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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA – UEFS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA – PPGH


MESTRADO EM HISTÓRIA

MILÉIA SANTOS ALMEIDA

“ACTOS DELICTUOSOS”: MULHERES E CRIMINALIZAÇÃO NO ALTO


SERTÃO DA BAHIA (CAETITÉ, 1890-1945)

FEIRA DE SANTANA
2018
MILÉIA SANTOS ALMEIDA

“ACTOS DELICTUOSOS”: MULHERES E CRIMINALIZAÇÃO NO ALTO


SERTÃO DA BAHIA (CAETITÉ, 1890-1945)

Dissertação apresentada no curso de Pós-Graduação em


História da Universidade Estadual de Feira de Santana
para obtenção do título de Mestre em História.
Orientadora: Drª. Andréa da R. R. P. Barbosa

FEIRA DE SANTANA
2018
TERMO DE APROVAÇÃO

Banca examinadora:

Profª. Drª. Andréa da R. R. P. Barbosa (orientadora)

___________________________________________________

Profª. Drª. Adriana Dantas Reis (UEFS/BA)

___________________________________________________

Profª. Drª. Maria Lúcia Porto Silva Nogueira (UNEB/BA)

____________________________________________________
Ficha Catalográfica – Biblioteca Central Julieta Carteado

Almeida, Miléia Santos


A449a “Actos delictuosos”: mulheres e criminalização no alto sertão da
Bahia (Caetité, 1890-1945)./ Miléia Santos Almeida. – 2018.
164f.: il.

Orientadora: Andréa da R. R. P. Barbosa


Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Feira de Santana,
Programa de Pós-Graduação em História, 2018.

1.Mulheres. 2.Criminalização – Caetité, BA. I.Barbosa, Andréa da


R.R.P., orient. II.Universidade Estadual de Feira de Santana. III. Titulo.

CDU : 343.97(814.22)

Maria de Fátima de Jesus Moreira – Bibliotecária – CRB5/1120


PRISÃO (Cecília Meireles)

Nesta cidade
quatro mulheres estão no cárcere.
Apenas quatro.
Uma na cela que dá para o rio,
outra na cela que dá para o monte,
outra na cela que dá para a igreja
e a última na do cemitério
ali embaixo.

Apenas quatro.

Quarenta mulheres noutra cidade,


quarenta, ao menos,
estão no cárcere.

Dez voltadas para as espumas,


dez para a lua movediça,
dez para pedras sem resposta,
dez para espelhos enganosos.

Em celas de ar, de água, de vidro


estão presas quarenta mulheres,
quarenta ao menos, naquela cidade.

Quatrocentas mulheres
quatrocentas, digo, estão presas:
cem por ódio, cem por amor,
cem por orgulho, cem por desprezo
em celas de ferro, em celas de fogo,
em celas sem ferro nem fogo, somente
de dor e silêncio,
quatrocentas mulheres, numa outra cidade,
quatrocentas, digo, estão presas.

Quatro mil mulheres, no cárcere,


e quatro milhões – e já nem sei a conta,
em cidades que não se dizem,
em lugares que ninguém sabe,
estão presas, estão para sempre
– sem janela e sem esperança,
umas voltadas para o presente,
outras para o passado, e as outras
para o futuro, e o resto – o resto,
sem futuro, passado ou presente,
presas em prisão giratória,
presas em delírio, na sombra,
presas por outros e por si mesmas,
tão presas que ninguém as solta,
e nem o rubro galo do sol
nem a andorinha azul da lua
podem levar qualquer recado
à prisão por onde as mulheres
se convertem em sal e muro.
AGRADECIMENTOS

Ainda que a caminhada pela pós-graduação pareça bastante solitária, sobretudo, em


relação a escrita do texto de dissertação, ela não o foi para mim nestes dois anos de mestrado
na UEFS e estadia em Feira de Santana. Nesse sentido, dedico estas linhas para agradecer às
pessoas/instituições/organizações que fizeram parte desta etapa da minha vida acadêmica,
agora concluída, mas que será memória permanente em toda a minha trajetória.

Agradeço a minha orientadora Andréa, pela paciência e compreensão dos tempos e


contratempos da pesquisa, pela disponibilidade, atenção e cuidado, e pelos debates nem
sempre convergentes que fizemos, mas sempre pautados por perspectivas feministas de
análise da realidade.

Agradeço as professoras da banca de qualificação que trouxeram importantes


contribuições para um trabalho ainda em gestação. À Adriana Dantas, não apenas pelas dicas
e sugestões para melhoramento do texto, mas, sobretudo, pela valiosa parceria na construção
de significativas atividades feministas nos espaços da universidade. À Maria Lúcia Porto, pela
gentileza em aceitar o convite e se deslocar de Caetité para Feira, representando os bons
frutos em pesquisas da área de história das mulheres que o nosso alto sertão baiano tem
produzido.

A CAPES pela concessão da bolsa de pesquisa, que foi essencial para minha
permanência em Feira de Santana e para os custos decorrentes das atividades do mestrado,
uma política de valorização da ciência que precisa ser mantida e ampliada com muita
resistência frente a esses tempos temerosos de desmontes dos nossos direitos.

Agradeço aos funcionários e funcionárias do APEB em Salvador e APMC em Caetité,


pelo auxílio na busca, exitosa ou não, da documentação necessária. Aos professores e
professoras da graduação na UNEB, que iluminaram minha formação inicial como
historiadora, sobretudo, Marcos Profeta, Lielva Aguiar, Gabriela Nogueira e Edmar Ferreira.
Aos professores/as do mestrado pelos debates e provocações acadêmicas, ao professor Carlos
Augusto, pela contribuição no plano de escrita.

Agradeço a turma de mestrado 2016.1, pelos momentos de debate e troca de


experiência a partir de maravilhosas pesquisas que muito terão a contribuir com a pesquisa
histórica baiana e brasileira. Em especial: Larissa, Táfila, João Victor, Nayanne, Maria e
Antonio, com quem pude dividir alguns momentos “extra-classe”, embora a rotina e os
caminhos de nossas vidas nem sempre foram propícios

Agradeço às minhas companheiras de casa, Laiane e Vânia, pelo tempo de


convivência e sobrevivência naquele sobrado na rua A do Feira VI. Fazemos parte de uma
geração de historiadoras unebianas e alto-sertanejas que, com suas particularidades, abriu
caminhos em território feirense.

Aos companheiros e companheiras do Levante Popular da Juventude e Consulta


Popular, com quem administrei com malabarismos nem sempre equilibráveis a relação entre a
academia e as tarefas da militância. Agradeço a essa nova família militante feirense pelo
cuidado e acolhida: José, Lorena, Pablo, Thays, Lua, Lucas, Raíssa e Guilherme. Sigamos
certos de que a nossa rebeldia é o povo no poder! Agradeço também as amizades construídas
a partir do contato com a turma Elisabeth Teixeira, juventude camponesa em defesa de um
direito cada vez mais popular: Elieli, Américo, Aurélio, Cícero, Adriano.

Agradeço as amizades que encontrei em Feira e com quem dividi mesas no 4 estações,
becos, bailes surrealistas, bandos, saraus, arenas: Igor, Elis, Luma, Rhanna. Feira de Santana
se tornou menos estranha e mais acolhedora graças a esses momentos. Nos períodos em que
precisei retornar a UEFS, pude contar com a acolhida generosa e inestimável de Fabiano
Nascimento, gratidão!

Aos bons amigos e amigas de Caetité e Guanambi, que me foram companhia virtual e
presencial nas rotas entre os sertões. Martinha, Beni, Fabiano, Alfredo, Pretinha, Eugênia e
Karol, que me salvou a vida quando meu computador me deixou na mão. À Aline, mais uma
vez, por me presentear com o abstract. À Simony e Isa, pela amizade confidente e por me
abrigarem nas necessárias e proveitosas idas à Salvador

À minha mãe, mulher guerreira e sobrevivente, que compreendeu finalmente o meu


momento de criar asas e começar a alçar voos longe de casa. A ela dedico esta dissertação.
RESUMO

Sob uma perspectiva feminista da história das mulheres e das relações de gênero, buscamos
analisar trajetórias e narrativas do processo de criminalização das mulheres caetiteenses,
atravessando as cinco décadas que compreendem o fim do século XIX e a primeira metade do
XX. As legislações penais republicanas representavam importantes instrumentos do aparato
médico-jurídico e refletiam os anseios de modernização das elites brasileiras e a necessidade
de controle das camadas populares, tidas como perigosas para a consolidação de seu projeto
eugênico e moralista de sociedade. Desse modo, a cidade de Caetité, localizada no alto sertão
da Bahia, uma região marcada pelo coronelismo e concentração de renda, ainda que distante
geograficamente dos grandes centros, não estava isolada das ideias que de lá chegavam, e
suas elites buscaram implementar muitas dessas estratégias de controle social. Por meio dos
autos criminais de homicídio, infanticídio, defloramento e lesões corporais, em diálogo com
outras fontes, descortinamos fragmentos das experiências dessas mulheres criminalizadas,
ocupando ora a posição de vítimas, ora a posição de acusadas dos delitos, tendo também como
pano de fundo temporal o período pós abolição da escravidão no Brasil. Afinal, ainda que a
cor das envolvidas fosse invisibilizada na documentação ou mascarada pelos discursos da
mestiçagem, a racialização de suas relações sociais, de trabalho e afetividade, e um cotidiano
de violência estruturava suas vidas, marcadas ainda pelas heranças do cativeiro. Sob este viés,
os códigos de moralidade das mulheres pobres e negras, que mantinham outras regras morais
de sexualidade e maternidade, e que precisavam empregar táticas de sobrevivência numa
sociedade capitalista, patriarcal e racista, não se enquadravam dentro das normas e valores
hegemônicos. Por esses e outros motivos, as histórias dessas mulheres devem ser
compreendidas por meio da intrínseca relação entre gênero, classe e raça.

Palavras-chave: Mulheres. Criminalização. Alto Sertão da Bahia.


ABSTRACT

Under the feminist perspective of the women and of the gender relationship, this work aim to
analyze the trajectories and narratives of the criminalization process of women in the city of
Caetité, during five decades that comprise the end of the nineteenth century and the first half
of the twentieth. The republican criminal legislation represented important instruments of the
medical-legal apparatus and reflected the aspirations of modernization of the Brazilian elites
and the need for control of the lower classes, seen as dangerous to the consolidation of the
eugenic and moral project of society. Thus, the city of Caetité located in the hinterland of
Bahia a region marked by coronelism and concentration of income, although geographically
distant from the great centers, was not isolated from the ideas that arrived there, and its elites
tried to implement many of these strategies of social control. Through the criminal records of
homicide, infanticide, defloration and personal injury, in dialogue with other sources, we
discover fragments of the experiences of these criminalized women, occupying both the
position of victims and the position of those accused of crimes, as well as the background
temporal period after the abolition of slavery in Brazil. It is important to understand that
although the color of these women was not included in these documents or masked by the
discourses of miscegenation, the racialization of their social relations, work and affectivity
and an everyday of violence was part of their lives, marked by the inherence of captivity.
Because of these issues, the morality code of black and poor women who maintained other
moral rules of sexuality and maternity and needed to use survival techniques in a capitalist,
patriarchal and racist society, did not fit in relation to hegemonic norms and values. Because
of these questions, the stories of these women should be understood through the intrinsic
relationship between gender, class, and race.

Keywords: Criminalization. Hinterland of Bahia. Women.


LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

APEB – Arquivo Público do Estado da Bahia


APMC – Arquivo Público Municipal de Caetité
ASCC – Associação das Senhoras de Caridade de Caetité
CP – Código Penal
FAMEB – Faculdade de Medicina da Bahia
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IHGB – Instituto Histórico Geográfico do Brasil
LISTA DE TABELAS

Tabela 01 - Listagem de localidades dos crimes nos processos por tipologia..........................57

Tabela 02 - Processos criminais analisados por décadas..........................................................68

Tabela 03 - Caracterização da cor das mulheres em exames de corpo de delito......................76

Tabela 04 - Ocupações de mulheres identificadas nos processos criminais.............................80

Tabela 05 - Índice de mulheres em situação de prostituição apontadas nos processos criminais


de homicídio............................................................................................................................119

Tabela 06 - Localidades identificadas como moradias em zonas de meretrício.....................121

Tabela 07 - Desfecho dos processos-crime de infanticídio.....................................................142


LISTA DE FIGURAS

Figura 01 – Mapa da Bahia com destaque para o alto sertão no final do século XIX..............19

Figura 02 – Retratos de Mulheres Criminosas..........................................................................40

Figura 03 – Mapa da Vila Nova do Príncipe e Santana de Cayteté – 1810..............................54

Figura 04 – Mercado Público de Caetité...................................................................................55

Figura 05 – Tabela de Profissões e Serviços em Caetité..........................................................59

Figura 06 – Página do jornal A Penna dedicada aos anúncios..................................................63

Figura 07 – Anúncio de Cafiaspirina no Jornal A Penna.........................................................64

Figura 08 – Tear encontrado no município de Urandi-BA.......................................................84

Figura 09 – Atual Rua Hélio Negreiros / Antiga Rua Nova...................................................122

Figura 10 – Primeira página da edição de 25/04/1913. A Penna. Ano II...............................128


DEDICATÓRIA

É em memória do legado de Marielle Franco


que dedicamos esta dissertação.
Vereadora carioca socialista e militante de
direitos humanos, foi executada com quatro
tiros na cabeça, na noite de 14 de março de
2018. Marielle era mulher negra, trabalhadora,
feminista, mãe jovem, periférica, LGBT, era
também socióloga e mestre em administração
pública. Havia sido nomeada relatora de uma
comissão que fiscalizava a intervenção federal
militar no Rio de Janeiro, foi uma voz
incansável no combate a opressão e a injustiça.
A voz de Marielle é a voz de muitas outras
mulheres que ousaram adentrar espaços onde
nunca foram bem-vindas e, cujos passos vêm
de muito longe, são ancestrais. É por isso que
essa voz não foi e não será calada. É por isso
que ela se tornou semente para o ecoar de
outras vozes em muitos cantos do país, vozes
que não se calarão e se erguerão para gritar em
alto e bom som: Marielle Presente!
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 12

1. “SOB A PENA DA LEI”: MULHERES CAETITEENSES DIANTE DAS LEIS


CRIMINAIS REPUBLICANAS ...........................................................................................26

1.1 “Não há crime sem lei anterior que o defina”: Os Códigos Penais de 1890 e 1940 na
consolidação da nova ordem republicana no Brasil .....................................................29
1.2 Mulher honrada versus Mulher pública: Criminalidade feminina nos debates jurídicos
e médico-legais ............................................................................................................38
1.2.1 Crimes de sangue: Passionalidade e maternidade nos códigos penais........................46
1.3 Ares de progresso entre o campo e a cidade: Um projeto higienista no alto sertão da
Bahia ............................................................................................................................52
1.4 Encruzilhada de lutas: Processos criminais como instrumento para escrita da História
das Mulheres ................................................................................................................67

2. “DO CATIVEIRO À PENA DO ESCRIVÃO”: MULHERES POBRES E


NEGRAS NOS PROCESSOS CRIMINAIS.........................................................................71

2.1 Mulheres Pardas: Entre o silêncio da cor e o estigma da mestiçagem..........................72


2.2 “Ventre livre, braços negros”: As relações de trabalho e as heranças do cativeiro na
vida das mulheres negras em Caetité ...........................................................................79
2.3 “Amores e dores”: Relações afetivas sob as penas da lei.............................................95

3. “FAZIA SEUS SACRIFÍCIOS NOS ALTARES DE VÊNUS”: OUTROS CÓDIGOS


DE MORALIDADE E A CRIMINALIZAÇÃO DE MULHERES
CAETITEENSES............................................................................................................115

3.1 “Mulheres de vida pública”: A prostituição nas fronteiras da Rua Nova..................118


3.1.1 Representações da prostituição caetiteense nos discursos das elites....................128
3.2 “O fruto de amores ilícitos”: Infanticídios na contramão do mito do amor
materno......................................................................................................................134
3.2.1 Culpadas ou inocentes: O desfecho dos processos de infanticídio nas mãos do juiz
ou do Tribunal do Júri ..........................................................................................142
3.2.2 Maternidade por um fio: O infanticídio entre a defesa da honra e a loucura
puerperal................................................................................................................146

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..............................................................................................150

FONTES E BIBLIOGRAFIA .............................................................................................153


12

INTRODUÇÃO

"Não serei livre enquanto outra mulher for prisioneira, ainda que as correntes dela sejam
diferentes das minhas." Audre Lorde.

O propósito desta pesquisa acadêmica, construída em tempos de ameaças aos sonhos


de uma geração e de graves retrocessos para o país 1, também é ser um exercício militante, um
compromisso político com o nosso tempo. Escrever sob uma perspectiva feminista 2, buscando
evidenciar o protagonismo das mulheres na História, sobretudo, daquelas cuja presença fora
invisibilizada através dos séculos, está intrinsecamente ligado ao significado do feminismo
enquanto projeto de sociedade, que deve estar atento tanto aos percursos do passado quanto
aos desafios do presente. Logo, como nos lembra uma famosa frase atribuída a filósofa
francesa Simone de Beavouir, “basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os
direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Você terá que
manter-se vigilante durante toda a sua vida” 3.
Nesse sentido, quando elegemos um tema de pesquisa (ou quando ele nos elege),
quase sempre as inquietações que nos movem a escrever sobre o passado nasceram ou
residem no presente, ainda que nem sempre isso seja tão explícito. Ao pesquisar fragmentos
de experiências femininas em processos criminais de infanticídio, homicídio e defloramento,
assim como o percurso de criminalização de suas ações consideradas desviantes pelas leis
republicanas, a relação com lutas feministas que tem lugar atualmente dentro e fora do cenário

1
Em agosto de 2016, após votações na Câmara e no Senado, a presidenta eleita em 2014, Dilma Rousseff, foi
afastada do cargo mediante um processo de impeachment, marcado por arbitrariedades e resultado de uma
articulação entre os poderes legislativo, judiciário e a mídia brasileira. A partir daí, o atual governo ilegítimo de
Michel Temer vem implementando uma série de reformas conservadoras, verdadeiros retrocessos, que
representam um desmonte dos direitos da classe trabalhadora (reforma trabalhista, da previdência, lei de
terceirização, PEC do teto de gastos, etc.). Por estarem na base da estrutura social, as mulheres negras são o setor
mais cruelmente atingido por essas reformas.
2
Margareth Rago aborda a necessidade de debater um “projeto de ciência feminista ou um modo feminista de
pensar”, a partir da consideração acerca das experiências das mulheres. Para ela, o feminismo não apenas tem
produzido uma crítica contundente ao modo dominante de produção do conhecimento científico, como também
propõe um modo alternativo de operação e articulação nesta esfera”. In: RAGO, Margareth. Epistemologia
Feminista, Gênero e História, publicado em PEDRO, Joana; GROSSI, Miriam (orgs.). Masculino, Feminino,
Plural. Florianópolis: Ed. Mulheres, 1998. Entretanto, a dificuldade de se escrever sob um ponto de vista
exclusivamente feminista e feminino reside também em todo o arcabouço teórico-metodológico construído no
seio de uma sociedade patriarcal, que universalizou as experiências masculinas sob um ponto de vista masculino.
Tentamos romper um pouco destes limites, ainda que não possamos desconsiderar as narrativas estruturais que,
por anos, desconsideraram a análise de gênero, propondo renová-las e absorvê-las para a construção de uma
narrativa feminista.
3
Ver BEAVOUIR, Simone de. O segundo sexo. Vol II: A Experiência Vivida. Difusão Europeia do Livro. 1967.
13

jurídico se revela latente. Como nos lembra Rachel Soihet, ao investigar as histórias de
mulheres de segmentos populares cariocas e a criminalidade feminina entre 1890 e 1920,

Embora a todo momento, estejamos em guarda a fim de evitar os males do


anacronismo, a problemática feminina por nós focalizada, em grande parte,
tem como ponto de partida as contradições vivenciadas pelas mulheres de
classe subalterna em nossos dias, visto acreditarmos que “o historiador parte
do presente para pôr questões ao passado”, ou, ainda, lembrando Marc Bloch
que nos diz que a história não só deve permitir compreender “o presente pelo
passado” – atitude tradicional, mas também compreender o “passado pelo
presente”4

Nessa perspectiva, sem incorrer no erro do anacronismo, temas como a


descriminalização do aborto, lei do feminicídio, cultura do estupro, as diversas violências de
gênero, o encarceramento feminino, os polêmicos debates acerca da regulamentação da
prostituição, entre outros, são considerados temáticas “do tempo presente”, cujas raízes
históricas perpassam diversas etapas da História do Brasil. Ser mulher em uma sociedade
fundada em bases patriarcais ainda é carregar a herança de tantas mulheres que subverteram,
através dos séculos, papeis prescritos e normativos e, viram-se, em algum momento, na mira
da justiça, seja na posição de ré ou de vítima. Dessa forma, é preciso enfatizar que

As mulheres não são nem passivas, nem submissas. A miséria, a opressão, a


dominação, por mais reais que sejam, não bastam para contar a sua história.
Elas estão presentes aqui e acolá. Elas são diferentes. Afirmam-se por outras
palavras, outros gestos. Na cidade, até mesmo na fábrica, elas têm outras
práticas cotidianas, formas concretas de resistência – à hierarquia, à
disciplina – que frustram a racionalidade do poder e estão diretamente
enxertadas em seu uso próprio do espaço e do tempo. Elas traçam um
caminho que seria preciso reencontrar. Uma história diferente. Uma outra
história.5

Contar uma outra história é a pretensão do presente trabalho, que analisa as estratégias
de criminalização das mulheres pobres caetiteenses, entre os anos de 1890 e 1945, presentes
nos discursos de um projeto de civilidade propagado pelas elites republicanas do Brasil e
reproduzido pelas elites locais. Nesse ínterim, evidenciamos as experiências dessas mulheres
a partir de fragmentos de suas trajetórias encontrados em fontes criminais, onde elas
assumiram os papéis de vítimas ou acusadas pelos delitos. São mulheres pretas, brancas e
pardas, que viveram entre as primeiras décadas do período pós-abolição até a consolidação

4
SOIHET, Rachel. Condição feminina e formas de violência: Mulheres Pobres e Ordem Urbana 1890-1940.
Rio de Janeiro. Forense Universitária, 1989, p.25.
5
PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história. Bauru: EDUSC, 2005, p. 222.
14

dos ideais eugenistas brasileiros em uma sociedade racializada e racista, apesar do


silenciamento sobre a cor na documentação oficial. Mulheres, cujas vidas foram marcadas
pela pobreza característica da grande concentração de renda nestes sertões longínquos, e que
reinventaram cotidianamente suas táticas de trabalho e sobrevivência, de afetividade e
sociabilidades, de resistência e convívio com diversos tipos de violência. Mulheres que não se
encaixavam nos modelos de moralidade impostos pelas classes dominantes, como forma de
controle sobre a ameaça constantemente representada pelos sujeitos que ocupavam a base da
pirâmide social.
Trata-se assim, de um trabalho do campo da história social das mulheres, que
incorpora uma perspectiva relacional de gênero, considerando-as enquanto objeto e sujeito de
nossa análise, ao buscar uma abordagem que localize as experiências femininas num
determinado tempo e espaço, rompendo com enfoques cujo sujeito universal ainda seja o
masculino. Vale ressaltar que a história das mulheres nasceu no bojo das lutas do movimento
feminista, assim como sua teoria e método circularam dialeticamente entre as ruas e a
academia. Como afirma Louise Tilly6 “certamente toda história é herdeira de um contexto
político, mas relativamente poucas histórias têm uma ligação tão forte com um programa de
transformação e de ação como a história das mulheres”. Essa historiografia feminista
consolidou-se, apesar de seu status e sua legitimidade cientifica terem sido por muito tempo,
questionados.
Por sua vez, apenas a perspectiva inicial da história das mulheres não daria conta de
problematizar as experiências singulares das mulheres alto-sertanejas nos processos criminais,
bem como toda uma teia de relações de poder hierarquizadas na qual estavam envolvidas.
Enquanto mulheres pobres, sertanejas e negras, as redes de sociabilidade, as relações de
trabalho, as formas de resistência à opressão, exclusão, moralização e invisibilidade
constituíam fatores comuns que aproximava essas mulheres. Todavia, nem todas elas viviam
essa experiência comum do mesmo modo e, ao mesmo tempo, nem todas as mulheres pobres
eram negras, ainda que compartilhassem de uma teia de relações profundamente racializadas.
Gênero, classe e raça são os conceitos básicos que permeiam nossa abordagem.
Utilizamos a noção de classe formulada por E. P. Thompson, tendo em vista que o autor
considera a categoria “classe social” enquanto relacional, para além da dualidade “burguesia-
proletariado”, como resultado de experiências partilhadas entre os sujeitos, sendo classe “um
fazer-se”. Para ele, o que muda, assim que o modo de produção e as relações produtivas

6
TILLY, Louise A. Gênero, história das mulheres e História social. Cadernos Pagu. Unicamp, 1994: p. 31.
15

mudam, é a experiência de homens e mulheres. Assim, a classe “acontece quando alguns


homens, como resultados de experiências comuns, sentem e articulam a identidade de seus
interesses entre si e contra outros homens cujos interesses diferem dos seus”7.
Nesse sentido, as mulheres cujas experiências aqui foram analisadas, pertenciam às
classes populares trabalhadoras do alto sertão baiano. Nos processos criminais, os atestados
de miserabilidade, os ambientes de moradia e sociabilidade, as ocupações e relações de
trabalho, as marcas do analfabetismo, entre outros elementos, são fundamentais para a
identificação da pobreza generalizada entre as personagens dos crimes. Além das relações de
produção que estruturavam a sociedade pós-escravista, com alta concentração de renda e
economicamente agrária, essas mulheres compartilhavam uma mesma experiência de classe.
Por sua vez, o conceito de raça adotado, considera os dissensos sobre esse termo no
que se refere a sua importância/necessidade tanto como categoria de luta e enfrentamento ao
racismo, quanto analítica a respeito da identidade de um grupo social. Nessa perspectiva,

Quando uso os termos “raça” ou “raciais” refiro-me a formas de identidade


social ou formas de classificação dos indivíduos em coletivos, baseadas em
marcadores fisionômicos ou fenotípicos tais como cor da pele, textura do
cabelo, formato do nariz ou dos lábios etc., que remetem, direta ou
indiretamente, à noção de raça biológica, ainda que saibamos que estas não
existem, de fato. 8

Como veremos mais adiante, a análise das relações raciais por meio das fontes
utilizadas representou um grande desafio teórico-metodológico, em função do silenciamento a
respeito da cor dos/as envolvidos/as nos delitos. Definir como “mulheres negras” as
protagonistas de nosso estudo, enquanto as documentações tendem a apresentar um discurso
de mestiçagem oriundo do mito da democracia racial, definindo-as quase sempre como
“pardas”, é um posicionamento político-acadêmico que expressa a necessidade de evidenciar
a racialização das relações sociais, herdadas da escravidão negra e presentes até hoje, sob
diversas nuances, na sociedade brasileira.
No que tange a categoria gênero na análise histórica, a consideramos enquanto “um
elemento constitutivo das relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, e

7
THOMPSON, Edward P. A Formação da Classe Operária Inglesa. Volume I. Rio de Janeiro, Paz e Terra,
1987, p.10.
8
GUIMARAES, Antonio Sergio. Cor e Raça. In: SANSORE, Livio, PINHO, Osmundo Araújo (Orgs). Raça:
novas perspectivas antropológicas. 2. ed. Rev. Salvador: Associação Brasileira de Antropologia, EDUFBA,
2008, p. 02.
16

o gênero é uma forma primeira de significar as relações de poder” 9. Assim, torna-se possível
problematizar as relações entre homens e mulheres, compreendendo as construções culturais
que perpassam os papeis prescritos a cada um. Ressaltamos ainda que os estudos de gênero
constituem um campo em permanente renovação e disputa teórica e política e, diversas
autoras, sobretudo, da história social das mulheres, desferem críticas a seus princípios
metodológicos. Por sua vez, a existência de categorias analíticas feministas instáveis está em
consonância com as contradições de um mundo igualmente instável e incoerente. 10
Nossa análise de gênero, entretanto, não compreende apenas uma perspectiva
feminista de viés pós-estruturalista e, considerando as estruturas que moldam as hierarquias
de gênero no interior de um sistema patriarcal, concordamos com Saffioti, ao afirmar que
“colocar o nome da dominação masculina – patriarcado – na sombra significa operar segundo
a ideologia patriarcal, que torna natural essa dominação-exploração”.11 A análise de gênero na
história das mulheres não nos impede, portanto, de utilizar um conceito de patriarcado
historicizado e que considere as experiências femininas em diferentes épocas e sociedades.
Pontuamos então, a existência de normatizações de gênero que hierarquizavam as
relações mesmo entre homens negros pobres e mulheres negras pobres, que em determinadas
situações compartilhavam experiências de classe (e/ou raça), mas tinham seu cotidiano
atravessado pelas assimetrias de gênero. O analfabetismo, por exemplo, ainda que
generalizado entre as famílias pobres, atingia com mais preponderância o gênero feminino.
“Para as famílias menos abastadas, a necessidade de escolher entre os membros da prole,
aqueles que deveriam ser enviados a escola acabava quase sempre privilegiando os do sexo
masculino”12. Afinal, em muitos depoimentos o “não saber ler ou escrever”, nem mesmo
assinar o nome, era uma resposta feminina quase retórica.
Localizar as mulheres caetiteenses, por meio desses marcadores de raça e classe,
requer assim, uma compreensão tanto das marcas do cativeiro em suas vidas nas primeiras
décadas após a abolição quanto das suas experiências de classe frente a exploração e o
controle das classes trabalhadoras em uma nova fase das relações de produção capitalista.
Afinal, como já pontuava Ângela Davis,

9
SCOTT, Joan. Gênero: Uma categoria útil para análise histórica. Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 16,
n. 2, 1990, p. 21.
10
HARDING, Sandra. A instabilidade das categorias analíticas para a teoria feminista. 1986, p. 649.
11
SAFFIOTI, Heleieth. Gênero, Patriarcado, Violência. São Paulo. Expressão Popular: Fundação Perseu
Abramo, 2015, p. 59.
12
ASSIS, Nancy Rita Sento Sé de. Questões de vida e morte na Bahia republicana: Valores e
comportamentos sociais das camadas subalternas soteropolitanas (1890-1930). (Dissertação de Mestrado).
Salvador: Universidade Federal da Bahia, 1996, p.45.
17

As mulheres negras eram mulheres de fato, mas suas vivências durante a


escravidão – trabalho pesado ao lado de seus companheiros, igualdade no
interior da família, resistência, açoitamentos e estupros – as encorajavam a
desenvolver certos traços de personalidade que as diferenciavam da maioria
das mulheres brancas13.

Sob este viés do entrecruzamento entre categorias de análise, novos conceitos e


procedimentos metodológicos têm sido formulados. Entre eles, interseccionalidade e
consubstancialidade possibilitam compreender as relações estabelecidas entre sujeitos
inseridos em relações de gênero, classe e raça. O primeiro conceito, formulado no seio do
feminismo negro norte-americano, tendo como expoente a pesquisadora Kimberlé Crenshaw
e, o segundo formulado pela autora marxista francesa Daniéle Kergoat, especialista em
estudos sobre divisão sexual do trabalho. No entanto, é válido considerar que

Embora ambas partam da intersecção, ou da consubstancialidade, a mais


visada por Crenshaw no ponto de partida da sua conceitualização é a
intersecção entre sexo e raça, enquanto a de Kergoat é aquela entre sexo e
classe, o que fatalmente terá implicações teóricas e políticas com diferenças
bastante significativas. Um ponto maior de convergência entre ambas é a
proposta de não hierarquização das formas de opressão14.

Ressaltamos no entanto que, bem anterior aos estudos denominados interseccionais e


consubstanciais, já haviam pesquisas que primavam por uma análise relacional das categorias
classe-raça-gênero, inclusive, por intelectuais baianas. Uma das pioneiras no estudo das
experiências de mulheres negras, Cecília Soares, dedicou-se a compreensão da história de
mulheres escravas na Bahia do século XIX e, quanto a historiografia de sua época, afirmava:

Embora muito numerosos, os documentos onde existe referência à negra são


produtos da mentalidade de homens numa sociedade patriarcal e escravista.
A história da mulher negra no tempo da escravidão não é tarefa impossível, e
se passos mais arrojados não foram dados, isto se deve ao desinteresse da
historiografia brasileira, até recentemente, em relação às mulheres e de
maneira geral, às minorias sociais15.

A temporalidade de nossa pesquisa, situada entre 1890 e 1945, o que corresponde a


pouco mais de meio século de história, se justifica pela necessidade de análise das legislações
penais do período, relacionando os crimes abordados com as leis e penas que os

13
DAVIS, Angela. Mulheres, Raça e Classe. São Paulo: Boitempo, 2016, p.39.
14
HIRATA, Helena. Gênero, classe e raça: Interseccionalidade e consubstancialidade das relações sociais.
Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 26, n. 1, 2014, p. 63.
15
SOARES, Cecília Moreira. Mulher negra na Bahia do século XIX. (Dissertação de Mestrado). Universidade
Federal da Bahia, Salvador, 1994.
18

normatizavam, assim como os discursos médico-jurídicos que permearam a interpretação e


execução desses regulamentos. A jovem república brasileira (em suas fases militar,
oligárquica e varguista), apesar de seus anseios de modernização forjados pela elite política e
intelectual do país, permanecia arraigada às estruturas sociais e econômicas monárquicas e,
temia as classes populares e a ameaça que representavam para a consolidação da “ordem e
progresso”. É nesse contexto que o CP de 1890, a primeira legislação penal do país é forjada –
anterior à própria Carta Magna da nação, trazendo em seus artigos, ainda que de viés liberal, o
temor que as classes dominantes acumulavam e transferiam para qualquer comportamento
visto como desviante de seus princípios morais, associados à honra e ao trabalho. O crime era
assim, um desvio bastante perigoso para a estrutura frágil daquela sociedade. Como pontua
Sidney Chalhoub, ao investigar o cotidiano dos trabalhadores cariocas nas primeiras décadas
republicanas,

No discurso dominante, o mundo da ociosidade e do crime está à margem da


sociedade civil – isto é, trata-se de um mundo marginal, que é concebido
como imagem invertida do mundo virtuoso da moral, do trabalho e da
ordem. Este mundo às avessas – amoral, vadio e caótico é percebido como
uma aberração, devendo ser reprimido e controlado para que não
comprometa a ordem. 16

Por sua vez, o código de 1940 traria em seus debates as tensões raciais que marcaram
aquelas décadas posteriores ao fim da escravidão e contemporânea a consolidação de um
pensamento intelectual médico e jurídico de cunho eugênico e racista. Dessa forma, a
vigência, formulação e implantação dos Códigos Penais de 1890 e 1940 são marcos
importantes para definir o período de estudo. Todavia, com o objetivo de identificar possíveis
mudanças no contexto social da época e nas experiências de nossos sujeitos a partir da
alteração na legislação penal republicana, bem como mudanças na interpretação e execução
das leis e penas, definimos como marco final o ano de 1945, abrangendo assim, processos
criminais instaurados até esta data.
O nosso “chão social”17 é a cidade de Caetité, localizada no alto sertão da Bahia 18,
que, em seus tempos áureos, fora considerada a “Princesa do Sertão”, apresentando um

16
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, Lar e Botequim: o Cotidiano dos Trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle
Époque. São Paulo, Brasiliense, 1986, p. 78.
17
Termo comumente utilizado por pesquisadoras/es do alto sertão baiano para se referir ao contexto histórico-
geográfico da região em que atuavam os sujeitos da narrativa. Encontrado a priori nos textos da professora
Maria de Fátima Novaes Pires (2002; 2009) possuindo este significado.
18
“Durante os primórdios da colonização essa área pertenceu ao morgadio da Casa da Ponte, dos Guedes de
Brito, que dividia com os Garcia D’Ávila – Casa da Torre – toda a extensão do território baiano”; nas páginas
seguintes do seu livro, a autora demarca a região com maior precisão: “O alto sertão, ou ‘sertoins de sima’,
19

quadro de dinamismo econômico que a caracterizava como um dos mais ricos empórios do
sertão da Bahia, mantendo um importante trânsito comercial com as regiões da Chapada
Diamantina, Recôncavo Baiano e Minas Gerais devido a sua posição geográfica estratégica na
região, como destaca o mapa abaixo:

FIGURA 01: MAPA DA BAHIA COM DESTAQUE PARA O ALTO SERTÃO NO FINAL DO
SÉCULO XIX

FONTE: SILVA, Ricardo Tadeu Caires. Caminhos e descaminhos da abolição. Escravos senhores e direitos nas
últimas décadas da escravidão (BAHIA, 1850-1888). Tese de Doutorado. Universidade Federal do Paraná, Setor
de Ciências Humanas, Letras e Artes. Curitiba, 2007, p.253.

constituiu-se historicamente com a criação de gado vacum, os denominados ‘currais da Bahia’, na extensão do
São Francisco ao rio das Velhas e, posteriormente, com a mineração, na Chapada Diamantina. As fazendas de
criar se expandiram pelo sertão desde o século XVII e a exportação do gado da zona do São Francisco para a
capital se fazia através do planalto baiano”. In SANTOS, Paulo Henrique Duque. Légua tirana: sociedade e
economia no alto sertão da Bahia. Caetité, 1890-1930. Tese (Doutorado em História Social) – Universidade de
São Paulo, 2014, p. 17 apud PIRES, Maria de Fátima Novaes. Fios da Vida: tráfico internacional e alforrias nos
sertoins de Sima – BA (1860-1920). São Paulo: Annablume, 2009, p. 15 e 104.
20

Caetité se destacou também no cenário educacional, sendo uma das primeiras cidades
baianas a possuir uma Escola Normal19 e outras instituições educacionais e por ser berço de
uma elite intelectual que teria papel decisivo no projeto de modernização da região.
Entretanto, a cidade de Caetité “pequenina e ilustre”20, reconhecida como centro cultural do
sertão, perderia muito do brilho de outrora devido à crise econômica e social pela qual passou
na transição do século XIX para o XX. Tal crise fora causada pelos longos períodos de
estiagem, crises na produção agrícola, migrações e epidemias, o que contribuiu para a
formação da população empobrecida no cenário urbano e ocorrência de intenso êxodo rural21.
Assim, Caetité foi berço de uma elite política e intelectual que se empenhou em
implementar seu “projeto civilizador”, utilizando o poder público como regulador e
disciplinador dos costumes, e não estava distante das novas ideias e transformações vindas
das capitais. Como analisa Lielva Aguiar, acerca dessas relações mantidas entre sertão e
capital, “apesar do ritmo e do passo da montaria, a sensação de viver neste sertão, não era de
isolamento”.22 Nesse contexto, as ideias de cunho higienista e moralizador adentraram a
região do alto sertão da Bahia e por intermédio dos códigos de posturas municipais e
periódicos da época, além dos referidos processos, é possível identificar como tais discursos
refletiam a necessidade de vigilância e punição das classes subalternizadas para manutenção
da ordem. Ressaltamos que os termos “caetiteense e alto-sertaneja” são utilizados aqui como
adjetivos sinônimos para as mulheres da região analisada, em virtude não apenas da amplitude
que a vila de Caetité possuía, mas por abarcarmos localidades que deixaram de pertencer ao
seu território, mas continuaram a manter profícuas relações e preservar similitudes quanto aos
hábitos culturais e socioeconômicos de seus habitantes.
A historiografia do alto sertão baiano, que ampliou-se, diversificou-se e deu seus
passos mais consistentes a partir de pesquisas realizadas na primeira década do ano 2000,
apresenta ainda muitos desafios e um horizonte de possibilidades de “objetos, problemas e

19
Na Educação, a primeira Escola Normal fundada em Caetité, funcionou de 1898 a 1903 e “diplomou 3 turmas,
num total de 22 professoras”, sendo a maioria de Caetité – só 6 alunas eram de outros lugares. [...]Com isso, a
cidade que já tinha alguma tradição em educação, foi se firmando como centro cultural e educacional, além de
ser um dado significativo para ajudar a entender o universo feminino naquele momento. [...] Vale considerar que,
a partir da criação da segunda Escola Normal já no final dos anos 20 do século XX, o número de professoras foi
aumentando cada vez mais; [...] In: NOGUEIRA, Maria Lúcia Porto. Mulheres, história e literatura em João
Gumes: Alto Sertão da Bahia, 1897-1930. São Paulo: Intermeios, 2015, p.50-51.
20
Ver SANTOS, Helena Lima. Caetité, pequenina e ilustre. Tribuna do Sertão, Brumado, 1996, 2ª ed.
21
SANTOS, Paulo Henrique Duque. Cidade e Memória: dimensões da vida urbana. Caetité, 1940-1960. 2001.
203 f. Dissertação (Mestrado em História Social) – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2001.
22
AGUIAR, Lielva Azevedo. “Que tal vai a capital?” Viagens, comércio, cartas e remessas entre o sertão e as
capitais (Caetité, 1890-1928). In: Cidades Interioranas da Bahia: modernidade, civilidade e sociabilidades.
Feira de Santana. UEFS Editora, 2016, p. 121.
21

abordagens”. No que se refere aos estudos sobre mulheres e relações de gênero, duas
pesquisas sobressaem como pioneiras e enquanto ponto de partida para novas temáticas e
abordagens sobre a história das mulheres alto-sertanejas. Em seu livro “Mulheres e poder no
Alto Sertão da Bahia”, Marcos Profeta Ribeiro 23 analisa a partir das correspondências de
Celsina Teixeira Ladeia, as ações femininas e os espaços ocupados pelas mulheres de elite no
alto sertão baiano. Verifica-se nas entrelinhas dessa documentação, indícios de participação
feminina em diversos setores como política, religião, filantropia, eventos sociais e negócios
comerciais.
Por sua vez, a obra de Maria Lúcia Porto Nogueira, denominada “Mulheres, história e
literatura em João Gumes (Alto Sertão da Bahia, 1897-1930)” dedica-se ao estudo das
relações de gênero no alto sertão a partir de registros literários de um intelectual caetiteense.
Nogueira faz uma reflexão acerca dos frutos dessas pesquisas:

Os novos estudos historiográficos sobre o alto sertão baiano têm corroborado


nessa perspectiva de trazer à luz processos históricos povoados por novos
sujeitos, por agentes históricos que ficaram obscurecidos por longo período,
a exemplo do silêncio e das ausências a que ficaram relegadas as mulheres.
Estudos de gênero vêm elucidar os novos significados do feminino e do
masculino naquela região. Essas contribuições caminham no sentido de
desconstruir estereótipos correntes sobre o Nordeste, sobre o sertão, sobre as
mulheres e outros 24.

Nesse sentido, nosso estudo sobre as experiências de criminalização vividas pelas


mulheres alto-sertanejas diante dos papeis prescritos na legislação penal, se revela como uma
nova proposta de análise das relações de gênero em nossa região, se inserindo nessa jovem
historiografia das mulheres baianas, mas com suas especificidades. Importantes trabalhos
sobre as práticas jurídicas e as ações femininas diante da justiça criminal inauguraram e
abriram caminho para esse debate. Nos centros urbanos do sul e sudeste do país, se destacam
as obras de Rachel Soihet 25, Sueann Caufield26, Martha Abreu27, Mariza Corrêa28, Magali

23
RIBEIRO, Marcos Profeta. Mulheres e poder no Alto Sertão da Bahia. A escrita epistolar de Celsina
Teixeira Ladeia (1901 a 1927). São Paulo: Alameda, 2012.
24
NOGUEIRA, Maria Lúcia Porto. Mulheres, história e literatura em João Gumes: Alto Sertão da Bahia,
1897-1930. São Paulo: Intermeios, 2015, p. 141,
25
SOIHET, Rachel. Condição feminina e formas de violência: Mulheres Pobres e Ordem Urbana 1890-1940.
Rio de Janeiro. Forense Universitária, 1989
26
CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: Moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-
1940). Campinas, SP: Editora da UNICAMP, Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, 2000.
27
ESTEVES, Martha Abreu. Meninas Perdidas. Os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro da Belle
Époque. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1989
28
CORRÊA, Mariza. Morte em família; representações jurídicas de papéis sexuais. Rio de Janeiro: Graal, 1983.
22

Engel29, Margareth Rago30, Joana Maria Pedro31, entre outras. Na Bahia, os estudos de
Alberto Heráclito32, Maria Aparecida Sanches33, Andréa Rodrigues34, Karine Damasceno35,
contemplam, sobretudo, a região de Salvador e Feira de Santana. Destacamos que o Programa
de Pós Graduação em História da UEFS tem sido um importante impulsionador para a
realização destas pesquisas, acolhendo trabalhos como os de Andreia Correia36 sobre as
representações femininas nas fontes judiciárias e as estratégias de resistência das mulheres de
Santo Antônio de Jesus no inicio do século XX, e de Luís Aberto Lima37 sobre o cotidiano
feminino nas camadas populares de Feira de Santana, de 1930 à 1948, marcado por violências
e sociabilidades. Por sua vez, a singularidade das histórias de mulheres alto-sertanejas
identificadas nos processos criminais e em outras fontes nos permite tecer as trajetórias desses
sujeitos a partir de seu chão social.
O nosso percurso metodológico iniciou-se ainda na graduação em História, no campus
VI da UNEB, ao entrar em contato com a documentação judicial dos arquivos, e analisar as
relações entre as experiências femininas e os discursos de moralidade presentes nos autos.
Elegemos assim, como fonte primordial para a pesquisa, os processos criminais em que as
mulheres figuravam como vítimas e rés, para delimitarmos a um total de 45 processos, sendo
estes de defloramento, infanticídio e homicídio, crimes permeados pelo discurso da honra e
associados ao controle da sexualidade feminina. Todavia, o contato com os processos
tipificados como “lesões corporais”, revelou aspectos importantes das vivências das mulheres
alto-sertanejas, sobretudo, relacionado a violência nos espaços de trabalho doméstico e da

29
ENGEL, Magali. Paixão, crime e relações de gênero (Rio de Janeiro, 1890-1930). Revista Topoi, Rio de
Janeiro, nº 1, 2000, pp. 153-177.
30
RAGO, Margareth. Os prazeres da noite: Prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo
(1890-1930). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
31
PEDRO, Joana Maria (org). Práticas proibidas: práticas costumeiras de aborto e infanticídio no século
XX. Florianópolis: Cidade Futura, 2003.
32
FERREIRA FILHO, Alberto Heráclito. Salvador das mulheres: condição feminina e cotidiano popular
na Belle Époque imperfeita. (Dissertação de Mestrado em História). Salvador: Universidade Federal da Bahia,
1994.
33
SANCHES, Maria Aparecida Prazeres. As razões do coração: Namoro, escolhas conjugais, relações raciais e
sexo-afetivas em Salvador (1889-1950). Tese (Doutorado em História Contemporânea) Universidade Federal
Fluminense. Niterói, 2010.
34
RODRIGUES, Andrea Rocha. Honra e sexualidade infanto-juvenil na cidade do Salvador, 1940-1970.
(Tese de Doutorado), Salvador, UFBA, 2007.
35
DAMASCENO, Karine Teixeira. Mal ou bem procedidas: cotidiano e transgressão das regras sociais e
jurídicas em Feira de Santana, 1890-1920. Dissertação de Mestrado, Unicamp, Campinas, 2011.
36
CORREIA, Andreia da Silva. “Judiciário é masculino, mas justiça é feminina”: Estratégias e resistências de
mulheres na justiça em Santo Antônio de Jesus/BA entre 1900 e 1940. (Dissertação de Mestrado). Universidade
Estadual de Feira de Santana. Feira de Santana, 2011.
37
LIMA, Luiz Alberto da Silva. Mulheres ocultas: cotidiano feminino e formas de violência em Feira de
Santana (1930-1948). Universidade Estadual de Feira de Santana. Feira de Santana, 2010
23

prostituição, sendo elencados então dez processos desta tipologia para contribuir com outros
meandros de nossa análise.
Os processos criminais perfazem assim um rico manancial de narrativas que revelam a
participação feminina em diversos espaços, as táticas 38 de sobrevivência e de enfrentamento
aos padrões de moralidade impostos, em meio a um ambiente de opressão e vigilância. Os
processos-crime aqui analisados pertencem ao acervo do Arquivo Público Municipal de
Caetité e do Arquivo Público do Estado da Bahia. Sobre essa fonte, ainda vale ressaltar que

A sua utilização revela-se fundamental para podermos nos aproximar do


cotidiano de homens e mulheres das classes populares. Constituem uma das
poucas alternativas nesse esforço de desvendar as preocupações e táticas
relativas à sobrevivência, crenças, às aspirações, aos conflitos e
solidariedades entre familiares, amigos, vizinhos, às expectativas e
exigências quanto ao relacionamento afetivo, enfim, às regras que norteavam
sua existência e conformavam sua cultura39.

