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Silvana Cassab Jeha

A GALERA HETEROGÊNEA
Naturalidade, trajetória e cultura dos
recrutas e marinheiros da Armada Nacional
e Imperial do Brasil, c.1822-c.1854

Tese de Doutorado

Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor


pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura do
Departamento de História do Centro de Ciências Sociais da PUC-Rio.

Orientador: Prof. Ilmar Rohloff de Mattos

Rio de Janeiro
Setembro de 2011
Silvana Cassab Jeha

A Galera heterogênea
Naturalidade, trajetória e cultura dos recrutas e marinheiros
da Armada Nacional e Imperial do Brasil, c.1822-c.1854

Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de


Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura
do Departamento de História do Centro de Ciências Sociais da PUC-Rio.
Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Prof. Ilmar Rohloff de Mattos


Orientador
Departamento de História - PUC-Rio

Profª. Ivana Stolze Lima


Departamento de História - PUC-Rio

Prof. Jaime Rodrigues


Departamento de História - UNIFESP

Prof. Marcus Joaquim Maciel de Carvalho


Departamento de História - UFPE

Prof. Ricardo Henrique Salles


Departamento de História - UNIRIO

Profª. Mônica Herz


Vice-Decana de Pós-Graduação do Centro de Ciências Sociais - PUC-Rio

Rio de Janeiro, 15 de setembro de 2011.


Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou
parcial do trabalho sem autorização da universidade, da autora e
do orientador.

Silvana Cassab Jeha


Graduou-se em História pela puc-Rio. É mestre em História pela
Universidade Federal Fluminense, onde defendeu dissertação
O Padre, O Militar e os Índios. Chagas Lima e Guido Marlière:
civilizadores de kaingangs e botocudos nos sertões de São
Paulo e Minas Gerais, século xix. Desde a década de 1990 tem
realizado diversas pesquisas iconográficas e textuais para livros
e exposições. Foi integrante dos projetos de pesquisa “Roots of
inequality: Wealthholding in southeastern, Brazil, 19th century”
(2001 - 2004), da Stanford University e “O sistema de saúde do
escravo no Brasil do século xix: instituições, doenças e práticas
terapêuticas” (2006 - 2007), da Fiocruz.

Ficha Catalográfica
Jeha, Silvana Cassab

   A galera heterogênea: naturalidade, trajetória e cultura


dos recrutas e marinheiros da Armada Nacional e Imperial
do Brasil, c.1822-c.1854 / Silvana Cassab Jeha; orientador:
Ilmar Rohloff de Mattos. – 2011.

242 f. : il. (color.) ; 30 cm

  Tese (doutorado)–Pontifícia Universidade Católica do Rio


de Janeiro, Departamento de História, 2011.
  Inclui bibliografia

  1. História – Teses. 2. História social da cultura. 3.


Marinha do Império do Brasil. 4. Recrutamento militar. 5.
Marinheiros. 6. Cultura marítima. 7. Trajetórias atlânticas. I.
Mattos, Ilmar Rohloff de. II. Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro. Departamento de História. III. Título.

CDD: 900
Aos marinheiros e suas mães
Ao meu pai e à minha mãe
Ao meu filho João
Agradecimentos

Ao meu orientador Ilmar Rohloff de Mattos, que acompanhou grande parte da mi-
nha trajetória desde a graduação. Aos seus conselhos falados, escritos e silenciosos
e ao seu apreço pela liberdade de pensamento, sou eternamente grata. Os eventuais
equívocos desta tese são decerto todos meus.
Aos queridos funcionários do Departamento de História da PUC-Rio: Anair, Cleusa
Silva, Claudio de Araújo, Moisés Leitão, Pedro Chermont e, especialmente, Edna Tim-
bó, sempre pronta a ajudar alunos avoados como eu. Aos funcionários da maravilhosa
biblioteca da PUC e das demais dependências dessa Universidade, expresso igualmente
a minha gratidão.
Ao Arquivo Nacional, minha segunda casa no Rio de Janeiro, como sempre repi-
to. Aos seus funcionários, especialmente Rosane Coutinho, pela ajuda certeira e pelos
almoços no Bar do Elias. À amiga Tereza Cristina Alves, que ajudou muito quando os
manuscritos multiplicaram-se.
Aos professores Ivana Stolze Lima e Ricardo Salles, pela leitura cuidadosa da minha
qualificação. Agradeço-lhes novamente a participação na banca de defesa, à qual se
juntaram os professores Marcus Carvalho e Jaime Rodrigues.
À professora Silvia Hunold Lara, por ter me aceitado como aluna especial na Uni-
camp em 2007; às professoras Cristina Wissenbach e Jeanne Marie Gagnebin, que me
acolheram como ouvinte em cursos inspiradores na USP e na PUC-SP. Aos professores
István Jancsó (in memoriam), João José Reis, Paulo Micelli, Jaime Rodrigues, Matthias
Assumção e Antonio Carlos Diegues, que me receberam e aconselharam. Aos professo-
res Isaac Land, Ravi Ahuja e Richard Burg, que me enviaram, de além-mar, textos sobre
o tema. A Álvaro Nascimento e Edna Antunes, estudiosos de marinheiros. A Joel Birman
pelas indicações bibliográficas, e a Elisabete Braga. A Lorena Vinci e Vadim Nikitin, pela
revisão e a Gustavo Marchetti e Gil Fuser pela diagramação e pela elaboração dos mapas.
No Rio de Janeiro: Cláudia Sampaio (esta esteve perto de cabo a rabo!), Valter Lano e
Tânia Pinto (ombros amigos), Camilo Pena, Chris Moretti, Mario Barata, Tereza da Silva,
Mariana Lins, Elena Torres, Álvaro Marins . Na Fazenda Santana: Orlando Sant’anna, a
pequena Mariana e a maravilhosa Gláucia Altmann.
Em São Paulo: os amigos Glaucinha Lima, amante das coisas marujas, Glaydson
da Silva , Andréa Slemian, Cacá Machado, Lia Vainer, Elaine Ramos, Guile Wisnik, Fer-
nanda Carvalho, Fernando Vilela, Beto Vilela, Marina Bitelman, Zezé Silveira, Théo
Werneck e Irene Oliveira.
Em Salvador, os amigos: Iacy Mata, Jair da Silva, Vânia Vasconcellos, Edinélia Sou-
za e, especialmente, Luciana Brito, ouvido sincero. Agradeço a Mãe Elisa pela gira de
marujo da qual participei na Praia do Buraquinho. Juliana Farias é do Rio, mas mora na
Bahia, amiga nova, doutoranda com filho pequeno.
Em Florianópolis, Lara Vainer. Em Fortaleza, os amigos Tyrone Cândido e Fred
Neves e, principalmente, a jangadeira Berenice Abreu; em Curitiba, a espirituosa Cida
Ribas. Em Porto Alegre, Regina Xavier.
Muitos desses colegas, tornados amigos, conheci em trânsito, tanto meu quanto
deles. Nós estudantes também somos um pouco marinheiros.
A Sonia, minha mãe, e a Roberto, meu pai: gratidão eterna pelo apoio. Só posso
abraçá-los e beijá-los. Aos meus irmãos: Silvia, Sandra, Cássio, Susana e Sabrina. Ao
Paulo, pai do João, obrigada pelas conversas sobre mar, romances, pessoas e per-
sonagens. Ao meu filho Joãozinho, grande companheiro de viagem. Quando nela
embarquei, você tinha apenas um ano de vida. Agora, que já tem seis, pode ler os
agradecimentos da mamãe.
Ao CNPq e à PUC-Rio pelos benefícios recebidos, fundamentais para o desenvol-
vimento e a existência da tese.
Não sei se é possível agradecer a uma cidade. Mesmo assim, gostaria de agradecer
ao Rio de Janeiro, onde morei durante nove anos, metade do tempo em Santa Teresa, de
onde eu via o mar, e outra metade entre o Leme e Copacabana, perto dele. Agradeço as
caminhadas que fiz em torno do Quartel General da Marinha, com todos aqueles ves-
tígios marujos. Da praia de Copacabana, vislumbrei muitos navios, além de ouvir-lhes
quase diariamente os apitos, a quatro quadras da praia. Quantos devaneios cheguei a
fazer sobre o que se passava ali dentro... Agradeço, portanto, a inspiração proporcio-
nada pela cidade para estudar os homens do mar. Aos marinheiros que encontrei pelo
caminho, muito obrigada pelas suas histórias.
Gostaria finalmente de registrar a viagem que fiz a Beirute, Líbano, em companhia
de meu pai. Dali, dois avôs e cinco bisavôs meus imigraram por via marítima para se
estabelecerem no Brasil. Contemplei o mar Mediterrâneo e fiquei imaginando se existe
alguma fronteira entre esse mar e o oceano Atlântico. Essa viagem foi extremamente
importante à concepção da tese.

No dia em que finalizei a tese, fui tomar a


fresca na praia. O Cisne Branco, navio veleiro
da Marinha do Brasil, desfilava no horizonte.
Rio de Janeiro, 2011.

O mar Mediterrâneo em Beirute, 2008.


Resumo

Jeha, Silvana Cassab; Mattos, Ilmar Rohloff de. A galera heterogênea: naturalidade,
trajetória e cultura dos recrutas e marinheiros da Armada Nacional e Imperial do
Brasil, c.1822 - c.1854. Rio de Janeiro, 2011. 242p. Tese de Doutorado – Departamento
de História, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Esta tese trata dos marinheiros e dos recrutas que atuaram na Armada Nacional e
Imperial do Brasil entre c. 1822 e c. 1854. Como ocorria nas marinhas dos países de base
atlântica, os seus navios eram tripulados por homens de diversas naturalidades: entre
os estrangeiros, principalmente portugueses e anglófonos; entre os nacionais, homens
oriundos de quase todas as províncias do Império. Devido às múltiplas origens, esses
recrutas e marujos apresentavam uma profunda pluralidade de trajetórias e contribuí-
ram, assim, para a ampliação e o desenvolvimento de uma cultura marítima cosmopolita,
criada desde o início das navegações pelo Atlântico. Os requerimentos de recrutas e
de seus familiares, a literatura marítima portuguesa e as memórias de marinheiros an-
glófonos foram aqui os elementos centrais para compreender as suas experiências e as
rotas socioeconômicas e culturais que percorreram, tanto no oceano quanto nas suas
margens. Desse modo, tornou-se possível relacionar a formação do Estado Imperial e
da nacionalidade brasileira à história atlântica e marítima.

Palavras-chave
Marinha do Império do Brasil; recrutamento militar; marinheiros; cultura marítima;
trajetórias atlânticas.
Abstract

Jeha, Silvana Cassab; Mattos, Ilmar Rohloff de (Advisor). The heterogeneous


guys: nationality, trajectory and culture of recruits and marines of the
National Imperial Navy of Brazil. 1822 - c. 1854. Rio de Janeiro, 2011. 242p.
Doctorate Thesis – Departamento de História, Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro

This work is about the marines and recruits of the National Imperial Navy of Brazil,
between 1822 and 1854. Just as marine-based Atlantic countries, its ships were manned
by men of diverse ethnicities and nationalities: among foreigners, mainly Portuguese
and Anglophone, and among nationals, men from almost all provinces of the Empire.
Due to their multiple origins, all recruits and marines had a background of a deep plu-
rality of paths, and therefore contributed to the enlargement and development of a
cosmopolitan maritime culture created since the beginning of navigation in the Atlantic
Ocean. The requirements of the recruits and their families, the Portuguese maritime
literature and the memories of Anglophone sailors were core to the comprehension of
their experiences, and cultural and socioeconomic routes in the ocean and its borders.
Thus, it became possible to relate the formation of the Imperial State and the Brazilian
nationality to the Atlantic and maritime history.

Keywords
Marinha do Império do Brasil (Brazil’s Empire Navy); military recruitment; marines;
maritime culture; Atlantic trajectory.
Sumário

1. Introdução: Aviso aos navegantes 29


1.1 Historiografia 30
1.2 Naturalidade 36
1.3 A Armada Nacional e Imperial do Brasi 40
1.4 Recrutamento e engajamento 42
1.5 Classe, militares, nacionais? 45
1.6 Os capítulos e a documentação 48
2. Estrangeiros 51

2.1 1822 51
2.2 Os estrangeiros em números 54
2.3 Os portugueses 58
2.3.1 Portugal – Brasil: cultura, religião e pobreza 61
2.3.2 Uma poética da partida 66
2.3.3 Portugal: officina virorum da Armada do Império do Brasil 75
2.4 Britânicos e norte-americanos 81
2.4.1 A Cabanagem e os marinheiros ingleses William e Thomas 84
2.4.2 Entre a fome na Irlanda e o trabalho forçado no Brasil 88
2.4.3 Estados Unidos – Brasil: o Atlântico do Novo Mundo 92
2.4.4 Missionários protestantes no porto: a bandeira Bethel na Corte 95
2.4.5 Memórias, diários e leituras 99
2.4.6 A história do norte-americano Jacob: cinco anos no mar,
três semanas na Armada do Império do Brasil 102

3. Nacionais 109
3.1 O recrutamento militar no Império 110
3.2 Homens em movimento 117
3.3 Naturalidade provincial 119
3.4  
“Jugado feito batata”: A viagem à Corte 122
3.5 Resistências 127
3.6  
“Dessa sorte castigado e mesmo assim prestar serviço à Nação” 134
3.7 A história de um “vadio”: o pardo forro Hermógenes José Ribeiro 144
3.8 Cores 146
3.9 Indígenas 155
3.10 Pretos e escravos 165
3.11  
“Petição de miséria”: retórica da desgraça 171
3.12 Amor de mãe, arrimos e outros laços familiares 175

4. Nem tanto à terra, nem tanto ao mar:


Fragmentos de cultura marítima e urbana 187
4.1 Cosmopolitismo 188
4.2  
“Eu não sou daqui, eu não tenho amor”? Solidariedades e intolerâncias 194
4.3  
“Cortando a linha” os corações batem do mesmo modo? 198
4.4 Grog 201
4.5 Homossexualidade 204
4.6 Dândis do mar: homens tatuados de camisa riscada e
roupas bordadas 211

5. Considerações finais 221

6. Bibliografia 227
Lista de tabelas

tabela 1 Naturalidade das tripulações da Armada, 1825-1854 30


tabela 2 Soldos dos marinheiros da Armada, 1833-1854 40
tabela 3 Tripulação estrangeira da Armada por nacionalidade, 1833-1854 51
tabela 4 Naturalidade provincial dos marinheiros nacionais, 1833-1854 115
tabela 5 Embarcações que transportaram marinheiros para a corte, 1823-1858 117
tabela 6  “Mapa demonstrativo do número de praças que desertaram e das
que foram capturadas ou se apresentaram durante o ano de 1855” 126
tabela 7 Cores dos marinheiros estrangeiros e nacionais, 1833-1854 145
tabela 8 Cores dos recrutas e marinheiros nacionais, 1833-1894 146
tabela 9 Tripulação da marinha mercante de cabotagem, Império do Brasil, 1857 161
Lista de figuras

1 Naturalidade dos marinheiros da Armada, 1833-1854 32


2 Instalações da Marinha na Ilha das Cobras, Rio de Janeiro, 2004 34
3 “Estrutura administrativa da Marinha brasileira”, 1822-1847 35
4 O porto do Rio de Janeiro, 1858 41
5 Posição das frotas portuguesa e brasileira na Batalha de 4 de maio
de 1823, próximo a Salvador 47
6 Um marinheiro português, c. 1850 51
7 Um marinheiro inglês, 1828 51
8 Caixa de esmolas da Capela de Nossa Senhora de Boa Viagem, Niterói, 1846 56
9 Imagem de Nossa Senhora do Cabo da Boa Esperança, Rio de Janeiro, 1846 56
10 Ex-votos marítimos do século xx da sala de milagres da
Basílica de Iguape, São Paulo, século xx 57
11 O Bom Jesus de Iguape, madeira policromada, c.1647 57
12 Ex- voto dedicado a Bom Jesus de Matosinhos em Portugal, século xviii 57
13 Vieira da Silva, História trágico-marítima, 1944 63
14 Folha de rosto de Naufrágio que passou Jorge de Albuquerque Coelho, Lisboa, 1735 63
15 E. J. Maia. Marujo., 1846 65
16 Folha de rosto de O marujo saudozo, Lisboa, 1791 67
17 Detalhe do ofício do cônsul de Portugal para o ministro da Marinha,
pedindo desembarque de súditos portugueses da fragata Constituição, 1845 74
18 Assinaturas dos marinheiros ingleses William Sealy e Thomas Jones, Pará, 1840 78
19 Termo de engajamento do dublinense Patrick Smith, Liverpool, setembro de 1850 83
20 Notícia de maus-tratos a menores irlandeses, no Império do Brasil
publicada no The Times, Londres, 1852 85
21 Marinheiros de baleeiro norte-americano, New Bedford, 1860 86
22 Folhas de rosto dos livros de memórias dos marinheiros
Charles Nordhoff e Jacob Hazen, 1866 e 1859 93
23 Assinaturas de marinheiros da fragata Imperatriz, 1833 - 1835 101
24 Marinheiros brasileiros do navio Minas Gerais, Nova York, c. 1913 144
25 Marinheiro negro, Rio de Janeiro, década de 1830 161
26 Marinheiro negro, 1841 161
27 Trajetórias de marinheiros de negreiros
apreendidos e recrutados para a Armada do Brasil em 1849 186
28 Imagem de marujo para rituais da Umbanda. Salvador, 2008 191
29 “Crossing the line”, 1881 195
30 Antonio Ferreira de Andrade, “secretário da oficialidade dos revoltosos” de 1910
e João Cândido, 1911 202
31 Detalhe da gravura The saylor’s return. Inglaterra, 1847 205
32 Detalhe da lista de marinheiros engajados em Liverpool pelo cônsul brasileiro, 1850 207
33 Marinheiro negro com brinco de argola, Liverpool, 1815 208
34 Marinheiro branco com brinco de argola, eua, década de 1840 208
35 Franz Xaver Winterhalter. Albert Edward, filho da Rainha Vitória vestido de
marinheiro, 1846 210
36 Roupas e bolsa bordadas do marinheiro norte-americano Warren Opie,
década de 1840 212
37 Estandarte e vestimenta bordados do ex-marinheiro Arthur Bispo do Rosário,
meados do século xx 213
38 Toalhas bordadas por João Cândido, 1911 213

Cabeçalho de um dos inumeráveis “Notice to Mariners” ou “Aviso aos navegantes” que a Marinha Britânica
enviava às autoridades marítimas de diversas nações, entre as quais o Império do Brasil, contendo
informações sobre tráfico marítimo no planeta.
1 Introdução: Aviso aos navegantes

A novela Billy Budd, de Herman Melville, abre-se com a descrição de “bronzeados


homens do mar” gozando o dia de folga na região portuária de Liverpool. O líder
do grupo era um marinheiro africano. Os seus companheiros “eram formados por
tamanha variedade de tribos e compleições que ficariam muito bem marchando
sob o comando de Anacharsis Cloots1 perante a primeira Assembleia Francesa na
qualidade de Representantes da Raça Humana”.2 Melville referiu-se também a esse
grupo como motley retinue (comitiva heterogênea). O escritor evocou o jacobino
Cloots novamente em Moby Dick, descrevendo a tripulação internacional do bale-
eiro Acushnet como “uma verdadeira delegação de Anacharsis Cloots de todas as
ilhas do mar e de todos os cantos da terra”.3 A heterogeneidade dos tripulantes dos
navios que cruzavam o Atlântico foi um dos temas do livro A hidra de muitas cabe-
ças, de Peter Linenbaugh e Marcus Rediker. Esses autores retomaram a expressão
motley crowd - traduzida como “horda heterogênea” - empregada por Marx e Engels
para definir os expropriados em A ideologia alemã, bem como a expressão motley
crew também utilizada nos séculos xviii e xix e traduzida como “horda heterogenea
de trabalhadores”. Segundo os primeiros autores, motley crowd (“multidão colori-
da”, “heterogênea”) seria, muito provavelmente, uma multidão andrajosa ou um
“lumpemproletariado” (do alemão Lumpenproletariat: lump, “pessoa desprezível”,
lumpen, “andrajo” e proletariat, “proletariado”).4
Os navios das primeiras décadas da Armada Nacional e Imperial do Brasil,
assim como os de outras nações emergentes do período, mantiveram a tradição de

1 O francês Anacharsis Cloots foi um jacobino que chefiou uma delegação de trinta e seis estrangeiros
durante a primeira assembleia francesa, em 1791.
2 melville, Herman, Billy Budd, p. 18.
3 melville, Herman, Moby Dick, ou a baleia branca, p. 121.
4 linenbaugh, Peter; rediker, Marcus, A hidra de muitas cabeças. p. 38. Os autores atribuíram ainda
um sentido ideológico ao termo: “Apesar de escrevermos sobre o caráter inter-racial da multidão
heterogênea, e de enfatizá-lo, gostaríamos que os leitores tivessem em mente esses outros signifi-
cados – a subversão do poder e a aparência da pobreza”. Ibidem.
30

tripulações miseráveis, multinacionais, multiétnicas e multirregionais das marinhas


européias. O contraste – e não paradoxo – de internacionalidades em um período
de formação dos Estados nacionais tornou-se, então, um dos fios condutores deste
trabalho, justificando-lhe o título. Galera e galé eram navios antigos movidos a remo.
Galera, a partir da Época Moderna passou a designar um outro tipo de embarcação
provida de três mastros. Esta palavra já no francês antigo significava “grupo de pes-
soas condenadas a remar nas galeras”.5 O uso atual da palavra “galera” – “qualquer
grupo afim, o pessoal, o grupo, a roda de amigos”6 – é mais uma gíria cuja raiz está
no mundo marítimo. Embora a galera tivesse um intenso relacionamento na faina
dos navios, ela era profundamente heterogênea ou motley, como bem observaram
Herman Melville e outros tantos marujos escritores.
As personagens centrais desta tese são os homens que foram recrutados para a
Armada Nacional e Imperial do Brasil e os tripulantes dos seus navios. São homens
livres pardos e pobres, os chamados “vadios”, indígenas, baianos, pernambucanos
e paraenses rebeldes, marítimos desempregados de Londres e Liverpool, crianças
cearenses flageladas, crianças irlandesas famintas, portugueses à deriva no Atlântico,
presidiários, imigrantes incautos, ex-escravos, escravos, e muitas outras “galeras”.

1.1  Historiografia

Fernand Braudel descreve o espaço do Atlântico de uma perspectiva eurocêntrica,


dentro da expansão do capitalismo moderno:

O todo foi se organizando a partir de centros privilegiados, enterrado no quadro de


estruturas preexistentes: as religiões, as instituições políticas, os quadros urbanos,
e, acima desse conjunto, um capitalismo mercantil antigo, insidioso, ágil, já capaz de
transpor, de disciplinar o Oceano.7

5 Verbete “Galera”, Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Assim como galé era a pena dos crimi-
nosos condenados a remar nas galés, e até pelo menos o século xix, cumprir trabalhos forçados
marítimos ou não.
6 Ibidem.
7 braudel, Fernand, “Para uma história serial: Sevilha e o Atlântico (1504-1640)”, in: Idem, Escritos
sobre a História, p. 131.
31

Se a navegação Atlântico afora teve como porto de partida a Europa, os movimentos


não tardaram a se tornar múltiplos. O tema desta tese são as pessoas que trabava-
lham nos navios de um Império periférico, em formação, cujos movimentos não
eram do apenas do hemisfério norte para o hemisfério sul, ou do leste para o oeste,
e cujos navios ainda vão demorar até abrigar tripulações originárias exclusivamente
do seu território. Assim, o Atlântico de Braudel está sendo modificado ao longo do
século xix: os centros continuam privilegiados, mas os movimentos se expandem
em múltiplas direções.
Os conceitos de espaço liso e espaço estriado criados por Félix Guattari e Gilles
Deleuze relativizam esse movimento de centro para periferia, de baixo para cima, de
velho mundo para novo mundo. O espaço estriado é aquele ordenado pelo Estado,
e o liso é aquele no qual as grandes divisões inexistem ou foram desmanchadas.

O mar é talvez o principal espaço liso, o modelo hidráulico por excelência. Mas o
mar é também, de todos os espaços lisos, aquele que mais cedo se tentou estriar,
transformar em dependente da terra, com caminhos fixos, direções constantes,
movimentos relativos, toda uma contra-hidráulica dos canais ou condutos. Uma
das razões da hegemonia do Ocidente foi a capacidade que tiveram seus aparelhos
de estado para estriar o mar, conjugando as técnicas do Norte e as do Mediterrâneo
e anexando o Atlântico. Mas eis que esse empreendimento desemboca no resultado
mais inesperado: a multiplicação dos movimentos relativos, a intensificação das
velocidades relativas no espaço estriado, acaba reconstituindo um espaço liso ou
um movimento absoluto.8

Os marinheiros da Armada Nacional e Imperial do Brasil viveram esses dois espa-


ços simultaneamente. Por um lado, sob o signo do controle social e o uso do navio
como depósito para indesejados, foram apartados por períodos variáveis dos lo-
cais que habitavam e submetidos a um trabalho árduo, a intempéries frequentes,
ao distanciamento dos entes amados, além de baixos salários, má alimentação e
castigos corporais e psicológicos. Por outro lado, eram desertores por excelência:
muitos pularam de navio em navio à procura de melhores tratamento e salário.
Conheceram lugares, viveram em cidades remotas e adquiriram novos saberes, em
uma “multiplicação dos movimentos relativos”.

8 deleuze, Gilles; guattari, Félix, Mil platôs: Capitalismo e esquizofrenia. Vol. 5, p. 61.
32

Assim, enquanto esses homens eram coagidos ao trabalho e desarraigados per-


manentemente pela violenta força centrípeta do recrutamento de mão-de-obra ma-
rítima, exerceram uma força centrífuga, deslocando-se para locais não planejados
pela tentativa dos Estados em detê-los nos navios, deixando assim rastros indeléveis
na cultura das grandes cidades portuárias.
A chamada história atlântica tem sido desenvolvida há algumas décadas, atenden-
do à demanda de uma historiografia não nacionalista, que dê conta da expansão do
capitalismo europeu, durante, principalmente, a época moderna, no que diz respeito
à relação entre Europa, África e Américas. Jack Greene e Phillip Morgan definiram
a história atlântica do seguinte modo:

Um construto analítico e uma categoria explícita de análise histórica que os his-


toriadores forjaram para ajudar a organizar o estudo de um dos mais importantes
desenvolvimentos do início da era moderna: a emergência da base atlântica no
século xv e o seu subsequente crescimento na qualidade de um lugar de trocas
demográficas, econômicas, sociais, culturais, além de outras, entre os quatro
continentes que margeiam o Oceano Atlântico – Europa, África, América do Sul e
América do Norte, de todas as ilhas adjacentes a esses continentes e nesse oceano.
Como pessoas, doenças e plantas – para mencionar apenas três agentes chaves
de mudança – deslocaram-se intensamente através do Atlântico, transformações
profundas ocorreram em todas as esferas da vida.9

A realidade das trocas demográficas, econômicas, culturais e sociais está tanto sub-
metida às relações de poder quanto é independente delas. Elas se deram tanto no
espaço liso, onde são os indivíduos que fazem as suas escolhas, quanto no espaço
estriado pelos Estados, as nações ou os Impérios.
Markus Rediker é talvez o maior expoente de uma historiografia atlântica social
de viés marxista. Os seus principais trabalhos: The devil and the deep blue sea, A hidra
de muitas cabeças: Marinheiros, escravos, plebeus e a história oculta do Atlântico revolu-
cionário – este em colaboração com Peter Linenbaugh –, e Navio Negreiro, contêm
seções fundamentais sobre os marinheiros, sobretudo sobre os do Atlântico norte.
De maneira semelhante a Deleuze e Guattari, Rediker e Linenbaugh estabeleceram

9 greene, Jack; morgan, Phillip, Atlantic history, an appraisal. p. 1. Tradução minha.


33

duas forças simultâneas no contexto da expansão atlântica inglesa, mas, nesse caso,
opostas entre si:

Desde o começo da expansão colonial inglesa, na alvorada do século xvii, até a in-
dustrialização metropolitana do início do século xix, governantes usaram o mito
de Hércules e da hidra para descrever a dificuldade de impor a ordem em sistemas
de trabalho cada vez mais globais, apontando aleatoriamente plebeus esbulhados,
delinquentes deportados, serviçais contratados, extremistas religiosos, piratas,
operários urbanos, soldados, marinheiros e escravos africanos como as cabeças
numerosas e sempre cambiáveis do monstro. Mas as cabeças, apesar de origina-
riamente postas numa combinação produtiva por seus hercúleos dirigentes, logo
desenvolveram entre si novas formas de cooperação contra esses dirigentes, que
iam dos motins e greves aos tumultos, levantes e revoluções.10

Os marinheiros e recrutas desta tese coincidem com algumas das personagens cita-
das acima. Mas as suas histórias são interpretadas aqui de maneira diversa. Mais do
que uma luta de classes – que gera cooperação entre os esbulhados, greves, tumultos,
levantes e revoluções –, estudei outras formas de resistência, os seus costumes em
comum e também as suas intolerâncias internas. Menos a sua consciência do que
as suas ações, sobretudo mediante as suas trajetórias. Nesse sentido, o trabalho
optou por seguir a linha de raciocínio do primeiro livro de Marcus Rediker, no qual
o autor clama por uma história internacional da vida e do trabalho dos marinheiros,
conjugando os passados dos diversos lugares onde nasceram e viveram.11
Procurei, sim, entender como sujeitos em situação de marginalidade reagem
criativamente ao sofrimento e à opressão, deixando marcas na cultura do grupo e
da sociedade como um todo.
Embora a violência resultante dessas experiências – mortes, mutilações, cica-
trizes, sangue derramado e demência – seja enorme, essa faceta das suas vidas foi
pouco abordada neste trabalho. Importantíssima, deixo-a para outros estudiosos.
O problema da conceituação da história atlântica é que ela abrange praticamente
toda a história do Ocidente na época moderna e inclui todas as margens atlânticas
da Europa, da África e das Américas. Sendo assim, os estudos do tráfico de escravos
para o Brasil apropriam-se do termo, já que todas essas margens são partícipes e

10 linenbaugh, Peter; rediker, Marcus, A hidra de muitas cabeças. pp. 11-12.


11 rediker, Marcus, Between the devil and the deep blue sea. p. 7.
34

comunicam-se por meio do Atlântico. Mas, como a definição acima indica a his-
tória atlântica, não diz respeito, é claro, apenas a esse oceano e às áreas costeiras
dos países que o margeiam. Isso faz com que este trabalho, apesar de inserido na
historiografia atlântica, seja mais especificamente de história marítima.
De modo que aí se constitui outro problema, pois a história marítima é mais
desenvolvida em países que foram impérios marítimos. O Império do Brasil era,
sobretudo, territorial. Excluindo-se as questões do Prata, os poucos conflitos inter-
nacionais travavam-se principalmente nas fronteiras terrestres do território. O seu
imenso litoral serviu à “expansão para dentro”12. Ou seja, a Corte governou também
por meio da navegação de cabotagem.
A navegação regional de canoas, jangadas, barcos de pesca, também tem sido ob-
jeto de estudos, em especial de antropólogos e de alguns historiadores. Os estudos
de navegação mercante ainda não são muito numerosos, sendo o tema dos navios
mercantes negreiros o mais abordado. Além disso, à exceção das pesquisas sobre a
revolta dos marinheiros de 1910, as pesquisas sobre marinheiros e marítimos não
se destacam na historiografia brasileira.13
A história da Marinha de Guerra do Brasil evolui por duas vertentes principais:
a acadêmica, produzida na Universidade, e a institucional, produzida na própria
Marinha do Brasil, cujo Departamento de História Marítima e Naval

supervisiona o estudo, a pesquisa e o registro da história marítima brasileira em


seus múltiplos aspectos. Coordena a edição dos volumes e tomos da Coleção His-
tória Naval Brasileira e da história administrativa da Marinha e é responsável pela
pesquisa e elaboração da história dos navios, de estabelecimentos marítimos e
biografias dos vultos navais.14

12 mattos, Ilmar R., “Construtores e herdeiros: a trama dos interesses na construção da unidade po-
lítica”, Almanack Brasiliense, n. 1.
13 O estudo brasileiro mais importante do século xix sobre marítimos é A faina, a festa e o rito: Gentes do
mar e escravidão no Brasil (Séculos xvii ao xix), de Luis Geraldo Silva, 1996. Há também bons estudos
regionais, como Gentes do Grande Mar Redondo: riqueza e pobreza na Comarca de Paranaguá 1850-1888,
de José Augusto Leandro, 2003; e Pescadores e Roceiros – Escravos e Forros em Itaparica na Segunda
Metade do Século xix (1860-88), de Wellington Castellucci Jr.
14 Essa definição foi transcrita do próprio site do Departamento de História Marítima e Naval da Ma-
rinha do Brasil. Disponível em: http://www.mar.mil.br/dphdm/pesq/hist.htm. Acesso: 31 jul. 2011.
35

Os volumes da História Naval Brasileira não versam sobre os marinheiros. Inte-


ressam mais à instituição os “vultos navais”, ou seja, os oficiais, afora um ou outro
marujo, como Marcílio Dias, herói da Guerra do Paraguai, agraciado com dois es-
boços biográficos e nome de várias unidades da Marinha. Dentre os militares que
escreveram sobre a história da Marinha, Juvenal Greenhalg pode ser considerado
uma exceção, pois escreveu sobre marinheiros, operários e prisões.15
A produção acadêmica sobre a Marinha do Brasil vem sendo realizada principal-
mente na última década. O recrutamento, as escolas de aprendizes-marinheiros, a
revolta dos marinheiros de 1910 e a revolta dos marinheiros de 1964 constituem os
seus principais temas.16
Este trabalho é tributário de todas as historiografias citadas acima. Os tra-
balhos de Marcus Rediker inspiraram a reflexão sobre o internacionalismo das
tripulações. Compartilho algumas das abordagens dos historiadores do tráfico de
escravos africanos, considerando as relações internacionais em uma ponta e, na
outra, os indivíduos envolvidos. No entanto, a maior parte dos homens constantes
desta tese está vinculada à Armada Nacional e Imperial do Brasil, pertencente a
um Estado e a uma Nação em formação, sendo ela o eixo que agrupa os homens
que vêm de toda parte. Assim, também pretendo contribuir para a historiografia
sobre a Marinha do Brasil, no que se refere principalmente ao recrutamento, ao
engajamento e às suas tripulações.

15 greenhalg, Juvenal. O arsenal de Marinha no Rio de Janeiro na História. 1822-1889 e Presigangas &
calabouços: Prisões da Marinha no século xix.
16 Sobre a Marinha do Brasil, eu daria destaque à dissertação de Álvaro Nascimento: A ressaca da ma-
rujada: recrutamento e disciplina na Armada Imperial; à dissertação de Edna Fernandes Antunes: Ma-
rinheiros para o Brasil: o recrutamento para a Marinha de Guerra Imperial (1822-1870); à dissertação
de Paloma Siqueira Fonseca: A presiganga real (1808-1831): punições da Marinha, exclusão e distinção
social. Projeto de pesquisa sediado na Universidade de Londrina: A formação da Marinha de Guerra
do Brasil (1821-1845) entre os anos de 2002 e 2009 e subsidiado em parte pela Marinha do Brasil. Há
também diversos bons estudos sobre as escolas de aprendizes de marinheiros em vários estados.
Sobre a revolta dos marinheiros de 1910, existem vários trabalhos, entre os quais: Cidadania, cor e
disciplina na revolta dos marinheiros de 1910 de Álvaro Nascimento; Em busca da cidadania: praças da
Armada Nacional, 1867-1910, de José Miguel de Arias Neto; Legacy of the lash, race & corporal punish-
ment in the Brazilian Navy (1860-1910), de Zachary Morgan, o livro clássico de Edmar Morel, A revolta
da chibata, entre outros.
36

1.2  Naturalidade

O critério que identificava cada marinheiro no registro da Marinha quanto ao local


de nascimento não era a nacionalidade, mas o de naturalidade. Poderiam estar re-
gistrados o município, a província ou o país de nascimento. A maioria foi registrada
como natural de Lisboa, Aracati, Nova York, Santa Catarina, Campos, Bahia etc. Mas
uma parte também foi registrada como natural da Irlanda, da Alemanha, de Portugal.
Nos navios de guerra que estudei, foi só a partir da década de 1840 que o número
de marinheiros naturais do território do Império começa a superar ou se igualar ao de
estrangeiros. Chamo-os de nacionais, não porque necessariamente assim se sentis-
sem, mas porque eram considerados como tais pelas diversas autoridades do Império.
Por um lado, há a presença maciça de estrangeiros nas tripulações e, por outro,
uma crescente participação dos nacionais ao longo do período. São dois movimen-
tos que se entrelaçam na constituição das tripulações da Armada: uma preexistente
mão-de-obra marítima internacional, formada ao longo do processo de expansão
marítima europeia e depois norte-americana, e a formação do efetivo marítimo na-
cional por meio do recrutamento no Estado em formação.

tabela 1
Naturalidade das tripulações da Armada (1825-1854)
britânicos e total
navio portugueses norte-americanos outros estrangeiros nacionais
imperatriz
145 (57%) 46 (18%) 19 (7%) 210 (84%) 42 (16%)
(1825-26)

imperatriz
275 (29%) 150 (15,6%) 186 (19%) 611 (64%) 345 (36%)
(1833-35)

constituição
223 (31%) 92 (12%) 47 (6%) 362 (50%) 363 (50%)
(1844-46)
imperial marinheiro
74 (13%) 63 (11%) 43 (8%) 180 (32%) 376 (68%)
(1852-54)

total 717 351 295 1365 1126

Fontes: an, Série Marinha, livros de socorros. Fragata Imperatriz xvii M 2500, xvii M 2501; fragata Constituição: xvii M
490, xvii M 1334, xvii M 1342, xvii M 1374, xvii M 1399; corveta Imperial Marinheiro: xviii M 2303, xviii M 2311, xviii M 2312,
xviii M 2323, xviii M 2324, xviii M 2325.

A provável causa de não haver maioria de nacionais até a década de 1840 é o fato de
os nascidos no Brasil (Colônia ou Império) não serem tradicionalmente sea-going
37

people. Esses, como observou um marinheiro norte-americano, eram ingleses, es-


coceses, irlandeses, portugueses, kanakas (habitantes das ilhas do Pacífico), lasca-
res (indianos).17 Segundo João Mauricio Wanderley, ministro da Marinha em 1855,
havia no Império “escassez de população marítima”, e os poucos marinheiros
preferiam a marinha mercante, cujos soldos eram, muitas vezes, o dobro dos da
marinha de guerra.18
A presença escrava na marinha mercante também representou um fator de di-
minuição do acesso dos pobres livres nascidos durante o Império às tripulações de
ambas as marinhas. Em 1857, 42% da tripulação da marinha mercante de cabotagem
era constituída de escravos.19 Na Armada, bem como no Exército, não se admitiam
escravos oficialmente, que, portanto, não eram contabilizados nos relatórios do
Ministério e constavam como minoria nos Livros de Socorros das embarcações.
Ainda assim, por curtos períodos foram engajados para suprir a falta crônica de tri-
pulação, além de alguns escravos fugidos ingressarem na qualidade de voluntários.
Faziam-se ao mar, sim, muitos homens forros e descendentes de escravos.
O engajamento contínuo e decrescente de trabalhadores marítimos de outras
nações, sobretudo em cidades de Portugal e do Reino Unido, mas também nos portos
do Império, ocorreu durante todo o período estudado. A presença estrangeira era
significativa nas marinhas de guerra e mercante. Na década de 1850, representava
algo em torno de um terço da tripulação de ambas.
Na marinha mercante de cabotagem, dentre os livres, quase metade das tripula-
ções era estrangeira.20 Provavelmente devido ao alto número de brancos no grupo
de nacionais, muitos deles eram quiçá portugueses naturalizados.
Finalmente, segundo Jaime Rodrigues, nas tripulações dos tumbeiros participan-
tes do tráfico ilegal de escravos para o Brasil, entre 1812 e 1853, apenas 11% dos mari-
nheiros eram naturais do Império do Brasil. Dentre os estrangeiros, 17% eram africa-
nos (escravos e ex-escravos), 68% portugueses e 3% de várias outras nacionalidades.21

17 clark, George Edward, Seven years of a sailor’s life, p. 136. Tradução minha.
18 Relatório apresentado à Assembleia Geral Legislativa (...) pelo Secretário d’Estado dos Negócios da Marinha,
João Mauricio Wanderley, 1855. p. 6. Doravante citarei esses relatórios como “Relatório da Marinha”,
seguido do respectivo ano.
19 Relatório da Marinha, 1857, mapa T.
20 Ibidem.
21 rodrigues ,Jaime, De costa a costa: Escravos, marinheiros e intermediários do tráfico negreiro de Angola
ao Rio de Janeiro (1780-1860), p. 186.
38

Naturalidade dos marinheiros da Armada, 1833-1854

Os pontos no mapa correspondem às naturalidades dos marinheiros indicadas nos livros de socorros das embarcações
estudadas. Ao lado, a lista indica as localidades e o número de marinheiros provenientes de cada uma delas.

Fontes: an, Série Marinha, Livros de socorros da fragata Imperatriz xvii M 2500 e xvii M 2501; Livros de socorros da
fragata Constituição (1844-46): xvii M 490; xvii M 1334; xvii M 1342; xvii M 1374; xvii M 1399; Livros de socorros da
corveta Imperial Marinheiro: xviii M 2303; xviii M 2311; xviii M 2312; xviii M 2323; xviii M 2324; xviii M 2325.
39

portugal 31 europa alcobaça 4


porto 231 alemanha 401 rio real 4
guimarães 9 porto seguro 3
germanófonos 45 inhambupe 1
bastos 2
hamburgo 4 viçosa 1
lisboa 171
hannover 3 rio de janeiro 147
braga 8 bremen 1
benavente 2 campos 20
espanha 13 cabo frio 12
açores 10
galícia 12 paraty 7
algarve 6 canárias 1 ilha grande 4
penafiel 1 cádiz 1 saquarema 2
ilha da madeira 12 málaga 1 valença 1
setúbal 5 maiorca 1 angra dos reis 1
peniche 1 frança 11 barra mansa 1
ilha de são miguel 5 bordeaux 2 cantagalo 1
coimbra 5 paris 1 itabora 1
terras novas 1 le harve 1 macaé 1
ilha terceira 5 normandia 1 paquetá 1
capilhas 4 prússia 6 pernambuco 140
caparica 1 suécia 6 pilar 3
ilha do faial 10 serinhaém 1
holanda 6
viseu 2
caravelas 1 áustria 5 pará 82
dinamarca 5 cametá 1
ilha graciosa 5
marajó 2
alcobaça 3 itália 1 toscana 1
figueira 1 bélgica 1 maranhão 51
ilha do pico 3 rússia 1 santa catarina 47
almada 2 são paulo 14
príncipe 1 hispano-américa e caribe paranaguá 12
ilha de são jorge 1 chile 5 ubatuba 7
lamego 2 valparaíso 1 santos 5
minho 1 argentina 1 são sebastião 4
vianna 18 buenos aires 3 iguape 2
melgaço 2 sergipe 20
uruguai 5
cotinguiba 18
montevidéu 7
anglófonos 125 penedo 4
paraguai 4 aracati 6
reino unido
inglaterra 73 porto rico 2 beriberi 1
plimouth 1 cuba 1 ceará 45
liverpool 8 santo domingos 1 alagoas 5
santa helena 1 barbados 2 maceió 16
londres 6 porto de pedras 1
áfrica 8
irlanda 17 porto calvo 1
cabo verde 13 são miguel 1
portsmourth 2
dublin 1 angola 11 rio grande do norte 22
greenwich 2 moçambique 3 paraíba 21
escócia 2 são tomé e príncipe 4 espírito santo 4
eua 4 0 judá 1 são mateus 10
nova york 15 congo 2 vitória 3
north fort 1 guarapari 1
serra leoa 1
nova jersey 3 itapemirim 2
richmond 1 ásia rio grande do sul 7
boston 3 goa 2 porto alegre 7
filadélfia 1 manilha 2 rio grande 2
baltimore 2 império do brasil 94 rio pardo 1
canadá bahia 181 minas gerais 6
nova escócia 1 caravelas 16 piauí 5
40

1.3  A Armada Nacional e Imperial do Brasil

No final de 1822, o Ministério e Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha era


um dos seis ministérios do novo Império do Brasil. Em média, destinavam-se 13%
do orçamento do Império à Marinha.22 Esta tese concentra-se em apenas um dos
seus braços (ver organograma ao lado): a Armada Nacional e Imperial. E, dentro da
Armada, os seus recrutas e os seus marinheiros.

A Ilha das Cobras abriga instalações da Marinha desde o período colonial. Rio de Janeiro, 2004.
Foto Helder Rocha.

Entre 1836 e 1845, quatro decretos principais gestaram as Companhias de Imperiais


Marinheiros. Tratava-se inicialmente de quatro companhias fixas. Em 1840 foi criada
a denominação Imperial Marinheiro, e por fim, em 1845, foi instituído um regula-
mento definitivo. O gérmen da escola de marinheiros aprendizes da Corte foi uma
das companhias instituídas em 1840.
Os homens pertencentes às Companhias de Imperiais Marinheiros, como os
soldados do Exército, eram os praças de pré, e os demais marinheiros formavam a
chamada marinhagem, agrupados no “Corpo da Armada”, expressão genérica em-
pregada em alguns mapas da Força Naval. Nas palavras do ministro Zacharias Góes
de Vasconcelos, a marinhagem compunha-se, de “marinheiros avulsos, não alistados
(...), estrangeiros e nacionais contratados por curtos prazos ou recrutas que não
foram julgados idôneos para fazerem parte dos ditos corpos”.23

22 Decretos do orçamento do Império entre as décadas de 1830 e 1860. Ver Coleção de leis do Império.
23 Relatório do ministro da Marinha, 1852.
41

Organograma da Marinha (1822-47). Extraído de História Naval Brasileira, V. 3, Tomo I, p. 12.


42

Os praças de pré das Companhias de Imperiais Marinheiros representaram a


minoria das tripulações dos vasos de guerra até pelo menos a década de 1850 – cerca
de um terço da média de três mil homens do efetivo. Em 1854, dos 2704 marinheiros
embarcados em navios de guerra, apenas 990 eram Imperiais Marinheiros, enquanto
1715 compunham a marinhagem.3 Mas esse número sempre foi crescente, sobretudo
depois da criação de escolas de aprendizes entre as décadas de 1840 e de 1870 em
todas as províncias litorâneas do Império. Quatro delas existem até hoje: a do Ceará,
a de Pernambuco, a do Espírito Santo e a de Santa Catarina.
Mais atenta às questões de naturalidade, dividi os grupos principais entre nacio-
nais e estrangeiros, em vez de marinhagem e praças de pré. No primeiro grupo estava
locada a maior parte dos estrangeiros, mas havia nacionais, e no segundo grupo dava-
-se o inverso. Os nacionais eram crianças e homens marítimos ou não, cuja maioria
era recrutada à força nas diversas províncias do Império. Os estrangeiros eram em
primeiro lugar portugueses – nem sempre marítimos – e, em segundo , britânicos e
norte-americanos, além de mais uma série de outras nacionalidades, engajados vo-
luntariamente ou à força, que permaneciam poucos meses ou alguns anos na Armada
do Brasil. Eles vinham de outras marinhas e poderiam partir para outras, mercan-
tes ou de guerra, do seu país natal ou de um estrangeiro. De modo que seria difícil
encontrar o seu paradeiro antes ou depois dessa experiência no Império do Brasil.

1.4  Recrutamento e engajamento


Havia cinco maneiras principais de tripular os navios da Armada no Império:

Formas compulsórias
1. Recrutamento forçado de nacionais e muitas vezes estrangeiros por policiais,
militares, recrutadores de ocasião. Os recrutas eram enviados às presidências das
províncias, que os expediam ao Ministério da Marinha. Os secretários da Polícia
da Corte não raro os enviavam diretamente ao Ministério. Muitos tenentes da
Marinha praticaram o recrutamento em regiões portuárias, recrutamento esse
que seria orientado pelo regulamento de 10 de julho de 1822 até 1874, e por inú-
meras outras leis, muitas vezes dissonantes em relação a ele.
2. Raptos em navios mercantes e regiões portuárias de marujos estrangeiros ou
nacionais (razias, no entender do historiador militar Juvenal Greenhalg). Esse
modo de tripular um navio era comum na maior parte dos países atlânticos. Até o
43

início do século xix, a Inglaterra foi a maior praticante de recrutamento violento


de nacionais e estrangeiros. Os marujos eram registrados como engajados, mas
na realidade eram forçados a embarcar, conforme demonstram inúmeros ofícios
de cônsules estrangeiros para os ministros da Marinha.
3. Cumprimento de penas criminais. Era essa, talvez, a maneira menos usual. O
indivíduo que cometera algum crime, dentro ou fora da Marinha, passava de um
a dois anos servindo sem receber soldo.

Formas contratuais
4. Engajamento em países estrangeiros (principalmente Inglaterra e Portugal)
por meio dos consulados e de agenciadores diversos.
5. Engajamento e/ou voluntariado de estrangeiros e nacionais em portos. Mesmo
recrutados a força, os nacionais estavam cumprindo um tipo de trabalho com-
pulsório legal, o chamado “tributo de sangue”, relacionado ao pertencimento
da nação, o que não fazia muito sentido para a maioria, e de certa maneira dava
continuidade a um tipo de recrutamento de tempos coloniais. A historiografia
do recrutamento normalmente aborda esse tipo, que era o único para o Exército,
à exceção dos batalhões de estrangeiros da década de 1820. Como o engajamen-
to foi fundamental nos primeiros anos da Armada, é preciso estudar os modos
de angariar homens para a Armada e o Exército distintamente, ainda que haja
intersecções entre ambos.

Além dos recrutadores em si, várias autoridades eram responsáveis por esse pro-
cesso. O ministro da Marinha, os presidentes das províncias, os chefes da Polícia,
juízes de paz e cônsules brasileiros de países como Inglaterra e Portugal. Intensa
legislação e farta correspondência foram produzidas como resultado desse processo
complexo, que envolvia todas as províncias do litoral e uma diversidade enorme
de funcionários do Estado, além de, muitas vezes, homens comuns. Nesta tese, as
relações de poder estão implícitas no próprio uso que fiz da documentação oficial,
onde nomes do alto escalão político do Império aparecem envolvidos nos processos
de engajamento e recrutamento, demonstrando como esse Estado em formação
conduziu detidamente o seu processo de nacionalização e civilização por meio do
trabalho forçado.
O recrutamento e, em menor escala, o engajamento eram práticas administrativas
cotidianas. A partir de 1831, baixavam-se decretos de cotas de recrutas atribuídas a
44

cada província, que raramente eram atendidas. Mesmo assim, as tripulações conti-
nham homens de quase todas as províncias, principalmente as litorâneas. A chamada
“caçada humana” era diária, mas se intensificava durante os conflitos, tornando mais
agressivas as ações de recrutadores e engajadores. No período estudado, além das
guerras de Independência, da guerra Cisplatina, no final da década de 1820, e de ou-
tros conflitos na região do Prata, ocorreram também as chamadas revoltas regenciais,
como a Sabinada, a Balaiada e a Cabanagem, que envolviam tanto populares quanto
elites regionais. Quando era necessário deslocar navios para os lugares de conflito,
havia campanhas emergenciais de recrutamento e engajamento de estrangeiros. E,
quando os conflitos eram debelados, muitos prisioneiros tornavam-se recrutas.
Em 1842, o Marquês de Paranaguá caracterizava da seguinte forma as duas prin-
cipais formas de incorporar marujos: “só por violência podem ser levados a servir na
Marinha de Guerra Brasileira homens que encontram facilmente a bordo da mercan-
te maiores salários: o que obrigou ao Governo a mandar engajar na Europa alguns
marinheiros”.24 Mas a violência era empregada igualmente contra marinheiros estran-
geiros nos portos do Império, como demonstra a documentação enviada por eles aos
Consulados. A presença estrangeira na tripulação da Armada consta em poucas linhas
da historiografia produzida pela própria instituição, preocupada com as questões na-
cionais, e também não é explícita nos relatórios do Ministério da Marinha do período.
A categoria de vadio, a principal entre os recrutáveis, insere-se no que Laura de
Mello e Souza denominou ideologia da vadiagem, que foi forjada durante o período
colonial e continuou a perpassar a visão das elites acerca da população do Império:

No discurso das autoridades da administração colonial (...) configurava-se com


nitidez a concepção de que os homens livres eram vadios e inaptos ao trabalho. Isso
não impedia que se recorresse a eles com frequência, empregando-os nas tarefas
que o escravo não podia preencher; entretanto, no mundo das ideologias, o ônus
que representavam aparecia como predominante, recobrindo a utilidade empiri-
camente constatável, escamoteando-a.25

A vadiagem foi tanto alvo de uma ideologia quanto alvo da lei, já que constava como
crime no Código Criminal do Império do Brasil, descrito no capítulo IV: “Vadios e
mendigos: não tomar qualquer pessoa uma ocupação honesta e útil de que possa

24 Relatório do Ministério da Marinha, 1842, p. 8.


25 souza, Laura de M. e, Os desclassificados do ouro: A pobreza mineira do século xviii, pp. 303-304.
45

subsistir”.26 A penalidade prevista era a prisão, mas uma boa parte foi recrutada para
as Forças Armadas. “Vadio” será a palavra mais recorrente nos ofícios das autori-
dades responsáveis pelo recrutamento, nos quais estão inclusos os estrangeiros e
outras exceções previstas por lei. Mas essa não era uma ideologia exclusiva do Im-
pério do Brasil ou ex-colônias. Na Inglaterra setecentista, segundo E. P. Thompson,
as elites se agarravam simultaneamente à imagem do trabalhador como um homem
não livre, um servo, e a “do homem livre como um vagabundo a ser disciplinado,
chicoteado e compelido a trabalhar”.27
Ao longo de todo o período estudado, haverá um sem-número de reclamações de
recrutamento ilegal que demonstra como a polícia e outros agentes de recrutamento
não seguiram a lei de modo sistemático, apoiados justamente na chamada razão de
Estado. Nas palavras de Michel Foucault:

A polícia é a governamentalidade direta do soberano como soberano (...) a polícia é


o golpe de Estado permanente que vai se exercer, que vai agir em nome e em função
dos princípios da sua racionalidade própria, sem ter de se moldar ou se modelar
pelas regras de justiça que foram dadas por outro lado.28

1.5  Classe, militares, nacionais?

A heterogeneidade entre os marinheiros não era apenas de nação. Havia no mínimo


quatro classes: os de classe superior (ou primeira classe), o primeiro marinheiro
(ou segunda classe), o segundo marinheiro (ou terceira classe) e o grumete. Sem
falar de uma minoria de segundos grumetes, grumetes menores, criados e cabos. As
três primeiras classes compunham-se de marinheiros profissionais, e a maioria dos
estrangeiros estava locada ali, com exceção dos portugueses que exerciam todas
as funções no navio. Já a categoria dos grumetes abarcava um grupo muito diverso

26 tinoco, A. L. F., Código criminal do Imperio do Brazil annotado. p. 512. Atualmente uma lei correspon-
dente ainda existe. Trata-se do artigo 59 do decreto-lei n. 3688, de 03/10/1941, a lei de contravenções
penais: “Entregar-se alguém habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter ren-
da que lhe assegure meios bastantes de subsistência.” Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/Decreto-Lei/Del3688.htm. Acesso: 31 jul. 2011.
27 thompson, Edward P., “Patrícios e plebeus”, in Costumes em comum: Estudos sobre a cultura popular
tradicional, p. 40.
28 foucault, Michel, Segurança, território, população, p. 457.
46

de homens que não eram marítimos de origem e uma grande parte de recém-re-
crutados, ou que não tinham um ofício, ou ainda crianças que se iniciavam na vida
do mar. Os grumetes, em geral, constituíam o grupo mais numeroso da tripulação:
aproximadamente 40% dos homens.
tabela 2
Soldos dos marinheiros da Armada 1833-1854

fragatas imperatriz e constituição corveta imperial marinheiro


(1833-1846) (1852-54)
2° grumete 3$000 —
1° grumete 4$800 7$000
2° marinheiro 8$000 10$000
1° marinheiro 10$000 14$000
classe superior 15$000 18$000

Fontes: an, Série Marinha, livros de socorros. Fragata Imperatriz xvii M 2500, xvii M 2501; fragata Constituição: xvii M
490, xvii M 1334, xvii M 1342, xvii M 1374, xvii M 1399; corveta Imperial Marinheiro: xviii M 2303, xviii M 2311, xviii M 2312,
xviii M 2323, xviii M 2324, xviii M 2325.

Esse grupo, em certa medida, impediu classificar todos os tripulantes em uma classe
profissional, ainda que dentro dele houvesse profissionais. Abordá-los como milita-
res também não se mostrou profícuo. O fato de a marinhagem (marinheiros contra-
tados) ter sido maioria durante o período estudado roubou o caráter estritamente
militar das tripulações.
Do marinheiro exigia-se juventude e diversos saberes técnicos, o que o difere
essencialmente do soldado do Exército. Talvez, por isso, inicialmente adotou-se a
mão-de-obra estrangeira especializada, que, a partir da década de 1840, seria lenta-
mente substituída por nacionais formados nas escolas de aprendizes. A presença
estrangeira no Exército foi mínima, e as suas escolas de aprendizes duraram muito
pouco tempo. No artigo sexto do Decreto n. 914 de 11 de fevereiro de 1852, pode-se
ler “as obras de marinheiros” que um recruta tinha de aprender em um navio de
instrução, logo ao ingressar:

Enquanto o navio de instrução estiver fundeado no porto, os recrutas embarcados


aprenderão, não só os nomes e usos das diversas partes do navio, de sua mastre-
ação e vergame, e de todo o aparelho e cabos, tanto fixos, como de laborar; mas
também a fazer as obras de marinheiro, como sejam costuras, redonda e de laborar,
alças, rabichos, pinhas, nós, & c.; exercitar-se-ão em subir a mastreação, sair as
47

vergas, envergar e desenvergar o pano, largar, caçar, içar, rizar, carregar e ferrar as
diferentes velas, bracear as vergas, içar e arrear mastaréus e vergas de joanetes; e
se aperfeiçoarão no exercício de remar nos escaleres, e de manobrar neles sobre a
vela, e bem assim no de artilharia.29

Essas atribuições são ainda do tempo dos veleiros. Iniciado com a emergência po-
lítica do Império do Brasil, este estudo encerra-se na década de 1850 por diversos
motivos. No Brasil, esse período foi o tempo em que a propulsão exclusivamente à
vela estava sendo substituída pela propulsão a vapor, embora a maioria dos navios
da Armada fosse ainda funcionar por algum tempo com um sistema misto de vela e
vapor.30 O vapor do século xix revolucionou todas as marinhas do mundo, em cada
país a seu tempo. Encerrou o que a historiografia anglófona chamou de “the age of
sail”. Em meados da década de 1860, a guerra do Paraguai foi uma inflexão não só
para as forças armadas, mas também para o Império como um todo. O recrutamento
para a Armada e a composição das tripulações sem dúvida mudaram radicalmente.
É pena que ainda não tenha podido chegar até lá.

