también texto) un susurro que invita a moverse, a caminar
(si se quiere), a mirar, parar, mirar, pararse, a volver a mirar, pensar, a
volver a caminar, sentir, a elegir, pensar, a compartir entre algunos/as,
intercambiar …
En ronda, sentados en el piso, cara a cara, como balbuceando,
comienza una conversación.
¿Qué los atraviesa? ¿Qué los implica? ¿Qué los toca? ¿Qué les
pasa con lo que ven, sienten, piensan? No sabemos…
Escuchemos algunos de esos pensamientos propios, que
circularon, inquietados por relaciones posibles entre soñar, imaginar,
pensar:
- ¨Mira si nosotros somos el sueño de otra persona¨
- ¨A veces cuando escucho un tipo de música siento que estoy en el
bosque o el río¨
- ¨A veces yo juego a que soy una guerrera con un caballo¨
- ¨Más imaginación, más divertido¨
- ¨Nunca te detendrías a pensar sin imaginar¨(…)
- ¨Yo, por ejemplo, me imagino que soy grande¨ (Silencio)
-¨Me imagino igual pero más alta¨ ...
Coordinador: ¿Cómo será dejar de pensar?
- ¨Tendríamos la mente en blanco¨
-¨ ¡Si no pensás no podés hacer nada! ¨ (…)
- ¨Estas muerto, parado, pero a la vez vivo¨
- ¨No podes pensar ¿qué voy a cocinar?, ¡No podes comer! ¡Te vas a
morir! ¨
- ¨Si no pudiéramos pensar, no podríamos razonar¨
- ¨Estaríamos paralíticos¨
- ¨No, porque no podrías pensar que estas paralítico¨

Los pensamientos circulan, a veces se entraman, a veces se


traban, a veces llegan a enlazarse, a perderse, a volver, incitando otras
búsquedas. En ese andar, ese circular, la idea propia se vuelve texto, se
transforma colectivamente, se vuelve material para volver a abrir, para
buscar y seguir indagando.

79
maría silvia rebagliati

En este sentido, cada merienda es una invitación, una invitación


a pensar y re-pensar-nos. Un desafío constante que convoca a sostener
esa reflexividad que buscamos ejercer constantemente.
Así como en el equipo nos ocupamos intensamente en diseñar
aquello que dará a pensar a niños y niñas, también, cada vez, al final
de cada merienda, nos preocupa y ocupa la tarea de revisar nuestras
acciones adultas, de pensar que pasó, qué nos pasó.
Nos preguntamos sobre nosotros y nuestros modos, nuestros
tonos, gestos y palabras, nuestras intervenciones y orientaciones:
¿Cómo preguntar sin inferir respuestas? ¿Cómo mantener la riqueza de lo
efímero, lo que insinúa, lo sutil? ¿Cómo intervenir sin coartar? ¿Será posible
tratar de prever las situaciones que nos pongan en jaque y reaccionar con las
sorpresas circunstanciales?
Una primavera, en el 2017, invitamos a niñas y niños, a caminar
por el bosque, en silencio, lento, libre, pudiendo detenerse donde cada
una/o lo encontrase necesario, por un camino posible, guiado por
imágenes (pinturas de Miró), suspendidas en el bosque...
En un momento nos detuvimos proponiéndoles pensar sobre el
caminar en silencio:
- Coordinadora: ¿Qué les pasó con el andar en silencio?
-No hacer ruido
-No hablar
-Hacer silencio
- Coordinadora: ¿Es lo mismo?
-Un poco se parecen
-No hacer ruido seria no hacer ruido
-No hablar seria no hablar pero podríamos caminar
-El silencio es una mezcla de no hablar y no hacer ruido
-Si pisamos las hojas no podemos caminar en silencio
-Coordinadora: ¿Será posible moverse en silencio?
-En el piso de mi casa yo ando en patas sin hacer ruido
(...)
-O una planta que vos la agarras y la soltas hace ruido con otras
plantas
-Si vos la acompañas no hace ruido
-Silencio del bosque...
-No hay silencio en el bosque
-Si le prestas atención...
-A veces el silencio del bosque es una manera de decir, como una fiesta
que están todos bailando, una música...
-…Es diferente, es como un silencio con ruido suave...
- Coordinadora. Y,...si hiciéramos un ejercicio de hacer silencio...
Permanecen unos instantes en silencio atento y sostenido y
dicen:

80
“meriendas filosóficas” en la biblioteca popular, carilafquen...

-El silencio del bosque es como una metáfora. No es literalmente, es


pisar las hojas, no es silencio pero…
-Ponele, si nos quedamos todos en silencio se escucha el viento, se
escuchan...(intentan volver al silencio)
- shhhh!!
-shhhh!!
-En parte en realidad es un silencio,… es una metáfora. En el fondo hay
un silencio. El sonido que hay es diferente a un sonido normal...
-Si te movías, así se escuchaba
-Un pájaro carpintero
-Yo escuche el viento
-Coordinadora: ¿Tendrá que ver con el mirar? ¿Con el escuchar?
- Con el pensar…
-Si yo hago así, uno puede pensar que la rompía…
- O que era otro ruido
-Tal vez si no pensas en eso, estas así, se te ocurre quedarte quieto, y tal
vez escuchar algo diferente, porque nosotros estábamos hablando de eso
-Cerrar los ojos
-Escuchar otras cosas, pensas bien de donde viene el sonido
-Tenes más claridad con los ojos cerrados
-Te concentras
(...)
-Estás pensando que no lo estás pensando
-Estás pensando pero no te das cuenta de lo que estás pensando... (...)

Entre nosotras/os, luego de cada merienda debatimos,


conversamos, compartimos nuestras posiciones en cuanto a cómo
proponemos un camino de diálogo filosófico y en qué sentido lo que
allí se da, se trata de una experiencia filosófica.
Un compañero del equipo nos interpela con su pregunta que
sacude y provoca a pensar (nos):
…cuál es el lugar entre la pregunta punzante y activa, que cuestiona
las afirmaciones, que pone el foco en las diferencias que hay entre los
pensamientos de los chicos, que pide más explicaciones; y la pregunta que sólo
aparece para que el diálogo continúe, pero buscando no direccionar en lo más
mínimo. Me parece que, entre estas dos actitudes, la del adulto que direcciona,
y la del adulto que "deja ser" el pensamiento, hay una infinidad de
posibilidades y matices. Y al mismo tiempo pienso que es inevitable situarse
en algún matiz que combine esto. Ya que los dos extremos son la antítesis de
lo que buscamos. (…) estamos sugiriendo un camino (amplio, amplísimo, que
abre claramente sin cerrar, pero camino al fin).
Seguimos pensando en esa apertura a que la acción de filosofar
sea posible, a ese pensar circular, en espiral, en laberinto, en infinito…,
como sea, donde sea, seguimos pensando en el existir, existiendo en el
pensar (infantilmente…), desde, junto, con, entre niños y niñas…
Hasta la próxima merienda.

81
maría silvia rebagliati

bibliografía

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DELEUZE G. (2005)."Pensamiento nómade (Sobre Nietzsche)". La isla desierta y
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SKLIAR C. (2005) La intimidad y la alteridad. (Experiencias con la palabra).
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82
olimpíadas filosóficas uruguayas. reflexiones sobre una
experiencia.

marisa berttolini
marisaberttolini@gmail.com
christian burgues
azulesruidosos@gmail.com
ana duboué
aduboue@gmail.com
mauricio langón
mlangon@gmail.com
adelina pintos
adepin34@gmail.com
asociación filosófica del uruguay (afu)

i. presentación

El sistema educativo formal uruguayo incluye la asignatura


"Filosofía" con 3 (ó 4) horas de aula semanales, en los 3 últimos años
de educación media (estudiantes formalmente entre 14 y 17 años,
aunque hay muchos de mayor edad).
Nuestras Olimpíadas están en línea con el trabajo didáctico-
filosófico que se desarrolla en ese ámbito. Son suplemento, apoyo y
profundización de esa asignatura curricular (no su sustituto o
paliativo). Es una de las ampliaciones necesarias para que lo filosófico
impregne la vida.
Ellas consisten en variadas actividades filosóficas, abiertas,
libres, pero articuladas entre sí y con las aulas, en torno de un mismo
problema durante el año lectivo. Son juegos en que participan docentes
y estudiantes de Bachillerato de todo el país. Implican el desafío
filosófico de trabajar lugares de encuentro entre diferentes, en las
fronteras porosas entre educación, sociedad y realidad, dentro y fuera
del aula. Se desarrollan desde 1999, con algunas discontinuidades.
Antes, en algunas zonas del país se habían organizado "Movidas
Filosóficas". Eran jornadas de variadas actividades de encuentro
lúdico/filosóficas en las que participaban docentes y estudiantes de
localidades relativamente cercanas.
Por otra parte, los antecedentes de olimpíadas existentes en otras
disciplinas, acentúan su espectacularidad, y la competencia entre

83
marisa berttolini; christian burgues; ana duboué; mauricio langon; adelina pintos

estudiantes por lograr premios a la excelencia en destrezas propias de


disciplinas selectas.
Pero la idea de Olimpíadas Filosóficas, iniciada de la
Universidad de Sofía, Bulgaria, y desarrollada como "Olimpíadas
Internacionales de Filosofía" (IPO, por su nombre en inglés), pensamos
que podría ser una idea fecunda para el Uruguay como una
convocatoria análoga a las Movidas Filosóficas, más amplia,
sistematizada y sostenida. Siempre que lográramos separarlas de la
reducción del IPO a la premiación de ensayos escritos en una de tres
lenguas, arbitraria o colonialmente seleccionadas, que no sean la materna.
Consideramos más adecuadas las promovidas en Argentina, con
actividades filosóficas diversificadas y colectivas (tales como talleres,
mesas redondas, conferencias, debates, etc.-) aunque conservan el
carácter selectivo y valoran sólo el ensayo escrito.
Las nuestras se fundaron en la renovación del estrecho vínculo
clásico de los Grandes Juegos de Olimpia con el surgimiento de la
filosofía en sentido estricto, con su carácter festivo, y con la finalidad
pacífica expresa de las Olimpíadas Modernas. Buscamos promover el
acercamiento y encuentro de jóvenes y docentes, enfrentando específicos
problemas filosóficos vitales y actuales, colectivamente, en diálogos, en
reflexión y debate argumentativo, estimulando el pensar crítico,
creativo y solidario tanto individual como grupal.
En ese marco nos decidimos a ensayar nuestra propia propuesta
en Uruguay, y a trabajar en colaboración con colegas argentinos para
organizar Olimpíadas Filosóficas Rioplatenses con ese espíritu.
Que la actividad se realice en el marco de la Asociación
Filosófica del Uruguay, que nuclea profesionales y amigos de filosofía,
principalmente vinculados a su docencia, asegura su independencia.
El vínculo estrecho con la Inspección de Filosofía, asegura su
sustentabilidad en la orientación filosófica compartida que se expresa
en los programas oficiales de Filosofía, y en la actividad cotidiana de
los docentes en el aula.
Actualmente se procura resignificar el sentido clásico del
término Olimpíada como período entre los Grandes Juegos, para poner
el acento en el proceso, y para valorizar cada uno de los distintos espacios
en que se despliegan las actividades durante el año (y no un solo
"centro" privilegiado).
De modo que forman parte de las Olimpíadas: (a) la preparación
de cada una por AFU y la Inspección; (b) la actividad de lanzamiento
(que se realiza en una jornada, cada año en un lugar distinto, en
vínculo por videoconferencia con otros); (c) las distintas actividades
que se realizan en diversos lugares, según las características de cada
uno y la creatividad de sus protagonistas; (d) la instancia "final",
programada centralmente (una misma propuesta para todo el país de
debate oral y producción escrita, y abierta a otros formatos) pero

84
olimpíadas filosóficas uruguayas reflexiones sobre una experiencia.

desarrollada en cada lugar; (e) la evaluación y devolución de los


resultados (en lo posible publicados); (f) la apertura de otras
actividades innovadoras relacionadas con la Olimpíada y el tema de
cada año, simultáneas o posteriores. Como por ejemplo: (f.1) Encuentros
de ensayistas: se convoca a presentar breves ensayos (de profesores y
estudiantes de filosofía) referidos al problema, que se leen y discuten
en una jornada en la sede de AFU, y se publican posteriormente; (f.2)
Campamentos filosóficos, con participación de decenas de estudiantes y
algunos docentes de distintas partes del país.

ii. algunas ideas orientadoras


1. ideas a tomar en cuenta de la tradición filosófica uruguaya

Nuestras olimpíadas se insertan en rasgos específicos de la


tradición uruguaya, cuya producción filosófica ha estado íntimamente
ligada a la docencia, y ha tenido impacto social amplio. Nuestros
filósofos creadores han sido docentes de filosofía cuyas ideas
impregnaron la "uruguayez".52 Es reciente y sin arraigo propio la
tendencia a separar la "investigación”, limitada al desarrollo y
reproducción de una "normalidad ¿filosófica?" al desligarla de la
trans-misión a todos de la filosofía y el filosofar.
Nuestra tradición filosófica, desde sus inicios, se construye en
discusión pública desde y sobre el aula.53 Con Carlos Vaz Ferreira, lo
filosófico se desplaza del debate entre "escuelas rígidamente
determinadas" a una concepción no dogmática y argumentativa entre
cuyos rasgos característicos se ha destacado:
"La proscripción del espíritu de sistema y del pensar y
resolverse por fórmulas (...); la prevención contra los
formalismos lógicos (...); la libre y valerosa
profundización de los problemas, con obstinado apego a
los hechos (...) la aproximación del conocimiento a la
acción, del pensamiento a la vida". (Ardao, 1961, 10)
A lo que agregaríamos el efecto esencial del aprendizaje de la
filosofía, según Vaz Ferreira: "Abrir los espíritus; ensancharlos; darles
amplitud, horizontes, ventanas abiertas; (...) ponerles en penumbra;
que no acaben en un muro, en un límite cerrado, falsamente preciso;

52 Término que usaba la Prof. Mabel Quintela para referirse a ciertos rasgos
idiosincráticos de nuestro "paisito".
53 En 1838 se inaugura el filosofar en Uruguay con la polémica en la prensa entre

Alberdi y Ruano sobre dos modos de hacer filosofía en nuestra América; a partir del
cuestionamiento del primero sobre los exámenes públicos del otro. En el s. XIX
Plácido Ellauri enseñó filosofia en debates entre estudiantes, quienes olvidaron sus
rencillas para rendirle homenaje en sus 50 años de docencia.

85
marisa berttolini; christian burgues; ana duboué; mauricio langon; adelina pintos

que tengan vistas más allá de lo que se sabe, de lo que se comprende


totalmente: entrever, vislumbrar y todavía sentir (...) la vasta
inmensidad de lo desconocido. Enseñar a graduar la creencia, a
distinguir lo que se sabe y se comprende bien, de lo que se sabe y se
comprende menos bien, y de lo que se ignora (enseñar a ignorar, si
esto se toma sin paradoja, es tan importante como enseñar a saber);
excitar, despertar los espíritus (...); la formación o el desarrollo del
espíritu crítico, de análisis y libre juicio. Y producir también la
sensación de la dificultad de las cuestiones, el discernimiento entre lo
que es cierto o simplemente probable, y la sensación, también, de que
hay problemas insolubles.” (Vaz Ferreira, 1957, XV, 76-77). Enseñar a
vacilar "para entrar a puerto". (Vaz Ferreira, 1957, X, 118)

2. educación filosófica.

Nuestro oficio de profesores de filosofía en la enseñanza media54


nos ha llevado a una transformación del modo de concebir la filosofía.
Desde y en nuestras prácticas de aula, dirigida a todos, ella pierde sus
caracteres esotéricos y elitistas. Se va haciendo entre todos, de todos y
para todos. Se va transformando en sus actos de educar. Se va
democratizando. Por eso podríamos hablar de una transformación
democrática y educativa de lo filosófico, entendido como reflexión y
deliberación públicas y racionales sobre cuestiones que hacen a lo
humano. Transformación que abarca tanto a la enseñanza de la
filosofía como a la filosofía en sí misma. Conduce a una filosofía de la
enseñanza de la filosofía, a una didáctica filosófica, a una educación
filosófica. Una transformación de estas características no es sin riesgos.
La propuesta de una educación filosófica implica el dejarse cuestionar
y cuestionarse en su práctica.
La "filosofía" va dejando de ser concebida como un corpus
determinado de saberes eruditos, característico de determinada
cultura, que un grupo de expertos trata de preservar, aumentar y
transferir indefinidamente a nuevas generaciones de quienes se espera
sean a su vez custodios, exégetas y maestros, capaces de reiterar el
movimiento de cristalización de su "objeto". Esa filosofía etnocéntrica
y elitista se inserta en una concepción oligocrática, selectiva y reiterativa
de la educación, como selección o jerarquización de los saberes a reiterar,
de las personas que los manejan y de quienes los repiten. Esa
educación sirve de fundamento y modelo a la reiteración de una sociedad
anti igualitaria.

54 Es decir, la tarea a que dedican gran parte de sus vidas la enorme mayoría de los

filósofos uruguayos (incluyendo, claro está, a los mencionados anteriormente).

86
olimpíadas filosóficas uruguayas reflexiones sobre una experiencia.

En cambio desde nuestra transformación en determinado modo


de hacer y enseñar filosofía surge el planteo de una educación filosófica.
Nos basamos en una relectura actualizada de Kant, que sostenía que
no se puede aprender filosofía al modo en que sí se puede aprender (es
decir: imprimir en la memoria y el entendimiento) saberes que se
pueden presentar como acabados en obras como las de Euclides en
matemáticas o Polibio en Historia. En cambio, dice, el alumno "ha de
aprender a filosofar" a encarar la realidad de modo filosófico, con los
recursos de la filosofía, aprendiendo a pensar y actuar filosóficamente a
través de autores, conceptos, casos, problemas.
En nuestro presente no es posible tampoco aprender ninguna
disciplina como si fuera acabada. Hay que aprender a matematizar, a
historizar, a mirar lo real de modo artístico, corporal, literario,
cinematográfico; instalarse en la realidad pensando y actuando con los
recursos inestables y cambiantes de ciencias, artes, deportes, técnicas...
De modo que una transformación filosófica de la educación no se
reduce a la filosofización de la didáctica de la filosofía, sino que es un
desafío para toda disciplina, una convocatoria filosófica a lo
interdisciplinar y transdisciplinar, una invitación a un espíritu que
impregne todo educación y la vida en común. Nuestra propuesta de
“educación filosófica", la transformación filosófica de la educación, no
es el encierro en la peculiaridad de una disciplina.

3. función filosófica

En 2002 la Asociación Filosófica del Uruguay (AFU), al acuñar la


expresión "función filosófica" quiso concentrar en un concepto las
ideas reguladoras que surgen del proceso que venimos explicitando, y
realizar propuestas concretas.
Este concepto se inspira libremente en la noción de “función
utópica” propuesta por Arturo Andrés Roig, quien distingue discursos
que son “utopías”, de la “función utópica” presente en cualquier
discurso. De modo análogo entendemos que hay una asignatura que se
llama filosofía, y hay una función filosófica en toda actividad educativa.
Esta función tiene que ver con el modo en que los seres humanos se
relacionan con sus valores, conocimientos y técnicas, y con otros seres
humanos. Habría que ver cómo y en qué medida cada actividad
educativa y el proceso educativo en su conjunto cumplen esta función
filosófica.
Lo filosófico está entendido como un querer saber, como un
movimiento de la subjetividad que, ante el impacto problemático de lo
nuevo, no se refugia en sus saberes previos sino que
-pasando por ellos- los somete a crítica en la experiencia de un
proceso inquisitivo de creación que le permita encarar las aporías del
presente. Es una concepción problematizadora del conocer (Nietzsche,

87
marisa berttolini; christian burgues; ana duboué; mauricio langon; adelina pintos

2000) que no lo entiende como pacífica acumulación de datos y


disolución de conflictos. No hay conocimiento no conflictivo, que no
conmueva y remueva. La experiencia filosófica de pensar siempre, ante
cada nueva situación, en constante problematización, profundización y
complejificación, se funda en esta concepción, a la vez que la construye
en su práctica. Así, la función filosófica abarca todos los saberes.
La noción de función filosófica reconoce el desfasaje entre
enseñanza y aprendizaje (Langon, 2003) que se funda en la libertad y
responsabilidad de los actores intervinientes en el acto educativo. Pero
subraya la responsabilidad docente en la preparación de ámbitos,
contenidos y actividades que habiliten aprendizajes autónomos.
La "función filosófica" que AFU planteó para nuestra educación
media sugería que cada materia de estudio destinara un “diezmo”
(Morin) de su tiempo a pensar sobre sus potencialidades específicas y
sobre sus propios límites, a aportar su perspectiva a otros campos del
saber (incluida la problematización de éstos), a dejarse interrogar
desde otras disciplinas.
También incluía el documento de AFU consideraciones sobre la
función filosófica en el diálogo entre docentes y su formación
permanente, así como al interior de las instituciones educativas, y
entre éstas y sus contextos. Pero, principalmente, incluía un "espacio
curricular articulador y problematizador" entre las diversas
disciplinas. En él serían asumidas y debatidas cuestiones que surgen
en las fronteras entre saberes.
Aunque con aplicación muy limitada esta propuesta fue
asumida por el sistema educativo formal con un espacio curricular
específico de "Crítica de los saberes", conducido por docentes de
filosofía. Actualmente este ámbito está consolidado y ha dado origen a
muy valiosas experiencias.

4. rasgos del rigor filosófico desde las aulas55.

Basándonos en la idea de proponer la "definición de un criterio


de rigor propio de la filosofía" (Ranovsky, 2009) intentamos
caracterizar el rigor propio de lo filosófico que emerge en las prácticas de
aula que trabajamos en investigaciones (Berttolini et al.). Es decir,
rasgos específicos de lo filosófico que serían criterios válidos no sólo
para prácticas de aula y otras (incluyendo las Olimpíadas Filosóficas)
sino también para variadas prácticas y productos filosóficos, tales como
(a) las obras filosóficas, (b) el trabajo que las produce; (c) las lecturas,

55 Entendiendo por "aula" los diversos espacio-tiempos en que se desarrollan


actividades (trabajos) y se hacen obras (productos) rigurosamente filosóficos. Un
estudiante no es un producto.

88
olimpíadas filosóficas uruguayas reflexiones sobre una experiencia.

interpretaciones, discusiones, etc. que van surgiendo en relación con


ellas; (d) los instrumentos que en esa se van creando y puliendo; (e) en
los impactos mutuos de lo filosófico con los diversos ámbitos y espacios de la
vida pública, privada e íntima en los que está metida y con los que se
mete.
Intentamos detectar esos “rasgos” que habiliten determinar la
cualidad de filosófico y su buena calidad en todos esos diversos campos.
Sin ellos no se hacen, ni se aprende, ni se enseña filosofía ni a filosofar.
En lo que aquí nos interesa: esos aspectos deben estar presentes en las
Olimpíadas Filosóficas.
Los apuntaremos brevemente. Quizás se podrían resumir en una
característica central: la irreductibilidad de lo filosófico a normas
técnicas; su resistencia a dejarse encuadrar en un orden acrítico que
anularía lo anormal y extra-ordinario de lo filosófico.

si una práctica o producto es filosófico:

a. es fermental.
Este término (Vaz Ferreira, T.X) subraya que lo filosófico no puede
ser definitivamente cerrado y normado, que ha de permanecer vivo,
“en estado fermental” (incompleto, abierto, problemático). La
fermentalidad vive en el aula y en las Olimpíadas Filosóficas. En esos
lugares es posible recuperarlo de la amputación de criterios excluyentes
de círculos que definen lo filosófico por su encierro en una normalidad y
por su cierre a los demás.

b. es original.
La originalidad, en la filosofía como en los mitos, consiste en que
no hay versión 'verdadera', “de la cual las otras serían solamente
copias o ecos deformados” (Lévi-Strauss, 1968, 199). No se trata de
dilucidar el punto exacto en que se origina una tradición interpretativa.
En las aulas (y en nuestras Olimpíadas) vive la originalidad filosófica en
la efímera experiencia del diálogo.

c. no es obsolescente.
Al contrario de lo tecnológico, en filosofía toda obra es actual;
todo instrumento, vigente. Es decir que todo es revisitable, revisable,
discutible... Que está siendo, no que es un saber ya sabido. En las
Olimpíadas, como en el aula, se juega a diario esa no obsolescencia,
revitalizando cotidianamente todas las dimensiones de lo filosófico.

d. es ruptura y comienzo.
En el nivel más profundo, es invitación a superaciones y nuevos
comienzos. Lo filosófico comienza con rupturas respecto a algo que no
por eso queda obsoleto; no es mera innovación al interior de lo mismo; es

89
marisa berttolini; christian burgues; ana duboué; mauricio langon; adelina pintos

creación, pero no de la nada. La educación filosófica es filosofía que


comienza (Douailler, 2002) y recomienza.

e. es insegura, sin garantía...


Es falible, se puede desconfiar de ella, se la puede discutir. No
hay normas técnicas que garanticen sus resultados, efectos, calidad,
potencia o valor. Vive en la inseguridad. Valoramos clases, prácticas y
obras, fermentales, originales, potentes, pero no hay receta que
permita repetirlas; nada garantiza que el recurso o la idea hoy fecunda
no se trasmute mañana en manea para el filosofar. Lo filosófico vive en
la inseguridad.

f. es radical.
Ranovsky exige replantearse cada vez las “cuestiones de
principio”. Hoy, esto obliga a tocar todos los problemas de fondo, de
remover seguridades. De cuestionar el mismo canon o corpus
philosophicus incluso en su dialéctica a través de la historia de la filosofía
occidental. Se trata de volver a pensar(se) de poner(se) en duda.
Desafíos particularmente riesgosos cuando hacemos filosofía con seres
humanos vulnerables, con niños, con jóvenes, con no-filósofos, con
legos. Hoy la radicalidad implica interculturalidad. Se trata de construir
los espacios de hacer filosofía como lugares de experiencia, de pasar
peligros juntos, de diálogos entre diferentes.

g. no selecciona interlocutores.
La filosofía y el filosofar son para todos, con todos, de todos. No
se trata de polémicas o certámenes entre rivales de igual valer.
Tampoco del cara a cara entre amigos dilectos, ni entre el maestro y el
discípulo elegido. Tradición que, sin embargo, aparece en el mismo
Platón en tanto escribe poniendo a disposición de sus futuros im-pre-
decibles (nosotros) la idea de que el mayor grado de felicidad a que
puede aspirar un ser humano consiste en esperar que del discurso de
una filosofía, un filosofar y su enseñanza, germinen otros discursos,
filosóficos en tanto que se lancen en diálogo con otros, y así
imperecederamente. En nuestras Olimpíadas como en nuestras aulas
todos son interlocutores, todos interpelan y todos son interpelados.
Para lo filosófico todos son competentes.

h. se (entro)mete en todo; se mete con todo


A cada ser humano compete todo lo filosófico. Y a lo filosófico
nada humano le es ajeno: todo le compete. Por eso es su deber
entrometerse en todo y meterse con todo. Y quiere que todos se metan
a filosofar.

i. vive en diálogo.

90
olimpíadas filosóficas uruguayas reflexiones sobre una experiencia.

Dialoga hasta para hacer imposible el diálogo. Pues "... todo


diálogo participa de la problemática de una interculturalidad, ya que
lo que se dice de un lado y de otro se enreda con residuos culturales"
(Kusch, 2000, III, 252), el filosofar dialógico es intercultural. Y no
consiste en reducir diferencias entre interlocutores, sino en avanzar en
dia-logos: a través de distintos logos (ethos y pathos),

j. no admite tribunal de última instancia.


El diálogo filosófico no puede admitir un juicio final, un fallo en
última instancia, al ser proceso abierto de construcción de vida
pensando y haciendo en diálogo. Es un diálogo sin tribunal (Ranovsky),
siempre insumiso. Lo cual no quiere decir que no haya valoración, sino
por el contrario, que los criterios de juicio se validan y modifican en el
mismo proceso de diálogo igualitario. El peso de los elementos
aristocráticos presentes en el origen de la filosofía occidental sigue
siendo un lastre para lo filosófico. Por eso en las Olimpíadas
Filosóficas hay que desarrollar criterios de valoración colectivos y
autocorrectivos, y no promover presuntas excelencias o
superioridades de unos sobre otros.
En suma, se trata de construir prácticas y obras rigurosamente
filosóficas tomando en cuenta estos rasgos. Generar ámbitos en que
pueda circular lo filosófico en un hacer filosofía cotidianamente y en
común, donde desarrollar trabajos conjuntos de mutuas enseñanzas y
aprendizajes; lugares y tiempos de encuentro procesado en diálogo
(intercultural, interdisciplinaria, intergeneracional). La obra, no sólo
consiste en las filosofías producidas, en los textos, sino también en
pasar y vivir en experiencias filosóficas valiosas en tanto tales, en la
medida en que logren desarrollar los rasgos indicados más arriba.
El desafío de las Olimpíadas Filosóficas es ir construyendo
juntos espacios y tiempos, en rigor, filosóficos.

iii. el campamento filosófico como experiencia filosófica.

Durante el desarrollo de las Olimpíadas 2016 nos lanzamos a la


aventura de realizar el primer Campamento Filosófico y desde ese
entonces se ha ido instalando como una experiencia filosófica singular
que potencia las olimpiadas filosóficas y que se realiza previo al cierre
de las mismas.
En sus dos ediciones 2016 “Tras el sentido de las utopías” y 2017
"¿Es verdad?", cada instancia ha reunido aproximadamente a 70
jóvenes y 15 docentes de distintos puntos del país, quienes vienen
participando de las actividades olímpicas en sus localidades, con la
finalidad de encontrarse a filosofar en talleres que se integran a las
actividades propias de un campamento en un entorno natural.

91
marisa berttolini; christian burgues; ana duboué; mauricio langon; adelina pintos

En esta oportunidad queremos compartir 1) cómo se


organizaron y funcionaron las actividades en el Campamento 2) la
evaluación que hemos realizado del mismo como experiencia filosófica
a partir de nuestra vivencia como coordinadores y de testimonios de
los estudiantes.
La realización del campamento involucró a la Asociación
Filosófica del Uruguay, la Inspección de Filosofía del Consejo de
Educación Secundaria y la coordinación con el programa
Campamentos Educativos de ANEP, que ha financiado la actividad.
Para participar del campamento se convocó a las localidades que
estaban trabajando en la tópica Olímpica a partir de una red de
docentes que se fue tejiendo desde el lanzamiento. La asistencia era
gratuita, voluntaria y cada comunidad tenía la facultad de resolver
según criterios acordados quienes participarían, estimulando el
involucramiento de los estudiantes en esta difícil decisión. Se
procuraba que concurrieran jóvenes de diferentes partes del país y que
llegaran a este encuentro con un trabajo previo sobre la cuestión.
Las actividades de taller fueron diseñadas y orientadas por
docentes de filosofía (coordinadores y talleristas) siguiendo en sentido
general la metodología de comunidad de indagación en tanto cada
taller involucra: actividad inicial de sensibilización, diálogo en
comunidad mediado por algún texto (filosófico o no filosófico), guía
de preguntas posibles para desarrollar la discusión, cierre y
metacognición. Además se tuvo presente que los talleres invitaran a
explorar la cuestión olímpica desde áreas filosóficas diversas: Ética,
Política, Metafísica, Estética, o Epistemología.
Este trabajo de preparación de los talleres así como la
coordinación con las demás actividades ha sido fundamental para
elaborar una propuesta que genere las condiciones para el pensar y
posibilite la problematización, el intercambio, la circulación de
diferentes voces y saberes. Las diversas propuestas recreativas durante
el campamento, a cargo de docentes de educación física y/o
recreadores, buscaron acompañar el sentido filosófico de los talleres,
que se sucedieron de forma intercalada con las actividades del día.
Los estudiantes conformaron grupos que durante el campamento
permanecieron y transcurrieron por los diversos talleres como
comunidades de indagación.
Consideramos que en sus dos ediciones se pudieron apreciar los
frutos de este creativo trabajo preparatorio, reafirmando que las
actividades de sensibilización que ponen en clima o en disposición, la
selección fermental de textos y la generación de planes de discusión
orientadores, han de ser cuidadosamente pensadas, pero no como
propuestas cerradas o inflexibles que deben seguirse paso a paso como
una receta, sino como marco abierto a la sensibilidad del coordinador

92
olimpíadas filosóficas uruguayas reflexiones sobre una experiencia.

que en su puesta en marcha podrá redireccionarlas según lo que esté


sucediendo en el diálogo con los estudiantes.
Preparados los encuentros de taller, pero asumiendo el carácter
incierto de toda intervención pedagógica fue posible que apareciera lo
inesperado, la creación, la irrupción del pensar. La aventura tomó
cuerpo y en los entres de la comida en común, de los juegos, de
paseos en bote y la intensidad de la tirolesa, del fogón y de los juegos
nocturnos tuvo cita la Filosofía: aconteció la “experiencia filosófica”.
Concebimos la “experiencia filosófica” como “experiencia del
pensamiento, como un movimiento del pensar que atraviesa la vida de
quien la practica” (Waksman y Kohan, 2000) y que “constituye algo de
lo que se sale transformado”. Una experiencia filosófica es aquella en
que se abre el pensar para ensayar con él, cuando se intenta pensar en
serio con otros y se deja pensar. Creemos que el campamento filosófico
con su talleres promovieron una experiencia de pensamiento filosófico
en quienes participaron del mismo en tanto se pensó en aquello que no
pensamos a menudo, se pensó de otras maneras, se establecieron
relaciones entre pensamientos y con quienes pensamos, el pensar se
liberó y se pensó descubriendo y reconociendo las diferencias. El
pensar circuló no sólo en las instancias de taller pues el diálogo sobre
las cuestiones, las preguntas, las respuestas, los argumentos, las ideas
arriesgadas o impensadas continuaban en el almuerzo o de camino al
baño, en los entres de las actividades. Experiencia transformadora en
tanto que el movimiento del pensar de alguna manera también
moviliza lo que somos.
Traemos para dar cuenta de nuestra apreciación las voces
intensas de los estudiantes quienes de forma anónima o
identificándose nos dejaron algunas expresiones de su vivencia:
“El campamento filosófico resultó ser para mí una gran experiencia,
fueron días inolvidables en los cuales la pase muy bien, me ayudo a
reflexionar sobre ideas que tenía de vida y ver otras perspectivas…” Anónimo
“(...) muchas gracias a todos por hacerme pensar, gracias por estropear
mis argumentos y esas cosas. Se los agradezco porque me hicieron
recapacitar.” Lucas.
“Primero que nada este aspecto, venir a filosofar y divertirse es como
una combinación increíble. Yo me sentí muy apapachado. También
replantearme mi realidad, cada uno vive su realidad y todos acá tienen
historias diferentes, lugares diferentes, tradiciones diferentes y está re bueno
compartir, por medio de la filosofía, de más, que tienen eso de escucharnos a
todos y mi único miedo es despertar, porque está muy sueño esto, está muy
lindo de verdad.” David.
“...nunca me había sentado en una ronda a divertirme con tantas
personas, y menos a un fuego y a la luz de la luna. Nunca me había pasado,
nunca me había imaginado tampoco, y está muy genial (...) y le quiero

93
marisa berttolini; christian burgues; ana duboué; mauricio langon; adelina pintos

agradecer a todos, porque si me llevo una experiencia de todos y me cambió las


ideas. Vine con unas ideas y me voy con otras.” Anónimo
“(...) y te vas con otra cabeza porque te ayuda a aclarar un poco de
forma ordenada un problema, una pregunta, y como que hay tantos puntos de
vista que conseguís más preguntas que respuestas y eso también es aprender.
Se agradece.” Anónimo
“Más allá de conocer personas, se tocan temas que están buenos, la
forma de trabajar es muy cooperativa: si vos decías algo otros podían agregarle
cosas o discrepar y justificar por qué, y se llegaban a conclusiones mejores”,
Germán.
“... creo que algo muy importante, por lo menos para mí, fue estar con
gente que tienen el mismo interés que yo, porque en mi grupo de amigos es
difícil a veces...o sea gente que te siga el pire. No sentirse solos en el interés
para mí es muy difícil, para mí.” Anónimo
“Antes de tener Filosofía opinaba igual que mis padres y mis amigos,
pero después de que empecé a tener la materia eso cambió; con la filosofía
partís de un punto cero y desarrollas tu propia opinión, por eso es importante
que esté en el liceo y sea una materia común a todos.” Verónica.
“es una materia que en vez de plantear un sistema tan cerrado, te
ayuda a crear un pensamiento para dudar, plantearte cosas, abrir la cabeza y
tratar de preguntarte el porqué de las cosas”. Andrés
“(…) aprender filosofía de otra manera” (...) “está re bueno
involucrarse de otra forma, con gente que no conoces y afuera del salón de
clases”. Camila
“Creo que esto fue tremendo, en verdad fue muy ameno y alimenta el
corazón. En verdad ustedes lo que hicieron fue maravilloso todo, todos en
verdad. Y me llevo recuerdos muy lindos del campamento y me da pensar que
esto es avanzar hacia una utopía. Esto es cambiar... es hermoso.” Leandro
Quienes gestamos y participamos directamente de este proyecto
nos llevamos estos textos y otros en nuestra memoria, expresiones de
jóvenes con ganas y la convicción de que ponerse a pensar e indagar al
mundo es un buen ejercicio, una oportunidad de encontrarse con los
otros, sus saberes y sentires. Se pudo descubrir otra vez que los
jóvenes tienen mucho más de maravilloso que los que a diario los
adultos se permiten ver. Se generó un espacio de convivencia breve
pero que ha dejado huella en muchos estudiantes. Salimos de nosotros
a la aventura de crear con otros, de dejarnos atrapar por otras voces,
otras ideas, otros cantos. Confirmamos que aprender es una
disposición del querer, del escuchar, del decir para llegar a otros, que
se puede hacer en otros contextos, que no requiere bancos o lápices,
aunque los use, que no se da en la soledad aunque la implique, pero
que sí y siempre demanda un sentido y nosotros lo hallamos en el
encuentro otros.
Los Campamentos Filosóficos se van constituyendo como un
dispositivo alternativo, con potencialidades aún por explorar.

94
olimpíadas filosóficas uruguayas reflexiones sobre una experiencia.

iv. la experiencia olímpica en sauce

El Liceo de Sauce es un pequeño centro en la localidad del


mismo nombre, ubicado a 35 kilómetros de Montevideo. Aunque se
encuentra en el “área metropolitana”, dado el tamaño de nuestro de
país y las distancias relativas, se considera liceo “del interior”, esto es:
no central. Tiene un número aproximado de 500 estudiantes del
segundo ciclo de educación media. Fue fundado en el año 2011.
En el 2016, los profesores de Filosofía deciden participar de la
Olimpíada Filosófica cuyo tema era la utopía puesto que se celebraban
los quinientos años de la publicación de Utopía de Tomás Moro.
La primera actividad surge como propuesta de un grupo de
docentes, la mayoría de Filosofía, pero no la totalidad. Estos se reúnen
en el espacio institucional que habilita la coordinación
interdisciplinaria. Se lanza una invitación a los estudiantes de todos
los niveles para escribir un ensayo o cuento en el que apareciera una
concepción de sociedad utópica y que abordara al menos alguno de los
siguientes asuntos: educación, economía, tecnología, organización
política, vínculos y diversión. También podían escribir pensando en su
opuesta, la distopía.
El equipo de profesores decidió, primero, resolver la cuestión de
la “motivación” a ofrecerse para estimular la participación. Luego de
un intercambio de pareceres el resultado fue que se invitaría a
participar de un certamen, en el entendido que -según nos enseñó la
Profesora de Literatura del grupo- del certamen no resultan figuras
“ganadoras”. O sea, el estímulo fue el trabajo en sí mismo, es decir
pensar y compartir por escrito las ideas.
Recibimos 6 trabajos, 2 ensayos y 4 cuentos, de alumnos de los
tres años y de todas las orientaciones (biológica, artística, humanística,
y científica), los que fuimos leyendo en la coordinación
interdisciplinaria.
Paralelamente, la profesora de Inglés del último año pidió que en
equipos presentaran una lámina en la que apareciera el diseño de una
cuidad utópica, y luego la describieran en inglés.
Mientras se leían los ensayos y se pensaba cómo potenciar esos
trabajos, se fue organizando lo que fue el primer “Festival de cine
filosófico”.

¡uh! cinetopía

El primer viernes de mayo el liceo se convirtió en un gran


“movie”. Seis salas con programación variada. Los estudiantes se
hacían de sus entradas (gratuitas) en la Biblioteca del Liceo que por
momentos oficiaba de Boletería. El film se elegía libremente hasta que

95
marisa berttolini; christian burgues; ana duboué; mauricio langon; adelina pintos

se completaba la sala. Cada entrada, junto con el nombre de la


película, tenía el de la sala correspondiente: Tomás Moro, Figari,
Bradbury, Asimov, Swift, K. Dick y Francisco Piria.
Profesores de varias asignaturas acompañaron todo el proceso,
desde la elección de títulos hasta la proyección, pasando por la
logística que implicó conseguir la tecnología suficiente y el armado
necesario de la misma. Con respecto a los insumos es fundamental el
apoyo de otras instituciones de la zona (liceos y escuela técnica) que
por medio de docentes compartidos nos hacían llegar los aparatos en
préstamo.
Una vez en la mañana y otra vez en la tarde el cine echó a andar.
No faltó el pop elaborado y vendido por el gremio de estudiantes, que
además apoyó con una difusión del evento con un estilo más juvenil.
Finalizadas las proyecciones se llevó a cabo un diálogo dentro de
cada sala, orientado por preguntas generales que motivaron el
intercambio crítico sobre la temática entre estudiantes de los tres
niveles.
Esta actividad fue muy bien recibida y resultó un verdadero
éxito para los diversos participantes, tanto que se ha repetido los dos
años siguientes. En el 2017 en el marco de la pregunta/problema: “¿Es
verdad?”, se realizó la selección de filmes. Este año se elige el nombre:
“En tránsito. De identidades y fronteras”, así que se proyectaron
películas que desde distintas dimensiones abordaron la cuestión
(identidad de género, cultural, de clase). Se armaron 9 salas, siempre
con las mismas características, entre ellas la presencia de variados
géneros (al menos una de los siguientes: documental, drama, comedia
y animé).

un filósofo en la casa del prócer

La casa de José Gervasio Artigas, se halla cobijada (en sentido


literal arquitectónicamente) por un centro cultural dependiente de la
Intendencia de Canelones y abierto a las propuestas de la comunidad.
Gestión mediante, el 29 de julio del 2016 se convirtió en una zona
filosófica. Albergó a más de ochenta estudiantes y una veintena de
adultos (docentes, Inspectores, miembros de Afu) que participaron del
encuentro y que tuvo por protagonista al filósofo argentino Lucas
Misseri.
El entusiasmo en los días previos era grande, conocerían a un
“filósofo de verdad” que iba a hablar de los temas que se estaban
discutiendo en el liceo.
La actividad culminó en un taller de jóvenes dialogando sobre
cambios que creían posibles. El intercambio resultó muy motivador
para todas las partes, sobre todo confirmó la esperanza de la utopía.

96
olimpíadas filosóficas uruguayas reflexiones sobre una experiencia.

filosofía + arte en un espacio de 1920

Había llegado el momento de compartir las primeras


producciones escritas. El refugio que la filosofía ocupó el martes 4 de
octubre fue Escaparate, un espacio cultural independiente, auto
gestionado, con buen vínculo con las instituciones educativas. Se trata
de un hermoso edificio del veinte que fuera un almacén de ramos
generales, hoy reciclado por una comisión de vecinos, honoraria, que
lo mantiene. Cuenta con un escenario y la infraestructura suficiente
para montar espectáculos musicales y teatrales.
¿Qué vimos allí? De aquellos cuentos recibidos al comienzo del
año, se seleccionaron pasajes, y se convocó a los estudiantes de Arte
para que -con la autorización de los autores- las pusieran en escena.
Con la intervención de la docente de Filosofía los estudiantes
fueron resignificando algunos pasajes de los textos narrativos. Se
comprendieron, se conversaron y se fue buscando el modo de llevarlos
al cuerpo en una dramatización corta con la ayuda de la profesora de
Teatro.
Con los ensayos se trabajó distinto. Los profesores de Filosofía
eligieron algunas de las ideas planteadas ideas claves: fermentales,
provocadoras o novedosas, y fueron grabadas. El producto fue un
audio con algunos efectos de sonido que buscaban reforzar la atención
del oyente.
Fue así que las montaron para un público constituido por
aquellos alumnos que desearan participar de este nuevo encuentro
filosófico. Sesenta adolescentes, acompañados por adscriptos y
profesores llegaron al espacio cultural.
Las representaciones -algunas multimediáticas- nacidas de los
cuentos, y los audios grabados a partir de los ensayos, oficiaron como
disparadores para el posterior taller que se realizó. Las preguntas-
guías fueron elaboradas a partir de aquellos. Además, se reconoció
públicamente a los autores, que hasta entonces eran anónimos para el
resto de los estudiantes.
Los dibujos que colgaban de las paredes fueron aportados por la
clase de inglés.Fue una experiencia valiosa para la comunidad
educativa: convocó a muchos estudiantes y a colegas docentes de
Filosofía y de otras asignaturas también (Literatura, Inglés, Dibujo,
Historia), sacó la Filosofía del aula tradicional, se incorporó el
lenguaje artístico en un taller de filosofía, lo que integra con él a
estudiantes que de otro modo no habrían estado allí. También es
estimada por los profesores de Filosofía del Liceo de Sauce por haber
sido la primera que inaugura lo que ya podemos considerar tradición
olímpica de nuestro liceo.

97
marisa berttolini; christian burgues; ana duboué; mauricio langon; adelina pintos

el "campamento filosófico" y sauce.

Los últimos pasos del 2016 se dieron gracias a la invitación para


participar del campamento filosófico que se realizaría en el balneario
Kijú de San José.
Los profesores acordaron como criterios para elegir a los
estudiantes que se invitaría que el mayor número fuera de sexto y
menor de cuarto porque los primeros se irían ese año del Liceo y, por
otra parte se tuvo en cuenta el compromiso con el trabajo filosófico en
el aula. Se conformó un grupo de once estudiantes felices de poder
vivir la experiencia.
Se sucedieron tres días intensos de intercambio con jóvenes de
otros lugares del país. Conocer otros modos de ser y estar, discutir,
jugar y compartir la mesa, se constituyeron en una experiencia cuya
huella seguro que no se borrará en la vida de estos estudiantes.
Aún hoy “Los utópicos”- nombre que se adjudicaron los chicos
que fueron al campamento, más algún otro incorporado luego-
continúan reuniéndose para discutir cuestiones filosóficas, y salir
juntos a compartir la juventud.

más cerca de la utopía: filosofía en la escuela

Una de las condiciones para los acampantes utópicos era hacer


llegar de algún modo la experiencia a los destinatarios “naturales” del
campamento de la ANEP. Es así que tras una conversación grupal se
decide realizar un taller de filosofía en la Escuela Primaria de la
localidad. Los niños de sexto año de la escuela n° 109 de Sauce (la
única escuela pública) recibieron a un grupo de adolescentes que les
llevó una propuesta de trabajo filosófico al aula.
Previamente hubo reuniones en las que se planificó y se tomaron
decisiones importantes. Por ejemplo, el hecho que fuera el 12 de
octubre determinó la propuesta. El planteo disparador sería que los
niños reunidos en subgrupos imaginaran que llegaban a una tierra
insospechada y deshabitada por un accidente del barco en el que
venían. La reparación del mismo les llevaría unos dos años, así que
debían tomar decisiones sobre cómo el grupo de náufragos iba a
organizarse para vivir de la mejor manera posible. Los adolescentes,
además de crear el texto, elaboraron preguntas guías tales como:
¿cómo se dividirían el trabajo, habría algún tipo de gobierno, quiénes
elegirían a los gobernantes, se elegirían, habría celebraciones, qué se
celebraría, le pondrían nombre, cuál sería, habría escuela o alguna
forma de transmitir los conocimientos que los nuevos pobladores
traen consigo? Además confeccionaron tarjetas para un juego previo
del que surgirían los grupos para el taller.

98
olimpíadas filosóficas uruguayas reflexiones sobre una experiencia.

El trabajo, como en todos los casos anteriores culminó con una


puesta en común de las ideas.
Los estudiantes de secundaria pidieron una breve evaluación
domiciliaria a los alumnos de primaria, la que incluía una
metacognición. La misma fue leída con mucha ansiedad y satisfacción
una semana después en uno de los últimos encuentros del año.
Algunas de las opiniones de los niños cuando escribieron sobre qué les
gustó más de la actividad son:
“Responder las preguntas y exponer a todos los compañeros.”
“La mejor parte fue el taller y la que jugamos a ser animales.”
“Tener un momento para hablar y escucharnos.”
“Para mí cambió muchas cosas, ahora sé lo que es filosofía.”

Y algunas de las valoraciones de los adolescentes que llevaron


adelante el taller:
"Fue una experiencia muy enriquecedora".
"Me abrí de una manera de nunca creí que fuera a hacerlo".
"Me sorprendió de las dos partes, tanto de los niños como de parte
nuestra".
"Hay alto nivel de confianza en nuestro grupo, sabemos que estamos
comprometidos y podemos estar tranquilos que ninguno va a fallar".
"Nos damos cuenta que las etapas del trabajo estuvieron claras para
ellos también porque pudieron relatarlas paso a paso".

hoy

Si bien el año 2016 marcó filosóficamente a nuestro Liceo por


haber sido la primera vez que el compromiso es de un colectivo
grande de profesores, por el tema tan convocante y por las
características particulares de esa generación de estudiantes, hoy
seguimos siendo parte de la movida olímpica. La que se defiende
como un espacio formativo de práctica de la función filosófica que
habilita la experiencia del pensar con otros.
Esta forma del “aula de filosofía ampliada” constituye su ser
desde el sentido, apoyándose en el eje intensivo del que habla
Maximiliano López, al sostener que existen dos ejes sobre los cuales se
organiza lo pedagógico: el cronológico y el intensivo:
"Podríamos decir entonces que la pedagogía se
desarrolla a través de dos ejes: uno cronológico que va
del pasado al futuro, en donde las palabras (saberes) son
transmitidas, acumuladas u olvidadas, y uno intensivo,
en donde el sentido debe ser establecido en cada
oportunidad por primera vez. En el primer eje, la
pedagogía es trasmisora de palabras, datos,
informaciones, saberes y habilidades. En el segundo eje,
ella coloca en juego el sentido y el valor de las palabras,

99
marisa berttolini; christian burgues; ana duboué; mauricio langon; adelina pintos

de esas informaciones, de esas habilidades y saberes.


Podríamos decir también que es en ese segundo eje que
una palabra se torna propia, pero aquí lo propio no
expresa posesión ni originalidad, sino intensidad
(fuerza)" (López, 2008, 67).
Lo que sucedió y sucede con este tipo de experiencias es que se
desenvuelven en el llamado eje intensivo. En estos espacios se pone en
juego la palabra propia, los adolescentes se entregan a la búsqueda de
verdades en el diálogo con pares. No hay temor a la descalificación
con una mala nota, no hay que acertar a lo que tal o cual filósofo dijo
(aunque usen argumentos de filósofos vistos en clase), se apropian de
esos argumentos, los repiten pero son de ellos, o los modifican sin
culpa. Y esto sucede en un tiempo distinto del tiempo de clase. No se
está bajo la amenaza de un timbre. Hay más tiempo. En general no
alcanza porque pasa volando. Cuando ocurre que la filosofía te atrapa
nunca es suficiente. Pero es insuficiente de otra manera. No se trata de
la sensación frustración o impotencia porque no alcanza el tiempo
para terminar la demostración de un teorema o el análisis escrito de un
poema o la lámina de proyecciones. Lo que queda el deseo insatisfecho
pero persiste el placer de lo vivido juntos.

referencias

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Ferreira, Montevideo, Barreiro y Ramos, 1961.
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BERTTOLINI, M., et al. (2009). Escenarios de la educación filosófica,
http://www.uruguayeduca.edu.uy/userfiles/p0001/file/escenarios%20de%2
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BERTTOLINI, M.; GONZÁLEZ I.; LANGON, M. (2010). Tensiones en la
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DOUAILLER, S. (2002). “La filosofía que comienza”, 2002
http://ipes.anep.edu.uy/documentos/curso_dir_07/materiales/filosofia.pdf
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LANGON, M. (2011). “El rigor filosófico en las prácticas de aula”.
Comunicación a las XVIII Jornadas sobre la Enseñanza de la Filosofía. Coloquio

100
olimpíadas filosóficas uruguayas reflexiones sobre una experiencia.

Internacional. Facultad de Filosofía y Letras, Universidad de Buenos Aires, 12-


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http://filosofazer.ifibe.edu.br/index.php/filosofazerimpressa/article/view/1
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LANGON, M. (2012). "O que è uma boa aula de filosofia" en FERREIRA, M. L.
Ribeiro coord. Ensinar e aprender filosofia num mundo em rede. Lisboa, Centro de
Filosofia da Universidade de Lisboa.
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LÓPEZ, M. (2008). Filosofía con niños y jóvenes. La comunidad de indagación a
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NIETZSCHE, F. (2000). El Gay Saber o Gaya Ciencia" (#333). Madrid, Espasa-
Calpe.
RANOVSKY, A. (2009). “La definición de un criterio de rigor propio de la
filosofía como requisito para su enseñanza”. En Cerletti, Alejandro La enseñanza
de la filosofía en perspectiva. Buenos Aires: EUDEBA.
VAZ FERREIRA, C. (1957). T. IV: Lógica Viva; T.X, Fermentario; XV:
"Lecciones sobre pedagogía y cuestiones de la enseñanza". En Obras. 25 tomos.
Montevideo, Cámara de Representantes, 1957-1960.
WAKSMAN, V. KOHAN,W. (2000). Filosofía con niños. Aportes para el trabajo en
clase: Buenos Aires; México, Ediciones Novedad Educativa.

101
102
the making of a circle: building a community of
philosophical enquiry in a post-apartheid, public school in
cape town, south africa.

rose-anne reynolds
university of cape town
rlawrencereynolds@icloud.com

introduction

The children walk into the school hall chatting, laughing, there is
an air of expectation about what this ‘research’ is going to be about.
The school hall they enter is built with exposed brick work, has a
double volume ceiling about 5 metres high, there are huge windows
about metre from the ceiling that when you are sitting on the floor of
the hall, reveal the sky. Windows are so high that only the clouds,
bugs and birds are looking in. The floor of the hall is made of
suspended wooden strip flooring with a stage which is mainly used
when school plays are performed or for art exhibitions and musical
performance. A massive grand piano stands in the corner, it is very
old. The hall has an approximately 500 plus person capacity and it is
used regularly every Monday when all children and teaching staff
meet for Assembly – this is a time when a class presents some
inspirational play or act; a guest speaker, a teacher or the principal
provides some educational, motivational or inspirational input. The
main entrance of the hall houses a foyer with bathrooms and there are
doors at the stage end of the hall that each lead off to more bathrooms
and change rooms for physical education or swimming in the summer
months.
The children walk into the hall carrying all the same school-
issued red plastic chairs they sit behind at their desks in their Grade 2
classroom. Some children walk quickly and put their chairs down
noisily, some children are more tentative and stroll in quietly. The
chairs are in their arms, some leaning against their chests, some chairs
are being peered over or around, some children come inside the hall in
pairs, negotiating the entrance, looking up and down to check their
footing as a step up is required from outside. It is a sunny Autumn
day, as the children slip through the door, sunbeams shining from the
African sun make their way inside too. They are all making their way
into the massive expanse of the school hall, the children walk over to
where I am standing as I call to them: “Let’s make a circle.” They are
consenting participants in my PhD research. There is giggling,

103
rose-anne reynolds

shuffling, chatting to each other, dragging of feet on the wooden strip


floors, negotiations about seating, a wheelchair to be included in the
circle and an empty chair carried in by a friend who managed to carry
two chairs, as the child (G) using the wheelchair is just using the
wheelchair for this day, as he is able to walk. On the day that this
research was conducted, G had hurt his foot and so he went to the
front office of the school where a spare wheelchair is stored. The ethos
of inclusion at the school means that there is awareness around those
who need to use wheelchair and there is a spare wheelchair at the
school. G can be seen on the video footage arriving in the hall in a
wheelchair. He chooses not to sit on a red chair, but a classmate has
brought it to the hall for him and it is placed in the circle. In the video
P can be seen putting a chair down in the circle for G.
The school hall the children have just walked into is attached to
the Oakwood Primary School56, (hereafter OP) building via a couple of
corridors and an open courtyard, with plants, trees and a mini
fountain. The school was opened in 1948 and functioned as a
government primary school that only children classified as white
during apartheid could attend. The school was located in an area
demarcated as a white area, by the Group Areas Act57 no 36 of 1966.
This Act enforced segregation by assigning geographical living and
working areas to specific racial categories to designated by apartheid
legislation and practices. The Act also restricted ownership and
occupation of land to specific apartheid racial groups. The geographic
location of the research site is historically significant because the
school started in 1948, the first year the National Party came to power
in South Africa. When the National Party gained power in South
Africa in 1948, its all-white government immediately began enforcing
existing policies of racial segregation under a system of apartheid
legislation . The children walking through the door, carrying the
plastic red chairs are many different colours (and would have been
classified by the apartheid government as Black, White, Coloured or
Indian). For this group of children, being together in the same school
would have been an impossibility just 28 years ago, in 1990. From
1955, the time that the school hall was built until 1989, for those 34
years only white children would and could have been allowed to walk
through the doors into the hall. Barad in an interview with Dolphijn
and van der Tuin (2012: 66) reminds us:

56Pseudonym
57The Group Areas Act No. 36 of 1966, “separated population categories by declaring
certain areas African, Coloured, Indian or White, and forcibly removing those who
were occupying land or houses in the areas designated as white areas “(Bozalek 2004 :
82).

104
the making of a circle: building a community of philosophical enquiry ...

“…the issue is not one of erasure and return. What is at


issue is an entanglement, intra-activity. The “past” was
never simply there to begin with, and the “future” is not
what will unfold, but “past” and “future” are iteratively
reconfigured and enfolded through the world’s ongoing
intra-activity.”
Apartheid policies were only formally eradicated/abolished in
1990, thus from 1948-1990 the money spent on the infrastructure of the
suburb and resources at the school, was provided by the apartheid
government, because the children and suburb were for those
designated as white. The (National Party) government spent more
money on white children in state schools than any other race group in
state schools during apartheid. “In 1982-3 the state spent R1211.00
annually on each White pupil, R711.00 per Indian pupil, R498.00 on a
Coloured pupil and R146.00 on an African (Black) pupil (Christie 1990:
98). Because of these practices OP unlike many other under-resourced
schools has a pool, a school hall (the same school hall we were forming
a circle in), corridors that connected the various parts of the school, a
large school field and it even had tennis courts. OP is considered to be
a former Model-C58 primary school in Cape Town, South Africa.
Model-C schools were state-aided and additionally received funds
from parents through school fees. School fees at former Model-C
schools are relatively high and are used by the Governing Body of the
school to employ additional staff and to pay for extra resources like
grand pianos, infrastructure and music teachers. The racial integration
of the children at the school happened in 1991, after Nelson Mandela
was released from prison and the African National Congress was
unbanned in 1990. The Group Areas act was repealed in 1991 by the
Abolition of Racially Based Land Measures Act, 1991. The racial
integration of the staff happened in 1998, when I was employed as the
first teacher of colour59 at the school. All these historical factors are
important as we the trace the entanglements of the ‘school’ in its post-
apartheid setting. Barad in an interview with Dolphjin and van der
Tuin (2012: 666) argues,
“In an important sense, the “past” is open to change. It
can be redeemed, productively reconfigured in an
iterative unfolding of spacetimematter. But its
sedimenting effects, its trace, cannot be erased. The

58 Model C schools were schools that were state aided by the Department of Education
and Culture Administration: House of Assembly prior to 1994. During apartheid this
was the department that provided education to children classified as white.
(Reynolds, 2013:41)
59 I was classified as coloured during apartheid, but would self-identify as a black

South African.

105
rose-anne reynolds

memory of its materializing effects is written into the


world.”
So how would it be possible to trace these various entanglements
– the history of the school, the children, the chairs, the resources, how
the school functions now in 2018 as an public, inclusive, mainstream
school60? Inclusive education in South Africa came out of post-
apartheid policy development, the blueprint of which was Education
White Paper 6 on Special Needs Education: Building an Inclusive
Education and Training System. OP has become an inclusive school,
within the special needs framework, a direct response to the South
African government’s need, post-apartheid, to “create special needs
education as a non-racial and integrated component of our education
system” (White Paper 6: 2001). The framework with which inclusion is
understood at OP is from a human rights perspective with its focus on
the autonomous individual. So how could we look at inclusion
differently, as a contested term? Goodley (2007:15) challenges us to
look at inclusion from a flattened ontology, where “bodies are neither
whole nor broken, disabled or able-bodied, but simply in the process
of becoming.” This would profoundly affect how child and adult
would be seen at a school if we saw “bodies as neither whole nor
broken.” Goodley (2007: 20) goes further and asks us to think of
inclusion as an old concept and suggests we create new concepts and
values and to “view disabled learners as Bodies Without Organs, as
becoming learners and becoming educators.” For my PhD, I am
researching how critical posthumanism can reconfigure the concept of
inclusion at this school, using a community of enquiry as a pedagogy
and methodology. I’m interested in how a community of enquiry
could be a body without organs. Philosophy with Children can be a
democratising pedagogy, in the way that it has the potential to disrupt
the adult/child human binary and the implied power relations. This
has implications for the community of enquiry as a body without
organs, because the “idea of an (in)determinate subjectivity troubles
the notion of voice ‘attached’ to a single individual” (Murris 2016: 29).

let’s make a circle

RR: Is this the best circle we could make?


[Many children loudly exclaiming] : No….no
RR: How could we change it ? [Making a circular motion with my
hand]

60Mainstream in South Africa is demarcated as different to a Special Needs School,


children with severe disabilities attend OP, which is very unusual in other
mainstream schools in South Africa.

106
the making of a circle: building a community of philosophical enquiry ...

[Some children]: No [some children immediately started moving their


chairs forward and inward, lifting their feet slowly off the ground and lifting
their chairs with their hands under the front of the seats of their chairs. Other
children simply slid themselves and their chairs forward noisily scraping
against the ground as they did this. The bad acoustics in the hall echoing the
sounds. Some children did not move at all, watching the others moving and
some just stared into the space(s) around them.]
RR: …[indistinct]…so that everyone can be in the circle.
RR: [I direct my question to one boy] B, are you in the circle?
[There is now more of an urgent need to get into a circle, lots more
chairs are being moved in more scraping along the wooden strip floors,
making small movements, they are all talking about the circle making
suggestions.]
RR: What’s happening here, with Mrs. B and I? [Moving my hands
from side to side as I show the big gap between the class teacher and I] [ I walk
across the forming circle with an adult maroon colour chair in my hand, I ask
two boys who have an empty chair between them] Who is sitting here? I start
to swop the chair with mine as I do this the boy on my right gently places his
hand on my arm.
A: It’s G’s chair. [G is in a wheelchair, and wants to remain in the
wheelchair and so rolls into the circle, as he adjusts his position I move his
small cherry red chair and place mine where his was. I move G’s chair close to
him on the opposite side of the circle.]
[Indistinct]
RR: Are we all in the circle now?
B: No not really….
C: There should only be one gap that people come in and out of.
[motioning with her hands to describe the gap].
RR: Good morning grade 2’s… some of you don’t know me, but
I’m Mrs. Reynolds.
D: [A couple of children nod] I know you.
RR: [Nodding] You do know me. And there’s one other person
you don’t know in the room and that’s a lady Mrs. Joyce [indistinct]
and she’s going to be videotaping this for us. Can you all say good
morning to Mrs. West?
All: [In chorus] Good morning Mrs. West!
JW: [Simultaneously with kids] Morning!
RR: Grade 2’s I’m going to ask you just one more time, let’s
really think about what we can do to make this circle just
be…[indistinct]
E: It doesn’t look like a circle.
RR: I also don’t think it’s a circle. What makes something a
circle?
F: It’s an oval!
RR: It’s an oval, how can we make it a circle?

107
rose-anne reynolds

F: By one of them like, one of the parts coming a little bit down.
RR: One of the parts come a little down, should we ask Mrs. B to
move a little bit down.
Mrs.B: [Get’s up off her chair and while bending addresses the child
who suggested she moves and says] Must I come in?
[Lots of chatting, moving and adjusting positions]
F: [Addressing Mrs.B ] That part must come in a little more.
D: B you mustn’t be in the corner.
J: There musn’t be any corners, it must be round, she repeats
herself as we can’t hear her.
RR: J says there mustn’t be any corners.
F: I said the same thing [nodding in agreement].
RR: Did you said the same thing? So let’s see, do we have a
corner here B?
I: Corner!
RR: Let’s try and make ourselves a bit more round, mmm.. now?
G: Round… round… round [Shapes his arms into a big circle in
front of his chest, so that his hands are touching and repeats ] round.
So when I ask these questions about the circle I am tentative – I
am not sure what the children are going to say – how the circle will be
made, I am looking beyond just the humans in the room as the only
meaning makers, but considering the chairs, floor, lights and sound
too. In this posthuman analysis I am troubling the singular voice. The
children similarly are not sure what I am going to say and are asking
questions in response. We are not sure in that we do not know but are
in a place of not knowing together, questioning what is usually known
or taken for granted even- - that we all understand what a circle is, in
the same way. We have not ‘gotten to’ the stimulus/provocation/text
or thinking time or philosophical discussion, the next important steps
in a philosophical enquiry. Usually in a philosophical enquiry in the
literature, the philosophical enquiry starts when the children or
participants are sitting in a circle, already seated, ready to begin. This
session was number 2 of 13 philosophical enquiry sessions I engaged
in at this school, one with each class of children at the school from
Grade 1 to Grade 7. When I was preparing for this session, and after
watching the video footage of the first session that had been recorded,
I realised I had not asked the videographer to videotape the children
walking into the chosen venue and that struck me. Using critical
posthumanism as a navigational tool requires that attention is drawn
to the materiality of the event as we decenter the human. So, I made an
agential cut and specifically asked the videographer, Joyce West to
start video recording as the children walked into the hall with their
chairs. It is significant that this is not an analysis of the audio
recording of the event (which I do have) but a very specific agential
cut - to analyse the data we were creating from the video camera, so it

108
the making of a circle: building a community of philosophical enquiry ...

is not just voices but the whole body, the feet on the floors and on the
chairs, some feet in socks and school shoes, some bare feet.
Posthumanist research is based on a relational ontology that includes
the entanglement of the human and more than human, intra-acting as
part of the world, an ‘and and’ approach. The children are required to
wear socks and black school shoes to and from school, but can take
them off during the day. It would not be possible to see this by simply
listening to an audio recording. I also asked the videographer to focus
on the whole body and not just the faces of the children and
specifically to be videotaping the whole scene and not zooming in
only when a child was talking. Ceder (2016: 18) “uses the concept of
relationality as a de-centering concept.” This would involve not only
looking at the subject as children, chairs, hall, concepts, floor which
they are but looking at the relationality.
I re-turn to the video recording and something grabs my
attention - what the children are doing as they first place their chairs,
this happens before I asked the children if we are in a circle? I would
not have noticed this had I not re-turned to the video recording. This
happened in the first 36 seconds of the video recording. During this
time, I am walking around chatting to the children, finding my own
chair, placing it in this circle in its becoming. I did not notice this event
in the ‘real time’ but I could re-turn to it, an affordance offered by the
video recording. I have placed this excerpt in this paper in the ‘wrong
order’ from when it happened on the day, but it influences what and
how my analysis moved forward.
There is a motioning of hands for someone to move up, a frown and
puzzled expression at being asked to move, some more chatting while moving,
some children not moving at all but watching the circle ‘being made’, being
formed and re-formed’. Once some of the children are sitting some start
chatting excitedly to each other. There is movement in one area of the forming
circle. A boy waves his hands in the air, as if doing a sitting handstand. He
holds his maroon pencil bag in his hand– I ask the teacher to ask the children
to bring their pencils and pencil crayons for the drawing we would be doing
later in the thinking and drawing time. He chats animatedly to the girl next
to him, and dabs twice. Dabbing, the phenomenon made popular since 2015,
is an American dance fad. He dabs by dropping his head into the crook of his
right arm, which is folded towards the left. The hand holding the maroon
pencil bag covers his eyes. He extends his left arm, outstretched to the left.
The two arms are parallel. He dabs twice. He does this quickly; the first dab is
at 0:27 seconds into the video-recording. He chats a bit more to the girl sitting
on the red chair next to him, she is looking at him, her hands dangling behind
the chair, her right leg casually crossed over her left leg. He dabs again, at
0:33 seconds in the same direction. He chats some more to the girl sitting next
to him he then points at the camera that is video-recording this and then the
girl sitting next to him turns her head and looks to her left towards where he

109
rose-anne reynolds

points, the time now is 0:34. They are now both facing the same direction,
looking straight at the recording camera. The boy extends his left arm and
flashes a peace sign with his hand at 0:35: separating his left index and middle
finger in the direction of the video camera. This intra-action between the
person video-taping, the video-recorder, the dab, the American fad, the child
and the animation as he stands and dabs and then sits down, the other
children and chairs and wheelchair moving in the space and all the spaces in
between – contribute to the emerging pedagogical environment. These
moments matter. When I check the time as I sit and watch again and again as
I write and rewrite this paper, the time on the recording is 0:36. We have only
been together for 36 seconds. I am aware that I have collected lots of data,
but I am looking for the unexpected, the surprises the slices in time,
this will be a moment to focus on.
MacLure (2013: 660) asserts that “in a materialist
ontology, data cannot be seen as an inert and indifferent
mass waiting to be in/formed and calibrated by our
analytic acumen or our coding systems. We are no
longer autonomous agents, choosing and disposing.
Rather, we are obliged to acknowledge that data have
their ways of making themselves intelligible to us.”
I am troubling what is would be considered the ‘important’ part
of the enquiry, that we would start only once the children were seated
in the circle. I consider that I already have more power than the
children because I am the adult, what Lipman asserts (2003: 50) “the
teacher’s moral authority rests on his/her being an adult and not on
being an expert in ethical decision making.” I take this assertion
seriously I could have said no talking and sit in a circle or even worse,
but widely practiced I could have arranged the chairs in a perfect
circle and then told the children to take any seat. They may accept this
because of this implied moral authority adults in classrooms have. I
resisted this pedagogical approach because I am aware that material is
not inert. I choose to disrupt the adult/child binary in these small
ways. Olsson (2009: 37) suggests that “[i]n a pedagogical environment
as possible event children, teachers and even the rooms and furniture
find themselves in a continuous process of becoming.” This is the
research I am interested in and ethically responsible to be engaging
with. The doors, windows, walls, corridors, hall, door frames, chairs,
desks, sunshine, wind, dust particles are fixed and are usually ignored
as insignificant in the pedagogical environment. Posthumanism
compels us to look at matter differently. Barad (2007: 151) argues that
“in an agential realist account, matter does not refer to a fixed
substance; rather matter is substance in its intra-active becoming – not
a thing but a doing, a congealing of agency”. So the door and doorway
the children left their classroom through, the carrying of the bright red
plastic chairs to the hall that they were going to sit in a circle with to

110
the making of a circle: building a community of philosophical enquiry ...

think, discuss, child and adult, teacher and student, philosophising


together and with are not important as chairs or doors or wall, in and
of themselves, but in the intra–actions with the other phenomena: the
discussion, the bodies on the chairs and the spaces between the chairs
and the floor, ceiling and windows, video camera, wheelchair and the
making of the circle. All this matters as we make the circle and are in
this process of emerging as a community of enquiry.
In order for a reconfiguration of these fixed understandings of
the divisions between adults and children to emerge, my image of
child has to be challenged, because as my view of child changes so
does my view of adult and this affects the adult-child relationality.
How could I reconfigure myself as educator? For Murris (2017: 117),
“[p]osthumanism provokes the urgent question about what the role of
the (human) educator is in educational settings”. So how does this
work in terms of a posthuman configuration of facilitator or educator?
Murris (2017: 117) diffracts the midwife, the stingray and the pregnant
body and conceptualizes the reconfiguration of pregnant stingray
which makes us think “differently about difference, the knowing
subject (as in/determinate and unbounded) and creates an egalitarian
intra-relationality ‘between’ learner and educator through the shift in
subjectivity.” How would the matter come to matter in a philosophical
enquiry? Murris and Haynes (2018: 60) suggest the formulation of the
“pregnant -stingray-educator who treats her own knowledge of
concepts as contestable and is willing to inhabit the perplexity of
philosophical questions independently of the age or social status of the
questioner.” In the philosophical enquiry, I see my role as the
pregnant stingray as a posthuman formulation of the teacher. When I
was asking about the circle I am a co “co-enquirer, a participant that
‘numbs’, asking questions that provoke philosophical enquiry, without
knowing the answers to the questions s/he poses; and facilitating only
where appropriate, that is benefitting the community’s construction of
ideas” (Murris 2016: 182). I too in this way am queering when the
philosophical enquiry begins, what about what happens when we
start thinking as we are making the circle together, the children are
able to question something fairly obvious about what a circle is.
Already the children are research subjects by the nature that they had
to consent to the research (with their parents) but this idea of
struggling together also troubles the idea of what it is we would be
doing together.
As a PhD researcher, who had previously worked at the school
for many years, but was now visiting the school to do research, I
wanted to use a space that would accommodate the children sitting in
a circle for the philosophical enquiry, not space as a void, but space to
think and draw and move around with a bit more freedom and the
school hall was available when I came in to work with the children. I

111
rose-anne reynolds

asked their class teacher to ask the children to bring the chairs they sit
on in their classroom along to the school hall. They needed to bring
their chairs with them, as the only chairs available in the hall are for
adults and are adult sized plastic maroon colour chairs, stored in a
storage room, alongside the hall, these chairs are used for when
parents come for meetings, or to the Assembly or other gatherings in
the hall. The children almost always sit on the floor and the teachers
and other adults sit on the chairs. As I write this, at the end of a month
long ‘Plastic Free July’ campaign in South Africa, which has stemmed
from a global movement, I am struck by the use of plastic and plastic
chairs. Here in South Africa, because of our coastline and the slowly
emerging awareness about the pollution of the ocean and the damage
to the planet, there is a ‘taking note’ of the dangers of plastic with even
very popular fast food restaurants rejecting the use of the single straw.
These plastic red and maroon chairs are a sharp juxtaposition as they
scrape noisily against the wood strip floors and exposed brick wall in
this modern, functionalist yet minimalist space which is the school
hall. The children did not have any say in the purchasing of the plastic
chairs which they sit on at their wooden desks. So, when we trace
some of the entanglements and these are the agential cuts - the wood,
the plastic, where the chairs were manufactured, whether a ‘real child’
was used to measure the height and comfort provided by the chair
and the ecological costs. When we return to the amount of money
spent on children in schools during apartheid it puts the endless use of
the earth’s (non-renewable) resources into sharp relief.
So, why a circle in a community of enquiry?
As a practitioner and passionate advocate of the pedagogy of
Philosophy with Children, this research made me question why do we
sit in a circle? It seems standard practice for most practitioners in
Philosophy with Children. In my training, I was trained to ask
participants to sit in a circle, or ensure they were in a circle for the
community of enquiry but without much analysis or understanding of
why this is necessary. There was much more focus in my training on
the thinking, the role of questions, how to develop the community of
philosophical enquiry and other equally important aspects. So, why
the circle? Lipman (2003: 100) explains what this figuration facilitates:
students are “seated in the circle of chairs, face-to-face with their
classmates, they employ the same thinking skills and thinking tools
(such as reasons and criteria) that they have seen others employ. On
doing a search in the most recent collection of work from scholars
around the world, in the Routledge International Handbook on
Philosophy for Children, I was intrigued to find circle mentioned only
13 times by (Baumfield, 2017: 123; Echeverria and Hannam 2017: 6&8;
D’Olimpio and Teschers 2017: 147-148; and Costa-Carvalho and
Mendanca 2017: 132; Glaser and Rollins Gregory 2017: 183; Strong

112
the making of a circle: building a community of philosophical enquiry ...

Makaiau 2017: 22-23; Strong Makaiau, A., Ching-SzeWang, J.,


Ragoonaden, K. & Leng, L. 2017: 231-232). I am pleased there is some
mention of the role of the circle but this is a small component in this
very significant piece of literature in the field.
The children in this Grade 2 class sit on red plastic chairs that
come in two different heights. The chairs are a bright, cherry red and
are very sturdy with thick plastic legs and a back rest, but no arm
rests. In compulsory schooling, children are not often given options
about the furniture in their classrooms or what they will work with or
sit on, or under or next to. The chairs the children brought to the hall
are usually behind small tables about 50 cm from the ground that can
accommodate two children sitting side by side, with blue ‘chair bags’ -
bags with a pocket that slips over the back of their chairs, that hold
their books, rulers and other stationery that cannot fit on their desks.
This is mandatory and can be bought at the school uniform shop.
Sitting in a circle in a classroom as a standard practice is rare and so it
is significant in terms of the Philosophy with Children methodology
and interesting. This configuration allows the participants to see and
engage with each other and with the material in a way that is different
to a traditional classroom set-up with rows of desks or chairs and
tables. This arrangement is significant because it changes how the
philosophical enquiry can take place. How the thinking, the talking,
listening, drawing, discussing, joking, philosophizing will happen in
this session. Together with the children, the thinking, the words, the
idea of a circle and corners and parts and roundness and gaps for
people to walk through; this was an quantum entanglement of what it
would mean to be thinking, wondering, learning and teaching
together. This was an opportunity to be intra-acting with the idea that
we would be working with concepts and thinking together. Deleuze
and Guattari (1987/2014) cited in Murris and Haynes (2018: 11) show
that “philosophy is a doing a creating of concepts. Concepts are
complex, not discrete, but intensive coordinates, in that they are
composed of many parts.” So, what is a circle, can a circle be made,
what is a chair, how does dabbing work, what does it mean for a circle
not to have corners - 1948, 1990, 1991, 2018, how do these dates work,
how are they years? Kohan (2014: 1) considered Lipman’s project, P4C
to be potentially revolutionary – not only for philosophy and
education, but for childhood as well, both theoretically and
practically.” This is my experience as a philosophy with children
practitioner, enthusiast, facilitator as pregnant stingray. I write this
paper aware of the incredible philosophical enquiry that emerged with
these Grade 2 children, which is beyond the scope of this paper. I am
in full agreement that “philosophy with children disrupts practices of
power as a continuous experimentation” (Murris 2016: 180). The
power of teacher/adult/researcher, of language, discourse, the power

113
rose-anne reynolds

of some of the unquestioned practices in schools have been troubled in


the 4 minutes of the making a circle data that this paper has grappled
with.
In this chapter there has been an attempt to trace some
entanglements: inbetween the humans and the concepts and the
material-discursive being analysed as research data. The posthuman
analysis took place through intentionally re-turning to video footage
again and again. How was the making of a circle, a democratising
practice? What did it matter to be in this place, this school hall which
Barad in an interview with Dolphjin and van der Tuin (2012: 666)
reminds us about the past, “...the memory of its materialising effects is
written into the world.” The analysis included the intra-actions
between the chairs and humans, more than humans and the
materiality of place. A deliberate choice needed to be made over and
over not to privilege the discursive in the transcriptions but to engage
with the material-discursive assemblage I was part of on the Sunny
Autumn day when the research ‘took place’ and every day since when
I have returned to the data, through the video recorded footage.

references

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Entanglement of Matter and Meaning. Durham: Duke University Press.
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114
the making of a circle: building a community of philosophical enquiry ...

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Cultural Renewal: The Case of Philosophical Inquiry with Jewish Bible. In
Rollins Gregory, M., Haynes, J. and Murris, K. (Eds.) The Routledge International
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Philosophy with Picturebooks. Contesting Early Childhood Series. London:
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Murris, K. & Haynes, J. 2018. Philosophy for Children: A Postdevelopmental
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Olsson, L.M. (2009) Movement and Experimentation in Young Children’s Learning:
Deleuze and Guattari in Early Childhood Education. London: Routledge
Strong Makaiau, A., Ching-Sze Wang, J., Ragoonaden, K. & Leng, L. 2017.
Empowering Global P4C Research and Practice Through Self-Study: The
Philosophy for Children Hawai’i International Journaling and Self-Study
Project. In Rollins Gregory, M., Haynes, J. and Murris, K. (Eds.) The Routledge
International Handbook of Philosophy For Children. London: Routledge. 227-235.

115
116
estéticas do corpo, gênero, sexualidade e pedagogia
o corpo profano da experiência estético-educativa

adriana maria da silva


uff
adridry@gmail.com

merleau-ponty: a dissolução das fronteiras entre corpo e


conhecimento

O corpo tem sido estudado em variados campos do


conhecimento, o que evidencia sua relevância nos debates
contemporâneos. Nessa perspectiva, Merleau-Ponty (2001, p. 256)
firma que o seu século “apagou a linha divisória entre o ‘corpo’ e o
‘espírito’ e vê a vida humana como espiritual e corporal lado a lado,
sempre apoiada no corpo, sempre associada, até nos seus modos mais
carnais à vida das pessoas”.
Nessa esteira, David Le Brenton (2009, p. 39) diz que “o corpo é o
primeiro e o mais natural instrumento do homem”. Não resta dúvida
da proeminência desse debate para os variados campos
epistemológicos, notadamente a partir do que convencionalmente foi
chamado de “crítica da modernidade”61, em que as condições
materiais concretas, o inconsciente e as relações de poder que
permeiam a existência humana foram postas no cerne das discussões.
Por essa ótica crítica e iconoclasta, o corpo reestabelece seu
caráter criativo no tempo e no espaço, enquanto um modo de
apropriação da existência e caminho por onde o ser humano constitui
suas relações consigo mesmo, com o outro e com o mundo/natureza.
Nóbrega (2016) adverte que o interesse de diversas disciplinas
científicas, filosofias e modelos de educação pela temática do corpo
provêm do fato de que o aspecto corpóreo possui uma espacialidade
própria, descontínua, disponibilizando desde componentes físico-
químicos a signos que definem a condição humana e as possibilidades
de comunicação. Por conseguinte, para compreender o corpo em sua
dimensão cultural e enquanto vetor de construção e de atribuição de
sentidos das relações humanas com o mundo, é preciso considerar que
essa lógica de produção de sentidos funciona através de uma rede de
relações instrumentais, de operadores epistêmicos, de um
determinado sentido legitimador dessa rede de relações, do

61 Convenciona-se utilizar a expressão para indicar o período de crise dos valores e

ideais da modernidade, especialmente com o advento da psicanálise, das relações de


trabalho e de poder que puseram em xeque todas as certezas e cânones da época. As
concepções críticas de Nietzsche, Marx e Freud representam marcadamente o período.

119
adriana maria da silva

funcionamento dos operadores e do próprio procedimento das lógicas


produtivas (BÁRTOLO, 2007).
Com o propósito de subverter compreensões como a cientificista,
partiu-se das trilhas elaboradas por Merleau-Ponty em torno da busca
por nosso contato primordial e inaugural com o mundo e a defesa de
uma razão fundada na sensibilidade como potência de conhecimento,
“na casa onde nasce uma criança, todos os objetos mudam de sentido,
eles se põem a esperar dela um tratamento ainda indeterminado,
alguém diferente e alguém a mais está ali, uma nova história, breve ou
longa, acaba de ser fundada, um novo registro está aberto.”
(MERLEAU-PONTY, 2011, p. 545-546).
Por essa ótica, Merleau-Ponty estabelece os vieses de uma
fenomenologia fundamentada na percepção que confere ao corpo62 a
centralidade de toda e qualquer ação em direção ao mundo. O filósofo
situa justamente os aspectos não conceituáveis e o caráter descontínuo
da corporeidade como condição primeira no processo de construção
do conhecimento.
Na perspectiva da fenomenologia de Merleau-Ponty, a defesa é
de que, além da nossa capacidade de elaboração conceitual e de
significações linguísticas, próprias do mundo cultural e de suas
representações, também nos exprimimos e produzimos sentidos
existenciais por meio da nossa experiência perceptiva “ou, o que é a
mesma coisa, nossa sensibilidade, mobilidade e ação espontânea frente
ao indeterminado que, por sua vez63, engendra significações
existenciais” (MÜLLER, 2001, p. 175).
A produção de sentidos é gerada, portanto, também no mundo
natural, pois as significações existenciais de nossa experiência
perceptiva funcionam como uma orientação comum ou sinergia
expressa pelos diversos elementos que a compõem. “Elas são a
totalidade ou implicação espontânea desses elementos, o que os faz
valer como ‘cenestesia’ do corpo próprio, ‘coisa’ no tempo e espaço
vividos, ‘intenção’ de nossa ação junto às coisas, enfim, ‘mundo
vivido’ ou ‘da percepção’” (Ibid., p. 175).

62 Para atender ao propósito deste trabalho preliminar, foi preciso deter-se ao corpo
próprio, sujeito da percepção, como desenvolvido por Merleau-Ponty em Fenomenologia
da percepção (2011); e, em menor medida, ao corpo-carne, o corpo da expressão, como
tematizado pelo filósofo em suas últimas obras, especificamente em O olho e o espírito
(2013) e no Visível e invisível (2009). Destaca-se, ainda, que na ótica adotada para este
estudo não há ruptura entre as duas fases. O corpo próprio e a noção de corpo-carne se
constituem enquanto noções complementares de uma mesma tentativa ou, ainda, uma
revisão dos limites da Fenomenologia da percepção com referência às análises de
Merleau-Ponty acerca do corpo e da consciência, que o próprio filósofo assinalou em
sua obra inacabada, Visível e invisível, Cf. 2009, p. 189.
63 Grifo nosso.

120
o corpo profano da experiência estético-educativa

Contudo, como adverte o filósofo francês, as significações


existenciais concernentes à experiência do corpo próprio não são
apenas um inventário de processos físicos ou fisiológicos da anatomia
humana, “(...) por que meu corpo é movimento em direção ao mundo,
o mundo, ponto de meu corpo. (...) O acontecimento fisiológico é
apenas o esboço abstrato do acontecimento perceptivo.” (MERLEAU-
PONTY, 2011, p. 469).
Merleau-Ponty considera o sentir parte inalienável da
experiência corporal. O corpo, com a sua própria linguagem, é a
expressão do que pensamos, do que desejamos e do que somos, por
conseguinte, só nos engajamos nas situações cotidianas do mundo por
meio de um componente vinculado à emoção.
Para ampliar a compreensão do corpo unindo os fatos
fisiológicos, psíquicos e existenciais, o filósofo francês apresenta a
noção de esquema corporal e sua relação com a espacialidade e com a
motricidade do corpo. O esquema corporal reflete as atitudes do
corpo, sua postura, o tônus muscular e seu movimento, e manifesta-se
como um resumo da experiência corporal capaz de oferecer
significações por meio dos conteúdos cinestésicos e articulares. O
esquema corporal é uma maneira tanto de exprimir que o nosso corpo
está no mundo quanto de redefinir o nosso ponto de vista sobre ele
(NÓBREGA, 2016).
O empreendimento sensório-motor e sua relação com o espaço
aprofunda a compreensão da dimensão criativa da percepção e da
expressividade da corporeidade. De acordo com Merleau-Ponty, não
há separação entre conduta corporal e conduta inteligente, antes, há
uma unidade de comportamento que expressa a intencionalidade e,
portanto, o significado dessa conduta. Nos hábitos, o corpo se modula
ao significado pretendido, dando-se assim na forma de consciência
incorporada. Nessa perspectiva, a existência corpórea constitui uma
terceira via que não escolhe entre as alternativas de mente e de corpo,
usualmente apartadas, mas acolhe as noções de mente incorporada e
de corpo dotado de inteligibilidade, que buscam superar as
concepções abstratas dos termos mente e corpo. Ambas integram e
unificam os aspectos fisiológicos, psicológicos, sociais e culturais a
partir das experiências com o mundo e com os outros (GALLAGHER;
ZAHAVI, 2008).
Nesse sentido, a fenomenologia de Merleau-Ponty revitalizou as
discussões acerca da percepção e conferiu centralidade ao corpo nos
processos de criação, tendo a sua recepção em solo nacional na
emergência da arte contemporânea brasileira, notadamente como base
para as construções teóricas e, em grande medida, para as produções

121
adriana maria da silva

dos artistas que compunham o movimento Neoconcreto64. As reflexões


de Merleau-Ponty adensaram a formação intelectual e experimental
dos neoconcretistas, no tocante às críticas dirigidas à linguagem
visual, à apropriação redutiva e dogmática dos artistas concretos da
teoria da Gestalt, ao combate ao objetivismo, ao causalismo da
psicologia behaviorista e ao mecanicismo na arte, questões análogas ao
que o fenomenólogo tematizava em suas análises em torno da ciência e
da filosofia. A busca por subverter as proposições da geometria
euclidiana com relação ao espaço fez com que a visão neoconcreta do
campo de percepção recolocasse, como o vetor imponderável, a
expressão como uma dimensão não mais determinada pela estrita
manipulação das informações visuais (BRITO, 1999).
Por esse caminho foi se delineando a desintegração do quadro,
como continuidade da dissolução da arte figurativa e a procura de
uma arte não objetiva. Era preciso, portanto, a transformação do
espaço pictórico em um campo expressivo de ação. Hélio Oiticica, em
um texto de 1961 publicado no livro Aspiro ao grande labirinto (1986),
atestou que esse deslocamento do espaço foi um ato inaugural na obra
de Lygia Clark:
Lygia Clark não se limitou a compreender
superficialmente o ‘geometrismo’ de Mondrian,
possibilitando ver assim quais seriam as suas démarches
mais importantes e que abriram um novo rumo para a
arte. Sua compreensão primeira relativa ao espaço,
como elemento fundamental atacado por Mondrian, ao
qual deu novo sentido, sendo este o principal ponto que
a levaria a se relacionar com Mondrian, e não a ‘forma
geométrica’ como tantos outros. Compreender então o
sentido das grandes intuições de Mondrian, não de fora,
mas de dentro, como uma coisa viva; a sua necessidade

64“O Neoconcretismo foi o movimento das artes plásticas que começa em 1957, no Rio
de Janeiro, como dissidência do Concretismo paulista. Insatisfeitos com o que
consideravam excesso de racionalismo, alguns artistas aliam ao Concretismo uma
dose maior de sensualidade. Isso é feito com o uso mais livre da cor nas telas e com a
criação de objetos que dependem da manipulação do espectador. Tendo como
mentores o poeta Ferreira Gullar (1930-2016) e a artista plástica Lygia Clark, esses
artistas expõem suas ideias no Manifesto Neoconcreto, publicado no Jornal do Brasil
em 1959. Os neoconcretos podem ser divididos em dois grupos. Com maior liberdade
de concepção, o primeiro produz pinturas, esculturas e objetos que combinam essas
duas formas de arte. Entre eles destacam-se os escultores Amilcar de Castro (1920-),
Franz Weissmann (1914-), Willys de Castro (1926-1988) e Hércules Barsotti (1914-). O
segundo grupo estimula a percepção tátil, além da visual, para que o público interaja
com suas obras. Seus maiores representantes são Lygia Clark, Hélio Oiticica e Lygia
Pape (1929-)”. Disponível: <https://arteconcretista.wordpress.com/about/>. Acesso
em: 20 jun. 2018.

122
o corpo profano da experiência estético-educativa

de ‘verticalizar’ o espaço, de ‘quebrar a moldura’, por


ex., não são necessidades pensadas, ou ‘interessantes’
como experiência, mas necessidades altamente estéticas
e éticas, surpreendentemente nobres, colocando-a em
relação a Mondrian, como o Cubismo em relação a
Cézanne (OITICICA, 1986, p. 33).
A partir das novas condições abertas pelos neoconcretos, através
da reinvenção do espaço e sua interseção com tempo, houve a
explosão da obra para fora da moldura e, finalmente, o deslocamento
da poética da forma para a expressividade dos corpos. O corpo
tornou-se um eixo indispensável para os neoconcretos, na
reinterpretação das fundações da arte abstrata. Nesse sentido, Hélio
Oiticica (apud BRETT, 2005, p. 19) defendeu que era preciso ver
Malevich como um instrumento superior para novas formas de vida
(ou de viver), um estado necessário no qual as “artes plásticas” se
despem de seus privilégios e se dissolvem em pele/corpo/ar: os
impulsos na direção de uma plasticidade absoluta e do suprematismo
são impulsos na direção da vida, que nos levam a tomar nossos
próprios corpos (para descobri-los) como a primeira prova da vida.
Segundo Brett, em seu livro Brasil experimental: arte/vida,
proposições e paradoxos (2005), ao entrar em contato com o trabalho dos
artistas brasileiros na década de 1960, viu-se diante do advento de
uma vanguarda, na qual Hélio Oiticica assumiu a liderança com o
propósito de demonstrar a função da arte no contexto nacional, “não
como uma alienação sintomática, mas como fator decisivo no seu
progresso coletivo” (OITICICA apud BRETT, 2005, p. 23). A discussão
em torno de uma vanguarda brasileira emergente nos anos 60 foi
tematizada por Hélio Oiticica em seu texto Situação da vanguarda no
Brasil (proposta 66), escrito em 1966, publicado no livro Aspiro ao grande
labirinto (1986), em que afirma:
Se quisermos definir uma posição específica para o que
chamamos de vanguarda brasileira, teremos que
procurar caracterizar a mesma como fenômeno típico
brasileiro, sob pena de não ser vanguarda nenhuma,
mas apenas uma falsa vanguarda, epígono da americana
(Pop) ou da francesa (Nouveau-Realisme) etc. Como
artista integrante dessa vanguarda brasileira, e teórico,
digo que o acervo de criações ao qual podemos chamar
de vanguarda brasileira é um fenômeno novo no
panorama internacional, independente dessas
manifestações típicas americanas ou europeias,
vinculação existe, é claro, pois no campo da arte nada
pode ser desligado de um contexto universal. Toda a
minha evolução de 1959 para cá tem sido na busca do
que vim a chamar recentemente de uma ‘nova
objetividade, e creio ser esta a tendência específica na
vanguarda atual (OITICICA, 1986, p.110).

123
adriana maria da silva

Essa nova objetividade proclamada nas produções de arte entre


os anos de 1960 e 1970, que colocou o corpo no centro do processo
criativo, trazia também, entre suas principais características, a
participação corporal, tátil, visual e semântica do espectador. Esse
intenso interesse pela subjetividade estava impregnado das situações
concretas vividas pelo corpo, uma proposta que buscou subverter a
fragmentação cartesiana entre corpo e mente. A vinculação estrita
entre corpo e obra e a integração do campo táctil-sensorial em
contraposição ao puramente visual podem ser vistas em produções
elaboradas entre 1964 e 196865, como os Bólides, de Hélio Oiticica; O
ovo, de Lygia Pape; e a proposição Caminhando, de Lygia Clark.
Conhecida como a démarche mais crítica da obra da artista, a
descoberta de que o processo criativo se desenvolvia no sentido de
uma imanência em detrimento da transcendência, operou, assim, uma
dialética realista de aproximação entre corpo e obra, por meio da
exigência do ato do participante (OITICICA, 2011, p. 92). Na
perspectiva dos artistas neoconcretos, o corpo não poderia ser
meramente um suporte, “não é uma questão de suporte da obra. Ao
contrário, é uma incorporação total. É uma incorporação do corpo à
obra e da obra ao corpo” (OITICICA apud BRET, 2005, p. 56-57). Nem
tampouco o corpo deveria ser concebido como mero espetáculo, uma
vez que o plano é abolido, por imprimir uma falsa e racional ideia da
realidade humana. De modo diverso, “ao tomar consciência de que se
tratava de uma poética de si mesmo projetada para o exterior, ele
compreendeu ao mesmo tempo a necessidade de reintegrar essa
poética como parte indivisível de sua própria pessoa” (CLARK, 1997,
p. 117).
Propõe-se aqui abordar as obras e/ou proposições à luz de
questões relevantes para a experiência estético-educativa. Não se trata,
com isso, de retirar a arte da sua especificidade no interior da esfera
cultural, mas, inversamente, de abrir sua história a outras perspectivas
e narrativas possíveis. Aspira-se, portanto, que as reflexões elaboradas
possam representar um “desvio experimental de liberdade”, no que se
refere às propostas de formação na atualidade, contribuindo
especificamente com a ampliação da compreensão do corpo através
das produções de arte e considerando o seguinte questionamento:
Podemos encontrar, nas produções da artista brasileira Lygia Clark66,

65 É importante destacar que nesse período o Brasil vivia a ditadura, que gerou um
contexto de forte politização de todas as práticas artísticas. Nesse sentido, “a ocupação
do espaço público foi crucial: havia que modulá-lo, reinventá-lo e produzir as relações
necessárias para derrubar a ditadura.” (AGUILAR, 2016, p. 22).
66 A artista Lygia Clark nasceu na cidade de Belo Horizonte, no estado de Minas

Gerais, em 23 de outubro de 1920. Saiu da sua terra natal para estudar com Roberto

124
o corpo profano da experiência estético-educativa

experiências estético-educativas que afirmem outras possibilidades


formativas para o corpo?

lygia clark: do objeto artístico ao corpo como obra de arte

As proposições da artista mineira provocaram a dissolução da


fronteira entre a obra de arte e o espectador, a profanação do objeto
artístico e a ruptura com o locus tradicional da arte. Fazem parte dessa
etapa as esculturas das séries “casulos” e “bichos”, de 1958-1960, que
marcam o momento em que a artista retirou a obra da tela e
mergulhou no espaço tridimensional. Segundo Brett (2001, p. 33), é o
momento em que “a superfície plana passa a esconder um espaço
interior (Casulos, 1958). O objeto estático pendurado na parede desce
para o chão e se reconstitui com um grupo de plano móveis (Bichos,
1960)”.
A trajetória artística de Lygia Clark foi marcada por rupturas e
descontinuidades internas, contudo, há uma coerência no sentido da
busca pelo entrelaçamento entre o sujeito e o objeto, entre corpo e a
mente, entre o visível e o invisível, e a defesa por uma experimentação
orgânica da arte como a própria encarnação da vida humana. A artista
demonstra em sua trajetória um modo fenomenológico de apreensão
do mundo, notadamente ao eleger o corpo como a própria obra de
arte. Nas palavras de Lygia Clark:
Em geral, a arte sai da barriga, não da cabeça (...) do
centro nevrálgico do corpo humano, onde tudo que
importa tem sua origem mais profunda.
(...) Cada vez que ataco uma nova fase de minha obra,
experimento todos os sintomas da gravidez. Desde que
a gestação começa, eu tenho as verdadeiras
perturbações físicas, a vertigem, por exemplo, até o
momento em que chego a identificar, reconhecer esta
nova expressão de minha obra em minha vida de todos

Burle Marx (1909-1994) no Rio de Janeiro, em 1947 e, posteriormente, foi à França dar
continuidade aos seus estudos com Fernand Léger (1881-1955), entre 1950 a 1952. Ao
retornar ao Brasil, integrou-se ao grupo de artistas neoconcretos. Lygia Clark foi
convidada a lecionar na Faculdade de Artes Plásticas da Sorbonne-Paris, entre 1973 e
1976. Em 25 de abril de 1988 (aos 67 anos), Lygia Clark faleceu de infarto no Rio de
Janeiro. Encontramos como principais referências práticas na de obra de Lygia Clark
(e dos neoconcretos) os artistas Piet Mondrian (1872-1944), Kazimir Malevich (1878-
1935), Naum Gabo (1890-1977) e Vladmir Tatlin (1885-1953). Como destacado
anteriormente, os referidos artistas fomentaram as mudanças no campo da arte
durante o início do século XX. Mesmo sob essa influência, os neoconcretos buscavam
meios de ultrapassar a técnica mecanicista e o objetivismo do projeto construtivo
brasileiro.

125
adriana maria da silva

os dias, (...) vida-corrente, espontânea e natural, como o


ato de comer (CLARK apud FABBRINI, 1994, p. 12).
Maria Alice Milliet, em Lygia Clark: obra-trajeto (1992), assegura
que o neoconcretismo recorreu ao pensamento encarnado, que não é
dissociado do corpo, e que se configura enquanto aspecto inalienável
de todo o conhecimento. Sobre esse registro, a arte neoconcreta em sua
expressividade vincula-se incontestavelmente à apreensão
fenomenológica do mundo, “seu sentido deve transparecer na
interseção das experiências individuais, na engrenagem de umas com
as outras, nesse nó de relações. Não teme a contaminação da mente
pelo corpo, nem cair no caótico subjetivo.” (MILLIET, 1992, p. 92). No
neoconcretismo, a afirmação completa da integração entre o domínio
psicossensorial do homem era a exigência para torná-lo capaz de gerar
uma objetividade mais profunda, porque só sob essa condição seria
indissociada da sua subjetividade (Ibid.). Nesse sentido, não há uma
predominância entre o que é visível objetivamente e aquilo que a obra
provoca no interior/invisível das nossas sensações corpóreas. Em
outros termos, há uma ambiguidade própria na tessitura do fazer do
artista.
As fases da obra de Lygia Clark apresentam uma constante
interrogação e uma intensa inquietação. Percebe-se, particularmente a
partir da segunda etapa da trajetória da artista, uma produção que
reforça a poética da não representação. Na busca por uma significação
que deveria ser tecida no interior da própria experiência, que não se
referia a nenhum objeto dado e/ou aos significados comumente
atribuídos a ele, o sentido da obra deveria ser estabelecido na
interação entre o sujeito/espectador e o objeto. Desse modo, havia um
estímulo duplo, a obra convidava o espectador que, a partir da sua
exploração, ampliava o campo de potencialidades e de sentidos do
objeto artístico, independentemente da catalogação que ele tivesse
recebido antes. “A obra passa a emanar, receber vida e se transforma
nas mãos do espectador, ela passa a ser mais vulnerável, ‘mais
humana’, mais ‘orgânica’. Os títulos que Lygia Clark atribui às suas
obras revelam esse ‘envolvimento contínuo e cada vez mais intenso
com o mundo’” (MALUF, 2007, p. 25). Observa-se, então, que a artista,
no momento em que se retirou do espaço bidimensional da moldura,
dedicou-se à construção espacial tridimensional, em que a participação
ativa do espectador era primordial para o acontecimento da obra.
A etapa intermediária, que marcou a ruptura da produção de
Lygia Clark com o objeto artístico, inaugurada em 1964 com a
proposição Caminhando, foi caracterizada pelo contato cada vez maior
com o público. Nela, “as faces opostas de um plano retangular se
tornam uma única e contínua superfície de Moebius. Metal rígido vira
borracha flexível, capaz de assumir qualquer posição, lugar ou
postura.” (BRETT, 2001, p. 33). Nesse momento o espectador passa a

126
o corpo profano da experiência estético-educativa

fazer parte da obra, por meio da sua interação com o objeto: do olho
para o tato e do tato para um conjunto de sentidos, até sua integração
total à obra, que vai do conjunto de sentidos para o corpo inteiro. Na
instalação A casa é o corpo: labirinto, criada em 1968, a artista faz uma
incursão pelo corpo humano, por meio de uma construção sensorial
que remonta a vida intrauterina, promovendo uma experiência de
contato com as quatro etapas para o acontecimento do nascimento:
penetração, ovulação, germinação e expulsão.
A proposição A casa é o corpo: labirinto foi criada “para ser
penetrada pelo visitante como abrigo poético” (MILLIET, 1992. p. 111).
Ela não apenas provoca a redescoberta do sentir, por meio dos
distintos materiais que permitem o contato com diversas sensações
que constituem a natureza orgânica do homem, mas também convoca
e acolhe uma redescoberta do próprio corpo. Considerando que o
corpo passa a ser a obra e abriga, dentro de si, outro corpo, ele é o
espaço estruturante das ações vivenciadas. Há uma vinculação direta
com a ideia de nascer novamente, de fazer renascer o contato do
participante com o que é propriamente humano. “O corpo ganha a
possibilidade de se ‘reconstruir’, ele se expande na extensão da obra,
ele se transforma a cada mudança de ambiente da instalação”
(MALUF, 2007, p. 98). O sentido da obra é atribuído por contato, por
inerência, por experiência e, nesse caso, o participante recria,
reconstitui a si como uma obra de arte. Nos termos de Merleau-Ponty:
“a experiência se dá no pré-reflexivo, tal é a sina de um ser que nasceu,
quer dizer, que de uma vez por todas foi dado a si mesmo como algo a
compreender.” (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 464).
No decorrer dos anos de 1970 a 1975 Lygia Clark foi convidada
para ministrar aulas na Sorbonne, período em que a artista
desenvolveu propostas coletivas eminentemente pedagógicas. Entre as
experiências realizadas com os alunos estão: Baba Antropofágica67
(1973), Túnel (1973) e a Rede de elástico (1974). Nessas proposições, o
corpo se dissolvia em outros corpos para ser reconstituído por meio de
outras percepções. A proposta da Rede de elástico, por exemplo,
provocava o contato, a relação e o afecto (no sentido de ser afetado,
tocado, perturbado, contaminado, etc.) por si mesmo, através do corpo
do outro e pelo outro, a partir do seu próprio corpo. Tratava-se de
uma rede constituída por filetes de elásticos que iam sendo
entrelaçados por várias pessoas e que se esparramava esticada no ar,

67 “Nessa fase a artista se apoia na antropofagia de Oswald de Andrade, mais

especificamente, na ideia de devoração do outro que a sustenta, para simbolizar uma


vertente importante da sua própria sintomática, a tendência de incorporar em si todas
as diferenças. A partir do momento que as digere, as experimenta, elas perdem as
fronteiras existentes na cultura.” (BITTENCOURT, 2002, p. 188).

127
adriana maria da silva

formando um corpo único de vários corpos ligados e tensionados pela


rede (COSTA, 2012). O movimento do corpo, possibilitado nessa
proposição, ganha uma expressão intencional de situação no mundo,
para além do gasto energético, para além da conservação da vida
fisiológica e biológica, onde o sentido de organicidade foi ampliado
para a dimensão de uma reconstrução que funde o corpo individual
num todo coletivo.

o corpo profano da experiência estético-educativa

Nas proposições coletivas de Lygia Clark, como se viu, os corpos


individuais dos participantes tornavam-se um “todo orgânico” ou
uma “arquitetura viva” (Ibid.). “Trata-se de um abrigo poético onde
habitar é equivalente do comunicar” (CLARK apud MILLIET, 1992.
p.131). As ações, através dos gestos dos participantes, construíam um
corpus-obra, dito em outros termos, uma obra com qualidade de corpo,
considerando que “Ser corpo é estar atado a um certo mundo”
(MERLEAU-PONTY, 2011). A criação do sentido de organicidade
ratificou a redescoberta de um mundo atado ao nosso corpo e a
imbricação de um no outro, “a arte passou [então a] ser concebida
como linguagem primeira, anterior a qualquer representação, [tendo
em vista que] com a experimentação Clark queria transmitir uma
maneira de estar no mundo.” (BITTENCOURT, 2002, p. 174). Nesse
sentido, o corpo fala, se expressa, seja diretamente, através de
comportamentos, seja provocado por meio dos órgãos dos sentidos,
elementos de ligação com o mundo. A língua do corpo é feita de
sensações – táteis, visuais, gustativas, olfativas, auditivas (Ibid., p.
205), por conseguinte, o corpo é a expressão de uma conduta e, ao
mesmo tempo, criador de seu sentido a partir de uma intencionalidade
esboçada que exige a sua complementação. “Antes da expressão há
apenas uma ausência determinada que o gesto ou a linguagem
procura preencher e completar” (FURLAN; BOCCHI, 2003, p. 449).
As produções de arte que movimentaram a fronteira da
modernidade deslocando suas bases nos termos da
contemporaneidade, resguardadas as suas diferenciações internas,
exerceram uma crítica contundente aos processos de representação do
mundo, tanto ao pensamento de sobrevoo da ciência e da filosofia
quanto à objetividade e à racionalização da arte. Foi necessário
deslizar todos esses processos até as sensações da vida e arrebentar os
quadros dos processos usuais de elaboração de significações, por meio
da abertura dessas ações para dimensão do mundo vivo e vivido,
aliando conceitualismo (pensamento, reflexão) e participação corporal
(gestualidade, movimento e rituais do corpo).
Nessa perspectiva, o corpo é o locus onde se desenrola a trama
que atribui sentido e corpo ao desejo, sendo também um meio de

128
o corpo profano da experiência estético-educativa

expressão e sede das pulsões. A cada expressão do corpo vemos a


ocorrência de outros modos de existência possíveis do homem, e é
nesse movimento que reside a liberdade da experimentação, a
possibilidade de modelar (criar) as formas. A expressão poética (do
fazer) resulta da interação entre a expressão viva do corpo e o
pensamento, produzindo uma nova linguagem. Contudo, não há
como codificar a experiência, uma vez que é aberta ao acontecimento
do ato, é a linguagem experimentada com todos os sentidos do corpo,
fora dos limites e enquadramentos gramaticais e verbais da linguagem
(BITTENCOURT, 2002). Esse tipo de linguagem deforma, pois, além
de ocultar os nossos pensamentos, contribui para nos escondermos de
nós mesmos.
O movimento e a expressividade corporal escapam às
construções dos sistemas que buscam uma verdade estável e acabada.
Nem a perspectiva naturalista, em que a expressão corporal, realizada
através do movimento, é considerada anterior e independente da
linguagem verbal, nem, em outro sentido, a interpretação discursiva,
onde a expressão só é possível por meio da linguagem verbal. Ambas
concepções não esquecem o paradoxo e a ambiguidade inerente à
nossa condição de ser corpo, que é, simultaneamente, física, sensível e
linguística (FERNANDES, 2000).
Não há fragmentação entre pensamento e gesto na linguagem do
corpo, como é possível ver nos sentidos construídos artificialmente por
meio de conceitos, da linguagem e através da cultura, de modo geral.
Na concepção fenomenológica de Merleau-Ponty, a relação da
linguagem com o repertório gestual, como expressão corporal, e as
diversas possibilidades abertas pela arte, notadamente pela pintura,
associam-se com o silêncio, enquanto “a linguagem diz, as vozes da
pintura são as vozes do silêncio” (MERLEAU-PONTY, 2013, p. 117). O
silêncio mencionado pelo filósofo é o dos gestos, que são poderosos
criadores de sentidos, de significação, um meio capaz de “admitir uma
verdade que não se assemelhe às coisas, que não tenha modelo
exterior, nem instrumentos de expressão predestinados e que seja,
contudo, verdade” (Ibid.). Nesses termos, a verdade como não
adequação é abertura que ocorre em situação e não se dá por
encerrada. Essa verdade é nutrida na experiência do artista, onde o
movimento é expressão atual e não uma representação de um
movimento ausente. O artista converte o movimento em expressão, em
uma indistinção entre a expressão e o expresso, que é, por assim dizer,
a verdade em ato (SANTOS, 2003).
É no desvio que a arte promove a liberdade. É a partir de uma
ressensibilização da existência e da sua capacidade de comunicação
que ela coloca em xeque as supostas verdades absolutas, arrebentando
a pele das coisas e abrindo caminhos até então desconhecidos, através
de um gesto expressivo e autêntico de liberdade. “A liberdade

129
adriana maria da silva

reconhecida e cultivada no domínio da arte deve se estender a todos


os outros domínios. Uma revolução da sensibilidade é capaz de
alcançar o âmago do indivíduo, para que ele possa olhar o mundo com
novos olhos.” (D’ANGELO, 2011, p. 55-56). Não se defende aqui,
contudo, um tipo de mito salvacionista da arte, mas sim “cavando
para fora”, abrindo a sua história e as suas produções de ruptura com
os academicismos, dogmatismos e cânones para fazê-las reverberar em
outros domínios, como, no caso específico deste ensaio, na educação.
A expressividade do corpo e a dimensão sensível foram
interditadas ao longo da história da formação humana. Nesse sentido,
adotou-se o que Herbert Read, em seu livro A educação pela arte (2001),
designou como função da educação:
Será a minha intenção mostrar que a função mais
importante da educação diz respeito a ‘orientação’
psicológica, e que, por esse motivo, a educação da
sensibilidade estética é de fundamental importância. É
uma forma de educação da qual apenas traços
rudimentares são encontrados nos sistemas
educacionais do passado, e que só aparece de maneira
muito acidental e arbitrária na prática educativa de hoje.
Deve ficar claro, desde o princípio, que o que tenho em
mente não é apenas a ‘educação artística’ enquanto tal, o
que seria mais adequadamente chamado de educação
visual ou plástica: a teoria a ser apresentada
compreende todos os modos de auto expressão, literária
e poética (verbal), bem como musical e auricular, e
constitui uma abordagem integral da realidade dos
sentidos nos quais a consciência, e, em última instância,
a inteligência e o julgamento do indivíduo humano
estão baseados. É só quando esses sentidos são levados
a uma relação harmoniosa e habitual com o mundo
externo que se constitui uma personalidade integrada
(READ, 2001, p. 8).
Read (2001) admite que há dois estados existenciais internos que
podem ser exteriorizados por meio das faculdades estéticas. O
primeiro é o somático, que armazena imagens que não derivam da
percepção exterior, mas das tensões musculares e nervosas de origem
interna. O segundo, mais denso e significativo do que os estados
proprioceptivos, são os níveis da personalidade mental
subconscientes, na medida em que as características desses níveis
entram no primeiro plano da nossa consciência sob a forma de
imagens, por meio de sonhos ou período de sonolência. Para o crítico
de arte britânico, essas imagens mentais constituem uma forma de
expressão, uma linguagem que pode ser ‘educada’. “Trata-se de um
dos elementos fundamentais de todas as formas de atividade
artísticas. Teremos de considerar até que ponto essa atividade
imaginativa, enquanto tal, pode ser incentivada por nossos métodos

130
o corpo profano da experiência estético-educativa

educativos” (Ibid., p. 9). Por essa ótica, tanto a percepção (como


princípio da forma) quanto a imaginação (como princípio da criação),
em interação dialética, esgotam todos os aspectos psíquicos da
experiência estética.
A proposta de educação estética de Herbert Read segue o viés
interpretativo da psicologia analítica de Jung, mas também dirige um
olhar retrospectivo para as propostas educativas que estabeleceram
suas bases referenciais na arte, desde a função da arte no projeto
educativo da Grécia clássica, sustentado por Platão, até a defesa de
uma formação estética do homem, desenvolvida por Schiller. Nas
distintas perspectivas filosóficas, toda a discussão em torno da arte no
processo educativo estava amplamente enredada no desenvolvimento
singular do indivíduo, mas também em sua integração à unidade
social, à comunidade. A educação estética, nesse sentido, só poderá ser
estabelecida se fundada em uma proposta de sociedade democrática,
no sentido libertário68 do termo, cuja função prioritária seja a de
promover a integração social do indivíduo. Com o propósito de
desenvolver as capacidades singulares do indivíduo, a educação deve,
portanto, explorar todas as suas possibilidades expressivas,
inicialmente reestabelecendo os vínculos entre ciência e arte, enquanto
modos de apreensão de uma mesma realidade, e, posteriormente,
buscando integrar todos os aspectos psicofísicos imprescindíveis para
uma única tentativa orgânica. Nesse sentido, “não há distinção entre
ciência e arte, exceto quanto aos métodos, a oposição entre elas no
passado deveu-se a uma visão limitada de suas atividades” (READ,
2001, p. 12).
Historicamente os processos formativos tradicionais têm
enfatizado o desenvolvimento das descobertas do pensamento lógico
que isola, compara, correlaciona e estabelece os conceitos abstratos.
Não resta dúvida de que as teses que investiram no conhecimento
infantil - como, por exemplo, a de Claparède69, sobre o funcionamento
da mente da criança, e a epistemologia genética de Piaget70 -
estabeleceram as bases fundamentais para a compreensão dos
processos mentais e seus efeitos nos modos de expressão da criança.
Contudo, não se pode ignorar a relevância dos modos de expressão
visuais e plásticos (imagéticos), que dentro dos sistemas tradicionais

68 Herbert Read, embora não tenha sido filiado a um grupo anarquista, declarou-se
anarquista com posições convictas de defesa a uma sociedade democrática de viés
libertário.
69 Cf.: CLAPARÈDE, É. Psicologia da criança e pedagogia experimental. (A. Mata

Machado Filho e T. Pereira, Trad.). 11ª ed. Belo Horizonte: Imprensa oficial, 1934.
70 Cf.: PIAGET, J. A epistemologia genética. Trad. Nathanael C. Caixeira. Petrópolis:

Vozes, 1971.

131
adriana maria da silva

de educação acabam por ser reprimidos até o seu aniquilamento. Em


uma análise sobre a ausência da arte no sistema de educação e as
consequências dessa realidade para a civilização, publicada
originalmente em 1963, Herbert Read atestou que:
A arte da criança declina depois da idade de 11 anos
porque é atacada por todos os lados – não apenas
excluída dos currículos, mas também da mente, pelas
atividades lógicas que chamamos de aritmética e
geometria, física e química, história e geografia, e até a
literatura da maneira como é ensinada. O preço que
pagamos pela distorção da mente adolescente é
altíssimo: uma civilização de objetos hediondos e seres
humanos disformes, de mentes doentes e lares infelizes,
de sociedades divididas e equipadas com armas de
destruição de massa. Alimentamos esses processos de
dissolução com nosso conhecimento e nossa ciência,
com nossas invenções e descobertas, e nosso sistema
educacional tenta manter-se no ritmo do holocausto;
mas as atividades criativas que poderiam sanar mente e
tornar belo nosso meio ambiente, unir o homem com a
natureza e nações com nações, nós as descartamos como
se fossem fúteis, irrelevantes e vazias (READ, 2001, p.
185).
A experiência da arte e a sua possível função na educação não
devem, entretanto, ser reduzidas à mera compreensão e ao exercício
formal artístico e perceptivo. Embora possa conter tudo isso, a sua
função deve seguir, sobretudo, o fluxo arte e vida (FAVARETTO, 2010).
Nesse sentido, será preciso abrir caminhos para uma formação capaz
de provocar certa atitude estética, não apenas no tocante ao que se pode
chamar de “obra de arte”, mas em relação à vida, com suas
contradições, desvios e incertezas; uma atitude estética na qual se pode
incluir qualquer proposta de educação, escolarizada ou não
(PEREIRA, 2011). Por esse motivo, não se busca aqui compreender a
arte como um fenômeno estético, no sentido formal do termo, nem
mesmo se deter em análises pormenorizadas em torno dos resultados
das obras dos artistas elencados. Trata-se de abrir o processo de
criação artístico, que amplia as nossas capacidades expressivas, para a
possibilidade de uma formação de caráter integral, cujo exercício
aponte para a liberdade humana.
A educação é incentivadora do crescimento, mas, com
exceção da maturação física, o crescimento só se torna
aparente na expressão – signos, símbolos audíveis ou
visíveis. Portanto, a educação pode ser definida como o
cultivo dos modos de expressão – é ensinar crianças e
adultos a produzirem sons, imagens, movimentos,
ferramentas e utensílios. Todas as faculdades de
pensamento, lógica, memória, sensibilidade e intelecto,
são inerentes a esses processos, e nenhum aspecto da

132
o corpo profano da experiência estético-educativa

educação está ausente deles. E são todos processos que


envolvem a arte, pois esta nada mais é que a boa
produção de sons, imagens, etc. Portanto, o objetivo da
educação é a formação de artistas – pessoas eficientes
nos vários modos de expressão (READ, 2001, p. 12).
A ampliação dos modos de expressão do ser humano demanda
uma revisão das práticas formativas que reservaram ao corpo e à
dimensão sensível um espaço secundário, recusando as suas
potencialidades imagéticas nos processos de construção do
conhecimento. Para a reformulação dessas bases, coloca-se como
necessidade premente a reativação do caminho de retorno às nossas
disposições orgânicas, que institui e estabelece, como primeiro plano
das nossas ações, a sensibilidade natural enquanto base de todo o
desenvolvimento humano. Nesse sentido, “a preservação da
sensibilidade requer um cuidado com os métodos pedagógicos para
que os processos de criação não sofram interferências prejudiciais ao
seu desenvolvimento.” (D’ANGELO, 2011, p. 62-63). Tendo um caráter
eminentemente sensível, os processos de criação da arte favorecem
uma compreensão ampliada dos modos de expressão do artista em
suas produções, considerando que os métodos construtivos da arte
não estabelecem um corte extremo entre as dimensões sensível e
racional, entre corpo e mente, entre razão e emoção, etc.

considerações finais

O processo de produção do artista estabelece uma triangulação


entre as dimensões criativa, formativa e de elaboração corporal, que
pode ser admitida em qualquer proposta de formação, resguardadas
as especificidades do campo da arte. No tocante à educação, devido
aos aspectos condicionantes que foram impostos intencionalmente aos
corpos – desde o espaço físico tradicional escolar até a limitação das
condutas morais e da expressividade –, pode-se considerar, em lugar
de um processo de elaboração corporal, um tipo de reelaboração
corporal.
A obra de Lygia Clark se inscreveu nos quadros das experiências
artísticas pioneiras e emblemáticas na inversão dos códigos e das
normas de condutas imputadas aos corpos, por se inserir em um
espaço de transgressão aos cânones de determinadas tradições
hegemônicas e ao aspecto institucionalizado da arte, fornecendo
elementos poderosos para redirecionar reflexões e práticas que
busquem uma pedagogia alternativa aos processos formativos
tradicionais dominantes. A transmutação de valores, como se vê nas
proposições da artista brasileira, foi promovida quando o gesto
espontâneo do participante entra em cena e joga, quando o sensível e o
formal se tornam outra realidade, uma tríade que faz a conexão entre o

133
adriana maria da silva

físico e o moral, através de um jogo lúdico harmônico de cooperação, de


intermediação e de equilíbrio que gera beleza, plenitude e liberdade71.
Na produção da artista brasileira, notadamente a partir da proposição
Caminhando, o jogo se revela como tudo ou nada, na própria imanência
do ato. “De saída, o Caminhando é apenas uma potencialidade. Vocês
e ele formarão uma realidade única, total, existencial. Nenhuma
separação entre sujeito-objeto. É um corpo-a-corpo, uma fusão. O
único sentido dessa experiência reside no ato de fazê-la. A obra é o seu
ato.” (CLARK apud BITTENCOURT, 2002, p. 173). A sensibilidade é
despertada pelo efeito de indiferenciação entre sujeito e objeto e pela
instituição de uma relação recíproca entre essas dimensões, que
implicam resistir aos condicionamentos culturais, através de um
exercício poético da existência.
Para o crítico brasileiro Mário Pedrosa, as crianças, os loucos e os
artistas possuem uma capacidade afetivo-expressiva mais intensa e
mais profunda, pois são “movidos por um impulso que mostra a ‘cara’
das coisas e anima o mundo, com muita expressividade porque não
conseguem contemplar o mundo sem se comover. Esse tipo de
experiência gera um tipo de conhecimento capaz de conferir a todas as
coisas vida e expressão” (apud D’Angelo, 2011, p. 68). Nessa
perspectiva, o processo criativo de Lygia Clark, notadamente a função
pedagógica dos trabalhos sensoriais que operam com os impulsos e
com os sentimentos, serve como principal referência das suas
experiências que exigem e provocam a reconstituição dos corpos e a
indiferenciação corpo/mundo como exigência para que haja uma
relação recíproca entre sensível e inteligível, entre sujeito e objeto,
entre razão e sensibilidade. Esse aspecto foi bem desenvolvido por
Merleau-Ponty, quando tematizou a questão da reelaboração do
esquema corporal. Para o filósofo, “o corpo é o veículo do ser no
mundo, e ter um corpo é, para um ser vivo, juntar-se a um meio
definido, confundir-se com certos projetos e empenhar-se
continuamente neles.” (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 122).
Para que se vislumbre um cenário que movimente as fronteiras
interpostas no âmbito da educação é preciso considerar, inicialmente,
a reabilitação do sentido da formação humana, que, na ótica deste
ensaio, pode tornar a educação capaz de expandir-se em outras
direções, mais propícias à experimentação.

71 Refere-se às reflexões contidas na obra SCHILLER, Friedrich. A educação estética do


homem numa série de cartas. Tradução Roberto Schwarz e Marcio Suzuki. São Paulo:
Iluminuras, 2002.

134
o corpo profano da experiência estético-educativa

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136
outras filosofias da educação na filosofia da educação
brasileira: educar os corpos em fluxo para além do
imaginário do carbono.

alexandre simão de freitas


ufpe
alexkilaya@uol.com.br

notas introdutórias

[...] há sempre um negro, um judeu, um chinês,


Um grão-mongol, um ariano no delírio.

Gilles Deleuze

Nas últimas décadas o campo da Filosofia da educação, no


Brasil, tem sido levado a reconhecer a pluralidade dos modos de
pensar, tendo em vista a emergência de abordagens e sujeitos
comumente subalternizados tanto pela historiografia filosófica do
ocidente, como pela Filosofia da educação herdeira dos ideais da
Paideia, da Humanistas e da Bildung. Contudo, ainda hoje vários
pesquisadores se recusam a chamar de filosofia as formas de
pensamento situadas fora da Europa, tomando-se como critério
equívoco o fato do termo filosofia ter surgido apenas na Grécia. A
atividade filosófica sendo percebida, portanto, como um privilégio
exclusivo da geopolítica ocidental, uma espécie de prática autoimune
em relação a outras experiências de reflexividade, que silencia o fato
de que as áreas geográficas adjacentes à Europa se constituíram como
nossos verdadeiros rivais epistêmicos (LORCA, 2017; DERRIDA, 1986;
SAID, 1993) 72.
Nossos filtros epistêmicos também carregam consequências
ontológicas, políticas e éticas, afetando o modo como lidamos com os

72 Mais próximos de nossa própria configuração histórica, encontramos em

Schopenhauer, um dos primeiros filósofos europeus a admitir um diálogo com fontes


do pensamento oriental (SOLÉ, 2015). Outros exemplos reconhecidos das tentativas
de interlocução e/ou influências recíprocas estão registradas nos escritos de Leibniz
sobre a China (FLORENTINO NETO, 2016), nos diagnósticos de Nietzsche acerca do
niilismo europeu (PANAÏOTI, 2017), na discussão sobre o conceito de Vazio em
Heidegger (SAVIANI, 2004) e sua influência na chamada Escola de Kyoto
(FLORENTINO NETO; GIACOIA JUNIOR, 2017) e, no caso brasileiro, nas discussões
recentes com a filosofia de Nagarjuna (VIEIRA; FERRARO, 2016).

137
alexandre simão de freitas

processos de formação do humano. Uma temática, como sabemos,


fundamental para a Filosofia da educação. No diagnóstico de Eduardo
Viveiros de Castro (2018, p. 86), o “estado de exceção” constitui a
“regra de nossa metafísica, da política à epistemologia”, pois carrega o
debate em torno do reconhecimento da vida humana fora dos limites
traçados pela racionalidade ocidental.
Tudo se passa então como se o ocidente estivesse destinado a
encarnar e personificar, de modo exclusivo, a afirmação de que o
homem é um animal racional. Uma convicção, em cujo âmago,
repousa silenciosa e perigosamente a dúvida infinita sobre se os
africanos, ameríndios, australasianos, etc., seriam, de fato e de direito,
seres humanos.
Nessa direção, problematizar os critérios advogados para definir
o significado e o conteúdo da filosofia não é um exercício
inconsequente, uma vez que esses critérios envolvem o poder de
conferir relevância, identidade, visibilidade, classificação e significado
à determinadas experiências humanas consideradas fundamentais. No
limite, o poder de definir o que é ou não filosofia permite desdobrar
processos que podem ser qualificados como verdadeiros epistemicídios.
Uma disposição efetivamente mortífera que legitima múltiplos
dispositivos de exclusão da alteridade percebida como uma ameaça e
resultando em um monoculturalismo responsável pela “destruição de
saberes e de culturas não assimiladas pela cultura ocidental”
(SANTOS, 2010, p 03).
Nos termos de Enrique Dussel (2005), a lógica conjunta do
genocídio/epistemicídio serviu de mediação entre a chamada
conquista colonial e o racismo/sexismo epistêmico do conhecimento
vigorante em nossa cultura tanto política como científica.
Consequentemente, são impostos modelos de conhecimento e de
reconhecimento que contribuem para cercear, normalizar e suprimir a
multiplicidade das filosofias encarnadas em diferentes contextos,
negando-se a existência de outras filosofias e outros modos de filosofar
em função de uma definição particular e restritiva da própria filosofia.
Nesse contexto, abordagens decoloniais têm sugerido a promoção de
“diálogos interfilosóficos” visando ampliar os sentidos acerca das
bases que sustentam as pretensões de conhecimento (GROSFOGUEL,
2016, p. 45). Posicionamento que, vale ressaltar, não significa celebrar
uma visão multiculturalista em torno da diversidade epistêmica do
mundo, deixando intocadas as estruturas de poder que conferem
legitimidade aos processos de racionalização e validação dos saberes.
Isso porque não se trata de reivindicar para os sistemas de
pensamento excluídos ou marginalizados o direito de serem, eles
mesmos, o novo solo fundante dos significados últimos da experiência
filosófica. Pois esse gesto apenas contribuiria para inverter o processo

138
outras filosofias da educação na filosofia da educação brasileira: educar os corpos ...

de reprodução da filosofia como um terreno concreto de apagamento


das vidas e dos destinos de outrem.
Com base nessas assertivas mais amplas, o argumento
mobilizado nesse ensaio foi organizado em dois movimentos
articulados pela tentativa de apreender o desejo de uma possível
interlocução da Filosofia da educação brasileira com outros sistemas
de pensamento. Inicialmente, buscamos delimitar alguns
posicionamentos analíticos sobre o modo como a Filosofia da
educação brasileira tem abordado outras maneiras de apreender o
mundo da educação e a formação humana sob os traços mesmo que
ainda tênues de uma abertura ao outro. Em seguida, desdobramos
uma análise acerca das artes neoliberais de governo, inspirada na obra
Geontologies: a requiem to late liberalism de Elizabeth Povinelli, a fim de
problematizar as atuais condições do governamento neoliberal.
A intenção consiste em repensar os processos educativos nas
margens da biontologia desdobrada pelo Antropoceno73, a fim de
questionar o chamado imaginário do carbono. O tom do argumento é
intencionalmente especulativo, tendo como horizonte fragmentos
analíticos extraídos das aulas ministradas por Michel Foucault, em
1978, no curso Segurança, Território, População, a fim de mostrar como, a
partir dos séculos XVI e XVII, a soberania passou a “capitalizar um
território”, o poder disciplinar a “arquitetar um espaço” e os
mecanismos de segurança a “criarem um ambiente” em função de
uma “série de acontecimentos” que é, cada vez mais, preciso
“regularizar” e “empresariar” em um contexto multivalente e
transformável (FOUCAULT, 2008, p. 27).

a filosofia da educação brasileira para além da identidade

Nos últimos vinte anos, a Filosofia da educação brasileira vem


buscando se constituir como um campo de estudos e pesquisas
específico. Como assinala Antonio Joaquim Severino (2013), embora
inicialmente estivesse em jogo, para os pesquisadores sobretudo
questões relativas à sua identidade, o fato é que, ao longo dessa última
década, a área se consolidou propiciando uma relativa inovação nos
modos de pensar a educação. Pois, ao mesmo tempo em que abdicou
da concepção de um meta-discurso, apreendido exemplarmente na
expressão “fundamentos da Educação”, a Filosofia da educação

73 O termo Antropoceno foi proposto como conceito por Paul Crutzen e Eugene

Stoemer no ano 2000, em um encontro do International Geosphere-Biosphere Programme,


e diz respeito ao que seria uma nova época geológica que se seguiu ao Holoceno,
iniciada com a Revolução Industrial e intensificada após a Segunda Guerra Mundial
(ver DANOWSKI; VIVEIROS DE CASTRO, 2014).

139
alexandre simão de freitas

brasileira passou a buscar modos próprios de legitimar sua atividade


de pesquisa, incorporando novos problemas epistêmicos, éticos,
políticos e antropológicos. O mais importante, diz, parece ter sido a
superação dos limites de um modo de abordagem que inscrevia
univocamente o exercício filosófico-educacional “nos limites do
racional, do erudito e da Cultura (com C maiúsculo) desconsiderando-
se os processos de formação humana inseridos dentro de outras
lógicas” (SEVERINO, 2013, p. 04).
Outro fator destacado nas análises realizadas pelos próprios
pesquisadores da área é o crescimento de uma reflexão situada acerca
das lentes analíticas privilegiadas pela antropologia filosófica moderna
(DALBOSCO; PAGNI, 2013). Essa situação contribuiu para abrir o
campo para problematizações intensas no contexto da crítica ao
chamado sujeito da educação. Como resultado, o tema da formação
humana se tornou uma questão sensível, passando a funcionar como
um fio condutor na interlocução entre as diversas perspectivas
filosóficas, ao mesmo tempo em que fez emergir questões como: Como
pensar o aspecto formativo e autoformativo considerando o estado
atual da pesquisa educacional? O processo de investigação em
Filosofia da educação pode se constituir em uma efetiva dinâmica de
formação para os sujeitos envolvidos?
Todas essas questões extrapolam o debate estrito sobre a
identidade da área e evidenciam a importância de se colocar à escuta
de outros modos de pensar as relações entre Filosofia e Educação.
Apesar disso, permanece a dificuldade de trabalhar como o que
guarda dissonância com as grades de análise privilegiadas pelos
pesquisadores, fazendo perdurar a percepção de que o trabalho
filosófico envolve processos de julgamento e esclarecimento das várias
pretensões de validade normativa e epistêmica.
Como lembra Patrice Maniglier (2013, p. 220), essa é um ponto
delicado posto que o “desejo de filosofia” também supõe, em alguma
medida, abdicar da ideia de que o seu exercício concreto se configura
apenas na “passagem para o limite do ideal racional”, quer dizer, que
a filosofia como prática e experiência consista tão somente “em
fornecer uma justificativa válida a tudo o que é, para não deixar nada
sem razão” (p. 229). Isso significa que a interlocução e a pluralidade
implicam relações permanentes de variação contínua, as quais
precisam responder a uma dimensão vital do filosofar: a exigência de
singularidade, sem a qual essa atividade perde os direitos a “certa
imaginação” (p. 247).
Em outros termos, a pesquisa filosófica constitui-se como um
esforço para introduzir o máximo de descontinuidade no pensamento,
visando fazer avançar, seja por refração seja por inovação, a tendência
dominante na produção dos saberes da área, a fim de acolher a
pluralidade e as diferenças no modo de pensar por meio da exploração

140
outras filosofias da educação na filosofia da educação brasileira: educar os corpos ...

de afinidades e alianças potenciais, mesmo que reconhecidamente


precárias, com outros sistemas de pensamento. O problema então é
como superar “uma relação geográfico-ideológica que tende a
delimitar a Europa como o centro da história mundial e da filosofia”,
ou seja, um dos desafios que se coloca à Filosofia da educação
brasileira é a “descolonização da própria reflexão filosófica” (PUCCI,
2013, p. 23).
Nesse sentido, não basta se declarar em defesa de um terreno de
interlocução, mesmo movido pelas reflexões pós-metafísicas em torno
da noção de formação humana, é preciso introduzir na cena discursiva
da Filosofia da educação brasileira as vozes e as vidas que encarnam,
concretamente, os temas da alteridade e da diferença, criando e
recriando conceitos filosófico-educacionais a partir de outras matrizes
de pensamento e mesmo de outras cosmologias que expressam a
existência de outros significados filosófico-educacionais acerca do que
significa o gesto de educar outrem, a fim de inspirar e conspirar
modos outros de pensar a formação do humano que estejam
orientados por uma postura diferinte e descolonizadora dos nossos
próprios sistemas de pensamento.
.
o antropoceno e as (des)conexões entre o matar e o morrer

Passemos então ao segundo fio da ficção especulativa retomando


uma ideia seminal defendida por Peter Sloterdijk segundo a qual o
chamamento para uma vida exercitante fez da modernidade uma era
técnica por excelência, marcada por um novo imperativo metanoético.
Dirigido a todos e ao qual dão-se múltiplas e, às vezes, divergentes
respostas, esse novo imperativo mobiliza uma extensa “coletivização e
desespiritualização de um conjunto de exercícios e técnicas para a
produção do sujeito por si mesmo, um sujeito governável”. Entre seus
mediadores privilegiados estariam “o Estado moderno e a escola
adequada a ele” que, juntos, convocam-nos para um exercício global
de fitness (SLOTERDIJK, 2012, p. 427). Na perspectiva ascetológica de
Sloterdijk, a produção de sujeitos exercitantes está no centro das
disposições que atuam no controle biopolítico das populações, uma
vez que o indivíduo moderno é fundamentalmente um treinador-
exercitante. O problema é que na própria série exercitação-condução-
empresariamento é perceptível a presença cada vez maior de vetores
produtores de múltiplas crises74. Essas crises são desencadeadas, em

74 Em que medida vivemos efetivamente as condições de uma crise generalizada de

governamento ou se as crises se constituem, elas mesmas, em mecanismos sutis de


controle biopolítico é uma questão que não vamos problematizar nesse momento (ver
COMITÊ INVISÍVEL, 2016, p. 23-46).

141
alexandre simão de freitas

grande medida, pelas próprias condições de governamento da vida


das populações, isto é, são engendradas pelos próprios dispositivos de
segurança que visam prevenir as crises.
No entanto, mais recentemente, as ciências humanas se
depararam com a emergência de uma crise assombrosa. Uma crise que
expressa os efeitos catastróficos provocados pela entrada em cena do
chamado Antropoceno.
Dentre outros, autores como Eduardo Viveiros de Castro e
Debora Danowski (2014) advertem: a história humana já havia
conhecido várias crises, mas a assim chamada ‘civilização global’, um
nome arrogante para a economia capitalista baseada na tecnologia dos
combustíveis fósseis, jamais teria enfrentado uma ameaça como a que
agora está em curso. O ponto crítico do diagnóstico está longe de se
esgotar nos clichês acerca dos desastres ecológicos, das mudanças
climáticas, etc., apontando para um processo de degradação das
condições que presidem à emergência da vida humana.
Para além das distopias do pânico (catastrofismo) e do entusiasmo
(aceleracionismo), o Antropoceno indicaria uma época em que o próprio
tempo está fora do eixo, produzindo um vazamento da cultura sobre a
natureza. Como resultado, as categorias binárias e opositivas, típicas
do pensamento filosófico da modernidade, não permitiriam mais
compreender e, sobretudo, intervir nas mudanças que nos
atravessam75.
Nos termos Stengers (2015), a transformação dos humanos
em força geológica através do progresso técnico-científico desregulado
tem sido paga com a intrusão de uma alteridade violenta, a intrusão de
Gaia, modificando as formas clássicas de auto compreensão do
humano seja como um sujeito histórico, um agente político ou uma pessoa
moral. A comunicação do geopolítico com o geofísico desmorona a
distinção fundamental da episteme moderna – a distinção entre as
ordens cosmológica e antropológica. Com isso, perdem-se os sentidos

75 Note-se que o termo Antropoceno não é uma unanimidade. Há quem, como Jason

Moore (2015) ou Danna Haraway (2016), advogue o termo Capitaloceno, entendendo


que a Revolução Industrial iniciada no começo do XIX é consequência da mutação
socioeconômica que gerou o capitalismo. Mas o diagnóstico crítico permanece para
além do debate idiomático. Isso porque o Antropoceno, aquém e além de suas
metáforas sobre o fim do mundo, é atravessado por subentendidos filosóficos-
educacionais importantes. Como já destacava Günther Anders (2007, p. 22), “a
derrocada da cosmologia geocêntrica se viu repentinamente compensada, no
pensamento moderno, por uma absolutização antropocêntrica da história, isto é, pelo
‘relativismo histórico’”. Todavia, a era atômica relativizou essa absolutização: o ‘fim
da História’ se tornando mera uma ocorrência “metereológica, um acidente com dia e
hora marcados”.

142
outras filosofias da educação na filosofia da educação brasileira: educar os corpos ...

e as conexões entre morrer e matar, abrindo uma inflexão abissal no


debate acerca das artes neoliberais de governar. Afinal,
[...] se o Ánthropos (bem entendido, o homem
esclarecido, ocidental-europeu-branco, ou quase…) é o
“único cidadão do mundo”, o “seu próprio fim último”
(KANT, 2006, p. 21), o que ele, enquanto espécie-povo
eleito, poderia temer?! Se os cientistas do clima são
“catastrofistas” de má-fé, as populações ditas
tradicionais, incapazes de “ampliar a escala” do seu
modo supostamente precário de existência, os povos das
ruas, vândalos a-políticos, por que o filósofo,
plenamente lúcido quanto às condições auto-fundantes
de seu saber institucional, deveria responsabilizar-se
por quimeras alheias e transformar a sua própria
maneira de pensar? (VALENTIM, 2014, p. 04).
Na análise de Marco A. Valetim (2014), a proposição moderna
exemplar acerca do isolamento metafísico do homem seria, de Kant a
Heidegger, tacitamente etno-eco-cida. O espírito do “povo
cosmopolita” revelaria uma potência em si mesma catastrófica, que,
embora dissimulada em seu próprio discurso, se faz manifesta quando
se pensa sob o ponto de vista de Outrem. Nesse cenário, a
modernidade revela-se como uma fonte explosiva do mundo comum,
o qual passa a ser regido por uma paz policialesca.
O Antropoceno figura então como uma espécie de duplo
sobrenatural da modernidade. Nesse sentido, levar a sério o
Antropoceno significa evitar a falácia simultaneamente especista e
racista contida na ideia do homem como espécie natural ou essência
metafísica, tomado à parte dos vários povos diferentemente humanos
e não-humanos, problematizando o dispositivo da grande divisão que
contribuiu para a despolitização das relações cósmicas, iniciando uma
desenfreada “guerra dos mundos”, uma “guerra entre guerras”,
guerras de Estado, mas também contra o Estado como a guerra
xamânica dos índios contra os brancos, onde se desdobram conflitos
em que vivos e não-vivos, espíritos e máquinas, se imaginam e contra
imaginam uns aos outros.
Tropeçamos aqui como uma imagem de pensamento
radicalmente outra à consciência dos filósofos ocidentais. Lembremos,
nossa regra máxima de decoro acadêmico, enunciada por Kant, e
segundo a qual todos os objetos da experiência têm necessariamente
que se regular pelos conceitos do entendimento humano e com eles
concordar. Mas eis que, depois de séculos de censura ativa, o
Antropoceno libera a resposta dos praticantes do chamado pensamento
selvagem – essa figura fantasmática, entre tantas, engendradas pelo
racismo filosófico europeu. Teria chegado, enfim, o momento de
abandonar definitivamente o barco e trair a nossa espécie?

143
alexandre simão de freitas

A resposta é esquiva. Mas, do ponto de vista pedagógico,


implica e carrega também um questionamento sobre o fato das
estruturas que fundam a economia política da educação terem sido
naturalizadas. Ou seja, por mais que o tratamento dado aos chamados
direitos das minorias tenha incorporado aspectos que demonstram
algum tipo de tolerância, reconhecimento e valorização, o sistema
normativo vigente, no campo teórico-prático da educação, foi muito
pouco influenciado pela compreensão dessas mesmas minorias sobre
os sentidos do gesto de formar o humano desde a práxis educativa.
As teorias pedagógicas permanecem invisibilizando outras
cosmologias, outras epistemologias e ontologias. Essa situação permite
inferir que um dos eixos vitais dos processos identitários de governo
neoliberal consiste também em gerir a invisibilidade, criando zonas
cinzentas onde vidas e corpos desaparecem sem deixar restos.
Um exemplo desse tipo de análise é o cruzamento atual entre os
estudos de migrações e os estudos queer sobre os corpos em fluxo.
Comumente, os estudos migratórios pressupõem que os migrantes
seriam uma massa de sujeitos heterossexuais, que migrariam apenas
por questões estritamente econômicas, equiparando migrantes a
trabalhadores. Raramente tematiza-se o que se passa, o que acontece
quando se cruzam fronteiras nas chamadas migrações queer76. Em que
pese o fato de que
[...] são claras as inter-relações e a interseccionalidade do
gênero e da sexualidade com as identidades nacionais,
raciais, étnicas e diaspóricas, bem como os circuitos de
viagem, migração e deslocações, e com as subsequentes
políticas de migração, asilo e de cidadania, [e suas
conexões com] formas de globalização hegemónica e
contra hegemônica com movimentos de corpos, ideias e
capitais, [e] com os sistemas globais, nacionais e locais
de inclusão/exclusão (VIEIRA, 2011, p. 52).
Segundo Paul Preciado (2008), a sexopolítica é uma das formas
dominantes da ação biopolítica no capitalismo contemporâneo. O
sexo, as práticas sexuais e também os códigos de masculinidade e de
feminilidade entraram diretamente nos cálculos do poder, fazendo dos
discursos sobre o sexo e das tecnologias de normalização das

76 No âmbito da legislação internacional, apenas dezenove países reconhecem que a

orientação sexual e a identidade de gênero podem constituir um atributo particular


para os pedidos de asilo. Na maioria, inexiste qualquer legislação referente à
população LGBTTI+ como um grupo populacional que possa usufruir de proteção
específica. Enquanto isso em cerca de oitenta países a homossexualidade ainda é
considerada um crime, passível inclusive de ser punida com a pena de morte em seis
desses países. Situação que força a mobilidade e o cruzamento de fronteiras em uma
espécie de sexílio do qual mal temos notícia.

144
outras filosofias da educação na filosofia da educação brasileira: educar os corpos ...

identidades sexuais um agente de controle da vida. Não obstante, se,


por um lado, os migrantes têm sido alvo de um crescente clima de
securitização apresentado regularmente nas mídias, enquanto figuras
ainda “sem nome” e “inarticuláveis” de agência política, por outro, a
presença dos migrantes queer perdura invisível e inaudível, o que só
amplifica uma maior regulação dos seus corpos, obstruindo o acesso
aos bens de cidadania mais básicos, ao mesmo tempo em que eles
servem de alimento para as redes do tráfico de pessoas.
Habitando os espaços liminares do corpo, dos campos sexuais e
dos Estados-nação, a migração queer compõe linhas de fuga que
permanecem inassimiladas por nossas teorias e abordagens filosófico-
educacionais das formas de governo. Uma das razões para essa
situação, lembra Preciado (2008), é que as análises dos teóricos da
biopolítica parecem parar quando chegam à “linha da cintura”,
desconsiderando a centralidade da sexualidade nas dinâmicas do
tecnocapitalismo avançado, cujas formas de governamentalidade são
regidas não apenas por uma cooperação entre cérebros.
Como resultado as multidões queer permanecem sendo tratadas
como uma “exceção ontológica” capturadas em uma espécie de limbo
submetidas a políticas de estabilização de sua própria invisibilidade.
Corpos e vidas que alimentam uma guerra civil, através da
generalização de um modus operandi onde governar significa também
fazer desaparecer. Esse modo de governamento emerge inseparável da
univocidade de uma dada ordem física e metafísica das coisas,
denuncia a filósofa e feminista Elizabeth Povinelli (2016). Essa ordem
nos mantem prisioneiros de uma concepção ontológica fundamentada
em um tipo específico de ser: o ser vivo que extrai sua diferença a
partir do que ela denomina de “imaginário do carbono”: o conjunto de
processos metabólicos – quais sejam, nascimento,
crescimento/reprodução e morte – que a epistemologia ocidental
atribuiu exclusivamente à vida biológica. O imaginário do carbono,
diz Povinelli, cria a pressuposição de que há uma separação abissal
entre o orgânico e o inorgânico, desconsiderando como mera matéria
inerte desprovida de agência e intencionalidade todos os modos de
existência que não parecem passar por aqueles processos metabólicos.
Povinelli (2001) expande intencionalmente o conceito cunhado
por Foucault, afirmando que a biopolítica não é só o que busca
governar sobre a vida, mas também o que cria e mantém a divisão
entre vida e não-vida. Processo que, segundo ela, sustenta o
governamento identitário das diferenças por parte dos Estados
neoliberais. A prioridade ontológica concedida ao metabolismo do
carbono ancora-se em uma ontologia definida por meio de questões
como o ser e o não-ser, a finitude e a infinitude, o uno e o múltiplo,
engendrando e pressupondo um tipo específico de entidade-estado, a
saber, a vida.

145
alexandre simão de freitas

Assim, seja nas ciências naturais, seja nas ciências sociais e


mesmo na filosofia, a noção de vida age como uma divisão
fundacional. A ontologia ocidental, na verdade, seria uma biontologia,
cujo principal poder político consiste em transformar um plano de
existência regional, isto é, a compreensão ocidental de vida, em um
arranjo global com pretensões de universalidade. Em oposição à essa
biontologia e à biopolítica que a sustenta, Povinelli (2016) propõe o
conceito de geontologia, que consiste na abertura a outras concepções
de mundo que não sejam marcadas pela dualidade entre vida e não-
vida e suas distinções notáveis entre humanos e animais ou entre
animais e plantas ou ainda entre plantas e rochas, concedendo
dignidade ontológica a múltiplos seres77.
Por outro lado, Povinelli também é enfática ao afirmar que a
grave desordem ecopolítica da atualidade propiciou a emergência da
geontologia como uma formação de poder capaz de desabilitar o
imaginário do carbono. Isso acontece porque a biontologia longe de
constituir uma universalidade organizativa representa apenas um
mundo ainda que muito poderoso. Assim, as crises atuais abrem
espaço para que novas concepções de conhecimento em que vida e
não-vida deixam de ser os operadores-padrão de distinção ontológica.
Daí o interesse de Povinelli por uma antropologia do diferinte [otherwise].
O diferinte é uma condição de possibilidade de alteração dos
arranjos determinados de existência, trazendo à tona as diversas
geontologias que foram subjugadas pela pretensa universalidade da
biontologia ocidental, o que pressupõe uma mudança radical de
perspectiva acerca do que conta como “humano”. Na ótica do
pensamento diferinte, o humano enquanto forma de vida isolada dos
outros existentes é uma quimera. Nessa ótica, pensar o tipo de ação
política ou pedagógica que está à altura do nosso tempo constitui uma
tarefa desafiadora, uma vez que o risco é recair, mesmo que com a
melhor das chamadas boas intenções, em práticas renovadas de
colonialismo.
Ao invisibilizar os pressupostos da biontologia ocidental que
destitui de valor outros modos de existência, tanto de humanos
quanto de outros-que-humanos, os aparatos pedagógicos e mesmo a

77No artigo Do rocks listen?, Elizabeth Povinelli começa narrando sua participação em
uma audiência do processo conhecido como Kenbi Land Claim, no qual o povo
aborígene Larrakia buscava obter direito de propriedade sobre a Península Cox, no
Território Norte da Austrália. Na ocasião, uma das mulheres do povo Belyuen, que
habita a área, descrevia aos representantes do governo como uma rocha chamada Old
Man Rock era capaz de ouvir e sentir o suor do seu povo, destacando a importância
das interações entre humanos, ambientes e os seres totêmicos ancestrais para a saúde
e a produtividade dos seus sistemas básicos de sobrevivência.

