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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

CAMILA TEIXEIRA AMARAL

“AS DUAS ESPADAS DO PODER”:


AS RELAÇÕES DE TENSÃO E CONFLITO ENTRE O PODER SECULAR E O PODER
ECLESIÁSTICO NA BAHIA
(1640-1750)

Orientador: Prof. Dr. Evergton Sales Souza

Salvador
2012
CAMILA TEIXEIRA AMARAL

“AS DUAS ESPADAS DO PODER”:


AS RELAÇÕES DE TENSÃO E CONFLITO ENTRE O PODER SECULAR E O PODER
ECLESIÁSTICO NA BAHIA
(1640-1750)

Dissertação apresentada ao Programa de Pós


Graduação em História Social da Universidade
Federal da Bahia, como requisito parcial para
obtenção do grau de Mestre em História.

Orientador: Prof. Dr. Evergton Sales Souza

Salvador

2012
___________________________________________________________________________

Amaral, Camila Teixeira


A485 “As duas espadas do poder” as relações entre o poder secular e o poder eclesiástico
na Bahia (1640-1750) / Camila Teixeira Amaral. – Salvador, 2012.
144f.

Orientador: Prof. Dr. Evergton Sales Souza


Dissertação (mestrado) – Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas, 2012.

1. Bahia – Período colonial (1640-1750). 2. Igreja e Estado. 3. Igreja – Conflitos.


4. Igreja – Bahia. 5. Poder (Igreja). I. Souza, Evergton Sales. II. Universidade
Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.

CDD – 282.81
____________________________________________________________________________
CAMILA TEIXEIRA AMARAL

“AS DUAS ESPADAS DO PODER”:


AS RELAÇÕES DE TENSÃO E CONFLITO ENTRE O PODER SECULAR E O PODER ECLESIÁSTICO
NA BAHIA
(1640-1750)

Dissertação apresentada ao Programa de Pós


Graduação em História Social da Universidade
Federal da Bahia, como requisito parcial para
obtenção do grau de Mestre em História.

Orientador: Prof. Dr. Evergton Sales Souza

_________________________________
Evergton Sales Souza (Orientador)
Doutor em História Moderna e Contemporânea pela Université Paris IV
Professor Adjunto - Universidade Federal da Bahia

_________________________________________
Avanete Pereira Sousa
Doutora em História Econômica pela Universidade de São Paulo
Professora adjunta - Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia

________________________________________
Bruno G. Feitler
Doutor em História e Civilizações pela L’École des Hautes Études en Sciences Sociales
Professor adjunto da Universidade Federal de São Paulo
Para meus avós maternos e paternos.
Para meus pais, Adilene e Geraldo.
Para meus irmãos, Juliana e Rodrigo.
Para meu sobrinho, Arthur.
Para meu bem, Pablo.
Meus amores e meus pilares.
AGRADECIMENTOS

Certa vez li um prefácio escrito pela Professora Célia Tavares que dizia que o
trabalho de um historiador era solitário. Embora compreenda que Tavares refira-se ao
momento da pesquisa, permiti-me discordar um pouco desta reflexão. Ao longo do
tempo em que participei da iniciação científica e do mestrado muitas pessoas
contribuíram mais ou menos para minha pesquisa e para que me tornasse quem eu sou.
E aqui, nestas páginas, posso agradecer a todos e todas!
Ao orientador desta dissertação de mestrado e também da iniciação científica,
Evergton Sales Souza por ter me dado a oportunidade de conhecer melhor o ofício do
historiador e também por ter me apresentado o mundo da pesquisa nos arquivos. Sou
grata ainda por abrir sua biblioteca e com isso permitir aos seus orientandos leituras
enriquecedoras. Suas correções e sugestões sempre pertinentes e esclarecedoras foram
imprescindíveis para o bom termo desta dissertação.
Às minhas colegas e amigas de iniciação científica e de mestrado, Rebeca de
Souza Vivas e Ediana Ferreira Mendes, por me ajudarem a ser uma “pibiquinha” e por
me receberem de braços abertos durante a pesquisa sobre São Francisco Xavier. A
paciência ao me ensinar e corrigir as minhas primeiras aventuras com os documentos
manuscritos não será esquecida. Serei eternamente grata a vocês. À outra colega de
orientação, “irmã” mais velha, Laís Viena, por seus conselhos sempre preciosos e
objetivos. À Larissa Almeida Freire, também colega de orientação, por principalmente
nesta fase final ser muito solícita e por ter me ajudado quando mais precisei.
A Cândido Domingues, pelas valiosas conversas sobre os estudos e a vida e por
compartilhar das horas de angústia durante a seleção do mestrado. Estivéssemos
debruçados nos livros, em discussões acaloradas, em viagens ou em comemorações, sua
amizade estava lá. Ainda agradeço a Edison Rodrigues, por me chamar atenção para as
grandes contribuições que a Antropologia poderia fazer ao meu trabalho e também por
ser um sábio amigo. Aos demais colegas de mestrado e companheiros do Grupo de
Estudo de História Colonial, Iane Cunha, David Barbuda, Maria Ferraz, agradeço pelas
ricas discussões nas tardes de sexta-feira.
Aos meus colegas e amigos do PROCAD, Carlos Francisco da Silva, Fabrício
Lyrio e Jacira Primo, por tudo que vocês foram e fizeram durante nossa estadia em

6
Barão Geraldo. Ter convivido com vocês foi maravilhoso e significou não só
crescimento acadêmico, mas também um amadurecimento pessoal. Nossas conversas, as
discussões, o suporte durante as aulas na Unicamp e as cotidianas idas à biblioteca me
marcaram profundamente. Certamente sem vocês eu não conseguiria sobreviver aos
longos, tediosos e frios fins de semana, que transformamos em pizza, filme, futebol e
muitos risos. Aos bons amigos que fiz em Campinas, Marcão e Cássia, gaúchos do meu
coração, pelas deliciosas conversas.
Ainda sobre o PROCAD gostaria de agradecer imensamente ao coordenador
deste programa de intercâmbio acadêmico, à época Antonio Luiggi Negro, por ter me
dado a grande oportunidade de conhecer a realidade de outro programa de pós-
graduação e de dialogar com meus colegas “campineiros”. Obrigado pela atenção e
preocupação com os meus estudos em Campinas.
À professora Lígia Bellini, coordenadora do Programa de Pós Graduação em
História à época do meu ingresso, por estar sempre pronta a ajudar em tudo, sobretudo
nos financiamentos das viagens para apresentação de trabalhos. Sua competência e seu
esforço para elevar nosso programa aos altos níveis acadêmicos foram bem sucedidos e
tiveram continuidade durante a coordenação de Evergton Sales Souza.
À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia, por financiar-me com
uma bolsa de estudos no período de 2009-2011.
À professora Avanete Pereira de Sousa pela imensa disposição em ajudar uma
jovem estudante e pesquisadora de História. A gentileza de me conceder sua tese de
doutorado, à época ainda não publicada, bem como outro texto inédito seu foi de grande
valia para a minha dissertação. Da mesma maneira, seu enorme conhecimento da
documentação do Arquivo Municipal de Salvador e do açougue dos eclesiásticos
contribuiu muito para o andamento daquela incipiente pesquisa.
Aos oficiaiss dos arquivos, meus agradecimentos por serem bastante prestativos.
No Setor de Microfilmagem do Arquivo Público da Bahia tive ajuda sobretudo de Dona
Marlene. No mesmo arquivo, mas no Setor Colonial, agradeço aos atendentes Djalma
Melo e Uiara, pela atenção dispensada. Foi, contudo, no Arquivo Municipal de Salvador
que encontrei a maior parte da documentação que encorpou esta pesquisa. Agradeço a
“Seu” Felisberto e Adriana pela paciência e por dividir muitas tardes encaloradas na
sala daquele arquivo.
Às minhas amigas e também colegas de faculdade, Lílian Antonino, Gabriela
Baldacin Harrison, Andrea Souza, Kleidiane Santana e Carolina Mendonça, as

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Lazarentas, pelos conselhos, risadas, puxões de orelha, enfim, por tudo que se espera e
se preza em uma amizade. Vocês estavam lá no início dessa caminhada e agora, no final
e em tempos tão difíceis, foram um grande alicerce para me dar forças e seguir em
frente.
A Leonardo Coutinho, meu amigo Lazarento, pela amizade sincera e por me
socorrer quando minhas limitações tecnológicas falaram mais alto.
Aos meus amigos de fora da academia, mas não menos valorosos: Gabriele
Hayne, Juliana Ribeiro, Karoline Bittencourt, Leonardo Frugoni e Cainan Costa, minha
sincera gratidão. Vocês me fizeram enxergar o mundo acadêmico como o meio e não o
fim. Sem vocês minha vida social estaria seriamente comprometida!
À Erica Almeida, Ericlene Almeida, Marinalva Barbosa e Raimundo Almeida
(in memorian), respectivamente, cunhadas, sogra e sogro, por terem me recebido com
tanto carinho na sua família.
Aos meus pais, Adilene e Geraldo, irmãos, Juliana e Rodrigo, avós Terezinha e
Nilce e avôs Armando e Pedro e sobrinho Arthur: obrigado pelo amor e apoio
incondicional. Vocês sempre me ensinaram a batalhar pelos meus objetivos e
respeitaram minhas escolhas, permanecendo ao meu lado em todos os momentos. Ao
meu tio José Gomes (in memorian), que sem nem saber me ensinou a importância diária
de lutar pela vida. A dor da perda é grande, mas a felicidade de termos compartilhado
décadas de convivência é ainda maior. Aos meus familiares geograficamente distantes,
os Vieira e os Amaral, meus sinceros agradecimentos. Estar longe não significa amar
menos. Sobretudo a minha priminha linda, Fernanda Amaral, por ser tão amiga e tão
amável.
Por último, mas não menos importante, agradeço a Pablo Barbosa, por ser tão
maravilhoso, compreensivo e por me apoiar o tempo inteiro. Não há palavras que
descrevam o valor e a importância do nosso tempo compartilhado.
Fica aqui a certeza que esta conquista não é só minha, mas de todos vocês.

8
E que justiça a resguarda?... Bastarda.
É grátis distribuída?... Vendida.
Que tem, que a todos assusta?... Injusta.

Valha-nos Deus, o que custa


O que El-Rei nos dá de graça.
Que anda a Justiça na praça
Bastarda, vendida, injusta.

Que vai pela clerezia?... Simonia.


E pelos membros da Igreja?... Inveja.
Cuidei que mais se lhe punha?... Unha

Sazonada caramunha,
Enfim, que na Santa Sé
O que mais se pratica é
Simonia, inveja e unha.

(Gregório de Matos, Epílogos)

9
RESUMO

A presente dissertação tem como objetivo a análise das tensões e dos conflitos entre o
poder secular e o poder eclesiástico na Bahia Colonial entre 1640 e 1750, inserindo-a
em uma perspectiva mais ampla das relações entre a Igreja e o poder civil no Império
português. A partir do estudo mais aprofundado de dois conflitos pretendemos também
fazer um exame acerca das superposições das jurisdições e ainda buscaremos
compreender melhor o cotidiano político-administrativo de Salvador e perceber nele as
disputas por poder, privilégio e distinção.

Palavras chave: Conflitos, relação Igreja-poder secular, Bahia colonial.

Abstract

This work aims to analyze the tensions and conflicts between the ecclesiastical power
and secular power in Colonial Bahia between 1640 and 1750, placing it in a broader
perspective of the relations between Church and State in the Portuguese Empire. From
the further study of two conflicts we also intend to take an exam about the overlapping
of jurisdictions and still seek a better understanding of the everyday political-
administrative Salvador and realize it disputes for power, privilege and distinction.

Key-words: Conflicts, Relation Church-secular power, Colonial Bahia.

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ABREVIATURAS

AHU – Arquivo Histórico Ultramarino


AMS – Arquivo Municipal de Salvador
APB – Arquivo Público da Bahia
ANTT – Arquivo Nacional da Torre do Tombo
BNL – Biblioteca Nacional de Lisboa

11
LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1 Rendimentos da Câmara de Salvador com a arrematação de talhos


(1701-1800). P. 99.

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 Vista de cidade de Salvador feita por William Dampier. P. 25.

Figura 2 Desenho de uma serpentina feito por Amedée Frezier. P. 34.

12
SUMÁRIO

AGRADECIMENTOS ......................................................................................................................... 6
RESUMO ....................................................................................................................................... 10
ABREVIATURAS ............................................................................................................................. 11
LISTA DE GRÁFICOS ...................................................................................................................... 12
LISTA DE FIGURAS ......................................................................................................................... 12
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................... 15
Capítulo I ...................................................................................................................................... 23
Salvador, cidade de mercês e privilégios. ....................................................................................... 23
1-Oficiais régios e instituições na cidade da Bahia ............................................................. 24
2- Salvador, cidade de mercês e privilégios. ....................................................................... 33
3-As relações entre Poder civil e Igreja na Bahia colonial: da colaboração ao conflito ..... 39
Capítulo II..................................................................................................................................... 49
Os tons da convivência: jurisdição e litígios no contexto da Restauração ......................................... 49
1-“Liberdade portuguezes Viva El Rey Dom João o Quarto” .................................................... 50
2- As dificuldades no Império após a Restauração de 1640........................................................ 56
3- A notícia da aclamação de Dom João IV e suas consequências na Bahia .................................. 60
4- As nuances da relação Igreja x Poder civil: as contendas entre um Governador e um Bispo ........ 64
Capítulo III ................................................................................................................................... 90
O açougue eclesiástico: disputa de poder e conflito de jurisdição no início do século XVIII ............. 90
1- A Câmara Municipal e o abastecimento da cidade de Salvador ............................................... 93
2- Problemas de jurisdição: querelas entre um Ouvidor e um Arcebispo. ................................... 100
CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................................................. 125
Lista dos monarcas de Portugal (1600-1750) ............................................................................. 128
Vice-reis e governadores gerais do Brasil (1600-1750) ................................................................ 128
APÊNDICE II................................................................................................................................ 130
Lista de Bispos e Arcebispos da Bahia (1600-1750) .................................................................... 130
FONTES ...................................................................................................................................... 131
Fontes Manuscritas .................................................................................................................. 131

13
Fontes impressas ...................................................................................................................... 136
BIBLIOGRAFIA.............................................................................................................................. 138

14
INTRODUÇÃO

O tema proposto nesta dissertação nasceu como parte de um projeto muito


maior. A pesquisa propiciada pela iniciação científica, sob a orientação também de
Evergton Sales Souza, foi o pontapé inicial do presente trabalho. Estudar e pensar sobre
a impopularidade do padroeiro da cidade de Salvador, São Francisco Xavier, permitiu
um maior conhecimento da documentação sobre a Bahia colonial. Partindo daí e
enviesando pelo sub-tema das tensões e dos conflitos entre o poder local e o poder
eclesiástico, considerando sobretudo as relações entre a Câmara e o Cabido, pudemos
investigar os matizes da convivência entre o poder civi e a Igreja naquele período.
Posteriormente, ampliamos as balizas temporais e modificamos um pouco o foco,
centrando-nos principalmente nas contendas entre autoridades régias e episcopais.
Acreditamos que desta forma seria possível alçar maiores voos no que diz respeito às
relações entre essas “duas espadas do poder”. Para tanto, devemos nos atentar
rapidamente nesta introdução a dois eixos temáticos: primeiramente sobre a Igreja e a
Coroa e depois nos direcionaremos para um debate historiográfico acerca da política
administrativa dispensada pela Coroa portuguesa ao Brasil.
Quando se pensa sobre as relações entre a Igreja e o poder civil na modernidade
o que vem à cabeça, em geral, é a imbricação entre essas esferas. Refletir sobre as
monarquias entre meados do século XVI ao XVIII significa refletir também sobre sua
sacralidade. O rei, além de ser a representação política maior de um Estado, vestia-se
igualmente de um corpo sagrado, como vigário de Deus. O monarca não podia
prescindir da Igreja em muitos níveis. Na Europa ocidental, os Estados modernos
souberam utilizar os elementos da religiosidade católica para alcançar a sociedade e
assim exercer um maior controle sobre ela. Portugal não foi uma exceção. Às grandes
navegações, por exemplo, coube a Roma legitimar. A descoberta de novos territórios e
sua colonização foi tema de muitas bulas papais e seus ideais passaram também a ser os
ideais de um catolicismo sedento de expansão (principalmente se considerarmos o
contexto da Reforma protestante).

15
A existência da interpenetração entre a Igreja e a Coroa em Portugal não
significou que o interesse destas instituições tenha sido sempre consonante.
Primeiramente porque a Igreja não era um corpo coeso. Antes de tudo ela era
constituída por pessoas que obedeciam a uma hierarquia e tinham interesses próprios.
Como afirma José Pedro Paiva, a Igreja era uma instituição pluricelular, cheia de
facções e conflitos internos.1 Desta forma, a precipitada ideia de unidade no seio desta
instituição pode resultar na interpretação equivocada de que o poder eclesiástico agia
como um bloco na sua defesa em relação ao Estado.2 Fica mais fácil compreender estas
assertivas quando pensamos sobre a nomeação dos Bispos, tarefa que cabia ao monarca.
Indicá-los para a sagração do Papa transformava estes eclesiásticos também em agentes
do rei, reconhecendo que sua ascensão à condição episcopal era fruto do arbítrio real e
que uma progressão em sua carreira dependia da mercê régia.3
Por outro lado, devemos pensar que muitos homens de Igreja exerceram papéis
importantes na monarquia portuguesa, como confessores reais, conselheiros ou
pregadores e chegando até mesmo a cargos mais políticos no Conselho de Estado, no
Desembargo do Paço ou na Mesa de Consciência e Ordens. 4 No ultramar português a
interpenetração entre Igreja e o poder civil é ainda mais intensa, pois em função do
padroado régio a Coroa possuía uma série de competências em relação à administração
da Igreja. É o caso da ereção e provimento das igrejas, do recolhimento e pagamento
dos dízimos eclesiásticos e da composição do cabido da Sé, entre outros. Por outro lado,
o poder eclesiástico desempenhou uma função essencial para a dominação e
preservação política destas áreas. Segundo Paiva, “sem a Igreja não teria havido Império
e sem as armas do Império a ação evangelizadora da Igreja dificilmente teria tido o
êxito que alcançou”.5
No bojo desta discussão sobre interpenetração e interdependência entre Igreja e a
Coroa surgiram dois conceitos que ainda nos dias atuais estão presentes nos trabalhos
sobre o tema: confessionalização e disciplinamento social. Podemos dizer que no
âmbito das práticas cotidianas o Estado buscou constantemente instrumentalizar os
elementos religiosos numa tentativa de melhor controlar a sociedade. E é neste âmbito

1
José Pedro Paiva, “A Igreja e o poder”, in Carlos Moreira de Azevedo, História religiosa de Portugal,
Lisboa, Círculo de Leitores, 2000, p. 135.
2
Evergton Sales Souza, “Igreja e Estado no Período pombalino”, Lusitânia Sacra, vol. 23, 2011, pp. 207-
230.
3
Paiva, “A Igreja e o poder”..., p. 138.
4
Idem, pp. 138-139.
5
Idem, p. 142.

16
que se encaixam os dois conceitos acima citados. O primeiro, elaborado inicialmente
pelo alemão Gerhard Oestreich, reconhece o papel que a noção de disciplina teve nos
discursos do período moderno e, consequentemente, “como denominador comum dos
diferentes processos – político, religioso, social e cultural”.6 Para Palomo, a proposta do
alemão esteve por muito tempo associada apenas ao campo da história política e ao
processo de consolidação do poder das monarquias ocidentais modernas. Anos mais
tarde surgiria outro conceito que passaria a considerar o papel da história religiosa na
esfera política da sociedade. A noção de confessionalização, proposta por Wolfgang
Reinhard e Heinz Schilling, historiadores alemães, estabelece um vínculo entre o poder
político e os agentes eclesiásticos, na medida em que exalta a importância das
confissões religiosas para o disciplinamento social, colocando em contato os diferentes
contextos que fazem parte de uma sociedade, quais sejam, os religiosos, políticos,
sociais e culturais.
Para José Pedro Paiva a ideia de confessionalização enquanto reforço interno e
externo das unidades territoriais não pode ser aplicada ao caso português, na medida que
as fronteiras físicas e confessionais de Portugal já estavam definidas desde antes do
século XVI.7 Também a interpretação de que o processo confessional reforçou o
disciplinamento da sociedade tem alguns problemas, já que pode sugerir que foi
possível construir uma sociedade homogênea e disciplinada.8 O ponto mais controverso
deste conceito para o historiador português, entretanto, é o que afirma que a
confessionalização provocou um aumento da intervenção do Estado na Igreja.9 Esta é
uma interpretação limitada, pois só permite enxergar a preponderância do poder secular
sobre o poder eclesiástico. A influência da Igreja sobre o Estado também existiu no
período moderno.
A imbricação entre a Igreja e o Estado é inegável, mas ela não se deu forma
desenfreada e nem significou que estas duas instituições eram coesas. Não havia
competências perfeitamente delimitadas, muito pelo contrário: em diversos setores tinha
lugar a interpenetração dos dois.10 A relação entre eles era pautada na constante busca
de ambos pela expansão e manutenção do poder e também numa relação de

6
Federico Palomo, A contra reforma em Portugal (1540-1700), Lisboa, Livros Horizonte, 2006, p. 11.
7
José Pedro Paiva, “El Estado en la Iglesia y la Iglesia en el Estado”, Manuscrits: revista d´història
moderna, n. 25, 2007, pp. 45-57.
8
Idem, p. 49.
9
Idem ibid.
10
Idem, p. 50.

17
dependência mútua, pelo menos até meados do século XVIII, quando é inaugurado um
novo período nas relações entre a Igreja e o Estado.11
Para entender a relação entre as redes de poder presentes na Bahia entre 1640 e
1750 é necessário dialogar com os estudos sobre a administração do Império português.
Nossa análise seguirá o debate mais recente sobre o assunto, protagonizado por Laura
de Mello e Souza e Antonio Manuel Hespanha.12 Ambos desenvolveram abordagens
antagônicas e enriquecedoras para os estudos sobre os meandros administrativos do
Brasil colônia.
No primeiro capítulo de O sol e a sombra, Souza fez uma importante reflexão na
qual analisou as principais produções historiográficas – brasileiros e brasilianistas –
sobre a administração e a política na colônia. Para dar conta desta exposição e análise, a
autora faz uma retrospectiva para discorrer sobre o problema da administração a partir
de duas perspectivas: a de Raymundo Faoro e a de Caio Prado Jr.13 Ela acredita que
estes dois historiadores foram responsáveis por demonstrar que era possível que a
historiografia brasileira trabalhasse o tema. Os dois, aliás, representaram duas formas
opostas de análise.
Ao atribuir ao Estado português uma importância quase que incomensurável
ressaltando sua centralização excessiva (que é representada na expressão hipertrofia do
Estado) e defendendo a tese de que por ser centralizado o governo português foi capaz
de transferir com sucesso o seu sistema administrativo para o Brasil colônia, Faoro não
só minimizou o papel da dinâmica social e das contradições como também negligenciou
as situações específicas e desviantes tão presentes na colônia luso-americana. Quinze
anos antes, Caio Prado Jr. havia feito uma leitura completamente diferente sobre a
mesma questão: ele defendeu a existência de um Estado português caótico, irracional e
contraditório, cheio de órgãos complexos, com confusão de funções e um burocratismo
exagerado. Prado Jr. ainda alegou que o funcionalismo aqui existente era inútil,
numeroso e deliberativo. Contudo, e como demonstra Laura de Mello e Souza, outros
historiadores “nadaram” na direção contrária à de Faoro e de Caio Prado e procuraram

11
Sales Souza, pp. 16 e sgts.
12
Laura de Mello e Souza, O Sol e a Sombra: política e administração na América portuguesa do século
XVIII. São Paulo, Companhia das Letras, 2006. Antônio Manuel Hespanha, Depois do Leviathan,
Almanack Braziliense, nº 05, Maio de 2007, pp. 55 – 66.
13
Raymundo Faoro, Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro, 4ª edição, São Paulo,
Globo, 2008. Caio Prado Jr, Formação do Brasil Contemporâneo. Colônia, São Paulo, Livraria
Martins Editora, 1942.

18
entender, através do exame das instituições metropolitanas e do estudo da carreira de
administradores, o funcionamento do Império português, acreditando em uma política
administrativa menos rígida como foi o caso de Russell-Wood e Charles Boxer14.
Souza, porém, guarda boa parte do seu capítulo para a análise das últimas
contribuições historiográficas de António Manuel Hespanha. Ponto de desacordo inicial
entre eles, a concepção de Antigo Regime defendida por Hespanha parece, à
historiadora brasileira, bastante inadequada se transplantada à realidade da América
portuguesa, criticando os trabalhos que esteiam suas reflexões na ideia da existência de
um Antigo Regime nos trópicos. Portanto, ela dá seguimento a tese de Fernando Novais
ao defender a ideia de que existia um Antigo Sistema Colonial, caracterizado pela
existência da escravidão e do exclusivo metropolitano que diferenciava o regime
governamental do Brasil.
Para além desta discussão conceitual sobre o Ancien Régime, há um debate que
é o eixo central dessa longa revisão, qual seja, o papel do Estado português na
administração ultramarina. No que diz respeito à percepção de que o sistema
administrativo lusitano da época tinha um padrão de ação político-administrativa
jurisdicional – baseado na ciência do direito e das leis portuguesas – não parece haver
discordâncias entre os dois historiadores. Entretanto, Hespanha, ao tentar balancear a
ação do poder central e a do poder local na colônia, tende, por ter grande apreço “ao
esquema sinodal e à microfísica do poder”, a enfraquecer excessivamente o papel do
Estado.15 Souza vê problema nessa concepção aplicada ao século XVIII, já que ela
acredita haver uma maior centralização praticada pelo governo de D. João V.
Em contrapartida, Hespanha apresenta seus argumentos para rebater as
interpretações sobre seus trabalhos feitas por Souza. Reafirma sua posição em defender
a redução da administração da Coroa à passividade, sustentando a ideia de que a
centralidade do direito se traduzia na centralidade dos direitos normativos locais.16 Para
ele, então, mais importante do que o direito geral é o direito local, já que atribui uma

14
Souza, O sol e a sombra..., pp.41-46. Os dois historiadores brasilianistas realizaram importantes
estudos acerca das micro-estruturas administrativas (poder local), e demonstraram uma importante
papel desempenhado por elas. Para mais sobre o tema veja-se, principalmente: A. J. Russel-Wood
Fidalgos e Filantropos. A Santa Casa de Misericórdia da Bahia(1550-1755), Brasília, Edunb, 1981;
Centros e periferias no mundo Luso-brasileiro, 1500-1808, Revista brasileira de História, vol. 18, nº
36, 1998, pp.187-249. Charles Boxer Portuguese society in the tropics. The municipal councils of
Goa, Macao, Bahia and Luanda, 1510-1800. Madison, University of Wiscosin Press, 1965.
15
Laura de Mello e Sousa, O sol e a sombra... p. 49.
16
Antonio Manuel Hespanha, “Depois do Leviathan”, Almanack Brazilense, n. 05, 2007, pp. 55-66.
Conferir também As vésperas do Leviathan: instituições e poder político em Portugal, século XVII,
Coimbra, Ed. Almedina, 1994.

19
grande importância às particularidades de cada caso e às sensibilidades jurídicas locais.
Para dar base à sua teoria usa como argumento os muitos casos em que se verifica a
flexibilidade da apelação nos tribunais. Acredita num Estado português corporativo, que
possuía redes de poderes locais, enfatizando que as forças centrífugas da colônia tinham
grande capacidade de neutralização do poder central – forma contrária à que Souza
defende, pois crê que, ao fim, tudo se fazia em nome do Rei. Para corporificar suas
reflexões ele baseia-se nos mesmos brasilianistas citados pela historiadora brasileira:
Rusell-Wood e Charles Boxer. Para Hespanha, os trabalhos realizados por eles ratificam
o caráter localista do sistema administrativo português, não só no seu centro, mas
também em suas colônias.17 Já para Laura de Mello e Souza tais trabalhos apenas
demonstram que havia um modelo pendular de administração – que praticava a política
do “morde e assopra” -, mas que não sugere de forma alguma a quase ausência do poder
real.
Acreditamos que existam ressalvas em ambas as análises, pois é perceptível que
há pouca flexibilidade na conclusão dos dois sobre o real papel do Estado moderno
português na política administrativa do seu ultramar. Enquanto Hespanha defende a
total descentralização do poder metropolitano e valoriza bastante os poderes locais,
Souza manifesta-se a favor da ideia de que, apesar da existência de instituições de
mando local extremamente importante na colônia e por vezes autônoma, qualquer
atitude realizada aqui era em nome do monarca. Sem incorrer no erro de relativizar
absolutamente tudo, nesse caso há a necessidade de buscar um ponto de equilíbrio entre
essas duas maneiras de pensar esta problemática de fundamental importância para esta
dissertação. Cremos que o estudo das relações entre o poder secular e o poder
eclesiástico na Bahia beneficia-se destas reflexões e, ao mesmo tempo, pode contribuir
através do exame detido da atuação da coroa na resolução dos conflitos aqui ocorridos.
O foco central deste estudo, portanto, são as tensões e os conflitos entre o poder
civil e o poder eclesiástico na Bahia entre 1640-1750. Focaremos nossas análises e
reflexões nas querelas pessoais, entre autoridades das duas esferas de poder. Optamos
por observar como os interesses pessoais unidos à forte personalidade de algumas
personagens tratadas (além das questões contextuais, como a economia) aqui
interferiram nas suas relações com as demais autoridades. A partir deste exame

17
Idem, p.62.

20
procuraremos compreender melhor o cotidiano político da cidade da Bahia nos
seiscentos e setecentos.

Há duas justificativas que nos fizeram escolher o período entre 1640 e 1750
como recorte temporal desta dissertação. Em primeiro lugar entendemos que esses 110
anos representam um ciclo, inaugurado por D. João IV e encerrado por D. João V, que
vai do estabelecimento à consolidação dos Bragança na monarquia portuguesa. Com
efeito, todos os reinados deste período têm em comum o desejo de fortalecer a posição
da nova dinastia. Para tanto, foi necessária a adoção de políticas adequadas aos
diferentes contextos e somente no reinado de D. João V a dinastia estava consolidada,
permitindo que este monarca adotasse uma postura bem mais centralizadora do que seus
antecessores. Já com D. José I, principalmente a partir de fins dos anos 1750, foi
inaugurada uma política muito mais centralizadora – que alguns viriam a caracterizar
como despótica - e, marcada por uma influência maior das “luzes” no cenário político
luso. Esse novo ciclo iniciado modificou bastante a relação do poder central com os
poderes da América portuguesa e também com a Igreja. Daí parecer-nos mais coerente
limitar nosso recorte cronológico ao final do reinado de D. João V. Defendemos que em
maior ou em menor grau a ocorrência dos conflitos estava ligada à situação do poder
central.
Dois arquivos foram extremamente relevantes para esta pesquisa. O Arquivo
Histórico Ultramarino, consultado através dos CDs do Projeto Resgate nos fundos
Luiza da Fonseca e Avulsos Bahia, forneceu sobretudo as respostas e determinações da
Coroa portuguesa às petições feitas pelas mais diversas autoridades atuantes em
Salvador. Já no Arquivo Municipal de Salvador nos debruçamos principalmente sobre
as atas das reuniões da Câmara, as cartas enviadas pelo Senado ao monarca, a
correspondência entre a instituição e os eclesiásticos e as provisões reais. Em geral esta
documentação e a do Arquivo Histórico Ultramarino são complementares e tornam-se,
por isso, muito proveitosos para nosso trabalho. De forma menos intensa, mas bastante
relevante, as Ordens Régias no Arquivo Público da Bahia, os Documentos Históricos,
publicados pela Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e alguns documentos do Arquivo
Nacional da Torre do Tombo foram também usados na construção desta dissertação.

Este trabalho está dividido em três capítulos. No primeiro buscamos apresentar a


cidade de Salvador enquanto representante do Antigo Regime e compreender a

21
efervescente busca dos seus moradores por mercês e privilégios. A apreensão desta
sociedade é bastante relevante para perceber melhor os conflitos entre os agentes
eclesiásticos e seculares, na medida em que eles são reflexos da estrutura social
moderna, profundamente hierarquizada e pautada na distinção entre as pessoas. Nos
outros dois capítulos, buscamos nos ater ao estudo de dois conflitos entre representantes
do poder civil e o poder eclesiástico em momentos diferentes. Embora tenham um viés
de independência entre si, ambos estão ligados por um fio de Ariadne: as tensões e os
litígios entre as autoridades da Igreja e do poder civil na Bahia colonial. Além disso,
nota-se o fator econômico também como forte motivador destas querelas. Portanto, no
segundo capítulo nos aprofundamos no contexto pós-Restauração, debruçando-nos
sobre a contenda entre o Bispo D. Pedro da Silva Sampaio e o Governador geral
Antonio Telles da Silva, que acabou por envolver outras autoridades da administração
colonial, como o Provedor mor e o Ouvidor geral. Enfim, no terceiro capítulo
analisamos uma querela que eclodiu entre o Ouvidor Miguel Manso Preto e o Arcebispo
Dom Sebastião Monteiro da Vide em torno do açougue dos eclesiásticos e que durou
mais de uma década.

22
Capítulo I

Salvador, cidade de mercês e privilégios.

Cidade da Bahia. Duas em uma só. Observou Froger, ao visitá-la, que era alta a
baixa e poucas ruas eram retas.18 Sua parte baixa, destinada ao comércio, abrigava o
porto mais importante da América portuguesa por pelo menos dois séculos. Ali navios
de todo tipo atracavam, trazendo uma enorme variedade de carga. Ali a cidade se
abastecia de alimentos e de homens. Navios cheios de negros africanos muniam o
mercado de escravos baiano, ajudando na manutenção de uma sociedade escravista que
se assentava na exploração de homens e mulheres arrancados de sua terra para, no
Brasil, encontrar seu inferno. A grande maioria era mandada para as grandes plantations
do Recôncavo (região próxima a Salvador), onde trabalhavam exaustivamente na
colheita da cana e na produção do açúcar. Segundo os relatos de Antonil, em 1710
existiam 146 engenhos na Bahia e, em 1724, Soares da Franca afirmou existirem 139
engenhos, número que Schwartz acredita ser impreciso.19 Já na parte elevada da cidade,
além dos prédios da administração, ficavam casas que pertenciam, em grande parte, aos
homens bons, ricos mercadores ou senhores de engenho. Dampier afirmou haver, em
1699, mais ou menos duas mil casas, que tinham paredes grossas e fortes feitas em
pedras.20 Seus habitantes, homens da elite, não poupavam para ostentar sua riqueza.
Possuíam um enorme número de escravos negros homens e mulheres, que cuidavam dos
serviços domésticos, fato que chamou a atenção do viajante inglês.
Salvador foi a capital da América portuguesa entre 1549 e 1763. Sua fundação
significou uma mudança para a colonização dessa parcela do ultramar, já que efetivou
concretamente sua conquista. Desde o seu primeiro ano de existência houve uma
crescente burocratização do corpo de oficiais reais, que inicialmente esteve assentado na
tríade Governador geral, Ouvidor geral e o Provedor mor. Enquanto foi sede da colônia

18
No original se lê “elle est haute et basse, et à peine y a-t´il une rue soit droite”. François Froger,
Relation d´un Voyage de La mer Du sud detroit de Magellan, brésil, cayenne e les isles antilles,
Amsterdam, 1715, p. 140
19
Stuart Schwartz, Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835, São Paulo,
Companhia das Letras, 1988, p.186.
20
William Dampier, A new Voyage around the world, Londres, 1703, p.52

23
abrigou as principais autoridades régias. Também residiu ali o Bispo da Bahia,
responsável pela administração eclesiástica não só da cidade como da colônia.
Nesse capítulo, portanto, montaremos inicialmente um panorama político
administrativo de Salvador, tratando das atribuições e jurisdições de alguns oficiais
régios e também da instituição de poder local e do Tribunal da Relação. Em seguida nos
deteremos nos aspectos da sociedade soteropolitana, enfocando nos esforços cotidianos
de alguns corpos sociais para distinguirem-se e na economia simbólica das mercês. Por
fim, trataremos das relações entre a Igreja e o poder civil na cidade da Bahia durante os
seiscentos e a primeira metade dos setecentos, nos valendo de exemplos já trabalhados
pela historiografia e trazendo alguns novos litígios como base para a compreensão do
cotidiano político de disputas de poder, distinção e status quo tão comuns a uma
sociedade do Antigo Regime.

1-Oficiais régios e instituições na cidade da Bahia

A Bahia é cidade d´El Rei, e a côrte do Brasil,


nela residem os Sr. Bispo, Governador,
Ouvidor geral, com outros oficiais e justiça de
sua Majestade.

Foi com essas palavras que o Padre Fernão Cardim procurou descrever a cidade de
Salvador na sua Narrativa Espistolar de uma viagem e Missao Jesuitica, entre os anos
de 1585 e 1590.21 E não era sem razão. Capital da colônia portuguesa desde sua
fundação, em 1549, até 1763, a cidade da Bahia era sede militar, política e religiosa de
um dos principais territórios ultramarinos de Portugal. William Dampier, em seu relato
de viagem nos traz uma imagem de Salvador em 1699 que corrobora a descrita pelo
jesuíta e nos dá uma ligeira ideia da sua organização urbana.

21
Fernao Cardim, Narrativa Espistolar de uma viagem e Missao Jesuitica, Lisboa, 1847, pp. 9-10. A
ortografia das fontes utilizadas aqui foi atualizada e as abreviaturas desdobradas.

24
Figura 1

Fonte: William Dampier, A new Voyage around the world, Londres, 1703, p.48.

Nela é possível perceber algumas características marcantes da colonização na


região. O local escolhido para a ereção de Salvador não foi fruto do acaso. A
preocupação com a defesa do território foi determinante para que a cidade fosse
construída em uma área que oferecesse uma proteção natural e que funcionasse como
barreira contra possíveis invasões. Dessa maneira, a capital da América portuguesa foi
erguida em um terreno elevado e plano, que possuía uma visão privilegiada da Baía de
Todos os Santos e que preenchia os requisitos protecionistas. Tradicionalmente as
monarquias europeias não prescindiam das organizações militares e com Portugal não
foi diferente. Segundo Stuart Schwartz, a estrutura militar no Brasil seguiu os modelos
portugueses, sofrendo por vezes alterações dependendo da realidade do local.22
A partir do reinado de Dom Sebastião a organização militar lusitana sofreu
algumas alterações, adotando modelos espanhóis. Essa reestruturação se aprofundou no
período da União Ibérica, mas não vingou. O terço da armada real, criado em 1618, foi a

22
Alcir Pécora e Stuart B. Schwartz (orgs.), As excelências do governador: o panegírico fúnebre a d.
Afonso Furtado, de Juan Lopes Sierra, São Paulo, Companhia das Letras, 2002. p. 317.

25
primeira unidade desse tipo a ser formada numa nação europeia ocidental.23 Com a
Guerra de Restauração (1640-1667) todo o exército português sofreu uma mudança com
base nessa unidade. Na colônia luso-americana a atenção com a proteção do território
não foi menor. Alguns aspectos da imagem indicam isso, como as três fortificações
(duas na terra e uma no mar), todas voltadas para o mar. Essas construções denotam o
cuidado com que eram tratadas questões relativas à defesa, sobretudo quando Portugal
já amargava a experiência das invasões holandesas no seu litoral (Salvador foi invadida
em 1624 e ficou por um ano sob o comando dos inimigos). A construção da cidade em
um terreno elevado também não se deu por acaso. O objetivo era erguer a capital em um
lugar onde, ao mesmo tempo, fosse possível perceber a presença do inimigo e não ficar
vulnerável.
Ao longo dos séculos XVI e XVII foram criadas algumas instituições para
efetivar a administração da cidade. A Câmara Municipal de Salvador, instalada no
mesmo ano de fundação da cidade, representava o poder local e funcionava como
principal mediadora entre a Coroa e seus súditos, e embora ela não apareça no desenho
acima, está até hoje localizada na mesma praça que a casa dos governadores. Na
chamada “Praça da parada”, afirma Affonso Ruy, “foram localizadas as casas
destinadas aos serviços públicos, levantadas todas por Luiz Dias".24 Embora sua
construção não ostentasse qualquer luxo, apresentando a modéstia das outras casas da
cidade (por causa do tempo e falta de material adequado), a Câmara começou a
funcionar em meados daquele ano.
Ela era composta, inicialmente, por dois juízes ordinários (ou do povo), três
vereadores e de um procurador da Cidade, todos eleitos anualmente no mês de
dezembro por um corpo eleitoral composto pelos homens bons da cidade.25 A eleição
dos camaristas permaneceu assim até 1696, quando a Coroa ordenou que os juízes da
Relação passassem a verificar cuidadosamente das listas eleitorais trienais, de onde o
Vice-rei ou Governador geral selecionaria anualmente os indivíduos que serviriam

23
Segundo Pécora e Schwartz, “o terço em tese era composto de dez companhias, cada qual com cem
homens sob a liderança de um capitão. O mestre de campo era o comandante do terço, patente que
pode ser mais bem entendida como a de um coronel da infantaria, já que só era utilizada em
regimentos dessas unidades. O sargento-mor era o segundo em comando, uma posição que não
poderia ser, de forma alguma, comparada àquela que detinha, no sistema militar britânico, o oficial de
mesma patente.” Cf. Pécora e Schwartz, As excelências do governador... pp. 317-318.
24
Affonso Ruy, História da Câmara Municipal da cidade do Salvador, 2ª Ed., Salvador, Prefeitura
Municipal de Salvador, 1996, p. 21.
25
Idem, p. 40.

