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A GALERA HETEROGÊNEA
Naturalidade, trajetória e cultura dos
recrutas e marinheiros da Armada Nacional
e Imperial do Brasil, c.1822-c.1854
Tese de Doutorado
Rio de Janeiro
Setembro de 2011
Silvana Cassab Jeha
A Galera heterogênea
Naturalidade, trajetória e cultura dos recrutas e marinheiros
da Armada Nacional e Imperial do Brasil, c.1822-c.1854
Ficha Catalográfica
Jeha, Silvana Cassab
CDD: 900
Aos marinheiros e suas mães
Ao meu pai e à minha mãe
Ao meu filho João
Agradecimentos
Ao meu orientador Ilmar Rohloff de Mattos, que acompanhou grande parte da mi-
nha trajetória desde a graduação. Aos seus conselhos falados, escritos e silenciosos
e ao seu apreço pela liberdade de pensamento, sou eternamente grata. Os eventuais
equívocos desta tese são decerto todos meus.
Aos queridos funcionários do Departamento de História da PUC-Rio: Anair, Cleusa
Silva, Claudio de Araújo, Moisés Leitão, Pedro Chermont e, especialmente, Edna Tim-
bó, sempre pronta a ajudar alunos avoados como eu. Aos funcionários da maravilhosa
biblioteca da PUC e das demais dependências dessa Universidade, expresso igualmente
a minha gratidão.
Ao Arquivo Nacional, minha segunda casa no Rio de Janeiro, como sempre repi-
to. Aos seus funcionários, especialmente Rosane Coutinho, pela ajuda certeira e pelos
almoços no Bar do Elias. À amiga Tereza Cristina Alves, que ajudou muito quando os
manuscritos multiplicaram-se.
Aos professores Ivana Stolze Lima e Ricardo Salles, pela leitura cuidadosa da minha
qualificação. Agradeço-lhes novamente a participação na banca de defesa, à qual se
juntaram os professores Marcus Carvalho e Jaime Rodrigues.
À professora Silvia Hunold Lara, por ter me aceitado como aluna especial na Uni-
camp em 2007; às professoras Cristina Wissenbach e Jeanne Marie Gagnebin, que me
acolheram como ouvinte em cursos inspiradores na USP e na PUC-SP. Aos professores
István Jancsó (in memoriam), João José Reis, Paulo Micelli, Jaime Rodrigues, Matthias
Assumção e Antonio Carlos Diegues, que me receberam e aconselharam. Aos professo-
res Isaac Land, Ravi Ahuja e Richard Burg, que me enviaram, de além-mar, textos sobre
o tema. A Álvaro Nascimento e Edna Antunes, estudiosos de marinheiros. A Joel Birman
pelas indicações bibliográficas, e a Elisabete Braga. A Lorena Vinci e Vadim Nikitin, pela
revisão e a Gustavo Marchetti e Gil Fuser pela diagramação e pela elaboração dos mapas.
No Rio de Janeiro: Cláudia Sampaio (esta esteve perto de cabo a rabo!), Valter Lano e
Tânia Pinto (ombros amigos), Camilo Pena, Chris Moretti, Mario Barata, Tereza da Silva,
Mariana Lins, Elena Torres, Álvaro Marins . Na Fazenda Santana: Orlando Sant’anna, a
pequena Mariana e a maravilhosa Gláucia Altmann.
Em São Paulo: os amigos Glaucinha Lima, amante das coisas marujas, Glaydson
da Silva , Andréa Slemian, Cacá Machado, Lia Vainer, Elaine Ramos, Guile Wisnik, Fer-
nanda Carvalho, Fernando Vilela, Beto Vilela, Marina Bitelman, Zezé Silveira, Théo
Werneck e Irene Oliveira.
Em Salvador, os amigos: Iacy Mata, Jair da Silva, Vânia Vasconcellos, Edinélia Sou-
za e, especialmente, Luciana Brito, ouvido sincero. Agradeço a Mãe Elisa pela gira de
marujo da qual participei na Praia do Buraquinho. Juliana Farias é do Rio, mas mora na
Bahia, amiga nova, doutoranda com filho pequeno.
Em Florianópolis, Lara Vainer. Em Fortaleza, os amigos Tyrone Cândido e Fred
Neves e, principalmente, a jangadeira Berenice Abreu; em Curitiba, a espirituosa Cida
Ribas. Em Porto Alegre, Regina Xavier.
Muitos desses colegas, tornados amigos, conheci em trânsito, tanto meu quanto
deles. Nós estudantes também somos um pouco marinheiros.
A Sonia, minha mãe, e a Roberto, meu pai: gratidão eterna pelo apoio. Só posso
abraçá-los e beijá-los. Aos meus irmãos: Silvia, Sandra, Cássio, Susana e Sabrina. Ao
Paulo, pai do João, obrigada pelas conversas sobre mar, romances, pessoas e per-
sonagens. Ao meu filho Joãozinho, grande companheiro de viagem. Quando nela
embarquei, você tinha apenas um ano de vida. Agora, que já tem seis, pode ler os
agradecimentos da mamãe.
Ao CNPq e à PUC-Rio pelos benefícios recebidos, fundamentais para o desenvol-
vimento e a existência da tese.
Não sei se é possível agradecer a uma cidade. Mesmo assim, gostaria de agradecer
ao Rio de Janeiro, onde morei durante nove anos, metade do tempo em Santa Teresa, de
onde eu via o mar, e outra metade entre o Leme e Copacabana, perto dele. Agradeço as
caminhadas que fiz em torno do Quartel General da Marinha, com todos aqueles ves-
tígios marujos. Da praia de Copacabana, vislumbrei muitos navios, além de ouvir-lhes
quase diariamente os apitos, a quatro quadras da praia. Quantos devaneios cheguei a
fazer sobre o que se passava ali dentro... Agradeço, portanto, a inspiração proporcio-
nada pela cidade para estudar os homens do mar. Aos marinheiros que encontrei pelo
caminho, muito obrigada pelas suas histórias.
Gostaria finalmente de registrar a viagem que fiz a Beirute, Líbano, em companhia
de meu pai. Dali, dois avôs e cinco bisavôs meus imigraram por via marítima para se
estabelecerem no Brasil. Contemplei o mar Mediterrâneo e fiquei imaginando se existe
alguma fronteira entre esse mar e o oceano Atlântico. Essa viagem foi extremamente
importante à concepção da tese.
Jeha, Silvana Cassab; Mattos, Ilmar Rohloff de. A galera heterogênea: naturalidade,
trajetória e cultura dos recrutas e marinheiros da Armada Nacional e Imperial do
Brasil, c.1822 - c.1854. Rio de Janeiro, 2011. 242p. Tese de Doutorado – Departamento
de História, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Esta tese trata dos marinheiros e dos recrutas que atuaram na Armada Nacional e
Imperial do Brasil entre c. 1822 e c. 1854. Como ocorria nas marinhas dos países de base
atlântica, os seus navios eram tripulados por homens de diversas naturalidades: entre
os estrangeiros, principalmente portugueses e anglófonos; entre os nacionais, homens
oriundos de quase todas as províncias do Império. Devido às múltiplas origens, esses
recrutas e marujos apresentavam uma profunda pluralidade de trajetórias e contribuí-
ram, assim, para a ampliação e o desenvolvimento de uma cultura marítima cosmopolita,
criada desde o início das navegações pelo Atlântico. Os requerimentos de recrutas e
de seus familiares, a literatura marítima portuguesa e as memórias de marinheiros an-
glófonos foram aqui os elementos centrais para compreender as suas experiências e as
rotas socioeconômicas e culturais que percorreram, tanto no oceano quanto nas suas
margens. Desse modo, tornou-se possível relacionar a formação do Estado Imperial e
da nacionalidade brasileira à história atlântica e marítima.
Palavras-chave
Marinha do Império do Brasil; recrutamento militar; marinheiros; cultura marítima;
trajetórias atlânticas.
Abstract
This work is about the marines and recruits of the National Imperial Navy of Brazil,
between 1822 and 1854. Just as marine-based Atlantic countries, its ships were manned
by men of diverse ethnicities and nationalities: among foreigners, mainly Portuguese
and Anglophone, and among nationals, men from almost all provinces of the Empire.
Due to their multiple origins, all recruits and marines had a background of a deep plu-
rality of paths, and therefore contributed to the enlargement and development of a
cosmopolitan maritime culture created since the beginning of navigation in the Atlantic
Ocean. The requirements of the recruits and their families, the Portuguese maritime
literature and the memories of Anglophone sailors were core to the comprehension of
their experiences, and cultural and socioeconomic routes in the ocean and its borders.
Thus, it became possible to relate the formation of the Imperial State and the Brazilian
nationality to the Atlantic and maritime history.
Keywords
Marinha do Império do Brasil (Brazil’s Empire Navy); military recruitment; marines;
maritime culture; Atlantic trajectory.
Sumário
2.1 1822 51
2.2 Os estrangeiros em números 54
2.3 Os portugueses 58
2.3.1 Portugal – Brasil: cultura, religião e pobreza 61
2.3.2 Uma poética da partida 66
2.3.3 Portugal: officina virorum da Armada do Império do Brasil 75
2.4 Britânicos e norte-americanos 81
2.4.1 A Cabanagem e os marinheiros ingleses William e Thomas 84
2.4.2 Entre a fome na Irlanda e o trabalho forçado no Brasil 88
2.4.3 Estados Unidos – Brasil: o Atlântico do Novo Mundo 92
2.4.4 Missionários protestantes no porto: a bandeira Bethel na Corte 95
2.4.5 Memórias, diários e leituras 99
2.4.6 A história do norte-americano Jacob: cinco anos no mar,
três semanas na Armada do Império do Brasil 102
3. Nacionais 109
3.1 O recrutamento militar no Império 110
3.2 Homens em movimento 117
3.3 Naturalidade provincial 119
3.4
“Jugado feito batata”: A viagem à Corte 122
3.5 Resistências 127
3.6
“Dessa sorte castigado e mesmo assim prestar serviço à Nação” 134
3.7 A história de um “vadio”: o pardo forro Hermógenes José Ribeiro 144
3.8 Cores 146
3.9 Indígenas 155
3.10 Pretos e escravos 165
3.11
“Petição de miséria”: retórica da desgraça 171
3.12 Amor de mãe, arrimos e outros laços familiares 175
6. Bibliografia 227
Lista de tabelas
Cabeçalho de um dos inumeráveis “Notice to Mariners” ou “Aviso aos navegantes” que a Marinha Britânica
enviava às autoridades marítimas de diversas nações, entre as quais o Império do Brasil, contendo
informações sobre tráfico marítimo no planeta.
1 Introdução: Aviso aos navegantes
1 O francês Anacharsis Cloots foi um jacobino que chefiou uma delegação de trinta e seis estrangeiros
durante a primeira assembleia francesa, em 1791.
2 melville, Herman, Billy Budd, p. 18.
3 melville, Herman, Moby Dick, ou a baleia branca, p. 121.
4 linenbaugh, Peter; rediker, Marcus, A hidra de muitas cabeças. p. 38. Os autores atribuíram ainda
um sentido ideológico ao termo: “Apesar de escrevermos sobre o caráter inter-racial da multidão
heterogênea, e de enfatizá-lo, gostaríamos que os leitores tivessem em mente esses outros signifi-
cados – a subversão do poder e a aparência da pobreza”. Ibidem.
30
1.1 Historiografia
5 Verbete “Galera”, Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Assim como galé era a pena dos crimi-
nosos condenados a remar nas galés, e até pelo menos o século xix, cumprir trabalhos forçados
marítimos ou não.
6 Ibidem.
7 braudel, Fernand, “Para uma história serial: Sevilha e o Atlântico (1504-1640)”, in: Idem, Escritos
sobre a História, p. 131.
31
O mar é talvez o principal espaço liso, o modelo hidráulico por excelência. Mas o
mar é também, de todos os espaços lisos, aquele que mais cedo se tentou estriar,
transformar em dependente da terra, com caminhos fixos, direções constantes,
movimentos relativos, toda uma contra-hidráulica dos canais ou condutos. Uma
das razões da hegemonia do Ocidente foi a capacidade que tiveram seus aparelhos
de estado para estriar o mar, conjugando as técnicas do Norte e as do Mediterrâneo
e anexando o Atlântico. Mas eis que esse empreendimento desemboca no resultado
mais inesperado: a multiplicação dos movimentos relativos, a intensificação das
velocidades relativas no espaço estriado, acaba reconstituindo um espaço liso ou
um movimento absoluto.8
8 deleuze, Gilles; guattari, Félix, Mil platôs: Capitalismo e esquizofrenia. Vol. 5, p. 61.
32
A realidade das trocas demográficas, econômicas, culturais e sociais está tanto sub-
metida às relações de poder quanto é independente delas. Elas se deram tanto no
espaço liso, onde são os indivíduos que fazem as suas escolhas, quanto no espaço
estriado pelos Estados, as nações ou os Impérios.
Markus Rediker é talvez o maior expoente de uma historiografia atlântica social
de viés marxista. Os seus principais trabalhos: The devil and the deep blue sea, A hidra
de muitas cabeças: Marinheiros, escravos, plebeus e a história oculta do Atlântico revolu-
cionário – este em colaboração com Peter Linenbaugh –, e Navio Negreiro, contêm
seções fundamentais sobre os marinheiros, sobretudo sobre os do Atlântico norte.
De maneira semelhante a Deleuze e Guattari, Rediker e Linenbaugh estabeleceram
duas forças simultâneas no contexto da expansão atlântica inglesa, mas, nesse caso,
opostas entre si:
Desde o começo da expansão colonial inglesa, na alvorada do século xvii, até a in-
dustrialização metropolitana do início do século xix, governantes usaram o mito
de Hércules e da hidra para descrever a dificuldade de impor a ordem em sistemas
de trabalho cada vez mais globais, apontando aleatoriamente plebeus esbulhados,
delinquentes deportados, serviçais contratados, extremistas religiosos, piratas,
operários urbanos, soldados, marinheiros e escravos africanos como as cabeças
numerosas e sempre cambiáveis do monstro. Mas as cabeças, apesar de origina-
riamente postas numa combinação produtiva por seus hercúleos dirigentes, logo
desenvolveram entre si novas formas de cooperação contra esses dirigentes, que
iam dos motins e greves aos tumultos, levantes e revoluções.10
Os marinheiros e recrutas desta tese coincidem com algumas das personagens cita-
das acima. Mas as suas histórias são interpretadas aqui de maneira diversa. Mais do
que uma luta de classes – que gera cooperação entre os esbulhados, greves, tumultos,
levantes e revoluções –, estudei outras formas de resistência, os seus costumes em
comum e também as suas intolerâncias internas. Menos a sua consciência do que
as suas ações, sobretudo mediante as suas trajetórias. Nesse sentido, o trabalho
optou por seguir a linha de raciocínio do primeiro livro de Marcus Rediker, no qual
o autor clama por uma história internacional da vida e do trabalho dos marinheiros,
conjugando os passados dos diversos lugares onde nasceram e viveram.11
Procurei, sim, entender como sujeitos em situação de marginalidade reagem
criativamente ao sofrimento e à opressão, deixando marcas na cultura do grupo e
da sociedade como um todo.
Embora a violência resultante dessas experiências – mortes, mutilações, cica-
trizes, sangue derramado e demência – seja enorme, essa faceta das suas vidas foi
pouco abordada neste trabalho. Importantíssima, deixo-a para outros estudiosos.
O problema da conceituação da história atlântica é que ela abrange praticamente
toda a história do Ocidente na época moderna e inclui todas as margens atlânticas
da Europa, da África e das Américas. Sendo assim, os estudos do tráfico de escravos
para o Brasil apropriam-se do termo, já que todas essas margens são partícipes e
comunicam-se por meio do Atlântico. Mas, como a definição acima indica a his-
tória atlântica, não diz respeito, é claro, apenas a esse oceano e às áreas costeiras
dos países que o margeiam. Isso faz com que este trabalho, apesar de inserido na
historiografia atlântica, seja mais especificamente de história marítima.
De modo que aí se constitui outro problema, pois a história marítima é mais
desenvolvida em países que foram impérios marítimos. O Império do Brasil era,
sobretudo, territorial. Excluindo-se as questões do Prata, os poucos conflitos inter-
nacionais travavam-se principalmente nas fronteiras terrestres do território. O seu
imenso litoral serviu à “expansão para dentro”12. Ou seja, a Corte governou também
por meio da navegação de cabotagem.
A navegação regional de canoas, jangadas, barcos de pesca, também tem sido ob-
jeto de estudos, em especial de antropólogos e de alguns historiadores. Os estudos
de navegação mercante ainda não são muito numerosos, sendo o tema dos navios
mercantes negreiros o mais abordado. Além disso, à exceção das pesquisas sobre a
revolta dos marinheiros de 1910, as pesquisas sobre marinheiros e marítimos não
se destacam na historiografia brasileira.13
A história da Marinha de Guerra do Brasil evolui por duas vertentes principais:
a acadêmica, produzida na Universidade, e a institucional, produzida na própria
Marinha do Brasil, cujo Departamento de História Marítima e Naval
12 mattos, Ilmar R., “Construtores e herdeiros: a trama dos interesses na construção da unidade po-
lítica”, Almanack Brasiliense, n. 1.
13 O estudo brasileiro mais importante do século xix sobre marítimos é A faina, a festa e o rito: Gentes do
mar e escravidão no Brasil (Séculos xvii ao xix), de Luis Geraldo Silva, 1996. Há também bons estudos
regionais, como Gentes do Grande Mar Redondo: riqueza e pobreza na Comarca de Paranaguá 1850-1888,
de José Augusto Leandro, 2003; e Pescadores e Roceiros – Escravos e Forros em Itaparica na Segunda
Metade do Século xix (1860-88), de Wellington Castellucci Jr.
14 Essa definição foi transcrita do próprio site do Departamento de História Marítima e Naval da Ma-
rinha do Brasil. Disponível em: http://www.mar.mil.br/dphdm/pesq/hist.htm. Acesso: 31 jul. 2011.
35
15 greenhalg, Juvenal. O arsenal de Marinha no Rio de Janeiro na História. 1822-1889 e Presigangas &
calabouços: Prisões da Marinha no século xix.
16 Sobre a Marinha do Brasil, eu daria destaque à dissertação de Álvaro Nascimento: A ressaca da ma-
rujada: recrutamento e disciplina na Armada Imperial; à dissertação de Edna Fernandes Antunes: Ma-
rinheiros para o Brasil: o recrutamento para a Marinha de Guerra Imperial (1822-1870); à dissertação
de Paloma Siqueira Fonseca: A presiganga real (1808-1831): punições da Marinha, exclusão e distinção
social. Projeto de pesquisa sediado na Universidade de Londrina: A formação da Marinha de Guerra
do Brasil (1821-1845) entre os anos de 2002 e 2009 e subsidiado em parte pela Marinha do Brasil. Há
também diversos bons estudos sobre as escolas de aprendizes de marinheiros em vários estados.
Sobre a revolta dos marinheiros de 1910, existem vários trabalhos, entre os quais: Cidadania, cor e
disciplina na revolta dos marinheiros de 1910 de Álvaro Nascimento; Em busca da cidadania: praças da
Armada Nacional, 1867-1910, de José Miguel de Arias Neto; Legacy of the lash, race & corporal punish-
ment in the Brazilian Navy (1860-1910), de Zachary Morgan, o livro clássico de Edmar Morel, A revolta
da chibata, entre outros.
36
1.2 Naturalidade
tabela 1
Naturalidade das tripulações da Armada (1825-1854)
britânicos e total
navio portugueses norte-americanos outros estrangeiros nacionais
imperatriz
145 (57%) 46 (18%) 19 (7%) 210 (84%) 42 (16%)
(1825-26)
imperatriz
275 (29%) 150 (15,6%) 186 (19%) 611 (64%) 345 (36%)
(1833-35)
constituição
223 (31%) 92 (12%) 47 (6%) 362 (50%) 363 (50%)
(1844-46)
imperial marinheiro
74 (13%) 63 (11%) 43 (8%) 180 (32%) 376 (68%)
(1852-54)
Fontes: an, Série Marinha, livros de socorros. Fragata Imperatriz xvii M 2500, xvii M 2501; fragata Constituição: xvii M
490, xvii M 1334, xvii M 1342, xvii M 1374, xvii M 1399; corveta Imperial Marinheiro: xviii M 2303, xviii M 2311, xviii M 2312,
xviii M 2323, xviii M 2324, xviii M 2325.
A provável causa de não haver maioria de nacionais até a década de 1840 é o fato de
os nascidos no Brasil (Colônia ou Império) não serem tradicionalmente sea-going
37
17 clark, George Edward, Seven years of a sailor’s life, p. 136. Tradução minha.
18 Relatório apresentado à Assembleia Geral Legislativa (...) pelo Secretário d’Estado dos Negócios da Marinha,
João Mauricio Wanderley, 1855. p. 6. Doravante citarei esses relatórios como “Relatório da Marinha”,
seguido do respectivo ano.
19 Relatório da Marinha, 1857, mapa T.
20 Ibidem.
21 rodrigues ,Jaime, De costa a costa: Escravos, marinheiros e intermediários do tráfico negreiro de Angola
ao Rio de Janeiro (1780-1860), p. 186.
38
Os pontos no mapa correspondem às naturalidades dos marinheiros indicadas nos livros de socorros das embarcações
estudadas. Ao lado, a lista indica as localidades e o número de marinheiros provenientes de cada uma delas.
Fontes: an, Série Marinha, Livros de socorros da fragata Imperatriz xvii M 2500 e xvii M 2501; Livros de socorros da
fragata Constituição (1844-46): xvii M 490; xvii M 1334; xvii M 1342; xvii M 1374; xvii M 1399; Livros de socorros da
corveta Imperial Marinheiro: xviii M 2303; xviii M 2311; xviii M 2312; xviii M 2323; xviii M 2324; xviii M 2325.
39
A Ilha das Cobras abriga instalações da Marinha desde o período colonial. Rio de Janeiro, 2004.
Foto Helder Rocha.
22 Decretos do orçamento do Império entre as décadas de 1830 e 1860. Ver Coleção de leis do Império.
23 Relatório do ministro da Marinha, 1852.
41
Formas compulsórias
1. Recrutamento forçado de nacionais e muitas vezes estrangeiros por policiais,
militares, recrutadores de ocasião. Os recrutas eram enviados às presidências das
províncias, que os expediam ao Ministério da Marinha. Os secretários da Polícia
da Corte não raro os enviavam diretamente ao Ministério. Muitos tenentes da
Marinha praticaram o recrutamento em regiões portuárias, recrutamento esse
que seria orientado pelo regulamento de 10 de julho de 1822 até 1874, e por inú-
meras outras leis, muitas vezes dissonantes em relação a ele.
2. Raptos em navios mercantes e regiões portuárias de marujos estrangeiros ou
nacionais (razias, no entender do historiador militar Juvenal Greenhalg). Esse
modo de tripular um navio era comum na maior parte dos países atlânticos. Até o
43
Formas contratuais
4. Engajamento em países estrangeiros (principalmente Inglaterra e Portugal)
por meio dos consulados e de agenciadores diversos.
5. Engajamento e/ou voluntariado de estrangeiros e nacionais em portos. Mesmo
recrutados a força, os nacionais estavam cumprindo um tipo de trabalho com-
pulsório legal, o chamado “tributo de sangue”, relacionado ao pertencimento
da nação, o que não fazia muito sentido para a maioria, e de certa maneira dava
continuidade a um tipo de recrutamento de tempos coloniais. A historiografia
do recrutamento normalmente aborda esse tipo, que era o único para o Exército,
à exceção dos batalhões de estrangeiros da década de 1820. Como o engajamen-
to foi fundamental nos primeiros anos da Armada, é preciso estudar os modos
de angariar homens para a Armada e o Exército distintamente, ainda que haja
intersecções entre ambos.
Além dos recrutadores em si, várias autoridades eram responsáveis por esse pro-
cesso. O ministro da Marinha, os presidentes das províncias, os chefes da Polícia,
juízes de paz e cônsules brasileiros de países como Inglaterra e Portugal. Intensa
legislação e farta correspondência foram produzidas como resultado desse processo
complexo, que envolvia todas as províncias do litoral e uma diversidade enorme
de funcionários do Estado, além de, muitas vezes, homens comuns. Nesta tese, as
relações de poder estão implícitas no próprio uso que fiz da documentação oficial,
onde nomes do alto escalão político do Império aparecem envolvidos nos processos
de engajamento e recrutamento, demonstrando como esse Estado em formação
conduziu detidamente o seu processo de nacionalização e civilização por meio do
trabalho forçado.
O recrutamento e, em menor escala, o engajamento eram práticas administrativas
cotidianas. A partir de 1831, baixavam-se decretos de cotas de recrutas atribuídas a
44
cada província, que raramente eram atendidas. Mesmo assim, as tripulações conti-
nham homens de quase todas as províncias, principalmente as litorâneas. A chamada
“caçada humana” era diária, mas se intensificava durante os conflitos, tornando mais
agressivas as ações de recrutadores e engajadores. No período estudado, além das
guerras de Independência, da guerra Cisplatina, no final da década de 1820, e de ou-
tros conflitos na região do Prata, ocorreram também as chamadas revoltas regenciais,
como a Sabinada, a Balaiada e a Cabanagem, que envolviam tanto populares quanto
elites regionais. Quando era necessário deslocar navios para os lugares de conflito,
havia campanhas emergenciais de recrutamento e engajamento de estrangeiros. E,
quando os conflitos eram debelados, muitos prisioneiros tornavam-se recrutas.
Em 1842, o Marquês de Paranaguá caracterizava da seguinte forma as duas prin-
cipais formas de incorporar marujos: “só por violência podem ser levados a servir na
Marinha de Guerra Brasileira homens que encontram facilmente a bordo da mercan-
te maiores salários: o que obrigou ao Governo a mandar engajar na Europa alguns
marinheiros”.24 Mas a violência era empregada igualmente contra marinheiros estran-
geiros nos portos do Império, como demonstra a documentação enviada por eles aos
Consulados. A presença estrangeira na tripulação da Armada consta em poucas linhas
da historiografia produzida pela própria instituição, preocupada com as questões na-
cionais, e também não é explícita nos relatórios do Ministério da Marinha do período.
A categoria de vadio, a principal entre os recrutáveis, insere-se no que Laura de
Mello e Souza denominou ideologia da vadiagem, que foi forjada durante o período
colonial e continuou a perpassar a visão das elites acerca da população do Império:
A vadiagem foi tanto alvo de uma ideologia quanto alvo da lei, já que constava como
crime no Código Criminal do Império do Brasil, descrito no capítulo IV: “Vadios e
mendigos: não tomar qualquer pessoa uma ocupação honesta e útil de que possa
subsistir”.26 A penalidade prevista era a prisão, mas uma boa parte foi recrutada para
as Forças Armadas. “Vadio” será a palavra mais recorrente nos ofícios das autori-
dades responsáveis pelo recrutamento, nos quais estão inclusos os estrangeiros e
outras exceções previstas por lei. Mas essa não era uma ideologia exclusiva do Im-
pério do Brasil ou ex-colônias. Na Inglaterra setecentista, segundo E. P. Thompson,
as elites se agarravam simultaneamente à imagem do trabalhador como um homem
não livre, um servo, e a “do homem livre como um vagabundo a ser disciplinado,
chicoteado e compelido a trabalhar”.27
Ao longo de todo o período estudado, haverá um sem-número de reclamações de
recrutamento ilegal que demonstra como a polícia e outros agentes de recrutamento
não seguiram a lei de modo sistemático, apoiados justamente na chamada razão de
Estado. Nas palavras de Michel Foucault:
26 tinoco, A. L. F., Código criminal do Imperio do Brazil annotado. p. 512. Atualmente uma lei correspon-
dente ainda existe. Trata-se do artigo 59 do decreto-lei n. 3688, de 03/10/1941, a lei de contravenções
penais: “Entregar-se alguém habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter ren-
da que lhe assegure meios bastantes de subsistência.” Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/Decreto-Lei/Del3688.htm. Acesso: 31 jul. 2011.
27 thompson, Edward P., “Patrícios e plebeus”, in Costumes em comum: Estudos sobre a cultura popular
tradicional, p. 40.
28 foucault, Michel, Segurança, território, população, p. 457.
46
de homens que não eram marítimos de origem e uma grande parte de recém-re-
crutados, ou que não tinham um ofício, ou ainda crianças que se iniciavam na vida
do mar. Os grumetes, em geral, constituíam o grupo mais numeroso da tripulação:
aproximadamente 40% dos homens.
tabela 2
Soldos dos marinheiros da Armada 1833-1854
Fontes: an, Série Marinha, livros de socorros. Fragata Imperatriz xvii M 2500, xvii M 2501; fragata Constituição: xvii M
490, xvii M 1334, xvii M 1342, xvii M 1374, xvii M 1399; corveta Imperial Marinheiro: xviii M 2303, xviii M 2311, xviii M 2312,
xviii M 2323, xviii M 2324, xviii M 2325.
Esse grupo, em certa medida, impediu classificar todos os tripulantes em uma classe
profissional, ainda que dentro dele houvesse profissionais. Abordá-los como milita-
res também não se mostrou profícuo. O fato de a marinhagem (marinheiros contra-
tados) ter sido maioria durante o período estudado roubou o caráter estritamente
militar das tripulações.
Do marinheiro exigia-se juventude e diversos saberes técnicos, o que o difere
essencialmente do soldado do Exército. Talvez, por isso, inicialmente adotou-se a
mão-de-obra estrangeira especializada, que, a partir da década de 1840, seria lenta-
mente substituída por nacionais formados nas escolas de aprendizes. A presença
estrangeira no Exército foi mínima, e as suas escolas de aprendizes duraram muito
pouco tempo. No artigo sexto do Decreto n. 914 de 11 de fevereiro de 1852, pode-se
ler “as obras de marinheiros” que um recruta tinha de aprender em um navio de
instrução, logo ao ingressar:
vergas, envergar e desenvergar o pano, largar, caçar, içar, rizar, carregar e ferrar as
diferentes velas, bracear as vergas, içar e arrear mastaréus e vergas de joanetes; e
se aperfeiçoarão no exercício de remar nos escaleres, e de manobrar neles sobre a
vela, e bem assim no de artilharia.29
Essas atribuições são ainda do tempo dos veleiros. Iniciado com a emergência po-
lítica do Império do Brasil, este estudo encerra-se na década de 1850 por diversos
motivos. No Brasil, esse período foi o tempo em que a propulsão exclusivamente à
vela estava sendo substituída pela propulsão a vapor, embora a maioria dos navios
da Armada fosse ainda funcionar por algum tempo com um sistema misto de vela e
vapor.30 O vapor do século xix revolucionou todas as marinhas do mundo, em cada
país a seu tempo. Encerrou o que a historiografia anglófona chamou de “the age of
sail”. Em meados da década de 1860, a guerra do Paraguai foi uma inflexão não só
para as forças armadas, mas também para o Império como um todo. O recrutamento
para a Armada e a composição das tripulações sem dúvida mudaram radicalmente.