146
outras filosofias da educação na filosofia da educação brasileira: educar os corpos ...

reflexão filosófica-educacional acaba por replicar, pragmaticamente, as


exclusões que denunciam. Logo, toda política de resistência às artes de
governo neoliberais precisa ser capaz de suspender os hábitos (maus
hábitos, de fato) que nos fazem acreditar que sabemos, em um sentido
absoluto, quem somos e que possuímos o sentido definitivo daquilo
que nos faz existir. Esse tipo de crença reduz a agência e os modos de
existência de múltiplos seres e mundos (LATOUR, 2013).
Ao valorar formas de conhecimento que, historicamente,
contribuíram para a dominação dos devires dos povos
sublaternizados, a biontologia ocidental (expressa nos discursos
filosóficos-educacionais dominantes) tende a apreender suas contra-
ciências, quase sempre, como mito, folclore ou literatura. Em uma
direção oposta, o pensamento diferinte tenta e almeja reaprender a
pensar em termos de outras agências coletivas de enunciação que não
separem natureza e cultura e que não reduzam e desqualifiquem as
visões de mundo consideradas exteriores ao sujeito soberano da
modernidade78.
Isso significa acossar o chamado sujeito da educação que, apesar
das críticas pós-estruturalistas e pós-coloniais, ainda permanece sendo
pensado como uma forma excepcional de autoconsciência individual
ancorada em alguma forma de identidade. No argumento aqui
proposto, a subjetividade não cobra forçosamente uma forma
reconhecida como humana. Um sujeito seria constituído, antes de tudo,
pela “capacidade de tomar posição, multiplamente [...] um sujeito não
é um corpo, não possui um corpo, nem habita um corpo, mas antes se
posiciona em um corpo que, por definição, lhe resulta impróprio
mesmo em sua momentânea apropriação” (ROMANDINI, 2013, p. 46-
47).
Nesse contexto, educar para além do imaginário do carbono, isto
é, para além da distinção ontológica entre vida e não vida, implica um
desafio inusitado para a teorização filosófica da educação. Pode a
Filosofia da educação estar à altura desse desafio?
Talvez não. Mas, sem dúvida, um passo importante nessa
direção começa por uma contextualização das artes neoliberais de
governo, refletindo seus efeitos concretos nos corpos colocados em
fluxos mediante as distintas relações políticas entre seres e mundos
agenciadas pela perversa economia do abandono (POVINELLI, 2016), a
fim de conspirar outras formas de educar e lembrar algumas coisas

78Para Viveiros de Castro (2012), a metafísica ocidental tem sido pródiga em cultivar,
legitimar e replicar múltiplas formas de colonialismo ao não questionar os grandes
divisores da nossa antropologia, efetuando distorções restritivas de outras narrativas
que carregas consigo outros saberes e conhecimentos.

147
alexandre simão de freitas

que ainda não sabemos como saber, isto é, algumas coisas que se
situam para além de toda vontade de saber.

à guisa de (não) concluir: romper os muros invisíveis de nossa


política da verdade

Os diagnósticos produzidos pelos pesquisadores da Filosofia da


educação brasileira vêm sinalizando que a recepção de temáticas
atreladas ao pensamento tardio de Michel Foucault contribuíram para
abrir novos contornos à pesquisa em Filosofia da educação. O ponto
chave dessa recepção sendo a aproximação com uma concepção de
filosofia como modo de vida (PAGNI, 2011; DALBOSCO, 2009).
Essa concepção, embora proveniente da experiência filosófica da
Antiguidade greco-romana, tem servido para ampliar não apenas as
perspectivas teóricas sobre a sua abordagem, mas também para
repensar a própria experiência do que significa fazer filosofia na
atualidade , corrigindo o excessivo logocentrismo da atividade
filosófica e educacional ao destacar a problematização da noção do
sujeito da educação em base pós-metafísicas e enfatizar os aspectos
ético-estéticos implicados na formação humana. Com isso, a Filosofia
da educação é desafiada a se repensar em seu próprio ethos ao
comprometer o exercício filosófico da educação com a superação da
tendência hegemônica de violência e exclusão que ainda vigoram em
nosso pensamento.
Mas, nessa direção, as investigações tardias de Foucault não
deveriam ser desarticuladas da sua crítica ao biopoder, suscitando
uma série de questões vitais acerca do modo como o próprio ato de
filosofar emerge enquanto gesto inseparável da política e do devir-
sujeito. Pois, como lembra o filósofo camaronês Achille Mbembe
(2018a, p. 17-18), o que Foucault compreende com o termo
“aparentemente familiar” de racismo não se limite a regular a
“distribuição da morte e tornar possíveis as funções assassinas do
Estado”, mas também se faz presente nos sistemas de pensamento que
tratam de “imaginar a desumanidade de povos estrangeiros”,
forcluindo a experiência demolidora da alteridade. O racismo, como
subsolo inconfesso, é parte do complexo tanto do projeto moderno de
governamentalização como do projeto filosófico moderno de
conhecimento.
Dessa ótica, o exercício filosófico-educacional precisa transpassar
as análises situadas univocamente em uma crítica normativa do
biopoder, reconhecendo sua própria implicação em uma necropolítica
que opera com base nas distinções entre razão e desrazão, normal e
anormal articuladas em função de uma certa ideia de sujeito
inseparável da “instrumentalização generalizada da existência
humana e da destruição material de corpos humanos e populações”

148
outras filosofias da educação na filosofia da educação brasileira: educar os corpos ...

(MBEMBE, 2018a, p. 10-11). Em outros termos, mesmo quando


pensada como exercício espiritual, a pesquisa filosófico-educacional
deve ser incitada a abandonar a um só tempo tanto a arrogância de
possuir o monopólio da verdade (filosofia) como o monopólio da
prática pedagógica (educação), favorecendo enfrentamento dos
desafios crescentes de mover investigações que não apenas
contribuam, mas que se constituam, elas mesmas, em experiências
formativas.
O desafio consiste aqui em desdobrar uma política da verdade
distinta daquela que herdamos do discurso filosófico da modernidade.
O que significa que a construção de um humanismo, em bases pós-
metafísicas, precisa passar pela crítica à colonialidade das relações
poder-saber configuradoras dos processos normalizados de
subjetivação. Portanto, há que se reconhecer como operam as figuras
do Outro nos discursos sobre o “homem”, impedindo o chamado ao
universalismo filosófico que não cessa de “proliferar categorias
efetivamente racializadas” (MBEMBE, 2018b, p. 22). Essas seriam
condições vitais para operar nos limites dos regimes de verdade que
têm impedido o diálogo com a pluralidade de filosofias e outros
modos de filosofar. Logo, o reconhecimento de outras filosofas da
educação no âmbito da Filosofia da educação não deve ser visto como
uma mera questão de cortesia. Também não significa que se deva
minimizar ou diluir as diferenças existentes entre os vários pontos de
vista presentes nas várias tradições de pensamento, muito menos
provincializar as tradições europeias.
O esforço consiste, antes, em analisar a presença de relações de
força em todas essas tradições de pensamento, assumindo como
trabalho efetivo a experimentação de fricções teóricas que apelem ao
descentramento mútuo, buscando adensar a resistência aos efeitos
perversos da criminalização, sexualização e racialização de corpos,
vidas, espaços, práticas e instituições. Esse é um gesto particularmente
importante. Faz diferença pensar não apenas como a gente pensa, mas
também pensar com quem a gente pensa. Reconhecer isso pode
permitir que as contribuições de outras filosofias da educação, ao
invés de serem severamente apagadas, minimizadas ou
subalternizadas, se façam presentes, na Filosofia da educação, não
como signos de uma ausência de obra, mas como indícios
potencializadores de novos caminhos para pensar a formação humana.
Nessa direção, em Geontologies: a réquiem to late liberalism,
Elizabeth Povinelli conduz essa análise foucaultiana ao limite,
tornando urgente, com sua crítica ao imaginário do carbono, não
apenas solapar o entendimento do povo como base ideológica da
diferença liberal democrática, no contexto das artes de governo
neoliberais, mas questionar sua aplicação ao longo de tempos e
espaços distintos. Ao distender as análises de Foucault sobre

149
alexandre simão de freitas

sexualidade, raça e poder, ela nos faz compreender como, nas


chamadas colônias de povoamento, o biopoder disseminou técnicas
específicas de extermínio, de reconhecimento ou de assimilação,
culminando na construção de um “opositor” sexualizado, generificado
e racializado exposto à violência do Estado e suas políticas,
manifestada sob diversas modalidades operacionais: segregação
espacial; invizibilização forçada; expulsão escolar; epistemicídio;
feminicídios; lgbtransfobia; etc.
A noção de biopoder precisa, portanto, incorporar novos
caminhos de pensamento, desdobrando as topografias reprimidas de
crueldade vigentes em nossa cultura política. A divisão entre a matéria
geológica e a vida biológica, dentre outras divisões, restringe os
poderes práticos de alguns viventes. Para muitos coletivos, a vida não
tem as fronteiras e limites fantasmagóricos que o nascimento e a morte
emprestam ao que delimitamos como sendo uma vida. Assim, um
corpo morto ainda assim permanece sendo um corpo. Como
consequência, compreender as artes de governo neoliberais do ponto
de vista de outrem, isto é, do ponto de vista dos múltiplos corpos em
fluxo nas teias da vida, da não vida e da entre-vida exige que se
repense as próprias figuras e sujeitos da educação. Algumas dessas
figuras e sujeitos, não temos dúvidas, já começam a se fazer presentes
em análises da teoria educacional como as multidões queer de Preciado
(2011), a crítica da razão negra de Mbembe (2018b), as teorias e práticas
de resistência transfeministas (KOYAMA, 2003; SERANO, 2007).
Contudo, ainda precisamos de uma analítica do biopoder que
parta de uma abertura resistente aos excessos governamentalizantes
do imaginário do carbono, acolhendo além das figuras do animista, do
deserto e do vírus, analisadas por Elizabeth Povinelli (2016), figuras
nossas como os terreiros e seus orixás, a ayahuasca e suas florestas de
cristais, as “drogas” e suas deambulações ondulátórias. Com esse
gesto inaudito, talvez, seja possível evidenciar como o campo
pedagógico inflacionou a questão da educação como
empreendimento-de-si e deflacionou a preocupação com o cuidado-
de-si e com o cuidado-dos-outros, abrindo nossas teorias filosóficas
para outras figuras e sujeitos da educação como parte de uma crítica
radical às artes neoliberais de governo, conspirando uma formação
orientada por uma postura diferinte e descolonizadora capaz de colocar
a Filosofia da educação em errância, reinventando nosso projeto de
skholé.

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152
do que pode lançar mundos no mundo. da representação à
pedagogia da montagem

isaac pipano
uff
isaacpipano@gmail.com

introdução: a representação como fundamento

Com qual direito o cinema tem sido o que é? Quais foram e quais
são os planos traçados que lhe conferiram e conferem as condições de
possibilidade para assentar o solo no qual a representação tem
assumido o principado ao longo de seus centos e poucos anos? Sob
quais fundamentos as imagens têm sido majoritariamente criadas,
montadas, compartilhadas? Se nos interessa a questão, primeiramente,
é porque deste solo emergirão as estruturas que tem modelado as
práticas do cinema em seu encontro com a educação.
“Fundar já não significa instaurar e tornar possível a
representação, mas tornar a representação infinita” (LAPOUJADE, 2016,
p. 50) é o que insiste David Lapoujade em seu comentário sobre
Deleuze. Desde Platão o pensamento está povoando o mundo de
representações - parece ser já bastante tempo. Assim, retornar à
questão quid juris – com que direito? - é questionar que aquilo que
funda o mundo funda compulsoriamente a representação. Trata-se
não apenas de um modo de povoar a terra, mas de estender a todas as
formas de ocupação os valores do julgamento. Funda-se para julgar,
insiste Lapoujade, para dar o direito de julgar, estabelecer o sistema de
hierarquia sob o qual todas as coisas, todos os povos, todas os modos
de existência são determinados, num círculo ininterrupto de
univocidade da Identidade, do Mesmo, do Ícone, da Imagem, da
Escola, da Criança79. Nessa terra estriada, onde os fundamentos
sobredeterminam os modos de existência, o cinema e a educação

79 “Identidade e circularidade são as duas formas que instauram o reinado de

representação. Fundar é sempre fundar sobre uma identidade preexistene que possui
sobretudo o que os outros só possuem de maneira secundária; mas é também
introduzir o princípio de uma tal distribuição circular que o fundamento faz círculo
com o que funda para submetê-lo à sua lei. Todas as diferenças entre pretendentes se
veem assim subordinadas à semelhança que elas mantêm entre si ao longo de uma
escala eletiva, enquanto a semelhança se vê fundada na identidade de si da Ideia.
Como não, nessa apresentação que Deleuze faz de Platão, que a única questão que
importa é a do fundamento? (LAPOUJADE, 2016, p. 49)”.

153
isaac pipano

encontraram-se. Diríamos que nossas lutas derivam desse confronto,


do qual não estamos livres e, portanto, o que também nos obriga a
levá-lo à altura de sua complexidade. Somente assim, talvez,
lançando-nos à profundidade do que funda, podemos emergir não
para instaurar outro solo, mas para desmoronar as bases que o
sustentam, para fazer subir à superfície o que a representação já não
terá a pretensão ou os meios de determinar: a vida.
O círculo vicioso do fundamento trata de estabelecer também
todas as linhas sob as quais as imagens deverão ser observadas. Ele se
estende à moral, à medida em que impõe a forma da boa consciência;
mancha o chão da técnica, à medida que recruta seus operários e
artesãos rumo ao mercado neoliberal e a atual “flexibilização”
precária; alcança o Belo, julgando sob o estatuto da autoridade formal;
ao academicismo e à crítica, na hierarquização, nos catálogos e
taxonomias exclusivistas. Por sua vez, nosso mundo da educação não
está menos manchado que os demais, fincado como está ele próprio no
terreno do fundamento pelas estacas da crítica, da condescendência,
do paternalismo, do saber, do modelo, da instituição, e também da
escola (que seguimos defendendo fortemente, com toda a sua
ambivalência).
Se nos ocupamos do fundamento é para explicitar como a
representação se expande como uma força plasmática que cria, modela
e modula a vida como univocidade – à medida que impede a
multiplicidade das formas de ser e estar junto, esvaziando o mundo de
possíveis. Todo o esforço, portanto, parece ser o de perceber como o
campo do cinema e da educação, embora sejam dois, partilham da
natureza de uma mesma terra firme, ancorada por pesados grilhões.
Assim que nos parece não haver outro meio que fazer o mundo
afundar – para dali ver emergir o que já não pode ser determinado.

as imagens que sabem demais

Paulo Freire, cujos escritos trilham caminhos que com frequência


nos levam à filosofia de Hegel, como é sabido, nunca deixou de perder
de vista as relações dialéticas (extensamente comentadas, revisitadas e
criticadas no Brasil e no mundo) entre os oprimidos e o poder
opressor. Não convém nos determos longamente numa revisão teórica
do autor, já o fizeram exemplarmente, mas de forma sumária podemos
dizer que a emancipação na pedagogia política freireana se verifica
plenamente quando da dissolução dos lugares dos subordinados e dos
opressores, mutuamente. Não se trata, contudo, de uma inversão: a
mera reversão do quadro do poder restituirá a expressão da força
entre os dois polos, mantendo mais do que residualmente a forma da
lógica opressor-oprimido. Caberá ao povo oprimido, portanto, não
apenas emancipar-se: a emancipação se revela na libertação dos

154
do que pode lançar mundos no mundo. da representação à pedagogia da montagem

próprios opressores. Tal “missão”, se assim quisermos com o risco de


certa conotação messiânica atribuída ao povo, só se dará pelo caminho
da educação, a única maneira, de acordo com Freire, de garantir que
não se efetive uma imediata sobreposição dos papeis80. Os
“esfarrapados do mundo”, “condenados da terra”, aqueles que tem a
vida diminuída, segundo Freire, são os mesmos que pela práxis da sua
luta, pelo reconhecimento da sua condição de ser oprimido, tornarão
possível sua transformação individual - e por extensão a de toda a
comunidade. Um “ato de amor”, descreve Freire, que evanescerá o
ódio e a violência com a qual se revestem a “falsa generosidade”
contida na expressão do poder opressor.
Tal movimento, no entanto, está comprometido por uma
dimensão contida potencialmente na condição existencial do
oprimido, algo que o faz aderir ao poder opressor, tomado como um
modelo, como uma espécie de identificação que o impede de
transformar a situação concreta de opressão na mais-valia de vida
desejada. É mais uma vez a representação instaurando suas
sobredeterminações nos camponeses que, uma vez alçados a
capatazes, tornam-se ainda mais vis e cruéis do que os mandatários
anteriores, os operários que fazem benção aos interesses dos grupos
empresariais, os estudantes que ao assumir postos de mestres
determinam ordens hierárquicas ainda mais concêntricas e
autoritárias, dentre outros. “Perdura neles, de certo modo, a sombra
testemunhal do opressor antigo. Este continua a ser o seu testemunho
de ‘humanidade’” (FREIRE, 1970, p. 18). Nesse caso, a prescrição da
consciência, aquilo que Freire caracteriza como a transferência de uma
consciência à outra, faz-se à base de pautas que são elas mesmas
estranhas à condição existencial dos oprimidos. A prescrição permite a
aderência ao modelo do opressor, consciência “hospedeira” do
opressor. Para sair desse círculo é preciso que as gentes renasçam de
um “parto doloroso”.
Sabemos também, com Freire, que o modelo da educação
bancária, aquela que opera por um princípio de transferência do
conhecimento81 - estéril, amorfo, embalado a vácuo - é a matriz que

80 “A violência dos opressores que os faz também desumanizados, não instaura uma

outra vocação – a do ser menos. Como distorção do ser mais, o ser menos leva os
oprimidos, cedo ou tarde, a lutar contra quem os fez menos. E esta luta somente tem
sentido quando os oprimidos, ao buscar recuperar sua humanidade, que é uma forma
de criá-la, não se sentem idealistamente opressores, nem se tornam, de fato,
opressores dos opressores, mas restauradores da humanidade de ambos. E aí está a
grande tarefa humanista e histórica dos oprimidos – libertar-se a si e aos opressores”
(FREIRE, 1970, p. 16).
81 Cf. FREIRE, 1970, p. 33-42.

155
isaac pipano

garante a manutenção da condição estática e industrialmente


reproduzível da vida. A fórmula narrativa da educação bancária
confere ao mestre o lugar de repetidor; e os estudantes, reconhece-os
como recipientes inertes, indiferentes, à espera do preenchimento
pelas boas palavras, desconectados da realidade prática que os cercam,
de suas práxis - assim como das lógicas de dominação continuamente
recriadas. Essa prática educadora bancária desconhece, ou melhor, faz
desconhecer as relações entre o saber e sua manipulação como coisa
do mundo, como forma de criação, construindo abismos que cercam
os estudantes e os ilham em bancos de areia movediça.
A educação bancária sempre teve muitos companheiros e, por
analogia, podemos ampliar essa meditação ao domínio das imagens,
interesse maior neste ensaio, percebendo as múltiplas relações entre as
formas estéticas e políticas da educação e do cinema no que concerne
aos lugares dos [mestres] [cineastas] e [estudantes] [espectadores].
Algo particularmente notável em uma enorme parcela da produção
documental brasileira entre os anos 1960 e 1980, especialmente
descrita pelo crítico Jean-Claude Bernardet como o modelo do
documentário sociológico em seu livro Cineastas e Imagens do Povo (1985).
Isso fica especialmente claro na análise que o autor faz do curta-
metragem Maioria Absoluta (1963), de Leon Hirszman. Diríamos que o
curta de Leon tem como tema o analfabetismo. Ou, mais precisamente,
toma o analfabetismo como uma relação de expropriação simbólico-
material cujo primeiro corte é a um só tempo na despossessão dos
meios de subsistência e na linguagem mesma. A fome e a fala estão
imantadas: problema estético-político. Contudo, para armar esse
problema, o documentário se constitui da elaboração de três níveis
discursivos, que poderíamos esquematicamente dividir em:
indivíduos representados, em sua maioria trabalhadores, os
“verdadeiros brasileiros”, como o filme os chama; os espectadores, a
quem o filme se endereça e alvo direto das críticas elaboradas; e o
realizador, aquele que detém o saber não apenas sobre si mesmo, algo
que os trabalhadores e os espectadores desconhecem,
simultaneamente, como também sobre todas as demais relações que
concernem aos outros polos implicados e envolvidos no tecido
discursivo do filme.
Numa das sequências finais de Maioria Absoluta, a voz off do
narrador, o poeta Ferreira Gullar, nos informa: “dos 40 milhões de
analfabetos, 25 milhões, maiores de 18 anos, estão proibidos de votar.
No entanto, eles produzem o teu açúcar, o teu café, o teu almoço
diário. Eles dão ao país a sua vida e os seus filhos. E o país o que lhes
dá?”. A voz cerimoniosa de Gullar está sobreposta à uma sequência de
imagens de Brasília. Sua pergunta se dirige a nós de maneira
implacável: o que os damos, já que somos aqueles que constituem
também o país, a quem o filme se endereça? Pela exposição de dados e

156
do que pode lançar mundos no mundo. da representação à pedagogia da montagem

depoimentos dos “reais” afetados pela política, os miseráveis, o filme


vai construindo aos poucos sua argumentação e nos interpela à ação.
Como escrever Bernardet: “ele nos incita a uma ação que transforme
essa situação que agora, espectadores do filme, não teremos mais
desculpas para ignorar (...) O filme pretende ter uma ação
transformadora sobre nós: ele nos informou, espera de nós a ação
consequente” (1985, p. 34). Como é possível seguir vivendo agora que
estamos diante disso que o filme nos entrega como verdade sem nos
mobilizarmos para a transformação? O filme nos dá uma verdade
incontestável: estamos diante do mundo e do outro, no calor do
sofrimento, de suas mazelas, como furtar o olhar, como renunciar ao
compromisso com esse outro aviltado, marginalizado, esquecido? É
neste mesmo instante que o cinema apaga o outro enquanto sujeito e o
converte na vítima de um sistema imutável. Mais grave ainda é que o
cinema, tal como o poder que critica, elimina qualquer potência
subjetiva associada aos modos de vida desse outro que, certamente
sofre, não há dúvida, mas também inventa maneiras singulares de
viver junto, de lidar com a palavra, os saberes sobre a terra e os seres,
o dinheiro, a engenharia civil, o arado, os bancos, os meios de
comunicação, a arte, etc. Assim, não seria forçoso pensar que há aqui
uma isonomia com o funcionamento da educação bancária: o que faz
Maioria Absoluta é reproduzir as condições que mantêm os lugares
estabelecidos entre os agentes que compõem a cena da educação,
despossuindo-os das possibilidades de pensar com as imagens e sons,
devolvendo-nos uma montagem que tudo sabe, sem restar nada a
fazer ao espectador e tomando o outro filmado como um objeto da
representação. Lugar privilegiado do mestre e do cineasta.
Assim temos um quadro do saber moralizante definido entre os
culpados – nós, espectadores, condescendentes com a desigualdade,
logo, cúmplices do estado de coisas revelado pelo filme; e as vítimas, o
outro incapacitado de agir, de pensar e, aqui, incapaz de ler e por
vezes, falar: “os analfabetos não tomam a palavra, ela lhes é outorgada
e mesmo assim não têm condição de falar, o que legitima que o
cineasta tome a palavra, ou melhor, fiquei com a palavra, o que
legitima que se fale no lugar deles que não falam” (BERNARDET,
1985, p. 37). Mas, contamos com a “generosidade” do cinema e do
cineasta, que compreende bem esse amplo universo de contradições,
numa distância confortável e segura, “científica”, que dá ao outro a
voz e a nós, nos interpela à ação. É assim que o cinema do saber
moralizante atua com um programa muito semelhante ao da educação
bancária: [educador] [cineasta] como os emissários das justas formas
de vida e do pensamento para os [educandos] [espectadores]. É o
cinema das histórias edificantes, do despertar da consciência, da
vontade de mudança, de natureza redentora, das imagens embaladas à
vácuo.

157
isaac pipano

emancipação e criação

Temos sido bastante céticos em relação ao poder da arte ao


convocar os espectadores a agirem de tal ou tal maneira, como nos
demanda Maioria Absoluta. Duvidamos de certas formas de militância
por uma desconfiança entre as intenções das obras e a linha de
causalidade que nos leva a seus efeitos: nenhuma revolução se deu na
saída de uma sessão de cinema por causa de um filme, embora as
sessões de cinema tenham provocado inúmeros motins, revoluções,
invenções e intervenções imprevisíveis no mundo, aquém ou além das
palavras de ordem e daquilo que nos impõem as imagens. Parece-nos,
assim, que se queremos encarar o desafio de pensar o campo
coexistente entre as imagens e a educação, precisamos nos perguntar a
cada momento qual o lugar desejado para nós, espectadores, por cada
obra em jogo.
Para isso, portanto, é importante considerarmos que,
diferentemente de Paulo Freire, que atrela a ideia de espectador à
passividade e improdutividade82, nós depositamos nela uma enorme
força como campo de criação. É assim que adentramos naquilo que
talvez mais nos diferencie, na companhia das imagens, das formas de
mediatização do mundo desejadas por Freire. Enquanto o autor confia
sobretudo na palavra verdadeira, aquela que pode mudar o mundo,
temos declarado nosso amor à gagueira que faz com que a palavra
renuncie ao seu destino estruturado pela língua, na perda dos sentidos
que tombam a ordem. Estamos mais próximos do cinema que nos faz
perder as estribeiras do que dos filmes que supostamente podem nos
emancipar. Enquanto no primeiro movimento há uma radical aposta
na consciência como transformadora da realidade; para o segundo,
numa linha que remonta à filosofia de Gilles Deleuze e Félix Guattari,
há a explosão do inconsciente como uma máquina que opera na
conexão entre enunciados, palavras, corpos, imagens, mundos. Se
estamos de acordo que o cinema é um aliado nas estratégias de luta e
resistência, não o tomamos a partir de um embate entre os modos de
sujeição na fissura de uma dialética dos dominantes e dominados. E é
justo nesse sentido que não poderíamos apenas ver no cinema a forma
do esclarecimento no quadro de uma pulsão dialética, uma vez que a
dinâmica relacional do poder opera na irradiação em rede, em seus
microagenciamentos. Dentro do quadro da tensão entre as relações
dicotômicas de dominação, novamente é demandada uma arte crítica

82 A interpretação do lugar do espectador associada à ideia de inércia aparece no

Pedagogia do Oprimido em diferentes trechos: “não significa que se tornem


espectadores, que cruzem os braços”; “entre serem espectadores ou atores”;
“espectadores indiferentes”; “Homens espectadores e não recriadores de mundo”.

158
do que pode lançar mundos no mundo. da representação à pedagogia da montagem

capaz de desvelar essa estrutura, explicitando-nos a verdade sob as


quais estamos determinados, como é o caso de Maioria Absoluta e algo
amplamente praticado pelo cinema aqui e lá.
Se estamos de acordo com Jacques Rancière em relação à
desconfiança que temos dos mestres explicadores, precisamos também
agir repulsivamente contra todo o cinema que parece não apenas saber
o que dizer, mas sobretudo aquele que dirá o que deve ser realizado
em sua forma de saber. Apesar de Freire desconfiar dos mestres
bancários, ele segue crendo na necessidade de um desnudamento das
estratégias de dominação como um primeiro movimento de sua
dialética que culminará com a posterior transformação de si e do
mundo. “O diálogo é uma exigência existencial”, ele escreve, exigência
que “não pode reduzir-se a um ato de depositar ideias de um sujeito
no outro [...] Porque é um encontro de homens que pronunciam o
mundo, não deve ser doação do pronunciar de uns a outros. É um ato
de criação” (FREIRE, 1985, p. 44). Entretanto, a criação aqui passa por
um endereçamento certo, ela deriva de uma consciência pré-existente
a um mundo de igualdade desejada. Em Deleuze, no entanto, a
criação, essa operação que se dá com o mundo, criação de uma
imagem, de um conceito, de um objeto, dá a ver o próprio mundo que
o concebe, no instante de sua criação. Não seria, portanto, exagerado
pensarmos que o programa ético-político de Paulo Freire se baseia no
paradigma da representação, mesmo quando está por reivindicar uma
atitude criadora. Isso porque o mundo porvir já está potencialmente
contido no movimento dialético que levará à supressão e substituição
de seu negativo. Embora Deleuze não tenha efetivamente produzido
um pensamento extensivo e intensivo sobre a educação, podemos
dizer que em seus textos a criação fará ruir o modelo representativo,
numa atitude radical na qual a criação instaura sua forma sobre o
mundo que há, sem no entanto pré-configurar quais outros mundos
estão porvir.
Se quisermos insistir em nossas diferenças preliminares, as
leituras de Marie-José Mondzain (cf. 2011, 2015) nos ajudam a pensar a
partir de como ela tem descrito o colonialismo não apenas como uma
exploração dos corpos e uma espoliação dos direitos, mas o
apagamento metódico e sistemático de toda energia do imaginário, a
mutilação violenta dos meios de fazer a criação de uma comunidade
pulsar, privando-a das formas de sua própria invenção política. Nesse
sentido, não haverá um movimento que antecede o outro, onde num
primeiro instante é preciso negar a vida como é agora para então
desenharmos um outro mundo possível amanhã. O mundo por vir
deleuziano se inscreve sobre este mesmo mundo, rachando as
coordenadas que o desenham não pela exposição de sua
irracionalidade colonial, mas pela afirmação de outras políticas de
desejo, pelo ganho em vida.

159
isaac pipano

pedagogia da montagem

“Eu não voltarei mais à escola”, diz um garoto franzino, de


óculos, enquanto a câmera faz um travelling mostrando sua mãe
descascar as batatas para o almoço. Sem muito assombro, ela
pergunta: “- Por quê?”. “- Porque na escola nos ensinam o que eu não
sei”, ele contesta. A câmera finaliza seu movimento até o extremo
oposto do quadro por onde vemos o pai que, sem deixar de ler o
jornal, manifesta um inócuo: “- Ora essa!”. O garoto é Ernesto,
personagem retirado do romance de Marguerite Duras Ah Ernesto! por
Daniele Huillet e Jean-Marie Straub para a realização do curta-
metragem En rachâchant83 (1982).
Na sequência seguinte Ernesto é levado pelos pais para uma
conversa com o professor, que diz não o reconhecer entre os outros
estudantes. O velho mestre inquieta-se com o menino que insiste em
não ser instrumentalizado pela escola ao dizer querer aprender senão
o que já sabe. Tem início assim um confronto intelectual entre o garoto
e o professor, que o questiona sobre o que Ernesto efetivamente
conhece: “- E este aqui? Quem é?”, aponta o professor para o retrato
do presidente sobre o quadro negro. “- Um homem”, fala sem
entusiasmo Ernesto. “- E aquilo?”, diz a mãe entendendo a motivação
do professor, enquanto vemos uma borboleta taxidermizada e a
imagem da família à esquerda refletida pelo vidro que a cobre: “- Um
crime”, rebate Ernesto, relacionando o objeto ao gesto que o produziu.
“– E isto, é uma bola de futebol? Uma batata?”, segurando um globo
terrestre em miniatura. Ernesto, categórico, finaliza: “É uma bola de
futebol, uma batata e a Terra”.
Após ver seus argumentos serem desmanchados pelo garoto, o
velho mestre aposta numa última pergunta retórica: “- Então, como o
menino Ernesto aprenderá a escrever, a contar?”. “- Eu hei de saber”,
diz Ernesto após meter na boca uma goma de mascar, para o horror da
moralidade. “- Como?”. “- I-ne-vi-ta-ble-ment”, responde Ernesto como
se estivesse num jogo de palavras com seus colegas de classe. Ernesto
deixa a sala e os adultos consternados pela situação. O pai, que
permanece em silêncio quase todo o filme, murmura: “- Como Ernesto
vai viver em meio aos outros? Como irá aprender a trabalhar,
trabalhar?”. Mas eles sabem, Ernesto irá: inevitavelmente.

83 En rachâchant, neologismo criado pelo pequeno protagonista, palavra de difícil


tradução, congrega em si o radical de recherche, que em francês conserva a ideia de
busca, pesquisa, procura. Etimologicamente próximo do inglês research, mas
transformado pelo pronome “en”, a expressão cria uma desinência no gerúndio
denotando movimento num sentido acontecimental. Um verbo que estabelece uma
dimensão performativa, se quisermos.

160
do que pode lançar mundos no mundo. da representação à pedagogia da montagem

“Existe apenas um assunto-matéria na educação e trata-se da


VIDA em todas as suas manifestações84” (WHITEHEAD, 1967, p. 6
tradução nossa), esta citação retirada do livro The aims of education, do
britânico Alfred Whitehead, nos coloca diretamente em relação ao
método de Ernesto. Alguns elementos cruciais são compartilhados
pelo jovem-pequeno-mestre-Ernesto e o filosófo-adulto-crianção-
Alfred que conectam as imagens, a educação e uma perspectiva ético-
política. De acordo com Whitehead, a educação é baseada em
princípios relacionais, de modo que a produção do conhecimento e os
processos de aprendizagem são definidos pela capacidade de inventar
combinações frescas. Em seu turno, Ernesto nos dá a ver o modo como as
crianças podem ser imprevisíveis em suas formulações originais: ao
responder à emblemática questão filosófica introduzida por seu
professor – “Qu’est-ce que c’est?” – “O que é isso?” - o pequeno garoto
declara: “Ça depend!”. Depende. Uma bola de futebol, uma batata, a
Terra - depende.
O método de Ernesto está mais próximo da conjunção e do que
do verbo ser, como afirmam Deleuze e Guattari (cf. 1989). Aqui,
humanos, não-humanos e coisas são entendidas não como objetos
isolados, estruturados por funções ontológicas, mas pelas conexões e
posições que traçam. Isso equivale a dizer que cada objeto se situa
como um “nó” numa coextensiva rede afetiva entre outros seres,
corpos, artefatos, máquinas, símbolos, sintaxes. Tem mais a ver com a
sua circulação entre outros elementos heterogêneos, modulados por
regimes discursivos, com singulares dimensões e existências materiais.
Eles são nós conectivos entre múltiplos nós convergentes e divergentes
– uma bola de futebol E uma batata E a Terra. Sendo ao invés de eu sou.
Sendo ao invés de isto é.
Seguindo os passos de Alfred e Ernesto, nós temos considerado a
pedagogia das imagens como um método de montagem. Montagem aqui
como algo além da dimensão técnica compreendida pelos gestos de
cortar e colar fragmentos, moldá-los em séries e arranjos
(des)ordenados. A montagem entendida como uma potência do
cinema pensar o mundo em seus próprios termos. Isso significa que o
cinema não é uma mídia, um meio, que coleta e espalha informação,
mas uma máquina afetiva contrapondo o destino a ele atribuído
enquanto um mestre explicador. As imagens, por sua vez, não são caixas
cheias de verdades, significados e conteúdos, elas não estão
representando o mundo: as imagens criam o mundo com o mundo. Na
filosofia de Spinoza, o afeto é considerado como a capacidade de afetar
e ser afetado. Poderíamos dizer, também, que as imagens têm então a

84“There is only one subject-matter for education, and that is LIFE in all its
manifestations”.

161
isaac pipano

capacidade de afetar o mundo e serem por ele igualmente afetadas. “É


o que pode lançar mundos no mundo”, parafraseando a música
“Livros”, de Caetano Veloso. No entanto, se os livros são “objetos
transcendentes”, como Caetano canta no início de sua canção, as
imagens não possuem uma dimensão transcendental: elas estão num
campo de imanência estendido entre os outros campos onde a vida
floresce e morre. Nessa pedagogia da montagem, a noção de
homogeneidade espacial e temporal é desfeita em uma produção de
sentidos e de conhecimentos que se faz por descontinuidades, elipses,
digressões – não por séries concatenadas. Relações de tensão entre
elementos de diferentes naturezas no interior da materialidade do
filme, por uma desfuncionalização do espaço e do tempo da ordem
narrativa (MIGLIORIN; BARROSO, 2016).
Esta pedagogia da montagem considera a câmera como um
apparatus, nos termos de Gilbert Simondon (cf. 2014). Para o autor, as
máquinas estão muito mais para amigas do que escravas, elas não são
meios, tampouco os fins, de algo: são como colegas de classe, de
quarto, de fábrica, habitam o mundo como nós. É algo semelhante o
que sugere Fernand Deligny (cf. 2017) a partir de seu cinema
compartilhado com as crianças autistas da França, onde a linguagem
falada comum desaba, dando a ver sujeitos que produzem outras
formas de subjetividades não definidas pela palavra e pela
comunicação como a concebemos de maneira racional e racial.
Distinguindo os verbos “fazer” e “agir”, Deligny critica o vocabulário
cinematográfico francês que enfatiza o gesto de filmar em sua forma
verbal. Para ele, o fato de pronunciarmos “filmar” revela o
endereçamento ao objeto fílmico, como um processo-fim. Esta é a
razão pela qual Deligny concebe o neologismo “camerar”, cujo sentido
está muito mais relacionado à ação, ao gesto, de filmar do que
propriamente fazer um filme. Endereçar-se menos ao fazer como o
produto final, num mundo que não reconhece o balanço da pedra e o
ruído da água como menos relevantes do que a língua com que falam
os homens em seus gabinetes, leis, receitas e enciclopédias85. Tanto em
Deligny como em Simondon, as máquinas atuam acoplando-se às
nossas formas de experienciar o mundo, num regime que tende mais
ao mutualismo do que à industrialização, mais ao acontecimento do
que às estruturas.

85 “Estamos às portas do cinema de Deligny. Pois o cinema poderia dar suporte a tudo
isso se ele não estivesse completamente submetido à linguagem, à narratividade, à
obrigação de contar uma história, de ter um sentido, de emitir um julgamento moral,
de ter um alcance edificante ou pedagógico. Se o cinema não visasse o filme, ele
poderia atingir as imagens – mas, para isso, seria preciso que ele deixasse de “fazer
obra”, de querer um produto” (PAL PÉLBART, 2017, p. 253).

162
do que pode lançar mundos no mundo. da representação à pedagogia da montagem

Finalmente, gostaríamos de pensar sobre o que acontece quando


a linguagem, os mecanismos industriais do cinema e os sistemas de
representação tem uma potência de desmantelamento, quando o
cinema é aberto às formas de vida da comunidade e se furta ao seu
destino de contar histórias. Quando o cinema começar a camerar
mundos.

mafuá

No filme-carta Boa Água86, realizado por um grupo de estudantes


em Conde, na Paraíba, assistimos a um garoto tomar banho, a céu
aberto. Na profundidade de campo vemos o pedaço de uma instalação
que, pela sua característica arquitetura, nos faz crer ser uma escola. O
garoto toma banho de roupa, sob uma luz solar forte do final do dia
que entra pelo lado superior esquerdo do quadro superexpondo a
imagem, como um raio de luz dura. A câmera trepida com frequência,
revelando na sua instabilidade o corpo daquela ou daquele que a
segura – suspeitamos ser uma criança que deste lado filma o colega se
divertindo sob a água fresca nesse dia de sol quente paraibano. Na
banda sonora uma trilha instrumental dá o tom da cena, somada à
dimensão plástica do plano e a performance do garoto. A sequência
dura quase um minuto e é interrompida subitamente por um corte que
mantém a persistência do sol, revelando uma surpreendente
continuidade espaço-temporal, e um grupo de crianças cujos corpos
estão silhuetados, passagem súbita mas que mantém uma conexão
imediata entre os dois territórios. Na banda sonora, a voz rouca de
uma menina introduz aquilo que parece ser uma carta: “Boa Água, 02
de junho de 2014. Querida pintada, tudo bem? Estou morrendo de
saudade do seu leite... hum... leitinho bom...”. Enquanto a menina
conversa com a vaca, vemos planos fragmentados de uma vacaria por
onde diversas vacas circulam. A menina reclama que desde que
Pintada partiu as crianças foram obrigadas a tomar leite de caixinha

86 Filme-carta realizado na Escola Abelardo Alves de Azevedo em Conde/PB pelos


estudantes Ana Cláudia, Ana Letícia, Cristiane, Eduardo, Erick, Gabriel, Geovana,
Lindionara, Maicon, Maria Mariana, Maria Vitória, Mariana Nascimento, Mikael,
Pedro Rian, Rafael Severino, Thaliusis, Vitória, acompanhados pela professora
Silvania Santos e a mediadora Ana Bárbara Ramos, durante a primeira edição do
projeto Inventar com a Diferença. Parceria entre a Universidade Federal Fluminense
(UFF) e a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR), o
projeto baseou-se na criação de metodologias para formação e práticas audiovisuais
com educadores e estudantes em públicas de todo o país. O filme está disponível em
vimeo.com/128319510.

163
isaac pipano

“com gosto de água”. A narração continua enquanto mais imagens da


vacaria recobrem o quadro.
Camera, vacas, leite, fabulação, agências não-humanas e
humanas, assim como a escola, a vida no campo e os prementes
processos de industrialização estão implicados numa coexistência
entre o que o cinema pode produzir e uma nova distribuição sensível
produzida pelo filme. Poderíamos dizer que o filme articula uma
espécie de deslocamento transsubjetivo: embora parta da
singularidade da estudante, as imagens envolvem toda a comunidade
e uma série de elementos que não se fixam numa individualidade – do
menino que se banha às crianças que passeiam pela vacaria. Ainda
mais, o próprio trabalho dos professores e dos mediadores, que
operaram também na montagem, no compartilhamento de referências,
no acompanhamento da visita à vacaria, na permissão para que um
dos estudantes pudesse se banhar com a água que vaza por uma caixa
d’água. Tudo isso entra em jogo na produção das imagens,
indissociando o que pertence a um e aos outros, num trabalho onde o
processo não contém já os elementos que levarão ao produto, mas
sendo aquilo que cria as condições de possibilidade para que algo
apareça – ou não. Neste sentido, há sempre a possibilidade de que um
filme não aconteça, entretanto a potência do fracasso não dissolve a
intensidade do encontro e as múltiplas entradas intensificadas pela
presença do cinema na cena escolar.
Boa Água nos dá a ver aquilo que em outro momento chamamos
de uma espécie de intensidade conectiva (MIGLIORIN; PIPANO, 2016)
através de sua montagem: a articulação entre pedaços de
conhecimento e experiências vividas, imantados na carta da criança e
em seu discurso que dá movimento ao todo que a circunda, num
processo de radical alteridade, onde mesmo vacas podem ser
destinatários, numa horizontalidade que tende à igualdade dos
participantes do mundo inventado com o cinema – e, ainda que a vaca
não responda nos moldes da linguagem humana, a carta destaca uma
força subjetiva própria à infância que não distingue entre os seres
falantes, virtuais, imaginários, bonecos ou bichos. Aqui, a vida não
está definida pela funcionalidade que o ser tem para o mundo humano
– dar leite e alimentar -, mas por uma série de agenciamentos que vão
desde a dimensão afetiva, onde é possível sentir saudades da vaca de
alguém da família, aos processos de industrialização do campo que
dissociam os objetos consumidos de sua origem – é quando a vaca
transforma-se em caixinha da Tetra Pak. Contudo, o filme é muito
hábil em transitar entre tais universos sem contudo nos colocar,
enquanto espectadores, numa situação de ignorãncia em relação ao
saber que produz. As imagens não nos entregam tudo, precisamos
trabalhar com elas, entrarmos na montagem e produzir nós mesmos
nossas combinações. Sua força reside nessa potência conectiva que é

164
do que pode lançar mundos no mundo. da representação à pedagogia da montagem

interdependente dos espectadores, de um algo a fazer com as imagens.


É assim que o filme não se encerra em seu saber: ele é uma veia aberta
por onde entramos e saímos. Trabalhamos com ele sem que isso
signifique que as imagens nos chegam como conteúdos.
Isso é possível porque em Boa Água há uma relação poética que
reporta às formas de olhar com a câmera, presentes na materialidade
fílmica, e que carrega os processos pedagógicos que levam à sua
feitura. Como escreve Russel West-Pavlov sobre o poeta caribenho
Derek Walcoot, o poema comporta em si sua própria temporalidade:
“ele não é um poema ‘sobre’ uma paisagem que, em seguida, pode ser
ensinado numa sala de aula. Pelo contrário, é um poema que surge de
uma paisagem e é intrinsicamente um processo dinâmico de
interconexão contínua, tanto espacial como, inevitavelmente,
temporal”. O poema, finaliza West-Pavlov, não informa, “instancia os
processos dos quais ele emerge”. De maneira análoga, poderíamos
dizer que tais imagens instanciam o processo em sua forma dando a
ver a experiência do tempo da educação onde o conhecimento está
afetado pela dimensão sensível do cinema, resultando num ato de
criação que engaja novas formas de experiência entre a natureza, o
mundo sensível, os objetos técnicos e os processos de aprendizagem
de forma indistinta, ou melhor, sem estabelecer com isso movimentos
de verticalização e estabilização – entre os seres (sujeito que filma,
sujeito filmado e o espetador), tampouco entre os elementos que
compõem a montagem.
Poderíamos dizer que Boa Água atualiza um mafuá, conforme
Cezar Migliorin argumenta em seu conceito retirado do poema
“Mafuá do Malungo”, de Manuel Bandeira: “o pensamento é o que
acontece na passagem entre formas; quando um conhecimento se
produz. O mafuá, na bagunça em que os atores sabem se movimentar,
é a forma e o desforme (...) O acoplamento necessário para o mundo
andar e a complexidade hiperconectiva para o mundo diferir”
(MIGLIORIN, 2015, p. 197). Um mafuá surge na desordem, jamais
como um modelo, e impõe uma frágil estabilização momentânea, não-
linear e não-vertical, a partir de procedimentos não-domesticados e em
permanentes processos de desnaturalização. Cada objeto, cada sujeito,
tem uma entrada singular no mafuá e faz alterar o todo, de forma
contínua. “O mafuá é assim menos um espaço do que um corpo de
processos e materialidades que absorve uma multiplicidade de objetos
e saberes em um universo metastável, para usarmos a noção de
Simondon. Ou seja, na horizontalidade das relações, o mafuá é um
operador de montagem” (ibidem, p. 196).
O mafuá atualiza uma forma pedagógica que nos leva em direção
à experiência dos tempos pós-coloniais: “Como uma era, o período
pós-colonial possui durées múltiplas compostas de descontinuidades,
reviravoltas, inércias e movimentos que se sobrepõem uns aos outros,

165
isaac pipano

interpenetram uns nos outros, recobrem uns aos outros: um


enredamento” (MBEMBE, 2001, p. 14 tradução nossa)87 como escreve o
filósofo camaronês Achille Mbembe. Uma temporalidade composta
por uma coleção de eventos que se atualizam no presente dos tempos
e povos pós-coloniais e que não resulta em caos ou anarquia. Os
tempos enredados não são o avesso da modernidade, tampouco
partilham a perspectiva de que o Sul Global viveu um processo
inconcluso e inacabado do projeto da racionalidade europeia, mas que
esses povos sempre se fundaram sobre múltiplas temporalidades entre
a língua, a magia, a religião, a cultura, a política. Tempo enredado,
tempo de montagem. Linhas destituídas de linearidade cronológica ou
evolutiva, linhas que não fundam a direção da vida e do cronos, mas
que atualizam experiências entre enredamentos, nos quais a
modernidade racional eurocêntrica não mais determina as formas de
ser e estar junto como univocidade, mas nem por isso deixa de manter
sua pesada influência, de arrastar-nos a todo tempo para o solo da
representação. É assim que o mafuá pode, senão dissolver os
imperativos da longué durée moderna, criar outros acoplamentos,
produzir novas montagens, combinações frescas, que perturbam a
ordem do que está posto e nos levam em direção às formas de criação
sobre o tempo duro da vida, aberto aos devires.
Se o cinema parece nos dar a ver algo de urgente agora, é porque
sua forma pedagógica, seus mafuás, tem a singularidade de fazer
montagens com esses blocos de espaço-tempo que são as imagens.
Montagens entre múltiplas forças de naturezas e intensidades
diversas, nas quais a diferença pode emergir entre temporalidades que
estão enredadas, revelando modos de existência que não apenas
contrapõem a representação, mas que fazem seus modelos
desmanchar, que racham por dentro o solo que os fundam.
Parece ser essa a lição que a criança Ernesto nos ensina, deslizar
por entre as coisas e seres, e assim conhecer: e, e, e, e, e, e, e, e, e, e, e, e, e,
e, e, e, e, e, e, e, e, e, e, e, e, e, e, e, e, e, e, e, e, e, e, e, e, e, e…

referências

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Brasiliense, 1985.
DELIGNY, Fernand. Œuvres. Paris: Editions l’Arachnée, 2007.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mille plateaux. Paris: Editions de Minuit,
1989.

87“As an age, the postcolony encloses multiple durées made up of discontinuities,


reversals, inertias, and swings that overlay one another, interpenetrate one another,
and envelope one another: an entanglement”.

166
do que pode lançar mundos no mundo. da representação à pedagogia da montagem

FREIRE, Paulo. Pedagogy of the Oppressed. Trad. Myra Bergman Ramos.


Harmondsworth: Penguin, 1972.
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WHITEHEAD, Alfred. The aims of education. New York: Simon and Schuster,
1967.

167
168
vigilar y castigar (los cuerpos): la enseñanza de la filosofía
frente al sistema de opresión sexo/genéro.

luciana carrera aizpitarte


universidad nacional de la plata, unlp
lucianacarrera@gmail.com

introducción
We´re all born naked, and the rest is drag

RuPaul Charles

El trabajo que presentamos a continuación surge a partir de una


serie de reflexiones que me asaltaron cuando el 16 de septiembre de
2016 fue asesinada por su pareja una estudiante de 16 años, Lucía Ríos
Müller, que era alumna del Liceo Víctor Mercante, de la Universidad
donde trabajo, la UNLP. Menos de un año después otra alumna de
esta casa, Ema Córdova, estudiante de medicina de 26 años fue víctima
de otro ataque femicida. Hace pocos días me desperté con la noticia
del asesinato de Marielle Franco, activista, lesbiana, feminista, negra,
favelera, según las informaciones. El primer hecho disparó, así lo sentí,
una serie de preguntas, o más bien una interpelación hacia nuestro
campo disciplinar: ¿qué puede aportar la filosofía a la reflexión sobre
la violencia extrema, sobre el disciplinamiento extremo, que se ejerce
hoy en nuestro país, en nuestro continente, sobre los cuerpos de las
mujeres y otras identidades disidentes, como lesbianas, gays,
maricas,88 travestis, trans y personas no binarias? ¿puede hacerse algo,
desde la filosofía, para la prevención y erradicación de este fenómeno,
que tiene como fin relegar a los cuerpos feminizados y a los cuerpos
disidentes al ámbito de lo privado o, directamente, al de la no
existencia?89 ¿Podemos seguir ignorando este acontecimiento de
alcance histórico y global que modifica y da forma a la experiencia
vital de la mitad de la población del planeta y por lo tanto, afecta a
todo el tejido social? ¿Podemos seguir pensando, practicando y
enseñando una filosofía que no incluya la consideración de la
dominación patriarcal y de su violencia, cuando las consecuencias

88En Argentina, marica es una identidad política adoptada por parte de personas gays,
que rechazan enfáticamente ser asignados a la categoría de varón.
89 Una breve consulta a las estadísticas de cualquier país del continente sobre

femicidios, travesticidios y crímenes de odio hacia el colectivo LGTTTBIQP, dan


cuenta de la ferocidad de este intento de disciplinamiento.

169
luciana carrera aizpitarte

prácticas de esa dominación golpean a la puerta de nuestra propia


institución?
En Argentina, en el marco del Programa Nacional de Educación
Sexual Integral (Ley 26.150) de 2006, se crea un espacio que nos obliga,
como docentes, a incorporar esta temática a la enseñanza, al menos
desde nuestra inserción en los niveles medio, primario e inicial. Me
interesa pensar aquí modos de abordar esta problemática desde un
punto de partida que nos permita, por un lado, hacer visible el lugar
en que se funda, en que tiene origen la violencia, y por otro, pensar de
qué manera podemos traducir estos análisis tanto a la práctica
filosófica académica, esto es, a la formación docente universitaria,
como a un ejercicio filosófico de la enseñanza, en cualquier nivel
educativo.
Si bien hay campos de la filosofía que abordan “el género”,
quisiera elaborar en estas breves líneas una argumentación acerca de
la necesidad de poner este tema en la agenda del campo de la
enseñanza, porque creo que no es suficiente con investigar esta
problemática, sino que nuestras prácticas educativas, los espacios
donde formamos a otras personas y a nosotras mismas, deben estar
atravesados por un tratamiento, visibilización, reflexión y trabajo
explícito sobre la cuestión. Esto implica, específicamente, orientar
nuestra práctica o parte de ella al develamiento y crítica de los
supuestos patriarcales que atraviesan tanto a nuestra sociedad, a
nuestro estar en el mundo y a nuestra constitución como sujetos, como
a nuestra disciplina. Por ejemplo, podemos preguntarnos quién es el
sujeto del que habla la filosofía y cuya superación ha requerido tantos
esfuerzos analíticos: ¿es un sujeto universal o más bien recoge las
experiencias, los problemas y los interrogantes de un individuo
hegemónico (blanco, varón, heterosexual, con una posición socio-
económica y una libertad política privilegiadas)?. Aristóteles afirma
“todos los hombres por naturaleza desean conocer”, ¿recoge esta tesis
la experiencia de la mujer ateniense, relegada al ámbito de lo privado
y a la reproducción forzada? Podemos preguntarnos también,
entonces, por la universalidad de la experiencia, otro concepto clave
de la disciplina y que esconde sesgos andro- y etnocéntricos; podemos
preguntarnos, por último, por los silencios y las ausencias, los olvidos
y las omisiones que, en la generalización propia de la filosofía,
aplastan e invisibilizan otros modos de existencia, legitimando o
naturalizando, de esta manera, sistemas políticos de opresión y
disciplinamiento de los cuerpos.
Al análisis de estos supuestos me aboco a continuación.

170
vigilar y castigar (los cuerpos): la enseñanza de la filosofía frente al sistema...

¿un mundo binario? nenas, nenes y trans, en la clase de filosofía con


niños y niñas

En la clase de 3º grado de Filosofía con niñas y niños, de la


Escuela Anexa (La Plata, Argentina), planteé hace algún tiempo la
pregunta por la diferencia entre nenes y nenas. Me interesaba saber
qué piensan personas de tan corta edad sobre la diferenciación que la
sociedad intenta asignarles en cuanto a deportes, colores, gustos,
ornamentos, posibilidades, etc. La respuesta inmediata fue: no hay
diferencia, todo es igual para todos, no hay deportes de nenas, ni
colores de nenes, ni juguetes de nenas. Esta respuesta me sorprendió,
porque me parecía obvio que todas las mochilas rosas con flores,
unicornios, patines y brillantina pertenecían a mis alumnas y todas las
mochilas azules o negras con dibujos de autos y superhéroes
pertenecían a mis alumnos y que nadie podía ignorar ese hecho
visible. Seguí preguntando y me encontré todas las veces con esa
respuesta “correcta”, con la respuesta que se cree que debe ser
enunciada “no hay diferencia, somos todos iguales”. Entonces propuse
la actividad de pensar un mundo donde sólo existieran mujeres y otro
donde sólo existieran varones. Tenían que pensar cómo serían esos
mundos y escribir cómo sería la vida en esos mundos, qué deportes se
practicarían en cada uno, cuáles serían los trabajos principales, cómo
sería la escuela, qué juguetes habría y todo lo que quisieran agregar. El
resultado de la actividad expuso, a mi entender, la distancia entre lo
que se debe creer y sostener, y los supuestos invisibles y, por lo tanto,
incuestionados, naturalizados, que dirigen nuestras prácticas e incluso
nuestros deseos cotidianos.
Según Bruno, la vida sería aburrida para los varones porque no
podrían tener novia, los juegos serían la play station, y los deportes,
fútbol, rugby, lucha libre y boxeo. La música sería “rock duro”. En un
mundo de mujeres jugarían con muñecas, practicarían vóley y hockey
y escucharían cumbia y música “más tranquila”. Luca agrega que las
chicas practicarían fútbol femenino, además de vóley, mientras que los
varones también harían tae-kwon-do. La escuela sería algo malo,
porque sólo habría profes, que “son más malos”, mientras que “las
seños son más buenas”. Las comidas, interviene Lucía, serían pollo,
cordero, asado, chancho y en general, carne, en un mundo de varones,
porque éstos son más fuertes y pesados, y cazan, mientras que las
mujeres comerían cosas más livianas y “sanitas”, además de que a
ellas no les gusta cazar. Sus comidas serían ensaladas y pastas. En el
mundo masculino las personas tomarían vino, cerveza, champan y
whisky, en el femenino, cerveza, coca cola, sprite, agua y jugo. Joaquín
aporta que en este último, los juegos serían barbies y princesas. En la
escuela de chicos las materias serían matemáticas, educación física,
carpintería y maquetas. En la escuela de chicas las materias serían

171
luciana carrera aizpitarte

matemática, computación, lengua, plástica y tejer. Los varones


comerían asado, chorizo, morcilla y lechón, las mujeres ensalada, arroz
y fideos. Agustina agrega que las mujeres tendrían gatos como
mascotas y los varones perros y peces. En la escuela de chicas además
habría ciencias naturales y lengua, en la de varones matemática y
computación. La vida en el mundo de mujeres sería una vida “en
soledad y sin hijos”. Faustina dice que los juegos en su mundo serían
cartas de Barbie, princesas y maquillarse. En cuanto a los trabajos,
Tomás cree que en un mundo de mujeres éstas serían secretarias y
maestras, mientras que los varones se dedicarían a levantar cajas e ir a
la facultad. Mateo agrega que los varones serían profesores de
deportes y trabajos relacionados con las computadoras. Helena piensa
que los trabajos de las mujeres serían veterinaria, profesora de patín y
maestra. Gregorio dice, en la clase siguiente, que los varones tendrían
por mascotas felinos y gorilas, y las mujeres animales de granja.
Ante mi pregunta respecto de por qué estas diferencias, si antes
me habían dicho que todo era igual, y que para todos todo, me
respondieron que la diferencia es porque las mujeres son más
tranquilas y los varones más fuertes y activos, que los juegos y los
deportes no tienen que ver con diferencias de capacidades sino con el
mero gusto.
Los supuestos que para mí se hicieron visibles son algunos de los
siguientes: a la edad de ocho años la mayoría de los alumnos y las
alumnas i) suponen a la mujer relacionada con la maternidad y con las
tareas de atención, cuidado y contención (maestra, veterinaria,
secretaria, asistente, criadora de animales de granja), ii) no creen que la
gestión del hogar y los hijos sea un trabajo, al menos nadie lo
mencionó como tal, iii) asocian lo femenino con actividades que
consideran pacíficas y estéticamente bellas, como el patín, la gimnasia
artística, la plástica; iv) imaginan a las mujeres en un mundo de
princesas y muñecas, comiendo productos que no implican a primera
vista violencia hacia los animales y tomando bebidas sin alcohol, v)
piensan a los varones, por otro lado, con un matiz más agresivo,
practicando deportes de contacto, comiendo sólo animales, teniendo
fieras como mascotas, inclinados por la caza, llevando a cabo tareas
dirigenciales y formales, vi) suponen la heterosexualidad como una
inclinación natural de los seres humanos (Zoe dijo que todos serían
gays en ambos mundos, en el sentido de que no les quedaría más
opción), y, por último, vii) suponen un sistema binario de género,
nadie se preguntó a qué mundo iría una persona travesti, trans, gay,
lesbiana, o marica.
En este punto entiendo que por su edad “de eso no se habla”,
pero precisamente creo que estos últimos son dos grandes supuestos
(la heterosexualidad y el binarismo) que es preciso analizar, junto con
la imagen de la mujer relacionada con la belleza, la suavidad, la

172
vigilar y castigar (los cuerpos): la enseñanza de la filosofía frente al sistema...

asistencia y el cuidado maternal, y la del varón asociado a la fuerza, la


agresividad, la acción y la gestión. Creo que todos estos supuestos por
igual hacen parte de la reproducción de la dominación patriarcal y de
la violencia que practica este sistema, que se imprime en nuestros
cuerpos, nuestros gestos, y nuestros modos de sentir, pensar y desear.
En efecto, ¿por qué se debería evitar hablar de la existencia de otros
géneros e identidades, con un niño o una niña de ocho años? ¿por qué
deberíamos ocultarles que existen otros acuerdos convivenciales y
relacionales, que la identidad asignada puede ser opresiva y por eso
mismo rechazada y recreada? ¿por qué les decimos que sólo hay
varones y mujeres cuando, según las estadísticas, un 1% de la
población mundial es intersexual? ¿qué sistema estamos legitimando
como norma y como normal cuando evitamos hablar de “eso otro”? En
ese “cuidado”, creo, estamos reproduciendo una idea opresiva, que es
la existencia natural y normal de dos sexos y dos géneros, junto con
una concepción de la relación entre ambos términos basada en un
instinto reproductivo, y la existencia de identidades de género
naturales y estrechamente vinculadas a la genitalidad. Es decir, les
ocultamos, deliberadamente o no, que el género es una construcción
montada sobre una cierta genitalidad que también es una
construcción, producida por la ciencia médica y reproducida por todas
las instituciones, y que esas construcciones son precisamente las que
asignan los roles que luego ellas y ellos deberán obligatoriamente
encarnar, los gustos que deberán tener, los juegos a los que deberán
jugar, o los pesares que deberán sufrir si no consiguen adaptarse a
esos mundos asignados al nacer, o incluso antes de nacer, cuando la
persona que realiza una ecografía, ante la sola detección de un tipo de
genitalidad, anuncia: es nene, es nena. ¿Qué esencia se plasma – me
pregunto – en ese momento fundacional sobre ese cuerpo que aún está
en gestación? ¿Qué fuerza inaudita tiene en ese momento el verbo ser,
cuando se enuncia: es nena? ¿Qué destino le espera a ese cuerpo una
vez que se ha decidido que es esto y no otra cosa? “Ser asesinada y
mutilada, ser torturada y maltratada física y mentalmente; ser violada,
ser golpeada y ser forzada a casarse, éste es el destino de las mujeres.
Y por supuesto, no se puede cambiar el destino”, afirma Monique
Wittig (2005: 23). Para Lucía Ríos Müller, para Ema Córdova, se
asignadas al género mujer marcó un destino como el señalado por
Wittig.
¿Qué dice de esto la filosofía? ¿Qué diría Sartre? ¿No hay
destino? ¿Somos libres en este punto? ¿Pensaría al género y al sexo
como esencias? ¿O diría que primero está la existencia y después cada
cual se construye una esencia, libremente, según sus elecciones o sus
omisiones, de las cuales es responsable? ¿Estaba de acuerdo con
Simone de Beauvoir en que no se nace mujer, se llega a serlo, en que
biología no es destino? ¿Se daba cuenta de que instituciones

173
luciana carrera aizpitarte

disciplinadoras, como la familia, la medicina, o la escuela, nos quitan


la oportunidad de ser artífices de nuestra propia “esencia”? Somos
arrojados al mundo, y en ese sentido estamos condenados, afirma
Sartre, pero condenados a ser libres, porque una vez arrojados, está en
nuestras manos crearnos una esencia. Somos arrojados a un mundo
regido por un sistema sexo/género binario, que nos ubica en uno u
otro lado del binomio varón/mujer, debería haber agregado el filósofo
francés, y luego, debería haberse preguntado si, efectivamente,
tenemos la libertad de crearnos una esencia. Los intentos
disciplinadores que he mencionado antes, parecen mostrar que esa
libertad es castigada con violencias de todo tipo.
Un tiempo después, en la misma escuela, agregué al tema “nenes
y nenas” la existencia de infancias trans. Gonzalo, un alumno de 12
años de otra escuela de la ciudad había anunciado a sus compañeros y
compañeras su transición y me pareció que era importante visibilizar
su existencia. A la semana siguiente la mamá de una alumna me pidió
una reunión pues su hija se había ido, según sus palabras,
“descompuesta de la clase”, a causa del tema de Gonzalo. En la
reunión me sugirió amablemente que, cuando hablara de identidades
trans con los niños y niñas, aclarara que el desvío, esas fueron sus
palabras, era producto de un trauma, y en ningún caso una elección,
como yo lo había planteado.
Creo que hay mucho para analizar en esta sola intervención: la
institución familiar como agente de la disciplina sobre los cuerpos, la
sensación de asco frente a aquello que no se ajusta a la norma, la idea
de normalidad que supone el uso de la palabra desvío (en efecto, ¿desvío
respecto de qué? ¿de una esencia humana, de una naturaleza
humana?), la patologización que supone la idea de trauma, como
hecho violento que nos saca del camino ¿normal? y nos lleva hacia el
temido “desvío”, la imposibilidad de pensar en el rechazo al género
y/o al sexo asignado como una acto de libertad sobre el propio
cuerpo, sobre la propia subjetividad.
Podríamos indagar en cada uno de estos supuestos, pero me
gustaría detenerme brevemente en la cuestión del trauma. El
“trauma”, creo, es infligido justamente por la rigidez de esa ubicación
del cuerpo, y la construcción de una subjetividad, en un lado del
binomio del sistema sexo/género, que se vuelve asfixiante para
muchas personas. En este sentido, creo que es precisamente la
imposibilidad de habitar ese rol del modo en que la sociedad lo exige,
lo que expone a niños y niñas a una violencia que hace de su
experiencia vital un trauma.90 Suponer, como docentes, que sólo

90 Sobre este punto recomiendo el texto de Valeria Flores (2016), Afectos, pedagogías,
infancias y heteronormatividad. Reflexiones sobre el daño, donde se intenta pensar la

174
vigilar y castigar (los cuerpos): la enseñanza de la filosofía frente al sistema...

existen dos géneros, que sólo existen dos sexos, que el cuerpo propio
es un hecho biológico inmutable y esencial, que existe una orientación
sexual respecto de la cual las otras son excepcionalidades, que el modo
libre de habitar el cuerpo puede ser un desvío, es ejercer violencia, es
reproducir un sistema opresor, es sumarse al ejército de agentes de
vigilancia, disciplinamiento, control y castigo de los cuerpos.

el sistema sexo/género: naturaleza, cultura y política

El concepto de “sistema sexo/género” fue acuñado por Gayle


Rubin en 1975 en su texto El tráfico de mujeres: notas sobre la “economía
política del sexo” (Rubin, 1986: 97). Según Teresa Aguilar García:
“El sistema sexo/género hace referencia a las formas de
relación establecidas entre mujeres y hombres en el seno
de una sociedad. Analiza las relaciones producidas bajo
un sistema de poder que define condiciones sociales
diferentes para mujeres y hombres en razón de los
papeles y funciones que les han sido asignados
socialmente y de su posición social como seres
subordinados o como seres con poder sobre los
principales recursos” (Aguilar García, 2008: 12)
Como podemos observar, este sistema supone la diferencia
sexual, esto es, supone la existencia de varones y mujeres como un
hecho natural e incuestionable. Lo que se cuestiona es la construcción
que luego se hace sobre eso dado. Es decir, se reconoce el carácter
político y social de las desigualdades, pero se sigue suponiendo una
estructura binómica basada en la genitalidad y/o en la genética. De
esta manera, el sistema sexo/género se articula sobre la distinción
naturaleza/cultura para afirmar que el sexo es una categoría que
pertenece al orden biológico y que, como tal, es incuestionable, puesto
que viene ya dado y se corresponde con la diferencia sexual de la
especie humana. El género, por su parte, es una traducción cultural del
primero, es decir, una construcción social e histórica que se monta
sobre el sexo para regular los roles sociales encarnados en el binomio
masculino/femenino o varón/mujer. En este sentido, el género no
corresponde a la naturaleza sino a la cultura. Así, en este sistema lo
que se discute es la construcción de los géneros mismos y el
establecimiento de relaciones de poder y de jerarquías entre los
mismos, pero sobre el sustrato inmutable de la diferencia sexual,
expresada en la existencia de varones y mujeres.

normalización de niños, niñas y niñes en el marco de la heterosexualidad, como daño


hacia las infancias.

175
luciana carrera aizpitarte

Ahora bien, esta diferencia biológica ha sido puesta en cuestión


por muchas teóricas y analizada como una ideología que imprime
sobre los cuerpos la diferencia sexual. En este sentido afirma Diana
Maffía:
“Cuando se habla de dos sexos, masculino y femenino,
se está abarcando en esta dicotomía un disciplinamiento
de aspectos muy complejos de la sexualidad humana.
Por supuesto el sexo anatómico, con el que a primera
vista y al nacer se clasifica a casi todos los seres
humanos. Tan fuerte es el dogma sobre la dicotomía
anatómica, que cuando no se la encuentra se la produce.
Cuando los genitales son ambiguos, no se revisa la idea
de la naturaleza dual de los genitales sino que se
disciplinan para que se ajusten al dogma” (Maffía, 2008:
7. El subrayado me pertenece).
Este dogma, sostiene la autora más adelante, es adoptado incluso
por parte del feminismo, al considerar, como mencionamos más
arriba, que el sexo biológico es el sostén de la asignación de género. En
este punto, muchas autoras coinciden en señalar que el binarismo de
género es lo que en realidad determina la diferencia sexual, y no al
revés (Butler, 2007; Fausto-Sterling, 2006; Wittig, 2005;). En efecto, es
desde la creencia en la existencia de varones y mujeres como se lee lo
que debería ser una genitalidad correcta o incorrecta. De modo que
cuando el cuerpo sexuado presenta caracteres difusos o ambiguos
según la norma, como en el caso de la intersexualidad, ese cuerpo es
reconducido a la “normalidad” tomando como guía una ideal
regulador que no es más que el género binario varón/mujer.
La Ley Nacional de Identidad de Género (Ley 26.743),
promulgada en Argentina en 2012 y reconocida como la más avanzada
del mundo en esta temática, permite a las personas asumir libremente
su identidad, y admite que también el sexo, y no sólo el género, es algo
que se asigna al nacer. Así, luego de reconocer el derecho de las
personas al reconocimiento de su identidad de género, define a ésta
como la “vivencia interna e individual del género tal como cada
persona la siente, la cual puede corresponder o no con el sexo asignado
al momento del nacimiento, incluyendo la vivencia personal del cuerpo”
(Ley 26.743, art. 2º. El subrayado me pertenece). No obstante, a la hora
de registrar legalmente la identidad autopercibida y obtener el
documento nacional de identidad, las opciones siguen siendo dos,
varón o mujer, detalle que revela hasta qué punto el binarismo de
género opera como supuesto incuestionado. En este sentido, Judith
Butler (2007) sostiene que el sexo también es una construcción,
instaurada a través de discursos y prácticas que tienen como punto de
partida el género. Es decir, no habría una realidad fija sobre la que se
imprime un sesgo determinado, sino que, retomando a Foucault, es
preciso advertir que el discurso, las instituciones y sus técnicas

176
vigilar y castigar (los cuerpos): la enseñanza de la filosofía frente al sistema...

disciplinarias construyen una red de sujeción que constituye las


identidades de los sujetos y conforma sus propios cuerpos materiales,
un cuerpo sexuado en este caso, con el objetivo de maximizar su
capacidad productiva.91 Así, el sistema sexo/género oculta el carácter
político y las relaciones de dominación que fundan tanto la categoría
de sexo como la categoría de género. Al respecto afirma Monique
Wittig:
“La ideología de la diferencia sexual opera en nuestra
cultura como una censura, en la medida en que oculta la
oposición que existe en el plano social entre los hombres
y las mujeres poniendo a la naturaleza como su causa.
Masculino/femenino, macho/hembra son categorías
que sirven para disimular el hecho de que las
diferencias sociales implican siempre un orden
económico, político e ideológico. Todo sistema de
dominación crea divisiones en el plano material y en el
económico. […] Los amos explican y justifican las
divisiones que han creado como el resultado de
diferencias naturales” (Wittig, 2005: 22)
Así, para Wittig la opresión es lo que crea el sexo, y no al revés.
Los saberes concomitantes a este sistema de dominación vienen a
reforzar la idea de una naturaleza previa a toda cultura, formando,
para esta autora “una enorme construcción política, una prieta red que
lo cubre todo, nuestros pensamientos, nuestros gestos, nuestros actos,
nuestro trabajo, nuestras sensaciones, nuestras relaciones” (Wittig,
2005: 24-25). Estos saberes, filosóficos, médicos, sociológicos,
psicológicos, afirman la existencia de dos categorías innatas de
individuos, es decir, la preexistencia de dos sexos natural, biológica,
hormonal y genéticamente diferentes. La naturalización de esta
diferencia oculta, para Wittig, la realidad política de esta distinción y
la obligatoriedad de habitar esa categoría. Este carácter obligatorio se
revela en el sistema de inquisidores, jueces, tribunales y vigilantes que
velan sobre la diferencia sexual (Wittig, 2005: 28).
En esta misma línea, es interesante la conclusión de Maffía:
“Afirmar que los sexos son dos, es afirmar también que
todos estos elementos [identidad, expresión de género,
elección sexual] irán encolumnados, que el sujeto tendrá
la identidad subjetiva de su sexo anatómico y
cromosómico, lo expresará y aceptará los roles
correspondientes, y hará una elección heterosexual. Lo
que escape a esta disciplina será considerado perverso,
desviado, enfermo, antinatural, y será combatido con la

91 Para un desarrollo extenso de la concepción teórica de Butler en este punto cf.

Martínez, 2011.

177
luciana carrera aizpitarte

espada, con la cruz, con pluma, con el bisturí y con la


palabra” (Maffía, 2008: 8).

Ahora bien, ¿qué hacemos con todo esto? ¿por qué creo que
darle relevancia a esta forma de opresión originaria es vital para la
enseñanza de la filosofía y para una práctica filosófica de la enseñanza,
en cualquier nivel en que se la practique.

hacia una práctica docente disidente: la filosofía frente a los


mecanismos de sujeción y control de los cuerpos. reflexiones y
algunas conclusiones.

En su artículo “Filosofía de la educación: algunas perspectivas


actuales”, Walter Kohan sostiene que uno de los horizontes de una
filosofía que piense desde dentro de la educación es plantearse como
una práctica de resistencia frente a las formas dominantes de sujeción
y como una práctica de liberación respecto de las formas de
subjetividad que los sistemas educativos contribuyen a conformar y a
reproducir. Respecto de estas prácticas afirma:
“No se trata, por cierto, de recuperar o reencontrar una
supuesta naturaleza humana sometida o enmascarada
por fuerzas opresivas. Tampoco se trata de sustituir un
estado de cosas por otro, donde muden los sujetos pero
permanezcan las mismas relaciones de control y
sujeción. Se trata de generar condiciones para que
cambien las formas de relación, para que de nuestra
práctica educacional puedan emerger nuevas formas de
subjetividad, relaciones creativas de existencia política,
prácticas educacionales más reflexivas de libertad”
(Kohan, 1996: 150-151).
Ahora bien, ¿tenemos realmente en cuenta, cuando pensamos la
enseñanza de la filosofía y también cuando pensamos un modo
filosófico de habitar la enseñanza, como prácticas de liberación y
resistencia, los supuestos de opresión que hacemos circular al asumir
el sistema sexo/género en nuestra cotidianeidad docente? ¿O más bien
estas categorías quedan invisibilizadas y son naturalizadas, e incluso
relegadas al terreno de lo privado? ¿Qué estamos diciendo, qué
estamos enseñando, cuando callamos sobe estas cuestiones?
En sus conferencias de 1973, reunidas en el volumen La verdad y
las formas jurídicas, Michel Foucault afirma que la sociedad
contemporánea es una sociedad basada en la disciplina, el control y la
vigilancia sobre los individuos desde un poder que explota al máximo
el tiempo de los sujetos y dispone de su cuerpo en vistas a la
producción. Este poder y los saberes que produce están encarnados,
entre otras instituciones de “secuestro”, en las instituciones educativas

178
vigilar y castigar (los cuerpos): la enseñanza de la filosofía frente al sistema...

(Foucault, 1996: 129), que es a lo que se refieren las reflexiones de


Kohan sobre este punto.
En línea con el señalamiento de Foucault respecto al uso del
cuerpo y el tiempo de los individuos en las instituciones, pero
haciendo hincapié en el carácter sexuado del cuerpo, el Frente de
Liberación Homosexual de Argentina, en su Manifiesto “Sexo y
revolución”, contemporáneo a las conferencias de filósofo francés,
realiza una reflexión similar:
“En realidad, todo el cuerpo es capaz de aportar al goce
sexual, pero la sociedad de dominación necesita de la
mayor cantidad de zonas del cuerpo posibles para
adscribirlas al trabajo. La genitalización está destinada a
quitar al cuerpo su función de reproductor del placer
para convertirlo en instrumento de producción alienada,
dejando a la sexualidad sólo lo indispensable para la
reproducción” (FLH, 2013: 8)
Así, todo arreglo que no se ajuste a la norma reproductiva será
castigado, patologizado y corregido o bien castigado. En efecto, los
inidividuos que escapan de las asignaciones hegemónicas son
identificados “como un máximo peligro por este sistema, en tanto que
no sólo lo desafían, sino que desmienten sus pretensiones de
identificarse con el orden natural” (FLH, 2013: 9). De esta manera,
concluyen sus autores, “[u]na praxis revolucionaria que no ponga en
tela de juicio la moral burguesa, la está aceptando objetivamente y
perpetua por un lado lo que pretende destruir por el otro” (FLH, 2013:
10).
A partir de estas consideraciones y a modo de conclusión nos
preguntamos: ¿cómo hacer entonces para no ubicarnos como agentes
de estos modos de sujeción, vigilancia, control y disciplinamiento?
¿cómo llevar adelante una práctica de resistencia y liberación que
logre desmantelar la dominación en sus aspectos más naturalizados?
¿cómo ejercer una práctica que luche activamente contra un andamiaje
en cuya cima nos arrebatan a Lucía, nos arrebatan a Ema, nos
arrebatan a Marielle, nos arrebatan todos los días a una travesti
desconocida de la que pocos medios se hacen eco, nos arrebatan la
posibilidad de transitar libremente, de vivir sin temor, de habitar el
cuerpo que decidimos tener y experimentar?
En principio creo que necesario que hagamos de estos
interrogantes los interrogantes vitales de nuestra práctica, antes que
dejarlos confinados al casillero particularísimo de los estudios de
género, como un problema que sólo afecta a las mujeres. Creo que
trabajar sobre los supuestos incuestionados es nuestro trabajo como
filósofos y filósofas, y que formar docentes críticos en este sentido
puede ser un aporte al problema de la dominación sexo-genérica, que
es uno de los problemas centrales de nuestro tiempo, de nuestro
continente, de mi país, mi ciudad y mi universidad. Creo que habilitar

179
luciana carrera aizpitarte

la existencia de corporalidades que desafían la norma, visibilizar la


norma como sistema de opresión en cada una de nuestras prácticas,
estar atentos y atentas a los supuestos que hacemos circular por
omisión, es un deber de quienes nos comprometemos con una práctica
filosófica de la enseñanza y con la enseñanza de la filosofía,
especialmente, puesto que ella constituye uno de los discursos
hegemónicos de Occidente en donde se ponen a circular estos
supuestos.

referencias

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Amnis [En línea], 8 | 2008, Publicado el 01 septiembre 2008. Consultado el 02
abril 2018. URL: http://journals.openedition.org/amnis/537; DOI:
10.4000/amnis.537
Butler, J., El género en disputa. El feminismo y la subversión de la identidad,
Barcelona: Paidós, 2007 (1º ed. 1990).
Fausto-Sterling, A., Cuerpos sexuados Barcelona: Melusina. Traducción de A.
García Leal, 2006 (11 ed. 2000).
Flores, V., Afectos, pedagogías, infancias y heteronormatividad. Reflexiones sobre el
daño, Córdoba: Bocavulvaria Ediciones, 2016.
Foucault, M., La verdad y las formas jurídicas, Barcelona: Gedisa, 1996 (1º ed.
1978)
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Papeles Insumisos. Archivo digital de sexualidad y capitalismo, Buenos Aires, 2013,
pp. 6-11.
Kohan, W., “Filosofía de la educación. Algunas perspectivas actuales”, Aula, 8,
1996, pp. 141-151.
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Consultado el 02 abril 2018 en:
http://servicios.infoleg.gob.ar/infolegInternet/anexos/120000-
124999/121222/norma.htm
Ley 26.743 “Identidad de género” (2012). Consultado el 02 abril 2018 en:
http://servicios.infoleg.gob.ar/infolegInternet/anexos/195000-
199999/197860/norma.htm
Maffía, D., Sexualidades migrantes. Género y transgénero, Buenos Aires: Librería
de mujeres editoras, 2008.
Martínez, A., “Los cuerpos del sistema sexo/género: Aportes teóricos de Judith
Butler”, Revista de Psicología (12), 127-144. Consultado el 02 abril 2018 en
Memoria Académica:
http://www.memoria.fahce.unlp.edu.ar/art_revistas/pr.5641/pr.5641.pdf.
Rubin, G., “El tráfico de mujeres. Notas sobre una economía política del sexo”.
En Nueva Antropología, Vol. VIII. N.º 30, (pp. 95-145). México: UNAM, 1986.
Wittig, M., El pensamiento heterosexual y otros ensayos, Madrid: Egales.
Traducción de J. Sáez y P. Vidarte, 2005 (11ed. 1992).

180
la cuestión de la identidad: política sexual y cuerpo infantil

olga grau
universidad de chile
ograu_2000@yahoo.com

introducción

Siempre hay un más allá que desafía al pensar, que saca al


pensamiento de sus casillas. Y en esto, la dimensión sexual ha sido
permanentemente una provocación. Cómo pensar lo sexual, la
diferencia sexual, el género, el deseo sexual, el placer y el goce, los
imaginarios sexuales, han sido interrogaciones que han estado
presentes en todas las culturas a través del tiempo y que, asimismo, se
han hecho presentes a los sujetos en distintos momentos de sus vidas.
Preguntas que han inquietado y perturbado la ‘inteligibilidad respecto
del ser humano’ (Butler), cruzado por las regulaciones políticas en
torno a la diferencia sexual. La filosofía contemporánea ha abordado
tales cuestiones rompiendo una tradición filosófica de no considerarlas
asuntos centrales para la comprensión de la realidad humana y ha
recuperado las aproximaciones que hicieron respecto de ellas algunos
de los filósofos a través de la historia de la filosofía como también del
arte y la literatura.
La reflexión que hiciera Foucault en la Historia de la sexualidad
mostró las relaciones históricas entre poder y discurso que determinan
los contenidos y representaciones del sexo y la sexualidad,
configurando las prácticas sexuales, las formas del placer y del deseo
en determinados regímenes de verdad. Y en un brillante y breve texto
sobre “El sexo verdadero”92, Foucault se pregunta
¿Verdaderamente tenemos necesidad de un sexo
verdadero? Con una constancia que roza la cabezonería,
las sociedades del Occidente moderno han respondido
afirmativamente. Han hecho jugar obstinadamente esta
cuestión del "sexo verdadero" en un orden de cosas
donde sólo cabe imaginar la realidad de los cuerpos y la
intensidad de los placeres93.
Señala las decisiones político sexuales que determinan como
problemáticas y espúreas las experiencias de cuerpos y sujetos no

92 Michel Foucault, Herculine Barbin llamada Alexina B. “El sexo verdadero”


presentación. Madrid: Talasa Ediciones, 2007, pp.11-20.
93 Op. cit, p.11.

181
olga grau

definidos en una identidad unívoca y, por tanto, mirados como


cuerpos abyectos.
El pensamiento feminista hizo su propia crítica a la política
sexual fundada en el sexo como origen de las diferencias de las
identidades de género concebidas como dicotómicas,
complementarias, fijas y jerarquizadas, en un sistema de hegemonía
patriarcal y en un orden simbólico basado en el principio lógico de no
contradicción. Judith Butler, filósofa con una perspectiva
interdisciplinar, realiza una lúcida crítica a la idea esencialista de que
las identidades de género son inmutables y que encuentran su arraigo
en la naturaleza, en el cuerpo o en una heterosexualidad normativa y
obligatoria.
La pregunta de ¿qué soy?, en términos de identidad de género,
se ha contestado de manera clara y distinta a partir de un pensamiento
que se sustenta en una concepción del ser humano en su diferencia
sexual leída como unitaria, natural, esencial y que tiene su
fundamento correlativo en la morfología del sexo. No hace mucho, en
Chile, a propósito del recorrido de un bus que tenía como slogan de su
campaña itinerante “Los niños tienen pene. Las niñas tienen vulva.
Que no te engañen”, se animó una discusión mediática de relevancia94.
En la comprensión de claridad distinta y voluntad política de quienes
agenciaban este recorrido sobre la identidad de género, no hay
posibilidad de admitir un desorden en la evidencia de la diferencia
sexual y de género fundada en la naturaleza y su normalidad. Todo
desvío respecto de la morfología sexual binaria tipificada de los
cuerpos implicaría anormalidad, como también serían anormales los
deseos de identidad de género que no coincidan y sean congruentes
con lo morfológico del sexo.
Asistimos en nuestro presente a un estallido de las diferencias,
entre ellas las relativas a las identidades de género que producen

94 En el mes de julio del año 2017, un bus recorrió el centro de la ciudad de Santiago,
que sería llamado “Bus de la libertad”, que intentaba reponer en su tránsito la
dicotomía normalizadora heterosexual de la diferencia sexual fundada en la
diferencia genital con el slogan ya citado, entre otros lemas que fueron utilizados en la
campaña en contra de lo que entienden por “ideología de género”. Esta acción política
fue promovida por la organización CitizenGO, nacido en España, que tenía como
vocera en Chile a Marcela Aranda. Luego, este bus también recorrería Valparaíso y
luego buses clones lo harían en otras ciudades de Chile. En todos los sitios de su
transitar tuvo la oposición de colectivos y grupos sociales críticos al binarismo de
género, los que fueron enfrentados de manera iracunda por quienes simpatizaban con
la propuesta.
Véase el artículo de Leonardo Arce, “La “ideología de género” y la embestida
mediática: crítica de un discurso falaz” en Revista Nomadías N° 24, 2017.
https://revistas.uchile.cl/index.php/NO/article/download/49970/52397/

182
la cuestión de la identidad: política sexual y cuerpo infantil

debates inéditos, entre argumentaciones conservadoras


fundamentadas en criterios esencialistas y naturalistas, y las que han
hecho suyos los aportes de las filosofías de la sospecha y el
cuestionamiento al principio de identidad y de lo mismo.
Y en estos debates hay quienes llegan a aceptar la posibilidad del
cambio de identidad registral en quienes tienen mayoría de edad, pero
no en niños y niñas menores de 18 años. Habría al parecer, según esta
posición, deseos de mayoría de edad y deseos de minoría de edad en
que los últimos no tendrían la consistencia, definición, coherencia o
densidad que se les supone a aquellos que son mayores. Un
interesante asunto a ser pensado es este del deseo de niñas y niños.
¿Por cuáles razones los deseos de acuerdo a la edad tendrían distinto
estatuto de legitimidad y de densidad subjetiva? ¿Qué concepción de
la adultez y de la niñez están en juego en esas declaraciones y
ordenamientos normativos? ¿Se presume acaso que los deseos de los
mayores serían estables, porque la misma mayoría de edad propiciaría
subjetividades sólidas y consistentes que no serían hallables en la
niñez? De acuerdo al contenido del debate que se ha suscitado, la
mayoría de edad hace suponer que la decisión adoptada en lo relativo
a la identidad de género, a partir de los 18 años, tiene su cimiento en la
razón y en la certeza completa, en una suerte de tempo detenido. Ello
significaría que al adulto se le juzga de acuerdo a una sobreentendida
solidez en que no cabe duda alguna, sin punto de retorno al estado
anterior de una decisión adoptada. La voluntad determinaría una ruta
en la que no es pensable volver atrás. Esta concepción de la adultez
tendría su contrario correspondiente en la manera en que se conciben
los deseos y la expresión de la voluntad en niñas y niños como
caprichos transitorios. En la niña o niño la decisión del cambio de
nombre registral, se presume, no tendría la fuerza de la convicción, y
se percibe como mera fantasía extravagante a la que habría que poner
atajo. Sin embargo, los testimonios de niñas y niños trans dan cuenta
de una asertividad en la manifestación de su deseo95.
Ha acontecido en Chile que algunas escuelas han expulsado o
rechazado a niños o niñas que deseaban ser llamados por el nombre
social de su elección y que resentían ser considerados como niñas pese
a sentirse niños o, al revés, ser considerados como niños sintiéndose

95Recientemente en Julio ha sido lanzado un documento educativo, de la Fundación


Transitar “Transitar. Niñez y Juventud trans” que contiene testimonios, ensayos,
cuentos ilustrados y dibujos de personas trans entre los 5 y los 82 años de edad,
revisando especialmente, etapas de niñez y juventud. Pueden escucharse también las
voces testimoniales de les propies niñes en el documental “Niños rosados y niñas
azules”, en https://www.youtube.com/watch?v=WfBuMoSJsTo
http://cinechile.cl/pelicula-3237

183
olga grau

niñas96. Sin duda, se develan en tales decisiones institucionales dos


sentimientos relacionados con la resistencia a la aceptación y admisión
de lo trans: temor y angustia que expresan con mayor o menor
violencia tal resistencia y la transfobia existente. Surgen actitudes,
posiciones discursivas, expresiones emocionales que confluyen en el
rechazo, en el impedimento de compartir el espacio de la escuela a
quien estiman ser una especie de “manzana podrida” de la que más
vale la pena alejarse. La transfobia es fobia a la libertad de la no
adscripción o alineación determinada del género conforme al sexo, a
una forma de la libertad que pone en entredicho la localización
previsible de la identidad, que le hace perder su dramatismo y que la
vuelve cuestión de posible alteración en su previsibilidad. La
materialidad del órgano genital pierde su consistencia como
significante y también como determinante de comportamientos de
género. El amor al principio de identidad cerrada sobre sí misma y sin
contradicción se contrapone y toma distancia respecto del principio de
lo fluyente, del dinamismo de la identidad y sus posibles desvíos de la
normatividad político-sexual dominante.
El comportamiento trans puede significar vestirse de acuerdo a
un sentir, producir gestos espontáneos, un modo de hablar y de
relacionarse no alineados al supuesto género correspondiente al sexo
genital. El padecimiento tanto de niñas y niños -como de sus madres y
padres que tienen que vivir la situación de rechazo y burlas hacia sus
hijas e hijos- se relaciona con el debilitamiento de los vínculos, con el
aislamiento en la familia extensa o en la escuela. Muchas veces el
aislamiento o rechazo se vive con mayor dolor si se produce en la
propia familia nuclear, extremándose la vulnerabilidad de quien
sobrelleva la aflicción. Es ese dolor el que puede llevar a la generación
de trastornos psicológicos y a la toma de decisiones de
autodestrucción y lo que, a nuestro juicio, debería ser el sustento del
empeño de muchos y muchas para que la realidad trans desafíe las
capacidades pensantes ampliando las formas habituales del
entendimiento de lo sexual genérico desde otras coordenadas.

96 La Superintendencia de Educación sancionó con una multa de 5 millones de pesos

al colegio Pumahue de Chicureo por discriminar a la niña transexual Andy Escobar


Escalona, medida que fue festejada por los familiares de la alumna y por el
movimiento de la diversidad sexual (agosto 2015). A sus cuatro años Baltazar se sentía
y decía ser una niña. Con el apoyo de sus padres, se cambió el nombre a Andy y pese
a que presentaron certificados médicos de especialistas, el establecimiento rechazó
aceptar su nueva identidad. Ver en:http://www.movilh.cl/superitendencia-de-
educacion-sanciona-a-colegio-pumahue-de-chicureo-por-discriminar-a-nina-
transexual/

184
la cuestión de la identidad: política sexual y cuerpo infantil

Desde la filosofía podemos reflexionar sobre el carácter


problemático de la noción de identidad, las identidades de género, la
experiencia trans, y las conexiones de todo ello con la educación. Se
hace necesario pensar en políticas de reconocimiento, donde se acepte
la diferencia y se reconozcan las diferentes identidades que en la
actualidad se vuelven más híbridas y complejas, requiriéndose la
comprensión de éstas conforme a un principio igualitario y de no
homogeneización. Para la filósofa Nancy Frazer, el discurso de la
justicia social, centrado en otro momento en la distribución, está cada
vez más dividido en la actualidad entre las reivindicaciones de la
redistribución y las reivindicaciones del reconocimiento. A su juicio,
cada vez más, tienden a predominar las reivindicaciones del
reconocimiento lo que le parece discutible desde una política de
justicia social que exige tanto la redistribución como el reconocimiento
y donde ambas operaciones políticas requieren ser integradas en un
único marco global que considere sus aspectos emancipadores.97
La política del reconocimiento tiene como objetivo un mundo
que acepte la diferencia. Una política sexual del reconocimiento y de
igualdad en el trato social en el que la diferencia trans sea considerada
una realidad positiva que de cuenta de la riqueza de la diversidad
humana abre las posibilidades para una sociedad de mayor justicia.
Felipe Berríos, sacerdote chileno comprometido con la pobreza y el
combate a la exclusión, entrevistado a propósito de las experiencias
trans, afirma que “tenemos que buscar, promover la diversidad y verla
como un don, al revés de la uniformidad” y recordará a Luis Alonso
Schökel98 quien tenía la convicción de que “en la diversidad está la
huella de Dios”. En términos laicos, diríamos que se trata de la
extraordinaria y grandiosa variación de la vida que se da en
bifurcaciones, desvíos y encrucijadas, desafiando al pensamiento para
ser aprehendida y comprendida en su vastedad. El ser se dice de muchas
maneras, afirmaba Aristóteles. Y la filosofía de la diferencia en Deleuze
señalará la manera de experimentarse uno mismo como multiplicidad
en devenir; si se quisiera hablar de identidad, la única identidad
posible es la del cambio y la del devenir. Para Deleuze, que pone en
cuestión las teorizaciones del principio de identidad, “Toda
diversidad, todo cambio, remiten a una diferencia que es su razón

97 Ver Nancy Frazer, “¿De la redistribución al reconocimiento? Dilemas en tomo a la


justicia en una época ‘postsocialista’ ”, en Redestribución o reconocimiento. Un debate
entre marxismo y feminismo. Madrid: Traficantes de sueños, 2016.
98 Sacerdote jesuita español que hiciera la traducción del Antiguo Testamento a la

lengua española, experto en profetas, y que visitó Chile cuando Berríos era novicio
influyendo de manera profunda en su perspectiva del mundo.

185
olga grau

suficiente”99 Deleuze, demuestra en Diferencia y Repetición, que detrás


de la subjetividad no es la identidad del ser consigo mismo lo que
aparece, sino la diferencia, en tanto el ser es heterogéneo respecto de sí
mismo, múltiple y variable. Y lo que se repite no es lo mismo sino la
diferencia radical.
Volviendo a lo que ocurre en Chile, los discursos que circulan en
nuestra sociedad y que polemizan entre sí, van desde el proponer la
“coherencia” y la “corrección” del sentir transgénero en niñas y niños
hasta el otorgar legitimidad y reconocimiento al derecho del cambio
de sexo registral y del vivenciar de manera libre la experiencia trans -
que será siempre una singular experiencia subjetiva y la manifestación
propia de una subjetividad. Los discursos dominantes, aquellos que
logran imponerse en la sociedad y que se basan en el sentido común
tradicional, son sostenidos por políticos, religiosos, y “especialistas”
procedentes del campo de la psicología y la medicina, son los que
apelan a los principios de la mismidad, la coherencia, la congruencia y
a la necesidad de la corrección.100 En estas discusiones, las posiciones
que siempre abogan por los derechos de la familia a educar y tomar
las decisiones respecto a la educación de sus hijos e hijas, le restan
poder a la familia, paradojalmente, en lo que se refiere a acompañar la
decisión de sus hijas e hijos en sus experiencias trans. Pese a que en
tales locuciones la invocación a la familia es un permanente recurso
argumentativo conservador, en este ámbito específico referido a la
realidad trans, ni madres ni padres tienen la potestad de que puedan
decidir acompañando el deseo de cambio de nombre ajustado a la
experiencia trans de sus hijos o hijas. Menos aún podría suceder que
niños o niñas decidieran al respecto. Nos encontramos en este
momento en la sociedad chilena con una discusión importante
respecto de estos asuntos, en el contexto de un gobierno representativo
de la derecha conservadora, y en medio de la discusión de la ley de
identidad de género. Muchas veces los sectores conservadores pueden
invocar el principio de inclusividad, pero lo hacen de manera
abstracta, y al momento de participar en los debates mediáticos se
transparentan sus criterios segregacionistas referidos a las personas
trans, consideradas con menos status ontológico, tal como ocurre
también con los migrantes101.

99 Deleuze, G., Diferencia y Repetición, Barcelona: Júcar Universidad, 1998, p.357.


100 Sebastián Piñera, Presidente actual de Chile, cuando fue candidato se refirió a la
realidad de niñas y niños trans como “algo que se corrige con la edad” (diciembre
2017).
101 http://www.eldesconcierto.cl/2018/07/12/claudia-nogueira-implacable-con-los-

migrantes-tienen-mas-derechos-que-los-chilenos/

186
la cuestión de la identidad: política sexual y cuerpo infantil

La disconformidad de género y sexo biológico provoca una


especial inquietud en tanto la materialidad de los genitales pierde su
significancia determinante, lo que desarma los códigos de la
naturaleza sexual entendida como destino. Las clasificaciones pierden
su fuerza, la realidad no queda contenida en ellas, los ordenamientos
se debilitan, se pierden los referentes de lo estable y permanente. Las
coordenadas temporales y espaciales se desquician y se pierde el
sentido autoritario y lineal del significar.
Recientemente, en junio del año 2018, la Organización Mundial
de la Salud ha eliminado de su lista la transexualidad como
enfermedad mental que estaba catalogada como trastorno psicológico
en tanto “incongruencia de género”: el género, como configuración
psíquica del sentirse a sí mismo en una identidad particular, entra en
conflicto con el sexo con el cual se nació. El principio de la no
contradicción está a la base de esta catalogación que tiene una de sus
máximas expresiones en la concepción binaria de la realidad de la
diferencia sexual: se nace mujer o se nace hombre, siendo el sexo la
determinante de identidad. Este principio es alterado por las
identidades trans, produciendo turbación en una cultura que piensa
desde el sistema oposicional en que A no puede ser B, principio que
también ha sido puesto en entredicho desde la poesía, el arte, la
literatura: Orlando se despierta un día después de un largo periodo de
sueño transformado en mujer (Virginia Woolf102); Magritte traiciona
las imágenes afirmando que lo que uno ve no es aquello que ve (bajo
una pipa se lee “Esto no es una pipa”103). La identidad se desplaza en
las metáforas poéticas, como el niño transformado en “corderito” o en
“rocío” en Gabriela Mistral104. La imaginación traspasa los límites
identitarios y ensancha el mundo, desata nudos y teje imaginarios
disolviendo fronteras. Y la aplicación de la razón binaria también se ha
visto dificultada ante algunas elaboraciones científicas que consideran
aspectos complejos de la realidad que no pueden ser comprendidos
desde tal razón.
El problema de la inadmisibilidad del vaivén o temblequeo de la
identidad se asienta en el orden de la representación unívoca, estable,
fija y unitaria. La representación concebida de esta manera es histórica
y nos ha marcado culturalmente, por tanto hace nuestro sistema de

102 Virginia Woolf, Orlando. Madrid: Alianza Editorial, 2018


103 La traición de las imágenes es una serie de cuadros surrealistas de René Magritte.
Una de ellas es “Ceci n’est pas une pipe” (“Esto no es una pipa”) pintada al óleo entre
1928 y 1929, ubicada en el Museo de Arte del Condado de Los Ángeles.
104 Ana Lucía Ortega Larrea, “Metáforas del niño en Desolación de Gabriela Mistral.

https://cvc.cervantes.es/ensenanza/biblioteca_ele/aepe/pdf/congreso_48/congreso
_48_35.pdf

187
olga grau

significación y connota las simbolizaciones que hacemos de una


manera determinada. Los ejes de organización y comprensión de la
realidad que la hacen entrar en un sistema previsible, permiten un
mundo ordenado, ajustado, de coherencias, congruencias y
correspondencias, continente de lo que puede ser comprendido en la
lógica binaria de las oposiciones. La in-mundicia de realidades
humanas que no ajustan con el principio binario son alejadas y
desagregadas del mundo. Lo que se sale de la norma es puesto al
margen, vilipendiado. Sin embargo, la realidad nos hace saber, una y
otra vez, de otras maneras de ser, manifestando permanentemente su
variedad y su diversidad, haciendo problemático tal ordenamiento.
Los cuerpos humanos nacen con genitales de una multiformidad
extraordinaria y algunos de ellos llevan a la duda respecto de su
asignación estricta en el paralelismo de sexo masculino y sexo
femenino en el momento del nacimiento, provocando una
extraordinaria inquietud, e incluso zozobra, de madres y padres para
los que la M (sexo masculino) y la F (sexo femenino) quedan
suspendidos, irresueltos.
Tamara Adrián Hernández, en su artículo publicado en la revista
Gehitu Magazine nº 89 decía: «No es verdad que las personas trans
hayan nacido en un cuerpo equivocado, sino que han nacido en un
mundo equivocado»105. En su texto “Desde el activismo trans…Los
derechos de las personas transexuales en el mundo” Sarai Montes,
Presidenta de Errespetuz y vocal en la ejecutiva de la FELGTB106
imagina el futuro de un paisaje humano inclusivo:
“El día que seamos capaces de aceptar que existen
hombres con pene y hombres con vulva, mujeres con
pene y mujeres con vulva. El día que seamos capaces de
aceptar que cuestiones como la capacidad de gestar no
es algo exclusivo de las mujeres y que también existen
hombres que nacen con la posibilidad de crear una vida
en su interior, ese día estaremos más cerca de ser una
sociedad y más lejos de ser una «suciedad». Pero para
ello aún nos queda mucho por aprender y más aún por
«desaprender». Tenemos que «desaprender» todas las
normas sociales de género pues ninguna de ellas tiene
sentido y tenemos que aprender que todos, hombres y
mujeres, transexuales y bisexuales aunque seamos

105 Referencia de Sarai Montes en su artículo “Desde el activismo trans…Los derechos


de las personas transexuales en el mundo”, en Pablo Peinado (ed.), Universo Trans.
Análisis pluridisciplinar sobre transexuailidad y transgénero, Madrid: Transexualia, 2015,
p. 156.
106 Federación Estatal de Lesbianas, Gais, Transexuales y Bisexuales (España), un

espacio de coordinación e intercambio para el movimiento asociativo LGTB que reúne


a más de 50 asociaciones.

188
la cuestión de la identidad: política sexual y cuerpo infantil

diferentes y nuestras diferencias nos hagan únicos e


irrepetibles, en lo que a derechos se refiere tenemos que
ser todos iguales”107.
La educación tiene esa posibilidad de hacer desaprender y puede
generar y favorecer espacios de juegos teatrales de género que
eduquen en la versatilidad de la representación del género y el saber
de la simulación y la actuación de éste. A comienzos de los 90’, yo
misma hice el ejercicio en un 5ª año básico de un colegio, de invitar a
niñas que hicieran de niños y a los niños de niñas, simulando la
identidad de género ajena tal como se la representaban a sí mismos.
Jugaban, de ese modo, a ser un personaje, a realizar gestos de
traslación, hacer la inversión de roles en la actuación del género, a
ensayar el travestismo en el lenguaje de los gestos y del habla. Esta
experiencia en la que niñas y niños entraron divirtiéndose y que
compensaba la angustia de un niño al que lo consideraban marica por
sus gestos y maneras de comportarse, fue considerada por la
institución como una situación que favorecía la homosexualidad y de
manera indirecta fue censurada por la autoridad en la voz de una
profesora de ese nivel que me lo hizo saber. Experimentar con los
gestos del otro, sus formas de relacionamiento y expresión, ensayar
modalidades de ser se veía como amenazante. Y mientras las
personificaciones cruzadas en el aula de ese colegio aliviaban al chico
discriminado por sus pares y del que se burlaban diciendo que era
cola, perturbaban a la institución. Ahora me hago la pregunta de si ese
chico era homosexual o transgénero. El concepto de homosexualidad
ha encubierto muchas veces la experiencia trans, dada la similitud en
los gestos y las maneras que adopta el comportamiento. A muchos
homosexuales les gustan los hombres desde un sentir femenino, pero
también a otros desde un sentir masculino y de pronto puede
gustarles también alguna mujer a unos y otros. Lo mismo ocurre entre
lesbianas, en que a muchas les gustan las mujeres desde un sentir
masculino y a otras desde un sentir femenino, y también algunos
hombres a unas y otras. Se enmarañan las cercanías y se hace más
compleja la cuestión de los deseos y las identidades.
En el ejercicio escolar realizado, las niños y los niños no vivieron
la experiencia de representación de los géneros como amenazante, lo
que puede ser así por su especial cercanía con la simulación, con el
juego de ser un otro, actuar un personaje, o un animal, una cosa, un
vegetal o mineral. A niñas y niños les fascina la narradora o narrador
de cuentos que entran en el orden de lo teatral actuando los diversos

107 Sarai Montes, “Desde el activismo trans…Los derechos de las personas


transexuales en el mundo”, en Pablo Peinado (ed.), Universo Trans. Análisis
pluridisciplinar sobre transexuailidad y transgénero, Madrid: Transexualia, 2015, p. 158.

189
olga grau

personajes que aparecen en las narraciones. La niña pequeñita que


mira el rostro de su abuela actuando el personaje de un cuento, sigue
el juego y ve lo que quiere ver, desprende el cuerpo de la abuela de la
materialidad imaginada del personaje, entra en ese juego en que la
actora desaparece de alguna manera y es reemplazada por un otro.
Pero también la niña mira profundamente los ojos de la abuela que
hace en una ocasión de lobito, escudriñando, como para descubrir
dónde está quien actúa y dónde está el lobito. No está el cuerpo del
pequeño animal en el cuerpo de la abuela, está en la voz, en los gestos.
Y entra en sus ojos para saber si ellos le pueden hacer saber dónde está
una y dónde está el otro108.
En la experiencia de aula que describimos anteriormente,
relacionada con la representación cruzada de géneros, el colegio aplicó
la censura, pero en la historia del teatro este tipo de experiencias de
travestismo, el afeminamiento del hombre o la masculinización de la
mujer, la parodia en su actuación, de los ademanes o el timbre de la
voz109 podían tener relación con la comicidad. “Los espectadores no
confundían la identidad de género del actor o de la actriz, esperaban
ver la destreza de éstos en sus caracterizaciones de otro género
sexual”110.
Para Robert Allen, quien analiza el burlesque como fenómeno
cultural, considera que la declinación del burlesque ocurrió a fines del
siglo XIX y que
“Este género tiene un carácter subversivo, se mofa de la
llamada "cultura alta", cuestiona los límites de los roles
de género sexual y de las jerarquías sociales a través de
los estereotipos de la cultura occidental. El burlesque
como entretenimiento popular es complejo y ambiguo y
todo el tiempo se pregunta ¿Qué significa ser hombre? y
¿Qué significa ser mujer?111
La fluidez de los géneros siempre se ha celebrado en las obras de
Shakespeare, allí encontró una legitimidad cultural que daba cuenta
de la ductibilidad interpretativa en la representación teatral, de la
mímesis, la imitación, del ser como el otro género, en los gestos, en la
comunicación oral, en los movimientos del cuerpo. Performances que
pueden dar lugar a una parodización de la gestualidad y de la

108 Matilda Pérez Oyarzún, la niña, y Olga Grau, la abuela.


109 “lo más difícil era la voz”, dice uno de los personajes en la obra contemporánea de
Max Linden, Los arrrepentidos que testimonia la experiencia de dos transexuales.
110http://www.mnemocine.com.br/index.php/cinema-categoria/24-histcinema/93-

paula-rodriguez-marino
Página consultada en junio 2018
111 www.mnemocine.com.br/index.php/en/cinema-categoria/.../93-paula-
rodriguez-marino Página consultada en julio 2018

190
la cuestión de la identidad: política sexual y cuerpo infantil

conducta, una exageración de los rasgos o atributos del otro género,


que se los extrema hasta la ridiculez. Pareciera poder desprenderse de
esto que todo género sexual en su actuación tiene algo de ridículo, lo
hace caer en su pretensión de verdad y hace saber de su artificio como
modelo de comportamiento.

avances de política sexual para la autodeterminación y la libertad

Existen a lo largo del mundo muchos países que han establecido


ciertas disposiciones jurídicas de inclusividad aunque en muchos
lugares con limitaciones. En Chile, el 27 de abril de 2017 se lanzó la
Circular del Ministerio de Educación Nº0768 sobre los “Derechos de
niñas, niños y estudiantes trans en el ámbito de la educación” que
expresa lo siguiente:
“Esta exige el respeto del nombre social de niñes y
adolescentes trans, junto al uso de uniforme y servicios
higiénicos de acuerdo a su sentimiento de género.
Reconoce y respeta como parte de la dignidad de les
estudiantes el desarrollo de su identidad y expresión de
género y la comprende como un proceso dinámico,
personal y que debe ser apoyado y protegido en los
espacios educativos”.
Poco a poco se generan condiciones de una educación igualitaria
y libre de discriminaciones referidas al género. El principio igualitario
empieza a regir para situaciones anteriormente no nombradas,
invisibilizadas, sacadas fuera de la escucha y de la visión. Y se va
estableciendo un enriquecimiento y concreción del principio
igualitario distinguible de la noción de igualación que no resguardaría
las diferencias y diversidad de la experiencia humana.
Sin embargo, por el momento, los intentos de legislar sobre los
casos trans y darles realidad en el mundo social coexisten con las
violencias adultas y la violencia de pares de niñas y niños que
constituyen el entorno escolar y social de niñes trans. Las violencias se
inscriben en los cánones excluyentes basados en la discriminación
clasificatoria que olvida las singularidades en que se constituyen los
sujetos, las niñas, los niños en sus diferencias. ¿Con qué figura
antropológica se establecen tales cánones? Parecieran constituirse
sobre la base de una reducción de la diversidad humana, su
constricción, la supresión de la variación que puede tener la existencia
en sus raíces contextuales, en la pulsión de género más allá de la
voluntad, de los dones particulares de cada cual, de la fuerza de las
propias orientaciones en la vida.
El concepto de “infancia de género no conforme” sustituye al de
“incongruencia de género” que es más bien un concepto elaborado
desde fuera del sujeto y situado en la norma desde el exterior, a

191
olga grau

diferencia del primero que indica la no conformidad, que declara y


explicita un desacomodo y la legitimidad de tal desacomodo con la
norma. Despliega las posibilidades del devenir infante en las múltiples
posibilidades que tiene el ser infantil en su particularidad de vivirse el
género. La inclusión de esa diversidad hace necesario abrir la
conciencia afectiva, de simpatía, empatía, de apertura a lo que no
vivimos o no hemos vivido desde nuestras individualidades, en ese
menos ser que cada uno y cada una es, en ese ser que no se es, en el ser
y no ser de nuestro existir. La misma voluntad puede quedar
interrogada en sus posibilidades de normalización a las pautas
convencionales y ceder su dominio a la pulsión. Felipe Berríos, a quien
nos refiriéramos anteriormente, afirma que
“es tan fuerte la orientación del género que no es algo
que externamente alguien te presione; por mucho que
hubiera alguna clase de presión, el impulso del género
es algo que se va a imponer sí o sí, que es lo que han
demostrado niños o niñas que son transgénero, que
aunque todo el ambiente cultural les dice que tienen que
responder a un tipo de sexo, sin embargo, a pesar de
eso, una y otra vez vuelve a aflorar esa fuerza de
orientación que implica el género”112.
La falta de adecuación del género con los cuerpos con que nacen
las niñas y los niños, que se da en la experiencia temprana trans o en la
intersexualidad, o en la infancia de género no conforme, requiere de
una sociedad inclusiva y democrática del respeto y valoración de la
diversidad corporal de los cuerpos sexuados y sus procesos propios de
(des)identificación.
Por otra parte, es la niña o niño quienes deben decidir cómo
quieren ser. Ni el Estado, ni siquiera sus padres, pueden decidir por él
o ella y esto implica que desde la autopercepción del género que hacen
niños y niñas se respete el interés de éstos en decidir sobre su futuro,
dando lugar al ejercicio de su autonomía sobre la base del presupuesto
del desarrollo de su personalidad en libertad, sin impedimento o
menoscabo por parte del ambiente social y educativo.

bibliografía

Arce, L. “La “ideología de género” y la embestida mediática: crítica de un


discurso falaz”. Revista Nomadías N° 24, 2017.

112Letrans n°4. Cuaderno de información, pensamiento y análisis del mundo trans –


Asociación OTD Chile. Junio 2018

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la cuestión de la identidad: política sexual y cuerpo infantil

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Woolf, V. Orlando. Madrid: Alianza, 2018

193
194
o ingovernável dos corpos e das multidões na escola:
formação ética, resistência e alteridade radical

pedro a. pagni
unesp
pagni@terra.com.br

introdução

O presente ensaio, ao abranger as questões desta coletânea,


procura abordar o papel desenvolvido pelos corpos ingovernáveis e
pelas multidões que se fazem presentes nessa instituição. Embora
pouco vistos pelas práticas habituais que se debruçam sobre o ensino
ou que se empenham pela educação moral dos estudantes, esses
corpos e multidões que habitam essa parecem trazer em seus signos –
errantes, rotos, desviantes, deficientes, seja lá como o designemos –
uma possibilidade de aprendizado ético e de assinalar um dos
eventuais focos de resistência a moralidade empreendida pela escola
no tempo presente. Apostando nessas possibilidades, este capítulo
discute o lugar ocupado pela formação ética e pela filosofia na escola,
elucidando o papel desempenhado pela educação filosófica para tal
propósito, ao acolher a resistência do ingovernável das vidas errantes
que aí transitam, e a alteridade radical que facultam, na medida em
que catalisam certa fragilidade dos corpos e das multidões que
escapam ao atual governo das diferenças.
Os resultados das discussões aqui ensaiadas decorrem da
pesquisa O ingovernável da deficiência na escola: entre a resistência ao
governo das diferenças e outro paradigma de inclusão, desenvolvida com
bolsa PQ e apoiada pelo CNPq. Para apresenta-los neste capítulo,
primeiramente, proponho uma distinção entre formação ética, ensino e
educação escolar, destacando a filosofia como uma ferramenta para tal
e discutindo se a escola poderia ser reinventada à luz dessa arte
errante e daquele campo de atuação no presente. Em seguida, analiso
nesse presente as possibilidades de emergência da resistência à
biopolítica neoliberal, particularizando a discussão sobre o governo da
população na escola e sinalizando para a presença de um ingovernável
nos corpos e nas multidões que aí transitam. Por fim, vislumbro nesse
ingovernável e, precisamente, na força da fragilidade dos corpos um
dos efeitos da biopotência que podem agenciar as resistências aos
estados de dominação na biopolítica neoliberal, graças a produção de
uma espécie de alteridade radical, em que a possibilidade de um
comum emerge, juntamente com uma profunda diferenciação ética.

195
pedro a. pagni

ensino, educação escolar e formação ética: é “preciso” reinventar a


escola?

No ensaio “Sujeito e Poder”, Michel Foucault (1995) argumenta


que, antes de ter privilegiado as relações de poder em seu projeto
filosófico como interpretavam seus intérpretes e críticos, o que lhe
interessou efetivamente foi a questão do sujeito. Diz que para que
compreendesse os processos de objetivação do sujeito, ou seja, aquilo
que o faz submeter-se às relações de poder que lhe constituem, por
assim diz, seria necessário compreender como essas relações
governam as suas condutas a partir de suas relações com as coisas,
com as outras pessoas, com as instituições e consigo mesmo.
Justificando dessa forma o porquê de ter se interessado tanto pela
questão do poder, salienta também que fez isso para exercer,
sobretudo, o que entende ser a tarefa primordial da filosofia no tempo
presente, qual seja, a de “vigiar os excessivos poderes da racionalidade
política” e, mais precisamente, “usar as formas de resistência contra as
diferentes formas de poder como ponto de partida, como catalisador
químico” que serve para esclarecê-las sobre como atuam, seus
métodos e tecnologias (FOUCAULT, 1995, p. 231). Isso implicaria
analisar o poder nem tanto de sua racionalidade interna, como
também do ponto de vista do “antagonismo de suas estratégias”, nos
termos que empreendeu ao longo de suas pesquisas, quando estudou
o louco para conhecer o poder psiquiátrico, o sistema prisional para
entender as formas de vigilância social e a justiça pública, assim por
diante. E torna compreensível o porquê afirma que o que lhe
interessou foi a questão do sujeito na medida em que se refere não
somente àquilo que nos assujeita enquanto tal, tomando as relações de
poder como algo positivo para a sua formação, como também ao que
nos transforma em ator, mais do que elemento, isto é, como aquele que
age livremente em outra direção do que aquela prescrita, seja por uma
rebeldia irrefletida ao que o subordina, seja por uma vontade consciente,
seja por uma razão teleológica qualquer. Por isso, a questão daqueles e
daquilo que neles resistem é tão importante e positiva, embora
socialmente possam não ser vistas assim, quanto as relações de poder
que os assujeitam, já que são formas de ação de não apenas sujeitar-se
a, como também ser agente, ativo – potente –, subjetivando seus modos
de ser e de existir, que podem ou não afrontar os existentes.
São esses processos que aglutinam a vida em seu centro que são
objetos de um governo não apenas estabelecido por outrem, como
também por si mesmos. Eles instauram o que, no desenvolvimento da
modernidade, se denominou de subjetivação e que foi produzido por
inúmeras artes de governo, dentre elas, a arte pedagógica. Como
analisado em outra ocasião (PAGNI, 2010), na modernidade, a arte de
governo pedagógica se exerce em instituições como a família e a escola

196
o ingovernável dos corpos e das multidões na escola: formação ética, resistência e ...

para produzir um governo biopolítico sobre a população e


anatomopolítico sobre os corpos, em vistas a tornar estes últimos
dóceis e produtivos e aquela governável. Para isso, particularmente,
essa arte se exerce sobre a infância com o intuito de formar essa
população, enquanto que na escola se exerce historicamente como
blocos de poder-capacidade-comunicação.
Para Foucault esses blocos se formam graças a sua “organização
espacial, o regulamento meticuloso que rege a vida no interior da
escola, as diferentes atividades aí organizadas, os diversos
personagens que aí vivem e se encontram, cada um com uma função,
um lugar, um rosto bem definidos” (1995, p. 241). Ademais, as
atividades desenvolvidas nessa instituição, mobilizam capacidades,
desenvolvendo certas aptidões nos personagens que aí se encontram e
o aprendizado de certas condutas, por um conjunto de comunicações
reguladas capazes de transmitir e fazer circular a verdade de formas
diversas e pelo exercício de um poder, que distribui os sujeitos em
reações hierárquicas, classificatórias e normalizadoras. Sincronizando-
se com outros “blocos” semelhantes, distribuídos pelas diversas
instituições e artes de governo, que exercem formas de governo do
outro, desde a criação do Estado Moderno, para que cada indivíduo da
população exerça sobre si o próprio governo, a escola cumpre,
historicamente, papéis políticos importantes enquanto instituição e
como local em que se exerce a arte de governo pedagógica na
modernidade.
Embora a capacidade, as relações de poder e a comunicação
nesses “blocos” tenham inter-relação entre si, historicamente, um se
sobrepõe a outro sendo priorizados nessa instituição em conformidade
ou diacronia com outras instituições. Há uma espécie de
multiplicidade de forças que se exercem não apenas verticalmente
nessa direção, como também transversalmente para a formação do
corpo social e para a atuação sobre o corpo de cada indivíduo, nas
sociedades modernas. Por sua vez, os vetores dessa forças são tanto
descendentes na proposição de formas de governo que advém do
Estado quanto ascendentes na medida em que emergem de
reivindicações da sociedade civil, por assim dizer, para que
modifiquem essas ações estatais descendentes, incorporando essas
últimas, por meio de ações organizadas de movimentos sociais. Por
fim, vetorialmente, poderiam emergir de lutas locais, transversas, que
congregam e compõem vários aspectos (classe, condição étnica-
cultural, ethos, etc.), mesclando-se entre si para problematizar uma
configuração social por meio de ações anárquicas, de certo modo,
porém, num sentido de se insurgir contra a ordem vigente.
Com essas indicações, é possível dizer que a escola, ao exercer
uma função disciplinar, no século XVII e XVIII, atua
preponderantemente para estender o poder pastoral e para docilizar

197
pedro a. pagni

os corpos dos indivíduos, regulando-o em certos espaços, tempos,


regulamentos, para que a população se forme, homogênea e
pacificamente, como objeto de governo do Estado moderno. A partir
do final do século XIX e meados do XX, o que prepondera nessa
instituição é o paradigma da fábrica, sugerindo que passa a mobilizar
capacidades nos indivíduos que a frequentam, para que tenham os
conhecimentos e as habilidades necessárias para o exercício de uma
profissão no mercado de trabalho, assim como os recursos materiais e
emocionais para o consumo. Algo que parece ter se estendido até
nossos dias, porém, com a variação da primazia da necessidade da
comunicação como veio regulamentador e normalizador das condutas
a serem ensinadas e, principalmente, aprendidas nessa instituição para
fomentar modos de transmissão, de circulação e de formação das
verdades que dependem da informação pontual, do marketing, para
alimentar o consumo e um governo sobre a vida, denominado
biopolítico, à custa de seu esvaziamento.
É nessa função pela qual esse bloco capacidades-poder-comunicação
se exerce que a aprendizagem enquanto aquisição de informação
ganha relevos, ao converter a educação em uma atividade como o
ensino e as suas tecnologias de si que, na escola, passa a ter uma
restrição do governo pedagógico e da pedagogia, em nome de certa
eficiência do aprendizado e performatividade. Essa transformação do
outro, que circula no âmbito dos saberes pedagógico como um meta-
discurso filosófico da educação que aspira a emancipação desse outro,
se daria por intermédio da transmissão de conhecimentos por aquele
que já o possui dotando os sujeitos que ainda não o possuem de
capacidades, habilidades e conhecimentos, mas, raramente,
oferecendo condições um trabalho sobre si mesmo e para a formação
de atitudes éticas diante da vida.
Ao contrário disso, o que se vê no presente, sobretudo em países
como o Brasil, é a restrição da educação ao ensino e deste a um
processo de aquisição de informação, que não forma sequer
capacidades e competências, quiçá, algumas poucas habilidades
cognitivas e comportamentais, muito raramente, a preocupação com
qualquer atitude, ainda menos crítica.
É importante destacar uma diferenciação entre o que se
compreende por ensino, por educação e por formação. O ensino é
compreendido como um conjunto de tecnologias, reguladas por
conhecimentos científicos e doutrinas pedagógicas, que auxiliam
determinados atores – professores, monitores, livros didáticos –
transmitirem saberes ou a comunicarem informações a outrem em
instituições como a escola. Por seu turno, tradicionalmente, esse ato
performativo supõe por parte dos estudantes uma aquisição de saber
ou um processamento de informação, em função de sua condição
cognitiva e, em geral, subjetiva, denominada de aprendizagem, que se

198
o ingovernável dos corpos e das multidões na escola: formação ética, resistência e ...

apresenta como o seu principal efeito eficiente. Isso não significa que
esses dispositivos tecnológicos tanto de ensino quanto de
aprendizado, ao serem exercidos pelos professores sobre os
estudantes, com a finalidade de dotá-los pedagogicamente de um
saber que supostamente não possuem por alguém que o detém, sejam
isentos de valores morais, de ruídos na comunicação ou prenhes de
marcas subjetivas por parte de seus atores. Às vezes essas marcas se
caracterizam por valores morais ou posicionamentos adotados
irrefletidamente, juntamente com hábitos, rituais ou gestos
cristalizados que entram em circulação de modo inadvertido num jogo
de poder que, por vezes, tende a estados dominação do professor
sobre os estudantes, e vice-versa. Tanto aquela preconcepção moral ou
a condição social quanto essas extrapolações do poder exercido de um
sobre os outros nas salas de aula e em outros espaços-tempo de ensino
na escola aspiram, por assim dizer, certa forma de regulação por meio
dos sentidos de moralização ou de formação moral e política
desempenhados historicamente por essa instituição, nos termos antes
rapidamente explorados.
Não obstante essa função moralizante da educação ser mais
ampla do que a chamada educação escolar, esta última ocupa um
papel relevante ao configurar uma forma ao governamento das
subjetividades daqueles que atuam nessa instituição, particularmente,
os mais jovens, subjugando-os a uma moralidade, a uma sociabilidade
e uma ordem social. Para além da função de dotá-los de saberes,
informações, habilidades, dentre outras aquisições relacionadas ao
ensino ou ao aprendizado, tal subjugação é desenvolvida por
intermédio de tecnologias positivas do poder, caracterizadas nesse
caso não somente pela transmissão de valores, de ideias ou, mesmo, de
ideologias, como também, e principalmente, por práticas postas em
circulação nessa instituição. Tais práticas compreendem, além do
currículo escolar, a distribuição dos estudantes num tempo e num
espaço específico, a sua submissão aos exames de toda a natureza,
assim como a rituais instituídos que definem formas de hierarquização
nas relações, de competitividade, de individuação, critérios de status
social, sem contar a eficiência profissional almejadas pelos processos
de capacitação e de aquisição de competências ou, todo um perfil
empreendedor de si e consumista, como os exigidos no tempo
presente. Dessa forma, a educação escolar se ocupa de introduzir as
crianças e os jovens no mundo existente, com todas as suas mazelas,
injustiças sociais e desigualdades, ainda que os protejam em princípio
e que consinta racionalmente essa forma de governo que visa formar a
população governável.
Não obstante toda o empenho de inúmeras teorias e filosofias da
educação se ocuparem do sentido emancipatório do sujeito, desde a
modernidade, em termos transcendentais ou utópicos,

199
pedro a. pagni

paradoxalmente, a escola se estruturou genealogicamente como uma


instituição que se ocupa de sua subordinação aos valores dominantes,
às práticas governamentos hegemônicas e à docilização dos corpos,
com vistas a formar uma população governável. Criada na
modernidade para contribuir para a constituição de uma sociedade
disciplinar, a educação escolar se concentrou na formação de sujeitos
dóceis e obedientes, sendo alterada parcialmente a sua configuração
para que os dispositivos de segurança adentrassem a instituição a
partir da segunda metade do século passado e, mais recentemente, que
tais dispositivos ganhassem outra configuração com as chamadas
políticas de inclusão. Contudo, tais modulações empreendidas para
atender as exigências dos blocos de poder-capacidades-comunicação,
desenvolvidos historicamente, assim como as demandas dos
segmentos sociais, que passaram a ser integrados sob o signo do
governo da população, não abrandam a função moralizante da
educação, assumindo um papel estruturante na escola moderna.
Certamente, isso dificultaria a sua possibilidade de reinvenção
de modo que essa estrutura hierárquica, de uma governamentalidade
verticalizada e de uma subjugação do sujeito fosse implodida, para dar
lugar a uma outra forma de organização destinada ao ensino e à
educação moral em que, politicamente, os cidadãos fossem formados
para serem obedientes, responsáveis, graças dispositivos disciplinares
e/ou de segurança. Contudo, desde o início da modernidade, as
filosofias e teorias da educação também postulam que, por meio dessa
obediência ou de uma suposta liberdades113, a pedagogia seria
responsável pela formação de sujeitos autônomos e críticos. Ora, o
fracasso dessa promessa pedagógica e filosófica educacional se deu,
provavelmente, por entender a autonomia como um atributo da
vontade e a crítica como um exercício da razão, restringindo
conceitualmente esta última ao campo epistemológico e aquela a uma
disposição política do sujeito. Mesmo as teorias e filosofias da
educação inspiradas no materialismo tiveram dificuldades em efetivar
essa promessa, e não apenas por questões ideológicas como se
presume, mas também porque, por um lado, não foram capazes de
radicalizar as contradições sociais e políticas para o âmbito simbólico e
micropolítico da escola, problematizando historicamente como se
materializam em práticas. Por outro lado, se apoiaram excessivamente
num sujeito e numa episteme que o legitima universalmente, em
função de sua origem e consciência, desconsiderando que a sua

113 Para maior aprofundamento, recomendo a análise desse paradoxo entre a


liberdade e a obediência pressuposta pela filosofia do iluminismo, assim como a
discussão sobre a diferenciação entre disciplina e instrução na pedagogia de Kant,
desenvolvidas por Frédéric Grós (2017).

200
o ingovernável dos corpos e das multidões na escola: formação ética, resistência e ...

constituição em última instância se refere a um ato de dizer não, a uma


atitude contra determinada forma de subjugação e de governo, para
ser rigoroso com o que sugere Foucault (2000), não implica na recusa
a toda forma de governo.
Isso significa admitir que essa forma de organização e de
governo exercido pela escola, se seguirmos o que esse filósofo francês
denomina de governamentalização - isto é, de que esse governo ocorre
como um jogo entre ela e a crítica –, esta última seria subtraída do
processo educativo, por mais que seja propagada por ele. Dessa forma
a subjugação que forma o sujeito se tornaria algo similar a uma espécie
de servidão, onde o exercício reflexivo do pensamento sobre si e a
subjetivação são nubladas, como uma espécie de servidão irrefletida,
voluntária por assim dizer. Não que deixe de haver resistência do
sujeito a essa forma de governamento, mas ela se rarefaz, ao menos
por parte daquela população governada e regulada pelas tecnologias
de biopoder. Nesse sentido, aquela atitude crítica que encontra sua
forma em certa rebeldia irrefletida, que teria seu princípio ontológico
não na obediência cega ou esclarecida, mas na liberdade, ainda que
irrefletida pela busca de uma saída, se arrefece no tempo presente.
Se entendermos essa atitude como um não suportar mais as
formas simbólicas e os imperativos morais que tornam cativos os
sujeitos, como um princípio de sua formação ética, que o singularizam
e demarcam a presença de sua vida no mundo, é ela que se esfacela no
tempo presente, comprometendo com isso o pouco de
substancialidade ética que lhe restou. Afinal, é essa atitude que
mobiliza forças das mais diversas ordens para se efetivar e ocorrem
em meio as relações de poder e ao contexto cosmo-político existente,
em sua multiplicidade, rompe com a identidade reinante, assim como,
em sua intensidade, faz com que a vida se intensifique, tornando-se
outra, diversa, e constituindo essa diferença e aquele devir o solo sobre
o qual os processos de subjetivação ocorrem e a formação ética se dá.
Seja ela singular, seja comum, essa formação difere da educação
moral empreendida pela escola e do ensino aí produzido, embora
possa ocorrer no seio dessa instituição, apesar dela, ou, mesmo, no
tempo-espaço denominado de aula. Contudo, dada a sua
imprevisibilidade temporal e de sua singularidade, a ocorrência desse
acontecimento e dessa diferenciação ética distendem o sujeito até a sua
reinvenção por meio de processos outros de subjetivação, implicando
numa transformação que está fora do alcance de sua racionalização,
das aspirações da escola e do planejamento do ensino. Isso porque
implica necessariamente o incomodo do outro com que o docente
trabalha, a mobilização das forças para que este, corajosamente, se
encontre abertos para enfrentar os efeitos que esse trabalho sobre si de
outrem pode ocasionar e disposto a se concentrar numa ação em que
este último se torne distinto de si e das verdades que sustentam suas

201
pedro a. pagni

formas de existência. Levando a esse outrem por um caminho pelo


qual também é desconhecido para si e se arriscando a leva-lo a um fim
cuja sua própria expectativa possa ser frustrada, essa formação ética
implica na transformação tanto de um quanto de outro, graças ao
constante exercício de si (e, poderíamos inferir, psicagogia) instaurado
nessa relação denominada de pedagógica. Por sua vez, a mesma
formação ética pode se dar com outros atores da escola,
conhecimentos ou encontros fortuitos, com problemas ou, mesmo,
decorrentes de relações entre estudantes, estudantes e funcionários,
com a comunidade, dentre outros, gerando algo parecido com a
possibilidade de conviver com as diferenças formais entre eles e, ao
mesmo tempo, de desenvolverem ações, terem sentimentos e lutas
comuns.
Para essa formação ética, uma relação com a estética da
existência deveria imprescindível, como venho postulando (PAGNI,
2018), alinhavando as questões da amizade e da erótica no campo
pedagógico e, problematizando, o humanismo presente nas discussões
acerca da formação humana no campo filosófico-educacional. Para
isso, entendo que este campo poderia ser um pouco mais atencioso
com relação ao que habita o solo da ética, a saber, o jogo da vida e o
que forma a existência, do mesmo modo que aquele campo poderia ser
mais aberto à biopolítica que o preside, numa espécie de ocupação
com o governo da existência que ultrapassa qualquer designação de
humano, que resvala o inumano da arte, explorado em outra ocasião
(PAGNI, 2014), e que admite ser afrontado pelo ingovernável da vida,
especialmente, daquelas que se caracterizam no presente por sua
precarização.
Tanto aquela atenção quanto esse cuidado recomendados me
parece colocar no centro de suas preocupações a vida em seu jogo e,
com isso, fazer da formação ética o seu problema político dileto, ainda
que se reconheça os limites do ensino e da educação escolar para
empreende-la, que remete a velha dúvida se a ética pode ser ensinada
ou somente aprendida, assim como se esse aprendizado é de uma
ordem exclusivamente racionalizável. Esse é o desafio que parece se
apresentar dessa perspectiva de formação na medida em que, ao
mesmo tempo que não se pode formar eticamente, se dispõe a tal,
contanto com a anarquia das forças e dos efeitos de poder e de
governo que podem, enfim, auxiliar no processo de sua catalisação e
de visibilizar seus agenciamentos.
Para enfrenta-lo a principal tarefa talvez seja não a de reinventar
a escola, mas promover dentro dela esse processo e dar visibilidade a
formas de agenciamentos e de existências comuns que já a habitam.
Para tanto, parece ser crucial abrir-se a um universo paralelo
obscurecido pelas tecnologias do ensino e do aprendizado, pelos
dispositivos disciplinares e de segurança da educação escolar, por um

202
o ingovernável dos corpos e das multidões na escola: formação ética, resistência e ...

olhar que, ao pretender iluminar, determina o que merece ser visto e o


que deve ganhar vida nas redes e nos processos de subjetivação que
constituem essa instituição. Ao almejar tal abertura, assim, é
fundamental que se busque um olhar outro, que perambule entre as
sombras e ao que assombre as tecnologias e os dispositivos do
biopoder, indicando a vida que atravessa os mecanismos que tentam
qualifica-la e que escapam às normas que a regulam, sendo esse o
campo reflexivo da formação ética na escola.

do erro ao ingovernável das multidões: a força da fragilidade dos


corpos na escola

Se a escola por meio de suas tecnologias e dispositivos é


responsável pela qualificação e regulamentação da existência das
crianças e jovens que a frequentam, introduzindo-os ao mundo
público, restos e excessos dessas vidas aí presentes parecem escapar
do olhar que procura captura-los por meio epistemes e de
configurações biopolíticas no sentido de formar a população. O crivo
dos saberes pedagógicos e das tecnologias de ensino empreendidas
para a qualificação e a regulamentação da vida infantil e da população
é marcado por uma forma de governamentalidade vetorialmente
descendente, que exclui os restos ou os excessos que não podem ser
vistos como fenômenos e, portanto, deixam de se converterem em
objetos de conhecimento, podendo ser apenas pensados
filosoficamente. Contudo, também o pensamento filosófico não
apreende essas vicissitudes nem o devir dessas vidas por meio dos
conceitos prefigurados, salvo por juízos determinantes que
corroboram as regras da razão universal e, ao mesmo tempo,
deformam essas vidas para enquadrá-las a categorias prévias. Nesse
sentido, a filosofia tem muitas vezes atuado na educação, sem ser
crítica em relação aos conceitos para abarcar essas vidas, a intensidade
e a potencialidade de seus excessos e restos, onde poderiam encontra-
la em sua imanência, sem o crivo transcendental que a fundamenta.
Ela também não tem se centrado em nos focos de experiência que
produzem, que não implicam assunção de sua redução ao empírico ou
ao fenomenologicamente objetificável, corroborado pelas ciências da
educação, mas em sua reflexividade crítica. É essa atitude crítica em
relação a si mesma e essa abertura ao olhar para a imanência desses
focos de experiência que a filosofia poderia adotar na educação.
Para isso, a filosofia necessitaria assumir um método ensaístico
similar ao artístico e, ao se comprometer com as formas de
expressividade dessas vidas, promover alianças com outros campos
do conhecimento e das artes capazes de lhes dar visibilidade e de
exprimir o que diferencialmente comunicam, com vistas a
problematizar os jogos linguísticos e de poder que as compreendem.

203
pedro a. pagni

Sob tal ótica a filosofia encontraria em outra arte, a da formação ética


na escola, um solo fértil para os ruídos decorrentes dessa vida
incabível, não determinada, errante, por assim dizer, lançando mão
dos juízos reflexionantes – e não somente os determinados – para focar
as experiências que a compreendem. Assim, ela poderia problematizar
tanto aos conhecimentos das ciências da educação e elucidar os limites
pragmáticos das tecnologias de ensino e de aprendizagem para
apreender essas vidas quanto se acercar ao que exprimem, erram,
escapam aos enquadramentos epistêmicos e biopolíticos atuais.
Somente dessa forma a filosofia poderia auxiliar a essas vidas a se
ocuparem e a se governarem na escola, com vistas a se formarem
eticamente na relação com outrem e nas formas de viver em comum
que compreendem.
Desse ponto de vista, o que interessaria a filosofia da educação
seria interceder sobre, com e em essas vidas presentes na escola,
considerando-as em relação não somente ao que podem ser
qualificadas, enquadradas e governadas, como também em seus
limiares, em sua errância e ingovernabilidade. Inspirado numa
homenagem que Foucault faz a Canguilhem, como demonstrado em
outra ocasião (PAGNI, 2016), é na errância que a vida se forma
eticamente, como uma condição ontológica, sendo que a filosofia é
uma das artes que podem auxiliá-la a adquirir (trans)forma-se em algo
mais que uma matéria bruta, corpórea, pulsante, biológica,
normalizável e governável pelas tecnologias do biopoder e pelos
dispositivos da biopolítica.
Ao admitir o erro como uma instância fugidia da episteme e a
sua ocorrência como intrinsecamente ligada à sorte ou ao azar, como
uma espécie de jogo em uma temporalidade imprecisa, Foucault (2007,
p. 54) entende que, por um lado, “formar conceitos é uma maneira de
viver e não de matar a vida”, gerando sua mobilidade, antes do que
sua estagnação, por intermédio de certo trabalho de si; por outro, é um
modo de sua expressão, entre os mais variados possíveis, e uma forma
particular de comunicação, no meio de milhares de seres vivos, capaz
de produzir transformações nesse meio. A formação de conceitos
advogada pela filosofia poderia, ao invés de apelar à imobilização da
vida, dobrar-se sobre tudo que tenta controla-la excessivamente,
persistindo em expô-la e produzindo uma experiência singular dos
sujeitos que, antes do que dizer o já sabido, exprime o seu devir-
errante e autotransformador de si. E, ainda que as escolhas de
condutas pelos sujeitos éticos possam resultar em equívocos, em
devires-minoritários e em contínuos processos de diferenciação, são
essas vidas errantes, estilísticas da existência diversas e verdades
plurais existentes que propiciariam, na esfera pública em geral e no
âmbito escolar em particular, uma mobilidade e uma inovação capazes
de resistir àquelas pressupostas pelo mercado e pela racionalidade

204
o ingovernável dos corpos e das multidões na escola: formação ética, resistência e ...

econômica. Promover essa mobilidade e dar continência a essas


resistências emergentes na escola é um dos desafios da filosofia como
uma arte que não se consubstancia em uma disciplina, mas que nas
mãos dos educadores serve como uma ferramenta para a formação
ética tanto dos outros atores dessa instituição quanto de si mesmo.
Poder-se-ia admitir, dessa forma, que o uso dessa ferramenta
estaria imiscuída nas disputas públicas e na criação de modos outros
de existência, sendo uma das responsáveis por políticas de verdade
afirmativas da vida, na medida em que a formação ética é movida pela
percepção dos equívocos, pela atenção aos acontecimentos e pela
diferença que se processa na subjetivação dos atores, muitas vezes
expressas, mas pouco vista no âmbito da escola e de outras
instituições.
Para que fossem mais vistas, tornadas inteligíveis e dispostas ao
pensamento dos demais atores, os equívocos, os acontecimentos e as
diferenciações éticas que produzem deveriam ser valorados
positivamente. Isso porque se disporiam como móveis de uma
experimentação de si que compreende riscos, um preparo para o
impreparável e uma abertura para se transformar na relação com
outro de si ou com outrem, que geram a sensação de estranhamento, o
sentimento de fragilidade, a percepção da ignorância no sujeito,
fazendo dobrar-se à diferença, acolher ao acontecimento e reconhecer
os equívocos, desaprendendo do que representa e acredita ser para
reencontrar-se em seu devir. Em contrapartida, para que tal propósito
ocorresse na relação com outrem ou com outro, não bastaria
estabelece-lo como uma condição universal a ser conquistada por
ambos, mas seria necessário discutir em que medida cada um deles se
dispõe a assumir os riscos que essas atitudes gerais representam para
as suas existências em particular e para a comunidade em que vivem.
Afinal, elas colocam em xeque tanto as particularidades de sua
existência quanto as convenções estabelecidas pela comunidade,
exigindo mais do que viver por uma questão de sobrevivência e do
que se diferenciar para atender aos atuais objetivos do jogo, um viver
como uma resistência à morte e, principalmente, a toda tanatopolítica,
que acompanha a biopolítica. São nos modos de viver que
experimentam um si outro, diferente do eu individual, nos processos
de subjetivação e que produzem modos de existências distintos dos
existentes, que parece residir, mais do que o ethos filosófico, em uma
condição ontológica que desafia politicamente o intelectual e,
particularmente, o educador no presente.
Vimos pensando essa condição em sua radicalidade ontológica,
tendo em vista, mais recentemente, os corpos e as multidões
desviantes e, especificamente, a ingovernabilidade dos corpos
deficientes e de suas comunidades invisíveis (PAGNI, 2017a; 2017b;
2017c). Do pondo de vista que defendemos, essas formas de vida,

205
pedro a. pagni

assim como os laços de amizade com a deficiência, têm formado


intersubjetivamente uma rede de sociabilidade mais densa e um
aprendizado ético que contraria o esvaziamento almejado pelo
biopoder, especialmente com as políticas de inclusão, servindo como
um importante foco de resistência na escola. Justamente porque
mobiliza um devir comum e um trabalho de reflexão que incide sobre
a formação ética desses atores, tanto esse aprendizado quanto a
formação dessas redes esboçam as linhas de fuga de uma comunidade
que vem e, de certo modo, criam outros paradigmas de inclusão:
menos descendentes, mais transversais. Vislumbramos, na criação
desses paradigmas e na possibilidade de suas possibilidades de
aliança política com outras comunidades, que congregam o que Hardt
e Negri (2005) denominam de multidão, um desvio comum de seus
corpos singulares, a fuga das normas e a explicitação de uma
fragilidade que se tornou resistência aos estados de dominação atual.
Não vou me alongar aqui ao diagnóstico do presente no qual se
insere esse educador – esboçado em outras ocasiões (PAGNI, 2017b;
2017c), mas poderia salientar que tanto nessa multidão quanto nos
corpos que escapam da governamentalidade neoliberal, inclusive das
políticas e dispositivos que tentam incluí-los, o ingovernável se
apresenta como signo de certa impotência do pleno governo estatal, de
sua condução pelo mercado, expondo em sua fragilidade contra a qual
se voltam violentamente, com uma força descomunal. Isso porque essa
inclusão se opera com uma lógica própria, com os vetores da
governamentalidade e se adequa aos fins da produtividade, da
eficiência individual e do desempenho social, enfim, da racionalidade
econômica em voga na biopolítica neoliberal, incluindo como
segmento da população essas vidas e dessas formas de existência que
se diferenciam do padrão e que lhe escapam se manifestando em sua
rebeldia popular e em suas múltiplas impulsividades de uma
multidão ingovernável. É sobre essa ingovernabilidade a que são
chamadas objetivamente a se governar, caso desejem estar e ser
sujeitos.
Sob o desígnio de que aí se encontra o incivilizado do civil, o
animalesco do humano e o indócil do docilizável, é sobre esse núcleo
inumano da subjetividade e essa dimensão ontológica da existência,
por assim dizer, que os discursos em circulação e os inúmeros
dispositivos do biopoder atuam no sentido de induzir ao sujeito dele
se ocupar dessa dimensão subjetiva para se governar em
conformidade com as normas e os regimes de verdade readequados
para que seja incluído. Esse é um diagnóstico que se pode dizer global
e, com maior recrudescimento, que se expressa com algumas
particularidades em países periféricos como o Brasil e outros da
América Latina. Nesses casos particulares, uma série de medidas
acompanharam as políticas afirmativas e de ampliação das margens

206
o ingovernável dos corpos e das multidões na escola: formação ética, resistência e ...

da população para abarcar o que se denominou de inclusão social e


estabelecer formas particulares de governo das diferenças. Entretanto,
essa inclusão como um desdobramento do governo da população na
biopolítica neoliberal tem um preço. Esse preço é cobrado dessas vidas
e formas de existência, como as de quaisquer outras já integradas à
biopolítica que elege o neoliberalismo não mais como uma política
estatal, mas como um modo de vida regulada, excluindo e
submetendo a uma tanatopolítica aquilo que escapa a essas
regulações.
As vidas que por sua precariedade não se assujeitem às normas
múltiplas instituídas e as formas de existência que deixem de servir ao
maquinismo pressuposto pelo neoliberalismo dessa forma instituído
por esse governo das diferenças passam a orbitar a sua margem, a
viver uma vida sem regras e a existir num Estado de exceção. Por
mais flexibilidade a adaptações a essas regulações que o
neoliberalismo tenha na atualidade – em razão de sua ânsia por
inovação e por dar vida ao mercado às custas de um viver sem vida ou
de um sobreviver –, o medo da desregulação, do viver sem a
segurança dada por dispositivos e por essa forma de
governamentalidade funcionam como uma espécie de imperativo
moral, porém, exercido como um sentimento de obrigação e, segundo
Maurizio Lazzarato (2013), como uma espécie de dívida ao qual são
subjugados como segmentos do povo e da multidão que, então,
passam a fazer parte da população. Assim, o preço pago pela inclusão
desses segmentos que compreendem vidas que nessas condições
podem ser distribuídas e reguladas se assim desejarem, e
voluntariamente servir e servir-se da segurança propiciada pelo
biopoder, é o de abrir mão de sua biopotência produzida pela
diferença provocada pela sua relação com o ingovernável do uso que
os sujeitos fazem de seus próprios corpos nos processos de
subjetivação, pela inoperosidade emergente do encontro com os outros
corpos e da diferença suscitada na relação com o substrato ético de um
devir tanto singular quanto comum.
A questão que procuramos responder, dessa forma, é a mesma
pergunta absurda que se indaga Peter Pelbart, ao analisar a biopolítica
atual: “como ter a força de estar à altura de sua própria fraqueza, ao
invés de permanecer na fraqueza de cultivar apenas a força? “(2007, p.
69). Ao analisarmos esses corpos desviantes, por assim dizer, a
hipótese é a de que a força de estar à altura própria fragilidade se
constitui como um dos principais vetores da biopotência, expressos
nas formas de vidas precárias e nos devires que, na relação com
outrem, instigam a criação de outros processos de subjetivação em
instituições como a escola ou apesar dela.
Essa resposta se aproxima também daquela que Paul Beatriz
Preciado (2011) elabora acerca de algumas minorias feministas, dos

207
pedro a. pagni

movimentos LGBTs e, principalmente, das questões que mais lhe


interessam sobre a contrassexualidade e os corpos transgêneros. Para
ele esse corpo seria o da multidão queer que desterritorializaria todo
um emblema ligado a sexopolítica, que ancora o gênero à uma
formulação binária (masculino e feminino) e esta a uma
heteronormatividade. Mas salienta que seria preciso evitar duas
armadilhas às quais essa interpretação estaria sujeita. A primeira seria
a da segregação dessa multidão do espaço público, vendo nela um tipo
de reservatório de transgressão e sendo necessário, já que isso
implicaria em analisa-las numa ótica do progresso, o que parece não
ser o caso. A segunda seria a de que não se poderia pensá-las em
oposição às estratégias identitárias, mas no meio mesmo das
tecnologias de biopoder que as produzem, sendo atravessadas por elas
e, concomitantemente, resistindo a elas. Nesse sentido, conclui
Preciado: ‘“Desidentificação” (para retomar a formulação de De
Lauretis), identificações estratégicas, desvios das tecnologias do corpo
e desontologização do sujeito da política sexual são algumas das
estratégias políticas das multidões queer.’(2011, p. 15-16).
É interessante notar que o que denomina de desvios das
tecnologias do corpo e da desontologização do sujeito não implicam
nem no abandono da perspectivação sobre o corpo como inscrição dos
acontecimentos dessas vidas frágeis nem de um ponto de vista de uma
virada ontológica, em que a ontologia não se resume a uma
essencialização de categorias ligadas ao gênero nem a uma
corporeidade restrita à sua sexualidade binária. Por isso, parece ser
possível vislumbrar possibilidades de relacionar essa sua noção de
multidão do que os estudiosos da cultura africana denominam de
diáspora, em interface com as cosmologias do candomblé, ou das
análises que antropólogos como Viveiro de Castro (2015) realizam do
perspectivismo ameríndio e das cosmologias dos povos da Amazônia.
Independente das eventuais divergências teóricas e, principalmente,
relativa às características particulares da relação com esse outro, seja
como transgênero, seja como os afrodescendente, seja como ameríndio,
alguns autores perspectivando-os mais à luz do que compreendem
como multidões ou a partir de seus corpos singulares, da ruptura e de
cada diferenciação das diferenças que representam, há uma discussão
ontológica comum que a seu modo implicam o ingovernável desse
outro, o a-significante e inominável de sua subjetividade e o necessário
convívio com a força de suas fragilidades.

a formação ética como uma alteridade radical: considerações finais

Em razão dos limites deste capítulo, apenas se indicou a


possibilidade para que a fragilidade dessas forças presentes nos corpos
desviantes e das multidões que escapam a governamentalidade

208
o ingovernável dos corpos e das multidões na escola: formação ética, resistência e ...

neoliberal afrontar as tecnologias de biopoder e os dispositivos de


inclusão em instituições como a escola. Deixou-se descoberta as
discussões sobre a particularidade ontológica e os seus modos de
existência, com vistas a mapear entre as singularidades de seus corpos
e vidas precárias formas de viver juntos e de vida comum
constitutivas de uma comunhão regidas pela diferença, em torno do
qual alinhavam algumas possíveis alianças políticas nas suas lutas em
prol dos direitos civis. Para tanto, seria necessário, também,
reportarmo-nos a algumas experiências e alguns testemunhos, além de
pesquisas que analisam relatos desses atores que enfrentam a força de
suas fragilidades, em vistas a cartografá-los. Para isso seria igualmente
importante certa imersão nas lutas transversas empreendidas por
essas vidas supostamente frágeis, marginalizadas, infames, diferentes,
por assim dizer. Esta demanda implicaria em um outro preparo ético,
a fim de que o educador pudessem articular aquela demanda
intelectual com esse engajamento nas lutas, sendo capazes de
testemunharem as formas de existências singulares e comuns aí
emergentes, assim como, desde de seu interior-comum, compreender
os atravessamentos que se passam, como suas diferenças se aliam com
outras, em torno de que ética e de suas particularidades ontológicas.
Com essa espécie de impostura intelectual parecer ser possível realizar
um trabalho de tradutibilidade entre dois mundos, que desafia a uma
atuação comprometida com a formação ética e a filosofia na escola.
Dessa perspectiva, o que interessa prioritariamente ao educador
é a relação que estabelece com o outro, até onde pode compreendê-la e
até onde vão os pensamentos mobilizados a partir dos agenciamentos
que ocorrem entre eles. O que pode ser interpretado sobre esse outro é
o que agencia em nós, ultrapassando a sua objetificação, ao mesmo
tempo em que interpelando a subjetivação projetada sobre ele, em
busca de uma fragilidade comum. Nesse jogo esse um pode falar sobre
esse outro, quando busca se colocar em seu lugar, assume seu ponto
de vista e se subjetiva, muito mais a partir dos efeitos que produz na
superfície do corpo, ou seja, que aí é possível ver, material ou
expressivamente, do que do que eventualmente pensa ou é como ser, o
que percebe e julga como é sua existência. Por isso, somente é possível
falar apenas da experiência de uma relação com essa face
desconhecida do outro e, ainda assim, de forma aproximativa pelo que
aquele corpo desviante, nos casos aqui em apreço, agencia no sujeito,
mobilizando-o a aproximar-se dele pelos usos, cuidados e
experimentos que faz de si mesmos, mas sem jamais apreendê-lo,
significa-lo ou conhece-lo completamente. Ao tornar incompleta a
alteridade propagada e suspender essa ambição de apreender
completamente o outro para se colocar em seu lugar, esse mesmo
sujeito se sente atraído por essa sua face incompleta e obscura,
justamente pelos afetos e pelos signos do acontecimento que

209
pedro a. pagni

experimenta e os agenciamentos que o colocam em devir,


dessubjetivando-o para que acolha esse outrem e melhor conviva com
a sua diferença, que também é a de um outro de si mesmo. Nisso
reside a alteridade radical que desafia o educador, que implica no seu
comprometimento ético com aqueles que os deslocam de seu lugar, de
seu eixo, convencional.
Desse ponto de vista, o educador alinhado a essa
experimentação poderia antes de dar visibilidade a essas novas
figurar, analisar criticamente as tecnologias de biopoder e os
dispositivos de inclusão que as obscurecem em instituições como a
escola e, sobretudo, que interditam suas formas de expressividade na
esfera pública, denunciando os estados de dominação que podem
compreendê-los e a sua transfiguração micro fascista nessa instituição.
Dar-se-ia, quem sabe assim, novo fôlego ao papel da filosofia na escola
como aquela arte que é política e aquela política artística de denunciar
toda a forma de totalitarismos, inclusive as nascentes ou já velhas,
como herdeira de uma tradição crítica da modernidade que, mais do
que se restringir a uma crítica teórica, a faria a partir da
experimentação de si e da criação de formas outras de vida comum,
afrontadoras das pobres configurações atuais e da racionalidade
econômica da biopolítica neoliberal.

