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FEIRA DE SANTANA
2018
MILÉIA SANTOS ALMEIDA
FEIRA DE SANTANA
2018
TERMO DE APROVAÇÃO
Banca examinadora:
___________________________________________________
___________________________________________________
____________________________________________________
Ficha Catalográfica – Biblioteca Central Julieta Carteado
CDU : 343.97(814.22)
Nesta cidade
quatro mulheres estão no cárcere.
Apenas quatro.
Uma na cela que dá para o rio,
outra na cela que dá para o monte,
outra na cela que dá para a igreja
e a última na do cemitério
ali embaixo.
Apenas quatro.
Quatrocentas mulheres
quatrocentas, digo, estão presas:
cem por ódio, cem por amor,
cem por orgulho, cem por desprezo
em celas de ferro, em celas de fogo,
em celas sem ferro nem fogo, somente
de dor e silêncio,
quatrocentas mulheres, numa outra cidade,
quatrocentas, digo, estão presas.
A CAPES pela concessão da bolsa de pesquisa, que foi essencial para minha
permanência em Feira de Santana e para os custos decorrentes das atividades do mestrado,
uma política de valorização da ciência que precisa ser mantida e ampliada com muita
resistência frente a esses tempos temerosos de desmontes dos nossos direitos.
Agradeço as amizades que encontrei em Feira e com quem dividi mesas no 4 estações,
becos, bailes surrealistas, bandos, saraus, arenas: Igor, Elis, Luma, Rhanna. Feira de Santana
se tornou menos estranha e mais acolhedora graças a esses momentos. Nos períodos em que
precisei retornar a UEFS, pude contar com a acolhida generosa e inestimável de Fabiano
Nascimento, gratidão!
Aos bons amigos e amigas de Caetité e Guanambi, que me foram companhia virtual e
presencial nas rotas entre os sertões. Martinha, Beni, Fabiano, Alfredo, Pretinha, Eugênia e
Karol, que me salvou a vida quando meu computador me deixou na mão. À Aline, mais uma
vez, por me presentear com o abstract. À Simony e Isa, pela amizade confidente e por me
abrigarem nas necessárias e proveitosas idas à Salvador
Sob uma perspectiva feminista da história das mulheres e das relações de gênero, buscamos
analisar trajetórias e narrativas do processo de criminalização das mulheres caetiteenses,
atravessando as cinco décadas que compreendem o fim do século XIX e a primeira metade do
XX. As legislações penais republicanas representavam importantes instrumentos do aparato
médico-jurídico e refletiam os anseios de modernização das elites brasileiras e a necessidade
de controle das camadas populares, tidas como perigosas para a consolidação de seu projeto
eugênico e moralista de sociedade. Desse modo, a cidade de Caetité, localizada no alto sertão
da Bahia, uma região marcada pelo coronelismo e concentração de renda, ainda que distante
geograficamente dos grandes centros, não estava isolada das ideias que de lá chegavam, e
suas elites buscaram implementar muitas dessas estratégias de controle social. Por meio dos
autos criminais de homicídio, infanticídio, defloramento e lesões corporais, em diálogo com
outras fontes, descortinamos fragmentos das experiências dessas mulheres criminalizadas,
ocupando ora a posição de vítimas, ora a posição de acusadas dos delitos, tendo também como
pano de fundo temporal o período pós abolição da escravidão no Brasil. Afinal, ainda que a
cor das envolvidas fosse invisibilizada na documentação ou mascarada pelos discursos da
mestiçagem, a racialização de suas relações sociais, de trabalho e afetividade, e um cotidiano
de violência estruturava suas vidas, marcadas ainda pelas heranças do cativeiro. Sob este viés,
os códigos de moralidade das mulheres pobres e negras, que mantinham outras regras morais
de sexualidade e maternidade, e que precisavam empregar táticas de sobrevivência numa
sociedade capitalista, patriarcal e racista, não se enquadravam dentro das normas e valores
hegemônicos. Por esses e outros motivos, as histórias dessas mulheres devem ser
compreendidas por meio da intrínseca relação entre gênero, classe e raça.
Under the feminist perspective of the women and of the gender relationship, this work aim to
analyze the trajectories and narratives of the criminalization process of women in the city of
Caetité, during five decades that comprise the end of the nineteenth century and the first half
of the twentieth. The republican criminal legislation represented important instruments of the
medical-legal apparatus and reflected the aspirations of modernization of the Brazilian elites
and the need for control of the lower classes, seen as dangerous to the consolidation of the
eugenic and moral project of society. Thus, the city of Caetité located in the hinterland of
Bahia a region marked by coronelism and concentration of income, although geographically
distant from the great centers, was not isolated from the ideas that arrived there, and its elites
tried to implement many of these strategies of social control. Through the criminal records of
homicide, infanticide, defloration and personal injury, in dialogue with other sources, we
discover fragments of the experiences of these criminalized women, occupying both the
position of victims and the position of those accused of crimes, as well as the background
temporal period after the abolition of slavery in Brazil. It is important to understand that
although the color of these women was not included in these documents or masked by the
discourses of miscegenation, the racialization of their social relations, work and affectivity
and an everyday of violence was part of their lives, marked by the inherence of captivity.
Because of these issues, the morality code of black and poor women who maintained other
moral rules of sexuality and maternity and needed to use survival techniques in a capitalist,
patriarchal and racist society, did not fit in relation to hegemonic norms and values. Because
of these questions, the stories of these women should be understood through the intrinsic
relationship between gender, class, and race.
Figura 01 – Mapa da Bahia com destaque para o alto sertão no final do século XIX..............19
INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 12
1.1 “Não há crime sem lei anterior que o defina”: Os Códigos Penais de 1890 e 1940 na
consolidação da nova ordem republicana no Brasil .....................................................29
1.2 Mulher honrada versus Mulher pública: Criminalidade feminina nos debates jurídicos
e médico-legais ............................................................................................................38
1.2.1 Crimes de sangue: Passionalidade e maternidade nos códigos penais........................46
1.3 Ares de progresso entre o campo e a cidade: Um projeto higienista no alto sertão da
Bahia ............................................................................................................................52
1.4 Encruzilhada de lutas: Processos criminais como instrumento para escrita da História
das Mulheres ................................................................................................................67
INTRODUÇÃO
"Não serei livre enquanto outra mulher for prisioneira, ainda que as correntes dela sejam
diferentes das minhas." Audre Lorde.
1
Em agosto de 2016, após votações na Câmara e no Senado, a presidenta eleita em 2014, Dilma Rousseff, foi
afastada do cargo mediante um processo de impeachment, marcado por arbitrariedades e resultado de uma
articulação entre os poderes legislativo, judiciário e a mídia brasileira. A partir daí, o atual governo ilegítimo de
Michel Temer vem implementando uma série de reformas conservadoras, verdadeiros retrocessos, que
representam um desmonte dos direitos da classe trabalhadora (reforma trabalhista, da previdência, lei de
terceirização, PEC do teto de gastos, etc.). Por estarem na base da estrutura social, as mulheres negras são o setor
mais cruelmente atingido por essas reformas.
2
Margareth Rago aborda a necessidade de debater um “projeto de ciência feminista ou um modo feminista de
pensar”, a partir da consideração acerca das experiências das mulheres. Para ela, o feminismo não apenas tem
produzido uma crítica contundente ao modo dominante de produção do conhecimento científico, como também
propõe um modo alternativo de operação e articulação nesta esfera”. In: RAGO, Margareth. Epistemologia
Feminista, Gênero e História, publicado em PEDRO, Joana; GROSSI, Miriam (orgs.). Masculino, Feminino,
Plural. Florianópolis: Ed. Mulheres, 1998. Entretanto, a dificuldade de se escrever sob um ponto de vista
exclusivamente feminista e feminino reside também em todo o arcabouço teórico-metodológico construído no
seio de uma sociedade patriarcal, que universalizou as experiências masculinas sob um ponto de vista masculino.
Tentamos romper um pouco destes limites, ainda que não possamos desconsiderar as narrativas estruturais que,
por anos, desconsideraram a análise de gênero, propondo renová-las e absorvê-las para a construção de uma
narrativa feminista.
3
Ver BEAVOUIR, Simone de. O segundo sexo. Vol II: A Experiência Vivida. Difusão Europeia do Livro. 1967.
13
jurídico se revela latente. Como nos lembra Rachel Soihet, ao investigar as histórias de
mulheres de segmentos populares cariocas e a criminalidade feminina entre 1890 e 1920,
Contar uma outra história é a pretensão do presente trabalho, que analisa as estratégias
de criminalização das mulheres pobres caetiteenses, entre os anos de 1890 e 1945, presentes
nos discursos de um projeto de civilidade propagado pelas elites republicanas do Brasil e
reproduzido pelas elites locais. Nesse ínterim, evidenciamos as experiências dessas mulheres
a partir de fragmentos de suas trajetórias encontrados em fontes criminais, onde elas
assumiram os papéis de vítimas ou acusadas pelos delitos. São mulheres pretas, brancas e
pardas, que viveram entre as primeiras décadas do período pós-abolição até a consolidação
4
SOIHET, Rachel. Condição feminina e formas de violência: Mulheres Pobres e Ordem Urbana 1890-1940.
Rio de Janeiro. Forense Universitária, 1989, p.25.
5
PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história. Bauru: EDUSC, 2005, p. 222.
14
6
TILLY, Louise A. Gênero, história das mulheres e História social. Cadernos Pagu. Unicamp, 1994: p. 31.
15
Como veremos mais adiante, a análise das relações raciais por meio das fontes
utilizadas representou um grande desafio teórico-metodológico, em função do silenciamento a
respeito da cor dos/as envolvidos/as nos delitos. Definir como “mulheres negras” as
protagonistas de nosso estudo, enquanto as documentações tendem a apresentar um discurso
de mestiçagem oriundo do mito da democracia racial, definindo-as quase sempre como
“pardas”, é um posicionamento político-acadêmico que expressa a necessidade de evidenciar
a racialização das relações sociais, herdadas da escravidão negra e presentes até hoje, sob
diversas nuances, na sociedade brasileira.
No que tange a categoria gênero na análise histórica, a consideramos enquanto “um
elemento constitutivo das relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, e
7
THOMPSON, Edward P. A Formação da Classe Operária Inglesa. Volume I. Rio de Janeiro, Paz e Terra,
1987, p.10.
8
GUIMARAES, Antonio Sergio. Cor e Raça. In: SANSORE, Livio, PINHO, Osmundo Araújo (Orgs). Raça:
novas perspectivas antropológicas. 2. ed. Rev. Salvador: Associação Brasileira de Antropologia, EDUFBA,
2008, p. 02.
16
o gênero é uma forma primeira de significar as relações de poder” 9. Assim, torna-se possível
problematizar as relações entre homens e mulheres, compreendendo as construções culturais
que perpassam os papeis prescritos a cada um. Ressaltamos ainda que os estudos de gênero
constituem um campo em permanente renovação e disputa teórica e política e, diversas
autoras, sobretudo, da história social das mulheres, desferem críticas a seus princípios
metodológicos. Por sua vez, a existência de categorias analíticas feministas instáveis está em
consonância com as contradições de um mundo igualmente instável e incoerente. 10
Nossa análise de gênero, entretanto, não compreende apenas uma perspectiva
feminista de viés pós-estruturalista e, considerando as estruturas que moldam as hierarquias
de gênero no interior de um sistema patriarcal, concordamos com Saffioti, ao afirmar que
“colocar o nome da dominação masculina – patriarcado – na sombra significa operar segundo
a ideologia patriarcal, que torna natural essa dominação-exploração”.11 A análise de gênero na
história das mulheres não nos impede, portanto, de utilizar um conceito de patriarcado
historicizado e que considere as experiências femininas em diferentes épocas e sociedades.
Pontuamos então, a existência de normatizações de gênero que hierarquizavam as
relações mesmo entre homens negros pobres e mulheres negras pobres, que em determinadas
situações compartilhavam experiências de classe (e/ou raça), mas tinham seu cotidiano
atravessado pelas assimetrias de gênero. O analfabetismo, por exemplo, ainda que
generalizado entre as famílias pobres, atingia com mais preponderância o gênero feminino.
“Para as famílias menos abastadas, a necessidade de escolher entre os membros da prole,
aqueles que deveriam ser enviados a escola acabava quase sempre privilegiando os do sexo
masculino”12. Afinal, em muitos depoimentos o “não saber ler ou escrever”, nem mesmo
assinar o nome, era uma resposta feminina quase retórica.
Localizar as mulheres caetiteenses, por meio desses marcadores de raça e classe,
requer assim, uma compreensão tanto das marcas do cativeiro em suas vidas nas primeiras
décadas após a abolição quanto das suas experiências de classe frente a exploração e o
controle das classes trabalhadoras em uma nova fase das relações de produção capitalista.
Afinal, como já pontuava Ângela Davis,
9
SCOTT, Joan. Gênero: Uma categoria útil para análise histórica. Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 16,
n. 2, 1990, p. 21.
10
HARDING, Sandra. A instabilidade das categorias analíticas para a teoria feminista. 1986, p. 649.
11
SAFFIOTI, Heleieth. Gênero, Patriarcado, Violência. São Paulo. Expressão Popular: Fundação Perseu
Abramo, 2015, p. 59.
12
ASSIS, Nancy Rita Sento Sé de. Questões de vida e morte na Bahia republicana: Valores e
comportamentos sociais das camadas subalternas soteropolitanas (1890-1930). (Dissertação de Mestrado).
Salvador: Universidade Federal da Bahia, 1996, p.45.
17
13
DAVIS, Angela. Mulheres, Raça e Classe. São Paulo: Boitempo, 2016, p.39.
14
HIRATA, Helena. Gênero, classe e raça: Interseccionalidade e consubstancialidade das relações sociais.
Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 26, n. 1, 2014, p. 63.
15
SOARES, Cecília Moreira. Mulher negra na Bahia do século XIX. (Dissertação de Mestrado). Universidade
Federal da Bahia, Salvador, 1994.
18
Por sua vez, o código de 1940 traria em seus debates as tensões raciais que marcaram
aquelas décadas posteriores ao fim da escravidão e contemporânea a consolidação de um
pensamento intelectual médico e jurídico de cunho eugênico e racista. Dessa forma, a
vigência, formulação e implantação dos Códigos Penais de 1890 e 1940 são marcos
importantes para definir o período de estudo. Todavia, com o objetivo de identificar possíveis
mudanças no contexto social da época e nas experiências de nossos sujeitos a partir da
alteração na legislação penal republicana, bem como mudanças na interpretação e execução
das leis e penas, definimos como marco final o ano de 1945, abrangendo assim, processos
criminais instaurados até esta data.
O nosso “chão social”17 é a cidade de Caetité, localizada no alto sertão da Bahia 18,
que, em seus tempos áureos, fora considerada a “Princesa do Sertão”, apresentando um
16
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, Lar e Botequim: o Cotidiano dos Trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle
Époque. São Paulo, Brasiliense, 1986, p. 78.
17
Termo comumente utilizado por pesquisadoras/es do alto sertão baiano para se referir ao contexto histórico-
geográfico da região em que atuavam os sujeitos da narrativa. Encontrado a priori nos textos da professora
Maria de Fátima Novaes Pires (2002; 2009) possuindo este significado.
18
“Durante os primórdios da colonização essa área pertenceu ao morgadio da Casa da Ponte, dos Guedes de
Brito, que dividia com os Garcia D’Ávila – Casa da Torre – toda a extensão do território baiano”; nas páginas
seguintes do seu livro, a autora demarca a região com maior precisão: “O alto sertão, ou ‘sertoins de sima’,
19
quadro de dinamismo econômico que a caracterizava como um dos mais ricos empórios do
sertão da Bahia, mantendo um importante trânsito comercial com as regiões da Chapada
Diamantina, Recôncavo Baiano e Minas Gerais devido a sua posição geográfica estratégica na
região, como destaca o mapa abaixo:
FIGURA 01: MAPA DA BAHIA COM DESTAQUE PARA O ALTO SERTÃO NO FINAL DO
SÉCULO XIX
FONTE: SILVA, Ricardo Tadeu Caires. Caminhos e descaminhos da abolição. Escravos senhores e direitos nas
últimas décadas da escravidão (BAHIA, 1850-1888). Tese de Doutorado. Universidade Federal do Paraná, Setor
de Ciências Humanas, Letras e Artes. Curitiba, 2007, p.253.
constituiu-se historicamente com a criação de gado vacum, os denominados ‘currais da Bahia’, na extensão do
São Francisco ao rio das Velhas e, posteriormente, com a mineração, na Chapada Diamantina. As fazendas de
criar se expandiram pelo sertão desde o século XVII e a exportação do gado da zona do São Francisco para a
capital se fazia através do planalto baiano”. In SANTOS, Paulo Henrique Duque. Légua tirana: sociedade e
economia no alto sertão da Bahia. Caetité, 1890-1930. Tese (Doutorado em História Social) – Universidade de
São Paulo, 2014, p. 17 apud PIRES, Maria de Fátima Novaes. Fios da Vida: tráfico internacional e alforrias nos
sertoins de Sima – BA (1860-1920). São Paulo: Annablume, 2009, p. 15 e 104.
20
Caetité se destacou também no cenário educacional, sendo uma das primeiras cidades
baianas a possuir uma Escola Normal19 e outras instituições educacionais e por ser berço de
uma elite intelectual que teria papel decisivo no projeto de modernização da região.
Entretanto, a cidade de Caetité “pequenina e ilustre”20, reconhecida como centro cultural do
sertão, perderia muito do brilho de outrora devido à crise econômica e social pela qual passou
na transição do século XIX para o XX. Tal crise fora causada pelos longos períodos de
estiagem, crises na produção agrícola, migrações e epidemias, o que contribuiu para a
formação da população empobrecida no cenário urbano e ocorrência de intenso êxodo rural21.
Assim, Caetité foi berço de uma elite política e intelectual que se empenhou em
implementar seu “projeto civilizador”, utilizando o poder público como regulador e
disciplinador dos costumes, e não estava distante das novas ideias e transformações vindas
das capitais. Como analisa Lielva Aguiar, acerca dessas relações mantidas entre sertão e
capital, “apesar do ritmo e do passo da montaria, a sensação de viver neste sertão, não era de
isolamento”.22 Nesse contexto, as ideias de cunho higienista e moralizador adentraram a
região do alto sertão da Bahia e por intermédio dos códigos de posturas municipais e
periódicos da época, além dos referidos processos, é possível identificar como tais discursos
refletiam a necessidade de vigilância e punição das classes subalternizadas para manutenção
da ordem. Ressaltamos que os termos “caetiteense e alto-sertaneja” são utilizados aqui como
adjetivos sinônimos para as mulheres da região analisada, em virtude não apenas da amplitude
que a vila de Caetité possuía, mas por abarcarmos localidades que deixaram de pertencer ao
seu território, mas continuaram a manter profícuas relações e preservar similitudes quanto aos
hábitos culturais e socioeconômicos de seus habitantes.
A historiografia do alto sertão baiano, que ampliou-se, diversificou-se e deu seus
passos mais consistentes a partir de pesquisas realizadas na primeira década do ano 2000,
apresenta ainda muitos desafios e um horizonte de possibilidades de “objetos, problemas e
19
Na Educação, a primeira Escola Normal fundada em Caetité, funcionou de 1898 a 1903 e “diplomou 3 turmas,
num total de 22 professoras”, sendo a maioria de Caetité – só 6 alunas eram de outros lugares. [...]Com isso, a
cidade que já tinha alguma tradição em educação, foi se firmando como centro cultural e educacional, além de
ser um dado significativo para ajudar a entender o universo feminino naquele momento. [...] Vale considerar que,
a partir da criação da segunda Escola Normal já no final dos anos 20 do século XX, o número de professoras foi
aumentando cada vez mais; [...] In: NOGUEIRA, Maria Lúcia Porto. Mulheres, história e literatura em João
Gumes: Alto Sertão da Bahia, 1897-1930. São Paulo: Intermeios, 2015, p.50-51.
20
Ver SANTOS, Helena Lima. Caetité, pequenina e ilustre. Tribuna do Sertão, Brumado, 1996, 2ª ed.
21
SANTOS, Paulo Henrique Duque. Cidade e Memória: dimensões da vida urbana. Caetité, 1940-1960. 2001.
203 f. Dissertação (Mestrado em História Social) – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2001.
22
AGUIAR, Lielva Azevedo. “Que tal vai a capital?” Viagens, comércio, cartas e remessas entre o sertão e as
capitais (Caetité, 1890-1928). In: Cidades Interioranas da Bahia: modernidade, civilidade e sociabilidades.
Feira de Santana. UEFS Editora, 2016, p. 121.
21
abordagens”. No que se refere aos estudos sobre mulheres e relações de gênero, duas
pesquisas sobressaem como pioneiras e enquanto ponto de partida para novas temáticas e
abordagens sobre a história das mulheres alto-sertanejas. Em seu livro “Mulheres e poder no
Alto Sertão da Bahia”, Marcos Profeta Ribeiro 23 analisa a partir das correspondências de
Celsina Teixeira Ladeia, as ações femininas e os espaços ocupados pelas mulheres de elite no
alto sertão baiano. Verifica-se nas entrelinhas dessa documentação, indícios de participação
feminina em diversos setores como política, religião, filantropia, eventos sociais e negócios
comerciais.
Por sua vez, a obra de Maria Lúcia Porto Nogueira, denominada “Mulheres, história e
literatura em João Gumes (Alto Sertão da Bahia, 1897-1930)” dedica-se ao estudo das
relações de gênero no alto sertão a partir de registros literários de um intelectual caetiteense.
Nogueira faz uma reflexão acerca dos frutos dessas pesquisas:
23
RIBEIRO, Marcos Profeta. Mulheres e poder no Alto Sertão da Bahia. A escrita epistolar de Celsina
Teixeira Ladeia (1901 a 1927). São Paulo: Alameda, 2012.
24
NOGUEIRA, Maria Lúcia Porto. Mulheres, história e literatura em João Gumes: Alto Sertão da Bahia,
1897-1930. São Paulo: Intermeios, 2015, p. 141,
25
SOIHET, Rachel. Condição feminina e formas de violência: Mulheres Pobres e Ordem Urbana 1890-1940.
Rio de Janeiro. Forense Universitária, 1989
26
CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: Moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-
1940). Campinas, SP: Editora da UNICAMP, Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, 2000.
27
ESTEVES, Martha Abreu. Meninas Perdidas. Os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro da Belle
Époque. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1989
28
CORRÊA, Mariza. Morte em família; representações jurídicas de papéis sexuais. Rio de Janeiro: Graal, 1983.
22
Engel29, Margareth Rago30, Joana Maria Pedro31, entre outras. Na Bahia, os estudos de
Alberto Heráclito32, Maria Aparecida Sanches33, Andréa Rodrigues34, Karine Damasceno35,
contemplam, sobretudo, a região de Salvador e Feira de Santana. Destacamos que o Programa
de Pós Graduação em História da UEFS tem sido um importante impulsionador para a
realização destas pesquisas, acolhendo trabalhos como os de Andreia Correia36 sobre as
representações femininas nas fontes judiciárias e as estratégias de resistência das mulheres de
Santo Antônio de Jesus no inicio do século XX, e de Luís Aberto Lima37 sobre o cotidiano
feminino nas camadas populares de Feira de Santana, de 1930 à 1948, marcado por violências
e sociabilidades. Por sua vez, a singularidade das histórias de mulheres alto-sertanejas
identificadas nos processos criminais e em outras fontes nos permite tecer as trajetórias desses
sujeitos a partir de seu chão social.
O nosso percurso metodológico iniciou-se ainda na graduação em História, no campus
VI da UNEB, ao entrar em contato com a documentação judicial dos arquivos, e analisar as
relações entre as experiências femininas e os discursos de moralidade presentes nos autos.
Elegemos assim, como fonte primordial para a pesquisa, os processos criminais em que as
mulheres figuravam como vítimas e rés, para delimitarmos a um total de 45 processos, sendo
estes de defloramento, infanticídio e homicídio, crimes permeados pelo discurso da honra e
associados ao controle da sexualidade feminina. Todavia, o contato com os processos
tipificados como “lesões corporais”, revelou aspectos importantes das vivências das mulheres
alto-sertanejas, sobretudo, relacionado a violência nos espaços de trabalho doméstico e da
29
ENGEL, Magali. Paixão, crime e relações de gênero (Rio de Janeiro, 1890-1930). Revista Topoi, Rio de
Janeiro, nº 1, 2000, pp. 153-177.
30
RAGO, Margareth. Os prazeres da noite: Prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo
(1890-1930). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
31
PEDRO, Joana Maria (org). Práticas proibidas: práticas costumeiras de aborto e infanticídio no século
XX. Florianópolis: Cidade Futura, 2003.
32
FERREIRA FILHO, Alberto Heráclito. Salvador das mulheres: condição feminina e cotidiano popular
na Belle Époque imperfeita. (Dissertação de Mestrado em História). Salvador: Universidade Federal da Bahia,
1994.
33
SANCHES, Maria Aparecida Prazeres. As razões do coração: Namoro, escolhas conjugais, relações raciais e
sexo-afetivas em Salvador (1889-1950). Tese (Doutorado em História Contemporânea) Universidade Federal
Fluminense. Niterói, 2010.
34
RODRIGUES, Andrea Rocha. Honra e sexualidade infanto-juvenil na cidade do Salvador, 1940-1970.
(Tese de Doutorado), Salvador, UFBA, 2007.
35
DAMASCENO, Karine Teixeira. Mal ou bem procedidas: cotidiano e transgressão das regras sociais e
jurídicas em Feira de Santana, 1890-1920. Dissertação de Mestrado, Unicamp, Campinas, 2011.
36
CORREIA, Andreia da Silva. “Judiciário é masculino, mas justiça é feminina”: Estratégias e resistências de
mulheres na justiça em Santo Antônio de Jesus/BA entre 1900 e 1940. (Dissertação de Mestrado). Universidade
Estadual de Feira de Santana. Feira de Santana, 2011.
37
LIMA, Luiz Alberto da Silva. Mulheres ocultas: cotidiano feminino e formas de violência em Feira de
Santana (1930-1948). Universidade Estadual de Feira de Santana. Feira de Santana, 2010
23
prostituição, sendo elencados então dez processos desta tipologia para contribuir com outros
meandros de nossa análise.
Os processos criminais perfazem assim um rico manancial de narrativas que revelam a
participação feminina em diversos espaços, as táticas 38 de sobrevivência e de enfrentamento
aos padrões de moralidade impostos, em meio a um ambiente de opressão e vigilância. Os
processos-crime aqui analisados pertencem ao acervo do Arquivo Público Municipal de
Caetité e do Arquivo Público do Estado da Bahia. Sobre essa fonte, ainda vale ressaltar que
Em diálogo com outras fontes tidas como oficiais – jornais, relatos memorialísticos,
códigos de posturas e as próprias legislações penais, os processos-crime nos permitem acessar
fragmentos das trajetórias das mulheres invisibilizadas pela memória oficial. Ainda que
mediadas pela pena do escrivão e “contaminadas pela interpretação que lhes deram” 40, em um
momento excepcional de suas vidas, é através dessas narrativas de criminalização e
resistência que podemos ir de encontro à nossas personagens. Assim, sob viés da redução da
escala de análise, proposta pela micro-história, esse entrecruzamento de fontes pode
“fornecer-nos elementos preciosos, que irão preencher as lacunas da nossa investigação” 41.