É pena que ainda não tenha podido chegar até lá.
29 Decreto n. 914, 11 de fevereiro de 1852, Coleção de leis do Império do Brasil de 1852, p. 31.
30 Os primeiros navios a vapor da Armada datam da década de 1830, quando eram a minoria da Força Naval.
48
Para entender quem eram os tripulantes da Armada, criei um banco de dados de cer-
ca de dois mil e setecentos marujos, a partir dos navios de maior tripulação de cada
década: fragata Imperatriz (década de 1820 e 1830), fragata Constituição (década
de 1840) e corveta Imperial Marinheiro (década de 1850).
Em cada navio havia um volume chamado Livro de Socorros, que continha, em
geral, o nome, a graduação, a naturalidade, a filiação, a cor e outras características
físicas do marinheiro, como o formato da cabeça, a coloração dos olhos, a altura,
marcas de cicatrizes e, raramente, as suas tatuagens. Esse banco de dados gerou
diversas tabelas, espalhadas por todos os capítulos.
No capítulo 2, “Estrangeiros”, a leitura da correspondência do Ministério da
Marinha com o Ministério dos Estrangeiros e os diversos consulados trouxe à luz
os mecanismos de ingresso e saída deles na Marinha. As fontes literárias tiveram o
mesmo peso. A experiência de Herman Melville nas marinhas mercante e de guerra
transformada em literatura, sobretudo, em Moby Dick e White Jack, explicaram, em
parte, o que significava ser marinheiro no mundo anglófono, no Atlântico e no Pa-
cífico. A Melville juntaram-se outros marinheiros, autores de relatos sobre as suas
experiências nas marinhas e nas costas do mundo, inclusive na do Império do Brasil,
como George Edward Clark, Charles Nordhoff e Jacob Hazen. Os marinheiros an-
glófonos deixaram testemunhos diferentes dos testemunhos dos lusófonos, porque
a tradição da escrita e da leitura era mais difundida entre os protestantes. Nessa
direção, a consulta às revistas da organização protestante American’s seaman society
permitiu apontar as diferenças de uma religiosidade protestante dos anglófonos em
relação à religiosidade luso-católica dos marujos portugueses e nacionais.
A recuperação de uma tradição marítima literária, cultural e religiosa portugue-
sa foi a maneira que encontrei de abordar a participação desse grupo majoritário
na Armada do Império do Brasil. O seu tratamento difere dos demais, pois, além
do fato de não ter encontrado outros estudos sobre os marítimos portugueses re-
ferente a esse período, a documentação brasileira não revelou muita coisa acerca
das suas vidas antes e durante o serviço na Armada. Criei um banco de dados com
centenas de nomes de portugueses, incluindo idade, cidade de nascimento, cor, e
no entanto não há quase nada sobre as suas efetivas experiências. À diferença do
caso dos norte-americanos, não encontrei publicações de memórias de portugueses
que relatassem a vida no mar. Escolhi, então, analisá-los a partir da tradição de uma
49
poética marítima, tanto popular quanto erudita, iniciada em Luís de Camões, conti-
nuada ao longo dos séculos e presente até hoje no imaginário e nas artes portuguesas.
Nessas fontes, deparei-me com os vestígios da vida de uma parcela significativa de
homens nascidos em Portugal que se fizeram ao mar a partir do século XIV, e no mar
permaneceram, trafegando em diversas marinhas, até pelo menos o século xix. A
imagem do mar como escape da pobreza é recorrente, tanto quanto o sonho de (re)
ver areias de Portugal, verso do imemorial poema Nau Catarineta repetido ao longo
do tempo nas margens de lá e daqui, inclusive em um fado do século xx.
Se para os anglófonos a ideia de experiência já pode ser individualizada em me-
mórias e romances de marinheiros, para os portugueses ela é ainda coletiva e está
registrada nas narrativas tradicionais, além de refletida na poesia escrita. Desse
modo, podemos aplicar a distinção de Walter Benjamin entre Erfahrung (experi-
ência coletiva) e Erlebnis (experiência vivida, característica do indivíduo solitário)
às duas formas distintas de narrativa desses dois grupos de estrangeiros partícipes
da formação da Armada no Brasil.31
No capítulo 3, “Nacionais”, as correspondências de presidentes de províncias, do
chefe da polícia da Corte e do chefe do Quartel General com o ministro permitiram
compreender o mecanismo local do recrutamento até o seu envio ao Ministério,
sediado na Corte, onde seria distribuído pelos navios.
Li também mais de 140 requerimentos com anexos comprobatórios produzidos
pelos recrutados e seus familiares de todo o Império, explicando por que não po-
deriam servir à Marinha. Esses conjuntos muitas vezes reúnem documentos, como
certidões de nascimento e casamento, atestados de bem-viver e ofícios dramáticos
sobre a necessidade de o recruta permanecer próximo à sua família e ao seu escopo
de sobrevivência. Esses requerimentos são escritos por procuradores. Se o conteúdo
muda conforme a experiência do requerente, a sua fórmula permanece a mesma e
tem uma retórica própria: a retórica da pobreza. A reunião dessa documentação
permitiu reconstituir fragmentos da vida pregressa do recrutado e entender um
pouco mais do cotidiano dos pobres livres no Brasil, os quais não raro mantinham
uma relação próxima com a escravidão ou com o passado indígena. A vida pregressa
dos que convencionei chamar de nacionais tem pouco a ver com o mar, é vivida em
31 benjamin, Walter, “Experiência e pobreza” e “O narrador”, in Obras escolhidas vol. I. Magia e técnica,
arte e política. Sobre a distinção entre esses dois conceitos, ver: gagnebin, Jeanne Marie. “Não contar
mais?”, in História e narração em Walter Benjamin.
50
terra, o que assinala a diferença perante os estrangeiros, que, em geral, são deposi-
tários de um passado marítimo ou de além-mar.
O quarto e último capítulo trata mais ensaisticamente sobre questões de mar-
ginalidade, estigmas e culturais dos marítimos. Apesar de não abordar a vida dos
homens no mar, e sim, sobretudo, as suas naturalidades e as suas intersecções,
esse capítulo ganhou relevo na medida em que a imagem do marinheiro aparecia
sempre sob o signo do anátema nos documentos, no senso comum e na própria
historiografia, não só no passado como também no presente. Foi essa percepção,
especialmente, que gerou as questões desse capítulo. Assim misturei documentos
do período, documentos do presente e de outros tempos intermediários, aos quais
concernem aspectos vários: homossexualidade, alcoolismo, ritual da passagem do
Equador, tatuagens, roupas, enfim, fiz uma análise sobre a relação entre estigma e
característica da vida marítima do período e alguns dos seus ecos na vida presente.
Os resultados desta pesquisa versam sobre naturalidades e trajetórias de recru-
tas e marinheiros, mas também sobre aspectos que não são amalgamáveis. Aceitei a
condição de heterogeneidade usando fontes igualmente heterogêneas, o que gerou
uma abordagem diversa em cada capítulo.
Se comecei esta introdução com palavras escritas por Herman Melville em me-
ados do século xix, lanço agora as palavras de um ponto de umbanda, cantado nos
terreiros das cidades brasileiras de hoje, para convidá-los à leitura: “Marinheiro, é
hora, é hora de ir trabalhar, é pau, é chuva, é pedra, marujo nas ondas do mar.”
51
2 Estrangeiros
2.1 1822
2 Ibidem.
3 Ibidem.
4 mattos, Ilmar R. de. Construtores e herdeiros: a trama dos interesses da construção da unidade
política, Almanack Brasiliense, n.1, mai 2005, p. 17.
5 cochrane, Lord. Narrativa de serviços no libertar-se o Brasil da dominação portuguesa, p. 42.
6 Carta de Caldeira Brant para José Bonifácio, apud vale, Brian. A criação da Marinha Imperial, in:
História Naval Brasileira, v. 3, t.I, p. 76.
7 vale, Brian. Independence or death! British sailors and brazilian independence, 1822-5, p. 29-30.
53
Posição das frotas portuguesa (à esquerda) e brasileira (à direita) na Batalha de 4 de maio de 1823, próximo a Salvador
Ilustração extraída de: VALE, Brian. Independence or death! British sailors and brazilian independence 1822-5, p. 46.
usado como prisão de criminosos militares, civis e também lugar de detenção para
recrutados.11 Muitas vezes, como veremos, o recrutamento e a prisão se confundiam.
Em 1824, oficiais da fragata United States em passagem pelo Brasil resgataram
um marinheiro norte-americano forçado a servir. Segundo o fuzileiro e memorialista
Nathaniel Ames, tripulante da fragata, ele seria “um entre muitos”, pois o Almirante
Cochrane estava “recrutando cada homem que ele conseguisse colocar as mãos”.12
Tal situação, entre outras que presenciou no Pacífico, o convenceu de que “todos
esses governos sul-americanos merecem uma surra (sound trashing) a cada ano,
para entenderem a diferença entre meum and tuum e outros assuntos concernentes
à lei civil e às leis das nações”.13 No seu discurso patriótico, Ames não considerou
que esse procedimento não era exclusivo de governos sul-americanos, mas que se
tratava de mais uma prática herdada por eles do mundo atlântico, principalmente
da Inglaterra. O marinheiro Charles Nordhoff, de origem prussiana e naturalizado
norte-americano, simplesmente não desceu do navio no Rio de Janeiro, quando
ali esteve na década de 1840, com medo das press-gangs brasileiras que forçavam
muitos estrangeiros a servirem. Um colega seu havia passado por essa experiência
e não desejava o mesmo destino a ninguém.14
Durante duas grandes guerras o Império do Brasil contou com uma considerável
presença estrangeira principalmente anglófona e portuguesa além de diversas ou-
tras nações. A fragata Imperatriz, parte da frota que participou da Guerra Cisplatina
que resultou na independência do Uruguai, contava com 18% de anglófonos em sua
tripulação entre 1825 e 1826. Os portugueses perfaziam 57%, podendo chegar a mais
de 70 %, devido ao alto número de nomes lusófonos sem naturalidade identificada.
Na Cabanagem, o Império do Brasil combateu as forças inimigas com portugueses,
11 Sobre a presiganga ver fonseca, Paloma S. “A presiganga e as punições da Marinha (1808-1831)”, in:
castro et al., Nova história militar brasileira; greenhalg, Juvenal. Presigangas & calabouços: prisões
da Marinha no século xix.
12 ames, Nathaniel. A mariner’s sketches, p. 192. Tradução minha.
13 Ibidem.
14 nordhoff, Charles. Nine years a sailor, p. 254. Tradução minha.
55
tabela 3
Tripulação estrangeira da Armada por nacionalidade, 1833-1854
imperatriz imperatriz constituição imperial
marinheiro total
1825-26 1833-35 1852-54
1844-46
Portugueses 145 275 223 77 720 (46%)
Britânicos e
46 150 94 47 337 (22%)
norte-americanos
Outros europeus 4 150 28 21 203(13%)
Africanos/Escravos 14 24 13 5 56 (4%)
Hispano-americ. e
1 8 17 7 33 (3%)
caribenhos
Goa/Manilha 2 1 1 4
Lusófonos
131 3 21 27 182 (12%)
Não identificados*
Total 341 612 397 185 1535
* Homens com nomes lusófonos sem naturalidade identificada. Eles podem ser portugueses, brasileiros ou
africanos de Angola, Cabo Verde e Moçambique. É muito provável que a maioria seja portuguesa.
Fontes: an, Série Marinha, Livros de socorros da fragata Imperatriz xvii M 2513, xvii M 2500 e xvii M 2501; Livros de
socorros da fragata Constituição (1844-46): xvii M 490; xvii M 1334; xvii M 1342; xvii M 1374; xvii M 1399; Livros de
socorros da corveta Imperial Marinheiro: xviii M 2303; xviii M 2311; xviii M 2312; xviii M 2323; xviii M 2324; xviii M 2325.
mar era uma especialidade muito mais da Europa do que das Américas e da África.
Ao longo do século xix, no entanto, os Estados Unidos cada vez mais, aumentariam
a sua participação naval nos oceanos.
Nas tripulações estudadas eram presentes minorias de africanos, suecos, dina-
marqueses, espanhóis, franceses, holandeses, canadenses, austríacos, belgas, suecos,
prussianos, gregos, argentinos, uruguaios e até gente de Goa e Manilha.
Na fragata Imperatriz, havia cerca de 100 marujos de origem germânica, engaja-
dos entre os anos de 1832 e 1834. Não tive notícia ainda de nenhum recrutamento no
território que hoje ocupa a Alemanha, exclusivamente para a Marinha. Organizou-
-se, sim, um esquema de recrutamento de soldados e colonos em território alemão,
inclusive de presidiários. Uma parte, no entanto, ingressou na Marinha. Entre 1824
e 1828, o major Georg Anton von Schäfer, amigo de D. Pedro I e Dona Leopoldina, foi
nomeado agent d’affaires politiques e encarregado de recrutar colonos e soldados em
território germânico. Três oficiais que narraram a sua experiência no Exército brasi-
leiro o acusaram de “leviano”, “enganador”, “aliciador” e mentiroso. Schlichthorst,
o chamou “vendedor de carne humana” e Carl Seidler o descreveu como um homem
“que vendia o sangue dos seus conterrâneos (...) e que tão bem soube explorar para
os seus fins egoísticos a fúria aventureira da mocidade alemã”.17 Todos relatam mo-
mentos terríveis dos oficiais e soldados no Exército: castigos que matavam, suicí-
dios, alcoolismo, violência18. Afirmam ainda que, dentre os colonos e soldados, havia
presidiários de Mecklemburgo. Schilichthorst, por um lado considerava que “essa
imigração em vários sentidos purifica a Alemanha, e que se não pode condenar um
Estado que se livra de seus presidiários”, por outro, lamentava a triste sina em seu
novo país dos colonos e recrutas enganados que “foram úteis à sua pátria” . 19 Ora,
essa rede de engajamento e recrutamento, como em toda a parte, colheu bandidos
e pobres. É mais um capítulo da história da criminalização da pobreza, cujo casti-
go, como o dos criminosos, era militarização, o trabalho ou a deportação. Nesse
contexto, em 1826, o agente da colonização alemã na Corte, o chanceler Pedro de
Miranda Malheiros, ofereceu ao ministro da Marinha dezena de alemães oriundos
dos batalhões de estrangeiros que se diziam marinheiros de profissão.20
João Palhares. Um marinheiro português. Gauci. Um marinheiro inglês (Common sailor), 1828.
(Algarve, remador do bergantim Real) c.1850. Engelmann, Graf, Coindet, & Co [printers & publishers].
National Maritime Museum, Londres, Inglaterra.
21 an, Série Marinha, xvii M 2500 e 2501, Livros de socorros da fragata Imperatriz.
58
2.3 Os portugueses
Em 1915, “sozinho no cais deserto”, Fernando Pessoa fundiu tempos marítimos para
compor o seu poema “Ode marítima”, assinado pelo heterônimo Álvaro de Campos.
Pessoa fez parte de uma vasta tradição portuguesa de literatura sobre o mar.
Segundo o ensaísta Eduardo Lourenço, “a saudade é modulação da relação dos
portugueses como seres de memória com o tempo [...] a saudade parece modulada
pelo ritmo universal do mar. [...] Tudo é aí, simultaneamente, passado e presente.
Essa música de fundo, primeiro exterior, tornar-se-á música da alma”.23 No poema,
Fernando Pessoa, por meio do seu heterônimo Álvaro de Campos, escreve que os
marinheiros do passado são visíveis enquanto os contemporâneos são invisíveis; as
épocas marítimas do passado chamam, tornando-se simultâneas ao presente. Esse
talvez seja o tempo português mítico a que Lourenço refere-se que, de fato, é tão
intenso a ponto de permear o tempo cronológico deste estudo.
O marinheiro, esse personagem arquetípico, cantado e vivido por Camões,
projetou uma enorme sombra sobre os marujos dos séculos seguintes, que segui-
ram os passos dos seus antepassados e circularam continuamente pelo Atlântico e
por outros oceanos. Do século xvii em diante, os marinheiros portugueses foram
lentamente invisibilizados pelo heroísmo dos marítimos dos tempos das grandes
destroços dos navios chegavam à sua superfície por meio de uma passagem sub-
terrânea para o chamado, então, Mar Oceano. O mar era tão presente no cotidiano
português que as suas águas penetraram no continente, arrastando os destroços
de velhos navios para o alto da mais alta montanha, cravada no interior do país. E
de lá a história reverberou seculo seculorum.
Um marujo da novela White Jacket, de Herman Melville, exclamou da gávea do
navio: “Os Lusíadas são o épico do marujo de guerra do mundo. Que glória seria
ter Gama como almirante!”.26 Para Melville, Gama e Camões não eram apenas um
orgulho português, mas também de todos os marinheiros. Apesar de ser um grande
leitor de Camões, ele não deu destaque aos marujos portugueses contemporâneos
nos seus livros, mas estes tripularam, como muitas outras nações, tanto as suas
embarcações fictícias quanto os navios de madeira em que esse autor navegou.
Na década de 1840, Melville foi marujo do baleeiro Acushnet, experiência fun-
damental para a escrita de Moby Dick. No baleeiro, entre uma tripulação de 26 ho-
mens, havia três portugueses da Ilha de Fayal: Joseph Luis, apelidado Jo Portuguese,
residente em Portugal, Martin Brown, Charles W. Galvan, residentes nos Estados
Unidos, e um cabo-verdiano: John Adams. Os três açorianos desertaram, dois no
Peru e um nas Ilhas Marquesas no Pacífico.27 Em Ommo e White Jacket há dois per-
sonagens marujos portugueses, ambos chamados Antone.28 Nesse último livro, a
banda do navio era composta de portugueses embarcados em Cabo Verde.29
No baleeiro em que viajou o marujo e depois jornalista Charles Nordhoff, um
sexto da tripulação era de gente dos Açores, principalmente da ilha de Faial. Segundo
o memorialista, os donos dos navios apreciavam o seu trabalho, enquanto os com-
panheiros os desprezavam pelo simples fato de serem diferentes, considerando-
-os “escorregadios e fofoqueiros”. Nordhoff, ao contrário, os admirava e lhes tinha
amizade. Acreditava que não eram perdulários, característica comum dos marujos:
o seu maior sonho era poupar dinheiro, voltar para a sua ilha natal e viver em paz
com as suas famílias.30
Thomas Ewbank. Caixa de esmolas da Capela de Nossa Thomas Ewbank. Imagem de Nossa Senhora do Cabo
Senhora de Boa Viagem na baía de Guanabara, da Boa Esperança copiada da lata de esmolas do
1846. Segundo Ewbank, era usada para coletar oratório da santa na Rua do Carmo, Rio de Janeiro,
contribuições nos navios. In: Vida no Brasil, p. 200. 1846. In: Vida no Brasil, p. 141.
Antonio Carlos Diegues demonstrou como uma cultura religiosa de origem por-
tuguesa adaptou-se na cidade litorânea de Iguape, São Paulo, desde o século xvii.
Como tantas outras imagens de santos, a imagem de Cristo da Basílica de Iguape
foi encontrada nas águas. Ela teria sido jogada ao mar por tripulantes de uma nau
portuguesa atacada por holandeses em Pernambuco, e foi descoberta por indígenas
no litoral de São Paulo. Essa história está registrada no livro de tombo de Iguape de
1785-1827, onde também se lê: “no mar, na terra, em todos os perigos são numeráveis
35 diegues, Antonio Carlos S. “Os Ex-Votos Marítimos da Sala de Milagres da Basílica do Senhor Bom
Jesus de Iguape São Paulo”, in: diegues, Antonio Carlos (Org.), A Imagem das Águas, p. 182.
36 Idem, p. 186.
64
37 Idem, p. 190-2.
38 Suas histórias foram contadas no capítulo Nacionais.
39 camus, Albert. Diário de viagem: A visita de Camus ao Brasil, p. 130.
40 camus, Albert. “A pedra que cresce”, in: O exílio e o reino, p. 150.
65
devorado, mas o marujo é o diabo, e quer a sua alma. Não aceitando a condição, o
capitão diz que sua alma é de Deus e o seu corpo, do mar. O marujo demônio, então,
explode, e a nau estropiada alcança a terra.
No século xix, na década de 1810, Henry Koster descreveu a Nau Catarineta
como um fandango encenado na festa de Nossa Senhora da Conceição, na Ilha
de Itamaracá em Pernambuco.41 Há versões colhidas por Sílvio Romero, Mário de
Andrade, Alceu Maynard de Araújo, datadas do fim do século xix e do século xx na
Bahia, na Paraíba, em Pernambuco, em Sergipe e em São Paulo. A maior parte das
versões brasileiras compõem trechos dos folguedos chamados “marujadas”. Todas
as versões mantiveram os versos do desejo de avistar “as terras de Espanha, areias
de Portugal”. Versos que, por sua vez, estão contidos na letra de um fado do século
xx chamado “Fado português”.
Mário de Andrade, a partir do relato do capuchinho Dionísio Carli de Piacenza,
passageiro de num navio português no século xvii, concluiu:
adeus belas meninas, que de Lisboa cheguei”.44 O marujo português de cada margem
chega de Lisboa, parte para Lisboa, vê as belas meninas de lá, vê as belas meninas
daqui. Afinal, embora sempre portugueses, são marinheiros. Da “Canção de marujo”,
cantada em Portugal, a versão da “Chegança de Marujo” de Sergipe guardou duas
estrofes, uma delas muito semelhante à da canção original:
44 “Os marujos”, chegança recolhida em Sergipe, in: romero, Sylvio. Canções populares do Brasil, p.
160.
45 Ibidem.
46 micelli, Paulo. O ponto onde estamos, p. 181.
47 camões, Luís de. Os Lusíadas. Canto X, p. 160.
67
Portugal não abriga os seus filhos – expele-os ao mar. A artista portuguesa Vieira
da Silva, exilada no Brasil na década de 1940, pintou o quadro “História trágico-
-marítima”, inspirado nas gravuras das páginas de rosto da coleção A história trágico-
-marítima. A obra cujo subtítulo é “colecção de relações e notícias de naufrágios, e
successos infelizes, acontecidos aos navegadores portuguezes” foi publicada na dé-
cada de 1730 e, desde então, alimentou permanentemente o imaginário de Portugal
sobre si mesmo. Na leitura de Vieira da Silva, o barco português parece ser tripulado
por toda a população do país e é ainda almejado por aqueles que estão se afogando.
Nesse cenário, a gente portuguesa e água salgada se confundem. Eduardo Lourenço
define a longa história de Portugal como “a de uma deriva e de uma fuga sem fim”51.
Essa imagem se repete no romance Jangada de pedra de José Saramago: a península
ibérica se desprende da Europa e flutua no Atlântico sem rumo. E em “Lusitânia”,
de Sophia Andresen, mais uma vez Portugal, pobreza e o barco se confundem:
O fadista e poeta José Régio começa o poema “Portugal de todo mundo” com os
versos de um neto órfão. Seus antepassados se foram; não só os marinheiros e imi-
grantes podem cantar essa saudade, mas também quem ficou:
O mar português não era apenas uma miragem, mas um espaço na medida do pos-
sível, densamente povoado pelos peregrinos portugueses, por muitos séculos, os
quais “por necessidade ou cupidez, raro por aventura”, partiram “por vezes sem
esperança de regresso”.54
As origens do fado têm sido investigadas sob o espectro da lusofonia atlântica. Para
Kimberly daCosta Holton, a historiografia recente entende que o “fado era uma
música e uma dança que se desenvolveu tanto em Portugal como no Brasil, devido
à diversidade de moradores e freqüentadores dos portos que participaram da pro-
dução e da fruição resultante da intensa circulação do tráfico atlântico que deixou
marcas socioculturais nos ambientes urbanos”.55 Uma parte dos estudiosos localiza
as origens do fado a partir da década de 1830, nos bairros ribeiros de Lisboa, em
ambientes freqüentados por prostitutas, marinheiros, desocupados e marginais.56
A ideia de uma música se formando em trânsito, no Atlântico, entre África, Portu-
gal e Brasil, é um dos indícios da participação desses marinheiros oitocentistas na
criação do fado e em outras culturas urbanas atlânticas. Mas, mesmo sendo uma
música formada em trânsito, ela floresceu em Portugal, tornando-se uma espécie
de trilha sonora da identidade nacional marítima do país. Houton menciona a letra
do “Fado português”, na qual mais uma vez português e marinheiro querem dizer
a mesma coisa:
55 holton, Kimberly daCosta. “Fado historiography: Old miths and new frontiers”. P: Portuguese Cul-
tural Studies, p. 12. Tradução minha.
56 Holton refere-se a Rui Vieira Nery, Joaquim Pais de Brito e Rubem de Carvalho. Idem, p. 13.
57 A canção é da década de 1930 e sua interpretação mais conhecida é a de Amália Rodrigues. régio,
José. Fado, p. 35.
71
58 almeida, Miguel Vale de. “Not quite white: Portuguese people in the margins of Lusotropicalism,
the luso-afro-brazilian space, and Lusophony”. Disponível em: http://site.miguelvaledealmeida.net/
wp-content/uploads/not-quite-white-english.pdf. Acesso em: maio de 2011. Tradução minha.
59 Idem, p. 121.
72
62 Os significados destas palavras foram consultados em uma lista de gírias do século xviii, compilada
de outras obras por: coelho, F. Adolpho. Os ciganos em Portugal. Com um estudo sobre o calão, p. 79-84.
74
Ir para o mar é um jogo de azar: pode-se ficar rico ou pode-se continuar miserá-
vel, como de fato ele ficou em Pernambuco, quando escreve para sua amada ofe-
recendo apenas versos, fruto da sua “porveza”, já que estava “feito a estatula da
necessidade”.63 Saiu sem “cheta” de Lisboa e continuou sem “ferro” (outra gíria
para dinheiro) em Pernambuco. Mas, como todo o povo português, herdou o liris-
mo da peregrinação. Este misto de gente que parte compunha outro personagem
muito mencionado: o peregrino. Camões, também marinheiro, deixou-nos a sua
interpretação dessa dialética:
No século xvi, Fernão Mendes Pinto, escreveu um relato sobre a sua peregrinação
pelo mundo, onde compara a ventura da vida na pátria e alhures:
(...) não contente de me por na minha Pátria logo no começo da minha mocidade,
em tal estado que nela vivi sempre em misérias e em pobreza, e não sem alguns
sobressaltos e perigos da vida, me quis também levar às partes da Índia, onde
em lugar do remédio que eu ia buscar a elas, me foram crescendo com a idade os
trabalhos e perigos.65
63 O marujo saudozo. Rellação curioza da carta que escreveo de Pernambuco um marujo à sua moça, na
qual lhe relata a saudoza despedida que fizeram hum ao outro quando elle foi embora, e hum mimo que
ele lhe manda.
64 camões, Luís de. Lírica completa, p. 65.
65 pinto, Fernão Mendes. Peregrinação, p. 1.
75
Em maio de 1826, o senador José da Silva Lisboa, futuro Visconde de Cayru, em uma
discussão sobre imigração e naturalização de alemães, franceses, ingleses, atentou
para o esquecimento dos portugueses, que naqueles anos haviam passado para a
66 perez-mallaína, Pablo E. Los hombres del océano: Vida cotidiana de los tripulantes de las flotas de Indias.
Siglo xvi, p. 35.
67 costa, José D. R. da. Portugal enfermo por vícios, e abusos de ambos os sexos, p. 19.
76
[os portugueses] se matriculam como súditos brasileiros para facilitar sua ad-
missão na Marinha mercante. E desta prática resultam embaraços desagradáveis,
pela sem-cerimônia das autoridades encarregadas de tais recrutamentos, às quais
pouco atendem aos títulos de nacionalidade apresentados por nossos compa-
triotas, que apesar de se darem por brasileiros quando procuram emprego nos
navios de comércio, recorrem a esta legação logo que se vêm obrigados a servir
nos navios do Estado.73
de trabalho”, próprio dos pobres sem rede social, ou conseguir melhores posições,
muitas vezes com o auxílio de parentes e conterrâneos.80
Neste contexto, ser marujo da Armada do Brasil para o português não era a chan-
ce de arriscar-se por uma vida melhor: a perspectiva na costa do Brasil era trabalhar
na Marinha mercante com melhores salários, e parte deles se engajou na Marinha
de guerra, em contratos sempre curtos. Os que foram recrutados à força, ou deser-
taram ou enfrentaram por anos um mar que não trazia promessas de riqueza, e sim
a certeza de manterem-se pobres.
Os recrutados à força recorriam principalmente ao Consulado para serem soltos.
Esse tipo de pedido era tão comum que os cônsules, por vezes, faziam requerimentos
coletivos de soltura de súditos portugueses ao Ministério da Marinha.
As autoridades brasileiras, muitas de origem portuguesa, insistiram na profusão
de vadios portugueses nas grandes cidades, o que justificaria o recrutamento, ainda
que ilegal. Uma portaria de 1832 reconhecia “pela estatística dos presos desta Corte
que a maior parte é de estrangeiros que por vadiação, bebedice, furtos e assassinatos
enchem as cadeias”.81 Como os nacionais, diversos portugueses foram presos pelos
delegados de bairro sob a lacônica justificativa “vadio”, e depois de uma temporada
na cadeia terminavam a viacrucis na Armada.82
Foi o caso de Victorino dos Santos, “encontrado com outros fora de horas va-
gando pelas ruas”, tornando-se por isso suspeito. E também do espanhol Francisco
Vasques, branco, ruivo, de olhos azuis, enviado em 1857 para a capitania do porto,
pois o delegado temia que ele voltasse às ruas e engrossasse “o caldo dos vadios
que infestam a cidade”.83 Em 1840, Francisco André de Souza Andrea, presidente
de Santa Catarina, escreveu para o ministro Rodrigues Torres algo semelhante. Joa-
quim Antonio, Valentim Simões e Domingos de Miranda haviam sido recrutados na
Corte, e quando aportaram em Santa Catarina pediram ajuda ao cônsul de Portugal.