26
como oficiais da Câmara.26 A criação do cargo de juiz de fora, precisamente no mesmo
ano, significou igualmente um aumento da interferência da Coroa no poder local,
através de seus oficiais régios. Aliás, uma carta dos desembargadores da Relação ainda
em 1677 já deixava entrever que eles eram favoráveis a criação do cargo em questão.
Defendiam que

Para boa administração da justiça, e melhor expediente das causas, necessita


muito esta cidade de ter um juiz de fora, e particularmente para os negócios
crimes, que os juízes ordinários além de não saberem o que devem fazer, não
acodem aos casos de morte e outros delitos graves, nem tiram as devassas
como são obrigados; E o Ouvidor geral que despacha em Relação não pode
acudir a tudo; E quando nas férias sai ao termo a devassar, por os {juízes}
não fazerem sua obrigação, é depois de ter acontecido o delito um ano; E
mais, no que é a justiça muito prejudicada; E havendo juiz de fora letrado a
vista de uma Relação será a justiça melhor administrada [...] 27

Denunciaram também os oficiais da Câmara, que segundo eles não estavam cuidando
das rendas do Conselho, causando prejuízo ao sustento da infantaria e à fazenda real.
Embora a missiva contenha tons de urgência no seu conteúdo, o cargo foi criado na
Bahia. Ele representaria um novo período para a história dessa instituição. Antes
constituída por pessoas da terra e baseada nos costumes locais, seria presidida por um
ministro letrado nomeado pelo Rei, que “fomentaria a aplicação do direito oficial, e com
isso não deixaria de ser um elemento de desagregação da autonomia do sistema
jurídico-político local”.28
De acordo com Francisco Bethencourt, as Câmaras ultramarinas funcionaram
como pilares do Império português. Afirma que elas permitiram o enquadramento
político das populações nessas novas regiões, sobretudo no século XVIII, quando a
elevação de povoações à categoria de vilas cresceu exponencialmente.29 Criadas
segundo o modelo de Câmara reinol, se adaptaram a realidade local (mas sem criar

26
Charles R. Boxer, Portuguese Society in the tropics…, p. 74.
27
Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), Luiza da Fonseca, caixa 23, documento 2780 [21 de Agosto de
1677].
28
Maria Fernanda B. Bicalho, “As câmaras ultramarinas e o governo do Império” in João Fragoso, Maria
Fernanda Baptista Bicalho, Maria de Fátima Gouvêa (org.), O Antigo Regime nos trópicos: a
dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII), Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001,
pp.189-221.
29
Francisco Bethencourt e Kirti Chaudhuri (dirs.), História da expansão portuguesa, vol. 3, Lisboa,
Circulo de Leitores, 1998, p. 270. Silvia H. Lara trata um pouco do conceito da categoria “vila” no
período moderno, que tinha um significado muito mais político do que geográfico e estava
intimamente ligada às Câmaras e suas jurisdições. Cf. Sivia H. Lara, Fragmentos setecentistas:
Escravidão, cultura e poder na América portuguesa, São Paulo, Companhia das Letras, 2007, pp. 29-
30.

27
diferenças significativas entre elas) e representaram uma continuidade administrativa no
Império que os governadores, Bispos e magistrados não podiam garantir pelo seu
caráter passageiro, explica Boxer.30 Era através desse órgão que as elites econômicas e
políticas da região produtora de açúcar da Bahia (Recôncavo) enfeixavam seus
interesses, já que eram eles, senhores de engenhos e de escravos, que ocupavam os
lugares no Senado da Câmara de Salvador. Ainda esse órgão o responsável pela
regulamentação da vida cotidiana da cidade e também, a partir de 1625, pelo pagamento
e fornecimento de comida e fardamento para a guarnição.31
Muitos exemplos podem ser retirados dos documentos para fundamentar a
representação dos interesses da sociedade local pela Câmara. Nas sessões do Senado
cotidianamente se discutiam os problemas da cidade da Bahia e algumas vezes, se
necessário, era estabelecida uma comunicação com a Coroa para fins de concretizar
seus desígnios. Para exemplificar, tomemos o caso do pedido de privilégios aos
cidadãos soteropolitanos.32 Em 1646 uma consulta do Conselho Ultramarino revela-nos
timidamente o trâmite da concessão de tal mercê. Segundo os conselheiros, na petição
os oficiais da Câmara dizem

Que o povo dela [Salvador] há muitos anos tem servido a Vossa Majestade
com grande demonstração, nas ocasiões que se ofereceram, do serviço desta
Coroa, em razão do que Vossa Majestade com cartas suas prometendo de lhe
fazer mercê, e porque até agora a dita Câmara não tem privilégio algum e
Vossa Majestade foi servido de os conceder a Câmara do Maranhão, e é
justo que os tenha também a Câmara da Bahia, como cabeça de todo o
estado do Brasil33

Pediam para serem agraciados com os mesmos privilégios da cidade do Porto


(1490), pelos seus préstimos de fidelidade ao rei Dom João IV.34 Os cidadãos de
Salvador, assim como os portuenses, a partir de então não poderiam ser submetidos a

30
Charles Boxer, O Império colonial português (1425-1825), Lisboa, Edições 70, 1969, p. 263 e sgts.
31
Avanete Pereira de Sousa, “Poder Local e cotidiano: a Câmara de Salvador no século XVIII”
(dissertação de mestrado), Salvador, Universidade Federal da Bahia, 1996, especialmente o capítulo 2.
Vale ressaltar que a partir do capítulo 3 a autora aborda individualmente as diferentes atribuições da
Câmara Municipal de Salvador, a exemplo da urbanização, a higiene pública, as cerimônias e o
abastecimento da cidade. Sobre esse último aspecto trataremos no capítulo 3 dessa dissertação.
32
Segundo Maria Fernanda B. Bicalho, os cidadãos no Antigo Regime eram os homens eleitos para
desempenhar uma função nos cargos administrativos da Câmara. Eles eram responsáveis pelo bom
governo da República, articulando-se à governança da comunidade que faziam parte. Bicalho, “As
câmaras ultramarinas...”, pp. 203-205.
33
AHU, Luiza da Fonseca, caixa 10, documento 1176 [3 de Março de 1646]. Ainda há um anexo do
parecer do procurador da Coroa sobre o mesmo assunto no documento 1177, na mesma caixa.
34
Maria Fernanda B. Bicalho, “As câmaras ultramarinas...”, pp. 205-206

28
tormentos, não seriam presos em cadeias públicas e sim em suas residências, os seus
caseiros, amos e lavradores não poderiam ser obrigados a servir nas guerras, não seriam
obrigados a dar pousada contra a sua vontade e poderiam portar armas durante o dia e a
noite.35 Não tardou para chegar um alvará em fins de Março do mesmo ano
confirmando tais privilégios aos peticionários.36 Embora possamos questionar a
aplicação real desses privilégios à cidade da Bahia – que, diga-se de passagem, foram
concedidos mais de cento e cinquenta anos depois do caso do Porto, num contexto
totalmente distinto – importa saber que dentro da lógica na qual estavam inseridos esses
homens, enobrecer era um imprescindível elemento de distinção e prestígio. Interessava
mesmo ter títulos e privilégios, independente de sua aplicação.
Representada com destaque na figura 1, a casa do Governador estava localizada
na mesma praça que a Câmara, como citado anteriormente. Muitas eram as atribuições
de um Governador, que além de representar o governo civil, passava a ser chefe militar
da colônia (possuía a patente de capitão geral do Estado do Brasil). Munidos de
regimentos individuais, deveria superintender todos os governadores das outras
capitanias e cuidar do tesouro real.37 Nomeados diretamente pelo Rei, os governadores
gerais permaneciam, normalmente, três anos no cargo e depois retornavam a Portugal.
Mas, como é possível ver no apêndice I desse trabalho, nem sempre esse tempo era
respeitado. 38 Entre 1549 e 1760, de um total de trinta e oito governadores e vice-reis

35
Na obra de Affonso Ruy encontra-se uma transcrição completa da carta de confirmação dos privilégios
concedidos à cidade do Porto. Affonso Ruy, História Política e Administrativa, Salvador, Tipologia
Beneditina, 1949, pp. 196-201.
36
“Eu El Rei faço saber aos que meu alvará virem que tendo respeito ao que se me representou por parte
dos Oficiais da Câmara da Cidade do Salvador, Bahia de todos os Santos, em razão dos muitos
serviços que me tem feito nas ocasiões que se ofereceram prometendo eu por este respeito lhes fazer
mercês e pedindo-me ora lh’ a fizessem (por não ter aquela cidade privilégio algum) de que pudesse
gozar os mesmos que tem e goza a câmara da cidade do Porto, assim como se concedeu à cidade de
São Luiz do Maranhão, e visto por mim seu requerimento e os serviços que os moradores da Bahia me
tem feito com tanto amor e lealdade, impondo sobre si subsídios e vintenas para acudir aos sustento
do presídio dela, e as outras contribuições precisas, hei por bem de lhe fazer mercê de que goze dos
mesmos privilégios que tem e goza a cidade do Porto [...]”. Esse alvará também foi publicado em
Affonso Ruy, História Política e Administrativa..., pp. 195-196.
37
Os regimentos dos governadores gerais do Brasil buscavam estabelecer as regras de funcionamento
desse cargo. Era o documento que definia os procedimentos próprios do ofício. Até 1677 eles eram
individuais e específicos, misturando os elementos permanentes com outros que procuravam atender
as necessidades conjunturais. Com o regimento do governador geral Roque da Costa Barreto, em
1677, a Coroa compilou todos os avanços dos regimentos anteriores e os governadores passaram a se
orientar por ele. Para mais detalhes sobre o tema, ver Francisco Carlos Consentino, Governadores
gerais do Estado do Brasil (Séculos XVI-XVII): ofícios, regimentos, governação e trajetórias, São
Paulo/Belo Horizonte, Annablume/Fapemig, 2009.
38
Conferir o apêndice 1 da obra de Stuart B. Schwartz, Burocracia e Sociedade no Brasil Colonial: A
Suprema corte da Bahia e seus juízes (1609-1751), São Paulo, Editora Perspectiva, 1979. Foi
publicada recentemente uma nova edição deste livro com modificações na tradução. Cf. Stuart B.

29
(sem contar as juntas provisórias), treze ficaram mais de quatro anos no governo. Ainda
se incluirmos aqueles que permaneceram quatro anos (que já significaria uma
extrapolação do período previsto) esse número fica maior, passando para vinte e seis.
Mafalda Soares da Cunha assevera que os critérios seguidos na escolha do
governante eram tanto sociais quanto aqueles pré-definidos pela Monarquia para cada
território.39 Como agentes reais, os governadores representavam as vontades da Coroa e
administravam em seu nome. Para Pedro Puntoni, a presença do governo geral orientava
a empresa colonial de acordo com os interesses do centro e dos localmente
negociados.40 Então, podiam os governantes tomar decisões sem antes consultar o Rei, o
que lhes dava certa autonomia, mas suas provisões deveriam depois receber a
confirmação régia. Podemos tomar como exemplo o caso do açougue eclesiástico, que
será tratado no capítulo três dessa dissertação. Após um tempo fechado, o açougue dos
padres foi reaberto por Jerônimo de Ataíde (Conde de Atouguia), Governador geral do
Brasil entre 1654 e 1657, e depois confirmado pelo Rei através de uma provisão.
A partir de 1720 os indivíduos escolhidos para governadores gerais do Brasil
ganharam o título de vice-rei. Em termos de administração e jurisdição nada foi
mudado, mas há que se observar uma alteração no perfil das pessoas escolhidas para o
cargo. Se antes eles eram os secundogênitos que dispensaram uma carreira eclesiástica e
vieram para o ultramar para fazerem fortunas, agora essas características se alterariam.41
Como afirma Gouvêa, esses homens passaram a ser arregimentados do interior da
nobreza titulada a partir de então e passariam períodos mais prolongados no cargo.42
Comparativamente, na vizinha América espanhola, o poder e a jurisdição dos Virreyes
eram bem mais amplos do que no Brasil. Juan de Solórzano Pereira, na sua Politica
Indiana, consagra um tópico à discussão do papel do vice-rei nessa porção do território.
Diferente de outros tratados jurídicos, geralmente escritos por homens que não

Schwartz, Burocracia e sociedade no Brasil colonial: o Tribunal Superior da Bahia e seus


desembargadores (1609-1751), São Paulo, Companhia das Letras, 2011.
39
Mafalda Soares da Cunha, “Governo e governantes do Império português do Atlântico (século XVII)”
in Maria Fernanda Bicalho, Vera Lúcia Amaral Ferlini (orgs.), Modos de governar: idéias e práticas
políticas no império português (séculos XVI a XIX), São Paulo, Alameda, 2005.p.73.
40
Pedro Puntoni, “’Como coração no meio do corpo’: Salvador, capital do Estado do Brasil” in Laura de
Mello e Souza, Júnia Ferreira Furtado, Maria Fernanda Bicalho (orgs.), O governo dos povos, São
Paulo, Alameda, 2009, p. 373.
41
Virgínia Rau, “Fortunas ultramarinas e a nobreza portuguesa no século XVII”, in José Garcia Manuel
(int. e org.), Estudos sobre história econômica e social no Antigo Regime, Lisboa, Editorial Presença,
1984, pp.29-46.
42
Maria de Fátima Gouvêa, “Poder político e administração na formação do complexo atlântico
português (1645-1808)” in João Fragoso, Maria Fernanda Baptista Bicalho, Maria de Fátima Gouvêa
(org.), O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII), Rio de
Janeiro, Civilização Brasileira, 2001, pp. 285-315.

30
conheciam a realidade ibero-americana, Politica Indiana adequou a legislação reinol à
realidade colonial, já que seu autor foi Ouvidor da Audiência de Lima por onze anos e
também Governador e visitador das minas de Huancavelica. Afirmou em seu tratado
que os Virreyes eram como representantes do Rei em terras americanas e os vassalos
deveriam obedecê-los como ao próprio soberano,

aunque ellos pequen, i despues puedan ser por el (Rei) castigados,


como y alo tengo dicho em otros capitulos [...]. I la razon de esto es, el
que siempre se debe presumir por los Virreyes, i lo que hazen, lo
debemos juzgar como hecho por el Rey, que los nombrò[...].43

Embora tudo o que caiba a um vice-rei seja, sem dúvida, imposto pelo Rei, afirma
Solórzano, aquele que assumisse o cargo poderia conferir aquilo que seu soberano faria
em nome do bom governo e da segurança, sobretudo no que diz respeito aos índios.
Assim, os vassalos poderiam tratar dos seus problemas com agilidade, sem ter que
recorrer à Coroa, que estava distante.44 Na vizinha portuguesa, um Governador geral (ou
vice-rei) também poderia dar provimentos e tomar decisões por conta própria, mas,
como foi citado anteriormente, dependia sempre da posterior confirmação real.
No que diz respeito à justiça, a posição do vice-rei tanto na América espanhola
quanto na portuguesa eram semelhantes. Segundo o jurista espanhol, não deveriam os
vice-reis se intrometer nos assuntos concernentes à justiça. Afirma que

Solo se puedan, i deban entrometer em las dichas visitas (realizadas pelos


Magistrados para promover as questões de justiça), em las causas i negocios
que tuvieren peligro en la tardança, i se pudieren sustanciar, i determinar
brevemente i plano, remitiendo las demas à los juezes, ò Tribunales a quien
pertenezcas.45

Em outras palavras, eles poderiam interferir nas questões de justiça em nome do bem
comum, em caso de última necessidade. No Brasil, para auxiliar os governadores nos
foros da justiça, foi implantando o cargo de Ouvidor geral, que deveria presidir as
audiências dos recursos das sentenças proferidas pelos Ouvidores das capitanias, servir
como magistrado local na Bahia e ainda visitar as demais capitanias para inspecionar a
situação da justiça. Segundo Schwartz, a introdução desse cargo no Brasil refletiu não
só um desejo de melhorar a justiça ali por parte da Coroa, mas também a sua vontade

43
Juan de Solorzano Pereira, Politica Indiana, Madrid, Diego Diaz de la Carrera, 1648, pp.874.
44
Idem, pp. 873-875.
45
Idem, pp. 877.

31
em aumentar o controle real.46 E as visitas realizadas pelos Ouvidores gerais denotavam
esse desejo.
Mas o aparato burocrático da justiça na colônia não se reduziu a aquele agente.
Na verdade o seu grande acúmulo de funções foi a grande razão de ter sido instalado na
Bahia o Tribunal da Relação. No início do século XVII (1609) foi implantado esse
grande aparelho judiciário cujo principal papel era fixar as leis e funcionar como um
tribunal de justiça.47 Um corpo de oficiais (incluindo o Ouvidor geral, que passou a
fazer parte do quadro da Relação) era incumbido de colocar em prática o objetivo maior
do tribunal nos trópicos: “a proteção legal dos interesses reais e a imposição das leis”.48
Porém, como afirma o historiador, foram os homens e não as leis que fizeram do
Tribunal uma instituição dinâmica. E certamente devemos nos recordar disso mais à
frente nesse trabalho, pois como homens representavam também seus interesses e por
isso, embora a Relação existisse para por em execução a justiça, ela não estava isenta de
conflitos. Sobretudo no capítulo três desta dissertação, veremos que o envolvimento
entre desembargadores e o Ouvidor geral causou muitas suspeitas quanto à eficácia
judiciária na Bahia.
Vale ressaltar que para além das questões de justiça, economia ou política,
existiu uma administração eclesiástica que cuidava da espiritualidade dos colonos e que
tinha um papel político imprescindível para a Coroa portuguesa. É importante salientar
que no Antigo Regime a Igreja e seus símbolos marcaram profundamente o poder
profano. Como afirma Pedro Cardim, assim como o mundo jurídico, “o mundo
eclesiástico, nomeadamente, também gerou um volume enorme de programas de
ordenação social”49, que serviu muito bem para a manutenção do poder real português,
sobretudo nas porções ultramarinas do Império. Constituiu um poder eficaz em vários
níveis de influência, desde as ações cotidianas e imediatas, como a família e as
comunidades, até um âmbito internacional, entre os reis e imperadores. Como afirma
Hespanha, de um extremo ao outro a influência disciplinar da Igreja exercia-se
continuamente.50

46
Schwartz, Burocracia e Sociedade..., pp. 24-28.
47
Idem, p.114.
48
Idem, p.123.
49
Pedro Cardim, Cortes e cultura política no Portugal do Antigo Regime, Lisboa, Edições Cosmos, 1998,
p.15.
50
Antonio Manuel Hespanha, “As estruturas políticas em Portugal na época moderna” in José
Tengarrinha (org.), História de Portugal, Bauru/São Paulo/Portugal, Edusc/Unesp/Instituto Camões,
2001, pp. 117-181.

32
Sobre a Igreja e suas ações na Bahia trataremos com mais vagar no terceiro
tópico deste capítulo. Feita uma breve análise da estrutura administrativa estabelecida
da capital da América portuguesa, atentaremos agora à estrutura dessa sociedade
marcadamente do Antigo Regime, sobretudo ao comportamento cotidiano da elite e ao
seu esforço para demonstrar publicamente seu poder e sua distinção.

2- Salvador, cidade de mercês e privilégios.

Tanto Dampier quanto os viajantes franceses, Froger e Frezier, observaram com


curiosidade uma cena que provavelmente era cotidiana nas ruas soteropolitanas.
Tratava-se de um transporte utilizado pelos homens de posse; uma “rede de algodão à
moda das Índias ocidentais, geralmente tingida em azul, com longas franjas caídas dos
dois lados”, que era carregada pelos “ombros dos negros com a ajuda de um bambu com
12-14 pés de comprimento”.51 A essa espécie de carruagem Froger chamou palanquim,
embora Frezier tenha afirmado que o nome correto era serpentina. 52 A definição dada
por Bluteau indica que ele tinha razão, pois além de citar a Bahia e o Brasil nesse
verbete, sua descrição se assemelha com o desenho publicado na obra de Frezier.53

Figura 2

51
Lê-se no original: “The main thing is a pretty large cotton hammock of the west India fashion, but
mostly dyed in blue, with large fringes of the same, hanging down each side. This is carried on the
negros´s shoulder by the help of a bamboo about 12 or 14 foot long, to which the hammock is
hung.”Dampier, A new voyage..,, p. 59.
52
Amédée F. Frezier, Relation Du Voyage de la Mer du Sud aux côtes du Chily et du Perou, fait pendant
les anées 1712, 1713 et 1714, Amsterdam, 1717, p. 527.
53
No dicionário Bluteau encontramos as seguintes descrições. Serpentina: é uma rede, coberta com
tecido, e cortinas a modo de liteira. Dois homens a levam com uma cana de Angola nos ombros; e
como as primeiras levavam por remates a cabeça e a cauda de uma Serpente, foram chamas
Serpentinas. Palanquim: espécie de cadeira, ou leito portátil, com um varal por cima, que dois homens
levam às costas, e serve de carruagem na Índia. Consultado em:
http://www.brasiliana.usp.br/en/dicionario/edicao/1

33
Fonte: Amédée François Frezier, Relation Du Voyage de la Mer du Sud aux cotes du Chili, du Perou et
du Brésil, fait pendant les anées 1712, 1713 et 1714, tomo II, Amsterdam, 1717.

Palanquins ou serpentinas, o fato é que os homens ricos, a “nobreza da terra” não estava
disposta a se expor ao sol escaldante dos trópicos ou às chuvas que atingiam Salvador
em certos meses do ano. Passeavam pelas ruas de pedra da cidade recostados
confortavelmente em seus travesseiros, saudando as pessoas de seu conhecimento.54
Como relata Froger, apenas “les gens de qualité”, as pessoas importantes, eram
transportadas assim.55 Constituía, portanto, mais uma forma de distinção.
Segundo Dom José Botelho de Matos, Arcebispo da Bahia, em 1706 a cidade
possuía “4.296 fogos e almas de confissão 21.601” divididas em seis freguesias. 56 Já
para 1755 noticiava serem 6.719 fogos e 37.543 almas, mas agora divididas entre nove
freguesias. Eram homens e mulheres livres, escravos e criados que dividiam
cotidianamente os mesmos espaços, sobretudo na cidade e no Recôncavo (juntos eles
somavam 80% da população da capitania em 1724).57
Típica sociedade corporativa do Antigo Regime, profundamente marcada pela
justiça e pela pluralidade jurisdicional, a capital do Brasil testemunhava dia após dia
uma luta incessante dos corpos sociais pelo poder e pela diferença. Notou bem Frezier
ao se referir ao costume da “gente rica” de usar serpentinas, pois “não anda[va]m a pé,
sempre diligentes para encontrar maneiras de se distinguir dos outros homens, na

54
Dampier, A new Voyage..., pp.59-60.
55
Froger, Relation d´un Voyage de La mer Du Sud..., p.143.
56
AHU, Castro e Almeida, caixa 11, documento 2010 [30 de agosto de 1755].
57
Schwartz, Segredos Internos..., pp. 86-87

34
América como na Europa, teriam vergonha de usar as pernas que a natureza nos deu
para caminhar”.58 Além do meio de transporte, havia muitos outros elementos usados
como ferramentas da distinção. Era uma luta simbólica e na maior parte das vezes
silenciosa. Os trajes, por exemplos, não poderiam exceder mais do que sua condição
permitisse. O simples ato de usar sapatos era uma maneira de marcar posição naquela
sociedade e os escravos não deveriam utilizá-los.
Na documentação há toda sorte de reclamação relacionada ao modo de se vestir
dos negros e mulatos. Em três de Julho de 1641, incomodados pela ação escandalosa da
grande quantidade de mendigos da cidade, os oficiais da Câmara procuravam um
remédio para esse problema. Diziam que

Entre eles havia muita gente que podia trabalhar e ganhar de comer sem
mendigar e outros o tinham por ofício e se podiam remediar o que era bem
se atentasse para que os pobres e aleijados só o pudessem fazer e isto se
entendera também com as mulheres que pedem e assim mais que esta cidade
estava mais dissoluta no traje das escravas que chegavam a tanto que com as
muitas galas que lhes davam os seus amigos que chegavam a tanto extremo
que por eles muitos casados deixavam suas mulheres e a fazenda perecia.59

A mendicância, ao fim, não constituiu o principal ponto dessa mesa de vereação. Ela
servira de pano de fundo para outro problema, qual seja a maneira de se vestir das
escravas. Invocando o argumento do bem comum, afirmaram que esse comportamento
era a causa da desgraça dos casamentos e das fazendas. Fazia-se, portanto, necessário
restaurar o equilíbrio social, colocando cada um no seu lugar – as escravas deveriam
voltar a se vestir enquanto tal. Outro caso semelhante foi tema de uma carta enviada ao
Conselho Ultramarino pelo Governador geral, Dom João de Lencastre, em 1695.
Queixava-se que

Costumam os mulatos, e mulatas, e algumas negras desta cidade, e seu


Recôncavo, vestir-se de toda a seda, com escândalo geral dos inconvenientes
que resultam da liberdade, e modo com que se trajam: porque as mulatas, ou
negras que são escravas, principalmente das casas menos ricas, vendo-se as
filhas com uma saia de baeta, e as suas escravas tão luzidas, seguem

58
No original, se lê: “ne marchent point à pied, toujours industrieux à trouver des moyens pour se
distinguer du reste des hommes, en Amerique comme en Europe, ils auroient honte de se servir des
jambes que la nature nous à donné pour marcher”. Frezier, Relation du Voyage de la Mer Du Sud...
59
Documentos Históricos do Arquivo Municipal, Atas da Câmara, vol.2, p.32.

35
facilmente sem reparo de sua modéstia, aquele exemplo, e a custa da sua
honestidade, querem exceder a suas escravas.60

Podemos imaginar o que esse arrojo dos negros e mulatos, homens ou mulheres, causou
na sociedade. Por causa dessa “gala” e “asseio”, igualmente praticado por escravos e
forros, houve um enorme desconcerto entre os membros da elite de Salvador; do mesmo
jeito causou a “distração de muitos eclesiásticos simples, e regulares”, levando-os a
faltar com suas obrigações religiosas. Por fim, acusou-os o Governador de que “em tudo
querem igualar os brancos” – como numa tentativa de alterar a hierarquia que marcava
aquela sociedade – pedindo ao Rei que criasse uma lei para proibir mulatos, mulatas e
negras (escravos ou forros) de trajarem peças mais ostentosas, como a seda, o ouro e a
prata.61
No caminho contrário, não eram raros os pedidos de vassalos para trajar
determinados adereços. Em meados do século XVIII, certo Manuel de Brito, natural da
cidade da Bahia, escreveu à coroa intentando a autorização para portar “espada ou
espadachim” e demonstrar “nobreza”. Sua “casta de pardo”, embora fosse um fator que
pesasse contra sua súplica, não impediu que alcançasse aquilo que desejava. Para tanto,
procurou provar que seu pai, homônimo, era branco e foi, além de Capitão da Infantaria
de Salvador, Cavaleiro da Ordem de Cristo.62 Segundo atestaram algumas cartas
anexadas ao seu pedido – todas de pessoas com posição notável na sociedade baiana de
então63– era um homem casado, que vivia honradamente com sua esposa e seus filhos e
que era “tratado com estimação entre as pessoas de graduação” da cidade.64 Ademais,
ele era o procurador dos conventos do Carmo e de Santa Tereza, do mosteiro
beneditino, do colégio dos jesuítas e do hospício da Palma e era dono de muitas
propriedades. Mas nada disso era suficiente para garantir que Manuel de Brito fosse

60
AHU, Luiza da Fonseca, caixa 32, documento 4101 [24 de Julho de 1695].
61
Idem.
62
AHU, Avulsos Bahia, caixa 104, documento 8242 [ant. 19 de Dezembro de 1750].
63
São eles: Simão Marques, Prior do Colégio da Companhia de Jesus; Dom Frei João de Santa Maria,
abade do Mosteiro de São Bento; Frei João de Menezes, Prior do Convento de Nossa Senhora do
Monte Carmo; Frei João de São Jozeph, Prior do Convento de Santa Thereza; Frei Bazilio, Vigário do
Hospício de Nossa Senhora da Palma.
64
Idem. Segue um exemplo desses atestados anexados à carta de Manuel de Brito. “Frei João de
Menezes, Prior atual do Convento de Nossa Senhora do Monte do Carmo da cidade da Bahia.
Certifico que Manoel de Brito Procurador deste nosso Convento, e de todos os mais de nossa
Província, é homem casado, e vive com mulher de filhos; e sem embargo de ter casta de pardo, é bem
procedido, e muito verdadeiro, manso, quieto, e pacífico, muito obediente, e estimado nesta terra, e
tratado com muita estimação entre as pessoas de graduação, e ser nosso Procurador há anos, e sempre
nele achamos muita verdade, o que afirmo in verbo sarcedotiz: e por me pedir esta atestação lhe dou
por mim somente assinada e selada com o selo do meu ofício. Carmo da Bahia, 24 de março de 1750”.

36
visto como nobre. Segundo Hespanha, enriquecer ou empobrecer não era um feito social
estruturante na modernidade. Um nobre empobrecido permanecia, todavia, nobre. 65 A
troca de posição era como um milagre, algo extraordinário e por isso deveria vir de
poderes excepcionais. No caso acima, Manuel de Brito, homem pardo, que serviu como
soldado na Bahia por treze anos obteve de Dom José I (o poder excepcional) a mercê
para usar espada ou espadachim, apenas permitido à elite branca. Quando a honra e o
privilégio são pilares fundamentais de uma sociedade, se exibir é um princípio básico
para demarcar o seu lugar.
Uma das características mais marcantes das sociedades do Antigo Regime é uma
tríade formada pela graça, liberalidade e mercê régia. Esses três elementos estavam na
sua essência e matizavam a relação entre reis e vassalos. Através da graça era possível
afirmar uma situação nova e, por vezes, com certo teor miraculoso. Hespanha afirma
que quando esses milagres não cabiam a Deus, competiam aos seus vigários na terra (os
monarcas). Era, portanto, uma capacidade taumatúrgica dos reis, que operavam milagres
sociais, como a legitimação de filhos bastardos, o perdão de crimes e a atribuição de
bens e de recursos.66 Já liberalidade era uma virtude própria dos soberanos.67 Segundo
Fernanda Olival, o armazenamento de fortunas era visto com reprovação e que
“equivalia a avareza, um vício mais censurado do que o seu oposto”. 68 Assim, os reis
eram como administradores das suas riquezas: acumulavam para poderem distribuir e,
consequentemente, “atrair a fidelidade dos súditos”.69 Além do mais, assumiam papéis
de juízes numa sociedade que via na justiça um elemento de coesão, pois era através
dela que se preservava a paz e o equilíbrio do Império português. Olival assevera que
premiar e punir eram aspectos inerentes à capacidade do monarca de governar seus
súditos.70 E a economia das mercês, tão típica nesse período, fazia parte dessas
premiações.
Nomeadamente existiam dois tipos de mercê: aquelas que eram um ato da
liberalidade do rei eram consideradas doações. Já quando havia uma equivalência entre

65
António Manuel Hespanha, “Las estructuras del imaginário de la movilidad social en la sociedad del
Antiguo Régimen” in F. Chacón Jimenez e Nuno G. Monteiro (Eds.), Poder y movilidad social:
cortesanos, religiosos y oligarquias em la península ibérica (siglos XV-XIX), Madrid, Consejo
Superior de Investigaciones Científicas, Universidad de Murcia, 2006.
66
Idem, p. 37.
67
Fernanda Olival, As ordens militares e o Estado Moderno: honra, mercê e venalidade em Portugal
(1641-1789), Portugal, Estar Editora, 2001, p.15.
68
Idem, p.16.
69
Idem, p.18.
70
Idem, p. 20.

37
a dádiva e o serviço, a mercê era remuneratória.71 Na Bahia, como no resto da América
portuguesa, pedidos de mercês foram comuns ao longo de todo o período colonial.
Muitos homens – e algumas mulheres que pediam remuneração por serviços de marido
ou filhos falecidos – enviavam seus pedidos ao monarca em busca de uma melhor
posição social.
O poder político nos séculos XVII e XVIII estava indubitavelmente assentado na
economia das mercês. Diferia-se em muitos aspectos da economia do dom, teorizada
por Marcel Mauss em meados de 1920. Em seu ensaio sobre as trocas simbólicas,
Mauss afirmava que elas eram práticas voluntárias, embora moralmente e
tradicionalmente obrigatórias.72 Isso significa que não havia um pedido formal nesse
sistema, ao contrário daquela economia marcante da monarquia portuguesa moderna.
Olival atesta que “pedir, dar e receber deixaram de ser meros impulsos antropológicos”
para se transformarem em gestos profundamente burocratizados. 73 O requerimento de
uma mercê não era feito de forma inconsequente. Havia uma formulação retórica
formal, na qual o suplicante se colocava em posição de humildade e pobreza para
“exaltar a magnitude do poder régio”.74
Existia um grande rigor para avaliar as petições. Os merecimentos eram
avaliados minuciosamente e, por isso, foi montado um processo burocrático que
auxiliasse no processo.75 Não era em vão que muitas cartas enviadas à coroa tinham
enormes anexos, comprovando o tempo de serviço e por vezes o dispêndio feito para
executá-lo. Ocorre que servir para pedir recompensa tornar-se-ia um modo de vida para
os mais diversos setores sociais. Mas o vassalo não era o único que ganhava nesse
sistema de mercês. O rei, ao concedê-las, se figurava com o “centro distribuidor de
distinções”, e estreitava mais seus laços com os dos seus vassalos. Principalmente no
ultramar português essa política se mostrou determinante em muitos momentos, como
no caso de 1640, quando muitos adeptos foram “comprados”. Numa situação de
fragilidade da coroa as mercês serviram como uma arma potente a favor do seu centro
de origem. Era o elo, disse Olival, entre o rei e seus vassalos. A economia das mercês

71
Idem, p. 23.
72
Ver Lygia Sigaud, “As vicissitudes do ‘ensaio sobre o dom’”, Mana- Estudos de Antropologia Social,
5(2), 1999, pp.89-124.
73
Olival, As ordens militares..., p.108.
74
Idem, pp. 108-109.
75
Idem, p. 30.

38
foi responsável por “boa parte interdependência e da coesão que esses dois polos
mantinham entre si”.76
Muitos pedidos de mercê eram enviados da Bahia para o reino. Mesmo afastados
da realidade cortesã, os membros da elite soteropolitana faziam questão de demarcar seu
lugar de distinção naquela sociedade. Principalmente no que diz respeito ao corpo de
oficiais burocráticos e administrativos, a disputa de poder e privilégio era latente e a
sobreposição das suas jurisdições causava uma tensão que não raro desembocavam em
dissensões. E embora os agentes eclesiásticos e civis servissem aos negócios da Coroa,
a convivência entre eles não era necessariamente harmoniosa, inclusive pela própria
característica da sociedade hierarquizada em que viviam. Cabe agora nos concentrarmos
nessa relação entre Igreja e Poder civil na cidade da Bahia e discorrermos sobre algumas
de suas contendas.

3-As relações entre Poder civil e Igreja na Bahia colonial: da colaboração ao


conflito

É impossível negar o importante papel que a Igreja prestou à Coroa de Portugal


ao longo de sua expansão ultramarina. Desde os primeiros tempos da colonização
asiática, americana e africana, missionários de várias ordens religiosas e da Companhia
de Jesus e ainda os clérigos seculares se fizeram presente nas diversas partes do
Império. Para ratificar essa intervenção religiosa, bulas papais foram emitidas entre
1456 (Inter Coetera) e 1514 (Praecelsae Devotionis) e garantiram aos monarcas
portugueses o direito de padroado sobre as terras recém-descobertas ou aquelas que
ainda viriam a descobrir, o que significa que ficava a cargo do rei uma série de
obrigações.77 Eram eles que deveriam arcar com as despesas de manutenção das capelas
e de igrejas, bem como suas construções, prover as dioceses do necessário e enviar os
missionários para converter os pagãos. Em troca, foi dada uma “concessão a esses
governantes de enormes privilégios sob forma de proporem Bispos para as sés coloniais
vagas, de cobrarem dízimos e de administrar alguns tipos de impostos eclesiásticos”.78

76
Idem, p. 31.
77
Charles Boxer, O Império colonial português..., pp. 224-225.
78
Idem ibid.

39
Importa ressaltar que essas bulas significaram a oficialização do compromisso entre a
monarquia portuguesa e a Igreja, já que colocava o Rei como o encarregado de
estabelecer o catolicismo nos territórios ultramarinos.
O bispado da Bahia foi criado em 1551, após o desmembramento da diocese do
Funchal.79 A partir de então, Salvador abrigaria, além do Bispo, outras dignidades e o
Cabido da Sé. Para o projeto colonizador de Portugal, essa estrutura eclesiástica e o seu
dever de expansão da fé eram indispensáveis, já que o catolicismo português funcionou
também como elemento de coesão para o Império. Em 1676, o bispado da Bahia foi
elevado à categoria de Arcebispado, alargando sua jurisdição. A efetivação da conquista
aumentava exponencialmente com a atuação da Igreja. Até mesmo para a divisão
administrativa do território as jurisdições paroquiais eram levadas em consideração.80
No seu livro, Anna Amélia Vieira Nascimento afirma que “freguesia é um espaço
material limitado, divisão administrativa e religiosa da cidade, onde estavam localizados
os habitantes, ligados à sua igreja matriz”.81
A própria arquitetura de Salvador, especificamente no seu sítio histórico, indica
uma presença religiosa marcante na vida cotidiana da cidade. Da praça onde ficava a
casa do Governador e a Câmara até o terreiro de Jesus, passando pela Misericórdia, são
muitas as construções que alimentavam a espiritualidade da população soteropolitana.
Cândido da Costa e Silva, em sua obra sobre o clero oitocentista da Bahia, apresenta a
ideia de uma cidade episcopal, cheia de igrejas de religiosos, irmão terceiros, cruzes,
nichos escavados, etc.82 Em toda cidade da Bahia, do século XVI ao XVIII, inúmeras
igrejas foram erigidas. Mas foi na freguesia da Sé, no atual terreiro de Jesus, que “o
sagrado envolveu e pontuou a cidade”.83A igreja dos jesuítas, a de São Pedro dos
Clérigos, São Domingos e a de São Francisco (tanto a dos primeiros da ordem quanto a
dos terceiros, muito próximas) estão todas cerradas num círculo repleto símbolos
religiosos.
A atuação do Bispo, principalmente, não se restringiu às questões religiosas.
Participava ativamente das questões políticas da colônia, sobretudo em momentos de

79
Cândido da Costa e Silva (ed.), Notícias do Arcebispado da Bahia, Salvador, Fundação Gregório de
Matos, 2001, pp.11.
80
No dicionário de Raphael Bluteau um dos significados de freguesia é “a Igreja paroquial”. Consultado
em: http://www.brasiliana.usp.br/en/dicionario/edicao/1
81
Anna Amélia Vieira Nascimento, As dez freguesias da cidade do Salvador – aspectos sociais e urbanos
do século XIX, Salvador, Edufba – Coleção Bahia de Todos, 2007, p.44
82
Cândido da Costa e Silva, Os Segadores e a Messe – o clero oitocentista na Bahia, Salvador, Edufba,
2000, p. 21 e sgts.
83
Idem, p. 28

40
crise. José Pedro Paiva afirma que a monarquia, ou o poder temporal português, teve a
percepção da importância da Igreja, principalmente seus Bispos, enquanto instrumento
estratégico para afirmação da ordem e da autoridade do rei no Império.84 E lista três
motivos: a influência que os Bispos exerciam sobre a população, ao seu papel de
mediador na comunicação através das paróquias e devido ao sistema cultural e religioso
promovido pela Igreja, no qual estavam incrustadas noções evidentes de hierarquias.85
Nos séculos XVII e XVIII não faltam exemplos que corroborem esta afirmativa. Na
historiografia já foram explicitados muitos casos de colaboração e participação dos
Bispos e Arcebispos na vida política colonial. Citaremos aqui três exemplos que
demonstram bem esse compromisso entre as “duas espadas do poder” para servir aos
interesses da Coroa. O primeiro diz respeito ao papel de Dom Marcos Teixeira, quinto
Bispo do Brasil durante a luta de resistência dos soteropolitanos contra a invasão
holandesa em 1624. Pronto a defender a cidade da Bahia de um domínio batavo, o
prelado liderou a retirada de grande parte da população soteropolitana para o Arraial do
Rio Vermelho antes da tomada total da cidade pelos inimigos. Acreditava que lá
poderiam organizar melhor a defesa e a retomada de Salvador do que ao permanecer de
maneira desorganizada e enfrentar as tropas holandesas, em maior número. Sua decisão
foi de encontro ao que o Governador geral, Diogo de Mendonça Furtado, havia
sentenciado: ficaria e enfrentaria o ataque, decisão que o levou à prisão e deportação
para a Holanda junto com outros soldados e jesuítas que permaneceram ao seu lado.86 Já
Dom Pedro Sampaio da Silva, ainda no contexto do Brasil holandês, no período da
conquista da Paraíba pelos neerlandeses ordenou ao clero católico que abandonasse o
território conquistado pelos hereges.87 E, por fim, a ativa participação de Dom Sebastião
Monteiro da Vide ao tempo do motim do Maneta, em 1710. Fora chamado pelo

84
José Pedro Paiva, Os bispos de Portugal e do Império (1495-1777), Coimbra, Imprensa da
Universidade de Coimbra, 2006, p.172.
85
Idem.
86
Uma série de obras e trabalhos narram o acontecimento. Sebastião da Rocha Pitta, História da América
Portuguesa, São Paulo, W. M. Jackson Inc., Clássicos Jackson, 1950, pp. 166-167; Ricardo Henrique
Behrens, A capital colonial e a presença holandesa de 1624-1625 (dissertação de mestrado),
Salvador, PPGH-UFBA, 2004, pp.8-12. Conferir também a tese de doutorado: Pablo Antonio Iglesias
Magalhães, “Equus Rusus: A Igreja Católica e as Guerras Neerlandesas na Bahia (1624-1654)” (tese
de doutorado), Salvador, PPGH-UFBA, 2010.
87
Embora essa ordem tenha sido, mais tarde, desautorizada pela Mesa de Consciência e Ordem em
Lisboa em 1635 e, ainda no mesmo ano, confirmada pela Coroa. Ronaldo Vainfas, Traição: um
jesuíta a serviço do Brasil holandês processado pela Inquisição, São Paulo, Companhia das Letras,
2008, pp.69-70. Pablo Iglesias Magalhães, ao discorrer sobre o bispo em questão, afirma que a
dispersão incentivada por ele e a retirada do clero do Brasil holandês trouxe significativas perdas para
a manutenção dos sacramentos e da vida católica. Magalhães, “Equus Rusus...”, p.168.