Em diálogo com outras fontes tidas como oficiais – jornais, relatos memorialísticos,
códigos de posturas e as próprias legislações penais, os processos-crime nos permitem acessar
fragmentos das trajetórias das mulheres invisibilizadas pela memória oficial. Ainda que
mediadas pela pena do escrivão e “contaminadas pela interpretação que lhes deram” 40, em um
momento excepcional de suas vidas, é através dessas narrativas de criminalização e
resistência que podemos ir de encontro à nossas personagens. Assim, sob viés da redução da
escala de análise, proposta pela micro-história, esse entrecruzamento de fontes pode
“fornecer-nos elementos preciosos, que irão preencher as lacunas da nossa investigação” 41.
Os procedimentos teórico-metodológicos da chamada “nova história social do crime”
nos auxiliam a pensar e problematizar o lugar da criminalidade na vida das camadas
populares. Se, por muito tempo, para as ciências sociais, esta era apontada como um desvio do
comportamento normal, uma excepcionalidade, “as pesquisas recentes na área da história
social inverteram esse eixo e deslocaram o crime para o centro da vida social, destacando a
proximidade entre o cotidiano e o comportamento considerado criminoso” 42. Assim, por meio
de vestígios, muitas vezes, fragmentados, das histórias de mulheres que foram criminalizadas,

38
Segundo Certeau “as táticas apontam para uma hábil utilização do tempo, das ocasiões que apresenta e
também dos jogos que introduz nas fundações de um poder”. In: CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano.
1. Artes de fazer. Petrópolis. Rio de Janeiro: Vozes, 2008, 1994, p. 102.
39
SOIHET, Rachel. Condição feminina e formas de violência: mulheres pobres e ordem urbana, 1890-1920.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989, p. 364.
40
GINZBURG, Carlo. A micro história e outros ensaios. Rio de janeiro: Bertrand Brasil, 1991, 212.
41
Ibid., p. 212.
42
BRETAS, Marcos Luiz. O Crime na Historiografia Brasileira: Uma Revisão na Pesquisa Recente. BIB, Rio de
Janeiro, n. 32, 2° semestre de 1991, pp 49,
24

podemos compreender inúmeras questões econômicas, sociais, políticas e culturais da


sociedade em que viveram.
Vale ressaltar que a “criminalização” em nosso estudo, é entendida como a posição
das mulheres pobres, em sua maioria negras, diante da ação da justiça criminal - e da
medicina legal -, seja na posição de rés ou vítimas dos crimes em questão. Estas mulheres
caetiteenses não correspondiam aos padrões forjados pelas legislações civis e penais,
entretanto, as leis não necessariamente correspondiam as normas sociais, e vice-versa. Em
alguns casos, a lei servia para punir e controlar práticas costumeiras e comportamentos
anteriores a sua criação, culturalmente aceitos ou já reprimidos socialmente. Como afirma
Butler43, a norma não é exterior ao seu campo de aplicação, podendo ser atualizada e revista,
sobretudo, para condenar ou absolver ações desviantes.
Assim, nosso primeiro capítulo analisa as práticas e discursos que marcaram a
implementação das legislações penais no Brasil republicano, e os reflexos dessas mudanças e
permanências na região do alto sertão da Bahia. Um diálogo entre as legislações de controle,
de âmbito nacional, como os códigos penais, e de âmbito local, como os códigos de posturas
municipais, além dos comentários jurídicos, teses de medicina e relatórios carcerários,
auxiliaram esse exercício de compreensão histórica das leis e sua aplicação na vida de nossos
sujeitos (as mulheres pobres e negras), para manutenção da ordem dominante.
O segundo capítulo aborda as heranças do passado escravista na vida das mulheres
negras alto-sertanejas. Primando por uma análise qualitativa, sem desconsiderar aspectos
quantitativos, este capítulo prioriza a análise hermenêutica dos processos criminais,
sobretudo, de homicídio, defloramento e lesões corporais. Num contexto que sucedia a
recente abolição da escravidão no Brasil, a questão racial, ainda que invisibilizada nas fontes,
perpassava as relações afetivas, de trabalho, de sociabilidade e, por sua vez, refletia as marcas
do cativeiro nas histórias destas mulheres, bem como os novos significados que a liberdade
legal lhes atribuía. Pretas e pardas elaboravam e reelaboravam cotidianamente suas táticas de
sobrevivência que, mediante aspectos como gênero, classe e raça, tendiam a destoar, ainda
que involuntariamente dos padrões de honra e moralidade vigentes.
Nesse sentido, o terceiro capítulo procura investigar a criminalização e marginalização
de mulheres que, por suas condições de sobrevivência e por seguirem outros códigos morais,
não se encaixavam nos padrões hegemônicos estabelecidos pelas classes dominantes. Aqui os
processos criminais dialogam com relatos memorialísticos e alguns registros da imprensa

43
BUTLER, Judith. Regulações de Gênero. Cadernos Pagu (42), janeiro-junho de 2014, p. 267.
25

caetiteense que guardavam as representações das elites acerca das mulheres pobres e negras
que fugiam ao padrão feminino idealizado. Seja por meio do exercício da prostituição,
enquanto meio de vida, ou exercício desviante da sexualidade, seja pelo ato desesperado do
infanticídio que carregava a negação da maternidade, essas mulheres, que faziam “sacrifícios
nos altares de Vênus”, como o título reitera, não se enquadravam no molde ideal feminino e,
de forma voluntaria ou involuntária, representavam uma forma de subversão dos valores
hegemônicos.
26

CAPÍTULO 01

SOB A PENA DA LEI: MULHERES CAETITEENSES DIANTE DAS LEIS


CRIMINAIS REPUBLICANAS

A análise das histórias de criminalização e resistência das mulheres de classes mais


pobres em Caetité, por meio de fragmentos de suas experiências que atravessaram as cinco
décadas e meia compreendidas por este estudo, implica a problematização dos instrumentos
legais empregados com o intuito de moralização, controle e punição desses sujeitos. Essas
mulheres, cujas estratégias de sobrevivência e práticas cotidianas não se enquadravam nas
normas morais de comportamento feminino da época, representavam uma ameaça ao projeto
de ordem e civilidade das elites republicanas caetiteenses, propagandeado naqueles sertões,
em que aspiravam a uma modernidade que nem sempre correspondia aos seus anseios 44.
Como pontua Boris Fausto, em estudo pioneiro sobre a criminalidade na cidade de São
Paulo entre 1880 e 1894, “o movimento geral da delinquência e da criminalidade não pode ser
explicado, sequer compreendido, “descolado” da formulação e implementação, em
conjunturas determinadas, de políticas públicas penais.” 45 Nesse sentido, as legislações
criminais republicanas, auxiliadas por outros instrumentos normativos, precisam ser
compreendidas em seu percurso histórico, assim como através da crítica de seus discursos e
interesses socioeconômicos e políticos. A análise dos crimes e contravenções previstos em
códigos penais e de posturas a luz da interpretação médica e jurídica, bem como do discurso
das elites intelectuais expresso na imprensa do período e ainda, da percepção das ações
consideradas desviantes por grupos sociais criminalizados, se faz necessária para
contextualizar as experiências das mulheres caetiteenses que afloram nos processos criminais.
Diante de um projeto político republicano que se intitulava “modernizador e
civilizatório”, a moralização da classe trabalhadora perpassava um padrão definido pelas

44
Em estudo sobre o imaginário da modernidade no alto sertão baiano, Eudes Guimarães analisa os anseios da
população, sobretudo das elites, em relação a chegada de serviços e aparelhos que seriam ícones do progresso
para a época. Muitos desses não chegaram a se consolidar, outros demoraram algumas décadas e ainda não
lograram o sucesso almejado. Segundo ele “no alto sertão das décadas de 1910 e 1920, como escreveu um
jornalista, o ritmo do ‘progresso’ assemelhava-se aos passos do caranguejo: quando parecia que o problema do
transporte iria se resolver com a chegada da ferrovia, o material necessário para a execução da obra ficava
abandonado no caminho sob a ação da ferrugem; quando a eletricidade poderia impulsionar mudanças no campo
sensorial da cidade, a luz ruim e a fumaça que saia da lenha para manter a caldeira embaçavam as vistas do
transeunte; quando o barulho dos primeiros automóveis que chegaram em Caetité parecia anunciar uma guinada
na vida de comerciantes, agricultores e viajantes, ouvia-se, ao fundo, o chiar dos carros de bois atravessando as
estreitas e esburacadas estradas que ali existiam”. In: GUIMARÃES, Eudes Marciel Barros. Um painel com
cangalhas e bicicletas: os (des)caminhos da modernidade no alto sertão da Bahia. (Caetité, 1910-1930)
Dissertação de mestrado. UNESP-Franca, 2012, p.139.
45
FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924). 2.ed São Paulo: EDUSP,
2001, p.11.
27

classes dominantes e difícil de ser alcançado perante as condições de existência da população


mais pobre. Nesse sentido, os preceitos de trabalho e honra, direcionados para homens e
mulheres, respectivamente, estavam implicados na constituição dessa moral burguesa para
os/as trabalhadores/as.
Enquanto alicerce político para o projeto de modernização, o liberalismo, que
fundamentava a nova legislação, mantinha uma relação contraditória com as práticas
conservadoras. O novo conjunto de leis implementado pelo governo republicano,
aparentemente expressava uma tendência liberal e de equidade entre os cidadãos, rompendo
um modelo monárquico aristocrático. Entretanto, a estrutura oligárquica e hierarquizada da
sociedade brasileira nas primeiras décadas da república se traduzia em um arcabouço político
autoritário e antidemocrático, que tornava bastante limitado o acesso da maioria da população
aos direitos enquanto cidadãos. Segundo Resende:

É da coexistência de uma Constituição liberal com práticas oligárquicas que


deriva a expressão liberalismo oligárquico, com que se caracteriza o
processo político da República no período compreendido entre 1889 e 1930.
Ambígua e contraditória, a expressão revela que o advento da República,
cujo pressuposto teórico é o de um governo destinado a servir à coisa pública
ou ao interesse coletivo, teve significado extremamente limitado no processo
histórico de construção da democracia e de expansão da cidadania no
Brasil46.

Nesse sentido, o novo aparato legislativo do estado brasileiro, tanto no âmbito civil
como penal, apesar de se apoiar “sobre princípios liberais”, não garantia a toda população o
exercício pleno da cidadania, e assim, a participação popular na vida política oficial e
institucional do país permanecia bastante restrita. A Constituição da República dos Estados
Unidos do Brasil, promulgada em 1891, excluía da categoria de cidadãos com direito ao voto
os indivíduos menores de vinte e um anos e os analfabetos, e era bastante ambígua com
relação ao voto feminino. Apesar de não mencionar o gênero, o uso universal de termos
masculinos para se referir ao povo brasileiro na redação constitucional permitiu uma
interpretação que garantia a plena cidadania apenas para uma minoria privilegiada, excluindo
assim as mulheres47. Afinal, “em companhia de crianças, loucos, mendigos, analfabetos e

46
RESENDE, Maria Efigênia Lage de. O processo político na Primeira República e o liberalismo oligárquico. In
FERREIRA, Jorge & DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (org.). O Brasil Republicano, Vol. 1: o tempo do
liberalismo excludente: da Proclamação da República à Revolução de 1930. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2008. p.91.
47
As mulheres só tiveram o direito de votar instituído no código eleitoral de 1932 (aos vinte e um anos) e,
posteriormente na Constituição de 1934 (aos dezoito anos). Entretanto, “o voto não tinha sentido para a maioria
das mulheres brasileiras que permaneciam despojadas desse direito” e “em grande medida não tinha utilidade
28

índios protegidos pelo Estado, as mulheres permaneceram cidadãs ‘inativas’, sujeitas as leis
republicanas mas sem o direito a participação cívica”48.
Além do texto constitucional, a nova legislação republicana incluía outros
regulamentos como o Código Civil de 1916, que apresentava ainda princípios bastante
conservadores com relação aos direitos civis da mulher, limitando e controlando sua atuação a
partir do pátrio poder ou da autoridade do cônjuge. Afora conter diversos artigos que
mantinham o homem como chefe da sociedade conjugal, dedicava um capítulo especialmente
aos “direitos e deveres da mulher”. Tal código civil estabeleceu uma “menoridade jurídica”
para a mulher casada, sendo possível constatar em seus artigos e incisos um discurso de
inferioridade fortemente ancorado em princípios patriarcais e assimetrias nas relações de
poder, ainda que seu texto consagrasse o modelo nuclear de família. Entretanto, muitas
resistências femininas se darão por outros meios, fugindo a normatização de seus papeis
sociais, que na prática nem sempre correspondiam às prescrições da lei.
A posição ocupada pelas mulheres nos processos criminais, que oscilava entre o lugar
da vítima na grande maioria dos casos e, o de ré em menos incidência nos autos criminais,
oscilava também entre um processo de marginalização e/ou civilização de seus hábitos, assim
como pontua Martha Abreu Esteves49 em estudo sobre os conflitos e as interseções entre os
padrões normatizadores do comportamento sexual propostos pelo pensamento e prática
médico-jurídica e os valores e normas compartilhados pelos segmentos populares em suas
vivências cotidianas das relações amorosas. O papel pedagógico assumido pela justiça, que
poderia proteger ou condenar comportamentos populares, era evidente em sua atuação nos
processos que envolviam mulheres pobres. Essas, mesmo na condição de vítima, nos
processos de defloramento e homicídio, estavam sujeitas ao olhar repressivo tanto médico
quanto jurídico, pois suas vidas eram investigadas e sua moral questionada.
Vale ressaltar que às mulheres pobres não cabia assim um aparente papel de vítimas
passivas e totalmente submissas, mas, principalmente, de sujeitos protagonistas de suas
histórias de resistência. Nas relações de poder estabelecidas, lá estavam elas, negociando sua

para melhorar as condições de vida da vasta maioria das mulheres brasileiras” In: BESSE, Susan K.
Modernizando a desigualdade. Reestruturação da Ideologia de Gênero no Brasil, 1914 – 1940. São Paulo.
Editora da Universidade de São Paulo, 1999. p.183. Assim, o grande índice de analfabetismo principalmente
feminino, as desigualdades sociais profundas e o caráter elitista da política brasileira impossibilitava esse
feminismo de avançar no sentido de romper com o modelo burguês e os privilégios que ainda detinham as
mulheres brancas.
48
CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: Moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-
1940). Campinas, SP: Editora da UNICAMP, Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, 2000.
49
ESTEVES, Martha Abreu. Meninas Perdidas. Os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro da Belle
Époque. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1989, p.83.
29

sobrevivência e subvertendo os padrões impostos, improvisando papeis e reinventando


poderes dentro de sistemas de dominação, desafiando códigos morais e de conduta, tecendo
teias de sociabilidade e, ainda que invisibilizadas e silenciadas, é sob um olhar mais atento
que as encontraremos onde sua presença incomodava.

1.1 “Não há crime sem lei anterior que o defina”: Os Códigos Penais de 1890 e 1940
na consolidação da ordem republicana no Brasil

A implantação do regime republicano no Brasil, ao apagar das luzes do século XIX,


demandou a formulação de uma legislação que contemplasse os anseios dessa nova ordem
política que, na prática, conservava muitos elementos advindos da monarquia, porém buscava
se legitimar por meio de novos marcos legais. Os debates acerca desses conjuntos de leis
perpassariam ainda por grande parte do século XX, mas seria o Código Penal de 1890 o
primeiro instrumento normativo a entrar em vigor na jovem república, anterior a própria
Constituição Federal de 1891, somente substituído por um novo código em 1940.
A precoce aprovação de um conjunto de leis penais estava relacionada ao projeto de
controle e punição da população mais pobre, gestado ainda no Império, e implementado sob
os ares de “ordem e progresso” ditados pelo discurso de modernização das elites republicanas.
Elites essas, que detinham o poderio econômico e político, e cujo poder intelectual amparava-
se, sobretudo, nos saberes médico e jurídico, alicerces para a elaboração das novas leis.
Por sua vez, a abolição oficial da escravidão no Brasil, em 1888, representou um novo
momento em relação aos debates raciais no país, que se afloravam e demonstravam grande
influência das ideias evolucionistas europeias, abrindo espaço para a consolidação da
criminologia50 como área de saber médico e jurídico, e que almejava um status científico
próprio. Dessa forma, o medo das “classes perigosas” oriundas dessa população livre e de cor,
a preocupação com uma suposta “degeneração da raça” originária do processo de
miscigenação no país e a necessidade de controle desses indivíduos, demandava novos
métodos de vigilância e punição.
O Código Penal dos Estados Unidos do Brasil, de 1890, de autoria do jurista Baptista
Pereira, trazia em seu bojo novas percepções acerca das práticas punitivas, bem como a
necessidade de disciplinarização da sociedade segundo um modelo de ordem burguesa, no

50
A criminologia, como conhecimento voltado para a compreensão do homem criminoso e para o
estabelecimento de uma política “científica” de combate à criminalidade, será vista como um instrumento
essencial para a viabilização dos mecanismos de controle social necessários à contenção da criminalidade local
In: ALVAREZ, Marcos César. “A Criminologia no Brasil ou como Tratar Desigualmente os Desiguais”, in
Dados, Revista de Ciências Sociais, v. 45, n. 4, Rio de Janeiro, 2002, p. 693.
30

qual a República brasileira se espelhava e, desse modo, o primeiro Código republicano abolia
formas de punição consideradas arcaicas (galés, prisão pérpetua, pena de morte) e que foram
empregadas durante o Império. Assim, o aparato penal do suplício foi substituído pelas penas
relacionadas ao tempo de prisão. Até a promulgação e vigência do Código de 1940, os debates
médicos e jurídicos desses cinquenta anos foram bastante efervescentes e nos proporcionaram
compreender as bases intelectuais legais em que se forjou o regime republicano, entre o
período oligárquico e o fim da vigência da ditadura do Estado Novo varguista.
Ainda que deva ser considerado um instrumento a serviço das elites republicanas, em
seu projeto de controle e moralização da sociedade, cuja punição das “condutas desviantes”
culminava em um processo de criminalização das classes mais pobres, o Código Penal de
1890 foi alvo de inúmeras críticas por essas mesmas elites. Permeado pelas próprias
contradições expressas pela nova estrutura jurídico-política do país, que lançava as bases para
o exercício da cidadania, mas limitava o acesso da maioria da população brasileira ao status
de cidadão, o Código não agradava às classes dominantes, ao procurar instaurar uma espécie
de universalidade da lei penal.
As críticas destinadas a nova legislação penal estavam diretamente associadas a
disputa política e intelectual forjada entre as duas faculdades 51 de direito do Brasil: a
faculdade de São Paulo e a do Recife, cujas divergências teóricas incidiam na forma como o
ato criminoso era concebido. O Código de 1890 possuía o viés jurídico da Escola Clássica,
marcada por concepções mais liberais em relação ao sistema penal e as variantes punitivas,
característica da faculdade paulista, onde havia se formado o jurista autor do Código, Baptista
Pereira. Por sua vez, a Faculdade do Recife, mais permeável a influência das doutrinas
europeias da criminologia, aderiu as concepções da Escola Penal Italiana 52 e das teorias
evolucionistas e do darwinismo social, abrindo caminho para a consolidação de teorias raciais
que priorizavam o criminoso e não o crime.
Segundo Lilia Moritz Schwarcz, em sua obra “O espetáculo das raças”, na qual analisa
o papel das instituições cientificas em relação a questão racial brasileira, a Faculdade de
Direito de São Paulo era marcada pelas “práticas políticas convertidas em leis e medidas”, por
uma visão do crime baseada no livre-arbítrio e que seria legitimadora do novo modelo político
51
Institucionalizadas pela aprovação do projeto de 31 de Agosto de 1826 – convertido em lei em 11 de Agosto
de 1827, as duas primeiras faculdades de direito do Brasil, em São Paulo e Olinda (transferida em 1854 para
Recife) abrigaram os dois centros dedicados ao estudo jurídico no país.
52
Lombroso, Garofalo e Ferri formam juntos os pilares intelectuais do movimento que ficou conhecido como
“Escola Positiva”, “Escola Determinista” ou “Escola Italiana” de direito penal, e que consolidou a definição mais
geral da criminologia como a ciência voltada para o estudo do homem delinquente. In: ALVAREZ, Marcos
César. “A Criminologia no Brasil ou como Tratar Desigualmente os Desiguais”, in Dados, Revista de Ciências
Sociais, v. 45, n. 4, Rio de Janeiro, 2002, p. 680.
31

republicano. No entanto, não estaria “imune” às novas teorias cientificas e muito menos isenta
do discurso racista que permeava a prática política oligárquica do país.

As duas escolas, porém, revelaram possuir projetos bastante coincidentes e


harmônicos ora quando se tratava de defender a hegemonia da prática do
Direito, ora quando se buscava garantir uma certa hegemonia social. Nesse
caso, o argumento escorregava da cultura para a natureza, do indivíduo para
o grupo, da cidadania para a raça.53

É válido ressaltar que a interpretação e aplicação das leis acabava, na prática, sendo
atualizada, nas mãos de juízes, promotores e outros “operadores” do direito. Foi essa
interpretação híbrida, ou seja, que mesclava concepções clássicas e positivas do direito penal,
que, muitas vezes, permeava a condução dos inquéritos e sua conversão em processos
criminais, e marcava as experiências dos sujeitos envolvidos.
Ao abordarmos os códigos penais republicanos, procuramos identificar o pensamento
e prática jurídica desses dois períodos também por meio da análise dos comentários, críticas e
proposições de juristas que dedicaram obras a essas questões. Para o Código Penal da
República dos Estados Unidos do Brasil, de 1890, recorremos inicialmente aos comentários
de Oscar de Macedo Soares54. Neste livro, cujos comentários foram republicados em 1910, o
autor apresenta considerações de outros comentaristas, formuladores e críticos do código,
possibilitando acompanhar alguns debates sobre o mesmo ainda na época de sua vigência,
mas também tecendo seus próprios comentários. O Código Penal de 1890 estava assim
dividido em livros, títulos e capítulos, além de possuir alguns decretos específicos. Dessa
forma, os crimes analisados neste trabalho, cujas mulheres caetiteenses figuram como vítimas
ou acusadas estão compreendidos pelos títulos VII - “Dos crimes contra a segurança da honra
e honestidade das famílias e do ultraje público ao pudor”, referente ao defloramento, e X -
“Dos crimes contra a segurança de pessoa e vida”, no caso do homicídio e infanticídio.
Vale ressaltar que uma análise ampla e pormenorizada do conjunto de leis penais
implementadas em 1890 e 1940 escapa a proposta deste estudo, assim como não corresponde
ao nosso objetivo. De tal modo, foram aqui selecionados aspectos relevantes para a

53
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-
1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 142.
54
Oscar de Macedo Soares (1863-1911) formou-se advogado pela Faculdade de Direito de São Paulo. Atuou
ativamente em dois jornais, o Correio Paulistano e o Rio de Janeiro, este último de oposição ao governo
Francisco Portella e do qual era co-proprietário. Ainda jovem, aos 27 anos, foi eleito deputado constituinte e,
posteriormente, foi eleito deputado federal por sua província natal, Rio de Janeiro. SOARES, Oscar de Macedo.
Codigo Penal da Republica dos Estados Unidos do Brasil commentado. 7ª ed. Rio de Janeiro: Livraria
Garnier, 1910.
32

compreensão do processo histórico de criminalização das mulheres pobres nesse período,


sejam eles mais gerais e relacionados a prática jurídica e também específicos e referentes aos
delitos de defloramento, infanticídio e homicídio.
Observamos que o Código Penal de 1890 define, em seu livro de abertura, “Dos
crimes e das penas”, entre outras questões, o que se constituiria crime, criminoso e as formas
de aplicação das punições. Sob esse viés, evidenciamos dois artigos que compõem o Título I –
“Da applicação e dos effeitos da lei penal”, e auxiliam na compreensão do papel atribuído as
leis penais, bem como a diferença de nomenclatura para a violação delas.

Art. 1." Ninguém poderá ser punido por facto que não tenha sido
anteriormente qualificado crime, e nem com penas que não estejam
previamente estabelecidas”. Art. 2. “A violação da lei penal consiste em
acção ou omissão; constitua crime ou contravenção’’ 55

O crime assim como a contravenção está então presumido na vigência da legislação


que o proíbe, coíbe e prevê punição. Só existe crime devido a existência da lei. Ao definir o
princípio fundamental do sistema teórico da lei penal, Foucault afirma:

O crime ou a infração penal é a ruptura com a lei, lei civil explicitamente


estabelecida no interior de uma sociedade pelo lado legislativo do poder
político. Para que haja infração é preciso haver um poder político, uma lei e
que essa lei tenha sido efetivamente formulada. Antes da lei existir, não pode
existir infração56.

Os delitos denominados “contravenções”, estavam situados no livro III do Código


Penal de 1890 e são definidos como “facto voluntário punível que consiste unicamente na
violação, ou na falta de observância das disposições preventivas das leis e dos regulamentos”.
Tais infrações não seriam mais previstas no código de 1940, em função da dificuldade de
defini-las enquanto crime e pela baixa periculosidade oferecida, sendo tratadas apenas por
meio do decreto 3.688 de 1941, que excluía contravenções como a mendicância, mas ainda
previa outras como a vadiagem. As contravenções representavam assim infrações menores ou
tendo consequências consideradas menos graves, por não serem tentativas deliberadas de ferir
a legislação, mas a “não observância” dela. Podemos ressaltar, principalmente, que esses
delitos diziam respeito às ações de âmbito público, mas que até então não eram criminalizados

55
SOARES, Oscar de Macedo. Codigo Penal da Republica dos Estados Unidos do Brasil commentado. 7ª
ed. Rio de Janeiro: Livraria Garnier, 1910.
56
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. Petrópolis (RJ): Vozes, 2002, p.80.
33

pelas leis. Outros delitos, de ordem privada, território que só recentemente, com a
implantação da república, a legislação57 passara a atuar, iriam compor o rol de novos delitos.
Nesse sentido, apesar das críticas recebidas pelo código de 1890, por seu viés
teoricamente liberal, e seu discurso de “igualdade jurídica”, seus artigos compreendiam
diversos dispositivos de controle social. As contravenções penais possuíam um caráter
pedagógico para a sociedade da época. Um dos seus principais aspectos se refere a construção
de uma ideologia burguesa que objetivava disciplinar as classes populares, direcionando sua
atenção para “mendigos, ébrios, vadios e capoeiras”. Era uma tentativa das autoridades
republicanas de coibir práticas costumeiras da população que estivessem associadas ao
período escravista como a capoeira, comumente praticada por ex-escravos, assim como as que
ameaçassem a nova ordem que valorizava o trabalho e punia a vadiagem e a mendicância. “A
‘desordem’ muitas vezes ocultava manifestações de resistência dessa gente pobre ante a
atitude crescentemente hostil das autoridades policiais” como analisa Valter Fraga Filho 58 em
seu estudo sobre a pobreza e mendicância na sociedade soteropolitana do século XIX.
A utilização da lei como instrumento da classe dominante para o controle social e
preservação de seu poder em face ao temor às manifestações das classes populares, é um fato
historicamente perpetuado nas diversas sociedades. A lei também representava um elemento
de proteção e alicerce da propriedade privada. Em Senhores e Caçadores, Edward P.
Thompson mostra como a proibição de práticas costumeiras dos camponeses nas florestas
inglesas do século XVIII, por meio da lei negra, provocou a emergência de práticas
criminosas entre as camadas populares 59. Todavia, a classe trabalhadora, em muitos
momentos, utilizou-se das brechas que as leis proporcionavam, a seu favor, enquanto tática de
resistência e negociação.
No que se refere as mulheres, a interferência maior do estado em questões de âmbito
privado, empregando conceitos como “honra e moralidade”, revelava diversas facetas, desde a
imposição de modelos ideais de feminilidade ao controle sobre seu comportamento e
sexualidade. Ainda que o alvo dessa “moralização” fosse principalmente a família de uma

57
A interferência do Estado na esfera privada também esteve presente no processo da vacinação obrigatória, no
Rio de Janeiro do início do século XX. Em nome da saúde pública, utilizando justificativas científicas e com o
auxílio da polícia, o poder público invadia os lares e os corpos das pessoas, considerados invioláveis, inclusive
pelo Estado, durante o Império. Ao desnudar e tocar os corpos das esposas e filhas, o Estado despertou a fúria da
população, não acostumada à intervenção do poder público na esfera privada, em levantes na capital federal,
conhecida como Revolta da Vacina. In: HENTZ, Isabel. C. A honra e a vida: Debates jurídicos sobre aborto e
infanticídio nas primeiras décadas do Brasil republicano (1890-1940) - Dissertação de mestrado, Universidade
Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, 2013.
58
FRAGA FILHO, Walter. Mendigos, moleques e vadios na Bahia do século XIX. São Paulo/Salvador:
Hucitec, 1996, p.88.
59
THOMPSON, E. P. Senhores & Caçadores: a origem da lei negra. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
34

forma geral, enquanto instituição que garantiria a concretização do projeto de civilidade


republicano, aqueles sujeitos e grupos sociais que escapassem desses papéis normativos e
caíssem nas malhas da lei, tornavam-se alvo do controle jurídico. As mulheres pobres e
negras, seja por explícita resistência ou por necessária sobrevivência, subvertiam essas
legislações e, muitas vezes, utilizavam-se delas em suas táticas cotidianas, como será possível
percebermos nos meandros dos processos judiciais.
As transformações políticas e socioeconômicas que marcaram as primeiras décadas do
século XX, impulsionaram a promulgação de um novo Código Penal na década de 1940,
ainda que os embates sobre ele tenham se arrastado pelas décadas anteriores. Diversas foram
assim, as propostas de reforma desse conjunto de leis, que só seria substituído por uma nova
legislação em 1940. O novo Código foi apresentado originalmente pelo jurista Alcântara
Machado, e após ser submetido a uma comissão revisora formada pelos juristas Nelson
Hungria, Vieira Braga, Marcélio de Queiroz e Roberto Lyra, sofreu relevantes transformações.
Vale ressaltar que fora instituído em pleno contexto do Estado Novo de Vargas no Brasil e do
nazi-fascismo na Europa. Como pontua Capelato,

Apesar de apresentar características próprias, o Estado Novo brasileiro teve


inegável inspiração europeia. Um traço comum foi a crítica à liberal
democracia e a proposta de organização de um Estado forte e autoritário,
encarregado de gerar as mudanças consideradas necessárias para promover o
progresso dentro da ordem60.

Dessa forma, numa conjuntura política autoritária e centralizadora, as legislações 61


formuladas no período carregavam em si a influência de códigos e normas promulgados e
outorgados em países europeus sob regimes totalitários, ainda que tais preceitos não fossem
exclusivamente de origem nazi-fascista. O autor do Código Penal de 1940, Alcântara
Machado, diante das acusações de cópia do Código italiano de 1930 (em vigor na Itália
fascista) chega a admitir a influência dessa legislação para a escrita do projeto de código
brasileiro, e justifica por considerar a Itália “a pátria do direito criminal”.

60
CAPELATO, Maria Helena. O Estado Novo: o que trouxe de novo? In. FERREIRA, Jorge; DELGADO,
Lucilia de Almeida Neves (Orgs.). O Brasil Republicano: o tempo do nacional-estatismo: do início da década
de 1930 ao apogeu do Estado Novo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 109-110.
61
Entre as leis formuladas no período do Estado Novo de Vargas figuram a Constituição de 1937, considerada
de caráter fortemente centralizador e autoritária, alinhada com os preceitos fascistas que despontavam na Europa.
São desta época também, dentre outras, as seguintes leis: Código de Processo Civil (1939), Código Penal (1940),
Lei de Falências (1940), Código de Processo Penal (1941), além da Consolidação das Leis Trabalhistas (1943)
que não necessariamente possui um viés autoritário ou de cunho fascista.
35

Naturalissima a influencia exercida em meu espirito pela vigente codificação


italiana. Obra longamente meditada de alguns dentre os maiores cultores da
especialidade, numa terra que os sabedores consideram com justiça a pátria
do direito criminal, o ultimo código penal da Itália é tido por CUELLO
CALÓN, da Universidade de Barcelona (II progetto Rocco nel pensiero
giuridico contemporâneo, p. 402), como construção técnica de perfeição
tamanha, que constitue modelo impecável62.

Ainda que o código italiano em questão (Rocco) possuísse viés tecnicista, o Código
Penal brasileiro promulgado em 1940, em sua versão original, apresentava algumas
influências da criminologia italiana que permeara até então os debates jurídicos e médicos do
país, entretanto, tais ideias começaram a entrar em declínio nesse meio intelectual, tendo
internacionalmente perdido o prestígio de outrora. Dessa forma, essa nova versão sofrera
muitas críticas dos juristas revisores, sobretudo, em função da consolidação de novas
perspectivas associadas a um tecnicismo jurídico-penal63, que questionava as premissas da
criminologia. Alcântara Machado fora inclusive, membro da Sociedade de Antropologia
Criminal, Psiquiatria e Medicina Legal, fundada em 1895, em São Paulo, catedrático da
faculdade de direito e, portanto, partidário dessas tendências criminológicas.
Constituem assim importantes fontes para a compreensão dos debates jurídicos acerca
da nova legislação penal, os comentários da comissão revisora do Código de 1940,
organizados em uma vasta coleção pelo jurista Nelson Hungria 64, assim como outros textos
desses juristas sobre os trabalhos da comissão ou de críticos dos mesmos. Em seus
comentários sobre o novo código, Hungria, além de denunciar os perigos das leis forjadas em
regimes totalitários, não economiza nas críticas aos pressupostos criminológicos
deterministas, em trecho de sua obra dedicado ao “tecnicismo jurídico-penal”:

62
MACHADO, Alcântara. O projeto do código criminal perante a crítica. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1939. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/viewFile/65894/68505
63
A insatisfação com as conclusões a que chegaram os teóricos das Escolas Clássica e Positiva fez com que
surgisse, na Itália, a chamada Escola Técnico-Jurídica. Em relação à Escola Clássica, repudiava-se a pretensão
de estudar um direito penal fora do direito positivo, ou seja, um direito penal diverso daquele consagrado na
legislação do Estado. A ideia de que haveria um direito penal absoluto, imutável, universal, cuja origem
encontrava-se na divindade, na revelação da consciência humana ou nas leis da natureza, não convencia. Já em
relação à Escola Positiva, era considerada inaceitável a intromissão de setores absolutamente estranhos ao direito
no desenvolvimento da ciência jurídico-penal. Ciências que, no máximo, eram consideradas auxiliares do Direito
Penal, não podiam fazer parte do ordenamento jurídico; a sociologia criminal, a antropologia, a política e a
história, por exemplo, dispersariam a pesquisa e a sistematização jurídica na heterogênea sociologia. In:
GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. O tecnicismo jurídico e sua contribuição ao Direito Penal. Revista
Liberdades. Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, nº 15 - janeiro/abril de 2014
64
Um dos mais reconhecidos penalistas brasileiros, Nelson Hungria nasceu em 1891, em Minas Gerais, tendo se
formado pela Faculdade Livre de Direito do antigo Distrito Federal, em 1909. Desempenhou as funções de
promotor público na cidade de Pomba, em Minas Gerais, e dedicou-se a advocacia criminal em Belo Horizonte.
Em 1922 fora delegado de polícia no Rio de Janieor e em 1924 tornou-se pretor mediante concurso. Foi juiz de
direito (1936), desembargador (1944), e em 1951 ocupou o cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal.
36

A ciência penal, subspecie juris, não admite outros conceitos e critérios além
daqueles que lastreiam e informam as normas legais vigentes sobre a trilogia
“criminoso, crime e pena”. Outras ciências, pré-ciências ou pseudociências
que se propõem, à margem do jus conditien, o estudo da criminalidade como
fenômeno biopsico-sociológico e a pesquisa ou preconício de meios de
preservação e defesa sociais nada têm a ver com a ciência do direito penal
propriamente dito, senão quando por esta afiançados e com este ajustáveis. 65

Nelson Hungria preconizava que a criminologia, enquanto estudo do fenômeno da


criminalidade não deveria ser confundida com a ciência do direito penal. Nesse sentido,
apesar dos debates aflorados e de viés criminológico que marcaram as críticas ao código
anterior, e por vezes, uma interpretação médico-legal dos crimes baseada em tal corrente, a
comissão revisora do novo código penal empenhou-se em amenizar sua influência.
O código de 1940 emergiu, assim, com 8 oito títulos na parte geral (I- Da aplicação
da lei penal; II - Do crime; III - Da responsabilidade; IV - Da co-autoria; V - Das penas; VI -
Das medidas de segurança; VII - Da ação penal; VIII - Da extinção da punibilidade) e com
onze títulos na parte especial (I - Dos crimes contra as pessoas; II - Dos crimes contra o
patrimônio; III - Dos crimes contra a propriedade imaterial; IV - Dos crimes contra o
sentimento religioso e contra o respeito aos mortos; V – Dos crimes contra a organização do
trabalho; VI - Dos crimes contra os costumes; VII - Dos crimes contra a família; VIII - Dos
crimes contra a incolumidade pública; IX – Dos crimes contra a paz pública; X - Dos crimes
contra a fé pública; XI - Dos crimes contra a administração pública).
A nova organização não se deu de forma aleatória e incorporava os debates travados
nas décadas anteriores à sua promulgação, entre legisladores conservadores e liberais-
reformistas. A separação entre “crimes contra a família” e “crimes contra os costumes”, a
priori reunidos em um único título, indicava uma nova concepção das normas de honra e
moralidade burguesa e a separação entre o público e o privado na legislação penal. Os
primeiros estavam mais restritos às questões de matrimônio e filiação e os demais abarcavam
delitos que atingiriam a toda sociedade, contemplando questões de ordem sexual e
incorporando o conceito de “pudor” enquanto princípio ético de coletividade.
Em sua abertura, muito semelhante ao código anterior, o CP de 1940 enfatiza: “Art.
1º: Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal”.
Entretanto, a relação de causalidade entre os delitos e as penas está mais presente. O novo
código, por meio de sua comissão revisora, exclui do texto as “contravenções”, presentes na
lei anterior, que passam a ter uma legislação específica e, uma de suas novidades é a definição

65
HUNGRIA, Nelson. Comentários ao código penal. Nelson Hungria (1891-1969) Volume I, Tomo I. Artgs. 1
ao 10. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p.105.
37

das “medidas de segurança”. Estas seriam, além das patrimoniais (interdição de


estabelecimentos e sociedades) sanções penais pessoais aos inimputáveis ou semi-
inimputáveis (que não pode responder por si judicialmente), com algum grau de
periculosidade. As medidas detentivas incluíam “I - internação em manicômio judiciário; II -
internação em casa de custódia e tratamento; III - a internação em colônia agrícola ou em
instituto de trabalho, de reeducação ou de ensino profissional”. As medidas não detentivas
eram: “I - a liberdade vigiada; II - a proibição de frequentar determinados lugares; III - o
exílio local” 66. Em seus comentários, Hungria menciona uma visão “restauradora” acerca do
emprego de tais medidas:

A medida de segurança não se aplica ao indivíduo pelo que ele fez, mas pelo
que ele é, pelo que atualmente continua sendo [...] não é pena; ao
contrário, é um meio de cura ou reeducação, despido do caráter
expiatório ou aflitivo, tendendo a recuperar os indivíduos (responsável ou
não) para o seu próprio bem e para o bem da sociedade. (grifos nossos) 67

Sendo assim, percebemos uma valorização das formas alternativas de pena.


Entretanto, a possibilidade de recuperação por meio de ações preventivas, que não tenham
caráter de punição (ainda que as detenções psiquiátricas não se diferenciassem tanto das
prisionais), era prevista somente aos indivíduos incapazes de responder pelo ato penalmente.
O Código Penal de 1940 que, salvo reformas e alterações através das décadas,
permanece em vigor até os dias atuais, apresentou assim, significantes mudanças, bem como
muitas permanências. Entre os novos discursos jurídicos que trazia, um novo olhar sobre a
questão da moral se destaca em relação, sobretudo, ao comportamento feminino e o controle
de sua sexualidade.

O Código Penal de 1940 foi elaborado em conjunturas sociais e políticas


específicas – Estado Novo no Brasil e nazismo no plano internacional. O
conceito de moral que se forjou nesse cenários postulava ser o indivíduo
regulado sexualmente tanto pelos aspectos pedagógicos como pelos
biológicos, e que as regras comportamentais deviam visar a um
aperfeiçoamento da raça através do controle da sexualidade. Segundo essa

66
CÓDIGO PENAL - DECRETO-LEI Nº 2.848, DE 7 DE DEZEMBRO DE 1940. Disponível em
http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-2848-7-dezembro-1940-412868-
publicacaooriginal-1-pe.html
67
HUNGRIA, Nelson. Comentários ao código penal. Nelson Hungria (1891-1969) Volume I, Tomo I. Artgs. 1
ao 10. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p.139.
38

compreensão jurídica da moral, o Estado assumia um papel de destaque no


processo de moralização da sexualidade dos indivíduos.68

A respeito do papel do Estado e sua intervenção para a moralização da sociedade e


consequentemente, das mulheres, ele já se redefinia por ocasião do código de 1890 e
apresenta novas nuances em 1940. As ações de controle e punição das práticas desviantes dos
padrões que marcavam esses dois períodos estariam estabelecidas nos debates médico-legais e
teriam na figura da mulher, enquanto portadora da honra familiar, um de seus principais alvos.
As mulheres pobres, que reelaboravam papéis prescritos e normatizados para manutenção de
sua sobrevivência não se encaixavam na polarização “honrada/honesta ou pública” estipulada
pelas legislações penais.

1.2 Mulher Honrada versus Mulher Pública: Criminalidade feminina nos debates
jurídicos e médico-legais

O direito patriarcal perpassa não apenas a sociedade civil, mas impregna também o Estado.
Heleieth Saffioti69

Em uma sociedade alicerçada historicamente sobre valores patriarcais e marcada pelas


hierarquias de gênero, classe e raça, a vigilância e controle sobre as ações femininas
correspondiam a uma necessidade imperiosa para a manutenção desse sistema. O conceito de
honra se destacava assim nos discursos e legislações do período como instrumento para a
consolidação de uma nação “civilizada”, sendo a mulher, enquanto guardiã da família e do
espaço privado do lar, a responsável pela preservação desta honra. Os tratados médicos e
jurídicos da República, expressando a concepção de uma elite intelectual forjada por esses
valores, traziam em seu bojo a normatização dos corpos femininos e consequente
criminalização das mulheres que, em suas táticas de resistência cotidiana, desviavam-se dos
padrões estabelecidos.

Sem a força moralizadora da honestidade sexual das mulheres, a


modernização – termo que assumia diferentes significados para diferentes
pessoas – causaria a dissolução da família, um aumento brutal da
criminalidade e caos social. O que essas elites não percebiam, ou pelo menos
não admitiam, era que a honra sexual representava um conjunto de normas
que, estabelecidas, aparentemente com base na natureza, sustentavam a

68
RODRIGUES, Andrea Rocha. Honra e sexualidade infanto-juvenil na cidade do Salvador, 1940-1970.
(Tese de Doutorado), Salvador, UFBA, 2007, p.99.
69
SAFFIOTI, Heleieth I. B. Gênero, patriarcado e violência, São Paulo, Editora Perseu Abramo, 2004, p. 54.
39

lógica da manutenção de relações desiguais de poder nas esferas privada e


pública70.

Nas malhas de uma lei que se pressupunha universal, mas que só se convertia, de fato,
em controle e punição quando se referia as classes mais pobres, e diante das tentativas
empregadas pelas elites do Brasil de expurgar os males que afligiam uma nação mestiça,
foram as mulheres pobres e negras que sofreram na pele os reflexos da imposição de novas
legislações penais e figurariam nos processos criminais. Como pontua Rachel Soihet, em
importante estudo sobre a criminalidade feminina no Rio de Janeiro, entre 1890 e 1920,

Torna-se relevante para nós demonstrar que o Código Penal, o complexo


judiciário e a ação policial se constituem em recursos do sistema vigente no
sentido de disciplinar, controlar e estabelecer normas sobres as mulheres da
classe trabalhadora levando-as a assumir as posturas desejadas.71

Assim, a análise do papel atribuído a mulher nos Códigos Penais perpassa as


concepções da época acerca das normas padronizadas de comportamento e honra moral,
concepções que forjavam o projeto das elites para a moralização da sociedade brasileira e
civilização dos costumes enquanto formas de controle social. Como já mencionado, seja na
posição de ré ou vítima nos crimes previstos pela lei, as mulheres pobres, cujas condutas eram
consideradas desviantes pela sociedade e/ou pelo estado, tornavam-se uma das principais
categorias a ser normatizada.
O discurso médico esteve fortemente presente na elaboração das leis penais, seja nas
críticas ao antigo código, nos debates sobre a formulação da nova legislação ou ainda na
investigação e execução da lei diante dos laudos de exames de corpo delito. Na consolidação
do saber médico e legitimação de seu poder, a medicina legal assim como a perspectiva
higiênica tiveram importante papel nas primeiras décadas republicanas.
Segundo o estudo de Schwarcz 72, a Faculdade de Medicina da Bahia após apresentar
um viés mais higienista entre as décadas de 1870 e 1880, passou a enfatizar os estudos da
medicina legal até a década de 1930. Ao observarmos as teses da FAMEB 73 produzidas entre

70
CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: Moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-
1940). Campinas, SP: Editora da UNICAMP, Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, 2000, p.26.
71
SOIHET, Rachel. Condição feminina e formas de violência: mulheres pobres e ordem urbana, 1890-1920.
Rio e Janeiro: Forense Universitária, 1989, p.08.
72
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-
1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
73
Localizada no Terreiro de Jesus em Salvador, a antiga Faculdade de Medicina da Bahia, fundada no início do
século XIX, foi a primeira escola de medicina do país. Hoje abriga em sua biblioteca importantes estudos e
produções de alunos e professores de medicina. “Do período de 99 anos (1840-1928) já foram catalogadas 2.502
40

o final do século XIX e o início do XX, percebemos um volume considerável de temáticas


voltadas para crimes (aborto, infanticídio, defloramento) e desvios (prostituição) ou ainda
para aspectos físicos e sociais do criminoso e da criminalidade, bem como sobre o corpo e
sexualidade da mulher. Entre elas, uma tese médica chama atenção por seu título: “Ensaio
sobre a criminalidade da mulher no Brasil”, de Nise da Silveira 74, médica que viria a se tornar
referência em estudos sobre psiquiatria no país. Em sua dissertação para a cadeira de medicina
legal, a jovem estudante de medicina, única mulher de uma turma predominantemente
masculina, reproduz muito dos discursos hegemônicos na faculdade, marcado pela influência
lombrosiana, no que refere a influência biológica na criminalidade feminina. Seu texto
descreve características antropométricas e traz fotografias das mulheres como estas abaixo:

FIGURA 02: RETRATOS DE MULHERES CRIMINOSAS

FONTE: Tese de doutoramento: SILVEIRA, Nise da. Ensaio sobre a criminalidade da Mulher no Brasil.
Dissertação para cadeira de Medicina legal. Salvador. Faculdade de Medicina da Bahia, 1926.

Entretanto, discorda das teses que apontavam a existência de criminosas natas como as
prostitutas, ainda que afirme a relação biológica e cultural entre sexo e crime, pois para a
psiquiatra, os crimes passionais e marcados pela crueldade premeditada seriam tipicamente
femininos. Nise, revela ainda um olhar sensível e menos punitivo para o crime de infanticídio,
procurando relacionar o ato a um estado psíquico patológico, mas ainda fortemente
influenciada pela noção naturalizada de maternidade.

Teses Doutorais (excluindo aquelas em duplicata), mas, por certo, muitas foram perdidas ou extraviadas ao
longo do tempo e outras ainda não localizadas”. In: MEIRELLES, Neovanda Sampaio et. al. Teses Doutorais de
Titulados pela Faculdade de Medicina da Bahia, de 1840 a 1928. Gazeta Médica da Bahia. Faculdade de
Medicina da Bahia (FAMEB) da Universidade Federal da Bahia, Salvador, BA, Brasil. 2004, p.09-101.
74
Nise da Silveira (1905-1999) era alagoana e fez seus estudos médicos na Faculdade de Medicina da Bahia
(1921-1926) e foi a única mulher numa turma de 157 alunos. Colou grau com a tese "Ensaio Sobre a
Criminalidade da Mulher no Brasil" e retornou à terra natal em seguida, mas somente por um breve período.
Passou a residir no o Rio de Janeiro (1927) onde estabeleceu suas raízes intelectuais e profissionais. Durante o
estado novo varguista, sua militância comunista valeu-lhe 15 meses de reclusão no presídio da Frei Caneca. Em
17 de abril de 1944 foi reintegrada ao serviço público, sendo lotada no Hospital Pedro II, antigo Centro
Psiquiátrico Nacional, no Engenho de Dentro, subúrbio do Rio de Janeiro, onde desenvolveu trabalhos pioneiros
de terapia ocupacional.
41

É válido considerar que os códigos penais de 1890 e 1940, implantados em momentos


emblemáticos da história política brasileira, assim como os debates jurídicos que
acompanharam a vigência dessas legislações, perpassaram períodos de mudanças
consideráveis, embora não estruturais, da condição da mulher na sociedade brasileira, ainda
fortemente alicerçada em valores machistas e hierarquias patriarcais de gênero. Portanto,
analisar os seus artigos que contemplavam mais diretamente a questão das mulheres diante do
crime, bem como as alterações e permanências nos discursos que, ora as culpabilizavam e ora
as vitimizavam, pressupõe considerar a historicidade dessas ideias.
O Código Penal de 1890 cumpre um papel de “moralização e defesa da honra” para a
consolidação do novo regime republicano, ao estabelecer um título específico para crimes
relacionados a família e sexualidade. Entretanto, o fato de os aspectos da honra sexual
individual e relacionados a honra familiar estarem reunidos em um mesmo capítulo não
definia muito bem os limites entre eles. No título VIII “Dos crimes contra a segurança da
honra e honestidade das famílias e do ultraje público ao pudor”, é concedido tratamento
individualizado aos crimes de defloramento (art. 267), estupro (arts. 268 e 269), rapto (arts.
270 e 271), adultério ou “infidelidade conjugal” (arts. 279, 280 e 281) e lenocínio (arts. 277 e
278), bem como aos atentados ao pudor (art. 266) e ultrajes públicos ao pudor (art. 282).
Alguns delitos estavam intrinsecamente relacionados ao controle da sexualidade feminina,
que deveria ser contida e sua castidade preservada enquanto símbolo de uma sociedade
civilizada. Todavia, outros estavam mais direcionados ao controle e manutenção da família
enquanto instituição zeladora dessa nova moral burguesa.
O pensamento de alguns juristas influentes nos debates penais republicanos nos
possibilita compreender os padrões de gênero normatizados pela legislação, assim como os
papéis prescritos reservados às mulheres diante da justiça penal. Contemporâneo da nova
legislação de 1890 e partidário da ação civilizadora da justiça, o jurista Viveiros de Castro 75,
em sua obra “Delictos contra a honra da mulher”, afirma que “o respeito pela honra da mulher
não é um sentimento innato ao homem e, sim, uma conquista da civilização, a victoria das

75
Jurista ligado à Nova Escola Penal, defensor intransigente das concepções lombrosianas sobre a natureza do
homem criminoso, apontado como o maior especialista da época nos chamados crimes de sexo, Viveiros de
Castro procurou, de um lado, difundir e explicar as bases teóricas em que se assentava o Direito positivista. De
outro lado, ao reforçar o nexo entre crime e comportamento individual e apontar os delitos sexuais como produto
da dissolução dos costumes, que colocava, sobretudo, a família sob ameaça de desagregação, introduziu no país
um saber médico-jurídico que deveria penetrar todas as instâncias do cotidiano, reconhecendo e opondo condutas
“sadias” e “patológicas”. In: MARTINS JUNIOR, Carlos. Saber Jurídico, Criminalidade e Controle da
Sexualidade na “República dos Bacharéis”. Congresso Internacional de História, setembro/2011, p.2688.
42

idéas moraes sobre a bructalidade dos instinctos”76. Seu discurso corroborava assim a ideia de
honra moral e sexual como atributo da civilidade que se opõe a selvageria, à barbárie, honra
essa que, frequentemente consolidava e legitimava o estabelecimento de relações desiguais de
poder, reforçando hierarquias de gênero, classe e raça.
Tais hierarquias se faziam presentes nos discursos dos juristas das primeiras décadas
do século XX, seja em comentários sobre os códigos civis e penais, seja em obras jurídicas
especificas sobre o tema. Em uma de suas obras, Viveiros de Castro atribui à mulher a
responsabilidade pela preservação da honra moral.

É de justiça responsabilisar em primeiro logar a propria mulher.