Souza Andrea, de origem portuguesa, não atendeu a solicitação, mas os enviou de
em construção, p. 151-167. Ver também mendes, José S. R. Laços de sangue: privilégios e intolerância à
imigração portuguesa no Brasil.
80 ribeiro, Gladys S. A liberdade em construção: identidade nacional e conflitos antilusitanos no Primeiro
Reinado, p. 166.
81 Portaria n. 137 de 12.04.1832. Citado em mendes, José S. R. Laços de sangue: privilégios e intolerância
à imigração portuguesa no Brasil, p. 126.
82 Ver os maços de correspondência com o ministro dos Negócios Estrangeiros e com o chefe de
polícia: an, Série Marinha, xm86 e xm5.
83 an, Série Marinha, xm 86, correspondência com o ministro dos Negócios Estrangeiros, 1857.
80
84 an, Série Marinha, xm 135, correspondência com presidente de Santa Catarina, 1840. O presidente
Francisco José de Sousa Andrea era português e viera com dom João em 1808. Militar e político,
debelou a Cabanagem, e esteve presente no episódio da retomada de Laguna.
85 an, Série Marinha, xm 1143, doc 42, Requerimentos.
81
86 hugill, Stan. Shanties from the seven seas: Shipboard work songs and songs used as work from the great
days of sail, p. 90-91. Hugill reproduz diversas versões desta canção, provavelmente oitocentista e
cantada até hoje.
87 kidder, D. P. e fletcher, J. C. Brazil and the brazilians, p. 25. Tradução minha.
82
Oh, vós, cujos mortos jazem enterrados sob a grama verde: que em meio a flores
podeis dizer – aqui, aqui jaz o meu amado: vós não sabeis a desolação que habita
estes nossos peitos. Que vazio amargo esse dos mármores enegrecidos que não
cobrem cinza alguma! Que desespero esse das inscrições irremovíveis! Que vácuo
mortífero, que indesejada infidelidade daquelas linhas que parecem minar toda a
Fé e recusam a ressurreição a seres que no deslugar pereceram sem ter túmulo.95
93 an, Série Marinha, xm 453, Legação do Brasil em Londres. Carta do advogado da família Eaton para
o ministro da Marinha, Londres, 30 de dezembro de 1838.
94 melville, Herman. Moby Dick ou a baleia, p. 58-9.
95 Ibidem.
84
Assinaturas dos marinheiros ingleses William Sealy e Thomas Jones. an, Série Marinha, xm 251.
Dias depois, a lancha foi encontrada em poder dos cabanos, de quem foi retoma-
da, sem tripulação e sem armamento: dois bacamartes, 13 armas, 500 cartuchos de
adarme, 40 balas, 30 lanternetas e 40 cartuchos de peças. Soube-se depois que um
dos tripulantes, um português, foi fuzilado pelos cabanos ou pelos próprios maru-
jos. Um marinheiro alemão arrependido da deserção voltou à fragata e, segundo o
presidente da província, contou a seguinte versão:
Estando ébrios com a privação de seus pagamentos que a Nação lhes faltava com
seus soldos há tempo, e que não tendo dinheiro e sempre cheios de trabalho, (...)
que eles usariam da força e roubariam com [os tapuios], arrojando-se sua maldade,
a conceber a proposta aos tapuios de atacarem com eles esta fragata, por se achar
mui atrapalhado com as famílias e pouca guarnição para o que eles com a lancha e
com mais sete batelões de tapuios se ofereciam.99
Em 1837, em diligência no Rio Preto, a mesma escuna Rio da Prata, cujo comandante
presenciou a partida da lancha dois anos antes, encontrou três dos marujos deser-
tores no Porto do Cury ou Curim.101 Um deles, o inglês Henry Peterson, morreu
99 an, Série Marinha xm 364, ofício do presidente do Pará, Manoel Jorge Rodrigues, ao ministro da
Marinha José Pereira Pinto, 6 de outubro de 1835.
100 Série Marinha xm 364, ofício de John Taylor, chefe e Comandante das forças navais, para o ministro
da Marinha José Pereira Pinto. Pará, 6 de outubro de 1835.
101 Não sei se seria o mesmo local do aldeamento Cory, que reunia os Mundukuru a partir de 1848 na
beira do Tapajós, então seis dias de Santarém. Hoje a localidade chama-se Curite.
86
meses depois na presinganga Defensora. William Sealy e Thomas Jones ficaram ali
presos por três anos, aguardando a sua sentença. Um conselho militar foi formado
no patacho Januária, em Santarém, onde, em 1838, cinco tripulantes da escuna Rio da
Prata – dois lisboetas, um paraense, um benguelense e um catarinense – depuseram
como testemunhas do evento de 1835.102
Apenas em janeiro de 1840 os réus depuseram na corveta Defensora, surta em
Belém, onde ainda estavam presos. Negaram a deserção, alegaram que a correnteza
e o vento ocasionaram o descontrole da lancha, e que em Itacoã, na Ilha de Marajó,
foram interceptados pelos inimigos, que lhes tomaram munição e mantimentos.
Presos, seguiram para Belém, na época tomada pelos cabanos, depois para Santarém
na canoa Auspiciosa do “cabano Saraiva”. Dali teriam fugido para Curim, no Rio
Preto, onde foram presos.
A primeira sentença do processo saiu em fevereiro de 1840 e foi baseada no
artigo 37, dos de guerra, o qual punia com pena de morte indivíduos que passavam
para o lado inimigo com munição e mantimentos. Alguns membros contestaram a
punição, ponderando a veracidade da versão dos réus, e pediram clemência. Houve
empate na votação do Conselho, e a pena foi reduzida para dez anos de trabalhos
forçados dentro da província.
102 Todas as informações a partir de 1837 foram extraídas do “Processo verbal e interrogatórios dos
réus Thomas James e Wiliam Sleves, marinheiros ingleses da fragata Campista”. an, Série Marinha,
xm 251. Agradeço ao meu colega Eduardo Cavalcante, pela transcrição do documento.
87
radical das hipóteses, tornar-se quase um caboclo nas matas amazônicas.103 A ação
não tinha volta. Um trio de ingleses continuou mata adentro durante mais ou menos
dois anos. Não sabemos o seu grau de adesão aos cabanos ou mesmo às populações
indígenas ou ribeirinhas.
Há uma história semelhante, contada por três marujos de um navio corsário que
foram presos em Cabo Frio em 1827. John Sullivan, Fergus Mc Viagh e Daniel Mullan
haviam partido como colonos para Buenos Aires. Ali teriam passado dificuldades,
o que justificaria o embarque em um navio corsário, com a “intenção de logo fugir”.
Em uma noite, quando estavam tentando apresar um navio em Cabo Frio, deserta-
ram, junto de dois italianos. Aportaram na costa e caminharam quatro dias até che-
gar à polícia de Cabo Frio. Aí permaneceram seis semanas em liberdade e partiram
em um brigue para o Rio de Janeiro, cujo capitão lhes enviou para a presinganga da
Corte. Solicitaram, então, a soltura ao cônsul britânico, que por sua vez fez o mesmo
pedido ao ministro da Marinha, se fosse “verdadeiro o que eles alegam”. Mais uma
vez, a versão contada é a de defesa de um possível delito. Como os ingleses da fragata
Campista, eles se diziam vítimas de grupos fora da lei. Também não sabemos se os
ingleses foram obrigados a trabalhar como corsários. Mas, assim como ocorreu com
os ingleses da Cabanagem, oito anos depois eles sobreviveram a situações-limite
no Atlântico internacional e acabaram em uma presinganga.104 Como tantos outros
marujos em apuros, recorreram às autoridades do seu país de origem para tentarem
se salvar da enrascada em que se haviam metido, tão longe de casa.
Os casos de William e James durante a Cabanagem, bem como o dos ingleses
com os corsários argentinos são exemplos de experiências radicais que os marinhei-
ros podiam alcançar. Eles viveram uma espécie de alteridade total. Tantos outros
homens as viveram e suas histórias foram certamente incorporadas às tradições
narrativas do mundo atlântico. Aqui cabe lembrar Michel Foucault: “o navio foi a
103 Isto aconteceu com a personagem “índia ruiva” do conto “História do guerreiro e da cativa” de
Jorge Luis Borges. Filha de ingleses de Yorkshire, que imigraram para Argentina e morreram num
ataque indígena, ela foi levada como prisioneira para o deserto, casou com um índio com quem teve
dois filhos e adaptou-se completamente a nova vida. Vestia-se com mantas, andava descalça, seria
capaz de beber sangue fresco de animais, e quando falou inglês misturava com araucano e pampa.
BORGES, Jorge Luís. O Aleph, p.39-42.
104 an, Série Marinha, xm 26, Legações estrangeiras. Ofício do cônsul interino A. I. Hearthely ao ministro
da Marinha, Marquês de Maceió.
88
O menor irlandês Thomas Downey morreu no Rio de Janeiro em 1852 de febre ama-
rela. Nesse mesmo ano, outros cinco irlandeses menores de idade também foram
enterrados no Brasil: Michael Curkin, Lawrence Collaton (católico natural de Mona-
ghan), Daniel Sullivan (católico e natural de Waterfront), Charles Curwen e Henry
Mc Coy.106 Uma denúncia no jornal The Times sobre os maus-tratos que esses meno-
res irlandeses vinham sofrendo na Marinha do Brasil causou um grande problema
diplomático com o Reino Unido.
Os menores haviam sido engajados em setembro de 1851 pelo capitão-tenente da
Marinha Elisiário Antonio dos Santos, por meio do Consulado do Império do Brasil
em Liverpool. Eram cerca de 70 meninos e adolescentes provenientes de diversas
localidades, como Dublin, Monaghan, Waterford, Athlone, Belfast, Westmeath e
Queenstown.107 Eles eram certamente fruto do êxodo irlandês causado pela grande
fome que grassou de 1846 a 1849, que reduziu consideravelmente a população do
país. Além da morte de aproximadamente um milhão de indivíduos, cerca de dois
milhões deixaram o país até 1854, sobretudo rumo a outros países do Reino Unido
e aos Estados Unidos.
Dentre as dezenas de irlandeses que partiram de Liverpool para o Brasil, vinte
ganharam uma libra e 17 schillings pelo engajamento (mais ou menos 10$000 réis)
e teriam de se sujeitar às regras da Armada por tempo indeterminado, além de não
terem assegurados os gastos com a sua volta ao Reino Unido, cláusula comum nesse
tipo de contrato. Depois de lido o termo – em português –, o menor deveria subscrever
que viajava “de livre e espontânea vontade”, bem como um dos seus pais, um tutor
ou uma testemunha. Dos onze termos que existem, cinco apresentavam assinatura
Termo de engajamento do dublinense Patrick Smith, 6 de setembro de 1850. an, Série Marinha, im 550.
era por doze anos, um tempo maior do que os próprios recrutados nacionais.109 Anos
antes, indígenas do Alto Amazonas haviam sido engajados de modo semelhante, com
a diferença que seus tutores ou parentes ganharam um pouco mais pelo engajamento,
algo em torno de 15$000 réis, e teriam de cumprir um tempo de seis a oito anos de
serviço110. No trabalho marítimo internacional, brancos europeus ou indígenas em
determinadas situações de miséria poderiam receber tratamento semelhante.
Em julho de 1852, um residente inglês da Corte escreveu para o Times britânico a de-
núncia publicada em setembro. Interveio o consulado britânico no Rio de Janeiro,
e 32 meninos foram entregues às autoridades britânicas que os “hospedaram” no
HS Crescent, navio da esquadra britânica que abrigava os africanos dos tumbeiros
apreendidos pela Inglaterra. Haveria ainda mais 18 que estavam embarcados.111 O
autor da denúncia escreveu que os meninos estavam quebrando pedra, colhendo
conchas, eram mal alimentados e tinham os seus salários retidos para que não de-
sertassem. Terminava a sua carta exclamando: “Conterrâneos, (...) mantenham os
seus filhos longe dos brasileiros! Imaginem um inglês sendo tratado como escravo,
e, o que é pior, por um brasileiro!”.112 O ministro da Marinha, em seu relatório anu-
al, mencionou o caso como causador de “alguma impressão”, opondo a denúncia
de tratamento desumano e bárbaro do Times, com as conclusões de um relatório
feito por uma comissão interna da Marinha que “evidenciou as exagerações e in-
coerências da queixa”.113
Na corveta Imperial Marinheiro, encontrei sete desses meninos, engajados como
segundo grumetes por um ano, a partir setembro de 1851, ganhando 4$800 réis por
mês. Eram eles Bradley Smith, Francis Heenan, James Burgau, James Mc Donald,
John Making, William Lamberck e Ricard Philips, todos com idade entre 14 e 16 anos.
Havia, ainda, dois menores de Liverpool que faziam parte do grupo, John Barkley e
William Ambrose.114
109 Ibidem, ofício do Tenente Eliziário Antonio dos Santos ao ministro da Marinha Manoel Vieira Tosta,
10 de setembro de 1851.
110 Ver seção Indígenas no capítulo Nacionais. an, Série Marinha, IM 483, “Engajamento de indígenas”.
111 an, Série Marinha, xm 279, Ofícios do Quartel General. Miguel de Souza de Mello Alvim para o
ministro da Marinha Zacharias Góes de Vasconcelos, novembro de 1852.
112 The Times, Londres, 21 de setembro de 1852. Tradução minha.
113 Relatório do ministro da Marinha, 1852.
114 an, Série Marinha, xviii M 2303, Livro de socorros da corveta Imperial Marinheiro.
91
Um ano antes, em 1850, cerca de 325 homens foram engajados em Liverpool e tam-
bém não eram ingleses. 270 eram norte-americanos de diversas localidades, e os
demais de outros países europeus, como França e Grécia, além de alguns turcos.
Diferente dos menores irlandeses, esses homens eram marinheiros profissionais,
sendo 70 deles tatuados. Todos ganharam cinco libras como prêmio e teriam salários
de 16$000 réis mensais, durante três anos. Quem coordenou esse engajamento foi
John Pascoe Grenfell, veterano da Marinha do Brasil, que atuava como cônsul em
Liverpool.115 Na mesma época, ele enviou uma série de colonos irlandeses para o
Rio Grande do Sul, provavelmente nas mesmas embarcações que enviava marujos.116
Grenfell deixaria o posto em Liverpool por um ano para comandar a frota do Brasil
na guerra do Prata de 1851-1852. Desconfio que ele teria engajado os estrangeiros
Marinheiros recém-
desembarcados de um navio
baleeiro em New Bedford, 1860.
Muitos baleeiros aportaram no Rio
de Janeiro nas décadas anteriores,
e alguns de seus marujos foram
recrutados ou se engajaram
na Armada Imperial. Foi o caso
de Jacob Hazen, cuja história é
narrada adiante. New Bedford
Whaling Museum, New Bedford,
Estados Unidos.
117 antunes, Edna F. Marinheiros para o Brasil: o recrutamento para a Marinha de Guerra Imperial
(1822-1870).
118 Sobre estas expedições ver junqueira, Mary. “Ciência, técnica e as expedições da marinha de guerra
norte-americana, U.S. Navy, em direção à América Latina (1838-1901)”. Varia História, Belo Hori-
zonte, vol. 23, nº 38: p. 334-349, Jul/Dez 2007.
119 nordhoff, Charles. Nine years a sailor, p. 131.
93
De 1849 a 1852, o Rio de Janeiro serviu de ponto de parada aos navios da “corrida
do ouro”, que levavam passageiros em direção à costa oeste daquele país. Muitas
embarcações pertencentes a norte-americanos, ou construídas nos Estados Unidos,
participaram clandestinamente do tráfico ilegal de escravos.120 Consolidavam-se
novos laços entre o Atlântico Sul e o Atlântico Norte, agora do lado do Novo Mundo.
Uma pequena parte dessas tripulações, quando desembarcava ou desertava, tinha
por destino um navio brasileiro por engajamento ou recrutamento forçado. Esse foi
um dos grandes problemas do consulado norte-americano no Rio de Janeiro.
As reclamações de engajamento ilegal iniciaram-se logo após as guerras da Inde-
pendência, mas foi na guerra da Cisplatina (1825-1828), que abundaram ofícios do
cônsul norte-americano, Condy Raguet, pedindo explicações ao Governo. Segundo
Hill, leitor dos seus ofícios, os marinheiros eram intoxicados ou detidos depois do
tempo de serviço terminado ou confundidos com desertores ingleses.121 Na década
de 1830, outros marinheiros desafortunados, sobreviventes de naufrágios e deser-
tores de navios norte-americanos, reclamaram ao Consulado pelo fato de serem re-
crutados à força ou que eram engajados sob falsas promessas.122 Em 1849, auge da
corrida do ouro, Hill Forest, tripulante britânico de um navio norte-americano que
viajava rumo à Califórnia, foi recrutado à força com mais dois passageiros de um
bote na Baía de Guanabara. No dia seguinte, passou a tripular a corveta Januária,
que partiu para a Bahia, onde conseguiu fazer uma petição ao cônsul. O britânico
foi detido no Rio de Janeiro, e o seu destino acabou sendo a Bahia, onde conseguiu
comunicar-se com o Consulado.123 Teria voltado ao Rio? Se sim, conseguiu embarcar
no seu navio? Chegou à Califórnia ou acabou na tripulação de um navio de outra
bandeira rumo a outro país? Junto dele, foi violentamente recrutado Edouard The-
odore Dumesy, belga, desenhista de máquinas, que passeava pela orla. Ele também
teve de recorrer ao cônsul do seu país na Bahia. Quem os enviou, juntamente com
um português sob a pecha contumaz de “vadios”, foi o subdelegado e médico Dr.
Joaquim Marcos de Almeida Rego, que dois anos depois presidiria o Ceará.124
120 Sobre estes dois temas, ver horn, George. O sul mais distante: Os Estados Unidos, o Brasil e o tráfico
de escravos africanos.
121 hill, Lawrence F. Diplomatic relations between the United States and Brazil, p. 41.
122 Ibidem, p. 84.
123 an, Série Marinha, xm 86, Correspondência com o ministro dos Negócios Estrangeiros, ofícios entre
diversas autoridades, junho de 1849.
124 an, Série Marinha, xm 86, Correspondência com o ministro dos Negócios Estrangeiros, vários ofícios.
94
125 an, Série Marinha, xvii M 4612, Livro de socorros do vapor Thetis.
126 an, Série Marinha, xm 138, Correspondência com o presidente de Santa Catarina.
127 an, Série Marinha, xm 86, Correspondência com o ministro dos Negócios Estrangeiros.
128 Ibidem.
129 Série Marinha, xm 86, Correspondência com ministro dos Negócios Estrangeiros. Ofício do ministro
dos Negócios Estrangeiros Limpo de Abreu ao ministro da Marinha, 17 de setembro de 1853.
95
O reverendo James Fletcher, mais conhecido pelo livro que escreveu sobre o Brasil,
foi também missionário da American seamen’s friends society130, entre 1851 e 1854.
Nas suas palavras, durante a vigência da paróquia sem capela estabelecida no Porto
do Rio, sob sua coordenação:
a bandeira Bethel com a sua pomba branca esteve hasteada, e quando estufada pela
brisa, como um sino de igreja, ainda que mudo, chamou os rústicos marítimos de
várias embarcações para no tabernáculo flutuante (...) ouvir, neste clima distante,
As lições da sagrada verdade.131
Entre 1821 e 1854, intermitentemente, houve cultos sob a bandeira Bethel no porto do
Rio de Janeiro. Essa bandeira foi criada na Inglaterra em meados da década de 1810,
e logo depois foi adotada por norte-americanos para ser hasteada em embarcações
onde havia cultos de organizações protestantes multinominais de apoio a marinhei-
ros, principalmente aos domingos. Entre 1821 e 1834, a bandeira foi hasteada em
embarcações norte-americanas e inglesas, e os cultos realizados por um “capitão
bethel” de navio mercante inglês, e posteriormente por dois negociantes britânicos
residentes no Rio de Janeiro.132 A partir de 1835, a American seaman’s friend socie-
ty enviou, com outras instituições cristãs, missionários para atender marinheiros
anglófonos e protestantes no porto do Rio de Janeiro e evangelizar marinheiros de
todas as nacionalidades, além dos não marítimos.
130 O objetivo da American seaman’s friend society, escrito em vários de suas publicações, era “melho-
rar as condições morais e sociais dos marítimos (...); promovendo em todos os portos [do mundo],
abrigos, hospedagem, poupanças, (...) bibliotecas, salas de leitura e escolas - e também a pregação
do Evangelho e outras benções religiosas” (tradução minha) As organizações missionárias em prol
dos marujos começaram na Inglaterra nas últimas décadas do século xviii e proliferaram dali em
diante. Em 1816 um grupo metodista criou uma bandeira para sinalizar em que navio do porto de
Londres estava sendo realizado um culto. A bandeira tinha a palavra Bethel (Casa de Deus no antigo
testamento) um pássaro e uma estrela. Essas instituições atravessaram o oceano e outras foram
criadas nos Estados Unidos como a American seamen’s friend society.As mulheres confecciona-
vam bandeiras para serem levadas para o mundo todo por missionários. kverndal, Roald. Seamen’s
missions: Their origin and early growth.
131 fletcher, Joseph. Brazil and the brazilians, p. 200. Tradução minha.
132 “Report of Rev. O. M. Johnson”. The sailor’s magazine and naval journal. The american seamen’s friend
society, New York, v. 10; kverndal, Roald. Seamen’s missions: Their origin and early growth, p. 251.
96
133 The sailor’s magazine and naval journal. The american seamen’s friend society, vol. viii, august 1836,
p. 130-1. Tradução minha.
134 Report of Rev. O. M. Johnson. The sailor’s magazine and naval journal. The american seamen’s friend
society, New York, v. 10. Tradução minha.
135 holloway, Thomas H. Polícia no Rio de Janeiro: Repressão e resistência numa cidade do século xix, p. 126.
97
Um dos grandes objetivos dos missionários era convencer marujos a não pas-
sarem o domingo divertindo-se no porto e, sim, reservar o dia santo para os rituais
cristãos. Pelos relatos de todos os missionários, em terra, eles não atuaram muito
nos locais de diversão e concentraram-se no atendimento aos doentes. Os maru-
jos não deixaram necessariamente de lado a diversão a favor da religião. Isso não
significa que eles não atenderam a esses dois apelos. Deveria ser difícil abrir mão
dos prazeres carnais da terra firme, mas a ideia do culto na sua língua e da leitu-
ra eventual da bíblia também deve ter sido bem-vinda. Essa configuração ajudava
provavelmente os anglófonos a formar um grupo distinto que se fortalecia na sua
identidade protestante, alfabetizada e idiomática, para compensar as dificuldades
da distância e da vida marítima. A vida nas estalagens, onde se falava inglês, e uma
eventual ida ao culto certamente melhoravam a vida do marujo, bem como a rela-
ção sexual e/ou afetiva com mulheres das cidades. Se filhos foram gerados, imagino
que dificilmente eles tenham sido incorporados às famílias paternas. Juntavam-se
à horda de crianças que não conheciam os seus pais, e decerto não aprenderiam a
sua língua e não visitariam os seus países de origem.
Os missionários entendiam que o evangelho tornaria o marujo um homem de
bem. O discurso dos pastores reconhecia o marujo como um homem útil ao rebanho
de Deus. Entre as autoridades brasileiras, raramente encontrei observações edifican-
tes quanto a esses homens. Não havia associações ou missões que os protegessem –
os que eram católicos deveriam contar com os santos protetores dos marítimos para
sobreviver às suas dores, e quando inválidos, com a caridade de algumas irmandades
que porventura lhes dessem um prato de comida.
99
Folhas de rosto dos livros de memórias dos marinheiros Charles Nordhoff e Jacob Hazen.
139 bolster, W. Jeffrey. Black Jacks: Afro-american seamen in the age of sail, p. 37.
140 an, xm 723, Relatório do dr. Emygdio José Barbosa, segundo cirurgião do corpo de saúde da Armada Nacio-
nal Imperial, embarcado na corveta Imperial marinheiro para o dr. Joaquim Candido Soares de Meireles,
100
Imagino que a leitura dos marinheiros de fato deveria estar ligada a material po-
pular, mas havia os que liam jornais e livros sofisticados. Edward Clark, que publicou
o diário Seven Years of a sailors’life, gostava de ler jornais nas estalagens para maru-
jos, que eram normalmente descritas como lugares de bêbados e bandidos. Muitos
marinheiros anglófonos deixaram belas páginas, o que supõe que conheciam boa
literatura. George Blanchard, um marujo baleeiro norte-americano, quando aportou
em Santa Catarina na década de 1840, escreveu no seu diário belas linhas sobre o
encantamento pelas “vinte e quatro supostas virgens vestidas de anjos e salpicadas
de ouro” da procissão da sexta-feira santa. Ele as seguiu até a missa da catedral, onde
“mil velas produziam uma labareda inebriante sob o som do coral”. Finalmente de-
clarou: “Eu não sabia onde eu estava, eu não sabia quem eu era, apenas fiquei ali com
olhos vidrados”.145 Blanchard, na contra-corrente de muitos de seus colegas, ao invés
de menosprezar os rituais católicos, escreveu uma elegia, sob forte impacto místico.
Além de comerem muito mal a bordo, os marinheiros estrangeiros apreciavam
as especialidades dos portos do Império do Brasil e outras partes. Muitas vezes os
produtos chegavam ao navio por meio dos bumboats, chamados no Brasil de bar-
cos de quitanda, onde se vendia comida e mercadorias para tripulantes de navios
ancorados. No início da década de 1830, havia 83 matriculados no Porto do Rio de
Janeiro.146 Charles Nordhoff comprou laranjas, bananas e jonny cacká (goiabada en-
rolada em folha) no porto do Rio de Janeiro no bote de Joe Portuguese, mercador
flutuante, que também vendia peixe frito e ovo cozido. Rufino José Maria, cozinhei-
ro de negreiro, produzia e comerciava goiabada nas costas atlânticas.147 Segundo
Nordhoff, o doce era muito popular entre os marujos, mas ao seu paladar parecia
areia com açúcar derretido. O que mais lhe encantou foi a desconhecida banana. Ele
descreveu a degustação da iguaria como um acontecimento: “bastou a experiência
de deixar uma derreter na boca para garantir que não havia fruta mais deliciosa
dentre as frutas tropicais”.148
145 Citado em creighton, Margareth. Rites and passages: The experience of american whaling, 1830-1870,
p. 148. Tradução minha.
146 bezerra, Nielson Rosa. Mosaicos da escravidão: Identidades africanas e conexões atlânticas do Recôncavo
da Guanabara (1780-1840)., p. 118 e 179.
147 reis, João J. gomes, Flávio; carvalho, Marcus, O alufá Rufino: tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico
negro (c.1822 - c. 1853).
148 nordhoff, Charles. Nine years a saylor, p. 128-9.
102
149 hazen, Jacob. Five years before the mast or Life in the forecastle, aboard of a whaler and man-of war. Este
livro conta sua experiência como marinheiro entre 1837 e 1842. O resumo de sua experiência carioca
foi extraído principalmente do capítulo sete e oito. As partes citadas são traduzidas por mim.
103
Joaquim, dono de uma fazenda de café e de sua família, a ponto de Mark resolver
desertar e ficar um tempo morando por ali.
O navio aportou no Rio de Janeiro onde venderia parte dos derivados das baleias
capturadas. Durante a estadia carioca, houve violentos castigos em alguns membros
da tripulação. Hazen decidiu-se por desertar.
Estava sozinho, com dez dólares no bolso, numa cidade que não conhecia nin-
guém cujo idioma desconhecia. Percebeu que a sua aventura no mar não o deixara
mais rico que o tempo que trabalhou em terra. Perguntou-se mais uma vez: “o que
farei para viver?”. Dessa vez Hazen não passou necessidades. Logo arrumou um
emprego na loja de sapatos na elegante Rua do Ouvidor pertencente ao inglês Mr.
Bridges onde trabalhou ao lado de escravos africanos e trabalhadores livres. Bridges
levou Hazen para morar em sua casa na Glória, bem como outro funcionário inglês.
Os três juntavam-se a noite para tocar música e beber vinho, momentos que torna-
ram o dia-a-dia carioca de Hazen aparentemente agradável.
Mas esta vida pacata não era suficiente para o norte-americano. Hazen apai-
xonou-se pela cortesã inglesa Mary Mertle. Seu pai viera trabalhar na extração do
ouro em Minas Gerais. Insatisfeito com o trabalho e com o país, ele resolveu voltar
com a esposa e a filha para a Inglaterra. A família Mertle instalou-se na estalagem
de certo Senhor Surfe, misto de hospedagem, prostíbulo e casa de bilhar, enquan-
to esperava o embarque para a Inglaterra. O alemão atraiu-se pela beleza de Mary
e tornou-se seu amante e cafetão. Escondeu-a dos seus pais, os quais deixaram o
país achando que a filha morrera. Mr. Surfe, alemão de nascimento, era falante de
diversas línguas, e segundo Hazen, fora espião de D. Pedro I. Tinha duas esposas,
várias amantes, sendo Mary uma delas. Hazen passaria a frequentar as “elegantes”
salas de bilhar desta estalagem.
Surfe terminou envolvido em um assassinato, foi preso, e a casa continuou fun-
cionando sob o comando da cafetina Scotch Liz. Nesse período, Hazen tornou-se
amante de Mary. Viciado em jogar bilhar ganhando pouco como sapateiro, procurou
trabalho nos navios da “US Exploring Expedition” que no final de 1838 aportara no
Rio de Janeiro. Esta foi a primeira expedição de volta ao mundo da marinha de guerra
norte-americana. Os objetivos eram tanto científicos quanto econômicos. Como
era um mero grumete (landsman), não foi aceito e arranjou um bico num navio
brasileiro de cabotagem que transportava café no litoral da província fluminense.
Quando voltou da primeira viagem, Mary estava muito doente, faminta e abando-
nada por sua cafetina. Ele serviu-lhe um prato de sopa e voltou ao trabalho. Quando
105
veio vê-la, quatro dias depois, ela já estava enterrada na vala comum do cemitério
da Santa Casa, junto de escravos, mendigos e outros pobres e desvalidos.