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210
o ingovernável dos corpos e das multidões na escola: formação ética, resistência e ...

PAGNI, Pedro A. A deficiência em sua radicalidade ontológica e suas


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Uberlândia, v. 31, n. 63, número especial 2017a, p. 128-149.
PAGNI, Pedro A. A emergência do discurso da inclusão escolar na biopolítica:
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PAGNI, Pedro A. Lugares da amizade na constituição do pensar filosófico-
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VIVEIRO DE CASTRO, Eduardo. Metafísicas canibais. São Paulo: Editora N-1,
2015.

211
212
sexualidades e infâncias: (des)viar conversas que afirmam
uma infância, para fiar preocupações com a novidade da
criança em aparecimentos.

sílvio gallo
unicamp
gallo@unicamp.br
alexsandro rodrigues
ufes
xela_alex@bol.com.br

introdução
E a educação sempre tem a ver com uma vida que está para
além de nossa própria vida, com um tempo está mais além de
nosso próprio tempo, com um mundo que está mais além de
nosso próprio mundo... e como não gostamos desta vida, nem
deste tempo, nem deste mundo, queríamos que os novos, os
que vêm a vida, ao tempo e ao mundo, os que recebem de nós
a vida, o tempo e o mundo, os que viverão uma vida que não
será a nossa e em um tempo que não será o nosso e em um
mundo que não será o nosso, porém uma vida, um tempo e
um mundo que, de alguma maneira, nós lhe damos....
queríamos que os novos pudessem viver uma vida digna, um
tempo digno, um mundo em que não dê vergonha viver.
Jorge Larrosa, Tremores, p.36-37

Infâncias e sexualidades? Como tratar de um tema tabu, talvez


dos maiores para o campo educativo? Este texto se teceu num diálogo
de duas vozes, quase dois solilóquios que se encontraram e, ao se
encontrarem, se misturaram numa polifonia. Explorações teóricas e
conceituais se mesclam a fatos do cotidiano que mostram a vida nua
do professor na sala de aula e servem de mote para ousar propor o
tema, para ousar pensar o impensável, falar sobre aquilo que a
“decência” manda calar.
Sabemos que a infância foi inventada. Não nos demoraremos
aqui em reafirmar isso que já foi suficientemente trabalhado. Apenas
reafirmaremos, com René Schérer, que a invenção da infância se fez e
se refaz continuamente para colocar as crianças sob tutela dos adultos.
Esta tutela se construiu como uma espécie de “possessão”: os adultos
se apossaram das crianças, as colocaram numa posição de
menoridade, na qual precisam de proteção, de controle, para que não
se desviem do bom caminho, isto é, o de se tornarem humanos

213
sílvio gallo; alexsandro rodrigues

adultos. Essa possessão da infância se fez e se faz por duas instituições


fundamentais: a família e a escola. Quando não está em casa, sob
tutela da família, a criança deve estar na escola, sob tutela dos
professores. Não pode, em qualquer hipótese, desviar-se, perder-se de
qualquer destes dois espaços de controle e de segurança. É como se, na
escola e na família, nós adultos tivéssemos as crianças em nossas
mãos, sob nossa proteção (e, claro, nosso controle). Tutela absoluta. E
Schérer (2014, p. 23-24) se pergunta: não teria chegado o tempo de a
criança sair deste estatuto de menoridade? Não estaríamos no
alvorecer de um novo tempo, a ser marcado pela emancipação da
infância da tutela do adulto? Tendo estado séculos sob essa mão
protetora, não seria hora de livrar-se dela (e-mancipar-se, escapar ao
controle de uma mão que prende, se buscarmos o sentido etimológico
da origem latina da expressão), vivendo por si mesma, afirmando a
criancice da criança? Desde o século XIX, temos acompanhado
importantes processos emancipatórios: o fim da escravidão, a
emancipação dos povos colonizados, a mudança no estatuto da
mulher na sociedade; resta a criança como última tutela destas várias
que vimos serem construídas na modernidade... não terá chegado sua
hora de alçar a um novo estatuto?
Certamente que uma emancipação da infância passa pelo
reconhecimento da criança como ser desejante, como ser sexuado, algo
que a posição de tutela tem negado. Comecemos, então, por explorar
alguns fios deste tecido.

sexualidade infantil?

Afirmar que a infância é uma invenção, uma construção dos


adultos, significa dizer que a criança que conhecemos é uma imagem,
uma representação. Façamos um exercício de observar, na história da
pintura,114 como a criança tem sido representada... Se acompanharmos
o historiador Jacques Gélis (2016), pode-se falar de uma “era sombria”
das crianças na pintura, desde a Idade Média até o século XVII, e da
explosão de uma “infância iluminista”, a partir do século XVIII, o
“Século das Luzes”. Pois bem, desde as “sombras” da representação
das crianças, nas quais ela nunca é protagonista, está sempre em
segundo plano e, curiosamente, com feições que são muito mais de
adulto que de criança, como a demonstrar que os artistas sequer

114Em 2016 o Musée Marmottan Monet, em Paris, sediou uma interessante exposição:
“L’Art et l’enfant – chefs-d’œuvre de la peinture française”, que passou em revista a
representação das crianças na arte francesa ao longo dos séculos. Tivemos ali um
panorama muito interessante e revelador, que pode ser estendido para a produção
das artes plásticas em outras regiões.

214
sexualidades e infâncias: (des)viar conversas que afirmam uma infância, para fiar ...

olhavam com atenção para os pequenos, até as “luzes” da burguesia


europeia colocando-as no centro da tela, seja o pequeno rei,
precocemente coroado, seja a criança burguesa em seu retrato de
família, seja a criança pobre das ruas, o que se vê nos rostos infantis
nas telas é uma espécie de “inocência”.
A imagem da criança é a imagem da inocência, de alguém que
não conhece o mal, que, na tradição da cultura cristã, está aquém do
pecado. A criança não peca, ela é próxima dos anjos, justamente
porque não é sexuada. Um dos principais aspectos da tutela da
infância é a negação da sexualidade infantil.
Em sua obra seminal, Émile Perverti (Emílio Pervertido, sem
tradução para o português) Schérer tratou em profundidade da
problemática da sexualidade das crianças, afirmando-as como seres de
desejo, mas cuja sexualidade é negada pelo adulto que afirma sua
inocência. Ironicamente, o filósofo traz duas imagens muito
representativas: A criança Emílio e o jovem Tintin (aquele mesmo,
herói das histórias em quadrinhos de Hergé) para mostrar como
ambos, ao representarem a criança e o adolescente modernos, são
assexuados. Sigamos sua argumentação abaixo, cuja longa citação nos
parece justificada por não termos a obra traduzida no Brasil:
Por trás da imagem de Emílio (e de Tintin) está
perfilado um Emílio pervertido, reivindicando o contrário
da inocência, um Emílio emitindo a pretensão,
escandalosa para o adulto, de já possuir, e desde a
infância, aquilo que constitui a prerrogativa adulta por
excelência: o sexo e seu uso – ou melhor, os limites
estritamente codificados deste uso. Seriam os adultos,
ou uma parte deles, os perversos, os obcecados que lhe
teriam insuflado uma tal reivindicação? E por que, com
qual finalidade? Quão interessante é para o adulto
manter a ideia de inocência, que lhe assegura, na certeza
de sua própria diferença, a consciência de sua
identidade! Para que o adulto seja adulto, é preciso que
ele tenha sido criança e um adolescente incerto. Pelo
sexo, passa a fronteira. Pois, em outros domínios, a
criança torna-se cada vez mais, para nós
contemporâneos, pela instrução, em corpo e em espírito,
superior àqueles que lhe deram o nascimento. Ela
conhece mais e melhor, ela é mesmo mais forte que os
adultos.
No mais, quem é Tintin, senão a criança-adolescente que
embaraça os adultos, os enrola, os desmascara? Neste
ponto, Tintin se destaca de Emílio, ainda submisso ao
preceptor pela inteligência e pelo vigor. Com Emílio,
tudo é simples, a progressão está assegurada, da
debilidade infantil ao equilíbrio da idade adulta, o ser
completo. Mas entre Tintin, o jovem moderno, e o
homem feito, não há mais que uma diferença: o sexo.

215
sílvio gallo; alexsandro rodrigues

Tintin deve ser assexuado, ou o conjunto do mundo


adulto ruirá. Podemos aceitar tudo de Tintin, o gênio, a
potência, mas de modo algum isso.115 (SCHÉRER, 2006,
p. 47).
Compreende-se, então, a longa história de negação da
sexualidade da criança e a correlativa afirmação de sua inocência.
Segundo Schérer, o mérito de Freud e da psicanálise foi o de ter
afirmado a sexualidade infantil, não sem causar escândalo e
perseguição; mas o preço desta afirmação foi o de ter reivindicado que
tal sexualidade é distinta daquela do adulto, e de tê-la enquadrada
num absoluto familialismo, na triangulação edipiana, constituinte do
próprio aparelho psíquico. Tal posição é corroborada por Deleuze e
Guattari em O Anti-Édipo, que denunciam a “chantagem freudiana”:
É por razões inconfessáveis que se nega a existência de
uma sexualidade infantil, mas é também por razões
pouco confessáveis que se reduz essa sexualidade a um
desejar a mãe e a um querer ocupar o lugar do pai. A
chantagem freudiana consiste no seguinte: ou vocês
reconhecem o caráter edipiano da sexualidade infantil
ou então vocês abandonam toda posição de sexualidade.
(DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 137).
Para Schérer (2006, p. 32), não há uma sexualidade da criança
separada daquela do adulto, que lhe serve de norma; ao contrário,
temos uma única sexualidade, que não é nem a do adulto nem a da
criança, mas a sexualidade humana, que é vivida de formas distintas
na infância e na idade adulta. Tal sexualidade, porém, não pode ser
admitida, pois provocaria um turbilhão social.
A terra incognita da sexualidade dita infantil, região
temível e temida, na qual as erupções são imprevisíveis
e, por esta razão, devem ser evitadas a qualquer preço.
Não se saberia abordá-la, como disse um Ministro da
Educação Nacional, senão com “tato”, reserva” e
“prudência” (declaração de 1º de junho de 1973). Por
certo! Senão, todas as hierarquias e os códigos adultos
estariam arriscados de receber um sagrado golpe!
(SCHÉRER, 2006, p. 52).
Um último apontamento. Para Schérer, a sexualidade da criança
não é distinta daquela do adulto: é maquinação de desejo, ainda que as
maquinações sejam distintas. Ele traz de Charles Fourier a ideia de que
a criança portaria uma espécie de “terceiro sexo”, nem masculino nem
feminino, posto que para este pensador do início do século XIX apenas
na puberdade seria consolidada a sexualidade adulta, esta sim

115 Schérer faz aqui um jogo de palavras com o ça (isso), que na psicanálise freudiana

designa o inconsciente, o domínio da pulsão, do sexo.

216
sexualidades e infâncias: (des)viar conversas que afirmam uma infância, para fiar ...

codificada em masculino/feminino. O fato de não estar codificado em


gênero, não significa, porém, que não se viva o desejo, que não se
produzam maquinações desejantes. Schérer (2006, p. 87-88) assinala
uma espécie de ambivalência da sexualidade da criança: um menino é
mais do que um homem adulto em potência, uma menina é mais do
que uma mulher adulta em potência; pulsam em seus corpos desejos e
afetos que são masculinos, femininos e para além disso.
Tal posição se aproxima de uma perturbadora passagem do livro
O Anti-Édipo, de Gilles Deleuze e Félix Guattari, quando, pensando a
sexualidade, eles afirmaram que: “somos heterossexuais estatisticamente
ou molarmente, mas homossexuais pessoalmente, quer o saibamos ou não, e,
por fim, transexuados elementarmente, molecularmente” (2010, p. 97). Ora,
num nível molecular não há distinção de sexos ou gêneros, apenas
livres fluxos de desejo que são codificados e sobrecodificados num
nível molar. Também Deleuze e Guattari estão referenciados em
Fourier para afirmar que “o desejo não tem pessoas ou coisas como objeto”
(2010, p. 386), ele é nômade e sem objeto, constituindo fluxos
múltiplos. Mesmo quando direcionamos nosso desejo para uma
pessoa, é sempre uma multiplicidade de mundos que visamos:
As pessoas a que nossos amores são dedicados,
inclusive as pessoas parentais, apenas intervêm como
pontos de conexão, de disjunção, de conjunção de fluxos
cujo teor libidinal de investimento propriamente
inconsciente elas traduzem. Então, por mais fundado
que esteja o bloqueio amoroso, ele muda singularmente
de função conforme comprometa o desejo nos impasses
edipianos do casal e da família, no serviço das máquinas
repressivas ou, ao contrário, condense uma energia livre
capaz de alimentar uma máquina revolucionária (e
também a esse respeito Fourier disse tudo ao mostrar as
duas direções opostas da “captação” ou da
“mecanização” das paixões). Mas é sempre com mundos
que fazemos amor. (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p.
387).
Enfim, não podemos nos furtar a pensar as crianças e como elas
vivem o desejo e a sexualidade. Na ambivalência de sua posição,
muito podemos aprender sobre como nós mesmos, adultos, vivemos o
sexo e o desejo. Enquanto dermos as costas a esta realidade, que está
aí, para quem quiser ver, será a nós mesmos que compreenderemos
menos.
A infância para além das imagens e modelos que criamos nos
mostra muito; talvez por isso lhe voltemos as costas ou tapemos os
olhos com as mãos quando ela irrompe. O descontrole da infância nos
apavora, sobretudo a nós que fazemos dos processos educativos nosso
trabalho cotidiano, pois entrevemos aí o fracasso em relação à meta
que nos foi colocada pela sociedade: cuidar para que as crianças

217
sílvio gallo; alexsandro rodrigues

transitassem de modo seguro para o mundo adulto, de acordo com os


modelos. Hoje, tememos essa infância que escapa por entre nossos
dedos, como assinalou Schérer:
Nosso mundo está doente de sua infância. Ele sofre, ele
queima com esses bandidos, com esses selvagens, com
essa raça que ele criou e na qual ele, entretanto, não se
reconhece mais. Ele os detesta e os ama, ao mesmo
tempo. Ele os quer valorizar, enquanto os maldiz. Mais
do que tudo, ele os teme. (SCHÉRER, 2006b, p. 9).
Olhemos para essa infância e para sua vivência da sexualidade,
não para tentar recuperar o controle, mas para aprender.

o cotidiano se impõe...

Talvez uma das únicas profissões que não nos deixe envelhecer
frente à convocação para as novidades do mundo, com ele nos
encantar e também nos assustar seja a de professor. Todos os dias, nas
relações que estabelecemos com os sujeitos da educação, como
professor-aluno, aluno-aluno, aluno-professor, a presença do outro e
de seu mundo, a nossa presença como outro e de nosso mundo, co-
presenças com o mundo, nos permitem belas oportunidades de
(des)aprendizagens. A novidade, como força vital de co-presenças
com o mundo desestabilizam certezas e nos ensinam sobre o que
estamos sendo e nos une ao desejo de estar com o outro e de nos
permanecermos sempre um outro. Praticantes da e com a educação,
compreendendo e validando a importância do outro, nos ensinaram.
porque aprenderam, sobre as belas oportunidades de formação, de
aprendizagens e (des)aprendizagens que se abrem como possíveis
nesses encontros. Poderíamos aqui trazer cenas de encontros de
tempos e espaços dodicentes os mais diversos de nossas ações com a
educação e do que se ensina e se aprende desses e nesses encontros de
co-presenças com o mundo em sua novidade. Histórias, não nos
faltariam aqui. Afinal de contas, somos feitos de histórias. Mas para
esse texto, uma cena, como convocação ao mundo, de um mundo que
nos toca pelas franjas, oferecida por um estudante e que se gruda a
outras, nos oferecerá as condições afetivas e também implicativas que
precisamos para nos mantermos nessa conversa afiada e arriscada
sobre a criança e sobre o que delas supomos saber.
Em um dia de trabalho, que parecia desenrolar como tantos
outros dias de trabalho dos espaços formais da educação, um
acontecimento fez com que um dos autores deste texto parasse e
prestasse atenção. Um estudante, de forma serelepe, com riso no rosto,
chega e diz:
– Professor, esse fim de semana vi um vídeo no Youtube de
um cantor que se chama Caio Prado, bicha preta do Rio de

218
sexualidades e infâncias: (des)viar conversas que afirmam uma infância, para fiar ...

Janeiro, que faz uma música poesia-protesto. Ele faz uma arte
ativista. Ele fala da gente. Ele fala de pobre, ele fala de preto,
ele fala de bicha. Ele fala dos restos. Ele fala de tudo que não é
bem-vindo no mundo da norma e do colonizador. Ouvindo-o
e vendo-o não conseguia parar de pensar em você! Ele tem a
nossa cara! Posso lhe mostrar?
E, sem esperar pela resposta, foi logo se ajeitando na mesa de
trabalho, acessando a internet em busca daquilo que o fazia se deslocar
e ir ao meu encontro. Logo, num tempo intensidade, que só é possível
viver na convocação da presença feiticeira do outro, percebi, pelo
brilho de seus olhos e pela geografia nervosa de seu corpo, que ele
tinha um bom motivo para se deslocar, ali estar e pedir passagem. Ali,
ex-posto, compreendi o significado de experiência que tanto nos fala
Jorge Larrosa (2015, p.25-26):
O sujeito da experiência seria algo como um território
de passagem, algo como superfície sensível que aquilo
que acontece e afeta de algum modo, produz alguns
afetos, inscreve algumas marcas, deixa alguns vestígios,
alguns efeitos. [...], o sujeito da experiência é um ponto
de chegada, um lugar a que chegam as coisas, como um
lugar que recebe o que chega e que, ao receber, lhe dá
lugar. [...], o sujeito da experiência é sobretudo um
espaço onde tem lugar os acontecimentos. [...], o sujeito
da experiência se define não por sua atividade, mas por
sua passividade, por sua receptividade, por sua
disponibilidade, por sua abertura. [...], trata-se de uma
passividade feita de paixão, de padecimento, de
paciência, de atenção [...], o sujeito da experiência é um
sujeito ex-posto. [...] Por isso é incapaz de experiência
aquele que se põe, ou se opõe, ou se impõe, ou se
propõe, mas não se “ex-põe”. É incapaz de experiência
aquele a quem nada lhe passa, a quem nada lhe
acontece, a quem nada lhe sucede, a quem nada o toca,
nada lhe chega, nada o afeta, a quem nada o ameaça, a
quem nada ocorre.
Exposto à presença do estudante, ainda ouvi: – Preste atenção
professor. Não nego em dizer que naquele momento imaginei que
fosse mais um daqueles vídeos atrevidos, engraçados e provocativos
de crianças em bando, onde, umas com outras se arriscando em
fronteiras de gênero, sexualidade, raça e território, se colocam em
cenas que fazem nossas certezas e verdades ruir. Nos últimos anos
uma avalanche de vídeos criativos, fabricados por praticantes que não
dominam as técnicas de produção em performances as mais diversas,
tem sido distribuída nas redes sociais. Esses vídeos, ao nos oferecerem
como presente conteúdos e performances singulares, têm nos
permitido compreender e também problematizar outros modos de ser
criança. Vira e mexe, lá vem um amigo e ou estudante trazendo um
novo achado.

219
sílvio gallo; alexsandro rodrigues

De frente ao computador, nervosamente, aquele estudante


digitava palavras mágicas, que funcionavam como chaves para acessar
um tesouro. E num piscar de olhos lá estava o vídeo que tanto
interessava ao estudante. Vi e ouvi. Vi e ouvi de novo. Compreendi
suas razões. E o estudante da mesma forma que chegou, partiu. Ali
estava eu, ex-posto... boquiaberto... paralisado... pensando na vida,
pensando em uma vida. E, quanto mais ouvia aquela música, mais me
via naquele texto, naquela voz, naquele corpo-território que
denunciava a vida e os modos de sobrevivência de meninos e meninas
em seus enfrentamos para se manter na vida e com vida! Um mix de
sensações como experiência ali acontecia. Aquela música como
acontecimento dizia de nós e de um mundo que sem nenhum
constrangimento se mostra como força exterminadora com a chegada
da criança em seu transbordamento e diferença! Gosto de usar a
palavra criança, próxima do sentido com que Jorge Larrosa
compreende a experiência. Não consigo pensar e desejar a criança e
seus efeitos fora da experiência.
[...] é preciso resistir a determinar o que é a experiência
como o que não se pode conceituar, como o que escapa a
qualquer conceito, a qualquer determinação, como o que
resiste a qualquer conceito que trata de determiná-la...
não como o que é e sim como o que acontece, não a
partir de uma ontologia do ser e sim de uma lógica do
acontecimento, a partir de um logos do acontecimento.
Pessoalmente, tentei fazer soar a palavra experiência
perto da palavra vida, ou melhor, de um modo mais
preciso, perto da palavra existência. A experiência seria
um modo de habitar um mundo de um ser que existe,
de um ser que não tem outro ser, outra essência, além de
sua própria existencial corporal, finita, encarnada, no
tempo e no espaço, com outros. E a existência, como a
vida, não pode ser conceitualizada porque sempre
escapa a qualquer determinação, porque é, nela mesma,
um excesso, um transbordamento, porque é nela mesma
possibilidade, criação, invenção, acontecimento. Talvez
por isso se trata de manter a experiência como uma
palavra e não de determiná-la como um conceito.
Porque os conceitos dizem o que dize, mas as palavras
dizem o que dizem e, além disso, mais outra coisa.
Porque os conceitos determinam o real e as palavras
abrem o real. (LARROSA, 2015, p. 43)
Vivendo esta experiência-crianceira em sua intensidade, um
turbilhão de sensações e interrogantes aconteceram. A precariedade de
uma vida (a vida de muitos de nós) se mostrava sem muita
dificuldade. Tendo olhos de ver, via os sentidos que podem ter uma
vida em sobrevivências. De tempo em tempo, para não esquecer, como
se fosse possível, aqui estou com o corpo inteiro sentindo, ouvindo e

220
sexualidades e infâncias: (des)viar conversas que afirmam uma infância, para fiar ...

vendo Caio Prado. E Caio Prado, com seu canto protesto, porque “Não
Recomendado”116, vem nos dizer:
Uma foto, uma foto
Estampada numa grande avenida
Uma foto, uma foto
Publicada no jornal pela manhã
Uma foto, uma foto
Na denúncia de perigo na televisão
A placa de censura no meu rosto diz:
Não recomendado à sociedade
A tarja de conforto no meu corpo diz:
Não recomendado à sociedade
Pervertido, mal amado, menino malvado, muito cuidado!
Má influência, péssima aparência, menino indecente, viado!
A placa de censura no meu rosto diz:
Não recomendado à sociedade
A tarja de conforto no meu corpo diz:
Não recomendado à sociedade
Não olhe nos seus olhos
Não creia no seu coração
Não beba do seu copo
Não tenha compaixão
Diga não à aberração
A placa de censura no meu rosto diz:
Não recomendado à sociedade
A tarja de conforto no meu corpo diz:
Não recomendado à sociedade
Esta poesia, cantada, interpretada por Caio Prado, foi me
trazendo imagens de crianças que recortam minha vida. Via-me na
condição de sobrevivente, estudante e professor. E ao me ver, via
outras crianças que não são boas cópias e corpos para a boa foto. Não
são bons corpos e rostos para os outdoors dos planos de saúde que se
espalham pela cidade e das revistas que buscam ensinar às “boas”
mães como criar seus filhos. Não são bons corpos e rostos para decorar
as salas de aulas das escolas qualificadas a partir de uma métrica que
desqualifica outros saberes, corpos e subjetividades. Não são bons
rostos e corpos para as lojas destinadas às crianças que importam ao
capital. Não são bons corpos e rostos para alguns usos! Mas, aqui não
se pode esquecer que são subjetividades acionadas e manipuladas
quando se pensa o governo da população em seus jogos de inclusão e

116 Caio Prado performing "Não Recomendado" at Sofar Rio de Janeiro on October

19th, 2014 – Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=aq5yOS_XtNU

221
sílvio gallo; alexsandro rodrigues

exclusão. Nos paradoxos que comportam uma existência e as políticas


da população, os rostos racializados, sexualizados, generificados,
territorializados e subalternizados ganham forma nas estatísticas
quando se fazem úteis nas políticas de controle e nas campanhas que
afirmam: Salvem as criancinhas. Livrai-as de todos os males. Afastai-
as das más companhias e, por aí vai. São rostos e corpos com
potencial de inclusão nas campanhas em prol de mais educação, da
escola de tempo integral, para as políticas curriculares e para um
projeto de nação sempre igual. Crianças liminares, crianças em
fronteiras, crianças em situações de rua, em condições guerra, crianças
entre “tiro, porrada e bomba”, crianças (des)viadas, crianças
cuidadoras de outras crianças, crianças despatrializadas,
desterritorizalizadas e racializadas apareciam em minha frente,
acionadas pela força dos “não recomendados”. Estas crianças
passeiam por nós! Somos elas. Não temos dificuldade em acessá-las!

infâncias e normalização

Compreendemos ser importante para nossa argumentação


recorrer a Michel Foucault, uma vez que nos interessa colocar em cena
redes de saberes e poderes que se formaram como dispositivo na
produção dos anormais e de controle da população. Três figuras são
convocadas nos estudos de Foucault (2014): o monstro humano, o
indivíduo a corrigir e o onanista, que a seguir caracterizamos seguido
resumidamente a exposição do filósofo.
I) O monstro humano. Velha noção cujo quadro de
referência é a lei. Noção jurídica, portanto, mas no
sentido lato, pois não se trata apenas das leis da
sociedade, mas também das leis da natureza; O campo
de aparecimento do monstro é um domínio jurídico-
biológico. Sucessivamente, as figuras do ser meio
homem, meio bicho (valorizadas principalmente na
Idade Média), as individualidades duplas (valorizadas
principalmente no Renascimento), os hermafroditas
(que levantaram tantos problemas nos séculos XVII e
XVIII) representaram essa dupla infração; O que faz que
um monstro humano seja um monstro não é tão-só a
exceção em relação a forma da espécie, mas o distúrbio
que traz as regularidades jurídicas (quer se trate das leis
do casamento, dos cânones do batismo ou das regras da
sucessão). O monstro humano combina o impossível e o
interdito.
II) O indivíduo a corrigir. É um personagem mais
recente que o monstro. E menos o correlato dos
imperativos da lei e das formas canônicas da natureza
do que das técnicas de disciplinamento com suas
exigências próprias. O aparecimento do "incorrigível" é

222
sexualidades e infâncias: (des)viar conversas que afirmam uma infância, para fiar ...

contemporâneo a instauração das técnicas de disciplina,


a que assistimos durante o século XVII e o século XVIII-
no exército, nas escolas, nas oficinas, depois, um pouco
mais tarde, nas próprias famílias. Os novos
procedimentos de disciplinamento do corpo, do
comportamento, das aptidões abrem o problema dos
que escapam dessa normatividade que não e mais a
soberania da lei.
III) O onanista. Figura totalmente nova no século XVIII.
Aparece em correlação com as novas relações entre a
sexualidade e a organização familiar, com a nova
posição da criança no meio do grupo parental, com a
nova importância dada ao corpo e à saúde.
Aparecimento do corpo sexual da criança. (...) Podemos
dizer esquematicamente que o controle tradicional das
relações proibidas (adultérios, incestos, sodomia,
bestialidade) foi acompanhado pelo controle da “carne”
nos movimentos elementares da concupiscência. Mas,
sobre esse pano de fundo, a cruzada contra a
masturbação constitui uma ruptura. (...) De fato, essa
cruzada não assume, pelo menos no século XVIII, a
forma de uma disciplina sexual geral: ela se dirige, de
maneira privilegiada, se não exclusiva, aos adolescentes
ou às crianças, mais precisamente ainda aos filhos das
famílias ricas ou remediadas. Ela coloca a sexualidade,
ou pelo menos O uso sexual do corpo, na origem de
uma série indefinida de distúrbios físicos que podem
fazer sentir seus efeitos sob todas as formas e em todas
as idades da vida. (Foucault: 2014, p.285-287)
Como aprendemos com Michel Foucault (2014), entre o monstro,
o sujeito a corrigir e o onanista, a criança na modernidade vem sendo
usada e também convocada a afirmar a norma, para fabricar a família
heterocentrada reduzida em seu interior com seus quartos e camas.
Sobre a criança, seu corpo, sua sexualidade, seu gênero e sua raça,
olhares e discursos bem atentos e elaborados, delas não se desgrudam
e não abrem mão disso. Afinal, todas precisam ser incluídas e, nisso,
como a cruzada contra a masturbação, nem os meninos pervertidos,
malvados, as más influências, as péssimas aparências, os indecentes e
viados, escaparam! E a criança e seu corpo, efeitos de saberes e
poderes continuam sendo uma das peças de extrema importância
nessa engrenagem que atira uma pedra aqui, para atingir um lá. O
corpo, efeitos de saberes e poderes sempre esteve lá, ele é presença
liminar. Ele é ponto de chegada e partida. Aliás, o corpo sempre está
em algum lugar! Ele é alvo! Por ele, micropoderes o tocam e o
convocam às práticas de inclusão e normalização. O corpo a ser
punido, vigiado, disciplinado, produtivo, normalizado e incluído é
resultado das forças que o mantêm em vida produtiva. Esforços,
junções, conexões, interesses políticos e culturais, dele não se

223
sílvio gallo; alexsandro rodrigues

desgrudam e dele não abrem mão. Amam o corpo em boa forma. O


corpo, forma-corpo, forma-identidade, forma-subjetividade, forma-
criança, não passa de efeitos de discursos e de tecnologias de saberes e
poderes que, em redes e conexões que extrapolam tempo e espaço o
faz desejar a sair por aí. O corpo, superfície de exercícios de poder, por
não ser cera moldável, resiste o convite a normatização. Resistindo,
hibridiza-se com outras forças e formas de subjetividade ocupando
fronteiras entre isso e aquilo. Mas uma coisa acontece, os poderes
disciplinares não desistem do corpo! Nessa conversa pensando o
corpo da população higienizada e normalizada, a criança funciona
como força que faz a engrenagem de soberania, disciplina e da
biopolítica serem permanentemente reativadas. Não podemos
esquecer que:
A norma não é simplesmente um princípio, não é nem
mesmo um princípio de inteligibilidade é um elemento
a partir do qual certo exercício do poder se acha
fundado e legitimado. [...] A norma não tem por função
excluir, rejeitar. Ao contrário, ela está sempre ligada a
uma técnica positiva de intervenção e de transformação,
a uma espécie de poder normativo. (FOUCAULT, 2014,
p. 43)
Muitas são as histórias contadas pela boca do poder, nas quais
excluídos do jogo da norma, transformados em monstros, buscam
imprimir efeitos sobre o corpo-criança que importa. Histórias de
ciganos que raptam criancinhas desatentas como forma de vingança,
de bruxas que fazem feitiços com partes do corpo da criança, do
homem do saco que recolhe crianças desobedientes, do caboclinho
d’água que leva para o fundo do rio as crianças levadas que vão se
banhar em suas águas sem a autorização de seus responsáveis, não nos
faltam. E quando nos faltam, porque as crianças estão enojadas dessas
histórias, basta que folheemos as páginas de jornais em suas
companhias. E de forma endereçada, vamos dizendo: Veja bem aqui o
que acontece com crianças que não respeitam seus pais, seus
professores, seus tutores. Veja aqui o que acontece com crianças que
não querem ir para escola. Se elas estivessem em casa com seus pais e
ou na escola, isso não teria acontecido. Ah, quem conta estas histórias
parece que não sabem das “balas perdidas” que encontram crianças
em suas casas na companhia de seus responsáveis e guardadas na
escola. Não podemos esquecer que que o espetáculo da morte faz
funcionar a correção dos anormais via exemplo de um corpo que
perde o direito de viver e ou que sofre duras penas em função de suas
performances e resistência a norma. Ainda acreditam por aí que:
Seria necessário que as crianças pudessem vir aos
lugares onde é executada; lá fariam suas aulas cívicas. E
os homens feitos lá reaprenderiam periodicamente as
leis. Concebamos os lugares de castigos como um

224
sexualidades e infâncias: (des)viar conversas que afirmam uma infância, para fiar ...

Jardim de Leis que as famílias visitariam aos domingos.


[...] Bem antes de ser concebido como objeto de ciência,
pensa-se no criminoso como elemento de instrução.
Depois da visita de caridade para partilhar do
sofrimento dos prisioneiros — o século XVII a inventara
ou restabelecera — pensou-se nessas visitas de crianças
que viriam aprender como a justiça da lei vem se aplicar
ao crime: lição viva no museu da ordem. (FOUCAULT,
2004, p. 92-93).
As crianças não precisam mais ir aos lugares de mortes e de
encenação de correção nas praças públicas para ver a força do rei e do
poder do soberano. Para muitas crianças essas histórias fazem parte de
suas vidas. As crianças, essas que não queremos e não gostamos de
ver, esses “anormais” aprendem na mais intima relação com a vida a
desviar das mãos que lhe tiram o sonho. As histórias das mortes das
crianças se espalham nas páginas de jornais. Elas de alguma maneira
fazem algumas pessoas lembrarem das três figuras icônicas da
modernidade (os monstros, os incorrigíveis e a onanista) em sua
obsessão pela anormalidade e a norma. A anormalidade antecede a
normalidade. É preciso inventar e produzir saberes sobre o anormal e
a anormalidade. Assim, o monstro, os incorrigíveis e a crianças
masturbadora organizam os discursos e as práticas de correção. A
criança monstro, essas que que comportam dois reinos em si, humano
e animal, são nomeadas todas os dias. Nomes para suas animalidade,
suas monstruosidades contextualizam e se atualizam: bichinha,
viadinho, macaco, piranha, filho de uma égua, filho de vaca, cachorra
no cio! Foucault (2014) vai nos lembrar que a monstruosidade
comparece nos discursos jurídicos e religiosos mediante:
[...] uma infração do direito humano e do direito divino,
isto e, à fornicação, entre os genitores, de um indivíduo
da espécie humana com um animal. E por ter havido
uma relação sexual entre um homem e um animal, ou
entre uma mulher e um animal, que o monstro, em que
se mesclam os dois reinos, vai aparecer. [...] Assim, a
desordem da natureza abala a ordem jurídica, e ai
aparece o monstro. [...] É ai que aparece efetivamente o
problema da monstruosidade. É igualmente monstro o
ser que tem dois sexos e, por conseguinte, que não se
sabe se deve ser tratado como menino ou como menina;
se deve ser autorizá-lo a se casar e com quem; se pode
ser titular de benefícios eclesiástico, se pode receber as
ordens religiosas, etc. (FOUCAULT, 2014, p. 55-56)
No contemporâneo, rimos desses nomes e com eles aprendemos
a produzir o deboche, a ironia e também a fazer política. Mas não
podemos esquecer que crianças em suas monstruosidades são
reduzidas ao seu mínimo biológico pelos discursos ofensivos, por
pauladas e pedradas, por práticas que prometem a cura, pelas balas

225
sílvio gallo; alexsandro rodrigues

perdidas e pelos discursos de normalização e pelas instituições de


sequestros. A carrocinha que recolhe crianças levadas nesse momento
assume os formatos de instituições de sequestros que não suportam
vê-las circulando por aí. Suas presenças em fronteiras, suas
monstruosidades são uma afronta à ordem e aos bons costumes. As
crianças que circulam por aí sem a companhia de um adulto
normatizado, higienizado e moralizado ganham um quanto de
monstruosidade. Figuras de muitos reinos se encontram nessas
crianças. Com essas histórias que muitos de nós bem conhecemos, nos
lembramos da “Máquina a vapor para a rápida correção das meninas e
meninos”117 explorada por Michel Foucault em Vigiar e Punir. Não
basta somente as histórias aos modos de Pinóquio, é preciso inventar
máquinas que transformam monstruosidades em crianças obedientes,
como é o caso dessa imagem do fim do século XVIII, na qual
encontramos a seguinte legenda:
Avisamos aos pais e mães, tios, tias, tutores, tutoras,
diretores e diretoras de internatos e, de modo geral,
todas as pessoas que tenham crianças preguiçosas,
gulosas, indóceis, desobedientes, briguentas,
mexeriqueiras, faladoras, sem religião ou que tenham
qualquer outro defeito, que o senhor Bicho-Papão e a
senhora Tralha-Velha acabaram de colocar em cada
distrito da cidade de Paris uma máquina semelhante à
representada nesta gravura e recebem diariamente em
seus estabelecimentos, de meio-dia às duas horas,
crianças que precisem ser corrigidas. Os senhores
Lobisomem, Carvoeiro Rotomago e Come-sem-Fome e
as senhoras Pantera Furiosa, Caratonha-sem-Dó e Bebe-
sem-Sede, amigos e parentes do senhor Bicho-Papão e a
senhora Tralha-Velha, instalarão brevemente máquina
semelhante que será enviada às cidades das províncias
e, eles mesmos, irão dirigir a execução. O baixo preço da
correção dada pela máquina a vapor e seus
surpreendentes efeitos levarão os pais a usá-la tanto
quanto o exija o mau comportamento de seus filhos.
Aceitam-se como internas crianças incorrigíveis, que são
alimentadas a pão e água. Gravura do fim do século
XVIII. (Coleções históricas do INRDP).
A máquina a vapor, de lá pra cá, não cessou de ampliar seus
tentáculos e seu poder de alcance na população! Pensam que é da
criança e da infância que essa maquinaria se ocupa? Sim e não! A
máquina a vapor com suas promessas de correção nos acompanha a
alguns séculos. Com Foucault (2014) aprendemos que, desde o século
XVIII a máquina a vapor põe a fumaça das artes de governar para

117 Imagem disponível em: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b84143382

226
sexualidades e infâncias: (des)viar conversas que afirmam uma infância, para fiar ...

circular e defumar os corpos, primeiramente em torno da masturbação


das crianças. Nesse sentido, a criança masturbadora torna-se uma
questão de preocupação para as políticas da população com suas
preocupações com a hereditariedade. Todo um arsenal de tecnologias,
de discursos e de práticas se espalhou em técnicas transferíveis nos
aparelhos estatais, nas instituições de sequestros, como a escola, e a
família burguesa é seu alvo.
No fundo, o que se pediu à família restrita, o que se
pediu à família-célula, o que se pediu à família corporal
e substancial, foi que se encarregasse do corpo da
criança que, no fim do século XVIII, estava se tornando
um desafio importante por duas razões. De um lado,
pediu-se a essa família restrita que cuidasse do corpo da
criança simplesmente porque a criança vivia e não devia
morrer. O interesse político e econômico que se começa
a descobrir na sobrevivência da criança é certamente um
dos motivos pelos quais se quis substituir o aparelho
frouxo, polimorfo e complexo da grande família
relacional pelo aparelho limitado, intenso e constante da
vigilância familiar, da vigilância dos filhos pelos pais.
Os pais têm de cuidar dos filhos, os pais têm de tomar
conta dos filhos, nos dois sentidos: impedir que morram
e, claro, vigiá-los e, ao mesmo tempo, educá-los. A vida
futura das crianças está nas mãos dos pais. O que o
Estado pede aos pais, o que as novas formas ou as novas
relações de produção exigem é que a despesa, que é feita
pela própria existência da família, dos pais e dos filhos
que acabam de nascer, não seja tornada inútil pela morte
precoce dos filhos. A família tem de se encarregar, por
conseguinte, do corpo e da vida dos filhos - essa e
certamente uma das razoes pelas quais se pede que os
pais deem uma atenção contínua e intensa ao corpo dos
filhos. (FOUCAULT, 2014, p. 221-222)
Aí, na família, começa a repressão à sexualidade da criança de
que tratamos no início deste texto. Mas no contemporâneo, o cuidado
com o corpo e a sexualidade da criança, não se limita só à família
burguesa. Nas biopolíticas, não há corpo que escape, pois:
A sexualidade da criança é o engodo por meio do qual a
família sólida, afetiva, substancial e celular se constituiu
e ao abrigo do qual a criança foi subtraída da família. A
sexualidade das crianças foi a armadilha na qual os pais
caíram. É uma armadilha aparente - quero dizer, uma
armadilha real, mas destinada aos pais. Ela foi um dos
vetores da constituição dessa família sólida. Ela foi um
dos instrumentos de troca que permitiram deslocar a
criança do meio da sua família para o espaço
institucionalizado e normalizado da educação. [...] A
sexualidade das crianças, a meu ver, diz muito menos
respeito as crianças do que aos pais. Em todo caso, foi

227
sílvio gallo; alexsandro rodrigues

em torno dessa cama duvidosa que nasceu a família


moderna, essa família moderna sexualmente irradiada e
saturada, e medicamente inquieta. E essa sexualidade
assim investida, assim constituída no interior da família,
que os médicos - que desde fins do século XVIII já têm
controle sobre ela - vão retomar em meados do século
XIX, para constituir, com o instinto de que lhes falei nas
sessões precedentes, o grande domínio das anomalias.
(FOUCAULT, 2014, p. 234-235)
Esta citação de Foucault faz eco com aquilo que vimos antes com
Schérer, com Deleuze e Guattari. Há todo um investimento sobre o
corpo e a sexualidade da criança, para negá-la, contê-la, porque seu
afloramento colocaria em risco o mundo adulto. E um dos aspectos
deste risco é aqui destacado por Foucault: o controle da produção. Um
corpo atravessado pelo desejo e pela sexualidade é um corpo que já
não pode ser tão dócil assim à disciplina necessária para a produção. O
tempo do corpo da criança que se quer produtiva passa a ser um
tempo capitalizado, normalizado e normatizado. Deixá-lo à deriva em
si, vagando por aí, é sinal de perigo e de irresponsabilidade da família
e das instituições de sequestros. A criança é apenas um ponto de
transmissão.

para não concluir, apenas (des)viar

Iniciamos este texto pensando o que se passa em educação, a


novidade da educação e os sujeitos da educação. Na companhia de
Larrosa (2015) pudemos reiterar que a educação tem a ver com uma
vida e com os sentidos que podem assumir uma vida. Logo, os sujeitos
da educação, sujeitos encarnados, estudantes e professores, são co-
presenças no mundo que se fazem e se refazem no acontecimento e
pelo desejo de estarem juntos em suas diferenças. A educação, essa
que nos interessa, como acolhimento à novidade do mundo, se dá no
entre e com aquilo que nos acontece. A experiência em educação nos
convida a mudar o ritmo, a prestar atenção na chegada do outro, ao
que nos acontece e nos colocarmos em condição de acolher a
novidade.
Um aluno, e não o aluno, irrompe a rotina do cotidiano e nos faz
prestar atenção naquilo que o movia e a ele se apresentava como de
extrema importância. E, pela sua importância, deveria ser
compartilhado. Era Caio Prado e sua música a razão do deslocamento.
O estudante se via experiência de Caio Prado e, ao se ver, nos via. O
endereçamento daquele vídeo nos pegou em cheio. Imagens as mais
diversas das crianças foram sendo composta ao longo do texto e fomos
percebendo os usos que se fazem das crianças monstruosas, as que não
aparecem nas capas de revistas e em alguns bens de consumo. Mas

228
sexualidades e infâncias: (des)viar conversas que afirmam uma infância, para fiar ...

que aparecem nos discursos bem arrumadinhos dos interessados em


capturar seus corpos em nome da norma.
Passeamos entre conceitos de Foucault, de Schérer, de Deleuze e
Guattari para colocar em tela a criança e sua sexualidade como
instâncias a serem problematizadas e pensadas para além da tutela e
da interdição. As crianças (des)viadas, (des)avisadas, os meninos
pervertidos, os malvados, as más influências, as péssimas aparências,
os indecentes e os viados da música de Caio Prado trazem com suas
presenças o fantasma permanente da sociedade da norma e da ordem.
Pelas sombras do desejo por uma forma de vida, uma forma
identidade higienizada normatizada e normalizada, a criança, peça de
obsessão, faz funcionar uma complexa engenharia nas arte de
governar. A criança, o seu corpo, a sua sexualidade, a sua saúde, a sua
doença, um projeto de nação é colocado como pauta na junção entre o
judiciário, o biológico, o divino, a medicina e a política. Eliminam-se
os monstros, aqueles formados por dois reinos (humano e animal),
corrigem-se a partir das instituições disciplinares os corrigíveis, e
cuida-se do corpo da criança e do adolescente na interdição da
masturbação. A masturbação, esse segredo universal, tornou-se a
grande responsável pelas doenças, comprometendo também a
hereditariedade. Em nome da criança, nos usos que se fez e se faz da
criança em sua proteção, um único alvo: a família na manutenção de
sua condição angelical, se reduz sua presença à família reduzida.
Afastam-se todos os perigosos da criança. Somente o corpo do pai e da
mãe estão autorizadas a zelar por seu tesouro. Na proteção da criança
toda ameaça precisa ser eliminada e a família (heterocentrada,
monogâmica, medicalizada) torna-se a guardiã natural e responsável
para manter a integridade dessa vida.
Nos desdobramentos arquegenealógicos de Foucault para pensar
a modernidade, o sujeito/subjetividade criança, efeitos de saberes e
poderes na relação entre soberania, disciplina e biopoder engendram e
fazem funcionar o que tomamos por realidade e infância. A criança e a
categoria analítica “criança” nos parece ser uma personagem
ficcionada (Emílio, Tintin, dentre tantos outros...), pano de fundo,
pretexto, imagens de tempos dentro de tempos de extrema
importância no governo da família, na retroalimentação das
instituições de sequestro e no governo da população. Sobre ela, vemos
forças de diferentes poderes acontecerem no aqui e agora. As crianças
comparecem, aparecem e desaparecem nos rastros desses fragmentos
de discursos dentro de discursos e nos ajudam a compreender
algumas imagens que temos sobre a sexualidade e as composições em
torno da família núclear marcada por tecnologias de saber-poder
sobre o corpo e a população. Por isso, salvemos as crianças dessa
história mal contada! Muitas outras estão aí para serem construídas...

229
sílvio gallo; alexsandro rodrigues

referências

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo. São Paulo: Ed. 34, 2010.
FOUCAULT, Michel. Os anormais: curso no Collège de France (1974/1975). São
Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2014.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. 29ª ed. Petrópolis: Vozes, 2004.
GÉLIS, Jacques. L’Art et l’enfant – chefs d’œuvre de la peinture française.
Vanves: Hazan, 2016 [catálogo da exposição com textos analíticos].
LARROSA, Jorge. Tremores: escritos sobre experiências. Belo Horizonte:
Autêntica, 2015.
MUSÉE MARMOTTAN MONET. L’Art et l’enfant. Paris, 2016. Connaissance des
arts – hors-série [revista ilustrada com textos e comentários analíticos].
PELBART, Peter Pál. Vida nua, vida besta, uma vida. Disponível em:
http://p.php.uol.com.br/tropico/html/textos/2792,1.shl Acesso em:
13/04/18.
SCHÉRER, René. Émile Perverti. 2. Ed. Paris: Laurence Viallet (Désordres),
2006a.
SCHÉRER, René. Petit Alphabet Impertinent. Paris: Hermann, 2014.
SCHÉRER, René. Pré-ambule: l’échec d’une mainmise. In: FOURIER, Charles.
Vers une enfance majeure. Paris: La Fabrique, 2006b.

230
a escola, o mundo, a vida
escuela y vida buena. sentido común y prudencia política

gladys madriz ramírez


universidad simón rodríguez;
universidad central de venezuela
gladysmadriz@yahoo.com

introducción

Lo “bueno” en la Ética Humanista es la afirmación de la


vida, el despliegue de los poderes del hombre. La virtud es la
responsabilidad hacia la propia existencia. Lo “malo” lo
constituye la mutilación de las potencias del hombre. El vicio
es la irresponsabilidad hacia sí mismo.
Erich Fromm

Durante mi disertación estaré jugando, en el sentido de dar que


pensar, con dos grandes categorías que me he inventado: por un lado,
la del “síndrome de la sinrazón política”, y por otro la del
“deslenguado” político. De ahí que, en este trabajo nos hemos
propuesto realizar un análisis de carácter fenomenológico
hermenéutico crítico con el fin de contribuir a comprender mejor el
denominado sensus communis, o sentido común118, así como la
prudentia, frente a comportamientos políticos calificados de:
irracionales y de actitud deslenguada. Como una modesta
contribución del análisis realizado, podemos señalar a las
denominadas diligencias del formar-se en el sensus communis y la
prudentia, que expondré en el cierre del texto.

1. el asunto de la sinrazón.

Un síndrome, tal y como señala el diccionario de la Real


Academia de la Lengua es un conjunto de signos o fenómenos
reveladores de una situación generalmente negativa. De manera, que
al conjunto de comportamientos desadaptados y violentos pudiéramos
denominar como el “síndrome de la sinrazón”.
Se me ocurre que también pudiéramos pensar en este síndrome
como el fenómeno del sentido vs el sinsentido. El ser humano en su
vida cotidiana se ve impulsado por conseguir el sentido de las cosas,
así como del sentido de lo que hace y cree. Pero la ciencia moderna y

118 Como diría Voltaire: “El sentido común no es nada común”.

233
gladys madriz ramírez

la filosofía analítica entre ellas, establecen una serie de condiciones


para ocuparse del sentido que experimenta el hombre, como si se
tratase de la única manera permitida de pensar-se. En un interesante
trabajo que se ocupa de esta temática Cordua señala:
Los sacrificios que exige esta forma moderna de
ascetismo son enormes. Primero, el angostamiento del
campo de la filosofía, que cede todos sus asuntos
sustantivos a la investigación científica como
consecuencia de haber decidido que el mundo no consta
sino de hechos y que el lenguaje adecuado para referirse
a ellos son las proposiciones verificables fácticamente.
Luego, la afirmación categórica de que hay cosas
inefables y que sobre ellas no cabe sino guardar silencio.
La prohibición de hablar sobre lo inverificable se
fortalece con una exhortación moral: no usar el lenguaje
más que para referirse a lo fáctico so pena de cometer
abusos de lenguaje, esto es, de incrementar el
sinsentido. El límite que separa al sentido del sinsentido
queda establecido firmemente y su violación no produce
sino cháchara vacía que llena el mundo de confusión y
de problemas insolubles. (CORDUA, 2000, p. 14).
Sin embargo, esta propuesta de purificación intelectual de la
vida filosófica no ha sido acogida de manera popular por todo el
mundo. En el caso del psicoanálisis, por ejemplo, se ha trabajado para
reducir el sinsentido, al intentar ampliar el terreno de lo consciente en
función del inconsciente. Otros intentos han quedado reflejado en las
Bellas Artes, por ejemplo en el teatro del Absurdo. En este género, los
dramaturgos reaccionan frente a los acontecimientos de dos guerras
mundiales, de gobiernos democráticos capaces de acabar con la vida
humana en ciudades enteras y con un sinfín de muestras de que el
hombre es capaz de lo más excelso y de lo más terrible. Mientras que
el público tradicional va al teatro buscando escapar de su realidad, de
tomarse un descanso para no pensar, dramaturgos como Samuel
Beckett, Antonin Artaud, Eugéne Ionesco y Fernando Arrabal,
proponen lo contrario. Cordua, reflexiona sobre ello y escribe:
Por lo general estimamos positivamente la vida y la
historia humanas. Aquí, en cambio, el drama propone
que la existencia de hombres en el mundo es un peligro
y una catástrofe de dimensiones universales. ¿Qué
quiere decir tal mensaje? Podría querer llamar la
atención sobre la posibilidad que el hombre moderno
tiene de usar el poder de la ciencia y la técnica para
destruirlo todo. O tal vez busca indicar que otros seres
vivos, diferentes del hombre, habitan este planeta de
maneras menos atroces que éste; o que a pesar de que el
hombre ha reclamado ser superior a todos ellos no
parece tener razón a la luz de las barbaridades
cometidas en este siglo y en otros. No es fácil interpretar

234
escuela y vida buena. sentido común y prudencia política

unívocamente las obras del llamado 'teatro del absurdo'


pues se valen de símbolos más sugerentes que claros, de
representaciones ambiguas y compatibles con varios
sentidos alternativos. Pero la polisemia es una
característica de muchas obras de arte. Llamarlas
absurdas por eso, por insinuar demasiados sentidos a la
vez, es signo de confusión mental y de querer
dogmatizar a propósito del arte. (CORDUA, 2000, p. 13).
Veamos lo que Ionesco, a propósito de lo acertado de la
interpretación de Cordua, señala en una de sus obras:
Me parece que en nuestra época y en todas las épocas
las religiones o las ideologías sólo son y han sido
coartadas, máscaras, pretextos de esta voluntad de
homicidio, del instinto destructor, de una agresividad
fundamental, del odio profundo que el hombre siente
por el hombre; se ha matado en nombre del Orden,
contra el Orden; en nombre de Dios contra Dios; en
nombre de la patria para destruir un orden nefasto, para
liberarse de Dios, para desalienarse, para liberar a los
otros, para castigar a los malos en nombre de la raza;
para restablecer el equilibrio del mundo, por el
equilibrio del mundo, por la salud del género humano,
por la gloria o porque hay que vivir y arrancar su pan
de las manos de otros; se ha masacrado, sobre todo, y
torturado en nombre del Amor y de la Caridad. En
nombre de la justicia social. (IONESCO, apud Calderón,
1994, pp. 44-5).
Esta búsqueda de sentido en el hombre, ¿es acaso una búsqueda
que proviene del terror a la falta de sentido? El no poder soportar la
ambigüedad, la impredecibilidad, el mismo temor a la muerte, hace el
que nos aferremos a certezas, aunque sospechemos de ellas, aunque en
el fondo dudemos de nuestros juicios; a veces, preferiremos no
escuchar a la razón y equivocaremos el sentido que les damos a las
cosas. El sentido y el sinsentido estarán siempre ligados a nuestras
estimaciones y evaluaciones, a nuestros juicios, a nuestras decisiones,
por lo que siempre podrá ser posible que coincidamos o no con los
demás. Pero sucede que los sentidos también pueden perderse, al
igual que las palabras que los designan. De manera que el sentido y el
sinsentido no son cualidades permanentes de las cosas. Lo anterior nos
conduce a señalar que en el lenguaje ordinario una de las acepciones
de “sentido” tiene que ver con el valor o la importancia de las cosas.
También podría relacionarse con el propósito o no de las acciones, e
incluso con el hecho de conseguir o no las metas. Se hablaría entonces
de redes de significados antes que de uno solo.
A pesar de que normalmente sabemos el por qué hacemos lo
que hacemos, en ocasiones habrá de pasar que no comprendamos
nuestras reacciones y entremos en un estado de extrañeza. Eso sucede

235
gladys madriz ramírez

cuando por ejemplo decimos cosas inconvenientes en ciertas


circunstancias, o cuando tenemos olvidos incomprensibles que nos
descolocan. ¿Pudiera ser entonces que estos episodios que hemos
calificado de un síndrome de la sinrazón se explicasen por esta falta de
conexión con el mundo cotidiano? ¿o con el valor o la importancia que
equivocadamente le hemos adjudicado a ciertos eventos? ¿o quizás,
que ante la confusión, nos hemos dejado arrastrar por el juicio de los
otros, asumiendo temporalmente, los sentidos y significados ajenos?
La falta de reflexión sobre la vida cotidiana pudiera ser
finalmente, la principal razón de este síndrome de la sinrazón. El casi
total desconocimiento de quienes somos, lo que queremos ser, lo que
nos falta para ser felices, para sentirnos satisfechos con nuestras vidas
y con las de los demás, pareciera estar detrás de este síndrome. En este
mismo orden de ideas, Cuéllar propone desarrollar una reflexión de
corte filosófico en torno a la relevancia de la vida diaria en la
búsqueda del sentido de la vida, alejándose de aquellos modelos de
vida que priorizan la consecución de una vida feliz gracias a la fama,
el poder, el dinero y el placer. La autora nos dirá:
La cotidianidad de la vida resulta, por ende, muy
importante, porque en ella se encuentra la respuesta —
aun desarticuladamente— a la pregunta por el sentido
de nuestras vidas y se puede tener una mayor
conciencia de la propia identidad, de la actividad
productiva y reproductiva, de la responsabilidad y
libertad en asuntos como la prosperidad propia y la de
los demás, la búsqueda del bienestar y la felicidad.
(CUÉLLAR, 2009, p.28).
Por supuesto que estos planteamientos no son nuevos, pero eso
no los hace menos pertinentes. Nos gustaría mencionar en este
sentido, parte del trabajo de Erich Fromm en una de sus obras como es
Ética y Psicoanálisis. Vamos a partir de una división que hace Fromm
entre una ética humanista y una ética autoritaria, y tal división la hace
para poder responder a su inquietud de cómo, hace ya mucho tiempo,
hemos abandonado el arte del saber vivir. Y decimos arte, porque no
se trata de una ciencia, de preceptos fijos e inmutables, de principios
generales a ser aplicados. Pero, por otro lado, también somos ligeros si
pensamos que por el hecho de simplemente existir, ya podemos decir
que sabemos de la vida, e incluso que somos expertos en ella. Fromm
nos recuerda que:
A pesar de todo el énfasis que la sociedad moderna ha
puesto en la felicidad, en la individualidad y en el
propio interés, ha enseñado al hombre a sentir que no es
su felicidad (o si queremos usar un término más
teológico, su salvación) la meta de la vida, sino su éxito
o el cumplimiento de su deber de trabajar. El dinero, el
prestigio, y el poder se han convertido en sus incentivos

236
escuela y vida buena. sentido común y prudencia política

y metas. Actúa bajo la ilusión de que sus acciones


benefician sus propios intereses, aunque de hecho sirve
a todo lo demás, menos a los intereses de su propio ser.
Todo tiene importancia para él, excepto su vida y el arte
de vivir. Existe para todo, excepto para él mismo.
(FROMM, 1986, p. 31).
Esto es importante para el autor, ya que esta ilusión de vivir en
búsqueda del éxito, hace que las decisiones o juicios de valor que
hacemos los seres humanos terminen por guiar nuestra conducta hacia
acciones poco válidas en lo que atañe a nuestra salud mental y a la
convivencia con los demás. De manera que el hombre:
Ha llegado a ser el amo de la naturaleza y al mismo
tiempo se ha transformado en el esclavo de la máquina
que construyó con su propia mano. A pesar de todos sus
conocimientos acerca de la naturaleza, permanece
ignorante en cuanto a los problemas más importantes y
fundamentales de la existencia humana: lo que le
hombre es, cómo debe vivir, y cómo liberar las
tremendas energías que existen dentro de él y usarlas
productivamente. (FROMM, 1986, p. 16).
La vida está llena de luces y sombras, hay momentos felices y
otros infelices, habrá gente que amamos y nos aman, así como quienes
no lo harán. La vida humana se encuentra surcada de problemas
cotidianos que hay que resolver. Pensemos en la enfermedad, en las
dificultades personales de trabajo, relaciones, la familia, la
organización política y social, y veremos como nunca estaremos
exentos de problemas, pero lo relevante no son los problemas, sino
cómo los enfrentamos, cómo intentamos resolverlos, sin desmedro de
nuestras otras dimensiones, aquellas que nos acercan más con lo que
reafirma nuestra condición de mortal que envidiaron los dioses: la
libertad de elegir como ejercicio de libertad y responsabilidad para con
nosotros y los demás que estamos embarcados en una misma nave y
con un mismo destino.

2. el deslenguado político.

Cuando Gadamer rastrea, en la mejor tradición de las ciencias


del espíritu, los conceptos básicos del Humanismo, se ocupa del sensus
communis, entre otros. De manera que al dedicar un espacio al estudio
de este concepto, remite a un escrito de Vico el cual presenta un
esbozo de lo que sería una nueva ciencia, la ciencia de lo humano. En
su disertación De nostri tempori studiorum ratione, Vico presenta dos
importantes dimensiones en el concepto de hombre sabio, a saber, el
sensus communis o sentido comunitario; y la eloquentia o el hablar bien.
Comencemos por el sensus communis. Encuentra su primera figura en
Sócrates, es decir, en una imagen que conceptualmente opone sophia y

237
gladys madriz ramírez

phrónesis, algo así como la oposición entre el erudito de escuela y el


sabio, aquel que representa el ideal práctico. Lo que está señalando
Vico es la necesidad de límites en lo que sería la ciencia moderna y su
metodología matemática. Según él, el cultivo de la prudentia y la
eloquentia debería seguir manteniéndose por lo que el tema de la
educación sería el de la formación del sensus communis. Con el énfasis
que señala Gadamer:
Lo que a nosotros nos interesa aquí es lo siguiente:
sensus communis no significa en este caso evidentemente
sólo cierta capacidad general ubicada en todos los
hombres, sino al mismo tiempo el sentido que funda la
comunidad. Lo que orienta la voluntad humana no es,
en opinión de Vico, la generalidad abstracta de la razón,
sino la generalidad concreta que representa la
comunidad de un grupo, de un pueblo, de una nación, o
del género humano en su conjunto. La formación de tal
sentido común sería, pues, de importancia decisiva para
la vida. (GADAMER, 1999, p. 50).
Obviamente sería un tipo de sentido que trabaja intuitivamente
y que no puede ser sustituido por la ciencia moderna. El saber
práctico, esta phrónesis es una forma de saber distinto. No sólo se
sustrae al concepto racional del saber, sino que asume una intención
ética, una orientación de la voluntad. Tal y como señala Gadamer:
Para Vico(…)el sensus communis es el sentido de lo justo
y del bien común que vive en todos los hombres, más
aún, un sentido que se adquiere a través de la
comunidad de vida y que es determinado por las
ordenaciones y objetivos de ésta(…) Vico retrocede más
bien al concepto romano antiguo del sensus communis tal
como aparece sobre todo en los clásicos romanos que,
frente a la formación griega, mantienen el valor y el
sentido de sus propias tradiciones de vida estatal y
social. (GADAMER, 1999, p. 52).
Con el tiempo, se va perdiendo este carácter social y político del
sensus communis, hasta casi desaparecer en algunas culturas europeas,
quedando este concepto relacionado simplemente con la capacidad de
juicio. Pensamos que actualmente pudiera decirse que efectivamente la
idea del sensus communis ha terminado por una del sentido común,
más vinculada con los buenos o erróneos juicios que emitimos.
Justamente es sobre esta reducción del concepto, si se pudiera decir
eso, esa simplificación de su significado, por lo que Gadamer trae a
colación la interpretación de Vico, tal y como anteriormente la hemos
presentado, y nos dice lo siguiente:
En general, la capacidad de juicio es menos una aptitud
que una exigencia que se debe plantear a todos. Todo el
mundo tiene tanto “sentido común”, es decir, capacidad
de juzgar, como para que se le pueda pedir muestra de

238
escuela y vida buena. sentido común y prudencia política

su “sentido comunitario”, de una auténtica solidaridad


ética y ciudadana, lo que quiere decir tanto como que se
le puede atribuir la capacidad de juzgar sobre justo e
injusto, y la preocupación por el “provecho común”.
Esto es lo que hace tan elocuente la apelación de Vico a
la tradición humanista; el que frente a la logificación del
concepto de sentido común, él retenga toda la plenitud
de contenido que se mantenía viva en la tradición
romana de la palabra (y que sigue caracterizando hasta
nuestros días a la raza latina). (GADAMER, 1999, p. 63).
Hemos tenido que dar este rodeo para llegar al asunto que nos
interesa. El de cómo explicar, comprender, el que existan tantos
deslenguados en este actual mundo nuestro, que sean capaces de
asumir, consentir, realizar o simplemente observar con cierta
aprobación las conductas y las posteriores consecuencias de las
mismas, que describiéramos con cierto detalle en páginas anteriores.
La viñeta presenta a uno de los deslenguados más icónicos del mundo
entero, lástima que esté acompañado de un poder irrestricto sobre la
muerte de tantos, intentando hacer creer que se protege la vida, en un
macabro juego de soberbia, poder y locura. La idea del deslenguado
nos parece irónicamente versátil: por un lado, literalmente hablando,
se refiere a una persona que no sabe hablar, que no es elocuente, y por
el otro, a quien se va de bruces, incapaz de razonar con buen juicio,
asumiendo ese componente ético de la empatía, por supuesto. Y del
sentido político, de la sana virtud de perseguir, o trabajar por el bien
común.
Si nos atuviéramos al diccionario en español, entenderíamos por
deslenguado a una persona mal hablada, grosera, que habla con
descaro y sin educación. También a aquel que habla de más, lo que
entre otras cosas alude al hecho de decir cosas inconvenientes, de
acuerdo con el contexto en el que se halle. Probablemente estaríamos
de acuerdo en señalar que este señor(a) deslenguado(a) no tiene la
capacidad de escuchar y de escucharse, por lo que frecuentemente cae
en situación de imprudencia. Nuevamente, la imagen n° 3, no puede
caracterizar mejor a un deslenguado oficial.
Entre otras cosas, el gran problema del deslenguado es que no
alcanza a comprender que silencio y lenguaje no están separados. Es
toda una virtud el hacer del silencio una oportunidad para que el otro
se escuche, se vea, se comprenda. También eso forma parte del tacto. Y
también puede enseñarse. Evidentemente, no nos referimos a un taller
de crecimiento, como el que pulula en algunas de nuestras
universidades y de grupos de coaches, nos referimos a un tipo de
enseñanza ostensiva, a enseñar con el ejemplo, como lo hacía Sócrates.
Como lo haría el maestro que en una situación cotidiana
quisiera educar el alma, quisiera tocar el alma, acariciar el alma,
porque sabe que después vendrá la conciencia y después el

239
gladys madriz ramírez

conocimiento. ¿Y qué es esto del alma? Giuseppe Ferraro diría que el


alma es una relación, por eso se da en comunidad; y vean ustedes
cómo tiene sentido hablar de un sensus communis. Véase a FERRARO
(2016, pp. 63-78).119 Desde esta perspectiva, este sentido, que lo da el
alma, alcanza su existencia en lo común de un nosotros. El sensus
communis habla del alma de un pueblo, de una comunidad que
entiende que la manifestación de este sentido es lo que permite
preservar la vida de todos en armonía. De allí se desprende, que más
que aprender a vivir en relación con el mundo, debemos aprender a
vivir en relación con otras vidas. Y esto porque algunos, quizás
muchos mundos son prohibidos para muchos de nosotros, de manera
que al vivir en relación con otras vidas, al final, habremos ampliado el
mundo, y habremos vivido más plenamente.
¿Cómo se educa el alma? En principio, gracias al tacto.
Escuchemos a Gadamer:
Bajo tacto entendemos una determinada sensibilidad y
capacidad de percepción de situaciones así como para el
comportamiento dentro de ellas cuando no poseemos
respecto a ellas ningún saber derivado de principios
generales. En este sentido el tacto es esencialmente
inexpresado e inexpresable. Puede decirse algo con
tacto, pero eso significará siempre que se rodea algo con
mucho tacto, que se deja algo sin decir, y “falta de tacto”
es expresar lo que puede evitarse. (GADAMER., 1999, p.
45).
Y también, por supuesto lo que se puede evitar decir y hacer.
Desgraciadamente, en estos tiempos de hoy, pareciera que no es
importante hacer del otro una persona de bien, como decían nuestros
abuelos. En nuestras aulas nos estamos quedando sin filosofía, sin
espacios de diálogos donde nos revisemos por dentro sin

119En este mismo sentido Ferraro agrega: “Ricordo la frase dei quell’uomo detenuto,
adulto, ergastolano, recluso in regole senza gioco. Disse di qualcuno che era una
“bella persona” e non perché era lui a dirlo, ma perché è la verità della vita a dirlo.
Rimasi sorpresa, e resto ancora in quella sorpresa a ricordarlo. C´è dunque una verità
della vita ed è quella che fa dire delle cose belle di una bella persona, ma come di un
bambino, di un giorno felice, della giogia d´esistere. La verità della vita fa dire cose
belle. Il bambino di Eraclito è la verità della vita”. Ibídem., p.77. En una versión
nuestra al español diría así: “: "Recuerdo la frase de un preso con cadena perpetua, y
sin derecho a nada. Dijo de alguien que era una "bella persona" y no porque fuera él
quien lo dijera, sino porque es la verdad de la vida decirlo. Me sorprendió, y todavía
me sorprende al recordarlo. Así que, hay una verdad de la vida y es lo que hace que
uno diga las cosas bellas de una persona bella, al igual que un niño, con un día feliz,
lleno de las alegrías de existir. La verdad de la vida hace que se digan las cosas bellas.
El hijo de Heraclito es la verdad de la vida". (FERRARO, 2016, pp. 77).

240
escuela y vida buena. sentido común y prudencia política

condescendencia, como apuntara en su momento Petrarca120. ¿Dónde


aprenderemos a hacernos cargo de nosotros mismos y de los demás?
¿Dónde a desarrollar las virtudes de la phrónesis y la eloquentia?
Estamos como nunca cerca de olvidar que estamos en el mundo para
desarrollar el arte de vivir y no el de hacer morir. Solo podemos
lamentarnos como lo hiciera Tolstoi recordando nuestra infancia,
mejor dicho, la pérdida de ella y que reclama de esta forma:
¿Volverá alguna vez esa lozanía, esa despreocupación,
esa necesidad de amar y la fe inquebrantable que se
posee en la infancia? ¿Acaso puede haber una época
mejor que aquella en que las más sublimes virtudes – la
inocente alegría y la infinita necesidad de amar- son los
únicos impulsos de la vida? ¿Dónde están aquellas
fervientes oraciones? ¿Dónde está el don excelso de
aquellas lágrimas puras de ternura? El ángel consolador
venía a enjugarlas con una sonrisa y traía dulces
ilusiones a mi inocente imaginación infantil. ¿Es posible
que la vida haya dejado en mi corazón huellas tan
penosas que hayan huido para siempre esas lágrimas y
esos entusiasmos? ¿Es posible que no queden sino los
recuerdos? (TOLSTOI, 1990, p. 92).

a manera de cierre: de las diligencias del formar-se en el sensus


communis y la prudentia. notas introductorias.

Me preocuparía cerrar esta disertación sin ofrecer alguna vía


para no caer en el desencanto. Las expresiones de violencia tienen
causas complejas y su comprensión excede la posibilidad de
ocuparnos de ella en este encuentro. Se dice, por ejemplo, que cierto
importante número de adolescentes y jóvenes se hallan frustrados y
confundidos. Probablemente, es mucho lo que se les ha mostrado a

120 A propósito de la ceguera, de la soberbia del ser humano en reconocer sus

limitaciones, escribe Petrarca lo siguiente: “¿De qué te ha servido tanto leer? De tu


mucha lectura, ¿cuánto ha quedado en tu espíritu, ha echado raíces en él, produce
frutos en el tiempo oportuno? Regístrate por dentro sin condescendencia: hallarás que
todo cuanto sabes, comparado con cuanto ignoras, está en la misma relación que el
arroyuelo que sacarán los calores del estío al lado del océano. Y aun, ¿qué vale el
mucho saber, si una vez aprendidas las medidas del cielo y la tierra, las dimensiones
del mar y el curso de los astros, la virtud de hierbas y de piedras y los secretos de la
naturaleza, seguís siendo unos desconocidos para vosotros mismos? ¿De qué sirve, si
conociendo la derecha senda de la ardua virtud con las Escrituras como guía, la
pasión os desvía por el camino torcido, y si teniendo en la memoria las hazañas de los
personajes ilustres de todos los tiempos, no reparáis en vuestro obrar cotidiano?”
(PETRARCA, 1978, pp. 67-68).

241
gladys madriz ramírez

través de medios masivos y las redes como la vida ideal que


deberíamos poder disfrutar cada uno de nosotros. La realidad les ha
hecho ver que tales disfrutes sólo son posibles para un pequeño grupo
de seres humanos, y que ellos son los desterrados, los excluidos. El
desconsuelo es muy grande, tan grande como su frustración. Muchas
veces el desencanto, cuando se convierte en desesperación, termina en
violencia, y ese no es un mal de ahora. Muchos filósofos se han
ocupado del asunto. Así Petrarca nos da una lección:
¿Qué loca saña es consumir los cortos días que pasamos
entre los hombres en el odio y en la destrucción de los
hombres? No tardará en llegar el último día a extinguir
tales llamas en los pechos humanos: pondrá fin a los
odios y, si no deseamos a nuestro enemigo nada más
duro que la muerte, satisfará nuestros inicuos votos. ¿De
qué sirve, pues, consumirse a uno mismo y a los demás?
¿De qué dejar escapar los mejores momentos de nuestro
brevísimo tiempo? Los días destinados a los honestos
goces corporales o bien a meditar sobre la vida futura –
apenas bastantes para ambas cosas, incluso si se
administran con suma economía-, ¿qué vale
arrancárselos a las necesidades propias y dedicarlos
tanto a la tristeza y a la muerte del prójimo como a las
nuestras? (PETRARCA, 1978, pp. 81).
Tan corta es la vida, que la ira es furia breve. Pero las
consecuencias nos acompañaran un tiempo más. ¿Valdrá la pena
dejarse llevar por ella? Las instituciones, incluyendo la escuela, no han
sabido cómo ocuparse del asunto. Me temo que seguimos
prometiendo beneficios que siguen induciendo la conformación de
subjetividades superficiales, cómodas y bien adaptadas a una sociedad
que sufre sus contradicciones sin atreverse a cambiar nada. En la
escuela nos comprometemos con el orden curricular del momento,
aquel que cambia la virtud, la solidaridad, por ejemplo, por la
competencia: adaptación. Que es como decir: dejan las cosas como
están. No nos gusta hablar del dolor, ni de la muerte, mucho menos
del que provocamos.

242
escuela y vida buena. sentido común y prudencia política

Imagen 1: Mafalda121

La imagen de Susanita, ese personaje de las caricaturas de


Mafalda, que siempre terminamos perdonando por reconocer en ella
también algunos de nuestros pecados, nos recuerda que también entre
los maestros tenemos prejuicios y que constantemente se observan
prácticas de discriminación y castigo en la escuela.
Me pregunto ¿de quién ha de ser la lucha? ¿Acaso tenemos el
derecho de manipular al otro para que se cumpla nuestra voluntad? Al
igual que muchos de sus maestros, muchos de estos muchachos no
están preparados para hacerse responsables de sus vidas y mucho
menos de las de los demás. Adolecen, entre otras cosas, de ese sentido
comunitario del cual la tradición latina constituye ejemplo. En
nuestras escuelas, las más de las veces, muy buenos maestros siguen
preparando para el oficio, la profesión, pero pocas veces abordamos la
preparación para una vida buena, que también es bella, por lo
profunda, por lo armoniosa, por lo mesurada y justa. Nosotros, los
maestros comprometidos, que también los hay, estamos viendo este
panorama desde hace algún tiempo, y es cierto que algunos nos
sentimos sobrecogidos por la situación, quizás, porque a muchos de
nosotros también nos tiene confundidos y desalentados la realidad y
pensamos que poco podemos hacer.
Pero no, quuisiera invitarles hoy a que hagamos nuestras
diligencias. En Venezuela, el concepto de diligencia tiene que ver con
el efectuar alguna solicitud o el de realizar algún trámite que
necesitemos con premura. Es verdad que diligente se refiere a la
persona o acto que con prisa y cuidado logra el éxito de la tarea
emprendida. Revisé el diccionario de la lengua española y me pude
dar cuenta de que en sus distintas acepciones se repiten esos sentidos

121 Mafalda de Quino. Tomado de:


https://twitter.com/mafaldadigital/status/316183116760883200

243
gladys madriz ramírez

y voces. Hecho esto, ahora voy con la idea. Muchas personas estamos
relacionadas con la escuela. Y no debería haber sorpresa alguna
cuando llegado el final de este texto, quiera comprometerles en ser
diligentes con la tarea de formar. Hemos visto como el sensus
communis no se refiere a un contenido de ninguna de nuestras
asignaturas tradicionales. Y sin embargo, nos señala, nos indica la
urgente necesidad de experienciarlo, corporizarlo en nosotros y el
fomentarlo, el darlo a probar en los demás.

Imagen 2: Mafalda122

El candoroso Miguelito nos da la lección del día. Nos recuerda


que si no podemos hacer con el otro lo que se quiere para sí, estaremos
perdidos. Es cuestión de aquello que dice: muestra el amor para
enseñar a amar. Sí, se trata de un saber que puede mostrarse, de una
enseñanza ostensiva que se aprende al observarlo en el otro, cuando
hay tiempo y deseo de formar. Estamos en tiempos oscuros: los
jóvenes desertan de las clases, de las escuelas, de los institutos,
diciendo que en ellos no se enseña para la vida. Eso en el mejor de las
situaciones. Muchos de los habitantes de Nuestra América han tenido
que sobrevivir en un mundo donde cada día desaparece una vida sin
que nadie responda por ella. Eso realmente demuestra que nos toca
vivir en una sociedad cuyo norte no es el de saber vivir, el de hacer de
cada vida una vida buena, una vida bella, una vida justa, una vida
excelsa.
No podemos acostumbrarnos a decirle adiós a la esperanza. No
queremos acostumbrarnos a dejar morir, porque no sabemos vivir. No
quiero acostumbrarme a no hacer la diligencia del formar. No quiero
dejar de prometer que lucharé para que la sinrazón y los deslenguados

122 Mafalda de Quino. Tomado de


https://twitter.com/minsalud/status/301338637348507648

244
escuela y vida buena. sentido común y prudencia política

no vuelvan a aparecer en Nuestra América. Alguien me dirá que es


inevitable que eso suceda y yo le diré que no es cierto, y estaré
diciendo la verdad, porque en mi casa, con mis vecinos, en mi escuela,
con mis amigos y con quienes no lo son, habré de ejercitar el sensus
communis, y me morderé el músculo insolente ante un intento de
deslenguarse. Es tiempo de volver a practicar la tradición humanista,
sin desmerecer la ciencia moderna, postpositivista o cualquiera que
nos haga la vida más cómoda. Hacer la diligencia inaugurará un
nuevo camino a la infancia, a la infancia perdida que lloraba Tolstoi. A
la infancia donde siempre triunfa el volver a comenzar, mientras haya
esperanza, mientras juguemos a vivir.

referencias

CALDERÓN, Alfonso. El vuelo de la mariposa saturnina. Santiago, Chile: Nemo,


1994.
CORDUA, Carla. El sentido y el sinsentido. Aisthesis, n. 33, 2000, pp. 9-16.
CUÉLLAR, Hortensia. Hacia un nuevo humanismo: Filosofía de la vida
cotidiana. Enclaves del pensamiento, a. III, n. 5, junio 2009, pp.11-34.
FROMM, Erich. Ética y Psicoanálisis. México: Fondo de Cultura Económica,
1986.
GADAMER, Hans Georg. Verdad y Método I. Salamanca: Sígueme, 1999.
PETRARCA. Obras I. Prosa. Madrid: Alfaguara, 1978.
TOLSTOI, León. Infancia, adolescencia y juventud. Madrid: Aguilar, 1990.

245
246
the emancipatory rhythms of scholé

jason wozniak
west chester university/lapes
jazonwoz1@gmail.com

introduction

Philosophers of education have written extensively on education


temporality, but for the most part, have neglected to include rhythm in
their ruminations. In this short piece I want to make two principle
moves. The first involves a summation of certain theories of education
temporality. My focus is on the work of Jan Masschelein, Maarten
Simons, Walter Kohan and David Kennedy’s theorization of scholé, the
Greek term for “free-time, suspension, school.” The authors just listed
share the belief that education temporalities characterized by scholé
can be emancipatory. That is, they can open up moments in which
subjectivity is freed from forces that negate the cultivation of
potentiality as an end in itself. Secondly, I will suggest that while these
authors’ theories on scholé are inspiring, they privilege time as a
conceptual framework while ignoring rhythm. This is, in my view, a
limitation to their work that ultimately has pedagogical and political
implications.

rhythmic notes to the beat of pedagogy

According to Benveniste (1971, p. 281), the term rhythm “comes


to us through Latin from Greek,” and the notion of rhythm “is one of
the ideas that affect a large portion of human activities.” This
remarkable statement begins Benveniste’s short chapter, “The Notion
of ‘Rhythm’ in Linguistic Expression,” found in his classic Problems in
General Linguistics (1971). Rhythm has historically been defined as
“form,” but in the line above Benveniste alludes to the fact that the
concept of rhythm itself has given form to human activities. That is,
the way that people conceptualize rhythm is formative of the ways
that daily life, and hence, personhood, is shaped. He elaborates on this
point by writing, “Perhaps it (the concept of rhythm) even serves to
distinguish types of human behavior, individual and collective,
inasmuch as we are aware of durations and the repetitions that govern
them.” (p. 281). In other words, not only does rhythm as a
phenomenon give shape to experience, but the concept of rhythm itself
structures ways that we interpret the world, including individual, as
well as collective behavior. Put simply, the concept of rhythm shapes
our perceptions, attuning us to movement and change.

247
jason wozniak

Correcting an error in previous etymology which links “rhythm”


and the verb “to flow” by the intermediary of “the regular movement
of the waves” (p. 281), Benveniste (1971, p. 282) declares that a specific
notion of rhythm can first be apprehended in the work of ancient
Ionian philosophy. Via Aristotle, several citations from Democritus
have come down to us which transmit the exact meaning of rhythm
(Benveniste, 1971, p. 282). In the Metaphysics (985b IV) ῥυθµός (rhythm)
means “form” (p. 282). According to Benveniste (1971, p. 283), there is
no ambiguity in the meaning that Democritus repeatedly assigns to
ῥυθµός. Democritus applied ῥυθµός to “the form of institutions,” and
different verbs meaning “to form” and “transform” in the physical or
moral sense proceed from this meaning of rhythm/formation
(Benveniste, 1971, p. 283). Significantly, in passages of the lyric poets,
Benveniste points out that rhythm defines “the individual and
distinctive ‘form’ of the human character” (p. 284).
It does not seem an overgeneralization to claim that ultimately
any discussion on the link between rhythm and personhood is in one
way or another tied to discourses on education, i.e., processes of
formation. More specifically, and importantly for our context, the
concept rhythm takes on pedagogical characteristics in Democritus,
when the pre-Socratic philosopher writes that ῥυθµός ‘instruction
transforms man’ (Benveniste, 1971, p. 283). Benveniste remarks that, “It
is Plato who determined precisely the notion of ‘rhythm’.” He does so
especially in dialogues where education (broadly construed here as
formation) is discussed.
In the Phaedreus (253b) one finds ῥυθµός in a phrase: “to form a
young favorite,” and in Laws (665a) Benveniste (1971) notes that Plato
teaches that young people are impetuous and turbulent,
but that a certain order, a privilege exclusively human,
appears in their movements: ‘This order in movement
has been given the name rhythm, while the order in the
voice in which high and low combine is called harmony,
and the union of the two is called the choral art.
(BENVENISTE, 1971, p.284, 287).
But it is in Plato’s Republic, which can of course be read as a
philosophy of education dialogue, where Plato most explicitly
develops the rhythm-education connection.
In the Republic, the formation and care of the self is intertwined
with the production and care of rhythm. Take, for example, the
following remark made by Plato (1997) on rhythm: “Because rhythm
and harmony permeate the inner part of the soul more than anything
else, affecting it most strongly and bringing it grace, so that if someone
is properly educated in music and poetry, it makes him graceful, but if
not, then the opposite” (Republic, 401d-e). Here we see that the person
properly educated in the right type of music acquires a rhythm that

248
the emancipatory rhythms of scholé

makes him graceful. To be mis-educated is to be exposed to rhythms


that makes one brutish and disharmonious. In comments more
directly related to character formation, we find Plato commenting that
the person with fine rhythm is the person of fine and good character,
(Republic, 400e), and the person with bad rhythm is graceless,
disharmonious, and of bad character (Republic, 401a). For Plato, “grace
and gracelessness follow good and bad rhythm respectively” (Republic,
400c). Thus, in Plato’s philosophy of education rhythm occupies a
central role. One must be educated in proper rhythm(s). And rhythm
is constitutive of the process of giving form to subjectivity.
It is important to note here that the form arranged through
rhythm is not conceived as fixed form in the Greek tradition that
Benveniste analyzes. Rather, “it is the form as improvised,
momentary, changeable;” rhythm is the most proper term “for
describing ‘dispositions’ or ‘configurations’ without fixity or natural
necessity and arising from an arrangement which is always subject to
change” (Benveniste, 1971, p. 286). According to Benveniste’s reading
then, the term rhythm discloses the ancient Greek doctrines of flow
and flux.
Benveniste (1971) writes that Plato’s rhythmic innovation was in
applying the notion of rhythm-as-distinctive-form, disposition, to the
“form of movement which the human body makes in dancing, and the
arrangement of figures into which this movement is resolved” (p. 287,
italics in original). Ultimately, “in Plato, ‘arrangement’ (the original
sense of the word) is constituted by an ordered sequence of slow and
rapid movements” (p. 287). And after a thorough etymological
examination, Benveniste is confident that from Plato onward,
“rhythm” is conceived as “configuration of movements organized in
time” (p. 287).

education as scholé

Any contemporary education theorization of scholé need


address, perhaps first and foremost, the work of Jan Masschelein and
Maarten Simons. Though they have written extensively on the topic, it
is important to note from the start that Masschelein and Simons have
not aimed to strictly define the concept scholé. Their work on scholé
should rather be considered as a thought exercise which tries “to
articulate the event or happening that the word (scholé) names, the
experiences in which this happening manifests itself and the (material)
forms that constitute it or make it find/take (its) place” (Masschelein,
2011, p. 530).
In articulating the event of scholé, Masschelein and Simons have
produced a generous amount of scholarship which both diagnoses,
and offers a way of destabilizing, a temporal problem of contemporary

249
jason wozniak

education. For these authors the most pressing temporal problem in


education today originates from educational efforts to produce
students as human capital and/or entrepreneurs of the self. It should
be emphasized that Masschelein and Simons do not offer a solution or
cure to this problem. To offer a solution or cure would replace one
teleological framework with another. Both solutions and cures can be
programmed, their effectiveness measured temporally, whereas scholé
as I understand it according to Masschelein and Simons, opens up a
future that is non-calculable and full of risk, and because of this, is
radically open to that which presences within it. The best manner to
review the work of Masschelein and Simons, therefore, is to briefly
highlight the ways in which they have linked education to the
production of human capital and the entrepreneur of the self, before
turning to an examination of how they think that scholé helps us
(re)imagine education as a process in which ways of becoming a
person are radically opened up.
Throughout their work on scholé, Masschelein and Simons
convincingly demonstrate how school evolved in modernity,
particularly in conjuncture with the rise of industrialization, into a site
in which clock time characteristics (time is linear, the notion of telos is
prevalent, can be quantified and measured, etc.,) were employed in
education to give shape to school days as well as the students who
studied within school walls. Their work rehashes in abbreviated form
the central arguments made by Foucault (Discipline and Punish 1977)
where the latter showed “how disciplinary practices from the 18th
century onwards produced a specific experience of space and time,
which was also related to the establishment of scientific disciplines
and practices in the human sciences” (Simons and Masschelein, 2008b,
p. 690).” Foucault, according to Simons and Masschelein (2008b),
made it possible to see how
[…] the spatial and temporal organization of schools
divided duration into successive or parallel segments,
where they add up in a cumulative series of temporal
stages, towards a terminable stable point. This
organization allowed for the discovery of time as an
‘evolutive’, linear process that is characterized as
‘progress’. (SIMONS AND MASSCHELEIN, 2008b, p.
690).
As a result of this temporal organization, Simons and
Masschelein claim, education took on a certain form under the
influence of the shape of modern clock time. For example, according to
the authors, pedagogy began to establish educative procedures which
divide the process of learning into several levels, and places in
hierarchical order, each step of development into small cumulative
steps (Simons and Masschelein, 2008b, p. 690). As such, “questions
related to ‘goals’ or ‘ends’ (that is, the terminal state) and ‘means’
250
the emancipatory rhythms of scholé

appear as elements of the general concern to organize ‘development’”


(Simons and Masschelein, 2008b, p. 690). In sum, Simons and
Masschelein argue that education was transformed into a practice of
“bending behaviors towards a terminal state (a fixed norm)” (Simons
and Masschelein, 2008b, p. 690). Schools thus became, and for the most
part remain today, places in which external work on students, and the
internal work that students do on themselves, has a particular
teleology. Education functions as an apparatus that shapes neoliberal
subjectivities.
Within the current neoliberal political economy the education
apparatus produces students as human capital and/or entrepreneurs
of the self. Unpacking a self-coined term, “capitalization of learning,”
Simons and Masschelein (2008a) demonstrate how “At the end of the
1960s there was an interest in the development of a so-called
‘‘knowledge society’’ and ‘‘knowledge economy.’’ In this economy,
knowledge functions as a ‘‘central capital,’’ and as ‘‘the crucial means
of production,’’ and the ‘‘energy of a modern society.’’(p. 396). It is
around this time period, the authors claim, that learning comes to be
thought of as “as the ability to renew one’s knowledge base or human
capital,” and “is regarded as a condition for economic development
and productivity” (Simons and Masschelein, 2008a, p. 396). In
addition, learning comes to be viewed as “a condition for individual
freedom, and people are addressed as being responsible for their own
learning and for regulating their learning.” (Simons and Masschelein,
2008a, p. 399). Learning thought of this way demands that learners
become the ‘‘managers’’ of their own learning, for example, by
developing their own learning strategy, monitoring the process, and
evaluating the results of their learning experience (Simons and
Masschelein, 2008a, p. 400). Ultimately, Simons and Masschelein
(2008a, p. 402) argue, these conceptions of learning came to shape
discourses, and teaching practices, which “regard learning as a kind of
capital, as something for which the learner him- or herself is
responsible, as something that can and should be managed (and is an
object of expertise), and as something that is employable.”
It should be fairly obvious that this shift in the conceptualization
in learning is accompanied by shifts in the conceptualization of the
mission of schools (Simons and Masschelein, 2008a, p. 397).
Nevertheless, Simons and Masschelein, through an anachronic
rupture, suggest that by thinking of school-as-scholé, or in other words
by re-thinking the form of school by thinking school temporally, we
might re-conceptualize education.
For these two authors the school can be thought of not
principally as a place of preparation, but of separation, as scholé
(Masschelein and Simons, 2011, p. 156). The Greek scholé, the authors
remind us, has traditionally resisted one definitive definition. Instead

251
jason wozniak

it has been simultaneously and separately defined as: free time, rest,
delay, study, discussion, lecture, school, school building (Masschelein
and Simons, 2011, p. 156). Despite the variance in definition, what all
of these descriptions of scholé have in common is a connection to time;
they all mark a break in one way or another, or suspension, with
dominant time economies at work in whichever society scholé is
produced. Masschelein and Simons articulate the event of the
production of scholé in a variety of ways which I will briefly
summarize now.
Reintroducing us to an ancient way of thinking school, by
thinking time, Masschelein and Simons (2011, p. 158) tell us that in
ancient Greece scholé was not “a place and time organized to
reproduce social order, or way of life. Separated from both oikos and
polis, and hence free from daily occupations, the school was a real
space with a real inner place and time where people were exposed to
real matter.” It was, the authors go on to state, a time and place where
those in it were separated from their daily lives, the labor associated
with the production of goods for everyday needs, the norms of civil
society, and their normal identities. Or in other words, while in scholé,
students were given time to dis-identify with identities normally
attached to them outside of scholé. More to the point, Masschelein and
Simons argue that in scholé “economic, social, cultural, political, or
private time is suspended, as are tasks and roles connected to specific
places. Suspension here could be regarded as an act of de-
privatization, de-socialization, de-appropriation; it sets something
free” (p. 158). What is set free is time. Within a suspension the future is
opened up because as Masschelein (2011, p. 531) argues in a separate
piece, “what appears, happens or is done within scholé` is not
determined by a defined result, outcome or product. In this sense it is
time which is freed from a defined end and therefore from the usual
economy of time”. The suspension of dominant time economies is the
essential characteristic of scholé. Masschelein describes the suspension
that scholé creates in the following manner:
Free time as un-destined time is time where the act of
appropriating or intending for a purpose or end is
delayed or suspended. It therefore is also the time of
rest (of being inoperative or not taking the regular
effect) but also the time which rests or remains when
purpose or end is delayed. (MASSCHELEIN, 2011, p.
531)
Drawing on the work of Agamben, Masschelein and Simons
(2011) link this suspension of dominant time economies to
emancipation and to the production of “profane time,” which is a
condition in which time, space and things are disconnected from their
regular use (in family, society, etc…)” (p. 158).

252
the emancipatory rhythms of scholé

But importantly for Masschelein and Simons (2011), the


invention of scholé does not just produce a negative freedom (freedom
from something), but also a positive freedom (freedom to be able to do
something) because it is an offering of egalitarian and democratic
timespace. Concurring with Rancière that “school is the “place of
equality pre-eminently” (Rancière, 1988, p. 82, cited in Masschelein
and Simons, 2011, p.150), and augmenting his work, Masschelein and
Simons (2011, p. 151) describe school-as-scholé, “as an invention of a
site of equality and as primordially a public space, which therefore has
to be defended as a mark of democracy in itself.” For Masschelein and
Simons (2011, p. 156) “the school is the democratization of free time.”
Within scholé all students are given equal access to free time. But just
as importantly, according to the authors, students are not only given,
and have equal access to free time, but free time is communally
created and shared in scholé.
Even though Masschelein and Simons strongly believe that scholé
is not only an individual, but also collective experience, they do not
hesitate in assigning a great amount of responsibility to the teacher as
the creator and regulator of scholé. They maintain that the teacher
plays an important role in inventing scholé, that is, creating time
(Masschelein and Simons, 2011, p. 163), by bringing students into
contact with matter, making them touch and be touched by it, and in
doing so making students “forget (modern clock) time” (Masschelein
and Simons, p. 162). The teacher does this, according to Masschelein
and Simons (and again here they augment the work of Rancière (see
The Ignorant Schoolmaster, 1991), by assuming an equality of
intelligence, that is, the teacher who invents scholé assumes the axiom
that all students are intellectually capable of examining what’s on the
table. The teacher’s work does not end there, however. She must also,
according to Masschelein and Simons (2011, p. 163), make it her task to
make what is on the table free for common thought and use, rather
than determine how what is on the table should be thought of and
used. Thus, in assuming both the equality of intelligence of her
students, and by allowing what is on the table to be thought of and
used in a myriad of ways, the teacher, according to the authors, and
under the influence of Daniel Pennac’s Chagrin d’ecole (2007), draws
students into the present; she detaches her students from the past
which labels them, and opens up a no longer delimited present and a
future to all of them (Simons and Masschelein, 2011, p. 163).
In a sense then, the art of education is, as Masschelein (2011, p.
534) pronounces, the art of making scholé happen: “Starting from the
articulation of the event and experience of scholé, we could start to
think of education as the art (the doing) and technology that (help)
make it happen, i.e. spatializes, materializes and temporalizes this
scholé.” But even so, it remains unclear in the work of Masschelein and

253
jason wozniak

Simons how scholé happens. Masschelein can tell us that, “Education


as practice, then, entails the tracing of spaces, the arranging and
addressing of matter and the editing of time that make scholé` (study,
exercise, thought) happen” (ibid.), but both he and Simons leave a gap
in their work. Masschelein, for his own part, admits that forms and
practices of producing scholé which “would include particular
architectures, particular pedagogic disciplines (intellectual and
material technologies of mind and body, gestures) and pedagogical
figures (persona characterized by a particular ethos, i.e. an attitude,
disposition or ‘stance’ e.g. the figure of the teacher, professor, student),
that constitute the happening of ‘free time’” (p. 534), remain to be
researched and elaborated upon. It is this work of producing the
research, and elaborating on the practices which produce scholé, which
David Kennedy and Walter Kohan have recently embarked on, and it
is to their work that we now turn before concluding our review.
Kennedy and Kohan (2008, 2014) draw from the work of
Masschelein and Simons in inventive manners, particularly the
Rancièrian elements of their theory of scholé, and enhance the dialogue
on scholé by linking the concept to the temporality of aion, which they
associate with the temporality of childhood. The two authors also try
to do what the above authors on scholé generally shy away from,
which is suggest a means of creating scholé through educational
practice. For Kennedy and Kohan, scholé is linked to a type of thinking,
a thinking which simultaneously has, and creates, temporalities
different from dominant time regimes. This thinking, Kennedy and
Kohan hypothesize, can be found in philosophy, or better stated,
philosophizing.
Kennedy and Kohan have written two texts, in dialogue form,
which are relevant to the problem we are dealing with here. Both
discussions center on the temporality of philosophizing, and how
philosophizing, because it pertains to, and creates, different
temporalities from those dominant in schools today, might radically
alter schools from within. When read together, these two pieces allow
one to imagine what an aionic education temporality might look like,
and this education temporality has some of the traits of scholé as
described above.
Drawing on Jacques Rancière’s “Ecole, production, égalité”
(1988), Kennedy and Kohan (2014) conceive of scholé/school (they use
the words interchangeably on purpose, therefore when I use the word
scholé one should also hear school, and vice-versa) as a time-space of
equality in which all students have a similar experience of time: they
have equal opportunities to be students qua students (p. 201). Instead
of meeting external demands placed on them by society, families,
politics, economics etc., in school students are at leisure to study as
students without the pressures of predetermined ends or demands on

254
the emancipatory rhythms of scholé

what their study is for, and how it should shape them. Adding a new
twist to the conversations on schole, Kennedy (2014) insightfully
connects scholé at one point in his dialogue with Kohan to Winnecot’s
notion of “transitional space” (p. 202) and later to Dewey’s concept of
school as an “embryonic community life” (p. 213). He suggests that,
“school and scholé emerge from the same evolutionary impulse, which
is to establish a zone in the culture which is set apart for purposes of
transformation” (p. 208).
But for the two authors a key question haunts their dialogues: if
school and scholé emerge out the same evolutionary impulse, how
does one make school-as-scholé emerge? Kennedy and Kohan suggest
that one response to this question could be that the emergence of scholé
is inseparable from the emergence of a temporality different from
chronological time; the emergence of what the ancient Greeks called
aionic time. They interpret aionic time as a time which differs from
chronos, which is a linear time that is measurable and quantifiable.
Aionic time is instead, that which designates the intensity of time in
human life (Kennedy and Kohan, 2008, p. 1). Working with Heraclitus’
fragment number 52 the authors come to the conclusion that aion is an
incalculable qualitative experience of time resembling that of
childhood. Or, put slightly differently, childhood is marked by the
experience of aionic time; aionic time constitutes childhood experience.
Importantly, childhood is not here thought according to theories of
psychological developmentalism, but rather is conceived as a state of
being, and relation with time, that can be experienced throughout the
duration of life. One can have the experience of childhood at any age,
and this experience is marked by a temporality which is characterized
by aionic time.
If school has the potential to become scholé, it is because within
school, Kennedy and Kohan believe, aionic time can be created and
experienced. Or as the two authors claim, scholé is, as aion or
childhood, a further emergence, a radicalization of school as an
experimental zone for the cultivation of both individual and collective
subjectivity (Kennedy and Kohan, 2014). But the question remains,
how is an experience of aionic time, and hence the emergence of scholé,
brought into being? Laying out the groundwork for the possibility that
philosophy might be able to restore scholé to school (p. 201), Kohan
(Kennedy and Kohan, 2014, p. 206) argues that “philosophy is a waste
of productive time and a saving of free or aionic time, affirming
another kind of life than a producer-consumer life.” For Kennedy and
Kohan, philosophy practiced within schools might be the way to
produce the aionic time of intense collective and self-formation. If this
be the case, then perhaps by philosophizing, students (and teachers)
might experience scholé- the free time to become persons in
unpredictable ways.

255
jason wozniak

Separate from Kennedy, Kohan has developed a theory of scholé


in a singular manner. We might say that he has taken a decolonial
approach to scholé by drawing on a figure whom many consider to be
one of Latin America’s most prominent “popular educators,” Simón
Rodríguez. Rodríguez is most widely recognized as the teacher and
comrade of the “liberator” of the Americas, Simón Bolívar. But in an
investigation of Rodríguez’s philosophy of education, Kohan (2015)
reveals that Rodríguez dedicated his life to democratizing, or if one
prefers, popularizing, scholé. That is, long before Rancière, and around
the same time of Joseph Jacotot, Rodríguez sought to transform
education in the newly liberated Americas by assuming not only the
axiom of equality of intelligence, but also the temporal axiom that all
students, no matter their race, gender, or ethnicity are deserving of
free-time for study.
Kohan (2015) through Rodríguez emphasizes a key aspect of
scholé theories that often is ignored or brushed aside too quickly. He
argues that school may be one of the oldest human institutions, but
school is not ontologically given. For a school to be a school, and here
Kohan echoes the work of Masschelein and Simons, it must be scholé: a
timespace in which students are free to be nothing other than students,
where they are given time to study, and are freed from temporal
obligations which are inherent in modes of producing subjectivities
destined to serve the commercialized world of productivity which
typically permeates school walls (Wozniak, 2015, pp. xiv-xv).
Decisively for Kohan, however, school-as-scholé is something that
must be invented. Inspired by a phrase that appears frequently in the
work of Rodríguez, “Inventamos o erramos,” (We invent or we err)
Kohan contends that the “work of every teacher, all teachers, of
everyone who is concerned with education, is to invent school, inside
(and outside) of schools” (p. 81).

the need for a rhythmic interpretation of, and intervention in, scholé

While the authors discussed in this text focus on education


time’s emancipatory possibilities, I want to stress rhythm’s. Given the
intimate relationship between time and rhythm it should be affirmed
that we are not dealing with an either/or proposition, but more likely,
a both/and one. That said, I do think that it matters where theoretical
emphasis is placed. And I place it on rhythm for reasons that I will
now explain.
The way that education time is structured, and what happens in
time dedicated to education has an enormous influence on education
experiences that are formative. When we discuss the structure of
education time, as well as the organization of its content, it seems that
we should be paying closer attention to rhythm. This is because

256
the emancipatory rhythms of scholé

everyday education life not only unfolds in time, but is both made up
of, and produces, rhythms. The education experience, and this is
especially the case for experiences within institutionalized schooling,
is structured rhythmically. Moreover, if we remember one of the
definitions of rhythm, that it is the arrangement of movement in time,
then it becomes clear that philosophers of education like those above
who place their emphasis on time, need also take into consideration
how movements in education experience are arranged. Doing so,
would cause a theoretical shift towards an education rhythmanalysis.
I also question the claims made above about the invention of
time. It just might be that it is not necessarily time that can be
invented, but rather, rhythms. Or in other words, one can certainly
create concepts of time, a variety of time reckoning paradigms, and
devices to measure time, but can time itself be created ex-nihilo?
Rhythm, on the other hand, is most certainly something that is
produced, at least by humans. Even more so, if we follow certain
notions of rhythm like those of Giorgio Agamben (1999), then we can
perhaps conclude that the invention of rhythms creates an experience
of time but doesn’t necessarily create time itself.
According to Agamben (1999, p. 99), rhythm introduces a split
and a stop into the eternal flow of chronological time. For example,
before a work of art, whether this be a musical piece, a painting, or a
landscape, the perception of rhythm, here marked by an “escape”
from the “incessant flight of instants,” a pause if you will, throws us
back into a more “original time,” or what Agamben contends is an “ek-
stasis in a more original dimension” (p. 99). What is important to note
here is that rhythm “reveals a more original dimension of time and at
the same time conceals it in the one dimensional flight of instants” (p.
100). Conceived of this way, rhythm paradoxically creates a gifting of
an experience of time that occurs within a reserve, or pause. Or as
Agamben (1999, p.100 ) puts it, “rhythm holds, that is it gives and
holds back.” In doing so, “rhythm grants men both the ecstatic
dwelling in a more original dimension and the fall into the flight of
measurable time,” and in doing so, it gives us the “the gift both of
being and nothingness” (p. 100).
What the education theorists above seem to be appealing to, is
the possibility of education being an experience that grants us a
moment in a “more original time,” to use Agamben’s phrase, even
though some authors above, like Kohan, would resist appeals to
anything deemed “original.” Education conceived of this way is
comparable to a work of art that opens to us a more “authentic
temporal dimension,” as a well as a space in which we realize our
belonging to the world (Agamben, 1999, p. 101). Such an experience is,
if we continue with Agamben (1999), that which allows the poetic
status of man on earth to find its proper meaning. Education thought

257
jason wozniak

of this way, like art, is a gift in the sense that it gives us, by creating a
pause in chronos, a temporal experience (kairotic) that ruptures the
continuum of linear time and returns us to an experience of time that
cannot be measured, and which escapes appropriation. In sum then,
one (a teacher, student, etc..) cannot simply invent time in/through
education, instead, one must create the rhythms that make an
experience with temporalities not delimited by dominant temporal
regimes possible.
Maurizio Lazzarato (2015, p. 255) has written that, “The need to
discover, produce, and reconstitute temporalities, heterogeneous
subjectivities and their institutions, requires that we continually seek
to elude the techniques of subjection and enslavement deployed by
governmentality.” What we need, he argues, is “a time of rupture, a
time that arrests the ‘general mobilization’ (of capital), a time that
suspends apparatuses of exploitation and domination—an ‘idle time”
(p. 246). My contention is that these temporalities can either be
discovered in education, and/or invented through education praxis.
This is especially possible when education is conceptualized as scholé,
and when scholé is interpreted through rhythmanalysis.
Scholé is rhythmically created. The delay, suspension, or
experience of free-time as described above, is produced rhythmically.
The invention of scholé creates a lacunae in time, one which opens up
the possibilities for a plethora of rhythms (polyrhythms) to emerge. Or
if one prefers, scholé is not necessarily “free-time,” but rather a
puncture in dominant time economies produced by rhythmic
interventions that permit the creation of new rhythms of education
and consequentially new ways of becoming in the world. Scholé
originates through rhythm, and it effects rhythms in everyday life and
education. It is both a rhythmic disruption, an arrhythmia of dominant
time economies, and an event that inaugurates a crisis in time-
disciplining regimes. One which has the effect of opening up rhythmic
possibilities of living and being otherwise within, and outside of,
school.

references

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Stanford University Press, 1999.
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Problems in general linguistics. (M.E.Meek, Trans.). Coral Gables, FL: University
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Lazzarato, M. Governing by debt. (J.D. Jordan, Trans.). Los Angeles, CA:
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Paris: Edilig, 1988. p. 79-96.
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dark side of being exceptional, Journal of Philosophy and Education, 42(3-4),
2008b. pp. 687-704.

259
260
impedir que el mundo se deshaga. con algunas escenas
escolares y una conversación sobre la transmisión, la
comunización y la renovación del mundo.

jorge larrosa
universidad de barcelona
jlarrosa@ub.edu

introducción
Cada generación se siente destinada a rehacer el mundo.
La mía sabe que no podrá hacerlo.
Pero su tarea es tal vez mayor.
Consiste en impedir que el mundo se deshaga.
Albert Camus.

Se sabe que, para Hannah Arendt, la escuela tiene que ver con la
transmisión, la comunización y la renovación del mundo. La escuela
no está (sólo) para la preparación para la vida. Y tampoco está (sólo)
para la socialización, para ese proceso que consiste en hacer de los
cachorros humanos miembros de una sociedad, de una cultura o de
una “forma de humanidad” determinada. La escuela está para el
mundo, para impedir que el mundo se deshaga. Lo que está en juego
en la escuela, dice Arendt, es nada más y nada menos que la salvación
del mundo. No la transformación del mundo, sino la salvación del
mundo. Y de la única manera que esa salvación es posible:
entregándoselo a los nuevos.
Pero ¿qué es el mundo? ¿De qué está hecho el mundo? ¿Qué
cosas conforman el mundo? ¿Qué es lo que hace que los seres
humanos sean seres mundanos, que no sólo vivan en la tierra, sino que
habiten el mundo? ¿Cómo los hombres hacen mundo, y transmiten
mundo? ¿Qué significa que el mundo sea, o pueda ser, un mundo
común, hecho en común y puesto en común?
Para sugerir una respuesta, voy a trabajar primero con una
distinción de Santiago Alba Rico que está inspirada en Hannah Arendt
(en la diferencia entre el vivir y el habitar, entre la labor y el trabajo,
entre la vida desnuda y la vida mundana, entre zoé y biós) y también
en Marx (sobre todo en la teoría del valor y en los análisis ya clásicos
de la cosificación del hombre y del fetichismo de la mercancía). Lo que
Alba distingue no son tanto tres tipos de cosas, como tres tipos de
relación con las cosas.
Tendríamos, primero, las cosas de comer, los consumptibilis, los
comestibles, los víveres, las cosas que se agotan en el puro proceso de

261
jorge larrosa

reproducción de la vida, esas con las que nos relacionamos a través del
hambre. Tendríamos, segundo, las cosas de usar, los fungibilis, los
instrumentos, los enseres, las herramientas, las cosas de usar (la pipa,
la mesa, el martillo, la casa, la aguja, el hilo y el dedal, el arado, los
zapatos), esas con las que nos relacionamos a través del uso. Y
tendríamos, por último, las cosas de mirar, las mirabilia, las maravillas,
las cosas que no están a la mano sino enfrente, delante de los ojos, y a
distancia, esas con las que nos relacionamos a través de la
ad/miración, pero también de la palabra, del juicio y del pensamiento.
El hambre, dice Alba, es rápida y destructiva. No da tiempo a las
cosas a afirmar su presencia. Hace desaparecer las cosas al
incorporarlas. Por eso la sociedad de consumo, en tanto que está
estructurada por el hambre, es la de la destrucción generalizada.
Además, el hambre es infinita, no tiene límites, es des-medida y
comienza siempre de nuevo. En la sociedad capitalista y consumista,
una parte de la población no tiene que comer, está literalmente
hambrienta (su vida está marcada por el hambre), pero la otra parte
siempre quiere más, es bulímica, obesa y su vida también está
marcada por el hambre, por la insatisfacción permanente, por el deseo
compulsivo de más y más cosas.
Entre los griegos, dice Alba, el ámbito del hambre, el lugar de la
necesidad y de la infinita reproducción de la vida, es el ergasterión, una
palabra que designa el lugar del trabajo, pero también una cárcel de
esclavos. Y los esclavos eran considerados aneu logou, seres sin palabra,
y aneu kosmou, seres sin mundo. Es decir, criaturas aisladas, sin
comunidad, puros individuos. De ahí la distancia infinita entre el
ergasterión y el ágora, pero también entre el ergasterión y la escuela
(siendo el ágora y la escuela ámbitos ambos de la scholè -tiempo libre-,
de la palabra, de la libertad y del mundo). Quizá no esté demás
recordar que en Grecia apenas hubo revueltas de esclavos y que en
Roma las grandes rebeliones no se produjeron ni en los latifundios ni
en las minas, sino en una escuela de gladiadores de Capua y entre los
esclavos domésticos, altamente escolarizados, de Sicilia. Y se podría
apuntar también que, para un griego, la sociedad del hambre, nuestra
sociedad, sería una sociedad de individuos separados, sin lenguaje, sin
mundo, sin comunidad, sin tiempo libre (nuestro ocio también está
gobernado por el consumo y es una forma de hambre, pensemos si no
en ese bulímico compulsivo que es el turista, o en ese lugar del hambre
infinita que es el shopping) o, lo que es lo mismo, una sociedad de
esclavos, aunque sean ricos.
Las cosas de usar, sin embargo, son (o eran) ya objetos
separados, manejables y durables (podemos usarlos, pero no podemos
comerlos). Las herramientas tienen un pasado (siempre vienen del
pasado, son la presencia y a la vez el olvido del trabajo que las ha
producido) y, además, se desgastan despacio (y en el espacio).

262
impedir que el mundo se deshaga. con algunas escenas escolares y una conversación...

Podríamos recordar la época en que los objetos de uso duraban más


que nosotros, nos sobrevivían, pasaban de generación en generación.
Además, los enseres constituyen ya un mundo cultural en tanto que
conforman las artes de hacer y las artes de vivir (los arqueólogos
reconstruyen las formas de vida de una sociedad mediante el estudio
de sus objetos de uso). Las cosas de usar, incluso, con el tiempo,
pueden adquirir un alma (a veces en muchas culturas, se las bendice,
tienen un nombre propio, se las venera). Roberto Expósito tiene un
libro muy hermoso titulado Las personas y las cosas donde apunta a la
posibilidad de pensar en algo así como “el alma de las cosas” que,
desde luego, se va constituyendo en el trato continuado con los
hombres y en esa forma particular de intercambio que es el don, el
regalo (Expósito, 2016).
Pero siendo, como son, “cosas del mundo” (y no sólo “cosas de
la vida”), los útiles se hacen invisibles en el uso y vuelven, de alguna
manera, a la naturaleza. No podemos contemplar el dedal mientras
cosemos, no podemos pintar nuestras botas mientras subimos una
montaña, no podemos ad/mirar el martillo mientras clavamos clavos.
Podríamos decir que las cosas de usar sólo vuelven al mundo, a la
cultura, a la presencia, cuando se vuelven anacrónicas (cuando,
alejadas del tiempo en que eran usadas, se museifican) o cuando se
rompen (cuando han dejado de estar embebidas en su función, cuando
se hacen inútiles y dejan de servir), es decir, cuando podemos
considerarlas independientemente de su uso. Y podríamos adelantar,
también, que las cosas de usar pasan a formar parte del mundo
cuando se estudian, es decir, cuando se suspende su uso, se ponen a
distancia, se colocan en público y se convierten en interesantes en sí
mismas.
La sociedad capitalista convierte todo en útil, en instrumento, y
mide todas las cosas por su función y por su eficacia. Pero la lógica de
la renovación permanente y de la obsolescencia programada impide
también que los útiles ganen presencia y tengan alguna forma de
permanencia. Nuestra sociedad destruye todo lo que se ha convertido
en inútil, en anticuado, en pasado de moda, en viejo, y lo convierte en
deshecho, en residuo, en desperdicio. Nuestra sociedad funciona como
una gigantesca producción de mercancías y de útiles, de cosas de
comer y de cosas de usar, pero funciona también como una gigantesca
producción de basura. La materialidad de los instrumentos es
aniquilada por su reducción a puro valor económico, sin propiedades
intrínsecas. Y lo que eran relaciones sociales condensadas en
materialidades se convierten en mercancías, en pura utilidad, en pura
función, y en ese proceso es el ser humano mismo el que se cosifica y
se convierte en una pieza intercambiable, reproducible y
reemplazable, es decir, en instrumento o en basura. La inmersión de
las cosas de usar en la pura utilidad anuncia también, como el triunfo

263
jorge larrosa

del hambre, una sociedad compuesta enteramente por esclavos, por


seres humanos reducidos a ser utilizables o desechables. Las teorías
del capital humano o de los recursos humanos mostrarían esta lógica
en la que los hombres se convierten, ellos también, en cosas de comer
o en cosas de usar.
Las cosas de mirar, las maravillas (literalmente “las cosas dignas
de ser miradas”), son cosas de las que se ha suspendido la utilidad, de
las que se ha suspendido también el desgaste del tiempo, y que se han
colocado a distancia. Las maravillas no pueden ser devoradas y
tampoco pueden ser ya usadas. Su existencia implica la interrupción
del hambre y de la utilidad. Su presencia exige de estabilidad y de
consistencia. Por eso no están en la boca o en la mano, sino que se
hacen presentes en el espacio público, colocadas entre los hombres y a
esa justa distancia en la que puede constituirse a su alrededor el
espacio (y el tiempo) de la atención, de la contemplación, de la
palabra, del juicio y del pensamiento. Dice Santiago Alba:
“Mediante las cosas de mirar o maravillas -ciertas
piedras, ciertas palabras, ciertos colores, pero también
las cosas de la ciencia, o las ideas-, apartadas
convencionalmente del circuito rápido de la vida y de la
espiral lenta del uso, declaradas al mismo tiempo
incomestibles e inútiles, se abre esa distancia que
permite al hombre medir, y no sólo calcular, y
establecer, al menos virtualmente, un espacio común,
una memoria colectiva, el lugar del juicio y del
pensamiento. Las cosas de comer sirven para mantener
la vida; las cosas de usar sirven para mantener la
sociedad; las cosas de mirar sirven para mantener el
mundo. El juego mismo de la cultura humana ha
consistido básicamente en esta división y en la
posibilidad, por tanto, de considerar las cosas desde al
menos tres puntos de vista diferentes (como comida,
como herramienta, como monumento)” (Alba Rico,
2007, p. 112-113).
Y tal vez podríamos decir a partir de aquí que la escuela no está
(sólo) para el mantenimiento de la vida o de la sociedad sino, sobre
todo, para mantener o sostener el mundo. La tarea de la escuela, si no
quiere estar (sólo) al servicio de la economía o de la sociedad, es salvar
el mundo, es decir, poner algunas cosas a distancia, interrumpir el
hambre, suspender el uso, convertir las cosas en maravillas, en
materias de estudio, en cosas a las que vale la pena atender, en las que
vale la pena demorarse, en materialidades puestas, compuestas y
dispuestas para que los niños y los jóvenes puedan (aprender a) mirar,
a hablar, a juzgar y a pensar.
Una manzana se convierte en maravilla pintándola,
fotografiándola, filmándola, dedicándole un poema o estudiándola. Y
lo mismo podríamos decir de las botas. Por eso las manzanas de

264
impedir que el mundo se deshaga. con algunas escenas escolares y una conversación...

Cézanne nos hacen descubrir las manzanas, lo que las botas de Van
Gogh traen a la presencia son simplemente las botas, y la rosa de los
poemas de Rilke no está ahí para decirnos que el poeta la ama, sino
que nos dan la rosa misma en su esplendor y su pureza, pero también
en su marchitarse y en su deshojarse. Pero las manzanas de Cézanne y
las botas de Van Gogh nos descubren también las formas y los colores.
Y los poemas nos descuben las palabras. Un poema es el lugar en el
que el lenguaje se puede mirar (y no sólo usar). Convertidas en
maravillas, las manzanas, las botas y las rosas son ya representaciones,
es decir, cosas que se hacen presentes, se presentan y se re-presentan.
Y son también espectáculos, es decir, cosas que se miran, se ad-
miran y se re-miran (re-spectare). Cosas cuya misma existencia ante
nosotros nos convierte en espectadores. Las cosas de mirar, de re-
mirar y de ad/mirar están colocadas en el espacio público (ese en el
que las cosas del mundo a-parecen o com-parecen y, por tanto, ese en
el que sedimentan las palabras, los juicios y los pensamientos). Un
espacio que es también ese en el que a-parecen o com-parecen los
ciudadanos, los hombres libres, con sus palabras, sus juicios, sus
pensamientos y sus acciones. No los esclavos, ni los individuos
privados (idiotés), sino los ciudadanos, es decir, las personas que
comparten un mundo.
Y si hay una forma de injusticia en el reparto desigual de las
cosas de comer y de las cosas de usar, también la hay en el reparto
desigual de las cosas de mirar. Es claro, por otra parte, que no es lo
mismo compartir el pan, compartir el arado o compartir un cuadro
sobre el pan o un poema sobre el arado (no son formas idénticas de
compartir). Además, hay también injusticia (quizá la injusticia mayor)
en que la vida de algunos seres humanos esté reducida a las relaciones
con las cosas de comer y con las cosas de usar, mientras que sólo
algunos puedan tener acceso a las maravillas (al tiempo libre y al
espacio público en el que las maravillas pueden aparecer). Y habría
que decir también que la injusticia en el reparto desigual del pan y del
arado puede convertirse también en “cosa de mirar” o en “cosa de
estudiar” (puede ponerse a distancia y ante los ojos) y, por tanto, en
algo sobre lo que hablar, pensar y juzgar en común.
La primera escena escolar será, simplemente, la transcripción de
una historia muy bella que cuenta Freire en un texto sobre las
campañas de alfabetización en África:
“Entre los innumerables recuerdos que guardo de la
práctica de los debates en los Círculos de Cultura de São
Tomé, me gustaría referirme a uno que me toca de
modo especial. Visitábamos un Círculo en una pequeña
comunidad de pescadores llamada Monte Mário. Estaba
como generadora la palabra ‘bonito’, nombre de un pez,
y como codificación un expresivo dibujo del poblado
con su vegetación, sus casas típicas, con barcos de pesca

265
jorge larrosa

en el mar y un pescador con un bonito en la mano. El


grupo de alfabetizandos miraba en silencio la
codificación. En cierto momento se levantaron cuatro de
ellos, como si lo hubieran acordado, y se dirigieron
hacia la pared donde estaba fijada la codificación (el
dibujo del poblado). Observaron la codificación de
cerca, atentamente. Después se dirigieron a la ventana
de la sala donde estábamos. Miraron el mundo de fuera.
Se miraron entre ellos, con los ojos vivos, casi
sorprendidos, y mirando otra vez la codificación
dijeron: ‘Es Monte Mário. Monte Mário es así y no lo
sabíamos’. A través de la codificación, aquellos cuatro
participantes del Círculo ‘tomaban distancia’ de su
mundo y lo reconocían. En cierto sentido era como si
estuvieran ‘emergiendo’ de su mundo, ‘saliendo’ de él
para conocerlo mejor. En el Círculo de Cultura, aquella
tarde, estaban teniendo una experiencia diferente:
‘rompían’ su estrecha ‘intimidad’ con Monte Mário y se
ponían delante de su pequeño mundo cotidiano como
sujetos observadores” (Freire, 2015. p. 57).
La segunda escena escolar podría ser la que aparece en Elogi de
l’escola, una película filmada por los alumnos de la escuela de Bordils,
en Cataluña, y realizada por la asociación Abaoqu. La película está en
el Dvd incluido en el libro Elogio de la escuela (Larrosa 2018) y cuenta la
manera como la escuela celebró su 75 aniversario. Los niños se
dedicaron a medir la escuela, a dibujarla, a fotografiarla, a filmarla, a
estudiar sus sucesivas reformas y transformaciones, a entrevistar a
viejos alumnos y a antiguos profesores para saber de su historia, y
también a exteriorizar, escribiéndolas y dibujándolas, sus propias
vivencias escolares, sus sentimientos y sus pensamientos en los
distintos espacios escolares.
Lo que hicieron no fue otra cosa que una serie de ejercicios de
atención y de gramatización en los que la escuela pasó de ser vivida a
ser estudiada, en que dejó de ser una cosa de usar y se convirtió en
una cosa de mirar y de ad/mirar. Lo que los profesores hicieron fue
ofrecer la escuela como materia de estudio y sugerir, además, los
procedimientos y los ejercicios a través de los cuales la escuela podía
ser revelada, presentada y representada, traída a la presencia, mirada
y ad-mirada, convertida en maravilla. La escuela fue puesta a
distancia; se convirtió en objeto de contemplación, de palabra y de
pensamiento; y se convirtió también en una cosa al mismo tiempo
temporal e intemporal.
Una cosa temporal porque fue mostrada en lo que fue y porque
fue proyectada en lo que podría ser. Al final de la película, cuando los
niños enuncian sus deseos para el futuro de la escuela, hay una niña
que dice que cuando la escuela haga 150 años le gustaría que los niños
que la habiten encuentren algún rastro de su paso por ella. La escuela
se convierte en algo que ya tenía un pasado cuando los niños entraron
266
impedir que el mundo se deshaga. con algunas escenas escolares y una conversación...

en ella y en algo que seguirá estando en el tiempo (aunque de otra


manera, claro) cuando los niños la abandonen y quizás la olviden. Los
niños aprenden ahí que el mundo no ha nacido con ellos y que no
terminará cuando ellos mismos desaparezcan.
Y una cosa intemporal porque, convertida en película (en cosa de
mirar), un momento de la escuela misma se separó de la usura del
tiempo y se constituyó en un documento o en un monumento sobre el
que otras personas podrán seguir hablando y pensando.
Podríamos continuar recordando que Hannah Arendt remite la
educación a un doble amor: al amor al mundo y al amor a la infancia.
Es ese doble amor el que permite pensar la escuela como un lugar no
sólo de preparación para la vida sino, sobre todo, como un espacio y
un tiempo separado para hacer posible la transmisión, la
comunización y la renovación del mundo. Porque ese doble amor
supone también una doble protección: hay que proteger a los niños del
mundo y hay que proteger también al mundo de los niños. Para que el
mundo (de la economía y de la sociedad, de las cosas de comer y las
cosas de usar) no se coma a los niños y a los jóvenes,
instrumentalizándolos, y para que los niños y los jóvenes no devoren
el mundo, consumiéndolo o limitándose a usarlo. O, dicho de otra
manera, hay que mantener una cierta distancia tanto entre el mundo y
los niños como entre los niños y el mundo:
“El pequeño requiere una protección y un cuidado
especiales para que el mundo no proyecte sobre él nada
destructivo. Pero también el mundo necesita protección
para que no resulte invadido y destruido por la
embestida de los nuevos que caen sobre él con cada
nueva generación” (Arendt, 1996 a. p. 197-198).
La palabra mundo significa dos cosas en esta cita. Algo que
puede ser destructivo para los niños y para los jóvenes. Y algo que
debe ser transmitido a las nuevas generaciones (para su renovación) y,
a la vez, protegido de ellas (para que no sea destruido). Y es
interesante que una de las formas del mundo es lo que en otros
tiempos se llamaba cultura y que una de las formas de destrucción del
mundo sea lo que hoy se llama consumo y utilidad. La cultura es, para
Arendt, un conjunto de cosas tangibles (libros y cuadros, estatuas,
edificios, música, ideas, teoremas), sustraído a la erosión del tiempo
(por una decisión de conservación y preservación), sustraído también
a cualquier uso o utilidad, destinado apenas a “captar nuestra atención y
conmovernos” (Arendt, 1996b, p. 216). Esas cosas mundanas
trascienden necesidades y funciones y, como dice Arendt:
“En términos estrictos, no se fabrican para los hombres
sino para el mundo, destinado a perdurar más allá del
curso de una vida mortal, más allá del ir y venir de las
generaciones. No se consumen como bienes de
consumo, ni se desgastan como objetos de uso, y

267
jorge larrosa

además, deliberadamente, se las aparta del proceso de


consumo y uso y se las aísla de la esfera de las
necesidades vitales humanas” (Arendt, 1996b, p. 221).
De la existencia de esas “cosas” depende que los hombres no
sólo vivan en la tierra sino que habiten el mundo, que tengan eso que
Arendt llama “un hogar mundano”, y que sólo adquiere existencia en
tanto que “cultura”, cuando ese tipo de cosas se organiza de tal
manera que pueden sobrevivir a la vida de las personas que habitan
en él precisamente porque son sustraídas de cualquier funcionalidad y
de cualquier utilidad, es decir, cuando no sirven para nada. Por otra
parte, cuando esas cosas son des-funcionalizadas lo único que queda
es su aspecto, es decir, su belleza.
“Pero para tomar conciencia del aspecto, antes debemos
tener la libertad de establecer cierta distancia entre
nosotros mismos y el objeto; cuanto más importante es
el simple aspecto de una cosa, tanto mayor tendrá que
ser la distancia necesaria para apreciarlo bien. Esa
distancia no se concreta a menos que estemos en
posición de olvidarnos de nosotros mismos, de los
cuidados, apremios e intereses de nuestras vidas”
(Arendt, 1996b, p. 222).
Las condiciones para la transmisión, la comunización y la
renovación del mundo (que son las mismas que impedirían su
destrucción, que lo preservarían de nuestro apetito y de nuestra
voracidad), entonces, serían al menos tres. La primera: sustraer
algunas cosas del uso, de la función y de la utilidad, para considerarlas
en su aspecto y en su belleza, es decir, para dejarlas ser; la segunda:
ponerlas a distancia; la tercera: llamar la atención sobre ellas y
demorarse en ellas. Y eso es lo que hace, o hacía, la escuela.
Lo que ocurre hoy en día, dice Arendt, es que la cultura se
convierte en valor (en un instrumento para otra cosa, medido por su
utilidad) o, lo que es peor, en entretenimiento. Y entonces se consume
como cualquier otro bien de consumo. Con lo cual se destruye como
cultura y se deshace como mundo.
Los productos que ofrece la industria del
entretenimiento no son ‘cosas’, objetos culturales cuyo
valor se mide por su capacidad de soportar el proceso
vital y convertirse en elementos permanentes del
mundo (…); tampoco son ‘valores’ que estén allí para
ser usados e intercambiados: son bienes de consumo
que tienen que ser agotados, como cualquier otro objeto
de consumo. (Arendt, 1996b, p. 217-218).
El mundo desaparece cuando se apodera de él el proceso vital de
la sociedad, que es un metabolismo, una relación digestiva con las
cosas, un comer y un fagocitar y un devorar. Por eso el mundo debe
ser protegido del hambre. El mundo, para Arendt, es lo que hay o,

268
impedir que el mundo se deshaga. con algunas escenas escolares y una conversación...

mejor, lo que aparece entre los hombres, e incluye tanto las cosas como
los acontecimientos (también lo que ha acontecido). Por eso el mundo
sólo es tal si aparece en público, si es común y a la vez propio de cada
uno, si está entre o en medio de los hombres:
El término ‘público’ significa el propio mundo, en
cuanto que es común a todos nosotros y diferenciado de
nuestro lugar poseído privadamente en él (…). Un
mundo está entre quienes lo tienen en común, al igual
que la mesa está localizada entre los que se sientan
alrededor; el mundo, como todo lo que está en medio,
une y separa a los hombres al mismo tiempo. (Arendt,
1996b, p. 230)
Por eso el mundo desaparece también cuando se borran las
distancias, cuando el hambre y el uso se apropia y privatiza las
maravillas, cuando nada dura, cuando no hay tiempo, cuando no hay
espacio (público), cuando todo es medido desde el punto de vista de la
pulsión, del deseo, del me gusta no me gusta, o de la utilidad, del me
sirve no me sirve, cuando desparece el espacio público como espacio
de atención, de palabra, de consideración, de demora, de juicio y de
pensamiento.
Por eso, con la desaparición del mundo desaparece la escuela,
pero también el ágora (el ámbito en el que los hombres no dialogan
sólo sobre lo conveniente sino sobre lo justo y lo injusto), y también la
filosofía (el ámbito de la contemplación y de la teoría, ahí donde la
pregunta no es para qué sirven las cosas sino qué son). Cuando el
mundo desparece ya no hay distancia entre el ergasterión y el ágora, o
entre el ergasterión y la escuela, ya no hay diferencia entre tiempo libre
y tiempo esclavo, ya no hay maravillas que tengan la suficiente
estabilidad y consistencia como para permanecer entre los hombres y
poder fundar los espacios públicos en los que se da una comunidad
plural de hombres mundanos que fundamentan su libertad justamente
en una relación libre, igualitaria y desinteresada con el mundo.
La educación tiene que ver con el modo como los viejos (los que
ya estamos en el mundo, los que ya habitamos en él) entregamos el
mundo a los nuevos (a los que vienen al mundo) para que estos lo
salven de la ruina renovándolo. Por eso la educación da el mundo
como materia para el estudio, la experimentación, el juego, la
invención. Pero también para que los jóvenes lo respeten y no lo
devoren.
Respeto (de re-spectare) significa mirar de nuevo. La repetición
marca la diferencia entre el spectare del espectador y del espectáculo y
el respectare de la atención y de la demora. Respeto significa también
guardar distancia. Respetar algo es mantenerlo a distancia, o sea, no
invadirlo, no devorarlo. Y, sobre todo, no hacer de ello un espejo o una
proyección de nosotros mismos. Respetar algo es considerarlo en lo
que es y no en lo que a nosotros nos gusta (o no). En ese sentido,

269
jorge larrosa

respeto significa también el reconocimiento de la dignidad. Respetar


algo tiene que ver, entonces, con considerarlo como un fin en sí
mismo, es decir, con no usarlo, no tomarlo como un instrumento,
como un medio. Y respeto significa, por último, reconocer una cierta
primacía, una cierta autoridad. Por eso proteger al mundo es darle una
cierta autoridad. Y eso es lo que la escuela hace, o hacía: darle
autoridad al mundo.
En ese sentido, las viejas generaciones no tienen autoridad
porque tengan algún poder de coerción, sino porque representan la
autoridad del mundo, porque hacen que el mundo, algunas cosas del
mundo, merezcan atención y respeto. Y eso, proteger el mundo de la
destrucción, conferirle una cierta autoridad, tratar de hacer que sea
respetado, significa suspender tres cosas: el narcisismo de la juventud
(su tendencia a tomar todo como espejo), su egocentrismo (su
tendencia a considerar que el mundo empieza con ellos), y su extrema
voracidad (su tendencia a anular cualquier distancia y a convertir
cualquier cosa en objeto de consumo o de uso). Tres cosas que, sin
duda, son constantemente fomentadas en nuestra sociedad y que
dificultan enormemente la que sería una de las tareas fundamentales
de la escuela: tratar de que los niños y los jóvenes se interesen por algo
que no sean ellos mismos; que se interesen porque vale la pena y no
(sólo) porque les guste o porque les sirva; y que de ese interés se
derive esa particular forma de atención, de respeto y de cuidado que
aún llamamos estudio.
La tercera escena escolar está contada en la tercera parte de mi
libro Esperando no se sabe qué. Sobre el oficio de profesor, se titula “De
dunas y catedrales” y dice así:
“Como teníamos un día libre antes de la reunión de
Anped, decidimos tomar un taxi hasta Raposa para
conocer el pueblito, dar un paseo en barco por el río y
comer pescado. Cuando el barquito entró en una
ensenada donde la corriente se calmaba y se podía
entrar tranquilamente en el agua, el espectáculo era
desolador: seis o siete barcos como el nuestro, pero con
parrilla de asar carne humeando en la popa, varias
docenas de paseantes con el agua hasta la cintura y latas
de cerveza en la mano, música a tope, esas cosas. Un
poco más adelante el barco ancló junto a unas dunas en
las que había otra buena cantidad de gente rodando por
la arena, gritando y haciéndose fotos. Nada contra el
turismo popular (el turismo de los ricos es infinitamente
más depredador porque lo que deja no es sólo basura
sino todas esas construcciones horribles que ensucian y
a la vez privatizan las playas). Apenas la sensación de
que a veces el mundo parece que está ahí para ser
devorado, consumido, disfrutado, como una mercancía
o un juguete.

270
impedir que el mundo se deshaga. con algunas escenas escolares y una conversación...

Esa misma tarde, a la vuelta a São Luiz, aún tuvimos


tiempo para ver otra escena: esta vez un grupo de
escolares de uniforme en las escaleras de la catedral,
jugando, correteando y haciéndose fotos, disfrutando de
la salida escolar. Pero cuando entraron en la iglesia todo
cambió: el profesor los hizo sentar, los hizo callar, les
mandó apagar los celulares, y comenzó a llamar su
atención sobre los retablos y las pinturas,
comentándolos y contando historias. A partir de ese
momento los chicos y las chicas se convirtieron en
alumnos, la catedral dejó de ser un templo, un juguete o
un espacio turístico y se convirtió en materia de estudio.
Su uso religioso, lúdico o turístico quedó suspendido y
fue el gesto del profesor el que la puso a distancia y, de
alguna manera, la hizo hablar. La iglesia fue puesta a
disposición de todos y todo el esfuerzo del profesor
estaba en orientar y disciplinar la atención y en tratar de
que lo que estaba ahí, ante los ojos de todos, dijera
alguna cosa y fuera interesante.
Inmediatamente pensamos que si a la ensenada o a las
dunas hubiera llegado un grupo de escolares
acompañados por su profesor, el río y las formaciones
de arena hubieran sido tratadas de otro modo, ya no
como materia de disfrute sino como materia de estudio:
la ensenada se hubiera convertido en una ensenada
escolar, la duna en una duna escolar y la vegetación de
la ribera en una vegetación escolar y escolarizada (es
decir, no dispuesta para su consumo sino para su
estudio). Pero no sólo las cosas serían otras, sino que
también lo serían las actitudes, las palabras y las
actividades. En cualquier caso, tanto la escena de la
catedral como la de las dunas nos habían permitido ver
algo de lo que es la escuela y de lo que hacen los
profesores en relación con el mundo.
Además, como tanto la ensenada como las dunas
estaban en el límite de un espacio natural protegido, aún
nos dio tiempo para darle un par de vueltas a la lógica
de la preservación, esa que hace que algunas cosas
(como los glaciares, los osos polares, los manglares, los
guarás, o las lagunas de agua dulce que estaban cerca de
allí) sean extraídas del mundo de la economía a través
de la prohibición expresa y obligatoria de convertirlos
en mercancía y, por lo tanto, de devorarlos y destruirlos.
Pensamos que esas cosas que necesitan ser protegidas
son demasiado frágiles y vulnerables para protegerse a
sí mismas (por eso tienen que ser protegidas por otros),
que si se las desposee de todo valor económico se puede
decir que no sirven para nada, que al protegerlas
decidimos precisamente no servirnos de ellas sino
ponernos nosotros a su servicio, que la lógica de la
preservación de alguna manera las sacraliza (véanse si

271
jorge larrosa

no las expresiones de origen religioso, como santuario o


paraíso, que se usan en los lugares de protección
ecológica) en tanto que supone que la conservación de
su mera existencia tiene que ver con algo así como con
la dignidad, sea eso lo que sea, de nuestra forma de
estar en el mundo.
Y pensamos a partir de ahí que tal vez no sea del todo
idiota pensar que la escuela puede verse como una
especie de refugio para el mundo y para la atención al
mundo: un refugio en el que las catedrales puedan
seguir siendo catedrales y las dunas puedan seguir
siendo dunas, ofrecidas a la contemplación y al estudio
de todos, no apropiadas ni privatizadas. Y que la
escuela puede verse también como un refugio para los
niños: un refugio en el que los niños no estén
instrumentalizados (no sean un instrumento para otra
cosa) y donde tengan el tiempo y el espacio necesarios
para que puedan convertirse, por un tiempo, en
estudiantes. Un refugio que, estrictamente, tampoco
sirve para nada, pero en el que quizá se juegue algo que
tenga que ver también con la dignidad (y no sólo con la
utilidad)” (Larrosa, 2018).
En Córdoba (Argentina) asistí a un panel en el que Javier
Trímboli, historiador comprometido con la defensa de la escuela y con
la formación de los profesores, habló sobre “lo común en la escuela” y
también, en ese contexto, sobre lo que Arendt entiende por “mundo”.
Comenzó reconociendo todo lo que su pensamiento sobre la escuela
debe a Hannah Arendt, pero enseguida mostró su irritación por esa
obsesión por las catedrales, por lo que está hecho en piedra y aspira a
la eternidad, y por el desprecio que muestra hacia lo que ella llama
"tribus nómades", que pueden construir una cabaña para "ponerse
algo sobre su cabeza" con el fin de paliar la intemperie, que pueden
tener un "hogar", pero que eso no es exactamente "mundo" ni "cultura"
porque no perdura. Habló después, para poner un ejemplo, de los
indios ranqueles (que andaban por el sur de Córdoba y por La
Pampa), dijo que le hubiera gustado leer que también es mundo,
aunque de otra manera, una cabaña ranquel, aunque no sobreviva a su
uso ni haya sido construida con la pretensión de ser eterna, y le dio
una vuelta a que de los ranqueles casi nada quedó, a diferencia los
incas que siguen vivos en más de un sentido por la lengua.
Mientras lo escuchaba recordé, a propósito de las catedrales, la
famosa sentencia de Walter Benjamin, esa que está en la Tesis VII de
sus Tesis de filosofía de la historia y que dice que “no existe monumento de
cultura que no sea a la vez monumento de barbarie” (Benjamin, 1971, p. 81),
que implica que, de alguna manera, la barbarie está inscrita en la
cultura y, por tanto, también puede ser leída y estudiada en ella. Pensé
también que, como historiador que estaba hablando a profesores sobre

272
impedir que el mundo se deshaga. con algunas escenas escolares y una conversación...

el asunto del mundo común en la escuela, lo que estaba haciendo


Javier era colocar la choza ranquel en el mundo, es decir, estaba
arrancándola de la voracidad del tiempo y convirtiéndola en cosa que
merece atención y estudio, tanto en sí misma como en su relación con
las catedrales. Y dije que la historia de los vencidos, la de los que han
dejado sólo la huella de su derrota, esa que Benjamin y Javier estaban
representando para mí en ese momento, también forma parte de la
escuela, también tiene que ver con la salvación del mundo (con la
transmisión, comunización y renovación del mundo), en el sentido de
que se corresponde con la tarea de convertir algunas cosas, también la
desaparición de los ranqueles, en algo digno de ser mirado, respetado
y estudiado, traído a la presencia en el espacio público, en el lugar de
la palabra, del juicio y del pensamiento.
Javier añadió que no se puede pensar lo que sea “el mundo” sino
en tanto que disputado y sometido, como todo lo humano, a relaciones
de poder, en tanto que contiene la historia no sólo de lo que los
hombres han separado como digno de atención sino también, y quizá
sobre todo, de cómo lo han separado. Los hombres no tienen un
mundo sino que hacen y rehacen un mundo, y la escuela es uno de los
lugares donde ese mundo es constantemente hecho y rehecho para su
transmisión, su comunización y su renovación. Los dos le dimos
algunas vueltas, ya después del panel, a si la tarea de nuestra
generación en lo que tiene que ver con la escuela consiste, como en
cualquier generación, en rehacer el mundo, o si más bien, como dice
Camus en la frase con la que he encabezado este texto, es mucho más
difícil porque de lo que se trata es de impedir que el mundo se
deshaga.
En ese contexto, le recordé algo de lo que también había dicho en
el panel: que muchos estudiantes hiper-ideologizados de hoy, con el
alimento de algunos historiadores que se subieron, sin mucho
pensamiento, al tren de la de-colonización, no tienen ni idea ni de los
ranqueles, no se han tomado la molestia de aprender cuatro palabras
en guaraní y, desde luego, no conocen ni el nombre del cacique de la
Patagonia Valentín Sayhueque, que estaba al frente de lo que se
llamaba País de las Manzanas, por allí por donde es ahora Neuquén.
Javier dijo que le parecía que ahí no hay estudio o respeto del mundo,
o atención al mundo, sino el mero reconocimiento del nombre
ideológico del asunto. Y le dije que ahí la cabaña ranquel o el cacique
Sayhueque habrían sido transformados en “cosas de usar” (en pura
propaganda), y que si alguna vez la historia del País de las Manzanas
se convertía en el escenario de una película de Disney se nos habría
convertido en “cosa de comer” (en puro entretenimiento). Cosas que,
como Javier mismo dijo, “saturan y cansan rápido” precisamente
porque no “hacen mundo”.