Victor Frond. O porto do Rio de Janeiro em 1858. Litografia a partir de fotografia.


Instituto Moreira Salles, RJ.

29 Decreto n. 914, 11 de fevereiro de 1852, Coleção de leis do Império do Brasil de 1852, p. 31.
30 Os primeiros navios a vapor da Armada datam da década de 1830, quando eram a minoria da Força Naval.
48

1.6  Os capítulos e a documentação

Para entender quem eram os tripulantes da Armada, criei um banco de dados de cer-
ca de dois mil e setecentos marujos, a partir dos navios de maior tripulação de cada
década: fragata Imperatriz (década de 1820 e 1830), fragata Constituição (década
de 1840) e corveta Imperial Marinheiro (década de 1850).
Em cada navio havia um volume chamado Livro de Socorros, que continha, em
geral, o nome, a graduação, a naturalidade, a filiação, a cor e outras características
físicas do marinheiro, como o formato da cabeça, a coloração dos olhos, a altura,
marcas de cicatrizes e, raramente, as suas tatuagens. Esse banco de dados gerou
diversas tabelas, espalhadas por todos os capítulos.
No capítulo 2, “Estrangeiros”, a leitura da correspondência do Ministério da
Marinha com o Ministério dos Estrangeiros e os diversos consulados trouxe à luz
os mecanismos de ingresso e saída deles na Marinha. As fontes literárias tiveram o
mesmo peso. A experiência de Herman Melville nas marinhas mercante e de guerra
transformada em literatura, sobretudo, em Moby Dick e White Jack, explicaram, em
parte, o que significava ser marinheiro no mundo anglófono, no Atlântico e no Pa-
cífico. A Melville juntaram-se outros marinheiros, autores de relatos sobre as suas
experiências nas marinhas e nas costas do mundo, inclusive na do Império do Brasil,
como George Edward Clark, Charles Nordhoff e Jacob Hazen. Os marinheiros an-
glófonos deixaram testemunhos diferentes dos testemunhos dos lusófonos, porque
a tradição da escrita e da leitura era mais difundida entre os protestantes. Nessa
direção, a consulta às revistas da organização protestante American’s seaman society
permitiu apontar as diferenças de uma religiosidade protestante dos anglófonos em
relação à religiosidade luso-católica dos marujos portugueses e nacionais.
A recuperação de uma tradição marítima literária, cultural e religiosa portugue-
sa foi a maneira que encontrei de abordar a participação desse grupo majoritário
na Armada do Império do Brasil. O seu tratamento difere dos demais, pois, além
do fato de não ter encontrado outros estudos sobre os marítimos portugueses re-
ferente a esse período, a documentação brasileira não revelou muita coisa acerca
das suas vidas antes e durante o serviço na Armada. Criei um banco de dados com
centenas de nomes de portugueses, incluindo idade, cidade de nascimento, cor, e
no entanto não há quase nada sobre as suas efetivas experiências. À diferença do
caso dos norte-americanos, não encontrei publicações de memórias de portugueses
que relatassem a vida no mar. Escolhi, então, analisá-los a partir da tradição de uma
49

poética marítima, tanto popular quanto erudita, iniciada em Luís de Camões, conti-
nuada ao longo dos séculos e presente até hoje no imaginário e nas artes portuguesas.
Nessas fontes, deparei-me com os vestígios da vida de uma parcela significativa de
homens nascidos em Portugal que se fizeram ao mar a partir do século XIV, e no mar
permaneceram, trafegando em diversas marinhas, até pelo menos o século xix. A
imagem do mar como escape da pobreza é recorrente, tanto quanto o sonho de (re)
ver areias de Portugal, verso do imemorial poema Nau Catarineta repetido ao longo
do tempo nas margens de lá e daqui, inclusive em um fado do século xx.
Se para os anglófonos a ideia de experiência já pode ser individualizada em me-
mórias e romances de marinheiros, para os portugueses ela é ainda coletiva e está
registrada nas narrativas tradicionais, além de refletida na poesia escrita. Desse
modo, podemos aplicar a distinção de Walter Benjamin entre Erfahrung (experi-
ência coletiva) e Erlebnis (experiência vivida, característica do indivíduo solitário)
às duas formas distintas de narrativa desses dois grupos de estrangeiros partícipes
da formação da Armada no Brasil.31
No capítulo 3, “Nacionais”, as correspondências de presidentes de províncias, do
chefe da polícia da Corte e do chefe do Quartel General com o ministro permitiram
compreender o mecanismo local do recrutamento até o seu envio ao Ministério,
sediado na Corte, onde seria distribuído pelos navios.
Li também mais de 140 requerimentos com anexos comprobatórios produzidos
pelos recrutados e seus familiares de todo o Império, explicando por que não po-
deriam servir à Marinha. Esses conjuntos muitas vezes reúnem documentos, como
certidões de nascimento e casamento, atestados de bem-viver e ofícios dramáticos
sobre a necessidade de o recruta permanecer próximo à sua família e ao seu escopo
de sobrevivência. Esses requerimentos são escritos por procuradores. Se o conteúdo
muda conforme a experiência do requerente, a sua fórmula permanece a mesma e
tem uma retórica própria: a retórica da pobreza. A reunião dessa documentação
permitiu reconstituir fragmentos da vida pregressa do recrutado e entender um
pouco mais do cotidiano dos pobres livres no Brasil, os quais não raro mantinham
uma relação próxima com a escravidão ou com o passado indígena. A vida pregressa
dos que convencionei chamar de nacionais tem pouco a ver com o mar, é vivida em

31 benjamin, Walter, “Experiência e pobreza” e “O narrador”, in Obras escolhidas vol. I. Magia e técnica,
arte e política. Sobre a distinção entre esses dois conceitos, ver: gagnebin, Jeanne Marie. “Não contar
mais?”, in História e narração em Walter Benjamin.
50

terra, o que assinala a diferença perante os estrangeiros, que, em geral, são deposi-
tários de um passado marítimo ou de além-mar.
O quarto e último capítulo trata mais ensaisticamente sobre questões de mar-
ginalidade, estigmas e culturais dos marítimos. Apesar de não abordar a vida dos
homens no mar, e sim, sobretudo, as suas naturalidades e as suas intersecções,
esse capítulo ganhou relevo na medida em que a imagem do marinheiro aparecia
sempre sob o signo do anátema nos documentos, no senso comum e na própria
historiografia, não só no passado como também no presente. Foi essa percepção,
especialmente, que gerou as questões desse capítulo. Assim misturei documentos
do período, documentos do presente e de outros tempos intermediários, aos quais
concernem aspectos vários: homossexualidade, alcoolismo, ritual da passagem do
Equador, tatuagens, roupas, enfim, fiz uma análise sobre a relação entre estigma e
característica da vida marítima do período e alguns dos seus ecos na vida presente.
Os resultados desta pesquisa versam sobre naturalidades e trajetórias de recru-
tas e marinheiros, mas também sobre aspectos que não são amalgamáveis. Aceitei a
condição de heterogeneidade usando fontes igualmente heterogêneas, o que gerou
uma abordagem diversa em cada capítulo.
Se comecei esta introdução com palavras escritas por Herman Melville em me-
ados do século xix, lanço agora as palavras de um ponto de umbanda, cantado nos
terreiros das cidades brasileiras de hoje, para convidá-los à leitura: “Marinheiro, é
hora, é hora de ir trabalhar, é pau, é chuva, é pedra, marujo nas ondas do mar.”
51

2 Estrangeiros

2.1  1822

Em setembro de 1822, o filho do Rei de Portugal declarou a independência do Brasil,


na cidade de São Paulo, à beira de um riacho tributário do rio Tamanduateí. Esse
rio deságua no Tietê, cuja nascente, embora próxima do litoral, flui em direção ao
interior, cuja foz no rio Paraná se localiza no atual estado do Mato Grosso do Sul.
Essas águas, portanto, foram um dos caminhos de colonização do Brasil, sendo a
vila de São Paulo, muitas vezes, o ponto de partida deste movimento. Mas o acon-
tecimento reverberou em todo o território e gerou uma nova movimentação em
outra região de intensa colonização do Brasil: o litoral. Se nas províncias do “Norte”
houve resistência à independência de Portugal, seria pelo mar que as tropas da Corte
chegariam até ali. Uma força naval foi criada já no fim de 1822, e o ataque aos navios
portugueses na Bahia e em outras províncias iniciou-se a partir de março de 1823.
Não havia ainda “brasileiros” que defendessem a pátria. Além disso, as profissões
marítimas não eram uma especialidade dos habitantes no território. Foi necessário
contentar-se com os marinheiros portugueses que estavam disponíveis e contratar,
na Inglaterra, marítimos que tripulassem a frota. Mesmo assim, uma minoria de
“nacionais” e escravos, muitos deles libertos para esse fim, também tripularam os
navios da Armada nos verdes anos do Império.
O comandante dessa força naval foi o inglês Lord Thomas Cochrane, que aca-
bava de atuar no processo de independência do Chile. Cochrane veio ao Brasil com
parte da tripulação – composta de ingleses e norte-americanos – que o acompanhou
naquela empreitada. Ao visitar as tripulações dos navios disponíveis no porto do
Rio, considerou-as “de mui questionável qualidade – compondo-se da pior classe
de portugueses, com quem a porção brasileira da gente mostrava evidente repug-
nância a misturar-se”.1 O fato de os marujos da Armada ganharem de 8 a 10 mil réis,

1 cochrane, Lord. Narrativa de serviços no libertar-se o Brasil da dominação portuguesa, p. 41.


52

aproximadamente metade da remuneração dos demais navios, resultava “que os


muros de pau brasileiros tinham de ser guarnecidos pelo refugo da classe mercante”.2
Ao almirante “pareceu anomalia empregarem-se portugueses em número tal
para guerrearem seus compatriotas”.3 Uma guerra civil portuguesa foi a definição
da independência de Sérgio Buarque de Holanda, a qual resultou, nas palavras de
Ilmar R. de Mattos, em “uma fratura irreversível, da qual emergiriam os ‘cidadãos
brasileiros’”.4 Mais tarde, Cochrane entenderia que a expressão “atacar a força par-
lamentar portuguesa”, várias vezes repetidas pelo Imperador, significava que “o
Governo Brasileiro não fazia guerra ao Rei de Portugal ou à nação portuguesa, mas
às Cortes somente”.5
Cochrane, a caminho da capital baiana, escreveu para as autoridades da Cor-
te, implorando pela contratação de marujos ingleses, processo que já havia sido
iniciado em 1822, coordenado por José Bonifácio, ministro do Interior e dos Ne-
gócios Estrangeiros, em intensa correspondência com Felisberto Caldeira Brant,
uma espécie de cônsul em Londres. Brant, sabendo que seria inevitável a atuação
de marujos portugueses, escreveu a Bonifácio: “nunca teria completa confiança em
marinheiros portugueses, mas uma vez misturados com ingleses ou americanos
tudo iria perfeitamente”.6
Entre março e maio de 1823, chegaram mais de quinhentos marinheiros engaja-
dos em Liverpool e Londres. Segundo Brian Vale, houve facilidade nesse processo,
pois a Marinha britânica encontrava-se completamente desestruturada depois das
guerras napoleônicas: sua frota de 713 embarcações reduzia-se a 134. Quase 90%
dos oficiais estavam desempregados, e os soldos caíram à metade ou a pratica-
mente nada.7 O desemprego marítimo na Inglaterra ainda perduraria pelo menos
até a década de 1830, quando novas levas de homens contratados em Liverpool e
Londres aportaram no Brasil.

2 Ibidem.
3 Ibidem.
4 mattos, Ilmar R. de. Construtores e herdeiros: a trama dos interesses da construção da unidade
política, Almanack Brasiliense, n.1, mai 2005, p. 17.
5 cochrane, Lord. Narrativa de serviços no libertar-se o Brasil da dominação portuguesa, p. 42.
6 Carta de Caldeira Brant para José Bonifácio, apud vale, Brian. A criação da Marinha Imperial, in:
História Naval Brasileira, v. 3, t.I, p. 76.
7 vale, Brian. Independence or death! British sailors and brazilian independence, 1822-5, p. 29-30.
53

Apesar da chegada dos britânicos, a maioria da tripulação de alguns navios da


força naval das guerras da Independência compunha-se de portugueses, como o Li-
beral, o Maria da Glória e o Real Carolina.8 Mesmo a nau capitânia Pedro I, tripulada
com o que Cochrane chamou de “melhores marinheiros”, carregava pelo menos 25%
de marujos portugueses e 60% de britânicos e norte-americanos.9

Posição das frotas portuguesa (à esquerda) e brasileira (à direita) na Batalha de 4 de maio de 1823, próximo a Salvador
Ilustração extraída de: VALE, Brian. Independence or death! British sailors and brazilian independence 1822-5, p. 46.

Cochrane também incentivou a velha prática do recrutamento violento. O fami-


gerado impressement britânico. A Royal Navy, por meio de press-gangs (“tropas de
recrutamento”), tripulara sua frota com dezenas de milhares de homens ao longo do
século xviii e início do século xix.10 Na Inglaterra, após serem capturados, os recrutas
permaneciam detidos em navios estacionados até serem distribuídos. Da palavra
press-gang, derivou-se a palavra presiganga, nomenclatura brasileira para o navio

8 cochrane, Lord. Narrativa de serviços no libertar-se do Brasil, p. 57.


9 an, Série Marinha, xvii M 3294, Livro primeiro de marinheiros da nau Pedro I.
10 Sobre o assunto ver: rogers, Nicholas. The press gang: Naval impressment and its opponents in
Georgian Britain.
54

usado como prisão de criminosos militares, civis e também lugar de detenção para
recrutados.11 Muitas vezes, como veremos, o recrutamento e a prisão se confundiam.
Em 1824, oficiais da fragata United States em passagem pelo Brasil resgataram
um marinheiro norte-americano forçado a servir. Segundo o fuzileiro e memorialista
Nathaniel Ames, tripulante da fragata, ele seria “um entre muitos”, pois o Almirante
Cochrane estava “recrutando cada homem que ele conseguisse colocar as mãos”.12
Tal situação, entre outras que presenciou no Pacífico, o convenceu de que “todos
esses governos sul-americanos merecem uma surra (sound trashing) a cada ano,
para entenderem a diferença entre meum and tuum e outros assuntos concernentes
à lei civil e às leis das nações”.13 No seu discurso patriótico, Ames não considerou
que esse procedimento não era exclusivo de governos sul-americanos, mas que se
tratava de mais uma prática herdada por eles do mundo atlântico, principalmente
da Inglaterra. O marinheiro Charles Nordhoff, de origem prussiana e naturalizado
norte-americano, simplesmente não desceu do navio no Rio de Janeiro, quando
ali esteve na década de 1840, com medo das press-gangs brasileiras que forçavam
muitos estrangeiros a servirem. Um colega seu havia passado por essa experiência
e não desejava o mesmo destino a ninguém.14

2.2 Os estrangeiros em números

Durante duas grandes guerras o Império do Brasil contou com uma considerável
presença estrangeira principalmente anglófona e portuguesa além de diversas ou-
tras nações. A fragata Imperatriz, parte da frota que participou da Guerra Cisplatina
que resultou na independência do Uruguai, contava com 18% de anglófonos em sua
tripulação entre 1825 e 1826. Os portugueses perfaziam 57%, podendo chegar a mais
de 70 %, devido ao alto número de nomes lusófonos sem naturalidade identificada.
Na Cabanagem, o Império do Brasil combateu as forças inimigas com portugueses,

11 Sobre a presiganga ver fonseca, Paloma S. “A presiganga e as punições da Marinha (1808-1831)”, in:
castro et al., Nova história militar brasileira; greenhalg, Juvenal. Presigangas & calabouços: prisões
da Marinha no século xix.
12 ames, Nathaniel. A mariner’s sketches, p. 192. Tradução minha.
13 Ibidem.
14 nordhoff, Charles. Nine years a sailor, p. 254. Tradução minha.
55

britânicos, norte-americanos e germânicos. Um quarto da tripulação da fragata Im-


peratriz entre 1833 e 1835 era composta de portugueses. Quase um terço compunha-
-se de britânicos e norte-americanos. Na década de 1840, a tripulação portuguesa
da fragata Constituição representava 29%, e a de anglófonos, 16%. Finalmente, na
corveta Imperial Marinheiro (1852-54), a fração portuguesa caiu, mas continuou
significativa: 13% da tripulação, enquanto a anglófona representava 11%.15

tabela 3
Tripulação estrangeira da Armada por nacionalidade, 1833-1854
imperatriz imperatriz constituição imperial
marinheiro total
1825-26 1833-35 1852-54
1844-46
Portugueses 145 275 223 77 720 (46%)
Britânicos e
46 150 94 47 337 (22%)
norte-americanos
Outros europeus 4 150 28 21 203(13%)
Africanos/Escravos 14 24 13 5 56 (4%)
Hispano-americ. e
1 8 17 7 33 (3%)
caribenhos

Goa/Manilha 2 1 1 4

Lusófonos
131 3 21 27 182 (12%)
Não identificados*
Total 341 612 397 185 1535
* Homens com nomes lusófonos sem naturalidade identificada. Eles podem ser portugueses, brasileiros ou
africanos de Angola, Cabo Verde e Moçambique. É muito provável que a maioria seja portuguesa.
Fontes: an, Série Marinha, Livros de socorros da fragata Imperatriz xvii M 2513, xvii M 2500 e xvii M 2501; Livros de
socorros da fragata Constituição (1844-46): xvii M 490; xvii M 1334; xvii M 1342; xvii M 1374; xvii M 1399; Livros de
socorros da corveta Imperial Marinheiro: xviii M 2303; xviii M 2311; xviii M 2312; xviii M 2323; xviii M 2324; xviii M 2325.

Nos Estados Unidos pós-independência, também havia uma presença considerável


de homens da antiga metrópole. Em 1808, cerca de 50% da tripulação da Estação
Naval de Nova York era composta de norte-americanos e a outra metade de estran-
geiros. Dentre os estrangeiros, 75% eram britânicos e os demais europeus, além de
uma pequena minoria de caribenhos.16 Tudo indica, portanto, que as ex-colônias das
Américas não prescindiram dos marinheiros das ex-metrópoles, já que por séculos
foram eles quem se especializaram em fazer a ligação entre os dois continentes. O

15 Estes números podem ser verificados na Tabela 1 da Introdução.


16 mckee, Christopher. Foreign Seamen in the United States Navy: A census of 1808, p. 386-389.
56

mar era uma especialidade muito mais da Europa do que das Américas e da África.
Ao longo do século xix, no entanto, os Estados Unidos cada vez mais, aumentariam
a sua participação naval nos oceanos.
Nas tripulações estudadas eram presentes minorias de africanos, suecos, dina-
marqueses, espanhóis, franceses, holandeses, canadenses, austríacos, belgas, suecos,
prussianos, gregos, argentinos, uruguaios e até gente de Goa e Manilha.
Na fragata Imperatriz, havia cerca de 100 marujos de origem germânica, engaja-
dos entre os anos de 1832 e 1834. Não tive notícia ainda de nenhum recrutamento no
território que hoje ocupa a Alemanha, exclusivamente para a Marinha. Organizou-
-se, sim, um esquema de recrutamento de soldados e colonos em território alemão,
inclusive de presidiários. Uma parte, no entanto, ingressou na Marinha. Entre 1824
e 1828, o major Georg Anton von Schäfer, amigo de D. Pedro I e Dona Leopoldina, foi
nomeado agent d’affaires politiques e encarregado de recrutar colonos e soldados em
território germânico. Três oficiais que narraram a sua experiência no Exército brasi-
leiro o acusaram de “leviano”, “enganador”, “aliciador” e mentiroso. Schlichthorst,
o chamou “vendedor de carne humana” e Carl Seidler o descreveu como um homem
“que vendia o sangue dos seus conterrâneos (...) e que tão bem soube explorar para
os seus fins egoísticos a fúria aventureira da mocidade alemã”.17 Todos relatam mo-
mentos terríveis dos oficiais e soldados no Exército: castigos que matavam, suicí-
dios, alcoolismo, violência18. Afirmam ainda que, dentre os colonos e soldados, havia
presidiários de Mecklemburgo. Schilichthorst, por um lado considerava que “essa
imigração em vários sentidos purifica a Alemanha, e que se não pode condenar um
Estado que se livra de seus presidiários”, por outro, lamentava a triste sina em seu
novo país dos colonos e recrutas enganados que “foram úteis à sua pátria” . 19 Ora,
essa rede de engajamento e recrutamento, como em toda a parte, colheu bandidos
e pobres. É mais um capítulo da história da criminalização da pobreza, cujo casti-
go, como o dos criminosos, era militarização, o trabalho ou a deportação. Nesse
contexto, em 1826, o agente da colonização alemã na Corte, o chanceler Pedro de
Miranda Malheiros, ofereceu ao ministro da Marinha dezena de alemães oriundos
dos batalhões de estrangeiros que se diziam marinheiros de profissão.20

17 seidler, Carl. Dez anos no Brasil, p. 21.


18 Idem, p. 278.
19 schilichthorst, Carlos. O Rio de Janeiro como é (1824-1826), p. 15.
20 an, Série Marinha, xm 84, Correspondência com presidente do Rio de Janeiro, Ofício de Pedro de
Miranda Malheiros para o Visconde de Paranaguá, 20 de novembro de 1826.
57

Parte das dezenas de germânicos que ingressaram na fragata Imperatriz, pro-


vavelmente, veio no bojo dessa inicial imigração alemã. Nessa fragata havia alguns
grumetes e segundos marinheiros, entre 34 e 44 anos, graduação e idade incomuns
para marujos engajados. Eram eles: Federico Hering, Chrisefer Stater, Augusto Jo-
aquim, João Harry Galshaff e “Good Fortune”, cujo nome verdadeiro era Gottfried
Danne, segundo sua assinatura.21
É a partir da década de 1850 que a tripulação estrangeira da Armada declina dras-
ticamente, junto da crescente nacionalização conquistada pelas remessas de recru-
tas e marujos aprendizes de várias províncias, fruto do fortalecimento do Império
e seu decorrente maior controle sobre a população.

João Palhares. Um marinheiro português. Gauci. Um marinheiro inglês (Common sailor), 1828.
(Algarve, remador do bergantim Real) c.1850. Engelmann, Graf, Coindet, & Co [printers & publishers].
National Maritime Museum, Londres, Inglaterra.

21 an, Série Marinha, xvii M 2500 e 2501, Livros de socorros da fragata Imperatriz.
58

2.3 Os portugueses

Todos os marinheiros invisíveis a bordo dos navios no horizonte


São os marinheiros visíveis do tempo dos velhos navios,
(…)
Chamam por mim as águas,
Chamam por mim os mares,
Chamam por mim, levantando uma voz corpórea, os longes,
as épocas marítimas todas sentidas no passado, a chamar.22
fernando pessoa

Há sempre um Vasco da Gama num marujo português.


O marujo português, fado de
linhares barbosa e arthur ribeiro

Em 1915, “sozinho no cais deserto”, Fernando Pessoa fundiu tempos marítimos para
compor o seu poema “Ode marítima”, assinado pelo heterônimo Álvaro de Campos.
Pessoa fez parte de uma vasta tradição portuguesa de literatura sobre o mar.
Segundo o ensaísta Eduardo Lourenço, “a saudade é modulação da relação dos
portugueses como seres de memória com o tempo [...] a saudade parece modulada
pelo ritmo universal do mar. [...] Tudo é aí, simultaneamente, passado e presente.
Essa música de fundo, primeiro exterior, tornar-se-á música da alma”.23 No poema,
Fernando Pessoa, por meio do seu heterônimo Álvaro de Campos, escreve que os
marinheiros do passado são visíveis enquanto os contemporâneos são invisíveis; as
épocas marítimas do passado chamam, tornando-se simultâneas ao presente. Esse
talvez seja o tempo português mítico a que Lourenço refere-se que, de fato, é tão
intenso a ponto de permear o tempo cronológico deste estudo.
O marinheiro, esse personagem arquetípico, cantado e vivido por Camões,
projetou uma enorme sombra sobre os marujos dos séculos seguintes, que segui-
ram os passos dos seus antepassados e circularam continuamente pelo Atlântico e
por outros oceanos. Do século xvii em diante, os marinheiros portugueses foram
lentamente invisibilizados pelo heroísmo dos marítimos dos tempos das grandes

22 pessoa, Fernando. Ode marítima, in: Poesia Completa, p. 253.


23 lourenço, Eduardo. Tempo Português, in: Mitologia da Saudade, p. 12 e passim.
59

navegações. Mas eles permanecerem no mar e na tradição da literatura marítima


erudita e popular portuguesa. A partir do século xix, o fado pode ser inserido na
continuidade dessa tradição.
No período estudado os portugueses representam em média 46% da tripulação.
E, mesmo depois da década de 1850, marcavam presença. Eles constituíam o grupo
majoritário no tráfico de escravos e provavelmente na Marinha mercante. Na Ar-
mada e nos navios negreiros a maior parte dos marujos portugueses era natural de
Lisboa ou do Porto, e a maioria esmagadora era de homens brancos.
Nesta seção recorri a uma análise panorâmica da representação literária do ma-
rinheiro português desde o século xvi até o xx, para assim entender os aspectos dos
homens de carne e osso que encontrei na documentação do Ministério da Marinha.
Explico: além de sua presença frequente nos Livros de socorros dos navios da Arma-
da, escreveram continuamente requerimentos aos cônsules e a outras autoridades
para livrarem-se do recrutamento forçado. Na maioria dos casos, só foi possível
saber os seus nomes, de quais cidades vieram, a idade, a cor e, às vezes, a profissão.
A documentação não permitiu conhecer nem as suas vidas pregressas, nem as suas
experiências na Armada ou em outros navios, já que, diferente dos anglófonos, eles
não publicaram memórias. Enquanto procurei estudos na historiografia portuguesa
sobre marinheiros do século xix, só encontrava sobre aqueles dos século anteriores.
Mas o tempo todo deparei-me com poemas populares, ou não, sobre marinheiros e
com canções marítimas que tratavam desses sujeitos em todos os séculos.
Um outro testemunho dos portugueses no mar, principalmente em baleeiros,
é a literatura marítima anglófona. O narrador de Moby Dick, em uma elucubração
sobre os mistérios das correntes marinhas, menciona “a experiência real conhecida
pelo homem vivente, os prodígios relatados nos tempos antigos sobre o monte da
Estrela no interior de Portugal (perto de cujo topo se dizia haver um lago, no qual
os destroços dos navios naufragados flutuavam na superfície)”.24 Quem primeiro
relatou essa crença foi o frei Bernardo de Brito, em sua Geographia antiga de Lusyta-
nia, de 1597. Segundo ele, “havia duas lagoas de monstruosa grandeza, uma das quais
é tão funda que se lhe não pode sondar o lastro, e afirmam os moradores da terra
que algumas vezes se vêm nelas tábuas de navios, e outras coisas semelhantes”.25
Essas duas lagoas existem e uma delas chama-se Comprida. Acreditava-se que os

24 melville, Herman. Moby dick ou a baleia, p. 205.


25 brito, Bernardo. Geographia antiga de Lusytania, f. 3.
60

destroços dos navios chegavam à sua superfície por meio de uma passagem sub-
terrânea para o chamado, então, Mar Oceano. O mar era tão presente no cotidiano
português que as suas águas penetraram no continente, arrastando os destroços
de velhos navios para o alto da mais alta montanha, cravada no interior do país. E
de lá a história reverberou seculo seculorum.
Um marujo da novela White Jacket, de Herman Melville, exclamou da gávea do
navio: “Os Lusíadas são o épico do marujo de guerra do mundo. Que glória seria
ter Gama como almirante!”.26 Para Melville, Gama e Camões não eram apenas um
orgulho português, mas também de todos os marinheiros. Apesar de ser um grande
leitor de Camões, ele não deu destaque aos marujos portugueses contemporâneos
nos seus livros, mas estes tripularam, como muitas outras nações, tanto as suas
embarcações fictícias quanto os navios de madeira em que esse autor navegou.
Na década de 1840, Melville foi marujo do baleeiro Acushnet, experiência fun-
damental para a escrita de Moby Dick. No baleeiro, entre uma tripulação de 26 ho-
mens, havia três portugueses da Ilha de Fayal: Joseph Luis, apelidado Jo Portuguese,
residente em Portugal, Martin Brown, Charles W. Galvan, residentes nos Estados
Unidos, e um cabo-verdiano: John Adams. Os três açorianos desertaram, dois no
Peru e um nas Ilhas Marquesas no Pacífico.27 Em Ommo e White Jacket há dois per-
sonagens marujos portugueses, ambos chamados Antone.28 Nesse último livro, a
banda do navio era composta de portugueses embarcados em Cabo Verde.29
No baleeiro em que viajou o marujo e depois jornalista Charles Nordhoff, um
sexto da tripulação era de gente dos Açores, principalmente da ilha de Faial. Segundo
o memorialista, os donos dos navios apreciavam o seu trabalho, enquanto os com-
panheiros os desprezavam pelo simples fato de serem diferentes, considerando-
-os “escorregadios e fofoqueiros”. Nordhoff, ao contrário, os admirava e lhes tinha
amizade. Acreditava que não eram perdulários, característica comum dos marujos:
o seu maior sonho era poupar dinheiro, voltar para a sua ilha natal e viver em paz
com as suas famílias.30

26 melville, Herman. White-Jacket, or the World in a man-of-war, p. 634.


27 heflin, Wilson. Herman Melville’s whalling years, p. 27-8.
28 Ver verbetes dos personagens em: gale, Robert A. A Herman Melville Encyclopedia.
29 melville, Herman. White-Jacket, or the World in a man-of-war. capítulo xii.
30 nordhoff, Charles. Nine years a sailor, p. 60.
61

2.3.1  Portugal – Brasil: Cultura, religião e pobreza

A religiosidade marítima portuguesa deixou marcas na costa do Brasil. São várias


Nossas senhoras relacionadas à vida marítima. Nossa Senhora dos Navegantes tem
altares e paróquias em várias cidades. O seu dia é feriado em Porto Alegre, pois é a
padroeira da cidade. Enquanto no dia dois de fevereiro várias cidades comemoram
essa Nossa Senhora, outras, especialmente Salvador comemoram Iemanjá, orixá
do mar no Candomblé. Em Santos, no Estado de São Paulo, a comemoração é dupla,
oficialmente desde 2002. A Marinha do Brasil destaca cerca de dez marinheiros para
carregar o andor de Iemanjá durante a procissão.
No Rio de Janeiro há vestígios dos cultos dos marinheiros às Nossa Senhora da
Boa Viagem e Nossa Senhora do Cabo da Boa Esperança. Em 1846, Thomas Ewbank
entrou na igrejinha da ilha de Boa Viagem e descreveu vários ex-votos marítimos.
Nas palavras do norte-americano, os marinheiros portugueses e brasileiros se en-
tregam à sua providência, “fazendo-lhe apelos e votos nas horas do perigo, exata-
mente como os antigos navegantes lidavam com Netuno e Oceano”.31 No seu relato
desenhou a caixa de esmolas que era levada aos navios para angariar contribuições.
Existe até hoje na Rua do Carmo no Rio de Janeiro, um oratório de Nossa Se-
nhora do Cabo da Boa Esperança (sem a imagem), datado do século xviii. Mais uma
vez, segundo Thomas Ewbank, os marinheiros portugueses de passagem pelo Rio
de Janeiro recorriam à Santa para pedir uma boa passagem pelo promontório sul-
-africano, deixando alguma coisa na sua caixa de esmolas, presa a um poste abaixo do
oratório. A lenda da origem dessa Nossa Senhora refere-se a um navio que, prestes a
afundar na região do Cabo da Boa Esperança, foi salvo por sua aparição. No desem-
barque, os homens teriam encontrado uma estátua da imagem idêntica da Nossa
Senhora que os salvou, e dela foram copiadas todas as outras. Ewbank, protestante,
observou ironicamente que essa caixa de esmolas seria muito lucrativa, já que tan-
tos navios em direção às Índias aportavam na ida e na volta ao Rio de Janeiro, e seus
tripulantes pediam ou agradeciam pela proteção. O norte-americano chamou essa
prática de “uma espécie de seguro marítimo promovido pelos frades carmelitas”.32
A Nossa Senhora do Carmo também era padroeira dos marinheiros. Segundo o Re-
verendo Walsh, em 1828, tripulações inteiras pediam esmolas nas proximidades da

31 ewbank, Thomas. Vida no Brasil, p. 195.


32 ewbank. Thomas. Vida no Brasil, p. 141-2.
62

igreja e entregá-las ao padre.33 Nossa Senhora também protegeu os portugueses em


Greenwich, na Inglaterra. Ali foram erigidas duas igrejas para Our Lady of the Star of
the Sea (Nossa Senhora da Estrela do Mar ou Stella Maris). Uma no final do século
xviii, e outra, em 1851. Essa última ainda existe. Segundo a diocese local, há registros
oitocentistas de fiéis irlandeses, portugueses, brasileiros e cabo-verdianos.34

Thomas Ewbank. Caixa de esmolas da Capela de Nossa Thomas Ewbank. Imagem de Nossa Senhora do Cabo
Senhora de Boa Viagem na baía de Guanabara, da Boa Esperança copiada da lata de esmolas do
1846. Segundo Ewbank, era usada para coletar oratório da santa na Rua do Carmo, Rio de Janeiro,
contribuições nos navios. In: Vida no Brasil, p. 200. 1846. In: Vida no Brasil, p. 141.

Antonio Carlos Diegues demonstrou como uma cultura religiosa de origem por-
tuguesa adaptou-se na cidade litorânea de Iguape, São Paulo, desde o século xvii.
Como tantas outras imagens de santos, a imagem de Cristo da Basílica de Iguape
foi encontrada nas águas. Ela teria sido jogada ao mar por tripulantes de uma nau
portuguesa atacada por holandeses em Pernambuco, e foi descoberta por indígenas
no litoral de São Paulo. Essa história está registrada no livro de tombo de Iguape de
1785-1827, onde também se lê: “no mar, na terra, em todos os perigos são numeráveis

33 walsh, Rev. Robert. Notices from Brazil, p. 45.


34 http://www.portcities.org.uk/london/server/show/conMediaFile.5351/Our-Lady-Star-of-the-Sea-
Church-Crooms-Hill-Greenwich.html. Site do London Maritime Museum. Acesso 31 mai. 2011.
63

os favorecidos”, o que atesta “a concorrência de muitos que de todas as partes vêm


aqui cumprir seus votos”.35 Muitos dos romeiros são catarinenses, o que levou a pes-
quisadora Maria Cecília França a relacionar o culto a Bom Jesus com os migrantes e
descendentes de açorianos, já que nas comunidades pesqueiras das ilhas açorianas
haveria diversos cultos a Bom Jesus.36
Dois dos poucos ex-votos marítimos
do século xx restantes na sala de
milagres da Basílica de Iguape.
A pintura é de 1967, mas a tradição
é do século xviii.

Um ex-voto do século xviii, dedicado


a Bom Jesus de Matosinhos,
santuário próximo à cidade do
Porto, onde há diversos ex-votos
marítimos. Paróquia de Bom Jesus
de Matosinhos. In: boulet, F. Ex-voto
marins. Paris: Editions Maritimes et
d’Outre Mer, 1986.

O Bom Jesus de Iguape, esculpido


em madeira, encontrado em 1647.
Conta-se que fora jogado ao mar do
navio português que o transportava,
durante um conflito com holandeses,
e depois encontrado por índios do
litoral paulista. Fotos da autora.

35 diegues, Antonio Carlos S. “Os Ex-Votos Marítimos da Sala de Milagres da Basílica do Senhor Bom
Jesus de Iguape São Paulo”, in: diegues, Antonio Carlos (Org.), A Imagem das Águas, p. 182.
36 Idem, p. 186.
64

Na basílica da cidade sempre houve muitos ex-votos marítimos, como pinturas de


naufrágios iminentes e barcos de madeira. Essa prática centenária hoje em dia é
cada vez mais escassa. Há registros de duas pinturas de naufrágios, do século xviii
e de 1814, roubadas da sala de ex-votos, na década de 1980. Segundo fontes orais,
nas comunidades marítimas de Santa Catarina, barquinhos de madeira eram sol-
tos no mar, na esperança de chegar a Iguape, tradição passada por muito tempo de
pai para filho. Na sala de milagres ainda conservam-se barquinhos mais recentes
de localidades catarinenses, como Navegantes e Tijucas37. Nesta última cidade, em
1861, viviam Domingos e Firmino, dois irmãos gêmeos alistados como aprendizes
marinheiros pelo pai.38
O escritor francês Albert Camus, acompanhado por Oswald de Andrade, visitou
a festa em 1949 e conheceu um romeiro negro que pagava uma promessa depois
de se salvar de um naufrágio. O cumprimento implicava carregar uma pedra de 60
quilos durante a procissão.39 Camus registrou o fato no seu Diário de viagem e depois
adaptou-o na ficção “A pedra que cresce”. No conto, o marujo cozinheiro, nadando
mal e depois de quase afogar-se na noite escura, avistou uma luz e a reconheceu
como a cúpula da igreja do Bom Jesus: “as águas se acalmaram e o meu coração
também. Nadei calmamente, estava feliz e cheguei à costa”.40
A encenação da “Nau Catarineta” em tantas regiões costeiras de Portugal e do
Brasil também demonstra uma cultura marítima de origem portuguesa comum
às duas margens. Trata-se de um poema popular de tradição oral, publicado pela
primeira vez em 1843 por Almeida Garrett no seu Romanceiro português. Ele o teria
ouvido, entre outras “canções”, da sua criada Brígida. No poema “Ode marítima”,
de Fernando Pessoa, um verso lembra uma velha tia que ninava o narrador: “Lá vai
a nau catarineta/ por sobre as águas do mar.”
A Nau Catarineta é a história de um quase naufrágio, no tempo das grandes nave-
gações. Todos os famintos, depois de já terem comido as solas dos sapatos, elegem
o capitão general para ser devorado. Em uma última tentativa de salvação, o capitão
ordena a um gajeiro que suba ao mastro para tentar avistar “terras de Espanha, areias
de Portugal”. O capitão desesperado lhe oferece de um tudo em troca de não ser

37 Idem, p. 190-2.
38 Suas histórias foram contadas no capítulo Nacionais.
39 camus, Albert. Diário de viagem: A visita de Camus ao Brasil, p. 130.
40 camus, Albert. “A pedra que cresce”, in: O exílio e o reino, p. 150.
65

devorado, mas o marujo é o diabo, e quer a sua alma. Não aceitando a condição, o
capitão diz que sua alma é de Deus e o seu corpo, do mar. O marujo demônio, então,
explode, e a nau estropiada alcança a terra.
No século xix, na década de 1810, Henry Koster descreveu a Nau Catarineta
como um fandango encenado na festa de Nossa Senhora da Conceição, na Ilha
de Itamaracá em Pernambuco.41 Há versões colhidas por Sílvio Romero, Mário de
Andrade, Alceu Maynard de Araújo, datadas do fim do século xix e do século xx na
Bahia, na Paraíba, em Pernambuco, em Sergipe e em São Paulo. A maior parte das
versões brasileiras compõem trechos dos folguedos chamados “marujadas”. Todas
as versões mantiveram os versos do desejo de avistar “as terras de Espanha, areias
de Portugal”. Versos que, por sua vez, estão contidos na letra de um fado do século
xx chamado “Fado português”.
Mário de Andrade, a partir do relato do capuchinho Dionísio Carli de Piacenza,
passageiro de num navio português no século xvii, concluiu:

Pelo menos desde o século xvii o romance da nau catarineta se convertera em


dança dramática que os marujos das naus portuguesas representavam em certas
ocasiões perigosas de viagens em que carecia tirar as apreensões do espírito. Quem
canta seu mal espanta. Era pois um brinquedo exclusivamente marítimo, repre-
sentado sobre o mar. Mas aportou no Brasil e aqui se resguardou em terra firme,
com os marinheiros que trocavam terra nova por tradição.42

A Chegança de marujo, também chamada de Marujada de Sergipe, publicada em 1883


por Sílvio Romero, é um retalho de pelo menos três canções portuguesas. Além de
conter uma versão da “Nau Catarineta”, reproduz estrofes de duas canções marí-
timas portuguesas, “A despedida do marujo” e “Canção de marujo”, copiladas no
fim do século xix pelos folcloristas Cesar A. das Neves e Gualdino de Campos, em
seu Cancioneiro português. Um verso da primeira canção – “Ora adeus belas meninas,
que a Lisboa hei de volver”.43 – aparece na Chegança de marujo de Romero como “Ora

41 koster, Henry. Travels in Brazil, p. 323-325.


42 andrade, Mário de. A nau catarineta, p. 67.
43 neves, Cesar A das & campos, Gualdino de. Cancioneiro de músicas populares: collecção recolhida e
escrupulosamente trasladada para canto e piano, V. iii, p. 101.
66

adeus belas meninas, que de Lisboa cheguei”.44 O marujo português de cada margem
chega de Lisboa, parte para Lisboa, vê as belas meninas de lá, vê as belas meninas
daqui. Afinal, embora sempre portugueses, são marinheiros. Da “Canção de marujo”,
cantada em Portugal, a versão da “Chegança de Marujo” de Sergipe guardou duas
estrofes, uma delas muito semelhante à da canção original:

Antes me quisera ver


Na porta de um botequim,
Do que agora ver o fim
Da minha vida.45

2.3.2  Uma poética da partida

A imagem do marujo sempre de passagem e sempre em perigo, despedindo-se


das amadas em todos os portos, sempre desejoso de rever as areias de Portugal é
recorrente nas representações portuguesas e brasileiras. Mas, afinal, por que os
portugueses partem?
Desde o século xv, o imaginário da riqueza d’além-mar, do pote de ouro no final
do arco-íris, é um dos motivos de o português lançar-se ao mar, “uma espécie de
impulso coletivo”, como observou Paulo Micelli – combinação de razão e cobiça,
onde a lógica maior de toda a empresa da conquista do século xvi era a de ganhar
e perder ao mesmo tempo.46 Trata-se aparentemente de uma lógica do risco, que
atingia desde o marujo ao financiador. Em Os Lusíadas, nas areias do Tejo, as esposas
perguntam: “Por que is aventurar ao mar iroso/ Essa vida que é minha e não é vossa?”
O “velho do Rastelo”, personagem do poema, junto às mães e às esposas responde
que o desejo de fama e de riqueza é o que desmantela os lares.47 Em Mar português,
de Fernando Pessoa, o narrador dialoga com o épico de Camões:

44 “Os marujos”, chegança recolhida em Sergipe, in: romero, Sylvio. Canções populares do Brasil, p.
160.
45 Ibidem.
46 micelli, Paulo. O ponto onde estamos, p. 181.
47 camões, Luís de. Os Lusíadas. Canto X, p. 160.
67

Ó mar salgado, quanto do teu sal


São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosse nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena


Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.48

A herança de tantas lágrimas e aventuras é uma pobreza material rica em lirismo.


Diz o ensaísta português Eduardo Lourenço:

Mas, uma vez terminada a aventura, desfeito o império da história, transformado


numa mera carga de sonhos, o precioso comércio do Oriente, restava-nos como
herança um Portugal pequeno, um imenso cais, onde durante séculos relembramos
a nossa aventura, numa mistura inextrincável de autoglorificação e de profundo
sentimento de decadência e saudade.49

O deslocamento dos portugueses é permanente. Nos versos de Fernando Pessoa,


“Minha pátria é onde não estou”. E Sophia de Mello Breyner Andresen, toma o mote
emprestado para no poema “Pirata” dizer que “A minha pátria é onde vento passa”.
Em Opiário, outro poema do heterônimo Álvaro de Campos, escrito em uma
viagem de navio, o passageiro ocupa o “deslugar” português, nos versos:

Pertenço a um gênero de portugueses


Que depois de estar a Índia descoberta
Ficaram sem trabalho. A morte é certa.50

48 pessoa, Fernando. Mar português. Obra poética, p. 16.


49 lourenço, Eduardo. A nau de Ícaro, p. 58.
50 pessoa, Fernando. Opiário, in: Obra poética, p.238.
68

Portugal não abriga os seus filhos – expele-os ao mar. A artista portuguesa Vieira
da Silva, exilada no Brasil na década de 1940, pintou o quadro “História trágico-
-marítima”, inspirado nas gravuras das páginas de rosto da coleção A história trágico-
-marítima. A obra cujo subtítulo é “colecção de relações e notícias de naufrágios, e
successos infelizes, acontecidos aos navegadores portuguezes” foi publicada na dé-
cada de 1730 e, desde então, alimentou permanentemente o imaginário de Portugal
sobre si mesmo. Na leitura de Vieira da Silva, o barco português parece ser tripulado
por toda a população do país e é ainda almejado por aqueles que estão se afogando.
Nesse cenário, a gente portuguesa e água salgada se confundem. Eduardo Lourenço
define a longa história de Portugal como “a de uma deriva e de uma fuga sem fim”51.
Essa imagem se repete no romance Jangada de pedra de José Saramago: a península
ibérica se desprende da Europa e flutua no Atlântico sem rumo. E em “Lusitânia”,
de Sophia Andresen, mais uma vez Portugal, pobreza e o barco se confundem:

Os que avançam de frente para o mar


E nele enterram como uma aguda faca
A proa negra dos seus barcos
Vivem de pouco pão e de luar.52

O fadista e poeta José Régio começa o poema “Portugal de todo mundo” com os
versos de um neto órfão. Seus antepassados se foram; não só os marinheiros e imi-
grantes podem cantar essa saudade, mas também quem ficou:

Meus avós, que o mar levou,


Rasgaram águas sem fim.
Neto sou de quem n-o sou!
Se canto, é que o mar que entrou
Faz ondas dentro de mim...53

51 lourenço, Eduardo. Mitologia da Saudade, p. 12.


52 andresen, Sophia M. B. Antologia, p. 165.
53 régio, José. Fado, p. 11.
69

O mar português não era apenas uma miragem, mas um espaço na medida do pos-
sível, densamente povoado pelos peregrinos portugueses, por muitos séculos, os
quais “por necessidade ou cupidez, raro por aventura”, partiram “por vezes sem
esperança de regresso”.54

Vieira da Silva. História trágico-marítima, 1944.


Óleo sobre tela. Coleção cam/Fundação Calouste
Gulbenkian, Lisboa.

Detalhe da folha de rosto de Naufragio que passou


– Jorge de Albuquerque Coelho de Bento Teixeira
Pinto, incluso na História Trágico-Marítima, Lisboa,
na Off. da Congregação do Oratório; o tomo ii, 1735.

54 lourenço, Eduardo. Mitologia da saudade, p. 11.


70

As origens do fado têm sido investigadas sob o espectro da lusofonia atlântica. Para
Kimberly daCosta Holton, a historiografia recente entende que o “fado era uma
música e uma dança que se desenvolveu tanto em Portugal como no Brasil, devido
à diversidade de moradores e freqüentadores dos portos que participaram da pro-
dução e da fruição resultante da intensa circulação do tráfico atlântico que deixou
marcas socioculturais nos ambientes urbanos”.55 Uma parte dos estudiosos localiza
as origens do fado a partir da década de 1830, nos bairros ribeiros de Lisboa, em
ambientes freqüentados por prostitutas, marinheiros, desocupados e marginais.56
A ideia de uma música se formando em trânsito, no Atlântico, entre África, Portu-
gal e Brasil, é um dos indícios da participação desses marinheiros oitocentistas na
criação do fado e em outras culturas urbanas atlânticas. Mas, mesmo sendo uma
música formada em trânsito, ela floresceu em Portugal, tornando-se uma espécie
de trilha sonora da identidade nacional marítima do país. Houton menciona a letra
do “Fado português”, na qual mais uma vez português e marinheiro querem dizer
a mesma coisa:

O fado nasceu um dia


em que o vento mal bulia
E o céu o mar prolongava,
Na amurada dum veleiro,
No peito dum marinheiro
Que estando triste, cantava.57

A inclusão de portugueses e outros povos lusófonos na historiografia marítima atlân-


tica faz-se necessária, pois sua participação não foi pequena. Nesse sentido, é ne-
cessário não só contar com uma historiografia anglófona atlântica, mas expandir os
estudos luso-afro-brasileiros cujo objeto, segundo o antropólogo português Miguel
Vale de Almeida, é “as interconexões entre povos expostos à expansão do Estado
português e que ainda compartilham esta história”. Ele chama a atenção para o fato
de que as abordagens sejam necessariamente “pós-lusotropicais”, referindo-se ao

55 holton, Kimberly daCosta. “Fado historiography: Old miths and new frontiers”. P: Portuguese Cul-
tural Studies, p. 12. Tradução minha.
56 Holton refere-se a Rui Vieira Nery, Joaquim Pais de Brito e Rubem de Carvalho. Idem, p. 13.
57 A canção é da década de 1930 e sua interpretação mais conhecida é a de Amália Rodrigues. régio,
José. Fado, p. 35.
71

E. J. Maia. Marujo. Aquarela sobre papel. 1846. Museu da Cidade, Lisboa. Na


Lisboa de 1846, tocando uma guitarra portuguesa, o instrumento do fado.
Este homem pode ser cabo-verdiano, brasileiro, angolano, português ou
africano. Homem luso-atlântico.

discurso hegemônico de Portugal a respeito das suas colônias e ex-colônias, apro-


priado das teorias de Gilberto Freyre e de outras correntes de pensamento.58
Os marujos do século xv já eram vistos como “gente de baixa condição.59 A sua
vida não tinha muito valor. Um autor do século xvii explicou a palavra “marabuto”,

58 almeida, Miguel Vale de. “Not quite white: Portuguese people in the margins of Lusotropicalism,
the luso-afro-brazilian space, and Lusophony”. Disponível em: http://site.miguelvaledealmeida.net/
wp-content/uploads/not-quite-white-english.pdf. Acesso em: maio de 2011. Tradução minha.
59 Idem, p. 121.
72

gíria-sinônimo de marinheiro, num diálogo entre peixes no fundo do mar: “basta


serem do mar para não serem gentes. Os homens do mar como se chamam? Mara-
butos, que vale o mesmo que mar e brutos”.60
Das representações portuguesas setecentistas e oitocentistas que colhi do ma-
rujo português, aparece, via de regra, a do homem miserável indo ao mar para ga-
rantir a sobrevivência ou tornar-se rico e a do bruto, marginal cuja linguagem risível
é bom pano para costurar pequenos folhetos de sucesso, vendidos por tostões no
Brasil e Portugal.
Em 1772, foi publicado um folheto intitulado O marujo saudozo. Rellação curioza
da carta que escreveo de Pernambuco um marujo à sua moça, na qual lhe relata a saudoza
despedida que fizeram hum ao outro quando elle foi embora, e hum mimo que ele lhe man-
da. Essa narrativa é uma peça fictícia que contém um poema inteiro - ou uma xácara
alfamista, como o chama Teófilo Braga - do poeta setecentista Alexandre Antonio
de Lima (1699-17?). Em seu livro Rasgos métricos, de 1742, Lima introduz o poema
com a despedida da “clóris de cachimbo” (prostituta) ao seu amor marinheiro.61 A
prostituta e o marujo dialogam em versos recheados de gírias, cujo significado é ba-
sicamente a fala da miséria. O autor anônimo, que se apropriou dos versos, décadas
depois, refaz uma apresentação em primeira pessoa: “Ah Francisca dos meus pecados,
que para criar o gimbo na algibeira vim albarruando estes mares embravecidos, só
para ver se em indo para essa terra te posso fazer a minha bazofia.” Na segunda versão,
o marujo chamado de Manoel Dias Gamberreas, refere-se então aos versos que sua
amada recitou quando ele partiu. A “clóris de cachimbo” do primeiro poema passa a
se chamar Francisca Fagundes Brioza Briolanja Berradeira, que, diferentemente das
esposas de Camões, consente a partida do amado, pois espera que ele logre “mil gro-
rias” e que sua riqueza possa comparar-se à do Rei. Ela está passando tal necessidade
que se assemelha a “uma estatula da morte”, um “escareleto vivo”. Ainda em Lisboa,
Manoel responde a Francisca na moeda da pobreza, explicando a razão da viagem:

60 mello, D. Francisco de. Metaphoras ou Feira dos Anexins, p. 251.


61 Essa “xácara alfamista” foi publicada sob o título “Da despedida de um marujo em estyllo e giri de
alfamista” em braga, Theophilo. Antologia portuguesa: Poética histórica portuguesa, p. 294-5.
73

Se eu criara o grão, a roda [grão: 480 reis; roda: um tostão]


A cheta, quando é preciso; [cheta: 5 réis]
comprar no estanque o fumelio [estanque: armazém; fumelio: tabaco]
pagar na baiuca o pio [baiuca: taverna; pio: vinho]

Se eu tovera para o vulto [vulto: corpo]


A rede, se o gabio fino, [rede: roupa; gabio: chapéu]
Para a bola, para as gambia [bola: cabeça; gambia: perna}
A meia, e calco polido [calco: sapato]

Se eu tovera cada vez


que quisera, tudo isso
ma oxa que eu de lisbea [Lisbea: Lisboa]
abalara com caximbo [abalar com caximbo, dar no pé]62

Folha de rosto de O marujo saudozo. Lisboa,


Na Offic. De Antonio Gomes, 1791. Biblioteca
Nacional de Portugal.