Os procedimentos teórico-metodológicos da chamada “nova história social do crime”
nos auxiliam a pensar e problematizar o lugar da criminalidade na vida das camadas
populares. Se, por muito tempo, para as ciências sociais, esta era apontada como um desvio do
comportamento normal, uma excepcionalidade, “as pesquisas recentes na área da história
social inverteram esse eixo e deslocaram o crime para o centro da vida social, destacando a
proximidade entre o cotidiano e o comportamento considerado criminoso” 42. Assim, por meio
de vestígios, muitas vezes, fragmentados, das histórias de mulheres que foram criminalizadas,
38
Segundo Certeau “as táticas apontam para uma hábil utilização do tempo, das ocasiões que apresenta e
também dos jogos que introduz nas fundações de um poder”. In: CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano.
1. Artes de fazer. Petrópolis. Rio de Janeiro: Vozes, 2008, 1994, p. 102.
39
SOIHET, Rachel. Condição feminina e formas de violência: mulheres pobres e ordem urbana, 1890-1920.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989, p. 364.
40
GINZBURG, Carlo. A micro história e outros ensaios. Rio de janeiro: Bertrand Brasil, 1991, 212.
41
Ibid., p. 212.
42
BRETAS, Marcos Luiz. O Crime na Historiografia Brasileira: Uma Revisão na Pesquisa Recente. BIB, Rio de
Janeiro, n. 32, 2° semestre de 1991, pp 49,
24
43
BUTLER, Judith. Regulações de Gênero. Cadernos Pagu (42), janeiro-junho de 2014, p. 267.
25
caetiteense que guardavam as representações das elites acerca das mulheres pobres e negras
que fugiam ao padrão feminino idealizado. Seja por meio do exercício da prostituição,
enquanto meio de vida, ou exercício desviante da sexualidade, seja pelo ato desesperado do
infanticídio que carregava a negação da maternidade, essas mulheres, que faziam “sacrifícios
nos altares de Vênus”, como o título reitera, não se enquadravam no molde ideal feminino e,
de forma voluntaria ou involuntária, representavam uma forma de subversão dos valores
hegemônicos.
26
CAPÍTULO 01
44
Em estudo sobre o imaginário da modernidade no alto sertão baiano, Eudes Guimarães analisa os anseios da
população, sobretudo das elites, em relação a chegada de serviços e aparelhos que seriam ícones do progresso
para a época. Muitos desses não chegaram a se consolidar, outros demoraram algumas décadas e ainda não
lograram o sucesso almejado. Segundo ele “no alto sertão das décadas de 1910 e 1920, como escreveu um
jornalista, o ritmo do ‘progresso’ assemelhava-se aos passos do caranguejo: quando parecia que o problema do
transporte iria se resolver com a chegada da ferrovia, o material necessário para a execução da obra ficava
abandonado no caminho sob a ação da ferrugem; quando a eletricidade poderia impulsionar mudanças no campo
sensorial da cidade, a luz ruim e a fumaça que saia da lenha para manter a caldeira embaçavam as vistas do
transeunte; quando o barulho dos primeiros automóveis que chegaram em Caetité parecia anunciar uma guinada
na vida de comerciantes, agricultores e viajantes, ouvia-se, ao fundo, o chiar dos carros de bois atravessando as
estreitas e esburacadas estradas que ali existiam”. In: GUIMARÃES, Eudes Marciel Barros. Um painel com
cangalhas e bicicletas: os (des)caminhos da modernidade no alto sertão da Bahia. (Caetité, 1910-1930)
Dissertação de mestrado. UNESP-Franca, 2012, p.139.
45
FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924). 2.ed São Paulo: EDUSP,
2001, p.11.
27
Nesse sentido, o novo aparato legislativo do estado brasileiro, tanto no âmbito civil
como penal, apesar de se apoiar “sobre princípios liberais”, não garantia a toda população o
exercício pleno da cidadania, e assim, a participação popular na vida política oficial e
institucional do país permanecia bastante restrita. A Constituição da República dos Estados
Unidos do Brasil, promulgada em 1891, excluía da categoria de cidadãos com direito ao voto
os indivíduos menores de vinte e um anos e os analfabetos, e era bastante ambígua com
relação ao voto feminino. Apesar de não mencionar o gênero, o uso universal de termos
masculinos para se referir ao povo brasileiro na redação constitucional permitiu uma
interpretação que garantia a plena cidadania apenas para uma minoria privilegiada, excluindo
assim as mulheres47. Afinal, “em companhia de crianças, loucos, mendigos, analfabetos e
46
RESENDE, Maria Efigênia Lage de. O processo político na Primeira República e o liberalismo oligárquico. In
FERREIRA, Jorge & DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (org.). O Brasil Republicano, Vol. 1: o tempo do
liberalismo excludente: da Proclamação da República à Revolução de 1930. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2008. p.91.
47
As mulheres só tiveram o direito de votar instituído no código eleitoral de 1932 (aos vinte e um anos) e,
posteriormente na Constituição de 1934 (aos dezoito anos). Entretanto, “o voto não tinha sentido para a maioria
das mulheres brasileiras que permaneciam despojadas desse direito” e “em grande medida não tinha utilidade
28
índios protegidos pelo Estado, as mulheres permaneceram cidadãs ‘inativas’, sujeitas as leis
republicanas mas sem o direito a participação cívica”48.
Além do texto constitucional, a nova legislação republicana incluía outros
regulamentos como o Código Civil de 1916, que apresentava ainda princípios bastante
conservadores com relação aos direitos civis da mulher, limitando e controlando sua atuação a
partir do pátrio poder ou da autoridade do cônjuge. Afora conter diversos artigos que
mantinham o homem como chefe da sociedade conjugal, dedicava um capítulo especialmente
aos “direitos e deveres da mulher”. Tal código civil estabeleceu uma “menoridade jurídica”
para a mulher casada, sendo possível constatar em seus artigos e incisos um discurso de
inferioridade fortemente ancorado em princípios patriarcais e assimetrias nas relações de
poder, ainda que seu texto consagrasse o modelo nuclear de família. Entretanto, muitas
resistências femininas se darão por outros meios, fugindo a normatização de seus papeis
sociais, que na prática nem sempre correspondiam às prescrições da lei.
A posição ocupada pelas mulheres nos processos criminais, que oscilava entre o lugar
da vítima na grande maioria dos casos e, o de ré em menos incidência nos autos criminais,
oscilava também entre um processo de marginalização e/ou civilização de seus hábitos, assim
como pontua Martha Abreu Esteves49 em estudo sobre os conflitos e as interseções entre os
padrões normatizadores do comportamento sexual propostos pelo pensamento e prática
médico-jurídica e os valores e normas compartilhados pelos segmentos populares em suas
vivências cotidianas das relações amorosas. O papel pedagógico assumido pela justiça, que
poderia proteger ou condenar comportamentos populares, era evidente em sua atuação nos
processos que envolviam mulheres pobres. Essas, mesmo na condição de vítima, nos
processos de defloramento e homicídio, estavam sujeitas ao olhar repressivo tanto médico
quanto jurídico, pois suas vidas eram investigadas e sua moral questionada.
Vale ressaltar que às mulheres pobres não cabia assim um aparente papel de vítimas
passivas e totalmente submissas, mas, principalmente, de sujeitos protagonistas de suas
histórias de resistência. Nas relações de poder estabelecidas, lá estavam elas, negociando sua
para melhorar as condições de vida da vasta maioria das mulheres brasileiras” In: BESSE, Susan K.
Modernizando a desigualdade. Reestruturação da Ideologia de Gênero no Brasil, 1914 – 1940. São Paulo.
Editora da Universidade de São Paulo, 1999. p.183. Assim, o grande índice de analfabetismo principalmente
feminino, as desigualdades sociais profundas e o caráter elitista da política brasileira impossibilitava esse
feminismo de avançar no sentido de romper com o modelo burguês e os privilégios que ainda detinham as
mulheres brancas.
48
CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: Moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-
1940). Campinas, SP: Editora da UNICAMP, Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, 2000.
49
ESTEVES, Martha Abreu. Meninas Perdidas. Os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro da Belle
Époque. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1989, p.83.
29
1.1 “Não há crime sem lei anterior que o defina”: Os Códigos Penais de 1890 e 1940
na consolidação da ordem republicana no Brasil
50
A criminologia, como conhecimento voltado para a compreensão do homem criminoso e para o
estabelecimento de uma política “científica” de combate à criminalidade, será vista como um instrumento
essencial para a viabilização dos mecanismos de controle social necessários à contenção da criminalidade local
In: ALVAREZ, Marcos César. “A Criminologia no Brasil ou como Tratar Desigualmente os Desiguais”, in
Dados, Revista de Ciências Sociais, v. 45, n. 4, Rio de Janeiro, 2002, p. 693.
30
qual a República brasileira se espelhava e, desse modo, o primeiro Código republicano abolia
formas de punição consideradas arcaicas (galés, prisão pérpetua, pena de morte) e que foram
empregadas durante o Império. Assim, o aparato penal do suplício foi substituído pelas penas
relacionadas ao tempo de prisão. Até a promulgação e vigência do Código de 1940, os debates
médicos e jurídicos desses cinquenta anos foram bastante efervescentes e nos proporcionaram
compreender as bases intelectuais legais em que se forjou o regime republicano, entre o
período oligárquico e o fim da vigência da ditadura do Estado Novo varguista.
Ainda que deva ser considerado um instrumento a serviço das elites republicanas, em
seu projeto de controle e moralização da sociedade, cuja punição das “condutas desviantes”
culminava em um processo de criminalização das classes mais pobres, o Código Penal de
1890 foi alvo de inúmeras críticas por essas mesmas elites. Permeado pelas próprias
contradições expressas pela nova estrutura jurídico-política do país, que lançava as bases para
o exercício da cidadania, mas limitava o acesso da maioria da população brasileira ao status
de cidadão, o Código não agradava às classes dominantes, ao procurar instaurar uma espécie
de universalidade da lei penal.
As críticas destinadas a nova legislação penal estavam diretamente associadas a
disputa política e intelectual forjada entre as duas faculdades 51 de direito do Brasil: a
faculdade de São Paulo e a do Recife, cujas divergências teóricas incidiam na forma como o
ato criminoso era concebido. O Código de 1890 possuía o viés jurídico da Escola Clássica,
marcada por concepções mais liberais em relação ao sistema penal e as variantes punitivas,
característica da faculdade paulista, onde havia se formado o jurista autor do Código, Baptista
Pereira. Por sua vez, a Faculdade do Recife, mais permeável a influência das doutrinas
europeias da criminologia, aderiu as concepções da Escola Penal Italiana 52 e das teorias
evolucionistas e do darwinismo social, abrindo caminho para a consolidação de teorias raciais
que priorizavam o criminoso e não o crime.
Segundo Lilia Moritz Schwarcz, em sua obra “O espetáculo das raças”, na qual analisa
o papel das instituições cientificas em relação a questão racial brasileira, a Faculdade de
Direito de São Paulo era marcada pelas “práticas políticas convertidas em leis e medidas”, por
uma visão do crime baseada no livre-arbítrio e que seria legitimadora do novo modelo político
51
Institucionalizadas pela aprovação do projeto de 31 de Agosto de 1826 – convertido em lei em 11 de Agosto
de 1827, as duas primeiras faculdades de direito do Brasil, em São Paulo e Olinda (transferida em 1854 para
Recife) abrigaram os dois centros dedicados ao estudo jurídico no país.
52
Lombroso, Garofalo e Ferri formam juntos os pilares intelectuais do movimento que ficou conhecido como
“Escola Positiva”, “Escola Determinista” ou “Escola Italiana” de direito penal, e que consolidou a definição mais
geral da criminologia como a ciência voltada para o estudo do homem delinquente. In: ALVAREZ, Marcos
César. “A Criminologia no Brasil ou como Tratar Desigualmente os Desiguais”, in Dados, Revista de Ciências
Sociais, v. 45, n. 4, Rio de Janeiro, 2002, p. 680.
31
republicano. No entanto, não estaria “imune” às novas teorias cientificas e muito menos isenta
do discurso racista que permeava a prática política oligárquica do país.
É válido ressaltar que a interpretação e aplicação das leis acabava, na prática, sendo
atualizada, nas mãos de juízes, promotores e outros “operadores” do direito. Foi essa
interpretação híbrida, ou seja, que mesclava concepções clássicas e positivas do direito penal,
que, muitas vezes, permeava a condução dos inquéritos e sua conversão em processos
criminais, e marcava as experiências dos sujeitos envolvidos.
Ao abordarmos os códigos penais republicanos, procuramos identificar o pensamento
e prática jurídica desses dois períodos também por meio da análise dos comentários, críticas e
proposições de juristas que dedicaram obras a essas questões. Para o Código Penal da
República dos Estados Unidos do Brasil, de 1890, recorremos inicialmente aos comentários
de Oscar de Macedo Soares54. Neste livro, cujos comentários foram republicados em 1910, o
autor apresenta considerações de outros comentaristas, formuladores e críticos do código,
possibilitando acompanhar alguns debates sobre o mesmo ainda na época de sua vigência,
mas também tecendo seus próprios comentários. O Código Penal de 1890 estava assim
dividido em livros, títulos e capítulos, além de possuir alguns decretos específicos. Dessa
forma, os crimes analisados neste trabalho, cujas mulheres caetiteenses figuram como vítimas
ou acusadas estão compreendidos pelos títulos VII - “Dos crimes contra a segurança da honra
e honestidade das famílias e do ultraje público ao pudor”, referente ao defloramento, e X -
“Dos crimes contra a segurança de pessoa e vida”, no caso do homicídio e infanticídio.
Vale ressaltar que uma análise ampla e pormenorizada do conjunto de leis penais
implementadas em 1890 e 1940 escapa a proposta deste estudo, assim como não corresponde
ao nosso objetivo. De tal modo, foram aqui selecionados aspectos relevantes para a
53
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-
1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 142.
54
Oscar de Macedo Soares (1863-1911) formou-se advogado pela Faculdade de Direito de São Paulo. Atuou
ativamente em dois jornais, o Correio Paulistano e o Rio de Janeiro, este último de oposição ao governo
Francisco Portella e do qual era co-proprietário. Ainda jovem, aos 27 anos, foi eleito deputado constituinte e,
posteriormente, foi eleito deputado federal por sua província natal, Rio de Janeiro. SOARES, Oscar de Macedo.
Codigo Penal da Republica dos Estados Unidos do Brasil commentado. 7ª ed. Rio de Janeiro: Livraria
Garnier, 1910.
32
Art. 1." Ninguém poderá ser punido por facto que não tenha sido
anteriormente qualificado crime, e nem com penas que não estejam
previamente estabelecidas”. Art. 2. “A violação da lei penal consiste em
acção ou omissão; constitua crime ou contravenção’’ 55
55
SOARES, Oscar de Macedo. Codigo Penal da Republica dos Estados Unidos do Brasil commentado. 7ª
ed. Rio de Janeiro: Livraria Garnier, 1910.
56
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. Petrópolis (RJ): Vozes, 2002, p.80.
33
pelas leis. Outros delitos, de ordem privada, território que só recentemente, com a
implantação da república, a legislação57 passara a atuar, iriam compor o rol de novos delitos.
Nesse sentido, apesar das críticas recebidas pelo código de 1890, por seu viés
teoricamente liberal, e seu discurso de “igualdade jurídica”, seus artigos compreendiam
diversos dispositivos de controle social. As contravenções penais possuíam um caráter
pedagógico para a sociedade da época. Um dos seus principais aspectos se refere a construção
de uma ideologia burguesa que objetivava disciplinar as classes populares, direcionando sua
atenção para “mendigos, ébrios, vadios e capoeiras”. Era uma tentativa das autoridades
republicanas de coibir práticas costumeiras da população que estivessem associadas ao
período escravista como a capoeira, comumente praticada por ex-escravos, assim como as que
ameaçassem a nova ordem que valorizava o trabalho e punia a vadiagem e a mendicância. “A
‘desordem’ muitas vezes ocultava manifestações de resistência dessa gente pobre ante a
atitude crescentemente hostil das autoridades policiais” como analisa Valter Fraga Filho 58 em
seu estudo sobre a pobreza e mendicância na sociedade soteropolitana do século XIX.
A utilização da lei como instrumento da classe dominante para o controle social e
preservação de seu poder em face ao temor às manifestações das classes populares, é um fato
historicamente perpetuado nas diversas sociedades. A lei também representava um elemento
de proteção e alicerce da propriedade privada. Em Senhores e Caçadores, Edward P.
Thompson mostra como a proibição de práticas costumeiras dos camponeses nas florestas
inglesas do século XVIII, por meio da lei negra, provocou a emergência de práticas
criminosas entre as camadas populares 59. Todavia, a classe trabalhadora, em muitos
momentos, utilizou-se das brechas que as leis proporcionavam, a seu favor, enquanto tática de
resistência e negociação.
No que se refere as mulheres, a interferência maior do estado em questões de âmbito
privado, empregando conceitos como “honra e moralidade”, revelava diversas facetas, desde a
imposição de modelos ideais de feminilidade ao controle sobre seu comportamento e
sexualidade. Ainda que o alvo dessa “moralização” fosse principalmente a família de uma
57
A interferência do Estado na esfera privada também esteve presente no processo da vacinação obrigatória, no
Rio de Janeiro do início do século XX. Em nome da saúde pública, utilizando justificativas científicas e com o
auxílio da polícia, o poder público invadia os lares e os corpos das pessoas, considerados invioláveis, inclusive
pelo Estado, durante o Império. Ao desnudar e tocar os corpos das esposas e filhas, o Estado despertou a fúria da
população, não acostumada à intervenção do poder público na esfera privada, em levantes na capital federal,
conhecida como Revolta da Vacina. In: HENTZ, Isabel. C. A honra e a vida: Debates jurídicos sobre aborto e
infanticídio nas primeiras décadas do Brasil republicano (1890-1940) - Dissertação de mestrado, Universidade
Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, 2013.
58
FRAGA FILHO, Walter. Mendigos, moleques e vadios na Bahia do século XIX. São Paulo/Salvador:
Hucitec, 1996, p.88.
59
THOMPSON, E. P. Senhores & Caçadores: a origem da lei negra. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
34
60
CAPELATO, Maria Helena. O Estado Novo: o que trouxe de novo? In. FERREIRA, Jorge; DELGADO,
Lucilia de Almeida Neves (Orgs.). O Brasil Republicano: o tempo do nacional-estatismo: do início da década
de 1930 ao apogeu do Estado Novo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 109-110.
61
Entre as leis formuladas no período do Estado Novo de Vargas figuram a Constituição de 1937, considerada
de caráter fortemente centralizador e autoritária, alinhada com os preceitos fascistas que despontavam na Europa.
São desta época também, dentre outras, as seguintes leis: Código de Processo Civil (1939), Código Penal (1940),
Lei de Falências (1940), Código de Processo Penal (1941), além da Consolidação das Leis Trabalhistas (1943)
que não necessariamente possui um viés autoritário ou de cunho fascista.
35
Ainda que o código italiano em questão (Rocco) possuísse viés tecnicista, o Código
Penal brasileiro promulgado em 1940, em sua versão original, apresentava algumas
influências da criminologia italiana que permeara até então os debates jurídicos e médicos do
país, entretanto, tais ideias começaram a entrar em declínio nesse meio intelectual, tendo
internacionalmente perdido o prestígio de outrora. Dessa forma, essa nova versão sofrera
muitas críticas dos juristas revisores, sobretudo, em função da consolidação de novas
perspectivas associadas a um tecnicismo jurídico-penal63, que questionava as premissas da
criminologia. Alcântara Machado fora inclusive, membro da Sociedade de Antropologia
Criminal, Psiquiatria e Medicina Legal, fundada em 1895, em São Paulo, catedrático da
faculdade de direito e, portanto, partidário dessas tendências criminológicas.
Constituem assim importantes fontes para a compreensão dos debates jurídicos acerca
da nova legislação penal, os comentários da comissão revisora do Código de 1940,
organizados em uma vasta coleção pelo jurista Nelson Hungria 64, assim como outros textos
desses juristas sobre os trabalhos da comissão ou de críticos dos mesmos. Em seus
comentários sobre o novo código, Hungria, além de denunciar os perigos das leis forjadas em
regimes totalitários, não economiza nas críticas aos pressupostos criminológicos
deterministas, em trecho de sua obra dedicado ao “tecnicismo jurídico-penal”:
62
MACHADO, Alcântara. O projeto do código criminal perante a crítica. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1939. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/viewFile/65894/68505
63
A insatisfação com as conclusões a que chegaram os teóricos das Escolas Clássica e Positiva fez com que
surgisse, na Itália, a chamada Escola Técnico-Jurídica. Em relação à Escola Clássica, repudiava-se a pretensão
de estudar um direito penal fora do direito positivo, ou seja, um direito penal diverso daquele consagrado na
legislação do Estado. A ideia de que haveria um direito penal absoluto, imutável, universal, cuja origem
encontrava-se na divindade, na revelação da consciência humana ou nas leis da natureza, não convencia. Já em
relação à Escola Positiva, era considerada inaceitável a intromissão de setores absolutamente estranhos ao direito
no desenvolvimento da ciência jurídico-penal. Ciências que, no máximo, eram consideradas auxiliares do Direito
Penal, não podiam fazer parte do ordenamento jurídico; a sociologia criminal, a antropologia, a política e a
história, por exemplo, dispersariam a pesquisa e a sistematização jurídica na heterogênea sociologia. In:
GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. O tecnicismo jurídico e sua contribuição ao Direito Penal. Revista
Liberdades. Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, nº 15 - janeiro/abril de 2014
64
Um dos mais reconhecidos penalistas brasileiros, Nelson Hungria nasceu em 1891, em Minas Gerais, tendo se
formado pela Faculdade Livre de Direito do antigo Distrito Federal, em 1909. Desempenhou as funções de
promotor público na cidade de Pomba, em Minas Gerais, e dedicou-se a advocacia criminal em Belo Horizonte.
Em 1922 fora delegado de polícia no Rio de Janieor e em 1924 tornou-se pretor mediante concurso. Foi juiz de
direito (1936), desembargador (1944), e em 1951 ocupou o cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal.
36
A ciência penal, subspecie juris, não admite outros conceitos e critérios além
daqueles que lastreiam e informam as normas legais vigentes sobre a trilogia
“criminoso, crime e pena”. Outras ciências, pré-ciências ou pseudociências
que se propõem, à margem do jus conditien, o estudo da criminalidade como
fenômeno biopsico-sociológico e a pesquisa ou preconício de meios de
preservação e defesa sociais nada têm a ver com a ciência do direito penal
propriamente dito, senão quando por esta afiançados e com este ajustáveis. 65
65
HUNGRIA, Nelson. Comentários ao código penal. Nelson Hungria (1891-1969) Volume I, Tomo I. Artgs. 1
ao 10. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p.105.
37
A medida de segurança não se aplica ao indivíduo pelo que ele fez, mas pelo
que ele é, pelo que atualmente continua sendo [...] não é pena; ao
contrário, é um meio de cura ou reeducação, despido do caráter
expiatório ou aflitivo, tendendo a recuperar os indivíduos (responsável ou
não) para o seu próprio bem e para o bem da sociedade. (grifos nossos) 67
66
CÓDIGO PENAL - DECRETO-LEI Nº 2.848, DE 7 DE DEZEMBRO DE 1940. Disponível em
http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-2848-7-dezembro-1940-412868-
publicacaooriginal-1-pe.html
67
HUNGRIA, Nelson. Comentários ao código penal. Nelson Hungria (1891-1969) Volume I, Tomo I. Artgs. 1
ao 10. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p.139.
38
1.2 Mulher Honrada versus Mulher Pública: Criminalidade feminina nos debates
jurídicos e médico-legais
O direito patriarcal perpassa não apenas a sociedade civil, mas impregna também o Estado.
Heleieth Saffioti69
68
RODRIGUES, Andrea Rocha. Honra e sexualidade infanto-juvenil na cidade do Salvador, 1940-1970.
(Tese de Doutorado), Salvador, UFBA, 2007, p.99.
69
SAFFIOTI, Heleieth I. B. Gênero, patriarcado e violência, São Paulo, Editora Perseu Abramo, 2004, p. 54.
39
Nas malhas de uma lei que se pressupunha universal, mas que só se convertia, de fato,
em controle e punição quando se referia as classes mais pobres, e diante das tentativas
empregadas pelas elites do Brasil de expurgar os males que afligiam uma nação mestiça,
foram as mulheres pobres e negras que sofreram na pele os reflexos da imposição de novas
legislações penais e figurariam nos processos criminais. Como pontua Rachel Soihet, em
importante estudo sobre a criminalidade feminina no Rio de Janeiro, entre 1890 e 1920,
70
CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: Moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-
1940). Campinas, SP: Editora da UNICAMP, Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, 2000, p.26.
71
SOIHET, Rachel. Condição feminina e formas de violência: mulheres pobres e ordem urbana, 1890-1920.
Rio e Janeiro: Forense Universitária, 1989, p.08.
72
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-
1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
73
Localizada no Terreiro de Jesus em Salvador, a antiga Faculdade de Medicina da Bahia, fundada no início do
século XIX, foi a primeira escola de medicina do país. Hoje abriga em sua biblioteca importantes estudos e
produções de alunos e professores de medicina. “Do período de 99 anos (1840-1928) já foram catalogadas 2.502
40
FONTE: Tese de doutoramento: SILVEIRA, Nise da. Ensaio sobre a criminalidade da Mulher no Brasil.
Dissertação para cadeira de Medicina legal. Salvador. Faculdade de Medicina da Bahia, 1926.
Entretanto, discorda das teses que apontavam a existência de criminosas natas como as
prostitutas, ainda que afirme a relação biológica e cultural entre sexo e crime, pois para a
psiquiatra, os crimes passionais e marcados pela crueldade premeditada seriam tipicamente
femininos. Nise, revela ainda um olhar sensível e menos punitivo para o crime de infanticídio,
procurando relacionar o ato a um estado psíquico patológico, mas ainda fortemente
influenciada pela noção naturalizada de maternidade.
Teses Doutorais (excluindo aquelas em duplicata), mas, por certo, muitas foram perdidas ou extraviadas ao
longo do tempo e outras ainda não localizadas”. In: MEIRELLES, Neovanda Sampaio et. al. Teses Doutorais de
Titulados pela Faculdade de Medicina da Bahia, de 1840 a 1928. Gazeta Médica da Bahia. Faculdade de
Medicina da Bahia (FAMEB) da Universidade Federal da Bahia, Salvador, BA, Brasil. 2004, p.09-101.
74
Nise da Silveira (1905-1999) era alagoana e fez seus estudos médicos na Faculdade de Medicina da Bahia
(1921-1926) e foi a única mulher numa turma de 157 alunos. Colou grau com a tese "Ensaio Sobre a
Criminalidade da Mulher no Brasil" e retornou à terra natal em seguida, mas somente por um breve período.
Passou a residir no o Rio de Janeiro (1927) onde estabeleceu suas raízes intelectuais e profissionais. Durante o
estado novo varguista, sua militância comunista valeu-lhe 15 meses de reclusão no presídio da Frei Caneca. Em
17 de abril de 1944 foi reintegrada ao serviço público, sendo lotada no Hospital Pedro II, antigo Centro
Psiquiátrico Nacional, no Engenho de Dentro, subúrbio do Rio de Janeiro, onde desenvolveu trabalhos pioneiros
de terapia ocupacional.