273
jorge larrosa

Y Javier concluyó sabiamente la conversación citando un verso


de una poeta mexicana llamada Rosario Castellanos y sugiriendo que
tal vez la escuela no tiene que ver tanto con la transmisión y la
renovación del mundo (como si el mundo fuera algo ya constituido)
sino con una especie de sensibilidad a un “rumor de mundo” o a un
“deseo de mundo”, a una especie de “rumor de comunidad” o de
“deseo de comunidad”, que funcionan como algo que tiene que ser
constantemente actualizado y verificado aunque sea en su inevitable
vulnerabilidad y contingencia. Algo que hace que la tarea de “impedir
que el mundo se deshaga” no esté basada en ninguna certeza, no tenga
ningún apoyo ni ninguna garantía, y esté referida siempre a algunos
de esos gestos mínimos en los que un profesor llama la atención sobre
algo, le confiere algún valor por encima del placer o de la utilidad, lo
coloca entre los niños y los jóvenes, y hace que sea capaz de decirles
alguna cosa.
La cuarta escena escolar la vi al día siguiente de mi conversación
con Javier Trímboli en la iglesia de los jesuitas de Córdoba, la que está
al lado de la que quizá sea la Universidad más antigua de Argentina,
esa que tiene su origen en un colegio jesuítico fundado en 1687. Había
en la iglesia cuatro o cinco bancos ocupados por escolares apretados,
de unos 10 años, y al lado había una profesora hablándoles en voz
baja. Los escolares estaban sentados, atentos, en silencio, mirando
todos al frente. En el rato que yo estuve junto a ellos, la profesora les
contaba de los paneles de oro del retablo y de los artesanos guaraníes
que habían tallado la madera. Les contó después de la vida de Ignacio
de Loyola y de qué hacía y cómo era en aquél entonces la Compañía
de Jesús. De cuando en cuando les preguntaba si conocían o no el
significado de alguna de las palabras que utilizaba. Poco después vi al
mismo grupo de escolares en la biblioteca del Colegio, alrededor de
algunas gramáticas antiguas de lenguas indígenas (sanavirón,
tonokoté…), esas que hicieron los jesuitas para la formación de sus
misioneros en la evangelización de los nativos, mientras la profesora
les explicaba que los libros estaban hechos con materias muy frágiles,
que por eso estaban protegidos por una urna de vidrio que no dejaba
pasar la humedad, que la mayoría de los que estaban viendo habían
tenido una historia muy accidentada y habían estado muchas veces a
punto de desaparecer, y que si ahora podíamos saber cómo eran
algunas lenguas indígenas desaparecidas era, justamente, por esas
gramáticas que ellos estaban viendo.
Vi, desde luego, “cuerpos dóciles”, me dio la impresión de que la
lección sobre los jesuitas “no partía de los intereses de los niños”,
sospeché que la profesora estaba actuando como representante y
portavoz de “la historia única”, pero a mí la escena me pareció muy
bella y no tuve dudas de que tenía que ver con la transmisión, la
comunización y la transformación del mundo. Pensé que deberíamos

274
impedir que el mundo se deshaga. con algunas escenas escolares y una conversación...

no sólo defender, sino hacer un homenaje, a esa escuela y a esa


profesora que aún les hablan a los niños, que aún les muestran cosas y
les cuentan historias. Pensé también que una de las mejores maneras
de aprender que la historia no es única es, simplemente, estudiando
historia. Constaté, una vez más, que las disciplinas escolares lo son de
la atención y del respeto por la materia. Pensé que en la escuela la
autoridad tiene que ser la del mundo y no (sólo) la de los intereses de
los niños o la de las así llamadas demandas sociales (o económicas, o
políticas). E imaginándome como esa escuela y esa profesora han sido,
en los últimos años, constantemente agraviadas y atacadas, no pude
sino recordar uno de los “poemas civiles” de Sergio Ramondi que
Javier me había enviado a propósito de nuestra conversación. El
poema se titula “Foucault, Michel”, habla de la recepción
latinoamericana de las obras del historiador y filósofo sobre los
dispositivos e instituciones de normalización y disciplinamiento, y
termina así:
Que acá el obrero futuro sea conducido a una escuela
donde se le corrija el hábito malsano de pretender
escribir en un pupitre normal con la mano siniestra y
efectivamente encuentre en principio un pupitre, un
cuaderno y una escuela además de, por supuesto, el
docente coercitivo y más o menos mal pago tal vez no
sea un hecho tan merecedor de desprecio. (Ramondi,
2010).
Quizá la lección griega, la que Hannah Arendt retiene, sea la de
la necesidad de abrir una especie de huecos o de agujeros en la ciudad
que estén liberados de las leyes de la ciudad: del hambre y de la
utilidad, de la tiranía sin mundo y sin palabra del ergasterión. Esos
huecos, esos inventos que aún nombramos con palabras griegas, son la
escuela, la democracia y la filosofía. Y lo que nos ocurre es que
estamos a punto de cerrar esos huecos, de comenzar a vivir en un
mundo sin maravillas (que ya no sería un mundo), es decir, sin
soportes para la memoria, la imaginación, la palabra, el juicio, o el
pensamiento, que son cosas todas ellas que requieren tiempo y
atención.
En la escuela (como en el Ágora, ese espacio político, o en la
Academia, ese espacio filosófico) el mundo es puesto a distancia,
contemplado, juzgado pensado y considerado (no usado ni devorado)
en público. La pregunta política no es por lo que es conveniente para
la ciudad, sino por lo que es justo; la pregunta filosófica no es para qué
sirven las cosas, sino qué son; y en la escuela las cosas no son (sólo)
comestibles (no se miden por si nos gustan o no, por si nos dan placer
o no) y no son (sólo) usables (no se miden por si sirven o no, si son
útiles o no). Por eso, en relación a las cosas que se estudian en la
escuela (el dibujo de Monte Mario, los rastros de la escuela a la que
iban nuestros abuelos, las dunas, las catedrales, los guarás, las cabañas

275
jorge larrosa

de los rangeles, las gramáticas de los jesuitas), la pregunta no es si nos


gustan, o si nos sirven, sino si merecen la pena en sí mismas y por sí
mismas. Por eso a la escuela hay que ir aunque no nos guste, o aunque
no nos sirva, porque lo que en ella se juega no es ni la felicidad ni la
utilidad sino nada más y nada menos que la salvación del mundo:
impedir que el mundo se deshaga. Como dice Santiago Alba:
Que los árboles nos den fruta y madera, y el fuego calor,
y las vacas carne es mucho menos importante que el
hecho de que estén ‘sencillamente ahí’ y podamos
‘mirarlos’ y restablecer frente a ellos, ininterrumpida y
trabajosamente, no la distancia tecnológica del no-lugar
y del cero-cuerpo, sino el espacio siempre familiar y
siempre nuevo ‘entre-los-hombres’, el de la acción y el
relato, el de la fiesta y la razón, el de la negociación y la
piedad, ese espacio en el que las cosas duran y al que,
mientras ha durado el neolítico, hemos llamado mundo.
(Alba, 2002, p. 252).
Y ahora tal vez podamos transcribir ya el último párrafo del
texto de Arendt sobre la educación, ese que dice:
La educación es el punto en el que decidimos si amamos
el mundo lo bastante como para asumir una
responsabilidad por él y así salvarlo de la ruina que, de
no ser por la renovación, de no ser por la llegada de los
nuevos, sería inevitable. También la educación es donde
decidimos si amamos a nuestros hijos lo bastante como
para no arrojarlos de nuestro mundo y librarlos a sus
propios recursos, ni quitarles de las manos la
oportunidad de emprender algo nuevo, algo que
nosotros no imaginamos, lo bastante como para
prepararlos con tiempo para la tarea de renovar un
mundo común” (Arendt, 1996a, p. 208)

referencias
ALBA RICO, Santiago, Capitalismo y nihilismo. Dialéctica del hambre y la mirada.
Madrid. Akal 2007.
________, Santiago, La ciudad intangible. Ensayo sobre el fin del neolítico. Hondarribia.
Hiru 2002.
ARENDT, Hannah, “La crisis en la educación”, en Entre el pasado y el futuro.
Barcelona. Península 1996a.
________, Hannah, “La crisis en la cultura”, en Entre el pasado y el futuro. Barcelona.
Península 1996b.
BENJAMIN, Walter, “Tesis de filosofía de la historia”, en Angelus Novus.
Barcelona. Edhasa 1971.
EXPÓSITO, Roberto, Las personas y las cosas. Buenos Aires. Katz 2016.
FREIRE, Paulo, “O povo diz a sua palavra ou a alfabetização em São Tomé e
Príncipe”, em A importância do ato de ler. Sao Paulo. Cortez 2015.
LARROSA, Jorge (Org.), Elogio da escola. Belo Horizonte. Autêntica 2017.
________, Jorge, Esperando no se sabe o que. Sobre o oficio de professor. Belo Horizonte.
Autêntica 2018.
RAMONDI, Sergio, Poemas civiles. Bahía Blanca. 17 grises editora 2010.

276
matar al maestro. un ejercicio -¿no habitual?- de educación

malena ivone bertoldi


universidad nacional de la plata
malenabertoldi@gmail.com

“…al pensar guardo


en mi cuerpo consciente y hablante
la posibilidad de escribir,
de la misma manera en la que al escribir
continúo pensando y repensando
tanto lo que se está pensando como lo ya pensado.”
Paulo Freire, Cartas a quien pretende enseñar

introducción

El presente trabajo intenta dar cuenta de cómo, a raíz de la


implementación del Proyecto de Filosofía con Niños/as en la Escuela
Graduada “Joaquín V. González” de la Universidad Nacional de La
Plata, la comunidad de indagación logra traspasar las paredes de las
aulas e irrumpe en los pasillos de la escuela forzando a la comunidad a
“pensar(se) escuela” y a interpelarse por el sentido que en cada uno/a
encarna “hacer escuela”. Pero ¿cuáles son las tensiones que esta
“novedad” genera? ¿qué modalidades subjetivas se ponen en pugna?
En este sentido este escrito habla de una oportunidad. Pero habla
también de una decisión y de un acontecimiento. Es, sobre todo, un
ejercicio de escritura hecho por una maestra de educación primaria
para un Coloquio Internacional de Filosofía y Educación, en un país
extranjero. Y aunque toda escritura es una práctica de subjetividad, la
pretensión aquí es trascender el relato personal, en un intento de
pensar en qué medida esta experiencia de una primera persona del
singular podría transformar(se), al menos, en una primera persona del
plural: nosotros/as. Lo haremos a partir de reflexionar sobre los modos
en que en la escuela se construyen posiciones docentes respecto del
lugar de la enseñanza, la afectividad y lo común en el trabajo
cotidiano.
Como sostiene Vassiliades, esa posición docente se construye a
partir de “los múltiples modos en que los sujetos enseñantes asumen, viven y
piensan su tarea, y los problemas, desafíos y utopías que se plantean en torno
a ella.”, y por lo tanto esas identidades “nunca “son” sino que siempre
“están siendo” en virtud de las equivalencias y diferencias provisorias que se
establezcan con otras”, es decir, que no son algo “natural” sino que “se
establecen y se modifican como consecuencia de la práctica y que a partir de

277
malena ivone bertoldi

aquí que es posible hablar de “posiciones de sujeto”, es decir, de las


identidades docentes como posiciones” (2011:76).
La propuesta entonces es poner en diálogo con otros/as -
docentes, investigadores/as y filósofos/as- una experiencia y una voz
que se sostienen, no ya en la certeza sino en la incertidumbre que
emana de dejarse atravesar por los problemas filosóficos que surgen
de pensar la educación desde la propia práctica docente, articulando
nuevas preguntas y reformulando las abiertas desde lugares
inexplorados. Compartir interrogantes para volver a pensar: ¿qué
significa ser un/a maestro/a en estos tiempos? ¿qué sentido tiene que
un/a maestro/a no renuncie a su postura política? ¿en qué sentido la
participación temprana de los/as maestros en comunidades de
indagación puede dar sentido(s) otros a estas preguntas? ¿qué
implicancias puede tener en la propia práctica profesional? ¿de qué
modo repercute esa práctica en aquellos que se educan en sus
aulas? ¿en qué medida y de qué manera educar en esta búsqueda
puede resultar un aporte significativo de las escuelas a la construcción
de un mundo más justo e inclusivo? Estas preguntas, en definitiva,
abran la discusión sobre la figura del/la maestro/a como producto de
una trama subjetiva en la que se arraigan ciertos supuestos que nos
interesa problematizar. El/la maestro/a: una configuración que
empieza a constituirse desde los primeros años de su escolaridad y
que va a ir definiéndose como el producto de una extraña mezcla entre
vocación, formación, ejercicio y reflexión. Como un ser que, acuciado
además por los requerimientos y las coyunturas, entra en tensión y
pone en cuestionamiento su propia identidad.
Al mismo tiempo, este trabajo habla también de las decisiones
que sería importante tomar para que esa experiencia provocada por la
presencia de la filosofía en las aulas pueda contribuir a la formación de
un cuerpo docente capaz de hacer frente a las actuales políticas
educativas ligadas a grandes intereses del mercado, para que la
educación en América Latina pueda ser transformadora.
Pero ¿por qué matar al/la maestro/a, entonces…? ¿acaso no
sería importante contar con él/ella en esta compleja tarea? La
propuesta es, quizás, la de poder reflexionar sobre ¿qué tipo de
maestro/a es necesario/a para poder llevar a cabo esta
transformación? Y aquí surge la pregunta letal: ¿qué significa ser un/a
maestro/a en la actualidad?

biografía y formación docentes

La formación docente, es decir, la formación identitaria del


maestro/a, que consiste en una formación sistemática para el ejercicio
de la profesión docente, tiene dos momentos: uno inicial o de grado y

278
matar al maestro. un ejercicio -¿no habitual?- de educación

otro continuo o permanente. El sistema formador prevé también


apoyo pedagógico e investigación.
Pero en realidad este proceso se iniciaría en una etapa previa:
aquella en la que como alumno/a o estudiante se configura un sentido
de lo escolar y de ser docente. De alguna manera, la biografía escolar
da cuenta del significado de ser maestro/a en esa actualidad. Es
probable que sea esa experiencia previa, su biografía escolar, la que
funciona como disparadora -por adhesión o resistencia- de su vocación
docente.
Esa vocación lo/la conducirá a ingresar a la formación docente
inicial, encargada de darle forma de acuerdo a lo que significa ser
docente para las políticas educativas del momento. Y la etapa de la
formación inicial reconfigurará aquel primer sentido de la biografía
escolar.
Pero cuando se retorna a la escuela como docente ¿cómo
interpela la socialización laboral a la formación docente inicial? La
construcción identitaria que forjó durante la formación inicial entra en
conflicto al observar la socialización escolar. El/la novato/a sufre el
shock de la práctica en el espacio laboral. Inmerso/a en la complejidad
de la dimensión institucional, actualiza el pasado, trae la formación a
discusión, y resignifica su posición. El ámbito en el que ejerce como
maestro/a pasa a ser el lugar de formación. De ahí que, si no hay
política, el modelo que adopte va a depender del entramado de esa
socialización, y se va a moldear cada vez más en la escuela en la que
ejerce esa socialización.
En ese devenir, los maestros/as necesitan entenderse, apropiarse
de sí mismos/as. Les/as urge preguntarse ¿qué significa ser
maestro/a en la actualidad? Como sostiene Vassiliades:
“la puesta en circulación de sentidos y significados
asociados al modo en que las maestras y profesores
deben asumir su tarea, los problemas educacionales que
deben enfrentar, los vínculos con la cultura y con los
“Otros” que deben desarrollar, entre otras cuestiones,
abordar algunos aspectos de la discursividad oficial
supone una aproximación a una dimensión relevante
para el análisis de las construcción de posiciones
docentes. (2011:78)
Si el/la maestro/a es el producto de una actualidad que se
renueva según las necesidades que surgen de las coyunturas:
institucionales, políticas, sociales, económicas, de formación. ¿Es
posible pensarlo/a fuera del momento y las circunstancias en las que
se para frente a las aulas? ¿O es posible que en lugar de morir, en tanto
tomar posición docente como sujeto, en lugar de matar los
preconceptos, los acumule transformándose en una especie de “sujeto
patchwork”, producto de sucesivas capas acumuladas en el proceso
que le va dando forma?

279
malena ivone bertoldi

vocación y formación

La maestra que escribe estas líneas es hoy producto y proyecto


de sucesivas muertes. Y como tercera generación de docentes en la
familia suma una muerte más: la del imaginario de maestra que fue
configurando en una etapa previa a su escolarización. Hasta podría
decirse que el duelo fue doble: entré directamente a primaria y me
encontré con una maestra que estaba muy lejos de ser la segunda madre
de nadie. Con ella conocí el terror a no aprender viendo cómo
castigaba la zoquetería con zurras. Cuarenta y cinco años más tarde
sigo preguntándome cuál habrá sido el destino de Aguirre.
Pero esta afirmación supone también sacar a la luz no sólo el
imaginario de maestra que fue armando en la observación de sus
maestras como alumna, sino también -una vez despertada la vocación
y decidida a hacer de la vocación una profesión-, el imaginario que se
configuró a partir de su formación docente.
Quizás sea oportuno para entender la formación docente en
Argentina dar cuenta de que ha ido cambiando más lentamente de lo
que las circunstancias ameritaban, sosteniendo un marcado perfil
modelizador del/la docente. En sus inicios, allá por 1870, fueron las
escuelas normales de señoritas –es decir, escuelas secundarias- las que
otorgaban el título de maestra a sus egresadas. Las maestras o
“señoritas”, se formaban para asimilar al extranjero, crear una
identidad nacional, es decir, borrar las marcadas diferencias culturales
que presentaba la sociedad por la inmensa oleada de inmigrantes que
llegó al país.
Cien años después, en 1970, la formación de maestros/as
entraría en el ámbito de la educación terciaria creándose a tal fin los
institutos superiores de formación docente, en cuyas aulas, los
aspirantes a dictar clases en el nivel primario se preparaban no sólo en
las didácticas específicas sino también en las materias que, a lo largo
de casi tres años, les permitirían entender al sujeto de la educación.
Comenzaban a entrar las ideas de la educación crítica.
Desde el año 2010, una nueva revisión sobre las necesidades que
tenía la formación de maestros extiende la formación inicial a cuatro
años, dándole así el carácter de carrera de grado, no universitaria, con
una fuerte impronta en la educación popular.
Tal vez esta breve introducción pueda dar cuenta de por qué
durante mucho tiempo la profesión docente fuera percibida como una
profesión menor, que tuviera un marcado perfil femenino asociado al
rol materno –basta decir que aún hoy se suele escuchar una trillada
frase que asocia a la maestra como “una segunda madre”, un poco
relacionada a la figura de “tía” en Brasil-, pero a su vez pueda dar
cuenta de la íntima relación que la valoración de la labor docente

280
matar al maestro. un ejercicio -¿no habitual?- de educación

guarda con los salarios que perciben los/as maestros/as por su tarea,
unos de los más bajos del estado.

ejercicio y filosofía con niños/as

El ejercicio de la profesión provocó en esta maestra una nueva


ruptura. El modelo de maestra en el que se había convertido a partir
de la formación no era el de la maestra que el ejercicio de la profesión
precisaba.
El ingreso a la escuela primaria de una universidad nacional,
pública y gratuita (UNLP), hizo posible que el acceso a una formación
en servicio fuera diferente al de otras escuelas estatales. Amparada por
la autonomía universitaria, las propuestas de la escuela Anexa de la
UNLP pueden ser definidas y renovadas con bastante independencia
de lo que se fija como política educativa para otras jurisdicciones del
país. Sin embargo, lo que se esperaba de la maestra que escribe cuando
ella ingresó nada tenía de diferente de lo que se le pedía a cualquier
maestra/o en cualquier lugar del país…
La maestra que escribe estas líneas ingresa a la escuela con su
modelo de maestra verdad, completa, es decir, con el conocimiento
necesario para la transmisión de las ciencias a las futuras generaciones,
con todas las respuestas en el haber, y con sólo aquellas preguntas que
llevasen a verificar el aprendizaje en sus alumnos/as.
La energía estaba concentrada en la actualización disciplinar,
situación que no hacía más que reforzar el modelo. La preocupación
era la gestión áulica. Es precisamente en este contexto de escuela y
maestro/a en el que irrumpe la práctica de Filosofía con Niños/as.
Hace ya unos once años, la Prof. Laura Agratti presentó ante el
Equipo de Gestión de la Escuela Graduada un proyecto para hacer
filosofía con niños/as en las aulas. La Dirección de la Escuela,
atendiendo al principio de educar en la criticidad, entendió que era
una oportunidad al servicio de este ideal y aceptó la propuesta.
A partir de ahí, los/as maestros/as fuimos invitados/as a ser
quienes llevásemos adelante las experiencias, y empezamos a
prepararnos tomando como referencia el programa de Filosofía para
Niños de Mathew Lipman. Lo cierto es que, aunque el programa
ayudaba a entender de qué iba eso de “hacer filosofía”, las dudas
siempre merodeaban a los/as maestros/as que facilitaban las
experiencias. Cada vez que, traccionados por nuestro esquema
habitual de maestro/a, nos invadían las inseguridades no tardábamos
en preguntarnos ¿qué sabíamos nosotros/as sobre hacer filosofía? ¿por
qué este empeño en que seamos nosotros/as? Empezábamos a sentir
la incomodidad. Y sin embargo… algo hacía que quisiéramos seguir
siendo parte. Veíamos también que, las sesiones que compartíamos
con Laura, las que ella llevaba adelante, no se atenían estrictamente a

281
malena ivone bertoldi

las guías de discusión propuestas para el tema, había una atención


hacia lo que emergía de los/as niños/as que nosotros/as aún no
podíamos tomar. Sin embargo, nos insistía en que confiáramos en
nuestras posibilidades, que necesitábamos entender que todos/as
estábamos en condiciones de filosofar. En realidad, estábamos
asistiendo -sin saberlo, claro está- a ese primer quiebre entre el “para”
y el “con”, que plantean Kohan y Waksman (2000).
De aquel tiempo a esta parte, muchas cosas han cambiado para
algunos/as de nosotros/as. Sobre todo, y fundamentalmente,
nosotros/as. Hemos asistido a nuestras propias muertes, no sin
resistencias, ni dolor, hemos aceptado el desafío de pensarnos y pensar
nuestras prácticas. Hemos asistido a seminarios, coloquios,
experiencias de formación. Nos hemos sentado a discutir y a leer.
Hemos hecho amigos/as. Hemos irrumpido como resistencia en la
Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación de la UNLP, con
nuestros guardapolvos blancos, para exigir ser pensados como sujetos
y no como objetos de estudio. Y nos hemos sentado también, a
sabiendas de que en todo maestro/a hay un/a alumno/a, a aprender
en sus aulas. Hemos asistido a debates sobre educación y políticas
educativas. Hemos viajado. Hemos intervenido filosóficamente otras
aulas y materias. Hemos multiplicado. Hemos andado muchos
caminos impensados y hemos entendido que aún quedan muchos por
andar. Pero para poder hacerlo hemos tenido que matar al/la
maestro/a. Hemos entendido que en el corrernos de lugar, en el
movimiento, está el aprendizaje.
Esta revelación lleva a quien escribe a una búsqueda teórica y le
permite en cierta forma sostenerse en esta tensión que le genera este
nuevo modo de andar. Con esta preocupación encuentra un concepto
solidario en las palabras de la filósofa catalana, Marina Garcés quien
piensa al “educar como un desplazamiento, un cambio de lugar que
renueva el deseo de pensar y el compromiso con la verdad” y que,
"por tanto, es iniciar a otro en este desplazamiento, moverlo, sacudirlo
o seducirlo, arrancarlo de lo que es y cree ser, de lo que sabe y cree
saber. Por eso la relación de la filosofía con la educación es a la vez
violenta y fecunda: violenta porque ataca de raíz lo constituido. Pone
en cuestión lo que somos y lo que sabemos, lo que valoramos y lo que
pretendemos. Fecunda, porque abre nuevas relaciones, nuevos modos
de ver y de decir, allí donde sólo se podía perpetuar lo existente."
(2015:76 -77)
Es así que, pensando en la filosofía como práctica, como
actividad, esta maestra se atreve a decir que la implementación de
Filosofía con Niños y Niñas en las aulas le permite entender que para
educar es necesario problematizar no sólo su práctica sino
fundamentalmente la vida que vive y el modo en el que la quiere vivir.
Porque cree, como sostiene Garcés, que “la filosofía es la confianza en

282
matar al maestro. un ejercicio -¿no habitual?- de educación

que el pensamiento puede transformar la vida y hacerla mejor. Es


decir, que podemos vivir pensando y pensar cómo queremos vivir, en
un tránsito sin demasiadas garantías entre el silencio y la acción. Sabe
que los contornos de lo que podemos decir y pensar son limitados y
parciales, que estamos, por tanto, rodeados de silencio. Pero sabe
también que sin adentrarnos más allá de los límites de lo que todavía
no sabemos cómo decir, la acción es mera repetición y aceptación de lo
que hay.” (2015: 17)
En definitiva, ha entendido la importancia y la potencia de matar
al/la maestro/a en la consciencia de que hay otro/a que nace.
Pero como debajo de cada guardapolvo hay un cuerpo, este
trabajo no es más que una reflexión sobre nuestros cuerpos, no
entendidos como algo reducido al puro dato biológico sino más bien,
como los considera Merleau-Ponty, como ese conjunto de relaciones,
carnales y psíquicas, visibles e invisibles, conscientes e inconscientes,
verbales y gestuales, en las que se expresa lo que somos.
Parafraseando a Nietzsche, ese nudo de fuerzas en conflicto del que
sabemos bien poco, pero sobre el que es necesario poner la atención.
Nuestros cuerpos son, en definitiva cuerpos políticos. Son los cuerpos
que diariamente habitan las aulas de una escuela primaria, pública y
gratuita, como maestros/as. Eso, amerita la reflexión, porque como
expresa Korinfeld: “El acto es el nudo que liga la posición del
educador y la producción subjetiva al educar, es decir que el acto
educativo no se sostiene sólo desde el conocimiento, sino desde el
propio ser del docente y sólo desde allí puede alcanzar su dimensión
política, su dimensión transformadora”. (2005: 239)
Estas lecturas hablan no sólo de la complejidad que guarda el
cuerpo en tanto problema filosófico sino que también refieren a la
complejidad de su presencia en la relación pedagógica: poner el
cuerpo frente a las aulas es poner una integralidad en juego que
excede en mucho la anatomía y que nos introduce a un pensamiento
multidimensional que es necesario tener presente si no queremos ser
reduccionistas.
En este sentido, la tarea de los/as maestros/as a la hora de
apropiarse de sí mismos/as conlleva una búsqueda reflexiva y
comprensiva que empieza en cada uno/a y termina en todos/as. En
este devenir, los maestros/as necesitan entenderse, en pos de esto urge
preguntarse ¿qué significa ser maestro/a en la actualidad?

la pregunta letal

Después de todos estos dislocamientos sufridos, quien escribe


reformula la pregunta e intenta pensar sobre el sentido de ser
maestro/a en la actualidad, dándose cuenta de que esta es la pregunta
letal. Letal en tanto obliga a pensar sobre la actualidad a la que alude.

283
malena ivone bertoldi

La ponzoña está allí, en el tiempo. Por eso, aceptar el desafío es mortal,


porque es en ese preciso instante en que como maestra se
problematiza a sí misma lo que la mata ¿o acaso es posible ser otra sin
dejar de ser quien se era?

sobre las sucesivas muertes

De lo expuesto se desprende que una primera muerte es,


entonces, la del modelo: la de la percepción e idea de maestro/a que
todo/a maestro/a tiene impresa en su mente a partir de su propia
experiencia como alumno/a. Ocurre precisamente cuando, movido/a
por una vocación, vuelve a hacerse la pregunta sobre ¿qué significa ser
maestro/a en la actualidad?
La segunda muerte es la del producto: la idea de maestro/a con
la que fue formado/a, con la que le dieron forma de maestro/a, y
acaece en el momento en el que ejerce su profesión. Se pregunta
entonces nuevamente, desde ese híbrido en el que se ha transformado
-producto de la memoria, la formación, el ejercicio de su práctica, las
relaciones que establece, las exigencias y las expectativas que sobre
él/ella recaen- y que se pone en acto en las aulas, por el sentido de ser
maestro/a en la actualidad.
La tercera muerte –pero no por eso última-, se da cuando
puesto/a pensar en las incertidumbres que emanan de dejarse
atravesar por los problemas filosóficos que surgen de pensar la
educación desde la propia práctica, logra articular nuevas preguntas y
reformular las abiertas desde lugares desconocidos hasta entonces y
una vez más se pregunta: ¿qué significa ser un/a maestro/a en estos
tiempos? ¿qué sentido tiene que un/a maestro/a no renuncie a su
postura política?
Se inicia así el círculo mortal. Muere entonces, indefectiblemente,
sucesivamente, en un ejercicio circular en el que el punto de partida y
de llegada inician otra vez con la misma pregunta: ¿qué significa ser
un/a maestro/a en la actualidad?
Matamos al/la maestro/a cada vez que nos libramos de él/ella,
de cada uno/a de los/as maestros/as que nos atraviesan, porque
como sostiene Garcés, “El verdadero maestro es, en última instancia, el
maestro que nos libera del maestro". (2015: 76)
Y en eso piensa quien escribe cuando habla de matarlo/a o
dejarlo/a morir, en las sucesivas muertes que cometemos sobre
nosotros/as mismos/as como educadores/as, cada vez que dejamos
de ser los/as que éramos, es decir, cada vez que desnaturalizamos
aquello que creemos ser. En todas las muertes que tenemos que
cometer en el esfuerzo por entender el mundo del que somos parte.
Con el ingreso de la filosofía a las aulas, una vez atravesado/a
por la experiencia de un pensamiento otro, una posibilidad de

284
matar al maestro. un ejercicio -¿no habitual?- de educación

reflexionar sobre sí y sobre su práctica, resignifica el valor de la


experiencia frente a la verdad, el de la pregunta frente a la respuesta,
el de la incompletitud frente a la completud. Se vuelve infancia. Se
anima a empezar de nuevo, reconociendo que tiene todo por aprender
y que se reconoce aprendiendo con otros/as. Deja de enseñar a la
manera que enseñaba y ya no está tan claro para este maestro/a ¿qué
significa enseñar y qué significa aprender? Como así tampoco si hay
alguien del vínculo pedagógico que tenga la exclusividad sobre cada
una de esas acciones.
En relación a esto, Siede sostiene que “la mirada de cada docente
sobre la tarea y sobre su modo particular de vivirla se asienta sobre
representaciones sobre lo que la escuela puede y tiene que hacer y
comunica una concepción del espacio público escolar”. (Siede: 231)
Siguiendo esta consideración que ofrece Siede, me animo a revitalizar
las preguntas que nos introducen en la dimensión política del rol ¿qué
sentido tiene que un/a maestro/a no renuncie a su postura política?
¿cuál es el compromiso político con sus contemporáneos?
Desplazando de la primera persona del singular a la primera del
plural la pregunta por el sentido político del ejercicio docente.
Sabemos hasta aquí que son muertes no anunciadas, imprevistas,
de una potencia imparable e infinita. Ya nada ni nadie puede ser el/la
mismo/a cuando la filosofía se torna parte de sus aulas, de allí su
extrema peligrosidad.

conclusiones mortales

Las prácticas de Filosofía con Niños y Niñas en la escuela


producen un corrimiento de lugar, a veces sutil y a veces brusco, se
convierten en una invitación a repensar nuestra relación con el saber,
con nuestras prácticas, con nuestros cuerpos, con nuestros modos
decir, de oír, de leer el mundo, liberándonos de lo que nos impedía
pensar.
Con el ingreso del ejercicio de pensamiento compartido en las
aulas de Filosofía con Niños y Niñas, se hizo imprescindible
desnaturalizarlo todo para poder verlo de un modo distinto. Lo
natural ya no nos resulta tan natural. Insistimos en descubrir el mundo
y desplegar sus problemas como algo que nos incumbe, liberándonos
de pensarlo con pensamientos impuestos desde afuera.
“Matar al maestro. Un ejercicio -¿poco habitual?- de educación”,
pretende dar cuenta de las sucesivas muertes que un maestro sufre en
el intento de transformarse en el maestro/a que se necesita para dar
pelea a la desigualdad, la injusticia y la exclusión que plantea la actual
coyuntura educativa; de los desafíos que plantea hoy la educación en
América Latina, y de las decisiones que serían urgentes tomar para
crear las posibilidades que permitan la emancipación de las personas

285
malena ivone bertoldi

que se educan en sus aulas. Matarlo/la como un ejercicio que debería


ser habitual en la educación para entender el mundo y posicionarnos
como educadores críticos comprometidos políticamente con nuestra
tarea: la de educar a los niños y a las niñas que van a habitar el
porvenir.
Convertirnos en un tábano para quienes pasen por nuestras
aulas, como humilde homenaje a Sócrates, aquel que enseñaba sin
pretender enseñar nada. Porque, al decir de Kohan en relación a
Simón Rodríguez “maestro es quien provoca en los otros un cambio en
su relación con el saber, el que los saca de su apatía, comodidad,
ilusión o impotencia, haciéndolos sentir la importancia de entender y
entenderse como parte de un todo social. En última instancia, es el que
hace nacer la voluntad de saber para entender y transformar la vida
propia y ajena. Esto es, el maestro de verdad es un filósofo, en el
sentido más vivo de la palabra, el de quien sólo sabe querer saber,
para sí, y para los otros.” (Kohan 2015:61)
Como educadores/as es imprescindible tomar posición frente a
todas las variables que cruzan nuestra profesión, regidos/as por las
exigencias del currículum, los tiempos, las políticas educativas
vigentes y las leyes que enmarcan nuestra tarea profesional. Pero
también, tenemos que asumir con seriedad y compromiso la tarea que
nos compete teniendo en cuenta que somos co-responsables de la
educación que les brindamos a esos seres humanos con los que
compartimos la vida cotidianamente. Asumiendo el compromiso de
“aceptar la especificidad del estatus del niño, que existe un presente
del niño y que la infancia no es simplemente una preparación para la
vida adulta y para un futuro lejano…” (Meirieu, 2004: 16-17).
Por eso se hace ineludible revisar las relaciones que establecemos
con ellos/as y las posiciones que adoptamos frente a ellos/as. ¿No son
acaso, cada uno de ellos, un acontecimiento en sí?
Desarrollar nuestra tarea requiere crear vínculos reales con
esos/as niños/as, entendiendo que sólo es posible aprender cuando
existe una relación de confianza. Como decía Paulo Freire, “estamos
educando a la gente que va a cambiar al mundo, y el mundo necesita
de personas que se atrevan a cuestionarlo y a desafiar la lógica o el
mandato dominante”
Vivimos un momento aciago para las materias humanísticas a las
que se intenta eliminar de las currículas con el claro propósito de
neutralizar el pensamiento crítico. Por eso es indispensable
preguntarse a quién/quiénes amenaza la criticidad.
Sería importante preguntarnos ¿en qué sentido la participación
temprana de los/as maestros/as en comunidades de indagación
puede dar sentido a estas preguntas? ¿qué implicancias puede tener en
la propia práctica profesional? ¿de qué modo repercute eso en aquellos
que se educan en sus aulas? ¿en qué medida y de qué manera educar

286
matar al maestro. un ejercicio -¿no habitual?- de educación

en esta búsqueda puede resultar un aporte significativo de las escuelas


a la construcción de un mundo más justo e inclusivo?
Vivimos además un tiempo atravesado por el avasallamiento a
los derechos humanos y civiles, por parte del Gobierno y de los grupos
de poder; signado por la violencia, la muerte, el desprecio al diferente,
al que atenta contra la lógica de mercado, contra la promoción de un
pensamiento que abre preguntas e intenta desnaturalizar todo
contexto, y con un futuro que vislumbra la necesidad de sostener las
luchas y las resistencias.
Por eso, toda experiencia de pensamiento constituye una
potencia provocativa, nos fuerza a pensar lo impensado y nos
convierte en sujetos de experiencia que, acogidos por el presente, nos
dejamos conducir por él, para leerlo, problematizarlo y transformarlo.
Si tenemos suerte, si estamos atentos/as, si prestamos atención,
podemos seguir aprendiendo. En definitiva, continuar haciendo y
haciéndonos preguntas para poder poner la mirada en todo aquello
que es lo que es por no discutir si "podría-debería ser-es necesario que
sea" de otro modo del que nos fue legado o nos está siendo legado.
Preguntas sobre ¿cuándo lo heredamos? ¿de quién/es? ¿en qué
momento/s se originó esa herencia? ¿bajo qué intereses? Y sobre todo,
¿cuánto tiempo más vamos a estar sin hacernos responsables por el
mundo que nosotros/as queremos habitar hoy? ¡Hoy ya! ¡Y mañana,
que también es ya! Y por los/as otros/as que lo heredarán...
De un tiempo a esta parte, los/as maestros/as han ido pujando
por cambiar la percepción que la sociedad tiene de ellos parándose
frente a ella como profesionales de la educación, demostrándole a la
comunidad que no son la segunda madre de nadie y que muy lejos
están de considerar la profesión que desempeñan como una profesión
sin importancia. Se han ido empoderando, han entendido la necesidad
de posicionarse como expertos, y están en condiciones -por su
experiencia y su formación continua- de pensar y plantear lo que la
educación Argentina necesita porque entienden, como sostenía Simón
Rodríguez cuando pensaba en la educación para América, que lo que
el país necesita no se puede importar de ningún país. Porque el gesto
político de la educación es pensar como señala Kohan “el pueblo en la
educación y no una educación para el pueblo”. (Kohan 2015:61)
Ser maestro/a en estos tiempos exige de criticidad, creatividad y
compromiso. Es preciso abrir la mirada para intentar comprender el
mundo social, complejo y cambiante del que formamos parte; habitar
las preguntas para adentrarse en la búsqueda de respuestas
apropiadas a los problemas –viejos, nuevos y por venir-; actuar en
consonancia con lo que pensamos, creemos y esperamos como
individuos y como colectivo.

287
malena ivone bertoldi

Es pensar y decidir, ¿cómo implicarnos en la renovación de una


sociedad que sea capaz de creer en sí misma, de pensar por sí misma,
de pensarse a sí misma?
En esta exigencia y este compromiso, es que no podemos dejar
de preguntarnos ¿qué sentido tiene para nosotros educar en estos
tiempos? ¿qué clase de maestros/as somos? ¿en qué creemos y en qué
no? ¿cómo nos paramos en las aulas? ¿qué gestos serían importantes
aportar? ¿qué clase de escuela estamos definiendo cuando educamos?
Sin dejar de preguntarnos ¿dónde están los 30 mil? y ¿quién
mató a Marielle Franco?

bibliografía

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16. Barcelona, 1996.
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en clase. Buenos Aires: Novedades educativas, 2000.

288
a espiritualidade da democracia e a defesa da escola

marcelo senna guimarães


unirio
klynamen@gmail.com

introdução

Neste texto, abordo novamente a análise da espiritualidade


como um tema relevante para a educação e para a vida
contemporânea, tal como desenvolvido na minha tese de doutorado
(GUIMARÃES, 2013) e aplicado aos campos da ciência moderna e do
capital em dois artigos já publicados (GUIMARÃES, 2012a; e
GUIMARÃES, 2012b). Aqui as formulações são retomadas mas
articuladas com uma outra questão, a da espiritualidade da
democracia e sua relação com a escola, na perspectiva da defesa da
escola desenvolvida por Gert Biesta.
Michel Foucault formula a idéia de espiritualidade ao tratar do
cuidado de si, tema central de seu curso de 1982, intitulado A
hermenêutica do sujeito. O princípio do cuidado de si, ou o princípio de
precisar ocupar-se de si mesmo tornou-se o princípio de toda conduta
racional, ou de toda forma de vida ativa que pretendesse obedecer ao
princípio da racionalidade moral (FOUCAULT, 2004, p. 12-13). Esse
princípio, em diversas formas, teve vigência na antiguidade, entre os
séculos V a.C. e V d.C., num período de mil anos, nos mundos
helenístico e romano, até o limiar do cristianismo, na espiritualidade
alexandrina. Tornou-se assim, como diz Foucault, “um verdadeiro
fenômeno cultural de conjunto” (FOUCAULT, 2004, p. 13). O nosso
modo de ser, como sujeitos modernos, é comprometido por esse
fenômeno cultural. Ele é uma das justificativas para a escolha do tema.
De modo esquemático, o cuidado de si abrange três dimensões,
que são estudadas em suas transformações históricas. [1] A primeira é
a de “uma atitude geral, um certo modo de encarar as coisas, de estar
no mundo, de praticar ações, de ter relações com o outro”. O cuidado
de si “é uma atitude – para consigo, para com os outros, para com o
mundo”. (FOUCAULT, 2004, p. 14). [2] O cuidado de si é também uma
certa forma de atenção, de olhar. Converte-se o olhar, antes
direcionado para o exterior, para o mundo, para os outros, e agora
deve ser direcionado para si mesmo. (Foucault distingue entre olhar
para si mesmo e olhar para o seu interior – a noção de “interioridade”,
sabe-se, é uma noção mais propriamente moderna, com a qual não se
deve confundir a noção de si mesmo). Deve-se também ter atenção ao
que se pensa e ao que se passa no pensamento. [3] Além da atitude e
da atenção, o cuidado de si designa também ações “pelas quais nos
assumimos, nos modificamos, nos purificamos, nos transformamos e

289
marcelo senna guimarães

nos transfiguramos”. (FOUCAULT, 2004, p. 14-15). Essas ações são


uma série de práticas e exercícios entre as quais são citadas as técnicas
de meditação, de memorização do passado, de exame de consciência e
de verificação das representações na medida em que elas se
apresentam ao espírito.
O cuidado de si constitui assim um fenômeno importante na
história das práticas de subjetividade, sendo um de seus fios
condutores nos mil anos de duração da antiguidade helenística e
romana. Não obstante essa importância, Foucault nota que essa noção
tem sido desconsiderada no modo como a filosofia ocidental conta a
sua própria história. Ao contrário, a noção do conhecimento de si,
celebrizado na frase “conhece-te a ti mesmo” é que ganhou
preeminência, mesmo quando se pode notar nos documentos antigos
que foi o princípio do cuidado de si que o enquadrava e constituía o
“suporte de um conjunto rico e denso de noções, práticas, maneiras de
ser e formas de existência”. (FOUCAULT, 2004, p. 16).
A principal razão que Foucault aponta para o esquecimento e o
apagamento da importância que o princípio do cuidado de si teve na
antiguidade está relacionado à história da verdade. Mais
especificamente, ao que ele chama de “momento cartesiano”
(assinalando que considera a expressão ruim e que a usa de modo
puramente convencional). (FOUCAULT, 2004, p. 18).
É na obra de Descartes, particularmente nas Meditações
(DESCARTES, 1979), que se dá uma requalificação do gnôthi seautón,
do conhece-te a ti mesmo: a evidência, tal como aparece, tal como se
dá à consciência, é instaurada na origem do procedimento filosófico.
Este se refere, portanto, ao conhecimento de si, como forma de
consciência. Sendo a evidência da existência do sujeito (isto é, o cogito,
ou o “penso, logo existo”) o princípio do acesso ao ser, o conhecimento
de si mesmo torna-se assim o modo fundamental de acesso à verdade.
Seria portanto a partir de Descartes que o princípio do “conhece-te a ti
mesmo” tornou-se aceito como o fundador do procedimento filosófico.
Isso não é tudo, porém. Pois o procedimento cartesiano, além de
requalificar o princípio do conhecimento de si, também contribuiu
para desqualificar o outro princípio, do cuidado de si, e mesmo para
excluí-lo do campo do pensamento filosófico moderno. É nesse
momento que Foucault introduz a noção de espiritualidade:
Chamemos ‘filosofia’ a forma de pensamento que se
interroga sobre o que permite ao sujeito ter acesso à
verdade, forma de pensamento que tenta determinar as
condições e os limites do acesso do sujeito à verdade.
Pois bem, se a isto chamamos ‘filosofia’, creio que
poderíamos chamar de ‘espiritualidade’ o conjunto de
buscas, práticas e experiências tais como as
purificações, as asceses, as renúncias, as conversões do
olhar, as modificações de existência, etc, que

290
a espiritualidade da democracia e a defesa da escola

constituem não para o conhecimento, mas para o


sujeito, para o ser mesmo do sujeito, o preço a pagar
para ter acesso à verdade. (FOUCAULT, 2004, p. 19,
grifo meu).
Podemos ver que Foucault apresenta a noção de espiritualidade
como sendo um série de práticas envolvidas na transformação do
sujeito. Lembremos que Foucault trata a noção de sujeito, a partir da
análise do diálogo Alcibíades, de Platão, como aquela parte ou
atividade de si que cuida de si. O sujeito é compreendido como uma
agência, e não como uma substância. A alma, aqui equivalente ao
sujeito, é portanto também agência, ação, e não substância.
Espiritualidade, portanto, não tem qualquer sentido místico ou
sobrenatural, mas indica formas de agir sobre si mesmo, formas de
cuidado de si. Está ligada especialmente à terceira daquelas dimensões
do cuidado de si que foram inicialmente apontadas por Foucault.
Também a espiritualidade é apresentada com três características:
[1] a primeira pode ser indicada pela “fórmula mais simples e
mais fundamental para definir a espiritualidade”, que é a de que o
sujeito, “tal como ele é, não é capaz de verdade”. (FOUCAULT, 2004,
p. 20). Essa primeira característica é a necessidade de que o sujeito se
modifique para ter direito ao acesso à verdade. O preço a pagar pelo
acesso à verdade é a transformação ou conversão do próprio ser do
sujeito.
[2] a segunda característica é que essa conversão pode ocorrer de
diferentes formas. Resumidamente, pode se dar através de um
movimento que arranca o sujeito de sua condição atual, movimento
pelo qual a verdade vem até ele e o ilumina – essa forma é Eros; ou
pode se dar através de um “trabalho de si para consigo”, uma
transformação progressiva de si para consigo em que se é o próprio
responsável por um longo labor que é o da ascese (áskesis).
(FOUCAULT, 2004, p. 20). São essas as duas formas pelas quais o
sujeito deve ser transformado para tornar-se capaz de verdade.
[3] a terceira é que o acesso à verdade produz efeitos que vão
além do conhecimento – “a verdade é o que ilumina o sujeito, ... o que
lhe dá beatitude, ... o que lhe dá tranquilidade de alma” (FOUCAULT,
2004, p. 20); o ser do sujeito é completado e transfigurado pela verdade
e pelo acesso à verdade, como resultado daquele trabalho realizado
sobre si; é o que Foucault chama de “retorno da verdade sobre o
sujeito”. (FOUCAULT, 2004, p. 21). Pode-se dizer que o conhecimento
não poderia dar acesso à verdade se não fosse acompanhado por uma
transformação do sujeito. Foucault chama a atenção para que não se
trata de uma transformação do indivíduo – o indivíduo concreto –,
mas “do próprio sujeito no seu ser de sujeito” (FOUCAULT, 2004, p.
21) – daquela parte de si que cuida de si.

291
marcelo senna guimarães

Haveria duas exceções na antiguidade a esse modo de


considerar a espiritualidade e sua relação com a verdade: são a gnose e
Aristóteles. O movimento gnóstico colocaria sobre o conhecimento a
responsabilidade e as condições da experiência espiritual; e Aristóteles
não daria importância à espiritualidade, chegando a ser chamado por
Foucault de “o fundador da filosofia no sentido moderno do termo”.
(FOUCAULT, 2004, p. 21-22).
Mais adiante no texto, na aula de 24/02/82, Foucault (2004, p.
351-376) volta a caracterizar de modo geral (a partir de Sêneca e de
Marco Aurélio) o saber de espiritualidade (ou saber espiritual), mas
dessa vez apresenta quatro condições principais. Essas condições são:
o deslocamento do sujeito (ele não pode ficar onde está, mas deve
subir até o topo do universo ou descer até o cerne das coisas), a
valorização das coisas a partir de sua realidade no interior do kósmos
(as coisas são apreendidas em sua realidade e em seu valor, isto é, em
seu lugar e dimensão própria em relação às outras coisas e ao sujeito
que as apreende), a possibilidade para o sujeito de ver a si mesmo (de
perceber-se na realidade de seu ser); e a transfiguração do modo de ser
do sujeito por efeito do saber (“o sujeito não apenas descobre sua
liberdade, mas encontra em sua liberdade um modo de ser que é o da
felicidade e de toda a perfeição de que ele é capaz”). (FOUCAULT,
2004, p. 373). Esse saber não se caracteriza por constituir um saber
sobre o mundo e, ao lado ou contra este, um saber sobre o ser humano,
a alma e a interioridade. Pelo contrário, trata-se de “uma modalização
do saber sobre as coisas” (FOUCAULT, 2004, p. 373), com as
características mencionadas.
Tendo em mente esses dois momentos do livro em que Foucault
apresenta mais detalhadamente as características da espiritualidade ou
do saber espiritual, podemos agora considerar o que significou a
transformação da idade moderna na história da verdade, também
descrita como a constituição de um “saber de conhecimento” em
oposição ao saber de espiritualidade.
Ainda usando a expressão “momento cartesiano”, mas sem
significar que Descartes tenha sido o inventor, nem o agente único,
completo ou definitivo dessa transformação (embora não deixe de ter
um papel especial), Foucault caracteriza o início da idade moderna na
história da verdade das seguintes formas (FOUCAULT, 2004, p. 22-24):
[1] quando admitimos que o que dá acesso à verdade é o
conhecimento e tão-somente o conhecimento. Isso não significa que
não existam condições para ter acesso à verdade, mas que essas
condições não dizem mais respeito à espiritualidade, isto é, à
transformação do ser mesmo do sujeito. Há condições intrínsecas ao
conhecimento e condições extrínsecas que dizem respeito ao indivíduo
concreto, e não ao sujeito.

292
a espiritualidade da democracia e a defesa da escola

[2] quando postulamos que o sujeito, tal como ele é, é capaz de


verdade, mas que a verdade, tal como ela é, não é capaz de salvar o
sujeito. Sendo o sujeito capaz de verdade sem ter que transformar-se
em seu próprio ser, o conhecimento, que propicia o acesso à verdade,
não pode lhe oferecer mais do que a própria busca indefinida do
conhecimento. O “retorno da verdade sobre o sujeito” não se realiza
mais. Ou, nos termos de Foucault:
O conhecimento se abrirá simplesmente para a
dimensão indefinida de um progresso cujo fim não se
conhece e cujo benefício só será convertido, no curso da
história, em acúmulo instituído de conhecimentos ou
em benefícios psicológicos ou sociais que, no fim das
contas, é tudo o que se consegue da verdade, quando foi
tão difícil buscá-la. (FOUCAULT, 2004, p. 24).
Porém, Foucault adverte que essa transformação não se deu de
uma só vez. Muito antes de Descartes, ele identifica um conflito entre a
espiritualidade e a teologia que teria preparado essa transformação
consumada na idade moderna.
A teologia teria fundado o princípio de um sujeito cognoscente
em geral ao mesmo tempo em que adotava como reflexão racional
fundante, uma fé de vocação universal. Esse sujeito cognoscente
encontrava em Deus seu modelo, seu ponto de realização absoluto e
seu grau mais alto de perfeição. A correspondência entre o Deus
omnisciente, conhecedor de tudo, e os sujeitos capazes de conhecer
(desde que tenham fé) foi um dos elementos que estão na raiz da
separação do pensamento filosófico das condições de espiritualidade
que lhe eram essenciais na antiguidade. O conflito entre teologia e
espiritualidade durou cerca de doze séculos, do século V ao XVII. Isso
mostra que entre a ciência e a espiritualidade, a oposição não é
constitutiva nem estrutural. (FOUCAULT, 2004, p. 36-37).
Além disso, a separação também não se consuma
definitivamente no século XVII. Foucault considera que a filosofia do
século XIX (com vários autores, sendo Hegel uma espécie de ápice)
tentou repensar as estruturas da espiritualidade no interior de uma
filosofia que buscava se desvincular dessas estruturas. (FOUCAULT,
2004, p. 38).
Entre os séculos XVI e XVIII, Foucault considera a figura de
Fausto como emblemática dessa transformação. Em suas primeiras
versões, o personagem representou os “poderes, encantamentos e
perigos do saber de espiritualidade”. (FOUCAULT, 2004, p. 374).
Em Lessing, ele é convertido de herói de um saber maldito em
possuidor da crença no progresso da humanidade, e desse modo é
salvo. Tudo o que se pedia ao saber de espiritualidade, será oferecido
à humanidade pela fé no progresso.

293
marcelo senna guimarães

Em Goethe, Fausto de novo é o representante de um saber


espiritual em vias de desaparecer:
“Filosofia, ai de mim!, jurisprudência, medicina, e tu também,
triste teologia!... eu as estudei, pois, a fundo, com ardor e
paciência; e agora eis-me aqui, pobre louco, tão sábio quanto
antes...” (GOETHE apud FOUCAULT, 2004, p. 375).
“O que Fausto pede ao saber são valores e efeitos
espirituais que nem a filosofia, nem a jurisprudência,
nem a medicina podem lhe dar.” (FOUCAULT, 2004, p.
375).
“Nada temo do diabo, nem do inferno; mas também toda
alegria me foi tirada [por este saber, MF]. Doravante só me
resta lançar-me na magia [dobra do saber de conhecimento
sobre o saber de espiritualidade, MF]. Oh, se a força do espírito
e da palavra me desvelasse os segredos que ignoro, e se eu não
fosse mais obrigado a dizer penosamente o que não sei; se,
enfim, eu pudesse conhecer tudo o que o mundo esconde nele
mesmo, e, sem me apegar por demais a palavras inúteis, ver o
que contém a natureza de secreta energia e sementes eternas!
Astro de luz prateada, lua silenciosa, digna-te pela última vez
lançar um olhar sobre minha dor! (...) Tão frequentemente
velei a noite junto desta mesa! É então que tu me aparecias
sobre tantos livros e papéis, melancólica amiga! Ah! Não pude,
sob tua doce claridade, escalar as altas montanhas, errar nas
cavernas com os espíritos, dançar sobre a relva pálida das
pradarias, esquecer todas as misérias da ciência, e banhar-me
rejuvenescido no frescor de teu orvalho!” (GOETHE apud
FOUCAULT, 2004, p. 375).
Esta seria a última formulação de um saber de espiritualidade,
desaparecido (ao menos em parte) com a Aufklärung. É também uma
saudação triste ao nascimento e, poderíamos dizer, à
institucionalização de um saber de conhecimento.
Cabe agora tentar levantar algumas questões. Com relação ao
título desta comunicação, que trata da espiritualidade da democracia,
será que faz sentido falar nestes termos após esse exame das
colocações de Foucault? Como afirmado no início, a resposta imediata
seria não, pois a idade moderna se caracterizaria justamente pela
emergência de um outro tipo de saber, distinto do saber de
espiritualidade. Aquelas práticas que provocariam uma transformação
do próprio sujeito, exigidas pelo acesso à verdade, seriam
necessariamente deixadas de lado, pois o pressuposto moderno é que
a verdade é alcançada exclusivamente através do conhecimento, para
o que não se requer uma transformação do sujeito. Se podemos
enxergar espiritualidade nessas práticas não a princípio não espirituais
como seria a ciência moderna, o que acontece com o sujeito? A
concomitante emergência da figura do cidadão traz consigo elementos
ou uma dimensão de espiritualidade, ao menos no sentido de uma
ação do sujeito sobre si mesmo visando participar de uma esfera
política guiada pela racionalidade? No mesmo sentido, podemos
perguntar se essa ausência de transformação do sujeito não significa,

294
a espiritualidade da democracia e a defesa da escola

ao mesmo tempo, uma certa formação de um ser que vive na


produção da ausência do espírito.
Portanto, é razoável perguntar se não podemos supor alguma
forma de espiritualidade oculta no saber de conhecimento.
Retomamos o princípio contrário a essa pergunta, a explicação
inicial de Foucault sobre o conhecimento moderno. O conhecimento,
em sentido moderno, é caracterizado em contraste com o saber de
espiritualidade. O saber de conhecimento seria uma forma de saber
cuja obtenção exclui a transformação do sujeito, e justamente por isso
não seria um saber de espiritualidade. Como assume Foucault, ao
menos como ponto de partida, no princípio de sua obra Hermenêutica
do Sujeito:
(...) é verdade, como dizem todos os cientistas, que
podemos reconhecer uma falsa ciência pelo fato de que,
para ser acessível, ela demanda uma conversão do
sujeito e promete, ao termo de seu desenvolvimento,
uma iluminação do sujeito; (...) podemos reconhecer
uma falsa ciência pela sua estrutura de espiritualidade
(isto é evidente, todos os cientistas o sabem).
(FOUCAULT, 2004, p. 39).
Aquela marca contrária à da verdadeira ciência, isto é, o fato de
ela demandar a conversão e prometer a iluminação do sujeito ao
completar seu desenvolvimento, é, por outro lado, uma característica
definidora da estrutura de espiritualidade. Ao invés da beatitude
alcançada pelas práticas espirituais, a vida moderna associada à
disciplina da ciência oferece a perspectiva do processo de
esclarecimento. Como disse Kant ao responder negativamente à
questão se a época em que vivemos é esclarecida – não é uma época
esclarecida, mas é uma época de esclarecimento: “Somente temos
claros indícios de que agora lhes foi aberto o campo no qual podem
lançar-se livremente a trabalhar e tornarem progressivamente menores
os obstáculos ao esclarecimento geral (...)” (KANT, 1985, p. 112).
A partir desta parte do texto, pretende-se desenvolver um
questionamento apenas iniciado na parte anterior. Até agora, buscou-
se expor o problema da espiritualidade em relação com o acesso à
verdade. A partir das definições de filosofia como análise das
condições de nosso acesso à verdade e de espiritualidade como o
conjunto de práticas que o sujeito deve realizar sobre si mesmo para
ter acesso à verdade, mostrou-se que dentro da cultura do cuidado de
si, predominante na Antiguidade, apenas Aristóteles e os movimentos
gnósticos constituíram exceções quanto à afirmação da necessidade da
transformação do sujeito para o acesso à verdade. Agora, trata-se de
investigar mais a fundo de que modo as noções de cuidado de si e de
espiritualidade podem ou não ser referidas ao momento em que se
constitui um novo tipo de saber, a ciência moderna, que as dispensaria
como condição de acesso à verdade. Através dessa investigação tenta-

295
marcelo senna guimarães

se compreender melhor os modos de relação entre a ação sobre si


mesmo, a constituição do saber e os mecanismos e artes do poder.
Para voltar a abordar o tema, retomarei as questões apenas
insinuadas no final da parte anterior deste texto. O tema do cuidado
de si mesmo (souci de soi, epiméleia heautoû, cura sui) foi abordado por
Foucault no terceiro volume da História da sexualidade, em cursos no
College de France, em particular no curso de 1981-1982, publicado sob
o título de Hermenêutica do sujeito, e no seminário As tecnologias de si,
oferecido na universidade de Vermont, em outubro de 1982, além de
outros textos.
A história do cuidado de si é um modo de fazer a história da
subjetividade. Em suas obras anteriores, Foucault havia estudado os
processos de subjetivação através das separações entre loucos e não
loucos, enfermos e não enfermos, delinquentes e não delinquentes. A
atenção agora se volta para a formação e as transformações ocorridas
em nossa cultura das ‘relações consigo mesmo’, incluindo aí seu
arcabouço técnico e seus efeitos de saber. (CASTRO, 2009, p. 92-96).
Essa perspectiva permite retomar a questão da governamentalidade
através da investigação das relações entre o governo de si e o governo
dos outros na produção das artes de governar. O cuidado de si
constitui um conjunto de concepções, exercícios e práticas que teve
vigência como forma cultural predominante na Antiguidade
helenística, mas abrangendo também momentos anteriores e
posteriores.
As relações de poder, a governamentalidade, o governo de si e
dos outros e a relação de si para consigo compõem uma cadeia, uma
trama. É através do estudo dessa trama e dessas noções que Foucault
articula as questões da política e da ética, deslocando-se da teoria
institucional do poder e da concepção jurídica do sujeito. “Enquanto a
teoria do poder político como instituição refere-se, ordinariamente, a
uma concepção jurídica do sujeito de direito, parece-me que a análise
da governamentalidade – isto é, a análise do poder como conjunto de
relações reversíveis – deve referir-se a uma ética do sujeito definido
pela relação de si para consigo.” (FOUCAULT, 2004, p.306-307, grifo
meu) Desse modo, busca-se considerar a questão do poder situando-a
na questão mais geral da governamentalidade. Esta é entendida “como
um campo estratégico de relações de poder, no sentido mais amplo do
termo, e não meramente político, entendida pois como um campo
estratégico de relações de poder no que elas têm de móvel,
transformável, reversível”. (FOUCAULT, 2004, p. 306).
Este âmbito está ligado às relações consigo mesmo de um modo
atualmente negativo: noções como retornar a si, liberar-se, ser
autêntico, ser si mesmo padecem de uma quase total ausência de
significação. Assim, não haveria muito que orgulhar-se das tentativas
contemporâneas de reconstituir uma ética do eu, que não conseguem

296
a espiritualidade da democracia e a defesa da escola

oferecer-lhe nenhum conteúdo. Permite-se assim, levantar a suspeita


da impossibilidade de reconstituir uma ética do eu, “quando talvez
seja esta uma tarefa urgente, fundamental, politicamente
indispensável, se for verdade que, afinal, não há outro ponto, primeiro
e último, de resistência ao poder político senão na relação de si para
consigo”. (FOUCAULT, 2004, p. 306). A relação de si para consigo
aparece aqui como o ponto de resistência ao poder, o único ponto,
primeiro e último. É por isso, pela possibilidade dessa hipótese, que a
análise da noção de governamentalidade “não pode deixar de passar,
teórica e praticamente, pelo âmbito de um sujeito que seria definido
pela relação de si para consigo”. (FOUCAULT 2004, p. 306).
Podemos sugerir aqui que, desse ponto de vista, a ética do eu e o
cuidado de si ganham um sentido político imanente e que não se pode
pensá-los sem avaliar suas relações com as artes de governar e o
caráter reversível das relações de poder. Em outros termos,
despolitizar a investigação do cuidado de si e da ética do eu é uma
incompreensão ou uma limitação injustificada. Pensar esses temas
atualmente significa pensá-los num contexto em que a gestão técnica-
empresarial e o marketing se colocam como virtuais substitutos do
exercício do pensamento e da política. Se há uma outra espécie de
trabalho de si e dos outros sendo realizado na produção dos sujeitos
cidadãos e dos empreendedores, a investigação sobre o cuidado de si
talvez permita identificar os pontos da relação de si para consigo em
que se define a submissão a regras unilaterais de caráter econômico e
político ou em que se afirmam outras formas de atuar e viver. Essas
formas não estão pré-definidas mas constituem-se local e
historicamente. É nessa dimensão agonística do cuidado de si,
atravessado por relações de poder e de resistência, que se pode pensar
a questão da espiritualidade.
Foucault define a filosofia como o exame das condições de acesso
à verdade e a espiritualidade como um conjunto de práticas no campo
da relação de si consigo que pretendem propiciar o acesso à verdade,
através de uma transformação do sujeito. Foucault aborda essa
questão, no contexto do amplo exame do cuidado de si, para
diferenciar entre um saber que exige a espiritualidade, característico
da antiguidade helenística, mas também presente em outros
momentos, como nos casos do modelo ascético-monástico do
cristianismo, de Montaigne, Spinoza e Hegel; e um saber que rejeita
qualquer exigência de espiritualidade (como trabalho de
transformação do sujeito como condição de acesso ao ser e à verdade),
que é o saber moderno, cujo momento marcante é Descartes, mas que
nem inicia com ele, nem se reduz a ele, atingindo uma espécie de
apogeu negativo com Kant (no qual os limites de nosso conhecimento
são constitutivos do sujeito) e perseverando na prática científica
contemporânea. Foucault identifica na teologia que assimilou a

297
marcelo senna guimarães

perspectiva aristotélica de um conhecimento com estrutura racional


que permite ao sujeito (entendido como sujeito racional, estritamente)
ter acesso à verdade de Deus, sem que precise transformar a si mesmo,
como sujeito, isto é, sem que a espiritualidade seja uma condição desse
conhecimento. Daí, ele afirmar que já na escolástica se percebe “um
esforço para revogar a condição de espiritualidade que havia sido
estabelecida em toda a filosofia antiga e em todo o pensamento
cristão” (FOUCAULT, 2004, p. 235).
A questão da espiritualidade, desde Platão (com o Alcibíades
como diálogo iniciador), aos olhos da tradição platônica e de toda a
filosofia, foi a questão de nossa relação com a verdade. Ela é assim
colocada: “a que preço posso ter acesso à verdade?” Este preço é posto
no próprio sujeito sob a forma de um trabalho que devo operar em
mim mesmo, uma elaboração que devo fazer de mim mesmo, uma
modificação de ser que devo efetuar para poder ter acesso à verdade.
É um princípio geral que o sujeito enquanto tal, como é dado a si
mesmo, não é capaz de verdade. Para tornar-se capaz de verdade, terá
que efetuar em si mesmo operações, transformações e modificações
precisas. (FOUCAULT, 2004, p. 233-4)
No momento cartesiano da história da verdade, a questão da
espiritualidade se transfigura. O conhecimento de tipo cartesiano
poderá ser definido como “conhecimento de um domínio de objetos”.
“A noção de conhecimento do objeto vem substituir a noção de acesso
à verdade”. Ocorrem aí três transformações: [1] a retirada da condição
de espiritualidade para o acesso à verdade; [2] a transformação do
acesso à verdade, que deixa de ser a espiritualidade (como conjunto de
práticas para transformação do sujeito por si mesmo) para adquirir a
forma de conhecimento; [3] a transformação da própria noção de
verdade. (FOUCAULT, 2004, p.235-236)
Como consequência dessas transformações, especialmente da
terceira delas, deve-se notar que o conhecimento de um domínio de
objetos não é o mesmo que o acesso à verdade:
ter acesso à verdade é ter acesso ao próprio ser, acesso
este em que o ser ao qual se tem acesso será, ao mesmo
tempo e em contraponto, o agente de transformação
daquele que a ele tem acesso. É este o círculo platônico
ou ... o círculo neoplatônico: conhecendo a mim mesmo,
acedo a um ser que é a verdade, e cuja verdade
transforma o ser que eu sou, assimilando-me a Deus. A
homoíosis tô theô [assimilação ao divino] aí está presente.
(FOUCAULT, 2004, p. 235-6).
Diferentemente, no caso do conhecimento moderno “... não é o
sujeito que deve transformar-se. Basta que o sujeito seja o que ele é
para ter, pelo conhecimento, um acesso à verdade que lhe é aberto
pela sua própria estrutura de sujeito”. (FOUCAULT, 2004, p. 234).
Com isso, o sujeito como tal torna-se capaz de verdade, como vemos

298
a espiritualidade da democracia e a defesa da escola

em Descartes. Foucault reconhece que o modelo da prática científica


teve um papel importante: “basta abrir os olhos, basta raciocinar com
sanidade, de maneira correta e, mantendo constantemente a linha da
evidência sem jamais afrouxá-la, e seremos capazes de verdade”.
(FOUCAULT, 2004, p. 234). Mas essas orientações não afetariam a
estrutura do próprio sujeito, seriam condições do conhecimento ou do
indivíduo concreto. Com Kant, realiza-se uma virada complementar:
“o que não somos capazes de conhecer é constitutivo ... da própria
estrutura do sujeito cognoscente. (...) Consequentemente, a ideia de
uma certa transformação espiritual do sujeito que / lhe daria
finalmente acesso a alguma coisa à qual não pode aceder no momento
é quimérica e paradoxal”. (FOUCAULT, 2004, p. 234-235).
Na história da subjetividade e da verdade, esse é o momento da
constituição de um sujeito conhecedor, segundo o modelo de Deus
omnisciente, de um sujeito cuja auto-evidência é o princípio de todo
conhecimento. É o acesso absoluto ao conhecimento possibilitado
única e exclusivamente pelo acesso a si mesmo, por um acesso pleno e
transparente a si mesmo. Com Kant, ganha-se consciência de que o
sujeito contém um vazio, uma impossibilidade, uma zona incógnita,
mas cujo caráter negativo é o que o determina e não pode ser
superado: essa zona escura constitutiva do sujeito é o incognoscível X,
a coisa em si.
Esse sujeito é também o que participa das relações políticas.
Neste ponto do texto, introduzimos a análise que Gert Biesta faz da
educação democrática, para retomarmos ao final a questão da
subjetividade e da espiritualidade.
Gert Biesta analisa a educação democrática e critica as
abordagens que identifica como instrumentalistas e individualistas.
Essas seriam características das concepções individualista e social da
subjetividade democrática, que ele relaciona com os pensamentos de
Immanuel Kant e de John Dewey, como expoentes principais. Mas
mostra que é possível pensar uma educação democrática que não se
reduza a isso, o que ele caracteriza como “uma concepção política da
subjetividade democrática” (BIESTA, 2013, p. 189), inspirado em
Hannah Arendt.
A diferença principal entre as concepções individualista e social
da subjetividade democrática, por um lado, e a concepção política de
subjetividade, por outro, está em que as duas primeiras pensam a
educação democrática como produção do indivíduo democrático. Esta
produção do indivíduo se daria por diversas estratégias educacionais
a ele dirigidas, seja envolvendo a transmissão de conteúdos ou o
exercício de habilidades necessárias à formação do pensamento crítico
e autônomo, ou também por meio da criação de oportunidades para os
indivíduos participarem de uma vida democrática, por exemplo, pela
gestão democrática das escolas e pela inclusão dos estudantes e da

299
marcelo senna guimarães

comunidade nessa gestão. Diferentemente, a concepção política da


subjetividade significa não uma outra forma de produzir um
indivíduo, mas uma forma diferente de articular “o que significa ser
um sujeito democrático” (BIESTA, 2013, p. 188). Essa terceira
concepção “sugere um conjunto de questões para a educação
democrática e aponta para diferentes práticas educacionais” (BIESTA,
2013, p. 188).
A questão da educação democrática é examinada para se
entender a relação entre escola e democracia. Temos tendido a pensar
a escola como a responsável pela criação da democracia, mas essa é
uma tarefa demasiada a se exigir da escola. Não é a escola que cria a
sociedade democrática, mas é a sociedade que cria a democracia e as
escolas que podem sustentá-la. Por outro lado, as concepções
originadas do Iluminismo e seus desdobramentos costumam pensar
na educação para a democracia ou na educação por meio da democracia.
Um aspecto que aproxima as duas perspectivas é que “ambas se
concentram na melhor maneira de preparar as crianças e os jovens
para sua futura participação na democracia” (BIESTA, 2013, p. 166).
Desse modo, ambas concentram-se na preparação dos indivíduos, seja
equipando-os com o conjunto “correto” de conhecimento, habilidade e
disposições, seja fomentando neles as qualidades da personalidade
democrática. A pergunta a que ambas respondem é como a pessoa
democrática pode ser mais bem criada ou engendrada. Nesse sentido,
as duas abordagens de educação democrática caracterizam-se por ser
instrumentalistas e individualistas (BIESTA, 2013, p. 166). Além disso,
elas se colocam em posição de serem questionadas caso a democracia
vá mal. Se é a educação que forma pessoas democráticas, ela seria
responsável caso essas pessoas ajam mal. Essa responsabilização
reflete-se em discursos de políticos e economistas que pretendem
controlar e gerir a educação a seu modo.
Porém, esta não é a única maneira de compreender o papel da
educação numa sociedade democrática. A concepção política de
subjetividade, inspirada na leitura de Hannah Arendt, aponta para
uma outra forma promover a educação democrática.
Segundo essa concepção, a subjetividade não surge antes nem
depois da ação, e agir significa “tomar iniciativa, começar algo novo,
introduzir algo novo no mundo” (BIESTA, 2013, p.175). O ser humano
é um início, um iniciador, não apenas por causa de seu nascimento,
mas por meio de inícios que introduzimos no mundo continuamente
em tudo que fazemos. Ser um sujeito, portanto, significa agir,
introduzir inícios no mundo, para o que se precisa de outros que
reajam aos nossos inícios.
Essa concepção de sujeito e de ação situa-se no âmbito da vida
ativa (vita activa), que foi afastada de seu lugar apropriado pela vida
contemplativa (vita contemplativa). A vida ativa é analisada nas

300
a espiritualidade da democracia e a defesa da escola

categorias de labor, trabalho e ação. Como afirma Biesta citando


Arendt, o labor é a atividade biológica do corpo humano, o trabalho é
a produção, a criação e a instrumentalidade e a ação é a atividade que
acontece diretamente entre os homens, sem a mediação das coisas e da
matéria (BIESTA, 2013, p.175).
Essa atividade entre os homens precisa, portanto, da efetiva
interação com o outro para que possamos, nessa experiência, ser
sujeitos – ou até ser impedidos de sê-lo. Esse âmbito da ação não
produz indivíduos, mas abre a possibilidade de experienciarmos ser
ou não ser sujeitos. Dessa experiência pode resultar uma
aprendizagem relevante para a educação democrática. A subjetividade
não é vista como um atributo dos indivíduos, mas é uma qualidade da
interação humana (BIESTA, 2013, p.177). Desse modo, ela só existe na
ação – nem antes nem depois – podendo ser comparada à ação e à
subjetividade nas artes performáticas. A subjetividade só existe na
performance, nem antes nem depois. A escola não é uma preparação
para uma futura participação na democracia, mas é um lugar onde se
pode viver a experiência de ser um sujeito. Os indivíduos podem ter
conhecimento, habilidades e disposições democráticas, mas é na ação,
adotada por outros de maneiras imprevisíveis e incontroláveis, que o
indivíduo pode ser um sujeito democrático (BIESTA, 2013, p.177).
O que pode ser aprendido com o fato de ser/ter sido sujeito é a
terceira das questões levantadas para a educação democrática. As duas
primeiras questões dizem respeito a quanta ação é possível nas escolas
e na sociedade. Mas é a aprendizagem antevista na terceira questão
que justifica pensar a escola como espaço de ação.
O que as escolas podem fazer – ou deveriam tentar – é tornar a
ação possível. Desse modo, podem “criar condições para que as
crianças e os estudantes sejam sujeitos, para que experimentem o que é
e significa ser um sujeito” (BIESTA, 2013, p. 189). Na experiência da
ação, da política, da vita activa, pode-se realizar uma aprendizagem
que não “vem antes da subjetividade democrática” nem “produz
cidadãos democráticos”. É uma aprendizagem que resulta da
experiência de ter ou de não ter sido um sujeito, constituindo uma
aprendizagem sobre as frágeis condições para que a ação e a
subjetividade (a minha e a dos outros) sejam possíveis (BIESTA, 2013,
p.189). A educação democrática é uma responsabilidade da sociedade
em geral, e não apenas da escola.
Se o insight crucial de Arendt é que só podemos ser um sujeito
num mundo que partilhamos com outros que não são como nós e que
são capazes de suas próprias ações, se os inícios introduzidos em
nosso vir ao mundo como sujeitos são imprevisíveis e incontroláveis,
só nessa experiência é o que se abre a dimensão do sujeito diferente e
outro, só nessa condição paradoxal é que a subjetividade aparece e a
democracia se torna possível.

301
marcelo senna guimarães

Como conclusão parcial dessa pesquisa, voltamos ao tema da


espiritualidade da democracia. Se o significado da espiritualidade em
Foucault envolve um trabalho do sujeito sobre si mesmo, a análise da
ação política mostra como o sujeito só surge na ação, e só subsiste
durante a ação. Podemos considerar essa experiência da ação com os
outros sujeitos como uma atividade do sujeito sobre si, e daí seria
adequado considera-la também como uma espécie de espiritualidade.
Há um entranhamento, uma relação intrínseca entre o si mesmo e o
outro que faz parte da convivência democrática, e mais do que isso,
que a constitui. A escola é um dos lugares privilegiados para realizar
as operações básicas desse trabalho espiritual, dessa prática espiritual,
desse exercício espiritual, se assim o entendemos. A prática do diálogo
investigativo e das experiências de pensamento conferem à filosofia
um papel especial, embora não único nem exclusivo, nessa formação,
se não se reduzirem a uma transmissão de conteúdos e formação de
habilidades e disposições. A filosofia cumpre esse papel junto com as
demais disciplinas (e indisciplinas) das humanidades, na medida em
que esclarece as dimensões da vida ativa e pode colaborar para tornar
a ação possível. Se considerarmos que a ação torna-se possível na
forma da ocupação, de fazer-se presente com os outros na duração que
é a propriamente escolar, apontamos portanto para uma defesa da
escola como ocupação cotidiana, não meramente reproduzindo as
ocupações que foram realizadas em diversos lugares recentemente,
mas inspirando-se nelas para apropriar-se da escola como local de
formação democrática e mais, local de experiência da subjetividade e
de seu outro e de formação da espiritualidade democrática.

referências
BIESTA, Gert. Para além da aprendizagem: educação democrática para um futuro
humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.
CASTRO, Edgardo. Cuidado de si (verbete). In: CASTRO, Edgardo. Vocabulário
de Foucault. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. p. 92-96.
FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito: aulas no Collège de France:
1981-1982). São Paulo: Martins Fontes, 2004.
GUIMARÃES, Marcelo Senna. Cultura e conhecimento: a filosofia na escola. Rio
de Janeiro: UERJ, 2013. Tese de Doutorado em Educação.
GUIMARÃES, Marcelo Senna. O capital e a espiritualidade da ciência
moderna. In: PULINO, Lúcia Helena; GADELHA, Sylvio (Orgs.). Biopolítica,
escola e resistência. Infâncias para a formação de professores. Vol. 1. Campinas,
SP: Alínea, 2012a, p. 119-126.
GUIMARÃES, Marcelo Senna. A questão da espiritualidade no conhecimento
moderno. In: OLIVEIRA, Paula Ramos de e KOHAN, Walter Omar (Orgs.).
Biopolítica, escola e resistência. Infâncias para a formação de professores. Vol. 2.
Campinas, SP: Alínea, 2012b, p. 231-239.
KANT, Immanuel. Resposta à pergunta : Que é ‘Esclarecimento’? in: -----.
Textos seletos. Petrópolis: Vozes, 1985, p. 100-117.

302
escrita, leitura e o tempo de atenção

maria alice gouvêa campesato


smed/pmpa
mcampesato@yahoo.com.br
elisandro rodrigues
rms/ghc
elisandromosaico@gmail.com
betina schuler
unisinos
betinaschuler@hotmail.com

fragmentos de escrita...

Vivemos em uma época que corretamente renunciou à Teoria


Unificada, uma época na qual nos damos conta de que a
história (tal como a ‘individualidade’, a ‘subjetividade’, o
‘gênero’, a ‘cultura’) é composta de uma variedade de
fragmentos e não de inteiros epistemológicos sem rachaduras
ou imperfeições.
(COHEN, 2000, p. 26).

Em tempos de entretenimento, em tempos em que todos dizem


não ter tempo, em tempos de velocidade, em tempos cada vez mais
políticos, como dizia Szymborska (2011), toma-nos o desejo de operar
a escrita e a leitura na escola. E esse tomar emerge pela
insuportabilidade de certas relações, palavras e modos de ler, escrever
e pensar que implicam modos de existência quando somos
atravessados por essa maquinaria em que as crianças realizam dez
exercícios de escrita no mesmo dia. E nessa aceleração, em nome da
produtividade, não há tempo para a intimidade de se ter atenção em
algo. Não se tem atenção no que e como leem e escrevem, uma vez que
tais práticas servem apenas para comunicar e registrar, sendo que
pouco lhes acontece123.
Também em tempos em que empresas de tecnologia digital cada
vez mais confundem aula com plataformas de vídeo, em tempos em
que não podemos mais falar em professor, porque teríamos tutores,

123 Para Foucault (2003, p. 28), “é preciso entender por acontecimento não uma

decisão, um tratado, um reino, ou uma batalha, mas uma relação de forças que se
inverte, um poder confiscado, um vocabulário retomado e voltado contra seus
utilizadores, uma dominação que se enfraquece, de distende, se envenena e uma outra
que faz sua entrada mascarada”.

303
maria alice gouvêa campesato; elisandro rodrigues; betina schuler

facilitadores, mediadores, podemos levantar alguns sintomas. Em


tempos em que não temos mais alunos, mas clientes em sala de aula
(mesmo em escolas públicas); em tempos em que não se pode mais
falar em ensino, porque o importante seria o aprender a aprender; em
que o aluno se transforma em um empresário de si, podemos levantar
alguns sintomas. Em tempos em que o estudo estaria fora de moda,
podemos escrever e ler com certa bravura para dizer que a
importância estaria em outra coisa: em justamente pensar em como
estamos nos tornando o que somos no presente por meio de tais
práticas. E, principalmente, no que estamos deixando de ser.
Isso porque “os vagalumes desapareceram na ofuscante
claridade dos ‘ferozes’ projetores. Desapareceram nessa época de
ditadura industrial e consumista em que cada um acaba se exibindo
como se fosse uma mercadoria em sua vitrine, uma forma justamente
de não aparecer” (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 30-38). Nesse sentido,
esse ensaio busca tomar a escrita e a leitura na escola pela potência do
tempo da atenção, porque optou-se por não pesquisar de costas para a
vida.
A lógica disciplinar obriga a colocar o mundo e a nós mesmos
em narrativa. Mas no presente somos atravessados por outras forças
que não apenas a do disciplinamento. Forças dessa biopolítica
contemporânea com a velocidade do controle e de outras linhas para
as quais ainda não temos nem mesmo um nome. Por isso a opção de
tomar a escrita e a leitura na escola buscando escapar a uma lógica
confessional, que busca autodecifração, mas sem cair no jogo fácil da
inovação, pois não é o tipo de atenção que aqui se quer pensar. A
atenção que nos interessa tem a ver com o estudo, com certo tipo de
escuta com o texto, com a vida, consigo. Atenção como um certo
demorar, lembrando-nos de Derrida (2015).
Entendemos que a escrita e a leitura se potencializam quando
saem dos exercícios meramente de análise do que se lê e se escreve,
ficando atento a escutar o que o texto diz, com a ruminação necessária.
O que o texto leva a pensar, para que outras leituras o texto remete e
para qual potência de criação a escrita abre. Na etimologia da palavra
atenção está atender, vinculado a esperar e aguardar; estar atento,
vigilante (CUNHA, 2010). Para Crary (2013, p. 32), as raízes
etimológicas “da palavra atenção ecoam um sentido de ‘tensão’, de
estar ‘estirado’, e também de ‘espera’. Ela sugere a possibilidade de
fixação, de manter-se em estado de fascinação ou contemplação por
alguma coisa, no qual o sujeito atento está imóvel e ao mesmo tempo
desancorado”. O imóvel aqui não está relacionado ao componente
paralisante de uma acomodação passiva, mas a uma parada, uma
suspensão, uma interrupção contemplativa, que se coloca como
possibilidade para o pensamento e para a vida. Uma fixidez que
desata, desancora e difere, assim como a de uma “nau atracada, um

304
escrita, leitura e o tempo de atenção

pouco como as barcas-casa nos canais de Amsterdã, um tantinho


flutuantes mas já sedentárias, numa indecisão saborosa entre o fluxo
do rio e a fixidez da cidade”. (PELBART, 1993, p. 22).
O que quer uma escola em que as crianças realizam dez
exercícios de escrita por turno; em que leem e respondem perguntas
como, por exemplo, “quem é o autor do texto ou qual o título do
livro”? O que quer uma escola que utiliza Clarice Lispector apenas
para ensinar tempo verbal? O que quer uma escola que opera com
uma literatura que infantiliza e que reduz as fábulas ao “tu deves”? O
que quer uma escola pública que passa um século escrevendo muito
sobre Deus, Pátria, Família e Higiene? Que consumo da vida é esse?
Entendemos que isso passa por certa relação com o tempo. Como
estamos escrevendo o tempo na escola, com o tempo, qual tempo?
Kafka (2005) nos deixa pistas com o Sr. K, pois o tribunal está por
todos os lados, assumido como modo de existência (SCHULER, 2009).
Assim, o espaço e o tempo da escola dão formas a essas escritas
produzidas pelas crianças. Entretanto, talvez, um dos poucos lugares
que, mesmo atravessado pela aceleração, que ainda seja possível de
alguma suspensão seja justamente a escola. Onde ainda se lê uma
poesia de Manoel de Barros, onde se escreve um conto com Machado
de Assis, onde se retira livros na biblioteca, onde se lê em voz alta para
um grupo? Com certeza não é no shopping, com a televisão ou no Big
Brother. Isso, também, porque há uma forte dimensão política nas
escritas das crianças na escola, uma vez que cada escrito fala de uma
coletividade, de uma aula, de um estudo.
A essa questão, “soma-se [...] uma anulação de tudo o que pode
distrair, premiações para bons usos do tempo, constituindo-se assim a
lógica da utilidade do mesmo. […] Escrever melhor em menos tempo e
para que todos entendam seria sinônimo de eficiência” (SCHULER,
2017, p. 234) em se tratando das práticas escolares. Problematizando
esse posicionamento majoritário, não se trataria de entreter as crianças
na escola, de não cansar sua paciência, de atender aos “seus
interesses”, de ter uma aula da diversão, de fazer passar o tempo, um
tempo da sua formação. Discursos novidadeiros, que se opõem à
tradição, à memória, à história, apagando completamente os vestígios
de um passado são altamente valorados atualmente, pois o que
importa é o presente e sua leve inclinação ao futuro. “A novidade que
a escola contemporânea inaugura está articulada à antecipação da
satisfação, procurando adequar a sólida maquinaria escolar às
necessidades do mundo líquido. Assim, realizam-se projetos de curto
prazo, voltados às necessidades e interesses dos alunos”.
(CAMPESATO, 2017, p. 220). Com discurso de senso comum, aparece
a necessidade de alimentá-los – os alunos – diariamente com muita
comida, mas não se pergunta qual comida, por que essa e não outra e,
principalmente, quais os efeitos digestivos, perguntando com

305
maria alice gouvêa campesato; elisandro rodrigues; betina schuler

Nietzsche (2013) e Kafka (2011). Qual a força combativa dos textos


usados com as crianças e dos exercícios de escrita que aí se seguem?
Perguntaria Benjamin (2012, p. 124): “pois qual o valor de todo o nosso
patrimônio cultural, se a experiência não mais o vincula a nós”?
Recorrendo à etimologia novamente, é interessante pensar que o
verbete “ler” – no Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa –, é
seguido do verbete “lerdo”. Agrada-nos esse arranjamento livresco
que constrói uma série. Porque quem lê, quem lê estudando ao menos,
tem sempre alguma coisa de lerdo. Ou deveria ter. No dicionário, a
lerdeza continua a leitura. No dicionário, o lerdo é aquele “‘pesado,
estúpido, acanhado’ ‘lento nos movimentos’” (CUNHA, 2010, P. 386).
Agamben (2016) já dizia que quem estuda tem um quê de estupefação
e estupidez. Ler estudando, então, impregnaria um ritmo de estudo.
Com Benjamin (2012b) podemos levar a pensar em um outro tipo de
atenção a partir de Kafka: a sabedoria sobre a brevidade da vida, um
tema estoico tão antigo. Ele diz que as crianças não querem dormir,
porque algo interessante pode acontecer, os estudantes não dormem
porque estão implicados nos estudos. “O artista da fome jejua, o
guardião da porta silencia e os estudantes velam: assim, ocultas,
operam em Kafka as grandes regras da ascese” (Ibidem., p. 175).
Esse tipo de leitura e escrita que estuda, essa leitura e escrita do
tempo da atenção não remete a um tipo de atenção para consigo que
pretende desvelar a verdade em si em uma perspectiva platônico-
cristã. Trata-se de um tipo de atenção para consigo e para o mundo no
sentido de tentar desviar-se de toda a agitação cotidiana e de
interrogar-se a si mesmo, colocar-se em questão. Foucault (2011),
quando do estudo do cuidado de si na antiguidade greco-romana, traz
que um dos nossos grandes inimigos seria justamente uma agitação
que nos tira da atenção para conosco e para o que se passa. “Cuidar de
si mesmo implica que se converta o olhar [...]. O cuidado de si implica
uma certa maneira de estar atento ao que se pensa e ao que se passa no
pensamento” (FOUCAULT, 2011, p. 12). Obviamente que no presente
não podemos falar do cuidado de si nessa perspectiva, mas podemos
ficar atentos ao quanto essa dispersão hiperconectada, a velocidade, o
“multitasking” tem atravessado as práticas de leitura e escrita na
escola e o que estão produzindo. Desse modo,
Na contemporaneidade, cada vez mais, certa relação
com a velocidade está investida na relação do indivíduo
consigo mesmo, sendo que talvez poderíamos pensar
essa relação mais afirmativa com a escrita justamente
como aquilo que abre uma distância, que cria um tempo
para se pensar, conversar, ouvir, ler e escrever em
tempos diferentes. (SCHULER, 2017, p. 238).
Por isso, defendemos um tempo da atenção na escrita e na
leitura na escola, justamente porque não diz respeito a um decifrar a si

306
escrita, leitura e o tempo de atenção

mesmo, de analisar o texto ou analisar-se, de se tomar como um objeto


de conhecimento para um discurso verdadeiro, mas de concentrar-se
em si, de voltar sua atenção para a sua relação consigo, com o mundo
e com os demais, concentrando o pensamento na própria ação
(FOUCAULT, 2011). Com inspiração estoica, poderíamos perguntar
como a escrita e a leitura na escola hoje poderiam funcionar como um
estar frente a frente consigo, justamente para distanciar-se de si. Uma
escrita combativa às existências distraídas de si. Por isso, não um
combate que busca fugir do mundo, mas morar no tempo, na
imanência. Produzir rastros de vida, de uma vida por meio dessas
práticas.
E, para isso, certa arte da escuta, de tomar notas, de conversar
com o outro, de repetir, de mergulhar na tradição para fazer alguns
rasgos, de ler e escrever no espaço público que é uma sala de aula,
uma arte de fortalecimento de si para além da redução da escrita e
leitura como comunicação, registro, moral, avaliação, julgamento e
gêneros textuais. Uma certa atenção com a escrita como um caderno
de notas que pode exercer uma função etopoiética como “operadora da
transformação da verdade em ethos” (FOUCAULT, 2014, p. 144).
Assim, o autor segue comentando sobre essa prática de atenção
consigo mesmo, desse exercício de anotar os fragmentos do lido, do
vivido, do já dito “e isso com uma finalidade que nada mais é que a
constituição de si” (Ibidem., p. 145).
Isso exige paciência, ruminação a la Nietzsche (2006), certa
conversação do cuidado de si a la Foucault (2011). Não se trata de uma
paciência resignada, mas da necessidade de fazer contrapontos à
tagarelice da opinião – “essa espuma de linguagem que se forma sob o
efeito de uma simples necessidade de escritura” (BARTHES, 2006, p. 9)
– para poder viver os intervalos, o instante, o trabalhar o pensamento,
ter intimidade com ele. Nietzsche já dizia que nunca comunicamos
pensamento, mas movimentos. E para isso precisamos colocar a
linguagem em questão. Para isso precisamos colocar em questão os
modos como narramos o mundo e a nós mesmos. Para isso,
precisamos problematizar como lemos e escrevemos nas escolas no
presente. Uma micropolítica do tempo-atenção das palavras. Palavras
mais próximas da vida, do mundo, das pessoas. Palavras sem
identidade, porque não querem substituir o mundo ou representá-lo,
mas criar mundos. Mundos em que anjos invejam a finitude humana.
Wim Wenders mostrou pela primeira vez em circuito
planetário como são e o que fazem os anjos numa
metrópole contemporânea. Com Asas do Desejo ficamos
sabendo, espantados, que eles são muitos. [...] O que faz
um anjo quando percebe que a desesperança invade a
alma de um humano? Toca-lhe no ombro de leve, com a
ponta dos dedos, e o sofredor se dá conta de algo a
roçar-lhe o entorno, mas não sabe ao certo o quê. Intui

307
maria alice gouvêa campesato; elisandro rodrigues; betina schuler

uma presença estranha mas nada vê; sente como que


um farfalhar de folhas, uma perturbação desconhecida,
uma espécie de cintilância. [...]. Mas os anjos não são
deuses. Eles não podem tudo. [...]. Nem sequer está ao
alcance deles criar um público para um narrador
envelhecido, num mundo que não quer mais ouvir suas
histórias, pois prefere perder a memória. O que poucos
sabem – e isto se aprende no filme – é que os anjos têm
inveja dos homens. Eles vêem muita coisa, ouvem tudo,
podem estar em todos os lugares, observam os humanos
ora com espanto, ora com admiração, ora com
compaixão – mas sempre com uma pontinha de inveja.
Do que têm inveja os anjos? Da finitude dos mortais. Da
sua fragilidade, da sua inscrição no tempo, do sentir
frio, do sentir fome, do sentir doce, do esfregar as mãos
uma na outra numa madrugada gelada, de sentir o calor
de um copo de café esquentando o corpo, de ter
saudades, incertezas, de morrer de amor e de ter medo
da morte. A imortalidade dos anjos é para eles um
cárcere cruel. Ela os aprisiona no tédio infernal do
Mesmo, na repetitividade sem história, num eterno
presente que é em si a imagem cinza de uma morte sem
desfecho. (PELBART, 1993, p. 19-20).
A descrição de uma cidade-imagem-movimento em que anjos
invisíveis perambulam pelas agitadas ruas de Berlim provocam certa
inquietação, pois os limitados poderes dessas incorpóreas criaturas,
embora tenham o “dom” da imortalidade, não podem, por exemplo,
impedir a queda de um corpo suicida. Porém, o mais inquietante é que
esses seres invejam a existência finita e dolorosa dos mortais. Estão
condenados à eternidade de um Mesmo que se repete na história. Um
Mesmo de cor cinza, como define Pelbart (1993). Isso provoca nosso
pensamento sobre a inveja que têm de nós, os humanos. De que se trata
essa inveja? Da finitude? Ou da não eternidade do Mesmo? Assim
como Sísifo, que fora condenado por Zeus a “rolar até o alto de uma
colina uma grande pedra, que ao chegar ao topo rolava novamente
para baixo [...] numa punição eterna” (KURY, 2009, p. 363), os anjos de
Wenders também “estão condenados ao tédio eterno” (PELBART,
1993, p. 21).
Assim, a recusa à não-mesmidade configura-se como um desejo
de Sísifo. E dos anjos. Como a mesmidade se faz presente em um
mundo tão veloz como o contemporâneo? E como nossas respostas a
isso, em se tratando da escrita na escola, têm se reduzido às questões
de “inovação”, com ojeriza de repetição, como que fazendo uma
conversação surda com a tradição? Como que colocando quase tudo
fora com a água do banho?
A escrita e a leitura na escola poderiam ser tomadas por certa
artesania, que pressupõe um demorar-se, uma certa suspensão
temporal, uma repetição como forma de provocar algo novo.

308
escrita, leitura e o tempo de atenção

É correto afirmar que o hábito se adquire pela repetição


do esforço; mas para que serviria o esforço repetido, se
ele reproduzisse sempre a mesma coisa? A repetição
tem por verdadeiro efeito decompor em primeiro lugar,
recompor em seguida, e deste modo falar à inteligência
do corpo. Ela desenvolve, a cada nova tentativa,
movimentos enredados; a cada vez chama a atenção do
corpo para um novo detalhe que havia passado
despercebido, faz com que ele separe e classifique;
acentua-lhe o essencial; reconhece uma a uma, no
movimento total, as linhas que fixam sua estrutura
interior. (BERGSON, 1999, p. 127).
Esse movimento de decomposição e recomposição, de
montagem e desmontagem, permite com que as minúcias, os detalhes
que não eram percebidos, ou se o eram não apresentavam
importância, adquiram outra magnitude e passem a constituir a
própria matéria do pensamento. Dessa forma, enfatizamos a
importância da desconfiança e do olhar atentivo, não apenas como forma
de evidenciá-la ao leitor, mas para não deixarmos nos conduzir pela
facilidade da opinião.
Criatura acorrentada por toda a eternidade e seres imortais
alados parecem evidenciar a paradoxal existência humana: a certeza
da morte. Talvez essa certeza que nos faz virar o rosto para não
percebê-la [a Morte] aproximar-se, atribuindo-lhe a invisibilidade
mesma a que emprestamos aos anjos. Mais do que aparentes
devaneios, a temática da finitude da vida nos coloca uma limitação
temporal que se torna, desde a Modernidade, algo contra o qual
insistimos em lutar. No entanto, quanto mais corremos, menos
experimentamos o acaso dos acontecimentos, menos temos tempo
para nós mesmos. Dessa forma, corremos contra a mesmidade, numa
busca desesperada de romper com o ciclo eterno – mesmo que finito,
em se tratando de humano: rotinas quebradas com a antecipação do
final de semana que se desenha em nossa imaginação, enquanto
digitamos, almoçamos, tomamos banho, lemos e escrevemos. Essas
imagens e ideias, aparentemente deslocadas e talvez desmedidas em
se tratando de um trabalho na área da Educação, têm o propósito de
problematizar algumas verdades e propor, quem sabe, outras
possibilidades de pensar a educação, a escrita e a leitura em tempos de
velocidade máxima. Conforme Skliar (2003, p. 39), há
[...] uma herança naquilo a que chamamos de educação;
nela, a pergunta pela educação se volta, hoje, para nós
mesmos para nos obrigar a ver bem. Ver bem a nossa
pergunta, pois toda pergunta pode ser também um
abandono, um nevoeiro ou um cruel convite à
sinceridade. O que perguntamos, quando perguntamos
sobre a educação? Ou melhor ainda: por que

309
maria alice gouvêa campesato; elisandro rodrigues; betina schuler

perguntamos sobre a educação sempre de uma forma


retórica?
Assim, ao perguntarmos sobre o quê e como estamos lendo e
escrevendo na escola, talvez a questão primeira que se pode colocar
diga respeito aos modos de existência. Se para os gregos da
antiguidade escola significava “tempo livre”, como lembram
Masschelein e Simons (2017, p. 26), “a invenção do escolar poder ser
descrita como a democratização do tempo livre” e a escola
contemporânea podendo ser concebida como tempo de investimento
no capital humano. Os discursos que se fazem a respeito da escola e de
toda sua maquinaria vão produzindo formas diversas de conceber tal
instituição. Atualmente, discursos anti-escola vêm sendo produzidos
com bastante ênfase e, junto com eles, a ideia da crise dessa instituição.
De acordo com Lopez-Ruiz (2004, p. 240), a formulação teórica
“cunhada pela ciência econômica intervém indireta, mas
decisivamente, na formulação de uma ordem valorativa internalizada,
na constituição de um ethos, e promove um determinado espírito para
o capitalismo que caracteriza a passagem do século XX para o século
XXI”. Assim, podemos falar de uma maquinaria capitalística
investindo nas práticas escolares, articulando com a necessidade de
prazer constante, valorando a velocidade e a dispersão
hiperconectada. Uma dispersão paradoxal, visto que a desatenção
“começou a ser tratada como um perigo e um problema sério, embora,
com frequência, fossem os próprios métodos modernizados do
trabalho que produzissem essa desatenção” (CRARY, 2013, P. 36).
O tempo-atenção na leitura e na escrita desloca-se no
contemporâneo, fortemente vinculado à constituição de modos de
subjetivação. Assim, se a escola é o lugar de certa conversação com a
tradição e se esta vem sendo arrastada em um mundo sem memória
em nome dos novos tempos, o que leem e escrevem as crianças na
escola?
Se os modernos ambicionaram romper com as formas de pensar
e de viver daqueles que os antecederam, a contemporaneidade não se
furtou a se autoproclamar inovadora. Ao observarmos discursos que
se engendram na sociedade pós-industrial, constatamos uma forte
tendência em abandonar velhas práticas. Dessa maneira, a tradição é
vista como algo nefasto, prejudicial às demandas de um mundo cada
vez mais veloz e globalizado. O novo é valorado por ser novo.
Assim, qual o lugar dos clássicos, por exemplo, na educação das
crianças no contemporâneo? Calvino (1993, p. 14) diz que é um
clássico “aquilo que persiste como rumor mesmo onde predomina a
atualidade mais incompatível”. E por que os clássicos quando se está a
falar de tempos de inovação? Calvino (1993, p. 14), em continuação à
ideia anunciada, argumenta que a nós “[r]esta o fato de que ler os

310
escrita, leitura e o tempo de atenção

clássicos parece estar em contradição com nosso ritmo de vida, que


não conhece os tempos longos, o respiro do otium humanista”.
A escrita e a leitura, então, têm a ver com memória. Escrever
seria, assim, recolher fragmentos e pedaços de memória que caíram,
que por vezes levaram um tempo maior de germinação, em outras
menor, para compor um texto. Como escreve Simone Moschen Rickes
(2005, p. 43) “só podemos recuperar o que perdemos” e perdemos o
texto lido para podermos escrever, “perdemos o acontecido para
construir a partir dele uma memória” (Ibidem., p. 43). Escrever com
fragmentos, ou com hiatos de tempo, com suspiros na folha, com
suspiros no pensamento poderia ser uma montagem de escrita como
um “ainda”, ou como um “dizer adiante” de Beckett.
Talvez, a leitura e a escrita na escola precisassem valorar a
atenção, a memória e certa incompletude para falar da relação com o
tempo, com a vida, consigo. Preciosa (2010) fala da importância de
escrevermos com o fragmento, de forma que ele enuncia uma estranha
inquietude de incompletude. Um desmandar que nos leva a continuar.
Assim como o texto de Beckett, diz ela que:
Além dessa sensação de incômodo, pode também gerar
um grande desconforto: pensamentos fragmentários não
asseguram àquele que lê a exposição clara de um
percurso teórico, de um sítio de onde se parte. Que
espécie de segurança pode oferecer um texto fracionado,
aos pedaços, que insiste em ir ao encontro do que é
episódico, descontínuo, dissipatório, efervescente, quase
informe? Para alguns, talvez seja frustrante enredar-se
numa viagem desse tipo. Entretanto, se acolhido, o
fragmento pode nos surpreender. (PRECIOSA, 2010, p.
23).
Aqui acolhemos o fragmento como exercício de escrita, como
exercício de deixar o texto em pequenos pedaços. Muitos dos
escritores que escrevem conosco, como Nietzsche e Barthes, a quem
tomamos emprestado essa estilística, escreveram muitos de seus livros
com essa tonalidade, como um intermezzo, colocando os sentidos em
suspenso. Então, o que acontece no intervalo de uma palavra e outra,
no tempo da escrita e da leitura, seria o pensamento?
Pensamos na escola quando lemos e escrevemos? Como? O que?
Por quê? A criança quando aprende a ler realiza um processo de
montagem, desmontagem, remontagem da palavra lida e escrita,
realizando um procedimento de conhecimento, para ver como a
palavra escrita e falada funciona, assim como,
[...] se desmonta um relógio, ou seja, como se disjunta
minuciosamente as peças de um mecanismo. Enquanto
isso, o relógio para de funcionar, é claro. Entretanto essa
parada – die Dialektik im Stillstand – provoca um efeito
de conhecimento que, de outra forma, seria impossível.

311
maria alice gouvêa campesato; elisandro rodrigues; betina schuler

Pode-se desmontar as peças de um relógio para


aniquilar com o insuportável tique-taque da contagem
do tempo, mas também para entender melhor como
funciona, e até mesmo para consertar o relógio
defeituoso. Esse é o duplo regime descrito pelo verbo
desmontar: de um lado a queda turbilhonante, de outro
o discernimento, a desconstrução estrutural. (DIDI-
HUBERMAN, 2015, p. 131).
A montagem é um procedimento que só acontece quando se
toma posição, quando se desmonta, ou seja, para que exista montagem
de algo é necessário que exista também sua desmontagem. Por isso,
trata-se sempre de uma questão política, de lampejos, de uma
micropolítica dos vagalumes (DIDI-HUBERMAN, 2011). A montagem
é um procedimento que permite um processo de interrupção sendo
possível sobrepor partes distintas. Didi-Huberman (2015) utiliza a
montagem como um deslocamento, como uma descontinuidade no
tempo e no pensamento. Mas para isso é necessário desmontar.
Ou seja, o procedimento de montagem inicia com o desmontar
da ordem, cria-se assim intervalos e deixa-se em suspenso,
possibilitando ver as latências e lampejos, deslocando sentidos de
lugares. Depois remonta-se, podendo dar a mesma ordem de antes, ou
remontando outras configurações possíveis. Nessa remontagem
podemos ter uma outra imagem de pensamento, um outro texto, uma
outra montagem de sentidos. Por isso, quando falamos em aprender a
ler e escrever, poderíamos aqui tomar Deleuze (1988, p. 54),
A aprendizagem não se faz na relação da representação
com a ação (como reprodução do mesmo), mas na
relação do signo com a resposta (como encontro com o
Outro). […] Eis por que é tão difícil dizer como alguém
aprende: há uma familiaridade prática, inata ou
adquirida, com os signos, que faz de toda a educação
alguma coisa amorosa, mas também mortal. […]
Aprender é constituir este espaço do encontro com os
signos, espaço em que os pontos relevantes se retomam
uns nos outros e em que a repetição se forma ao mesmo
tempo em que se disfarça.
Não se pensa, não se escreve ou se cria sem uma temporalidade.
Para pensar – e escrever o que se pensa –, se requer [um] tempo. Se o
conceito deve dizer do acontecimento, qual o tempo para a criação de
pensamentos e de conceitos? Como se formula uma questão que
coloca o pensamento a pensar em uma certa relação com o tempo?
Como podemos pensar essa questão olhando para os exercícios de
escrita e leitura na escola contemporânea: ditados, cópias de textos,
leituras seguidas de perguntas/respostas, completar frases, exercícios
de caligrafia, separação de sílabas, listagens de tempos verbais,
listagens de sinônimos e antônimos, listagens de adjetivos, entre
outros? Múltiplas são as possibilidades de criação a partir disso.
312
escrita, leitura e o tempo de atenção

Assim, não se trata de substituição, mas de buscar entender o que


essas práticas estão produzindo e quais as brechas de criação de
alguns escapes. Concordamos com Larrosa (2012, p. 291), quando diz
que
[...] cantar a experiência tem a ver com abrir, nas
instituições educativas, um tempo livre, liberado,
roubado à necessidade, à utilidade, para ver se nesse
tempo livre podemos constituir juntos algo assim como
um espaço público, da palavra e para a palavra, do
pensamento e para o pensamento, mas também um
espaço de qualquer um e para qualquer um, sem
guardiões na porta, sem ninguém que exija qualificações
de nenhum tipo para nele participar, um espaço em que
o único que teríamos em comum seria, precisamente, a
capacidade de falar e de pensar. Porque o saber
hierarquiza (somos desiguais com respeito ao que
sabemos), mas a capacidade de falar e a capacidade de
pensar é o que todos compartilhamos, é o que nos faz
iguais.
Um tempo “livre”, um tempo “comum”, um tempo-atenção, pois
“a escola é o tempo e o lugar onde temos um cuidado especial e
interesse nas coisas ou, em outras palavras, a escola focaliza nossa
atenção em algo” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2017, p. 51). A atenção
possibilita um demorar-se a ver as coisas e o mundo de outra forma,
pois dessa maneira, “as coisas começam a falar (conosco)” (Ibidem., p.
51).
Um pequeno ensaio, pois, sem pretensão de explicação ou
salvação, mas uma aposta em práticas de escrita e de leitura na escola
que, juntamente com tantas outras funções, também passem pela pele,
mas sem tentar transformar isso em um fetiche ou em uma meta. Uma
escrita-leitura que não confirme o mundo, a si mesmo, esse tempo,
mas que justamente os coloque em questão. Por que essas práticas de
leitura e escrita escolares que apenas buscam comunicar, registrar e
medir falam de um sintoma do nosso tempo que diminuem a vida,
uma vez que a forma como lemos e escrevemos falam de uma forma
da verdade, de viver a vida, de se relacionar com os outros e com os
demais.
Apenas um ensaio que pensa a inseparabilidade entre leitura,
escrita, atenção e formação. Entre leitura, escrita, pensamento e vida.
Entre leitura, escrita, estudo e escuta. Entre leitura e escrita. Entre.

referências
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reimp. Trad. de João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2016.
BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 2006.

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maria alice gouvêa campesato; elisandro rodrigues; betina schuler

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técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de
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314
escrita, leitura e o tempo de atenção

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Tradução de Cristina Antunes. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017.
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SZYMBORSKA, Wislava. Poemas. Trad. de Regina Przybycien. 5º reimp. São
Paulo: Companhia das Letras, 2011.

315
316
figuras de la alteridad-autoridad-autorización entre
filosofía y educación. una aventura narrativa.

maría beatriz greco


universidad de buenos aires
beagreco@gmail.com

introducción

Un primer movimiento consistirá en interrogar la afirmación de


una “crisis de autoridad” –social, política, institucional, educativa-
desde lecturas filosóficas, psicoanalíticas y pedagógicas que permitan
arribar a pensarla en términos de transformación más que como
simple pérdida de la autoridad conocida. Ello demanda abrir
preguntas por nuestra actualidad, apelando a la construcción de
sentidos en relación a la tarea de educar, en nuestro tiempo y contexto
y desde allí, a una concepción de autorización y autoridad
emancipatoria (Greco, 2012, 2015) y de procesos de subjetivación
emancipatoria siempre en obra (Rancière, 2003; Foucault, 2002).
Si pensar la autoridad es pensar en torno a relaciones constitutivas,
espacios “entre” sujetos, sujetos e instituciones, sujetos y proyectos, es
porque este tiempo de transformación demanda la construcción de
nuevos lazos, otras tramas y miradas sobre los sujetos que oficien de
sostenes para el trabajo de enseñar y de aprender.
El diálogo entre pensamientos de autores diversos: Arendt,
Kojève, Rancière, Foucault, entre otros, ofrecerá la posibilidad de
construir el propio encuadre de trabajo para quienes, desde la filosofía
y la educación, despliegan un trabajo de subjetivación.
Así, “autoridad” –a partir de las escenas de la práctica educativa
cotidiana- se irá relacionando con otros conceptos que permitirán
redefinirla para mejor comprenderla, produciendo a su vez, nuevas
miradas sobre las prácticas, los lugares, las posiciones de maestros/as
y estudiantes, sus identidades y el vivir-juntos en la escuela: autoridad
y alteridad, autoridad e igualdad, autoridad y hospitalidad, autoridad
y autorización, autoridad y palabra, autoridad y experiencia.
La hipótesis de trabajo que desplegamos es la que implica
considerar que dejar intacto y sin interrogar el concepto de autoridad
en el campo educativo conduce a una naturalización de la jerarquía en
la relación pedagógica, de los efectos “irreversibles” de la dominación
en los sujetos y mantiene una falsa dicotomía: o educamos en forma
autoritaria o renunciamos a educar. Romper esta oposición es lo que
este trabajo se propone acudiendo a la reconfiguración de otros modos
de autoridad en vínculo con unas figuras de alteridad que conmueven

317
maría beatriz greco

las certezas, naturalezas y lugares: la infancia, el/la aprendiente, entre


otras.
En simultáneo, se plantea que el trabajo de narrar la propia
práctica es uno de los movimientos que permite reconfigurar ese lugar
de autoridad en tanto es posible desplegarlo como autoría y
crecimiento (Arendt, 2005), reconocimiento (Kojève, 2006) e igualdad
actualizada (Rancière, 2003). En la reconfiguración es la autoridad de
la escritura la que se hace lugar, la aptitud para interrogarse en el
momento en que se escribe.
Narrar una práctica excede la intencionalidad de informar acerca
de una tarea que supone pasos, procedimientos y modos de hacer
regulados y ordenados, implica mirarse a uno/a mismo/a trabajando,
pensando, tomando decisiones implicado/a en escenas educativas, en
configuraciones estéticas de la autoridad (Greco, 2012). Éstas conllevan
algunas maneras visibles y otras menos, de un ejercicio de autoridad
que se despliega de un modo particular, entre vínculos asimétricos y
horizontales, diferenciados e igualitarios, nuevas propuestas del/la
docente que se rearman en el hacer junto a quienes la reciben, palabras
circulantes en diversas direcciones, posiciones diferenciadas y que, en
el mismo momento, se movilizan, se desplazan sin perder su
especificidad entre quienes ocupan el lugar de estudiantes y quien lo
hace en el lugar docente.
La narración permite desplegar una configuración estética,
sensible, abriendo una manera de concebir la autoridad que no sólo
incluye a “uno” que la ejerce desde un lugar externo a sus escenas,
sino a un conjunto de instancias: subjetivas, intersubjetivas, habitadas
en espacios-tiempos, formas de organización que comportan
posiciones institucionales, que incluyen objetos y maneras de
relacionarse con los objetos, formas de enseñanza, de aprendizaje, de
vivir-con-otros, alteridades inesperadas.
La complejidad del acto educativo demanda un hacer-pensar en
simultáneo que no se disocia necesariamente en tiempos diferenciados
sino que reclama, a menudo, un pensamiento en acto y esa
“configuración estética de la autoridad” que la trasciende, una
repartición de partes (Rancière, 2014). Las partes que se distribuyen en
cada escena pueden ser las habituales que –se supone- corresponden
al/la docente, a los/as estudiantes, portadores/as de saberes y
palabras, de posicionamientos que cada uno/a asume “naturalmente”.
La escritura narrativa implica advertir de qué modo, a través de qué
procesos singulares y políticos, los cuerpos y las voces están allí
distribuidas y pueden desplazarse, movilizarse hacia otros lugares y
escucharse como palabra que cuenta, por medio del trabajo
intempestivo de la igualdad. Es de esta manera que quien enseña no
necesariamente niega ni desconoce la igualdad. Si bien su autoridad se
ejerce porque la relación que sostiene con los/as estudiantes es

318
figuras de la alteridad-autoridad-autorización entre filosofía y educación...

asimétrica, ello no implica una jerarquía de saberes, de palabras o de


posiciones. Por el contrario, puede habilitar autorizaciones e
igualdades varias.
Esta autoridad ejercida en forma igualitaria demanda entonces,
la construcción de escenas de habilitación de una palabra compartida
y de desplazamiento de esas posiciones. Reclama pensarse como
“aventura intelectual” (Rancière, 2003) que es a la vez, “aventura
narrativa”, recorridos propios que involucran a otros/as en su trazado
escriturario, tanto más cuando se trata de habitarlo desde el lugar de la
enseñanza.
En este sentido, autoridad e igualdad no se oponen, dado que
puede tener lugar en cada acto educativo, un “poder común” del
enseñar y aprender que rechaza relaciones de dominio y
sometimiento, de superiores e inferiores, de saberes e ignorancias
absolutas. Narrar la experiencia, volverla escritura, habilita la
posibilidad de esta aventura intelectual. Poder singular y común que
liga y separa, condición para asumir una palabra y una posición
propias.

saberes e ignorancias en espacios narrativos.

Si la autoridad de quien enseña, desde esta perspectiva, no es


dominación y obediencia, tampoco es saber terminado, clausurante. La
disociación entre autoridad y saber se vuelve condición de posibilidad
de reconocimiento, de alteridad que conmueve certezas.
Ante una partición de lo sensible dada todos somos enseñantes y
aprendientes, espectadores y partícipes a la vez, de un modo u otro, lo
que implica que esa partición puede transformarse. Cabe señalar que
la condición de espectador no implica pasividad, ignorancia o
inmovilidad. Poner en cuestión estas equivalencias forma parte de un
movimiento emancipatorio que hace trastabillar el trazado de una
estructura de dominación y sujeción.
Mirar es también una acción que confirma o transforma
esta distribución de posiciones. El espectador también
actúa, como el alumno o el sabio. Observa, selecciona,
compara, interpreta. Relaciona lo que ve con muchas
otras cosas que ha visto en otras escenas, en otro tipo de
lugares. Compone su propio poema con los elementos
del poema que tiene enfrente. (Rancière, 2010, p. 19)
Allí reside la emancipación, en un modo de ver, de actuar, de
hablar y de escribir que delinea la propia capacidad de percibir las
líneas divisorias de un mundo partido/compartido y de retrazarlas o
de interrogar el trazado habitual. En ese retrazado, reconfiguración,
mapa de nuevas relaciones, narración en soledad y compartida de una
igualdad intempestiva, tal vez desestimada, se juega el trabajo político

319
maría beatriz greco

de educar. Ni saber acabado, ni ignorancia absoluta. El tiempo de la


emancipación es aquel que compone otro tiempo, apertura identitaria
de quien se pregunta y se arriesga.
Entonces, si la autoridad está hecha de saberes e ignorancia, cabe
preguntarse ¿qué sabemos cuando enseñamos? y ¿qué sabemos
cuando escribimos?. La respuesta no es lineal, porque no se trata de
saber o ignorar tal o cual conocimiento, sino de los modos de
vincularse con lo que vamos conociendo, con lo que buscamos, con lo
que aún no encontramos pero a lo que accedemos por aproximaciones,
tanteos, fragmentos; con lo que vamos siendo en la búsqueda,
explorando en nosotros/as mismos/as, recorriendo sin certezas
acabadas. Dicen Britos et al.:
(…) la narrativa ya no es la secuencia de vicisitudes que
se registraron en el desarrollo de un proyecto; lo que
este discurso tematiza es la experiencia de sí y de las
perspectivas y posibilidades de juego que cada
interpretación manifiesta. En este sentido narrar es
narrarse. El sujeto no puede ausentarse de este
movimiento. Al narrar-se, uno dice lo que conserva de
lo que ha visto de uno mismo. (…) La narrativa no habla
de las líneas que pueden coincidir con la ruta pre-vista
sino de lo que ha acontecido a lo largo de la marcha y
merece ser contado. Y este discurso tiene la
inestabilidad de la memoria, conserva algunos rasgos y
olvida otros que, quizás, en otra narración pueden ser
nombrados. (2002, p. 7)
Cuando enseñamos sabemos e ignoramos, a la vez, recordamos y
olvidamos, nos hacemos cargo de nuestras propias opacidades, al
igual que en la escritura. Tomamos la palabra y la asumimos como
propia, dando cuenta de una mirada singular. Enseñanza y escritura,
ambas, pueden ser formas de alterar la visión del mundo, de crear un
mundo dentro de otro, no sin incomodidades, desacuerdos, una
separación de sí o la apropiación de esa mirada extranjera de la
hablamos.
Dice Murillo Arango:
A la acción de narrar y a la acción de educar les es
común la transmisión de experiencia. El aula de clase es
el lugar privilegiado donde el alumno está en capacidad
de vivir la experiencia que ha de ser transmitida por un
maestro de experiencia. Un transmitir adherido a una
voz, vox –entendida en su sentido más amplio-(…) no se
pretende refrendar un discurso de dirección única que
resguarda la palabra omnisciente del maestro, sino más
bien afirmar la narrativa de experiencias como
fundamento epistemológico de la acción pedagógica.
Una acción que no se reduce a la mera transmisión de
información en el marco de un sistema de comunicación
(…) se trata de una dialéctica de escucha recíproca y de

320
figuras de la alteridad-autoridad-autorización entre filosofía y educación...

estar siempre abierto a lo otro que conlleva la exigencia


de estar dispuesto a la afectación desde el afuera y de la
consiguiente reflexividad sobre sí mismo (…) (2015, p.
12-13).
La (re)escritura puede constituirse, en ese sentido, como una de
las formas de “trabajar” esa búsqueda, una transmisión inacabada, un
disenso con el mundo de “lo dado”, trastocamiento, alteración,
pensamiento que se amplía o se desplaza des-identificando, re-
armando, haciendo lugar a lo que no tiene (aún) parte.

¿por qué narrar?

Hacerse adulto es quizá no preguntarse más de dónde se


viene, adónde se va, quién ser. ¿Alejar el pasado, apartar el
futuro? ¿Poner la Historia en lugar tuyo?
(Cixous, H., 2006, p. 29)

¿De qué modos, por qué vías, estrategias e interrupciones,


desplegamos un pensamiento que altere certidumbres en nuestras
prácticas, en nuestras aulas, escuelas o espacios formativos diversos?,
¿y cómo alterar sin perder el sentido del trabajo de educar? ¿qué (des)
articulaciones disciplinares generan las condiciones de un
pensamiento de la emancipación, hoy, en nuestro tiempo y lugar, en
nuestras prácticas docentes?
En tanto las prácticas se despliegan, crean formas posibles de ser
ensayadas una y otra vez, habilitando un saber-hacer pedagógico que
potencia lo que hacemos porque nos apropiamos de él; entonces, la
pregunta por aquello que impide su ritualización se formula con
fuerza.
¿De qué modos evitar que dejemos de ver con quienes
trabajamos –alteridades múltiples- y a nosotros/as mismos/as en ese
movimiento –los propios espacios de alteridad-?
El trabajo con uno/a mismo/a trata de un desplazamiento, el de
la creación de una incomodidad, de un desacuerdo consigo mismo,
una separación de sí que es la apropiación de esa mirada extranjera y
extrañada sobre el mundo, allí donde todo parece conducir a un
sentido único del régimen de presentación de las cosas y su
interpretación. La conceptualización de este disenso no constituye una
teoría y su método sino que se reconoce en efectos visibles e
imaginables, en paisajes y trayectos nuevos donde un proceso
subjetivo tiene lugar, en mundos puestos en relación de maneras
inesperadas, un mundo dentro de otro. Es ésta una práctica estética de
la igualdad, una práctica de la extrañeza igualitaria que pone en riesgo
el orden de lo social o representativo de la sociedad con el sello de la

321
maría beatriz greco

desigualdad. Es lo que constituye el sentido del relato, la narrativa de


una práctica que se reescribe a sí misma.
El relato, al desplazarnos y al hacernos vivir “dentro” de
una historia, autoriza y funda. Por él, decimos y él nos
hace decir lo que podemos o deseamos recrear en medio
de un conjunto de condiciones actuales. Al decirlo se
genera un territorio que antes no estaba. Abre un campo
porque recoge lo que viene siendo pero lo trastoca, se
anticipa a lo que puede ocurrir y lo hace, efectivamente,
ocurrir. (Greco, 2012, p. 122).
El territorio de lo educativo y las producciones académicas que
intentan explicar sus sentidos contemporáneos, las identidades
subjetivas que lo habitan en la actualidad y las fuertes
transformaciones que viven sus instituciones, tienden a menudo a
crear categorías o tipificaciones que pretenden ordenar lo que puede
aparecer como caótico y desestabilizador. Con frecuencia, estos
ordenamientos tranquilizadores encorsetan la mirada, sustituyen
subjetividades y relaciones en constitución por nomenclaturas
diagnósticas y etiquetamientos varios. Se reemplaza la experiencia
educativa que desborda lo conocido por categorizaciones de los
sujetos, sean estos docentes o estudiantes. Entonces, los relatos
educativos tienden a las divisiones que esencializan: “ellos” y
“nosotros”, “la escuela de antes” y “la de ahora”, “recuperar
autoridad” o “innovar”, sin más.
En lugar de relatos se escriben informes sobre el déficit que
dan a ver una forma explicadora donde se pierden los sujetos, sus
devenires incalculables y las experiencias en juego. Dice Arfuch:
Leer en la simultaneidad de esas formas, en su
heterodoxia, en la avasalladora búsqueda de la
presencia –el yo, el cuerpo, la voz, la persona, la
vivencia-, en la recurrencia de temas y motivos en los
más diversos registros del discurso social, un rasgo
sintomático de la subjetividad de nuestro tiempo. (2015,
p. 299)
Esta subjetividad requiere inscribirse en un tiempo histórico que
se halla en tránsito, por su actualidad y provisoriedad. El sentido de
educar demanda entonces ser revisado, reconfigurado, no abandonado
a su suerte. El ejercicio de autoridad que lo sostiene reclama nuevos
reconocimientos (Kojève, 2006), se multiplica, se vuelve heterogéneo,
singular y colectivo a la vez. De allí el requerimiento de (re)escrituras
que habiliten esas autoridades y las hagan transmisibles, identidades
narrativas que no pierden de vista “por y para quién se escribe”
(Arfuch, 2015, p. 302)
El presente trabajo da cuenta del diálogo entre
conceptualizaciones y experiencias relatadas en “escenas” con el fin de
resituar un modo de pensar la autoridad habilitante de otras formas
322
figuras de la alteridad-autoridad-autorización entre filosofía y educación...

posibles del vivir-juntos, en nuestro tiempo histórico y en el


reconocimiento de alteridades varias que conmuevan la propia
experiencia.

para finalizar temporariamente: ¿es la escritura un espacio de


emancipación, de “infancia del pensamiento” y de construcción de
otra forma de ejercicio de la autoridad?

Una autoridad emancipatoria e igualitaria recibe a otros que


llegan, les da la bienvenida y los aloja sin la certeza de un único lugar
habitable. Se hace cargo de una infancia del pensamiento, allí donde
no se trata de compensar una supuesta debilidad o carencia infantil –
una ausencia de palabra- ni de normativizar un desarrollo subjetivo
que corre el riesgo de desorganizarse o desviarse, sino de garantizar el
“aumento” de lo que aún no es, como lo señala Arendt cuando nos
recuerda que autoridad es “auctor, augere”, ser autor de un proceso y
aumentarlo, hacerlo crecer. Así, la infancia se presenta como tiempo
que no pasa, que continúa habitando en los procesos subjetivos de
todos/as –niños, jóvenes y adultos- generando la palabra, el acto
artístico, el gesto creador, la apertura del que aprende hacia lo que aún
no forma parte de sí. Y también del que enseña. Esta infancia, va de la
mano de una autoridad pensada como igualitaria, habilitadora,
“aumentadora”.
Una infancia que es lugar de comienzo, capacidad de inventar,
de dar nacimiento a lo que viene con las nuevas generaciones, no por
ellas sino con ellas, bajo el signo de la igualdad. Es así que alojar la
infancia en uno/a, adulto/a, maestro/a, profesor/a, es permitirse el
despliegue de una potencia de la palabra que no proviene sólo del
lado del niño/a, adolescente, estudiante. Es la palabra que nace
constantemente y que interrumpe la desigualdad. Otorga sentido
político al trabajo de educar.
La infancia –entonces- se vincula a la escritura, nos habita,
constituye nuestra posibilidad de discurso –y de enseñanza- nos
coloca en posición de igualdad con nuestros/as estudiantes, tengan
ellos/as la edad cronológica que tengan.
Ahora bien, esta posibilidad de una autoridad igualitaria en el
terreno educativo no se genera automáticamente ni emerge por fuera o
más allá de determinadas condiciones políticas, institucionales,
subjetivas y relacionales en los espacios donde se intenta que aparezca.
Demanda un trabajo de configuración singular y colectivo, político y
filosófico, a desplegarse en procesos de subjetivación no lineales y sólo
en parte visibles.
Dice Kojève (2006) que la autoridad está hecha de
reconocimiento, ni coerción, ni dominio, ni fuerza o sumisión: es
posible obligar a otro desde un ejercicio de poder pero eso no

323
maría beatriz greco

constituye autoridad. En tanto la autoridad está hecha de


reconocimiento, sólo puede ser otorgada por quien la recibe; es el/la
estudiante el que otorga autoridad a quien enseña y en el diálogo
asimétrico que establece, la reconoce y la instituye.
En ese sentido, la escritura habilita un reconocimiento de sí y de
otros/as, de una praxis educativa particular, de las acciones, gestos,
palabras, miradas, formas de enseñar y de dar a leer a otros/as que
conforman esas configuraciones de autoridad a las que nos referimos
en este escrito.
Si la autoridad se constituye en medio de las prácticas
educativas, a modo de configuraciones, escenas, acontecimientos, es
que demanda relatos, aquellos en los que se tejen sentidos: sujetos que
enseñan y aprenden, tiempos de lecturas, libros, pantallas, palabras,
escrituras diversas, relaciones pedagógicas que despiertan
sensibilidades, desencuentros, sorpresas, aperturas, enigmas.
Una autoridad del relato que no se da de una vez para siempre.
Que afortunadamente recomienza, cada vez, en el sentido arendtiano,
ya que en virtud de su acción narrada, el ser humano se hace sujeto
político.

referencias

Arendt, Hannah. (2005). La condición humana. Buenos Aires: Paidós.


Arfuch, Leonor. (2015). “Espacio biográfico, memoria y narración”. En Murillo
Arango, G. 2015. Narrativas de experiencia en educación y pedagogías de la memoria.
CABA: Facultad de Filosofía y Letras, UBA. (297-309)
Britos, María del Pilar, Silvina Baudino y Mónica Ugalde. (2002). Método y
juego. Experiencias de trabajo intelectual. Paraná, Cuadernos CEPCE-FCE-UNER.
Cixous, Hélène. (2006). La llegada a la escritura. Buenos Aires: Amorrortu.
Foucault, Michel. (2002). Hermenéutica del sujeto. Buenos Aires: FCE.
Greco, Ma.Beatriz. (2015). La autoridad (pedagógica) en cuestión. Rosario: Homo
Sapiens.
Greco, Ma. Beatriz. (2012). Emancipación, educación y autoridad. Buenos Aires:
Noveduc.
Kojève, Alexandre. (2006). La noción de autoridad. Buenos Aires: Nueva Visión.
Larrosa, Jorge. (2003). Entre las lenguas. Lenguaje y educación después de Babel.
Barcelona, Laertes.
Murillo Arango, Gabriel Jaime. Prólogo. Narrativas de experiencia en educación y
pedagogía de la memoria. Ciudad Autónoma de Buenos Aires. Facultad de
Filosofía y Letras. Universidad de Buenos Aires. Argentina. 2015.
Rancière, Jacques. (2014). El reparto de lo sensible. Estética y política. Buenos Aires:
Prometeo.
Rancière, Jacques. (2010). El espectador emancipado. Buenos Aires: Manantial.
Rancière, Jacques. (2003). El maestro ignorante. Cinco lecciones de emancipación
intelectual. Barcelona: Laertes.

324
um lugar para ensinar... filosofia?
uma proposta de ensino poético-filosófica.

andré luís borges de oliveira


cefet/rj
borgesandre@id.uff.br

o saber do ensino

O que é saber? Aqui, neste contexto, saber se equivale a


conhecer? Somente a palavra poética sabe de fato, ou outros dizeres
estão inseridos nesta dinâmica? Como ensinar a alguém a experiência
pela qual cada um precisa passar? Esses são os desafios que encaramos
neste trabalho. Sejam nas grandes obras até na mais simples palavra,
as mais variadas questões estão a provocar e a lidar com nossos
limites, rasgando nossa concepção habitual das coisas, ratificando
nossa sabedoria e deixando no caminho resquícios de um aprendizado
com gosto de sangue.
Curioso como a etimologia da própria palavra ensino nos dá
uma noção acerca disso. Ao tratar de ensino, o que queremos dizer?
Numa perspectiva que se comprometa a repensar o uso esgarçado das
palavras, revisitar sua etimológica pode ser bem profícuo. Ensino vem
de insigno, insignis, que, por sua vez, é formado por in-¹ + signum + -is¹
(GLARE, 1968, p. 858). O núcleo da palavra é signum, dele se originam
quase todos os sentidos que foram incorporados às demais formações,
chegando até o português com a palavra signo. O signum latino
relaciona-se com significados da visão, “uma marca escrita; a
impressão de um símbolo ou um pouco de cera onde porta essa
impressão; sinal visível de uma presença passada”; do ensino,
“alguma coisa percebida pela mente ou pelos sentidos cuja inferência
pode ser desenhada”; de marca, “emblema, símbolo; estandarte; uma
escultura, estátua ou imagem”; e até a ideia de movimento, “gesto ou
movimento usado para designar um sentido; manobra militar”
(GLARE, 1968, pp. 1759-1760 – tradução própria), aparece dentro das
possibilidades de compreensão de signum.
A partir dessa gama de significações, o que podemos refletir com
isso? Quais desses sentidos dizem respeito ao saber e ao conhecer? —
Todos, se for considerada a concretude dos sentidos. Não estamos
aqui interessados numa essência absoluta e, por isso, segregadora (isto
está “correto”, apenas isto), mas num vigor que traz à tona os sentidos
em turbilhão de experiências, constantemente a se revelar, harmonizar
e findar:
Nenhum sentido íntimo, nenhum além, atrás, para fora
da própria coisa. Ser uma coisa, esta coisa, é não ser
susceptível de outra interpretação, além desta que ela

327
andré luís borges de oliveira

necessariamente já é, para poder ser isso que é. Assim,


neste sentido, toda coisa, tudo, é, precisa ser singela,
franciscana superfície. Sim, os gregos foram superficiais,
muito superficiais – por profundeza, ‘aus Tiefe!’.
(FOGEL, 2007, p. 48 – grifos no original).
Isto significa que a marca de cera é só a marca de cera, sua
simplicidade não é conhecida nem vulgar (PESSOA, 2006, p. 61), mas
guarda dos homens curiosos o enigma da carta. É compreensível,
contudo, que um mero selo não seja fruto de enriquecedoras
discussões filosóficas. Dizemos mero, referindo-nos ao simples que é
grande porque convida à experiência singular, ainda que banal, com
aquela coisa: “O simples resguarda o enigma do que permanece e é
grande” (HEIDEGGER, 1983, p. 39 – tradução própria)124.
Outros sentidos, entretanto, não são tão simples e imediatos. Ao
menos corriqueiramente, concepções como a de emblema, símbolo e
estandarte remetem a estâncias fora do instante, isto é, representam
pela abstração algo que deveria, mas não está aqui. Dicotomicamente
falando, assumindo o risco que isso significa, podemos aferir que o
saber exige que a experiência com a coisa seja feita concretamente,
levando-se em conta as singularidades em questão e as limitações que
o agora impõe, enquanto que o conhecer significa uma experiência
abstrata e simbólica, permitindo categorias que facilitariam o trato por
pré-conceito, criando-se assim o hábito, o já visto e conhecido do fazer:
O símbolo, por definição, não é a própria coisa, mas
evocação, substituição ou representação da coisa
ausente. Representar, aqui, significa: estar no lugar de
ou passar por. Sim, substituir o ausente. E a palavra da
poesia, a palavra poética, i.e., instauradora ou
realizadora, que, por isso, é a palavra essencial, esta está
subdizendo o poema, não é símbolo, não é
representação ou evocação da coisa ausente, mas a
própria coisa, isto é, a própria presença. Portanto,
palavra poética não é recado, mensagem, aviso de nada.
O poeta não é moleque de recado! Não é instrumento,
mediação ou intermediação de nada. A palavra poética
é a própria coisa em sua plena, plenificada presença.
(FOGEL, 2007, p. 43 – grifos no original).
Não dicotomicamente falando, tanto o conhecimento quanto o
saber fazem parte da experiência com as coisas, são tão intrínsecos
como necessários: “o desaparecimento de preconceitos significa
simplesmente que perdemos as respostas em que nos apoiávamos de
ordinário sem querer perceber que originariamente elas constituíam
respostas a questões” (ARENDT, 1972, p. 223), cuja comunhão define a

124 Das Einfache verwahrt das Rätsel des Bleibenden und des Großen.

328
uma proposta de ensino poético-filosófica.

existência humana, seu modo de ser. Se, para cada passo, fosse preciso
uma reflexão, ninguém mais andaria. A tensão se desfaz quando se
perde no hábito a disposição de questionar, tudo se transformando em
conhecido ou conhecível, ou seja, esquecendo-se de que o passo sim é
uma questão a ser pensada, que sob o chão, supostamente seguro, jaz
o que não tem chão, o abismo, que andar é em si um risco à queda.
Algo, contudo, chama nossa atenção. Parece haver alguma coisa
no poema e em como ele lida com o saber e o conhecer que não se
restringe ao verso. O poético faz emergir o concreto da linguagem nas
palavras. Assim, o concreto manifesta, torna presente o saber no que
se vê. Isto que manifesta o saber das coisas sem necessariamente
conhecê-las encontramos sob o nome de alétheia. Cabe aqui uma
consideração sobre o que entendemos por alétheia e de que modo isso
pode nos ajudar a compreender o saber e o conhecer.
A concretude desse saber não é restrito ao poema escrito, nem
somente o poeta tem acesso a alétheia, à manifestação. Na relação com
a verdade que se apresenta concretamente, compreende-se que alétheia
é sempre a mesma, só que de modos diferenciados, e é justamente isso
que possibilita a singularidade dos caminhos:
Em Os trabalhos e os dias, portanto, Alétheia é dupla: é,
em primeiro lugar, a Alétheia das Musas que o poeta
profere em nome delas e que se manifesta no discurso
mágico-religioso, articulado à memória poética; em
segundo lugar, é a Alétheia que o labrador de Ascra
possui. ‘Verdade’ que, dessa vez, se define
explicitamente pelo ‘não esquecimento’ dos preceitos do
poeta. Entre as duas, não há diferença fundamental: é a
mesma Alétheia vista sob dois aspectos, ora em sua
relação com o poeta, ora em sua relação com o lavrador
que o ouve. Enquanto o primeiro a possui apenas em
virtude do privilégio da função poética, o segundo só
pode ganhá-la à custa de um esforço de memória. O
camponês de Ascra só conhece a Alétheia na ansiedade
de uma memória obsedada pelo esquecimento que
pode, repentinamente, ensombrecer-lhe a mente e privá-
lo da ‘revelação’ dos Trabalhos e os dias. (DETIENNE,
2013, pp. 27-28).
Podemos ver em Detienne que nem sempre verdade foi
sinônimo de certeza, isto é, oposição entre certo e errado e tentativa de
adequação do errado ao certo. Neste sentido, convém observar que
uma concepção de “posse” da alétheia não se refere a ter a propriedade
de um conhecimento. Nem o poeta, nem o camponês poderiam
possuir a verdade, pois ela não era um conhecer “possuível”. Somente
quando o saber torna-se capaz de ser possuído que ele se torna um
conhecimento, e um conhecimento inteligível. Isto porque o saber da
verdade era dos deuses, do real, os poetas apenas se dispunham a
ouvi-lo e, por conseguinte, a cantá-lo como lhes era possível.

329
andré luís borges de oliveira

O camponês, por sua vez, se detinha nas proximidades do


trabalho do poeta – e a isto talvez possamos chamar de posse – e dele
“pode ganhá-la [alétheia] à custa de um esforço de memória”
(DETIENNE, 2013, p. 28). Da mesma forma, ganhar alétheia confunde o
leitor quanto a seu caráter de não posse. Detienne, assim como todos
nós, está muito impregnado pela língua da ciência, logo mesmo ao se
referir ao que não é científico, faz ao modo da técnica moderna. Daí a
importância de ir aos fundamentos da língua, que não se trata de sua
origem cronológica, mas da aproximação às cercanias da linguagem,
ao que se diz inaudito no dito.
Por este viés, alongando um pouco mais a etimologia de ensino,
chegamos a seco + -num, a fim de que percebamos o tipo de saber que
originou o ensino, tradução de uma experiência concreta com a
linguagem. O Dicionário Oxford apresenta um significado etimológico
incerto da palavra signum (GLARE, 1968, p. 1759), formado com o
sufixo -num, neutro de -nus – um formador de palavras adjetivas, de
numerais distributivos e que também funciona como alargamento do
sentido (e.g. fortuna, tribunus) (GLARE, 1968, p. 1207) –, juntamente
com o radical seco:
1. Cortar com uma faca ou similar, cortar; 2. Cortar em
pedaços, fatiar, picar, recortar; 3. Cortar uma porção de;
destacar (uma parte) por meio de corte, remover por
corte, 4. Fazer uma incisão em, cortar, entalhar, etc.; 5.
Passar através de (água, ar, uma multidão, etc.) em
movimento rápido ou violento, fender um caminho
através de; também, sulcar (a terra) em lavoura,
mineração, etc.; 6. Formar ou abrir (uma trilha ou sim.)
por meio de corte. (GLARE, 1968, p. 1717 – tradução
própria).125
A incerteza que o Oxford coloca recebe mais um reforço com a
consulta a Pokorny (2007). Em ambos os casos, a relação entre seco e
signum não é segura enquanto origem e originado, mas parece haver
concórdia na proximidade de sentido entre ambos no que se refere à
marca, à “impressão” que causa. Correspondendo a uma interpretação
da etimologia interessada em ouvir o inaudito no dito, digo: se atendo
a um aceno de pensamento, posso supor que a marca do signum é um
corte seco que porta um saber à medida que rasga, criando assim um
limite visível e concretamente experienciado. Lidar com um saber que
rasga é fazer uma experiência com o concreto da palavra, causando

1251. To sever with a knife or similar, cut; 2. To cut in pieces, slice, chop, cut up; 3. To cut a
portion from; to detach (a portion) by cutting, cut off, 4. To make an incision in, cut, gash, etc.;
5. To pass through (water, air, a crowd, etc.) in rapid or violent motion, cleave a path through;
also, to cut into (the earth) in ploughing, mining, etc.; 6. To form or open up (a track or sim.)
by cutting.

330
uma proposta de ensino poético-filosófica.

sensações sim, mas também e principalmente, fazendo uma


experiência na e através das fronteiras da língua. Lá onde nos
aventuramos entre o que é e o não ser, onde o instante instaura
brevemente a verdade fugidia, o concreto se diz somente enquanto
experiência deste mesmo saber:
sēk̆ -2 – Significado em inglês: to cut; tradução para o
alemão: schneiden. Latim: secō, -āre ‘cortar, podar’,
segmen, segmentum ‘quebra, secção’ […]. Latim:
sī̆gnum, neutro, ‘marca, símbolo, sinal, indicação’, se
originalmente ‘marca entalhada’ (?); [...] Alto alemão
antigo: sega, saga. Europeu antigo: sagu, sage.
(POKORNY, 2007, p. 2660 – tradução própria).126
Este é, pois, o sentido de um saber que se encrusta na carne.
Nietzsche (1994, p. 56) já dizia que “de tudo o que se escreve, aprecio
somente o que alguém escreve com o próprio sangue [...] Aquele que
escreve em sangue e máximas não quer ser lido, mas aprendido de
cor”. Filosoficamente falando, apreciar, neste sentido, não se restringe
à opinião pessoal somente, mas diz também de uma entrega no que se
faz.
Ao afirmar uma oposição entre ler e aprender de cor há um
reconhecimento da experiência de um saber vivido, na medida em que
um conceitua e descreve, e outro que demarca um modo
sanguinolento de ser. Este sangrar traz ao ato a memória da verdade,
seja como valor moral, de vontade e de “querer”, seja por
simplesmente se dar de outra forma não dimensionável no falar sobre
algo, mas sim em dizer com algo. Quem condiz diz junto, ou seja,
convoca à participação sem ser arbitrário, convida a manifestar-se no
que se manifesta à medida da manifestação, que é o corte entre as
possibilidades de cada um e o impossível: aquilo sobre o qual não
exercemos posse, nem poder de possuir, mas que, por isso, nos
delimita e constitui: “Vai-se ao limiar sempre que se vai aos limites
[grifo no original]” (NIETZSCHE, 1967 – tradução própria)127.
Heidegger (2003) também, a seu modo, pensou este saber que
corta. No seu ensaio A linguagem, o pensador alemão interpreta o
poema Uma tarde de inverno128:
Na janela a neve cai,
Prolongado soa o sino da tarde.

126 sē̆k-2 – English meaning: to cut; deutsche Übersetzung: “schneiden” Lat. secō, -āre “cut,
clip, abschneiden”, segmen, segmentum “break, section” […]. Lat. sī̆gnum n. “mark, token,
sign, indication”, if originally “eingeschnittene Marke” (?); [...] O.H.G. sega, saga, O.E. sagu,
sage.
127 Man geht zu Grunde, wenn man immer zu den Gründen geht.
128 Ein Winterabend.

331
andré luís borges de oliveira

Para muitos a mesa está posta


E a casa bem servida.
Alguns viandantes da errância
Chegam até a porta por veredas escuras.
Da seiva bruta da terra
Surge dourada a árvore dos dons.
O viandante chega quieto;
A dor petrificou a soleira.
Aí brilha em pura claridade
Pão e vinho sobre a mesa.
(TRAKL, 2016. Tradução de Marcia Sá de Cavalcante
Schuback).129
Pela obra literária é construída uma compreensão filosófica da
dor, não restrita à certa negatividade. O verso central para tal
pensamento é o seguinte: “Schmerz versteinerte die Schwelle”, “A dor
petrificou a soleira”. A tradução para o português leva em conta a
sonoridade e o jogo imagético próprios da língua de destino sem faltar
com cuidado ao original. O esforço poético é visível; contudo, traduzir
é tanto caminho como descaminho de sentido, parte do que caracteriza
o poema em alemão se desdobra singularmente em português.
O verso fala de dor, Schmerz, em correspondência com a soleira,
Schwelle. Como o que dói, Heidegger (2003, p. 21) entende por: “A dor
é a junta articuladora no dilaceramento que corta e reúne. Dor é a
articulação do rasgo do dilaceramento. Dor é soleira. Ela dá suporte ao
entre, ao meio dos dois que nela se separam. A dor articula e traça o
rasgo da di-ferença. A dor é a própria di-ferença”. Na mesma instância
ontológica está a dor e a soleira, a dor e a di-ferença; o que isso
significa?
Em alemão, Schwelle também diz do limite, o limiar entre duas
coisas, como a soleira é a fronteira que separa o dentro do fora da casa.
Enquanto separa, instaura tanto a casa quanto a rua, como a não casa
ainda, a casa que virá. Sem soleira, rua e casa não teriam suas
singularidades mantidas, suas di-ferenças: “o termo ‘a di-ferença’ não
diz uma categoria genérica para várias espécies de distinções. A di-
ferença aqui nomeada é só uma. É única” (HEIDEGGER, 2003, p. 19).
Diferir não é deixar misturar, categorizar, mas fazer aparecer os
limites que definem e constituem; é emergir a unidade que se encontra
no “entre” de uma e outra coisa.

129Wenn der Schnee ans Fenster fällt, / Lang die Abendglocke läutet, / Vielen ist der Tisch
bereitet / Und das Haus ist wohlbestellt. // Mancher auf der Wanderschaft / Kommt ans Tor
auf dunklen Pfaden. / Golden blüht der Baum der Gnaden / Aus der Erde kühlem Saft. //
Wanderer tritt still herein; / Schmerz versteinerte die Schwelle. / Da erglänzt in reiner Helle /
Auf dem Tische Brot und Wein.

332
uma proposta de ensino poético-filosófica.

Dor e limite se fundem. Ambos dão fundamento um ao outro no


entre que os diferencia. O poema no original traz um jogo sonoro em
que essa relação correlata se mostra novamente. Tanto as palavras
Schmertz e Schwelle começam com o mesmo som, sch-, [ʃ], fricativo, ou
seja, com quase nenhuma interrupção de ar, seguidas de m-, [m] e w-,
[v], que, embora diferentes, ainda resguardam essa mesma
característica de som continuado. Sonoramente, dor e limite fluem
abertamente. Um introduzindo; o outro terminando – origem e
plenitude do verso pela dor e pela soleira, respectivamente.
Essa corrente de ar praticamente ininterrupta como janela aberta
tem, pois, sua quietude. Afinal, “a dor petrificou”; o limite, a soleira
para diante da dor. É marcada uma pausa, que não faz do limite igual
ao começo. O instante que demarca o quieto da fluidez constitui e
distingue as diferenças e identidades entre origem e fim, enquanto
plenitude. Em alemão, o verbo versteinern também começa com o tipo
de som fricativo v-, [f], para coincidir com o som anterior sch-, [ʃ];
todavia, seguido pela oclusiva -t-, [t], ou seja, onde há uma obstrução
parcial da saída de ar.
A construção sonora do verso é marcada por uma pausa entre
dois sons contínuos. Ali, onde dor e limite se encontram, há tanto
multiplicidade de um quanto unidade de vários – pausa e
continuação. Versteinern provém do substantivo Stein, pedra, uma
pedra que se interpõe entre dois acontecimentos de mundo, lembra-
nos de “no meio do caminho tinha uma pedra” (ANDRADE, 2013, p.
30). O verso tão conhecido de Drummond retoma em Georg Trakl a
tensão no embate causador de dor e de limite fundador. Trazer à
quietude da pedra é dar sentido ontológico tanto ao limite quanto à
dor:
A linguagem fala. Sua fala chama a diferença, a di-
ferença que des-apropria mundo e coisa para a
simplicidade de sua intimidade. A linguagem fala. O
homem fala à medida que corresponde à linguagem.
Corresponder é escutar. Ele escuta à medida que
pertence ao chamado da quietude. (HEIDEGGER, 2003,
p. 26).
Pelo ensino, pois, transita-se na marca. Via de acesso que traduz
uma experiência de des-conhecer, se as rédeas da imposição cedem
lugar à fronteira do pensar. Ali, as distâncias se estreitam,
proximidades não se tocam mais e o aprendiz se torna o mestre, afinal:
“mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende”
(ROSA, 2016, p. 213). Ensinar é estar na marca do pensamento; em
outras palavras, é aprender a estar no pensamento da marca, a saber,
atento a que o limite demarcante seja, assim como não seja. O
ensinamento sem aprendizagem é pobre de sentido, restringe-se à
informação de conteúdos pragmáticos. Radicalmente, ensinar significa

333
andré luís borges de oliveira

também não ensinar, à medida que dá espaço para que o outro (que
também sou eu) aprenda:
Formar é deixar o outro aprender, integrando no que ele
é, os limites do que ele não é [...]. Só quem realmente
sabe aprender, e somente na medida em que o sabe,
pode realmente ensinar [...]. Ensinar exige e impõe a
ascese de aprender; a ascese de constantemente assumir
tanto a ignorância quanto o saber do que já se sabe. Não
apenas aquele que já sabe tudo não pode nem aprender
nem ensinar. Também não pode quem não assumir o
saber de sua ignorância, quem não reconhecer que sabe
alguma coisa. (LEÃO, 1977, p. 49).

não ensinar e a ciência

Nesta dimensão, não ensinar é uma prerrogativa. O que não


quer dizer faltar com as suas responsabilidades enquanto professor,
enquanto pais ou enquanto sociedade. Não ensinar está comumente
relacionado com negligência. Isso tem pouco a ver com o pensamento
do ensino e mais com o que se espera de determinadas funções e
papéis sociais. Não ensinar se refere, diversamente, ao compromisso
com seu desconhecimento, impossibilidade de que algo seja dito – pois
não se sabe – e tendo cuidado com o conhecimento, já que mesmo no
dito há o não dito, o não controle do que será compreendido.
Entretanto, parece que nos atuais tempos esta é uma decisão
estranha de se tomar. Já causa estranhamento não ensinar sem optar
por isso. Ou seja, não detendo todas as variáveis e circunstâncias,
falhamos ao passar um determinado conteúdo, seja este técnico,
cultural ou moral. Diferente é, pois, “escolher” não ensinar. Aceitar
que faz parte do processo o equívoco, a falta e o improviso.
Reconhecer a ponta solta, o dígito errado, o ponto fora da curva e não
fazer nada a respeito.
Um estranhamento que condiz com uma sociedade tecnicista, na
qual o ensino serve aos propósitos da aprendizagem. Sistemas pré-
programados demandam o cumprimento de tarefas. Logo, é
conveniente a transmissão do que fazer para o desempenho esperado.
Não só isso, mais do que fazer, advém o como fazer, cuja resposta
procura constantemente por um melhor desempenho: produzir mais a
menor custo, ou mais por menos tempo, o que costuma coincidir.
Este aspecto performático que se dedica a se superar
ininterruptamente não pode permitir o não ser. Como num teatrinho
de marionetes, tudo está sob controle ou se acredita que esteja. Da
filosofia à mesa de bar, das salas de aula aos hospícios, nossa
sociedade se vê como peças de um quebra-cabeça que pode ser
solucionado. Quem monta as peças é o homem, quem diz que as peças
são montáveis é a ciência, pois ela é “a teoria do real” (HEIDEGGER,
334
uma proposta de ensino poético-filosófica.