62 Os significados destas palavras foram consultados em uma lista de gírias do século xviii, compilada
de outras obras por: coelho, F. Adolpho. Os ciganos em Portugal. Com um estudo sobre o calão, p. 79-84.
74

Ir para o mar é um jogo de azar: pode-se ficar rico ou pode-se continuar miserá-
vel, como de fato ele ficou em Pernambuco, quando escreve para sua amada ofe-
recendo apenas versos, fruto da sua “porveza”, já que estava “feito a estatula da
necessidade”.63 Saiu sem “cheta” de Lisboa e continuou sem “ferro” (outra gíria
para dinheiro) em Pernambuco. Mas, como todo o povo português, herdou o liris-
mo da peregrinação. Este misto de gente que parte compunha outro personagem
muito mencionado: o peregrino. Camões, também marinheiro, deixou-nos a sua
interpretação dessa dialética:

Agora peregrino, vago, errante,


Vendo nações, linguagens e costumes,
Céus vários, qualidades diferentes,
Só por seguir com passos diligentes
A ti, Fortuna injusta, que consumes
As idades, levando-lhe diante
a esperança em vista de diamante,
Mas, quando das mãos cai, se conhece
Que é frágil vidro aquilo que aparece.64

No século xvi, Fernão Mendes Pinto, escreveu um relato sobre a sua peregrinação
pelo mundo, onde compara a ventura da vida na pátria e alhures:

(...) não contente de me por na minha Pátria logo no começo da minha mocidade,
em tal estado que nela vivi sempre em misérias e em pobreza, e não sem alguns
sobressaltos e perigos da vida, me quis também levar às partes da Índia, onde
em lugar do remédio que eu ia buscar a elas, me foram crescendo com a idade os
trabalhos e perigos.65

63 O marujo saudozo. Rellação curioza da carta que escreveo de Pernambuco um marujo à sua moça, na
qual lhe relata a saudoza despedida que fizeram hum ao outro quando elle foi embora, e hum mimo que
ele lhe manda.
64 camões, Luís de. Lírica completa, p. 65.
65 pinto, Fernão Mendes. Peregrinação, p. 1.
75

Perez-Mallaina atribuiu ao espanhol do século xvi, o emprego de marinheiro, como


atividade temporária. Ele consideraria que além de não pagar a passagem, ainda
obtinha um trocado, para que no momento em que chegasse nas Índias desertasse
e adquirisse as verdadeiras riquezas.66 Assim o peregrino e o marinheiro poderiam
ser as mesmas pessoas. Bem como o imigrante e o marinheiro: no século xix, muitos
portugueses vieram como marinheiros e mudaram de atividade no Brasil, ou paga-
ram a sua passagem de imigrante com um período de trabalho na Marinha.
Os marujos de todos os séculos eram vistos como “gente de baixa condição”,
“bruta” que não tem gimbo na algibeira, nem cheta, nem rede para o vulto e que,
portanto, se lançavam ao mar em busca de uma vida menos miserável com grande
chance de morrerem, aleijarem-se e continuarem pobres, seja alhures ou de volta
em Portugal. Em uma elegia à desgraça de Portugal, o poeta cômico José Daniel Ro-
drigues da Costa descreveu no início do século xix o caçador de fortunas d’além-mar
que volta a Portugal:

Vejo homens em balanças


Navegando no mar só de esperanças:
Figurões que povoam este mundo,
Mas tem os fundos seus todos no fundo
Albaroam co’a gente empavesados,
Enquanto se não mostram naufragados;
depois são qual a uva já passada,
que mostra baga, e pele, e sumo nada.67

2.3.3  Portugal: officina virorum da Armada do Império do Brasil

Em maio de 1826, o senador José da Silva Lisboa, futuro Visconde de Cayru, em uma
discussão sobre imigração e naturalização de alemães, franceses, ingleses, atentou
para o esquecimento dos portugueses, que naqueles anos haviam passado para a

66 perez-mallaína, Pablo E. Los hombres del océano: Vida cotidiana de los tripulantes de las flotas de Indias.
Siglo xvi, p. 35.
67 costa, José D. R. da. Portugal enfermo por vícios, e abusos de ambos os sexos, p. 19.
76

categoria estrangeiros: “é muito necessário que se facilite a naturalização dos portu-


gueses, que abundam de marinheiros e até se alistam nas Marinhas de outras nações
(...) Não olvidemos que em Portugal estão os túmulos, e mausoléus dos nossos pro-
genitores; e que nos cumpre olhar para aquele país como o viveiro da nossa recres-
cente população puritana.” Portugal seria, ainda, por muito tempo, nas palavras de
Lisboa, filho de portugueses, a nossa officina virorum.68 O senador demonstrava, mais
uma vez, como o engajamento de marinhagem e a imigração poderiam ser termos
afins. Naquele ano, pelo menos três marujos portugueses morreram na guerra da
Cisplatina no combate de 28 de abril de 1826: Domingos José de Braga. José Thomas,
do Porto, e José Manoel Garcia, do Algarve.69 Se invertêssemos o discurso, se os
marujos portugueses, objeto de sua fala se pronunciassem, eles diriam: “Estamos
morrendo em combate pela causa do Brasil, nós portugueses.”
Os portugueses queixaram-se ininterruptamente do recrutamento forçado em
todos os consulados da costa do Império, para autoridades brasileiras e até mesmo
para o Imperador. Enquanto os nacionais pediam dispensa pelas isenções relacio-
nadas à família, os portugueses o faziam por serem estrangeiros. A Armada do Brasil
no século xix não era uma saída da pobreza, mas uma permanência nela. Os seus
requerimentos estão na documentação consular, ministerial e policial. Achei ale-
atoriamente mais de duzentos, e deve haver muito mais. Quando não haviam sido
engajados à força, reclamavam que o tempo de engajamento previsto em contrato
acabara e que mesmo assim continuavam presos.
Em 1842, no porto de Montevidéu, onde havia diversos vasos de guerra do Im-
pério do Brasil com uma tripulação de mais de mil indivíduos,70 o comandante da
corveta portuguesa D. João I denunciou ao consulado que “a metade da tripulação
são portugueses presos violentamente em terra ou nos navios”. Os oficiais brasi-
leiros estariam rasgando as matrículas, atestados produzidos nos consulados que
comprovavam a origem portuguesa. O oficial português ainda pintou um quadro de
inversão, onde os seus conterrâneos ocupariam um lugar inferior aos dos “homens
de cor”, pois ficavam confinados dentro dos navios enquanto o serviço exterior era
“feito por pretos e homens de cor: o maior despotismo é exercitado contra estes

68 Anais do Senado, vol. 1, p. 111.


69 an, Série Marinha, xvii M 2513, Livro de Socorros da Fragata Imperatriz, 1825-1826.
70 Relatório do ministro da Marinha, 1842, anexo 2, Mapa da Força Naval.
77

desgraçados, ainda mais dignos de compaixão que os antigos cativos da barbárie”. 71


A denúncia ainda relatava que um português capturado da deserção fora castigado
com quinhentas chibatadas, o que resultou na sua morte. Além disso, o autor teria
presenciado a perseguição de seus conterrâneos “com tiros de bala, quando trata-
vam de escapar-se a sua injusta detenção.” Idelfonso L. Bayard, cônsul de Portugal
na Corte, qualificou esses episódios de “cousas tão horrorosas e tão ofensivas dos
sentimentos nacionais”.72
Mas a presença portuguesa nas duas Marinhas brasileiras era uma realidade,
independente das leis. Em 1847, o ministro plenipotenciário de Portugal na Corte,
José de Vasconcellos e Sousa, a explicou ao ministro dos Estrangeiros em Portugal:

[os portugueses] se matriculam como súditos brasileiros para facilitar sua ad-
missão na Marinha mercante. E desta prática resultam embaraços desagradáveis,
pela sem-cerimônia das autoridades encarregadas de tais recrutamentos, às quais
pouco atendem aos títulos de nacionalidade apresentados por nossos compa-
triotas, que apesar de se darem por brasileiros quando procuram emprego nos
navios de comércio, recorrem a esta legação logo que se vêm obrigados a servir
nos navios do Estado.73

Os portugueses, em alguns setores da Marinha mercante, constituíam muitas vezes


a maioria da tripulação. Os donos de navios mercantes na Bahia, forçados a aten-
der um aviso de 1854 que exigia uma porcentagem alta de nacionais nas tripulações
dos navios, escreveram às autoridades marítimas a impossibilidade de cumprir a
lei. Eles argumentavam que mesmo oferecendo vagas em anúncios nos jornais para
marinheiros nacionais, os candidatos não apareciam e por isso eram obrigados a
contratar estrangeiros, principalmente portugueses.74
Naquele ano, uma correspondência do ministro da Marinha pedindo marinhei-
ros ao cônsul do Brasil na Inglaterra demonstra como o engajamento de homens
no Reino Unido chegava ao fim e o de portugueses continuava a todo vapor. O côn-
sul de Londres respondeu ao ministro que a tarefa era impossível, pois os ingleses

71 Serviço de Documentação da Marinha, livro X, doc 962.


72 Ibidem.
73 Citado em: mendes, José S. R. Laços de sangue: privilégios e intolerância à imigração portuguesa no
Brasil, p. 132.
74 Arquivo Público da Bahia, Mesa do Consulado, 1854.
78

ganhavam mais na Marinha local e aconselhou que se recorresse ao cônsul brasileiro


em Portugal. Dito e feito: prontamente este último recrutou 300 marinheiros por-
tugueses e os enviou ao Brasil.75 Esses marujos podem ter vindo não apenas para se
engajar, mas também para imigrar de graça. Segundo Gladys Ribeiro isso era um ar-
tifício, um modo de não pagar a passagem.76 Mas também acontecia do engajamento
na Armada ser uma maneira de ressarcir a passagem ao governo. A partir de março
de 1851, na tripulação da corveta Imperial Marinheiro, havia um grupo de jovens
grumetes açorianos – de 14 a 17 anos – que se engajaram para pagar o Governo pela
passagem rumo ao Brasil. Dos 7$000 réis que ganhavam, 5$000 eram descontados
mensalmente, até completar o montante de 70$000 réis, ou seja, 14 meses.77 Apa-
rentemente, essa foi uma das formas comuns de engajamento dessa tripulação no
referido período. Em 1851, Antonio Perrini, um marinheiro de Porto Alegre, filho de
italianos, encontrava-se em Gênova sem meios de subsistência e recorreu ao Cônsul
do Brasil pedindo ajuda para retornar ao Brasil. O cônsul, conforme instruções do
ministro dos Estrangeiros anuiu, mas ele teria de pagar a passagem engajando-se
no “Serviço Imperial”.78
É difícil diferenciar, dentre os marujos portugueses, aqueles que eram profissio-
nais e os que eram imigrantes. Talvez, grosso modo, os profissionais sejam os que
aparecem como engajados ou recrutados em classes superiores (classe superior,
primeira e segunda classe), e os não marinheiros ou imigrantes sejam os recrutados
como grumetes.
A imigração portuguesa da primeira metade do século xix mantém um fluxo
contínuo durante todo o Império. Se antes da independência eles vinham como
colonos, o novo Império do Brasil, carente de mão-de-obra especializada e desejo-
so de trabalhadores brancos, incorporava esses homens para calçar a cidade, fazer
móveis, tripular os navios etc., seja como residentes ou naturalizados.79 O português
imigrante poderia engajar-se na Marinha como parte da submissão a “qualquer tipo

75 an, Série Marinha, Legação brasileira em Londres, xm 453.


76 ribeiro, Gladys S. A liberdade em construção: Identidade nacional e conflitos antilusitanos no Primeiro
Reinado, p. 231.
77 an, Série Marinha, xvii 2323. Livro de socorros da corveta Imperial Marinheiro.
78 “Auto de engajamento do marinheiro brasileiro Antonio Parrini”. an, Série Marinha, IM 16.
79 No sub-capítulo Política migratória e escravidão, Gladys Ribeiro analisa o movimento migratório
português do século xviii à década de 1830 por meio de memórias e debates parlamentares, de-
monstrando como já era uma política de Estado, tanto no período colonial quanto no primeiro
reinado, antes da grande imigração da segunda metade do século xix. ribeiro, Gladys. A liberdade
79

de trabalho”, próprio dos pobres sem rede social, ou conseguir melhores posições,
muitas vezes com o auxílio de parentes e conterrâneos.80
Neste contexto, ser marujo da Armada do Brasil para o português não era a chan-
ce de arriscar-se por uma vida melhor: a perspectiva na costa do Brasil era trabalhar
na Marinha mercante com melhores salários, e parte deles se engajou na Marinha
de guerra, em contratos sempre curtos. Os que foram recrutados à força, ou deser-
taram ou enfrentaram por anos um mar que não trazia promessas de riqueza, e sim
a certeza de manterem-se pobres.
Os recrutados à força recorriam principalmente ao Consulado para serem soltos.
Esse tipo de pedido era tão comum que os cônsules, por vezes, faziam requerimentos
coletivos de soltura de súditos portugueses ao Ministério da Marinha.
As autoridades brasileiras, muitas de origem portuguesa, insistiram na profusão
de vadios portugueses nas grandes cidades, o que justificaria o recrutamento, ainda
que ilegal. Uma portaria de 1832 reconhecia “pela estatística dos presos desta Corte
que a maior parte é de estrangeiros que por vadiação, bebedice, furtos e assassinatos
enchem as cadeias”.81 Como os nacionais, diversos portugueses foram presos pelos
delegados de bairro sob a lacônica justificativa “vadio”, e depois de uma temporada
na cadeia terminavam a viacrucis na Armada.82
Foi o caso de Victorino dos Santos, “encontrado com outros fora de horas va-
gando pelas ruas”, tornando-se por isso suspeito. E também do espanhol Francisco
Vasques, branco, ruivo, de olhos azuis, enviado em 1857 para a capitania do porto,
pois o delegado temia que ele voltasse às ruas e engrossasse “o caldo dos vadios
que infestam a cidade”.83 Em 1840, Francisco André de Souza Andrea, presidente
de Santa Catarina, escreveu para o ministro Rodrigues Torres algo semelhante. Joa-
quim Antonio, Valentim Simões e Domingos de Miranda haviam sido recrutados na
Corte, e quando aportaram em Santa Catarina pediram ajuda ao cônsul de Portugal.
Souza Andrea, de origem portuguesa, não atendeu a solicitação, mas os enviou de

em construção, p. 151-167. Ver também mendes, José S. R. Laços de sangue: privilégios e intolerância à
imigração portuguesa no Brasil.
80 ribeiro, Gladys S. A liberdade em construção: identidade nacional e conflitos antilusitanos no Primeiro
Reinado, p. 166.
81 Portaria n. 137 de 12.04.1832. Citado em mendes, José S. R. Laços de sangue: privilégios e intolerância
à imigração portuguesa no Brasil, p. 126.
82 Ver os maços de correspondência com o ministro dos Negócios Estrangeiros e com o chefe de
polícia: an, Série Marinha, xm86 e xm5.
83 an, Série Marinha, xm 86, correspondência com o ministro dos Negócios Estrangeiros, 1857.
80

volta à Corte, solicitando que o ministro resolvesse o problema; qualificou-os de


“classe de homens que só lembram que podem passar por portugueses quando vêem
a facilidade com que outros são despedidos [da Armada] para ficarem vadios algum
tempo em terra, e ficarem depois de pior condição”.84
Havia também o caso de portugueses que foram capturados enquanto traba-
lhavam. José Silveira, da Ilha Terceira, caiu nas malhas do recrutamento, enquanto
empurrava uma carroça d’água. José exigiu os seus direitos ao cônsul: continuar
carregando água e não servir à Marinha. Antonio Dias Leite e Antônio Soares alega-
ram serem carpinteiros quando foram capturados pela patrulha do recrutamento

Detalhe do ofício do cônsul de Portugal para o ministro da Marinha, pedindo desembarque de


súditos portugueses da fragata Constituição. Entre seis recrutados, três são marítimos e os
demais são trabalhadores urbanos, imigrantes. an, Série Marinha, xm 86, 1845.

em 1837. Diziam-se apenas “residentes” ou “hóspedes” no país, onde exerciam ho-


nestamente a sua profissão.85 Nesse caso, mesmo sendo estrangeiros e exercendo
outros ofícios, a pressão feita pelo próprio Ministério de arranjar homens a todo o
custo, associada aos interesses do incremento de salário de policiais e oficiais de
baixa patente, conservou por muito tempo a prática ilegal de recrutar estrangeiros,

84 an, Série Marinha, xm 135, correspondência com presidente de Santa Catarina, 1840. O presidente
Francisco José de Sousa Andrea era português e viera com dom João em 1808. Militar e político,
debelou a Cabanagem, e esteve presente no episódio da retomada de Laguna.
85 an, Série Marinha, xm 1143, doc 42, Requerimentos.
81

principalmente portugueses. Assim como caçadores de escravos, havia homens


que ganhavam, em média, cinco mil-réis por cabeça recrutada, como veremos no
Capítulo “Nacionais”. Essas práticas ilegais, às vezes, eram desfeitas nos processos
dos requerimentos, mas, em geral, ficavam diluídas na farta correspondência entre
o Consulado, o Ministério, o Quartel e a polícia, restando ao português cumprir o
tempo de trabalho ou desertar.

2.4  Britânicos e norte-americanos

Sing me fare-ye-well, me Liverpool gels,


An’ we’re bound for the Rio Grande!

Oh, New York town is no place for me, (…)


To the Brazils we’re bound an’ we hope ye don’t mind,
We soon will return to the Molls left behind.
Duas versões da shantie (canção de marinheiros)
“Rio Grande”.86

Em 1851, quando o Reverendo James Fletcher aportou no Rio de Janeiro, o som


que ele ouviu foi “o confuso falatório dos pretos na língua do Congo, os gritos
dos donos de barcos portugueses e as pragas (oaths) dos marinheiros ingleses e
norte-americanos”.87
De fato, os portos do Império do Brasil eram frequentados anualmente por mi-
lhares de marujos anglófonos. Não à toa, o porto do Rio era alvo de missões protes-
tantes e estalagens especializadas nesse público.
A presença de britânicos e norte-americanos na Armada brasileira foi consi-
derável desde o primeiro ano da independência, como vimos na introdução deste
capítulo. Os marinheiros profissionais firmavam um contrato de trabalho com sol-
do e tempo especificado. Ocupavam as graduações superiores, pois quase sempre

86 hugill, Stan. Shanties from the seven seas: Shipboard work songs and songs used as work from the great
days of sail, p. 90-91. Hugill reproduz diversas versões desta canção, provavelmente oitocentista e
cantada até hoje.
87 kidder, D. P. e fletcher, J. C. Brazil and the brazilians, p. 25. Tradução minha.
82

eram mais experientes do que os nacionais. Quando eram engajados na Inglaterra,


as graduações já eram definidas: able seaman, ordinary seaman, landsman, cujos sa-
lários previstos eram próximos, respectivamente, dos marujos de classe superior,
1º marinheiro e 2º marinheiro. Grumetes não eram engajados. Praticamente não
havia norte-americanos, britânicos ou outros europeus, exceto portugueses, atu-
ando como grumetes nas embarcações estudadas.
Na nau capitânia das guerras da Independência, os anglófonos, sobretudo in-
gleses, representavam 61% da tripulação, entre 1823 e 1824. Já na década de 1820,
há requerimentos no Consulado norte-americano reclamando de recrutamento
forçado. Dos quatro navios cuja tripulação estudei, a presença anglófona começou
alta e foi diminuindo com o tempo, variando de 18% a 11% do total da tripulação e
representando em média 22% do total da tripulação estrangeira.88
Caldeira Brant, o futuro Marquês de Barbacena, aparece intermediando contra-
tos de marinheiros estrangeiros nos anos de 1823, 1836 e 1837, períodos nos quais
atuou como cônsul em Londres. No contrato de 1837, os marinheiros se engajavam
por três anos ganhando duas libras mensais, além de terem garantidas as passagens
de ida e de volta.89 Segundo o ministro da Marinha, em 1835 o engajamento dos es-
trangeiros custou aos cofres públicos cerca de 124$000 por marujo, o que multipli-
cado por 340 é igual a 42:160$000 réis ou £6.700 .90 Em 1836, só um do intermediários
no negócio, a firma Willcox and Anderson,91 cobrou £3.000 pelo engajamento de
500 marujos enviados ao Brasil (de £4 a £10 por pessoa). Em 1826, também parti-
ciparam como agentes no envio de imigrantes e soldados irlandeses para servirem
nos batalhões de estrangeiros do Exército do Império do Brasil.92

88 Estes dados estão na Tabela 1, na Introdução e na Tabela 3 deste capítulo.


89 an, Série Marinha, xm 895, Engajamento de marinheiros ingleses.
90 Relatório da Marinha de 1835. É de se notar que dentre os 420 homens vindos da Inglaterra, numa
viagem de 1834, 82 desertaram a caminho, o que significa que eles queriam apenas o adiantamento
de dois soldos, ou que foram coagidos a assinar e embarcar.
91 Na década de 1820, Willcox e Anderson atuavam como agentes de navegação a vaporna linha en-
tre Londres e Dublin, época em que intermediaram a vinda dos irlandeses para o Brasil. Em 1837
ganharam a exclusividade dos Correios entre Londres e a península ibérica e junto de um terceiro
sócio passaram a chamar-se P & O, uma das maiores companhias de navegação do mundo que existe
até hoje. O melhor resumo que encontrei da história da companhia está no site da Merchant Navy
Association. Disponível em: <http://www.red-duster.co.uk/PANDO.htm.> Acesso em: julho de 2011.
92 pozo, Gilmar P. S. Imigrantes irlandeses no Rio de Janeiro: cotidiano e revolta no primeiro reinado, p. 75.
83

Vários desses ingleses engajados em 1834, constam dos Livros de socorros da


fragata Imperatriz. No mesmo ano, também engajou-se em Londres William Eaton,
que escreveu algumas cartas para a família, e depois desapareceu. O endereço do
remetente era “Prince Imperial Frigate, Rio de Janeiro”. Quando o seu pai morreu,
ele foi procurado neste endereço para que participasse da partilha. Eaton não foi
localizado, e um amigo em Londres afirmou que ele havia morrido.93 Se foi assim,
morreu sem saber que o seu pai também havia morrido. Do mesmo modo que o seu
pai morreu sem saber do seu paradeiro, mas os seus irmãos talvez tenham rezado
pela sua alma.
A saudade do marinheiro morto ou desaparecido foi poeticamente descrita por
Herman Melville, em Moby Dick. Numa Igreja Bethel, de New Bedford, estavam sen-
tados homens e mulheres silentes, diante de algumas lápides que não encimavam
cadáveres, a exemplo da que foi colocada pela irmã de “John Talbot, que se perdeu
no mar, com a idade de 18 anos, próxima à ilha da Desolação, no litoral da Patagônia,
em 1º de novembro de 1836”.94 O personagem Ishmael, consternado diante daquela
cena, fez a sua preleção particular:

Oh, vós, cujos mortos jazem enterrados sob a grama verde: que em meio a flores
podeis dizer – aqui, aqui jaz o meu amado: vós não sabeis a desolação que habita
estes nossos peitos. Que vazio amargo esse dos mármores enegrecidos que não
cobrem cinza alguma! Que desespero esse das inscrições irremovíveis! Que vácuo
mortífero, que indesejada infidelidade daquelas linhas que parecem minar toda a
Fé e recusam a ressurreição a seres que no deslugar pereceram sem ter túmulo.95

93 an, Série Marinha, xm 453, Legação do Brasil em Londres. Carta do advogado da família Eaton para
o ministro da Marinha, Londres, 30 de dezembro de 1838.
94 melville, Herman. Moby Dick ou a baleia, p. 58-9.
95 Ibidem.
84

2.4.1  A Cabanagem e os marinheiros ingleses William e Thomas

Assinaturas dos marinheiros ingleses William Sealy e Thomas Jones. an, Série Marinha, xm 251.

Durante a Cabanagem, vários marujos anglófonos da fragata Imperatriz tiveram


fim trágico. William Butcher, Eduardo Thonson e Eduardo Fitzgerald faleceram,
alguns deles em combate. William Wright, George Leader e Joseph Smith foram
gravemente feridos. O norte-americano negro Calop Owins, o inglês William Battey
e Joseph Smith, para citar apenas três, retornaram para a Corte como inválidos.96
Outros desertaram de vários navios durante o combate, entre eles a trinca de per-
sonagens da história a seguir.
Narrarei, a partir de um processo e da correspondência entre autoridades, a
aventura dos marujos londrinos William Sealy e Thomas Jones97. Em 1834, aos 20 e
poucos anos, vitimados pelo desemprego marítimo, deixaram Londres para servir
a Marinha do Brasil. Da Corte foram enviados para o Pará na fragata Campista.98
No dia 5 de outubro de 1835, 17 marinheiros, a maioria inglesa, além de um ale-
mão e um português, partiram em uma lancha fortemente armada para buscar gado
próximo à foz do Arary, na Ilha de Marajó, onde estava fundeada a escuna da Armada
Rio da Prata. A fragata Campista estava cheia de refugiados belenenses. O próprio
presidente da província governava de lá. A necessidade de víveres era imensa, e os
marujos estavam a meia ração. O comandante temia a fome.
Era já noite, “o vento fresco, a maré crescente”, havia aguardente na lancha, e
os marujos seguiam bêbados, como eles próprios depuseram. O guarda-marinha
responsável pela guarnição da lancha subiu na escuna Rio da Prata, e os marujos que
ali ficaram logo “meteram em cheio pelo rio acima” – “com todo o pano” – segundo
testemunhas, em direção ao porto de Itacoã, ponto dos inimigos.

96 an, Série Marinha xvii M 2501, Livro de socorros da fragata Imperatriz.


97 an, Série Marinha xm 364, “Processo verbal e interrogatórios dos réus Thomas James e Wiliam Sle-
ves, marinheiros ingleses da Fragata Campista”. Força Naval do Pará e xm 251 Conselho de Guerra
Auditoria da Marinha.
98 Não estudei a tripulação da fragata Campista, pois o livro de socorros é bastante incompleto. Diante
dos dados disponíveis deste livro é observável a semelhança no perfil da tripulação da Campista e
da Imperatriz. Durante a campanha houve várias trocas de marujos entre uma e outra.
85

Dias depois, a lancha foi encontrada em poder dos cabanos, de quem foi retoma-
da, sem tripulação e sem armamento: dois bacamartes, 13 armas, 500 cartuchos de
adarme, 40 balas, 30 lanternetas e 40 cartuchos de peças. Soube-se depois que um
dos tripulantes, um português, foi fuzilado pelos cabanos ou pelos próprios maru-
jos. Um marinheiro alemão arrependido da deserção voltou à fragata e, segundo o
presidente da província, contou a seguinte versão:

Estando ébrios com a privação de seus pagamentos que a Nação lhes faltava com
seus soldos há tempo, e que não tendo dinheiro e sempre cheios de trabalho, (...)
que eles usariam da força e roubariam com [os tapuios], arrojando-se sua maldade,
a conceber a proposta aos tapuios de atacarem com eles esta fragata, por se achar
mui atrapalhado com as famílias e pouca guarnição para o que eles com a lancha e
com mais sete batelões de tapuios se ofereciam.99

O comandante John Taylor, apesar de condenar a deserção, acamaradou-se com


os marujos: “as guarnições não podem estar contentes achando-se sem dinheiro
algum para comprarem sapatos e algumas roupas que precisam”. E ainda decla-
rou em postscriptum: “a guarnição da lancha era inglesa e a de melhor conduta que
tínhamos”.100 A crítica ao governo não é ao menos velada: marinheiro engajado
sem pagamento fica insubordinado, como ele já vinha alertando ao ministro da
Marinha em outros ofícios. Nesse caso, houve uma quebra de oposição entre oficiais
e marujos, sendo possível falar em certa solidariedade – não de classe, e sim de
homens marítimos. Eu acrescentaria: ingleses.

Em 1837, em diligência no Rio Preto, a mesma escuna Rio da Prata, cujo comandante
presenciou a partida da lancha dois anos antes, encontrou três dos marujos deser-
tores no Porto do Cury ou Curim.101 Um deles, o inglês Henry Peterson, morreu

99 an, Série Marinha xm 364, ofício do presidente do Pará, Manoel Jorge Rodrigues, ao ministro da
Marinha José Pereira Pinto, 6 de outubro de 1835.
100 Série Marinha xm 364, ofício de John Taylor, chefe e Comandante das forças navais, para o ministro
da Marinha José Pereira Pinto. Pará, 6 de outubro de 1835.
101 Não sei se seria o mesmo local do aldeamento Cory, que reunia os Mundukuru a partir de 1848 na
beira do Tapajós, então seis dias de Santarém. Hoje a localidade chama-se Curite.
86

meses depois na presinganga Defensora. William Sealy e Thomas Jones ficaram ali
presos por três anos, aguardando a sua sentença. Um conselho militar foi formado
no patacho Januária, em Santarém, onde, em 1838, cinco tripulantes da escuna Rio da
Prata – dois lisboetas, um paraense, um benguelense e um catarinense – depuseram
como testemunhas do evento de 1835.102
Apenas em janeiro de 1840 os réus depuseram na corveta Defensora, surta em
Belém, onde ainda estavam presos. Negaram a deserção, alegaram que a correnteza
e o vento ocasionaram o descontrole da lancha, e que em Itacoã, na Ilha de Marajó,
foram interceptados pelos inimigos, que lhes tomaram munição e mantimentos.
Presos, seguiram para Belém, na época tomada pelos cabanos, depois para Santarém
na canoa Auspiciosa do “cabano Saraiva”. Dali teriam fugido para Curim, no Rio
Preto, onde foram presos.
A primeira sentença do processo saiu em fevereiro de 1840 e foi baseada no
artigo 37, dos de guerra, o qual punia com pena de morte indivíduos que passavam
para o lado inimigo com munição e mantimentos. Alguns membros contestaram a
punição, ponderando a veracidade da versão dos réus, e pediram clemência. Houve
empate na votação do Conselho, e a pena foi reduzida para dez anos de trabalhos
forçados dentro da província.

Não é possível saber se os marujos desertaram ou foram capturados pelo inimigo.


Suponho que, entre os diversos grupos que havia dentro de um navio, a ação entre
semelhantes é mais comum do que a ação da tripulação como um todo. No grupo a
maioria era composta de ingleses. O alemão que estava junto desistiu, e o português
foi fuzilado. Não creio que os ingleses tenham aderido à causa dos cabanos. Se por
ventura isso aconteceu, foi resultado da insatisfação dos britânicos com o Império
do Brasil, que não pagava seus soldos, além do estado de guerra em um país estran-
geiro ser um agravante da situação. Vender material bélico para o inimigo pode ter
sido uma solução da falta de dinheiro e uma possibilidade de deserção remunera-
da, o que viabilizaria o retorno à Inglaterra, o ingresso em outro navio ou, na mais

102 Todas as informações a partir de 1837 foram extraídas do “Processo verbal e interrogatórios dos
réus Thomas James e Wiliam Sleves, marinheiros ingleses da fragata Campista”. an, Série Marinha,
xm 251. Agradeço ao meu colega Eduardo Cavalcante, pela transcrição do documento.
87

radical das hipóteses, tornar-se quase um caboclo nas matas amazônicas.103 A ação
não tinha volta. Um trio de ingleses continuou mata adentro durante mais ou menos
dois anos. Não sabemos o seu grau de adesão aos cabanos ou mesmo às populações
indígenas ou ribeirinhas.
Há uma história semelhante, contada por três marujos de um navio corsário que
foram presos em Cabo Frio em 1827. John Sullivan, Fergus Mc Viagh e Daniel Mullan
haviam partido como colonos para Buenos Aires. Ali teriam passado dificuldades,
o que justificaria o embarque em um navio corsário, com a “intenção de logo fugir”.
Em uma noite, quando estavam tentando apresar um navio em Cabo Frio, deserta-
ram, junto de dois italianos. Aportaram na costa e caminharam quatro dias até che-
gar à polícia de Cabo Frio. Aí permaneceram seis semanas em liberdade e partiram
em um brigue para o Rio de Janeiro, cujo capitão lhes enviou para a presinganga da
Corte. Solicitaram, então, a soltura ao cônsul britânico, que por sua vez fez o mesmo
pedido ao ministro da Marinha, se fosse “verdadeiro o que eles alegam”. Mais uma
vez, a versão contada é a de defesa de um possível delito. Como os ingleses da fragata
Campista, eles se diziam vítimas de grupos fora da lei. Também não sabemos se os
ingleses foram obrigados a trabalhar como corsários. Mas, assim como ocorreu com
os ingleses da Cabanagem, oito anos depois eles sobreviveram a situações-limite
no Atlântico internacional e acabaram em uma presinganga.104 Como tantos outros
marujos em apuros, recorreram às autoridades do seu país de origem para tentarem
se salvar da enrascada em que se haviam metido, tão longe de casa.
Os casos de William e James durante a Cabanagem, bem como o dos ingleses
com os corsários argentinos são exemplos de experiências radicais que os marinhei-
ros podiam alcançar. Eles viveram uma espécie de alteridade total. Tantos outros
homens as viveram e suas histórias foram certamente incorporadas às tradições
narrativas do mundo atlântico. Aqui cabe lembrar Michel Foucault: “o navio foi a

103 Isto aconteceu com a personagem “índia ruiva” do conto “História do guerreiro e da cativa” de
Jorge Luis Borges. Filha de ingleses de Yorkshire, que imigraram para Argentina e morreram num
ataque indígena, ela foi levada como prisioneira para o deserto, casou com um índio com quem teve
dois filhos e adaptou-se completamente a nova vida. Vestia-se com mantas, andava descalça, seria
capaz de beber sangue fresco de animais, e quando falou inglês misturava com araucano e pampa.
BORGES, Jorge Luís. O Aleph, p.39-42.
104 an, Série Marinha, xm 26, Legações estrangeiras. Ofício do cônsul interino A. I. Hearthely ao ministro
da Marinha, Marquês de Maceió.
88

maior reserva de imaginação da modernidade”.105 E os marítimos foram transmis-


sores fundamentais desse imaginário.

2.4.2  Entre a fome na Irlanda e o trabalho forçado


no Império do Brasil

O menor irlandês Thomas Downey morreu no Rio de Janeiro em 1852 de febre ama-
rela. Nesse mesmo ano, outros cinco irlandeses menores de idade também foram
enterrados no Brasil: Michael Curkin, Lawrence Collaton (católico natural de Mona-
ghan), Daniel Sullivan (católico e natural de Waterfront), Charles Curwen e Henry
Mc Coy.106 Uma denúncia no jornal The Times sobre os maus-tratos que esses meno-
res irlandeses vinham sofrendo na Marinha do Brasil causou um grande problema
diplomático com o Reino Unido.
Os menores haviam sido engajados em setembro de 1851 pelo capitão-tenente da
Marinha Elisiário Antonio dos Santos, por meio do Consulado do Império do Brasil
em Liverpool. Eram cerca de 70 meninos e adolescentes provenientes de diversas
localidades, como Dublin, Monaghan, Waterford, Athlone, Belfast, Westmeath e
Queenstown.107 Eles eram certamente fruto do êxodo irlandês causado pela grande
fome que grassou de 1846 a 1849, que reduziu consideravelmente a população do
país. Além da morte de aproximadamente um milhão de indivíduos, cerca de dois
milhões deixaram o país até 1854, sobretudo rumo a outros países do Reino Unido
e aos Estados Unidos.
Dentre as dezenas de irlandeses que partiram de Liverpool para o Brasil, vinte
ganharam uma libra e 17 schillings pelo engajamento (mais ou menos 10$000 réis)
e teriam de se sujeitar às regras da Armada por tempo indeterminado, além de não
terem assegurados os gastos com a sua volta ao Reino Unido, cláusula comum nesse
tipo de contrato. Depois de lido o termo – em português –, o menor deveria subscrever
que viajava “de livre e espontânea vontade”, bem como um dos seus pais, um tutor
ou uma testemunha. Dos onze termos que existem, cinco apresentavam assinatura

105 foucault, Michel. “D’autres espaces”. Disponível em: http://foucault.info/ documents/heteroTopia/


foucault. heteroTopia.fr.html. Acesso em: abril de 2011.
106 National Archives, Londres, 13/295, Foreign Offices e an, Série Marinha, IM 550, Engajamento de
marinheiros irlandeses.
107 Ibidem.
89

de pais ou de um tutor, e os demais apenas de testemunhas, o que parece indicar


que parte era órfã, e parte provavelmente estava imersa em uma profunda pobreza
de família emigrante, que assistia a mais um capítulo do seu desmembramento.108 O
curioso é que em uma correspondência a parte, o tenente afirmava que o engajamento

Termo de engajamento do dublinense Patrick Smith, 6 de setembro de 1850. an, Série Marinha, im 550.

108 an, Série Marinha, IM 550, Engajamento de marinheiros irlandeses.


90

era por doze anos, um tempo maior do que os próprios recrutados nacionais.109 Anos
antes, indígenas do Alto Amazonas haviam sido engajados de modo semelhante, com
a diferença que seus tutores ou parentes ganharam um pouco mais pelo engajamento,
algo em torno de 15$000 réis, e teriam de cumprir um tempo de seis a oito anos de
serviço110. No trabalho marítimo internacional, brancos europeus ou indígenas em
determinadas situações de miséria poderiam receber tratamento semelhante.
Em julho de 1852, um residente inglês da Corte escreveu para o Times britânico a de-
núncia publicada em setembro. Interveio o consulado britânico no Rio de Janeiro,
e 32 meninos foram entregues às autoridades britânicas que os “hospedaram” no
HS Crescent, navio da esquadra britânica que abrigava os africanos dos tumbeiros
apreendidos pela Inglaterra. Haveria ainda mais 18 que estavam embarcados.111 O
autor da denúncia escreveu que os meninos estavam quebrando pedra, colhendo
conchas, eram mal alimentados e tinham os seus salários retidos para que não de-
sertassem. Terminava a sua carta exclamando: “Conterrâneos, (...) mantenham os
seus filhos longe dos brasileiros! Imaginem um inglês sendo tratado como escravo,
e, o que é pior, por um brasileiro!”.112 O ministro da Marinha, em seu relatório anu-
al, mencionou o caso como causador de “alguma impressão”, opondo a denúncia
de tratamento desumano e bárbaro do Times, com as conclusões de um relatório
feito por uma comissão interna da Marinha que “evidenciou as exagerações e in-
coerências da queixa”.113
Na corveta Imperial Marinheiro, encontrei sete desses meninos, engajados como
segundo grumetes por um ano, a partir setembro de 1851, ganhando 4$800 réis por
mês. Eram eles Bradley Smith, Francis Heenan, James Burgau, James Mc Donald,
John Making, William Lamberck e Ricard Philips, todos com idade entre 14 e 16 anos.
Havia, ainda, dois menores de Liverpool que faziam parte do grupo, John Barkley e
William Ambrose.114

109 Ibidem, ofício do Tenente Eliziário Antonio dos Santos ao ministro da Marinha Manoel Vieira Tosta,
10 de setembro de 1851.
110 Ver seção Indígenas no capítulo Nacionais. an, Série Marinha, IM 483, “Engajamento de indígenas”.
111 an, Série Marinha, xm 279, Ofícios do Quartel General. Miguel de Souza de Mello Alvim para o
ministro da Marinha Zacharias Góes de Vasconcelos, novembro de 1852.
112 The Times, Londres, 21 de setembro de 1852. Tradução minha.
113 Relatório do ministro da Marinha, 1852.
114 an, Série Marinha, xviii M 2303, Livro de socorros da corveta Imperial Marinheiro.
91

Denúncia de maus-tratos a menores


irlandeses, no Império do Brasil publicada no
The Times, Londres, 21 de setembro de 1852.

Um ano antes, em 1850, cerca de 325 homens foram engajados em Liverpool e tam-
bém não eram ingleses. 270 eram norte-americanos de diversas localidades, e os
demais de outros países europeus, como França e Grécia, além de alguns turcos.
Diferente dos menores irlandeses, esses homens eram marinheiros profissionais,
sendo 70 deles tatuados. Todos ganharam cinco libras como prêmio e teriam salários
de 16$000 réis mensais, durante três anos. Quem coordenou esse engajamento foi
John Pascoe Grenfell, veterano da Marinha do Brasil, que atuava como cônsul em
Liverpool.115 Na mesma época, ele enviou uma série de colonos irlandeses para o
Rio Grande do Sul, provavelmente nas mesmas embarcações que enviava marujos.116
Grenfell deixaria o posto em Liverpool por um ano para comandar a frota do Brasil
na guerra do Prata de 1851-1852. Desconfio que ele teria engajado os estrangeiros

115 an, Série Marinha, xm 16, “Engajamento de ingleses”.


116 galsky, Nélio. Mercenários ou libertários: As motivações para o engajamento do Almirante Cochrane e
seu grupo nas lutas da independência do Brasils, p. 29.
92

em Liverpool para esse fim. Em períodos de conflito, o engajamento na Europa era


mais frequente, como aconteceu por ocasião da Cabanagem. Aparentemente não
só o engajamento na Inglaterra completou as guarnições nessa guerra. Segundo
Edna F. Antunes, por meio das instruções de 13 de setembro de 1851, acompanhada
pelo Aviso de 23 de setembro, marinheiros mercantes deveriam servir por um ano
na Esquadra Imperial, tributo este cobrado pelas Capitanias dos Portos.117

2.4.3  Estados Unidos – Brasil – O Atlântico do Novo Mundo

A presença norte-americana na Marinha do Brasil é explicável pelas conexões cres-


centes entre os Estados Unidos e o Brasil. O comércio recrudescia, os brazilian banks
situados no mar do sul do Império eram um dos destinos dos baleeiros norte-ame-
ricanos, a Marinha de guerra norte-americana organizava expedições científicas118
e instituiu na década de 1820, a Brazilian Station, duradoura estação naval móvel na
costa da América do Sul, onde havia permanentemente de dois a seis navios. A Ilha
dos Ratos (atual Ilha Fiscal), na Baía de Guanabara chegou a abrigar um armazém
de provisões dos norte-americanos.119

Marinheiros recém-
desembarcados de um navio
baleeiro em New Bedford, 1860.
Muitos baleeiros aportaram no Rio
de Janeiro nas décadas anteriores,
e alguns de seus marujos foram
recrutados ou se engajaram
na Armada Imperial. Foi o caso
de Jacob Hazen, cuja história é
narrada adiante. New Bedford
Whaling Museum, New Bedford,
Estados Unidos.

117 antunes, Edna F. Marinheiros para o Brasil: o recrutamento para a Marinha de Guerra Imperial
(1822-1870).
118 Sobre estas expedições ver junqueira, Mary. “Ciência, técnica e as expedições da marinha de guerra
norte-americana, U.S. Navy, em direção à América Latina (1838-1901)”. Varia História, Belo Hori-
zonte, vol. 23, nº 38: p. 334-349, Jul/Dez 2007.
119 nordhoff, Charles. Nine years a sailor, p. 131.
93

De 1849 a 1852, o Rio de Janeiro serviu de ponto de parada aos navios da “corrida
do ouro”, que levavam passageiros em direção à costa oeste daquele país. Muitas
embarcações pertencentes a norte-americanos, ou construídas nos Estados Unidos,
participaram clandestinamente do tráfico ilegal de escravos.120 Consolidavam-se
novos laços entre o Atlântico Sul e o Atlântico Norte, agora do lado do Novo Mundo.
Uma pequena parte dessas tripulações, quando desembarcava ou desertava, tinha
por destino um navio brasileiro por engajamento ou recrutamento forçado. Esse foi
um dos grandes problemas do consulado norte-americano no Rio de Janeiro.
As reclamações de engajamento ilegal iniciaram-se logo após as guerras da Inde-
pendência, mas foi na guerra da Cisplatina (1825-1828), que abundaram ofícios do
cônsul norte-americano, Condy Raguet, pedindo explicações ao Governo. Segundo
Hill, leitor dos seus ofícios, os marinheiros eram intoxicados ou detidos depois do
tempo de serviço terminado ou confundidos com desertores ingleses.121 Na década
de 1830, outros marinheiros desafortunados, sobreviventes de naufrágios e deser-
tores de navios norte-americanos, reclamaram ao Consulado pelo fato de serem re-
crutados à força ou que eram engajados sob falsas promessas.122 Em 1849, auge da
corrida do ouro, Hill Forest, tripulante britânico de um navio norte-americano que
viajava rumo à Califórnia, foi recrutado à força com mais dois passageiros de um
bote na Baía de Guanabara. No dia seguinte, passou a tripular a corveta Januária,
que partiu para a Bahia, onde conseguiu fazer uma petição ao cônsul. O britânico
foi detido no Rio de Janeiro, e o seu destino acabou sendo a Bahia, onde conseguiu
comunicar-se com o Consulado.123 Teria voltado ao Rio? Se sim, conseguiu embarcar
no seu navio? Chegou à Califórnia ou acabou na tripulação de um navio de outra
bandeira rumo a outro país? Junto dele, foi violentamente recrutado Edouard The-
odore Dumesy, belga, desenhista de máquinas, que passeava pela orla. Ele também
teve de recorrer ao cônsul do seu país na Bahia. Quem os enviou, juntamente com
um português sob a pecha contumaz de “vadios”, foi o subdelegado e médico Dr.
Joaquim Marcos de Almeida Rego, que dois anos depois presidiria o Ceará.124

120 Sobre estes dois temas, ver horn, George. O sul mais distante: Os Estados Unidos, o Brasil e o tráfico
de escravos africanos.
121 hill, Lawrence F. Diplomatic relations between the United States and Brazil, p. 41.
122 Ibidem, p. 84.
123 an, Série Marinha, xm 86, Correspondência com o ministro dos Negócios Estrangeiros, ofícios entre
diversas autoridades, junho de 1849.
124 an, Série Marinha, xm 86, Correspondência com o ministro dos Negócios Estrangeiros, vários ofícios.
94

Os norte-americanos continuariam, na década de 1850, a se engajarem ou sim-


plesmente serem recrutados à força pela Armada brasileira. Em 1850, como vimos
acima, 270 norte-americanos foram recrutados em Liverpool. Em 1854, Daniel
Handerson, James Brown e Johan Jacques, pardos e negros de Nova York e da Fi-
ladélfia, engajaram-se no vapor Thetis e desertaram uma semana depois no Rio de
Janeiro.125 Em 1858, dos 11 estrangeiros engajados no porto de Santa Catarina, sete
eram norte-americanos.126
Assim como alguns marujos mudavam de navio e de bandeira nos portos bra-
sileiros, marujos nacionais ingressaram na Marinha de guerra e mercante norte-
-americana. Um deles foi José Ramos, que desertou da Marinha brasileira para in-
gressar como músico no navio Brandy Wine.127 Ramos não foi o único: em 1852, o
grumete imperial José Pereira das Neves desertou e tornou-se músico da fragata
norte-americana Congress.128 Engajar-se em um navio estrangeiro, poderia causar
problemas para o marinheiro brasileiro. José Pereira do Valle procurou o consulado
em Hamburgo para ajudá-lo a retornar ao Brasil, pois embarcara em Santos em um
navio sueco. O ministro dos Estrangeiros, Limpo de Abreu, escreveu ao ministro
da Marinha, observando ser necessário incluir o compromisso de ressarcimento de
passagens de volta pagas pelos consulados a marinheiros, visto que muitos capitães
os abandonavam em portos estrangeiros.129

125 an, Série Marinha, xvii M 4612, Livro de socorros do vapor Thetis.
126 an, Série Marinha, xm 138, Correspondência com o presidente de Santa Catarina.
127 an, Série Marinha, xm 86, Correspondência com o ministro dos Negócios Estrangeiros.
128 Ibidem.
129 Série Marinha, xm 86, Correspondência com ministro dos Negócios Estrangeiros. Ofício do ministro
dos Negócios Estrangeiros Limpo de Abreu ao ministro da Marinha, 17 de setembro de 1853.
95

2.4.4  Missionários protestantes no porto: a bandeira Bethel na Corte

O reverendo James Fletcher, mais conhecido pelo livro que escreveu sobre o Brasil,
foi também missionário da American seamen’s friends society130, entre 1851 e 1854.
Nas suas palavras, durante a vigência da paróquia sem capela estabelecida no Porto
do Rio, sob sua coordenação:

a bandeira Bethel com a sua pomba branca esteve hasteada, e quando estufada pela
brisa, como um sino de igreja, ainda que mudo, chamou os rústicos marítimos de
várias embarcações para no tabernáculo flutuante (...) ouvir, neste clima distante,
As lições da sagrada verdade.131

Entre 1821 e 1854, intermitentemente, houve cultos sob a bandeira Bethel no porto do
Rio de Janeiro. Essa bandeira foi criada na Inglaterra em meados da década de 1810,
e logo depois foi adotada por norte-americanos para ser hasteada em embarcações
onde havia cultos de organizações protestantes multinominais de apoio a marinhei-
ros, principalmente aos domingos. Entre 1821 e 1834, a bandeira foi hasteada em
embarcações norte-americanas e inglesas, e os cultos realizados por um “capitão
bethel” de navio mercante inglês, e posteriormente por dois negociantes britânicos
residentes no Rio de Janeiro.132 A partir de 1835, a American seaman’s friend socie-
ty enviou, com outras instituições cristãs, missionários para atender marinheiros
anglófonos e protestantes no porto do Rio de Janeiro e evangelizar marinheiros de
todas as nacionalidades, além dos não marítimos.

130 O objetivo da American seaman’s friend society, escrito em vários de suas publicações, era “melho-
rar as condições morais e sociais dos marítimos (...); promovendo em todos os portos [do mundo],
abrigos, hospedagem, poupanças, (...) bibliotecas, salas de leitura e escolas - e também a pregação
do Evangelho e outras benções religiosas” (tradução minha) As organizações missionárias em prol
dos marujos começaram na Inglaterra nas últimas décadas do século xviii e proliferaram dali em
diante. Em 1816 um grupo metodista criou uma bandeira para sinalizar em que navio do porto de
Londres estava sendo realizado um culto. A bandeira tinha a palavra Bethel (Casa de Deus no antigo
testamento) um pássaro e uma estrela. Essas instituições atravessaram o oceano e outras foram
criadas nos Estados Unidos como a American seamen’s friend society.As mulheres confecciona-
vam bandeiras para serem levadas para o mundo todo por missionários. kverndal, Roald. Seamen’s
missions: Their origin and early growth.
131 fletcher, Joseph. Brazil and the brazilians, p. 200. Tradução minha.
132 “Report of Rev. O. M. Johnson”. The sailor’s magazine and naval journal. The american seamen’s friend
society, New York, v. 10; kverndal, Roald. Seamen’s missions: Their origin and early growth, p. 251.
96

O primeiro pastor foi Obadiah M. Johnson. Uma extensa carta de recomendação


o orientou nessa missão. Os cultos deveriam ser ministrados nos navios, pois não
haveria igrejas. O pastor bethel deveria divulga-los entre os norte-americanos e in-
gleses da Marinha mercante e de guerra, além de franceses e alemães protestantes
que falassem inglês. Bíblias e tratados em português poderiam ser distribuídos aos
demais marujos e, com o tempo, uma vez aprendida a língua, poderia falar-lhes tam-
bém. Atenção especial deveria ser dada aos doentes do hospital, já que “os pobres
sujeitos estão longe do carinho e do cuidado das suas mães, irmãs ou esposas: Mostre
a eles que você cuida tanto da sua alma quanto do seu corpo, que você cuida dele
num momento de infortúnio; que ele tem um amigo, mesmo numa terra estrangeira,
e você ganhará a sua confiança para sempre.” E, se lá ele morresse, “que consolação
para os seus entes será saber que houve alguém… que sussurrou os consolos da re-
ligião” e “que alguém lhe providenciou um enterro cristão”.133
Segundo Johnson, ele ministrou cultos aos domingos para uma audiência que
variava de 15 a 80 pessoas em navios norte-americanos e ingleses. Visitou marujos
doentes na Santa Casa e trabalhou para a população não marítima. Na região portu-
ária, esteve em pelo menos seis estalagens para marinheiros pertencentes a ingleses,
norte-americanos ou falantes de inglês, as quais, na sua opinião, não passavam de
groggeries, lugares em que “velhos e jovens marinheiros passavam a tarde de domin-
go falando alto, cantando, bebendo, alguns dormindo sobre as mesas e a maioria
estúpidos demais para aproveitar algo que se pudesse dizer a eles.” O reverendo
entregava folhetos religiosos aos que ele chamou de “mais soberbos” e “os alertava
da necessidade de deixar aquele lugar de pecados e voltar aos seus navios”.134 Walsh
referia-se às também chamadas “publicaos”, corruptela das public houses, estalagens
das grandes cidades para marinheiros em trânsito.135
Anos antes, o reverendo Walsh afirmou ser frequentemente incomodado por
pedintes marujos norte-americanos ou ingleses que se diziam desempregados.
Aparentavam “homens destemperados, responsáveis pela sua própria pobreza”.
Sim, talvez Walsh estivesse referindo-se a marujos que sucumbiram ao excesso de
trabalho, desterritorialização, má alimentação e alcoolismo. Do seu ponto de vista,

133 The sailor’s magazine and naval journal. The american seamen’s friend society, vol. viii, august 1836,
p. 130-1. Tradução minha.
134 Report of Rev. O. M. Johnson. The sailor’s magazine and naval journal. The american seamen’s friend
society, New York, v. 10. Tradução minha.
135 holloway, Thomas H. Polícia no Rio de Janeiro: Repressão e resistência numa cidade do século xix, p. 126.
97

estavam em pior estado do que os pobres brasileiros, que ao menos encontravam


alimento nas irmandades e não pediam esmola na rua.136 Um marujo anglófono
destemperado implorando por comida no Rio, que não comovia nem sequer um
pastor protestante, talvez fosse o auge do deslugar (displaceless) a que se refere o
narrador de Moby Dick, em New Bedford, no velório sem corpo de um marujo morto
no mar, mencionado acima.
Depois da partida de Johnson, Justin Spaulding e Daniel P. Kidder permaneceram
no Rio de Janeiro de 1837 a 1841. Este último, assim como o reverendo Fletcher, é
mais conhecido pelo livro de memórias sobre suas viagens no Brasil. Segundo Kidder,
a missão, em quatro anos, chegou a distribuir 60 mil páginas de tratados religiosos,
diversas bíblias e celebrou cultos quase todos os domingos, principalmente na Corte,
mas também em outras províncias, onde deixou representantes.137
Segundo Spaulding, os marujos anglófonos eram muitas vezes vítimas de
homens que mantinham estalagens para marujos e “mulheres más” que os em-
bebedavam, envenenavam, roubavam-lhes o dinheiro, as roupas e ainda lhes con-
taminavam com doenças. Imagino que, se ele pertencesse à Sociedade amiga das
prostitutas, culparia os marujos pelo sofrimento das moças. Spaulding relatou a
reclamação dos cônsules a respeito de segunda-feiras tumultuadas nos consulados,
onde chegavam diversas reclamações de confusões envolvendo marujos nos do-
mingos precedentes, o que fez alguns capitães de navio liberarem os seus marujos
apenas nos dias úteis. O norte-americano considerava que o marinheiro não era
diferente dos trabalhadores em terra firme – a distância do evangelho enquanto
navegavam é que lhes estragava as vidas.138
Em 1850, foi a vez do Reverendo Morris Pease, que teve de partir rapidamente,
devido a problemas de febre amarela na família. O seu breve relatório também fala de
atendimento espiritual aos anglófonos hospitalizados. Entre 1851 e 1854, chegou Ja-
mes Fletcher, também atuante entre os doentes, principalmente aqueles internados
na Santa Casa de Misericórdia. Depois da morte de alguns deles, disse ter enviado
cartas a algumas famílias reproduzindo as últimas palavras dos seus entes queridos.

136 walsh, Rev. Robert. Notices from Brazil, p. 473-4.


137 kidder, Daniel P. Sketches Of Residence And Travels In Brazil, p. 351.
138 spaulding , Justin. “Seamen’s cause at Rio de Janeiro”. The sailor’s magazine and naval journal. Vol.
xiv. New York, American Seamen’s friends society, 1842, p. 195-97.
98

Um dos grandes objetivos dos missionários era convencer marujos a não pas-
sarem o domingo divertindo-se no porto e, sim, reservar o dia santo para os rituais
cristãos. Pelos relatos de todos os missionários, em terra, eles não atuaram muito
nos locais de diversão e concentraram-se no atendimento aos doentes. Os maru-
jos não deixaram necessariamente de lado a diversão a favor da religião. Isso não
significa que eles não atenderam a esses dois apelos. Deveria ser difícil abrir mão
dos prazeres carnais da terra firme, mas a ideia do culto na sua língua e da leitu-
ra eventual da bíblia também deve ter sido bem-vinda. Essa configuração ajudava
provavelmente os anglófonos a formar um grupo distinto que se fortalecia na sua
identidade protestante, alfabetizada e idiomática, para compensar as dificuldades
da distância e da vida marítima. A vida nas estalagens, onde se falava inglês, e uma
eventual ida ao culto certamente melhoravam a vida do marujo, bem como a rela-
ção sexual e/ou afetiva com mulheres das cidades. Se filhos foram gerados, imagino
que dificilmente eles tenham sido incorporados às famílias paternas. Juntavam-se
à horda de crianças que não conheciam os seus pais, e decerto não aprenderiam a
sua língua e não visitariam os seus países de origem.
Os missionários entendiam que o evangelho tornaria o marujo um homem de
bem. O discurso dos pastores reconhecia o marujo como um homem útil ao rebanho
de Deus. Entre as autoridades brasileiras, raramente encontrei observações edifican-
tes quanto a esses homens. Não havia associações ou missões que os protegessem –
os que eram católicos deveriam contar com os santos protetores dos marítimos para
sobreviver às suas dores, e quando inválidos, com a caridade de algumas irmandades
que porventura lhes dessem um prato de comida.
99

2.4.5  Memórias, diários e leituras

A maior incidência de pessoas alfabetizadas entre os protestantes gerou dezenas


de livros de memórias de marinheiros publicados no século xix e um sem-número
de diários, dos quais uma quantidade razoável foi guardada nos arquivos norte-
-americanos e britânicos. Antes mesmo de 1800, as primeiras autobiografias de
afro-americanos foram escritas por marinheiros.139

Folhas de rosto dos livros de memórias dos marinheiros Charles Nordhoff e Jacob Hazen.

No Livro de socorros da fragata Imperatriz, mais anglófonos e germanófolos assinam


os respectivos nomes nos diversos recebimentos do que os seus colegas portugue-
ses e brasileiros. Em 1852, o cirurgião da corveta Imperial Marinheiro, Emydio José
Barbosa, relatou que os ingleses, os franceses e outros estrangeiros sempre liam um
livreto no seu tempo de lazer. Segundo Barbosa, dentre uma centena de nacionais
não se contava mais de seis alfabetizados. Ele criticava abertamente a Marinha, pois
boa parte dos imperiais marinheiros frequentara a escola de aprendizes, onde deve-
riam ter sido alfabetizados.140 O marujo John Ross Browne era um dentre os vários

139 bolster, W. Jeffrey. Black Jacks: Afro-american seamen in the age of sail, p. 37.
140 an, xm 723, Relatório do dr. Emygdio José Barbosa, segundo cirurgião do corpo de saúde da Armada Nacio-
nal Imperial, embarcado na corveta Imperial marinheiro para o dr. Joaquim Candido Soares de Meireles,
100

norte-americanos que menosprezavam os portugueses. Como para muitos outros, o


comportamento católico dos lusófonos estava mais próximo do paganismo do que
do cristianismo. Depois de descrevê-los da maneira mais degradante possível, de acu-
sá-los de não respeitar os dias santos e nem saber da existência de um ser supremo,
perguntou a Enos, “o mais inteligente deles”, se já havia lido um livro chamado Bíblia.
Ele respondeu “I don’t sabe to read.” e que não conhecia a bíblia.141 Além do fato de a
bíblia em inglês ser comumente distribuída em navios, ela era facilmente encontrá-
vel no mundo marítimo anglófono. O marujo Edward Clark escreveu que na Costa
da Índia podia-se comprar uma bíblia atada a um livro de canções por um dólar nos
bom-boats (barcos que vendiam todo tipo de mercadoria para marujos no porto).142
Daniel P. Kidder descreveu uma cena insólita na sua visita a Maceió. Caminhando na
praia, foi convidado por um velho português a tomar uma água de coco em sua casa.
Sob a mesa do anfitrião, Kidder viu uma Bíblia em português editada pela British and
Foreign Bible Society. O português afirmou que um marujo na Bahia lhe havia dado.
A bíblia, segundo o norte-americano, era artigo raro nas casas brasileiras, o que fazia,
por exemplo, com que ela fosse permanentemente emprestada para os seus vizinhos.143
Em White Jacket, há um capítulo inteiro dedicado à biblioteca “mantida pelo
Governo” do navio Neversink, inspirado na fragata de guerra United States, onde
Herman Melville viajou como marujo durante um ano. São citados autores como
Locke, Maquiavel, o naturalista Mason, dramaturgos modernos e clássicos, além de
livros de histórias de piratas e outros temas marítimos. White Jacket, a personagem
principal, alter ego de Melville, considerava alguns dos ensaístas um tanto indigestos
para ler a bordo, apesar de devorá-los. Mas ele também tomava emprestado dos seus
colegas, obras como um livreto de canções de negros, do marujo negro Broadbit, e
um volume do poeta oitocentista Thomas More, The loves of angels pertencente ao
“mulato” Rose-water. A personagem comparou o gosto vulgar do primeiro com a
natureza mais elegante do segundo e observou que o que mais se lia nos navios não
eram as belas-letras, mas, sim, volumes facilmente encontráveis nas barraquinhas
do Fulton Market, um mercado portuário de peixe de Nova York.144

cirurgião-chefe do Corpo da Armada. Série Marinha, Corpos de saúde.