Dominada pela ideia erronea subversiva de sua emancipação, ella faz
tudo que de si depende para perder o respeito, a estima e a consideração dos
homens. A antiga educação da mulher recatada e timida, delicada sensitiva
evitando os contatos asperos e rudes da vida, foi despresada como cousa
anachronica e ridicula; e temos hoje a mulher moderna, vivendo nas ruas,
sabendo tudo, discutindo audaciosamente as mais escabrosas questões, sem
fundo moral, sem refreio religioso, a vida unicamente de luxo e sensações,
vaidosa e futil, preza facil e muita vez até espontaneamente offerecida á
conquista do homem77. (grifos nossos)

O jurista apresentava uma visão que se referia as mulheres de camadas médias e altas
da população e um padrão moral que a elas foi estabelecido, dentro de um perfil que concebia
essas mulheres enquanto “recatada, tímida, delicada e sensitiva”. Demonstrava também uma
postura conservadora e de crítica ao contexto de lutas pelos direitos civis das mulheres
brasileiras, concebidas por este enquanto “ideias subversivas”. Viveiros de Castro atribuiu a
esses novos tempos a razão da ocorrência de crimes sexuais, pois as mulheres estariam mais
propensas à “conquista masculina”. Desse modo, inferia que seriam as mulheres que
subvertiam os modelos morais, as principais causadoras desses crimes, embora os homens
fossem os autores. Ressaltamos que, ainda que esses padrões de recato e civilidade se
distanciassem da realidade das mulheres pobres, esses discursos jurídicos perpassaram as
fontes da época no processo de criminalização destes sujeitos.
O conceito de honra, que ganharia novas tonalidades no código penal de 1940, não era
uma invenção do código de 1890, pois o termo perpassara todas as legislações do período
colonial e imperial brasileiro, desde as Ordenações Filipinas. Mas, com o advento da
república, fora ressignificado para atender aos novos padrões de civilidade que previam

76
CASTRO, Viveiros de. Delictos contra a honra da mulher (adultério, defloramento, estupro e sedução no
Direito Civil). Rio de Janeiro. João Lopes da C., 1897.
77
Ibid.
43

romper com um passado marcado pela “degeneração do povo”, tendo a Europa como modelo.
O crime de defloramento por sua vez, fora uma inovação do Código de 1830 e, previsto no
artigo 267 do Código Penal de 1890, era descrito como “Deflorar mulher de menor idade,
empregando seducção, engano ou fraude". 78 Seria substituído posteriormente pelos crimes
contra os costumes, que abordaria a dimensão moral com mais ênfase que a questão física da
virgindade.
Neste contexto, mesmo que não fosse essa a pretensão dos juristas, o código penal que
objetivava normatizar as práticas e relações da população brasileira, vigiando e punindo ações
que não se enquadrassem nos padrões e regras preestabelecidas, reforçava o ideal da
virgindade feminina como um valor que poderia gerar negociações e conflitos. Deflorar assim
seria “tirar a flor”, a virgindade de uma mulher, e sua dimensão material associada a relação
sexual com penetração e, por consequência a ruptura do hímen, gerou algo conhecido e
debatido nos meios médicos e jurídicos como himenolatria 79.
Duas dimensões da honra perpassavam assim os debates jurídicos. Uma, de caráter
moral associado ao comportamento feminino, presente nos discursos de promotores e
advogados, tanto na letra fria da lei quanto no momento excepcional do interrogatório. A
outra, de viés material, relacionada a virgindade e controle da sexualidade, destacava-se nas
análises de peritos médico-legais. Ambas permeavam também o cotidiano das classes
populares e eram assimiladas de formas diferentes por esses homens e mulheres que forjavam
sua sobrevivência sob a vigência de outros códigos morais. No código penal, a polarização
entre “mulher honesta” e “mulher pública (prostituta)” se fazia presente, sobretudo, no artigo
relacionado ao crime de estupro e suas penas. O estupro, diferente do defloramento, não
consistia na perda da virgindade, mas a relação sexual com emprego de violência.

Art. 268. Estuprar mulher virgem ou não, mas honesta:


Pena de prisão cellular por um a seis annos.
§ 1º Si a estuprada for mulher publica ou prostituta:
Pena de prisão cellular por seis mezes a dous annos.
§ 2º Si o crime for praticado com o concurso de duas ou mais pessoas, a
pena será augmentada da quarta parte.

78
Código Penal de 1890. Disponível em: http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=66049
79
Segundo Sueann Caufield “O conhecimento sobre o hímem complacente, no entanto, era restrito aos
especialistas, e o ensino da medicina legal era rudimentar até o final do século XIX e começo do XX. Antes da
década de 1920, o exame obrigatório de defloramento geralmente avaliava a virgindade a partir de um critério
que incluía não somente o estado do hímem [...] como também outras evidências que a medicina legal havia
rejeitado, como a flacidez dos seios e dos grandes pequenos lábios”. In: CAULFIELD, Sueann. Em defesa da
honra: Moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-1940). Campinas, SP: Editora da UNICAMP,
Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, 2000, p.76.
44

Art. 269. Chama-se estupro o acto pelo qual o homem abusa com violência
de uma mulher, seja virgem ou não80.

Neste caso, a mulher não necessariamente precisaria ser virgem, mas segundo o
código, deveria ser “honesta”. Em que consistiria então ser uma mulher honesta? Os próprios
incisos que estipulam as penas já respondem ao estabelecer uma pena mais branda se a vítima
for “mulher pública ou prostituta”. Dessa forma, a violência sexual contra uma prostituta não
ameaçava a honra das famílias e talvez não fosse passível de nenhuma penalidade. Para os
poderes jurídicos e médico-sanitaristas, a prostituição atribuía o caráter de “mulher pública”,
cuja proteção pela lei diferia da mulher considerada honesta, reservada ao espaço privado do
lar. Sobre isso, Viveiros de Castro afirma que o crime nem deveria constar nesse capítulo do
código, mas enquanto simples contravenção, pois

Realmente é um absurdo, um contrasenso juridico classificar a violação de


uma prostituta entre os delictos que affectam a segurança da honra e a
honestidade das familias. A prostituta, a mulher que faz commercio de seu
corpo, recebendo homens que a pagam, não tem sentimento de honra e de
dignidade. Quem della abusa contra sua vontade não lhe prejudica o futuro,
não mancha o seu nome, sua reputação. E’ certo que a prostituta tem o
direito de dispôr livremente de seu corpo, de receber ou recusar o homem
que a solicita. Mas quem ataca esse direito commette um crime, não contra a
honra, que não existe, mas contra a liberdade pessoal, obrigando a victima
com violencias e ameaças a praticar um acto que não queria. E como tal
facto não revela um caracter temivel, perigoso da parte do delinquente, não
causa mal irreparavel á victima, não abala os interesses da defesa social,
poderia ser punido como simples contravenção, exceptuado, bem entendido,
o caso em que houvesse sevicias ou ferimentos na victima. 81

Dessa forma, o crime de estupro representava uma ameaça não à integridade física ou
ao corpo da mulher, mas a sua honra. E a prostituta, enquanto desprovida desse valor, não
teria uma reputação familiar a zelar, não seria um mal irreparável a ela. Somente com as
alterações impostas pelo novo código penal de 1940, excluiu-se esse inciso atenuante da pena
em caso de estupro de prostituta, pois os crimes sexuais seriam classificados enquanto
“crimes contra os costumes”, sendo definido pelo artigo 213 como “constranger mulher a
conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça”82.

80
(grifos nossos) Código Penal de 1890. Disponível em: http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.
action?id=66049
81
CASTRO, Viveiros de. Delictos contra a honra da mulher (adultério, defloramento, estupro e sedução no
Direito Civil). Rio de Janeiro. João Lopes da C., 1897.
82
Código Penal de 1940. DECRETO-LEI Nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Disponível em
http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-2848-7-dezembro-1940-412868-
publicacaooriginal-1-pe.html
45

Entre as mudanças apresentadas pelo Código de 1940, estava essa separação dos
“Crimes contra os costumes” e “Crimes contra a família”, proposta pela comissão revisora.
Dessa forma, os primeiros estavam relacionados ao controle da sexualidade da população,
incidiriam sobre a sociedade e a vida pública. Correspondiam aos mesmos os capítulos
referentes aos crimes contra a liberdade sexual, sedução e corrupção de menores, rapto,
lenocínio e tráfico de mulheres, e ultraje público ao pudor. Por sua vez, os demais
corresponderiam a delitos circunscritos ao espaço privado, envolvendo casamento, estado de
filiação, assistência familiar, pátrio poder e tutela.
Na legislação de 1940, o crime de defloramento deixa de existir com esse nome,
embora dois artigos do título VI “Dos Crimes contra os costumes” assemelham-se a ele, com
algumas diferenças: A “posse sexual mediante fraude” e o crime de “sedução”.

Posse sexual mediante fraude


Art. 215. Ter conjunção carnal com mulher honesta, mediante fraude:
Pena - reclusão, de um a três anos.
Parágrafo único. Se o crime é praticado contra mulher virgem, menor de
dezoito anos e maior de quatorze anos:
Pena - reclusão, de dois a seis anos.83

Sedução
Art. 217. Seduzir mulher virgem, menor de dezoito anos e maior de
quatorze, e ter com ela conjunção carnal, aproveitando-se de sua
inexperiência ou justificavel confiança:
Pena - reclusão, de dois a quatro anos.84

Observamos que os conceitos de “honestidade” e “virgindade” ainda coexistiam no


novo código. Nos comentários de Gonçalves prevalece a noção da virgindade enquanto
ausência de cópula com penetração, embora a presença do hímen não seja necessariamente
obrigatória. Sobre a honestidade, a noção de honra sexual feminina ainda se fazia presente, ao
afirmar “a jurisprudência exige também que a vítima seja honesta e de bons costumes”85.
Em sua tese acerca das relações e práticas relativas a sexualidade infanto-juvenil em
Salvador, de 1940 a 1970, Andrea da Rocha Rodrigues identifica uma profunda semelhança
entre os dois crimes acima. Segundo ela,

Esta semelhança pode ser percebida quando observamos a ideia, concebida


no crime de sedução, de que a mulher pode ser convencida a praticar ato

83
Ibid.
84
Ibid.
85
GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Dos Crimes Contra os Costumes aos Crimes Contra a
Administração. São Paulo: Editora Saraiva, 2011, p.16.
46

sexual devido a sua suposta inocência. Tal concepção presume


implicitamente a existência de uma fraude. Além disso, a lei estabelece que a
mulher supostamente seduzida deve provar, não somente que antes do sexo
sexual era virgem, como também que mantinha um comportamento
condizente com sua propagada inocência, ou seja, deve ser considerada, pela
comunidade com quem convive, uma “mulher honesta”. Entretanto, a
exigência da virgindade da vítima para o crime de sedução distancia este
crime do anterior, que não estabelece este critério86.

Ainda que os elementos de “fraude e sedução” que eram, juntamente com o “engano”,
requisitos do crime de defloramento previsto no código penal anterior, pudessem aproximar
os delitos dos artigos 215 e 217 do novo código, as dimensões moral e material estavam
devidamente distinguidas entre os mesmos. Entretanto, mesmo com a ênfase na honra moral,
a virgindade física perpassava constantemente os comentários e debates jurídicos, além da
própria prática médico-legal nos exames de corpo delito. Além disso, a questão da idade está
devidamente assinalada em ambos os artigos para se distinguir do crime de estupro que
também abrangia as relações sexuais com menores de quatorze anos.
Outros desvios compõem o rol dos crimes sexuais. Entretanto, não é nosso objetivo
neste trabalho tecer uma análise acerca desses outros delitos mais especificamente. Tendo em
vista que os processos criminais que se constituem enquanto fontes estudadas aqui,
apresentando mulheres na condição de vítimas e acusadas, abrangem os crimes de homicídio
e infanticídio, nos deteremos um pouco na análise dos capítulos e artigos dos códigos de 1890
e 1940 que trazem a tipologia dos delitos contra a vida, bem como os debates médico-
jurídicos que os acompanharam.

1.2.1 Crimes de sangue: Passionalidade e maternidade nos códigos penais

Os crimes de homicídio e infanticídio correspondiam, respectivamente aos capítulos I


e II, artigos 294 e 298 do título X dedicado aos “Crimes contra a segurança de pessoa e vida”,
no código penal de 1890. Por sua vez, no código de 1940, são os artigos 121 e 123 que estão
presentes no título I da parte especial87, compreendendo os “Crimes contra a pessoa”,
especificamente o capítulo 1 “dos crimes contra a vida”. Seriam assim os crimes em que um

86
RODRIGUES, Andrea Rocha. Honra e sexualidade infanto-juvenil na cidade do Salvador, 1940-1970.
Tese de Doutorado em História. Salvador, UFBA, 2007, p.107.
87
A parte especial divide-se em onze títulos: I Dos crimes contra a pessoa; Dos crimes contra o patrimônio; Dos
crimes contra a propriedade imaterial; Dos crimes contra a organização do trabalho; Dos crimes contra o
sentimento religioso e contra o respeito aos mortos; Dos crimes contra os costumes; Dos crimes contra a família;
Dos crimes contra a incolumidade pública; Dos crimes contra a paz pública; Dos crimes contra a fé pública; Dos
crimes contra a administração pública.
47

indivíduo suprime a vida de outro, o conduzindo a morte, podendo haver atenuantes ou


agravantes.
No código penal de 1890, crime doloso e crime culposo eram as principais distinções
dentro do crime de homicídio. “O dolo define-se — a intenção mais ou menos perfeita de
praticar um acto que se sabe ser contrário a lei; a culpa — a voluntária omissão de diligencia
em calcular as conseqüências possíveis e previsíveis do próprio facto”88. No volume V dos
comentários ao Código Penal de 1940, em que Nelson Hungria analisa esses crimes, o jurista
se refere ao homicídio como “crime por excelência”, pois seria por si mesmo uma violação ao
senso moral da civilização. Todavia, o estabelecimento de atenuantes como “paixão e
emoção” na legislação para justificar possíveis perturbações dos sentidos, permitiu que se
forjasse o conceito de “homicídio passional”. Na legislação, não existia a previsão para esse
crime, mas as brechas deixadas pela atenuação da pena, convergiam para a naturalização de
sua existência na aplicação da lei penal. Hungria, entretanto, discorda que seja possível um
crime como o homicídio envolver sentimentos amorosos. Segundo ele,

Comumente, quando se fala em homicídio passional, entende-se significar o


homicídio por amor. Mas, será que o amor, esse nobre sentimento humano,
que se entretece de fantasia e sonho, de ternura e êxtase, de suaves emoções
e íntimos enlevos, e que nos purifica do nosso próprio egoísmo e maldade,
para incutir-nos o espírito da renúncia e do perdão, será, então, que o amor
possa deturpar-se num assomo de cólera vingadora e tomar de empréstimo o
punhal do assassino? Não. O verdadeiro amor é timidez e mansuetude, é
resignação, é conformidade com o insucesso, é santidade, é auto-sacrificio:
não se alia jamais ao crime89.

Prossegue, em discurso inflamado, chegando a parafrasear “Otelo”, de Shakespeare,


para afirmar que o “passionalismo” seria uma deturpação do amor, é para ele, “o despeito do
macho preterido” e “a vaidade da fêmea abandonada”. Nessa descrição, o jurista coloca como
possíveis autores de um crime passional homens e mulheres. Todavia, ao final de sua
exposição, deixa explícito que havia a exceção dos “maridos traídos” que, na defesa de sua
honra, poderia dar cabo da vida da esposa e/ou do amante. Nada menciona, no entanto, acerca
da mulher vítima de adultério, afinal este só se constituiria como justificativa válida quando a
esposa era a acusada do crime.

88
Código Penal de 1890. Disponível em: http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes. action?id=66049
89
HUNGRIA, Nelson. Comentários ao código penal. Nelson Hungria (1891-1969) Volume 5, Tomo I. Artgs.
121 ao 136. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1978
48

Em face do novo Código, os uxoricidas passionais não terão favor algum,


salvo quando pratiquem o crime em exaltação emocional, ante a evidência
da infidelidade da esposa. O marido que surpreende a mulher e o tertius em
flagrante ou in ipsis rebus venereis (quer solus cum sola in eodem lecto,
quer solus cum sola in solitudine) e, num desvairo de cólera, elimina a vida
de uma ou de outro, ou de ambos, pode, sem dúvida alguma, invocar o §1º
do art.121; mas aquele que, por simples ciúmes ou meras suspeitas, repete o
gesto bárbaro e estúpido de Otelo, terá de sofrer a pena inteira dos homicidas
vulgares. 90

Importantes estudos sobre a questão dos chamados “crimes passionais” foram


realizados, tanto no campo da história, como de áreas afins como antropologia, direito e
sociologia. O trabalho clássico de Mariza Correa91, em que analisa representações jurídicas de
papeis sexuais nas décadas de 1950 e 1960, por meio de crimes de homicídio em Campinas,
aponta para o julgamento da conduta moral dos envolvidos em detrimento do próprio crime.
Assim como Magali Engel, que desenvolve análise dos crimes passionais no Rio de Janeiro,
entre 1890-1930, tais pesquisas tem o mérito de colocar em evidência histórias de homens e
mulheres que estiveram em posição de réu ou vítima dos casos, bem como os discursos de
vitimização ou culpabilização tecidos sobre esses sujeitos. Engel indica, por meio de uma
leitura quantitativa dos processos, por exemplo, que eram os homens a maior parte das
vítimas de agressões femininas. Segundo ela,

O fato dos homens constituírem, de um modo geral, o alvo prioritário das


agressões femininas parece indicar que o poder masculino, supostamente
disseminado de forma indistinta e absoluta, bem como a superioridade física
dos homens não foram um obstáculo para estas mulheres92.

Assim, o fato de homens constituírem a maioria absoluta dos agressores e as mulheres


maioria absoluta das vítimas, ainda que confirmassem a violência patriarcal predominante
nessas relações, não deveria mascarar a possibilidade de outras análises. As mulheres, no
papel de companheiras afetivas desses homens, sendo esposas, amásias, amantes ou mesmo
prostitutas, se utilizavam das armas que tinham ao seu alcance para resistir e sobreviver. Ou
ainda, subvertendo o papel de vítima, mesmo na posição de acusadas, as mulheres assassinas
revelam que a apropriação da violência como recurso em suas relações sociais não era uma
prerrogativa unicamente masculina.

90
ibidem
91
CORRÊA, Mariza. Morte em família; representações jurídicas de papéis sexuais, Rio de Janeiro, Graal, 1983.
92
ENGEL, Magali. Paixão, crime e relações de gênero (Rio de Janeiro, 1890-1930). Revista Topoi, Rio de
Janeiro, nº 1, 2000, p.157.
49

Ainda no rol dos crimes “contra a vida”, os artigos referentes ao infanticídio em


ambos os códigos penais, ao lado dos de crimes sexuais, podem ser considerados como os
dispositivos legais que mais imprimiram papéis normativos de gênero relacionado a honra
feminina e, mais especificamente, a questão da maternidade. Segundo o código de 1890, era
definido como

Art. 298. Matar recemnascido, isto é, infante, nos sete primeiros dias de seu
nascimento, quer empregando meios directos e activos, quer recusando a
victima os cuidados necessarios á manutenção da vida e a impedir sua morte:
Pena de prisão cellular por seis a vinte e quatro annos.
Paragrapho unico. Si o crime for perpetrado pela mãe para occultar a
deshonra propria:
Pena de prisão cellular por tres a nove annos. 93

Dessa forma, o artigo aponta que o infanticídio era um delito cometido somente contra
a vida de recém-nascidos, podendo ser diretamente ou privando a criança de recursos
necessários para manter-se viva. É interessante observar como a questão da honra está
presente no texto, pois existe um abrandamento da pena no caso de a mãe cometer o crime em
função de preservar sua moral, ou “ocultar a desonra”. Os juristas que defendiam a
manutenção do atenuante da honoris causa asseguravam que a ocultação de sua desonra aos
olhos da sociedade poderia ser justificativa para tal ato. Contudo, para as mulheres pobres,
sozinhas ou sem recursos financeiros para serem mães, e ainda submetidas a uma moral mais
branda, vislumbravam o infanticídio como alternativa de sobrevivência. Sobre o infanticídio e
a questão da honra, Michelle Perrot esclarece

O infanticídio, praticado sobretudo, em situação de sedução que cria o perigo


do nascimento ilegítimo, é o recurso das camponesas, jovens, sozinhas, na
maioria das vezes criadas no campo ou na cidade, que, tendo procurado
dissimular a gravidez sob as pesadas dobras da saia ou do avental, ou
tentando “livrar-se” da criança com a prática de exercícios violentos, veem-
se literalmente coagidas a mata-las para preservar a honra.94

Por sua vez, o Código Penal de 1940 excluiu de seu artigo 123 a menção a honra da
mãe e passa a incluir como fator atenuante o “estado puerperal”, definindo infanticídio
enquanto o ato de “matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o

93
(grifos nossos). Código Penal de 1890. Disponível em:
http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=66049
94
PERROT, M. Os silêncios do corpo da mulher. In: MATOS, M. I. S. de e SOIHET, R. (orgs.). O corpo
feminino em debate. São Paulo: Unesp, 2003. p.18.
50

parto ou logo após”95. O alcance dos estudos médicos acerca do puerpério chegava assim, às
formulações jurídicas, entretanto, não foram de imediato aplicados pelos executores da lei,
como veremos adiante.
A tendência das leis no decorrer da história, em relação aos crimes de aborto e
infanticídio foi tornar-se mais específica no que se refere a criminalização da mulher, ainda
que trouxesse punições penais menores. Ao definir o infanticídio enquanto delito decorrido do
estado puerperal, a legislação considera a mulher como única possível autora do crime, ainda
que no código anterior a questão da honra familiar estivesse diretamente relacionada a honra
feminina. Em seus comentários, Hungria questionava a influência do estado puerperal no
psiquismo da mulher após o parto e explicitava que o juiz deveria requerer um laudo de perito
médico-legal confirmando o estado da parturiente. Demonstrando insatisfação com a nova
legislação, o jurista enfatizava que a cláusula de honoris causa do crime de infanticídio
deveria ter permanecido aliada a causa bio-psiquíca.
É importante considerar que o debate sobre a criminalidade feminina travado mais
fortemente nas primeiras décadas do século XX e a promulgação de um novo código penal em
1940 favoreceram a discussão e consequente implantação de estabelecimentos penitenciários
ou alas femininas em presídios. Até essa data não havia na legislação recomendações
especificas sobre o encarceramento feminino no Brasil, apesar de constar no debate carcerário
desde o fim do século XIX. O artigo 29 do código de 1940 passou a definir que “§ 2º As
mulheres cumprem pena em estabelecimento especial, ou, à falta, em secção adequada de
penitenciária ou prisão comum, ficando sujeitas a trabalho interno.” 96 A respeito deste artigo,
em seus comentários97 sobre o código, o jurista Roberto Lyra 98 que, ao lado de Nelson
Hungria, foi um dos principais revisores do novo código, demonstrava entusiasmo pela
viabilidade da reforma penitenciária no país, enquanto uma conquista civilizatória.
95
Código Penal de 1940. DECRETO-LEI Nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Disponível em
http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-2848-7-dezembro-1940-412868-
publicacaooriginal-1-pe.html
96
Código Penal de 1940. DECRETO-LEI Nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Disponível em
http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-2848-7-dezembro-1940-412868-
publicacaooriginal-1-pe.html
97
LYRA, Roberto. Comentários ao código penal. Volume 2, Tomo I. Artgs. 28 ao 74 5ª ed. Rio de Janeiro:
Forense, 1958.
98
Roberto Lyra, apesar de não reivindicar para si a categoria de penitenciarista, contribuiu para o debate acerca
dos presídios femininos no país e participou ativamente do Conselho Penitenciário do Distrito Federal. Jurista
brasileiro, redator de alguns volumes dos Arquivos Penitenciários do Brasil, contribuiu assiduamente para esse
periódico, principalmente com artigos e comentários sobre a legislação penal. Membro do Ministério Público do
Distrito Federal, jornalista, criminólogo e professor de direito penal e criminologia na Faculdade Nacional de
Direito, Lyra foi um dos membros da Comissão Revisora do Código Penal de 1940. In: ANDRADE, Bruna
Soares Angotti Batista de. Entre as leis da Ciência, do Estado e de Deus: o surgimento dos presídios
femininos no Brasil (1930-1950). Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011.
51

Com relação ao local em que desenvolvemos nossa pesquisa, não há uma


documentação penitenciária considerável nos arquivos de Caetité, excetuando um livro 99 de
registros de visitas na cadeia, datado entre 1886 e 1905. Apesar de os relatórios de visitas
mensais realizadas por uma equipe composta por delegado, promotor e escrivão, serem
bastante sintéticos, limitando-se a informar se os presos recebiam “as duas diárias” a que
tinham direito, entre 1886 e 1889 eles também registraram a quantidade de presos nas alas
“nascente e poente”, que normalmente correspondiam a uma média de vinte presos no total. O
primeiro relatório de visita consta, inclusive, a presença de um escravo condenado, mas não
faz nenhuma menção a presença de mulheres presas. Somente em 1888 surge o registro de
uma mulher em abril e duas mulheres em outubro, numa “ala de mulheres”. Todavia, no ano
de 1889, com a mudança de escrivão, o número de presos em cada ala não é mais registrado, e
o último apontamento no relatório de visitas ocorre em 1897.
Percebemos que não havia, ao menos na cadeia pública, um número significativo de
mulheres presas e condenadas, nem um estabelecimento próprio para esse fim, mas a
ocorrência da prisão de mulheres acarretava a necessidade de criação e manutenção de uma
ala feminina, mesmo que não constasse nas leis anteriores ao novo código penal. Entretanto,
era uma prática já utilizada na execução das penas e que se convertera em medida legal diante
da necessidade de uma sociedade que já havia há muito tempo deixado de classificar as
mulheres apenas como vítimas de crimes, mas que costumeiramente se utilizou de
estabelecimentos ligados à igreja e a medicina (conventos e hospícios) para enclausurar esses
sujeitos que escapavam às normas prescritas ao seu gênero. Assim,

Embora o encarceramento de mulheres em salas, celas, alas e seções


separadas dos homens fosse uma prática recorrente, até o ano de 1940, não
havia qualquer diretriz legal que exigisse ou regulamentasse nem essa
prática, nem uma instituição para tal fim específico. Assim, as mulheres
presas eram separadas ou não dos homens de acordo com os desígnios das
autoridades responsáveis no ato da prisão e de acordo com as condições
físicas para tal.100

Seja na posição de vítima ou de ré em um crime, a mulher que se apresentava diante


da justiça penal e da medicina legal, cometia um duplo desvio. Além de violar as leis e
códigos da época, descumpria papeis prescritos e normas de gênero impostas culturalmente
por uma determinada sociedade. Afinal, o sistema punitivo se constituía como último

99
Livro de registros de visitas a cadeia de Caetité, 1886-1897.
100
ARTUR, Angela Teixeira. “Presídio de Mulheres”: as origens e os primeiros anos de estabelecimento. São
Paulo, 1930-1950. ANPUH – XXV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – Fortaleza, 2009, p.01.
52

instrumento de vigilância e disciplina, cabendo a outras instâncias, tais como a igreja e a


família, a primazia sobre o controle de suas vidas, corpos e comportamento.
Todo esse arsenal de leis penais e punições, de práticas e discursos de ordem médica e
jurídica que foram estabelecidos como balizas legais para a consolidação do regime
republicano no Brasil, no bojo de um projeto de civilidade das elites intelectuais, estendeu-se
até os mais distantes rincões da nação. Longe das capitais e centro urbanos do país, mas nem
tão distantes dos novos ideais, os sertões baianos revelam tramas de criminalização e
resistência de sujeitos, mais especificamente de mulheres pobres e negras, que subverteram
silêncios cristalizados e memórias oficiais impostas por uma história vista de cima. Os
reflexos deste projeto higienista e moralizador em Caetité se faziam presentes em fontes como
leis municipais, jornais e nos próprios processos criminais.

1.3 Ares de progresso entre o campo e a cidade: Um projeto higienista no alto sertão da
Bahia

Caetité, outrora conhecida como Vila Nova do Príncipe e Sant'anna de Caiteté,


localizada no alto sertão da Bahia 101, ocupara durante o século XIX um papel de importante
centro regional de confluências políticas, econômicas e culturais. Uma vila oitocentista
incrustrada na Serra Geral, caminho e pouso de tropeiros, mais próxima do norte das minas
gerais do que da capital soteropolitana - localizada a 757 km de Salvador-, terra de barões
escravistas, forasteiros exploradores de pedras, latifundiários pecuaristas, de uma elite
intelectual médica e jurídica, de ricas damas de caridade, políticos liberais e conservadores,
monarquistas e republicanos102. Mas, sobretudo, a terra de uma população sertaneja

101
Segundo Edvaldo Neves, o termo alto sertão da Bahia é empregado em referência à posição “relativa ao curso
do Rio São Francisco e ao relevo baiano, que ali projeta as maiores altitudes” In: NEVES, Erivaldo F. Uma
comunidade sertaneja: da sesmaria ao minifúndio (um estudo de história regional e local). Salvador: EDUFBa;
Feira de Santana: UEFS, 2008, p. 22. Para Eudes Guimarães “em se tratando de alto sertão da Bahia, nas
narrativas históricas recentes sobressai uma trama de regionalização, isto é, de formas de delimitação do espaço,
do enquadramento ou de recorte espacial das quais podiam e ainda podem ressurgir denominações, mas que
aquela (alto sertão) se fez sentir com mais vigor e maior significado histórico”. GUIMARÃES, Eudes Marciel
Barros. Um painel com cangalhas e bicicletas: os (des)caminhos da modernidade no alto sertão da Bahia.
(Caetité, 1910-1930) Dissertação de mestrado. UNESP-Franca, 2012, p.23.
102
Foram assim, fundamentais os estudos de história local que abarcam o início do século XX e problematizam
questões relacionadas à política local durante a Primeira República, ao contexto sócio-econômico do pós-
abolição, aos discursos de modernidade e questões de gênero. As obras de Paulo Henrique Duque Santos (2001),
Lielva Aguiar (2011), Eudes Maciel Guimarães (2012), Adriana Sacramento (2012) inserem-se nessa
historiografia caetiteense vasta e promissora. No que se refere aos estudos sobre mulheres e relações de gênero,
duas pesquisas sobressaem como pioneiras e enquanto ponto de partida para novas temáticas e abordagens sobre
a história das mulheres alto-sertanejas. Em seu livro “Mulheres e poder no Alto Sertão da Bahia”, Marcos
Profeta Ribeiro (2012) analisa a partir das correspondências de Celsina Teixeira Ladeia, as ações femininas e os
espaços ocupados pelas mulheres de elite no alto sertão baiano, extraindo as tensões existentes entre os papeis
prescritos e os papeis vividos. Verifica-se nas entrelinhas dessa documentação, indícios de participação
53

empobrecida que sobrevivera ao extermínio indígena 103 e à escravização africana e convivia


com as agruras da luta pela sobrevivência em uma sociedade profundamente hierarquizada na
transição para o século XX.
Lavradores, vaqueiros, artesãos, pequenos produtores, criadores e negociantes
compunham a maioria da população que elaborava e reelaborava cotidianamente suas táticas
de sobrevivência, além de grupos ainda mais marginalizados como mendigos, prostitutas e
ladrões oriundos do empobrecimento causado pelas crises na produção agrícola, migrações e
epidemias, bem como o próprio processo recente de abolição da escravidão. Essa população
alto-sertaneja, silenciada, muitas vezes, pela memória oficial de uma cidade “pequenina e
ilustre”104, avulta nas páginas de fontes documentais como jornais e processos-crimes ou nas
entrelinhas de fontes como códigos de posturas e inventários. Suas histórias de sobrevivência,
de paixões, conflitos, esperanças e sociabilidades permitem contar uma outra história do alto
sertão baiano.
As mulheres, em sua maioria, invisibilizadas nas narrativas oficiais sobre um sertão
rude, masculino e patriarcal, não eram invisíveis nas tramas cotidianas dessa sociedade alto-
sertaneja. Em Caetité, as mulheres, ainda que imersas em um sistema de relações de poder
profundamente hierarquizadas, se faziam presentes em diversos contextos, subvertendo a
lógica da dicotomia público-privado, vivendo entre o urbano e o rural e sendo protagonistas
ou coadjuvantes de inúmeros episódios de negociação e conflitos, dentro e fora das margens
da lei. As experiências de mulheres pobres e negras que foram e continuam sendo
emblemáticas em diferentes tempos e espaços, possibilitam descortinar também o chão social
da nossa pesquisa, pois suas histórias de resistência estão diretamente relacionadas ao
processo de mudanças e permanências que marcara as primeiras décadas do pós-abolição,
permitindo assim conhecer uma Caetité muito mais dinâmica e multifacetada.
Viver em Caetité entre os anos finais do século XIX e primeiras décadas do século
XX, era viver em uma região marcada por contradições sociais, econômicas e políticas. As

feminina em diversos setores como política, religião, filantropia, eventos sociais e negócios comerciais. Por sua
vez, a dissertação de Maria Lúcia Porto Nogueira (2010) denominada “A Norma dos bons costumes e as
resistências femininas na obra de João Gumes (Alto Sertão Baiano, 1897-1930)” perscrutou as práticas culturais
e tensões sociais presentes nas vivências de homens e mulheres do período a partir das obras literárias deste
literato e jornalista caetiteense.
103
Existe uma carência de estudos historiográficos acerca da presença indígena no alto sertão da Bahia. Edvaldo
Neves afirma não haver registros de índios aldeados na região, pois “os primitivos habitantes foram absorvidos
como mão-de-obra, na agropecuária, e perderam sua identidade étnico-cultural”. In: NEVES, Erivaldo F. Uma
comunidade sertaneja: da sesmaria ao minifúndio (um estudo de história regional e local). Salvador: EDUFBa;
Feira de Santana: UEFS, 2008, p.96
104
Alcunha dada a Caetité pela memorialista Helena Lima Santos, em seu livro: SANTOS, Helena Lima.
Caetité, pequenina e ilustre. Tribuna do Sertão, Brumado, 1996.
54

aspirações do projeto de modernidade das elites intelectuais caetiteenses chocavam-se com


adversidades causadas por um contexto de crises de abastecimento, fortes estiagens e
empobrecimento da população. A dinâmica de interações com outras regiões do país que se
deu desde a povoação no século XVIII, devido a sua localização, que permitia o fluxo
constante de viajantes, tropeiros, boiadeiros, mineradores, entre outros, auxilia a compreender
que esta cidade sertaneja não estava isolada, apesar de sua aparência pacata a priori e sua
distância geográfica dos grandes centros. O mapa abaixo mostra a extensão do território da
Vila Nova do Príncipe e Santana do Cayteté, além de sua localização fronteiriça com a região
das minas.
FIGURA 03: MAPA DA VILA NOVA DO PRÍNCIPE E SANTANA DE CAYTETÉ – 1810

Fonte: http://www.caetite.ba.gov.br/a-historia/

Nos relatos de viajantes do início do século XVIII105, Caetité recebera a alcunha de


“princesa do sertão”, e era constantemente descrita como um rico empório comercial ou
celeiro agrícola para o abastecimento da região, em referência a produção algodoeira e
pecuarista desenvolvida em suas terras. Para Spix e Martius, “Caetité (Caetité ou Villa Nova
do Príncipe), [...] tem, ha vinte anos, explorado em grande escala a cultura do algodão, tendo-
se tornado por isso um dos mais ricos logares do sertão da Bahia” 106. Além disso, alguns
viajantes registraram o que consideravam aspectos de civilidade dignos de uma urbe, no
momento de sua passagem. Teodoro Sampaio que visitou a cidade em tempos de festa de reis

105
“As incursões de exploradores por sertão adentro retrataram aspectos da vida material no alto sertão da Bahia.
Os relatos trazem importantes indícios para interpretações sobre o passado: antecedentes conjunturais da
sociedade e economia de Caetité, localização de unidades de produção (fazendas, sítios, roças, povoados) e rotas
de comércio”. SANTOS, Paulo Henrique Duque. Veredas dos sertões da Bahia: economia e sociedade nos
relatos de viajantes. Estud. Soc. e Agric., Rio de Janeiro, vol. 21, n. 1, 2013, p.182.
106
SPIX, Johann Baptiste von; MARTIUS, Carl Friendrich Philipp von. Através da Bahia – Excertptos da obra
Reise in Brasiliem. Transladados a português pelos Drs. Pirajá da Silva e Paulo Wolf. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1938, p. 42 apud SANTOS, Paulo Duque. Légua tirana: sociedade e economia no alto sertão
da Bahia. Caetité, 1890-1930. 2014. 334 f. Tese (Doutorado em História Social) – Universidade de São Paulo –
Sp, 2014.
55

relatou que “Caetité apresenta aos viajantes um aspecto de corte do sertão. Há aqui uma boa e
culta sociedade, muita urbanidade e delicadeza na gente do lugar” 107
Apesar da crise socioeconômica causada nos sertões por ocasião das estiagens e de
uma nova configuração social e política oriunda do processo abolicionista e republicano,
Caetité não perdera sua relevância regional e passara a ser alvo do projeto modernizador que
emanava dos centros urbanos do país e configurava uma aspiração das elites brasileiras
inspiradas na belle époque francesa. Algumas inovações eram bem acolhidas e, em fins do
XIX e primeiros anos do XX, a cidade já contava com água encanada e luz elétrica,
observatório meteorológico, Escola Normal e Escola Americana, a Associação de Senhoras de
Caridade, os correios e telégrafos, tipografia, o Teatro Centenário que também funcionava
eventualmente como cinema, a sede da Diocese, entre outros.
Em que pese todos os elementos simbólicos dos novos tempos e todo esforço das elites
republicanas em adequar a vila a um patamar urbanizado e moderno, Caetité permaneceu com
características marcadamente rurais, dentro ou fora do perímetro urbano. Os limites tênues
entre o urbano e o rural revelavam-se na presença de animais nas estradas e permanência de
hábitos camponeses na área urbana, assim como a dinâmica de ir e vir dos moradores entre o
campo e a cidade. Abaixo, a imagem do Mercado Público, fundado em 1897, provavelmente
registrada no início do século XX, representa um desses espaços de transição.

FIGURA 04: MERCADO PÚBLICO DE CAETITÉ

Fonte: Acervo do Arquivo Público Municipal de Caetité - APMC

107
SAMPAIO, Teodoro. O rio São Francisco e a Chapada Diamantina. São Paulo: Companhia das Letras,
2002, p.220.
56

A quantidade de pessoas aglomeradas em frente ao mercado, assim como algumas


marcas incontestes de um comércio com transporte de pessoas e produtos oriundos de áreas
rurais, como carroças e carros de bois, atesta a circulação dos habitantes de diversas
localidades da região de Caetité para a área urbana, em “dias de feira”. Não apenas nesses
dias específicos o fluxo de pessoas entre o campo e a cidade acontecia, mas também por
diversas outras ocasiões, tamanha era a interdependência entre esses espaços, tanto para as
populações pobres e remediadas, quanto para ricos proprietários caetiteenses.

Muitos dos negócios realizados nas fazendas se desdobravam nas cidades. A


cidade era indispensável a expedientes mais burocráticos das transações
comerciais, a exemplo de pagamento de impostos de exportação para a
coletoria provincial ou estadual; articulação com outros fazendeiros para
envio de tropas, boiadas e dinheiro – para o Recôncavo e a capital da
província – e, ainda, pelas possibilidades de assistência médica (mesmo que
precária), jurídica, de comunicação e sociabilidade. Esses expedientes
aparecem muito freqüentemente nos livros de razão do Barão de Caetité108.

Essa dinâmica de idas e vindas já fazia-se rotineira desde os tempos da monarquia e


consequentemente, presente nas relações escravistas, permanecendo após a abolição como
verifica o estudo de Maria de Fátima Pires, indicado acima, ao investigar essas experiências
no alto sertão entre 1860 e 1920. Sob essa perspectiva, é válido considerar como a relação
entre campo e cidade refletia as relações de trabalho no alto sertão, num período de mudanças
no cenário político e econômico que, embora advindas do desmonte do sistema escravista,
conservavam muitas heranças do cativeiro. Analisando o contexto alto-sertanejo desse
período a partir da literatura de João Gumes 109, Maria Lúcia P. Nogueira, observa-se que

Nesse ir e vir campo-cidade e na imbricação dessas duas realidades, tem


relevância as relações trabalhistas com as nuances peculiares a uma
sociedade pós-abolicionista; ex escravos estavam por toda parte, buscando
rearrumar suas vidas com todas as vicissitudes impostas pela nova condição
de libertos; alguns mantiveram-se nas propriedades dos seus antigos

108
PIRES, Maria de Fátima Novaes. Fios da Vida: tráfico internacional e alforrias nos sertoins de Sima – BA
(1860-1920). São Paulo: Annablume, 2009, p.170 (grifo da autora).
109
João Antônio dos Santos Gumes, ou simplesmente João Gumes, foi o fundador do jornal A Penna e seu
principal redator. Homem de qualidades intelectuais inegáveis, além do jornal, escreveu várias peças de teatro e
romances. Fora da literatura, dedicou-se a outros afazeres como a arquitetura, a pintura, o desenho e a música.
Realizou projetos arquitetônicos, produzindo plantas e fachadas de prédios públicos e particulares, regeu
orquestras e filarmônicas, compôs partituras, manejou com maestria o violoncelo, desenhou e pintou quadros e
paisagens, fez traduções e criou o primeiro Centro espírita da região, o que lhe rendeu desavenças com a
autoritária diocese caetiteense. In: TORRES, Roney Robson Baliza. A Cidade de Luz: Imprensa, modernização
e civilidade (Caetité: 1897-1930). Dissertação de Mestrado em História Regional e Local. Universidade do
Estado da Bahia. Santo Antônio de Jesus, 2013, P. 21.
57

senhores, presos a sentimentos de fidelidade e afetividade, vivendo as


agruras do dia-a-dia com pequenas diferenças em relação ao período
anterior; outros, encontraram patrões pouco mais conscientes do novo
sentido na relação patrão-empregado; ou ainda, perambulavam a esmo,
trabalhando aqui e acolá: estavam em todos os lugares. As mudanças dessa
visão escravista, como toda mudança de mentalidades, sabemos o quanto é
lenta e quase sempre dolorosa.110

Os processos criminais analisados em nossa pesquisa revelam muito desta dinâmica


entre o campo e a cidade, sendo o número de localidades rurais como arraiais, sítios, fazendas
e povoados que foram cenário para os crimes, superior ao número de áreas urbanas na vila de
Caetité ou vizinhas (Macaúbas e Rio de Contas). Entretanto, era bastante difícil definir quais
destes eram lugares urbanizados ou predominantemente rurais Abaixo, uma lista das
localidades que foram identificadas na documentação:

TABELA 01: LISTAGEM DE LOCALIDADES DOS CRIMES NOS PROCESSOS POR TIPOLOGIA
Homicídio Defloramento Infanticídio Lesões Corporais*
 Caetité  Caetité  Macaúbas  Caetité
 Esgoto / Brejinho  Bom Jesus dos  Lagoa Grande  Lagoa Real
 Bonito Meiras  Bonito / Canabrava  Caculé
 Santa Luzia  Rio de Contas dos Farias  Piripiri (Caculé)
 Cannabrava  Bonito  Caculé  Mucambo
(Lagedo da Arouca)  Santa Luzia  Gameleira de Fora (Caldeiras)
 São José  Lagoa Real  Capivara  Lagoa do Enjeitado
 Cachoerinha (Caatinga)  Brejo Grande (Lagoa Real)
 São Sebastião  Lagoa Real  Santa Luzia  Fundão (Caetité
(Caatinga)  Macaúbas (Purgatório) Velho)
 Caculé  Umbuzeiro
 Palmeiras
 Caldeiras
 Brejinho /
Lagoinha
 Grungas
 Santa Luzia (Boa
Vista)
Fonte: Processos-crime: APEB / APMC

Entre as localidades listadas, algumas permanecem como povoados ou distritos nos


dias atuais, integrando o município de Caetité, enquanto outras emanciparam-se durante as

110
NOGUEIRA, Maria Lúcia Porto. Mulheres, história e literatura em João Gumes: Alto Sertão da Bahia,
1897-1930. São Paulo: Intermeios, 2015.
58

décadas estudadas na pesquisa e, por sua vez, outros locais já eram vilas desmembradas,
mantendo a jurisdição da comarca caetiteense na primeira metade do século XX111.
Para investigar os meios de vida dessa população de características rurais, torna-se
necessário compreender também a dinâmica das relações de trabalho e as suas formas de
sobrevivência nesse período. Em sua tese de doutorado, o professor Paulo H. D. Santos estuda
as atividades econômicas de exportação e de abastecimento de mercados internos que se
desenvolveram no alto sertão da Bahia, entre 1890 e 1930, e observa uma forte desigualdade
social e concentração de renda na região. Os inventários post mortemn apontam para uma
pequena faixa da população detentora de riquezas, pois 9,2% dos inventariados detinha 65,1%
das fortunas. Esse grupo social havia acentuado durante essas quatro décadas o volume de
seus bens, o que indica que a crise socioeconômica atingia com mais força a população pobre
e remediada, com menos possibilidades de arranjos e negociações econômicas. Ainda assim,
essa população empregava formas improvisadas de sobrevivência, oscilando desde a
ocupação de profissões temporárias até táticas como a sonegação de bens em inventários.

A população mais pobre buscou evitar a redução do patrimônio por taxas e


emolumentos cobrados pela Justiça, quase sempre onerosos para quem
possuía bem pouco. Lavradores e trabalhadores urbanos pobres do alto
sertão, ao furtarem-se do controle do fisco, omitindo bens declarados nos
arrolamentos, ou mesmo omitindo o óbito, buscavam vencer as dificuldades

111
Formação Administrativa: Sede na antiga vila de Vila Nova do Príncipe. Instalada em 05-04-1810. Elevado
à condição de cidade com a denominação de Caetité, pela Lei Provincial n.º 995, de 12-10-1867. Pela Lei
Provincial n.º 1.410, de 07-05-1874, é criado o distrito de Canabrava e anexado ao município Caetité. Pela Lei
Provincial n.º 1.998, de 12-07-1880, é criado o distrito de São Sebastião do Caetité e anexado ao município
Caetité. Pela Lei Provincial n.º 2.039, de 23-07-1880, é criado o distrito de Caculé e anexado ao município
Caetité. Pela Lei Provincial n.º 2.211, de 16-07-1881, é criado o distrito de Lagoa Rela e anexado ao município
Caetité. Pela Lei Provincial n.º 2.438, de 01-05-07-1884, é criado o distrito de Bonito e anexado ao município
Caetité. Pela Lei Provincial n.º 2.677, de 28-06-1889, é criado o distrito de Rio do Antônio e anexado ao
município Caetité. Em divisão administrativa referente ao ano de 1911, o município aparece constituído de 10
distritos: Caetité, Aroeiras, Caculé, Canabrava, Bonito, Lagoa Real, Passagem da Areia, Rio do Antônio, Santa
Luzia e São Sebastião do Caetité. Pela Lei Estadual n.º 1.365, de 14-08-1919, são desmembrados do município
de Caetité os distritos de Caculé Rio do Antônio e São Sebastião do Caculé, para constituir o novo município de
Caculé. Em divisão administrativa referente ao ano de 1933, o município é constituído de 5 distritos: Caetité,
Brejinho das Ametistas, Canabrava dos Caldeiras (ex-Canabrava), Bonito, Lagoa Real. Não figurando o distrito
de Aroeiras, Caculé, Passagem da Areia e Santa Luzia. Em divisões territoriais datadas de 31-XII-1936 e 31-XII-
1937, o município é constituído de 6 distritos: Caetité, Brejinho da Ametista, Canabrava dos Caldeiras (ex-
Canabrava), Bonito, Lagoa Real e Junco Grande. Pelo Decreto-lei Estadual n.º 11.089, de 30-1938, o distrito de
Canabrava dos Caldeiras passou a denominar-se Caldeiras e o distrito de Junco Grande a chamar-se Maniassu. O
município de Caetité passou a grafar Caitité. No quadro fixado para vigorar no período de 1939-1943, o
município está grafado Caitité e é constituído de 6 distritos: Caitité (ex-Caetité), Brejinho das Ametistas,
Caldeiras (Canabrava dos Caldeiras), Bonito, Lagoa Real e Maniassu (ex-Junco Grande). Pelo Decreto-lei
Estadual n.º 141, 31-12-1943, confirmado pelo Decreto Estadual n.º 12.978, 01-06-1944, o distrito de Bonito
tomou a denominação de Igaporã. Pelos mesmos decretos estaduais o município de Caitité voltou a ser grafado
como Caetité. Em divisão territorial datada de 1-VII-1950, Caetité é constituído de 6 distritos: distritos: Caetité
(ex-Caitité), Brejinho das Ametistas, Caldeiras, Igaporã (ex-Bonito), Lagoa Real e Maniassu. Pela Lei Estadual
n.º 556, de 25-05-1953, é desmembrado do município de Caetité o distrito de Igaporã. In:
https://cidades.ibge.gov.br/brasil/ba/caetite/historico
59

sociais e econômicas de uma região em que a concentração de renda


impusera à ampla maioria da população condições mínimas de
sobrevivência.112

Nem sempre tais tentativas eram bem-sucedidas, embora elas revelem algumas das
muitas formas de sobrevivência das camadas populares. Por sua vez, os registros de
lançamentos de impostos municipais sobre profissões e serviços auxiliam identificar o perfil
das ocupações de trabalho do então distrito de Caetité. A tabela abaixo, produzida por Paulo
Santos revela alguns ofícios urbanos e rurais desempenhados pelos habitantes da sede de
Caetité, incluindo também os distritos de Brejinho das ametistas e Lagoa Real.

FIGURA 05: TABELA DE PROFISSÕES E SERVIÇOS EM CAETITÉ

FONTE: SANTOS, Paulo Henrique. Légua tirana: sociedade e economia no alto sertão da Bahia. Caetité, 1890-
1930. 2014. 334 f. Tese (Doutorado em História Social) – Universidade de São Paulo – SP, 2014, p. 305

112
SANTOS, Paulo Duque. Légua tirana: sociedade e economia no alto sertão da Bahia. Caetité, 1890-1930.
2014. 334 f. Tese (Doutorado em História Social) – Universidade de São Paulo – Sp, 2014, p.56.
60

Podemos perceber que a tabela informa apenas profissões masculinas, o que indica
que grande parte das mulheres trabalhadoras ocupavam postos informais. Esses registros não
permitem que localizemos as profissões isentas de impostos e que, por seu caráter informal,
abrangiam uma parcela razoável da população pobre caetiteense, se considerarmos a presença,
sobretudo de mulheres, como lavadeiras, costureiras, engomadeiras, jardineiras, empregadas
em serviços domésticos, em outras fontes. Como afirma Maria Odila L. S. Dias, “as mulheres
pobres tendiam a exercer sua sobrevivência em setores menos rentáveis da economia,
dificilmente controlados pelo fisco”113. Assim, o trabalho dessas mulheres caetiteenses precisa
ser esquadrinhado nas entrelinhas de documentações em que aparecem desempenhando
atividades cotidianas nos espaços públicos ou privados, nem sempre tidas como
“economicamente ativas”, ainda que essas fontes retratem apenas fragmentos de momentos
excepcionais de suas vidas, como nos processos criminais.
É nesse contexto socioeconômico e político em Caetité que emergiram, ou melhor, se
inseriram ideais de modernização e progresso que estavam na base do projeto de civilidade de
suas elites intelectuais. Para transformar a provinciana cidade em uma urbe sertaneja fazia-se
imprescindível, não apenas reformas urbanas ou a implementação de equipamentos modernos
de transporte e comunicação, mas todo um aparato de controle social e disciplinarização das
camadas mais pobres, cujos hábitos incivilizados eram vistos como empecilhos aos novos
tempos.
No bojo de um projeto higienista114 que marcou as reformas urbanas nas primeiras
décadas do século XX no Brasil, sobretudo, nos grandes centros, os discursos de ordem
médica, aliados aos discursos jurídicos, desempenharam papel importante na estratégia de
disciplinarização da sociedade. Tais ideais adentraram os sertões da Bahia em virtude da
formação de jovens bacharéis médicos e advogados nas faculdades de direito e medicina.

