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Alagoinhas, 2022
Aline de Jesus Santos
Banca examinadora:
Alagoinhas, 2022
Ficha Catalográfica
CDD 981.04
Para meu Pedro Swahili, que ama ouvir histórias, e
a meu avô Eustáquio (in memória)
“Quem me pariu foi o ventre de um navio
Quem me ouviu foi o vento no vazio
Do ventre escuro de um porão
Vou baixar no seu terreiro
Êpa raio, machado e trovão
Êpa justiça de guerreiro
Ê semba ê ê samba ah
O batuque das ondas
Nas noites mais longas
Me ensinou a cantar
Ê semba ê ê samba ah
Dor é o lugar mais fundo
É o umbigo do mundo
É o fundo do mar.”
1
Quando a gira girou. Intérprete: Zeca Pagodinho. Compositor: Claudinho Guimarães. IN: Acústico Zeca
Pagodinho 2 – Gafieira. Rio de Janeiro: Universal Music, 2006, faixa 4.
Prezados leitores, agora é necessário que eu peça a bênção aos meus ancestrais e
abra espaço no terreiro para que Dona Calu, Luíza, Manoel de Santa Rita, Faustina, Íria,
Pafôncio e Christina, e tantos outros, nos conte sobre as estratégias desenvolvidas para acabar
com o cativeiro.
RESUMO
In this study I investigate the trajectories of slaves and freedmen who obtained conditional
freedoms in the city of Santo Amaro, in the period from 1842 to 1884, and who had their
freedoms contested in court. The goal of this work is to understand the strategies used by
former slaves to avoid returning to captivity, emphasizing the necessary alliances, including
those built with members of the landlord class. I argue that the relations between masters and
slaves were still based on customary rights, until 1871, and that the conditional freedoms had
a precarious character if they were not formalized in a notary's office. In addition, this work
seeks to identify freedom as the result of an action of families, whether they were
consanguineous or built in captivity. The work uses a combination of qualitative and
quantitative sources, based mainly on: freedom actions, inventories, wills and population
censuses.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 6
Capítulo II - “Sou livre! Não cativo!”: buscando a justiça para manter a liberdade ...... 50
Acordos e negociações estabelecidos entre a família Paim e seus escravos ou libertos .... 80
INTRODUÇÃO
Devia ser perto do ano de 1810, quando Quitéria, senhora da escrava africana
Anna, mais conhecida como Anna Bolena, provavelmente sentindo que estava próxima a sua
morte, prometeu para esta que ia conceder liberdade a sua filhinha Luíza, cabra. Dona
Quitéria foi taxativa nos termos que garantiria a liberdade condicional da criança: a menina
seria deixada aos cuidados do seu padrinho, Estevão de Souza, para que a criasse, oferecesse
educação para conseguir casamento quando tivesse a idade apropriada e comprasse uma casa
de telhas com 50 mil réis que foi deixado de herança. Quando tinha 13 anos de idade, Luíza
foi levada por Quitéria da freguesia do Bom Jardim, em Santo Amaro, para o Convento de
Santa Clara do Desterro, na cidade da Bahia, onde foi recolhida sob a proteção de uma das
freiras, ficando lá durante mais de três anos. Assim que a senhora morreu, o padrinho da
menina arquitetou um plano para que a mesma retornasse a Santo Amaro: contou que sua mãe
Anna estava morrendo e que deveria regressar para se despedir. Apenas no retorno, Luíza
compreendeu que foi orquestrado um plano para reduzi-la à escravidão: o padrinho que
deveria protegê-la, a vendeu para duas pessoas, sendo que uma delas era uma figura poderosa
em Santo Amaro: Maria Teodora de Melo Coutinho, proprietária do Engenho Bom Jardim.
Sempre fazendo questão de salientar sua liberdade, Luíza convenceu Maria
Teodora a passar sua liberdade mediante pagamento. Dessa forma, resolveu pedir esmolas,
conseguiu o valor que garantia sua alforria e seguiu caminho para a cidade de Maragogipe.
Teve 05 filhos e durante 20 anos permaneceu afastada do cativeiro, até que capitães do mato
invadiram a residência da família, durante uma madrugada, e levaram todos para a prisão de
Cachoeira, a pretexto de serem escravos fugidos. E crendo que sua liberdade era certa, Luíza
solicitou que Maria Teodora confirmasse a história de que havia pagado pela respectiva carta
de alforria. A ex-senhora foi chamada para reafirmar a identidade da liberta, e para surpresa e
infelicidade desta, mais uma vez o infortúnio da escravidão se repetiu: a mulher informou que
era senhora de Luíza e que há muito tempo esta havia fugido. Como a condição jurídica de
escravo se perpetuava pelo ventre da mãe, em 1862, o conflito era para garantir a posse dos 13
descendentes de Luíza, entre filhos e netos. Agora, restava comprovar a liberdade de Luíza
pela terceira vez, só que pelas vias jurídicas, através de uma ação conhecida como
manutenção da liberdade.2
2
Ação Cível, Ação de liberdade de Manoel de Santa Rita e família, Acervo Judiciário, est. 68, cx. 2447, doc. 15,
APEB. Sobre essa discussão de manutenção da liberdade é necessário verificar o estudo de GRINBERG, Keila.
7
Reescravização, Direitos e Justiças no Brasil do Século XIX. In: LARA, Sílvia Hunold e MENDONÇA, Joseli
Maria Nunes (orgs.). Direitos e Justiças no Brasil: ensaios de história social. Campinas: Ed. Unicamp, 2006,
p. 101-128. Sidney Chalhoub. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte.
São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
3
Aqui estamos seguindo o argumento de Sidney Chalhoub acerca da precariedade da liberdade na sociedade
escravista. Para saber mais, conferir: CHALHOUB, Sidney. A Força da Escravidão: ilegalidade e costume no
Brasil oitocentista. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
4
CHALHOUB, Sidney. Precariedade estrutural: o problema da liberdade no Brasil escravista (século XIX).
História Social, n. 19, p. 33 - 62. 2010. p. 52.
5
Idem.
6
Sobre a classificação das alforrias, cf. ALMEIDA, Kátia Lorena Novais. Alforrias em Rio de Contas – Bahia
século XIX. Salvador: Edufba, 2012. Capítulo 2.
8
7
MALHEIRO, Agostinho Marques Perdigão. A escravidão no Brasil: ensaio histórico-jurídicosocial. Rio de
Janeiro: Typografia Nacional, 3v., 1866-1867. Volume 1.
8
SOARES, M. A remissão do cativeiro: a dádiva da alforria e o governo dos escravos nos Campos dos
Goitacazes, 1750-1830. Rio de Janeiro: Apicuri, 2009. p. 143-154. O autor faz uma análise da carta de alforria
seguindo a perspectiva de Marcel Mauss.
9
Essa informação será analisada no capítulo I.
9
cativos eram diversas e particulares, tentamos verificar as brechas encontradas pelos mesmos
para se desvencilharem daquela condição e possuírem seus corpos integralmente. Segundo
Ligia Bellini, o escravo era aquele que portava o corpo, não na condição de ser possuidor,
visto que a matéria pertencia a um terceiro, ou seja, ao senhor.14 Pertencendo a outrem, não
era possível que o escravo tivesse autonomia plena sobre si, no entanto, mesmo considerando
a posse que o senhor tinha sobre ele, o escravo criava suas próprias regras no cotidiano.
Durante a leitura dos processos de reescravização, observamos que a esperança de possuir a si
próprio e ter a possibilidade de escolher o que lhe conviesse para seu cotidiano, era o que
motivava o ex-escravo no propósito de liberdade. Afinal, já haviam experimentado o que era
ser livre.
No intuito de explicar as cartas de alforrias e o que as mesmas representavam para
os negros, Sidney Chalhoub utilizou ações de liberdade para identificar as inúmeras
estratégias adotadas pelos cativos do Rio de Janeiro. Segundo Chalhoub, os escravos
estabeleciam alianças diversas para garantirem suas liberdades, inclusive com os ditos
sedutores e avarentos, e assim conseguiam deteriorar aos poucos a estrutura da escravidão.
Por vezes, nos caminhos para a liberdade apareceram ciladas, tal como aquela vivida por Íria
– que veremos no decorrer do texto – que estabeleceu aliança com alguém que pretendia
mantê-la escrava.15
Pretende-se nesse trabalho entender as estratégias acionadas pelos ex-escravizados
para continuarem na liberdade e não voltarem ao cativeiro. Queremos saber quais alianças
foram estabelecidas pelos ex-escravos em Santo Amaro, terceira maior cidade da Província da
Bahia em número de escravos, entre os anos de 1842 e 1884. Uma das principais questões que
motiva esse trabalho é identificar a quem era possível recorrer nos momentos de conflito entre
senhores e escravos.
Os estudos sobre a Província da Bahia, principalmente aqueles que falavam sobre
o Recôncavo, foram importantes para que pudéssemos entender as singularidades da região e
estabelecer conexões com as fontes históricas que encontramos. Nesse sentido, os estudos
desenvolvidos por Bert Barickman, Isabel Reis, Stuart Schwartz e Walter Fraga Filho foram
consultados no decorrer da pesquisa.
Cem anos após a abolição da escravatura no Brasil, Schwartz publicou a obra
Segredos Internos, que abordou de forma ampla o recôncavo açucareiro, dando ênfase às
14
BELLINI, Lígia. Por amor e por interesse: flashes da relação senhor-escravo em cartas de alforria. In:
Escravidão e invenção da liberdade. São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 73-86.
15
CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São
Paulo: Companhia das Letras, 2011. Falaremos sobre a trajetória de Íria no capítulo 2.
11
19
FRAGA FILHO, Walter. Encruzilhadas da Liberdade. Campinas: Editora Unicamp, 2006, p. 31.
20
Foram consultados os periódicos O Argos Sant’amarense, Echo Maragogipano, Echo Sant’amarense, O
Guaycuru e O Monitor.
13
21
Utilizamos informações de dois viajantes que estiveram em Santo Amaro no século XIX: Robert Avé-
Lallemant e Julius Naeher.
22
SLENES, Robert W. Na Senzala, Uma Flor: esperanças e recordações na formação da família escrava. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 132.
14
última empreitada seu caminho estava mais fortalecido, pois tinha 13 descendentes, entre
filhos e netos. Também verificamos a ação de escravidão proposta contra a liberta Faustina e
que implicava no cerceamento da liberdade de uma família inteira. Acompanhamos também
uma ação de liberdade proposta pelos libertos Íria e Pafôncio, e que tinha o objetivo de
impedir uma reescravização por tempo determinado. Nos três processos, procuramos
identificar as alianças estabelecidas pelos libertos, como a justiça de Santo Amaro percebia a
questão da reescravização e os principais argumentos utilizados para se garantir a liberdade.
Por fim, o terceiro capítulo, Forjando liberdades no cativeiro, abordamos a
trajetória de onze mulheres que foram presas, em 11 de outubro de 1867, para pagarem uma
dívida de penhora do Capitão Paim. Nesse capítulo, analisamos os acordos estabelecidos entre
as libertas e a família senhorial, tomando por base as supostas cartas de alforria falsificadas, e
como essas mulheres tentaram reverter as liberdades condicionais em benefício próprio. O
processo permitiu acompanhar o intenso laço de solidariedade que permeava a vida daquelas
mulheres no cotidiano, ao mesmo tempo em que o advogado de acusação, Francisco Maria
Sodré Pereira, desconstituía a existência legítima das cartas de liberdade, proclamando-as
falsas, fazendo crer que as mulheres nunca iriam usufruir da liberdade plena. Mas nesse
intuito, vale dizer que, vivendo nos labirintos do cativeiro, valia um sonho pela metade, do
que não ter nenhum sonho.
15
Capítulo I
No coração da zona açucareira: a cidade de Santo Amaro
23
BARICKMAN, B. J. Um contraponto baiano: açúcar, fumo, mandioca e escravidão no Recôncavo, 1780-
1860. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 89 - 164.
16
A província da Bahia nunca esteve atrelada a uma monocultura, visto que eram
necessários mantimentos de primeira necessidade para alimentar a população baiana. Ainda
que a cana de açúcar fosse a lavoura que garantia uma riqueza maior, sendo a mais cobiçada
pelos senhores de engenho, foi necessário que a Coroa publicasse alvarás e provisões
obrigando que uma parte da propriedade fosse destinada ao cultivo da mandioca. Essa medida
foi, na maioria das vezes, desrespeitada pelos produtores do coração da zona açucareira, pois
era caro e não queriam que suas propriedades fossem destinadas para outro cultivo.24 Da raiz
da mandioca, extraía-se a farinha que compunha a dieta essencial da população da província e
comumente era vendida nas feiras locais. Sobre a importância da farinha no cotidiano dos
escravos, o viajante Julius Naeher que esteve no Engenho Subaé, em Santo Amaro, nos diz
que:
De manhã cedo, o trabalhador do campo pega a sua farinha de mandioca (um
litro e meio por dia) e um pedaço de carne salgada e os leva numa lata de
flandres pendurada no pescoço para o campo de cana de açúcar, onde tem
que trabalhar até à noite. Ao meio-dia ele transforma com água, a sua farinha
em uma papa, com a qual ele forma pequenas bolas amassando com os
dedos e os leva à boca. Sua baixela se resume à casca da cuia, que lhe serve
como tigela e vaso para água de beber.25
Na prática, havia uma hierarquia das culturas agrícolas e esta era definida pela
qualidade do solo: solos ricos plantavam cana de açúcar, terras menos férteis eram dedicados
ao cultivo de mandioca ou hortaliças, e os menos produtivos eram aproveitados como
pastagens. Em Santo Amaro, nas regiões de Acupe, Saubara e Itapema, o solo é arenoso e
sempre foi dedicado para as plantações de mandioca ou pastagem de animais, como podemos
ver nesse anúncio de venda ou arrendamento: “José Carlos Ayres de Almeida Freitas vende
ou arrenda a parte que tem nos terrenos de areias, cobertos de matos, na fazenda denominada
Aldeia, próprias para plantação de fumo, mandiocas e cereais, e muito perto desta cidade.”
Era comum que as grandes propriedades de Santo Amaro possuíssem solos alternados, entre
áreas de massapé e areias, facultando o cultivo de culturas agrícolas diversas. 26
Geralmente, as plantações de mandioca eram feitas no sistema de parceria ou
arrendamento e pertenciam a lavradores pobres, muitas vezes libertos, ou escravos. Alguns
cativos conseguiam estabelecer acordos com os senhores e garantiam um pedaço de terra para
24
BARICKMAN, B. J. Um contraponto baiano: açúcar, fumo, mandioca e escravidão no Recôncavo, 1780-
1860. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 89 – 127.
25
NAEHER, Julius. Excursões na Província da Bahia: a terra e a gente da Província brasileira da Bahia;
tradução Osvaldo Augusto Teixeira. Salvador: Cian, 2011, p. 129-130.
26
O Popular. 20 de maio de 1877. Infelizmente, não conseguimos identificar a quantidade de fumo e mandioca
que eram cultivados em Santo Amaro.
17
fazer suas roças. Barickman considera que as roças deviam ser meros retalhos de terra, que as
horas dedicadas àquele espaço deveriam ser mínimas e que as colheitas deviam ser
insignificantes, mas que ali os escravos tinham o controle, não os donos dos seus corpos.
Concordamos com o pensamento do autor, mas entendemos que é importante a gente
considerar aquele espaço, ainda que fosse diminuto, como um lugar carregado de esperança,
que podia aliviar um pouco o espírito também. E ainda que o produto daquele roçado fosse
pouco, deveria ser representativo o ato de “tirar do pé” e oferecer aos vizinhos e compadres,
costume ainda comum na zona rural do Recôncavo.27
Apesar do sistema escravista, relações afetivas foram construídas e fortalecidas
nesse processo de dor. Ainda que seja exceção, acreditamos que o desenvolvimento da
economia interna dos escravos representou uma autonomia no cotidiano e moldou sonhos e
desejos para atenuar suas vidas ou sair do cativeiro. 28 Em 1878, o escravo Marsinício, que
pertencia a Benuto Calmon e trabalhava nos serviços do Engenho Macaco, ingressou com
uma ação de liberdade. Durante o processo, nós somos informados de que Marsinício “vive
em companhia de sua mulher e seus filhos, e que os sustenta só pelo seu ativo trabalho de dois
dias, sábado e domingo, que lhe são concedidos pelo dito Benuto para este fim.” 29 A
possibilidade de ter uma roça pequena representava uma alimentação mais rica e variada, ao
mesmo tempo em que o excedente da produção poderia ser comercializado em feiras locais e
ajudar na formação de economias. 30
27
BARICKMAN, B. J. Até às vésperas: o trabalho escravo e a produção de açúcar nos engenhos do Recôncavo
Baiano (1850-1881). Afro - Ásia, Bahia , n. 21-22, p. 177-238, s. ed., 1998-1999. p. 115-116.
28
Robert Slenes considera que a economia interna dos escravos compreende todas as atividades realizadas pelos
escravizados e que lhes garantam recursos. E essa economia pode surgir através do cultivo de pequenas roças,
caças ou até mesmo do furto. Cf. SLENES, Robert W. Na Senzala, Uma Flor: esperanças e recordações na
formação da família escrava. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 204.
29
Ação Cível, Ação de Liberdade de Marsinício, Acervo Judiciário, est. 09, cx 311, doc. 06, APEB.
30
FRAGA FILHO, Walter. Encruzilhadas da Liberdade. Campinas: Editora Unicamp, 2006, p. 31.
18
necessário que houvesse um local estratégico no qual pudessem ser feitos reparos ou
abastecimento de mantimentos.31
O movimento no porto de Salvador devia-se também ao comércio ilegal de
africanos que enriquecia traficantes e sustentava os anseios dos senhores de engenho. Cerca
de 50.000 africanos desembarcaram no Porto de Salvador nos anos 1847 – 1848, e
considerando os dados do TSTD, 422.165 africanos foram traficados para a Bahia na primeira
metade do século XIX, número que João Reis e Carlos da Silva Jr consideram subestimado,
principalmente para o período entre 1817-1831.32
Continuamente, eram exportados açúcar, fumo, algodão, café e aguardente, sendo
que os dois primeiros produtos equivaliam quase sempre a 50 e 15% da exportação baiana. 33
O comércio fumageiro foi estabelecido desde o início do século XVIII e abastecia os
mercados da África ocidental e Goa, a Índia portuguesa. A qualidade do fumo era
determinante do destino do produto: se tivesse alta qualidade, seria destinado a Portugal e de
lá iam para os países europeus. O restante, que era chamado de refugo, era exportado para o
Ocidente da África e servia como moeda de troca para traficar pessoas.34
O período compreendido entre 1840 e 1860 representou o ápice da produção
açucareira na Bahia, mesmo havendo quedas eventuais. O cultivo da cana de açúcar
desenvolveu-se no recôncavo baiano desde o século XVI, quando as terras dessa região foram
divididas em sesmarias. Nessa região, as cidades que tinham as melhores condições para o
plantio da cana eram Santo Amaro, São Francisco do Conde e Cachoeira, especialmente na
Paróquia do Iguape, formando a região que Schwartz chama de coração do Recôncavo
açucareiro.35
O solo propício para o plantio da cana de açúcar era o massapê ou o salão, mas os
senhores de engenho davam preferência ao primeiro, pois acreditavam que “os salões eram
mais fracos.” A cana de açúcar foi a principal cultura agrícola explorada em solo
31
ROSADO, Rita de Cássia Santana de Carvalho. O Porto de Salvador: modernização em projeto (1854-1891).