41
Governador e mais autoridades para interferir nesta alteração e acalmar os revoltosos,
dando uma demonstração do papel importante da igreja no disciplinamento social.
Essa característica não era singular do Brasil. Em outras partes do Império
ocorriam episódios semelhantes, assim como no reino. O Bispo de São Tomé, D. Frei
Gaspar Cão, em 1560 escreveu uma carta na qual revelou que assistia sempre as
reuniões da Câmara para poder dar melhor andamento ao governo local. Em 1580,
quando Portugal passou a compor a coroa espanhola, diversos Bispos de Portugal
demonstraram seu apoio à causa filipina, adesão essa que ficou clara durante as cortes
de Tomar, em 1581, quando Filipe II foi proclamado e jurado rei. Esses eventos,
retirados da obra de Paiva, são exemplos da importância que a Igreja e seus agentes
tinham para o Estado moderno português.88 E a consolidação de um processo cuidadoso
de escolha dos antístites pelos monarcas portugueses, ainda no início do século XVI, foi
extremamente relevante. Nomear dignidades diocesanas “era mais um instrumento para
contentar adeptos e limitar possíveis e esperadas formas de contestação de um poder
que se ia fortalecendo”.89
Foi a partir do reinado de Dom Manuel I que as escolhas dos antístites passaram
a competir ao monarca. Segundo Paiva, entre 1502 e 1517, o Venturoso “conseguiu o
reconhecimento do direito de padroado dos reis de Portugal sobre todas as dioceses
ultramarinas criadas e a criar, o provimento das abadias e, de fato, a práxis de ser ele a
apresentar os Bispos para todas as dioceses do reino, ditas antigas”. 90 Significa que,
além do direito já provido aos monarcas portugueses nos idos de quinhentos, qual seja a
jurisdição espiritual das terras recém-descobertas ou por descobrir, a bula de 1514 (Dum
fidei constantiam) de Leão X ampliou a ingerência da Coroa lusitana sobre a Igreja.
Agora, efetivamente, os Bispos eram criaturas do rei e ele os usava “ao seu serviço,
transformando-os, simultaneamente, em servidores da Igreja e agentes políticos da
monarquia”.91
Mas quais são as consequências disso para o Brasil? Via de regra, os antístites
serviam ao rei no ultramar? Mesmo que pareça uma pergunta de resposta óbvia, as
relações cotidianas entre os agentes eclesiásticos e os oficiais reais eram mais
complexas do que aparentam ser. Nessas duas hierarquias muitas vezes os cargos mais

88
Os exemplos são todos retirados do capítulo 3 As “feituras” do Rei: a escolha do episcopado in Paiva,
Os bispos de Portugal..., pp.171-288.
89
Idem, pp.179-180.
90
Idem, p.44.
91
Idem, p.183.

42
altos eram ocupados por homens de personalidade forte, o que resultava em disputas de
poder e litígios. E é exatamente nesse ponto que esta dissertação quer tocar. Todos
atuavam em prol da Coroa portuguesa, pois eram nomeados no fim e ao cabo pelo rei e
por isso deveriam zelar pelo bom governo da colônia. Mas faziam parte de hierarquias
diferentes e agiam sobre jurisdições distintas, que embora se sobrepusessem, tinham
seus limites bem delineados nas situações contenciosas. Em geral uma das partes do
conflito denunciava a outra por alterar a ordem ou o equilíbrio da República ou pela
indiligência com o bem comum.
Um espaço relevante de imbricação entre esses dois poderes na América
portuguesa eram as cerimônias públicas. Realizadas nas ruas da freguesia da Sé, elas
constituíam um componente importante do cotidiano dos moradores da cidade da Bahia.
Esses préstitos tinham múltiplos significados, ao passo que se para a Igreja ajudava a
reforçar os laços católicos com seus espectadores, para a Coroa era um poderoso
instrumento de reafirmação e manutenção do seu poder. E para os muitos corpos sociais
que faziam parte da festividade era mais uma oportunidade de demonstrarem-se
distintos. É através dessa última faceta que iremos analisar brevemente algumas
contendas que ocorreram nesse espaço.92
Entre 1640 e 1750 não faltaram casos que explicitassem a tensão existente entre
esses sujeitos. Partindo, portanto, da ideia de que a tensão entre as diversas autoridades
era inerente a esta sociedade, pautada na hierarquia e na diferença de status quo,
propomos aqui uma classificação dos tipos de conflitos de jurisdição na Bahia:
1.Conflitos entre os agentes do poder civil 2- Conflitos entre eclesiásticos (seculares e
regulares) 3- Conflitos entre o poder civil e o poder eclesiástico, dentro do qual há dois
subtipos. 3.1 Conflitos institucionais 3.2 Conflitos pessoais. Propomos, a seguir, uma
análise de casos pontuais que se enquadram nesse último ponto. Já os capítulos
ulteriores ater-se-ão aos casos que tomaram grandes proporções para o governo da
colônia.
Em finais do ano de 1672 o Ouvidor geral e desembargador, Manuel Pereira
Franco, apresentou uma denúncia contra o comportamento do clero na Bahia. Afirmava
que

Porque neste tempo se tem feito grandes desordens, e desconsertos de que já


criam queixas a Vossa Majestade; porém as que vão no eclesiástico, são

92
Ediana Ferreira Mendes, “Festas e procissões reais na Bahia colonial (século XVII-XVIII)” (dissertação
de mestrado), Salvador, PPGH-UFBA, 2011, pp. 81-110.

43
tantas , e tão contra o serviço de Deus e tão em grandíssimo dano destes
povos que há necessidade precisa que Vossa Majestade lhe acenda com o
remédio; porque por falecimento do Bispo ficou a Sé vagante com oito
capitulares, e destes só seis vão ao Cabido que são idiotas sem letras, muito
mal entendidos por ficar particulares paixões, põem de ordinário muitas
excomunhões, sem justiça, e por casos levíssimos, e sem fundamento, e
provém os cargos e benefícios em clérigos semelhantes a eles, por dádivas
que lhes dão.93

Ao tempo, como deixa claro o queixoso Ouvidor, o bispado da Bahia encontrava-se


vacante devido à morte de Dom Pedro da Silva em 1649 e aos problemas diplomáticos
da Coroa portuguesa com a Santa Sé. Embora não exercesse mais sua função nas
malhas da justiça, sentiu-se o ex-oficial régio no dever de dar conta sobre os
descaminhos eclesiásticos da diocese baiana. Aliás, cumpria o próprio jogo político
promovido pela monarquia moderna lusitana, que ao estimular a sobreposição
jurisdicional dessas diferentes esferas de poder, incentivava também a vigilância delas
uma sobre a outra. Mas as acusações de Manuel Pereira Franco não se restringiam à
incapacidade do clero baiano. Elas se agravaram ainda mais ao dizer que

Os amancebados vivem com tanta quietação quanto os casados, o que mal


podem emendar o que alguns deles fazem: e o que pior é que dão
dispenssações [sic] entre compadres, e comadres, e em parentescos que não
podem; porque tanto que lhe dão direito, logo facilitam tudo, e chega a tanto
a desolução [sic] que até pais com filhas e irmãos com irmãs, convençam
carnalmente e estão amancebados com filhos de portas adentro.94

A mancebia era um crime previsto pelas Ordenações Filipinas, inclusive a que era
praticada entre parentes.95 Representava um escândalo numa sociedade pautada nos
preceitos católicos, mas não eram incomuns na América portuguesa. O querelante, ao
final de sua carta, demonstra que “se pode facilmente remediar” estes problemas através
da nomeação de um “Governador cristão e letrado” – o que demoraria ainda vinte e um

93
AHU, Luiza da Fonseca, caixa 12, documento 1533 [11 de dezembro de 1652]. Quase na virada para o
século XVIII, no ano de 1698, queixas do povo da Bahia apresentadas à Coroa pelo procurador
Antonio da Silva Pinto deixam entrever a situação do clero no período, incluindo denúncias contra o
próprio Arcebispo Dom João Franco de Oliveira. As queixas, compiladas em setenta tópicos, são
trabalhadas por Cândido da Costa e Silva no seu artigo sobre a celebração do sínodo arquidiocesano
em 1707. Cândido da Costa e Silva, “A celebração do Sínodo Arquidiocesano de 1707” in Feitler,
Bruno e Souza, Evergton Sales (org.), A Igreja no Brasil colônia: normas e práticas no tempo do
arcebispo D. Sebastião Monteiro da Vide, pp.104-111.
94
Idem.
95
Ordenações Filipinas, livro V, título VII.

44
anos para ocorrer – e a reinstalação do Tribunal da Relação, que quatro anos depois
estaria funcionando novamente.96
Perto de entrar na última década dos seiscentos, um conflito entre o chanceler
da Relação e o primaz da Bahia matizou a administração do governo interino, do qual
faziam parte. Manuel Carneiro de Sá iniciou sua imputação dizendo que

Não quer o Arcebispo que o Livro das propinas também se divida entre mim
e ele, pretendendo que todas as propinas dos arrendamentos dos contratos
que se costumam dar aos Governadores se lhe entreguem a ele [...] como se
ele ficara Governador total, e não parcial, e tivera somente o trabalho do
governo para só levar as propinas, que com efeito cobrou sem me mandar
entregar a parte que me tocava, não só pela razão referida, mas pelo que se
praticou quando por morte do Governador Affonso Furtado, ficaram
governando esta praça os Mestres de Campo Antonio Guedes de Brito,
Álvaro de Azevedo e o Chanceler da Relação, que por todos igualmente se
dividiram as propinas97

O chanceler também compara Dom Manuel da Ressurreição e os demais governadores:


teria aquele mais título que os demais, para levar todo o dinheiro? No seu discurso,
afinal de contas, estava implícito que no jogo do poder as autoridades eclesiásticas
estavam em vantagem. Por isso tratou de representar ao rei sua queixa e afirmar que

Este procedimento do Arcebispo se não teve por raiz a cobiça, como se está
inculcando pela matéria não pode deixar de ter a causa na aversão que me
tomou este prelado, porque defendo e zelo pela jurisdição real de Vossa
Majestade não permitindo que ele nem seus ministros a usurpem, fazendo
lembrança ao procurador da Coroa da obrigação que tem de a defender, e
como se isto fosse culpa em mim, chegou a fazer publicamente queixa a
alguns ministros seculares que eu era inimigo da jurisdição eclesiástica e
nimiamente zeloso da jurisdição real [...]98

O trecho acima sublinhado nos revela que as querelas entre o poder eclesiástico e o
governo civil datam de antes do problema em questão, sendo ele inclusive consequência
da política que vinha promovendo o chanceler Manuel Carneiro de Sá. Ele, aliás, usa
artifícios retóricos recorrentes no discurso do período para pedir resolução ao caso: fala
na “balança da justiça”, que a seu ver estava em desequilíbrio, impedindo o bom
governo. Esse conflito, portanto, demonstra uma latente disputa de prestígio entre o

96
AHU, Luiza da Fonseca, caixa 12, documento 1533 [11 de Dezembro de 1652].
97
AHU, Luiza da Fonseca, caixa 28, documento 3549 [15 de Julho de 1689].
98
Idem.

45
chanceler e Arcebispo ou, numa escala mais ampla, entre o poder civil e o poder
eclesiástico.
Outro caso litigioso se deu por ocasião da chegada do Arcebispo Dom João
Franco de Oliveira em 1693. Vindo de Angola para assumir o arcebispado da Bahia99, o
antístite enviou uma carta à Coroa contando sobre a forma estranha como foi recebido
pelo Governador Antônio da Câmara Coutinho. Narrou o prelado que Câmara Coutinho
ordenou que a embarcação em que estava parasse em “Santo Amaro da Barra, meia
légua” da praça da cidade.100 Continua dizendo que “o dito Governador rendera o
Mestre do navio” por ter no topo do navio uma bandeira que por certo estranha a ele,
causando entre o povo da cidade “grande escândalo”.101
As entradas dos Bispos nas suas dioceses foram ritos consagradores do poder
episcopal. Segundo Pedro Paiva, esse tipo de cerimônia pública ganhou força ao longo
do século XVII, e que continuou no XVIII, e tinha um papel fundamental na afirmação
do prelado frente aos membros do clero local e outros poderes da cidade sede do
bispado.102 O ato solene das entradas episcopais era rigorosamente organizado e deveria
seguir de maneira ordenada as regras de etiqueta próprias para o cerimonial dos Bispos.
Como afirma Paiva, “o ritual estruturava-se em seis núcleos fundamentais”, que iam
desde o momento que precedia sua chegada até sua saída da catedral depois dos ritos
religiosos mais privados, quando o ambiente de festa e prodigalidade tomava conta das
ruas.103 As festas e cerimônias públicas adquiriram grande importância para a cultura
política dos seiscentos e setecentos e por isso mesmo qualquer erro na sua organização

99
A própria viagem do dito arcebispo foi tema de uma consulta do conselho ultramarino. Dom João
Franco de Oliveira afirmou que os tipos de embarcação que faziam a viagem de Angola para o Brasil
não eram apropriadas para acomodar um prelado proeminente como ele. Segue a transcrição de um
trecho do documento: “é necessário que Vossa Majestade se sirva de conceder-lhe preferência para o
navio que parte deste porto na monção presente, ou para outra qualquer que o Arcebispo achar em
Angola capaz de o conduzir para aquele Arcebispado com a sua família, porquanto as embarcações
que navegam de Angola para o Brasil são umas sumacas muito pequenas, as quais servem somente de
carregar negros, e não será decente que um Arcebispo vá metido entre os cantos, e clamores daquela
gente, que causa horror [ilegível] aos mesmo marinheiros, e por terem esta serventia as tais
embarcações não há nelas câmaras, nem agasalhados que se requerem para quaisquer outros
passageiros, quanto mais para um Arcebispo, e sua família [...]”. AHU, Luiza da Fonseca, caixa 29,
documento 3688 [20 de Março de 1692]. Para saber mais sobre os tipos de embarcação ver: Cândido
Domingues de Souza,”Perseguidores da espécie humana: capitães negreiros da cidade da Bahia na
primeira metade do século XVIII” (dissertação de mestrado), PPGH-UFBA, 2011, sobretudo o
glossário das embarcações.
100
Arquivo Público da Bahia (APB), Setor de Microfilmagem, Ordens Régias, volume 2, documento 176.
101
Idem.
102
José Pedro Paiva, “Etiqueta e cerimônias públicas na esfera da Igreja (séculos XVII e XVIII) in
Jancsó, István e Kantor, Íris (orgs.), Festa: cultura e sociabilidade na América portuguesa, São Paulo,
Hucitec/EDUSP, 2001, pp. 75-93.
103
Idem, pp 81-83.

46
provocava desconcertos e conflitos. Assim, a recepção do Arcebispo Dom João Franco
de Oliveira, como ele mesmo dá conta, não teve a pompa esperada e isso lhe causou
muito “estranhamento”.
Outras contendas tiveram as cerimônias públicas como palco. Segundo Ediana
Ferreira Mendes, o quadro de festas e procissões reais foi sendo formado ao longo do
século XVII.104 A sua organização cabia à Câmara da cidade, bem como o custeio de
suas despesas. Toda a população comparecia aos festejos e muitos deles tinham dever
enfeitar suas casas caso estivessem no percurso do préstito. Ademais, o séquito era
composto por oficiais camaristas, autoridades régias, membros das corporações de
ofício (sobretudo as que possuíam bandeira), as irmandades religiosas e o clero. Havia
uma hierarquia pré-estabelecida, que ordenava o lugar dos corpos sociais que
compunham a procissão, presidida sempre pela maior dignidade local –
Bispo/Arcebispo e em caso de Sé vacante, o Deão.105 Certamente o caráter hierárquico
dessas cerimônias, reflexos da sociedade na qual estavam inseridas, contribuiu para a
eclosão de contendas entre autoridades e instituições de todos os tipos. Esse quadro
litigioso normalmente era causado pelo não cumprimento do programa previsto para as
procissões, e eram conhecidos como conflitos de precedência.106
Em Salvador não faltaram exemplos no período seiscentista e setecentista que se
enquadrem no que foi descrito no parágrafo anterior. Os principais conflitos ocorriam
entre a Câmara e o Cabido e já foram temas de dois trabalhos muito relevantes para a
história política e da cultura política da Bahia colonial.107
Os casos litigiosos que terão mais atenção nos capítulos seguintes da dissertação
são conflitos de jurisdição entre suas personagens e foram escolhidos pela dimensão que
alcançaram no contexto em que ocorreram. Os querelantes, em nome do bem comum,
queixavam-se da outra parte por não cumprir o seu papel de bom vassalo e pelo bom
governo da colônia. Cabe colocar, para tanto, que no fundo essas brigas eram
verdadeiras disputas de poder e privilégio, características que serviam bem a incansável
busca de prestígio dos indivíduos inseridos na lógica desse Antigo Regime dos trópicos.

104
Ediana Ferreira Mendes, “Festas e procissões reais...”, p. 28.
105
Idem, p. 82,
106
Na dissertação de mestrado de Mendes o capítulo “Entre procedências e jurisdições: contendas nas
festividades reais” é destinado aos conflitos que se desenrolaram em torno das celebrações públicas na
cidade da Bahia.
107
A já citada dissertação de mestrado de Ediana Ferreira Mendes é muito relevante para o estudo desse
tema. Importante também conferir o artigo de Evergton Sales Souza, “Entre vênias e velas: disputa
política e construção da memória do padroeiro de Salvador (1686-1760)”, Revista de História (USP),
v. 162, p. 131-150, 2010.

47
No cotidiano de Salvador eram corriqueiras as contendas entre os mais diversos oficiais
reais e os prelados e seu estudo torna-se imprescindível para compreender um pouco
mais do cotidiano político da sede da América portuguesa nos séculos XVII e XVIII.

48
Capítulo II

Os tons da convivência: jurisdição e litígios no contexto da Restauração

“Que em quanto às dificuldades que se lhe


representavam, que já se não podiam prevenir;
porque só o benefício do tempo era quem as
havia de remediar; que na contingência da Lua
inconstante semeava o lavrador a terra, e no
perigo da variedade do vento se arrojava ao mar
o navegante...”.108

O primeiro Governador nomeado por Dom João IV para administrar sua colônia
na América foi Antonio Telles da Silva. Momento delicado, de grande instabilidade
política para a dinastia bragantina, exigia dos governantes do Império extrema
habilidade. Embora enquanto homem de armas Telles da Silva tenha cumprido o seu
papel, impedindo mais invasões holandesas no nordeste do Brasil e lutando para
melhorar as tropas e fortificações da cidade da Bahia, nos seus atos administrativos não
encontramos tanto zelo. Em 1642, ao desembarcar em Salvador, substituiu a
administração do triunvirato formado pelo Bispo, Pedro da Silva Sampaio, o Mestre de
Campo, Luiz Barbalho Bezerra e o Provedor mor, Lourenço de Brito Correa. Essa junta
governativa provisória foi criada após a deposição controversa do Marquês de
Montalvão, história que será mais tratada mais a frente nesse capítulo. Foco maior,
entretanto, é a relação conturbada entre Dom Pedro da Silva e o Governador, que foi ao
mesmo tempo pivô de outro litígio com o Ouvidor Manuel Pereira Franco. Esses dois
problemas identificados ao longo do seu governo revelam que, ao contrário do que o
momento exigia, Antonio Telles da Silva não soube conduzir sua administração com o
cuidado necessário. Por outro lado, o Bispo era um homem, ao que tudo indica não
menos difícil de conviver. Ao longo do seu bispado envolveu-se em querelas e

108
Luis de Meneses, Conde de Ericeira, História de Portugal Restaurado, vol. 1, Lisboa, Oficina de
Domingos Rodrigues, 1759, pp.98-99.

49
participou ativamente do golpe que depôs Dom Jorge de Mascarenhas, vice-rei do
Brasil. Para tanto, a compreensão dessa conjuntura política administrativa de 1642 exige
um conhecimento acerca dos eventos que a precederam e influenciaram direta ou
indiretamente para a temática central desse capítulo.

1-“Liberdade portuguezes Viva El Rey Dom João o Quarto”109

A aclamação de Dom João IV no primeiro de dezembro de 1640 foi, certamente,


um dos episódios mais celebrados da história de Portugal. Grande parte dos autores que
analisaram o episódio o fez através de um olhar passional e nacionalista, que valorizava
uma leitura anticastelhana do ocorrido. Segundo Hespanha, as próprias fontes
(sobretudo literárias) favoreciam essa perspectiva, quando a historiografia, a literatura
política e jurídica, as gazetas, panfletos, dentre outros, tudo foi colocado a serviço da
causa portuguesa.110 Na década de 60 do século XX houve uma virada historiográfica
que trouxe à tona uma análise menos romântica da Restauração. Foram levadas em
conta as transformações econômicas portuguesas durante o período da União Ibérica,
bem como a maneira que os diversos grupos sociais reagiram a elas; a depender da
conjuntura, podiam ficar contra ou a favor da união com a Espanha. Emergiram os
posicionamentos de uma nobreza insatisfeita com o afastamento da corte e do Rei, o que
dificultou o acesso a títulos de nobreza e mercês. Os nobres ainda tinham que “suportar
a concorrência dos seus pares dos outros reinos, sobretudo dos castelhanos, muito mais
ricos e decorados com títulos e grandezas...”.111
A Igreja também não estava alheia à insatisfação. A política regalista castelhana
provocou uma ameaça às isenções jurisdicionais dos religiosos concedidas por Dom
Sebastião, pois a Coroa passou a pedir uma maior contribuição financeira através dos
impostos gerais, de pedidos diretos ou da privação das rendas das comendas. 112 As
revoltas antifiscais que eclodiram em diversas partes do reino também foram

109
Segundo o Conde de Ericeira, na sua obra, essas foram as palavras entoadas por Dom Miguel de
Almeida durante a tomada do Paço pelos restauradores. Ericeira, História de Portugal...pp. 108-109.
110
António Manuel Hespanha, “A restauração portuguesa nos capítulos das Cortes de Lisboa de 1641”,
Penélope, n. 9/10, 1993, pp. 29-65.
111
Hespanha, “As estruturas políticas em Portugal...”, p.146.
112
Idem idibem.

50
indicadoras de um descontentamento com a política promovida por Felipe IV e seu
valido, o Conde Duque de Olivares. Mas elas eram um fenômeno complexo, como
afirma Hespanha, pois o fisco atingiu os diversos grupos sociais de forma diferente e
também provocou reações diferentes.113 De toda sorte, não ocorreram episódios ao
longo da monarquia dual que indicasse um movimento nacionalista contra a dominação
espanhola.
A questão legitimidade versus naturalidade do rei é do mesmo jeito válida para
essa conjuntura política. Reis não naturais “era coisa que não faltava nunca no
panorama político europeu” do período. Então, diz Hespanha, não era possível produzir
uma teoria jurídica assentada nessa lógica para justificar a ilegitimidade da união das
coroas.114 A naturalidade provinha menos do local de nascimento e da “nação dos pais”
e mais dos laços consanguíneos, o que tornava Felipe II e seus sucessores herdeiros
legítimos do trono português. Ele era filho de Carlos I de Espanha e Isabel de Portugal
e, portanto, neto de Dom Manuel I. Ainda assim, à época houve quem discordasse da
união das duas coroas. Dom Antonio, prior do Crato e primo do falecido rei Dom
Sebastião, surgiu como um possível candidato ao trono português, mas seus esforços
não obtiveram sucesso – a suspeita de bastardia recaía sobre ele. Durante os sessenta
anos da União Ibérica, oscilou o grau de satisfação ou insatisfação dos portugueses em
relação aos Habsburgos. Mas foi sob o governo de Filipe IV (1621-1640) que
apareceram maiores oposições à união das duas coroas.
Um rei, ao fazer seu juramento, assumia um pacto com seus súditos para zelar
pelo bem comum. Não tinha poderes ilimitados; “tinha apenas a jurisdição concedida
pelo povo e dentro desses limites”.115 A finalidade última do bom governo – entendida
como manutenção da constituição tradicional do reino116 – era a justiça, que tinha como
seu principal executor o monarca. Era dele que emanava tudo que dizia respeito a esse
aspecto na sociedade do Antigo Regime. Especialista na história do direito português,
Hespanha afirma que foi a noção de que a constituição do reino estava a ser alterada
pelo governo castelhano que uniu os diversos grupos sociais de Portugal em favor do
Duque de Bragança.

113
Idem, p. 144. Cf. Hespanha, “A restauração portuguesa nos capítulos...”
114
Hespanha, “Estruturas políticas...”, p. 140.
115
Eduardo D´Oliveira França, Portugal na época da Restauração, São Paulo, Hucitec, 1997, pp.269-
270.
116
Hespanha, “As estruturas políticas em Portugal...”, p.147.

51
A ideia de um rei tirano deu a “liga” entre os pensamentos mais contraditórios; a
tirania foi o ponto em que todos estavam de acordo.117 Um governo ativo e reformista
promovido pela política olivarista era a antítese de um governo passivo e baseado na
quietação, característico da administração portuguesa até então.118 Segundo Torgal, a
administração filipina foi centralista e desrespeitou as promessas de certa autonomia de
Portugal e isso certamente foi responsável por grande parte da insatisfação dos
portugueses com o governo castelhano.119 O aperto fiscal, com a implementação de
novos impostos (que não desapareceram após a Restauração) fez doer o bolso não só do
povo, mas também do clero e da nobreza. E unido a esse fator pode-se adicionar o
problema do afastamento da nobreza da corte, com sede em Madri, a interferência do
Poder civil em assuntos de prerrogativas eclesiásticas e a obrigação de alguns militares
de lutarem em conflitos que interessavam apenas à Espanha geraram um clima de
descontentamento propulsor do golpe político de 1640.120 Portanto, nos últimos anos da
União Ibérica a Espanha viu crescer uma oposição bem sucedida que culminou com a
aclamação de Dom João IV – representante da principal casa da nobreza portuguesa –,
dando início a uma nova dinastia na coroa de Portugal.
O Conde de Ericeira, na sua obra sobre a Restauração portuguesa, narrou a
resistência de Dom João para aceitar o posto de rei. No episódio de 1640 ele não teve
uma participação muito ativa. Vivia em Vila Viçosa, não em Lisboa, e lá mantinha uma
“corte na aldeia”.121 Ainda segundo Ericeira, convencido e apoiado por grande parte dos
nobres, o Duque decidiu aceitar a proposta. A partir daí, os acontecimentos narrados
demonstram uma pressa para a execução do plano. O medo de que as notícias
chegassem a Castela fez com que logo articulassem uma maneira de aclamar o novo rei.
No primeiro dia de dezembro de 1640, um sábado, os “confederados” se organizaram
no terreiro do Paço para tomar o governo e depor a guarda castelhana. Ficou acertado
que às nove horas da manhã eles “saíssem das carroças ao mesmo tempo” e que

Uns ganhassem o corpo da guarda onde estava uma Infantaria castelhana,


outros subissem à sala dos Tudescos a deter a guarda dos Arqueiros alemães
que assistia nelas, outros apelidassem pelas janelas do Paço liberdade, e

117
Hespanha, “A Restauração portuguesa nos capítulos...”, p. 31.
118
Idem ibid.
119
Luís Reis Torgal, Ideologia Política e Teoria do Estado na Restauração, Volume 1, Coimbra,
Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, 1981, pp.76-77.
120
Idem, p. 77.
121
Conferir a obra de Francisco Rodrigues Lobo, Cortes na aldeia e Noites de Inverno, Lisboa, Ed.
Presença, 1991.

52
aclamassem ao Duque de Bragança Rei de Portugal, outros entrassem a
matar o Secretário de Estado Miguel de Vasconcellos.122

Aclamado o novo rei de Portugal, uma das maiores dificuldades era então fazer
funcionar o novo governo. Segundo Torgal, a política portuguesa se encontrou numa
situação dramática após 1640, pois não havia propriamente um Estado.123 Dom João IV
não liderou diretamente o processo político que culminou na sua aclamação e por isso
teve que tomar uma série de medidas emergenciais para problemas conjunturais e outros
tantos relativos às oposições.124 Novos aparelhos burocráticos foram criados com
objetivo de garantir a soberania do monarca e muitos dos criados durante a monarquia
dual foram mantidos. Podemos até afirmar que, em última instância, a dinastia
brigantina também significou a continuidade do governo do seu antecessor espanhol,
pois se utilizou “dos tribunais existentes”, confirmou mercês concedidas por Felipe IV,
adotou leis e regimentos anteriores, inclusive as Ordenações Filipinas e, por fim,
manteve muitos dos altos oficiais.125 Contudo, as dificuldades internas para organização
do governo e sua posterior consolidação não constituíram o único problema do recém
aclamado rei Dom João IV e de Portugal. Seria ainda necessário empreender estratégias
para legitimá-lo perante outros Estados – a exemplo de França, Holanda e Inglaterra –,
bem como alcançar o reconhecimento da legitimidade da nova dinastia pela Espanha e
por Roma. E a muito custo esse objetivo só será alcançado décadas depois.
Muitas ações foram realizadas pelo governo restaurador em prol da consolidação
da nova dinastia no poder. Entre elas, a formação de um corpo diplomático que chama
atenção. A fragilidade do período pós 1640 foi endossada pela discussão da
legitimidade dos Bragança na sucessão real e pela propaganda castelhana, que creditava
a mesma aos Habsburgos.126 Muitos diplomatas foram enviados por Portugal a diversas
partes da Europa, almejando o reconhecimento do novo rei. Contudo, a principal luta
diplomática portuguesa foi, inevitavelmente, com a Espanha e a Santa Sé. Contra a
primeira, e em busca de um tratado de paz no qual fosse reconhecida a sua

122
Ericeira, História de Portugal restaurado...p.99
123
Luis Torgal, “Restauração e ’Razão de Estado’”, Penélope, n. 9/10, 1993, pp. 163-167.
124
Idem, p.163
125
Idem, pp; 163-164.
126
Thiago Groh de Mello Cesar, “A política externa de Dom João IV e o Padre Antônio Vieira: as
negociações com os países baixos (1641-1648)” (dissertação de mestrado), Niterói, UFF, 2011, p.23.

53
independência, foram reunidos também esforços militares que só obtiveram êxito em
1668.
Já os problemas diplomáticos com Roma afetaram enormemente a vida interna
da Igreja portuguesa. Entre 1640 e 1670, afirma Paiva, duas questões foram dominantes:
o reconhecimento papal da legitimidade de Dom João IV enquanto rei de Portugal,
indispensável para a boa relação entre os dois estados, e o provimento dos bispados e de
outros benefícios, que tornava a delicada a situação no interior da Igreja nacional.127
Atente-se ao caso do bispado do Brasil, que ficou vacante por vinte anos, após a morte
de Dom Pedro da Silva Sampaio em 1649. Não demorou muito para que o monarca
brigantino enviasse uma missão diplomática a Roma, mas ela não alcançou seu
objetivo. As investidas dos espanhóis para impedir o encontro do Papa com os
portugueses foram bem sucedidas e logo a missão retornou à Portugal sem sucesso.128
O impasse permaneceria por quase três décadas e muitas sugestões de soluções
para o problema surgiram ao longo dos anos, inclusive a de prover os bispados sem a
confirmação do Papa. Ressaltemos que para Roma a situação também era delicada. Ao
mesmo tempo em que não podia abrir mão do apoio da monarquia espanhola, assistia
passivamente a degradação da Igreja portuguesa, dando margem a movimentos
secessionistas. Apenas após a paz entre Castela e Portugal em 1668 deu condições para
uma reaproximação entre a monarquia lusitana e Roma.
De volta ao período pós-aclamação, somadas estas preocupações com Castela e
Roma, Portugal ainda tinha que resolver as questões que envolviam os holandeses e a
invasão de seus territórios ultramarinos, sobretudo o Nordeste do Brasil e Angola. Já em
1624 os batavos ocuparam a principal cidade da América portuguesa, Salvador. Não
obstante seu insucesso, uma vez que foram expulsos no ano seguinte, eles não
pouparam esforços para conquistar outros pontos da costa brasileira. Em 1630 foi a vez
de Recife, que só se libertaria em 1654, e em 1641, já sob a dinastia bragantina, Luanda
não resistiu às investidas de Holanda e só sairia do seu domínio sete anos mais tarde.
O Padre Antônio Vieira, que viveu na Bahia desde 1615 com sua família, voltou
a Portugal em 1641 na comitiva responsável por confirmar a adesão do Brasil à causa
bragantina. Cinco anos mais tarde tornar-se-ia homem de confiança do rei e tutor do
príncipe D. Teodósio. Em 1646, o jesuíta foi escolhido para liderar uma curta missão

127
José Pedro Paiva, “A Igreja e o Poder”..., pp. 135-185. Ver também Evergton Sales Souza, Jansénisme
et reforme de l’Église dans l’Empire portugais (1640 à1790), Calouste Gulbenkian, Paris, 2004, pp.
99-110.
128
Acompanho aqui a narrativa de Paiva em “A Igreja e o Poder”..., 158-163.

54
diplomática nos Países Baixos. Voltou a viajar para lá no ano seguinte, onde procurou
não só pensar em soluções para o impasse entre a Holanda e Portugal, mas também
executá-las de forma a conter a crise instaurada no reino, agravada pela presença dos
holandeses nos territórios do Império da Ásia, África e América.129 Mas a embaixada de
Vieira não foi a primeira a tentar negociar a paz com a Holanda. Já em 1641, Tristão de
Mendonça Furtado foi nomeado para tal tarefa. Evaldo Cabral de Mello atenta que a
Coroa portuguesa não possuía um corpo diplomático experiente e teve que improvisar
recrutando pessoas da alta aristocracia, do clero, do sistema judiciário e os fiéis à Casa
de Bragança.130 Mendonça Furtado não foi atrás de um tratado de paz, que Portugal
sabia requerer muito tempo para ser formulado. À urgência do momento, afirma Cabral
de Mello, cabia uma trégua entre ambos.131
O acordo de trégua de dez anos “previu a cooperação naval contra a Espanha”,
bem como autorizou a compra de armamento e munição e o recrutamento de tropa nas
Províncias Unidas (tratado aqui também como Países Baixos). Além disso, normalizou
as relações comerciais entre portugueses e neerlandeses. 132 Entretanto, um dos
principais objetivos da embaixada não foi alcançado, qual seja a devolução dos
territórios coloniais tomados pela WIC (Companhia das Índias Ocidentais) e a VOC
(Companhia das Índias Orientais) em troca de recompensa financeira. Para lograr
sucesso, os portugueses ainda teriam que fazer uso da força. Para as colônias, o acordo
só passou a valer após o recebimento da notícia da sua assinatura. Esse método,
sugerido pelo embaixador português, trouxe muitos prejuízos a Portugal, visto que se
valendo disso a Holanda tomou posse de outros territórios do ultramar lusitano, como
Angola, São Tomé e o Maranhão.133 Embora sob protestos, e às vésperas do Congresso
de Vestfália, os Estados Gerais (quando estavam reunidos os representantes das sete
províncias que formavam as Províncias Unidas dos Países Baixos) comunicaram a
ocupação legal desses três territórios.134 Da parte dos portugueses aumentou a
desconfiança com os batavos e ganhou força a ideia de restaurar o Nordeste do Brasil
pelo uso das armas. O Conde de Ericeira, sobre o episódio de “traição”, afirmou que

129
Cesar, “A política externa…”, p. 91-92
130
Evaldo Cabral de Mello, O Negócio do Brasil, São Paulo, Companhia das Letras, 2011, p.31.
131
Idem, p. 32.
132
Idem, p.34.
133
Idem, p.36
134
Idem, p.39

55
Inclinavam-se alguns Ministros à represália, dizendo que os holandeses
haviam faltado à capitulação, quebrando a paz ajustada com Tristão de
Mendonça [...] pois logo que El Rei sinceramente se fiou da sua amizade,
começaram a enganá-lo; e que além desta exorbitância, senão contentaram
de assaltar e render Angola e S. Thomé [...].135

Ainda que abalada, a relação diplomática com os batavos não foi cessada e,
embora houvesse em Portugal quem defendesse represálias como contrapartida ao
ocorrido, venceu o argumento defendido pelo padre António Vieira e pelos conselheiros
ultramarinos de que eles não seriam capazes de manter duas frentes de batalha, a
inevitável contra a Espanha e a outra contra os Países Baixos.136 Apenas na década de
60 Portugal alcançou um acordo com Haia – além do almejado reconhecimento da
Espanha e da Santa Sé da independência portuguesa. O outrora aclamado Dom João IV,
que tratou logo de angariar o reconhecimento e o apoio daqueles que formavam a
coalizão antiespanhola (França, Dinamarca, Suécia e Países Baixos), e que também
enviou embaixadas especiais para Madri e Roma, não testemunharia o sucesso de sua
iniciativa diplomática.

2- As dificuldades no Império após a Restauração de 1640

O episódio de 1640 não trouxe desafios para o novo governo português apenas
no continente europeu. Como afirma Luciano Figueiredo, os anos que se seguiram
“foram marcados por muitas aflições no Império Ultramarino”.137 Ao longo de pelo
menos quarenta anos, infere o historiador, uma dezena de rebeliões contra os
representantes régios eclodiram da América à Ásia, perpassando pela África.
Conspirações, deposições e mortes marcaram os governos coloniais por um longo
período, causando uma instabilidade na administração das colônias e revelando suas
fragilidades. Ainda segundo Figueiredo, é perceptível nas alterações ultramarinas o eco
da disseminação da ideologia política que preparou, na metrópole, o terreno para a

135
Ericeira, História de Portugal Restaurado..., p.309
136
Mello, O negócio do Brasil..., pp; 39-42.
137
Luciano Raposo de Almeida Figueiredo, “O império em apuros: notas para o estudo das alterações
ultramarinas e das práticas políticas no Império Colonial Português, séculos XVII e XVIII” in Júnia
Furtado, Diálogos Oceânicos: Minas Gerais e as novas abordagens para uma história do Império
Ultramarino Português, Belo Horizonte, UFMG, 2001, pp. 197-254.

56
Restauração.138 O caráter constitucional do movimento, sob o discurso do bem comum,
pretendeu restaurar as autonomias políticas e os privilégios de grupos sociais. No
ultramar, a releitura dessa doutrina reavivou o papel do equilíbrio entre a obediência e a
justiça, ou, em outra esfera, entre súdito e soberano.139 Podem-se dividir as altercações
em duas fases: a primeira, que ocorre na década de 1650, está diretamente ligada com as
novas nomeações para o posto de Governador. A segunda, identificada, sobretudo, entre
1660 e 1688, esteve intrínseca ao processo de grande centralização promovido pela
Coroa portuguesa, tendência que predominaria sua administração partir de então. Num
primeiro momento a tônica da traição e da covardia foram os grandes motivadores das
revoltas, enquanto depois, embora esses dois fatores não tenham desaparecido, a tirania
surge como o principal estopim das revoltas.140
Na Bahia, em 1641, um golpe que depôs o Marquês de Montalvão, vice-rei do
Brasil, demonstrou o momento atrapalhado e delicado pelo qual atravessava Portugal e
suas extensões territoriais. Sobre isso, trataremos mais a frente. Dois anos depois, no
Rio de Janeiro, o então governador, Luis Barbalho (que fez parte do triunvirato na Bahia
em 41) sentiu as consequências da sua falta de habilidade política. Ao seguir à risca as
determinações reais, Barbalho impôs um arrocho fiscal à população do Rio de Janeiro,
que passou a custear as despesas relativas aos presídios e fortificações da cidade. Ainda
que com certo grau de insatisfação, os moradores toleraram a cobrança em prol da
lealdade com seu soberano. Mas, como afirma Figueiredo, se a cobrança fora tolerada, o
mesmo não ocorreria com a remessa desse dinheiro, cunhado no Rio, para a Bahia, com
a finalidade de atender aos gastos daquela capitania com sua defesa.141
Antonio Teles da Silva, então governador geral do Brasil, disse que os
revoltosos, decididos a não deixar prosseguir tamanho absurdo,

Intentaram tirar o cofre de poder dos oficiais de Vossa Majestade a que o


Governador acudiu, levando para sua casa maior segurança, aquietando o
povo, com lhe dizer que me escrevia representando-me que para a fortaleza
que eu ordenava se fizesse na Lagem, não havia dinheiro algum, e que
estivessem certos, que a resposta seria a que eles desejavam, por tanto me
tocava a defesa daquela cidade com a da Bahia donde estava. E enviando um
correio por terra com este aviso, despachei logo uma embarcação, com
ordem que se não bulisse no dinheiro, que eu ficava dando conta a Vossa
Majestade e que da grandeza de Vossa Majestade esperava lhes concedesse o

138
Idem, p.216
139
Idem ibid.
140
Idem, p.222
141
Idem, p. 201.

57
que pediam. Não esperando por esta resposta, se resolveram levantar um
motim, e a querer tirar por força o cofre da casa do Governador, a quem foi
necessário mandar tocar caixa, e pôr-se em defesa; mas como a Infantaria é
pouca, e a mais dela gente casada na mesma terra, deu ânimo aos do povo
insistirem de maneira que constrangeram ao Governador a que desse um
escrito, em que se obrigava a ser depositário do dito cofre, sendo
companheiro no depósito o Administrador, para cuja casa havia de ir o tal
cofre, instando nisto com tanta violência que obrigaram ao Governador a
dizer que já lá estava, não estando ainda. 142

O governador teve um fim dramático: morreu de “desgosto” dias depois, e o cofre foi
levado para as mãos dos administradores eclesiásticos.143 Quase duas décadas mais
tarde o Rio de Janeiro seria palco de outro motim antifiscal.
O Império português do Oriente também sofreu abalos similares ao do Rio de
Janeiro. Durante as décadas de 40 e 50 foram muitas revoltas de insatisfação em sua
maioria contra as autoridades locais. Desde a Restauração a porção oriental do ultramar
português sofreu um processo de contração e redução dos seus territórios. Se no século
XVI Portugal imperou no Índico, no final do século XVII havia perdido a maioria do
território da África oriental. A falta de recursos, a escassez de material humano para
compor uma força militar e a fraca marinha portuguesa foram fatores que influenciaram
diretamente na gradual perda do ultramar oriental. Ademais, aos olhos de Portugal,
surgia um novo “negócio” que se apresentava mais rentável naquele contexto. O eixo do
Atlântico sul formado por Portugal, Brasil e a costa ocidental da África (principalmente
Angola, São Tomé e a Costa da Mina) passou a representar, já na segunda metade dos
seiscentos, a base na qual estava assentada a economia do Império português.144
A partir da década de 1660, a América passou a ser o palco principal das
inquietações ultramarinas. Identificadas por Luciano Figueiredo ainda como reflexos da
experiência restauradora, principalmente o Rio de Janeiro e Pernambuco vivenciaram
convulsões que, em geral, procuraram denunciar a tirania dos seus governantes. Na
primeira delas, Salvador Correia de Sá e Benevides, Governador da capitania, viu-se
cercado por uma revolta causada pelas insatisfações da sua política fiscal. Embora
estivesse dando cumprimento às ordens reais, a população carioca (leia-se a sua elite) se
levantou, em finais de 1660, contra mais uma tentativa de cobrança de uma taxa que

142
AHU, Luisa da Fonseca, caixa 9, documento 1060 [4 de junho de 1644].
143
Idem.
144
Para o tema, conferir sobretudo Luiz Felipe de Alencastro, O trato dos viventes: formação do Brasil
no Atlântico-sul, São Paulo, Companhia das Letras, 2000.