141 browne, John Ross. Etchings of a whaling cruise. New York, Harpers & Brothers Publishers, 1846, p.
43-44.
142 clark, George Edward. Seven years of a sailor life, p. 140.
143 kidder, Daniel P. Sketches of residence and travels in Brazil, p. 104.
144 melville, Herman. White-Jacket, or the World in a man-of-war, capítulo 41.
101

Imagino que a leitura dos marinheiros de fato deveria estar ligada a material po-
pular, mas havia os que liam jornais e livros sofisticados. Edward Clark, que publicou
o diário Seven Years of a sailors’life, gostava de ler jornais nas estalagens para maru-
jos, que eram normalmente descritas como lugares de bêbados e bandidos. Muitos
marinheiros anglófonos deixaram belas páginas, o que supõe que conheciam boa
literatura. George Blanchard, um marujo baleeiro norte-americano, quando aportou
em Santa Catarina na década de 1840, escreveu no seu diário belas linhas sobre o
encantamento pelas “vinte e quatro supostas virgens vestidas de anjos e salpicadas
de ouro” da procissão da sexta-feira santa. Ele as seguiu até a missa da catedral, onde
“mil velas produziam uma labareda inebriante sob o som do coral”. Finalmente de-
clarou: “Eu não sabia onde eu estava, eu não sabia quem eu era, apenas fiquei ali com
olhos vidrados”.145 Blanchard, na contra-corrente de muitos de seus colegas, ao invés
de menosprezar os rituais católicos, escreveu uma elegia, sob forte impacto místico.
Além de comerem muito mal a bordo, os marinheiros estrangeiros apreciavam
as especialidades dos portos do Império do Brasil e outras partes. Muitas vezes os
produtos chegavam ao navio por meio dos bumboats, chamados no Brasil de bar-
cos de quitanda, onde se vendia comida e mercadorias para tripulantes de navios
ancorados. No início da década de 1830, havia 83 matriculados no Porto do Rio de
Janeiro.146 Charles Nordhoff comprou laranjas, bananas e jonny cacká (goiabada en-
rolada em folha) no porto do Rio de Janeiro no bote de Joe Portuguese, mercador
flutuante, que também vendia peixe frito e ovo cozido. Rufino José Maria, cozinhei-
ro de negreiro, produzia e comerciava goiabada nas costas atlânticas.147 Segundo
Nordhoff, o doce era muito popular entre os marujos, mas ao seu paladar parecia
areia com açúcar derretido. O que mais lhe encantou foi a desconhecida banana. Ele
descreveu a degustação da iguaria como um acontecimento: “bastou a experiência
de deixar uma derreter na boca para garantir que não havia fruta mais deliciosa
dentre as frutas tropicais”.148

145 Citado em creighton, Margareth. Rites and passages: The experience of american whaling, 1830-1870,
p. 148. Tradução minha.
146 bezerra, Nielson Rosa. Mosaicos da escravidão: Identidades africanas e conexões atlânticas do Recôncavo
da Guanabara (1780-1840)., p. 118 e 179.
147 reis, João J. gomes, Flávio; carvalho, Marcus, O alufá Rufino: tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico
negro (c.1822 - c. 1853).
148 nordhoff, Charles. Nine years a saylor, p. 128-9.
102

2.4.6 A história do norte-americano Jacob: cinco anos no mar,


três semanas na Armada do Império do Brasil 149

Numa madrugada de 1838, no Rio de Janeiro, o norte-americano Jacob foi tomado


de assalto por uma trupe de recrutadores da Marinha de guerra do Brasil. Tentou
argumentar que era estrangeiro, mas de nada adiantou. Passou a noite preso em
um lugar chamado “banco”, e na manhã seguinte foi embarcado na fragata Prín-
cipe Imperial, que breve partiria para “combater os rebeldes da Bahia”. Tratava-
-se provavelmente do desfecho em Salvador, da revolta conhecida como Sabinada.
Nas poucas semanas que ficou ali, afirmou ter sentido falta da tirania do capitão do
baleeiro que o fez desertar meses antes. Descreveu a comida como lavagem para
porco, os homens como “negros e sombrios” e a sua estadia como “três semanas de
cativeiro”. Quando um bote de uma esquadra norte-americana visitou o navio, ele
pediu para um dos tripulantes que entregasse um bilhete ao cônsul norte-americano,
explicando o seu caso. Oito dias depois, foi libertado, depois de três semanas na
Armada do Império do Brasil.
Conhecemos esta história e toda sua vida no mar, graças ao livro de memórias
que publicou. Vejamos o que aconteceu antes e depois dessa sua pequena experiên-
cia no Brasil. Interessa-me demonstrar, incluída alguma fantasia que sua memória
criou, as inúmeras possibilidades de ser marinheiro no Atlântico e também noutros
mares. O sujeito poderia até preferir servir sob alguma bandeira, ou tentar escolher
seu destino. Mas o descontrole sobre o curto, o médio e até o longo prazo era uma
constante na vida dos marujos. Uma característica dessa presença anglófona na
Armada do Império Brasil é que, apesar dela ter sido contínua nas primeiras déca-
das, os marujos não permaneciam por muito tempo, sendo esta uma das muitas
experiências que tinham em variadas costas.
Jacob A. Hazen nasceu em 1815 numa família pobre de Muncy, Pensilvânia. Tor-
nou-se aprendiz de sapateiro aos cinco anos. Aos dezessete, deixou sua terra natal
para ganhar a vida com seu ofício em outras partes. Instalou-se finalmente em Fila-
délfia, onde conseguiu um emprego razoável. Mas, algum tempo depois, aos 22 anos,
tornou-se uma das milhares de vítimas do Pânico de 1837, uma crise financeira que

149 hazen, Jacob. Five years before the mast or Life in the forecastle, aboard of a whaler and man-of war. Este
livro conta sua experiência como marinheiro entre 1837 e 1842. O resumo de sua experiência carioca
foi extraído principalmente do capítulo sete e oito. As partes citadas são traduzidas por mim.
103

resultou na quebra de diversos bancos e uma grande onda de desemprego em todos


os Estados Unidos. Hazen não precisava ser um grande economista para entender:
“quando o número de trabalhadores desempregados é grande, a chance de conseguir
um emprego é tão incerta quanto ganhar na loteria.”
Depois de sucessivas tentativas de conseguir trabalho, Hazen chegou a conclu-
são que era melhor divertir-se, tarefa que revelou-se impossível. Retratatou-se neste
período como “desencorajado desanimado, sem dinheiro e cada vez mais endivi-
dado (...) me sentia desgraçadamente abatido pela vida; e só pensava que a única
coisa que combinaria com estes sentimentos era assistir alguém ser enforcado.”
Dirigiu-se ao local de enforcamentos públicos, e viu um homem ser executado por
pirataria. Deixou o local “sentido-se um pouco melhor” e, voltou pra casa, triste num
dia agradável de sol e céu azul. A noite, perturbado cheio de torpores causados por
suas últimas experiências, dormiu um sono agitado por “sonhos selvagens”.
Este momento cartático levou-o ao um insight: “the best remedy for hard times
is to go to sea.” Hazen combatia sua miséria escapando do mundo terreno, como
se o marítimo fosse um mundo alternativo. Depois de cinco anos de trabalho duro,
só possuía umas roupas melhorzinhas, além de dívidas com a dona da pensão onde
morava e com o alfaiate. Vendeu parte das roupas, pagou as dívidas e se engajou num
navio baleeiro através de um agente na cidade. Tomou um trem para Nova York, da
onde embarcou para Sag Harbour, um povoado marítimo ao norte do Estado. Ali
passou duas semanas tocando flauta e cantando nas festas e bares da cidade, muito
bem sucedido entre mulheres e amigos. Amigos aos quais chamou sunshine friends,
aqueles presentes nos bons momentos. Na véspera de partida resolveu escrever uma
carta de amor para a lady-love que deixou na Filadélfia, cujo teor balançava entre
“alguma coerência e nosense (...) que continha sentimentos verdadeiros e outros que
eu nunca senti como fidelidade inabalável, constância eterna e todo um vocabulário
de palavras leves e gentis, tão falsas quanto agradáveis.”
A primeira parada do navio foi na Ilha de Fayal, da onde guardou as frases “filio
do Pootos Americanos” ou “Oh, Jack! por amar de Deo um vintem!”. O navio ainda
parou na Ilha de Fauklands, seguiu para a região entre Montevidéu e Patagônia, onde
capturou três baleias e iniciou a volta para os Estados Unidos com a primeira escala
em Ilha Grande, litoral do Rio de Janeiro. Ali, Hazen na companhia de seus amigos
de bordo, Mark que falava português e do português John Antonia conheceu a ilha,
e tocou flauta para o deleite dos locais. Os dois americanos tornaram-se amigos de
104

Joaquim, dono de uma fazenda de café e de sua família, a ponto de Mark resolver
desertar e ficar um tempo morando por ali.
O navio aportou no Rio de Janeiro onde venderia parte dos derivados das baleias
capturadas. Durante a estadia carioca, houve violentos castigos em alguns membros
da tripulação. Hazen decidiu-se por desertar.
Estava sozinho, com dez dólares no bolso, numa cidade que não conhecia nin-
guém cujo idioma desconhecia. Percebeu que a sua aventura no mar não o deixara
mais rico que o tempo que trabalhou em terra. Perguntou-se mais uma vez: “o que
farei para viver?”. Dessa vez Hazen não passou necessidades. Logo arrumou um
emprego na loja de sapatos na elegante Rua do Ouvidor pertencente ao inglês Mr.
Bridges onde trabalhou ao lado de escravos africanos e trabalhadores livres. Bridges
levou Hazen para morar em sua casa na Glória, bem como outro funcionário inglês.
Os três juntavam-se a noite para tocar música e beber vinho, momentos que torna-
ram o dia-a-dia carioca de Hazen aparentemente agradável.
Mas esta vida pacata não era suficiente para o norte-americano. Hazen apai-
xonou-se pela cortesã inglesa Mary Mertle. Seu pai viera trabalhar na extração do
ouro em Minas Gerais. Insatisfeito com o trabalho e com o país, ele resolveu voltar
com a esposa e a filha para a Inglaterra. A família Mertle instalou-se na estalagem
de certo Senhor Surfe, misto de hospedagem, prostíbulo e casa de bilhar, enquan-
to esperava o embarque para a Inglaterra. O alemão atraiu-se pela beleza de Mary
e tornou-se seu amante e cafetão. Escondeu-a dos seus pais, os quais deixaram o
país achando que a filha morrera. Mr. Surfe, alemão de nascimento, era falante de
diversas línguas, e segundo Hazen, fora espião de D. Pedro I. Tinha duas esposas,
várias amantes, sendo Mary uma delas. Hazen passaria a frequentar as “elegantes”
salas de bilhar desta estalagem.
Surfe terminou envolvido em um assassinato, foi preso, e a casa continuou fun-
cionando sob o comando da cafetina Scotch Liz. Nesse período, Hazen tornou-se
amante de Mary. Viciado em jogar bilhar ganhando pouco como sapateiro, procurou
trabalho nos navios da “US Exploring Expedition” que no final de 1838 aportara no
Rio de Janeiro. Esta foi a primeira expedição de volta ao mundo da marinha de guerra
norte-americana. Os objetivos eram tanto científicos quanto econômicos. Como
era um mero grumete (landsman), não foi aceito e arranjou um bico num navio
brasileiro de cabotagem que transportava café no litoral da província fluminense.
Quando voltou da primeira viagem, Mary estava muito doente, faminta e abando-
nada por sua cafetina. Ele serviu-lhe um prato de sopa e voltou ao trabalho. Quando
105

veio vê-la, quatro dias depois, ela já estava enterrada na vala comum do cemitério
da Santa Casa, junto de escravos, mendigos e outros pobres e desvalidos.
Hanzen descreve longamente o horror desse fim e do cemitério que continha
“pilha sobre pilha de cadáveres” de gente de todas as cores e idades. Atordoado com
o triste fim da amiga amante ficou sentado diante do cemitério até altas horas da
noite, olhando para o norte, “procurando em vão a estrela polar, que naquela hora
devia estar iluminando os vales e montanhas de sua terra natal”. Em meio a esta
imagem, reconstituiu os rostos de seus familiares às quais juntou o da pálida Mary,
criando assim um inventário sentimental de sua vida. Apavorou-se com a ideia da
distância, a possibilidade de uma febre tropical encaminhá-lo para uma “tumba
tão solitária quanto densamente povoada”. Decidiu voltar. Foi neste instante que a
trupe de recrutadores o levou para um navio da Armada do Império.
Logo que obteve o desembarque da fragata Prícipe Imperial, desejoso de voltar
para a sua cidade, alistou-se no Independence, navio da Brazil Station (estação naval
norte-americana que permaneceu por muitos anos na costa do Brasil). Percorreu
toda a costa das Américas do sul e do norte e não conseguiu chegar a sua cidade.
Acabou sendo escalado para tripular uma frota que ia para o Mediterrâneo. Conhe-
ceu Gibraltar, Nápoles e Siracusa e finalmente aportou em Maó, na Ilha de Maiorca
onde conheceu Frank, Francisca ou Francesca Modora. A mãe da moça a ofereceu
em casamento. Ali passou um tempo. Suas intenções com ela não eram matrimoniais,
tampouco enganadoras, era um amor de marinheiro. Foram a um baile de másca-
ras, ele vestido de sultão e ela de cigana. Mesmo fruindo diferentes estilos de vida,
Hazen nunca abandonou o discurso da superioridade da civilização protestante. As
observações sobre a ilha poderiam ser feitas sobre Lisboa, Rio de Janeiro:

Os nativos de Maiorca, como quaisquer outros de países católicos, são apaixonados


por procissões, espetáculos, bailes de máscaras e fandangos. Um terço do tempo,
que em comunidades inteligentes é empregado em estudos de livros, ou alguma
recreação intelectual, aqui é devotado à dança e à festa. Ociosidade e ostentação
são tão inseparáveis quanto ignorância e vício.

Findo seu tempo regular na Marinha, desembarcou em Maiorca. Despediu-se com


lágrimas sinceras de Francisca, partiu para Marselha e de lá para New Orleans, No
seu retorno a casa, a última escala foi a capital norte-americana, onde esteve no
Senado e no Ministério da Marinha para resolver suas pendências militares. De lá
106

tomou um trem para Filadélfia. Naquela cidade, procurou por Susan, a namorada que
deixara cinco anos com juras de amor. Esta última, com certo afeto, lhe informou que
depois de todo este tempo já tinha outros compromissos. Hazen agradeceu profun-
damente a sinceridade, mas de algum modo vingou-se dela, através de sua descrição:
“Bonita ela, sem dúvida, foi, traços de beleza ainda se viam aqui e ali nas suas feições,
mas as bochechas fundas e o rosto avivado deviam mais ao rouge e outros pós do que à
matiz rosácea da saúde.” Se ele a perdera, também ela perdeu sua beleza. O tempo que
os separaram era o mesmo que erodiu seu rosto.
O conto “Noite de Almirante” de Machado de Assis é sobre um reencontro seme-
lhante. De volta de uma longa viagem, Deolindo Venta-Grande propagandeou aos seus
companheiros que na sua noite de folga viveria a tão sonhada noite de almirante, depois
de meses sem ver Genoveva, aquela que jurou-lhe amor eterno. Quando finalmente a
encontrou, ela informou-lhe que namorava um caixeiro, argumentando que a jura fora
sincera, “Pode crer que pensei muito e muito em você. (...) Mas o coração mudou... (...)
Veio este moço e eu comecei a gostar dele...”.150 Diferente de Hazen que assumiu em suas
memórias o fora que levou, Deolindo voltou para o navio “com um sorriso satisfeito e
discreto, um sorriso de pessoa que viveu uma grande noite”.151
O fim da trajetória narrada por Hazen é o retorno a sua terra natal, onde apenas
menciona que reveria aqueles que durante oito anos visitaram seus sonhos. Encerra
suas histórias de farras, amores, aventuras e sofrimento com frases edificantes enal-
tecendo além da Marinha americana, a continuação de sua pobreza, o grande conheci-
mento obtido, mas sobretudo sua integridade inabalável: “Vocês me viram sujeito à
crueldade, à privação e às decepções – banido do convívio social – frequentemente
sem amigos – sempre pobre, mas jamais desanimado”.

150 assis, Machado de. “Noite de Almirante”. Obra completa Volume II – Conto e Teatro. p. 449.
151 Idem, p. 451.
107

Assinaturas extraídas dos Livros de socorros da fragata Imperatriz. an, Série Marinha, xvii m 2500 e xvii m 2501. Pará,
década de 1830.
109

3 Nacionais

A bandeira nacional, quando surge tremulando por esses remotos


lugares, em vez de causar satisfação e alegria, espalha o terror.1

Um poema ainda existe


Com palmeiras, com trincheiras,
Canções de guerra
Quem sabe canções do mar...

Soy loco por ti América


gilberto gil e josé carlos capinan

Este capítulo versa mais sobre recrutas do que marinheiros. A documentação do


recrutamento permitiu entrever as vidas dos homens pobres livres do Império. Os
recrutas não necessariamente ingressaram nas Forças Armadas. Eles eram uma ca-
tegoria intermediária. Mas uma boa parte tornou-se marinheiro.
Por nacionais entendo os homens nascidos no território do Império, normal-
mente identificados por suas províncias, e não como “brasileiros” ou nacionais,
no item “naturalidade” de seus assentamentos. A expressão “marinheiro nacional”
aparece na documentação oficial desde pelo menos a década de 1830, como num
dos decretos que criaram as companhias fixas de marinheiros, futuras Companhias
de Imperiais Marinheiros. O primeiro artigo desse decreto define o seu principal
objetivo: “O Corpo das Companhias fixas é destinado para formar uma escola de
Marinheiros Nacionais, próprios para todo o serviço da Esquadra Brasileira, tanto
na paz como na guerra”.2 O “marinheiro nacional” deveria ser formado, processo
que ocorreu ao longo do século xix. O “marinheiro nacional” é aquele que passará a

1 Jerônimo Francisco Coelho, presidente da província do Pará, sobre o recrutamento para a Marinha
no rio Amazonas, 1848. an, Série Marinha, xm 107, Correspondência com o presidente do Pará. Ofício
do presidente do Pará para o ministro da Marinha, 11 de maio de 1848.
2 Decreto de 1° de julho de 1837, Coleção de leis do Império, 1837.
110

existir junto da Nação, também em processo de formação. O “nacional” deste estudo


não é um conceito finalizado, mas o termo é utilizado em oposição ao estrangeiro,
ao que não é nativo do território, nem naturalizado.
Se por um lado apresento grupos marcados por suas diferenças, de naturalidade,
cor, condição, por outro, entendo que suas experiências de homens pobres, maci-
çamente livres ou libertos, têm muitos aspectos comuns, tornando-os sujeitos ao
recrutamento e à nacionalização.

3.1  O recrutamento militar no Império

De 1822 até 1874 o recrutamento militar foi orientado pelo Regulamento de 10 de


julho de 1822: “Ficam sujeitos ao recrutamento todos os homens brancos soltei-
ros, e ainda pardos libertos de idade de 18 a 35 anos que não tiverem a seu favor as
exceções”.3 As exceções incluíam alguns tipos de trabalhadores, além de algumas
situações familiares, como homens casados, filhos únicos de mães viúvas e irmão
mais velho de órfãos.
O recrutamento militar gerou uma documentação privilegiada para entender
a relação da população com as várias camadas de poder. Segundo Hendrik Kraay:

O recrutamento oferece uma oportunidade de ver de dentro o funcionamento


do Estado brasileiro e de analisar os valores que norteavam os homens dentro
do aparelho do Estado (...) especialmente dada a diversidade de setores sociais
ligados pelo recrutamento. 4

Essa diversidade de setores sociais envolvidos no processo do recrutamento per-


mite estudá-lo por meio de um “jogo de escalas”.5 Nos debates parlamentares e nos
relatórios de ministros e presidentes é possível entrever lances da relação do Estado
com a população. Uma coleção de ofícios, assinados, em geral, pelos presidentes
de província, com listas anexas contendo informações – nome e, variavelmente, a

3 “Decisão n. 67”, Decisões do Império, 1822.


4 kraay, H. “Repensando o recrutamento militar no Brasil Imperial”, p. 142.
5 Refiro-me à expressão do título do volume organizado por Jacques Revel: Jogos de escalas: a
experiência da microanálise.
111

cor, o ofício, o motivo do recrutamento, o local, etc demonstra como este processo
ocorria nas províncias.
Finalmente, focalizo o indivíduo por meio de um conjunto de mais de 140 reque-
rimentos de dispensa militar, oriundos de várias localidades do Império, a maioria
endereçada ao Imperador, onde os próprios recrutas, ou seus familiares, contam
um pouco de sua história até o momento da “prisão para fins de recrutamento”, em
geral, por meio de procuradores. Nos requerimentos podemos ler suas versões dos
fatos, que contrastam com as das autoridades, e fragmentos biográficos, compro-
vados, ou não, por documentos, como certidões de nascimento, atestados de bom
comportamento, de pobreza etc.
Os escravos eram exceção nos navios, eles estavam excluídos do recrutamen-
to, deveriam permanecer em atividades produtivas. Os que ingressaram, o fizeram
durante alguns curtos períodos quando a legislação permitiu; foram recrutados por
engano ou de propósito por ávidos caçadores de recompensas; ou se alistavam para,
justamente, fugir da escravidão. Nos navios estudados, quando eles aparecem são,
muitas vezes, criados de oficiais.
É preciso lembrar igualmente que em qualquer mapa de população provincial
do Império a população livre é maior do que a escrava. Por um período pequeno
apenas, os escravos foram maioria na Bahia, no Rio de Janeiro e no Maranhão. Em
províncias como o Ceará e São Paulo, não passavam de 20% da população. Em 1829,
por exemplo, eles representavam em torno de 30% da população do Império.6
De acordo com Hebe Mattos, mesmo para um período mais próximo da Abolição,
os estudos sobre a escravidão consideraram por muito tempo o homem pobre livre
residual em um sistema econômico baseado na grande lavoura e escravidão. Para
a autora, “desenhou-se uma não sociedade, onde milhões de pessoas, entre livres
e escravos, estariam em condição de desclassificação social, desajuste cultural e
marginalidade cultural”.7
Durante o Império, uma enxurrada de avisos, decisões e decretos mudou várias
vezes as regras do recrutamento em aspectos como idade, cor, entre outros, ge-
rando certa confusão entre recrutadores e recrutas. Procedimentos, que diante do
regulamento pareciam ilegais, muitas vezes não eram. Ainda assim, muitos abusos
foram praticados.

6 senra, Nelson. História das estatísticas brasileiras. Volume 1: Estatísticas desejadas.


7 mattos, Hebe. M. Das cores do silêncio, p. 34.
112

No século xix, “preso para recruta” era uma expressão corrente e os familiares
pediam soltura ou “liberdade” para os seus entes recrutados. O alistamento volun-
tário na Marinha era muito pouco praticado.
Esse “ato de prisão” era, via de regra, feito de maneira violenta, por soldados ou
policiais. Todo o aparato militar, policial e judicial, e mesmo homens pobres atrás de
recompensas, faziam parte desse circuito. Anna Francisca T. Leitão, da vila de Santos,
São Paulo, reclamou que seu filho Antonio José das Freitas Leitão “foi violentamente
metido em praça da Marinha, sem que houvesse motivos que justificassem seme-
lhante violência”.8 A mãe do estudante pardo baiano Marcolino Sant’Anna também
reclamou da violência do recrutamento, além da pouca idade de seu filho (10 anos). 9
Tenentes da Marinha e do Exército e policiais eram os principais agentes re-
crutadores. Os homens pobres muitas vezes poderiam ser recompensados, caso
indicassem ou trouxessem recrutas ou praças desertores. Os juízes e delegados lo-
cais decidiam quem mandar para os presidentes das províncias; finalmente, estes
últimos enviavam os recrutas para a Corte. Essa extensa rede foi percebida por Hen-
drik Kraay como “um sistema no qual contribuíram o Estado, a classe de senhores
de terras e escravos e boa parte dos pobres livres, e da qual cada participante tirou
benefícios significativos”.10
A recompensa pela entrega de recrutas e desertores era uma remuneração extra,
instituída e organizada para funcionários da Polícia da Corte. Em 1842, O chefe da
polícia Eusébio de Queiróz enviou ao ministro da Marinha Rodrigues Torres o valor
que o Ministério devia à Polícia: 535$000 réis, resultado da captura de 95 recrutas e
12 desertores, a 5$000 réis por indivíduo. Esse valor seria repassado ao recrutador.11
Em 1837, o presidente do Rio de Janeiro, em um ofício reservado, pedia autorização
para o ministro Rodrigues Torres para recompensar, não somente juízes de paz e
inspetores da Guarda Nacional que conseguissem recrutar ou engajar homens, mas
também “pessoas de mais baixa esfera”, com 2$000 ou 4$000 réis, as quais “pela
sua condição social, conhecem e estão em contato com aqueles outros que podem

8 an, Série Marinha, xm 1138, doc. 1, Requerimentos, 1856.


9 an, Série Marinha, xm 1161, doc. 45, Requerimentos, 1842.
10 kraay, H. “Repensando o recrutamento militar”, p. 114.
11 an, Série Marinha, xm 5, Correspondência com o chefe de polícia. Ofício do chefe de polícia Eusé-
bio de Queiróz C. M. Câmara ao ministro da Marinha José Joaquim Rodrigues Torres, 7 de agosto
de 184 3.
113

ser engajados ou mesmo recrutados”.12 Tratava-se afinal da velha prática política de


insuflar a discórdia entre despossuídos. Essa era a lógica do conto “Pai contra mãe”
de Machado de Assis; do pobre que caçou uma escrava para angariar uma recompen-
sa, melhorar de vida e, desse modo, não entregar seu filho recém-nascido à roda de
expostos. Em meados do século xx, Graciliano Ramos, quando preso por motivos
políticos, foi deportado com presos comuns para o Rio de Janeiro. Em um primeiro
momento, sentiu-se incomodado por misturar-se a homens que imaginava “vagabun-
dos e criminosos”. Logo, identificou-se aos seus companheiros de travessia: “naquele
infame lugar todos nos importunávamos. (...) Esta aí o requinte de perversidade:
enquanto os verdugos repousam, as vítimas são forçadas a afligir-se mutuamente”.13
Presidente do Pará, em 1848, o catarinense Jerônimo Francisco Coelho reconhe-
ceu que o recrutamento era uma violência de Estado, e escreveu instruções para que
não se cometessem “o abuso de recrutarem crianças arrancadas violentamente de
seus pais e de seus lares (...) visto que por cada recrutado compete uma gratificação
ao recrutador”.14 Em geral, as altas autoridades não se responsabilizavam pelo tra-
tamento brutal dado aos recrutas, culpando os agentes de recrutamento.
Em 1861, o lavrador Cyrilo José de Sant’Anna disse ter sido violentamente re-
crutado enquanto trabalhava em uma de suas roças de mandioca de sete mil covas,
na vila de Itapagipe, no Recôncavo Baiano. Segundo Sant’anna, enquanto estava
roçando, diversas pessoas montadas a cavalo passavam na estrada, as quais ele não
cumprimentou por não conhecê-las. Imediatamente, “foi agredido por falta de não
tirar o chapéu, declarando-se-lhe nesse ato ser um deles o dr. delegado de polícia da
referida vila que passou logo a dar a voz de preso ao suplicante, sendo chicoteado
e amarrado para ir conduzido preso e recrutado para a sobredita cadeia da vila de
Jaguaripe”, de onde seguiu para a cidade da Bahia e depois foi enviado à Corte, onde
assentou praça na Armada. Cyrilo escreveu um requerimento e conseguiu soltura,
alegando a necessidade de voltar para suas roças que deveriam estar estragando ou
sendo saqueadas, além de ser integrante da Guarda Nacional.15
Naquele ano, o presidente da Bahia, José Augusto Chaves, ciente do caso de Cyri-
lo, reconhecia que ocorria algo que o olhar das “autoridades superiores”, a princípio

12 an, Série Marinha, xm 68, 1835.


13 ramos, Graciliano. Memórias do cárcere, p. 126.
14 an, Série Marinha, xm 107, Correspondência com o presidente do Pará. Ofício do presidente do Pará
para o ministro da Marinha, 11 de maio de 1848.
15 an, Série Marinha, xm 544, Correspondência com o presidente da Bahia, 1861.
114

legalistas, não alcançava. Ele opunha “centro da província”, às capitais, mas também
sabia que ali mesmo na capital acontecia todo tipo de arbitrariedade:

É de meu dever declarar-vos que no centro da província nem sempre são observa-
das as fórmulas garantidoras prescritas pelas leis, de sorte que jazem os recruta-
dos por longo tempo nas imundas prisões que por aí existem, sem que tenham o
devido destino. Estes fatos, que desgraçadamente se reproduzem em nosso país,
são motivados pela longitude em que ficam seus diferentes pontos das capitais
onde residem as autoridades superiores, o que enfraquece inevitavelmente a ação
repressiva das mesmas contra os vários modos por que se manifesta o abuso e
dificulta consideravelmente o transporte dos recrutas.16

Do ponto de vista das elites dirigentes, não só os índios, cabras, mulatos e afins, mas
também autoridades inferiores dos sertões seriam as responsáveis por tudo que
fosse ilegal, e incivilizado.
Na década de 1820, recrutavam-se à força muitos marujos da Marinha mercante e
indivíduos que trabalhavam na região do porto, estrangeiros ou nacionais. Segundo
o militar e historiador Juvenal Greenhalg, o recrutamento nessa época era realizado
por meio de verdadeiras razias: invadiam-se navios mercantes durante a madrugada,
à caça de homens.17 Em 1825, o negociante Antonio Moreira requereu pela quarta
vez sua soltura, pois fora “preso para marinheiro” na Corte, enquanto carregava
uma sumaca com 10 pipas de vinho, 20 rolos de fumo e 20 barricas de açúcar. Detido
na presinganga argumentava ser negociante e sofrer grave prejuízo, pois a sumaca
com uma parte de suas mercadorias partira e a outra parte teria ficado em terra.18
A urgência em guarnecer as Forças Armadas atingiu algumas vezes pessoas não
pobres. Mas elas poderiam livrar-se do recrutamento legalmente de duas maneiras:
pagando 600$000 réis ou oferecendo outra pessoa em seu lugar.19 O baiano Lou-
renço Cardoso Marques foi um deles. Voluntário no Exército “para defender a sua
Pátria, no tempo em que ela se achava no poder dos lusitanos”, desejava continuar
os seus estudos de latim. “Patriota”, reconheceu a falta que um recruta fazia naquela

16 Relatório do presidente da Bahia, 1861, p. 23.


17 greenhalg, J. O arsenal de Marinha do Rio de Janeiro na história, p. 186-7.
18 an, Série Marinha, xm 1142, doc 42, Requerimentos, 1825.
19 kraay, Hendrik. Repensando o recrutamento militar no Império, p. 118.
115

época: “Olhando ainda para a precisão que o Brasil tem de soldados (...) oferece no
seu lugar um homem de mais força e melhor físico do que ele, para assim obter o
que requer”.20 Localizei apenas um requerimento de um sujeito que teria efetuado
o pagamento de 600$000 réis: Manoel José Campos declarou o pagamento dessa
quantia em novembro de 1865, já no contexto da guerra do Paraguai.21 Essas prá-
ticas deixaram de ser legais, mas o costume continuou no século xx: quem tinha
dinheiro e/ou poder, ou era amigo de quem os tinha, sempre pôde obter dispensa
do serviço militar no Brasil.
Os flagelados das secas do século xix tornaram-se recrutas. Nas palavras de Peter
Beattie, “garantir o recrutamento de vítimas da seca era uma medida criativa para
prover ajuda sem onerar os cofres públicos provinciais”.22 Segundo o presidente
da província do Ceará, a seca de 1845, que assolou a “classe pobre”, gerou uma boa
notícia para o recrutamento: 120 pessoas, incluindo 100 crianças, a maioria prova-
velmente órfã. Dessas crianças sabemos que algumas eram indígenas e, que listados
em sequência, Cosme e Damião eram certamente gêmeos. Outro nome dessa lista
trágica que chamou atenção foi o de Brazileiro Manoel da Silva. Quem o nomeou
assim? Seus pais ou o funcionário do Governo que escreveu a lista de recrutas? O
vapor Pernambucana foi fretado para trazê-los à Corte.23 Dificilmente alguém os
reclamou e desconfio que muitos devem ter morrido durante a viagem. Talvez es-
ses meninos sejam os mesmos referidos por Thomas Ewbank, em seu relato sobre
o Brasil. Em 1846, ele passou uma tarde na Corte com um deputado cearense que
esteve presente na província durante a seca. Dentre os horrores da fome descritos,
contou que pais e mães indígenas estavam vendendo seus filhos para a Marinha em
troca de comida: “Antes era muito difícil conseguir um indiozinho por menos de
setenta mil-réis, mas agora os seus pais, não tendo o que dar de comer, nem o que
comer, oferecem-nos facilmente por dez”.24 Segundo Ewbank, no Rio de Janeiro, os
índios eram negociados como escravos, do mesmo modo que os pretos.

20 an, Série Marinha, xm 1141, doc 25, Requerimentos, 1825.


21 an, Série Marinha, xm 1159, doc 5, Requerimentos, 1865.
22 beattie, Peter. Tributo de Sangue, P.
23 Arquivo Público do Ceará. Correspondência do Governo da Província ao ministro da Marinha. Ala
2, Estante 25, cx. 142.
24 ewbank, Thomas. Life in Brazil; or A journal of a visit to the land of the cocoa and the palm, p. 323. Tra-
dução minha.
116

Ao longo do século, a idade mínima dos recrutas, 18 anos, foi diminuindo para
dez anos. Já em 1823, a caminho da Bahia, Lord Cochrane aconselhava o ministro
José Bonifácio que se escolhessem moços de 14 a 20 anos para marinheiros.25
As Escolas de Aprendizes Marinheiros, abertas em todas as províncias litorâneas,
entre as décadas de 1840 e 1870, tornaram-se, na segunda metade do século, a fonte
principal de homens para a Marinha, ou “um viveiro da maruja”, como as chamaram
alguns ministros. A fundação dessas escolas, segundo o ministro da Marinha, Za-
charias Góes de Vasconcellos, ajudaria a evitar “a repugnância, tão natural nos pais
a separarem-se de seus filhos para entregá-los em tenra idade ao cuidado estranho
e à educação militar, talvez fosse assim vencida”.26
Vários decretos diminuíram a idade dos recrutas, e previam o envio de órfãos. Em
1859, a Casa Pia dos Órfãos de São Joaquim, existente até hoje em Salvador, enviou
para a Companhia de aprendizes da cidade dez órfãos, todos eles com sobrenome
Mattos.27 Dez anos depois, a Casa desejou livrar-se de um órfão, oferecendo-o como
Imperial Marinheiro com a justificativa de ter “apresentado má conduta”, mas que
convinha “não ser abandonado, um ente que ainda pode ser útil à sociedade”.28 A
prática de “tornar úteis” meninos pobres de “má conduta” ainda persevera até os
dias de hoje. Nas últimas décadas, menores egressos da febem (órgão federal de
detenção de menores infratores) ingressavam com frequência na Marinha, onde, até
pelo menos a década de 1980, recebiam o apelido de “bocas pretas”.29 Em um blog
mantido em 2006, chamado “O aprendiz marinheiro”, o pernambucano Clemilton
escreveu as memórias de sua infância e adolescência difíceis como filho de uma fa-
mília pobre e desestruturada. Ele entendeu que ingressar na Escola de Aprendizes
Marinheiros poderia ser uma saída. Alojado em um quartel, a fim de se preparar para
o concurso de ingresso, teve a seguinte percepção dos seus possíveis futuros colegas:

Em três dias que estava lá, vi nosso amigo Neném desistir e retornar para casa.
Foi duro para ele ficar separado dos pais, já que tinha uma família normal. (...)
Aquele ambiente era mesmo uma dureza para quem tinha uma família, um lar es-
truturado e melhores perspectivas de vida lá fora. Junto conosco estavam jovens

25 cochrane, Thomas. Narrativa de serviços no libertar-se o Brasil da dominação portuguesa, p. 57.


26 Relatório do ministro da Marinha, 1852.
27 an, Série Marinha, xm 536, Correspondência com o presidente da Bahia, 1859.
28 matta, Alfredo, E. R. Casa pia Colégio de órfãos de São Joaquim, p.157.
29 Depoimento de um fuzileiro que serviu no período à autora.
117

infratores que vinham da febem (Fundação do Bem Estar do Menor) e rapazes que


eram abandonados pela família. Comecei a meditar se seria bom para mim aquele
convívio, e me lembrei que a minha vida lá fora também não era tão boa. Ali eu ti-
nha as refeições diárias, educação, cuidados hospitalares e uma cama pra dormir.30

Como na história de Clemilton, no século xix, as Forças Armadas poderiam re-


presentar uma escolha para uma minoria de membros de famílias muito pobres ou
desestruturadas ou a escravos que preferiam a instituição aos seus senhores. Havia
escravos, lavradores, migrantes, entre outros, que viviam em situação mais dura do
que a encontrada nas Forças Armadas, principalmente no Exército. Nesse caso, o
serviço militar oferecia “vias estreitas de mobilidade social ou, ao menos, abrigo
temporário”.31 Seguindo a mesma linha de raciocínio, Álvaro Nascimento analisou
alguns casos de ingresso de crianças pobres no fim do século xix e início do xx.32

3.2  Homens em movimento

Fixar, sedentarizar a força de trabalho, regar o movimento do fluxo de trabalho,


determinar-lhe canais e condutos, criar corporações no sentido de organismos, e
para o restante recorrer a uma mão-de-obra forçada, recrutada nos próprios lu-
gares (corveia) ou entre os indigentes (ateliês de caridade). Essa foi sempre uma
das principais funções do Estado que se propunha ao mesmo tempo vencer uma
vagabundagem de bando, e um nomadismo de corpo. 33

Para vencer o “nomadismo de corpo” ou a “vagabundagem de bando” dos homens


livres, detinha-se deslocando-os. Trabalho forçado, galés, militarização e degredo
tornaram os navios e as colônias espaços dos indesejados na história do Ocidente.
Segundo Peter Beattie, durante a colonização, soldado era um eufemismo frequente
para degredado.34 A militarização foi um fator permanente e crescente, durante a

30 Blog O aprendiz marinheiro. Disponível em: http://clemiltonbs.blog.uol.com.br. Acesso em: 31 jul. 2011.
31 beattie, Peter. Tributo de sangue: Exército, honra, raça e nação no Brasil, 1864-1945, p. 29. Ver também
kraay, H. “Repensando o recrutamento militar no Império”.
32 nascimento, Álvaro P. do. A ressaca da marujada, p. 76-84.
33 deleuze, Gilles e guattari, Félix. Mil platôs: Capitalismo e esquizofrenia. Vol. 5, p. 34. Grifo meu.
34 beattie, Peter. Tributo de sangue, p. 33.
118

colonização e a formação dos Estados Nacionais. Seja como soldados, marinheiros


ou força policial, certos grupos de homens eram recrutados da desordem e realo-
cados nas forças de ordem.
As migrações dentro do Império, voluntárias ou não, tiveram vários motivos:
índios se dirigiram para regiões de fronteira fugindo da colonização, outros eram
descidos ou atraídos para aldeamentos; escravos fugidos criaram quilombos; es-
cravos eram vendidos para outras províncias; uma grande população de marítimos
circulava em toda a costa, às vezes, adentrando pelos rios; colonos e aventureiros
portugueses chegavam; comerciantes procuravam novas praças; áreas de expansão
se abriam sempre que a agricultura ou a mineração se esgotava; pobres migravam em
busca de uma subsistência melhor, por exemplo, flagelados das secas; e milhares de
homens recrutados para o Exército e Armada mudaram de província. Um exemplo
de como esses movimentos eram simultâneos é a viagem de 1842 da corveta Bertioga,
que levou para a Corte mais de 80 praças baianos junto de 170 escravos do Piauí ven-
didos para o Rio de Janeiro. 35 O Brasil era habitado, principalmente, na sua extensa
faixa costeira. Se, depois da Independência, os habitantes já não apenas arranhavam
a costa como caranguejos, ali se concentrava uma grande parte da população, e o
mar ainda era a principal via de circulação de mercadorias e gentes.
Não apenas o recrutamento gerava mobilidade. O contrário também acontecia.
Há muitos casos de recrutamento de pessoas em trânsito. Uma parte dos recrutas
alegou que tratavam de negócios. Foi o caso do morador de Paraty, José Francisco da
Silva, recrutado na Corte; do pernambucano Florêncio Rodrigues da Silva, recrutado
no sertão da Paraíba; do maranhense, pardo e prático de barra Raimundo Nonato,
casado, filho natural e pai de filhos menores, recrutado na Bahia; e do morador da
vila da Feira, Bahia, recrutado na capital da província. Outros tantos alegaram estar
transportando carga. Geraldo, aprendiz de ferreiro e morador do engenho Mamu-
caia, zona da mata pernambucana, foi recrutado na freguesia de Afogados, Recife,
ficando seu cavalo e sua carga de açúcar no meio da rua. Um mineiro foi contratado
para matar formigas nas lavouras cafeeiras do Rio de Janeiro e acabou recrutado.36
Em 1842, Antonio José Cordeiro, a caminho de São Paulo, sua terra natal, foi
recrutado em Resende, Rio de Janeiro. Soldado de 1ª linha de caçadores do Batalhão
dos Inválidos, teria ficado aleijado na Batalha de Taquari na Guerra dos Farrapos, em

35 an, Série Marinha, xm 513, Correspondência com o presidente da Bahia.


36 an, Série Marinha, vários pacotes do conjunto “Requerimentos”.
119

1840. Em Resende ele fora preso como cúmplice de um assassinato. O delegado, que
também era o juiz municipal, achou melhor mantê-lo detido, mesmo findo o pro-
cesso. O carcereiro testemunhou que, na “ocasião de descer os recrutas”, o mesmo
juiz/delegado o achou “nas circunstâncias do recrutamento”. Segundo este último,
“para evitar uma impunidade o separei para praça, livrando o país de um indivíduo
amotinador, ébrio e inimigo do trabalho”. Mais uma vez não sabemos quem diz a
verdade. A história de Antonio não é necessariamente verdadeira, mas é verossímil:
paulista, depois de participar de um combate no Rio Grande do Sul e ficar aleijado,
obtém a baixa do Exército na Corte, e ao voltar para casa é recrutado pela Marinha.
Se o juiz tem razão, qual é de fato a sua culpa? Ter presenciado um assassinato, sem
provas? Ser ébrio, inimigo do trabalho? Essas expressões genéricas são uma constan-
te na retórica legal quando não há uma infração específica. A versão de Antonio, por
ser rica em detalhes, mais criativa, acaba sendo mais convincente do que o discurso
vago daquele que o deteve. Se os documentos do recruta não comprovam o que diz,
tampouco o faz os de seu acusador.37
Enfim, os “forasteiros” sem proteção corriam o risco permanente do recruta-
mento, como apontou Hendrik Kraay. A mobilidade para o homem livre ou liberto
poderia ser perigosa, afinal, de acordo com a sua cor, o risco de escravização ou
reescravização era real, e o do recrutamento também. Contudo, isso não impedia
as pessoas de continuarem a se movimentar.

3.3  Naturalidade provincial

A principal identidade de um habitante nativo do território do Império, em mo-


vimento ou sedentário, era o seu local de nascimento, principalmente provincial.
Assim, os recrutas eram baianos, pernambucanos, catarinenses, paraenses etc. O
tenente da Marinha, Eloy Sabino Pessoa, no fim da década de 1850, atribuiu carac-
terísticas aos marujos de acordo com sua província:

Qual é a província do Brasil cujos filhos tenham sido excetuados do serviço naval
por incapazes? Pois não vêm de Minas, de Goiás, do Mato Grosso, recrutas para a
Armada, e depois de curta aprendizagem, não se habituam todos a um gênero de vida

37 an, Série Marinha, xm 84, Correspondência com o presidente do Rio de Janeiro.


120

tão diferente do que tinham? Sabe-se que Santa Catarina é um viveiro de excelentes
marujos que os americanos conduzem à pesca da baleia; que os paraenses vão para
alto-mar com excelentes lições do Amazonas; que os pernambucanos reúnem ao
valor inato a facilidade com que se adestram na profissão marítima; que os espiri-
tuosos baianos igualam a bordo o clássico parisiense da Marinha francesa, sempre
joviais, mas ágeis e valentes; finalmente que não há um só porto no vasto território do
Império cujos habitantes se mostrem sem idoneidade alguma para o serviço naval.38

Essa exaltação era uma resposta a um artigo depreciativo da revista inglesa United
Service Magazine, onde ele lera que “os brasileiros não eram idôneos para a vida no
mar”. O elogio aos “filhos do Brasil” não era usual entre os escritores estrangeiros
nem tampouco entre os nacionais. Por outro lado, a necessidade de uma população
“idônea”, em alguns momentos, superava a concepção depreciativa que as elites ex-
pressaram tantas vezes. Em meados do século, em defesa da nacionalidade, cabia
realocar a população em uma posição mais nobre, identificando as qualidades dos
ethos regionais, os quais reunidos contribuíam para o fortalecimento a Nação.
A diversidade de naturalidade provincial na Marinha era fruto de uma política
de proporcionalidade de envio de recrutas para a Corte. A partir de pelo menos 1831,
alguns decretos estipularam o número de recrutas que cada província deveria en-
viar para a Armada, segundo a estimativa da população de cada província. À Minas
Gerais cabia o maior número, já que era a mais populosa. Mas a lei acabou sendo
relaxada para as províncias interioranas. Os recrutas vinham, principalmente, de
regiões litorâneas ou próximas ao litoral. Peter Beattie observou o mesmo fenô-
meno para o Exército. Era praticamente impossível escoltar dezenas ou centenas
de recrutas de Minas Gerais para a Corte. Mato Grosso39 e Goiás também não en-
viaram muitos recrutas.
É comum encontrar nos relatórios de presidente de província um número maior de
recrutas enviados do que aqueles listados como recebidos nos relatórios do Ministério
da Marinha para o mesmo ano. Em 1859, o presidente da Bahia informava que enviara
85 recrutas para a Marinha. No Relatório do ministro da Marinha do mesmo ano estava

38 pessoa, Eloy, S. Viagem da Corveta Imperial Marinheiro nos annos de 1857 a 1858 a diversos portos do
Mediterrâneo e do Atlântico, p. 18.
39 Na província de Mato Grosso estava localizada a única Estação Naval fluvial do Império. Os homens
ali recrutados, em geral, não eram enviados à Corte, serviam ali mesmo.
121

registrada a vinda de 55 homens daquela província. Em 1874, o ministro da Guerra


calculava que, para obter dois mil recrutas, era necessário prender 20 mil homens.40

tabela 4

Naturalidade provincial dos marinheiros 1833 - 1854


província marinheiros
Bahia 210
Pernambuco 142
Pará 83
Maranhão 51
Sergipe 41
Ceará 40
Rio Grande do Norte 22
Paraíba 21
Alagoas 23
Piauí 5
total de “províncias do norte” 633
Rio de Janeiro 206
Santa Catarina 47
São Paulo 42
Espírito Santo 19
Rio Grande do Sul 15
Minas Gerais 6
total de “províncias do sul” 335
Província não identificada 95
total 1067

Fonte: an, Série Marinha, Correspondência com presidentes de província, vários maços.
(Ver relação completa na bibliografia)

40 kraay, Hendrik. Repensando o recrutamento militar, p. 125.


122

A maior parte dos marinheiros era natural das províncias do Norte. Na década de
1850, cerca de metade dos recrutas do Exército eram da mesma região. Segundo Peter
Beattie, junto da seca, o recrutamento militar foi um dos fenômenos que ajudaram
a criar “a imagem do Nordeste caracterizada pela pobreza, subnutrição, exploração
e falta de educação”.41

3.4  “Jugado feito batata”: A viagem à Corte

A principal via de chegada dos recrutas à Corte, tanto do Exército quanto da Marinha,
foi o mar. Na década de 1820, a fragata inglesa Thetis levou recrutas baianos e de
outras províncias do Norte em seus porões.42 O brigue norte-americano Leopard
deu “carona” a recrutas capixabas escoltados por dez soldados.43 A província do
Espírito Santo, devido a sua proximidade à Corte, enviava recrutas em embarcações
menores, como sumacas e lanchas. Pagavam-se aos seus proprietários de 8$000 a
10$000 réis por recruta transportado, até pelo menos a década de 1840.44
Fragatas, brigues, galeras, corvetas e patachos da Armada ou mercantes se re-
vezaram na entrega de recrutas ao Quartel General na Corte. É a partir da década
de 1840 que os vapores da Marinha começaram a operar e fazer progressivamente
a maior parte do transporte de recrutas. O registro mais antigo que encontrei foi a
do vapor São Salvador, que em 1839 trouxe recrutas baianos para a Corte.

41 beattie, Peter. Tributo de sangue, p. 163.


42 an, Série Marinha, Correspondência com o presidente de Sergipe, xm 456, 1827.
43 an , Série Marinha, Correspondência com o presidente do Espírito Santo, xm 12.
44 Ibidem.
123

tabela 5
Embarcações que transportaram recrutas para a Corte; 1823-1858

barca a vapor Imperador escuna Itaparica patacho Patagonia

barca a vapor Paraense fragata Constituição patacho Segredo

barca a vapor Paraná fragata Izabel sumaca Conceição de Maria

barca a vapor S. Salvador fragata Paraguassú sumaca Flor da Victoria,

barca a vapor São Sebastião fragata Thetis sumaca Flor d’América

barca Guapiassú galera Bella Brasileira sumaca Nascimento

barca paquete do Norte hiate Águia sumaca paquete da Vitória

bergantim Minerva hiate Espadarte sumaca Pastorinha

bergantim constante Amigo hiate Itapagipe sumaca Pérola

brigue barca 29 de Agosto lancha Aleluia sumaca Santa Balbina

brigue barca Pirajá lancha Boa Viagem sumaca São João da Graça

brigue de guerra Ururau lancha Conceição sumaca São José Triunfante

brigue escuna Fidelidade lancha Nossa Senhora da Penha sumaca São Sebastião

brigue escuna Guararapes lancha Santa Anna sumaca Vencedora

brigue escuna Ventura Feliz lancha Santa Rita vapor Apa

brigue escuna Vitória lancha Senhora da Guia vapor Brazil

brigue Imperial Pedro lancha Senhora do Rosário vapor Correio Brasileiro

brigue norte-americano Leopard nau Imperador do Brasil vapor Guapiassú

brigue protetor do Brasil paquete Januária vapor Imperador

brigue-escuna Nitheroy paquete Primeiro de Abril vapor Imperatriz

charrua Amazonas paquete Bella Americana vapor Joinville

charrua Anphritite paquete Brasília vapor Oyapok

charrua Carioca paquete Conceição vapor paquete do Norte

corveta 16 de Março paquete Constança vapor Paraense

corveta Bahiana paquete Itaparica vapor Pernambucana

corveta Bertioga paquete Vitoria vapor Piratininga

corveta Dois de Julho patacho Bela Marilia vapor princesa de Joenville

escuna de guerra Legalidade patacho Camarão vapor Tapajós

Fonte: an, Série Marinha, Correspondência com presidentes de província, vários maços.
(Ver relação completa na bibliografia)
124

Concordo com Peter Beattie que o recrutamento “embora não fosse tão horrendo
quanto a travessia do Atlântico, exibe certos paralelos com o tráfico de escravos”.45
No contexto do recrutamento para a guerra da Cisplatina, dois deputados da Câmara
em agosto de 1826 referiram-se ao escândalo do brigue Nova União que trouxe para
a Corte 230 recrutas do Ceará, dos quais 66 morreram de varíola. Custódio Dias
exclamou na Câmara: Eu vejo Sr. presidente chegar a esta corte um brigue! Mas
que! Não é brigue, é antes uma tumba funeral que conduzindo recrutas semivivos,
sepultou no mar 66 mortos”.46 O deputado Moura na esteira de seu colega exigiu que
o caso fosse averiguado: “É impossível que a intenção do Governo seja despovoar
o Brasil e encher o mar de cadáveres de desgraçados brasileiros”.47 Meses antes as
autoridades cearenses já haviam espremido 600 recrutas numa galera, dos quais
274 teriam morrido de varíola.48 Em 1827, dos 209 recrutados no Piauí e embarcados
no porão da sumaca Pombinha, mais da metade morreu de beribéri.49 Em 1838, os
recrutas rebeldes da Sabinada chegaram à Corte, segundo o Comandante da Fragata
Campista, em “deplorável estado de nudez não tendo a maior parte deles roupa para
cobrirem suas carnes, e outros cobertos de bichos”.50
Mais de um século depois, em 1936, o alagoano Graciliano Ramos foi enviado
em um vapor, como preso político, para o Rio de Janeiro. Misturado com presos
comuns, ele descreveu o ambiente do transporte: “era como se fôssemos gado e
nos empurrassem para dentro de um banheiro carrapaticida (...) a ideia de um ba-
nho carrapaticida sucedeu a de um vasto curral.” No porão-curral, Ramos ainda se
perguntou: “(...) que homens eram aqueles que se arrumavam encaixados, tábuas em
cima, em baixo, à frente, à retaguarda, à esquerda, à direta? Imaginei-os criminosos
e vagabundos”.51 Horrorizado diante daquele cenário, o escritor se julgou louco. A
maioria dos presos já era acostumada àquele tratamento: resignados, eram descri-

45 beattie, Peter. O tributo de sangue, p. 44.


46 Deputado Custódio Dias, Anais da Câmara, sessão de 05/08/1826. Disponível em: http://imagem.
camara.gov.br/pesquisa_diario_basica.asp. Acesso em: 31 jul. 2011.
47 Deputado Moura, Anais da Câmara, sessão de 10/08/1826. Disponível em: http://imagem.camara.
gov.br/dc_20b.asp?selCodColecaoCsv=A&Datain=10/8/1826. Acesso em: 31 jul. 2011.
48 vasconcelos, Eduardo H.B. Fazer o bem sem olhar a quem: Aspectos médicos e outras possibilidades na
primeira metade do século xix no Ceará. Rio de Janeiro, Fiocruz, Dissertação de Mestrado, 2007, p. 74.
49 greenhalg, Juvenal. O arsenal da Marinha, p. 189.
50 Ofício do Comandante Joaquim A. Pecuario para o inspetor do Arsenal. A bordo da fragata Consti-
tuição, 1 de junho de 1838. Citado em greenhalg, J. O arsenal da Marinha, p. 189.
51 ramos, G. Memórias do Cárcere, p. 125-6. Grifos meus.
125

tos deitados em suas redes, conversando, até brincando, seminus devido ao calor,
enquanto Graciliano nem sequer tirou o paletó, apesar de estar encharcado de suor,
definindo assim os limites de classe e experiência.
Outro relato dessas viagens pode ser lido na letra de um coco da Paraíba, regis-
trado por Mário de Andrade, na década de 1920:

Olêlê, caro cumpad’


Durante nossa viage
Nóis sintimo até friage
Pru dentro do curação,
Ai olêlê, puis nós viemo,
Oh, meu Deus, que sorte ingrata,
Jugado feito batata
No fundo dum batelão!52

As distintas linguagens de Ramos e do anônimo paraibano, atingem, cada uma a seu


modo, o mesmo significado: o transporte de presos, recrutas, os ditos vagabundos e
criminosos, era feito como transporte de carga. O primeiro lembrava em suas me-
mórias, o outro, cantava.
Reitero, no entanto, que a maior parte dos relatos sobre as agruras da travessia
do recrutamento eram declaradas pelas próprias autoridades, que no entanto, não
ajudaram a modificá-las por um longo período. Em 1863, um médico do Exército
descreveu o transporte de recrutas:

Geralmente o grosso do Exército compõe-se de recrutas do norte do Império, es-


tes homens são agarrados pelos sertões, metidos nas cadeias, mal-alimentados,
mal-vestidos, sujos, metidos nos vapores sem nenhuma acomodação, expostos
às intempéries da estação...53

Antonio de Souza Carvalho, ex-presidente de diversas províncias, resumiu o itine-


rário de um recruta da sua captura às várias possibilidades de seu destino:

52 Citado em silva, Luís G. A faina, a festa e o rito, p. 225.


53 an, Série Guerra, IG6 14, Corpos de saúde do Exército. Relatórios da Secretaria do Corpo de Saúde
do Exercito na Corte, 21 de fevereiro de 1863.
126

(...) a autoridade pode legalmente, e a seu talante, mandar agarrar qualquer cidadão
dos não excetuados; metê-lo num calabouço; (...) assentar-lhe praça no Exército ou
na Armada; embarcá-lo e obrigá-lo a viajar para a capital do Império no convés de
um vapor; remetê-lo daí para os confins deste vasto país; retê-lo no serviço militar,
por tempo longo e indeterminado; fazê-lo morrer longe de sua terra.54

Este tempo longo e indeterminado, que não atendia ao tempo legal, que variava
entre 4 e 9 anos, possibilitou que o deputado geral Custódio Dias chegasse a jus-
tificar a fuga do recrutamento ou voluntariado. Poderíamos chamar esta empatia
do deputado de razão de população, diante da razão de estado: «Não se guarda a fé
para com os concidadãos, e como é que se quer que os cidadãos guardem a fé para
com o governo?”55
A Corte foi tanto uma força centrípeta quanto centrífuga de recrutas. Homens
de toda a parte eram enviados à capital do Império e, dali, realocados em outras
províncias. Se, por um lado, o Estado criou esse processo de migração forçada, por
outro, esse trânsito de pessoas gerou redes de informações incontroláveis, que de-
vem ter engendrado algumas noções de pertencimento a um lugar maior do que
aquele de nascimento e residência, enfim um sentimento de nacionalidade ao avesso,
de baixo para cima.

54 Citado em graham, R. Clientelismo e política no Brasil do século xix, p. 480.


55 Deputado Custódio Dias. Anais da Câmara, 3/8/1826, p. 19. Disponível em: http://imagem.camara.
gov.br/pesquisa_diario_basica.asp. Acesso em: 31 jul. 2011.
127

3.5  Resistências

Já viajaste pelo sertão do Brasil? Perguntai aos filhos do interior


do Maranhão, do Piauí, do Ceará, de Pernambuco, das Alagoas,
e da Bahia – o que é recrutamento: (…) Todos fogem para as
grotas, para os matos mais cerrados, para os picos das monta-
nhas mais inacessíveis! Então, começa a verdadeira caçada a
fuzil e a cães, como outrora, antes de Charles Sumner, de Har-
riet Beecher Stowe, e de Abraham Lincoln, se caçavam escravos
fugidos nos pântanos de Mississipi.56
andré rebouças (Bahia, 1838-1898),
abolicionista e engenheiro

A primeira resistência ao ingresso nas Forças Armadas era a fuga do recrutamento.