113
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e Poder em São Paulo no século XIX. São Paulo:
Brasiliense, 1995, p.68.
114
De um modo geral, os higienistas visavam à implantação de novos valores e costumes – um ethos moderno -,
promovendo o trabalho assalariado, o mercado, incluindo-se a oposição a religiosidade popular; e, para tanto, era
preciso começar pela higienização da família. Os reformadores “pretendiam substituir as tradições do
autoritarismo patriarcal, que viam como próprias da sociedade agrária oligárquica, por um sistema democrático
mais amplo composto por famílias nucleares higienizadas”. Nas décadas de vinte e trinta do século XX
ocorreram intensos debates, marcados pela presença das ideias eugênicas sobre a construção do ideário de um
Brasil moderno; nessa problematização mais geral, estavam também presentes os temas sobre sexualidade,
direitos das mulheres, corpo feminino e raça. RAGO, Elisabeth Juleska. Outras falas: feminismo e medicina na
Bahia (1836-1931). São Paulo: Annablume: Fapesp, 2007. p.153
61

Muitos deles, filhos de abastadas famílias caetiteenses, exerceram também importantes papéis
no cenário político da região, marcada pelo predomínio de oligarquias coronelísticas 115.
A título de exemplo, é possível citar um dos mais influentes políticos do alto sertão na
Primeira República. Deocleciano Teixeira 116, médico formado pela Faculdade de Medicina da
Bahia, em 1870, teve sua tese 117 dedicada a temática da “asthma” (asma) na dissertação, mas
com proposições das sessões médicas, cirúrgica e acessória referentes a “higiene da mulher na
gravidez”, “asfixia de recém-nascidos” e “afirmação da ocorrência de estupro”,
respectivamente. Assim como ele, entre as décadas finais do século XIX e as iniciais do
século XX, outros membros da elite intelectual e política caetiteense, exercendo ou não a
profissão, contribuiriam para a propagação de ideias de civilidade no alto sertão baiano.
As ideias e práticas higienistas importadas da Europa, mas com as devidas
especificidades em contato com a realidade social brasileira, encontraram solo fértil em uma
Caetité que aspirava “ares de progresso”, mas esbarravam nos costumes e hábitos
“provincianos” de sua população. Afinal, as estratégias sanitárias implantadas em todo país
destinavam-se a “desodorização do espaço urbano”, para além das reformas na estrutura
urbanística. O poder médico rompia as fronteiras entre o público e o privado e vislumbrava no
modo de vida das classes mais pobres um sério risco a manutenção da saúde e da higiene,
sobretudo, diante de sua contundente resistência aos novos valores.
Os surtos de epidemias que assolaram o país no período não deixaram de atingir a
região de Caetité. De fato, no livro dos registros de posturas municipais encontra-se um
“Registro de decreto do Intendente do Município” de três de março do ano de 1908 em que,
devido a uma “invasão” de varíola no município, são estabelecidos alguns postos de
observação, expurgo e isolamento nas entradas de Caetité e imediações. Observamos assim
que “é nesse contexto que o saber médico-higienista, no Brasil, influenciado pelas teorias

115
Como afirma Guimarães, desde o século XIX “os Sertões de Cima aparecem como palco de disputas políticas
e o lugar onde o poder dos coronéis estendia-se por todas as esferas do poder público – uma atmosfera que durou
pelo menos até o fim da Primeira República”. In: GUIMARÃES, Eudes Marciel Barros. Um painel com
cangalhas e bicicletas: os (des)caminhos da modernidade no alto sertão da Bahia. (Caetité, 1910-1930)
Dissertação de mestrado. UNESP-Franca, 2012, p. 25.
116
Patriarca dos Teixeira, uma das mais tradicionais e influentes famílias de elite do alto sertão da Bahia,
Deocleciano “formou-se em Medicina pela Faculdade da Bahia, serviu como médico voluntário na Guerra do
Paraguai e após a formatura trabalhou alguns anos como médico da Marinha. Depois disso, mudou-se para a
cidade mineira de Grão Mogol, onde clinicou por algum tempo, até retornar para a Chapada Diamantina”
AGUIAR, Lielva Azevedo. Agora um pouco de política sertaneja: a trajetória da família Teixeira no alto
sertão da Bahia (Caetité 1885-1924). Dissertação de Mestrado. Universidade do Estado da Bahia. Campus V.
Santo Antônio de Jesus, 2011, p.16. Longe da medicina, consolidou-se economicamente na cidade de Caetité e
construiu estrategicamente uma carreira política exitosa durante a Primeira República.
117
Acervo da Faculdade de Medicina da Bahia - FAMEB
62

médicas francesas, elabora estratégias ainda pontuais de eliminação dos focos considerados
responsáveis principais pela emergência dos surtos epidêmicos”118.
Um dos principais veículos de difusão desses ideais higienistas, bem como dos valores
moralizantes do projeto das elites republicanas era o Jornal A Penna119. Nas páginas desse
periódico caetiteense, que circulou entre 1897 e 1943, afloravam inúmeras matérias que
traduziam um projeto de necessidade de ordenamento da sociedade, bem como o temor
representado pelos sertanejos pobres representados por grupos de migrantes, mendigos,
crianças abandonadas, prostitutas, ciganos, revoltosos, vadios, criminosos, mães desnaturadas,
entre outros, que esporadicamente tornavam-se notícia. Eram representações criadas por uma
elite intelectual que aparentava preocupação e revelava temor com a presença desses sujeitos,
e cujo controle social fazia parte de seu projeto político de manutenção do poder. Adotamos
aqui esse conceito, entendendo que “as representações do mundo social assim construídas,
embora aspirem à universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre
determinadas por interesses de grupos que as forja”.120
Em tom de preocupação com as epidemias que assolavam a região e a falta de
cuidados com questões higiênicas pela população, o jornal tornava-se um verdadeiro panfleto
para a instalação de um posto higiênico na cidade. A partir de 1915, os apelos se tornariam
mais veementes e constantes, até sua tão saudada inauguração em agosto de 1927.

POSTO DE HYGIENE MUNICIPAL


Está marcada para domingo, 21, a instalação do Posto de Hygiene
Municipal, sob a chefia do Dr. Luiz Ribeiro Sena.
Este melhoramento que vae ter esta cidade, é sobremodo de grande
necessidade, não somente pela vigilância que vae manter aquela repartição
contra as moléstias contagiosas, de verminoses, mas também, e sobretudo,
em beneficio da educação hygienica de que o nosso povo mal conhece os
primeiros passos.121
A intallação do Posto de Hygiene Municipal
Um grande melhoramento para o sertão
118
RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar. Utopia da cidade disciplinar – Brasil 1890-1930. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1985, p.168.
119
“O Jornal A Penna, editado no município de Caetité, circulou entre os anos de 1897 e 1943. De publicação
quinzenal, se dizia o “orgam dos interesses commerciaes, agricolas e civilizadores do alto sertão”. Era impresso
na Typographia d’A Penna, de propriedade de João Antonio dos Santos Gumes, jornalista, romancista e
dramaturgo, que exerceu os cargos de escrivão, coletor estadual e federal, secretário e tesoureiro da Intendência
Municipal. Atuou em diversos governos municipais. Como afirmou em 1912, esteve “[...] desde 1889
intimamente ligado ao serviço e negócios municipaes; assistiu, n’ella collaborando, a reorganisação do
municipio após a Republica e vio a evolução e melhora de tudo isso acompanhando-as dia a dia” [...]. A Penna,
anno I, n. 23, nov. 1912, p. 1. Com a sua morte em 1930, o jornal circulou sob a direção do seu filho Sadi
Gumes.” SANTOS, Paulo Duque. Légua tirana: sociedade e economia no alto sertão da Bahia. Caetité, 1890-
1930. 2014. 334 f. Tese (Doutorado em História Social) – Universidade de São Paulo – Sp, 2014, p.17.
120
CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Lisboa: Difusão Editora, 1988,
p.17.
121
APMC. A Penna, 18/08/1927, p.02, nº 125, Anno V
63

Após as obras de adaptação e necessário asseio no prédio destinado pela


Intendencia, instalou-se, no dia 21 do corrente, o POSTO DE HYGIENE
MUNICIPAL DE CAITETÉ.
O acto da instalação, revestido da maior solenidade, deu-se às dez horas,
presentes todas as autoridades locaes, intendente deste Município,
representantes de algumas municipalidades visinhas, grande número de
cavalheiros, senhoras e senhoritas, representantes da imprensa e de todas as
classes sociaes. [...]
O Posto que ora se fundava teria maior amplitude – a destruir, por meio de
eficientes medidas prophylaticas, os focos do mal, instruir o povo dos seus
perigos e da sua fácil propagação, incutir-lhes hábitos de hygiene por meio
de palestras, conferencias, artigos e folhetos, enfim, tudo fazer no sentido de
sanear o sertão122.

O discurso do A Penna enfatizava o Posto Higiênico não apenas como espaço de


prevenção e combate as doenças, mas instrumento pedagógico para a educação sanitária da
população sertaneja que “mal conhecia os primeiros passos”. Afinal, atribuía-se a população
mais pobre e inculta a responsabilidade pela eclosão das epidemias. Além de controlada pelo
poder jurídico, era vigiada pelo poder médico que se consolidava. Por sua vez, enquanto
expressão dessa implementação de novos hábitos, o jornal que costumeiramente saudava a
chegada de médicos e advogados, seja para assumirem postos fixos ou apenas de passagem,
apresentava um número cada vez maior de anúncios de remédios, farmacêuticos, dentistas,
médicos e serviços jurídicos. De algumas tímidas propagandas em canto de página em 1915,
dez anos depois, o A Penna oferece páginas inteiras para os anúncios.

FIGURA 06: PÁGINA DO JORNAL A PENNA DEDICADA AOS ANÚNCIOS

Fonte: APMC: A Penna, 08/1924, p. 05. CD 01.

122
APMC. A Penna, 31/08/1927, p.02, nº 126, Anno V
64

Além de inúmeros medicamentos, anunciava-se clínicas destinadas a saúde da mulher.


A ênfase dada às inovações da medicina era assim, um dos focos do jornal, que auxiliava na
divulgação desses novos serviços nos sertões baianos. Todavia, nem sempre as benesses
farmacêuticas incorporavam-se ao cotidiano da maioria da população caetiteense,
majoritariamente rural e fortemente marcada pelos saberes populares de cura. Em alguns
processos criminais, percebemos a falta de profissionais da área de saúde para realização de
exames de corpo delito, e até mesmo comerciantes e lavradores assumindo o papel de
peritos123.
Como forma de limitar e descredibilizar os conhecimentos populares, propagandas do
jornal eram instrumentos utilizados. O anúncio a seguir, publicado no jornal A Penna, tem por
objetivo além de propagandear a Cafiaspirina enquanto medicamento de eficácia para
amenizar dores, combater a medicina popular representada pela benzedeira tia Joaquina, numa
tentativa de “civilizar” os hábitos da população.

FIGURA 07: ANÚNCIO DE CAFIASPIRINA NO JORNAL A PENNA

Fonte: APMC - CD 01 Jornal A Penna, 06/02/1932. p.3124

123
Trataremos desse aspecto no segundo capítulo.
124
“As representações, que o autor do anúncio fez sobre as benzedeiras possibilitam pensar nas relações sociais
em Caetité, e as estratégias utilizadas por diferentes grupos sociais no tratamento da cefaléia. Além da imagem
que possivelmente é posta como um texto para ser lido por grupos não alfabetizados, cujo percentual em Caetité
no período de 1930 era alarmante, o anúncio, também, recorre ao escrito para anunciar que “a tia Joaquina
65

Observemos no anúncio do medicamento a representação de duas mulheres. Uma é a


moça branca acometida pela enxaqueca, deitada em sua cama. A outra é a “preta velha”, tia
Joaquina, uma mulher negra conhecedora de rezas e benzeduras, a quem a senhora recorreu
em sua doença. Opõem-se assim os conhecimentos tradicionais das mulheres, vistos como
“crendices e superstições”, à tentativa do discurso médico aliado a imprensa de combater
essas práticas e difundir produtos farmacêuticos.
Vale ressaltar que o curandeirismo representou uma prática criminalizada nas
primeiras décadas da república, sofrendo diversas perseguições. Adriana Sacramento, em seu
estudo sobre as artes e práticas curativas em Caetité entre os anos de 1897 e 1940, identifica
que diversos habitantes da cidade recorriam a estes tratamentos enraizados nas tradições oral e
religiosa, mesmo diante da divulgação das técnicas da medicina acadêmica e do combate
ativo a tais práticas, principalmente pela imprensa. Ressalta assim que

Inúmeras pessoas procuravam pelos serviços dos curadores; era costume


grupos rurais e migrantes recentes que habitavam a periferia da cidade
recorrem a antigas tradições de tratamento com plantas, raízes, folhas,
entrecasco, cascas de árvores, erva de princípios ativos variados e
excrementos de animais para prevenir, aliviar e tratar dos incômodos
enfrentados no cotidiano.125

De fato, a preocupação das elites caetiteenses com a necessidade de ordenamento dos


hábitos da população mais pobre fazia parte da estratégia de inserção da cidade em um projeto
de “modernização e progresso”. Assim, as ações do poder público muitas vezes colidiam com
os “valores e demandas cotidianas de amplos segmentos sociais, habituados a improvisar
estratégias de sobrevivência”, como ressalta Paulo Henrique Santos em sua análise sobre a
memória e as dimensões da vida urbana em Caetité, entre 1940 e 1960. Nesse sentido,

As posturas municipais [...] possibilitam perceber as intenções das esferas


públicas do poder de forma a moldar o uso do espaço urbano e sua
correspondência com a imposição de uma memória oficial. Adotadas

prontifica-se em fazer rezas e benzeduras com galhos de arruda e alecrim”. A Benzedura utilizando de ervas,
raízes, plantas no cuidado com a saúde, era vista por grupos letrados e profissionais da saúde como práticas de
grupos sociais qualificados como, incultos, ignorantes, iletrados e outras designações”. (SACRAMENTO, 2012,
p. 60)
125
SACRAMENTO, Adriana de Jesus. Artes e Práticas Curativas em Caetité - BA (1897-1940). Dissertação
de Mestrado em História Regional e Local. Universidade do Estado da Bahia. Santo Antônio de Jesus, 2012,
p.33.
66

genericamente em todo o Império, e mantidas durante as primeiras décadas


da República, as posturas nem sempre dão a certeza de sua aplicabilidade. 126

O registro de posturas municipais de Caetité, datado entre 1841 e 1908, perpassou


assim pelos períodos imperial e republicano e, como supõe Paulo H. D. Santos, é possível que
tenha existido outro código posterior a esse e anterior ao de 1948, entretanto, não se encontra
em nenhum acervo conhecido. O código passou por algumas alterações e revisões até 1890,
embora muitos artigos tenham sido mantidos. Em geral, as posturas orientavam o uso dos
espaços públicos da cidade, incluindo a proibição da circulação de animais nas ruas, a
lavagem de roupas no rio Alegre, a realização de jogos; regulamentavam as medidas e o prazo
para edificações, obrigavam a limpeza das testadas e o calçamento da frente das casas e
proibiam também a realização de festejos populares como o entrudo (espécie de carnaval). A
postura nº 69 estabelecia:

É prohibido andarem pelas ruas da villa e povoações pessoas embriagadas, e


os loucos de toda casta, dos que forem encontrados, os primeiros serão
recolhidos à cadeia, onde estarão oito dias, e os segundos serão remettidos
ao recolhimento da casa de caridade, que mais conveniente for à custa do
cofre da câmara127.

Além de procurar ordenar a sociedade preservando a “tranquilidade da vila” ao livrá-la


de qualquer tumulto provocado por hábitos populares, as posturas disciplinavam o uso da
cidade no sentido de enquadrá-la aos padrões da modernidade, que viam no modelo urbano a
expressão dos novos tempos, o projeto de civilidade tão ambicionado pela elite brasileira.
Seria necessário assim, afastar costumes do campo ainda mantidos pelos habitantes de
Caetité. “As administrações municipais tentaram coibir a permanência na cidade de práticas
ligadas à vida no campo, criando decretos e posturas que proibiam o desenvolvimento de
atividades vistas como indesejáveis a uma cidade que se urbanizava” 128.
Obviamente a existência de tais posturas por si só indicava a continuidade de práticas
populares que subvertiam os modelos de civilização propostos pela classe dominante.
Legislações e imposições jurídicas sozinhas não foram suficientes para anular a ocorrência de
contravenções que afloram nos processos criminais do período, nem mesmo com o poder

126
SANTOS, Paulo Henrique Duque. Cidade e Memória: dimensões da vida urbana. Caetité, 1940-1960. 2001.
203 f. Dissertação (Mestrado em História Social) – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2001, p.29.
127
APMC. Fundo: Câmara Municipal. Série: Registros de Posturas. Caixa 04, Maço 04.
128
SANTOS, Paulo Henrique Duque. Cidade e Memória: dimensões da vida urbana. Caetité, 1940-1960. 2001.
203 f. Dissertação (Mestrado em História Social) – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2001, p.55.
67

policial. Como será perceptível na análise dos processos criminais, o discurso jurídico valia-se
do aparato policial para aplicação efetiva dos novos regulamentos e penalidades.

1.4 Encruzilhada de lutas: Processos criminais como instrumento para escrita da


História das Mulheres

Enquanto fonte primordial para nosso estudo acerca da criminalização de mulheres


pobres em Caetité, os processos criminais constituem um complexo manancial de tramas
sociais e revelam, mediados pelos filtros da pena do escrivão, os horizontes de expectativas
dos sujeitos que emergem em suas páginas. Uma verdadeira “encruzilhada de muitas lutas”,
como conceitua Sidney Chalhoub ao analisar o cotidiano dos trabalhadores no Rio de janeiro
da belle époque através dos processos criminais. Por meio deles será possível trazer a luz a
urdidura das histórias de mulheres da classe trabalhadora que “caíram” nas malhas da justiça
e, tecer assim uma narrativa que busque contemplar aspectos históricos de suas experiências
de gênero, classe e raça. Para Chalhoub,

Percebe-se, então, a intenção de controlar, de vigiar, de impor padrões e


regras preestabelecidas a todas as esferas da vida. Mas a intenção de
enquadrar, de silenciar, acaba revelando também a resistência, a não
conformidade, a luta: nesse sentido, a leitura de cada processo é sempre uma
baforada de ar fresco, de vida, de surpresa, baforada esta que pode vir em
forma de carta de amor, de xingamento, de ironia, ou menos poeticamente,
de violência policial129.

O processo criminal é uma ação judicial, de caráter penal, no qual se constrói uma
narrativa jurídica a partir da quebra de uma norma legal, ou seja, viola-se um artigo da
legislação penal, obtendo-se um crime. Neste documento, onde tanto a vítima quanto a Justiça
podem ser autoras da denúncia, os atores sociais envolvidos buscam, por meio de seus
discursos, formular uma verdade jurídica para absolvição ou condenação dos réus. Por sua
vez, a estrutura de um processo pode variar de acordo com a tipologia criminal a que se
refere, sendo constituída geralmente pela denúncia, inquérito, sumário de culpa, auto de corpo
de delito, qualificação do acusado, interrogatório das testemunhas, sessão do júri e sentença
do juiz.
O presente estudo propõe o desafio de analisar processos que envolvem quatro
tipologias documentais distintas: defloramento, homicídio, infanticídio e lesões corporais, em

129
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, Lar e Botequim: o Cotidiano dos Trabalhadores no Rio de Janeiro da
Belle Époque. São Paulo, Brasiliense, 1986, p.31.
68

que mulheres figurem como vítimas/ofendidas ou acusadas. Entre os processos localizados no


Arquivo Municipal de Caetité e Arquivo Estadual da Bahia, percebemos a ocorrência de
inúmeros crimes nas localidades pertencentes ou próximas à Caetité e, por sua vez, a tentativa
de coibição dos mesmos enquanto forma de controle social. Entretanto, além dos discursos
médico-legais e jurídicos presentes nesses documentos, que constituíam instrumentos de
disciplina e moralização para o projeto de modernidade republicano, além da punição de
práticas desviantes, entendemos que o recurso a justiça figurava entre as táticas de resistência
possíveis para a população mais pobre na região do alto sertão da Bahia.
Dessa forma, a necessidade de conciliar uma análise quantitativa ao estudo qualitativo
faz-se imprescindível para nossa pesquisa, identificando elementos de ordem serial na
documentação aliados a complexidade das histórias que se desenrolam no cenário das
primeiras décadas da República. A tabela abaixo traz, em cada década, o número de processos
analisados e as tipologias criminais abarcadas pelos mesmos.

TABELA 02: PROCESSOS CRIMINAIS ANALISADOS POR DÉCADAS

CRIME
1890- 1900- 1910- 1920- 1930- 1940-
TOTAL
1899 1909 1919 1929 1939 1945
DÉCADA
HOMICIDIO 1 0 2 4 1 2 10
INFANTICIDIO 2 1 3 3 0 1 10
DEFLORAMENTO 2 2 2 3 11 2 22
LESÕES CORPORAIS 3 0 1 2 2 1 9
51
Fonte: Arquivo Público Municipal de Caetité e Arquivo Público do Estado da Bahia: Processos Crime /
Judiciário

Ressaltamos que, no intuito de perscrutar a presença das mulheres enquanto vítimas ou


acusadas, selecionamos no universo de processos de homicídio dos arquivos municipal e
estadual, aqueles em que elas figuravam nessas posições entre 1890 e 1945. São crimes que
envolvem questões afetivas, rixas familiares, prostituição e um cotidiano de violência
estruturante nas relações entre homens e mulheres sertanejas. Por sua vez, o número de
processos de infanticídio identificados não deve ser subestimado, em virtude dessa prática
nem sempre chegar as malhas da justiça, sobretudo, em comparação ao volume de processos
em outros centros populacionais da Bahia. Em relação aos crimes catalogados enquanto
defloramento, eles incluem todos os processos com esta nomenclatura mesmo após as
69

alterações no código penal130, afinal o primeiro processo com a tipologia “sedução” nos
arquivos data de 1949. Tal peculiaridade denota que a aplicação das mudanças implementadas
pelo novo CP não foi imediata, assim como a permanência da mentalidade que considerava a
dimensão física em detrimento da moral, nestes crimes.
Abrimos um parêntese, no transcorrer da pesquisa, para incluir alguns processos
classificados enquanto “lesões corporais”, pois os mesmos sinalizavam para um cotidiano de
violências para as mulheres nos espaços público e privados, além de nos auxiliar a
compreender aspectos relevantes das relações afetivas e de trabalho das mulheres que
figuraram nestes processos, ainda que as mesmas não fossem majoritariamente as
protagonistas das narrativas.
Torna-se difícil estabelecer uma relação demográfica entre o número de processos
analisados por décadas – entre 1890 e 1945 – e o total da população caetiteense deste período,
visto que não foi encontrado um recenseamento municipal que contemple todas as décadas
abarcadas pela pesquisa. Ainda que consideremos que a população total em 1892
correspondia à um número de 24.555 habitantes, e no ano de 1924 tenha alcançado 42.513131
habitantes, uma estimativa coerente deve ponderar o grande número de desmembramentos do
território, com a emancipação de muitos distritos, além do constante fluxo migratório que
marcou o período do início do século XX. Todavia, ainda que população feminina em 1924 –
22.160 mulheres – fosse numericamente superior à masculina, que compreendia 20.353
homens, o número de processos envolvendo homens, sobretudo, na condição de réus ou
mesmo de vítimas, é maior que aqueles onde as mulheres figuram nestas posições. Crimes
como furto/roubo, homicídio, lesões corporais, calúnia/difamação, entre outros, parecem
compor um universo masculino, do qual as mulheres, somente fazem parte como testemunhas,
informantes ou pivô dos delitos. A leitura atenta das fontes, no entanto, nos apresenta uma
atuação muito mais ativa das mulheres nos meandros da criminalização judicial.
Em relação ao alto sertão da Bahia, o uso de processos criminais para investigar,
problematizar e ressignificar experiências, narrativas e trajetórias de sujeitos até então
invisibilizados pela memória oficial, tem ampliado os horizontes de nossa jovem e promissora
historiografia. História da escravidão e do pós-abolição, criminalização de práticas como
curandeirismo, perspectivas das relações de gênero, classe e raça, rixas e querelas políticas,

130
O fato de processos posteriores a 1940 estarem sob a tipologia “defloramento” não implica necessariamente
que tais processos foram julgados ou classificados nos artigos e capítulos do código anterior, o que será tratado
mais adiante.
131
Revista do Instituto Geográphico e Histórico da Bahia, Bahia, nº58, 1932, p. 180.
70

histórias familiares, entre outros, atribuem novas cores às pesquisas sobre Caetité. Em relação
à utilização dessa fonte nos estudos de escravidão, M. F. N. Pires afirma que

O auto-criminal é um material singular, por captar e registrar as nuanças e


tensões sociais que envolveram variadas regiões subordinadas ao regime de
trabalho escravo. Mostram-se valiosos para a análise dos crimes, dos seus
mecanismos impulsionadores e possibilitam reconstituições da vida social.
Apontam para possíveis significados que dela fizeram os sujeitos envolvidos
em situações tidas como infratoras132.

Dessa forma, em virtude da localização temporal de nosso trabalho abranger também


as décadas do pós-abolição, além de contemplar uma região em que libertos e escravos, bem
como seus descendentes, conviveram e partilharam experiências, as percepções das rupturas e
permanências em relação ao cativeiro são fundamentais para análise dessas fontes.
No que diz respeito a história das mulheres e relações de gênero, os processos-crime
são marcados por discursos que reproduziam os padrões sexuais normativos para homens e
mulheres na sociedade, sob a ótica da moral burguesa. Entretanto, revelam em suas
entrelinhas, outros papeis de gênero redefinidos pelas mulheres de classes populares. Os
fragmentos das histórias dessas mulheres, ainda que no momento excepcional do julgamento,
permitem desmistificar imagens cristalizadas de suas ações. Assim,

Apesar do fato presente da dominação ideológica, o que explica muitos dos


traços comuns existentes entre mulheres situadas antagonicamente na
estrutura social, as mulheres das camadas populares apresentam também
certas características próprias, padrões específicos, ligados às suas condições
de vida.133

É no interior das lutas cotidianas pela sobrevivência, encenadas no contexto dos


processos criminais que percebemos as singularidades das vidas de mulheres pobres em
Caetité, entre 1890 e 1945. As vicissitudes que marcaram as narrativas de criminalização e
resistência desses sujeitos remontam ao contexto de uma sociedade escravista e patriarcal, que
abria as portas para uma nova ordem capitalista, mas conservava e aprofundava estruturas
oligárquicas. Descortinar suas histórias é também desvendar novos aspectos da sociedade
alto-sertaneja.

132
O crime na cor: escravos e forros no alto sertão da Bahia (1830-1888). São Paulo, SP: Annablume, FAPESP,
2003, p.22 (grifo da autora).
133
SOIHET, Rachel. Condição feminina e formas de violência: mulheres pobres e ordem urbana, 1890-1920.
Rio e Janeiro: Forense Universitária, 1989, p.10-11.
71

CAPÍTULO 02

DO CATIVEIRO À PENA DO ESCRIVÃO: MULHERES POBRES E NEGRAS NOS


PROCESSOS CRIMINAIS

Em abril de 1896, na localidade rural Piripiri (Caculé), Rozenea Maria de Jesus,


denominada em um processo de lesão corporal como “uma negra velha”, foi espancada pelo
vizinho Marcolino José Gonçalves, após se envolverem em uma contenda devido a
negociação do preço de um porquinho 134. Trinta e cinco anos depois, em meados de 1931, na
sede da comarca de Caetité, a menina Ercínia Leone da Conceição, de dezesseis anos, acusada
pela patroa de roubar carne de uma panela, foi vítima de uma surra “de cacetadas” dada por
Girmina, esposa do então juiz de direito da cidade 135, para a qual prestava serviços domésticos
em troca de alimento e moradia para si e para sua irmã mais nova 136.
O intervalo de tempo, que permeia ambos os crimes de lesões corporais relatados
acima, revela que as relações escravistas de poder, hierárquicas e violentas, permaneceram
por muitas décadas como marcas indeléveis nas vidas de mulheres pobres e negras e
conservam-se na raiz de uma sociedade brasileira patriarcal e racista. No primeiro caso
relatado, a violência de gênero se sobrepõe à de raça e de classe, pois trata-se de um homem e
uma mulher do mesmo extrato social, enquanto no segundo caso, a violência de classe/raça
era imperativa, pois envolvia mulheres de categorias sociais diferentes. A violência provocada
por Girmina, ao exercer seu poder enquanto mulher branca e rica, espancando a jovem
Ercínia, tratava-se também de uma violência intragênero. Afinal, as hierarquias de classe e
raça sobrepunham qualquer possibilidade de “solidariedade feminina” na relação entre patroa
e empregada.
Ainda que não bastasse para contar suas histórias, a violência perpassou as relações
das mulheres negras antes e depois da abolição da escravidão no Brasil. Relações essas que se
desenvolveram tanto no espaço privado quanto no espaço público, tanto em zonas rurais como
urbanas, ainda que apresentem nuances singulares. Sobre a atuação das mulheres negras no
espaço público, Bebel Nepomuceno afirma que

134
APEB. Seção Judiciário. Processo-crime. Ano: 1896. Série: Lesões Corporais. Est. 2, cx. 70, doc. 02.
135
O juiz em questão era Antonio Bernardino de Almeida Filho, juiz de direito da comarca de Caetité, que
assumiu a condução do processo da própria esposa, e faz ao adjunto de promotor o arquivamento do inquérito
em 1931.
136
APMC. Série: Autos Crimes – Sub série: Lesões Corporais. Data-limite 1918-1968. Caixa: 77. Maço 01.
72

Às mulheres negras não coube experimentar o mesmo tipo de submissão


vivido pelas mulheres brancas de elite até inicios do século XX. Tampouco
seu espaço de atuação foi unicamente o privado, reservado às bem-nascidas,
uma vez que, pobres e discriminadas, se viram forçadas a lançar mão de uma
gama de estratégias para fazer frente aos desafios cotidianos. [...] Ao
contrário do prescrito para a mulher idealizada da época, as negras
circulavam pelas ruas, marcando a seu modo presença no espaço público. 137

A presença e atuação das mulheres negras nestes espaços públicos e privados, já


evidenciada em alguns estudos, ainda que invisibilizada na memória oficial, não se dava de
modo imperceptível para as autoridades e pela sociedade da época, e tampouco escapava aos
mecanismos de imposição da ordem republicana e pós-escravista. A violência assim,
constituía uma faceta de suas relações e, os fragmentos das histórias de mulheres como
Rozenea, Ercínia e muitas outras, chegaram até nós somente quando estas caíram, de algum
modo, nas malhas da justiça.
Vale ressaltar que, embora não constituam o corpo documental prioritário desta
pesquisa, os processos-crime classificados como lesões corporais são de grande importância
aqui para compreensão de diversos elementos das épocas e espaços estudados, sobretudo, por
apresentarem diversas informações acerca do cotidiano sertanejo, e por envolverem em suas
narrativas muitas mulheres que figuravam nesses espaços, como vítimas, autoras ou
testemunhas de inúmeras violências. Nesse sentido, os nove processos criminais dessa
tipologia consultados perpassam o nosso diálogo com os demais delitos, guardando inclusive,
muitas semelhanças com os processos de homicídio.

2.1. Mulheres Pardas: Entre o silêncio da cor e o estigma da mestiçagem

“A sociedade frequentemente impõe silêncios à história; e esses silêncios são tão história
quanto a história”. Marc Ferro138

A reconstituição de narrativas, ainda que fragmentárias, sobre mulheres negras do alto


sertão da Bahia, do pós-abolição às primeiras décadas do período varguista, enfrenta os
entraves da invisibilidade e do silenciamento. Silêncios presentes não apenas na memória
oficial cristalizada, mas nos discursos e documentos da época. Afinal, a própria construção de
uma identidade sertaneja mestiça para as localidades interioranas, onde imperava com mais

137
NEPOMUCENO, Bebel. Mulheres Negras: Protagonismo ignorado. In: PINSKY, Carla B. PEDRO, Joana
Maria. Nova História das Mulheres no Brasil, 2013, p.383
138
FERRO, Marc. A história vigiada. São Paulo: M. Fontes, 1989.
73

naturalidade os mecanismos de uma suposta democracia racial, contribuía para este


deliberado “apagamento da cor”139.
Então, que significados teria ser uma mulher negra no alto sertão da Bahia entre 1890
e 1945? Que experiências essas mulheres compartilhavam e como nos permitem compreender
a sociedade em que viveram? É preciso considerar que o termo “negra” aqui emerge enquanto
necessidade acadêmica e política, pois este não aparece com muita frequência nas fontes
oficiais, sendo mais comuns os termos “preta” e “parda” devido ao fato de que, segundo
Antônio Sérgio Guimarães, a categoria “cor” estava muito mais presente em termos de
classificação social durante a constituição do estado nacional brasileiro do que a categoria
“raça”. No entanto, em sua crítica ao uso desta categoria, o autor afirma

“cor” não é uma categoria objetiva, cor é uma categoria racial, pois quando
se classificam as pessoas como negros, mulatos ou pardos é a idéia de raça
que orienta essa forma de classificação. Se pensarmos em “raça” como uma
categoria que expressa um modo de classificação baseado na idéia de raça,
podemos afirmar que estamos tratando de um conceito sociológico,
certamente não realista, no sentido ontológico, pois não reflete algo existente
no mundo real, mas um conceito analítico nominalista, no sentido de que se
refere a algo que orienta e ordena o discurso sobre a vida social. 140

Compreendemos assim, que apesar da dificuldade de classificação das mulheres


denominadas pardas ou morenas enquanto especificamente negras, suas relações de trabalho,
afetividade, parentesco e sociabilidade, conservavam muitas heranças do período escravista.
Até mesmo mulheres classificadas como brancas nos processos podiam compartilhar desse
cotidiano de relações estruturalmente racializadas, não apenas por sua experiência de classe,
mas em função de que a classificação de cor que recebiam não era um produto de
autorreconhecimento, mas fruto do olhar do escrivão ou, mais comumente, de peritos legais.
Ainda que, em alguns processos-crime, como no caso de Rozenea, em que logo na
descrição inicial aparece a alcunha de “negra velha”, possamos identificar com mais
facilidade a cor das mulheres que protagonizaram os crimes analisados, essa não é a regra
geral da maior parte da documentação. Em sua maioria, os processos criminais no alto sertão
da Bahia não apresentam a cor das mulheres envolvidas, salvo algumas exceções em relação
aos exames de corpo delito. Como é o caso da menina Ercínia, que apesar dos indicativos de

139
Ao discutir a mestiçagem no Brasil como elemento do mito da democracia racial, Kabengele Munanga
analisa a mesma como um fenômeno ideológico que constituiria uma etapa transitória do processo de
branqueamento nos discursos do século XIX in: MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no
Brasil. Vozes: Petrópolis, 1999.
140
GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. Como trabalhar com "raça" em sociologia. Educação e Pesquisa,
São Paulo, v.29, n.1, p. 93-107, jan./jun. 2003, p.203.
74

sua condição por meio do tratamento que recebia, não podemos afirmar que esta fosse negra,
pois sua cor não é descrita nem mesmo no laudo médico. Resta-nos assim a investigação dos
elementos de racialização 141 presentes em suas histórias para romper com os silêncios
impostos. No próprio caso de Rozenea, podemos deduzir a sua cor somente a partir de uma
atribuição feita por aqueles com quem a mesma convivia e mantinha relações, tendo estes a
apelidado como negra velha.
Nas décadas posteriores a abolição da escravidão no Brasil, a ausência da cor na
documentação oficial não é um fato isolado e nem ocorre por acaso. Essa questão tem
representado um desafio teórico e metodológico para historiadores/as que pesquisam as
relações raciais em diferentes regiões do país. Ressaltamos que o silenciamento sobre a cor de
vítimas, acusados e testemunhas em documentos como processos criminais não foi uma
invenção da república ou do pós-abolição, embora tenha se intensificado nesse período, com a
emergência de debates pautados no mito da democracia racial.
As décadas finais da escravidão no Brasil, em determinadas regiões, já apresentavam
essa característica nos registros oficiais. Hebe Mattos, em seu estudo sobre o sudeste
escravista142, observou que, nos processos cíveis e criminais, a identificação da cor, que
estava presente na qualificação das testemunhas livres até meados do século XIX, já não era
mais utilizada depois de 1850.
Para a autora, isso estava relacionado ao crescente número de negros e mestiços livres
e de brancos empobrecidos, o que, no processo de identificação, favoreceu a perda de sentido
da cor branca como indicador de status social, isto é, passando a ser a condição de livre seu
novo pré-requisito. Além dessa designação feita pelas autoridades judiciais, os libertos
também faziam a opção de silenciar sobre sua própria cor. Negar-se como negro significava
negar a memória do cativeiro e, muitas vezes, tinham o objetivo de obter o reconhecimento
social de sua condição de livre e de cidadão. A autora ressalta que “negar-se como negro
(liberto), neste contexto, não implicava, como não implicou na maioria dos casos, assumir
uma perspectiva valorativa do branqueamento”143. Era assim a tentativa de livrar-se da força
discriminadora da marca do cativeiro.

141
A racialização foi, a um só tempo, o sinal mais evidente da decadência do escravismo e da arrojada tentativa
de garantir que o edifício social montado durante a escravidão fosse preservado, mantendo-se privilégios,
demarcando-se fronteiras e recompondo antigos territórios In: ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. O jogo da
dissimulação: Abolição e cidadania negra no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p.243
142
MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista – Brasil,
séc. XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 361.
143
Ibid., p.361.
75

À medida que avançamos as décadas do XIX e beiramos a transição para o século XX,
a presença da descrição da cor em documentos oficiais, como recenseamentos e processos
criminais, torna-se cada vez mais rara. Sobre esse silenciamento, Sueann Caulfield afirma que
“para a república já no pós-abolição, a ausência da cor estava relacionada ao processo de
construção da cidadania republicana e ao projeto de nação que buscava constituir-se como
branca”144. Todavia, embora o discurso jurídico, numa perspectiva liberal, procurasse evitar
uma ênfase na cor dos indivíduos, o discurso médico marcado fortemente pelos ideais
eugênicos145, mantinha a necessidade de delimitação das características fenotípicas das
vítimas nos exames de corpo de delito.
Os processos analisados neste trabalho apresentam essa permanência da cor nos laudos
médicos, entretanto, não em sua grande maioria. Vale ressaltar que os registros da cor nesses
exames não obedeciam a uma terminologia médica formal, e muitas vezes, os peritos
responsáveis não eram profissionais da área da saúde146. Tal situação se mantem comum até o
fim da década de 1920. Esse é o caso, por exemplo, dos peritos no exame por ocasião do
defloramento de Theodora Maria de Jesus, em 1904, na localidade de Lagoa Real.

Os peritos notificados, os cidadãos Antonio da Costa Teixeira e Clemente de


Souza Bom, pessôas entendidas, em falta de médicos cirurgiães, ambos
residentes neste Arraial de Lagoa Real, o primeiro lavrador e o segundo
negociante [...] o juiz deferiu aos peritos o juramento aos Santos Evangelhos
em um livro deles de bem e fielmente desempenhar a sua missão declarando
com verdade o que descobriram e encontraram e o que em sua consciência
entenderam e encarregou-lhes que procedessem o exame na pessôa da
ofendida.147

144
CAULFIELD, Sueann. Raça, Sexo e Casamento: crimes sexuais no Rio de Janeiro, 1918-1940. Revista Afro-
Ásia. v. 18 (1996), p. 225-164.
145
A eugenia pode ser conceituada como um movimento científico e social voltado para o aperfeiçoamento
genético da espécie humana. Suas origens encontram-se na obra do naturalista inglês Francis Galton (1822-
1911), primo de Darwin, ele afirmava que tanto o físico como o mental estavam ligados à herança biológica. Isso
justificava, no seu entender, a necessidade dos “cruzamentos selecionados” entre os seres humanos. Seu projeto
pretendia comprovar que a capacidade intelectual era hereditária, ou seja, passava de membro para membro da
família e, assim, justificar a exclusão dos negros, imigrantes asiáticos, deficientes e qualquer um que não se
encaixasse no padrão eugênico ideal. Segundo Nancy Stepan, “o movimento eugênico mundial ajudou a
conformar o debate brasileiro, mas a eugenia também foi reconfigurada no Brasil e adaptada à sua topografia
intelectual e à sua agenda social, tornando-se importante elemento na reformulação ideológica do significado de
raça para o futuro brasileiro”. STEPAN, Nancy Leys. Eugenia no Brasil, 1917-1940. In: HOCHMAN, G.,
ARMUS, D., orgs. Cuidar, controlar, curar: ensaios históricos sobre saúde e doença na América Latina e
Caribe [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2004. História e Saúde collection, pp. 330-391.
146
Percebemos uma mudança em relação a esta questão no transcorrer das décadas em nossas fontes. Sobretudo,
na década de 1930, aumenta-se consideravelmente o número de processos em que o corpo de peritos é formado
totalmente por profissionais da área médica, a medida em que também aumenta-se o número de farmácias nas
localidades contempladas pelo estudo.
147
(grifos nossos) APEB. Seção Judiciário. Processo-crime. Ano: 1904. Série: Defloramento. Est. 12, cx. 453,
doc. 01.
76

Percebemos que até mesmo comerciantes, lavradores e sujeitos com outras ocupações,
desde que desempenhadas por homens considerados “dignos” ou “entendidos”, poderiam ser
convidados a avaliarem os corpos femininos e, sob juramentos católicos, procederem o exame
físico para responder a um questionário padrão de acordo com o delito investigado.
As vítimas, classificadas como “ofendidas” nos exames de corpo delito destinados a
comprovar a ocorrência do crime de defloramento, ou mais especificamente o rompimento do
hímem, eram submetidas a uma nova forma de violação de seus corpos. Para além de terem
suas vidas moralmente investigadas e questionadas pelos agentes da justiça, tinham suas
partes íntimas expostas e manipuladas por homens sem nenhum conhecimento médico.
Tratava-se assim de um tipo de violência de gênero aceito, institucionalizado e justificado nos
laudos médicos.
Dessa forma, termos variados como “ligeiramente morena” ou “rapariga preta de
cabelo encarapinhado” não eram estranhas aos laudos periciais. Além disso, a menção a cor
nos laudos em que não existe a presença de médicos ou profissionais da área da saúde, é ainda
menos incidente, pois os “peritos notificados” se limitavam a responder as perguntas já
definidas, sem descrições detalhadas da anatomia feminina. Nesse cenário, foi possível
identificar, por meio dos exames periciais de corpo delito, as seguintes definições de cor para
as vítimas de crimes de homicídio 148 e defloramento:

TABELA 03: CARACTERIZAÇÃO DA COR DAS MULHERES EM EXAMES DE CORPO DE DELITO

CRIME DEFLORAMENTO HOMICÍDIO LESÕES


CORPORAIS
BRANCA 4,3% 12,5% 22,2%
PÁLIDA COMO 0% 12,5% 0%
FLOR DE ALGODÃO
PRETA 4,3% 12,5% 0%
PARDA 26,3% 0% 44.4%
MORENA 8,6% 12,5% 0%
QUASE BRANCA 0% 12,5% 0%
AUSENTE 56,5% 50% 33.3%
Fonte: APMC e APEB

Optamos por manter a cor registrada pelos peritos nos laudos, que indicam por vezes
uma inexatidão na informação. Apesar do silêncio frequente sobre a cor das mulheres nos

148
Somente os processos em que as mulheres foram vítimas do homicídio, pois a cor foi identificada por meio do
exame de corpo delito.
77

processos, mesmo nos laudos médicos, percebemos a prevalência da denominação “parda”,


sobretudo, nos registros referentes ao crime de defloramento e lesões corporais. Compondo
esses registros mais da metade do corpo documental, é possível estimar que esse silêncio não
era tão absoluto, que não pudesse ser desvelado. O número de mulheres classificadas como
pretas, por sua vez, não é expressivo nas descrições médicas, apesar de constar em alguns
trechos das descrições de escrivães. A tendência que sobressaía estava relacionada a utilizar
qualquer indicador de branqueamento no fenótipo das vítimas, sendo os indicadores de
mestiçagem “parda e morena” os mais comuns.
Em outros períodos, a expressão “pardo/a” fora importante enquanto distinção numa
sociedade dividida entre escravos e livres/libertos. Com a redução do uso de outros termos
como cabra, mulato, crioulo, etc., o termo passava a englobar uma infinidade de tonalidades
de pele, mas sempre fazendo referência a algum grau de mestiçagem. Segundo Mattos

As significações, que até então se atribuíram a palavra “pardo” marcavam


um lugar social, caracterizado como exceção, numa sociedade socialmente
estratificada. Identificava a ascendência cativa entre os homens livres
nascidos no Brasil, como também a ascendência branca (livre) entre os
escravos crioulos 149.

Ser uma mulher parda constituía assim um lugar de exceção na sociedade escravista.
Entretanto, o pós-abolição conferia a essas mulheres um “outro lugar”, reivindicado ou não
por essas mulheres. Não ser negra e com isso não carregar os estigmas do passado de
escravidão, mas também não ser branca e não ocupar uma posição social de maior privilégio
numa sociedade pigmentocrática 150, ainda que com maiores possibilidades de ascensão social.
Em Caetité e na região alto sertaneja, de um modo geral, um importante elemento a ser
considerado se refere justamente ao discurso da mestiçagem, já veiculado desde os relatos de
viajantes do século XIX e que contribuía para atribuir a cor um critério não tão relevante para
as distinções sociais nos sertões baianos. Tais discursos, muitas vezes, serviam para mascarar

149
MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista – Brasil,
séc. XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 361.
150
A pigmentocracia, mais conhecida no Brasil como colorismo (termo cunhado em 1982, por Alice Walker,
autora de A Cor Púrpura), seria um sistema de hierarquia e discriminação, baseado na cor da pele, sendo que
conforme a tonalidade da pele for mais escura, mais chances de exclusão em sociedade. Nesse sentido, o
fenótipo é mais forte que a origem ou descendência étnica de uma pessoa. Um estudo transnacional realizado por
Edward Telles, é bastante importante para este debate e revela por meio de uma paleta de cores, em quatro países
da América Latina (Mexico, Colômbia, Peru e Brasil). No caso específico do Brasil a auto-identificação racial
por meio das categorias utilizadas nas pesquisas oficiais (branco, pardo, preto, indígena, amarelo e outros)
corresponde ao padrão esperado segundo sua hipótese pigmentocrática: uma hierarquia que, em linhas gerais, vai
dos indivíduos de pele mais clara aos de pele mais escura. TELLES, Edward. The Project on Ethnicity and Race
in Latin America (PERLA). Pigmentocracies: ethnicity, race and color in Latin America. Chapel Hill: The
University of North Carolina Press, 2014.
78

os mecanismos de hierarquização racial. Em pesquisa sobre as memórias da escravidão e da


mestiçagem no Sertão da Ressaca 151, Ocerlan Ferreira Santos percebe a presença da
miscigenação da população sertaneja no início do século XIX por meio dos registros dos
naturalistas Spix e Martius152. Em visita a Vila de Rio de Contas (alto sertão), os alemães
descrevem a fenótipo dos moradores do lugar, dizendo que

Entre eles raramente se encontra um branco de pura origem europeia; muitos


são mulatos; outros demonstram pele mais clara do rosto e pelos cabelos
lisos a origem mista de indígenas e brancos e, como tivessem herdado,
muitas vezes, a indolência e morosidade de seus pais indígenas, são
frequentemente apelidados, por desdém, de tapuyada (de Tapüya, índios),
objeto de desprezo dos vizinhos.153

No relato dos viajantes, percebemos tanto a miscigenação entre brancos e negros,


quanto entre indígenas e brancos – sem menção aí a possibilidade de mistura racial entre
negros e indígenas. O próprio processo de ocupação territorial do alto sertão da Bahia, assim
como de outros sertões baianos, fora marcado por relações violentas entre colonos e
indígenas, que incluíam a dominação e incorporação das populações nativas ao modo de vida
dos povoamentos. Entretanto, pouco ou quase nada se tem documentado sobre essas
populações indígenas na região alto sertaneja 154. Afirma Erivaldo Fagundes Neves que “os
primitivos habitantes foram absorvidos como mão-de-obra, na agropecuária, e perderam sua
identidade155 étnico-cultural”156. Em relação as mulheres indígenas, as relações inter-raciais
foram ainda mais violentas, uma vez que o pouco que sabemos sobre essa miscigenação
imposta ainda está nos relatos populares sobre “bisavós que foram pegas no mato na boca de
um cachorro”. Tal expressão, muito comum entre as populações camponesas da região de
Caetité, está relacionada a captura seguida de estupro, afastamento de suas aldeias e

151
Área entre o rio Pardo e rio das Contas, fronteira entre o Norte da Capitania de Minas Gerais e o Alto Sertão
da Bahia (Rio de Contas e Caetité); região cuja ocupação, remonta ao final do século XVIII, como resultado das
expedições exploradoras e de conquista que partiram do sertão das Minas Gerais - Minas Novas do Araçuaí - em
direção aos sertões da Bahia, compostas pelo italiano Pedro Leolino Mariz e os portugueses João Gonçalves da
Costa e João da Silva Guimarães.
152
SANTOS, Ocerlan F. Memórias da Escravidão e das Mestiçagens no sertão da Bahia. Dissertação de
mestrado. Vitória da Conquista. UESB, 2015, p.30.
153
SPIX, Von.; MARTIUS, Von. Através da Bahia: Excerptos da obra Reise in Brasilien. Translado a português
pelos Drs. Pirajá da Silva e Paulo Wolf. Companhia Editora Nacional: São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Porto
Alegre, 1938. Disponível em: <http://www.brasiliana.com.br/obras/atraves-da-bahia-excertos-da-obra-reise-in-
brasilien/pagina/6/texto>. Acesso em 01 de Agosto de 2014. 1938, p. 61 apud SANTOS, 2015, p.43
154
O registro dos aldeamentos no território baiano, feito no século XIX, não indica a presença de núcleos
indígenas no alto sertão. Ver: APEB. Colonial e Provincial, 4.610. Mapa das Aldeias Indígenas na Província da
Bahia (1700-1848).
155
Vale ressaltar que o conceito de identidade atua constantemente “sob rasura”, isto é, é construído e
reconstruído pelos diferentes povos, não sendo algo inato e fixo em uma determinada população.
156
NEVES, Erivaldo F. Uma comunidade sertaneja: da sesmaria ao minifúndio (um estudo de história regional
e local). Salvador: EDUFBa; Feira de Santana: UEFS, 2008, p.96.
79

casamento católico imposto a mulheres indígenas pelos homens que colonizaram as terras dos
sertões, e remete a um estado de selvageria animal atribuído a essas mulheres, anterior a sua
inserção na comunidade branca “civilizada”.
Em que pese o fato de que as relações inter-raciais entre brancos/as e negros/as sejam
também invisibilizadas, porém não invisíveis, na constituição da população caetiteense, os
matizes mestiços (pardos) atribuídos as mulheres na documentação contribuíram também para
o silenciamento acerca das mulheres negras, uma vez que as classificadas como pretas não
constituem um número elevado nos laudos médicos, assim como não temos a definição da cor
de mulheres na posição de acusadas nos crimes. Perceber a racialização das relações sociais
por meio de outros elementos das experiências dessas mulheres constitui uma alternativa para
romper esse silenciamento. Suas relações de trabalho, meios de sobrevivência, relações
afetivas, bem como os desvios da normatização social, que as tornava alvo de criminalização
e resistência, são fundamentais para investigação de suas histórias.