Salvador: UFBA, 1983, p. 17-33.
32
A estimativa do tráfico para o período de 1847-48 pode ser encontrada em ROSADO, Rita de Cássia Santana
de Carvalho. O Porto de Salvador: modernização em projeto (1854-1891). Salvador: UFBA, 1983, p. 17-33.
Para obter as informações atualizadas sobre o tráfico atlântico de escravizados consultamos o banco de dados do
TSTD. Disponível em: https://www.slavevoyages.org/. Acesso em 28 de março de 2021. As considerações de
João Reis e Carlos da Silva Reis sobre os dados subestimados do tráfico de escravos são encontradas em REIS,
João José; SILVA JÚNIOR, Carlos da. (Orgs.). Atlântico de Dor: faces do tráfico de escravos. Cruz das Almas:
EDUFRB; Belo Horizonte: Fino Traço, 2016, p. 20.
33
BARICKMAN, B. J. Um contraponto baiano: açúcar, fumo, mandioca e escravidão no Recôncavo, 1780-
1860. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 55-58.
34
Idem, p.64
35
SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835; tradução
Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 77-94.
20
santamarense, que é formado quase em sua totalidade pelo massapê. Segundo Schwartz, o
Recôncavo baiano foi chamado em alguns momentos de o ‘berço do massapê’ pois tinha
abundância da argila escura e pesada, sendo rica em nutrientes orgânicos. Segundo relatos, era
possível fazer vinte colheitas nesse solo, sem necessidade de replantio ou uso de
fertilizantes.36
Era 02 de fevereiro de 1844, quando Pinheiro de Vasconcellos, Presidente da
Província da Bahia, falava esperançoso sobre a projeção feita para a safra do açúcar naquele
ano. A safra tendia a ser maior que o ano anterior, pois acreditava-se que os senhores de
engenho estavam comprometidos em melhorar a produção e qualidade do açúcar, e para isso
acontecer era necessário investir dinheiro e mandar especialistas do fabrico do açúcar para a
Europa.
Havendo receio de que as moagens fossem embaraçadas pelas ações da natureza,
o Presidente da Província também alertava sobre as chuvas abundantes que caíam na Bahia.37
A ocorrência de chuvas era obstáculo ao corte e transporte das canas e devia ser realizado em
tempos específicos e evitando-se o período de inverno, visto que a cana cortada tinha que ser
moída no prazo de um dia para não azedar.38
Dez anos antes da Falla de Vasconcellos, Miguel Calmon entregava à Sociedade
d’Agricultura, Comércio e Indústria da Província da Bahia o seu ensaio sobre o Fabrico do
Açúcar que alertava os senhores de engenho sobre a qualidade do açúcar estrangeiro,
necessidade de aprimoramentos dos engenhos e a possível falta de escravos que ia ocorrer
pela extinção do tráfico. Havia uma preocupação constante em aprimorar as técnicas de
plantio da cana e vários ensaios e manuais foram elaborados para orientar os senhores de
engenho.39
Atento ao que estava acontecendo, Miguel Calmon sabia que mudar a concepção
dos senhores de engenho ia ser difícil. A produção açucareira da Bahia necessitava de
aprimoramentos, senão ficaria obsoleta, se comparada ao fabrico do açúcar no Caribe. Em
1843, na efervescência da Revolução Industrial, ocorreu um forte terremoto nas ilhas de
Guadalupe, região caribenha, e as autoridades francesas decidiram fazer adaptações nos
maquinários que originalmente seriam utilizados para atender a agroindústria beterrabeira.
36
SCHWARTZ , Stuart B. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835; tradução
Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 102.
37
Falla do Presidente de Província Joaquim José Pinheiro de Vasconcellos – Bahia: 1844, p. 10.
38
SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835; tradução
Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 77-101.
39
Ensaio sobre o fabrico do Assucar. Offerecido a sociedade d’agricultura, comércio e indústria da província
da Bahia. Por Miguel Calmon Du Pin e Almeida. Bahia: Na typografia do diário. Rua do Tijolo, casa nº 34.
1834. Edição fac-similar, sistema FIEB, Salvador, 2002.
21
40
SAMPAIO, Marcos Guedes Vaz. Navegação a Vapor na Bahia Oitocentista (1839 - 1894). Salvador:
Edufba, 2014, p. 265.
41
SILVA, Vinícius Santos. A Moléstia da Cana-de-açúcar no Recôncavo Baiano: política, saberes, práticas e
polêmicas científicas (1865-1904). Tese (Doutorado em História) – Centro de Ciências Humanas e Sociais,
UNIRIO, 2019, p. 70-72.
42
BARICKMAN, B. J. Um contraponto baiano: açúcar, fumo, mandioca e escravidão no Recôncavo, 1780-
1860. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 78-79.
43
OLIVEIRA, Waldir Freitas. A crise da economia açucareira do Recôncavo na segunda metade do século
XIX. Salvador: FCJA; UFBA – Centro de Estudos Baianos, 1999, p. 15-61.
44
ROSADO, Rita de Cássia Santana de Carvalho. O Porto de Salvador: modernização em projeto (1854-1891).
Salvador: UFBA, 1983, p. 26.
22
Até a primeira metade do século XIX, Santo Amaro era, juntamente com a cidade
de Cachoeira, a principal coletora de impostos da Bahia, excetuando o território de Salvador.
Em 1848, as duas cidades do Recôncavo recolhiam mais de 28% dos tributos previstos para as
73 coletorias da Província da Bahia.45 A partir de 1850, quando a exportação de açúcar na
Bahia entrou em declínio, a cidade foi perdendo seu espaço na economia baiana. Exemplo
disso é que, em 1870, Santo Amaro figurou em quarto lugar na arrecadação de impostos,
ficando atrás de Feira de Santana, Cachoeira e Nazaré.46
O apogeu econômico de Santo Amaro deveu-se, principalmente, à alta qualidade
do solo e a geografia privilegiada da cidade, que era banhada por pelo menos catorze rios. De
acordo com Barickman, Santo Amaro tinha 128 engenhos no início da década de 1870. 47 Nas
proximidades dos rios Pitinga, Sergi, Traripe e Subaé, ergueram-se engenhos enormes e
trajetórias foram vividas e construídas.
Os dados do censo de 1872 apontam que a cidade contava com seis Paróquias,
sendo: Nossa Senhora do Rosário de Santo Amaro, Nossa Senhora da Purificação de Santo
Amaro, São Pedro do Rio Fundo, Nossa Senhora da Oliveira dos Campinhos, Nossa Senhora
da Ajuda do Bom Jardim e São Domingos de Saubara. Como o território era extenso, foi
possível que Santo Amaro desenvolvesse cultivos variados e suprisse, ao seu modo, a
necessidade por gêneros de subsistência e exportação de outras culturas agrícolas.
Pela estrada do Bom Jardim passava grande parte do fumo que era produzido em
Santo Amaro, no entanto, até alcançar os trapiches para ser armazenado, o processo de
deslocamento era intenso. Durante os períodos de lamaçais, era comum que os carros de bois
ficassem enterrados até o eixo, causando fadigas nos animais. 49 A ausência de estradas com
45
Relatório Presidente de Província da Bahia. 1848, p.71.
46
Idem. 1870.
47
BARICKMAN, B. J. Até às vésperas: o trabalho escravo e a produção de açúcar nos engenhos do Recôncavo
Baiano (1850-1881). Afro - Ásia, Bahia , n. 21-22, p. 177-238, s. ed., 1998-1999. p. 195-196.
48
Echo Sant’amarense. 7 de agosto de 1881.
49
Idem. 30 de agosto de 1881.
23
Imagem 1 – Trecho da Rua Direita, Santo Amaro. Na imagem, é possível observar que a linha do trem passa em
uma rua de calçamento. É possível observar homens negros, quase todos usando chapéus, no decorrer do trecho.
No mesmo sentido do armazém Flor do Mercado um homem negro usando paletó se distingue dos demais
devido a vestimenta usada. O período que a foto foi tirada é desconhecido.
Fonte: Biblioteca Nacional
50
NAEHER, Julius. Excursões na Província da Bahia: a terra e a gente da Província brasileira da Bahia;
tradução Osvaldo Augusto Teixeira. Salvador: Cian, 2011, p.113-114.
51
Echo Sant’amarense. 24 de julho de 1881.
24
comerciantes da cidade. Residir nesse espaço, no século XIX, era sinônimo de pertencer às
famílias mais abastadas do município.
Imagem 2 – Theatro São Pedro d’Alcântara, Praça do Rosário em Santo Amaro. Na imagem, é possível ver
algumas crianças negras à esquerda. Na porta central do Theatro vê-se um casal usando chapéu e com objeto nas
mãos. Na praça, perto da estátua, há um homem de chapéu com um recipiente próximo das pernas. O período
que a foto foi tirada é desconhecido.
Fonte: Biblioteca Nacional
Como a sede da cidade foi edificada em terreno plano e poucas ruas possuíam
calçamento, a cidade ficava intransitável durante os períodos de chuva. 52 A situação tendia a
piorar quando o rio Subaé aglomerava areia, impedindo o curso das águas, e transbordava
para as ruas da cidade, entrando em “armazéns, lojas, alambiques, trapiches e depósitos de
fumo.”53 As enchentes causavam um prejuízo elevado e, constantemente, os senhores
solicitavam que o Governo da Província os socorresse.
O comércio da cidade era movimentado e contava com 68 armazéns, 43 lojas de
fazendas e 4 padarias, além da prática mercantil desenvolvida no Mercado Municipal e pelas
ganhadeiras, que podiam ser libertas ou escravas.54
52
Echo Sant’amarense. 24 de julho de 1881.
53
O Popular. 20 de maio de 1877.
54
O Argos Sant’amarense. 6 de abril de 1851. No ano de 1851, foi divulgada uma notícia sobre os
estabelecimentos comerciais de Santo Amaro. Em meados do século XIX, Santo Amaro possuía um comércio
forte. Segundo o periódico, 03 estabelecimentos comerciais pertenciam a africanos.
25
Imagem 3 – Mercado Municipal, Santo Amaro. Na imagem, é possível ver o Mercado Municipal que localiza-se
às margens do rio Subaé. Do lado esquerdo, vemos alguns animais de carga com sela e no lado direito, vemos
algumas pessoas na entrada do mercado. O período que a foto foi tirada é desconhecido.
Fonte: Biblioteca Nacional
55
Echo Sant’amarense. 11 de agosto de 1881.
26
Imagem 4 – Um trecho do cais, Santo Amaro. Na imagem, vemos algumas embarcações no rio Subaé. No lado
direito, vemos que um casarão estava sendo construído e que alguns homens que estavam na rua estavam
trabalhando na construção. O período que a foto foi tirada é desconhecido.
Fonte: Biblioteca Nacional
56
Echo Sant’amarense. 22 de fevereiro de 1884.
57
VILHENA, Luis dos Santos, A Bahia no século XVIII. Bahia: Itapuã. 1969, p. 127.
27
Como esse verso foi escrito no período da semana santa, as ganhadeiras estavam
atentas à demanda que havia por peixe naquela época e estabeleciam o aumento do preço.
Outro verso no mesmo jornal informava que seria necessário trazer camarões de Santo Amaro
ou comer xangós para conseguirem cumprir o preceito da sexta-feira santa, devido o alto
custo do pescado e denunciavam ao fiscal da Câmara municipal de Maragogipe que não
podiam jejuar porque o peixe estava caro.
58
Echo Maragogipano. 10 de abril de 1884.
59
Idem.
60
Idem.
28
61
Echo Sant’amarense. 23 de setembro de 1884.
62
SOARES, Cecília Moreira. As ganhadeiras: mulher e resistência negra em Salvador no século XIX. Afro-
Ásia, Bahia, n. 17, p. 57 – 65, 1996.
63
Argos Sant’amarense. 07 de outubro de 1851.
64
Idem. 31 de agosto de 1881.
65
Sobre as fugas de escravos são essenciais os trabalhos de REIS, Isabel Cristina Ferreira dos. Histórias de vida
familiar e afetiva de escravos na Bahia do século XIX. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de
Filosofia e Ciências Humanas, UFBA, 1998. REIS, João José; SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a
resistência negra no Brasil escravista. São Paulo, Companhia das Letras, 1989.
66
Echo Sant’amarense. 9 de julho de 1884.
29
Naeher dizia que o samba poderia ser dançado de forma apaixonada pelos negros
do engenho, no entanto considerava esse divertimento “horrivelmente maçante” e que era de
“matar os nervos”.69 A análise dele não destoava daquelas que eram feitas por outros viajantes
europeus que visitaram o Brasil. Apesar desses relatos constituírem fonte de pesquisa de
extrema riqueza documental, em virtude de detalhes que muitas vezes passam despercebidos
em fontes consideradas oficiais, eles servem, dentre outras coisas, para serem confrontados
com outras fontes históricas do período que está sendo estudado. Sobre isso, Slenes aponta
que
Os observadores estrangeiros e os brasileiros “bem nascidos” tendiam a
perceber o escravo a partir de uma ideologia do trabalho que postulava
diferenças radicais entre a cultura do homem livre e a do cativo; ou, pior, o
olhavam através de fortes preconceitos raciais e culturais. Além disso, e em
parte como consequência, eles não se empenhavam em registrar
minuciosamente o comportamento e os valores dos escravos na vida íntima.
Como resultado desse olhar enviesado e míope, essas fontes têm uma certa
coerência entre si, pelo menos na sua superfície. 70
67
SANTOS, Jocélio Teles dos. Divertimentos estrondosos: batuques e sambas no século XIX. In: SANSONE,
Lívio; SANTOS, Jocélio Teles dos (org.). Ritmos em trânsito: sócio-antropologia da música baiana. São Paulo:
Dynamis Editorial; Salvador: Programa a Cor da Bahia/Projeto S.A.M.B.A., p. 15-38, 1997. p.26.
68
NAEHER, Julius. Excursões na Província da Bahia: a terra e a gente da Província brasileira da Bahia;
tradução Osvaldo Augusto Teixeira. Salvador: Cian, 2011, p.143.
69
Idem.
70
SLENES, Robert W. Na Senzala, Uma Flor: esperanças e recordações na formação da família escrava. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 132.
30
71
Correspondências recebidas de Santo Amaro 1868 – 1869, Maço 3139/3138, APEB.
72
Código de Posturas Santo Amaro 1833 – 1880, APEB.
73
Echo Sant’amarense. 01 de fevereiro de 1883.
74
Idem. 31 de janeiro de 1884.
31
descontração foi interrompido de forma injusta. Acreditamos que o ponto alto para motivar a
denúncia no jornal tenha ocorrido, principalmente, porque os homens prometeram retornar.
E retiraram-se prometendo voltar no dia seguinte para comerem do caruru
que se havia fazer então; pois que, dizia Calu, a dona da casa, que estavam
ali reunidos seus parentes para assistir a missa que mandaria celebrar
sufregando a alma de seu marido em primeiro aniversário do seu
passamento.75
O laço de parentesco que Calu tinha com as outras africanas foi estabelecido
através das redes de afeto que se construíram no pós-travessia. Essas mulheres, que haviam
vivido a experiência do cativeiro e conseguiram se libertar, achavam importante manter o elo
da consideração pela outra no momento de dor. Seguindo os ensinamentos de Robert Slenes,
podemos denominar as vivências dessas africanas pela palavra malungo, numa alusão de que
elas viveram sofrimentos semelhantes, inclusive na travessia do Atlântico, e que, mesmo
assim, conseguiram construir vínculos duradouros, apesar da escravidão.76
É possível que essas mulheres contassem histórias do continente africano ou os
causos cotidianos quando foram surpreendidas. A preparação do caruru na roça é
extremamente animado e envolve uma movimentação na comunidade, que vai desde assar
castanhas, bater os ingredientes no pilão para obter o fubá, ou outras coisas corriqueiras como
passar as cinzas molhadas na panela para que a mesma não queime ou limpar o terreiro da
casa.
Outra ideia que concebemos para que aquela reunião ocorresse naquele janeiro,
está relacionado a um ritual específico do candomblé que envolve o período após a morte e
que só deveria ser celebrado entre os conhecidos, e se os intrusos comparecessem, a
celebração não aconteceria.
75
Echo Sant’amarense. 31 de janeiro de 1884.
76
SLENES, Robert W. Malungu, ngoma vem! África coberta e descoberta no Brasil. Revista USP, n. 12, p. 48-
67, dez./fev. 91/92.
32
Notícia 1 – Reportagem que saiu na primeira página do jornal Echo Sant’amarense denunciando uma patrulha
que fazia alardes na casa da africana Calu. Jornal de 31 de janeiro de 1884. Nº 186.
Fonte: Echo Sant’amarense
Pelo que podemos perceber, a denúncia pode ter sido realizada através de um
terceiro que Calu procurou ou por ela mesma ter ido à sede do jornal, que ficava na rua das
Princesas. Quem era essa africana que conseguiu mostrar sua opinião na primeira página do
jornal conservador da cidade? Quais pessoas ela conseguia acionar para ter seus direitos
adquiridos? Decerto que não conseguiremos desvendar essas questões nessa pesquisa, mas
através do fato narrado, sabemos que as libertas tinham uma extensa influência em Santo
Amaro.
33
Talvez, aquela fosse uma africana que conseguiu juntar uma economia e ter
alguma posse. Segundo Sheila Faria, a pobreza não era o único caminho que aguardava os
recém alforriados. A tese de que os alforriados seriam pobres por disponibilizarem todos os
recursos conquistados para pagar pela liberdade, perdeu força quando uma parte do discurso
historiográfico sobre alforria voltou os olhos para a análise de testamentos e inventários de
libertos, principalmente sobre os bens deixados pelo público feminino. Dona Calu era uma
mulher que morava na zona rural de Santo Amaro, mas podemos acreditar que ela tivesse
exercido o pequeno comércio que era dominado pelas mulheres, tal qual uma ganhadeira.
Confirmando o pensamento de Faria, é curioso notar que a manchete do jornal colocava a
africana como uma mulher pobre e isso pode estar relacionado com as estratégias dos libertos
em como eles queriam estar sendo observados pela sociedade, favorecendo os próprios
interesses.77
Infelizmente, não conseguimos encontrar mais fontes históricas que nos levassem
a perseguir a trajetória de Dona Calu. Não conseguimos identificar quem foi o esposo morto,
mas podemos supor que devia haver uma consideração mútua entre o casal e os parentes, já
que foi um motivo importante para que os malungos se reunissem, saindo de tão longe.