Creio ter sido essa a maneira mais utilizada. O recrutamento ficou na memória po-
pular como “tempo do pega” ou “tempo da pegação”. Na linguagem da elite, os seus
críticos o chamavam de “caçada humana”.57 Peter Beattie evocou o dito popular “se
Deus é grande, o mato é maior” para se referir ao tempo do pega.
Houve diversas rebeliões coletivas contra o recrutamento no século xix. O esto-
pim da Balaiada no Maranhão foi a invasão da prisão da Vila da Manga, por Raimundo
Jutahy, vaqueiro de origem piauiense, junto de nove companheiros, que libertaram
o irmão de Raimundo e outros homens presos para fins de recrutamento.58
Vários depoimentos recolhidos de velhos no interior do Maranhão por Mathias
Assumpção mencionam o pega: “Na guerra dos bem te vis [outro nome para a
Balaiada], pega na hora que eles ia pegar água para beber. Todo mundo se escon-
dia nos matos mas pegaram muita gente”, contou José Lélis de Timbira. Até magia
estava envolvida nessas histórias do pega. A mais frequente era a do caboclo que
se transformava em toco ou capim para escapar.59 Da fuga para o mato, o caboclo
se transformava no próprio mato. Quem não escapava no mato podia desertar a
caminho: fugindo dos navios e também dos quartéis.

56 Citado em beattie, Peter. O tributo de sangue, p. 205.


57 kraay, Hendrik. Repensando o recrutamento militar, p. 134.
58 assunção, M. R. A guerra dos bem-te-vis. A balaiada na memória oral, p. 20.
59 Idem, p. 141 e 145.
128

Em 1842, o presidente do Ceará relatou que os “índios de Buriti” também rebe-


laram-se contra o recrutamento. O motim foi sufocado e, ironicamente, um líder e
alguns participantes foram enviados à Corte como recrutas da Armada.60 Segundo
Paulino José Soares de Souza, ministro da Justiça, as revoltas liberais daquele ano,
em Minas Gerais e São Paulo, ganharam adeptos entre os “homens do interior da
província de cor e ignorantes”, pois os líderes espalharam que seriam reduzidos ao
cativeiro, e seus filhos recrutados em virtude da reforma do código de processo e
aplicação das leis do Conselho de Estado.61
Em 1852, uma das rebeliões regionais contra as decisões da Corte, a chamada
“guerra dos Marimbondos”, foi provocada por dois decretos que visavam o registro e
a contagem da população. Com medo do recrutamento ou da reescravização, homens
e mulheres do interior das províncias do norte reagiram violentamente contra o que
chamaram “lei do cativeiro”.62 Recrutas presos nas cadeias públicas de Pernambuco,
em vilas como Pau d’Alho e Limoeiro, foram sistematicamente libertados.63
Em 1859, D. Pedro II narrou em seu diário de viagem às províncias do Norte que
as mulheres de Barra de Panema, Sergipe, acreditavam que o vapor no qual viajava
“carregaria todos os homens no caso de assentarem praça”.64 Se por um lado o recruta-
mento militar, em termos absolutos, não atingia um grande contingente da população,
por outro, povoou o imaginário de muita gente e gerou rebeliões pelo Brasil afora.
As sucessivas rebeliões e fugas demonstram que a recusa ao recrutamento fazia
parte do que E. P. Thompson denominou “economia moral dos pobres”: “uma visão
consistente tradicional das normas e obrigações sociais, das funções econômicas
peculiares a vários grupos na comunidade”.65 Thompson elaborou esse conceito em
torno dos food riots, por isso a conotação econômica. Como veremos na análise dos
requerimentos, os argumentos de pedido de dispensa militar recaíam justamente

60 Relatório do presidente do Ceará, 1842 e an, Série Marinha, xm 14, Correspondência com o presidente
do Ceará.
61 Relatório do ministro da Justiça, 1842, p. 16-7.
62 Relatório do ministro do Império, 1852. Tratava-se dos decretos 797 e 798 de 18 de junho de 1851
que mandavam executar o regulamento para a organização do censo geral do Império e executar o
regulamento do registro de nascimentos e óbitos”. Coleção de leis do Império de 1851.
63 palácios, Guillermo. Revoltas camponesas no Brasil escravista: a ‘Guerra dos Marimbondos’ (Per-
nambuco, 1851-52). Almanack Brasiliense, n. 3, maio de 2006.
64 D. Pedro II. Diário de viagem ao Norte do Brasil, p. 134.
65 thompson, Edward. P. A economia moral da multidão inglesa no século xviii. In: Idem, Costumes
em Comum, p. 152.
129

sobre a importância do recruta na economia doméstica. Mas Thompson também


acreditava no seu caráter político:

(...) embora essa economia moral não possa ser descrita como “política” (...), tam-
pouco pode ser descrita como apolítica, pois supunha noções definidas, e apaixona-
damente defendidas, do bem estar comum – noções que na realidade encontravam
algum apoio na tradição paternalista das autoridades; noções que o povo, por sua
vez, fazia soar tão alto que as autoridades ficavam, em certa medida, reféns do povo.66

Aqui podemos relativizar o modelo do patronato defendido por Richard Graham,


no qual Hendrik Kraay baseou sua análise sobre o recrutamento. Graham observa
nas relações clientelistas – “prática constante de prestar favores em troca de obe-
diência” – padrões sociais estruturantes na sociedade e na política do Império. O
recrutamento militar, ou melhor, a dispensa deste, seria baseado nessas relações de
“obediência e lealdade, que significavam antes de tudo trabalho, e os que desafiavam
as regras terminavam recrutados”.67 A essência da coesão residia em uma rede na-
cional de clientelismo e patrocínio, baseada nos princípios gerais da hierarquia, da
lealdade e das obrigações pessoais. Segundo H. Kraay, “o recrutamento estava for-
temente enraizado neste sistema de patronato, tanto como mecanismo coercitivo
de última instância para manter as hierarquias de classe, quanto como a maneira
na qual pobres livres distinguiram dentre os com e sem honra”.68
Estudos de mobilidade social relativizam esses conceitos, ampliando as possibili-
dades do homem pobre de viver fora da escravidão e das relações clientelistas, ainda
que elas sejam fundamentais para entender o recrutamento. Sem negar essas relações,
é notório que há ação política fora do patronato/clientelismo. Tais ações, entre outras,
se concretizaram em fugas, rebeliões, requerimentos entre outros tipos de resistên-
cia. Nas palavras de Peter Burke: “o pressuposto de que os vínculos entre padrinho
e afilhado são fundamentais (...) estimula o observador ou historiador a não notar
as solidariedades horizontais nem os conflitos entre governantes e governados”.69

66 Ibidem.
67 graham, Richard. Clientelismo e política no Brasil Imperial, p. 47.
68 kraay, Hendrik. “Repensando o recrutamento militar no Brasil Imperial”, p. 116.
69 burke, Peter. História e teoria social, p. 104.
130

Os requerimentos, geralmente, continham anexos, como certidões de nascimen-


to, casamento, atestados de pobreza e de bom comportamento, com firmas reco-
nhecidas, justificativas e assentamentos militares. Enfim, a narrativa do problema,
somada aos documentos, visava cumprir dois objetivos: convencer e comprovar.
De acordo com Hendrik Kraay, o requerimento era um recurso apenas para “os
pobres honrados”, que teriam “diligentemente cultivado redes de patronato” em
contraste aos “verdadeiros pobres”.70 Em parte, esses dizeres foram verdade; é claro
que uma minoria requereu e contou com a ajuda de seus protetores, mas as histórias
que contam, muitas vezes, não incluem padrinhos ou propriedades. Além disso, mes-
mo estabelecendo um sentido, tenho dúvidas quanto às expressões “pobres honra-
dos” versus “verdadeiros pobres”, as quais Kraay tomou emprestado de Joan Meznar.
Enfim, como os escravos iniciaram ações de liberdade, um pobre recrutado po-
deria produzir requerimentos, mediante valores relativamente acessíveis, apesar de
ser um procedimento difícil. A catarinense Desidéria Marcelina declarou ter demo-
rado mais de um ano para requerer seus filhos, engajados na Escola de Aprendizes
Marinheiros, de volta, pois juntava “numerário” para pagar a documentação.71
Alegando falta de condições e recursos necessários à gente pobre, o procurador
da maranhense Maria Thereza Prego, que reclamava pela volta do seu filho, o lavra-
dor Justino Pereira Prego, criticou o sistema dos requerimentos:

Muitas vezes, o recruta apreendido nem meios alguns tem para comunicar-se com
os seus parentes. Nestas circunstâncias a autoridade pública, como primeira e na-
tural protetora dos direitos dos cidadãos, compete verificá-las para que se faça
justiça. Assim a sup. reclama a poderosa e eficaz proteção de V. Exa em favor desta
sua petição, aliás fundada na justiça.72

A história de Raimundo é um bom exemplo de duas formas de resistência: o reque-


rimento e a deserção. Raimundo Nonato nasceu pardo livre em São Luiz no Mara-
nhão, filho natural da parda Rosa Maria. Em 1842, casou-se com Eva Maria Páscoa,
igualmente parda, maranhense e filha natural. Teve com ela dois filhos. Nonato era
prático de barra, uma atividade marítima de destaque. Aparentemente, pela sua

70 kraay, H. Repensando o recrutamento militar, p. 129.


71 an, Série Marinha, xm 139, Correspondência com o presidente de Santa Catarina.
72 an, Série Marinha, xm 129, Correspondência com o presidente do Maranhão, 1850.
131

assinatura, sabia ler e escrever. Dois anos após o matrimônio encontrava-se na Bahia
a trabalho, onde foi recrutado para a Marinha.
Embarcado, escreveu dois requerimentos de soltura, um para o Imperador - in-
deferido - e outro para o ministro da Marinha. No primeiro alegava, sem provas, o seu
casamento, e a injustiça de estar preso para recruta: “sua pobre e infeliz família se
acha reduzida a miséria e à indigência por falta do suplicante como marido e pai”. O
inspetor do Quartel General, alegando a falta de provas, o fato de ele ser bom marujo
e o Estado estar necessitado de marinheiros, indeferiu o pedido. Novamente, em
janeiro o maranhense fez outro requerimento, agora com certidão de casamento e
atestado de boa conduta.
Nonato era por um lado um recruta típico: pardo, jovem, oriundo de uma pro-
víncia do Norte. Por outro, era casado e, ao que parece, letrado, características inco-
muns. Agenciar sua própria vida era algo que fazia parte de suas conquistas, de sua
ascensão social por meio das primeiras letras, uma profissão e um casamento com
filhos legítimos. Era um homem que devia servir ao Estado, não como marinheiro
da Armada, mas cumprindo seu papel de chefe de família, como atestou o próprio
ministro da Marinha, quando deferiu seu segundo requerimento. Mas a demora
desse despacho, fez com que ele tenha desertado dias antes da resposta positiva.73
Como Raymundo, aqueles que não escapavam das malhas do recrutamento, pode-
riam fugir dos navios. A deserção constituía um componente estrutural das forças
armadas e partilhava com a evasão do recrutamento as mesmas causas, reforçando-
-se mutuamente.74 Nos Livros de socorros da fragata Imperatriz consultados da dé-
cada de 1820 e 1830, entre um quinto e um quarto da tripulação desertou. As tabelas
publicadas nos relatórios da Marinha da década de 1850 demonstram altos índices
de deserção. Em 1855, no primeiro, e aparentemente o único, mapa publicado sobre
deserção e captura que inclui praças de pré e marinhagem (homens engajados), há
uma espécie de placar. Nessa disputa, a deserção aparece como grande vencedora.
622 homens desertaram (cerca de um quinto do efetivo da Força Naval) e apenas 130
foram capturados. Tal crime compensava e foi a maior resistência dos marinheiros,
que não provocaram muitas revoltas durante as primeiras décadas do Império.

73 an, Série Marinha, xm 1139, doc 55, Requerimentos.


74 mendes, Fabio. F. Encargos, privilégios e direitos: O recrutamento militar no Brasil dos séculos xviii
e xix, p. 124.
132

tabela 6
Mapa de deserção e captura do Relatório da Marinha de 1855.
133

Há diversos ofícios entre autoridades informando fugas dos navios e discutindo as


penas que deveriam ser aplicadas. O assunto chegou ao Conselho do Tribunal Supe-
rior de Justiça na consulta de 12 de novembro de 1845. Os conselheiros – entre eles,
o Bispo de Anemuria, Lopes Gama (Visconde de Maranguape) e José Joaquim de
Lima e Silva (Visconde de Magé) – concordaram que a pena de primeira e segunda
deserção deveria ser aumentada, respectivamente, para cinquenta e cem chibata-
das, pois as pessoas que se empregam na marinhagem são “em geral destituídas de
moralidade e civilização”, além do

pouco que se tem conseguido de tais pessoas pelas formalidades dos processos,
pela modicidade das penas (...) urgindo lançar mão de novas medidas enérgicas e
eficazes (...) na esperança, senão na certeza da mais viva impressão que deve fazer
no ânimo de gente inculta o receio de um castigo corporal.75

Mas nesta mesma década de 1840, vários decretos anistiavam os crimes de primeira
e segunda deserção, em uma estratégia inversa, cujo fim era o mesmo: a permanên-
cia do marujo na Armada. Se as penas de cinquenta e cem chibatadas não haviam
inibido os desertores, a sua reapresentação poderia ser estimulada pela anistia da
pena. Mas a terceira deserção nunca foi anistiada, e a pena era dura: servir um ano
sem receber soldo. No início da década de 1860, na corveta Beberibe, havia qua-
tro rapazes condenados a essa pena, classificados como grumetes sentenciados. 76
Mas o exemplo não inibiu alguns homens de desertar quando a corveta aportou
em Nova York, em outubro de 1861. Um deles era o gaúcho Manoel José Dutra,
pardo, e talvez não tivesse ainda 18 anos completos, o outro era o caboclo menor
Manoel Pedro Correa. O navio partiu sem os rapazes. O cônsul em Washington,
encarregado de avisar ao cônsul em Nova York sobre a deserção, depois de cinco
meses avisou o ministro da Marinha que as buscas continuavam, mas dificilmente
os desertores seriam encontrados.77

75 Consulta de 12 de novembro de 1845: “Sobre as medidas mais convenientes para previnir as deser-
ções de bordo dos navios de guerra”. Consultas ao conselho de Estado sobre negócios concernentes ao
Ministério da Marinha. V. 1, p. 95-96.
76 an, Série Marinha, xvii 747, Livro de socorros da corveta Beberibe, 1861-62.
77 an, Série Marinha, xm 600, Ofícios do Legação Imperial do Brasil nos Estados Unidos.
134

3.6  “Dessa sorte castigado e mesmo assim prestar serviço à Nação”

Em 21 de março de 1823, o Imperador do Brasil, por efeitos de sua “imperial clemên-


cia” fez “graça” a alguns prisioneiros da nau presinganga,

(...) já de algum modo, punidos de seus delitos pela prisão, e mais trabalhos, que
têm sofrido, prestar ainda serviços à sagrada causa da Independência deste Im-
pério, sendo empregados quer como soldados de artilharia da Marinha do Rio
de Janeiro, quer como marinheiros e grumetes a bordo dos navios da Armada
Nacional e Imperial.78

Pedro I continuava uma antiga política penal, qual seja a de transformar criminosos
de variados graus em marinheiros.
Durante boa parte do século xix, de acordo com Peter Beattie, as Forças Armadas
funcionaram como uma instituição protopenal, dando continuidade um modelo
que vigorava no período colonial:

O recrutamento forçado militar funcionava como uma válvula de escape parcial


para prisões civis superlotadas ao incorporar infratores e os “criminalmente”
ociosos. Os juízes não transferiam para o Exército homens suspeitos de homicí-
dio ou de outros crimes que eles consideravam dignos de processos jurídicos (...).
Uma vez que não havia julgamentos, as declarações dos delegados de polícia eram
as únicas evidências de transgressões. (...) O recrutamento forçado diminuía os
custos de julgamento e aliviava pressões pela construção de novas e caras prisões.
Os oficiais locais então deslocavam os custos de controle social e “reabilitação”
para o Estado central.79

Foi o caso de Frederico Guilherme Torres, 20 anos, de cor preta. A esposa requereu
sua soltura após ele cumprir dois anos de praça no vapor Amazonas, em Montevidéu,
“a título de correção”. Joana pediu o desembarque do marido três vezes em oito

78 Decreto de 23 de março de 1823: Commuta as penas de diversos presos para serem empregados
como soldados ou marinheiros a bordo dos navios da Armada Nacional. Indice dos decretos, cartas e
alvarás de 1823.
79 beattie, Peter. Tributo de sangue, p. 217.
135

meses, clamando por “proteção e arrimo”, já que era “uma pobre que nem para si tem,
quanto mais para seu filho menor”, e não tinha mais “forças para poder trabalhar”.80
Quando uma pessoa comete crime ou tem conduta social dita irregular, ela em
geral se defende negando. O advogado de defesa ou procurador usa uma retórica de
convencimento, destacando os erros de acusação, descrevendo a miséria familiar.
O acusado nunca é culpado. No entanto, em 1862, o baiano Olympio José Régis
reconhece que “faltas cometeu nos verdes dos anos”, mas alega “ter já suficiente-
mente expiado, desde que foi violentamente metido em um navio de guerra como
se fosse um assassino ou réu de altos crimes”. Arremata seu argumento evocando
a pobre mãezinha:

(...) não devem [as faltas] servir para se conservar na miséria e consternação uma
pobre mãe que poucos dias poderá ter de vida, se com a reparação deste opróbrio
sofrido pelo suplicante não lhe for restituído pela munificência imperial, o único
protetor que lhe resta neste mundo.81

O chefe da polícia deu um parecer negativo para o seu requerimento de soltura: “é


um indivíduo incômodo à polícia por seu gênio turbulento e provocador, mormente
quando está embriagado”. Fora preso algumas vezes como “provocante e desordei-
ro”. E para encerrar a questão, informa, segundo sua certidão de nascimento, que
ele não era filho legítimo, então, não podia ser filho de mãe viúva. O encarregado
no Ministério da Marinha, Hermenegildo Feijó, deu um parecer negativo, consi-
derando o argumento do chefe da polícia baiana, desse modo Olympio continuou
marinheiro. O argumento de Olympio é factível, ele assume erros de disciplina, mas
não é um criminoso perigoso e não deve ser tratado como tal. Alega ainda que há
motivos políticos para sua prisão.82 Ora, de fato, o recrutamento como punição era
uma política de “limpeza” social, não distinguindo assassinos de ladrões de galinha
e inimigos políticos. A grande incidência de filhos naturais, ou seja, de mães não
casadas, também foi uma estratégia das autoridades de não inseri-los nas isenções
para arrimos de família. Aqui, o argumento do patronato e dos códigos de honra

80 an, Série Marinha, xm 1137, doc. 37, Requerimentos, 1858.


81 an, Série Marinha, xm 544, Correspondência com o presidente da Bahia, 1861.
82 Ibidem.
136

daquela sociedade é importante. Não ser filho legítimo, era mais uma precariedade
da cidadania dos homens daquele Império.
Recrutas eram enviados de todas as províncias e da Secretaria de Polícia da Cor-
te, acompanhados de ofícios que os qualificava de “vadio”, “ladrão, incorrigível”,
“prejudicial”, “ébrio”, “desordeiro”, “perigoso”, “de péssima conduta”, “de maus
costumes”, “malvado”, “perigoso ao sossego público”, “rixoso”, “infenso à tran-
quilidade pública”, “assassinos de profissão”, “sem nenhum modo de vida”, “rebel-
de”, “participantes de perturbações”, “instrumentos de intrigas entre fazendeiros”,
“amotinador”, “inimigo do trabalho”, “vagabundo”, “malfazejo”, “de péssimos cos-
tumes”, “prejudicial ao público e ao particular”. Mas vadio era o termo preferido das
autoridades, era praticamente um sinônimo para pobre, geralmente de cor, como
reconheceu um oficial do Exército no editorial da revista O militar de 1854: “O re-
crutamento entre nós recai sobre os pobres, crismados com o epíteto de vadios”.83
Os assassinos, em geral, eram processados pela Justiça. Mas alguns chegaram à
Marinha. Foi o caso de Feliciano José da Silva, menino de dez anos da vila de Campo
Maior, Piauí. Acusado de matar a cacetadas um menino de seis anos foi absolvido
pelo júri “pelo amor de sua pouca idade”. O presidente da Província solucionou o
caso enviando-o à Marinha, onde “o trabalho e educação podem torná-lo cidadão
aproveitável, em vez de um facinoroso que certamente seria, continuando aqui en-
tregue a lei da natureza já tão pervertido em verdes anos”.84
Não há dúvida de que alguns dos recrutas cometeram crimes. Não é possível
separar recrutas criminosos dos demais, pois o recrutamento como simples puni-
ção era um julgamento sumário, muitas vezes sem culpa formada ou sem nunca ter
havido um processo. Mas não eram procedimentos necessariamente ilegais. Uma
decisão de 1826 autorizava o recrutamento para a Armada de vadios e desconheci-
dos, presos por motivos justos e que não puderam “ser pronunciados pela falta de
interesses de partes, que promovam testemunhas”.85
O ex-soldado e alfaiate do interior da Bahia, Antonio Ferreira Torres, em trânsi-
to na capital baiana, foi recrutado. Torres explicou, por meio do seu ofício de 1842,
que “tirava lícitos meios para a sua manutenção e de sua família composta de sua

83 Citado em beattie, Peter. Tributo de Sangue, p. 71.


84 an, Série Marinha, xm 332, Correspondência com o presidente do Piauí, 3 de maio de 1863.
85 “Decisão n. 145 – Marinha. – Em 20 de outubro de 1826: Manda recrutar para o serviço da armada
os vadios e desconhecidos que forem presos e não puderem ser pronunciados.” Decisões do Governo,
1826, p. 128.
137

mulher e oito filhos”, mas o seu trunfo era seu passado, narrado com linguagem
patriótica, como combatente nas revoluções do “Madeira” e “Sabino”, perpetuado
por uma cicatriz:

Os motivos mais reais para persuadir-se merecedor da Graça de vmi são mais de 30
anos de atinados serviços no Exército em defesa da integridade do Império enfren-
tando por duas vezes os terrores da guerra já na apelidada revolução do Madeira...
e por ocasião (...) ultimamente, Sabino, a frente de degenerados Brasileiros, tingia
de sangue o meu querido país natal [ilegível] recebido uma lançada na virilha es-
querda por honroso medo [sic] em conservar em sua cicatriz o padrão dos meus
serviços em prol do Trono de vmi86

Torres preenchia todos os pré-requisitos de honra possíveis para um homem de


bem: cabeça de família, trabalhador e servidor da pátria como soldado do Exército.
Se todos os seus argumentos fossem verídicos, nada mais glorioso do que o seu pas-
sado: era esse perfil que o Estado esperava de seus governados. Mas a versão das au-
toridades baianas era bem outra. Juízes de três distritos pediram seu recrutamento:

(...) apresentando-o como turbulento, e indiciado de roubos de escravos e cavalos,


mas que as partes prejudicadas se temiam de acusá-lo em juízo mesmo até porque
faltariam provas testemunhais para organização do processo não podendo também
aqueles juízes proceder o ofício pelo mesmo motivo (...) ninguém quer jurar em
causa da justiça, maiormente contra quem é conhecido por vingativo e valentão...
em razão disso julguei conveniente a policia remetê-lo para aquele serviço [Arma-
da] a fim de que fosse correcionalmente punido.87

No mês subsequente à derrota da Sabinada, mais de 460 baianos foram enviados


à Corte como recrutas: oitenta para a Armada, o restante para o Exército. Entre
eles o carpinteiro casado David José de Souza, que requereu soltura meses depois.
Apresentou atestado de boa conduta, disse não ser rebelde, ter família e mãe idosa
para cuidar. O pedido foi prontamente indeferido, pois o suposto crime político foi
confirmado pelo presidente e o juiz de paz, já que o carpinteiro empunhou “armas

86 an, Série Marinha, Correspondência com o presidente da Bahia, xm 513, 1842.


87 Ibidem.
138

contra a ordem pública e integridade do Império”.88 Francisco Eufêmio de Jesus,


“indigitado pelas relações com praças dos corpos dos rebeldes”, pediu dispensa por-
que era tutor dos cinco irmãos menores. Apresentava atestados do padre, inspetor
do quarteirão e abaixo assinado de boa conduta.89 José Romão de Carvalho e o oficial
de justiça Miguel Ângelo da Costa, supostos rebeldes, requereram afirmando serem
vítimas de equívocos. O primeiro apresentou atestado do padre e professor de latim
dizendo que ele não era rebelde e “se deixou ficar nesta cidade por impossibilidade
de imigrar”.90 O outro, natural da vila da Feira, afirmou que estava na cidade da
Bahia, finda a revolução, “a fim de dispor de vários gêneros de negócios para poder
alimentar a sua mãe e quatro irmãs donzelas”.91
O furriel sergipano Francisco Pereira Leite, pardo, escreveu um requerimento
alegando que foi preso para recruta sob a acusação de ter deixado outros recrutas
fugirem. Naturalmente, ele negou o fato e alegou que era casado, empregado da
Secretaria da Polícia etc. Seu pedido foi deferido, não era vadio.92 A difícil ascen-
são de um homem pobre e pardo estava sujeito a altos e baixos. O fato de ter um
emprego na polícia não assegura sua estabilidade social. É a dialética da ordem/
desordem de Antonio Candido na sua clássica análise de Memórias de um sargento
de milícias: os agentes da ordem e da desordem têm afinal a mesma origem e podem
alternar posições.93
No turbulento ano de 1842, os índios do Buriti, no Ceará, rebelaram-se contra o
recrutamento, segundo o presidente da Província. O motim foi sufocado e, ironica-
mente, o líder e alguns participantes foram recrutados para a Armada.94 No ofício
que os acompanhou na viagem à Corte, eles foram descritos como criminosos: An-
tonio Marques da Costa “foi chefe da rebelião de Buriti, comandou os índios em São
Pedro quando fizeram sete mortes, teve no fogo de Mumbaba e seduziu os índios
de Tapera Acima”;95 José de Souza não só assistiu às mortes em São Pedro, como
também “pelas suas próprias mãos matou Antonio Ferreira de Castro”; João da Mata

88 an, Série Marinha, xm 507, Correspondência com o presidente da Bahia, 1838.


89 Ibidem.
90 Ibidem.
91 an, Série Marinha, xm 1160, doc. 66, 1838.
92 an, Série Marinha, xm 68, 1842.
93 cândido, Antonio. Dialética da malandragem – caracterização das Memórias de um sargento de
milícias. Revista do Instituto dos Estudos Brasileiros, n. 8, 1970.
94 Relatório da Província do Ceará, 1842 e an, Série Marinha, xm 14.
95 an, Série Marinha, xm 14, Correspondência com o presidente do Ceará, 1842.
139

“foi comandante de Craumatã onde fez algumas mortes e roubos”; Bartholomeu da


Costa “vive de andar armado de bacamarte e fazendo desordens continuamente”;
Domingos José de Souza e Luiz Machado “foram rebeldes do Piauí, muito malvados
nesta província são prejudiciais”.96
*
Houve recrutas oriundos da revolução de 1842 de São Paulo, escoltados de Cam-
pinas até o porto de Santos, onde foram embarcados para a Corte. Participantes das
“perturbações de Queluz e Areias”, dois municípios do Vale do Paraíba que também
aderiram à revolta, foram enviados ao presidente do Rio de Janeiro.
O pardo campinense Thomé Francisco da Cruz, de 44 anos, foi um deles. A prisão
de um homem de mais de quarenta anos e doente na Armada não era conveniente
para a instituição, mas a necessidade de castigar tantos homens rebeldes, uma das
funções do recrutamento, prevaleceu. Vejamos a história que conta.
Acusado como um dos “valentões” e “apaniguados” do fazendeiro Antonio Ma-
noel Teixeira, um dos líderes da revolução de 1842, em Campinas, Thomé Francisco
foi preso com diversos participantes – provavelmente derrotados pelas tropas co-
mandadas pelo futuro Duque de Caxias, no combate da Venda Grande – e escoltado
até Santos, onde tinha ordem para assentar praça “por ser rebelde”. Em julho já era
grumete da corveta Bertioga, mas dois meses depois desembarcou, devido a uma
doença renal grave, teve de ser internado na Santa Casa de Santos.97 Logo que teve
alta, foi enviado à Corte. Thomé alegou ter sido apenas tropeiro de Antonio Manoel
Teixeira e que sua compleição era demasiada fraca para valentão. Com incontinência
urinária ou “relaxamento do rim”, pedia clemência pintando um quadro trágico:
“há anos sofrendo a moléstia que o leva à sepultura e agora quando dela já não está
longe, que arrastado em ferros por calabouços, padecendo as fomes e as misérias
dos condenados, negou-se-lhe o amparo que a humanidade não recusa nem aos mais
execráveis criminosos”. Clamou ao “paternal Governo de S. M. I” o reconhecimento
do “estado de miséria e abandono de um desgraçado brasileiro”, “(...) dos sofrimentos
de uma vítima de absurdos preconceitos locais”, e a graça de “deixá-lo acabar em
paz e liberdade o resto de seus dias, se ainda o achar vivo”.98

96 Ibidem.
97 an, Série Marinha, xvii M 5203, Livro de socorros da corveta Bertioga, 1841-2, e xm 627, Correspon-
dência com o presidente de São Paulo, 1842.
98 an, Série Marinha, xm 627, Correspondência com o presidente de São Paulo, 1842.
140

Esse canto do cisne de Thomé corresponde às penúrias pelas quais vinha pas-
sando. Por outro lado, a acusação de valentão fazia jus a seu passado. Em 1834, ele
viajara como tropeiro para o porto de Santos carregando açúcar e de lá voltou com
seis barris de aguardente. No posto de coletas de impostos de Cubatão, recusou-
-se a pagar o imposto sobre aguardente. Pagou outras contribuições em parte com
dinheiro “cham-cham” (falso), dizendo para o coletor que não escolhesse, pois não
daria outro. Thomé desembainhou a espada, correu a ferir o coletor e sentinela, e
partiu. Em São Bernardo, ainda esquivou-se do juiz de paz.99
Thomé Francisco era tropeiro e apaniguado de fazendeiro. Envelhecido e doente,
provavelmente pelo seu ofício, já não tinha capacidade de enfrentar as autoridades
com a espada, e seu padrinho estava preso. Teve de recorrer às frases dramáticas
dos requerimentos, para tentar morrer fora do calabouço ou em um porão de navio.
Em outubro de 1844, uma invasão em Maceió terminou na deposição do então
presidente de Alagoas, Souza Franco. Antes de deixar o poder, o presidente recru-
tou alguns indivíduos, que julgou fazerem parte da facção rival. Entre eles, Manoel
Teixeira Pinheiro, carcereiro e dono de uma plantação de coqueiros na ilha de Santa
Rita. Pinheiro escreveu um requerimento reclamando ter sido recrutado contra a
lei, devido “às paixões políticas”.
Dizia-se “uma das vítimas sacrificadas no dia 21 de outubro [de 1844].”100 Nessa
data, Vicente Ferreira de Paula invadiu a cidade, comandando 400 homens, convo-
cados para reforçar as tropas da facção dos “lisos”, que exigia a deposição de Souza
Franco, partidário da facção dos “cabeludos”. Mesmo deflagrada em alguns pontos,
a província só ficou “tranquila” com a vinda de outro presidente em dezembro. Tal
rebelião foi chamada Cabanada.101 A primeira ocorreu entre 1832 e 1835. A motivação
geral era a defesa das terras e envolvia oficiais desgostosos com a política imperial,
alguns proprietários, e uma grande massa de índios, homens livres pobres, escravos
e ex-escravos que lutavam pela liberdade e pela posse de terras. Na primeira Cabana-
da, Vicente Ferreira Paula foi um dos líderes. Entre os índios que combateram nessa
revolta, os do aldeamento de Jacuípe, Alagoas, juntaram-se à rebelião, em reposta à
ordem do presidente da Província em 1832, para recrutar todos os rapazes do grupo,

99 A história de Tomé, em 1834, foi narrada em danieli, M. I. B., Economia mercantil de abastecimento e
rede tributaria: São Paulo, séculos xviii e xix, p.232.
100 an, Série Marinha, xm 1145 doc. 9, Requerimentos, 1845.
101 Sobre esta rebelião ver lindoso, Dirceu. A utopia armada: Rebeliões de pobres nas matas do Tombo Real,
especialmente o capítulo “A escrita e medo”.
141

entre 18 e 25 anos.102 Vicente Ferreira de Paula, filho de cônego com uma mulher
mulata, ficou conhecido como “capitão geral das matas”. Atuou, principalmente,
no interior das províncias de Alagoas e Pernambuco até 1850, quando finalmente foi
deportado para Fernando de Noronha. Além de ter comandado milícias que apoia-
ram políticos em certas ocasiões, chefiou rebeliões populares, combatendo, entre
outras coisas, o recrutamento militar.103
Ao governo central interessava mais a imagem da proteção da tranquilida-
de nas províncias, do ponto de vista de suas elites. Na interpretação de Richard
Graham, no segundo quartel do século xix, o fato do poder central ajudar a debelar
as rebeliões regionais, reprimindo principalmente os populares, colaborou para a
aquiescência da unidade do Império pelos poderes locais. Eles teriam aceitado o
governo central com medo da desordem social e devido ao apelo da simbologia de
uma monarquia legítima.104
É possível que essa lógica, de maneira inversa, também tenha servido para
parte da população. Os indivíduos poderiam recorrer ao poder central quando se
sentiam perseguidos pelo poder local, reconhecendo este “apelo da monarquia
legítima”, traduzida em benemerência. A forma como D. Pedro II se aproximava
dos populares pode ser lida nos seus próprios diários. Em viagem pelas províncias
do Norte, por exemplo, visitou os presos na Bahia e avisou aqueles que não tivessem
culpa formada que lhe escrevessem requerimentos. Recebia comissões de índios
no Paço, doava dinheiro para escravas comprarem a alforria, distribuía esmolas. O
Imperador passava a representar uma esperança de justiça. A imagem do rei justo,
paternal, foi lentamente forjada durante o Antigo Regime e continuou no século
xix, já no Brasil monarquista.
Durante a construção desse Estado, um equilíbrio de forças foi em parte arqui-
tetado, em parte acomodado nas estruturas criadas no período colonial. Se, por um
lado, o Imperador distribuía e revezava os cargos de ministros, presidentes, chefes
de polícia, estes, por sua vez, procuravam controlar os sertões por meio de juízes,
delegados, inspetores, força policial.

102 Sobre a Cabanada de 1832, ver carvalho, Marcus. J. M. “Movimentos sociais: Pernambuco, 1831-
1848”. In: Keila Grinberg e Ricardo Salles. (Org.). O Brasil Império (1808-1889), v. 2, p. 121-183.
103 Ver almeida, Luís. S. Memorial Biográfico de Vicente de Paula, o Capitão de todas as Matas: Guerrilha e
Sociedade Alternativa na Mata Alagoana, 2006.
104 graham, Richard. “Construindo uma nação no Brasil do século xix: Visões novas e antigas sobre
classe, cultura e estado”. Diálogos, DHI/UEM, v. 5, n. 1.
142

A população passava a compreender os vários níveis de poder, e quando não fu-


gia para o mato, procurava a proteção, ora junto ao poder local, público ou privado,
ora junto ao poder central, que, apesar de pertencerem à mesma rede, tinham suas
fissuras e oposições.
Rixas e crimes políticos geraram recrutas. Nos requerimentos há muitas reclama-
ções de violência, perseguições e intrigas. A mãe solteira do baiano Olympio José Ré-
gis relatou que seu filho foi violentamente preso pela polícia por intrigas políticas.105
O sitiante e pai de Pacífico Laurentino Gonçalves Ramos, de Pilar, Paraíba, re-
clamou que o filho foi vítima do “ódio e desafeição” do delegado local à sua família.
O recruta, além de ser casado, “era o único arrimo de um pai cego e ancião e de uma
mãe (...) que jaz constantemente no leito da enfermidade e da morte e de uma irmã
viúva com três filhinhos cujos poucos bens eram por eles administrados”. Seu pe-
dido foi deferido em vista do abaixo assinado por várias “pessoas de bem” do lugar,
atestando a afirmação do pai.106
Em 1842, as irmãs Ignácia, Liandra e Margarida – duas delas “donzelas” – pediram
a soltura de José Manoel da Silva, branco, morador de Garanhuns, Pernambuco. Para
elas, o recrutamento era “o meio mais fácil de castigar inocentes ou de tomar-se
vingança de inimigos”.107
Natural de Pernambuco, onde morava com a mulher e os filhos, o recruta
Florêncio Rodrigues da Silva requereu sua liberdade, pois, estando a negócios em
Guarariba, Paraíba, foi “violentamente recrutado por intrigas”. O comandante de
destacamento de Guarariba, por seu turno, atestou que ele tem “péssima condu-
ta, muito velhaco, (...) serve de guarda-costas a um grande do lugar e tem tantos
padrinhos, que um deles ofereceu dinheiro ao comandante do destacamento para
o soltar”.108 Toda a documentação em torno do caso é obscura. Quais eram esses
negócios em Guarariba? Quem é esse grande do lugar que o protege? Acusado e
acusador explicam o caso misteriosamente, abrindo a possibilidade de estarem de
fato praticando atos ilegais.
A esposa de Pedro Francisco dos Reis – promotor público, curador de órfãos
ausentes e cativos do município de Itabaianinha, Sergipe, e lavrador no sítio do

105 an, Série Marinha, xm 544, Correspondência com o presidente da Bahia, 1862.
106 an, Série Marinha, xm 1161, doc. 9, Requerimentos, 1845.
107 an, Série Marinha, xm 1164, doc. 41, Requerimentos 1842.
108 an, Série Marinha, xm 1163, doc. 28, Requerimentos 1845.
143

pai – fez um requerimento-denúncia bastante contundente. Segundo ela, o juiz


municipal ordenou cercar, prender e algemar o seu marido, porque ele se dispunha
“a trabalhar pelas eleições em sentido contrário”, imputando-lhe um processo de
tentativa de assassinato.
Pedro Francisco recorreu ao Juiz de Direito da Comarca de Estância, mas, antes
de encontrá-lo, foi “às sombras da noite arrancado da prisão, (...) algemado com
duros ferros”, escoltado até a capital e entregue ao então presidente Sebastião Boto,
que lhe enviou à Corte como recruta. Boto mencionou em um ofício os “requerimen-
tos graciosos” de Pedro, dizendo que ele havia perguntado ao juiz municipal se eles
eram verdadeiros. A resposta ao seu questionamento foram as reiteradas acusações,
comprovadas por pessoas “de todo o crédito e ricos proprietários do lugar”.
A esposa suplicante elevava “graças ao céu de ainda o ter vivo, e não ter tido a
sorte que tem cabido a outros infelizes que já não existem”.109 Depois de assentar
praça, Pedro Francisco foi desembarcado e preso na Ilha das Cobras, onde esperou
nova condução para ser reenviado ao chefe de polícia de Sergipe.
O comandante do Corpo de Imperiais Marinheiros, no relatório do ano de 1852,
entendia que se os homens vindos com más notas, como “ladrão incorrigível, preju-
dicial ao sossego público” fossem dispensados, “poucos seriam aqueles que ficariam
com praça no Corpo de Imperiais Marinheiros, que segundo a minha opinião deve
ser composto unicamente de homens robustos e bem morigerados”.110
Nas décadas seguintes há sinais na Corte de mudança dessa política, momento
em que vários oficiais e ministros resolveram tratar sobre o tema. No relatório
de 1859 do Conselho Naval, lê-se que a disciplina de bordo diminuía o impulso
criminal do recruta:

São bem conhecidos os elementos que formam, em geral, a nossa marinhagem.


Ainda não se aboliu a péssima regra de mandar para os navios de guerra, como se
estes fossem penitenciárias, os viciosos e criminosos que não se pode ou não se
quer de outro modo punir. Em uma palavra é a polícia quem fornece em grande
maioria as nossas guarnições. Mas tanto influi sobre estes homens desmoraliza-
dos a inexorável disciplina de bordo, que cumpre confessá-lo, os seus costumes
modificam-se, o caráter amolda-se com as imposições da lei, e a estatística dos

109 an, Série Marinha, xm 1162, doc. 6, 1842.


110 an, Série Marinha, xm iiim 674, Ofícios do Comandante do Corpo dos Imperiais Marinheiros 1844-64.
144

crimes a bordo desce daquelas proporções que conserva nos sertões de onde viera
o marinheiro. Daqui se conclui que não seria difícil termos guarnições moralizadas,
quando os indivíduos que sentarem praça houverem recebido nos lugares do seu
nascimento a educação que tende a destruir os maus instintos, e quando outros
meios empregar o governo para alcançar este fim.111

Enfim, mudar o caráter das guarnições da Marinha dependia de um esforço con-


junto do Governo Central: políticas de educação, reforma no sistema de justiça e
construção de prisões. “A péssima regra de mandar para os navios de guerra, como
se estes fossem penitenciárias”, deveria e seria, aos poucos, abolida.

A história de um “vadio”: o pardo forro Hermógenes


3.7 
José Ribeiro112

Em 25 de fevereiro de 1842, Hermeto Carneiro Leão, o presidente da província do


Rio de Janeiro, entregou como recruta à Marinha o “pardo Hermógenes”, envia-
do pelo juiz de direito interino de Angra dos Reis e cujo motivo do recrutamento
era simplesmente “vadio”. Em 13 de abril, Hermógenes José Ribeiro, “pardo forro”,
contratou um procurador para escrever um requerimento ao Imperador, ao qual
anexou documentos, como a sua certidão de batismo, carta de alforria, passaporte,
entre outros.
Hermógenes José Ribeiro nasceu em 1796, na Corte, escravo e pardo, filho de
Madalena, uma escrava da nação Songa, propriedade de Sebastião Pereira Barbosa
e de algum pai mais claro do que sua mãe.
Anos mais tarde mudou-se para Paraty, onde passou a ser escravo do capitão-mor
João Raymundo dos Reis, dono de fazenda na freguesia de Mambucaba. Ali, casou-se
com a crioula Agostinha Maria de Jesus, escrava da casa. Em 1834, depois da morte
de seu dono, passou a pertencer a Joaquim José Bonina, morador da Corte, a quem
seu antigo dono devia dinheiro.
Em 1837, pagou a última prestação de sua alforria e passou a ser profissional au-
tônomo na Corte. No início de 1841, o padre Manuel Esteves da Nóbrega, vigário de

111 an, Série Marinha, Conselho Naval: ofícios e relatórios, xm 709.


112 an, Série Marinha, xm 84, Correspondência com o presidente do Rio de Janeiro, 1842.
145

Angra dos Reis, o contratou para construir uma casa na sua fazenda em Piraquara.
Depois de um ano, o padre alegou que “o pardo Hermógenes” andava concubinado
com sua escrava, a mulata Aurélia, e o dispensou do serviço.
O padre ainda reclamou que ele teve “o atrevimento de insultar-lhe com palavras”
e na noite de 20 de fevereiro veio com um bacamarte, arrombou a janela do quarto de
Aurélia, e quando os dois estavam prontos para fugir, as outras escravas, despertas
pelo barulho, retiveram a mulata, e apenas Hermógenes fugiu .
O clérigo escreveu ao Juiz de Direito prestando queixa e pedindo que, além de
preso, Hermógenes fosse recrutado e enviado à “Campanha do Sul”.113 Naqueles
dias, para garantir a distância do acusado, escreveu igualmente para um tenente
da polícia e para o chefe da polícia do Rio de Janeiro, Eusébio de Queiróz. Ele ainda
quis certificar-se de que Hermógenes não apresentaria a isenção de casado, desse
modo o acusou de ter abandonado a esposa há oito anos, e de ter roubado e ocultado,
por muito tempo, uma escrava de José da Silva em Mambucaba, Paraty. De fato, oito
anos antes, ele deixara a mulher, não por abandono, mas simplesmente por ter sido
a moeda de pagamento de uma dívida de seu dono. Podemos, nesse caso, corrigir o
padre: ele não abandonou a esposa, foi separado dela.
Segundo José Marques Nogueira, que contratara Hermógenes como feitor, no
dia seguinte à suposta tentativa de rapto da escrava Aurélia, ele foi preso enquanto
colhia “café para vender”. Seu primeiro destino foi a cadeia de Angra dos Reis, depois
viajou para Niterói, de onde o enviaram para assentar praça no Arsenal da Marinha.
Ali, ficou preso no depósito, por pelo menos dois meses, sendo, ainda, hospitalizado.
Simplesmente não houve processo para apurar a denúncia. O juiz acatou as acu-
sações do padre, o presidente da província, por sua vez, acatou o que o juiz disse e,
no Ministério da Marinha, Hermógenes foi aceito como recruta.
O tom dramático do requerimento, escrito um mês e meio depois de ter sido
preso, parece corresponder ao desespero de querer, nas palavras de seu procurador
Salustiano Conceição, “agenciar a vida descente [sic] e a honra somente com seu
ofício de carpinteiro” e se livrar da “prisão vingativa e arbitrária”.
Mesmo valendo-se de uma “retórica do oprimido”, ao confrontar a acusação e
a defesa é possível inferir alguns fatos. Seu procurador reitera não parecer “justo
que sem culpa formada se conserva preso um cidadão de bem que é miserável pardo

113 Expressão que denotava os vários conflitos que ocorreram nas primeiras décadas do Império na
província do atual Rio Grande do Sul e nas fronteiras com Argentina e Uruguai.
146

casado, que não tem outro meio para alimentar-se e tratar de sua mulher, senão o
seu ofício de carpinteiro”.
Se ele realmente tratava de sua mulher, não é possível saber. Se sim, estava na
labuta ganhando a vida para, quem sabe, alforriá-la. Se não, quando se viu impos-
sibilitado de viver maritalmente com ela, buscava outras mulheres para não viver
só. E como fora escravo até os 40 anos, ao que parece, era ainda no cativeiro que
encontrava suas parceiras. O fato de viver de seu ofício, o próprio acusador atestou
ao relatar que o contratara para fazer uma casa, evidência de que não era vadio.
Hermógenes confirmou o acordo estabelecido com o padre Nóbrega de cons-
truir uma casa. No entanto, alegou que o valor combinado não estava sendo pago,
a partir disso começaram os desentendimentos. Ao fim e ao cabo, o presidente da
província do Rio de Janeiro, Honório Carneiro Leão, dois meses depois de tê-lo
enviado como recruta, escreveu ao ministro da Marinha dizendo que a sua idade o
impedia de servir, sendo assim pediu que devolvesse o preso “para que pela Polícia
se tomem as necessárias cautelas a respeito de seu comportamento”.
Depois de 40 anos de escravidão, servindo a diversos donos, após ter sido sepa-
rado da esposa, aprender um ofício, pagar a alforria, Hermógenes continuava ligado
à escravidão – instituição que retinha as mulheres com quem queria ou podia estar –,
mas lutando contra ela. Mesmo não sendo mais propriedade de alguém, ao insultar
um empregador, o puniram.
A rebeldia teve um preço: recrutamento militar. Uma vez incapaz e velho para
marujo, como ele próprio requereu, foi recusado na Armada. No entanto, outra ale-
gação sua não foi atendida: Hermógenes afirmou não ser “perturbador da ordem
pública e particular”. O presidente discordou e ele foi reenviado à Secretaria de
Polícia, onde seu futuro próximo seria decidido.

3.8  Cores

De início, a Marinha do Império do Brasil teve de contar com uma tripulação majo-
ritariamente estrangeira e branca, especialmente europeia, para encetar sua partici-
pação no Atlântico. Aos poucos, no continente, foram recrutados homens mestiços,
pretos, caboclos e brancos. A face escura marítima dos brasileiros também informou
ao mundo a nossa condição mestiça, negra e indígena, vista como inferior em um
tempo em que as teorias racistas brotavam em todas as margens dos oceanos.
147

Em 20 de novembro de 2008, feriado do Dia da Consciência Negra, o presidente


Lula inaugurou, na Praça XV, no Rio de Janeiro, a estátua do marujo João Cândido,
um dos líderes da revolta dos marinheiros de 1910. A canção “Almirante negro”, de
João Bosco e Aldir Blanc e o livro Revolta da Chibata, de Edgar Morel popularizaram a
história do marujo. Na memória coletiva a revolta costuma ser associada mais à luta
contra o racismo e às heranças da escravidão do que propriamente às reivindicações
trabalhistas, igualmente importantes no evento.
Lula, como ex-operário, falou das duas lutas. Primeiro, daquela por condições de
trabalho mais dignas, no entanto, o herói havia sido reivindicado pelo movimento
negro e, não operário. A data dizia respeito à consciência negra, portanto, raça foi
o tema central do discurso. O presidente, com sua linguagem popular, falou para a
multidão a qual eu me incluía:

Eu dou graças a Deus. Não à escravidão, mas aos negros terem vindo para cá. Por-
que a mistura do negro, do índio e do europeu que estava aqui, que era o portu-
guês, transformou este povo brasileiro no mais extraordinário ser humano que
o planeta tem. Você vai a um país europeu fazer um ato como esse, só tem galego,
não tem nem moreno. Agora vejam aqui que colorido, não de roupa, de cor. Nós
conseguimos criar uma raça (...) de uma perfeição extraordinária. E é uma coisa em
construção, é por isso que o povo brasileiro é considerado o povo mais criativo.114

Uma das leituras que se pode fazer do referido discurso é a de que Lula repetia uma
ideologia do elogio à mestiçagem, pouco problematizante, presente em autores
como Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro, e muito disseminada no senso comum. Além
disso, sua fala mistura Deus, ufanismo, enfim, uma visão aparentemente demagó-
gica e populista.
Mas creio ser possível interpretá-la de outra maneira. No caso de Lula, migran-
te nordestino mestiço, seu discurso pode ser lido mais próximo à sua experiên-
cia. No Dia da Consciência Negra, ele falou amplamente da escravidão negra, mas

114 Discurso do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, durante cerimônia em comemoração ao Dia
da Consciência Negra. Disponível em: http://www.info.planalto.gov.br/ download/discursos/pr965-
2@.doc. Acesso em: 31 abr. 2009.
148

logo desembocou na mestiçagem. O presidente homenageava a presença do negro


como contribuinte equitativo na formação da sociedade nacional, e não apenas
como identidade distinta das demais. Depois ainda empregou os termos “galego”,
“moreno” e expressões populares para denominar e diferenciar brancos, loiros e
homens de cor.
Enfim, Lula falava da população de cor, da qual ele faz parte, e de cuja discrimina-
ção já fora provavelmente vítima. Por outro lado, pelo fato de ter alcançado o posto po-
lítico máximo da Nação, ele se sentia confortável em fazer essa espécie de autoelogio.
No Atlântico Norte, no mesmo mês e ano do discurso de Lula, o recém-elei-
to presidente dos Estados Unidos, Barak Obama, na primeira entrevista coletiva,
anunciou que adotaria um cachorro em um abrigo de animais: “Most shelter dogs
are mutts like me”. (A maior parte dos cachorros de abrigo são vira-latas como eu).
Dois anos depois, no talk show “The view”, ele retomou o assunto: “The interest-
ing thing about the African-American experience in this country is that we are sort
of a mongrel people, I mean we’re all kinds of mixed-up.” Afro-americanos seriam
“mongrel” (outra palavra para vira-latas). Do mesmo modo que Lula, Obama apon-
tava para uma mistura racial na maioria da população, usando termos que muitos
entendem como inadequados.
Cito as falas de Obama, não apenas para compará-las com as do discurso de
Lula, mas porque o termo mongrel era absolutamente pejorativo no século xix e os
marinheiros não brancos, muitas vezes, foram categorizados em mais esse estigma.
Isaac Land defende a ideia de que por meio da branquitude e patriotismo uma
fração de marinheiros norte-americanos e ingleses brancos procuraram se dife-
renciar dos marinheiros não brancos e representar um homem mais honrado do
que a média dos marinheiros. Referiu-se, para reiterar sua hipótese, a uma frase
do marinheiro britânico e memorialista John Bechervaise: “a jaqueta azul do ver-
dadeiro marítimo britânico, not a mongrel, cobre um coração tomado pelas me-
lhores e mais quentes afetividades.” Berchevaise aceitava que os costumes dos
marinheiros eram diferentes dos da sociedade em geral, mas que seus sentimentos
eram os mesmos. Segundo Land, no século xix “marinheiro branco levava consi-
go as virtudes da sua raça e do seu solo nativo (...). Eles eram os agentes e não os
149

inimigos do Império (...), um insulto em corpos brancos num lugar era um insulto
a corpos brancos de qualquer parte”.115
Não foi por mera coincidência que os marinheiros nacionais do Minas Gerais, um
navio da Marinha brasileira, chamaram a atenção do estudante Gilberto Freyre quan-
do passeavam pela neve de Brooklyn, em Nova York. Ele os descreveu, em seu diário,
em 1921, como “pequenotes, franzinos, sem o vigor físico de autênticos marinheiros”.
Em seguida, se perguntava “mal de mestiçagem?”116 Freyre foi visitar o navio e es-
timou que 75% da tripulação eram de cor.117 O antropólogo deveria entender como
autêntico marinheiro justamente o marinheiro anglófono forte, branco e corajoso,
difundido no imaginário do ocidente, pelos romances, revistas e, mais tarde, pelo
cinema. O nosso marinheiro, bem como outros homens de cor do mundo todo, não
correspondia a essa imagem. No prefácio de Casa Grande e Senzala, 13 anos depois,
ele relembrou esse episódio citando uma frase de um viajante norte-americano
do século xix a respeito dos habitantes do Brasil: “the fearfully mongrel aspect of
most of the population”.118 No entanto, treze anos depois em 1933, influenciado pelas
ideias do Dr. Roquete Pinto, difundidas no Congresso Brasileiro de Eugenia, e as de
Franz Boas, seu professor na Columbia University, ele entendeu que esses homens
eram na verdade “mulatos e cafusos doentes” e que raça era diferente de cultura.119
Talvez o autor oitocentista aludido pelo pernambucano tenha sido Louis Agas-
siz. A frase que ele reproduz é muito semelhante a outra desse também viajante-
-cientista, detrator da mestiçagem brasileira: “a amalgamação de raças (...) apaga
rapidamente as melhores qualidades do homem branco, do negro e do índio, criando
um tipo híbrido indescritível (no original: ‘a mongrel nondescript type’), deficiente
de energia física e mental”.120
O problema da inferioridade ligada à raça também foi posta em cena por um
oficial da Marinha, em 1911, na sua análise sobre a revolta dos marinheiros. José
Eduardo Macedo Soares era oficial durante o episódio e publicou, anonimamente,
o primeiro livro sobre a revolta: Política versus Marinha:

115 land, Isaac. “Sinful propensities piracy, sodomy and Empire in the rethoric of Naval Reform, 1770-
1870”, p. 102-10. Tradução minha.
116 freyre, Gilberto, Tempo morto e outros tempos, p. 68.
117 gomes, Angela. C. (org.). Em família: A correspondência de Gilberto Freyre e Oliveira Lima, p. 68-9.
118 freyre, Gilberto. Casa grande e senzala, p. xlvii.
119 Ibidem.
120 agassiz, Louis. A journey in Brazil, p. 293.
150

A primeira impressão que produz uma guarnição brasileira é a de decadência e


incapacidade física. Os negros são raquíticos, mal encarados com todos os signos
deprimentes das mais atrasadas nações africanas. (...) Imprevidentes e preguiçosos
eles trazem da raça a tara da incapacidade de progredir.121

Soares deixou a Marinha um ano depois de publicar o livro anonimamente, fundou e


dirigiu dois jornais, e ainda foi deputado federal e senador. Essas ideias estavam tão
ligadas às teorias racistas da época quanto à história da nacionalização da guarnição
da Marinha, profundamente marcada pela questão racial. Nacionalizar também era
escurecer. A Nação brasileira e o mundo sabiam disso.

“Sailors on Minas Gerais”, c. 1913. Em 1921, Gilberto Freyre encontrou membros da tripulação deste navio em Nova
York, a quem referiu-se no seu diário, em carta a Oliveira Vianna e, em 1933, no prefácio de Casa Grande e Senzala.

121 Citado em almeida, Silvia Capanema P. “A modernização do material e do pessoal da Marinha nas
vésperas da revolta dos marujos de 1910: modelos e contradições”. Estudos históricos [online]. 2010,
vol. 23, n. 45.
151

Se há dois grandes grupos de marujos no período estudado, quais sejam, os nacio-


nais e os estrangeiros, eles também podem ser divididos entre brancos e de “cor”,
ou não brancos. Os classificados como brancos são, na maior parte, estrangeiros. A
maioria, classificada sob as várias denominações para homens de cor, correspon-
de ao que convencionei chamar de nacionais. Nos navios estudados de 90% dos
marujos estrangeiros eram brancos e, em média, 84% dos nacionais eram “de cor”,
como demonstra a tabela a seguir.

tabela 7
Cores dos marinheiros estrangeiros e nacionais 1833-1854

estrangeiros nacionais
navio homens brancos homens de cor homens brancos homens de cor
Fragata Imperatriz 210 18 39 186
Fragata Constituição 312 22 64 193
Imperial Marinheiro 122 27 50 310
total 644 (91,2%) 67 (9,2) 153 (16,2) 789 (83,8)

Fontes: an, Série Marinha, Livros de socorros da fragata Imperatriz xvii m 2500 e xvii m 2501; Livros de socorros
da fragata Constituição: xvii m 490; xvii m 1334; xvii m 1342; xvii m 1374; xvii m 1399; Livros de socorros da corveta
Imperial Marinheiro: xviii m 2303; xviii m 2311; xviii m 2312; xviii m 2323; xviii m 2324; xviii m 2325.

Do mesmo modo que usei a expressão “de cor” para comparar nacionais e estran-
geiros, dentre os nacionais também faz-se necessária a distinção entre caboclos,
pretos e pardos, os quais analiso separadamente, mais adiante.
152

tabela 8
Cores dos recrutas e praças nacionais 1833 - 1894

pardos e outros caboclos pretos brancos total


mestiços
Tripulação de navios
da Armada (1833-1852) 460 (49%) 178 (19%) 151 (16%) 153 (16%) 942
Registros de recrutas
nas províncias
(1836-1864) 149 (60%) 54 (19%) 35 (12%) 45 (16%) 284
Réus em processos
criminais (1860-1894) 171 (53%) 48 (15%) 49* (15%) 52 (16%) 320

Fontes: “Tripulação de navios da Armada”: an, Série Marinha, Livros de socorros dos navios Imperatriz (1833-
35), Constituição (1844-46) e Imperial Marinheiro (1852-54); “Registros de recrutas nas províncias”: A lista foi
extraída de um banco de dados que fiz a partir de vários maços de correspondência de presidentes de província
com o ministro da Marinha. Ver bibliografia. As cores foram definidas pelas autoridades e funcionários que
enviavam os recrutas para a Corte em diversas províncias e em alguns requerimentos. “Réus em processos
criminais da Marinha”: morgan, Zachary. Legacy of the lash, race & corporal punishment in the Brazilian Navy
(1860-1910). Providence, 2001. Ph.D. Dissertation, Brown University

* Incluí no número de pretos, 4 fulas e 1 crioulo.