58
visava suprir os gastos relativos à defesa da cidade.145 Recaíam também sobre a
autoridade real outras denúncias, como a de não respeitar os limites de sua jurisdição e a
convergência entre Salvador Correia de Sá e a Companhia de Jesus na defesa dos índios
contra a escravidão, que acabava por atingir diretamente os interesses de grupos
econômicos.146 O tumulto, ainda que tenha culminado rapidamente na deposição do
Governador, não logrou sucesso e a retomada da cidade levou à forca o líder do
movimento.
Em 1666, na capitania de Pernambuco, o Governador Jerônimo de Mendonça
Furtado foi deposto e preso depois de ser acusado de causar males ao bem comum.
Evaldo Cabral de Mello afirma que as graves as culpas que recaíam sobre Xumbergas,
como era conhecido Mendonça Furtado, pois “administrava como um tirano,
interferindo no funcionamento do judiciário, executando dívidas, sequestrando bens” e
ainda prendendo e soltando pessoas ao seu bel prazer.147 E tudo por dinheiro. Sobre esse
assunto, foi também acusado de levar para si uma parte dos donativos da rainha da
Inglaterra e para a paz de Holanda, de liberar o comércio com os franceses e de
recunhar moedas em sua própria casa.148
Nos primeiros anos que se sucederam à Restauração, a coroa portuguesa
procurou se utilizar estratégias políticas imprescindíveis para a manutenção do seu
Império e o reconhecimento da legitimidade da nova dinastia. Contudo, pelo menos no
que tange à quietação do além-mar, ela não foi bem sucedida. As altercações ocorridas
da Ásia ao Brasil demonstraram que, embora as autoridades reais nomeadas para
governar no ultramar tenham sido enviadas com muitas recomendações, elas não foram
habilidosas o suficiente para evitar os motins. E mesmo que contraditoriamente, essas
inquietações ajudaram a reforçar os laços de fidelidade entre os súditos e o monarca, já
que eram os governadores e não a própria figura real que tinham sua autoridade
contestada. Não conformados, os vassalos procuraram fazer valer a justiça real,

145
Figueiredo, O império em apuros..., pp. 207-208.
146
Um documento do AHU revela o parecer do então governador sobre a situação dos índios. Pede
Salvador Correia de Sá que cada mosteiro só possa manter 100 casais de índios para usar como mão
de obra, o que não era um hábito entre os religiosos da capitania. Ele dá também notícias sobre as
aldeias de São Paulo e do Rio de Janeiro e a quantidade de índios nelas quando da presença dos
jesuítas e depois que eles partiram. AHU, Luiza da Fonseca, caixa 34, documento 4361 [sem data].
147
Evaldo Cabral de Mello, A fronda dos mazombos: nobres contra mascates, Pernambuco, 166-6-1715,
São Paulo, Ed. 34, 2003, p. 23.
148
Idem ibid.

59
combatendo o despotismo e a tirania dos governantes locais em favor de bom
governo.149
Os anos entre 1640 e 1660 foram conturbados, repletos de convulsões que
puseram à prova as limitações administrativas da coroa portuguesa em suas possessões
ultramarinas orientais e ocidentais. Embora para os portugueses – embalados pelo
sucesso do movimento restaurador – a coroação de Dom João de Bragança tenha trazido
uma impressão de solução dos problemas causados pela união ibérica no que diz
respeito ao seu Império, o desenrolar dos acontecimentos nos anos que se sucederam ao
1º de dezembro provaram o contrário. Na Bahia, pouco mais de dois meses depois, a
notícia da aclamação desencadeou uma reviravolta política que culminou no golpe que
tirou do governo Dom Jorge de Mascarenhas, o Marquês de Montalvão.

3- A notícia da aclamação de Dom João IV e suas consequências na Bahia

Aos 15 dias do mês de fevereiro aportou em Salvador uma caravela que trazia
uma carta destinada ao então vice-rei Marquês de Montalvão. Nela continha a notícia da
ascensão do Duque de Bragança ao trono português e também uma ordem para que ele
fosse imediatamente reconhecido e aclamado por seus vassalos como rei legítimo.
Affonso Ruy relata que foi devido à argúcia de Montalvão que a adesão da cidade à
causa portuguesa se deu sem incidentes. Deve-se lembrar de que havia em Salvador
muitos terços castelhanos, chegando possivelmente ao número de 600 homens.150 Para
tanto, o vice-rei incumbiu seu filho, Dom Fernando Mascarenhas de comandar uma
tropa que seguiu para ocupar o Terreiro de Jesus e forçar a entrega da direção geral das
tropas castelhanas.151 Realizadas as ações práticas, seguiram as ações solenes, cujo
desenrolar deixa entrever o assento lavrado pela Câmara. Narra-se que

Por mandando do Vice Rei houve chamamento de todos os prelados das


religiões Câmara e ministros da guerra e cabeças dela sem se dar carta
nenhuma nem se saber a ocasião desta suspensão em que todos estavam
foram diante do dito Vice Rei os oficiais da Câmara a quem ele mostrou uma

149
Figueiredo, “O império em Apuros...”, pp.. 226-227.
150
Ruy, História política e administrativa..., p. 170.
151
Idem, p. 40.

60
carta escrita por El Rei Nosso Senhor Dom João quarto do nome que na
cidade de Lisboa o povo e nobreza de Portugal havia levantado por Rei152

A dita carta continha instruções para que os moradores do Brasil procedessem da


mesma maneira e, sem aparentes hesitações, os presentes trataram logo de manifestar
graças pela restituição do “Rei verdadeiro e natural”.153 Através de uma votação
realizada em particular, Dom João IV foi unanimemente aclamado. Em seguida, na Sé
da cidade, sobre um missal, Dom Jorge de Mascarenhas jurou obediência. Da mesma
forma procedeu a Câmara da cidade, em nome de todo o povo.
O desenrolar dos acontecimentos narrados pela Câmara de Salvador deixou claro
que as medidas tomadas pelo Marquês de Montalvão não revelaram qualquer titubeio
ou contestação de sua parte. Ao contrário. Ruy afirma que ele não descuidou de angariar
a fidelidade das demais capitanias e não poupou esforços ao enviar portadores aos
capitães e governadores das capitanias do Sul.154 Um exemplo é a missiva enviada pelo
próprio para o Conde de Nassau, em Pernambuco, que tornou explícito o seu
reconhecimento da nova dinastia na coroa portuguesa e também suas intenções de
negociar em favor de Portugal a entrega do Nordeste pelos holandeses. Segundo
Evaldo Cabral de Mello, esse contato, mantido secretamente, produziu uma boa
quantidade de correspondências e foi iniciado antes mesmo da chegada da notícia da
aclamação.155 Interessa-nos aqui, sobretudo, as cartas que tratam do fim da União
Ibérica e que explicitam os esforços de Mascarenhas em prol da causa portuguesa e de
sua nova dinastia. O vice-rei, além de contar sobre o acontecimento político, deixou
claro sua

Esperança de que este Reino, e Ilustríssimos Estados de Holanda tenham


aquela paz, e união com que sempre se trataram, correspondendo-se com tão
recíprocos benefícios, e com tão útil comércio...156.

152
Atas da Câmara, vol. 2, p. 9.
153
Idem ibid.
154
Ruy, História política e administrativa... p.172.
155
Mello, O negócio do Brasil..., p.40.
156
Marquês de Montalvão, d. Jorge de Mascarenhas, Cartas que escreveo o marquez de Montalvam
sendo Viso Rey do Estado do Brasil, ao Conde de Nassau, que governava as armas em Pernambuco
dandolhe aviso de felice acclamação de sua Magestade o Senhor Rey Dõ João o IV nestes seus
Reynos de Portugal, é reposta do Conde de Nassau. Com outra carta que o Marichal seu filho trouxe
para apresentar cõ ella a sua Magestade, Lisboa, Officina de Domingos Lopez Rosa, 1642, p.6.
Consultado em http://www.brasiliana.usp.br/bbd/handle/1918/01202700.

61
Contudo, a resposta do Conde de Nassau não alcançou suas expectativas. Admitiu o
príncipe que embora em Portugal tenha ocorrido uma mudança, “essa não deve[ria]
alterar alguma coisa...” no que se refere à guerra holandesa no Brasil.157 Enviou também
“nove marinheiros e dois passageiros portugueses”, tido como prisioneiros, para
demonstrar sua estima por Montalvão e receber um tratamento equivalente em outras
ocasiões.158
Outra notícia sobre a aclamação na colônia dá ideia do desenrolar desse
momento da história política do Brasil. Lembremos-nos do acontecimento controverso
envolvendo Amador Bueno, na capitania de São Paulo. Lá era marcante a presença de
espanhóis, aos quais certamente a notícia da aclamação de Dom João IV representou um
duro golpe. Baseado nos relatos do Frei Gaspar da Madre de Deus em suas Memórias
para a História da Capitania de São Vicente, Rodrigo Bentes Monteiro defende a
existência do episódio no qual os espanhóis teriam escolhido Amador Bueno de Ribeira
como rei paulista. Segundo narra, aqueles acreditavam que se os paulistas se
desmembrassem de Portugal a capitania e parte do sertão do Brasil faria parte das
possessões castelhanas.159 O aclamado, porém, recusando-se a aceitar o título de rei, foi
reprimido ao reconhecer a legitimidade de Dom João IV, pelo qual estava disposto a dar
a sua vida. Homiziado no Mosteiro de São Bento, Amador Bueno uniu-se aos
eclesiásticos e juntos começaram a convencer a todos de que o reino pertencia de fato à
Casa dos Bragança desde a morte do cardeal d. Henrique, em 1580, e que tal destino foi
adiado pela violência dos monarcas espanhóis.160
A controvérsia reside, para tanto, no episódio da aclamação em si, que segundo
Luiz Felipe de Alencastro “cheira a mistificação”, instigada principalmente pela elite
intelectual de São Paulo com seu nativismo do início do século XX.161 Sobre a
participação de Amador Bueno, que tratou de convencer os espanhóis de São Paulo a
aceitar o rei brigantino, o historiador afirma haver consenso. O problema maior,
segundo Alencastro, é que todos os pesquisadores que trataram do episódio se
sustentaram em um único documento, de quase sessenta anos depois do episódio. Nele
consta que o neto do seu protagonista Manoel Bueno da Fonseca, obteve a patente de
capitão do Governador do Rio de Janeiro, Arthur de Sá, que o reconhece enquanto

157
Idem, p.6
158
Idem, p.7
159
Rodrigo Bentes Monteiro, “A rochela do Brasil: São Paulo e a aclamação de Amador Bueno como
espelho da realeza portuguesa”, Revista de História, USP, São Paulo, n. 141, 1999, pp. 21-44.
160
Idem, p. 23.
161
Alencastro, O trato dos viventes..., p.363

62
descendente de Amador Bueno.162 Contudo, a carta não dá detalhes sobre a sobredita
inquietação. Atribui somente lealdade ao suposto aclamado, qualidade que certamente
combina com o seu papel na interlocução com os espanhóis em 1641.
Dentro dessa perspectiva das controvérsias em torno do reconhecimento do novo
rei português, há um relato de um religioso residente em São Paulo na época que dá
pistas sobre a reação dos paulistas à notícia da aclamação de Dom João IV. A carta de
15 de fevereiro de 1642, escrita por Frei Manuel de Santa Maria, tratou do sermão feito
por ele mesmo na vila de São Paulo por ocasião da boa nova. Deixou claro qual foi a
posição dos moradores dali:

Achando-se presente a aclamação e juramento que para Vossa Majestade se


fez na vila de São Paulo Capitania de São Vicente aonde preguei o sermão
daquele ato tratando-se da sustância, que o castelhano havia de fazer sobre
esse Reino, responderam muitos lhe tiraremos o brio como lhe tomaremos o
163
serro de Potosi

As consequências da notícia da aclamação de Dom João IV em Pernambuco e


em São Paulo foram bastante distintas. E mais distinto ainda foi o que sucedeu na
Bahia. Os três exemplos discorridos aqui mostram que o Marquês de Montalvão não
poupou esforços para reconhecer o novo rei e fazer com que as outras capitanias
seguissem o mesmo caminho. Mas tanto empenho não teve o desfecho esperado. Na
verdade, segundo Ruy, ao mesmo tempo em que Dom João IV despachou a carta
noticiando o episódio de 1º de dezembro, enviou secretamente outra carta com o jesuíta
Francisco de Vilhena, certamente por recear que Montalvão ficasse do lado dos filhos,
partidários de Felipe IV.164 A missiva serviria como cautela e deveria ser usada caso o
vice-rei não o aclamasse.165 Conta Ericeira em sua História de Portugal Restaurado,
que

162
Bentes Monteiro, “A rochela do Brasil...”, p.25.
163
AHU, Luiza da Fonseca, cx. 8, doc. 949 [15 de Janeiro de 1642].
164
Ruy, História Política e Administrativa..., p. 175. Sobre isso, Wolfgang Lenk afirma que Jerônimo de
Burgos interceptou cartas enviadas pela mulher do vice-rei, Francisca de Vilhena, dando conta do
posicionamento dos filhos após a Restauração e que tal fato teria impulsionado o golpe. Wolfgang
Lenk, “Guerra e pacto colonial: exército, fiscalidade e administração colonial na Bahia (1624-1654)”
(Tese de doutorado), Unicamp, Campinas, 2009, pp.156-157.
165
A carta, entretanto, não expressa claramente essa ordem; certamente elas foram dadas diretamente ao
seu portador, que deveria então verbalizá-la caso fosse necessário. Segue a transcrição da carta, feita
por Affonso Ruy: “Meus juízes, vereadores e mais oficiais da Câmara da cidade da Bahia: eu El Rei
vos envio muito saudar. De minha restituição a coroa mandei-vos avisar nesse Estado, logo que ela se
efetuou, por não dilatar a tão bons vassalos a certeza de terem Rei natural, e posto que creio que a
nova seria recebida com as demonstrações devidas, e que estarei aclamado e obedecido por Rei, com
efeito me parece mandá-la duplicar por esta via, e nomear para governadores desse Estado o Bispo

63
Achando pois o Padre Francisco de Vilhena as demonstrações do Marquês
tão contrárias ao que levava suposto, não lhe bastando esse desengano, usou
da ordem da mesma sorte, que se o Marquês houvera tido o procedimento
que El Rei se temia. Tanto que chegou ao Colégio, chamou os três
governadores nomeados, e faltando neles a virtude de antepor a razão ao
domínio, lidas as cartas d´El Rei, aceitaram os Governadores, e mandaram
ao Padre Francisco Vilhena, que fosse logo entregar ao Marquês a carta
[...]166

Ao tempo que Vilhena desembarcou em Salvador, uma caravela com a


embaixada portadora da mensagem da Câmara já havia partido rumo a Lisboa há algum
tempo. A comissão era composta por D. Fernando de Mascarenhas, padre Simão de
Vasconcelos e Antônio Vieira, e tinha como objetivo levar ao rei o juramento de
fidelidade de seus súditos. Embora os ventos tenham soprado para o reino boas notícias,
na capital da colônia estava em curso um golpe contra o Marquês. Note-se, aliás, que a
carta enviada por Dom João IV era endereçada aos camaristas e não deveria ser
entregue aos três futuros governadores. Entretanto, como narrou Ericeira, mandaram
logo que o jesuíta entregasse pessoalmente a carta a D. Jorge de Mascarenhas, que tão
breve escutou sua leitura, entregou o seu governo.167 Recolheu-se no Colégio dos
inacianos, e lá foi preso em 15 de abril e mandado para Portugal em junho, arcando com
os custos da própria viagem. Já em Lisboa, Dom João tratou de recebê-lo com todas as
honras e fez-lhe mercê do cargo de presidente do recém-criado Conselho Ultramarino.
Esse tratamento nada mais foi do que uma maneira de recompensar o ex-governante por
sua deposição. Ao triunvirato, que posteriormente teve seu governo contestado, seguiu o
governo de Antonio Telles da Silva, não menos polêmico. Juntos, eles são o foco maior
desse próximo tópico e pauta central desse capítulo.

4- As nuances da relação Igreja x Poder civil: as contendas entre um Governador e um Bispo

dele, ao mestre de Campo Luiz Barbalho Bezerra e Lourenço de Brito Corrêa, na forma que as
Provisões que se lhes remetem, e fazendo-o saber por esta carta, para que o tenhas entendido e
concorras com os Governadores ou qualquer deles, de modo que tudo se disponha como mais convém,
estando certos que vol-o-hei [sic] de agradecer, conforme a importância do serviço, que espero receber
de vós, fazendo-vos em tudo particular mercê e favor. Lisboa, 4 de março de 1641. Apud Ruy,
História política e administrativa..., p.176
166
Ericeira, História de Portugal Restaurado..., p.146.
167
Ignacio Accioli de Cerqueira e Silva, Memórias históricas e políticas da Província da Bahia, Bahia,
Imprensa oficial do Estado, volume II, 1925, p. 24.

64
Primeiro Governador nomeado para administrar a América pela nova dinastia
portuguesa, Antonio Telles da Silva chegou a Salvador em 1642, trazendo consigo sua
vasta experiência militar. Descendente de umas das famílias mais ricas de Portugal e
típico filho secundogênito, ele desistiu a carreira eclesiástica para seguir o caminho das
armas. Como diz Virginia Rau, seguindo a lógica do período, Telles da Silva encontrou
no amplo horizonte ultramarino a possibilidade de ascensão econômica. 168 Participou da
armada que veio à Bahia em 1625 para lutar contra os holandeses e dez anos depois
partiu em uma jornada para Índia.169 Em 1640 fez parte do movimento que aclamou
Dom João IV como rei, inclusive lutando no dia 1º de dezembro no Paço junto com
outros restauradores.170 Essas suas ações fizeram-no acumular mercês, como uma renda
de 100$000 réis anuais pelo serviço no Oriente, o cargo de conselheiro de guerra em
1641 e a nomeação para Governador e capitão geral do Brasil em 1642.
Não há consenso sobre o mês da chegada de Antonio Telles da Silva na cidade
da Bahia. Affonso Ruy diz que foi em abril, ao passo que Cabral de Mello e Accioli
afirmam que foi em agosto.171 Mais importante que a data de seu desembarque é
compreender que seu grande objetivo na colônia era militar. A presença dos holandeses
em Pernambuco e sua constante expansão para outras partes da costa representavam
uma ameaça real ao ultramar português. Encontrou em Salvador uma defesa bastante
vulnerável, como escreveu a Câmara em novembro de 1640:

Pede esta Câmara [...] ponha Vossa Majestade os olhos de sua Real
Clemência no que tem padecido e padece este Estado do Brasil e o muito
que convém [...] tratar da conservação dele considerando o quanto se estende
o empenho da Monarquia se se intentar a recuperação com cabedal que não
seja muito suficiente e que o estar o inimigo ainda que poderoso receando
sempre o poder de Vossa Majestade para que obriga a quem este seja tal que
acabe de todo esta guerra e que não sirva a dilação de se fazerem senhores de
tudo lembrando a Vossa Majestade de que o que aqui há não é o com que
bem se pode defender esta praça e que será mais em quanto não vem o maior
poder que pelo menos venha um socorro de muitos mantimentos armas e
munições e ornativos.172

Às vésperas da aclamação do novo rei não só a defesa de Salvador, bem como de todo o
território da América portuguesa estava ameaçada pelos inimigos batavos. E a separação
168
Rau, “Fortunas ultramarinas...”, pp.29-30.
169
Idem, p.30
170
Cf. Ericeira, História de Portugal Restaurado, op. Cit.
171
Ruy, História política e administrativa..., p. 187; Mello, O negócio do Brasil..., p. 42.
172
Documentos Históricos do Arquivo Municipal, Cartas do Senado, vol. 1, p.11.

65
dos reinos de Portugal e Espanha não alterou o quadro, como já foi discorrido
anteriormente. Dessa maneira provavelmente se encontrava antes mesmo desse período.
E não mudou durante o governo de Telles da Silva. Com efeito, assim que tomou posse
do governo, tratou de fazer objeção ao desejo da coroa de manter apenas dois mil
homens na guarnição da cidade. Expôs que

Esta praça se não poderá sustentar com dois mil homens: porque (senhor)
estas coisas não tem meio. Se o holandês pode vir é muito pouca esta gente;
e se não há de vir, tudo sobra. Que agora haja mais vigia, e que esteja esta
praça fortificada de maneira, que o Inimigo perca as esperanças, e o que
convém ao serviço de Vossa Majestade; porque é tão velhaco este vizinho,
que vendo ocasião, se não há de descuidar. Bom exemplo é o que sucedeu no
tempo do Conde de São Lourenço173: pois se Deus os não cegara, se perdera
a Bahia, tendo muito maior número de soldados, e muitos de muita
experiência. Os moradores vendo quanto convém para segurança desta
praça, haver três mil homens, eles mesmos, se querem fintar para a
sustentação deles, pelos meios mais suaves, de que ficam tratando.174

Apesar de haver certo exagero na declaração acima, parte da estratégia retórica da


época, não se pode ignorar que ela revela a importância das armas para a sociedade
colonial. Teles da Silva ainda afirmou que, mesmo que fossem dois mil homens em
atividade na Praça da Bahia, seriam necessários os três mil, para casos de doenças e
impedimentos, e também porque grande parte atendia às outras partes da capitania. Ao
dar conta das reformas que realizou no exército por ordens do Rei, em novembro de
1642, o Governador afirmou que deixou “em pé três terços” e reduziu “cinquenta e um
capitães que havia a vinte e sete”; as companhias passaram a ter cem homens e cada
terço passou a ter apenas dois ajudantes.175 A certidão anexada por ele nesta carta,
passada por Gonçalo Pinto de Freitas, atestou que

Na última mostra que se passou ao dito exército em oito de outubro próximo


passado em presença do Governador e Capitão geral do dito Estado Antonio
Teles da Silva. Apareceram dois mil e duzentos e trinta e oito soldados
efetivos, e no hospital e quartéis se acharam cento e vinte e nove e no Rio
Real estavam [...] oitenta e oito [...] os três números fazem dois mil
quatrocentos e cinquenta e cinco que se podem ter por efetivos.176

173
Refere-se aqui ao governador geral Pedro da Silva.
174
AHU, Luiza da Fonseca, caixa 8, documento 976 [23 de Setembro de 1642].
175
AHU, Luiza da Fonseca, caixa 8, documento 994-995 [27 de Novembro de 1642].
176
AHU, Luiza da Fonseca, caixa 8, documento 996 [27 de Novembro de 1642].

66
Wolfgang Lenk, ao tratar do exército na sua tese de doutorado, afirma que esse
quantitativo do exército em geral não correspondia à realidade, muito em função das
baixas e deserções.177 Afirma ainda que a infantaria de Salvador era sustentada pelas
esporádicas remessas de tropas de Portugal, normalmente em uma ou duas centenas de
soldados.178
Há muitos exemplos que denotam os esforços de Antonio Teles da Silva em
favor da defensa do Brasil, sobretudo no que tangeu à sua capital e o recôncavo baiano.
Sua ação traduziu-se na grande quantidade de cartas trocadas com o Reino sobre suas
estratégias militares contra o holandês, como a construção de vinte e seis embarcações
de remo para a defesa do Recôncavo, em 1646, “por ser a prevenção que pareceu mais
pronta”, depois de ter sido alertado da possível chegada das armadas inimigas.179 Cabral
de Mello narra a participação ativa do Governador, que enviou a Pernambuco André
Vidal de Negreiros para observar o exército do inimigo “e sondar os ânimos dos pró-
homens da comunidade luso-brasileira” 180, certamente na esperança de arregimentá-los
em prol da causa portuguesa. Ainda deslocou os índios liderados por Camarão para
Sergipe, para combater os neerlandeses já presentes na região.181 Foi Telles da Silva o
responsável por articular um levante contra o inimigo, e pelo seu sucesso militar foi
mantido no governo após o fim do seu triênio.182 Outro exemplo foi o envio de
suprimentos de artilharia para o Maranhão e Pará ainda em 1643. Animado com o
sucesso dos moradores daquelas partes, por haverem “degolado todos os holandeses que
ali acharam”, o Governador enviou um navio com dez quintais183 de pólvora, seis de
bala e seis de murrão184, por julgar que “estariam faltos de munição”.185 Nesta carta,
aliás, não deixa Teles da Silva de reclamar sobre o estado das tropas, que não tinham

177
Lenk, “Pacto colonial...”, pp. 67-68.
178
Idem, p.68
179
AHU, Luiza da Fonseca, caixa 10, documento 1191 [ 26 de Maio de 1646].
180
Mello, O negócio do Brasil..., p.42.
181
Idem ibid. Para ver mais sobre a história de Sergipe colonial, cf. Luiz Mott, História de Sergipe
Colonial & Imperial: religião, família, escravidão e sociedade, São Cristovão/Aracaju, Ed.
UFS/Fundação Oviêdo Teixeira, 2008.
182
Idem p.48.
183
Segundo o dicionário de Raphael Bluteau, 1 quintal equivale a 4 arrobas, que equivalem a 128 arráteis,
por ser 1 arroba igual a 32 arráteis. Na unidade de medida brasileira, 1 arroba equivale a 14,746
quilograma, o que significa que 1 quintal equivale aproximadamente a 59 quilos. Consultado em:
http://www.brasiliana.usp.br/en/dicionario/edicao/1
184
O significado dado por Bluteau é: “murrão de mosquete, arcabuz, etc. É uma corda de estopa bem
pisada, que se acende, para se tirar com as ditas armas, e sempre traz fogo, tem se lhe apagar”.
Consultado em: http://www.brasiliana.usp.br/en/dicionario/edicao/1
185
AHU, Luiza da Fonseca, caixa 10, documento 1002 [30 de Janeiro de 1643]. Para saber mais sobre a
ação dos moradores do Maranhão e Pará, ver documento 1003.

67
ração para alimentá-las por falta de dinheiro. Nem a vintena paga pelos próprios
moradores, citada anteriormente, era suficiente para a manutenção do exército.
O problema econômico não estava dissociado dos apuros em que se encontrava
o setor militar da colônia nesse período. O Governador em questão encontrou muitas
dificuldades, principalmente no que diz respeito à falta de moeda para o comércio do
“Estado do Brasil”. Logo em Setembro de 1642 Teles da Silva enviou uma carta ao
Conselho Ultramarino informando a situação de Salvador. Relatou que

Com a muita saca de patacas para esse Reino, e a falta do Rio de Prata, está
esta Praça tão falta de dinheiro, que obriga a Câmara a pedir-me que desse
remédio, porque se o não desse se perderia esta Praça, visto os remédios, que
poderia haver para se acabar, que não fossem patacas para esse Reino, se
acha serem impossíveis, pois, por mais buscas que se deem as embarcações,
as escondem de maneira, que parece impossível o evitar-se. E assim vem
todos geralmente, que convém alevantar a moeda, e por a cruzado cada
pataca: porque para se dar ração aos soldados, são necessários oitenta mil
réis cada dia; e faltando dinheiro na Praça, como se poderá executar? E
assim deve Vossa Majestade haver por bem que se acunhem as patacas, e
valha cada uma um cruzado, dois vinténs para Vossa Majestade, e dois para
os donos, para que os interesse do ganho os faça vim cunhar.186

A baixa da moeda, causada pela interrupção da comunicação dos portugueses


com o Rio da Prata, principalmente, não teria resolução dada pela coroa por pelo menos
dez anos. Segundo Angelo Alves Carrara, nesse período a pressão militar exercida pelos
holandeses no Nordeste significou grande aumento das despesas militares no Brasil e
uma queda nos rendimentos portugueses, pois os inimigos ocupavam a principal região
de exploração econômica.187 O historiador afirma que “o que importava, afinal de
contas para os senhores de engenho era a quantidade de moeda que recebiam”, então
por isso houve no período seiscentista um grande debate em torno da escassez da
moeda.188 Note-se que o documento transcrito acima foi feito pelo Governador do Brasil
a pedido dos camaristas e vale lembrar que a maioria dos oficiais da Câmara fazia parte
da elite açucareira. Se nas primeiras décadas do século XVII a falta de moeda já
denotava uma crise na circulação monetária, a situação agravou-se após 1640, pelos
motivos já narrados por Teles da Silva: os problemas com o Rio de Prata e Angola.189

186
AHU, Luiza da Fonseca, caixa 8, documento 979 [24 de Setembro de 1642].
187
Angelo Alves Carrara, Receitas e despesas da Real Fazenda no Brasil (século XVII), Juiz de Fora, Ed.
UFJF, 2009, pp.77-78.
188
Idem, p.85.
189
Idem, p.86.

68
Apesar do seu tom de urgência, o Governador teria que escrever mais algumas vezes
para o Conselho Ultramarino sobre o tema em questão. No início de 1643 voltou
novamente a informar sobre os problemas já descritos e sem obter resposta, em primeiro
de Agosto deste mesmo ano reuniu-se com os camaristas e as “pessoas de respeito da
República” e decidiram que

[...] com o exemplo de se ter levantado no Reino, foram todos de parecer que
a moeda de prata se acrescentasse a cinquenta por cento como o Povo e
Câmara pedem, vinte e cinco [por cento] para a Fazenda de Sua Majestade e
outros vinte e cinco para os donos da moeda, e que destes vinte e cinco [por
cento] dos donos se paguem os custos que serão com a maior moderação que
possa ser a saber que as patacas que valiam trezentos e vinte réis valham
quatrocentos e oitenta réis, e as meias patacas duzentos e quarenta réis,
tostões velhos cento e cinquenta, e assim a mais moeda de prata reais, meios
tostões e vinténs.190

Onze anos depois, entretanto, Dom João IV cobrou uma explicação para a sobredita
medida, acertada sem nenhuma ordem sua. Afirmou que valiam os tostões velhos e os
meios tostões mais do que no Reino, e logo se deveria voltar a cobrar por eles seis e três
vinténs, respectivamente, pois “o levantar ou baixar a moeda pertence só aos Reis, por
ser direito real”.191 A escassez da moeda foi pauta da preocupação das autoridades
coloniais até finais do século XVII. Como afirma Carrara, apenas com a descoberta das
minas as queixas sobre a baixa monetização diminuíram. A Casa da Moeda foi
transferida para o Rio de Janeiro e as discussões passaram a ser majoritariamente em
torno das técnicas de cunhagem da moeda.192
Dentro desse contexto, podemos afirmar que pelo menos no que diz respeito à
defesa do Brasil Antonio Teles da Silva obteve êxito, embora as dificuldades
econômicas oferecessem condições desfavoráveis para isso. Entretanto, nas suas
relações com outras autoridades locais o Governador não teve grande sucesso. Sua
administração esteve repleta de conflitos e de queixas dos seus desmandos. Atentemo-
nos agora para elas, sobretudo para os problemas entre Teles da Silva e o Bispo Pedro
da Silva Sampaio, objetivo maior desse capítulo.
Já instalado na Bahia e com aproximadamente um mês de governo, Teles da
Silva reclamou dos seus predecessores ao Conselho Ultramarino. Contou ele que, pouco

190
AHU, Luiza da Fonseca, caixa 13, documento 1069 [9 de outubro de 1655].
191
Idem.
192
Carrara, Receitas e despesas da Real Fazenda..., pp. 87-91.

69
antes de sua chegada à cidade, a Câmara criou uma finta para ajudar a sustentar os
soldados, que se encontravam numa situação periclitante – da mesma forma que tudo o
que estava relacionado à defesa da Bahia, como já vimos anteriormente. Porém, e sem
nenhuma autorização real que permitisse tal ação, os governadores da junta provisória
tomaram

Nove mil cruzados para seus ordenados: fez a Câmara queixa de se lhe tomar
este dinheiro: e como ainda que Vossa Majestade fosse servido que os ditos
governadores tivessem ordenado havia de haver provisão de Vossa
Majestade para a quantidade que haviam de levar e nunca poderia ser da
finta que o povo fazia para sustento dos soldados, mandei notificar ao Bispo,
e aos mais, que entregassem o dinheiro. O Bispo entregou: os mais o não
tem feito.193

O Conselho da Fazenda também concordou com o Telles da Silva. Disse que:

Os governadores não podem levar mais ordenados que os que Vossa


Majestade se serviu de lhes dar por suas provisões [...] e nunca em nenhum
caso se podia pagar da finta que fez o povo para substrato dos soldados. O
Bispo tem entregue os mais governadores devem entregar, com efeito.194

A questão foi pauta de mais correspondências do Governador, em 29 de Novembro do


mesmo ano, relembrando ao Rei que

Ficava tirando devassa dos procedimentos dos governadores, e por haver tão
pouco tempo que tomei posse do governo, e as ocupações dele tão grandes, e
não tenho ainda acabado: o que farei logo enviando a Vossa Majestade tudo
o que dela resultar, como Vossa Majestade me manda.195

Mas tudo indica que só em Janeiro de 1643 a devassa foi concluída. A missiva do dia 10
deste mês avisou que

Por carta do Conselho da Fazenda escrita a nove de Abril de 1642 se serviu


Vossa Majestade de me mandar, que com o Ouvidor geral deste Estado
tirasse devassa dos procedimentos, que os governadores passados tiveram no
tempo de seu governo: em cumprimento da qual tirei, com o Ouvidor geral o

193
AHU, Luiza da Fonseca, caixa 8, documento 970 [10 de Setembro de 1642].
194
Idem.
195
AHU, Luiza da Fonseca, caixa 8, documento 994 [29 de Novembro de 1642].

70
processo de testemunhas, que envio a Vossa Majestade a cópia que será com
esta, ficando em meu poder próprio.196

De acordo com Affonso Ruy, o Bispo, “resguardado pelas leis canônicas” 197
, escapou
de receber maior punição, ao contrário de Luiz Bezerra Barbalho e Lourenço de Brito
Correia. Aquele foi obrigado a deixar a Bahia (mais tarde surge, já vimos aqui, como
Governador do Rio de Janeiro), enquanto este foi preso em Lisboa.198 Fato é que se
inicialmente houve uma relação amistosa entre o Governador e o Bispo, alguns meses
depois o primeiro não poupou acusações ao clérigo – situação que se manteria daí pra
frente.
Dom Pedro da Silva e Sampaio assumiu o cargo de Bispo do Brasil em 1634 e
permaneceu ali até sua morte, em 1649. Foi o sétimo a ocupar esse lugar. Seu bispado,
contudo, caracterizou-se pelas dificuldades enfrentadas após a invasão dos holandeses
na cidade oito anos antes e a constante ameaça que eles representavam à Bahia e ao
Nordeste. À sua época a diocese estava numa situação bastante grave. Em Março de
1635, um ano depois de sua chegada, descreveu a realidade dos eclesiásticos da Bahia:

Achei que a clerezia e cabido tinham somente uma porção, que Vossa
Majestade lhe manda dar da Fazenda Real que leva todos os dízimos deste
Bispado, e que a porção mal lhes bastava no tempo presente para poderem
sustentar a vida sequer com farinha de pão, e que não era possível podermos
assim eles como eu que corro a mesma razão, e necessidade acudir com
coisa alguma, nem os moradores desta terra mais do que com que acodem.
Em tempos tão trabalhosos, e os Inimigos em casa, ou a porta, e que vem
tomando, e destruindo as terras de Vossa Majestade neste Estado, e fazendo
cessar os rendimentos e coisas de que o Bispo e os mais se ajudavam, e
haviam de ajudar, e experimentei, e palpei estas necessidades, assim como o
ver, como por não me chegar o pobre ordenado ao sustento natural, e que
somente me podia ficar, e a clerezia, e ao povo o sentimento de não
podermos ajudar com alguma coisa, mais de que os moradores de ordinário
dão [...]199

Também sofria a própria edificação da Sé com dificuldades, que após a invasão


holandesa ficou num estado de penúria. Dom Miguel Pereira, Bispo que precedeu Dom
Pedro da Silva, já havia se reportado à coroa em 1629 sobre o problema, afirmando

196
AHU, Luiza da Fonseca, caixa 8, documento 999 [10 de Janeiro de 1643].
197
Ruy, História Política e Administrativa..., p. 187.
198
Idem ibid.
199
AHU, Luiza da Fonseca, caixa 6, documento 682 [26 de Março de 1635].

71
Que a sua Sé da Bahia foi saqueada sem lhe ficar prata, nem ornamentos,
nem órgãos, nem livros de Coro, nem missões, nem castiçais, e porque está
em extrema necessidade como é notório e há mais de seis meses que pediu
direito para se começarem a fazer ornamentos e se lhe não dá200

Pediu D. Miguel o envio urgente de dinheiro para atender as necessidades da dita Sé,
mas tudo indica que o problema não foi resolvido com tanta urgência. Sua reforma e os
problemas com os ornamentos só foram promovidos durante o bispado de Dom Pedro
da Silva e foi um dos pontos da querela entre ele e o Governador Antonio Teles da
Silva. Aliás, ao longo do seu governo episcopal, o Bispo em questão esteve envolvido
em um litígio com outro Governador, Diogo Luiz de Oliveira, em 1635. Acusou-o de,
sorrateiramente, durante a noite

Trazer assim todas as cartas com estratagemas e escândalo universal, e


tomou a abriu as que lhe pareceu, e as minhas. E a dúvida se lhe ficaram na
mão ou se as enviou pelo que tornei a fazer outras do mesmo teor que são as
inclusas [...]

E ainda contou que:

Mais desconsolada ficou esta cidade se mais o podia estar com esta tomada
de cartas, ou vista delas, e os vassalos de Vossa Majestade atemorizados
para nada escreverem e representarem aos pés de Vossa Majestade o que
sentirem que importa ao seu Real serviço. 201

Dom Pedro da Silva foi um Bispo inegavelmente político, participando


ativamente dos negócios do governo secular. Ressalte-se sua participação no governo
provisório, em que predominou entre os outros dois participantes, assinando grande
parte das correspondências. Mesmo antes, a propósito, ele já escrevia regularmente ao
Rei sobre os mais diversos assuntos, inclusive sobre a guerra neerlandesa em curso.
Segundo Pablo Iglesias Magalhães, o clero e os demais religiosos funcionaram como
um serviço de inteligência e contra inteligência na guerra.202 E Dom Pedro da Silva não
foi uma exceção. Mal chegou ao Brasil e já enviou uma carta ao Conselho da Fazenda
pedindo socorro urgente à cidade da Bahia e a Pernambuco, bem como informando que
o açúcar estocado em Itapagipe ficou infestado de insetos, pois os navios não deixavam
200
AHU, Luiza da Fonseca, caixa 4, documento 474 [13 de Fevereiro de 1629].
201
AHU, Luiza da Fonseca, caixa 5, documento 554 [12 de Abril de 1635].
202
Magalhães, “’Equus Rusus’...”, p.95.

72
o porto de Salvador.203 Em 1638, ano em que o Recôncavo baiano virou o principal alvo
dos holandeses – que já haviam conquistado as terras da Paraíba a Sergipe Del Rey –, o
então Governador Dom Pedro da Silva deu conta do empréstimo que ele, enquanto
Bispo, fez à fazenda real de vinte cruzados para ajudar nas necessidades das
trincheiras.204 E não pararia por aí. Dom Pedro da Silva, em 1641, relatou a vitória
daquele ano à coroa:

Fazemos saber que quando vai em quatro anos veio o Conde de Nassau com
uma armada e pôs cerco a esta cidade por mar e terra [...] que nós por ser
coisa muito necessária com nosso cabido e clero fortificamos [a cidade].205

A participação da instituição eclesiástica e de seus membros em Salvador foi certamente


decisiva para a vitória contra o inimigo e, consequentemente, para a continuidade do
domínio ibérico no Brasil, afirma Magalhães.206 Na sua tese de doutorado este autor
relata minuciosamente a ação de Dom Pedro durante o sítio de Nassau, mostrando
inclusive como ele, ao contrário de Dom Marcos Teixeira em 1624, ajudou a impedir,
catorze anos depois, a fuga em massa e o abandono da cidade. Não há muitas notícias
sobre o Bispo no que tange ao seu governo espiritual. As poucas obras que falam sobre
ele tratam da sua intensa atuação no cenário político das guerras neerlandesas no Brasil.
Frei Manoel Calado do Salvador, em seu Valeroso Lucideno, tratou da ocupação
holandesa no Nordeste brasileiro e, como não podia deixar de ser, versou sobre a
participação do prelado. Publicado em 1648, é um relato contemporâneo da guerra que
aborda inclusive a participação do Bispo em questão, com severas críticas a ele. Ao
falar da retirada de tropas de Pernambuco para a Bahia e da incursão nassoviana à
Salvador e seu recôncavo, relatou o abandono em que ficaram os moradores daquelas
partes. Frei Calado afirmou que eles

Se viam sobressaltados dos rigores do inimigo, a quem se viam sujeitos, e


por outra suas Igrejas derribadas, e feitas estrebarias de cavalos; as imagens
dos Santos feitas em pedaços; e o que mais é de lastimar, faltos de
Sacerdotes, que lhes administrassem os Sacramentos da Santa Madre Igreja,
e os doutrinassem, e corroborassem na perseverança da fé Católica, porque
uns se foram [...] por temor do inimigo, que havia dado morte a alguns que
pode achar e outros, porque ainda que a caridade Cristã, e o zelo da salvação

203
Idem, p. 101.
204
AHU, Luiza da Fonseca, caixa 7, documento 799 [12 de Junho de 1638].
205
AHU, Luiza da Fonseca, caixa 8, documento 947 [4 de Janeiro de 1642].
206
Magalhães, “’Equus Rusus’...” p.106.