Considerando que as mulheres negras conseguiam mais alforrias que os homens, incluindo
nessa ideia os fatores externos, tais como a alforria masculina ser mais cara que a feminina e
que havia mais escravos homens do que mulheres, é possível pensar que a família, homem e
mulher, fizessem planos para antecipar a liberdade desta, já que o futuro dos filhos não estaria
comprometido com a escravidão.
Como havíamos mencionado na introdução dessa pesquisa, sempre falaremos
sobre a presença da família e como a mesma foi propulsora das estratégias para minar o
cativeiro. A história de dona Calu se assemelha às histórias de outras famílias de libertos que
77
A riqueza das mulheres forras tem sido debatida tomando como fontes principais os testamentos e inventários.
cf. FARIA, Sheila de Castro. Mulheres forras - Riqueza e estigma social. Tempo, v. 5, n. 9, p. 65-92, 2000.
CASTILLO, Lisa Earl & PARÉS, Luis Nicolau. Marcelina da Silva e seu mundo: novos dados para
historiografia do candomblé ketu. Afro-Ásia, n. 36, p. 111-151, 2007. Os laços construídos entre as famílias
negras foi amplamente discutido por REIS, Isabel Cristina Ferreira dos. A Família Negra no Tempo da
Escravidão: Bahia, 1850-1888. Tese (Doutorado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
UNICAMP, 2007.A importância das mulheres negras para o o fim da escravidão e movimentação da economia
interna tem sido amplamente discutida pela historiografia. cf. SOARES, Cecília Moreira. As ganhadeiras:
mulher e resistência negra em Salvador no século XIX. Afro-Ásia, Bahia, n. 17, p. 57 – 71, 1996. SOARES,
Cecilia Moreira. Mulher Negra na Bahia no século XIX. Salvador: EDUNEB, 2007; MOTT, Luis R. B.
Subsídios e história do pequeno comércio no Brasil. Revista História, v. 53, n.105, p. 81-106, 1976. DIAS,
Maria Odila Leite da Silva. Mulheres sem história. Revista de História da USP, v. 114, p. 31-45, 1985.
34
78
Relatório de Presidente de Província da Bahia, 1851.
79
O Argos Sant’amarense. 18 de dezembro de 1850.
35
No intuito de desacreditar a notícia, Martins andou pelas “ruas da Bahia mostrando a todo
mundo um documento que prova haver estado naquele mencionado dia e noite” na cidade de
Salvador.80
Após a notícia do Argos, outros jornais começaram a abordar o cotidiano do
Presidente da Província. Falava-se que a população tinha visto Martins em várias
circunstâncias com os traficantes de escravos e que os beneficiava financeiramente ao
permitir que esses homens executassem serviços públicos. 81 Uma parte da imprensa resolveu
comprar a briga e defendeu Martins. Chamavam os oposicionistas de caluniadores e que esses
estavam difamando a “reputação imaculada, a castidade puríssima, a cândida virgindade do
presidente.”82 Francisco Martins achava que havia sido insultado e por isso resolveu levar a
situação para o tribunal. É importante frisar que os liberais de Santo Amaro não realizavam
aquela denúncia sobre a continuidade do tráfico porque eram abolicionistas. Muito pelo
contrário, pois conservadores e liberais andavam de mãos dadas em Santo Amaro, quando se
referiam ao cativeiro.83
Passados alguns anos, em 1859, quando o viajante alemão Robert Avé-Lallemant
visitou a Bahia, julgou necessário cumprimentar Francisco Martins, que nesse período
ocupava o cargo de senador e Conselheiro de Estado. Segundo o viajante, Martins era o
“homem mais importante da Província da Bahia.”84 O senador, como tantos outros senhores
de engenho do Recôncavo, morava no Campo Grande, na Freguesia da Vitória, e visitava
constantemente os canaviais do Engenho São Lourenço em Santo Amaro, exercendo o
controle senhorial de forma direta.
80
O Guaycuru. 23 de janeiro de 1851.
81
Idem. 01 de fevereiro de 1851.
82
Idem. 01 de maio de 1851
83
Retomaremos essa discussão no epílogo.
84
AVÉ-LALLEMANT, Robert. Viagens pelas províncias da Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe: 1859. –
Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1980, p.32.
36
Imagem 5 – Muenda e conductor da Usina Malembá, Santo Amaro. Essa foto nos dá uma dimensão do tamanho
dos maquinários de um engenho do século XIX. Na foto, há um homem negro de paletó sentado na região
central da máquina e do lado direito tem um homem em pé de pele clara. O período que a foto foi tirada é
desconhecido.
Fonte: Biblioteca Nacional
85
AVÉ-LALLEMANT, Robert. Viagens pelas províncias da Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe: 1859. –
Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1980, p.34.
86
VILHENA, Luis dos Santos. A Bahia no século XVIII. Bahia: Itapuã. 1969, p. 185-188.
37
Ficamos com a impressão de que o homem parecia querer dominar todo o local,
deixando aos escravos apenas os movimentos de trabalho e respiração. Ante do raiar do dia,
os trabalhos iniciavam no São Lourenço. O engenho era imponente e tinha maquinários de
87
AVÉ-LALLEMANT, Robert. Viagens pelas províncias da Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe: 1859. –
Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1980, p.34.
88
SEYFERTH, Giralda. Construindo a Nação: hierarquias raciais e o papel do racismo na política de imigração e
colonização. In: MAIO, Marco Chor (org.). Raça, Ciência e Sociedade. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1996,
p. 42.
89
AVÉ-LALLEMANT, Robert. Viagens pelas províncias da Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe: 1859. –
Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1980, p. 35.
38
grandes dimensões. Avé-Lalemant nos conta que, após um apito estridente dar o sinal de que
as atividades deveriam ser iniciadas, o engenho não parava. Os escravos colocavam as canas
em três rolos de ferro para serem prensadas e assim extraía-se o caldo que seria transformado
em açúcar, ao mesmo tempo em que os bagaços que caíam nos carros de bois eram
transportados para servir de adubo.
Alguns negros guiam as canas entre os rolos da moenda, outros conduzem os
carros de bagaço. Embaixo, grossa e ininterrupta torrente de caldo
espremido escorre da moenda para um reservatório, de onde é elevado a 20
pés de altura, por meio de vapor, para o aparelho cozinhador, seis grandes
caldeiras com um grande vácuo da fábrica Heckman de Berlim. Aí é
submetido, ao modo das refinarias alemãs de açúcar, aos diversos processos
em separado, de cozimento por meio do vapor, de refinação por meio do
carvão animal, de passagem pela joeira centrífuga de Stolle, e de purga
completa em formas de feitio de pão de açúcar, obtendo-se assim um
produto que pode perfeitamente competir com o europeu. 90
O São Lourenço era uma propriedade de grande porte e tinha 150 escravizados,
sendo que 23 morreram em decorrência do cólera. Segundo Athaíde, a primeira manifestação
do “cólera morbo” no Brasil foi em 1855, quando ocorreu a maior epidemia do século XIX. O
surto epidêmico teve início no Pará e alastrou-se rapidamente por todo Império, sendo
particularmente mortífera na Bahia. Os cálculos oficiais do período apontam que a taxa de
mortalidade foi de 26.414 óbitos, levando em consideração apenas as cidades de Salvador,
Cachoeira, Santo Amaro, Nazaré e Valença. A chegada do cólera nos engenhos do Recôncavo
destruiu safras inteiras e levou à morte vários escravizados. 91
Conforme Onildo Reis, as pessoas do recôncavo temiam o risco de contaminação
e tentavam fugir da morte, se dirigindo principalmente a Salvador, onde esperavam encontrar
melhores meios contra a doença. O autor traz um relato de Wanderley Pinho sobre a reação
dos santamarenses, de agosto de 1855
Os médicos fugiam, os grandes se exilavam, as autoridades abandonavam
seus postos, e o povo, num reboante clamor d’angustia, despenhava-se em
catadupa pelas estradas, para os portos, para todo o ponto, deixando os
doentes, abandonando os mortos, esquecendo os maiores affectos na
desapoderada torrente do pavor collectivo que os dominava [...]92
Devido à epidemia, as despesas dos engenhos São Miguel e Nazareth, do
Visconde e Viscondessa de Pirajá, aumentaram em mais de 12 contos de réis para pagar os
serviços de médicos, enfermeiras, acadêmicos e ambulâncias. Decerto que a doença estava
90
AVÉ-LALLEMANT, Robert. Viagens pelas províncias da Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe: 1859. –
Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1980. Idem. p. 35.
91
ATHAYDE, Johildo Lopes de. Salvador e a grande epidemia de 1855. Salvador: CEB-UFBA, n. 113, 1985.
92
DAVID, Onildo Reis. O inimigo invisivel: epidemia na Bahia no século XIX. Salvador: EDUFBA, 1996, p.
63.
39
93
Inventário do Visconde e Viscondessa de Pirajá, est. 05, cx. 2339/2839, doc. 01, APEB.
94
BARICKMAN, B. J. Um contraponto baiano: açúcar, fumo, mandioca e escravidão no Recôncavo, 1780-
1860. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 91. Sobre a importância da farinha da mandioca na
alimentação baiana ver também o protesto contra a carestia que ocorreu em Salvador. cf. REIS, João José;
AGUIAR, Márcia Gabriela D. de. Carne sem osso e farinha sem caroço: o motim de 1858 contra a carestia na
Bahia. Revista de História, São Paulo, n. 135, p. 133-160, 1996.
95
Inventário do Visconde e Viscondessa de Pirajá, cx. 05, maço 2339/2839, doc. 01, APEB.
40
96
Echo Sant’amarense. 27 de abril de 1884.
97
MATTOSO, Katia M. de Queirós. Bahia, Século XIX: Uma província no império. RJ, Nova Fronteira 1992,
p. 447.
98
Echo Sant’amarense. 24 de abril de 1884.
41
99
Echo Sant’amarense. 24 de abril de 1884.
42
100
Recenseamento Geral do Império de 1872. Bahia. BRAZIL. Diretoria eral de Estatística, 1876, Bahia.
43
Nº % Nº % Nº %
São Pedro do Rio Fundo 6.020 17,81% 1090 10,27% 7.110 16,01%
101
Recenseamento Geral do Império de 1872. Bahia. BRAZIL. Diretoria eral de Estatística, 1876, Bahia.
44
102
FRAGA FILHO, Walter. Encruzilhadas da Liberdade. Campinas: Editora Unicamp, 2006. p.34.
45
aumentar o valor do cativo. Também, podemos considerar esse aumento de valor como uma
maneira de dificultar a saída do escravo daquela propriedade e desestimular o projeto de
liberdade.
Carreiro 38 7,75%
Carpina 13 2,65%
Doméstico 12 2,44%
Purgador 9 1,83%
Ferreiro 6 1,22%
Pedreiro 5 1,02%
escravidão, visto que a vida da pessoa escravizada deveria se esvair para compensar o senhor.
Ou seja, quando pensamos nas trajetórias de dona Faustina e dona Ana Querina, ambas
crioulas e com respectivamente 85 e 90 anos, no ano de 1876, nos damos conta de que aquelas
mulheres que já nasceram escravas estavam sendo consideradas como um fardo no Engenho
do Conde, pois, segundo o avaliador, eram doentes e sem valor.
Para ponderar as profissões, foi necessário excluir as crianças que tinham menos
de 12 anos, mas que eram consideradas um bem patrimonial, pois possuíam um valor. E, no
tocante às crianças dos engenhos, é importante mencionar que identificamos 19 ingênuos, que
eram os filhos de escravas que nasceram livres, pois nasceram após a lei de 28 de setembro de
1871, a chamada Lei do Ventre Livre. Um problema que a escravidão deixava para as mães
resolverem, pelo menos na consciência das mesmas, era a medida do amor ou afeto que
deveria ser dispensado ao filho livre e ao filho escravo. Como explicar para crianças que um
estava sob a autoridade do chicote e outro não? De qual forma a cativa Felícia poderia falar
para Alexandrina, de 05 anos, que ela era escrava e que seu irmão Teóphito, de 04 anos, era
livre? Que um filho estaria sempre com ela e que o outro estaria poderia estar, mas que
dependia da vontade do senhor? Afinal, apenas um ano de idade separava a idade dos irmãos.
Não podemos mensurar as angústias que essas mulheres viveram para manter viva a
esperança de liberdade.
Possivelmente cientes das artimanhas senhoriais em mudar a condição jurídica de
seus filhos ingênuos para escravos, as mães eram categóricas em afirmar com precisão as
datas exatas de nascimento dos filhos. Como exemplo, podemos perceber que Joana achou
necessário informar que Anastácia tinha exatos 04 anos e 01 mês de idade, já que a menina
nasceu em outubro de 1871 logo após a lei do ventre livre ser promulgada. Decerto que Joana
não sabia ler, mas encontrou formas para lembrar e comprovar que a filha era livre. Sobre as
burlas senhoriais, o periódico O Asteróide mencionou que, em Santo Amaro, o sistema
escravista era incentivado pelos membros da igreja, pois eram padres que saíram, em 1871,
pela cidade e engenhos, batizando inúmeros inocentes com o intuito de atrasar as datas de
nascimento, favorecendo o senhorio. 103 Isso vem ao encontro do posicionamento de Walter
Fraga Filho ao salientar que “a lei do Ventre Livre não foi bem recebida pelos senhores de
engenho baianos.”104
103
Em 28 de setembro de 1871 foi aprovada a Lei 2040 que declarava livre os filhos de mulher escrava que
nascessem após a promulgação da referida lei.
104
FRAGA FILHO, Walter. Encruzilhadas da Liberdade. Campinas: Editora Unicamp, 2006. p. 49.
47
Pardo 53 6,51%
Sem 78 9,58%
informação
Fonte: Inventário dos engenhos Nazareth, São Miguel, Nossa Senhora do Desterro, Botelho, Pitinga, Velho,
Terra Nova, Periperi, Thebaida e Conde.
105
PARÉS, Luis Nicolau. O processo de crioulização no Recôncavo baiano (1750-1800). Afro-Ásia, Salvador,
v. 33, p. 70-101, 2005. Como pontuou Parés, a crioulização foi implantada no Recôncavo Baiano desde o século
XVIII.
106
As discussões sobre a segunda escravidão pode ser verificada nos seguintes trabalhos: MARQUESE, Rafael
de Bivar; TOMICH, Dale W. (2009). O Vale do Paraíba escravista e a formação do mercado mundial do café no
século XIX. In: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo (orgs.). O Brasil imperial. Rio de Janeiro: Civilização
brasileira, v. II, p. 339-384, 2010. MARQUESE, Rafael de Bivar; SALLES, Ricardo (orgs.). Escravidão e
capitalismo histórico no século XIX: Cuba, Brasil, Estados Unidos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2016.
48
a 57,14% do total de escravos. A propriedade que pertencia ao Barão de Bom Jardim possuía
25 senzalas de palha, 01 senzala coberta de telhas e uma horta em mau estado que tinha
plantas frutíferas. Na propriedade havia 16 africanos e 12 crioulos, sendo 15 homens e 13
mulheres. Os mais velhos eram os africanos Januário, Anselmo e Lizandro, que tinham 70
anos de idade, e africana mais nova era Sulpícia com 40 anos de idade.
No censo de 1872, conseguimos verificar o quantitativo de africanos que estavam
em Santo Amaro. Com exceção da Vila de Nossa Senhora da Purificação, conseguimos
identificar africanos nas outras cinco paróquias da cidade. A que tinha o maior número de
africanos era Nossa Senhora do Rosário e a que tinha o menor quantitativo era Oliveira dos
Campinhos.
Capítulo II
Apenas podemos imaginar como foi difícil para Maria Petronília se distanciar da
sua única filha, que ainda era bebê. Que os laços criados através da amamentação, ao fitar os
olhos da sua pequena ou o toque das mãos, seriam desfeitos porque Amélia era uma senhora
impiedosa e considerava que Maria Petronília deveria priorizar seus desejos. E essa, por
várias vezes disse não aos caprichos da senhora, mesmo sabendo que logo em seguida seria
punida. Imaginamos quantas mulheres tinham o destino igual ou pior ao de Maria, até porque,
107
Ação Cível, Ação de Liberdade de Maximiana, 1875, Acervo Judiciário, est. 69, cx. 2484, doc. 09, APEB.
108
Idem.
109
Idem.
51
sua filha tinha a vantagem de uma promessa de liberdade. Por quanto tempo a mãe de
Maximiana teve que tratar Ernesto bem, mantendo um comportamento exemplar perante ele,
para que a carta de alforria fosse escrita? A ameaça senhorial era constante na vida dos
escravos, e por isso, Maria Petronília decidiu que seria melhor se afastar da criança para que
não acontecesse algo pior.
Mais uma vez, os caminhos de Maximiana retornavam para o Engenho Subaé,
local onde morava sua avó Maria do Carmo. Durante 05 anos a menina ficou aos cuidados da
avó, e só saiu da companhia da mesma porque Ernesto decidiu que a mesma deveria retornar
para sua casa na rua do Amparo, em Santo Amaro. Quando a menina retornou, sua mãe já
havia sido vendida para outra família por um conto de réis, e passado algum tempo, Maria
Petronília conseguiu formar economia e comprar sua liberdade. Agora, restava conseguir que
Ernesto passasse a carta de alforria da criança, porque
estando Maria Petronília na melhor boa fé para com Ernesto e reconhecendo
a maneira zelosa com que tratava sua filha, concordou sempre que ela ali
ficasse, certo como dizia que Maximiana tinha carta de liberdade, que se por
sua morte não achasse, que ela bem sabia que a menina era liberta, carta que
é presumível haver passado, e que foi consumida depois de sua morte. 110
Ernesto como escrava, em 20 de agosto de 1872, cumprindo o registro obrigatório que era
exigido pela lei de setembro de 1871. Desde o início, o homem não tinha interesse algum de
cumprir a vontade da irmã Raimunda e por isso que nunca quis entregar a carta. Durante o
interrogatório, Maximiana respondeu que era tratada como escrava por Matilde, mas que o
seu falecido senhor afirmava que, após a morte dele, ela não serviria mais ninguém.
Maximiana pontuou que Matilde a maltratava enquanto Ernesto era vivo, sem que
o mesmo soubesse, e que “depois de sua morte, nunca mais a maltratara, nem dela tem
recebido castigos, sentindo-se apenas de ouvi-la proferir palavras desagradáveis contra sua
mãe, pelo fato de estar procurando sua liberdade.”113 Matilde calculava seus atos, até porque,
se machucasse Maximiana durante a fase de processo judicial, poderia não ser bem visto pelo
Juiz. Mas, ao proferir determinadas palavras contra Maria Petronília, mostrava o quanto
estava insatisfeita por ser confrontada.