Hanzen descreve longamente o horror desse fim e do cemitério que continha
“pilha sobre pilha de cadáveres” de gente de todas as cores e idades. Atordoado com
o triste fim da amiga amante ficou sentado diante do cemitério até altas horas da
noite, olhando para o norte, “procurando em vão a estrela polar, que naquela hora
devia estar iluminando os vales e montanhas de sua terra natal”. Em meio a esta
imagem, reconstituiu os rostos de seus familiares às quais juntou o da pálida Mary,
criando assim um inventário sentimental de sua vida. Apavorou-se com a ideia da
distância, a possibilidade de uma febre tropical encaminhá-lo para uma “tumba
tão solitária quanto densamente povoada”. Decidiu voltar. Foi neste instante que a
trupe de recrutadores o levou para um navio da Armada do Império.
Logo que obteve o desembarque da fragata Prícipe Imperial, desejoso de voltar
para a sua cidade, alistou-se no Independence, navio da Brazil Station (estação naval
norte-americana que permaneceu por muitos anos na costa do Brasil). Percorreu
toda a costa das Américas do sul e do norte e não conseguiu chegar a sua cidade.
Acabou sendo escalado para tripular uma frota que ia para o Mediterrâneo. Conhe-
ceu Gibraltar, Nápoles e Siracusa e finalmente aportou em Maó, na Ilha de Maiorca
onde conheceu Frank, Francisca ou Francesca Modora. A mãe da moça a ofereceu
em casamento. Ali passou um tempo. Suas intenções com ela não eram matrimoniais,
tampouco enganadoras, era um amor de marinheiro. Foram a um baile de másca-
ras, ele vestido de sultão e ela de cigana. Mesmo fruindo diferentes estilos de vida,
Hazen nunca abandonou o discurso da superioridade da civilização protestante. As
observações sobre a ilha poderiam ser feitas sobre Lisboa, Rio de Janeiro:
tomou um trem para Filadélfia. Naquela cidade, procurou por Susan, a namorada que
deixara cinco anos com juras de amor. Esta última, com certo afeto, lhe informou que
depois de todo este tempo já tinha outros compromissos. Hazen agradeceu profun-
damente a sinceridade, mas de algum modo vingou-se dela, através de sua descrição:
“Bonita ela, sem dúvida, foi, traços de beleza ainda se viam aqui e ali nas suas feições,
mas as bochechas fundas e o rosto avivado deviam mais ao rouge e outros pós do que à
matiz rosácea da saúde.” Se ele a perdera, também ela perdeu sua beleza. O tempo que
os separaram era o mesmo que erodiu seu rosto.
O conto “Noite de Almirante” de Machado de Assis é sobre um reencontro seme-
lhante. De volta de uma longa viagem, Deolindo Venta-Grande propagandeou aos seus
companheiros que na sua noite de folga viveria a tão sonhada noite de almirante, depois
de meses sem ver Genoveva, aquela que jurou-lhe amor eterno. Quando finalmente a
encontrou, ela informou-lhe que namorava um caixeiro, argumentando que a jura fora
sincera, “Pode crer que pensei muito e muito em você. (...) Mas o coração mudou... (...)
Veio este moço e eu comecei a gostar dele...”.150 Diferente de Hazen que assumiu em suas
memórias o fora que levou, Deolindo voltou para o navio “com um sorriso satisfeito e
discreto, um sorriso de pessoa que viveu uma grande noite”.151
O fim da trajetória narrada por Hazen é o retorno a sua terra natal, onde apenas
menciona que reveria aqueles que durante oito anos visitaram seus sonhos. Encerra
suas histórias de farras, amores, aventuras e sofrimento com frases edificantes enal-
tecendo além da Marinha americana, a continuação de sua pobreza, o grande conheci-
mento obtido, mas sobretudo sua integridade inabalável: “Vocês me viram sujeito à
crueldade, à privação e às decepções – banido do convívio social – frequentemente
sem amigos – sempre pobre, mas jamais desanimado”.
150 assis, Machado de. “Noite de Almirante”. Obra completa Volume II – Conto e Teatro. p. 449.
151 Idem, p. 451.
107
Assinaturas extraídas dos Livros de socorros da fragata Imperatriz. an, Série Marinha, xvii m 2500 e xvii m 2501. Pará,
década de 1830.
109
3 Nacionais
1 Jerônimo Francisco Coelho, presidente da província do Pará, sobre o recrutamento para a Marinha
no rio Amazonas, 1848. an, Série Marinha, xm 107, Correspondência com o presidente do Pará. Ofício
do presidente do Pará para o ministro da Marinha, 11 de maio de 1848.
2 Decreto de 1° de julho de 1837, Coleção de leis do Império, 1837.
110
cor, o ofício, o motivo do recrutamento, o local, etc demonstra como este processo
ocorria nas províncias.
Finalmente, focalizo o indivíduo por meio de um conjunto de mais de 140 reque-
rimentos de dispensa militar, oriundos de várias localidades do Império, a maioria
endereçada ao Imperador, onde os próprios recrutas, ou seus familiares, contam
um pouco de sua história até o momento da “prisão para fins de recrutamento”, em
geral, por meio de procuradores. Nos requerimentos podemos ler suas versões dos
fatos, que contrastam com as das autoridades, e fragmentos biográficos, compro-
vados, ou não, por documentos, como certidões de nascimento, atestados de bom
comportamento, de pobreza etc.
Os escravos eram exceção nos navios, eles estavam excluídos do recrutamen-
to, deveriam permanecer em atividades produtivas. Os que ingressaram, o fizeram
durante alguns curtos períodos quando a legislação permitiu; foram recrutados por
engano ou de propósito por ávidos caçadores de recompensas; ou se alistavam para,
justamente, fugir da escravidão. Nos navios estudados, quando eles aparecem são,
muitas vezes, criados de oficiais.
É preciso lembrar igualmente que em qualquer mapa de população provincial
do Império a população livre é maior do que a escrava. Por um período pequeno
apenas, os escravos foram maioria na Bahia, no Rio de Janeiro e no Maranhão. Em
províncias como o Ceará e São Paulo, não passavam de 20% da população. Em 1829,
por exemplo, eles representavam em torno de 30% da população do Império.6
De acordo com Hebe Mattos, mesmo para um período mais próximo da Abolição,
os estudos sobre a escravidão consideraram por muito tempo o homem pobre livre
residual em um sistema econômico baseado na grande lavoura e escravidão. Para
a autora, “desenhou-se uma não sociedade, onde milhões de pessoas, entre livres
e escravos, estariam em condição de desclassificação social, desajuste cultural e
marginalidade cultural”.7
Durante o Império, uma enxurrada de avisos, decisões e decretos mudou várias
vezes as regras do recrutamento em aspectos como idade, cor, entre outros, ge-
rando certa confusão entre recrutadores e recrutas. Procedimentos, que diante do
regulamento pareciam ilegais, muitas vezes não eram. Ainda assim, muitos abusos
foram praticados.
No século xix, “preso para recruta” era uma expressão corrente e os familiares
pediam soltura ou “liberdade” para os seus entes recrutados. O alistamento volun-
tário na Marinha era muito pouco praticado.
Esse “ato de prisão” era, via de regra, feito de maneira violenta, por soldados ou
policiais. Todo o aparato militar, policial e judicial, e mesmo homens pobres atrás de
recompensas, faziam parte desse circuito. Anna Francisca T. Leitão, da vila de Santos,
São Paulo, reclamou que seu filho Antonio José das Freitas Leitão “foi violentamente
metido em praça da Marinha, sem que houvesse motivos que justificassem seme-
lhante violência”.8 A mãe do estudante pardo baiano Marcolino Sant’Anna também
reclamou da violência do recrutamento, além da pouca idade de seu filho (10 anos). 9
Tenentes da Marinha e do Exército e policiais eram os principais agentes re-
crutadores. Os homens pobres muitas vezes poderiam ser recompensados, caso
indicassem ou trouxessem recrutas ou praças desertores. Os juízes e delegados lo-
cais decidiam quem mandar para os presidentes das províncias; finalmente, estes
últimos enviavam os recrutas para a Corte. Essa extensa rede foi percebida por Hen-
drik Kraay como “um sistema no qual contribuíram o Estado, a classe de senhores
de terras e escravos e boa parte dos pobres livres, e da qual cada participante tirou
benefícios significativos”.10
A recompensa pela entrega de recrutas e desertores era uma remuneração extra,
instituída e organizada para funcionários da Polícia da Corte. Em 1842, O chefe da
polícia Eusébio de Queiróz enviou ao ministro da Marinha Rodrigues Torres o valor
que o Ministério devia à Polícia: 535$000 réis, resultado da captura de 95 recrutas e
12 desertores, a 5$000 réis por indivíduo. Esse valor seria repassado ao recrutador.11
Em 1837, o presidente do Rio de Janeiro, em um ofício reservado, pedia autorização
para o ministro Rodrigues Torres para recompensar, não somente juízes de paz e
inspetores da Guarda Nacional que conseguissem recrutar ou engajar homens, mas
também “pessoas de mais baixa esfera”, com 2$000 ou 4$000 réis, as quais “pela
sua condição social, conhecem e estão em contato com aqueles outros que podem
legalistas, não alcançava. Ele opunha “centro da província”, às capitais, mas também
sabia que ali mesmo na capital acontecia todo tipo de arbitrariedade:
É de meu dever declarar-vos que no centro da província nem sempre são observa-
das as fórmulas garantidoras prescritas pelas leis, de sorte que jazem os recruta-
dos por longo tempo nas imundas prisões que por aí existem, sem que tenham o
devido destino. Estes fatos, que desgraçadamente se reproduzem em nosso país,
são motivados pela longitude em que ficam seus diferentes pontos das capitais
onde residem as autoridades superiores, o que enfraquece inevitavelmente a ação
repressiva das mesmas contra os vários modos por que se manifesta o abuso e
dificulta consideravelmente o transporte dos recrutas.16
Do ponto de vista das elites dirigentes, não só os índios, cabras, mulatos e afins, mas
também autoridades inferiores dos sertões seriam as responsáveis por tudo que
fosse ilegal, e incivilizado.
Na década de 1820, recrutavam-se à força muitos marujos da Marinha mercante e
indivíduos que trabalhavam na região do porto, estrangeiros ou nacionais. Segundo
o militar e historiador Juvenal Greenhalg, o recrutamento nessa época era realizado
por meio de verdadeiras razias: invadiam-se navios mercantes durante a madrugada,
à caça de homens.17 Em 1825, o negociante Antonio Moreira requereu pela quarta
vez sua soltura, pois fora “preso para marinheiro” na Corte, enquanto carregava
uma sumaca com 10 pipas de vinho, 20 rolos de fumo e 20 barricas de açúcar. Detido
na presinganga argumentava ser negociante e sofrer grave prejuízo, pois a sumaca
com uma parte de suas mercadorias partira e a outra parte teria ficado em terra.18
A urgência em guarnecer as Forças Armadas atingiu algumas vezes pessoas não
pobres. Mas elas poderiam livrar-se do recrutamento legalmente de duas maneiras:
pagando 600$000 réis ou oferecendo outra pessoa em seu lugar.19 O baiano Lou-
renço Cardoso Marques foi um deles. Voluntário no Exército “para defender a sua
Pátria, no tempo em que ela se achava no poder dos lusitanos”, desejava continuar
os seus estudos de latim. “Patriota”, reconheceu a falta que um recruta fazia naquela
época: “Olhando ainda para a precisão que o Brasil tem de soldados (...) oferece no
seu lugar um homem de mais força e melhor físico do que ele, para assim obter o
que requer”.20 Localizei apenas um requerimento de um sujeito que teria efetuado
o pagamento de 600$000 réis: Manoel José Campos declarou o pagamento dessa
quantia em novembro de 1865, já no contexto da guerra do Paraguai.21 Essas prá-
ticas deixaram de ser legais, mas o costume continuou no século xx: quem tinha
dinheiro e/ou poder, ou era amigo de quem os tinha, sempre pôde obter dispensa
do serviço militar no Brasil.
Os flagelados das secas do século xix tornaram-se recrutas. Nas palavras de Peter
Beattie, “garantir o recrutamento de vítimas da seca era uma medida criativa para
prover ajuda sem onerar os cofres públicos provinciais”.22 Segundo o presidente
da província do Ceará, a seca de 1845, que assolou a “classe pobre”, gerou uma boa
notícia para o recrutamento: 120 pessoas, incluindo 100 crianças, a maioria prova-
velmente órfã. Dessas crianças sabemos que algumas eram indígenas e, que listados
em sequência, Cosme e Damião eram certamente gêmeos. Outro nome dessa lista
trágica que chamou atenção foi o de Brazileiro Manoel da Silva. Quem o nomeou
assim? Seus pais ou o funcionário do Governo que escreveu a lista de recrutas? O
vapor Pernambucana foi fretado para trazê-los à Corte.23 Dificilmente alguém os
reclamou e desconfio que muitos devem ter morrido durante a viagem. Talvez es-
ses meninos sejam os mesmos referidos por Thomas Ewbank, em seu relato sobre
o Brasil. Em 1846, ele passou uma tarde na Corte com um deputado cearense que
esteve presente na província durante a seca. Dentre os horrores da fome descritos,
contou que pais e mães indígenas estavam vendendo seus filhos para a Marinha em
troca de comida: “Antes era muito difícil conseguir um indiozinho por menos de
setenta mil-réis, mas agora os seus pais, não tendo o que dar de comer, nem o que
comer, oferecem-nos facilmente por dez”.24 Segundo Ewbank, no Rio de Janeiro, os
índios eram negociados como escravos, do mesmo modo que os pretos.
Ao longo do século, a idade mínima dos recrutas, 18 anos, foi diminuindo para
dez anos. Já em 1823, a caminho da Bahia, Lord Cochrane aconselhava o ministro
José Bonifácio que se escolhessem moços de 14 a 20 anos para marinheiros.25
As Escolas de Aprendizes Marinheiros, abertas em todas as províncias litorâneas,
entre as décadas de 1840 e 1870, tornaram-se, na segunda metade do século, a fonte
principal de homens para a Marinha, ou “um viveiro da maruja”, como as chamaram
alguns ministros. A fundação dessas escolas, segundo o ministro da Marinha, Za-
charias Góes de Vasconcellos, ajudaria a evitar “a repugnância, tão natural nos pais
a separarem-se de seus filhos para entregá-los em tenra idade ao cuidado estranho
e à educação militar, talvez fosse assim vencida”.26
Vários decretos diminuíram a idade dos recrutas, e previam o envio de órfãos. Em
1859, a Casa Pia dos Órfãos de São Joaquim, existente até hoje em Salvador, enviou
para a Companhia de aprendizes da cidade dez órfãos, todos eles com sobrenome
Mattos.27 Dez anos depois, a Casa desejou livrar-se de um órfão, oferecendo-o como
Imperial Marinheiro com a justificativa de ter “apresentado má conduta”, mas que
convinha “não ser abandonado, um ente que ainda pode ser útil à sociedade”.28 A
prática de “tornar úteis” meninos pobres de “má conduta” ainda persevera até os
dias de hoje. Nas últimas décadas, menores egressos da febem (órgão federal de
detenção de menores infratores) ingressavam com frequência na Marinha, onde, até
pelo menos a década de 1980, recebiam o apelido de “bocas pretas”.29 Em um blog
mantido em 2006, chamado “O aprendiz marinheiro”, o pernambucano Clemilton
escreveu as memórias de sua infância e adolescência difíceis como filho de uma fa-
mília pobre e desestruturada. Ele entendeu que ingressar na Escola de Aprendizes
Marinheiros poderia ser uma saída. Alojado em um quartel, a fim de se preparar para
o concurso de ingresso, teve a seguinte percepção dos seus possíveis futuros colegas:
Em três dias que estava lá, vi nosso amigo Neném desistir e retornar para casa.
Foi duro para ele ficar separado dos pais, já que tinha uma família normal. (...)
Aquele ambiente era mesmo uma dureza para quem tinha uma família, um lar es-
truturado e melhores perspectivas de vida lá fora. Junto conosco estavam jovens
30 Blog O aprendiz marinheiro. Disponível em: http://clemiltonbs.blog.uol.com.br. Acesso em: 31 jul. 2011.
31 beattie, Peter. Tributo de sangue: Exército, honra, raça e nação no Brasil, 1864-1945, p. 29. Ver também
kraay, H. “Repensando o recrutamento militar no Império”.
32 nascimento, Álvaro P. do. A ressaca da marujada, p. 76-84.
33 deleuze, Gilles e guattari, Félix. Mil platôs: Capitalismo e esquizofrenia. Vol. 5, p. 34. Grifo meu.
34 beattie, Peter. Tributo de sangue, p. 33.
118
1840. Em Resende ele fora preso como cúmplice de um assassinato. O delegado, que
também era o juiz municipal, achou melhor mantê-lo detido, mesmo findo o pro-
cesso. O carcereiro testemunhou que, na “ocasião de descer os recrutas”, o mesmo
juiz/delegado o achou “nas circunstâncias do recrutamento”. Segundo este último,
“para evitar uma impunidade o separei para praça, livrando o país de um indivíduo
amotinador, ébrio e inimigo do trabalho”. Mais uma vez não sabemos quem diz a
verdade. A história de Antonio não é necessariamente verdadeira, mas é verossímil:
paulista, depois de participar de um combate no Rio Grande do Sul e ficar aleijado,
obtém a baixa do Exército na Corte, e ao voltar para casa é recrutado pela Marinha.
Se o juiz tem razão, qual é de fato a sua culpa? Ter presenciado um assassinato, sem
provas? Ser ébrio, inimigo do trabalho? Essas expressões genéricas são uma constan-
te na retórica legal quando não há uma infração específica. A versão de Antonio, por
ser rica em detalhes, mais criativa, acaba sendo mais convincente do que o discurso
vago daquele que o deteve. Se os documentos do recruta não comprovam o que diz,
tampouco o faz os de seu acusador.37
Enfim, os “forasteiros” sem proteção corriam o risco permanente do recruta-
mento, como apontou Hendrik Kraay. A mobilidade para o homem livre ou liberto
poderia ser perigosa, afinal, de acordo com a sua cor, o risco de escravização ou
reescravização era real, e o do recrutamento também. Contudo, isso não impedia
as pessoas de continuarem a se movimentar.
Qual é a província do Brasil cujos filhos tenham sido excetuados do serviço naval
por incapazes? Pois não vêm de Minas, de Goiás, do Mato Grosso, recrutas para a
Armada, e depois de curta aprendizagem, não se habituam todos a um gênero de vida
tão diferente do que tinham? Sabe-se que Santa Catarina é um viveiro de excelentes
marujos que os americanos conduzem à pesca da baleia; que os paraenses vão para
alto-mar com excelentes lições do Amazonas; que os pernambucanos reúnem ao
valor inato a facilidade com que se adestram na profissão marítima; que os espiri-
tuosos baianos igualam a bordo o clássico parisiense da Marinha francesa, sempre
joviais, mas ágeis e valentes; finalmente que não há um só porto no vasto território do
Império cujos habitantes se mostrem sem idoneidade alguma para o serviço naval.38
Essa exaltação era uma resposta a um artigo depreciativo da revista inglesa United
Service Magazine, onde ele lera que “os brasileiros não eram idôneos para a vida no
mar”. O elogio aos “filhos do Brasil” não era usual entre os escritores estrangeiros
nem tampouco entre os nacionais. Por outro lado, a necessidade de uma população
“idônea”, em alguns momentos, superava a concepção depreciativa que as elites ex-
pressaram tantas vezes. Em meados do século, em defesa da nacionalidade, cabia
realocar a população em uma posição mais nobre, identificando as qualidades dos
ethos regionais, os quais reunidos contribuíam para o fortalecimento a Nação.
A diversidade de naturalidade provincial na Marinha era fruto de uma política
de proporcionalidade de envio de recrutas para a Corte. A partir de pelo menos 1831,
alguns decretos estipularam o número de recrutas que cada província deveria en-
viar para a Armada, segundo a estimativa da população de cada província. À Minas
Gerais cabia o maior número, já que era a mais populosa. Mas a lei acabou sendo
relaxada para as províncias interioranas. Os recrutas vinham, principalmente, de
regiões litorâneas ou próximas ao litoral. Peter Beattie observou o mesmo fenô-
meno para o Exército. Era praticamente impossível escoltar dezenas ou centenas
de recrutas de Minas Gerais para a Corte. Mato Grosso39 e Goiás também não en-
viaram muitos recrutas.
É comum encontrar nos relatórios de presidente de província um número maior de
recrutas enviados do que aqueles listados como recebidos nos relatórios do Ministério
da Marinha para o mesmo ano. Em 1859, o presidente da Bahia informava que enviara
85 recrutas para a Marinha. No Relatório do ministro da Marinha do mesmo ano estava
38 pessoa, Eloy, S. Viagem da Corveta Imperial Marinheiro nos annos de 1857 a 1858 a diversos portos do
Mediterrâneo e do Atlântico, p. 18.
39 Na província de Mato Grosso estava localizada a única Estação Naval fluvial do Império. Os homens
ali recrutados, em geral, não eram enviados à Corte, serviam ali mesmo.
121
tabela 4
Fonte: an, Série Marinha, Correspondência com presidentes de província, vários maços.
(Ver relação completa na bibliografia)
A maior parte dos marinheiros era natural das províncias do Norte. Na década de
1850, cerca de metade dos recrutas do Exército eram da mesma região. Segundo Peter
Beattie, junto da seca, o recrutamento militar foi um dos fenômenos que ajudaram
a criar “a imagem do Nordeste caracterizada pela pobreza, subnutrição, exploração
e falta de educação”.41
A principal via de chegada dos recrutas à Corte, tanto do Exército quanto da Marinha,
foi o mar. Na década de 1820, a fragata inglesa Thetis levou recrutas baianos e de
outras províncias do Norte em seus porões.42 O brigue norte-americano Leopard
deu “carona” a recrutas capixabas escoltados por dez soldados.43 A província do
Espírito Santo, devido a sua proximidade à Corte, enviava recrutas em embarcações
menores, como sumacas e lanchas. Pagavam-se aos seus proprietários de 8$000 a
10$000 réis por recruta transportado, até pelo menos a década de 1840.44
Fragatas, brigues, galeras, corvetas e patachos da Armada ou mercantes se re-
vezaram na entrega de recrutas ao Quartel General na Corte. É a partir da década
de 1840 que os vapores da Marinha começaram a operar e fazer progressivamente
a maior parte do transporte de recrutas. O registro mais antigo que encontrei foi a
do vapor São Salvador, que em 1839 trouxe recrutas baianos para a Corte.
tabela 5
Embarcações que transportaram recrutas para a Corte; 1823-1858
brigue barca Pirajá lancha Boa Viagem sumaca São João da Graça
brigue escuna Fidelidade lancha Nossa Senhora da Penha sumaca São Sebastião
Fonte: an, Série Marinha, Correspondência com presidentes de província, vários maços.
(Ver relação completa na bibliografia)
124
Concordo com Peter Beattie que o recrutamento “embora não fosse tão horrendo
quanto a travessia do Atlântico, exibe certos paralelos com o tráfico de escravos”.45
No contexto do recrutamento para a guerra da Cisplatina, dois deputados da Câmara
em agosto de 1826 referiram-se ao escândalo do brigue Nova União que trouxe para
a Corte 230 recrutas do Ceará, dos quais 66 morreram de varíola. Custódio Dias
exclamou na Câmara: Eu vejo Sr. presidente chegar a esta corte um brigue! Mas
que! Não é brigue, é antes uma tumba funeral que conduzindo recrutas semivivos,
sepultou no mar 66 mortos”.46 O deputado Moura na esteira de seu colega exigiu que
o caso fosse averiguado: “É impossível que a intenção do Governo seja despovoar
o Brasil e encher o mar de cadáveres de desgraçados brasileiros”.47 Meses antes as
autoridades cearenses já haviam espremido 600 recrutas numa galera, dos quais
274 teriam morrido de varíola.48 Em 1827, dos 209 recrutados no Piauí e embarcados
no porão da sumaca Pombinha, mais da metade morreu de beribéri.49 Em 1838, os
recrutas rebeldes da Sabinada chegaram à Corte, segundo o Comandante da Fragata
Campista, em “deplorável estado de nudez não tendo a maior parte deles roupa para
cobrirem suas carnes, e outros cobertos de bichos”.50
Mais de um século depois, em 1936, o alagoano Graciliano Ramos foi enviado
em um vapor, como preso político, para o Rio de Janeiro. Misturado com presos
comuns, ele descreveu o ambiente do transporte: “era como se fôssemos gado e
nos empurrassem para dentro de um banheiro carrapaticida (...) a ideia de um ba-
nho carrapaticida sucedeu a de um vasto curral.” No porão-curral, Ramos ainda se
perguntou: “(...) que homens eram aqueles que se arrumavam encaixados, tábuas em
cima, em baixo, à frente, à retaguarda, à esquerda, à direta? Imaginei-os criminosos
e vagabundos”.51 Horrorizado diante daquele cenário, o escritor se julgou louco. A
maioria dos presos já era acostumada àquele tratamento: resignados, eram descri-
tos deitados em suas redes, conversando, até brincando, seminus devido ao calor,
enquanto Graciliano nem sequer tirou o paletó, apesar de estar encharcado de suor,
definindo assim os limites de classe e experiência.
Outro relato dessas viagens pode ser lido na letra de um coco da Paraíba, regis-
trado por Mário de Andrade, na década de 1920:
(...) a autoridade pode legalmente, e a seu talante, mandar agarrar qualquer cidadão
dos não excetuados; metê-lo num calabouço; (...) assentar-lhe praça no Exército ou
na Armada; embarcá-lo e obrigá-lo a viajar para a capital do Império no convés de
um vapor; remetê-lo daí para os confins deste vasto país; retê-lo no serviço militar,
por tempo longo e indeterminado; fazê-lo morrer longe de sua terra.54
Este tempo longo e indeterminado, que não atendia ao tempo legal, que variava
entre 4 e 9 anos, possibilitou que o deputado geral Custódio Dias chegasse a jus-
tificar a fuga do recrutamento ou voluntariado. Poderíamos chamar esta empatia
do deputado de razão de população, diante da razão de estado: «Não se guarda a fé
para com os concidadãos, e como é que se quer que os cidadãos guardem a fé para
com o governo?”55
A Corte foi tanto uma força centrípeta quanto centrífuga de recrutas. Homens
de toda a parte eram enviados à capital do Império e, dali, realocados em outras
províncias. Se, por um lado, o Estado criou esse processo de migração forçada, por
outro, esse trânsito de pessoas gerou redes de informações incontroláveis, que de-
vem ter engendrado algumas noções de pertencimento a um lugar maior do que
aquele de nascimento e residência, enfim um sentimento de nacionalidade ao avesso,
de baixo para cima.
3.5 Resistências
60 Relatório do presidente do Ceará, 1842 e an, Série Marinha, xm 14, Correspondência com o presidente
do Ceará.
61 Relatório do ministro da Justiça, 1842, p. 16-7.
62 Relatório do ministro do Império, 1852. Tratava-se dos decretos 797 e 798 de 18 de junho de 1851
que mandavam executar o regulamento para a organização do censo geral do Império e executar o
regulamento do registro de nascimentos e óbitos”. Coleção de leis do Império de 1851.
63 palácios, Guillermo. Revoltas camponesas no Brasil escravista: a ‘Guerra dos Marimbondos’ (Per-
nambuco, 1851-52). Almanack Brasiliense, n. 3, maio de 2006.
64 D. Pedro II. Diário de viagem ao Norte do Brasil, p. 134.
65 thompson, Edward. P. A economia moral da multidão inglesa no século xviii. In: Idem, Costumes
em Comum, p. 152.
129
(...) embora essa economia moral não possa ser descrita como “política” (...), tam-
pouco pode ser descrita como apolítica, pois supunha noções definidas, e apaixona-
damente defendidas, do bem estar comum – noções que na realidade encontravam
algum apoio na tradição paternalista das autoridades; noções que o povo, por sua
vez, fazia soar tão alto que as autoridades ficavam, em certa medida, reféns do povo.66
66 Ibidem.
67 graham, Richard. Clientelismo e política no Brasil Imperial, p. 47.
68 kraay, Hendrik. “Repensando o recrutamento militar no Brasil Imperial”, p. 116.
69 burke, Peter. História e teoria social, p. 104.
130
Muitas vezes, o recruta apreendido nem meios alguns tem para comunicar-se com
os seus parentes. Nestas circunstâncias a autoridade pública, como primeira e na-
tural protetora dos direitos dos cidadãos, compete verificá-las para que se faça
justiça. Assim a sup. reclama a poderosa e eficaz proteção de V. Exa em favor desta
sua petição, aliás fundada na justiça.72
assinatura, sabia ler e escrever. Dois anos após o matrimônio encontrava-se na Bahia
a trabalho, onde foi recrutado para a Marinha.
Embarcado, escreveu dois requerimentos de soltura, um para o Imperador - in-
deferido - e outro para o ministro da Marinha. No primeiro alegava, sem provas, o seu
casamento, e a injustiça de estar preso para recruta: “sua pobre e infeliz família se
acha reduzida a miséria e à indigência por falta do suplicante como marido e pai”. O
inspetor do Quartel General, alegando a falta de provas, o fato de ele ser bom marujo
e o Estado estar necessitado de marinheiros, indeferiu o pedido. Novamente, em
janeiro o maranhense fez outro requerimento, agora com certidão de casamento e
atestado de boa conduta.
Nonato era por um lado um recruta típico: pardo, jovem, oriundo de uma pro-
víncia do Norte. Por outro, era casado e, ao que parece, letrado, características inco-
muns. Agenciar sua própria vida era algo que fazia parte de suas conquistas, de sua
ascensão social por meio das primeiras letras, uma profissão e um casamento com
filhos legítimos. Era um homem que devia servir ao Estado, não como marinheiro
da Armada, mas cumprindo seu papel de chefe de família, como atestou o próprio
ministro da Marinha, quando deferiu seu segundo requerimento. Mas a demora
desse despacho, fez com que ele tenha desertado dias antes da resposta positiva.73
Como Raymundo, aqueles que não escapavam das malhas do recrutamento, pode-
riam fugir dos navios. A deserção constituía um componente estrutural das forças
armadas e partilhava com a evasão do recrutamento as mesmas causas, reforçando-
-se mutuamente.74 Nos Livros de socorros da fragata Imperatriz consultados da dé-
cada de 1820 e 1830, entre um quinto e um quarto da tripulação desertou. As tabelas
publicadas nos relatórios da Marinha da década de 1850 demonstram altos índices
de deserção. Em 1855, no primeiro, e aparentemente o único, mapa publicado sobre
deserção e captura que inclui praças de pré e marinhagem (homens engajados), há
uma espécie de placar. Nessa disputa, a deserção aparece como grande vencedora.