41
75
Jurista ligado à Nova Escola Penal, defensor intransigente das concepções lombrosianas sobre a natureza do
homem criminoso, apontado como o maior especialista da época nos chamados crimes de sexo, Viveiros de
Castro procurou, de um lado, difundir e explicar as bases teóricas em que se assentava o Direito positivista. De
outro lado, ao reforçar o nexo entre crime e comportamento individual e apontar os delitos sexuais como produto
da dissolução dos costumes, que colocava, sobretudo, a família sob ameaça de desagregação, introduziu no país
um saber médico-jurídico que deveria penetrar todas as instâncias do cotidiano, reconhecendo e opondo condutas
“sadias” e “patológicas”. In: MARTINS JUNIOR, Carlos. Saber Jurídico, Criminalidade e Controle da
Sexualidade na “República dos Bacharéis”. Congresso Internacional de História, setembro/2011, p.2688.
42
idéas moraes sobre a bructalidade dos instinctos”76. Seu discurso corroborava assim a ideia de
honra moral e sexual como atributo da civilidade que se opõe a selvageria, à barbárie, honra
essa que, frequentemente consolidava e legitimava o estabelecimento de relações desiguais de
poder, reforçando hierarquias de gênero, classe e raça.
Tais hierarquias se faziam presentes nos discursos dos juristas das primeiras décadas
do século XX, seja em comentários sobre os códigos civis e penais, seja em obras jurídicas
especificas sobre o tema. Em uma de suas obras, Viveiros de Castro atribui à mulher a
responsabilidade pela preservação da honra moral.
O jurista apresentava uma visão que se referia as mulheres de camadas médias e altas
da população e um padrão moral que a elas foi estabelecido, dentro de um perfil que concebia
essas mulheres enquanto “recatada, tímida, delicada e sensitiva”. Demonstrava também uma
postura conservadora e de crítica ao contexto de lutas pelos direitos civis das mulheres
brasileiras, concebidas por este enquanto “ideias subversivas”. Viveiros de Castro atribuiu a
esses novos tempos a razão da ocorrência de crimes sexuais, pois as mulheres estariam mais
propensas à “conquista masculina”. Desse modo, inferia que seriam as mulheres que
subvertiam os modelos morais, as principais causadoras desses crimes, embora os homens
fossem os autores. Ressaltamos que, ainda que esses padrões de recato e civilidade se
distanciassem da realidade das mulheres pobres, esses discursos jurídicos perpassaram as
fontes da época no processo de criminalização destes sujeitos.
O conceito de honra, que ganharia novas tonalidades no código penal de 1940, não era
uma invenção do código de 1890, pois o termo perpassara todas as legislações do período
colonial e imperial brasileiro, desde as Ordenações Filipinas. Mas, com o advento da
república, fora ressignificado para atender aos novos padrões de civilidade que previam
76
CASTRO, Viveiros de. Delictos contra a honra da mulher (adultério, defloramento, estupro e sedução no
Direito Civil). Rio de Janeiro. João Lopes da C., 1897.
77
Ibid.
43
romper com um passado marcado pela “degeneração do povo”, tendo a Europa como modelo.
O crime de defloramento por sua vez, fora uma inovação do Código de 1830 e, previsto no
artigo 267 do Código Penal de 1890, era descrito como “Deflorar mulher de menor idade,
empregando seducção, engano ou fraude". 78 Seria substituído posteriormente pelos crimes
contra os costumes, que abordaria a dimensão moral com mais ênfase que a questão física da
virgindade.
Neste contexto, mesmo que não fosse essa a pretensão dos juristas, o código penal que
objetivava normatizar as práticas e relações da população brasileira, vigiando e punindo ações
que não se enquadrassem nos padrões e regras preestabelecidas, reforçava o ideal da
virgindade feminina como um valor que poderia gerar negociações e conflitos. Deflorar assim
seria “tirar a flor”, a virgindade de uma mulher, e sua dimensão material associada a relação
sexual com penetração e, por consequência a ruptura do hímen, gerou algo conhecido e
debatido nos meios médicos e jurídicos como himenolatria 79.
Duas dimensões da honra perpassavam assim os debates jurídicos. Uma, de caráter
moral associado ao comportamento feminino, presente nos discursos de promotores e
advogados, tanto na letra fria da lei quanto no momento excepcional do interrogatório. A
outra, de viés material, relacionada a virgindade e controle da sexualidade, destacava-se nas
análises de peritos médico-legais. Ambas permeavam também o cotidiano das classes
populares e eram assimiladas de formas diferentes por esses homens e mulheres que forjavam
sua sobrevivência sob a vigência de outros códigos morais. No código penal, a polarização
entre “mulher honesta” e “mulher pública (prostituta)” se fazia presente, sobretudo, no artigo
relacionado ao crime de estupro e suas penas. O estupro, diferente do defloramento, não
consistia na perda da virgindade, mas a relação sexual com emprego de violência.
78
Código Penal de 1890. Disponível em: http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=66049
79
Segundo Sueann Caufield “O conhecimento sobre o hímem complacente, no entanto, era restrito aos
especialistas, e o ensino da medicina legal era rudimentar até o final do século XIX e começo do XX. Antes da
década de 1920, o exame obrigatório de defloramento geralmente avaliava a virgindade a partir de um critério
que incluía não somente o estado do hímem [...] como também outras evidências que a medicina legal havia
rejeitado, como a flacidez dos seios e dos grandes pequenos lábios”. In: CAULFIELD, Sueann. Em defesa da
honra: Moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-1940). Campinas, SP: Editora da UNICAMP,
Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, 2000, p.76.
44
Art. 269. Chama-se estupro o acto pelo qual o homem abusa com violência
de uma mulher, seja virgem ou não80.
Neste caso, a mulher não necessariamente precisaria ser virgem, mas segundo o
código, deveria ser “honesta”. Em que consistiria então ser uma mulher honesta? Os próprios
incisos que estipulam as penas já respondem ao estabelecer uma pena mais branda se a vítima
for “mulher pública ou prostituta”. Dessa forma, a violência sexual contra uma prostituta não
ameaçava a honra das famílias e talvez não fosse passível de nenhuma penalidade. Para os
poderes jurídicos e médico-sanitaristas, a prostituição atribuía o caráter de “mulher pública”,
cuja proteção pela lei diferia da mulher considerada honesta, reservada ao espaço privado do
lar. Sobre isso, Viveiros de Castro afirma que o crime nem deveria constar nesse capítulo do
código, mas enquanto simples contravenção, pois
Dessa forma, o crime de estupro representava uma ameaça não à integridade física ou
ao corpo da mulher, mas a sua honra. E a prostituta, enquanto desprovida desse valor, não
teria uma reputação familiar a zelar, não seria um mal irreparável a ela. Somente com as
alterações impostas pelo novo código penal de 1940, excluiu-se esse inciso atenuante da pena
em caso de estupro de prostituta, pois os crimes sexuais seriam classificados enquanto
“crimes contra os costumes”, sendo definido pelo artigo 213 como “constranger mulher a
conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça”82.
80
(grifos nossos) Código Penal de 1890. Disponível em: http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.
action?id=66049
81
CASTRO, Viveiros de. Delictos contra a honra da mulher (adultério, defloramento, estupro e sedução no
Direito Civil). Rio de Janeiro. João Lopes da C., 1897.
82
Código Penal de 1940. DECRETO-LEI Nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Disponível em
http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-2848-7-dezembro-1940-412868-
publicacaooriginal-1-pe.html
45
Entre as mudanças apresentadas pelo Código de 1940, estava essa separação dos
“Crimes contra os costumes” e “Crimes contra a família”, proposta pela comissão revisora.
Dessa forma, os primeiros estavam relacionados ao controle da sexualidade da população,
incidiriam sobre a sociedade e a vida pública. Correspondiam aos mesmos os capítulos
referentes aos crimes contra a liberdade sexual, sedução e corrupção de menores, rapto,
lenocínio e tráfico de mulheres, e ultraje público ao pudor. Por sua vez, os demais
corresponderiam a delitos circunscritos ao espaço privado, envolvendo casamento, estado de
filiação, assistência familiar, pátrio poder e tutela.
Na legislação de 1940, o crime de defloramento deixa de existir com esse nome,
embora dois artigos do título VI “Dos Crimes contra os costumes” assemelham-se a ele, com
algumas diferenças: A “posse sexual mediante fraude” e o crime de “sedução”.
Sedução
Art. 217. Seduzir mulher virgem, menor de dezoito anos e maior de
quatorze, e ter com ela conjunção carnal, aproveitando-se de sua
inexperiência ou justificavel confiança:
Pena - reclusão, de dois a quatro anos.84
83
Ibid.
84
Ibid.
85
GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Dos Crimes Contra os Costumes aos Crimes Contra a
Administração. São Paulo: Editora Saraiva, 2011, p.16.
46
Ainda que os elementos de “fraude e sedução” que eram, juntamente com o “engano”,
requisitos do crime de defloramento previsto no código penal anterior, pudessem aproximar
os delitos dos artigos 215 e 217 do novo código, as dimensões moral e material estavam
devidamente distinguidas entre os mesmos. Entretanto, mesmo com a ênfase na honra moral,
a virgindade física perpassava constantemente os comentários e debates jurídicos, além da
própria prática médico-legal nos exames de corpo delito. Além disso, a questão da idade está
devidamente assinalada em ambos os artigos para se distinguir do crime de estupro que
também abrangia as relações sexuais com menores de quatorze anos.
Outros desvios compõem o rol dos crimes sexuais. Entretanto, não é nosso objetivo
neste trabalho tecer uma análise acerca desses outros delitos mais especificamente. Tendo em
vista que os processos criminais que se constituem enquanto fontes estudadas aqui,
apresentando mulheres na condição de vítimas e acusadas, abrangem os crimes de homicídio
e infanticídio, nos deteremos um pouco na análise dos capítulos e artigos dos códigos de 1890
e 1940 que trazem a tipologia dos delitos contra a vida, bem como os debates médico-
jurídicos que os acompanharam.
86
RODRIGUES, Andrea Rocha. Honra e sexualidade infanto-juvenil na cidade do Salvador, 1940-1970.
Tese de Doutorado em História. Salvador, UFBA, 2007, p.107.
87
A parte especial divide-se em onze títulos: I Dos crimes contra a pessoa; Dos crimes contra o patrimônio; Dos
crimes contra a propriedade imaterial; Dos crimes contra a organização do trabalho; Dos crimes contra o
sentimento religioso e contra o respeito aos mortos; Dos crimes contra os costumes; Dos crimes contra a família;
Dos crimes contra a incolumidade pública; Dos crimes contra a paz pública; Dos crimes contra a fé pública; Dos
crimes contra a administração pública.
47
88
Código Penal de 1890. Disponível em: http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes. action?id=66049
89
HUNGRIA, Nelson. Comentários ao código penal. Nelson Hungria (1891-1969) Volume 5, Tomo I. Artgs.
121 ao 136. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1978
48
90
ibidem
91
CORRÊA, Mariza. Morte em família; representações jurídicas de papéis sexuais, Rio de Janeiro, Graal, 1983.
92
ENGEL, Magali. Paixão, crime e relações de gênero (Rio de Janeiro, 1890-1930). Revista Topoi, Rio de
Janeiro, nº 1, 2000, p.157.
49
Art. 298. Matar recemnascido, isto é, infante, nos sete primeiros dias de seu
nascimento, quer empregando meios directos e activos, quer recusando a
victima os cuidados necessarios á manutenção da vida e a impedir sua morte:
Pena de prisão cellular por seis a vinte e quatro annos.
Paragrapho unico. Si o crime for perpetrado pela mãe para occultar a
deshonra propria:
Pena de prisão cellular por tres a nove annos. 93
Dessa forma, o artigo aponta que o infanticídio era um delito cometido somente contra
a vida de recém-nascidos, podendo ser diretamente ou privando a criança de recursos
necessários para manter-se viva. É interessante observar como a questão da honra está
presente no texto, pois existe um abrandamento da pena no caso de a mãe cometer o crime em
função de preservar sua moral, ou “ocultar a desonra”. Os juristas que defendiam a
manutenção do atenuante da honoris causa asseguravam que a ocultação de sua desonra aos
olhos da sociedade poderia ser justificativa para tal ato. Contudo, para as mulheres pobres,
sozinhas ou sem recursos financeiros para serem mães, e ainda submetidas a uma moral mais
branda, vislumbravam o infanticídio como alternativa de sobrevivência. Sobre o infanticídio e
a questão da honra, Michelle Perrot esclarece
Por sua vez, o Código Penal de 1940 excluiu de seu artigo 123 a menção a honra da
mãe e passa a incluir como fator atenuante o “estado puerperal”, definindo infanticídio
enquanto o ato de “matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o
93
(grifos nossos). Código Penal de 1890. Disponível em:
http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=66049
94
PERROT, M. Os silêncios do corpo da mulher. In: MATOS, M. I. S. de e SOIHET, R. (orgs.). O corpo
feminino em debate. São Paulo: Unesp, 2003. p.18.
50
parto ou logo após”95. O alcance dos estudos médicos acerca do puerpério chegava assim, às
formulações jurídicas, entretanto, não foram de imediato aplicados pelos executores da lei,
como veremos adiante.
A tendência das leis no decorrer da história, em relação aos crimes de aborto e
infanticídio foi tornar-se mais específica no que se refere a criminalização da mulher, ainda
que trouxesse punições penais menores. Ao definir o infanticídio enquanto delito decorrido do
estado puerperal, a legislação considera a mulher como única possível autora do crime, ainda
que no código anterior a questão da honra familiar estivesse diretamente relacionada a honra
feminina. Em seus comentários, Hungria questionava a influência do estado puerperal no
psiquismo da mulher após o parto e explicitava que o juiz deveria requerer um laudo de perito
médico-legal confirmando o estado da parturiente. Demonstrando insatisfação com a nova
legislação, o jurista enfatizava que a cláusula de honoris causa do crime de infanticídio
deveria ter permanecido aliada a causa bio-psiquíca.
É importante considerar que o debate sobre a criminalidade feminina travado mais
fortemente nas primeiras décadas do século XX e a promulgação de um novo código penal em
1940 favoreceram a discussão e consequente implantação de estabelecimentos penitenciários
ou alas femininas em presídios. Até essa data não havia na legislação recomendações
especificas sobre o encarceramento feminino no Brasil, apesar de constar no debate carcerário
desde o fim do século XIX. O artigo 29 do código de 1940 passou a definir que “§ 2º As
mulheres cumprem pena em estabelecimento especial, ou, à falta, em secção adequada de
penitenciária ou prisão comum, ficando sujeitas a trabalho interno.” 96 A respeito deste artigo,
em seus comentários97 sobre o código, o jurista Roberto Lyra 98 que, ao lado de Nelson
Hungria, foi um dos principais revisores do novo código, demonstrava entusiasmo pela
viabilidade da reforma penitenciária no país, enquanto uma conquista civilizatória.
95
Código Penal de 1940. DECRETO-LEI Nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Disponível em
http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-2848-7-dezembro-1940-412868-
publicacaooriginal-1-pe.html
96
Código Penal de 1940. DECRETO-LEI Nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Disponível em
http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-2848-7-dezembro-1940-412868-
publicacaooriginal-1-pe.html
97
LYRA, Roberto. Comentários ao código penal. Volume 2, Tomo I. Artgs. 28 ao 74 5ª ed. Rio de Janeiro:
Forense, 1958.
98
Roberto Lyra, apesar de não reivindicar para si a categoria de penitenciarista, contribuiu para o debate acerca
dos presídios femininos no país e participou ativamente do Conselho Penitenciário do Distrito Federal. Jurista
brasileiro, redator de alguns volumes dos Arquivos Penitenciários do Brasil, contribuiu assiduamente para esse
periódico, principalmente com artigos e comentários sobre a legislação penal. Membro do Ministério Público do
Distrito Federal, jornalista, criminólogo e professor de direito penal e criminologia na Faculdade Nacional de
Direito, Lyra foi um dos membros da Comissão Revisora do Código Penal de 1940. In: ANDRADE, Bruna
Soares Angotti Batista de. Entre as leis da Ciência, do Estado e de Deus: o surgimento dos presídios
femininos no Brasil (1930-1950). Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011.
51
99
Livro de registros de visitas a cadeia de Caetité, 1886-1897.
100
ARTUR, Angela Teixeira. “Presídio de Mulheres”: as origens e os primeiros anos de estabelecimento. São
Paulo, 1930-1950. ANPUH – XXV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – Fortaleza, 2009, p.01.
52
1.3 Ares de progresso entre o campo e a cidade: Um projeto higienista no alto sertão da
Bahia
101
Segundo Edvaldo Neves, o termo alto sertão da Bahia é empregado em referência à posição “relativa ao curso
do Rio São Francisco e ao relevo baiano, que ali projeta as maiores altitudes” In: NEVES, Erivaldo F. Uma
comunidade sertaneja: da sesmaria ao minifúndio (um estudo de história regional e local). Salvador: EDUFBa;
Feira de Santana: UEFS, 2008, p. 22. Para Eudes Guimarães “em se tratando de alto sertão da Bahia, nas
narrativas históricas recentes sobressai uma trama de regionalização, isto é, de formas de delimitação do espaço,
do enquadramento ou de recorte espacial das quais podiam e ainda podem ressurgir denominações, mas que
aquela (alto sertão) se fez sentir com mais vigor e maior significado histórico”. GUIMARÃES, Eudes Marciel
Barros. Um painel com cangalhas e bicicletas: os (des)caminhos da modernidade no alto sertão da Bahia.
(Caetité, 1910-1930) Dissertação de mestrado. UNESP-Franca, 2012, p.23.
102
Foram assim, fundamentais os estudos de história local que abarcam o início do século XX e problematizam
questões relacionadas à política local durante a Primeira República, ao contexto sócio-econômico do pós-
abolição, aos discursos de modernidade e questões de gênero. As obras de Paulo Henrique Duque Santos (2001),
Lielva Aguiar (2011), Eudes Maciel Guimarães (2012), Adriana Sacramento (2012) inserem-se nessa
historiografia caetiteense vasta e promissora. No que se refere aos estudos sobre mulheres e relações de gênero,
duas pesquisas sobressaem como pioneiras e enquanto ponto de partida para novas temáticas e abordagens sobre
a história das mulheres alto-sertanejas. Em seu livro “Mulheres e poder no Alto Sertão da Bahia”, Marcos
Profeta Ribeiro (2012) analisa a partir das correspondências de Celsina Teixeira Ladeia, as ações femininas e os
espaços ocupados pelas mulheres de elite no alto sertão baiano, extraindo as tensões existentes entre os papeis
prescritos e os papeis vividos. Verifica-se nas entrelinhas dessa documentação, indícios de participação
53
feminina em diversos setores como política, religião, filantropia, eventos sociais e negócios comerciais. Por sua
vez, a dissertação de Maria Lúcia Porto Nogueira (2010) denominada “A Norma dos bons costumes e as
resistências femininas na obra de João Gumes (Alto Sertão Baiano, 1897-1930)” perscrutou as práticas culturais
e tensões sociais presentes nas vivências de homens e mulheres do período a partir das obras literárias deste
literato e jornalista caetiteense.
103
Existe uma carência de estudos historiográficos acerca da presença indígena no alto sertão da Bahia. Edvaldo
Neves afirma não haver registros de índios aldeados na região, pois “os primitivos habitantes foram absorvidos
como mão-de-obra, na agropecuária, e perderam sua identidade étnico-cultural”. In: NEVES, Erivaldo F. Uma
comunidade sertaneja: da sesmaria ao minifúndio (um estudo de história regional e local). Salvador: EDUFBa;
Feira de Santana: UEFS, 2008, p.96
104
Alcunha dada a Caetité pela memorialista Helena Lima Santos, em seu livro: SANTOS, Helena Lima.
Caetité, pequenina e ilustre. Tribuna do Sertão, Brumado, 1996.
54
Fonte: http://www.caetite.ba.gov.br/a-historia/
105
“As incursões de exploradores por sertão adentro retrataram aspectos da vida material no alto sertão da Bahia.
Os relatos trazem importantes indícios para interpretações sobre o passado: antecedentes conjunturais da
sociedade e economia de Caetité, localização de unidades de produção (fazendas, sítios, roças, povoados) e rotas
de comércio”. SANTOS, Paulo Henrique Duque. Veredas dos sertões da Bahia: economia e sociedade nos
relatos de viajantes. Estud. Soc. e Agric., Rio de Janeiro, vol. 21, n. 1, 2013, p.182.
106
SPIX, Johann Baptiste von; MARTIUS, Carl Friendrich Philipp von. Através da Bahia – Excertptos da obra
Reise in Brasiliem. Transladados a português pelos Drs. Pirajá da Silva e Paulo Wolf. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1938, p. 42 apud SANTOS, Paulo Duque. Légua tirana: sociedade e economia no alto sertão
da Bahia. Caetité, 1890-1930. 2014. 334 f. Tese (Doutorado em História Social) – Universidade de São Paulo –
Sp, 2014.
55
relatou que “Caetité apresenta aos viajantes um aspecto de corte do sertão. Há aqui uma boa e
culta sociedade, muita urbanidade e delicadeza na gente do lugar” 107
Apesar da crise socioeconômica causada nos sertões por ocasião das estiagens e de
uma nova configuração social e política oriunda do processo abolicionista e republicano,
Caetité não perdera sua relevância regional e passara a ser alvo do projeto modernizador que
emanava dos centros urbanos do país e configurava uma aspiração das elites brasileiras
inspiradas na belle époque francesa. Algumas inovações eram bem acolhidas e, em fins do
XIX e primeiros anos do XX, a cidade já contava com água encanada e luz elétrica,
observatório meteorológico, Escola Normal e Escola Americana, a Associação de Senhoras de
Caridade, os correios e telégrafos, tipografia, o Teatro Centenário que também funcionava
eventualmente como cinema, a sede da Diocese, entre outros.
Em que pese todos os elementos simbólicos dos novos tempos e todo esforço das elites
republicanas em adequar a vila a um patamar urbanizado e moderno, Caetité permaneceu com
características marcadamente rurais, dentro ou fora do perímetro urbano. Os limites tênues
entre o urbano e o rural revelavam-se na presença de animais nas estradas e permanência de
hábitos camponeses na área urbana, assim como a dinâmica de ir e vir dos moradores entre o
campo e a cidade. Abaixo, a imagem do Mercado Público, fundado em 1897, provavelmente
registrada no início do século XX, representa um desses espaços de transição.
107
SAMPAIO, Teodoro. O rio São Francisco e a Chapada Diamantina. São Paulo: Companhia das Letras,
2002, p.220.
56
108
PIRES, Maria de Fátima Novaes. Fios da Vida: tráfico internacional e alforrias nos sertoins de Sima – BA
(1860-1920). São Paulo: Annablume, 2009, p.170 (grifo da autora).
109
João Antônio dos Santos Gumes, ou simplesmente João Gumes, foi o fundador do jornal A Penna e seu
principal redator. Homem de qualidades intelectuais inegáveis, além do jornal, escreveu várias peças de teatro e
romances. Fora da literatura, dedicou-se a outros afazeres como a arquitetura, a pintura, o desenho e a música.
Realizou projetos arquitetônicos, produzindo plantas e fachadas de prédios públicos e particulares, regeu
orquestras e filarmônicas, compôs partituras, manejou com maestria o violoncelo, desenhou e pintou quadros e
paisagens, fez traduções e criou o primeiro Centro espírita da região, o que lhe rendeu desavenças com a
autoritária diocese caetiteense. In: TORRES, Roney Robson Baliza. A Cidade de Luz: Imprensa, modernização
e civilidade (Caetité: 1897-1930). Dissertação de Mestrado em História Regional e Local. Universidade do
Estado da Bahia. Santo Antônio de Jesus, 2013, P. 21.
57
TABELA 01: LISTAGEM DE LOCALIDADES DOS CRIMES NOS PROCESSOS POR TIPOLOGIA
Homicídio Defloramento Infanticídio Lesões Corporais*
Caetité Caetité Macaúbas Caetité
Esgoto / Brejinho Bom Jesus dos Lagoa Grande Lagoa Real
Bonito Meiras Bonito / Canabrava Caculé
Santa Luzia Rio de Contas dos Farias Piripiri (Caculé)
Cannabrava Bonito Caculé Mucambo
(Lagedo da Arouca) Santa Luzia Gameleira de Fora (Caldeiras)
São José Lagoa Real Capivara Lagoa do Enjeitado
Cachoerinha (Caatinga) Brejo Grande (Lagoa Real)
São Sebastião Lagoa Real Santa Luzia Fundão (Caetité
(Caatinga) Macaúbas (Purgatório) Velho)
Caculé Umbuzeiro
Palmeiras
Caldeiras
Brejinho /
Lagoinha
Grungas
Santa Luzia (Boa
Vista)
Fonte: Processos-crime: APEB / APMC
110
NOGUEIRA, Maria Lúcia Porto. Mulheres, história e literatura em João Gumes: Alto Sertão da Bahia,
1897-1930. São Paulo: Intermeios, 2015.
58
décadas estudadas na pesquisa e, por sua vez, outros locais já eram vilas desmembradas,
mantendo a jurisdição da comarca caetiteense na primeira metade do século XX111.
Para investigar os meios de vida dessa população de características rurais, torna-se
necessário compreender também a dinâmica das relações de trabalho e as suas formas de
sobrevivência nesse período. Em sua tese de doutorado, o professor Paulo H. D. Santos estuda
as atividades econômicas de exportação e de abastecimento de mercados internos que se
desenvolveram no alto sertão da Bahia, entre 1890 e 1930, e observa uma forte desigualdade
social e concentração de renda na região. Os inventários post mortemn apontam para uma
pequena faixa da população detentora de riquezas, pois 9,2% dos inventariados detinha 65,1%
das fortunas. Esse grupo social havia acentuado durante essas quatro décadas o volume de
seus bens, o que indica que a crise socioeconômica atingia com mais força a população pobre
e remediada, com menos possibilidades de arranjos e negociações econômicas. Ainda assim,
essa população empregava formas improvisadas de sobrevivência, oscilando desde a
ocupação de profissões temporárias até táticas como a sonegação de bens em inventários.