Maria Petronília apresentou ao juízo uma carta solicitando o reconhecimento da
liberdade da filha, constando nove assinaturas de pessoas que conviveram com Raimunda,
inclusive quatro pessoas eram da família senhorial. Para definir sua sentença, mesmo
considerando o testemunho do testamenteiro, que informou sobre a vontade de Ernesto em
alforriar Maximiana, o Juiz disse que “a simples intenção de alforriar um escravo manifestada
por palavras não é suficiente para conferir liberdade, se ela não é traduzida a um escrito pelo
respectivo senhor antes de morrer.” Maximiana foi considerada escrava de Matilde porque o
juiz ignorou o direito costumeiro, onde a promessa feita perante testemunha equivalia a um
documento. O Juiz considerava as testemunhas no processo, mas informava que as coisas
ditas por Raimunda eram consideradas insignificantes, porque havia ausência de forma
escrita.
As tentativas de reescravização estiveram presentes no cotidiano de escravos e
senhores, durante o século XIX, e tinham o objetivo de tornar escravo aquele que já possuía a
condição jurídica de liberto. Ao estudar 402 ações de liberdade que foram julgadas na Corte
de Apelação do Rio de Janeiro, Keila Grinberg verificou que 27% eram relacionadas às ações
de manutenção de liberdade e de escravidão. As ações de escravidão eram pleiteadas pela
classe senhorial, a qual julgava que a liberdade que o escravo estava usufruindo era indevida e
baseava-se, principalmente, no direito de propriedade que era garantido pelo Artigo 179 da
Constituição Imperial. A manutenção da liberdade ocorria quando o liberto acionava a justiça
com o objetivo de permanecer usufruindo a liberdade que se encontrava ameaçada e o
113
Ação Cível, Ação de Liberdade de Maximiana, 1875, Acervo Judiciário, est. 69, cx. 2484, doc. 09, APEB.
53
principal embasamento dos libertos era aquele apresentado no titulo 11, Parágrafo 4, do
Quarto Livro Ordenações Filipinas – “são maiores as razões a favor da liberdade”.114 A autora
conseguiu identificar 110 ações de reescravizações que foram levadas à Relação durante o
século XIX e mesmo considerando que esse quantitativo fosse reduzido, Grinberg considera
que a prática de reescravizar pessoas libertas foi efetiva no Brasil oitocentista. 115
Em Santo Amaro, verificamos as ações de reescravização seguindo a trajetória de
cinco grupos: Maximiana, Luíza e descendentes, Faustina, filhos e neta; Íria e Pafôncio;
Christina e mais dez companheiras de cativeiro. Todos os sujeitos históricos apresentados
nessa pesquisa obtiveram alforrias que exigiam uma condição para que o escravo pudesse
“gozar de sua liberdade como se de ventre livre tivesse nascido.” Perdigão Malheiro, em sua
obra A Escravidão no Brasil, falava que “para dar alforria, é necessário, igualmente, que, em
regra, o manumissor tenha capacidade e livre disposição.” O direito costumeiro assegurava
que apenas o senhor maior de 17 anos poderia conceder a liberdade ao escravo e era
indispensável que o senhor gozasse de suas faculdades mentais no momento da concessão da
alforria.116
Por muitas vezes a alforria constituía um direito precário e difícil de ser
comprovado, principalmente antes da Lei 2.040, de 1871.117 Exemplo disso é que, no dia 17
de março de 1846, provavelmente no primeiro horário da manhã, Benedita, de nação nagô,
dirigiu-se ao cartório para abrir um processo de ação de liberdade. Decerto que a africana
estava ansiosa, pois seu patrono José Joaquim Machado Leitão, que “estando em seu juízo
perfeito”, havia lhe prometido a alforria nos últimos momentos de vida, lá pelas 10 horas da
noite do dia 16 de março. Não havia testamento que comprovasse a promessa dita, mas
tinham testemunhas no local e a africana tinha pressa em possuir sua “carta de liberdade para
ficar manutenida e não ser perturbada no gozo de sua liberdade.” Não conseguimos saber o
desfecho da trajetória de Benedita, mas ela devia temer as brigas pela herança da família e por
114
Ordenações Filipinas, Livro IV. Universidade de Coimbra.
115
GRINBERG, Keila. Reescravização, Direitos e Justiças no Brasil do Século XIX. In: LARA, Sílvia Hunold e
MENDONÇA, Joseli Maria Nunes (orgs.). Direitos e Justiças no Brasil: ensaios de história social. Campinas:
Ed. Unicamp, 2006, p. 101-128.
116
As ações de reescravização que utilizamos nessa pesquisa foram julgadas até o ano de 1872, enquanto
predominava o direito costumeiro. MALHEIRO, Agostinho Marques Perdigão. A escravidão no Brasil: ensaio
histórico-jurídico-social. Rio de Janeiro: Typografia Nacional, 1866-1867. 1v, p 113.
117
Até a promulgação da lei do ventre livre, as relações entre escravos e senhores era pautada pelo direito
costumeiro, principalmente quando se referiam a alforrias gratuitas ou sob condição. Sobre essa discussão de
precariedade das alforrias é necessário verificar o estudo de ALMEIDA, Kátia Lorena Novais. Da prática
costumeira à alforria legal. Politeia, Vitória da Conquista, v. 7, n.1, p. 163-186. 2007.
54
isso foi bastante ágil em perseguir sua liberdade.118 Essa pressa era necessária, pois havia
também a possibilidade de as testemunhas esquecerem ou alegarem desconhecimento da
liberdade prometida.
As alforrias poderiam ser gratuitas ou onerosas e devia representar o encerramento
do ciclo escravista, pois o escravo seria dono de seu próprio corpo, no entanto o caráter
precário das alforrias dificultava essa premissa, principalmente no que tange as alforrias
gratuitas e condicionais. Kátia Lorena Almeida, faz uma descrição do processo de registro do
título de liberdade ao dizer que “para ser reconhecida, a alforria devia ser oficializada: o
senhor, ou seu procurador, se dirigia ao cartório e ditava os termos da carta ao escrivão, ou
entregava uma cópia para que ele registrasse no seu livro de notas do tabelião.” 119 Caso
ocorresse algum imprevisto, a cópia da carta poderia ser solicitada no tabelião.
A importância de ter um título registrado era essencial para permitir a mobilidade
de libertos, pois a região do Recôncavo era repleta de escravos fugidos que se faziam passar
por alforriados. Possuir a pele preta, no século XIX, era indício de estar relacionado ao
sistema escravista, como afirmou Sidney Chalhoub.120 Por isso que Dionízio crioulo sempre
andava com uma declaração que comprovasse sua liberdade. O documento que lhe garantia
andar na Província dizia que
Diz o preto Dionízio criolo, que ele se acha com o seu título legítimo de
manutenção coberto com despachos das autoridades desta cidade, civis e
policiais, para não ser inquietado, nem perturbado da sua liberdade, antes de
ser ouvido e convencido em juízo ordinário. E como tenha de tratar de seu
direito e negócios por todas as Vilas e partes dessa Província felizmente
presidida por V. Excelência, se faz necessário que por seu respeitável
despacho [...] em qualquer lugar onde se apresentar seja religiosamente
cumprido por todas autoridades a quem se apresentar. 121
O trabalho exercido por Dionízio exigia que o mesmo viajasse pela província da
Bahia e era necessário garantir que seus caminhos não tivessem empecilhos. Ainda que esse
percurso de Dionízio seja anterior ao período que estudamos, pois ocorreu em 1833,
acreditamos que seja relevante para entender o registro de uma carta de alforria. Ainda que
Dionízio fosse precavido em andar com documentos que comprovassem sua liberdade, essa
medida não foi suficiente, pois o mesmo foi preso em Salvador. Para que conseguisse sair da
118
Ação Cível, Solicitação de declaração de liberdade de Benedita, maço 7, cx. 8, doc. 2586-2587. Acervo
Coleção Santo Amaro, LM UFBA.
119
ALMEIDA, Kátia Lorena Novais. Alforrias em Rio de Contas – Bahia século XIX. Salvador: Edufba, 2012,
p. 60.
120
CHALHOUB, Sidney. Precariedade estrutural: o problema da liberdade no Brasil escravista (século XIX).
História Social, n. 19, p. 33 - 62. 2010. p. 52.
121
Ação Cível, Manutenção de liberdade de Dionízio, maço 8, cx. 4, doc. 2782-2783. Acervo Coleção Santo
Amaro, LM UFBA.
55
cadeia, foi necessário solicitar a cópia da carta de liberdade que estava registrada em Santo
Amaro. Era comum que escravos fugidos forjassem uma nova identidade para fugir da
escravidão se passando como libertos. Talvez esse tenha sido o motivo para que os policiais
tenham desconfiado do título que Dionízio levava consigo.
Na estrutura escravista, o procedimento padrão para que uma carta de alforria
fosse considerada legítima era através do registro no tabelião, mas nem sempre ocorreu dessa
forma. Alguns títulos de liberdade foram prometidos no leito de morte e teriam que ser
comprovados por testemunhas, como o caso da africana Benedita. Já outros, foram dados sem
anuência do marido ou esposa, dentre tantas circunstâncias diversas de alforria que foram
resolvidas em âmbito judicial.
As alforrias onerosas eram aquelas que garantiam a liberdade após o pagamento
de um pecúlio ao senhor. Tomando como base os valores que foram dados ao escravo nessa
pesquisa, vemos que, na maior parte das vezes, o preço é semelhante àqueles exigidos em
outras localidades, mas acontecia de variar em mais de 100%.122 Na perspectiva dos escravos
rurais, as economias decorriam principalmente dos produtos que eram colhidos nas roças dos
mesmos e vendidos em feiras locais.
Houve casos também em que a alforria, além de ser paga, deveria constar uma
obrigação, como aquela que foi proposta por Francisco Ayres, em seu testamento, em 1881. O
velho Ayres dizia que o africano Manoel estava coartado123 por 100 mil réis, mas que só
deveria ter a liberdade se aprendesse a doutrina cristã.124 Se considerarmos o ano do
testamento, 1881, que o tráfico de africanos cessou em 1850 e que Manoel tenha sido trazido
para o Brasil enquanto fosse uma criança, podemos considerar que ele tinha no mínimo 32
anos de idade. E mesmo após esse lapso de tempo, ele continuava recusando o dogma cristão
para alimentar sua vida espiritual e, muito provavelmente, estava cultuando os deuses
africanos, deixando sua crença transparecer.
As alforrias gratuitas não exigiam pecúlio, mas poderiam constar alguma
obrigação a ser cumprida pelo escravo antes de ter sua liberdade plena. As condições exigidas
eram variadas. Francisco Luís, em 1853, dizia no testamento que Joaquim deveria trabalhar
para o major Manoel "debaixo de toda seguição como escravo até que a custa de seu trabalho
122
Faremos essa análise no capítulo 3.
123
Sobre as coartações, ver ALMEIDA, Kátia Lorena Novais. Alforrias em Rio de Contas – Bahia século XIX.
Salvador: Edufba, 2012, p. 72.
124
Testamento de Francisco Ayres de Almeida Freitas, maço 6, cx. 13, doc. 2278, Acervo Coleção Santo Amaro,
LM UFBA.
56
apresente certidão de dez capelas de missas por minha alma” e após isso terá liberdade.125
Após a morte do senhor, Joaquim ficaria sendo escravo de outra pessoa até completar o
pagamento de dez capelas. João Reis, quando estudou o comportamento da sociedade baiana
perante a morte no século XIX, observou que as missas em memória aos mortos abreviavam o
tempo passado no purgatório e que “eram um aspecto importante da economia material e
simbólica da Igreja, que recomendava enfaticamente a suas ovelhas que provassem sua
devoção deixando em testamento quantas missas pudessem pagar.” 126 E dessa forma,
Francisco Luís repassou o pagamento da sua entrada no céu para o escravo Joaquim.
Como estamos vendo uma pequena parcela de cartas de alforria que tiveram
origem em Santo Amaro, não podemos tecer um padrão para a garantia de liberdade nesta
cidade. As cartas de alforria que encontramos nessa pesquisa eram gratuitas condicionais e a
maioria delas exigia que os escravos deveriam acompanhar os senhores até a morte.
Consideramos que essas alforrias tenham sido resultado de uma intensa relação cotidiana e da
verificação de conflitos senhoriais.127
Os escravos estavam atentos às circunstâncias que aconteciam na casa grande e
provavelmente tenham articulado situações que lhes garantiriam a saída do cativeiro, ainda
que condicional. Os exemplos que encontraremos no decorrer dos capítulos demonstram isso:
Anna Bolena devia trabalhar dentro da casa de Quitéria, a mãe de Faustina deve ter negociado
a liberdade da menina com o Alferes João Ribeiro antes de irem morar no Engenho Fortuna;
Íria, Pafôncio e a família Rocha estavam atentos ao desenlace matrimonial de Maria Josefa de
Alvellos e Moreira de Pinho, e talvez tenham incentivado que a mulher se separasse, ao
mesmo tempo em que mostravam os benefícios de só prestarem serviços a ela enquanto fosse
viva; Christina e as outras 10 mulheres perceberam que o conflito entre famílias senhoriais
poderia lhes trazer o benefício de terem mais autonomia sobre suas vidas ao servirem apenas
uma pessoa enquanto fosse viva.
125
Testamento de Francisco Luís Rosa, maço 8, cx. 7, doc. 2846, Acervo Coleção Santo Amaro, LM UFBA.
126
REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX, São Paulo,
Cia. das Letras, 1991, p. 254.
127
Para essa pesquisa, não pudemos verificar a proporção de alforrias condicionais em Santo Amaro. Santo
Amaro entra na regra sobre as alforrias condicionais e gratuitas terem sido concedidas pelos pequenos
escravistas, já que nos inventários das grandes propriedades que verificamos a concessão de alforrias eram raras.
Acredito que trabalhos futuros possam elucidar essa questão.
57
Devia ser perto do ano de 1810, quando Dona Quitéria, sentindo que estava
próxima a sua morte, prometeu para a escrava Anna, mais conhecida como Anna Bolena, que
ia conceder liberdade para sua filha Luíza, cabra. Para cumprir a condição de liberdade, a
menina seria deixada aos cuidados de Estevão de Souza, padrinho de Luíza, para que a
criasse, oferecesse educação para conseguir casamento quando tivesse a idade apropriada e
comprasse uma casa de telhas com 50$000 que foi deixado de herança. Quando Luíza tinha
13 anos de idade, foi levada por Quitéria para o Convento de Santa Clara do Desterro, na
cidade da Bahia, onde foi recolhida sob a proteção de uma das freiras, ficando lá durante mais
de três anos.
Sendo então menor de dezessete anos, estando Luíza no referido convento,
se apresentou Antonio Joaquim de Andrade acompanhado de José Luiz da
Conceição e Joaquim Pena com uma carta em nome da avó dos suplicantes
[Anna Bolena] pedindo à freira, a quem estava entregue Luíza, para deixar
saber que ela estava a falecer por meio desta carta e pelo motivo exposto foi
conduzida a mãe dos suplicantes para o Engenho Bom Jardim, onde
chegando foi recebida com admiração pela avó dos suplicantes, porque não
havia escrito a dita carta. Declarando então a senhora do dito Engenho, dona
Teodora de Melo Coutinho, que ela havia mandado buscar por ser sua
escrava.128
Uma trama foi realizada para que Luíza voltasse a Santo Amaro na condição de
cativa. Mentiram ao dizer que Anna Bolena estava morrendo, para convencer a menina de
que deveria retornar para se despedir da mãe. Como Quitéria já estava morta nesse período, o
padrinho da menina começou a “abusar da confiança” que lhe foi depositada, pois
além de esquecer-se da qualidade de ser padrinho e dos deveres que a
religião impõe para a inocente criatura, passou a vendê-la, não só a uma,
como a uma outra pessoa para locupletar-se de tão mesquinho e vil dinheiro,
sendo a primeira compradora Teodora de Melo Coutinho, proprietária de
engenho, rica e poderosa, e a Antonio Joaquim de Andrade, que não se julga
menos [...] também.129
128
Ação Cível, Ação de liberdade de Manoel de Santa Rita e família, Acervo Judiciário, est. 68, cx. 2447, doc.
15, APEB.
129
Idem
58
a D. Teodora, ninguém teve coragem de testemunhar e por isso, Luzia sujeitou-se ao cativeiro
e prestou serviços àquela mulher. Mas sempre fazia questão de ressaltar que era livre, e nessa
condição já conhecida, Teodora afirmou que nenhuma dúvida tinha em libertá-la, uma vez
que ela pagasse o valor pelo qual havia sido comprada.
Por meio do seu trabalho e esmola, juntou a quantia necessária para sua
liberdade, e uma vez conseguindo a quantia necessária, apresentou-a para a a
dita senhora, a qual lhe conferiu carta de liberdade. Entregando-a à mãe dos
suplicantes [Luíza]. Esta depositou nas próprias mãos da dita sua senhora
para mandá-la lançar em notas. Desde então ficou gozando Luíza da sua
liberdade e em gozo desta mudou-se pouco tempo depois para o Termo da
então Vila de Maragogipe, em 1817, mais ou menos.
Luíza confiou em Teodora ao sair da Vila de Bom Jardim sem confirmar que a
carta havia sido registrada. E essa atitude, como veremos adiante, custou a vida em liberdade
que ela tanto sonhou. Antes de continuarmos, achamos que é necessário falar sobre a mulher
que vendeu a liberdade de Luíza, Maria Teodora de Melo Coutinho, que inspirava medo e
respeito mesmo após sua morte.
Segundo José Barbosa da Silva, escrivão do Juiz de Paz da Freguesia do Bom
Jardim e testemunha que defendeu os filhos de Luíza, Maria Coutinho era “proprietária
abastada e que quanto aos seus atos exteriores, mostrava ser religiosa.” Já outra testemunha,
afirmava que o Capitão Paulino José Lopes, proprietário do Engenho Outeiro, sabia da
verdade sobre a liberdade de Luíza, mas que “de forma alguma se prestava a jurar nesta causa,
porque não queria comprometer a alma da sua madrinha dona Teodora”.130 Aparentemente,
toda Freguesia do Bom Jardim sabia sobre a trajetória de Luíza, e por medo, alguns hesitaram
em testemunhar. Uma coisa era aceitar que uma católica escravizasse pessoas, até porque o
direito à propriedade era garantido pela Constituição Imperial, outra coisa era tornar escrava
uma pessoa que teve sua liberdade legal por duas vezes. Quando o advogado dos
descendentes de Luíza clamou que a justiça exercesse seu papel se atendo aos fatos e não à
interferência dos poderosos, pontuou que
Hoje, porém trata-se da causa da Justiça, da causa da liberdade, que por
tantos anos tem sido suplantadas; não admirando haver sido em tempos
ferrenhos do despotismo em que D. Teodora de Melo Coutinho, proprietária
de Engenho, era tida por uma acastelada da Idade Média, contra quem
ninguém ousava dizer a verdade, quanto mais infelizes pobres e alcunhados
escravos. 131
130
Ação Cível, Ação de liberdade de Manoel de Santa Rita e família, Acervo Judiciário, est. 68, cx. 2447, doc.