622 homens desertaram (cerca de um quinto do efetivo da Força Naval) e apenas 130
foram capturados. Tal crime compensava e foi a maior resistência dos marinheiros,
que não provocaram muitas revoltas durante as primeiras décadas do Império.
tabela 6
Mapa de deserção e captura do Relatório da Marinha de 1855.
133
pouco que se tem conseguido de tais pessoas pelas formalidades dos processos,
pela modicidade das penas (...) urgindo lançar mão de novas medidas enérgicas e
eficazes (...) na esperança, senão na certeza da mais viva impressão que deve fazer
no ânimo de gente inculta o receio de um castigo corporal.75
Mas nesta mesma década de 1840, vários decretos anistiavam os crimes de primeira
e segunda deserção, em uma estratégia inversa, cujo fim era o mesmo: a permanên-
cia do marujo na Armada. Se as penas de cinquenta e cem chibatadas não haviam
inibido os desertores, a sua reapresentação poderia ser estimulada pela anistia da
pena. Mas a terceira deserção nunca foi anistiada, e a pena era dura: servir um ano
sem receber soldo. No início da década de 1860, na corveta Beberibe, havia qua-
tro rapazes condenados a essa pena, classificados como grumetes sentenciados. 76
Mas o exemplo não inibiu alguns homens de desertar quando a corveta aportou
em Nova York, em outubro de 1861. Um deles era o gaúcho Manoel José Dutra,
pardo, e talvez não tivesse ainda 18 anos completos, o outro era o caboclo menor
Manoel Pedro Correa. O navio partiu sem os rapazes. O cônsul em Washington,
encarregado de avisar ao cônsul em Nova York sobre a deserção, depois de cinco
meses avisou o ministro da Marinha que as buscas continuavam, mas dificilmente
os desertores seriam encontrados.77
75 Consulta de 12 de novembro de 1845: “Sobre as medidas mais convenientes para previnir as deser-
ções de bordo dos navios de guerra”. Consultas ao conselho de Estado sobre negócios concernentes ao
Ministério da Marinha. V. 1, p. 95-96.
76 an, Série Marinha, xvii 747, Livro de socorros da corveta Beberibe, 1861-62.
77 an, Série Marinha, xm 600, Ofícios do Legação Imperial do Brasil nos Estados Unidos.
134
(...) já de algum modo, punidos de seus delitos pela prisão, e mais trabalhos, que
têm sofrido, prestar ainda serviços à sagrada causa da Independência deste Im-
pério, sendo empregados quer como soldados de artilharia da Marinha do Rio
de Janeiro, quer como marinheiros e grumetes a bordo dos navios da Armada
Nacional e Imperial.78
Pedro I continuava uma antiga política penal, qual seja a de transformar criminosos
de variados graus em marinheiros.
Durante boa parte do século xix, de acordo com Peter Beattie, as Forças Armadas
funcionaram como uma instituição protopenal, dando continuidade um modelo
que vigorava no período colonial:
Foi o caso de Frederico Guilherme Torres, 20 anos, de cor preta. A esposa requereu
sua soltura após ele cumprir dois anos de praça no vapor Amazonas, em Montevidéu,
“a título de correção”. Joana pediu o desembarque do marido três vezes em oito
78 Decreto de 23 de março de 1823: Commuta as penas de diversos presos para serem empregados
como soldados ou marinheiros a bordo dos navios da Armada Nacional. Indice dos decretos, cartas e
alvarás de 1823.
79 beattie, Peter. Tributo de sangue, p. 217.
135
meses, clamando por “proteção e arrimo”, já que era “uma pobre que nem para si tem,
quanto mais para seu filho menor”, e não tinha mais “forças para poder trabalhar”.80
Quando uma pessoa comete crime ou tem conduta social dita irregular, ela em
geral se defende negando. O advogado de defesa ou procurador usa uma retórica de
convencimento, destacando os erros de acusação, descrevendo a miséria familiar.
O acusado nunca é culpado. No entanto, em 1862, o baiano Olympio José Régis
reconhece que “faltas cometeu nos verdes dos anos”, mas alega “ter já suficiente-
mente expiado, desde que foi violentamente metido em um navio de guerra como
se fosse um assassino ou réu de altos crimes”. Arremata seu argumento evocando
a pobre mãezinha:
(...) não devem [as faltas] servir para se conservar na miséria e consternação uma
pobre mãe que poucos dias poderá ter de vida, se com a reparação deste opróbrio
sofrido pelo suplicante não lhe for restituído pela munificência imperial, o único
protetor que lhe resta neste mundo.81
daquela sociedade é importante. Não ser filho legítimo, era mais uma precariedade
da cidadania dos homens daquele Império.
Recrutas eram enviados de todas as províncias e da Secretaria de Polícia da Cor-
te, acompanhados de ofícios que os qualificava de “vadio”, “ladrão, incorrigível”,
“prejudicial”, “ébrio”, “desordeiro”, “perigoso”, “de péssima conduta”, “de maus
costumes”, “malvado”, “perigoso ao sossego público”, “rixoso”, “infenso à tran-
quilidade pública”, “assassinos de profissão”, “sem nenhum modo de vida”, “rebel-
de”, “participantes de perturbações”, “instrumentos de intrigas entre fazendeiros”,
“amotinador”, “inimigo do trabalho”, “vagabundo”, “malfazejo”, “de péssimos cos-
tumes”, “prejudicial ao público e ao particular”. Mas vadio era o termo preferido das
autoridades, era praticamente um sinônimo para pobre, geralmente de cor, como
reconheceu um oficial do Exército no editorial da revista O militar de 1854: “O re-
crutamento entre nós recai sobre os pobres, crismados com o epíteto de vadios”.83
Os assassinos, em geral, eram processados pela Justiça. Mas alguns chegaram à
Marinha. Foi o caso de Feliciano José da Silva, menino de dez anos da vila de Campo
Maior, Piauí. Acusado de matar a cacetadas um menino de seis anos foi absolvido
pelo júri “pelo amor de sua pouca idade”. O presidente da Província solucionou o
caso enviando-o à Marinha, onde “o trabalho e educação podem torná-lo cidadão
aproveitável, em vez de um facinoroso que certamente seria, continuando aqui en-
tregue a lei da natureza já tão pervertido em verdes anos”.84
Não há dúvida de que alguns dos recrutas cometeram crimes. Não é possível
separar recrutas criminosos dos demais, pois o recrutamento como simples puni-
ção era um julgamento sumário, muitas vezes sem culpa formada ou sem nunca ter
havido um processo. Mas não eram procedimentos necessariamente ilegais. Uma
decisão de 1826 autorizava o recrutamento para a Armada de vadios e desconheci-
dos, presos por motivos justos e que não puderam “ser pronunciados pela falta de
interesses de partes, que promovam testemunhas”.85
O ex-soldado e alfaiate do interior da Bahia, Antonio Ferreira Torres, em trânsi-
to na capital baiana, foi recrutado. Torres explicou, por meio do seu ofício de 1842,
que “tirava lícitos meios para a sua manutenção e de sua família composta de sua
mulher e oito filhos”, mas o seu trunfo era seu passado, narrado com linguagem
patriótica, como combatente nas revoluções do “Madeira” e “Sabino”, perpetuado
por uma cicatriz:
Os motivos mais reais para persuadir-se merecedor da Graça de vmi são mais de 30
anos de atinados serviços no Exército em defesa da integridade do Império enfren-
tando por duas vezes os terrores da guerra já na apelidada revolução do Madeira...
e por ocasião (...) ultimamente, Sabino, a frente de degenerados Brasileiros, tingia
de sangue o meu querido país natal [ilegível] recebido uma lançada na virilha es-
querda por honroso medo [sic] em conservar em sua cicatriz o padrão dos meus
serviços em prol do Trono de vmi86
96 Ibidem.
97 an, Série Marinha, xvii M 5203, Livro de socorros da corveta Bertioga, 1841-2, e xm 627, Correspon-
dência com o presidente de São Paulo, 1842.
98 an, Série Marinha, xm 627, Correspondência com o presidente de São Paulo, 1842.
140
Esse canto do cisne de Thomé corresponde às penúrias pelas quais vinha pas-
sando. Por outro lado, a acusação de valentão fazia jus a seu passado. Em 1834, ele
viajara como tropeiro para o porto de Santos carregando açúcar e de lá voltou com
seis barris de aguardente. No posto de coletas de impostos de Cubatão, recusou-
-se a pagar o imposto sobre aguardente. Pagou outras contribuições em parte com
dinheiro “cham-cham” (falso), dizendo para o coletor que não escolhesse, pois não
daria outro. Thomé desembainhou a espada, correu a ferir o coletor e sentinela, e
partiu. Em São Bernardo, ainda esquivou-se do juiz de paz.99
Thomé Francisco era tropeiro e apaniguado de fazendeiro. Envelhecido e doente,
provavelmente pelo seu ofício, já não tinha capacidade de enfrentar as autoridades
com a espada, e seu padrinho estava preso. Teve de recorrer às frases dramáticas
dos requerimentos, para tentar morrer fora do calabouço ou em um porão de navio.
Em outubro de 1844, uma invasão em Maceió terminou na deposição do então
presidente de Alagoas, Souza Franco. Antes de deixar o poder, o presidente recru-
tou alguns indivíduos, que julgou fazerem parte da facção rival. Entre eles, Manoel
Teixeira Pinheiro, carcereiro e dono de uma plantação de coqueiros na ilha de Santa
Rita. Pinheiro escreveu um requerimento reclamando ter sido recrutado contra a
lei, devido “às paixões políticas”.
Dizia-se “uma das vítimas sacrificadas no dia 21 de outubro [de 1844].”100 Nessa
data, Vicente Ferreira de Paula invadiu a cidade, comandando 400 homens, convo-
cados para reforçar as tropas da facção dos “lisos”, que exigia a deposição de Souza
Franco, partidário da facção dos “cabeludos”. Mesmo deflagrada em alguns pontos,
a província só ficou “tranquila” com a vinda de outro presidente em dezembro. Tal
rebelião foi chamada Cabanada.101 A primeira ocorreu entre 1832 e 1835. A motivação
geral era a defesa das terras e envolvia oficiais desgostosos com a política imperial,
alguns proprietários, e uma grande massa de índios, homens livres pobres, escravos
e ex-escravos que lutavam pela liberdade e pela posse de terras. Na primeira Cabana-
da, Vicente Ferreira Paula foi um dos líderes. Entre os índios que combateram nessa
revolta, os do aldeamento de Jacuípe, Alagoas, juntaram-se à rebelião, em reposta à
ordem do presidente da Província em 1832, para recrutar todos os rapazes do grupo,
99 A história de Tomé, em 1834, foi narrada em danieli, M. I. B., Economia mercantil de abastecimento e
rede tributaria: São Paulo, séculos xviii e xix, p.232.
100 an, Série Marinha, xm 1145 doc. 9, Requerimentos, 1845.
101 Sobre esta rebelião ver lindoso, Dirceu. A utopia armada: Rebeliões de pobres nas matas do Tombo Real,
especialmente o capítulo “A escrita e medo”.
141
entre 18 e 25 anos.102 Vicente Ferreira de Paula, filho de cônego com uma mulher
mulata, ficou conhecido como “capitão geral das matas”. Atuou, principalmente,
no interior das províncias de Alagoas e Pernambuco até 1850, quando finalmente foi
deportado para Fernando de Noronha. Além de ter comandado milícias que apoia-
ram políticos em certas ocasiões, chefiou rebeliões populares, combatendo, entre
outras coisas, o recrutamento militar.103
Ao governo central interessava mais a imagem da proteção da tranquilida-
de nas províncias, do ponto de vista de suas elites. Na interpretação de Richard
Graham, no segundo quartel do século xix, o fato do poder central ajudar a debelar
as rebeliões regionais, reprimindo principalmente os populares, colaborou para a
aquiescência da unidade do Império pelos poderes locais. Eles teriam aceitado o
governo central com medo da desordem social e devido ao apelo da simbologia de
uma monarquia legítima.104
É possível que essa lógica, de maneira inversa, também tenha servido para
parte da população. Os indivíduos poderiam recorrer ao poder central quando se
sentiam perseguidos pelo poder local, reconhecendo este “apelo da monarquia
legítima”, traduzida em benemerência. A forma como D. Pedro II se aproximava
dos populares pode ser lida nos seus próprios diários. Em viagem pelas províncias
do Norte, por exemplo, visitou os presos na Bahia e avisou aqueles que não tivessem
culpa formada que lhe escrevessem requerimentos. Recebia comissões de índios
no Paço, doava dinheiro para escravas comprarem a alforria, distribuía esmolas. O
Imperador passava a representar uma esperança de justiça. A imagem do rei justo,
paternal, foi lentamente forjada durante o Antigo Regime e continuou no século
xix, já no Brasil monarquista.
Durante a construção desse Estado, um equilíbrio de forças foi em parte arqui-
tetado, em parte acomodado nas estruturas criadas no período colonial. Se, por um
lado, o Imperador distribuía e revezava os cargos de ministros, presidentes, chefes
de polícia, estes, por sua vez, procuravam controlar os sertões por meio de juízes,
delegados, inspetores, força policial.
102 Sobre a Cabanada de 1832, ver carvalho, Marcus. J. M. “Movimentos sociais: Pernambuco, 1831-
1848”. In: Keila Grinberg e Ricardo Salles. (Org.). O Brasil Império (1808-1889), v. 2, p. 121-183.
103 Ver almeida, Luís. S. Memorial Biográfico de Vicente de Paula, o Capitão de todas as Matas: Guerrilha e
Sociedade Alternativa na Mata Alagoana, 2006.
104 graham, Richard. “Construindo uma nação no Brasil do século xix: Visões novas e antigas sobre
classe, cultura e estado”. Diálogos, DHI/UEM, v. 5, n. 1.
142
105 an, Série Marinha, xm 544, Correspondência com o presidente da Bahia, 1862.
106 an, Série Marinha, xm 1161, doc. 9, Requerimentos, 1845.
107 an, Série Marinha, xm 1164, doc. 41, Requerimentos 1842.
108 an, Série Marinha, xm 1163, doc. 28, Requerimentos 1845.
143
crimes a bordo desce daquelas proporções que conserva nos sertões de onde viera
o marinheiro. Daqui se conclui que não seria difícil termos guarnições moralizadas,
quando os indivíduos que sentarem praça houverem recebido nos lugares do seu
nascimento a educação que tende a destruir os maus instintos, e quando outros
meios empregar o governo para alcançar este fim.111
Angra dos Reis, o contratou para construir uma casa na sua fazenda em Piraquara.
Depois de um ano, o padre alegou que “o pardo Hermógenes” andava concubinado
com sua escrava, a mulata Aurélia, e o dispensou do serviço.
O padre ainda reclamou que ele teve “o atrevimento de insultar-lhe com palavras”
e na noite de 20 de fevereiro veio com um bacamarte, arrombou a janela do quarto de
Aurélia, e quando os dois estavam prontos para fugir, as outras escravas, despertas
pelo barulho, retiveram a mulata, e apenas Hermógenes fugiu .
O clérigo escreveu ao Juiz de Direito prestando queixa e pedindo que, além de
preso, Hermógenes fosse recrutado e enviado à “Campanha do Sul”.113 Naqueles
dias, para garantir a distância do acusado, escreveu igualmente para um tenente
da polícia e para o chefe da polícia do Rio de Janeiro, Eusébio de Queiróz. Ele ainda
quis certificar-se de que Hermógenes não apresentaria a isenção de casado, desse
modo o acusou de ter abandonado a esposa há oito anos, e de ter roubado e ocultado,
por muito tempo, uma escrava de José da Silva em Mambucaba, Paraty. De fato, oito
anos antes, ele deixara a mulher, não por abandono, mas simplesmente por ter sido
a moeda de pagamento de uma dívida de seu dono. Podemos, nesse caso, corrigir o
padre: ele não abandonou a esposa, foi separado dela.
Segundo José Marques Nogueira, que contratara Hermógenes como feitor, no
dia seguinte à suposta tentativa de rapto da escrava Aurélia, ele foi preso enquanto
colhia “café para vender”. Seu primeiro destino foi a cadeia de Angra dos Reis, depois
viajou para Niterói, de onde o enviaram para assentar praça no Arsenal da Marinha.
Ali, ficou preso no depósito, por pelo menos dois meses, sendo, ainda, hospitalizado.
Simplesmente não houve processo para apurar a denúncia. O juiz acatou as acu-
sações do padre, o presidente da província, por sua vez, acatou o que o juiz disse e,
no Ministério da Marinha, Hermógenes foi aceito como recruta.
O tom dramático do requerimento, escrito um mês e meio depois de ter sido
preso, parece corresponder ao desespero de querer, nas palavras de seu procurador
Salustiano Conceição, “agenciar a vida descente [sic] e a honra somente com seu
ofício de carpinteiro” e se livrar da “prisão vingativa e arbitrária”.
Mesmo valendo-se de uma “retórica do oprimido”, ao confrontar a acusação e
a defesa é possível inferir alguns fatos. Seu procurador reitera não parecer “justo
que sem culpa formada se conserva preso um cidadão de bem que é miserável pardo
113 Expressão que denotava os vários conflitos que ocorreram nas primeiras décadas do Império na
província do atual Rio Grande do Sul e nas fronteiras com Argentina e Uruguai.
146
casado, que não tem outro meio para alimentar-se e tratar de sua mulher, senão o
seu ofício de carpinteiro”.
Se ele realmente tratava de sua mulher, não é possível saber. Se sim, estava na
labuta ganhando a vida para, quem sabe, alforriá-la. Se não, quando se viu impos-
sibilitado de viver maritalmente com ela, buscava outras mulheres para não viver
só. E como fora escravo até os 40 anos, ao que parece, era ainda no cativeiro que
encontrava suas parceiras. O fato de viver de seu ofício, o próprio acusador atestou
ao relatar que o contratara para fazer uma casa, evidência de que não era vadio.
Hermógenes confirmou o acordo estabelecido com o padre Nóbrega de cons-
truir uma casa. No entanto, alegou que o valor combinado não estava sendo pago,
a partir disso começaram os desentendimentos. Ao fim e ao cabo, o presidente da
província do Rio de Janeiro, Honório Carneiro Leão, dois meses depois de tê-lo
enviado como recruta, escreveu ao ministro da Marinha dizendo que a sua idade o
impedia de servir, sendo assim pediu que devolvesse o preso “para que pela Polícia
se tomem as necessárias cautelas a respeito de seu comportamento”.
Depois de 40 anos de escravidão, servindo a diversos donos, após ter sido sepa-
rado da esposa, aprender um ofício, pagar a alforria, Hermógenes continuava ligado
à escravidão – instituição que retinha as mulheres com quem queria ou podia estar –,
mas lutando contra ela. Mesmo não sendo mais propriedade de alguém, ao insultar
um empregador, o puniram.
A rebeldia teve um preço: recrutamento militar. Uma vez incapaz e velho para
marujo, como ele próprio requereu, foi recusado na Armada. No entanto, outra ale-
gação sua não foi atendida: Hermógenes afirmou não ser “perturbador da ordem
pública e particular”. O presidente discordou e ele foi reenviado à Secretaria de
Polícia, onde seu futuro próximo seria decidido.
3.8 Cores
De início, a Marinha do Império do Brasil teve de contar com uma tripulação majo-
ritariamente estrangeira e branca, especialmente europeia, para encetar sua partici-
pação no Atlântico. Aos poucos, no continente, foram recrutados homens mestiços,
pretos, caboclos e brancos. A face escura marítima dos brasileiros também informou
ao mundo a nossa condição mestiça, negra e indígena, vista como inferior em um
tempo em que as teorias racistas brotavam em todas as margens dos oceanos.
147
Eu dou graças a Deus. Não à escravidão, mas aos negros terem vindo para cá. Por-
que a mistura do negro, do índio e do europeu que estava aqui, que era o portu-
guês, transformou este povo brasileiro no mais extraordinário ser humano que
o planeta tem. Você vai a um país europeu fazer um ato como esse, só tem galego,
não tem nem moreno. Agora vejam aqui que colorido, não de roupa, de cor. Nós
conseguimos criar uma raça (...) de uma perfeição extraordinária. E é uma coisa em
construção, é por isso que o povo brasileiro é considerado o povo mais criativo.114
Uma das leituras que se pode fazer do referido discurso é a de que Lula repetia uma
ideologia do elogio à mestiçagem, pouco problematizante, presente em autores
como Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro, e muito disseminada no senso comum. Além
disso, sua fala mistura Deus, ufanismo, enfim, uma visão aparentemente demagó-
gica e populista.
Mas creio ser possível interpretá-la de outra maneira. No caso de Lula, migran-
te nordestino mestiço, seu discurso pode ser lido mais próximo à sua experiên-
cia. No Dia da Consciência Negra, ele falou amplamente da escravidão negra, mas
114 Discurso do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, durante cerimônia em comemoração ao Dia
da Consciência Negra. Disponível em: http://www.info.planalto.gov.br/ download/discursos/pr965-
2@.doc. Acesso em: 31 abr. 2009.
148
inimigos do Império (...), um insulto em corpos brancos num lugar era um insulto
a corpos brancos de qualquer parte”.115
Não foi por mera coincidência que os marinheiros nacionais do Minas Gerais, um
navio da Marinha brasileira, chamaram a atenção do estudante Gilberto Freyre quan-
do passeavam pela neve de Brooklyn, em Nova York. Ele os descreveu, em seu diário,
em 1921, como “pequenotes, franzinos, sem o vigor físico de autênticos marinheiros”.
Em seguida, se perguntava “mal de mestiçagem?”116 Freyre foi visitar o navio e es-
timou que 75% da tripulação eram de cor.117 O antropólogo deveria entender como
autêntico marinheiro justamente o marinheiro anglófono forte, branco e corajoso,
difundido no imaginário do ocidente, pelos romances, revistas e, mais tarde, pelo
cinema. O nosso marinheiro, bem como outros homens de cor do mundo todo, não
correspondia a essa imagem. No prefácio de Casa Grande e Senzala, 13 anos depois,
ele relembrou esse episódio citando uma frase de um viajante norte-americano
do século xix a respeito dos habitantes do Brasil: “the fearfully mongrel aspect of
most of the population”.118 No entanto, treze anos depois em 1933, influenciado pelas
ideias do Dr. Roquete Pinto, difundidas no Congresso Brasileiro de Eugenia, e as de
Franz Boas, seu professor na Columbia University, ele entendeu que esses homens
eram na verdade “mulatos e cafusos doentes” e que raça era diferente de cultura.119
Talvez o autor oitocentista aludido pelo pernambucano tenha sido Louis Agas-
siz. A frase que ele reproduz é muito semelhante a outra desse também viajante-
-cientista, detrator da mestiçagem brasileira: “a amalgamação de raças (...) apaga
rapidamente as melhores qualidades do homem branco, do negro e do índio, criando
um tipo híbrido indescritível (no original: ‘a mongrel nondescript type’), deficiente
de energia física e mental”.120
O problema da inferioridade ligada à raça também foi posta em cena por um
oficial da Marinha, em 1911, na sua análise sobre a revolta dos marinheiros. José
Eduardo Macedo Soares era oficial durante o episódio e publicou, anonimamente,
o primeiro livro sobre a revolta: Política versus Marinha:
115 land, Isaac. “Sinful propensities piracy, sodomy and Empire in the rethoric of Naval Reform, 1770-
1870”, p. 102-10. Tradução minha.
116 freyre, Gilberto, Tempo morto e outros tempos, p. 68.
117 gomes, Angela. C. (org.). Em família: A correspondência de Gilberto Freyre e Oliveira Lima, p. 68-9.
118 freyre, Gilberto. Casa grande e senzala, p. xlvii.
119 Ibidem.
120 agassiz, Louis. A journey in Brazil, p. 293.
150
“Sailors on Minas Gerais”, c. 1913. Em 1921, Gilberto Freyre encontrou membros da tripulação deste navio em Nova
York, a quem referiu-se no seu diário, em carta a Oliveira Vianna e, em 1933, no prefácio de Casa Grande e Senzala.
121 Citado em almeida, Silvia Capanema P. “A modernização do material e do pessoal da Marinha nas
vésperas da revolta dos marujos de 1910: modelos e contradições”. Estudos históricos [online]. 2010,
vol. 23, n. 45.
151
tabela 7
Cores dos marinheiros estrangeiros e nacionais 1833-1854
estrangeiros nacionais
navio homens brancos homens de cor homens brancos homens de cor
Fragata Imperatriz 210 18 39 186
Fragata Constituição 312 22 64 193
Imperial Marinheiro 122 27 50 310
total 644 (91,2%) 67 (9,2) 153 (16,2) 789 (83,8)
Fontes: an, Série Marinha, Livros de socorros da fragata Imperatriz xvii m 2500 e xvii m 2501; Livros de socorros
da fragata Constituição: xvii m 490; xvii m 1334; xvii m 1342; xvii m 1374; xvii m 1399; Livros de socorros da corveta
Imperial Marinheiro: xviii m 2303; xviii m 2311; xviii m 2312; xviii m 2323; xviii m 2324; xviii m 2325.
Do mesmo modo que usei a expressão “de cor” para comparar nacionais e estran-
geiros, dentre os nacionais também faz-se necessária a distinção entre caboclos,
pretos e pardos, os quais analiso separadamente, mais adiante.
152
tabela 8
Cores dos recrutas e praças nacionais 1833 - 1894
Fontes: “Tripulação de navios da Armada”: an, Série Marinha, Livros de socorros dos navios Imperatriz (1833-
35), Constituição (1844-46) e Imperial Marinheiro (1852-54); “Registros de recrutas nas províncias”: A lista foi
extraída de um banco de dados que fiz a partir de vários maços de correspondência de presidentes de província
com o ministro da Marinha. Ver bibliografia. As cores foram definidas pelas autoridades e funcionários que
enviavam os recrutas para a Corte em diversas províncias e em alguns requerimentos. “Réus em processos
criminais da Marinha”: morgan, Zachary. Legacy of the lash, race & corporal punishment in the Brazilian Navy
(1860-1910). Providence, 2001. Ph.D. Dissertation, Brown University
Pardo sempre foi uma palavra polissêmica122 e poderia significar negro forro, indí-
gena e mestiços de variadas origens.
Dentre os pardos da tabela acima, incluí “outros mestiços”, a saber: morenos,
pardo-escuros, pardo-claros, pardo-brancos, escuros, cabras, cafuzos, trigos, tri-
gueiros, “quase preto”, “quase branco”. Eles representam, dependendo do navio,
de 10 a 17% do total de mestiços, sendo os demais classificados apenas como pardos.
Segundo o príncipe viajante Maximiliano de Wied-Neudwied, uma parte da po-
pulação era branca ou “presumidamente branca”. Vários viajantes fazem comen-
tários semelhantes. José Bonifácio, preocupado com questões de heterogeneidade
dos habitantes do Brasil, usou a expressão “brancos inferiores”, aos quais, junto dos
mulatos, não se devia permitir que vivessem “na miséria e na indolência”.123 Hoje em
dia ainda existe linguagem oral do Rio de Janeiro, a expressão “branco sujo”. Todas
elas atribuem pobreza ou algum grau de miscigenação a esses ditos brancos. Den-
tre os brancos listados, havia certamente um número considerável de portugueses
122 A este respeito ver, lima, Ivana S. Cores, marcas e falas: Sentidos da mestiçagem no Império do Brasil.
123 silva, José. B. A. Projetos para o Brasil, p. 154.
153
124 an, Série Marinha, Livro de socorros da fragata Imperatriz, xvii M 2500.
125 an, Série Marinha, xm 69, Correspondência com o presidente de Sergipe.
126 an, Série Marinha, xm 1160, Requerimentos, 1862.
127 schwarcz, Lilia M. Nem preto nem branco, muito pelo contrário: Cor e raça na intimidade. In: novais,
F.A. e schwarcz, L.M. História da vida privada, Volume 4., p. 226. A lista de cores respondidas pode
ser lida na página 227.
154
128 O mulato ou o homem de cor, n. 4, 22/10/1832. Citado em lima, Ivana. S. Cores, marcas e falas, p. 53-4.
129 D. Pedro II. Diário de viagem ao Norte do Brasil, p. 51.
130 Arquivo Público da Bahia, Escola de Aprendizes-Marinheiros.
155
(...) mandou castigar pelo guardião na frente da companhia, com duas dúzias de
bolos, um menino de cor branca, filho de estrangeiro e de excelente comportamento?”131
O homem pardo, livre, que une duas das principais categorias populacionais do
Império, a cor e a condição, aparece em destaque nas estatísticas do recrutamento,
tanto quanto nos mapas de população de época. Apesar de a escravidão ser estrutu-
ral naquela sociedade, e em média atingir, no período estudado, 30% da população
total, a existência de uma maioria parda dentre os livres é um dado tão importante
quanto a própria escravidão.
3.9 Indígenas
134 Jacinto Roque de Sena Pereira foi ministro da Marinha (1839-1840) e chefe da esquadra naval do
Prata, durante a guerra da Cisplatina.
135 Suas atividades empresariais abrangiam desde a pesca de baleias até a companhia de seguros.
157
facilmente poderia ser classificado de pardo na Marinha. Ao longo dos séculos xix
e xx, chamar uma grande parte dos afro-descendentes, assim como os indígenas e
seus descendentes de pardos foi uma tendência crescente. Se, por um lado, escra-
vos pretos poderiam tornar-se pardos quando libertos, indígenas eram transfor-
mados em pardos, para serem escravizados, ou caboclos, para serem incorporados
à sociedade nacional.