73
das almas os obrigava a ficarem; todavia o Vigário Geral Manoel de
Azevedo os obrigava a se retirarem; e lhe punha censuras para que o
fizessem, e a alguns porque se haviam ficado mandou prender, e os molestou
rigorosamente, dizendo que assim o mandava o Bispo Dom Pedro da Silva
de Sampaio; e não sei eu com que razão e justiça [...]207

Frei Calado demonstrou claramente sua contrariedade à ordem do Bispo. Permaneceu


em terras pernambucanas e por isso se envolveu em problemas com o clero local e o
próprio Dom Pedro da Silva, que tratou de enviar papéis para o Santo Ofício, nos quais
o Provincial da Ordem de São Paulo pedia que prendessem o frade apóstata.208 Na
verdade, defende Magalhães, a medida era parte de uma estratégia arriscada do Bispo,
que acreditava que a população, impedida de praticar o catolicismo, seguiria os clérigos
e deixariam a Paraíba.209 Segundo Ronaldo Vainfas, não tardou para a Mesa de
Consciência e Ordens desautorizar o prelado, dando permissão para que o clero católico
permanecesse nas terras ocupadas pelo inimigo herege.210 Foram muitas as denúncias
imputadas contra Dom Pedro da Silva no Valeroso Lucideno, inclusive de simonia, mas
que podem ser postas em dúvida pelo desafeto do autor da obra com ele.
Em que pese o questionamento acima, ainda sim o Valeroso dá indícios da forte
personalidade do Bispo. Anos mais tarde os problemas entre ele e o Governador
Antonio Telles da Silva denotariam isso. Se nos primeiros meses da administração de
Telles da Silva não houve contendas explícitas entre os dois, lembrando inclusive do
dinheiro das fintas que os governadores levaram pra si e que o prelado devolveu sem
resistência, no início de 1643 o quadro se alteraria até a morte do Governador, em 1648.
No último dia de janeiro do dito ano, Antonio Telles da Silva escreveu à coroa
dando notícias do Brasil. Falou sobre o estado de sua defesa, a falta de moeda e de
escravos e também investiu uma denúncia contra Dom Pedro da Silva. Disse:

Entre os ordenados que se pagam na folha ao Bispo deste Estado, leva cem
mil réis que Vossa Majestade manda dar ao Vigário Geral de Pernambuco:
leva mais duzentos mil réis cada ano que Vossa Majestade manda dar para a
Sé havendo obras nela. Em tempo do Conde da Torre, se pôs dúvida a uma e
outra coisa: e por se evitarem as excomunhões com que queria vir (por ter
uma provisão de Vossa Majestade para ser executor de seus ordenados) se
tomou por assento, que se desse conta a Vossa Majestade de que não tem

207
Frei Manoel Calado do Salvador, O valeroso Lucideno e o triumpho da liberdade, volume 1, Lisboa,
Oficina de Domingos Carneiro, 1668, p.42.
208
Magalhães, “’Equus Rusus...’, pp. 168-169.
209
Idem, pp. 194-195.
210
Vainfas, Traição..., pp. 69-70.

74
ainda vindo resposta: E porque nem na Sé se faz obra alguma, nem em
Pernambuco há Vigário Geral e o Bispo se fica com tudo211

No mesmo ano o Bispo também seria protagonista de duas outras contendas; em junho
durante, a procissão do Corpo de Deus, e em agosto contra o contratador dos dízimos,
Matheus Lopez Franco, que envolvia indiretamente o problema narrado logo acima.
Analisemos primeiramente o problema entre o prelado, a Câmara e o Governador
durante a festa religiosa212. Durante elas não eram raros conflitos entre as mais diversas
autoridades que a compunham. Queixosos, os camaristas escreveram:

Por um grande excesso e insolência que na procissão de Corpos Christo


deste presente ano fez o Bispo Dom Pedro da Silva saindo-se para fora da Sé
sem dar tempo para sair a Procissão nem haver chegado a Câmara a
acompanhar como é costume nem haver músicos ainda na Sé para irem nela
nem gente da qualidade que convinha para levar o pálio tudo de propósito e
sobre teima e por tanto que o mesmo Deão e outras pessoas eclesiásticas o
advertiram que nem ainda era tempo de saírem nem havia os preparatórios
convenientes para isso com tudo tomando o Senhor nas mãos saiu tão
antecipadamente escandalosamente que fez força com a pouca gente que
havia sair a procissão com toda esta descompostura [...]213

Como já foi rapidamente trabalhado no primeiro capítulo, havia uma geografia que
compunha a procissão e demarcava o lugar de cada autoridade secular e eclesiástica no
préstito. O descumprimento desse programa, vale ressaltar, era o principal motivador de
conflitos. As procissões eram organizadas, pela ordem do sagrado, da seguinte forma:
eram presididas por um eclesiástico com maior dignidade em exercício, que deveria
caminhar sob o pálio. Este era obrigatório se o Santíssimo Sacramento ou as relíquias
do Santo Lenho fizessem parte da celebração. Primeiro estavam os instrumentos
musicais, seguidos pelas irmandades, confrarias e ordens terceiras. Depois vinham os
religiosos regulares e seculares, seguidos, por fim, pelos leigos.214 O festejo começava
com uma missa e depois seguia com uma procissão pelas principais ruas da cidade, e foi
nesta passagem da missa para a rua que Dom Pedro da Silva protagonizou esta

211
AHU, Luiza da Fonseca, caixa 9, documento 1003 [31 de Janeiro de 1643].
212
A procissão de Corpus Christi tem a data móvel, sendo sempre realizada onze dias após o Pentecostes.
Criada no século XIII, logo ganhou corpo e tornou-se a mais solene de todo o Império português. Ela
celebra a Divina Eucaristia, em memória ao sacrifício de Cristo, que após o Concílio de Trento
constituiu o principal sacramento para os católicos. Sobre a procissão de Corpus Christi na Bahia ver
Mendes, “Festas e procissões reais...”, pp. 47-51.
213
Cartas do Senado, vol. 1, p. 18.
214
Mendes, “Festas e procissões reais...”. pp. 82-83

75
“vexação”. Antonio Telles da Silva, juntamente com os oficiais da Câmara, tiveram que
correr para alcançar a procissão, e quando o fizeram o Bispo

Largou o Senhor das mãos e saindo-se do pálio fora largando a Custódia ao


Chantre com admiração de todo o povo e em... dele pegou em um vereador
do ano passado e empurrou com o braço dizendo em altas vozes que se
fosse com o Guião da Câmara que levava para diante com pena de
excomunhão maior e o fez ir assim intimidado para onde iam as bandeiras e
insígnias das mecânicas afrontosa e escandalosamente no que o Governador
e a Câmara de portaram com toda a prudência e dissimulação por não se
alterar o povo [...]215

A querela, portanto, era em relação ao lugar do guião (estandarte) da Câmara no


préstito. Dom Pedro da Silva, baseado numa provisão que recebera anos antes, afirmava
que a bandeira deveria ir à frente de todas as cruzes. Essa questão, aliás, não teve início
nesta data e também não findou rapidamente. Em 1659 a Câmara escreveu sobre o
assunto, pedindo que o rei pusesse termo à dúvida sobre o lugar do seu estandarte e
contando como desde esse problema de 1643 os camaristas deixaram de levar sua
bandeira nas procissões.216
Após protagonizar esse episódio na comemoração do Corpo de Deus, Dom
Pedro da Silva voltou a ser alvo das denúncias de Telles da Silva no que dizia respeito
ao seu ordenado. O problema desta vez envolveu o contratador dos dízimos
eclesiásticos Matheus Lopez Franco e estava, de certa forma, ligado à acusação feita em
Janeiro pelo Governador contra o prelado, de levar para si dinheiro que não o pertencia.
Narrou Telles da Silva que

Havendo se levantado a moeda neste Estado, e querendo o contratador


Matheus Lopez Franco pagar um quartel que devia da folha eclesiástica; o
Bispo lho não quis aceitar por ser no dinheiro cunhado que corria,
obrigando-o sem censuras a que lho desse por cunhar. Já o tem declarado, e
ameaça toda esta cidade sem interditos, e excomunhões, levado da ambição
dos avanços que lhe podiam resultar; sendo eles de pouca consideração, e
opinião de todas as pessoas doutas, que lhes não deve como de tudo
informara a Vossa Majestade o Padre Francisco Pirez da Companhia de
Jesus, que nesta ocasião envio a essa corte. A causa de o Bispo exceder em
tanta demasia é uma provisão que em tempo D´El Rei de Castela se lhe
passou para ser executor de seus ordenados, com poder, da qual faz estas
vexações aos contratadores. E porque não haja quem por temer delas, se

215
Idem. p.19.
216
AHU, Luiza da Fonseca, caixa 15, documento 1751 [22de Setembro de 1659]. Para compreender
melhor o desenrolar desse problema sobre o lugar da bandeira nas procissões ver Mendes, “Festas e
procissões reais...”, todo o capítulo 3.

76
atreva a lançar nos dízimos, e por este respeito virá a perder muito a fazenda
de Vossa Majestade me pareceu representá-lo a Vossa Majestade para que se
sirva mandar considerar quanto convém que se lhe revogue a tal provisão, e
se passe outra em contrário, pois só por este meio se evitarão estas
alterações, e Vossa Majestade ficará servido como desejo.217

Os dízimos eclesiásticos foram tema de poucos trabalhos no Brasil. O principal


deles foi escrito pelo Arcebispo de Mariana em 1964, Dom Oscar de Oliveira. Embora a
obra tenha alguns problemas de parcialidade do seu autor, ela nos permite conhecer
melhor todo o processo de arrecadação dos dízimos. Estes, portanto, eram a décima
parte – ou outra porção pré-determinada – dos frutos ou dos lucros licitamente
adquiridos, tributados para o auxílio do culto divino e dos ministros da Igreja. 218 A sua
arrecadação pertencia à coroa, garantida pelo direito do padroado régio. Desse dinheiro
eram pagas as côngruas do Bispo e do Cabido, bem como o ordenado dos párocos
colados e as demais necessidades que existissem para a manutenção da Sé ou paróquias.
Discorramos, de forma simples, sobre o processo de cobrança dos dízimos eclesiásticos.
Havia um contrato, de valor estipulado pela coroa, que era posto em
arrematação. Sabe-se que até 1735 todos os contratos da colônia eram rematados na
capitania da Bahia e em geral eram trienais.219 Arrematado o contrato, cabia ao
contratador a cobrança dos dízimos. Na Bahia, os proprietários de terra eram os
principais taxados e o açúcar era o principal produto arrecadado. O próprio calendário
da dizimação estava ligado ao ciclo da plantação e colheita do açúcar. Segundo Dom
Oliveira, as cobranças eram realizadas em Agosto, quando tinha inicio a grande safra do
açúcar220. Corrobora Schwartz ao afirmar que de inúmeras formas esse produto criou o
contexto da vida baiana, inclusive a atividade dos clérigos, que dependiam dos
dízimos.221 Recolhidas as décimas, os contratadores passavam à terceira etapa do
processo: botavam os produtos em pregão e pagavam à Fazenda Real o valor que
deviam do contrato, sendo deles o restante do lucro. Na prática, nem sempre o processo
se cumpria rigorosamente e muitas vezes os contratos não eram devidamente pagos
pelos contratadores.

217
AHU, Avulsos Bahia, caixa 1, documento 46 [21 de Agosto de 1643].
218
Dom Oscar de Oliveira, Os dízimos eclesiásticos do Brasil nos períodos da colônia e do império,
UFMG, Belo Horizonte, 1964, p.15.
219
Idem, p.76.
220
Oliveira, Os dízimos eclesiásticos..., p. 73.
221
Schwartz, Segredos Internos..., p. 95. Para conhecer sobre a safra do açúcar e seu ciclo, ver
especialmente o capítulo 5.

77
O problema ainda perduraria por mais alguns anos, apesar da insistência do
Governador sobre a necessidade urgente de resolvê-lo. Em 1644 Telles da Silva arrolou
uma série de informações à coroa sobre as controvérsias de Dom Pedro da Silva e
tornou a lembrar de que ainda não tivera resolução sobre tais casos. Falou sobre a
questão dos ordenados e contou

Como o dito Bispo erigiu Paróquia uma ermida de Santo Antônio, orçando
Vigário, de novo; e por mais instâncias que fez o Provedor Mor da Fazenda
que então era Simão Alvarez de La Penha, mandou que sem embargo de
qualquer dúvida se lhe lançasse em folha o ordenado222

E ainda afirmou que o Bispo, assegurado pela provisão que tinha de executar seus
ordenados “cobra por meio dela com tanta violência dos contratadores, que teve
excomungado a Matheus Lopez Franco, e por este respeito, não há quem se atreva a
lançar nos dízimos”. Disse também que o prelado tinha outra provisão pela qual podia
confirmar nos benefícios as pessoas que ele mesmo nomeava, tocando aos governadores
gerais por isto fazer parte da jurisdição real. Segundo o Governador, Dom Pedro da
Silva provia nos cargos da Sé “sujeitos incapazes de executá-los”.223
Por ordem real, na portaria de Outubro do mesmo ano, Antonio Telles da Silva
ordenou ao Provedor Mor da Fazenda que

Faça pôr logo em arrecadação os trezentos mil réis que de sua Real Fazenda
cobra todos os anos o Reverendo Bispo deste Estado a saber cento para o
Vigário de Pernambuco, e duzentos para as obras da Sé arrecadando-se os
cento desde que a Vila de Pernambuco está ocupada pelos holandeses e os
duzentos do tempo que se não fazem obras na Sé224

Dessa forma, Sebastião Parvi de Brito emitiu um despacho ordenando que

Ponha as verbas necessárias no assento e folha por onde se faz pagamento ao


Reverendo Bispo deste Estado Dom Pedro da Silva em como não pode haver
pagamento dos cem mil réis que se lhe manda pagar ao Vigário geral das
partes de Pernambuco e Paraíba pelo não haver nem se exercitar o tal ofício
depois de ocupadas as ditas partes pelos holandeses e assim mais se pôr a
verba no assento e folha dos duzentos mil réis aplicados da Fazenda Real
para a fábrica das obras da Sé para de uma e outra coisa se não fazer

222
AHU, Luiza da Fonseca, caixa 9, documento 1096 [1644].
223
Idem.
224
Idem.

78
pagamento até ordem de Vossa Majestade para o tempo atrasado o
Reverendo Bispo dará satisfação com efeito ao que tem recebido da fábrica
de que não fez obra do dia que tomou posse deste Bispado e começou
receber, e dos cem mil réis do dia que a capitania de Pernambuco foi
ocupada e começou a receber225

A ordem foi logo executada pelo escrivão da Fazenda, que foi até a casa do Bispo e leu
adverbum a portaria do Governador e o despacho do provedor. Entretanto Dom Pedro
da Silva não acatou a ordem e recorreu ao provedor mor afirmando que podia “mostrar
dentro em meio dia a Vossa mercê que sempre se fizeram obras e que se despendeu
nelas mais do que se recebeu”. Disse ainda que ele não recebeu nenhum dinheiro e que
isso ficava a cargo dos priostes226 e tesoureiros da Sé “e que de tudo deram conta e
inteira satisfação e que a despesa foi feita com muita consideração e muito aproveito da
Igreja e do serviço de Deus e Del Rei”.227 E, por fim, assegurou que sempre houve
Vigário geral em Pernambuco durante seu Bispado, e não um, mas dois, por serem
extensas aquelas terras e que, embora os holandeses tivessem-na ocupado, “ha[via] lá
muitos católicos e igrejas” e, portanto, não podia abandoná-los sem um governo
espiritual.228 Contudo, a palavra de Dom Pedro da Silva não foi suficiente para
convencer as autoridades da Fazenda Real. Logo o provedor ordenou:

Notificará ao Reverendo Bispo se louve ou mande louvar por sua parte em


pessoas que façam avaliação da obra feita na Sé desta cidade dentro em dois
dias e o Procurador da Fazenda fará o mesmo de que se fará termo de
juramento aos louvados e não nomeando o Reverendo Bispo se fará pelos
louvados do Procurador da Fazenda e os papéis e provas que o Reverendo
Bispo alega em sua petição os pode entregar ao escrivão dos autos no termo
que alega para se deferirem autos apartados por nesta matéria ser mero
executor com que hei por deferido a dita petição. Bahia oito de outubro de
mil seiscentos e quarenta e quatro//Parvi.229

A notificação foi feita ao Bispo dois dias depois do despacho de Sebastião Parvi de
Brito e em 11 de outubro o procurador da Fazenda, Antonio da Silva e Souza iniciou as
averiguações nomeando duas pessoas para avaliarem as obras de carpintaria da Sé,
outras duas para as obras de pedraria (Dom Pedro não quis também nomear

225
Idem.
226
No dicionário de Bluteau encontra-se a seguinte descrição para prioste: o que cobra a renda da Igreja.
Consultado em: http://www.brasiliana.usp.br/en/dicionario/edicao/1
227
AHU, Luiza da Fonseca, caixa 9, documento 1096.
228
Idem.
229
Idem.

79
avaliadores). Estas tiveram uma soma total de oitocentos e cinqüenta e sete mil e
quatrocentos réis, enquanto os carpinteiros chegaram ao total de um conto cem mil e
setecentos e vinte réis, perfazendo um montante de um conto novecentos e cinqüenta e
oito mil e vinte réis.230Em resposta às avaliações, o procurador da Fazenda deixou claro
que

Todos [avaliadores] confessam que nem a obra de pedra e cal que nada se
fez nem a de carapinas serve para prosseguir a traça da obra da Sé e sua
Capela donde resulta que as tais obras se devem reputar por inúteis e como
se nunca as houvera e assim deve o Reverendo Bispo ser executado pelos
dois contos de réis recebidos por inteiro por que o mesmo é conforme o
direito non esse ae inutiliter esse além de ser feito a dita obra sem esmola de
seculares e eclesiásticos os quais há notícia que o Reverendo Bispo proíbem
se declarem e as quantidades das esmolas: e quando pareça que se não deva
proceder nesta forma sem se reescrever a Vossa Majestade a respeito da obra
feita há de ser em advertência que se não retarde na execução de suas ordens
a respeito dos anos que constar que se não fizeram obras na dita Sé, nem em
sua Capela maior [...]231

Entre as pessoas que foram arroladas para estimar os gastos das obras da Sé foi
consenso que tudo o que havia sido feito não seguiu o traçado elaborado por Domingos
da Rocha, mestre de pedreiro, afirmando entre outras coisas que as paredes que existiam
foram levantadas apenas para poder se rezar a missa. Disseram também que na
construção quase nada era aproveitável, apenas as pedras, e que havia quatro anos e
meio que nenhuma obra era feita na igreja. Portanto, concluiu o provedor mor, dessa
quantia devia o Bispo novecentos mil réis referentes ao tempo em que as obras estavam
suspensas. Além disso, ele também tinha que devolver um conto de réis do dinheiro do
Vigário geral de Pernambuco, já que, ainda que tentasse provar, não podia afirmar que o
despendia corretamente. Concluiu-se que

Requera ao Reverendo Bispo Dom Pedro da Silva o que é de satisfação do


um conto e novecentos mil réis que Vossa Majestade manda seja executado
e não pagando ou nomeando penhores de ouro ou de prata no termo da lei
em falta poderá nomear o Procurador da Fazenda.232

O prelado, não satisfeito por ter perdido a causa, enviou uma apelação indeferida pelo
procurador da Fazenda por ela não ter sido feita da maneira tradicional, ou seja, o
agravo não foi feito em audiência e o apelante não tinha procuração de Dom Pedro da
230
Idem.
231
Idem.
232
Idem.

80
Silva. Portanto, a apelação foi indeferida. Apesar de alguns dias depois o Bispo ter
enviado seu procurador em uma audiência pública com uma procuração sua para
recorrer novamente, Sebastião Parvi afirmou que não era de sua alçada, pois ele era um
“mero executor das ordens de Vossa Majestade e do Governador e capitão geral” e
dessa maneira não podia avaliar uma apelação de efeito suspensivo, mandando-o
requerer isto a Antonio Telles da Silva. Por fim, já em novembro de 44, decidiu-se por
abater dos “ordenados do Reverendo Bispo vencidos e que forem vencendo” a quantia
devida – que concluíram não ser mais de um conto e novecentos mil réis e sim um conto
(do Vigário de Pernambuco) e quinhentos e quarenta mil réis, já que abateram oitenta
mil réis cada ano, por quatro anos, despendidos na fábrica da sacristia.233
Encerrado o caso na junta da Fazenda e condenado Dom Pedro da Silva a
devolver o que supostamente tinha levado do dinheiro do Vigário geral e da fábrica da
Sé, o problema ganhou grandes dimensões. O dito bispo resolveu enviar ao reino, em
1645, o tesoureiro da Sé para dar conta ao rei de todos os desmandos que Telles da
Silva andava fazendo contra ele e contra outros oficiais da administração colonial.
Ocorre que o Governador, ao passo que estava envolvido no processo contra o religioso,
também entrou em litígio com os oficiais da Câmara de Salvador e o Ouvidor geral
Manuel Pereira Franco, do qual trataremos brevemente adiante. A tudo o que foi feito e
dito acima pelo Governador, provedor mor e procurador da Fazenda refutou o prelado.
Sua defesa foi assentada em duas partes, cada uma tratando de uma das
acusações que o Governador do Brasil fez contra ele. Vale ressaltar, contudo, que o
documento que acompanharemos aqui não foi escrito pelo próprio Dom Pedro da Silva,
mas narra o que foi dito por ele em duas cartas de fins de 1644.234 No início da missiva
contou-se que o Bispo foi notificado por conta do dinheiro do Vigário de Pernambuco e
das obras da Sé e que, “informando contra a verdade”, não lhe foi dado nem meio dia
para que ele apresentasse provas a seu favor.235 Por acusarem-no de não despender os
trezentos mil réis como devia, suspendeu-se esse dinheiro, bem como não se pagou o
seu ordenado, visando satisfazer o um conto e quinhentos e quarenta mil réis. E isso
tudo era coisa

tão escandalosa de toda aquela cidade, por saberem o contrário de que o dito
Governador escreveu que se pôs em grande contingência a quietação
233
Idem.
234
AHU, Luiza da Fonseca, caixa 10 documento 1157 [26 de Outubro de 1644] e 1158 [17 de Outubro de
1644].
235
AHU, Luiza da Fonseca, caixa 9, documento 1096.

81
daqueles vassalos, e particularmente vendo que o dito Governador
absolutamente trata mal a ele Bispo, procurando que com seus agravos use
para sua defensa do remédio que lhe dá o direito, o que ele Bispo sofre e tem
sofrido

Inúmeras razões foram relacionadas no documento contra tudo o que acusou Telles da
Silva e seus “sequazes” (o procurador e o provedor). Embora a querela sobre o Vigário
de Pernambuco tenha sido tema menos abordado no documento, não foi deixado de
lado. Reafirmou que

Sempre depois que estava no Brasil tivera Vigário Geral e Provisor na


Paraíba. E algumas vezes como de presente tinha outro em Sirinhaém, tudo
em Pernambuco porque assim é na verdade, e consta do Instrumento que
apresenta, e que lhe dessem pessoa sem suspeita para o ouvir, e não
querendo foi com embargos; e porque são suspeitos a ele Bispo, e o
Provedor sobredito por duas vezes o confessar em despachos seus, e se
deitou de Juiz; teme que não alcançará justiça; e em Pernambuco há muitos
católicos, e não podem estar sem Provisor e Vigário Geral, a que recorrer, e
será grande dano de suas almas, e de nossa santa Sé católica; e o ordenado
de Bispo é tão tênue que não lhe fica com que poder remediar isto.236

As nove testemunhas inquiridas sobre o tema – a maioria de ex-moradores de


Pernambuco – corroboraram com o prelado. Contaram que, mesmo com a ocupação dos
inimigos, sempre houve Vigários ali, e as vezes eram três, mas naquele ano de 44 eram
dois: Manoel Rabello, de Sirinhaém, e Gaspar Ferreira, da Paraíba. Na obra de Frei
Calado, aliás, esse último é citado diversas vezes, sendo inclusive um desafeto do
autor.237 Magalhães também cita Manuel Rabello no conteúdo de uma carta escrita do
Bispo para ele que foi interceptada pelos holandeses.238 Desta forma, possivelmente
Dom Pedro da Silva tivesse razão neste caso.
No que tange a Sé da cidade da Bahia foi exposto

Que vendo-se há muitos anos a Sé daquela cidade velha e arruinada se


tratou de se fazer outra deixando a velha dentro para se dizer missa até se
acabar a nova; e estando feito pouco mais que os alicerces; ocupando os
holandeses a Bahia, e destruíram e roubaram a Sé, em forma que era grande
indecência celebrarem-se nele os ofícios divinos; e as paredes eram umas
taipas de barro; e o telhado de telha vã; e a sacristia uma logia [sic] que
servia de Aljube; e o altar principal, e coro, muito apertado de baixo de uma
abóbada, e a Sé em altos e baixos com entulhos, e totalmente indecente.239

236
Idem.
237
Calado, O valeroso lucideno...
238
Magalhães, “Equus Rusus...”, p.150.
239
AHU, Luiza da Fonseca, caixa 9, documento 1096.

82
Para pagar as contas desta obra foi utilizado o rendimento da imposição do
vinho, que depois passou a ser utilizado para fins de sustentar o presídio da cidade. 240
Quando da vinda de Dom Pedro da Silva para o Bispado do Brasil, lhe foi dada uma
provisão oferecendo o pagamento dos duzentos mil réis para a fábrica (manutenção e
reforma) da igreja, e obras e ornamentos, ficando a critério dele quanto se gastaria em
cada coisa. Mas ao chegar em Salvador o prelado percebeu que seria necessário muito
mais dinheiro do que tinha e muitos anos para terminar a Sé nova. Portanto reuniu os
oficiais dali e acordaram que “se fizesse agora como convinha a necessidade presente, e
que não se tratasse de ir continuando as paredes [...] que com poucas fileiras de pedra se
gastaria muito dinheiro”.241 Então, com ajuda de outras pessoas, as esmolas dos
capitulares, com o ordenado da fábrica e mais sua fazenda ergueu ele a capela mor, a
sacristia, o cruzeiro e a casa do Cabido.
Quando o Governador passou a portaria para suspender o dinheiro da dita obra,
o Bispo quis mostrar as contas das despesas que teve, mas o Provedor mor não quis vê-
las e mandou seus avaliadores, como já narrado anteriormente.

E vendo o Bispo que não queriam avaliar a despesa feita nos


ornamentos e cálices, e na fábrica ordinária, fez petição ao dito Provedor que
não deixasse o sobredito fora da avaliação, porque a dita provisão de tudo
falava. E deixava no alvidrio do Bispo o que se havia de gastar em cada
coisa; e incluía nos duzentos mil réis concedidos para a fábrica de que se
trata, oitenta mil réis que já tinha, e que cessaram sem se pagarem mais; e
fazendo-se muita diligência pela Sé, andando os dela arrastados de uma para
outra parte, até agora não no puderam alcançar; Porque o dito Governador,
Provedor e Procurador da Coroa (que não fazem senão o que ele lhes manda)
vendo que a verdade se descobre, e que não há causa alguma em dano da
fábrica, senão em muito proveito, e que sendo a receita até agora quatro mil
e quinhentos cruzados, e que a despesa são nove ou dez mil, inventam
modos de molestar o Bispo e Cabido, e com que encubram a informação
falta, e fora do que na verdade passava, que tem dado a Vossa Majestade e
assim inventam que declarasse o Bispo e o Cabido, que esmolas deram,
porque a seu parecer estas se haviam de gastar primeiro na fábrica, e ficar o
dinheiro da Provisão.
Tão pouco se disse como tudo se fazia muito a serviço de Deus e de
Vossa Majestade; E a obrigação da Fazenda real que leva todos os dízimos,
que este ano estão arrendados em perto de oitenta mil cruzados com
propinas, com esta declaração; e o Pio e católico zelo de Vossa Majestade
não permite a crueldade que o Governador e seus sequazes por ele

240
Segundo Bluteau, presídio significa “gente de guarnição; os soldados que estão em uma praça para a
guardar e defender do inimigo”. Consultado em: http://www.brasiliana.usp.br/en/dicionario/edicao/1
241
AHU, Luiza da Fonseca, caixa 9, documento 1096.

83
intimidados, fazem contra a Igreja e Sé, contra o Bispo, Cabido, e mais
ministros, a quem os senhores Reis antecessores de Vossa Majestade
procuraram honrar e favorecer; e os hereges estão perto, e os judeus em
Pernambuco, e todos se hão de gloriar disto. E é sem dúvida que oitenta mil
réis, e vinte e cinco para os gastos da semana santa que a Sé se davam antes
da dita provisão, ficaram incluídos nos duzentos mil réis dela, sem haver
outro dinheiro para a fábrica ordinária, nem extraordinária, nem para
ornamentos depois que o Bispo foi para seu Bispado, mais que os ditos
duzentos mil réis de que a dita Provisão trata; e o Governador da Bahia e
Provedor Mor não sabendo com que encobrir a informação menos certa,
dada a Vossa Majestade, buscam novos modos, ficando mais agravado o
caso, e mais necessitado o remédio.242

Finalmente, assegurou que vendo seus inimigos que não podiam prosseguir com as
acusações, passaram a dizer que “as obras que se fizeram de madeira, e pedra não eram
boas”.243
Embora acreditasse que não conseguiria alcançar a justiça, certamente sentindo-
se perseguido por outros agentes do poder real (como era o caso do Governador geral e
do provedor mor Sebastião Parvi de Brito), Dom Pedro da Silva requereu

a Vossa Majestade que lhe faça mercê mandar que as ditas verbas se
levantem, e os embargos; e se dê a ele suplicante o que se lhe tiver levado e
a Igreja; e que a Provisão dos duzentos mil réis da fábrica esteja em pé como
nella se contém, e tudo o que ele Bispo levava pela provisão de seu
ordenado, e que sejam restituídos, e o Bispo em tudo o que se lhes tiver
levado, e logo, porque de outra maneira o aperto será grande, e o escândalo
que já o é crescerá mais, e que Vossa Majestade seja servido mandar
estranhar muito a quem semelhantes causas ordena, e que não dá verdadeira
informação dellas.

Também não se pode deixar de notar que à época não havia Tribunal da Relação ali,
suprimido em 1626, o que possivelmente contribuiu para a irresolução rápida do caso.
Segundo Schwartz, foram inúmeras razões que levaram à extinção do Tribunal da
Bahia, desde a necessidade de direcionar os gastos feitos com a justiça para a defesa do
Brasil até a antipatia gerada pela instituição entre os colonos. 244 Mas se muitos eram
contra, outros defendiam a presença da Relação, pois ela serviria de contrapeso aos
excessos dos Bispos e mais poderosos da terra. Como diz Schwartz, “se havia faltado
justiça enquanto o Tribunal Superior estivera no Brasil, sem ele a situação voltaria a ser
caótica”.245 A falta dele ampliou a jurisdição e o poder de diversas autoridades na

242
Idem.
243
Idem.
244
Schwartz, Burocracia e sociedade..., pp. 173-187.
245
Idem, pp. 183-184.

84
colônia, pois não havia mais uma instituição de apelação. Os múltiplos conflitos que
ocorreram ao longo do governo de Antonio Telles da Silva por certo são conseqüências
também da ausência deste importante instrumento da justiça no Brasil.
A falta de Relação na Bahia não impediu que outra instituição se envolvesse na
querela. Por carta de 17 de Novembro de 1644 os camaristas, em nome dos moradores
da cidade e do Recôncavo, escreveram à coroa:

O Bispo com seu zelo, cuidado e com o seu [dinheiro], na forma em que
podia ser, pôs mãos a obras. Proveu de cálices, livros e de outras coisas
precisamente necessárias; e de ornamentos a sacristia – foi acudindo a
despesa corrente da Igreja; e fazendo nela a Capela mor, a Sacristia com seus
caixões, casa do Cabido, e cruzeiro e ladrilhando a Sé toda com forma que se
consola agora a gente de entrar nela. E quando esperávamos e os moradores
da cidade e do Recôncavo que Vossa Majestade havia de por os olhos nos
muitos e qualificados serviços do Bispo; e deste cuidado e zelo da Igreja
para lhe fazer mercê vemos que o Governador Antonio Telles lhe fez tomar
seu ordenado todo, sem lhe deixar coisa alguma, até dali repor o que lhes
parecesse [...] sem o querer ouvir, nem lhe admitir requerimento [...]246

Os oficiais da Câmara, aliás, estavam também em litígio com o Governador


geral. Acusavam-no de tomar e abrir cartas que seriam enviadas ao Rei por alguns deles
relatando os excessos praticados por ele contra o Ouvidor geral Manuel Pereira
Franco.247 Além dos vereadores, o Ouvidor e o Governador enviaram cartas relatando
suas versões sobre o problema. Ocorre que Franco, em duas sentenças, agiu a contra
gosto de Telles da Silva. A primeira delas foi sobre uma briga entre o conservador dos
padres da Companhia de Jesus, Nicolau Viegas, e o cônego da Sé, Philipe Batista.248
Aquele acusou o cônego de tratá-lo mal e por isso o prendeu, pedindo um auxílio do
“braço secular” a Manuel Pereira Franco. Entretanto o Ouvidor afirmou que não poderia
dá-lo o dito auxílio, pois ele, conservador, era um juiz apostólico. Inconformado, Viegas
tratou de excomungá-lo e por isso foi advertido pelo bispo Dom Pedro da Silva, que
anulou a excomunhão. Todo este enredo, segundo Ouvidor, contrariou Antonio Telles
da Silva, já que o conservador jesuíta era seu protegido.249 A segunda sentença, gota
d’água para o Governador, foi sobre Philippe de Moura e o assassinato de sua mulher,
rica e de “nação hebreia”, ou mais especificamente sobre sua herança. Defendia Telles
da Silva que Franco deveria, antes de dar sentença a essa questão, mostrá-la ao
246
AHU, Luiza da Fonseca, caixa 10, documento 1156 [17 de Novembro de 1644].
247
AHU, Luiza da Fonseca, caixa 10, documento 1094 [2 de Setembro de 1644].
248
AHU, Luiza da Fonseca, caixa 9, documento 1079 [25 de Outubro de 1644].
249
AHU, Luiza da Fonseca, caixa 9, documento 1095 [26 de Setembro de 1644].

85
procurador da Fazenda, para que fossem tomadas as providências sobre a herança –
pertencentes à Fazenda Real.250 Para ele, Manuel Pereira Franco não agiu conforme o
desejava e sentenciou a causa sem apresentar nada ao procurador, sendo por isto preso
em sua casa e suspenso do seu ofício. E quando questionado pelo Governador, o
Ouvidor afirmou que estava julgando apenas a causa crime e não tratava dos bens da
defunta por não ser de sua jurisdição.251
O Conselho Ultramarino, após analisar o caso, deu razão a Manuel Pereira
Franco:

[...] pareceu a este conselho que visto os julgadores nos despachos da justiça,
não estarem obrigados a julgarem mais que conforme a direito, e o que dele
julgam conforme sua consciência, sem nenhum superior dos inferiores, os
poderem obrigar a dar despacho em contrário disto, que o Governador não
tem razão de dar por culpa ao Ouvidor a sentença que deu, denegando o
auxílio do braço secular ao conservador dos padres da companhia; por assim
entender a ordenação de Vossa Majestade e em seu favor haver doutores que
assim o dizem e como era em defensão da jurisdição de Vossa Majestade
merecia mais favor de seus ministros, do que desfavor.
E no caso da prisão do Ouvidor geral parece que pela mesma razão o
Ouvidor não excedeu.252

Em Maio de 1645, entretanto, Manuel Pereira Franco ainda encontrava-se preso. Outra
consulta do Conselho Ultramarino pedia que o mesmo fosse julgado com justiça e
brevidade porque ele passava na “prisão muitas necessidades”253, e “para se sustentar
esta[va] vendendo alguns móveis que levou deste Reino”254. Apenas em Julho uma carta
régia colocaria termo aos conflitos envolvendo Antonio Telles da Silva. Dom João IV
tratou de suspender a prisão de Franco e também restituí-lo no seu cargo de Ouvidor
geral. Ainda mandou Dom Pedro da Silva notificar o conservador Viegas e julgá-lo
conforme as normas tridentinas.255 Enfim, advertiu Antonio Telles da Silva, lembrando-
o da sua

250
AHU, Luiza da Fonseca, caixa 9, documento 1079.
“o e a ue ela e t e o gove ado e o ouvido ve É i a Lôpo de A aújo, De golpe a golpe: política
251

e administração nas relações entre Bahia e Portugal (1641-1 disse tação de est ado , UFF,
2011, pp. 74-86.
252
Idem.
253
AHU, Luiza da Fonseca, caixa 10, documento 1112 [5 de Maio de 1645].
254
AHU, Luiza da Fonseca, caixa 10, documento 1128 [25 de Julho de 1645].
255
O rei também mandou notificar os religiosos da Companhia de Jesus, dizendo para eles requererem
seus direitos nas questões das desmarcações e sesmarias pela via ordinária, através dos ministros reais.
Essa afirmação, aliás, leva a crer que o litígio entre o conservador e o cônego era uma disputa de
terras. AHU, Luiza da Fonseca, caixa 10, documento 1129 [sem data].

86
Obrigação precisa de evitar por todas as vias semelhantes discórdias entre os
eclesiásticos e seculares pelo mau exemplo que causavam a vista do gentio e
dos hereges tão vizinhos256

Desta maneira ficou resolvida a contenda entre o Governador, a Câmara, o Ouvidor


geral, o conservador dos padres da Companhia e o cônego da Sé. Por certo essa
resolução não garantia a paz entre estas autoridades nos anos seguintes, mas não foram
encontrados mais documentos sobre o assunto após a carta régia.
O mesmo não se pode dizer em relação à querela do Bispo com o Governador.
Uma consulta de 17 de Agosto de 45 e um requerimento feito em nome de Dom Pedro
da Silva dão a entender que nada foi resolvido, ficando o prelado “sem ter coisa alguma
que comer nem gastar” e também sem poder acudir aos dois vigários gerais de
Pernambuco.257 Até então esta é a última carta que se refere ao conflito nos arquivos
pesquisados, dando a entender que não se determinou uma resolução para o problema.
Podemos inferir que esta aparente cautela da coroa em analisar o caso foi parte do jogo
político de um período conturbado como aquele, já que qualquer tipo de insatisfação
contra Dom João IV poderia desandar a consolidação da frágil dinastia brigantina.
Por certo a animosidade entre o Bispo e o Governador foi se construindo ao
longo da convivência entre essas duas autoridades. Esse tipo de conflito entre a esfera
civil e a eclesiástica foi consequência da congruência de personalidades fortes nos
cargos mais altos das duas hierarquias. A contenda estudada neste capítulo ocupou
lugares sociais diversos e representou principalmente uma disputa de poder e de
jurisdição muito comum na sociedade do Antigo Regime. Embora os dois
representassem instituições responsáveis pela administração portuguesa na América, e
que normativamente sua relação fosse de cooperação, foram os conflitos que nos
revelaram melhor a existência de limites entre o governo da Igreja e do Poder civil,
representados aqui por essas duas personagens.
Vale ressaltar que litígios entre essas duas esferas do poder não foram uma
especificidade da colônia. José Pedro Paiva, ao trabalhar as relações entre a Igreja e o
Estado no período pós-restauração, afirma que a interferência do rei cresceu ao longo da
modernidade em função do aumento da centralização do poder régio. 258 A coroa, que se

256
Idem.
257
AHU, Luiza da Fonseca, caixa 10, documento 1133 [sem data].
258
José Pedro Paiva, “As relações entre o Estado e a Igreja após a Restauração: A correspondência de
Dom João IV para o Cabido da Sé de Évora”, Revista de História das Idéias, vol. 22, 2001, pp. 107-
174.

87
encontrava em grave situação financeira nesse contexto de 1640, ordenou que o imposto
da décima, criado para ajudar nas despesas militares, também fosse aplicado às rendas
eclesiásticas do Arcebispado de Évora. Ordem semelhante foi enviada ao sobredito
Bispo do Brasil, e também nesse assunto Antonio Telles da Silva interferiu, numa
tentativa de constranger o religioso. Pediu o rei que ele emprestasse trinta mil cruzados
para ajudar a Fazenda Real a socorrer a infantaria, e que ainda não tendo feito à época
da carta, achou o Governador de ir ao Convento de São Francisco encontrar o Bispo
para lembrar-lhe de suas obrigações enquanto “bom português e leal vassalo”259,
corroborando com a assertiva de Paiva que o aumento do usufruto da coroa em relação
aos bens da Igreja e o decréscimo dos rendimentos dela formaram uma tendência
evolutiva conjuntural das relações entre os dois poderes no período moderno.260 Os
casos de Évora assim como o narrado acima exemplificam bem isso. A tendência
centralizadora na qual caminhou a monarquia portuguesa e a crescente subordinação da
Igreja esteve presente na política de Dom João IV e aumentou ao longo das décadas.
O conflito entre Antonio Telles da Silva e o Bispo D. Pedro da Silva revela qual
tipo de relação se mantinha entre estes dois poderes na colônia. Mais do que isso,
demonstram que essas duas esferas, antes de qualquer coisa, eram constituídas de
homens dotados de interesses próprios que geravam muitas vezes atritos como esse
narrado aqui. Além disso, estudar essa temática ajuda a compreender o cotidiano
político numa sociedade de Antigo Regime, onde os litígios não eram fatos
excepcionais. A necessidade de distinção estimulava a disputa de poder e se pode
afirmar que elas faziam parte do sistema político administrativo português. Como expôs
Schwartz, a contínua disputa jurisdicional na América, talvez inerente à natureza do
governo português ou incentivado pelo mesmo, por certo foi exacerbada pelas
personalidades individuais261. E, segundo Boxer, ainda que essas brigas não fossem
estimuladas e não contribuíssem para uma harmonia administrativa, também não eram
controladas pela coroa, posto que se encaixassem “no sistema colonial de verificações e
balanços”, garantindo “a rápida chegada das notícias dos delitos e enganos
cometidos”.262 Dessa maneira o rei português, representando a principal fonte
solucionadora desses problemas, conseguia manter sob o seu controle a governança do
ultramar. O próximo capítulo aborda outro conflito, no início do século XVIII, entre o

259
AHU, Luiza da Fonseca, caixa 10, documento 1111 [15 de Abril de 1645].
260
Paiva, “As relações entre o Estado e a Igreja...”, pp. 128-129
261
Schwartz, Burocracia e sociedade... p.32.
262
Charles R. Boxer, A idade do ouro do Brasil... p.168.