Pardo sempre foi uma palavra polissêmica122 e poderia significar negro forro, indí-
gena e mestiços de variadas origens.
Dentre os pardos da tabela acima, incluí “outros mestiços”, a saber: morenos,
pardo-escuros, pardo-claros, pardo-brancos, escuros, cabras, cafuzos, trigos, tri-
gueiros, “quase preto”, “quase branco”. Eles representam, dependendo do navio,
de 10 a 17% do total de mestiços, sendo os demais classificados apenas como pardos.
Segundo o príncipe viajante Maximiliano de Wied-Neudwied, uma parte da po-
pulação era branca ou “presumidamente branca”. Vários viajantes fazem comen-
tários semelhantes. José Bonifácio, preocupado com questões de heterogeneidade
dos habitantes do Brasil, usou a expressão “brancos inferiores”, aos quais, junto dos
mulatos, não se devia permitir que vivessem “na miséria e na indolência”.123 Hoje em
dia ainda existe linguagem oral do Rio de Janeiro, a expressão “branco sujo”. Todas
elas atribuem pobreza ou algum grau de miscigenação a esses ditos brancos. Den-
tre os brancos listados, havia certamente um número considerável de portugueses

122 A este respeito ver, lima, Ivana S. Cores, marcas e falas: Sentidos da mestiçagem no Império do Brasil.
123 silva, José. B. A. Projetos para o Brasil, p. 154.
153

naturalizados. É o caso de Bartholomeu da Silva, embarcado em 1933, na fragata


Imperatriz, que foi registrado com a rara expressão “brasileiro adotivo”.124
Em alguns casos, a cor do recruta muda conforme o registro. Manoel Pacífico de
Barros, autoidentificado como índio em seu requerimento, foi registrado no livro
de assentamento de recrutas como pardo de cabelos crespos, e no livro de registros
do Batalhão Naval, como moreno de cabelos lisos.125 Em 1862, o menor Henrique
Fagundes, requerido como escravo pardo pelo gaúcho João Fagundes, foi registrado
como branco em seu assentamento.126 A cor e seus variados vocábulos e significados
mudam segundo os indivíduos, os interesses, o espaço e o tempo.
Em vez de homogeneizar, quando adotadas, as expressões “população de cor”,
“pardo” ou “mestiço”, pretendem englobar justamente todas as categorias utilizadas
naquela época. O que era moreno para um escrivão poderia ser pardo para outro ou,
ainda, cabra para um terceiro; pardo-escuro podia também ser crioulo, além de um
pardo ou caboclo passar por branco.
Na documentação oficial no século xix, usava-se majoritariamente a palavra
pardo. Hoje em dia apenas esse termo é utilizado, ainda que, como antes, as outras
designações para mestiços fossem muito mais empregadas na linguagem do dia a dia.
Em 1976, na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (pnad), realizada pelo ibge,
os entrevistados puderam declarar a sua cor. Segundo o resultado, 43% não respon-
deram possuir as categorias censitárias da época (preto, branco, indígena, pardo ou
amarelo), mas, sim, 136 termos diferentes.127 O censo de 2010 manteve a autoiden-
tificação da cor, mas pedia que o entrevistado escolhesse entre as cinco categorias
censitárias: negro, pardo, branco, amarelo e vermelho (anteriormente indígena).
Em suma: quando comparo estrangeiros e nacionais, uso apenas duas classifi-
cações: brancos e população de cor. Evito o termo raça, pois, no período, “cor” era
o termo para classificar o fenótipo e, eu diria, a inserção social como um todo. Não
se trata apenas da cor da pele, mas de outros aspectos, como cabelos, nariz, ascen-
dência, classe, sociabilidade etc. Dentre os nacionais, uso os mesmos critérios que
o ibge, ou seja, englobo as variadas categorias mestiças sob a denominação “pardo”,

124 an, Série Marinha, Livro de socorros da fragata Imperatriz, xvii M 2500.
125 an, Série Marinha, xm 69, Correspondência com o presidente de Sergipe.
126 an, Série Marinha, xm 1160, Requerimentos, 1862.
127 schwarcz, Lilia M. Nem preto nem branco, muito pelo contrário: Cor e raça na intimidade. In: novais,
F.A. e schwarcz, L.M. História da vida privada, Volume 4., p. 226. A lista de cores respondidas pode
ser lida na página 227.
154

pois em alguns momentos é necessário pensar esse grande número de pessoas de


origem étnica variada como um grupo. Além disso, escolhi essa palavra, pois, em
média, 83% do que chamamos mestiços biológicos foram classificados como pardos.
Ainda assim, quando analiso um indivíduo, uso o termo empregado na documen-
tação. Finalmente, entendo que muitos descendentes de indígenas foram classifi-
cados como pardos.
Havia e há discriminações diferentes entre as várias cores, tendendo a piorar em
relação aos indivíduos com pele mais escura, afinal, o estigma da escravidão, ou a
proximidade com ela, era o pior de todos entre os homens de cor. Isso não evitou,
por exemplo, que brancos não fossem recrutados: a cor era uma marca fundamental,
mas a frequente atribuição de “vadio” enredou uma parcela razoável de brancos no
recrutamento, tanto nacionais quanto portugueses.
A discriminação de cor era uma prática comum, não apenas da sociedade da-
quela época, como na de hoje, e uma experiência cotidiana e dolorida para os que
a sofriam e ainda a sofrem. Em 1832, segundo o periódico O mulato ou o homem de
cor, o “escritor público”, cadete e negociante Mauricio José de Lafuente, foi detido
na presinganga, no entanto, “teve o infeliz homem de cor a sorte de ser marinheiro,
depois de ter sido cadete”. Homem de imprensa, já havia sido detido e processado
pelo envolvimento em um motim político no Paço. Mas o jornal atribuía a sua se-
gunda prisão à “pecha de ser mulato”.128
Cor e recrutamento geraram diversas controvérsias. Em visita à recém-inaugu-
rada Companhia de Aprendizes Marinheiros da Bahia, em 1859, o Imperador ano-
tou em seu diário: “os meninos têm bom aspecto, e alguns são muito galantes. O
intendente mostra-se avesso à admissão dos de cor, o que não convém de nenhum
modo”.129 Em 1857, de fato, o comandante da recém-inaugurada escola comunicou
ao seu superior que não admitia pretos, e quando os recebia, os enviava para a Escola
de Aprendizes do Arsenal do Exército, onde eram aceitos. No seu ponto de vista, a
rejeição de negros e pardos escuros tornava a escola mais atraente para voluntá-
rios.130 No sul do Império, em 1860, uma denúncia anônima em um jornal acusava o
Comandante da Escola de Aprendizes Marinheiros de Santa Catarina de maus tratos
aos menores, corroborando a cor de um dos seviciados: “negará o Sr. Coutrim que

128 O mulato ou o homem de cor, n. 4, 22/10/1832. Citado em lima, Ivana. S. Cores, marcas e falas, p. 53-4.
129 D. Pedro II. Diário de viagem ao Norte do Brasil, p. 51.
130 Arquivo Público da Bahia, Escola de Aprendizes-Marinheiros.
155

(...) mandou castigar pelo guardião na frente da companhia, com duas dúzias de
bolos, um menino de cor branca, filho de estrangeiro e de excelente comportamento?”131
O homem pardo, livre, que une duas das principais categorias populacionais do
Império, a cor e a condição, aparece em destaque nas estatísticas do recrutamento,
tanto quanto nos mapas de população de época. Apesar de a escravidão ser estrutu-
ral naquela sociedade, e em média atingir, no período estudado, 30% da população
total, a existência de uma maioria parda dentre os livres é um dado tão importante
quanto a própria escravidão.

3.9  Indígenas

Encontrei, faz poucos dias, uma centena de recrutas recém-


-chegados de uma província do Norte. A maioria era de cor, um
terço eram índios. Eles se alistam por quanto tempo? – pergun-
tei. Eles absolutamente não se alistam, responderam-me. São
agarrados e obrigados a servir. Os presidentes de província têm
ordens para enviar todos os indivíduos desordeiros, e tantos
índios quanto puderem apanhar.132
thomas ewbank, Life in Brazil

O caboclo órfão maranhense José Pereira da Silva ingressou na Armada voluntaria-


mente aos 13 anos, em setembro de 1847.133 Foi assentado como segundo grumete
e tornou-se criado do capitão da escuna Pavuna. Meses depois, o francês Carlos Le
Blon requereu o “pardinho acaboclado” José como seu escravo, pois o comprara
de uma leva de escravos vindos do Ceará. José, por sua vez, recorreu ao Imperador
alegando ser “caboclo legítimo” e filho de pais livres. Os dois requerimentos geraram
diversas discussões dentro e fora da Marinha, envolvendo o oficial maior, o chefe
do quartel, o chefe da polícia, o ministro e o auditor da Marinha, o juiz da Primeira

131 O cruzeiro. Desterro, SC, 3/5/1860.


132 ewbank, Thomas. Life in Brazil; or A journal of a visit to the land of the cocoa and the palm., p. 278.
Tradução minha.
133 Todos os ofícios estão contidos no maço an Série Marinha, Correspondência com o chefe de po-
lícia , xm 5, com exceção do próprio requerimento de José incluído contido no maço xm 1163, doc 5,
Requerimentos.
156

Vara da Corte e um delegado de polícia. O chefe do quartel, Jacinto Roque de Sena


Pereira,134 tomou as dores de José, alegando que, além dele ser “filho do Brasil”, ele
era do Maranhão e não do Ceará, como testemunhou outro marujo maranhense que
o conhecia. Sena Pereira escreveu ao ministro, resoluto: “A influência da riqueza e
das relações de qualquer que se intitula senhor do suplicante só pode ser neutrali-
zada pelo governo, os miseráveis caboclos só nele podem achar defensor.” Carlos
Le Blon, de fato, era um francês rico, influente e bem relacionado, dono de terras
no atual bairro Leblon, no Rio de Janeiro.135
Tanto o requerimento de José, alegando ser caboclo e, portanto, não escravo,
quanto o de Le Blon, alegando o fato de José ser propriedade sua, foram apresen-
tados ao Auditor Geral da Marinha, José Lisboa, e ao Oficial Maior da Marinha,
Manoel Carneiro Campos. O primeiro deu um parecer contrário à entrega de José
ao seu suposto dono, considerando sua origem cabocla, portanto, não passível de
escravidão. Já o segundo, nas margens do parecer do primeiro, entendeu que o
assunto não cabia à Marinha, desse modo, o menino devia ser entregue ao Secre-
tário da Polícia, cuja jurisdição poderia tratar da liberdade ou escravidão do menor.
Para Campos, “ninguém por certo deixará de reconhecer quão incompatível é com
a honrosa classe militar da Marinha e Guerra, contar no número dos praças dos
corpos respectivos, homens que não forem notoriamente livres, para gozarem do
título de cidadãos”. Le Blon apresentou, finalmente, um processo levado a cabo na
Segunda Delegacia de Polícia da Corte e confirmado pela Primeira Vara de Justiça,
que continha os documentos da venda de José pelo seu senhor de Sobral a José
Vasconcelos Smith, rico morador de Fortaleza, que o enviou em consignação para
ser vendido na Corte, onde foi, por fim, foi adquirido por Le Blon. José foi entregue
ao chefe de polícia, que o devolveu ao suposto dono, pois considerou legítimas as
provas de cativeiro apresentadas.
Essa história mostra um pouco como a questão da cor foi manipulada politi-
camente durante o século xix e segundo os interesses relacionados aos assuntos
de liberdade e cativeiro. No caso de José, seu suposto dono o chamava “pardinho
acaboclado” para legitimar sua escravidão. Nos assentos da Marinha, no aspecto
“cor”, ele foi classificado de caboclo. Isso confirma sua procedência indígena, que

134 Jacinto Roque de Sena Pereira foi ministro da Marinha (1839-1840) e chefe da esquadra naval do
Prata, durante a guerra da Cisplatina.
135 Suas atividades empresariais abrangiam desde a pesca de baleias até a companhia de seguros.
157

facilmente poderia ser classificado de pardo na Marinha. Ao longo dos séculos xix
e xx, chamar uma grande parte dos afro-descendentes, assim como os indígenas e
seus descendentes de pardos foi uma tendência crescente. Se, por um lado, escra-
vos pretos poderiam tornar-se pardos quando libertos, indígenas eram transfor-
mados em pardos, para serem escravizados, ou caboclos, para serem incorporados
à sociedade nacional.
Nos navios estudados, das décadas de 1830 a de 1850, os classificados como ca-
boclos, cafusos ou cabras no aspecto “cor” dos Livros de socorros somam em média
20% dentre os nacionais. Certamente, dentre os classificados de morenos ou pardos,
há indígenas ou seus descendentes. Se seguirmos pelo tipo de cabelo, outra carac-
terística de identificação, poderíamos dizer que cabelo preto indica predominância
de origem indígena. Explico: em relação ao “cabelo” todos os caboclos os têm preto,
com exceção de alguns que têm cabelo corredio ou liso. Por sua vez, todos os homens
pretos têm cabelos grenhos ou carapinhas. E, finalmente, os pardos têm cabelos
carapinhos, grenhos e pretos, e os morenos, em geral, têm cabelos pretos. Assim, na
fragata Constituição há 24 pardos e 19 morenos com cabelos pretos, e no Imperial
Marinheiro, há 84 pardos e 3 morenos de cabelos pretos. Se meu raciocínio estiver
correto, a porcentagem de indígenas ou seus descendentes entre os nacionais sobe
para 30%, na fragata Constituição e 44%, na corveta Imperial Marinheiro.
Esse forte contingente caboclo na corveta Imperial Marinheiro corresponde à
visão do tenente Sabino Eloy Pessoa, tripulante dela em uma viagem à Europa, entre
1857 e 1858. Antes de exaltar as virtudes do marujo de cada província, citado acima,
descreveu o marujo brasileiro genérico como “caboclo”, em resposta à revista naval
inglesa United Service Magazine, na qual se lia que os “brasileiros não eram idôneos
para a vida do mar”:

Qual é em todo mundo o tipo mais perfeito do marinheiro se não é o caboclo dos
nossos grandes rios, mesmo dos nossos sertões?
Quem mais denodado e inteligente no combate? (...) Mais paciente e resignado,
mais respeitador da disciplina?
Imperial Marinheiro, não é ele, sendo principalmente indígena que atira ao alvo
como Guilherme Tell, quem maneja o sabre como um mestre de armas, que com-
bate no campo raso como um zuavo? Não é ele (...) o mais destemido gajeiro e o
nadador por excelência?
158

No interior dos bosques, seguindo a pista do inimigo, sofrendo privações desco-


nhecidas na Europa...136

Essas palavras poderiam ter sido citadas das páginas de um romance indigenista,
contemporâneo à publicação do livreto do tenente. O Guarani de José de Alencar,
por exemplo, havia sido publicado em 1857. Pessoa era um homem culto, como se
depreende de seu relato de viagem e de uma das suas ocupações na Marinha: foi o
responsável pela biblioteca por alguns anos. Conhecia história, geografia, ciências
exatas, frenologia, literatura; citava a cântaros os versos de Camões. Ele defende
o marujo brasileiro, retratando-o como herói indígena. Mas, para além de sua sin-
tonia com a literatura contemporânea, a imagem que tinha do marujo caboclo não
pertencia apenas ao campo do simbólico. Apesar de sua descrição literária, ele não
era o índio morto do romance indigenista. Pessoa conhecia bem a tripulação dos
navios, onde a presença indígena, ou de seus descendentes, não era pequena.
O viajante Thomas Ewbank deixou um testemunho diferente a respeito desses
marujos brasileiros, quando visitou a Ilha de Boa Viagem, na Baía de Guanabara,
onde ficava a Escola de Aprendizes Marinheiros da Corte. O norte-americano ficou
intrigado com um sentinela de mosquetão e baioneta, e outro que carregava uma cai-
xa de cartuchos e trazia uma espada à mão. Segundo suas palavras, “nenhum desses
guerreiros ia além de quatro pés de altura nem dez anos de idade. Percebo que um
deles era índio. O que tudo isso significa, não concluí (...)”.137 No ano em que visitou
a Escola, havia 27 aprendizes embarcados na fragata Constituição, todos vinham das
províncias do Norte, sendo que 16 eram caboclos e 11 eram pardos (alguns desses
últimos, com cabelo corredio). 138
Ewbank foi informado que os indígenas tinham boa fama como marítimos. Ain-
da assim questionou um discurso muito difundido durante os períodos colonial
e imperial, reproduzido pelo próprio comandante da Escola de Aprendizes que o
recebeu: “os aborígenes, os selvagens e os mansos ligam pouco para os filhos, às
vezes, vendendo-os por um trago de cachaça, e que seus filhos não dão importân-
cia maior aos pais”. Ewbank ao checar essa informação inquiriu a um indiozinho

136 pessoa, Sabino E. Viagem da Corveta Imperial Marinheiro nos annos de 1857 a 1858 a diversos portos do
Mediterrâneo e do Atlântico, p. 17-8.
137 ewbank, Thomas. Vida no Brasil, p. 196.
138 an, Série Marinha, Livro de socorros de aprendizes marinheiros da fragata Constituição, xvii M
1344, 1846.
159

do Amazonas a respeito de sua família. Ele respondeu que o seu pai estava morto
e queria voltar para a sua mãe.139 Nessa época, três dos índios foram recrutados
por uma expedição de engajamento de indígenas no Espírito Santo: os botocudos
Jumbrá e seus dois filhos. Uma vez consentido o engajamento, o pai pediu para
acompanhar os filhos a fim de conhecer seu destino. O fato é que, se havia alguma
permissividade da parte dos índios nas trocas de bens por pessoas, as autoridades
e particulares também se fiavam em uma atribuída ausência de valores familiares,
por meio da qual trocavam ou forçavam a troca de objetos ou dinheiro por suas
crianças. Em outras palavras, tratava-se de uma compra. Mas, ao menos, em duas
expedições da década de 1840, de engajamento para a Armada, no Espírito Santo e
no Pará, essa suposta troca ocorreu em pouquíssimos casos. O resultado foi a vinda
de poucos rapazes, fato que deve ter contribuído para uma política mais agressiva
nos anos seguintes.
A militarização dos índios era uma tradição colonial das Américas. No entan-
to, a novidade do século xix consistia em que o recrutamento estava na agenda do
processo civilizatório. A inserção dos índios na “sociedade nacional” podia e devia
ser feita por meio do trabalho. De início, foram classificados de caboclos, pardos e
até mesmo brancos, sendo que hoje estão miscigenados na população negra, parda
e branca, desse modo, a palavra “caboclo” deixou de ser uma classificação de cor
para ser utilizada basicamente na linguagem oral, portando inúmeros significados,
dentre os quais indígena, mestiço de indígena com branco, caipira, matuto, perso-
nagem de folguedo etc.140
Os índios trabalharam durante toda a colonização, ora ao lado dos escravos, ora
onde estes eram insuficientes. As capitanias, e depois províncias, como São Paulo,
Pará e Espírito Santo possuíam grande contingente de índios e seus descentes fa-
zendo todo tipo de trabalho, às vezes, remunerado, às vezes, compulsório e, às vezes,
escravo. Em 1824, o presidente do Espírito Santo explicava as dificuldades de enviar
índios para a Armada. Dada a falta de escravos naquela província, eram os índios os
fornecedores de farinha de mandioca para a capital.141
Na década de 1820, várias decisões e portarias requeriam índios para os navios e
arsenais da Armada. Uma portaria de junho de 1824, expedida para Santa Catarina,

139 ewbank, T. Vida no Brasil, p. 196.


140 Ver verbete no dicionário Houaiss de Língua Portuguesa.
141 an, Série Marinha, xm 84, Correspondência com o presidente do Espírito Santo, 29 de julho de 1842.
160

Rio Grande de São Pedro, Espírito Santo e Pará determinava que “os índios enviados,
logo que se reconheça a Independência deste Império serão (...) restituídos à sua
província quando requeiram regressar”.142
Em dezembro de 1825, foi aprovada a criação de uma companhia de índios para
o serviço do Arsenal da Marinha do Maranhão e dos navios da Armada.143 O presi-
dente do Ceará, em 1826, respondeu a um questionário do governo a respeito da
civilização de indígenas, no qual afirmava que o aproveitamento da mão-de-obra
indígena diminuiria a necessidade de escravos africanos e forneceria “ao Exército
e à Marinha soldados e marinheiros robustos”.144
Na década de 1830, um aviso declarava que os índios eram “pacientes nos tra-
balhos, sóbrios e mui subordinados à disciplina”, ao contrário dos marinheiros
recrutados na Europa que, além de onerosos, eram insubordinados e propensos à
deserção.145 No entanto, eles não eram necessariamente submissos. Em 1827, alguns
remadores indígenas vindos de aldeias de Alagoas, Bahia e Rio de Janeiro abando-
naram o Arsenal da Corte por falta de pagamento e foram declarados desertores.146
Naquele período, o presidente da província da Bahia mencionou sobre o transporte
de “recrutas e índios” para a Corte. Nesse sentido, apesar de ser recruta, o índio era
visto como uma categoria diferente.
Em 1837, dois avisos determinavam o emprego de crianças indígenas: o primeiro
requeria meninos de sete a dez anos como aprendizes no Arsenal da Marinha da
Bahia, em troca de alimento e vestiário. O segundo, jovens de 13 a 20 anos aptos para
o serviço da esquadra. Antonio Faustino foi recrutado em 1837, aos dez anos, como
menor indígena, algo perfeitamente legal no período. Seu destino na Marinha foi
duro. Ficou na Companhia de Menores por cinco anos, aos 16, ingressou como pri-
meiro grumete, e pelo menos nos dois anos seguintes continuou como tal, na fragata

142 an, Série Marinha, xm 84, Correspondência com o presidente do Espírito Santo.
143 Decisão n. 284, 20 de dezembro de 1825. Colecções das Decisões do Governo do Império do Brazil de 1825,
p. 200.
144 Ofício de Antônio de Sales Nunes Barford para o Visconde de São Leopoldo, 1826. In: naud, M.C.,
Documentos sobre o índio brasileiro (2.a parte), p. 322.
145 Aviso de 3/6/1837. Coleção das leis do Império do Brasil, 1837. Disponível em: http://www2.camara.gov.
br/atividade-legislativa/legislacao/publicacoes/doimperio/colecao2.html. Acesso em: 31 jul. 2011.
146 soares, Carlos E.L. A capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro 1808 – 1850, p. 277.
161

Constituição, recebendo 4$800 réis de soldo.147 Passou toda a sua adolescência na


Marinha, e durante sete anos não ascendeu na carreira.
Na década de 1840 há notícias de expedições preparadas para engajar indígenas
no Espírito Santo e Pará. Na Sexta-feira da Paixão de 1845, o capitão-tenente Felipe
José Ferreira da Marinha, acompanhado por um soldado, chegou a Vitória no Espí-
rito Santo, de onde iniciou algumas incursões na província com o intuito de recrutar
índios para a Armada. Ele prometia 5$000 réis para quem indicasse um índio apto,
e 80$000, roupa, comida e abrigo para um engajado; além de um soldo que varia-
va de 4$000 a 12$000 réis148 (correspondente aos soldos mínimos e máximos que
um marujo poderia ganhar durante todo o serviço). Nas instruções do ministro da
Marinha para a expedição, limitava-se a 120$000 réis o custo de engajamento por
cabeça. Orientava-se a travar “amizade com seus chefes, fazendo a estes alguns pre-
sentes dos objetos, a que eles dão grande apreço”. Ele poderia gastar com presentes,
dinheiro em espécie ou, ainda, com a indenização a proprietários de terras que os
mantinham como trabalhadores!149 120$000 réis era mais ou menos o que se gastava
para engajar estrangeiros em 1835. Na década de 1840, o engajamento de estrangeiros
diminuía, e as políticas internas de recrutamento recrudesciam.
Segundo o próprio tenente, os índios lhe tinham terror, pois corria a notícia
que 80$000 réis correspondia ao preço de compra dos índios, pela qual eles jamais
poderiam voltar “à sua pátria”.150 ConformeThomas Ewbank, na década de 1840, um
índio no Ceará era comprado por no mínimo 70$000 réis.151 Em Vitória, apenas um
índio rendeu-se às suas promessas. Diante da resistência encontrada, ele dirigiu-se
a São Mateus, mais ao sul. Ali, advertiu aos seus superiores que a tentativa de não
engajá-los à força era “improfícua missão”, pois, além de desconhecer as vantagens
que o governo lhes oferecia, havia pessoas que lhes persuadiam a não aceitar e “que
desfrutam o trabalho deles por bem diminuto estipêndio!”.

147 an, Série Marinha, xviii M 490, Livro de socorros fragata Constituição, 1844-5 e xm 128, Correspon-
dência com o presidente do Maranhão, 1837.
148 an, Série Marinha, xm 13, Correspondência com o presidente do Espírito Santo, diversos ofícios do
capitão-tenente Felipe José Ferreira ao ministro da Marinha Francisco de Paula H. Cavalcante de
Albuquerque, março a julho de 1845.
149 Em 1808, estava previsto o trabalho compulsório dos indígenas, capturados em regime de guerra
justa. A lei foi abolida em 1831, mas o costume continuou.
150 Ibidem
151 ewbank, Thomas. Life in Brazil; or A journal of a visit to the land of the cocoa and the palm, p. 323.
162

Havia exploração do trabalho indígena no Espírito Santo. Mas as informações do


serviço militar eram bastante conhecidas, ao contrário do que dizia o tenente. Ele
próprio afirmou que as pessoas “que lhes convenciam do horror do recrutamento”
eram desertores do Exército e da Armada que infestavam aqueles sertões. A fuga do
recrutamento era uma escolha: os índios preferiam trabalhar por pouco, desde que
pudessem viver em sua terra natal ou, pelo menos, próximo às suas famílias. Muitos
índios do Espírito Santo tornaram-se soldados de tropas locais do Exército, mas
o recrutamento para alhures não correspondia às suas expectativas de adaptação
ao contato. O mesmo aconteceu em uma expedição realizada no Pará: em 1848, as
autoridades reclamavam da preferência dos ribeirinhos de continuar em regime
semiescravo a servir às Forças Armadas.152
O tenente Ferreira continuou sua missão capixaba na Vila da Barra, onde o fa-
zendeiro e comendador Antonio Rodrigues Cunha lhe cedeu dois botocudos, logo
embarcados em uma sumaca para a Corte. Ele deve ter recebido em troca uma “in-
denização”, como previam as instruções do engajamento. A partir de então, junto
do subdelegado e do comendador Cunha, fez incursões pelos sertões para encon-
trar índios. Durante essas viagens, fixou e distribuiu editais entre os inspetores dos
distritos, contendo “as condições vantajosas que benignamente o governo imperial
lhes oferece”. Após voltar dessa última expedição, concluiu: “é incompatível fazer
o engajamento da maneira que o Governo pretende”. As instruções para o engaja-
mento formuladas no Ministério autorizava o tenente a:

(...) conseguir que os indígenas se prestem a vir servir na Armada, a lançar mão de
todos os meios que sua perspicácia lhe sugerir, não se servindo jamais para com
tais indivíduos de meios coercivos ou aterradores: pelo contrário Vmce. lhes fará
conhecer por vias de persuasão e doçura, quanto eles podem lucrar e melhorar,
empregando-se no serviço do Império, onde acharão que deles trate com o ves-
tiário necessário, e alimento regular, independentemente dos riscos e fadigas de
vida nos bosques.153

152 an, Série Marinha, xm 107, Correspondência com o presidente do Pará.


153 an, Série Marinha, xm 13, Correspondência com o presidente do Espírito Santo, diversos ofícios do
capitão-tenente Felipe José Ferreira ao ministro da Marinha Francisco de Paula H. Cavalcante de
Albuquerque, março a julho de 1845.
163

Dois meses depois, com apenas dez índios engajados, entre eles os botocudos Jum-
brá e seus dois filhos, o tenente escreveu um parecer sobre as relações com os indí-
genas na província:

com eles nenhum arranjo tenho podido efetuar por serem mui desconfiados, e pou-
co ambiciosos; sendo o seu maior prazer comerem muito e viverem ociosos com
duas e três mulheres! (...) Tenho tentado com os donos dos sítios ver se é possível
havê-los com algum engano, e mesmo lhes tenho oferecido vantagens; mas eles
receiam que forçando-os lhes sobrevenham perseguições e preferem tê-los como
amigos, ainda sofrendo deles e das mulheres cotidianos prejuízos e estragos que
lhes fazem nos roçados, que entregá-los enganados (...).. 154

Um aviso de julho de 1847 havia instituído o engajamento de índios para o servi-


ço naval dentre as populações ribeirinhas do Pará. No entender do presidente da
província, em março de 1848, a missão já estava muito cara e ineficiente: gastava-se
cerca de 3:000$000 réis por mês, “entretanto, o número de indivíduos agarrados
com o nome de engajados é insignificante”.155 Coelho sabia que na verdade ocorria
recrutamento forçado, por isso reclamava aos agentes de engajamento o abuso de
“recrutarem crianças arrancadas violentamente a seus pais e a seus lares”. Nas suas
palavras, se tal método continuasse, resultaria “que ao subir as águas do Amazonas, e
seus confluentes, algum navio nacional, muitos moradores abandonam suas habita-
ções, e embrenham-se pelos matos; e a bandeira nacional, quando surge tremulando
por esses remotos lugares em vez de causar satisfação e alegria, espalha o terror”.156
Coelho questionava uma prática comum antes do seu governo. Há registros, em
1846, de “voluntários” do engajamento de indígenas no Rio Xingu, na vila de porto
de Mós, promovido pelo capitão de fragata Francisco de Paula Ozório. Para a casa
do juiz de paz, ele levava os engajados, a maioria composta de menores, junto de
seus responsáveis e ali era assinado um termo de engajamento. Em uma amostra
de sete, havia dois curadores, uma avó, dois pais, uma mãe e um patrão. Todos os
ditos responsáveis recebiam indenizações entre 14$000 e 15$000 réis. O patrão do
índio Mura, Victorino José, e o curador do índio José Policarpo Pereira, receberam

154 Ibidem.
155 an, Série Marinha, xm 107, Correspondência com o presidente do Pará.
156 Ibidem.
164

de indenização um valor que seu fâmulo e seu pupilo respectivamente “lhe deviam”.
Enquanto valores similares foram cedidos aos parentes a modo de gratificação.
Todos esses jovens, segundo o termo de engajamento, deveriam servir por seis
anos, recebendo um salário inicial de 7$000 réis, após esse tempo teriam sua volta
para casa assegurada.157
Em 1860, o índio Manoel Pacífico de Barros, 24 anos, foi enviado como recruta
pelo capuchinho Frei Dorotheo Loretto, religioso responsável pelo aldeamento de
São Pedro, em Porto da Folha, Sergipe. O frei teria atendido à solicitação do presi-
dente da província de remeter para a Armada índios “rixosos e turbulentos”. Há
registros na região tanto do medo e a conseguinte fuga quanto de conflitos causa-
dos pelo recrutamento. Em 1827, indígenas de um aldeamento próximo, Pacatuba,
invadiram a cadeia de Vila Nova para libertar o seu líder, que se encontrava preso
como recruta para a Marinha.158 Conforme visto anteriormente, segundo o Impe-
rador, quando visitou aquelas paragens em 1859, as mulheres de Barra de Panema
acreditavam que o vapor em que viajava “carregaria todos os homens no caso de
assentarem praça”.159
Décadas mais tarde, no entanto, o índio Pacífico não escapou de sua sina e,
dez meses após ter chegado à Corte, e jurado à bandeira, dirigiu um requerimento
ao Imperador:

Mui submisso e respeitosamente prosta-se aos honrosos pés de V. M. Imperial,


o índio Manoel Pacífico, um daqueles que foi parte na representação feita à V. M.
Imperial contra o rev. Frei Dorotheo do são Francisco e Tenente Coronel Mano-
el Gonsalves que tentaram expulsar-nos das terras que V. M. Imperial se dignou
ceder-nos com sua decisão quando visitou as províncias do Norte.
Imperial Senhor com a retirada de V. M. Imperial para esta corte não foi o bastante
ter deixado as necessárias ordens ao presidente da Província do Aracajú (...) abu-
sando aquela autoridade das ordens soberanas com nossa expulsão e conseguiu
remeter para esta corte para o serviço da Armada.

157 an, Série Marinha, IM 483, Engajamento de indígenas.


158 dantas, Beatriz et al. Os povos indígenas no nordeste brasileiro: um esboço histórico, in: cunha,
Manuela C. História dos índios no Brasil, p. 448.
159 D. Pedro II. Diário de viagem ao Norte do Brasil, p. 134.
165

E como me acho com praça no Batalhão Naval, imploro à V. M. Imperial mandar


escusar-me do serviço atendendo as injustiças que tenho sofrido. Até meus papeis
depois que aqui cheguei tenho mandado os ver e a resposta que tenho tido de mi-
nha família é que o mesmo Frei Dorotheo se tem negado a querer dá-los. Certo da
magnanimidade de um bem-fazejo coração de V.M. Imperial (...). O infeliz índio
da missão de S. Pedro Manoel Pacífico com praça no Batalhão Naval.160

Diante dos conflitos pela terra, da imposição do missionário e do recrutamento


militar, Pacífico exigia o cumprimento da lei. Seu trunfo era a promessa de posse
da terra, assegurada pelo próprio Imperador. É provável que o ministro, diante da
submissão que o índio ainda preservava ao poder simbólico do Imperador, tenha
respondido a favor do requerimento. Pacífico lutava contra o missionário, o tenente
e o presidente da província, mas preservava o respeito à “magnanimidade do ben-
fazejo coração” do Imperador, deixando claro fazer parte do seu vasto Império. Em
troca, era necessário obter direitos para preservar sua própria Nação.161

3.10  Pretos e escravos

Uma minoria de escravos foi empregada na Armada de modos variados. Segundo o


regulamento de 1822, só poderiam ser recrutados homens brancos e pardos. Mas
naquele ano mesmo, um decreto autorizou a compra de escravos para tripularem
os navios de guerra.162 Anos mais tarde, uma Ordem Geral do ministro, de 1833, de-
terminava a investigação mais a fundo da condição dos homens de cor nos navios,

160 an, Série Marinha, xm 69, Correspondência com o presidente do Sergipe, 1861.
161 Em seu diário, o Imperador mencionou a existência de mais ou menos cem índios entre os muitos
portugueses na aldeia de São Pedro. Registrou a queixa de roubo de terras dos primeiros contra os
segundos. O frei Loretto alegou ao Imperador que os índios eram indolentes e, já que não plantavam,
dava terras aos “pobres”. Os índios ainda reclamaram que o frei impedia, nas palavras do Imperador,
“batuques, bebedeiras e preguiça de trabalhar”. D. Pedro II, precisando demonstrar generosidade
com todos que cruzavam seu caminho, talvez tenha prometido a integridade das terras aos índios,
mas, pelo que escreveu em seu diário, parecia ter mais empatia com o frei. D. Pedro II. Diário de
viagem ao Norte do Brasil, p. 133.
162 Decisão n. 147, 8 de julho de 1824, Manda comprar escravos para o serviço dos navios de guerra.
Coleção de decisões do Império do Brasil de 1824.
166

“por serem encontrados muitos escravos fugidos”.163 Em 1837, outra lei consentiu a
entrada de crioulos no Exército e na Armada. Mas dois anos depois, em 1839, uma
correspondência reservada de Garcia d’Almeida, presidente da Bahia oferecia como
recrutas para o ministro da Marinha, homens presos durante a Sabinada e enviados
para Fernando de Noronha. Ele justificava que não haviam sido recrutados para
o Exército por serem criolos!164 Finalmente, uma lei de 1840 proibiu que escravos
servissem como praças.165 Nesse mesmo ano, a Marinha doou dezenas de escravos
à Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro.
Diante de leis confusas e dados inconsistentes a respeito da presença escrava nas
tripulações é difícil chegar a uma conclusão da efetiva participação de escravos nas
embarcações da Marinha. Certamente grande parte dos pretos e pardos da Marinha
eram egressos da escravidão ou filho de escravos. A oscilação na legislação e a flutu-
ação entre todo tipo de trabalho compulsório e livre no Império, atingiu certamente
esta instituição como tantas outras.
Na fragata Imperatriz, por exemplo, havia registro de apenas 14 escravos em um
total de 964 homens, sendo que a maior parte eram criados de oficiais. Na fragata
Constituição e na corveta Imperial Marinheiro eles nem sequer foram computados.
No entanto, em diversos navios, muitos escravos fugidos serviram como livres. Além
disso, junto dos africanos livres, havia muitos escravos nos arsenais e hospitais da
Marinha de Guerra e no trabalho de escavação do dique da Corte.
Por outro lado, na Marinha mercante de cabotagem, os escravos representavam
uma porcentagem considerável, segundo demonstram os censos navais a partir de
1855. Em 1857, cerca de 48% dos marinheiros da Corte e da província fluminense
eram escravos. Nos demais portos onde foram contados (Pará, Maranhão, Alagoas,
Pernambuco, Bahia, São Paulo, Santa Catarina, Paraná), somavam 33% do total. O
provável motivo é que a maioria dos escravos deveria pertencer aos donos das em-
barcações. No século xix, quem tinha propriedade possuía escravo.

163 Ordem geral n. 8, 15 de outubro de 1833.


164 an, Série Marinha, xm 507, correspondência com o presidente da Bahia, 30/04/1839.
165 Coleção de leis do Império do Brasil de 1840 , 21 de agosto de 1840.
167

tabela 9
Tripulação da Marinha mercante de cabotagem, Império do Brasil, 1857

livres escravos total


RJ 4184 (52%) 3919 (48%) 8103

MA, PE, AL, SE, BA, ES,


4768 (67%) 2389 (33%) 7157
RJ, PR, SC, RS, PA, SP

total 8470 6241 15260

Fonte: Relatório do Ministério da Marinha, 1857, mapa T.


Obs.: os dados do Pará e de São Paulo foram extraídos do Relatório do ministro da Marinha de 1855, mapa V.

Marinheiro. Frederico Guilherme Briggs, Marinheiro. Joaquim Lopes de Barros, 1841.


década de 1830. Gravura. Biblioteca Nacional. Gravura. Biblioteca Nacional.

Os africanos livres teriam o direito de isenção, por serem estrangeiros. Encontrei


apenas um requerimento alegando esse motivo de dispensa: trata-se do africano
Domingos José, que graças ao seu requerimento conseguiu desembarcar na Bahia,
168

em 1833, por ser africano, estrangeiro.166 As autoridades sabiam dessa isenção, mas
a prática os impelia a continuar o recrutamento desses homens. Em julho de 1842, o
subdelegado de São Gonçalo recrutou Pedro, um africano livre, e o enviou ao juiz de
Niterói. Este o expediu ao presidente do Rio de Janeiro, mesmo questionando a sua
própria ação. No entanto, ele resolvia seu dilema não seguindo a lei, mas um costume:
E posto duvide se indivíduos tais estão sujeitos ao recrutamento por não compreen-
didos nas Instruções de 10 de julho de 1822, e por não serem cidadãos brasileiros a
vista do artigo 6º da Constituição, contudo como há numerosos exemplos de terem
sido empregados no serviço militar do Império, parece-me que o devia remeter a
disposição de V. Exa para que o mande empregar na Marinha.167
Finalmente, o presidente o enviou à Marinha e, ao que parece, o assunto foi encer-
rado ali mesmo. Africanos, assim como outros estrangeiros, foram recrutados ilegal
e habitualmente, com a anuência de todo tipo de autoridade.
Álvaro Nascimento interpretou o “alistamento não somente como um castigo
para os homens livres, mas também uma das rotas seguidas por escravos para
encobrir sua fuga e garantir a liberdade”.168 A conclusão de que o Arsenal e os
navios constituíam uma das possibilidades de fuga para escravos foi igualmen-
te demonstrada por Carlos Eugenio Líbano Soares.169 Não é possível quantificar
quantos escravos seguiram por esse caminho. Desconfio que eles representavam
uma minoria dentro dos navios.
A escravidão simulada era também um abrigo contra o recrutamento.170 Tanto
Thomas Ewbank, em 1846, quanto, mais recentemente, o historiador Sidney Cha-
lhoub, entenderam que forros simulavam a condição de cativos para escaparem das
Forças Armadas. Observador das ruas, o viajante norte-americano flagrou forros
tirando os sapatos, quando sabiam que a tropa do recrutamento se aproximava.
Sidney Chalhoub afirmou que era comum encontrar nos papéis da polícia homens
forros que se diziam escravos para fugir do recrutamento. Foi o caso, por exemplo,
de José Crioulo ou Damásio Maximiano. Detido em 1836, no calabouço da Corte,

166 an, Série Marinha, xm 489, Correspondência com o presidente da Bahia, 1833.
167 an, Série Marinha, xm 84, Correspondência com o presidente do Rio de Janeiro, julho de 1842.
168 nascimento, Álvaro P. do, Do cativeiro ao mar: escravos na Marinha de Guerra, Estudos Afro-asi-
áticos, n. 38, dez 2000. Versão online. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_
arttext&pid=S0101-546X2000000200005. Acesso em: 31 jul. 2011.
169 Ibidem.
170 ewbank, Thomas. Life in Brazil; or A journal of a visit to the land of the cocoa and the palm, p. 277.
169

declarou-se antes de tudo escravo. Mas, impelido pelos maus tratos, e não auxiliado
por seu suposto dono, escreveu, por meio de um procurador, um requerimento para
o Imperador, declarando-se preto livre, marinheiro do brigue Niger da Armada. A
charada sem solução foi bem elaborada pelo historiador: “se ficasse José Crioulo,
era escravo, calabouço, açoite, libambo; se ficasse Damásio Maximiano, era recruta
forçado, brigue de guerra e açoites também, com certeza”.171
O personagem Amaro, o “bom-crioulo” do romance escrito pelo oficial Adolfo
Caminha, era escravo fugido, “veio, ninguém sabe donde” e se alistou na Marinha.
Semelhante ao relato de Damásio, inicialmente escapar da escravidão por meio da
Marinha foi um alívio, mas logo ele se viu em meio a encruzilhada do recrutamento
e da escravidão:

(...) o novo homem do mar sentiu pela primeira vez toda a alma vibrar de uma ma-
neira extraordinária, (...). A liberdade entrava-lhe pelos olhos, pelos ouvidos,pe-
las narinas, por todos os poros”. Mas depois de algum tempo servindo lamentou:
“Ah! vida, vida!... Escravo na fazenda, escravo a bordo, escravo em toda a parte... E
chamava-se a isso de servir à pátria!172

O trabalho escravo e o dito “livre” na própria Marinha, pode ser comparado por meio
dos ganhos dos carpinteiros escravos do Arsenal da Marinha de Santa Catarina com
os salários dos primeiros grumetes na corveta Regeneração nos meses de setembro
e outubro de 1839. Os escravos ganhavam 800 réis por meia jornada de trabalho no
domingo, totalizando 3$200 réis em um mês. Os grumetes ganhavam 4$800 réis
por mês e, muitas vezes, eram descontados os valores dos fardamentos e de outros
místeres, desse modo, o soldo podia corresponder a menos de 3$000 réis.173 Devi-
do a esse pecúlio e, provavelmente, a outros ganhos em terra, no decorrer daquele
ano, Maximiliano, um dos escravos, casado, conseguiu obter a alforria e passou a ser
empregado do Arsenal. Ele certamente não abandonaria seu posto para tornar-se
grumete. Apesar de os escravos representarem uma mínima parcela das tripulações
dos navios estudados, os forros devem ter ingressado em uma escala muito maior.

171 chalhoub, Sidney. A força da escravidão (ilegalidade e costume no Brasil oitocentista). Mimeo, p. 145-6.
172 caminha, A. O bom-crioulo, p. 5 e passim.
173 an, Série Marinha, xm 134, Correspondência com o presidente de Santa Catarina, 1839.
170

Encontrei vários requerimentos de senhores solicitando escravos recrutados ou


engajados de volta. Hendrik Kraay elencou 277 requerimentos de senhores na Bahia,
entre 1800 e 1880, solicitando seus escravos ao Exército. De acordo com o autor:

Arrastada sobre uma população livre e liberta pobre e racialmente misturada, a rede
do recrutamento forçado inevitavelmente capturava escravos. Ao mesmo tempo, a
identificação entre serviço militar atraía os escravos, assim como os atraía a pers-
pectiva de usar o Exército para se distanciarem de seus senhores.174

Por um lado, o recrutamento de escravos era residual, pois os escravos poderiam ser
confundidos com homens livres de cor. Ou, ainda, como também observou Álvaro
Nascimento, a tropa, mesmo sabendo da condição de escravo, poderia simular a
liberdade para obter o prêmio pelo recrutamento.175 Por outro lado, quando o sujeito
de condição escrava se engajava de livre e espontânea vontade, tal procedimento sig-
nificava fuga de uma situação pior do que a possivelmente encontrada em um navio.
Não foi o caso de Luiz Crioulo, escravo da capixaba Rosa Maria do Sacramento.
Tudo indica que preferiu voltar para o seu antigo posto de escravo marinheiro na
lancha, onde foi recrutado à força. Segundo o Comandante do Quartel General, ele
já alegava ser escravo antes de sua dona escrever o requerimento. A lancha Nossa
Senhora da Penha, onde trabalhava, fazia transporte de recrutas do Espírito Santo
e ele devia saber muito bem o que o esperava. Rosa Maria requereu e o Ministério
deferiu o pedido.176
Diferente do caso anterior, Dona Balbina Jaldina Soares, viúva de comerciante
da Rua do Ouvidor na Corte, requereu o escravo Abel e teve dificuldades de obtê-lo
de volta. O escravo alegava ter sido alforriado pelo ex-senhor que, diga-se de passa-
gem, lhe deixara um legado de 50$000 réis. Abel era pardo e filho de uma escrava do
mesmo casal. Havia a possibilidade real de ser filho de seu senhor. A viúva, diante das
dificuldades de reintegrar a posse, desabafou que se punha “o direito dos senhores
a mercê de ‘alecantinas’ [sic]; o escravo era um embusteiro como se devia esperar”
e, principalmente, alertava às autoridades dos “inconvenientes e riscos que pode

174 kraay, Hendrik.”O abrigo da farda”: O Exército brasileiro e os escravos fugidos, 1800-81, Afro-Ásia,
n 17, 1996, p. 56.
175 nascimento, Álvaro P. do. Do cativeiro ao mar: escravos na Marinha de Guerra, Estudos Afro-asiáticos,
n. 38, dez 2000.
176 an, Série Marinha, xm 1162, doc. 65, Requerimentos 1845.
171

trazer para a tranquilidade dos possuidores de escravos, o precedente que com ela se
está estabelecendo, dando-se preferência aos ditos desencontrados de um escravo
contra documentos legais”.177
A senhora acabou tendo um parecer favorável, mas a Marinha não lhe entregou o
escravo tão facilmente. A escravidão e o recrutamento constituíam duas realidades
daquela sociedade multifacetada. Escravos poderiam fugir de seus proprietários
por meio do engajamento, outros se fingiam de escravos para fugir ao recrutamento.
A devolução do escravo deve ter prevalecido. A escravidão era uma instituição
que deveria ser mais respeitada do que o recrutamento. E, como vimos, a maioria da
população era livre e vadia, segundo o ponto de vista dos governantes, os quais tam-
bém não desejavam atrapalhar as atividades produtivas, movidas em grande parte
pela mão-de-obra escrava. A escravidão e o recrutamento conviveram em relativa
paz durante o Império. No caso do pardinho acaboclado José, analisado acima, pre-
valeceu o parecer do oficial maior da Marinha: “incompatível é com a honrosa classe
militar da Marinha e Guerra, contar no número dos praças dos corpos respectivos,
homens que não forem notoriamente livres, para gozarem do título de cidadãos”.178

3.11  “Petição de miséria”: retórica da desgraça

Em 1854, em uma taberna da Corte, um sujeito convenceu o carvoeiro Vicente Ma-


noel, do vapor Pedro II, que mediante módica quantia podia livrá-lo da Armada. Ao
que parece, Manoel anuiu e um requerimento foi feito:

(...) tendo servido sete anos, achacado de enfermidade, não podendo já por sua
idade impedimento físico continuar a prestar serviços ao Estado, rogando ao be-
néfico coração de vmi seu desembarque para ser transportado à província do Pará
no seio de sua família e de sua velha mãe cega de ambos os olhos precisando do
arrimo do suplicante, seu único filho.

O marujo disse ainda que sofria do pulmão, a doença mais comum na Armada,
além de ter muitas irmãs donzelas. O comandante do navio procurou por Manoel,

177 an, Série Marinha, xm 1162, doc 57, Requerimentos, 1846.


178 an, Série Marinha, xm 5, Correspondência com o chefe de polícia.
172

o qual respondeu que não fizera requerimento algum e contou o que acontecera
na taverna.179
Quem de fato assinou a petição foi Antonio José Marques, supostamente a rogo
de Vicente Manoel. Esse Antonio, se não era o amigo da taverna, era um rábula ou
um sujeito alfabetizado, que ganhava dinheiro com os chamados requerimentos,
petições ou demandas.
O apelo de Vicente pertence a um conjunto de requerimentos dirigidos ao Im-
perador e outras autoridades, arquivados na coleção do Gabinete do ministro da
Marinha, sob a rubrica “Requerimentos”, organizados pela ordem alfabética dos
sobrenomes dos peticionários. O requerimento de Vicente não foi bem-sucedido
por diversas razões. Vários dados da carta não eram comprovados por outros do-
cumentos. Há desencontro nas datas, inclusive de recrutamento, suas expressões
dramáticas, “mãe cega de ambos os olhos”, “sete irmãs donzelas”, “doença”, não
apresentam sequer um documento comprobatório.
O estilo dos textos dos requerimentos era carregado de tintas melodramáticas,
misturavam-se leis aos dramas individuais e familiares. Essa retórica de convenci-
mento é uma tradição antiga e merece um estudo à parte. No livro de Natalie Davis
sobre presos que pedem perdão no antigo regime francês, podemos verificá-la180.
Também está presente nas ações de liberdade de escravos em Cuba, no século xix,181
assim como em folhetins portugueses; enfim, trata-se de uma retórica ocidental com
origens, ao menos, no Antigo Regime. Demonstra, entre outras coisas, a maneira
pelas quais os dramas pessoais e familiares eram expressos e a fé, principalmente
na justiça do rei, em uma época em que as autoridades deveriam ser vistas como
benfazejas e protetoras em relação aos governados.
Como, então, ler o desespero dos recrutas e seus familiares traduzido por es-
crivães profissionais que circulavam nos mundos das tavernas, dos pobres, e tam-
bém nos ambientes da justiça? É necessário interpretar os requerimentos também

179 an, Série Marinha, xm 1141, Requerimentos, 1854.


180 davis, Nathalie. História de perdão e seus narradores na França do século xvi. São Paulo, Companhia
das Letras, 2001.
181 A crioula livre Juana requereu o direito de comprar a liberdade da “mãe sexagenária”, pois estava
sendo impedida de encontrá-la. Usou expressões como “um direito sagrado”, cuja negação ofendia
a “própria natureza” e “la madre que le dio el Ser”, procurando sensibilizar as autoridades. cowling,
Camillia, Matrices of Opportunity: Women of Colour, Gender and the Ending of Slavery in Rio de Janeiro
and Havana, 1870-1888. Tese de Doutorado, p. 137.
173

como textos literários. A análise de Marlyse Meyer da literatura de folhetim oito-


centista ajuda para essa abordagem. Partindo da premissa de que o cotidiano era
tão folhetinesco e melodramático quanto o discurso dos jornais ou dos tribunais,
Meyer demonstrou uma relação direta da linguagem folhetinesca com a realidade
dos mundos onde ele se difundiu:

Mundo folhetinizado para efeitos de persuasão, onde o medo entrava como peça
fundamental. Mundo folhetinesco a exigir o discurso do melodrama para dizer o
paroxismo das situações, o paroxismo dos sentimentos. Paroxismo da linguagem
dos acusadores e das vítimas. Uma fala que é quase como que o discurso “natural”
dos despossuídos, daqueles que só tem o corpo, o grito, o descabelamento para
dizer da inominável aventura de seu cotidiano, antes de acabar servindo também
aos moralizadores bem pensantes.182

Sobre a construção dessa retórica popular, Jorge Amado, em Mar Morto, romance de
1936, narra o episódio em que o personagem principal, o barqueiro Guma, encomen-
da por dois cruzados uma carta de amor ao escriba informal do cais, Dr. Filadélfio.
Depois de ter a carta pronta, Guma começa uma discussão sobreuma imagem que ele
escrevera: Minha filha eu penso que o teu coração é um cofre doirado. Guma não gosta da
imagem e troca “cofre” por “concha” na versão final, pois achava “que não havia nada
mais bonito que concha. Cofre é uma coisa feia.” O Dr. Filadélfio insistia na imagem
dizendo que se ele visse um cofre doirado nem discutiria.183 O chiste é retomado
algumas vezes no romance e demonstra uma face da relação dos pobres com seus
escrivães. Dr. Filadélfio traz imagens de um mundo literário, com sua concepção de
linguagem rebuscada, enquanto Guma, mesmo valorizando o conhecimento de seu
escriba, preferiu usar uma imagem referenciada em seu próprio mundo.
Em 1847, a bordo do Guararapes, o “caboclo” paraense José Frutuoso pediu ao
seu colega Athanazio de Jesus e Souza, segundo marinheiro, que escrevesse um re-
querimento. O barco encontrava-se no Maranhão, perto da terra natal de Frutuoso.
Depois de servir oito anos, doente, pedia para desembarcar, pois:

182 meyer, Marlyse. Folhetim, uma história, p. 403.


183 amado, Jorge. Mar Morto, p. 136.
174

(...) único filho de uma pobre velha de mais de seçenta annos de idade coberta
das mais infeliçidades e miseria e pobreza digna de amanidade. Por viver em um
dezamparo a falta de um filho que acompanhava. Contudo Imperial senhor não
lhe seria pezado continuar no Imperial serviço se não fosse ataques de moléstias
cronicas, de froxidão de nervos, que padesse, que amais tempo vive privado de fazer
o serviço que lhe são ordenado, por seus superiores, motivo este que coberto do
mais profundo respeito e humilhação vem ao respeitavel trono de vmi implorar a
graça de lhe mandar paçar a sua guia de dezembarque atendendo a suas suplicas
respostas bordo deo brigue escuna gaurarapes.184

O requerimento escrito por Athanazio foi o único “escrito a bordo” que encontrei
na minha amostra. Apesar de ser uma exceção, e conter mais erros ortográficos do
que aqueles escritos pelos procuradores profissionais, o texto é bem exemplar e
eficiente na retórica de convencimento. Na falta de documentos comprobatórios
da sua terra natal, como atestados de pobreza, assinados por um vigário ou de bom
comportamento, assinado pelo inspetor de quarteirão, o marujo procurador de-
senvolve um notável ziguezague em seus argumentos. O movimento se inicia com
um drama familiar, seguido de submissão ao serviço militar, passando pela saúde
débil – algo que de fato era uma porta de saída frequente nas Forças Armadas –, e
novamente finaliza demonstrando reverência aos superiores. O marujo demons-
trou-se perspicaz na retórica de convencimento. O único documento anexado foi a
cópia do registro de José Frutuoso, no Livro de socorros, que narra sua trajetória na
Marinha. Recrutado em 1839, no Pará, o “cabocolo” viajou para a Corte no paquete
Januária, assentou praça como grumete, desertou, foi capturado, passou a segundo
marinheiro em 1844, serviu em diversas embarcações e, em 1847, baixou no hospital
três vezes, situação limite que provavelmente se desdobrou na escrita do requeri-
mento. Afinal, aos 25 anos, já era um homem doente, não somente por ele próprio
ter afirmado, mas porque comprovou.

184 an, Série Marinha, xm 1146, doc. 14, Requerimentos, 1839.


175

3.12  Amor de mãe, arrimos e outros laços familiares

Em 1848, sob a justificativa de vadio, o “tapuio claro” Ladislau Davino de Jesus, de


17 anos, foi recrutado em São Luís, Maranhão. Sua mãe, Thereza de Jesus, escreveu
um requerimento contundente para o presidente da província, o qual foi indeferido.
Meses depois, ela escreveu ao Imperador.
Os requerimentos escritos por Thereza são clássicos da retórica da pobreza, mas,
somados aos atestados anexos, indicam uma situação real de miséria. Ela explica ao
presidente que o fato de ter um segundo filho não pode ser considerado , apesar de
as exceções da lei do recrutamento tratarem apenas das mães de um só filho, “pois
que o outro é de pouca idade, socorro algum lhe pode ministrar, e pelo contrário
onera ainda mais a suplicante”.
Thereza finaliza sua primeira súplica declarando: “a não ser atendida (o que
não espera) virá pela necessidade a cair nos absurdos a que comumente chegam
as pessoas de seu sexo quando não tem meios de viver. V. EXMa. é pai de família, e
como tal pode ajuizar (...) as desgraças que deste fato se vão seguir a suplicante”. O
presidente entende que o filho não está isento do recrutamento e o envia à Corte.
Inconsolável, meses depois, ela escreve ao Imperador:

Já que nesta província não se faz justiça vem por meio desta perante o trono augusto
de vmi pedir uma graça da qual se julga digna (...) mãe de dois filhos menores Ladis-
lau de 17 e Rodrigo de 11. O primeiro aprendendo a prático de Barra desta cidade (...)
e neste exercício ganhava o necessário alimento para sustento não só da suplicante
mas como de seu pequeno irmão. Porém uma inaudita perseguição foi feita inopi-
nadamente à suplicante por um tenente da marinha de nome Severiano Nunes, que
(...) não atendendo a viuvez, pobreza e costumes repreensíveis da suplicante que
sem os socorros ministrados por este filho, virá a mendigar de porta em porta o pão de
cinzas (...) Nada há pior neste mundo do que a opressão revestida de formas legais.185

Há duas palavras importantes na primeira frase: justiça e graça. O século xix foi uma
espécie de passagem em que se deu a substituição de uma palavra pela outra. Durante
o Império, elas conviveram, pois, formalmente, receber uma graça do Imperador era
tão legítimo quanto uma sentença favorável de um juiz. Mas, aos poucos, a graça foi

185 an, Série Marinha, xm 1164, doc 38, Requerimentos, 1848.