15, APEB.
131
Idem.
59
132
Ação Cível, Ação de liberdade de Manoel de Santa Rita e família, Acervo Judiciário, est. 68, cx. 2447, doc.
15, APEB.
60
133
Ação Cível, Ação de liberdade de Manoel de Santa Rita e família, Acervo Judiciário, est. 68, cx. 2447, doc.
15, APEB.
134
Faremos as discussões sobre cartas falsificadas no Capítulo 3.
61
outra Província. A punição se colocava como modelo para que outros cessassem a luta
cotidiana pela liberdade. Segundo os pensamentos de Reis, quando o senhor vendia um cativo
“desobediente”, estava punindo este e intimidando os demais escravos. 135 Acredito que ser
mandado para um local distante da família retirava a condição de ser reconhecido como gente
durante um período, já que todos que respeitavam e protegiam o indivíduo não estavam por
perto. Era a falta da benção antes de dormir.
Nessa ação, para comprovar a liberdade que havia sido concedida há mais de 50
anos para Luísa, foram chamados como testemunhas alguns senhores que eram considerados
“insuspeitos e qualificados”, entre eles Calisto José de Jesus, Manoel José da Conceição, o
Cônego Apolinário Gouvea e o Tenente Coronel Antonio Félix de Carvalho. 136 Afinal, era
importante que a própria classe senhorial fosse aliada na luta pela liberdade. Não apenas em
Santo Amaro, mas a historiografia da escravidão tem mostrado que a classe senhorial foi
acionada pelos escravos ou reescravizados para garantirem suas liberdades. E diante de uma
justiça comandada por senhores, era preciso que os mesmos também ajudassem a
desconstituir a narrativa utilizada pela própria classe. E aqui, não estamos falando de senhores
abolicionistas, e sim de relações que foram construídas cotidianamente, e que, no caso de
Luíza, era necessário que pessoas que conviveram com a senhora Quitéria afirmassem a
intenção de liberdade que foi dita em um dado momento. Entendemos que os escravos ou
reescravizados, apesar de pertencerem a outra classe, consideraram necessário, em alguns
momentos, a aliança com alguns membros da classe senhorial, com o intuito de desarticular o
plano de senhores que lhes tiravam a liberdade. 137
Quando Teodora morreu, o outro comprador de Luíza resolveu aparecer, pois
Antonio de Andrade não estava disposto a perder a posse de 13 pessoas. E dessa maneira,
entrou com um processo para reaver os descendentes de Luíza que foram doados aos parentes
de Teodora. O Supremo Tribunal de Justiça, em 1855, decidiu que Procópio Marques de
Araújo Góes e Alexandre Calmon de Siqueir, herdeiros de Maria Teodora Coutinho,
deveriam entregar a Antonio Joaquim de Andrade, devido uma ação de manutenção da
135
REIS, Isabel Cristina Ferreira dos. A Família Negra no Tempo da Escravidão: Bahia, 1850-1888. Tese
(Doutorado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, UNICAMP, 2007, p.41.
136
Acreditamos que esse Antonio Félix de Carvalho seja da mesma família de José Félix de Carvalho e que
reduziu Faustina à escravidão como veremos adiante.
137
DAMASCENO, Karine Teixeira. Para serem donas de si: mulheres negras lutando em família (Feira de
Santana, Bahia, 1871-1888). Tese (Doutorado em História) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas,
UFBA, 2019, p. 30-44. Faremos uma análise sobre as alianças com os membros da classe senhorial no capítulo
3.
62
escravidão, os escravos Manoel de Santa Rita, Eugênio, Maria Páscoa, Maria Egipcíaca e
respectivos filhos, todos descendentes da escrava Luísa, cabra.
Provavelmente, como viram que o sonho da liberdade garantida pela lei estava
distante de ser concretizado, Manoel de Santa Rita juntamente com os irmãos e sobrinhos,
aproveitando que Alexandre e Procópio estavam envolvidos em questões judiciais com
Antonio de Andrade, decidiram escolher um novo lugar para iniciarem suas famílias enquanto
pessoas livres. E dessa forma foram para Nazaré, região onde morava a família paterna.
Decerto que a família havia falado para os vizinhos em Nazaré que eram libertos,
afinal tinham certeza de que fossem mesmo, pois em 17 de abril de 1856, os descendentes de
Luísa impetraram uma ação para terem reconhecida sua liberdade. No entanto o pedido foi
indeferido, já que Alexandre e Procópio conseguiram provar que as cartas eram falsificadas.
Como havia passado seis anos do resultado da sentença e os escravos não foram
entregues por se acharem fugidos, Antonio Joaquim solicitou carta precatória e busca geral
dos mesmos. O destino de Manoel, irmãos e sobrinhos já era conhecido, pois o Juiz expediu
carta precatória para serem feitas as buscas na cidade de Nazaré, no Engenho Tijuca, que era
onde trabalhavam Bento, Jacintha e Francisco, e no engenho do Major Viriato Freire, onde
estava Manoel.
Era o ano de 1861 quando os descendentes da escrava Luísa estavam
experimentando e vivendo suas liberdades quando foram surpreendidos pela polícia.
Martinho, Bento, Francisco e Jacinta, e os filhos desta, não tiveram muita sorte, pois foram
capturados e levados para Santo Amaro com o objetivo de serem entregues a Antonio de
Andrade. Manoel de Santa Rita conseguiu fugir para a cidade da Bahia e resolveu entregar-se
para a polícia assim que chegou. Nesta circunstância, alegou que era um homem livre, assim
como seus irmãos e sobrinhos, pois tinha carta de liberdade conferida por Quitéria. Eugênio,
Maria Páscoa e Maria Egipcíaca não tiveram paradeiro encontrado.
Logo após se entregar à polícia, na Cidade da Bahia, Manoel de Santa Rita foi
transferido para as cadeias de Santo Amaro e na ocasião de ser levado para o Engenho Caçada
– Freguesia do Bom Jardim –, sob a escolta dos escravos de Antonio Joaquim e de seu filho
Francisco Euthiquio de Andrade, travou uma luta corporal para que não fosse amarrado com
cordas e com as mãos atrás das costas. Durante a luta, bradava: “Sou livre! Não me deixo
amarrar!”138 Acabou sendo levado contra a sua vontade para o referido engenho e durante o
percurso de 6 léguas gritava em altas vozes: “Sou livre! Não cativo!”; “Aqui Del Rei!
138
Ação Cível, Ação de liberdade de Manoel de Santa Rita e família (parte do processo), maço 2, cx. 11, doc.
1532-1558, Acervo Coleção Santo Amaro, LM UFBA.
63
Socorro! Sou forro! Levam-me para matar!”139 É possível que Manoel de Santa Rita tenha se
entregado porque acreditava que sua liberdade poderia ser adquirida pelas vias legais
novamente. Os gritos que ecoaram de Manoel representavam o desejo de liberdade e de não
ser reescravizado. Ele sabia o peso que a escravidão tinha no seu cotidiano e estava disposto a
lutar para não retornar àquela situação. Aquelas pessoas estavam dispostas a resistir ao
cativeiro, e principalmente, por saberem que já eram libertos.
Baseando-se nisso, o advogado Francisco Amaro Domingues denunciou o
tratamento que Manoel de Santa Rita recebeu quando foi levado ao Engenho Caçada. Pontuou
a inércia dos homens da lei que presenciaram o tratamento desumano de forma espavorida,
quieta e muda. Ressaltou que Manoel devia estar sendo maltratado e solicitou mandado de
remoção para que o mesmo fosse depositado aos cuidados do Barão de Bom Jardim que
reconhecia sua condição de livre. A remoção foi concedida pelo juiz e no dia 09 de dezembro
de 1861 Manoel foi removido do Caçada.
Como a primeira ação de liberdade não foi provada a liberdade de Luíza, Manoel
de Santa Rita entrou com uma nova ação. E nesse momento, ele narra o motivo de ter se
entregado à polícia na cidade de Salvador, após a fuga em Nazaré. O mesmo informou que
resolveu se entregar, pois estava ciente dos planos de Antonio de Andrade e “para não ser
preso de súbito e vendido para fora da província, como fora seu irmão, procurou a proteção
da lei, apresentando-se ao Doutor Chefe de Polícia para que garantisse em seu direito”. Os
passos de Manoel foram calculados, até porque o seu irmão tinha sido exemplo da ira
senhorial. O medo de ser mandado para outra província e ser separado da família devia ser o
principal motivador daquele homem reescravizado, ao passo que conseguiu desarticular os
planos de Antonio Andrade, que andava cheio de si e confiante de que ganharia o processo
porque era rico.140
Em 27 de junho de 1862, logo após as festas de São João, o Juiz Francisco Maria
Sodré Pereira fez o julgamento da ação de liberdade. Foi declarado que Luíza havia sido
escrava de Quitéria há um tempo distante e que desde criança havia sido alforriada, ao mesmo
tempo em que Antonio de Andrade não apresentou documentos que comprovassem a posse e
domínio da família. Manoel de Santa Rita e os irmãos podiam se considerar livres da
escravidão. Luíza não estava mais viva quando a sentença foi dada, mas se existe alma, ela
descansou em paz ao saber que seus filhos e netos estavam livres do cativeiro.
139
Ação Cível, Ação de liberdade de Manoel de Santa Rita e família, Acervo Judiciário, est. 68, cx. 2447, doc.
15, APEB.
140
Idem.
64
141
Agradeço à Professora Kátia Lorena Novais Almeida pela observação de que era comum os libertos
procurarem o cartório para registrar cartas de alforria quando se mudavam da vila ou cidade onde a conquistara,
dada a "precariedade" de sua condição. E que possivelmente as cartas dos descendentes de Luíza pudessem ter
sido registradas em Nazaré.
142
O Engenho Fortuna e a Fazenda Deserto localizavam-se na localidade de Coração de Maria e por
consequência, ficavam atrelados à Paróquia de Oliveira dos Campinhos.
65
escrita desde novo e tinha as mãos trêmulas, João Ribeiro pediu que seu amigo Joaquim José
da Silva escrevesse a carta para que só pudesse assiná-la. Antonio Francisco do Espírito Santo
e o próprio Joaquim foram testemunhas da carta de liberdade.
Para manter oculto o conteúdo do documento, procurou uma pessoa da sua
confiança para guardá-lo. Inicialmente, recorreu a seu cunhado João Ferreira da Costa para
que guardasse a referida carta e mantivesse segredo sobre a existência desta. No entanto, este
escusou-se de cumprir esse favor, pois alegara ser velho. Não satisfeito com a recusa, João
Ribeiro dirigiu-se a Martiniano Ferreira da Costa, neto do primeiro recusador, e ouviu a
segunda recusa. Martiniano, além de ter ouvido a resposta de seu avô, agarrou-se à ideia de
“não querer achar-se envolvido em desavenças do mesmo Ribeiro e seu genro, o Coronel José
Félix.”143 Ouvidas essas dispensas, soube-se depois que a carta foi deixada nas mãos de
Procópio, caixeiro do Engenho Fortuna, e que só deveria ser entregue quando João Ribeiro
morresse.
O referido documento dizia que Faustina ficava livre, mas com a condição de
acompanhar João Ribeiro durante toda sua vida. Aqui, temos mais uma especificidade da
liberdade condicional, já que a menina foi autorizada a morar com a mãe em outra
propriedade, não cumprindo a exigência de morar com o senhor. Diante dessas circunstâncias,
é possível imaginar que Faustina fosse filha de João Ribeiro e que a alforria foi passada como
forma de proteção. Maria Inês de Oliveira, ao analisar as alforrias em Salvador, no século
XIX, nos informa que os escravos domésticos ou aqueles que tivessem relações mais pessoais
com seus senhores tinham mais chances de conseguir a alforria gratuita.144
Estando Faustina no Engenho Fortuna, em 1843, teve o infortúnio de ser avaliada
e inventariada entre os bens do casal 145. O inventariante do Engenho Fortuna não podia
registrar a menina como pertencente à propriedade, pois ninguém dali era seu proprietário.
Durante a arguição da defesa, o advogado de Faustina mencionou o erro cometido pelo
inventariante ao questionar que “se o Alferes João Ribeiro nunca doou sua escrava Faustina,
como é que podia ela ser inventariada em um casal ao qual nunca pertenceu? Se foi
inventariada no casal do Coronel José Félix, e partilhada, o foi mal e indevidamente. 146” O
advogado estava trazendo para o processo a discussão sobre o direito de propriedade que era
143
Ação Cível, Ação de liberdade de Faustina e família, maço 6, cx. 7, doc. 2153, Acervo Coleção Santo
Amaro, LM UFBA.
144
OLIVEIRA, Maria Inês Côrtes de. O liberto: seu mundo e os outros. São Paulo: Corrupio, 1988, p. 24-25.
Outra hipótese possível é de que Faustina fosse filha de João Ribeiro.
145
Com a morte de José Félix, foi realizado o inventário dos bens.
146
Ação Cível, Ação de liberdade de Faustina e família, maço 6, cx. 7, doc. 2153, Acervo Coleção Santo
Amaro, LM UFBA.
66
garantido em “toda sua plenitude” pela Constituição Imperial, só que, nesse caso, Faustina
pertencia ao Alferes.
Em abril de 1850, nasceu Olympia, a primeira filha de Faustina e onze anos após
morreu João Ribeiro. Estava encerrada a condição que mantinha Faustina como cativa.
Poderia, a partir daí, ser senhora e possuidora da sua liberdade, assim como seus
descendentes, uma vez que todos nasceram após 1842, ano que foi passada a carta de
liberdade.
No entanto, como a carta era desconhecida, a situação de cativa permaneceu. A
partir de 1861, ano da morte de João Ribeiro, Faustina começou a ter indícios da existência da
sua carta de liberdade, pois Martiniano, aquele que se recusou a guardar o referido
documento, disse que muitas vezes informou Faustina sobre a carta e que seu tio há muito
tempo a havia passado.
Martiniano foi testemunha do processo movido por Faustina e o seu depoimento
nos permite conhecer um pouco do cotidiano dessa mulher. Ele nos informa que a via
“sempre e morando em uma vendola, junto ao Engenho Fortuna e que Faustina se conservara
em companhia do Coronel José Félix por acompanhar a mãe Maria Rosa e se aquela ali estava
era também por estar aprendendo a coser.”147 A escrava havia conquistado um espaço de
autonomia nas circunstâncias de moradia e profissão, mas podemos ver também a
permanência dos laços de afetividade com sua mãe.
Vendola significa pequena venda ou vendinha pobre. Não encontramos na
documentação nenhuma informação sobre Faustina manter um pequeno comércio, embora ela
tenha conseguido juntar uma quantia razoável de dinheiro. Nesse sentido, vamos considerar a
vendola apenas como uma casinha pobre e que garantia que Faustina e seus filhos ficassem
mais afastados do controle senhorial e tivessem um pouco mais de privacidade, já que não
moravam em uma senzala. Segundo Robert Slenes, as moradias individuais permitiam aos
escravos casados e seus filhos a prática de dormir em família e que isso poderia possibilitar a
“recriação de rituais de convivência familiar na hora de deitar e levantar – num espaço
fechado contra o mundo.”148 Não encontramos indícios de que Faustina fosse casada ou
convivesse com um companheiro, mas sabemos que ela sonhou e projetou dias melhores para
as crianças, como veremos adiante.
147
Ação Cível, Ação de liberdade de Faustina e família, maço 6, cx. 7, doc. 2153, Acervo Coleção Santo
Amaro, LM UFBA.
148
SLENES, Robert W. Na Senzala, Uma Flor: esperanças e recordações na formação da família escrava. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 180.
67
Nossa Senhora 0 0 0 4
do Rosário
Nossa Senhora 0 0 0 0
da Purificação
Paróquias São Pedro do 33 0 0 2
Rio Fundo
Oliveira dos 63 0 0 5
Campinhos
Bom Jardim 78 0 0 3
São Domingos 18 0 0 0
de Saubara
Total 192 0 0 14
Durante o “injusto cativeiro”, Faustina teve outros filhos e conseguiu juntar o pecúlio
de 1 conto e 800 mil réis para comprar a liberdade de Macário, Sofia e Gelósia no ano de
149
OLIVEIRA, Maria Inês Côrtes de. O liberto: seu mundo e os outros. São Paulo: Corrupio, 1988, p. 12-15.
150
Não encontramos nenhum homem ocupando a profissão de costureiro, mas encontramos homens na profissão
de operários de vestuários e assim consideramos para demonstrar no quadro.
68
1868. Podemos sugerir que ela tenha juntado esta quantia, pois estava conseguindo exercer a
profissão de costureira nas imediações do Engenho Fortuna, onde residia. Esse valor foi pago
a Maria da Glória de Carvalho, que nesse período estava casada com Cândido Leovigildo
Chaves.
É possível que Faustina acreditasse que sua posse pertencesse mesmo ao casal do
Fortuna após a morte do seu antigo senhor, já que comprou a carta de liberdade dos seus
filhos. Mas como ela foi alertada várias vezes sobre sua possível liberdade, talvez não tivesse
sido ingênua ao comprar a liberdade dos três filhos nascidos de ventre livre, pois tinha
consciência de que poderia reaver esse valor pago a Maria da Glória através de um processo
de indenização – o que veio acontecer no ano de 1874. Provavelmente, ela queria livrar os
caçulas da escravidão, já que sua primogênita Olympia, moça de 18 anos de idade no ano de
1868, devia valer mais que os outros. Certamente, Faustina ficou tentando encontrar o
documento que havia sido entregue de forma secreta ao caixeiro do Fortuna.
Não podemos saber por quais motivos Procópio não entregou a carta de liberdade para
Faustina, em 1861, mas podemos supor que tenha sido por medo de ser perseguido pelo novo
patrão. Somente em outubro de 1871 que a carta de liberdade de Faustina apareceu. Uma das
primeiras ações da recém liberta foi se dirigir à Vila da Purificação com seus filhos e neta
para “manutenirem-se no gozo e posse de suas liberdades, em 05 e 20 de outubro de 1871” 151
através de Mandados. Para tornar mais consistente as liberdades, foram feitos anúncios
públicos no periódico O Popular.
Não satisfeito com o posicionamento de Faustina e contestando a carta de liberdade
passada por João Ribeiro, Cândido Leovigildo Chaves, em 23 de agosto de 1872, matriculou
Faustina e seus descendentes como seus escravos na casa das observações, local onde eram
matriculados os escravos da cidade, querendo reduzi-los à condição anterior. Sobre essa
atitude, o advogado de Faustina pontuou que o dono do Engenho Fortuna “estava cometendo
assim um crime, qual o de pretender reduzir à escravidão pessoas livres – pois que não podia
chamar-se a ignorância de que se achavam manutenidos e na posse e gozo de sua liberdade –
os Réus.”152 Cândido Chaves não estava nada satisfeito com a manumissão de Faustina e dos
seus, e por isso achava necessário desrespeitar o direito da liberta que ele não reconhecia.