111
Formação Administrativa: Sede na antiga vila de Vila Nova do Príncipe. Instalada em 05-04-1810. Elevado
à condição de cidade com a denominação de Caetité, pela Lei Provincial n.º 995, de 12-10-1867. Pela Lei
Provincial n.º 1.410, de 07-05-1874, é criado o distrito de Canabrava e anexado ao município Caetité. Pela Lei
Provincial n.º 1.998, de 12-07-1880, é criado o distrito de São Sebastião do Caetité e anexado ao município
Caetité. Pela Lei Provincial n.º 2.039, de 23-07-1880, é criado o distrito de Caculé e anexado ao município
Caetité. Pela Lei Provincial n.º 2.211, de 16-07-1881, é criado o distrito de Lagoa Rela e anexado ao município
Caetité. Pela Lei Provincial n.º 2.438, de 01-05-07-1884, é criado o distrito de Bonito e anexado ao município
Caetité. Pela Lei Provincial n.º 2.677, de 28-06-1889, é criado o distrito de Rio do Antônio e anexado ao
município Caetité. Em divisão administrativa referente ao ano de 1911, o município aparece constituído de 10
distritos: Caetité, Aroeiras, Caculé, Canabrava, Bonito, Lagoa Real, Passagem da Areia, Rio do Antônio, Santa
Luzia e São Sebastião do Caetité. Pela Lei Estadual n.º 1.365, de 14-08-1919, são desmembrados do município
de Caetité os distritos de Caculé Rio do Antônio e São Sebastião do Caculé, para constituir o novo município de
Caculé. Em divisão administrativa referente ao ano de 1933, o município é constituído de 5 distritos: Caetité,
Brejinho das Ametistas, Canabrava dos Caldeiras (ex-Canabrava), Bonito, Lagoa Real. Não figurando o distrito
de Aroeiras, Caculé, Passagem da Areia e Santa Luzia. Em divisões territoriais datadas de 31-XII-1936 e 31-XII-
1937, o município é constituído de 6 distritos: Caetité, Brejinho da Ametista, Canabrava dos Caldeiras (ex-
Canabrava), Bonito, Lagoa Real e Junco Grande. Pelo Decreto-lei Estadual n.º 11.089, de 30-1938, o distrito de
Canabrava dos Caldeiras passou a denominar-se Caldeiras e o distrito de Junco Grande a chamar-se Maniassu. O
município de Caetité passou a grafar Caitité. No quadro fixado para vigorar no período de 1939-1943, o
município está grafado Caitité e é constituído de 6 distritos: Caitité (ex-Caetité), Brejinho das Ametistas,
Caldeiras (Canabrava dos Caldeiras), Bonito, Lagoa Real e Maniassu (ex-Junco Grande). Pelo Decreto-lei
Estadual n.º 141, 31-12-1943, confirmado pelo Decreto Estadual n.º 12.978, 01-06-1944, o distrito de Bonito
tomou a denominação de Igaporã. Pelos mesmos decretos estaduais o município de Caitité voltou a ser grafado
como Caetité. Em divisão territorial datada de 1-VII-1950, Caetité é constituído de 6 distritos: distritos: Caetité
(ex-Caitité), Brejinho das Ametistas, Caldeiras, Igaporã (ex-Bonito), Lagoa Real e Maniassu. Pela Lei Estadual
n.º 556, de 25-05-1953, é desmembrado do município de Caetité o distrito de Igaporã. In:
https://cidades.ibge.gov.br/brasil/ba/caetite/historico
59
Nem sempre tais tentativas eram bem-sucedidas, embora elas revelem algumas das
muitas formas de sobrevivência das camadas populares. Por sua vez, os registros de
lançamentos de impostos municipais sobre profissões e serviços auxiliam identificar o perfil
das ocupações de trabalho do então distrito de Caetité. A tabela abaixo, produzida por Paulo
Santos revela alguns ofícios urbanos e rurais desempenhados pelos habitantes da sede de
Caetité, incluindo também os distritos de Brejinho das ametistas e Lagoa Real.
FONTE: SANTOS, Paulo Henrique. Légua tirana: sociedade e economia no alto sertão da Bahia. Caetité, 1890-
1930. 2014. 334 f. Tese (Doutorado em História Social) – Universidade de São Paulo – SP, 2014, p. 305
112
SANTOS, Paulo Duque. Légua tirana: sociedade e economia no alto sertão da Bahia. Caetité, 1890-1930.
2014. 334 f. Tese (Doutorado em História Social) – Universidade de São Paulo – Sp, 2014, p.56.
60
Podemos perceber que a tabela informa apenas profissões masculinas, o que indica
que grande parte das mulheres trabalhadoras ocupavam postos informais. Esses registros não
permitem que localizemos as profissões isentas de impostos e que, por seu caráter informal,
abrangiam uma parcela razoável da população pobre caetiteense, se considerarmos a presença,
sobretudo de mulheres, como lavadeiras, costureiras, engomadeiras, jardineiras, empregadas
em serviços domésticos, em outras fontes. Como afirma Maria Odila L. S. Dias, “as mulheres
pobres tendiam a exercer sua sobrevivência em setores menos rentáveis da economia,
dificilmente controlados pelo fisco”113. Assim, o trabalho dessas mulheres caetiteenses precisa
ser esquadrinhado nas entrelinhas de documentações em que aparecem desempenhando
atividades cotidianas nos espaços públicos ou privados, nem sempre tidas como
“economicamente ativas”, ainda que essas fontes retratem apenas fragmentos de momentos
excepcionais de suas vidas, como nos processos criminais.
É nesse contexto socioeconômico e político em Caetité que emergiram, ou melhor, se
inseriram ideais de modernização e progresso que estavam na base do projeto de civilidade de
suas elites intelectuais. Para transformar a provinciana cidade em uma urbe sertaneja fazia-se
imprescindível, não apenas reformas urbanas ou a implementação de equipamentos modernos
de transporte e comunicação, mas todo um aparato de controle social e disciplinarização das
camadas mais pobres, cujos hábitos incivilizados eram vistos como empecilhos aos novos
tempos.
No bojo de um projeto higienista114 que marcou as reformas urbanas nas primeiras
décadas do século XX no Brasil, sobretudo, nos grandes centros, os discursos de ordem
médica, aliados aos discursos jurídicos, desempenharam papel importante na estratégia de
disciplinarização da sociedade. Tais ideais adentraram os sertões da Bahia em virtude da
formação de jovens bacharéis médicos e advogados nas faculdades de direito e medicina.
113
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e Poder em São Paulo no século XIX. São Paulo:
Brasiliense, 1995, p.68.
114
De um modo geral, os higienistas visavam à implantação de novos valores e costumes – um ethos moderno -,
promovendo o trabalho assalariado, o mercado, incluindo-se a oposição a religiosidade popular; e, para tanto, era
preciso começar pela higienização da família. Os reformadores “pretendiam substituir as tradições do
autoritarismo patriarcal, que viam como próprias da sociedade agrária oligárquica, por um sistema democrático
mais amplo composto por famílias nucleares higienizadas”. Nas décadas de vinte e trinta do século XX
ocorreram intensos debates, marcados pela presença das ideias eugênicas sobre a construção do ideário de um
Brasil moderno; nessa problematização mais geral, estavam também presentes os temas sobre sexualidade,
direitos das mulheres, corpo feminino e raça. RAGO, Elisabeth Juleska. Outras falas: feminismo e medicina na
Bahia (1836-1931). São Paulo: Annablume: Fapesp, 2007. p.153
61
Muitos deles, filhos de abastadas famílias caetiteenses, exerceram também importantes papéis
no cenário político da região, marcada pelo predomínio de oligarquias coronelísticas 115.
A título de exemplo, é possível citar um dos mais influentes políticos do alto sertão na
Primeira República. Deocleciano Teixeira 116, médico formado pela Faculdade de Medicina da
Bahia, em 1870, teve sua tese 117 dedicada a temática da “asthma” (asma) na dissertação, mas
com proposições das sessões médicas, cirúrgica e acessória referentes a “higiene da mulher na
gravidez”, “asfixia de recém-nascidos” e “afirmação da ocorrência de estupro”,
respectivamente. Assim como ele, entre as décadas finais do século XIX e as iniciais do
século XX, outros membros da elite intelectual e política caetiteense, exercendo ou não a
profissão, contribuiriam para a propagação de ideias de civilidade no alto sertão baiano.
As ideias e práticas higienistas importadas da Europa, mas com as devidas
especificidades em contato com a realidade social brasileira, encontraram solo fértil em uma
Caetité que aspirava “ares de progresso”, mas esbarravam nos costumes e hábitos
“provincianos” de sua população. Afinal, as estratégias sanitárias implantadas em todo país
destinavam-se a “desodorização do espaço urbano”, para além das reformas na estrutura
urbanística. O poder médico rompia as fronteiras entre o público e o privado e vislumbrava no
modo de vida das classes mais pobres um sério risco a manutenção da saúde e da higiene,
sobretudo, diante de sua contundente resistência aos novos valores.
Os surtos de epidemias que assolaram o país no período não deixaram de atingir a
região de Caetité. De fato, no livro dos registros de posturas municipais encontra-se um
“Registro de decreto do Intendente do Município” de três de março do ano de 1908 em que,
devido a uma “invasão” de varíola no município, são estabelecidos alguns postos de
observação, expurgo e isolamento nas entradas de Caetité e imediações. Observamos assim
que “é nesse contexto que o saber médico-higienista, no Brasil, influenciado pelas teorias
115
Como afirma Guimarães, desde o século XIX “os Sertões de Cima aparecem como palco de disputas políticas
e o lugar onde o poder dos coronéis estendia-se por todas as esferas do poder público – uma atmosfera que durou
pelo menos até o fim da Primeira República”. In: GUIMARÃES, Eudes Marciel Barros. Um painel com
cangalhas e bicicletas: os (des)caminhos da modernidade no alto sertão da Bahia. (Caetité, 1910-1930)
Dissertação de mestrado. UNESP-Franca, 2012, p. 25.
116
Patriarca dos Teixeira, uma das mais tradicionais e influentes famílias de elite do alto sertão da Bahia,
Deocleciano “formou-se em Medicina pela Faculdade da Bahia, serviu como médico voluntário na Guerra do
Paraguai e após a formatura trabalhou alguns anos como médico da Marinha. Depois disso, mudou-se para a
cidade mineira de Grão Mogol, onde clinicou por algum tempo, até retornar para a Chapada Diamantina”
AGUIAR, Lielva Azevedo. Agora um pouco de política sertaneja: a trajetória da família Teixeira no alto
sertão da Bahia (Caetité 1885-1924). Dissertação de Mestrado. Universidade do Estado da Bahia. Campus V.
Santo Antônio de Jesus, 2011, p.16. Longe da medicina, consolidou-se economicamente na cidade de Caetité e
construiu estrategicamente uma carreira política exitosa durante a Primeira República.
117
Acervo da Faculdade de Medicina da Bahia - FAMEB
62
médicas francesas, elabora estratégias ainda pontuais de eliminação dos focos considerados
responsáveis principais pela emergência dos surtos epidêmicos”118.
Um dos principais veículos de difusão desses ideais higienistas, bem como dos valores
moralizantes do projeto das elites republicanas era o Jornal A Penna119. Nas páginas desse
periódico caetiteense, que circulou entre 1897 e 1943, afloravam inúmeras matérias que
traduziam um projeto de necessidade de ordenamento da sociedade, bem como o temor
representado pelos sertanejos pobres representados por grupos de migrantes, mendigos,
crianças abandonadas, prostitutas, ciganos, revoltosos, vadios, criminosos, mães desnaturadas,
entre outros, que esporadicamente tornavam-se notícia. Eram representações criadas por uma
elite intelectual que aparentava preocupação e revelava temor com a presença desses sujeitos,
e cujo controle social fazia parte de seu projeto político de manutenção do poder. Adotamos
aqui esse conceito, entendendo que “as representações do mundo social assim construídas,
embora aspirem à universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre
determinadas por interesses de grupos que as forja”.120
Em tom de preocupação com as epidemias que assolavam a região e a falta de
cuidados com questões higiênicas pela população, o jornal tornava-se um verdadeiro panfleto
para a instalação de um posto higiênico na cidade. A partir de 1915, os apelos se tornariam
mais veementes e constantes, até sua tão saudada inauguração em agosto de 1927.
122
APMC. A Penna, 31/08/1927, p.02, nº 126, Anno V
64
123
Trataremos desse aspecto no segundo capítulo.
124
“As representações, que o autor do anúncio fez sobre as benzedeiras possibilitam pensar nas relações sociais
em Caetité, e as estratégias utilizadas por diferentes grupos sociais no tratamento da cefaléia. Além da imagem
que possivelmente é posta como um texto para ser lido por grupos não alfabetizados, cujo percentual em Caetité
no período de 1930 era alarmante, o anúncio, também, recorre ao escrito para anunciar que “a tia Joaquina
65
prontifica-se em fazer rezas e benzeduras com galhos de arruda e alecrim”. A Benzedura utilizando de ervas,
raízes, plantas no cuidado com a saúde, era vista por grupos letrados e profissionais da saúde como práticas de
grupos sociais qualificados como, incultos, ignorantes, iletrados e outras designações”. (SACRAMENTO, 2012,
p. 60)
125
SACRAMENTO, Adriana de Jesus. Artes e Práticas Curativas em Caetité - BA (1897-1940). Dissertação
de Mestrado em História Regional e Local. Universidade do Estado da Bahia. Santo Antônio de Jesus, 2012,
p.33.
66
126
SANTOS, Paulo Henrique Duque. Cidade e Memória: dimensões da vida urbana. Caetité, 1940-1960. 2001.
203 f. Dissertação (Mestrado em História Social) – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2001, p.29.
127
APMC. Fundo: Câmara Municipal. Série: Registros de Posturas. Caixa 04, Maço 04.
128
SANTOS, Paulo Henrique Duque. Cidade e Memória: dimensões da vida urbana. Caetité, 1940-1960. 2001.
203 f. Dissertação (Mestrado em História Social) – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2001, p.55.
67
policial. Como será perceptível na análise dos processos criminais, o discurso jurídico valia-se
do aparato policial para aplicação efetiva dos novos regulamentos e penalidades.
O processo criminal é uma ação judicial, de caráter penal, no qual se constrói uma
narrativa jurídica a partir da quebra de uma norma legal, ou seja, viola-se um artigo da
legislação penal, obtendo-se um crime. Neste documento, onde tanto a vítima quanto a Justiça
podem ser autoras da denúncia, os atores sociais envolvidos buscam, por meio de seus
discursos, formular uma verdade jurídica para absolvição ou condenação dos réus. Por sua
vez, a estrutura de um processo pode variar de acordo com a tipologia criminal a que se
refere, sendo constituída geralmente pela denúncia, inquérito, sumário de culpa, auto de corpo
de delito, qualificação do acusado, interrogatório das testemunhas, sessão do júri e sentença
do juiz.
O presente estudo propõe o desafio de analisar processos que envolvem quatro
tipologias documentais distintas: defloramento, homicídio, infanticídio e lesões corporais, em
129
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, Lar e Botequim: o Cotidiano dos Trabalhadores no Rio de Janeiro da
Belle Époque. São Paulo, Brasiliense, 1986, p.31.
68
CRIME
1890- 1900- 1910- 1920- 1930- 1940-
TOTAL
1899 1909 1919 1929 1939 1945
DÉCADA
HOMICIDIO 1 0 2 4 1 2 10
INFANTICIDIO 2 1 3 3 0 1 10
DEFLORAMENTO 2 2 2 3 11 2 22
LESÕES CORPORAIS 3 0 1 2 2 1 9
51
Fonte: Arquivo Público Municipal de Caetité e Arquivo Público do Estado da Bahia: Processos Crime /
Judiciário
alterações no código penal130, afinal o primeiro processo com a tipologia “sedução” nos
arquivos data de 1949. Tal peculiaridade denota que a aplicação das mudanças implementadas
pelo novo CP não foi imediata, assim como a permanência da mentalidade que considerava a
dimensão física em detrimento da moral, nestes crimes.
Abrimos um parêntese, no transcorrer da pesquisa, para incluir alguns processos
classificados enquanto “lesões corporais”, pois os mesmos sinalizavam para um cotidiano de
violências para as mulheres nos espaços público e privados, além de nos auxiliar a
compreender aspectos relevantes das relações afetivas e de trabalho das mulheres que
figuraram nestes processos, ainda que as mesmas não fossem majoritariamente as
protagonistas das narrativas.
Torna-se difícil estabelecer uma relação demográfica entre o número de processos
analisados por décadas – entre 1890 e 1945 – e o total da população caetiteense deste período,
visto que não foi encontrado um recenseamento municipal que contemple todas as décadas
abarcadas pela pesquisa. Ainda que consideremos que a população total em 1892
correspondia à um número de 24.555 habitantes, e no ano de 1924 tenha alcançado 42.513131
habitantes, uma estimativa coerente deve ponderar o grande número de desmembramentos do
território, com a emancipação de muitos distritos, além do constante fluxo migratório que
marcou o período do início do século XX. Todavia, ainda que população feminina em 1924 –
22.160 mulheres – fosse numericamente superior à masculina, que compreendia 20.353
homens, o número de processos envolvendo homens, sobretudo, na condição de réus ou
mesmo de vítimas, é maior que aqueles onde as mulheres figuram nestas posições. Crimes
como furto/roubo, homicídio, lesões corporais, calúnia/difamação, entre outros, parecem
compor um universo masculino, do qual as mulheres, somente fazem parte como testemunhas,
informantes ou pivô dos delitos. A leitura atenta das fontes, no entanto, nos apresenta uma
atuação muito mais ativa das mulheres nos meandros da criminalização judicial.
Em relação ao alto sertão da Bahia, o uso de processos criminais para investigar,
problematizar e ressignificar experiências, narrativas e trajetórias de sujeitos até então
invisibilizados pela memória oficial, tem ampliado os horizontes de nossa jovem e promissora
historiografia. História da escravidão e do pós-abolição, criminalização de práticas como
curandeirismo, perspectivas das relações de gênero, classe e raça, rixas e querelas políticas,
130
O fato de processos posteriores a 1940 estarem sob a tipologia “defloramento” não implica necessariamente
que tais processos foram julgados ou classificados nos artigos e capítulos do código anterior, o que será tratado
mais adiante.
131
Revista do Instituto Geográphico e Histórico da Bahia, Bahia, nº58, 1932, p. 180.
70
histórias familiares, entre outros, atribuem novas cores às pesquisas sobre Caetité. Em relação
à utilização dessa fonte nos estudos de escravidão, M. F. N. Pires afirma que
132
O crime na cor: escravos e forros no alto sertão da Bahia (1830-1888). São Paulo, SP: Annablume, FAPESP,
2003, p.22 (grifo da autora).
133
SOIHET, Rachel. Condição feminina e formas de violência: mulheres pobres e ordem urbana, 1890-1920.
Rio e Janeiro: Forense Universitária, 1989, p.10-11.
71
CAPÍTULO 02
134
APEB. Seção Judiciário. Processo-crime. Ano: 1896. Série: Lesões Corporais. Est. 2, cx. 70, doc. 02.
135
O juiz em questão era Antonio Bernardino de Almeida Filho, juiz de direito da comarca de Caetité, que
assumiu a condução do processo da própria esposa, e faz ao adjunto de promotor o arquivamento do inquérito
em 1931.
136
APMC. Série: Autos Crimes – Sub série: Lesões Corporais. Data-limite 1918-1968. Caixa: 77. Maço 01.
72
“A sociedade frequentemente impõe silêncios à história; e esses silêncios são tão história
quanto a história”. Marc Ferro138
137
NEPOMUCENO, Bebel. Mulheres Negras: Protagonismo ignorado. In: PINSKY, Carla B. PEDRO, Joana
Maria. Nova História das Mulheres no Brasil, 2013, p.383
138
FERRO, Marc. A história vigiada. São Paulo: M. Fontes, 1989.
73
“cor” não é uma categoria objetiva, cor é uma categoria racial, pois quando
se classificam as pessoas como negros, mulatos ou pardos é a idéia de raça
que orienta essa forma de classificação. Se pensarmos em “raça” como uma
categoria que expressa um modo de classificação baseado na idéia de raça,
podemos afirmar que estamos tratando de um conceito sociológico,
certamente não realista, no sentido ontológico, pois não reflete algo existente
no mundo real, mas um conceito analítico nominalista, no sentido de que se
refere a algo que orienta e ordena o discurso sobre a vida social. 140
139
Ao discutir a mestiçagem no Brasil como elemento do mito da democracia racial, Kabengele Munanga
analisa a mesma como um fenômeno ideológico que constituiria uma etapa transitória do processo de
branqueamento nos discursos do século XIX in: MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no
Brasil. Vozes: Petrópolis, 1999.
140
GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. Como trabalhar com "raça" em sociologia. Educação e Pesquisa,
São Paulo, v.29, n.1, p. 93-107, jan./jun. 2003, p.203.
74
sua condição por meio do tratamento que recebia, não podemos afirmar que esta fosse negra,
pois sua cor não é descrita nem mesmo no laudo médico. Resta-nos assim a investigação dos
elementos de racialização 141 presentes em suas histórias para romper com os silêncios
impostos. No próprio caso de Rozenea, podemos deduzir a sua cor somente a partir de uma
atribuição feita por aqueles com quem a mesma convivia e mantinha relações, tendo estes a
apelidado como negra velha.
Nas décadas posteriores a abolição da escravidão no Brasil, a ausência da cor na
documentação oficial não é um fato isolado e nem ocorre por acaso. Essa questão tem
representado um desafio teórico e metodológico para historiadores/as que pesquisam as
relações raciais em diferentes regiões do país. Ressaltamos que o silenciamento sobre a cor de
vítimas, acusados e testemunhas em documentos como processos criminais não foi uma
invenção da república ou do pós-abolição, embora tenha se intensificado nesse período, com a
emergência de debates pautados no mito da democracia racial.
As décadas finais da escravidão no Brasil, em determinadas regiões, já apresentavam
essa característica nos registros oficiais. Hebe Mattos, em seu estudo sobre o sudeste
escravista142, observou que, nos processos cíveis e criminais, a identificação da cor, que
estava presente na qualificação das testemunhas livres até meados do século XIX, já não era
mais utilizada depois de 1850.
Para a autora, isso estava relacionado ao crescente número de negros e mestiços livres
e de brancos empobrecidos, o que, no processo de identificação, favoreceu a perda de sentido
da cor branca como indicador de status social, isto é, passando a ser a condição de livre seu
novo pré-requisito. Além dessa designação feita pelas autoridades judiciais, os libertos
também faziam a opção de silenciar sobre sua própria cor. Negar-se como negro significava
negar a memória do cativeiro e, muitas vezes, tinham o objetivo de obter o reconhecimento
social de sua condição de livre e de cidadão. A autora ressalta que “negar-se como negro
(liberto), neste contexto, não implicava, como não implicou na maioria dos casos, assumir
uma perspectiva valorativa do branqueamento”143. Era assim a tentativa de livrar-se da força
discriminadora da marca do cativeiro.
141
A racialização foi, a um só tempo, o sinal mais evidente da decadência do escravismo e da arrojada tentativa
de garantir que o edifício social montado durante a escravidão fosse preservado, mantendo-se privilégios,
demarcando-se fronteiras e recompondo antigos territórios In: ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. O jogo da
dissimulação: Abolição e cidadania negra no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p.243
142
MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista – Brasil,
séc. XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 361.
143
Ibid., p.361.
75
À medida que avançamos as décadas do XIX e beiramos a transição para o século XX,
a presença da descrição da cor em documentos oficiais, como recenseamentos e processos
criminais, torna-se cada vez mais rara. Sobre esse silenciamento, Sueann Caulfield afirma que
“para a república já no pós-abolição, a ausência da cor estava relacionada ao processo de
construção da cidadania republicana e ao projeto de nação que buscava constituir-se como
branca”144. Todavia, embora o discurso jurídico, numa perspectiva liberal, procurasse evitar
uma ênfase na cor dos indivíduos, o discurso médico marcado fortemente pelos ideais
eugênicos145, mantinha a necessidade de delimitação das características fenotípicas das
vítimas nos exames de corpo de delito.
Os processos analisados neste trabalho apresentam essa permanência da cor nos laudos
médicos, entretanto, não em sua grande maioria. Vale ressaltar que os registros da cor nesses
exames não obedeciam a uma terminologia médica formal, e muitas vezes, os peritos
responsáveis não eram profissionais da área da saúde146. Tal situação se mantem comum até o
fim da década de 1920. Esse é o caso, por exemplo, dos peritos no exame por ocasião do
defloramento de Theodora Maria de Jesus, em 1904, na localidade de Lagoa Real.
144
CAULFIELD, Sueann. Raça, Sexo e Casamento: crimes sexuais no Rio de Janeiro, 1918-1940. Revista Afro-
Ásia. v. 18 (1996), p. 225-164.
145
A eugenia pode ser conceituada como um movimento científico e social voltado para o aperfeiçoamento
genético da espécie humana. Suas origens encontram-se na obra do naturalista inglês Francis Galton (1822-
1911), primo de Darwin, ele afirmava que tanto o físico como o mental estavam ligados à herança biológica. Isso
justificava, no seu entender, a necessidade dos “cruzamentos selecionados” entre os seres humanos. Seu projeto
pretendia comprovar que a capacidade intelectual era hereditária, ou seja, passava de membro para membro da
família e, assim, justificar a exclusão dos negros, imigrantes asiáticos, deficientes e qualquer um que não se
encaixasse no padrão eugênico ideal. Segundo Nancy Stepan, “o movimento eugênico mundial ajudou a
conformar o debate brasileiro, mas a eugenia também foi reconfigurada no Brasil e adaptada à sua topografia
intelectual e à sua agenda social, tornando-se importante elemento na reformulação ideológica do significado de
raça para o futuro brasileiro”. STEPAN, Nancy Leys. Eugenia no Brasil, 1917-1940. In: HOCHMAN, G.,
ARMUS, D., orgs. Cuidar, controlar, curar: ensaios históricos sobre saúde e doença na América Latina e
Caribe [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2004. História e Saúde collection, pp. 330-391.
146
Percebemos uma mudança em relação a esta questão no transcorrer das décadas em nossas fontes. Sobretudo,
na década de 1930, aumenta-se consideravelmente o número de processos em que o corpo de peritos é formado
totalmente por profissionais da área médica, a medida em que também aumenta-se o número de farmácias nas
localidades contempladas pelo estudo.
147
(grifos nossos) APEB. Seção Judiciário. Processo-crime. Ano: 1904. Série: Defloramento. Est. 12, cx. 453,
doc. 01.
76
Percebemos que até mesmo comerciantes, lavradores e sujeitos com outras ocupações,
desde que desempenhadas por homens considerados “dignos” ou “entendidos”, poderiam ser
convidados a avaliarem os corpos femininos e, sob juramentos católicos, procederem o exame
físico para responder a um questionário padrão de acordo com o delito investigado.
As vítimas, classificadas como “ofendidas” nos exames de corpo delito destinados a
comprovar a ocorrência do crime de defloramento, ou mais especificamente o rompimento do
hímem, eram submetidas a uma nova forma de violação de seus corpos. Para além de terem
suas vidas moralmente investigadas e questionadas pelos agentes da justiça, tinham suas
partes íntimas expostas e manipuladas por homens sem nenhum conhecimento médico.
Tratava-se assim de um tipo de violência de gênero aceito, institucionalizado e justificado nos
laudos médicos.
Dessa forma, termos variados como “ligeiramente morena” ou “rapariga preta de
cabelo encarapinhado” não eram estranhas aos laudos periciais. Além disso, a menção a cor
nos laudos em que não existe a presença de médicos ou profissionais da área da saúde, é ainda
menos incidente, pois os “peritos notificados” se limitavam a responder as perguntas já
definidas, sem descrições detalhadas da anatomia feminina. Nesse cenário, foi possível
identificar, por meio dos exames periciais de corpo delito, as seguintes definições de cor para
as vítimas de crimes de homicídio 148 e defloramento:
Optamos por manter a cor registrada pelos peritos nos laudos, que indicam por vezes
uma inexatidão na informação. Apesar do silêncio frequente sobre a cor das mulheres nos
148
Somente os processos em que as mulheres foram vítimas do homicídio, pois a cor foi identificada por meio do
exame de corpo delito.