2006, p. 40). Aqui, para pensar a palavra teoria, referimo-nos tanto ao


sentido de “conjunto de regras ou leis, mais ou menos sistematizadas,
aplicadas a uma área específica” (HOUAISS, 2009, Teoria), quanto à
etimologia, a qual significaria ação de ver, observar, testemunhar,
“enviando θεωροί ou embaixadores de Estado aos oráculos ou jogos,
ou, coletivamente, os próprios θεωροί, embaixada, missão” (LIDDELL;
SCOTT,1940, Θεωρία – tradução própria)130.
Diversas palavras gregas podem ser traduzidas por “ver” ou
“pôr-se a observar”. Ainda assim, diferentes nomeares sugerem
diversos modos de o próprio compreender o real: “o pensamento,
dócil à voz do ser, procura encontrar-lhe a palavra através da qual a
verdade do ser chegue à linguagem” (HEIDEGGER, 1979a, p. 51).
Neste sentido, observa-se nas palavras gregas θέα e ὁράω o campo
semântico de ver, olhar; entretanto, esse mesmo étimo pode ser lido
com acentuações diferentes, θεά, feminino de θεός, “deusa, divindade”,
e ὤρα, “cuidado” (LIDDELL; SCOTT, 1940)131. Temos, pois, um
convite. Fomos convidados a ver também em teoria a palavra θεωρία,
como um cuidado sagrado, o divino em todo cuidar, ou, ainda, “ora,
foi, como deusa, que ἀλήθεια apareceu ao pensador originário
Parmênides. [...] Em sentido antigo, isto é, originário mas de forma
alguma antiquado, a teoria é a visão protetora da verdade [grifo no
original]” (HEIDEGGER, 2006, p. 46)132.
O real para muitos povos antigos eram os próprios deuses se
manifestando. Esta era “sua” verdade, “seu” mundo. Um possessivo
que não traduz da posse como estamos habituados. Não havia a

130 Sending of θεωροί or state-ambassadors to the oracles or games, or, collectively, the θεωροί
themselves, embassy, mission. Disponível em:
<http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3Atext%3A1999.04.0057
%3Aentry%3Dqewri%2Fa>. Acesso em: 13 out. 2016.
131 Cf. Θέα. Disponível em:
<http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3Atext%3A1999.04.0057
%3Aentry%3Dqe%2Fa2>. Acesso em: 14 set. 2016.
Cf. Θεά. Disponível em:
<http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3Atext%3A1999.04.0057
%3Aentry%3Dqea%2F1>. Acesso em: 14 set. 2016.
Cf. Ὁράω. Disponível em:
<http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3Atext%3A1999.04.0057
%3Aentry%3Do(ra%2Fw>. Acesso em: 14 set. 2016.
Cf. Ὤρα. Disponível em:
<http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3Atext%3A1999.04.0057
%3Aentry%3Dw)%2Fra>. Acesso em: 14 set. 2016.
132 Cf. Ἀλήθεια. Disponível em:
<http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3Atext%3A1999.04.0057
%3Aentry%3Da)lh%2Fqeia. Acesso em: 14 set. 2016.

335
andré luís borges de oliveira

verdade de cada um, embora todos fizessem uma experiência com a


verdade singularmente. Isto porque, para os antigos, a verdade era
múltipla e diversa. Diferentemente de nossa concepção atual de
verdade, regida pela ciência, pedras, animais, pessoas próximas e
inimigos eram a verdade, pois a própria presença desses seres
constituía sua veracidade, “prova” cabal da doação de existência de
um deus. A verdade é sempre verdade dos deuses, seja quem for que a
proferir:
Os indo-iranianos têm uma palavra comumente
traduzida por Verdade: Rta. Mas Rta é também a prece
litúrgica, o poder que garante o retorno das auroras, a
ordem estabelecida pelo culto aos deuses, o direito,
enfim um conjunto de valores que estilhaçam nossa
imagem da verdade. (DETIENNE, 2013, pp. 1-2).
Isso significa que a compreensão de oposição entre verdadeiro e
falso não era possível, visto que o que se manifesta, seja bom ou ruim,
tem um sentido de ser que remete ao sagrado. Sendo atribuída ao
artífice divino, a verdade jamais poderia ser possuída, no sentido de
controlada; apenas se convive em sua cercania, não havendo
possibilidade de cercá-la, cerceando-a ao uso a bel-prazer. Desse
modo, as diferenças são apenas outras manifestações da mesma
verdade sagrada. Seu e sua são possessivos que não indicam posse,
mas apropriação, é o ser no mundo em sua limitação fundadora:
Sua ‘Verdade’ é uma ‘Verdade’ assertórica: ninguém a
contesta, ninguém a demonstra [...], Alétheia não é a
concordância entre a proposição e seu objeto, tampouco
a concordância de um juízo com os outros juízos; não se
opõe à ‘mentira’; não há ‘verdadeiro’ em face do ‘falso’.
A única oposição significativa é entre Alétheia e Léthe
[grifos no original]. (DETIENNE, 2013, p. 29).
[...]
Não há de um lado Alétheia (+) e do outro Léthe (-), mas
entre esses dois polos se desenvolve uma zona
intermediária em que Alétheia desliza para Léthe e vice-
versa. A ‘negatividade’, portanto, não está isolada,
apartada do Ser; ela orla a ‘Verdade’, é a sua sombra
inseparável. As duas potências antitéticas não são, pois,
contraditórias, mas tendem uma à outra; o positivo
tende ao negativo, que, de certo modo, o ‘nega’, mas
sem o qual não se sustenta [grifos no original].
(DETIENNE, 2013, pp. 77-78).
Para nós da modernidade, real é o mundo que vemos ou
podemos ver, controlar, cujo descobrimento torna-se sinônimo de
confirmação de uma teoria. A compreensão do mundo se dá à medida
que o vemos, e nossa visão é guiada pela ciência, no sentido de que
damos existência à realidade ao dispor cada peça em seu lugar. A isto

336
uma proposta de ensino poético-filosófica.

chamamos conhecer, categorizar o real à mercê do que podemos


apreender dele. Em contrapartida, o que não podemos conceituar não
tem valor de existência, simplesmente não é “real”, é “fictício”, é
“imaginação”; não é verdade, mas mentira. Ao aderir à concepção de
opostos subentende-se a ideia de norma, padrão – há o que é e o que
não é, distinção claramente determinável: quando coincidente, correta;
quando divergente, corrigível:
A ontologia perde sentido em detrimento do que é claro,
evidente, prático, objetivo, útil, enfim, do que é capaz de
levar a algum lugar, ainda que esse lugar possa não ser
exatamente o lugar mais desejável. Não importa. O
importante é que seja algum lugar. A questão ontológica
passa, ao longo do desenvolvimento da Cultura
Ocidental, a ser considerada perda de tempo. (JARDIM,
1995, p. 16).
Exige-se que se encaixe. Como reconhecer o não ensinar se não
se pode classificar o que não é? Não tem clareza, falta utilidade no não
ser. Qual a validade de não ensinar para um médico, um advogado?
Como não ensinar a uma criança, tão em tenra idade e desprotegida?:
“Perdem-se no vazio considerações sobre o modo como se poderia
levar a agir sobre a vida cotidiana e pública de modo efetivo e útil, o
pensamento ainda e apenas metafísico” (HEIDEGGER, 1979b, p. 58). A
pergunta aqui versa a respeito de uma vontade; mesmo que seja
vontade de cuidar, ainda assim é um desejo pelo ente antitético ao ser,
circunstância de realização do ser que foi, que é ou que será, como se
instâncias discerníveis fossem. Busca-se por uma postura de solução
de problemas, resolução de conflitos, sem se dar conta de que a tensão
é a própria condição de existência, no embate entre o nada e o ser:
Um dos lugares fundamentais em que reina a indigência
da linguagem é a angústia, no sentido do espanto, no
qual o abismo do nada dispõe o homem. O nada,
enquanto o outro do ente, é o véu do ser. No ser já todo
o destino do ente chegou originariamente à sua
plenitude. (HEIDEGGER, 1979a, p. 51).
A questão é como agir diante do que se aquieta, como o ente
chega a ser se antes e fundamentalmente ele não é. Chegar à plenitude
na origem se contradiz com a ideia da construção de um conhecimento
que se inicia insipiente e finaliza-se douto pelo acúmulo de
informações. Isto porque não nos referimos à origem como começo,
muito menos à plenitude como fim, aqui se diz respeito ao
movimento. Ir a algum lugar é sempre chegar de um lugar, de modo
que, esta concepção de saber é estar nesta dinâmica de partida e
chegada, de ser e estar, do nada e do ente, de origem e de plenitude.
Ora, afirmamos que o não ensinar, imerso na senda do pensar,
nada diz respeito ao descuido com o outro, mas neste embate entre
ensinar um conteúdo e deixar o ensino seguir seu curso de

337
andré luís borges de oliveira

aprendizagem e vazio, quanto mais se aceita como vital uma função,


maior serão as garras do controle. Seja por teorias sempre novas, seja
por soluções à disposição, o importante é sanar quaisquer dúvidas, ter
sempre algo a dizer e muito, muito a ensinar: “A carga –
inevitavelmente? – normativa do saber pedagógico acaba muitas vezes
por bloquear a experiência da infância [grifo no original]” (BÁRCENA,
2010, p. 9; tradução própria)133.
Quem detém o dizer dita as regras. Diferentemente de impor a
vontade por força física, controla-se o dizer, que é o saber vigente,
dominante e aceito. A palavra que sabe, que é científica, diz o que é,
exercendo um controle dos corpos sem ao menos tocá-los literal, mas
radicalmente: “já não se trata de pôr a morte em ação no campo da
soberania, mas de distribuir os vivos em um domínio de valor e
utilidade” (FOUCAULT, 1988, p. 157).
Ocorre uma inversão radical: a ciência diz o que é. A ciência
deixa de ser uma dentre tantas, para tornar-se a deliberação
fundamental da existência: “o homem – um ente entre outros – faz
‘ciência’. Neste ‘fazer’ ocorre nada menos que a irrupção de um ente,
chamado homem, na totalidade do ente, mas de tal maneira que, na e
através desta irrupção, se descobre o ente naquilo que é em seu modo
de ser” (HEIDEGGER, 1979c, p. 36). Os filhos desse mundo serão crias
científicas, homens que veem no mundo somente um espelho de si.
Daí o predomínio do indivíduo, da vontade, pois se tudo é um reflexo
de nós mesmos, basta esticar a mão e apanhar. O que não nos serve
não é, não nos vemos, logo, desprezamos. Ciumento é o deus-ciência,
que não permite adorações alheias.
A ciência é a segurança do pensamento, isto é, o que há de
inofensivo sem ser inocente. Seguro pelas contas está o próprio pensar
que se fia na lógica infalível ou na estatística mais aceita por todos.
Quando o real é domado, ele se torna conhecido; a este papel se presta
a ciência: “o pensamento calculador submete-se a si mesmo à ordem
de tudo dominar a partir da lógica de seu procedimento”
(HEIDEGGER, 1979a, p. 50). Nestas categorias se constitui a
interpretação do ser sem se perceber que são as mesmas categorias,
partes da possibilidade de categorizar. A essa multiplicação de
chances, apreensões e aprendizagem nomeia-se pelo que origina o
cálculo e o encerra em seu destino, sua derradeira conta, o incalculável
em todo calcular.

133La carga – ¿inevitablemente? – normativa del saber pedagógico acaba muchas veces por
bloquear la experiencia de la infancia.

338
uma proposta de ensino poético-filosófica.

referências

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Letras, 2013.
ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Editora Perspectiva,
1972.
BÁRCENA, Fernando. Prefacio. La singularidad de la infancia. In: SILVA, Léa
S. Pinto; LOPES, Jader J. M. (Org.). Diálogos de pesquisas: crianças e infância.
Niterói: EdUFF, 2010.
DETIENNE, Marcel. Mestres da verdade na Grécia arcaica. São Paulo: WMF
Martins Fontes, 2013.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de
Janeiro: Edições Graal, 1988.
GLARE, P. G. W. et alii. Oxford Latin Dictionary. Oxford: Oxford University
Press, 1968.
HEIDEGGER, Martin. Que é metafísica?: posfácio (1943). In: Os pensadores. São
Paulo: Abril Cultural, 1979a.
________. Que é metafísica?: introdução (1949). In: Os pensadores. São Paulo:
Abril Cultural, 1979b.
________. Que é metafísica?: preleção (1929). In: Os pensadores. São Paulo: Abril
Cultural, 1979c.
________. Der Feldweg. In: Denkerfahrungen. Alemanha: Vittorio Klostermann,
1983.
________. A caminho da linguagem. Petrópolis: Vozes 2003.
________. Ensaios e conferências. Petrópolis: Vozes, 2006.
HOUAISS, Antônio. Dicionário da língua portuguesa. Dicionário eletrônico
Houaiss da língua portuguesa. Versão 3.0. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.
JARDIM, Antônio. A dimensão poética no contexto hegemônico da técnica.
Interfaces, a, V, v. N. 6. UFRJ-CLA, Rio de Janeiro, 1995.
LEÃO, Emmanuel Carneiro. Aprendendo a pensar. Petrópolis, RJ: Vozes, 1977.
LIDDELL, Henry George; SCOTT, Robert. A Greek-English Lexicon. Inglaterra:
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<http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3Atext%3A1999.0
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NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Posthumous Fragments: NF-1887, 11[6]. In:
Digital critical edition of the complete works and letters. Alemanha, EUA: Gruyter,
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1887,11[6]>. Acesso em: 04 out. 2016.
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PESSOA, Fernando. Poemas completos de Alberto Caeiro. São Paulo: DCL, 2006.
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339
andré luís borges de oliveira

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TRAKL, Georg. Ein Winterabend. In: Projekt Gutenberg. Disponível em:
<http://gutenberg.spiegel.de/buch/georg-trakl-gedichte-5445/67>. Acesso
em: 04 out. 2016.

340
roda de conversa e exercício do pensamento: uma aposta
experienciada com o pibid/unirio.

evelin sousa da silva


unirio
evelin_sousa@hotmail.com
renata alves
iserj; unirio
renataalvessmartins@gmail.com

Se realmente queres conhecer como se anda de bicicleta, sobe


nela pedala, cai, arranha as pernas, contradiz as brisas de
setembro. Se queres amar, não tente desistir diante da
impetuosidade da primeira leve ferida. Se vai falar da terra,
afunda-te na fronteira mais tempestuosa e distante. Se vais
falar de outro homem, escuta-o.
Carlos Skliar, 2015

introdução

Assumir a escrita de um texto implica estar em contato com


possíveis diversas inquietações que nos assombram e que estão
guardadas em algum lugar dentro de nós. Dizer algo - pensamentos,
sentimentos, experiências - por meio da palavra escrita não nos parece
confortável, porque nos coloca no crivo de julgamentos daquelas e
daqueles que irão ler aquilo que optamos por compartilhar;
julgamentos estes que se fundam a partir de dados pontos de vista,
relacionados a modos variados ser e estar no mundo.
Assim, tecer este texto não nos foi algo fácil nem simples, isto
porque, ao pensarmos na escrita de um texto científico, ainda somos
tomadas por um modo de dizer de um lugar que pressupõe
afastamento daquilo que foi motivador para a escrita. No entanto, a
tessitura deste texto indica a possibilidade de viver uma experiência
outra com a escrita.
Pretendemos, portanto, por meio da narrativa de algumas ações
vividas com o PIBID/ UNIRIO e com crianças no cotidiano escolar da
Educação Infantil do Colégio de Aplicação do Instituto Superior de

341
evelin sousa da silva; renata alves

Educação do Rio de Janeiro (Cap/ISERJ)134, pensar movimentos que


busquem compreender a roda de conversa como uma possibilidade de
aproximação com o exercício de movimentar o pensamento, uma
perspectiva que tem na filosofia uma potência para viver uma relação
outra com o tempo e com o pensamento.

pibid/unirio: programa de formação docente potente no movimento


de aproximação entre escola básica e universidade

O Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência


(PIBID) é um programa do Governo Federal promovido pela
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES) que proporciona ao estudante de licenciatura a entrada na
escola básica. Segundo a CAPES, no edital nº 061/2013, que finalizou
em 28 de fevereiro de 2018:
O Pibid é uma iniciativa para o aperfeiçoamento e a
valorização da formação de professores para a educação
básica.
O programa concede bolsas a alunos de licenciatura
participantes de projetos de iniciação à docência
desenvolvidos por Instituições de Educação Superior
(IES) em parceria com escolas de educação básica da
rede pública de ensino.
Os projetos devem promover a inserção dos estudantes
no contexto das escolas públicas desde o início da sua
formação acadêmica para que desenvolvam atividades
didático-pedagógicas sob orientação de um docente da
licenciatura e de um professor da escola. (CAPES,
2008)135
O programa visa a uma relação direta do estudante de
licenciatura com a escola básica, proporcionando maior possibilidade
de conversa entre a esta e a universidade. Alguns dos objetivos,
conforme a CAPES são:
Incentivar a formação de docentes em nível superior
para a educação básica;
Contribuir para a valorização do magistério;
Incentivar escolas públicas de educação básica,
mobilizando seus professores como coformadores dos
futuros docentes e tornando-as protagonistas nos
processos de formação inicial para o magistério; e

134 Escola da Rede Faetec (Fundação de Apoio à Escola Técnica do Rio de Janeiro),
vinculada à Secretaria Estadual de Ciência, Tecnologia e Inovação.
135 Para maiores informações acesse o site da CAPES:
<http://www.capes.gov.br/educacao-basica/capespibid/pibid>

342
roda de conversa e exercício do pensamento: uma aposta experienciada com ...

Contribuir para a articulação entre teoria e prática


necessárias à formação dos docentes, elevando a
qualidade das ações acadêmicas nos cursos de
licenciatura. (CAPES, 2008).
Na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO),
no edital nº 061/2013, o PIBID se dividia entre sete cursos, a saber:
Ciências da Natureza, Filosofia, Interdisciplinar, Letras, Música,
Pedagogia à Distância e Pedagogia Presencial (dividindo-se em
Educação Infantil, Ensino Fundamental I e Formação de Professores
de nível Médio).
O PIBID de Pedagogia/ Educação Infantil era composto por
quatorze estudantes de Pedagogia, uma professora coordenadora da
universidade e duas professoras supervisoras da escola básica. Era
realizado na Educação Infantil, 2ª etapa, do Instituto Superior de
Educação do Rio de Janeiro (ISERJ), uma escola vinculada à rede de
Fundação de Apoio à Escola Técnica (FAETEC), da Secretaria de
Estado de Ciência, Tecnologia e Inovação do Rio de Janeiro. O
instituto atende desde a Creche ao Ensino Superior, com o curso de
Pedagogia e também, com cursos técnicos de nível médio.
O PIBID teceu significados muito importantes em nossa
formação. Ao longo de quatro anos, vivenciamos experiências únicas
que só foram possíveis de serem vividas por conta do PIBID. À
medida que vivenciávamos estas experiências, a compreensão sobre a
educação pública e o fazer docente foram sendo ressignificados.
Em nosso grupo, a partir da concepção que perseguimos de
formação docente, conectada às experiências e enquanto experiência,
compreendemos que o PIBID proporciona aos estudantes bolsistas a
iniciação à docência, pois é no fazer cotidiano que redes vão sendo
tecidas e conhecimentos construídos. Participar cotidianamente de
uma sala de aula com crianças e professoras possibilita ao estudante
um mundo outro.
Neste grupo, trabalhávamos com alguns princípios que
referenciam nossa prática: a alteridade, o estar presente, a experiência,
o acontecimento e a aproximação das infâncias. Buscamos uma prática
que valorize o diálogo, reconhecendo a criança e o outro como
“legítimo outro” (MATURANA, 1997) e o cotidiano escolar como
espaçotempo136 de produção de conhecimentos e espaço privilegiado de
formação docente.

136 Em nosso grupo de pesquisa, Grupo de Pesquisa: Práticas Educativas e Formação

de Professores (GPPF/UniRio), optamos pela escrita diferenciada de algumas


palavras, alicerçados em Regina Leite Garcia e Nilda Alves, para quem o princípio da
juntabilidade concede sentido e significado diferentes dos usuais, quando de sua
separação: saberfazer, espaçotempo, aprenderensinar etc. Essa postura dialoga com um

343
evelin sousa da silva; renata alves

É a partir dessa perspectiva que vamos desconstruindo essa


lógica dicotômica entre teoria e prática e vamos nos desafiando como
aluna-pesquisadora e professora-pesquisadora que pesquisa a própria
formação. Percebemos que o fazer docente ganha proporções
diferentes quando compreendemos que práticateoriaprática é um
movimento circular no qual não há começo e fim. Estar inserida no
cotidiano escolar e ter oportunidade de estudar e pesquisar permite
que entendamos melhor nossa prática a partir do que vivenciamos e
experienciamos, encontrando nos pequenos gestos cotidianos vestígios
que nos dão pistas de como podemos compreender o que é ser
professora e como potencializar nossa própria formação.
A partir da circularidade entre práticateoriaprática, a experiência
recebe outro significado, pois a experiência é o que nos passa, o que nos
acontece, o que nos toca. (LARROSA, 2002, p. 21), ou seja, a experiência é
produção de sentidos.
Diariamente vivemos muitas coisas, muitos acontecimentos nos
circulam, muita informação chega até nós, mas o nosso desafio com o
PIBID era aprender a redirecionar o olhar para os “gestos mínimos”
(SKLIAR, 2014) do cotidiano que vão tecendo significados outros e nos
possibilitando experienciar coisas novas.
Com Jorge Larrosa (2008), aprendemos que perceber esses
pequenos gestos diários exige estar presente, ter atenção, que é o
oposto de estar ausente. A atenção se relaciona com o cuidado, com a
escuta e com a espera, ou seja, estar atenta é não estar ausente, é ter
cuidado, é escutar o outro, é se permitir estar em uma temporalidade
de espera que é diferente de uma temporalidade de intencionalidade
que é fechada e, portanto, traz consigo uma impossibilidade de
surpresa.
Estar presente significa nos tornarmos sujeito da experiência, e o
sujeito da experiência “seria algo como um território de passagem,
algo como uma superfície sensível que aquilo que acontece afeta de
algum modo, produz alguns afetos, inscreve algumas marcas, deixa
alguns vestígios, alguns efeitos” (LARROSA, 2002, p. 24), permitindo-
nos ser afetadas pelos acontecimentos e estarmos abertas a estas
possibilidades.

movimento que vem ganhando força no campo das pesquisas com os cotidianos, onde
a justaposição de termos hegemonicamente separados é pensada como uma
possibilidade de cindir com a dicotomização tão cara à ciência moderna: bom/ruim,
ordem/caos, saber/não-saber etc.

344
roda de conversa e exercício do pensamento: uma aposta experienciada com ...

roda de conversa: possibilidade de movimentar o pensamento

Na história da nossa educação, a subalternização do outro,


enquanto estudante, é evidente no processo de ensino-aprendizagem,
colocando-o no lugar daquele que não sabe, portanto inferior ao
professor que, nesta perspectiva, é compreendido como o detentor do
saber (FREIRE, 1996). Uma relação vertical se estabelece, uma
educação pautada no ensino transmissor que vê a criança como um
receptor de conteúdos. Esta perspectiva, segundo Rancière (2011, apud
SAMPAIO; RIBEIRO; HELAL, 2013), se pauta na “ordem da
explicação”, que tem como pressuposto as desigualdades das
inteligências que se valora na:
Compreensão de que alguém saberia mais do que outro,
ou, mais ainda, de que alguém sabe o que o outro não
pode saber por si mesmo, justifica-se uma ‘transferência’
do conhecimento de um para outro. Trata-se, portanto,
da pressuposição da ignorância do sujeito, de sua
incapacidade de descoberta e, portanto, da necessidade
de outro que o guie. (SAMPAIO; RIBEIRO; HELAL,
2013, p. 162).
No movimento de romper com essa perspectiva hegemônica de
educação, buscamos um novo modo de pensar e praticar o
aprenderensinar a partir de alguns princípios teóricos, éticos e políticos
que foram orientando nossa prática ao longo dos quatro anos no
PIBID: partilha, horizontalidade, igualdade, afetividade e alteridade.
Deste modo, acreditamos na conversa, “compreendida como
forma de narrativa” (RIBEIRO; SAMPAIO; SOUZA, 2016), de maneira
formativa, como um espaçotempo que se abre para a escuta e para a
legitimação do outro. Acreditamos que a partir da conversa nos
abrimos a escutar o pulsar do outro em sua alteridade e, desta
maneira, escutamos também a nós mesmos, pois é na troca com o
outro que vamos nos formando, que vamos tecendo relações outras
com nossos saberes e ideias. Isto porque:
Ao estranhar o outro, suas ideias e concepções, na “ida a
ele”, também podemos entrar em contato com nossas
próprias ideias e aprender, estranhar-nos. Enfim, um
movimento no qual o pensamento floresce. E, para que
esse pensamento ocorra, é preciso parar, deter-se,
escutar a si e ao outro. (RIBEIRO; SAMPAIO; SOUZA,
2016, p.140)
A Roda de Conversa é significativa em nossa prática, pois
visibiliza concepções que perseguimos, como a horizontalidade e a
igualdade. A roda possui um formato que possibilita que todos se
olhem igualmente, sem que haja distinção entre as pessoas que nela
estão, facilitando a troca e a interação.

345
evelin sousa da silva; renata alves

Desta maneira, a Roda de Conversa foi uma prática presente em


nossas reuniões de estudo do PIBID e, na busca por conhecer os
modos como as crianças pensam e vivem no mundo em que habitam,
nos desafiamos a viver com as crianças, frequentemente por meio das
rodas de conversa, uma relação outra, mais filosófica, de aproximação
com as infâncias.

Infâncias no movimento de pensar... Pensar com infâncias...

Na busca pela aproximação com as infâncias, nos propomos a


pensar a infância a partir de outras temporalidades. Na Grécia antiga,
havia mais de uma palavra para nomear o tempo: Chrónos, Kairós e
Aión. O Aión é a maneira como medimos o tempo a partir de fatos que
são sucessivos, nos localizando através de horas e datas. Já Kairós está
em outra lógica, em uma temporalidade de oportunidade. “Uma
terceira palavra é Aión que designa, já em seus usos mais antigos, a
intensidade do tempo da vida humana, um destino, uma duração,
uma temporalidade não numerável nem sucessiva, intensiva.”
(KOHAN, 2004, p. 54).
Pensar a infância a partir da temporalidade Aión nos possibilita
compreendê-la como uma temporalidade da intensidade, e não
somente como um período de tempo da nossa existência. “É a infância
como intensidade, um situar-se intensivo no mundo; um sair sempre
do “seu” lugar e se situar em outros lugares, desconhecidos,
inusitados, inesperados.” (Idem 2004, p. 63).
Nessa relação de infância e tempo, encontramos ainda outros
dois modos de temporalidade descritos por Deleuze (2008): a história e
o devir. A história relata os acontecimentos, está inserida na
temporalidade através de uma continuidade assim como o Chrónos,
enquanto devir é acontecimento e se insere em uma temporalidade
descontínua. Assim como Áion, o devir é experiência que interrompe a
história.
Existem, portanto, dois modos muito fortes de entender a
infância: a cronológica, que segue uma sucessividade e historicidade,
pois seremos crianças, jovens, adultos; e uma segunda infância, que se
encontra nessa outra temporalidade, como acontecimento, experiência
e criação. Ambas existem e uma não anula a outra. Elas se habitam.
A infância como devir é experiência! Nessa infância se cria,
recria, brinca, corre, rodopia, pensa, fala, questiona, acontece. Assim,
em meio a uma brincadeira com letras de plástico, Pedro Henrique,
com 5 anos, encontra um ponto de interrogação e, com uma expressão
corporal e oral de alegria e descoberta, procura a professora e fala:
- Tia! Olha o que eu achei!

346
roda de conversa e exercício do pensamento: uma aposta experienciada com ...

A professora deixa de lado o que estava fazendo, olha para Pedro Henrique,
sorri e fala:
- O que é isso, Pedro?
- É de pensar! - respondeu Pedro Henrique, sorrindo e quase gritando.
O modo como Pedro Henrique demonstrou se interessar pelo
ponto de interrogação deixou outras crianças também curiosas a
respeito de um símbolo que desconheciam. Surgiram várias perguntas
acerca deste símbolo. A professora colocou-se num movimento de
estar atenta às perguntas que foram surgindo, mas o tempo
cronológico escolar impossibilitou que uma conversa acontecesse
naquele momento de intensidade que começou a se instaurar na sala.
Era hora da saída e, momentaneamente, o assunto estava encerrado...
A descoberta do ponto de interrogação foi um acontecimento, ou
seja, algo que não estava planejado, que não estava dado, que surgiu a
partir das necessidades e interesses das crianças e que, ao nos
abrirmos para vivê-lo, podemos pensar e aprender com ele. Ainda nos
parece ser difícil abrir mão de uma relação com o saber pautada na
professora, mas, ao nos abrirmos para estarmos com as crianças,
interagindo e conversando com elas, estamos buscando um
afastamento do que julgamos saber sobre a(s) infância(s).
Concordando com Bernardina Leal:
Assim será possível lançar sobre ela um olhar menos
ensinante, mais receptivo à novidade que cada criança
traz consigo. Acarreta também aceitarmos o risco do
desconhecido, daquilo que não se permite antever, do
que não pode ser previamente alcançado. Implica ainda
em termos que enfrentar o que só o novo pode provocar:
a angústia, a dúvida e a situação incomodamente
problematizadora. (LEAL, 2004, p. 22-23).
A busca por uma relação outra com as crianças levou a
professora Renata, também professora supervisora do PIBID no
Cap/ISERJ, a partir da descoberta de Pedro Henrique, a pensar e
planejar, junto com estudantes bolsistas do PIBID, uma roda de
conversa a fim de compreender os saberes e não saberes das crianças
acerca do símbolo encontrado e sua relação com o mundo.
Assim, em outro dia em que as estudantes do PIBID estavam na
escola, uma roda composta por elas, a professora Renata e as crianças
foi formada, e no centro dela estava um ponto de interrogação bem
grande desenhado em cartolina. Junto a ele estava o ponto de
interrogação de plástico encontrado por Pedro Henrique.
Lígia, uma das estudantes bolsistas, iniciou a conversa:
- Pedro encontrou uma coisa diferente entre as letras. Você lembra,
Pedro?

347
evelin sousa da silva; renata alves

- É de pensar! - Pedro Henrique falou, pegando o ponto de


interrogação que encontrou.
- Quem mais conhece? - pergunta Renata.
- Fica assim... Maria Luiza, uma criança da roda, levou o dedo
indicador da mão direita à boca e revirou os olhos para o alto. Em
seguida completou:
- É quando não sabe!
Então Kaylanne, outra criança, falou:
- É! Fica assim. - Ergue os braços ao lado dos ombros e vira as
palmas das mãos para cima.
- Sabe o nome disso? - Renata perguntou, mas o silêncio se
instaurou.
Renata e algumas estudantes bolsistas falaram ao mesmo tempo:
- É o ponto de interrogação!
Imediatamente Pedro Henrique tomou a fala:
- É que eu sei algumas coisas. Outras não.
- E quando você não sabe, o que você faz? - Lígia perguntou para o
Pedro Henrique, mas quem respondeu foi Maria Luiza:
- Eu pergunto e depois a pessoa pergunta.
- Como? Não entendi. - em coro, alguns adultos se manifestaram.
Mais uma vez o silêncio tomou conta do ambiente…
Renata pergunta:
- Como você descobriu que era de pensar, Pedro?
- Eu descobri na caixinha dos números.
- Ah! Na caixinha das letras! Os números estão na outra caixinha que
fica ali embaixo. - fala Renata, apontando para o local na estante em que
fica a caixa dos números e volta a perguntar:
- Mas como você já sabia?
- Na cabeça! - respondeu Pedro Henrique, de forma exclamativa.
- Você já tinha visto antes, em outro lugar? - perguntaram algumas
estudantes bolsistas.
Pedro Henrique balança a cabeça em negativa.
- Tem ele na sala, em algum lugar? Já tinha visto aqui na sala? -
Renata tornou a perguntar.
Maria Luiza levantou, foi até a parede onde estão os registros
das rotinas diárias da turma junto ao calendário e encontrou o símbolo
(?) no fim das perguntas escritas sobre o tempo, sobre o quantitativo
de pessoas presentes e sobre o vivido em cada dia. Atrás dela foram as

348
roda de conversa e exercício do pensamento: uma aposta experienciada com ...

outras crianças e começou o movimento para ver quem encontrava


mais pontos de interrogação pela sala. Assim encerrou-se a roda de
conversa, de forma espontânea, no tempo das crianças.
Renata e as bolsistas inspiraram-se na ação de viver encontros de
filosofia com crianças realizados pelo PIBID/UNIRIO/Educação
Infantil durante três anos consecutivos, a partir de uma percepção
diferente do que era filosofar de quando começamos essa ação.
Iniciamos esse movimento com algumas perguntas, pois a
concepção de filosofia naquele momento era a filosofia como um
estudo de pensamentos filosóficos, então o filosofar era uma incógnita,
e alguns questionamentos surgiam: É possível estudar filosofia com as
crianças? O que é filosofar? Como seria possível crianças da educação
infantil filosofarem?
Ao longo destes três anos, fomos descobrindo que o filosofar
com as crianças e conosco mesmos acontece na relação com o outro,
experienciando e movimentando o pensamento. Inexiste uma verdade
absoluta. Apostamos no ouvir e ser ouvido em uma relação de
igualdade, percebendo a criança como um legítimo outro.
Esse movimento começou a partir da entrada do doutorando
José Ricardo, que trabalhara com “filosofia com crianças” no
município de Duque de Caxias, projeto coordenado pelo professor
Walter Kohan. Essa experiência, no nosso subprojeto, iniciou-se em
2015 com uma turma de crianças do último ano da educação infantil e
seguiu com esta turma até o segundo ano do ensino fundamental. Essa
ação foi possível porque a professora Ana Paula, que participava como
voluntária em nosso grupo do PIBID, foi a professora alfabetizadora
responsável por este grupo de crianças nos dois primeiros anos do
ensino fundamental.
Nossos encontros aconteciam de quinze em quinze dias,
frequentemente. Na tentativa de que eles fossem fomentadores de
ideias, buscávamos oferecer um ambiente convidativo ao pensar e, a
cada encontro, a potência do pensamento infantil nos encantava. A
experiência de estar com as crianças em um contexto em que podemos
encorajar e viver a conversação foi um ato de deslocamento que
implicou em uma quebra de paradigmas presentes dentro do
cotidiano escolar.
Ainda pensando sobre o que é filosofar, em nosso grupo
trabalhamos com a perspectiva de que a:
Filosofia não seria um saber específico, mas um tipo de
relação com o saber. Algo localizado entre o sujeito que
se lança ao saber e ao saber que, simultaneamente,
forma e é formado pelo sujeito. Uma relação com o
saber. Um distanciamento que permite questioná-lo.
(SAMPAIO; SANTIAGO; ALVES, 2016, p. 577).

349
evelin sousa da silva; renata alves

Algo como um saber sobre o saber, nos questionar sobre o que


sabemos e o que não sabemos, estabelecendo a pergunta como ponto
de partida para movimentar o pensamento:
A inquietude do filósofo seria fruto da potência de um
pensamento de natureza filosófica. Pensamento este que
não se acomoda diante do que se tem estabelecido. Está
em constante movimento e surge de uma ruptura entre
um saber que se pensa e o que se pensa sobre
determinado saber (Idem, p. 577).
A cada ano, o sentido de filosofar com as crianças foi ganhando
outros significados. Em cada encontro, sentíamos que a experiência de
filosofia era mais significante para nós, nos sentindo mais imersas
nesse universo.
Em uma de nossas rodas de conversa o tema foi o da memória.
Iniciamos com o livro Guilherme Augusto Araújo Fernandez137, o qual
conta a história de um menino que queria trazer de volta as memórias
de sua amiga, uma senhora, que vive em um asilo.
Após a leitura do livro, as crianças desenharam, em um tecido,
como pensavam a memória ou desenharam uma memória. Uma das
crianças, o Caio, demonstrou empenho e concentração ao desenhar.
Quando voltamos para a roda, para conversar sobre os desenhos,
Caio compartilhou conosco que o seu desenho tratava de um barbeiro
cortando o cabelo do seu pai. Olhando somente o desenho, não víamos
ligação do desenho com a proposta que lhe foi feita para pensar
memória, mas logo Caio compartilhou conosco como ele achava que
perdíamos a memória: Para ele, quando o cabelo cresce e então
cortamos o cabelo é quando perdemos a memória, pois a memória,
para Caio, é um fio. Diante da fala do menino, outra criança, a Rafaela,
começou a fazer indagações, inicialmente no miúdo com uma bolsista,
a Ana Clara. Aos poucos, a timidez de Rafaela foi ficando de lado, e
suas perguntas para Caio foram ganhando força.
As ideias, indagações e suposições das crianças foram surgindo
em uma potência que não esperávamos e que nos surpreendia:
Caio:
- Cortando o cabelo a memória sai.
Rafaela:
- Como a memória sai se a cabeça é fechada?
Caio:
- Quando a gente machuca, sai no machucado.
Rafaela:

137Livro infantil das autoras e ilustradoras Mem Fox e Julie Vivas, respectivamente,
editada pela Brink Book.

350
roda de conversa e exercício do pensamento: uma aposta experienciada com ...

- Mas... e se o médico costurar o machucado?


Pérola diz do desenho que ela fez:
- O meu pensamento é uma imagem colorida para ficar mais bonita.
Fabiana138 então diz para o grupo:
- Acho que aqui tem alguma confusão… Memória é o mesmo que
pensamento?
Pérola:
- Pensamento é uma coisa e memória também!
Rafaela:
- A memória a gente esquece e o pensamento a gente pensa!
Caio:
- O pensamento é uma massa e a memória é um fio. A massa faz a
cabeça da gente virar prá lá, pra cá! E o fio é a memória.
Algumas crianças falaram:
- A memória a gente esquece!
Caio:
- O pensamento é grudado com a memória. A memória sai no
machucado, mas o pensamento sai só um pouquinho...
Este é o movimento que fomos nos desafiando a viver com essas
crianças: sentar em roda e conversar, filosofar, movimentar o
pensamento com assuntos que no dia a dia corrido da escola não
temos tempo para parar e pensar.
A partir da experiência da Roda de Conversa da Memória, da
experiência da Roda de Conversa sobre o ponto de interrogação e a
vivência com o PIBID, nos perguntamos: será que as crianças não
sabem falar o que pensam ou não sabem falar o que nós pensamos?
Será que as crianças não criam suas próprias especulações? Que suas
suposições não são nem piores, nem melhores que nossas "verdades",
muitas vezes verdades únicas?
Talvez não saibamos as respostas ou talvez nem precisemos
sabê-las. A aposta é por modos outros de pensar e viver com as
crianças e suas infâncias. A lógica do ensino transmissor tem perdido
força no movimento de legitimar relações outras, saberes e fazeres que
vão sendo tecidos com as crianças e com os adultos nas ações
cotidianas vividas no espaçotempo escolar.

138Fabiana Olarieta, professora da UERJ, vinculada ao NEFI, núcleo coordenado pelo


Prof. Walter Kohan. Atua no campo de estudos e pesquisas da filosofia com crianças.
Participou, no ano de 2016, no ISERJ, de alguns encontros com as crianças.

351
evelin sousa da silva; renata alves

As rodas de conversa vividas com as crianças e com as


estudantes bolsistas do PIBID nos possibilita tecer uma relação outra,
de proximidade e horizontalidade, em que nos formamos
mutuamente, pois “aprendemos ao ensinar e ensinamos ao aprender.”
(FREIRE,1996).
A única coisa que sabemos é que tal modo de pensar carrega
uma boniteza singular e que a filosofia tem nos permitido descobrir
um pouquinho mais dessa boniteza a cada dia.

referências

CAPES. PIBID –Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência. Disponível


em: < http://www.capes.gov.br/educacao-basica/capespibid/pibid> Acesso
em: Janeiro de 2018.
DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Editora 34, 2008.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa.
São Paulo: Paz e Terra, 1996.
KOHAN, Walter. A infância da educação: o conceito devir-criança. In:
KOHAN, W. O. (Org.) Lugares da infância: filosofia. Rio de Janeiro: DP&A, 2004.
LARROSA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista
Brasileira da Educação. Rio de Janeiro, n. 19, Jan/Fev/Mar/Abr, ANPED, 2002.
LARROSA, Jorge. Desejo de realidade: Experiência e alteridade na investigação
educativa. In: BORBA, S.; KOHAN, W. (Org.). Filosofia, Aprendizagem
experiência. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008. p. 185-193.
LEAL, Bernardina. Leituras da infância na poesia de Manoel de Barros. In:
KOHAN, W. O. (Org.). Lugares da Infância: filosofia. Rio de Janeiro: DP&A,
2004.
MATURANA, Humberto. A ontologia da realidade. Belo Horizonte: Ed. UFMG,
1997.
RIBEIRO, T.; SAMPAIO, C. S.; DE SOUZA, R. Investigar narrativamente a
formação docente: no encontro com o outro, experiências... Roteiro, Joaçaba, v.
41, n. 1, p. 135-154, jan./abr. 2016.
SAMPAIO, C. S.; RIBEIRO, T; HELAL, I. Experiência, diálogo e indagação: a
formação docente como experiência filosófica. Revista ContraPontos, eletrônica,
Vol. 13 - n. 3 - p. 160-168 / set-dez 2013.
SAMPAIO, C. S.; SANTIAGO, J. R.; ALVES, R. Infâncias com as infâncias:
narrativas de uma aproximação entre a filosofia e crianças de educação infantil.
Revista childhood & philosophy, Rio de Janeiro, v. 12, n. 25, p. 567-584, set./dez.
2016.
SKLIAR, Carlos. Isto não é um livro de poemas. Rio de Janeiro: Texto Território,
2015.

352
el arte de enseñar. sócrates maestro de amor

gregorio valera-villegas
universidad simón rodríguez;
universidad central de venezuela
gregvalvil@yahoo.com

presentación: un ejercicio de hermenéutica filosófica.

Comprender e interpretar una obra implica un estar situado


históricamente por quien lo hace, lo que supone un ir más allá de lo
que, el sujeto que realiza la acción, sabe acerca de ella y de sí mismo.
Ello quiere decir que se trata de una actualización, es decir, el hacer
presente la misma porque no puede quedar fijada al pasado en la que
se elaboró. En otras palabras, es una tarea de buscar un sentido para el
ser humano de hoy, sin que signifique dejar a un lado las distancias
temporales y las diferencias que pueden existir entre el autor de la
obra y quien la interpreta, para con ello hacerla productiva.
La obra de un filósofo, en nuestro caso, no es solamente pasado,
sino que puede trascender la distancia del tiempo por medio de la
hermenéutica filosófica, que puede fungir de mediadora histórica. De
esta manera, si bien el pasado no se puede restituir, se puede
establecer con él una relación de mediación con el presente. Esta
mediación, en términos de Gadamer, se realiza desde la comprensión,
desde el círculo hermenéutico, que supone un triple anticipar, valga
decir: una acción previa de tener, de ver y de concebir.139
Al referirnos a la realización de un ejercicio hermenéutico
filosófico de la obra de un filósofo, no lo estamos haciendo de un
filósofo común y corriente, con una obra escrita determinada, sino de

139 En palabras de Gadamer, en el marco de la historicidad de la comprensión, el

círculo hermenéutico y los prejuicios, tal mediación sería en estos términos: "El que
quiere comprender un texto realiza siempre un proyectar. Tan pronto como aparece
en el texto un primer sentido, el intérprete proyecta enseguida un sentido del todo.
Naturalmente que el sentido solo se manifiesta porque ya uno lee el texto desde
determinadas expectativas relacionadas a su vez con algún sentido determinado. La
comprensión de lo que pone en el texto consiste precisamente en la elaboración de
este proyecto previo, que por supuesto tiene que ir siendo constantemente revisado en
base a lo que vaya resultando conforme se avanza en la penetración del sentido (…) la
interpretación empieza siempre con conceptos previos que tendrán que ser
sustituidos por otros más adecuados. Y es todo este constante reproyectar, en el cual
consiste el movimiento del sentido del comprender e interpretar…"(GADAMER, 1999,
p.333).

353
gregorio valera-villegas

uno que no la tiene, que no la escribió él, de uno “ágrafo” por propia
convicción, justificación y decisión de no escribirla. La obra de este
filósofo fue escrita, de algún modo, por sus discípulos, especialmente
Platón y Jenofonte. Así pues, y con esto en mientes, el ejercicio de
marras a realizar es también referido a una tradición como una forma
de autoridad consagrada por el pasado y por su vigencia en la
condición de ser un clásico, que como tal tiene mucho que decirnos y
hacernos decir. Y, por consiguiente, tiene un papel fundamental para
la comprensión de la mediación histórica propuesta por Gadamer,
porque se trata de un movimiento de interrelación de la tradición y de
la acción del intérprete. Así, al compás de la familiaridad y extrañeza
de Sócrates como el filósofo y su obra al que nos hemos venido
refiriendo, y conocimiento de esa tradición que él constituye, y a la vez
extrañados por la distancia histórica de sus fuentes, lo que significa un
punto medio o núcleo clave para el ejercicio de hermenéutica filosófica
a realizar.140
La distancia temporal entre nuestro presente y el de Sócrates y
su obra, entendida como tradición, no puede entenderse sólo como un
obstáculo a salvar, sino que también encierra un rédito productivo, en
el entendido de que esa distancia, no poca, permite mirar los efectos
de ella, es decir, lo que tiene vigencia y lo que no, los prejuicios
salvables y los no salvables.
Se trata pues de realizar una interpretación desde nuestro
presente y desde nuestra circunstancia. Así que, pondremos en juego
una vez más a Sócrates y su obra históricamente situados, para a la vez
tratar de ir mucho más allá de lo que sabemos acerca de ella y de
nosotros mismos; porque es un ejercicio hermenéutico de actualización
y aplicación para hacer presente una obra que no puede anclarse en el
pasado, si es de verdad un clásico. Es, por consiguiente un ejercicio
que se refiere al pasado, sí, pero un como algo y un alguien, Sócrates y
su arte de enseñar y Sócrates maestro de amor, que tienen sentido en
nuestro presente, para de esta manera apostar a la superación de las
distancias temporales y las diferencias para hacerlas provechosas.

140Expresión palmaria de la conciencia histórico-efectual, en términos de Gadamer.


Este concepto hermenéutico filosófico va más allá del horizonte histórico del
conocimiento objetual. Por tanto, la comprensión se funda en interpenetración de la
tradición recibida y su aplicación al presente respectivo. Véase a GADAMER,1999.

354
el arte de enseñar. sócrates maestro de amor

el arte de enseñar en sócrates (la ironía, el elenchus y la mayéutica


socráticos)

Si el arte para Schiller es “aquello que se da asimismo su propia


regla”141, y Sócrates logra darse su propia regla en el arte de enseñar,
entonces él tiene su propio arte.142 A través de él manifiesta sus ideas y
pasiones y la forma como se relaciona con los otros y con el mundo.
Además, contribuye a hacer del otro, del discípulo, en alguna medida
una obra de arte. Arte entendido como estética de la existencia.143 Por
cuanto para él la enseñanza no era un mero pasar la información de
una cabeza a otra144, sino un proceso de ascensión espiritual del ser
humano.
Este arte de la enseñanza se desplegará fundamentalmente en
dos grandes momentos, a saber: en la ironía y la mayéutica. Ambos
requerirán de una base cierta: el conocerse a sí mismo, que se
traducirá, primeramente, como conocer los propios límites, es decir, su
propia insciencia, su ignorancia, “saber que no se sabe” diría en la
Apología de Platón. La ironía como método en Sócrates se orientará,
precisamente, a hacer, mediante el diálogo, que el interlocutor
reconozca su ignorancia de camino a la sabiduría, y este es uno de los
momentos en los que generalmente será usada la ironía. Aquí el
diálogo será abierto con la confesión de ignorancia por parte de él, y
elogios a lo sabio que es su interlocutor, quien aceptará los mismos

141 Friedrich Schiller en una carta a Körner, citado por TATARKIEWICZ (2008, p.50).
142 Sin duda que estamos hablando de un maestro a toda ley, eso sí entendido como
un artista, con su propio estilo, con su propio arte. En su práctica sostiene la
importancia de la exigencia de la verdad, en su búsqueda participativa en el
desvelamiento riguroso de las cosas del hombre, en la formación de sus discípulos en
la perfección espiritual, en la virtud (conocimiento del bien y propensión a
practicarlo). Controvertidas y diversas fue su postura en torno a sus rivales sofistas,
por lo que se sostiene que: “Su moralismo grave, y su agudo sentido de la vida
interior, lo aproximaban a Pródico (como lo advirtieron muy bien sus
contemporáneos); y si la polimatía de Hipias se oponía, por su pretensión abstrusa, a
la «insciencia» socrática, no es menos cierto que su investigación de las fuentes vivas
de la ciencia situaba a Sócrates en la misma búsqueda, siempre reiniciada y
proseguida un poco más adelante, de la auténtica verdad”. (MARROU, 1985, p.85).
143 El arte entendido como una estética de la existencia, en términos de Nietzsche,

implica una perspectiva distinta de la filosofía y de hacer filosofía en relación con una
(trans)formación del ser humano, una trasformación de sí mismo. Arte y filosofía de
la mano en esa transformación y liberación. Véase a NIETZSCHE (2000).
144 Sin la dinámica plena del tradere y transmittere que manifiestan el auténtico sentido

de la palabra tradición: lo pasivo, en el caso del primer verbo, y a la vez lo activo en el


caso del segundo. La re-creación, reinvención, que se realiza de lo recibido en el
contexto histórico social de referencia de quien la recibe. Véase a DUCH (2004).

355
gregorio valera-villegas

orgulloso de sí. La dialéctica sigue su rumbo y aquellas opiniones que


habían sido en un inicio consideradas como verdaderas serán
confutadas por Sócrates al demostrar que de ellas se pueden derivar
consecuencias sin sentido y claramente contradictorias. A
continuación, se propiciará la mayéutica como momento productivo.
Sócrates lo iniciará con la ayuda al interlocutor a parir y expresar
verdades que se han madurado en su interior, por lo que se tratará de
hacerlas explícitas y claras. Se hará evidente también que aquél no
podía hacerlo solo, que ha requerido de ayuda, del diálogo, en el que
incorporará el discurso breve.145 Leamos a continuación algunos
pasajes que pueden servir para mostrar lo hasta ahora dicho sobre el
arte de enseñanza de Sócrates.
(…)
Fedro. - ¡Asombroso, Sócrates ! Me pareces un hombre
rarísimo, pues tal como hablas, semejas efectivamente a un
forastero que se deja llevar, y no a uno de aquí. Creo yo que,
por lo que se ve, raras veces vas más allá de los límites de la
ciudad; ni siquiera traspasas sus murallas
Sócrates. - No me lo tomes a mal, buen amigo. Me gusta
aprender, y el caso es que los campos y los árboles no quieren
enseñarme nada146; pero sí, en cambio, los hombres de la
ciudad. Por cierto, que tú sí pareces haber encontrado un
señuelo para que salga. Porque, así como se hace andar a un
animal hambriento poniéndole delante un poco de hierba o
grano, también podrías llevarme, al parecer, por toda Ática, o
por donde tú quisieras, con tal que me encandiles con esos
discursos escritos. Así que, como hemos llegado al lugar
apropiado, yo, por mi parte, me voy a tumbar. Tú que eres el
que va a leer, escoge la postura que mejor te cuadre y, anda,
lee.147
Fed. ─ Escucha, pues.148
(…)
Sóc. ─ Eres encantador, Fedro. Tú sí que sí eres de oro
verdadero, si crees que estoy diciendo algo así como que Lisias

145 Discurso usado por Sócrates en contraposición al de los sofistas, quienes harán uso
del gran discurso retórico encaminado a persuadir sin importarles el costo, por cuanto
ellos estarán más interesados en la efectividad del mismo que de la verdad.
146 Aunque Sócrates enseña de todos sin excluir a nadie y en cualquier lugar, su

interés primordial son los asuntos o conceptos humanos.


147 Se disponen para leer un texto erótico de Lisias. La idea del texto es que en él se

dice que hay que complacer a quien no se ama, más que a quien sí se ama. Sobre la
autoría de Lisias de este texto no hay acuerdo entre los filólogos, algunos dicen que
fue más bien escrito por Platón.
148 A continuación lee el discurso de Lisias sobre el amor.

356
el arte de enseñar. sócrates maestro de amor

se equivocó de todas todas y que es posible, sobre esto, otras


cosas que las dichas. Presiento que ni al último de los
escritores se le ocurriría cosa semejante. Vayamos al asunto de
que trata el discurso. Si alguien pretendiera probar que hay
que conceder favores al que no ama, antes que al que ama, y
pasase por alto el encomiar la sensatez del uno, y reprobar la
insensatez del otro ─cosa por otra parte imprescindible─,
¿crees que tendría ya alguna otra cosa que decir? Yo creo que
esto es asunto en el que hay que ser con descendiente con el
orador y dejárselo a él. Y es la disposición y no la invención lo
que hay que alabar, pero en aquellos no tan obvios y que son,
por eso difíciles de inventar, no sólo hay que ensalzar la
disposición, sino también la invención.
(…)149
»Sólo hay una manera de empezar, muchacho, para los que
pretendan no equivocarse en sus deliberaciones. Conviene
saber de qué trata la deliberación. De lo contrario,
forzosamente, nos equivocaremos. La mayoría de la gente no
se ha da do cuenta de que no sabe lo que son, realmente, las
cosas. Sin embargo, y como si lo supieran, no se ponen de
acuerdo en los comienzos de su investigación, sino que,
siguiendo adelante, lo natural es que paguen su error al no
haber alcanzado esa concordia, ni entre ellos mismos, ni con
los otros . Así pues, no nos vaya a pasar a ti y a mí lo que
reprochamos a los otros, sino que, como se nos ha planteado la
cuestión de si hay que hacerse amigo del que ama o del que no,
deliberemos primero, de mutuo acuerdo, sobre qué es el amor y
cuál es su poder. Después, teniendo esto presente, y sin
perderlo de vista, hagamos una indagación de si es provecho o
daño lo que trae consigo.
»Que, en efecto, el amor es un deseo está claro para todos, y
que también los que no aman desean a los bellos, lo sabemos.
¿En qué vamos a distinguir, entonces, al que ama del que no?
Conviene, pues, tener presente que en cada uno de nosotros
hay como dos principios que nos rigen y conducen, a los que
seguimos a donde llevarnos quieran. Uno de ellos es un deseo
natural de gozo, otro es una opinión adquirida, que tiende a lo
mejor. Las dos coinciden unas veces; pero, otras, disienten y se
revelan, y unas veces domina una y otras otra. Si es la opinión
la que, reflexionando con el lenguaje, paso a paso, nos lleva y
nos domina en vistas a lo mejor, entonces ese dominio tiene el

149 Por exigencia de Fedro, Sócrates se ve obligado a decir su punto de vista sobre el

asunto del texto Lisias. Y no teniendo otra opción lo hace.

357
gregorio valera-villegas

nombre de sensatez. Si, por el contrario, es el deseo el que,


atolondrada y desordenadamente, nos tira hacia el placer, y
llega a predominar en nosotros, a este predominio se le ha
puesto el nombre de desenfreno. Pero el desenfreno tiene
múltiples nombres, pues es algo de muchos miembros y de
muchas formas, Y de éstas, la que llega a destacarse otorga al
que la tiene el nombre mismo que ella lleva. Cosa, por cierto,
ni bella ni demasiado digna. Si es, pues, con relación a la
comida donde el apetito predomina sobre la ponderación de lo
mejor y sobre los otros apetitos, entonces se llama glotonería,
y de este mismo nombre se llama al que la tiene. Si es en la
bebida en donde aparece su tiranía y arrastra en esta dirección
a quien la ha hecho suya, es claro la denominación que le pega.
Y por lo que se refiere a los otros nombres, hermanados con
éstos, siempre que haya uno que predomine, es evidente cómo
habrán de llamarse. Por qué apetito se ha dicho lo que se ha
dicho, creo que ya está bastante claro; pero si se expresa, será
aún más evidente que si no: al apetito que, sin control de lo
racional, domina ese estado de ánimo que tiende hacia lo recto,
y es impulsado ciegamente hacia el goce de la belleza y,
poderosamente fortalecido por otros apetitos con él
emparentados, es arrastrado hacia el esplendor de los cuerpos,
y llega a conseguir la victoria en este empeño, tomando el
nombre de esa fuerza que le impulsa, se le llama Amor.»150.
(PLATÓN, Fedro, 1988a. (230d-e, 236a, 235a, 237c-e, 238ª-
c), pp. 317-331).
El elenchus (ἔλεγχος)151, entendido como el método de Sócrates,
de base dialéctica socrático/platónica152, se despliega en el

150 En esta disertación de Sócrates podemos ver una referencia a la escalera erótica o
del ascenso dialéctico del mundo de la doxa al de las ideas, como veremos más
adelante. El discurso de Sócrates continúa, sólo que esta vez orientado al asunto del
texto de Lisias.
151 Valga decir, aquel asunto en el que se somete a consideración y mirada escrutadora

con el propósito de refutar lo sostenido por el interlocutor, o discípulo.


152El método dialéctico socrático, o socrático/platónico, usa dos herramientas

fundamentales: el preguntar y el refutar de camino a la mayéutica. Así pues, en el


marco del diálogo, se tienen los siguientes momentos: 1) momento de la protréptica
(Προτρεπτικός), o de exhortación al filosofar sobre la relevancia del tema del diálogo;
2) momento eléntico (de ironía), o declaración de ignorancia sobre el tema por parte
del maestro, y a la vez de indagación mediante preguntas, y refutación, al discípulo
sobre el tema o concepto en cuestión, en la búsqueda de la confesión de ignorancia
por parte del discípulo y la purificación del mismo; 3) y, por último, el momento
heurístico o mayéutico, momento positivo o de hacer parir el conocimiento que tiene
el discípulo. En este último, el maestro ayudará a alcanzar la verdad desde adentro,

358
el arte de enseñar. sócrates maestro de amor

cuestionamiento, en el preguntar socrático. En este preguntar, con


tono retórico, se busca propiciar una nueva pregunta que de mayor
claridad a la primera y, de algún modo, al concepto en cuestión.
Veamos un posible ejemplo: ¿Puedo votar en las próximas elecciones?
A lo que se responde con otra pregunta como si la primera no lo fuera
o se entendiera como pura retórica: ¿Acaso no son los ciudadanos
quienes votan?
Se empieza haciendo todo tipo de preguntas hasta que los
detalles del ejemplo sean evidenciados, para ser luego usados como
plataforma para alcanzar valoraciones más generales. El elenchus se
aplica entre dos interlocutores, y en él se debe alcanzar, no sin antes
vivir una experiencia de conocimiento mediante el esfuerzo de
reflexión y razonamiento inductivo, un concepto o definición
universal. Entre Sócrates y Fedro, como hemos visto en la cita anterior,
el primero, Sócrates, lleva el liderazgo del diálogo, y el segundo opta
por afirmar o negar ciertas ideas que se dan para ser aceptadas o
rechazadas. El preguntar atinadamente153, en torno a un tema, es la
clave, así como la respuesta adecuada alcanzada mediante el consenso.
Las preguntas pueden descender hasta llegar a los detalles del
ejemplo, para luego ascender a la definición. La herramienta eficaz
para alcanzar lo que se busca en torno a un asunto es provocar que el
interlocutor, camino a la aporía, se contradiga en sus ideas, para
lograr su aprobación de la verdad de la perspectiva o conjetura en
cuestión que ha venido argumentando el interlocutor contrario, con el
conocimiento de que lo que había venido sosteniendo era falso. Este
consenso, claro está, no siempre es logrado por Sócrates.154

por inducción. El ascenso dialéctico se habrá producido desde la experiencia sensible


hasta alcanzar la verdad del concepto. La formación de conceptos por vía inductiva es
su derrotero a alcanzar, por eso “… parte de casos particulares conocidos y ampliando
el círculo del pensamiento hasta llegar a los más difíciles y al parecer dispares,
pretende alcanzar un resultado general con validez universal para todos los casos.”
(MORENO, 1978, p.74).
153 Lo medular de este preguntar no es la contraposición de opiniones diversas, sino la

formulación de una hipótesis y la realización de una crítica de la misma (afirmaciones


y negaciones en torno a ella). Así, esa hipótesis inicial irá siendo mejorada y afinada
por medio del ejercicio crítico mantenido por medio del diálogo. Véase a GUTHRIE
(1998, pp. 146-190).
154 El método elenchus es, por un lado, un método negativo por cuanto se trata de una

supresión de respuestas incorrectas o falsas o que conducen a contradicciones. Y es


positivo porque orienta hacia un conocimiento obtenido mediante las preguntas que
se hacen a una persona con el propósito de ayudarle alcanzar un conocimiento. El
ejemplo clásico es el que está en el diálogo Menón, en él Sócrates le demuestra a
Menón su doctrina de la reminiscencia mediante un diálogo con un esclavo analfabeta
que tiene conocimientos de matemáticas, sin que realmente sepa que los tiene. Véase a

359
gregorio valera-villegas

El método elenchus se opone a la erística (eristiké) de los sofistas


por cuanto con él se busca conocimiento de la verdad.155 El elenchus
suponía desplegar dos momentos principales, a saber: la ironía y la
mayéutica. Con el primero se buscaba derribar la opinión infundada
de aquél, quien arrogantemente creía saber la verdad. En el Fedro,
como pudimos ver, Sócrates, en un primer momento, encumbra a su
interlocutor como un sabio en la materia que se trata, el amor. En la
ironía se han distinguido dos métodos a su vez, KOHAN (2009, p.30)
siguiendo a Kierkegaard, los señala: el especulativo y el irónico. En el
primero, Sócrates, pregunta para obtener respuestas cada vez más
profundas, la vía mayéutica, y en el segundo para vaciar de respuestas
a su interlocutor, y así pueda comprender su ignorancia relacionada
con el asunto tratado en el diálogo, del que creía saber mucho. La
ironía, con base en la refutación, de acuerdo con Mondolfo, significaría
una vía para la purificación por el error en el que se estaba, y, a la vez,
estímulo para el conocimiento. Véase a MONDOLFO (1996). De algún
modo, es lo que alcanza Fedro, en el extracto citado, en su diálogo con
Sócrates, e intenta purificarse pidiendo a Sócrates su punto de vista en
el conocimiento del amor. De esta manera, la dialéctica socrática
presenta la relación de dos fases profundamente implicadas, al decir
de LANDA (2003), a saber: la ironía y la refutación como momentos
negativos, y la conciencia del no saber o agnoia, y el parir la idea o
mayéutica como momento positivo.

sócrates maestro de amor

Sócrates es vida/obra, su obra es él mismo. Es aquel que vivió su


propio pensamiento su propia práctica en un pensar a viva voz sobre
la misma. Nunca se presentó como maestro, aunque nunca perdió
ocasión para ayudar a formar-se.156 En el arte de enseñar de él está

PLATÓN, (Menón, (82a-85c), 1987, pp. 303-311). El Menón fue clasificado como
diálogo dramático por Kierkegaard frente a los narrativos como el Simposio.
155 La erística es el método usado por quienes gustan de la discusión al margen de la

verdad o falsedad de la tesis por ellos mantenida, su afán es tratar de salir airosos en
la discusión a como dé lugar, usando para ello finos argumentos y la herramienta de
la retórica del que disponen.
156 “En cuanto a mí, a lo largo de toda mi vida, si alguna vez he realizado alguna

acción pública, me he mostrado de esta condición, y también privadamente, sin


transigir en nada con nadie contra la justicia ni tampoco con ninguno de los que,
creando falsa imagen de mí, dicen que son discípulos míos. Yo no he sido jamás
maestro de nadie. Si cuando yo estaba hablando y me ocupaba de mis cosas, alguien,
joven o viejo, deseaba escucharme, jamás se lo impedí a nadie. Tampoco dialogo
cuando recibo dinero y dejo de dialogar si no lo recibo, antes bien me ofrezco, para
que me pregunten, tanto al rico como al pobre, y lo mismo si alguien prefiere

360
el arte de enseñar. sócrates maestro de amor

presente su amor por sus discípulos y su auténtica bondad hacia ellos,


encontrados a la socaire de su continúo callejeo. Véase a PLATÓN (en
sus diálogos: Banquete y Fedón, 1988a).157 Su método de enseñanza es
su creación: el tutorial, en él no expone nada, sino que pregunta
continuamente. Las preguntas que formula en el diálogo establecido
“están dispuestas para que el alumno tome conciencia de su
ignorancia para guiarlo así hacia una verdad más profunda, a la cual
se adherirá más firmemente porque no le ha sido hecha sino que ha
nacido de su propia mente, por los esfuerzos conjuntos de maestro y
discípulo.” (HIGHET, 1963, pp. 113-114). Sócrates como maestro será
un kalòs kagathós por cuanto logró darse a sí mismo toda la bondad y
la sabiduría. Véase a JENOFONTE (1993). Esta búsqueda del ideal de
la kalokagathía le lleva a decir: “…y en cambio ahora, al ordenarme el
dios, según he creído y aceptado, que debo vivir filosofando y
examinándome a mí mismo y a los demás.” (PLATÓN, Apología (28e,
29a), 1981, pp. 166-167). El fin del arte de enseñanza de Sócrates es la
virtud, la búsqueda de la verdad, mediada por el amor como deseo de
belleza y del Bien.
Maestro de amor, o Sócrates, es una metonimia porque decir
maestro de amor es nombrar al hombre con el de su práctica que le es
constitutiva. Y es, a la vez, una metáfora, por cuanto constituye una
vía de interpretación al tener un carácter hermenéutico, en tanto
metáfora viva en tono de Ricoeur. Véase a RICOEUR (2001). De este
modo, es una herramienta para comprender la vida/obra de un
filósofo, especialmente su magisterio, mediante un leguaje simbólico
no ornamental. Así, este maestro de amor es un alguien que realiza de
una manera particular, mediante su propio arte, una acción de
enseñar, y también es un alguien constituido por un algo, el amor.
Además, puede decirse que ese algo refuerza o es característica
particular que lo distingue.

responder y escuchar mis preguntas. Si alguno de éstos es luego un hombre honrado


o no lo es, no podría yo, en justicia, incurrir en culpa; a ninguno de ellos les ofrecí
nunca enseñanza alguna ni les instruí. Y si alguien afirma que en alguna ocasión
aprendió u oyó de mí en privado algo que no oyeran también todos los demás, sabed
bien que no dice la verdad”. (PLATÓN, Apología, (33a-b), 1981, p.173). Expresión que
es una muestra de la humildad que lo caracterizaba (además del desinterés pecuniario
en la educación, integridad, y su enorme capacidad persuasiva) y a la particularidad y
originalidad de su magisterio.
157.De hecho afirmó, acerca de sus discípulos, que: “Se añade, a esto, que los jóvenes

que me acompañan espontáneamente -los que disponen de más tiempo, los hijos de
los más ricos- se divierten oyéndome examinar a 1os hombres y, con frecuencia, me
imitan e intentan examinar a otros, y, naturalmente, encuentran, creo yo, gran
cantidad de hombres que creen saber algo pero que saben poco o nada”. (PLATÓN,
Apología, (23d), 1981, p. 158).

361
gregorio valera-villegas

Ahora bien, pudiésemos decir que el arte de enseñanza de


Sócrates como maestro de amor podemos entenderlo como de
mediación y ayuda en el ascenso hacia la virtud, la belleza y el Bien.
Veamos ésto con más detalle, el amor, Eros, es un demon, está en el
medio de los hombres y de los dioses. En la alegoría del carro alado
puede verse su papel. En ella, si el auriga domina los caballos logrará
elevarse y alcanzar el mundo de las ideas, y si no lo hace caerá en el
mundo de las cosas, el mundo sensible (pistis y eikasia), el alma
terminará por estar aprisionada en un cuerpo mortal con el deseo de
regresar a su mundo original. Para ello, necesitará de alas, y aquí
encontramos el papel del amor, para realizar el deseo de alcanzar la
belleza y la justicia y el Bien. De tal suerte que, el alma necesitará
alcanzar, con la mediación del amor, la virtud para poder elevarse con
las nuevas alas a contemplar la idea suprema del Bien en el mundo de
las ideas.158
En este mismo sentido puede decirse, que el filósofo, maestro,
lleva una vida particular, de características propias gracias al amor.
Sócrates es Eros en tanto y en cuanto es, por un lado, amante de la
sabiduría, de la verdad y la virtud, y, por el otro, mediador para que
sus jóvenes discípulos cultiven en sí mismos y en los demás la virtud,
y también las acciones bellas a partir de la contemplación en la belleza
en sí, porque Eros es el motor que impulsa las acciones con las que se
persigue el Bien y, en consecuencia, la felicidad. De allí, que pudiera
colegirse que la eudaimonía socrática es búsqueda de la verdad, la
virtud y el Bien. El arte de enseñar del maestro de amor es arte de
amar de manera filosófica. El maestro de amor es mediador que
establece una relación de ayuda para el ascenso hacia lo sublime y
verdadero, desde la ignorancia y las cosas efímeras y confusas.
En la práctica de su arte el maestro de amor se sustenta en un
ejercicio de anagogía (αναγηιν). Él, en su arte, se mueve entre la
ignorancia y la sabiduría para ayudar a ascender, en términos de
anagogía, desde la ignorancia a la sabiduría con base en el Eros como
anhelo de lo que se carece, como deseo de lo bello. Este arte puede
comprenderse mejor si leemos este texto de estilo indirecto de
Diotima/ Sócrates:
Por otro lado, los ignorantes ni aman la sabiduría ni
desean hacerse sabios, pues en esto precisamente es la

158“…Porque allí mismo de donde partió no vuelve alma alguna antes de diez mil
años -ya que no le salen alas antes de ese tiempo-, a no ser en el caso de aquel que
haya filosofado sin engaño, o haya amado a los jóvenes con filosofía. Éstas, en el tercer
período de mil años, si han elegido tres veces seguidas la misma vida, vuelven a
cobrar sus alas y, con ellas, se alejan al cumplirse esos tres mil años”. (PLATÓN, Fedro.
(249a),1988a, p.351). El subrayado es nuestro.

362
el arte de enseñar. sócrates maestro de amor

ignorancia una cosa molesta: en que quien no es ni bello,


ni bueno, ni inteligente se crea a sí mismo que lo es
suficientemente. Así, pues, el que no cree estar
necesitado no desea tampoco lo que no cree necesitar. -
¿Quiénes son, Diotima, entonces -dije yo- los que aman
la sabiduría, si no son ni los sabios ni los ignorantes? -
Hasta para un niño es ya evidente -dijo- que son los que
están en medio de estos dos, entre los cuales estará
también Eros. La sabiduría, en efecto, es una de las cosas
más bellas y Eros es amor de lo bello, de modo que Eros
es necesariamente amante de la sabiduría, y por ser
amante de la sabiduría está, por tanto, en medio del
sabio y del ignorante. (PLATÓN, Banquete (204a, 204b),
1988a, pp.247-248).
El carácter anagógico del arte de la enseñanza del maestro de
amor puede también expresarse por medio de la escalera de Eros o de
movimiento ascendente159. Veamos esta versión que hemos elaborado
en términos del arte de enseñanza:
Peldaño 1 (o de lo particular): el discípulo, acompañado
o guiado por el maestro, descubre el amor (finito,
mudable, cambiable) por la belleza de un cuerpo. Aquí
se trata de ir más allá de lo sexual rumbo a la fruición de
la belleza como forma o idea que se manifiesta en él.
Estamos en presencia del amor de la belleza en el
discípulo para engendrar en él bellos razonamientos,
belleza que debe ir acompañada de la virtud que hay
que hacer nacer en él.160
Peldaño 2: el discípulo, acompañado de su maestro,
supera la belleza en apariencia del cuerpo (en el mundo
sensible o de irrupción de los sentidos) tras búsqueda de
alcanzar la del alma, la verdadera belleza (en el sentido
de lo múltiple a lo uno). El discípulo crece en el amor
verdadero y en la virtud. Él llega a comprender que la
belleza de un cuerpo es similar al que puede haber en
otro. Debe, además, hacerse amante de todos los
cuerpos bellos y superar definitivamente el amor de

159 Véase a PLATÓN (Fedro (210a-d), pp. 260-261). La dialéctica se propone llevar paso
a paso al filósofo, al hallarse metido en el vaivén de la ignorancia, para elevarlo a las
alturas de la intelección filosófica. Véase a PLATÓN (República (VII, 517b), 1988b, p.
342).
160 El amor cupiditas, el amor en términos de San Agustín, o amor de lo que no se

tiene y al tenerlo se puede perder. O amor de pareja entre seres de carne y hueso, al
decir de Unamuno, puede caracterizarse como: deseo carnal y de la fogosidad mutua,
frente al deseo racional y de alcanzar la felicidad juntos. En este primer peldaño se va
ascendiendo precisamente en la relación entre Eros y la felicidad de camino del amor a
la sabiduría, de camino del filosofar. Véase a SAN AGUSTÍN ( 2009).

363
gregorio valera-villegas

deseo carnal por uno solo. Ello supone valorar más la


belleza del alma que la del cuerpo.
Peldaño 3: en este peldaño el discípulo es capaz de la
creación de la belleza mediante actividades afincadas en
la armonía y la justa medida que genera la virtud, valga
decir, templanza, moderación y justicia, como
expresiones de lo bello. Es también el peldaño de la
contemplación de la belleza de la ley y del orden.
Peldaño 4: es el de la contemplación y admiración de las
ciencias y de la belleza que les acompaña, y que ellas
hacen visible. Momento de la diánoia (διάνοια).
Peldaño 5: el peldaño en el cual debe el discípulo
remontarse hacia la contemplación de lo bello absoluto,
o del Bien. Por medio de la noesis (νόησις)161, debe
remontarse hacia la contemplación de la Belleza en sí,
del Bien. Maestro y discípulo han ascendido de lo
múltiple y sensible a lo uno e inteligible, este último
como fundamento primero.
El maestro de amor no se separa del discípulo al que tutoriza,
aguijoneándole con preguntas o refutando sus respuestas para mediar
en su ascenso hasta hacerle parir lo bello, hasta hacerle virtuoso, hasta
ayudarle a contemplar lo bello que es el bien que se manifiesta en el
ascenso de la escalera. Por ello, Sócrates como maestro de amor,
amante de lo bello, de camino en su práctica dialéctica en su arte de
enseñanza, es amante y amado en la belleza de sus discípulos y en la
contemplación del Bien. Leamos lo que dice a este respecto:
Y de esto es de lo que soy yo amante, Fedro, de las
divisiones y uniones, que me hacen capaz de hablar y de
pensar. Y si creo que hay algún otro que tenga como un
poder natural de ver lo uno y lo múltiple, lo persigo
yendo tras sus huellas como tras las de un dios. Por
cierto que aquellos que son capaces de hacer esto –Sabe
dios si acierto con el nombre- les llamo, por lo pronto,
dialécticos. (PLATÓN, Fedro (266 b-c), 1988a, p. 386).
El arte de enseñar del maestro de amor es un ejercicio constante
de Eros y filosofía, en tanto búsqueda de la verdad, la virtud y la
belleza. Este amor no es similar al amor ágape o de donación del
cristianismo, fundamentado por San Agustín (2009), sino amor de
deseo de lo que no se tiene, en esto radica este arte de ayudar a tomar

161En relación directa con la metáfora de la línea dividida en la que se presentan las
relaciones entre el mundo sensible (Doxa) y el mundo de las ideas (topus uranus) y los
distintos niveles (ontológicos y epistémicos) de conocimiento, de camino de la
dialéctica. El de la noesis corresponde al nivel más alto. Véase a PLATÓN (República
(VI, 509d-511e), 1988b).

364
el arte de enseñar. sócrates maestro de amor

conciencia de la ignorancia o carencia y de acenso para alcanzar lo que


no se tiene. En Sócrates está presente el amor helénico, que es “…
siempre y sólo fuerza que conduce a la adquisición de lo que se carece,
a nivel cada vez más elevado… (REALE, 2002, p.244).

epílogo: unas notas de cierre sobre el arte de enseñanza del maestro


de amor.

En el arte de enseñanza del maestro de amor, el amor es de algo


que se desea o que no se tiene o carece, de allí que este arte se
encamina, en la relación maestro discípulo, por la vía dialéctica de
búsqueda y de anagogía.
En este arte, el amor es deseo de lo bello y no de lo feo, y uno de
sus núcleos es el aspirar alcanzar esos valores, con especial referencia a
la virtud, la belleza y el Bien.
El maestro de amor puede ser entendido, en tanto metáfora,
como un demon o daimon, como un intermediario, un alguien que
ayuda y media entre lo bello y lo feo y entre la sabiduría y la
ignorancia. Él ayuda a alcanzar los niveles superiores en la escalera del
conocimiento.
El maestro de amor, en tanto filósofo, se encuentra también entre
la sabiduría y la ignorancia. Él no es un dios en tanto necesita saber, y
los dioses no lo necesitan porque todo lo saben, pero si un sabio en
tanto sabe de su ignorancia, y, por ende, puede ser visto como aquel
busca lo bueno, lo bello y lo prudente.
El maestro de amor, en la práctica de su arte de enseñar, es un
mediador entre el saber y los hombres comunes e ignorantes, eso sí,
dispuestos a filosofar. Y es presencia del Eros para alcanzar el saber
filosófico.
El arte de enseñar de este maestro es el afán de engendrar, de
generar belleza tanto en el cuerpo como en el alma del discípulo.
El arte de enseñar de este maestro puede ser entendido como un
ejercicio amoroso, filosófico y pedagógico, imbuido por el deseo del
saber en el discípulo y en el maestro, por ello, será un permanente
enamorado de la filosofía y la pedagogía por estar consciente de su
constante búsqueda del conocimiento de sí y del otro.

referencias

DUCH, Lluís. Estaciones del laberinto. Barcelona, Herder, 2004.


GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método I. Salamanca, Sígueme, 1999.
GUTHRIE, W. K. C. Historia de la Filosofía Griega. Tomo IV: Platón. El hombre y
sus diálogos. Primera época. Madrid, Gredos, 1998.
HIGHET, Gilbert. El arte de enseñar. Buenos Aires, Paidós, 1963.

365
gregorio valera-villegas

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366
el error sabio

gustavo ruggiero
universidad nacional de general sarmiento, ungs
gruggiero@campus.ungs.edu.ar

Un faro quieto nada sería


Guía mientras no deje de girar
No es la luz lo que importa en verdad
Son los 12 segundos de oscuridad
Para que se vea desde alta mar
De poco le sirve al navegante
Que no sepa esperar
J. Drexler

Filosófico es el preguntar y poético el hallazgo


María Zambrano

i (error)

Errar puede ser y no ser equivocarse. Pero como recomienda la


prudencia, comencemos por intentar saber qué decimos con la palabra
error. El Diccionario de la Real Academia Española (2017) propone:
error, concepto equivocado o juicio falso; acción desacertada o
equivocada. Esta austeridad de palabras de la RAE puede
enriquecerse con entradas de diccionarios menos prestigiosos. Así,
encontramos una muy definición emparentada pero un poquito más
generosa. Error: idea, opinión o expresión que una persona considera
correcta pero que en realidad es falsa o desacertada; acción que no
sigue lo que es correcto, acertado o verdadero. Y si nos ponemos un
poco más exigentes, vamos a un diccionario filosófico. Por caso, el de
Nicola Abbagnano (1998). Allí dice que un error es la equivocación en
un acto, escrito o trabajo. En general, se denomina error a todo juicio o
valoración que contraviene el criterio que se considera como válido, en
el campo al que se refiere el juicio. Y de Zenón de Elea a los
fenomenólogos, el error será un asunto de digna consideración
filosófica.
Por otra parte, sólo para ir teniéndola en cuenta, la palabra
errancia, derivada de error, posee el siguiente significado: que anda de
una parte a otra sin tener asiento fijo; que yerra. Y dicho sea al pasar,
¿quién anda de una parte a otra sin tener asiento fijo? En la literatura
de Haroldo Conti (1986; 2015), por ejemplo, esta figura, la de quien
anda errante por la vida, aparece sistemáticamente en el centro de
muchas escenas pero toma forma más decidida en el personaje Oreste.

367
gustavo ruggiero

Este es un personaje que parece llevar una vida que no decide. Sin
embargo, la intensidad de lo que vive Oreste, al dejarse llevar por lo
que producen ciertos sucesos y encuentros azarosos, parece darnos la
oportunidad de pensar que la errancia, figura asociada a la
despreocupación, es una actitud que puede ser rescatada para postular
una resistencia a la temporalidad hegemónica y que es escapando y
resistiendo al modo que ha tomado la experiencia del tiempo en
nuestras sociedades actuales, en donde tenemos también que pensar el
asunto de la emancipación; porque ella parece exigir un cierto desapego
a la oferta del tiempo instituido.
La despreocupación está en la lógica de la experiencia, no de la
lógica de la verdad. La despreocupación no quiere fundar un modo de
vida universal. Al contrario, pone en valor la singularidad sin dejarse
tomar por la predominancia del narcisismo. La lógica de la
despreocupación no es desinterés. Es el interés invertido respecto de
los intereses predominantes. Hay que despreocuparse por los efectos
que sobre nuestras vidas puede llegar a tener el olvidarse de las
preocupaciones hegemónicas. La despreocupación no es olvido de sí;
es cuidado de sí.
En la vida real, quien no tiene asiento fijo es un nómada.
También un migrante. Y también los vagabundos, los linyeras, los
bichicomes o los crotos, están asociados a un cierto nomadismo. Puede
que los artesanos y los viajeros. Figuras todas de la errancia en su
conjunto. No apresuremos un juicio de valor sobre estas figuras, ni
sobre sus contrarias. Porque como dice el verso de Caetano Veloso
(1967), “mi corazón vagabundo quiere guardar el mundo en mí”. Esta
errancia entonces, quizás sea movida por algo más que un desacierto.
Tal vez sea la necesidad de romper una clausura. Y cuando Rancière
(2007) nos sugiere que para emanciparse hay que aprender algo y
relacionar eso aprendido con todo lo demás, nos provee también una
buena figura de la errancia.
Como primera hipótesis (notemos que una hipótesis es algo en
cierto sentido móvil), diremos: lo verdadero, al menos en filosofía, es lo fijo.
Y el error lo móvil. Donde está el error debe advenir una corrección que
estabilice la enunciación o el acto. El lector de filosofía puede derivar
de aquí todo tipo de lecturas. El ser debe ser verdadero, y con esto
empieza uno de los más viejos problemas de la filosofía. Lo verdadero,
que es igual a lo bueno, e igual a bello, lo es también a lo justo. De un
error, no puede derivarse un principio de justicia, por ejemplo. Ni la
edificación de una institución. Aunque es extraño, porque hay algunas
instituciones de las que perfectamente podría predicarse su
inadecuación a los deseos de los individuos.
El error entonces, como opuesto a lo verdadero, no puede
conducir a nada bueno. El error es una inadecuación. Pero, ¿una
inadecuación a qué? O mejor, ¿de qué a qué? Y también, ¿cómo es que

368
el error sabio

algo está o es inadecuado? Lo inadecuado, en principio es algo que no


se espera. Pero la verdad, tampoco es algo que siempre sea esperado.
En cualquier caso, tanto la verdad como el error, están hechos de
palabras. Y este es el punto de partida. ¿Qué pasa cuando no hay
palabras para nombrar lo nuevo? Este es el momento de hacer entrar
en escena a la escuela en este asunto. Porque la escuela tiene pasión
por nombrar. Pero nombrar no equivale a crear. Será por eso que en la
escuela está faltando poesía. Porque como dice W. Kohan, el poeta
fuerza las palabras para que “las palabras digan algo más de lo que
estamos acostumbrados a pensar a partir de ellas” (2016, p. 78).
¿Qué pasa cuando las palabras, como dice Peter Handke, no
tienen que ver con nosotros? (KOHAN; LARROSA, 2003, p. 41). Hay
allí algo de inadecuación. Porque palabras hay. Pero tal vez no tengan
que ver con nosotros. Y si como dijimos, el error es inadecuación,
cuando hay un error hay un vacío. Nuestra segunda hipótesis, deriva
de esto: es en la inadecuación donde hay creación, paradójicamente, o contra
toda idea de creación por deducción. Es en el vacío y desde el vacío desde
donde se puede crear, inventar.
Pero no estamos preparados para el vacío. La vida se llena de
cosas. Son tantas y tan revueltas a veces, que nos confunden. Pero no
estamos confundidos en ese revoltijo de palabras, de recuerdos, de
voces y de imágenes. Allí, en verdad, estamos protegidos. La
verdadera confusión es en el vacío, cuando ya no hay nada de todo ese
revuelto de significados heredados. ¿Y las instituciones? ¿No son acaso
el intento por conjurar la posibilidad de ese vacío? ¿Para qué tantos
monumentos? ¿Por qué la necesidad de totemizar?
Cuando las palabras que tenemos no son suficientes para
nombrar lo que tenemos que nombrar, entonces aparece la poesía, o en
su defecto, la filosofía. A la pregunta por la verdad de un discurso
heredado, le sigue inmediatamente la duplicación de la pregunta, un
pliegue sobre sí misma, como dice Castoriadis (2006, p. 92), y aquí
comienza verdaderamente la filosofía como reflexividad: ¿qué es la
verdad?; ¿qué es la realidad? A partir de esta afirmación podemos
decir que quien enuncia, el sujeto, es un sujeto poético. El sujeto
poético está entre el sujeto cartesiano y el sujeto freudiano. Soberano
de sus pensamientos pero imposible de sostenerse indefinidamente en
tal carácter. Soberano de sus pensamientos hasta que aparece lo
inadecuado. El error es sabio, porque por fuera de la fijeza de toda
norma, nos muestra que en el vacío hay movilidad. Y donde hay
movilidad hay vida. Y sólo en la vida tiene sentido el saber. Y en
última instancia, lo que queremos saber, es sobre el sentido de
nuestras vidas.

369
gustavo ruggiero

ii (creación)

Una tradición es lo imperceptible inmanente.162 ¿Qué cosas


conservar de las historias que nos anteceden? Hay una excelente
síntesis del problema que quiero retomar, y es la que formula Walter
Kohan (2016) a propósito de la figura de Simón Rodríguez. Kohan
empareja esa figura a la de cualquiera de nosotros, lxs educadorxs,
cuando “entrando” a una escuela ya hecha, sentimos la necesidad de
“inventar”, crear algo que no está dado allí. Esa relación, entre lo dado
y lo posible de ser inventado, entiendo que es la principal tensión
filosófica, pedagógica y política de quienes nos incluimos dentro de lo
que podríamos llamar movimiento pedagógico emancipatorio. Este
problema fue formulado bajo el signo de la reproducción y la creación,
la repetición y la diferencia, la repetición y la novedad o la autonomía
y la heteronomía. Distintos modos de nombrar el mismo problema.
¿Podemos salirnos de una tradición? ¿Hay modo? ¿Cuál es el precio?
Una tradición no siempre es algo negativo, en el sentido de reducir las
posibilidades expresivas de quien se encuentra atravesado por ella, y
sabiéndolo, quiere pensar por sí mismo las determinaciones que la
tradición conlleva. Una tradición puede ser condición de posibilidad
de nuevas expresiones. Aunque es cierto que las tradiciones
generalmente suelen ser opresivas. Los monumentos, los nombres de
las calles y las avenidas, los edificios públicos, suelen expresar el curso
de la tradición que quiere ser sostenida. Nuestro problema aquí no
sería tanto la relación que estableceríamos con una tradición opresiva,
puesto que ya en la adjetivación está dicho casi todo; lo inquietante
está en el diálogo con la tradición que queremos sostener. Para decirlo
más claro: cómo discutir con la tradición pedagógica emancipatoria,
especialmente la nuestra, la de la patria grande.
Es curioso que el maestro Simón Rodríguez haya puesto como
disyunción esa hermosa consigna política, en tiempos de revolución:
“Inventamos o erramos”. ¿Qué pasa si ponemos una conjunción?
Inventamos y erramos. O mejor, “inventamos porque erramos”. Está
más o menos claro que en el ideario de Simón Rodriguez, el error está
del lado de la repetición, de la copia. Y en tiempos de Rodriguez,
estamos en tiempos de revolución. Y si algo caracteriza a las
revoluciones es el intento de no copiar.
El poeta Léonidas Lamborghini (1971, p. 26), lo pone en términos
imperativos: “habla/di tu palabra/si eres poeta/eso será poesía”. En
el ámbito “profesional” de la filosofía, sabemos que en el comienzo de
su práctica, hubo cierta disputa con la poesía. Pero la poesía lleva a su
favor la propia etimología: hacer, crear, fabricar. Cuando Simón

162 La expresión pertenece a Castoriadis (1997, p. 194).

370
el error sabio

Rodríguez dice “Inventamos o erramos”, la idea de invención, está del


lado de la creación. No vale copiar en tiempos de Simón Rodríguez.
No vale copiar instituciones, especialmente. Hay que hacer, hay que
crear nuevas formas, nuevas figuras. Y aquí van perfectamente dos
preguntas: ¿desde dónde se inventa?; ¿qué relación hay entre lo
inventado y lo que ya existe? Dicho apenas de otro modo: ¿qué
relación hay entre lo nuevo y lo viejo? ¿Se inventa desde la nada? ¿Se
puede programar la invención? ¿Cómo reconocer lo nuevo cuando es
tal, si posiblemente, en tanto nuevo, todavía no tenga palabras? ¿Qué
mayor novedad que la que anuncia lo que aún no existe?163 Por eso las
revoluciones siempre son anunciadas aunque después nos tomen por
sorpresa.
Dice la filósofa española Adela Cortina (2018) que poner
palabras a las cosas, a las distintas “realidades”, tanto las materiales
como las que no lo son, es ingresarlas en el mundo humano. Ya lo
decía Aristóteles164 también. Sólo que ese ingreso en el lenguaje, para
Aristóteles, daba además el carácter político a la especie que somos.
No sólo emitimos sonidos de placer o dolor, como los animales, sino
también podemos decir qué es lo justo y lo injusto, lo bueno o lo malo.
Eso es la polis. Las palabras de la polis son principalmente estas. Para
el filósofo Cornelius Castoriadis (1997, p. 143), la primera pregunta de
la filosofía no es la pregunta por el ser, sino la pregunta “¿qué
debemos pensar?” Sobre todo, qué debemos pensar de las leyes que
organizan nuestra vida en sociedad. La invención, desde esta
perspectiva, puede ser asociada a la vida en sociedad. ¿Queremos las
palabras que organizan nuestra vida y nuestro mundo o queremos
otras?
Alicia, la del espejo, se encuentra con Humpty Dumpty
(CARROLL, 2005, p. 85). La escena ya es famosa y ha sido utilizada
muchas veces. Alicia pregunta si se puede hacer que las palabras
signifiquen tantas cosas diferentes, y el antipático huevo
antropomórfico responde que lo que importa es saber quién manda. Y
eso es todo. Pero nosotros sabemos que eso, justamente, no es todo.
Dice el filósofo Castoriadis que la socialización de la psique humana
no es sin resto. No hay, en el mundo humano, clausura absoluta de
significación y de sentido. Si así lo fuera, el mundo efectivamente sería
pura determinación. Y si el ser no está determinado, entonces habrá
posibilidad de creación. Ese pasaje de Alicia nos puede enseñar varias

163 La expresión corresponde a María Pía Lopez y Horacio Gonzalez, expresada en un

artículo que denuncia la destrucción del Museo de la Lengua en la Biblioteca Nacional


de Argentina, publicado el 29/7/2018 en el semanario periodístico web El cohete a la
luna.
164 Política, I, 1, 1253a.

371
gustavo ruggiero

cosas. Pero en este caso, queremos rescatar la relación entre lo ya


dado, el lenguaje, una cierta clausura, y la posibilidad de invención, de
creación radical. Si el ser no está determinado de una vez y para
siempre, entonces el ser puede ser caos. Magma de significaciones
imaginarias, dice Castoriadis, creadas por el colectivo anónimo que
conformamos los humanos en el devenir histórico-social de nuestras
creaciones sociales. Si el sentido no está dado de una vez y para
siempre, entonces la pregunta, el gesto que instala la pregunta
filosófica, es la posibilidad de asomarse al caos. Al sin fondo, a la
ausencia de sentido. Pero es asomarse también a la elucidación del
sentido instituido. La pregunta se convierte en una llave para la
creación. Enseñar a preguntar, entonces, puede ser enseñar a crear.
Si como sostiene Castoriadis (2007), la alienación, que es
estructurante del psiquismo pues sin ella no hay mundo social, nunca
es total, ¿puede haber una pedagogía que se interese por el efecto de
esos “restos” que deja la socialización? La diferencia radical entre el
mundo biológico y el mundo histórico-social es que, en este, puede
surgir la autonomía. La autonomía como proyecto, individual y
colectivo, puede orientar nuestra búsqueda en torno a una pedagogía
que se interese por la posibilidad de la creación, de la invención. Esta
palabra, autonomía, será una palabra clave a condición de tomar
distancia, desde el vamos, de su posibilidad narcisista. Porque vivimos
en un mundo en donde el imperativo de soberanía individual está a la
orden del día. Y es perfectamente posible devenir en consumidores
antes que en ciudadanos, como nos enseñó García Canclini. La
autonomía, en el sentido que queremos pensarla, vale decir, como
posibilidad emancipatoria de la pedagogía, advierte dos cosas. Por un
lado, que debe enfocar una definición de lo que somos en tanto un tipo
particular de viviente. Y por el otro, que al hacer ese ejercicio, el
mismo no derive inmediatamente en un individualismo
antropológico. El individuo, el para sí que cada individuo es, dice
Castoriadis inspirándose en el matemático Cantor, es una parte total
de la sociedad. El individuo es una psique socializada. Sin paideia no hay
humanidad, nos enseñaron los griegos. Pero esa socialización, que es
la base de una clausura de significación, lleva en sí la posibilidad de la
ruptura de la clausura. En tanto posibilidad, abre la dimensión más
importante, la de la política. La política entendida como ruptura del
sentido instituido; la toma de una distancia respecto de las leyes
heredadas. De modo que la singularidad puede modificar la
universalidad. Dice Castoriadis:
“Las formas de sociedad, las obras, los tipos de
individuos que surgen en la historia no pertenecen a
una lista, aunque fuera infinita, de posibles pre-
establecidos y positivos. Son creaciones a partir de las
cuales nuevos posibles, antes inexistentes por carecer de
sentido, aparecen” (1997, p. 135).

372
el error sabio

Pero claro, seguramente el lector, si lo hace desde una


perspectiva emancipatoria, se pregunta a esta altura por qué razón se
perpetúan los ordenamientos sociales injustos, por ejemplo. Quizás
debamos decir, sin ánimo de resignación, que la transformación de un
orden social, o de una posición individual, no está exclusivamente en
relación a una deducción racional, ni depende de ella. Es más difícil
destruir un mito que un sistema económico, decía este mismo filósofo.
De allí que postulemos que la creación es radical o no es creación. Pero
esa fuente de creación radical, que no es la razón sino la imaginación,
ha quedado oculta como tal en la tradición occidental filosófica
occidental.
Una posible explicación a esa pregunta del lector insumiso, es
que el sentido instituido de las cosas, del ordenamiento de la vida, de
la dimensión aritmética de nuestras construcciones imaginarias, queda
imputado casi siempre a una fuente extra-social. Entonces la clausura
del sentido se vuelve perdurable. A eso debemos llamar heteronomía.
La heteronomía es constitutiva de la psique y de la sociedad. Es su
tendencia más espontánea, podemos decir. Porque, como dijimos, esa
clausura es necesaria, tanto para la constitución de la psique
individual como para el ordenamiento de una sociedad. Pero en tanto
clausura será relativa, contingente, arbitraria. La ruptura de la
clausura, de la heteronomía, a nivel del pensamiento, es lo que
Castoriadis (2008, p. 156) llama filosofía. Y aquí nos gusta esa
definición. Porque la clausura puede romperse. Y cuando el colectivo
social se interroga por la validez de las leyes que ordenan y dan
sentido a las instituciones son puestas en cuestión, entonces, como ya
dijimos, nace la política. De allí tal vez que Castoriadis se sienta
autorizado a sostener que filosofía y democracia nacen juntas.
Cuando el ocultamiento de la dimensión creadora queda
expuesto, por efecto de la interrogación del sentido instituido,
entonces se hace visible que esos seres que somos llevamos en
nosotros la posibilidad de la autoalteración. La especificidad de lo
humano es entonces la creación. Llevamos en nosotros la posibilidad
de hacer nacer formas diferentes de existencia individual y social. Lo
dice Castoriadis de modo muy bello: “El alcance ontológico de esta
comprobación es inmenso: existe, al menos un tipo de ser que crea lo otro, que
es fuente de alteridad, y que por ese camino se altera a sí mismo” (1997, p.
137). La creación entonces, si es una capacidad de hacer surgir lo que
no está dado ni es derivable, y si tampoco es mera combinación de
formas ya dadas, tiene que exceder a la racionalidad. Y por eso,
debemos enfocar ahora la función de la imaginación. Tomaremos aquí a
la imaginación como la capacidad de ver lo que no está, de ver en algo eso
que no está ahí; ver alguna cosa en eso que no es esa cosa. Y también, no ver
siempre la misma cosa en eso que no es esa cosa. Pero antes de detenernos

373
gustavo ruggiero

en las consecuencias pedagógicas y políticas de una definición como la


que antecede, es preciso dejar expuesto mínimamente el modo en que
ha sido tratado el problema de la imaginación en la filosofía.

iii (la imaginación autoriza)

La imaginación tiene buena y mala prensa. Como Messi o


Maradona. Como cualquier personalidad destacada. O mejor dicho,
como todo el mundo. Por un lado se valora positivamente a la persona
que tiene imaginación. Tanto sea porque tiene una ensoñación artística
y puede inventar algo nuevo o porque resuelva un problema
determinado para el que los demás no encuentran la solución. Por otro
lado, a la persona que tiene “mucha” imaginación, se le suele
reprochar la falta de un principio de realidad para la vida cotidiana.
Pascal llamó justamente a la imaginación maestra del error y la
falsedad y Malebranche, la loca que juega a estar loca (WARNOCK,
1981). En uno u otro caso, se percibe una excepcionalidad. La
imaginación tiene un lugar distinto respecto de la continuidad de las
cosas. Podríamos decir, de la “racionalidad” de las cosas. Pero la
primera incomodidad que el pensamiento sobre la imaginación
provoca, es que hay altísimas probabilidades de que lo real no sea
racional ni lo racional sea real.
Lo que intentaré a continuación es averiguar si es posible volver
a pensar la pretensión emancipatoria de la educación, pasando esta
vez por un lugar que tanto la filosofía, desde el principio de sus
tiempos, como la pedagogía, en épocas más recientes, eludió
sistemáticamente. Ese es el lugar de la imaginación. ¿Qué pasa si
partimos de un lugar distinto al que estamos acostumbrados? ¿Qué
pasa si en lugar de pensar la educación de la razón, como capacidad
de discernimiento, partimos de otro lugar? ¿Por qué seguimos
creyendo que, educando para razonar bien, el mundo será mejor?
Pero antes de desplegar algunos argumentos, tomemos la
prevención de advertir que no se trata de promover una educación de
la imaginación. Es decir, de educar la imaginación, ordenarla, guiarla,
encausarla. Así como consideramos insuficiente la pretensión ilustrada
y advertimos que la pedagogización de la capacidad de razonar no ha
sido suficiente en términos emancipatorios, tendremos también cierto
cuidado en pretender orientar la imaginación. Antes bien, si es cierto
lo que postulamos más arriba recuperando la tesis de Castoriadis
sobre la constitución de la psique individual, y si el efecto de la
socialización de la misma nunca es absoluto ni total, entonces
podemos sostener que la característica de esa psique individual es la
posibilidad de la creación. Esta creación es por un lado el resultado del
cuestionamiento del sentido instituido, y por otro la liberación de
representaciones, afectos y deseos que caracterizan a la psique. Allí no se

374
el error sabio

trata de deducciones racionales sino de invención radical. De modo


que, por otro camino, encontramos una vez más la potencia de la
experiencia filosófica, en tanto su gesto más propio, el de la
interrogación ilimitada, se puede volver dispositivo de palabra que dé
lugar a la imaginación creadora. Como dice E. Coccia (2008)
estudiando el descubrimiento de la imaginación en Averroes: “todo
hombre en filosofía cuenta únicamente con la ciudadanía que le
garantiza su imaginación” (2010, p. 319).
En la tradición filosófica, dice Castoriadis, al menos en dos
grandes filósofos como lo son Aristóteles y Kant, podemos encontrar
el mismo gesto que luego se verá también en Freud: el descubrimiento
de la imaginación y su posterior ocultamiento. Este ocultamiento, que es
“un olvido extraño y total” (2005, p. 150) y se explica parcialmente si
consideramos que la imaginación “no se deja sujetar ni contener, ni situar,
ni formularse en una relación clara y unívoca con relación al pensamiento y a
la sensibilidad” (ibídem). El descubrimiento fundamental de Aristóteles,
para Castoriadis, es que sin imaginación no hay pensamiento ni deseo.
“El alma nunca piensa sin fantasmas”, dice Aristóteles, pero sin embargo
en la lectura del De Anima se observa un paso atrás, un retroceso,
porque el fundador del Liceo dice también que la facultad de imaginar
es secundaria, una función que puede ser engañosa165. Una función,
como se verá también en otros filósofos, posteriormente, que actúa
como reproducción de lo ya percibido o recombinación de los
elementos percibidos.
Aristóteles “descubre” la imaginación, dice Castoriadis, pero no
sostiene las consecuencias de ese descubrimiento. ¿Y por qué habrá
dado ese paso atrás, Aristóteles? Según Castoriadis, si se considera a la
imaginación como base del pensamiento y no consecuencia o efecto
irregular de este, se altera la ontología tradicional para la que el ser es
racional. ¿Cuál es entonces el estatuto ontológico de la imaginación si
esta no es ni lo sensible ni lo inteligible? ¿Por qué la imaginación
primera descubierta por Aristóteles no es recuperada? Por dos razones
fundamentalmente. Por el privilegio ontológico de la cosa y porque el
pensamiento es pensado desde el principio como búsqueda de la
verdad (aletheia) opuesta a la simple opinión (doxa). La verdad ha sido
relacionada desde el principio con el logos, el nous, la Ratio. Y si el alma
nunca piensa sin fantasmas, entonces no tiene ningún valor afirmar
que los productos de la imaginación son falsos. Lo verdadero y lo falso
carecen de interés para una función creadora de la imaginación,
porque ella no puede ser puesta en el espacio definido por lo
verdadero y lo falso y detrás de ellos por el ser y el no ser.

165 Es notablemente distinta la definición de la función de la imaginación que

Aristóteles realiza en el Capítulo 3 del Libro III de la que hace en los Capítulos 7 y 8.

375
gustavo ruggiero

La imaginación no es fuente de error porque la adecuación de la


palabra a la cosa no es su asunto. Pero la imaginación tampoco es una
función de la psique sino la que define su propia naturaleza. La psique
fabrica todo el tiempo representaciones, imágenes que exceden el
mundo sensible. La imaginación radical es la principal característica de
la psique. Implica creación y no espejo o repetición de una cantidad
predeterminada de representaciones. Es por la imaginación que es posible
romper la clausura a nivel del pensamiento y no por la razón. La razón
sutura. Organiza el mundo en conjuntos, clases, propiedades y relaciones.
Junto a la imaginación radical de la psique individual,
Castoriadis pone otra dimensión de la imaginación: el imaginario social
radical. Este es la condición de posibilidad de la producción de un
magma de significaciones imaginarias y de las instituciones e individuos
en las que estas se materializan y transmiten o reproducen. El
imaginario social produce unas significaciones que la psique no podría
producir por sí sola. En ese sentido es que se puede afirmar que el
imaginario social instituye las significaciones que producen un
determinado mundo. Estrictamente hablando, no son meras
representaciones sociales. El imaginario social instituye, -en tanto
colectivo anónimo-, crea un modo de sociedad.
La comprensión de lo que significa el despliegue del imaginario
social instituyente, es la comprensión de que el ser humano hace su
historia. Al negar la función de la imaginación se niega el hecho de
que la sociedad es el efecto de su auto-alteración. No hay fuente
“extra-social” que dé origen a las significaciones imaginarias que
ordenan y regulan nuestros deseos, nuestras maneras de jerarquizar y
valorar las conductas y que, en suma, “ordenan” el mundo. El
ocultamiento de la capacidad creadora de la imaginación corre en
paralelo con el ocultamiento de la dimensión histórico-social de lo
imaginario radical, de la sociedad instituyente y del tiempo como
tiempo de creación y no de mera repetición. No hay factores
trascendentes a los que acudir para dar cuenta de la creación de las
sociedades. Ni el lenguaje, ni las normas, ni las costumbres, ni la
técnica pueden ser explicadas por factores ajenos, o exteriores a la
comunidad humana. No nos queda más que decir, y esta es la apuesta
pedagógica, que la imaginación es rebelde a la determinación.
Quienes educamos, principalmente en las escuelas, somos
quienes introducimos una infinita variedad de imágenes del mundo.
Ordenamos esas imágenes y le damos un sentido. Sentido como
orientación. Del mismo modo que lo decimos de una calle, por
ejemplo, que se orienta en sentido sur, va hacia el río. Tal otra tiene
mano hacia el este y va en el sentido del centro de la ciudad. La
introducción de esas imágenes del mundo es parte de lo que
caracteriza a nuestra especie. La transmisión de esas imágenes tienen,
curiosamente, un soporte que no es imagen: se transmiten con

376
el error sabio

palabras. Es el lenguaje la vía regia que usamos los educadores para


introducir las imágenes del mundo. Tomar nota de los efectos de este
rol da cuenta de una responsabilidad y quizás nos dé una pista para
pensar lo que hacemos y para saber lo que pensamos. Porque la
introducción de esas imágenes no es gratis. Llevan su costo. Ese costo
siempre es la clausura del mundo. Por eso cuando pensamos que la
infancia, la biológica en este caso, es un tiempo propicio para la
filosofía, no es porque las niñas y los niños sean espontáneamente
filósofos, sino porque la clausura allí se puede volver en el límite
temprano de todo lo que puede –y no lo sabemos de antemano- una
vida.
Como dijimos, la socialización no es sin resto. Introducir al
universo infantil en nuestras imágenes del mundo tiene entonces que
volverse una cuestión de reflexión. Enseñen a los niños a ser preguntones,
dice Simón Rodríguez (KOHAN, 2016, p. 32). Debemos volver
inteligible ese proceso. Porque ese proceso puede ser una experiencia
que introduzca la diversidad o puede ser una experiencia que reduzca
el mundo (sentido) a lo uno. Y, digamos de paso que, a pesar de las
multitudes que la escuela contemporánea alberga, lo múltiple no parece
caracterizarla siempre.

iv (¿qué quiere la escuela?)

A la escuela no le gusta el error. Le tiene miedo. En realidad en


la escuela deambulan muchos miedos. Como fantasmas. Porque si
algo caracteriza a los fantasmas es el deambular errante de un lado a
otro. De todos los miedos que andan sueltos en la escuela, tomemos el
miedo al error. ¿Por qué tanta pasión puesta al servicio de conjurar el
error? ¿Será en el fondo un miedo a que la vida equivoque el rumbo?
¿Es la pasión por el cuidado de esas vidas la que nos lleva a
conducirlas por el camino correcto? ¿Es el miedo a una vida errada?
¿Hay acaso una vida errada? Por supuesto que advertimos que una
cosa es un error de cálculo y otra cosa una conducta equivocada.
Porque el error no deja de ser una equivocación.
Podríamos decir entonces que el miedo a la equivocación es un
maestro destacado. Si nos hacemos la pregunta de ese niño que, en un
taller de filosofía, al cabo de unas intensas conversaciones sobre la
evaluación se preguntó “¿qué quiere la escuela?”, podemos encontrar
un rumbo para nuestra reflexión sobre la intención emancipatoria de
la educación. La escuela es un lugar –y un tiempo- en que la razón se
organiza. Pero parece ser que esa organización conduce
inevitablemente a una clausura. De modo que nos encontramos con
una inquietud: si lo que deseamos es educar para emancipar,
¿debemos educar la razón? Vale la pena recordar que el discurso
pedagógico de la modernidad, del cual somos herederos, nos deja la

377
gustavo ruggiero

valiosa consigna del sapere aude, pero también su paradoja: ¿la


autonomía es un imperativo o un proyecto?

v (para la emancipación, una razón poética)

Una razón poética es una razón que puede entrar y salir del
pensamiento heredado. No entrar y salir a gusto, porque no hay
soberanía plena sobre ninguno de los dos movimientos. Si la
correspondencia entre realidad y racionalidad fuera plena, no nos
queda más que trabajo empírico, como dijo Hegel. Pero si no llega a
serlo, si la hipótesis de que el ser es caos y no es orden, entonces los
modos del ordenamiento son contingentes y alguna posibilidad de
entusiasmo creador nos queda. Hacer inteligible algo no supone
volverlo racional. Supone un doble movimiento que me resulta muy
productivo tomar de Castoriadis como concepto: elucidación; pensar lo
que se hace y saber lo que se piensa. Pero si lo que pensamos está
contenido en un universo de significaciones166 ya dadas, lo inquietante
es saber si es posible pensar algo por fuera de ese universo: ¿qué debo
pensar de mi pensamiento?167 Tanto la filosofía como la poesía se
muestran inquietas frente a la clausura del lenguaje. Romper la
clausura de un universo de significación heredado ha tomado, ya lo
dijimos, diversos nombres en la reflexión filosófica y sociológica sobre
la educación: repetición-novedad; reproducción-alteración;
autonomía-heteronomía.
¿Qué saber necesita una pedagogía emancipatoria? Hace algunos
años Paulo Freire (1997) repasó a modo de síntesis los saberes

166 Volvamos a decirlo porque tiene su complejidad. Las significaciones que organizan
nuestro sentido diurno son llamadas por Castoriadis “significaciones imaginarias”.
Son imaginarias porque no se derivan lógica ni materialmente de nada. No son reales
ni racionales. Son creadas radicalmente por el colectivo anónimo y configuran la
dimensión histórico-social que da cohesión a las sociedades. El mantenimiento de esas
significaciones imaginarias en el tiempo es efecto de la heteronomía que caracteriza
tanto a la psique individual como a la sociedad. La institución es la encarnación de
esas significaciones imaginarias y en tanto tal, tiende a la clausura. El intento de
romper esa clausura de la institución es la política. Y el intento de romper esa
clausura, a nivel del pensamiento, es la filosofía.
167 El filósofo italiano Coccia, a quien ya nombramos, dice que para el averroísmo “no

soy yo quien piensa lo que pienso”. El averroísmo pone en cuestión una idea muy
consolidada ya en el pensamiento moderno y es la de que todo pensamiento –o todo
saber– tiene la forma de una conciencia individual. El averroísmo vendría a cortar esa
relación entre pensamiento e individuo según Coccia. Esto lo argumenta tomando las
figuras del no-pensamiento: el infante, el loco, el durmiente. Pero también lo hace
considerando la posibilidad misma de toda tradición. Vale decir, “la supervivencia del
pensamiento a la muerte del individuo que se supone lo produjera” (2008, p. 102).

378
el error sabio

necesarios para la práctica educativa. Permaneció fiel, en ese escrito, a


la reflexión que orientó toda una vida educadora. Él insistió, en uno
de sus últimos libros, Pedagogía de la autonomía, en algunas ideas
centrales: la necesidad de investigar y formarse para educar, la
posibilidad de hacer crecer la curiosidad constitutiva de lo humano y
su devenir en curiosidad epistemológica, el carácter incompleto de los
seres humanos de donde deriva la posibilidad de la educabilidad, la
dimensión ética y política de la tarea educativa, la imposibilidad de
reducir la educación a la transmisión de conocimientos. Es cierto que
la pedagogía no escapa con facilidad al tono prescriptivo cuando
enuncia su finalidad. Aún una pedagogía emancipatoria está
delimitada por este cerco cognitivo. Por eso el saber que necesita una
pedagogía emancipatoria tal vez sea un saber sobre qué se hace con la
contingencia y la precariedad de todo ordenamiento de sentido. No
porque no precisemos de ese ordenamiento. Somos fragmentos
ambulantes de la sociedad hasta cierto punto. Pero ese ordenamiento,
que es necesario, también es un convenio inestable. Cuando esa
contingencia del ordenamiento queda oculta la institución se totemiza,
al punto de arrasar la singularidad. Y como tercera hipótesis (ya casi
no recordamos las primeras) diremos que es la singularidad la que altera
la universalidad. El saber que necesitamos para sostener una pedagogía
emancipatoria es un saber que no es universalizable, de modo que allí
comienza (y tal vez termine) nuestro problema. Tal vez debamos
asumir que lo más universal que compartimos es el misterio y que
somos lo aún no descifrado. ¿Por qué entonces el empeño en que
nuestras instituciones perduren indefinidamente? La respuesta es: por
temor. Las instituciones conjuran la muerte. Sin dudas. Por eso las
necesitamos. Pero también necesitamos enfrentar la muerte y no
negarla. Es curioso que la escuela solo prepare para la vida. Aprender
a vivir suele ser una consigna escolar recurrente. Sin embargo esa tarea
será interrumpida. Y no estamos preparados para ello. La interrupción
no está en la cuenta de las posibilidades gratas. Por eso no hay una
pedagogía de la interrupción. Porque justamente precisamos lo
contrario, la continuidad. De modo que esta tensión no puede obviarse
en una pedagogía emancipatoria. Porque es justamente la relación
entre tradición y ruptura la que hace sentido en el propio término
emancipación.
Nombres. Palabras que intentan conjurar el vacío. Inadecuación
momentánea. Dice el poeta Antonio Porchia: “todo se había
quedado/sin engaño, esa vez/ y esa vez tuve miedo de todo” (2012,
p. 24). ¿Qué pasa si nos quedamos sin engaño? El error como
inadecuación es el nombre que intenta conjurar lo que sobreviene a
quedarnos sin engaño. El miedo a la contingencia, a la inestabilidad de
las cosas. Por estos días que vivimos, el movimiento de mujeres y de
los colectivos que reivindican el derecho a la diversidad sexual nos

379
gustavo ruggiero

propone lo que tal vez constituya uno de los aprendizajes más


revolucionarios para la humanidad. Romper, entre otras cosas, el
binario hombre-mujer pero romper, sobre todo, la clasificación
definitiva. Sentir en el cuerpo el efecto de la palabra. ¿En qué lengua
nos sentiremos todes contenides? ¿Cómo hablar una lengua que no deje
a nadie afuera? ¿Cómo nombrar los cuerpos? Si se mira bien y se hace
memoria, también lo han dicho los zapatistas: queremos un mundo
donde quepan muchos mundos.
La filósofa María Zambrano, mujer marcada por la errancia de
una patria a otra porque en su polis la palabra sólo podía nombrar lo
ya dicho, dice que pensar es descifrar lo que se siente (1977). Ella nos
ha provisto de una idea, la de una razón poética. Una razón que no
violenta las cosas para descifrarlas en sus enigmas. Una razón que es
capaz de contemplarlas. Una manera de pensar la razón que no nos
obligue a disociar lo singular de lo universal. Porque eso es lo que
enseña la poesía; que la experiencia singular puede ser comunicada
como verdad simbólica. Ese límite infranqueable del lenguaje frente a
la experiencia quiere ser corrido por nosotros todo el tiempo. El error
como inexactidud del lenguaje, o como acción equivocada o
inadecuación a lo verdadero, nos pone en la experiencia pedagógica
frente a una posibilidad emancipatoria. La persistencia en la
inadecuación es lo que ha creado nuevas figuras del pensamiento.
Nuevas significaciones frente al sentido instituido. La pasión escolar
por la corrección del error clausura tempranamente la experiencia del
pensar.
Fragmentos de realidad. No se pasa de lo posible a lo real sino de lo
imposible a lo verdadero, dice María Zambrano (2006, p. 7). Siempre
estamos errando. Porque siempre estamos separados de la “realidad”.
Esa inadecuación es inevitable aunque la razón escolar pretenda
conjurarla. Es tal vez aquel temprano descubrimiento, el de que el
alma nunca piensa sin fantasmas, el que aún nos guarde alguna
posibilidad. Ya hicimos bastante con la razón. Probemos ahora la
invención de otro lenguaje.

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381
382
filosofía y educación en errancia: ¿paseantes, vagabundas,
peregrinas?

laura agratti
universiad nacional de la plata, unlp
lagratti@isis.edu.unlp.ar

primeras palabras: errar en medio de políticas neoliberales

“Inconscientemente vamos por un camino,


y conscientemente nos ponemos a buscar
otro camino, en vez de hacer consciente el
camino por el que vamos”.

Vicente Luy168
(Caricatura de un enfermo de amor, 1991)

Este coloquio nos reúne para pensar la filosofía y la educación en


tanto portan el atributo, la circunstancia, la particularidad del errante.
De este modo, filosofía y educación se anuncian teñidas por la errancia
tomada en toda su polisemia ya sea como una forma de recorrido por
el espacio o como un error. Desplazamiento o equivocación, esa es la
ambivalencia inmediata que la errancia presenta.
En este sentido se trata de una invitación que llega cargada de
ambigüedad y esta condición con la que se nos aparece, nos lleva a
situarnos en uno de sus sentidos para intentar clarificarla. Es así que
en este trabajo nos centraremos en el sentido de errancia como
recorrido espacial a los efectos de problematizar la filosofía y la
educación como portadoras de una circunstancia o posibilidad del
errante como caminante.
Inspirada por los versos del poeta argentino Vicente Luy, tiendo
a creer que este escrito comenzará por planteos, preguntas, posiciones
que le son propios al camino por el que inconscientemente me vengo
desplazando y que, en el intento de desanudar la ambigüedad,
emprenderé conscientemente la búsqueda de otro camino a riesgo de
no hacer consciente el camino por el que vengo andando.
De modo que la errancia que está en el tema del coloquio invade
de entrada mi escritura y comienza a producir sus efectos en ella bajo
la forma de un desplazamiento del espacio de un camino

168 Poeta argentino (1961-2012).

383
laura agratti

inconscientemente ya recorrido y la búsqueda consciente de un


camino todavía por recorrer.
El sentido de esta escritura, en parte, reside en poner la atención
en el andar: se abren así una variedad de posibilidades al vernos
ejerciendo el camino, volviéndolo acto. Andar se dice de muchas
maneras. La forma que adquiere el andar condiciona sin lugar a dudas
el camino que transitamos y de qué manera lo hacemos. En este caso,
hemos transitado un camino de la mano de la filosofía y de la
educación y hemos hecho de ese camino nuestro modo de vida.
Asumir esta provocación que nos llega como pura exterioridad para
hacerla propia parece tarea fácil puesto que, no haría más que tornar
visible una perspectiva afirmada en nuestras prácticas cotidianas. Pero
estas prácticas se despliegan en un contexto que merece, hoy más que
nunca, ser explicitado en función de rescatar el valor de lo andado y
de hacer conscientes los desafíos que se nos plantean desde nuestra
particular manera de interpretar la propia errancia situados en nuestro
espacio específico.
En este sentido, la América Latina de este 2018 nos encuentra en
la preocupación por el destino de nuestras sociedades atravesadas por
políticas neoliberales perversas que excluyen y destrozan la trama
social y amenazan, no sin violencia, acabar con las posibilidades de
construir una sociedad más justa e igualitaria.
A la base de toda explicación se encuentra la asfixia a la que los
sectores más vulnerables de la población están siendo reducidos a
través de la implementación de políticas económicas devastadoras que
los inhiben de acceder a una vida que les ofrezca condiciones de
sostener la esperanza en un futuro mejor.
Así, los gobiernos neoliberales afirmados en la necesidad de
sostener estas políticas de empobrecimiento de todas las dimensiones
de la vida de los sectores más castigados de la sociedad, irrumpen y
nos dislocan con gestos de violencia material y simbólica que nos
llenan de impotencia como lo fue el armado
político/mediático/jurídico que provocó el golpe a la Presidenta
Dilma Rousseff en Brasil y, de un modo más general, está sosteniendo
en ese país un marco político para la manutención del mismo grupo de
poder en las elecciones del próximo mes de octubre. En ese contexto, el
despiadado asesinato de la Concejal Carioca Marielle Franco y el
encarcelamiento del ex Presidente Lula nos enfrentan a realidades que
nos duelen y nos angustian. Para que se tenga una medida de cómo
estas políticas impactan en la realidad cotidiana de la educación
pública, vale un tristísimo caso ocurrido recientemente en que el
Estado argentino les robó sus vidas a la vicedirectora y al auxiliar de la
Escuela N 49 de Moreno, Provincia de Buenos Aires. En efecto, Sandra
Calamano y Rubén Rodriguez, en la mañana del 2 de agosto de este
mismo año llegaron temprano a la escuela para preparar el desayuno

384
filosofía y educación en errancia: ¿paseantes, vagabundas, peregrinas?

para los niños y las niñas y calentar las aulas. En medio de estos
preparativos una garrafa de gas conectada de manera provisoria y
precaria, explotó y los mató a los dos. Vale destacar que las
autoridades de la escuela habían señalado el problema y realizado
muchas presentaciones solicitando que las conexiones de gas fuesen
reparadas sin encontrar respuesta del estado provincial.
Dilma, Marielle, Lula, Sandra Calamano y Rubén Rodríguez,
¿qué tienen todos estos casos aparentemente tan distintos, en común?
Ellos hablan, en nuestros países y, en modo más amplio en nuestra
región, de una amenaza alimentada por tres dimensiones que
considero imprescindibles para pensar el momento actual y las
consecuencias que este momento pueden traer aparejadas: a) la
dimensión de la eliminación de una vida política disidente y crítica, b)
la dimensión de una justicia devenida instrumento de
exclusión/eliminación de los que batallan contra las políticas
implantadas de espaldas a las clases más excluídas y c) la dimensión
del abandono y destrucción de la educación pública.
Creo que la articulación de estas tres dimensiones busca crear las
condiciones para un entramado que haga posible y sostenible en el
tiempo las actuales políticas económicas de recesión y desempleo y,
junto con ellas, la profundización de una fragmentación social
preexistente y el empobrecimiento de horizontes de existencia tanto en
lo individual como en lo colectivo, más allá de los valores y formas de
vida que esas políticas están implantando.

la errancia de la filosofía: inacabar lo (que se presenta) como


acabado

Así con esta apretada síntesis de los aspectos que creemos


esenciales de nuestro contexto actual, me propongo volver sobre
nosotras/os mismas/os para explorar nuestras alternativas como
educadoras y educadores comprometidos con la filosofía. Y en este
propósito encontramos la voz de una filósofa y educadora
contemporánea que nos permitimos traer para precisar el sentido de lo
que entendemos como compromiso de la filosofía. Marina Garcés en
su Filosofía Inacabada nos dice que:
“Quizá el principal compromiso de la filosofía, hoy, sea
inacabar el mundo. No se trata de salvarlo, la salvación
forma parte del discurso apocalíptico, que se mueve
entre la destrucción o la salvación como una alternativa
extrema y binaria, que finalmente sólo puede estar en
manos de algo que esté más allá de nosotros, Dios, la
historia o el destino. No se trata, pues, de salvar al
mundo ni a la humanidad sino de hacer el mundo
vivible y a la humanidad capaz de tomar en sus manos

385
laura agratti

esta apuesta. Percatarse de la propia debilidad e


impotencia, como decía Epicteto, es el primer paso para
ello. Sólo desde la vulnerabilidad compartida puede
lanzarse una potencia del pensamiento capaz de librar
esta difícil batalla”. (Garcés, 2015, p.16)
Con estas palabras, Garcés traspone al territorio del hacer
filosofía su atributo más pleno e inherente, el de ser siempre al mismo
tiempo inacabada e inacabante. De esa manera, el anclaje que nos
propone Garcés renueva el viejo sentido de su persistente
circunstancia porque la enfrenta al atributo con el que hoy se nos
presenta el mundo, un mundo agotado, acabado. La filosofía no se
propone salvar religiosamente el mundo sino inacabarlo de su
impuesto y pretendido acabamiento. De esta manera, la filosofía
reafirma también su dimensión infantil, de propiciadora de inicios:
muestra que lo que parece terminado puede, siempre, volver a
comenzar. Asimismo, la filosofía inacabada al decir de Garcés (2015),
“nos interpela hoy en un mundo que muestra síntomas de agotamiento, como
planeta y como modelo de sociedad” (p.16). De esta forma filosofar
comprometidamente con nuestro tiempo no es más que promover la
pregunta sin dramatismo pero con urgencia e intensidad y sin la
pretensión de conferirle a nuestras prácticas misiones sublimes. Se
trata más bien, de agujerear la realidad con preguntas que nos
interpelen existencialmente y como comunidad, de modo que nos
permitan saber del aquí y ahora del mundo que habitamos para que
todas/os asumamos lo menesteroso del mundo compartido y
podamos elegir las armas para dar la batalla y para ejercer
colectivamente el desafío de hacerlo vivible. Mostrar la condición que
tienen de renovables el planeta y la sociedad, el mundo y la
comunidad. Esa es la tarea acuciante de nuestro tiempo de la filosofía.

el camino recorrido: enseñar a enseñar lo inacabado

Inexorablemente, la realidad siempre móvil, nos desplaza de la


filosofía que hemos afirmado, tal vez sin darnos cuenta, en el camino
recorrido y nos incita a buscar otro camino. Errancia inevitable entre el
camino ya trazado y vivido y el caminar del camino que inventamos a
tientas en la búsqueda a la que nos somete la potencia del
pensamiento que nos muestra la posibilidad de siempre (re)comenzar.
Como existe también el riesgo de perder de vista el valor del camino
por el que venimos andando, creemos que vale la pena realizar un
ejercicio de memoria, un esfuerzo de recuperar lo que hemos afirmado
para ver si, quien sabe, en ese mismo camino, encontramos sentidos
que nos permitan percibir que, tal vez sin darnos cuenta, ya hemos
comenzado esa tarea que se impone hoy a la filosofía.

386
filosofía y educación en errancia: ¿paseantes, vagabundas, peregrinas?

Hace ya bastante tiempo que sostengo reflexivamente la práctica


de enseñar a enseñar filosofía en la universidad colaborando en la
formación de profesores y profesoras de filosofía. Paralelamente he
coordinado desde el año 2007 el Proyecto de Filosofía con niñas y niños
en la Escuela Graduada de la UNLP. Esta doble pertenencia en ámbitos
educativos tan disímiles, y al mismo tiempo próximos, imprime el
ejercicio permanente de cuestionamiento sobre las múltiples maneras
de asumir la presencia de la filosofía en cada estación de nuestra
travesía y cómo la filosofía transmitida encuentra sus límites y
requiere ser resignificada en el contexto de los espacios educativos que
ocupamos.
En lo que sigue intentaré reconstruir la senda que he recorrido
desde el inicio de este camino hasta el presente convencida de que
poner atención en el andar es una condición de posibilidad para que se
manifieste la filosofía que necesito afirmar para intervenir con sentido
en nuestra actualidad.
Empecé a trazar mi camino como estudiante de filosofía de
manera obediente sobre una trayectoria que la autoridad de la
tradición de la enseñanza de la filosofía había marcado con una
imagen de la filosofía que invitaba a mirar siempre para atrás donde
se encontraba la colección de respuestas abigarradas de los grandes
filósofos sobre cuestiones aparentemente eternas. Caminé un cierto
tiempo sin ver más allá de ese camino y sin dejarme interpelar. La
filosofía se movía entre las distintas posiciones que cada personaje
filosófico había dado a su tiempo en un lugar único, llamado
Occidente. Había que internalizarlas y punto. Así el encuentro de la
filosofía en la educación dentro de las aulas de la Universidad me
tuvo como el paseo tiene al paseante en el sentido que lo describe el
escritor argentino Edgardo Scott:
“El paseo es la forma más ilusa, más irreal y fantasiosa
de la marcha. Pasear es levitar. Los paseantes no tocan el
suelo. Se elevan, pero no vuelan: sobrevuelan, planean.
La digresión, los meandros de la cabeza son el dibujo
de sus pasos. Y si bien la realidad –la convención- puede
elegir bellos paisajes, cuadros vivos para convocar,
sugerir, invocar el paseo, el paisaje del paseante es ante
todo un paisaje interior. Un paisaje hecho de visiones.
Un paisaje lleno de visiones”. (Scott, 2017, p. 30)
Provocada por esta inspiración de Scott, me veo ¡tan joven!
habiendo disfrutado de los meandros de una filosofía estática,
congelada que engaña a la subjetividad bajo la forma ilusoria e irreal
de que, quien la posee se convierte en una subjetividad de otra clase, la
clase de aquellas subjetividades que no tocan el suelo, no vuelan, sino
que planean elevadas por encima del mundo pero fuera del mundo.
En este punto no podemos evitar establecer la relación entre la
mención que Scott hace del planear y la conocida referencia que hace

387
laura agratti

Walter Benjamin en Dirección Única a la diferencia entre sobrevolar y


andar un camino:
“La fuerza de una carretera varía según se la recorra a
pie o se la sobrevuele en aeroplano. Así también, la
fuerza de un texto varía según sea leído o copiado.
Quien vuela sólo ve cómo la carretera va deslizándose
por el paisaje y se desdevana ante sus ojos siguiendo las
mismas leyes del terreno circundante. Tan sólo quien
recorre a pie una carretera advierte su dominio y
descubre cómo en ese mismo terreno, que para el
aviador no es más que una llanura desplegada, la
carretera, en cada una de sus curvas, va ordenando el
despliegue de lejanías, miradores, calveros y
perspectivas como la voz de mando de un oficial hace
salir a los soldados de sus filas”. (Benjamin,1987, p. 21-
22)
Como si Scott hubiese tomando el concepto del alemán, ambos
textos confluyen en el sentido débil del sobrevolar, un planear que,
para Benjamin, provoca en el que vuela, el deshacerse del paisaje ante
sus ojos en el respeto de los límites del terreno que lo circunda. Quien
planea no puede ir más allá de los límites que observa. De este modo,
quien sobrevuela, -al decir de Scott, pasea- nada pone de sí. Todo le es
dado. En este sentido, siguiendo a Scott, puedo interpretar que como
estudiante tuve a la filosofía como una imagen exterior que quedó
interiorizada con la imposibilidad de ser modificada. Una filosofía
que, como paseante, visité con la seguridad de que terminado el paseo
volvería a casa.

el desvío

El primer desplazamiento significativo se produce cuando paso


a ser profesora, aunque fui profesora de filosofía aún siendo alumna,
situación que me instalaba en el umbral169 de cara hacia el afuera. Esto
último fue posible porque, por un lado, la última materia del
profesorado consiste en prepararse en el aula de la Universidad para
dar clase como profesora en un aula de una escuela secundaria de la
UNLP y, por el otro, porque me ofrecieron tener cursos de filosofía en
una escuela secundaria de gestión pública del conurbano bonaerense.

169 En este trabajo el concepto de ‘umbral’ responde al sentido que le ha dado


Benjamin en El Libro de los Pasajes cuando señala que “Hay que distinguir con toda
claridad el umbral del límite. El umbral es una zona. Y, ciertamente una zona de
transición. El término ‘umbralar’ implica cambio, transición, escape, y la etimología
no ha de pasar por alto estos significados”. ([M, 26], p. 850)

388
filosofía y educación en errancia: ¿paseantes, vagabundas, peregrinas?

En cada uno de estos espacios tan distintos entre sí, experimenté


la esterilidad del saber del que disponía. En efecto, el repertorio de
respuestas a los perennes problemas pasado por el tamiz de esquemas
que proveían de la perspectiva didáctica de la enseñanza de la filosofía
fijaba mi atención en conseguir implementar las mejores técnicas y los
mejores procedimientos para facilitar el aprendizaje en las/os
estudiantes. Puse toda mi dedicación en conseguir los mejores
resultados en el convencimiento de que si sabía aquello que tenía que
enseñar y disponía de recursos y de métodos novedosos, las/os
estudiantes iban a aprender. Sin embargo, lejos de adquirir seguridad,
empecé a caminar a tientas, fuera de clase la insatisfacción que me
provocaba la distancia y la indiferencia de las/os estudiantes me hacía
tropezar una y otra vez con la pregunta por el sentido de enseñar
Descartes, Hume y Kant en la escuela secundaria. No encontraba
ninguno.
De este modo, tomé conciencia de las enormes pobrezas que me
habitaban: enseñaba pero no me había planteado la pregunta por el
sentido del enseñar y del aprender, estudiaba filosofía pero ignoraba
la intensidad de las preguntas porque me ocupaba en comprender sus
repuestas, explicaba en qué consistían los problemas del pasado y no
pensaba en cuáles eran los problemas del presente. En pocas palabras,
estaba poniéndome en una posición bastante incómoda como
transmisora de una tradición que no ponía en cuestión. Enseñaba
filosofía desde afuera de la propia filosofía.
Así, la misma precariedad en la que me encontraba resultó ser
una condición propiciatoria, puesto que, las dificultades fueron las que
motivaron la interpelación del propio saber y de sus posibilidades en
la educación. Podríamos decir que esta es la instancia en la que se
produce el primer desplazamiento. Estaba dejando de ser paseante
para empezar a ser vagabunda. Scott (2017) describe esta forma de ser
errante diciendo:
“Los vagabundos son los caminantes más oscuros y
solitarios. A veces, inaccesibles. Errantes. Su marcha
pareciera sustraerse al sentido. Los zombies son
vagabundos. Los cirujas son vagabundos. Los
mendigos, los linyeras, los crotos. Pero sobre todo los
hombres que solo quieren errar. Hombres que buscan
perderse; que rechazan todo destino, todo rumbo. ¿Una
forma de vida? Mejor una forma de existencia. No hay
trayecto ni ruta. Impulsos. Cambios. El camino de los
vagabundos es incierto, confuso, balbuceante. Pero,
también siempre es único y original”. (SCOTT, 2017, p.
52)
Desde esta caracterización de Scott es que me veo en este
momento del proceso transformada en mi condición de caminante

389
laura agratti

devenida vagabunda habiendo sido paseante. La escuela con toda la


diversidad que conlleva, me enfrentó a la miseria de la filosofía así
aprendida y reproducida, tanto en lo personal como en lo colectivo.
Esta revelación me ubicó en el umbral de cara a la propia filosofía.
Así, comencé, de manera solitaria y errática, a habitar una zona
de transición y a necesitar escapar de ese saber acabado y externo.
Escapar sin saber muy bien hacia dónde, extraviada ante la
provocación del mundo, liberada de toda tutela, sin urgencias,
vagabunda en una búsqueda sin propósito ni seguridades. Sin recetas,
ni modelos pero en la certidumbre de que el autoconocimiento, el
volver la mirada sobre una misma era principio y condición
fundamentales de toda posibilidad de habitar la filosofía y la
educación.

el segundo desplazamiento

A partir de comenzar a caminar como vagabunda disfruto de las


tensiones que aparecen al pensar críticamente la práctica de la
enseñanza de la filosofía con las/os estudiantes de la Universidad que
van a ser profesores. Año tras año les propongo eludir la tentación de
caer en el didactismo y, en su lugar, las/os invito a poner la atención
en la enseñanza de la filosofía como una cuestión de fundamento,
como una filosofía en la educación que tenga como destino un
cuestionamiento situado y actual dentro del cual cada una/o pueda
encontrar aquellas preguntas que la/o comprometan existencialmente
con la filosofía como practica educativa. Una perspectiva filosófica
basada en la pregunta inacabada e inacabante, un filosofar en la
educación, una educación filosofante.
En este caminar sin un rumbo determinado, con el solo impulso
que confiere la pregunta se produce el segundo desplazamiento a
partir de la experiencia de poner en diálogo a las alumnas/os,
futuras/os profesoras/os que han estudiado filosofía, con las/os
maestras/os de la Escuela Graduada a partir de la puesta en marcha
del Proyecto “Filosofía con Niñas y Niños”.
De esta manera, junto con mis alumnas/os nos preparamos para
habitar un nuevo umbral de cara a la infancia, la nuestra, la de las
maestras/os y la de las/os niñas/os. Esta circunstancia lo transforma
todo: al umbral, al desafío, al movimiento. No estaba sola. Sin darme
cuenta en ese umbral estaba dejando de caminar como vagabunda
para empezar a caminar como peregrina.
En esta transición decidimos que estaría a mi cargo la
coordinación de cada una de las clases y que las/os alumnas/os del
profesorado se integrarían al grupo unas/os como observadores para

390
filosofía y educación en errancia: ¿paseantes, vagabundas, peregrinas?

la toma de registro de la clase y otra/os como participantes junto con


la/el maestra/o. Así, cada semana disponíamos de registros y este
material sobre cada encuentro nos permitía problematizar nuestra
práctica de hacer filosofía sin nombres propios y sin planificaciones
concebidas de antemano.
Durante los primeros años de implementación del Proyecto
tuvimos reuniones semanales con las maestras/os que, en el
intercambio horizontal que propiciamos, no solo fueron abandonando
de a poco diversos tipos de prejuicios sobre las posibilidades del
encuentro de la filosofía con las/os niñas/os, sobre la propia filosofía
y los filósofos sino que, además, fueron comprometiéndose con el
cuestionamiento desde una actitud más atenta en pensar las preguntas
que nuestras clases les generaban.
En este sentido, hoy después de diez años de presencia de la
práctica de la filosofía en la escuela contamos con algunas/os
maestras/os que eligen participar con entusiasmo de seminarios de
posgrado, presentan trabajos en congresos, proponen talleres para sus
compañeras/os, se inscriben en la Universidad para hacer
Especializaciones en Educación170 y estarán en este Encuentro
Internacional de Filosofía y Educación presentando su experiencia.
Este viraje en la posición de algunas/os docentes de la escuela
respecto de la consideración en torno a la filosofía y la educación nos
muestra que la experiencia de una reflexión crítica sobre la propia
práctica puede mover de un lugar e impulsar a otro. En este caso, salir
de una actitud de cierto enfrentamiento hacia otra basada en un
compromiso con la pregunta y el ponerse a sí mismas en pregunta.
Esta indagación, a su vez, hizo visible la situación existencial de
búsqueda y de comunicación. Este ejercicio propicia el nacimiento de
una idea de maestra/o que nadie se propuso forjar pero que, de
manera figurativa, podríamos decir que se fue escribiendo con el
cuerpo.
Por otra parte, creo que la experiencia de poner en juego el
propio saber aprendido en la Universidad al punto de no reconocerlo
como tal en cada una de nuestras clases con las/os niñas/os provocó

170 En la Argentina la carrera de Magisterio no es una carrera universitaria. De modo

que estas/os docentes formadas/os en el nivel terciario, no solo no estudiaron


filosofía sino que, además, no fueron parte de la formación académica de la
Universidad y sin embargo, hoy son capaces de incorporar la práctica de la filosofía
en otros espacios curriculares y por fuera de las aulas, a comprometerse en generar
ámbitos de conversación y debate sobre cuestiones que hoy en la Argentina, merecen
ser debatidas un intercambio serio y riguroso que permita una toma de posición
crítica, fundamentada e independiente del discurso del poder, frente a las cuestiones
de género, la legalización del aborto, el abandono de la educación pública, entre otros.

391
laura agratti

crisis y resistencias también en nuestras/os alumnas/os que se


estaban preparando para ser profesoras/es. Tampoco podían seguir
caminando como lo habían hecho hasta ese momento. La potencia de
la filosofía en la educación, de la educación filosofante, la fuerza de la
vida las/os movió de lugar y como a las/os docentes de la escuela, las
impulsó a la extranjeridad con ellas/os mismas/os, otra búsqueda,
otra idea de alumna/o, otra idea de filosofía que no está escrita en
ningún papel sino en sus prácticas, en su manera de concebir a la
filosofía como práctica educativa, no solo para las/os otras/os sino
también para ellas/os mismas/os.
Tanto las maestras/os como las/os alumnas/os de filosofía
fueron transformadas/os por la experiencia y yo con ellas/os. De este
modo, a partir de este hacer colectivo, me descubro cambiando el
paso, ya no camino como vagabunda, camino como peregrina.
Recurro, nuevamente a Edgardo Scott como inspiración para
identificar las consecuencias que esta forma de la errancia tiene para el
camino. Scott (2015) afirma:
“La marcha del peregrino, su peregrinación, es la
caminata más definida, más declarada de todas. Su
rumbo, su causa, incluso su método está preestablecido.
El peregrino es un cruzado. Un hombre con una causa,
un hombre que en el centro de su causa puso la fe. ¿Y
qué es la fe? La fe mueve montañas. Entonces es una
fuerza. Un gigante invisible. Un poder sobrenatural e
invisible. Una gracia, un símbolo, una metáfora. El gran
poder invisible, inmemorial y milagroso de los
hombres”. (p.72)
Con estas palabras, Scott expresa que el andar del peregrino
conlleva un propósito, y es ese objetivo el que estará por encima de
cualquier dificultad. Camina con determinación porque lo mueve una
causa. En esta visión del recorrido puedo reconocer que se fue
realizando en mi otra manera de concebir la filosofía. Lejos de
descender del cielo a la tierra, la filosofía se forja en el mundo, aquí y
ahora, no como promesa de redención para nada ni para nadie, sino
como plataforma imprescindible para construir comunidad. Una
forma de existencia colectiva que se afirma en la tarea de ofrecer
resistencia a aceptar al mundo como acabado y definitivo, y en esta
actitud asume la tarea de inacabar el mundo.
En este sentido, no puedo más que alejarme de Scott cuando
define al peregrino como un cruzado, como el que pone la fe en el
centro de su causa. Prefiero no verlo así para no clausurar
posibilidades para pensar esta forma de errancia. No se trata solo de
una cuestión de fe. El peregrino puede marchar con determinación
poniendo en el centro una convicción. Así quien marcha con una
convicción, se afirma en una idea. Así, en el lugar del centro de esta
idea está el deseo. En mi caso, pensando este desplazamiento,

392
filosofía y educación en errancia: ¿paseantes, vagabundas, peregrinas?

entiendo que mi errancia peregrina es la de una mujer que afirma una


idea, la de una filosofía como una práctica educativa con la tarea de
comprender colectivamente cómo de inacabar el mundo. En el centro
de esa idea está el deseo. En este sentido, siempre me pareció
sugerente la manera en que Kojève concibe al deseo, pero la aprecié
más en un encuentro con un grupo de cuarto grado Felipe, con 9 años,
lo definió diciendo que “es cuando sabés que te falta algo y por eso lo
querés pero una vez que lo tenés, desaparece”.
Sí, lo sé: alguien muy sabido en esa historia tradicional que
llamamos filosofía podría estar pensando que esa definición no difiere
de la que Platón ofrece en el Banquete (200e). Tal vez tenga razón pero
eso es justamente algo que he aprendido en este tiempo. Que la
filosofía no tiene que ver tanto con saber esto o aquello sino con cómo
nos relacionamos con lo que sabemos. O lo que otro sabe, como este
saber de Felipe.
Así, resignifico en el deseo la vieja idea que guarda la voz
filosofía y sitúo el deseo en el corazón de la filosofía. Lo que falta
saber, lo que queda por pensar, es lo que le da vida: sería como tener
siempre presente que hay más para escudriñar con la mirada
buscando aquello que no hemos podido ver, todavía, que mirando lo
que sabemos. La fuerza del todavía171, tal vez sea esa fuerza invisible de
la que habla Scott y se encuentre anidada en el centro de la expectativa
de toda existencia humana. Todavía, a pesar de todo, hoy más que
nunca, todavía. Una fuerza que mueve a creer que es posible que las
cosas sean de otra manera en el futuro. Tal vez alcance para todavía
seguir pensando que es posible otro futuro con el propósito de hacer
consciente todo lo que todavía falta. Tal vez en ese gesto, esté la fuerza
para tomar impulso e ir por lo que deseamos.

la errancia y la búsqueda consciente de un camino por recorrer

A lo largo de este escrito intenté considerar la filosofía y la


educación en errancia desde una perspectiva situada, la perspectiva de
nuestro hacer filosofía en la educación en un contexto signado por una
política que no deja de ejercer el crimen contra la humanidad en la
profundización del empobrecimiento de horizontes de existencia para
los sectores más vulnerables. En este contexto asumí revisitar el
camino que inconscientemente he recorrido en la búsqueda consciente
de un nuevo camino que abra sentidos para pensar el compromiso de

171Indica que una situación persiste en el momento del cual se habla o en el momento
en que se habla o escribe; presupone que dicha situación cambiará o es posible que
cambie en el futuro.

393
laura agratti

la filosofía y la educación con el momento actual. Este ejercicio que me


he permitido realizar frente a ustedes, me ha mostrado la fertilidad
que puede tener el partir de la exploración de la propia trayectoria
para proyectar los sentidos de una filosofía como práctica educativa.
De este modo, en la memoria de lo andado, a partir de esa intuición
inicial de pensar que el modo de caminar determina el camino, pude
vislumbrar nuevos sentidos.
Las figuras del/la paseante, la/el vagabunda/o y la/el
peregrina/o me permitieron pensar la relación que fui construyendo a
partir de las múltiples formas en que se han manifestado en este andar
tanto la filosofía como la educación. En este sentido, entiendo que cada
personaje tuvo su peculiar manera de vincularse con la circunstancia
del caminar y que cada uno de ellos fue condición de posibilidad para
que naciera otro. Porque como sabemos, es la tensión, la insatisfacción
lo que impulsa al pensamiento a salirse de lugar. Y este dislocamiento
es una condición de posibilidad de una filosofía inacabada e
inacabante para un mundo que se nos presenta cruelmente acabado.
A su vez, este ejercicio de memoria en pos de un nuevo camino
me permitió valorar positivamente la debilidad e impotencia de las
que habla Epícteto como potencias del pensamiento. Ciertamente, es
en el reconocimiento de la debilidad y de la impotencia que nos
impone el mundo que surge la potencia de un pensar capaz de
instarnos a tomar como principio la idea de que la vida humana merece
ser vivida y que es tarea de todas/os asumir el desafío. La filosofía
todavía puede ser una compañera interesante cuando ese desafío
asume la forma de inacabar el mundo. Todavía.

bibliografía

BENJAMIN, Walter (1987). Dirección única. Madrid: Alfaguara.


BENJAMIN, Walter (2017). La tarea del crítico. Buenos Aires: Eterna Cadencia.
BENJAMIN, Walter (2005). El libro de los Pasajes. Madrid: Akal.
GARCÉS, Marina (2015). Filosofía inacabada. Barcelona: Galaxia Gutemberg.
SCOTT, Edgardo (2017). Caminantes. Flanêurs, paseantes, vagabundos, peregrinos.
Buenos Aires: Godot.

394
invenções: mapas, cartografias, devires
inventividade nas imagens errantes: micropolítica estética e
devir-infância.

alexandre filordi de carvalho


unifesp
afilordi@gmail.com
césar donizetti pereira leite
unesp
mvhleite@uol.com.br

ante-cenas - blocos de uma imagocracia: introdução à micropolítica


estética e ao devir-infância

Qualquer tentativa de um arranjo conceitual acerca da infância


pode soar apenas como mais um esforço humano para aprisionar o
que é efetivamente impossível de se apresentar em um campo de
proposições e veracidades. Mas toda insistência de circunscrever a
infância aí acaba reduzindo-a a um jogo de verdade cuja força
discursiva tende a exercer uma força complexa de coerência e de
arrazoado teórico impelida a gerar coerência analítica e prospectiva. A
nosso ver, o problema que se apresente é o da ordem da
dogmatização. Foi assim, por exemplo, que durante décadas o
piagetianismo, no Brasil, praticamente aprisionou a infância em um
quadro alusivo de perspectivas e de abordagens, gerando um círculo e
um ciclo vicioso ainda hoje fazendo ecoar a demanda do cumprimento
de etapas e de fases da infância. Mas para nós, a infância é uma
espécie de borracha que insiste em apagar as armadilhas teóricas que
insistem em prendê-la nesses componentes discursivos, pois
justamente trata-se não de uma fase, quiçá composta por tantas outras,
mas de uma alucinante experiência irrepetível em seu tempo e espaço.
Uma criança experimenta muitas infâncias porque co-habita, na
medida em que produz, muitos espaços e muitas temporalidades.
Ora, de modo distinto, o campo científico até poderia (e o faz)
dar morada a esse universo que insiste em escapar a determinados
pontos de saídas e ou de chegadas. Para tanto, seria necessário
considerar a própria capacidade da normatividade científica de
produzir uma autossabotagem na consistência de seus credos. Não é à
toa que Feyerabend (2011, p. 15), em Contra o método, sustenta que a
situação contemporânea exige não apenas uma nova filosofia, mas a
invenção de novos termos: “Devemos continuar usando termos
antiquados para descrever insights novos, ou não seria melhor,
começar a usar uma nova linguagem?”.

397
alexandre filordi de carvalho; césar donizetti pereira leite

Pois bem, e se essa nova linguagem não fosse reduzia ao verbo,


ou mais precisamente, ao logocentrismo explicativo, incapaz de se
calar diante do assombro? Se, “a ciência é um empreendimento
essencialmente anárquico”, reforçaria Feyerabend (2011, p. 31), por
que não anarquizar a própria relação entre expressão e conteúdo nos
modos pelos quais produzimos um conjunto analítico para a infância?
É justamente isso que tentamos provocar ao tomar como centralidade
a produção de imagens feitas, expontaneamente, por crianças. Elas não
argumentam, elas experienciam essa “nova linguagem” cujo verbo
racional é incapaz de conjugar e, a bem da verdade, não lhes interessa
e muito menos dele precisam. Essas crianças estão inventando,
fazendo pura Erfindung; essas crianças estão produzindo outro
diapasão, cujos insights começam a nos indicar uma experiência
singular de linguagem, capaz de afrontar os cânones da própria
compreensão do que é infância.
Talvez, em tal horizonte, Guimarães Rosa (1994) em Grande
Sertão: Veredas, acene uma pista ao dizer que “o real não está na saída
nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”.
Ora, a infância e suas imagens, juntamente com aquilo que nela e por
ela deriva em múltiplas formas, acenam-nos para uma efetiva política
inventiva que, escapando das normativas e das disposições gerais,
criam campos de experiências que vazam por micro-poros;
apresentam virtualidades estéticas impensáveis, porque fora da lógica
do harmônico-normativo; e nos colocam diante de experiências de
pensamentos absolutamente nômades, pois nos deslocam de todas as
certezas e dos impasses explicativos. Suas imagens não são para
significar por sinonímias ou equivalências de sentido: o famoso o que
isso quer dizer? Suas imagens são laboratórios ensaísticos de uma
micropolítica estética sem pretensão de convencimento porque o
registro produtivo de suas imagens é da consistência do devir-
infância.
Concebemos a micropolítica estética como uma experiência de
intensidade. Em outros termos, não é o caráter da proporção e o da
quantidade que dizem respeito à micropolítica, mas a sua dimensão
intensa e inventiva destinada a contornar a repetição do ofício e do
padrão. Com efeito, a micropolítica alude a um tipo de intervenção
que não está programada. Do ponto de vista singular de uma criança,
ela faz acontecer com a produção de suas imagens, portanto, intervém
diretamente na consistência das lógicas estabelecidas pelo olhar
habituado às mesmas regras de sua constituição. A sua micropolítica
inventa as regras de sua constituição. Assim, a sua política presume
um modo de agir sobre toda e qualquer materialidade, sobre si
mesma, toda e qualquer alteridade por intermédio de uma relação
indissociável de expressão-conteúdo e de signo-significação peculiares
ao seu modo de promover o acontecimento imagem.