A matrícula que foi realizada por Cândido Chaves na casa de observações e que
afirmava a condição jurídica de Faustina e seus descendentes como escravos, em agosto de
151
Ação Cível, Ação de liberdade de Faustina e família, maço 6, cx. 7, doc. 2153, Acervo Coleção Santo
Amaro, LM UFBA.
152
Aparentemente, o advogado se referia ao artigo 179 do Código Criminal e que falava sobre os crimes contra a
liberdade individual, no que tange a reduzir à escravidão a pessoa livre que se acha em posse da sua liberdade.
69
1872, referia-se ao cumprimento do Art. 8º da Lei de 28 de setembro de 1871 que dizia que
“O governo mandará proceder a matrícula especial de todos os escravos existentes no Império
com declaração do nome, sexo, estado, aptidão para o trabalho e filiação de cada um, se for
conhecida.”153 A lei ainda dizia que “os escravos que, por culpa ou omissão dos interessados,
não forem dados à matrícula até um ano depois do encerramento desta, serão por este fato
considerados libertos.”154 O dono do Fortuna achou importante e necessário matricular
Faustina, ainda que ela estivesse afirmado e confirmado que era liberta. Na matrícula de 1872,
que foi realizada em Santo Amaro, encontramos 14.505 escravos, sendo que o total de
homens correspondia a 7.628 e o de mulheres era de 6.877155. Segundo essa matrícula, a
cidade de Santo Amaro era a terceira da Bahia no quantitativo de escravos, ficando atrás de
Salvador e Cachoeira, que tinham respectivamente 16.908 e 16.307 escravos.
O conflito entre a ex-escrava e o dono do Fortuna intensificou-se em 28 de abril de
1873, quando este resolveu mover uma ação de escravidão contra Faustina e seus filhos com o
intuito de que voltassem a ser cativos. Cândido Chaves alegou que a carta era falsa “e que foi
posta na fumaça para que parecesse velha.”156 Não acreditando que a carta de liberdade
houvesse sido escrita por João Ribeiro, requereu o atestado de veracidade do documento na
Vila da Purificação, “lugar onde o Alferes nunca foi e nem era conhecido.”157 O advogado da
defesa salientava que as letras e firmas de João Ribeiro só poderiam ser confirmadas por
pessoas que o haviam conhecido e tido relações de amizade. É importante dizer que Maria de
Carvalho havia visto a carta de liberdade e reconheceu como verdadeira a assinatura de seu
pai, o Alferes.
Cândido, auxiliado pela esposa, tentou atrapalhar a vida de Faustina da forma que
podia: prometeu facilitar a realização do casamento de uma das testemunhas de Faustina,
prometeu facilidades se um rapaz seduzisse a filha de Faustina e apresentou testemunhas que
lhe deviam favores ou que tinham o caráter duvidoso, como o Capitão Luís Simões Ferreira.
Segundo o advogado de Faustina, esse homem tinha o nome histórico nos anais do crime, era
conhecido por cometer perjuro em um processo de testamento e que, em 1854, havia sido
denunciado pela imprensa como o célebre assassino que foi incumbido de tirar a vida de
Antonio Marinho. No seu depoimento, Luís Simões garantiu que estava presente no dia das
153
Coleção das Leis do Império do Brasil de 1871. Tomo XXXI, parte I. Rio de Janeiro: Tipografia
Nacional,1871. p.151.
154
Idem
155
Quadro estatístico do número de escravos matriculados nas estações fiscais, (1873). Relatório Diretoria Geral
de Estatística (DGE), 1875. Província da Bahia.
156
Ação Cível, Ação de liberdade de Faustina e família, maço 6, cx. 7, doc. 2153, Acervo Coleção Santo
Amaro, LM UFBA.
157
Idem.
70
avaliações dos escravos, que Maria de Carvalho não havia assistido as respectivas avaliações
pois havia se retirado, mas que foi o próprio João Ribeiro que conduziu. O advogado
conseguiu desarticular essa mentira, pois mostrou um documento que provava que “nem Luís
Simões, nem o Alferes João Ribeiro concorreram ao Inventário do Engenho Fortuna, e a
mesma Inventariante Dona Maria Joaquina de Carvalho assinara o respectivo juramento no
interior da casa [...] em vista do mau estado de saúde daquela viúva.” 158 Em 1878, em uma
notícia que desconstituía a reputação de Luís Simões foi mencionado o caso de Faustina,
informando que
é sempre a mentira o farol que o guia na luta renhida, em que protestou viver
com a verdade; começou por mercar-se como capitão; não admiro que
deixasse de corar, vindo-lhe à mente a ideia de que no foro da cidade de
Santo Amaro, em um juramento falso que prestou na questão de liberdade da
parda Faustina, provassem totalmente a sua impostura, com relação à patente
de capitão.159
158
Ação Cível, Ação de liberdade de Faustina e família, maço 6, cx. 7, doc. 2153, Acervo Coleção Santo
Amaro, LM UFBA.
159
O Monitor. 20 de dezembro de 1878.
160
Nesse processo de 1874, a ex-escrava aparece com o nome Faustina de Carvalho. Ela aderiu o sobrenome do
seu ex-senhor, o Alferes João Ribeiro de Carvalho.
71
161
Ação Cível, Ação de valores devidos a Faustina, maço 7, cx. 12, doc. 2675, Acervo Coleção Santo Amaro,
LM UFBA.
162
É necessário frisar que não havia consenso entre os jurisconsultos naquele período. CHALHOUB, Sidney.
Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia das
Letras, 2011, p. 151.
163
Idem.
72
Várias cartas citatórias foram enviadas ao casal, mas não puderam ser entregues por
não se acharem em casa. O advogado Jacobina sugeriu que eles tinham se ocultado para não
receberem as cartas. Efetivamente que Cândido e Maria da Glória não queriam devolver
aquela quantia, pois na entrega da última carta citatória foi informado que o casal havia
partido para a cidade da Bahia. Não sabemos o desfecho desse processo movido por Faustina.
Mas é possível que a mesma tenha planejado com antecedência e escolhido o momento
oportuno para tratar das manutenções de liberdade em Santo Amaro. Era o projeto e desejo
de começar uma vida nova com os meninos distante do cativeiro do Engenho Fortuna. Talvez,
já tivesse fazendo planos de investir aquele pecúlio gasto na alforria dos três caçulas, quando
recebesse a indenização.
164
Ação Cível, Ação de liberdade Íria e Pafôncio, maço 6, cx. 9, doc. 2182, Acervo Coleção Santo Amaro, LM
UFBA.
73
documentos não fossem registrados no cartório no mesmo período em que foram feitos,
principalmente quando se referia a escravos que moravam na zona rural. Segundo Kátia
Lorena Almeida, quando estudou as alforrias no município de Rio de Contas, em 84,8% dos
casos, o registro das cartas de liberdade em cartório ocorriam em até cinco anos e que, em
algumas situações, o registro ocorreu após décadas. A autora sugere que essas situações
podem ter ocorrido devido à distância entre o município e a zona rural, e que era comum que
os proprietários registrassem várias cartas de liberdade, que foram passadas em momentos
diferentes, em um mesmo dia.165
Antonio Joaquim Moreira de Pinho, irmão do devedor, ficou responsável pelo
“depósito dos escravos ou libertos”166 Bemvinda, Ubaldina, Conegundes, José e Josefa por
causa da execução da dívida. No entanto, Maria Alvellos lhe pregou uma peça ao levar os
libertos, com exceção de Bemvinda, para a cidade da Bahia. O depositário ficou furioso, já
que tinha que dar conta daqueles que foram depositados sob sua responsabilidade e que
sumiram do seu alcance. Com o objetivo de resolver a situação, solicitou que o escrivão
passasse “carta precatória de busca, prisão e embargos para serem os mesmos escravos
buscados na cidade da Bahia.”167 O mandado solicitado não obteve sucesso, pois a família
Rocha conseguiu garantir no Supremo Tribunal de Relação da Bahia, em 1843, a liberdade
condicional concedida pela senhora. A decisão do tribunal foi respeitada, mas a dívida haveria
de ser paga.
Era o ano de 1844, quando José Ferrari solicitou que fosse realizado um novo
mandado de penhora no Engenho Paranaguá. É importante dizer que, nesse período, José
Moreira de Pinho já havia se mudado para a Província de Sergipe. Nesta ocasião, Íria foi
encontrada e levada presa para as cadeias da cidade com o intuito de ser mantida no depósito
público, no entanto sustentou que tinha liberdade condicional e só tinha obrigação de prestar
serviços a Maria Josefa enquanto esta fosse viva. Fez questão de ressaltar que sua carta de
liberdade excluía a prestação de serviços a terceiros desconhecidos e que essa exclusão
estendia-se também para o marido da senhora.
165
ALMEIDA, Kátia Lorena Novais de. Alforrias em Rio de Contas – Bahia século XIX, Salvador: Edufba,
2012, p. 76.
166
Interessante perceber que Antonio Joaquim Moreira de Pinho considera as condições jurídicas de escravos ou
libertos para as pessoas que ele ficou responsável pelo depósito.
167
Ação Cível, Carta precatória de busca e apreensão, maço 6, cx. 10, doc. 2210, Acervo Coleção Santo Amaro,
LM UFBA.
74
Quando estava depositada, Íria solicitou que fosse removida do depósito geral
para o “poder de Francisco Pedro Meirelles, pessoa idônea e de confiança da exequente.” 168
Segundo Chalhoub, o depósito poderia ser particular ou público e tinha o intuito de proteger e
retirar o escravo do poder senhorial, enquanto o processo era julgado, para que aquele não
sofresse retaliações.169 Era muito comum que pessoas livres e que tinham relações cotidianas
com os escravos solicitassem ficar como seus depositários. 170 Como Íria, não podia ser
entregue de imediato a José Ferrari, pois dependia da decisão da justiça, ela preferiu
permanecer sob a responsabilidade de alguém que confiasse e poderia conduzir melhor a sua
ação de liberdade estando fora da cadeia. A remoção foi concedida. Após a saída de Íria do
depósito público, José Ferrari solicitou que os serviços dela fossem arrematados. As
desventuras de Íria só estavam começando.
Quando já estava sob o depósito de Francisco Meirelles, o mesmo tentou
convencer Íria da necessidade de sua arrematação e ela consentiu, pois não sabia que estava
abrindo mão da sua condição de liberta para ser escravizada por outrem durante seis dias na
semana. Para pagar a execução, Íria foi penhorada em 100$000 e teria que trabalhar de
segunda a sábado durante 880 dias. Passado um tempo, Íria descobriu que seu depositário não
era de tanta confiança e nem tão idôneo, pois o mesmo era caixeiro de José Ferrari e tentou
enganá-la com o discurso de proteção, já que tinha intenção de arrematá-la. Ela ainda nos
informa que “não se opusera por ser de absoluta rusticidade, ignorou portanto a cilada.”171 Íria
era uma mulher que morava na roça e que, possivelmente, não tinha as mesmas informações
que os escravos urbanos.
Para chegar ao cálculo do tempo que Íria deveria ser escravizada, e considerando
que ela possuía liberdade condicional, o juiz delimitou que ela seria arrematada tomando por
base o que restava da vida de Maria Josefa. Determinou-se que a liberta condicional
trabalharia até quitar o valor de 100 mil réis. Dessa forma, Íria só podia acreditar que a
avaliação estava excessiva, pois Maria Josefa já tinha “a idade de 81 anos, que já é para a vida
humana uma vida dilatada, achando-se por consequência muito aproximada a sua morte.”172
Percebemos aqui que a estrutura da escravidão se baseava também em probabilidades do
168
Ação Cível, Ação de liberdade Íria e Pafôncio, maço 6, cx. 11, doc. 2215-2218, Acervo Coleção Santo
Amaro, LM UFBA.
169
CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São
Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 133.
170
Para ser depositário em Santo Amaro, no século XIX, era requisito que a pessoa fosse idônea e que morasse
na cidade.
171
Ação Cível, Ação de liberdade Íria e Pafôncio, maço 6, cx. 11, doc. 2219 – 2223, Acervo Coleção Santo
Amaro, LM UFBA.
172
Idem.
75
tempo da morte e quando era conveniente à classe senhorial, a vida era estendida para que se
pudesse escravizar mais.
Íria entrou com um recurso e contestou a possibilidade de reescravização. O
primeiro argumento baseou-se na vontade de Maria Josefa de Alvellos que estava sendo
desrespeitada no que se refere à reescravização dos seus ex-escravos e que excluía
expressamente quaisquer outras pessoas dos serviços que fossem prestados. Entendemos que
a possibilidade de revogação de uma carta de liberdade conferida há sete anos provocava uma
insegurança nos escravos, na lógica de obterem a alforria. Os libertos já consideravam que
suas vidas poderiam seguir sem se preocupar com o risco de serem reescravizados, pois havia
uma promessa e um documento que atestava a liberdade.
A defesa baseou-se principalmente no valor da avaliação, já que havia uma
imprecisão nos cálculos do tempo de serviço. Para deixar o recurso com mais fundamento, a
defesa de Íria utilizou o processo de Pafôncio como parâmetro, visto que ambos estavam
vivendo situações semelhantes de penhora, avaliação, reescravização e luta pela liberdade.
Verificou-se que o serviço de Pafôncio foi estabelecido também no valor de 100 mil réis, mas
comparando o tempo dos dois havia uma imprecisão, pois a probabilidade da vida de Maria
Josefa estava divergente: havia uma diferença de nove meses. A conta estava bastante
desproporcional e piorava a situação de Íria.173 Abaixo, segue uma tabela que demonstra essa
situação:
Íria tinha razão quando reclamou dos preços do serviço, pois foram consideradas
datas divergentes para a perspectiva de vida da senhora. A jornada também estava excessiva,
já que nenhum dos dois libertos poderiam se dedicar aos seus afazeres ou suas vidas.
173
Devido a condição do documento, não conseguimos informar com segurança se os avaliadores de Íria e
Pafôncio eram a mesma pessoa.
76
discurso público e correspondia àquilo que o cativo queria que fosse visto, se baseando em
manipulação e representações da realidade. Scott denominou de discurso oculto aquelas
situações que ocorriam fora da vista do senhor, ou seja, “nos bastidores.” O comportamento
oculto transparecia quando os subalternos estavam próximos às pessoas em que se pudesse
confiar.178 Utilizando esse conceito para analisar os comportamentos de Pafôncio, percebemos
que a doença pode ter ocorrido em uma circunstância de discurso público, na qual o liberto se
colocava como um ser humano frágil e inapto à obrigação. Provavelmente, isso deve ter sido
levado em conta quando foi delimitado que ele trabalharia menos tempo que Íria. E enquanto
Pafôncio estava se mostrando um ser humano frágil, o mesmo estava arquitetando caminhos,
através do discurso oculto, para se livrar do cativeiro. E essa estratégia resultou na
manutenção e afirmação da sua liberdade.
Íria informou que o único serviço que ela e seus parceiros prestavam à senhora se
resumia na criação dos animais e que ela e os antigos companheiros de cativeiro estavam
livres de serviços, já que a senhora não os exigia mais. Os ex-escravos passaram a viver como
senhores e donos da sua liberdade nas terras do Engenho Paranaguá, pois não havia mais
senhor que lhes dessem ordens. A defesa de Íria invocou o processo movido por José,
Bernardina e Ubaldina como modelo, pois esses conseguiram acordos a seu favor e nas
mesmas condições, no Tribunal da Relação. A defesa deve ter considerado que a
Jurisprudência formada naquele Tribunal poderia influenciar no julgamento de Íria.
O Juiz Olegário, por sua vez, não considerou os argumentos de Íria. Disse que “a
agravante não é senhora nem possuidora da liberdade da qual como declara e só gozará [da
liberdade] por morte da libertante. Assim sendo, seus serviços são pertencentes ao casal
executado e incontestável objeto de penhora.”179
Íria pediu contestação da decisão e, em 21 de novembro de 1844, solicitou que os
autos fossem para conclusão, pois havia conseguido provar sua liberdade através da carta e do
Acórdão em “que se deliberou que a Suplicante não é obrigada a prestar serviços a pessoas
estranhas e só à pessoa de sua patrona.”180 Como não havia conseguido revogar as cartas de
liberdade dos libertos, José Ferrari deu seguimento no processo, só que o réu passava a ser a
família senhorial.
178
Verificar os discursos públicos e ocultos dos subalternos em SCOTT, James. A Dominação e a Arte da
Resistência: discursos ocultos. Lisboa: Livraria Letra Livre, 2013, p. 27-45.
179
Ação Cível, Ação de liberdade Íria e Pafôncio, maço 6, cx. 11, doc. 2219 – 2223, Acervo Coleção Santo
Amaro, LM UFBA.
180
Ação Cível, Ação de liberdade Íria e Pafôncio, maço 6, cx. 11, doc. 2231- 2234, Acervo Coleção Santo
Amaro, LM UFBA.
78
181
FREITAS, Augusto Teixeira de. Consolidação das leis civis - 3. ed. Rio de Janeiro: H. Garnier, v.1, 1896, p.
141.
182
FRAGA FILHO, Walter. Encruzilhadas da Liberdade. Campinas: Editora Unicamp, 2006, p. 49.
79
Capítulo III
Forjando a liberdade no cativeiro
Christina, crioula, teve em sua vida uma sucessão de senhores, mas a morte
andava próxima daqueles que a possuíam. Inicialmente, pertenceu a José Tibúrcio Álvares de
Freitas e por morte deste, foi deixada para seu filho, o menor Antonio, em 1851. Acontece
que o rapaz morreu sem deixar descendentes e Christina passou para o controle de Francisco
da Silva Barros, avô daquele. Passado algum tempo, o velho faleceu e a escrava foi deixada
“em poder do Doutor José Antonio Peixoto de Lacerda, tutor do referido menor Antonio, e
depois da morte do Doutor, [Christina] desapareceu”.183 Depois de ter tido quatro senhores,
Christina começou a achar que poderia escolher o rumo de sua vida e dessa forma foi parar no
Engenho Pará, que era propriedade de José Píres Falcão Brandão, mas que estava arrendado à
família Barros Paim. Possivelmente, tinha amigos ou parentes por lá. O que sabemos é que a
escrava delimitou que o Capitão Luís Antonio de Barros Paim era seu novo senhor, excluindo
os antigos. Não podemos saber os motivos que a levaram a tomar essa atitude, mas
possivelmente, teria feito um acordo com o velho Paim e garantido um pedaço de terra para
fazer uma pequena roça.
Durante o período em que permaneceu no Engenho Pará, Christina teve uma filha
de nome Umbelina, que tinha 14 anos de idade em 1867. Christina vivia como escrava no
Engenho Pará e parece que havia esquecido, de fato, que não pertencia àquele lugar. No
entanto a situação mudou no dia 11 de outubro de 1867, quando se procedeu a prisão de treze
escravos, inclusive bebês de colo, devido uma execução de penhora de dívida movida por
Frederico José da Cunha contra o Capitão Paim. Podemos supor que houve rebuliço na
senzala e casa grande naquela noite, até que se formalizasse o grande acordo: as onze escravas
não poderiam ser penhoradas, pois tinham cartas de liberdade, ainda que condicionais.