77
Ser uma mulher parda constituía assim um lugar de exceção na sociedade escravista.
Entretanto, o pós-abolição conferia a essas mulheres um “outro lugar”, reivindicado ou não
por essas mulheres. Não ser negra e com isso não carregar os estigmas do passado de
escravidão, mas também não ser branca e não ocupar uma posição social de maior privilégio
numa sociedade pigmentocrática 150, ainda que com maiores possibilidades de ascensão social.
Em Caetité e na região alto sertaneja, de um modo geral, um importante elemento a ser
considerado se refere justamente ao discurso da mestiçagem, já veiculado desde os relatos de
viajantes do século XIX e que contribuía para atribuir a cor um critério não tão relevante para
as distinções sociais nos sertões baianos. Tais discursos, muitas vezes, serviam para mascarar
149
MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista – Brasil,
séc. XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 361.
150
A pigmentocracia, mais conhecida no Brasil como colorismo (termo cunhado em 1982, por Alice Walker,
autora de A Cor Púrpura), seria um sistema de hierarquia e discriminação, baseado na cor da pele, sendo que
conforme a tonalidade da pele for mais escura, mais chances de exclusão em sociedade. Nesse sentido, o
fenótipo é mais forte que a origem ou descendência étnica de uma pessoa. Um estudo transnacional realizado por
Edward Telles, é bastante importante para este debate e revela por meio de uma paleta de cores, em quatro países
da América Latina (Mexico, Colômbia, Peru e Brasil). No caso específico do Brasil a auto-identificação racial
por meio das categorias utilizadas nas pesquisas oficiais (branco, pardo, preto, indígena, amarelo e outros)
corresponde ao padrão esperado segundo sua hipótese pigmentocrática: uma hierarquia que, em linhas gerais, vai
dos indivíduos de pele mais clara aos de pele mais escura. TELLES, Edward. The Project on Ethnicity and Race
in Latin America (PERLA). Pigmentocracies: ethnicity, race and color in Latin America. Chapel Hill: The
University of North Carolina Press, 2014.
78
151
Área entre o rio Pardo e rio das Contas, fronteira entre o Norte da Capitania de Minas Gerais e o Alto Sertão
da Bahia (Rio de Contas e Caetité); região cuja ocupação, remonta ao final do século XVIII, como resultado das
expedições exploradoras e de conquista que partiram do sertão das Minas Gerais - Minas Novas do Araçuaí - em
direção aos sertões da Bahia, compostas pelo italiano Pedro Leolino Mariz e os portugueses João Gonçalves da
Costa e João da Silva Guimarães.
152
SANTOS, Ocerlan F. Memórias da Escravidão e das Mestiçagens no sertão da Bahia. Dissertação de
mestrado. Vitória da Conquista. UESB, 2015, p.30.
153
SPIX, Von.; MARTIUS, Von. Através da Bahia: Excerptos da obra Reise in Brasilien. Translado a português
pelos Drs. Pirajá da Silva e Paulo Wolf. Companhia Editora Nacional: São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Porto
Alegre, 1938. Disponível em: <http://www.brasiliana.com.br/obras/atraves-da-bahia-excertos-da-obra-reise-in-
brasilien/pagina/6/texto>. Acesso em 01 de Agosto de 2014. 1938, p. 61 apud SANTOS, 2015, p.43
154
O registro dos aldeamentos no território baiano, feito no século XIX, não indica a presença de núcleos
indígenas no alto sertão. Ver: APEB. Colonial e Provincial, 4.610. Mapa das Aldeias Indígenas na Província da
Bahia (1700-1848).
155
Vale ressaltar que o conceito de identidade atua constantemente “sob rasura”, isto é, é construído e
reconstruído pelos diferentes povos, não sendo algo inato e fixo em uma determinada população.
156
NEVES, Erivaldo F. Uma comunidade sertaneja: da sesmaria ao minifúndio (um estudo de história regional
e local). Salvador: EDUFBa; Feira de Santana: UEFS, 2008, p.96.
79
casamento católico imposto a mulheres indígenas pelos homens que colonizaram as terras dos
sertões, e remete a um estado de selvageria animal atribuído a essas mulheres, anterior a sua
inserção na comunidade branca “civilizada”.
Em que pese o fato de que as relações inter-raciais entre brancos/as e negros/as sejam
também invisibilizadas, porém não invisíveis, na constituição da população caetiteense, os
matizes mestiços (pardos) atribuídos as mulheres na documentação contribuíram também para
o silenciamento acerca das mulheres negras, uma vez que as classificadas como pretas não
constituem um número elevado nos laudos médicos, assim como não temos a definição da cor
de mulheres na posição de acusadas nos crimes. Perceber a racialização das relações sociais
por meio de outros elementos das experiências dessas mulheres constitui uma alternativa para
romper esse silenciamento. Suas relações de trabalho, meios de sobrevivência, relações
afetivas, bem como os desvios da normatização social, que as tornava alvo de criminalização
e resistência, são fundamentais para investigação de suas histórias.
157
DAVIS, Angela. Mulheres, Raça e Classe. São Paulo: Boitempo, 2016.
158
“No caso do Brasil, as mulheres brancas e negras têm trajetórias duradouras nas ocupações de menor prestígio
e de más condições de trabalho, como o emprego doméstico, atividade em que as mulheres negras são mais
numerosas. Ambas estão também sobrerrepresentadas no item desemprego. Homens brancos e negros estão
sobrerrepresentados nas trajetórias de emprego formal e de trabalho autônomo, embora os últimos em menor
proporção. Eles têm trajetórias marcadas pela instabilidade de forma mais marcante que os homens brancos,
indicando maior vulnerabilidade”. GUIMARÃES E BRITTO, 2008, p. 51. apud HIRATA, Helena. Gênero,
classe e raça: Interseccionalidade e consubstancialidade das relações sociais. Tempo Social, revista de
sociologia da USP, v. 26, n. 1, 2014, p.64.
80
Entre as meninas defloradas, seja por seus patrões ou por homens do convívio familiar
e de amizade destes, revelam-se algumas peculiaridades do trabalho realizado por elas. São
mulheres que saíram muito cedo da casa de suas famílias, algumas delas sendo órfãs, outras
com quantidade numerosa de irmãos, todas elas muito pobres, cujo destino fora se tornar
“cria” em casas alheias, tratadas nos depoimentos como filhas postiças das famílias que as
adotaram, porém com tarefas e obrigações definidas desde o berço. Pela descrição dos
processos, as famílias que recebem essas meninas, ainda que apresentassem condição social e
159
BESSE, Susan K. Modernizando a desigualdade. Reestruturação da Ideologia de Gênero no Brasil, 1914 –
1940. São Paulo. Editora da Universidade de São Paulo, 1999, p. 157.
160
SANCHES, Maria Aparecida Prazeres. As razões do coração: Namoro, escolhas conjugais, relações raciais e
sexo-afetivas em Salvador (1889-1950). Tese de Doutorado em História Contemporânea. Universidade Federal
Fluminense. Niterói, 2010, p.58-59.
82
econômica um pouco melhor que a dos seus pais, não eram exatamente famílias abastadas. Ao
contrário, tratava-se principalmente de lavradores e negociantes que, muito dificilmente,
teriam condições financeiras de pagar salário a uma empregada doméstica. Uma exceção é o
caso de Ercínia, apresentado no início do capítulo, pois a família do juiz que a acolhera em
troca da exploração de seu trabalho, pertencia à elite caetiteense e demonstrou, por meio do
processo, possuir certo número de empregados assalariados. Tratava-se assim, de uma prática
cultural enraizada também nas classes dominantes, para quem o trabalho manual e doméstico
das mulheres negras sempre valeu muito pouco ou quase nada.
Percebemos a questão da exploração do trabalho das jovens, sobretudo, oriundas do
campo, em processos como o de Hermínia Maria de Jesus, de 16 anos, que em 1933, é
deflorada pelo patrão Cezar Viana, de 38 anos, enquanto realizava o serviço de buscar água na
fonte, na localidade de Umbuzeiro. Ao responder no inquérito como havia chegada a casa do
réu, Hermínia afirma que a mulher de Cézar, dona Nazinha, pediu aos seus pais para leva-la
para sua casa “para ajud-ála como servente, nos serviços da casa, gratuitamente”161.
Décadas antes, em 1894, no distrito de Bom Jesus dos Meiras, a jovem Tertolina, de
14 anos, fora estuprada por seu patrão Francisco Bernardes, lavrador de 45 anos. O pai da
jovem entra com o processo após a gravidez da filha.
161
APEB. Sessão Judiciário. Série Processos-Crime Defloramento. 1933. 223/103/1.
162
APEB. Sessão Judiciário. Série Processos-Crime Defloramento. 1894. 09/296/18
83
Ainda em relação às ocupações que poderiam ser classificadas como “de âmbito
doméstico”, a designação costureira ou fiandeira corresponde a cerca de 18,8% do total de
profissões registradas nos autos. Além das depoentes que apontaram uma das profissões
especificamente, muitas delas indicaram desempenhar ambas (cozer e fiar) nos questionários.
Em uma região cuja tradição cotonicultora se fortaleceu no final do século XIX, não é
estranho encontrar um alto número de mulheres trabalhando como fiandeiras, atividade têxtil
doméstica que pode ser relacionada à produção local de algodão, e que ainda no período
escravista representava uma importante fonte de sobrevivência para as mulheres negras.
Como sugere Maria de Fátima Pires, ao identificar escravas e libertas no alto sertão exercendo
essas profissões, os rústicos teares e espaços de coser estavam ligados a suas funções
domésticas.
Sobre esta atividade ser realizada como parte da microeconomia escrava do século
XIX a partir da cultura algodoeira no alto sertão, Neves afirma
163
PIRES, Maria de Fátima Novaes. Costureiras e Lavradores – escravos no Alto Sertão da Bahia durante o
século XIX. In: Encontro Regional de História – O lugar da História, 17, 2004, Campinas-SP. Anais do XVII
Encontro Regional de História – O lugar da História. ANPUH/SPUNICAMP. Campinas, 2004, p.04.
164
NEVES, Erivaldo F. Uma comunidade sertaneja: da sesmaria ao minifúndio (um estudo de história regional
e local). Salvador: EDUFBa; Feira de Santana: UEFS, 2008, p.88-89.
84
funções desempenhadas pelas mulheres negras tinham impacto na economia do alto sertão e
permaneceram como alternativa de sobrevivência herdada após a abolição. Nos relatos de
Pedro Celestino, nas primeiras décadas de 1930, é possível perceber a predominância desta
atividade para as mulheres caetiteenses.
A roca e o fuso são comuns por todo interior do município, com os quaes se
prepara o fio para esses trabalhos e para as redes que muito se
recommendam pelo seu trançado e colorido. É toda uma indústria caseira,
primitiva, entregue às mulheres, sendo para lamentar que a título de
animação, não encontrem taes produtos melhor acceitação. As rendas de
almofadas são outra indústria domestica, também a cargo das mulheres; não
há casas que não as teçam com certo esmero e cuidado, produtos que são
cotados a baixo preço no mercado local. 165
O autor lamenta que, apesar do “esmero e cuidado” utilizados por essa indústria
doméstica feminina “caseira e primitiva”, os produtos não encontrassem boa aceitação, sendo
vendidos a um custo muito baixo. Tal fato não deixa de ser reflexo da baixa remuneração de
atividades profissionais das mulheres, desvalorizadas, sobretudo, por serem consideradas tais
tarefas como atributos femininos, prendas domésticas que, desde menina, deveriam aprender
para manutenção da casa. Entretanto, fazer uso dessas habilidades para o sustento de si e de
seus familiares não deixava de representar uma importante resistência ao empobrecimento
vivenciado pelas sertanejas.
Fonte: http://historiadeurandi.blogspot.com/2010/11/casa-da-memoria-de-urandi.html
165
SILVA, Pedro Celestino da Silva. Notícias Históricas e Geographicas do Município de Caetité. Revista do
Instituto Geographico e Histórico da Bahia. Nº 58, Seção Gráphica da Escola de A. Artífices da Bahia, 1932,
p.71.
85
166
APEB. Sessão Judiciário. Série Processos-Crime Lesões Corporais. 1894. 13/541/10.
86
abolição, baseado no desempenho comum desta função pelas mulheres da localidade. Afinal,
como já analisava Maria Odila L. da S. Dias para a cidade de São Paulo, o oficio de fiandeira
não era algo isolado, mas em grupos, realizando mutirões normalmente compostos por
vizinhas167.
A documentação preservada pela Associação das Senhoras de Caridade de Caetité168
apresenta, por meio de seus registros de boas obras, inúmeros momentos de apoio às moças
costureiras, seja buscando comprar máquinas de costura ou tecidos e doando para o trabalho
destas, seja comprando seus produtos. O apoio dessa rede de mulheres pertencentes a
abastadas famílias caetiteenses às mulheres de camadas populares e entre elas, costureiras
pobres, demonstrava uma solidariedade de gênero que cruzava as fronteiras das classes a que
pertenciam, como vemos abaixo, em alguns dos frequentes registros de doações nos livros de
boas obras da entidade:
167
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e Poder em São Paulo no século XIX. São Paulo:
Brasiliense, 1995.
168
Esta entidade beneficente, idealizada e presidida durante várias gestões por Celsina Teixeira, foi fundada por
um grupo de senhoras da elite caetiteense. O contexto de sua fundação deve ser analisado não apenas em
consonância com as condições sociais e econômicas do período, mas, sobretudo, associado à criação de outras
entidades em diversos locais pelo Brasil. In: RIBEIRO, Marcos Profeta. Mulheres e Poder no Alto Sertão da
Bahia: A escrita epistolar de Celsina Teixeira Ladeia (1901-1927). São Paulo: Alameda, 2012, p.68.
169
Livro de lançamentos e boas obras. ASCC, 7/1/1924. APMC. Grupo Casa do Barão. Cx. 1. Relatório de 1923.
170
Entendido como uma postura ideológica adotada por mulheres das camadas médias e alta nas primeiras
décadas do século XX, que defendia a preponderância do sexo feminino devido a natureza específica para a
maternidade, na defesa e desempenho de atividades relacionadas ao bem estar das mulheres e das crianças. In:
MOTT, Maria Lúcia. Maternalismo, políticas públicas e benemerência no Brasil. In: Cadernos Pagu. Campinas
n. 16, 2001, p.202.
87
Dessa forma, esse campesinato formado por uma miscelânea de sujeitos, ao ponto de
confundir suas origens e identidades, com uma economia voltada para a produção de gêneros
para consumo interno e pequenos excedentes a serem negociados nas vilas e feiras, também
era marcado pelo trabalho familiar e por relações de vizinhança bastante dinâmicas nas
comunidades em que se dão os delitos analisados.
Essa característica predominantemente rural da região de Caetité se expressa nos
processos por meio da grande quantidade de localidades rurais que foram cenários para os
crimes. Mesmo as vilas, distritos e a própria sede do município possuíam aspectos das
relações ruralizadas que indefiniam as fronteiras entre o campo e a cidade, ainda que nos
discursos das autoridades locais, os muitos delitos ocorridos no campo eram expressão do
atraso dessas localidades e, somente aqueles que se davam na sede urbana escandalizavam a
sociedade “civilizada”.
Exemplo disso, o enterramento de cadáveres de crianças vítimas de infanticídio e, em
alguns casos, o própria parto das mulheres, o defloramento e estupro de meninas e muitos
casos de homicídios tinham como local preferencial nos relatos o “mato”, próximo às casas
171
WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Da escravidão à liberdade: dimensões de uma privacidade possível
In: NOVAIS, Fernando A. (org.), História da vida privada no Brasil 3. São Paulo: Companhia das Letras,
1998. p. 60.
88
em localidades rurais. A descrição comportamental dos indivíduos pelos operadores da lei nos
processos – fossem advogados ou promotores- tanto em tom de defesa quanto de acusação é
de que estes eram sujeitos “roceiros e ignorantes”, portanto desconhecedores de hábitos
morais civilizados.
Muitas mulheres depoentes demonstraram conciliar os trabalhos domésticos e
ocupações na costura com o cuidado na roça e podiam se definir como lavradoras em alguns
momentos e em outros não necessariamente, enquanto a profissão majoritária indicada pelos
homens do campo nos processos é a de lavrador. Esse hábito indica também que a profissão
de lavrador, apesar de desempenhada por mãos femininas, tinha um caráter fortemente
masculino, num país em que não somente os braços de homens negros estiveram mais
presentes nas lavouras, como também as obrigações domésticas desempenhadas pelas
mulheres rurais as impediam de se definirem apenas enquanto lavradoras. Por sua vez, essas
mulheres não trabalhavam apenas em suas roças e sítios, mas também em propriedades de
familiares e parentes, como Anna Alves, jovem parda, de 16 anos, que “tinha o costume de
trabalhar em serviço de lavoura” na casa de seu tio Theodoro, autor de seu defloramento em
1932 na comunidade de Gurungas, sendo que todas as mulheres do processo se intitulam
também como lavradoras172.
Vivendo em áreas rurais, no apogeu do coronelismo 173 sertanejo, não era incomum as
experiências das mulheres estarem marcadas também pelas violências interfamiliares,
reproduzidas pelo modelo patriarcal que estruturava suas vidas, e que perpassava as diversas
classes sociais. O alto sertão, assim como outros rincões do território baiano, já havia sido
cenário para inúmeras disputas entre famílias nas áreas rurais, sendo as mais famosas aquelas
que envolviam famílias abastadas e proprietárias de terras. Um desses conflitos familiares é
analisado por Luiza Campos de Souza ao investigar o banditismo rural no contexto da
rivalidade entre três famílias alto-sertanejas, cuja inimizade envolvia desde questões
particulares até a disputa pelo controle econômico da região em meados do século XIX. Ao
expressar as consequências bélicas dessa disputa familiar, a autora narra:
174
SOUZA, Luiza Campos de. Conflito de família e banditismo rural na primeira metade do século Xix:
Canguçús e “Peitos-Largos” contra Castros e Mouras nos sertões da Bahia. Dissertação de Mestrado em História.
UFBA. Salvador, 2014.
175
PIRES, Maria de Fátima Novaes. Fios da Vida: tráfico internacional e alforrias nos sertoins de Sima – BA
(1860-1920). São Paulo: Annablume, 2009.
176
Ao analisar a trajetória de alto-sertanejos que migraram por décadas para São Paulo, a escritora Ely Estrela
destaca que o retorno dos “sampauleiros”, era motivo para muitos festejos em sua terra natal. “À parte as
motivações, o retorno dos sampauleiros se constituía em verdadeira festa no alto sertão. Nas primeiras décadas
do século XX, a chegada dos viajantes era um evento que envolvia toda a comunidade. A família do indivíduo
esperado se preparava para recebe-lo durante meses. A casa era arrumada, as comidas e as bebidas eram
preparadas (comidas típicas) e as roupas costuradas. Com antecedência. O filho, o irmão ou o marido que partira
era agora esperado como se fora uma visita das mais importantes”. ESTRELA, Ely Souza. Os Sampauleiros:
cotidiano e representações. São Paulo: Humanitas; FFCLC/USP; FAPESP; EDUC, 2003, p.201.
177
Assim como menores de idade e outros casos específicos, os depoentes diretamente relacionados à vítimas e
acusados por laços consanguíneos não possuíam status de testemunhas no processos criminais, sendo
denominados como informantes.
90
com a paciente”. Verificamos assim, que os conflitos nas vidas dessas mulheres e as relações
afetivas que estas mantinham envolviam todo um conjunto de familiares que moravam e
trabalhavam nessas localidades rurais.
Assim como muitas mulheres negras permaneceram trabalhando nas propriedades
após o fim da escravidão ou buscaram continuar nas áreas rurais como lavradoras, muitos
homens negros também o fizeram. Entre os processos de homicídio envolvendo mulheres na
condição de acusadas, um deles chama atenção por apresentar outros contornos, pois a ré em
questão é uma mulher branca, de condição remediada e ex proprietária de escravos. A vítima,
por sua vez, era um homem negro, ex escravo, que trabalhava em sua casa. Em 1889, um ano
após a abolição da escravidão no Brasil e às vésperas da proclamação da república, o liberto
Brazílio José agonizava após receber uma facada abaixo do estômago e, antes de morrer,
dissera ao vizinho que o acudiu suas últimas palavras, acusando a ex sinhá moça Rozalina
Maria de Britto de tê-lo esfaqueado.
Na batalha discursiva que se desenrola nos depoimentos, as descrições da índole de
vítima e acusada conduziram o processo, buscando não apenas definir a existência da legítima
defesa da honra da ré contra a presunção de inocência do ofendido, mas principalmente, os
lugares sociais ocupados por uma mulher branca e rica e por um homem negro e pobre, cuja
vida e morte guardava as marcas do passado escravista.
Havia entre Brazílio e Rozalina uma relação de patroa e empregado herdada da
recentemente extinta relação entre senhora e escravo. As últimas palavras do liberto, relatadas
no depoimento do vizinho Bento Manoel, demonstram como Brazílio continuava a trabalhar
para sua ex sinhá na lida da propriedade.
Tendo sua ex sinhá moça mandado elle pilar arroz e buscar água, que elle
prontamente o fez, ella tornou a manda-lo buscar mandioca, e chegando elle
com a mandioca, a encontrou deitada e encostada em um quarto na porta,
toda descomposta, elle offendido indo embrulhar a mesma, ella acordou-se e
dera, digo, ella acordou e já se achando de posse da facca do mesmo
offendido, discera lhe que atrevimento era aquelle e dera-lhe a facada, cuja é
do offendido e ella já se achava de posse antes delle ir buscar a mandioca.178
Percebemos por meio deste processo, que as marcas da escravidão nas relações de
trabalho no alto sertão da Bahia permaneciam de inúmeras formas e estavam permeadas por
diferentes intersecções de classe, raça e gênero, que definiam e redefiniam os lugares sociais
ocupados por mulheres e homens, negros e brancos, trabalhadores e proprietários.
178
APEB. Sessão Judiciário. Série Processos-Crime Homicídio. 1889. 13/542/06.
91
179
DAVIS, Angela. Mulheres, Raça e Classe. São Paulo: Boitempo, 2016, p.186.
180
APEB. Sessão Judiciário. Série Processos-Crime Homicídio. 1889. 13/542/06.
92
Maria da Conceição, de sessenta anos, para auxiliar os incômodos de sua amiga, sendo que
esta receita “escaldapé e sinapismos nas pernas” 181.
Entre as testemunhas do caso, temos a presença de Ambrosina Maria do Nascimento,
de quarenta e quatro anos e solteira, que alega trabalhar em serviços domésticos, mas também
é qualificada como parteira nos autos. Além disso, existe a menção a uma parteira de nome
Jovina que teria auxiliado Ana Francisca em possíveis partos mal sucedidos no passado,
segundo relato do amásio da acusada. Outra parteira identificada como testemunha em um
processo de infanticídio de 1913, na localidade de Canabrava dos Farias, distrito de Bonito,
também é bastante idosa, se chamava Belisaria Maria de Jesus, era viúva e tinha a idade de
setenta e cinco anos. Belisária foi chamada para ver o cadáver da criança. As parteiras eram
assim, mulheres cuja experiência e histórico de auxílio em momentos de enfermidade e
gestação, garantiam a estas um respaldo na comunidade em que viviam.
Na composição da narrativa de outro processo-crime de infanticídio datado de 1933,
que será melhor analisado no próximo capítulo, uma personagem se destaca, a curandeira
Germana de Tal, uma mulher que, ao preparar e vender as garrafadas para o companheiro da
ré Maria Roza de Jesus, é com frequência, evocada nos interrogatórios, sem nunca ter sido
chamada a prestar depoimento. A vontade de saber das autoridades policiais se expressa
constantemente em relação a essa mulher e o seu ofício de parteira e curandeira. Nesse
interim, nas falas dos parentes de Maria Roza, faz-se perceptível a reputação reconhecida da
curandeira Germana.
A fala acima pertenceu ao padrinho de Maria Roza, João Baptista que, em seu
testemunho, evidenciou certo reconhecimento pelo trabalho de Germana, tendo a garantia de
seus conhecimentos sobre remédios para “incômodos de mulher” assegurada pela filha da
mesma, que a propósito, ofereceu o trabalho da mãe. Por sua vez, a madrinha Clemência
181
APEB. Sessão Judiciário. Série Processos-Crime Infanticídio. 1911. 03/87/13
182
APMC. Série: Autos Crimes – Sub série: Infanticídio. Data-limite 1918-1943. Caixa: 61. Maço 01.
93
respondeu ao ser questionada em interrogatório que “Germana é conhecida como muito boa
para preparar remédio para mulher e como parteira 183”.
Em relação ao oficio de parteira nesse período, na região do alto sertão da Bahia,
verifica-se ao mesmo tempo a perpetuação da tradição dessa rede de conhecimentos
femininos nas artes curativas contrastando com a implementação, ainda que de forma lenta e
relutante, dos tratamentos prescritos por médicos higienistas no início do século XX. As
parteiras eram muito respeitadas pela comunidade alto-sertaneja. Segundo Nogueira, “a
parteira prestava os seus serviços para mulheres de todas as classes e esta situação perdurou
por muito tempo”184. Com o tempo, essa conjuntura se altera e o atendimento em hospitais e
maternidades passou a funcionar como forma de distinção social, porém a perseguição às
mulheres que praticavam o ofício de trazer crianças ao mundo, ou prescrever ervas
medicinais, não parece ter sido tão efetiva em Caetité como o fora nas capitais. Não há, por
exemplo, processos criminais pelo crime de curandeirismo envolvendo mulheres em nosso
período de análise, apenas dois homens. As parteiras eram assim, reconhecidas e necessárias
numa sociedade em que não havia tantos profissionais de medicina atuantes. Afinal,
Era entre as mãos das parteiras, como a preta Damiana e a velha Siá
Clemência, que as crianças caetiteenses vinham ao mundo. Na região
também se encontrava um ou outro médico, formado pela Faculdade de
Medicina da Bahia, que atendia a chamados em domicílio, prestando seus
serviços àqueles que podiam pagar o preço devido pelo trabalho desse
profissional185.
Outra ocupação desempenhada pelas mulheres pobres, que parece ter sido bastante
requisitada pelas classes remediadas e pela elite local, é a de lavadeira 186. Entretanto, a
presença dessas mulheres na fronteira da urbanização ainda bastante incipiente de Caetité
demonstra também um incômodo para as autoridades que se empenhavam no projeto de
modernidade do alto sertão, sendo alvo da regulamentação legal. Os códigos de posturas
impostos no período imperial já proibiam a lavagem de roupas nos rios e córregos que
abasteciam à população e o novo código que começou a vigorar em 1944, em seu artigo 70,
183
APMC. Série: Autos Crimes – Sub série: Infanticídio. Data-limite 1918-1943. Caixa: 61. Maço 01.
184
NOGUEIRA, Maria Lúcia Porto. Mulheres, história e literatura em João Gumes: Alto Sertão da Bahia,
1897-1930. São Paulo: Intermeios, 2015, p. 163.
185
CARNEIRO, Giane Araújo Pimentel. As práticas educativas familiares no processo de distinção
geracional criança/adulto (Caetité-BA, 1910-1930). (Dissertação de Mestrado em Educação). Belo Horizonte:
UFMG/FaE, 2011, p. 42.