176

caindo em desuso, apesar de ser mantida na retórica dos pobres. Em 1862, o sargento
Antonio Manuel Monteiro, pardo e paraense, escreveu uma petição pedindo “a graça”
de obter a aposentadoria por tempo de trabalho, conforme o prazo da lei. Um parecer
do Conselho Naval (todo composto de ex-ministros da Marinha) concluiu que “não
[é] a equidade nem a graça, mas o direito stricto apoia a pretensão do suplicante”.186
Entre os documentos anexados ao requerimento de Thereza estava o atestado de
pobreza, assinado pelo cônego de sua freguesia: “sofre malditas percizões por falta
do filho mais velho recrutado”; o atestado de bom comportamento, assinado pelo
inspetor do quarteirão: “é viúva pobríssima e vive honestamente, sendo verdade
em que sua petição alega”; e um emocionado atestado do prático de barra da cidade,
mestre de Ladislau, José João de Castro, escrito de próprio punho: “Ladislau é de
bons costumes, é aquele que em uma idade tão juvenil curava de sua mãe e de um
pequeno irmão (...) tornando-se por isso a mãe daquele Ladislau digna de compaixão
e merecedora de obter a reintegração de seu filho”. 187
O procurador de Thereza questiona a lei e demonstra revolta contra a política
do Estado para com as famílias pobres, que têm de pagar o tributo de sangue, “dra-
matizando o drama” de sua vida. Ambos os requerimentos são escritos em primeira
pessoa para personificar a cliente. No primeiro, afirma que terá de se prostituir, caso
não tenha o filho de volta. Para o Imperador, ela prevê um futuro de mendicância.
De origem indígena, viúva, quer o filho de volta. Uma vez mais os esforços foram em
vão, a sua súplica não foi atendida pelo Ministério da Marinha e prevaleceu a fami-
gerada expressão escrita na margem do requerimento pelo tenente recrutador de
São Luís: “é vadio”. O mesmo despacho no qual o presidente já havia, meses antes,
baseado o seu indeferimento.
Se as narrativas não correspondem à realidade dos fatos, necessariamente, elas
realçam outra verdade: o direito que as mães acreditam ter em manter seus filhos
ao seu lado, seja como arrimo para o presente e o futuro, seja como ente querido.
Na análise de Mary del Priore dos significados da maternidade no período colonial,
o vínculo afetivo era tão importante quanto o econômico:

(...) solitárias e amalgamadas às suas proles, as mães resistiam à violência, mas


sobretudo, à solidão... as mulheres aliavam-se com sua prole para lutar contra a

186 Ibidem.
187 Ibidem.
177

instabilidade econômica e social e seus esforços para criá-la e mantê-la era recom-
pensado pela vinculação dos filhos ao fogo matrifocal.188

Determinadas configurações familiares compunham algumas das isenções presente


nas instruções de recrutamento que vigorou de 1822 até 1874, e constam, atualmente,
no Regulamento da Lei do Serviço Militar (rlsm). Nas instruções de 1822, a palavra
arrimo não é mencionada, mas nos artigos de isenções várias situações de arrimo
são elencadas, quais sejam, pela ordem: casados; irmão de órfãos responsável por
sua educação e subsistência; filho único de lavrador, ou um a sua escolha, quan-
do houver mais de um; e filho único de mãe viúva. No regulamento atual, o artigo
sexto do capítulo de “Dispensa da incorporação” é chamado “Arrimos de família”.
Nesse capítulo, são considerados arrimos muitas relações parentais semelhantes
àquelas de 1822, além de algumas outras, como filho de mulher solteira, abando-
nada ou desquitada; viúvo, solteiro ou desquitado que tiver filho menor; órfão que
sustentar avós, entre outros.189 Vários requerimentos do século xix baseados no
argumento do arrimo referem-se aos artigos legais de isenção. Mas há também
outros que reivindicam isenções que deveriam ser incluídas, por exemplo, o caso
de mães solteiras e abandonadas, incorporadas à lei atual.
Elementos relacionados ao afeto familiar não aparecem, em geral, nos reque-
rimentos. Não cabe no formato do pedido, que inclui o trágico, mas não o afetivo.
Apenas um requerimento, de 1868, revela um motivo familiar em vez de econômico,
e se refere à adolescência como um período lúdico, e não necessariamente parte do
mundo do trabalho. Trata-se da história de Domingos dos Anjos, 14 anos, filho natu-
ral da crioula forra Narcisa da Conceição e do mina forro Luiz J. Gomes. A mãe alegou
que o filho no momento da captura “estava brincando como era natural da idade”.190
Os requerimentos das mães, normalmente, indicavam a sua dependência do filho,
muitas vezes um adolescente. É o caso de Eliziária Joaquina Rosa, vítima de “insultos
elefantíacos” nos órgãos sexuais que causaram “um tumor no grande lábio vaginal
grande o suficiente para tocar o chão”, lhe impossibilitando de andar, segundo o ates-
tado médico. Vivia acamada no sótão de uma casa da Rua do Porto e na Corte era

188 priore, Mary del, Ao sul do corpo. Condição feminina, maternidades e mentalidades no Brasil Colônia, p.
61 e 65.
189 Regulamento da lei do serviço militar. Disponível em: https://www.defesa.gov.br/ arquivos/servi-
co_militar/legislacao/03_rlsm.pdf. Acesso em: 31 jul. 2011.
190 an, Série Marinha, xm 1131, doc 15, Requerimentos.
178

classificada “na classe dos agregados”, de acordo com o Inspetor. O seu filho, Antonio
Lopes, lhe sustentava com o pequeno jornal que ganhava como aprendiz de funileiro.191
O procurador da septuagenária Delfina Rosa da Conceição, de Niterói, Rio de
Janeiro, questiona o recrutamento de seu filho Henriques com requintes de ironia.
Depois de descrever o sofrimento da mãe, ele pergunta:

Que importa que este filho abençoado prestasse todos os socorros à suplicante?
Que importa que ele tivesse já servido três anos à Nação? Que importa que sua ida-
de, muito maior de trinta anos o eximisse de praça? Que importa que a suplicante
tenha dois filhos com praça de 1ª linha? Que importa que a lei isente de praça, o
filho único de mulher viúva?

O chefe da polícia do Rio de Janeiro, Justiniano B. Madureira, por seu turno, justifi-
ca a prisão. Ele acusa Henriques de maltratar a mãe, em vez de ampará-la, e de não
possuir nenhuma ocupação; em outras palavras, é vadio e desordeiro. Além disso, ele
não é filho único, mas apenas o único que não se casou. O chefe da polícia finaliza:
“as qualidades emprestadas ao recrutado, lhe são atribuídas pelo amor materno, que
prefere ter antes um filho vadio de profissão a seu lado, agravando a sua pobreza, do
que vê-los nas fileiras da Armada”.192 Dessa vez, a mãe obteve o que quis enquanto o
filho obteve baixa. Caso isto [não] acontecesse, ela se transformaria na “mãe-órfã”
de filho, uma expressão de Marlise Meyer para as mães desesperadas dos folhetins
do século xix. Se for verdade ou não que o filho era um fardo para a mãe, impossível
saber. No seu assentamento, no item ocupação está escrito “lavoura”, o que é factível,
pois morava em Cordeiros, uma freguesia rural, hoje em dia parte do município de
São Gonçalo. Mas é certo que o amor materno e o arrimo são dois valores profundos
na família, sendo possível prevalecer apenas o primeiro. Se a família é uma institui-
ção de sobrevivência econômica, é também afetiva.
Nem sempre a família constitui um porto seguro. Uma canção copilada de um li-
vreto de canções marítimas do início do século xx conta a história de um marujo “ven-
dido” pela mãe por 100 mil réis. De fato, a partir de 1855 até, pelo menos, a década de
1890, as famílias ganhavam como “prêmio” 100 mil réis quando entregavam seus filhos
às diversas companhias de aprendizes espalhadas pela costa. O desespero do autor

191 an, Série Marinha, xm 1161, doc. 50, Requerimentos.


192 an, Série Marinha, xm 87, Correspondência com o presidente do Rio de Janeiro, 1861.
179

da canção enfatiza a importância da mãe na vida e no imaginário dos marujos. Não à


toa uma das tatuagens mais populares entre prisioneiros e marinheiros é justamente
aquela em que se lê dentro de um coração: “amor de mãe” ou o nome da progenitora.
Quando, pelo contrário, é a mãe que entrega o filho à Armada e não o requer de
volta, o horizonte de expectativas nubla, destruindo o sonho de “um lindo porvir”.193
A canção começa com a imagem da solidão absoluta: a “alta noite”, “vento inda o
açoite”, o mar encrespado, o “coração dilacerado”. E “neste degredo, sem que o es-
cute ninguém”, o marinheiro inicia o lamento pela lembrança da infância humilde
e risonha: “Nasci num lar sem nobreza/meus pais não tinham riqueza”, mas ainda
assim “eu era muito feliz”. Órfão de pai aos dez anos, ele lamenta o momento de sua
infelicidade maior: o ingresso na companhia de aprendizes.

Meio sorrindo o governo


À minha mãe ofereceu
Paga que trouxe do inferno,
E minha mãe recebeu!
Baniu-me do lar querido,
Onde eu havia nascido,
Por cem mil réis me vendeu!194

O marinheiro responsabiliza a “pátria desditosa”: “Meu Brasil tão sem ventura,


quanto valem os filhos teus! Que corrupção! Quanta usura!” Em seguida, sua pró-
pria mãe: “é que de ouro gostava, não tinha bom coração!”. Lamenta que ambos
“nem ao menos indagaram qual a minha vocação!” Evoca, ainda, a sorte que “por
livro deu-me a chibata, fechou-me a estrada a seguir!”
O sujeito aqui se coloca totalmente degredado. Clama pela infância, pelo lar, pela
educação letrada, clama pela possibilidade de seguir a vocação, além de lembrar o
instante em que o “bom porvir” lhe foi negado e como a tragédia desenhou sua vida
a partir daquele momento. A mãe e o país não lhe incluíram em um projeto de feli-
cidade, pelo contrário, condenaram-lhe a servir para a Companhia de Aprendizes

193 Trovador maritimo, ou, Lyra do marinheiro, contendo modinhas, recitativos, lundus, canções, cançonetas,
poesias, tangos e fadinhos marítimos e populares, escritos e colecionados uns, e outros apanhados direta-
mente da tradição oral por José Embarcadiço, p. 42-44.
194 Ibidem.
180

Marinheiros. Ele, adulto, em uma noite escura e de mar agitado, tenta superar a sua
tragédia cantando. A canção termina com a noite, o vento “camba”, o mar sossega
e diz ao marinheiro: “de lamentos é bastante, descansemos um instante.” De certa
maneira, aquele marujo lançava ao mar suas desgraças por meio de uma canção, para,
assim, superar o sofrimento. Sua redenção foi a poesia.
Outro caso de “venda” de filhos pode ser encontrado em um requerimento de
Santa Catarina, escrito em 1860. “Submissa e reverente”, “a pobre, infeliz e desvalida
Desidéria Marcelina, brasileira, moradora na vila de São Sebastião das Tijucas”, mãe
dos gêmeos Domingos e Firmino da Silva, pediu de volta seus filhos, aprendizes de ma-
rinheiro, a seu desditoso lar para “lhe servirem de amparo nas desgraças que é vítima”.
Desidéria herdara do pai um “sítio de culturas”, uma casa e um escravo. Casou
com José Mariano da Silva. Na justificativa, anexa ao requerimento, três teste-
munhas (seus vizinhos lavradores), declaram que ele a abandonou e a reduziu “ à
miséria, gastando com sua vida extravagante, o produto dos bens que a suplicante
possuía (...) além de viver em relações ilícitas com uma mulher”. Passados onze
anos do abandono do lar, voltou e, na noite de 14 de novembro de 1858, sequestrou
os filhos para entregá-los à Companhia de Aprendizes Marinheiros, em busca dos
100 mil réis de prêmio.
Um ano após o seqüestro – durante esse período ela ficou levantando “nume-
rário” para pagar pelos documentos – Desidéria, que vivia de favor em um sítio de
amigos com sua filha menor, pedia seus filhos por meio de um requerimento. O
presidente da província deu um parecer favorável e mandou “entregar um de seus
filhos em razão de não ter meios para educar a ambos, e poder, entretanto, servi-lhe
de arrimo um só deles”.
Nessa história, é o pai quem, em três diferentes momentos, desestrutura a fa-
mília, deixando a mãe “na maior miséria possível”. Primeiro, dilapida a herança da
esposa, depois a abandona e, finalmente, onze anos após, lhe sequestra os filhos para
assentar-lhes como praças na Armada e receber o prêmio em dinheiro.
Em torno do recrutamento e mesmo da “entrega voluntária” de filhos, emerge o
problema da desestruturação econômica e emocional de todos os membros da famí-
lia. Tanto o abandono do marido quanto a ausência dos filhos prejudicam a mulher.
Mas, ainda assim, havia uma alternativa: a solidariedade dos vizinhos. “Para cobrir
a sua nudez”, Desidéria foi morar em terras de Cypriano Teixeira, “o qual condoído
das misérias da suplicante, e por rogativa de sua mulher concedeu gasalhado à triste
e desestruturada mãe e à filha desprezada do próprio pai”.
181

De pequena proprietária, casada com três filhos, ela passa a agregada, mãe soltei-
ra e com uma única filha. Por outro lado, sob o signo da razão de Estado, o presidente
da província resolve atendê-la parcialmente, dividindo com a mãe seus frutos: um
filho lhe fica de arrimo, o outro serve ao país, “em razão de Desidéria não ter meios
de educar a ambos”.195
Os filhos ingratos também povoaram o imaginário social do século xix. O carpin-
teiro Bernardo Luiz Gonzaga, morador da Corte, considerou que seu filho se alistou
voluntariamente na Marinha, “esquecendo-se do amor materno e paterno”.196 O pai
entendia ser um direito pátrio conservar o filho perto de si e escolher o seu destino.
Do outro lado do Atlântico, em 1848, Camilo Castelo Branco escreveu um folhe-
tim a partir de um crime famoso em Lisboa: “Maria, não me mates sou tua mãe!”.197A
filha, persuadida por um “vadio, ratoneiro” se perde, a ponto de chegar à funesta
consequência do título. O crime aqui não é importante, tampouco os desvarios da
filha. O essencial é a construção da personagem viúva, honesta e trabalhadora, que
subsiste da economia familiar. Depois da morte do marido, “a desgraçada viúva pôs
uma de suas filhas a servir em casa de honrados amos, e ficou com a outra em casa
para a ajudar a viver.” Mas não só o aspecto econômico aparece na descrição da
personagem mãe. Ela dedicou afetividade à filha desde as “entranhas”, lhe deu “o
alimento de seus peitos”, criou-a “a seu lado com beijos e afagos”, “tirara o pão da
sua boca para dar para sua filha”, fora, talvez, “pedir uma esmola para que a sua filha
não tivesse fome e não desse seu corpo em troca de um bocado de pão” (aqui estão
novamente as opções reais ou retóricas da mulher sem homem e diante da miséria:
mendicância e prostituição). Retóricas, porque outras opções para mães solteiras,
como trabalho e agregar-se na casa de amigos e familiares, foram muito frequentes.
Há, portanto, nesses requerimentos escritos em todas as margens do Atlântico,
uma linguagem que circula na justiça, nas canções, na literatura, nos jornais e nos
ofícios de autoridades. A escrita é parte dessa circularidade cultural que chega aos
pobres analfabetos por meio de mediadores provavelmente tão pobres quanto, no
entanto, um pouco mais remediados por dominarem a escrita e terem acesso às
leis, aos manuais de estilo, às notícias de jornais, além de seguirem os capítulos de
folhetins publicados em tantos jornais. Esses mediadores não são necessariamente

195 an, Série Marinha, xm 139, Correspondência com o presidente de Santa Catarina.
196 an, Série Marinha, xm 1137, doc 38.
197 castelo branco, C. Maria, não me mates,sou tua mãe!
182

bacharéis, mas circulam no mundo dos pobres, dos cartórios e juizados, narrando
as desventuras de seus pobres clientes, de maneira semelhante à do mundo culto.
Porém, as diferenças dos universos se sobressaem. Eles viviam de “suas escritas”,
uma dos modos que se descrevia tal ocupação no século xix.
O retrato das mulheres é sempre o de fragilidade, mesmo havendo evidências,
como já observei, de que elas poderiam sustentar um lar. O filho, ainda que menor,
será quem irá garantir o presente e o futuro das mães, como a gaúcha do Rio Grande,
Maria Felisbina da Conceição, viúva e mãe de sete filhos menores, entre eles Manoel
José de Barros, pardo de 13 anos, coroinha da igreja e frequentador das “aulas do
governo”. Em 1858, ela requer o desembarque do menino, alegando “pertencer a um
sexo fraco, é demais enferma, de que já tem resultado ficarem em abandono seus
filhos sem haver quem deles cure e lhes procure o pão que necessitam”.198 Em 1867, a
pernambucana de Pau d’Alho, Maria da Conceição, mãe do “branco moreno” Fran-
cisco José Feliciano, de 15 anos, considera-se em um “estado deplorável por conta
da falta do filho” e, junto de suas filhas, se diz “lutando com os horrores da miséria
reduzida ao estado mais lamentável possível em falta deste único abrigo, que tinha
em seu seio e lhe foi arrancado por meio do recrutamento”.199 Conceição reconhece
no Imperador a “justiça de conceder às viúvas que vivem com honestidade, um filho
para amparo de sua velhice”.
O caso de Benedita Maria da Silva de Ubatuba, São Paulo, é um pouco diferente.
Subjaz na sua história, apesar de todas as agruras pelas quais passou, uma mulher
economicamente ativa e determinada a recuperar seu filho com todos os recursos
formais, ou mesmo clientelistas, que puder usufruir. Ela reivindica o filho coroi-
nha, o pardo Antonio Peregrino da Silva, de 13 anos, narrando as desventuras de
seu casamento relâmpago: “abandonada por seu marido João Alves Serra, natural
de Magé, grávida de cinco meses, há muitos anos. Ele lhe deixou um único filho... o
qual foi recrutado para Imperial Marinheiro e se acha nesta Corte.” Dessa manei-
ra, subliminarmente, mesmo não sendo viúva, apresenta-se como tal, pois é uma
mulher abandonada.
Algumas semanas antes do seu requerimento, um juiz municipal havia enviado
Antonio para a Corte, acompanhado de um ofício de três páginas, explicando que
Benedita vivia “em concubinato escandaloso com Joaquim Peregrino da Silva” e

198 an, Série Marinha, xm 1160, Requerimentos.


199 an, Série Marinha, xm 530, Correspondência com o presidente de Pernambuco.
183

que o menino era alvo de queixas de furtos, motivo que o obrigou “a lançar mão do
recrutamento, meio sem dúvida extremo; porém único eficaz em vista da demasiada
indulgência com que se portavam as pessoas em cujo poder se acha o dito menor”.
A ubatubense, por sua vez, afirmou: “é pobre e vive de costuras; e seu filho lhe
servia de companhia e amparo”. Benedita não combateu a acusação do amasiamento,
o que era provavelmente verdade, pois, além de Joaquim Peregrino da Silva ser um de
seus procuradores, também batizou o filho com o seu sobrenome. Mas mostrou que,
apesar de pobre e mulher, podia amolecer algumas hierarquias e conseguir o filho de
volta. Criava duas irmãs e mais uma órfã, vivia de seu trabalho, estava possivelmente
amasiada. Mesmo assim, conseguiu atestado de boa índole de diversas autoridades,
entre as quais o vigário, o juiz de paz, um brigadeiro reformado, o presidente da
Câmara e um abaixo assinado de 70 nomes! (fico imaginando que teria conseguido
todas essas assinaturas em um dia de domingo, durante a missa...).
No despacho, não só o ministro da Marinha ordenou devolvê-lo à mãe, como
havia um anexo do Marquês de Olinda ordenando a soltura.200 No diálogo indireto
do ofício do juiz municipal e do conjunto de documentos reunidos, aparece a tensão
da população com as autoridades e a ação possível de se valer do sistema a seu favor,
combatendo o que foi entendido como arbitrariedade de uma autoridade com o
auxílio de outras autoridades.
A sua agência, é incluiu o bom relacionamento com pessoas de diversos níveis
de poder. Há uma relação clientelista. Por outro lado, podemos pensar que ela era
uma excelente costureira, possibilitando ganhos suficientes para sua sobrevivência
e que parte de suas relações foram construídas com base na satisfação daqueles que
vestiam suas roupas. Benedita poderia ser vista como uma das mulheres pobres e
“socialmente desqualificadas”, segundo estudos de Maria Odila Dias. A despeito de
não possuírem propriedades, nem direitos civis e tampouco cidadania política, não
deixavam de “ter a sua organização familiar e de sobrevivência e relações próprias
de convívio comunitário”.201
Entre as poucas mulheres que pediram por seus irmãos estão Ignacia, Margarida
e Liandra, de Garanhuns, Pernambuco. Joaquim Manoel da Silva, branco, teria sido
recrutado por motivos de perseguição e as irmãs arguiram que “se um filho de viúva,
senhor, acha-se literalmente compreendido nas exceções das leis do recrutamento,

200 an, Série Marinha, xm 1163, doc. 12, Requerimentos.


201 dias, Maria. O. L. Quotidiano e poder, p. 52.
184

o irmão, único amparo de uma viúva e de duas donzelas, está no espírito das mesmas
leis”. Ainda afirmam que uma das virgens, com a ausência do irmão e “na madureza
da idade”, poderá se “resignar com uma sorte mesquinha”.202
Seja esposa, irmã ou mãe, as mulheres reclamam a falta de amparo econômico e a
solidão em que se encontram sem os recrutados, evocando muitas vezes o problema
do sexo frágil: a ausência de homem pode levar à miséria, à prostituição; enfim, a
uma sorte mesquinha. Mas a fragilidade feminina, em geral , é apenas uma imagem
a qual se apegam para conseguir o que querem, pois muitas mulheres, por não se-
rem casadas, mas inseridas no mercado de trabalho, demonstravam capacidade de
sobreviver sem entes masculinos.
O conteúdo dos pedidos dos pais reclamantes difere um pouco. Os filhos são
importantes para a economia doméstica, mas o argumento é outro. Eles pedem os
filhos de volta para coadjuvarem no sustento da casa. Às vezes, doenças e velhice são
mencionadas, mas a ideia do varão é mais forte: o filho que sucede o pai e, na falta
deste, cuidará das irmãs e da mãe. São evocados, ainda, o direito e as condições de
educar o próprio filho.
O cearense Manoel Joaquim Vieira, “brasileiro, viúvo, velho septuagenário”, pe-
diu pelo filho Delfino Vieira da Costa, que se alistou voluntariamente para ajudar
o pai e as irmãs, pois “tem visto que o soldo de 1º grumete não tem podido minorar
os males que pensavam evitar e antes com a ausência dele está mais exposta sua
existência e família”. O pai implora ao Imperador que veja “com olhos de piedade
para este quadro de uma família desolada” e envie o filho para cuidar de três irmãs
solteiras e honestas.203
Há também dois requerimentos de prováveis pais de filhos de mães escravas. O
primeiro é do baiano, provavelmente de origem portuguesa, Antonio José Linhares
Moura, dono de Rosa Nagô. O filho dela, Anastácio José Antonio, lhe ameaçava cons-
tantemente. Moura explicou que, apesar de “libertá-lo no nascimento, mandá-lo
ensinar a ler e conservá-lo em sua companhia até a idade adulta”, Anastácio esta-
va lhe atentando contra a vida. A primeira vez tentou atingi-lo dentro da casa com
um machado. A segunda foi em sua loja, onde o insultou, chamando-o de “maroto”

202 an, Série Marinha, xm 1164, doc. 41, Requerimentos, 1842.


203 an, Série Marinha, xm 1166 doc. 18, Requerimentos, 1846.
185

(um dos nomes pejorativos para português, em tempos de pós-independência), e


ameaçou-lhe “quebrar a proa e tirar-lhe a pele”.204
Diante do requerimento de Moura, o presidente da Bahia recrutou Anastácio e o
enviou para a Corte, pedindo que ele embarcasse em um navio do sul. O fato de tê-lo
libertado no ato do nascimento, de possuir como sobrenome o prenome do dono
da mãe, do menino ser pardo e ter sido “criado” dentro de sua casa, conjetura para
o fato de ele ser o possível pai de Anastácio. Se isso for verdade, o possível pai, para
castigar o filho que tinha inúmeros motivos para revoltar-se, resolvia o imbróglio
ao enviá-lo à Marinha.
Diferente de Antonio Linhares, o negociante santista Joaquim J. Barbosa de Oli-
veira, atuando na praça de Desterro, Santa Catarina, em 1861, não enviou o “pardinho”
Ignacio Barbosa da Silveira para a Armada: preferiu, sim, libertá-lo do árduo cotidiano
da Companhia de Aprendizes, onde se encontrava acusado por furto a uma carteira.
Ele pede o “pardinho de volta, pois é seu ‘libertador’ e natural tutor e o tem não como
um simples protegido, mas sim como seu filho e herdeiro”. Alegou que o roubo do
qual foi acusado não foi apurado como reza a lei, inclusive, o interrogatório, feito de
modo particular. Além disso, o menino era aprendiz de tipógrafo e tinha diploma de 2º
ano. Contra os argumentos de Joaquim José, outro tipógrafo, de quem o menino fora
aprendiz por três meses, disse que ele era “indócil e buliçoso, de péssima conduta”
e ladrão de tipos. Quando seu protetor pediu para empregá-lo como aprendiz, disse
ser seu agregado e não seu filho. E concluiu: “para provar que ele ‘vagava à rédea solta’
pelas ruas dessa capital, basta saber-se que o rapaz não era suscetível de sujeição por
sua má índole e de mais a mais nenhum temor tinha de seu protetor.”
O chefe de polícia respondeu que a prisão foi feita na lei e que o próprio Joaquim
José, ao comparecer no “xadrez”, disse lamentar o ato do protegido e que tencionava
sossegar suas travessuras o enviando para a Companhia de Aprendizes do Arsenal do
Rio de Janeiro. Um oficial de gabinete do Ministério da Marinha na Corte entendeu
a questão, tanto do ponto de vista legal quanto afetivo: mandou soltá-lo, segundo
o seguinte parecer:

As companhias de aprendizes marinheiros não são pela lei, e não convêm que se trans-
formem pelo capricho de autoridades locais, em casas de correção [grifo meu]. O pardo
Ignácio Barbosa da Silveira não é desvalido porque pedindo a sua soltura aparece o

204 an, Série Marinha, Correspondência com o presidente da Bahia, xm 517.


negociante J. J. Barbosa da Silveira que declara olhar para ele como para um filho e
herdeiro, nem tão pouco órfão, porque a não ser Barbosa seu pai natural como indi-
ca a similitude do nome é seu pai adotivo: nestes termos não podia ser alistado na
companhia de aprendizes. Se conforme alega a polícia tornou-se réu ou indiciado
em cumplicidade ou furto apliquem-lhe a sanção penal.205 [grifo meu]

Ignácio provavelmente era um adolescente com problemas de disciplina, mas a


questão aqui é a vontade/necessidade do seu pai natural ou adotivo em tê-lo uma
vez mais em sua companhia. Ele queria prepará-lo para a vida, não necessariamente
para o seu negócio: o colocou para aprender as primeiras letras e arranjou-lhe um
posto de aprendiz em negócios alheios ao seu.
Nos casos narrados acima podemos entrever os complexos arranjos familiares,
como a existência de filhos de homens de posses com escravas ou mulheres de cor,
incluindo índias. Ou seja, filhos de intercursos de pessoas de origens sociais e ét-
nicas diferentes, muitas vezes, eram criados e educados em situações ambíguas de
tolerância, mas, em geral, não como familiares, eles constituíam os famosos agre-
gados. Assim, um senhor de escravo poderia criar o seu filho dentro de casa, mas
não estabelecer uma relação de amor. E outro poderia, sim, estabelecer essa relação,
intencionando até tê-lo como herdeiro.

Este capítulo procurou traçar, ao mesmo tempo, um perfil dos recrutas e futuros
marujos da Armada Nacional e Imperial do Brasil e da população do novo Império.
Os “nacionais” ou “cidadãos brasileiros”, que se delineariam ao longo do século xix,
podem ser flagrado nas histórias destes recrutas da Armada. Questões vistas aqui
como cor, etinicidade, pobreza, disciplina, castigos corporais e trabalho explodi-
riam na revolta de 1910 comandada, entre outros, por João Cândido, homem pardo,
filho de mãe escrava, formado pela Escola de Aprendizes Marinheiros, herdeiro de
uma cultura marítima internacional e inculcado de um sentimento patriótico que
dificilmente seria possível no período em que se insere este estudo.

205 an, Série Marinha, xm 139, Correspondência com o presidente de Santa Catarina.

186
187

4 Nem tanto à terra, nem tanto ao mar: marginalidade,


estigmas, homens deslocados, culturas em movimento

Representa o marinheiro brasileiro. O que é ele?


Bêbado, sodomista e miserável.1

emidgio josé barbosa,


segundo cirurgião da Armada, 1853.

Don’t talk to me about Navy tradition. It’s nothing


but rum, sodomy and the lash.

Frase atribuída a winston churchill

Os marinheiros constituíam uma categoria marginalizada em todas as nações. No


entanto, a galera era heterogênea. A primeira diferença era o local de nascimento e
a língua falada, aspectos considerados para distingui-los entre nacionais e estran-
geiros. Dentre os últimos, estudei especialmente os portugueses e os anglofalantes
(britânicos e norte-americanos). Dentre os nacionais, a clivagem foi, sobretudo, re-
gional, étnica ou por meio da “cor”, uma vez que havia caboclos, afro-descendentes,
brancos naturalizados ou descendentes de portugueses e todas as variáveis mestiças.
Mas como expliquei no Capítulo “Nacionais”, mesmo essa denominação era uma
unidade artificial, pois a identidade dos recrutados era principalmente regional, da
localidade ou da província de onde vieram.
Os nacionais foram recrutados para a Armada Nacional e Imperial, mas conhece-
ram um mundo marítimo que, especialmente, os portugueses e anglófonos criaram

1 an, Série Marinha, xm 723, Corpos de saúde, Relatorio do dr. Emygdio José Barbosa, segundo cirurgião
do corpo de saúde da Armada Nacional Imperial, embarcado na corveta Imperial Marinheiro para o Dr.
Joaquim Cândido Soares de Meireles, cirurgião-chefe do corpo da Armada.
188

e dominaram econômica, cultural ou demograficamente. Assim a religiosidade, a


língua e os hábitos foram em parte assimilados, em parte reinventados.
Optei, neste capítulo, por tratar de temas que apareceram não somente no pe-
ríodo escolhido, como também em outros tempos e no tempo presente: “a história
é objeto de uma construção cujo lugar não é formado pelo tempo homogêneo e
vazio, mas por aquele saturado pelo tempo-de-agora (Jetztzeit).2 Tratarei de temas
como homossexualidade, alcoolismo e cultura marítima: tatuagens, roupas e rituais
cujas pistas se acham em diversas épocas. É possível entrever como os processos
culturais ocorridos na marginalidade da vida marítima, vivida entre a costa e o mar,
contribuíram para a cultura e o comportamento das grandes cidades. Este terceiro
capítulo é construído em forma de um mosaico.

4.1  Cosmopolitismo

Aqueles que trabalharam nos navios viveram a marginalização do lugar de origem,


o trabalho disciplinar da expansão capitalista, mas, simultaneamente, participaram
da criação de um imaginário sobre o mundo, em especial pela transmissão oral e,
em menor escala, escrita. O navio é nas palavras de Michel Foucault, “o maior ins-
trumento de desenvolvimento econômico desde o século xvi, (...) e a maior reserva
de imaginação”.3
Os navegantes tiveram “as primeiras visões do mundo que realmente poderiam
chamar-se cosmopolitas”.4 A chamada cultura marítima deixou vestígios nas capi-
tais e em outras cidades, onde os marujos aportavam: no vestuário, nas tatuagens,
nas gírias e expressões urbanas, por exemplo, “galera”, “chutar o balde”, “aviso aos
navegantes”, entre outras. Os marinheiros contrabandearam bens, inauguraram
comportamentos, contaram histórias e escreveram relatos. Aspectos que consti-
tuem um legado difuso na cultura urbana, mas que deixaram algumas pistas.

2 benjamin, Walter. Sobre o conceito de história, trad. de Jeanne-MarieGagnebin, e Marcos Lutz


Muller, mimeo.
3 foucault, Michel. “D’autres espaces”. Disponível em: http://foucault.info/documents/ heteroTopia/
foucault.heteroTopia.fr.html. Acesso em: 31 abr. 2011.
4 perez-mallaína. Pablo E. Los hombres del océano: Vida cotidiana de los tripulantes de las flotas de Indias.
Siglo xvi, p. 239.
189

Se, por um lado, há uma questão de coletividades, por outro, a questão do indi-
víduo no mundo marítimo também é fundamental. Se eles nascem em lugares tão
diferentes, trabalham em períodos curtos e em navios de tantas bandeiras, é de se
convir que suas trajetórias não estão, necessariamente, ligadas a grupos perenes.
O itinerário narrado pelo marinheiro Leandro Gonçalves de Gouveia que partiu de
Paranaguá, sua cidade natal, aos 15 anos, por volta de 1847, e para lá voltou em 1861, é
bastante típico dos marujos de longo curso, sendo muito difícil que algum camarada
seu tenha vivido no mesmo tempo e espaço o que ele viveu:

Que havera quatorze anos mais ou menos que anda ausente desta cidade sempre
embarcado em diversos navios um dos quais de Nação Alemã, foi à Europa há cinco
anos mais ou menos, e depois desembarcou em Pernambuco onde esteve três anos
mais ou menos servindo de estivador de navios (...) em mil oitocentos e cinquenta e
dois, voluntariamente, serviu por seis meses no Hiate Itagipa na Bahia, e findo esse
tempo obteve sua guia de embarque, a qual ficou com a Capitania do Porto daquela
cidade, quando matriculou para bordo de um navio mercante Inglês para Buenos
Aires e de lá para Santos onde embarcou no navio Alemão que foi para a Europa.5

Paranaguara pobre, aos 29 anos conheceu diversas cidades do Império e da Europa


em navios de diferentes bandeiras. O que ele sofreu ou gozou não sabemos. Mas
certamente narrou muitas de suas histórias alhures para seus conterrâneos.
No epílogo do livro O alufá Rufino: tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico negro
(c.1822 - c. 1853),os autores definiram o africano do título como: “poliglota, cosmo-
polita, personagem que circulou por diversas culturas num mundo unificado e ao
mesmo tempo dividido – em vários sentidos – pelo Atlântico”.6 Rufino José Maria,
cujo nome mulçumano era Abucare, nasceu no Reino de Oyo, atual Nigéria, onde
em 1822 ou 1823, foi capturado e trazido como escravo para o Império do Brasil.
Morou em Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, onde comprou
sua alforria. Tornou-se cozinheiro de navio negreiro. A embarcação em que viajava
foi apresado pelos ingleses, ancorou dois dias na ilha de Santa Helena, e finalmente

5 Citado em leandro, José Augusto. Cultura marítima: marinheiros da baía de Paranaguá, Sul do
Brasil, século xix. Disponível em: http://www.revistas.uepg.br/index.php?journal=folkcom&page
=article&op=viewFile&path%5B%5D=819&path%5B%5D=626. Acesso em: 31 jul. 2011.
6 reis, João J. gomes, Flávio; carvalho, Marcus, O alufá Rufino: tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico
negro (c.1822 - c. 1853), p. 355.
190

Rufino desembarcou em Serra Leoa, onde estudou numa escola corânica por alguns
meses. Voltou ao Brasil onde escolheu Recife como morada, atuando ali na década
de 1850, como adivinho, curandeiro e mestre mulçumano. Marcus Carvalho, Flavio
Gomes e João José Reis contaram sua história: Rufino deixou rastros suficientes
para um livro.7
Há muitos desses Rufinos no mundo marítimo. Durante o ano de 1849, o Cônsul
do Império do Brasil em Liverpool, John Pascoe Grenfell, expediu catorze mari-
nheiros brasileiros, tripulantes de navios negreiros apresados pelos ingleses, como
recrutas para a Armada. Cinco eram naturais da Bahia; três do Maranhão; dois de
Pernambuco; um do Rio de Janeiro e outros três de Santa Catarina. Manoel Gonçal-
ves, um dos catarinenses, quando chegou ao Império, alegou ser português. Quatro
deles já haviam servido à Armada e um ao Exército, demonstrando como era comum
marinheiros atuarem na marinhas de guerra e mercante. Adelino Pereira “andou em-
barcado 14 anos sempre em navios brasileiros” e Manoel José “tem andado sempre
em embarcações brasileiras”.8
No intervalo de mais ou menos um ano, os marujos realizaram trajetos que co-
meçaram por cinco províncias do Brasil, passaram por três localidades da África
(Santa Helena, Serra Leoa e Angola), aportaram em Liverpool e retornaram para
três províncias do Império do Brasil. A este grupo foram adicionados dois marujos
brasileiros, que ficaram hospitalizados na Jamaica e em Baltimore, EUA, motivo
pelos quais foram deixados por seus respectivos navios mercantes. Quando curados
foram expedidos para o Consulado do Império do Brasil, em Liverpool, de onde
seriam enviados de volta ao Império, juntamente com os marinheiros do tráfico
como recrutas da Armada. Portanto, tornar-se recruta não era necessariamente um
castigo para homens que trabalharam em negreiros.
As identidades pátrias não eram apagadas entre os marinheiros, ainda que
certamente ficassem abaladas. Identidades pátrias, pensadas aqui em relação
ao local de nascimento, seja uma aldeia, uma colônia, uma Nação. O marinheiro
deixava suas pátrias para estar em um espaço intermediário. Esse outro lugar que
o marinheiro ocupou e ocupa, pode ser identificado com o que Michel Foucault
denominou heterotopia: “espaços diferentes, outros lugares, uma espécie de

7 reis, João J; gomes, Flávio; carvalho, Marcus. O alufá Rufino: tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico
negro (c.1822 - c. 1853).
8 an, Série Marinha, xm 86, Correspondência com o ministro dos Negócios Estrangeiros.
191

contestação ao mesmo tempo mítica e real do espaço que vivemos”.9 Cemitérios,


prisões, hospitais psiquiátricos, bordéis, entre outros lugares o são, mas “o navio
é a heterotopia por excelência”.10
Arthur Bispo do Rosário, um dos artistas brasileiros mais importantes do século
xx, viveu grande parte de sua vida em heterotopias. Aos quinze anos ingressou na
Escola de Aprendizes Marinheiros, serviu na Marinha entre 1925 e 1933, como sina-
leiro, da onde saiu para lutar boxe por um curto período, além de trabalhar como em-
pregado doméstico. A partir de 1939, considerado louco, viveu os últimos cinquenta
anos de sua vida numa instituição psiquiátrica, com exceção de breves saídas.11 Boa
parte do imaginário da sua obra, composta em sua maioria de bordados, diz respeito
à vida marítima: bandeiras, sinais, embarcações e espaços da Marinha, por exemplo,
a Escola de Aprendizes por onde passou. Bordar este imaginário marítimo, como ve-
remos mais adiante, é uma das artes dos marinheiros, desde pelo menos o século xix.

9 foucault, Michel, “D’autres espaces”. Disponível em: http://foucault.info/documents/ heteroTopia/ fou-


cault.heteroTopia.fr.html. Acesso em: 31 abr. 2011.
10 Ibidem.
11 Estas informações biográficas foram extraídas de: hidalgo, Luciana. Arthur Bispo do Rosário: O senhor
do labirinto.
192

Trajetórias de marinheiros nacionais de navios negreiros apreendidos pelos ingleses


e enviados pelo consulado brasileiro de Liverpool como recrutas para a Armada
Nacional e Imperial do Brasil

liverpool

baltimore

jamaica

serra leoa

maranhão

pernambuco angola
bahia santa
helena

rio de janeiro
ilha grande
santa catarina

Os dois marujos que fizeram escala na Jamaica e em Baltimore não eram tripulantes de negreiros, mas foram
igualmente enviados como recrutas. Ao lado as trajetórias estão detalhadas.

Fonte: an, Série Marinha, xm 86, Correspondência com o ministro dos Negócios Estrangeiros.
nome naturalidade partiu de escala 1 escala 2 voltou para

João Carlos de Azevedo, 32 anos ba - Santo Amaro Pernambuco Baltimore Liverpool Bahia

Sebastião do Rego Barros ba - Vila Real Bahia Serra Leoa Liverpool Pernambuco

Adolino Pereira, marinheiro, andou 14 anos embarcado


em navios brasileiros e serviu na Armada do Império três
anos. Filho de Anna Pereira e José da Silva, moradores Bahia Rio de Janeiro Liverpool Bahia
da Rua da Preguiça, freguesia de Conceição da Praia.
Embarcou no negreiro brigue-escuna Maria

João Evangelista de Sampaio, carpinteiro do Arsenal de


Guerra, serviu quatro anos no Exército. Embarcou no Bahia Bahia Serra Leoa Liverpool Bahia
negreiro brigue Brasiliense

Manoel José, marinheiro de embarcações brasileiras Bahia Rio de Janeiro Santa Helena Liverpool Pernambuco

Francisco Gomes, 28, serviu Na Armada Maranhão Rio de Janeiro Angola Liverpool Bahia

José C. Gomes. Embarcou no negreiro brigue Maria Maranhão Rio de Janeiro Serra Leoa Liverpool Rio de Janeiro

Joaquim Marcelino Sena Maranhão Liverpool Pernambuco

José de Ramos, 26 anos, serviu cinco anos na Armada do


Pernambuco Rio de Janeiro Angola Liverpool Bahia
Império Embarcou no negreiro vapor Thereza

Manoel Joaquim da Cunha, 32 anos, serviu 14 meses


na Armada do Imperio. Em barcou no negreiro brigue Pernambuco Bahia Serra Leoa Liverpool Pernambuco
Brasiliense

Antonio José da Silva, 22, anos branco rj - Iha Grande Rio de Janeiro Jamaica Liverpool Bahia

Antonio Marcelino da Silva, 30 anos, serviu 3 anos na


Santa Catarina Rio de Janeiro Serra Leoa Liverpool Bahia
Armada do Império

João Pedro da Silva Santa Catarina Liverpool Bahia

Manoel Gonçalves Lima, 20 anos. Quando chegou no


Santa Catarina Santa Helena Liverpool Rio de Janeiro
Brasil, alegou ser português

Joaquim Fernandes, 24 anos Rio de Janeiro Angola Liverpool Pernambuco


193
194

4.2  “Eu não sou daqui, eu não tenho amor?”


Solidariedades e intolerâncias

O marinheiro George Edward Clark empregou a expressão “motley crowd para


descrever a tripulação de um dos navios que viajou: “havia uma galera heterogênea
(motley crowd) a bordo; homens de todas as nações, de povos que vão para o mar
(sea-going people) holandeses, irlandeses, ingleses, kanakas,12 portugueses, escoceses
e yankees”.13 Como vimos, os portugueses, ingleses e norte-americanos, constitu-
íam uma fração significativa das tripulações da Armada nas primeiras décadas do
Império. A fluída definição sea-going-people é precisa no sentido de identificar os
grupos majoritários no mar. Os brasileiros não eram internacionalmente reconhe-
cidos como tal, mas havia uma minoria de marinheiros nascidos no Império que
circularam por marinhas de diversas nacionalidades.
Conforme visto na Introdução, Peter Linenbaugh e Markus Rediker retomaram
as expressões motley crew (tripulação heterogênea ou horda heterogênea de tra-
balhadores) e motley crowd (horda heterogênea) para referir-se ao seu objeto de
estudo: a “classe multiétnica essencial ao surgimento do capitalismo e da moderna
economia global”.14 Estes autores privilegiaram os traços rebeldes e a cooperação
interna dessa “horda heterogênea, desses “párias de todas as nações”, dessa hidra
de muitas cabeças.15 Concordo que houve conexões e cooperações entre a galera
heterogênea, mas as diferenças geraram igualmente conflitos e hierarquias internas.
Isaac Land ressalta que nas Marinhas britânica e norte-americana:

Motley crews (tripulações heterogêneas) não resultavam automaticamente em


tolerância, e poderiam facilmente resultar no contrário. Na era do nacionalismo,
marinheiros sedentos de aceitação, poderiam apresentar-se como patriotas ver-
dadeiros considerando marítimos estrangeiros como depositários dos estigmas
e suspeitas que recaíam sobre o grupo como um todo.16

12 Kanakas são os marinheiros recrutados nas ilhas do Pacífico.


13 clark, George Edward. Seven years of a sailor’s life, p. 136. Tradução minha.
14 linenbaugh, Peter e rediker, Marcus. A hidra de muitas cabeças, p.15.
15 Idem, p. 38.
16 land, Isaac, The many tongued-hydra: Sea talk, maritime culture, and atlantic identities, 1700-1850, p. 416.
195

Um perfil da tripulações estudadas mostra algumas diferenças fundamentais en-


tre alguns grupos e uma decorrente hierarquia interna. Os estrangeiros anglófonos
eram ao mesmo tempo brancos e mais especializados. Os portugueses, também
brancos, ocuparam todas as graduações de marinheiro, mas nas memórias de ma-
rujos anglófonos eram, de modo frequente, vistos como inferiores. A maior parte
dos nacionais não era branca e apesar de ocuparem todas as graduações, a maioria
pode ser encontrada nas mais baixas.
O marujo norte-americano Jacob Hazen, por exemplo, descreveu o ambiente
de um navio de guerra brasileiro como um lugar onde tudo tinha uma aparência
desagradável: “os homens eram pretos e sombrios (...) e mesmo o comandante, com
sua face preta e peluda (...) parecia um orangotango”.17
Em “Os tugas”, um pequeno ensaio ficcional sobre os cabo-verdianos embarca-
dos nos baleeiros norte-americanos, Herman Melville afirma: “De todos os homens,
os marinheiros são os mais preconceituosos, especialmente no que se refere à raça.
São intolerantes. Mas quando uma criatura de raça inferior, um marinheiro inferior,
vive entre eles, parece não haver limites para o seu desdém”.18 O autor, no entanto,
avisa que é preciso ouvir com cuidado essa concepção de seus colegas. A zombaria
dos yankees acontece, porque os “tugas se vendem abaixo do preço, trabalham por
biscoitos, enquanto os marinheiros querem dólares”.19 Segundo Ravi Ahuja, entre
meados do século xix e a década de 1980, os lascares, marinheiros indianos, ganha-
vam cerca de um quarto do soldo dos marujos ingleses na Marinha mercante ingle-
sa.20 É frequente o uso do componente racial/nacional para criar hierarquias entre
homens que fazem o mesmo trabalho, a desigualdade interna é um dos instrumentos
para ganhar um salário melhor, ou criar uma reserva de mercado.
O escocês John Nicol julgava os portugueses os piores marinheiros que exis-
tiam e não suportava suas superstições (expressão que usava para se referir ao
catolicismo).21 Outros marujos memorialistas escreveram frases como: “John An-
tonia era um homem muito civilizado para um português”;22 “Os portugueses são

17 hazen, Jacob, Five years before the mast or Life in the forecastle, aboard of a whaler and man-of war, p. 153.
18 melville, Herman, Os tugas. Revista CELL, n.00, Ouro Preto, 1° sem. de 2010, p. 147.
19 Idem, p. 150.
20 ahuja, Ravi. Mobility and Containment: The Voyages of South Asian Seamen, c.1900–1960. IRSH 51
(2006), Supplement, p. 112.
21 nicol, John. The life and adventures o f John Nicol., p. 150-1.
22 hazen, Jacob, Five years before the mast , p. 63.
196

sujos”.23 Nas imediações do Equador há uma proverbial calmaria e um animal aquá-


tico, a “caravela portuguesa”, cujo aspecto lembra de fato esse tipo de embarcação,
é comumente visto ali. O marítimo Joseph Bates explicou que os marinheiros lhe
deram esse apelido, porque quando o mar está calmo, se exibem ao lado do navio
“mostrando aos marítimos que elas também são embarcações”. Mas quando o tem-
po muda e o vento bate, “a coragem falha (...) elas afundam e esperam uma nova
calmaria”.24 Os portugueses eram, no ponto de vista dos muitos anglófonos, idóla-
tras, covardes, inferiores.
Na intimidade certamente houve amizade entre diferentes: no baleeiro em que
o norte-americano Jacob Hazen viajou, o seu melhor amigo era o “hercúleo negro”
Sam Malony. Nos primeiros dias de navegação, por exemplo, ajudou-o quando es-
tava doente, levando-o para sua rede e no momento em que Jacob resolveu deser-
tar, despediram-se na esperança de um dia reencontrarem-se.25 Uma das passagens
mais bonitas de Moby Dick é aquela em que a personagem principal, Ishmael, tem a
oportunidade de conhecer melhor o “canibal” Queequeg, em uma estalagem. Que-
equeg, natural de uma ilha do Pacífico, era tatuado dos pés a cabeça e vendia cabeças
humanas empalhadas. Em uma noite fria, antes de embarcar, teve de aceitar a única
vaga para dormir na estalagem, justamente o quarto e a cama desse estranho com-
panheiro. Ishmael, apesar de apavorado, foi aceitando aos poucos a dura condição.
Após fumarem juntos um “estranho cachimbo”, o “selvagem” tornou-se seu “amigo
íntimo”. Acordaram abraçados, e Ishmael finalmente refletiu: “o sujeito é um ser
humano assim como eu: tem tanto motivo para me temer quanto eu tinha para ter
medo dele. Melhor dormir com um canibal sóbrio do que com um Cristão bêbado”.26
As canções eram uma das linguagens francas dos marujos. Em um dia de lazer
do navio em que o marujo norte-americano George Edward Clark viajava, sob o
som de guitarras, violinos e uma profusão de banjos, onde todo tipo de música foi
cantada, “as canções dos yankees, irlandeses, ingleses e portugueses eram agradá-
veis de escutar, quando cantadas com sentimento e energia nativos verdadeiros”.27
Esse sentimento e essa energia diziam respeito ao que todos tinham em comum: a
saudade dos lugares de origem e a energia adquirida ao longo da dureza da vida ma-

23 ames, Nathaniel, A mariner’s sketches, p. 86.


24 bates, Joseph. Autobiography of elder Joseph Bates, embrancing a long life on shipboard, p. 146-7.
25 Ibidem.
26 melville, Herman, Moby Dick, p. 47.
27 clark, George Edward. Seven years of a sailor’s life, p. 214. Tradução minha.
197

rítima. Todos os povos marinheiros criaram um cancioneiro. Nos países de língua


inglesa são chamados sea shanties. Talvez, no caso português, mais do que um simples
cancioneiro, foi constituída uma poética marítima inaugurada por Camões, ininter-
rupta ao longo dos séculos e que voltou a ter seu ápice com Fernando Pessoa e, mais
recentemente, com o fado. No romance de Machado de Assis, Brás Cubas emprega
“a locução de um velho marujo familiar da casa de Cotrim” para reforçar um conse-
lho ao leitor: “se guardares as cartas da juventude, acharás ocasião de ‘cantar uma
saudade’. Parece que os nossos marujos dão este nome às cantigas de terra, entoadas
em alto-mar. Como expressão poética, é o que se pode exigir mais triste”.28
No Brasil, além dos folguedos do litoral e das canções do mar, existem os pontos
de Umbanda das giras de marujo. Um deles ficou popular na voz de Clementina de
Jesus: “Eu não sou daqui, eu não tenho amor/ Eu sou da Bahia, de São Salvador”.

Imagem de marujo comprada nas


barracas de produtos religiosos da
feira de São Joaquim. Salvador, 2008. A
maior parte das imagens é de homens
brancos, mas há também de negros.
Foto: José Gabriel Lindoso.

28 assis, Machado. Memórias póstumas de Brás Cubas., p. 216.


198

4.3  “Cortando a linha” entre oficiais e marujos: os corações


batem do mesmo modo?

Rituais de cruzamento da linha do Equador são registrados desde o século xvi em


navios europeus e, mais tarde, em outras marinhas, inclusive em viagens contem-
porâneas. Segundo Margareth Creighton, Netuno, o Deus do mar, de acordo com a
mitologia grega, tornou-se o mestre de cerimônias ao longo do século xviii.29
Uma versão brasileira desse ritual foi descrita pelo tenente Sabino Eloy, tripu-
lante em uma viagem à Europa da corveta Imperial Marinheiro, em 1857. Nas pro-
ximidades do Equador, às oito horas da noite, “uma voz horrenda em alto brando
interpela a corveta” soltando “uma longa e estrepitosa gargalhada”. Os marujos,
reconhecendo a chegada da autoridade máxima do mar, exclamam: “É o rei Turno”,
um marinheiro fantasiado de Netuno. Segundo Sabino, o “nosso marinheiro tem
certo chiste para estropiar os nomes das divindades da fábula. Nefretite tornava-se
Artrite; Euterpe, Estrepes; Eolo, Jolo; e Netuno, Rei Turno”.30
No episódio narrado, os oficiais entram na brincadeira e pedem consentimento
para atravessar a linha. O Rei Turno permite desde que um pedágio seja pago. A ce-
rimônia acontece no dia seguinte pela manhã, com todos os oficiais presentes. Nas
palavras de Sabino, “Qualquer que seja o rigor da disciplina a bordo, na passagem
da linha sofre ela impedimentos, por tácito consenso do comandante”.
Rei Turno chega vestido com uma “miscelânea de trajes” e montado em um corcel
humano. Tem por ministro das finanças, ou coletor de pedágios, o diabo, que carrega
uma sacola, além de ajudantes, como meirinhos e beleguins. Um de seus sequazes
toma o leme. Rei Turno pergunta pela “proa”, designação para o pedágio. O diabo-
-assistente entra em diversos camarotes recolhendo os donativos. Os grumetes, tam-
bém conhecidos como “peões do mar”, que nunca atravessaram a linha, são lavados,
barbeados e empoados. Para os marítimos de longo curso esse é um ritual de passa-
gem importante, uma espécie de batismo das águas profundas. Depois de uma hora
de brincadeira, semelhante ao entrudo, no entender do tenente, o comandante “vol-
tando ao sério, com um mágico aceno apeou Netuno e a todos os seus das imaginárias

29 creighton, Margareth. Fraternity in the American Forecastle, 1830-1870, The New England Quarterly,
V. 63, n. 4 (Dez. 1990), p. 534.
30 pessoa, Sabino E. Viagem da Corveta Imperial Marinheiro nos annos de 1857 a 1858 a diversos portos do
Mediterrâneo e do Atlântico, p. 4.
199

grandezas, alistando-os de novo entre os bravos marinheiros da sua corveta”.31 Tudo


volta à ordem e “cada qual se contenta com sua verdadeira categoria a bordo”. 32
A suspensão da hierarquia a bordo é narrada como um processo inteiramente
controlado. Para Sabino todas as marinhas permitem diversão a bordo para “su-
avizar” o duro trabalho no mar; em suas palavras “disciplina não é tirania”. O Al-
mirante Nelson construiu teatrinhos nos navios de sua esquadra, recomendando
aos comandantes que conservassem “as guarnições contentes, que as deixassem
rir, folgar, dançar, porque no dia do perigo seriam homens inteligentes a baterem-se
como leões, e não servos envilecidos tangidos pelo terror”.33
Maria Graham interpretou o ritual como uma comunhão momentânea. Ela o
presenciou em 1821, quando atravessou a linha em direção ao Chile acompanhando
seu marido oficial, em um navio inglês:

Gosto deste festival; põe o coração à larga para a gente se divertir. A monotonia de
ver sempre uma classe que detém a inteligência; outra que entra com os braços, a
trabalhar todos os dias em direções, senão opostas, ao menos diversas, é quebrada.
Numa festa todos os corações batem do mesmo modo.34

Como no navio brasileiro, Netuno anunciou durante a noite que realizaria o ritual
pela manhã. O capitão Graham, marido de Maria, autorizou a festa e a farra aconte-
ceu na mais perfeita ordem na manhã seguinte. Os noviços foram barbeados ou paga-
ram taxas, enquanto o resto da tripulação, “oficial ou não”, entraram na brincadeira
batizando-se uns aos outros. Como no relato de Sabino o bom termo prevaleceu:

Parecia realmente que a loucura dominava, mas, no momento marcado, onze e


meia, tudo cessou. Ao meio dia todo o mundo estava a postos, os tombadilhos secos
e o navio restituído à boa ordem do costume. Todos os nossos oficiais de carreira
jantaram conosco e envaidecemo-nos de ter terminado o dia tão alegremente como
o havíamos começado.35

31 Idem, p. 5.
32 Ibidem.
33 Ibidem.
34 graham, Maria Dundas. Diário de uma viagem ao Brasil e de uma estada nesse país durante parte dos anos
1821, 1822, 1823. p. 99 - 100.
35 Idem, p. 103.
200

Na visão dos oficiais, prevalece a leitura de que esse momento de diversão e subver-
são não atrapalhava em nada a ordem do navio, pelo contrário, é uma ocasião para se
respirar e fazer com que a viagem prossiga. A mesma lógica funcionava em relação
à bebida alcoólica, como veremos adiante.
Segundo Margareth Creighton, a partir da leitura dos diários de tripulantes de
navios baleeiros norte-americanos:

(...) apesar de Netuno insistir que um certo nível de cooperação entre tripulação e
oficiais era necessário para a operação segura e eficiente do navio, sua mensagem
principal era apenas para os marujos (...), os veteranos orquestravam a visita e o
significado de sua mensagem era coletivizar os marujos em oposição aos oficiais:
o principio de governo da proa era a fraternidade e que as regras do navio não eram
apenas impostas pelos oficiais, mas também internamente construídas.36

O acordo tácito de uma pausa para as relações de poder servia aos dois extremos da
hierarquia. Oficiais ganhavam, “cedendo” espaço para os marujos, simulando “obe-
diência” ou tolerando sua farra por um curto período. Os marinheiros reuniam-se de
modo coletivo para organizar a festa, e aproveitavam para iniciar os mais inexperien-
tes na sua maritimidade, mas sempre delimitando as hierarquias internas. As “imagi-
nárias grandezas de Netuno e seu séquito marujo”, provavelmente se escoravam na
crença da grandeza do marinheiro experiente. O significado da expressão “estamos
todos no mesmo barco” refere-se à cooperação e à consciência de que a ordem tem
de ser mantida tanto entre oficiais e marujos quanto entre os próprios marujos.
Segundo depoimento de dois praças da Marinha do Brasil, o ritual ainda é pra-
ticado no cruzamento da linha do Equador. Os oficiais continuam aparentemente
controlando ou anuindo o processo. Os marujos são besuntados com graxa, têm
de engolir um punhado de sal e tomar banho em uma piscininha salgada. Alguns,
provavelmente novatos, são vestidos com roupas femininas e obrigados a agir como
“mulherzinha” de Netuno.37 Em suas memórias como homossexual na Marinha, o
ex-cabo Flávio Alves, referiu-se ao ritual como “selvagens festividades quando o
navio cruza a linha do Equador”,38 das quais não teria participado. O ritual portava
e porta muitos significados.