2.2 “Ventre livre, braços negros”: As relações de trabalho e as heranças do cativeiro na


vida das mulheres negras em Caetité

Apenas um número infinitesimal de mulheres negras conseguiu escapar do campo, da cozinha ou da


lavanderia. Ângela Davis157

Nos autos de perguntas feitas às vítimas, acusadas e testemunhas, invariavelmente o


questionamento acerca da profissão desempenhada está presente. Por meio deles, podemos
identificar os ofícios exercidos pelas mulheres caetiteenses que, muitas vezes, escapavam aos
recenseamentos e outras formas de registros oficiais. Vale ressaltar que a nova ordem
capitalista implicou uma reestruturação na divisão do trabalho e, no Brasil, a extinção da mão-
de-obra escrava resultava em mudanças nas relações tradicionais de trabalho. Entretanto,
inúmeras permanências nas hierarquias sociais continuaram, por décadas, a moldar o espaço
ocupado pelas mulheres negras, assinalado pela divisão social, sexual e racial do trabalho, que
conservar-se como marcador de suas posições na sociedade atual158.

157
DAVIS, Angela. Mulheres, Raça e Classe. São Paulo: Boitempo, 2016.
158
“No caso do Brasil, as mulheres brancas e negras têm trajetórias duradouras nas ocupações de menor prestígio
e de más condições de trabalho, como o emprego doméstico, atividade em que as mulheres negras são mais
numerosas. Ambas estão também sobrerrepresentadas no item desemprego. Homens brancos e negros estão
sobrerrepresentados nas trajetórias de emprego formal e de trabalho autônomo, embora os últimos em menor
proporção. Eles têm trajetórias marcadas pela instabilidade de forma mais marcante que os homens brancos,
indicando maior vulnerabilidade”. GUIMARÃES E BRITTO, 2008, p. 51. apud HIRATA, Helena. Gênero,
classe e raça: Interseccionalidade e consubstancialidade das relações sociais. Tempo Social, revista de
sociologia da USP, v. 26, n. 1, 2014, p.64.
80

As ocupações mais comuns dessas mulheres estavam associadas aos serviços


domésticos e de cuidado ou ao trabalho no campo. Empregadas domésticas, lavadeiras,
costureiras e fiandeiras, parteiras e lavradoras emergem nos processos, revelando
características da sociedade racista e patriarcal em que viviam que refletiram direta ou
indiretamente nas relações de trabalho que mantinham em suas localidades ou fora delas.
A tabela abaixo apresenta a listagem de profissões das mulheres interrogadas ou
depoentes nos processos analisados. É importante considerar que estes dados possuem
números variáveis de acordo com as informações captadas nos interrogatórios, pois, muitas
vezes, as mulheres indicavam uma profissão em um primeiro auto de perguntas e
posteriormente, indicavam outra. Em alguns casos, de fato, elas desempenhavam ambas as
funções (serviços domésticos, lavradora, costureira, etc.) ou mesmo poderiam apresentar o
exercício de uma profissão socialmente aceita a fim de ocultar o trabalho como prostituta, por
exemplo. Essa última ocupação, aliás, é indicada nos autos em referência a quatro mulheres,
entre acusadas, vítimas e testemunhas, mas dificilmente apontada pelas próprias depoentes e,
por isso, não foi incluída na tabela, afim de ser melhor analisada no próximo capítulo.

TABELA 04: OCUPAÇÕES DE MULHERES IDENTIFICADAS NOS PROCESSOS CRIMINAIS

PROFISSÕES Infanticídio Homicídio Defloramento Total


Lavradora 3 3,5% 3 3,5% 6 7,0% 12 14,1%

Empregada 14 16,5% 15 17,6% 23 27,0% 52 61,7%


doméstica
Costureira / 9 10,6% 2 2,35% 5 5,9% 16 18,8%
fiandeira
Lavadeira 2 2,35 0 0% 0 0% 2 2,35%

Parteira / 3 3,5% 0 0% 0 0% 3 3,5%


Curandeira
Total 31 36,5% 20 23,5% 34 40% 85 100%

Fonte: APMC / APEB

O número de mulheres que indicaram desempenhar serviços domésticos nos autos é


absolutamente maior que todas as outras ocupações reunidas, correspondendo a 61% do
universo de mulheres nos processos. Em séculos de escravidão, o papel das mulheres
escravizadas que não trabalharam nas grandes ou pequenas lavouras também esteve atrelado
ao mundo dos serviços domésticos e de cuidado. Mucamas, amas de leite, cozinheiras, entre
81

outras serviçais, integravam a dinâmica da economia privada de famílias remediadas ou


abastadas tanto em propriedades rurais quanto nos recentes centros urbanos.
No período posterior a abolição, para muitas mulheres negras fora da agricultura, sem
escolaridade e com opções de trabalho limitadas, o serviço doméstico se manteve como
alternativa de emprego e complemento da renda familiar, e também em decorrência da
entrada de mulheres das camadas médias no mercado de trabalho. Segundo Susan Besse, ao
analisar a redefinição do trabalho das mulheres brasileiras nas primeiras décadas do século
XX, em 1872, a ocupação de “51,3% das trabalhadoras fora da agricultura era o de
empregadas domésticas; essa porcentagem caiu somente para 33,7% em 1920 e cresceu
ligeiramente para 36,1% em 1940”159, de acordo com os respectivos recenseamentos.
Embora a presença desta ocupação seja constante em todas as tipologias criminais
analisadas, os processos criminais de defloramento são fontes fundamentais para compreensão
da dinâmica do serviço doméstico feminino na região alto-sertaneja. Por meio deles,
encontramos moças jovens e menores de idade na posição de vítimas com mais frequência
exercendo essas atividades fora da casa de seus pais. Alvo preferencial da violência sexual ou
do interesse afetivo de seus patrões e dos homens familiares destes, casados ou solteiros, as
empregadas domésticas estavam, diante dos mesmos, numa condição de subalternidade.
Como pontua, Maria Aparecida P. Sanches, em estudo sobre Salvador entre 1899-1950

As domésticas eram, muitas vezes, vítimas de violência sexual e da


impossibilidade de negar-se à pressão para a concessão de favores sexuais
dadas as características de subalternidade e deferência que o trabalho
doméstico assumiu na Bahia e os próprios imperativos impostos pela
sobrevivência em que, muitas vezes, a opção ao trabalho doméstico era a
fome e a ausência de um teto sobre suas cabeças160

Entre as meninas defloradas, seja por seus patrões ou por homens do convívio familiar
e de amizade destes, revelam-se algumas peculiaridades do trabalho realizado por elas. São
mulheres que saíram muito cedo da casa de suas famílias, algumas delas sendo órfãs, outras
com quantidade numerosa de irmãos, todas elas muito pobres, cujo destino fora se tornar
“cria” em casas alheias, tratadas nos depoimentos como filhas postiças das famílias que as
adotaram, porém com tarefas e obrigações definidas desde o berço. Pela descrição dos
processos, as famílias que recebem essas meninas, ainda que apresentassem condição social e
159
BESSE, Susan K. Modernizando a desigualdade. Reestruturação da Ideologia de Gênero no Brasil, 1914 –
1940. São Paulo. Editora da Universidade de São Paulo, 1999, p. 157.
160
SANCHES, Maria Aparecida Prazeres. As razões do coração: Namoro, escolhas conjugais, relações raciais e
sexo-afetivas em Salvador (1889-1950). Tese de Doutorado em História Contemporânea. Universidade Federal
Fluminense. Niterói, 2010, p.58-59.
82

econômica um pouco melhor que a dos seus pais, não eram exatamente famílias abastadas. Ao
contrário, tratava-se principalmente de lavradores e negociantes que, muito dificilmente,
teriam condições financeiras de pagar salário a uma empregada doméstica. Uma exceção é o
caso de Ercínia, apresentado no início do capítulo, pois a família do juiz que a acolhera em
troca da exploração de seu trabalho, pertencia à elite caetiteense e demonstrou, por meio do
processo, possuir certo número de empregados assalariados. Tratava-se assim, de uma prática
cultural enraizada também nas classes dominantes, para quem o trabalho manual e doméstico
das mulheres negras sempre valeu muito pouco ou quase nada.
Percebemos a questão da exploração do trabalho das jovens, sobretudo, oriundas do
campo, em processos como o de Hermínia Maria de Jesus, de 16 anos, que em 1933, é
deflorada pelo patrão Cezar Viana, de 38 anos, enquanto realizava o serviço de buscar água na
fonte, na localidade de Umbuzeiro. Ao responder no inquérito como havia chegada a casa do
réu, Hermínia afirma que a mulher de Cézar, dona Nazinha, pediu aos seus pais para leva-la
para sua casa “para ajud-ála como servente, nos serviços da casa, gratuitamente”161.
Décadas antes, em 1894, no distrito de Bom Jesus dos Meiras, a jovem Tertolina, de
14 anos, fora estuprada por seu patrão Francisco Bernardes, lavrador de 45 anos. O pai da
jovem entra com o processo após a gravidez da filha.

O supp. mobre e carregado de numerosa família trabalhava para José


Francisco Bernardes do qual era visinho e este, a pretexto de ajudal-o, e
protegel-o faz com que o supp. mandasse para sua casa uma filha menor do
supp. de nome Tertolina Maria de Jesus que na ocasião atingia apenas a
idade de quatorze anos. O supp. na boa fé ali deichou sua filha, descansado,
por não julgar, que um pae de família, já entrado na maioridade e no seio de
sua própria família, abusasse da fraqueza e inocência de sua filha para
pervertel-a!162

Neste e em outros casos de defloramento, tanto referentes à sedução quanto ao estupro


propriamente dito, encontramos mulheres que diante da falta de autonomia financeira e de
instrução e vivendo em uma sociedade fortemente machista, não foram donas de suas próprias
vidas, subjugadas entre a autoridade paterna e os abusos dos patrões. Entretanto, conhecemos
exemplos outros em que, embora numa situação de subalternidade, algumas mulheres
conseguiram subverter os papeis atribuídos a elas, mesmo que diante de muitas estratégias de
criminalização de suas ações.

161
APEB. Sessão Judiciário. Série Processos-Crime Defloramento. 1933. 223/103/1.
162
APEB. Sessão Judiciário. Série Processos-Crime Defloramento. 1894. 09/296/18
83

Ainda em relação às ocupações que poderiam ser classificadas como “de âmbito
doméstico”, a designação costureira ou fiandeira corresponde a cerca de 18,8% do total de
profissões registradas nos autos. Além das depoentes que apontaram uma das profissões
especificamente, muitas delas indicaram desempenhar ambas (cozer e fiar) nos questionários.
Em uma região cuja tradição cotonicultora se fortaleceu no final do século XIX, não é
estranho encontrar um alto número de mulheres trabalhando como fiandeiras, atividade têxtil
doméstica que pode ser relacionada à produção local de algodão, e que ainda no período
escravista representava uma importante fonte de sobrevivência para as mulheres negras.
Como sugere Maria de Fátima Pires, ao identificar escravas e libertas no alto sertão exercendo
essas profissões, os rústicos teares e espaços de coser estavam ligados a suas funções
domésticas.

Ao assinalar autos criminais em que mulheres são qualificadas como


costureiras ou fiandeiras identificam-se essas funções como atividades muito
mais domésticas e artesanais do que como é referido em outras fontes que
falam do funcionamento de “fabrica de tecidos, ainda fabricados em theares
tangidos por força humana”, onde “também se fabricão rêdes, cobertores e
panos de algodão163.

Sobre esta atividade ser realizada como parte da microeconomia escrava do século
XIX a partir da cultura algodoeira no alto sertão, Neves afirma

Do algodão de Caetité e seu entorno se produziam artesanalmente peças de


cama, mesa e banho, sacaria para o transporte da produção agrícola e
também vestia a maioria da população. Em toscos teares, escravas “urdiam e
tapavam” tecidos, riscados e lisos, para o consumo da unidade agrícola e
comercialização de pequenos excedentes nos mercados locais e regionais.
[...] Nos quintais, mucamas passavam o dia inteiro no batente do rústico tear
de madeira e velhas escravas se aquentavam ao sol, enquanto fiavam com o
girar do fuso impulsionado pelo atrito do polegar contra o médio da mão
direita, ao tempo em que, com a esquerda, liberavam a lã para formar o fio
bem torcido ou, nos fundos das casas senhoriais, pedalavam a roda de
madeira com peças metálicas de engrenagem simples, que também produzia
a linha, com mais eficiência e maior produtividade164.

Percebemos assim que, mesmo ligadas predominantemente a atividades tidas como


“reprodutivas” por estarem relacionadas ao espaço privado, isto é, ao ambiente doméstico, as

163
PIRES, Maria de Fátima Novaes. Costureiras e Lavradores – escravos no Alto Sertão da Bahia durante o
século XIX. In: Encontro Regional de História – O lugar da História, 17, 2004, Campinas-SP. Anais do XVII
Encontro Regional de História – O lugar da História. ANPUH/SPUNICAMP. Campinas, 2004, p.04.
164
NEVES, Erivaldo F. Uma comunidade sertaneja: da sesmaria ao minifúndio (um estudo de história regional
e local). Salvador: EDUFBa; Feira de Santana: UEFS, 2008, p.88-89.
84

funções desempenhadas pelas mulheres negras tinham impacto na economia do alto sertão e
permaneceram como alternativa de sobrevivência herdada após a abolição. Nos relatos de
Pedro Celestino, nas primeiras décadas de 1930, é possível perceber a predominância desta
atividade para as mulheres caetiteenses.

A roca e o fuso são comuns por todo interior do município, com os quaes se
prepara o fio para esses trabalhos e para as redes que muito se
recommendam pelo seu trançado e colorido. É toda uma indústria caseira,
primitiva, entregue às mulheres, sendo para lamentar que a título de
animação, não encontrem taes produtos melhor acceitação. As rendas de
almofadas são outra indústria domestica, também a cargo das mulheres; não
há casas que não as teçam com certo esmero e cuidado, produtos que são
cotados a baixo preço no mercado local. 165

O autor lamenta que, apesar do “esmero e cuidado” utilizados por essa indústria
doméstica feminina “caseira e primitiva”, os produtos não encontrassem boa aceitação, sendo
vendidos a um custo muito baixo. Tal fato não deixa de ser reflexo da baixa remuneração de
atividades profissionais das mulheres, desvalorizadas, sobretudo, por serem consideradas tais
tarefas como atributos femininos, prendas domésticas que, desde menina, deveriam aprender
para manutenção da casa. Entretanto, fazer uso dessas habilidades para o sustento de si e de
seus familiares não deixava de representar uma importante resistência ao empobrecimento
vivenciado pelas sertanejas.

FIGURA 08: TEAR ENCONTRADO NO MUNICÍPIO DE URANDI-BA

Fonte: http://historiadeurandi.blogspot.com/2010/11/casa-da-memoria-de-urandi.html

165
SILVA, Pedro Celestino da Silva. Notícias Históricas e Geographicas do Município de Caetité. Revista do
Instituto Geographico e Histórico da Bahia. Nº 58, Seção Gráphica da Escola de A. Artífices da Bahia, 1932,
p.71.
85

O tear acima, encontrado no município alto-sertanejo de Urandi, corresponde a duas


rocas de fiar, onde as mulheres fiandeiras fabricavam o rústico tecido, passando o algodão
pela roca e girando-a para torcer o fio. Numa posição curvada e em movimentos repetitivos
essas mulheres teciam outras tantas histórias de vida. Salientamos que, embora exercendo
atividades consideradas como domésticas, as relações mantidas por essas mulheres fiandeiras
e costureiras não se restringiam ao privado e, menos ainda, as situações de violência que
perpassavam suas vidas. Ao contrário, muitos eventos no espaço público correspondiam a
uma extensão de sua vida doméstica. Exemplo disso é o caso das costureiras, envolvidas em
processos de lesões corporais.
No arraial de Caculé, no ano de 1894, a costureira Maria Eugênia de Jesus, conhecida
por Maria Pretinha, revidou as bofetadas que recebeu de Antônio José de Souza, com um
golpe de navalha, que lhe abriu um talho da sobrancelha do olho esquerdo ao canto direito da
boca166. A briga havia começado com uma discussão nas calçadas da casa de Joanna de Tal,
também costureira como as demais mulheres testemunhas no processo, e terminara nas
páginas de um processo criminal. Ainda que as razões do mesmo estejam pouco visíveis no
processo, esse conflito evidencia a violência cotidiana a que estavam expostas as mulheres
das camadas populares que transitavam em zonas limítrofes entre os espaços públicos e
privados, nesse caso nas calçadas de uma casa, local de sociabilidade para os habitantes do
arraial. A atitude de Maria Eugênia ao revidar o tapa recebido revelava também que essas
mulheres não eram totalmente submissas a imposição dessa violência pelos homens e, por sua
vez, o fato de carregar consigo uma navalha poderia indicar que elas conheciam os perigos a
que estavam sujeitas e tinham necessidade de garantir sua própria segurança, ainda que fosse
fazendo justiça com as próprias mãos, na ponta de uma faca. Assim como a posse de uma
navalha poderia ser inerente a sua profissão de costureira, como alega no processo, a mesma
não deixava de servir-lhe como instrumento de sobrevivência cotidiana.
Além de evidenciar a violência e os conflitos que marcavam a lida diária dessas
mulheres, é possível perceber esses espaços ocupados e disputados pelas mulheres pobres e
negras, os trânsitos entre as localidades rurais e urbanas, assim como a rede de relações
mantida por elas, aproximadas também pela profissão que desempenhavam. Ainda em
Caculé, em 1891, no processo de infanticídio de Mequelina Marques, cujo rol de testemunhas
é predominantemente feminino e todas as mulheres testemunhas arroladas são costureiras ou
fiandeiras. Tal fato pode expressar também a existência de um corporativismo no pós-

166
APEB. Sessão Judiciário. Série Processos-Crime Lesões Corporais. 1894. 13/541/10.
86

abolição, baseado no desempenho comum desta função pelas mulheres da localidade. Afinal,
como já analisava Maria Odila L. da S. Dias para a cidade de São Paulo, o oficio de fiandeira
não era algo isolado, mas em grupos, realizando mutirões normalmente compostos por
vizinhas167.
A documentação preservada pela Associação das Senhoras de Caridade de Caetité168
apresenta, por meio de seus registros de boas obras, inúmeros momentos de apoio às moças
costureiras, seja buscando comprar máquinas de costura ou tecidos e doando para o trabalho
destas, seja comprando seus produtos. O apoio dessa rede de mulheres pertencentes a
abastadas famílias caetiteenses às mulheres de camadas populares e entre elas, costureiras
pobres, demonstrava uma solidariedade de gênero que cruzava as fronteiras das classes a que
pertenciam, como vemos abaixo, em alguns dos frequentes registros de doações nos livros de
boas obras da entidade:

Mandou-se um officio ao Presidente da Associação Commercial, sobre o


trabalho das moças pobres, afim dos negociantes fornecerem fazendas e
receberem roupas feitas, mediante contracto. [...]
Falou-se sobre o meio de auxiliar as moças pobres, comprando a Associação
seus trabalhos, como rendas, bordados e que seriam revendidos em S. Paulo.
Ficou encarregada desta parte a Exma. Sócia D. Maria Clementina
Silveira.169

Salientamos que o apoio das damas de caridade caetiteense às moças pobres,


oferecendo trabalho ou comprando sua produção, integrava-se ao projeto de modernidade das
elites republicanas, que teve a filantropia como importante aliada. Estratégia inspirada na
tradição cristã secular da caridade como método de controle da rebeldia popular. Ainda que
houvesse uma solidariedade de gênero, a posição de classe destas ricas senhoras exercia sobre
as camadas populares uma espécie de “maternalismo”170, tendo em vista a manutenção da
ordem por meio do controle e vigilância dos sujeitos marginalizados.

167
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e Poder em São Paulo no século XIX. São Paulo:
Brasiliense, 1995.
168
Esta entidade beneficente, idealizada e presidida durante várias gestões por Celsina Teixeira, foi fundada por
um grupo de senhoras da elite caetiteense. O contexto de sua fundação deve ser analisado não apenas em
consonância com as condições sociais e econômicas do período, mas, sobretudo, associado à criação de outras
entidades em diversos locais pelo Brasil. In: RIBEIRO, Marcos Profeta. Mulheres e Poder no Alto Sertão da
Bahia: A escrita epistolar de Celsina Teixeira Ladeia (1901-1927). São Paulo: Alameda, 2012, p.68.
169
Livro de lançamentos e boas obras. ASCC, 7/1/1924. APMC. Grupo Casa do Barão. Cx. 1. Relatório de 1923.
170
Entendido como uma postura ideológica adotada por mulheres das camadas médias e alta nas primeiras
décadas do século XX, que defendia a preponderância do sexo feminino devido a natureza específica para a
maternidade, na defesa e desempenho de atividades relacionadas ao bem estar das mulheres e das crianças. In:
MOTT, Maria Lúcia. Maternalismo, políticas públicas e benemerência no Brasil. In: Cadernos Pagu. Campinas
n. 16, 2001, p.202.
87

Enquanto a ocupação de fiandeira/costureira encontrava-se na tênue fronteira entre o


urbano e o rural, outras ocupações apresentavam fortemente as características de uma
sociedade ruralizada. Nesse sentido, a existência de uma numerosa população camponesa em
Caetité e, consequentemente, a expressiva presença de mulheres que se classificavam como
lavradoras nos processos, cerca de 14%, tem sua origem relacionada ainda ao exercício de
uma escravidão predominantemente rural, com preponderância de pequenas e médias
propriedades no alto sertão da Bahia. O pós-abolição nessa região fez surgir assim um
campesinato composto por ex escravos e libertos que continuaram no campo, e não foram
alvo do tráfico interprovincial, além de outros sujeitos livres que praticavam a policultura de
subsistência.

A análise das condições de vida dos ex escravos que permaneceram nas


zonas rurais se confunde na mescla de tipos sociais que organizavam suas
vidas em torno de culturas de subsistência. Esse processo de mimetismo dos
negros com camadas de homens livres pobres, mestiços e brancos,
intensificado no pós abolição, adequava-se ao projeto de constituição de um
campesinato que, na raiz, se encontrava subjacente às reivindicações
escravas171.

Dessa forma, esse campesinato formado por uma miscelânea de sujeitos, ao ponto de
confundir suas origens e identidades, com uma economia voltada para a produção de gêneros
para consumo interno e pequenos excedentes a serem negociados nas vilas e feiras, também
era marcado pelo trabalho familiar e por relações de vizinhança bastante dinâmicas nas
comunidades em que se dão os delitos analisados.
Essa característica predominantemente rural da região de Caetité se expressa nos
processos por meio da grande quantidade de localidades rurais que foram cenários para os
crimes. Mesmo as vilas, distritos e a própria sede do município possuíam aspectos das
relações ruralizadas que indefiniam as fronteiras entre o campo e a cidade, ainda que nos
discursos das autoridades locais, os muitos delitos ocorridos no campo eram expressão do
atraso dessas localidades e, somente aqueles que se davam na sede urbana escandalizavam a
sociedade “civilizada”.
Exemplo disso, o enterramento de cadáveres de crianças vítimas de infanticídio e, em
alguns casos, o própria parto das mulheres, o defloramento e estupro de meninas e muitos
casos de homicídios tinham como local preferencial nos relatos o “mato”, próximo às casas

171
WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Da escravidão à liberdade: dimensões de uma privacidade possível
In: NOVAIS, Fernando A. (org.), História da vida privada no Brasil 3. São Paulo: Companhia das Letras,
1998. p. 60.
88

em localidades rurais. A descrição comportamental dos indivíduos pelos operadores da lei nos
processos – fossem advogados ou promotores- tanto em tom de defesa quanto de acusação é
de que estes eram sujeitos “roceiros e ignorantes”, portanto desconhecedores de hábitos
morais civilizados.
Muitas mulheres depoentes demonstraram conciliar os trabalhos domésticos e
ocupações na costura com o cuidado na roça e podiam se definir como lavradoras em alguns
momentos e em outros não necessariamente, enquanto a profissão majoritária indicada pelos
homens do campo nos processos é a de lavrador. Esse hábito indica também que a profissão
de lavrador, apesar de desempenhada por mãos femininas, tinha um caráter fortemente
masculino, num país em que não somente os braços de homens negros estiveram mais
presentes nas lavouras, como também as obrigações domésticas desempenhadas pelas
mulheres rurais as impediam de se definirem apenas enquanto lavradoras. Por sua vez, essas
mulheres não trabalhavam apenas em suas roças e sítios, mas também em propriedades de
familiares e parentes, como Anna Alves, jovem parda, de 16 anos, que “tinha o costume de
trabalhar em serviço de lavoura” na casa de seu tio Theodoro, autor de seu defloramento em
1932 na comunidade de Gurungas, sendo que todas as mulheres do processo se intitulam
também como lavradoras172.
Vivendo em áreas rurais, no apogeu do coronelismo 173 sertanejo, não era incomum as
experiências das mulheres estarem marcadas também pelas violências interfamiliares,
reproduzidas pelo modelo patriarcal que estruturava suas vidas, e que perpassava as diversas
classes sociais. O alto sertão, assim como outros rincões do território baiano, já havia sido
cenário para inúmeras disputas entre famílias nas áreas rurais, sendo as mais famosas aquelas
que envolviam famílias abastadas e proprietárias de terras. Um desses conflitos familiares é
analisado por Luiza Campos de Souza ao investigar o banditismo rural no contexto da
rivalidade entre três famílias alto-sertanejas, cuja inimizade envolvia desde questões
particulares até a disputa pelo controle econômico da região em meados do século XIX. Ao
expressar as consequências bélicas dessa disputa familiar, a autora narra:

Os sertões da Bahia ficaram pequenos: muitos murmúrios, diversas invasões


e grande violência. A caatinga sangrou, ficou vermelha. As famílias
passaram a se odiar como exércitos rivais em uma linha de batalha repleta de
172
APMC. Série: Autos Crimes – Sub série: Defloramento. Data-limite 1926-1986. Caixa: 37. Maço 01.
173
A esmagadora maioria da população rural sempre foi abandonada pelo poder público, ficando à mercê da
autoridade discricionária daqueles que sempre dispuseram e usufruíram da posse da terra. Sobre os habitantes
dos pequenos centros urbanos pesavam as mesmas condições gerais de violência que presidiram a sociedade
rural. In: JANOTTI, Maria de Lourdes M. O coronelismo: uma política de compromissos. Brasiliense. São
Paulo, 1989.
89

jagunços. A divisão e a discórdia passaram a imperar e os Canguçús e os


peitos-largos guerrearam contra os Castros e Mouras nos sertões. 174

Rivalidades e rixas familiares também poderiam marcar as vidas daquelas pessoas


cujos bens não passavam de uma pequena casa, uma plantação e alguns animais. Em geral, os
conflitos possuíam justificativas econômicas, pois como pontua Pires, “as continuadas
dificuldades de terras e aguadas motivaram desentendimentos bastante violentos entre
lavradores, muitas vezes, como desfechos fatais” 175. Outras motivações poderiam ser baseadas
nas relações que alguns membros destas famílias mantinham entre si e acabavam por envolver
todos os familiares. No que se refere às mulheres dessas famílias envolvidas em conflito, sua
posição oscilava entre vítimas, acusadas e mentoras dos crimes e mesmo cúmplices e
testemunhas dos delitos de homicídio, tentativas de homicídios, defloramento e estupro.
A tentativa de assassinato de Maria Roza de Jesus, em 1917, na localidade de
Cachoeirinha revela fragmentos do emaranhado de relações e sociabilidades mantido entre as
famílias da vítima e dos irmãos acusados do crime: Mariano Felipe da Silva e Anna Maria de
Jesus que, por sua vez, eram primos de Maria Roza. Tendo o crime características de
premeditação, e motivado pela relação amorosa mantida pela vítima e o esposo de sua prima,
percebemos que Querino, o irmão mais jovem da vítima, foi afastado de casa na noite do
delito, em companhia de Joaquim, filho da denunciada, onde se festejava uma “folia de são
pauleiros176”, isto é, de migrantes sertanejos que haviam regressado do estado de São Paulo.
Ambos os rapazes tinham 17 anos e foram informantes177 nos autos criminais. Analisaremos
outros contornos deste caso específico posteriormente, mas vale ressaltar que todas as
testemunhas do processo possuíam algum grau de parentesco e relações nem sempre
amistosas entre si, chegando ao ponto de uma delas não prestar socorro ao ouvir os gritos de
Maria Roza, sendo primo desta e sobrinho do acusado, alegando como motivo “não se dar

174
SOUZA, Luiza Campos de. Conflito de família e banditismo rural na primeira metade do século Xix:
Canguçús e “Peitos-Largos” contra Castros e Mouras nos sertões da Bahia. Dissertação de Mestrado em História.
UFBA. Salvador, 2014.
175
PIRES, Maria de Fátima Novaes. Fios da Vida: tráfico internacional e alforrias nos sertoins de Sima – BA
(1860-1920). São Paulo: Annablume, 2009.
176
Ao analisar a trajetória de alto-sertanejos que migraram por décadas para São Paulo, a escritora Ely Estrela
destaca que o retorno dos “sampauleiros”, era motivo para muitos festejos em sua terra natal. “À parte as
motivações, o retorno dos sampauleiros se constituía em verdadeira festa no alto sertão. Nas primeiras décadas
do século XX, a chegada dos viajantes era um evento que envolvia toda a comunidade. A família do indivíduo
esperado se preparava para recebe-lo durante meses. A casa era arrumada, as comidas e as bebidas eram
preparadas (comidas típicas) e as roupas costuradas. Com antecedência. O filho, o irmão ou o marido que partira
era agora esperado como se fora uma visita das mais importantes”. ESTRELA, Ely Souza. Os Sampauleiros:
cotidiano e representações. São Paulo: Humanitas; FFCLC/USP; FAPESP; EDUC, 2003, p.201.
177
Assim como menores de idade e outros casos específicos, os depoentes diretamente relacionados à vítimas e
acusados por laços consanguíneos não possuíam status de testemunhas no processos criminais, sendo
denominados como informantes.
90

com a paciente”. Verificamos assim, que os conflitos nas vidas dessas mulheres e as relações
afetivas que estas mantinham envolviam todo um conjunto de familiares que moravam e
trabalhavam nessas localidades rurais.
Assim como muitas mulheres negras permaneceram trabalhando nas propriedades
após o fim da escravidão ou buscaram continuar nas áreas rurais como lavradoras, muitos
homens negros também o fizeram. Entre os processos de homicídio envolvendo mulheres na
condição de acusadas, um deles chama atenção por apresentar outros contornos, pois a ré em
questão é uma mulher branca, de condição remediada e ex proprietária de escravos. A vítima,
por sua vez, era um homem negro, ex escravo, que trabalhava em sua casa. Em 1889, um ano
após a abolição da escravidão no Brasil e às vésperas da proclamação da república, o liberto
Brazílio José agonizava após receber uma facada abaixo do estômago e, antes de morrer,
dissera ao vizinho que o acudiu suas últimas palavras, acusando a ex sinhá moça Rozalina
Maria de Britto de tê-lo esfaqueado.
Na batalha discursiva que se desenrola nos depoimentos, as descrições da índole de
vítima e acusada conduziram o processo, buscando não apenas definir a existência da legítima
defesa da honra da ré contra a presunção de inocência do ofendido, mas principalmente, os
lugares sociais ocupados por uma mulher branca e rica e por um homem negro e pobre, cuja
vida e morte guardava as marcas do passado escravista.
Havia entre Brazílio e Rozalina uma relação de patroa e empregado herdada da
recentemente extinta relação entre senhora e escravo. As últimas palavras do liberto, relatadas
no depoimento do vizinho Bento Manoel, demonstram como Brazílio continuava a trabalhar
para sua ex sinhá na lida da propriedade.

Tendo sua ex sinhá moça mandado elle pilar arroz e buscar água, que elle
prontamente o fez, ella tornou a manda-lo buscar mandioca, e chegando elle
com a mandioca, a encontrou deitada e encostada em um quarto na porta,
toda descomposta, elle offendido indo embrulhar a mesma, ella acordou-se e
dera, digo, ella acordou e já se achando de posse da facca do mesmo
offendido, discera lhe que atrevimento era aquelle e dera-lhe a facada, cuja é
do offendido e ella já se achava de posse antes delle ir buscar a mandioca.178

Percebemos por meio deste processo, que as marcas da escravidão nas relações de
trabalho no alto sertão da Bahia permaneciam de inúmeras formas e estavam permeadas por
diferentes intersecções de classe, raça e gênero, que definiam e redefiniam os lugares sociais
ocupados por mulheres e homens, negros e brancos, trabalhadores e proprietários.

178
APEB. Sessão Judiciário. Série Processos-Crime Homicídio. 1889. 13/542/06.
91

Ao pensarmos numa espécie de “escala de opressões”, observemos que, nesse caso, a


violência de gênero expressa pela tentativa de estupro relatada pela acusada do crime de
homicídio, estava presente também na vida de mulheres brancas e ricas, rompendo em muitos
momentos as fronteiras das hierarquias de classe e raça. Um ex-escravo, homem negro, que
tentava abusar sexualmente de sua senhora, mulher branca, ultrapassava os limites que sua
condição social lhe impunha, mas conformava seu lugar na dominação de gênero. Vale
ressaltar, no entanto, que assim como a imagem estereotipada da mulher negra promíscua e
sexualmente disponível, a imagem do homem negro estuprador não era algo incomum no
universo escravista e não deixaria de ser no pós-abolição, pois como alerta Angela Davis,
“uma vez aceita a noção de que os homens negros trazem em si compulsões sexuais
irresistíveis e animalescas, toda a raça é investida de bestialidade” 179.
Assim, para as autoridades na condução processo, permanecia a investigação da índole
da mulher e de adequação as normas de gênero nos depoimentos das testemunhas, quase não
lhe dando espaço de relatar o acontecido, mas sendo considerada nos autos como “pacífica e
boa mãe de família e de bom procedimento”. Por sua vez, o relato da vítima do homicídio,
ainda que tido por uma testemunha como “homem de bem”, era desqualificado por outra que
“ouvira dizer que ele tinha faltado o respeito a Bella, mulher de Cassiano” 180. Nesse sentido,
a violência sexual que sofrera fora a causa do ato homicida de Rozalina, mas a absolvição da
ré pelo tribunal do júri estava também associada à posição social ocupada pela vítima do
homicídio e a narrativa de sua culpa.
Outras profissões e ocupações desempenhadas por mulheres pobres e negras, ainda
que correspondam a um percentual bem menor nos processos criminais trabalhados, revelam-
se importantes indícios de criminalização, seja dos saberes femininos costumeiros e
tradicionais que desafiavam o saber científico, no caso das curandeiras e parteiras, seja da
presença de hábitos considerados arcaicos e perturbadores da ordem para o projeto de
civilidade das elites, como os das lavadeiras.
As parteiras localizadas nos processos aparecem no contexto de crimes de infanticídio
em áreas rurais do município. Embora apenas duas recebam essa qualificação nos autos, não é
raro encontrar mulheres, sobretudo camponesas, compartilhando uma rede de conhecimentos
sobre ervas, escalda-pés, garrafadas, banhos de assento e outros tratamentos herdados da
medicina popular por gerações. Foi assim que em 1911, na investigação de um infanticídio
em Macaúbas, a companheira de residência da ré Ana Francisca dos Anjos recorre a Antonia

179
DAVIS, Angela. Mulheres, Raça e Classe. São Paulo: Boitempo, 2016, p.186.
180
APEB. Sessão Judiciário. Série Processos-Crime Homicídio. 1889. 13/542/06.
92

Maria da Conceição, de sessenta anos, para auxiliar os incômodos de sua amiga, sendo que
esta receita “escaldapé e sinapismos nas pernas” 181.
Entre as testemunhas do caso, temos a presença de Ambrosina Maria do Nascimento,
de quarenta e quatro anos e solteira, que alega trabalhar em serviços domésticos, mas também
é qualificada como parteira nos autos. Além disso, existe a menção a uma parteira de nome
Jovina que teria auxiliado Ana Francisca em possíveis partos mal sucedidos no passado,
segundo relato do amásio da acusada. Outra parteira identificada como testemunha em um
processo de infanticídio de 1913, na localidade de Canabrava dos Farias, distrito de Bonito,
também é bastante idosa, se chamava Belisaria Maria de Jesus, era viúva e tinha a idade de
setenta e cinco anos. Belisária foi chamada para ver o cadáver da criança. As parteiras eram
assim, mulheres cuja experiência e histórico de auxílio em momentos de enfermidade e
gestação, garantiam a estas um respaldo na comunidade em que viviam.
Na composição da narrativa de outro processo-crime de infanticídio datado de 1933,
que será melhor analisado no próximo capítulo, uma personagem se destaca, a curandeira
Germana de Tal, uma mulher que, ao preparar e vender as garrafadas para o companheiro da
ré Maria Roza de Jesus, é com frequência, evocada nos interrogatórios, sem nunca ter sido
chamada a prestar depoimento. A vontade de saber das autoridades policiais se expressa
constantemente em relação a essa mulher e o seu ofício de parteira e curandeira. Nesse
interim, nas falas dos parentes de Maria Roza, faz-se perceptível a reputação reconhecida da
curandeira Germana.

Existia uma curandeira que tratava muito bem de incommodo de mulher, e a


filha da mesma, que ali tinha apparecido sabendo do incomodo de Maria
Roza mandou dizer a sua mulher Clemencia que se desse duas garrafadas a
Maria Roza preparadas por sua mãe garantia que ella ficaria boa que em
visto disto sua mãe mandou José Pinto à casa de Germana buscar a primeira
garrafada e Maria Roza tomando parece que melhorou. 182

A fala acima pertenceu ao padrinho de Maria Roza, João Baptista que, em seu
testemunho, evidenciou certo reconhecimento pelo trabalho de Germana, tendo a garantia de
seus conhecimentos sobre remédios para “incômodos de mulher” assegurada pela filha da
mesma, que a propósito, ofereceu o trabalho da mãe. Por sua vez, a madrinha Clemência

181
APEB. Sessão Judiciário. Série Processos-Crime Infanticídio. 1911. 03/87/13
182
APMC. Série: Autos Crimes – Sub série: Infanticídio. Data-limite 1918-1943. Caixa: 61. Maço 01.
93

respondeu ao ser questionada em interrogatório que “Germana é conhecida como muito boa
para preparar remédio para mulher e como parteira 183”.
Em relação ao oficio de parteira nesse período, na região do alto sertão da Bahia,
verifica-se ao mesmo tempo a perpetuação da tradição dessa rede de conhecimentos
femininos nas artes curativas contrastando com a implementação, ainda que de forma lenta e
relutante, dos tratamentos prescritos por médicos higienistas no início do século XX. As
parteiras eram muito respeitadas pela comunidade alto-sertaneja. Segundo Nogueira, “a
parteira prestava os seus serviços para mulheres de todas as classes e esta situação perdurou
por muito tempo”184. Com o tempo, essa conjuntura se altera e o atendimento em hospitais e
maternidades passou a funcionar como forma de distinção social, porém a perseguição às
mulheres que praticavam o ofício de trazer crianças ao mundo, ou prescrever ervas
medicinais, não parece ter sido tão efetiva em Caetité como o fora nas capitais. Não há, por
exemplo, processos criminais pelo crime de curandeirismo envolvendo mulheres em nosso
período de análise, apenas dois homens. As parteiras eram assim, reconhecidas e necessárias
numa sociedade em que não havia tantos profissionais de medicina atuantes. Afinal,

Era entre as mãos das parteiras, como a preta Damiana e a velha Siá
Clemência, que as crianças caetiteenses vinham ao mundo. Na região
também se encontrava um ou outro médico, formado pela Faculdade de
Medicina da Bahia, que atendia a chamados em domicílio, prestando seus
serviços àqueles que podiam pagar o preço devido pelo trabalho desse
profissional185.

Outra ocupação desempenhada pelas mulheres pobres, que parece ter sido bastante
requisitada pelas classes remediadas e pela elite local, é a de lavadeira 186. Entretanto, a
presença dessas mulheres na fronteira da urbanização ainda bastante incipiente de Caetité
demonstra também um incômodo para as autoridades que se empenhavam no projeto de
modernidade do alto sertão, sendo alvo da regulamentação legal. Os códigos de posturas
impostos no período imperial já proibiam a lavagem de roupas nos rios e córregos que
abasteciam à população e o novo código que começou a vigorar em 1944, em seu artigo 70,

183
APMC. Série: Autos Crimes – Sub série: Infanticídio. Data-limite 1918-1943. Caixa: 61. Maço 01.
184
NOGUEIRA, Maria Lúcia Porto. Mulheres, história e literatura em João Gumes: Alto Sertão da Bahia,
1897-1930. São Paulo: Intermeios, 2015, p. 163.
185
CARNEIRO, Giane Araújo Pimentel. As práticas educativas familiares no processo de distinção
geracional criança/adulto (Caetité-BA, 1910-1930). (Dissertação de Mestrado em Educação). Belo Horizonte:
UFMG/FaE, 2011, p. 42.
186
Presença de lavadeiras e engomadeiras nos livros de pagamento da família Teixeira. Ver RIBEIRO, Marcos
Profeta. Mulheres e poder no Alto Sertão da Bahia. A escrita epistolar de Celsina Teixeira Ladeia (1901 a
1927). São Paulo: Alameda, 2012.
94

pretendia impedir a secagem de roupas em logradouros públicos, estabelecendo que “ninguém


poderá estender peças de roupas para secar, nas ruas e praças desta Cidade, sob pena de multa
de $30,00”187.
Sob a alegação de preservar a saúde pública, esse e outros artigos do código de
posturas buscavam cercear práticas que já eram comuns ao cotidiano da população mais pobre
e, nesse caso, representava também uma forma de subsistência ou complemento da renda
familiar em tempos de escassez. Em nossa documentação, embora muitas mulheres apareçam,
sobretudo nos crimes de defloramento e infanticídio, realizando atividades de lavagem de
roupa próximo a fontes de água, nem sempre estas se classificam como lavadeiras, e sim
exercendo atividades domésticas. Não era incomum, inclusive, a descoberta de cadáveres de
recém-nascidos às margens de rios e córregos, como no caso de Minelvina Maria do Espírito
Santo que, em 1913, alega ter tido seu parto a beira do rio, enquanto lavava roupa. Em 1891, a
lavadeira e fiandeira Mequelina Ferreira Marques, acusada de infanticídio, viajando de
Tremedal para Caculé com sua filha de vinte dias, ao chegar próximo ao destino, teria jogado
a menina em uma lagoa, segundo o relato da promotoria 188.
A ocupação de lavadeira proporcionava a essas mulheres um trânsito entre localidades
rurais, bem como entre a área rural e a urbana. Assim, não é algo excepcional em nossas
fontes, encontrar testemunhas, acusadas e vítimas que não eram naturais da localidade onde
residiam no momento do delito. Tal mobilidade estava associada também a busca por novas
formas de sobrevivência naqueles sertões e expressava que os horizontes de expectativas
dessas mulheres sertanejas não permaneciam imutáveis por toda vida, nem limitados ao
espaço privado, como nunca o foram desde os tempos da escravidão.
Outras ocupações que poderiam ser desempenhadas por mulheres caetiteenses pobres
e negras, embora não apareçam nos processos, abrem margem para indagarmos quanto a sua
presença, como é o caso das pequenas comerciantes. Ainda a que presença de vendedoras,
escravas de ganho ou libertas que se dedicassem ao pequeno comércio emerja mais facilmente
nas fontes dos grandes centros urbanos, tal possibilidade não estava ausente dos espaços do
alto sertão da Bahia. Entretanto, nos processos criminais estudados, é possível identificar
diversos homens classificados como comerciantes ou negociantes, mas nenhuma mulher.
Os processos criminais nos auxiliam na identificação e reflexão acerca das profissões
desempenhas por mulheres pobres e negras no alto sertão baiano, invisibilizadas pelos censos

187
Livro de Registro dos Decretos-Leis (1944-1960). Lei nº 33 de 02/10/1948. Codigo de Posturas do Municipio
de Caiteté. Capítulo IV: Da saúde pública, p. 87.
188
APEB. Sessão Judiciário. Série Processos-Crime Infanticídio. 1891. 13/541/17.
95

ou levantamentos feitos por fiscais de impostos e, assim, subnotificadas nas primeiras décadas
republicanas. Seja no espaço urbano ou no rural, as mulheres envolvidas nas tramas da justiça
revelavam também estratégias de sobrevivência cotidiana herdadas da escravidão e que, sob
outras nuances, perduraram no pós-abolição.

2.3 “Amores e dores”: Relações afetivas sob as penas da lei

O fim do edifício escravista provocou alterações não somente no plano econômico e


social, mas operou de forma significativa nas relações afetivas e subjetividades dos sujeitos
envolvidos. Tais mudanças não ocorreram de uma hora para outra, com a simples outorga de
uma lei abolicionista, haja vista que o número de mulheres libertas por alforrias já era
significativo nos anos finais da escravidão 189, condição que afetava diretamente seus arranjos
amorosos e familiares. Por sua vez, as relações afetivas de mulheres negras carregaram e
ainda carregam inúmeros estigmas dos tempos do cativeiro. É assim que, entre os processos
analisados, encontramos mulheres casadas religiosamente, amasiadas, em relações extra-
conjugais, viúvas, solteiras, criando sozinhas seus filhos, compartilhando afazeres com
familiares ou rompendo com o mito natural da maternidade.
A união afetiva por meio do casamento para as mulheres negras – pretas e pardas –
constituiu-se de forma estruturada pelas relações escravistas. Objetificadas e sexualizadas,
vítimas do estupro e da violência, submetidas aos caprichos de senhores e patrões e marcadas
pela instabilidade da manutenção de suas relações amorosas entre os seus, as mulheres negras
escreveram, muitas vezes, uma história de dor e solidão, mas, sobretudo, uma história de
resistência no campo das relações afetivas.
Em que pese a superação da tese190, por muito tempo perpetuada, de que sujeitos
escravizados não constituiriam famílias ou uniões matrimoniais em virtude da inconstância de

189
Assim, como em outras partes do Brasil, as cartas de alforria revelaram que as mulheres em Caetité foram as
mais beneficiadas, ultrapassando homens crioulos e africanos. Entre as crianças, as meninas foram as que mais
receberam a alforria sob a condição de servir até a morte do seu senhor, o que constituía em mais uma estratégia
de controle para dispor das suas habilidades de veio doméstico por muito tempo. Kátia Almeida também
encontrou um grande número de mulheres alforriadas em Rio de Contas, com destaque para a constatação do
mesmo percentual de alforriadas para dois momentos do século XIX, 1800-1850 e 1850- 1871. In: ORTIZ,
Ivanice Teixeira Silva. Trabalho escravo, laços de família e liberdade no alto sertão da bahia: Caetité (1830-
1860). Dissertação de Mestrado. Santo Antônio de Jesus. Programa de Pós Graduação em História Regional e
Local: UNEB 2014, p.106.
190
Seguindo os caminhos trilhados pela História social da escravidão, alguns autores despontaram na
historiografia brasileira, com abordagens sobre família escrava. De acordo com Robert Wayne Slenes, esses
estudos têm “contestado diretamente a antiga visão da vida sexual e familiar do escravo como pouco mais do que
uma desordem cultural, ou [...] uma ‘vasta promiscuidade primitiva’”. Slenes ressalta que as novas pesquisas
“[...] têm apresentado dados qualitativos sugerindo que a constituição de famílias (inclusive externas,
incorporando pessoas não aparentadas) interessava aos escravos como parte de uma estratégia de sobrevivência
96

suas relações, é preciso refletir sobre o caráter dessas relações no universo escravista e pós-
abolicionista. Em Caetité, a existência de médias e pequenas propriedades com reduzidos
números de posse escrava, tornava a interferência dos senhores na vida de seus cativos, e por
sua vez, nas suas uniões matrimoniais, muito mais frequentes que em grandes propriedades.
Ivanice Ortiz, ao estudar os casamentos entre homens e mulheres escravizados no alto sertão
da Bahia, entre os anos de 1830-1860, por meio dos registros da igreja matriz de Caetité,
identificou cento e noventa e nove senhores que possuíam cativos legalmente casados em suas
propriedades. Ressaltamos que esse número não representava apenas o interesse cristão dos
proprietários caetiteenses, mas as táticas empregadas por homens e mulheres negros para
legitimação de suas uniões, o que lhes garantia mais estabilidade e oportunidades de obtenção
da liberdade e de uma possível mobilidade social. Segundo a autora,

Os números mostram que muitos escravos recorreram ao casamento


legítimo, valorizaram a família e não mediram esforços para formá-la,
sobretudo, nas pequenas posses, onde efetivamente seria mais complicado
pelo percentual limitado de cativos. A ação dos proprietários pela
reprodução natural dos cativos pode ter facilitado o acesso ao casamento
legitimado pela igreja católica, como também deve ter pesado as obrigações
cristãs da classe senhorial, assim como as escolhas dos cativos. 191

Caetité e a região do alto sertão estavam fortemente erigidos sobre tradicionais valores
cristãos e a religiosidade católica perpassava todos os aspectos da vida das pessoas, de todas
as classes sociais, desde os rituais de passagem marcados pelos sacramentos até o calendário
festivo da região, expresso na homenagem aos santos, em novenas e romarias. Sendo assim, o
matrimônio religioso representava uma forma de inserção nessa sociedade e na própria
dinâmica das relações escravistas, como se dava também na área de Rio de Contas.

Outro dado examinado nos registros de casamentos é o número expressivo


de uniões consensuais encontradas em Minas de Rio de Contas, nos anos
finais da escravidão, após a análise quantitativa dos nubentes declarados
filhos naturais ou legítimos. Embora, essas fontes não nos possibilitam uma
quantidade exata dos números por haver registros que não disponibilizam
esta informação, percebemos um número maior das uniões consensuais

dentro do cativeiro”. In: SLENES, Robert. W. Na Senzala uma flor: esperanças e recordações na formação da
família escrava, século XIX. 2ª ed. corrigida. Campinas – São Paulo: Editora da Unicamp, 2011, p. 53 e 54.
191
ORTIZ, Ivanice Teixeira Silva. Trabalho escravo, laços de família e liberdade no alto sertão da Bahia:
Caetité (1830-1860). Dissertação de Mestrado em História Local e Regional. Santo Antônio de Jesus. UNEB,
2014, p.72-73.
97

referentes às legitimadas pela igreja, correspondendo respectivamente a 63 e


39 uniões para o período estudado192.