88
Ouvidor geral e o Arcebispo da Bahia, que, ainda que num contexto diferente, com a
dinastia brigantina em vias de consolidação, testemunha uma questão jurisdicional com
pitadas de disputas pessoais pelo poder e pela distinção.

89
Capítulo III

O açougue eclesiástico: disputa de poder e conflito de jurisdição no início


do século XVIII

O século XVIII foi, em toda a América portuguesa, um tempo de


inquietações263. As convulsões internas tiveram início logo nos primeiros anos dos
setecentos, com os problemas nas Minas dos emboabas. Na Bahia, mais
especificamente em Salvador, não foi diferente. Na primeira e última década do século
eclodiram revoltas ocasionadas por fatores diferentes, mas que revelaram um pouco do
contexto da cidade mais pujante do ultramar americano. Interessa-nos aqui focar na
revolta que teve como principal alvo o aumento do imposto sobre os gêneros de
primeira necessidade.
Aos 17 dias do mês de outubro de 1711 eclodiu uma revolta fiscal conhecida
pela historiografia como o “motim do Maneta”264. A principal queixa dos seus
participantes – soldados, oficiais dos terços da cidade, chatins, negociantes portugueses,
padres, oficiais mecânicos – era a adição de 10% ao imposto sobre as mercadorias
importadas e sobre os escravos que vinham da Costa da Mina e de Angola. Ademais,
também reclamavam do aumento do preço do sal, gênero de absoluta importância para a
conservação de mantimentos e do couro, que desde o ano anterior havia subido de 480$
réis para 720$ réis.265 Havia muito tempo que a população estava insatisfeita com o
abastecimento do sal e os preços impostos pelos contratadores do gênero. Vinculado a
isso, outros produtos começaram a escassear. A carne, por exemplo, passou a ser um
gênero mais raro, pois os criadores, sem poder salgar os couros, deixavam de descer as

263
Laura de Mello e Souza, em O sol e a sombra, diz que sobre a América portuguesa pairava o duplo
temor de ameaça externa (com os franceses e outros estrangeiros investindo no Brasil) e ameaça
interna (os colonos sem peias, senhores de sua vontade, sobretudo aqueles que se deslocavam pras
Minas) in Souza, em O sol e a sombra..., p. 81.
264
Cf. Luciano R. A. Figueiredo, “Revoltas, fiscalidade e identidade colonial na América portuguesa. Rio
de Janeiro, Bahia e Minas Gerais (1640-1761)” (tese de doutorado), São Paulo, USP, 1996.
265
Idem, p. 82. Para ver um pouco mais sobre o assunto, cf. Luis Henrique Dias Tavares, História da
Bahia, São Paulo/Salvador, Ed. Unesp/Edufba, 2001.

90
boiadas.266 A razão da determinação do imposto de 10% foi o auxilio à manutenção dos
navios de guerra do Brasil, necessários para garantir a segurança contra os contínuos
ataques de corsários e franceses, que tinham se avultado naqueles tempos.
Entretanto, a aceitação não se deu de maneira pacífica na Bahia. Liderados por
João de Figueiredo Costa, conhecido como Maneta, os amotinados reuniram-se na Praça
da Câmara para cobrar medidas do então Governador, Dom Pedro de Vasconcelos e
Souza, Conde de Castelo Melhor, almejando que ele impedisse as medidas
recentemente adotadas. Ficou então acertado com o juiz do povo – interlocutor do
processo – que qualquer decisão seria tomada dali a três dias. Impacientes, os revoltosos
voltaram a se reunir no amanhecer do segundo dia, e trataram de bater o sino da Câmara
Municipal no intuito de mobilizar a população.267 Sem conseguir acordo com o
Governador, a multidão partiu em direção à casa do contratador do sal, Manuel Dias
Filgueiras, invadindo-a e jogando seus móveis pelas janelas. Repetindo o feito de
destruição no armazém dele, que estava localizado logo abaixo da residência, abriram
“as pipas e todas as mais vasilhas, que encerravam diversos líquidos, fazendo-os correr
pelas ruas...”.268 Os sublevados logo seguiram para a casa do sócio de Manuel
Filgueiras, Manuel Gomes Lisboa, e continuaram – afirma Accioli – com os distúrbios
“sem que se dispersassem, quando o Arcebispo recorreu às armas da religião: munido
de uma âmbula, que encerrava as Partículas Sagradas, acompanhado de alguns Cônegos
e irmãos da confraria do Sacramento da Sé, apresentou-se àqueles perturbadores...”,
pedindo que se recolhessem às suas casas...269. A tentativa de Dom Sebastião Monteiro
da Vide obteve sucesso, mas não por muito tempo. Como afirma Figueiredo, passado o
ritual religioso – também considerado um ritual de controle social – os revoltosos
voltaram às reivindicações. Não demoraria muito tempo e o Governador cederia à
pressão e aceitaria as exigências dos insurgentes. Aconselhado por Lourenço Almeida,
seu antecessor, assinou uma portaria e um perdão generalizado aos insurretos, dando
ordens ao provedor da Fazenda para suspender os novos impostos.270
O desfecho dessa história não é o essencial para o que propomos aqui. Na
verdade, ela serve como pano de fundo para desenhar os contornos da sociedade baiana
no início do século XVIII. O problema de outubro de 1711 é relevante em dois

266
Thales de Azevedo, O povoamento da cidade de Salvador, Salvador, Ed. Itapuã, 1969, p. 350.
267
Figueiredo, “Revoltas, fiscalidade...” pp. 81-82.
268
Accioli de Cerqueira e Silva, Memórias históricas e políticas..., p. 152.
269
Idem, p. 53.
270
Figueiredo, “Revoltas, fiscalidade...”, p. 86. Rocha Pitta também descreve o motim, do qual
provavelmente foi expectador. Sebastião da Rocha Pitta, História da América portuguesa..., pp.83-86.

91
aspectos: no que tange às realidades fiscais e econômicas de Salvador no período e,
sobretudo, no que diz respeito à participação essencial do corpo eclesiástico (liderado
pelo Arcebispo, uma das personagens principais desse capítulo) num problema não
religioso, explicitando a importância do papel político desempenhado pela Igreja na
América portuguesa. Contudo, e como já foram mostrados aqui nesse trabalho, nem
sempre os interesses entre a Igreja e o Poder civil, com seus oficiais, convergiam. Nesse
percurso encontramos uma tensão do início do setecentos entre duas figuras que
assumiram cargos de extrema relevância na hierarquia de poderes da sociedade do
Antigo Regime ultramarino. A existência de um açougue separado para os clérigos na
cidade de Salvador foi ponto chave do conflito entre o Ouvidor Geral e Provedor da
Comarca, Miguel Manso Preto, e o Arcebispo da Bahia, Dom Sebastião Monteiro da
Vide. Querelas envolvendo essas duas esferas de poder, que num sentido mais amplo
representam a coroa e a Igreja no ultramar, não eram incomuns. Nesse caso, para além
de uma disputa de poder, um problema de abastecimento da cidade tornou-se questão
central de um litígio.
O caso do açougue dos eclesiásticos chamou-nos atenção devido ao seu
prolongamento no tempo (durou treze anos) e por ter abarcado, direta e indiretamente,
diversos oficiais reais. Neste sentido, esse litígio nos fez perceber que um estudo mais
aprofundado poderia revelar o tipo de relação que se estabelecia entre o poder secular e
o poder eclesiástico na Bahia, bem como compreender um pouco mais do cotidiano
político de Salvador enquanto sociedade do Antigo Regime, onde a hierarquia e os
privilégios indicavam a harmonia e o equilíbrio social.
A existência de um açougue separado para os clérigos na cidade de Salvador
desde o final da década de 1620, criado para distinguir os eclesiásticos dos demais
grupos sociais, culminaria em uma querela no início do século seguinte, opondo o
Ouvidor Geral ao Arcebispo da Bahia271. Em 1705 Miguel Manso Preto fez uma
denúncia contra Dom Sebastião Monteiro da Vide a fim de impedir a continuidade de
práticas consideradas por ele como abusivas. A questão girava em torno do monopólio
real do comércio da carne verde que, segundo Avanete Pereira de Sousa, era comum em
todo o Império português.272 A Câmara Municipal de Salvador era a responsável pela

271
Existiram também açougues separados para outros corpos sociais, como os desembargadores da
Relação, os religiosos do Carmo, a Misericórdia e o Senado da Câmara.
272
Sousa, “Poder local e cotidiano...”, p.155.

92
sua execução e tinha nela uma das suas principais fontes de renda. 273 Cabe aqui
atentarmos mais para a função desse poder local, que segundo Lara formava uma teia na
qual se sustentava a política metropolitana274.

1- A Câmara Municipal e o abastecimento da cidade de Salvador

As Câmaras, na América Portuguesa, foram órgãos fundamentais no


gerenciamento de boa parte do comércio, dos tributos e dos donativos impostos pela
metrópole275. Em nome do bem comum da república, elas eram responsáveis pela
organização e provimento dos núcleos urbanos, como, por exemplo, regulamentar o
abastecimento da cidade ou vila ou mesmo cuidar da organização de festas reais e
procissões religiosas276.
Em meio ao processo de fundação da cidade, em 1549, foi erguida a Câmara de
Salvador. Como as demais construções do período, o edifício foi levantado com
materiais disponíveis no local: palha, madeira e taipa.277 Portanto, foi num sobrado que
começou a funcionar o coração administrativo da cidade. Mas a construção não
permaneceu tão rústica por muito tempo, tendo sido várias vezes refeita. A atual Casa
da Câmara de Salvador foi iniciada pelo Governador Francisco Barreto de Menezes, nos
anos 60 do século XVII.278
As Câmaras municipais, em todo Império português, equilibravam autonomia e
submissão ao poder central. Embora por bastante tempo alguns historiadores tenham
defendido uma centralização excessiva do governo lusitano, é necessário reconhecer a
capacidade de negociação que as Câmaras tiveram em todo o Império279. Raymundo
Faoro, por exemplo, acredita que a implantação dessa estrutura administrativa
tipicamente portuguesa na colônia foi uma forma do soberano mantê-la sob rédeas

273
Idem. A terça parte da renda auferida pertencia à Coroa.
274
Lara, Fragmentos Setecentistas..., p. 31.
275
Maria Fernanda Bicalho, “As Câmaras Municipais no Império Português: o exemplo do Rio de
Janeiro”, Revista Brasileira de História, 1998, vol.18, n. 36, p.251-280.
276
Em toda sua dissertação, Sousa trabalha com as atribuições que eram responsabilidades da Câmara de
Salvador, sobretudo a partir do terceiro capítulo. Avanete Pereira de Sousa, “Poder local e
cotidiano...”.
277
Affonso Ruy, História da Câmara Municipal... p.37
278
Idem, p. 38
279
João Fragoso, Maria de Fátima S. Gouvêa e Maria Fernanda B. Bicalho, “Uma leitura do Brasil
colonial: bases da materialidade e da governabilidade no Império”, Penélope, n. 23, 2000, pp. 67-88.

93
curtas.280 Entretanto, estudos posteriores caminharam no sentido contrário e defenderam
uma posição mais autônoma da Câmara em relação à coroa, e aqui seguimos esta
interpretação.281
A eleição do seu corpo de oficiais não estava vinculada ao rei. Era composta por
dois juízes ordinários, três vereadores e um procurador da Cidade, “eleitos anualmente
pelas oitavas de dezembro por um corpo eleitoral, composto dos homens bons da
cidade”, afirma Affonso Ruy.282 Até a criação do cargo de juiz de fora, no final do
283
século XVII, o escrivão era o único de nomeação real. Sua função era vitalícia e,
além de lavrar atas, era incumbido de cuidar do movimento financeiro do Concelho,
sendo inclusive guardião da chave do cofre da Câmara.284A maior parte dos homens que
assumiam cargos nessa instituição fazia parte da elite açucareira. 285 Era desta maneira
que se inseriam na vida político-administrativa da cidade e no poder local, onde tinham
certa liberdade para defender seus interesses. Eles exerciam a função durante um ano,
quando novas eleições ocorriam. Esse modelo “eleitoral” evitava o que Boxer chamou
de “auto perpetuação da oligarquia” – que ocorreu na América espanhola, onde em
muitos cabildos os regedores (semelhantes aos vereadores) tinham cargo vitalício.286
As Câmaras tinham uma série de responsabilidades e todas elas envolviam
elementos do cotidiano da população de Salvador, como a organização das procissões
reais, questões relativas ao abastecimento da cidade, a urbanização, a alimentação e o
fardamento das guarnições, dentre outros. Como afirma Lara, “com alçadas e privilégios
confirmados pelo Reino, elas constituíam o centro da política local” e funcionavam
como elos que mantinham os vários territórios ligados entre si e submetidos ao poder da
coroa. Portanto eram mesmo, como afirma a historiadora, o coração do governo
português287.

280
Como afirma o autor, “na verdade, o município (e suas Câmaras), na viva lembrança dos êxitos da
monarquia, foi instrumento vigoroso, eficaz, combativo para frear os excessos da aristocracia e para
arrecadar tributos e rendas”. Raymundo Faoro, Os donos do poder..., p. 170.
281
Para mais, conferir os trabalhos de Maria Fernanda Bicalho. Maria de Fátima Gouvêa e João Fragoso
já citado nesse capítulo, bem como a obra de Charles Boxer sobre os concelhos de Goa, Macau e
Bahia. Silvia Lara, na obra já citada aqui, também defende essa posição.
282
Ruy, História da Câmara... p. 40.
283
Segundo Graça Salgado, as atribuições de um juiz de fora consistiam, basicamente , em proceder
contra os que cometerem crimes nos municípios de sua jurisdição, fiscalizar a atuação do alcaide-mor
e dos alcaides pequenos, assinar licenças passadas pelo Senado, dar juramentos aos mais diversos
cargos, etc. Cf. Graça Salgado, Fiscais e meirinhos: a administração no Brasil colonial, Rio de
Janeiro, Ed. Nova Fronteira, 1985, pp. 261- 269.
284
Ruy, História da Câmara... pp. 42-43.
285
Boxer, Portuguese society in the tropics…, p. 73.
286
Idem, p. 77
287
Lara, Fragmentos setecentistas..., p 35.

94
Segundo Sousa, “tanto em Portugal quanto em suas colônias, seguindo um
direito costumeiro, advindo das tradições de organização local romana, devidamente
expressa nas Ordenações do Reino, a organização e o provimento dos núcleos urbanos
ficavam a cargo das Câmaras”.288 Dentre as atribuições que já foram citadas, estava a de
cuidar do abastecimento de víveres de Salvador. Ela regulava todas as etapas do
processo de venda, bem como era a única que podia autorizar o comércio de
determinados produtos, como a farinha, a carne e o sal. “É justamente sobre estes que se
concentrarão as maiores iniciativas do poder local, no sentido de prover
satisfatoriamente a sua oferta à população” 289
, o que é explicado pelo fato de que esses
três produtos eram monopólios reais. A almotaçaria era o setor da Câmara responsável
por tudo relacionado ao abastecimento. Segundo Charles Boxer, os almotacéis eram os
oficiais designados para inspecionar todo tipo de comida que era trazida para vender na
cidade. Verificavam se os preços seguiam as tabelas fixadas pela almotaçaria (na frente
dos estabelecimentos deveria ter uma tábua onde os preços pudessem ser vistos) e
asseguravam se os pesos e medidas estavam corretos.290 Como é dito nas Ordenações,
“e estarão como for manhã, no açougue até a hora de terça (nove horas), não se indo daí,
e fazendo dar a carne...” e “para saberem se os Carniceiros pesam bem a carne, ponha-
se a balança e pesos do Concelho, em que se pese, e vejam se é bem pesada, e os pesos
fiéis...”, denotando a preocupação que havia sobre o comércio deste gênero291. No caso
da farinha, até mesmo sua produção era regulamentada. A falta de interesse dos
proprietários rurais em plantar certos gêneros alimentícios, ao longo do século XVII, em
favor do plantio da cana de açúcar, fez com que a mandioca se tornasse o principal
alimento da população.292 Assim, é perceptível ao longo de toda a documentação da
Câmara, um esforço em prol do cultivo da mandioca. Já o sal, ao contrário dos outros
dois gêneros acima citados, deixou de ser administrado pela Câmara a partir de 1690.
Ele passou a ser regulamentado e controlado diretamente pela coroa, “em função da
necessidade de preservar a indústria portuguesa de fabricação do sal, uma das mais
importantes e prósperas da época, forçando a importação do produto, pelo Brasil, a

288
Sousa, “Poder local e cotidiano...” p. 137.
289
Idem, p. 138.
290
Charles Boxer, Portuguese society..., pp. 318-340. Os preços almotaçados equivaliam aos preços
máximos que o produto poderia ser vendido, existindo a possibilidade de serem comercializados à
valores mais baixos. Para conferir mais sobre o assunto, ver Angelo Alves Carrara, Minas e currais:
produção rural e mercado interno de Minas Gerais (1674-1807), Juiz de Fora, Ed. UFJF, 2007.
Especialmente o capítulo 1.
291
Ordenações Filipinas, livro I, título LXVIII.
292
Sousa, “Poder local e cotidiano...”, p. 139.

95
preços exorbitantes.293 Porém, aqui mais importa analisar de perto o abastecimento da
carne, que também – junto com os outros dois – era imprescindível para a alimentação
da população de Salvador.
O estabelecimento de açougues públicos e o controle da venda da carne eram
também atribuições camaristas e demonstram a forma como a Câmara administrava e
organizava uma esfera importante da vida urbana294. Em Salvador, inicialmente,
instalou-se apenas um açougue público anexo ao prédio da Câmara, mas, devido ao
aumento populacional, depois foram construídos outros espalhados pelas freguesias da
cidade295. No início do século XVIII eram dez no total, mas este número cresceu
proporcionalmente ao aumento físico e populacional da urbe. Eles estavam subdivididos
em talhos296, normalmente oito, que eram arrematados por particulares. Embora a venda
da carne verde fosse um monopólio real – não só na Bahia, mas em todo Império
português – a Câmara não cuidava de sua venda diretamente. Antes de tratarmos da
comercialização da carne, devemos abrir um parêntese para entender melhor como se
dava o processo da criação do gado.
Como é de conhecimento comum, quando os portugueses se instalaram aqui
inicialmente não havia animais domesticados conhecidos na Europa, tais como galinha,
carneiro ou vaca. Porém, antes mesmo da chegada do primeiro Governador geral já
havia na capitania da Bahia gado vacum.297 As primeiras zonas de criação foram
estabelecidas nos arredores da cidade, com a construção de vários currais em Itapagipe,
Itapuã e Tatuapara (atualmente Praia do Forte), todos de propriedade de Garcia
d´Ávilla298. “Dali, afirma Azevedo, rico e poderoso, ia partir seu filho Francisco Dias
d´Ávilla com a sua gente armada, os seus vaqueiros mamelucos e os seus rebanhos à
conquista e povoamento do rio S. Francisco, aonde veio a dominar centenas de léguas
de terras obtidas em sesmarias para o seu criatório”.299
A criação de feiras de gado era um das maneiras que a Câmara tinha para
fiscalizar o abastecimento do produto. A principal delas no século XVIII era a do

293
Idem, pp. 162-163.
294
Idem, p. 156.
295
Idem ibid.
296
No dicionário Raphael Bluteau, se encontra a seguinte descrição para a palavra talho: no açougue, é o
cepo, ou o lugar, donde se corte, e se distribui a carne. Neste sentido se diz dar um talho ou ter um
talho no açougue. Consultado em: http://www.brasiliana.usp.br/en/dicionario/edicao/1
297
Gado da espécie dos bovinos, próprio para o abate.
298
Sousa, “Poder local e cotidiano...” p. 155. Cf. Thales de Azevedo. O povoamento da cidade... pp. 320-
321.
299
Azevedo, O povoamento da cidade... pp.321-322.

96
Capoame, a cinco léguas de Salvador (atual cidade de Dias D’ávilla), e que ocorria toda
quarta feira.300 Lá ficavam concentradas as rezes que desciam do sertão para abastecer
Salvador. Charles Boxer descreve que as viagens dos currais dos sertões da Bahia
podiam durar semanas e até mesmo meses, e que não raro reclamava-se da magreza do
gado.301 Um exemplo é o relato do viajante Dampier. Ele disse ter chegado a Salvador
no tempo da quaresma e que não havia carne para comprar. Mas, contou, isso mudou na
véspera da Páscoa, “quando um grande número de bois foi abatido imediatamente nos
açougues da cidade; um bando de homens, mulheres e crianças seguiram para lá com
grande alegria a fim de comprar, e uma multidão de cachorros, quase mortos de fome,
os seguiu, e para eles a carne parecia apropriada, por ser magra”. 302 E desta maneira já
chegavam às feiras, onde os criadores de gado ficavam submetidos aos preços
determinados pela Câmara. Dali o gado era trazido para os currais da cidade, onde
seriam abatidos. Aliás, o comércio da carne verde era tão importante para o Império
português que as Ordenações Filipinas previam penas para quem descumprisse as
normas de venda: “nenhuma pessoa, de qualquer qualidade que seja, cortará carne fora
dos açougues públicos, nem a maiores preços dos acima ditos” e a pena para quem o
fizesse seria pagar “a valia do gado, a metade para quem o acusar, e a outra metade para
os Cativos, e pagará vinte cruzados mais para o acusador, e será degredado dois anos
para a África”.303 Vale ressaltar que geralmente havia uma grande distância entre a
norma e a prática jurídica na época moderna, quando a lei servia como um limite
máximo do que poderia ser feito e não um ideal a ser seguido a risca pela sociedade,
como vivenciamos nos dias atuais.
A carne chegava aos açougues públicos através dos atravessadores. 304 Eram eles
que levavam o gado para a cidade para cortá-los. Por ordens do Senado, qualquer pessoa
que chegasse com o animal deveria registrar-se na casa do Escrivão da Câmara, para
que assim tivesse preferência o que chegasse primeiro.305 Havia dois locais que

300
Avanete Pereira de Sousa, “Poder local, cidade e atividades econômicas (Bahia, século XVIII)”(tese
de doutorado), FFLCH-USP, São Paulo, 2003, p. 67. Esta tese foi recentemente publicada sob o título:
A Bahia no século XVIII: poder político local e atividades econômicas, São Paulo, Alameda, 2012.
301
Charles R. Boxer, A idade de ouro do Brasil..., p. 251.
302
No original lê-se: “when a great number of bullocks were killed at once in the slaugtherhouses whitin
the town, men, women and children slocking thither whit great joy to buy, and a multitude of dogs,
almost starved, following them; for whom the meat seemed fittest, it was so lean”. Dampier, A new
voyage…, p. 60.
303
Ordenações Filipinas, livro I, título LXVI.
304
Segundo Bluteau, marchante é o mercador de gado para o açougue. Consultado em:
http://www.brasiliana.usp.br/en/dicionario/edicao/1
305
Azevedo, O povoamento da cidade... p.329.

97
funcionavam como matadouro: um estava localizada nas portas do Carmo e o outro nas
portas de São Bento. Eram duas fábricas de currais, equipadas com negros para matar,
esfolar e carregar a carne para o açougue. Além disto, ainda existiam lá outros
equipamentos, como balanças, cepos e cordas, à disposição dos usuários.306 Dali, as
carnes seguiam para os açougues, onde seriam compradas e consumidas pela população
de Salvador.
A arrematação do direito sobre o comércio da carne verde era um processo
meticuloso. A Câmara escolhia alguns comerciantes que poderiam concorrer para o
“gerenciamento” de um talho. Os marchantes, como eram chamados, passavam a ter
direito de comercializar a carne verde através de um leilão público e de um contrato
anual.307 Não era qualquer um que poderia dar lance num talho da cidade. Além de ser
necessário um vultoso investimento inicial, o Senado exigia uma série de pré-requisitos,
como a posse de bens e o aval de um fiador.308 A Câmara cercava-se de cuidados para
garantir que apenas os licenciados comerciassem a carne verde, pois assim também
ficava garantido que os direitos sobre a venda deste gênero seriam devidamente pagos a
ela. A carne era sempre vendida às terças e quartas feiras e aos sábados, e para cada dia
eram destinadas quarenta cabeças de gado.309 A arrematação dos talhos era uma
importante fonte de renda para a Câmara de Salvador, que Sousa determinou serem de
dois tipos: as rendas diretas, obtidas através das condenações e coimas, e as indiretas,
obtidas nas concessões a terceiros de contratos e serviços de direitos e de atividade da
coroa.310 As últimas eram a principal receita dos rendimentos desta instituição. Segundo
a historiadora, durante a maior parte do século XVIII a arrematação dos açougues
renovava-se anualmente, indicando um crescimento do consumo e por consequência um
maior controle da atividade pelos camaristas por ser negócio rentável (gráfico 1).311

Gráfico 1

306
Sousa, “Poder local e cotidiano...”, p.156.
307
Sousa, “Poder local, cidade e atividades econômicas...”, p. 207.
308
Idem, p. 158.
309
Azevedo, O povoamento da cidade... pp.330-331.
310
Sousa, “Poder local, cidade e atividades econômicas...”, pp. 181-232.
311
Idem, p. 208.

98
Fonte: AMS, Arrematações da Renda da Câmara, 1698-1808 apud Avanete Pereira de Sousa, Poder
local, cidade e atividade econômica (Bahia, século XVIII), tese de doutorado, FFLCH-USP, 2000, p.
214.

Os rendimentos oriundos da arrematação dos talhos públicos variaram ao longo


do século XVIII por uma série de fatores, afirma Sousa. Entre eles, a oferta e a procura
era o mais relevante, já que a demanda avultava o interesse dos criadores pelo aumento
da criação e dos marchantes pela comercialização do gado.312 Por isso observa-se no
gráfico que em geral, nos setecentos, o valor dos contratos manteve-se bastante elevado.
Os períodos em que houve diminuição de valor coincidem com problemas de ordem
física ou natural, como secas e enchentes.313
Portanto, a criação de um açougue para os eclesiásticos da cidade da Bahia
significou uma convenção entre o poder local e o poder eclesiástico. Este acordo foi
realizado de forma que não prejudicasse a Câmara e a Fazenda Real, já que as rendas
provenientes do monopólio do comércio da carne eram de extrema relevância 314. E é

312
Sousa, “Poder local, cidade...”, p. 213.
313
Idem, p. 214
314
Segundo Avanete Pereira de Sousa, o comércio da carne verde era uma das principais fontes de
rendimento da Câmara, representando cerca de setenta por cento de todas as rendas. Avanete Pereira
de Sousa, “Poder local e poder eclesiástico na Bahia setecentista: os matizes de uma convivência” in
Bruno Feitler e Evergton Sales Souza (coord.), A Igreja no Brasil colônia: normas e práticas no
tempo do arcebispo D. Sebastião Monteiro da Vide, São Paulo, Unifesp, 2011, pp. 62-81. Há também
uma carta do Senado da Câmara para o Conselho Ultramarino que explicita a importância do
comércio da carne para a Fazenda Real: “Ordinariamente se costumavam rematar os talhos dos
açougues desta cidade por oito, nove, e dez mil cruzados, cada ano hoje apenas chegam a cinco, e

99
exatamente neste quesito que deitam as raízes da querela que daqui em diante será
apresentada.

2- Problemas de jurisdição: querelas entre um Ouvidor e um Arcebispo.

Na consulta feita no dia primeiro de Março de 1683, o Conselho Ultramarino


mostrou-se favorável a uma petição feita pelo Arcebispo da Bahia, Dom Frei João da
Madre de Deus. Nela foi dito que:

O Arcebispo da Bahia Dom Frei João da Madre de Deus fez petição a Vossa
Alteza por este Conselho, em que ele diz que as pessoas eclesiásticas
daquela Cidade tiveram sempre açougue particular, aonde mandavam
comprar o provimento de carne, e se lhe davam mais reverência do que nos
açougues dos particulares, até que a entrada dos holandeses em Sergipe de El
Rei faltou o gado, e cessou o corte dele. Depois sendo Governador daquele
Estado o Conde de Autoguia, lhes concedeu de novo o dito açougue,
respeitando a que nos dos particulares se lhes perdia o respeito, e se lhes
fazia menos favor do que mereciam; e assim se conservaram muitos tempos
tendo obrigados que livremente compravam o gado necessário, e o matavam
onde lhes convinha pagando à Câmara os direitos que os demais açougues
lhe pagavam, na forma da provisão que lhes mandou passar o dito Conde, de
que oferece a cópia; e por outra de Vossa Alteza passada no anno de 674 de

brevemente não haverá quem os remate, sendo que por irem os gados em crescimento não deviam
estar Reduzidos a tão ínfimo valor; e porque presumimos que esta grande diferença procede, de que há
anos a esta parte, deram os marchantes (pela grande conveniência que nisso tem) em vender nos
currais em quartos toda a carne gorda que neles se matava pelo mais subido preço que podam e sai
taxado nesta vereação, no que não só as Rendas de Vossa Majestade padecem uma diminuição muito
grande, senão que também o povo experimenta um muito considerável prejuízo porque se todo o gado
que se matar nos currais se vier cortar aos açougues comeria o povo a carne pelo preço taxado, e não
pelo que lhes põem os marchantes e as rendas de Vossa Majestade poderão facilmente subir ao
crescimento que tinham não sendo justo, que pela conveniência particular se veja prejudicado todo o
bem comum. Pedimos com toda a submissão devida seja Vossa Majestade servido mandar que
nenhuma pessoa, de qualquer privilégio e condição que seja, possa mandar aos ditos currais comprar
Carne, e que toda se venha cortar inviolavelmente aos açougues públicos desta Cidade assim e da
maneira que se pratica em Lisboa e em todas as mais partes do Reino, com pena de que a pessoa, ou
pessoas, que [venderem] carne nos ditos currais, seja degredada para Angola, e pague duzentos mil
réis para as obras da Cadeia desta Cidade que só desta sorte [se evita] o que de outra maneira não
podemos Remediar, pela limitada condenação de seis mil réis, a que só se estende a jurisdição que
este Senado [ilegível] que os ditos marchantes se livram, em agravando para a Relação deste Estado: e
fiados no Recurso que nela acham, se animam a não fazer [ilegível] das penas, e condenações, com
que o Senado costuma evitar os prejuízos do Povo: pelo que deve Vossa Majestade ser servido que
desta condenação e execução, não haja apelação nem agravo para a dita Relação porque também tem
natureza de Fazenda Real os mesmos talhos, por ter a Fazenda de Vossa Majestade na renda deles, a
terça para sustento do presídio desta cidade. A Real pessoa de Vossa Majestade guarde nosso Senhor
como todos seus vassalos desejamos. Bahia 30 de Julho de 1694”. Cf. AHU, Luiza da Fonseca, caixa
30, documento 3848 [30 de Julho de 1694].

100
que também ajunta o registro houve Vossa Alteza por bem que os
Desembargadores da Relação da mesma cidade pudessem ter um talho no
açougue público dela, com pessoa obrigada a dar lhes a Carne necessária,
pagando eles à Câmara o dito direito, a fiz como tinham o mesmo Senado, e
os Clérigos açougue separado. E porque nestes termos deve Vossa Alteza
conceder ao estado eclesiástico o dito açougue.
Pede a Vossa Alteza lhe façam mandar passar Provisão para que na dita
Cidade haja açougue separado dos clérigos, com as mesmas cláusulas, e
declarações com que lha havia concedido o Conde de Autoguia.
Da dita petição, e traslados das provisões referidas se deu vista ao
Procurador da Fazenda, e respondeu que se fizesse justiça. 315

Tratava-se de um pedido para que o soberano português, à época ainda Príncipe


Regente D. Pedro II, provisionasse os eclesiásticos de Salvador com um açougue
separado dos particulares, no qual poderiam comprar a carne com o respeito e
tratamento devidos, prática que vinha sendo frequentemente desconsiderada.
Não tardaria para que o regente D. Pedro II enviasse uma provisão real acatando
o pedido do Arcebispo. Em 15 de Março do mesmo ano, escreveu:

Eu o Príncipe como Regente Governador dos Reinos de Portugal e


Algarves, faço saber que esta minha provisão virem que tendo respeito a vós
Representantes D. F. João da Madre de Deus Arcebispo da Bahia do meu
Conselho que o Conde de Atouguia sendo Governador do Brasil concedera
as pessoas eclesiásticas daquela cidade açougue separado aonde mandavam
comprar o provimento da carne. E se lhes davam com mais decência do que
no dos particulares em que se lhe perdia o respeito, e se lhes fazia menos
favor do que mereciam no que se conservaram muitos tempos, sendo
obrigados que livremente compravam o gado necessário, e o matariam
adonde lhes convinham, pagando a Câmara os direitos que os mais açougues
pagavam na forma de provisão que lhes mandou passar o dito Conde, tendo
a tudo consideração, e ao que respondeu o procurador de minha Fazenda a
que se deu vista; hei por bem que na dita Cidade da Bahia haja açougue
separado dos Clérigos, com as mesmas cláusulas e declarações com que
havia concedido o Conde de Atouguia pelo que mando ao meu Governador e
Capitão Geral do Estado do Brasil; e aos mais ministros e pessoas a que
pertencer, cumpram e guardem esta provisão inteiramente como nela se
contém, sem dúvida alguma e valerá como Carta sem embargo da Ordenação
Livro 2, título 40 encontrarão e só passo por duas vias. Manuel Róis de
[ilegível] a fez em Lisboa 15 de Março de 1683. 316

315
AHU, Luiza da Fonseca, caixa 30, documento 3150 [1 de Março de 1683].
316
AMS, Provisões Reais 126.3, fl. 22. É possível perceber, no fundo das Provisões Reais do Arquivo da
Câmara de Salvador, que a solicitação da confirmação da posse do açougue dos eclesiásticos era uma
prática comum e por isso supomos que ela era feita por todo novo arcebispo que tomasse posse do cargo
na Bahia. Há uma provisão semelhante pra Dom Sebastião Monteiro da Vide em 1702. Cf. Provisões
Reais, 126.3, fls. 127-127v.

101
Porém, a data de criação deste estabelecimento não é a mesma da consulta do
Conselho. Logo nas primeiras reuniões após a expulsão dos holandeses, em 1625, os
vereadores copiaram para as Atas da Câmara as posturas municipais que existiam antes
da chegada do inimigo e que deveriam ser executadas como antes. 317 E entre elas há
uma que assinala a existência do açougue eclesiástico antes da invasão:

que o marchante, que cortar carne no açougue dos clérigos, não venda carne
alguma sem ser arrobada no peso da praça pública sob pena de seis mil reis
….......................................................... 6$000318

Podemos inferir, para tanto, que após a ocupação neerlandesa da cidade este
estabelecimento foi fechado, sendo reaberto cinco anos depois. Uma provisão real de 24
de Agosto de 1629 expôs que

o cabido e o clero da cidade da Bahia de todos os santos e da capitania de


Pernambuco do Estado do Brasil [...] não tem açougue onde lhe deem carne
para si, e suas famílias, e nos açougues públicos das ditas partes onde
provêm do necessário e muitas vezes não querem dar, pelo que pedem a
Vossa Majestade seja servido passar Provisão para poderem ter Marchante e
açougue separado onde [sejam] providos do necessário assim de carne como
peixe pelos preços da terra319

Dom Felipe III atendeu à petição daqueles eclesiásticos. A partir de então eles
poderiam

ter assim na dita cidade como na dita capitania açougue particular, e


carniceiro que neles lhes corte a carne, que tiverem necessidade para
sua sustentação pelos próprios preços nos que se corta na dita cidade e
capitania320

Também na própria consulta encontramos um indício sobre o assunto. Como


disseram, “as pessoas Eclesiásticas daquela Cidade tiveram sempre açougue particular,
aonde mandavam comprar o provimento de carne”, mas este havia sido fechado devido

317
Atas da Câmara vol.1, p. 5.
318
Idem, p. 9.
319
AMS, Provisões Reais livro 122.1, fls. 110-110v.
320
AMS, Provisões Reais, livro 122.2, fls. 158-159v.

102
à falta de gado para o corte nos talhos da cidade.321 Tudo indica que não muito tempo
depois de 1629 os problemas causados pelas sucessivas invasões dos holandeses no
nordeste foram responsáveis pelos problemas no abastecimento da carne em Salvador e
o conseguinte fechamento do açougue eclesiástico.
A guerra contra esses inimigos na Bahia e no Nordeste entre os anos de 1624-
1654 foi um período conturbado da história colonial. Como já vimos no capítulo
anterior, desde 1623 os holandeses se preparavam para invadir a Bahia, logrando
sucesso no ano seguinte. Durante um ano Salvador sofreu com as devastações feitas
pelos inimigos e apenas em março de 1625 chegou a armada que iria expulsar o “herege
rebelde” da cidade.322 Muitas foram as consequências desta ocupação para a população,
mas o importante aqui é compreender que, se o açougue foi fechado, certamente foi
durante esse período das guerras neerlandesas. A invasão e posse da maior parte do
nordeste brasileiro – em 1637 os holandeses já tinham tomado todo território entre
Sergipe e a Paraíba, formando o Brasil holandês – dificultou a comunicação entre a
Bahia e Sergipe d´El Rey, principal região de abastecimento de carne bovina da
cidade323.
Fato é que se o açougue outrora esteve fechado, foi reaberto – como citam os
conselheiros lá em 1683 – pelo Governador-geral, D. Jerônimo de Ataíde, 6º Conde de
Atouguia, que em 1656

Concedera as pessoas eclesiásticas daquela cidade açougue separado aonde


mandavam comprar o provimento da Carne. E se lhes davam com mais
decência do que no dos particulares em que se lhes perdia o respeito, e se
lhes fazia menos favor do que mereciam no que se conservaram muitos
tempos, sendo obrigados que livremente compravam o gado necessário, e o
matariam aonde lhes convinha, pagando a Câmara os direitos que os mais
açougues pagavam324.

Os esforços empreendidos pelo Conde de Atouguia para que os clérigos


obtivessem este privilégio denotam sua importância, na medida em que um
estabelecimento separado representava mais um elemento de distinção destas
dignidades eclesiásticas dentro da sociedade baiana. Vale ressaltar que outros corpos
sociais que a compunham também tiveram um talho próprio. É o caso dos religiosos do
321
AHU, Luiza da Fonseca, caixa 30, documento 3150.
322
J. Capistrano de Abreu, Capítulos de História Colonial (1500-1800), 4ªed., Sociedade Capistrano de
Abreu, 1954, pp. 149-150.
323
Abreu, pp. 161-163.
324
AMS, Provisões Reais, livro 126.3, fl. 22.

103
Carmo, em 1629, e dos desembargadores da Relação.325 Estes últimos, aliás, fizeram
uma petição com argumentos muito semelhantes ao dos prelados:

Pareceu-nos representar a Vossa Alteza que recebemos grande detrimento e


descrédito na compra do sustento ordinário, porque para se nos vender a
carne necessária no açougue público, é forçado mandá-la buscar com os
criados que nos é de acompanhar a Relação, e ainda assim lhe dão tarde e da
pior, e as vezes com descomposturas e a tempo que nos faltam
acompanhamento, e se mandamos negros sós, não fazem caso deles. Isto se
pode remediar fazendo-nos Vossa Alteza mercê mandar passar provisão para
que no açougue público possamos ter um talho com pessoa que se nos
obrigue a dar-nos a carne necessária de vaca, carneiro, e porco, pagando este
à Câmara o direito que dos talhos se lhe paga. E manifestamos a Vossa
Alteza que o que pedimos não é especialidade porque no mesmo açougue
tem a Câmara talho particular, como tem os do Povo. E o que mais é, os
clérigos tem açougue separado.326

A declaração dos desembargadores também deixa entrever que os próprios oficiais da


Câmara tinham um talho no açougue público. Entretanto, e como se pode ver na citação
acima, o caso dos clérigos era diferente, pois se tratava de um açougue separado e não
um talho no açougue da cidade. Distinções a parte, cabe analisar aqui os argumentos dos
eclesiásticos e dos desembargadores. Ambos afirmam que não são bem tratados quando
vão ao açougue público se prover de carne, mas o problema estava longe de ser a falta
de polimento. Eles precisavam ser tratados de acordo com seu status quo e de acordo
com o que lhes convinha: buscavam carne da melhor qualidade e queriam ter prioridade
em relação aos demais homens e mulheres que também se abasteciam naquele

325
O caso dos carmelitas não é muito semelhante ao dos eclesiásticos, pois pelo que está dito na provisão
de 1629 subentende-se que um talho dentro do açougue da cidade tenha sido doado por Dom Felipe
III para os ditos religiosos: “Eu El Rei faço saber aos que este Alvará virem que havendo respeito ao
que o Prior e Religiosos do Mosteiro de Nossa Senhora do Carmo da Cidade do Salvador Bahia de
Todos os Santos do Estado do Brasil me enviaram dizer pela petição atrás escrita e vistas as causas
que alegam de sua pobreza, de que também constou por carta dos Oficiais da Câmara da dita cidade,
que também me enviaram pedir, e por fazer mercê por esmola aos ditos religiosos hei por bem, e me
pras de confirmar como por este confirmo, e lhe confirmada a licença, que os ditos oficiais da Câmara
lhe deram para terem um talho no açougue da mesma cidade para nele mandarem cortar os gados
como na dita petição fazem menção, e na forma da dita licença possam usar dela pela dita maneira, e
mando aos ditos oficiais da Câmara, que ora são e pelo tempo adiante forem e as justiças, e mais
oficiais da dita cidade da Bahia a que o conhecimento disto pertencer, que cumpram este alvará como
se nele contem, o qual me pras que valha, assinada, sem embargo da Ordenação em contrário//
Manoel do Rego o fez em Lisboa a quatro de fevereiro de 1629”. Cf. AMS, Provisões Reais 122.1, fls.
44-44v.
326
AHU, Luiza da Fonseca, caixa 21, documento 2493 [27 de Agosto de 1672]. Ver também caixa 22,
documento 2513 [28 de Novembro de 1672]. A provisão que concede o talho para os
desembargadores é encontrada no AMS, Provisões Reais 126.1, fls 172-173v [21 de Março de 1675].