Nos navios estudados, das décadas de 1830 a de 1850, os classificados como ca-
boclos, cafusos ou cabras no aspecto “cor” dos Livros de socorros somam em média
20% dentre os nacionais. Certamente, dentre os classificados de morenos ou pardos,
há indígenas ou seus descendentes. Se seguirmos pelo tipo de cabelo, outra carac-
terística de identificação, poderíamos dizer que cabelo preto indica predominância
de origem indígena. Explico: em relação ao “cabelo” todos os caboclos os têm preto,
com exceção de alguns que têm cabelo corredio ou liso. Por sua vez, todos os homens
pretos têm cabelos grenhos ou carapinhas. E, finalmente, os pardos têm cabelos
carapinhos, grenhos e pretos, e os morenos, em geral, têm cabelos pretos. Assim, na
fragata Constituição há 24 pardos e 19 morenos com cabelos pretos, e no Imperial
Marinheiro, há 84 pardos e 3 morenos de cabelos pretos. Se meu raciocínio estiver
correto, a porcentagem de indígenas ou seus descendentes entre os nacionais sobe
para 30%, na fragata Constituição e 44%, na corveta Imperial Marinheiro.
Esse forte contingente caboclo na corveta Imperial Marinheiro corresponde à
visão do tenente Sabino Eloy Pessoa, tripulante dela em uma viagem à Europa, entre
1857 e 1858. Antes de exaltar as virtudes do marujo de cada província, citado acima,
descreveu o marujo brasileiro genérico como “caboclo”, em resposta à revista naval
inglesa United Service Magazine, na qual se lia que os “brasileiros não eram idôneos
para a vida do mar”:
Qual é em todo mundo o tipo mais perfeito do marinheiro se não é o caboclo dos
nossos grandes rios, mesmo dos nossos sertões?
Quem mais denodado e inteligente no combate? (...) Mais paciente e resignado,
mais respeitador da disciplina?
Imperial Marinheiro, não é ele, sendo principalmente indígena que atira ao alvo
como Guilherme Tell, quem maneja o sabre como um mestre de armas, que com-
bate no campo raso como um zuavo? Não é ele (...) o mais destemido gajeiro e o
nadador por excelência?
158
Essas palavras poderiam ter sido citadas das páginas de um romance indigenista,
contemporâneo à publicação do livreto do tenente. O Guarani de José de Alencar,
por exemplo, havia sido publicado em 1857. Pessoa era um homem culto, como se
depreende de seu relato de viagem e de uma das suas ocupações na Marinha: foi o
responsável pela biblioteca por alguns anos. Conhecia história, geografia, ciências
exatas, frenologia, literatura; citava a cântaros os versos de Camões. Ele defende
o marujo brasileiro, retratando-o como herói indígena. Mas, para além de sua sin-
tonia com a literatura contemporânea, a imagem que tinha do marujo caboclo não
pertencia apenas ao campo do simbólico. Apesar de sua descrição literária, ele não
era o índio morto do romance indigenista. Pessoa conhecia bem a tripulação dos
navios, onde a presença indígena, ou de seus descendentes, não era pequena.
O viajante Thomas Ewbank deixou um testemunho diferente a respeito desses
marujos brasileiros, quando visitou a Ilha de Boa Viagem, na Baía de Guanabara,
onde ficava a Escola de Aprendizes Marinheiros da Corte. O norte-americano ficou
intrigado com um sentinela de mosquetão e baioneta, e outro que carregava uma cai-
xa de cartuchos e trazia uma espada à mão. Segundo suas palavras, “nenhum desses
guerreiros ia além de quatro pés de altura nem dez anos de idade. Percebo que um
deles era índio. O que tudo isso significa, não concluí (...)”.137 No ano em que visitou
a Escola, havia 27 aprendizes embarcados na fragata Constituição, todos vinham das
províncias do Norte, sendo que 16 eram caboclos e 11 eram pardos (alguns desses
últimos, com cabelo corredio). 138
Ewbank foi informado que os indígenas tinham boa fama como marítimos. Ain-
da assim questionou um discurso muito difundido durante os períodos colonial
e imperial, reproduzido pelo próprio comandante da Escola de Aprendizes que o
recebeu: “os aborígenes, os selvagens e os mansos ligam pouco para os filhos, às
vezes, vendendo-os por um trago de cachaça, e que seus filhos não dão importân-
cia maior aos pais”. Ewbank ao checar essa informação inquiriu a um indiozinho
136 pessoa, Sabino E. Viagem da Corveta Imperial Marinheiro nos annos de 1857 a 1858 a diversos portos do
Mediterrâneo e do Atlântico, p. 17-8.
137 ewbank, Thomas. Vida no Brasil, p. 196.
138 an, Série Marinha, Livro de socorros de aprendizes marinheiros da fragata Constituição, xvii M
1344, 1846.
159
do Amazonas a respeito de sua família. Ele respondeu que o seu pai estava morto
e queria voltar para a sua mãe.139 Nessa época, três dos índios foram recrutados
por uma expedição de engajamento de indígenas no Espírito Santo: os botocudos
Jumbrá e seus dois filhos. Uma vez consentido o engajamento, o pai pediu para
acompanhar os filhos a fim de conhecer seu destino. O fato é que, se havia alguma
permissividade da parte dos índios nas trocas de bens por pessoas, as autoridades
e particulares também se fiavam em uma atribuída ausência de valores familiares,
por meio da qual trocavam ou forçavam a troca de objetos ou dinheiro por suas
crianças. Em outras palavras, tratava-se de uma compra. Mas, ao menos, em duas
expedições da década de 1840, de engajamento para a Armada, no Espírito Santo e
no Pará, essa suposta troca ocorreu em pouquíssimos casos. O resultado foi a vinda
de poucos rapazes, fato que deve ter contribuído para uma política mais agressiva
nos anos seguintes.
A militarização dos índios era uma tradição colonial das Américas. No entan-
to, a novidade do século xix consistia em que o recrutamento estava na agenda do
processo civilizatório. A inserção dos índios na “sociedade nacional” podia e devia
ser feita por meio do trabalho. De início, foram classificados de caboclos, pardos e
até mesmo brancos, sendo que hoje estão miscigenados na população negra, parda
e branca, desse modo, a palavra “caboclo” deixou de ser uma classificação de cor
para ser utilizada basicamente na linguagem oral, portando inúmeros significados,
dentre os quais indígena, mestiço de indígena com branco, caipira, matuto, perso-
nagem de folguedo etc.140
Os índios trabalharam durante toda a colonização, ora ao lado dos escravos, ora
onde estes eram insuficientes. As capitanias, e depois províncias, como São Paulo,
Pará e Espírito Santo possuíam grande contingente de índios e seus descentes fa-
zendo todo tipo de trabalho, às vezes, remunerado, às vezes, compulsório e, às vezes,
escravo. Em 1824, o presidente do Espírito Santo explicava as dificuldades de enviar
índios para a Armada. Dada a falta de escravos naquela província, eram os índios os
fornecedores de farinha de mandioca para a capital.141
Na década de 1820, várias decisões e portarias requeriam índios para os navios e
arsenais da Armada. Uma portaria de junho de 1824, expedida para Santa Catarina,
Rio Grande de São Pedro, Espírito Santo e Pará determinava que “os índios enviados,
logo que se reconheça a Independência deste Império serão (...) restituídos à sua
província quando requeiram regressar”.142
Em dezembro de 1825, foi aprovada a criação de uma companhia de índios para
o serviço do Arsenal da Marinha do Maranhão e dos navios da Armada.143 O presi-
dente do Ceará, em 1826, respondeu a um questionário do governo a respeito da
civilização de indígenas, no qual afirmava que o aproveitamento da mão-de-obra
indígena diminuiria a necessidade de escravos africanos e forneceria “ao Exército
e à Marinha soldados e marinheiros robustos”.144
Na década de 1830, um aviso declarava que os índios eram “pacientes nos tra-
balhos, sóbrios e mui subordinados à disciplina”, ao contrário dos marinheiros
recrutados na Europa que, além de onerosos, eram insubordinados e propensos à
deserção.145 No entanto, eles não eram necessariamente submissos. Em 1827, alguns
remadores indígenas vindos de aldeias de Alagoas, Bahia e Rio de Janeiro abando-
naram o Arsenal da Corte por falta de pagamento e foram declarados desertores.146
Naquele período, o presidente da província da Bahia mencionou sobre o transporte
de “recrutas e índios” para a Corte. Nesse sentido, apesar de ser recruta, o índio era
visto como uma categoria diferente.
Em 1837, dois avisos determinavam o emprego de crianças indígenas: o primeiro
requeria meninos de sete a dez anos como aprendizes no Arsenal da Marinha da
Bahia, em troca de alimento e vestiário. O segundo, jovens de 13 a 20 anos aptos para
o serviço da esquadra. Antonio Faustino foi recrutado em 1837, aos dez anos, como
menor indígena, algo perfeitamente legal no período. Seu destino na Marinha foi
duro. Ficou na Companhia de Menores por cinco anos, aos 16, ingressou como pri-
meiro grumete, e pelo menos nos dois anos seguintes continuou como tal, na fragata
142 an, Série Marinha, xm 84, Correspondência com o presidente do Espírito Santo.
143 Decisão n. 284, 20 de dezembro de 1825. Colecções das Decisões do Governo do Império do Brazil de 1825,
p. 200.
144 Ofício de Antônio de Sales Nunes Barford para o Visconde de São Leopoldo, 1826. In: naud, M.C.,
Documentos sobre o índio brasileiro (2.a parte), p. 322.
145 Aviso de 3/6/1837. Coleção das leis do Império do Brasil, 1837. Disponível em: http://www2.camara.gov.
br/atividade-legislativa/legislacao/publicacoes/doimperio/colecao2.html. Acesso em: 31 jul. 2011.
146 soares, Carlos E.L. A capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro 1808 – 1850, p. 277.
161
147 an, Série Marinha, xviii M 490, Livro de socorros fragata Constituição, 1844-5 e xm 128, Correspon-
dência com o presidente do Maranhão, 1837.
148 an, Série Marinha, xm 13, Correspondência com o presidente do Espírito Santo, diversos ofícios do
capitão-tenente Felipe José Ferreira ao ministro da Marinha Francisco de Paula H. Cavalcante de
Albuquerque, março a julho de 1845.
149 Em 1808, estava previsto o trabalho compulsório dos indígenas, capturados em regime de guerra
justa. A lei foi abolida em 1831, mas o costume continuou.
150 Ibidem
151 ewbank, Thomas. Life in Brazil; or A journal of a visit to the land of the cocoa and the palm, p. 323.
162
(...) conseguir que os indígenas se prestem a vir servir na Armada, a lançar mão de
todos os meios que sua perspicácia lhe sugerir, não se servindo jamais para com
tais indivíduos de meios coercivos ou aterradores: pelo contrário Vmce. lhes fará
conhecer por vias de persuasão e doçura, quanto eles podem lucrar e melhorar,
empregando-se no serviço do Império, onde acharão que deles trate com o ves-
tiário necessário, e alimento regular, independentemente dos riscos e fadigas de
vida nos bosques.153
Dois meses depois, com apenas dez índios engajados, entre eles os botocudos Jum-
brá e seus dois filhos, o tenente escreveu um parecer sobre as relações com os indí-
genas na província:
com eles nenhum arranjo tenho podido efetuar por serem mui desconfiados, e pou-
co ambiciosos; sendo o seu maior prazer comerem muito e viverem ociosos com
duas e três mulheres! (...) Tenho tentado com os donos dos sítios ver se é possível
havê-los com algum engano, e mesmo lhes tenho oferecido vantagens; mas eles
receiam que forçando-os lhes sobrevenham perseguições e preferem tê-los como
amigos, ainda sofrendo deles e das mulheres cotidianos prejuízos e estragos que
lhes fazem nos roçados, que entregá-los enganados (...).. 154
154 Ibidem.
155 an, Série Marinha, xm 107, Correspondência com o presidente do Pará.
156 Ibidem.
164
de indenização um valor que seu fâmulo e seu pupilo respectivamente “lhe deviam”.
Enquanto valores similares foram cedidos aos parentes a modo de gratificação.
Todos esses jovens, segundo o termo de engajamento, deveriam servir por seis
anos, recebendo um salário inicial de 7$000 réis, após esse tempo teriam sua volta
para casa assegurada.157
Em 1860, o índio Manoel Pacífico de Barros, 24 anos, foi enviado como recruta
pelo capuchinho Frei Dorotheo Loretto, religioso responsável pelo aldeamento de
São Pedro, em Porto da Folha, Sergipe. O frei teria atendido à solicitação do presi-
dente da província de remeter para a Armada índios “rixosos e turbulentos”. Há
registros na região tanto do medo e a conseguinte fuga quanto de conflitos causa-
dos pelo recrutamento. Em 1827, indígenas de um aldeamento próximo, Pacatuba,
invadiram a cadeia de Vila Nova para libertar o seu líder, que se encontrava preso
como recruta para a Marinha.158 Conforme visto anteriormente, segundo o Impe-
rador, quando visitou aquelas paragens em 1859, as mulheres de Barra de Panema
acreditavam que o vapor em que viajava “carregaria todos os homens no caso de
assentarem praça”.159
Décadas mais tarde, no entanto, o índio Pacífico não escapou de sua sina e,
dez meses após ter chegado à Corte, e jurado à bandeira, dirigiu um requerimento
ao Imperador:
160 an, Série Marinha, xm 69, Correspondência com o presidente do Sergipe, 1861.
161 Em seu diário, o Imperador mencionou a existência de mais ou menos cem índios entre os muitos
portugueses na aldeia de São Pedro. Registrou a queixa de roubo de terras dos primeiros contra os
segundos. O frei Loretto alegou ao Imperador que os índios eram indolentes e, já que não plantavam,
dava terras aos “pobres”. Os índios ainda reclamaram que o frei impedia, nas palavras do Imperador,
“batuques, bebedeiras e preguiça de trabalhar”. D. Pedro II, precisando demonstrar generosidade
com todos que cruzavam seu caminho, talvez tenha prometido a integridade das terras aos índios,
mas, pelo que escreveu em seu diário, parecia ter mais empatia com o frei. D. Pedro II. Diário de
viagem ao Norte do Brasil, p. 133.
162 Decisão n. 147, 8 de julho de 1824, Manda comprar escravos para o serviço dos navios de guerra.
Coleção de decisões do Império do Brasil de 1824.
166
“por serem encontrados muitos escravos fugidos”.163 Em 1837, outra lei consentiu a
entrada de crioulos no Exército e na Armada. Mas dois anos depois, em 1839, uma
correspondência reservada de Garcia d’Almeida, presidente da Bahia oferecia como
recrutas para o ministro da Marinha, homens presos durante a Sabinada e enviados
para Fernando de Noronha. Ele justificava que não haviam sido recrutados para
o Exército por serem criolos!164 Finalmente, uma lei de 1840 proibiu que escravos
servissem como praças.165 Nesse mesmo ano, a Marinha doou dezenas de escravos
à Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro.
Diante de leis confusas e dados inconsistentes a respeito da presença escrava nas
tripulações é difícil chegar a uma conclusão da efetiva participação de escravos nas
embarcações da Marinha. Certamente grande parte dos pretos e pardos da Marinha
eram egressos da escravidão ou filho de escravos. A oscilação na legislação e a flutu-
ação entre todo tipo de trabalho compulsório e livre no Império, atingiu certamente
esta instituição como tantas outras.
Na fragata Imperatriz, por exemplo, havia registro de apenas 14 escravos em um
total de 964 homens, sendo que a maior parte eram criados de oficiais. Na fragata
Constituição e na corveta Imperial Marinheiro eles nem sequer foram computados.
No entanto, em diversos navios, muitos escravos fugidos serviram como livres. Além
disso, junto dos africanos livres, havia muitos escravos nos arsenais e hospitais da
Marinha de Guerra e no trabalho de escavação do dique da Corte.
Por outro lado, na Marinha mercante de cabotagem, os escravos representavam
uma porcentagem considerável, segundo demonstram os censos navais a partir de
1855. Em 1857, cerca de 48% dos marinheiros da Corte e da província fluminense
eram escravos. Nos demais portos onde foram contados (Pará, Maranhão, Alagoas,
Pernambuco, Bahia, São Paulo, Santa Catarina, Paraná), somavam 33% do total. O
provável motivo é que a maioria dos escravos deveria pertencer aos donos das em-
barcações. No século xix, quem tinha propriedade possuía escravo.
tabela 9
Tripulação da Marinha mercante de cabotagem, Império do Brasil, 1857
em 1833, por ser africano, estrangeiro.166 As autoridades sabiam dessa isenção, mas
a prática os impelia a continuar o recrutamento desses homens. Em julho de 1842, o
subdelegado de São Gonçalo recrutou Pedro, um africano livre, e o enviou ao juiz de
Niterói. Este o expediu ao presidente do Rio de Janeiro, mesmo questionando a sua
própria ação. No entanto, ele resolvia seu dilema não seguindo a lei, mas um costume:
E posto duvide se indivíduos tais estão sujeitos ao recrutamento por não compreen-
didos nas Instruções de 10 de julho de 1822, e por não serem cidadãos brasileiros a
vista do artigo 6º da Constituição, contudo como há numerosos exemplos de terem
sido empregados no serviço militar do Império, parece-me que o devia remeter a
disposição de V. Exa para que o mande empregar na Marinha.167
Finalmente, o presidente o enviou à Marinha e, ao que parece, o assunto foi encer-
rado ali mesmo. Africanos, assim como outros estrangeiros, foram recrutados ilegal
e habitualmente, com a anuência de todo tipo de autoridade.
Álvaro Nascimento interpretou o “alistamento não somente como um castigo
para os homens livres, mas também uma das rotas seguidas por escravos para
encobrir sua fuga e garantir a liberdade”.168 A conclusão de que o Arsenal e os
navios constituíam uma das possibilidades de fuga para escravos foi igualmen-
te demonstrada por Carlos Eugenio Líbano Soares.169 Não é possível quantificar
quantos escravos seguiram por esse caminho. Desconfio que eles representavam
uma minoria dentro dos navios.
A escravidão simulada era também um abrigo contra o recrutamento.170 Tanto
Thomas Ewbank, em 1846, quanto, mais recentemente, o historiador Sidney Cha-
lhoub, entenderam que forros simulavam a condição de cativos para escaparem das
Forças Armadas. Observador das ruas, o viajante norte-americano flagrou forros
tirando os sapatos, quando sabiam que a tropa do recrutamento se aproximava.
Sidney Chalhoub afirmou que era comum encontrar nos papéis da polícia homens
forros que se diziam escravos para fugir do recrutamento. Foi o caso, por exemplo,
de José Crioulo ou Damásio Maximiano. Detido em 1836, no calabouço da Corte,
166 an, Série Marinha, xm 489, Correspondência com o presidente da Bahia, 1833.
167 an, Série Marinha, xm 84, Correspondência com o presidente do Rio de Janeiro, julho de 1842.
168 nascimento, Álvaro P. do, Do cativeiro ao mar: escravos na Marinha de Guerra, Estudos Afro-asi-
áticos, n. 38, dez 2000. Versão online. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_
arttext&pid=S0101-546X2000000200005. Acesso em: 31 jul. 2011.
169 Ibidem.
170 ewbank, Thomas. Life in Brazil; or A journal of a visit to the land of the cocoa and the palm, p. 277.
169
declarou-se antes de tudo escravo. Mas, impelido pelos maus tratos, e não auxiliado
por seu suposto dono, escreveu, por meio de um procurador, um requerimento para
o Imperador, declarando-se preto livre, marinheiro do brigue Niger da Armada. A
charada sem solução foi bem elaborada pelo historiador: “se ficasse José Crioulo,
era escravo, calabouço, açoite, libambo; se ficasse Damásio Maximiano, era recruta
forçado, brigue de guerra e açoites também, com certeza”.171
O personagem Amaro, o “bom-crioulo” do romance escrito pelo oficial Adolfo
Caminha, era escravo fugido, “veio, ninguém sabe donde” e se alistou na Marinha.
Semelhante ao relato de Damásio, inicialmente escapar da escravidão por meio da
Marinha foi um alívio, mas logo ele se viu em meio a encruzilhada do recrutamento
e da escravidão:
(...) o novo homem do mar sentiu pela primeira vez toda a alma vibrar de uma ma-
neira extraordinária, (...). A liberdade entrava-lhe pelos olhos, pelos ouvidos,pe-
las narinas, por todos os poros”. Mas depois de algum tempo servindo lamentou:
“Ah! vida, vida!... Escravo na fazenda, escravo a bordo, escravo em toda a parte... E
chamava-se a isso de servir à pátria!172
O trabalho escravo e o dito “livre” na própria Marinha, pode ser comparado por meio
dos ganhos dos carpinteiros escravos do Arsenal da Marinha de Santa Catarina com
os salários dos primeiros grumetes na corveta Regeneração nos meses de setembro
e outubro de 1839. Os escravos ganhavam 800 réis por meia jornada de trabalho no
domingo, totalizando 3$200 réis em um mês. Os grumetes ganhavam 4$800 réis
por mês e, muitas vezes, eram descontados os valores dos fardamentos e de outros
místeres, desse modo, o soldo podia corresponder a menos de 3$000 réis.173 Devi-
do a esse pecúlio e, provavelmente, a outros ganhos em terra, no decorrer daquele
ano, Maximiliano, um dos escravos, casado, conseguiu obter a alforria e passou a ser
empregado do Arsenal. Ele certamente não abandonaria seu posto para tornar-se
grumete. Apesar de os escravos representarem uma mínima parcela das tripulações
dos navios estudados, os forros devem ter ingressado em uma escala muito maior.
171 chalhoub, Sidney. A força da escravidão (ilegalidade e costume no Brasil oitocentista). Mimeo, p. 145-6.
172 caminha, A. O bom-crioulo, p. 5 e passim.
173 an, Série Marinha, xm 134, Correspondência com o presidente de Santa Catarina, 1839.
170
Arrastada sobre uma população livre e liberta pobre e racialmente misturada, a rede
do recrutamento forçado inevitavelmente capturava escravos. Ao mesmo tempo, a
identificação entre serviço militar atraía os escravos, assim como os atraía a pers-
pectiva de usar o Exército para se distanciarem de seus senhores.174
Por um lado, o recrutamento de escravos era residual, pois os escravos poderiam ser
confundidos com homens livres de cor. Ou, ainda, como também observou Álvaro
Nascimento, a tropa, mesmo sabendo da condição de escravo, poderia simular a
liberdade para obter o prêmio pelo recrutamento.175 Por outro lado, quando o sujeito
de condição escrava se engajava de livre e espontânea vontade, tal procedimento sig-
nificava fuga de uma situação pior do que a possivelmente encontrada em um navio.
Não foi o caso de Luiz Crioulo, escravo da capixaba Rosa Maria do Sacramento.
Tudo indica que preferiu voltar para o seu antigo posto de escravo marinheiro na
lancha, onde foi recrutado à força. Segundo o Comandante do Quartel General, ele
já alegava ser escravo antes de sua dona escrever o requerimento. A lancha Nossa
Senhora da Penha, onde trabalhava, fazia transporte de recrutas do Espírito Santo
e ele devia saber muito bem o que o esperava. Rosa Maria requereu e o Ministério
deferiu o pedido.176
Diferente do caso anterior, Dona Balbina Jaldina Soares, viúva de comerciante
da Rua do Ouvidor na Corte, requereu o escravo Abel e teve dificuldades de obtê-lo
de volta. O escravo alegava ter sido alforriado pelo ex-senhor que, diga-se de passa-
gem, lhe deixara um legado de 50$000 réis. Abel era pardo e filho de uma escrava do
mesmo casal. Havia a possibilidade real de ser filho de seu senhor. A viúva, diante das
dificuldades de reintegrar a posse, desabafou que se punha “o direito dos senhores
a mercê de ‘alecantinas’ [sic]; o escravo era um embusteiro como se devia esperar”
e, principalmente, alertava às autoridades dos “inconvenientes e riscos que pode
174 kraay, Hendrik.”O abrigo da farda”: O Exército brasileiro e os escravos fugidos, 1800-81, Afro-Ásia,
n 17, 1996, p. 56.
175 nascimento, Álvaro P. do. Do cativeiro ao mar: escravos na Marinha de Guerra, Estudos Afro-asiáticos,
n. 38, dez 2000.
176 an, Série Marinha, xm 1162, doc. 65, Requerimentos 1845.
171
trazer para a tranquilidade dos possuidores de escravos, o precedente que com ela se
está estabelecendo, dando-se preferência aos ditos desencontrados de um escravo
contra documentos legais”.177
A senhora acabou tendo um parecer favorável, mas a Marinha não lhe entregou o
escravo tão facilmente. A escravidão e o recrutamento constituíam duas realidades
daquela sociedade multifacetada. Escravos poderiam fugir de seus proprietários
por meio do engajamento, outros se fingiam de escravos para fugir ao recrutamento.
A devolução do escravo deve ter prevalecido. A escravidão era uma instituição
que deveria ser mais respeitada do que o recrutamento. E, como vimos, a maioria da
população era livre e vadia, segundo o ponto de vista dos governantes, os quais tam-
bém não desejavam atrapalhar as atividades produtivas, movidas em grande parte
pela mão-de-obra escrava. A escravidão e o recrutamento conviveram em relativa
paz durante o Império. No caso do pardinho acaboclado José, analisado acima, pre-
valeceu o parecer do oficial maior da Marinha: “incompatível é com a honrosa classe
militar da Marinha e Guerra, contar no número dos praças dos corpos respectivos,
homens que não forem notoriamente livres, para gozarem do título de cidadãos”.178
(...) tendo servido sete anos, achacado de enfermidade, não podendo já por sua
idade impedimento físico continuar a prestar serviços ao Estado, rogando ao be-
néfico coração de vmi seu desembarque para ser transportado à província do Pará
no seio de sua família e de sua velha mãe cega de ambos os olhos precisando do
arrimo do suplicante, seu único filho.
O marujo disse ainda que sofria do pulmão, a doença mais comum na Armada,
além de ter muitas irmãs donzelas. O comandante do navio procurou por Manoel,
o qual respondeu que não fizera requerimento algum e contou o que acontecera
na taverna.179
Quem de fato assinou a petição foi Antonio José Marques, supostamente a rogo
de Vicente Manoel. Esse Antonio, se não era o amigo da taverna, era um rábula ou
um sujeito alfabetizado, que ganhava dinheiro com os chamados requerimentos,
petições ou demandas.
O apelo de Vicente pertence a um conjunto de requerimentos dirigidos ao Im-
perador e outras autoridades, arquivados na coleção do Gabinete do ministro da
Marinha, sob a rubrica “Requerimentos”, organizados pela ordem alfabética dos
sobrenomes dos peticionários. O requerimento de Vicente não foi bem-sucedido
por diversas razões. Vários dados da carta não eram comprovados por outros do-
cumentos. Há desencontro nas datas, inclusive de recrutamento, suas expressões
dramáticas, “mãe cega de ambos os olhos”, “sete irmãs donzelas”, “doença”, não
apresentam sequer um documento comprobatório.
O estilo dos textos dos requerimentos era carregado de tintas melodramáticas,
misturavam-se leis aos dramas individuais e familiares. Essa retórica de convenci-
mento é uma tradição antiga e merece um estudo à parte. No livro de Natalie Davis
sobre presos que pedem perdão no antigo regime francês, podemos verificá-la180.
Também está presente nas ações de liberdade de escravos em Cuba, no século xix,181
assim como em folhetins portugueses; enfim, trata-se de uma retórica ocidental com
origens, ao menos, no Antigo Regime. Demonstra, entre outras coisas, a maneira
pelas quais os dramas pessoais e familiares eram expressos e a fé, principalmente
na justiça do rei, em uma época em que as autoridades deveriam ser vistas como
benfazejas e protetoras em relação aos governados.
Como, então, ler o desespero dos recrutas e seus familiares traduzido por es-
crivães profissionais que circulavam nos mundos das tavernas, dos pobres, e tam-
bém nos ambientes da justiça? É necessário interpretar os requerimentos também
Mundo folhetinizado para efeitos de persuasão, onde o medo entrava como peça
fundamental. Mundo folhetinesco a exigir o discurso do melodrama para dizer o
paroxismo das situações, o paroxismo dos sentimentos. Paroxismo da linguagem
dos acusadores e das vítimas. Uma fala que é quase como que o discurso “natural”
dos despossuídos, daqueles que só tem o corpo, o grito, o descabelamento para
dizer da inominável aventura de seu cotidiano, antes de acabar servindo também
aos moralizadores bem pensantes.182
Sobre a construção dessa retórica popular, Jorge Amado, em Mar Morto, romance de
1936, narra o episódio em que o personagem principal, o barqueiro Guma, encomen-
da por dois cruzados uma carta de amor ao escriba informal do cais, Dr. Filadélfio.
Depois de ter a carta pronta, Guma começa uma discussão sobreuma imagem que ele
escrevera: Minha filha eu penso que o teu coração é um cofre doirado. Guma não gosta da
imagem e troca “cofre” por “concha” na versão final, pois achava “que não havia nada
mais bonito que concha. Cofre é uma coisa feia.” O Dr. Filadélfio insistia na imagem
dizendo que se ele visse um cofre doirado nem discutiria.183 O chiste é retomado
algumas vezes no romance e demonstra uma face da relação dos pobres com seus
escrivães. Dr. Filadélfio traz imagens de um mundo literário, com sua concepção de
linguagem rebuscada, enquanto Guma, mesmo valorizando o conhecimento de seu
escriba, preferiu usar uma imagem referenciada em seu próprio mundo.
Em 1847, a bordo do Guararapes, o “caboclo” paraense José Frutuoso pediu ao
seu colega Athanazio de Jesus e Souza, segundo marinheiro, que escrevesse um re-
querimento. O barco encontrava-se no Maranhão, perto da terra natal de Frutuoso.