186
Presença de lavadeiras e engomadeiras nos livros de pagamento da família Teixeira. Ver RIBEIRO, Marcos
Profeta. Mulheres e poder no Alto Sertão da Bahia. A escrita epistolar de Celsina Teixeira Ladeia (1901 a
1927). São Paulo: Alameda, 2012.
94
187
Livro de Registro dos Decretos-Leis (1944-1960). Lei nº 33 de 02/10/1948. Codigo de Posturas do Municipio
de Caiteté. Capítulo IV: Da saúde pública, p. 87.
188
APEB. Sessão Judiciário. Série Processos-Crime Infanticídio. 1891. 13/541/17.
95
ou levantamentos feitos por fiscais de impostos e, assim, subnotificadas nas primeiras décadas
republicanas. Seja no espaço urbano ou no rural, as mulheres envolvidas nas tramas da justiça
revelavam também estratégias de sobrevivência cotidiana herdadas da escravidão e que, sob
outras nuances, perduraram no pós-abolição.
189
Assim, como em outras partes do Brasil, as cartas de alforria revelaram que as mulheres em Caetité foram as
mais beneficiadas, ultrapassando homens crioulos e africanos. Entre as crianças, as meninas foram as que mais
receberam a alforria sob a condição de servir até a morte do seu senhor, o que constituía em mais uma estratégia
de controle para dispor das suas habilidades de veio doméstico por muito tempo. Kátia Almeida também
encontrou um grande número de mulheres alforriadas em Rio de Contas, com destaque para a constatação do
mesmo percentual de alforriadas para dois momentos do século XIX, 1800-1850 e 1850- 1871. In: ORTIZ,
Ivanice Teixeira Silva. Trabalho escravo, laços de família e liberdade no alto sertão da bahia: Caetité (1830-
1860). Dissertação de Mestrado. Santo Antônio de Jesus. Programa de Pós Graduação em História Regional e
Local: UNEB 2014, p.106.
190
Seguindo os caminhos trilhados pela História social da escravidão, alguns autores despontaram na
historiografia brasileira, com abordagens sobre família escrava. De acordo com Robert Wayne Slenes, esses
estudos têm “contestado diretamente a antiga visão da vida sexual e familiar do escravo como pouco mais do que
uma desordem cultural, ou [...] uma ‘vasta promiscuidade primitiva’”. Slenes ressalta que as novas pesquisas
“[...] têm apresentado dados qualitativos sugerindo que a constituição de famílias (inclusive externas,
incorporando pessoas não aparentadas) interessava aos escravos como parte de uma estratégia de sobrevivência
96
suas relações, é preciso refletir sobre o caráter dessas relações no universo escravista e pós-
abolicionista. Em Caetité, a existência de médias e pequenas propriedades com reduzidos
números de posse escrava, tornava a interferência dos senhores na vida de seus cativos, e por
sua vez, nas suas uniões matrimoniais, muito mais frequentes que em grandes propriedades.
Ivanice Ortiz, ao estudar os casamentos entre homens e mulheres escravizados no alto sertão
da Bahia, entre os anos de 1830-1860, por meio dos registros da igreja matriz de Caetité,
identificou cento e noventa e nove senhores que possuíam cativos legalmente casados em suas
propriedades. Ressaltamos que esse número não representava apenas o interesse cristão dos
proprietários caetiteenses, mas as táticas empregadas por homens e mulheres negros para
legitimação de suas uniões, o que lhes garantia mais estabilidade e oportunidades de obtenção
da liberdade e de uma possível mobilidade social. Segundo a autora,
Caetité e a região do alto sertão estavam fortemente erigidos sobre tradicionais valores
cristãos e a religiosidade católica perpassava todos os aspectos da vida das pessoas, de todas
as classes sociais, desde os rituais de passagem marcados pelos sacramentos até o calendário
festivo da região, expresso na homenagem aos santos, em novenas e romarias. Sendo assim, o
matrimônio religioso representava uma forma de inserção nessa sociedade e na própria
dinâmica das relações escravistas, como se dava também na área de Rio de Contas.
dentro do cativeiro”. In: SLENES, Robert. W. Na Senzala uma flor: esperanças e recordações na formação da
família escrava, século XIX. 2ª ed. corrigida. Campinas – São Paulo: Editora da Unicamp, 2011, p. 53 e 54.
191
ORTIZ, Ivanice Teixeira Silva. Trabalho escravo, laços de família e liberdade no alto sertão da Bahia:
Caetité (1830-1860). Dissertação de Mestrado em História Local e Regional. Santo Antônio de Jesus. UNEB,
2014, p.72-73.
97
192
ROCHA, Fernanda Gomes. Uniões Matrimoniais e Famílias Negras em Minas do Rio de Contas, 1873 a
1888. Seminário do GPCSL: os sertões da Bahia, 1, 2011, Caetité-BA. Anais do I Seminário do Grupo de
Pesquisa, Cultura, Sociedade e Linguagem (GPCSL/CNPq): os sertões da Bahia. Caetité, v. 1, nº 1, out. 2011,
p.8.
193
VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados: moral, sexualidade e inquisição no Brasil. São Paulo: Nova
Fronteira, 1997, p.84.
194
ALVES, Adriana Dantas Reis. As mulheres negras por cima: o caso de Luzia jeje: Escravidão, família e
mobilidade social – Ba 1780-1830. Tese (Doutorado em História). Niterói: Universidade Federal Fluminense,
Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de História, 2010, p.153.
98
195
Ibid., p.94.
196
APMC. Série: Autos Crimes – Sub série: Homicídio. Data-limite 1918-1992. Caixa: 56.
99
como garantia de um possível casamento, o recurso a justiça se fazia presente e, mesmo que o
indiciamento requeresse a punição dos ditos crimes sexuais, muitas vezes, bastaria o réu
“reparar o mal” no altar, evitando assim uma condenação penal ou o prosseguimento do
processo criminal. Dessa forma, como confirma Sueann Caulfield, era fato que
197
CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: Moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-
1940). Campinas, SP: Editora da UNICAMP, Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, 2000, p.205.
198
Cúria da Igreja Matriz de Caetité. Livros de registro de casamento, 28/01/1919 à 03/09/1925
199
Cúria da Igreja Matriz de Caetité. Livros de registro de casamento, 28/01/1919 à 03/09/1925
100
possuindo recursos para tal fim, requer a V.S. attestar aqui se ella é
realmente pessoa pobre no conceito legal. 200
Que sabe do casamento contratado que sua filha tinha com o indiciado, e
para tal realização ela depoente insistia a todo momento e ele sempre dizia
que não podia casar em virtude do mau tempo. Diante disso seu genro tomou
providencias sobre a realização do casamento ficando o mesmo contratado
para Novembro. Quando em setembro próximo veio a saber que sua filha já
se achava deflorada pelo indiciado.202
Assim, a mãe da vítima, ao recorrer à justiça e cobrar a promessa feita a sua filha,
exercendo o papel de chefe de família, ainda que se valendo da ajuda de um genro,
apresentara uma resistência voluntária ou involuntariamente aos padrões normativos de
gênero. Caulfield pontua que “as mães de vítimas de defloramento frequentemente
questionavam a ideia da predominância da família patriarcal ao se considerar chefes de
família legítimas e defensoras da honra de suas filhas” 203. Entretanto, nesse caso específico,
Antônia, diante da ausência de seu falecido cônjuge, exercia um contrapoder perante a justiça,
que não fora reconhecido pelo ex-genro. Ao escrever a carta de despedida para o cunhado e
200
APMC. Série: Autos Crimes – Sub série: Defloramento. Data-limite 1926-1986. Caixa: 37. Maço 01.
201
CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano. 1. Artes de fazer. Petrópolis. Rio de Janeiro: Vozes, 2008.
202
APMC. Série: Autos Crimes – Sub série: Defloramento. Data-limite 1926-1986. Caixa: 37. Maço 01.
203
CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: Moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-
1940). Campinas, SP: Editora da UNICAMP, Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, 2000, p.41.
102
não para a sogra ou a noiva, o acusado Juvenal demonstrava ater-se a ideia de que negócios
matrimoniais deveriam ser feitos e desfeitos em acordos com um chefe masculino da família.
Ao narrar a história, a jovem Maria Joaquina Leite informou durante o auto de
perguntas que era noiva de Juvenal Francisco Bonfim, e estava de casamento marcado para o
mês de novembro. Relatou que o rapaz costumava frequentar a sua casa e estando um dia a
sós, “chega o indiciado e lhe disse que em virtude da oposição de seus paes, só acharia meio
de se casar com ella ofendida por meio de defloramento”204. Diante da proposta, Maria
Joaquina afirma que sua primeira atitude fora recusar, mas tanto as promessas de casamento
quanto o uso da força a fizeram ceder e ter relações sexuais com Juvenal. Contudo, o desfecho
não se dera como a moça almejava, pois o acusado enviara uma carta ao seu cunhado Arlindo
Gonçalves Pereira desfazendo o compromisso de casamento, supostamente em obediência aos
pais que se opunham ao enlace com Maria. Embora Arlindo tenha tentado consolar a cunhada,
dizendo que ela deveria ignorar o ocorrido, pois poderia se casar com outro homem, Maria
“respondera que tal não podia acontecer em razão de já se achar deflorada pelo indiciado” 205.
Tal afirmação corrobora a ideia de que, mesmo reelaborando os códigos morais e de conduta
de acordo com suas condições concretas de vida e sobrevivência, os valores de moralidade
oriundos das classes dominantes incorporavam-se também ao vocabulário cotidiano da
população mais pobre.
Caso semelhante, mas com desfecho absolutamente diferente é o defloramento de
Anna Xavier da Cunha, de dezesseis anos, por Manuel Lopes Patez, brasileiro, lavrador,
solteiro, de 22 anos de idade. O delito é denunciado pelo pai da menor, Camilo Alves Patez e,
a julgar pelo sobrenome incomum, é possível que haja um parentesco com o acusado que não
chega a ser mencionado no processo. Contudo, durante o seu auto de declaração Manuel
afirma que “tendo ele relação de namoro com Anna Xavier da Silva, e com promessa de casar
com a mesma conseguiu lograr em defloramento [...] entretanto deseja reparar pelo casamento
o mal que desta forma praticou a fim de evitar a condenação a que está sujeito perante a lei
penal”. 206
Diante da postura de muitos juristas que “apoiavam a medida que perdoava os homens
que se casassem com sua vítima” 207, evidencia-se uma valorização do casamento para a
sociedade brasileira da Primeira República e mais especificamente na região alto sertaneja.
204
APMC. Série: Autos Crimes – Sub série: Defloramento. Data-limite 1926-1986. Caixa: 37. Maço 01.
205
APMC. Série: Autos Crimes – Sub série: Defloramento. Data-limite 1926-1986. Caixa: 37. Maço 01.
206
APMC. Série: Autos Crimes – Sub série: Defloramento. Data-limite 1926-1986. Caixa: 37. Maço 01.
207
CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: Moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-
1940). Campinas, SP: Editora da UNICAMP, Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, 2000, p.82.
103
Enquanto base para a formação da nação e elo entre os interesses públicos e privados, “a ‘boa
família’ é o fundamento do Estado: daí a atenção crescente que ele lhe dá e sua intervenção
em caso de incapacidade das famílias pobres, as mais controladas” 208.
Os papéis de gênero culturalmente construídos para homens e mulheres sobressaíam
nos discursos jurídicos que investigavam o procedimento de ambos durante o depoimento das
testemunhas. Era comum assim termos a descrição da honra masculina relacionada ao
trabalho e a honra feminina relacionada ao comportamento, que por sua vez garantia a
manutenção da honra masculina e da honra da família. Sob este aspecto, Andréa R. R. P.
Barbosa afirma
208
PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história. Bauru: EDUSC, 2005, p.459.
209
RODRIGUES, Andrea Rocha. Honra e sexualidade infanto-juvenil na cidade do Salvador, 1940-1970.
(Tese de Doutorado), Salvador, UFBA, 2007, p.111.
104
autor da deshonra de Alice, salvo se a justiça o pudesse obrigar a se casar mesmo sem dever o
crime que lhe atribuem”210.
Todavia, a conduta de Porfirio no transcorrer do processo acabou conduzindo ao seu
pedido de prisão, não adiantando nem mesmo a ação do advogado e o pedido de habeas
corpus, devido a sua ausência da cidade assim que é colocado em liberdade. Para o promotor
“ao invés de vir se defender da acusação, foge. É um signal evidente de sua culpabilidade” 211.
A principio, Porfírio se refugia na vila de Urandy e sua prisão é requerida ao juiz municipal,
mas antes que pudesse ser preso, o acusado fugiu para São Paulo. Paira então a dúvida de que
o pedido de prisão seria realmente uma forma de criminalizar o réu, ou mais provavelmente,
um último recurso de pressioná-lo a cumprir a obrigação matrimonial.
Observamos que o conceito de honra ganhava contornos e significados diferentes
quando se referia a homens e mulheres, assim como dentro dos padrões morais de distintos
segmentos sociais. Aos homens o “bom proceder” estava relacionado, sobretudo, ao trabalho
e o não envolvimento em conflitos. Para as mulheres, “ser moça decente, honrada” dizia
respeito ao seu comportamento. Além da menoridade, investigavam-se por meio dos
interrogatórios, os hábitos e as relações mantidas pela vítima. A favor de Alice pesava então o
fato de ser considerada “menina recatada, que não saía só de casa nem tinha intimidade com
nenhum homem”. O próprio indiciado, Porfírio, apesar de declarar que não era o autor do
defloramento, alega que “desconhecia nenhum namorado ou amante a quem atribuísse a
deshonra e prenhez de Alice”212.
Estando a noção de honra masculina intrinsecamente vinculada à honra feminina, o
comportamento da mulher também poderia ser empregado como prova favorável ao
indiciado. Aquelas que subvertessem o que pregava a moral e os bons costumes da época
estariam fadadas a terem sua versão contestada nos processos em que, muitas vezes, tratava-se
da “palavra do homem contra a palavra da mulher”. Esse é o caso de Presilina Maria de Jesus,
que em 1931 acusou:
210
APMC. Série: Autos Crimes – Sub série: Defloramento. Data-limite 1926-1986. Caixa: 37. Maço 01.
211
APMC. Série: Autos Crimes – Sub série: Defloramento. Data-limite 1926-1986. Caixa: 37. Maço 01
212
APMC. Série: Autos Crimes – Sub série: Defloramento. Data-limite 1926-1986. Caixa: 37. Maço 01.
106
213
APMC. Série: Autos Crimes – Sub série: Defloramento. Data-limite 1926-1986. Caixa: 37. Maço 01.
214
Ibid.
215
CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: Moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-
1940). Campinas, SP: Editora da UNICAMP, Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, 2000, p.77.
107
para as mulheres pela via do trabalho formal remunerado” 216. Sem negar, assim, a
veridicidade dos sentimentos de Presilina por José, presentes como “o anel e o pó de arroz”
representavam para a justiça elementos da sedução e engano utilizados pelo deflorador, mas
talvez simbolizassem para aquela moça uma opção de vida que, nem o trabalho doméstico,
nem o namoro com Spiridião, poderiam oferecer.
Nas falas das mulheres testemunhas do processo, a sogra e a esposa de José Antônio,
percebemos outros elementos que variavam entre uma leve defesa ao procedimento da vítima
e repreensão as suas atitudes, respectivamente. Para Avelina Amélia Teixeira, 38 anos, sogra
do réu, Presilina era “muito trabalhadora e caprichosa, muito malcriada e que quando ia a
festas gritava de namorar, mas que nunca percebeu nella nem com José e nem com outro
qualquer acto indigno ou reprovável” 217. Entretanto, a esposa do indiciado, Amélia Avelina,
20 anos, diante da acusação feita ao marido e que repercutia diretamente na manutenção do
seu lar, preferiu preservar seu matrimônio, demonstrando, ao menos perante as autoridades,
acreditar na palavra de José de que a denúncia não passava de uma calúnia. Vale salientar que
o adultério masculino causava bem menos escândalo, era mesmo socialmente tolerado e
apresentava menor penalização nos códigos da época. O depoimento de Amélia auxiliava
então a reforçar a construção de um perfil menos “honrado” para a vítima, alegando que
“Presilina gostava de muitos rapazes”, e confirmando a liberdade que seu primo Spiridião
tinha em sua casa, podendo inclusive dormir sempre que trabalhava para seu pai Trajano.
A diferenciação do tratamento das “mulheres ofendidas” no discurso jurídico dava-se
também com relação ao fator racial, embora nem sempre fosse possível precisar a cor das
defloradas. Todavia, dois processos são bastante elucidativos tendo como base estratégias da
defesa e acusação em seus discursos sobre o procedimento das vítimas. Ainda que ambas as
vítimas compartilhassem uma posição de classe semelhante, à Aureliana Maria Cotrim e Ritta
Maria de Jesus são atribuídas características que se relacionavam com as construções de perfis
de uma mulher branca e uma mulher negra, respectivamente, para uma sociedade cujas
relações permaneceram fortemente racializadas, mas cujas fontes históricas oficiais revelam o
racismo apenas em suas entrelinhas. Enquanto Aureliana, loira e de olhos azuis, é descrita
como uma moça inocente e roceira, Ritta, única vítima identificada especificamente como
preta, fora do laudo médico, é descrita como tendo um “temperamento ardente e sensual”. 218
216
SANCHES, Maria Aparecida Prazeres. As razões do coração: Namoro, escolhas conjugais, relações raciais e
sexo-afetivas em Salvador (1889-1950). Tese (Doutorado em História Contemporânea) Universidade Federal
Fluminense. Niterói, 2010, p.185.
217
APMC. Série: Autos Crimes – Sub série: Defloramento. Data-limite 1926-1986. Caixa: 37. Maço 01.
218
APEB. Seção Judiciário. Processo-crime. Ano: 1927. Série: Defloramento. Est. 223, cx. 103, doc. 05.
108
219
Optamos por analisar os processos criminais em que uma mulher estava envolvida na condição de ofendida
ou acusada do homicídio.
220
Em dois dos casos existe a co-autoria, ou seja a identificação de mais de um acusado do crime, ainda que o
co-autor tenha uma participação considerada menor ou “indireta”, de cumplicidade do homicídio.
221
RINALDI, Alessandra de Andrade. A sexualização do crime no Brasil: Um estudo sobre criminalidade
feminina no contexto de relações amorosas (1890-1940). Rio de Janeiro: Mauad X: FAPERJ, 2015, p.60.
109
muito maior de garantir a manutenção de uma moral burguesa civilizadora para as famílias,
do que de oferecer proteção às mulheres vulneráveis as violências. Segundo a autora,
Houve entre ele e Elena um ligeiro incidente que irritou o respondente de tal
modo que dahi a prática do crime o respondente foi acometido de uma
espécie de perturbação de que mesmo não sabe dizer e é somente o que tem
a declarar em torno do crime. 223
222
BESSE, Susan K. “Crimes passionais: a campanha contra os assassinatos de mulheres no Brasil: 1910-1940”,
Revista Brasileira de História, vol. 9, n. 18, São Paulo, ago./set.1989, p.195.
223
APEB. Sessão Judiciário. Série Processos-Crime Homicídio. 1936. 223/603/04.
110
pessoas saudáveis. Finalizava o diagnóstico como sendo “hígido mental, responsável por
qualquer crime”224.
O processo de Abílio difere de outros pesquisados, pois os indícios de doença mental
apresentavam-se muito mais nas falas de testemunhas de seu convívio e em outros relatórios
médicos do que em uma tentativa da defesa justificar seu crime. Mesmo com o primeiro laudo
médico e a alta do hospital, o promotor exigiu um novo diagnóstico alegando que o acusado
apresentava sinais de desequilíbrio. Por fim, o exame realizado no instituto Nina Rodrigues
concluiu que Abílio “não goza de sanidade mental: é portador de psicose maníaco-depressiva,
estando no momento, na fase depressiva ou melancólica” 225. O processo fora assim suspenso
até que o réu fosse curado.
Essa atenção e cuidado maior em averiguar a questão da perturbação mental, que por
muito tempo justificara o caráter da passionalidade de muitos assassinatos de mulheres por
homens, dava-se em função de um novo olhar médico-jurídico para o crime passional.
Entretanto, tal prática não se consolidou após o código de 1940, ao contrário, o argumento da
passionalidade fora reforçado pelos discursos do período, como percebemos no próximo
crime de homicídio de uma mulher por seu companheiro.
Foi assim que no ano de 1941, o homicídio de Percília Maria de Jesus por seu parceiro
Manoel Pereira da Silva, com quem vivera anos em “situação de concubinato”, registrou essa
descrição na tentativa do advogado de defesa justificar o crime, visto que a culpa (autoria)
fora confirmada pelo flagrante. O trecho abaixo, extraído do relato da defesa e digno de um
Otello shakespeariano, revela um texto carregado por uma performance dramática, tendo
como personagem um homem marcado pela loucura e pelo ciúme, potencializados pela
embriaguez, que após ser confrontado por seu rival, assassinara sua amante. O advogado
narrou então o acontecimento:
Também dos autos não consta ser o acusado um homem perveso atípico,
vivia da sua modesta profissão com ella angariando os parcos elementos de
sua subsistência, juntos assim, iam accusado e victima palmilhando a diffícil
e árdua estrada da existência, quando lá certo dia, como um intruso um
desmancha prazeres surge no caminho deles, José Antonio da Silva,
sequestrando Percilia.
Os sentimentos de amor próprio e mesmo a dignidade do accusado se sentem
profundamente feridos na attitude de José.
Os dias se sucedem, a angustia e o ciúme vão tomando corpo no espírito do
infeliz acusado.
224
APEB. Sessão Judiciário. Série Processos-Crime Homicídio. 1936. 223/603/04.
225
APEB. Sessão Judiciário. Série Processos-Crime Homicídio. 1936. 223/603/04.
111
228
ENGEL, Magali. Paixão, crime e relações de gênero (Rio de Janeiro, 1890-1930). Revista Topoi, Rio de
Janeiro, nº 1, 2000, p.166.
229
APMC. Série: Autos Crimes – Sub série: Homicídio. Data-limite 1918-1992. Caixa: 56.
113
quarenta anos e filhos já criados. Essa rivalidade feminina emergia nos processos, pois
“muitas mulheres com filhos pequenos viam-se constantemente ameaçadas pelo concubinato
e, diante das desconfianças ou das delações de adultério, lutavam pela manutenção das suas
uniões, rivalizando com mulheres com condições de vida tão humildes quanta as suas” 230.
Por sua vez, o comportamento da vítima Maria Roza foi constantemente questionado
às testemunhas, e considerado inadequado devido a sua relação com um homem casado. A
vítima foi assim, descrita como uma destruidora de lares ao interferir no casamento da prima.
Assim, ainda que em pólos opostos do processo, ambas as mulheres receberam maior atenção
investigativa que o próprio réu Marianno. A justiça revelava-se mais interessada em
“civilizar” os comportamentos femininos do que em punir os desvios masculinos.
Desse modo, as relações afetivas de mulheres caetiteenses pardas e pretas, bem como
de brancas empobrecidas, revelam contornos raciais e sociais de seus papéis de gênero.
Destoando dos padrões das classes dominantes, essas mulheres constituíram diferentes tipos
de uniões conjugais, recorreram à justiça como instrumento para solução de conflitos,
exerceram contrapoderes em face da ausência de companheiros, sofreram e exerceram
violências dentro de um modelo patriarcal de sociedade.
Ainda que os padrões morais das elites se pretendessem hegemônicos e universais, a
classe trabalhadora, diante de condições socioeconômicas e culturais distintas, subvertia
muitos desses valores em suas práticas cotidianas. As mulheres pobres nem sempre
correspondiam ao ideal de mulher “pura e casta” e, muitas vezes, suas formas de
sobrevivência e a exploração a que estavam submetidas impossibilitavam-nas de
enquadrarem-se nesses padrões, o que de forma alguma impedia que reelaborassem suas
relações nas brechas deste sistema de “moral e bons costumes”.
Quanto àquelas das camadas mais baixas, mestiças, negras e mesmo brancas,
viviam menos protegidas e sujeitas à exploração sexual. Suas relações
tendiam a se desenvolver dentro de um outro padrão de moralidade que,
relacionado principalmente às dificuldades econômicas e de raça, se
contrapunha ao ideal de castidade, não chegando, porém, a transformar a
maneira pela qual a cultura dominante encarava a questão da virgindade e
nem a posição privilegiada do sexo oposto231.
CAPÍTULO 3
O processo de criminalização das mulheres pobres caetiteenses, como vimos até então,
para além de todo arcabouço jurídico-policial das legislações criminais da república, da
tentativa de controle e disciplinamento das camadas mais pobres para o sucesso do projeto de
modernização do alto sertão baiano, esteve atrelado às heranças da estrutura escravista
brasileira e às condições socioeconômicas e culturais que marcaram a vida de mulheres negras
no pós-abolição. Esse processo envolveu também a reelaboração de códigos de conduta moral
por meio de papéis informais desempenhados pelas mulheres nos espaços públicos e privados
e que destoavam dos papéis normativos impostos por uma sociedade capitalista, racista e
patriarcal. Ao analisar a presença dessas personagens ocupando as ruas da capital Salvador,
Ferreira Filho afirma que
232
Expressão utilizada pela promotoria na denúncia de um processo de infanticídio, caracterizando como
libidinosos e ilícitos as relações afetivo-sexuais de uma mulher viúva.
233
FERREIRA FILHO, Alberto Heráclito. Desafricanizar as ruas: elites letradas, mulheres pobres e cultura
popular em Salvador (1890-1 937). Afro-Ásia, Salvador, n. 21-22, 1998-1999, p. 256.
234
Em seu prefácio à edição inglesa, Ginzburg resgata um conceito de Mikhail Bakhtin, afirmando que é
possivel resumir no termo "circularidade" entre a cultura das classes dominantes e a das classes subalternas
existiu, na Europa pre-industrial, um relacionamento circular feito de influencias recíprocas, que se movia de
baixo para cima, bem como de cima para baixo (exatamente o oposto, portanto, do "conceito de absoluta
autonomia e continuidade da cultura camponesa" que me foi atribuido por certo crítico) In: GINZBURG, Carlo.
O queijo e os vermes: O cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia
das Letras, 2006, p.10.
116
período, porém, mesmo nos espaços privados, suas ações não correspondiam ao modelo
burguês patriarcal que reservava para as mulheres um papel de mãe e esposa submissa. Nas
áreas rurais, crimes como o infanticídio escandalizavam a sociedade caetiteense por expor os
limites do mito da maternidade como missão 235. No espaço urbano, a violência envolvendo
mulheres no exercício da prostituição provocava um misto de tolerância e condenação às
formas desviantes de sexualidade.