Com o aumento do número de mulheres e homens libertos em fins do século XIX e


após a abolição da escravidão, esses laços não perderam a importância para a vida social, mas
outros tipos de união, que não eram exatamente uma novidade, sobretudo, as de uso
costumeiro, já conhecidas como concubinatos e amasiamentos, se tornaram mais comuns e
nem sempre destoavam dos códigos morais das classes populares, apesar de estarem sob
constante estigmatização nos discursos jurídicos dos processos. Como pontua Vainfas, em seu
Trópico dos Pecados, “difundido em todas as camadas sociais, e generalizado em toda a
Colônia, o concubinato resultava, em primeiro lugar, da situação colonial e da escravidão” 193.
Tais formas de união afetiva estavam nas raízes de nossa colonização e perpassaram por todas
as classes sociais, simbolizando também modelos de união interracial, como assinala Adriana
Reis “casos de concubinatos e filhos ilegítimos de homens livres com mulheres de cor foram
muito comuns no Brasil colonial, e tornaram-se uma das principais formas de mobilidade, no
sentido ascendente, além de terem proporcionado um silencioso processo de mestiçagem”194
É preciso compreender que, apesar do forte apelo presente nos processos para a
realização do matrimônio, as despesas e as exigências burocráticas de um casamento civil
poderiam constituir empecilho para sua realização por casais sem condições financeiras.
Entretanto, o matrimônio religioso, mais enraizado na sociedade brasileira que o casamento
civil, mesmo após a proclamação da república, não conservava tais empecilhos. Ainda assim,
a ocorrência de uniões consensuais, nem sempre explícitas nos processos e mais facilmente
encontradas nos crimes de homicídio, superava o número de uniões formais identificadas nas
fontes. Nesse sentido, as razões econômicas não bastavam para justificar a incidência dos
concubinatos e amasiamentos entre a população mais pobre, porém o costume de “viver como
se casado fosse” representava uma herança dos tempos coloniais, associada a instabilidade de
suas vidas.

192
ROCHA, Fernanda Gomes. Uniões Matrimoniais e Famílias Negras em Minas do Rio de Contas, 1873 a
1888. Seminário do GPCSL: os sertões da Bahia, 1, 2011, Caetité-BA. Anais do I Seminário do Grupo de
Pesquisa, Cultura, Sociedade e Linguagem (GPCSL/CNPq): os sertões da Bahia. Caetité, v. 1, nº 1, out. 2011,
p.8.
193
VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados: moral, sexualidade e inquisição no Brasil. São Paulo: Nova
Fronteira, 1997, p.84.
194
ALVES, Adriana Dantas Reis. As mulheres negras por cima: o caso de Luzia jeje: Escravidão, família e
mobilidade social – Ba 1780-1830. Tese (Doutorado em História). Niterói: Universidade Federal Fluminense,
Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de História, 2010, p.153.
98

A nosso ver, os segmentos pobres deixavam de se casar no Brasil não porque


lhes fosse impossível enfrentar obstáculos financeiros e burocráticos
exigidos pelo matrimônio oficial, nem muito menos por terem escolhido
qualquer forma de união oposta ao sacramento católico. Amancebavam-se
por falta de opção, por viverem, em sua grande maioria, num mundo instável
e precário, onde o estar concubinado era contingência da desclassificação,
resultado de não ter bens ou ofício, da fome e da falta de recursos, não para
pagar a cerimônia de casamento, mas para almejar uma vida conjugal
minimamente alicerçada segundo os costumes sociais e a ética oficial 195.

Os termos “concubina ou amázia” emergem em processos como o homicídio de José


Antônio da Silva, por sua amásia Ana Cecília, em 1927 na localidade de Poção (Santa Luzia),
ou quando, em 1941, Manoel Pereira “assassina barbaramente sua companheira de
concubinato”, em Esgoto (Brejinho). No relato da defesa percebe-se o reconhecimento, ao
menos social, dessas uniões para as camadas populares, afirmando no segundo caso que,
“embora essa união não fosse legitimada officialmente pela lei, contudo ela existia de facto,
cimentava essa união a amizade que ambos se votaram pois juntos conviviam e nas viagens
que um fazia o outro acompanhava” 196.
A referência a pessoas “casadas apenas eclesiasticamente” na descrição de
testemunhas em muitos processos indica também uma permanência da mentalidade católica
que dava ao matrimônio religioso um status reconhecido e amparado socialmente. Com
frequência, as mulheres casavam-se religiosamente ainda muito jovens. Entretanto, essa
tendência ligada a um casamento arranjado muito cedo como projeto de vida para essas
meninas e suas famílias, revela-se uma característica das camadas mais abastadas da
sociedade. O casamento de mulheres pobres e negras seguia outros contornos e,
constantemente, nos deparamos com uma intensa presença de mulheres, entre vinte e trinta
anos, com o estado civil de solteira na qualificação dos processos ou em seus depoimentos.
Este registro, entretanto, não sugere que essas mulheres pobres e negras não mantivessem
relacionamentos esporádicos ou uniões consensuais ainda em idade precoce, como nos
sugerem outras fontes, mas não se deve excluir a hipótese da ausência de um parceiro afetivo
na vida das mulheres negras.
Neste interim, o acionamento do aparato jurídico por famílias e indivíduos pobres ante
um crime de defloramento representava também um instrumento que as brechas da lei
possibilitavam para a realização de um casamento. Em meio às alternativas que mulheres
pobres e suas famílias encontravam com o intuito não apenas da “preservação da honra”, mas

195
Ibid., p.94.
196
APMC. Série: Autos Crimes – Sub série: Homicídio. Data-limite 1918-1992. Caixa: 56.
99

como garantia de um possível casamento, o recurso a justiça se fazia presente e, mesmo que o
indiciamento requeresse a punição dos ditos crimes sexuais, muitas vezes, bastaria o réu
“reparar o mal” no altar, evitando assim uma condenação penal ou o prosseguimento do
processo criminal. Dessa forma, como confirma Sueann Caulfield, era fato que

Moças da classe trabalhadora, ou mais frequentemente seus pais ou


responsáveis, recorriam à Polícia e a Justiça para que intermediassem os
conflitos que envolviam a perda da virgindade, geralmente com a esperança
de que as autoridades forçassem os deflorados a se casar.197

O defloramento de meninas com menos de dezesseis anos poderia resultar num


casamento forçado ou negociado pela família diante da possibilidade de prisão do acusado.
Por sua vez, matrimônios religiosos de mulheres com quinze anos não eram raros nos
registros de casamento de Caetité nas primeiras décadas do século XX, ainda que a idade mais
recorrente das noivas estivesse entre dezesseis e vinte e dois anos e para os noivos fosse de
dezoito a trinta anos. Casos como o citado abaixo, registrado no ano de 1919, ocorrem no
livro de registros da cúria diocesana.

Aos trinta de junho de mil novecentos e desenove no logar denominado


Lagôa Funda, as seis horas da tarde, precedidas as formalidades de estylo
assisti ao casamento de Sérgio José Correia com Florinda Maria Pires, elle
com vinte e sete annos filho legitimo de Adão José Correia e Anna Candida
de Jesus, ella com quinze annos filha legitima de Paulo Ferreira das Neves e
Melania Florinda Pires, ambas desta freguesia, foram dispensados nos
impedimentos de afinidade lícita em segundo grau lateral igual simples 198.

Em maio do mesmo ano, na Catedral de Senhora Santana, portanto na sede do


município, João Baptista dos Santos, com dezoito anos, se unia matrimonialmente a Anna
Maria de Jesus199, com quinze annos. Obviamente nada indica que haja uma situação de
defloramento em uma ocasião específica como essa, mas esses registros permitem entrever a
ocorrência de casamentos de mulheres menores de dezesseis anos, inclusive com significativa
diferença de idade e havendo laços de consanguinidade entre os nubentes.
Entre os processos de defloramento analisados, podemos perceber que a maioria
absoluta dos interessados, isto é, autores da denúncia, era composta por homens com algum
grau de parentesco ou posição de responsabilidade em relação a vítima. Pais legítimos ou de

197
CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: Moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-
1940). Campinas, SP: Editora da UNICAMP, Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, 2000, p.205.
198
Cúria da Igreja Matriz de Caetité. Livros de registro de casamento, 28/01/1919 à 03/09/1925
199
Cúria da Igreja Matriz de Caetité. Livros de registro de casamento, 28/01/1919 à 03/09/1925
100

criação, padrastos e padrinhos comumente assumiam o dever de levar o caso às autoridades, o


que não simbolizava que as mulheres dessas famílias não influenciassem nas ações dessas
figuras masculinas ou que fossem totalmente submissas ao poder do patriarca. Muitas vezes,
as próprias moças ofendidas já estabeleciam as condições para a realização ou não de um
casamento ou mesmo não levavam a diante a denúncia, preferindo realizar um acordo.
Entretanto, distinguindo-se dos estudos sobre defloramentos referentes à região da
capital do estado, onde as mulheres predominavam como autoras das denúncias, em nossa
pesquisa, encontramos apenas quatro casos em que a figura da mãe se sobressai como
proponente das acusações. As caraterísticas mais conservadoras, de uma região interiorana,
como o alto sertão que fora, por muito tempo, marcada por valores patriarcais e
coronelísticos, pode ter influenciado tal peculiaridade. Por sua vez, são esses casos mais
esporádicos de protagonismo feminino que nos mostram como o apelo a justiça não deixou de
representar uma alternativa a essas mulheres diante do que estava em jogo para o futuro de
suas filhas.
Um dos casos encontrados, o defloramento de Laurina Maria da Conceição,
moradora de Rio de Contas em 1912, levado a justiça por sua mãe Paulina Maria da
Conceição, não apresenta a condução do processo, tendo como justificativa do escrivão,
“terem sido roubados os autos”. Em contrapartida, os três processos completos a que temos
acesso em que mulheres, mães das moças defloradas, recorreram diretamente ao judiciário,
são bastante ilustrativos de que o papel exercido pelas mulheres de classes populares nos
arranjos familiares não correspondia a um simples papel de submissão ante as amarras do
patriarcado. Ao travar com seus genros uma batalha jurídica para que estes assumissem o
compromisso do casamento firmado com suas filhas, anterior ao defloramento, essas mulheres
exerceram papéis que escapam a uma normatização simplista, elaboraram contrapoderes nas
brechas do poder instituído e subverteram um instrumento burguês de controle (a lei) ao seu
favor.
Um desses contrapoderes revela-se no processo perpetrado por Antonia Joaquina
Leite, com sessenta anos e viúva, natural de Bom Jesus dos Meiras (atualmente Brumado), e
já data de 1938.

Antonia Joaquina Leite, pessoa nimiamente pobre, residente em Limeira, do


Districto de Santa Luzia deste termo, precisando promover contra Juvenal
Francisco Bonfim, residente no termo de Caculé, auctor de defloramento de
sua filha menor Maria Joaquina Leite, o competente processo-crime e não
101

possuindo recursos para tal fim, requer a V.S. attestar aqui se ella é
realmente pessoa pobre no conceito legal. 200

Na ausência de um poder instituído ou legitimado, como conceitua Certeau201, jogando


com o “terreno que lhe é imposto”, essas mulheres valiam-se de táticas e podiam não
enfrentar diretamente os mecanismos de opressão e controle, mas utilizavam as brechas que
estes lhes davam. Recorrer à justiça correspondeu a Antonia como uma alternativa viável
quando, na falta da figura do “pai de família” ou após a negociação frustrada de seu genro
Arlindo Gonçalves Pereira com o cunhado Juvenal para realizarem o casamento, não lhe
restara outros argumentos. Autora do processo, Antonia, uma mulher pobre, viúva e
analfabeta, não desconhecia as ocasiões que as brechas da lei lhe oferecia para atuar e impedir
que sua filha ficasse “falada” ou não contraísse um matrimônio com outro homem, visto que a
constatação do defloramento de uma mulher era justificativa judicial para o marido requerer a
anulação do casamento. Ainda que, como foi constatado depois, Maria Joaquina não fosse
menor de idade, a promessa de casamento constituiria a “fraude, sedução ou engano”
empenhados por Juvenal. Inquirida sobre isso, Antonia respondeu

Que sabe do casamento contratado que sua filha tinha com o indiciado, e
para tal realização ela depoente insistia a todo momento e ele sempre dizia
que não podia casar em virtude do mau tempo. Diante disso seu genro tomou
providencias sobre a realização do casamento ficando o mesmo contratado
para Novembro. Quando em setembro próximo veio a saber que sua filha já
se achava deflorada pelo indiciado.202

Assim, a mãe da vítima, ao recorrer à justiça e cobrar a promessa feita a sua filha,
exercendo o papel de chefe de família, ainda que se valendo da ajuda de um genro,
apresentara uma resistência voluntária ou involuntariamente aos padrões normativos de
gênero. Caulfield pontua que “as mães de vítimas de defloramento frequentemente
questionavam a ideia da predominância da família patriarcal ao se considerar chefes de
família legítimas e defensoras da honra de suas filhas” 203. Entretanto, nesse caso específico,
Antônia, diante da ausência de seu falecido cônjuge, exercia um contrapoder perante a justiça,
que não fora reconhecido pelo ex-genro. Ao escrever a carta de despedida para o cunhado e

200
APMC. Série: Autos Crimes – Sub série: Defloramento. Data-limite 1926-1986. Caixa: 37. Maço 01.
201
CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano. 1. Artes de fazer. Petrópolis. Rio de Janeiro: Vozes, 2008.
202
APMC. Série: Autos Crimes – Sub série: Defloramento. Data-limite 1926-1986. Caixa: 37. Maço 01.
203
CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: Moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-
1940). Campinas, SP: Editora da UNICAMP, Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, 2000, p.41.
102

não para a sogra ou a noiva, o acusado Juvenal demonstrava ater-se a ideia de que negócios
matrimoniais deveriam ser feitos e desfeitos em acordos com um chefe masculino da família.
Ao narrar a história, a jovem Maria Joaquina Leite informou durante o auto de
perguntas que era noiva de Juvenal Francisco Bonfim, e estava de casamento marcado para o
mês de novembro. Relatou que o rapaz costumava frequentar a sua casa e estando um dia a
sós, “chega o indiciado e lhe disse que em virtude da oposição de seus paes, só acharia meio
de se casar com ella ofendida por meio de defloramento”204. Diante da proposta, Maria
Joaquina afirma que sua primeira atitude fora recusar, mas tanto as promessas de casamento
quanto o uso da força a fizeram ceder e ter relações sexuais com Juvenal. Contudo, o desfecho
não se dera como a moça almejava, pois o acusado enviara uma carta ao seu cunhado Arlindo
Gonçalves Pereira desfazendo o compromisso de casamento, supostamente em obediência aos
pais que se opunham ao enlace com Maria. Embora Arlindo tenha tentado consolar a cunhada,
dizendo que ela deveria ignorar o ocorrido, pois poderia se casar com outro homem, Maria
“respondera que tal não podia acontecer em razão de já se achar deflorada pelo indiciado” 205.
Tal afirmação corrobora a ideia de que, mesmo reelaborando os códigos morais e de conduta
de acordo com suas condições concretas de vida e sobrevivência, os valores de moralidade
oriundos das classes dominantes incorporavam-se também ao vocabulário cotidiano da
população mais pobre.
Caso semelhante, mas com desfecho absolutamente diferente é o defloramento de
Anna Xavier da Cunha, de dezesseis anos, por Manuel Lopes Patez, brasileiro, lavrador,
solteiro, de 22 anos de idade. O delito é denunciado pelo pai da menor, Camilo Alves Patez e,
a julgar pelo sobrenome incomum, é possível que haja um parentesco com o acusado que não
chega a ser mencionado no processo. Contudo, durante o seu auto de declaração Manuel
afirma que “tendo ele relação de namoro com Anna Xavier da Silva, e com promessa de casar
com a mesma conseguiu lograr em defloramento [...] entretanto deseja reparar pelo casamento
o mal que desta forma praticou a fim de evitar a condenação a que está sujeito perante a lei
penal”. 206
Diante da postura de muitos juristas que “apoiavam a medida que perdoava os homens
que se casassem com sua vítima” 207, evidencia-se uma valorização do casamento para a
sociedade brasileira da Primeira República e mais especificamente na região alto sertaneja.

204
APMC. Série: Autos Crimes – Sub série: Defloramento. Data-limite 1926-1986. Caixa: 37. Maço 01.
205
APMC. Série: Autos Crimes – Sub série: Defloramento. Data-limite 1926-1986. Caixa: 37. Maço 01.
206
APMC. Série: Autos Crimes – Sub série: Defloramento. Data-limite 1926-1986. Caixa: 37. Maço 01.
207
CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: Moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-
1940). Campinas, SP: Editora da UNICAMP, Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, 2000, p.82.
103

Enquanto base para a formação da nação e elo entre os interesses públicos e privados, “a ‘boa
família’ é o fundamento do Estado: daí a atenção crescente que ele lhe dá e sua intervenção
em caso de incapacidade das famílias pobres, as mais controladas” 208.
Os papéis de gênero culturalmente construídos para homens e mulheres sobressaíam
nos discursos jurídicos que investigavam o procedimento de ambos durante o depoimento das
testemunhas. Era comum assim termos a descrição da honra masculina relacionada ao
trabalho e a honra feminina relacionada ao comportamento, que por sua vez garantia a
manutenção da honra masculina e da honra da família. Sob este aspecto, Andréa R. R. P.
Barbosa afirma

No que diz respeito à honra feminina, esta está diretamente associada à


masculina, já que é ditada pelo pertencimento da mulher a uma família
patrilinear, e pela sua virtude, ou seja, pela sua capacidade de resguardar a
sua reputação e de sua família através do controle do seu corpo e de seus
desejos. A honra-virtude, desta forma, é apanágio feminino e se sustenta
através do sentimento de vergonha que norteia o comportamento da mulher
em relação a sua sexualidade. Em resumo, o homem tem o dever de proteger
a honra-virtude da mulher e esta de manter seu comportamento comedido e
virtuoso. A honra masculina, portanto, tinha no comportamento feminino e
no “mau uso” dos seus órgãos genitais, a sua vulnerabilidade209.

Apesar de elaborados no seio das classes dominantes, estes valores de honra


associados ao controle da sexualidade feminina, por serem hegemônicos, eram também
dirigidos às classes populares e, em diversas situações, apropriados por elas. Comumente uma
das perguntas mais levantadas nos interrogatórios acerca da índole de meninas defloradas
consistia em saber se estas tinham o costume de passear sozinhas ou frequentar “bailes e
diversões”. Nesse ínterim, investigava-se também o passado das vítimas, os homens com
quem se relacionaram afetivamente e as mulheres com quem tinham amizade. Invertia-se as
posições no processo e quem passava a figurar como alvo do interesse das autoridades e por
sua vez, da criminalização de seu comportamento, era a mulher. É o que observamos, por
exemplo, no processo de defloramento de Alice Angélica, em 1926, por Porfírio Gabriel.
A história de Alice e Porfírio ocorreu na sede do município de Caetité, o que é um
diferencial em relação à maioria dos processos de defloramento analisados para a região,
embora o trânsito entre área urbana e rural esteja constantemente presente nos depoimentos,
revelando a dinâmica de circulação das pessoas pelo alto sertão no período em questão. As

208
PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história. Bauru: EDUSC, 2005, p.459.
209
RODRIGUES, Andrea Rocha. Honra e sexualidade infanto-juvenil na cidade do Salvador, 1940-1970.
(Tese de Doutorado), Salvador, UFBA, 2007, p.111.
104

relações tecidas entre os personagens da narrativa e seus testemunhos perante a justiça


permitem elucidar as hierarquias de gênero construídas em torno do conceito de honra, cada
vez mais empregado pelos esforços moralizadores, assim como às resistências das camadas
populares que se apropriavam destes valores moralizantes de distintas formas e poderiam
inclusive subvertê-los em suas táticas cotidianas.
Outra “vítima” de defloramento, Alice Angélica morava com seu tutor, Cezar Garcez,
desde a infância, época em que seus pais viajaram para o estado de São Paulo. Na mesma
casa, morava também Porfírio Gabriel, que assim como a moça, havia se tornado pupilo de
Cezar ainda criança. Os dois passaram a namorar e manter relações sexuais. Alice engravidou
e ocultou seu estado até o momento do parto de um menino. Acusou então Porfírio de ser o
autor de seu defloramento, iludindo a ela, menor de idade, com promessas de casamento, e
estando agora “desonrada”, ele fugia ao seu dever. Cezar Garcez entrou então com um
processo criminal de defloramento, que levara a autuação, prisão e indiciamento de Porfírio.
O jovem recusou-se a reconhecer o crime, alegando que Alice não era mais virgem quando
começaram a ter relações e que não havia como provar a paternidade da criança. Iniciou-se
assim um processo repleto de menções a questão da “honra” e do comportamento dos sujeitos
envolvidos, cujo desfecho poderia se dar no altar ou atrás das grades. Nesse caso específico, a
história terminaria com a fuga do acusado que parecia temer o casamento arranjado muito
mais do que a própria condenação.
Vale ressaltar que não eram poucas as tentativas de evitar o casamento por parte dos
réus, ainda que a possibilidade de condenação estivesse presente. Possibilidade esta que, na
prática, mostra-se bastante remota visto que a maioria dos casos teve como sentença do juiz a
improcedência do crime. Dessa forma, é perceptível que apenas dois dos processos
confirmem a ocorrência de um matrimônio como resultado final e com a concordância do
indiciado, um deles após o falecimento da esposa do acusado.
Para realizar sua defesa, Porfírio nomeara como procurador o advogado Cesar
Augusto Pereira de Castro. Durante os interrogatórios, ele insistia em inquirir as testemunhas
sobre a frequência de visitas dos sobrinhos do tutor de Alice e Porfirio. Um dos depoentes do
processo, inclusive, era o carcereiro da cadeia, Antônio Fagundes Cotrim, que demonstrava
ser amigo de Porfírio antes de sua prisão preventiva. Antônio relatou o que ouviu o réu dizer a
um colega de profissão, José Pires, durante uma visita. “que não se casava porque não era o
105

autor da deshonra de Alice, salvo se a justiça o pudesse obrigar a se casar mesmo sem dever o
crime que lhe atribuem”210.
Todavia, a conduta de Porfirio no transcorrer do processo acabou conduzindo ao seu
pedido de prisão, não adiantando nem mesmo a ação do advogado e o pedido de habeas
corpus, devido a sua ausência da cidade assim que é colocado em liberdade. Para o promotor
“ao invés de vir se defender da acusação, foge. É um signal evidente de sua culpabilidade” 211.
A principio, Porfírio se refugia na vila de Urandy e sua prisão é requerida ao juiz municipal,
mas antes que pudesse ser preso, o acusado fugiu para São Paulo. Paira então a dúvida de que
o pedido de prisão seria realmente uma forma de criminalizar o réu, ou mais provavelmente,
um último recurso de pressioná-lo a cumprir a obrigação matrimonial.
Observamos que o conceito de honra ganhava contornos e significados diferentes
quando se referia a homens e mulheres, assim como dentro dos padrões morais de distintos
segmentos sociais. Aos homens o “bom proceder” estava relacionado, sobretudo, ao trabalho
e o não envolvimento em conflitos. Para as mulheres, “ser moça decente, honrada” dizia
respeito ao seu comportamento. Além da menoridade, investigavam-se por meio dos
interrogatórios, os hábitos e as relações mantidas pela vítima. A favor de Alice pesava então o
fato de ser considerada “menina recatada, que não saía só de casa nem tinha intimidade com
nenhum homem”. O próprio indiciado, Porfírio, apesar de declarar que não era o autor do
defloramento, alega que “desconhecia nenhum namorado ou amante a quem atribuísse a
deshonra e prenhez de Alice”212.
Estando a noção de honra masculina intrinsecamente vinculada à honra feminina, o
comportamento da mulher também poderia ser empregado como prova favorável ao
indiciado. Aquelas que subvertessem o que pregava a moral e os bons costumes da época
estariam fadadas a terem sua versão contestada nos processos em que, muitas vezes, tratava-se
da “palavra do homem contra a palavra da mulher”. Esse é o caso de Presilina Maria de Jesus,
que em 1931 acusou:

José Antônio Soares Barbalho que em fins de agosto do anno próximo


passado, no lugar denominado “Boa Vista” no districto de Santa Luzia deste
termo, deflorou a menor Presilina Maria de Jesus a qual se achava
empregada há cerca de dois anos e três mezes em casa do sogro do indiciado
de nome Trajano Teixeira da Silva, depois de seduzil-a prometendo-he uma

210
APMC. Série: Autos Crimes – Sub série: Defloramento. Data-limite 1926-1986. Caixa: 37. Maço 01.
211
APMC. Série: Autos Crimes – Sub série: Defloramento. Data-limite 1926-1986. Caixa: 37. Maço 01
212
APMC. Série: Autos Crimes – Sub série: Defloramento. Data-limite 1926-1986. Caixa: 37. Maço 01.
106

caixa de pós de arroz e um annel, promessa que foi cumprida após o


defloramento, segundo declarações da própria ofendida a esta Promotoria.213

Embora também constitua um processo de defloramento e neste caso, bastante confuso


e repleto de surpresas, a história de Presilina difere muito de Alice. Não apenas por ter como
cenário uma localidade rural, mas pelos perfis de gênero que se delineiam na narrativa e nos
discursos masculinos e femininos. Presilina, na denúncia realizada por seu pai, Manoel
Adrião, acusara de ser o autor de seu defloramento um homem casado, José Antônio, genro de
seu patrão. Alegara ainda que não denunciou de imediato José, por que além da vergonha que
sentia, também gostava muito dele. O fato de namorar outro rapaz, Spiridião, depôs contra a
reputação de Presilina, mesmo que ela declarasse não ter mantido relações sexuais com o
namorado.
Dessa forma, ganhava relevância os testemunhos que construíam os perfis de vítima e
réu. Para o lavrador Joaquim Antonio de Couto, “José foi pessoa que vivia sempre ocupado
em trabalho, cumprindo suas obrigações e que Presilina era muito desaurida e namoradeira,
isto é, quando ia nas festas dos visinhos, não escolhia com quem namorar” 214. Esse perfil do
rapaz cumpridor de suas obrigações e da moça namoradeira se repetiu em outras falas,
confirmando que “um homem honesto era aquele considerado um bom trabalhador,
respeitável e leal; ele não desonraria uma mulher ou voltaria atrás em sua palavra” 215. Quanto
a Presilina, ela parecia destoar da imagem feminina de submissão, passividade e ausência de
desejo sexual, que deveria ser atribuída às moças que fossem desonradas. Por sua vez, a
posição hierarquicamente superior que ocupava seu deflorador, o genro do patrão, indica as
assimetrias existentes nesta relação, visto que a iniciação sexual de muitos rapazes se dava por
meio da submissão de empregadas domésticas.
Como relata Maria Aparecida P. Sanches, acerca desses relacionamentos na região
soteropolitana, algumas moças defloradas, apesar de não visualizarem a possibilidade de
união formal com seus defloradores, homens casados, almejavam ao menos uma relação de
amaziamento, sendo que “a opção destas jovens pode ser entendida no contexto do
desprestígio do trabalho que exerciam, [...], mas indica também as poucas vias ascensionais

213
APMC. Série: Autos Crimes – Sub série: Defloramento. Data-limite 1926-1986. Caixa: 37. Maço 01.
214
Ibid.
215
CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: Moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-
1940). Campinas, SP: Editora da UNICAMP, Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, 2000, p.77.
107

para as mulheres pela via do trabalho formal remunerado” 216. Sem negar, assim, a
veridicidade dos sentimentos de Presilina por José, presentes como “o anel e o pó de arroz”
representavam para a justiça elementos da sedução e engano utilizados pelo deflorador, mas
talvez simbolizassem para aquela moça uma opção de vida que, nem o trabalho doméstico,
nem o namoro com Spiridião, poderiam oferecer.
Nas falas das mulheres testemunhas do processo, a sogra e a esposa de José Antônio,
percebemos outros elementos que variavam entre uma leve defesa ao procedimento da vítima
e repreensão as suas atitudes, respectivamente. Para Avelina Amélia Teixeira, 38 anos, sogra
do réu, Presilina era “muito trabalhadora e caprichosa, muito malcriada e que quando ia a
festas gritava de namorar, mas que nunca percebeu nella nem com José e nem com outro
qualquer acto indigno ou reprovável” 217. Entretanto, a esposa do indiciado, Amélia Avelina,
20 anos, diante da acusação feita ao marido e que repercutia diretamente na manutenção do
seu lar, preferiu preservar seu matrimônio, demonstrando, ao menos perante as autoridades,
acreditar na palavra de José de que a denúncia não passava de uma calúnia. Vale salientar que
o adultério masculino causava bem menos escândalo, era mesmo socialmente tolerado e
apresentava menor penalização nos códigos da época. O depoimento de Amélia auxiliava
então a reforçar a construção de um perfil menos “honrado” para a vítima, alegando que
“Presilina gostava de muitos rapazes”, e confirmando a liberdade que seu primo Spiridião
tinha em sua casa, podendo inclusive dormir sempre que trabalhava para seu pai Trajano.
A diferenciação do tratamento das “mulheres ofendidas” no discurso jurídico dava-se
também com relação ao fator racial, embora nem sempre fosse possível precisar a cor das
defloradas. Todavia, dois processos são bastante elucidativos tendo como base estratégias da
defesa e acusação em seus discursos sobre o procedimento das vítimas. Ainda que ambas as
vítimas compartilhassem uma posição de classe semelhante, à Aureliana Maria Cotrim e Ritta
Maria de Jesus são atribuídas características que se relacionavam com as construções de perfis
de uma mulher branca e uma mulher negra, respectivamente, para uma sociedade cujas
relações permaneceram fortemente racializadas, mas cujas fontes históricas oficiais revelam o
racismo apenas em suas entrelinhas. Enquanto Aureliana, loira e de olhos azuis, é descrita
como uma moça inocente e roceira, Ritta, única vítima identificada especificamente como
preta, fora do laudo médico, é descrita como tendo um “temperamento ardente e sensual”. 218

216
SANCHES, Maria Aparecida Prazeres. As razões do coração: Namoro, escolhas conjugais, relações raciais e
sexo-afetivas em Salvador (1889-1950). Tese (Doutorado em História Contemporânea) Universidade Federal
Fluminense. Niterói, 2010, p.185.
217
APMC. Série: Autos Crimes – Sub série: Defloramento. Data-limite 1926-1986. Caixa: 37. Maço 01.
218
APEB. Seção Judiciário. Processo-crime. Ano: 1927. Série: Defloramento. Est. 223, cx. 103, doc. 05.
108

Para as mulheres negras assim, mantinha-se um estereótipo de sexualidade aflorada e


incontrolável, que justificaria ou mesmo anularia as violências pelas quais viessem a passar,
descredibilizando também o seu depoimento.
Entre os dez casos de homicídios analisados 219 envolvendo mulheres, localizamos seis
como acusadas e/ou co-autoras do crime, bem como seis homens como acusados220. Em
relação às vítimas são cinco mulheres e cinco homens na posição de ofendidos nos autos. Tais
números observados superficialmente poderiam indicar apenas uma possível “equidade” de
gênero no cotidiano de violência do alto sertão, porém a leitura dos processos revela contextos
e nuances diversas em cada delito, bem como situações singulares que atribuíam e reforçavam
aos homens e mulheres na condição de vítimas ou acusados, papeis distintos, marcados por
normas e construções sociais, mas principalmente pelas experiências de gênero, raça e classe.
Em assassinatos de esposas, amásias e amantes por seus companheiros, a justificativa
da paixão e do ciúme que privava as faculdades mentais e perturbava os sentidos se faz
presente nas alegações da defesa, amparando-se sobre o discurso do “crime passional” que
permanecera como atenuante tanto nas legislações penais quanto na execução da lei nos
processos, ainda que essa tipificação não estivesse presente nos códigos penais. Residia,
porém, nos discursos médicos e jurídicos, afinal

Os profissionais dos campos jurídico e médico-legal construíam a ideia de


que a noção de honra ultrajada, elaborada por alguém que foi vítima de
adultério, e o ciúme poderiam gerar “crimes passionais”. A noção que
tinham era a de que, diante de “traições” ou do ciúme de um parceiro
amoroso, os indivíduos seriam invadidos por um sentimento que lhes
causava, temporariamente, sensações semelhantes às dos portadores de
lesões cerebrais. Partia-se da visão de que esses indivíduos tornavam-se
criminosos em um momento de “paroxismo emocional”. 221

Em contrapartida, havia, durante o período analisado, outro pensamento jurídico e


médico, que questionava o argumento da passionalidade. Susan Besse, em estudo sobre a
campanha contra assassinatos de mulheres no país entre as décadas de 1910 e 1940, apresenta
o contexto do surgimento de uma preocupação social com os chamados “crimes da paixão”
estimulada, sobretudo, pelo olhar dos médicos higienistas e juristas reformadores, no intuito

219
Optamos por analisar os processos criminais em que uma mulher estava envolvida na condição de ofendida
ou acusada do homicídio.
220
Em dois dos casos existe a co-autoria, ou seja a identificação de mais de um acusado do crime, ainda que o
co-autor tenha uma participação considerada menor ou “indireta”, de cumplicidade do homicídio.
221
RINALDI, Alessandra de Andrade. A sexualização do crime no Brasil: Um estudo sobre criminalidade
feminina no contexto de relações amorosas (1890-1940). Rio de Janeiro: Mauad X: FAPERJ, 2015, p.60.
109

muito maior de garantir a manutenção de uma moral burguesa civilizadora para as famílias,
do que de oferecer proteção às mulheres vulneráveis as violências. Segundo a autora,

Por trás do problema manifesto – os assassinatos de mulheres – encontra-se


uma preocupação social maior – a consolidação de uma ordem burguesa,
estável, moderna. Isto, por sua vez, requeria a imposição de padrões
modernos e higiênicos de vida sexual e familiar que pudessem garantir a
estabilidade da família nuclear hirerárquica. Uma vez que a legitimidade e a
estabilidade da família deixaram de ser uma questão pública, os alertas sobre
os crimes da paixão desapareceu.222

A partir deste questionamento acerca da validade do atenuante da passionalidade de


um crime, percebemos em alguns processos de homicídios de mulheres a intenção de uma
investigação mais apurada sobre as faculdades mentais do réu. Não bastava apenas o
argumento da perturbação mental diante da traição de uma cônjuge, era necessário a
comprovação médica. Foi o que aconteceu em 1936, na vila de Bonito, com Abílio Marques
das Neves que assassinara sua esposa com golpes de faca, após um desentendimento. Em seu
interrogatório, Abílio Marques alegava que, meses antes do crime, Elena Augusta lhe havia
dito que três dos cinco filhos do casal seriam fruto de adultério. Nesta época, o réu não levou
a confissão a sério, pois sua esposa, “não estava em seu juízo perfeito – sofria de seprosite
maxilar aguda”. Algum tempo depois,

Houve entre ele e Elena um ligeiro incidente que irritou o respondente de tal
modo que dahi a prática do crime o respondente foi acometido de uma
espécie de perturbação de que mesmo não sabe dizer e é somente o que tem
a declarar em torno do crime. 223

No decorrer do processo, Abílio foi submetido em dois momentos a exames médicos,


obtendo diagnósticos diferentes. Em sua primeira internação em um “hospital de alienados”
na capital do estado para o exame de sanidade mental, o laudo do Serviço Médico Legal do
Estado da Bahia apresentava uma análise que atribuía sua “anormalidade” a um déficit
educacional, pois “criou-se no interior, longe do contacto com a civilização”, mas sem
indícios de qualquer “afecção mental”. Mesmo após uma tentativa de suicídio feita pelo
paciente na banheira da enfermaria, o laudo concluía que Abílio apenas exprimira receio de
castração diante de boatos no sanatório e que o suicídio poderia ser praticado mesmo por

222
BESSE, Susan K. “Crimes passionais: a campanha contra os assassinatos de mulheres no Brasil: 1910-1940”,
Revista Brasileira de História, vol. 9, n. 18, São Paulo, ago./set.1989, p.195.
223
APEB. Sessão Judiciário. Série Processos-Crime Homicídio. 1936. 223/603/04.
110

pessoas saudáveis. Finalizava o diagnóstico como sendo “hígido mental, responsável por
qualquer crime”224.
O processo de Abílio difere de outros pesquisados, pois os indícios de doença mental
apresentavam-se muito mais nas falas de testemunhas de seu convívio e em outros relatórios
médicos do que em uma tentativa da defesa justificar seu crime. Mesmo com o primeiro laudo
médico e a alta do hospital, o promotor exigiu um novo diagnóstico alegando que o acusado
apresentava sinais de desequilíbrio. Por fim, o exame realizado no instituto Nina Rodrigues
concluiu que Abílio “não goza de sanidade mental: é portador de psicose maníaco-depressiva,
estando no momento, na fase depressiva ou melancólica” 225. O processo fora assim suspenso
até que o réu fosse curado.
Essa atenção e cuidado maior em averiguar a questão da perturbação mental, que por
muito tempo justificara o caráter da passionalidade de muitos assassinatos de mulheres por
homens, dava-se em função de um novo olhar médico-jurídico para o crime passional.
Entretanto, tal prática não se consolidou após o código de 1940, ao contrário, o argumento da
passionalidade fora reforçado pelos discursos do período, como percebemos no próximo
crime de homicídio de uma mulher por seu companheiro.
Foi assim que no ano de 1941, o homicídio de Percília Maria de Jesus por seu parceiro
Manoel Pereira da Silva, com quem vivera anos em “situação de concubinato”, registrou essa
descrição na tentativa do advogado de defesa justificar o crime, visto que a culpa (autoria)
fora confirmada pelo flagrante. O trecho abaixo, extraído do relato da defesa e digno de um
Otello shakespeariano, revela um texto carregado por uma performance dramática, tendo
como personagem um homem marcado pela loucura e pelo ciúme, potencializados pela
embriaguez, que após ser confrontado por seu rival, assassinara sua amante. O advogado
narrou então o acontecimento:

Também dos autos não consta ser o acusado um homem perveso atípico,
vivia da sua modesta profissão com ella angariando os parcos elementos de
sua subsistência, juntos assim, iam accusado e victima palmilhando a diffícil
e árdua estrada da existência, quando lá certo dia, como um intruso um
desmancha prazeres surge no caminho deles, José Antonio da Silva,
sequestrando Percilia.
Os sentimentos de amor próprio e mesmo a dignidade do accusado se sentem
profundamente feridos na attitude de José.
Os dias se sucedem, a angustia e o ciúme vão tomando corpo no espírito do
infeliz acusado.

224
APEB. Sessão Judiciário. Série Processos-Crime Homicídio. 1936. 223/603/04.
225
APEB. Sessão Judiciário. Série Processos-Crime Homicídio. 1936. 223/603/04.
111

Na véspera do facto delictuoso de que trata o processo vai o acusado a casa


commercial de Manoel e ali se encontra com o seu rival, José, o
conquistador de Percília, e o José diz ao acusado que havia de espancal-o
naquele momento. E unindo a acção às palavras, munido de um cacête, dá
muitas pancadas no accusado, ferindo-o. Depois alguns momentos de haver
fugido, à sanha do seu agressor José, este novamente alcança o acusado, em
quem dá duas facadas, não conseguindo ir avante no seu ataque devido a
intervenção de Maria de tal226.

E após a narrativa inicial dos fatos, prossegue sua exposição acentuando os


argumentos da passionalidade do crime que se acentuavam com o alcoolismo do acusado,
emitindo assim o seu parecer final.

Durante esse episódio, o accusado que era um homem abstemo arrastado


pela violenta paixão e ciúme que lhe devoravam o íntimo, não podendo na
sua inteligência, encontrar um derivativo que minorasse o seu sofrimento,
começa a ingerir imoderadamente bebidas alcoolicas, que vão assim, lhe
obscurecendo a mente olumbrando as suas faculdades mentaes.
Neste estado de embriaguez arrastado pela violenta paixão, que lhe vinha
torturando o espirito, é que o accusado pratica o crime, assassinando sua
amasia.
Cometteu um crime, sim, mas num estado de completa privação ou
perturbação de sentidos e de inteligência.
[...]
Trata-se de um crime passional, praticado por quem se encontrava
completamente embriagado227. (grifos nossos)

Percebemos que os argumentos que caracterizavam um crime passional, entre eles o


“obscurecimento das faculdades mentais”, utilizado pelo advogado de Manoel, pareciam
consonantes com os discursos médicos presentes nos diagnósticos psiquiátricos, ou melhor,
pareciam uma apropriação desse discurso. Nesse caso, os ciúmes e a ingestão de álcool
afetariam os sentidos do réu, tal qual uma doença mental, justificando o ato criminoso.
Entretanto, esses argumentos surgiam para reforçar a premissa da “defesa da honra
masculina”, que, como já mencionamos, estava vinculada ao controle da sexualidade feminina
e, portanto, ameaçada pelo adultério ou pela opção de Percília de terminar o relacionamento
com Manoel e procurar um novo companheiro. Acerca da questão da honra nos crimes
passionais, Magali Engel, pesquisando os significados desses crimes nas relações de gênero
no Rio de Janeiro em época análoga a nossa, afirma que

Nestes casos, o ciúme encontra-se intimamente associado à noção de honra


masculina que uma vez maculada pela traição, real ou imaginária, das
226
APMC. Série: Autos Crimes – Sub série: Homicídio. Data-limite 1918-1992. Caixa: 56.
227
APMC. Série: Autos Crimes – Sub série: Homicídio. Data-limite 1918-1992. Caixa: 56.
112

mulheres com as quais os agressores mantinham relações afetivas e/ou


sexuais deveriam ser lavadas com sangue. As disputas amorosas entre rivais
do sexo masculino que, nos casos examinados, quase sempre envolviam
situações de suposta ou comprovada infidelidade da mulher, também
encontravam-se permeadas por esta mesma noção. Vale, portanto, destacar
que tanto a idéia de honra feminina quanto a de honra masculina encontram-
se referidas, direta ou indiretamente, ao comportamento sexual feminino228.

Em homicídios de mulheres por seus companheiros ou por outros homens familiares


comumente aparecem mulheres como “mentoras” do crime. Em dois casos analisados, a ideia
de rivalidade feminina desponta nas descrições dos processos e nos depoimentos de
testemunhas. Seja como forma de vingar uma traição ou como meio de livrar-se de um
empecilho a uma nova união amorosa, a justificativa do maquiavelismo de outra mulher
contra esposas, amásias ou amantes perpassava a estratégia de criminalização dessas mulheres
mesmo nos processos em que homens eram os acusados principais de serem autores dos
homicídios.
Em 1917, um caso classificado como tentativa de homicídio 229 envolveu nas posições
de acusados, ofendida e rol de testemunhas praticamente uma única família da localidade de
Cachoeirinha. A vítima Maria Roza de Jesus foi espancada pelo primo Marianno Felippe da
Silva que, por sua vez, estaria cumprindo ordens de sua irmã Ana Maria de Jesus, que também
foi ré no processo criminal. As duas mulheres já haviam se confrontado em situações
anteriores, em virtude de Ana ter descoberto que Maria Roza era amante de seu marido
Francisco.
Tentando reconstituir a história do crime, percebemos que Querino, o irmão mais novo
da vítima fora convidado pelo filho da acusada, Joaquim, para um festejo de “são-pauleiros”,
isto é, migrantes que haviam retornado do Sudeste para sua terra natal. Ambos tinham
dezessete anos de idade e assim, Maria Roza, sendo viúva, ficara em sua casa somente com a
companhia de seus filhos pequenos. Nesse momento, Marianno, segundo o relato da vítima,
invadiu a casa e a espancou com murros e um instrumento denominado “rabicho”. Por fim,
ele cortou com um facão os cabelos de Maria Roza.
O ato de cortar os cabelos da vítima, que mantinha uma relação amorosa com o marido
da prima, passava um recado simbólico e que depunha a favor da culpa de Anna Maria, que
teria então motivos maiores para prejudicar a aparência física da rival. Afinal, Maria Roza
tinha vinte e sete anos, com filhos ainda crianças, era mais jovem que Anna com seus

228
ENGEL, Magali. Paixão, crime e relações de gênero (Rio de Janeiro, 1890-1930). Revista Topoi, Rio de
Janeiro, nº 1, 2000, p.166.
229
APMC. Série: Autos Crimes – Sub série: Homicídio. Data-limite 1918-1992. Caixa: 56.
113

quarenta anos e filhos já criados. Essa rivalidade feminina emergia nos processos, pois
“muitas mulheres com filhos pequenos viam-se constantemente ameaçadas pelo concubinato
e, diante das desconfianças ou das delações de adultério, lutavam pela manutenção das suas
uniões, rivalizando com mulheres com condições de vida tão humildes quanta as suas” 230.
Por sua vez, o comportamento da vítima Maria Roza foi constantemente questionado
às testemunhas, e considerado inadequado devido a sua relação com um homem casado. A
vítima foi assim, descrita como uma destruidora de lares ao interferir no casamento da prima.
Assim, ainda que em pólos opostos do processo, ambas as mulheres receberam maior atenção
investigativa que o próprio réu Marianno. A justiça revelava-se mais interessada em
“civilizar” os comportamentos femininos do que em punir os desvios masculinos.
Desse modo, as relações afetivas de mulheres caetiteenses pardas e pretas, bem como
de brancas empobrecidas, revelam contornos raciais e sociais de seus papéis de gênero.
Destoando dos padrões das classes dominantes, essas mulheres constituíram diferentes tipos
de uniões conjugais, recorreram à justiça como instrumento para solução de conflitos,
exerceram contrapoderes em face da ausência de companheiros, sofreram e exerceram
violências dentro de um modelo patriarcal de sociedade.
Ainda que os padrões morais das elites se pretendessem hegemônicos e universais, a
classe trabalhadora, diante de condições socioeconômicas e culturais distintas, subvertia
muitos desses valores em suas práticas cotidianas. As mulheres pobres nem sempre
correspondiam ao ideal de mulher “pura e casta” e, muitas vezes, suas formas de
sobrevivência e a exploração a que estavam submetidas impossibilitavam-nas de
enquadrarem-se nesses padrões, o que de forma alguma impedia que reelaborassem suas
relações nas brechas deste sistema de “moral e bons costumes”.

Quanto àquelas das camadas mais baixas, mestiças, negras e mesmo brancas,
viviam menos protegidas e sujeitas à exploração sexual. Suas relações
tendiam a se desenvolver dentro de um outro padrão de moralidade que,
relacionado principalmente às dificuldades econômicas e de raça, se
contrapunha ao ideal de castidade, não chegando, porém, a transformar a
maneira pela qual a cultura dominante encarava a questão da virgindade e
nem a posição privilegiada do sexo oposto231.

Todavia, não se encaixar nesses códigos de moralidade hegemônicos, acarretava


diversas formas de marginalização social para essas mulheres pobres e negras e, uma delas foi
230
PIRES, Maria de Fátima Novaes. Fios da Vida: tráfico internacional e alforrias nos sertoins de Sima – BA
(1860-1920). São Paulo: Annablume, 2009.
231
SOIHET, Rachel. Condição feminina e formas de violência: mulheres pobres e ordem urbana, 1890-1920.
Rio e Janeiro: Forense Universitária, 1989.
114

o processo de criminalização exercido pelos poderes médico e jurídico. Nesse sentido,


analisar as práticas desviantes das mulheres caetiteenses quanto ao perfil de esposa e mãe
difundido pelos discursos moralizadores, seja nas situações de violência corriqueiras no
exercício da prostituição ou ao negar a missão da maternidade, praticando um crime
penalmente feminino – o infanticídio – também foi relevante para a compreensão de ações
limítrofes entre a sobrevivência e a resistência.
115

CAPÍTULO 3

“FAZIA SEUS SACRIFÍCIOS NOS ALTARES DE VÊNUS”232: OUTROS CÓDIGOS


DE MORALIDADE E A CRIMINALIZAÇÃO DE MULHERES CAETITEENSES

O processo de criminalização das mulheres pobres caetiteenses, como vimos até então,
para além de todo arcabouço jurídico-policial das legislações criminais da república, da
tentativa de controle e disciplinamento das camadas mais pobres para o sucesso do projeto de
modernização do alto sertão baiano, esteve atrelado às heranças da estrutura escravista
brasileira e às condições socioeconômicas e culturais que marcaram a vida de mulheres negras
no pós-abolição. Esse processo envolveu também a reelaboração de códigos de conduta moral
por meio de papéis informais desempenhados pelas mulheres nos espaços públicos e privados
e que destoavam dos papéis normativos impostos por uma sociedade capitalista, racista e
patriarcal. Ao analisar a presença dessas personagens ocupando as ruas da capital Salvador,
Ferreira Filho afirma que

As mulheres pobres e trabalhadoras, mais que outro segmento, explicitavam


as contradições inerentes aos projetos europeizantes de uma elite letrada
mais atenta às prescrições dos compêndios franceses que a realidade à sua
volta. Eram como viúvas necessitadas de criar seus filhos, mães de rebentos
vitimados pelo abandono paterno que um grande número de mulheres
justificava a sua presença nas ruas, tocando desta forma as feridas da
moralidade patriarcal dominante. 233

Sob este viés, as mulheres alto-sertanejas pobres e trabalhadoras, ainda que, na


maioria das vezes, buscassem se enquadrar aos padrões hegemônicos impostos pelas classes
dominantes, num movimento de circularidade cultural234 e apropriação de valores,
frequentemente contradiziam esses padrões na realidade concreta de suas vidas. Sua presença
nos espaços públicos não se fazia tão efervescente quanto para as soteropolitanas do mesmo

232
Expressão utilizada pela promotoria na denúncia de um processo de infanticídio, caracterizando como
libidinosos e ilícitos as relações afetivo-sexuais de uma mulher viúva.
233
FERREIRA FILHO, Alberto Heráclito. Desafricanizar as ruas: elites letradas, mulheres pobres e cultura
popular em Salvador (1890-1 937). Afro-Ásia, Salvador, n. 21-22, 1998-1999, p. 256.
234
Em seu prefácio à edição inglesa, Ginzburg resgata um conceito de Mikhail Bakhtin, afirmando que é
possivel resumir no termo "circularidade" entre a cultura das classes dominantes e a das classes subalternas
existiu, na Europa pre-industrial, um relacionamento circular feito de influencias recíprocas, que se movia de
baixo para cima, bem como de cima para baixo (exatamente o oposto, portanto, do "conceito de absoluta
autonomia e continuidade da cultura camponesa" que me foi atribuido por certo crítico) In: GINZBURG, Carlo.
O queijo e os vermes: O cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia
das Letras, 2006, p.10.
116

período, porém, mesmo nos espaços privados, suas ações não correspondiam ao modelo
burguês patriarcal que reservava para as mulheres um papel de mãe e esposa submissa. Nas
áreas rurais, crimes como o infanticídio escandalizavam a sociedade caetiteense por expor os
limites do mito da maternidade como missão 235. No espaço urbano, a violência envolvendo
mulheres no exercício da prostituição provocava um misto de tolerância e condenação às
formas desviantes de sexualidade.
Este capítulo busca assim, por meio da análise das experiências de mulheres cujas
vidas foram marcadas pelo exercício da prostituição ou pela situação-limite de um episódio de
infanticídio, esquadrinhar discursos e práticas que as criminalizavam, que lhes atribuíam
“sacrifícios feitos nos altares de Vênus” enquanto denúncia para suas sexualidades
consideradas desviantes. Prostitutas e infanticidas infringiram de formas diferentes os códigos
morais e as leis criminais, não por que desempenhassem papéis de contestação e resistência às
estruturas que conformavam aquelas regras sociais, mas por não se encaixarem nos estreitos
moldes criados para elas. E, por tais motivos, essas mulheres eram alvo corriqueiro do
controle jurídico e, quando caíam nas malhas da justiça, revelavam o insucesso daquele
modelo de moralidade exaltado pelas elites. Dessa forma,

A legislação assumia aí um duplo caráter: reprimir e punir infratores que


ameaçassem a “família”, mas também passar “imagens positivas da ordem”
para as mulheres das classes populares cuja rotina de vida e trabalho,
evidentemente, impossibilitava que seguissem os preceitos da lei e dos bons
costumes [...]. Assim, o universo das mulheres honestas estava novamente
restrito às mães ou moças de família, diferenciadas daquelas mulheres cuja
pobreza, aos olhos dos homens da lei, praticamente as indiferenciava do
universo da prostituição e do vício236.