Depois de servir oito anos, doente, pedia para desembarcar, pois:
(...) único filho de uma pobre velha de mais de seçenta annos de idade coberta
das mais infeliçidades e miseria e pobreza digna de amanidade. Por viver em um
dezamparo a falta de um filho que acompanhava. Contudo Imperial senhor não
lhe seria pezado continuar no Imperial serviço se não fosse ataques de moléstias
cronicas, de froxidão de nervos, que padesse, que amais tempo vive privado de fazer
o serviço que lhe são ordenado, por seus superiores, motivo este que coberto do
mais profundo respeito e humilhação vem ao respeitavel trono de vmi implorar a
graça de lhe mandar paçar a sua guia de dezembarque atendendo a suas suplicas
respostas bordo deo brigue escuna gaurarapes.184
O requerimento escrito por Athanazio foi o único “escrito a bordo” que encontrei
na minha amostra. Apesar de ser uma exceção, e conter mais erros ortográficos do
que aqueles escritos pelos procuradores profissionais, o texto é bem exemplar e
eficiente na retórica de convencimento. Na falta de documentos comprobatórios
da sua terra natal, como atestados de pobreza, assinados por um vigário ou de bom
comportamento, assinado pelo inspetor de quarteirão, o marujo procurador de-
senvolve um notável ziguezague em seus argumentos. O movimento se inicia com
um drama familiar, seguido de submissão ao serviço militar, passando pela saúde
débil – algo que de fato era uma porta de saída frequente nas Forças Armadas –, e
novamente finaliza demonstrando reverência aos superiores. O marujo demons-
trou-se perspicaz na retórica de convencimento. O único documento anexado foi a
cópia do registro de José Frutuoso, no Livro de socorros, que narra sua trajetória na
Marinha. Recrutado em 1839, no Pará, o “cabocolo” viajou para a Corte no paquete
Januária, assentou praça como grumete, desertou, foi capturado, passou a segundo
marinheiro em 1844, serviu em diversas embarcações e, em 1847, baixou no hospital
três vezes, situação limite que provavelmente se desdobrou na escrita do requeri-
mento. Afinal, aos 25 anos, já era um homem doente, não somente por ele próprio
ter afirmado, mas porque comprovou.
Já que nesta província não se faz justiça vem por meio desta perante o trono augusto
de vmi pedir uma graça da qual se julga digna (...) mãe de dois filhos menores Ladis-
lau de 17 e Rodrigo de 11. O primeiro aprendendo a prático de Barra desta cidade (...)
e neste exercício ganhava o necessário alimento para sustento não só da suplicante
mas como de seu pequeno irmão. Porém uma inaudita perseguição foi feita inopi-
nadamente à suplicante por um tenente da marinha de nome Severiano Nunes, que
(...) não atendendo a viuvez, pobreza e costumes repreensíveis da suplicante que
sem os socorros ministrados por este filho, virá a mendigar de porta em porta o pão de
cinzas (...) Nada há pior neste mundo do que a opressão revestida de formas legais.185
Há duas palavras importantes na primeira frase: justiça e graça. O século xix foi uma
espécie de passagem em que se deu a substituição de uma palavra pela outra. Durante
o Império, elas conviveram, pois, formalmente, receber uma graça do Imperador era
tão legítimo quanto uma sentença favorável de um juiz. Mas, aos poucos, a graça foi
caindo em desuso, apesar de ser mantida na retórica dos pobres. Em 1862, o sargento
Antonio Manuel Monteiro, pardo e paraense, escreveu uma petição pedindo “a graça”
de obter a aposentadoria por tempo de trabalho, conforme o prazo da lei. Um parecer
do Conselho Naval (todo composto de ex-ministros da Marinha) concluiu que “não
[é] a equidade nem a graça, mas o direito stricto apoia a pretensão do suplicante”.186
Entre os documentos anexados ao requerimento de Thereza estava o atestado de
pobreza, assinado pelo cônego de sua freguesia: “sofre malditas percizões por falta
do filho mais velho recrutado”; o atestado de bom comportamento, assinado pelo
inspetor do quarteirão: “é viúva pobríssima e vive honestamente, sendo verdade
em que sua petição alega”; e um emocionado atestado do prático de barra da cidade,
mestre de Ladislau, José João de Castro, escrito de próprio punho: “Ladislau é de
bons costumes, é aquele que em uma idade tão juvenil curava de sua mãe e de um
pequeno irmão (...) tornando-se por isso a mãe daquele Ladislau digna de compaixão
e merecedora de obter a reintegração de seu filho”. 187
O procurador de Thereza questiona a lei e demonstra revolta contra a política
do Estado para com as famílias pobres, que têm de pagar o tributo de sangue, “dra-
matizando o drama” de sua vida. Ambos os requerimentos são escritos em primeira
pessoa para personificar a cliente. No primeiro, afirma que terá de se prostituir, caso
não tenha o filho de volta. Para o Imperador, ela prevê um futuro de mendicância.
De origem indígena, viúva, quer o filho de volta. Uma vez mais os esforços foram em
vão, a sua súplica não foi atendida pelo Ministério da Marinha e prevaleceu a fami-
gerada expressão escrita na margem do requerimento pelo tenente recrutador de
São Luís: “é vadio”. O mesmo despacho no qual o presidente já havia, meses antes,
baseado o seu indeferimento.
Se as narrativas não correspondem à realidade dos fatos, necessariamente, elas
realçam outra verdade: o direito que as mães acreditam ter em manter seus filhos
ao seu lado, seja como arrimo para o presente e o futuro, seja como ente querido.
Na análise de Mary del Priore dos significados da maternidade no período colonial,
o vínculo afetivo era tão importante quanto o econômico:
186 Ibidem.
187 Ibidem.
177
instabilidade econômica e social e seus esforços para criá-la e mantê-la era recom-
pensado pela vinculação dos filhos ao fogo matrifocal.188
188 priore, Mary del, Ao sul do corpo. Condição feminina, maternidades e mentalidades no Brasil Colônia, p.
61 e 65.
189 Regulamento da lei do serviço militar. Disponível em: https://www.defesa.gov.br/ arquivos/servi-
co_militar/legislacao/03_rlsm.pdf. Acesso em: 31 jul. 2011.
190 an, Série Marinha, xm 1131, doc 15, Requerimentos.
178
classificada “na classe dos agregados”, de acordo com o Inspetor. O seu filho, Antonio
Lopes, lhe sustentava com o pequeno jornal que ganhava como aprendiz de funileiro.191
O procurador da septuagenária Delfina Rosa da Conceição, de Niterói, Rio de
Janeiro, questiona o recrutamento de seu filho Henriques com requintes de ironia.
Depois de descrever o sofrimento da mãe, ele pergunta:
Que importa que este filho abençoado prestasse todos os socorros à suplicante?
Que importa que ele tivesse já servido três anos à Nação? Que importa que sua ida-
de, muito maior de trinta anos o eximisse de praça? Que importa que a suplicante
tenha dois filhos com praça de 1ª linha? Que importa que a lei isente de praça, o
filho único de mulher viúva?
O chefe da polícia do Rio de Janeiro, Justiniano B. Madureira, por seu turno, justifi-
ca a prisão. Ele acusa Henriques de maltratar a mãe, em vez de ampará-la, e de não
possuir nenhuma ocupação; em outras palavras, é vadio e desordeiro. Além disso, ele
não é filho único, mas apenas o único que não se casou. O chefe da polícia finaliza:
“as qualidades emprestadas ao recrutado, lhe são atribuídas pelo amor materno, que
prefere ter antes um filho vadio de profissão a seu lado, agravando a sua pobreza, do
que vê-los nas fileiras da Armada”.192 Dessa vez, a mãe obteve o que quis enquanto o
filho obteve baixa. Caso isto [não] acontecesse, ela se transformaria na “mãe-órfã”
de filho, uma expressão de Marlise Meyer para as mães desesperadas dos folhetins
do século xix. Se for verdade ou não que o filho era um fardo para a mãe, impossível
saber. No seu assentamento, no item ocupação está escrito “lavoura”, o que é factível,
pois morava em Cordeiros, uma freguesia rural, hoje em dia parte do município de
São Gonçalo. Mas é certo que o amor materno e o arrimo são dois valores profundos
na família, sendo possível prevalecer apenas o primeiro. Se a família é uma institui-
ção de sobrevivência econômica, é também afetiva.
Nem sempre a família constitui um porto seguro. Uma canção copilada de um li-
vreto de canções marítimas do início do século xx conta a história de um marujo “ven-
dido” pela mãe por 100 mil réis. De fato, a partir de 1855 até, pelo menos, a década de
1890, as famílias ganhavam como “prêmio” 100 mil réis quando entregavam seus filhos
às diversas companhias de aprendizes espalhadas pela costa. O desespero do autor
193 Trovador maritimo, ou, Lyra do marinheiro, contendo modinhas, recitativos, lundus, canções, cançonetas,
poesias, tangos e fadinhos marítimos e populares, escritos e colecionados uns, e outros apanhados direta-
mente da tradição oral por José Embarcadiço, p. 42-44.
194 Ibidem.
180
Marinheiros. Ele, adulto, em uma noite escura e de mar agitado, tenta superar a sua
tragédia cantando. A canção termina com a noite, o vento “camba”, o mar sossega
e diz ao marinheiro: “de lamentos é bastante, descansemos um instante.” De certa
maneira, aquele marujo lançava ao mar suas desgraças por meio de uma canção, para,
assim, superar o sofrimento. Sua redenção foi a poesia.
Outro caso de “venda” de filhos pode ser encontrado em um requerimento de
Santa Catarina, escrito em 1860. “Submissa e reverente”, “a pobre, infeliz e desvalida
Desidéria Marcelina, brasileira, moradora na vila de São Sebastião das Tijucas”, mãe
dos gêmeos Domingos e Firmino da Silva, pediu de volta seus filhos, aprendizes de ma-
rinheiro, a seu desditoso lar para “lhe servirem de amparo nas desgraças que é vítima”.
Desidéria herdara do pai um “sítio de culturas”, uma casa e um escravo. Casou
com José Mariano da Silva. Na justificativa, anexa ao requerimento, três teste-
munhas (seus vizinhos lavradores), declaram que ele a abandonou e a reduziu “ à
miséria, gastando com sua vida extravagante, o produto dos bens que a suplicante
possuía (...) além de viver em relações ilícitas com uma mulher”. Passados onze
anos do abandono do lar, voltou e, na noite de 14 de novembro de 1858, sequestrou
os filhos para entregá-los à Companhia de Aprendizes Marinheiros, em busca dos
100 mil réis de prêmio.
Um ano após o seqüestro – durante esse período ela ficou levantando “nume-
rário” para pagar pelos documentos – Desidéria, que vivia de favor em um sítio de
amigos com sua filha menor, pedia seus filhos por meio de um requerimento. O
presidente da província deu um parecer favorável e mandou “entregar um de seus
filhos em razão de não ter meios para educar a ambos, e poder, entretanto, servi-lhe
de arrimo um só deles”.
Nessa história, é o pai quem, em três diferentes momentos, desestrutura a fa-
mília, deixando a mãe “na maior miséria possível”. Primeiro, dilapida a herança da
esposa, depois a abandona e, finalmente, onze anos após, lhe sequestra os filhos para
assentar-lhes como praças na Armada e receber o prêmio em dinheiro.
Em torno do recrutamento e mesmo da “entrega voluntária” de filhos, emerge o
problema da desestruturação econômica e emocional de todos os membros da famí-
lia. Tanto o abandono do marido quanto a ausência dos filhos prejudicam a mulher.
Mas, ainda assim, havia uma alternativa: a solidariedade dos vizinhos. “Para cobrir
a sua nudez”, Desidéria foi morar em terras de Cypriano Teixeira, “o qual condoído
das misérias da suplicante, e por rogativa de sua mulher concedeu gasalhado à triste
e desestruturada mãe e à filha desprezada do próprio pai”.
181
De pequena proprietária, casada com três filhos, ela passa a agregada, mãe soltei-
ra e com uma única filha. Por outro lado, sob o signo da razão de Estado, o presidente
da província resolve atendê-la parcialmente, dividindo com a mãe seus frutos: um
filho lhe fica de arrimo, o outro serve ao país, “em razão de Desidéria não ter meios
de educar a ambos”.195
Os filhos ingratos também povoaram o imaginário social do século xix. O carpin-
teiro Bernardo Luiz Gonzaga, morador da Corte, considerou que seu filho se alistou
voluntariamente na Marinha, “esquecendo-se do amor materno e paterno”.196 O pai
entendia ser um direito pátrio conservar o filho perto de si e escolher o seu destino.
Do outro lado do Atlântico, em 1848, Camilo Castelo Branco escreveu um folhe-
tim a partir de um crime famoso em Lisboa: “Maria, não me mates sou tua mãe!”.197A
filha, persuadida por um “vadio, ratoneiro” se perde, a ponto de chegar à funesta
consequência do título. O crime aqui não é importante, tampouco os desvarios da
filha. O essencial é a construção da personagem viúva, honesta e trabalhadora, que
subsiste da economia familiar. Depois da morte do marido, “a desgraçada viúva pôs
uma de suas filhas a servir em casa de honrados amos, e ficou com a outra em casa
para a ajudar a viver.” Mas não só o aspecto econômico aparece na descrição da
personagem mãe. Ela dedicou afetividade à filha desde as “entranhas”, lhe deu “o
alimento de seus peitos”, criou-a “a seu lado com beijos e afagos”, “tirara o pão da
sua boca para dar para sua filha”, fora, talvez, “pedir uma esmola para que a sua filha
não tivesse fome e não desse seu corpo em troca de um bocado de pão” (aqui estão
novamente as opções reais ou retóricas da mulher sem homem e diante da miséria:
mendicância e prostituição). Retóricas, porque outras opções para mães solteiras,
como trabalho e agregar-se na casa de amigos e familiares, foram muito frequentes.
Há, portanto, nesses requerimentos escritos em todas as margens do Atlântico,
uma linguagem que circula na justiça, nas canções, na literatura, nos jornais e nos
ofícios de autoridades. A escrita é parte dessa circularidade cultural que chega aos
pobres analfabetos por meio de mediadores provavelmente tão pobres quanto, no
entanto, um pouco mais remediados por dominarem a escrita e terem acesso às
leis, aos manuais de estilo, às notícias de jornais, além de seguirem os capítulos de
folhetins publicados em tantos jornais. Esses mediadores não são necessariamente
195 an, Série Marinha, xm 139, Correspondência com o presidente de Santa Catarina.
196 an, Série Marinha, xm 1137, doc 38.
197 castelo branco, C. Maria, não me mates,sou tua mãe!
182
bacharéis, mas circulam no mundo dos pobres, dos cartórios e juizados, narrando
as desventuras de seus pobres clientes, de maneira semelhante à do mundo culto.
Porém, as diferenças dos universos se sobressaem. Eles viviam de “suas escritas”,
uma dos modos que se descrevia tal ocupação no século xix.
O retrato das mulheres é sempre o de fragilidade, mesmo havendo evidências,
como já observei, de que elas poderiam sustentar um lar. O filho, ainda que menor,
será quem irá garantir o presente e o futuro das mães, como a gaúcha do Rio Grande,
Maria Felisbina da Conceição, viúva e mãe de sete filhos menores, entre eles Manoel
José de Barros, pardo de 13 anos, coroinha da igreja e frequentador das “aulas do
governo”. Em 1858, ela requer o desembarque do menino, alegando “pertencer a um
sexo fraco, é demais enferma, de que já tem resultado ficarem em abandono seus
filhos sem haver quem deles cure e lhes procure o pão que necessitam”.198 Em 1867, a
pernambucana de Pau d’Alho, Maria da Conceição, mãe do “branco moreno” Fran-
cisco José Feliciano, de 15 anos, considera-se em um “estado deplorável por conta
da falta do filho” e, junto de suas filhas, se diz “lutando com os horrores da miséria
reduzida ao estado mais lamentável possível em falta deste único abrigo, que tinha
em seu seio e lhe foi arrancado por meio do recrutamento”.199 Conceição reconhece
no Imperador a “justiça de conceder às viúvas que vivem com honestidade, um filho
para amparo de sua velhice”.
O caso de Benedita Maria da Silva de Ubatuba, São Paulo, é um pouco diferente.
Subjaz na sua história, apesar de todas as agruras pelas quais passou, uma mulher
economicamente ativa e determinada a recuperar seu filho com todos os recursos
formais, ou mesmo clientelistas, que puder usufruir. Ela reivindica o filho coroi-
nha, o pardo Antonio Peregrino da Silva, de 13 anos, narrando as desventuras de
seu casamento relâmpago: “abandonada por seu marido João Alves Serra, natural
de Magé, grávida de cinco meses, há muitos anos. Ele lhe deixou um único filho... o
qual foi recrutado para Imperial Marinheiro e se acha nesta Corte.” Dessa manei-
ra, subliminarmente, mesmo não sendo viúva, apresenta-se como tal, pois é uma
mulher abandonada.
Algumas semanas antes do seu requerimento, um juiz municipal havia enviado
Antonio para a Corte, acompanhado de um ofício de três páginas, explicando que
Benedita vivia “em concubinato escandaloso com Joaquim Peregrino da Silva” e
que o menino era alvo de queixas de furtos, motivo que o obrigou “a lançar mão do
recrutamento, meio sem dúvida extremo; porém único eficaz em vista da demasiada
indulgência com que se portavam as pessoas em cujo poder se acha o dito menor”.
A ubatubense, por sua vez, afirmou: “é pobre e vive de costuras; e seu filho lhe
servia de companhia e amparo”. Benedita não combateu a acusação do amasiamento,
o que era provavelmente verdade, pois, além de Joaquim Peregrino da Silva ser um de
seus procuradores, também batizou o filho com o seu sobrenome. Mas mostrou que,
apesar de pobre e mulher, podia amolecer algumas hierarquias e conseguir o filho de
volta. Criava duas irmãs e mais uma órfã, vivia de seu trabalho, estava possivelmente
amasiada. Mesmo assim, conseguiu atestado de boa índole de diversas autoridades,
entre as quais o vigário, o juiz de paz, um brigadeiro reformado, o presidente da
Câmara e um abaixo assinado de 70 nomes! (fico imaginando que teria conseguido
todas essas assinaturas em um dia de domingo, durante a missa...).
No despacho, não só o ministro da Marinha ordenou devolvê-lo à mãe, como
havia um anexo do Marquês de Olinda ordenando a soltura.200 No diálogo indireto
do ofício do juiz municipal e do conjunto de documentos reunidos, aparece a tensão
da população com as autoridades e a ação possível de se valer do sistema a seu favor,
combatendo o que foi entendido como arbitrariedade de uma autoridade com o
auxílio de outras autoridades.
A sua agência, é incluiu o bom relacionamento com pessoas de diversos níveis
de poder. Há uma relação clientelista. Por outro lado, podemos pensar que ela era
uma excelente costureira, possibilitando ganhos suficientes para sua sobrevivência
e que parte de suas relações foram construídas com base na satisfação daqueles que
vestiam suas roupas. Benedita poderia ser vista como uma das mulheres pobres e
“socialmente desqualificadas”, segundo estudos de Maria Odila Dias. A despeito de
não possuírem propriedades, nem direitos civis e tampouco cidadania política, não
deixavam de “ter a sua organização familiar e de sobrevivência e relações próprias
de convívio comunitário”.201
Entre as poucas mulheres que pediram por seus irmãos estão Ignacia, Margarida
e Liandra, de Garanhuns, Pernambuco. Joaquim Manoel da Silva, branco, teria sido
recrutado por motivos de perseguição e as irmãs arguiram que “se um filho de viúva,
senhor, acha-se literalmente compreendido nas exceções das leis do recrutamento,
o irmão, único amparo de uma viúva e de duas donzelas, está no espírito das mesmas
leis”. Ainda afirmam que uma das virgens, com a ausência do irmão e “na madureza
da idade”, poderá se “resignar com uma sorte mesquinha”.202
Seja esposa, irmã ou mãe, as mulheres reclamam a falta de amparo econômico e a
solidão em que se encontram sem os recrutados, evocando muitas vezes o problema
do sexo frágil: a ausência de homem pode levar à miséria, à prostituição; enfim, a
uma sorte mesquinha. Mas a fragilidade feminina, em geral , é apenas uma imagem
a qual se apegam para conseguir o que querem, pois muitas mulheres, por não se-
rem casadas, mas inseridas no mercado de trabalho, demonstravam capacidade de
sobreviver sem entes masculinos.
O conteúdo dos pedidos dos pais reclamantes difere um pouco. Os filhos são
importantes para a economia doméstica, mas o argumento é outro. Eles pedem os
filhos de volta para coadjuvarem no sustento da casa. Às vezes, doenças e velhice são
mencionadas, mas a ideia do varão é mais forte: o filho que sucede o pai e, na falta
deste, cuidará das irmãs e da mãe. São evocados, ainda, o direito e as condições de
educar o próprio filho.
O cearense Manoel Joaquim Vieira, “brasileiro, viúvo, velho septuagenário”, pe-
diu pelo filho Delfino Vieira da Costa, que se alistou voluntariamente para ajudar
o pai e as irmãs, pois “tem visto que o soldo de 1º grumete não tem podido minorar
os males que pensavam evitar e antes com a ausência dele está mais exposta sua
existência e família”. O pai implora ao Imperador que veja “com olhos de piedade
para este quadro de uma família desolada” e envie o filho para cuidar de três irmãs
solteiras e honestas.203
Há também dois requerimentos de prováveis pais de filhos de mães escravas. O
primeiro é do baiano, provavelmente de origem portuguesa, Antonio José Linhares
Moura, dono de Rosa Nagô. O filho dela, Anastácio José Antonio, lhe ameaçava cons-
tantemente. Moura explicou que, apesar de “libertá-lo no nascimento, mandá-lo
ensinar a ler e conservá-lo em sua companhia até a idade adulta”, Anastácio esta-
va lhe atentando contra a vida. A primeira vez tentou atingi-lo dentro da casa com
um machado. A segunda foi em sua loja, onde o insultou, chamando-o de “maroto”
As companhias de aprendizes marinheiros não são pela lei, e não convêm que se trans-
formem pelo capricho de autoridades locais, em casas de correção [grifo meu]. O pardo
Ignácio Barbosa da Silveira não é desvalido porque pedindo a sua soltura aparece o
Este capítulo procurou traçar, ao mesmo tempo, um perfil dos recrutas e futuros
marujos da Armada Nacional e Imperial do Brasil e da população do novo Império.
Os “nacionais” ou “cidadãos brasileiros”, que se delineariam ao longo do século xix,
podem ser flagrado nas histórias destes recrutas da Armada. Questões vistas aqui
como cor, etinicidade, pobreza, disciplina, castigos corporais e trabalho explodi-
riam na revolta de 1910 comandada, entre outros, por João Cândido, homem pardo,
filho de mãe escrava, formado pela Escola de Aprendizes Marinheiros, herdeiro de
uma cultura marítima internacional e inculcado de um sentimento patriótico que
dificilmente seria possível no período em que se insere este estudo.
205 an, Série Marinha, xm 139, Correspondência com o presidente de Santa Catarina.
186
187
1 an, Série Marinha, xm 723, Corpos de saúde, Relatorio do dr. Emygdio José Barbosa, segundo cirurgião
do corpo de saúde da Armada Nacional Imperial, embarcado na corveta Imperial Marinheiro para o Dr.
Joaquim Cândido Soares de Meireles, cirurgião-chefe do corpo da Armada.
188
4.1 Cosmopolitismo
Se, por um lado, há uma questão de coletividades, por outro, a questão do indi-
víduo no mundo marítimo também é fundamental. Se eles nascem em lugares tão
diferentes, trabalham em períodos curtos e em navios de tantas bandeiras, é de se
convir que suas trajetórias não estão, necessariamente, ligadas a grupos perenes.
O itinerário narrado pelo marinheiro Leandro Gonçalves de Gouveia que partiu de
Paranaguá, sua cidade natal, aos 15 anos, por volta de 1847, e para lá voltou em 1861, é
bastante típico dos marujos de longo curso, sendo muito difícil que algum camarada
seu tenha vivido no mesmo tempo e espaço o que ele viveu:
Que havera quatorze anos mais ou menos que anda ausente desta cidade sempre
embarcado em diversos navios um dos quais de Nação Alemã, foi à Europa há cinco
anos mais ou menos, e depois desembarcou em Pernambuco onde esteve três anos
mais ou menos servindo de estivador de navios (...) em mil oitocentos e cinquenta e
dois, voluntariamente, serviu por seis meses no Hiate Itagipa na Bahia, e findo esse
tempo obteve sua guia de embarque, a qual ficou com a Capitania do Porto daquela
cidade, quando matriculou para bordo de um navio mercante Inglês para Buenos
Aires e de lá para Santos onde embarcou no navio Alemão que foi para a Europa.5
5 Citado em leandro, José Augusto. Cultura marítima: marinheiros da baía de Paranaguá, Sul do
Brasil, século xix. Disponível em: http://www.revistas.uepg.br/index.php?journal=folkcom&page
=article&op=viewFile&path%5B%5D=819&path%5B%5D=626. Acesso em: 31 jul. 2011.
6 reis, João J. gomes, Flávio; carvalho, Marcus, O alufá Rufino: tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico
negro (c.1822 - c. 1853), p. 355.
190
Rufino desembarcou em Serra Leoa, onde estudou numa escola corânica por alguns
meses. Voltou ao Brasil onde escolheu Recife como morada, atuando ali na década
de 1850, como adivinho, curandeiro e mestre mulçumano. Marcus Carvalho, Flavio
Gomes e João José Reis contaram sua história: Rufino deixou rastros suficientes
para um livro.7
Há muitos desses Rufinos no mundo marítimo. Durante o ano de 1849, o Cônsul
do Império do Brasil em Liverpool, John Pascoe Grenfell, expediu catorze mari-
nheiros brasileiros, tripulantes de navios negreiros apresados pelos ingleses, como
recrutas para a Armada. Cinco eram naturais da Bahia; três do Maranhão; dois de
Pernambuco; um do Rio de Janeiro e outros três de Santa Catarina. Manoel Gonçal-
ves, um dos catarinenses, quando chegou ao Império, alegou ser português. Quatro
deles já haviam servido à Armada e um ao Exército, demonstrando como era comum
marinheiros atuarem na marinhas de guerra e mercante. Adelino Pereira “andou em-
barcado 14 anos sempre em navios brasileiros” e Manoel José “tem andado sempre
em embarcações brasileiras”.8
No intervalo de mais ou menos um ano, os marujos realizaram trajetos que co-
meçaram por cinco províncias do Brasil, passaram por três localidades da África
(Santa Helena, Serra Leoa e Angola), aportaram em Liverpool e retornaram para
três províncias do Império do Brasil. A este grupo foram adicionados dois marujos
brasileiros, que ficaram hospitalizados na Jamaica e em Baltimore, EUA, motivo
pelos quais foram deixados por seus respectivos navios mercantes. Quando curados
foram expedidos para o Consulado do Império do Brasil, em Liverpool, de onde
seriam enviados de volta ao Império, juntamente com os marinheiros do tráfico
como recrutas da Armada. Portanto, tornar-se recruta não era necessariamente um
castigo para homens que trabalharam em negreiros.
As identidades pátrias não eram apagadas entre os marinheiros, ainda que
certamente ficassem abaladas. Identidades pátrias, pensadas aqui em relação
ao local de nascimento, seja uma aldeia, uma colônia, uma Nação. O marinheiro
deixava suas pátrias para estar em um espaço intermediário. Esse outro lugar que
o marinheiro ocupou e ocupa, pode ser identificado com o que Michel Foucault
denominou heterotopia: “espaços diferentes, outros lugares, uma espécie de
7 reis, João J; gomes, Flávio; carvalho, Marcus. O alufá Rufino: tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico
negro (c.1822 - c. 1853).
8 an, Série Marinha, xm 86, Correspondência com o ministro dos Negócios Estrangeiros.
191
liverpool
baltimore
jamaica
serra leoa
maranhão
pernambuco angola
bahia santa
helena
rio de janeiro
ilha grande
santa catarina
Os dois marujos que fizeram escala na Jamaica e em Baltimore não eram tripulantes de negreiros, mas foram
igualmente enviados como recrutas. Ao lado as trajetórias estão detalhadas.
Fonte: an, Série Marinha, xm 86, Correspondência com o ministro dos Negócios Estrangeiros.
nome naturalidade partiu de escala 1 escala 2 voltou para
João Carlos de Azevedo, 32 anos ba - Santo Amaro Pernambuco Baltimore Liverpool Bahia
Sebastião do Rego Barros ba - Vila Real Bahia Serra Leoa Liverpool Pernambuco
Manoel José, marinheiro de embarcações brasileiras Bahia Rio de Janeiro Santa Helena Liverpool Pernambuco
Francisco Gomes, 28, serviu Na Armada Maranhão Rio de Janeiro Angola Liverpool Bahia
José C. Gomes. Embarcou no negreiro brigue Maria Maranhão Rio de Janeiro Serra Leoa Liverpool Rio de Janeiro
Antonio José da Silva, 22, anos branco rj - Iha Grande Rio de Janeiro Jamaica Liverpool Bahia
17 hazen, Jacob, Five years before the mast or Life in the forecastle, aboard of a whaler and man-of war, p. 153.
18 melville, Herman, Os tugas. Revista CELL, n.00, Ouro Preto, 1° sem. de 2010, p. 147.
19 Idem, p. 150.
20 ahuja, Ravi. Mobility and Containment: The Voyages of South Asian Seamen, c.1900–1960. IRSH 51
(2006), Supplement, p. 112.
21 nicol, John. The life and adventures o f John Nicol., p. 150-1.
22 hazen, Jacob, Five years before the mast , p. 63.
196
29 creighton, Margareth. Fraternity in the American Forecastle, 1830-1870, The New England Quarterly,
V. 63, n. 4 (Dez. 1990), p. 534.
30 pessoa, Sabino E. Viagem da Corveta Imperial Marinheiro nos annos de 1857 a 1858 a diversos portos do
Mediterrâneo e do Atlântico, p. 4.
199
Gosto deste festival; põe o coração à larga para a gente se divertir. A monotonia de
ver sempre uma classe que detém a inteligência; outra que entra com os braços, a
trabalhar todos os dias em direções, senão opostas, ao menos diversas, é quebrada.
Numa festa todos os corações batem do mesmo modo.34
Como no navio brasileiro, Netuno anunciou durante a noite que realizaria o ritual
pela manhã. O capitão Graham, marido de Maria, autorizou a festa e a farra aconte-
ceu na mais perfeita ordem na manhã seguinte. Os noviços foram barbeados ou paga-
ram taxas, enquanto o resto da tripulação, “oficial ou não”, entraram na brincadeira
batizando-se uns aos outros. Como no relato de Sabino o bom termo prevaleceu:
31 Idem, p. 5.
32 Ibidem.
33 Ibidem.
34 graham, Maria Dundas. Diário de uma viagem ao Brasil e de uma estada nesse país durante parte dos anos
1821, 1822, 1823. p. 99 - 100.
35 Idem, p. 103.
200
Na visão dos oficiais, prevalece a leitura de que esse momento de diversão e subver-
são não atrapalhava em nada a ordem do navio, pelo contrário, é uma ocasião para se
respirar e fazer com que a viagem prossiga. A mesma lógica funcionava em relação
à bebida alcoólica, como veremos adiante.