398
inventividade nas imagens errantes: micropolítica estética e devir-infância.

Sob tal perspectiva, poderíamos dizer que essas crianças


inventam uma imagocracia da infância, por três razões. Elas próprias
produzem suas regras no manejo criativo com as imagens. Por
guiarem-se a si mesmas, ao mesmo tempo, experimento uma
autonomia produtiva. Em segundo lugar, elas não precisam entrar no
jogo qualificador e desqualificador da sociedade contemporânea, uma
vez que todas as imagens são da intensidade micropolítica, criação
idiossincrática, portanto, empoderadas por seus valores singulares e
inegociáveis. No âmbito de uma coletividade, cada imagem assinala a
possibilidade de tráfego do signo sem a mazela do julgamento alheio.
Com efeito, a micropolítica forja uma estética da experiência com a
forma-conteúdo cujo valor condiz à disposição do afeto e da
percepção convocados no agenciamento único da produção de
determinada imagem. Por isso mesmo, em terceiro lugar, estamos
diante de um devir-imagem a partir da infância não localizada em um
mapa de conexões preestabelecidas. A criança, então, está aberta ao
fluxo de uma experiência que não se fecha e, enquanto afeita a sua
própria infância, também passa a experimentar um devir-infância.
O devir-infância é uma afirmação micropolítica do modo ser da
criança cuja efetividade não é passiva de fixação modelar, nem de uma
atrofia dos coeficientes de experimentação e tampouco de qualquer
impedimento da invenção e da criatividade. É próprio da infância o
devir pois, como todo devir, o que se assume é uma intensidade
micropolítica capaz de afrontar as formas majoritárias de perspectivar
o modo de ser. Desse modo, no devir-infância as produções imagéticas
podem ser experiências que escapam às cognicidades seguras,
moduladas e diretivas, presentes no logos e nas políticas cognitivas
impostas a certas interioridades.
Mas as imagens também podem afetar a produção de outros
modos de pensar, potentes o suficiente para nos deslocar de uma
ordenação e orquestração de certezas e de verdades, colocando em
suspeição o próprio sentido daquilo do que é pensar. Desse modo, o
que se deriva do que se pode pensar com as imagens, e a partir delas,
produzidas pelas crianças é, ao mesmo tempo, outra concepção da
produção da infância e da infância capaz de produzir a si mesma. Com
efeito, isso não pode podendo ser dado como fato natural, nem como
uma orientação linear de um sujeito, pois a infância em seu devir é
própria à estrangeiridade, exterioridade irreconhecível na ordem do
pensamento majoritário. Assim, nem o pensamento pode buscar ou
criar verdades, nem a infância parece ter qualquer interesse nela.
Ambos, apresentam-se nas forças que, nos encontros, duelam
possibilidades de criar o novo, de sair do identitarismo e
vascularizando o criar o que ainda não existe. A infância e o
pensamento se encontram nas possibilidades de criação que, entre eles
existem e resistem. Por conseguinte, se a infância pode ser,

399
alexandre filordi de carvalho; césar donizetti pereira leite

habitualmente, pensada como o começo da vida, é somente pelo fato


de que nela e com ela podemos criar modos de existência. E, nesse
sentido, não seria o caso de pensar a infância como o fim da vida, ou
seja, o propósito ulterior de nosso devir?
Voltados a pensar essa dimensão, concebemos este texto também
como uma experiência pictográfica, uma inventividade desalinhada,
desconjugada de qualquer regularidade lógico-formal, aproximando-
nos de uma composição fluída, ou seja, de um posicionar com a
variação de uma intensidade afetiva, perceptiva e pensada acerca da
infância que há em nós outros e de nós outros que há na infância.
Em “O ato de criação” Gilles Deleuze (1999), em sua conversação
provocativa com os cineastas, apresenta uma perspectiva que os
cineastas não possuem como função. Para Deleuze, não é propósito
das atividades do cineasta criar conceitos, pois este é destinado aos
Filósofos. Os cineastas, contudo, criam blocos de
movimentos/duração. O ato de criar por e através de blocos pode ser
pensado como um jogo compositivo, um exercício de pensamento, de
afetos, de movimentos perceptivos e de ensaios perspectivísticos que
escapam das vicissitudes dos aprisionamentos dos modelos prévios.
Os blocos estão eivados por uma transitoriedade irregular. Irregular
porque supõem o exercício da montagem. Logo, o que pode ser
montado de uma maneira pode também ser montado de outra. As
cenas não passam de um jogo de montagem. E, então, por derivação, a
ideia dos blocos nos lança a uma abertura maquinada – câmera e ação:
um jogo de perspectivas de bricolagens despontado na imanência do
devir-infância.
As linhas de abertura e de montagem, tal qual frequentemente
vemos presente na arte,
sempre nos impele a apresentar-nos como crianças diante do
mundo; situam-nos na constante necessidade de uma abertura para o
que ainda não foi apreendido, experimentado, definido, ontologizado
e programado nas cadeias de significados. As linhas transbordantes e
capilarizantes dos experimentos de composição da micropolítica
estética são inventividades errantes, pois migram de um ponto ao
outro na criatividade conforme vão rompendo com as modulações
presentes nas definições de nossos modos de ser e de estar no mundo.
Queremos, então, apresentar esse texto como consequência dos
experimentos, das criações, das recriações, das invenções e
reinvenções daquilo que estamos chamando de jogos compositivos de
montagens a partir dos blocos que se apresentam desde a produção
imagocrática das crianças.
Sendo assim, este texto irá apresentar alguns blocos que se
apresentam em fluxos que podem se conectar livremente com
quaisquer outros blocos aqui presentes, mas também podem oferecer
seus veios capilares para encontrar conexões com blocos que estão

400
inventividade nas imagens errantes: micropolítica estética e devir-infância.

devindo. O texto não pretende se prender nele, o texto aqui é como um


pretexto para experiências de pensamentos acerca da infância, das
imagens, das micropolíticas e do devir-criança.

bloco 1

Imagem 1 e 2 – Arquivo Grupo Imago

E se todo esse horizonte


que me ladeia,
desenhado para mim, fora de mim,
não for o lugar de minha habitação?
E se as cores, as mesmas de sempre,
negociadas e tratadas,
bem maltratadas,
não tiverem a consistência do meu
arco-íris?
E se as minhas íris,
portais de encarnação singular e irrepetível,
desejarem, selvagemente, adentro e afora,
alucinar o mundo,
porque meu mundo?
E se os meus fatos
forem simplesmente experiências,
testadas, diagramatizadas e rasuradas,
nas minhas parcas fotos,
– mas minhas?
Alguém aí parou para pensar?
Alguém daí desolhou o olhar que querem me ensinar?
Alguém de seu lugar
foi além do flash viciado de sua perspectiva mesquinha
e escolar?
Onde você agora se põe, quando me vê, quando me lê,
quando me diz que agora não é o meu quando?
...

401
alexandre filordi de carvalho; césar donizetti pereira leite

E seguem esquecendo-se que a infância é um filme que não se


revela?
Uma revelação que não se filma?

bloco 2

No princípio era o verbo e o verbo estava com Deus, e o verbo se


fez carne e habitou entre nós, dizem a bíblia. Eis Deus como
pressuposto narrativo, como algo que se “conta”. Daí até as mais
instigantes viagens de Ulisses, relatadas por Homero, permeadas por
dúvidas, medos e travessias, encontrando eco nos enredos das
histórias presentes na literatura oral da Idade Média. Mas eis que
surgem os filhos de Gutemberg: os textos impressos nas páginas dos
livros para, depois, fanstasmagotizarem nos hipertextos das mídias
digitais, também ensejando a poética compositiva moduladora de
afetos da indústria cinematográfica, marcada no universo poético de
construções visuais e musicais de Disney, ou ainda, nos romances de
aventura permeados por um realismo ficcional dos contos de fada de
Harry Potter. Fosse como fosse, seja como for, somos apresentados
como seres contando histórias sobre si e sobre os outros. Eis o humano
se fazendo nas diferentes linguagens, buscando sentidos, recortando
sua trajetória como ficção elaborada: assim começou, assim foi, assim
seria..., marcando lugares, apontando contornos, tecendo fios,
apresentando-nos como seres desgarrados de uma natureza animal,
apresentando-nos como outra humanidade, feita de outro húmus.
Ainda que na noite silenciosa desses cenários, Filosofia e
Psicologia se encontram com a Educação criando possibilidades de
olhares/miradas/narrativas/composições na direção de nos
perguntarmos acerca da infância e de sua trajetória a partir também de
outras impressões. Como a nossa filiação com a criança e a infância se
encarnam, são narradas, contadas, projetadas? Inclinamo-nos aos
blocos assentados e conhecidos nas inscrições das experiências que
reafirmam o que é a infância e o que não é, ou consideramos, no lugar
das impressões já decoradas, o papel ainda casto da própria infância?
Questão de devires.

bloco 3

Na modernidade, os lugares seguros oferecidos pelos distintos


campos de saberes, oferecem ao homem, desde a sua mais tenra idade
uma perspectiva demarcada pelo ‘progresso’. Capturas o processo
progressivo, mesmo que seja apenas qualitativo, nos garante que,
passo a passo, vamos ultrapassando as fases, os estágios e as faixas
etárias e ou sequências temporais. Estas sequencias se aliam e
aproximam o in-fans, em teu próprio percurso, a suprir suas faltas,

402
inventividade nas imagens errantes: micropolítica estética e devir-infância.

levando a criança a chegar a ser um adulto. Ou dito de outro modo,


que a criança percorra um longo caminho em que suprirá suas
carências e incompletudes com o intuito de vir a ser um adulto, ou que
todo processo de desenvolvimento humano, possa ser visto e
demarcado pelo que ‘falta’ na criança, pela busca do homem em suprir
suas faltas.
Sendo assim, não estaríamos sendo apressados em dizer que
nessa perspectiva ‘desenvolver’ é percorrer um caminho afim de
superar carências, faltas presentes nas crianças (as vezes quando se
trata das crianças ditas especiais essas ‘faltas’, ‘carências’ são também
entendida como ‘deficiências’). Podemos sem sombra de dúvidas
afirmar que nesse campo discursivo, desenvolver é percorrer um
caminho já previamente delineado (muitas vezes descritos por fases de
desenvolvimento bem definidas e outras por deslocamentos de
determinadas faculdades psicológicas à outras mais qualificadas),
demarcado, previsto no percurso daquilo que no próprio sujeito se
inscreve, não necessariamente mais em uma maturação previamente
dada por características inatas e ou por processos psicológicos, mas
por discursos que determinam, definem, descrevem e modulam os
modos de ser, de pensar e de lidar com a criança.
Neste cenário, a criança ao mesmo tempo que possui sua tal
particularidade, ‘individualidade’ definida por suas características
identitárias, por exemplo, presentes nos discursos em que “cada um
tem seu ritmo e seu tempo”, é modulada por um campo discursivo
comum, que inscrevem todos e todas dentro do seu processo, do seu
progresso, processo e progresso que todos deverão passar. Essas
orientações do delineamento prévio acerca do processo que irá (ou
ainda deverá) passar a criança, determina também os modos pelos
quais usualmente lidamos com elas em nossas práticas cotidianas seja
na educação ou não, na escola ou fora dela. Visto de outro modo, essas
modulações inscrevem-se/naturalizam-se não somente nos modos de
pensar a criança, mas também naquilo que demarcam as práticas dos
adultos e sobretudo dos professores com as crianças.
Consideramos ainda que, uma série de trabalhos que temos
desenvolvido no campo da educação, mesmo que partam de
perspectivas comuns muitos são os modos de lidar com a criança e
pensar a infância e mais ainda, muitas são as formas de, na prática
cotidiana, pensar o ‘currículo’ no espaço das pré-escolas e das creches,
essas práticas na maioria das vezes se aliam as tais perspectivas de e
da ‘falta’ que descrevemos acima. A criança é o que sobra. Essas
alianças não se fazem presente como em décadas atrás nos discursos
das carências culturais e das questões intelectuais, mas, nos modos de
fazer, ainda predominantes no cotidiano da escola, naquilo que ainda
orienta as práticas, os currículos, o pressuposto de levar as crianças da
condição de in-fans para a condição de adultos, de gradualmente

403
alexandre filordi de carvalho; césar donizetti pereira leite

povoar a criança com aquilo que nelas falta. O que verificamos é que
os currículos para a Educação das crianças, sobretudo das crianças
pequenas, os projetos pedagógicos, os planejamentos, entre outros, são
orientados por perspectivas que delineiam e mapeiam as práticas com
as crianças para que as mesmas possam construir competências,
habilidades, conhecimentos, afim de superar essas faltas.
No cenário acima apresentado, podemos ser tocados com a ideia
que dois campos se encontram e acabam sendo performático, o campo
das práticas de saberes e o campo das práticas de poderes.

bloco 4

Imagem 3, 4 e 5: Arquivo Imago Grupo

Vejo,
e está tudo ali.
Você me segue?
No canto de baixo:
percevejo, morcego, peixe,
cavalo, astropiquinópito, aranha,
mexilhão, pulga, suçuarana,
esqueleto de mariposa, enxame de peixe,
cardume de hipopótamo, uma goiaba,
e um pequeno monte de pó de
futuro esquecido.
Você tá vendo?
Do outro lado tem um azul formoso,
igual vazio de oceano,
verde fome com pestana de sono,
amarelo dor de dente,
branco de miolo de estrela,
um translúcido minguado de clareza
igual quando vejo o olho do sol,
há, depois, um grisalho de papo de lavareda quando a geada
derrete.
Viu como é fácil?
Ali no meio eu entendo:

404
inventividade nas imagens errantes: micropolítica estética e devir-infância.

castropilâncias medonhas,
zeabecências endromedáricas,
descoptilópticos pagãos,
ipiuás agudos,
ocoblominas trancafiadas
e pregos de amolecer razão.
Viu como é fácil?

bloco 5

O devir-criança começa com a ideia de escapar da família, de


casa. De sair do apartamento. E por essa atitude, ela se define
imediatamente contra os estágios de desenvolvimento, a
fixação, a territorialização sobre instâncias personificadas do
pèrémère
(SCHÉRER, 2009, p. 205).

As Nações já tinham casa, máquina de fazer pano, de fazer


enxada, fuzil etc. Foi uma criançada mexeu na tampa do
vento. Isso que destelhou as Nações
(BARROS, 2013).

Em trabalhos de pesquisa com produção de imagens produzidas


por crianças temos observado que, para além daquilo que se apresenta
como falta, como déficit, que poderia nos levar a perguntar “o que é a
criança?”, ou ainda na direção contrário daquilo que se coloca como
uma identidade de massa nas prescrições identitárias dos ‘estágios’ de
desenvolvimento ou da faixa etária, as crianças parecem apresentar
não ‘falta’, mas sim potência, não déficits mas sim excessos, não
prescrições identitárias de massas, mas sim coletivos e singularidades
vividos nas experiências com o outro, com os outros, com o mundo,
com o fora. Ou ainda, para além daquilo que nos levaria a procurar
definir “o que é a criança?”, em nossas pesquisas nos aproximaríamos
às perguntas: “o que pode criança?”, “o que pode a infância?”, “qual o
nosso coeficiente de devir-infância para falar de infância?”, “pode
alguém experimentar com a infância fora do devir-infância?”, “que
micropolítica estética posso potencializar na dobra da infância?”.

405
alexandre filordi de carvalho; césar donizetti pereira leite

O poema do colombiano Jairo Aníbal Niño (1996, p. 58), extraído


do livro A alegría de querer, chama-se: Chegou a aula em 15 de maio

Chegou a aula em 15 de maio.


– dia de chuva –
chegou e nos olhou com doçura.
Sou a nova professora de filosofia, nos disse.
Sorriu
e, então, foi como se as gotas de chuva
que sobreviviam sobre um amarelo impermeável
houvesse convertido em pensamentos.
A todos nos pareceu ser muito jovem para ser professora
- e muito mais jovem para ser professora de filosofia –
Comecei a pensar nela pelas tardes,
precisamente no momento em que no rádio
terminava um programa de esportes
e começava um de canções.
De maneira surpreendente ela esteve presente
na partida final do interescolar de futebol.
Por essa ocasião eu estava inspirado no meio de campo
e fiz um dos gols que nos deram a conquista.
Ela nos entregou a taça de campeões.
Jamais esquecerei minha professora de filosofia.
No dia do exame final
ao apresentar-lhe meu trabalho,
me disse que eu parecia com Sócrates.
Me enchi de orgulho
e creio que os olhos se me encheram de lágrimas.
Caminhei até a minha carteira
como se estivesse no ar, voando.
Era o melhor elogio que eu havia recebido em minha vida.
Eu, parecido com Sócrates,
o grande jogador de futebol do Corinthians.
Sócrates B. S. de Souza Vieira de Oliveira
O inesquecível meio-campista da seleção do Brasil.

Um nome. Uma identidade. O aluno transformado em Sócrates,


contudo, sabota magistralmente a identidade presumida. É outro
Sócrates que ele quer afirmar, desejar, encarnar. Mas nem sempre é
assim, porque é desde a escola que a identidade presumida deve ser
alcançada. É preciso desde muito cedo ritmar o olhar, a fala, as
inclinações desde um sistema de filtragem qualificador em
expectativas pré-ordenadas.
Difícil, contudo, não haver identidade fora dos guetos do
significante. Neste caso, o significante é uma tatuagem, um adesivo,

406
inventividade nas imagens errantes: micropolítica estética e devir-infância.

um tipo de superbonder que, no lugar de fazer de um signo qualquer


um caos potente para assombrar o que já está significado, opera um
jogo de adesão por significação instituída. É assim que potencialidades
discursivas e simbólicas enormes são recuperadas sob um extenso
aparato redutor de ordens discursivas e simbólicas congeladas pelas
definições reduzidas aos significados.

bloco 6

Nos trabalhos que temos realizado juntamente com as crianças, o


que temos observado é uma experiência de latente inventividade no
que chamamos de imagens errantes. Sem finalidade preestabelecida
ou circuito programado, por exemplo, jamais comandando
enquadramentos, objetos a serem registrados, controlando o manuseio
dos equipamentos ou “dando ideias” sobre o que fazer, as crianças
entram no fluxo de uma micropolítica estética constante. Isso é
totalmente distinto do que muitas vezes encontramos no cinema, cujas
tecnologias presentes nas produções imagéticas criam espaços mais
efetivos mais controlados de afetação e de modulação de modos de
ser, de pensar e de sentir a vida, em que modelos são reproduzidos,
subjetividades são moduladas e exercícios de poderes são
cristalizados.
Contra tal perspectiva é que buscamos fomentar espaços de
experimentação imagocrática com as crianças, pois, de igual modo,
pensamos na mesma direção de Guattari (1985, p. 51):
Como evitar que as crianças se prendam às semióticas
dominantes ao ponto de perder muito cedo toda e
qualquer verdadeira liberdade de expressão? Sua
modelagem pelo mundo adulto parece efetuar-se, de
fato, em fases cada vez mais precoces e de seu
desenvolvimento, especialmente por meio da televisão e
dos jogos educativos. [...] Trata-se pois de uma iniciação
ao sistema de representação e aos valores do capitalismo
que não mais põe em jogo somente pessoas, mas que
passa cada vez mais pelos meios audiovisuais que
modelam as crianças aos códigos perceptivos, aos
códigos de linguagem, aos modos de relações
interpessoais, à autoridade, à hierarquia, a toda a
tecnologia capitalista das relações sociais dominantes172.

172 Faz-se notar que o texto de Guattari é, orginalmente, de 1977. É interessante,

contudo, ver a potência atual de suas considerações quando vivemos na época das
“mídias desinibidoras”, no diagnóstico de Sloterdijk (2012). As mídias desibinidoras
estão voltadas à liberalização dos impulsos domesticadores em favor de uma
bestialização, ou seja, de uma banalização de forças violentas, intolerantes e

407
alexandre filordi de carvalho; césar donizetti pereira leite

Não sem razão, portanto, as produções de imagens das crianças


nos convidam ao engajamento a uma vertiginosa errância de afetos e
de percepções, sob uma espécie inacabável de exposição cujo
diafragma não se fecha e cuja ex-periência não se acanha diante do
desconhecido. São deslocamentos pelos quais enveredamos por
travessias que escapam às certezas dos experimentos, dos protocolos e
dos modos de dizer e de falar da criança. São deslocamentos que nos
fazem habitar outras temporalidades, ou ainda, dito de outra forma, se
podemos afirmar que há discursos e práticas modelizados por formas
de pensar e de agir com a criança, as imagens e as produção de
imagens criam em nós um efetivo processo de desmodelização dessas
formas. Por serem imagens imanentes ao um processo de
micropolítica estética e de devir-infância, elas criam temporalidades
distantes das cronologias lineares de sucessão de fatos e de
processualidades pré-escritas. Produzir, assim, as imagens acaba
sendo um verdadeiro acontecimento político nas escolas, uma vez que
tal produção age diretamente na relação sujeitos-devir-infância e as
espacialidades fora dos lugares seguros e previstos pelos discursos,
pelas enunciações e pela regularidade homotópica escolar.
Com efeito, precisamos levar em consideração que as
experiências subjetivas produzidas em toda essa inventividade orbita
em torno de múltiplos processos de agenciamentos de enunciação:
ou seja, toda a produção de sentido, de eficiência
semiótica - não são centrados em agentes individuais
(no funcionamento de instâncias intrapsíquicas, egóicas,
microssociais), nem em agentes grupais. Esses processos
são duplamente descentrados. Implicam o
funcionamento de máquinas de expressão que podem
ser tanto de natureza extra-pessoal, extra-individual
(sistemas maquínicos, econômicos, sociais, tecnológicos,
icônicos, ecológicos, etológicos, de mídia, enfim
sistemas que não são mais imediatamente
antropológicos), quanto de natureza infra-humana,
infrapsíquica, infrapessoal (sistemas de percepção, de
sensibilidade, de afeto, de representação, de imagens, de
valor, modos de memorização e produção de ideia,
sistemas de inibição e de automatismos, sistemas
corporais, orgânicos, biológicos, fisiológicos, etc.)
(GUATTARI E ROLNIK, 1999, p. 31).
A potência que encontramos nos processos de produção de
imagens realizadas pelas crianças e as próprias imagens,

aniquiladoras de um “estar-à-escuta-do-que-se-passa-ao redor” (Sloterdijk, 2012, p.


28). Com relação a uma atualização da problematização da cultura de modelagem
social por imagens, ver: Carvalho, Leite (2017).

408
inventividade nas imagens errantes: micropolítica estética e devir-infância.

testemunham, sem a necessidade da ordem explicadora, que podemos


liberar o fluxo afirmativo de uma micropolítica de “infâncias” capazes
de podemos romper com os nossos lugares demarcados. Trata-se,
portanto, de não bloquearmos o fluxo, ao contrário, de comungar de
perspectivas dimensionadas em outras espacialidades, fora das
especificidades. É como se as crianças, longe das amarras e
expectativas pré-definidas pelos currículos, além daquelas tramadas
pelas teorias de desenvolvimento, mexessem na tampa do vento do
mundo, fazendo flutuar no ar o peso grave do imponderável – do
vento ao devindo. Parece-nos que com o devir-infância podemos
também ser o outro dos espaços, podemos ser estrangeiros, ter
sensações estrangeiras, ter na infância um assombro com as coisas,
uma estrangeiridade das coisas, situar-nos na infância das coisas sem
coisificar a infância.
Na dinâmica dessas atividades, temos sido impelidos a não
analisar, interpretar as imagens e tampouco planificar os processos de
produção das crianças, mas temos sido provocados a “pensar com as
imagens” a “pensar por imagens”. O fato é que as produções de
imagens pelas crianças e as próprias imagens abrem uma perspectiva
de olhar o corpo infantil que habita todo o processo de pesquisa (corpo
infantil das crianças, das professoras e dos pesquisadores). São corpos
retorcidos para focar, para desfocar, corpos aproximados para ver os
detalhes, detalhes nunca vistos, nunca percebidos, detalhes de botões
de camisas, de sujeira no nariz, de baba, detalhes de olhares rápidos,
detalhes de cantos de paredes, de tetos, de pisos tortos, de janelas
abertas. As imagens nos provocam a pensar que não se trata de educar
o olhar para reproduzi-lo ou encabrestá-lo. Não estamos diante de um
procedimento para propriamente oferecer técnicas, conhecimentos,
teorias e sentidos. Educar o olhar, entretanto, é justamente permitir
que ele seja sem educação, isto é, jamais passivo de ser tolhido na
potência de seu alcance e na lucidez de sua singularidade. Educar o
olhar também é uma exercício de micropolítica estética, desde que
suposta nas inventividades das imagens errantes: é como lançar o
corpo a uma aventura; é como ser colocado pelos corpos (os das
crianças e os das imagens) em um movimento de afetação; é como se
olhar não fosse um privilégio do olho, mas produto do corpo que
experimenta com as imagenscâmeras em cameraimagens.

409
alexandre filordi de carvalho; césar donizetti pereira leite

bloco 7

referenciais

BARROS, Manoel. Arranjos para assobio. São Paulo: Leya, 2013.


CARVALHO, Alexandre Filordi de; LEITE, César Donizetti Pereira.
Heterogênese criativa: o que podem as imagens nas didáticas contemporâneas?
Educação e Filosofia, v. 31, p. 1-16, 2017.
DELEUZE, Gilles. O ato de Criação. In: Caderno MAIS. Jornal Folha de São
Paulo. 1999.
FEYERABEND, Paul. Contra o método. São Paulo: Unesp, 2011.
GUATTARI, Felix. Revolução Molecular. São Paulo: Brasiliense, 1985.
GUATTARI, Felix. As Três Ecologias. São Paulo: Papirus, 1993.
GUATTARI, Félix.; ROLNIK, Suely. Micropolítica: Cartografias do Desejo.
Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.
NIÑO, Jairo Aníbal. La alegría de querer. Santafé de Bogotá: Panamericana, 1996.
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. São Paulo: Nova Aguilar. 1994.
SCHÉRER. René. Infantis : Charles Fourier e a infância para além das crianças. Belo
Horizonte: Autêntica, 2009.
SLOTERDIJK, Peter. Regras para o parque humano. São Paulo: Estação Liberdade,
2012.

410
mapas invisíveis e viajantes cegos: ensaio para uma escola
do oculto.

daniel gaivota contage


nefi/uerj
danielgaivota@yahoo.com.br

introdução

O que se oculta na escola? Perguntá-lo demanda uma resposta


distante das tradicionais máximas sobre a educação, que normalmente
respondem à pergunta inversa: O que a escola revela? Talvez esta
primeira pergunta, que encabeça este texto, ela própria ajude mais a
ocultar sua resposta que a descobri-la. Também assim, talvez, se dê na
escola. O que oculta uma pergunta? O que oculta um professor? O que
ocultam os exercícios, as relações, as matérias? O que oculta o
pensamento? O que oculta a escrita?
As reflexões presentes neste texto derivam das novas e presentes
linhas sobre as quais caminho em minha escrita. Uma escrita errante,
que ainda tateia, mas que enquanto tateia, vai criando com a ponta dos
dedos sua própria realidade, como fazem os cegos. Estas imagens
táteis, ainda (e esperamos que assim permaneçam) ocultas, invisíveis,
compõem a delicada e firme tecedura que em breve vestirá uma tese
de doutoramento. O projeto é um desdobramento do trabalho
defendido e publicado em 2017, Poética do Deslocamento: nomadismo,
diferença e narrativa na Escola-Viagem, que ao compreender o
pensamento como uma atividade geradora de vetores para fora, como
um motor de forças, ensaiou defender uma escola que entrasse num
devir-viagem, ou seja, que pudesse produzir deslocamento e ao
mesmo tempo, numa relação rizomática, deslocar-se. Assim, analisava
os processos escolares através das mesmas chaves utilizadas para
analisar os processos nomádicos e viajantes. As forças exercidas por
aquele texto mantiveram o pensamento sobre a Escola-Viagem em
vibração, ainda intenso, proporcionando agora outras análises, que
também partem do princípio do movimento e da diferença para
pensar a escola, mas exploram outros caminhos, mais escuros, menos
iluminados. Ocultos.
A partir da leitura de outras referências e referências mesmas
tornadas outras, como outros trechos do próprio Deleuze, outros
diálogos de Platão, alguns textos e livros de Roland Barthes,
Montaigne, Foucault e Derrida – especialmente dois livros intitulados
Memórias de Cego e Pensar em Não Ver, no qual Derrida discorre sobre
desenho, autorretrato, mas principalmente sobre o invisível e o oculto

411
daniel gaivota contage

– as questões se movimentaram e encontraram outras problemáticas


no que concerne a (re)construção de uma filosofia da educação que
nos permita pensar a escola de maneira potente e transformadora,
liberta das linhas de poder que ameaçam e impedem os devires e as
forças da realidade.
E é através de uma cartografia dessas linhas de poder que esta
pesquisa encontra movimento. A cartografia, para Deleuze e Guattari,
é um processo oposto ao da catalogação, da enumeração, do desenho,
da listagem, do registro, ou seja, do decalque. A diferença mais
importante é que a cartografia se dá à maneira de um rizoma.
Se o mapa se opõe ao decalque é por estar inteiramente
voltado para uma experimentação ancorada no real. O
mapa não reproduz um inconsciente fechado sobre ele
mesmo, ele o constrói. Ele contribui para a conexão dos
campos, para o desbloqueio dos corpos sem órgãos,
para sua abertura máxima sobre um plano de
consistência. Ele faz parte do rizoma. O mapa é aberto, é
conectável em todas as suas dimensões, desmontável,
reversível, suscetível de receber modificações
constantemente. Ele pode ser rasgado, revertido,
adaptar-se a montagens de qualquer natureza, ser
preparado por um indivíduo, um grupo, uma formação
social. [...] Um mapa tem múltiplas entradas
contrariamente ao decalque que volta sempre "ao
mesmo". Um mapa é uma questão de performance,
enquanto que o decalque remete sempre a uma
presumida "competência". (DELEUZE, GUATTARI,
2012a, p. 17)
Se o objetivo do decalque, portanto, é reproduzir, é retornar o
mesmo, é necessário compreender que, ao negá-lo como método173 de
pesquisa e de pensamento, estamos negando uma lógica do aparente,
do visível. A cartografia não trata de mostrar – mostrar é sempre
função do decalque –, mas sim de, de certa forma, manter oculto. Por
isso, ao se relacionar com as forças em um mapa de intensidades, não
se objetiva destrinchar ou explicar as estruturas que geram as linhas
de poder, mas, por outro lado, mapeá-las, atentar ao que escondem
por sob as linhas visíveis. Dizendo de outro modo, ao enfrentar
dispositivos que têm como maior força a visibilização e a

173 Entretanto, escolher a cartografia como método não significa assumir uma
estrutura, estriar o pensamento. É importante aqui ressaltar a diferença entre um
mecanismo ou estrutura e um método. A palavra método vem do grego, methodos,
composta de meta (através de, por meio), e de hodos (via, caminho). Servir-se de um
método é, portanto, descobrir o caminho pelo qual se quer seguir, o trajeto pelo qual
se deseja caminhar – e não necessariamente a velocidade dos passos, o tipo de sapatos
ou a hora de chegada, por assim dizer.

412
mapas invisíveis e viajantes cegos: ensaio para uma escola do oculto.

invisibilização, trabalhar no campo do visível é jogar o jogo do poder.


A grande potência do pensamento, da escola e da filosofia encontra-se,
inversamente, naquilo que não se vê – ou seja, que não está sujeito às
forças estruturantes dos dispositivos.

!
A cartografia, em Deleuze e Guattari, é uma maneira de
“desembolar” os dispositivos de poder. Este conceito de dispositivo
encontra-se no limiar entre a filosofia de Foucault e Deleuze. O mais
importante é compreender como os dispositivos funcionam a partir de
linhas de visibilidade e enunciação – que tornam objetos visíveis ou
invisíveis, dizíveis ou indizíveis, permitindo (ou não) que ciências,
gêneros literários, grupos de pessoas, estados de direito ou
movimentos sociais sejam vistos e ouvidos –, além de linhas de forças,
que agem como setas, penetrando e conduzindo as coisas e as palavras
(DELEUZE, 1990, pp.155-157).
O dispositivo, portanto, está sempre inscrito em um jogo
de poder, estando sempre, no entanto, ligado a uma ou
a configurações de saber que dele nascem mas que
igualmente o condicionam. É isto, o dispositivo:
estratégias de relações de força sustentando tipos de
saber e sendo sustentadas por eles. (FOUCAULT, 1984,
p.246).
Os dispositivos são anti-máquinas-de-guerra, portanto; são
máquinas que produzem espaço estriado, subjetivam e exercem poder,
estabelecendo verdades e distribuindo legitimação. É importante
estarmos muito atentos à constituição de tais máquinas de poder,
especialmente se estamos a elaborar uma escola que seja máquina de
guerra,
porque a modernidade multiplicou e disseminou
amplamente esta maquinaria política complexa e de
difícil visibilidade, constituindo uma rede articulada de
dispositivos normalizantes em relação a problemas
diversos, que exercem controle operando de forma fina,
capilar e subjetivante, individualizando sujeitos,
marcando seus corpos em jogos de identidade, de
sexualização, normalizando suas condutas e
governando cotidianamente suas vidas. (PRADO
FILHO; TETI, 2013, p.51)
Uma das conclusões possíveis de Poética do Deslocamento
consistia em afirmar uma escola que não se limitava às paredes, às
pessoas ou aos horários demarcados para a ação pedagógica. Não uma
escola literal, mas a Escola-Viagem, que é uma espécie de escola
menor, molecular, uma força escolar que está lá presente em toda
escola, e que faz com que os devires sejam ali possíveis.

413
daniel gaivota contage

A Escola-Viagem já existe no seio de todo rizoma, em


toda relação de poderes e forças que constitui cada
escola do mundo. Ao passo que é preciso uma poética
do deslocamento e uma invenção da verdade, a Escola-
Viagem já é. Dela temos vislumbres, assim como o
Robinson Crusoé de Tournier vislumbrava vez ou outra
sua “outra ilha” dentro da ilha.
Podemos vê-la com o canto do olho sempre que um
aluno novo não sabe onde sentar-se, ou ouvi-la como
um sussurro quando um professor não sabe a resposta
para uma pergunta. Podemos sentir definitivamente seu
cheiro nos refeitórios, nas quadras, nos banheiros,
apesar de não podermos vê-la ali, e sentir sua umidade
no olho inquieto que observa o objeto estranho sobre a
mesa. (CONTAGE, 2017, p.198)
Assim, temos aqui dois campos: o dos dispositivos de poder, que
organiza a realidade tornando objetos visíveis ou invisíveis, enunciáveis ou
ocultos, que Foucault já analisava em seus cursos sobre o poder, como
Vigiar e Punir e A Ordem do Discurso. Ou seja, em primeiro lugar, a
constatação de que, nas estruturas macro e micro, há uma grade de
interdições e permissões que definem o que é verdadeiro, o que é
dizível, o que é lógico. Do outro lado do espectro, temos uma outra
força desestruturante, uma escola que funciona à maneira de uma
máquina de guerra, que busca abolir estas linhas, alisar o espaço e o
tempo e permitir que o campo escolar seja compreendido como um
plano de imanência, onde se encontram todas as forças
simultaneamente. Esta escola (que foi tratada até agora sob o signo da
Escola-Viagem) já está presente em todo espaço-tempo escolar, latente,
invisível, oculta. Assim, o que se pode perceber nestas conclusões
acerca das forças presentes em cada escola é que o que se opõe à
liberdade, à escola como libertação das forças aprisionadas, é
exatamente o conjunto de processos que permitem que algo esteja ou
não presente em uma estrutura – assim tornando-se compreensível,
racional, enunciável e visível –, ou seja, a ordem.
A questão para Deleuze é que a realidade é composta de caos.
Não tanto como a ausência de determinações, mas como pontos que se
ligam aleatoriamente e em velocidade infinita (ou melhor:
vertiginosa); o que impede o tempo e o espaço de serem apreendidos
coerentemente. Esta desmedida do afluxo de dados ao qual estamos
sujeitos é vertiginosa demais, e para não sermos arrebatados pelo caos,
inventamos códigos e esquemas para nos proteger dele. Por isso
criamos todas as estruturas pelas quais ordenamos o tempo, o espaço e
o pensamento – ou seja, nossa percepção do mundo –, e só temos
acesso aos dados através dessas estruturas e esquemas que nos
informam (inclusive em relação ao outro e sua alteridade). Assim, é
possível lidar com um cosmos caótico, muito embora isso nos

414
mapas invisíveis e viajantes cegos: ensaio para uma escola do oculto.

distancie do mundo concreto –da realidade, que é imanente.


Ou seja, é preciso que inventemos um outro plano que recupere
o caos, mas dando a ele um sentido (e não uma ordem). Dar
consistência ao caos sem nada perder do infinito. É preciso que
sejamos devastados por uma máquina de guerra para que nosso
espaço se alise, mas então é possível realizar um corte no caos, um
enfrentamento (no sentido de se pôr de frente a ele). Estar de frente
para o abismo, que é nosso limite, se pôr em limite, ocupar nosso
limite, a borda. É abrir-se ao próprio devir, e torná-lo inseparável das
linhas descontínuas que emergem do caos, linhas de fuga,
desterritorializantes, liberando assim os elementos e tornando-se
capaz de sentir, pensar e de compreender o outro como outro mundo,
como outro território fronteiriço (e não como outrem à minha
subjetividade). Este é o verdadeiro deslocamento: não do mundo nem
pelo mundo, mas através.

!
Para tal, é preciso observar o verdadeiro problema, aquele que
desde a Alegoria da Caverna impera nas reflexões sobre o saber (e
sobre o não-saber): o da luz. Já está claro (com o perdão do trocadilho)
que o problema das instituições e dispositivos de poder é que são estas
estruturas que definem o que pode ou não pode ser visto. Lutar por
uma realidade que escape às estruturas de poder precisa ser uma
contrapalavra a esta lógica da iluminação, da verdade e do visível.
Assim, este texto se debruça sobre uma possível filosofia da educação
que valorize e compreenda, em oposição às categorias que mantém o
poder, o valor da desestrutura, do caos, do invisível, do obscuro e
especialmente do oculto.
E para isso será preciso pensar em uma estética do oculto, uma
ética do oculto, uma outra maneira de pensar a realidade não a partir
do que se mostra, mas a partir do que se esconde. Não a partir do que
vemos – porque o que vemos é sempre o que nos é permitido ver – mas a
partir do que, invisível, nos toca. Assim, esta pesquisa, da qual este
texto emerge, explorará conceitos que permitam pensar uma escola da
desestrutura, ou seja, uma possível escola desvinculada de tempos e
espaços estruturais, já que toda estrutura está em função de uma
relação de poder. E observar no seio deste rizoma as forças ocultas que
só podemos perceber através de um esforço para não ver.
Assim, o que se ensaia propor aqui, para além de uma escola que
devenha viagem, ou seja, uma escola que produza em seus habitantes
deslocamentos, fazendo com que entrem eles em seus devires-
viajantes, com que desestruturem e nomadizem os espaços por onde
caminham, é também uma escola que ensine ou que produza em seus
habitantes cegueiras. Melhor ainda: talvez o que se ensaie propor aqui
seja que todo deslocamento é um processo de enceguecimento.

415
daniel gaivota contage

Caminhar ou passear coloca o caminhante necessariamente no


meio, entre o ponto de partida e de chegada – ou seja, despontifica,
vetoriza, imerge a imagem do eu único na multiplicidade. Caminhar
nomadiza. O caminho é um não-lugar, o caminho é a passagem.
Passar, passear, dar passos, é sempre andar para longe de si.
A autoridade do caminho não nos conduz à terra
prometida, mas podemos nos dizer que nos empurra.
Não nos diz aonde deveríamos ir, mas puxa-nos,
fazendo-nos sair de onde estamos (nos afasta de quem
somos e do que pensamos) [...] Caminhar é ao mesmo
tempo percorrer um caminho e permitir que o caminho
submeta a alma. Poderíamos dizer que a caminhada é
uma atividade física que move ou desloca o olhar (ou
seja, faz com que ele abandone sua posição, a ex-põe).
(MASSCHELEIN; SIMONS, 2014, pp.45-46)
Deste modo, se o que o caminho produz, numa relação
rizomática, é o movimento, e se ele se faz ao caminhar, no presente,
não antes nem depois, podemos afirmar que a educação pensada
nestes termos não é a educação de um/a aluno ou aluna por um/a
professor/a, não é um percurso de um/a estudante até um ponto
desejado pelo docente ou pela instituição. Antes, parece que a
justificativa de uma escola do deslocamento seja o próprio movimento. E
assim, a atividade de pensar uma escola da diferença – e com isso
poderíamos dizer: uma escola que compreende os alunos e o mundo
com o qual estão tendo contato enquanto multiplicidades – tem como
resultado, a partir da desestrutura e do alisamento dos tempos e
espaços, da observação e ação no mundo à forma de um rizoma, o
surgimento de linhas de fuga, ou seja, o deslocamento, o escape – em
outras palavras, esta escola faz com que as coisas e as pessoas deixem
de ser o que estiveram sendo. Gera movimento externalizante, para
fora de si, para fora do Eu. Não para a percepção que alguém tem do
mundo, para um “fora subjetivo” ou para uma percepção pessoal do
entorno, mas para um fora vetorial, um fora intensivo.
É preciso distinguir a exterioridade e o lado de fora. A
exterioridade é ainda uma forma, como na Arqueologia
do Saber, e mesmo duas formas exteriores uma à outra,
pois o saber é feito desses dois meios, luz e linguagem,
ver e falar. Mas o lado de fora diz respeito à força: se a
força está sempre em relação com outras forças, as
forças remetem necessariamente a um lado de fora
irredutível, que não tem mais sequer forma, feito de
distâncias indecomponíveis através das quais uma força
age sobre outra ou recebe a ação de outra. (DELEUZE,
2005, p. 93)
O fora, conceito amplamente trabalhado por Maurice Blanchot e
posteriormente por Deleuze e Foucault, parece ser um plano que não

416
mapas invisíveis e viajantes cegos: ensaio para uma escola do oculto.

ocupa o limite da distância extensa, mas pelo contrário, que


intensamente separa o eu da própria subjetividade, ou seja, que
desloca de um campo de posições no qual umas são exteriores às
outras para um plano de imanência, onde todas as multiplicidades
ocupam a mesma dimensão e se afetam mutuamente,
inorganicamente, como tempestade, rizoma, matilha. “Há, então, um
devir das forças que não se confunde com a história das formas, já que
opera em outra dimensão. Um lado de fora mais longínquo que todo o
mundo exterior e mesmo que toda forma de exterioridade, portanto
infinitamente mais próximo”. (DELEUZE, 2005, p. 93, grifo do autor)
O fora é o plano que violenta a percepção; é através do encontro
com um fora que há movimento, desestrutura, que o pensamento pode
ser forçado a pensar. “Se ver e falar são formas da exterioridade,
pensar se dirige a um lado de fora que não tem forma. Pensar é chegar
ao não-estratificado [...]; pensar cabe ao lado de fora, na medida em
que este, “tempestade abstrata”, mergulha no interstício entre ver e
falar” (DELEUZE, 2005, p.94). Deleuze, assim, expõe finalmente o
problema: ver e falar são da ordem do exterior, mas a verdadeira
violência que faz pensar, que e-duca, está naquilo que não aparece,
não se estratifica, ao que é indecalcável, ao que está fora, oculto.
Educar não pode ser diferente de viajar. E viajar é sempre aprender a
não-ver.

!
Parece evidente, depois de observar estes possíveis caminhos
escondidos, que nunca foi simples pensar o invisível ou o que se
esconde. O oculto, entretanto, aparece na história do pensamento
muito cedo. Talvez seja possível afirmar que é o oculto a causa
primeira de todo pensamento. Aristóteles afirma o Thauma ou
Thaumadzein, ou seja, o espanto ou o espantar-se, como a causa
primeira do pensamento filosófico. Nos admiramos com o
desconhecido, e é por isso que iniciamos nosso movimento em direção
a ele – independente de o alcançarmos ou não. A história do
pensamento antigo nos permitiria concluir que é esse não-saber que
nos permite mover, e talvez situaria o filósofo como um não-sábio (em
oposição aos sofistas, ou seja, aos sábios).
Mas muito antes de Sócrates outro pensador do movimento já
afirmara o oculto enquanto potência: Heráclito. Não temos acesso à
sua obra, a não ser por citações nos textos de outros pensadores e
historiadores. Assim, o contexto de cada fragmento de Heráclito é
inexato – ou oculto –, e por isso podemos apenas deduzir seus
significados. Ler Heráclito não é diferente, portanto, de conversar com
qualquer pessoa no mundo e especialmente não é diferente de
dialogar com uma criança. Um de seus fragmentos, por exemplo, nos
permite analisar a relação das crianças com o mundo: o fragmento 123

417
daniel gaivota contage

diz: “φύσις [...] κρύπτεσθαι φιλεῖ”. Em uma tradução livre e própria, "A
natureza deseja intimamente ocultar-se". E se esconde porque deseja,
intimamente, ser revelada. Não como uma suma verdade a ser
alcançada, mas como uma coleção de mundos possíveis na relação
entre texto e contexto, ou sujeito discursivo e sujeito humano. Entre o
mundo (real) e o mundo (descoberto).
As crianças criam o mundo em que vivem, e parecem perceber
isso. Uma das crianças com as quais realizamos experiências de
pensamento afirmou, certa vez: "[...] e aí, se eu não falar o que está na
minha cabeça ninguém vai ter como falar isso"; e depois: "porque ninguém
mais é eu, só eu". Ela parece compreender a responsabilidade que tem
de viver de maneira verdadeira, ousar, de se comprometer, de assinar
responsavelmente seus atos. Percebe que tem a obrigação de pensar e
dizer, pois ninguém mais verá o mundo como ela vê. Este mundo
oculta-se nela, e ela é portanto responsável por revelá-lo, por descobri-
lo. Como uma detetive, como uma exploradora. Esta criança pode
perceber isto de maneira tão clara porque habita uma temporalidade
diferente da dos adultos.
O fragmento 52 de Heráclito pode nos ajudar (por atrapalhar) a
pensar essa relação. O texto original é “αἰὼν παῖς ἐστι παίζων”, que
normalmente se traduz por "O tempo é uma criança brincando". Mas uma
tradução mais atenta e menos exata chamaria atenção para essas duas
palavras: αἰὼν e παίζων. A primeira, aión, remete a uma ideia de
tempo grega diferente da mais tradicional, χρόνος, chrónos, que diz
respeito a um tempo cronológico, medido, pequeno. Aión, muitas
vezes traduzido também por eternidade, tem a ver com uma outra
noção de tempo, não redutível a unidades de medida, mas amplo,
intensivo, um grande tempo onde as linhas que separam passado,
presente e futuro não são tão bem definidas e uma criança de Duque
de Caxias pode fazer retornar palavras de um filósofo grego em seu
dizer, em sua tradução do mundo. A segunda palavra digna de
atenção é παίζων, paízon, que podemos traduzir por brincar, mas é
uma derivação de παῖς, pais, criança. Paízon significa, numa tradução
ao pé da letra, "criançear", ou seja, fazer aquilo que é próprio de uma
criança. O fragmento de Heráclito, portanto, parece dizer que o tempo
se dilata, é experimentado de uma outra maneira, quando uma criança
age como uma criança.
E, por coincidência ou não, carregamos conosco (pois nos
constituímos na nossa relação com o outro e com a linguagem) uma
outra palavra bastante bonita, também de origem grega: σχολή, skholé,
escola. Skholé, em grego, tem o significado de "tempo livre". O que nos
leva a investigar, como as crianças, o que a escola tem a ver com o ato
de "criançear". Não é a escola, supostamente, um tempo livre do
trabalho, das perspectivas da família, dos pressupostos sociais, livre de
quaisquer álibis? Não poderíamos chamar de escolar este espaço-

418
mapas invisíveis e viajantes cegos: ensaio para uma escola do oculto.

tempo – ou tempo-espaço – em que é possível à criança ser criança,


"criançear"? Se admitirmos estas conclusões um tanto quanto
apressadas, não faz sentido pensar então que é na escola que o tempo
pode se alargar, se ampliar, vetorizar? Passar a dizer respeito menos a
indivíduos específicos e a subjetividades estanques, visíveis, tornadas
visíveis, e mais a forças que atravessam ocultamente os sujeitos e
permitem que estes deixem de ser o que vieram sendo? Não é ai que
uma criança pode tocar Heráclito?

!
A tarefa do educador talvez seja encontrar estes espaços-tempos
ou tempos-espaços, em que é permitido "criançear". Estes tempos aión
nem sempre estão na sala de aula (muitas vezes nem podem ser
percebidos nas escolas – apesar de estarem lá, ocultos), mas em outros
momentos e lugares. Não se trata, obviamente, de literalmente não
ver, fechar os olhos e bater a cabeça na parede. Muito embora esta
possa até ser uma experiência importante para qualquer pesquisador
que estude a escola, o não-ver aqui tem a ver com um ver-outro, ou
seja, uma possibilidade de ignorar as permissões e interdições,
subverter as lógicas de importância estabelecidas pelas estruturas que
definem as escolas e as instituições e olhar para outro lado. Ou seja, de
ser capaz de prestar atenção àquilo que normalmente não é digno de
atenção, que é tornado invisível. Montaigne assinala, em seus Ensaios,
as possibilidades éticas do “dizer não” e de manter “olhos em todo
lugar”. A primeira é já assinalada por Deleuze em outro momento
através da figura de Bartleby, o escrivão, personagem de Melville.
Bartleby é um escrituário em um escritório de advocacia em Wall
Street; em determinado momento, porém, passa a se negar a realizar
os trabalhos – não por revoltar-se ou por desejar enganar o patrão:
responde simplesmente que “prefere não fazer” o que lhe ordenam
(MELVILLE, 2005). Essa insubordinação é tão desconcertante para o
patrão, os demais funcionários e para todos os envolvidos que não há
o que fazer com Bartleby. A afirmação do escrituário desafia toda uma
lógica composta por verdades até então universalizadas. Ele não
poderia afirmar a negativa desta maneira. Ou melhor, tal possibilidade
estava oculta, invisível. Chamamos impossível aquilo que para nós é
negado ver. Um pensamento do oculto pode fazer com que estas
impossibilidades sejam tateadas, exploradas.
A segunda possibilidade ética assinalada por Montaigne é a de
ter olhos em todos os lugares. Com isso, ele sugere um outro olhar
possível: a possibilidade de olhar da mesma maneira para o que já tem
valor estabelecido e para o que supostamente não tem valor. Ou seja,
de subverter a lógica estruturada pelas hierarquias do saber e olhar
com igual atenção para todos os objetos e situações. Olhar
curiosamente para tudo. A escrita e o pensamento encontram seu

419
daniel gaivota contage

valor, inclusive, a partir desta possibilidade: se interessam por aquilo


que não tem valor e se movimentam para descobrir porque então
aquilo lhes interessa tanto. Como disse certa vez Carlos Skliar, “a ética
está no olhar”. É a partir do olhar que definimos os valores – um olhar
manchado valora a partir das estruturas que o mancham. Um olhar
limpo olha igualmente para os objetos, para crianças, adultos e velhos,
para o que é considerado importante e para o que é ignorado.
Derrida explora amplamente o conceito da cegueira, da não-
visão e do oculto em seus livros sobre o desenho. Para o autor, as
relações do visível são relações de filiação, duais, pai-filho, relações
molares, masculinas. É contra esse tipo de olhar maior que um
pensamento da diferença surge, em busca de uma visão menor, que
permita os devires e as forças moleculares. Assim, afirma que há, em
toda visibilidade, uma invisibilidade inerente, virtual, a lhe atualizar.
E dai, a cegueira figura, portanto, como uma possibilidade de tocar os
devires, de, por não poder ver, estender as mãos para frente para
tocar: permitir outra maneira de experiência.
Em todo caso, a hipótese geral é a de que o
enceguecimento é, de algum modo, a origem do
desenho, a experiência ou a apreensão do
enceguecimento. Então, estou dizendo “experiência” ou
“apreensão”: por quê? Quando digo “experiência”,
penso no que essa palavra quer dizer na proximidade
da sua própria raiz. Uma experiência é sempre uma
viagem, uma experiência é sempre uma travessia e,
portanto, um deslocamento no espaço. E o cego é
alguém que faz a experiência do espaço atravessando-o
sem vê-lo. A apreensão é ao mesmo tempo o medo, o
medo do enceguecimento, e depois, também,
precisamente por causa do medo, o gesto que consiste
em avançar as mãos, em colocar as mãos pra frente para
não cair. E o cego é alguém que cai, então é assim,
frequentemente, que ele é representado: ele está sempre
caindo ou evitando cair, se protegendo contra uma
queda possível [...] Portanto, a hipótese geral era a
seguinte: a de que a origem do desenho era uma certa
experiência, uma certa apreensão do enceguecimento.
(DERRIDA, 2012, p. 175)
Assim, o cego é aquele que, mais que ver, delineia e cria a
realidade a partir do que toca. Como Michelangelo, que parava de
quebrar a pedra “quando chegava à pele”, o cego constrói texturas a
partir de suas mãos, de sua bengala. É a partir da cegueira que se
pode, desta outra maneira, olhar, abrir-se às forças que são invisíveis.
E, apesar de Derrida estar falando sobre a origem do desenho,
podemos pensar com ele que esse cegar-se pode ser a origem do
pensamento da diferença e da escrita.
Mas a escrita também precisa ser desdobrada em relação às

420
mapas invisíveis e viajantes cegos: ensaio para uma escola do oculto.

forças visíveis e invisíveis. É preciso ainda, pensando na invenção


desta estética do oculto, a observação da atividade de escrever como
produção de forças ocultas. Esta relação, tecida durante uma disciplina
do curso de Mestrado sobre a escrita no Programa de Pós-Graduação
em Educação da UERJ em 2015, tomou conta das minhas reflexões,
tornando impossível desvincular o escrever do não-visto. Ainda é
preciso pensar se a escrita simplesmente não deve fazer ver ou se, para
além disso, deve fazer não-ver, mas se não há nada invisível em uma
escrita, ela é como um quadro em que tudo está visível, à mostra, uma
música na qual só seja possível ouvir os tons ou um filme no qual
somente se veja imagens em sequência. Se não há o não-visto, o oculto,
só há signos vazios, contingentes. A escrita não pode nunca ser foto-
grafia; a escrita que grafa a luz, o que está à mostra, iluminado, é
estéril, impotente, imagem lisa, sem profundidade, marca, stilo. É
preciso buscar a possibilidade de uma escrita do obscuro, daquilo que
não se vê. Pintar que não se vê, disse Proust. Talvez seja preciso,
parafraseando, Escrever que não se lê. Talvez a escrita seja uma espécie
de escurografia.
Quando leio, tudo já está escrito, a tinta toda já caiu sobre o
papel, e anseio pela queda por vir, pela minha queda. A leitura, nesse
sentido, é acidental, que quer dizer “por cair” (ad cadere). Já na escrita,
ao mesmo tempo que me quedo, faço cair a tinta na folha. A escrita,
portanto, é coincidente, ou seja, “cai junto em” (co-in-cadere). Só é
possível escrever caindo, e a queda da escrita é sempre uma
coincidência. Me jogo, me lanço, quedo meu corpo, meu olhar, meus
sentidos sobre o papel, e é com tudo o que sou que o marco e que
marco o mundo. E é assim que a escola marca o mundo de quem a
habita. Caindo junto, movimentando-se, sem sentir a resistência das
estruturas que parecem acorrentar. E só se percebe que as correntes
são falsas, só se escapa da ilusão das lógicas de poder através do
pensamento do oculto. Assim como a escrita, ele serve para tatear
aquilo que está coberto, invisível.
Uma escrita escurógrafa é um operador de transformação do
registro em movimento. É uma transformação, em movimento, do
registro em oculto. É um movimento oculto de descoberta e recoberta,
de escondimento. De condimentação, que é um esconder sabor. É des-
saber. O pensamento do oculto é um anti-olho. É o que faz não-ver.
Um óculos do avesso, que permite que o mundo se torne menos
nítido, deformado. O mundo dança através dessa lente desconvexa,
dessa desconversa, dessa desconversão. Baila invisivelmente sob sua
aparente e observável imobilidade, oculto a todos aqueles que só
sabem ver.

421
daniel gaivota contage

referências

CONTAGE, Daniel Gaivota. Poética do Deslocamento: nomadismo, diferença e


narrativa na Escola-Viagem. 1ª ed. Rio de Janeiro: NEFI, 2017.
DELEUZE, Gilles. Foucault. Trad. Claudia Sant’Anna Martins. São Paulo:
Brasiliense, 2005.
________. ¿Qué es un dispositivo? In: Michel Foucault, filósofo. pp. 155-161.
Barcelona: Gedisa, 1990.
DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Félix. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia. Vol.
1. São Paulo: Editora 34, 2012.
DERRIDA, Jacques. Pensar em não ver: escritos sobre as artes do visível.
Florianópolis: Ed. UFSC, 2012.
FOUCAULT, Michel. Sobre a história da sexualidade. In: MACHADO, R.
(Org.). Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1984.
MASSCHELEIN, Jan; SIMONS, Maarten. A pedagogia, a democracia, a escola. Belo
Horizonte: Autêntica, 2014.
MELVILLE, H. Bartleby, o escrivão. Trad. Irene Hirsch. São Paulo: Cosac Naify,
2005.
PRADO FILHO, Kleber; TETI, Marcela M. A cartografia como método para as
ciências humanas e sociais. Barbarói, Santa Cruz do Sul, n.38, jan./jun., pp.45-
59, 2013.

422
pesquisa-docência da diferença: encontros e composições
para um método labiríntico em jogo

diego winck esteves


ufrgs
contato@diegoesteves.in
máximo daniel lamela adó
ufrgs
maximo.lamela@ufrgs.br

labor intus: espaços em criação

Esse texto pensa a criação de um espaço que diante do uso de


algumas restrições possa lidar com o imprevisível. Impõe-se, para
tanto, certas noções de jogo e desvio e, desse modo, passa a habitá-lo
— espaço-texto, espaço-aula, espaço-de-si — como um ambiente que
se impõe à criação na e da pesquisa-docência.
Assim perspectivado, o espaço é percebido como composto por
forças ativas e reativas onde como docentes e pesquisadores nos
movemos para, em jogo com essas forças, provocar encontros alegres.
Tais encontros são aqueles que lidam, de certo modo, com uma
potência de invenção que age em direção a uma retificação vital, ou
seja, que tomam a noção de alegria da filosofia de Spinoza e que, por
isso, entendem a alegria como uma paixão exterior que aproxima os
homens de sua potência de ação em razão a uma afirmação da vida.
Afirmar a vida significa contornar tudo que envolve a tristeza, uma
vez que esta estaria a serviço da tirania e da opressão subtraindo dos
homens a potência de agir. (DELEUZE, 2002; SPINOZA, 2010).
Por essa via, esse espaço é tomado, também, como possibilidade
de fruição pois, para Barthes (1987) é um espaço criado por uma
procura desejante do próprio espaço como um lugar de jogo e
imprevisibilidade. Espaço onde o prazer está tanto na métrica que o
possibilita quanto, paradoxalmente, no imprevisível suscitado por essa
métrica. A fruição, assim concebida, seria uma espécie de ambiência
provocadora de uma “coabitação das linguagens” (1987, p. 08), onde o
sujeito pouco importa, pois, como um estrangeiro à deriva é o espaço
como a possibilidade de uma “imprevisão do desfrute” (1987, p. 09,
grifo do autor) que se impõe.
Deste modo, o texto aborda a criação de um espaço da e na
pesquisa-docência que se impõe a desvios a partir de restrições
autoimpostas, como um modo de desequilibrar o sujeito e promover o
devir (enquanto acessos intermitentes de individuação). Tal intento se
justifica na perspectiva de que não há um real a ser desvelado, e que

423
diego winck esteves; máximo daniel lamela adó

diante dos “fatos” inventamos uma realidade, numa permuta entre


real e ficção. Encontra-se assim no labirinto um modo de resistir ao
mundo da representação, produzindo um espaço de possibilidades, de
experimentação, um convite ao acaso e ao improvável, para que o
pensar possa ocorrer ao pensamento.

labirinto: jogo de imprevisibilidade

Com Deleuze e Guattari (1997), podemos afirmar que um espaço


liso se constitui como uma zona de intensidades sem início e nem fim,
sem ponto de chegada. Nesse espaço vigora a imagem do labirinto, do
qual nos ocupamos e no qual trabalhamos como pesquisadores-
docentes. Esse espaço da pesquisa, da aula e de nossa própria
constituição como docentes, também nos trabalha como uma matéria
em jogo com outras matérias. Um espaço de labor que compreende
um complexo jogo da existência em uma pesquisa-docência da
diferença. Existência produzida sob complexa metamorfose em
reciprocidade.
Interessa-nos a noção de labor para pensar a tarefa da docência-
pesquisa, pois, essa noção, como nos diz Compagnon (2007, p. 44), é
uma potência em ação por carregar o poder simbólico na própria
palavra. Mallarmé designava seus trabalhos linguísticos como um
labor; os religiosos das ordens contemplativas tomavam a oração
como um labor; Évrard l’Allemand propôs como etimologia para a
palavra labirinto labor intus, ou seja, um trabalho que se faz por dentro.
Deste modo, a imagem do labirinto nos ocupa e nos dá a ver a
docência-pesquisa como um labor interno, esse fazer que cria, por
meio de uma complexa rede de citações, um espaço que é, ao mesmo
tempo, espaço de estudo, pesquisa e formação. Trata-se de um
labirinto com muitas bifurcações. Entradas que são, ao mesmo tempo
saídas e que, deste modo, remetem sempre a um descentramento. A
um deslocamento, constante, de qualquer centralidade que lhe dê
valor e simetria. O labirinto como uma figura que nos serve como o
lugar do estudo (LARROSA, 2006).
Invocamos para tal a força da palavra e a potência do texto,
tecendo a docência-pesquisa como o tramar de uma rede de citações
num plano que se impõe a diagonais, desvios e conexões transversais,
ao modo de um livro-rizoma. (DELEUZE; GUATTARI, 1995).
A imagem do labirinto também nos possibilita perspectivar o
aprender, ao considerar que as restrições que se apresentam nesse
labirinto, e que nos impossibilitam de visualizar todo esse vasto
campo que podemos chamar de mundo, não são mais do que os
limites do nosso saber. Nesse sentido, assim como nos propõe
Nietzsche, o mundo precisa ser decifrado, e esse decifrar não é da

424
pesquisa-docência da diferença: encontros e composições para um método ...

ordem de um desvelar, mas sempre de uma invenção. (GRANIER,


2009; LARROSA, 2009).
A ideia do texto como uma rede de citações nos possibilita
perspectivar um modo de fazer pesquisa em Educação. Esse modo,
investido na experimentação provocada pelas vertigens do labirinto,
nos coloca a pensar uma didática que se utiliza do acaso para produzir
encontros e composições heterogêneas. Por essa via, nos ocupamos do
labirinto onde, por caminhos que se cruzam, o fazer pesquisa e o fazer
uma aula se encontram sobre o sentido da ficção: ambos criam
problemas e perguntas que não podem ser respondidas se não por
uma invenção. Nesta perspectiva, a realidade não passa de uma
invenção, uma rede de ficções e a educação um modo de potencializar
os corpos em boas ficções. (FLUSSER, 2006; LARROSA, 2009).
Não há método existente que não seja um caminho inventado
por outros; nestes a pesquisa e a docência se enveredam ou, tomando
forças dos caminhos outrora percorridos, inventam seus próprios
criando seus métodos. O labirinto então se impõe em resistência ao
percurso linear, a identificação, a recognição, não pretende chegar:
reafirma a multiplicidade da existência, prolifera imagens no
pensamento, intenta produzir um espaço coabitado pela
heterogeneidade. Por essa via, incerta, não há caminhos, nem
respostas, ainda que provisórias, que não sejam uma ficção.
A partir deste ponto seguimos a viagem, sobretudo, com
Nietzsche e Deleuze e, em alguns momentos, com outros
companheiros. Mas ao fim e ao cabo viajamos sempre sozinhos, e
nessa vertigem do labirinto fizemos palavras nossas as dos outros - e
com o que nos afeta, nos encontros, chegamos as nossas verdades,
fizemos ficções, compomos modos de ser em meio à vida.
Por muitos caminhos diferentes e de múltiplos modos
cheguei eu à minha verdade; não por uma única escada
subi até a altura onde meus olhos percorrem o mundo. E
nunca gostei de perguntar por caminhos, - isso, ao meu
ver, sempre repugna! Preferia perguntar e submeter à
prova os próprios caminhos. Um ensaiar e perguntar foi
todo o meu caminhar - e, na verdade, também tem-se de
aprender a responder a tal pergunta! Este é o meu gosto,
do qual já não me envergonho nem o escondo. “Este é o
meu caminho, onde está o vosso?”, assim respondia eu
aos que perguntavam “pelo caminho”. O caminho, na
verdade, não existe! (NIETZSCHE apud LARROSA,
2009, p.40).

como se tornar o que se é em uma poética da vertigem

O corpo é um complexo jogo de forças, intensidades e fluxos,


latitudes e longitudes que não para de ser estratificado. Os estratos

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diego winck esteves; máximo daniel lamela adó

definem um sujeito, a captura reduz os fluxos. Entendemos a educação


como um modo de desequilibrar, de promover o devir em direção a
outro ser sempre por vir – por caminhos nos quais, apesar das
incertezas, os movimentos se precipitam. Após deslocamentos um
novo equilíbrio instável se instaura, uma paragem entre sequências de
acessos de individuação. (DELEUZE, 2002; DELEUZE; GUATTARI,
1996; SIMONDON apud CORAZZA, 2013).
A paragem como um momento de investigar um ponto do
labirinto, explorar suas superfícies e recolher invenções em
composições imprevistas, até que se rompa novamente o equilíbrio em
movimentos desorientados para outros encontros numa vertigem
labiríntica da/na pesquisa-docência. Trata-se de pensar que, segundo
Adó (2014, p.4),
[...] parece haver certa impassividade para com aquilo
que nos constitui; nossas ações cotidianas. A superfície
de nossos dias de professores e alunos — e nisso entra a
pergunta pelo espaço de/da aula, — é por nós, agentes
desse processo, notada, vista, anotada? Que corpo de
imagens poéticas podemos formar de uma aula?
Então, para desorientar e desequilibrar criam-se jogos que
promovem restrições que se apresentam ao sujeito (e à linguagem
através do texto), para que o corpo desvie: o corpo é composto de
forças ativas, capaz de se transformar, é um sábio desconhecido.
(DELEUZE, 1976).
Assim, jogar é criar os caminhos de um labirinto, pois “[...] o
homem joga justamente porque não sabe: assim como se desconhece o
destino da vida, ignora-se o desfecho da partida, da disputa, da escrita
a partir de uma regra a priori” (PEREIRA, 2012). Entra-se então neste
labirinto inventado para afirmar a vontade que se apresenta, a partir
de Nietzsche, como fundamento do ser e da existência, a vontade de
jogo; neste espaço imprevisto e descentrado produzimos fissuras nos
estratos que restringe os fluxos, colocando o sujeito em jogo.
Para “chegar a ser o que se é” há que combater o que já
se é. Porém, o sentido dessa luta é afirmativo. Qual é a
natureza dessa afirmação? Naturalmente, nada que
tenha a ver com o saber, com o poder ou com a vontade.
Ao menos, se entendemos “saber”, “poder” e “vontade”
como os atributos de um sujeito que sabe o que é e o que
quer, e que é capaz de sobreimpor sua própria vontade
a qualquer outra vontade que pretenda determina-lo.
(LARROSA, 2009, p.52).
Se o pesquisar é um operar com a linguagem através do texto, do
mesmo modo, não há currículo sem linguagem. Nesse sentido, uma
Educação contemporânea que se afirme na diferença precisa resistir
aos jogos de verdade operados através da linguagem; embaralhar os
códigos, produzir efeitos de superfície, tornar visível a incerteza sobre
426
pesquisa-docência da diferença: encontros e composições para um método ...

a qual a educação trabalha: um mundo como aparência onde nada


mais se pode fazer do que decifrar seus efeitos, ou seja: inventariar,
compor e inventar sua ficção, essa tal realidade. Uma Educação que
faz de si e dos corpos espaços perpétuos de reinvenção. (NIETZSCHE,
2005).
Trata-se de uma postura, do docente-pesquisador que criar seus
próprios jogos, e propõe o espaço de uma aula em jogo. Criar
labirintos dentro de labirintos, desequilibrar também a língua, o
sentido e as definições do conhecido. O Método Labiríntico de uma
pesquisa-docência se afirma numa poética que se coaduna com a
vertigem, se compondo na incerteza da errância e em jogo com o
acaso, por uma afirmação ativa da diferença. Com Nietzsche, libertar
as coisas da servidão da finalidade:
Nietzsche identifica o acaso ao múltiplo, aos
fragmentos, aos membros, ao caos: caos dos dados que
sacudidos e que lançamos. Nietzsche faz do acaso uma
afirmação. O próprio céu é chamado de “céu do acaso”,
“céu inocência”; o reino de Zaratustra é chamado de
“grande acaso”. “Por acaso, esta é a mais antiga nobreza
do mundo, eu a restitui a todas as coisas, eu a libertei da
servidão da finalidade... Encontrei em todas as coisas
esta certeza bem-aventurada de que elas preferem
dançar sobre os pés do acaso”. “Minha palavra é:
deixem vir a mim o acaso, ele é inocente como uma
criancinha”. O que Nietzsche chama de necessidade
(destino) nunca é, portanto, a abolição do acaso, mas
sim sua própria combinação. (DELEUZE, 1976, p.15).

convite ao acaso: a pesquisa e a aula como espaços de encontros e


composições heterogêneas

Se a realidade é aqui entendida como uma ficção, e se esse


“chegar a ser o que se é”, do mesmo modo, é um sempre um vir a ser
inventado, ficcional, a essas afirmações a Educação não pode passar
alheia. O estudium de pesquisa e a sala de aula são aqui abordados
sobre uma mesma perspectiva: espaços para encontros singulares. A
pesquisa e a aula assim compreendidas como composições, mas antes,
como a criação de condições para que a criação aconteça: possibilitar
um espaço que potencialize invenções, que possibilite bons encontros
e boas ficções; leia-se: boas educações.
O espaço da sala de aula, assim como o queremos,
também se personifica como elemento interativo e
relacional. É ele, o espaço, também personagem.
Vitaliza, com suas funções hápticas, a organicidade das
vidas que fogem para todos os lados desse espaço-
relação. A sala de aula, com seus limites e composições,

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diego winck esteves; máximo daniel lamela adó

é, também, um lugar de constante estado de


desequilíbrio, impermanência, virtualização; espaço que
preza, em sua própria composição dispositiva, um
campo de diferenças. (ADÓ, 2014, p.7).
A educação e o pesquisar em educação tem então uma
relação com a infância, dessa dimensão crianceira do jogo, da
brincadeira, da inocência, e do acaso. Quando não há um ponto de
chegada, não há, portanto, uma meta externa a ser conquistada.
Assim, a educação passa a ser a afirmação da conquista de um
conhecimento, e esse como um empoderamento do discente com a
matéria (currículo) sobre a qual trabalha, para com ela afirmar seu
modo de conhecer o mundo e o mundo que deseja conhecer; e ao fazê-
lo das combinações possíveis com as matérias escolhidas, tem em
resultado uma “colagem” que define como a sua realidade e assim
define a si. Nas palavras de Larrosa (2009, p.57):
Isso que somos e que temos de chegar a ser está
claramente do lado da invenção. O homem é um animal
de invenção, e as diferentes formas de consciência não
são senão produtos dessa função inventiva, dessa
capacidade de invenção. Por isso, Nietzsche não
distingue realidade e ficção, mas a ficção má, enferma, e
a ficção boa, sã, em função da qual está sua relação com
a vida. Haveria então uma ficção má, temerosa e
negadora da vida, e uma ficção boa, afirmativa,
produtora de novidade, de intensidade, criadora de
possibilidade de vida.
Nos parece importante retornar a Compagnon: o labirinto é essa
rede de citações (aqui se projetando na pesquisa e currículo) sobre o
qual trabalhamos, mas que ao mesmo tempo nos trabalha. A conquista
do conhecimento é assim entendida como uma conquista de si e, sem
embargo, é um ser conquistado pelo conhecimento do conhecido que
se passa a conhecer: ao dar a ver quem se é insere-se numa narrativa
ficcional. Destitui-se assim uma presumida soberania do sujeito na
hierarquia sobre o objeto (que deixa de ser servil). A capacidade para
escrever sua história, enquanto conquista e apropriação do real,
somente torna-se possível ao perceber-se como um personagem que
escreve sobre a própria história da qual é um personagem. É uma
escrita que joga consigo, ao escrever seu mundo, sua realidade, sua
vida, e tem na inocência o sentido e o motivo de sua existência. Como
afirma Deleuze (1976, p.14) no livro dedicado a Nietzsche:
A inocência é o jogo da existência, da força e da
vontade. A existência afirmada e apreciada, a força não
separada, a vontade não desdobrada, essa é a primeira
aproximação da inocência. [...] Heráclito é aquele para
quem a vida é radicalmente inocente e justa.
Compreende a inocência a partir de um instinto de jogo,
faz da existência um fenômeno estético.

428
pesquisa-docência da diferença: encontros e composições para um método ...

Para tanto, a criação desse espaço da pesquisa-docência precisa


supor vazios a serem preenchidos. Ao desviar de uma composição
antecipadamente prevista em um planejamento que chegaria resolvido
em aula, esse espaço é um convite ao acaso. É preciso reforçar que de
modo algum se abandona o planejamento, ao contrário, sua
importância aqui ganha força: é preciso criar estratégias para desviar
da representação.
É um exercício de definir margens e criar espaços em branco
para serem escritos pelo leitor. É um modo, uma certa fé no plano de
imanência, nos movimentos que passam em uma aula, ou numa
pesquisa, e nos encontros que se transcriam e se compõe em texto, e na
composição de si – nessa autoficção que se confunde com uma
autoeducação ao afirmar sua diferença. Um espaço vazio repleto de
forças, uma superfície sobre o qual o aluno pode escrever à sua
vontade – plano de imanência e vontade de potência. (ADÓ, 2014;
DELEUZE, 2002).
Neste espaço-aula, tanto quanto no espaço-texto, os movimentos
passam a valer pelos encontros alegres e pelas boas composições que
possamos fazer com nossos corpos: corpo discente, corpo docente,
corpo do texto-pesquisa. O movimento vale por si, e não é subjugado
pelas formas que pode, eventualmente, compor. Partimos da ideia da
inocência como a justa medida do mundo onde, de um lado se
apresenta sua falta de sentido e, de outro, o sentido que se pode dar
nesse jogo – e aqui a poética se desdobra em política e ética, para assim
não fazer da inocência ingenuidade.
Responde-se assim a pergunta “o que minha vontade quer?”
numa resposta que se compromete com os outros, ao inseri-los nas
entrelinhas da pergunta: pois o que eu quero, quero em minha solidão,
e esta é povoada pelos que amo, e por estranhos, por tantos outros que
vivem nesse labirinto chamado existência e no qual escolho viver deste
ou doutro modo; e nele me disponho para encontros que possam
também potencializar esses outros. A vontade de potência, na
educação entendida como um viver junto, é uma vontade de potência
que deseja que a potência também seja vontade destes outros, para
prover um potencial coletivo e afirmação das singularidades.
Todavia, é preciso responder a pergunta e, antes, fazê-la, e nisso
o sentido das práticas em educação, para as quais o labirinto se dispõe
como método paradoxal, ao prover caminhos incertos, bifurcações,
pelos quais, na tentativa de respostas, eventualmente, se chega a ser
quem se é, como afirmação da diferença.
Nietzsche substitui o elemento especulativo da negação,
da oposição ou da contradição, pelo elemento prático da
diferença: objeto da afirmação e do gozo. É nesse sentido
que existe um empirismo nietzschiano. A pergunta tão
frequente de Nietzsche: o que uma vontade quer? o que

429
diego winck esteves; máximo daniel lamela adó

quer este? aquele? não deve ser compreendida como


uma procura de um objetivo, de um motivo nem de um
objeto de vontade. O que uma vontade quer é afirmar
sua diferença. Em sua relação essencial com a outra,
uma vontade faz de sua diferença um objeto de
afirmação. (DELEUZE, 1976, p.7).

como entrar no labirinto

O labirinto passa a existir quando começamos a habitá-lo,


quando afirmamos sua existência. Justo aí entramos: inventamos um
labirinto ao passar a percorrê-lo, e vice-versa. Nosso labirinto,
diferente do labirinto de Creta, onde Teseu derrotou o Minotauro, não
existe a priori e, tampouco há um fio para guiar a saída. Ademais, não
desejamos sair deste labirinto: imaginamos e criamos nosso próprio
labirinto que se constrói a cada novo passo desse jogo-ficção. Com
Borges (2001, p.106), poderíamos descrevê-lo assim:
Imaginei-o infinito, não somente de quiosques oitavados
e de sendas que voltam, mas sim de rios e províncias e
reinos... Pensei num labirinto de labirintos, num sinuoso
labirinto crescente que abarcasse o passado e o futuro e
que envolvesse, de algum modo, os astros.
Nosso labirinto é então incerto por dois motivos: pelo próprio
modo enigmático de existir do labirinto e por não existir previamente,
ou seja, é indefinido por não existir até que nele se entre: espaço
improvável que se compõe na incerteza do jogo. Se o labirinto pode
ser entendido através da ficção e como um jogo, é preciso aceitar que
essa invenção nos chega como de improviso: não se trata de uma
criação regrada pelo humano e que dividiria o acaso para dominá-lo.
Nos cabe afirmar com Deleuze (2007, p.62), então, de qual jogo se
trata:
1º) Não há regras preexistentes, cada lance inventa suas
regras, carrega consigo suas próprias regras. 2º) Longe
de dividir o acaso em um número de jogadas realmente
distintas, o conjunto das jogadas afirma todo o acaso e
não cessa de ramifica-lo em cada jogada. 3º) As jogadas
não são pois, realmente, numericamente distintas. São
qualitativamente distintas, mas todas são as formas
qualitativas de um só e mesmo lançar, ontologicamente
uno [...] O único lançar é um caos, de que cada lance é
um fragmento. Cada lance opera uma distribuição de
singularidades, constelação. É o jogo do problema, dos
problemas e da pergunta, não mais do categórico e do
hipotético. 4º) Um tal jogo sem regras, sem vencedores
nem vencidos, sem responsabilidade, jogo da inocência.
[...]. O jogo ideal de que falamos não pode ser realizado
por um homem ou por um Deus. Ele só pode ser

430
pesquisa-docência da diferença: encontros e composições para um método ...

pensado e, mais ainda, pensado como não-senso. Mas,


precisamente: ele é realidade do próprio pensamento. É
o inconsciente do pensamento puro.
As vias do labirinto são assim inventadas a cada nova investida,
nos desdobramentos de uma pesquisa, nos deslocamentos de uma
aula. A condição de existência desse labirinto é o desvio: que esse
labor interno se antecipe aos movimentos dos estratos, sobretudo da
linguagem e do sujeito, que promova desequilíbrios suficientes para
sair do eixo, mas não demasiados para que provoquem uma queda
vertiginosa: experimentar sem esquecer-se da prudência, produzir
linhas de fuga que vitalizam a vida. Se perder para novos encontros,
possibilitar novos roteiros, que se apresentam no andar, e assim
participar de outras histórias.
O labirinto, tal qual esse jogo ideal que nos apresenta Deleuze, se
dá no pensamento e se apresenta como paradoxo e não-senso. A
própria ideia de construir para si um labirinto do qual não se deseja
sair já denota certa falta de sentido, mas não de propósito: não falta
coerência ao ato de se precipitar numa busca que não deseja encontra
nada (em específico) e por isso pode encontrar tudo (enquanto
possibilidade). Ato de quem entende que a única permanência na vida
se apresenta sobre a forma da transformação, e que, portanto, nem um
ponto de chegada seria um fim, porquanto a transformação faz de
tudo um meio.
Um fazer da pesquisa e da docência espaços que não afastam
essa ausência de sentido que a nós se apresenta: que não se coaduna
com identidades fixas, com os movimentos viciados da recognição,
com metas específicas em uma vida objetivada; uma ética
comprometida com a potência, em prol de uma vida inteira, que é essa
que pode se perder sem por isso estar perdida de fato, uma vez que
não está a procura de uma saída, e sim jogando com as possibilidades
indefinidas por escolher se colocar à deriva. Como nos propõe Bataille,
no prefácio do texto Sobre Nietzsche: vontade de chance (2017), de que
o ser só pode se manter inteiro sem inserir sua ação no tempo, sem ser
subjugado por um fim que lhe ultrapasse: trata-se de definir a vida
não por uma marcha, mas por uma dança improvisada.
Desse modo, educação e pesquisa (e vida) fazem suas definições
provisórias na invenção de um território de experimentação em meio
ao caos, para que dali adiante encontre outras conexões possíveis
nesse labirinto vital, sob o qual ruge o abismo - sobre este por vezes
precisa-se passar com velocidade, sendo prudente não olhar por muito
tempo.
Não se colocar em marcha, mas dançar. Não definir uma meta,
mas possibilitar e estimular os movimentos ao proporcionar
desequilíbrios. Não entrar num caminho já existente, onde podemos
supor os encontros que nos esperam, mas inventar seus próprios

431
diego winck esteves; máximo daniel lamela adó

caminhos errantes; a imagem do abismo e do caos nos fazem lembrar,


e talvez olhar, para a loucura; a ideia de se perder significa também
aceitar os riscos (e estes estão sempre presentes na vida apesar das
tentativas de suprimi-los ao presumir ordenar as coisas); assim nos
reencontramos com este sábio (ou seria um bufão?), este que não
perguntava pelos caminhos, este que nos apresenta o reino do grande
acaso: “Zaratustra só pode ser entendido no encantamento do riso,
que, por não vivermos no riso e sim ordenando em nós a explicação
das coisas, está fechado para nós: no encantamento do salto, que é o
riso da dança” (BATAILLE, 2017, p.362).
Assim, são por estes caminhos incertos, inocentes, desviantes,
jocosos, sinuosos e por vezes tortuosos que, eventualmente,
retornamos a um mesmo ponto: e neste reencontro nos
perspectivamos como pesquisadores e educadores. Um fazer pesquisa
e uma didática que não definem uma meta, mas afirmam um estilo:
um certo modo de explorar o mundo e conhecê-lo em um viajar que se
define num jogo incerto e que faz deste andar uma dança
improvisada, e uma dança que ri.

jogo-dança de uma viagem improvisada para se chegar alhures

Texto que não pode chegar ao fim, imbricado no jogo imposto ao


pensamento, colocado à prova sem, contudo, ter qualquer vitória em
vista. Escrita como sinônimo de tradução, que projeta um duplo de si
no texto, fazendo dele um espaço vital, de acontecimentos e ideias que
nos chegam de improviso.
Relação possível entre escrita e dança: nos dispomos neste
espaço como um dançarino que improvisa sua dança, e que faz dela
sua existência. Se é uma pesquisa sobre educação, também é uma
autoeducação em pesquisa. Pesquisador e pesquisa aqui não se
separam, mas compõe-se numa dança em texto. Não há tampouco a
ilusão de uma quarta parede que separa pesquisador-escritor e leitor:
estamos todos em cena - nos encontramos, e com tantos outros, neste
labirinto.
A tessitura destas linhas nos projeta no texto como docentes-
pesquisadores: mas este nós é coletivo, um outro, descentrado pelo
jogo que, paradoxalmente, impõe a si. Escrita que precisa escrever-se
com certa dose de imprecisão: como quem escreve incerto por seguir
os caminhos tortos deste labirinto, ou pela vertigem que ele provoca,
ou ainda, por se encontrar aí exilado de partes de si. Perder a
verticalidade que define nosso centramento, colocar-se em movimento
atravessando fronteiras que nos identificam a território definidos.
Sabemos que para cometer certa travessia como essa, a
que comporta um exílio, é necessário que estejamos
prontos para perder muitas coisas. Para passar certa

432
pesquisa-docência da diferença: encontros e composições para um método ...

fronteira e começar a habitar uma Educação que


experimenta e cria é necessário estar disposto a perder
certezas, estabilidades, razões hierárquicas utilitaristas,
autoridade arbitrária e inútil e, nessa perda, ganhar ou
reinventar a capacidade de estranhar, a capacidade de
ler (ao ter perdido o modo harmônico de fazer uma
leitura) a capacidade de naufragar como fez o Robinson
de Michel Tournier que, depois do naufrágio e da
redescoberta da terra, pelo encontro que teve com Sexta-
feira (o araucano), deu outro valor ao governo da terra,
do medo, dos outros e de si. (ADÓ, 2016, p.144).
Andar neste labirinto é trabalhoso: um labor interno para o qual
é necessário se nutrir, mas somente com o que for indubitavelmente
necessário. É preciso se mover com leveza entre e com as palavras,
com o pensamento. Frente ao acúmulo de conteúdo, de um aprender
sem fim, resistir com os pés leves de uma educação dançante:
desfrutar um compor e decompor em uma vertiginosa viagem. É
preciso então desapego e aceitar que navegar é impreciso – e talvez até
desejar o naufrágio. É preciso viajar sem GPS, e com pouco peso.
Novamente, com Nietzsche:
Não há formula capaz de determinar a quantidade de
alimentos de que necessita uma inteligência; se por suas
aficções inclina-se para uma independência, para uma
chegada repentina, para uma partida rápida, para as
viagens, talvez para as aventuras, para as quais só tem
aptidão os mais velozes, preferira sustentar-se com
frugal alimento ao invés de viver farta e assujeitada. O
que o bom bailarino pede como sua alimentação não é
gordura, mas uma grande agilidade e um grande vigor,
e nada pode apetecer melhor o gênio de um filósofo que
ser um bom bailarino. A dança é seu ideal, sua arte
particular e, por último, sua única piedade, seu “culto”.
(apud LARROSA, 2009, p.36).
Fazer uma escolha e fazer dessa escolha um estilo. Um modo de
pesquisar a docência, e um modo de fazer docência, que entende a
educação como um pesquisar e este pesquisar como um criar
problemas; e estes, por sua vez, como um criar perguntas para as quais
inventamos respostas; respostas que inventam novas perguntas e
novos problemas, nos colocando sempre de volta ao labirinto. “[...]
Criar possibilidades inesperadas que coloquem em jogo o próprio
fazer, descentralizando uma prevista e imaginada autoridade do
docente pesquisador” (ADÓ, 2014, p.11).
Nesse labirinto nos perdemos e nos encontramos, seguimos
pistas, inventamos fórmulas. Andamos em círculos e voltamos para os
mesmos pontos que já não são mais os mesmos, dados sobre uma nova
perspectiva. A pesquisa-docência que faz de si uma aventura: com
suspense, com humor, com amor, com labor: sempre com coisas por

433
diego winck esteves; máximo daniel lamela adó

acontecer. Talvez possamos nos aproximar do que no diz Deleuze


sobre o escrever, no prólogo de Diferença e Repetição, quando
propomos este espaço do labirinto como um modo de habitar uma
pesquisa-docência que inventa-se ao se jogar nesse espaço - e nisso se
afirma seu estilo e método. Trata-se de uma posição que não só
assume sua ignorância, mas busca encontrar-se com ela ao exilar-se do
que em si reforça o peso do conhecimento, das identidades, das
certezas; e neste espaço improvável que se instaura, um espaço-texto,
espaço-aula, e espaço-de-si, possibilitar ficções.
Um livro de Filosofia deve ser, por um lado, um tipo
muito particular de romance policial e, por outro, uma
espécie de ficção científica. Por romance policial,
queremos dizer que os conceitos devem intervir, como
uma zona de presença, para resolver uma situação local.
Modificando-se com os problemas. [...] Ficção científica
também no sentido em que os pontos fracos se revelam.
Como escrever senão sobre aquilo que não se sabe ou
que se sabe mal? É necessariamente neste ponto que
imaginamos ter algo a dizer. Só escrevemos na
extremidade de nosso próprio saber, nesta ponta
extrema que separa nosso saber e nossa ignorância e que
transforma um no outro. (DELEUZE, 2006, p.18-19).

referências

ADÓ, Máximo. Educação da Diferença: possibilidades de composição. X ANPED


SUL, Florianópolis, 2014.
ADÓ, Máximo Lamela. Aporias literárias: questões borgeanas na educação. Revista
Digital do LAV, Santa Maria, v. 9, n. 2, maio/ago., 2016, p. 133 – 145.
BARTHES, Roland. O Prazer do Texto. Tradução J. Guinsburg. São Paulo:
Perspectiva, 1987.
BATAILLE, Georges. Sobre Nietzsche: vontade de chance. Trad. Fernando Scheibe.
Belo Horizonte: Autêntica, 2017.
BORGES, Jorge Luis. Ficções. Trad. Carlos Nejar. São Paulo: Globo, 2001.
COMPAGNON, Antoine. O trabalho da citação. Trad. Cleonice P. B. Mourão. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2007.
CORAZZA, Sandra Mara. O que se transcria em Educação? Porto Alegre: UFRGS;
Doisa, 2013.
DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. Trad. Luiz Orlandi e Roberto Machado. Rio
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DELEUZE, Gilles. Espinosa: Filosofia Prática. Trad. Daniel Lins e Fabien Pascal
Lins. São Paulo: Escuta, 2002.
DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. Trad. Luis Roberto Salinas Fortes. São Paulo:
Perspectiva, 2007.
DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a Filosofia. Trad. Edmundo Fernandes Dias e Ruth
Joffily Dias. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs, vol.1. Trad. Aurélio Guerra Neto e
Celia Pinto Costa. São Paulo: Editora 34, 1995.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs, vol.3. São Paulo: Editora 34, 1996.

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pesquisa-docência da diferença: encontros e composições para um método ...

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs, vol.5. Trad. Peter Pál Pelbart e
Janice Caiafa. São Paulo: Editora 34, 1997.
GRANIER, Jean. Nietzsche. Trad. Denise Bottmann. Porto Alegre: L&PM, 2009.
FLUSSER, Vilém. Da ficção. O Diário de Ribeirão Preto, São Paulo, 26 de agosto de
1966. Disponível em
<http://paginas.terra.com.br/art/dubitoergosum/arquivvo02.htm>. Acesso em:
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LARROSA, Jorge. Nietzsche e a Educação. Trad. Samíramis Gorini da Veiga. Belo
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LARROSA, Jorge. Imagens do Estudar e duas histórias jassídicas sobre a
transmissão e a renovação. In: LARROSA, Jorge. Pedagogia profana: danças,
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NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da Tragédia. Trad. Heloisa da Graça Burati.
São Paulo: Rideel, 2005.
PEREIRA, Vinícius Carvalho. A escrita como jogo: desafios e contraentes na
literatura do Oulipo. Revista Outra Travessia, Florianópolis, v. 13, 119-135, 1º sem.
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SPINOZA, Benedictus de. Ética. Trad. Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica,
2010.

435
436
potência inventiva, infância e devir-música da educação

regina marcia simão santos


unirio
regina.marcia.simao@gmail.com
pablo de vargas guimarães
uff
pablodvg@gmail.com
neila ruiz alfonzo
colégio pedro ii; nefi/ uerj
neilaruizalfonzo@gmail.com

introdução

Não quero continuar a ser camelo ou leão. Quero me atrever


a ser a criança de Zaratustra. [...] que o camelo consiga se
contagiar de tanta infância próxima e, assim, se transformar
(KOHAN, 2007, p. 126, 127).

Em apenas dois anos, a presença da música na LDB nº 9.394 de


1996 sofreu algumas modificações. Em maio de 2016 a chamada “lei da
música” – Lei 11.769 de 2008 (BRASIL, 2008) foi substituída por outra
(BRASIL, 2016) que, além da música, determinava que outras artes
fossem consideradas como as “linguagens” do ensino da arte. Em
setembro do mesmo ano, outra lei retirava a obrigatoriedade do ensino
da arte para o ensino médio, ato que seria novamente modificado,
cinco meses depois, em fevereiro de 2017 (BRASIL, 2017a), por uma
nova redação ainda mais vaga que a anterior.
No momento em que se vive a homologação da Base Nacional
Comum Curricular - BNCC, dizendo dos “objetivos e direitos de
aprendizagem” de todos os sujeitos da educação básica, e da
aprendizagem de um saber sistematizado (BRASIL, 2017b, pp. 27, 36,
329),
por diversos motivos justifica-se a presença da música
na escola básica. Na voz de professores, de dirigentes
institucionais, de músicos-professores e demais
especialistas que atuam no cenário escolar, música é
sempre bem-vinda no projeto pedagógico da escola. Na
voz de músicos educadores brasileiros ou estrangeiros,
música já mereceria um lugar garantido no currículo,
por ser uma prática sociocultural de todos os povos,
tempos e lugares (SWANWICK, 1999, 2003), prática essa
com produção permanente de sentidos. Villa-Lobos,
músico educador brasileiro, falando em 1959 sobre o seu
projeto moderno de Educação Musical no Brasil dos

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regina marcia simão santos; pablo de vargas guimarães; neila ruiz alfonzo

anos 1930, diz que não seria a leitura e escrita de notas


musicais o propósito único do estudo da música na
escola, que deve garantir, sobretudo, um lugar de
sentido e vida (SANTOS, 2015, p. 42).
Em meio aos discursos sobre a presença da música na escola e à
instabilidade legal apontada aqui - consequência do constante
sucateamento da educação pública, expresso por um esvaziamento
curricular de Estado -, queremos pensar, com Deleuze e Guattari
(1980), possibilidades de uma educação musical na escola como
imbricação de linhas “molares”, linhas “moleculares” e linhas de fuga.
Desdobramos algumas linhas de pensamento a propósito de uma
educação musical aberta e rizomática, uma educação musical “menor”
(DELEUZE; GUATTARI, 1975; GALLO, 2008; BRITTO, 2009) que leva
em consideração devires “moleculares” presentes nas invenções das
crianças: devir-criança das composições, do canto infantil, devir-
música das palavras e demais fluxos sonoros do mundo. Sem
dicotomias, traçamos relações entre as duplas conceituais “molar” e
“molecular”, “maior” e “menor”, “exterior” e “interior”. Queremos
dar voz (fala) e ouvido às crianças, ou melhor, deixar que aprendam a
falar, a perceber, a criar - dispensadas da “autorização” implícita do
verbo dar. Recorremos a duas cenas da menina Sofia, que ilustram
essa potência inventiva dos pequenos e uma aprendizagem que é
sempre inventiva, mas constrangida pela cultura e por uma estética
cultural a um só tempo sonora, corporal e visual.

educação musical “menor”: por uma pedagogia musical aberta e


rizomática

Em Dialogues com Claire Parnet (DELEUZE; PARNET, 1996, p.


16-17), Deleuze sugere
que as coisas, as pessoas, são compostas por linhas
muito diversas, e que elas não sabem necessariamente
em qual linha delas mesmas elas estão, nem onde fazer
passar a linha que estão traçando: em suma, há toda
uma geografia nas pessoas, com linhas duras, linhas
flexíveis, linhas de fuga (...)174
Importante notar que Dialogues foi composto em 1977 e,
portanto, antes de Mille Plateaux (1980), onde Deleuze e Guattari
apresentam o conceito de rizoma e elaboram um pouco mais a relação

174Livre tradução de “que les choses, les gens, sont posés de lignes très diverses, et
qu’ils ne savent pas nécessairement sur quelle ligne d’eux-mêmes ils sont, ni faire
passer la ligne qu’ils sont en train de tracer : bref il y a toute une géographie dans les
gens, avec des lignes dures, des lignes souples, des lignes de fuite, etc.”

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potência inventiva, infância e devir-música da educação

da dupla conceitual “molar-molecular”, que não indica uma simples


oposição. Como bem analisa Anne Sauvagnargues, esses dois
adjetivos caracterizam
duas fases que afetam os mesmos elementos, corpos,
sujeitos, sociedades ou órgãos, duas tendências que
compõem todas as entidades materiais, orgânicas,
psíquicas ou sociais. A ordem molar corresponde às
estratificações, aos impulsos de organização que tendem
a endurecer, codificar, delimitar os sujeitos, as ordens ou
as formas. A ordem molecular emana do fluxo, das
transições de fases, dos devires e das intensidades
(SAUVAGNARGUES, 2006, p. 170).
A tendência a codificar, organizar, formar e estratificar é
primordialmente “molar”. O “molar” produz pontos fixos aos quais as
linhas se submetem num plano predeterminado, hierarquizado, um
sistema que Deleuze e Guattari (1997) também chamam de
“arborescente” (ibid., p. 90). Já as linhas “moleculares” tendem à
desorganização, ao rompimento das amarras organizacionais. Tendem
também à decodificação e desterritorialização dos códigos “molares”,
um processo que se faz no devir: “um movimento pelo qual a linha
libera-se do ponto, e torna os pontos indiscerníveis” (ibid., p. 92). No
entanto, “molar” e “molecular” não se caracterizam como simples
oposição. O “molecular” é sempre contemporâneo aos movimentos de
estratificação “molares”. Escapam, portanto, a um mero dualismo
simplista.
Não há dualismo entre dois planos de organização
transcendente e de consistência imanente: é das formas
e dos sujeitos do primeiro plano que o segundo não
para de arrancar partículas entre as quais há apenas
relações de velocidade e lentidão, e é nesse plano de
imanência que o outro se eleva, trabalhando nele para
bloquear os movimentos, fixar os afetos, organizar
formas e sujeitos (DELEUZE; PARNET, 1996, p. 160).
Finalmente, as linhas de fuga são as linhas do “intempestivo,
figuras da multiplicidade, que levam adiante as potências virtuais
“moleculares” em ação na trama dura, “molar”; linhas de ruptura que
surgem no/do ‘entre’ e expressam a irrupção do ‘Fora’”
(GUIMARÃES, 2017, p. 8993). Linhas que são constituídas num devir e
que passam entre os pontos desfazendo seus limites, sua
discernibilidade. Por essa lógica, os documentos oficiais, bases
curriculares, referenciais, parâmetros e leis em geral tendem para os
movimentos de organização e estratificação “molares”, arborescentes,
enquanto que o cotidiano escolar, as diferenças, as desigualdades
sociais acionam constantemente os fluxos “moleculares”, rizomáticos,
levados adiante pelas linhas de fuga que resistem às imposições de

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regina marcia simão santos; pablo de vargas guimarães; neila ruiz alfonzo

tendências homogeneizantes, e insinuam a necessidade de um sistema


aberto.
Para Deleuze (2000), “um sistema é aberto quando os conceitos
são relacionados a circunstâncias, (...) não são dados prontos, eles não
preexistem: é preciso inventar, criar os conceitos” (ibid., p. 45) como
abertura àquilo que nos acontece, ao imprevisível, em resposta a uma
necessidade. Rizoma é um “caso de sistema aberto”, (ibid.) ele foge da
arborescência. São princípios do rizoma (DELEUZE; GUATTARI,
2007, p. 15-25): conexão e heterogeneidade (qualquer ponto pode se
conectar a um outro); multiplicidade (de linhas, entradas e direções,
dimensões), ruptura a-significante (linhas segmentares que
estratificam/territorializam o rizoma, linhas de desterritorialização
que o fazem fugir ou retomar e linhas de fuga que produzem ruptura);
e cartografia e decalcomania (mapa cartografia, que diz da exploração
de trajetos, de experimentação, e que é aberto e conectável,
desmontável, reversível, suscetível de receber modificações; e
decalque, que também é próprio do mapa, e que diz de uma parada
sobre um ponto).
Entre o “molar” e o “molecular”, o arborescente e o rizomático,
entre as linhas duras e os fluxos flexíveis, e tecendo linhas de fuga, o
currículo vai se fazendo na complexidade da situação pedagógica, no
emaranhado que a compõe: alunas, alunos, meio-ambiente (artefatos
pedagógicos, instrumentos ou objetos de ensino) e um sistema
educativo (representado pelo professor, pela professora).
Seria possível aqui estabelecer um paralelo com a noção de
educação “menor”, deslocamento proposto por Silvio Gallo a partir do
conceito de Literatura “menor” pensado por Deleuze e Guattari em
Kafka: por uma literatura menor (DELEUZE; GUATTARI, 1975). Nesse
caso, o “menor” vem de minoria e não de inferioridade, como pode
deixar a entender a tradução para a língua portuguesa. São
movimentos de resistência ao estado instituído, ao “maior”. Assim
como o “molecular” se faz contemporâneo ao “molar”, o “menor” age
dentro do “maior”. Também não se trata, portanto, de mera oposição
ou dualidade simplista e axiológica. Uma educação “menor” atualiza
as potências “moleculares”. Se o “maior” diz respeito ao instituído, ao
aparelho de estado, às formações e estruturas “molares” das leis,
referenciais, parâmetros, bases curriculares e discursos oficiais, o
“menor” concerne aos movimentos de resistência e criação que
minorias operam por dentro desse instituído. Trata-se de evidenciar
devires, traçar linhas de fuga dentro do próprio sistema. Alisamento
do espaço-tempo disciplinar, buscando flexibilizar ou suavizar os
estriamentos do disciplinamento quadriculado; resistência ao que é
meramente imposto.
Para Gallo (2008), pensar uma educação “menor”, de
resistência, é considerar suas três características norteadoras. A

440
potência inventiva, infância e devir-música da educação

primeira é a desterritorialização dos processos educativos, dos


princípios da educação “maior”, levando a novas atualizações de
aprendizagem, sem cair na armadilha da reterritorialização
permanente que a fixe como aparelho de Estado. A segunda
característica é sua ramificação política que age por dentro dos
segmentos da educação “maior”, desterritorializando macro fórmulas
de concentração de poder. Por fim, seu valor coletivo,
da coletivização de cada ato singular pela produção
rizomática de multiplicidades e da singularização
coletiva. Sem ponto de origem, sem lugar de chegada,
antimétodo para experimentações no pensamento, a
educação ‘menor’ é abertura a bifurcações imprevisíveis,
franqueamento a encontros inesperados (GUIMARÃES,
2017, p. 8998).
Em um segundo deslocamento conceitual, como proposto por
Brito (2009), pensamos o “menor” em educação musical e também
para a música na escola. Uma educação musical “menor” que “rompe,
questiona, resiste às verdades musicais instituídas pela educação
musical ‘maior’, aos modos predeterminados de escuta e de produção
sonora” (GUIMARÃES, 2017, p. 8998). Em vez de impor modos de
ouvir, cantar, compor ou tocar instrumentos e músicas, passaríamos
pela preocupação com uma experimentação sonora não-estereotipada.
O gesto de criação musical da criança devém “menor” quando
desterritorializa modelos musicais “maiores”, dominantes.
Aproximamos essa relação simbiótica entre “maior” e “menor”
do que Carlos Kater chama de “música exterior” e “música interior”,
que também não se opõem simplesmente uma à outra. O primeiro
caso é o da “música dita com ‘m’ maiúsculo” (SANTOS; KATER, 2017,
p. 155), “molar”, formada e territorializada, demarcada, musicológica
e histórica.
Por sua vez, “música interior” é a “música da gente”: “aquela
que adquire existência junto aos ouvidos pela curiosidade de nosso
espírito, pela necessidade de nossa própria escuta” (ibid.). O que está
em jogo, nesse segundo caso, é “a dimensão da liberdade e da
experimentação, da originalidade e da criação” (ibid.). Passamos então
à lógica da desterritorialização, do devir, dos fluxos “moleculares” e
das linhas de fuga.
Para Kater, nos processos educativo-musicais não é possível a
validação de uma música que seja apenas “exterior” ou “interior”,
mesmo que se dê uma ênfase mais acentuada a um tipo que a outro.
Segundo o autor, a maioria dos projetos existentes acabam
privilegiando ou se concentrando na “música exterior”. Apostam em
uma pedagogia fechada, baseada na recognição de modelos, de
esquemas fixos, que se orienta “pelo determinismo, por um pré-dado,

441
regina marcia simão santos; pablo de vargas guimarães; neila ruiz alfonzo

pré-estabelecido, já conhecido e sabido, portanto, também


reconhecível (basta reconhecer o objeto)” (SANTOS, 2017, p. 483).
Por outro lado, buscar uma pedagogia musical aberta seria dar
maior destaque à “música interior”, à educação musical “menor”, às
linhas de fuga criadoras que veiculam os fluxos “moleculares”
extraídos a partir das nossas experimentações sonoras e das
necessidades de nossa escuta mais íntima.
Música na escola precisa apostar na capacidade de
sujeitos serem afetados por sonoridades — como as
coisas funcionam, o que está acontecendo, com o que
funciona e produz sentidos. Ser afetado pela qualidade
do sonoro é condição para ampliarmos as ideias de
música e a capacidade de fazer experimentações e novas
escutas. Tudo isso se distingue do mero fato de ser in-
formado sobre músicas e músicos, em uma prática de
ensino transmissivo, definicional e proposicional sobre
música. É necessário fazer escutas e ampliar escutas. É
necessário ser afetado por materiais sonoros, por gestos
musicais, pelas formas musicais (SANTOS, 2015, p. 53).
Queremos fazer um contraponto entre essa questão premente
sobre o que fazemos da música na escola, e duas cenas colhidas do
cotidiano no meio familiar, a seguir apresentadas em vídeo e em
áudio. Talvez a institucionalização da música na escola ainda se
revista de um enfoque prescritivo e transmissivo, permanecendo o
risco de um devir-música aí escapar. O professor carrega em si um
camelo, metáfora proposta por Nietzsche para se referir ao espírito
resistente (tragsame Geist) que se alimenta “da erva do conhecimento”,
armazenando em suas corcundas a sabedoria, mas que por amor à
verdade suporta a “fome na alma” (NIETZSCHE, 2011, p. 27). O
camelo é animal que carrega “as coisas mais que pesadas” (ibid., p. 28).
Ele renuncia, é reverente e, portanto, não se permite “adquirir o direito
a novos valores” (ibid.), além dos dominantes. Para isso precisa do leão
que cria liberdade para nova criação, e da criança que é inocência e
esquecimento, um recomeço e um “dizer sim” para o arriscado jogo da
criação (ibid.). Isso poderia lembrar a escola e sua insistência em fazer
“perguntas de instrutores”, sobre “o que já se sabe”, enquanto “a
infância fala uma língua que não se escuta [...] pronuncia uma palavra
que não se entende [...] pensa um pensamento que não se pensa”
(KOHAN, 2007, p. 130-131), arrisca-se o tempo todo.
Não se trata de construir saberes sobre música, mas de ser
tomado por um devir-música na escola, direito de todos, pois há
sempre um material-força que nos constrange e faz pensar, por suas
qualidades, pela força dos encontros. Só assim há aprendizagem, o que
inclui o aprender a lidar com os sons, produzir um saber
corporificado, um saber territorializado ou desterritorializante.
“Colocamos fronteiras (limites) para certas musicalidades,

442
potência inventiva, infância e devir-música da educação

prevalecendo o exercício definicional: é uma valsa! é um choro! é um


baião! é renascentista!... Procuramos dar um nome, encontrar o rótulo,
fazer uma taxionomia (SANTOS, 2015, p. 53).
Parafraseando Kohan, ao falar da sua expectativa de que a
filosofia, pelo menos a que ele consiga afirmar, “seja uma boa
companheira da infância” (KOHAN, 2007, p. 99), esperamos que a
música, pelo menos a que aqui afirmamos, seja uma boa companheira
da infância. Ou, mais que isso, recorremos a um dos representantes da
pedagogia musical e psicologia da música, Delalande, para dizer
“quiçá” o jogo (musical, inventivo) possa permanecer na vida adulta
(DELALANDE, 1995, p. 28). Essa experimentação musical, esse jogo de
gestos musicais cedo é interrompido, lugar não só de territorializações,
mas de desterritorializações, composições rizomáticas, linhas
“moleculares”, linhas de fuga.

infância e música: a música de sofia

Assim como Sócrates e Milena são personagens tomados por


Kohan no seu texto (2007, p. 121-128), permitindo pensar infância e
filosofia e lhes dar vida, trazemos Ferraz e Sofia para pensar infância e
música e lhes dar vida, movimento, expressividade.
As cenas apresentadas aqui nos inspiram a produzir uma
conversação sobre infância, devir-criança da música, devir-música do
mundo e da educação. Um marco referencial nos ajuda a tratar de “um
outro tempo para o ensinar e o aprender, para além das etapas, das
fases, dos desenvolvimentos; um tempo de intensidades mais do que
de extensões sucessivas” (KOHAN, 2007, p. 134).
O improviso da menina Sofia não é aqui objeto de análise de um
suposto estágio de desenvolvimento musical. Estudos científicos,
literatura especializada em psicologia da música, estudos em cognição
musical e estudos desenvolvimentais têm se referido a crianças
pequenas como “músicos competentes” (ILARI, 2009, p. 35)175, com
composições distintas das produzidas por crianças mais velhas e por
adultos (FONSECA, 1986, p. 24, apud PARIZZI, 2005, p. 71). A
psicologia do desenvolvimento se vê desafiada a descrever como as
crianças compõem. Etapas, processos, produtos são objetos de
investigação. E são diversos os aportes teóricos e metodológicos176.

175 As canções e as palavras que as crianças repetem refletem os sons que elas ouvem
na sociedade, e não algum padrão sonoro universal e pré-ordenado (ILARI, 2009, p.
28).
176 Exemplificando pesquisas em psicologia da música e cognição musical, fazemos

brevíssimas remissões aqui. A criança entre o terceiro e quarto anos de vida cria sua
música “colocando em uma mesma canção partes de canções conhecidas”, elaborando

443
regina marcia simão santos; pablo de vargas guimarães; neila ruiz alfonzo

Não está em questão no presente texto falar de etapas de


desenvolvimento musical, considerar amostras e generalizações que
uma gama considerável de pesquisas177 trazem, de que se ocupam,
passando por “mentes escolarizadas e não-escolarizadas” (GARDNER,
1990, p. 4 apud ILARI, 2009, p. 26). Interessa-nos considerar como a
menina se mostra no seu devir-música, com uma produção
“molecular”.
Para pensar infância e música precisamos mais uma vez resgatar
as duplas conceituais anteriores. É entre “molar” e “molecular”,
“maior” e “menor”, “exterior” e “interior”, que esses dois conceitos
são compreendidos neste trabalho. Assim como pensamos um devir-
música da educação e do mundo, que transcende as formações
“molares” da música, é por um devir-criança que passa a infância.
Uma infância que está além da criança “molar”, cronológica, além de
uma periodização etária, além dos sujeitos concretos, mas sem
desconsiderá-los, pois participam e são indispensáveis a ela. Aliás,
dizem Deleuze e Guattari em Mil Platôs (1980), que a criança como
entidade “molar” precisa devir-criança para o adulto também por sua
vez se tornar criança. É a própria relação de interdependência entre
“molar” e “molecular”, de simbiose entre “maior” e “menor”. Como
sugere Skliar (2012, p. 16), “quando tentamos encaixar as crianças na
infância, algo, muito, se perde, se evapora. Mas quando subtraímos às
crianças a infância, também algo se perde, algo se evapora. E em
ambos os casos permanece um certo gesto de desgosto, de
desconforto”.
Mas talvez precisemos diferenciar duas infâncias, como escreve
Kohan (2007, p. 94). Uma “maior”, majoritária e outra “menor” ou

assim sua própria versão dessas canções, conforme pesquisas de Moog (1976, apud
SLOBODA, 2008, p. 271-2). Também nessa época, surge outra forma de canto
espontâneo, a canção “imaginativa ou narrativa”, por meio da qual a criança conta
suas próprias histórias. Moog (1976) menciona os pot-pourris e as “canções
imaginativas” (PARIZZI, 2015, p. 82). Moog, já nessa publicação de 1976 (apud
SLOBODA, 2008, p. 271), relata que, na sua pesquisa, cerca de 30 por cento das
crianças de quatro anos de idade estavam produzindo o que ele chamou de canções
“pot-pourri”: canções novas juntando pedaços de diversas canções já conhecidas. A par
dessas muitas contribuições, Lino cria o termo “barulhar” para falar das culturas da
infância bem pequena: “ato de fazer barulho, de sonorizar sem prévia sistematicidade
e determinação” (LINO, 2010, p. 84), quando a criança vai experimentando o mundo e
manipulando discursividades.
177 Estudos recentes da psicologia, da educação musical, da pediatria, da

fonoaudiologia, da antropologia, da sociologia, em torno da teoria sobre o


desenvolvimento musical – tanto em experiências musicais cotidianas, quanto em
experiências formais com a música, experiências das “mentes escolarizadas e não-
escolarizadas”, como diz Gardner (1990, p. 4, apud ILARI, 2009, p. 26).

444
potência inventiva, infância e devir-música da educação

minoritária. A primeira é justamente “a da continuidade cronológica,


da história, das etapas do desenvolvimento, das maiorias” (ibid.). É a
infância reconhecida pelos documentos oficiais para a educação
infantil, pelas políticas públicas. A segunda se refere à infância como
experiência, como acontecimento. “É a infância que interrompe a
história, que se encontra num devir minoritário, numa linha de fuga,
num detalhe” (ibid.). É a infância “molecular”, de um devir-criança,
que aprende a falar, a gaguejar, a cantar, criando, compondo, traçando
“linhas de fuga” criadoras.
Se um canto, uma música de criança é atravessada por esse
devir-criança “molecular”, “menor”, por sua vez um devir-música
também atravessa a infância, nas experimentações sonoras das
crianças, nas suas repetições silábicas e rítmicas com direito a
deslocamento das acentuações e variações de dinâmica, andamento e
timbre vocal. Isso porque todo devir implica uma dupla captura entre
dois agenciamentos, evidenciando uma zona de vizinhança entre
elementos heterogêneos; um bloco de devir que transforma esses
agenciamentos sem fundi-los.
A ideia de dupla captura se inspira no caso da vespa e
da orquídea. Uma simbiose, aliança entre duas séries
heterogêneas: a série animal da vespa e a série vegetal
da orquídea. Nesta composição de intensidades, a
orquídea, com sua aparência, passa por um devir-vespa,
de modo a atrair o inseto e assegurar a polinização da
flor. Ao mesmo tempo, a vespa é atravessada por um
devir-orquídea, uma vez que “funciona” como aparelho
reprodutor da flor (GUIMARÃES, 2013, p. 93).
Dessa maneira é possível considerar um devir-música da criança,
uma vez que a série de elementos heterogêneos infantis se avizinham
aos da música; se aproximam de uma fronteira quase imperceptível
entre a música e a aprendizagem da fala e brincadeiras com palavras e
a voz.
Desde bem cedo as crianças inventam suas próprias canções,
muito embora estas passem despercebidas pelos adultos. À medida
que as crianças crescem, as invenções vão perdendo espaço e dão
lugar ao repertório reconhecido socialmente, à música “maior”,
“exterior”, padronizada, formada e conformada. Mas se os adultos não
ouvem as canções das crianças, ou simplesmente não as reconhecem e
as descartam, talvez seja porque não acessam mais o caráter inventivo
e perceptivo próprio à aprendizagem da linguagem. Talvez porque só
consigam conceber aquela infância instituída, majoritária ou então
porque não se permitam perceber uma música que não seja a “maior”,
a “exterior”, a formada, demarcada, territorializada. Nesse caso, as

445
regina marcia simão santos; pablo de vargas guimarães; neila ruiz alfonzo

invenções infantis nunca terão espaço e vez, pois uma música “menor”
necessita de uma escuta “menor”: é preciso “infantilar”178 a escuta. Um
devir-criança ou uma disposição infantil (KOHAN, 2007) é condição
necessária a toda aprendizagem da linguagem. E essa linguagem das
crianças é perceptiva e não de conceitos, como sugere Skliar (2012, p.
19), perpassada por fluxos sonoros “moleculares”, mas também
frequentemente marcada pelas interrupções dos adultos.
Interrupções sobre seu corpo, sobre sua atenção, sobre
sua ficção, sobre sua linguagem. Essas interrupções
ocorrem sobre todas as crianças. Antes ou depois. Em
maior ou menor medida. Com mais amorosidade ou
com mais crueldade. Com mais autoridade ou com mais
autoritarismo. Com mais homogeneidade ou com mais
diversidade (KOHAN, 2007, p. 20).
A criança compõe e para ela não há linearidade e passos para um
devir-música na brincadeira cotidiana, pois seu tempo é o aión, não-
linear. Também não há segmentação para tratar de ritmos e melodias,
nem treinamento rítmico ou de “alturas” do som, da sensação de
frequência, do pulso ou medidas do tempo, como pré-requisitos para
arriscar uma invenção. A criança compõe como um turbilhão. Sua
invenção decorre de uma exposição a um devir-música do mundo,
diante do qual se insere com uma potência expressiva e inventiva, ao
mesmo tempo que constrangida. Imerso em um turbilhão de
sonoridades, o canto inventado e “espontâneo” não diz de uma certa
habilidade inata, mas de agenciamentos com os seres, coisas e signos
do mundo. É, portanto, uma criação constrangida pelo território que já
habitamos e pelo presente que experimentamos (KASTRUP, 2001, p.
216). Memória e invenção não como oposição, mas trânsito entre elas.
A criança inventiva (todas o são) brinca, faz da palavra um jogo
sonoro, algo que “tem que chegar ao grau de brinquedo”, uma “língua
de brincar”. Faz a palavra variar, faz “floreios” com ela (BARROS,
2007). Há um devir-música nas palavras – são sussurradas, são
pronunciadas enfaticamente, são seccionadas, vão ecoando, vão e
voltam, num ritornelo que não significa a volta do mesmo.
Silvio Ferraz, compositor, fala de sua estratégia de composição,
para a qual usa a palavra “brinquedo” - uma estratégia de composição
que é como um “brinquedo de girar a ideia”179:

178 No livro Infância, estrangeiridade e ignorância, Kohan (2007) usa o verbo “infantilar”

para escapar do sentido pejorativo de “infantilizar”.


179 Mas podemos também reconhecer brinquedo de girar uma ideia, um gesto musical

- na música popular, na chamada música erudita, na música urbana, na música de


tradição oral.

446
potência inventiva, infância e devir-música da educação

pequeno brinquedo de girar a ideia [...] um gesto


qualquer que não deixa de querer se impor [...]
descobrir o que decompõe este gesto [...] fazer variações,
ou simplesmente replicar o gesto [...] deixar mesmo que
o gesto seja quase que destruído por um outro gesto [...]
estratégias de articulação: de articular o quê? O tempo e
a sonoridade (FERRAZ, 2005, p. 103-104).

cena 1: “mélos, tamborrista, guitarrista”180

A voz é um instrumento a serviço de dois distintos fazeres.


Em primeiro lugar, a voz é um dizer; diz fonemas, palavras,
frases, discursos, numa palavra, a voz é lógos. Mas a voz
também é um cantar; canta notas, motivos melódicos, frases
musicais, melodias. A voz agora é mélos. São duas diferentes
manifestações da oralidade que podemos analiticamente
distinguir, mas que, são indissociáveis, porque
complementares
(CARMO JR, 2004, p. 218).

Link de acesso para o vídeo da Sofia:


<https://drive.google.com/open?id=1V31DivGCuAKvgvSd8YvkPlN
XbrmmiK22>

Em três quadros Sofia, criança de quatro anos de idade, se


mostra em seu devir-música. Está entre o brincar como invenção e o
brincar como “cultura lúdica” (BROUGÈRE, 1998, p. 07). Brinca de
reproduzir a música dos adultos. Desterritorializa e reterritorializa os
padrões da cultura, os códigos musicais, a linguagem corporal. Não se
trata de imitar, mas de extrair partículas, fluxos “moleculares” de
dentro dos segmentos dos próprios modelos ou padrões instituídos e
aceitos, para em seguida criar outra coisa. Como escrevem Deleuze e
Guattari,
Devir não é imitar algo ou alguém (...) Devir é, a partir
das formas que se tem, do sujeito que se é, dos órgãos
que se possui ou das funções que se preenche, extrair
partículas, entre as quais instauramos relações de
movimento e repouso, de velocidade e lentidão, as mais
próximas daquilo que estamos em vias de nos tornarmos,
e através das quais nos tornamos. É nesse sentido que o
devir é o processo do desejo (DELEUZE; GUATTARI,
1980, p. 334).

180Cena colhida por Regina Marcia Simão Santos no cotidiano em família, Rio de
Janeiro, em 01.08.2017, Sofia com 4 anos e 10 meses. Imagem e áudio usados com
autorização dos pais, sem fins lucrativos, para propósito exclusivamente acadêmico.

447
regina marcia simão santos; pablo de vargas guimarães; neila ruiz alfonzo

É o que Sofia faz. Não uma mera imitação de padrões musicais


instituídos. Ela cria outra coisa, nomadiza a palavra. Evidencia
devires. Desterritorializa ao mesmo tempo que reterritorializa e torna
a desterritorializar. Aqui a criação é constrangida. Constrangida por
um mundo musical e pelos modelos das práticas sociais de referência
que não são apenas sonoros. São também compostos por tudo que
vem com eles, numa estética cultural sonora, corporal, visual, de
sujeitos sociais e “grupos sonoros”, grupos de pessoas que
compartilham “uma linguagem musical comum, junto com ideias
comuns sobre a música e seus usos” (BLACKING, 2007, p. 208). Nessa
cultura lúdica estão imbricados a criança, o improviso, a brincadeira. É
uma brincadeira musical, corporal, que se refere a uma cultura estética
diversificada.
A criança assume os papéis dos adultos e exercita ações já
aprendidas. Sofia coloca suas marcas. Escutamos/vemos uma menina
criando a partir de padrões da cultura, de estereótipos. A guitarra se
transforma de um a outro bloco - ora é como um pedal, um baixo
contínuo, ora uma percussão, uma guitarra-rock, com todos os gestos
que tomam o corpo. A guitarra, a voz, o corpo são, como diria Deleuze
(1997, p. 73), meios explorados por “trajetos dinâmicos”, enquanto
mapas correspondentes são traçados pela menina, um devir-criança do
instrumento/gênero musical, um devir-instrumento/gênero musical
da criança. Um bloco de devir aí se faz, ambos – criança e
instrumento/gênero musical – se transformam produzindo um
terceiro, um "outro": uma outra "sonoridade", uma outra "música”.
Como afirmam Deleuze e Guattari (1997), “que o devir funcione
sempre a dois, que aquilo em que nos tornamos entra num devir tanto
quanto aquele que se torna, é isso que faz um bloco, essencialmente
móvel, jamais em equilíbrio” (ibid., p. 107).
No jogo do faz de conta, Sofia é roqueira, é percussionista, é
portadora de uma voz suave numa canção acompanhada, que ela
mesma inventa. Ela se anuncia como “tamborrista” e “guitarrista”. Um
mesmo brinquedo (guitarra) a transforma em vários personagens. A
brincadeira começa.
Ela é uma instrumentista que dedilha as cordas de um violão,
acompanhando uma canção a meia voz, numa estética de um mélos
recitativo. Ela faz sua canção, uma melodia acompanhada: uma
"linha" monódica enriquecida com o apoio de uma nota pedal numa
corda dedilhada. O contorno rítmico da canção é demarcado por esse
som em ostinato (som obstinado) tangido na corda do instrumento,
cumprindo uma função rítmica (um ritmo pulsado, numa métrica
regular e de valores longos) e harmônica.
Ela é uma percussionista, mais especificamente uma
“tamborrista”, e sua guitarra de brinquedo é imediatamente virada e

448
potência inventiva, infância e devir-música da educação

percutida na superfície plana do tampo de trás. Ela canta,


acompanhada por essa percussão.
Ela é uma jovem roqueira, com uma estética que requer emissão
vocal mais agressiva e ruidosa, um grito roqueiro orgiástico, uma voz-
guitarra de sons rasgados, uma outra postura corporal (dos pés à
cabeça), exigindo que os cabelos soltos se balancem a cada golpe
rítmico da guitarra.

cena 2: “brincar à noite”181

“Quando as palavras cantam”


(SCHAFER, 1991)182

Brincar à noite
Brincar, brincar muito
À noite vamos brincar
Pra lá e para cá.
Muito legal!
Brincar... brincar...
Lá, lá, lá, lá...
À noite é calmo
Tudo para acabar
Uh, uh, uh, uh
Tch, tch, tch, tch
(Sofia Régis Semblano Simão Santos)

Link de acesso para o áudio da Sofia:


<https://drive.google.com/open?id=1bt60GCXdXadCDlzYebE0YzjSn
OJ4HxvC>

Trata-se do improviso da Sofia, então criança de 5 anos de idade,


improviso produzido no contexto familiar. Como um poema haikai, de
origem japonesa, os versos curtos, concisos e objetivos encontram na
invenção infantil a mesma simplicidade. Em seu canto “espontâneo”,
não dirigido por um instrutor, a criança constrói uma morada, um
território ao qual volta reiteradamente. Cria seu ritornelo, lugar de
segurança, conforto e estabilidade, ao mesmo tempo em que produz

181 Registro feito pela criança e enviado por whatsapp pela própria criança, em meio à
sua brincadeira, enquanto outras atividades estão em andamento naquele ambiente
doméstico. Rio de Janeiro, 14.05.2018, Sofia com 5 anos e 8 meses. Áudio usado com
autorização dos pais, sem fins lucrativos, para propósito exclusivamente acadêmico.
182 título de um dos capítulos de O ouvido pensante, inspirado na definição de um

garoto de 6 anos sobre o que é poesia, e considerando o meio caminho entre música e
palavras (SCHAFER, 1991, p. 14).

449
regina marcia simão santos; pablo de vargas guimarães; neila ruiz alfonzo

linhas de fuga. Faz crescer a frase pelo meio. Repete suas próprias
atualizações futuras. Começa pelo fim e termina pelo começo. Assim
vai constituindo as grandes seções da música, e produzindo variações
dentro de cada uma, experimentando potencialidades das palavras,
devires rítmicos e melódicos, paradas (suspensões) e silêncios,
deixando ecoar fragmentos - sílabas, fonemas, qualidades sonoro-
musicais.
“Brincar à noite” transita por desterritorialização e extração de
partículas de padrões musicais. Em sua capacidade criativa, a criança
estende sua canção, torna-a mais longa, com muitos minutos de
duração. A canção reflete os sons que ela ouve em seu meio, na
sociedade, e não um padrão sonoro universal e pré-ordenado,
conforme comenta Gardner (1992, p. 33, apud ILARI, 2009, p. 28). É o
exercício de uma “mente musical em contexto” (ILARI, 2010, p. 30),
trabalho da enculturação (SLOBODA, 2008, p. 284). Essa “mente
musical” está ali evidente (SLOBODA, 2008).
A canção de Sofia tem uma forma muito clara. De gesto em
gesto, Sofia desenha um bloco sonoro, uma primeira seção da música,
e contrasta com o bloco seguinte, para depois produzir um ritornelo
com as ideias expostas no primeiro bloco, e nos surpreende pelo seu
caráter conclusivo. O senso de conclusão é evidente, o que sugere que
a criança já absorveu algumas “regras implícitas” das músicas de sua
cultura. Melisma, vibrato, variações de dinâmica e de andamento,
tudo está aí.
A música tem 3 partes, passeia por 3 territórios contrastantes em
seu clima. A repetição periódica de um componente constrói um bloco
de espaço-tempo. A primeira seção da narrativa musical faz uma
exposição, em quatro versos, com quatro ideias ou gestos musicais.
São quatro partes bem definidas. Em “brincar à noite”, anuncia o
germe (embrião) da canção e passa a decompor essa ideia em motivos,
células menores, que não param de variar rítmica e melodicamente,
sempre havendo algum elemento surpresa. A canção começa com
salto melódico para o agudo, abrindo o plano sonoro e produzindo
um gesto musical suspensivo e de textura melismática. Em “Brincar,
brincar muito” mantém a textura melismática, e o contorno melódico
caminha para o grave, fechando o plano sonoro, dando a sensação de
conclusão de uma ideia musical. Volta ao ponto inicial. Fecha-se um
círculo. O paralelismo entre os dois versos é nítido, trazendo a mesma
qualidade melismática descendente nas palavras finais “noite” e
“muito”. Em seguida, nos versos “À noite vamos brincar / Pra lá e
para cá”, a frase musical tem uma terminação conclusiva, e encerra
uma quadratura musical.
Um novo gesto (ou ideia musical), “Muito legal!”, com tom
exclamativo e fazendo durar, perdurar (com melismas) a ênfase no
“legal”, fazendo aí uma parada, contrasta com o anterior e suas

450
potência inventiva, infância e devir-música da educação

variações em torno do termo “brincar”. Funciona como uma ponte


entre a apresentação temática e reminiscências da exposição que vêm
no trecho suspensivo seguinte “Brincar.... Brincar...”, trecho que se
limita a fazer ecoar apenas o fragmento inicial da canção, não
pretendendo repetir, fazer voltar o que já foi exposto. Basta dizer e
deixar em suspenso, reticente, em silêncio, a ação: “brincar”. E o faz
abrindo o plano melódico com salto para o agudo (intervalo
ascendente de 8ª), e com uma voz falada com inflexão para o agudo.
Começa a segunda seção.
A segunda seção tem maior densidade rítmica, é mais
movimentada, traz outro tratamento vocal, explorando sons mais
agudos e mudanças de agógica (andamento, acelerando) e dinâmica
(intensidade). Apesar do andamento rápido, se aproxima da
sonoridade de “um canto gregoriano, um canto de muezim árabe ou
mesmo um canto indígena”, conforme depoimento do maestro Carlos
Alberto Figueiredo, após escutar a composição183. Contrasta com a
seção anterior e funciona como uma linha de fuga. Essa parte, mais
agitada, traz duas frases separadas por uma pequena pausa. Repete
obstinadamente uma mesma sílaba “lá, lá, lá, lá, lá, lá, lá”, recurso tão
presente nos estribilhos de jogos e brincadeiras infantis. Pretende
repetir o mesmo padrão rítmico pontuado, com inflexão melódica
descendente. O primeiro trecho dessa seção, apesar do andamento
rápido, se assemelha a uma “recitação gregoriana”, conforme
observação do mesmo maestro. O som mais grave que finaliza esse
trecho, emitido como uma surpresa entre duas pausas, assemelha-se
ao efeito da nota finalis. Depois entra uma outra ideia sobre o mesmo
“lá, lá, lá, lá”, com outras qualidades rítmico-sonoras, e que ganha
maior dinâmica e agógica. Todo o corpo, em movimento, acompanha.
“Lá, lá, lá, lá, lá, lá, lá, lá” vem, por fim, com caráter descendente,
composto por dois incisos distintos. Ora repousa reiteradamente no
som mais grave da série de 3, ora deixa em suspenso, num movimento
ascendente [3,2,1,1 / 3,2,1,2]. “Lá, lá, lá, lá” vai ralentando, numa
emissão vocal apertada (com alguns sons guturais), exausta (e
sofrida?), mas mantendo-se no registro de voz de peito. Sai de um
momento de clímax e vai para um esgotamento e fim da brincadeira,
do movimento.
Portanto, é uma seção bem movida, contrastante com a seção
anterior, com exploração de timbres vocais, sons dos passos em pulos
enfatizando o frenesi da seção, trazendo uma divisão interna: 1º
trecho, exposição de uma frase e mais três repetições, sendo a última
ampliada com um pequeno elemento acrescido no final; 2º trecho,

183 Depoimento concedido a Neila Ruiz Alfonzo em 06 ago 2018.

451
regina marcia simão santos; pablo de vargas guimarães; neila ruiz alfonzo

fragmentação de elementos, com maior exploração de efeitos vocais,


mas também repetições de pequenas estruturas melódicas.
Finalmente, na terceira parte - “À noite é calmo, tudo para
acabar” -, volta a calma, para concluir a canção (concebe a noite como
calma), num ritornelo à primeira seção – território musical que é lugar
de acolhimento, conforto, segurança, paz. Alguém tem dúvida disso?
Segue uma codeta, final da canção, trecho muito suave,
musicalmente recorrendo a elementos de expressão que sugerem o
clima calmo da noite, após a brincadeira levada à exaustão.
Onomatopeias terminam a canção - “Uh, uh, uh, uh...”, “tch, tch, tch,
tch” -, sinalizando sons da noite ou remetendo a acalantos, ou a gritos
e palmas, e fogos de artifício.
Em toda a sua canção, a menina brinca com os efeitos da voz,
com diferentes vibratos e intervalos que ela experimenta. Dissolve as
frases, recorta fragmentos e os repete variando timbre e intervalos.
Incorpora o espírito da brincadeira frenética na segunda seção e o
explora até retornar à calma e ao recolher da noite. Ao fundo, a rotina
da casa traz seus sons, indicando que a criança compõe e se grava
compondo, sozinha, e assim brinca sem a escuta atenta de algum
observador ou instrutor. A menina não tem um sistema dado de
antemão: uma tonalidade, uma fórmula de compasso, intervalos
musicais (uma terça, uma oitava, etc.). Ela experimenta e vai
compondo com as intensidades das palavras, dos sons de um lá-lá-lá,
um puro devir-música da criança, um puro devir-criança da música -
os dois, ao mesmo tempo, partículas de um e de outro, sensação, um
monumento sonoro que se fez num momento infantil.

conclusão

Começamos esse texto remetendo à metáfora do camelo,


proposta por Nietzsche, para dizer que professor(a) e escola podem
carregar em si um camelo, seja pela insistência em se orientarem por
tendências homogeneizantes e esquemas fixos (recognição de
modelos), seja pela insistência em privilegiar “verdades” musicais
instituídas por uma educação musical “maior”, ou a música “com ‘m’
maiúsculo” - “música exterior” (conforme palavras de Brito e Kater,
aqui já trazidas).
Mas movimentos “moleculares” são contemporâneos a tais
movimentos de estratificação “molares”. Vimos com Kohan que a
infância fala uma língua que não se escuta, pronuncia uma palavra
que não se entende, pensa um pensamento que não se pensa. A
infância produz uma música “que adquire existência junto aos
ouvidos pela curiosidade de nosso espírito, pela necessidade de nossa
própria escuta” (palavras de Kater), uma “música da gente” miúda,
“música interior”. A essa infância como experiência e acontecimento,

452
potência inventiva, infância e devir-música da educação

infância “molecular” ou “menor” (em contraponto à infância “molar”),


só nos resta responder com um devir-criança, uma “disposição
infantil”, ato de “infantilar” (palavras de Kohan). Não só somos
atravessados por um devir-criança (disposição infantil na performance
musical, incluindo os modos de escuta, uma escuta “menor”), como
somos atravessados por um devir-música na infância (nas músicas de
Sofia, tomando a palavra como brinquedo, experimentando um devir-
música das palavras). Devir-criança (disposição infantil) e devir-
música, numa dupla captura.
O gesto de criação musical da criança põe em suspenso modelos
musicais “maiores”, dominantes, dando vez a uma educação “menor”
pela “abertura a bifurcações imprevisíveis, franqueamento a encontros
inesperados”, lugar de experimentações no pensamento
(GUIMARÃES, 2017, p. 8998), criação, potências “moleculares”, fluxos
rizomáticos, um devir-música da educação. No processo de análise da
composição, nos sentimos desafiados pela força das linhas sonoras
inesperadas, fragmentos rítmicos transformados numa velocidade
incrível que alucinou inúmeras tentativas de conformação a uma
escrita dura e quadrada, a uma grafia musical tradicional, notação
gráfica em pauta, partitura.
Talvez um dos maiores obstáculos para pensarmos a música na
escola não esteja tanto, como muitos pensam, na falta de recursos
materiais ou de espaços físicos adequados. Talvez um dos grandes
desafios iniciais esteja na dificuldade de desterritorialização das
normas de submissão e obediência a modelos dados como corretos, já
pensados e sabidos.
Diante da frustração, do impedimento às suas tentativas de
criação “menor”, a criança pode acabar se envolvendo em produções
desencorajadas e inibidas, em práticas meramente reprodutoras,
frequentemente voltadas apenas para o modelo da recognição de
esquemas fixos. Estacionadas em uma pedagogia fechada demais,
sufoca o pensamento, a criação musical.
Subvertendo esse modelo, uma educação musical “menor”,
calcada na “música interior”, se aproximaria do exercício de uma
pedagogia musical aberta, rizomática, de um devir música da
educação e do mundo. Aberta, mas não despreparada, abandonada,
esvaziada. Pelo contrário, tão detalhadamente preparada que possa
prescindir de todos os detalhes, como diz Kohan (2003, p. 234),
traçando um “mapa de orientação que forneça pistas” (SANTOS, 2017,
p. 483), à maneira de um professor-músico-cartógrafo, sensível aos
signos sonoro/musicais das crianças e do mundo.

453
regina marcia simão santos; pablo de vargas guimarães; neila ruiz alfonzo

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455
regina marcia simão santos; pablo de vargas guimarães; neila ruiz alfonzo

________. Já não chega do modelo da recognição? - incursões sobre educação


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456
três dispositivos para uma formação inventiva de
professores: deslocamentos em companhia de michel
foucault.

rosimeri de oliveira dias


uerj
rosimeri.dias@uol.com.br
heliana de barros conde rodrigues
uerj
helianaconde@uol.com.br

introdução

Toda educação guarda dentro de si um pouco de caos que


constitui o mundo. Apesar dos esforços empreendidos pela civilização
para extirpar essa sombra que acompanha certa imagem de
racionalidade, o caos continua lançando apelos às paixões. A
civilização criou vários dispositivos para conter essa força obscura que
faz ver e falar os limites da ordem, da simetria, da regularidade, da
moral, os quais determinam os contornos de um tipo ideal de
educação (empreendedora, pedagogizante, que faz adaptações para
regular uma moral e um sujeito da razão) que deve servir de modelo
padrão para toda a humanidade.
Há formadores que se aventuram nessa dimensão de
problematização, caótica, descendo e se deslocando por diferentes
modos de viver e fazer, em que este tipo ideal de educação é
tensionado. Tais formadores jogam com o caos e aproximam-se de um
processo de problematização, que implica o risco de experimentação
da liberdade do próprio formador.
A educação escolarizada é apontada como a via régia de todas as
salvações sociais. Consequentemente, professores e professoras são
intensamente visados pelos investimentos discursivos e institucionais:
formar os formadores seria, alega-se, uma espécie de “salvação ao
quadrado”. Docentes de uma universidade pública, recebemos
permanente encomenda de contribuir com essa “missão”. O presente
artigo refere-se à maneira como temos lidado com tal encomenda.
Adotando o princípio cartográfico (DELEUZE; GUATTARI,
2004), correlacionamos pesquisas-intervenção a estudos foucaultianos,
no intuito de polemizar o lugar comum do especialista – alguém cuja
função seria dotar o formando de saberes e capacidades dos quais este
careceria (DIAS, 2011).

457
rosimeri de oliveira dias; heliana de barros conde rodrigues

Trazemos à cena dispositivos (DELEUZE, 2016) que, compostos


por linhas traçadas no entrelugar universidade-formação, nos forçam a
pensar. Colocamos nossa atenção no presente, fazendo ver e falar o
que nos acontece, estabelecendo uma relação que inclui habitar o
território, encontrar-se, estudar e conversar (DIAS, 2012a).
Foucault (2014a) estava ciente da força desse modo de
analisar/intervir:
[...] a única possibilidade de trabalho teórico que me
anima seria deixar [...] o vestígio dos movimentos
devido aos quais não estou mais no lugar em que estava
há pouco. [...] Trata-se [...] de um traçado de
deslocamento, isto é, não de um traçado de edifício
teórico, mas do deslocamento pelo qual minhas posições
teóricas não param de mudar (p. 70-71).
Os traçados foucaultianos nos ajudam a pensar/fazer formação
pelo que se move/nos move para forjar transformações. Tal questão
atravessa todo o trabalho do filósofo, como ele nos diz em O governo
de si e dos outros:
o que procurei fazer foi uma história do pensamento. E
por ‘pensamento’ queria dizer o que se poderia chamar
de focos de experiência, nos quais se articulam uns
sobre os outros: primeiro, as formas de um saber
possível; segundo, as matrizes normativas de
comportamento para os indivíduos; e enfim os modos
de existência virtuais para sujeitos possíveis
(FOUCAULT, 2010, p.4).
Nesse intuito, em outro curso, Foucault (2014a) sugere a prática
do que denomina anarqueologia, definindo-a como atitude teórico-
prática que suspende os exercícios de poder. Torna-se assim possível
uma aproximação ao modo de ser do sujeito e ao exercício do
pensamento sem que estes, como em outras abordagens, sejam
encarados como necessários. Sobre o contraste entre seu procedimento
anarqueológico e outras manobras filosóficas, ele assinala:
Digamos que se o grande procedimento filosófico
consiste em estabelecer uma dúvida metódica que
suspende todas as certezas, o pequeno procedimento
lateral e na contramão que proponho [...] consiste em
fazer intervir sistematicamente não a suspensão de
todas as certezas, [...] mas a não-necessidade de todo
poder, qualquer que seja (FOUCAULT, 2014a, p. 72).
Nessa anarqueologia, práticas de qualquer espécie – as de
formação nos interessam especialmente – estão afetadas de uma não
necessidade essencial. Evitam-se posições que digam “eis o que é a
natureza da formação”. Tais posições associam categoria universal,
posição humanista e análise ideológica, a ponto de constituírem uma
série à qual Foucault (2014a) contrapõe outra, aquela que defende:

458
três dispositivos para uma formação inventiva de professores: deslocamentos em ...

“recusa dos universais-posição anti-humanista-análise tecnológica dos


mecanismos de poder” (p.74).
Com o auxílio dessa última série, que, nos termos da Análise
Institucional francesa, diríamos que privilegia a análise de implicações
(LOURAU, 1993), usaremos primeiramente as linhas tecidas no
dispositivo aula a fim de colocar em análise a tessitura da anarqueologia
como atitude prática para pensar/fazer formação. Em seguida,
recorreremos às linhas do dispositivo delimitado por meio de
entrevistas (FOUCAULT, 1994a; 2014b; 2004b) e de escritos de
intercessores (CHEVALIER, 2015; DELEUZE, 2016) para indagar se a
formação perspectivada pela invenção pode ser uma formação outra.
Em um terceiro momento, apreciaremos estratégias singulares de
formação de professores.

dispositivo 1: a aula

Organizar este escrito mediante três dispositivos que procuram


tornar visível o que nos move fala de um modo de formação atento às
tessituras micropolíticas que emergem de certos encontros, bastante
singulares, consigo, com o outro, com outros. Neste sentido,
começamos pela aula ministrada por Foucault no dia 10/02/1982 de A
hermenêutica do sujeito (FOUCAULT, 2004a). Na primeira hora, o
filósofo se propõe a explicitar a dupla desvinculação do cuidado de si
– tanto em relação à pedagogia quanto em relação à atividade política
– ocorrida no período helenístico-romano.
No período helenístico-romano, ele deixa de ser um preceito
complementar ou substitutivo da pedagogia preexistente, imposto no
momento em que o jovem vai entrar na vida adulta e restrito aos que,
por seu estatuto, detêm a possibilidade de governar os demais, para
tornar-se uma injunção válida para todos e para todo o desenrolar da
existência. Agora coextensivo à vida, a desvinculação do cuidado de si
quanto à pedagogia se expressa, ademais, em seu entrelaçamento com
uma rede de relações sociais diversas – organizações escolares, ação de
conselheiros privados, relações de proteção, amizade etc.
Já a desvinculação da atividade política revela-se no afastamento
daquele caráter instrumental que, até certo momento – figurado pelo
diálogo Alcibíades –, cercara o cuidado de si. Estar atento a si tinha
como objetivo, então, ocupar-se bem com a cidade; agora é preciso
ocupar-se consigo “de maneira que a relação com os outros seja
deduzida, implicada na relação que se estabelece de si para consigo”
(FOUCAULT, 2004a, p.254).
Sintetizando as duas desvinculações, emerge a seguinte imagem:
“é preciso, durante toda a vida, voltar a atenção, os olhos, o espírito, o
ser por inteiro enfim, na direção de nós mesmos” (p.254). Trata-se de
uma conversão a si. Mais do que noção estrita, tal conversão é uma

459
rosimeri de oliveira dias; heliana de barros conde rodrigues

espécie de “esquema prático” que, dentre as “tecnologias do eu”


(FOUCAULT, 2004a, p. 256) conhecidas pelo Ocidente, foi uma das
mais importantes.
Neste ponto, a aula convida a que nos voltemos para o presente.
Porque Foucault (2004a), sem deixar de mencionar a importância
religiosa da conversão, nos adverte de seu relevo filosófico, moral e
político.
Parece-me [...] que não se pode compreender o que foi,
ao longo do século XIX, a prática revolucionária, o que
foi o indivíduo revolucionário e o que foi para ele a
experiência da revolução, se não se levar em conta a
noção, o esquema fundamental da conversão à
revolução (p. 256).
Hoje, quando tanto se fala em decepções com a política
revolucionária, essa proposta soa provocadora, porque nos adverte do
caráter inesgotável, e com frequência inesperado, das transformações
nos modos de subjetivação. Mas Foucault (2004a) igualmente se reúne,
conquanto de forma matizada, a nossos receios, acrescentando:
Seria preciso examinar também de que modo esta noção
de conversão foi pouco a pouco sendo validada –
depois absorvida, depois enxugada e enfim anulada –
pela própria existência de um partido revolucionário. E
de que modo passamos do pertencimento à revolução
pelo esquema de conversão ao pertencimento à
revolução pela adesão a um partido (p. 257).
“Haveria aí toda uma história a ser feita”, diz ainda Foucault
(2004a, p. 257), com sutil ambiguidade: tal história não é somente a da
reconstrução de acontecimentos pretéritos, apontando igualmente à
importância da conversão na elaboração, no presente, de práticas de
resistência.
A seguir, o filósofo distingue a conversão da epistrophé platônica,
comandada por uma oposição fundamental entre este mundo – o das
aparências – e o outro – o das essências. No tipo de conversão que
encontramos na prática de si helenístico-romana, o retorno a si deve
fazer-se na imanência do mundo, sendo a única oposição subsistente a
que contrapõe o que “não depende de nós” ao que “depende de nós”
(FOUCAULT, 2004a, p. 258).
A liberação a ser obtida remete a tudo aquilo que não
dominamos, a fim de alcançar aquilo que podemos dominar. Em
contraste com a epistrophé platônica, não se trata de liberação da alma
em relação ao corpo, mas de adequação de si para consigo. Outra
diferença reside no papel menos fundamental desempenhado pelo
conhecimento: “será o exercício, a prática, o treinamento, a áskesis, que
constituirá o elemento essencial” (FOUCAULT, 2004a, p. 259).

460
três dispositivos para uma formação inventiva de professores: deslocamentos em ...