Assim, analisando as estratégias de controle feminino, mascaradas sob o pretexto do


tratamento da loucura no interior do Hospício Juquery, em fins do século XIX e início do XX,
Maria Clementina Cunha pontua que os instrumentos legislativos também almejavam
estabelecer um padrão “definido de cima, sobre a moralidade e as condutas femininas” 237
Entretanto, a punição para as mulheres que, ao contrapor esse padrão, violassem os artigos

235
Para Badinter, em fins do século XVIII “a maternidade torna-se um papel gratificante pois está agora
impregnada de ideal. O modo como se fala dessa ‘nobre função’, com um vocabulário tomado á religião (evoca-
se frequentemente a ‘vocação’ ou o ‘sacrifício’ materno) indica que um novo aspecto místico é associado ao
papel materno. In: BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: O mito do amor materno. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1985, p.223.
236
CUNHA, Maria Clementina Pereira da. De historiadoras, brasileiras e escandinavas: Loucuras, folias e
relações de gêneros no Brasil (século XIX e início do XX). Tempo, Rio de Janeiro, Vol. 3, n° 5, 1998, p.21
237
Ibid., p. 21.
117

penais, não era o único objetivo jurídico. Havia também a necessidade de estabelecer limites
para o comportamento de um universo de mulheres que vivia constantemente nas brechas da
moral e dos bons costumes, como era, por exemplo, o caso das prostitutas.
A presença das mulheres envolvidas na prostituição em Caetité, designadas como
“mulheres públicas, meretrizes ou de vida livre”, emerge em nossa documentação, sobretudo,
nos processos-crime de homicídio, e é inconcebível ignorarmos este fato. Silenciadas e
ocultas em outras fontes oficiais, é por meio dos arquivos judiciais que temos contato com
fragmentos de suas histórias. Por tanto tempo tolerada enquanto mal necessário, a prostituição
só representava uma ameaça quando se colocava como empecilho ao projeto civilizatório das
elites republicanas. Dessa forma, a repressão ao meretrício justificava-se tendo como base um
dos pilares básicos da ideologia republicana: a moralidade das famílias e do espaço público 238.
Ao analisar práticas e representações associadas à prostituição feminina na cidade de
Salvador, de 1900 a 1940, Nélia de Santana destaca esta ambiguidade presente nas medidas
repressivas, que não visavam acabar com a prostituição, mas mantê-la sob controle.

Por mais que as autoridades tentassem homogeneizar o conjunto das


meretrizes, estas estabeleciam diferenças a partir das suas experiências.
Desqualificadas as prostitutas o eram, sem dúvida Contudo, as vivências que
tinham no mundo da prostituição estavam eivadas de fantasias, medos,
prazeres, afetividade, desejo, violência, e, portanto, o cotidiano dessas
mulheres estava muito além das estreitas definições, tão propagadas, de
anormais e normais, mundanas e honestas239.

Assim como as prostitutas, as mulheres que decidiram abandonar ou eliminar o fruto


de uma gravidez, processadas pelo crime de infanticídio, não se encaixavam no modelo de
moralidade imposto. Quando rompiam as normas sociais e transgrediam os códigos penais,
ameaçavam não apenas a honra familiar em que se baseava o projeto republicano, mas
também a romantização da maternidade relacionada à existência de um instinto materno
incondicional e abnegado em toda mulher.

238
SANTANA, Nélia de. A prostituição feminina em Salvador (1900 - 1940). Dissertação de mestrado em
História. Salvador. FFCH UFBA, 1996, p.53
239
Ibid., p.98-99
118

3.1. “Mulheres de vida pública”: A prostituição nas fronteiras da Rua Nova

“Era, portanto, como um fantasma que ela aparecia como virtualidade a irromper das profundezas do
desconhecido corpo feminino, como possibilidade perigo que poderia habitar a sexualidade de todas
as mulheres”
Margareth Rago240

Era o ano de 1942, em uma rua localizada na zona central da cidade de Caetité
próximo à Praça do Mercado, antigo Largo do Alegre, onde cidadãos de toda região iam
comercializar seus produtos, adquirir mercadorias e serviços e, mais do que isso, exercer sua
rede de sociabilidades marcadas pelos trânsitos entre o urbano e o rural. Esse logradouro era
conhecido como Rua Nova, e era também notório por abrigar uma zona de meretrício que, até
os dias de hoje, povoa o folclore241 compartilhado pela população caetiteense, em que pese a
tentativa de silenciamento pela memória oficial.
Foi no cenário da Rua Nova, que Laurides Silveira, ou apenas Laura, de vinte e oito
anos, enquanto observava o movimento dos transeuntes na porta da casa de uma companheira,
convidou Antonio Ferreira para uma conversa, marcando com o mesmo um encontro na casa
de outra companheira, segundo os autos “a fim de terem relações sexuais” 242. Neste mesmo
dia, à tarde, os dois se encontram no único quarto da casa de Constança e, momentos depois,
apareceu Laura na casa de outra vizinha, Rita de Cassia, pedindo-lhe um copo d’água e tendo
em suas mãos um revólver com cabo de madrepérola. Essa mesma arma seria apreendida no
quarto, naquele dia, junto ao corpo de Antonio que “jazia no sólo, em uma poça de
sangue”. 243
A condução e o desfecho desse caso de homicídio acompanham o decorrer de nossa
análise, pois a história de Laurides, acusada de homicídio doloso contra Antônio, revela em
sua narrativa mais do que um simples caso de legítima defesa da vida, ela abre brechas e
possibilidades para descortinar um universo de mulheres que viveram e sobreviveram,
amaram e odiaram, gritaram e silenciaram, mataram e morreram, um universo ainda pouco
conhecido em Caetité e na região do alto sertão da Bahia. Assim, dentre as estratégias de
sobrevivência das mulheres pobres que foram criminalizadas no processo de modernização do
alto sertão baiano, uma delas destaca-se nos processos analisados e merece atenção especial,

240
RAGO, Margareth. Os prazeres da noite: Prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo
(1890-1930). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
241
Os poucos relatos acerca da Rua Nova estão presentes em causos e anedotas contadas referentes, sobretudo às
décadas de 1960 e 1970, incluindo prostíbulos e figuras mitológicas como Ana Rebolo, uma das mais famosas
prostitutas da cidade, que não habitava porém, a referida rua. Alguns destes causos estão presentes, de forma
bastante caricaturesca, no livro “Pérolas do Humor Caetiteense”, do autor Etevaldo Mônico da Silva (2011).
242
APMC. Série: Autos Crimes – Sub série: Homicídio. Data-limite 1918-1992. Caixa: 56.
243
APMC. Série: Autos Crimes – Sub série: Homicídio. Data-limite 1918-1992. Caixa: 56.
119

sobretudo, por não contar ainda com um volume expressivo de pesquisas e/ou estudos mais
elaborados a respeito desta temática no alto sertão da Bahia 244. Trata-se do exercício da
prostituição nas primeiras décadas do século XX. A tabela abaixo indica o percentual das
posições que mulheres identificadas na prostituição em Caetité, num universo de dez
localizadas, ocupavam nos processos criminais de homicídio:

TABELA 05: ÍNDICE DE MULHERES EM SITUAÇÃO DE PROSTITUIÇÃO APONTADAS NOS


PROCESSOS CRIMINAIS DE HOMICÍDIO:
ACUSADAS VÍTIMAS TESTEMUNHAS
1 10% 1 10% 8 80%

FONTE: APMC. Série: Autos Crimes – Sub série: Homicídio. / APEB. Sessão Judiciário. Série Processos-Crime
Homicídio.

Designadas como “mulheres de vida pública, mulheres livres ou meretrizes” pelas


autoridades judiciais, essas personagens emergiram nos autos criminais, assumindo de forma
alternada, os papeis de vítimas (10%), acusadas (10%) ou testemunhas (80%) nos crimes de
homicídio predominantemente. Ressaltamos que, invariavelmente, nos interrogatórios ou
depoimentos analisados, essas mulheres não admitiam desempenhar o ofício de prostituta ou
qualquer um de seus sinônimos, indicando muitas vezes serem empregadas em serviços
domésticos. Ainda que apenas 10% das prostitutas identificadas ocupe a posição de vítima, o
que corresponde a somente um processo de homicídio, é possível supor que alguns crimes
desta natureza contra meretrizes nem chegassem a se constituir como um processo. Além
disso, um alto índice de prostitutas no rol de testemunhas (80%) desses casos de homicídio
também permite concluir que as mesmas estavam imersas em um contexto de violência e
exclusão e, para se protegerem da vigilância jurídica sobre suas vidas e corpos e do estigma
que seu oficio carregava, alegavam serem empregadas domésticas.
Sem a proposta de atingir uma análise densa sobre a temática, ou sobre a história da
prostituição em Caetité, realizamos a partir das experiências encontradas nos processos, uma
discussão não apenas sobre a prática do meretrício em si, mas as representações e discursos
acerca de sua presença no espaço público, de suas relações, trânsitos e significados para a

244
Algumas pesquisas iniciais, realizadas como projetos ou trabalhos de conclusão de curso no campus VI da
Universidade do Estado da Bahia, acerca do exercício da prostituição em Caetité e seus significados históricos
apesar de serem importantes apontamentos para estudos posteriores, não deram prosseguimento de caráter
acadêmico. Estas contemplam como temporalidade de análise a segunda metade do século XX e o crescimento
dos prostíbulos em Caetité, bem como a crescente preocupação das autoridades com a Rua Nova. Assim, estudos
que contemplem a prostituição alto sertaneja no início do século XX ainda carecem de serem realizados e o que
propomos aqui é apontar caminhos e possibilidades para a exploração desta temática.
120

época. As denominações usualmente encontradas nos processos para se referirem às


prostitutas carregam o peso dos papéis de gênero e lugares atribuídos às mulheres de uma
forma geral. Uma mulher de vida livre não necessariamente seria a dona de sua própria
liberdade, pois sua sobrevivência estaria atrelada as condições sociais, culturais e econômicas
que a levaram ao exercício do meretrício. Por sua vez, uma mulher pública aparentemente
rompia com o lugar do privado tradicionalmente reservado ao gênero feminino ainda que,
para as mulheres pobres, o espaço da rua nunca tenha sido uma novidade. Seu corpo também
seria algo “público”, sujeito e objeto de uma história que a desqualificava moralmente, pois
sendo

Depravada, debochada, lúbrica, venal, a mulher – também se diz a


“rapariga” pública é uma “criatura”, mulher comum que pertence a todos. O
homem público, sujeito eminente da cidade, deve encarnar a honra e a
virtude. A mulher pública constitui a vergonha, a parte escondida,
dissimulada, noturna, um vil objeto, território de passagem, apropriado, sem
individualidade própria.245

Não buscamos aqui atribuir a essas mulheres, já bastante estigmatizadas pela memória
cristalizada, um papel de vítimas do empobrecimento resultado da crise socioeconômica que
atingiu os sertões, provocada por longos períodos de estiagem e pela grande concentração de
renda. Em contrapartida, não nos cabe lhes atribuir um papel de heroínas que desafiaram os
padrões morais conservadores e hipócritas das classes dominantes caetiteenses. A prostituição
no período estudado assumiu significados singulares e o próprio conceito do que seria
considerado “prostituir-se” poderia oscilar de acordo com a interpretação dos discursos
jurídicos presentes na documentação. Acerca do conceito histórico de prostituição, Rago
problematiza:

Construído no século XIX a partir de uma referência médico-policial, o


conceito de prostituição não pode ser projetado retroativamente para nomear
práticas de comercialização sexual do corpo feminino em outras formações
sociais, sem realizar um aplainamento violento da singularidade dos
acontecimentos. Fenômeno essencialmente urbano, inscreve-se numa
economia específica do desejo, característica de uma sociedade em que
predominam as relações de troca, e em que todo um sistema de codificações
morais, que valoriza a união sexual monogâmica, a família nuclear, a
virgindade, a fidelidade feminina, destina um lugar específico às
sexualidades insubmissas.246

245
PERROT, Michelle. Mulheres Públicas. São Paulo: EdUNESP, 1998, p.07.
246
RAGO, Margareth. Os prazeres da noite: prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo,
1890-1930. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
121

Ressaltamos que o simples registro de uma mulher nos autos criminais como sendo
“de vida livre” ou “de vida pública” não expressava com fidedignidade que a mesma
exercesse a prostituição nos termos de comercializar a prática sexual enquanto um ofício. O
exercício de uma sexualidade desviante ou mesmo a presença dessas mulheres mais pobres
convivendo em zonas de baixo meretrício como a Rua Nova, poderia ser suficiente para serem
estigmatizadas e enquadradas como tal. Esse parece ser o caso da jovem Júlia Rodrigues, de
dezesseis anos que, em 1926, testemunha o homicídio de sua prima Sebastiana. Na descrição
do inquérito, Júlia é qualificada como “mulher de vida pública”, ainda que a mesma alegasse
estar fazendo uma visita a sua parente e residir no município de Urandy 247.
Neste caso, o fato de Júlia ter frequentado um espaço considerado como zona de
meretrício e ainda manter laços de parentesco com uma mulher identificada como meretriz era
suficiente para que a mesma compartilhasse do estigma de sua prima por meio dos discursos
jurídicos. Quaisquer mulheres que habitassem os arredores da Rua Nova poderiam ser alvo da
mesma vigilância e, sendo solteiras, dividindo casas com outras mulheres, bebendo na
companhia de homens e exercendo sua sexualidade sob outros padrões de moralidade, seriam
enquadradas enquanto prostitutas, ainda que não correspondessem aos critérios mais
tradicionalmente definidos para as “profissionais do sexo” através dos séculos. A tabela nº 06
representa os espaços de moradia das mulheres que atuavam na profissão do meretrício na
região:

TABELA 06: LOCALIDADES IDENTIFICADAS COMO MORADIAS EM ZONAS DE MERETRÍCIO

RUA NOVA OUTRAS LOCALIDADES248


75% 25%
Fonte: APMC e APEB. Processos-crime. Série: Homicídio

A Rua Nova foi, assim, o principal cenário dos conflitos que envolviam a prostituição
em Caetité. Tratava-se de um logradouro localizado em uma área do centro urbano
caetiteense, em uma região com intensa movimentação e fluxo de pessoas devido à
proximidade com o mercado público do município. Entretanto, seus moradores e moradoras
pertenciam às camadas mais pobres da população caetiteense, habitando moradias mais
humildes que aquelas que circundavam a igreja matriz. Nos processos analisados, três casos

247
APMC. Série: Autos Crimes – Sub série: Homicídio. Data-limite 1918-1992. Caixa: 56.
248
A outra localidade identificada em um processo de defloramento que possui a presença de “uma mulher de
vida livre” é o arraial de Bonito (atual município de Igaporã), onde a testemunha Maria Cândida, alcunhada de
Candinha, possuía uma casa na “rua de cima” frequentada pelo réu e outros homens da localidade. Os demais
processos em que emergem as figuras de prostitutas tem como cenário a Rua Nova e suas imediações.
122

envolvendo homicídio e lesões corporais ocorreram na Rua Nova, enquanto o único processo
de defloramento no qual encontramos uma testemunha intitulada de “vida livre”, se passou no
arraial do Bonito, em um logradouro conhecido como “rua de cima”.
A prostituição inseria-se assim, no alto sertão baiano, ainda que sendo uma região
estruturada por aspectos rurais, enquanto fenômeno predominantemente urbano. Ressaltamos
que, em uma sociedade profundamente estruturada pelo conservadorismo e por valores
religiosos católicos como a caetiteense, a própria referência à existência da prostituição está
obscurecida nos relatos memorialísticos oficiais e, as zonas de baixo meretrício, ainda que
localizadas próximas ao centro comercial, ocupavam uma região que não era considerada
nobre e, para a época e pela pequena extensão do perímetro urbano, assemelhava-se a uma
zona periférica, pois “as casas da Rua Nova (hoje chamada 24 de outubro) ficavam no terreno
do cemitério do Santíssimo Sacramento – construído em meados do século XIX e depois
desativado”.249 A presença dessas mulheres consideradas “mundanas” mantinha-se próxima
assim, não apenas das áreas comerciais ou da residência de famílias de “moral ilibada”, mas
cercada por igrejas católicas, como a São João e a igreja São Benedito e irmandades como a
do Santíssimo Sacramento. Nesses arredores caetiteenses, o sagrado e o profano não estavam
geográfica e simbolicamente tão distantes quanto se pudera imaginar.

FIGURA 09: ATUAL RUA HÉLIO NEGREIROS /ANTIGA RUA NOVA

Fonte: Registro da Autora. Maio, 2018.

A figura acima é um registro atual da antiga Rua Nova, que após se chamar 24 de
outubro, foi batizada como “Rua Professor Hélio Negreiros”. O logradouro possui

249
SANTOS, Helena Lima. Caetité, pequenina e ilustre. Tribuna do Sertão, Brumado, 1996, 2ª ed.
123

construções recentes que contrastam com casas mais antigas e simples, provavelmente
datadas da segunda metade do século XX. Algumas das residências da imagem possuem a
inscrição “ASC”, que indica a sua aquisição por meio de herança ou doação pela associação
de caridade da cidade. Atualmente, o aluguel destes imóveis constitui uma das fontes de
sustento desta entidade filantrópica que permanece sob novos moldes atuando no município.
Neste sentido, dentro e fora da Rua Nova, as casas das mulheres de vida livre se
convertiam em local de encontro e de socialização, principalmente para homens da classe
trabalhadora, urbanos e rurais. Foi “na casa de Candinha, rapariga que mora na rua de cima
em Bonito”250 que, em 1941, o lavrador Deoclides Leão, embriagado, anunciava que tiraria a
jovem Almira Pereira da casa de sua família e que “a menina era dele”. Maria Cândida de
Jesus tornou-se assim uma testemunha no processo de defloramento de Almira, pois teria
presenciado as ameaças de Deoclides. Outros processos, sobretudo de lesões corporais, ainda
que protagonizados por homens (réus e vítimas), apresentam a participação de meretrizes nas
entrelinhas dos relatos, afinal suas casas eram espaços comuns de sociabilidade masculina,
não apenas como bordéis, mas como botequins, onde bebiam, conversavam e compartilhavam
experiências. Muitas vezes, esses espaços se tornavam cenários de episódios delituosos e, a
violência, sobretudo de gênero, pairava constantemente sobre o cotidiano das prostitutas.
Como enfatizam Josivaldo Pires e Luiz Pinheiro,

As zonas indicadas como de prostituição eram também reincidentes nos


casos de desordem e outras formas de contravenção, como conflitos que
produziam lesões corporais, às vezes, até homicídios em suas vítimas.
Portanto, as casas de prostituição eram ambientes instigadores desses
conflitos por várias razões, desde as mais fúteis, como bebedeira, até as mais
qualificadas como a disputa de poder nas zonas251.

As relações entre mulheres, prostitutas ou não, que conviviam nos limites da Rua
Nova, emergem nos processos enquanto um emaranhado de sociabilidades bastante inter-
relacionadas e, por meio delas, identificamos solidariedades e rivalidades cotidianas entre
companheiras de casa, vizinhas e conhecidas que compartilhavam desses espaços. Não
raramente o rol de testemunhas em crimes que envolviam prostitutas, diferindo de outros
processos com presença majoritária masculina, foi composto em sua maioria por mulheres.
Essas mulheres, enquanto companheiras na vida e na morte, dividiam casas ou as
emprestavam para encontros amoroso-sexuais, compartilhavam mesas de bares, realizavam

250
APEB. Sessão Judiciário. Série Processos-Crime Defloramento. 1933. 25/1009/16.
251
OLIVEIRA, Josivaldo Pires de. LEAL, Luiz Augusto Pinheiro. Capoeira, identidade e gênero. Salvador:
EdUFBA, 2009, p.134.
124

viagens juntas, se protegiam, se defendiam. “Explosivas, eram ao mesmo tempo,


extremamente solidárias entre si, seja pela condição estigmatizante, seja pelas ameaças de
perseguição social e policial. 252 ” Sabiam que sozinhas estariam mais vulneráveis à violência,
à repressão e outras adversidades cotidianas.
Por sua vez, na condição de rivais, podiam disputar espaços de atuação ou mesmo a
narrativa dos crimes, como no caso que abre nossa análise. Estando a ré Laurides frente a
frente com a testemunha Maria Rosa Lima, suas rivalidades se destacaram, assim como suas
declarações a justiça entraram em conflito. Após a prisão em flagrante, durante o
interrogatório, Laura afirma que

Achava-se sentada na cama quando defrontou-se Antonio ante ela


empunhando um revolver ameaçando atrirar-lhe ao peito ao tempo em que
dizia que “hoje seria cobrado novos e velhos”. Que nessa emergencia ela
temendo ser ferida arrebatou o braço de Antonio abaixando o braço deste e
ouvindo a detonação. 253

Laura trazia assim, em seu relato, a justificativa da legítima defesa da vida e a não
intenção de matar, o que caracterizaria o crime como homicídio culposo. Por sua vez, a
testemunha Maria Rosa, baseada nas palavras de terceiros, aludia a uma possível motivação
para o crime, justificada pela falta de pagamento de um determinado valor em dinheiro pela
vítima, declarando que “por ouvir tambem de Rita sabe que Laurides exigiu de Antonio vinte
mil réis e que este dissera-lhe que naquele momento só lhe poderia dar cinco mil reis,
podendo na sua volta dar-lhe o restante”254. Ao refutar a declaração da testemunha, Laurides
alegou que “contestava o depoimento da depoente por ser ela sua inimiga” 255.
A rivalidade entre essas mulheres poderia surgir também enquanto necessidade de
preservação de um relacionamento amoroso ou de sua clientela, tanto por uma prostituta
quanto de uma mulher considerada “honesta”. Nesses casos, a violência entre as mulheres
mostrava que elas estavam dispostas a defender com unhas e dentes suas relações,
direcionando sua raiva para a “outra”. Foi assim que, em 1920, Maria dos Anjos agrediu
fisicamente Presilina Roza de Jesus, descrita nos autos como “mulher de vida livre”. A vítima
estava na casa comercial do negociante Bia Bastos, escolhendo um espelho para comprar,
quando recebeu uma pancada na cabeça com o salto da sandália da acusada. Inquerida sobre

252
RAGO, Margareth. Os prazeres da noite: prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo,
1890-1930. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p. 236.
253
APMC. Série: Autos Crimes – Sub série: Homicídio. Data-limite 1918-1992. Caixa: 56.
254
APMC. Série: Autos Crimes – Sub série: Homicídio. Data-limite 1918-1992. Caixa: 56.
255
APMC. Série: Autos Crimes – Sub série: Homicídio. Data-limite 1918-1992. Caixa: 56.
125

os motivos de Maria, visto que ambas não se conheciam, Presilina “suppõe ter dado origem
ciúmes da offensora por causa do senhor Bias ter frequentado a casa dela respondente, já
tendo costumes com a offensora”256. A vítima Presilina, sendo branca e mantendo relações
com um comerciante local, poderia não ser uma profissional do “baixo meretrício” caetiteense
mas continuava sujeita a violência no espaço público da cidade.
Os dois processos de homicídio que envolveram prostitutas, respectivamente como
acusada e vítima, obtiveram diferentes desfechos em relação a condenação dos réus. Enquanto
Laurides, acusada de homicídio doloso, foi condenada pelo tribunal do júri a cumprir dois
anos de prisão na Penitenciária do Estado da Bahia, o processo abaixo, do soldado Jonas,
autor do homicídio da meretriz Sebastiana, apesar de também ter sido analisado por um júri,
apresenta um resultado inconcluso. A condenação e aplicação da pena não é tão comum nos
processos analisados neste estudo, sobretudo, quando existe alegação de legítima defesa.
Entretanto, é provável que a profissão da ré tenha pesado como elemento negativo para o
julgamento do júri. Afinal, a vida de uma mulher e prostituta, em uma sociedade misógina e
patriarcal, não era digna de atenção e desvelo. Por sua vez, no segundo caso, a patente de
Jonas pode ter-lhe sido útil para conseguir se não a absolvição, ao menos escapar de uma
condenação. Este caso está descrito na transcrição abaixo:

Na noite de 10 do corrente mez de junho de 1926, na cidade de Caetité na


Rua Nova, às 8 horas da noite, o soldado Jonas da Conceição Vaz estava em
casa de Elvira Pereira da Silva com um seu companheiro de nome Braulino
José Pacheco, e de duas mulheres de vida pública, Julia Rodrigues Gomes e
Sebastiana de Tal, conversando debruçado em uma mesa. Depois da sahida
do seu collega, ficou o soldado Jonas em companhia das duas mulheres.
Conversando então com Sebastiana de Tal, tirou da cinta uma arma de fogo
que trazia e disse-lhe: esta trinta e oito nunca comeu nada, e mirou a arma
em sua fronte. Neste momento a arma disparou indo o projectil alojar-se na
cabeça de Sebastiana, que instantaneamente cahiu morta no chão, com o
ferimento constante do auto de exame cadavérico. Ao ouvir o estampido
produzido pelo tiro o soldado Braulino José Pacheco, que poucos momentos
antes estivera onde se achava o companheiro Jonas e as duas mulheres para
ali se dirigiu e ainda encontrou Jonas da Conceição Vaz, trazendo na mão, a
arma com que tinha dado o tiro – uma garrucha fôgo central. Então Braulino
lhe deu voz de prisão, e o conduziu a presença do Delegado de Polícia 257.

Jonas da Conceição, assim como seu companheiro Braulino Pacheco, pertenciam à


Força Pública do Estado258. Estavam compartilhando de um momento de socialização na casa

256
APMC. Série: Autos Crimes – Sub série: Lesões Corporais. Data-limite 1918-1946. Caixa: 77.
257
APMC. Série: Autos Crimes – Sub série: Homicídio. Data-limite 1918-1992. Caixa: 56
258
Força Pública era, no Brasil Império, o conjunto de corporações que compunham a segurança fixa das
províncias. Eram compostas pelos corpos fixos do Exército, dos destacamentos costeiros da Armada (Marinha),
126

de Elvira Pereira, acompanhados de “duas mulheres de vida pública”, instantes antes de Jonas
assassinar Sebastiana com um tiro na cabeça, alegando um disparo acidental. Salientamos
que a presença de membros da força policial, mantendo relações amistosas ou violentas com
prostitutas, não era necessariamente uma situação incomum ou um caso isolado numa região
específica. Tal fenômeno também se manifestava em outras localidades do estado, da capital
ao interior. Sobre essa questão em Salvador, Carolina S. Cunha de Mendonça, ao analisar
imagens da prostituição feminina nas primeiras décadas republicanas, por meio de discursos e
representações, afirma que “com o intuito de reprimir a sua ação, buscando diversão com elas,
compartilhando os espaços do ‘lar e do botequim’ ou mantendo relações amorosas, os
chamados ‘homens de farda’ conviviam, diariamente, com as profissionais do sexo”. 259
Em Itabuna, Carolina Oliveira, ao elaborar a narrativa dos trânsitos, práticas e
conflitos das prostitutas, entre 1930 e 1960, ressalta as relações marcadas por cumplicidade e
tensão vividas entre meretrizes e policiais:

Se nem sempre os policiais se portaram como representantes da ordem,


talvez seus contatos com o comércio do sexo não fossem tão ásperos. As
conexões maleáveis entre aquelas trabalhadoras, os guardas e delegados de
polícia viabilizaram a manutenção do meretrício no centro. Talvez porque
aquele território, também fosse oportuno para certos clientes “engravatados”
membros das municipalidades.260

Assim como a relação amistosa ou conflituosa com os homens da lei, o processo de


criminalização da figura da prostituta fazia parte do cotidiano dessas mulheres, ainda que a
prostituição em si não constituísse crime previsto pelos códigos penais de 1890 e 1940. Nesse
caso, a “criminalização” tinha mais a ver com o projeto de civilização higienizadora dos

da Guarda Nacional e dos Corpos Policiais, e eram comandadas pelos “Comandantes de Armas” locais,
normalmente militares das Forças Armadas indicados pelo imperador, ou mesmo civis que fossem nomeados
presidentes daquelas províncias.
Ainda assim, cada instituição tinha sua autonomia de comando, subordinada às suas respectivas organizações
centrais da Marinha, Exército e Guarda Nacional e, no caso dos Corpos Policiais, aos presidentes. Com a
Proclamação da República, em 1889, passou a denominar exclusivamente as forças estaduais, quando compostas
pela Polícia Militar e Corpo de Bombeiros Militar, sendo a Polícia Militar do Estado de São Paulo a última a ter
perdido essa denominação, em 1970, quando incorporou o efetivo da antiga Guarda Civil às suas fileiras.
Possuíam, via de regra, forma de atuação próxima às das Gendarmarias, com atribuições de policiamento
ostensivo do público civil, bem como sendo constituídas e organizadas como exércitos locais, sob comando dos
presidentes (atuais governadores) dos estados, os quais, em algumas situações, também conferia poderes de
polícia judiciária e de investigação aos seus militares, principalmente nas cidades interioranas. Nas grandes
cidades, atuavam policiando as partes mais rurais e afastadas (nas regiões centrais, nos estados onde existiam,
costumavam atuar as Guardas Civis), como força de choque em casos de distúrbios civis, ou mesmo no caso de
grandes desastres naturais, em ações de defesa civil. In: https://www.stive.com.br/3832-forca-publica.html
259
MENDONÇA, Carolina Silva Cunha de. Marias Sem Glória: Retratos da prostituição feminina na Salvador
das primeiras décadas republicanas. Dissertação de Mestrado em História. Salvador: UFBA, 2014, p. 82.
260
OLIVEIRA, Carolina dos Anjos Nunes. Astúcias do desejo: Práticas e trânsitos de prostitutas na cidade de
Itabuna – BA (1930 a 1960). Dissertação de Mestrado. Recife. UFPE, 2011, p. 83.
127

comportamentos e práticas dessas mulheres do que com alguma punição penal. Com a
República surgira, no entanto, a tipificação do crime de lenocínio para aqueles que
favorecessem a prática do meretrício. Segundo o código de 1890:

DO LENOCÍNIO
Art. 277. Excitar, favorecer, ou facilitar a prostituição de alguém para
satisfazer desejos desonestos ou paixões lascivas de outrem:
Parágrafo único. Se este crime for cometido por ascendente em relação à
descendente, por tutor, curador ou pessoa encarregada da educação ou
guarda de algum menor com relação a este; pelo marido com relação á sua
própria mulher:
Art. 278. Induzir mulheres, quer abusando de sua fraqueza ou miséria, quer
constrangendo-as por intimidações ou ameaças, a empregarem-se no tráfico
da prostituição; prestar-lhes, por conta própria ou de outrem, sob sua ou
alheia responsabilidade, assistência, habitação e auxílios para auferir, direta
ou indiretamente, lucros desta especulação.261

Com o Código Penal de 1940, o capítulo V “Do lenocínio e do tráfico de mulheres”


incluiu os artigos:

Art. 227. Induzir alguém a satisfazer a lascívia de outrem


Art. 228. Induzir ou atrair alguém à prostituição, facilitá-la ou impedir que
alguém a abandone.
Art. 229. Manter, por conta própria ou de terceiro, casa de prostituição ou
lugar destinado a encontros para fim libidinoso, haja, ou não, intuito de lucro
ou mediação direta do proprietário ou gerente.
Art. 230. Tirar proveito da prostituição alheia, participando diretamente de
seus lucros ou fazendo-se sustentar, no todo ou em parte, por quem a exerça.
Art. 231. Promover ou facilitar a entrada, no território nacional, de mulher
que nele venha exercer a prostituição, ou a saída de mulher que vá exercê-la
no estrangeiro.262

Assim, o lenocínio fazia parte de um projeto de regulamentação da prostituição que


não previa acabar com sua existência, mas educar moralmente a sociedade sobre os seus
perigos. Salientamos que não encontramos em nossas fontes, indícios da prática de
cafetinagem na Rua Nova, o que não implica em negar a possibilidade da existência do
lenocínio na região. A criminalização destas mulheres poderia se dar, de forma direta ou
indireta, por outros meios. No próprio código penal de 1890, como vimos no primeiro
capítulo, o estupro da prostituta era desqualificado e recebia pena menor que o da “mulher

261
Código Penal dos Estados Unidos do Brazil. Decreto n. 847 de 11 de outubro de 1890. Disponível em:
http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=66049
262
Código Penal - Decreto-Lei Nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Disponível em
http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-2848-7-dezembro-1940-412868-
publicacaooriginal-1-pe.html
128

honesta”. Outro artigo que poderia enquadrar penalmente as prostitutas seria o artigo 282 de
“ultraje público ao pudor”, no intuito de civilizar seus hábitos no espaço público.
Nos processos criminais estudados, as mulheres de vida livre frequentemente eram
apontadas não apenas como praticantes de uma sexualidade condenável, mas também
portadoras de vícios como o alcoolismo. Entretanto, não há por parte dos discursos jurídicos
nenhum apelo para o controle ou punição da prostituição, havendo certa tolerância que se
caracterizava, assim como no discurso médico, como “mal necessário e, portanto, não deveria
ser extinta”263 para atender aos instintos sexuais masculinos.

3.1.1. Representações da prostituição caetiteense nos discursos das elites

A tolerância à prostituição feminina, sugerida pelos processos criminais, não aparecia


da mesma forma nos alertas da imprensa caetiteense, expressando a visão de uma elite
intelectual que, embora almejasse um projeto de modernização e progresso, possuía valores
arraigados pela moral cristã, encarando o meretrício como um empecilho para seus planos de
civilidade na região. Em suas páginas, O Jornal A Penna denunciava constantemente as
ameaças que a vadiagem, a mendicância e a prostituição representavam para a sociedade
caetiteense e demonstrava quase sempre uma preocupação com o intenso fluxo migratório de
mulheres e homens dos sertões para o sudeste, como observamos na imagem de capa do
jornal em 1913:

FIGURA 10: PRIMEIRA PÁGINA DA EDIÇÃO DE 25/04/1913. A PENNA. ANO II.

Fonte: APMC-CD 01

263
ENGEL, Magali. Meretrizes e doutores: Saber médico e prostituição no Rio de Janeiro (1840-1980). São
Paulo: Brasiliense, 2004, p.105.
129

Assim, a preocupação com as mulheres emigrantes solteiras e casadas e o risco do


“aliciamento” emerge nas tintas da imprensa caetiteense. Uma mulher que saísse de seu lar,
sozinha ou acompanhada pelos filhos, rumo a um destino incerto, ameaçava a ordem social e
estaria vulnerável ao temido fantasma da prostituição. Por sua vez, o retorno dessa mulher
“movida por fúteis vaidades”, para a região, incutida de hábitos e valores condenáveis pela
boa sociedade, seria um risco para a preservação da moral das famílias, como o próprio jornal
afirmava:

As urgentes necessidades que assediam uma pobre mulher abandonada aos


cuidados de estranhos hypocritas, cercada de filhinhos a solicitar pão e
vestido e em meio de sérios perigos, às fúteis vaidades do sexo frágil ávido
da vistosa pompa que não pode obter, mesmo se as instâncias de uma
natureza intertropical, tudo é o Satanás tentador que arrasta ondas caudalosas
para o enxurro dos vontaibros que para esse terrível maestro das angustias de
desilusões e de torpezas attrahe uma contínua corrente de indivíduos de
ambos os sexos [...]. Podemos apresentar aos olhos dos nossos leitores os
modos diversos por que se dá a desmoralização da família entre nós por
causa do êxodo, teríamos muito que escrever. 264

A migração do sertanejo pobre estava associada a um período de fortes estiagens e


crise na produção agrícola, além da promessa de um futuro menos sofrido em outras regiões
do país. Os homens eram maioria nas levas de emigrantes, entretanto, a preocupação da
imprensa caetiteense, representante ideológica da elite intelectual local, direcionava-se para as
mulheres enquanto responsáveis pela manutenção da moral e dos bons costumes. Elite esta
que, também deixou registrada em suas memórias as imagens de mulheres em situação de
prostituição transitando pelas ruas da cidade, como observamos no relato de Flavio Neves,
membro de uma das famílias da elite caetiteense, acerca do diálogo de uma jovem prostituta
com sua pequena filha, quando este havia visitado uma zona de baixo meretrício, ou “plantel
de baixa valia” nas palavras do mesmo, durante sua infância:

Não ostensivo, pois bem resguardado em certos locais. A nossa curiosidade


de meninos, fedelhos como lá diziam, levavam-nos a investigação dos
lugares de perdição, a surpreender rapazes conhecidos em suas incursões às
primeiras horas da noite.
Um plantel de baixa valia situava-se no Pega e Puxa, uma ladeira atrás do
Mercado Municipal. De uma delas guardo a imagem pelo que dela vi e ouvi
[...] A atitude da referida prostituta foi original e pitoresca. Ela, uma
mulatinha nova, quase preta, achava-se, em dia de feira, sentada à calçada
junto ao mercado. Uma filhinha de seis meses sobre os joelhos, a mãe
encantada e carinhosa. Em um de seus arroubos ouvi-a dizer e com

264
A Penna, 26/01/1912, p. Anno II
130

palmadinhas ao trazeiro da miúda: “belezinha da mamãe, quando crescer vai


ser uma putinha feito a mamãe”. Eu era apenas um menino, mas
impressionei-me com aquele projeto de vida, que era tudo quanto aquela
jovem mãe tinha a oferecer 265.

Esse trecho integra o relato memorialístico do jovem da família Neves sob o subtítulo
“O pecado em Caetité”, e é a partir das lembranças de um homem cristão de elite que
visualizamos a presença de uma mulher prostituída em um espaço público (o mercado), bem
como sua relação de afetividade com a filha ainda bebê. Diante de um volume maior de
memórias ou textos dispersos referentes a prostituição após a década de 1970, a obra de
Flávio Neves nos auxilia a compreender, por meio desse breve comentário, o comportamento
da sociedade caetiteense do início do século XX, em relação ao meretrício. Por sua vez, o que
Flávio destaca em recordação é o conflito entre os valores morais nos quais fora educado e os
valores familiares recriados, dentro de uma moralidade desviante, por aquela “mulatinha
nova, quase preta”.
Percebemos também nesse relato, por meio da descrição da cor da pele, o que nem
sempre é facilitado pelos silêncios dos processos criminais: a presença das mulheres negras
nas zonas de prostituição, alguns anos após a abolição da escravidão. De tal modo, o mercado
de prazeres sexuais e as relações com homens de várias categorias sociais poderia representar
para essas mulheres uma alternativa de sobrevivência no espaço urbano. Anunciar que a filha
seria uma “putinha feito a mamãe” estaria, no entanto, dentro do “horizonte de expectativas”
daquela jovem mulher, o que não era para ela algo depreciativo ou fatalista, nem mesmo
“tudo o que tinha a oferecer”, como afirma o narrador, mas uma previsão lógica
proporcionada pelo “espaço de experiência” da prostituição, que poderia ser também uma
ocupação transmitida entre gerações. Acerca dessas categorias define Koselek, ao afirmar que
experiência e expectativa entrelaçam passado e futuro:

A experiência é o passado atual, aquele no qual acontecimentos foram


incorporados e podem ser lembrados. Na experiência se fundem tanto a
elaboração racional quanto as formas inconscientes de comportamento, que
não estão mais, ou que não precisam mais estar presentes no conhecimento.
[...] Nesse sentido, também a história é desde sempre concebida como
conhecimento de experiências alheias Algo semelhante se pode dizer da
expectativa: também ela é ao mesmo tempo ligada à pessoa e ao
interpessoal, também a expectativa se realiza no hoje, é futuro presente,

265
NEVES, Flávio. Rescaldos de Saudades. Academia Mineira de Medicina. Belo Horizonte, 1986, p.86.
131

voltado para o ainda-não, para o não experimentado, para o que apenas pode
ser previsto266.
As experiências dessas mulheres eram assim projetadas em suas relações familiares e
no exercício da maternidade, rompendo com o mito da meretriz solitária e egoísta, de “ventre
seco”, sem filhos. As prostitutas eram mães, poderiam constituir famílias sob outros padrões
de conduta que diferiam do modelo familiar burguês e patriarcal, assim como muitas outras
mulheres pobres, solteiras, viúvas e amasiadas, não correspondiam a este modelo almejado
pelas classes dominantes.
Os registros de uma vida familiar ou de uma vida solitária presentes nos fragmentos da
história dessas mulheres poderiam vir à tona por ocasião de seu falecimento, não somente
enquanto alvo de um homicídio, mas de causas naturais ou acidentais. Ocasionalmente, em
registros de óbitos ou em notas de jornais, seus nomes e a profissão que vieram a exercer são
mencionados, como nos casos das mortes de Micaella e Francelina. No livro de registros de
óbitos da paróquia de Caetité tivemos contato com o relato do falecimento da idosa Micaella
de Tal, classificada como “prostituta”, vítima de queimaduras, em 1922.

Aos dezessete dias do mez de setembro do anno de mil novecentos e vinte e


dois, nesta cidade de Caetité, em meu cartório, compareceu o cidadão Cezar
Castro e, em presença das testemunhas abaixo assignadas, declarou que hoje
as nove horas do dia nesta cidade de Caetité faleceu queimada Micaella de
Tal, com oitenta anos de idade, Prostituta, deixando uma filha alucinada; e
há de sepultar no cemitério municipal desta cidade, do que para constar, faço
este termo em que commigo assignam o declarante e as testemunhas
Joaquim Miguel Dias, e Octavio Macedo de Carvalho a que este negociante
digo aquelle negociante e este artista, todos residentes nesta cidade. Eu,
Pedrito Castro, escrivão de paz o escrevo e assigno267.

A respeito da filha de Micaella, que ficara “alucinada” não sabemos sua idade, mas
provavelmente deveria ser adulta, o que demonstra a permanência dos laços afetivos de mãe
e filha mesmo após a infância e a juventude. Aos oitenta anos, Micaella de Tal, permanecia
carregando o estigma de sua ocupação, que talvez carregara por anos, identificada no registro
de óbito não como “mulher pública”, “de vida livre”, “meretriz” – o que comumente
acontecia nos autos criminais – mas como prostituta. Além disso, a menção as pessoas que se
envolveram com as despesas dos sepultamentos de prostitutas revelam também as
possibilidades de que essas relações tenham sido mantidas em vida por elas. É possível que
Micaella, com o tempo, tenha se tornado dona de bordel e, por isso, exercido relações de

266
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro:
Contraponto-Ed. PUC-Rio, 2006, p.309-310.
267
APMC. Livro de óbitos da comarca de Caetité (1890 – 1920)
132

poder com vários indivíduos da sociedade. O fato de, apesar da sua avançada idade, ainda ser
reconhecida como prostituta, bem como a presença de testemunhas como um negociante e um
artista (artesão), podem indicar essa sugestão.
Outro registro que faz referência a uma prostituta é o anúncio da morte da “rapariga”
Francellina pelo jornal A Penna, em que relata que ela falecera sozinha em sua casa,
acometida por sífilis. O anúncio é também uma cobrança para a construção de um asilo na
cidade:

Francellina, uma rapariga paupérrima e doente de syphillis há muito tempo,


a princípio conseguia arrastar-se em busca da caridade pública, mas afinal
recolheu-se ao seu lugar, sem recursos, sem o precioso amparo em sua
deplorosa situação. Porém, morreu só, quem sabe se a forme ou a sede, ou a
míngua de outros recurso. Foi encontrada pelo sr. Clementino (sic) morta,
assentada com a fronte apoiada sobre o braço. E as visinhas de parede em
meio ignoravam o facto. Mais uma flagrante prova da urgente necessidade
de um asylo, de uma casa, por mais modesta que seja, onde sejam alojados
esses infelizes perambulando arrastando penosamente a sua dolorosa
existência pelas ruas da cidade, muitas vezes, levando bem a vista chagas
horrendas, que são o atestado de sua situação miserável e uma terrível
ameaça a saúde da população. Esses infelizes são, muitas vezes,
indiscriminados, por andarem assim DESCARADAMENTE sem o menor
respeito à gente boa e asseada. Que se deixem nas suas tocas. E a pobre
Francelinna satisfez a exigência da boa sociedade. Morreu no seu canto, sem
incomodar ao próximo. Foi sepultada as expensas da sociedade beneficente e
teve a cova grátis. Que mais podia desejar?268

Nas páginas do A Penna, a prostituição, a mendicância e a vadiagem que tanto


atemorizavam aquelas elites, pairando como um fantasma sobre o projeto de um sertão
moderno e civilizado, costumeiramente apareciam como justificativa para apelos à autoridade
local, visando à manutenção da ordem. No caso de Francellina, a necessidade de um abrigo
que acolhesse os pobres infelizes que arrastavam suas chagas frente a toda “boa sociedade”
caetiteense, domina a narrativa de sua morte. O discurso higienista para limpar as ruas dos
males que a pobreza carregava aliava-se ao discurso benevolente da caridade cristã, enquanto
base para o projeto filantrópico apoiado pelo jornal. O articulista se utiliza assim do sarcasmo
e da ironia em sua narrativa, criticando aquela sociedade que fechava os olhos para as mazelas
de uma população miserável e, mesmo assim, queria gozar de uma cidade com “ares de
progresso”. A solução cristã para esse problema social se materializava então na construção
do asilo que abrigasse tais pessoas.

268
A Penna, 01/08/1913, p.04. Anno II
133

A relação da prostituição com doenças venéreas como a sífilis foi bastante comum
também nos discursos médico-sanitários nos grandes centros urbanos. Por sua vez, a
associação entre a prática do meretrício e a pobreza provocava o temor de uma epidemia da
doença, ainda que as classes mais abastadas e as prostitutas de luxo não estivessem imunes ao
contágio da doença. A prostituição assim, se tornava uma ameaça tanto para a honestidade das
famílias, quanto para a saúde pública, pois “quanto mais miseráveis, maiores os riscos que
representavam para a saúde física e moral do conjunto da população” 269.
Para a elite caetiteense, o que mais poderia desejar a pobre Francellina, a não ser
“morrer sem perturbar a ordem e a moral das famílias?” Entretanto, o relato de uma morte
solitária como a sua poderia ocultar uma vida marcada por uma rede de sociabilidades comum
a essas mulheres consideradas “públicas” e necessárias a sua sobrevivência. A referência ao
papel da sociedade beneficente em seu sepultamento, por sua vez, pode indicar a ausência de
familiares que assumissem essa tarefa ou, muito provavelmente, a pobreza que marcara tanto
sua vida quanto sua morte.
Assim, as mulheres de vida livre em Caetité se integravam à dinâmica de uma vida
urbana ainda embrionária, e ora contrastavam, ora justificavam o projeto de modernidade da
elite republicana. As razões econômicas e culturais para o exercício da prostituição naquela
sociedade alto-sertaneja da primeira metade do século XX entrelaçavam-se. As mulheres do
baixo meretrício caetiteense, em um período de fortes estiagens, crise de abastecimento e
exôdo rural que arrastava as mulheres do campo para a vida nos núcleos urbanos e, diante da
grande concentração de renda e empobrecimento da população, avistaram nesse ofício uma
alternativa de sobrevivência. Por sua vez, os conservadores códigos de moralidade
republicanos, expressos também no discurso jurídico, enquadravam todas as mulheres que
exercessem uma conduta sexual desviante como “meretrizes”, independente de estas
comercializarem ou não seus corpos, enquanto silenciavam sobre os homens que se
beneficiavam do mal necessário da prostituição. Assim como as prostitutas, outras mulheres
vítimas da pobreza e da exclusão, foram condenadas moralmente por não corresponderem aos
padrões femininos impostos, optando por não assumir a maternidade através de práticas de
aborto ou infanticídio.

269
ENGEL, Magali. Meretrizes e doutores. Saber médico e prostituição no Rio de Janeiro (1840-1890). São
Paulo: Brasiliense, 2004, p. 98.
134

3.2. “O fruto de amores ilícitos”: Infanticídios na contramão do mito do amor


materno

Há dias, na semana passada, correu o boato de ter aparecido uma criança


recém-nascida morta atirada ao lixo, por traz do tumulo particular conhecido
aqui pela denominação de Mausoléo. Proptamente o expediente Delegado de
polícia Capitão Guena tomou as providências que o caso exige. O corpinho
da infeliz criança já se achava na maior parte destruído pelos cães, restando a
cabeça corrapta na qual podia-se mal divisar as feições da pobrezinha.
Debalde tem se procedido a severas syndicancias; não se tem podido
encontrar o fio por onde se descubra o crime que, sem dúvida, existe n’isso.
Consta nos que ja ha dias fora descoberta a pobre abandonada; mas somente
dias depois levaram o facto ao conhecimento da autoridade policial. O facto
verificado, por ai, sem mais comentários, revela quão desalmados são
aquelles que commetendo talvez o crime de infanticídio, bem horrível; nem
ao menos sepultaram o pobrezinho, isto é uma afronta à moralidade e aos
bons costumes que, felizmente, são adoptados entre nós.270

A notícia acima, veiculada no jornal caetiteense A Penna em 1912, sob o título


“Horror”, apresentava-se como uma denúncia e um alerta a sociedade que estaria sendo
vítima dessa “afronta a moralidade e aos bons costumes” caracterizada no crime de
infanticídio. Pesando nas tintas, os autores procuraram criar uma comoção coletiva diante do
fato que, por si só, já seria um motivo de escândalo, sobretudo, aos olhos de uma elite letrada
e “civilizada”. Por sua vez, os anseios de higienização e moralização do alto sertão baiano,
que deveriam conduzir para o progresso da região, esbarravam constantemente em práticas
como essa, que simbolizavam a não adequação das mulheres de camadas mais pobres aos
padrões de “civilidade” das classes dominantes, diante tanto das condições adversas de
sobrevivência quanto da permanência de outros códigos de moralidade. Assim, o “encontro”
de um corpo infantil sem vida ou até mesmo de um feto ainda não plenamente desenvolvido,
constituía-se como o primeiro indício para a instauração de um processo de infanticídio, isto
é, o homicídio de uma criança nos primeiros dias de vida perpetrado pela mãe que era,
invariavelmente, a acusada do delito.
Ressaltamos que, sendo consideradas “práticas costumeiras”, ou seja, que perduraram
no tempo, sancionadas pelo costume, apesar das inúmeras tentativas de criminalização, as
práticas de aborto e infanticídio foram comuns em distintos períodos da História e diferentes
culturas. Enquanto a sociedade burguesa cristã instituiu a punibilidade para tais ações, em
outras épocas e civilizações elas encontravam amparo cultural e até mesmo explicações
místicas ou religiosas. A reprovação e o horror que essas práticas imprimem aos nossos olhos

270
(grifos nossos) APMC. A Penna, 10/12/1912, p.05, nº 25, Anno II
135

nos dias de hoje evidenciam como os discursos de moralização difundidos pelos setores
médico-jurídico, pela Igreja e pela imprensa foram bem-sucedidos.
De tal modo, os nove processos-crime de infanticídio correspondentes a região de
Caetité e algumas outras localidades do alto sertão da Bahia, podem aparentar não constituir
um grande acervo documental. Todavia, ele não é menor que o percentual encontrado em
regiões mais populosas do estado, como Salvador. Acerca da reduzida quantidade de
processos, Andréa da R. R. P. Barbosa assegura que

Encontramos, apenas, três processos de infanticídio entre 1900 e 1940, todos


eles envolvendo empregadas domésticas, ou seja, mulheres pobres. Em
estudo anteriormente realizado, sugerimos que o pequeno número de
processos foi conseqüência das dificuldades da justiça em encontrar o
responsável pelo delito, uma vez que tratava-se de um ato clandestino e
muitas vezes acobertado por familiares, ou o fato de que esses processos
teriam sido elaborados menos com uma intenção punitiva do que com um
objetivo pedagógico271.