183
Ação Cível, Processo de penhora de dívida, maço 2, cx. 12, doc. 1595, Acervo Coleção Santo Amaro, LM
UFBA.
80
184
Ação Cível, Ação de processo de penhora de dívida e ação de liberdade de Christina e companheiras de
cativeiro, maço 2, cx. 13, doc. 1604, Acervo Coleção Santo Amaro, LM UFBA.
185
Idem.
186
O Capitão Francisco da Silva Barros foi o terceiro senhor de Christina que mencionamos no início do
capítulo.
187
Ação Cível, Ação de processo de penhora de dívida e ação de liberdade de Christina e companheiras de
cativeiro, maço 2, cx. 13, doc. 1604, Acervo Coleção Santo Amaro, LM UFBA.
82
isto é, o valor dela.”188 Vários obstáculos estavam aparecendo no caminho de Christina, e era
necessário saber como proceder. Tudo indica que, apesar do controle senhorial permanecer no
Engenho Pará, havia um acordo prévio para que essas mulheres determinassem seus convívios
sobre posse de outro senhor e rejeitando o anterior.
A posse de Messias também foi reivindicada pelo Capitão Antonio Manoel
Moreira de Almeida. O Capitão Paim contestou e disse que os contestadores deveriam
demonstrar e provar a razão do domínio e posse que falsamente contestavam, já que ele era o
libertador das duas ex-escravas.
Essa querela sobre a posse de Christina e Messias teve origem em uma divisão de
bens deixados em decorrência do falecimento de José Peixoto de Lacerda, que era proprietário
do Engenho Amparo, local onde Christina e Messias eram escravas. Quando foi concluído o
inventário dos bens deixados pelo falecido, em 1859, foram avaliados 27 escravos e nessa
avaliação estavam presentes Christina crioula, que gozava de boa idade e foi avaliada em 500
mil réis, e Messias cabrinha moça, que foi avaliada em 900 mil réis. Aparentemente, as duas
resolveram fugir juntas. No período da avaliação, Messias estava no início da adolescência e
Christina já era uma mulher e, possivelmente, a mocinha era protegida desta.
Considerando a classificação utilizada por Stuart Schwartz,189 que delimitou o
tamanho do engenho pela quantidade de escravos, o Engenho Amparo seria considerado como
pequeno pois tinha entre 20 e 59 cativos. Os valores dados aos escravos na propriedade variou
entre 10 mil réis e 1 conto e 100 mil réis. Ana, Maria Rosa e Theresa, crioulas, foram
avaliadas por 10 mil réis cada uma, por serem velhas e doentes. Miguel, crioulo moço, foi
avaliado por 20 mil réis, porque não tinha ambos os braços. Comumente, a doença e velhice
reduziam o valor do escravo, sendo determinantes no preço final. Manoel Bernardo e
Firmino, crioulos e moços, foram avaliados respectivamente por 1 conto e 1 conto e 100 mil
réis. As mulheres foram avaliadas em valores menores se comparado aos homens e
provavelmente foi considerada a especialização do serviço desempenhado pelos mesmos.
Dentre as escravas, Messias foi a que teve o maior valor. Após ela, foram avaliadas por 800
mil réis: Juliana e Maria Honorata, crioulas moças, e Maria clara, parda. A soma dos 27
escravos correspondia à quantia de 12 contos e 610 mil réis.
Para termos uma melhor noção dos valores que eram dados a pessoas escravizadas
em Santo Amaro, achamos necessário trazer exemplos do que poderia ser comprado com
188
Ação Cível, Ação de processo de penhora de dívida e ação de liberdade de Christina e companheiras de
cativeiro, maço 2, cx. 13, doc. 1604, Acervo Coleção Santo Amaro, LM UFBA.
189
SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835; tradução
Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p 365.
83
aquelas quantias. Vamos continuar analisando o inventário dos bens do Engenho Amparo,
pois nos dá uma dimensão dos valores praticados nas mesmas circunstâncias. Com 200 mil
réis era possível comprar uma casa de vivenda com seis cômodos, coberta com telhas e tapada
com barro e com 150 mil réis poderia ser comprada uma casa térrea de barro e coberta com
telhas no Arraial da Oliveira. Se a pessoa tivesse uma economia de 15 contos e 500 mil réis,
poderia comprar a “casa do engenho bastante arruinada, com um lado desabado, que somente
se aproveita parte da madeira e telhas, e umas formas [...] e todo o terreno do Engenho
Amparo, de áreas, canas e casas e uma porção de mato que só tem madeiras brancas [...].”
Possivelmente as moradias mencionadas se referissem à casa senhorial e às senzalas onde
moravam os escravos.
É importante ressaltar que as três partes que alegavam a posse ou liberdade das
mulheres pertenciam à mesma família, ou seja, todos eram herdeiros do Capitão Francisco da
Silva Barros. Como não havia ocorrido o inventário ainda, Moreira de Almeida, que
reivindicava a posse de Messias, e o Capitão Paim já estavam se aproveitando do trabalho
forçado dos escravizados desde 1857. Em um recibo, o Capitão Paim dizia que havia recebido
do seu primo
o Senhor Antonio Manuel Moreira de Almeida, doze escravos pertencentes ao casal
do Amparo, que são os seguintes: Luciano, Aninha, Theresa, Josepha, Maria da
Conceição, Maria Francisca, Anna Ritta, Senhorinha, Demétrio, Alexandrina,
Firmino e Manoel Bernardo. Ficando no poder do mesmo seis escravos que são os
seguintes: Manoel Pedro, José Bento, Maximiana, Vícias, Carolina e Severiano, para
serem entregues na final sentença.
documento mais antigo foi o de Joaquina, em 1860, e o mais recente havia sido o de Maria
Honorata e suas filhas, em junho de 1867. Apresentando os documentos que comprovavam a
liberdade, o advogado acreditava que não havia fundamento algum para que as libertas
permanecessem presas. Karine Damasceno, ao analisar a trajetória de escravas e libertas na
cidade de Feira de Santana, constatou que, de forma pontual, as mulheres formaram alianças
com membros da classe senhorial, para alcançarem a tão sonhada liberdade.191
Christina não conseguiu ser beneficiada com a liberdade condicional, pois o Juiz
aceitou que Christina ficasse manutenida como escrava na posse dos herdeiros de Francisco
da Silva Barros, em 11 de novembro de 1867. Por mais de 14 anos Christina se escondeu da
família Silva Barros e de um momento para o outro viu seu projeto de vida ruir, pois teria que
voltar para aquele domínio que ela havia rejeitado.
Como o mandado de soltura das outras 10 libertas não saía, foi realizada uma
nova solicitação informando sobre a saúde das mesmas, em 12 de novembro. Elas disseram
que estavam sofrendo “em suas saúdes graves incômodos e com especialidade a 1ª suplicante
[Adriana] como pode informar o atual carcereiro.”192 Aparentemente, todas estavam tendo
problemas para manterem suas saúdes com qualidade em uma prisão, mas Adriana era quem
tinha a condição mais debilitada e a situação era tão drástica que podia ser comprovada por
quem cuidava da cadeia. É importante falar que Adriana foi presa quatro meses após dar a luz
e, possivelmente, estava mais doente porque seu corpo não teve o descanso necessário e por
ter sido obrigada a conviver em condições precárias.
No dia seguinte à solicitação de soltura, foi autorizado pelo Juiz Suplente que elas
ficassem depositadas sob a responsabilidade de José Carlos de Barros Paim e que fossem
feitas avaliações das mesmas. Ao verificar esta parte do processo, conseguimos analisar como
estavam constituídas as famílias escravas que moravam no Engenho Pará.
191
DAMASCENO, Karine Teixeira. Para serem donas de si: mulheres negras lutando em família (Feira de
Santana, Bahia, 1871-1888). Tese (Doutorado em História) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas,
UFBA, 2019, p. 30-44.
192
Ação Cível, Ação de processo de penhora de dívida e ação de liberdade de Christina e companheiras de
cativeiro, maço 2, cx. 13, doc. 1604, Acervo Coleção Santo Amaro, LM UFBA.
85
Esse quadro nos dá um cenário do quanto poderia ser cruel a escravidão em Santo
Amaro, pois até bebês e crianças foram presas em local insalubre a pretexto de quitarem os
débitos da penhora. Gérida, Felippa e Paulina foram presas juntamente com suas mães e
privadas de terem uma alimentação ou ambiente familiar que lhes garantissem alguma
segurança. Entre as libertas conseguimos verificar a existência de três famílias: Adriana, que
estava muito doente, era mãe de Gérida; Maria Honorata era a mãe das pequenas Felippa e
Paulina, e Umbelina era filha de Christina, que foi entregue à família Silva Barros. Outra
análise que podemos fazer é que Umbelina nasceu quando Christina já estava morando na
terra dos Paim, pois a existência dela era desconhecida pelos herdeiros da família que levou
Christina, visto que não houve contestação de posse sobre ela. Verificando a idade de
Umbelina, 14 anos de idade, podemos supor que as famílias escravas que moravam no
Engenho Pará tinham alguma garantia de que a família não seria separada pelos infortúnios da
escravidão. Talvez esse fosse um dos motivos que levaram Christina a negar a condição de
cativa da família Silva Barros.
Sobre os valores da avaliação que foram dados às libertas, vemos o quão caro era
um escravo naquele período em Santo Amaro. A proibição do tráfico de pessoas, a partir de
1850, foi determinante para que o valor dos escravos aumentasse e isso repercutiu também em
Santo Amaro, terceira cidade da Província da Bahia em posse de cativos.
Ao compararmos os valores dessas avaliações, do ano de 1867, com aquelas
alforrias que Faustina pagou a liberdade das suas filhas Felippa e Gelósia, em 1868, teremos
um aumento que chega a variar em mais de 100%. Felippa, com 3 anos de idade em 1867, foi
86
avaliada em 200 mil réis e Gelósia, com a mesma idade em 1868, foi alforriada por 470 mil
réis. Podemos perceber outra disparidade ao observar o valor pago por Fastina, em 1868, para
comprar a liberdade da pequena Sofia, de 5 anos de idade por 630 mil réis. Em 1867,
Umbelina, com 14 anos de idade, e Maria Honorata, com 45, foram avaliadas em 600 mil réis
cada uma. É um aumento considerável em questão de meses e os senhores tentavam tirar o
máximo de proveito quando se tratava de conceder a venda da carta de liberdade. Ao observar
esses valores tão desiguais, podemos ver o quanto Faustina foi prejudicada nas suas
economias para garantir a liberdade dos seus filhos.
Assim que saíram da prisão, as libertas interpuseram recurso para o Tribunal da
Relação da Província. A defesa argumentou que o procedimento era necessário devido o fato
de o Juiz ter menosprezado os embargos que as mesmas interpuseram por não serem partes
principais do processo. Foi informado ainda que o juízo agiu “sem lhes conceder jamais
discussão em prol de suas liberdades, não admitindo finalmente a oposição que as leis
permite-lhes.” As mulheres e crianças só puderam sair da cadeia porque ficariam sob a
responsabilidade de um depositário, o que era extremamente precário, pois poderia ser
revogado a qualquer tempo. O Juiz entendia que as mulheres poderiam ser dadas como um
produto na causa reivindicada, já que tinham um valor, mas não ao ponto de ter que ouvi-las
como partes do processo para reivindicarem suas liberdades. Para sustentar o argumento de
que poderiam entrar com o recurso para o tribunal superior, a defesa se apoiou no parágrafo
3º do Art. 15 do Regimento de 15 de março de 1842, que falava sobre agravos de petições que
poderiam ser interpostas em outro tribunal por não admitirem terceiros que se opunham à
causa no juízo original.
É importante dizer que, quando as libertas resolveram protestar para o Tribunal da
Relação, o nome de Christina também foi colocado como autora da ação. A ação
reivindicatória da liberdade era em prol de todas as mulheres que foram presas no Engenho
Pará. O documento utilizado para iniciar o recurso no tribunal começou falando sobre o
motivo das libertas permanecerem nas terras dos Paim – esse foi um dos principais
argumentos utilizado pelo advogado de Frederico da Cunha para garantir que as mulheres não
possuíam a liberdade. Foi dito que “esses libertos conservaram-se na companhia de seu
benfeitor, continuando a lhes prestar serviços como dantes, com a mesma boa vontade,
obediência e lealdade” pois haviam garantido a liberdade com a condição de cumprir uma
obrigação. Foi colocado pela defesa uma situação de que essas mulheres mantinham boas
relações de convívio com a família senhorial, mesmo após possuírem a carta de alforria
87
193
Ação Cível, Ação de processo de penhora de dívida e ação de liberdade de Christina e companheiras de
cativeiro, maço 2, cx. 13, doc. 1604, Acervo Coleção Santo Amaro, LM UFBA.
194
Constituição Política do Império do Brasil. 1824.
88
hipoteca, mas não houve nenhum empecilho em considerar aqueles que não faziam parte do
processo e reclamavam suas posses. Parece-nos que a justiça de Santo Amaro havia escolhido
um lado naquela briga, e era contra as libertas.
Não conseguimos verificar quando Christina retornou para o Engenho Pará, mas é
certo que a decisão, que mantinha a mesma sob o controle dos herdeiros da família Freitas
Barros, foi reformada. Era 18 de dezembro de 1867, quando a liberta resolveu invocar o
parágrafo 17, Título 86, do Terceiro Livro das Ordenações Filipinas, com o intuito de que
fosse passado um “mandado de manutenção de sua liberdade mediante a fiança que a lei
exige, até que seja dela convencida seu último tribunal.”195 Christina desejava ser mantida na
posse de sua liberdade até que a causa fosse julgada no Tribunal da Relação e solicitou que
João Carlos de Barros Paim fosse seu depositário. No mesmo dia, o Juiz Francisco César
Justiniano Jacobina autorizou que Christina fosse manutenida em sua liberdade. O doutor
Jacobina é o mesmo que foi apresentado no primeiro capítulo e que atuou como advogado e
curador da liberta Faustina.196
No decorrer do processo, os herdeiros do Capitão Silva Barros argumentaram que
Christina não poderia ser mantida na posse de sua liberdade porque nunca a teve e que o
Capitão Paim a colocou no inventário do Engenho Amparo de forma premeditada. Eles
também trouxeram uma informação que não havia sido mencionada anteriormente: que
Christina teve uma filha enquanto morava nas terras do Paim. A disputa passava a ser sobre
Umbelina também.
Quanto às datas em que as 11cartas pareciam terem sido escritas ou prometidas,
não havia problema. Só que a desconfiança pairava em Frederico José da Cunha porque todas
as cartas foram registradas no livro de notas um dia após a execução da penhora. Um ano após
as prisões das libertas, o processo voltou a correr. Para sustentar que as cartas foram feitas de
boa-fé, o Capitão Paim negou que fosse aliciador de escravos e que as libertas e os demais
escravos que possuía tinham conhecimento da existência das cartas de liberdade condicional.
Também sustentou que
os libelos de suas liberdades foram seladas em época e data posteriores às
suas conferências, não foi por dolo, mas sim por que se não oferecera
necessidade porque sendo-lhes conferidas com as condições que eles
mencionam, não lhes importava o selo, porque se poderia fazer essa em
qualquer ocasião, segundo se lhes disseram.
195
Ação Cível, Ação de processo de penhora de dívida e ação de liberdade de Christina e companheiras de
cativeiro, maço 2, cx. 13, doc. 1604, Acervo Coleção Santo Amaro, LM UFBA.
196
É possível perceber que o advogado que já tinha defendido uma família em um processo de reescravização,
no caso a família de Fastina, manteve o perfil abolicionista mesmo na condição de Juiz. Infelizmente, não
encontramos mais informações sobre Francisco César Justiniano Jacobina.
89
O processo das libertas começou a ter seu desfecho em setembro de 1872. E para
conseguir concluir essa história, utilizaremos como fonte principal as razões propostas pelo
advogado de Frederico José da Cunha, o Dr. Francisco Maria Sodré Pereira. Este pertencia a
uma das maiores famílias escravocratas da cidade de Santo Amaro e era filho de Francisco
Pereira Sodré e de Cora César Coutinho, e neto do Coronel Francisco Maria Sodré. A família
escravista já foi mencionada por João José Reis quando percorreu os caminhos do africano
Domingos Sodré.197
Tentou-se provar que as cartas de liberdade faziam parte de uma fraude e que
foram concedidas com o intuito de burlar a execução da penhora. O advogado alegou que os
títulos de liberdade eram falsos, pois só foram registrados um dia após a prisão das mulheres.
As cartas de alforria mais antigas eram a de Joaquina, que foi assinada em 06 de outubro de
197
REIS, João José. Domingos Sodré: um sacerdote africano. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 53-
76.
90
1855, e a de Christina e sua filha, feita em 15 de setembro de 1862. O Dr. Pereira acreditava
na execução de um conluio para que
as referidas cartas de liberdade melhor figurassem como escritas naquelas
datas. Procuraram-se papéis velhos, amarrotados e manchados e ainda para
mais velho parecerem, escreveram as ditas cartas pelas costas dos mesmos,
mas assim praticando, não repararam que é visível que todas as costas
daqueles papéis mostram as suas dobras para o lado de dentro, deixando o
lado escrito para a parte de fora, o que nem é de regra, nem se faz, e nunca se
fará.198
198
Ação Cível, Ação de processo de penhora de dívida e ação de liberdade de Christina e companheiras de
cativeiro, maço 2, cx. 13, doc. 1604, Acervo Coleção Santo Amaro, LM UFBA.
91
199
Ação Cível, Ação de processo de penhora de dívida e ação de liberdade de Christina e companheiras de
cativeiro, maço 2, cx. 13, doc. 1604, Acervo Coleção Santo Amaro, LM UFBA.
200
Idem.
201
Idem.
92
em notas e dados à publicidade.” Para ele a forma era essencial para garantir a confiabilidade.
Considerava ainda que se as cartas tivessem sido escritas no período proposto, seria o maior
ato de “escândalo e cinismo” e que os documentos só poderiam garantir a liberdade após a
morte daqueles que possuíam os libertos condicionais. Se adotássemos este prisma, apenas
Christina e Umbelina seriam libertas, em setembro de 1872, já que o Capitão Paim já havia
falecido nesse período. Com o intuito de deslegitimar as concessões das alforrias
condicionais, o advogado se apoiou, principalmente, na jurisprudência de Teixeira de Freitas
que se referia às alforrias gratuitas.
Como a alforria gratuita tem analogia com a doação, considerada esta como
ato unilateral antes de aceita pelo donatário, e como ato bilateral depois de
aceita; segue-se, que as cartas de alforria por falecimento do senhor, achadas
entre seus papéis, sem que delas tivessem conhecimento os escravos
libertados, não produzem efeito senão depois do falecimento. Os filhos pois
de uma escrava libertada nestas circunstâncias, nascidos antes deter a carta
de alforria produzido seus efeitos, antes de ser conhecida, como se tivesse in
mente reposta, são escravos.202
202
FREITAS, Augusto Teixeira de. Consolidação das leis civis - 3. ed. Rio de Janeiro: H. Garnier. v. I, 1896, p
525.