104
estabelecimento. Afinal, era uma descompostura ser tratado da mesma maneira, ou pior
que os criados e negros.
As sociedades do Antigo Regime eram, por excelência, hierarquizadas e
pautadas nas diferenças de estatuto jurídico entre os indivíduos. Os privilégios e honras
tornaram-se, portanto, um modo de conseguir se diferenciar no meio social e tanto
Portugal quanto o seu território d´além mar não foram uma exceção. As disputas e,
sobretudo, as tensões criadas em torno das demonstrações públicas do poder não eram
raras neste contexto. Um exemplo foi o litígio que levou anos para ser resolvido entre a
Câmara de Salvador e o Cabido da Sé sobre a posição em que deveria ir a bandeira do
senado em relação ao pálio na procissão do Corpo de Deus, que denotaria maior ou
menor distinção, dependendo de sua colocação no séquito. Em outros momentos, até
mesmo o simples fato de um pregador tomar vênia (uma reverência com a cabeça) aos
representantes de uma instituição antes do início de um sermão era motivo de litígio,
como demonstrou Evergton Sales, que ao estudar a construção da memória do padroeiro
de Salvador cita inúmeras contendas entre Cabido e Câmara de Salvador.327 Silvia Lara
também evidencia a importância da demonstração pública de um privilégio, ao contar-
nos sobre a maneira como se vestiam os juízes quando saíam às ruas para executar suas
atribuições, portando varas brancas (para os de fora) e varas vermelhas (para os
ordinários).328
Se numa sociedade do Antigo Regime obter e demonstrar um privilégio era,
certamente, uma maneira de se distinguir, diversas eram as formas de angariar essas
distinções. O sistema de distribuição de mercês era uma delas, como já foi dito no
primeiro capítulo desta dissertação. A posse deste açougue pelos clérigos foi fruto de
uma mercê concedida pelo soberano português, prática comum em sociedades
modernas. Essa economia que girava em torno da “premiação” dos vassalos pelos
serviços prestados ao rei tem sido objeto de atenção de muitos historiadores e cabe aqui
abrir um parêntese para tratar desse aspecto tão importante para Portugal e seus
domínios ultramarinos.
Segundo António Manuel Hespanha, os deveres de gratidão no Antigo Regime
faziam parte do núcleo duro dos valores morais e de justiça – o que quer dizer atribuir a

Sales Souza, “Entre vênias e velas...”, pp. 131-150.


327

Silvia Hunold Lara, “Senhores da régia jurisdição. O particular e o público na vila de São Salvador dos
328

Campos dos Goitacazes na segunda metade do século XVIII”, in Silvia Hunold Lara e Joseli M. N.
Mendonça (org.), Direitos e justiças no Brasil. Ensaios de história social, Campinas, Ed. Unicamp,
2006, pp. 59-99.

105
cada um o seu – e contribuíam para a manutenção da ordem. As distribuições das
mercês régias era um caso típico do cumprimento desses deveres, remunerando os
serviços que os vassalos prestavam ao seu soberano.329 Em Portugal, esse tipo de prática
teve início no período da Reconquista, quando o rei concedia terras e privilégios como
recompensa a serviços prestados. A partir da conquista de Ceuta, em 1415, tais práticas
foram sendo transplantadas para o ultramar.330 Rodrigo Ricupero, no seu livro sobre a
formação da elite colonial no Brasil, caminha no mesmo sentido e diz que a expansão
ultramarina portuguesa permitiu à coroa condições ainda maiores de agraciar a nobreza,
submetendo-a mais política e economicamente.331 O rei era a figura de onde emanavam
as honras e mercês e isso transformava os “mais variados vassalos em permanentes
servidores da coroa”332, já que prestar serviços não era negócio barato e demandava uma
certa condição econômica. Anacronismos à parte, era como uma espécie de
investimento, no qual nobres e outros mais despendiam sua riqueza para,
posteriormente, conseguir mercês que lhes garantissem mais rendimentos, como
casamentos, tenças, terras, direitos sobre o comércio e moradias, ou mesmo ser
agraciado com um hábito de cavaleiro de determinada ordem militar. Como afirmaram
Maria de Fátima Gouvêa, Maria Fernanda Bicalho e João Fragoso, a elite colonial se
valeu de diferentes estratégias para garantir a sua posição no topo da hierarquia
econômica e administrativa da colônia333. E sem sombra de dúvidas o sistema de
mercês era o principal meio de alcançar seus objetivos.
A mercê concedida aos clérigos da cidade da Bahia no início do século XVII e
suas intermitências até sua reconcessão em 1656 implicou em um acordo trilateral entre
a coroa, a Câmara Municipal e a Arquidiocese, já que os eclesiásticos deveriam pagar os
direitos sobre o corte da carne à Câmara da mesma maneira que pagavam os particulares
que possuíam um talho no açougue da cidade. E essa renda camarista compunha parte
do que era destinado aos cofres da Fazenda Real.
Quase cinquenta anos após a reabertura do estabelecimento, em 1705, rebentou
uma querela entre o Ouvidor Geral e Provedor da Comarca, Miguel Manso Preto334, e o

329 Hespanha, “Las estructuras del imaginario de la movilidad social…”, pp. 21-41.

330 Fragoso, Gouvêa e Bicalho, “Uma leitura do Brasil colonial...”, pp. 67-88.
331Rodrigo Ricupero, A formação da elite colonial. Brasil c. 1530 – c. 1630, Editora Alameda, São
Paulo, 2009, p. 44.
332Idem ibid.
333Fragoso, Gouvêa e Bicalho, “Uma leitura do Brasil colonial...”, p. 67.

106
Arcebispo da Bahia, D. Sebastião Monteiro da Vide, em torno do açougue separado dos
clérigos. E ela se desenrolaria de maneira conturbada por muitos anos.
Em 1702, Miguel Manso Preto foi nomeado, pelo Rei, Ouvidor Geral e Provedor
da Comarca da Bahia para administrar a justiça na cidade através de sentenças e
mandados, executando penas de maneira eficaz sobre aqueles que não cumprissem suas
decisões.335 Também como encontrado num livro de registro das mercês feitas por Dom
Pedro II

Houve sua Majestade que bem havendo [ilegível][...] Bacharel Miguel


Manso Preto e pela confiança que dele tem que em tudo o de que o
encarregar o fará bem como sempre a seu serviço e a boa administração da
Justiça como o fez no lugar de Juiz dos Órfãos da Vila de Santarém que
serviu e de que deu boa residência. Há sua Majestade por bem fazer lhe
mercê do cargo de Ouvidor e Provedor da Comarca da Cidade do Salvador
da Bahia de Todos os Santos por tempo de três anos e alem deles o mais que
houver336

Era parte de suas obrigações presidir audiências dos recursos das sentenças dos
Ouvidores das capitanias (funcionando como uma corte de segunda instância) e visitar
as diversas regiões para inspecionar a situação da justiça nesses locais. O cargo de
Ouvidor geral era o mais alto cargo real depois do Governador geral337. Graça Salgado,
em Fiscais e Meirinhos, afirma que o primeiro Ouvidor geral foi empossado em 1549,
mesmo ano em que o governo geral foi criado. Segundo ela, não é possível afirmar
quais eram as suas atribuições até 1628, data do primeiro regimento encontrado para o
cargo.338 Entretanto, segundo Schwartz, no início da década de 1580 ficou claro que um
só Ouvidor geral não dava conta de promover a administração da justiça de maneira
adequada, o que desembocaria na instalação do Tribunal da Relação na Bahia. Segundo
as Ordenações Filipinas, um Ouvidor deveria usar o mesmo Regimento que o
Corregedor, e ter a mesma alçada que ele. Portanto, deviam cuidar da justiça, mandando

335
AMS, Provisões Reais, livro 126.3, fl. 123-123v.
336
Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Registo Geral de Merces de Dom Pedro II, livro 14, fl. 238v. (a
provisão real da citação anterior é cópia desse registro)
337
Schwartz, Burocracia e sociedade..., pp. 28-31.
338
Salgado, Fiscais e meirinhos..., Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1985, pp. 146-147. Para os autores do
livro, há uma controvérsia em relação às funções do ouvidor geral à época da implantação do cargo.
São citados dois autores como principais divergentes: Varnhagen, que afirma que o regimento do
primeiro ouvidor geral Pero Borges é igual ao de 1628, salvo pelos dezoito primeiros artigos e a
omissão dos cinco últimos e Capistrano de Abreu, que acredita que “o ouvidor geral ficou com o
poder de entrar nas terras dos donatários por correição, e ouvir nelas por ações novas e velhas”. Sendo
assim, defendeu que as alçadas dos capitães donatários foram restringidas, e que isso está no 21º
artigo do regimento de 1628, diferindo, dessa maneira, da afirmação de Varnhagen.

107
que o tabelião do lugar sob correição lhe enviasse “as culpas, querelas e estados
(informações) de quaisquer pessoas, que sejam obrigadas à Justiça”.339 Mas não era só a
população em geral que estava sob sua vigilância. Qualquer um, inclusive aqueles que
possuíam cargos – como tabeliães, alcaides e juízes – estava sob o olhar punitivo de um
Ouvidor. E vale ressaltar que quando o Tribunal da Relação da Bahia foi restabelecido,
em 1652, o Ouvidor Geral passou a fazer parte do seu quadro de oficiais. Com o
personagem aqui em questão não foi diferente. No exercício de suas funções, três anos
após sua nomeação, em 20 de dezembro de 1705, Miguel Manso Preto escreveu uma
carta a D. João V para denunciar o prelado.
Iniciou sua missiva com um relato sobre as fontes de renda que tinha a Câmara
da cidade:

A Requerimento do Cabido nesta Cidade no ano de 1656 sendo


Governador deste Estado o Conde de Atouguia concedeu Provisão para o
clero ter açougue, e talho separado, onde pudesse ser provido de sustento
sem confusão, e mistura dos seculares. E ultimamente Vossa Majestade por
Provisão de 10 de Fevereiro de 1702 foi servido conceder ao Arcebispo atual
a conservação do mesmo talho, e açougue na conformidade que lhe fora
concedido pelo dito Conde.
Duas rendas tem a Câmara desta Cidade de que se compõe o seu
principal rendimento; que é uma dos talhos do açougue, que anualmente se
arrendam aos obrigados, e por cada um pagam a Câmara quatrocentos e
cinquenta mil réis um ano por outro; e a outra renda é dos currais, e fábrica
para a matança dos gados, que também se arrendam anualmente e um ano
por outro a duzentos mil réis. E em uma e outra Renda, como em toda a da
Câmara, tem Vossa Majestade a sua terça, e as duas partes que ficam para o
Conselho, ainda são tão limitadas para o seu gasto ordinário, que sem o
exceder, na conta, que lhe tomei do ano passado, ficou devedor ao
340
Tesoureiro de quantia considerável.

Em seguida Manso Preto principiou sua imputação contra Monteiro da Vide:

Aquela concessão não foi, não podia ser mais que para os eclesiásticos terem
lugar, e talho separado, onde particularmente sejam providos de sustento;
mas não tirou, nem podia tirar, ou prejudicar as Rendas da Câmara: antes
expressamente se declarou haver de pagar o obrigado do talho eclesiástico à
Câmara os mesmos direitos, que lhe pagavam os obrigados do açougue
público, ou ao diante houvessem de pagar; e na mesma suposição, e
conformidade for a concessão novíssima de Vossa Majestade Em Razão do
que deviam os oficiais da Câmara arrendar o dito talho eclesiástico e

339
Ordenações Filipinas, livro I, título LVIII.
340
AHU, Avulsos Bahia, caixa 5, documento 442 [17 de Setembro de 1706].

108
contribuir-lhe o obrigado com a Renda da conformidade dos mais talhos, e
seus obrigados.
Porém os ditos oficiais da Câmara tanto o não fizeram, que antes
faltando à obrigação do seu Regimento, deixaram usurpar os Arcebispos a
renda do dito talho, e fazendo-se senhores dela, ocultamente o arrendavam
cobrando mil cruzados por ano da renda dele, e ainda mais, como tem feito o
Arcebispo presente e o Cabido na Sé Vacante fez sempre o mesmo.341

Os camaristas também foram alvo de suas denúncias. Acusou-os de serem negligentes neste
caso e no do açougue da Misericórdia, criado para fornecer carne aos doentes:

Com semelhante negligência se houveram os mesmos oficiais da


Câmara a Respeito da Casa da Misericórdia desta Cidade, a quem, com o
pretexto das Carnes para provimento dos doentes, deixaram também outro
talho, que a dita Misericórdia tem, e publicamente arrenda por quinhentos
mil Réis por ano,e mais. E além de não haver Provisão alguma de Vossa
Majestade sem a qual não pode haver talho, e açougue particular: não acaso
tem necessidade mais que de ter provimento para os doentes em lugar, e
talho certo; também a dita casa não necessita de semelhante esmola por ser
Riquíssima, que há menos de oito anos tem de heranças um milhão.342

Ao finalizar sua carta, o Ouvidor tratou de relembrar da necessidade que tinha a


Fazenda Real das rendas dos talhos para as obras públicas, como “calçadas, caminhos e fontes”,
e também para o sustento da infantaria, já que a terça real era destinada a ela. Expôs ele que “a
renda destes dois talhos, o eclesiástico e o da Misericórdia, é tão considerável que importa
novecentos mil réis por ano, quando menos” e por isto, quando soube deste descaminho em sua
correição mandou que os camaristas arrendassem estes estabelecimentos como era feito no
açougue público. Desta maneira, Miguel Manso Preto afirmou que Monteiro da Vide e o Cabido
monopolizaram as rendas deveriam ser destinadas à Câmara. Portanto considerou que a
possessão do açougue separado estava prejudicando as rendas camaristas e reais,
deixando o Senado sem recursos para acudir às necessidades públicas e sustentar a
Infantaria.
Podemos compreender melhor o argumento do Ouvidor se entendermos as
dificuldades econômicas enfrentadas pelo Império português em princípio dos
setecentos. Segundo Sousa, neste período o reino passava por graves crises, tendo suas
contas permanentemente deficitárias e gastava demasiadamente na guerra de sucessão
espanhola (1702-1713) 343. Angelo Carrara, ao analisar a conjuntura econômica e fiscal
da capitania da Bahia, afirma que nas primeiras décadas do século XVIII as receitas não
341
Idem.
342
Idem.
343
Sousa, “Poder local e poder eclesiástico na Bahia...”, p. 80.

109
foram suficientes para cobrir as despesas. Tal situação levou a coroa a incorporar
definitivamente, em 1713, às receitas de sua Fazenda Real as rendas administradas pela
Câmara, como o contrato do subsídio do vinho, o das aguardentes da terra e vinho de
mel, a taxa do embarque das caixas de açúcar e do estanco do sal. 344 O autor nada fala
sobre as rendas da arrematação dos talhos, mas infere-se com desenrolar da contenda
que elas não foram integradas como as citadas acima.
Ademais dos problemas das rendas da Fazenda Real na Bahia, desde meados do
século anterior a Câmara passava por severas crises econômicas. Como mostra Boxer,
ela, ao longo de sua história, sempre esteve em dificuldades, agravadas pelo fato de que
os vereadores, majoritariamente envolvidos com o negócio do açúcar, eram
“gastadores”. Quase todo tempo estavam endividados e não se importavam em gastar
dinheiro de outras pessoas.345 A arrecadação de impostos e taxas sobre a venda de
produtos, pagamentos pelo uso de armazéns e abatedouros municipais e outros mais que
compunham a renda do Conselho não vinham sendo suficientes para “cobrir as
expensas do Conselho, incluindo a manutenção de trabalhos públicos” 346. Dessa
maneira, nenhuma fonte de arrecadação poderia ser dispensada.
Manso Preto procedeu as suas queixas contra o Arcebispo embasado sobretudo
no argumento econômico e fiscal, mas não eram apenas estes fatores que o
preocupavam. Acreditava, certamente, que Monteiro da Vide estava alargando sem
freios sua alçada de poder e controle sobre assuntos que não eram parte de sua
jurisdição. Como o Ouvidor pontuou, o prelado estava se prestando a um papel que não
era seu, arrecadando os direitos em lugar da Câmara, e consequentemente tomando
essas rendas para si. Porém, a reação do Arcebispo não tardou.
O arcebispado de D. Sebastião Monteiro da Vide, quinto do Brasil, foi marcado
pelo dinamismo e por um claro esforço de normatização das resoluções tridentinas, que
tem na redação das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, de 1707, seu
maior exemplo347. Nascido em 1643, na vila de Monforte, Bispado de Elvas, desde novo
ingressou na vida religiosa, ordenando-se sacerdote em 1671 e chegando ao cargo de
vigário geral do arcebispado de Lisboa em 1697348. Em 1701 foi apresentado por D.

344
Angelo Alves Carrara, Receitas e despesas da Real Fazenda no Brasil, século XVIII: Minas Gerais,
Bahia, Pernambuco, Juiz de Fora, Ed. UFJF, 2009, pp. 72-74.
345
Boxer, Portuguese society... p.78.
346
Idem, p.79.
347
Bruno Feitler e Evergton Sales Souza (Eds.), Constituições primeiras do arcebispado da Bahia, São
Paulo, Edusp, 2010, pp. 8-36.
348
Idem, p. 9.

110
Pedro II para ocupar o cargo de Arcebispo da Bahia, tendo tomado posse no ano
seguinte. Ao longo de vinte anos (faleceu em 1722), Monteiro da Vide “dedicou-se com
afinco à sua missão pastoral, ao engrandecimento da Igreja na sua diocese – através de
uma série de construções e reformas que deram continuidade ao trabalho de seus
antecessores”.349 O seu governo espiritual também esteve repleto de ações políticas,
como os seus esforços para construir o palácio episcopal, para criar novas paróquias e
sua participação no governo interino formado por ele, pelo mestre de Campo João de
Araújo e Azevedo e pelo chanceler Caetano de Brito e Figueiredo350.
Contudo, tais qualidades não impediram o Ouvidor de acusá-lo de querer manter
um controle excessivo de tudo em sua diocese, ultrapassando os limites de sua
jurisdição. Esse é outro ponto importante para a discussão do problema. Os conflitos de
jurisdição não são raros numa sociedade hierarquizada e pautada nos privilégios e
poderes de cada um. Não é sem razão que numa rápida busca pelos documentos do
Arquivo Histórico Ultramarino referentes à Bahia são encontrados despachos que tratam
de informar aos mais variados oficiais reais qual jurisdição lhes cabe, bem como
queixas de terem ultrapassado os seus limites.351 De acordo com Sílvia Lara, cada
funcionário ou oficial do rei exercia jurisdição sobre tudo e todos, deixando claro que a
forma de governo no Ancien Régime baseava-se na administração de instituições,
alçadas e jurisdições. 352 Quando esses limites eram desrespeitados, as tensões estavam
postas. Schwartz, ao analisar os conflitos entre magistrados e outros oficiais, afirma que
se as contendas “provinham da má definição das alçadas, intencionalmente promovida
pela coroa com o fim de evitar autonomia excessiva, ou se eram falhas acidentais do
sistema administrativo, é um problema que fica aberto para debate. Não importando a
causa, algumas vezes estes conflitos se transformavam em batalhas pessoais e
institucionais”.353 Atualmente, há uma posição predominante na historiografia brasileira
que defende que essa superposição de alçadas era sim incentivada pela coroa, num

349
Idem, p. 9.
350
AHU, avulsos Bahia, respectivamente caixa 5 documento 445 [27 de Outubro de 1706], caixa 8
documento 705 [19 de Dezembro de 1712] e caixa 12 documento 1069 [15 de Janeiro de 1720]. Sobre
o tema conferir o estudo introdutório feito por Feitler e Sales Souza em As constituições primeiras do
Arcebispado da Bahia (vide nota 85).
351
São dois exemplos o despacho feito pelo Conselho Ultramarino ao vice-rei do estado do Brasil para que
informe ao juiz de fora e do crime de suas respectivas jurisdições e a queixa do vice rei do Brasil
acerca do excesso dos bispos na jurisdição do seu governo. AHU, avulsos Bahia, respectivamente
caixa 49, documento 4353 [13 de Novembro de 1734] e caixa 17, documento 1493 [17 de Abril de
1723].
352
Lara, “Senhores da régia jurisdição...”, p. 61.
353
Schwartz, Burocracia e sociedade..., p. 32. Grifo nosso.

111
intuito também de reforçar a autoridade real, já que a resolução de qualquer litígio
apenas era dada pelo soberano. Uma tática que outrora já foi chamada de disfunção do
Estado português354, hoje é analisada como uma estratégia política de centralização do
poder bem sucedida, já que a resolução dos litígios cabia sempre ao rei. O caso do
açougue insere-se nesse contexto e seu desfecho é parte do jogo promovido pelo
governo central.
Para defender-se das denúncias, Monteiro da Vide escreveu ao Rei em 28 de
fevereiro de 1706, argumentando que Miguel Manso Preto procedeu sem razão ao
acusá-lo:

Foi Vossa Majestade servido conceder pela provisão cuja cópia remeto
inclusa que houvesse açougue particular para os clérigos desta cidade da
Bahia, como sempre tiveram de muitos anos a esta parte. Esta graça liberal
concessão de Vossa Majestade, e a pacífica posse em que até o presente
esteve o eclesiástico perturbou agora o Ouvidor da Comarca Miguel Manso
Preto em despique de eu recorrer a Vossa Majestade pelo fato dele haver
preso a um Pároco, que acabava de dizer Missa, como a Vossa Majestade
será presente pelos autos que remeti aos pés de Vossa Majestade, aonde
espero achar a justiça, que daqui anda tão ausente por meus pecados.
Recolhendo-me agora da visita dos Ilhéus, e mais vilas do sul, que é a
mais trabalhosa de todo este Arcebispado, achei que o dito Ouvidor da
Comarca sem mais causa do que vexar ao eclesiástico mandou pontencioza
[sic], e absolutamente proceder contra o obrigado do açougue dos clérigos, e
sem querer dar-lhe vista, nem ouvi-lo o fez penhorar por dois mil cruzados,
que entende se deviam a Câmara, sendo que pela certidão do Escrivão dela
inserta nos autos juntos consta manifestamente não dever o dito obrigado ao
Senado da Câmara coisa alguma.355

Esta era a quantia que o Ouvidor acusava o Cabido de dever à Câmara e por esta
razão o dinheiro da penhora deveria ser remetido a ela. O contra-argumento do
Arcebispo foi objetivo, quando afirmou que na certidão do Escrivão da Câmara
constava que os eclesiásticos não deviam direito algum ao Senado. E disse mais em sua
carta:

354
A tese historiográfica de que o caos administrativo era uma marca do governo português foi,
principalmente e primordialmente, defendida por Caio Prado Júnior. Mais tarde ele foi seguido de
perto por Raymundo Faoro e Sérgio Buarque de Holanda. Cf., respectivamente, as obras A formação
do Brasil contemporâneo, Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro e Raízes do
Brasil.
355
AHU, avulsos, Bahia, caixa 5, documento 442.

112
Tudo o referido se mostra dos ditos autos que remeto nos termos em
que estão, e os achei, e suposto pendem legítimos embargos a tão nulo, e
inaudito procedimento, deles nem espero melhoramento, nem despacho, por
que como o dito Ouvidor tem feito conventículo com Chanceler João de
Souza, e com os Desembargadores dos Agravos Manoel Freire da Silva,
Belchior de Souza Vilas Boas, Christovão Tavares de Morais, e Belchior
Ramirez de Carneiro sem dúvida é que ou hão de espaçar a determinação da
causa de maneira que não tenha fim, ou desprezar totalmente a justiça dela,
como já fizeram em outras [...]356

Esta, aliás, não seria a única acusação contra o Ouvidor e alguns ministros da
Relação. No ano seguinte, certo Cosme Rolim de Moura, morador do Recôncavo, fez
uma petição a Dom João V por acreditar que o dito Ouvidor era indigno da mercê feita
pela coroa357, qual seja, a permanência de Miguel Manso Preto por mais três anos no
seu ofício. Segundo Cosme Rolim de Moura, o Ouvidor

excedeu e abusou mal do que dispõe a Lei, e usurpou aos escrivães, e mais
oficiais de justiça das vilas de sua comarca os seus emolumentos, não
guardando seu regimento, ampliando-o só a fim de acrescentar os seus
interesses, levando as partes o que lhe não era devido358

E ainda, afirmava o denunciante, Manso Preto mantinha estreita amizade com


alguns desembargadores (provavelmente os mesmos a quem Monteiro da Vide se
refere) e o Chanceler João de Souza – nome que aparece na relação do Arcebispo –,
comendo e bebendo com eles para granjear suas amizades e estreitar tais laços. Por fim,
pedia que o sindicante da questão não fosse ministro da Relação, ponto no qual foi
atendido, tendo o rei enviado um encarregado para investigar a questão. Partindo da
mesma perspectiva que Cosme Rolim de Moura, D. Sebastião Monteiro da Vide
acreditava que haveria demora na resolução da causa, ou mesmo que ela não seria
encerrada por causa das relações conspiratórias que o Ouvidor mantinha com alguns
oficiais do Tribunal. Defendeu o Arcebispo que Manso Preto não tinha

[...] outro o intento mais do que intimidar as pessoas que podiam ser
obrigadas, a fim de que não talhem no açougue do eclesiástico e de frustrar
totalmente a mercê que Vossa Majestade lhes fez, em cuja posse se
conservam pacificamente há mais de cinquenta anos.359

356
Idem.
357
AHU, avulsos Bahia, caixa 5, documento 456 [5 de Fevereiro de 1707].
358
Idem.
359
AHU, Luiza da Fonseca, caixa 5, documento 442.

113
Em anexo a consulta do Conselho Ultramarino de Setembro de 1706 estava a
provisão real que confirmava a Monteiro da Vide a posse do açougue separado e os
autos da causa onde estava demonstrado que nada se devia à Câmara. Os conselheiros,
então, deram seu parecer acompanhando o parecer do Procurador da coroa:

Que esta queixa do Arcebispo ainda que parecia justificada, pelo que se
mostrava da cópia dos autos, que enviou, pois o Ouvidor da Comarca tinha
procedido neles com alguma paixão, contudo não se lhe podia definir por
esta ira, porque como o negócio estava em juízo contencioso não se devia
tirar dele, e se o Ouvidor faltar a vista supriria a Relação com ela, nem era de
crer o contrário, sem embargo do que devia o Arcebispo, que também falava
com paixão; e seria porém conveniente, que se advertisse ao Ouvidor, que
neste negócio procedesse de maneira que não mostrasse paixão nem desse
ocasião a semelhantes queixas, que não são sem fundamento. E ao Arcebispo
se devia escrever que se abstivesse de levar os direitos do seu açougue,
porque estes pertencem à Câmara na forma da mesma Provisão, e a Ela só o
privilégio de o ter separado do comum da Cidade e da mesma sorte se devia
ordenar a Câmara pusesse em arrecadação os ditos direitos [daqui em]
diante[...].360

O açougue dos clérigos não foi o único alvo das denúncias de Miguel Manso
Preto. Em 27 de Dezembro de 1705, apenas sete dias depois de sua carta sobre o
açougue, o Ouvidor remeteu outra missiva à coroa. O conteúdo dela, contudo, pode
apenas ser inferido através da resposta do rei e do Conselho Ultramarino enviada para o
Governador geral, Luís César de Menezes:

Eu El Rei vos envio muito saudar. O Ouvidor Geral e Provedor da Câmara


[certamente há um equívoco na transcrição desta palavra; a correta é
Comarca] dessa Cidade o Doutor Miguel Manso Preto, me deu conta em
carta de 27 de dezembro do ano passado, em como o Arcebispo levava
lutuosas por falecimentos dos clérigos, que não eram Párocos nem
Beneficiados, em grande prejuízo dos seus herdeiros, proibindo-se o poder-
se usar de música nas festas e celebridades dos Santos, sem Provisão sua
pondo-lhes a estes a pensão de 2$500 réis por cada festa, sendo também
exorbitantes os salários, que os Oficiais do Juízo Eclesiástico levam das
partes [...]. E pareceu-me ordenar-vos (como por esta faço) me informeis
acerca do que o dito Ouvidor refere, ouvindo ao Procurador da Coroa dessa
Relação, e dando juntamente parte ao Arcebispo, para que ele responda se
lhe parecer. [22 de Setembro de 1706]361

360
Idem.
361
Documentos Históricos da Biblioteca Nacional, Consultas do Conselho Ultramarino, vol. 34, p.273.

114
A lutuosa era uma taxa cobrada pela mitra episcopal sobre os bens deixados em
testamento pelos clérigos, prevista pelas Constituições do Arcebispado da Bahia.
Entretanto, ao Arcebispo cabia apenas cobrar a taxa dos clérigos beneficiados e não,
como acusou o Ouvidor, dos beneficiados e não beneficiados. O Governador geral, após
averiguar a questão, respondeu ao Rei em 1708:

Mandando insinuar ao Reverendo Arcebispo deste Estado, pelo Secretário


dele, esta carta de Vossa Majestade, para que tendo que dizer, o fizesse;
respondeu se conformava com o que sobre este particular dissesse o
Procurador da Coroa: e o que eu posso nele informar a Vossa Majestade é,
que todos os Clérigos, que morrem neste Arcebispado, pagam
indistintamente lutuosas seus herdeiros; porém se este estilo é ou não
jurídico, e suficiente para a tal solução, deve Vossa Majestade ser servido
mandá-lo ponderar.362

Esta questão sobre as lutuosas, bem como a dos músicos, só tornariam a ser discutidas
em 1718. A mesma carta, aliás, também trataria sobre a querela do açougue eclesiástico,
mas só nos atentaremos a ela mais adiante. Ao contrário dos dois outros pontos
denunciados por Manso Preto, o açougue foi intensamente discutido entre 1707 e 1710,
quando a Câmara colocou-o em arrematação. Centremo-nos, a partir de agora, nesse
período.
Na “mesa de vereação” de 4 de Julho de 1707, os vereadores debateram uma
carta enviada pelo Rei:

[...] pelo dito Doutor Corregedor foi apresentada uma carta de Sua Majestade
que lhe viera a Sua mão como Juiz de Fora, escrita aos Oficiais deste
Senado, em que ordenava se pusesse em arrecadação os direitos do talho do
Açougue Eclesiástico, cuja diligência ele dito Doutor Corregedor lhe havia
por muito encarregado, para que com todo o cuidado, e diligência pusessem
os ditos direitos em arrecadação na forma que o dito Senhor ordena na dita
Sua carta; e logo tendo em vista, e lida a dita carta de Sua Majestade pelos
ditos vereadores, resolveram que se desse execução logo com todo o
cuidado, e diligência, e sem demora alguma, observando-se na dita execução
a melhor forma de direito; e que antes de se proceder na dita execução, que
se escrevesse ao Excelentíssimo Arcebispo, mandando-se-lhe a cópia da
carta do dito Senhor, para que ele se pudesse resolver, se a quisesse pagar
sem execução o que havia recebido da dita renda, e quando assim o não
fizesse, se fazer execução, procedendo primeiro a demonstração da Cortesia
da dita carta, a qual se mandou registrar no livro azul do registro das cartas, e
provisões do dito Senhor […]363
362
Idem, pp. 273-274.
363
Atas da Câmara, vol.7, pp. 329-330.

115
Para tanto, logo dois dias depois se escreveu a Monteiro da Vide. Os camaristas
pediram que ele os “apadrinhe a licença de Vossa Ilustríssima” para que com ela
pudessem cumprir “a obediência de vassalos”, sem faltar-lhe respeito.364 O Arcebispo,
contudo, não se deu por satisfeito. Em resposta, no dia 8 de Julho, disse:

É bem notório que agora faz cinco anos algumas autoridades e logo se
registraram as provisões que Sua Majestade foi servido mandar fazer e entre
elas foi a de ter talho separado para o Eclesiástico, pagando o seu obrigado a
Câmara [...].
Também é sem dúvida que neste particular não [deviam] coisa alguma,
assim continuou na mesma forma que [faziam] meus antecessores e somente
se falou nesta matéria quando o Ouvidor da Comarca Miguel Manso Preto
fez segunda correição; e informando então deste negócio soube que os
obrigados do açougue eclesiástico pagava os direitos ao Senado, e que lhe
não devia coisa alguma pois não tinha mais direitos que de fato declarou [...]
Bem mostra esta carta no que supõem, que a informação que se deu foi
muito alheia de verdade sincera com que se deve falar as Majestades, porque
supõem em este Senado tão culpável descuido como é não arrecadar por
espaço de tantos anos uma renda considerável do Conselho, tendo ele tão
poucas que não pode perder nem é bom que perca, coisa alguma delas; e
supõem que no Arcebispo há [ilegível] pouca atenção a sua obrigação [...] de
que lhe não toca este particular as rendas do Conselho em que sua Majestade
tem a 3ª, quando a nenhum particular levaram nenhum vintém
indevidamente.365

Afirmou ainda que a execução desta ordem real apenas deveria ser feita se a
causa não estivesse decidida; porém, quando a carta chegou tudo já tinha sido resolvido
pela Relação a favor do clero e então os direitos não deveriam ser arrecadados, tendo
em vista que tudo já estava resolvido366. Esta resposta dada pelo prelado foi tema de
outra mesa de vereação, em 9 de Julho:

E logo na mesma Vereação foi proposto pelo dito procurador deste Senado,
que havendo se resolvido na Vereação passada que se escrevesse ao
Excelentíssimo Arcebispo, mandando-se-lhe cópia da carta de Sua
Majestade em que resolvia se cobrassem as rendas do Açougue Eclesiástico,
até a decisão da causa que sobre elas estava pendendo; se escrevera com
efeito; o qual respondera que na forma da dita carta de Sua Majestade se não
devia tratar da execução dela, sem se dar parte ao dito Senhor; porquanto
sendo a resolução dela que se cobrassem as ditas rendas enquanto a dita
causa decidisse, estava esta decidida por Sentença da Relação deste Estado,e

364
AMS, Carta dos Eclesiásticos (1685-1805), folha 9v.
365
Idem, fl. 10.
366
AMS, Carta de eclesiásticos (1685-1805), fls. 9v – 10v.

116
Ministro da Real coroa, a seu favor dele, na qual se mandava que ele fosse
conservado na posse em que estava por si, e por seus antecessores, a cuja
sentença se pusera o cumpra-se neste Senado; e que outrossim, os obrigados
do Açougue Eclesiástico, haviam sempre pago a este Senado os direitos que
lhes tocava, que eram os fatos, em cujos termos suplicava que se desse
primeiro parte ao dito Senhor como mais largamente se mostra da Carta que
se mandou copiar no Livro dos registros; e que assim o requeria a ele dito
Procurador se resolvesse este negocio com a atenção que pedia a gravidade
dele[...].367

De tal maneira mandavam os vereadores que se escrevesse o mais depressa possível


para o Rei informando tudo o que havia se passado e mandando a carta “nos primeiros
navios” para que se pudesse resolver a “dúvida”.368 A tréplica escrita pelo Rei não foi
encontrada, mas podemos subentender, através de uma correspondência da Câmara com
ele, na qual ordenou o arrendamento do açougue dos clérigos. Os vereadores contaram
que

Prontamente obedecemos a ordem de Vossa Majestade mandando por em


praça o dito talho como consta da Certidão do Escrivão da Câmara, que
apresentamos, e como é passado mais de meio ano e está tão pronta a partida
da Frota não houve até aqui quem lançasse por cuja razão não podemos fazer
presente a Vossa Majestade a conclusão deste negócio segurando a Vossa
Majestade que nem a nossa vontade nem a nossa diligência hão de faltar na
execução das Reais Ordens de Vossa Majestade.[3 de Agosto de 1708]

367
Atas da Câmara, vol. 7, pp. 331-332. O cumpra-se que os vereadores informam na ata acima foi escrita
em 1706: “Aos vinte e três dias do mês de Março de mil setecentos e seis anos nesta Cidade de Salvador
Bahia de todos os Santos nas Casas da Câmara estando em Mesa de Vereação os Oficiais da Câmara
abaixo assinados, trataram do bem comum despachando todas as petições e diferiram a todos os
requerimentos de que mandaram fazer este termo que assinaram; E na dita vereação se resolveu que na
vereação acima se pôs o cumpra-se na Sentença do Acordão da Relação em que mandam conservar na
possa ao Eclesiástico de que há Escrivão o guarda mor, e mandaram os ditos Oficiais da Câmara a mim
Escrivão fizesse declaração no provimento que fez o Corregedor, e Ouvidor da Comarca, em que ordena
se ponha o dito Talho em praça, o que se fez, e para a todo o tempo constar mandaram fazer este termo
que assinaram”. Atas da Câmara, vol. 6, pp. 291-292.
368
Idem. A carta enviada pelo Senado para o Rei tem o seguinte conteúdo: “Senhor, informando a Vossa
Majestade o Ouvidor Geral da Comarca desta cidade que a este Senado se não pagavam as rendas do
açougue Eclesiástico, e que mandando-as ele por em arrecadação o defendera o Arcebispo e movera sobre
isso pleito que ficava pendendo Ordenou Vossa Majestade por carta sua do primeiro de abril deste ano se
cobrassem as rendas que se vencessem até decisão da causa, e se não omitissem as vencidas que o
Arcebispo houvesse recebido. Chegou porém a carta de Vossa Majestade a tempo que estava decidida a
causa a favor do Eclesiástico por sentença da Relação deste Estado já passada em causa julgada, e
mandada cumprir pelos Vereadores do ano passado nossos antecessores, em cujos termos advertindo-nos
que na mesma carta manda Vossa Majestade se observe a decisão da dita causa, e que esta se não pode
observar executando-se aquela cobrança nos pareceu suspender nela ate Vossa Majestade resolver se se
há de fazer contra a dita sentença, e nos mande declarar no caso que resolva se faça, que rendas são as que
se hão de todo o gado que nele se corte pagaram sempre os obrigados do Eclesiástico aos rendeiros deste
Senado, e ignoramos quais sejam as outras rendas. Vossa Majestade resolverá o que for servido e em tudo
será a nossa obediência fiel desempenho da fidelidade com que nos reconhecemos Vassalos de Vossa
Majestade cuja real pessoa nos guarde Deus Bahia e Câmara aos vinte de julho de mil sete centos e sete
anos”. Cf. Cartas do Senado, vol. 5, pp. 118-119.

117
O processo de arrematação de uma renda da Câmara, a exemplo de um talho, era
meticuloso. Segundo os procedimentos consuetudinários e legais, a renda deveria
“andar em pregão” por trinta dias, o que quer dizer ser anunciada pelo pregoeiro (função
exercida pelo porteiro do Senado). Depois era escolhido um dia para que os lances
fossem apurados em praça pública e até o último momento o pregoeiro intervinha para
tentar elevar o valor da arrematação.369 Findado o processo de pregão, um ramo verde
era colocado na mão do maior lançador, indicando a finalização do arremate. Em
seguida, o arrematante ia para a Câmara encontrar o juiz de fora, vereadores, procurador
e escrivão para que assinassem o contrato, quando eram exigidos os fiadores e o
pagamento antecipado da renda em moeda corrente.370 Segundo Sousa, especificamente
em relação à arrematação dos talhos, antes da abertura da licitação, a Câmara definia os
candidatos habilitados para apresentar propostas e concorrer à arrematação.371 Mas, ao
que parece, todo este processo foi em vão durante os anos de 1708 e 1709, e nenhum
lance foi dado pelo açougue eclesiástico.
A demora na arrematação do açougue pareceu deixar o Rei desgostoso, pois na
provisão real do ano seguinte (catorze de junho de 1709) Dom João V deixou clara sua
insatisfação:

Oficiais da Câmara da cidade da Bahia. Eu El Rei vos envio muito saudar.


Vi o que escrevestes em carta de 5 de Agosto do ano passado em como
mandando pôr em pregão, na forma das minhas ordens, o açougue do
eclesiástico, não houve quem nesse lançasse [ilegível] o não haveria pelas
razões que representastes. E parece me ordenar [...] que não havendo quem
lance no dito açougue e o arremate, que não consistais por modo algum, que
é causa indigna e bem cavilosa, que haja quem lance para pagar o Arcebispo
mas não para pagar a minha Fazenda [...].372

De nada adiantou a provisão, pois o açougue eclesiástico continuou em pregão


durante todo o ano de 1709, como atestou o Porteiro da Câmara João da Silva
Fernandes. Afirmou que durante o tempo que o açougue esteve em pregão não houve
quem desse lance até aquela data (16 de Novembro).373 Somente em 1710 o açougue
dos clérigos e o da Misericórdia tiveram seu direito arrematado:

369
Sousa, “Poder local, cidade e atividade econômica...”, p. 209.
370
Idem, p. 210.
371
Idem ibid.
372
AMS, Provisões Reais, livro 126.3, fl. 171.
373
Atas da Câmara, vol. 6, pp.399-400.

118
Com a carta que Vossa Majestade escreveu a este Senado sobre os talhos dos
açougues eclesiástico, e Misericórdia, se deu logo cumprimento aos
mandados de Vossa Majestade, e pondo-se em praça o talho eclesiástico se
arrematou por preço de cento e sessenta mil réis, e não houve pessoa alguma
que desse maior lance fazendo-se todas as diligências necessárias, e
chamando-se muitas pessoas para que se arrematasse por maior preço e não
houve quem desse maior lance também se arrematou o talho do açougue da
Misericórdia por duzentos mil réis, fazendo-se as mesmas diligências para
subir a maior preço e não houve quem desse mais pelo dito talho [...].374

Em 1712, o então Ouvidor Geral João Barbosa Maciel informou a coroa sobre como
aumentaram os valores da arrematação dos dois açougues:

Informando-me se nas arrematações que se fizeram no ano de


setecentos e dez dos talhos que foram do clero, e Misericórdia,
houvera algum contos e achei que a causa de não darem mais que
cento e sessenta mil réis para o do eclesiástico, e duzentos para o da
Misericórdia fora por ser a primeira vez que destes se fez rematação
pública, principalmente o que foi do clero, e logo nos anos seguintes
subiram a maiores preços, como foi o ano passado que deram por este
duzentos e trinta e cinco mil réis, e neste duzentos e cinqüenta mil
réis, e para o da Misericórdia o ano passado deram duzentos e trinta
mil réis, e neste foi rematado por quatrocentos mil réis, e em nenhuma
das ditas rematações achei haver-se conluio algum.375

Em 1716, contudo, Dom Sebastião Monteiro da Vide, insatisfeito com as


determinações feitas anteriormente, escreveu uma carta para recorrer ao Rei com tudo
que estava ao seu alcance. Surpreendentemente ele não fez nova representação sobre o
açougue. Disse:

Sobre o açougue particular não faço nova representação a Vossa


Majestade porque importa pouco que os clérigos da Bahia tenham essa
prerrogativa, ou isenção meramente [ilegível] Provisões de Vossa Majestade
e dos senhores Reis seus antecessores não fiquem irritas e revogadas
[ilegível] por aquelas causas por onde as concessões régias se podem
revogar; e também para apurar a vinda da [ilegível] cobrei os direitos que
pertence ao Senado da Câmara, como erradamente informares a Vossa
Majestade o Ouvidor Geral da Comarca Miguel Manso Preto, e o Juiz de
Fora Fernão Pereira de Vasconcelos.