Diante do constante silenciamento da memória oficial acerca dessas práticas através


do tempo, temos em mãos um número considerável para a época pesquisada, além de
oferecer-nos uma leitura privilegiada acerca da criminalização de mulheres sertanejas que não
correspondiam aos padrões normativos impostos ao seu gênero pelos discursos médico-
jurídicos. Por meio desses processos, emergem histórias de amor e abandono, de desespero e
solidariedade, histórias de solidão e controle do corpo, de loucura e violência. São histórias de
mulheres que, pelos mais diversos motivos, utilizaram-se do infanticídio para renunciar a um
mito que atravessaria séculos, “o do instinto materno, ou do amor espontâneo de toda mãe
pelo filho”272.
Dessa forma, os processos-crime de infanticídio no município de Caetité,
compreendidos entre 1889 e 1943, trazem à luz aspectos da sociedade da época, assim como
os papeis normativos destinados a homens e mulheres no discurso dominante, mas que na teia
de suas relações cotidianas, eram reinventados e ressignificados. Por meio de fragmentos
capturados de suas vidas nesta documentação oficial, torna-se possível vislumbrar o
protagonismo das camadas mais pobres, oculto pela imposição do projeto dominador das
elites e, por sua vez, desnaturalizar os discursos que normatizavam as ações destes sujeitos
históricos.

271
RODRIGUES, Andréa da Rocha. A infância esquecida Salvador 1900 - 1940. Dissertação (Mestrado em
Historia) - Universidade Federal da Bahia, Salvador, 1998, p. 78.
272
BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: O mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1985, p.145.
136

Ainda que os processos criminais se refiram a crimes julgados como infanticídio nos
artigos dos códigos penais, as circunstâncias do ato, os relatos das testemunhas e o tempo de
gravidez em alguns casos apontam muito mais para experiências de aborto provocado. Isso se
deve ao fato de, no início do século XX, ser o aborto uma prática ainda difícil para
investigação e, na maioria das vezes, as provas eram constituídas apenas pelo encontro de
fetos e crianças recém-nascidas mortas. Segundo Joana Maria Pedro, em seu estudo acerca
das representações e criminalizações de práticas proibidas de aborto e infanticídio em
Florianópolis, entre 1900 e 1990, “a dificuldade em punir e/ou confirmar a prática do aborto,
por parte do aparato jurídico-policial, levou a que, muitas vezes o encontro de fetos fosse
transformado em processo por infanticídio” 273. Essa tênue fronteira entre aborto e infanticídio
surge na descrição de muitos processos, como o de Maria Roza de Jesus, em 1917, numa
localidade denominada Purgatório. Conforme os autos,

[...] A primeira denunciada, Maria Roza de Jesus vivia honestamente em


companhia de seus padrinhos João Baptista de Almeida e sua mulher,
Clemencia Roza de Jesus, no logar chamado Purgatório, deste termo, quando
foi deshonrada pelo referido José Pinto, continuando com o mesmo a ter
relações sexuais. Apresentando-se, afinal, os primeiros indícios de gravidez,
Maria Roza começou de se fingir doente, no intuito de provocar os cuidados
dos seus padrinhos em beneficio das intenções criminosas della e de seu co-
reu. Diligenciando sempre ocultar o seu estado, Maria Roza e José Pinto
serviram-se do facto de haverem os padrinhos da primeira encarregado uma
curandeira, a terceira denunciada, Germana de tal, do preparo de certos
medicamentos para a cura da supposta doença, e tramaram os taes
criminosos a provocação do aborto da gestante, o que conseguiram depois de
Maria Roza tomar duas, ou trez garrafadas do preparo de Germana, dando a
luz uma criancinha, ocultamente, e atirando-a ao abandono, nas
proximidades de sua casa, onde foram encontrados os restos do pequeno
corpo humano, que escaparam de ser devorados pelos cães e urubus! Do
inquérito policial, que acompanha a presente, essas circunstâncias
transparecem do depoimento das testemunhas, mas é de crer que na
formação da culpa mais luz se faça sobre as mesmas. E como os
denunciados, assim procedendo, hajam incorrido, a primeira no parag 1º e os
outros no art. 301 do Cod. Penal, oferece a presente denuncia, que espera
recebida e afinal julgada provada [...]274

A história de Maria Roza de Jesus, acusada pelo crime de infanticídio, possibilita


perscrutar não apenas uma experiência particular de resistências, opressões, sociabilidades e
conflitos, mas, sobretudo, nos propicia romper os silêncios e fornece novas interpretações
acerca de experiências femininas que destoavam dos valores morais vigentes.

273
PEDRO, Joana Maria (org). Práticas proibidas: práticas costumeiras de aborto e infanticídio no século XX.
Florianópolis: Cidade Futura, 2003, p. 42.
274
APMC. Série: Autos Crimes – Sub série: Infanticídio. Data-limite 1918-1943. Caixa: 61. Maço 01.
137

O crime de infanticídio, assim como o de aborto, constituía-se enquanto um delito


essencialmente feminino. A posição de ré no processo era ocupada invariavelmente pela mãe
da criança e, ainda que, em alguns casos, o pai pudesse ser qualificado como co-réu, tal qual
José Pinto, somente a conduta e o passado das mulheres foram esquadrinhados pelo interesse
jurídico. Por meio da análise das representações de imagens, ações e comportamentos de
homens e mulheres nos processos-crime, descortinam-se inúmeros papeis atribuídos aos
gêneros na sociedade alto-sertaneja da época, dentro de uma perspectiva de classe.

O que se pode constatar é que o processo de controle de práticas costumeiras


de eliminação, mesmo que tardia, de uma gravidez indesejada, foi
constituído no interior de relações de gênero hierarquizadas – são homens os
que controlam e definem o que deve ser ou não ser criminalizado e, embora
participem da concepção, somente as mulheres são punidas. Além disso,
contou, também com componentes de relações de classe. São homens da
elite que definem como devem comportar-se as mulheres, especialmente as
de sua classe.275

Se, como afirma Joana Pedro, o comportamento das mulheres de elite era mais
fortemente moldado no interior dessas hierarquias classe/gênero, é possível visualizar nas
camadas mais pobres papeis reinventados perante as especificidades vividas, mas ainda alvo
da vigilância moralizadora da época. Diante dessas relações de poder hierarquizadas e do
discurso predominantemente masculino e de elite, as solidariedades femininas sobressaem
como resistências historicamente silenciadas. Através das falas e omissões das personagens
de nossas tramas, delineamos assim esses papeis informais.
Ressaltamos assim, a recorrência da descrição de um “parto” rápido e solitário na
maioria dos depoimentos. As rés alegavam que nenhum familiar tinha conhecimento de seu
estado ou que não tiveram ajuda no momento do parto. Ocultar a participação de uma possível
cúmplice, no entanto, poderia ser um recurso habitual diante da punição igualmente rígida,
prevista no código penal para as pessoas que auxiliassem a gestante na ocasião de interrupção
da gravidez. Exemplificava-se assim uma das múltiplas solidariedades femininas existentes,
ao conceber a participação de outras mulheres no abortamento.
Percebemos, por exemplo, que a madrinha de Maria Roza, dona Clemência,
demonstrou evidente preocupação com a doença da afilhada e investiu em diversos métodos
para ajudá-la. Assim, vendo a mesma com “a barriga crescida e estômago lhe parecendo ser
inchação”, buscou medicamentos que pudessem solucionar seu problema de saúde, entre eles

275
PEDRO, Joana Maria (org). Práticas proibidas: práticas costumeiras de aborto e infanticídio no século XX.
Florianópolis: Cidade Futura, 2003, p. 45.
138

o purgante “Le Roy” e duas garrafadas preparadas pela curandeira Germana. Clemencia alega
em testemunho que chegou a cogitar adquirir uma terceira porção, mas Maria Roza já havia
melhorado com a segunda, ressaltando “não que ela, respondente, visse, porém Maria Roza ao
sentir o allivio do parto disse para ella respondente, não precizar mais remédios, minha
madrinha”276. Em nenhum momento, Clemencia afirma que sabia da gravidez da afilhada ou
que lhe auxiliou conscientemente no aborto, mas a própria narrativa abre parêntese para essa
possibilidade. Verificamos que:

A semelhança da composição da narrativa sugere solidariedades e


cumplicidades com parentes e amigas, que passam longe da “naturalização
do amor materno”. Falam de momentos muito tensos, partilhados com a
cumplicidade que exige a negativa da presença. Ao falarem de partos
rápidos, podem estar justificando a ausência de outras participações e, ao
mesmo tempo, protegendo cúmplices. Convém destacar que, nos Códigos
Penais de 1890 e 1940, as penas para as pessoas consideradas cúmplices no
infanticídio são superiores às destinadas às gestantes. 277

O rol de testemunhas nos processos é majoritariamente masculino, assim como toda a


equipe policial, médica (peritos) e jurídica (promotor, advogado, escrivão etc.) e portanto,
são relatos e visões de homens sobre experiências femininas que transparecem nos
depoimentos. Ressaltamos, porém, os contra-poderes cotidianos exercidos pelas mulheres nas
“entrelinhas” da narrativa, rompendo os papeis prescritos. Exemplo disso é o fato de os
homens que encontraram os fetos/cadáveres sempre recorrerem a uma mulher, provavelmente
com algum respaldo na comunidade, antes mesmo de comunicarem o ocorrido às autoridades.
As mulheres autoras do crime de infanticídio podiam ser solteiras, viúvas, casadas,
amasiadas e, muitas vezes, abandonadas pelos pais de seus filhos. A faixa etária variava entre
16 e 34 anos. Diante da dificuldade de acesso e eficácia de métodos contraceptivos e do
insucesso de práticas abortivas, recorriam ao expediente do infanticídio em uma situação-
limite. Os motivos para o ato eram diversos e não se restringiam ao caráter econômico, ou
seja, as limitações financeiras para o sustento da criança. Aliavam-se motivações de caráter
moral, como a estigmatização de “mulher desonesta”, atribuída por uma sociedade rural
bastante conservadora e que se apropriava das noções de honra e moralidade difundidas pela
elite, com motivações pessoais diante de uma gravidez indesejada e uma maternidade que não
se encontrava nos planos imediatos de vida daquelas mulheres.

276
APMC. Série: Autos Crimes – Sub série: Infanticídio. Data-limite 1918-1943. Caixa: 61. Maço 01.
277
PEDRO, Joana Maria (org). Práticas proibidas: práticas costumeiras de aborto e infanticídio no século XX.
Florianópolis: Cidade Futura, 2003, p. 54.
139

Um dos mais antigos processos de infanticídio analisados, ocorrido no arraial de


Caculé, em 1891, narra a história de Mequelina Ferreira que se afastara de sua terra natal após
engravidar, retornando ao mesmo tempo em que fora encontrado numa lagoa o corpo de uma
menina recém-nascida. Como afirmam os autos,

No anno passado apresentou-se gravida Mequelina, não ficando por isto


muito satisfeita a mãe da mesma porquanto a mais de oito annos Mequelina
achava-se separada de seu marido. Em vista disso, resolveu Mequelina fazer
uma viagem ao Tremedal afim de lá ter sucesso, por que, digo, o que de
facto levou a efeito. Logo após o sucesso Mequelina voltou para o Caculé,
apparecendo trez dias depois da chegada da mesma uma menina de vinte
dias mais ou menos dentro da lagoa do arrayal, a qual menina era filha de
Mequelina segundo esta lhe dissera.278

Neste sentido, Mequelina, assim como outras mulheres denunciadas por crimes
semelhantes, foi alvo de um julgamento moral propagado não apenas pelos operadores da lei,
mas pelos moradores de sua comunidade em seus depoimentos. Ainda que fosse uma mulher
separada do marido, até então não havia enfrentado o olhar acusatório de seus vizinhos que
alegam inclusive que Mequelina passava-se “por mulher honesta e por isso gozando da estima
de todos”. Sua condenação pela justiça, como veremos ao analisar os desfechos dos
processos, se daria apenas muitas décadas depois, tendo o crime já prescrito.
Mulheres viúvas figuraram como rés em alguns dos nossos processos e, seja nos
inquéritos da promotoria ou nos depoimentos de populares, o seu estado civil é
frequentemente associado à necessidade de preservação da honra, ocultando a gravidez. Em
1904, na vila de Macaúbas, a viúva Melania Roza de Jesus, parda e fiandeira, com trinta anos
de idade, é processada pelo crime de infanticídio, pois, conforme os autos:

A oito de setembro corrente, pela manhã, appareceu nas ruas desta villa,
servindo de pasto aos cães, uma creança do sexo masculino e de cor parda,
fructo dos amores da referida Melania, que aproveitando ser viúva (sic) afim
de ter franco ingresso em casa de várias famílias desta localidade, as
occultas, fazia seus sacrifícios nos altares de Vênus, até que sentindo-se
grávida e o ventre, por sua vez, cada dia avolumando-se, (sic) incultar no
espírito de algumas pessoas que semelhante desenvolvimento progressivo
era devido a moléstias, o que deu lugar a que se compadecessem de seu
estado e procurassem mitigar o seu sofrimento amparando-lhe os filhos e a
ela própria o sustento cotidiano.
Entretanto, chegando a época determinada, por ter attingido o fim de sua
evolução, sentindo ella os symtomas do nascer da creança e julgando que
(sic) tinham-na por doente, recolheu-se a sua casa e procurou sozinha ter o
parto, o que feito asphyxiantemente a creança, enterrando-a logo depois nos

278
APEB. Sessão Judiciário. Série Processos-Crime Infanticídio. 1891. 13/541/17.
140

fundos do quintal da casa em que residia, julgando assim ter occultado a


victima de sua perversidade e fructo de seus amores ilícitos ao olhar do
mundo279.

Melania era uma jovem viúva que não se privava de manter relações afetivo-sexuais,
designadas como “amores ilícitos” na narrativa da acusação. Sozinha e sendo mãe de dois
filhos, precisou recorrer ao infanticídio como forma de controle da natalidade e ocultou sua
gravidez dos vizinhos por que, segundo ela, “sendo viúva e sentindo-se grávida precisava
ocultar-se para que não cahisse no domínio público”280. O fato de Melania já ter exercido a
maternidade em outros momentos, possivelmente enquanto seu esposo ainda era vivo, não
significou que ela se conformaria com a inevitabilidade do nascimento de um terceiro filho.
Como afirma Elisabeth Badinter, a experiência da maternidade dava-se de modo singular para
cada mulher e, nesse caso, poderia ser singular para a mesma mulher em situações distintas de
sua vida. Por sua vez, seria “os seus sacrifícios nos altares de Vênus”, ou seja, o exercício de
uma sexualidade desviante para uma viúva, que incomodava as autoridades jurídicas, fazendo
uma menção a profana Vênus, deusa não só do amor, mas do desejo sexual na mitologia
greco-romana.
O processo da viúva Anna Vianna, datado de 1921 e ocorrido na região de Gameleria
de Fora, sugere a ocasião de um infanticídio, devido aos relatos das testemunhas, o exame de
necropsia que indica o nascimento de uma criança viva e a ausência da ré no processo. As
testemunhas são invariavelmente questionadas sobre a conduta das mulheres indiciadas e, no
caso de Anna, em que apenas um dos depoentes é uma mulher, todos os relatos enfatizam o
fato de “ela ser viúva e querer passar por honesta”281. Delineia-se um quadro de julgamento
anterior ao próprio inquérito policial, com a fuga de Anna Vianna, que abandonara sua
residência e não compareceu as audiências, ocorrência que, para as autoridades, evidenciaria
sua culpa. Realizara-se então um processo judicial sem o depoimento e a presença da ré. Não
temos assim a possibilidade de conhecer, mesmo que nas sombras dos discursos da
documentação oficial e pela transcrição do escrivão, a fala de uma mulher que, acuada pelo
medo da criminalização e do escândalo, vislumbrou na fuga sua única alternativa.
Mulheres casadas como a lavradora Laurinda Rosa de Jesus, de trinta e quatro anos,
também eram acusadas do crime de infanticídio. Em 1924, diante da necessidade de ocultar a
prova de um adultério, interrompendo uma gestação, Laurinda recorre a remédios abortivos
fornecidos pelo pai da criança, José Antônio Lopes, com quem manteve relações na ausência
279
APEB. Sessão Judiciário. Série Processos-Crime Infanticídio. 1904. 32/1130/08.
280
APEB. Sessão Judiciário. Série Processos-Crime Infanticídio. 1904. 32/1130/08
281
APMC. Série: Autos Crimes – Sub série: Infanticídio. Data-limite 1918-1943. Caixa: 61. Maço 01.
141

do marido, tendo este trabalhado como meeiro nas terras de José. Afirmando que “a criança
tinha nascido fora do prazo normal, por aborto provocado” e, mais adiante, “ella diz que o
menino nasceu de cinco mezes”, a descrição do processo por fim, recorre ao artigo 300 do
código penal de 1890, isto é, denuncia o crime de aborto. Todavia, a dificuldade de se provar
o delito diante das limitações técnicas da medicina no interior da Bahia neste período pode ter
contribuído para a conversão do inquérito em processo de infanticídio.
Mulheres solteiras, vivendo na casa de seus pais ou em companhia de outras mulheres,
também compõem o perfil das nossas acusadas de infanticídio. Em 1911, Ana Francisca dos
Anjos, de vinte e três anos, residia com Belarmina Maria do Nascimento, de trinta e cinco
anos em uma casa na vila de Macaúbas, quando dá a luz a uma criança e a enterra no quintal
de dona Maria Emiliana, próximo a fonte onde costumava lavar roupas. A grande maioria do
rol de testemunhas desse caso é feminino e a rede de solidariedade entre essas mulheres
demonstra que, apesar de tentar ocultar a ajuda recebida, Ana fora amparada desde as dores
até o nascimento da criança por mulheres com determinada experiência em trabalhos de parto.
Entretanto a presença dessas pessoas é mantida em segredo durante todos os depoimentos,
marcados pelo temor da criminalização pela possível cumplicidade no delito.
Em que pese à declaração da acusada de que a criança havia nascido morta, o exame
cadavérico indicava que o crânio infantil havia sido esmagado e fora a causa de seu
falecimento. Por sua vez, o “amázio” de Ana, que estava morando no estado do Amazonas,
retornara e prestara seu depoimento como informante. Manuel Grotta, de quarenta e dois
anos, relacionava-se há oito anos com a ré, tendo tido com esta dois filhos que vieram a óbito
ainda recém-nascidos.
Percebemos assim, que os processos-crime de infanticídio no alto sertão, em sua
totalidade, correspondem a delitos cometidos em áreas rurais, distantes dos núcleos de
povoamento, o que difere de outras regiões da Bahia. Não necessariamente o infanticídio seria
uma prática da população rural, entretanto, a dificuldade de ocultar a mesma poderia ser mais
difícil perante a rede de especulações e boatos que se constituía em torno dos casos. Tais
redes permitiam que os próprios vizinhos e parentes realizassem uma espécie de investigação
inicial, relacionando fatos, locais, datas e pessoas. No caso de Laurinda, por exemplo, o saco
com o cadáver (ou feto) é encontrado nas mãos de um de seus filhos, e o irmão da ré refaz o
trajeto das pegadas deixadas por esta.
Por sua vez, a inexistência de acusadas pertencentes às classes dominantes, ou mesmo
de camadas remediadas, indica uma tentativa mais bem-sucedida de impedimento do
escândalo, não convertendo os casos em processos criminais, mas gerando outros tipos de
142

punição às moças de elite, como o convento religioso ou o hospício psiquiátrico. Ainda que
estas mulheres procurassem seguir os padrões de honra, moral e civilidade a elas impostos
para diferenciar-se das mulheres de camadas subalternizadas, como afirma Cunha, “nem
sempre, apesar de seus eventuais desejos de superioridade, estas mulheres distintas e bem-
nascidas resistiam aos apelos da tradição ou das regras aprendidas com suas mães e avós
nascidas e criadas sob regras diferentes de sociabilidade e decoro”282.

3.2.1. Culpadas ou inocentes? O desfecho dos processos de infanticídio nas mãos do juiz
ou do Tribunal do Júri

Em relação ao desfecho dos crimes de infanticídio, podemos concluir que havia uma
oscilação entre a absolvição e a condenação das mulheres acusadas deste delito no período
estudado, permanecendo um índice bastante proporcional como podemos analisar na tabela
abaixo:

TABELA 07: DESFECHO DOS PROCESSOS DE INFANTICÍDIO

Absolvição Condenação Inconcluso ou Arquivado


33,33% 33,33% 33,33%
FONTE: APMC. Série: Autos Crimes – Sub série: Infanticídio. / APEB. Sessão Judiciário. Série Processos-
Crime Infanticídio

Os três casos em que a ré é absolvida ao final do processo correspondem aos casos em


que houve a convocação de um tribunal do júri, que julgou e emitiu as sentenças. Em um
deles, o caso de Minelvina Maria do Espirito Santo, no qual se deu a fuga e captura dos
indiciados, inconformado com o resultado, o juiz apelou da sentença de absolvição concedida
pelo júri.

Baseado no art. 237 da lei nº1119 de 21 de agosto de 1915, appellei para


esse Egregio Tribunal da decisão do Jury absolvendo os réus Minervina
Maria Rosa do Espirito Santo e Filinto Francisco Ferreira da acusação que
lhes foi intentada pela Promotoria Pública desta Comarca, por entender que
as decisões do Jury sobre os pontos principais da causa são contrarias a
evidencia resultante dos debates, depoimentos e provas apresentadas.
Somente o cumprimento do dever, nascido de uma exigência da lei, me
obriga a escrever algumas palavras para justificar a minha apelação, visto
como pela prova dos autos, combinada com os interrogatórios dos réus,

282
CUNHA, Maria Clementina Pereira da. DE HISTORIADORAS, BRASILEIRAS E ESCANDINAVAS:
Loucuras, folias e relações de gêneros no Brasil (século XIX e início do XX). Tempo, Rio de Janeiro, Vol. 3, n°
5, 1998, p.21
143

demonstra cabalmente a injustiça, ou antes, a inconsciência da decisão do


jury.
Se examinarmos as provas dos autos constantes dos depoimentos de todas as
testemunhas, verificaremos não só que a ré Minervina Maria Rosa do
Espirito Santo matou sua filha recém nascida, enterrando-a ainda viva à
margem do córrego Canabrava, como que o réu Filinto Francisco Ferreira,
seu pae, e com quem vivia em relações incestuosas, a ajudou na consumação
desse crime hediondo, prestando auxilio efficaz a sua execução, sem o que o
mesmo não se teria dado.283

O juiz de direito Polybio Mendes da Silva não apenas discordou da decisão final dos
jurados, como a considerou “inconsciente” e injusta, baseando-se nas provas e depoimentos
que comprovariam a culpa de Minervina e de seu pai Filinto, suspeito de ser também o pai da
criança. Por meio de sua apelação, o juiz obteve a convocação de um novo tribunal do júri,
tendo seu intento frustrado novamente, pois o novo júri novamente absolveu a ré. Assim
também nos processos de Melania de Jesus e Ana Francisca dos Anjos, o veredito dos jurados
promoveu a absolvição das mulheres acusadas de infanticídio. Por sua vez, nos processos
criminais em que a jurisprudência coube apenas à decisão do juiz de direito, ocorreu a
condenação das acusadas. Ainda assim, a prisão e/ou a permanência dessas mulheres no
cárcere era bastante relativa, visto que em alguns casos ocorrera a fuga ou ausência do
julgamento, como no caso de Anna Vianna, que tem o nome lançado no rol dos culpados, mas
nunca fora encontrada, ou no caso de Mequelina Marques, cujos autos só são concluídos
quase sessenta anos depois. Além disso, a existência de inquéritos ou processos incompletos
ou inconclusos corresponde a um número considerável para a documentação.
É interessante notar que a composição majoritária do júri era masculina e formada por
pessoas com algum status social e/ou econômico da sociedade caetiteense. Por meio dos
sobrenomes dos jurados elencados nos sorteios, percebemos tal questão, evidenciada na
listagem dos dois júris selecionados para o julgamento de Minelvina. No primeiro sorteio do
júri de sentença, os doze jurados são: Octacilio Rodrigues das Neves, Durval Públio de
Castro, Frederico Dantas de Castro, Manoel Fernandes da Cunha, João Antonio dos Santos
Malheiros, Agrario Antunes de Brito Teixeira, Joaquim Pereira Coutinho, Francisco
Rodrigues da Silva, Francisco de Britto Gondim, Francisco Manoel de Britto Costa, Antonio
Viuvo de Mesquita e Cesar Pereira.
Sobrenomes como Neves, Públio de Castro, Teixeira e Gondim na região de Caetité
estavam associados à algumas das mais abastadas famílias de proprietários e políticos

(grifos nossos) APMC. Série: Autos Crimes – Sub série: Infanticídio. Data-limite 1918-1943. Caixa: 61.
283

Maço 01.
144

influentes, o que denota uma alta seletividade do corpo de jurados. Eram esses homens das
elites ou de classes remediadas que absolviam, muitas vezes por unanimidade, as mulheres
infanticidas. Poderiam conhecer ou não os debates jurídicos acerca da honra feminina e
familiar, mas certamente distinguiam os preceitos cristãos que condenavam moralmente as
acusadas que não desempenharam o sagrado dever materno. No entanto, a aplicabilidade das
leis, nas mãos do júri, era ainda mais flexível diante das condições concretas de vida. A
miserabilidade daquelas mulheres, ainda que não fosse o único fator, pesava em seu
julgamento.
Dessa forma, a sociedade em si, representada pelo tribunal do júri284, apesar de
absorver os códigos de moralidade elaborados pelo discurso jurídico e pela retórica cristã,
nem sempre os colocava em prática, exercendo o perdão para as mães infanticidas e
contradizendo aquilo que os operadores da lei argumentavam a partir dos códigos penais.
Como afirma Vásquez, ao analisar a condução dos processos de aborto e infanticídio nos
séculos XIX e XX na região central do país:

Com o triunfo da estratégia do perdão se demonstrou que o que realmente


estava em jogo e o que estava socialmente sendo julgado não era a morte de
uma criança ou de um feto, mas sim se as gestantes deveriam ou não assumir
o filho diante das situações tão adversas de suas vidas. Este resultado
demonstra que a negação da maternidade era condenada no plano da regra,
mas em algumas circunstâncias, era perdoado e até esquecido nos arquivos
empoeirados da justiça, como foi o caso das protagonistas de nossa
história285.

Apesar da absolvição, prescrição ou inconclusão dos processos criminais de


infanticídio apontarem para o “perdão” das mães infanticidas, as estratégias de criminalização
dessas mulheres davam-se também fora do território exclusivamente penal. Ao analisar a
narrativa das cartas de remissão na França do século XVI, a historiadora estadunidense
Natalie Z. Davis questiona o que acontecia com as mulheres pecadoras após serem perdoadas
pelo rei. “Seria interessante saber se o final da carta de remissão – perdão e boa reputação –
de fato facilitaria a retomada da vida de uma mulher como o faria para os homens quando essa

284
Ao investigar as críticas a respeito da benevolência dos jurados que levavam grande número de casos a
desfechos absolutórios, Fausto afirma que “a margem das diferenças de classe, estabelece-se uma distinção entre
a condição leiga dos membros do júri, abertos a diretas influências sociais e emocionais, e os juízes togados para
quem a lei aparece como um postulado básico norteador da decisão.” FAUSTO, BORIS. Crime e cotidiano: A
criminalidade em São Paulo (1880-1924). 2 ed. São Paulo: EdUSP, 2014.
285
VÁSQUEZ, Georgiane Garabely Heil. Mais cruéis do que as próprias feras: Aborto e infanticídio nos
Campos Gerais entre o século XIX e o século XX. Dissertação de Mestrado em História. Curitiba. Universidade
Federal do Paraná, 2005, p.133.
145

mulher voltava para sua aldeia ou cidade”. 286 Com o encerramento dos nossos processos
também não temos mais pistas sobre as trajetórias das acusadas, absolvidas ou condenadas
pelo crime de infanticídio, mas os depoimentos das testemunhas dão conta de que não havia
sido fácil a vida dessas mulheres em suas comunidades no decorrer dos julgamentos.
O escândalo era elemento fundamental da criminalização das infanticidas e uma forma
de punição se dava através da publicização do crime não apenas pela imprensa ou nos
inquéritos policiais, mas pela vizinhança que compunha em boa parte dos casos o rol de
testemunhas. Por meio de uma “rede de boatos”, a reputação, o comportamento e as relações
mantidas pela ré são devassados e em dois dos casos, as autoridades policiais não são
procuradas de imediato. Os vizinhos e as vizinhas, que atuavam como testemunhas no
processo, quase sempre declaravam “saber por ouvir dizer”, “soube por ser voz geral”, entre
outros, ou seja, não presenciaram o referido delito. Todavia, o próprio comparecimento dessas
pessoas, convocadas, às vezes, em mais de um momento ao tribunal, atuava como instrumento
pedagógico para a comunidade, diante da punição de uma mulher que transgredira os padrões
morais. Sobre a validade do elemento ex auditi alieno, o “ouvi dizer”, enquanto prova
documental, o promotor público José Martins de Almeida, durante sua fala de acusação em
um processo de infanticídio, argumentara acerca de sua aplicabilidade:

Depois, em auxilio destas razões, temos a opinião de Paulo Pessôa, no seu


Código do Processo Criminal, que diz: “Todavia não se pode contestar que –
ouvir dizer – não seja elemento de prova – algumas vezes, sobretudo quando
se pode por meio de indicações fornecidas por essas testemunhas ex auditu
alieno à testemunha primitiva” Ora, se o mestre sábio affirma, que a voz
geral pode, algumas vezes, servir de elemento de prova – o meio jurídico
pelo qual se obteve a certeza da existência do delicto certo em nenhum outro
crime mais do que este de que tratam os presentes autos, ella, a voz geral,
poderá ser considerada como tal, isto é como elemento de prova. 287

No que se refere às relações tecidas no convívio de vizinhos, familiares e amigos no


alto sertão da Bahia, Maria de Fátima Pires identifica a partir da sua análise sobre a inserção
de escravos e forros na economia sertaneja, por meio do tráfico interprovincial entre o fim do
século XIX e início do XX, tais especificidades. Considerando os espaços das ruas e roças
como “lugares de relações sociais, culturais, de luta e de resistência”, ao mesmo tempo em
que aponta o quanto as redes pessoais e comunitárias foram importantes formas de

286
DAVIS, Natalie Zemon. Histórias de perdão e seus narradores na França do século XVI. São Paulo:
Companhia das Letras, 2001.
287
APMC. Série: Autos Crimes – Sub série: Infanticídio. Data-limite 1918-1943. Caixa: 61. Maço 01.
146

sobrevivência e reação à pobreza, as agruras cotidianas contribuíram com a intensificação de


tensões e conflitos. Sendo assim,

Entranhados em espaços pequenos e próximos, nos arredores das cidades e


arraiais, todos pareciam se conhecer bastante. Lançar mão da procedência de
vizinhos e parentes foi uma “arma” utilizada por muitos. Os mexericos e
fuxicos campeavam e atormentavam a vida daqueles que eram vítimas ou
alvos de difamações.288

Enquanto a promotoria valia-se do elemento do “ouvir dizer” na falta de provas


materiais contundentes, os sujeitos que compunham a vizinhança transformavam-se numa
espécie de “fiscais e guardiões” dos comportamentos e atuações daqueles/as que conheciam e
se relacionavam. Dessa maneira, dificilmente casos de aborto e/ou infanticídio, bem como
outros delitos ou ações excepcionais passariam completamente despercebidas, sem se
tornarem alvo desta rede de boatos e, consequentemente, chegarem ao conhecimento das
autoridades jurídicas.

3.1.4 Maternidade por um fio: O infanticídio entre a defesa da honra e a loucura


puerperal

O discurso jurídico que contemplou as justificativas para o infanticídio, e o


abrandamento das penas, nos dois códigos penais republicanos, oscilou entre a defesa da
honra feminina e a insanidade do estado puerperal, isto é, entre o crime e a loucura.
Percebemos como a questão da preservação da honra moral das mulheres acusadas de
infanticídio prevalecia como argumento nos processos analisados referentes às primeiras
décadas republicanas e, os próprios artigos do código penal de 1890 apresentavam tal
expediente enquanto possibilidade de atenuantes para as penas.
Todavia, esse argumento se tornara mais escasso com o passar dos anos, sendo
substituído pela tese do “estado puerperal”, ou seja, o período após o parto em que, devido a
sua fragilidade física e psicológica, a mulher estaria sujeita a transtornos mentais, entre eles, a
chamada depressão pós-parto. Identificamos indícios dessa alteração, ainda de forma gradual,
em pelo menos um processo mais recente que analisamos, datado de 1943, portanto já
enquadrado pela nova legislação penal de 1940. O de Flávia Perpétua, de vinte e oito anos,

288
PIRES, Maria de Fátima Novaes. Fios da vida: tráfico interprovincial e alforrias. Escravos e ex -escravos nos
sertains de sima. Rio de Contas e Caetité -BA (1860-1920). 2005. Tese de Doutorado em História Social.
Universidade de São Paulo. São Paulo, 2005, p. 261.
147

que cometera o crime na localidade de Lagoa Grande, abandonando a filha em um “oco de


pau”, onde veio a falecer.
Em seu inquérito a ré alega “não estar em seu estado normal”, ao contrário de suas
antecessoras que justificaram o delito como ato desesperado para ocultar sua desonra. Assim,
ao afirmar uma condição psíquica anormal, Flávia denota a influência dos novos debates
acerca dos males que afligiram as parturientes durante o período popularmente conhecido
como “resguardo”. Entretanto, não existe por parte das autoridades que conduziram e
investigaram o seu crime nenhum interesse quanto a seu estado de saúde, não constando tal
preocupação nos interrogatórios da promotoria e nem mesmo nos argumentos da defesa. Por
outro lado, a narrativa que incluía a “ocultação da vergonha” como motivação para o delito
ainda se fazia presente nos autos, o que sugere que, apesar das mudanças na legislação, o
discurso jurídico permanecia atrelado a uma visão de moralidade que perdurara por meio
século.
Seja como forma de esconder a desonra ou sob a influência do estado puerperal, a
mulher que matasse ou abandonasse um filho recém-nascido a própria sorte deveria possuir
alguma justificativa para a anulação da mais sublime e natural característica feminina: o amor
materno incondicional. A simples negação do desejo de ser mãe, a visão da criança como
empecilho e a recusa em assumir uma missão milenarmente atribuída ao seu gênero não
bastava como motivos para os operadores da lei. Como afirma Del Priore, ao investigar a
história das mulheres no período colonial, “tanto no passado quanto no presente, a
maternidade delimita um território onde mães e filhos relacionam-se empiricamente,
adaptando-se aos valores da sociedade em que estão inscritos”289, e dessa forma, a legislação
republicana fora formulada sob a égide de uma visão médica e jurídica que simbolizava a
consolidação de um modelo burguês de maternidade.
Compreendemos assim que, o que estava em jogo nas narrativas de criminalização das
mulheres acusadas de infanticídio era uma representação de maternidade conformada nos
moldes dos códigos morais das classes dominantes e, além disso, uma visão bastante recente
acerca do conceito de infância. Até pouco tempo atrás, na história da humanidade, se atribuía
um valor quase irrelevante à vida de uma criança, sobretudo recém nascida, sendo o
infanticídio uma prática sutilmente tolerada até fins do século XVII 290. Com o forjamento do

289
DEL PRIORE, Mary. Ao sul do corpo: condição feminina maternidades e mentalidades no brasil colônia.
Tese de Doutorado em História. FFLCH. São Paulo: USP, 1990, p.08.
290
Sobre a historicidade do conceito e do sentimento de infância, assim como suas representações em diversos
âmbitos da vida pública e privada ver: ARIÈS, Philippe. História social da infância e da família. 2ª ed. Rio de
Janeiro: LTC, 2011.
148

modelo nuclear de família ocidental e a valorização demográfica crescente, assim como a


nova compreensão das particularidades da infância, a sobrevivência das crianças entrou para a
ordem do dia e o Estado passou a interferir na preservação das vidas infantis. Como ressalta
Badinter,

O novo imperativo é portanto a sobrevivência das crianças. E essa nova


preocupação passa agora à frente da antiga, a do adestramento daquelas que
restavam após a eliminação das mais fracas. As perdas passam a interessar o
Estado, que procura salvar a morte as crianças. Assim, o importante já não é
tanto o segundo período da infância (depois do desmame), mas a primeira
etapa da vida, que os pais se haviam habituado a negligenciar, e que era, não
obstante o momento da maior mortalidade291.

Na leitura dos processos de infanticídio notamos a existência de uma preocupação


médica em especificar o sexo, a cor e a idade dos cadáveres infantis encontrados, desviando-
se o interesse cientifico do corpo da mulher para o da criança por meio da realização de
exames de corpo de delito. Em alguns casos, seja pela falta de profissionais de saúde ou pelo
estado e tamanho das “vítimas” – podendo inclusive serem fetos – tornava-se inviável a
realização desses procedimentos ou, ao menos, a comprovação de que a criança nascera viva.
Por sua vez, as narrativas jurídicas visavam construir uma imagem de cruel perversidade,
muitas vezes premeditada, para as mulheres que ceifavam a vida dos infantes ou que
praticavam uma espécie de abandono selvagem292.
A própria noção de infância ainda constituía um frágil aspecto para a condenação das
mães infanticidas, haja visto o alto índice de mortalidade infantil naqueles sertões, sendo a
vida de uma criança mais valorizada e sua morte mais lamentada após o primeiro ano de vida.
Como pontua Giane Carneiro,

Os anos iniciais da vida da criança eram carregados de incertezas quanto ao


futuro da existência desse novo ser, pois os índices de mortalidade infantil
eram altos. Justificam-se, assim, as medidas higienistas utilizadas e os
conhecimentos científicos requeridos para tentar preservar a saúde e a vida
da criança. Quando a mortalidade atingia os adultos e, mais especificamente,

291
BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: O mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1985, p.146.
292
Durante o segundo e terceiro séculos de colonização, surge uma modalidade selvagem de abandono. Meninas
e meninos com dias ou meses de vida não encontravam abrigo; eram deixados em calcadas, praias e terrenos
baldios, conhecendo por berço os monturos, as lixeiras, e tendo por companhia cães, porcos e ratos que
perambulavam pelas ruas. VENÂNCIO, Renato Pinto. Maternidade negada in: DEL PRIORE, Mary (org.).
História das mulheres no Brasil. 7. ed. São Paulo: Contexto, 2004.
149

aqueles que tinham filhos pequenos, outras incertezas marcavam a vida


dessas crianças órfãs.293

Forjar a imagem de uma maternidade abnegada e essencialmente intrínseca a natureza


feminina colaborou para o processo de criminalização não apenas das mulheres infanticidas,
mas também daquelas que recorreram ao aborto para interromper a gravidez indesejada. O
controle dos corpos femininos pelo estado republicano consolidou-se por meio de legislações
penais mais duras, entretanto, a inserção desses valores jurídicos mesmo nas classes
dominantes nem sempre foi bem-sucedida, haja vista os posicionamentos dos jurados e
absolvição das acusadas na conclusão dos processos.
Embora os processos de infanticídio sejam, muitas vezes, inconclusos, pouco
conservados ou com informações dispersas, o que dificulta os procedimentos de análise, eles
foram fundamentais para refletir acerca dessas construções de infância e maternidade que
possuíam contornos diferentes em cada região do país. Conjecturas a parte, o número não tão
grande de processos de infanticídio poderia indicar a não condenação, mas também a ausência
da prática de uma forma sistemática, em virtude de ser o crime de infanticídio mais
condenável que a prática abortiva. É preciso salientar que o sentimento de maternidade
incorporado pelas mulheres sertanejas podia estar muito mais firmemente ligado à um padrão
de moral cristã que a um padrão de moral burguesa, em virtude da marcante presença da
religiosidade sertaneja em suas vidas. Romper com o estereótipo do amor materno
incondicional de uma forma tão “chocante” não constituía apenas um crime passível de
punição terrena, mas um pecado dificilmente perdoado.
Crime e pecado uniam assim mulheres infanticidas e prostituídas, enquanto destoantes
dos clássicos papéis de mãe e esposa que figuravam nos discursos moralizadores, se tornando
alvo da criminalização republicana. Por sua vez, não se encaixar dentro de tais moldes não
significava romper totalmente com essas normas, mas exercer os mesmos papéis (de mãe,
esposa, amante, mulher) sob outros códigos morais. Seus atos delituosos eram, na verdade,
ações cotidianas de sobrevivência e/ou resistência, nas margens de uma sociedade patriarcal
que as fazia caminhar sobre uma corda bamba entre a condenação e a absolvição.

293
CARNEIRO, Giane Araújo Pimentel. As práticas educativas familiares no processo de distinção
geracional criança/adulto (Caetité-BA, 1910-1930). (Dissertação de Mestrado em Educação). Belo Horizonte:
UFMG/FaE, 2011, p. 41.
150

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As narrativas das experiências de mulheres caetiteenses que se viram, em algum


momento de suas vidas, enredadas pelas tramas do aparato jurídico-policial, vivendo entre o
final do século XIX e o início do XX, possibilitaram descortinar diversos aspectos dessa
sociedade em que elas estiveram inseridas. Entre eles, as estratégias de moralização
empreendidas pelas legislações penais, as marcas da escravidão na racialização das relações
sociais de trabalho e afetividade, a marginalização da sexualidade feminina, a contradição do
mito do amor materno e os conflitos entre os códigos morais das classes dominantes e os
valores das classes populares.
O desafio teórico-metodológico de romper os silêncios e não-ditos da memória oficial
e até mesmo da historiografia tradicional no que diz respeito às trajetórias dos “excluídos da
história” não é recente e, tem sido corajosamente enfrentado por gerações de pesquisadoras/es
ao desbravarem os mais diversos tipos de arquivos. Na esteira de trabalhos pioneiros, os
novos estudos no campo das relações de gênero têm se orientado por problematizar as
intersecções com outras categorias como classe e raça, sendo possível assim escrever uma
história das mulheres das classes populares, negras e trabalhadoras. Conquistar o
reconhecimento cientifico e social desses trabalhos tem sido uma batalha travada também
dentro da própria academia, que reflete ainda os limites de uma ciência pouco afeita a
explorar os recônditos das relações público-privado.
O percurso deste trabalho privilegiou uma análise qualitativa das experiências de
mulheres alto-sertanejas diante dos processos de criminalização a que foram submetidas, seja
na posição de vítima ou acusada dos crimes. Nesse sentido, a compreensão das estratégias de
moralização, controle e disciplinamento das classes subalternizadas, consideradas
ameaçadoras para a nova ordem republicana, foi possível graças ao estudo das legislações
penais do período entre 1890 e 1945, assim como os debates jurídicos travados em torno
delas. Esse arcabouço de artigos e decretos reunidos pelos Códigos Penais representava as
tensões existentes no seio da própria elite intelectual brasileira, liberal ou conservadora, de
viés racista e eugênico ou adepta do “mito da democracia racial” acerca do status do
criminoso.
A relação entre mulheres e criminalidade estava presente nos códigos por meio da
distinção “mulher honrada versus mulher pública”. A primeira, com sua sexualidade
controlada dentro dos padrões morais dominantes, seria submissa aos valores impostos para
resguardar a honra de suas famílias. A segunda seria condenada por exercer uma sexualidade
151

desviante ou não desempenhar com desvelo os papéis de mãe e esposa zelosa e abnegada.
Para as mulheres pobres, se encaixar no primeiro rótulo era quase impossível, lhes restando
assim o estigma do segundo, ainda que de forma não intencional, pois as camadas populares
incorporavam, de muitas formas, os discursos dominantes, ressignificados em suas vivências
cotidianas.
A abolição da escravidão no Brasil não representou uma grande ruptura com as
estruturas que sustentaram o país por séculos, embora inaugurasse novos desafios ao
pensamento jurídico brasileiro. Em que pese os recentes significados da liberdade e a
reinvenção de suas relações sociais, negros e negras, vivendo em um país não mais dividido
entre livres e não-livres, continuaram a viver em uma sociedade racializada, em que a cor da
pele definia seus espaços sociais. No alto sertão da Bahia, entretanto, o discurso da
mestiçagem na formação de sua população, ocultou por muito tempo, a presença negra nesses
rincões. As mulheres classificadas como pardas refletem as marcas dessa concepção de
democracia racial, não escapando porém, das heranças do cativeiro em seu cotidiano,
ressignificadas pelo novo status jurídico, mas construídas na base de um racismo velado,
contudo estrutural e estruturante das relações sociais.
Em uma sociedade fundamentalmente alicerçada em valores patriarcais mais
conservadores que os da capital, as estratégias de vigilância em torno do comportamento
feminino se faziam mais contundentes. Todavia, as vicissitudes habituais da vida de nossas
mulheres não lhes permitiam seguir à risca a cartilha da moralidade republicana alto-sertaneja.
Ao exercer uma sexualidade desviante ou habitar zonas de meretrício, podiam ser
estigmatizadas como prostitutas, assim como aquelas que sobrevivessem do comércio de seus
corpos. A prostituição assim, para além de representar a exploração sexual feminina, estava
associada aos espaços de sociabilidade masculina, às formas de relações afetivo-sexuais
menos formais e, também, à um cotidiano de violência vivenciado por estas “mulheres de
vida livre”. Por sua vez, a recusa da maternidade compulsória, representada pelo ato extremo
do infanticídio, manteve essas mulheres sobre a corda bamba entre a absolvição e a
condenação moral.
Os limites apresentados pela documentação, muitas vezes, incompleta ou omissa em
relação a questões importantes para a condução dos casos, e seguindo a lógica do aparato
jurídico-policial, dificultaram uma análise mais linear das experiências de criminalização
feminina ou a reconstituição de trajetórias dessas mulheres. Por sua vez, uma leitura “nas
entrelinhas” dos discursos médico-jurídico, em diálogo com outras fontes históricas, nos
152

permitiu acessar informações necessárias à tessitura de nossa narrativa, alcançando as


experiências desses sujeitos, ainda que mediadas pela pena do escrivão.
A relevância deste trabalho consiste assim, em abrir novos caminhos para a
historiografia feminista alto-sertaneja que, na esteira de outros importantes estudos, vem
conquistando seu espaço. Rompendo com os silêncios e estereótipos perpetuados pela
memória oficial cristalizada, buscamos recontar as histórias de mulheres que, embora
constituíssem um grupo heterogêneo, aproximavam-se por meio de suas experiências de
gênero, classe e raça, marcadores fundamentais para a compreensão das complexidades das
ações humanas no tempo e no espaço.
153

FONTES E BIBLIOGRAFIAS

FONTES MANUSCRITAS E IMPRESSAS

Arquivo Público Municipal de Caetité (APMC)

Processos-crime
Série: Autos Crimes – Sub série: Defloramento. Data-limite 1926-1986. Caixa: 37. Maço 01.
Série: Autos Crimes – Sub série: Homicídio. Data-limite
Série: Autos Crimes – Sub série: Infanticídio. Data-limite 1918-1943. Caixa: 61. Maço 01.

Jornais:
Jornal A Penna. Edições microfilmadas. 1900-1915.

Livro de óbitos da comarca de Caetité – (1890 – 1920)

Registros de posturas municipais- 1861

Livro de Registro dos Decretos-Leis (1944-1960). Lei nº 33 de 02/10/1948. Codigo de


Posturas do Municipio de Caiteté.

Livro de registros de visitas a cadeia de Caetité, 1886-1897.

Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB)

Sessão: Judiciário. Série: Processo Crime.


Sub-séries: Defloramento; Infanticídio; Homicídio; Lesões corporais.
Período: 1890-1945

Colonial e Provincial, 4.610. Mapa das Aldeias Indígenas na Província da Bahia (1700-1848).

Cúria da Igreja Matriz de Caetité (Centro Paroquial)


Registros de casamento (1919- 1925)

Acervo da Associação das Senhoras de Caridade de Caetité (ASCC)


Atas e livros de boas obras

Biblioteca da Faculdade de Medicina da Bahia (FAMEB)


Teses Médicas de Doutoramento – 1900 a 1924
Destaque: SILVEIRA, Nise da. Ensaio sobre a criminalidade da Mulher no Brasil.
Dissertação para cadeira de Medicina legal. Salvador. Faculdade de Medicina da Bahia, 1926.

Legislações Republicanas
Código Penal dos Estados Unidos do Brazil. Decreto n. 847 de 11 de outubro de 1890.
Disponível em: http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=66049
154

Código Penal - Decreto-Lei Nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Disponível em


http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-2848-7-dezembro-1940-
412868-publicacaooriginal-1-pe.html

Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Lei Nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916.
Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l31071.htm

Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil promulgada em 24 de fevereiro de


1891. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Constituicao91.htm
78

Comentários jurídicos aos Códigos Penais


HUNGRIA, Nelson. Comentários ao código penal. Nelson Hungria (1891-1969) Volume I,
Tomo I. Artgs. 1 ao 10. e 121 ao 136. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1978.
LYRA, Roberto. Comentários ao código penal. Volume 2, Tomo I. Artgs. 28 ao 74 5ª ed.
Rio de Janeiro: Forense, 1958.
MACHADO, Alcântara. O projeto do código criminal perante a crítica. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1939. Disponível em:
http://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/viewFile/65894/68505

SOARES, Oscar de Macedo. Codigo Penal da Republica dos Estados Unidos do Brasil
commentado. 7ª ed. Rio de Janeiro: Livraria Garnier, 1910.

Outras Obras Jurídicas:


CASTRO, Viveiros de. Delictos contra a honra da mulher (adultério, defloramento, estupro
e sedução no Direito Civil). Rio de Janeiro. João Lopes da C., 1897.

Documentos Impressos e Literatura Memorialista


NEVES, Flávio. Rescaldos de Saudades. Academia Mineira de Medicina. Belo Horizonte,
1986.

SANTOS, Helena Lima. Caetité, pequenina e ilustre. Tribuna do Sertão, Brumado, 1996.

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Caetité. Revista do Instituto Geographico e Histórico da Bahia. Nº 58, Seção Gráphica da
Escola de A. Artífices da Bahia, 1932.

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