Este capítulo busca assim, por meio da análise das experiências de mulheres cujas
vidas foram marcadas pelo exercício da prostituição ou pela situação-limite de um episódio de
infanticídio, esquadrinhar discursos e práticas que as criminalizavam, que lhes atribuíam
“sacrifícios feitos nos altares de Vênus” enquanto denúncia para suas sexualidades
consideradas desviantes. Prostitutas e infanticidas infringiram de formas diferentes os códigos
morais e as leis criminais, não por que desempenhassem papéis de contestação e resistência às
estruturas que conformavam aquelas regras sociais, mas por não se encaixarem nos estreitos
moldes criados para elas. E, por tais motivos, essas mulheres eram alvo corriqueiro do
controle jurídico e, quando caíam nas malhas da justiça, revelavam o insucesso daquele
modelo de moralidade exaltado pelas elites. Dessa forma,
235
Para Badinter, em fins do século XVIII “a maternidade torna-se um papel gratificante pois está agora
impregnada de ideal. O modo como se fala dessa ‘nobre função’, com um vocabulário tomado á religião (evoca-
se frequentemente a ‘vocação’ ou o ‘sacrifício’ materno) indica que um novo aspecto místico é associado ao
papel materno. In: BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: O mito do amor materno. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1985, p.223.
236
CUNHA, Maria Clementina Pereira da. De historiadoras, brasileiras e escandinavas: Loucuras, folias e
relações de gêneros no Brasil (século XIX e início do XX). Tempo, Rio de Janeiro, Vol. 3, n° 5, 1998, p.21
237
Ibid., p. 21.
117
penais, não era o único objetivo jurídico. Havia também a necessidade de estabelecer limites
para o comportamento de um universo de mulheres que vivia constantemente nas brechas da
moral e dos bons costumes, como era, por exemplo, o caso das prostitutas.
A presença das mulheres envolvidas na prostituição em Caetité, designadas como
“mulheres públicas, meretrizes ou de vida livre”, emerge em nossa documentação, sobretudo,
nos processos-crime de homicídio, e é inconcebível ignorarmos este fato. Silenciadas e
ocultas em outras fontes oficiais, é por meio dos arquivos judiciais que temos contato com
fragmentos de suas histórias. Por tanto tempo tolerada enquanto mal necessário, a prostituição
só representava uma ameaça quando se colocava como empecilho ao projeto civilizatório das
elites republicanas. Dessa forma, a repressão ao meretrício justificava-se tendo como base um
dos pilares básicos da ideologia republicana: a moralidade das famílias e do espaço público 238.
Ao analisar práticas e representações associadas à prostituição feminina na cidade de
Salvador, de 1900 a 1940, Nélia de Santana destaca esta ambiguidade presente nas medidas
repressivas, que não visavam acabar com a prostituição, mas mantê-la sob controle.
238
SANTANA, Nélia de. A prostituição feminina em Salvador (1900 - 1940). Dissertação de mestrado em
História. Salvador. FFCH UFBA, 1996, p.53
239
Ibid., p.98-99
118
“Era, portanto, como um fantasma que ela aparecia como virtualidade a irromper das profundezas do
desconhecido corpo feminino, como possibilidade perigo que poderia habitar a sexualidade de todas
as mulheres”
Margareth Rago240
Era o ano de 1942, em uma rua localizada na zona central da cidade de Caetité
próximo à Praça do Mercado, antigo Largo do Alegre, onde cidadãos de toda região iam
comercializar seus produtos, adquirir mercadorias e serviços e, mais do que isso, exercer sua
rede de sociabilidades marcadas pelos trânsitos entre o urbano e o rural. Esse logradouro era
conhecido como Rua Nova, e era também notório por abrigar uma zona de meretrício que, até
os dias de hoje, povoa o folclore241 compartilhado pela população caetiteense, em que pese a
tentativa de silenciamento pela memória oficial.
Foi no cenário da Rua Nova, que Laurides Silveira, ou apenas Laura, de vinte e oito
anos, enquanto observava o movimento dos transeuntes na porta da casa de uma companheira,
convidou Antonio Ferreira para uma conversa, marcando com o mesmo um encontro na casa
de outra companheira, segundo os autos “a fim de terem relações sexuais” 242. Neste mesmo
dia, à tarde, os dois se encontram no único quarto da casa de Constança e, momentos depois,
apareceu Laura na casa de outra vizinha, Rita de Cassia, pedindo-lhe um copo d’água e tendo
em suas mãos um revólver com cabo de madrepérola. Essa mesma arma seria apreendida no
quarto, naquele dia, junto ao corpo de Antonio que “jazia no sólo, em uma poça de
sangue”. 243
A condução e o desfecho desse caso de homicídio acompanham o decorrer de nossa
análise, pois a história de Laurides, acusada de homicídio doloso contra Antônio, revela em
sua narrativa mais do que um simples caso de legítima defesa da vida, ela abre brechas e
possibilidades para descortinar um universo de mulheres que viveram e sobreviveram,
amaram e odiaram, gritaram e silenciaram, mataram e morreram, um universo ainda pouco
conhecido em Caetité e na região do alto sertão da Bahia. Assim, dentre as estratégias de
sobrevivência das mulheres pobres que foram criminalizadas no processo de modernização do
alto sertão baiano, uma delas destaca-se nos processos analisados e merece atenção especial,
240
RAGO, Margareth. Os prazeres da noite: Prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo
(1890-1930). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
241
Os poucos relatos acerca da Rua Nova estão presentes em causos e anedotas contadas referentes, sobretudo às
décadas de 1960 e 1970, incluindo prostíbulos e figuras mitológicas como Ana Rebolo, uma das mais famosas
prostitutas da cidade, que não habitava porém, a referida rua. Alguns destes causos estão presentes, de forma
bastante caricaturesca, no livro “Pérolas do Humor Caetiteense”, do autor Etevaldo Mônico da Silva (2011).
242
APMC. Série: Autos Crimes – Sub série: Homicídio. Data-limite 1918-1992. Caixa: 56.
243
APMC. Série: Autos Crimes – Sub série: Homicídio. Data-limite 1918-1992. Caixa: 56.
119
sobretudo, por não contar ainda com um volume expressivo de pesquisas e/ou estudos mais
elaborados a respeito desta temática no alto sertão da Bahia 244. Trata-se do exercício da
prostituição nas primeiras décadas do século XX. A tabela abaixo indica o percentual das
posições que mulheres identificadas na prostituição em Caetité, num universo de dez
localizadas, ocupavam nos processos criminais de homicídio:
FONTE: APMC. Série: Autos Crimes – Sub série: Homicídio. / APEB. Sessão Judiciário. Série Processos-Crime
Homicídio.
244
Algumas pesquisas iniciais, realizadas como projetos ou trabalhos de conclusão de curso no campus VI da
Universidade do Estado da Bahia, acerca do exercício da prostituição em Caetité e seus significados históricos
apesar de serem importantes apontamentos para estudos posteriores, não deram prosseguimento de caráter
acadêmico. Estas contemplam como temporalidade de análise a segunda metade do século XX e o crescimento
dos prostíbulos em Caetité, bem como a crescente preocupação das autoridades com a Rua Nova. Assim, estudos
que contemplem a prostituição alto sertaneja no início do século XX ainda carecem de serem realizados e o que
propomos aqui é apontar caminhos e possibilidades para a exploração desta temática.
120
Não buscamos aqui atribuir a essas mulheres, já bastante estigmatizadas pela memória
cristalizada, um papel de vítimas do empobrecimento resultado da crise socioeconômica que
atingiu os sertões, provocada por longos períodos de estiagem e pela grande concentração de
renda. Em contrapartida, não nos cabe lhes atribuir um papel de heroínas que desafiaram os
padrões morais conservadores e hipócritas das classes dominantes caetiteenses. A prostituição
no período estudado assumiu significados singulares e o próprio conceito do que seria
considerado “prostituir-se” poderia oscilar de acordo com a interpretação dos discursos
jurídicos presentes na documentação. Acerca do conceito histórico de prostituição, Rago
problematiza:
245
PERROT, Michelle. Mulheres Públicas. São Paulo: EdUNESP, 1998, p.07.
246
RAGO, Margareth. Os prazeres da noite: prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo,
1890-1930. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
121
Ressaltamos que o simples registro de uma mulher nos autos criminais como sendo
“de vida livre” ou “de vida pública” não expressava com fidedignidade que a mesma
exercesse a prostituição nos termos de comercializar a prática sexual enquanto um ofício. O
exercício de uma sexualidade desviante ou mesmo a presença dessas mulheres mais pobres
convivendo em zonas de baixo meretrício como a Rua Nova, poderia ser suficiente para serem
estigmatizadas e enquadradas como tal. Esse parece ser o caso da jovem Júlia Rodrigues, de
dezesseis anos que, em 1926, testemunha o homicídio de sua prima Sebastiana. Na descrição
do inquérito, Júlia é qualificada como “mulher de vida pública”, ainda que a mesma alegasse
estar fazendo uma visita a sua parente e residir no município de Urandy 247.
Neste caso, o fato de Júlia ter frequentado um espaço considerado como zona de
meretrício e ainda manter laços de parentesco com uma mulher identificada como meretriz era
suficiente para que a mesma compartilhasse do estigma de sua prima por meio dos discursos
jurídicos. Quaisquer mulheres que habitassem os arredores da Rua Nova poderiam ser alvo da
mesma vigilância e, sendo solteiras, dividindo casas com outras mulheres, bebendo na
companhia de homens e exercendo sua sexualidade sob outros padrões de moralidade, seriam
enquadradas enquanto prostitutas, ainda que não correspondessem aos critérios mais
tradicionalmente definidos para as “profissionais do sexo” através dos séculos. A tabela nº 06
representa os espaços de moradia das mulheres que atuavam na profissão do meretrício na
região:
A Rua Nova foi, assim, o principal cenário dos conflitos que envolviam a prostituição
em Caetité. Tratava-se de um logradouro localizado em uma área do centro urbano
caetiteense, em uma região com intensa movimentação e fluxo de pessoas devido à
proximidade com o mercado público do município. Entretanto, seus moradores e moradoras
pertenciam às camadas mais pobres da população caetiteense, habitando moradias mais
humildes que aquelas que circundavam a igreja matriz. Nos processos analisados, três casos
247
APMC. Série: Autos Crimes – Sub série: Homicídio. Data-limite 1918-1992. Caixa: 56.
248
A outra localidade identificada em um processo de defloramento que possui a presença de “uma mulher de
vida livre” é o arraial de Bonito (atual município de Igaporã), onde a testemunha Maria Cândida, alcunhada de
Candinha, possuía uma casa na “rua de cima” frequentada pelo réu e outros homens da localidade. Os demais
processos em que emergem as figuras de prostitutas tem como cenário a Rua Nova e suas imediações.
122
envolvendo homicídio e lesões corporais ocorreram na Rua Nova, enquanto o único processo
de defloramento no qual encontramos uma testemunha intitulada de “vida livre”, se passou no
arraial do Bonito, em um logradouro conhecido como “rua de cima”.
A prostituição inseria-se assim, no alto sertão baiano, ainda que sendo uma região
estruturada por aspectos rurais, enquanto fenômeno predominantemente urbano. Ressaltamos
que, em uma sociedade profundamente estruturada pelo conservadorismo e por valores
religiosos católicos como a caetiteense, a própria referência à existência da prostituição está
obscurecida nos relatos memorialísticos oficiais e, as zonas de baixo meretrício, ainda que
localizadas próximas ao centro comercial, ocupavam uma região que não era considerada
nobre e, para a época e pela pequena extensão do perímetro urbano, assemelhava-se a uma
zona periférica, pois “as casas da Rua Nova (hoje chamada 24 de outubro) ficavam no terreno
do cemitério do Santíssimo Sacramento – construído em meados do século XIX e depois
desativado”.249 A presença dessas mulheres consideradas “mundanas” mantinha-se próxima
assim, não apenas das áreas comerciais ou da residência de famílias de “moral ilibada”, mas
cercada por igrejas católicas, como a São João e a igreja São Benedito e irmandades como a
do Santíssimo Sacramento. Nesses arredores caetiteenses, o sagrado e o profano não estavam
geográfica e simbolicamente tão distantes quanto se pudera imaginar.
A figura acima é um registro atual da antiga Rua Nova, que após se chamar 24 de
outubro, foi batizada como “Rua Professor Hélio Negreiros”. O logradouro possui
249
SANTOS, Helena Lima. Caetité, pequenina e ilustre. Tribuna do Sertão, Brumado, 1996, 2ª ed.
123
construções recentes que contrastam com casas mais antigas e simples, provavelmente
datadas da segunda metade do século XX. Algumas das residências da imagem possuem a
inscrição “ASC”, que indica a sua aquisição por meio de herança ou doação pela associação
de caridade da cidade. Atualmente, o aluguel destes imóveis constitui uma das fontes de
sustento desta entidade filantrópica que permanece sob novos moldes atuando no município.
Neste sentido, dentro e fora da Rua Nova, as casas das mulheres de vida livre se
convertiam em local de encontro e de socialização, principalmente para homens da classe
trabalhadora, urbanos e rurais. Foi “na casa de Candinha, rapariga que mora na rua de cima
em Bonito”250 que, em 1941, o lavrador Deoclides Leão, embriagado, anunciava que tiraria a
jovem Almira Pereira da casa de sua família e que “a menina era dele”. Maria Cândida de
Jesus tornou-se assim uma testemunha no processo de defloramento de Almira, pois teria
presenciado as ameaças de Deoclides. Outros processos, sobretudo de lesões corporais, ainda
que protagonizados por homens (réus e vítimas), apresentam a participação de meretrizes nas
entrelinhas dos relatos, afinal suas casas eram espaços comuns de sociabilidade masculina,
não apenas como bordéis, mas como botequins, onde bebiam, conversavam e compartilhavam
experiências. Muitas vezes, esses espaços se tornavam cenários de episódios delituosos e, a
violência, sobretudo de gênero, pairava constantemente sobre o cotidiano das prostitutas.
Como enfatizam Josivaldo Pires e Luiz Pinheiro,
As relações entre mulheres, prostitutas ou não, que conviviam nos limites da Rua
Nova, emergem nos processos enquanto um emaranhado de sociabilidades bastante inter-
relacionadas e, por meio delas, identificamos solidariedades e rivalidades cotidianas entre
companheiras de casa, vizinhas e conhecidas que compartilhavam desses espaços. Não
raramente o rol de testemunhas em crimes que envolviam prostitutas, diferindo de outros
processos com presença majoritária masculina, foi composto em sua maioria por mulheres.
Essas mulheres, enquanto companheiras na vida e na morte, dividiam casas ou as
emprestavam para encontros amoroso-sexuais, compartilhavam mesas de bares, realizavam
250
APEB. Sessão Judiciário. Série Processos-Crime Defloramento. 1933. 25/1009/16.
251
OLIVEIRA, Josivaldo Pires de. LEAL, Luiz Augusto Pinheiro. Capoeira, identidade e gênero. Salvador:
EdUFBA, 2009, p.134.
124
Laura trazia assim, em seu relato, a justificativa da legítima defesa da vida e a não
intenção de matar, o que caracterizaria o crime como homicídio culposo. Por sua vez, a
testemunha Maria Rosa, baseada nas palavras de terceiros, aludia a uma possível motivação
para o crime, justificada pela falta de pagamento de um determinado valor em dinheiro pela
vítima, declarando que “por ouvir tambem de Rita sabe que Laurides exigiu de Antonio vinte
mil réis e que este dissera-lhe que naquele momento só lhe poderia dar cinco mil reis,
podendo na sua volta dar-lhe o restante”254. Ao refutar a declaração da testemunha, Laurides
alegou que “contestava o depoimento da depoente por ser ela sua inimiga” 255.
A rivalidade entre essas mulheres poderia surgir também enquanto necessidade de
preservação de um relacionamento amoroso ou de sua clientela, tanto por uma prostituta
quanto de uma mulher considerada “honesta”. Nesses casos, a violência entre as mulheres
mostrava que elas estavam dispostas a defender com unhas e dentes suas relações,
direcionando sua raiva para a “outra”. Foi assim que, em 1920, Maria dos Anjos agrediu
fisicamente Presilina Roza de Jesus, descrita nos autos como “mulher de vida livre”. A vítima
estava na casa comercial do negociante Bia Bastos, escolhendo um espelho para comprar,
quando recebeu uma pancada na cabeça com o salto da sandália da acusada. Inquerida sobre
252
RAGO, Margareth. Os prazeres da noite: prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo,
1890-1930. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p. 236.
253
APMC. Série: Autos Crimes – Sub série: Homicídio. Data-limite 1918-1992. Caixa: 56.
254
APMC. Série: Autos Crimes – Sub série: Homicídio. Data-limite 1918-1992. Caixa: 56.
255
APMC. Série: Autos Crimes – Sub série: Homicídio. Data-limite 1918-1992. Caixa: 56.
125
os motivos de Maria, visto que ambas não se conheciam, Presilina “suppõe ter dado origem
ciúmes da offensora por causa do senhor Bias ter frequentado a casa dela respondente, já
tendo costumes com a offensora”256. A vítima Presilina, sendo branca e mantendo relações
com um comerciante local, poderia não ser uma profissional do “baixo meretrício” caetiteense
mas continuava sujeita a violência no espaço público da cidade.
Os dois processos de homicídio que envolveram prostitutas, respectivamente como
acusada e vítima, obtiveram diferentes desfechos em relação a condenação dos réus. Enquanto
Laurides, acusada de homicídio doloso, foi condenada pelo tribunal do júri a cumprir dois
anos de prisão na Penitenciária do Estado da Bahia, o processo abaixo, do soldado Jonas,
autor do homicídio da meretriz Sebastiana, apesar de também ter sido analisado por um júri,
apresenta um resultado inconcluso. A condenação e aplicação da pena não é tão comum nos
processos analisados neste estudo, sobretudo, quando existe alegação de legítima defesa.
Entretanto, é provável que a profissão da ré tenha pesado como elemento negativo para o
julgamento do júri. Afinal, a vida de uma mulher e prostituta, em uma sociedade misógina e
patriarcal, não era digna de atenção e desvelo. Por sua vez, no segundo caso, a patente de
Jonas pode ter-lhe sido útil para conseguir se não a absolvição, ao menos escapar de uma
condenação. Este caso está descrito na transcrição abaixo:
256
APMC. Série: Autos Crimes – Sub série: Lesões Corporais. Data-limite 1918-1946. Caixa: 77.
257
APMC. Série: Autos Crimes – Sub série: Homicídio. Data-limite 1918-1992. Caixa: 56
258
Força Pública era, no Brasil Império, o conjunto de corporações que compunham a segurança fixa das
províncias. Eram compostas pelos corpos fixos do Exército, dos destacamentos costeiros da Armada (Marinha),
126
de Elvira Pereira, acompanhados de “duas mulheres de vida pública”, instantes antes de Jonas
assassinar Sebastiana com um tiro na cabeça, alegando um disparo acidental. Salientamos
que a presença de membros da força policial, mantendo relações amistosas ou violentas com
prostitutas, não era necessariamente uma situação incomum ou um caso isolado numa região
específica. Tal fenômeno também se manifestava em outras localidades do estado, da capital
ao interior. Sobre essa questão em Salvador, Carolina S. Cunha de Mendonça, ao analisar
imagens da prostituição feminina nas primeiras décadas republicanas, por meio de discursos e
representações, afirma que “com o intuito de reprimir a sua ação, buscando diversão com elas,
compartilhando os espaços do ‘lar e do botequim’ ou mantendo relações amorosas, os
chamados ‘homens de farda’ conviviam, diariamente, com as profissionais do sexo”. 259
Em Itabuna, Carolina Oliveira, ao elaborar a narrativa dos trânsitos, práticas e
conflitos das prostitutas, entre 1930 e 1960, ressalta as relações marcadas por cumplicidade e
tensão vividas entre meretrizes e policiais:
da Guarda Nacional e dos Corpos Policiais, e eram comandadas pelos “Comandantes de Armas” locais,
normalmente militares das Forças Armadas indicados pelo imperador, ou mesmo civis que fossem nomeados
presidentes daquelas províncias.
Ainda assim, cada instituição tinha sua autonomia de comando, subordinada às suas respectivas organizações
centrais da Marinha, Exército e Guarda Nacional e, no caso dos Corpos Policiais, aos presidentes. Com a
Proclamação da República, em 1889, passou a denominar exclusivamente as forças estaduais, quando compostas
pela Polícia Militar e Corpo de Bombeiros Militar, sendo a Polícia Militar do Estado de São Paulo a última a ter
perdido essa denominação, em 1970, quando incorporou o efetivo da antiga Guarda Civil às suas fileiras.
Possuíam, via de regra, forma de atuação próxima às das Gendarmarias, com atribuições de policiamento
ostensivo do público civil, bem como sendo constituídas e organizadas como exércitos locais, sob comando dos
presidentes (atuais governadores) dos estados, os quais, em algumas situações, também conferia poderes de
polícia judiciária e de investigação aos seus militares, principalmente nas cidades interioranas. Nas grandes
cidades, atuavam policiando as partes mais rurais e afastadas (nas regiões centrais, nos estados onde existiam,
costumavam atuar as Guardas Civis), como força de choque em casos de distúrbios civis, ou mesmo no caso de
grandes desastres naturais, em ações de defesa civil. In: https://www.stive.com.br/3832-forca-publica.html
259
MENDONÇA, Carolina Silva Cunha de. Marias Sem Glória: Retratos da prostituição feminina na Salvador
das primeiras décadas republicanas. Dissertação de Mestrado em História. Salvador: UFBA, 2014, p. 82.
260
OLIVEIRA, Carolina dos Anjos Nunes. Astúcias do desejo: Práticas e trânsitos de prostitutas na cidade de
Itabuna – BA (1930 a 1960). Dissertação de Mestrado. Recife. UFPE, 2011, p. 83.
127
comportamentos e práticas dessas mulheres do que com alguma punição penal. Com a
República surgira, no entanto, a tipificação do crime de lenocínio para aqueles que
favorecessem a prática do meretrício. Segundo o código de 1890:
DO LENOCÍNIO
Art. 277. Excitar, favorecer, ou facilitar a prostituição de alguém para
satisfazer desejos desonestos ou paixões lascivas de outrem:
Parágrafo único. Se este crime for cometido por ascendente em relação à
descendente, por tutor, curador ou pessoa encarregada da educação ou
guarda de algum menor com relação a este; pelo marido com relação á sua
própria mulher:
Art. 278. Induzir mulheres, quer abusando de sua fraqueza ou miséria, quer
constrangendo-as por intimidações ou ameaças, a empregarem-se no tráfico
da prostituição; prestar-lhes, por conta própria ou de outrem, sob sua ou
alheia responsabilidade, assistência, habitação e auxílios para auferir, direta
ou indiretamente, lucros desta especulação.261
261
Código Penal dos Estados Unidos do Brazil. Decreto n. 847 de 11 de outubro de 1890. Disponível em:
http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=66049
262
Código Penal - Decreto-Lei Nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Disponível em
http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-2848-7-dezembro-1940-412868-
publicacaooriginal-1-pe.html
128
honesta”. Outro artigo que poderia enquadrar penalmente as prostitutas seria o artigo 282 de
“ultraje público ao pudor”, no intuito de civilizar seus hábitos no espaço público.
Nos processos criminais estudados, as mulheres de vida livre frequentemente eram
apontadas não apenas como praticantes de uma sexualidade condenável, mas também
portadoras de vícios como o alcoolismo. Entretanto, não há por parte dos discursos jurídicos
nenhum apelo para o controle ou punição da prostituição, havendo certa tolerância que se
caracterizava, assim como no discurso médico, como “mal necessário e, portanto, não deveria
ser extinta”263 para atender aos instintos sexuais masculinos.
Fonte: APMC-CD 01
263
ENGEL, Magali. Meretrizes e doutores: Saber médico e prostituição no Rio de Janeiro (1840-1980). São
Paulo: Brasiliense, 2004, p.105.
129
264
A Penna, 26/01/1912, p. Anno II
130
Esse trecho integra o relato memorialístico do jovem da família Neves sob o subtítulo
“O pecado em Caetité”, e é a partir das lembranças de um homem cristão de elite que
visualizamos a presença de uma mulher prostituída em um espaço público (o mercado), bem
como sua relação de afetividade com a filha ainda bebê. Diante de um volume maior de
memórias ou textos dispersos referentes a prostituição após a década de 1970, a obra de
Flávio Neves nos auxilia a compreender, por meio desse breve comentário, o comportamento
da sociedade caetiteense do início do século XX, em relação ao meretrício. Por sua vez, o que
Flávio destaca em recordação é o conflito entre os valores morais nos quais fora educado e os
valores familiares recriados, dentro de uma moralidade desviante, por aquela “mulatinha
nova, quase preta”.
Percebemos também nesse relato, por meio da descrição da cor da pele, o que nem
sempre é facilitado pelos silêncios dos processos criminais: a presença das mulheres negras
nas zonas de prostituição, alguns anos após a abolição da escravidão. De tal modo, o mercado
de prazeres sexuais e as relações com homens de várias categorias sociais poderia representar
para essas mulheres uma alternativa de sobrevivência no espaço urbano. Anunciar que a filha
seria uma “putinha feito a mamãe” estaria, no entanto, dentro do “horizonte de expectativas”
daquela jovem mulher, o que não era para ela algo depreciativo ou fatalista, nem mesmo
“tudo o que tinha a oferecer”, como afirma o narrador, mas uma previsão lógica
proporcionada pelo “espaço de experiência” da prostituição, que poderia ser também uma
ocupação transmitida entre gerações. Acerca dessas categorias define Koselek, ao afirmar que
experiência e expectativa entrelaçam passado e futuro:
265
NEVES, Flávio. Rescaldos de Saudades. Academia Mineira de Medicina. Belo Horizonte, 1986, p.86.
131
voltado para o ainda-não, para o não experimentado, para o que apenas pode
ser previsto266.
As experiências dessas mulheres eram assim projetadas em suas relações familiares e
no exercício da maternidade, rompendo com o mito da meretriz solitária e egoísta, de “ventre
seco”, sem filhos. As prostitutas eram mães, poderiam constituir famílias sob outros padrões
de conduta que diferiam do modelo familiar burguês e patriarcal, assim como muitas outras
mulheres pobres, solteiras, viúvas e amasiadas, não correspondiam a este modelo almejado
pelas classes dominantes.
Os registros de uma vida familiar ou de uma vida solitária presentes nos fragmentos da
história dessas mulheres poderiam vir à tona por ocasião de seu falecimento, não somente
enquanto alvo de um homicídio, mas de causas naturais ou acidentais. Ocasionalmente, em
registros de óbitos ou em notas de jornais, seus nomes e a profissão que vieram a exercer são
mencionados, como nos casos das mortes de Micaella e Francelina. No livro de registros de
óbitos da paróquia de Caetité tivemos contato com o relato do falecimento da idosa Micaella
de Tal, classificada como “prostituta”, vítima de queimaduras, em 1922.
A respeito da filha de Micaella, que ficara “alucinada” não sabemos sua idade, mas
provavelmente deveria ser adulta, o que demonstra a permanência dos laços afetivos de mãe
e filha mesmo após a infância e a juventude. Aos oitenta anos, Micaella de Tal, permanecia
carregando o estigma de sua ocupação, que talvez carregara por anos, identificada no registro
de óbito não como “mulher pública”, “de vida livre”, “meretriz” – o que comumente
acontecia nos autos criminais – mas como prostituta. Além disso, a menção as pessoas que se
envolveram com as despesas dos sepultamentos de prostitutas revelam também as
possibilidades de que essas relações tenham sido mantidas em vida por elas. É possível que
Micaella, com o tempo, tenha se tornado dona de bordel e, por isso, exercido relações de
266
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro:
Contraponto-Ed. PUC-Rio, 2006, p.309-310.