36 creighton, Margareth. “Fraternity in the forecastle.” The New England Quarterly, Vo. 63, n.0 4. p. 537.
37 Depoimento oral à autora de marujos que trabalham no Centro Cultural da Marinha no Rio de Janeiro.
38 alves, Flavio; barcellos, Sérgio. Toque de silêncio, uma história da homossexualidade na Marinha, p. 105.
201

“Crossing the line on board the flying squadron”. London Ilustrated news,
suplemento, 12 de março de 1881. Colorizada a mão.

4.4  Grog

A ingestão de bebidas alcoólicas não era uma prática apenas nas tavernas e estala-
gens dos portos, também fazia parte da ração diária distribuída por muitas Marinhas
de Guerra. No Brasil doses diárias eram previstas na Legislação. O seu consumo
causou confusões nos navios e, ao mesmo tempo, funcionou como instrumento de
controle, de disciplina, ou seja, um elemento de barganha e era .
O chamado grog foi criado na Royal Navy britânica no século xviii: era feito com
uma parte de bebida alcoólica diluída em três partes de água, misturada com açúcar
e, às vezes, limão, no entanto, também passou a designar bebidas alcoólicas puras.
Grog derivou a gíria grogue, que hoje em dia significa “atordoado, por ter (ou como
se tivesse) ingerido bebida alcoólica”.39 Em Cabo Verde é o nome da bebida nacional,
um aguardente de cana de açúcar. Na Armada do Brasil, a distribuição de aguarden-
te aparece pelo menos em dois decretos que contêm tabelas de alimentação para

39 Verbete grogue. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.


202

oficiais e praças: o de 5 novembro de 1847 e o de 4 de maio de 1872.40 Assim como na


Marinha norte-americana e britânica, na brasileira a dose diária variava de 100 a 200
ml. No decreto de 1872 a dose extra é denominada grog: “nas ocasiões de grandes
fainas, de muita chuva ou de muito frio, [fornece-se] uma ração de café com açúcar
ou grog quente, sendo este feito na razão de uma medida de aguardente, três ditas
de água e uma libra de açúcar”.41 No decreto de 1847, abonava-se o marujo em dias
de grande faina com uma dose pura de aguardente.
O fumo também chegou a ser fornecido pela Marinha Imperial. No Livro de
socorros da fragata Imperatriz das décadas de 1820 e 1830, os marujos receberam
tabaco, devidamente descontado de seus soldos. Talvez, isso acontecesse apenas
em situação de guerra, como incentivo à permanência nos navios.
Hoje em dia, a bebida alcoólica não é distribuída oficialmente na instituição. Mas
alguns relatos dos pacientes do Centro de Dependência Química da Marinha do
Brasil indicam que beber durante o serviço, apesar de proibido, mantém-se uma
prática corriqueira , um “incentivo” em comemorações e momentos de trabalho
extra: “Foi na Marinha que eu aprendi a beber. Sexta-feira “rola” uma caipirinha com
dobradinha. Sempre tem um evento, uns aniversariantes do mês” ou “Às vezes, o
Comandante libera um ‘incentivo’ pra fazer as faxinas , uma ‘branquinha’ [aguar-
dente]; ele faz vista grossa, pra sair o serviço”.42
Segundo as autoras dessa pesquisa sobre o alcoolismo na Marinha, os relatos
de pacientes apontam para “uma mentalidade que é simpática e favorável ao con-
sumo do álcool”.43 Esses depoimentos vão ao encontro da fala do meu informante,
fuzileiro naval no fim da década de 1970: em alto-mar, em dias muitos frios, alguns
oficiais de baixa patente bebiam com os praças. Quando a cachaça escondida aca-
bava, misturava-se álcool roubado da cozinha com groselha.
Em White-Jacket, o personagem homônimo, alter ego de Herman Melville, des-
creve a importância do grog para os marinheiros de um navio da Marinha de Guerra
norte-americana oitocentista: “para muitos deles, a expectativa do trago (tot) di-
ário cria uma perspectiva perpétua de paisagens deslumbrantes indefinidamente

40 Decreto n. 541 de 5 de novembro de 1847, Coleção de leis do Império de 1847; decreto n. 4954 de 4 de
maio de 1872, Coleção de leis do Império de 1872.
41 Decreto de 4 de maio de 1872. Coleção de leis do Império de 1872.
42 halpern, Elizabeth; leite, Ligia M.C.. Lei seca no mar: desafios preventivos na Marinha do Brasil.
Arquivos Brasileiros de Psicologia, v. 62, n. 2, 2010, p. 103.
43 Ibidem.
203

esvanecendo com a distância. É sua grande perspectiva na vida. Tire o grog deles e
a vida não possui mais nenhuma graça”.44 White-Jacket afirmou conhecer muitos
homens alcoólatras miseráveis em terra que se engajavam na Marinha, por ser uma
de suas poucas possibilidades de sobreviverem, transformando-a em uma espécie de
“asilo para os bêbados, que prolongava suas vidas pelos exercícios, disciplina, onde
duas vezes por dia aplacava-se com doses certas e moderadas”.45 A personagem
aconselhou um colega, dizendo que o álcool estava lhe destruindo. O mesmo lhe
respondeu: “Largar o grog? Por quê? Porque está me arruinando? Não, não; eu sou
um bom cristão, e o amor que tenho pelo meu inimigo não permite abandoná-lo”.46
Uma canção de marinheiro portuguesa oitocentista, atribui à bebida a condição para
o marujo não abandonar a vida no mar:

Arrenego de tal vida,


Que nos dá tanta canseira!
Sem a nossa bebedeira
Nós não passamos!47

Na Umbanda, a principal característica dos espíritos marinheiros que descem na


gira (ritual de possessão de espíritos) é justamente o seu estado de permanente
embriaguez, além do andar trôpego. Como diz um verso de um ponto:

Marujo bebe na boca do garrafão,


pisa de pé em pé pra não cair no chão.

Em “Martim Pescador”, o marinheiro assume o hábito da cachaça, altivamente:

Martim pescador que banda é a tua,


bebendo cachaça, caindo na rua?
Eu bebo minha cachaça,
eu bebo muito bem,

44 melville, Herman. White-Jacket, p. 403.


45 Ibidem.
46 Idem, p. 404.
47 “A vida do marujo” - canção. neves, Cesar A das & campos, Gualdino de. Cancioneiro de musicas popu-
lares, V. iii, p. 111. Segundo os autores, ela foi transcrita da peça Probidade de 1859, de César de Lacerda.
204

Pago com meu dinheiro,


Não é da conta de ninguém.

Seja na tradição norte-americana, inglesa, portuguesa ou brasileira, os próprios ma-


rinheiros não dissociam a vida no mar da bebida alcoólica: o estigma é assumido
como uma condição da profissão.

4.5  Homossexualidade

Sodomia ou pederastia eram as palavras utilizadas para relações homossexuais no


século xix, sendo que, o último termo todavia é empregado. Em 1969, durante a
ditadura militar, foi criado um novo código penal militar que vige até hoje. O artigo
235, intitulado “Pederastia ou outro ato de libidinagem”, apresenta pena de deten-
ção de seis meses a um ano para o ato de “Praticar ou permitir o militar que com ele
se pratique ato libidinoso, homossexual ou não, em lugar sujeito a administração
militar”.48 Há um projeto de lei em trâmite na Câmara dos Deputados, desde 2000,
que visa retirar do código os termos “pederastia” e “homossexual”, pois esse uso,
além de inconstitucional, categoriza discriminação contra os homossexuais. 49 Nos
Estados Unidos a lei conhecida como “Don´t ask don´t tell” é mais recente. O sujeito
de orientação homossexual não pode declarar-se ou agir como tal. O castigo é a ex-
pulsão. Entre 1993 e 2010, 17 mil homens tiveram de abandonar as Forças Armadas.
Em 2010, Barak Obama assinou um primeiro compromisso para revogar a lei.50
Na década de 1990, o ex-cabo Flávio Alves, que transformou sua experiência
de homossexual na Marinha em um depoimento publicado em livro, explicou suas

48 Decreto-Lei n. 1001, de 21 de outubro de 1969 - Código Penal Militar. Disponível em: http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del1001.htm. Acesso em: 31 jul. 2011.
49 Projetos de lei: 2773/2000 e 6871/2006 (Altera a redação do art. 235 do Código Penal Militar, excluin-
do do nome jurídico o termo “pederastia” e do texto a expressão “homossexual ou não” e acres-
centando parágrafo único, para excepcionar a incidência. - Altera o Decreto-Lei nº 1.001, de 1969).
Disponíveis em: http://www.camara.gov.br/sileg/default.asp. Acesso em: 31 jul. 2011.
50 stolberg, Sheryl G. Obama signs away ‘Don´t ask, don´t tell. New York Times, 22 de dezembro de
2010. Disponível em: <http://www.nytimes.com/2010/12/23/us/politics/23military.html>. Acesso
em: 31 jul. 2011.
205

motivações para ingressar na instituição. Ainda que a homossexualidade não tenha


determinado sua escolha, ele admite que possa ter influenciado outros:

Servir a Marinha do Brasil não foi uma decisão tomada pelo fato de, supostamente,
esta arma ser a mais tolerante com relação ao homossexualismo. Ou ainda, porque
a solidão em alto-mar seria uma reserva infindável de oportunidades sexuais. Isto
poderia ser considerado verdadeiro para muitos marinheiros, e, talvez, realmente
seja. Para Flavio, vestir uniforme era como estar a salvo e imune diante do tene-
broso futuro que a nossa sociedade reserva aos filhos de famílias pobres que vivem
em subúrbios de grandes capitais.51

Pelo menos até a década de 1990, quando ele serviu, a Rua Visconde de Inhaúma, pró-
xima ao Quartel do Primeiro Distrito Naval, na região central do Rio de Janeiro, era
um “ponto de pegação, onde fantasias sexuais com marinheiros estão disponíveis”.52
Homens não marítimos dirigiam-se ao local durante a madrugada para abordar ma-
rinheiros, a fim de ter relações sexuais, pagando ou não. Alves encontrou amantes
nesse local e discorreu sobre a atração que o uniforme militar provocava no mundo
homossexual civil.
Os ambientes de marinheiros e soldados nas grandes cidades continuam con-
tendo espaços para homossexuais, os quais não são restritos apenas a eles, mas tam-
bém aos não marinheiros que os procuram. Esses locais não constituem, necessa-
riamente, espaços de população homossexual significativa: não há uma tendência
homossexual entre os militares. Foi um estigma construído não apenas por práticas
internas, mas principalmente pelas atribuições, criadas por meio de preconceitos
e fantasias dos civis.
O sargento do Exército, Abílio Teixeira, escreveu um artigo para a revista Veja,
em 1995, sobre a proliferação da aids nas Forças Armadas. Ele atribuiu o fenômeno
à pobreza do recruta e às más condições de trabalho:

No quartel, a comida é ruim e o soldo é baixo. Com a distância dos parentes e dos
amigos, é grande a carência afetiva. Os recrutas acabam caindo nos braços de ho-
mossexuais, que os assediam nos portões dos quartéis e em pontos de prostituição

51 alves, Flavio; barcellos, Sérgio. Toque de silêncio, uma história da homossexualidade na Marinha, p. 105.
52 Idem, p. 84.
206

da cidade com seus carrões, promessas de diversão, um bom jantar, presentes e


dinheiro. Juntando carência afetiva, falta de dinheiro e desinformação, o soldado
não resiste e acaba nos braços do homossexual – sem usar camisinha.53

Apesar de pretender esclarecer uma situação alarmante causada por uma política de
silêncio, Teixeira admite apenas o fenômeno da homossexualidade fora dos quartéis,
em meninos pobres e inocentes, impelidos por homossexuais civis endinheirados.
Não falaria da homossexualidade dentro dos quartéis, por ferir a honra do Exército
e ser considerada uma prática ilegal, além de, e especialmente por isso, continuar
sendo um tabu depois de séculos.
O imaginário em torno dos civis que procuravam por praças, sobretudo da Mari-
nha, para manter relações sexuais, era, e continua sendo, recorrente. Em Recordações
do escrivão Isaías Caminha, Lima Barreto criou o personagem jornalista Raul Gusmão,
afeminado, inspirado no escritor João do Rio. Misturando seus desafetos pessoais
com o escritor, ele construiu um homossexual com características desagradáveis.
Para sugerir que o personagem era sexualmente ativo, em um diálogo de Isaías Cami-
nha com um amigo, este lhe diz que viu Raul Gusmão entrando em uma hospedaria
da Rua da Alfândega, no Rio de Janeiro, com um fuzileiro naval.
Um amigo de Mário de Andrade declarou ao cineasta Joaquim Pedro de Andrade,
que uma vez perguntara ao escritor e musicólogo, qual seria o tipo de música que ele
mais gostava. Mário teria respondido: “Não existe música mais bonita do que o ruído
do cinto de um fuzileiro naval batendo na cadeira de um hotel da Praça Mauá”.54
Essa é mais uma das muitas histórias, não documentadas, sobre a homossexuali-
dade de Mário de Andrade envolvendo marítimos. Um professor universitário de
história, no cafezinho do Arquivo Nacional, me contou, em tom jocoso, que Mário
fazia suas pesquisas sobre cultura popular no porto de Santos, com vários relógios
no pulso, os quais oferecia aos marujos em troca de favores sexuais. Enfim, ser visto
com marítimos era praticamente uma metáfora para aludir à homossexualidade.
O pintor Paul Gauguin foi marinheiro da Marinha mercante francesa na década
de 1860. O romancista Mario Vargas Llosa, escreveu Paraíso na outra esquina, ba-
seado nas vidas do pintor e sua avó, a revolucionária Flora Tristan. No romance, é
narrada a viagem de Havre ao Rio de Janeiro, itinerário que o jovem Gauguin fez na

53 teixeira, Abílio. A aids ameaça o Exército. Veja, 1º de novembro de 1995, seção “Opinião”, p. 126.
54 Citado em: trevisan, José Silvério. Devassos no paraíso, p. 259.
207

vida real, em 1865. Haveria um ritual, ao qual todo marujo novato deveria submeter-
-se: uma relação homossexual passiva. Apesar de alguns veteranos, “carregados de
álcool”, jactarem-se de “haver passado por esse ritual de marinheiros”, o pintor
francês mostrou “a esses lobos-do-mar sublevados pela falta de mulher que quem
quisesse enrabar Eugène-Henri Paul Gauguin tinha de estar disposto a matar ou
morrer”. Já um companheiro aspirante:

(...) foi violado na casa de máquinas por três foguistas, que, depois, ajudaram-no
a secar as lágrimas garantindo-lhe que não devia se envergonhar, era uma prática
universal do mundo marinheiro, um batismo do qual ninguém se livrava, que por
isso mesmo, não ofendia, na verdade criava uma irmandade entre a população.55

Se esse ritual de passagem era uma prática universal do mundo marinheiro ou do


mundo ficcional, importa. Tradicionalmente, os temas homossexuais são transfor-
mados em mitos, lendas e piadas. Aqueles que violaram o companheiro de Gauguin,
foram os mesmos que o consolaram, fato que significava a superação de mais um
obstáculo da maioridade maruja, aproximando-o da “irmandade da tripulação”.
Essas histórias não aparecem apenas nos romances e nas anedotas. Em artigo
sobre as toalhas que o marinheiro João Cândido56 bordou enquanto esteve na ca-
deia, José Murilo de Carvalho atribui uma possível homossexualidade ao marinheiro
rebelde a partir de evidências e tipologias não convincentes. Em uma das toalhas,
Cândido bordou um coração sangrando. Carvalho pergunta: por quem sangrava
seu coração? O autor descreve Cândido como marinheiro “conegaço”, seguindo a
definição de Gilberto Freyre: “o conegaço era um protetor, um tutor, um pai, além
de amante, do jovem grumete”.57 Em Ordem e Progresso, Freyre interpreta a revolta
dos marinheiros de 1910 “como um triunfo alcançado pelos revoltosos por meio do
prestígio dos ‘cônegos’ entre seus noviços; e contra uma aristocracia de oficiais su-
periores desde o Império demasiadamente afastada da tropa”.58 Freyre entendia que
os cônegos, “protetores já veteranos e experimentados na vida militar e marítima,
se esmeravam em fazer de marinheiros ainda quase meninos, verdadeiros marujos

55 llosa, Mario Vargas. O paraíso na outra esquina, p. 80.


56 Um dos líderes da revolta dos marinheiros de 1910.
57 carvalho, José M.. Os bordados de João Cândido, p. 79.
58 freyre, Gilberto. Ordem e progresso, p. cxxvii.
208

no garbo, no aspecto, e no comportamento militar, exigindo, porém, dos iniciandos


que fossem particularmente carinhosos com eles, mestres”.59
Amaro, o “bom-crioulo” do romance de Adolfo Caminha, era, sim, um conegaço.
O seu protegido e depois amante, o grumete Aleixo, de 15 anos, havia acabado de in-
gressar na Marinha. No primeiro encontro dos dois, Bom-crioulo lhe disse: “Quando
alguém o provocar, lhe fizer qualquer coisa, estou aqui, eu, para o defender, ouviu?”60
Nas palavras de Carvalho, “o típico amor de marinheiro, segundo se pode deduzir
de Bom-crioulo e de depoimentos da época, era o de um conegaço ou de um oficial
por um jovem grumete, em geral ‘um menino bonito’”.61 Ele deduz que João Cân-
dido poderia “facilmente enquadrar-se no modelo do Bom-crioulo”, além de que o
jovem amante de João Cândido poderia ser um “marinheiro jovem e bem apessoado”

Antonio Ferreira de Andrade, “secretário de João Candido” ao lado


de João Cândido. Este último lhe denominou, em uma lista do grupo
publicada na Gazeta de Notícias, como “secretário da oficialidade dos
revoltosos”. Revista Careta, n. 131, 03 de dezembro de 1910.

59 Idem, p. cxxvi.
60 caminha, Adolfo. Bom-crioulo, p. 27.
61 carvalho, José M. Os bordados de João Candido. p. 79.
209

anônimo, visto em fotos de jornais e revistas da época sempre ao lado de Cândido,


apresentado como seu imediato ou assistente. Para compor melhor o contraste em
relação ao “jovem bem apessoado”, Carvalho descreve Cândido como “um crioulão,
alto, forte e feio, boca enorme, maças salientes com 30 anos de idade”.62
Esse marinheiro jovem e bem apessoado foi identificado por Marco Morel como
Antonio Ferreira de Andrade, secretário da “oficialidade dos revoltosos”, listado por
João Cândido em suas memórias publicadas na Gazeta de Notícias, entre 1912 e 1913.63
Mesmo se não houvesse tal informação, o fato de supor que o imediato, assistente e
sempre ao lado de Cândido, era seu amante, o “seu Aleixo”, não é uma evidência em
si. Apesar de jovenzinho, ele fazia parte do alto comando da revolta, provavelmente
por saber ler e escrever.
Certamente deveria haver esse tipo de relacionamento entre os oficiais inferio-
res ou entre marujos experientes e os noviços. O problema na análise de Freyre e
Carvalho é a maneira como as relações pessoais tornam-se uma chave de interpre-
tação da revolta sem, no entanto, apresentar evidências, mas apoiando-se em um
tipo social, o que reforça os estigmas.
O tabu silencia, alude, supõe, nunca afirma, alguém disse, alguém viu. Torna-
-se tema de romance. Não importa o quanto é mito ou realidade: a relação entre o
sexo e os marítimos ou militares esteve e está atrelada no imaginário criado sobre
esses homens. Já há muito tempo, quartéis e navios seriam lugares de práticas ho-
mossexuais que atraiam públicos civis. Na Marinha, finalmente, essa prática não
significava ter nascido com uma orientação homossexual, por meio dela se poderia
atender um desejo circunstancial, viver um rito de passagem ou, simplesmente, levar
a fama sem praticá-la. Assim como há mitos, em torno dos marítimos, há segredos
internos difíceis de acessar.
A punição ao intercurso sexual entre dois homens não era prevista nos códigos
penais militares do século xviii e xix. Apenas estupro a indivíduo de qualquer sexo.
Mas existiam punições disciplinares e, eventualmente, processos quando havia al-
gum flagrante.64 Segundo Peter Beattie, a primeira aparição de palavras relacionadas
à homossexualidade nos códigos criminais militares foi no já mencionado de 1969.

62 Idem, p. 70.
63 morel, Marco. João Candido, a luta pelos direitos humanos, p. 58 e 61.
64 beattie, Peter M. Ser homem pobre, livre e honrado, p. 282-3.
210

Se palavras relacionadas à homossexualidade não eram presentes na legislação,


relatos médicos enfatizavam esta prática nos ambientes militares. Em 1872, o médi-
co Francisco Ferraz de Macedo, em uma tese sobre a prostituição, atribuía à sodomia
nas Forças Armadas, às contingências da vida militar. “Na classe militar, ou seja, por
falta de tempo ou por falta de meios, a sodomia tem tomado tal desenvolvimento
que raros são aqueles que não façam uso”.65 Vinte anos antes, o segundo cirurgião
da Armada, Emidgio José Barbosa foi mais contundente. Ele entendia que devido
aos maus hábitos dos próprios oficiais a instituição não estava cumprindo seu pa-
pel civilizador para com a marujada. Em um longo relatório sobre a viagem que fez
na corveta Imperial Marinheiro, em 1852, o cirurgião afirmou que “cada navio de
guerra brasileiro é uma sodoma (...) Cada Imperial Marinheiro, um Nicomedes, um
Sardanapalo”. Atribuiu às práticas homossexuais na Marinha como sua causa mais
imediata, a fisiológica: “facilidade de gozo que causa muito depressa saciedade; esta
chama em seu socorro a novidade e variedade.” No entanto, a sua constatação de
que essa prática não seria apenas fruto da imoralidade dos pobres, mas também dos
oficiais, torna seu ponto de vista original. Barbosa denuncia que os oficiais fazem os
marinheiros “de sua mulher e vice-versa”, desconstruindo a ideia de ativo e passivo e,
apesar de “ter vergonha de contar”, acusa seus colegas cirurgiões “dentre os oficiais
os prosélitos mais fervorosos desta seita”.66 Os marinheiros seriam vítimas de maus
oficiais: “A eles nada se ensina; a eles se degrada, se avilta; a eles se irracionaliza”.67
O relatório de Barbosa comprometia seus colegas oficiais, provavelmente, porque
não fora escrito para publicação. Em Bom crioulo, os tripulantes do navio de Amaro,
o personagem principal, “diziam coisas” sobre o comandante. Por exemplo, que
“era cheio de indiferença pelo sexo feminino, e cujo ideal genésico ele ia rebuscar
na própria adolescência masculina, entre os de sua classe”.68 Este mesmo coman-
dante, antes de um castigo cruel que transformou Bom Crioulo em uma “grande
chaga aberta viva e cruenta”, bradou diante de todos: “Desobediência, embriaguez
e pederastia são crimes de primeira ordem! Não se iludam”!69

65 Citado em beattie, Peter M. Tributo de Sangue, p. 34.


66 Relatorio do Dr. Emygdio José Barbosa, segundo cirurgião do corpo de saúde da Armada Nacional Imperial,
embarcado na corveta Imperial Marinheiro para o Dr. Joaquim Candido Soares de Meireles, cirurgião-chefe
do corpo da Armada. an, Série Marinha, xm 723, Corpos de saúde.
67 Idem.
68 caminha, Adolfo. Bom crioulo, p. 68.
69 Idem, p. 45.
211

4.6  Dândis do mar: homens tatuados de camisa riscada e


roupas bordadas

Detalhe da gravura The saylor’s return. Inglaterra, 1847. A mão direita do marujo tem uma âncora e uma estrela,
também descrita no século xix como signo de Salomão. Na gola, mais uma estrela bordada. Litografia colorida:
Currier & Ives. Washington, eua, Library of Congress.

A cultura da tatuagem também atravessou fronteiras de diferentes nações. Encontrei


dois grupos de registros de tatuagens: no Livro de socorros da fragata Imperatriz
de 1835, e em uma lista de marujos de 1850, majoritariamente norte-americanos,
engajados em Liverpool, para a Armada do Império do Brasil.
Há 55 descrições de tatuagens dos marujos da fragata Imperatriz: 24 eram estran-
geiros, e 31 nacionais. As tatuagens constituíram uma cultura marítima internacional
que já incluía angolanos, londrinos, norte-americanos, baianos, pernambucanos,
cariocas, catarinenses, uruguaios, brancos, caboclos, pardos, entre outros. A maior
parte tatuou iniciais (as suas próprias ou as de outrem), corações, crucifixos, ânco-
ras, estrelas ou signos de Salomão; anos (1821, 1830 etc.) e embarcações. Além de
212

“figuras” e “imagens”, cujos conteúdos não são descritos, mas que provavelmente
tratava-se de mulheres e familiares.70
As tatuagens de 1850 são basicamente de norte-americanos e repetem os mo-
tivos do conjunto anterior, com grande incidência de iniciais, âncoras e crucifixos.
Mas há uma novidade: das 71 tatuagens, 11 são de símbolos nacionais norte-ameri-
canos: brasões de armas, a águia, a bandeira da liberdade.71 Esse patriotismo norte-
-americano é declarado textualmente nos diários dos marujos, assim como nos
discursos de memória dos marujos yankees. Jacob Hazen, um rebelde declarado,
tornou-se patriota depois de servir à Marinha de seu país, não à toa termina suas
memórias marítimas glorificando-a:

Eu prefiro os navios do tio Sam, entre todos aqueles que navegam no oceano, pois
há uma alegria que perpassa os navios de guerra que supera no coração do marí-
timos os dólares e centavos. Há um orgulho no peito do Americano que arde com
nacionalidade e este sentimento é maior no marinheiro. Ele ama seu país e sua
bandeira. e se, as vezes, ele encontra um tratamento duro no serviço, ele se consola
com a reflexão que também já experimentou o que há de bom.72

Uma parte dos marinheiros norte-americanos ama seu país e sua bandeira. As ta-
tuagens patrióticas são literalmente uma marca indelével desse amor. No entanto,
mesmo tatuando os símbolos do seu país (e não do local de nascimento), devido às
intempéries do mar, esses homens engajaram-se na Armada do Império do Brasil
em Liverpool! Patriotas atlânticos...

70 an, Série Marinha, xvii M 2500 e 2501, Livros de socorros da fragata Imperatriz, 1832-1835, .
71 an, Série Marinha, im 16, Engajamento de marinheiros ingleses.
72 hazen, Jacob, Five years before the mast, p. 443-444. Tradução minha.
213

Detalhes da lista de marinheiros engajados em Liverpool pelo cônsul brasileiro, com o lugar
de nascimento, idade e tatuagens. Em 1850, originários de Nova York, Copenhague e Holanda
entre outras localidades, se engajaram em Liverpool para servir na Armada Imperial e Nacional
do Brasil. an, Série Marinha, im 16.

A tatuagem, ao que parece, foi um hábito cultivado pelos marujos europeus que
frequentaram o oceano Pacífico no século xviii ou mesmo antes. No século xix já
estava plenamente difundida no Atlântico entre a galera heterogênea. O repertório
de tatuagens era mais ou menos limitado e costumava ter significados relacionados
à vida no mar, ou à saudade da vida na terra. A cruz poderia salvar de um afogamento,
as embarcações representavam uma identificação com a profissão e os corações a
lembrança dos entes amados etc. A âncora significava a travessia do oceano Atlântico,
entre tantas outras atribuições que poderiam variar no tempo e no espaço.
A tatuagem era, enfim, mais uma atitude radical dos marinheiros. Sujeitos estig-
matizados e marginalizados pelas atribuições generalizadas de origem entre a gente
de baixo calão, de certa maneira essa cultura coroava sua identidade marginal. Se,
por um lado, ajudava a restringir o seu acesso ao mundo terrestre, por outro legiti-
mava sua entrada no universo marítimo. É importante ressaltar que a classe média
e alta da sociedade ocidental se rendeu à tatuagem apenas nas últimas décadas do
século xx, moda que os marujos lançaram e aderiram já no final do século xviii, e
214

outros grupos marginalizados, como presidiários, prostitutas, trabalhadores urba-


nos e artistas populares abraçaram ainda no xix.
Outra distinção estética adotada por uma parte dos marinheiros era o uso de
argolas na orelha. No entanto, nos livros de socorros que consultei, eles não foram
mencionados. Luiz Geraldo Silva encontrou pelo menos duas descrições de escravos
marinheiros fugidos em 1836 e 1846 que tinham orelhas furadas, um deles com argo-
las, “à moda dos flibusteiros do Caribe”.73 Essa certamente foi uma moda marítima
atlântica, adotada por africanos, flibusteiros, piratas ou marinheiros comuns. Há
nas pranchas de Debret escravos com argolas.

Em Liverpool, um marinheiro negro com argola na orelha.


National Maritime Museum.

Nos Estados Unidos um marinheiro branco também usa


argolas. Daguerreótipo, coleção particular.

73 A faina, a festa e o rito: Gentes do mar e escravidão no Brasil (sécs xvii ao xix). São Paulo, 1996. Tese de
doutorado - fflch, Departamento de História, usp, p. 232.
215

O modo de andar marujo também era reconhecido nas cidades: um autor inglês
escreveu já no século xviii: “marinheiros balançam o corpo como um pêndulo e acre-
ditam que esta é posição mais equilibrada. Eles estão certos que andam firmemente
enquanto as outras criaturas tombam”.74 Os autores do fado “O marujo português”,
do século xx, descreveram o andar do marujo: “quando se jinga, faz tal jeito tem tal
proa, para que não se distinga se é corpo humano ou canoa”.75
Até o início do século xix os marujos, pelo menos na iconografia inglesa, eram
retratados como homens decadentes. Em meados desse século eles passam a figurar
como homens bonitos, bem vestidos, eu diria até como heróis. O interesse dos não
marítimos pela cultura dos marujos contribuiu para essa mudança. Seja pela apre-
ciação, pela roupa, pelas canções, pelos relatos publicados, um interesse cultural
menos discriminador, ou um fascínio, são aspectos que se juntam aos estigmas que
ainda os acompanham até hoje.
Versos de canções populares do século xx, como o fado “O marujo português” e
a canção brasileira “Marinheiro só”, trazem versos enaltecendo a graça do marujo.
Na primeira, ao chegar a Lisboa ele “põe com malícia a sua boina maruja” de onde cai
“uma madeixa de cabelo descomposta”.76 Em “Marinheiro só”, “ele vem faceiro, todo
de branco, com seu bonezinho”. Em meados do século xix, o marítimo e jornalista
Charles Nordhoff fez uma descrição estética da roupa do marinheiro valendo-se
da sua experiência e de seu talento narrativo:

Azul é a roupa de trabalho do marinheiro, branca é a roupa dos dias de folga. (...)
O verdadeiro marinheiro de guerra é muito particular nas suas vestimentas. Não
há alguém mais dandy que ele. Não há janota da Broadway que preste mais aten-
ção ao corte de seus indescritíveis ornamentos, o caimento de seu colarinho, no
nó de seu lenço, ou no lustre imaculado de seus sapatos (...) por muitas horas ele
faz pose diante de seu espelhinho redondo de bolso (...) para alcançar tal visual
original. (...) Olhe para seu colarinho azul disposto com graça sobre seus ombros
largos, em torno de seu pescoço bem torneado, seu chapéu inclinado com estilo
sobre a sobrancelha esquerda, uma mão colocada displicentemente no quadril e
ninguém precisará te dizer que você está diante de um marujo.77

74 Citado em rediker, Marcus. The devil and the deep blue sea, p. 11.
75 O marujo português, fado de Linhares Barbosa e Arthur Ribeiro.
76 Idem.
77 nordhoff, Charles, Nine years as a sailor, p. 130.
216

Franz Xaver Winterhalter. Albert Edward, 1846. O


filho da Rainha Vitória e futuro Rei Eduardo vii. Óleo
sobre tela. Londres, The Royal Collection, St. James
Palace, Londres, Reino Unido.

Essa imagem estetizada e criada pelos próprios marinheiros passou a ser admirada
pelo imaginário dos não marítimos, inclusive, copiada. A graça que demonstravam
não era adorada apenas pelos frequentadores e frequentadoras das regiões portuá-
rias. As elites não deixaram esse movimento estético passar despercebido e, em 1846,
Albert Edward, filho da Rainha Vitória, foi retratado com roupas de marinheiro e,
provavelmente por isso, se tornou um ícone da moda quando se trata de vestir as
crianças para serem fotografadas.78 A roupa de marinheiro é uma fantasia frequente
nos carnavais há muitas décadas, no entanto, fora do carnaval, uma moda urbana
baseada em roupas de marinheiros, conhecida como navy, se espalhou pelo século
xx: as modelagens de calça, blusa e casacos são reproduzidas até hoje pelas confec-
ções do mundo todo. Em butiques da Europa, Estados Unidos e Brasil as chamadas
calças e blusas de marinheiros, são peças sempre lançadas e relançadas nas coleções,
cuja modelagem é muito semelhante a dos marujos do século xix.
Durante a cabanagem o comandante da frota da Armada, John Taylor, estava pre-
ocupado com a falta de pagamento de soldos, pois os marujos não tinham dinheiro

78 Ver a este respeito, land, Isaac. Sinful propensities piracy, sodomy and Empire in the rethoric of
Naval Reform, 1770-1870. In: rao, Anupama; pierce, Steven (Eds), Discipline and the Other Body: Hu-
manitarianism, Violence, and the Colonial Exception.
217

para comprar “roupas e sapatos”.79 Ora, é claro que roupas e sapatos, nesse caso, pode
se tratar de uma expressão simbólica para objetos de uso pessoal. Em geral, mesmo
tendo família, não havia muitos meios de enviar dinheiro ou poupar para compartilhar
com ela. Assim, a maior parte dos gastos dos marujos pode, de fato, ter sido destina-
da ao consumo próprio, como bebida, tabaco, roupas, sapatos, livros, mulheres etc.
Muitos marinheiros costuraram e bordaram suas roupas e acessórios. Uma de
suas habilidades, previstas ou adquiridas, deveria ser a costura, devido às velas e à
própria necessidade de cuidar de suas roupas. Na fragata Imperatriz há registros de
recebimentos de fardos de tecidos em vez de roupas.80
Os dois marinheiros brasileiros mais conhecidos do século xx, João Cândido e
Arthur Bispo do Rosário, tiveram seus bordados guardados em museus. Eles con-
tinuaram uma arte marítima frequente desde o século xix. Nos Estados Unidos há
bordados de marinheiros conservados em museus, como as roupas e a bolsa do ma-
rujo norte-americano Waren Opie, da década de 1840, reproduzidas abaixo.
Documentos manuscritos, iconográficos e objetos da arte maruja mostram que os
motivos bordados pelo marujo faziam parte do mesmo repertório de imagens repro-
duzidas em desenhos e tatuagens. Se as peles tatuadas dos marinheiros oitocentistas
há muito se desintegraram, há indícios dessa arte nos desenhos em dentes de baleia
e em reproduções de tatuagens do início do século xx, que coincidem com as des-
crições textuais das tatuagens do século xix. O jornalista Ernesto Senna reproduziu
em seu relato Através do Cárcere, de 1904, diversas tatuagens da Casa de Detenção do
Rio de Janeiro.81 Há duas delas com os mesmos símbolos dos bordados de Cândido:
coração sangrando e duas mãos se cumprimentando (na qual se lê “amizade”), além
de flores e pássaros. Na fragata Imperatriz também havia diversos corações flechados.
Os marinheiros europeus e norte-americanos, ao longo do século xix, já tatuavam
e bordavam símbolos nacionalistas e relacionados à Marinha. Em sua roupa e bolsa,
Waren Opie bordou a águia e a bandeira norte-americana. Em outra bolsa do marujo
norte-americano J. A. Fort, além da bandeira norte-americana, ele bordou a fragata
em que era tripulante na época, a Congress,82 que fez parte da Estação norte-ameri-
cana “Brasil” por alguns anos durante a década de 1850.

79 an, Série Marinha, xm 364, Força Naval do Pará.


80 an, Série Marinha, xvii M 2500 e 2501, Livros de socorros da fragata Imperatriz.
81 senna, Ernesto. Através do cárcere, páginas sem numeração.
82 Esta bolsa está no Naval Historical Center, Washington DC.
218

Roupa e bolsa do marinheiro norte-americano


Warren Opie. Ele bordou os nomes de sua mãe, seu
pai, sua cidade natal, além de símbolos marítimos
e patrióticos. O navio em que viajou para o Japão,
aportou no Rio de Janeiro em 1851. Os bordados
são da década de 1840.* Winterhur Museum,
Wilmington, eua.

* langley, Harold D. From the Collection: Warren Opie’s Sailor’s Uniform at Winterthur. Winterthur Portfolio
Vol. 38, N°. 2/3 (Summer/Autumn 2003).
219

Estandarte e jaqueta do ex-marinheiro e interno da colônia Juliano Moreira Arthur Bispo do Rosário, meados do
século xx. Museu Arthur Bispo do Rosário, Rio de Janeiro.

Toalhas bordadas por João Candido enquanto esteve


preso, em 1911. Museu Municipal Thomé Portes d’El-Rey,
São João del Rey, mg.
220

A bandeira norte-americana também foi uma tatuagem usual já em meados do


século xix, como vimos acima. O fenômeno do nacionalismo militar nas baixas ca-
madas de nossa Marinha precisaria esperar por algumas décadas, quando suas tri-
pulações, além de estabelecidas profissionalmente, também estariam estabelecidas
enquanto tripulação nacional.
Assim, quando João Cândido alia a palavra “Ordem” a “Liberdade’ em um de seus
bordados, ele faz parte de uma tradição de marinheiros militarizados com traços
patriotas, rebeldes ou não. Nos Estados Unidos, os estudos sobre o tema denomi-
nam o fenômeno de patriotismo popular. A rebeldia não se opõe ao patriotismo. O
marinheiro mesmo resistindo à opressão incorporaria os símbolos da pátria, como
fez João Candido. Vivendo sob condições precárias nos navios aos quais serviu, ele
se tornou um dos líderes da revolta que, além de liberdade, não prescindiam da or-
dem e, especialmente, no caso dele, de um aparente amor à profissão e à instituição.
Em 1910 as guarnições dos navios da Marinha do Brasil eram mais homogêneas,
e praticamente nacionalizadas. Classe, patriotismo, profissionalismo eram uma
realidade, diferente do período estudado. Este estudo procurou demonstrar justa-
mente que nas primeiras décadas, a formação das guarnições da Armada Nacional e
Imperial do Brasil aconteceu num contexto atlântico no fim da era dos veleiros, no
início da era de nacionalização das tripulações do mundo atlântico como um todo, e
que a cultura destes homens, como não poderia deixar de ser, era ao mesmo tempo:
heterogênea e comum; nacional e internacional; regional e cosmopolita.
221

5 Considerações finais

A vida dos marinheiros comuns realmente é árdua. A noite não os dispensa de seus
afazeres e com mau tempo todos devem estar alertas. Quando são dispensados da
vigia, retiram-se para escuros e imundos “castelos de proa”, cuja atmosfera poderia
produzir asfixia em pessoas de nervos fracos, secam e trocam de roupa, quando
tem roupa para trocar, e dormem como podem. Sem conhecer o prazer das rela-
ções sociais, sem lazeres nem gosto para realizarem progressos espirituais, sem
o estímulo da ambição, esfalfando-se em seu trabalho como bois e cavalos, não
podem senão tornar-se mais ou menos animalizados (refiro-me à maioria, pois
existem nobres exceções). O mar é destinado a servir de teatro à atividade humana
e a profissão de marinheiro é tão honrosa atualmente, tão indispensável quanto
a do lavrador. Constituindo ambas essas classes elos essenciais e importantes na
cadeia da civilização, não pode estar distante o dia em que se elevarão permanen-
temente em sua estima própria e na do mundo.1
thomas ewbank, 1846.

Arguto observador, testemunho da vida dos marítimos nos navios e no Rio de Janeiro
da década de 1840, Thomas Ewbank valorizou o árduo trabalho dos marinheiros.
Porém, essa condição os animalizava, os impedia de realizar progressos espiritu-
ais. Mesmo não enxergando espiritualidade nos corpos brutos dos marujos com
os quais conviveu, Ewbank foi um daqueles pensadores que ajudaram a criar uma
visão mais humanista dos trabalhadores braçais, reconhecendo sua importância e
seus sacrifícios nos complexos mecanismos da chamada civilização.
O marinheiro Jacob Hazen encerrou suas memórias contrariando as conclusões
de seu contemporâneo Thomas Ewbank a respeito dos progressos espirituais dos
marujos. Hazen se dirigiu ao leitor para definir o estado de espírito desses homens,
após os cinco anos em que navegou junto à diversas marinhas:

1 ewbank, Thomas. Vida no Brasil, p. 31.


222

Vocês me viram sujeito à crueldade, à privação e às decepções – banido do convívio


social – frequentemente sem amigos – sempre pobre, mas jamais desanimado.2

Em 1939, o pensador alemão Walter Benjamin, em fuga da França ocupada pelo na-
zismo, escreveu Sobre o conceito de história. O autor chama a atenção justamente para
as “coisas finas e espirituais” da luta de classes:

A luta de classes (...) é uma luta pelas coisas brutas e materiais, sem as quais não
há coisas finas e espirituais. Apesar disso, estas últimas estão presentes na luta de
classes de outra maneira que a da representação de uma presa que toca ao vencedor.
Elas estão vivas nessa luta como confiança, como coragem, como humor, como
astúcia, como tenacidade, e elas retroagem ao fundo longínquo do tempo.3

Na década de 1960, Edward Thompson retomou a mesma ideia, por meio de Bertold
Brecht, amigo e contemporâneo de Benjamin:

(...) precisaríamos de mais estudos sobre as atitudes sociais de criminosos, solda-


dos e marinheiros, e sobre a vida da taverna (...) com olhos para os valores brechtia-
nos - o fatalismo, a ironia em face das homilias do establishment, a tenacidade da
autopreservação; (...), pois dessa forma os “sem linguagem articulada” conserva-
ram certos valores - espontaneidade, capacidade para a diversão, e lealdade mútua
- apesar das pressões inibidoras.4

Privilegiei as qualidades enunciadas pelos amigos alemães na década de 1930, e re-


tomadas pelo inglês Edward Thompson. Desse modo, o objetivo deste estudo não
foi lançar um olhar redentor a esse grupo de homens, marginalizados, estigmatiza-
dos e, talvez, por isso, admirados. Mas, sim, compreender como o cotidiano duro e
violento das vidas marujas converteu-se em cultura, em memória, em experiência.
Atenta ao presente e ao passado, se não aprofundei os temas relacionados aos
aspectos brutos e materiais, este texto não deixa de ser um memorial daqueles que
morreram nos transportes de recrutas até a Corte, nos combates ou por doenças

2 hazen, Jacob, Five years before the mast, p. 442. Tradução minha.
3 benjamin, Walter. Sobre o conceito de história, trad. de Jeanne-Marie Gagnebin, mimeo.
4 thompson, E.P. A formação da classe operária inglesa, V. 1, p. 61.
223

adquiridas nos porões dos navios. Daqueles que tiveram seu sistema digestivo ar-
ruinado pela má alimentação, os que se tornaram alcoólatras, que perderam seus
braços em salvas para comemorar as datas natalícias dos monarcas; que tiveram
suas costas arrebentadas pelas chibatas, que enlouqueceram. Daqueles que foram
separados de seus familiares em tenra idade ou deixaram mulher e filhos para nunca
mais os vê-los. Essa opção é deliberada em detrimento de seus atributos espirituais,
os quais sobreviveram ou pereceram na dureza de suas vidas.
Estudá-los por grupos evidenciou que a experiência comum e as diferenças gera-
ram tanto “lealdade mútua” quanto intolerâncias e individualismos nos naufrágios
simbólicos de suas trajetórias.
É necessário estar atento a essas narrativas marítimas. Das poucas vezes que
conversei com marinheiros vivos, ouvi histórias que merecem ser compartilhadas.
Tão importante quanto ouvi-los no passado é ouvi-los no presente.
Encontrei o primeiro deles no pronto-socorro do Hospital dos Servidores do
Rio de Janeiro, em 2009. O homem parecia estar morrendo, deitado em uma maca,
preso a uma bolsa de colostomia, chamando pelas enfermeiras, por alguém. Ele ti-
nha uma perna mecânica “tatuada” com desenhos geométricos e uma tatuagem na
mão de um pôr do sol junto da frase “amor a Cuba”. Perguntei-lhe sobre sua tatu-
agem. Imediatamente o estado de desespero foi suspenso, e falou sorrindo sobre
a ilha onde passou dois meses, enquanto seu navio era consertado. Dançou salsa,
conheceu Fidel Castro.
O segundo, quando serviu como marujo, na década de 1980, depois de frequentar
a Escola de Aprendizes de Marinheiro, passou seis meses em Marselha, França, onde
alugou um carro com um colega e viajou até a Sardenha e outros lugares da Europa.
O terceiro tem lembranças traumáticas do tempo que serviu: final da década de
1970, durante a ditadura militar. Ele se calou quanto às experiências e histórias edifi-
cantes. Não tinha boas lembranças, nem de cubanas nem de francesas. Falava das di-
versas vezes que fora preso por insubordinação e faltas leves, do álcool com groselha
que se bebia em alto mar para aplacar o frio, da violência dos quartéis. Ainda assim,
guardou algum humor em relação a essa fase da vida, por meio de diversas piadas e
anedotas. E seu final foi feliz: conseguiu ser expulso, recebeu apoio da mãe, concluiu
o curso universitário e tornou-se professor. Vale a pena reproduzir seu depoimento:

Mais que o salário, a estabilidade no emprego, o respeito da polícia e a sensação


de poder atraiam a maioria dos jovens pobres, à época da ditadura, para a carreira
224

militar. Até mesmo familiares e os professores nos recomendavam as forças arma-


das para mudarmos de classe social.
Minha intenção era entrar como soldado na Marinha, concluir uma faculdade qual-
quer que desse para me tornar um oficial do quadro auxiliar. Já que para ser oficial
de carreira era muito difícil, pois a prova para as escolas militares eram muito con-
corridas precisando assim de curso preparatório de custo elevado.
No mesmo ano que prestei concurso para o corpo de fuzileiros navais, passei no
vestibular, porém não tive autorização para cursar a faculdade por causa do horá-
rio de serviço. O sonho de ser oficial tinha ido por água abaixo. O máximo que se
poderia chegar era ao posto de suboficial.
Minha mãe, vendo a minha vontade de estudar, foi ao comandante pedir minha
dispensa da Marinha porque eu não conseguia me adaptar, ainda mais sabendo
que não poderia estudar de dia na faculdade de letras da ufrj. Não queria estudar
à noite numa fraca faculdade particular. O comandante disse à minha mãe que só o
ministro poderia me dispensar. Ela pediu audiência ao ministro e nunca foi atendida.
Eu fiquei tão revoltado, que fiz de tudo para pegar trinta dias de cadeia e
ser expulso.5

As narrativas dos marinheiros, dos recrutas e de seus familiares são centrais para a
presente tese. Retomo, uma vez mais, Walter Benjamin, que valorizou os marinhei-
ros e lavradores como “elos da civilização” – para utilizar a expressão de Thomas
Ewbank – não somente devido a seu trabalho árduo, mas por considerá-los “repre-
sentantes arcaicos” dos narradores:

A experiência que anda de boca em boca é a fonte onde beberam todos os narra-
dores. (...). Quando alguém faz uma viagem, então tem alguma coisa para contar,
diz a voz do povo e imagina o narrador como alguém que vem de longe. Mas não
é com menos prazer que se ouve aquele que, vivendo honestamente do seu tra-
balho, ficou em casa e conhece as histórias e tradições de sua terra. Se se quer
presentificar estes dois grupos nos seus representantes arcaicos, então um está
encarnado no lavrador sedentário e o outro no marinheiro mercante. De fato e
os círculos vitais de ambos de certo modo produziram sua própria linhagem de

5 Depoimento impresso entregue a autora.


225

narradores. Cada uma delas conserva algumas de suas características ainda em


séculos bem posteriores.6

A heterogeneidade do grupo contaminou a própria tessitura da escrita. O tempo


contínuo foi definido, mas os estilhaços de outros tempos também a conduziram.
Em cada um dos grupos principais da galera heterogênea privilegiei uma forma
de narrativa. Entre os anglófonos, as memórias e relatos; entre os portugueses, a
tradição poética marítima nas poesias, folguedos e outras peças artísticas. Entre os
nacionais, as narrativas de recrutas, marinheiros e seus familiares por meio de seus
procuradores e da reconstituição de suas trajetórias, considerando a documenta-
ção que enviavam às autoridades. Interpretei o significado de suas falas como um
novo narrador que as juntou e as reconfigurou. De certa maneira, segui a propo-
sição benjaminiana defendida por Jeanne Marie Gagnebin de uma ampliação do
conceito de testemunha:

(...) testemunha não seria somente aquele que viu com seus próprios olhos, o his-
tor de Heródoto, a testemunha direta. Testemunha também seria aquele que não
vai embora, que consegue ouvir a narração insuportável do outro e que aceita que
suas palavras levem adiante, como num revezamento, a história do outro: não por
culpabilidade ou por compaixão, mas porque somente a transmissão simbólica,
assumida apesar e por causa do sofrimento indizível, somente essa retomada refle-
xiva do passado pode nos ajudar a não repeti-lo infinitamente, mas a ousar esboçar
uma outra história, a inventar o presente”.7

Do ponto de vista institucional, procurei contribuir para a história da Marinha do


Brasil, principalmente de sua tripulação, além dos modos de recrutamento e engaja-
mento, partindo tanto da formação do Estado e da Nação quanto das contribuições
internacionais, como técnicas, gentes e culturas. A Armada, assim como outras ins-
tituições do Império, consolidou-se no período estudado em processos turbulentos,
mas em projetos levados a cabo por seus dirigentes, com a participação efetiva da
população nativa e imigrada; naturalizada ou não; coagida ou em fuga. As relações

6 benjamin, Walter O narrador: Observações sobre a obra de Nikolai Leskow. In: Textos escolhidos: Benjamin,
Horkheimer, Adorno, Habermas, p. 60.
7 gagnebin, Jeanne-Marie. Lembrar, escrever, esquecer, 2006, p. 57.
226

de poder entre todos esses personagens, suponho, está subentendida no uso que
fiz da documentação oficial da chamada Série Marinha, depositada no Arquivo Na-
cional do Rio de Janeiro.
Diante dos sofrimentos e fruições desses homens, encerro esta viagem, acredi-
tando que existem infinitas narrativas de múltiplas experiências submersas na for-
mação do mundo atlântico, as quais precisam continuar a ser ouvidas e transmitidas.
227

6. Bibliografia

6.1 FONTES MANUSCRITAS


serviço de documentação da marinha
livro X doc 962.
national archives, londres
Foreign Offices, 13/295
arquivo público do ceará
Correspondência do Governo da Província ao Ministro da Marinha. Ala 2, Estante 25,
cx 142
arquivo público da bahia
Mesa do Consulado, 1854.
Escola de aprendizes-marinheiros, 1857.
arquivo nacional (an)
Série Guerra
IG6 14, Corpos de saúde do Exército. Relatórios Secretaria do Corpo de Saúde do
Exército na Corte.
Série Marinha
Livros de socorros
Livro Primeiro de marinheiros da nau Pedro I, 1822-24: XVII M 3294.
Fragata Imperatriz, 1832-1835: XVII M 2500; XVII M2501.
Corveta Bertioga, 1841-2: XVII M 5203
Fragata Constituição: XVII M 490; XVII M 1334; XVII M 1342; XVII M 1374; XVII M 1399.
Aprendizes marinheiros da Fragata Constituição, 1846: XVII M 134.
Corveta Imperial Marinheiro, 1852-1854. XVIII M 2303; XVIII M 2311; XVIII M2312; XVIII
M 2323; XVIII M 2324; XVIII M 2325
Fragata Campista, 1835: XVII M 1088
Vapor Thetis: XVII M 4612
Corveta Beberibe 1861-62: XVII 747.
Correspondência com presidentes de províncias (maços)
228

Bahia: XM 461, XM 476, XM 477, XM 482; XM 489; XM 499; XM 501; XM 507; XM 509;
XM 513; XM 517; XM 536; XM 544.
Ceará: XM 14.
Cisplatina: XM 296.
Espírito Santo: XM 12; XM 13
Goiás: XM 51
Maranhão: XM 128; XM 129
Mato Grosso: XM 17; XM 19
Minas Gerais: XM 25
Pará: XM 106; XM 107
Paraíba: XM 57; XM 58
Pernambuco: XM 331; XM 332; XM 342; XM 353
Piauí: XM 53
Rio Grande do Sul: XM 145; xm146; XM 147; XM 148
Rio de Janeiro: XM 84; XM 87
São Paulo: XM 617; XM 627
Santa Catarina: XM 134; XM 135; XM 136; XM 137; XM 138; XM 139; XM 140
Sergipe: XM 68; XM 69

Requerimentos – Gabinete do ministro (maços)


xm 1136; xm 1137; xm 1138; xm 1139; xm 1140; xm 1141; xm 1142; xm 1143; xm 1144;
xm 1145; xm 1146; xm 1156; xm 1160; xm 1161; xm 1162; xm 1163; xm 1164; xm 1165;
xm 1166; xm 1167.
Correspondência do Ministério da Marinha
Ministério dos Negócios Estrangeiros, XM 86.
Legação brasileira em Londres, XM 453.
Legações estrangeiras, XM 26.
Legação Imperial do Brasil nos Estados Unidos.
chefe de polícia, XM 5.
Engajamento marinheiros ingleses, IM 16.
Engajamento indígenas, IM 483.
Engajamento marinheiros ingleses, IM 895.
Engajamento de marinheiros irlandeses, IM 550.
Força Naval do Pará, XM 364.
Conselho de Guerra Auditoria da Marinha, XM 251.
229

Ofícios do Quartel General, XM 279.


Corpos de saúde, XM 723.
Ofícios do Comandante do Corpo dos Imperiais Marinheiros 1844-64, XM IIIM 674.
Conselho Naval: ofícios e relatórios, XM 709.

6.2 FONTES IMPRESSAS E DIGITAIS

6.2.1 Artigos de jornal, jornais e revistas


CYPRIANO, Fabio. Bienal de SP vai homenagear Arthur Bispo do Rosário em 2012. Folha
de São Paulo, São Paulo, 19 fev 2011. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/
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TEIXEIRA, Abílio. A AIDS ameaça o Exército. Revista Veja, 1 nov 1995.
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The sailor’s magazine and naval journal. Vol. X. The american seamen’s friend society,New
York, 1838.
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6.2.2 Obras de literatura, viajantes, memorialistas e compilações de canções


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ALVES, Flavio; BARCELLOS, Sérgio. Toque de silêncio, uma história da homossexualidade
na Marinha. São Paulo: Geração Editorial, 2002.
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Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1980.
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moça, na qual lhe relata a saudoza despedida que fizeram hum ao outro quando elle foi
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6.2.3 Relatórios ministeriais e presidenciais, legislação e discursos


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Colecções das Decisões do Governo do Império do Brazil de 1825. Rio de Janeiro: Typographia
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Provincial, no dia 10 de setembro de 1841. Pernambuco, Typ. de Santos & Companhia,
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Relatório apresentado à Assembléia Geral Legislativa (…) pelo Ministro e Secretário d’Estado
dos Negócios da Marinha João Mauricio Wanderley. Rio de Janeiro, Typographia
Nacional, 1856. [Relatório de 1855]
Relatório apresentado à Assembléia Geral Legislativa (…) pelo Ministro e Secretário d’Estado
dos Negócios da Marinha José Antonio Saraiva. Rio de Janeiro, Typographia Nacional,
1858. [Relatório de 1857]
Relatório apresentado à Assembléia Geral Legislativa,(…) pelo Ministro e Secretário de Estado
da repartição dos negócios da Marinha Zacarias de Goes e Vasconcellos. Rio de Janeiro,
Typ. do Diário de A. & L. Navarro, 1853. [Relatório de 1852]
Relatório apresentado à Assembléia Geral Legislativa,(…) pelo Ministro e Secretário de Estado
da repartição dos negócios da Marinha José Maria da Silva Paranhos.Rio de Janeiro,
EmprezaTypographica Nacional do Diario, 1855. [Relatório de 1854]
Relatório da Repartição dos Negócios da Justiça apresentado à Assembléia Geral Legislativa
(…)pelo respectivo Ministro e Secretário de Estado Paulino José Soares de Sousa. Rio de
Janeiro, Typographia Nacional, 1843. [Relatório de 1842]
Relatório da repartição dos negócios da Marinha apresentado a Assembléia Geral Legislativa
de 1835, pelo respectivo Ministro e Secretário de Estado José Pereira Pinto. Rio de Janeiro,
Typographia Nacional, 1835.
Relatório da repartição dos negócios da Marinha apresentado à Assembléia Geral Legislativa,
pelo respectivo Ministro e Secretário de Estado Marquês de Paranaguá. Rio de Janeiro,
Typographia Nacional, 1843. [Relatório de 1842]
234

SILVA, Luís Inácio Lula. Discurso do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva,
durante cerimônia em comemoração do Dia da Consciência Negra Disponível em:
<http://www.info.planalto.gov.br/download/discursos/pr965-2@.doc>. Acesso
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6.2.4 Obras e sites de referência


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Typographia Fluminense, 1922[1813]. Ed. fac-similar.
235

6.3 LIVROS, ARTIGOS E DEMAIS TRABALHOS ACADÊMICOS


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Guerrilha e sociedade alternativa na mata alagoana.Maceió: Edufal, 2008.
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Lusotropicalism, the luso-afro-brazilian space, and Lusophony. Colloquium Antonio
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