Encerrando a primeira hora da aula, Foucault contrapõe a


conversão helenístico-romana à que encontraremos na cultura
monástica. No primeiro caso, ela não implica ruptura, enquanto na
cultura cristã dos séculos III e IV d.c., “o eu que se converte é um eu
que renunciou a si mesmo” (p. 260). Se existe alguma ruptura na
conversão helenístico-romana, ela se dá quanto a tudo aquilo que
cerca o eu, pois, como afirma Foucault (2004a), citando Sêneca, “a
filosofia faz com que o sujeito gire em torno de si mesmo, isto é, faz
com que ele execute o gesto pelo qual, tradicional e juridicamente, o
mestre liberta seu escravo” (p. 261).
Na segunda hora, acercando-se da posição de Pierre Hadot
(2014), para quem a filosofia antiga é “transformação da maneira de
ser e da maneira de viver” (p. 214), Foucault (2004a) indaga:
poderíamos considerar o caráter assumido pelas escolas filosóficas do
período helenístico-romano como um prenúncio da importância maior
dos saberes sobre o homem quando comparados aos saberes sobre o
mundo e a natureza? – pergunta relevante para o debate
contemporâneo sobre os conhecimentos indispensáveis ao professor
“bem formado”.
Para explorar esse problema, Foucault (2004a) focaliza o modo
como ele é colocado nos cínicos, recorrendo a um texto em que
Demetrius, pondo em cena a imagem do atleta, efetua uma triagem
quanto ao que seria necessário conhecer para sair-se bem em tal
atividade – poucos movimentos, por sinal. Com isso, vê emergir um
“critério de utilidade”, pois se tem a impressão de uma divisão “entre
conhecimentos inúteis, que poderiam ser os do mundo exterior, e
conhecimentos úteis, que tangenciam diretamente a existência
humana” (p.284).
Apreciemos, contudo, o texto de Demetrius, composto por duas
listas que remetem, respectivamente, ao que é inútil e ao que é útil
conhecer. No primeiro caso, temos a causa dos maremotos, a causa do
ritmo dos sete anos que cadenciariam a vida humana, a causa das
ilusões de ótica, o motivo de haver gêmeos e o paradoxo de duas
existências diferentes e nascidas sob o mesmo signo, etc. (FOUCAULT,
2004a, p. 285)
Foucault (2004a) não vê os conhecimentos dessa série como
relativos a coisas pertencentes a um mundo desconectado da
existência humana. Modifica, então, sua hipótese inicial quanto ao que
constituiria o caráter comum do considerado inútil por Demetrius:
O traço comum e que as tornará inúteis é que se trata
[...] de conhecimentos pelas causas. [...]. Estão ocultas
porque é inútil conhecê-las [...] não porque proibido,
mas porque [...], ao conhecê-las não obteremos mais do
que algo suplementar, [...], a título de distração e para
sentir um prazer que reside, precisa e unicamente na
própria descoberta [...]. Prazer de cultura, por

461
rosimeri de oliveira dias; heliana de barros conde rodrigues

consequência, prazer suplementar, prazer inútil e


ornamental (p. 286-287).
O que seria útil conhecer, então? Assim o resume Foucault
(2004a): “Que há pouco a temer dos homens, nada a temer dos deuses,
que a morte não produz nenhum mal, que é fácil achar o caminho da
virtude, que é preciso considerar-se como um ser social nascido para a
comunidade” (p. 287).
Essa série em nada se aproxima do que a espiritualidade cristã
virá a chamar de “segredos da consciência”. Não há inventário de um
mundo de desejos e paixões, tampouco teoria da alma ou da natureza
humana. Trata-se, “somente e sempre, do mundo, [...], dos outros, [...]
do que nos cerca” (Foucault, 2004a, p. 287-288). Porém enquanto os
conhecimentos inúteis seriam uma modalidade de saber “pelas
causas”, os úteis seguiriam um modo que Foucault propõe chamar de
“relacional”: neles, o que se há de ter em conta “é a relação entre, por
um lado, os deuses, os homens, o mundo, as coisas do mundo, e, por
outro, nós” (p. 288).
Esse saber tem a propriedade de ser imediatamente
transcriptível em prescrições, daí dizer Foucault (2004a) que tais
conhecimentos constituem “constatações prescritivas”, pois “a
maneira como se há de conhecer é tal que o que é dado como verdade
seja lido, de saída e imediatamente, como preceito” (p.288-289).
A hipótese de que o conteúdo seja o elemento definidor da
utilidade/inutilidade dos conhecimentos é, assim, descartada.
Os conhecimentos [...] inúteis [...], não se definem pelo
conteúdo. Definem-se por um modo de conhecimento
causal, com dupla propriedade, ou melhor, com dupla
falta [...]: são conhecimentos que não podem
transformar-se em prescrições, que não têm pertinência
prescritiva; em segundo lugar, que, quando os
possuímos, não têm efeito sobre o modo de ser do
sujeito. Em contrapartida, será validado um modo de
conhecimento que, considerando todas as coisas do
mundo [...] relativamente a nós, de pronto poderemos
transcrever em prescrições, e elas modificarão o que
somos, modificarão o estado do sujeito que as conhece
(FOUCAULT, 2004a, p.289).
Com apoio em Plutarco, Foucault (2004a) afirma ser
determinante o caráter “etopoético” (p. 290), ou não, do saber e, sem
demora, passa à leitura de Epicuro, que, nas Sentenças Vaticanas,
privilegia a noção de physiología (fisiologia):
O estudo da natureza (physiologia) não forma fanfarrões
nem artistas do verbo, nem pessoas que ostentam uma
cultura julgada inviável para as massas, mas homens
altivos e independentes, que se orgulham de seus

462
três dispositivos para uma formação inventiva de professores: deslocamentos em ...

próprios bens, não dos que advêm das circunstâncias


(citado por FOUCAULT, 2004a, p.291).
Tudo o que a physiologia não é caracteriza a paideía,
extremamente criticada por Epicuro: saber de jactância, cuja única
meta é “fazer-se admirar pelas massas” (FOUCAULT, 2004a, p.292). Já
a physiologia equipa (paraskeuázei) homens altivos que se dotam da
coragem que lhes permite afrontar as crenças, os perigos da vida e as
autoridades. Esses homens independentes (autarkeîs), ao reconhecerem
a partilha entre o que depende e o que não depende de nós,
estabelecem domínio absoluto quanto ao primeiro aspecto.
Para quem se volta para o tema da formação na
contemporaneidade, como não ver na distinção epicurista entre
physiologia e paideía, um equipamento extremamente útil para avaliar o
que efetivamente importa? Pois a paraskeué, diz Foucault (2004a), é
a equipagem, a preparação do sujeito e da alma pela
qual o sujeito e a alma estarão armados como convém,
de maneira necessária e suficiente, para todas as
circunstâncias possíveis da vida com que viermos a nos
deparar, [...] o que permitirá resistir a todos os
movimentos que poderão advir do mundo exterior (p.
293).

dispositivo 2: formação perspectivada pela invenção

Deslocamento, esforço e movimento nos têm acompanhado na


trajetória desta discussão que liga universidade, formação e estudos
foucaultianos, no propósito de afirmar uma formação intensiva que
não esteja ligada a qualquer sistema autoritário, seja jurídico, seja
disciplinar. A formação a que nos referimos não procede de leis e/ou
normas constituintes: está inscrita na própria vida dos estudantes e
dos professores.
O que seria, mais exatamente, pensar e fazer formação
perspectivada pela invenção? Que sentidos é possível expressar
quando tomamos a invenção como modo de estar/fazer na
universidade? Como pensar um modo desacomodado de estar na
universidade e na formação? Quando optamos por caminhar por meio
de dispositivos, colocamos em análise as linhas da tessitura da
experiência.
Em uma entrevista a Trombadori, datada de 1978, Foucault
(1994a) afirma que, quando tratamos da experiência, o problema
principal não reside em trazer à luz “a significação da experiência
quotidiana para reencontrar, no que sou, o sujeito fundador”; ao
contrário, a experiência tem por função “arrancar o sujeito de si
mesmo” (p. 43).

463
rosimeri de oliveira dias; heliana de barros conde rodrigues

A entrevista mencionada, algumas outras contidas nos Ditos e


Escritos e textos de intercessores tomam fios soltos de nosso artigo
para indagar em que medida conseguimos manter vivo, na formação,
um campo problemático – princípio de uma formação inventiva
(DIAS, 2012b).
Levamos a sério o que Deleuze (2016) nos diz acerca de duas
consequências do pensar por dispositivos: o “repúdio dos universais”
(p. 363) e a “mudança de orientação, que se desvia do Eterno para
apreender o novo” (p. 364). Nessa linha, Deleuze (2016) enfatiza que
para apreender a obra de Foucault não é possível deixar de fora suas
entrevistas, pois enquanto nos livros ele nos fala de “linhas de
sedimentação” ou “estratificação”, nas entrevistas traça “linhas de
atualização” ou “criatividade” (p. 367-368).
Em entrevista de 1983 a Dreyfus e Rabinow, Foucault (2014b)
esclarece o que vem a ser seu retorno aos gregos, insistindo na
categoria de problematização: [...] não se encontra a solução de um
problema na solução de outro problema apresentado em outra época
por pessoas diferentes. O que quero fazer não é uma história das
soluções. Penso que o trabalho que se deve fazer é um trabalho de
problematização e de perpétua reproblematização (p. 217).
Em seguida, ressalta que o valor do trabalho do pensamento não
é “denunciar o mal que habitaria secretamente em tudo o que existe,
mas pressentir o perigo que ameaça em tudo o que é habitual e tornar
problemático tudo o que é sólido (FOUCAULT, 2014b, p. 217).
Essa resposta nos ajuda a manter de pé o princípio –
problematizar – de uma formação inventiva de professores. Nessa
direção, seguimos com mais uma entrevista, de 1984, no decorrer da
qual indaga Rabinow: “O senhor falou antes de uma ‘história das
problemáticas’. O que isto quer dizer precisamente?”. Eis parte da
resposta de Foucault (2004b):
O pensamento não é o que se presentifica em uma
conduta e lhe dá um sentido; é, sobretudo, aquilo que
permite tomar uma distância em relação a essa maneira
de fazer ou de reagir, e tomá-la como objeto de
pensamento e interrogá-la sobre seu sentido, suas
condições e seus fins. (p. 231-232).
Foucault (2004b) torce o uso tradicional da noção de problema –
obstáculo que se apresentaria fora do pensamento – para fazer dela
um efeito do próprio pensamento. Como nos diz Chevallier (2015), “é
o pensamento que dá a si mesmo um problema” (p. 299). Uma
problematização, acrescenta, é “a maneira na qual o pensamento se
projeta adiante sob uma forma interrogativa, sem poder de modo
algum antecipar o que advirá dela e das respostas que a história
reterá” (p.308).

464
três dispositivos para uma formação inventiva de professores: deslocamentos em ...

Retomando uma ascese, um trabalho de si sobre o pensamento, o


que Foucault propõe com a problematização é um exercício crítico de
liberdade e de resistência, tão necessário à formação de professores.
Esse exercício, em tal formação, pode, talvez, ser perspectivado pela
invenção, dado que, ao problematizar, inquietamos as certezas e
adotamos uma atitude de recuo crítico quanto às evidências sociais
(GROS, 2015).

dispositivo 3: encontros e conversas

Com as linhas deste terceiro dispositivo, damos a ver algumas


estratégias singulares de formar professores, as quais privilegiam
práticas éticas e políticas que envolvem exercícios regulares e
trabalhos dotados de continuidade, porém sem efeitos de coerção.
Quanto a estratégias, afirma Foucault (2008): “para que uma
determinada relação de forças possa não somente se manter mas se
acentuar, se estabilizar e ganhar terreno, é necessário que haja uma
manobra” (p. 255). Assim pensada, nossa estratégia de ação habita os
territórios de formação, problematizando suas leis e normas.
Não se trata de contatos fortuitos para atender a necessidades
impostas pelos cursos de formação, tampouco de uma investigação
sobre a escola básica, mas de uma pesquisa-intervenção com a escola.
Ela aproveita as brechas entre a macro e micropolítica e entra no
território com a perspectiva de analisar e intervir sobre/com o que
acontece entre estudantes e professores da universidade e da escola
básica.
Análises no campo da representação, que buscam a neutralidade
científica, o diagnóstico e a solução de problemas já dados não dão
conta do dinamismo da instituição educativa. Já a pesquisa-
intervenção, conforme a concebe Rocha (2012), intensifica a ruptura
com modos tradicionais de investigar, além de ampliar as bases
teórico-metodológicas das pesquisas participativas: ela surge como
proposta transformadora das/nas políticas, pois propõe uma
intervenção micropolítica.
Nessa perspectiva, é preciso abrir-se para as experiências, com o
olhar atento aos pequenos gestos, àquilo que não está dito ou está dito
em tom muito baixo. A professora-coordenadora e as estudantes
bolsistas da universidade vêm para dentro da escola, assim como as
professoras da escola passam a frequentar a universidade. O grupo de
pesquisa conversa com professores e estudantes, funcionários, pais,
diretores; atua em seus territórios, sente na pele suas tramas e dramas.
Tais estratégias são registradas em diários de campo (LOURAU, 1993),
como vemos na escrita de uma professora de escola parceira:
Com esta metodologia, a intervenção começa em nós
mesmos, por meio de leituras e discussões de múltiplas

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rosimeri de oliveira dias; heliana de barros conde rodrigues

referências teórico-metodológicas [...]. Os pesquisadores


começam problematizando o próprio modo de pensar
ocidental, marcado pela representação, colocam em
discussão a noção de conhecer, de aprender e de
ensinar... Os novos conceitos e estudos nos intrigavam
ou provocavam um certo desconforto ou mesmo
incômodo. Afinal, fomos percebendo que conhecer era
sair do lugar, mudar, ter outras atitudes, pensar
diferente.[...] Problematizar era um conceito importante
que precisava ser incorporado.
O diário é apreendido pela Análise Institucional como
possibilidade de criar outros sentidos para fazeres e dizeres. Não tem
sentido próprio nem figurado, já que se faz implicado, remetendo às
múltiplas situações abordadas. O diário como método (ou o diário e o
método) trabalha(m) nas bordas, lá onde a forma deixa de ser o que foi
em algum momento naturalizado. Fazer vibrar essas bordas em um
processo de contágio, abrir o diário para suas intensidades, trabalhar
mais nas misturas que o compõem e menos em uma (suposta) pureza
são indícios político-formativos para que o singular não se dissocie de
sua face coletiva.
Cada fragmento de diário é a expressão de uma ação que se
constitui em práticas abertas às intensidades e diferenças. Com os
diários, mostramos que escrever, fazer e dizer correspondem a uma
política formativa com a qual se apreende uma dimensão experiencial,
em exercícios concretos, e também uma dimensão expressiva, que abre
um entrelugar e um entretempo para forjar experiências
modificadoras de si e do mundo.
Os fragmentos de diário não são textos inacabados; antes, têm
uma modalidade outra de acabamento: a que está em jogo na espera,
na problematização ou em alguma afirmação irredutível de espreitar e
acolher o desconhecido sem o reter/deter. Nosso modo de trabalhar,
portanto, problematiza
o lugar do aluno-professor solucionador de problemas,
tensionando os postulados hegemônicos da formação,
como aquele que faz funcionar a máquina de
propagação da informação e da explicação. O lugar
comum da explicação comporta dois âmbitos
indissociados. Um produz certo conforto no aprender. O
aluno sente-se atendido com a explicação do mestre,
produzindo um consenso. Outro âmbito, da explicação,
freia o esforço do pensamento, pois, quando o professor
explica, ao mesmo tempo que diz a resposta, ele forja no
aluno a impossibilidade de pensar por si. Nessa
perspectiva, a explicação que comporta a resposta
embota o processo de invenção de problemas, muito
importante para uma formação inventiva (DIAS, 2011,
p. 257).

466
três dispositivos para uma formação inventiva de professores: deslocamentos em ...

Na pesquisa-intervenção, a proposta é dar visibilidade àquilo


que é potência de transformação. Sendo assim, optamos por realizar,
com a escola básica, projetos desenvolvidos pelas bolsistas e
supervisionados por professoras da própria escola. Supervisionar e
orientar estes trabalhos afirma a singularidade de se encontrar e
conversar, como podemos ver nas palavras de uma professora
parceira:
Fazer parte da supervisão requer orientar cada grupo
sem direcionar, mas negociando e intervindo. A palavra
seria observar sem pensar aprioristicamente o que
funcionaria pela minha experiência como professora.
Isso é tenso, mas fica guardado. Já vemos a importância
do grau de abertura que o projeto requer. Junto com este
grau de abertura, a biblioteca composta por ensaios,
textos e filmes que lemos e levamos como questões nas
reuniões, é um capítulo à parte no projeto. Eles
dialogam constantemente conosco e suas leituras não
acabam quando o livro termina, ficam reverberando em
nós, produzindo efeitos sonoros.
Ler, estudar, escrever, pensar, encontrar-se e conversar
regularmente na escola, criar espaços de pesquisa, estabelecer com a
direção reuniões periódicas, abertas aos professores, para discutir e
analisar a escola básica, propor projetos com os alunos em que nos
deslocamos do “faça como eu” para o “faça comigo” (DIAS, 2011) são
forças que mexem com uma escola instituída para não pensar, não
analisar a si própria, não inventar nada.
Com isso, vamos todas, estudantes-professoras e professoras,
aprendendo que pesquisar, intervir, conhecer fazem parte do mesmo
processo. Não há binarismos, mas problematizações que abrem para
as multiplicidades e, ao mesmo tempo, para a singularização. A
intervenção ocorre no grupo, na produção de outras subjetividades;
incomoda o instituído, provoca o pensamento a experimentar a
liberdade e a autogestão (LOURAU, 1993). A intervenção continua em
nós, como vemos expresso em um trecho de diário de pesquisa:
Hoje resolvi fazer uma experiência nas minhas aulas da
2ª série. A ideia era deixar para trás as verdades
fechadas, e entrar em sala sem expectativa, deixando
fluir o acontecimento. Foi uma sensação estranha, com
quase 30 anos de magistério, me sentir uma novata,
entrando na sala pela primeira vez. Não sabia o que
poderia acontecer, estava só aberta para o imprevisível.
Experimentei a leveza, mas também um pouco de
insegurança, pois embora afetada com as ideias novas,
não sabia até que ponto estavam incorporadas. Queria
experimentar “o faça comigo” e sair do “faça como eu”,
e estar no “entre” como propunha Rosimeri. Havia
preparado a aula, mas não ensaiado direito como
ensinou Deleuze. A técnica, copiei da Shirley que havia

467
rosimeri de oliveira dias; heliana de barros conde rodrigues

feito com os professores, no ano passado. Trouxe uma


caixinha com frases dentro de envelopes coloridos.
Como meu primeiro assunto era Iluminismo aproveitei
temas como liberdade, cidadania, igualdade e outros
sobre relacionamentos, etc. Com os alunos em círculo,
falei brevemente sobre a proposta: Uma bolinha vai
passar de mão em mão, enquanto ouvem uma música,
quando ela parar o aluno ou aluna virá até a mesa, vai
pegar um envelope, ler e opinar sobre o tema. Perguntei
se alguém poderia ficar responsável pela música de um
celular. Na semana anterior havíamos discutido sobre o
uso do celular em sala, mas disse brevemente que
aquele era um outro uso, um uso coletivo, necessário
para o desenvolvimento da aula. Foi interessante vê-los
discutir um pouco sobre o som, resolvendo entre eles,
sobre o melhor tipo de música. Estavam meio
envergonhados, mas aos poucos foram se abrindo para
o debate. Procurei ficar quieta, não opinar, mesmo
quando a bolinha parava em mim. Numa das salas me
questionaram por que eu não respondia. Disse que
naquele jogo era importante eles falarem o que
pensavam. Segurei-me para não dar nenhuma lição de
moral, quando o tumulto se anunciava. Deixei
acontecer, ou melhor, me deixei experimentar o
acontecimento. Algumas vezes falava algo ou lançava
uma questão só para provocar o debate. Uns 15
minutos antes de terminar a aula, pedi para comentarem
sobre aquela experiência. Alguns não queriam. Houve
um pouco de barulho. Falei então o quanto importavam
as suas ideias e sensações, que elas precisavam ser
registradas. Que agora precisavam do silêncio, quietude
para ouvirem a si próprios, para poder pensar melhor e
escrever. Foi muito bom experimentar o silêncio e a
escrita dos alunos. (DIAS; PELUSO; UCHÔA, 2013, p.
10).
Vale finalmente lembrar que a intervenção não se dá num único
sentido, pois é um mergulho na situação concreta e seu desafio é
tornar visível a experiência, sem representação. É uma mistura do que
se anuncia/enuncia com o que se pratica. Com isso, cria-se uma
política de trabalho, uma estilística, uma estética da existência
(FOUCAULT, 1994b).

fios dos dispositivos para uma tessitura que possa, talvez, deslocar e
inventar

Na aula de 17/2/1982 de A hermenêutica do sujeito, Foucault


(2004a) evoca o quanto, no presente, nos referimos à necessidade de
construir uma “ética do eu” (p. 306), sem o conseguir. Parece-lhe que
essa impossibilidade decorre do fato de o Ocidente ter conservado

468
três dispositivos para uma formação inventiva de professores: deslocamentos em ...

apenas dois modelos: o da epistrophé platônica, que aponta para um


outro mundo, e o da exegese cristã, voltada a vasculhar uma alma
sujeita a tentações.
Além desses dois caminhos, resta-nos – Foucault o diz em outro
momento – a objetivação científico-tecnocrático-profissionalizada,
cujos começos remontam a um “momento cartesiano” fundador de
nossa modernidade, o qual cinde o plano epistemológico do plano
ético: o sujeito pode agora conhecer sem que, para tanto, seu ser de
sujeito precise ser transformado, bastando-lhe regras formais de
método e qualificações pedagógico-culturais (FOUCAULT, 2004a, pp.
22-23).
Quanto ao problema contemporâneo da formação, tanto os
modelos (platônico e cristão) de conversão quanto a ausência de
aspiração ética ligada ao momento cartesiano veiculam somente
impasses: “os professores não são mais idealistas, é preciso reencantá-
los”; “fascinados com o dinheiro, carecem de dedicação, é necessário
reorientá-los”, “hoje, somente quem não estuda quer ser professor, é
preciso fornecer-lhes instrumentos metodológicos e técnicos
renovados”.
Já o que Foucault (2004a) apelida “modelo do meio” (p. 314), ou
seja, o cuidado de si helenístico-romano, poderia associar-se ao que,
desde o início deste artigo, designamos como “formação inventiva”.
Essa formação aposta na construção coletiva de um “equipamento”
(paraskeué) (p.387) que nos faculte seja retornar a nós mesmos como
porto seguro, seja construir a nós mesmos durante toda a vida. Acerca
da aparente oscilação, ouçamos Foucault (2004a): “O que significa
retornar a si? Que círculo é esse, que circuito, que dobra é esta que
devemos operar relativamente a algo que, contudo, não nos é dado,
senão apenas prometido ao termo de nossa vida?” (p.302).
Em tais práticas e exercícios – é disso que se trata no “modelo do
meio” – desaparecem os lamentos, porque há sempre algo a fazer,
facultativo, alegre, voltado a engendrar um cotidiano libertário.
Ousamos dizer que esse cotidiano seria aquele que vê, na arte de
constituir, hoje, uma ética do eu, “uma tarefa urgente, fundamental,
politicamente indispensável, se for verdade que, afinal, não há outro
ponto [...] de resistência ao poder político senão na relação de si para
consigo” (Foucault, 2004a, p.306).
De que precisamos para nos engajar nessa tarefa? De algo que
esteja à mão, como parte integrante de nosso corpo e nossa prática,
servindo de armadura para os embates do dia a dia. Pois paraskeuázein
significa “preparar para”, logo “formar”, e pode distanciar-se de
nihilismos, crenças obedientes e tecnocracias, integrando-se,
alternativamente, às artes libertárias de viver, pensar, agir e ser....neste
mundo.

469
rosimeri de oliveira dias; heliana de barros conde rodrigues

referências

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470
pensar a infância. desusos, usos e abusos em michel
foucault

heliana de barros conde rodrigues


uerj
helianaconde@uol.com.br
rosimeri de oliveira dias
uerj
rosimeri.dias@uol.com.br

introdução

Nos últimos cinco anos, aproximadamente, têm proliferado as


publicações francesas voltadas para os usos de Foucault nas ciências
humanas e sociais. Recebam ou não explicitamente tal título, essas
obras, em forma de coletâneas (Bert; Lamy, 2014; Oulc’hen, 2014;
Boquet, Dufal e Labey, 2013), buscam justificar-se, pelo menos de
início, com base naquela conversa entre Foucault e Deleuze, datada de
2 de março de 1972 e realizada na cozinha da residência do segundo,
que se tornou famosa quando publicada como Os intelectuais e o poder.
Naquela ocasião, cumpre lembrar, é Deleuze quem se pronuncia
acerca de usos, embora remeta, na forma de enfática aprovação, às
perspectivas do companheiro: “Exatamente. Uma teoria é como uma
caixa de ferramentas. Nada tem a ver com o significante... É preciso
que sirva, é preciso que funcione. E não para si mesma. Se não há
pessoas para utilizá-la, [...] é que ela não vale nada ou o momento
ainda não chegou” (Foucault; Deleuze, 1979, p. 71).
Nas coletâneas antes mencionadas, os artigos ora põem em
debate categorias como “uso” e “usuário” (Potte-Bonneville, 2014), ora
analisam as diferentes formas mediante as quais Foucault emprega
termos como “usar”, “utilizar” e derivados (Bénatouïl, 2014), ora,
ainda, denunciam abusos no manejo indiscriminado da expressão
“caixa de ferramentas”, tão celebrada que teria recaído em mero clichê
para consumo generalizado e acrítico (Brossat, 2014). Mais
comumente, entretanto, os artigos fazem uso do pensamento
foucaultiano na forma de “óculos dirigidos para fora” – conforme
também sugerira Deleuze, remetendo a Proust, na já referida
entrevista (Foucault e Deleuze, 1979, p. 71) –, a fim de problematizar a
governamentalidade (Laborier, 2014), a religião (Chevallier, 2014), os
estudos pós-coloniais (Boubeker, 2014), a amizade (Boquet, 2013), o
cristianismo (Senellart, 2013), a violência (L’Heuillet, 2014) e a empresa
(Laval, 2014), entre outros temas.

471
heliana de barros conde rodrigues; rosimeri de oliveira dias

Uma única vez – circunstância que nos chamou a atenção e, de


algum modo, começou a dar corpo ao presente artigo – se dá destaque
não a um uso, tampouco a um abuso, mas a um desuso de Foucault.
Trata-se, no caso, do artigo Foucault et l’école: une absense d’usage, de
François Dubet (2014). Nele, o professor de sociologia da Universidade
de Bordeaux Segalen nos surpreende, pesquisadoras brasileiras que
somos, ao afirmar que a crítica escolar francesa definitivamente não é
foucaultiana.
Não nos deteremos no artigo citado, contentando-nos em dizer
que, segundo Dubet (2014), tal crítica repudia as conexões
estabelecidas entre a prisão, o hospital, o quartel, a fábrica e a escola,
entendidos como variantes do funcionamento do diagrama panóptico,
amplamente presentes nas duas últimas partes de Vigiar e punir, e
grosso modo sintetizáveis, a nosso ver, na frase a seguir, com todas as
inversões a que esta convida: “A prisão: um quartel um pouco estrito,
uma escola sem indulgência, uma oficina sombria, mas, levando-se ao
fundo, nada de qualitativamente diferente” (Foucault, 1987, p. 196).
Não descartamos a priori as análises de Dubet (2014) – apoiadas
na perspectiva durkheimiana de ser a escola republicana francesa mais
filha da Igreja que da razão científica moderna –, porém nem por isso
se atenua nossa surpresa em face da diferença entre as críticas francesa
e brasileira: em nosso país, ao menos nos campos psi e pedagógico – os
cientistas sociais são convidados a se manifestar, quiçá diferentemente
–, essa crítica é fortemente foucaultiana, e o panoptismo, um dos
fantasmas recorrentes de nossas ações e profissões. No entanto,
cumpre antecipar desde já que, a despeito de tais considerações, a
escola, mesmo reinventada, não se constituirá em nosso problema.
Diferentemente, partiremos da surpresa com um determinado desuso
francês e, por ela instigadas, passaremos a investigar um campo
também eventualmente afetado, porém no contexto brasileiro, por
certo desuso de Foucault: a infância.

infância à penumbra?

À primeira vista, Foucault não teria privilegiado a


problematização da infância, e isso se refletiria nos trabalhos de
pesquisadores brasileiros próximos a seu pensamento. Dentre os
autores franceses, quando o tema é a infância, costuma-se dar
prioridade, por aqui, a Ariès (1981) e Donzelot (1980), associados, vale
não esquecer, a uma extensa gama de estudiosos nacionais184.

184Optamos por não os citar nominalmente pela impossibilidade de sermos


exaustivas, arriscando-nos a cometer injustiças.

472
pensar a infância. desusos, usos e abusos em michel foucault

A essa afirmação, alguns leitores poderiam reagir como se segue:


“Mas como?! Grande parte dos trabalhos sobre a infância, no Brasil,
cita, sim, Ariès e Donzelot – com isso desnaturalizando o ‘personagem
criança’ e, ao mesmo tempo, mostrando que este já nasce cindido entre
a ‘criança em perigo’ (a proteger) e a ‘criança perigosa’ (a
temer/conter) –, mas jamais se esquece de Foucault ao abordar o
governo da infância, a biopolítica dos primórdios da vida, o capital
humano-infantil, o empreendedorismo precoce etc.”.
Acatamos esse desmentido, desde que relativizado. Decerto os
cursos Segurança, território, população e Nascimento da biopolítica,
datados de 1978 e 1979, respectivamente, tiveram ampla ressonância
entre nós, visto que o problema das políticas públicas – saúde,
assistência, educação, direitos – voltadas para os “pequenos” nos tem
mobilizado desde a redemocratização, por mais que precária e sempre
ameaçada. Essa mobilização chega, inclusive, a constituir uma espécie
de “feitiço” estatizante/estatizado, cidadanizado, acriticamente
liberal-democratizado (Scheinvar, 2009) e, para combater tais efeitos,
os estudos de Foucault sobre o governo da vida constituem um
imprescindível antídoto.
Porém não é a isso que nos referimos ao afirmar a existência de
certo desuso do filósofo, no Brasil, na análise da infância. À guisa de
esclarecimento, lembramos que embora Foucault tenha, no curso O
poder psiquiátrico, ministrado em 1973/1974, recusado o rótulo de
pesquisador das instituições185, até a primeira metade da década de
1970 a infância aparecera, em sua palavra e sua pena, quase que
exclusivamente como alvo dos exercícios do poder. Essa circunstância,
por um lado, nos leva a recuar um pouco mais no tempo para apreciar
o enfoque foucaultiano da infância, que não se teria iniciado somente
em 1975, com Vigiar e punir; por outro, abre a possibilidade de uma
caracterização mais minuciosa desse enfoque remoto, o qual, por sua

185Dentre as modificações que identifica em seu próprio trabalho em relação a História


da loucura, Foucault (2006) fala de um deslocamento das “regularidades
institucionais” às “disposições do poder”. A noção de instituição lhe parece
insatisfatória porque, a partir dela, “fala-se, no fundo, ao mesmo tempo de indivíduos
e de coletividades, o indivíduo, a coletividade e as regras que as regem já estão dados
e, por conseguinte, podem-se precipitar aí todos os discursos psicológicos ou
sociológicos” (p.19). No manuscrito do curso, lê-se ainda: “A instituição neutraliza as
relações de força ou só as faz atuar no espaço que ela define” (p.19, rodapé). Embora
Foucault, nesses termos, conceba a instituição como restrita à dimensão do instituído
– Castoriadis e os socioanalistas, por exemplo, a entenderiam diferentemente –,
observe-se que Dubet (2014) reprova em Foucault exatamente a ausência de uma
discussão sobre o “programa institucional” da escola republicana francesa,
demandando-lhe ser o sociólogo que o próprio Foucault se recusa explicitamente a
ser.

473
heliana de barros conde rodrigues; rosimeri de oliveira dias

vez, deverá modificar-se, ou ao menos conviver com outro, algo


diverso, a partir de 1975/1976, conforme veremos a seguir.
Tomemos, em primeiro lugar algumas das colocações presentes
em O poder psiquiátrico. Na aula de 12 de dezembro de 1973, Foucault
articula à infância a extensão social da psiquiatria no século XIX,
mediante algumas frases cortantes: “Em linhas gerais, a psiquiatria
diz: deixem vir a mim as criancinhas loucas. Ou: não se é jamais
demasiado jovem para ser louco. Ou ainda: não esperem ficar maiores
ou adultos para serem loucos” (Foucault, 2006, p. 155). A explicitação
dessa perspectiva virá na aula de 9 de janeiro de 1974, quando o
filósofo indaga, diretamente: “Como pôde acontecer que esse poder
psiquiátrico, que parecia estar ligado de maneira tão sólida ao espaço
asilar propriamente dito, tenha se propagado?” (p. 237). Ele assim
responde: “Creio que o intermediário que podemos facilmente
encontrar é essencialmente a psiquiatrização das crianças anormais,
mais exatamente a dos idiotas. [...] E é a partir [...] dessa
psiquiatrização do anormal, do débil, do deficiente, etc., que se fez,
creio, todo o sistema de disseminação...”(p. 238).
Já em 16 de janeiro, além de ampliar a identificação das formas
de propagação do poder psiquiátrico – o que o leva a introduzir
noções como desenvolvimento e instinto, além de trazer à cena
políticas como a generalização do ensino primário francês (Lei Guizot,
1833) –, Foucault articula a psiquiatrização das crianças menos à
escolarização (ou às eventuais dificuldades em efetivá-la, nos casos de
“anormalidade” infantil) do que aos poderes que contribuem para a
instauração e o fortalecimento do modo de produção capitalista, ao
afirmar: “coloca-se a questão de saber onde pô-las em função do
trabalho dos pais, isto é, como fazer para que a criança idiota, com os
cuidados que requer, não seja um obstáculo, uma vez que os pais
trabalham?” (p. 270). Melhor dizendo, aliás, Foucault vincula a
organização de todos os estabelecimentos de ensino infantil da época,
com destaque para as creches e jardins-da-infância, à preocupação do
governo em tornar os pais livres para trabalhar, dispensado-os do
cuidado dos filhos. Ao final da aula, ele assim sintetiza as disposições
de poder que, evitando as armadilhas psicologistas (primazia dos
indivíduos) e sociologistas (primazia das instituições), facultam
apreender o valor da infância (e da infância anormal, logo dita
“perigosa”) para a psiquiatria então nascente: “é através dos
problemas práticos suscitados pela criança idiota que a psiquiatria está
se tornando algo que já não é o poder que controla, que corrige a
loucura, ela está se tornando algo infinitamente mais geral e mais
perigoso, que é o poder sobre o anormal, poder de definir o que é
anormal, de controlá-lo, de corrigi-lo” (p. 280).
Antes de passar ao período 1975/1976, a partir do qual, como
anunciamos, ocorrerá uma inflexão no enfoque foucaultiano da

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pensar a infância. desusos, usos e abusos em michel foucault

infância, cumpre introduzir uma menção ainda mais recuada. Durante


o período de atuação do Grupo de Informação sobre as Prisões (GIP),
nos primeiros anos da década de 1970, publicaram-se quatro
brochuras, apoiadas nas pesquisas-intolerância realizadas pelo grupo.
A quarta e última dessas brochuras, lançada em janeiro de 1973,
chama-se Suicídios de prisão. É imprescindível dar atenção ao conectivo
usado, pois não se trata apenas, no caso, de focalizar o ocorrido em
certo lugar, o estabelecimento prisional, mas de apontar para as
condições de existência186 de tais ocorrências, os suicídios, tenham eles
acontecido dentro ou fora dos muros carcerários. Na publicação em
pauta, apontam-se 32 suicídios em 1972, com especial destaque para o
de um adolescente, nome Thierry: ele não era, empiricamente, um
detento; porém não mais suportou ver a mãe ser permanentemente
chamada de “ladra” nas instâncias judiciárias que era obrigado a
frequentar. O gesto de Thierry, reportado pelo GIP – um suicídio-
revolta contra a morte lenta, que dá fim a certo aprisionamento e, ao
mesmo tempo, desafia o monopólio institucional quanto à instância da
morte –, anuncia timidamente, talvez, um novo modo de se acercar da
infância por parte de Foucault, cujas variantes apreciaremos em
seguida, pois chegam a constituir uma espécie de série documental.
Nesta linha, reaproximemo-nos de Vigiar e punir. Como bem se
sabe, o livro, nas palavras de Foucault, decorre menos de uma
pesquisa historiográfica sobre as prisões que da militância no GIP. Seja
como for, no entanto, ele não é escasso em documentação. Através da
mesma nos acercamos do jovem Béasse, acusado de vadiagem.
Acompanhemos a narrativa publicada em La Gazette des Tribunaux, em
1840, modificando um pouco a formatação usada em Vigiar e punir
para que certo enfrentamento se faça mais vívido:
“O Presidente - Deve-se dormir em casa
Béasse - Eu tenho um em casa?
- O senhor vive em perpétua vagabundagem.
- Eu trabalho para ganhar a vida.
- Qual é a sua profissão?
- Minha profissão? Em primeiro lugar, tenho trinta e seis;
mas não trabalho para ninguém. Já faz algum tempo, estou por
minha conta. Tenho minhas ocupações, de dia e de noite.
Assim, por exemplo, de dia distribuo ingressos grátis a todos os
passantes; corro atrás das diligências que chegam para carregar
os pacotes; dou o meu show na Avenida de Neully; de noite,

186A instituição prisão, neste caso, não mais se confunde com organizações e/ou
estabelecimentos já constituídos, facultando, ao contrário, a análise dos exercícios de
poder e a consequente apreensão das realidades engendradas por estes últimos.

475
heliana de barros conde rodrigues; rosimeri de oliveira dias

são os espetáculos; vou abrir as portas, vendo senhas de saída;


sou muito ocupado.
- Seria melhor para o senhor estar colocado numa boa
casa e lá fazer seu aprendizado.
- Ah, é sim, uma boa casa, um aprendizado, é chato. Mas esses
burgueses resmungam sempre e eu fico sem a minha liberdade.
- Seu pai não o chama?
- Não tenho mais pai.
- E sua mãe?
- Também não, nem parentes, nem amigos, livre e
independente.
Ouvindo sua condenação a dois anos de correção, Béasse
faz uma careta feia; depois, recobrando o bom-humor: ‘Dois
anos nunca duram mais que 24 meses. Vamos embora, vamos
indo’” (transcrito em Foucault, 1987, p. 241).

É raro, ao apreciar Vigiar e punir, que se ignore Vidocq ou


Lacenaire, respectivamente o delinquente tão instrumentalizado pela
polícia que se torna chefe de polícia, e o delinquente-escritor que eleva
o assassinato a uma das belas artes. Béasse, todavia, é o “infame” por
excelência e o menos conhecido, talvez, da galeria composta por
Foucault - bem menos popular, decerto, que Pierre Rivière, Herculine
Barbin ou, inclusive, do que aqueles personagens focalizados de forma
breve em A vida dos homens infames187
Antecipando a beleza deste último texto, diz Foucault sobre
Béasse: “uma criança de treze anos, sem domicílio nem família [...].
Teria com toda certeza passado sem vestígios, se não tivesse oposto ao
discurso da lei que a tornava delinquente (mais em nome das
disciplinas que em nome do código) o discurso de uma ilegalidade
que permanecia rebelde a essas coerções. E que valorizava a
indisciplina de uma maneira sistematicamente ambígua como a ordem
desordenada da sociedade e como afirmação de direitos irredutíveis.
Todas as ilegalidades que o tribunal codifica como infrações, o
acusado reformulou como afirmação de uma força viva [...]. A ironia
com que o juiz tenta envolver a indisciplina na majestade da lei e a
insolência com que o acusado reinscreve a indisciplina nos direitos

187 Texto publicado em Les cahiers du chemin, nr. 29, em 15/1/1977 (Foucault, 2003).
Desde muito cedo, Foucault pretendia lançar uma antologia dos arquivos de
internamento no Hospital Geral e na Bastilha, da qual o texto referido constituiria a
introdução. Em 1978, o projeto transformou-se no de uma coleção, “Les vies
parallèles”. Em 1982, por sua vez, o material reunido para a antologia (lettres de cachet
com ordens de internamento) deu origem à edição de Le désordre des familles, em
colaboração com a historiadora Arlette Farge (Foucault e Farge, 1982)

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pensar a infância. desusos, usos e abusos em michel foucault

fundamentais constituem para a penalidade uma cena exemplar”


(Foucault, 1987, p. 240-241).
A rebeldia de Béasse poderia, talvez, ter obtido um novo espaço
no curso foucaultiano de 1976, Os anormais. Após lançar mão de
alguns laudos contemporâneos - recurso pouco comum em seus livros
e aulas, mas que lhe dá a oportunidade de designá-los, apelando a
Jarry, como prática de ubuísmo188 -, na aula de 22 de janeiro de 1975,
Foucault explicita as três figuras que, na articulação do século XVIII
com o XIX, constituem, a seu ver, o domínio da anomalia, que as irá
futuramente absorver: o monstro humano, o indivíduo a ser corrigido
e a criança masturbadora. No entanto, a segunda dessas figuras -
também designada, ao longo do curso, como “o incorrigível”
(Foucault, 2001, p. 73), “o inassimilável ao sistema normativo da
educação”, “a criança indócil” (Foucault, 2001, p.371) -, ao contrário
das duas outras e apesar de incessantemente mencionada, não chega a
ser efetivamente analisada189 em Os anormais. Nem por isso esse
rebelde cotidiano é considerado menos importante na genealogia da
anormalidade. Ao contrário, nas palavras, por mais que escassas, de
Foucault a seu respeito, “paradoxalmente, o incorrigível, na medida
em que é incorrigível, requer um certo número de intervenções
específicas em torno de si, de sobreintervenções em relação às técnicas
familiares e corriqueiras de intervenção e correção, isto é, uma nova
tecnologia da reeducação, da sobrecorreção” (p.73). Esse “ancestral do
anormal do século XIX” (p.73), monstro extremamente familiar,
emerge no sistema de apoio que existe entre a família, a princípio, e
depois a escola, a oficina, a rua, o bairro, a paróquia, a igreja, a polícia.
Os embates entre o juiz e Béasse voltam à lembrança, aqui, com
toda a sua intensidade, trazendo à cena a irredutibilidade do menino
como signo de uma certa inflexão no enfoque foucaultiano da infância,
que continuamos tentando enfatizar. Nesta direção, parece propício
um novo retorno à conversa de 1972 entre Foucault e Deleuze. E é na
voz do segundo, uma vez mais, que se apoia nossa argumentação,
quando ele diz: “Se as crianças conseguissem que seus protestos, ou
simplesmente suas questões, fossem ouvidas em uma escola maternal,
isso seria o bastante para explodir o conjunto do sistema de ensino. Na
verdade, esse sistema em que vivemos nada pode suportar: daí sua
fragilidade radical em cada ponto, ao mesmo tempo que sua força

188 O perito psiquiatra aparece, nas palavras de Foucault, como o personagem Ubu, ou
seja, como presença do grotesco na mecânica do poder: a nulidade epistemológica dos
laudos em nada reduz sua força política.
189 A bem da precisão, digamos que certos detalhes aparecem em 22/1/1975 e alguma

análise chega a ser esboçada na última aula (19/2/1975), mediante o caso de Charles
Jouy.

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heliana de barros conde rodrigues; rosimeri de oliveira dias

global de repressão”190 (Foucault e Deleuze, 1979, p. 72). Um pouco


adiante, fazendo eco às considerações de Foucault sobre a evidência
sem disfarces, quase pueril, dos exercícios de poder na prisão, Deleuze
acrescenta: “Não são apenas os prisioneiros que são tratados como
crianças, mas as crianças como prisioneiras. As crianças sofrem uma
infantilização que não é a delas. Neste sentido, é verdade que as
escolas se parecem um pouco com as prisões, as fábricas se parecem
muito com as prisões. Basta ver a entrada na Renault. Ou em outro
lugar: três permissões por dia para fazer pipi” (p.73).
“As crianças são prisioneiros políticos”, dirá ainda Deleuze em
1976, apelando a uma fórmula de Godard (Deleuze, 1992, p. 55).
Foucault insiste menos, talvez, na condenação de qualquer Béasse à
prisão do que na sua incorrigibilidade, esteja ele atrás das grades ou
não. Ou quiçá ambos digam a mesma coisa, isto é, que o modo de ser
das crianças (certas crianças, ao menos) já está aí, sempre presente,
como resistência ou contraconduta, não sendo pois necessário
“prepará-lo” ou, pior que isso, não sendo preciso vê-lo como
ocorrência eventualmente “comprobatória”, a posteriori, de teorias
sapientes sobre a revolta ou a revolução.
É nesse sentido que os anos de 1976/1977 nos soam decisivos
para a inflexão do pensamento de Foucault sobre a infância que vimos
perseguindo. O primeiro volume de História da sexualidade, A vontade
de saber, lançado em 1976191, anuncia que ele dá início a uma série de
seis, e que o terceiro terá por título A cruzada das crianças192. Como
sabemos, o plano será totalmente alterado e esse título, jamais editado
– como no curso Os anormais, nova oportunidade perdida por Foucault
de por o foco de suas lentes na indocilidade infantil?
Talvez não exatamente. Para percebê-lo, cumpre observar, entre
outros textos193, uma entrevista concedida a Bernard Henri-Lévy,
publicada em 1977 em Le nouvel observateur. O entrevistador é um dos
apelidados “novos filósofos”, que insistentemente renegam, e

190 Não se dará destaque, aqui, ao uso da noção de repressão por Deleuze, em
princípio discutível para Foucault. Detalhes desse debate estão na carta enviada por
Deleuze a Foucault em 1976 (Deleuze, 1996).
191 O curso Em defesa da sociedade, ministrado nesse mesmo ano (Foucault, 2002), não

carece de interesse para nossa problematização. Limitamo-nos a dizer, em função do


espaço disponível, que a definição de genealogia como acoplamento entre
documentos nunca lidos e saber das pessoas (aula de 7/1/1976) e a exploração da
genealogia do racismo (aula de 17/3/1976) mereceriam uma apreciação detalhada.
192 O título retoma literalmente o de um romance de Marcel Schwob, datado de 1896 e

editado em português pela Hedra (Schwob, 2011).


193 Sugerimos, na forma de uma espécie de série “anti-sexo”, apta a contribuir com a

inflexão do pensamento de Foucault relativo à infância, os seguintes textos: Voeltzel,


1978; Foucault, 2004a, 2004b, 2010; 2014a, 2014b, 2014c; 2014d; 2015.

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pensar a infância. desusos, usos e abusos em michel foucault

demandam que os demais também o façam, seu passado militante de


esquerda, substituindo-o pelo encantamento com a democracia
neoliberal. A conversa contém, portanto, muitas armadilhas e exige de
Foucault todos os seus dotes de estrategista. Afora esse interesse geral,
entretanto, um momento específico requer atenção. Nele, ao procurar
libertar-se da ordem do discurso de Henri-Lévi, que tenta empurrá-lo
a posições conformistas quanto à sexualidade, afirma Foucault: “trata-
se [...] de fabricar outras formas de prazer, de relações, de
coexistências, de laços, de amores, de intensidades. Tenho a impressão
de escutar atualmente um sussurro “anti-sexo” [...], como se um
esforço em profundidade estivesse sendo feito para sacudir essa
grande “sexografia” que faz com que decifremos o sexo como se fosse
segredo universal” (Foucault, 1979, p. 234-235). O entrevistador lhe
pede, então, sinais desse diagnóstico e, após breve referência a um
livro de Hervé Guibert, La Mort Propagande, no qual “todo o pesado
coeficiente do sexo se volatizou”, sugerindo o fim da “monarquia do
sexo” (p.235), Foucault se volta, ironizando, para as crianças e diz: “a
vida das crianças é sua vida sexual. Da mamadeira à puberdade, só se
trata disso. Atrás do desejo de aprender a ler ou do gosto pelas
histórias em quadrinhos, existe ainda e sempre a sexualidade” (p.235).
Em seguida, numa súbita inversão estratégica, faz uma enfática
sugestão de leitura: “E se eles, afinal de contas, pouco se importassem?
Se a liberdade de não ser adulto consistisse justamente em não estar
dependente da lei, do princípio, do lugar comum – afinal de contas tão
entediante – da sexualidade? Se fosse possível estabelecer quanto às
coisas, às pessoas, aos corpos, relações polimorfas, não seria isto a
infância? [...] Leia o livro de Schérer e Hocquenghem: ele mostra que a
criança tem um regime de prazer para o qual o código do ‘sexo’
constitui uma verdadeira prisão” (Foucault, 1979, p. 235-236).
O livro recomendado chama-se Co-ir. Álbum Sistemático da
Infância194. Seus autores, Schérer e Hocquenghem (1976), não
pretendem compreender a infância, tampouco guiá-la. Abrem o livro
com um prospecto - folheto em que se recomenda uma obra, espetáculo
ou mercadoria -, ou seja, com um convite à cumplicidade. A criação
da mesma requer uma aliança com novelistas que muito falaram da
criança sem se propor a pedagogizá-la, dentre os quais M.Tournier,
Mme.Guizot, H.James, V.Nabokov e Collodi. Através desse recurso, os
autores esboçam uma constelação da infância - termo tomado a Rainer
Maria Rilke, Michel Tournier e Robert Musil -, com o cuidado de

194 Sobre este livro, ver a tese de doutorado de Eder Amaral e Silva, A cruzada das
crianças: considerações sobre a infância à penumbra (Silva, 2016). O autor traduz o
trabalho de Schérer e Hocquenghem e o introduz/analisa de forma magistral.

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heliana de barros conde rodrigues; rosimeri de oliveira dias

deixá-la em adequada penumbra, a fim de que os cúmplices se


conectem e os inimigos não se beneficiem.

considerações finais: alianças, usos e abusos

Em publicação razoavelmente recente, Potte-Bonneville (2011)


nos fala da escrita da resenha como uma “arte impura” e busca
aproximar-se da forma como esta era praticada por Foucault: jamais
uma filiação, um “falar sobre”, um comentário que “autoriza” e
estabelece, simultaneamente, uma “hierarquia entre texto e paratexto”;
ao contrário, sempre que possível, uma aliança, a criação de um “nós”
(p.172-173). Embora Foucault não esteja, na afirmação que acima
transcrevemos, resenhando o livro de Schérer e Hocquenghem,
decerto podemos aplicar ao trecho de sua entrevista com Henri-Lévy
as conclusões de Potte-Bonneville sobre o modo foucaultiano de
resenhar: “reinscrever de preferência o texto que se lê, e aquele que se
escreve, no prolongamento comum de uma ruptura na ordem dos
enunciados” (p. 173); melhor dizendo, reinscrevê-los no plano de
imanência de um pensamento, logo, de algo da ordem da criação.
Na entrevista em pauta, em aliança com Béasse, com Deleuze,
com o livro de Schérer e Hocquenghem e com novelistas como Hervé
Guibert, Foucault se arrisca à novidade; ou melhor, a inserir o regime
de prazer da criança em um plano tal, que o monótono código do
‘sexo’ constituiria, ali, um verdadeiro aprisionamento. Com tal
procedimento, promove uma torção em seu próprio pensamento a
respeito da infância, e passa a vê-la menos como utilidade-docilidade
sob o diagrama benthamiano do que como regime rebelde ao controle
sexualizante-sexualizado dos corpos e da vida, marcado mais pelo
prazer (intensivo) do que pelo desejo (identitário).
Se com isso é fiel ou não às perspectivas de alguns de seus
aliados, é coisa que não nos preocupa muito. Pois o que nos encanta é
a possibilidade foucaultiana de sempre produzir algo inesperado, em
ruptura não somente com supostas constâncias históricas ou
antropológicas – psiquiatria, doença mental, doença, anormalidade,
punição, prisão, delinquência, sexualidade, desejo etc. – , mas,
inclusive, com as presumidas constâncias de seu próprio pensamento.
Sendo assim, se de desuso se trata quanto à infância, ele mesmo o
pratica, divisando para ela, infância, usos e abusos singulares: os de
uma nova ética, os de novos modos de vida, que, talvez
paradoxalmente, façam ressoar os desejáveis perigos de uma relação
parresiástica com a verdade.
Pois nem Béasse nem Foucault, insistimos, temem os vereditos
de qualquer juiz.

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pensar a infância. desusos, usos e abusos em michel foucault

referências

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482
a circularidade entre a atenção cartográfica e a
aprendizagem inventiva.

virginia kastrup
ufrj
virginia.kastrup@gmail.com

introdução

Este texto visa desenvolver algumas ideias discutidas num texto


anterior, onde abordamos o funcionamento da atenção no trabalho do
cartógrafo (Kastrup, 2009). Naquela ocasião, buscamos trazer à cena
um problema ainda pouco discutido no domínio da metodologia de
pesquisa: a atenção. Naquela ocasião, destacamos 4 gestos atencionais
que marcam seu funcionamento: o rastreio, o toque, o pouso e o
reconhecimento atento. Baseados nas ideias de Deleuze, Bergson,
Freud e da pragmática fenomenológica de Depraz, Varela e
Vermersch, buscamos apontar que a atenção do cartógrafo não é
caracterizada pela busca de solução para problemas dados e tampouco
é orientada pelo interesse. É uma atenção ao mesmo tempo
concentrada e aberta, que faz inicialmente uma varredura no campo,
um rastreio sem alvo pré-definido. Podemos chama-la de flutuante,
como sugeriu Freud ao descrever a atenção do analista, ou de uma
atenção espalhada e distraída, que vagueia sem ponto de ancoragem
fixo. Sem piloto, comando ou controle, ela varre o campo até encontrar
algo que, em função do estranhamento gerado, toque a atenção do
cartógrafo e coloque um problema. O reconhecimento automático dá
então lugar à experiência de problematização. Ele então se detém,
pousa a atenção e o tempo cronológico é suspenso - vamos ver o que
está acontecendo. Tal gesto constitui um pouso no movimento, e não
uma pausa do movimento. Segue-se um processo de reconhecimento
atento que, como ressaltou Bergson (1990), opera por circuitos
inventivos, que vão produzindo sentidos num movimento sucessivo
de retomada do problema, que fecha sem se esgotar num único
sentido ou solução.
Os 4 gestos da atenção – rastreio, toque, pouso e reconhecimento
atento – possuem uma única diretriz: o acesso ao plano dos processos
de produção de subjetividade e de objetividade, que Deleuze e
Guattari (1995) denominam de plano coletivo de forças moventes. Este
é entendido como uma dimensão de virtualidade que coexiste com o
plano das formas atualizadas e momentaneamente estabilizadas.
Estamos aqui no coração da cartografia. Frente a outros métodos de
pesquisa-intervenção, a singularidade da cartografia é considerar a

483
virginia kastrup

existência de uma ontologia das forças e dos processos de produção,


que são reiteradamente buscados pela investigação. Daí a formulação
de que cartografar é acompanhar processos, e não representar objetos
e solucionar problemas (Pozzana e Kastrup, 2009).
Entretanto, conforme apontamos (Kastrup, Tedesco e Passos,
2008) uma investigação que não se baseia na política cognitiva da
representação e sim na política cognitiva da invenção não é algo
natural ou mesmo trivial. Ela requer aprendizagem. Frente a tal
colocação, o objetivo do presente texto é discutir alguns aspectos do
processo de aprendizagem da atenção que, envolvida na produção de
uma política cognitiva da invenção, precisa ser corporificada pelo
cartógrafo. Como veremos, trata-se aqui de aprendizagem inventiva,
cabendo analisar suas possibilidades e desafios. Tomando
emprestadas ideias de Daniel Stern, procuraremos mostrar como a
política cognitiva da invenção está presente no bebê, que quando é
deslocada para dar lugar a uma política cognitiva da representação e
recognição, deverá ser reativada pelo cartógrafo. Buscaremos entender
as condições para deixar-se afetar pelo plano coletivo de forças,
suportando e sustentando os problemas emergentes. A atenção deve
ser aprendida e, ao mesmo tempo, é condição para a que a
aprendizagem inventiva aconteça, configurando uma complexa
circularidade. Concluímos que as condições de possibilidade podem
ser criadas pela prática de contato direto com as forças da matéria que
habitam os objetos do mundo e também pela prática mediada por um
professor. Sem garantias ou determinismo, daí pode advir uma
atenção concentrada e aberta e, enfim, o gosto pela experiência de
problematização que caracteriza o trabalho do cartógrafo.

o bebê cartógrafo e o conhecimento pelos afetos

Segundo Daniel Stern (1991) o bebê possui um modo de atenção


peculiar. Com um mês de idade ele fica fascinado diante de um raio de
sol que se projeta na parede. O raio de sol atrai sua atenção de modo
exigente e continuado, atestando que este bebê não vive mergulhado
num devaneio vago, mas antes numa condição de ativa receptividade.
As grades do berço retas, alongadas e finas e com um ritmo rápido e
regular também atraem sua atenção. Stern (1992) entende o ritmo
como uma propriedade perceptiva amodal, atravessando diferentes
modalidades sensoriais como a visão, a audição e o tato. A percepção
amodal não é considerada aprendida, mas resulta da experiência
direta. Funciona como uma espécie de base ou fundo da experiência
perceptiva, antecedendo a aprendizagem que envolve modalidades
sensoriais específicas. A percepção em sua dimensão amodal capta
intensidades e padrões temporais, passíveis de serem extraídos de
qualquer modalidade sensorial. O bebê é especialmente sensível às

484
a circularidade entre a atenção cartográfica e a aprendizagem inventiva.

qualidades amodais. A atenção do bebê cartógrafo percorre o plano


movente de intensidades, forças e afetos de maneira concentrada e
aberta, passando permanentemente por modulações e sendo pouco
aderente a um foco estável. As propriedades amodais têm um papel
preponderante na propensão e na direção da atenção do bebê, o que,
neste aspecto, atesta um funcionamento semelhante à atenção do
pesquisador cartógrafo adulto.
Stern descreve experiências intensivas que ocorrem
cotidianamente nos primeiros anos de vida. Inventando um certo
modo de escrever, utiliza recursos da linguagem poética com vistas a
acessar a experiência do bebê. Eis o episódio que ele denomina
“Tempestade de fome”:
Uma tempestade ameaça irromper. A luz torna-se
metálica. A marcha das nuvens no céu rompe-se.
Pedaços do céu voam em diferentes direções. O vento
ganha força, em silêncio. Existem sons inquietos, mas
nenhum movimento. (…) O mundo está desintegrando-
se. (…) A inquietação cresce. Espalha-se a partir do
centro e se transforma em dor. É no próprio centro que
se fortalece e se transforma em ondas pulsantes. As
ondas pulsantes crescem para dominar toda a
tempestade. O mundo todo está uivando. Tudo explode
e é arremessado e então desaba e precipita-se de volta
em um nó de agonia que não pode durar – mas dura.
(1991, p.36-37)
Com a chegada tranquilizadora da mãe, o cenário afetivo muda
completamente:
De repente o mundo é envolvido por algo. Torna-se
menor, mais lento e mais agradável. (…) Tudo está
mudando. (…) Em algum lugar, entre os limites e o
próprio centro da tempestade, há uma atração, uma
organização das coisas. Dois ímãs atraem-se
mutualmente, depois se tocam e se prendem num
abraço. (…) O novo ritmo muda para uma cadência
calma e suave. (…) Tudo é refeito. Um mundo diferente
está despertando. A tempestade passou. (1991, p.40-41)
Nas descrições acima destacam-se referências às múltiplas
modalidades sensoriais. A visão não está numa posição hegemônica,
no comando da cognição, mas está posicionada ao lado dos demais
sentidos. Há passagens, hibridismos, transversalidades no plano das
intensidades - “O vento ganha força, em silêncio”, “Tudo explode e é
arremessado”, “O novo ritmo muda para uma cadência calma e
suave”. O caráter de transversalidade faz com que Claire Petitmengin
(2007), na esteira de Stern, proponha a ideia de uma dimensão
transmodal da experiência, referida como fonte do pensamento. Para
Deleuze (2007) o ritmo possui lugar central na experiência com a arte,

485
virginia kastrup

operando repetidas mudanças de nível entre as formas e as forças-


afetos e respondendo pela passagem de um nível a outro.
Segundo Stern (2007) a atenção dos bebês é também capaz de
detectar correspondências sutis entre velocidades e intensidades de
seu próprio comportamento e do comportamento de outras pessoas,
estabelecendo conexões e sintonias neste plano. Com Yves Citton
(2014) chamamos este fenômeno de atenção conjunta. De acordo com
Citton, como de resto para o próprio Stern, tal fenômeno não se limita
à díade mãe-bebê, mas prossegue na vida adulta. A atenção conjunta
possui quatro características distintivas: a co-presença, a
reciprocidade, o esforço de sintonia afetiva e as práticas de
improvisação (Citton, 2014). Como primeira característica, a atenção
conjunta ocorre numa situação de co-presença, onde a atenção do
outro afeta a orientação de minha própria atenção e vice-versa. É uma
atenção presencial e em tempo em tempo real, que envolve um
número limitado de pessoas que se afetam mutuamente, como na sala
de aula, em espetáculos artísticos ao vivo, em jogos e esportes
coletivos e encontros diversos. A atenção conjunta é também um
processo marcado pela reciprocidade, que envolve a articulação eu-
outro e também objetos e situações do mundo, todos conectados num
plano coletivo de forças e afetos pré-individuais. Ela depende do
estabelecimento de uma sintonia afetiva e também de práticas de
improvisação. A atenção conjunta é cartográfica, inventiva e
processual, conectando os afetos de vitalidade entre pessoas e coisas,
num plano coletivo de forças.
O conceito de atenção conjunta coloca em evidência a dimensão
cognitiva do afeto. Ao tratar da vida afetiva em seus primórdios, Stern
formula os conceitos de afetos de vitalidade e de sintonia afetiva.
Ambos remetem ao aspecto dinâmico da afetividade, àquilo que não
pode ser reduzido às categorias tradicionais do afeto como raiva,
alegria, e tristeza, remetendo antes ao ritmo, velocidade e intensidade.
É através dos afetos de vitalidade que o bebê experimenta a si mesmo
e aos outros nos seus primeiros meses de vida (Stern, 1992, p.141). O
episódio “Tempestade de fome” é revelador do que é ter uma
experiência permeada de afetos de vitalidade. Vemos no exemplo
citado uma forma bastante precoce de esforço de sintonia afetiva, que
é um processo de conexão dos afetos de vitalidade entre a mãe e o
bebê, fundamental para a compreensão da atenção conjunta como
operador cognitivo nos processos de produção de subjetividade. Não é
uma conexão dada e garantida, mas que requer esforço para que a
sintonia aconteça e se mantenha no contexto de uma dinâmica afetiva
permeada por variações sutis.
Neste contexto, a atenção conjunta é fundada em trocas não
verbais. O olhar mútuo é uma experiência de sentir os afetos de outra
pessoa, caracterizando uma situação de envolvimento recíproco. A

486
a circularidade entre a atenção cartográfica e a aprendizagem inventiva.

atenção conjunta é marcada então por modulações rítmicas e um


amplo espectro de variações afetivas que vão do choro ao sorriso. Com
nuances e extremos, o dueto de rostos tem um fim em si mesmo. Mãe
e bebê brincam numa coreografia cheia de variações. Tocam e são
tocados por “correntes invisíveis”. Os altos e baixos têm indícios sutis:
mudanças na respiração, na acuidade do foco, pequenos movimentos
dos olhos e da boca. Trata-se de uma dinâmica afetiva que é dotada,
de modo indissociável, de uma inclinação cognitiva de ambas as
partes. O olhar mútuo é simultaneamente troca afetiva e processo de
conhecimento.
Tal exemplo evidencia que, aquém das palavras e imagens,
existem pequenos eventos, da ordem de segundos, que são
importantes no processo que os conecta. A maneira como se
desenvolve um sorriso num rosto, o modo de mudar de posição numa
cadeira, um elevar de sobrancelhas ou o desvio de um olhar são
exemplos de tais movimentos. Eles são descritos como eventos de
pequena escala e Stern (2010) afirma que é nessa pequena escala que
vivemos, pois ela constitui a base de nossa experiência dos outros e a
percepção de sua vitalidade.
Podemos dizer que tais eventos não são apenas pequenos em
tamanho, mas micro, no sentido em que Deleuze e Guattari (1995)
falam de movimentos micropolíticos que produzem subjetividade. A
tarefa do cartógrafo é percebê-los, captar um plano de forças e não
apenas formas diminutas. Mãe e bebê se reúnem nesta tarefa: se
encontram, se conhecem e partilham conhecimentos por meio da
atenção cartográfica. Para Stern tais fenômenos estão presentes desde
a respiração até gestos de maior amplitude. Todos os gestos, mentais e
físicos, têm um contorno temporal quando de sua realização.
Intensidade e duração desenham curvas com suas microvariações –
surgir, evanescer, aceleração, ponto culminante, entristecer,
adormecer, despertar da consciência.
Cabe notar que o dueto mãe-bebê não consiste num jogo de
mímica ou num mimetismo de formas, mas num jogo de alternâncias e
variações de intensidades, onde o sorriso emanado por cada um é
tanto causa quanto resultado do sorriso do outro. Com o conceito de
sintonia afetiva Stern (1992) procura dar conta do fato que mãe e bebê
experimentam padrões de alternância e revezamento, incluindo
momentos de iniciação conjunta e de variação mútua. Não são
experiências de projeção e de identificação, tampouco um jogo de
espelhos. Jogos de sintonia afetiva são efetivamente práticas de
improvisação. A sintonia afetiva ocorre pela conexão de afetos de
vitalidade, percebendo no comportamento suas forças dinâmicas.
Não há uma equivalência exata entre os estados afetivos de um e
de outro em uma situação de sintonia afetiva, mas inclui
improvisação, quebras, tensões, colapsos, surpresas e assimetrias,

487
virginia kastrup

convocando um esforço de sintonia que não está jamais garantido. A


atenção, vigilância e o engajamento se modificam, na medida em que
os acontecimentos se produzem. Em resumo, a sintonia afetiva está
longe de ser um estado de equilíbrio estável e este é um dos pontos
que confere o caráter inventivo da atenção conjunta.
Em resumo, podemos dizer que a superação da dicotomia
cognição-afeto remete ao fato de que a mãe e o bebê, por meio de jogos
e brincadeiras, trocam afetos, aprendem a estar com o outro e
inventam formas de se comunicar. Como dissemos, tal aprendizado
não é espontâneo nem garantido, mas requer esforço e engajamento. A
atenção aos micromovimentos corporais e mentais, físicos e intensivos,
bem como o esforço de sintonia afetiva resultam num conhecimento
mais ou menos implícito de estar com uma pessoa.
Segundo Stern (1991) o surgimento da linguagem muitas vezes
separa o conhecimento dos afetos. Por exemplo, narrativas familiares
podem concorrer para produzir em uma pessoa um pensamento e
uma fala abstrata, desencarnada e intelectualizada sobre sua própria
história de vida. Os efeitos nefastos de tal separação mostram-se
frequentemente na clínica. No nosso caso, interessa analisar os efeitos
da dissociação do conhecimento em relação aos afetos e ao corpo
sensível na investigação e na pesquisa.

a circularidade entre aprendizagem e atenção cartográfica

A prática do método da cartografia convida a uma reativação da


dimensão afetiva do conhecimento e da potência dos afetos na
colocação dos problemas da pesquisa e nas demais etapas, como a
análise de dados e a validação (Passos, Kastrup e Escóssia, 2014). Vai
ser preciso reaprender a estar atento com ativa receptividade ao plano
de forças, ao que nos toca, aos enigmas, ao que não cabe nos esquemas
recognitivos, ao que excede a representação. Trata-se aqui de
aprendizagem inventiva (Kastrup, 2007; Kastrup, Tedesco e Passos,
2008). Lembramos que o que caracteriza a aprendizagem inventiva é
não se limitar à solução de problemas, mas incluir a invenção de
problemas. Aprender a problematizar, eis o primeiro desafio do
cartógrafo. E isto só se cumpre se atentamos às pontas soltas, se
conseguimos barrar o automatismo da recognição. Suspender o gesto
de prestar atenção atrelado à recognição e atentar ao que coloca
problema implica desapegar-se de significados prontos, crenças e
preconceitos.
Por um lado, a atenção cartográfica é condição para a colocação
de problemas, que é própria da aprendizagem inventiva. Por outro, é
preciso haver uma aprendizagem da própria atenção. O caráter
circular de tal situação poderia suscitar perguntas acerca da formação
do cartógrafo – É possível ensinar a atenção cartográfica? Por onde

488
a circularidade entre a atenção cartográfica e a aprendizagem inventiva.

começar? Como produzir um corpo sensível e atento, necessário ao


trabalho do cartógrafo?
Cabe afirmar, de saída, que colocar o problema da atenção como
o de um sujeito que presta atenção a um objeto ou situação é uma
posição limitada e mesmo equivocada. Yves Citton (2014), pensando a
ecologia da atenção inspirado nas ideias de Félix Guattari, Gilbert
Simondon e Daniel Stern, recusa o modelo individualista e aponta que
nunca estamos sozinhos quando mobilizamos nossa atenção ou
prestamos atenção a alguma coisa. A atenção é sempre constituída por
vetores heterogêneos e coletivos – materiais, midiáticos, tecnológicos,
políticos, econômicos e estéticos. A atenção não cabe no modelo da
representação, que supõe a relação de duas realidades ou polos pré-
existentes: o sujeito e o objeto. Ao invés de concebê-la como um
processo individual, Citton coloca o problema da potência
individuante da atenção e de sua participação nos processos de
subjetivação.
Devemos reconhecer que não é possível ensinar teoricamente
alguém a ter a atenção concentrada e aberta, sintonizada no plano de
forças e afetos. A concentração não deve ser confundida com a
focalização, com o investimento atencional num foco pré-definido e a
abertura tampouco se aproxima da pura dispersão. Há um tônus
atencional a ser permanentemente calibrado, evitando os extremos de
tensão e de relaxamento. Embora façamos um esforço para descreve-
la, tais sutilezas não podem efetivamente ser ensinadas por um
professor que transmite informações. O professor pode, todavia, atuar
como um mediador, acompanhando a prática do aprendiz de
cartógrafo. Não há um ponto de partida pré-definido para
desenvolver uma micropolítica atencional cartográfica. Para aprender,
é preciso praticar. Começar pela prática é começar pelo meio, num
corpo a corpo com o campo, habitando o território da pesquisa.
Segundo Depraz, Varela e Vermersch (2006) a atenção é como um
músculo que se exercita. Ela se configura, encorpa e adquire tônus
com a prática regular. A formulação dos autores advém da observação
da prática de meditação, mas pode ser certamente ampliada para a
prática da pesquisa cartográfica.
Deleuze (1988) afirma que nossos verdadeiros mestres não são
aqueles que dizem “façam como eu”, mas aqueles que afirmam “faça
comigo”. Quando praticado pelo professor, o exercício da
problematização pode ser propagado e, por contágio, chegar a ser
compartilhado pelo aluno. É curiosa também a comparação que
Deleuze faz, ao longo de sua longa entrevista a Claire Parnet, entre
dois professores de filosofia que conheceu no Liceu onde estudara:
Merleau-Ponty e Monsieur Viale. Os alunos eram encaminhados
aleatoriamente para as diferentes turmas e o professor de filosofia de
Deleuze era Monsieur Viale. De Merleau-Ponty, Deleuze guarda a

489
virginia kastrup

lembrança de seu olhar melancólico, olhando de longe os alunos


barulhentos brincando no pátio da escola, durante o recreio. Talvez
não tivesse interesse pelo seu trabalho, pelas aulas, pelos alunos,
buscando se evadir para outro lugar. Talvez ele estivesse pensando: o
que estou fazendo aqui, meu deus? De Viale, Deleuze lembra com
emoção, gostava muito dele. Era mais velho, falava baixo, mas gostava
muito de conversar. Ambos moravam perto, tomavam o mesmo
caminho na saída da escola e iam conversando animados.
Estabeleceram uma forte relação. Independente da formação
intelectual de cada um dos dois, foi Viale que fez com que se
confirmasse em Deleuze o desejo do pensamento e o interesse pela
filosofia. A atenção conjunta, ou seja, a presença, a sintonia afetiva, a
reciprocidade e práticas de improvisação criou condições e abertura
para a criação.
Pensar e criar movidos pelos problemas que colocamos, nos leva
mais uma vez ao âmago da cartografia. O método da cartografia se
define pelo acompanhamento de processos inventivos que ocorrem no
plano coletivo de forças, em permanente tensão com as formas
constituídas (Escóssia e Tedesco, 2009). Não há um curso ou conjunto
de disciplinas e textos que deem conta da formação do cartógrafo. Sua
formação é o mundo (Pozzana, 2014). No entanto, o acompanhamento
de seu próprio processo de aprendizagem, por meio de um professor
mediador, se apresenta como uma estratégia possível, uma dobra
promissora. A formação acompanhada surge então como uma espécie
de cartografia da cartografia. Ensinar se torna aqui acompanhar um
processo de aprendizagem cujo ponto de chegada é marcado pela
imprevisibilidade. Colocar o problema, sustentar o problema,
desenhar e redesenhar o campo problemático.

o gosto pela problematização

Concluímos que o problema que enfrentamos – o lugar da


atenção na aprendizagem do cartógrafo e, ao mesmo tempo, o lugar da
aprendizagem da própria atenção – traz consigo a marca da
complexidade. Na formação, há uma afetação recíproca e inventiva da
aprendizagem e da atenção.
Para fechar momentaneamente a presente discussão - que segue
conosco, nos forçando a pensar - vale lembrar o trabalho de Antoine
Hennion sobre a pragmática do gosto. No campo da aprendizagem,
Hennion se dedica a investigar como viemos a gostar de alguma coisa
que não faz diretamente parte de nossa formação profissional – o
gosto pela música, pelo vinho ou por um esporte, por exemplo. Sua
posição se distingue da abordagem sociológica, que enfatiza o caráter
socialmente construído e passivo dos objetos do gosto – imitação dos
próximos, jogos de identidade e diferenciação, instituições, ritos e

490
a circularidade entre a atenção cartográfica e a aprendizagem inventiva.

crenças. Em seu lugar, propõe uma concepção pragmática do gosto,


colocando relevo sobre as práticas concretas, que colocam
repetidamente à prova o próprio gosto, por meio de análises sutis das
propriedades dos objetos que, longe de serem dadas, devem ser
desdobradas para que possam ser percebidas. Hennion reconhece a
existência de vetores coletivos em sua produção, mas enfatiza o
trabalho envolvido para tornar-se sensível às coisas. Articulando
aprendizagem e atenção, propõe analisar o gosto como um trabalho
sobre o vínculo, para se tornar sensível às coisas, a seu corpo e a si
mesmo. Para isso, coloca a reflexividade no centro da discussão.
Hennion aborda especialmente o gosto por atividades não
profissionais, como o dos amadores, amantes ou apaixonados. No
entanto, sua argumentação pode lançar luz sobre a circularidade entre
a aprendizagem inventiva e a atenção do cartografo. Em ambos os
casos, não se trata de seguir um plano e chegar a um ponto pré-
definido, mas de experimentar o processo. O mais importante é a
própria prática. Importam os gestos, as conexões, as passagens, os
acoplamentos do corpo com as sutilezas que se desdobram e emanam
da matéria. Outro ponto de aproximação é a importância da
preparação, da obstinação, do exercício. Há em ambos um certo prazer
no desmanchamento do si mesmo em proveito do gesto e a
concentração é a palavra-chave. O gosto não se explica pelas pessoas
ou pelas coisas. É a prática reiterada que faz surgir, simultaneamente,
num movimento que podemos denominar de co-engendramento, as
variações infinitas da matéria e a sensibilidade atenta do
amador/pesquisador. Tudo depende dos procedimentos, das
circunstâncias, de poder perder tempo e também do apoio incerto na
observação feita pelos outros. Tudo isso concorre para uma
experimentação aberta, para sentir e se sentir.
Analisando o caso do vinho, Hennion observa que há uma
pequena nuance, que faz toda diferença, entre servir uma taça para
quem não dá importância e para quem é um apreciador da bebida. O
primeiro toma a taça, dá um gole e continua a conversa. O segundo
tem um tempo de parada, caracterizado por um leve movimento dos
lábios. Este pequeno gesto introduz uma importante diferença, no
sentido em que desperta uma atenção concentrada e uma presença
mais forte do vinho – cada qual reforça a outra, sem que haja uma
causa primeira. Neste momento, se estabelece uma leve distância para
com o objeto e para consigo mesmo. Abre-se então um parêntese, uma
suspensão. A atenção se abre e deixa que cheguem as forças da
matéria. Trata-se de um contato aberto e interrogativo. Olha! Sente!
Hennion denomina momento de reflexividade essa parada que muda
tudo. O gosto é, neste sentido, uma atividade reflexiva.
Podemos dizer que, tendo em conta a circularidade entre a
aprendizagem e a atenção na pesquisa cartográfica, a formação do

491
virginia kastrup

cartógrafo depende do exercício continuado desse momento, por meio


de um percurso que se apoia sobre a experiência passada, mas que é
diferencial e diferenciante. A linguagem tem por certo um papel, mas
de modo algum pode dominar o ensino e a aprendizagem. Não se
trata também de defender a prática em detrimento da teoria. Dar aula
é uma prática, ler um texto é uma prática. Todavia, a linguagem não
pode jamais substituir o corpo a corpo com o campo. Cabe inventar
espaços abertos e um tempo com pausas para o cultivo da experiência
atenta, para que a aprendizagem inventiva possa ganhar corpo e para
que, em última análise, possa advir o gosto pela problematização na
pesquisa de campo. Com isso, já teremos avançado bastante.

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493
494
arquipélago afro, indígena, popular
(des)colonialidade e insurgência zapatista: alternativa
pedagógica e pensamento de fronteira

cheron zanini moretti


unisc
cheron.moretti@gmail.com

introdução

Os ladinos e os ricos fazem gozação de nós que somos


mulheres indígenas por nossa maneira de vestir, de falar
a nossa língua, por nossa forma de rezar e de curar e por
nossa cor, pois somos a cor da terra que trabalhamos.
[...] Nós, mulheres indígenas, não temos as mesmas
oportunidades que os homens, que têm direito de
decidir tudo. Só eles têm direito à terra [...] e como não
somos seres humanos, sofremos pela desigualdade.
Toda esta situação nos foi ensinada pelos maus
governos. Nós, mulheres indígenas, não temos boa
alimentação, não temos uma moradia digna, não temos
nem um serviço de saúde e nem estudos. Não temos
possibilidades de trabalho, assim, sobrevivemos à
miséria, esta pobreza é pelo abandono por parte do
governo que nunca fez caso de nós indígenas e não tem
nos levado em consideração, tem nos tratado como uma
coisa qualquer. [...]. Por isso nós decidimos organizar a
luta como mulheres zapatistas. (ESTHER, 2001, p. 268).
Ao dirigirem-se, em longa marcha, em direção à Cidade do
México, em março de 2001, o movimento campesino indígena
zapatista fez a “tradução” entre os seus objetivos (o reconhecimento
da cultura e dos direitos indígenas) e as suas práticas (autonomia
comunitária e “nosotridad”) e, os objetivos e as práticas de outros
movimentos sociais mexicanos. A consubstancialidade das opressões
de classe, raça/etnia e gênero estão presentes no discurso da
Comandanta Esther, ao denunciar a sobrevivência à miséria e ao
abandono, e ao anunciar a organização de sua própria luta como
mulheres zapatistas.
Para os/as indígenas de origem maia, existem dois tipos de
sociedade: a dominante e a comunitária. No primeiro, as pessoas
desejam ser livres das demais e para si mesmas- a sociedade que
hierarquiza; no segundo, a comunidade as faz livres para os demais e
de si mesmas- a sociedade que horizontaliza. A experiência campesina
indígena de Chiapas, a de organizar-se em um movimento de
libertação que implica também a necessidade de uma estrutura militar,
busca na vida comunitária construir a sua autonomia. Um movimento

497
cheron zanini moretti

com esta magnitude não acontece por acidente ou por um simples


“desajuste passageiro” da sociedade mexicana- ou latinoamericana,
mas passa pela História reconstituída “desde abajo” e a possibilidade
de mudar a situação-limite195 a que se encontra.
De acordo com Sousa Santos (2010), a ideia de que o mundo é
mais amplo do que a compreensão ocidental de mundo; de que a
diversidade do mundo é infinita e que por isso, há diferentes formas
de pensar, de sentir (como, as de sentir pensando, de pensar sentindo) e
de agir; de que existem diferentes formas de relacionamentos entre
humanos e não-humanos, e com a natureza; assim como, de que
existem diferentes concepções de tempo, de organização da vida
coletiva, compõem um conjunto de premissas para que se
desenvolvam epistemologias do sul. Esta ideia nos leva a da existência
de uma epistemologia e uma pedagogia que se inscrevem nos marcos
descoloniais do poder, do ser e do saber/conhecimento ou,
simplesmente, da libertação humana.
Ainda para Sousa Santos (2010), as epistemologias do sul têm como
referência a sociologia das ausências196 e a sociologia das
emergências197 que tentam, tanto uma como a outra, nutrir as ações
coletivas para a transformação social. Para tanto, considera que “o
elemento subjetivo da sociologia das ausências é a consciência
cosmopolita e o inconformismo ante o desperdício da experiência.” E,
como elemento subjetivo da sociologia das emergências, “a
consciência emancipatória e o inconformismo ante uma carência cuja

195 Situações-limites correspondem ao estado de impotência ante a imersão a que se


encontram os sujeitos em sua realidade, sem condições de compreender as
contradições existem e sem poder agir para a sua mudança. Paulo Freire é a principal
referência para a apreensão do termo. Indica-se a consulta do verbete situações limites
(OSOWSKI, 2018).
196 A sociologia das ausências procura demonstrar que o que não existe é produzido

ativamente como não existente, como algo não credível, descartável, invisível à
realidade. Mais precisamente, é isto que reduz as possibilidades do tempo presente se
apresentar como alternativa porque ele está “contraído”. “O objetivo desta sociologia
é transformar objetos impossíveis em possíveis e com base neles, transformar as
ausências em presenças” (SANTOS, 2010, p. 102).
197 A sociologia das emergências procura diminuir o futuro para poder viabilizar o

ainda-não, o inesperado e as possibilidades “outras”, emergentes no tempo presente.


“É a investigação das alternativas que cabem no horizonte das possibilidades
concretas [...]. Cuidar do futuro é imperativo porque é impossível blindar a esperança
contra a frustração, o advento do niilismo [...]. A sociologia das emergências atua
tanto sobre as possibilidades (potencialidade) como sobre as capacidades (potência)”.
(SANTOS, 2010, p. 118).

498
(des)colonialidade e insurgência zapatista: alternativa pedagógica e pensamento ...

satisfação está no horizonte de possibilidades.”198 (SANTOS, 2010, p.


118). Assim, conforme essa perspectiva, a primeira move-se no campo
das experiências sociais enquanto a segunda, no campo das
expectativas sociais. No movimento zapatista a dialética entre a
emergência e a ausência é traduzida199 em resistências contra
hegemônicas. Dessa forma, essas epistemologias e pedagogias partem
de “outras histórias”, como as que se encontram na cotidianeidade
nas/das comunidades zapatistas, as “historias desde abajo”.
Nesse trabalho, buscamos associar a experiência da resistência
zapatista, que também é de criação, com aspectos pedagógicos e
epistemológicos. Aqui, introduzimos o que entendemos por
“alternativas”. Para, em seguida, problematizar o encontro tenso entre
a colonialidade e a insurgência zapatista como “pensamento de
fronteira”, em especial, das mulheres zapatistas.

a experiencia zapatista como alternativa pedagógica

A experiência campesina indígena de Chiapas que originou o


“neozapatismo” tem como um de seus principais referentes a
Conquista e o processo colonial empreendidos a partir de 1492, ou
seja, a história de dominação que dela decorre. No entanto, pode-se
afirmar que a trajetória da educação autônoma rebelde zapatista tem
como ponto de partida o modo de vida e as tradições, a organização
do trabalho diário, a estrutura política e os seus conflitos produzidos
no próprio território camponês-indígena. Para o zapatismo, faz mais
sentido falar em uma educação rebelde e autônoma que, assim como a
educação do campo do Movimento do Trabalhadores Rurais Sem

198 Podemos fazer uma relação, aproximação por assim dizer, destas sociologias

insurgentes com a educação, especialmente com a ideia de inédito viável de Paulo


Freire. Para o educador, o inédito-viável é uma palavra-ação rigorosa e “expressa os
projetos e atos das possibilidades humanas” (FREIRE, 2010, p. 224), também uma
categoria que traz em si a possibilidade de realização da utopia e a crença no sonho
coletivo “a serviço do ser humano que existe em nós seres humanos” (FREIRE, 2010, p.
226). De acordo com esta compreensão, “a realização da utopia da humanização, o
resgate do ser mais, ou seja, a recuperação da condição ontológica subalternizada pela
epistemologia dominante” (STRECK; ADAMS; MORETTI, 2013, p.386).
199 Entende-se por tradução o trabalho que visa esclarecer aquilo que une e aquilo que

separa os diferentes movimentos e as suas diferentes práticas de maneira que se


percebem quais são as possibilidades e os limites de agregação ou articulação entre
eles. (SANTOS, 2010). No entanto, compreendemos também que a tradução se dá na
relação dialética entre as emergências e as ausências situadas historicamente. De acordo
com Boaventura de Sousa Santos “o trabalho de tradução é decisivo para definir, em
concreto, em cada momento e contexto histórico, quais as constelações de práticas
com maior potencial contra-hegemônico” (2010, p.127)

499
cheron zanini moretti

Terra (MST), no Brasil, se realiza no interior das relações onde se


confrontam interesses antagônicos, marcados por práticas
contraditórias daqueles que, na medida em que se organizam, lutam,
refletem e se reorganizam, vão constituindo uma consciência de
classe, ou ainda, de consubstancialidade entre opressões e exploração.
O inédito não se encontra propriamente na aparência do
cotidiano, mas no sentido novo que seus sujeitos lhe conferem ao
experimentar as lutas e as resistências. “É a experiência que excluídos e
marginalizados adquirem a partir de sua presença no campo social e
político – de seus interesses, de sua vontade de participação, de seus
direitos e práticas – que formam a História” (ARELLANO, 2002, p. 17).
A experiência zapatista aponta para a existência de uma
pedagogia que está associada à tomada de uma postura ativa na
revolução social total em que, segundo McLaren, “agir e conhecer são,
indelevelmente, fundidos de tal forma que o objeto do conhecimento
é, irrevogavelmente, formado pelo ato do exame. Isto é, o mesmo ato
de examinar (coletivo e dialógico) forma o – e é formado pelo – objeto
sob investigação” (2001, p. 186). O sujeito desta pedagogia insurgente
é sempre um sujeito histórico em formação (McLAREN; DE
LISSOWAY, 2004). São sujeitos que expressam uma determinada
identidade coletiva, o que pressupõe “[...] un horizonte histórico
común y la definición de lo próprio –el nosotros- en relación de
oposición a lo que se reconece como ajeno- los otros [...] el colectivo,
lejos de ser un agregado de indivíduos, se convierte en un espacio de
reconocimiento común que transciende a cada uno de ellos [...]”
(ZEMELMAN; VALENCIA, 1990). No caso zapatista, esta
transcendência se materializa naquilo que se vive e naquilo que se
percebe como experiência da opressão exercida pela hierarquização do
poder, do ser e do conhecimento como colonialidade e as insurgências
pedagógicas.
O sujeito coletivo, aqui em relevo, possui uma caminhada de 34
anos, sendo 10 deles vividos na clandestinidade. Ele é considerado o
primeiro a contestar o sistema-mundo (imperial, colonial, patriarcal) e,
em nosso novo século, foi seguido por uma onda de manifestações de
massa ao redor do planeta que se revigoraram, nesta década, com a
intensificação da convergência de crises (financeira e econômica,
energética e alimentar, política e social). As suas relações externas se
baseiam, para além do apoio da sociedade civil, em um
internacionalismo político renovado pelo rompimento de seu silêncio,
ao longo do ano de 2013. Porém, a sua força encontra-se nas
comunidades autônomas, bases de apoio zapatista, cuja cosmovisão e
cosmovivência maia são algumas das justificativas para a resistência.
Seu projeto político está articulado com processos educacionais que
não se encerram na criação de um sistema de educação autônomo e
rebelde alternativo ao do estado.

500
(des)colonialidade e insurgência zapatista: alternativa pedagógica e pensamento ...

Em um encontro realizado durante a Primeira Escolinha Zapatista:


a liberdade segundo @s zapatistas200, um dos promotores da educação201-
assim, preferem se autodesignar, fala sobre o processo de reeducação
dos/das comunidades, em especial, da sua autonomia:
[...] um processo de reeducação, reconstruir para sobreviver. A
conquista da liberdade não foi nada fácil [...]. A exploração nos exigiu
nos levantarmos, tomarmos as armas, dispostos a matar e a morrer
pela liberdade [...]foi o que aconteceu em 1994: Já Basta, por tanta
injustiça [...]. Estamos livres para a autonomia e o autogoverno, mas é
necessário que nosotros a construamos e não os de fora [...] os
zapatistas já não são manipulados pelo mau governo [...]. Livre para
propor, analisar, estudar, discutir e decidir; faz falta conquistar a
liberdade no povo mexicano, mas se vocês organizam [...]. Há uma
liberdade para os ricos e para os empresários que nos fazem acreditar
em uma liberdade enganosa que não opina e não decide. Enquanto
eles estão impondo as leis aos trabalhadores e operários do México”.
(Promotor da Educação A, 2013)202.
Segundo os e as zapatistas, a educação acontece no coletivo e
está em todos os lugares e ao mesmo tempo porque “educação é a
própria comunidade”. Assim, “não há um professor ou uma
professora, mas há sim um coletivo que ensina, que mostra, que
forma, e nele e com ele a pessoa aprende e, por sua vez, ensina”
(MARCOS, 2014g). Na perspectiva crítica, desde o nosso lugar no
mundo, a denominaríamos de educação dialógica.
Considerando a colonialidade como feridas abertas de um
processo de dominação e exploração, a libertação não significa
somente a “expropriação dos expropriadores”. De acordo com Zibechi
(2015) e Freire (2005) a superação da situação desumanizante não
acontecerá pela reprodução “da ordem colonial” do colonizador pelo
colonizado. Por isso, a importância e a grandeza da tarefa dos
oprimidos/colonizados por conquistar a sua humanidade ao libertar a
si e aos opressores/colonizadores (FREIRE, 2005). Essa perspectiva,
permite aproximarmos o processo de libertação do oprimido à

200 A Primeira Escuelita Zapatista, la libertad según l@s zapatistas foi realizada em
agosto de 2013, em território autônomo zapatista, no Estado de Chiapas, México.
Espaço de aprendizado do qual participei como estudante convidada.
201 O promotor e a promotora da educação é um companheiro ou companheira

campesina que tem de prestar contas ante um Comitê de Educação e, também, para a
assembleia comunitária que é onde se nomeia e se decide por oferecer-lhe a confiança,
o avalia e, se for necessário, é a instância que o pode destituir de suas funções
(BARONNET, 2011).
202 No momento em que estava sendo realizada a Escolinha Zapatista, se debatia a

reforma trabalhista no Congresso Mexicano. Anotações do diário de campo. Caracol


III, La Garrucha, 12 de agosto de 2013.

501
cheron zanini moretti

dimensão histórica do segundo tipo de sociedade, a comunitária, da


qual os/as zapatistas trabalham para (re)construir, aquela que os/as
faz livres para os/as demais e de si mesmas.
A libertação, nesse sentido, compreenderia a construção de
alternativas pedagógicas, mais amplas que os espaços de experiências
escolarizadas. No caso zapatista, compreende um conjunto de sistemas
que tomem em conta a ancestralidade maia, a vida comunitária, a
experiência da organização da sua insurgência frente ao processo de
colonização e da expansão capitalista.
De acordo com Orozco Fuentes (2013) alternativa corresponde a
uma categoria analítica sobre o discurso pedagógico, entendido como
leitura da realidade educativa, e para uma pedagogia compreendida
como uma disciplina comprometida com uma educação como um bem
social para a vida democrática. Em nossa perspectiva, incluiria
analisar a própria experiência pedagógica em suas múltiplas
dimensões: o vivido e o percebido na relação dialética entre a ação e a
reflexão. Para as pesquisadoras Gómez Sollano, Hamui Sutton e
Corenstein Zaslav, alternativa corresponde a uma inquietude, a uma
busca frente a uma dada situação para criar melhores condições de
vida: “una alternativa es algo más que una creación para el plazo corto
o mediano: más bien responde a la idea de proyecto de largo alcance”
(2013, p.43-44). As alternativas nascem das necessidades, experiências,
expectativas em relação aos inéditos viáveis, para novamente nos
aproximarmos de Paulo Freire. Assim,
[...] lo pedagógico alternativo puede surgir al margen de lo
hegemónico como oposición, resistencia y ruptura con éste; o bien,
puede producirse dentro de lo instituido; puede derivarse del discurso
tradicional y conformarse como práctica emergente dentro de una
coyuntura institucional; puede coexistir con lo dominante y constituir
una innovación que cuestiona y replantea procesos y formas de
relación en prácticas educativas dominantes. (GÓMEZ SOLANO,
CORENSTEIN ZASLAV, 2013, p.14).
A experiência zapatista tanto oferece uma ruptura com a
racionalidade dominante como se move por lógicas político-
pedagógicas das quais é herdeira. Por tanto, o alternativo no processo
educativo mais amplo se dá na experiência histórica dos campesinos
indígenas, na medida em que se insurgem dentro ou às margens do
sistema-mundo e da organização da educação que a ele pertence,
nesse caso, no segundo tipo de sociedade- a horizontal comunitária.
Conforme anunciamos, tomamos em conta um conjunto de
premissas para que as epistemologias do sul sejam visíveis, credíveis e
possíveis). As alternativas pedagógicas, portanto, substituem o vazio
creditado à linearidade do futuro pelo movimento latente e tendencial
do encurtamento do tempo presente. Os/As zapatistas reúnem tanto
experiências sociais disponíveis quanto expectativas sociais possíveis.

502
(des)colonialidade e insurgência zapatista: alternativa pedagógica e pensamento ...

Em outros termos, as alternativas pedagógicas existem na


inteligibilidade recíproca das experiências disponíveis e possíveis na
“feitura” da sua libertação contra a miséria e o abandono, e a favor da
educação como valor e bem comum.

(des)colonialidade, insurgência zapatista e pensamento de fronteira

Pensar a tensa relação entre a colonialidade e a insurgência no


contexto das experiências de resistências zapatistas implica relacioná-
los a um projeto de libertação. A partir de nossa compreensão é
pertinente a sua vinculação a ideia de transmodernidade como projeto
utópico de superação da modernidade eurocêntrica (DUSSEL, 2001).
Ao invés de completar o projeto de modernidade, a transmodernidade
visaria concretizar o inacabado e incompleto movimento de
descolonização da América Latina. De acordo com Dussel (2001), para
enfrentar a hegemonia do eurocentrismo, são necessárias múltiplas
respostas críticas a essa modernidade partindo das culturas e dos
lugares epistêmicos subalternos dos povos colonizados pelo mundo.
“O pensamento de fronteira é, precisamente, uma resposta crítica aos
fundamentalismos, sejam eles hegemônicos ou marginais”
(GROSFOGUEL, 2010, p. 457). É, portanto, mais amplo que as
perspectivas ocidentais, estando em diálogo crítico entre diversos
projetos políticos/éticos/epistêmicos coerentes às perspectivas,
cosmologias e visões sociais de mundo de pensadores e pensadoras
críticos do sul e a partir de sujeitos e lugares étnico-raciais/sexuais
subalternizados (GROSFOGUEL, 2010).
Nas experiências de resistências zapatistas, são recorrentes as
referências ao colonialismo clássico, por assim dizer, através da
identificação de situações coloniais impostas pela invasão do
colonizador. No entanto, podemos encontrar muitas referências às
situações coloniais203 da atualidade, a que denominamos de colonialidade
(QUIJANO, 2005; GROSFOGUEL, 2010). Essas duas compreensões
podem ser identificadas na fala do promotor de educação autônoma,
da comunidade General Emiliano Zapata, em Chiapas:
[Existe um] impacto da história da Conquista e da Colonização
[...]. Dizem que nesta região a história é fundamental para a luta,
diferente da versão, do ponto de vista, do conquistador, mas também

203 Por situações coloniais, Grosfoguel (2010) entende a opressão e a exploração cultural,

política, sexual e econômica de grupos étnicos/racializados subordinados por parte


de grupos étnicos raciais dominantes, com ou sem a existência de administrações
coloniais.

503
cheron zanini moretti

sobre a vida de nossos antepassados para que não nos engane o mau
governo.204 (Promotor da Educação B, 2013).
A separação entre história e educação seria o triunfo do
fatalismo tanto sobre essas alternativas pedagógicas, quanto sobre a
história contada “desde abajo”. De acordo com Zemelman (2005), a
resistência “é condição para poder descompor processos internos da
dominação e sua fixação socialmente estabelecida.” (2005, p. 193).
Ao invés de rejeitarem a modernidade para buscar um “retorno”
ao tradicional, ao originário como se fosse possível negar as marcas de
violência do sistema-mundo, os zapatistas redefinem seu projeto de
libertação no exercício de sua autonomia comunitária. De acordo com
o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), na globalização
da rebeldia emergem, além dos trabalhadores do campo e da cidade,
os outros encobertos:
[...]mulheres, jovens, indígenas, homossexuais, lésbicas,
transexuais, migrantes e muitos outros grupos que há
no mundo, mas que não vemos até que gritam basta de
desprezo e se levantam e assim nós os vemos, ouvimos e
aprendemos. Vemos então que todos estes grupos de
pessoas estão lutando contra o neoliberalismo, ou seja,
contra o plano da globalização capitalista, e estão
lutando pela humanidade. [...]. E tudo o que vemos
produz em nós grande assombro ao ver a estupidez dos
neoliberais que querem destruir toda a humanidade
com suas guerras e explorações, mas também nos deixa
muito contentes ao ver que em todo lugar há resistências e
rebeldias, assim como a nossa [...]. E vemos tudo isso no
mundo inteiro e nosso coração já aprende que não
estamos sós. (CCRI-CG do EZLN, 2014p, p. 36, grifos
nossos).
Portanto, os e as zapatistas dialogam com a potência subversiva
tanto de sua experiência na afirmação de sua raiz indígena, através de
sua autonomia, como no seu reconhecimento como sendo o outro,
porém junto com o outro encoberto no encontro violento proporcionado
pela modernidade ocidental. Identificam-se, também, várias frentes de
lutas e várias opressões que não tem a ver com uma política de
identidade, se não de alteridade epistemológica porque “todas as
identidades modernas são uma construção da colonialidade do poder
no mundo colonial/moderno, a sua defesa não é tão subversiva como
pode parecer à primeira vista” (GROSFOGUEL, 2010, p. 484).
Esta epistemologia diz respeito ao conjunto de alternativas que
são produzidas no âmbito das experiências de opressão, o lugar das
ausências, e da libertação, o lugar das emergências.

204 Anotações do diário de campo. Caracol III, La Garrucha, 15 de agosto de 2013.

504
(des)colonialidade e insurgência zapatista: alternativa pedagógica e pensamento ...

Fundamentalmente, os zapatistas no aprendizado da luta e da


resistência contra-hegemônica “denunciam a supressão de saberes (...)
pela norma epistemológica dominante, valorizam saberes que
resistiram (...) e as reflexões que estes têm produzido e investigam as
condições de um diálogo horizontal entre conhecimentos” (SOUSA
SANTOS; MENESES, 2010, p. 11).
Como vimos, a relação dialética denúncia-anúncio se constitui
uma dimensão importante na produção de alternativa pedagógica
diante da desumanização então empreendida. Assentada na imposição
da autoproclamada superioridade do colonizador, justificada pela
sistemática violência da chamada “missão civilizatória”; na negação da
identidade racial e étnica do colonizado; no abandono forçado de
culturas próprias; a construção de uma pedagogia insurgente está
desafiada a se mover no campo da educação política através da práxis,
das lutas intencionadas, em vista do anúncio de libertação. Sobre a
origem do levantamento armado, os zapatistas sustentam que ela se
justifica nas heranças históricas de espoliação,
[...]la dominación, la marginación y la humillación, de
las injusticias y de las normas o leyes de los malos
gobiernos y de los explotados terratenientes. Antes a
nuestros padres y abuelos no les tomaban en cuenta,
sufrían y así no teníamos tierra donde trabajar para el
mantenimiento de nuestros hijos. Así los pueblos
zapatistas se empezaron a organizar donde dijeron “ya
basta de tanta humillación”, entonces se levantaron en
armas, no les importo caminar por la noche, ni el
hambre, así nos fuimos formando y vimos que
organizados, unidos, sí pudimos y vamos a poder más
(Gabriel, Ex-integrante do Conselho Autônomo,
MAREZ Francisco Villa). (CCRI-CG do EZLN, 2013c, p.
42.)
Como resposta à colonialidade do poder, do ser e do
conhecimento, o zapatismo declara no mesmo ano a constituição de
seus territórios autônomos, mas também reafirmam um modo de fazer
política, sem serem políticos tradicionais, e de autogovernar-se. A
experiência zapatista redefine as noções de democracia partindo de sua
herança indígena onde prevalece o mando coletivo na comunidade
intersubjetiva. Antes que um “regresso ao original ou ao tradicional”,
se trata de uma resposta descolonial à imposição moderna ocidental
pela sua insurgência pedagógica.
Conforme Sousa Santos (2010), os habitantes da zona acima da
linha abissal gestionam seus conflitos através de mecanismos de
regulação e de emancipação, enquanto que na zona abaixo desta linha,
onde os sujeitos são/estão desumanizados, o sistema-mundo
administra os conflitos por meio de apropriação e de violência. “Em
algum momento da história moderna a legalidade supre a

505
cheron zanini moretti

legitimidade e quando a legalidade é quebrada pelos de cima se devem


adequar às leis. Quando é quebrada pelos de baixo, as leis devem ser
aplicadas [...] para castigar seu descumprimento” (MARCOS, 2014i, p.
114). As opressões de classe, gênero e sexualidade são vividas e
sentidas de diferentes maneiras nas zonas do ser e do não-ser. Por isso, a
importância de compreendê-las desde a alteridade e não como
identidades porque não se trata de conquistar os objetivos de um
único grupo que exige igualdade dentro do sistema, mas de
“desenvolver uma luta anticapitalista radical contra o sistema”
(GROSFOGUEL, 2010, p. 484). No sudeste mexicano, estas opressões
são vividas e sentidas como sendo uma guerra de extermínio também
com o avanço do neoliberalismo, porque se encontrando na zona do
não-ser essas opressões se articulando com o racismo. Porém, contra
esta articulação, os habitantes desta zona, decidem como enfrentá-la.
De acordo com Marcos (2014)
[...] a miséria aumentou e, com ela, a morte, sobretudo
de crianças menores de 5 anos [...] entendemos que era,
de fato, uma guerra. O modelo neoliberal que Carlos
Salinas de Gortari comandou com cinismo e desenfado
o que era para nós uma autêntica guerra de extermínio,
um etnocídio, já que eram povos indígenas inteiros que
estavam sendo liquidados. Por isso, nós sabemos do que
falamos quando falamos da “bomba neoliberal”.
Imagino (deve haver estudiosos sérios por aí que
contam com dados e análises precisas) que isso ocorria
em todas as comunidades indígenas do México. Mas a
diferença estava no fato de que nós estávamos armados
e treinados para uma guerra. Num poema, Mario
Benedetti diz que nem sempre se faz o que se quer, que
nem sempre se pode, mas há o direito de não fazer o
que não se quer. E, neste caso, não queríamos morrer...
ou, melhor, não queríamos morrer assim.
Porém, são as campesinas indígenas zapatistas que
vivem e sentem mais fortemente a intersecção das
opressões. Por um lado, essas mulheres denunciam a
imposição do padrão de poder; por outro, elas
enfrentam as contradições existentes nos lugares da
resistência, incluindo a comunidade zapatista.
Com a colonização as mulheres sofreram muitos tipos
de maus-tratos por ser mulher e ser indígena e nos
meteram na cabeça que uma mulher não vale igual, o
mesmo que um homem, não tem valor como homem. E,
depois entram os “rancheiros”, é que as mulheres
sofrem com a tripla exploração porque foram

506
(des)colonialidade e insurgência zapatista: alternativa pedagógica e pensamento ...

violentadas. Uma mulher deve estar na casa para servir


ao patrão, ao marido e aos filhos.205 (Compa, 2013)
Nossa organização nos ensinou a lutar; [há] participação de
homens e mulheres desde a clandestinidade. A partir de 1994 começa
a participação de homens e mulheres nos três níveis e nas áreas de
trabalho. Isto é importante porque se exerce parte das Leis
Revolucionárias das Mulheres [...] oportunidade porque o capitalismo
não permitiu fazer [...].206 (Compa, 2013).
Aníbal Quijano (2005; 2009) entende que os principais centros
hegemônicos do poder elaboraram um modo de produzir
conhecimento para dar conta das necessidades do capitalismo,
colocando como dadas e naturalizadas as opressões. Segundo o autor,
“o eurocentrismo não é exclusivamente [uma] perspectiva cognitiva
dos europeus, ou apenas dos dominantes do capitalismo mundial, mas
também do conjunto dos educados sob a sua hegemonia” (2009, p. 74-
75)207.
O discurso de Esther no Palácio Nacional de San Lázaro, em
2001, e o protagonismo de Ramona na elaboração e na aprovação das
Leis Revolucionárias das Mulheres208 as inscrevem junto com muitas
outras insurgentas, milicianas e bases de apoio zapatistas, como
sujeitas de um pensamento fronteiriço, ainda que o sistema-mundo as
tenha empurrado para as margens ou as produzido como ausentes.
Esta constatação reitera a compreensão de Sousa Santos (2010),
Grosfoguel (2010), Quijano (2009) e Marcos (2011) de que o aprender

205 La Libertad según l@s Zapatistas 2. Direção: EZLN, Produção: EZLN. Local:

Chiapas, México, Produtora: EZLN, 2013. 1DVD (140rmin), son., color.


206 La Libertad según l@s Zapatistas 2. Direção: EZLN, Produção: EZLN. Local:

Chiapas, México, Produtora: EZLN, 2013. 1DVD (140rmin), son., color.


207 Podemos fazer referência ao que Paulo Freire chamou de introjeção do opressor

pelo oprimido. Pelo entendimento dialético da relação entre consciência e mundo “é


possível compreender o fenômeno da introjeção do(a) opressor(a) pelo(a) oprimido(a),
a ‘aderência’ deste àquele, a dificuldade que tem o(a) oprimido(a) de localizar o(a)
opressor(a) fora de si, oprimido(a)” (FREIRE, 2008, p. 106).
208 De acordo com as Leis Revolucionárias das Mulheres (LRM), são direitos: 1) a

participação na luta revolucionária; 2) a trabalhar e a receber um salário justo (está


previsto, ainda que, não existe um sistema de assalariamento em território autônomo);
3) a decidir o número de filhos que podem ter e cuidar; 4) a participar dos assuntos da
comunidade e exercer cargos quando eleitas; 5) a ter atenção em saúde e alimentação;
6) a ter educação; 7) a escolher seu “companheiro” e não ser obrigada a casar-se; 8)
nenhuma mulher poderá sofrer violência, nem por familiares e nem por estranhos; 9)
podem ocupar cargos de direção na organização e ter graduação militar nas forças
armadas revolucionárias; 10) as mulheres terão todos os direitos e obrigações das leis
e regramentos revolucionários. (O que está apresentado aqui é a síntese dos primeiros
11 artigos das LRM; hoje, já se ampliaram para 30).

507
cheron zanini moretti

nas fronteiras implica em enfrentar a consubstancialidade das


opressões e da exploração. Ainda que, sendo elas sujeitas de uma
pedagogia em um movimento com as características do zapatismo, não
encerram sua condição de educadoras-educandas ao próprio
movimento e às mulheres indígenas. Devem ser compreendidas no
contexto de intersubjetividade e como produtos desta vinculação
complexa, mas aberta ao emergente, aos sujeitos sociais e políticos que
ingressam nas situações educativas para além da experiência
escolarizada, como no próprio encontro com a herança do feminismo
urbano. Compas de insurgência epistêmica feminista209, a partir das
mulheres indígenas. O zapatismo foi ensinando e aprendendo com a
participação das mulheres desde a clandestinidade e também nos três
níveis territoriais de sua auto-organização; e seguiu avançando com a
conquista das mulheres.
De acordo com Sylvia Marcos (2011), resgatar a tradição
intelectual feminista, implica muito mais que elaborar uma análise
feminista utilizando referenciais e critérios epistemológicos já
existentes. No contexto de colonialidade, implica a busca de raízes
culturais ancestrais, recorrendo aos termos feministas que as mulheres
campesinas indígenas já estão fazendo (MARCOS, 2009). O feminismo,
sobretudo o identificado com as lutas populares, possui “coordenadas
epistemológicas” forjadas na interação dialógica e criativa no
movimento e no cotidiano. As mulheres discutem, compartilham,
reformulam, combinam e/ou usam estrategicamente conceitos sociais
de justiça e direitos de gênero nas suas comunidades. Para, além disto,
reivindicam e exercem direitos revolucionários participando nos
diferentes níveis da organização política nas comunidades autônomas.
As mulheres campesinas indígenas “crean la teoría feminista. Es ‘saber

209 Sylvia Marcos (2011) tem sido uma das feministas que tem se dedicado a
problematizar o feminismo indígena. Uma de suas contribuições está em identificar o
contato das indígenas com as propostas “urbanas” sobre feminismo reconhecendo as
contribuições sobre os estudos de gênero. Segundo a autora, a constituição de um
“feminismo dominante” tem se sustentado em uma definição universalista de ser
mulher que emerge da colonialidade do poder (QUIJANO, 2009) e que reforça a
hierarquia de raça/etnia e de gênero. No entanto, essas mulheres pobres e de
ancestralidade maia teriam presente que essas formulações não seriam suficientes
para o “complexo e desterritorializado” que é a realidade das indígenas camponesas. O
feminismo indígena incorporaria às teorias feministas a “corporização” que são as
formas de expressões usadas por essas mulheres. Trata-se de uma “teoria falada,
vivida, sentida, bailada, cheirada, tocada”, e não um conjunto de princípios abstratos
[...] “mas é teoria se a consideramos encarnada e como própria dos universos
filosóficos que a sustentam, se acompanha de festa e de danças, lembrando de longe a
origem da palavra teoria na palavra grega theoria, que significa festa” (MARCOS, S.,
2011, p. 20-21).

508
(des)colonialidade e insurgência zapatista: alternativa pedagógica e pensamento ...

como hacer’ y no ‘saber sobre’, dos formas de construcción de


conocimiento, dos epistemès antitéticas.” (MARCOS, S., 2011, p. 22).
Assim,
No es de extrañar que, justamente para el zapatismo, la inclusión
de las mujeres y su participación equitativa en los puestos de
autoridad, su capacidad de asumir responsabilidades en sus
comunidades a la par con los varones y su exigencia de un trato digno
y respetuoso hacia ellas sean la propuesta política zapatista, en el
sentido de que no es ‘una más’ entre prioridades organizadas
jerárquicamente. (MARCOS, S., 2011, p. 18).
Porém, esta experiência não é realizada sem dificuldades. Ainda
que a paridade entre os gêneros seja um direito garantido pelas Leis
Revolucionárias das Mulheres, a participação na autonomia não tem
sido igual “porque el machismo en verdad no ha terminado, eso es lo
que existe todavía en los papás y en los maridos.” (Felipe, Ex-
Integrante do Conselho Autônomo, MAREZ San Manuel) (CCRI-CG
do EZLN, 2013c, p. 47.) de forma que algumas mulheres abandonam
seus cargos na vida comunitária. Em algumas regiões

[...] já se conseguiu com que as meninas frequentem a escola, elas


que, desde os tempos antigos, eram marginalizadas do acesso ao
conhecimento. Mesmo tendo conseguido que as mulheres não sejam
vendidas e escolham livremente o seu parceiro, existe ainda em terras
zapatistas o que as feministas chamam de “discriminação de gênero”.
Ainda falta bastante para que a chamada “lei revolucionária das
mulheres” seja cumprida (MARCOS, 2014p).

Para Georgina Méndez Torres (2013), o que se chama de


descolonização tem a ver com o pensar-se a partir do estar sendo, fazer a
reflexão teórico-epistémica da forma que as mulheres indígenas
assumam seu lugar no mundo tendo como referente os conhecimentos
do seu lugar em diálogo e aliança com os movimentos sociais e a
academia “pensada, sentida y comprometida” (TORRES, 2013, p. 34).

considerações finais

O pensamento crítico de fronteira é uma resposta do subalterno ao


projeto eurocêntrico de modernidade, em que se produz uma
redefiniçao de libertação que não significa assumir um
“fundamentalismo” antimoderno, mas sim, oferecer respostas
descoloniais transmodernas. Estas respostas, de acordo com os e as
zapatistas, têm a ver com “os rumos da resistência e da rebeldia que
cruzam todo o território nacional e afloram também aí onde a
modernidade parece ter triunfado totalmente.” (MARCOS, 2014c).

509
cheron zanini moretti

“A palavra autêntica mantém o contínuo diálogo entre a prática


e a teoria, entre a ação e ação-reflexão, entre anúncio e denúncia”
(ALMEIDA; STRECK, 2010, p. 299). A imposição colonial é justamente
a negação e a desconfiança na capacidade dos sujeitos de “pensar
certo, de querer e de saber” (FREIRE, 2005). De acordo com Freire
(2005), a dialetização entre a denúncia e o anúncio é indispensável à
experiência histórica, do contrário a História seria puro determinismo.
Ao dizer a sua palavra deixam as suas marcas de sujeitos e não de
puro objetivo. A atitude crítica seria o modo pelo qual os homens e as
mulheres superariam a condição de simples ajustamento ou de
acomodação. A humanização ou desumanização dependeria, portanto
da afirmação dos lugares de sujeitos ou de objetos da história
(MORETTI, 2010). É nesse processo, de captação e reconhecimento de
seu papel e seu próprio lugar no tempo e no território que homens e
mulheres assumem ser mais. A palavra-ação, não sendo retórica,
simplesmente, contrapõe-se à acomodação e à impossibilidade da
transformação (FREIRE, 2000), fazem das relações eu-tu, nós, coletivo.
O tempo linear é apenas um tempo e é hegemônico e
hegemonizado pelo sistema-mundo. Na experiência zapatista o tempo
pode ser de espera de quê fazer, já foi tempo de pedir e de exigir. Neste
momento, está sendo o de construir a sua autonomia não se
submetendo ao tempo neoliberal-colonial. Por essa razão, referem-se
aos outros calendários e outras geografias, ou seja, em contraposição aos
tempos e espaços das grandes organizações e do Estado-nação. É no
território zapatista que as situações-limites e as situações coloniais
acontecem porque o espaço é um conjunto indissociável da
materialidade, cujo potencial criativo fazem as alternativas
pedagógicas emergirem. Na experiência zapatista, o lugar tem sido a
atualização do real, porque é nele que se encontram a resistência
produzida por uma razão local orgânica. O espaço geográfico
zapatista não é obediente, uma vez que se manifestam as vozes dos
lugares contra a lógica do desterro e do desenraizamento. O tempo
compartilhado e o lugar cotidiano zapatista são plurais, portanto
livres. Também de contradições.
Assim, entende-se que as experiências zapatistas contribuem
para descompor processos internos de dominação e a sua fixação
socialmente estabelecida. A experiência das mulheres, não apenas no
reconhecimento do seu lugar na luta, está na produção de uma
epistemologia insurgente indígena, por exemplo. A denúncia se
constitui uma dimensão importante na produção de alternativa
pedagógica diante da desumanização promovida pela violência da
chamada “missão civilizatória”; na negação da identidade racial e
étnica do colonizado; no abandono forçado de culturas próprias. O
zapatismo, enquanto um movimento que busca a liberdade, a
democracia e a justiça, contribui para a realização de um projeto

510
(des)colonialidade e insurgência zapatista: alternativa pedagógica e pensamento ...

utópico que a o da transmodernidade. Ao invés de completar o projeto


de modernidade, se deveria concretizar o inacabado e incompleto
movimento de descolonização da América Latina, enfrentando a
hegemonia do eurocentrismo.
Neste sentido, é importante um pensamento de fronteira como
resposta crítica aos fundamentalismos tanto de direita quanto de
esquerda. A tensão entre a colonialidade e a insurgência zapatista
pode ser compreendida como uma alternativa pedagógica, aquela que
se inscreve na experiência do/da oprimido/a para a libertação.
Novamente, essa ideia nos leva a da existência de uma epistemologia e
uma pedagogia que se inscrevem nos marcos descoloniais do poder, do
ser e do saber/conhecimento ou, simplesmente, da libertação humana
que busca a Comandanta Esther em sua auto-organização.

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514
comunicação ancestral e filosofia indígena: a educação da
mãe terra

renata machado
rádio yandê
aratykyra@gmail.com

introdução

Depois de fundir-se o espaço e amanhecer um novo tempo eu


hei de fazer que circule a palavra-alma novamente pelos ossos
de quem se põe de pé, e que voltem a encarnar-se as almas
disse nosso Pai Primeiro. Quando isso acontecer Tupã
renascerá no coração do estrangeiro; e os primeiros adornados
novamente se erguerão na morada terrena por toda sua
extensão.
(Profecio do clã Jeguakava narrado por Pablo Werá no
início do século XX)

Na infância indígena se aprende a ser defensor da vida, que os


organismos da Mãe Terra são partes do corpo, extensões do espírito e
consciência. Em uma perspectiva que não inibe as relações da criança
com os diferentes elementos: terra, fogo, água e ar. Despertar o saber
empírico por meio daquilo que é vivenciado nas relações familiares,
sociais e culturais é a base do aprendizado. A educação indígena vem
da constante observação da natureza, uma ciência ancestral que com a
comunicação entre as gerações vive na nossa memória e de nossos
antepassados. Por muito tempo nossas filosofias permaneceram
invisíveis pela força do discurso colonial e correntes de pensamento
eurocêntricas incapazes de perceber a ciência em nossos saberes. No
tempo dos antigos Tupi a sabedoria foi revelada no som vindo do
útero da terra, geradora de vida, seres, mortes e nascimentos. No
início havia o clã que seguia a tradição do Sol e Lua, mas depois cada
um seguiu uma das tradições. Todos nós aprendemos durante o
processo de iniciação da cultura. Ela não é imutável, mas se
transforma durante o nascer de novas raízes.
Mãe Terra, infância e educação estão ligadas, a criança não se
torna algo, ela nasce sendo e amadurece. Escutar o outro na busca da
percepção e do entendimento, silêncio e música começam muito cedo
para os jovens indígenas. Cada cultura possui seus rituais de
passagem para a próxima etapa da vida sempre relacionados à caça,
guerra, superação para os meninos e ciclo menstrual para as meninas.

515
renata machado

Você pode receber vários nomes durante sua transição da infância


para outras etapas dependendo da cultura de seu povo. Criadas com
uma liberdade maior, as crianças indígenas desenvolvem cedo suas
defesas não apenas físicas, mas também psíquicas, emocionais. A
proximidade da relação com a terra é fundamental não apenas para
este desenvolvimento, mas para toda sua formação enquanto
indivíduo. Nada está separado da terra e quando existe uma separação
causa desequilíbrio, conflitos de toda espécie e ordem. A exploração
predatória de recursos naturais em grande escala revela não apenas
uma violência contra o meio ambiente e diferentes formas de vida,
mas também no ser humano. Os pensamentos estão conectados com o
ventre da terra, a existência da pedagogia da mãe terra traz esse olhar
mais profundo da importância da natureza para todos os seres: cuidar
da terra é cuidar de cada um, porque na cultura indígena aprendemos
que somos parte desta criação.
Essa forma de pedagogia é o que une cada povo mesmo
possuindo diferenças entre si, todos compreendem a terra como
geradora da vida da qual precisamos estabelecer uma relação
harmônica de bem viver, o que povo Quechua conhece como Sumac
Kawsay, ‘’Buen Vivir’’. O conceito auxilia estudos jurídicos e políticos
que trazem legitimidade na ruptura com os sistemas regulatórios
ambientais tradicionais, que consideram a natureza como
propriedade. A autonomia e sustentabilidade presente nas culturas
indígenas causam mal-estar nas estruturas verticais do estado-nação.
Relações são alteradas por imposição de políticas não indígenas nas
comunidades. A terra é fonte, corpo e água o sangue, os movimentos
uterinos do ser na manifestação de um eu coletivo desvelam nossas
correntes de pensamento, permitem o desenvolvimento de conceitos,
metodologias indígenas próprias, as folhas curam, ensinam e até
adoecem. É preciso ser iniciado para compreender o que está por trás
dos relatos orais deixados pelos anciões, muitas vezes carregados de
metáforas, mas que trazem uma outra ótica na forma de ver a vida e
que vem desconstruindo o sentido original de palavras quando
traduzidas para línguas diferentes. Os mundos indígenas estão fora da
organização de tempo do ocidente como passado, presente e futuro.
Para muitas culturas indígenas e orientais o agora é todos os tempos
juntos, eles coexistem.
O pensador indígena Ailton Krenak conhecido como uma das
principais lideranças da União das Nações Indígenas (UNI) e com
atuação histórica durante a Assembleia Constituinte em 1987, fala
sobre a base da filosofia dos povos.
Nos fundamentos da tradição não há a palavra vazia. Os
fundamentos da tradição são como o esteio do Universo.
A memória desses fundamentos não é uma coisa
decifrável. É como a água do rio: você olha de um
determinado ponto a água correndo; quando voltar na
516
comunicação ancestral e filosofia indígena: a educação da mãe terra

manhã seguinte, não verá a mesma água, mas o rio é o


mesmo. Ele está ali. Você não distingue. Você só sabe
que não é a mesma água porque vê que ela corre, mas é
o mesmo rio. O que o meu tataravô e todos os nossos
antigos puderam experimentar passa pelo sonho para a
minha geração. Tenho o compromisso de manter o leito
do sonho preservado para os meus netos. E os meus
netos terão que fazer isso para as gerações futuras. Isso é
a memória da criação do mundo. Então, não decifro
sonhos. Eu recebo sonhos. O leito de um rio não decifra
a água, ele recebe a água do rio… (KRENAK, 1989. In:
BUCCI; FREIRE, 1989)
O vento do início de uma grande tempestade muitas vezes traz
uma sombra sobre as nossas cabeças, ele mostra uma previsão da
chegada da chuva, mas também compartilha seu ensinamento. A
forma como os pássaros se movimentam no céu, escolhas de direções e
cantos. Por muito tempo os velhos observaram a forma como as raízes
comunicam e estão ligadas embaixo da terra. Elas trocam nutrientes
entre si, algumas espécies atacam outras árvores com liberação de
toxinas ou até alimentam. Existe uma árvore sagrada bem antiga
encontrada na região amazônica, suas raízes grandes permitem ser
uma das mais próximas de Kuarasy, que no Tupi significa sol.
A samauma traz um ensinamento para todos: é uma árvore que
retira água das profundezas do solo abastecendo não apenas ela, mas
protegendo todo o reino vegetal ao seu redor, suas raízes são
chamadas de sapopemba, os povos indígenas usam também para
comunicação em uma mesma localidade batendo em suas estruturas.
O som é como os raios solares em movimento clareando os rios da
memória, nossa palavra é semente que cresce junto das raízes para que
possamos cantar a história. Para quem aprendeu a leitura da natureza
cada folha é pedaço de um livro antigo.
Segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística) no Censo 2010: a população indígena brasileira é de 896,9
mil, tem 305 etnias e fala 274 idiomas. Os povos indígenas conhecidos
genericamente pelo nome “índio”, possuem culturas indígenas
diferentes entre si e idiomas próprios. Cada etnia apresenta histórias,
organizações sociais e costumes distintos uns dos outros. No
imaginário popular uma imagem foi cristalizada de um índio genérico
como o do primeiro momento de contato dos povos com os
portugueses em 1500. As culturas são dinâmicas e se adaptam dentre
os anos aos contextos históricos. Estereótipos a respeitos dos povos
originários são presentes em alguns livros de história que reproduzem
o pensamento colonialista e eurocêntrico. Para muitos ainda é difícil
abandonar essa visão estereotipada a respeito do que é ser indígena
em 518 anos de contato e miscigenações. O personagem índio foi

517
renata machado

alimentado pela literatura indianista e indigenista que não tem a ver


com a indígena210.
Em uma constante busca, educadores e lideranças indígenas
tentam trazer desmistificação de suas visões e culturas. A racialização
afasta da identidade e torna invisível povos com maior tempo de
contato por causa da busca de um fenótipo aceito como o “índio”
conhecido pelo colonizador. A cultura é ancestral e atravessa gerações
de uma mesma família. Independente da aparência física, o que
realmente faz diferença é o reconhecimento da identidade indígena de
uma determinada etnia.

oralidade amplificada com as novas tecnologias da comunicação

“...Tradições são sistemas intelectuais dinâmicos e capazes de


mudar. Nossos dinamismos culturais continuam sendo
desconhecidos, na medida em que nossas vozes continuam
sendo caladas, cobertas pelas vozes do que se julgam
especialistas. Conectar-se ao mundo através da internet é ter
direito a ter um rosto e mostrar nossa voz. É saber dos
acontecimentos e, interesses que envolvem toda humanidade.
Fazemos parte desse contexto.’’
Yakuy Tupinambá, 2006.

A visão indígena sobre ser parte de uma etnia faz parte da


cultura especifica de seu povo. Um aspecto importante sobre as
culturas indígenas é a oralidade presente como forma de transmissão
dos saberes e memória.
Em 2013 a fundação da web rádio indígena Yandê, primeira
rádio online indígena brasileira, quebra estereótipos na busca da
realização de uma etnomídia indígena presente apenas em uma
comunicação decolonial, de valorização das culturas indígenas,
músicas, línguas, filosofias e histórias. Impulsiona a comunicação dos
povos originários do Brasil em sua contemporaneidade, rompe
fronteiras geográficas e conectando produções indígenas
internacionais. Com o acesso atual, ultrapassa o número de 75 países,
mesmo sem patrocínios, tornando-se uma das principais difusoras
independentes da etnomídia, músicas e culturas originárias. A equipe
totalmente indígena de fundadores, coordenadores, colaboradores,
comunicadores é um dos diferenciais de outros veículos e projetos da

210 Indigenista é o indivíduo que, atuando na política de integração brasileira,


mediava as relações do estado com as populações indígenas, entendendo-se como um
especialista em povos indígena. Indianista é o literato que, produzindo suas
narrativas no contexto do romantismo brasileiro, exaltava em seus escritos o “índio”
idealizado.

518
comunicação ancestral e filosofia indígena: a educação da mãe terra

área. Comunicação não está separada da educação para os povos, nela


encontramos novas formas de transmissão de saberes orais e
documentação, além de informações. O tradicional, na era da
convergência de mídias, áudio, vídeo, textos, encontra novos formatos
e territórios de pensamento indígena, além do espaço físico da
memória.
A Rádio Yandê luta pelo protagonismo indígena, direito à
autonomia e comunicação, para que exista um real empoderamento na
apropriação das novas tecnologias fugindo da colonização audiovisual
e midiática, não sendo considerada como mídia alternativa mas oficial
indígena como outros projetos de comunicação feitos por indígenas. A
comunicação indígena é viva não estando presa aos formatos
jornalísticos mas sendo uma constante desconstrução das práticas
padronizadoras estabelecidas pela grande mídia nos diferentes
veículos de comunicação. Por isso, afirma uma descolonização destes
meios através da valorização das narrativas indígenas. As pautas,
textos e conteúdos são construídos de forma colaborativa na tentativa
de sempre priorizar visões coletivas e não apenas individuais de cada
indivíduo indígena.
...Nosotros consideramos a la comunicación como la
sangre, tiene que ir hacia todos los lados o si no,
determinada parte del organismo se anula y muere.
Decimos que tiene que ser también como los flujos
nerviosos que sienten un estimulo e inmediatamente
hay un procesamiento y una respuesta sea de donde
este estímulo provenga; y la comunicación también es
como los flujos del alma. Cuando este flujo del alma
medio ha sido alterado es como que parte de la vida se
haya ido, tienes que restituir porque es una parte de ti,
sino el individuo se anula, se seca la persona y muere...
(BUSTOS, 2001).
A juventude indígena encontra na internet e etnomídia uma
outra forma de possuir acesso aos saberes de sua cultura e histórias de
seus avós. O processo de educação sofre alterações e adaptações ao
contemporâneo que precisam sempre valorizar a identidade de cada
criança e seu povo. Não se pode comunicar sem identidade. Os povos
possuem diferentes tempos de contato e isso influencia também na
forma que são educados em seu mundo.

filosofia invisível

A colonialidade do saber é estratégica, estrutural e epistêmica. O


que conhecemos como cosmologias indígenas na verdade são também
filosofias, nenhum saber é inferior, existe a diferença presente em
correntes de pensamentos plurais que não se encaixam em um padrão
pré-estabelecido por pesquisadores ocidentais em generalizações do

519
renata machado

pensar. Um dos questionamentos é que não existe apenas uma


filosofia universal, capaz de explicar e organizar a realidade. Castro-
Gómez (2005), sobre o caráter mais complexo do colonialismo, afirma:
el colonialismo no es solamente un fenómeno
económico y político sino que posee una dimensión
epistémica vinculada con el nacimiento de las ciencias
humanas, tanto en el centro como en la periferia. En este
sentido cabría hablar decolonialidad antes que de
colonialismo para destacar la dimensión cognitiva y
simbólica de ese fenómeno. [...] las humanidades y las
ciencias sociales modernas crearon un imaginario sobre
el mundo social del «subalterno» (el oriental, el negro, el
indio, el campesino) que no solo sirvió para legitimar El
poder imperial en un nivel económico y político sino
que también contribuyó a crear los paradigmas
epistemológicos de estas ciencias y a generar las
identidades (personales y colectivas) de colonizadores y
colonizados. (CASTRO-GÓMEZ, 2005, p. 19-20).
Aquilo que veio antes da filosofia que conhecemos no ocidente e
mundo moderno revela uma grande ruptura de suas origens
significativa no final do século XIX com europeização do pensamento
pela influência de famosos teóricos e cientistas em busca da
racionalização. Um dos questionamentos de correntes pós-coloniais e
decoloniais é que não existe apenas uma filosofia universal, capaz de
explicar e organizar a realidade. O exercício de desmistificação do
pensamento colonizador propagado por tanto tempo até os dias atuais
no espaço acadêmico, escolar e científico é importante para romper
barreiras impostas por uma superioridade presente no racismo
científico. O sociólogo e pensador peruano Aníbal Quijano foi
responsável pelo conceito de "colonialidade do poder" no campo dos
estudos decoloniais e teoria crítica. Sobre a colonialidade, ele mostra
uma estrutura hierárquica de organização do capitalismo nas relações
de poder e saber, encontrada até na classificação racial.
La colonialidad es uno de los elementos constitutivos y
específicos del patrón mundial de poder capitalista. Se
funda en la imposición de una clasificación racial/étnica
de la población del mundo como piedra angular de
dicho patrón de poder, y opera en cada uno de los
planos,ámbitos y dimensiones, materiales y subjetivas,
de la existencia cotidiana y a escala social. Se origina y
mundializa a partir de América. (QUIJANO, 2007, p.93).
A inferiorização das culturas dos povos originários exacerba na
população mundial uma divisão profunda tornando invisível a
pluralidade das filosofias. Crianças são livres e o ambiente escolar cria
uma padronização responsável pela formação, retirando de um
universo horizontal de pensamento e trazendo uma sociedade
separada por conhecimentos, rompendo com a relação junto da

520
comunicação ancestral e filosofia indígena: a educação da mãe terra

natureza em que o ser humano não é dono das coisas do mundo. Um


dos pontos principais é o próprio conceito da palavra propriedade,
responsável por na escola transformar os jovens em futuros
proprietários e consumidores, se afastando cada vez mais de uma
educação que forme humanos, não futuros trabalhadores. Um jovem é
criado para se tornar algo e estar em uma categoria profissional no
mercado. No mundo indígena é priorizado aquilo que ele já é
enquanto jovem, seu amadurecer com uma liberdade em que o
aprendizado de saberes é orgânico, não uma imposição.
No sistema educacional prussiano encontramos o adestramento
de nosso pensamento, reconhecemos que estamos nos despindo de
conceitos que vestiram na gente sem nosso consentimento. A história
universal é contada por aqueles que vencem guerras, escravizam,
conquistam povos dos quais não reconhecem como civilização e
dominam hegemonicamente. Os povos originários resistem e cada dia
mais ocupam espaços na busca de trazer visibilidade às suas filosofias
e mundos, para que a pluralidade do saber seja respeitada e novos
conceitos conhecidos no espaço acadêmico.

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521
renata machado

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522
“um pouquinho de cada”: os indígenas ensinam a educar.211

kércia priscilla figueiredo peixoto


ufsc
kerciapris@gmail.com
reinaldo matias fleuri
ufsc
fleuri@pq.cnpq.br

introdução

Um ritual deu início ao primeiro encontro da juventude


indígena, dos povos auto afirmados da região do Baixo Tapajós
(PA)212. Uma grande roda se formou com os cerca de cento e trinta
participantes, vindos de sessenta e sete aldeias. Com corpos já
adornados com adereços e pinturas de jenipapo, eles deram-se as
mãos, dançaram, entoaram cânticos e deram gritos de guerra pedindo
permissão a Tupã, à natureza e aos encantados para realizarem ali seu
encontro. Na Terra Indígena Cobra Grande, o campo da aldeia Lago
da Praia que acolheu o ritual estava decorado com hastes de
palmeiras. Pendurados nelas estavam peixes feitos de trançados de
palha contendo o nome de cada um dos treze povos indígenas da
região: Arapiun, Apiaká, Arara Vermelha, Borari, Kumaruara, Jaraqui,
Maytapu, Munduruku, Munduruku Kara Preta, Tupinamba, Tapajó,
Tupaiú e Tapuia.
O sol já esquentava quando os participantes se deslocaram para
uma sala com chão de cimento, telhado de amianto e cadeiras
dispostas, onde começariam as “falas”. O cacique Dadá Borari, da
Terra Indígena Maró, logo questiona “Qual é a pior coisa daqui?”.
Depois de um breve tempo, ele aponta para o muro. O muro tira a
visão do rio, impede o vento, cerca o espaço. O muro é o que divide. É
sobre a racionalidade daquele muro, que transforma o espaço em
propriedade privada, que o cacique chama a atenção de todos.
Ele afirma, com a radicalidade que os líderes costumam ter, que
eles os indígenas não devem separar e nem se separar. O cacique de 36
anos ensina aos mais jovens. É preciso união para resistir e garantir

211 Agencias financiadora: CNPq (Pesquisador 1C, 2014-2018) e CAPES (PVNS, IFC,

2012-2016)
212 O I Encontro da Juventude Indígena do Baixo Tapajós foi realizado na aldeia Lago

da Praia, TI Cobra Grande, nas margens do rio Arapiuns, entre os dias 07 e 09 de julho
de 2017.

523
kércia priscilla figueiredo peixoto; reinaldo matias fleuri

direitos sobre o território, que no contexto é vida. Liberta de cercas, a


vida na terra indígena é livre. É onde cada um pode viver plenamente
com a responsabilidade de cuidar do todo. Daquele ponto da
Amazônia, os indígenas estão conectados a uma dimensão
compartilhada por tantos outros povos: a do cuidado com a terra,
claramente entendida como extensão da própria vida, como mãe.
Esta visão de mundo fundamenta a concepção de “bem-
viver”: “buen vivir”, em espanhol, “Sumak Kawsai” em
Quéchua; “Suma Qa-maña” em Aymara; “Kvme Felen”,
em Mapuche, “Tekó Porã”, em Guarani. De modo geral,
significa “a boa maneira de ser e viver”, ou seja, viver
em aprendizado e convivência com a natureza. Esta
sabedoria, presente em todas as culturas ameríndias,
nos leva a compreender que a relação entre todos os
seres do planeta tem que ser encarada como uma
relação social, entre sujeitos, em que cultura e natureza
se fundem em humanidade. (Fleuri, 2017, p. 285)
Por que começar um artigo para um colóquio internacional sobre
Educação e Filosofia relatando a abertura de um encontro da
juventude indígena de povos do meio da Amazônia? Para mostrar que
os povos indígenas muito têm a ensinar sobre educação e cuidado com
a vida. É preciso considerar seus conhecimentos, que são ricos e
complexos. Os indígenas são detentores de um conjunto
epistemológico que une ser e saber, que não separa ambiente e
cosmos.
Valorizar esses conhecimentos é reconhecer como toda a riqueza
da biodiversidade foi constituída e preservada graças aos povos
originários, em uma profunda vinculação entre homem e natureza.
Esse é o sentido contrário do que foi estabelecido como conhecimento
ocidental, binário ao opor homem e natureza. Oposição onde a
racionalidade humana determinaria a condição de dominação, que ao
longo do tempo se transformou em capacidade de destruição massiva
de povos e de ambiente em nome do desenvolvimento.
Como bem considerou Porto-Gonçalves sobre um significado de
desenvolvimento anterior àquele de sinônimo de crescimento:
“desenvolver é tirar o envolvimento (a autonomia) que cada cultura,
cada povo, mantém com seu espaço, com seu território” (2011, p. 39). É
o contrário de unir, é “des-envolver”, desvinculando sujeitos entre si,
desvinculando-os da natureza, da sua própria natureza. Nesse sistema
que priva, caberia então individualizar pessoas, reduzi-las com o claro
objetivo de transformá-las em mão de obra barata, em exército
industrial de reserva para o famigerado progresso que chega
devorando gente e recursos naturais. Chega arrancando as gentes de
seus territórios e subalternizando-as nas periferias das cidades.
É no sentido contrário ao modelo ocidental de desenvolvimento
e de pensamento, que centraliza o homem como senhor de todas as

524
“um pouquinho de cada”: os indígenas ensinam a educar.

coisas, que a cosmovisão dos povos originários ensina uma relação


mais sensível e permanente com toda a vida que nos circunda. Nessa
concepção todos os seres vivos se complementam, agem e reagem. O
antropólogo Bruno Caporrino (2015) explica que no pensamento
ocidental há uma cisão entre cultura e natureza, sendo a natureza
inerte e cabendo somente aos homens a capacidade de pensar,
entender, e que o pensamento ameríndio parte do pressuposto
contrário: “basicamente reconhece que o corpo é a instanciação
específica dos seres, ao passo em que a alma, o anima, seria geral,
universal. Esse regime de conhecimento pressupõe que seres vivos
agem, reagem, interagem, intelegem. E atribui humanidade à vida” 213
(sic!). Por isso os indígenas adaptam seu modo de vida ao ambiente,
sem feri-lo.
Os povos indígenas veem e vivem a terra como um ser
relacional, sustentado em relações de reciprocidade e
responsabilidade. Conforme explica a professora e ativista indígena
australiana Irene Watson: “Nós vivemos como parte integrante do
mundo natural; somos o mundo natural. O mundo natural é nós. Não
tomamos do ambiente mais do que é necessário para sustentar a vida;
Nós nutrimos a natureza tal como a nós mesmos” (WATSON, 2015,
p.15 - tradução nossa). Essa visão da terra, essa noção de uma unidade
existencial que as pessoas compartilham com todos os elementos
naturais é uma filosofia relacional que encontramos entre muitos
povos indígenas do mundo, como as cosmovisões do "bem-viver" dos
povos de Abya Yala.
Esse entendimento de vida é transmitido pelos povos indígenas
através de uma educação que ultrapassa a organização de tempos,
idades e espaços determinados pelo pensamento ocidental. É sobre
uma educação concebida para os indígenas e sobre o que eles nos
ensinam que iremos discorrer nesse artigo. Dividimos o artigo em
duas partes, cuja narrativa recorrerá a algumas falas do cacique e
também professor Dadá Borari, durante o I Encontro da Juventude
Indígena do Baixo Tapajós. A primeira parte do artigo traz um breve
apanhado histórico sobre como a educação indígena foi pensada e
aplicada no sentido de assimilar e “matar” a alteridade, com um
modelo educacional não condizente com a realidade dos povos
indígenas, acompanhando processos históricos do Brasil. Na segunda
parte, relataremos as conquistas na legislação e sobre como os
indígenas, ao conquistar o poder da palavra, pensam, criam e

213 Em entrevista concedida ao Instituto Humanitas Unisinos (IUH), publicada em 21

de agosto de 2015. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/546118-


o-desenvolvimento-e-o-fim-da-cosmovisao-indigena-entrevista-especial-com-bruno-
caporrino

525
kércia priscilla figueiredo peixoto; reinaldo matias fleuri

solicitam um modelo de educação que valorize suas identidades: eles


querem acesso à uma educação formal sem deixar de ser indígenas.
Propõem políticas pedagógicas dialógicas, com pleno reconhecimento
e respeito à alteridade.

refletindo sobre uma educação pensada para o indígena

No final de cada semestre o aluno tira uma nota


vermelha. Aí a gente diz: “É o aluno que não presta
atenção”. Mentira! É o conteúdo que não é daquele
aluno. Esse conteúdo foi pensado para o geral, não é
um conteúdo específico e por isso o aluno sempre vai
continuar tendo uma nota baixa. – Cacique e professor
Dadá Borari. (07 de julho de 2017)

Entender e, sobretudo, ensinar que o baixo rendimento escolar


de um aluno indígena não é culpa do estudante, mas sim de um
conteúdo imposto por um sistema educacional que não considera suas
especificações, é decolonial. Rompe com a submissão imposta por um
modelo educacional etnocêntrico, fundamentado em uma concepção
que considerou os indígenas como inferiores, como incapazes.
Contextualizar esse modelo em uma sociedade dominante, que se
formou alicerçada na violência e no total desrespeito aos povos
originários, é necessário. Tocar nas raízes da história que submeteu o
outro em todos os aspectos é imprescindível para entender o quanto os
traços da colonização continuam presentes nas relações de poder, do
saber, do ser e do viver. Essas características da colonização que
forjaram nossa sociedade, hoje se revelam como colonialidades, que
estabelecem o mundo ocidental como parâmetro e continuam
desprezando outras formas de saber e de viver.

a violência da invasão: passado e presente de mãos dadas.

Desde que os invasores chegaram nessas terras, os nativos foram


considerados bárbaros e contra eles cometeu-se as mais horrendas
atrocidades. O frei Bartolomeu de Las Casas fez um relato
aterrorizante da barbárie da invasão214 denunciando a crueldade dos
invasores. Estes invadiam as aldeias e não poupavam de suas lanças e
espadas nem velhos e nem crianças. Abriam o ventre de mulheres
grávidas e as esquartejam, como se estivessem “golpeando cordeiros”
e faziam apostas de quem com um golpe só abriria as entranhas de um

214 No livro Paraíso Destruído: Brevíssima Relação da Destruição das Índias (1984).

526
“um pouquinho de cada”: os indígenas ensinam a educar.

homem. Dos seios das mães os filhos eram arrancados e assassinados


de forma cruel. O relato é do início do século XVI.
Barbáries como essas continuaram se repetindo em tempos
recentes. Bem poderíamos confundir tais relatos de desumanidade
com as ações dos bugreiros, contratados pelo governo para “abater” os
indígenas no sul do país215. Os bugreiros quase dizimaram os Xokleng,
na virada do séc. XIX para o séc. XX. O escândalo gerado pela
denúncia internacional do massacre fez o Governo Brasileiro criar o
Serviço de Proteção aos Índios (SPI) em 1910, que funcionava com o
intuito de integrar e desindianizar os indígenas, mas dando de fato
garantia de segurança aos colonos. A intenção de assimilar, ao
transformar indígenas em brasileiros, passava pelo violento processo
de torná-los trabalhadores e também consumidores. Devido à
resistência sistemática dos indígenas, que não se submetiam
facilmente a ceder suas terras para a expansão da criação de gado e a
transformarem-se em trabalhadores das fazendas, eles quase foram
exterminados.
Os atrozes relatos do início da invasão europeia poderiam ser
confundidos também com a ação do governo, através dos postos
indígenas implantados pelo SPI. Ação aterrorizante relatada nas sete
mil páginas do Relatório Figueiredo216, produzido entre 1967 e 1968:
“A fertilidade de sua cruenta história registra até crucificação, os
castigos físicos eram considerados naturais nos Postos Indígenas”
(BRASIL, 1967, p. 2). No Relatório Figueiredo estava registrado todo o
ódio dos agentes de um órgão constituído para proteger: “Tudo –
repetimos sempre – como se o índio fosse um irracional, classificado
muito abaixo dos animais de trabalho, aos quais se presta, no interesse
da produção, certa assistência e farta alimentação” (ibidem, p. 4). Mais
uma vez a denúncia internacional escandaliza a Europa e pressiona o
Governo Brasileiro a tomar uma atitude: o SPI dá lugar à Fundação
Nacional do Índio (FUNAI) em 1967 que, por sua vez,
Manteve a tutela, o objetivo integracionista e
aculturativo de povos indígenas adotado pelo extinto
SPI, bem como a mesma organização administrativa

215 Em matéria “Caçadores de Índios” publicada no Clickrbis, a jornalista Carol


Macário faz referência ao que
Silvio Coelho dos Santos na obra “Índios e brancos no Sul do Brasil (1988): “Bugreiro,
ou mais explicitamente caçador de índios, foi assim uma profissão criada e necessária
ao capitalismo em expansão nessa parte da América”. Disponível em
http://www.clicrbs.com.br/sites/swf/dc_nos_35_bugreiros/index.html
216 O procurador Jáder Figueiredo Correia registrou as atrocidades cometidas pelo

governo contra os povos indígenas. Os relatos de tamanha crueldade chocaram o


mundo. O Relatório Figueiredo ficou desaparecido por 44 anos, sendo redescoberto
no ano 2014.

527
kércia priscilla figueiredo peixoto; reinaldo matias fleuri

centrada em postos indígenas e delegacias regionais.


Atuando dessa forma, a Funai manteve as ações de
exploração do patrimônio e trabalho indígena durante o
regime militar, agindo nas frentes de atração da mesma
forma que agia o SPI. (FUNAI, 2012, p 28)
Atualmente, também nos defrontamos com a face cruel desses
relatos quando o bebê Kaingang Vitor Pinto é assassinado com um
golpe de lâmina no pescoço enquanto mamava, em 30 de dezembro de
2015, ou, quando Nanblá Marcondes, professor Xokleng, é morto a
pauladas em 1º de janeiro de 2018217. A jornalista Eliane Brum218 é
precisa ao afirmar que 1500 é o ano que não acabou, quando relata o
assassinato do menino Vitor, dizendo que sua morte sequer se
destacou na imprensa nacional: “se fosse meu filho, ou de qualquer
mulher branca de classe média, assassinado nessas circunstâncias,
haveria manchetes, haveria especialistas analisando a violência,
haveria choro e haveria solidariedade”. A indiferença da sociedade
perante o assassinato de Vitor ocorreu porque ele era indígena,
denuncia Brum. “Mas Vitor era um índio. Um bebê, mas indígena.
Vítima, mas indígena. Assassinado, mas indígena. Perfurado, mas
indígena. Esse “mas” é o assassino oculto. Esse “mas” é serial killer”.
Esse “mas” é o que sustenta o racismo contra o indígena, que persiste
desde o período colonial. O racismo prossegue apesar de
desconstruída a linha teórica, baseada em darwinismo social, racismo
científico e evolucionismo que defendia a eliminação do indígena.
Vigora contra o indígena uma colonialidade da violência.
Lucas Carvalho nos lembra: “O nosso tempo é fruto direto
daquele remoto passado. Os elementos que então surgiam afirmaram-
se numa magnitude que jamais os homens da época poderiam
imaginar. Olhar para trás, portanto, significa nada mais nada menos
que olhar para nós mesmos” (CARVALHO, 2004, p. 54). Estamos
falando da colonização marcando a entrada da era moderna com sua
insaciável sede por ouro, fazendo agonizar o “outro”: o nativo. Na
percepção desse mundo moderno-colonial, tanto natureza quanto
indígena, visto como extensão dela, devem ser dominados. Conforme
explica Porto-Gonçalves, o advento da máquina a vapor significava a
concreta dominação da natureza pela civilização industrial:
Eis a expressão – dominação da natureza – que, melhor
do que qualquer outra, caracteriza o polo moderno do
mundo moderno-colonial. O polo colonial é a natureza a

217Ambos os crimes foram cometidos no Estado de Santa Catarina.


218Matéria publicada no EL País “1500, o ano que não terminou”, em 04 de janeiro de
2016. Disponível em:
https://brasil.elpais.com/brasil/2016/01/04/opinion/1451914981_524536.html

528
“um pouquinho de cada”: os indígenas ensinam a educar.

ser dominada. Ali estão os ‘povos sem história’; os


povos que vivem em ‘estado de natureza’; os povos que
vivem, ainda, em estágios inferiores – selvageria e
barbárie – de um mesmo continuum em cujo ápice – a
civilização – está a Europa e os Estados Unidos; os
povos Sem – sem escrita, sem propriedade, sem Estado,
que é um modo de avaliá-los não a partir do que eles
são; os povos atrasados em relação a um tempo que se
quer como metro – o tempo do relógio. (PORTO-
GONÇALVES, 2002, s/p)

educar para assimilar

A educação para o indígena acompanhou a própria concepção


etnocêntrica e racista de superioridade do colonizador, este sim,
apesar da barbárie e genocídio que cometia, via a si mesmo como
civilizado. Quando nos calorosos debates de Valladolid, ainda nos
anos de 1550 e 1551, Las Casas defendeu a humanidade dos nativos,
ele foi assimilacionista ao considerar, em vez dos métodos violentos, a
submissão através da doutrinação. Considera Gutiérrez: “Para Las
Casas os índios eram capazes de se governar a si mesmos, não
precisando ser governados por outros. Também eram capazes de ser
instruídos pacificamente na fé católica e iniciados nos sacramentos,
por isso a guerra nunca devia ser usada para esse fim, só a persuasão”
(GUTIÉRREZ, 2014, p. 229). Persuasão que se daria através de uma
educação doutrinária, dando sequência a uma relação desigual que
desconsiderava os nativos como portadores de ciência, especialmente
pela falta de uma cultura letrada219.
Assimilar é querer mais do mesmo, não deixando espaço para o
reconhecimento da alteridade, “en-cobrindo” o Outro. Enrique Dussel
(1993) sustenta a tese de que a Modernidade é um fato europeu, mas
em “relação dialética com o não-europeu como conteúdo último de tal
fenômeno” 220 (1992, p.8). Para Dussel a Modernidade “nasceu” no ano
de 1492, tendo sido a Europa colonizadora da Alteridade. Portanto a
Modernidade:
“Nasceu” quando a Europa pôde se confrontar com o
seu “Outro” e controlá-lo, vencê-lo, violentá-lo: quando
pôde se definir como um “ego” descobridor,

219 Meliá (1989 apud Faustino, 2006) explica como a dominação marcou a passagem de
línguas não escritas para escritas, tendo a escrita se transformado em instrumento de
opressão.
220 Dussel confronta o pensamento de Charles Taylor, Stephen Toulmin ou Jurgen

Habermas, que consideram a Modernidade única e exclusivamente como fenômeno


Europeu.