267
APMC. Livro de óbitos da comarca de Caetité (1890 – 1920)
132
poder com vários indivíduos da sociedade. O fato de, apesar da sua avançada idade, ainda ser
reconhecida como prostituta, bem como a presença de testemunhas como um negociante e um
artista (artesão), podem indicar essa sugestão.
Outro registro que faz referência a uma prostituta é o anúncio da morte da “rapariga”
Francellina pelo jornal A Penna, em que relata que ela falecera sozinha em sua casa,
acometida por sífilis. O anúncio é também uma cobrança para a construção de um asilo na
cidade:
268
A Penna, 01/08/1913, p.04. Anno II
133
A relação da prostituição com doenças venéreas como a sífilis foi bastante comum
também nos discursos médico-sanitários nos grandes centros urbanos. Por sua vez, a
associação entre a prática do meretrício e a pobreza provocava o temor de uma epidemia da
doença, ainda que as classes mais abastadas e as prostitutas de luxo não estivessem imunes ao
contágio da doença. A prostituição assim, se tornava uma ameaça tanto para a honestidade das
famílias, quanto para a saúde pública, pois “quanto mais miseráveis, maiores os riscos que
representavam para a saúde física e moral do conjunto da população” 269.
Para a elite caetiteense, o que mais poderia desejar a pobre Francellina, a não ser
“morrer sem perturbar a ordem e a moral das famílias?” Entretanto, o relato de uma morte
solitária como a sua poderia ocultar uma vida marcada por uma rede de sociabilidades comum
a essas mulheres consideradas “públicas” e necessárias a sua sobrevivência. A referência ao
papel da sociedade beneficente em seu sepultamento, por sua vez, pode indicar a ausência de
familiares que assumissem essa tarefa ou, muito provavelmente, a pobreza que marcara tanto
sua vida quanto sua morte.
Assim, as mulheres de vida livre em Caetité se integravam à dinâmica de uma vida
urbana ainda embrionária, e ora contrastavam, ora justificavam o projeto de modernidade da
elite republicana. As razões econômicas e culturais para o exercício da prostituição naquela
sociedade alto-sertaneja da primeira metade do século XX entrelaçavam-se. As mulheres do
baixo meretrício caetiteense, em um período de fortes estiagens, crise de abastecimento e
exôdo rural que arrastava as mulheres do campo para a vida nos núcleos urbanos e, diante da
grande concentração de renda e empobrecimento da população, avistaram nesse ofício uma
alternativa de sobrevivência. Por sua vez, os conservadores códigos de moralidade
republicanos, expressos também no discurso jurídico, enquadravam todas as mulheres que
exercessem uma conduta sexual desviante como “meretrizes”, independente de estas
comercializarem ou não seus corpos, enquanto silenciavam sobre os homens que se
beneficiavam do mal necessário da prostituição. Assim como as prostitutas, outras mulheres
vítimas da pobreza e da exclusão, foram condenadas moralmente por não corresponderem aos
padrões femininos impostos, optando por não assumir a maternidade através de práticas de
aborto ou infanticídio.
269
ENGEL, Magali. Meretrizes e doutores. Saber médico e prostituição no Rio de Janeiro (1840-1890). São
Paulo: Brasiliense, 2004, p. 98.
134
270
(grifos nossos) APMC. A Penna, 10/12/1912, p.05, nº 25, Anno II
135
nos dias de hoje evidenciam como os discursos de moralização difundidos pelos setores
médico-jurídico, pela Igreja e pela imprensa foram bem-sucedidos.
De tal modo, os nove processos-crime de infanticídio correspondentes a região de
Caetité e algumas outras localidades do alto sertão da Bahia, podem aparentar não constituir
um grande acervo documental. Todavia, ele não é menor que o percentual encontrado em
regiões mais populosas do estado, como Salvador. Acerca da reduzida quantidade de
processos, Andréa da R. R. P. Barbosa assegura que
271
RODRIGUES, Andréa da Rocha. A infância esquecida Salvador 1900 - 1940. Dissertação (Mestrado em
Historia) - Universidade Federal da Bahia, Salvador, 1998, p. 78.
272
BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: O mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1985, p.145.
136
Ainda que os processos criminais se refiram a crimes julgados como infanticídio nos
artigos dos códigos penais, as circunstâncias do ato, os relatos das testemunhas e o tempo de
gravidez em alguns casos apontam muito mais para experiências de aborto provocado. Isso se
deve ao fato de, no início do século XX, ser o aborto uma prática ainda difícil para
investigação e, na maioria das vezes, as provas eram constituídas apenas pelo encontro de
fetos e crianças recém-nascidas mortas. Segundo Joana Maria Pedro, em seu estudo acerca
das representações e criminalizações de práticas proibidas de aborto e infanticídio em
Florianópolis, entre 1900 e 1990, “a dificuldade em punir e/ou confirmar a prática do aborto,
por parte do aparato jurídico-policial, levou a que, muitas vezes o encontro de fetos fosse
transformado em processo por infanticídio” 273. Essa tênue fronteira entre aborto e infanticídio
surge na descrição de muitos processos, como o de Maria Roza de Jesus, em 1917, numa
localidade denominada Purgatório. Conforme os autos,
273
PEDRO, Joana Maria (org). Práticas proibidas: práticas costumeiras de aborto e infanticídio no século XX.
Florianópolis: Cidade Futura, 2003, p. 42.
274
APMC. Série: Autos Crimes – Sub série: Infanticídio. Data-limite 1918-1943. Caixa: 61. Maço 01.
137
Se, como afirma Joana Pedro, o comportamento das mulheres de elite era mais
fortemente moldado no interior dessas hierarquias classe/gênero, é possível visualizar nas
camadas mais pobres papeis reinventados perante as especificidades vividas, mas ainda alvo
da vigilância moralizadora da época. Diante dessas relações de poder hierarquizadas e do
discurso predominantemente masculino e de elite, as solidariedades femininas sobressaem
como resistências historicamente silenciadas. Através das falas e omissões das personagens
de nossas tramas, delineamos assim esses papeis informais.
Ressaltamos assim, a recorrência da descrição de um “parto” rápido e solitário na
maioria dos depoimentos. As rés alegavam que nenhum familiar tinha conhecimento de seu
estado ou que não tiveram ajuda no momento do parto. Ocultar a participação de uma possível
cúmplice, no entanto, poderia ser um recurso habitual diante da punição igualmente rígida,
prevista no código penal para as pessoas que auxiliassem a gestante na ocasião de interrupção
da gravidez. Exemplificava-se assim uma das múltiplas solidariedades femininas existentes,
ao conceber a participação de outras mulheres no abortamento.
Percebemos, por exemplo, que a madrinha de Maria Roza, dona Clemência,
demonstrou evidente preocupação com a doença da afilhada e investiu em diversos métodos
para ajudá-la. Assim, vendo a mesma com “a barriga crescida e estômago lhe parecendo ser
inchação”, buscou medicamentos que pudessem solucionar seu problema de saúde, entre eles
275
PEDRO, Joana Maria (org). Práticas proibidas: práticas costumeiras de aborto e infanticídio no século XX.
Florianópolis: Cidade Futura, 2003, p. 45.
138
o purgante “Le Roy” e duas garrafadas preparadas pela curandeira Germana. Clemencia alega
em testemunho que chegou a cogitar adquirir uma terceira porção, mas Maria Roza já havia
melhorado com a segunda, ressaltando “não que ela, respondente, visse, porém Maria Roza ao
sentir o allivio do parto disse para ella respondente, não precizar mais remédios, minha
madrinha”276. Em nenhum momento, Clemencia afirma que sabia da gravidez da afilhada ou
que lhe auxiliou conscientemente no aborto, mas a própria narrativa abre parêntese para essa
possibilidade. Verificamos que:
276
APMC. Série: Autos Crimes – Sub série: Infanticídio. Data-limite 1918-1943. Caixa: 61. Maço 01.
277
PEDRO, Joana Maria (org). Práticas proibidas: práticas costumeiras de aborto e infanticídio no século XX.
Florianópolis: Cidade Futura, 2003, p. 54.
139
Neste sentido, Mequelina, assim como outras mulheres denunciadas por crimes
semelhantes, foi alvo de um julgamento moral propagado não apenas pelos operadores da lei,
mas pelos moradores de sua comunidade em seus depoimentos. Ainda que fosse uma mulher
separada do marido, até então não havia enfrentado o olhar acusatório de seus vizinhos que
alegam inclusive que Mequelina passava-se “por mulher honesta e por isso gozando da estima
de todos”. Sua condenação pela justiça, como veremos ao analisar os desfechos dos
processos, se daria apenas muitas décadas depois, tendo o crime já prescrito.
Mulheres viúvas figuraram como rés em alguns dos nossos processos e, seja nos
inquéritos da promotoria ou nos depoimentos de populares, o seu estado civil é
frequentemente associado à necessidade de preservação da honra, ocultando a gravidez. Em
1904, na vila de Macaúbas, a viúva Melania Roza de Jesus, parda e fiandeira, com trinta anos
de idade, é processada pelo crime de infanticídio, pois, conforme os autos:
A oito de setembro corrente, pela manhã, appareceu nas ruas desta villa,
servindo de pasto aos cães, uma creança do sexo masculino e de cor parda,
fructo dos amores da referida Melania, que aproveitando ser viúva (sic) afim
de ter franco ingresso em casa de várias famílias desta localidade, as
occultas, fazia seus sacrifícios nos altares de Vênus, até que sentindo-se
grávida e o ventre, por sua vez, cada dia avolumando-se, (sic) incultar no
espírito de algumas pessoas que semelhante desenvolvimento progressivo
era devido a moléstias, o que deu lugar a que se compadecessem de seu
estado e procurassem mitigar o seu sofrimento amparando-lhe os filhos e a
ela própria o sustento cotidiano.
Entretanto, chegando a época determinada, por ter attingido o fim de sua
evolução, sentindo ella os symtomas do nascer da creança e julgando que
(sic) tinham-na por doente, recolheu-se a sua casa e procurou sozinha ter o
parto, o que feito asphyxiantemente a creança, enterrando-a logo depois nos
278
APEB. Sessão Judiciário. Série Processos-Crime Infanticídio. 1891. 13/541/17.
140
Melania era uma jovem viúva que não se privava de manter relações afetivo-sexuais,
designadas como “amores ilícitos” na narrativa da acusação. Sozinha e sendo mãe de dois
filhos, precisou recorrer ao infanticídio como forma de controle da natalidade e ocultou sua
gravidez dos vizinhos por que, segundo ela, “sendo viúva e sentindo-se grávida precisava
ocultar-se para que não cahisse no domínio público”280. O fato de Melania já ter exercido a
maternidade em outros momentos, possivelmente enquanto seu esposo ainda era vivo, não
significou que ela se conformaria com a inevitabilidade do nascimento de um terceiro filho.
Como afirma Elisabeth Badinter, a experiência da maternidade dava-se de modo singular para
cada mulher e, nesse caso, poderia ser singular para a mesma mulher em situações distintas de
sua vida. Por sua vez, seria “os seus sacrifícios nos altares de Vênus”, ou seja, o exercício de
uma sexualidade desviante para uma viúva, que incomodava as autoridades jurídicas, fazendo
uma menção a profana Vênus, deusa não só do amor, mas do desejo sexual na mitologia
greco-romana.
O processo da viúva Anna Vianna, datado de 1921 e ocorrido na região de Gameleria
de Fora, sugere a ocasião de um infanticídio, devido aos relatos das testemunhas, o exame de
necropsia que indica o nascimento de uma criança viva e a ausência da ré no processo. As
testemunhas são invariavelmente questionadas sobre a conduta das mulheres indiciadas e, no
caso de Anna, em que apenas um dos depoentes é uma mulher, todos os relatos enfatizam o
fato de “ela ser viúva e querer passar por honesta”281. Delineia-se um quadro de julgamento
anterior ao próprio inquérito policial, com a fuga de Anna Vianna, que abandonara sua
residência e não compareceu as audiências, ocorrência que, para as autoridades, evidenciaria
sua culpa. Realizara-se então um processo judicial sem o depoimento e a presença da ré. Não
temos assim a possibilidade de conhecer, mesmo que nas sombras dos discursos da
documentação oficial e pela transcrição do escrivão, a fala de uma mulher que, acuada pelo
medo da criminalização e do escândalo, vislumbrou na fuga sua única alternativa.
Mulheres casadas como a lavradora Laurinda Rosa de Jesus, de trinta e quatro anos,
também eram acusadas do crime de infanticídio. Em 1924, diante da necessidade de ocultar a
prova de um adultério, interrompendo uma gestação, Laurinda recorre a remédios abortivos
fornecidos pelo pai da criança, José Antônio Lopes, com quem manteve relações na ausência
279
APEB. Sessão Judiciário. Série Processos-Crime Infanticídio. 1904. 32/1130/08.
280
APEB. Sessão Judiciário. Série Processos-Crime Infanticídio. 1904. 32/1130/08
281
APMC. Série: Autos Crimes – Sub série: Infanticídio. Data-limite 1918-1943. Caixa: 61. Maço 01.
141
do marido, tendo este trabalhado como meeiro nas terras de José. Afirmando que “a criança
tinha nascido fora do prazo normal, por aborto provocado” e, mais adiante, “ella diz que o
menino nasceu de cinco mezes”, a descrição do processo por fim, recorre ao artigo 300 do
código penal de 1890, isto é, denuncia o crime de aborto. Todavia, a dificuldade de se provar
o delito diante das limitações técnicas da medicina no interior da Bahia neste período pode ter
contribuído para a conversão do inquérito em processo de infanticídio.
Mulheres solteiras, vivendo na casa de seus pais ou em companhia de outras mulheres,
também compõem o perfil das nossas acusadas de infanticídio. Em 1911, Ana Francisca dos
Anjos, de vinte e três anos, residia com Belarmina Maria do Nascimento, de trinta e cinco
anos em uma casa na vila de Macaúbas, quando dá a luz a uma criança e a enterra no quintal
de dona Maria Emiliana, próximo a fonte onde costumava lavar roupas. A grande maioria do
rol de testemunhas desse caso é feminino e a rede de solidariedade entre essas mulheres
demonstra que, apesar de tentar ocultar a ajuda recebida, Ana fora amparada desde as dores
até o nascimento da criança por mulheres com determinada experiência em trabalhos de parto.
Entretanto a presença dessas pessoas é mantida em segredo durante todos os depoimentos,
marcados pelo temor da criminalização pela possível cumplicidade no delito.
Em que pese à declaração da acusada de que a criança havia nascido morta, o exame
cadavérico indicava que o crânio infantil havia sido esmagado e fora a causa de seu
falecimento. Por sua vez, o “amázio” de Ana, que estava morando no estado do Amazonas,
retornara e prestara seu depoimento como informante. Manuel Grotta, de quarenta e dois
anos, relacionava-se há oito anos com a ré, tendo tido com esta dois filhos que vieram a óbito
ainda recém-nascidos.
Percebemos assim, que os processos-crime de infanticídio no alto sertão, em sua
totalidade, correspondem a delitos cometidos em áreas rurais, distantes dos núcleos de
povoamento, o que difere de outras regiões da Bahia. Não necessariamente o infanticídio seria
uma prática da população rural, entretanto, a dificuldade de ocultar a mesma poderia ser mais
difícil perante a rede de especulações e boatos que se constituía em torno dos casos. Tais
redes permitiam que os próprios vizinhos e parentes realizassem uma espécie de investigação
inicial, relacionando fatos, locais, datas e pessoas. No caso de Laurinda, por exemplo, o saco
com o cadáver (ou feto) é encontrado nas mãos de um de seus filhos, e o irmão da ré refaz o
trajeto das pegadas deixadas por esta.
Por sua vez, a inexistência de acusadas pertencentes às classes dominantes, ou mesmo
de camadas remediadas, indica uma tentativa mais bem-sucedida de impedimento do
escândalo, não convertendo os casos em processos criminais, mas gerando outros tipos de
142
punição às moças de elite, como o convento religioso ou o hospício psiquiátrico. Ainda que
estas mulheres procurassem seguir os padrões de honra, moral e civilidade a elas impostos
para diferenciar-se das mulheres de camadas subalternizadas, como afirma Cunha, “nem
sempre, apesar de seus eventuais desejos de superioridade, estas mulheres distintas e bem-
nascidas resistiam aos apelos da tradição ou das regras aprendidas com suas mães e avós
nascidas e criadas sob regras diferentes de sociabilidade e decoro”282.
3.2.1. Culpadas ou inocentes? O desfecho dos processos de infanticídio nas mãos do juiz
ou do Tribunal do Júri
Em relação ao desfecho dos crimes de infanticídio, podemos concluir que havia uma
oscilação entre a absolvição e a condenação das mulheres acusadas deste delito no período
estudado, permanecendo um índice bastante proporcional como podemos analisar na tabela
abaixo:
282
CUNHA, Maria Clementina Pereira da. DE HISTORIADORAS, BRASILEIRAS E ESCANDINAVAS:
Loucuras, folias e relações de gêneros no Brasil (século XIX e início do XX). Tempo, Rio de Janeiro, Vol. 3, n°
5, 1998, p.21
143
O juiz de direito Polybio Mendes da Silva não apenas discordou da decisão final dos
jurados, como a considerou “inconsciente” e injusta, baseando-se nas provas e depoimentos
que comprovariam a culpa de Minervina e de seu pai Filinto, suspeito de ser também o pai da
criança. Por meio de sua apelação, o juiz obteve a convocação de um novo tribunal do júri,
tendo seu intento frustrado novamente, pois o novo júri novamente absolveu a ré. Assim
também nos processos de Melania de Jesus e Ana Francisca dos Anjos, o veredito dos jurados
promoveu a absolvição das mulheres acusadas de infanticídio. Por sua vez, nos processos
criminais em que a jurisprudência coube apenas à decisão do juiz de direito, ocorreu a
condenação das acusadas. Ainda assim, a prisão e/ou a permanência dessas mulheres no
cárcere era bastante relativa, visto que em alguns casos ocorrera a fuga ou ausência do
julgamento, como no caso de Anna Vianna, que tem o nome lançado no rol dos culpados, mas
nunca fora encontrada, ou no caso de Mequelina Marques, cujos autos só são concluídos
quase sessenta anos depois. Além disso, a existência de inquéritos ou processos incompletos
ou inconclusos corresponde a um número considerável para a documentação.
É interessante notar que a composição majoritária do júri era masculina e formada por
pessoas com algum status social e/ou econômico da sociedade caetiteense. Por meio dos
sobrenomes dos jurados elencados nos sorteios, percebemos tal questão, evidenciada na
listagem dos dois júris selecionados para o julgamento de Minelvina. No primeiro sorteio do
júri de sentença, os doze jurados são: Octacilio Rodrigues das Neves, Durval Públio de
Castro, Frederico Dantas de Castro, Manoel Fernandes da Cunha, João Antonio dos Santos
Malheiros, Agrario Antunes de Brito Teixeira, Joaquim Pereira Coutinho, Francisco
Rodrigues da Silva, Francisco de Britto Gondim, Francisco Manoel de Britto Costa, Antonio
Viuvo de Mesquita e Cesar Pereira.
Sobrenomes como Neves, Públio de Castro, Teixeira e Gondim na região de Caetité
estavam associados à algumas das mais abastadas famílias de proprietários e políticos
(grifos nossos) APMC. Série: Autos Crimes – Sub série: Infanticídio. Data-limite 1918-1943. Caixa: 61.
283
Maço 01.
144
influentes, o que denota uma alta seletividade do corpo de jurados. Eram esses homens das
elites ou de classes remediadas que absolviam, muitas vezes por unanimidade, as mulheres
infanticidas. Poderiam conhecer ou não os debates jurídicos acerca da honra feminina e
familiar, mas certamente distinguiam os preceitos cristãos que condenavam moralmente as
acusadas que não desempenharam o sagrado dever materno. No entanto, a aplicabilidade das
leis, nas mãos do júri, era ainda mais flexível diante das condições concretas de vida. A
miserabilidade daquelas mulheres, ainda que não fosse o único fator, pesava em seu
julgamento.
Dessa forma, a sociedade em si, representada pelo tribunal do júri284, apesar de
absorver os códigos de moralidade elaborados pelo discurso jurídico e pela retórica cristã,
nem sempre os colocava em prática, exercendo o perdão para as mães infanticidas e
contradizendo aquilo que os operadores da lei argumentavam a partir dos códigos penais.
Como afirma Vásquez, ao analisar a condução dos processos de aborto e infanticídio nos
séculos XIX e XX na região central do país:
284
Ao investigar as críticas a respeito da benevolência dos jurados que levavam grande número de casos a
desfechos absolutórios, Fausto afirma que “a margem das diferenças de classe, estabelece-se uma distinção entre
a condição leiga dos membros do júri, abertos a diretas influências sociais e emocionais, e os juízes togados para
quem a lei aparece como um postulado básico norteador da decisão.” FAUSTO, BORIS. Crime e cotidiano: A
criminalidade em São Paulo (1880-1924). 2 ed. São Paulo: EdUSP, 2014.
285
VÁSQUEZ, Georgiane Garabely Heil. Mais cruéis do que as próprias feras: Aborto e infanticídio nos
Campos Gerais entre o século XIX e o século XX. Dissertação de Mestrado em História. Curitiba. Universidade
Federal do Paraná, 2005, p.133.
145
mulher voltava para sua aldeia ou cidade”. 286 Com o encerramento dos nossos processos
também não temos mais pistas sobre as trajetórias das acusadas, absolvidas ou condenadas
pelo crime de infanticídio, mas os depoimentos das testemunhas dão conta de que não havia
sido fácil a vida dessas mulheres em suas comunidades no decorrer dos julgamentos.
O escândalo era elemento fundamental da criminalização das infanticidas e uma forma
de punição se dava através da publicização do crime não apenas pela imprensa ou nos
inquéritos policiais, mas pela vizinhança que compunha em boa parte dos casos o rol de
testemunhas. Por meio de uma “rede de boatos”, a reputação, o comportamento e as relações
mantidas pela ré são devassados e em dois dos casos, as autoridades policiais não são
procuradas de imediato. Os vizinhos e as vizinhas, que atuavam como testemunhas no
processo, quase sempre declaravam “saber por ouvir dizer”, “soube por ser voz geral”, entre
outros, ou seja, não presenciaram o referido delito. Todavia, o próprio comparecimento dessas
pessoas, convocadas, às vezes, em mais de um momento ao tribunal, atuava como instrumento
pedagógico para a comunidade, diante da punição de uma mulher que transgredira os padrões
morais. Sobre a validade do elemento ex auditi alieno, o “ouvi dizer”, enquanto prova
documental, o promotor público José Martins de Almeida, durante sua fala de acusação em
um processo de infanticídio, argumentara acerca de sua aplicabilidade:
286
DAVIS, Natalie Zemon. Histórias de perdão e seus narradores na França do século XVI. São Paulo:
Companhia das Letras, 2001.
287
APMC. Série: Autos Crimes – Sub série: Infanticídio. Data-limite 1918-1943. Caixa: 61. Maço 01.
146
288
PIRES, Maria de Fátima Novaes. Fios da vida: tráfico interprovincial e alforrias. Escravos e ex -escravos nos
sertains de sima. Rio de Contas e Caetité -BA (1860-1920). 2005. Tese de Doutorado em História Social.
Universidade de São Paulo. São Paulo, 2005, p. 261.
147
289
DEL PRIORE, Mary. Ao sul do corpo: condição feminina maternidades e mentalidades no brasil colônia.
Tese de Doutorado em História. FFLCH. São Paulo: USP, 1990, p.08.
290
Sobre a historicidade do conceito e do sentimento de infância, assim como suas representações em diversos
âmbitos da vida pública e privada ver: ARIÈS, Philippe. História social da infância e da família. 2ª ed. Rio de
Janeiro: LTC, 2011.
148
291
BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: O mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1985, p.146.
292
Durante o segundo e terceiro séculos de colonização, surge uma modalidade selvagem de abandono. Meninas
e meninos com dias ou meses de vida não encontravam abrigo; eram deixados em calcadas, praias e terrenos
baldios, conhecendo por berço os monturos, as lixeiras, e tendo por companhia cães, porcos e ratos que
perambulavam pelas ruas. VENÂNCIO, Renato Pinto. Maternidade negada in: DEL PRIORE, Mary (org.).
História das mulheres no Brasil. 7. ed. São Paulo: Contexto, 2004.
149
293
CARNEIRO, Giane Araújo Pimentel. As práticas educativas familiares no processo de distinção
geracional criança/adulto (Caetité-BA, 1910-1930). (Dissertação de Mestrado em Educação). Belo Horizonte:
UFMG/FaE, 2011, p. 41.
150
CONSIDERAÇÕES FINAIS
desviante ou não desempenhar com desvelo os papéis de mãe e esposa zelosa e abnegada.
Para as mulheres pobres, se encaixar no primeiro rótulo era quase impossível, lhes restando
assim o estigma do segundo, ainda que de forma não intencional, pois as camadas populares
incorporavam, de muitas formas, os discursos dominantes, ressignificados em suas vivências
cotidianas.
A abolição da escravidão no Brasil não representou uma grande ruptura com as
estruturas que sustentaram o país por séculos, embora inaugurasse novos desafios ao
pensamento jurídico brasileiro. Em que pese os recentes significados da liberdade e a
reinvenção de suas relações sociais, negros e negras, vivendo em um país não mais dividido
entre livres e não-livres, continuaram a viver em uma sociedade racializada, em que a cor da
pele definia seus espaços sociais. No alto sertão da Bahia, entretanto, o discurso da
mestiçagem na formação de sua população, ocultou por muito tempo, a presença negra nesses
rincões. As mulheres classificadas como pardas refletem as marcas dessa concepção de
democracia racial, não escapando porém, das heranças do cativeiro em seu cotidiano,
ressignificadas pelo novo status jurídico, mas construídas na base de um racismo velado,
contudo estrutural e estruturante das relações sociais.
Em uma sociedade fundamentalmente alicerçada em valores patriarcais mais
conservadores que os da capital, as estratégias de vigilância em torno do comportamento
feminino se faziam mais contundentes. Todavia, as vicissitudes habituais da vida de nossas
mulheres não lhes permitiam seguir à risca a cartilha da moralidade republicana alto-sertaneja.
Ao exercer uma sexualidade desviante ou habitar zonas de meretrício, podiam ser
estigmatizadas como prostitutas, assim como aquelas que sobrevivessem do comércio de seus
corpos. A prostituição assim, para além de representar a exploração sexual feminina, estava
associada aos espaços de sociabilidade masculina, às formas de relações afetivo-sexuais
menos formais e, também, à um cotidiano de violência vivenciado por estas “mulheres de
vida livre”. Por sua vez, a recusa da maternidade compulsória, representada pelo ato extremo
do infanticídio, manteve essas mulheres sobre a corda bamba entre a absolvição e a
condenação moral.
Os limites apresentados pela documentação, muitas vezes, incompleta ou omissa em
relação a questões importantes para a condução dos casos, e seguindo a lógica do aparato
jurídico-policial, dificultaram uma análise mais linear das experiências de criminalização
feminina ou a reconstituição de trajetórias dessas mulheres. Por sua vez, uma leitura “nas
entrelinhas” dos discursos médico-jurídico, em diálogo com outras fontes históricas, nos
152
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