203
Ação Cível, Ação de processo de penhora de dívida e ação de liberdade de Christina e companheiras de
cativeiro, maço 2, cx. 13, doc. 1604, Acervo Coleção Santo Amaro, LM UFBA.
93
tinham que dizer o motivo porque foram retiradas do cativeiro. Ele se agarrava em minúcias
da escravidão para desfazer o título concedido àquelas mulheres e não admitia que um homem
cheio de dívidas pudesse conceder, de forma lícita, a liberdade àquelas pessoas, que foram
avaliados em aproximadamente cinco contos de réis.
Não satisfeito porque as libertas invocaram o Quarto Livro das Ordenações
Filipinas (título 11, parágrafo 4º) na sua defesa, o Dr. Pereira foi catedrático em afirmar que
não havia qualquer relação entre o processo das cartas de liberdade gratuitas e o referido livro.
Como não poderia haver afinidade de temas, se aquele era um dos argumentos mais utilizados
para se combater as reescravizações? Keila Grinberg, no seu estudo sobre as ações de
reescravizações julgadas pela Corte de Apelação do Rio de Janeiro, sustenta que esse
parágrafo do livro foi o mais utilizado pelos curadores dos escravos para garantir a
liberdade204. Tal texto preceitua que “É porque em favor da liberdade são muitas coisas
outorgadas contra as regras gerais.”205
O Dr. Pereira acreditava e sustentava que a posse de escravos era sequer amoral,
pois se baseava na situação de que o direito de propriedade nos escravos era permitido por lei
e dizia que “enquanto no país existir o cativeiro legal como fazendo parte da propriedade e
fortuna particular, é inadmissível a fraude, a torpeza e a falsidade de simuladas cartas de
liberdade, propositalmente conferidas em prejuízo de credores.” Estamos falando de um
homem que agia como a classe dominante daquele período. Inclusive, o advogado citou na
sua argumentação a lei novíssima, de 28 de setembro de 1871206, que tinha sido promulgada
um mês antes. Fez questão de frisar que apesar da classe senhorial ter recebido menos
benefícios, a lei “procurou também resguardar e manter em toda sua amplidão o direito de
propriedade nos escravos, e de nenhum de seus artigos se pode inferir, nem mesmo por
hipótese, benefício e proteção a liberdades clandestinas.” Já mencionamos que a lei do ventre
livre provocou um determinado desgosto na classe senhorial e não foi diferente com o Dr.
Pereira.
Era 04 de dezembro de 1872, quando o Juiz Júlio César Berenguer de Bittencourt
conseguiu dar o desfecho do processo das cartas de alforrias iniciado cinco anos antes. É
interessante notar que nesse momento do processo as mulheres se “representaram livres e
apenas sujeitas à prestação de serviços.” Elas acreditavam que a condição preestabelecida lhes
204
GRINBERG, Keila. Reescravização, Direitos e Justiças no Brasil do Século XIX. In: LARA, Sílvia Hunold e
MENDONÇA, Joseli Maria Nunes (orgs.). Direitos e Justiças no Brasil: ensaios de história social. Campinas:
Ed. Unicamp, 2006, p. 101-128.
205
Ordenações Filipinas, Livro IV. Universidade de Coimbra, p. 790.
206
A lei em questão é a conhecida lei do ventre livre.
95
retirava o status jurídico de escravas e garantia mais tempo para seus afazeres. A concepção
que elas tinham do cativeiro condicionado era muito parecida com a perspectiva de Íria e
Pafôncio.207
Os argumentos do Dr. Pereira foram pertinentes ao atacar a liberdade das
mulheres e o Juiz esteve disposto a seguir esse entendimento. Bittencourt considerou que
todas as cartas de liberdade eram nulas, pois “presidiu incontestavelmente um só pensamento:
o de prejudicar ao Exequente [Frederico da Cunha]. Tudo convence (não induz só a crer) que
a mente do devedor Luiz Antonio de Barros Paim foi beneficiar a seus filhos – fraudando os
credores.” O Juiz era implacável em não perceber que se fosse uma fraude, as mulheres e
filhas seriam beneficiadas também. O juízo não percebia aquelas mulheres como
negociadoras da sua liberdade ou no mesmo patamar da família senhorial. Ele sequer
analisava que aquela liberdade condicional era fundamental para a conquista da autonomia e
ampliação da liberdade.208
Como as cartas de liberdade foram registradas no cartório em momento posterior
à penhora, o Juiz acreditou que era mais um indício de fraude. As acusações de que os
documentos foram escritos em tinta igual e em papel da mesma qualidade e cor, só deram
mais força para anular os títulos de liberdade.
O interessante é que ele ainda coloca a hipótese de os documentos terem sido
passados nas datas que mencionavam, só que ele não estava interessado em aceitar essa
perspectiva. O Juiz Bittencourt diz que “de duas uma: ou foram essas cartas passadas a 12 de
outubro de 1867, e antedatadas; ou se achavam guardadas para produzir em efeito oportuno
[...] são de pleno direito nulas.” O juízo municipal já tinha sua opinião formada. Como as
cartas seriam nulas se elas foram feitas nas datas que apresentaram? Visto sob essa
perspectiva de nulidade, percebemos o quão frágil era a garantia de liberdade proposta pela
carta de alforria. Se o Juiz considerava a possibilidade da carta ter sido feita entre os anos de
1860 a 1867, entendemos que essa situação recai naquela proposta por Teixeira de Freitas,
quando aborda a alforria gratuita. Se a carta condicional foi achada entre os papéis do senhor
falecido e os escravos não sabiam da futura liberdade, o efeito começa a contar a partir do
falecimento. Levando essa situação para o processo que estamos analisando, percebemos um
desrespeito e incoerência do Juiz aos documentos escritos nas datas afirmadas e à liberdade
das mulheres.
207
Discussão realizada no capítulo 2.
208
Como veremos no epílogo, Júlio César Berenguer é um dos membros da elite santamarense que ajudou a
construir a associação antiabolicionista em Santo Amaro, em 1884.
96
João Paim alegava que os escravos foram deixados para ele por pagamento de
uma herança e que tinham sido penhorados por engano, pois nunca pertenceram ao seu pai, o
Capitão Paim. Apesar de termos visto que 11 escravas foram libertas condicionalmente,
podemos afirmar que não estamos diante de uma família senhorial abolicionista do século
XIX, já que os Paim possuíam vários escravos e faziam questão de mantê-los em observação
contínua. Para corroborar nossa constatação, conseguimos encontrar um jornal que noticiava
que Luiz Antonio de Barros Paim pagou o imposto de exportação para enviar o escravo
Basílio, crioulo de 19 anos, para o Rio de Janeiro, reafirmando a prática do tráfico interno de
escravos que ganhou fôlego após a abolição do tráfico, em 1850.210
João Paim tinha pressa para que os escravos saíssem da cadeia pública, pois,
segundo ele, Daniel e Venâncio estavam em depreciação por estarem presos. Na lógica de
Paim, era um absurdo que dois homens robustos e aptos para o trabalho estivessem no
depósito público.
Na primeira semana de novembro de 1867, o mandado de remoção de Daniel e
Venâncio foi concedido e para saírem do depósito foi necessário fazer a avaliação dos
mesmos. Daniel era africano, de meia idade, trabalhava na lavoura e foi avaliado em 700 mil
209
Ação Cível, Ação de processo de penhora de dívida e ação de liberdade de Christina e companheiras de
cativeiro, maço 2, cx. 13, doc. 1604, Acervo Coleção Santo Amaro, LM UFBA.
210
O Monitor. 1º de setembro de 1877. Pelo período do jornal, acreditamos que Luiz Antonio era o filho do
Capitão Paim que residia em Salvador. Ele foi mencionado algumas vezes no processo.
97
réis. Por sua vez, Venâncio era crioulo, moço, também trabalhava na roça e foi avaliado em 1
conto de réis.211
Em 1872, o nosso já conhecido Dr. Pereira também arguiu que a os Daniel e
Venâncio sempre pertenceram ao Capitão Paim, e que este, juntamente com João Paim,
tentava defraudar a execução. Para embasar seu posicionamento, o advogado recorreu ao
Livro 4 das Ordenações Filipinas e afirmou que o Capitão Paim não podia dar os dois
escravos exclusivamente para o filho João, sem que tivesse ouvido os outros filhos. O
advogado fazia várias suposições: se Luiz Paim tinha pelo menos 08 filhos porque apenas
João recebeu escravos?212 Onde estavam os documentos que João ficou de apresentar para
comprovar que os escravos pertenciam a ele mesmo? O Advogado se propôs a desarticular a
imensa trama iniciada cinco anos antes e recorreu principalmente ao Processo Orphanológico
que tratava da jurisprudência dos Tribunais Superiores para falar que “o título voluntário,
principalmente entre pessoas conjuntas [...] faz presumir a fraude.” Estava convicto de que
Daniel e Venâncio pertenciam ao velho Paim e que tinha ocorrido uma fraude para não
pagarem o valor devido a Jose Frederico da Cunha.
O Juiz Bittencourt convenceu-se dos argumentos feitos pelo advogado de
Frederico da Cunha, mas não integralmente. Ele colocou a hipótese de a doação ter ocorrido
sem malícia como alegou a família Paim, mas considerava que o não pagamento do imposto
no tempo devido inviabilizava a doação, ou seja, as mulheres deveriam ser penhoradas para
pagar a dívida.
211
O Monitor. 1º de setembro de 1877.
212
No processo, identificamos que o Capitão Paim tinha os seguintes filhos: Izabel do Amor Divino Paim, Roza
da Câmara Paim, Brites da Câmara Paim, Anna da Câmara Paim, Izabel da Câmara Paim, Leopoldina da Câmara
Paim, João Carlos de Barros Paim e Luiz Antonio de Barros Paim.
98
já estavam usufruindo de suas liberdades. No entanto, não satisfeitos pela decisão, o casal
decidiu apelar para o Tribunal da Relação do Maranhão e a decisão foi reformada.
Pela decisão tomada pelo Juiz Júlio César Berenguer de Bittencourt em Santo
Amaro, podemos perceber que há semelhança entre os dois julgamentos, já que a decisão dos
julgadores se pautou em confirmar que as cartas de liberdade só foram concedidas porque
havia a finalidade de fraudar o pagamento da penhora. O problema que surge após essas
decisões, e que aventamos aqui, é que a autoridade da classe senhorial estava sendo
contestada. Se considerarmos que a concessão da alforria era uma prerrogativa do senhor e
que a palavra do proprietário era quem dava o tom nos documentos que tratavam da liberdade,
como essa subjetividade poderia ser questionada judicialmente? Ainda que houvesse um
acordo estabelecido entre Paim e as escravas para fraudar o pagamento da penhora, houve a
concessão da liberdade, inclusive com a comprovação das cartas de liberdade. As mulheres
consideravam aquela liberdade, ainda que condicional, como um direito adquirido.
Havia receio de que os escravos apresentassem documentos falsificados que
atestassem a liberdade após a morte do senhor e causasse prejuízo ao patrimônio dos
herdeiros. Por esse motivo, Antonio Domingues Coelho, proprietário do sítio do Salgado,
afirmou em testamento
que não fiz nem tenho a fazer benefício algum a escrava ou escravo algum, e
se algum deles, machos ou fêmeas, apresentar qualquer carta de liberdade ou
outros quaisquer papéis, serão todos havidos e tomados por falsos, porquanto
eu não passei e nem pedi a pessoa alguma que passasse papéis. 213
213
Testamento de Antonio Domingues Coelho, maço 7, cx. 4, doc. 2524-2526, Acervo Coleção Santo Amaro,
LM UFBA.
99
alguns libertos se recusavam a trabalhar nas propriedades senhoriais onde foram escravizados,
rompendo com a percepção do paternalismo senhorial.
100
Epílogo
214
CAIRES, Ricardo Tadeu. O resgate da Lei de 7 de novembro de 1831 no contexto do abolicionismo baiano.
Estudos Afro-Asiáticos, v.29, n.1-2-3, p.301-340, 2007. p. 308.
215
FRAGA FILHO, Walter. Encruzilhadas da Liberdade. Campinas: Editora Unicamp, 2006, p. 99-100.
216
Echo Sant’amarense. 15 de abril de 1884.
217
Idem. 17 de abril de 1884.
218
Idem. 7 de maio de 1884.
102
a partir de 1880 e se juntava à resistência cotidiana que era executada pelos escravos e libertos
desde o início da escravidão no Brasil.219
A reação ao movimento abolicionista tomou impulso em Santo Amaro, em 1884,
quando o Echo Sant’amarense publicou inúmeras notícias que envolviam a lavoura, o
abolicionismo e o elemento servil. Inspirando-se na sociedade Liga Eleitoral do município de
São Fidelis, que ficava na província do Rio de Janeiro, o jornal conservador iniciou uma
campanha para que liberais, republicanos e conservadores se unissem na tentativa de
resguardar seus interesses e impedir que a abolição acontecesse.
Aqui, em Santo Amaro, esse torrão abençoado, onde todas as ideias boas
germinam com uma força e rapidez incríveis, estamos convictos que os
lavradores, esquecendo as conveniências partidárias para curarem do
interesse comum, fim altamente social, farão também a sua reunião e tratarão
de conjurar a crise que se avizinha.220
Famílias que foram inimigas durante anos estavam dispostas a estabelecer uma
trégua, no intuito de preservarem seus direitos de propriedade. Ao que parece, as notícias
sobre a formação de uma associação escravista foram lidas por toda cidade e a população, que
era majoritariamente negra, deve ter começado a questionar a nova política. É possível que
houvesse o temor de que os direitos constituídos retrocedessem ou de que os libertos fossem
obrigados a ir para o campo, até porque alianças políticas, nunca antes vistas, estavam sendo
formadas. Acreditamos que essa indagação nas ruas da cidade tenha ocorrido, pois as colunas
do jornal conservador transcreveu uma notícia mencionando que o propósito da liga não era
combater a emancipação dos cativos, mas sim defender o cumprimento da lei de 1871 e
combater os abolicionistas.
A cada surgimento de associações antiabolicionistas no Brasil, a classe senhorial
de Santo Amaro ganhava fôlego e criava argumentos para que não ficassem imparciais no
quesito emancipacionista. A vida e objetivos dos cativos eram amplamente ignorados, já que
os senhores indagavam se a sociedade santamarense não poderia aguentar a escravidão por
mais alguns anos, seguindo o rito da lei de 1871. 221 Era necessário todo tipo de argumento
para tentar reverter o processo de abolição.
219
Sobre o movimento abolicionista, nas últimas décadas do século XIX, ver AZEVEDO, Elciene. O Direito
dos Escravos: lutas jurídicas e abolicionismo na província de São Paulo. Campinas, Ed. Unicamp, 2010;
MACHADO, Maria Helena P. T. O Plano e o Pânico: Os movimentos sociais na década da abolição. São Paulo:
EDUSP, 2010; SILVA, Ricardo Tadeu Caires. Os escravos vão à Justiça: A resistência escrava através das
ações de liberdade. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, UFBA,
2000.
220
Echo Sant’amarense. 8 de maio de 1884.
221
Idem. 04 de junho de 1884.
103
222
Echo Sant’amarense. 30 de julho de 1884.
223
Vale lembrar que o Desembargador Júlio César Berenguer de Bitencourt foi o juiz de primeira instância que
julgou o processo das libertas condicionais do capitão Paim, considerando que as cartas de alforrias foram
falsificadas.
104
224
Echo Sant’amarense. 20 de agosto de 1884.
225
Idem. 24 de agosto de 1884.
226
Idem. 25 de outubro de 1884.
227
Idem. 24 de agosto de 1884.
105
obrigar os libertos a permanecerem nos municípios onde haviam sido alforriados. Sobre isso,
pontua que “em 1885, para vários parlamentares que enfrentaram a ‘questão servil’ muitos
deles extremamente ciosos dos interesses senhoriais –, a liberdade não deveria significar uma
ruptura absoluta da antiga relação entre senhor e escravo.”228
A associação escravista também se comprometeu a interferir na política local, já
que só iriam apoiar candidatos que declarassem acordo exclusivo aos ideais da associação.229
Uma das maiores inquietações dos senhores de engenho era a possibilidade de haver a
emancipação dos cativos sem que fosse discutida uma indenização justa aos proprietários. E
para atingir seus objetivos, deveriam ter aliados políticos.
Na década de 1880, o valor do escravo havia alcançado cifras imensas e os
senhores sabiam que a emancipação somada à ausência da indenização causaria prejuízos
vertiginosos, além da falta da mão de obra na propriedade. Cientes das críticas que poderiam
receber, os senhores de Santo Amaro declaravam que possuíam sentimentos humanitários ao
dizerem que também defendiam a liberdade, porém com regras.
Mesmo considerando que a escravidão tinha defeitos, os senhores diziam que a
lavoura só podia contar com os cativos para alcançar o progresso. Também tinham o costume
de mitigar o sistema escravista ao dizer que o trabalho escravo não era mais como
antigamente, pois “a escravidão que [há] entre nós já passa a ser apenas um contrato entre o
lavrador e o que trabalha.”230 O contrato pressupõe um acordo de vontades entre as duas
partes e era algo que não havia na escravidão brasileira. Por mais que a historiografia da
escravidão sustente as possibilidades de negociação entre senhor e escravo nas relações
cotidianas, não há que se falar em contrato de forma estrita, pois havia a noção de um ser
propriedade e o outro proprietário.
A classe senhorial acreditava que a existência de senhores brutais e grosseiros
havia desaparecido com a promulgação da lei de setembro de 1871 e que qualquer movimento
feito para acabar com a escravidão era intempestivo e inoportuno, pois “os escravos passaram
a ser uma espécie de colonos naturais, cuja única condição que lhes pesa é a obrigação de
trabalhar”.231 Ainda que a lei do ventre livre tivesse garantido o direito costumeiro para os
escravos, essa ideia não existia na prática, até porque a existência do ser humano não
pertencia a si mesmo.
228
MENDONÇA, Joseli Nunes. Cenas da abolição: escravos e senhores no Parlamento e na Justiça. São Paulo,
Fundação Perseu Abraumo, 2007, p. 47.
229
Echo Sant’amarense. 24 de agosto de 1884.
230
Idem. 4 de maio de 1884.
231
Idem. 10 de maio de 1884.
106
Arquivos e fontes
Arquivos e bibliotecas:
Arquivo Público do Estado da Bahia
Biblioteca Nacional Digital
Biblioteca Pública do Estado da Bahia
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Diretoria Geral de Estatística (DGE), 1875.
Recenseamento Geral do Império de 1872. Bahia. BRA IL. Diretoria eral de Estatística,
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