529
kércia priscilla figueiredo peixoto; reinaldo matias fleuri

conquistador, colonizador da Alteridade constitutiva da


própria Modernidade. De qualquer maneira esse Outro
não foi “descoberto” como Outro, mas foi “en-coberto”
como o si mesmo que a Europa já era desde sempre. De
maneira que 1492 será o momento do “nascimento” da
Modernidade como conceito, o momento concreto de
“origem” de um “mito” de violência sacrifical muito
particular, e, ao mesmo tempo, um processo de “en-
cobrimento” do não europeu. (DUSSEL, 1992, p. 8)
A modernidade carrega em si o projeto colonizador com
interesse de submeter o Outro, de encobri-lo em sua alteridade. Cujo
objetivo era escravizar as populações nativas para inseri-las no sistema
mercantil através da exploração dos produtos comercializáveis. A
modernidade alcança as pessoas do novo mundo como seres a serem
explorados para alimentar o comércio. Rosângela Faustino afirma que
no projeto colonizador “O ‘selvagem’ deveria ser ‘civilizado’ para
aceitar a situação de exploração e submissão na qual estava sendo
inserido. Nesse projeto, a educação desenvolveu papel fundamental”
(2006, p. 29). Havia um entendimento de que a instrução possibilitaria,
então, o abandono do “primitivismo” e o acesso à “civilização”.
Já na era Funai, Silvio Coelho dos Santos escreveu “Educação e
Sociedades Tribais” (1975), primeiro livro que abordava a questão da
educação indígena no Brasil. Sua pesquisa foi concentrada em 19
postos indígenas da região Sul, que atendiam 7.809 indígenas. O autor
combate duas importantes crenças da época: a de que os indígenas
estavam se extinguindo; e a de que os indígenas não tinham um
processo organizado de criação e transmissão de conhecimento. Ele
percebe nos indígenas a alteridade de uma educação mais semelhante
a um processo total, dizendo que a educação é interesse da
comunidade toda para criar sujeitos que possam conservar a cultura.
Contando histórias de resistências sistemáticas, Coelho dos
Santos demonstra a existência da relação de dominação do indígena
pelo civilizado e revela o drama dos indígenas, quase exterminados.
Sobreviventes foram aqueles submetidos ao processo de pacificação,
que sofreram profunda desestruturação social. Os indígenas foram
forçados a ser dependentes dos órgãos de assistência, que os
transformavam em trabalhadores espoliados, os dispondo como mão
de obra barata para diárias ou empreitadas, que por sua vez
contribuíam na destruição dos seus recursos florestais e aniquilavam o
tempo que deveriam dedicar às suas atividades tradicionais (plantio,
caça, coleta, etc.).
Silvio Coelho dos Santos denunciou a mentalidade empresarial
que orientava a Funai, então vinculada ao Ministério do Interior, cujo
objetivo era estimular a iniciativa privada para expandir novas frentes
econômicas. A preocupação com os indígenas era prepará-los para
servir ao modelo econômico como trabalhadores braçais. Novos

530
“um pouquinho de cada”: os indígenas ensinam a educar.

brasileiros, que assimilados perderiam sua indianidade, no esforço de


integrá-los a uma suposta comunhão nacional homogênea: “A ideia de
‘transitoriedade’ do indígena orientava esse projeto, que tinha como
uma das finalidades transformá-lo num trabalhador nacional, por
meio de métodos e técnicas educacionais de ‘nacionalização’” (FUNAI,
2012, p. 23). Exatamente de acordo com a ideologia assimilacionista do
Estatuto do Índio (Lei nº 6001), de 1973, que, resumidamente,
considerava que o indígena para ser considerado cidadão brasileiro,
com plenos direitos, deveria deixar de ser indígena.
Importa contextualizar as forças ideológicas para revelar as
diretrizes que orientavam uma educação para o indígena. A
escolarização para o indígena ocorreu entre as décadas de 1940 e 1970
sem objetivos claros, sem nem mesmo discussões sobre a educação
formal. Coelho dos Santos informou que as escolas indígenas serviam
como uma forma de prestação de contas do órgão governamental com
os membros dominantes da sociedade envolvente, pois justificaria e
convenceria estes de sua importância. Assim, foi sustentada a falsa
ideia de que os indígenas não aproveitavam os benefícios da escola
porque não queriam ou não eram capazes. Se por ventura algum
indígena obtivesse sucesso, o órgão explorava o exemplo para
justificar o aparato escolar. O autor avaliou a dificuldade que os
indígenas tinham em se adaptar ao esquema formal de educação
escolarizada: sem conteúdos práticos, com alfabetização monolíngue,
horários rígidos, ensino confinado e professores desconhecedores das
culturas indígenas. Por isso, os indígenas fracassavam em seus
desempenhos escolares e acabavam por se sentir incapazes de
compreender toda a complexidade do mundo dos brancos.
O sentimento de incapacidade foi chamado por Paulo Freire de
auto-desvalia. Referindo-se à análise de “consciência colonizada” de
Albert Memmi, Freire considera a auto-desvalia como característica do
oprimido, pois “resulta da introjeção que fazem eles da visão que
deles têm os opressores” (FREIRE, 1975, p. 54). A escola funcionou
com instrumento de introjeção da percepção que a sociedade
envolvente tinha dos indígenas, que por sua vez acabavam se
convencendo de que eram incapazes de compreender a cultura
ocidental. Ocorre que “a imagem do indígena estabelecida pelo senso
comum é muitas vezes compartilhada por eles mesmos” (PEIXOTO,
2017, p. 50). Somente reavaliam a percepção que construíram sobre si,
aos moldes do opressor, quando começam a ver exemplos de sua
vulnerabilidade. A partir daí começam a construir convicção oposta à
anterior221. Mas enquanto isso não acontece, os indígenas, enquanto

221 Conforme Paulo Freire relatou de uma experiência no Chile “Escutamos, certa vez,

um líder camponês dizer, em uma reunião, numa das unidades de produção

531
kércia priscilla figueiredo peixoto; reinaldo matias fleuri

oprimidos que são, continuam a se sentir “abatidos, medrosos,


esmagados”. Essa é a desconstrução que o cacique Dadá transmite às
lideranças jovens: valoriza o que são e revela um modelo educacional,
que não considera suas culturas, como verdadeiro culpado pelo baixo
rendimento escolar dos estudantes indígenas.
Foi Bartomeu Meliá quem traçou a distinção entre educação para
o indígena e educação indígena. Denunciando uma educação para o
indígena, que não considerava suas especificidades culturais e nem o
modo de educar que os povos já possuem, Meliá (1979) demonstrou o
quanto a educação pretendia que o indígena fosse civilizado,
cristianizado e assimilado. Um modelo de escola, cuja ideologia
consistia em matar a cultura tradicional, invade a sociedade indígena,
através de formas educacionais opostas à prática educacional dos
povos.
Todas essas questões e críticas ao caráter educacional
assimilacionista das escolas indígenas foram explicitadas e reforçadas
durante o Encontro Nacional sobre Educação Indígena, realizado em
São Paulo, em dezembro de 1979. O encontro elaborou diretrizes, com
especialistas de várias áreas de conhecimento, para orientar a
construção da escola indígena. Como resultado do encontro o livro “A
questão da educação indígena”, organizado por Aracy Lopes da Silva
(1981), acusava a política indigenista oficial de instituir uma educação
como instrumento ideológico222 a fim de dominar os povos indígenas.
Reforçava inclusive a diferença de uma educação para o indígena e de
uma educação indígena, conforme já explicitado por Meliá. A luta
centrava-se então na conquista de uma escola indígena, que
fortalecesse direitos e liberdade, defendendo identidade, autonomia e
autodeterminação indígenas.
De acordo com Meliá (1979), a educação das missões e daquela
implementada pelo governo era concentrada, intensiva e restrita a
alguns anos, e se centrava na alfabetização através de livros, materiais
e práticas pedagógicas de memorização e adestramento. Enquanto a
educação indígena estava baseada na prática – no aprender fazendo –
através da oralidade, da informalidade e da permanência, respeitando
na totalidade cada fase do amadurecimento da pessoa. Contudo, o
autor fala do quanto a situação de contato influenciava as sociedades

(asentamiento) da experiência chilena de reforma agrária: ‘Diziam de nós que nós não
produzíamos porque éramos borrachos, preguiçosos. Tudo mentira. Agora, que
estamos sendo respeitados como homens, vamos mostrar a todos que nunca fomos
borrachos, nem preguiçosos. Éramos explorados, isso sim’, concluiu enfático.”
(FREIRE, 1975, p. 54)
222 Eneida Assis demonstrou, em sua dissertação de mestrado “Escola indígena: uma

“frente ideológica”?” (1981), o quanto a escola indígena atuava como porta-voz do


Estado, atuando assim como frente ideológica.

532
“um pouquinho de cada”: os indígenas ensinam a educar.

indígenas, que tinham como expectativa o domínio das inovações


trazidas pelo contato através da alfabetização.
O interesse dos indígenas pela alfabetização, como forma de se
relacionar de forma mais justa e paritária com a sociedade envolvente,
demonstra o quanto a questão da educação não é binária. Um modelo
não deve por força excluir outro, mas complementarem-se. Esse é o
cerne de uma educação que anos depois virá a ser chamada de
educação intercultural. O avanço em direção a uma educação que
respeitasse as diferenças, sem ter como escopo a submissão, tomou
corpo no começo dos anos de 1980, paralelamente à abertura
democrática do país.
Durante os anos de luta pela democracia, os movimentos sociais
experimentavam a alfabetização freiriana, em alguns casos inclusive
com os povos indígenas. A Constituição Federal de 1988 confirmou o
Brasil como país pluriétnico e garantiu direitos aos povos indígenas. A
força desse movimento de garantia de direitos impulsionou a
construção e consolidação de novos parâmetros para a educação
indígena, que respeitasse as especificidades dos povos originários.

os indígenas ensinam

Quase trinta anos depois de promulgada a Constituição Federal


de 1988, que rompeu com o integracionismo e a tutela, reconhecendo
no caput do artigo 231 a organização social indígena, seus costumes,
línguas, crenças e tradições, é evidente que o caminho para a
efetivação dos direitos indígenas ainda é longo. Demasiado longo, mas
uma parte dele foi vencido pelos povos indígenas que não cessaram de
lutar, desde que se organizaram como movimento nos anos de 1970.
Os jovens indígenas, que com garra e coragem enfrentaram poderosos
interesses durante redemocratização e a constituinte, hoje são sábios.
Estão inseridos em um ciclo contínuo de ensinamento de novas
lideranças. Essa é uma das características da educação indígena: ela é
permanente e alcança todas as fases da vida.
As jovens lideranças de hoje tiveram acesso a uma educação
indígena nos seios dos seus povos, mas também receberam uma
educação formal um pouco mais respeitosa às suas culturas. A Carta
Magna, em seu Art. 205, informa que a educação é direito de todos.
Especificamente, o parágrafo 2º do Art 210 estabelece que “o ensino
fundamental regular será ministrado em língua portuguesa,
assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas
línguas maternas e processos próprios de aprendizagem”. A
diversidade da educação indígena foi estabelecida pela Lei de
Diretrizes e Bases (nº 9.394) de 1996, que embora formulada com
escasso diálogo com os diferentes povos indígenas (MARCON, 2010,

533
kércia priscilla figueiredo peixoto; reinaldo matias fleuri

p. 97-118), em seus artigos 78 e 79, atribui à União a responsabilidade


de atender a educação escolar indígena em todos os níveis.
Na prática, esse consistente aparato jurídico ainda é incapaz de
efetivar os direitos previstos nos textos legais. Persiste o pouco diálogo
com os povos indígenas e a escassez de verbas. A educação escolar
indígena ainda é tratada como ações pontuais. Pouco se escuta os
indígenas. Em um encontro da Conferência de Educação Escolar
Indígena (CONNEI)223, uma indígena relatava o sacrifício de sair de
sua terra enfrentando dias de viagem de canoa, de barco, de ônibus, de
avião, e reclamava dizendo: “estou cansada de falar pra orelha”. Ela
tinha certeza que ninguém a ouvia. Cumpria-se ali apenas um
protocolo, onde o recolhimento de assinaturas de participações no
evento prestaria conta de uma atenção do governo dedicada à
educação indígena. O regime de falta de colaboração entre os entes
federados emperra a aplicação das leis e consequentemente o
desenvolvimento da educação escolar indígena. Falta de colaboração
orquestrada pelo descaso com que os indígenas desde sempre foram
tratados.

tomam a palavra.

O encontro de dois universos distintos, o europeu e o ameríndio,


com fontes de riqueza, beleza, conhecimentos, seriam complementares
se não houvesse a inferiorização e exploração. É preciso resgatar o
outro à condição de igual, respeitando e valorizando a alteridade.
Quando a indígena pede para ser ouvida, ela quer que sua fala tenha
significado e alcance a compreensão dos técnicos representantes dos
órgãos educacionais. Ela já alcançou o poder da fala, já arrancou do
opressor o poder da palavra, mas quer que sua palavra seja
considerada.
Como afirmou Paulo Freire “a existência, porque humana, não
pode ser muda, silenciosa, nem tampouco pode nutrir-se de falsas
palavras, mas de palavras verdadeiras com que os homens
transformam o mundo” (FREIRE, 1975, p. 92). Os indígenas
precisaram arrancar a palavra do opressor. O relato do cacique
Guarani Anildo Lulú224 revela um pouco dessa história e de como o
conhecimento da oralidade e da escrita foi importante:
No tempo de criança, lá em 1976, tinha lá meus 5, 6
anos, eu via meu finado avô pra chegar pra sede de
posto pra reivindicar, na época era a Funai que mexia

223Realizado em Belém, em abril de 2017.


224Durante o VI Encontro Nacional do Estudantes Indígenas (ENEI) realizado na
cidade de Santarém (PA), em outubro de 2016.

534
“um pouquinho de cada”: os indígenas ensinam a educar.

com a saúde, ele colocava o seu chapeuzinho lá em


baixo, e [o chefe de posto] ficava tipo um coronel lá em
cima, e ele [o avô] não tinha nem mesmo condição de
subir, de dialogar com o chefe de posto na época. Mas,
com o passar do tempo isso foi acabando porque teve
alguém, nossos parentes que deram a vida para ter esse
espaço de um dia nós chegarmos e poder falar cara a
cara com o chefe de posto. Subiu a escada pra poder
falar. E nossos parentes não tinham leitura, não sabiam
escrever, falavam com dificuldade o português, mas
conseguiram avançar, subir essa escada.
Não foi fácil “subir a escada” para poder falar “cara a cara com o
chefe do posto” conquistando o poder da fala. Cacique Lulú relatou
episódios de reinvindicação, manifestação e confronto entre lideranças
da Funai e lideranças indígenas na luta por seus direitos. O sentido da
educação sempre foi na única direção de o indígena dominar os meios
da sociedade envolvente, oralidade e escrita, para lutar por direitos
através de muita pressão. O cacique relata que “depois de muita briga,
de confronto direto, conseguimos avançar do posto e chegar até a sede
regional da Funai pra conversar com o delegado regional (...). A gente
conseguiu avançar pra discutir nossa saúde, nossa educação, nosso
direito. Já avançando”. Um outro degrau alcançado foi a escrita: “já
começaram a escrever meia folha, mas conseguindo encaminhar
documento pra Funai Brasília”, conseguir encaminhar documentos foi
uma conquista. Pouco a pouco e com muita luta eles conseguiram
subir a escada e conquistar o poder da fala. Querem agora ser ouvidos,
por que não são?
Não há respeito à alteridade. Sobre as considerações do Outro, o
pensamento de Emmanuel Levinas (1993) enfatiza que o Outro quer
ser ele mesmo e não apenas incluído em lógicas alheias. Lógica que
reconhece humanidade nos indígenas, mas em clara condição de
inferioridade. Tal subjugação justificaria a dominação. Contudo, os
indígenas lutam pelo direito de ser eles mesmos, por isso se insurgem
e resistem. Dussel (1992) nos ajuda a compreender as ações e
motivações dos povos originários pelas suas próprias existências. O
filósofo explicita e critica as relações assimétricas e opressivas de
poder frutos da modernidade, na qual uns se constituem “senhores”
de Outros que são rebaixados a inumanos, inferiores, não civilizados.
Para Dussel:
A “conquista” é um processo militar, prático, violento
que inclui dialeticamente o Outro como o “si-mesmo”.
O Outro em sua distinção, é negado como Outro e é
sujeitado, subsumido, alienado a se incorporar à
totalidade dominadora como coisa, como instrumento,
como oprimido, como “encomendado”, como
“assalariado”. (1992, p. 44).

535
kércia priscilla figueiredo peixoto; reinaldo matias fleuri

O filósofo revela o sofrimento do outro como fruto dessa


sujeição. A ética da libertação denuncia a opressão gerada pelo
eurocentrismo ao mostrar como o ego moderno encobre e nega o
Outro em sua alteridade. Ele se inspirou no pensamento sobre
alteridade de Levinas, para quem o “outro” é o europeu massacrado (o
judeu), e adequou a análise para a América Latina, onde o “outro” é
quem está à margem da sociedade: o excluído do sistema. A crítica de
Dussel confronta a centralidade da eticidade na qual a Europa se
constituiu como o mundo humano por excelência, relegando aos
mundos dos Outros, de culturas não europeias, o lugar da barbárie, da
marginalidade, do não ser.
A Ética da Libertação de Dussel está pautada no legado de Paulo
Freire. O princípio ético-crítico freiriano (BORGES, 2014) concebido
por Dussel na sua ética da libertação, enfoca a visão de Freire de ser
humano, de mundo, de educação, de história, dentro de uma ética
humanizante. Trata-se de uma “ética da vida”, na qual se dá a relação
entre opressores e oprimidos, entre os que proíbem os outros de ser e
aqueles a quem são negados esse direito. Para Dussel “Freire não é
simplesmente um pedagogo, no sentido específico do termo, é algo
mais. É um educador da consciência ético-crítica das vítimas, os
oprimidos, os condenados da terra em comunidades” (DUSSEL, 2000,
p. 427). Freire ensina que o caminho da tomada de consciência ético-
crítica até a conscientização nasceria através do diálogo crítico e
problematizador. Esse princípio da pedagogia de Freire faz com que as
próprias vítimas, como “o ser negado”, tenham consciência e alcancem
transformações histórico-sociais, tornando-se assim em sujeitos
históricos:
O educando não é só a criança, mas também o adulto e
particularmente, o oprimido, culturalmente analfabeto,
dado que a ação pedagógica se efetua no horizonte
dialógico intersubjetivo comunitário mediante a
transformação real das estruturas que oprimiram o
educando. Este se educa no próprio processo social e
graças ao fato de emergir como “sujeito histórico”.
(DUSSEL, 2000, p. 435)
É a partir da percepção de Paulo Freire que a Ética da Libertação
de Dussel (2000) parte da vítima, em algum aspecto negado-oprimido
e afetado-excluído, para ser uma ética de transformação através de
ações críticas cotidianas. É uma ética que critica a exclusão social
através da afirmação radical da vida negada às vítimas. O sistema
nega o reconhecimento da vítima como um outro que deseja e luta
pela vida. Como sujeitos históricos e políticos, os indígenas são
conscientes e figuram uma transformação histórica e social.
Na região do Baixo Tapajós a consciência ética-crítica foi
despertada quando as comunidades locais tiveram acesso à Rádio
Educadora de Santarém, inaugurada em 1964 pela Diocese. Neste
536
“um pouquinho de cada”: os indígenas ensinam a educar.

mesmo ano em que o Brasil sofreu o golpe militar, o trabalho de


conscientização das centenas de comunidades espalhadas nas beiras
dos rios começou. Pela primeira vez, os povos da floresta tiveram
acesso a um meio de comunicação - ainda hoje única forma de receber
comunicação para muitas comunidades. A rádio inaugurava com o
programa Movimento de Educação de Base (MEB), que alfabetizava
através da metodologia freiriana e conscientizava os trabalhadores da
terra. O MEB deu origem às Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), e
na região o lema “Viver é lutar” configurou posteriormente a
conquista dos territórios e de identidades:
As CEBs contribuíram para a formação dos movimentos
sociais e foram responsáveis pela formação das
lideranças comunitárias que tiveram um papel decisivo
nas conquistas locais. Grande parte dos personagens
decisivos para a transformação da realidade local,
através da conquista dos territórios, sejam eles
comunitários, membros da Igreja, sindicalistas ou
integrantes de Organizações Não Governamentais
(ONGs) foram formados dentro das CEBs. (PEIXOTO,
2017, p.151)
A luta pela terra conformou os territórios que hoje são Reserva
Extrativista e Terras Indígenas e a necessidade de comprovação de
perenidade e vínculo com terra, no final dos anos de 1990, jogou luz na
ancestralidade indígena daquela população. Conscientes, eles
perceberam que “uma gota” da cultura do branco não extraía deles a
indianidade, mas que tinha sido sim uma estratégia eficaz de oprimi-
los, inculcando neles a vergonha de sua própria cultura, para tentar
arrancar deles o direito primordial à terra que sempre viveram.
Revelaram os rituais indígenas que praticavam escondidos.
Valorizaram suas comidas e seus modos de fazer. Nunca deixaram de
pedir permissão aos seres visíveis e invisíveis que habitam rios e
matas, para caçar e pescar. Mantêm uma relação de reciprocidade com
a terra. Os indígenas se libertaram e isso é decolonial.

para concluir - uma proposta pedagógica indígena.

É para os jovens indígenas afirmados da região do Baixo Tapajós


que o cacique Dadá pergunta: “Tem algum professor aqui de aldeia?
Levante a mão”. Alguns levantam e ele se direciona a um deles
questionando: “Parente tu tem roça?”. A resposta é negativa e o
cacique explica “todos os professores hoje estão submissos a uma
educação capitalista nas escolas indígenas” porque eles têm que
cumprir 200 dias letivos de fevereiro a junho e de agosto a dezembro:
“Cadê o tempo que ele tem pra fazer a roça dele?”, ele pergunta.
O cacique Dadá explica que os indígenas da Terra Indígena
Maró estão construindo um plano pedagógico com 200 dias letivos,

537
kércia priscilla figueiredo peixoto; reinaldo matias fleuri

para o prazo de um ano e meio, dividido em quatro ciclos. Assim,


sobraria tempo para trabalharem em suas roças:
Porque só assim “eu como professor vou ter tempo de
fazer a minha roça, vou ter tempo pra cuidar da minha
roça. É aí que vou ter tempo pra eu caçar. Quando a
educação nesse projeto chega pra gente, dessa forma
como tá sendo imposto, além de ser professor nós
passamos a ser patrão. Que coisa feia! Nós ser patrão do
nosso próprio parente. “Ah eu faço uma roça pra ti! Ei
professor eu te vendo um saco de farinha, me dá
tanto...” Claro virou patrão... Cadê a nossa vizinhança?
Não tem. Mas, por quê não tem? Por que eu não
converso mais com meus mais velhos?225
Os indígenas enfrentam um sistema educacional que lhes é
imposto porque, além de valorizarem sua forma de educar tradicional,
são agentes de transformação de uma estrutura que lhes submete e
não lhes convém. Isso responde à preocupação da antropóloga Marina
Kahn, quando vinte anos atrás afirmou “que não existe Educação
Indígena que caiba num modelo de escola” (1994, p. 137) e desabafa:
“Um dia, espero – e tenho sim essa esperança que se contrapõe ao meu
atual criticismo – que as comunidades indígenas tenham seus
intelectuais assumindo a conceitualização de algo que será relativo ao
processo de ensino e aprendizagem de alguma coisa que eles têm que
partilhar com sua comunidade” (idem, p. 138). O tempo passou e as
jovens lideranças sabem que as estratégias de luta agora são outras,
conforme disse Luana Kumaruara: a luta hoje é “com papel e caneta”.
Mesmo que ainda não de forma ideal, a conquista de direitos na
área da educação possibilitou o acesso à formação de muitos
indígenas. Especialmente através das Licenciaturas Interculturais
Indígenas, a escola se adequa a uma educação indígena ao valorizar os
saberes tradicionais dos povos. A Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC), através da Ação Saberes Indígenas na Escola (ASIE)
oferece formação continuada aos professores da educação escolar
indígena de escolas ligadas à Secretaria Estadual de Educação
(SED/SC). No estado do Pará, os indígenas lutaram para ter a
disciplina de “Notório Saber”, oferecida geralmente por aqueles que
conhecem e dominam as práticas culturais do seu povo. Contudo,
conforme consideram Orço e Fleuri (2010):
Uma escola indígena representa um grande desafio no
sistema educacional e exige das instituições e órgãos
responsáveis a definição de novas dinâmicas,

225Fala do Cacique Dadá no I Encontro da Juventude Indígena do Baixo Tapajós,


realizado nos dias 07, 08 e 09 de Julho de 2017, na aldeia Lago da Praia, município de
Santarém - PA.

538
“um pouquinho de cada”: os indígenas ensinam a educar.

concepções e mecanismos, tanto para que essas escolas


sejam de fato incorporadas e beneficiadas por sua
inclusão, quanto para que sejam respeitadas em suas
particularidades (2010, p. 343).
A definição de novas dinâmicas, concepções e mecanismos,
deverá considerar a escuta das propostas pedagógicas que os
indígenas fazem. Eles conquistaram o poder da palavra e informam
como querem a educação se dispondo a construir juntos. Precisam
ainda ser ouvidos. É necessário abertura à alteridade para escutá-los e,
em um esforço coletivo, construir uma escola mais adequada que os
beneficie e que também possa servir de modelo inclusive para as
escolas de ensino regular. Escutar é desconstruir a certeza da
superioridade e se abrir à alteridade. Assim, é possível aprender o que
os indígenas têm a ensinar. O cacique Dadá ensina:
A nossa proposta pedagógica é muito aberta.
Primeiramente conhecer o que é nosso, entender o que é
nosso, estudar o que é nosso e em segundo lugar
estudar o que é de fora, porque nem todo dia eu tô aqui
[na aldeia]. O dia que tiver lá [na cidade], eu tenho o
conhecimento do que é um sinal de trânsito. Não
descartando, mas nós vamos estudar um pouquinho de
cada e entender esse pouquinho de cada é nós viver
em uma sociedade. (Grifo nosso).226
Parece simples, mas entender “um pouquinho de cada” é uma
proposta de educação com grande valor epistêmico. É intercultural,
dialógica, com reconhecimento e profundo respeito à alteridade. Os
indígenas falam, ensinam. Escutar é atitude necessária para aprender
com eles. Propondo planos pedagógicos para a própria educação, os
indígenas oferecem instrumentos para que ocorram processos
transculturais. Isso favorece que pessoas se eduquem mediatizadas
pelo mundo (FREIRE, 1975), mas também que povos e culturas se
transformem mediatizados pela “relação entre as pessoas” (FLEURI,
2017).

referências

ASSIS, Eneida. Escola indígena: uma “frente ideológica”?. Dissertação de


mestrado. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. Universidade
de Brasília. Brasília, 1981.

226Fala do Cacique Dadá no I Encontro da Juventude Indígena do Baixo Tapajós,


realizado nos dias 07, 08 e 09 de Julho de 2017, na aldeia Lago da Praia, município de
Santarém - PA.

539
kércia priscilla figueiredo peixoto; reinaldo matias fleuri

BORGES. Waldir. O princípio ético-crítico freireano. Rev. Diálogo Educ.,


Curitiba, v. 14, n. 41, p. 213-231, jan. /abr. 2014.
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Acesso em 02/04/2018>
CAPORRINO, Bruno. O desenvolvimento e o fim da cosmovisão indígena.
Entrevista especial com Bruno Caporrino. Instituto Humanitas Unisinos.
Publicada em 26 de Agosto de 2015. Disponível em:
http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/546118-o-desenvolvimento-e-o-fim-
da-cosmovisao-indigena-entrevista-especial-com-bruno-caporrino
CARVALHO, Lucas Borgas de. Direito e Barbárie na Conquista da América
Indígena. Seqüência, n. 49, p. 53-70, dez. de 2004. Disponível em:
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541
542
outras paisagens no ensino de filosofia: do continente ao
arquipélago

luís carlos ferreira


ufba
lcarlosfsantos@gmail.com
eduardo oliveira
ufba
afroduda@gmail.com

formação docente e ensino de filosofia

A questão que orienta o artigo Outras paisagens no ensino de


filosofia: do continente ao arquipélago227 se dá em torno do debate do
diverso da paisagem no ensino de filosofia. Para discutir tal questão,
problematiza-se dois conceitos presentes no pensamento do filósofo,
poeta e ensaísta Édouard Glissant: continente e arquipélago. Portanto,
o caminho pretendido do artigo é de problematizar a visão única do
ensino de filosofia, compreendendo esta abordagem como um
problema filosófico.
O ensino de filosofia na história da educação contemporânea
brasileira tem seu marco legal estabelecido com a lei 11.684, de dois de
junho de dois mil e oito, que torna o ensino de filosofia e sociologia
obrigatório228.
A discussão do em torno do ensino de filosofia é um campo em
disputa, tanto do ponto de vista epistemológico quanto político. A
paisagem a qual se filósofa no Brasil ainda é marcada pela produção
de sentido europeia e norte americana. Nesse sentido, a filosofia
precisa criar conceitos e imaginários para a superação desta vontade
obstinada do um, a qual insiste em permanecer, ora com o discurso de
tradição filosófica, sendo esta uma tradição apenas europeia, ou na

227 O artigo em questão está em diálogo de maneira direta com o artigo Outras vozes

no ensino de filosofia: o pensamento africano e afro-brasileiro de Wanderson Flor do


Nascimento (2012).
228 Algumas abordagens do ensino de filosofia: CEPPAS, Filipe. Responsabilidade do

ensino de filosofia nos trópicos. O professor-xamã.


Disponível: file:///C:/Users/luis/Downloads/414-1-45-1-10-20170524%20(1).pdf.;
GALLO, SÍLVIO. Metodologia do ensino de filosofia. Uma didática para o ensino médio. São
Paulo: Papirus, 2012; SEVERINO, Antônio Joaquim. A filosofia contemporânea no
Brasil: conhecimento, política e educação. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.

543
luís carlos ferreira; eduardo oliveira

busca de deslegitimar as perspectivas latino-americana e/ou africana


na produção e disputa de sentidos.
O diverso da paisagem no ensino de filosofia coloca em intenso
movimento de discussão e questionamento a perspectiva do
continente, cuja abordagem filosófica se dá pela transparência. A
paisagem continental impõe o seu modo de interpretação da realidade.
No entanto, esta paisagem do filosofar é uma contradição, pois “se a
filosofia é a expressão máxima de uma cultura, é necessário que
essa filosofia seja a expressão máxima da liberdade”229. A expressão da
liberdade é um caminho longo que a filosofia persiste. No artigo
Outras vozes no ensino de filosofia: o pensamento africano e afro-
brasileiro, Wanderson Flor do Nascimento problematiza os Institutos
de filosofia no Brasil em persistir na monoculturalidade filosófica. Flor
do Nascimento (2012) aponta que a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação (LDB) determina que os discentes devem terminar o ensino
médio com domínio de conhecimentos de filosofia necessários para o
exercício da cidadania. Flor do Nascimento (2012, p.77) levanta
algumas questões acerca disso: “Mas que filosofia seria esta capaz de
promover ou facilitar o exercício da cidadania? Que conhecimentos
filosóficos seriam os necessários para tal empreitada?” Os Parâmetros
Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (PCNEM) não
respondem de maneira definitiva a estas questões.
Segundo Flor do Nascimento (2012) a LDB ainda indica que a
educação deve oferecer condições para a preparação básica no
encaminhamento para a cidadania e o trabalho do discente, de modo
que seja capaz de relacionar-se com as diversas condições de ocupação
ou aperfeiçoamento posteriores. Além do aprimoramento do
educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o
desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico.
As indicações legais deixam flexível a posição filosófica que mais seja
próxima ou interessante para alcançar tal objetivo. Os documentos
oficiais também reforçam o fato de se relacionar com a vivência dos
discentes, seus saberes e suas culturas.
Seguindo na reflexão acerca da contradição entre o que
determina as diretrizes educacionais e o ensino de filosofia em
particular, citamos as leis 10.639/03230 e a 11.645/08231 cujos conteúdos

229 Trecho da comunicação do filósofo Euclides Mance se referindo a Salazar Bondy,


no I Encontro de Filosofia da Libertação, em São Paulo, em 05/09/2013.
230 Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e

bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a


obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira", e dá outras
providências. In: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.639.htm.

544
outras paisagens no ensino de filosofia: do continente ao arquipélago

não foram inseridos na formação dos futuros profissionais em


filosofia. Partindo da análise das leis anteriormente citadas, podemos
afirmar que não há argumentos legais para que o pensamento
filosófico africano e afro-brasileiro não estejam inseridos neste
conjunto de possibilidades na formação de professores desta
disciplina.
O ensino de filosofia produz uma perspectiva de continente
quando não constrói relações com outras perspectivas históricas e
culturais como as africanas e as afro-brasileiras. Sendo assim, a
tradução de uma única paisagem evidencia uma violência epistêmica
no exercício do filosofar do Brasil.
O combate ao diverso no currículo de filosofia priva os discentes
para uma multiplicidade de produção de paisagens. O imaginário dos
docentes em formação, quando privados de outras filosofias, como as
africanas e latino-americanas não concebem estas filosofias como
legítimas. Neste aspecto, estas formações não conseguem partilhar
com a realidade do todo-mundo da educação. O chão da sala de aula é
aniquilado com a perspectiva de filosofia pura e de um universal sem
paisagem.

abordagem do ensino de filosofia: entre o continente e o


arquipélago.

As perspectivas conceituais apresentadas por Édouard Glissant


são uma chave interpretativa de muita importância para se repensar
um caminhar de pensamento que dialogue com o todo-mundo, mas
que parta das suas próprias paisagens. O pensamento arbitrário teve a
sua construção fundamentada pelo pensamento continente,
(continente é uma expressão utilizada por Glissant para dizer que são
pensamentos totalitários, a qual ele difere com os arquipélagos) o qual
tem as verdades absolutas presas à totalidades.
Glissant, na Philosophie de la Relation, afirma que “nada é
verdade, tudo está vivo” (GLISSANT, 2009, p.106)232. Estar vivo requer
movimento, pede uma experimentação do mundo, e esse é o primeiro
fato para marcar o seu lugar. As paisagens movimentam as ações. E
estas são móveis, pois se caracterizam por articular discursos
paralelos. É a filosofia em arquipélagos, não em continentes. Nessa

231 Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei no 10.639, de
9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para
incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e
Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. In:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm.
232 Tradução nossa.

545
luís carlos ferreira; eduardo oliveira

dinâmica, a verdade está em disputa na construção de um paradigma


ético-estético que dialogue do seu lugar com o todo-mundo.
A filosofia continente articula-se em blocos, os quais constroem
sistemas que se impõe aos outros povos, segundo Glissant (2009).
Porém, no contexto da discussão glissantiana é percebido que o
indivíduo só pode atingir o universal por meio do seu mundo
particular. A filosofia da relação é construída não com o filósofo
questionando a si mesmo no sentido psicológico, introspectivo, mas
buscando vestígios e resíduos das questões que incomoda, voltando a
atenção e os olhos para a sua volta.
O arquipélago seria um mar de influência (móvel) – é o que
Glissant chama de filosofia da relação. A filosofia é uma poética que
tem como características ser não totalitária e pertencente a lugares,
segundo ele,
[...] Porque a palavra poética revela no incansável brilho
intenso das recordações das terras que se desintegraram,
elas também são como as sombras das florestas, que são
ao mesmo tempo caverna e luz, fora-dentro. O poema
sim, invade como claridade o obscuro, repetindo os
gestos dos tempos primeiros. Ele é (ele canta) as
particularidades, e anuncia também a totalidade. Mas
esta é a totalidade da différençe, que jamais é um
imperativo. Pela mesma razão (esta maneira da dialética
não exprimível e não localizável), nestes inextricáveis
atuais e nos vãos ilegíveis dos locais das técnicas
inexprimíveis de leitura, escrita ou a simples evocação
do poema, este traço do primeiro poema ao mundo, são
insuportáveis como àqueles que não querem mais ver
nem entender esta chamada as impunidades reais. Esta
escuta parece uma intolerável desnecessidade desviada
para denunciar as exigências precipitadas das técnicas e
das mono línguas, que apenas não se distraem e que a
ansiedade não pode ser apagada. (GLISSANT, 2009, p.
83-84)233.
As duas características que Glissant defende na filosofia da
relação, o diverso e o lugar, nos interessam. Uma filosofia desde um
lugar, que age com o mundo e pensa em seu lugar. E a
problematização das monolínguas, fundamentadas pela totalidade,
afirmando uma totalidade da différence, busca questionar
filosoficamente as impunidades reais. A lógica injusta traduzida no
discurso do desenvolvimento traz em suas alegorias:
[...] os sofrimentos, os massacres, as fomes, as
epidemias, o esgotamento e prisão de tantas pessoas e
de tantos indivíduos. E a miséria inacabável, mais

233 Tradução nossa.

546
outras paisagens no ensino de filosofia: do continente ao arquipélago

mortal que os massacres. E assim o perecimento do país


do mundo, as florestas com o leilão e os rios
ingurgitados, os mares que evaporam e os mares que se
apressam. [...] (GLISSANT, 2009, p.84)234.
A necessária construção de uma outra ordem de entendimento
do mundo passa, necessariamente, pela desconstrução da ação
violenta caracterizada pelo pensamento estruturado pela colonização.
O imaginário do discurso filosófico que não parte do
movimento, mas do mesmo, é configurado pela obstinada vontade da
transparência. O pensamento de identidade fechada, os continentes
fundamentam a perspectiva do ensino de filosofia da transmissão da
história da filosofia sem questionamento.
A filosofia da relação, tendo o arquipélago como paisagem,
articula-se por meio da complexidade, da ambiguidade. As senhas que
Glissant (2009) apresenta para interpretar a complexidade do
pensamento e para não reduzi-lo à perspectiva da dualidade é vê-lo
como opacidade – categoria, em Glissant que nos leva ao diverso.
Enquanto a transparência afirma o mesmo, a opacidade possibilita o
diverso, pois pressupõe o outro.
A filosofia da relação tem como característica as possibilidades
abertas, o multilinguismo e a tentativa de escapar do pensamento
centralizado, fixo. Glissant, na produção da filosofia e da poética da
relação, procura um entendimento para a construção do conceito de
relação que não reduza o outro ao modelo de sua própria
transparência. Para isso, o martinicano reivindica “não só consentir no
direito à diferença, mas ainda no direito à opacidade” (GLISSANT,
2011, p.180). A opacidade atua na filosofia da relação como aquela que
garante a possibilidade da permanência das fronteiras abertas para a
multiplicidade de sentidos. A opacidade tem como característica o não
encerramento em si-mesmo, mas o estabelecimento de relações. Assim,
“O direito à opacidade não estabeleceria o autismo, fundaria
realmente a Relação, em liberdades”. (GLISSANT, 2011, p. 180).
O conceito de opacidade traduz, em certo sentido, a experiência
crioula da Martinica. Glissant (2005) afirma que na crioulização tudo é
arquipélago, não existe autoridade entre os encontros culturais. O que
ocorre é uma heterogeneidade, na qual ser pertencente dessa
experiência possui uma totalidade aberta, pois tem uma relação
identitária enraizada e aberta.
[...] Esquematizando ao Máximo, diria que a
mestiçagem é o deterMinismo, em contraposição, a
crioulização é produtora de imprevisibilidade. A
crioulização é a impossibilidade de previsão. Podemos

234 Tradução nossa.

547
luís carlos ferreira; eduardo oliveira

prever ou determinar a mestiçagem. Mas não podemos


prever ou determinar a crioulização. (GLISSANT, 2005,
p. 106).
A opacidade não é sinônima de não implicação ou ausência de
opinião. O sentido é possibilitar em ato e potênciar a multiplicidade a
ser colocada em ação. A opacidade tem como critério promover a
liberdade na construção filosófico-literária (estética). Por isso, age
enquanto uma ética, ao possibilitar a explosão de imaginários na
relação da construção filosófica com o lugar. Segundo Glissant (2011,
p. 183-184):
Que, por outro lado, a opacidade instaure um Direito,
seria sinal de que ela teria entrado na dimensão do
político. Temível perspectiva, talvez menos perigosa do
que os erros a que conduziram tantas certezas e tantas
verdades claras, pretensamente lúcidas. Essas certezas
políticas seriam felizmente contidas nos seus excessos
pela sensação, não da inutilidade de tudo, mas dos
limites da verdade absoluta. Como traçar esses limites
sem sucumbir ao ceticismo ou cair na paralisia? Como
conciliar a radicalidade inerente a toda política com o
questionamento necessário a toda relação? Só
concebendo que é impossível reduzir seja o que for a
verdade que não tivesse sido gerada a partir dele
mesmo. Isto é, na opacidade de seu tempo e seu lugar. A
Cidade de Platão é para Platão, a visão de Hegel para
Hegel, a cidade do grioté para o griot. Nada proíbe que
sejam vistas em confluência, sem que sejam confundidas
com magna ou reduzida umas às outras. E também
porque essa mesma opacidade anima toda a
comunidade: o que nos reuniria para sempre,
singularizando-nos incessantemente. O consentimento
geral nas opacidades particulares é o mais simples
equivalente da não barbárie.
A opacidade é a imprevisibilidade que possibilita uma
heterogeneidade de produção de sentidos. Esta característica se dá
desta maneira devido uma errância enraizada. De acordo com Glissant
(2011), a errância é a recusa ao universal generalizante, o qual reduz
um único território à lógica da transparência. Assim, a busca pela
construção epistemológica que não legitime ações universalistas
arbitrárias, fundamentadas pela lógica da identidade são questões
problematizadas por Glissant.
A perspectiva poética e filosófica de Glissant possibilita a
ausência da autoridade do conceito totalitário na produção de
sentidos. A paisagem construída na filosofia da relação parte desde o
lugar (Caribe) e este espaço é onde a ação e a voz do afrodescendente
articulam-se. E essa cooperação engaja-se na luta contra a ação
redutora do pensamento filosófico-ocidental moderno.

548
outras paisagens no ensino de filosofia: do continente ao arquipélago

A filosofia da relação é necessariamente política, mas com


sentidos estéticos através de sua poética. A construção da paisagem do
mar, por Glissant, leva à dimensão estética de compreender a ligação
além-mar do Caribe com a África. A leitura filosófica do negreiro por
esse autor remete a uma obra literária, a uma peça teatral, a uma tela
de cinema. A filosofia política de Glissant é estética, com
desdobramento ético e tem, na problematização da identidade como
relação, a opacidade – que atua como uma reivindicação de uma
identidade, um lugar em que se pisa, e, desde este contexto, dialoga
com o todo-mundo.
A filosofia da relação é uma ação poética de preservação da
dignidade, da memória e dos que tiveram sua liberdade retirada. Essa
preservação parte da ruptura como início. A origem não é fechada ao
todo, não tem origem única. Pela constituição dessa não origem
fechada, a filosofia da relação é livre das sínteses impostas, mas, ao
mesmo tempo, não se dissolve nos múltiplos sentidos do diverso, visto
que, segundo Glissant (2009, p. 83),
As poéticas nos aproximam do todo, mas ao mesmo
tempo nos retira das visões globais, ou das visões
sintetizadoras, as quais nos lança na ilusão de que
podemos dominar o caos-mundo, elas nos dão um
escape para as vertigens dos infinitos detalhes da
multiplicidade, mas isto está precisamente inscrito em
nós, nos colocamos a olhar sob as rochas de nossos rios,
a saltar sobre as rochas do tempo.235
A defesa de Glissant de partir filosoficamente desde o lugar é
para livrá-lo das falsas finalidades. A poética é sempre uma filosofia, e
inversamente. Essa dança de não estar fechado ao todo, nem disperso
na diversidade, sem se ligar a nada nem a coisa alguma, assegura
tanto a filosofia quanto a poesia do equívoco das ações injustas, das
finalidades sem uma previsível caoticidade dos discursos. É uma
filosofia de navegação, deriva, mas com alvo a ser acertado. A deriva
ou o pensamento de navegação tem a finalidade de reconstruir as
memórias perdidas.
E a reconstrução da memória é estratégia necessária no
reconhecimento das paisagens do lugar e do chão em que se pisa. O
contexto, o chão, o solo, os símbolos são personagens filosóficos. Esses
elementos produzem uma fixidez e caoticidade no modo de fazer
filosofia no movimento da perspectiva da relação, segundo Glissant
(2009, p. 88-89),
Fixos ou caóticos, e talvez derivado destas duas
naturezas, os pensamentos percorridos, rizomas

235 Tradução nossa.

549
luís carlos ferreira; eduardo oliveira

errantes, não fundam limites para o silêncio. A velha


mudez das nossas noites é propicia à meditação
paciente dos tempos, mas ela está sempre aberta, sim!
Entre dois clarões! Ela se desloca e explode e de repente
se encanta conosco.
[...] Viver o mundo: experimentar o mundo: primeiro
experimente o seu lugar, suas fragilidades, suas
energias, suas intuições, o poder de mudar, de
permanecer. Suas políticas. Experimente o lugar: dizer
ao mundo bem236.
A abordagem do ensino de filosofia a partir da filosofia do
arquipélago tem como característica o lugar, o diálogo com a memória,
e a crítica a perspectiva do fundamento, da fixidez. Outra
característica é a defesa das não verdades absolutas.
Os sistemas fixos e fechados são substituídos por uma paisagem
de pensamento de navegação, trânsito, movimento. A estrutura do
pensamento é a desordem, a característica do mundo é a sua
imprevisibilidade, indeterminação.
Os sistemas de opressão são organizados fixamente nas lógicas
da mesmidade. A filosofia da barbárie não compartilha a realidade do
todo-mundo e não potencializa o diverso no mesmo, pois o que se
potencializa é a conquista do mundo, de si-mesmo. O outro é objeto a
ser devorado. O todo-mundo é tomado pela percepção do mesmo e do
diverso é justificado pela ideologia da exclusão. Entretanto, na filosofia
da relação que tem os arquipélagos movimentando suas ações, há uma
projeção do todo-mundo como uma “aldeia global”, segundo Glissant
(2009, p. 110), e:
Nesse momento onde o todo-mundo é projetado por nós
na imaginação como uma comunidade planetária, todo
cercado, e contornado, é experimentado por nosso
imaginário como uma Relação em quantidades finitas e
as fronteiras ilimitadas, os incertos é para nós também
impressionantes que os dados do mundo, a
representação legível do Todo-mundo, que apareceria a
nós mais evidente (os mais reais), que é para dizer aos
mais carregados em incertezas.
A imaginação dos povos dominados se alimenta de
alienações concretas, e, por exemplo, das representações
convencionais dos paraísos de imigração que são
proibidos, mas as suas moscas imaginárias, ao contrário,
para satisfazer das resoluções do dissolvido ou do não-
resolvido colonialismo237.

236 Tradução nossa.


237 Tradução nossa.

550
outras paisagens no ensino de filosofia: do continente ao arquipélago

Os povos dominados aos quais Glissant refere-se são os


africanos que, historicamente, viveram a infâmia da escravidão
justificada pela razão, que ao atravessar o Atlântico, viveram a
barbárie das injustiças mas souberam reconstruir suas memórias por
meio dos legados culturais da África, afetando os povos da diáspora.
Nesse sentido, o filósofo caribenho afirma o fato da África ser desde o
início uma terra diaspórica. A África seria este todo-mundo, como
uma totalidade aberta. A reflexão acerca da diáspora africana é o
leitmotiv do pensamento glissantiano.
No filme Édouard Glissant: One World in Relation238, Glissant faz a
seguinte afirmação: “não esqueçamos que a África foi a fonte de todo
tipo de diáspora. A diáspora da origem da humanidade e a da
escravidão. E hoje a diáspora imposta pela pobreza, imigração e
miséria”.
A abordagem do ensino de filosofia desde os arquipélagos
provoca o diverso na educação. Os arquipélagos, a junção deles,
permite a visão do todo-mundo. Este todo-mundo é a totalidade
realizada dos dados conhecidos e desconhecidos do universo. As
paisagens, formadoras dos arquipélagos, são categorias do sendo,
conduzem para além de si-mesmo e fazem conhecer o que está em nós.
As paisagens vivem e morrem em nós e conosco. É possível você
frequentar uma paisagem antes de ter ido a ela.
A discussão do ensino de filosofia a partir do pensamento
arquipélago tem sua contraposição estabelecida pelo pensamento
continente, que possui apenas uma paisagem como uma imagem. O
ensino de filosofia persiste no pensamento continental. O
“pensamento continental, que desvela em diásporas os esplendores do
Uno. Pensamento arquipélago, onde se concentra a infinita variação da
diversidade. Mas a aliança entre eles ainda está por vir”. (GLISSANT,
2014, p. 219).
O pensamento de continente fundamentou a violência
monocolonial e a perpetuação da violência contemporânea. Nos
bairros de lata e nos guetos das pequenas cidades funcionam a
violência da miséria e da lama, mas existe também a raiva inconsciente
e desesperada de não se compreender o caos do mundo. Os
dominadores mais uma vez tiram o partido do caos enquanto os
oprimidos se desesperam com ele.
O pensamento de arquipélago estabelece a discussão acerca da
identidade no pensamento de Glissant. A identidade deixa de ser mera
permanência, mas é variável. O pensamento de identidade enquanto
raiz (pensamento continental), forjada do mistério sagrado da raiz,

238 [Filmevideo] Direção de Manthia Diawara. Estados Unidos da América, 2010, 52

min.

551
luís carlos ferreira; eduardo oliveira

busca o refúgio generalizante do universal enquanto valor. A


identidade compreendida enquanto sistema de relação (pensamento
arquipélago), como “dar-se com”, está, inversamente, contestando o
universal generalizante e que tanto mais requer a severa exigência das
especificidades.
A identidade pode ser resumida como a identidade raiz,
fundada numa visão do mito da criação do mundo. É santificada pela
violência oculta de uma filiação é ratificada pela pretensão à
legitimidade, que permite a uma comunidade proclamar o seu direito
à posse da terra, que se torna assim um território. É preservada através
da projeção em outros territórios que se torna legítimo conquistar – e
pelo projeto de um saber. A identidade raiz fundamenta o pensamento
de si e do território.
A outra possibilidade é identidade relação, ela não está ligada a
criação do mundo, mas a vivência contraditória e consciente dos
contatos entre culturas. A identidade constitui-se na trama caótica da
relação, e se afasta da violência oculta da filiação e da lógica da
legitimidade. Não concebe a terra como um território, de onde se
projete para outros territórios, mais um lugar onde as pessoas se dão
em vez de se compreenderem. A identidade-relação resulta no
pensamento da errância e da totalidade.
O pensamento continente desenraizou o sagrado com o massacre
dos índios. A partir dessa experiência as terras das Antilhas não
poderiam tornar-se território. Mas sim terra rizomada, errante.
Segundo Glissant (2011, p. 142),
Enquanto absoluto enraizado, a terra da Martinica não
pertence nem aos descendentes dos africanos
deportados, nem aos békés, nem aos hindus, nem aos
mulatos. Mas aquilo que era consequência da expansão
europeia (o extermínio dos pré-colombianos, a
importação de população nova) é precisamente aquilo
que funda uma nova relação com a terra: não o absoluto
sacralizado de uma posse ontológica, mas a
cumplicidade relacional.
Glissant é um autor que percorre as circunstâncias do mundo. E
um dos conceitos apresentados que sustenta o movimento do
arquipélago é a crioulização, o qual foge da noção de filiação e se
aproxima da cumplicidade relacional. Glissant faz uma distinção entre
crioulização e crioulidade. A primeira é entendida como aquela que
move não apenas as definições das identidades, mas a relação com o
todo possível. Já a segunda regressaria às negritudes, às francidades,
às latinidades, pois todas elas são generalizantes.
A crioulização é imprevisível, de acordo com Georges Desportes
(2008), pois ela dialoga com o princípio de incerteza de Heisenberg e
com a errância negro-africana, a fim de produzir o entendimento e a

552
outras paisagens no ensino de filosofia: do continente ao arquipélago

imagem da crioulização. É importante para o entendimento do


arquipélago a imagem da crioulização.
O tremor imprevisível do todo-mundo presente nos
arquipélagos passa hoje pela crioulização atual, os imaginários em
relação, que traduzem o infinito que são esses arquipélagos:
imprevisível, heterogêneos, diversos. Os arquipélagos são lugares que
se encontram por meio de múltiplas territorialidades, se interconectam
sem a necessidade de códigos. São compostos de imaginários que
atravessaram o oceano. E esta multiplicidade de imaginários
correspondem ao tremor imprevisível do todo-mundo. O diverso dos
imaginários é um convite ao infinito dos arquipélagos.

conclusão

O ensino de filosofia a partir de outras paisagens que não


estejam marcadas pelo discurso de origem da filosofia estabelece o
diverso no cenário filosófico brasileiro. E o debate para a ampliação de
uma abordagem múltipla no ensino de filosofia é coberta pelo discurso
legal, de acordo como foi visto por FLOR DO NASCIMENTO (2012).
A ausência ou a tentativa de negar o diverso das paisagens no
ensino de filosofia no Brasil são a negação do estatuto ontológico dos
seres humanos afrodescendentes neste território. Os contextos,
cenários, as representações simbólicas que expressam as significações
da filosofia brasileira se constroem, em sua maioria, a partir apenas
dos paradigmas europeus.
A adoção da pluralidade do ensino de filosofia iria atender o que
se pede na legislação. Na análise da LDB e dos Pcns, FLOR DO
NASCIMENTO (2012) conclui que não encontra nenhuma justificativa
fundamentada para que o pensamento filosófico elaborado no
continente africano e afro-brasileiro não sejam incluídos na experiência
do pensamento brasileiro. Portanto, não justifica a abordagem do
ensino de filosofia persistir no desejo do uno, da homogeneidade e da
monoculturalidade, apenas dialogando com uma paisagem.
O ensino de filosofia em diálogo com o arquipélago contribui
para reforçar a importância da disputa pelo imaginário no exercício do
filosofar. O imaginário totalitário de um universal sem paisagem
perde sentido quando localiza o cenário, o texto e a cena. A filosofia
ganha movimento dinâmico na relação com as paisagens definidas em
diálogo com o todo mundo.

referências

BRASIL. Presidência da República. Lei n° 9.394, de 20 de dezembro de 1996.


Estabelece as diretrizes e Bases da educação nacional. Disponível em:

553
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554
educação popular: um projeto em movimento para a
superação da ordem hegemônica

márcia mara ramos


uerj
marciapterra@gmail.com

introdução
A sabedoria da Europa
e a prosperidade dos Estados Unidos
são dois inimigos da liberdade de pensar
...na América...

Simón Rodríguez

A Educação Popular surge das lutas reivindicatórias em


diferentes períodos, da resistência das classes populares e se torna um
instrumento de luta contra as concepções liberais de educação e se
propõe a construir alternativas educacionais e culturais. Para Paludo
(2012), no Brasil foi possível identificar três períodos que
acompanharam o processo de desenvolvimento da educação popular.
O primeiro foi com a Proclamação da República de 1889 -1930 entre a
disputa e controle do desenvolvimento, na transição do modelo
agrário-exportado, quando movimentos socialistas, anarquistas e
comunistas construíram alternativas educacionais frente à pedagogia
tradicional. O segundo momento ocorre entre a Revolução em 1930 e o
golpe militar de 1964 entre o confronto de projeto que ficou conhecido
como “cultura popular”, com o protagonismo e teorização de Paulo
Freire, O terceiro momento se refere à década de 1980, onde a
educação popular “firma-se como concepção de educação do povo”
estabelecendo “vinculo entre educação e política, educação e classe social,
educação e conhecimento, educação e cultura, educação e ética, e entre
educação e projeto de sociedade”. (PALUDO, 2012, p. 281-289).
O MST surge em 1984, no auge da luta contra a Ditadura e neste
processo constrói a Pedagogia do Movimento, que guarda relações
com o pensamento de Simón Rodríguez, como a luta pela
democratização do conhecimento para as classes populares, a arte e
cultura como um direito da humanidade, a relação da técnica com o
trabalho, sendo a educação popular o projeto geral.
O pensamento de Rodríguez e seu compromisso militante
estiveram vinculados ao projeto Bolivariano, para a construção da
“América independente” e o fim do domínio espanhol nos países da
América Latina. Simón Bolívar promove a luta pela libertação dos
territórios, que até então eram colônias da Espanha, e que se tornaram

555
márcia mara ramos

independentes e deram origem aos países da Venezuela, Colômbia,


Equador, Peru e Bolívia.
A educação popular na concepção de Rodríguez compreende
que todas as pessoas têm o mesmo valor, ou seja, a “igualdade de
todos ou uma totalidade de iguais”, rompendo com o pensamento
colonial que considera que as pessoas têm direito a uma educação
diferente em função de sua posição social. Afirma, assim na America
Latina, através de seu pensamento e sua luta a possibilidade de uma
escola diferente, uma escola para iguais compreendendo que
não é na escola que se constrói a cidadania, mas é
porque os que entram na escola são cidadãos que nela se
forma num modo de vida republicano. Não se entra na
escola para ser cidadão: é porque se é cidadão que se
entra na escola. (KOHAN, 2016, p. 16).
Simon Rodríguez239, com seu pensamento, prática, literatura e
militância, bem como afirmam DURÁN e KOHAN (2016), embora seja
da América Latina, “é um ilustre desconhecido” no Brasil. Diante do já
mencionado, não foi uma das referências para o MST em suas
elaborações no que se refere à construção da pedagogia do
Movimento. É importante destacar que a prática e a formulação da
concepção de educação do MST têm aproximações com o pensamento
de Rodríguez, através da ideia de superação da ordem, defendendo
uma escola de iguais, educadora daquelas e daqueles que a colonização
desconsiderou como humanos. S. Rodríguez lutou pela liberdade do
sistema de monarquia, e do projeto internacionalista, desbravou
fronteiras e se tornou conhecido como o maestro libertador na América
Latina e Europa.
A educação em movimento, no MST, se destaca pela necessidade
de fazer uma educação contra-hegemônica em um país onde a
prioridade não são os direitos sociais. O MST surge no final da
Ditadura Empresarial (1964-1985), em meio a um processo de luta e
resistência, em várias regiões do país, motivado e forjado pela
Comissão Pastoral da Terra – CPT, com o objetivo de organizar
famílias do campo para lutar pela terra e pela reforma agrária -

239Nasceu em Caracas - Venezuela em 1769, segundo registro de batizado. Morreu no


ano de 1854, na periferia do povoado do Amotapa, no Peru. Fez uma viagem que
durou mais 25 anos pela América Central, do Norte e Europa, percorrendo Jamaica,
Estados Unidos, França, Alemanha, Itália, Rússia e Inglaterra. Colaborou com a causa
da independência da coroa espanhola, foi tutor de Simón Bolívar e companheiros de
viagens na Europa. Professor de ensino Fundamental e nomeado por Bolívar,
Ministro da Educação na República da Bolívia. (DURÁN; KOHAN, p. 8-10). Para
saber mais, ver livro Inventamos ou Erramos (DURÁN; KOHAN, 2016; e O Maestro
Inventor, KOHAN, 2013).

556
educação popular: um projeto em movimento para a superação da ordem hegemônica

resistindo e ocupando o latifúndio brasileiro e se tornando um


Movimento Nacional no ano de 1984.
O MST, desde o seu início, compreende que o que faz acontecer
o Movimento é a participação de todas as pessoas que estão inseridas
nos acampamentos e assentamentos, incluso as crianças. É no contexto
da luta, em meio à conflitualidade agrária, que a pedagogia do MST
vai sendo construída através de um conjunto de ações que
proporciona a organização da coletividade, sendo a educação uma das
frentes onde desenvolve o trabalho de formação Para e Com as crianças
Sem Terrinha, a luta por escolas nas comunidades, a educação de
jovens e adultos e a formação de educadores. A concepção de
educação do MST vai sendo elaborada a partir da prática educativa,
tendo como materialidade a realidade concreta da luta, exigindo um
aprofundamento das práticas, buscando conhecer outras experiências
populares, bem como estudar os fundamentos da escola do trabalho,
com base nos estudos da pedagogia socialista, com os pensadores
russos; e da educação popular, com referencia na Pedagogia do
Oprimido de Paulo Freire; é o que dá alicerce para a gestação da
Pedagogia do Movimento Sem Terra.
Foi necessário para compor o trabalho pedagógico, nos
acampamento e assentamentos, lutar e propor uma Escola diferente,
projetada a partir da realidade local, com a comunidade, tendo
presente a dimensão de mundo; da Educação de Jovens e Adultos -
EJA, dívida histórica com a população brasileira, pois para o MST o
estudo, o conhecimento é um passo importante para a conquista da
liberdade. Portanto, transformar os acampamentos e assentamentos
em território livres do analfabetismo é compromisso do MST.
Embora o MST e Rodríguez sejam de épocas muito distintas, é
possível apontar proximidades entre as concepções de ambos, como a
luta contra o sistema dominante, na época de Rodríguez o colonial, na
atualidade o capitalista, mas que têm em comum a intolerância
religiosa, o racismo, a homofobia, o ódio ao pobre, negro e o
fortalecimento da propriedade privada. O Projeto de Educação
popular, gratuita e de qualidade é fundamental para pensar o Brasil e
sua diversidade, assim como em toda América Latina devemos tomar
como referencia o Projeto Bolivariano bem como a educação freireana
como um instrumento necessário e atual para pensar o projeto de
sociedade.
A América Latina foi expropriada da sua cultura por um
processo de violência, genocídio, massacre e invasão no território dos
povos originários. Expulsos de suas terras com violência em nome da
“civilização” etnocêntrica e da segregação, que impõe uma visão única
de sociedade ocidental sobre a cultura e a história dos povos nativos e
africanos. Com o desenvolvimento do capitalismo a América Latina se

557
márcia mara ramos

torna a principal produtora de matéria prima, da superexploração da


força de trabalho e da máxima exploração dos recursos naturais.
A memória e a história, as crenças, a cultura e o pertencimento a
Pachamama são valores e resistência que persistem desde a
colonização, mas com as investidas atuais do capital internacional “nos
países latino-americanos, a hegemonia do mercado está rompendo com os laços
da solidariedade e fazendo em pedaços o tecido social comunitário”
(GALEANO, p. 18). O mundo do futuro se apresenta através da
individualidade, da tecnologia, do medo, do pânico da “desordem
social” resultando na miséria que produz miseráveis, que tem fome de
arte, da cultura, de conhecimento, de alimentos e de luta. Para o
mundo do futuro “a velhice é um fracasso e a infância é perigo”,
considerando que as crianças na America Latina somam quase a
metade da população total, sendo elas (as crianças) “escravinhas” da
economia globalizada. (GALEANO, 2018, p. 18).
A educação popular, embora seja uma temática bastante
presente nos debates das organizações sociais de educação na América
Latina, tem como desafio popularizar o pensamento e legado de
Rodríguez - seu pensamento e a filosofia de vida, sua militância e
disposição para enfrentar os problemas da atualidade, ter como
referência e alicerce para pensar o impossível com base em dois
conceitos fundamentais: uma militância comprometida e a Educação
Popular como projeto de sociedade na América Latina.

a defesa do público/social
Pensar o impossível
Simón Rodríguez

“Pensar o impossível” é o legado que nos deixa Simón


Rodríguez e em tempos de Estado de exceção, nos apresenta a
possibilidade de transgressão da ordem colonial espanhola,
questionando a educação colonizadora na América Latina e ousando
construir a educação popular através de práticas educativas com os
excluídos do direito ao acesso à educação, reconhecendo-os como
cidadãos. Seu legado como semeador de possibilidades libertadoras se
torna uma referência para um conjunto de organizações que são
contrárias à educação dominante, burguesa e colonizadora. Sua
militância comprometida na defesa da igualdade e liberdade, tem
como base uma ideia do novo que três aspectos;
a) reconhecer uma aparição do mundo, b) considerar
essa aparição uma novidade que transforma a realidade
de maneira positiva, c) repensar toda a realidade a partir
dos efeitos que essa aparição produz nela. (DURÁN;
KOHAN, 2016, p. 17).

558
educação popular: um projeto em movimento para a superação da ordem hegemônica

O reconhecimento dessa manifestação em pensar o impossível,


tendo como princípio a igualdade em detrimento da desigualdade no
período da monarquia, destaca sua militância comprometida com o
social, do “militante-vida, educação popular-pensamento, pensamento vida”,
ou seja, um projeto de transformação da realidade para “pensar o
impensável” com compromisso militante na construção do projeto
educativo da classe trabalhadora.
A militância e a educação popular são dois conceitos
importantes para a filosofia de vida de Rodríguez, com o
entendimento da educação, como direito social à cidadania. Kohan nos
apresenta esse legado de Rodríguez:
[...] uma educação popular é uma educação geral, de
todxs, sem exceções, sem ninguém de fora das
instituições educacionais; claro que não se trata
simplesmente de escolarizar ou instruir, de repassar
conhecimentos, senão de uma verdadeira educação que
concilie teoria e prática, que ensine as pessoas não
apenas saberes teóricos, mas a arte de viver. Por último,
o caraquenho nos deixa um legado político de enorme
importância para os dias de hoje: uma educação para
todos, geral, social só pode ser uma educação pública.
(KOHAN, 2016, p. 18).
A Educação Popular, projeto político e caro para seus defensores,
por estar enraizado no projeto de sociedade, tem como propósito e
ousadia educar para melhorar a vida da população, ensinando um
ofício para atender e qualificar o trabalho. A educação popular
entende-se por geral e social, ilustrando que o que não é público não é
social, defendendo um projeto original e da América Latina, com os
sujeitos da região, sem a imposição européia.
Nesse sentido, o projeto de Rodríguez e o projeto do MST,
ambos defensores dos direitos sociais e humanos, embora com suas
particularidades, em períodos históricos diferentes, ousam contrariar o
poder imperial. Ousam querer que aqueles que são explorados,
escravizados, “excluídos” ou “incluídos” nas sociedades, tenham
direito ao conhecimento. A luta para libertar as pessoas proporciona a
elas o direito de pensar, questionar, pois assim como a terra, o
conhecimento tornou-se um imenso latifúndio: ocupá-los será sempre
pensar o impossível, um desafio daquelas e daqueles que ousam sonhar
um projeto libertador-emancipador.
Na América Latina, em especial no Brasil, a defesa da educação,
da saúde pública, dos direitos trabalhistas, entre outros direitos já
conquistados com muita luta, volta como tema principal das lutas
sociais atuais. Primeiro, pelas concessões dos governos às empresas
nacionais e internacionais (banqueiros, industriais, latifundiários –
Movimento todos pela Educação), que disputam a formação
educacional da classe trabalhadora, bem como a destinação dos

559
márcia mara ramos

recursos públicos para a implementação da educação empresarial, que


se intensificou com o golpe de Estado parlamentar, midiático e judicial
de 2016. Com a onda conservadora, esse processo avança com retirada
de direitos, criminalização dos movimentos sociais, intervenção militar
no Estado do Rio de Janeiro, assassinatos de pobres e negros das
periferias e de dirigentes de movimentos sociais do campo,
parlamentares e religiosos.
A defesa do projeto de educação, necessariamente, precisa ser
pública, social - Para e Com o povo na luta pela liberdade. A educação
popular de Rodríguez é “a favor da INSTRUÇÃO GERAL”, com quatro
espécies de conhecimento;Instrução social – para fazer uma nação
prudente. Instrução corporal – para fazê-la forte. Instrução técnica –
para fazê-la esperta. Instrução científica – para fazê-la pensante.
(RODRÍGUEZ, 2016, p. 92)
Podemos aproximar o debate de instrução geral de Rodríguez
com o pensamento da formação humana de Marx, que vai elencar
como instrução o pensamento da escola única do trabalho,
(politécnica), na relação teoria e prática, da práxis social
proporcionando ao ser humano uma formação omnilateral. Ou seja, a
formação humana em sua completude-totalidade. O projeto de
Rodríguez contempla a perspectiva da formação humana, de não
separar o pensar do fazer, bem como do acesso ao direito de conhecer
para viver melhor na sociedade em construção.
O projeto republicano de Bolívar tem como bandeira principal a
abolição da escravidão numa contraposição ao projeto de monarquia.
Rodríguez argumenta que somente na prática vai ser possível provar
que a América não deve imitar servilmente, mas ser original, no sentido de
um projeto próprio, que contrapõe o projeto da monarquia que tem
como base, princípios voltados para Privilégios, Heranças e Usurpação. A
defesa da construção do projeto republicano com forte ênfase na
educação popular, contrapõe-se aos países dominantes, pois para ele a
sabedoria da Europa e a prosperidade dos Estados Unidos são dois inimigos da
liberdade de pensar...na América, o projeto próprio de liberdade...
(RODRÍGUEZ, 2016, p. 94).

educação em movimento

Para Rodríguez a educação popular está interligada ao projeto


político e social, que tem a ver com seu compromisso e militância na
defesa da igualdade como princípio, em que a escola não é só para os
brancos da elite, mas para todos, ou seja, a dimensão de igualdade
requer a luta contra a desigualdade e perpassa pela prática educativa
na formação humana, seja ela nas escolas, nos processos de
alfabetização de adultos, bem como nas práticas cotidianas da vida
social.
560
educação popular: um projeto em movimento para a superação da ordem hegemônica

Nesse espaço qualquer um tem igual valor a qualquer


outro, e nenhuma pessoa vale mais do que a outra, para
além da sua idade, do seu gênero, da sua classe... Assim
se cria, na escola, uma nova cena política, pratica-se uma
nova política, em que o que interessa é a igualdade de
todos ou uma totalidade de iguais, e não a posição que
se ocupa dentro dela. (DURÁN; KOHAN, 2016, p.17).
Para o MST, dois princípios orientam o projeto pedagógico. São
eles: os princípios filosóficos que remetem à dimensão estratégica
vinculada ao projeto de transformação social, onde a Reforma Agrária
Popular se insere como um projeto de campo; e os princípios
pedagógicos que são a concretização dos princípios filosóficos na
prática, ou seja, é o jeito com que o MST realiza as ações coletivas na
organização dos acampamentos e assentamentos, da luta pela escola
diferente, da ocupação do latifúndio.
Os Princípios filosóficos dizem respeito a nossa visão
de mundo, nossas concepções mais gerais em relação à
pessoa humana, à sociedade, e ao que entendemos que
seja educação. Remetem aos objetivos mais estratégicos
do trabalho educativo no MST. Os princípios
pedagógicos se referem ao jeito de fazer e pensar a
educação, para concretizar os próprios princípios
filosóficos. Dizem dos elementos que são essenciais e
gerais na nossa proposta de educação, incluindo
especialmente a reflexão metodológica dos processos
educativos, chamando a atenção de que podem haver
práticas diferenciadas a partir dos mesmos princípios
pedagógicos e filosóficos. (MST, 1999, p. 4).
Os princípios filosóficos e pedagógicos foram elaborados com
base nos debates e reflexões do Coletivo Nacional de Educação240, que
elaborou o Caderno de Educação nº 8 (1999), produção que sintetizou e
reafirmou a concepção de educação do MST através dos princípios
filosóficos e pedagógicos, ampliando a compreensão na coletividade
sobre educação no MST. Os princípios dimensionam matrizes que
orientam o projeto educativo como: O trabalho como princípio educativo;
a luta social como um princípio e alicerce da luta política; a cultura
como práxis social; a história/memória como elemento importante na
participação enquanto sujeito construtor, responsável pelo destino da
coletividade; a agroecologia como princípio e filosofia de vida.
A defesa pela escola diferente – tem como dimensão a
construção de uma escola de iguais para todos, demarca a aproximação
do MST com o legado de Rodríguez, tendo como referência uma

240 Instância nacional composta por representantes da militância da educação nos

Estados onde o MST está organizado.

561
márcia mara ramos

educação que busca, para além do acesso, concientizar-se de sua


própria realidade.
Para as autoridades colonizadoras a escola de Rodríguez é
considerada um “Prostíbulo, bordel, lugar de perdição”. Contrariados
com o projeto político e intolerante aos que subvertem a ordem dos
que controlam o pensamento hegemônico, desqualificam a escola e a
educação popular por ser uma ameaça ao projeto dominante.
A escola de Rodríguez, insuportável para os que
sustentam o estado de coisas, foi demolida. Sua criação
conceitual sobrevive, de forma potente, para questionar
e refletir sobre a atual realidade educativa da América
Latina. Atualidade de Simón Rodríguez da educação
popular, da filosofia em situação educativa, da
necessidade de pensar e pensarmo-nos, de forma
militante, o que nos faz ser o que somos para, quem
sabe, poder ser de outra maneira. (DURÁN; KOHAN,
2016, p. 19)
No caso do MST, a luta pelo direito de ter uma escola diferente
nas comunidades Sem Terra inicia junto à luta pela terra. O debate
surge com a negação da escola burguesa. As crianças Sem Terrinha,
sendo elas oriundas do “meio rural”, vivem até os dias de hoje nas
escolas urbanas profundas marcas da colonização, discriminação,
preconceito, violência e intolerância. Por isso, o MST iniciou um
debate sobre a necessidade de lutar por escolas nos assentamentos,
reafirmando a ideia da construção de uma escola diferente, que respeite
o direito das crianças filhas de trabalhadores de serem consideradas
como iguais, em especial as crianças do campo, que se deslocavam
para os espaços urbanos e eram discriminadas.
Começamos a construção do projeto pedagógico do
MST pela escola, mas nela iniciamos pelos objetivos
formativos que nos remetem para fora dela. Quando
decidimos, no final da década de 1980, fazer o debate
sobre o que queremos com as escolas de assentamento (e
acampamentos), não iniciamos pelos objetivos da escola
em si, mas pelos objetivos de formação do sujeito
concreto para as quais ela está sendo conquistada nas
lutas do Movimento: afirmamos desde então que é
necessário formar militantes Sem Terra, continuadores
da luta pela terra e pela reforma agrária e mais
amplamente das lutas coletivas pela transformação da
sociedade; e é necessário que esses militantes sejam
formados como trabalhadores capazes de dar conta dos
desafios da produção nas áreas conquistadas, mas de
forma a exercitar/projetar novas relações sociais e
econômicas (propriedade coletiva da terra, trabalho
cooperado, construção de agrovilas comunitárias), que
por sua vez sejam formadoras para a perspectiva da luta
maior. (CALDART, 2015, p. 22-3)

562
educação popular: um projeto em movimento para a superação da ordem hegemônica

Com o debate sobre a escola, o MST inaugura a discussão sobre


o direito à educação do campo, no final da década de 1990, e já
podemos observar, nesse momento, que a relação do professor
militante, da formação direcionada para um pensamento e ação de
produção coletiva, está vinculada à construção de outro projeto social
para o Brasil. Num primeiro momento, enfatiza a luta por escolas nas
áreas de reforma agrária, destacando a necessidade de pensar como
deve ser uma escola de assentamento. E a partir de reflexões desde a
realidade concreta, num segundo momento, o Setor de Educação241 vai
construindo uma concepção de escola diferente para os assentamentos
de reforma agrária no Brasil:
A escola passou então a ser requerida para ajudar nessa
formação e pela percepção (ou já pela análise) de que a
escola conhecida não faz isso, começamos a discutir
sobre como construir, o que foi chamado pelos
educadores da época, de “uma escola diferente” que
pudesse cumprir com objetivos específicos a ela, mas
relacionados a objetivos formativos que vão para além
dela e que consideram as necessidades formativas dos
sujeitos que compõem em cada tempo e lugar. Assim se
constitui a reflexão do MST sobre a necessidade e as
possibilidades de transformação da escola. Os
conteúdos formativos que se pretendia que a escola
ajudasse a trabalhar não cabiam na forma institucional
dada (CALDART, 2015, p. 23).
O coletivo de educação, no processo de conceber uma escola
diferente da escola burguesa, começa a elaborar um caminho que leve
para a transformação da escola, tendo como primeiro passo a luta pela
construção de escolas nos assentamentos, e, junto a essa construção, a
necessidade de um projeto político pedagógico com uma concepção de
escola que desse conta da formação de professores comprometidos
para atuarem nas escolas de assentamentos e acampamentos. A
concepção de escola inicia pelos objetivos da escola única do trabalho,
tendo a dimensão de mundo como essência do projeto pedagógico e
político. As primeiras professoras das escolas de assentamentos foram
pessoas das próprias comunidades Sem Terra que voluntariamente
iniciaram a construção da escola diferente, juntamente com a
comunidade - uma escola pública, gratuita, de qualidade e de luta.
A escola do MST, por ser uma escola de luta e em movimento,
tem muita aproximação ao projeto da escola popular de Rodríguez.
Pois rejeita a forma e concepção da escola dominante, se propondo a

241A formalização de crianças do Setor Nacional de Educação do MST ocorreu no


Encontro Nacional de Professores, realizado em julho de 1987 em São Mateus, Espírito
Santo.

563
márcia mara ramos

construir alternativas para um projeto de educação popular, vinculado


ao projeto de sociedade que tem como instrução geral o conhecimento
vinculado ao social, educação pública, corporal, técnica e científica
fundamentos necessários para a construção de uma concepção de
escola popular.
No caso do MST temos a luta por escola, na defesa e construção
de escolas públicas nos assentamentos e acampamentos242, bem como
a construção de uma proposta político-pedagógica voltada para a
realidade da classe trabalhadora camponesa, por entender que a escola
é um direito social de todas as pessoas e que o conhecimento
produzido pela humanidade precisa ser socializado. A defesa de
Rodríguez de que a escola precisa ser para todos, porque todos são
cidadãos e tem direito de participar e construir o espaço escola – uma
escola popular para todos - tanto quanto para o MST é, sem dúvida,
um projeto contra-hegemônico e que aponta para a transformação
social.
Rodríguez no projeto bolivariano, considerava que “a
alfabetização seria uma exigência dos novos cidadãos”. Alfabetizar os
artesãos, os lavradores, os adultos em geral, para que estes tivessem
melhores condições de trabalho e apropriação do mesmo. Pois para os
colonizadores a id a educação está no âmbito restrito de acesso
somente para a alta sociedade, privando a população pobre,
escravizada, do direito de saber ler e escrever e ter acesso à escola.
Há quem seja da opinião de que para os artesãos, os
lavradores e as pessoas comuns é suficiente saber
assinar; e que ainda que isso ignorem, não é defeito
notável; que os que irão empreender a carreira das letras
não necessitam da Aritmética, e é a eles suficiente saber
formar os caracteres de qualquer modo para se fazer
entender, porque não irão buscar a vida através de uma
pena; que tudo que aprendem as crianças nas escolas
esquecem logo; que perdem a boa forma da letra que
conseguiram formar; que é melhor aprender essas coisas
quando possuem mais idade e juízo, etc. de modo que
em sua concepção era necessário dar ao desapreço tudo
o que há escrito sobre o assunto, considerando os seus
autores preocupados de falsas ideias; suprimir as
escolas por serem inúteis e deixar as crianças na
ociosidade. (RODRÍGUEZ, 2016, p. 37)

242No caso dos acampamentos, a escola é chamada de Itinerante e os professores,


principalmente dos anos iniciais são do próprio acampamento. Ou seja, eles vivem no
acampamento e concebem todo o processo de luta juntamente com as crianças, jovens
e adultos. A Escola Itinerante foi uma conquista que iniciou no Rio Grande do Sul, em
1996, e, atualmente, a referência principal, no MST, está localizado no Estado do
Paraná.

564
educação popular: um projeto em movimento para a superação da ordem hegemônica

A concentração do conhecimento é histórica, portanto é um


desafio ocupar o latifúndio do saber, sendo essa uma das formas de
transgredir a relação do poder dominante, que estabelece quem tem o
direito ao conhecimento. É importante destacar que estamos trazendo
questões dos séculos XVIII e XIX na America Latina e que em pleno
século XXI, no Brasil segundo IBGE243 o número de analfabetos é de
11,8 milhões de pessoas, considerando que é um problema estrutural,
histórico e que a maior porcentagem de analfabetos está no campo
brasileiro. O Censo Demográfico de 2010244 aponta 21,2% de
analfabetismo no meio rural, o dobro da media nacional. Já o Censo
Agropecuário de 2017 registra 23% de produtores rurais que não
sabem ler e escrever, ou seja, em pleno século XXI o direito de ler e
escrever continua sendo negado para boa parte da população rural.
O MST, com base na prática da educação popular de Paulo
Freire, desenvolve práticas de alfabetização contrariando a ideia de
“que para trabalhar com enxada” não precisa saber ler e escrever.
Assim como Rodríguez, na defesa da educação como um direito e
especialmente para a formação do ofício e qualificação técnica a partir
de sua prática, a Educação de Jovens e Adultos – EJA, no MST foi e é,
todavia, uma frente importante na formação não só da população Sem
Terra, mas com a defesa de que todas as pessoas não devem ser
privadas desse direito.
Os artesãos e os lavradores são uma classe de homens
que deve ser tão atendida como são as suas ocupações.
O interesse que possui nisso o Estado é bem conhecido;
e isso não precisa de provas. Tudo está sujeito a regras.
Cada dia homens hábeis criam obras para imprensa
sobre descobrimentos sucessivamente ocorrem na
agricultura e Artes, e eles circulam em todo o Reino para
a inteligência daqueles que as professam. (2016, idem, p.
38)
A EJA no MST foi organizada a partir da educação e da
necessidade dos adultos (acampados e assentados) em aprenderem a
ler e escrever para organizar a vida em suas comunidades e seguir
estudando. Esse desafio provocou no movimento camponês debates
sobre a importância da educação promovendo a campanha “Todos os
Sem Terra estudando”. A educação de jovens e adultos é umas das
prioridades na educação popular, devido à “exigência dos novos
cidadãos”, projetando uma sociedade com capacidade de intervenção,

243https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-

noticias/noticias/21255-analfabetismo-cai-em-2017-mas-segue-acima-da-meta-para-
2015.
244 https://www.valor.com.br/brasil/2919908/analfabetismo-na-zona-rural-e-o-
dobro-da-media-nacional-segundo-ibge.

565
márcia mara ramos

desenvolvimento e crescimento como povo. A experiência do MST na


organização dos acampamentos e assentamentos passa pela
contribuição das pessoas com mais escolaridade para o processo de
alfabetização dos demais, sendo essa, uma das necessidades dos
camponeses e camponesas, aprender a ler, e escrever para debater com
as autoridades dos municípios, pensar formas de produção coletiva,
administrar os assentamentos, bem como construir a escola, os
coletivos de educação, saúde, cultura, produção, comunicação, entre
outros nas comunidades Sem Terra. Portanto, é muito simbólica a
reflexão e prática de Rodríguez, para o momento atual da educação no
Brasil.
Considerando os desafios para a construção de um projeto de
superação da ordem social, a educação popular continua sendo um
referencial importante para a classe trabalhadora, exigindo unidade,
coletividade, disciplina e luta contra a propriedade privada e pelo
direito de projetar outro tipo de escola, desde a sua arquitetura e
concepção, assim como o direito ao acesso ao conhecimento produzido
pela humanidade, na perspectiva da construção de uma educação
libertadora, transformadora da realidade social.
A aproximação da pedagogia do MST e o legado de Simón
Rodríguez para América Latina apresentam-se como uma referência
de possibilidades libertadoras, mais que para o momento atual a
necessidade em enfrentar a realidade ousando na prática com
militância e conhecimento é de toda a classe trabalhadora. Atuação no
campo político, educacional na defesa das conquistas, na luta contra a
educação dominante, burguesa e colonizadora e na defesa por uma
escola de iguais para todos, é o que deveria ser o propósito das
organizações sociais sindicais no projeto de sociedade. A defesa e a
luta pela educação popular, pública, gratuita e de qualidade é, para
atual conjuntura, considerada transgressora da ordem. Portanto, a
defesa do projeto social para iguais, internacionalista, libertador para
América Latina é, sem dúvida, um dos desafios do MST na educação.
Recentemente, foi organizado um encontro de crianças sem
terrinha que mostra uma prática concreta onde a participação
igualitária de meninas e meninas em todas as dimensões do evento
mostram uma caminho que está sendo transitado na luta por uma
educação emancipadora. Na última parte do presente texto,
apresentaremos o citado encontro.

a participação da infância como princípio de organização política

A concepção de infância no MST é forjada no seio da luta,


através das ocupações de terra, nas marchas, nas diferentes
mobilizações, demarcando uma infância vinculada à realidade
concreta das relações sociais, na perspectiva histórica, dialética e
566
educação popular: um projeto em movimento para a superação da ordem hegemônica

crítica, ou seja, uma educação política, que organiza o MST desde as


crianças, compreendendo-as como lutadoras e construtoras de uma
história que as tornam protagonistas.
A primeira mobilização infantil no MST foi realizada no ano de
1994, no Rio Grande do Sul, na cidade de Porto Alegre. Essa
mobilização demarca na história da infância do MST o debate sobre
Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, tendo como foco a luta
pelo direito à escola no assentamento. De 1994 a 2017, todos os estados
onde o MST está organizado desenvolvem um trabalho com as
crianças nas escolas e nas Cirandas Infantis245, realizando encontros
culturais e mobilizações com as crianças. No ano de 2017, o MST
mobilizou mais de dez mil crianças em todo Brasil, em preparação ao
1° Encontro Nacional das Crianças Sem Terrinha que ocorreu em julho
de 2018.
O 1° Encontro Nacional das Crianças Sem Terrinha demarca um
novo período da infância do campo, como sujeito político e histórico
na luta pela terra. O Encontro se propôs fortalecer a auto-organização
das crianças dos acampamentos e assentamentos, bem como
proporcionar espaços para o brincar, conversar sobre a realidade e as
possibilidades e criatividade das crianças em suas comunidades, e
compartilhar atividades artísticas, culturais e esportivas,
A preparação para o Encontro teve duas afirmações importantes
– da criança e da relação de gênero no campo, com participação igualitária
e ativa de meninas e meninos. O lema: Sem Terrinha em Movimento:
Brincar, sorrir e lutar. Por Reforma Agrária Popular! reforça o lugar da
brincadeira, da alegria e também da luta dentro do projeto. Define-se
como um encontro Com e Das crianças. Para compor o processo de
construção do Encontro, foi organizada uma Oficina Nacional com
duas crianças de 8 a 12 anos de cada Estado, uma menina e um
menino para compor a coordenação nacional de crianças do 1°
Encontro.
O 1° Encontro Nacional das Crianças Sem Terrinha ocorre em
Brasília entre os dias 23 a 26 de julho de 2018 com mais de 1200
crianças e 400 educadores representando os 24 estados onde o MST
está organizado. As crianças participam de todos os momentos de
coordenação, bem com das atividades culturais, oficinas, debates sobre

245Ciranda Infantil itinerante ou permanente – é um espaço educativo, alternativo que


o MST teve a sua primeira experiência em 1997, no I Encontro Nacional de
Educadores da Reforma Agrária – I ENERA. A Ciranda itinerante proporciona a
participação da criança e da mulher nos diferentes espaços de luta, como reuniões,
cursos, marchas, congressos etc. A Ciranda permanente é um espaço fixo que se
localizada nas áreas de assentamentos e acampamentos, nos Centros de Formação e
Cooperativas de Produção.

567
márcia mara ramos

o Direito e alimentação saudável, espaços pedagógicos; artes


(Mafalda), cinema (Kiriku), agrofloresta (Saci) e Literatura
(Carrapicho). Durante o Encontro é aprovado o Manifesto das
Crianças Sem Terrinha, (construído com as crianças nos Estados) e
protocolado no Ministério da Educação (MEC), durante o passeio
cultural por Brasília. As crianças destacam que;
[...] Fizemos esse manifesto das Crianças Sem Terrinha,
para junto com as demais crianças, lutarmos por nossos
direitos e crescermos num mundo sem desigualdade
social e sermos felizes. Ser Sem Terrinha é muito legal!
Brincamos na Ciranda Infantil, tomamos banho de rio,
soltamos pipa, pulamos corda, brincamos de esconde-
esconde, pega-pega, jogamos bola, donas da rua e até
bolinha de gude. Gostamos da natureza, de olhar para o
céu, brincar com as nuvens, sentir o vento. Gostamos de
aprender como uma semente germina na terra, como
que a plantinha cresce, como a terra pode ser linda e nos
dar alimentos gostosos. Por tudo isso: organizamos o
nosso 1° Encontro Nacional para dizer que temos o
direito de viver bem. E vamos lutar pelos nossos
direitos, junto com nossos pais, com o MST e com outras
crianças do Brasil e do mundo [...] (JST246, 2018)
O 1° Encontro é uma ESPERANÇA de ver as crianças e o povo no
poder como bem diz a canção247. Da poesia que expressa a ousadia de
ser criança e fazer um mundo melhor.
Viva menina, viva menino...
Vira os quadros de ponta a cabeça. Desfaz as ordens.
E, com sinceridade e ousadia,
Escreva em todas as cores a mágica possibilidade
Da construção de um mundo novo
Ainda no presente!
Evandro Medeiros
Vivam os meninos e as meninas da educação popular, os
excluídos e excluídas que Simón Rodríguez chama a habitar sua escola
na primeira parte do século XIX. Vivam as meninas e meninos Sem
Terrinha que compõem um encontro comovente que desafia as ordens
do que é preciso fazer e como fazê-lo, com sinceridade, ousadia e

246 Ver Manifesto completo na edição especial do jornal das crianças Sem Terrinha.
http://www.mst.org.br/2018/07/24/queremos-que-todas-as-criancas-possam-ser-
felizes-e-livres-afirma-manifesto-das-criancas-sem-terrinha.html
247 Coração Civil - Composição de: Milton Nascimento / Fernando Brant

568
educação popular: um projeto em movimento para a superação da ordem hegemônica

alegria. Viva a educação popular, pública e geral de todo o povo das


Américas. Ontem, hoje e sempre.

referências

CALDART, Roseli Salete. Pedagogia do Movimento Sem Terra. São Paulo:


Expressão Popular, 2009.
DURÁN, Maximiliano. KOHAN, Walter Omar. Por que ler Simón Rodríguez?
Para que Traduzi-lo para o português? Por que inventamos ou erramos? In:
RODRÍGUEZ, Simón. Inventamos ou Erramos. Belo Horizonte: Autêntica, 2016.
GALEANO, Eduardo. De pernas pro ar. A Escola do mundo do avesso. Porto
Alegre: L&PM, 2018.
KOHAN, Walter Omar. A necessidade do impossível: pensar, ensinar, ler... a
filosofia de uma escola popular. Leitura: Teoria & Prática, Campinas, São Paulo,
v.34, n.67, p.13-25, 2016.
KOHAN, Walter Omar. O mestre inventor. Belo Horizonte: Autêntica, 2016.
MOVIMENTO SEM TERRA. A História da Luta pela Terra e o MST. São Paulo:
Expressão Popular, 2001.
________. Princípios Filosóficos e Pedagógicos. Caderno de Educação, n. 8. São
Paulo, 1996.
PALUDO, Conceição. Educação Popular. In: CALDART, Roseli; PEREIRA,
Isabel; ALENTEJANO, Paulo & FRIGOTTO, Gaudêncio (Org.). Dicionário da
Educação do Campo. Rio de Janeiro, São Paulo: Escola Politécnica de Saúde
Joaquim Venâncio, Expressão Popular, São Paulo, 2012.
RODRÍGUEZ, Simón. Inventamos ou Erramos. Belo Horizonte: Autêntica, 2016.

569
570
igualdade, militância e educação na escola popular de
simón rodríguez

maximiliano durán
faperj; nefi/uerj
maximiliano1771@gmail.com

introducción

La figura de Simón Rodríguez es, tal vez, una de las más


fascinantes que hayan recorrido el suelo nuestro americano. Los que se
han dedicado al estudio de su vida y su obra coinciden en destacar el
carácter extraordinario de la misma, como así también la dificultad
para reconstruir una biografía única y homogénea. Mercedes Álvarez
Freites (1966) sostiene al respecto que la figura del maestro está teñida
de un halo legendario desde los inicios de su vida. Cuestiones
relacionadas a su nacimiento, influencias intelectuales, carácter, ideas
políticas y vínculo con el Libertador, suelen ser materia de
controversia entre historiadores, pedagogos y filósofos.
A la hora de responder preguntas sobre su biografía, se obtienen
muy pocos datos contundentes y muchas, muchas preguntas. “¿Quién
fue Rodríguez?” es la pregunta que inicia una cadena de interrogantes
que se entrecruzan, se enlazan y se combaten sin respuestas
definitivas. ¿Quién fue ese hombre que en la ciudad de Chuquisaca
abrió una escuela tan singular cuyo nombre no pudo ser pronunciado
por la oligarquía alto peruana? ¿El Rousseau tropical de Mancini
(1914)?, ¿el pensador genial de Rumazo (1976, 1980)? o ¿el misógino de
Orgambide (2002)? Tal vez fue todos ellos y ninguno. Podríamos decir
que existen tantos Rodríguez como biografías suyas se han escrito. Y
son unas cuantas.
El presente trabajo se inserta en esta cadena de preguntas desde
una afirmación. Para nosotros Simón Rodríguez es el militante de una
idea. En el despliegue de esta afirmación intentaremos esbozar una
respuesta a la pregunta sobre la identidad de Rodríguez. En las
próximas líneas intentaremos mostrar quién es ese maestro de escuela
que entre otras cosas sostuvo contra el parecer de la oligarquía de una
de las ciudades más reaccionarias de América que todos los niños
serían recibidos en su escuela sin exigir condición alguna para su
ingreso. El maestro que decidió que la igualdad era un principio y no
un objetivo. El hombre que denunció que copiar es errar. El hombre
que supo defender en sus horas más aciagas a sus compañeros, aun
atentando contra sus propias condiciones materiales de subsistencia.
En otras palabras, nos interesa saber quién fue este hombre cuyo

571
maximiliano durán

pensamiento genera fascinación y controversia a todos aquellos que


alguna vez nos topamos con él.
Para lograr nuestro objetivo, dividiremos nuestro trabajo en tres
partes. En la primera de ellas intentaremos explicar qué entendemos
por idea. Para ello, nos apoyaremos en la concepción de Alain Badiou
en relación al concepto de idea y lo aplicaremos al ejemplo histórico de
la vida y obra de Simón Rodríguez. En el transcurso de esta primera
parte, mostraremos en qué medida el concepto de idea está presente
en Rodríguez.
En la segunda parte del trabajo, desarrollaremos un análisis de
los elementos constitutivos de una idea. Para nosotros, toda idea posee
una serie de elementos primitivos en torno de los cuales se determina.
Nuestro propósito, en esta parte, será entonces, ver estos componentes
en el interior del pensamiento de Rodríguez.
Para finalizar, analizaremos los conceptos de universalidad,
eternidad e inmanencia, en tanto característicos de la idea. Según
nuestro punto de vista, toda idea posee una serie de rasgos que hacen
de ella un concepto esencialmente filosófico. En esta tercera y última
parte expondremos cada una de estas características en relación a la
vida y obra de Rodríguez.

simón rodríguez y la idea de igualdad

Hemos dicho que, Simón Rodríguez es, para nosotros, el


militante de una idea. El concepto de idea tiene una larga tradición en
la historia de la filosofía. De Platón en adelante, dicho concepto es
utilizado por distintos filósofos de diferentes formas y con diversos
sentidos. Aquí asumiremos que una idea es, como sostiene Alain
Badiou, aquello a partir de lo cual un individuo se representa el
mundo, él incluido, desde la irrupción de un hecho que altera y
transforma su vida y la de un conjunto de personas. Ella es la que abre
la puerta para que un individuo se comprenda a sí mismo como el
componente de un proceso singular en la historia y hace que su vida
se guíe en función de esa transformación (BADIOU, 2010, p. 113). Para
no extraviarnos en abstracciones, intentaremos precisar lo que
decimos a partir de un ejemplo concreto.
En la ciudad de Chuquisaca, en el siglo XIX, un maestro abrió
una escuela y decidió recibir como alumnos a todos los niños y niñas
de la ciudad, sin distinción alguna. Por primera vez en la historia de
esa ciudad, Rodríguez juntó en un salón de clases, en calidad de
iguales, a los niños de las distintas castas. Este simple hecho generó un
escándalo entre los vecinos de esta aristocrática ciudad, que vieron
alterada su representación del buen orden social y moral. La sociedad
de Chuquisaca, al igual que la mayoría de las ciudades
latinoamericanas de los siglos XVIII y XIX, estaba fuertemente

572
igualdade, militância e educação na escola popular de simon rodríguez

segmentada. La fragmentación social, sobre la base de la distinción


racial, fue un patrón común a partir del cual se desarrolló la vida
cotidiana dentro de los territorios del imperio español.
En el interior de este tipo de sociedades fragmentadas y
jerárquicamente ordenadas en torno a un sistema de castas, Rodríguez
tomó una decisión que alteró y transformó un determinado estado de
cosas. En la ciudad residencial de los propietarios de los complejos
mineros del Potosí, en una urbe exclusivamente destinada al consumo,
Rodríguez sostuvo en su rol de director de la escuela modelo de
Chuquisaca, que todos los chicos y chicas fueran recibidos en calidad
de iguales en el interior de sus aulas. Dicha postura quedó acuñada en
forma de proposición universal en Sociedades Americanas. Allí escribió
“escuela para todos, porque todos son ciudadanos” (RODRÍGUEZ,
1999 I, p. 284). Sí, todos, sin excepción, ni condición que limite su
ingreso. Por primera vez, los niños pobres y sus padres fueron
alojados, por cuenta del Estado en casas aseadas y espaciosas
(RODRÍGUEZ,1999 II). La escuela, el espacio diferenciado, en el que
las oligarquías empezaban el camino de reproducción de su lugar en la
sociedad, abrió sus puertas por primera vez en su historia a los sin
nombres, a los parias de la ciudad, ya no como subalternos necesitados
de instrucción adecuada para cumplir adecuadamente con los
mandados de los supuestamente superiores, sino como iguales.
Esto constituyó un hecho sin precedentes en América latina que
fue imposible de asimilar por la elite de la ciudad. La aparición de
estos chicos cuestionó y alteró significativamente la forma tradicional
de vinculación entre personas y grupos humanos e introdujo la acción
de un principio igualitario. La igualdad implícita en la decisión
contenida en “escuela para todos porque todos son ciudadanos”
poseía una serie de rasgos que la diferenciaron significativamente de
“la igualdad” que sostenía la élite ilustrada de Chuquisaca. La
“igualdad” que afirmó Rodríguez es un axioma a partir del cual
derivó una conducta y no un programa. Para Rodríguez, la igualdad
no era algo a conseguir por los supuestamente desiguales, sino un
principio del cual partía. El mismo puede observarse en los siguientes
interrogantes:
“¿Cómo se hará creer a un hombre, distinguido por
ventajas naturales, adquiridas o casuales, que el que
carece de ellas es su igual? ¿Cómo por el contrario,
creerá otro que nada le falta, cuando está viendo que
carece de todos?...
Y ambos, ¿como se persuadirán que han pasado a otro
estado, si se ven siempre en el mismo”
(RODRÍGUEZ,1999 I, p. 271).
Lo realmente novedoso y transformador de esta decisión no fue
la inclusión en sí misma de un número mayor de personas de distintos

573
maximiliano durán

estamentos en la institución escolar, sino la forma en la que se lo hizo.


La función política de la institución escolar no era hacer algo por
igualar a aquellos que se presentaban como desiguales, sino a la
inversa, postular su igualdad y actuar en consecuencia a ello. La
igualdad que sostuvo Rodríguez funcionó como principio
indemostrable y se mantuvo exclusivamente en el peso de una
decisión. Ella es quien orientó todo su accionar político y pedagógico.
Esta igualdad que no sólo puede rastrearse en el interior de sus
escritos, sino también y fundamentalmente, en todo su accionar es lo
que nosotros, apoyados en las categorías de Alain Babiou, llamamos
idea. La idea de igualdad es la expresión conceptual de la
transformación que supuso, para la educación y la política del siglo
XIX, el ingreso de niños y niñas en un espacio que hasta ese entonces
les estuvo vedado. Igualdad es el nombre de la idea, a partir de la cual
Rodríguez se representó el mundo, él incluido, desde el momento en
que decidió la inclusión de todos los chicos y chicas en una misma
escuela. Podríamos decir que la idea de igualdad fue la posibilidad
que vislumbró Rodríguez, para comprender su intervención en un
proceso político de emancipación que interrumpió, alteró y transformó
la situación escolar en la ciudad de Chuquisaca. Esta idea es, en cierta
medida, la que autorizó su incorporación en un proceso de cambio que
excedió todos los límites de la representación contenidos en los
saberes y prácticas de su época y abrió las puertas a una posibilidad
creadora en América.

los elementos constitutivo del concepto de idea

La idea de igualdad de la que hablamos en el apartado anterior


está compuesta por una serie de elementos primitivos. Más
precisamente tres: un elemento político, un elemento histórico y un
elemento subjetivo. Estos tres elementos están presentes en todas las
ideas y contribuyen a la configuración de la misma. El primero de
ellos, el componente político, es descripto por Badiou como “una
secuencia concreta y fechada en la cual surgen, existen y desaparecen
una práctica y un pensamiento nuevo de la emancipación colectiva”
(BADIOU, 2010, p. 18). En el caso que nos ocupa, la secuencia de
emancipación consiste en la irrupción de niños y niñas invisibilizados
como alumnos por la sociedad de aquel entonces. La inclusión de estos
niños en la ciudad de Chuquisaca en el año de 1825 constituyó una
ruptura insospechada que permitió el acceso a la ciudadanía de
sectores de la población cuyo único rol durante la colonia era
obedecer. La escuela de primeras letras de Rodríguez fue un sitio en el
que se afirmó y sostuvo la soberanía popular en un acto.
La definición y delimitación del lugar del pueblo y sus atributos
en los nuevos órdenes institucionales durante los primeros años de las

574
igualdade, militância e educação na escola popular de simon rodríguez

republicas constituyó, un problema clave para entender los distintos


proyectos que se implementaron en América. Para la mayoría de los
programas triunfantes el pueblo capaz de intervenir en la decisión de
los asuntos públicos estaba compuesto por un grupo reducido de
ciudadanos ilustres. Tras la victoria bélica, muchas de estas familias
continuaron con la intención de sostener sus prebendas y privilegios,
durante los nuevos gobiernos. Para los integrantes de estas familias
era necesario establecer algunas distinciones en el interior del
supuesto colectivo pueblo. Por un lado se encontraba el pueblo como
“la parte sana y principal”, “la gente decente”, “la gente de razón”
identificado con los sectores acomodados de la sociedad. Y por otro
lado el pueblo constituido por “la plebe”, “el populacho”, “la
chusma”, conformado por los sectores bajos de la población. El
primero de los sectores era quien debía hacerse cargo de la conducción
de los nuevos países. El sector constituido por el populacho, actor
revolucionario de primera línea en los levantamientos y campos de
batallas, debía dejarse guiar y educar por el primero.
La postura de Rodríguez no pretendía quedarse en la letra
escrita. Su intención no era solamente declamar una serie de principios
teóricos que había aprendido en Europa para volcarlos en el interior
de una carta fundamental que le asegurara un lugar en el panteón de
los “padres de la patria”. Ante todo él fue un hombre de acción.
Consciente de que la República no se iba a constituir exclusivamente
en el interior de los salones de la gente decente, decidió poner en
práctica un proyecto de educación popular sin precedentes en
América. Con el aval de Bolívar abrió una escuela en la que recibió a
todos los chicos y chicas de la ciudad en calidad de iguales. Este hecho
conmocionó a la sociedad de aquel entonces. Según nuestro punto de
vista, lo sucedido en la escuela de Rodríguez interrumpió la
continuidad de los saberes pedagógicos, sociales, morales y políticos
de la ciudad. La decisión de incluir en un mismo salón de clases a los
niños y niñas de los distintos estamentos de la sociedad era algo
impensado e impensable para la sociedad de aquel entonces. Las
reglas de lo escolar resultaron insuficientes para nombrar esa
presencia novedosa y disonante de los niños de las castas junto a los
niños blancos. Es decir nada de lo escolar hacía referencia a un sitio en
el que las desigualdades propias de cada una de las castas fueran
suspendidas por el accionar de un principio igualitario. La escuela a lo
largo de su historia en América se había constituido, precisamente
para justificar y profundizar esas desigualdades y distinciones.
La irrupción de cholos, indios, negros y zambos en un mismo
salón, junto a los blancos y en calidad de iguales era algo inadmisible.
Su presencia en el aula trastocaba toda representación del orden social
que las oligarquías habían naturalizado durante más de trescientos
años. La decisión de Rodríguez de incluir a los niños de las distintas

575
maximiliano durán

castas en un espacio común, como iguales fue un hecho que


transformó no sólo la educación de aquel entonces, sino también la
sociedad en su conjunto. Lo que allí sucedió no fue un simple hecho
disruptivo, una singularidad, producto de la mente febril de un
soñador. Lo que irrumpió en Chuquisaca fue la operación de un
principio igualitario a partir del cual fue posible pensar una nueva
forma de relacionarse entre las personas. Esta novedad, en el campo
de la política, Rodríguez la llamó República y su proyecto de
educación popular fue la forma que eligió para sumarse a ese proceso
de cambio.
Junto a este primer elemento primitivo de la idea, nos
encontramos con el elemento histórico. Este segundo elemento se
refiere a la inscripción de esa secuencia de emancipación colectiva que
constituye el primer componente en un devenir general de la
humanidad y que adquiere una forma específica sobre la base de
soportes espaciales, temporales y antropológicos (BADIOU, 2010,
p.18). Respecto de la idea de igualdad, podemos decir que este
segundo componente, se constituye en el interior de un relato histórico
determinado.
Rodríguez, había arribado con el Libertador Simón Bolívar a la
ciudad de Chuquisaca. Allí fue nombrado Ministro del nuevo Estado
boliviano y en su calidad de funcionario público decidió llevara
adelante un plan de educación popular. Dicho proyecto formaba parte
de un proceso de ingeniería política mayor, concebido por Bolívar en
un proyecto de escritura constitucional para una nueva República. El
proyecto de Rodríguez fue la avanzada política de ese proyecto. Su
decisión de incluir en calidad de iguales a todos los niños, obedeció a
la necesidad de construcción de ciudadanía implícita en la nueva
Constitución. La carta magna establecía en su artículo 13 que el acceso
a la ciudadanía se limitaba a que una persona fuera alfabeta y se
ganara la vida sin estar sometido a una relación de servidumbre. Las
consecuencias que generó el proyecto de educación popular, a partir
de la inclusión en un aula de niños que hasta ese entonces no tenían
cuenta, ni cabida en la institución escolar, deben ser leían en el interior
de este proceso de emancipación, situado en la ciudad de Chuquisaca
en el siglo XIX en el marco de la constitución de una nueva República
independiente del poder español.
El componente histórico de la idea se encuentra determinado, en
este caso, por el proceso de creación de una República autónoma en
Bolivia y las consecuencias que se desprenden de este acto. Más
precisamente, podemos decir que la operación del principio igualitario
se inscribe en el interior de una representación particular de la
historia. Aquella que narra los sucesos acaecidos en la institución
modelo regenteada por el antiguo maestro de Bolívar en la Ciudad de

576
igualdade, militância e educação na escola popular de simon rodríguez

Chuquisaca entre 1825 y 1826. Es decir, el elemento político de la idea


se da siempre en el interior de un proceso histórico determinado.
Hasta aquí, hemos hecho referencia a dos de los tres
componentes primitivos de una idea. El primer elemento, al que
hemos decidido llamar político consiste en la radical transformación
que operó la presencia en la escuela de niños y niñas que no eran
tenidos en cuenta por la sociedad de aquel entonces como posibles
sujetos de la educación. El componente histórico es el proceso espacio
temporal en el que se ancla en el elemento político. Para finalizar
tenemos que explorar el tercer elemento, el subjetivo. El mismo, como
señala Alain Badiou, consiste en la posibilidad que tiene todo ser
humano individual de decidir su incorporación en una secuencia de
emancipación. Se trata de la decisión subjetiva que un individuo toma
al dirigir su vida de acuerdo con aquello que transformó un
determinado estado de cosas. Para Badiou, es el punto en el que una
persona traspone los límites de la individualidad y el egoísmo para
formar parte de un Sujeto colectivo de emancipación (BADIOU, 2010,
p. 19).
Rodríguez orientó su vida de acuerdo con la idea de igualdad.
Ante la posibilidad de una vida sin ideas, tranquila al amparo de los
grandes personajes de América, el maestro decidió lo contrario. En
lugar del silencio cómplice y obsecuente requerido por los sectores de
poder, Rodríguez, denunció a plena voz que los hombre son iguales y
que todo intento por maquillar, ocultar o negar esta verdad, lo único
que mostraba era la potencia de la misma. A diferencia de muchos
intelectuales, no se preocupó por demostrar la verdad de su
afirmación, sino que actuó de acuerdo a ella. Sostuvo lo inaudito y
afirmó lo indecible. Comprometió su vida y sostuvo con su cuerpo la
decisión de llamar iguales a los que la oligarquía llamaba inferiores. Su
biografía es la prueba más contundente que tenemos para apoyar lo
que decimos. La decisión de Rodríguez de sostener en el pensamiento
y los actos la acción del principio igualitario implícito en la inclusión
de niños de todos los colores, en un espacio escolar como parte
constitutiva de la república, constituyó su inscripción en un proceso
histórico de emancipación. Es decir, el elemento subjetivo de la idea
que aquí pretendemos explicar se define, precisamente, en la
comprensión, por parte de Rodríguez, del hecho singular que
transformó la realidad de la ciudad de Chuquisaca (operación del
principio igualitario), como la apertura a una nueva posibilidad
creadora. Y en relación a ello su decisión de explorar y sostener las
consecuencias de eso que él consideró como una instancia creadora de
emancipación colectiva, fijando así su lugar en la historia.
En función de lo escrito podemos decir que una idea, tal como la
venimos pensando, está conformada por tres componentes primitivos
(político, histórico y subjetiva). La relación de estos tres componentes

577
maximiliano durán

constituye lo que aquí intentamos nombrar como idea. En este sentido


podemos decir que una idea trata de una relación subjetiva entre la
singularidad de un acto que transforma un determinado estado de
cosas en pos de un proceso de emancipación colectiva en el interior de
una representación de la historia. Por ello es que la idea debe pensarse
como una operación y no como una noción. La idea de Igualdad que
aquí pensamos es la operación, a través de la cual una persona decide
incorporarse a un proceso de cambio en un momento histórico
determinado. En el caso puntual de Simón Rodríguez, es la operación
a partir de la cual en la ciudad de Chuquisaca a lo largo de 1825
sostuvo, contra el parecer de toda la sociedad chuquisaqueña, la
presencia de todos los niños de la ciudad en un mismo salón de clases,
en la afirmación de su igualdad como un principio y no como un
objetivo.
El componente político, histórico y subjetivo se articulan en el
interior de la idea, de tal manera que hacen de ella una operación
inmanente, universal y eterna. Es decir, la igualdad de la que aquí
hablamos es el nombre de una idea universal, eterna e inmanente. En
la próxima sección del trabajo intentaremos analizar estas
características en relación a la vida y obra de Simón Rodríguez.

pensamiento, conceptos y coherencia.

La universalidad es una de las principales características de la


idea. En este trabajo lo universal se asume de una forma particular
para evitar las críticas de la tradición filosófica en relación a dicho
concepto. Aquí sostenemos que lo universal no refiere a una
propiedad esencial compartida por todos. Tampoco afirmaremos que
lo universal es una ley. Para nosotros lo universal, siguiendo a Badiou,
es un ofrecimiento incondicionado en el que aparece un elemento
creador. Un enunciado universal es en el interior de una identidad
particular “el anuncio de una nueva posibilidad creadora” (BADIOU,
2007, p. 115). Se trata de una afirmación que si bien nace en el interior
de un grupo humano particular, situado histórico y socialmente, está
dirigido a todos y a cualquiera. De acuerdo con esto podemos decir
que, la afirmación universal irrumpe en el interior de una identidad
determinada, pero en el momento mismo de su irrupción trasciende
todas las identidades, en la medida que se dirige a toda la humanidad
sin condición identitaria alguna.
La idea de igualdad que venimos analizando en este trabajo es
universal. Ella surge en el interior de una determinada identidad.
Simón Rodríguez era blanco, sin embargo la igualdad que sostiene, en
palabras y actos, no se limita a un determinado grupo identitario
particular, sino que atraviesa a los diversos grupos que componen el
territorio boliviano y los convoca como iguales. Es más la afirmación

578
igualdade, militância e educação na escola popular de simon rodríguez

“los hombres son iguales”, es llevada al extremo porque excede los


límites de todo grupo identitario. El anuncio de Rodríguez se dirige a
los blancos, los indios, los negros y los mestizos, en todas sus
variantes. A todos y a cualquiera. Contrariamente a lo que puede
parecer, el ofrecimiento de Rodríguez, no tiene intenciones
homogenizadoras. Para él, la igualdad no contiene a los distintos
grupos humanos que constituyen la nueva república, sino que los
atraviesa. A diferencias de muchos proyectos civilizadores de la época,
su objetivo no es el blanqueamiento de los pueblos originarios y de los
diversos grupos devenidos de los distintos cruces culturales. Su
propuesta parte de una identidad, se origina en el interior de un grupo
identitario particular y específico pero no tiene restricción, se ofrece a
todos (BADIOU, 2007, p. 112). El anuncio no implica la perdida de
ninguna de las identidades. Las personas no pierden su vínculo
cultural de pertenencia. No es necesario dejar de ser indio, abandonar
su comunidad, ni sus practicas comunales para ser igual. La
universalidad de la igualdad reside en ser una afirmación que, como
señala Badiou, a pesar de mantener las identidades, no poseía
condición identitaria alguna (BADIOU, 2007, p. 113). Ella propone a
los hombres de la nueva república una forma de relacionarse inédita
hasta ese momento en América. El anuncio de la igualdad de los
hombres crea la posibilidad de una experiencia política fuera del
marco de las clasificaciones y categorías tradicionales de castas y
cuerpos imperantes hasta ese momento en toda la América española.
La segunda característica que nos interesa señalar se relaciona
con la trasntemporalidad. Si bien una idea surge en el interior de una
identidad, en un lugar y tiempo determinado, la misma puede ser
utilizada en cualquier momento de la historia y provocar efectos. Esto
significa que una idea, en todo otro segmento temporal, continúa
siendo una ruptura excepcional. Si bien es producida en un tiempo
empírico mensurable e inscripta en una lengua particular, la misma
puede ser rescatada del olvido y asumida por cualquier persona en
cualquier momento (BADIOU 2008, p. 51). Aunque sus efectos se
encuentren suspendidos, siempre existe la posibilidad de que los
mismos sean reactivados en otro tiempo y lugar por un nuevo sujeto.
Afirmar la “igualdad”, hoy en día, nos pone en contacto directo
con los efectos del cual es su nombre. Nos permite rescatar del olvido
la verdad “los hombres son iguales” e inscribirnos en su huella a
través de la reactivación de su nominación. De esta manera, a lo largo
de la historia, la idea de igualdad y los efectos que ella genera pueden
ser afirmados en distintos momentos y lugares por cualquiera. Tal es
el caso de Emiliano Zapata en México, Solano López en el Paraguay,
los anarquistas de la Patagonia, el movimiento insurgentes de los
pueblos originarios de Chiapas y los sin tierra, entre otros tantos. Hoy
en día sostener esta idea es asumir la igualdad como una condición de

579
maximiliano durán

posibilidad de la misma. Es decir afirmar la igualdad como axioma y


no como programa. Sostener la igualdad como un principio de acción
y ver las consecuencias que se desprenden de esa afirmación.
Para terminar con nuestro análisis nos detendremos en un punto
crucial de esta construcción conceptual. Nos referimos a la
inmanencia, como rasgo constitutivo de la idea. A diferencia de la gran
mayoría de la tradición filosófica occidental, pensamos que el
concepto de idea que aquí presentamos, no debe entenderse como una
entidad trascendente fuera de este mundo. Tampoco es una
construcción lógica derivada. La idea, como hemos dicho, aparece en
el interior de una identidad, en un tiempo y espacio determinado. Ella
surge en el interior de un relato histórico tras la aparición de un
fenómeno que interrumpe la continuidad de un estado de cosas
determinado, lo altera y finalmente lo transforma. De acuerdo con esta
posición, toda reactivación de la misma se realiza siempre con los
elementos del mundo en el que ella irrumpe.
La idea de igualdad que sostiene Rodríguez a lo largo de toda su
vida y que en el transcurso de esta última sección de nuestro trabajo
hemos intentado caracterizar es una construcción conceptual
universal, eterna e inmanente. Decimos que es universal en la medida
que se ofrece a todos y a cualquiera. Es eterna, porque las
consecuencias que se derivan de su afirmación pueden ser retomadas
en cualquier otro momento histórico por un nuevo sujeto que decida
afirmarla. Y es inmanente, porque su construcción se realiza siempre
en el interior de una identidad determinada y con los elementos
propios del mundo en el que ella aparece.

conclusiones

A lo largo de nuestro trabajo hemos intentado dar una respuesta


al interrogante sobre la identidad de este maestro americano que, lejos
de su tierra natal decidió sostener que los hombres son iguales,
independientemente del parecer general. Quien fue este hombre que
frente a las desigualdades mas extremas, justificadas y naturalizadas
por años de administración colonial, afirmó que lo natural es la
igualdad. Cómo definir a un personaje que sostuvo que la igualdad
era la situación normal frente a la evidencia material de la
desigualdad. Para él la igualdad fue el concepto en función del cual
estructuró su pensamiento y sus actos. Invirtió los términos de las
supuestas lógicas igualitarias de la época que partían de la
desigualdad para arribar en algún futuro imaginario a ciertas
instancias de igualdad. Opuso a la igualdad entendida como un
programa social inacabado e inacabable, la igualdad como axioma.
“Escuela para todos porque todos son ciudadanos” es un enunciado
universal que debe ser leído en la radicalidad misma de su potencia.

580
igualdade, militância e educação na escola popular de simon rodríguez

Esta proposición universal no es otra cosa que la afirmación


contundente del derecho absoluto de la igualdad.
Para nosotros, este hombre que sostuvo con su cuerpo las
consecuencias de sus decisiones, enfrentó y denunció a todos aquellos
que utilizaron la revolución y la emancipación americana para
satisfacer sus propios intereses económicos. Este hombre, a lo largo de
sus textos, advirtió incansablemente de los peligros que amenazaban a
la república. Este hombre señaló con dolor e indignación la codicia de
los políticos que se alzaron con el poder tras la guerra contra el
imperio español. Este hombre requirió la imperiosa necesidad de no
imitar servilmente a las grandes potencias extranjeras y nos convocó a
inventar nuestro propio presente. Este hombre defendió a sus
compañeros de armas y pensamiento, en los momentos de derrota y
olvido, aún a costa de ser despreciado, ignorado y olvidado. Este
hombre puede ser descripto de muchas maneras. Dromómano,
maestro de Bolívar, Rousseau tropical, loco, precursor de la escuela
activa, genio irreverente, pedagogo, son tan solo algunos de los
numerosos nombres que le han adjudicado. Todos ellos describen
algún aspecto de su vida y su pensamiento. Sin embargo, ninguno
logra definirlo, precisamente porque cada una de estas
caracterizaciones, solo refieren a aspectos triviales de lo que realmente
fue. Para nosotros poco importa cuándo y qué tipo de influencias
Rodríguez ejerció sobre Bolívar. De hecho, ante la pregunta de un
viajero acerca de si había sido el maestro del libertador, Rodríguez
contestó “entre otras cosas”. Mucho menos resulta de importancia
para nosotros saber si Rodríguez se ajusta o no al calificativo de
Rousseau del trópico. En qué nos transforma la existencia saber si
efectivamente su formación teórica se debe al ginebrino, a la
ilustración española o al humanismo español. En todo caso establecer
correctamente su filiación intelectual implicaría un trabajo de
erudición académica.
De entre todas las definiciones que hemos escrito, decidimos
explorar otra que destaca la forma en la que el maestro se incorpora
subjetivamente a un cuerpo colectivo en pos de un proceso de
emancipación. Un forma que apela a su pensamiento y decisión en
torno a una hecho que transformó la realidad de su época y cuyas
consecuencias aún hoy pueden sentirse. En este sentido pensamos que
don Simón Rodríguez fue el militante de una de las ideas que,
necesariamente, cualquier proceso de emancipación colectiva debe
encarnar. Él fue simplemente un militante más de la idea de igualdad.
Rodríguez fue uno de los millones y millones de hombres y mujeres
que en diferentes momentos de la historia orientaron su vida de
acuerdo a esta idea y materializaron su inscripción en la historia.

581
maximiliano durán

bibliografía

ÁLVAREZ FREITES, Mercedes. Simón Rodríguez tal cual fue. Vigencia perenne de
su magisterio. Caracas: Ediciones del Cuatricentenario de Caracas, 1966.
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MANCINI, Jules. Bolívar y La Emancipación de las Colonias Españolas Desde los
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RUMAZO GONZÁLEZ, Alfonso. Ideario de Simón Rodríguez. Caracas:1980.
Ediciones Centauro.
_______. Simón Rodríguez: maestro de América. Caracas: Universidad Simón
Rodríguez, 1976.

582
temporalidade, memória e ancestralidade: enredamentos
africanos entre infância e formação

wanderson flor do nascimento


unb
wandersonn@gmail.com

Ìgbà kan ńlọ, ìgbà kan ńbọ


Ọjọ nbori ọjọ
Ero iwaju ńlọ,
Ero ẹyin ntẹle

Um tempo está partindo, outro está chegando


Um dia vai e outro vem
Os da frente (os velhos) estão indo
Os de trás (os jovens) os estão seguindo
(dando-lhes continuidade).
Provérbio iorubá. (RIBEIRO, 1996, p. 61)

palavras iniciais: das tantas metamorfoses...

Por aqui, estamos acostumadas a pensar as infâncias


entrelaçadas e entremeadas a algumas ideias. As mais comuns são o
tempo e a experiência. Esse tempo, por vezes é entendido como
cronológico, apontando para uma etapa da vida. Outras vezes, é
entendido como uma experiência infantil, que aponta para um jeito de
estar na vida, transitando entre o passado e o futuro, sendo, assim, um
movimento existencial na vida, que nos descentra de um tempo
“ótimo” da adultez, colocando-nos à espera, em aberturas; não sendo,
portanto, fundamentalmente apenas cronológico. Essa experiência é
entendida como um movimento na existência, pleno de potência, de
criação, de abertura, que que não necessariamente se prende ao
período em vivemos como crianças.
Ladeando-me com essas ideias de infância, gostaria de discutir
mais algumas, advindas de regiões de línguas bantas e iorubás do
continente africano (ou seja, nos situaremos em parte da chamada
“África Negra”), atenta às suas projeções na diáspora, sobretudo nas
que podemos encontrar nos terreiros de candomblé. E essas infâncias
serão discutidas a partir de percepções/imagens da criança: embora
nem sempre se possa sobrepor as crianças e as infâncias, tampouco se
pode recusar suas relações.

583
wanderson flor do nascimento

Em outro momento (FLOR DO NASCIMENTO, 2012), discuti, a


partir de abordagens originárias de povos bantos e iorubás, as relações
entre infância e formação, apontando para a dimensão da permanente
experiência de aprendizado e de subjetivação, em contextos nos quais
a tradição desses povos nos apresenta uma inexorável relação entre
comunidade, natureza e ancestralidade, desde os modos como essas
tradições de pensamento entendem essas ideias.
Aqui, estarei interessada em partir de uma certa imagem de
infância, para contrastá-la com essas abordagens de origem africana,
atravessando-as pela temática da formação, desde as múltiplas
relações entre infância, memória e temporalidade, desde categorias
filosóficas das tradições destes povos que estabeleceram uma
profunda relação com o Brasil, colaborando para sua construção
embora, em função do racismo, sobretudo em sua faceta epistêmica,
não se as reconheça amplamente.
A imagem com a qual eu gostaria de iniciar é a trazida por
Nietzsche (2011) através do primeiro dos discursos de Zaratustra:
“Das três metamorfoses”. Nesta parábola, Zaratustra nos conta sobre
os movimentos metamórficos do espírito em camelo, do camelo em
leão e do leão em criança. Os três animais metaforizam relações do
espírito com os valores no mundo. E há relações internas entre eles. O
camelo aponta para o espírito aprisionado, que carrega peso, fardo. É a
dimensão resistente do espírito, o “espírito resistente” (NIETZSCHE,
2011, p. 27).
O camelo rebaixa-se, reluz sua tolice, tem fome na alma –
embora se alimente da verdade –, acerca-se de quem não lhe acolhe,
ama os que o desprezam, caminha para o solitário deserto. E, nesse
deserto, surge o segundo o animal, o leão: guerreiro insurgente que se
antepõe ao “não-farás” – dito incessantemente ao camelo resistente –,
na afirmação de um “eu quero” (NIETZSCHE, 2011, p. 28). O “não-
farás” é o inimigo a ser enfrentado, na forma de um dragão moral, que
se esforça por interditar a vontade...
Nessa batalha, o leão finda por criar “a liberdade para a nova
criação” (ibid.), dando ao espírito o direito de experimentar outros
valores, através da caça e captura da liberdade. Uma vez que a
liberdade está sob a posse do leão, sua finalidade se impõe: liberdade
para quê? “Criar novos valores” (ibid.), diz Zaratustra. E o agente
dessa criação é o último animal, a criança, capaz de fazer aquilo que o
grande guerreiro felino não é capaz. O leão não cria, pois está em uma
relação simbiótica com seu inimigo, movido, de algum modo, ainda,
pelo ressentimento em relação ao passado cativo, servil em que vivera
o camelo (LARROSA, 2002, p. 109).
O primeiro uso da liberdade, transforma o leão em criança,
indicando uma libertação do ressentimento, do passado, instalando no
espírito o não saber, a dúvida, a abertura: “Inocência é a criança, e

584
temporalidade, memória e ancestralidade: enredamentos africanos ...

esquecimento; um novo começo, um jogo, uma roda a girar por si


mesma, um primeiro movimento, um sagrado dizer-se sim”
(NIETZSCHE, 2011, p. 28-29). Assim, no espírito se instala a criação,
uma afirmação da própria vontade, para a conquista do próprio/seu
mundo, afirma o Zaratustra nietzschiano. Abandona-se o passado,
para construir um futuro, desde o eterno presente infantil em um uso
potente da liberdade, entendida como “experiência da novidade, da
transgressão, do ir além do que somos, da invenção de novas
possibilidades de vida” (LARROSA, 2002, p. 117).
Esta imagem da infância – vista desde a experiência da criança
em abandonar a memória ressentida, um passado que retraz dragões
inimigos, que se abre à criação de um novo, com começos – será aqui
dialogada com abordagens produzidas por alguns povos africanos,
não com a intenção de estabelecer contradições ou entender quem
“tem razão”, mas para produzirmos percepções plurais de nossas
relações com a infância no Brasil, país tão influenciado por imagens
ocidentais quanto por imagens advindas do velho continente negro,
embora muitas vezes tendemos a não reconhecer a importância dessa
última, sobretudo quando pensamos em tratar de nossas crianças, de
nossas infâncias, que são herdeiras de múltiplas heranças, mas que
tem parte delas negadas, ignoradas, apagadas.
Aqui, penso que, na experiência do espírito no Brasil, há muitas
metamorfoses possíveis. E as apontadas por Zaratustra são apenas
parte delas. E, nesse sentido, múltiplas percepções de criança e das
infâncias potencializam mais dimensões para abordagens das relações
dos seres humanos com os valores e o próprio mundo. Essas
percepções de criança e infância serão articuladas a partir de três
marcos: a temporalidade, a memória e a ancestralidade, em busca de
caminhos, de uma possível volta para a formação, com o auxílio
dessas imagens filosóficas e procurar algumas possibilidades de uma
educação para os encontros entre os múltiplos e diversos, apostando
em horizontes plurais.
Convém frisar que as línguas bantas e o iorubá não possuem em
seu léxico um termo para se referir à infância, seja como experiência,
seja como fase da vida. Entretanto, aqui faremos um exercício de
pensar a infância em nosso país, desde esses referenciais dos quais
somos herdeiros. Não para atribuir-lhes uma entidade nossa, mas para
nos pensarmos desde abordagens plurais as nossas crianças que, de
algum modo, acabam experimentando as cosmopercepções africanas
em sua experiência na diáspora brasileira.

infâncias e temporalidade

Na metáfora de Zaratustra, a criança é um começo, o início de


um novo, uma projeção do presente em direção ao futuro. E o passado

585
wanderson flor do nascimento

é o que deve ser abandonado na perspectiva de recusar a autonegação


do camelo e o ressentimento do leão. Criar, assim, é estar livre de um
passado que mortifica a potência do hoje.
Essa abordagem carrega, ainda que criticamente, a perspectiva
moderna, projetada “para o futuro, considerado modelo para o
presente, não há a representação cíclica do tempo e pressupõe-se a
possibilidade de controle do tempo a curto, médio e longo prazo”
(RIBEIRO, 1996, p. 49). Dito de outro modo, a temporalidade da
infância projeta-se desde o presente para o futuro.
Se o filósofo queniano John Mbiti248 (1970) tiver razão, as
sociedades tradicionais africanas249 não têm uma grande preocupação
com o futuro. Em sua interpretação, para essas sociedades, o “tempo é
um fenômeno bidimensional, com um longo passado, um presente e
virtualmente nenhum futuro. O conceito linear de tempo do
pensamento ocidental, com um passado indefinido, um presente e um
futuro infinito, é praticamente estranho ao pensamento africano. O
futuro é virtualmente ausente porque os acontecimentos vindouros
não foram realizados e, portanto, não podem fazer parte do tempo”
(MBITI, 1970, p. 21-23). Para dar conta dos eventos que seguramente
acontecerão, por estarem vinculados com os ciclos naturais, ele afirma
que as sociedades tradicionais africanas se aproximam da ideia de um
tempo virtual, que seria distinto de um tempo real, vivido, acontecido
(ibid.). Mbiti (1970, p. 23) ressalta que o tempo tradicional africano se
move mais para trás que para a frente e que o que acontece hoje, sem
dúvidas se desdobra em futuro, mas só o presente nos atravessa e nos
passa: o futuro não é, senão como potência.
Esta percepção vincula as crianças não com um futuro, mas com
o passado e o presente, o que faz com que a própria experiência seja
toda projetada para a compreensão de um passado e de um presente
que nos faça, hoje, saber quem fomos e quem somos e, a partir desse
somos fazer outras coisas, potencialmente, no porvir. Por isso é
fundamental para as crianças conhecerem a história de seus
antepassados vivos e mortos, o que faz com que em muitas sociedades

248 Há uma série de críticas africanas à interpretação de Mbiti sobre o tempo,


sobretudo no que diz respeito a sua noção de passado. Mas parece haver um consenso
entre os críticos de que a leitura sobre o futuro, feita pelo queniano, é isenta de
problemas. Sobre tais críticas, consultar Alexis Kagame (1975) e Modupe Oduyoye
(1971).
249 Aqui, a ideia de sociedades tradicionais não se refere a tradições puras, mas

àquelas às quais o processo de colonização não foi capaz de extirpar todos os valores,
crenças e práticas presentes antes da experiência colonial. A cultura dessas sociedades
é dinâmica e se transforma sempre que necessário para manter o que lhe interessa,
modificando o que é preciso para seguir no movimento da história (INIESTA, 2010, p.
16).

586
temporalidade, memória e ancestralidade: enredamentos africanos ...

tradicionais africanas, a educação das crianças tenha como ponto


fundamental “aprender as genealogias das quais descende, o que dá
um sentido de profundidade, pertencimento histórico, enraizamento e
obrigação sagrada de prosseguir a linhagem genealógica” (MBITI,
1970, p. 136-137).
Como as crianças são filhas de toda uma comunidade – e não
apenas de um casal – (SOMÉ, 2007, p. 23-24), saber de sua genealogia
implica em um comprometimento de toda essa comunidade na
transmissão desse passado que aparece como uma atmosfera que
envolve toda a experiência infantil, mas também de um presente que
só o é em função dessa história tecida no passado. Essa postura
demanda da comunidade, incluindo as crianças, um cuidado
profundo com o presente, pois o que fizermos hoje, se tornará passado
e, portanto, fundamental para a história comunitária. Há uma
profunda interconexão entre o passado e o presente, assim como há
uma profunda interconexão entre todos os existentes da realidade,
para a percepção tradicional africana.
O fato de esse passado ser irrenunciável conforma uma série de
obrigações morais para com a natureza e com a comunidade. Essas
obrigações são um compromisso com a história, seus acertos e erros,
um projeto de comunidade que adquire sentido no tempo, trazendo
uma experiência de aprendizado constante, na busca da construção da
melhor história que se puder, pois ela será sempre nossa, e não temos
como nos livrar dela.
O nigerino Boubou Hama e o burquinense Joseph Ki-Zerbo
(2010, p. 24) chamam a atenção para o fato de que o tempo tradicional
africano “engloba e integra a eternidade em todos os sentidos. As
gerações passadas não estão perdidas para o tempo presente. À sua
maneira elas permanecem sempre contemporâneas e tão influentes, se
não mais, quanto o eram durante a época em que viviam”. Assim,
somos eternamente responsáveis pela história que fazemos, pois é no
presente que projetamos os ancestrais que seremos e, também, é nessa
eternidade que prestamos conta para os ancestrais que vivem agora e
os mortos-viventes.
Essa dimensão faz com que morte e vida estejam em uma relação
completamente distinta daquela que visualizamos corriqueiramente
no ocidente. Se a morte, no ocidente, implica em um “sair de cena”
social, ficando o morto localizado no passado, e trazido ao presente
apenas pela memória, de modo inconstante, para as tradições africanas
o morto é presente não apenas no passado, mas também nos dias
atuais, permanentemente. O convívio entre as crianças e a morte é
constante.

587
wanderson flor do nascimento

Uma das maneiras de compreender essa ligação, de como ela


chega ao Brasil, é pela observação de um dos signos presente no
mẹ́rìndilogun250, o sistema de comunicação com a ancestralidade. Neste
signo, que tem como espectro geral a “dúvida”, incerteza, os ancestrais
mortos (chamados de Eguns) falam. E nele também fala Ibeji, o orixá
dos gêmeos251, normalmente vinculados com as crianças pequenas. A
infância e a morte se expressam através do mesmo signo, falam desde e
sobre o mesmo tempo; a despeito de estarem em momentos distintos,
são ligadas por essa temporalidade que as colocam à espreita uma da
outra, sem tensões necessárias.
Assim, poderíamos dizer que as crianças estão mais próximas da
morte no passado, dos mortos, que da morte do futuro, aquela que
elas mesmas experimentarão um dia. Deste modo, percebemos uma
maneira bastante particular de ligar as crianças à temporalidade, não
mais a um futuro ou a um sempre agora inaugural, mas sobretudo ao
passado. As crianças são, sem dúvida, como nos lembra Mbiti,
conectores com esse passado que nos acompanha incessantemente.
Antes que nos assustemos com essa proximidade “quase
idealizada do passado”, ouçamos o que Iyakẹmi Ribeiro (1996, p. 63)
nos alerta:
Seria tal visão do processo histórico estática e estéril, na
medida em que coloca a perfeição no arquétipo do
passado, na origem dos tempos? Constituiria o ideal
para o conjunto das gerações a repetição estereotipada
dos gestos do ancestral? Não. Para o africano o tempo é
dinâmico e o homem não é prisioneiro de um mecânico

250 Este sistema de comunicação ficou conhecido no Brasil como o famoso “jogo de
búzios”, que é largamente utilizado como uma técnica oracular. Entretanto, para as
práticas tradicionais, ao menos dos povos de línguas bantas e iorubás, esse sistema é
utilizado para estabelecer a comunicação com os ancestrais e com as outras "pessoas"
da comunidade, que não falam exatamente a língua corrente desta. Como alertei em
outro lugar "Apenas ao modo de uma carta náutica os jogos poderiam fazer previsões
ou, ainda, como previsões meteorológicas, na ligação com a imagem interconectada
da realidade" (FLOR DO NASCIMENTO, 2016, p. 163). Esse sistema, opera através da
leitura situacional de articulações entre dezesseis signos, chamados de Odus e que se
vinculam com/representam aspectos da realidade e com sistemas de conhecimento
desta. O signo ao qual me refiro é, no Brasil, chamado de Èjìoko ou Mèjìoko. Na maior
parte dos métodos utilizados no Brasil, pelos candomblés, para ler os búzios, èjìoko é o
segundo signo (ROCHA, 2003).
251 Ibeji é conhecido no Brasil como o orixá (divindade iorubá) que rege não apenas os

gêmeos (a palavra ibeji significa exatamente “gêmeos”), mas é também a divindade da


jovialidade, dos jogos infantis. Nos candomblés, essa divindade se vincula aos Erês,
entidades infantis que são também um dos modos dos orixás se comunicarem, pois
trazem as mensagens das divindades iorubanas quando os iniciados entram em transe
com essas entidades.

588
temporalidade, memória e ancestralidade: enredamentos africanos ...

retorno cíclico, podendo lutar sempre pelo


desenvolvimento de sua energia vital.
O tempo com o qual a criança está conectada aqui é expresso
nessa repetição do dinâmico, do instável, do incerto, com um
compromisso com esse passado que a todos rege. Não há aqui um
eterno retorno do mesmo, mas um eterno retorno da pirueta, que tem
sempre o compromisso com o chão, que vem antes.

infâncias e memória

Enquanto a criança nietzschiana é esquecimento, as crianças nas


tradições africanas são eivadas de memória, sua expressão. Assim
como elas são expressão e manifestação do tempo passado, dessa
temporalidade eterna que “move-se para trás, mais do que para a frente”
(RIBEIRO, 1996, p. 50), as crianças expressam e manifestam aquilo que
Amadou Hampâté Bâ (2003, p. 13) chamou de “memória africana”.
Esta expressão aqui não indica uma natureza africana da memória,
mas o modo como a história das tradições orais africanas trouxeram
movimentações particulares dos modos de se relacionar com o que se
recorda. E a criança africana é totalmente inserida nesse contexto
histórico, assim como podemos também dizer que a memória africana
é, em algum sentido, infantil.
Ao descrever a memória africana, Bâ (ibid.) nos conta que é na
infância que que seu exercício se inicia. Não apenas de reter o que se
vê hoje, mas lembrar o que fora contado repetidas vezes no passado:
É que a memória das pessoas de minha geração,
sobretudo a dos povos de tradição oral, que não podiam
apoiar-se na escrita, é de uma fidelidade e de uma
precisão prodigiosas. Desde a infância, éramos treinados
a observar, olhar e escutar com tanta atenção, que todo
acontecimento se inscrevia em nossa memória como em
cera virgem. Tudo lá estava nos menores detalhes: o
cenário, as palavras, os personagens e até suas roupas.
Quando descrevo o traje do primeiro comandante de
circunscrição francês que vi de perto em minha infância,
por exemplo, não preciso me “lembrar”, eu o vejo em
uma espécie de tela de cinema interior e basta contar o
que vejo.
E esse exercício se vincula com a ideia de temporalidade que
vínhamos discutindo antes, agora na relação com as histórias e
narrativas africanas:
Nas narrativas africanas, em que o passado é revivido
como uma experiência atual de forma quase intemporal,
às vezes surge certo caos que incomoda os espíritos
ocidentais. Mas nós nos encaixamos perfeitamente nele.
Sentimo-nos à vontade como peixes num mar onde as

589
wanderson flor do nascimento

moléculas de água se misturam para formar um todo


vivo (2003, p. 14).
Mais do que a pressuposição de que as crianças são folhas em
branco que podem ser preenchidas com o que a comunidade quiser,
há a percepção de que elas são a própria expressão desse tempo
passado e, portanto, carregam o dever de atualizar essas narrativas. E
a memória se encarna nos corpos infantis, não apenas na forma de
imagens sensoriais, mas em sons, cheiros, texturas. Os corpos sentem o
que lembram. Os sujeitos lembram o que sentem.
Aqui percebemos que a oralidade, base fundamental dessa
memória africana, não pode simplesmente ser reduzida à relação entre
a fala e a escuta. Ela significa, antes de tudo, uma implicação dos
sujeitos naquilo que se diz e naquilo que se escuta. Não apenas a
palavra está em jogo na oralidade, mas a pessoa, a comunidade, a
realidade. Assim, vemos que a memória é parte desse dispositivo da
oralidade que provoca que o humano se verta em palavra, isto é, que a
palavra seja uma parte do humano, que está sempre em jogo no que
diz e no que escuta.
Como a criança é a expressão desse passado que a comunidade
precisa cuidar, sua relação com a memória também precisa ser
cuidada, preparada, incentivada. Não se pode pensar, nessa
abordagem, que a criança esteja começando algo, mas sim
continuando. E continuar significa perceber os passos que vieram
antes.
Ainda dialogando com a parábola de Zaratustra, se para o
ocidente, esquecer é uma condição para poder criar, para livrar-nos do
ressentimento mortificador, para as perspectivas tradicionais africanas
é apenas através do reavivamento da memória que se pode impedir
que algumas pessoas sejam feitas de camelos servis. A proposta aqui
não é de uma vida ressentida, mas de uma vida que possa reinventar,
desde o já feito, outras possibilidades não mortificadoras.
Não sem motivos há uma grande importância no gesto de
nomear uma criança para as sociedades tradicionais africanas,
sobretudo as de línguas bantas e iorubá. Nomear é situar a criança em
seu trajeto histórico e inseri-la na marcha que fará com que ela se
conecte com a história de quem lhe antecedeu. O nome é sempre
escolhido pela comunidade e se refere às expectativas que a
comunidade tece sobre como a pessoa recém-chegada ocupará seu
lugar na história da comunidade. Os iorubás chamam de Ikomojade ao
processo de nomear as crianças, se situá-las no contexto da
comunidade, com o “objetivo de identificar a existência formadora da
criança” (SILVA, 2015, p. 90). Nomear uma criança é situá-la em uma
ontologia relacional, reconhecendo sua pertença ao grupo e à
realidade, dando seguimento a uma história que lhe precede.

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temporalidade, memória e ancestralidade: enredamentos africanos ...

É fundamental, ainda, notar que a memória, como a infância, é


um processo, e não um repositório de imagens a serem utilizadas em
algum momento oportuno. A memória, instalada na plenitude do
sujeito, conforma-o, de modo dinâmico, como dinâmica é a própria
memória. Como o passado é vivo e se move até o presente a todo
instante, viva também é a memória que precisa estar em atividade
processual para acessar a história.
Como em expansão estão as crianças, em expansão está a
memória, não por acumular mais dados do passado, mas por sempre
rearticulá-los recriando, nas narrativas, um sentido sempre diverso em
torno do já vivido. Não se trata, propriamente, de reinventar, mas de
revisitar a história, percebendo o mesmo cenário desde outros
encontros, de modo que a memória se apresenta como um palco de
um outro-mesmo e de um mesmo-outro que se encena sempre que
uma história é contada, ouvida, sentida. Nos terreiros de candomblé,
baluartes da preservação de saberes, práticas e valores africanos no
Brasil, vemos com regularidade o uso de uma “mesma história”, para
contar “histórias diferentes”. As narrativas míticas, os itans para os
povos dos candomblés de origem iorubá, carregam uma pluralidade
de sentidos, mesmo quando recontados (FERREIRA, 2015, p. 19).
A memória, como as brincadeiras de crianças, traz as sensações
sempre de modos diversos. Assim, a memória africana é infantil e as
crianças são sujeitos responsáveis por um primeiro agenciamento
dessas memórias, que mesmo através da riqueza de detalhes, como
assinalou antes Bâ, não perde o espaço da criação. Mas aquela criação
que sabe que parte de um ponto histórico deixado pelo passado, nunca
ex-nihilo. O vínculo entre a memória e as crianças se dá exatamente
porque para as sociedades tradicionais africanas, a ideia que se tem
das crianças está muito distante de algo como um ser em potência, um
ser a quem falta algo, um ser a quem falta vivência. É exatamente
porque as crianças são uma vivência dinâmica de um passado já
vivido pela comunidade e que segue sendo experimentado, que elas
são memória encarnada, pois no “emaranhado de redes em que
circularam suas memórias e interações, forjaram 'vozes do corpo' no
improviso, reinventando viveres de resistência em suas linguagens”
(ANTONACCI, 2014, p. 35).

infâncias e ancestralidade

Quando percebemos a memória como uma instância do coletivo


que as pessoas particulares participam e agenciam, podemos ter
elementos para perceber que a ancestralidade não é apenas a
descendência biológica que uma pessoa tem de uma família
consanguínea, mas, sobretudo, o atravessamento de toda a história na
formação dos sujeitos. Assim, podemos entender a ancestralidade

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wanderson flor do nascimento

como a história da comunidade, que nos conforma não apenas através


da doação do material biológico, mas também de seus projetos, seus
erros, acertos, expectativas.
As crianças são uma espécie de elo entre essa dimensão histórica
do passado e o presente das comunidades. São não o símbolo de seu
futuro, mas a expressão de sua continuidade no presente. Desse modo,
diferentemente da criança de Zaratustra, que é um novo começo, a
criança para o pensamento tradicional africano é a marca da
continuidade, uma expressão da ancestralidade. Ela nem é nova e nem
começa. Ela segue. Mas não segue monotonamente. Ela segue em
inversões, deslocamentos, fissuras. Inclusive da própria
temporalidade. Um interessante exemplo disso, aparece no
pensamento iorubá. Na figura dos gêmeos, nos partos naturais, uma
criança nasce antes da outra. A primeiro a nascer, é chamada Taiwo –
que significa quem vem experimentar o gosto do mundo – e a
segunda, Kehinde – quem chega depois da outra (ANDA, 1996, p. 43).
Cronologicamente, Taiwo deveria ser a criança mais velha, uma
vez nasceu primeiro. Entretanto, a criança considerada mais velha é
Kehinde. Isso é um deslocamento provocado pela experiência das
crianças, em uma sociedade organizada politicamente em torno da
senioridade (OYĚWÙMÍ, 1997). A criança que nasce primeiro irá
verificar o mundo, e quando der o sinal de que está tudo bem, através
de seu choro, Kehinde chegará. E já chegará com os privilégios que sua
senioridade sobre Taiwo lhe garante.
Essa relação com a ancestralidade nos apresenta uma criança
marcada pela velhice da história. Quem chega depois é sempre mais
velho, na medida em que traz as bagagens acumuladas por quem lhe
antecedeu, adicionadas à própria experiência de seu nascimento. Essa
característica posicional, tende a se esmaecer na medida em que a
criança vai envelhecendo e entra na mesma lógica de senioridade que
o restante da comunidade. Por isso, vemos nos terreiros de candomblé
as crianças com toda a liberdade e com acesso à eventos que algumas
pessoas mais velhas só poderão ter na medida em que adquirirem
mais idade.
Mas engana-se quem pensa que essa inversão é fortuita. As
crianças, com toda essa “liberdade” vão, aos poucos, inserindo-se nas
normas da comunidade, inclusive aprendendo as posições
hierárquicas que advém da idade. Ao mesmo tempo, as ancestrais
(sobretudo as já mortas), que vieram muito tempo antes de quem
chegou agora, experimentaram o mundo, tal como Taiwo, para que as
novas Kehinde possam vir. Há privilégios precários e posicionais que
essas novas Kehinde gozarão. Mas tão logo percebam como é o
sistema hierárquico, se tornarão “mais novas”, e deverão respeito aos
ancestrais, que não apenas viveram antes, mas tornaram sua vida
possível.

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temporalidade, memória e ancestralidade: enredamentos africanos ...

A relação, portanto, entre as crianças e a ancestralidade é de


mútua alimentação e mútuo respeito. Muitas vezes, as crianças são
entendidas como a expressão mais plena da ancestralidade. Em
sociedades nas quais a senioridade é a manifestação da sabedoria,
tender-se-ia a pensar que apenas as pessoas velhas seriam essa
encarnação ou performance da sábia; entretanto, para diversos povos
tradicionais africanos, "a criança é o símbolo mesmo da sabedoria (...),
símbolo do conhecimento original e da sabedoria suprema" (ERNY,
1990, p. 72). E as sábias velhas e as sábias infantis se respeitam e
apoiam. A sabedoria que vai e a sabedoria que chega convivem, entre
tensões e florescimentos, apontando para uma continuidade
incessante. E, é nesse ponto, que a perenidade da formação fica
explícita.

encontros formativos entre a infância nietzschiana e a africana

A experiência da infância para os povos tradicionais africanos é


vinculada à sabedoria em função de sua estrita ligação com os
processos formativos. Se é verdade que a formação é um processo para
toda a vida – já que ninguém nunca está definitivamente pronto, pois
ser é ser para esse mundo que está sempre em constante
transformação (CLAVERT, 2011) –, também é verdade que essa
dimensão fica mais observável na relação com as crianças, que estão
em uma relação constante de apreensão das histórias das quais elas
são parte, mas que as precedem.
Dentre as transformações que nosso mundo tem observado,
encontramos aquelas provocadas pela empreitada colonial, que busca
jogar em um completo apagamento experiências não ocidentais como
constitutivas de nosso modo de ser e de nos formarmos. O racismo
tem feito com que procuremos ignorar as heranças africanas de nossa
formação enquanto sociedade e, assim, expurgar os legados culturais
que o velho continente negro nos deixou.
Se partirmos de perspectivas africanas, não precisamos ter a
produção intelectual do ocidente negada. Mas, como qualquer outra
abordagem, sujeita a crítica e aproveitada, pois tudo é parte da história
do que somos. E a história, a ancestralidade não nos abandona jamais.
E aqui um convite que faço é que possamos promover encontros entre
a imagem de infância trazida por Nietzsche e aquelas percepções
advindas do pensamento africano. Não sem razão, busquei a imagem
de Zaratustra para dialogar: ela se constrói no peito do pensamento
crítico europeu. E esse tipo de pensamento pode servir como uma boa
parceria de interlocução, na medida em que aponta já para a
insuficiência dos mecanismos que a modernidade colonial nos legou.
Como qualquer encontro, esse demandaria cuidado, atenção,
crítica. Sem romantizar as perspectivas africanas, sem demonizar as

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wanderson flor do nascimento

perspectivas ocidentais, mas também, sem ignorar os riscos


enfeitiçadores do pensamento do ocidente e sem esquecer dos efeitos
do racismo sobre as maneiras como lidamos com aquilo que advém do
continente africano.
Poder pensar em uma educação da infância em que a imagem do
ressentimento não seja sempre atrelada a uma imersão no passado e
na memória. Uma valorização das funções políticas da lembrança, que
evitem a repetição de erros trágicos. A percepção de que os camelos
não precisem ser explorados e serem sempre visto como servis, mas
como companhias no deserto. A ideia de que o deserto não é sempre
sinônimo de solidão e nem sempre mortal. A ideia de que a criança
não é inocente e que sua presença no mundo envolve tensões. Pensar
que a velhice pode criar, porque ela pode ser infantil. Pensar que a
infância é sábia, porque ela é velha como o mundo, e não só...
Como podemos pensar em processos formativos e em práticas
educacionais que sejam atravessadas por ideários que para além da
exclusão, pensem em multiplicidades, pluralidades? Como chamar
para a educação esse sujeito-criança que inverte suscetibilidades,
desconserta o pensamento, faz o mais velho ser o mais novo?
Promover encontros entre essas duas crianças pode trazer para o
campo formativo/educacional elementos interessantes para o
enfrentamento dessas tristes histórias de abandono e violação de
percepções da realidade, que mesmo sob o pretexto de libertar,
emancipar, apenas criam cenários de epistemicídios que anulam
histórias inscritas em corpos. Não um encontro que dispute a verdade
sobre qual criança deva vencer a luta pelo lugar de sujeito padrão da
educação, mas um encontro que potencialize a desconfiança de que
quanto mais imagens de sujeito tenhamos convivendo, mais acolhedor
pode ser esse mundo. Talvez aqui o leão seja uma chave. Não o leão
ressentido, mas o leão que protege o seu território sem destruir os
outros. Aquele que autoriza que algumas aves se acheguem quando
não está com fome. O leão estrategista. Promover diversos leões para
que crianças diversas possam conviver.

referências

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