374
Cartas do Senado, vol. 5, p.131.
375
AHU, Avulsos Bahia, caixa 8, documento 631 [20 de Maio de 1712].

119
Senhor: a verdade é que eu nunca cobrei tais direitos, e sempre os
arrendou, e cobrou o Senado da Câmara, por cuja razão tive nesta Relação
sentença a meu favor, que passou em causa julgada, e nela pôs o cumpra-se
o mesmo Senado, confessando que sempre tinha cobrado do talho do
eclesiástico os direitos que lhe pertenciam, e de declarar a dita sentença, e
isto mesmo representou o dito Senado a Vossa Majestade na carta (cuja
cópia remeto) sem embargo da qual, e da dita sentença, mandou Vossa
Majestade em carta de primeiro de Abril de 1707 que o dito talho se
arrematasse, ordenando juntamente ao Procurador da Coroa que interpusesse
agravo da dita sentença, e remetesse os autos ao [ilegível] da Coroa da
Corte; e que o dito talho se rematasse até decisão da causa. Assim se fez,
porem até a hora presente (que eu saiba) se tem findado a dita causa, nem
findará nunca, porque em chegando as mãos de alguns Ministros (será por
suas muitas ocupações) se esquecem totalmente dos tais autos, e assim não é
possível se findar, e por essa causa pedia a Vossa Majesttade nas ditas razões
que mandando ver os autos decidisse como fosse servido: porque esperar que
haja sentença para ter lugar a revista, me parece que em minha vida o não
poderei conseguir pelos vagarosos passos em que tem andando em oito anos,
que já conta depois que foi para a Corte.376

O Arcebispo estava mais inconformado com outras duas causas: sobre a cobrança
indevida das lutuosas e contra a proibição de que nenhum músico cantasse nas festas
particulares sem licença do mestre de capela. Justificou que as lutuosas eram ofertas
pias e louváveis, e que se praticava em todos os Bispados Ultramarinos, como de
costume. Ainda afirmou que era grande o prejuízo dos prelados e suas igrejas com a
ordem de que os músicos que cantassem nelas fossem escolhidos pelos mordomos das
irmandades, por não ser isto coisa da jurisdição secular. E a pensão dada aos mestres da
capela da música da sua diocese servia para ajudar no sustento dos ministros de sua
catedral, pois viviam necessitados. Por fim, findou sua missiva de forma incisiva:

Senhor, nestes termos peço e rogo a Vossa Majestade com instantíssima


súplica que estes dois pontos de direitos, um tirado aos bispos, qual é o das
lutuosas, e o outro adjudicado aos leigos qual é o das músicas (que a mesma
carta confessa que é de direito eclesiástico) se dividam e declarem por Juiz
competente, qual é o Sumo Pontífice, por que só a este Juiz e de nenhum
modo aos ministros de Vossa Majestade, pode pertencer o julgá-los; e
dando-me Vossa Majestade licença recorrerei a Suprema Cabeça da Igreja, e
com sua decisão se findarão pleitos. A Real Pessoa de Vossa Majestade
guarde Nosso Senhor por dilatados anos.377

Essa tentativa de apelo ao papa por Monteiro da Vide não foi ignorada. Ao ter
sinalizado suas intenções, fossem elas verdadeiras ou não, o Arcebispo envolveu uma

376
AHU, Avulsos Bahia, caixa 11, documento 955 [7 de Janeiro de 1718].
377
Idem.

120
questão muito mais ampla, que envolve o direito do Padroado Régio concedido aos reis
portugueses desde o século XV. Diante da possibilidade de evangelizar outras regiões e
aumentar o alcance de seus braços, a Santa Sé nomeou o soberano de Portugal patrono
da Igreja nos seus territórios do ultramar e, posteriormente, grão mestre da Ordem de
Cristo, que havia sido fundada para substituir a Ordem dos Cavaleiros Templários e à
qual estavam relegados a jurisdição espiritual sobre os lugares que foram ou seriam
descobertos pelos portugueses.378
Desde a concessão do direito de Padroado sobre os territórios descobertos e
conquistados, ficava sob a competência da coroa funções como a ereção das Igrejas e
sua conservação, a nomeação e o provimento dos eclesiásticos, o recolhimento dos
dízimos, a escolha do inquisidor mor, entre outros. Como afirma Paiva, “este mútuo
apoio entre a Igreja e o Estado era visto como algo essencial quer para a ação
evangelizadora, quer para a própria dominação e preservação política dessas áreas por
parte da coroa”.379
É comum, no entanto, que essa noção de interpenetração da Igreja e da coroa
leve a uma sensação equivocada de que ambas as instituições defendessem
harmoniosamente as mesmas ideias e interesses. O padroado tornou a coroa parte
fundamental da Igreja e vice-versa; aproximou as duas esferas de poder, mas não
resultou numa simbiose completa. Paiva demonstra que, quando se tratava da relação
Coroa/Igreja, os limites de jurisdição não eram tão claros, tendo o governo secular um
enorme poder sobre assuntos religiosos, bem como o catolicismo servia para legitimar o
poder real e ajudar na manutenção da ordem social. Quando se tratava do ultramar
português, essa divisão era ainda mais problemática.
Os inúmeros conflitos entre essas instituições na Bahia são exemplos latentes da
debilidade da “linha” que separava os seus campos de ação. Antes de tudo, devemos nos
lembrar de que tanto a Igreja quanto a coroa eram compostos de oficiais que nem
sempre pensavam e agiam de maneira homogênea. Como afirma Paiva – embora
tratando de confrontos internos na esfera eclesiástica – os principais focos de litígio
eram as disputas de recurso materiais, a definição de competências jurídico-legais,
questões de cerimonial, etc.380 Pelo que percebemos na pesquisa, essa afirmação vale
também para conflitos que envolvem oficiais de instituições de poder diferentes.

378
Boxer, p. 225.
379
José Pedro Paiva, “A Igreja e o poder”..., p. 142.
380
Idem, p. 136.

121
O poder espiritual concedido aos reis portugueses não impediu que, no início do
século XVIII, o Arcebispo da Bahia, prelado mais importante de toda a América
portuguesa, acionasse um argumento que punha em questão um direito outorgado por
Roma. Ao pedir licença para recorrer ao Sumo Pontífice, Monteiro da Vide ao mesmo
tempo reconhecia e ameaçava indiretamente o poder da coroa portuguesa em relação à
Igreja católica no seu Império, afirmando explicitamente que os ministros reais não
tinham competência para julgar os casos das lutuosas e dos músicos. Aos olhos dos
membros do Conselho Ultramarino o prelado estava questionando o poder real e por tal
atitude deveria ser prontamente chamado atenção, razão pela qual achavam que
Monteiro da Vide devia ser informado de que seus papéis foram vistos atentamente, não
deixando de reparar que

Sendo ele um prelado de tantas letras, e zeloso do sossego e quietação


do Reino não se acomode com as sentenças e assentos tomados
legitimamente sobre os dois pontos que se queixa e que assim espera
Vossa Majestade dele se contenha não usando do meio que intenta
porque será de grande perturbação este exemplo, porque com ele
todos os mais eclesiásticos que não ficarem satisfeitos das sentenças e
recursos proferidos em tribunais, recorram a Roma contra as
concordatas e privilégios deste Reino e Bula de Paulo 3º, que Vossa
Majestade não pode, nem deve consentir em prejuízo de seus vassalos,
e que achando-se o Arcebispo gravado nas sentenças, recursos e
assentos poderá usar dos meios que tiver dentro do Reino.381

Aos conselheiros, responsáveis por analisar ponto a ponto as representações do


Arcebispo, pareceu o seguinte:

Sem embargo de que reconhece o recurso deste prelado verte em três pontos,
sobre os quais já houve resoluções de Vossa Majestade e é de parecer, que
como o dito prelado modestíssimamente representa de novo e com novos
fundamentos a paixão e ainda falta de verdade com que o Ouvidor geral da
Bahia, Miguel Manso Preto informou a Vossa Majestade, sobre os ditos três
pontos, fica sendo da real grandeza de Vossa Majestade ouvir as justas
queixas do mesmo prelado e mandá-lo socorrer com justiça atentas as
disposições de direito em tais casos, e sem que obste a dizer-se que depois de
serem estes casos julgados, não fica lugar mais que o do meio de revista,
para este prelado recorrer no em que se sente agravado, porque como o
procedimento que com ele se tomou foi fundado só nas ordens que
emanaram deste Conselho extorquidas pela cavilação e maldade do dito

381
Documentos Históricos da Biblioteca Nacional, Consultas do Conselho Ultramarino, vol. 97, pp.89-
90.

122
Ouvidor geral toda a razão persuade que pela mesma via por onde Vossa
Majestade (mal informado) mandou proceder contra o Arcebispo por essa
mesma, informando Vossa Majestade da verdade o mande restituir,
poupando-lhe a este prelado a laboriosa fadiga de uma revista em negócio a
que ele não deu causa, em o qual mostra justiça reconhecida.382

Depois desta apresentação, os membros do Conselho Ultramarino trataram de analisar


os três pontos separadamente. A respeito do açougue dos eclesiásticos, eles, assentados
na certeza da intenção de Manso Preto de enganar a coroa, se colocaram a favor da
conservação da posse do açougue pelo cabido e clero de Salvador. Aos eclesiásticos
cabia pagar aos marchantes e os obrigados à Câmara (tributo dos fatos das rezes), como
antes faziam.383 Ficava, portanto, conservada essa mercê do início do século XVII.
Sobre as lutuosas, afirmaram que embora a Relação da Bahia tenha sido a favor das
denúncias do Ouvidor, tirando a posse das lutuosas de Monteiro da Vide, eles pediam
que a sentença fosse alterada, pois ela foi fundada nos “falsos informes” de Manso Preto
e desprezou “as razões de direito que assistem ao Arcebispo e posse de sua mitra”.384
Com o terceiro ponto, o dos músicos, não foi diferente. O Conselho sugeriu que o rei
mandasse restituir a posse “tão fundada e fortalecida de direito” ao Arcebispo.385
Finalmente, concluíram, o Ouvidor Geral Miguel Manso Preto deveria ser suspenso do
serviço real e também deveria explicar as razões que teve para “fabricar estes enganos”.
Depois de ser ouvido, então, o rei chegaria a uma resolução necessária para tais atitudes.
Ressalte-se que o monarca concordou com os pareceres do Conselho Ultramarino.386
No ano de 1718, data desta consulta, Manso Preto não ocupava mais o lugar de
Ouvidor geral e Provedor da Comarca da Bahia. Já estava em Portugal e embora não
seja possível precisar desde quando, sabemos que em 1717 ele ocupou o cargo de
Desembargador da Relação do Porto. No ano seguinte já era Ouvidor do Crime na
mesma cidade e em 1728 foi nomeado juiz da Coroa.387 Deste longo período entre 1718,
quando foi Ouvidor do Crime, e 1728 podemos levantar duas suposições. A primeira
delas, e mais óbvia, é que ele ocupou aquele cargo por dez anos, quando foi nomeado
para exercer outro ofício. A segunda é que o parecer do Conselho Ultramarino para que

382
Idem, p.90.
383
Idem, p. 92.
384
Idem, p.94.
385
Idem, p.95.
386
Idem, ibid.
387
Biblioteca Nacional de Lisboa, F1240, fl. 294v. Cf. também ANTT, Registo Geral das Mercês de Dom
João V, livro 9, fls. 225 e 225v. Agradeço ao professor Evergton Sales Souza por comunicar-me essa
fonte.

123
fosse suspenso do seu serviço e chamando-o para prestar esclarecimentos tenha surtido
efeito. Esta pesquisa, contudo, não nos permite apontar um caminho preciso. Talvez não
tenha existido qualquer elucidação dos fatos pela Coroa, ou se houve ela não alcançou
grandes proporções.
O conflito tinha um cunho econômico e isto está bem claro na documentação e
nas justificativas de Manso Preto, sobretudo no que diz respeito ao açougue eclesiástico.
Entretanto, se era também responsabilidade do Senado da Câmara cuidar do erário régio
da Coroa em Salvador e as ações do Arcebispo estavam a prejudicá-la, por que os
camaristas não se pronunciaram em favor do Ouvidor? Nem mesmo quando o litígio
fora deflagrado a Câmara se envolveu nele para confirmar as acusações de Miguel
Manso Preto ou defender Monteiro da Vide. Apenas cumpriu um dos seus papéis, o de
cuidar da comunicação entre a cidade e o reino e o de executar as ordens régias. Não há
também qualquer declaração ou interferência feita pelo Governador geral. Até então,
nada na documentação nos permite enveredar por esses caminhos.
A querela entre o Ouvidor e o Arcebispo em nada envolvia questões espirituais.
A materialidade da disputa em torno de um estabelecimento destinado a vender carne
verde aos eclesiásticos de Salvador, em torno da arrecadação das lutuosas e da
participação dos músicos em festas particulares é clara. Uma questão controversa em
que a economia foi evocada como principal problema, mas na qual, certamente, as
disputas pessoais foram colocadas em primeiro plano. Aliás, é acusando o Ouvidor de
ter procedido mal ao prender um pároco “que acabara de rezar missa”, no que foi
desautorizado por ele, que Monteiro da Vide inicia sua defesa ainda em 1706. A
afirmação do prelado só reafirma que as questões pessoais estavam na essência das
acusações de Manso Preto.
Trazer à tona uma disfunção causada por Monteiro da Vide que oferecia danos à
fazenda real, como fez Miguel Manso Preto, é também torná-la uma questão de bem
comum e um problema para o bom funcionamento da República. Fazia parte da
estratégia retórica do Antigo Regime. Embora no fim o Conselho Ultramarino tenha
dado razão a Monteiro da Vide, não é isto o mais importante. Para nós importa
compreender como esses conflitos ajudam a elucidar o cotidiano das relações políticas
em Salvador no século XVIII, revelando a maneira como se dava a convivência entre
oficiais reais e agentes eclesiásticos ou, em última instância, as relações entre o poder
civil e a Igreja no mundo português.

124
CONSIDERAÇÕES FINAIS

As relações entre o poder secular e o poder eclesiástico na Bahia ao longo de


todo o período colonial oscilaram entre a colaboração e o conflito Os numerosos litígios
que existiram entre seus representantes revelam que embora os governadores, bispos,
ouvidores, provedores e arcebispos servissem – no fim e ao cabo – à Coroa, nem sempre
eles tinham interesses comuns.
A sociedade do Antigo Regime era profundamente hierarquizada e pautada na
diferença de estatuto jurídico entre os indivíduos. A ascensão econômica nem sempre
significava mobilidade social. Um nobre continuava a ser nobre, mesmo se não
possuísse mais um grande poder aquisitivo. Quando transpomos o Atlântico e
observamos a realidade da América portuguesa, as características primordiais desta
sociedade moderna não se modificam na sua essência. Certamente, a questão da
ascensão social não funcionou exatamente como no reino, mas isto se explica pelo
próprio caráter da formação da elite colonial, apoiada na iniciativa particular. Durante o
século XVI e início do XVII uma parcela importante dessa elite foi formada em virtude
da sua participação no governo da conquista. Consequentemente, esse processo permitiu
a consolidação de um patrimônio, garantia de que as tarefas necessárias para a
colonização seriam executadas.388
O sistema de distribuição de mercês era uma característica marcante da cultura
política moderna. Ele era um alicerce fundamental do Estado Moderno. Poucos ou
nenhuns vassalos serviam por puro amor ao príncipe, pois eram, antes de tudo, movidos
por essa economia simbólica. Salientemos, aliás, que pedir, dar e receber era muito mais
do que um ato mecânico. Havia um processo bem sistematizado, com fórmulas
retóricas, na qual o vassalo suplicava a premiação dos seus serviços. Conhecida como
mercê remuneratória, esse elo entre vassalo e rei funcionou muito bem para monarquia
portuguesa, sobretudo como um auxílio para a administração do Império.389 Não
podemos esquecer, contudo, do ponto de vista daqueles homens que serviam em troca
de recompensa: investiam altas somas ao prestar os serviços para pedirem tenças, terras,

388
Ver a obra de Rodrigo Ricupero, A formação da elite colonial. Brasil c. 1530 – c. 1630, Editora
Alameda, São Paulo, 2009.
389
Cf. Fernanda Olival, As ordens militares e o Estado Moderno: honra, mercê e venalidade em Portugal
(1641-1789), Portugal, Estar Editora, 2001.

125
títulos nobiliárquicos, dentre outros, como remuneração e desta forma obterem
prestígio, poder e distinção.
Salvador era uma típica representante da sociedade do Antigo Regime, marcada
pela desigualdade jurídica entre os indivíduos e pela pluralidade jurisdicional das
autoridades que residiam ali. Constantemente, presenciavam-se demonstrações públicas
de privilégio e, não raro, disputas de poder. Todas essas características narradas até aqui
tencionava a convivência entre os diversos corpos sociais que a compunham,
desencadeando inúmeros conflitos. Autoridades régias, instituições de poder local e até
mesmo os eclesiásticos e religiosos das ordens religiosas envolviam-se em contendas
que perturbavam a ordem da sociedade soteropolitana.
Os conflitos de jurisdição foram frequentes na Bahia ao longo de todo período
colonial. O caráter pluri-jurisdicional da organização administrativa e política da Coroa
portuguesa no seu além-mar propiciou a superposição das alçadas dos diversos poderes
presentes no Império ultramarino. Até mesmo as relações entre dois poderes com
premissas diferentes, o secular e o eclesiástico, não foram poupadas. Embora os
representantes de ambas as esferas respondessem diretamente ao rei, quando analisamos
em uma escala menor vimos que quase sempre os litígios entre eles eram exacerbados
por disputas pessoais.
Buscamos, partindo dessa premissa, analisar dois casos contenciosos que
envolviam diretamente governador geral, ouvidor, prelado episcopal e, indiretamente,
outras instâncias de poder. Em contextos diferentes eles revelaram que em nome do bem
comum essas autoridades buscavam impor limites jurisdicionais ao outro, procurando o
tempo todo ampliar os seus próprios poderes.
Durante o período pós-Restauração a Bahia, assim como todo o Império
português, passava por dificuldades políticas, agravadas pela constante ameaça de
invasão holandesa e consequente crise financeira. O momento inspirava cuidados e
habilidade dos seus governantes. A própria política de Dom João IV demonstrava isso.
Entretanto, todos esses gravames não impediram o governador geral do Brasil, Antonio
Telles da Silva, de tomar um rumo diferente. Denunciado por seus desmandos pelo
bispo do Brasil D. Pedro da Silva Sampaio, acompanhado pela Câmara e pelo ouvidor
geral Manuel Pereira Franco, sua administração foi bastante conturbada. Por outro lado
o próprio bispo já havia dado mostras da sua forte personalidade, quando se envolveu
em um conflito com outro governador geral na década de 1630.

126
No princípio do século XVIII, a administração de Salvador viu-se em meio a um
novo conflito, dessa vez protagonizado pelo Arcebispo da Bahia, D. Sebastião Monteiro
da Vide e pelo Ouvidor Miguel Manso Preto. No centro da disputava estavam as rendas
do açougue dos eclesiásticos e das lutuosas dos prelados. Manso Preto insatisfeito com
as ações supostamente desviantes de Monteiro da Vide, denunciou-o à Coroa no intuito
de reduzir as alçadas do poder do eclesiástico. Acusava-o, sobretudo, de não pagar à
Câmara o imposto sobre a venda da carne naquele estabelecimento. Por outro lado, o
Arcebispo sentiu-se perseguido e afirmou que o Ouvidor estava “faltando com a
verdade”.
O estudo das relações de tensão e conflito entre o poder secular e o poder
eclesiástico na Bahia colonial nos permitiu algumas reflexões. Em primeiro lugar é
necessário salientar que havia limites na interpenetração e interdependência entre a
Igreja e a Coroa em Portugal e nos seus domínios ultramarinos. Quase sempre eles eram
impostos pelos diferentes interesses que esses dois poderes e seus agentes possuíam.
Depois devemos compreender que a realidade ultramarina também impunha limites para
uma administração mais direta da Coroa, havendo a necessidade de criar um complexo
aparelho burocrático com tal finalidade e, nesta perspectiva, o choque de diferentes
personalidades era inevitável. O próprio afastamento do centro emanador de poder
concorreu para que muitas vezes os interesses pessoais fossem colocados à frente das
necessidades políticas locais, o que por sua vez propiciou o surgimento de litígios entre
as autoridades que residiam ali. Isso não significa que o poder real estivesse reduzido ou
ameaçado. Se não podemos falar em incentivo das contendas pela Coroa, também não
podemos dizer que ela procurou combatê-los ou evitá-los. Eles representaram, no
Império português, uma estratégia política e administrativa bastante sagaz. Afinal,
apenas do rei poderia emanar sua resolução. Só através do monarca se alcançaria a
justiça.

127
APÊNDICE I

Lista dos monarcas de Portugal (1600-1750)

Filipe III (1598-1621)


Filipe IV (1621-1640)
Dom João IV (1640-1656)
Dom Afonso VI (1656-1667)
Regência de Dom Pedro (1667-1683)
Dom Pedro II (1683-1706)
Dom João V (1706-1750)

Vice-reis e governadores gerais do Brasil (1600-1750)

Francisco de Sousa (1591-1602)


Diogo Botelho (1603-1607)
Diogo de Meneses (1608-1612)
Gaspar de Sousa (1613-1617)
Luís de Sousa (1617-1621)
Diogo de Mendonça Furtado (1621-1624)
Mathias de Albuquerque (1624-1625). Governou durante a ocupação holandesa na
Bahia.
Francisco de Moura Rolim (1625-1627). Nomeado por Matias de Albuquerque como
capitão-mor da Bahia.
Diogo Luís de Oliveira (1627-1635)
Pedro da Silva (1635-1639)
Fernando Mascarenhas, conde da Torre (1639)
Vice-rei Jorge Mascarenhas, Marquês de Montalvão (1640-1641)
Junta governativa (1641-1642)
Antônio Telles da Silva (1642-1647)
Antônio Telles de Meneses, conde de Vila-Pouca Aguiar (1647-1650)
João Rodrigues de Vasconcellos e Sousa, conde de Castelo Melhor (1650-1654)
Jerônimo de Ataíde, conde de Atouguia (1654-1657)
Francisco Barreto de Meneses (1657-1663)
Vice-rei Vasco Mascarenhas, conde de Óbidos (1663-1667)
Alexandre de Sousa Freira (1667-1671)
Afonso Furtado de Castro do Rio de Mendonça, visconde de Barbacena (1671-1675)
Junta interina
Roque da Costa Barreto (1678-1682)
Antônio de Sousa de Meneses (1682-1684)
Matias da Cunha (1687-1688)

128
Junta interina (1688-1690)
Antônio Luís Gonçalves da Câmara Coutinho (1690-1694)
João de Lencastre (1694-1702)
Rodrigo da Costa (1702-1705)
Luís César de Meneses (1705-1710)
Lourenço de Almeida (1710-1711)
Pedro de Vasconcellos e Sousa, conde de Castelo Melhor (1711-1714)
Vice-rei Pedro de Noronha, conde de Vila Verde e marquês de Angeja (1714-1718)
Sancho de Faro e Sousa, conde de Vimieiro (1718-1719)
Junta interina
Vice-rei Vasco Fernandes César de Meneses, conde de Sabugosa (1720-1735)
Vice-rei André de Mello e Castro, conde de Galvêas (1735-1749)

129
APÊNDICE II

Lista de Bispos e Arcebispos da Bahia (1600-1750)

Bispos

D. Constantino Barradas (1602-1618)


D. Marcos Teixeira de Mendonça (1621-1624)
D. Miguel Pereira (1627-1630)
D. Pedro da Silva Sampaio (1632-1649)
D. Fr. Estevão dos Santos (1670-1672)

Arcebispos

D. Gaspar Barata de Mendonça (1676-1681)


D. Fr. João da Madre de Deus Araújo (1682-1686)
D. Fr. Manuel da Ressurreição (1687-1691)
D. João Franco de Oliveira (1691-1700)
D. Sebastião Monteiro da Vide (1701-1722)
D. Luís Álvares de Figueiredo (1724-1735)
D. Fr. José Fialho (1738-1739)
D. José Botelho de Matos (1741-1760)

130
FONTES

Fontes Manuscritas

Arquivo Histórico Ultramarino (AHU)

Avulsos Bahia

CARTA do governo geral interino do Brasil formado pelo Arcebispo D. Sebastião


Monteiro da Vide, mestre de campo João de Araújo e Azevedo e chanceler Caetano de
Brito e Figueiredo ao Aires de Saldanha e Albuquerque referente as noticias de pirataria
e diligências nas Costas do Brasil. 15 de Janeiro de 1720. Caixa 12 Documento 1069.
CARTA do ouvidor e provedor João Barbosa Maciel ao rei D. João V referente a
arrematação dos talhos do clero e da Santa Casa da Misericórdia da Bahia. 20 de Maio
de 1712. Caixa 8 Documento 631.
CARTA do governador do Brasil Antonio Telles da Silva ao rei D. João IV sobre a
necessidade de derrogar a provisão filipina ao Bispo da Bahia parece ser executor dos
seus ordenados, com a qual ameaça o contratador dos dízimos, Mateus Lopes Franco, e
outras pessoas com a interdição e excomunhão. Anexo: carta, despacho e parecer. 21 de
Agosto de 1643. Caixa 1 Documento 46.
CONSULTA do Conselho Ultramarino ao rei D. João V sobre a conta que dá o vice rei
do Brasil acerca do excesso dos bispos na jurisdição do seu governo e da vida
escandalosa dos clérigos.Anexo: 2 docs. 17 de Abril de 1723. Caixa 17 Documento
1493.
CONSULTA do Conselho Ultramarino ao rei D. João V sobre as queixas de Cosme
Rolim de Moura contra o procedimento do provedor e ouvidor da Bahia Miguel Manso
Preto. Anexo: 4 docs. 5 de Fevereiro de 1707. Caixa 5 Documento 456.
CONSULTA do Conselho Ultramarino ao rei D. João V sobre o que escreveu o
Arcebispo da Bahia D. Sebastião Monteiro da Vide em que se queixa de o privarem dos
privilégios acerca de ter açougue separado do secular.Anexo: 5 docs. 7 de Janeiro de
1718. Caixa 11 Documento 955.
CONSULTA do Conselho Ultramarino ao rei D. João V sobre as queixas do Arcebispo
da Bahia D. Sebastião Monteiro da Vide acerca do procedimento do ouvidor Miguel
Manso Preto. Anexo: 4 docs. 17 de Setembro de 1706. Caixa 5 Documento 442.
CONSULTA do Conselho Ultramarino ao rei D. João V sobre o que informa o
Arcebispo da Bahia D. Sebastião Monteiro da Vide acerca das dificuldades que tem
para edificar aposento para sua vivenda e de seus sucessores. 27 de Outubro de 1706.
Caixa 5 Documento 445.
DESPACHO do Conselho Ultramarino determinando que o juiz da Relação da Bahia
informe com o seu parecer sobre o que contém a carta do Arcebispo da Bahia D.
Sebastião Monteiro da Vide acerca da criação da paróquia do Pilar, ouvindo por escrito
o prior do convento do Carmo.Anexo: 2 docs. 27 de Maio de 1712. Caixa 8 Documento
705.
DESPACHO do Conselho Ultramarino ordenando ao vice rei e capitão general do
estado do Brasil, conde de Sabugosa, Vasco Fernandes César de Meneses que informe

131
ao Juiz de Fora e do crime de suas respectivas Jurisdição. 13 de Novembro de 1734.
Caixa 49 Documento 4353.
REQUERIMENTO de Manuel de Brito ao rei D. José solicitando licença para o uso de
traje e espada alegando nobreza. Anexo: 10 docs. Ant. 19 de Dezembro de 1750. Caixa
104 Documento 8242.

Luiza da Fonseca

CARTA dos desembargadores da Relação da Bahia, para S. A. sobre ser conveniente


haver juiz de fora naquela cidade. 21 de Agosto de 1677. Caixa 23 Documento 2780.
CARTA do governador D. João de Lencastre, para S. Majestade, sobre as negras e
mulatas que se vestiam de seda, mais ricas que as filhas das casas que serviam,
provocando desonestidade e distração de muitos eclesiásticos simples. 24 de Julho de
1695. Caixa 32 Documento 4101.
CARTA do ouvidor desembargador Manuel Pereira Franco sobre as desordens e
desconcertos do clero; diz que dos oito capitulares da sé só seis vão ao Cabido, que são
idiotas sem letras, que põem excomunhão por casos levíssimos, e que os amancebados
vivem em tanta quietação como os casados. 11 de Dezembro de 1652. Caixa 12
Documento 1533.
CARTA do chanceler da Relação da Bahia Manuel Carneiro Sá para S. Majestade
queixando-se do arcebispo governador não repartir com ele as propinas que leva nos
contratos. 15 de Julho de 1689. Caixa 28 Documento 3549.
CARTA da Relação da Bahia para S. A. sobre a carne que se vende no açougue, e
maneira como são tratados os criados dos desembargadores quando vão às compras. 27
de Agosto de 1672. Caixa 21 Documento 2493.
CARTA do Senado da Câmara da Bahia para Sua Majestade pedindo que ninguém
possa vender carne fora do açougue público pelo dano que resulta à Fazenda Real. 30 de
Julho de 1694. Caixa 30 Documento 3848.
CARTA do governador do Brasil Antonio Teles da Silva para S. Majestade
comunicando a morte do governador do Rio de Janeiro, Luís Barbalho Bezerra,
atribuída a desgosto que teve por causa de um motim que se levantou contra ele,
querendo-lhe tirar de casa o cofre do dinheiro do cunho da moeda; trata ainda da
segurança da praça do Rio de Janeiro, de naus da armada dos holandeses, da falta de
munições, etc. 4 de junho de 1644. Caixa 9 Documento 1060.
CARTA de frei Manuel de Santa Maria para S. Magde, dizendo ser filho de um pai dos
mais perseguidos do reino, por amor de D; Antonio e informando acerca do estado de
coisas no Brasil; refere-se ao sermão que pregou em S; Paulo na ocasião da aclamação,
em que alguns moradores disseram que se o rei espanhol “quisesse bulir com D. João
IV” eles lhe tirariam o serro de Potosí, parte do qual ficava na coroa de Portugal,
conforme dizia um sertanista; refere-se ainda a ataques dos holandeses e queixa-se do
governador do Brasil. 15 de Janeiro de 1642. Caixa 8 Documento 949.
CARTA do governador do Brasil Antonio Teles da Silva para S. Magde sobre a ordem
régia que teve pelo Conselho da Fazenda, para ter dois mil homens efetivos para defesa
da cidade. Diz que acha poucos homens se o holandês ali for, e se não for, tudo sobra.
Mostra a necessidade de se fortificar a Bahia de modo que o inimigo perca a esperança.
Diz das fortificações que achou, e que os moradores se fintaram para terem três mil
homens para a defesa da Cidade. 23 de Setembro de 1642. Caixa 8 Documento 976.

132
CARTA ao governador do Brasil, Antonio Telles da Silva, para S. Magde., sobre a falta
de patacas, licença dos moradores para plantarem gengibre e anil e navegá-lo livremente
para o reino, estado da galé e embarcações que fez o Marquês de Montalvão, devassa
que se ficava tirando dos três governadores do Brasil, terras de canas que tem o Conde
de Linhares, cujos bens foram confiscados no reino, dinheiro da obra pia, licença que
tem os jesuítas para tirar o pau Brasil, sustento da infantaria, estado de penúria em que
os governadores deixaram os cofres do governo; louva o procedimento do Provedor
Sebastião Parvi de Brito. 29 de Novembro de 1642. Caixa 8 Documento 994.
CARTA do governador do Brasil Antonio Telles da Silva para S. Magde., sobre a falta
de patacas e de escravos, causada pela ocupação de Angola, pelos holandeses, e do Rio
de Prata pelos espanhóis, pede que se levante a moeda, envie a relação dos soldados,
trata do estado da galé e mais embarcações. 29 de Novembro de 1642. Caixa 8
Documento 995.
CARTA do governador do Brasil Antonio Telles da Silva para S. Magde., sobre os
ordenados que levam os governadores, da finta que o povo fez para sustento dos
soldados. 10 de Setembro de 1642. Caixa 8 Documento 970.
CARTA do governador do Brasil Antonio Telles da Silva para S. Magde., sobre a falta
de escravos de Angola e de dinheiro de prata, pedido que fez para se levantar o preço
das patacas e bater moeda de prata dos moradores, negócio do pau Brasil dos jesuítas,
comércio que procura com os castelhanos do Rio da Prata, etc. 30 de Janeiro de 1643.
Caixa 9 Documento 1002.
CARTA do governador do Brasil Antonio Telles da Silva para S. Magde., sobre a falta
de prata e de escravos, paga da infantaria, diligências que vai fazer para abrir de novo o
comércio com os castelhanos do Rio da Prata, notícia que teve dos moradores do Pará
terem dado no Maranhão, e degolado todos os holandeses, ordenado do Bispo, etc. 31
de Janeiro de 1643. Caixa 9 Documento 1003.
CARTA de Francisco de Vila Gomes para S. Magde., sobre a sua ida a Bahia, com
ordem de ir a Torre de Garcia de Ávila, o que não conseguiu por imperícia do piloto,
naufragando a nau e perdendo-se tudo, salvando-se apenas a bandeira. 20 de Fevereiro
de 1638. Caixa 7 Documento 779.
CARTA do Bispo D. Pedro da Silva para S. Magde. queixando-se do governador
Antonio Telles da Silva, que com “ódio capital” busca molestá-lo, informa das obras da
Sé e dinheiro que tem custado. 26 de Outubro de 1644. Caixa 10 Documento 1157.
CARTA dos oficiais da Câmara da Bahia para S. Magde sobre chegada do Bispo D.
Pedro da Silva, fábrica da Sé, atraso das obras, etc. 17 de Novembro de 1644. Caixa 10
Documento 1156.
CARTA do Bispo D. Pedro da Silva para S. Magde. queixando-se de que há três anos
sofre do governador Antonio Telles da Silva, moléstias e vexações que este lhe faz e à
Sé, impedindo as obras. 17 de Outubro de 1644. Caixa 10 Documento 1158.
CARTA do governador Antonio Telles da Silva para S. Magde., sobre as 26
embarcações de remo que mandou fabricar para defesa do recôncavo. 26 de Maio de
1646. Caixa 10 Documento 1191.
CARTA do governador do Brasil Antonio Telles da Silva para S. Magde., sobre uma
devassa. 10 de Janeiro de 1643. Caixa 8 Documento 999.
CARTA do governador do Brasil Antonio Telles da Silva, para S. Magde., sobre a saca
de prata para o reino e a falta do comércio do Rio da Prata, pelo que é necessário
levantar a moeda. 24 de Setembro de 1642. Caixa 8 Documento 979.
CARTA régia para o governador Antonio Telles da Silva, sobre as questões deste com
o Ouvidor Manuel Pereira Franco, com Nicolau Viegas, conservador dos jesuítas do

133
colégio de S. Paulo da Bahia, com o Bispo D. Pedro da Silva e com o cônego Fillipe
Batista. 25 de Julho de 1645. Caixa 10 Documento 1129.
CARTA do ouvidor geral Manuel Pereira Franco para S. Magde., sobre os excessos
praticados pelo governador Antonio Telles da Silva. 26 de Setembro de 1644. Caixa 9
Documento 1095.
CARTA dos oficiais da Câmara da Bahia para S. Magde., acusando o governador
Antonio Telles da Silva, de abrir e ler cartas de particulares, e de prender o ouvidor
geral Manuel Pereira Franco. 2 de Setembro de 1644. Caixa 9 Documento 1094.
CARTA do Bispo Dom Pedro da Silva para S. Magde. sobre os prelados que nomeou
quando chegou ao seu bispado, em Janeiro de 1634, e estado do clero. 26 de Março de
1635. Caixa 6 Documento 682.
CARTA de D. Pedro, bispo do Brasil, para S. Magde., acusando o governador de abrir
as cartas dos particulares, o que dera ocasião a se perder o comércio por os moradores
temerem escrever e mesmo queixar-se a V. Magde., refere-se a recontros com os
holandeses em Pernambuco. 12 de Abril de 1635. Caixa 5 Documento 554.
CARTA dos oficiais da Câmara da Bahia para S. Magde., sobre a provisão que o Bispo
D. Pedro levou ao Brasil, pela qual se ordena que nas procissões vá a bandeira real
diante de todas as cruzes, estando até então em posse de ir atrás do pálio, causa por que
não levaram. Pedem a S. Magde. lhes ordene o lugar em que deve ir. 22 de Setembro de
1659. Caixa 15 Documento 1751.
CERTIDÃO passada por Gonçalo Pinto de Freitas, escrivão da Fazenda do Brasil, e
matrícula da gente de guerra, do número de soldados que se acham no Brasil e são:
2.238 soldados efetivos, 129 no hospital e quartéis, e no Rio Real 88, num total de
2.455. 27 de Novembro de 1642. Caixa 8 Documento 996.
CONSULTA do Conselho Ultramarino sobre Sebastião de Matos de Sousa, como
procurador do arcebispo da Bahia, que pede preferência para o navio em que este
embarcar com a família de Angola para o Brasil. 20 de Março de 1692. Caixa 29
Documento 3688.
CONSULTA do Conselho Ultramarino o desembargador Manuel Pereira Franco,
ouvidor da Bahia, que foi preso pelo governador Antonio Telles da Silva, e pede para
ser julgado, pois o Conselho tem informações de que passou muitas necessidades na
prisão. 5 de Maio de 1645. Caixa 10 Documento 1112.
CONSULTA do Conselho Ultramarino sobre a carta falsa que o governador do Brasil
Antonio Telles da Silva remeteu a S. Magde., pela qual se concedia a Catarina de
Oliveira e ao seu marido Domingos Antunes, licença para que só eles pudessem vender
garapa na cidade da Bahia. 26 de Agosto de 1644. Caixa 9 Documento 1069.
CONSULTA do Conselho Ultramarino sobre arcebispo do Brasil D. Frei João da
Madre de Deus, que pede que haja açougue separado na Bahia para os clérigos. 1 de
Março de 1683. Caixa 30 Documento 3150.
CONSULTA do Conselho Ultramarino sobre a queixa que faz o licenciado Manuel
Pereira Franco, ouvidor geral do Brasil, contra o governador Antonio Telles da Silva,
que o suspendeu e prendeu, a mesma queixa fazem os oficiais da Câmara da Bahia. 25
de Julho de 1645. Caixa 10 Documento 1128.
CONSULTA do Conselho Ultramarino sobre Sebastião de Mattos de Sousa, como
procurador do Arcebispo da Bahia, que pede preferência para o navio em que este
embarcar com a família, de Angola para o Brasil. 20 de Março de 1692. Caixa 29
Documento 3688.
CONSULTA do Conselho Ultramarino sobre os oficiais da Câmara pedirem para
aquela cidade privilégios iguais aos da cidade do Porto. 3 de Março de 1646. Caixa 10
Documento 1176.

134
CONSULTA do Conselho Ultramarino sobre o que escreve o governador Antonio
Telles da Silva, acerca do empréstimo de 30.000 cruzados que se pediu ao bispo D.
Pedro da Silva. 15 de Abril de 1645. Caixa 10 Documento 1111.
CONSULTA do Conselho Ultramarino sobre a prisão e suspensão que o governador do
Brasil Antonio Telles da Silva fez no ouvidor geral Manuel Pereira Franco. O
governador acusava o ouvidor de proceder sem justiça num caso com os jesuítas e na
morte Filipe de Moura deu a sua mulher, rica e de nação hebrea. 25 de Outubro de 1644.
Caixa 9 Documento 1079.
INFORMAÇÃO do governador do Brasil e mais papéis relativos ao ordenado do
Bispo, obras e fábricas da Sé, e dinheiro para o vigário geral de Pernambuco. 1644.
Caixa 9 Documento 1096.
PARECER do procurador da coroa sobre o estado da cidade da Bahia, e do que lhe
convém dar. 26 de Fevereiro de 1646. Caixa 10 Documento 1177.
PARECER de Salvador Correia de Sá sobre o cativeiro dos índios e as religiões
poderem ter a administração de uma aldeia que não passe de 100 casais, em cada
mosteiro, para benefício de sua fazenda, e os mais índios que se descerem sejam para as
aldeias. Sem Data. Caixa 34 Documento 4361.
REQUERIMENTO de Manoel Rodrigues, que há mais de quarenta anos teve mercê do
ofício de contador geral do Brasil, que não foi exercitado por fica porteiro no Conselho
d Fazenda; pede licença renunciar aquele ofício em Antonio de Sousa de Andrade, que
está na cidade da Bahia. 4 de Janeiro de 1642. Caixa 8 Documento 947.
REQUERIMENTO do bispo contra o governador Antonio Telles da Silva que não o
ouve nem lhe paga. 17 de Agosto de 1645. Caixa 10 Documento 1133.
REQUERIMENTO do Bispo Dom Miguel Pereira pedindo dinheiro para restaurar a
sede da Bahia que foi saqueada pelos holandeses e ficou sem pratas, ornamentos, órgão,
livros de coro, missais, e sem castiçais. 13 de Fevereiro de 1629. Caixa 4 Documento
474.

Castro e Almeida

REPRESENTAÇÃO do Cabido da Bahia queixando-se de diversas considerações


práticas pelo Juiz de fora e vereadores da Comarca sobre as festividades e procissões,
que por ordem régia se celebravam com assistência do cabido e Senado. Anexos: 3
docts. 30 de agosto de 1755. Caixa 11 Documento 2010.

Arquivo Público da Bahia (APB)

Setor de Microfilmagem, Ordens Régias, volume 2.

Arquivo Municipal de Salvador (AMS)

Cartas do Senado aos Eclesiásticos (1685-1804)


135
Provisões reais, Livros 122.1 (1624-1642), 122.2 (1626-1655), 126.1 (1641-1680),
126.3 (1680-1712).

Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT)

Registo Geral das Merces de Dom Pedro II, Livro 14


Registo Geral das Merces de Dom João V, Livro 9

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