Segundo Margareth Creighton, a partir da leitura dos diários de tripulantes de
navios baleeiros norte-americanos:
(...) apesar de Netuno insistir que um certo nível de cooperação entre tripulação e
oficiais era necessário para a operação segura e eficiente do navio, sua mensagem
principal era apenas para os marujos (...), os veteranos orquestravam a visita e o
significado de sua mensagem era coletivizar os marujos em oposição aos oficiais:
o principio de governo da proa era a fraternidade e que as regras do navio não eram
apenas impostas pelos oficiais, mas também internamente construídas.36
O acordo tácito de uma pausa para as relações de poder servia aos dois extremos da
hierarquia. Oficiais ganhavam, “cedendo” espaço para os marujos, simulando “obe-
diência” ou tolerando sua farra por um curto período. Os marinheiros reuniam-se de
modo coletivo para organizar a festa, e aproveitavam para iniciar os mais inexperien-
tes na sua maritimidade, mas sempre delimitando as hierarquias internas. As “imagi-
nárias grandezas de Netuno e seu séquito marujo”, provavelmente se escoravam na
crença da grandeza do marinheiro experiente. O significado da expressão “estamos
todos no mesmo barco” refere-se à cooperação e à consciência de que a ordem tem
de ser mantida tanto entre oficiais e marujos quanto entre os próprios marujos.
Segundo depoimento de dois praças da Marinha do Brasil, o ritual ainda é pra-
ticado no cruzamento da linha do Equador. Os oficiais continuam aparentemente
controlando ou anuindo o processo. Os marujos são besuntados com graxa, têm
de engolir um punhado de sal e tomar banho em uma piscininha salgada. Alguns,
provavelmente novatos, são vestidos com roupas femininas e obrigados a agir como
“mulherzinha” de Netuno.37 Em suas memórias como homossexual na Marinha, o
ex-cabo Flávio Alves, referiu-se ao ritual como “selvagens festividades quando o
navio cruza a linha do Equador”,38 das quais não teria participado. O ritual portava
e porta muitos significados.
36 creighton, Margareth. “Fraternity in the forecastle.” The New England Quarterly, Vo. 63, n.0 4. p. 537.
37 Depoimento oral à autora de marujos que trabalham no Centro Cultural da Marinha no Rio de Janeiro.
38 alves, Flavio; barcellos, Sérgio. Toque de silêncio, uma história da homossexualidade na Marinha, p. 105.
201
“Crossing the line on board the flying squadron”. London Ilustrated news,
suplemento, 12 de março de 1881. Colorizada a mão.
4.4 Grog
A ingestão de bebidas alcoólicas não era uma prática apenas nas tavernas e estala-
gens dos portos, também fazia parte da ração diária distribuída por muitas Marinhas
de Guerra. No Brasil doses diárias eram previstas na Legislação. O seu consumo
causou confusões nos navios e, ao mesmo tempo, funcionou como instrumento de
controle, de disciplina, ou seja, um elemento de barganha e era .
O chamado grog foi criado na Royal Navy britânica no século xviii: era feito com
uma parte de bebida alcoólica diluída em três partes de água, misturada com açúcar
e, às vezes, limão, no entanto, também passou a designar bebidas alcoólicas puras.
Grog derivou a gíria grogue, que hoje em dia significa “atordoado, por ter (ou como
se tivesse) ingerido bebida alcoólica”.39 Em Cabo Verde é o nome da bebida nacional,
um aguardente de cana de açúcar. Na Armada do Brasil, a distribuição de aguarden-
te aparece pelo menos em dois decretos que contêm tabelas de alimentação para
40 Decreto n. 541 de 5 de novembro de 1847, Coleção de leis do Império de 1847; decreto n. 4954 de 4 de
maio de 1872, Coleção de leis do Império de 1872.
41 Decreto de 4 de maio de 1872. Coleção de leis do Império de 1872.
42 halpern, Elizabeth; leite, Ligia M.C.. Lei seca no mar: desafios preventivos na Marinha do Brasil.
Arquivos Brasileiros de Psicologia, v. 62, n. 2, 2010, p. 103.
43 Ibidem.
203
esvanecendo com a distância. É sua grande perspectiva na vida. Tire o grog deles e
a vida não possui mais nenhuma graça”.44 White-Jacket afirmou conhecer muitos
homens alcoólatras miseráveis em terra que se engajavam na Marinha, por ser uma
de suas poucas possibilidades de sobreviverem, transformando-a em uma espécie de
“asilo para os bêbados, que prolongava suas vidas pelos exercícios, disciplina, onde
duas vezes por dia aplacava-se com doses certas e moderadas”.45 A personagem
aconselhou um colega, dizendo que o álcool estava lhe destruindo. O mesmo lhe
respondeu: “Largar o grog? Por quê? Porque está me arruinando? Não, não; eu sou
um bom cristão, e o amor que tenho pelo meu inimigo não permite abandoná-lo”.46
Uma canção de marinheiro portuguesa oitocentista, atribui à bebida a condição para
o marujo não abandonar a vida no mar:
4.5 Homossexualidade
48 Decreto-Lei n. 1001, de 21 de outubro de 1969 - Código Penal Militar. Disponível em: http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del1001.htm. Acesso em: 31 jul. 2011.
49 Projetos de lei: 2773/2000 e 6871/2006 (Altera a redação do art. 235 do Código Penal Militar, excluin-
do do nome jurídico o termo “pederastia” e do texto a expressão “homossexual ou não” e acres-
centando parágrafo único, para excepcionar a incidência. - Altera o Decreto-Lei nº 1.001, de 1969).
Disponíveis em: http://www.camara.gov.br/sileg/default.asp. Acesso em: 31 jul. 2011.
50 stolberg, Sheryl G. Obama signs away ‘Don´t ask, don´t tell. New York Times, 22 de dezembro de
2010. Disponível em: <http://www.nytimes.com/2010/12/23/us/politics/23military.html>. Acesso
em: 31 jul. 2011.
205
Servir a Marinha do Brasil não foi uma decisão tomada pelo fato de, supostamente,
esta arma ser a mais tolerante com relação ao homossexualismo. Ou ainda, porque
a solidão em alto-mar seria uma reserva infindável de oportunidades sexuais. Isto
poderia ser considerado verdadeiro para muitos marinheiros, e, talvez, realmente
seja. Para Flavio, vestir uniforme era como estar a salvo e imune diante do tene-
broso futuro que a nossa sociedade reserva aos filhos de famílias pobres que vivem
em subúrbios de grandes capitais.51
Pelo menos até a década de 1990, quando ele serviu, a Rua Visconde de Inhaúma, pró-
xima ao Quartel do Primeiro Distrito Naval, na região central do Rio de Janeiro, era
um “ponto de pegação, onde fantasias sexuais com marinheiros estão disponíveis”.52
Homens não marítimos dirigiam-se ao local durante a madrugada para abordar ma-
rinheiros, a fim de ter relações sexuais, pagando ou não. Alves encontrou amantes
nesse local e discorreu sobre a atração que o uniforme militar provocava no mundo
homossexual civil.
Os ambientes de marinheiros e soldados nas grandes cidades continuam con-
tendo espaços para homossexuais, os quais não são restritos apenas a eles, mas tam-
bém aos não marinheiros que os procuram. Esses locais não constituem, necessa-
riamente, espaços de população homossexual significativa: não há uma tendência
homossexual entre os militares. Foi um estigma construído não apenas por práticas
internas, mas principalmente pelas atribuições, criadas por meio de preconceitos
e fantasias dos civis.
O sargento do Exército, Abílio Teixeira, escreveu um artigo para a revista Veja,
em 1995, sobre a proliferação da aids nas Forças Armadas. Ele atribuiu o fenômeno
à pobreza do recruta e às más condições de trabalho:
No quartel, a comida é ruim e o soldo é baixo. Com a distância dos parentes e dos
amigos, é grande a carência afetiva. Os recrutas acabam caindo nos braços de ho-
mossexuais, que os assediam nos portões dos quartéis e em pontos de prostituição
51 alves, Flavio; barcellos, Sérgio. Toque de silêncio, uma história da homossexualidade na Marinha, p. 105.
52 Idem, p. 84.
206
Apesar de pretender esclarecer uma situação alarmante causada por uma política de
silêncio, Teixeira admite apenas o fenômeno da homossexualidade fora dos quartéis,
em meninos pobres e inocentes, impelidos por homossexuais civis endinheirados.
Não falaria da homossexualidade dentro dos quartéis, por ferir a honra do Exército
e ser considerada uma prática ilegal, além de, e especialmente por isso, continuar
sendo um tabu depois de séculos.
O imaginário em torno dos civis que procuravam por praças, sobretudo da Mari-
nha, para manter relações sexuais, era, e continua sendo, recorrente. Em Recordações
do escrivão Isaías Caminha, Lima Barreto criou o personagem jornalista Raul Gusmão,
afeminado, inspirado no escritor João do Rio. Misturando seus desafetos pessoais
com o escritor, ele construiu um homossexual com características desagradáveis.
Para sugerir que o personagem era sexualmente ativo, em um diálogo de Isaías Cami-
nha com um amigo, este lhe diz que viu Raul Gusmão entrando em uma hospedaria
da Rua da Alfândega, no Rio de Janeiro, com um fuzileiro naval.
Um amigo de Mário de Andrade declarou ao cineasta Joaquim Pedro de Andrade,
que uma vez perguntara ao escritor e musicólogo, qual seria o tipo de música que ele
mais gostava. Mário teria respondido: “Não existe música mais bonita do que o ruído
do cinto de um fuzileiro naval batendo na cadeira de um hotel da Praça Mauá”.54
Essa é mais uma das muitas histórias, não documentadas, sobre a homossexuali-
dade de Mário de Andrade envolvendo marítimos. Um professor universitário de
história, no cafezinho do Arquivo Nacional, me contou, em tom jocoso, que Mário
fazia suas pesquisas sobre cultura popular no porto de Santos, com vários relógios
no pulso, os quais oferecia aos marujos em troca de favores sexuais. Enfim, ser visto
com marítimos era praticamente uma metáfora para aludir à homossexualidade.
O pintor Paul Gauguin foi marinheiro da Marinha mercante francesa na década
de 1860. O romancista Mario Vargas Llosa, escreveu Paraíso na outra esquina, ba-
seado nas vidas do pintor e sua avó, a revolucionária Flora Tristan. No romance, é
narrada a viagem de Havre ao Rio de Janeiro, itinerário que o jovem Gauguin fez na
53 teixeira, Abílio. A aids ameaça o Exército. Veja, 1º de novembro de 1995, seção “Opinião”, p. 126.
54 Citado em: trevisan, José Silvério. Devassos no paraíso, p. 259.
207
vida real, em 1865. Haveria um ritual, ao qual todo marujo novato deveria submeter-
-se: uma relação homossexual passiva. Apesar de alguns veteranos, “carregados de
álcool”, jactarem-se de “haver passado por esse ritual de marinheiros”, o pintor
francês mostrou “a esses lobos-do-mar sublevados pela falta de mulher que quem
quisesse enrabar Eugène-Henri Paul Gauguin tinha de estar disposto a matar ou
morrer”. Já um companheiro aspirante:
(...) foi violado na casa de máquinas por três foguistas, que, depois, ajudaram-no
a secar as lágrimas garantindo-lhe que não devia se envergonhar, era uma prática
universal do mundo marinheiro, um batismo do qual ninguém se livrava, que por
isso mesmo, não ofendia, na verdade criava uma irmandade entre a população.55
59 Idem, p. cxxvi.
60 caminha, Adolfo. Bom-crioulo, p. 27.
61 carvalho, José M. Os bordados de João Candido. p. 79.
209
62 Idem, p. 70.
63 morel, Marco. João Candido, a luta pelos direitos humanos, p. 58 e 61.
64 beattie, Peter M. Ser homem pobre, livre e honrado, p. 282-3.
210
Detalhe da gravura The saylor’s return. Inglaterra, 1847. A mão direita do marujo tem uma âncora e uma estrela,
também descrita no século xix como signo de Salomão. Na gola, mais uma estrela bordada. Litografia colorida:
Currier & Ives. Washington, eua, Library of Congress.
“figuras” e “imagens”, cujos conteúdos não são descritos, mas que provavelmente
tratava-se de mulheres e familiares.70
As tatuagens de 1850 são basicamente de norte-americanos e repetem os mo-
tivos do conjunto anterior, com grande incidência de iniciais, âncoras e crucifixos.
Mas há uma novidade: das 71 tatuagens, 11 são de símbolos nacionais norte-ameri-
canos: brasões de armas, a águia, a bandeira da liberdade.71 Esse patriotismo norte-
-americano é declarado textualmente nos diários dos marujos, assim como nos
discursos de memória dos marujos yankees. Jacob Hazen, um rebelde declarado,
tornou-se patriota depois de servir à Marinha de seu país, não à toa termina suas
memórias marítimas glorificando-a:
Eu prefiro os navios do tio Sam, entre todos aqueles que navegam no oceano, pois
há uma alegria que perpassa os navios de guerra que supera no coração do marí-
timos os dólares e centavos. Há um orgulho no peito do Americano que arde com
nacionalidade e este sentimento é maior no marinheiro. Ele ama seu país e sua
bandeira. e se, as vezes, ele encontra um tratamento duro no serviço, ele se consola
com a reflexão que também já experimentou o que há de bom.72
Uma parte dos marinheiros norte-americanos ama seu país e sua bandeira. As ta-
tuagens patrióticas são literalmente uma marca indelével desse amor. No entanto,
mesmo tatuando os símbolos do seu país (e não do local de nascimento), devido às
intempéries do mar, esses homens engajaram-se na Armada do Império do Brasil
em Liverpool! Patriotas atlânticos...
70 an, Série Marinha, xvii M 2500 e 2501, Livros de socorros da fragata Imperatriz, 1832-1835, .
71 an, Série Marinha, im 16, Engajamento de marinheiros ingleses.
72 hazen, Jacob, Five years before the mast, p. 443-444. Tradução minha.
213
Detalhes da lista de marinheiros engajados em Liverpool pelo cônsul brasileiro, com o lugar
de nascimento, idade e tatuagens. Em 1850, originários de Nova York, Copenhague e Holanda
entre outras localidades, se engajaram em Liverpool para servir na Armada Imperial e Nacional
do Brasil. an, Série Marinha, im 16.
A tatuagem, ao que parece, foi um hábito cultivado pelos marujos europeus que
frequentaram o oceano Pacífico no século xviii ou mesmo antes. No século xix já
estava plenamente difundida no Atlântico entre a galera heterogênea. O repertório
de tatuagens era mais ou menos limitado e costumava ter significados relacionados
à vida no mar, ou à saudade da vida na terra. A cruz poderia salvar de um afogamento,
as embarcações representavam uma identificação com a profissão e os corações a
lembrança dos entes amados etc. A âncora significava a travessia do oceano Atlântico,
entre tantas outras atribuições que poderiam variar no tempo e no espaço.
A tatuagem era, enfim, mais uma atitude radical dos marinheiros. Sujeitos estig-
matizados e marginalizados pelas atribuições generalizadas de origem entre a gente
de baixo calão, de certa maneira essa cultura coroava sua identidade marginal. Se,
por um lado, ajudava a restringir o seu acesso ao mundo terrestre, por outro legiti-
mava sua entrada no universo marítimo. É importante ressaltar que a classe média
e alta da sociedade ocidental se rendeu à tatuagem apenas nas últimas décadas do
século xx, moda que os marujos lançaram e aderiram já no final do século xviii, e
214
73 A faina, a festa e o rito: Gentes do mar e escravidão no Brasil (sécs xvii ao xix). São Paulo, 1996. Tese de
doutorado - fflch, Departamento de História, usp, p. 232.
215
O modo de andar marujo também era reconhecido nas cidades: um autor inglês
escreveu já no século xviii: “marinheiros balançam o corpo como um pêndulo e acre-
ditam que esta é posição mais equilibrada. Eles estão certos que andam firmemente
enquanto as outras criaturas tombam”.74 Os autores do fado “O marujo português”,
do século xx, descreveram o andar do marujo: “quando se jinga, faz tal jeito tem tal
proa, para que não se distinga se é corpo humano ou canoa”.75
Até o início do século xix os marujos, pelo menos na iconografia inglesa, eram
retratados como homens decadentes. Em meados desse século eles passam a figurar
como homens bonitos, bem vestidos, eu diria até como heróis. O interesse dos não
marítimos pela cultura dos marujos contribuiu para essa mudança. Seja pela apre-
ciação, pela roupa, pelas canções, pelos relatos publicados, um interesse cultural
menos discriminador, ou um fascínio, são aspectos que se juntam aos estigmas que
ainda os acompanham até hoje.
Versos de canções populares do século xx, como o fado “O marujo português” e
a canção brasileira “Marinheiro só”, trazem versos enaltecendo a graça do marujo.
Na primeira, ao chegar a Lisboa ele “põe com malícia a sua boina maruja” de onde cai
“uma madeixa de cabelo descomposta”.76 Em “Marinheiro só”, “ele vem faceiro, todo
de branco, com seu bonezinho”. Em meados do século xix, o marítimo e jornalista
Charles Nordhoff fez uma descrição estética da roupa do marinheiro valendo-se
da sua experiência e de seu talento narrativo:
Azul é a roupa de trabalho do marinheiro, branca é a roupa dos dias de folga. (...)
O verdadeiro marinheiro de guerra é muito particular nas suas vestimentas. Não
há alguém mais dandy que ele. Não há janota da Broadway que preste mais aten-
ção ao corte de seus indescritíveis ornamentos, o caimento de seu colarinho, no
nó de seu lenço, ou no lustre imaculado de seus sapatos (...) por muitas horas ele
faz pose diante de seu espelhinho redondo de bolso (...) para alcançar tal visual
original. (...) Olhe para seu colarinho azul disposto com graça sobre seus ombros
largos, em torno de seu pescoço bem torneado, seu chapéu inclinado com estilo
sobre a sobrancelha esquerda, uma mão colocada displicentemente no quadril e
ninguém precisará te dizer que você está diante de um marujo.77
74 Citado em rediker, Marcus. The devil and the deep blue sea, p. 11.
75 O marujo português, fado de Linhares Barbosa e Arthur Ribeiro.
76 Idem.
77 nordhoff, Charles, Nine years as a sailor, p. 130.
216
Essa imagem estetizada e criada pelos próprios marinheiros passou a ser admirada
pelo imaginário dos não marítimos, inclusive, copiada. A graça que demonstravam
não era adorada apenas pelos frequentadores e frequentadoras das regiões portuá-
rias. As elites não deixaram esse movimento estético passar despercebido e, em 1846,
Albert Edward, filho da Rainha Vitória, foi retratado com roupas de marinheiro e,
provavelmente por isso, se tornou um ícone da moda quando se trata de vestir as
crianças para serem fotografadas.78 A roupa de marinheiro é uma fantasia frequente
nos carnavais há muitas décadas, no entanto, fora do carnaval, uma moda urbana
baseada em roupas de marinheiros, conhecida como navy, se espalhou pelo século
xx: as modelagens de calça, blusa e casacos são reproduzidas até hoje pelas confec-
ções do mundo todo. Em butiques da Europa, Estados Unidos e Brasil as chamadas
calças e blusas de marinheiros, são peças sempre lançadas e relançadas nas coleções,
cuja modelagem é muito semelhante a dos marujos do século xix.
Durante a cabanagem o comandante da frota da Armada, John Taylor, estava pre-
ocupado com a falta de pagamento de soldos, pois os marujos não tinham dinheiro
78 Ver a este respeito, land, Isaac. Sinful propensities piracy, sodomy and Empire in the rethoric of
Naval Reform, 1770-1870. In: rao, Anupama; pierce, Steven (Eds), Discipline and the Other Body: Hu-
manitarianism, Violence, and the Colonial Exception.
217
para comprar “roupas e sapatos”.79 Ora, é claro que roupas e sapatos, nesse caso, pode
se tratar de uma expressão simbólica para objetos de uso pessoal. Em geral, mesmo
tendo família, não havia muitos meios de enviar dinheiro ou poupar para compartilhar
com ela. Assim, a maior parte dos gastos dos marujos pode, de fato, ter sido destina-
da ao consumo próprio, como bebida, tabaco, roupas, sapatos, livros, mulheres etc.
Muitos marinheiros costuraram e bordaram suas roupas e acessórios. Uma de
suas habilidades, previstas ou adquiridas, deveria ser a costura, devido às velas e à
própria necessidade de cuidar de suas roupas. Na fragata Imperatriz há registros de
recebimentos de fardos de tecidos em vez de roupas.80
Os dois marinheiros brasileiros mais conhecidos do século xx, João Cândido e
Arthur Bispo do Rosário, tiveram seus bordados guardados em museus. Eles con-
tinuaram uma arte marítima frequente desde o século xix. Nos Estados Unidos há
bordados de marinheiros conservados em museus, como as roupas e a bolsa do ma-
rujo norte-americano Waren Opie, da década de 1840, reproduzidas abaixo.
Documentos manuscritos, iconográficos e objetos da arte maruja mostram que os
motivos bordados pelo marujo faziam parte do mesmo repertório de imagens repro-
duzidas em desenhos e tatuagens. Se as peles tatuadas dos marinheiros oitocentistas
há muito se desintegraram, há indícios dessa arte nos desenhos em dentes de baleia
e em reproduções de tatuagens do início do século xx, que coincidem com as des-
crições textuais das tatuagens do século xix. O jornalista Ernesto Senna reproduziu
em seu relato Através do Cárcere, de 1904, diversas tatuagens da Casa de Detenção do
Rio de Janeiro.81 Há duas delas com os mesmos símbolos dos bordados de Cândido:
coração sangrando e duas mãos se cumprimentando (na qual se lê “amizade”), além
de flores e pássaros. Na fragata Imperatriz também havia diversos corações flechados.
Os marinheiros europeus e norte-americanos, ao longo do século xix, já tatuavam
e bordavam símbolos nacionalistas e relacionados à Marinha. Em sua roupa e bolsa,
Waren Opie bordou a águia e a bandeira norte-americana. Em outra bolsa do marujo
norte-americano J. A. Fort, além da bandeira norte-americana, ele bordou a fragata
em que era tripulante na época, a Congress,82 que fez parte da Estação norte-ameri-
cana “Brasil” por alguns anos durante a década de 1850.
* langley, Harold D. From the Collection: Warren Opie’s Sailor’s Uniform at Winterthur. Winterthur Portfolio
Vol. 38, N°. 2/3 (Summer/Autumn 2003).
219
Estandarte e jaqueta do ex-marinheiro e interno da colônia Juliano Moreira Arthur Bispo do Rosário, meados do
século xx. Museu Arthur Bispo do Rosário, Rio de Janeiro.
5 Considerações finais
A vida dos marinheiros comuns realmente é árdua. A noite não os dispensa de seus
afazeres e com mau tempo todos devem estar alertas. Quando são dispensados da
vigia, retiram-se para escuros e imundos “castelos de proa”, cuja atmosfera poderia
produzir asfixia em pessoas de nervos fracos, secam e trocam de roupa, quando
tem roupa para trocar, e dormem como podem. Sem conhecer o prazer das rela-
ções sociais, sem lazeres nem gosto para realizarem progressos espirituais, sem
o estímulo da ambição, esfalfando-se em seu trabalho como bois e cavalos, não
podem senão tornar-se mais ou menos animalizados (refiro-me à maioria, pois
existem nobres exceções). O mar é destinado a servir de teatro à atividade humana
e a profissão de marinheiro é tão honrosa atualmente, tão indispensável quanto
a do lavrador. Constituindo ambas essas classes elos essenciais e importantes na
cadeia da civilização, não pode estar distante o dia em que se elevarão permanen-
temente em sua estima própria e na do mundo.1
thomas ewbank, 1846.
Arguto observador, testemunho da vida dos marítimos nos navios e no Rio de Janeiro
da década de 1840, Thomas Ewbank valorizou o árduo trabalho dos marinheiros.
Porém, essa condição os animalizava, os impedia de realizar progressos espiritu-
ais. Mesmo não enxergando espiritualidade nos corpos brutos dos marujos com
os quais conviveu, Ewbank foi um daqueles pensadores que ajudaram a criar uma
visão mais humanista dos trabalhadores braçais, reconhecendo sua importância e
seus sacrifícios nos complexos mecanismos da chamada civilização.
O marinheiro Jacob Hazen encerrou suas memórias contrariando as conclusões
de seu contemporâneo Thomas Ewbank a respeito dos progressos espirituais dos
marujos. Hazen se dirigiu ao leitor para definir o estado de espírito desses homens,
após os cinco anos em que navegou junto à diversas marinhas:
Em 1939, o pensador alemão Walter Benjamin, em fuga da França ocupada pelo na-
zismo, escreveu Sobre o conceito de história. O autor chama a atenção justamente para
as “coisas finas e espirituais” da luta de classes:
A luta de classes (...) é uma luta pelas coisas brutas e materiais, sem as quais não
há coisas finas e espirituais. Apesar disso, estas últimas estão presentes na luta de
classes de outra maneira que a da representação de uma presa que toca ao vencedor.
Elas estão vivas nessa luta como confiança, como coragem, como humor, como
astúcia, como tenacidade, e elas retroagem ao fundo longínquo do tempo.3
Na década de 1960, Edward Thompson retomou a mesma ideia, por meio de Bertold
Brecht, amigo e contemporâneo de Benjamin:
2 hazen, Jacob, Five years before the mast, p. 442. Tradução minha.
3 benjamin, Walter. Sobre o conceito de história, trad. de Jeanne-Marie Gagnebin, mimeo.
4 thompson, E.P. A formação da classe operária inglesa, V. 1, p. 61.
223
adquiridas nos porões dos navios. Daqueles que tiveram seu sistema digestivo ar-
ruinado pela má alimentação, os que se tornaram alcoólatras, que perderam seus
braços em salvas para comemorar as datas natalícias dos monarcas; que tiveram
suas costas arrebentadas pelas chibatas, que enlouqueceram. Daqueles que foram
separados de seus familiares em tenra idade ou deixaram mulher e filhos para nunca
mais os vê-los. Essa opção é deliberada em detrimento de seus atributos espirituais,
os quais sobreviveram ou pereceram na dureza de suas vidas.
Estudá-los por grupos evidenciou que a experiência comum e as diferenças gera-
ram tanto “lealdade mútua” quanto intolerâncias e individualismos nos naufrágios
simbólicos de suas trajetórias.
É necessário estar atento a essas narrativas marítimas. Das poucas vezes que
conversei com marinheiros vivos, ouvi histórias que merecem ser compartilhadas.
Tão importante quanto ouvi-los no passado é ouvi-los no presente.
Encontrei o primeiro deles no pronto-socorro do Hospital dos Servidores do
Rio de Janeiro, em 2009. O homem parecia estar morrendo, deitado em uma maca,
preso a uma bolsa de colostomia, chamando pelas enfermeiras, por alguém. Ele ti-
nha uma perna mecânica “tatuada” com desenhos geométricos e uma tatuagem na
mão de um pôr do sol junto da frase “amor a Cuba”. Perguntei-lhe sobre sua tatu-
agem. Imediatamente o estado de desespero foi suspenso, e falou sorrindo sobre
a ilha onde passou dois meses, enquanto seu navio era consertado. Dançou salsa,
conheceu Fidel Castro.
O segundo, quando serviu como marujo, na década de 1980, depois de frequentar
a Escola de Aprendizes de Marinheiro, passou seis meses em Marselha, França, onde
alugou um carro com um colega e viajou até a Sardenha e outros lugares da Europa.
O terceiro tem lembranças traumáticas do tempo que serviu: final da década de
1970, durante a ditadura militar. Ele se calou quanto às experiências e histórias edifi-
cantes. Não tinha boas lembranças, nem de cubanas nem de francesas. Falava das di-
versas vezes que fora preso por insubordinação e faltas leves, do álcool com groselha
que se bebia em alto mar para aplacar o frio, da violência dos quartéis. Ainda assim,
guardou algum humor em relação a essa fase da vida, por meio de diversas piadas e
anedotas. E seu final foi feliz: conseguiu ser expulso, recebeu apoio da mãe, concluiu
o curso universitário e tornou-se professor. Vale a pena reproduzir seu depoimento:
As narrativas dos marinheiros, dos recrutas e de seus familiares são centrais para a
presente tese. Retomo, uma vez mais, Walter Benjamin, que valorizou os marinhei-
ros e lavradores como “elos da civilização” – para utilizar a expressão de Thomas
Ewbank – não somente devido a seu trabalho árduo, mas por considerá-los “repre-
sentantes arcaicos” dos narradores:
A experiência que anda de boca em boca é a fonte onde beberam todos os narra-
dores. (...). Quando alguém faz uma viagem, então tem alguma coisa para contar,
diz a voz do povo e imagina o narrador como alguém que vem de longe. Mas não
é com menos prazer que se ouve aquele que, vivendo honestamente do seu tra-
balho, ficou em casa e conhece as histórias e tradições de sua terra. Se se quer
presentificar estes dois grupos nos seus representantes arcaicos, então um está
encarnado no lavrador sedentário e o outro no marinheiro mercante. De fato e
os círculos vitais de ambos de certo modo produziram sua própria linhagem de
(...) testemunha não seria somente aquele que viu com seus próprios olhos, o his-
tor de Heródoto, a testemunha direta. Testemunha também seria aquele que não
vai embora, que consegue ouvir a narração insuportável do outro e que aceita que
suas palavras levem adiante, como num revezamento, a história do outro: não por
culpabilidade ou por compaixão, mas porque somente a transmissão simbólica,
assumida apesar e por causa do sofrimento indizível, somente essa retomada refle-
xiva do passado pode nos ajudar a não repeti-lo infinitamente, mas a ousar esboçar
uma outra história, a inventar o presente”.7
6 benjamin, Walter O narrador: Observações sobre a obra de Nikolai Leskow. In: Textos escolhidos: Benjamin,
Horkheimer, Adorno, Habermas, p. 60.
7 gagnebin, Jeanne-Marie. Lembrar, escrever, esquecer, 2006, p. 57.
226
de poder entre todos esses personagens, suponho, está subentendida no uso que
fiz da documentação oficial da chamada Série Marinha, depositada no Arquivo Na-
cional do Rio de Janeiro.
Diante dos sofrimentos e fruições desses homens, encerro esta viagem, acredi-
tando que existem infinitas narrativas de múltiplas experiências submersas na for-
mação do mundo atlântico, as quais precisam continuar a ser ouvidas e transmitidas.
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