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CAMPINAS
2020
GABRIELA BERTHOU DE ALMEIDA
CAMPINAS
2020
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
A conclusão desta tese fecha um ciclo importante da minha vida. Foram anos de
dedicação à pesquisa na área de História, um tempo vivido com intensidade em
Instituições Públicas de Ensino do Brasil. Diante disso, o meu primeiro agradecimento
vai para todos/as os/as profissionais que dedicam a vida para a construção das
Universidades que tão bem me acolheram e tanto me ensinaram, seja como estudante,
pesquisadora e/ou professora: UFOP no tempo da graduação, UNICAMP no mestrado e
doutorado, IFPR/Paranaguá onde comecei minha vida profissional como professora
substituta e UESPI/Oeiras onde, atualmente, sou professora efetiva do curso de
Licenciatura em História.
Sou grata também aos financiamentos de diferentes agências de fomento
recebidos ao longo deste período. No doutorado, agradeço ao CNPq pela bolsa no país
(processo nº 141832/2016-9) e à Cátedra Jaime Cortesão/USP por oportunizar o estágio
de pesquisa no Centro de História da Universidade de Lisboa. Tenho um orgulho imenso
de dizer que foi graças ao financiamento público de pesquisa e educação – ameaçados
com a redução drástica de investimentos e uma verdadeira campanha de desinformação
– que mais uma filha de trabalhadores/as brasileiros/as pôde se formar.
Para além dos suportes financeiros e institucionais, nesses espaços me formei a
partir da construção de laços fortes de amor e amizade. E foi gente que passou pela minha
vida entre idas e vindas de norte a sul do país! Nominalmente, começo agradecendo a
minha orientadora, Iara Lis Schiavinatto. Do mestrado ao doutorado, foram oito anos de
orientação e de uma relação conquistada com solidez. Além de me apoiar e apontar
caminhos diante dos desafios da pesquisa e da vida profissional, foi sensível e teve
paciência na reta final da tese, quando fomos atravessadas pela pandemia de COVID-19
e tivemos que concluir a escrita com uma sobrecarga de trabalho, demandas pessoais e
sem as conversas presenciais que tanto gostamos.
Aproveito o embalo para agradecer os/as professores/as que foram fundamentais
durantes os anos de doutorado. Aos que cursei disciplinas: Silvana Rubino e Omar
Ribeiro da Unicamp, João Frederico Rickli do Programa de Pós-graduação em
Antropologia da UFPR e Agenor Sarraf e Ângela Domingues (na ocasião, professora
visitante do Programa de Pós-graduação em História Social da Amazônia), por me
acolherem em seus cursos quando estive na UFPA. A passagem por Belém foi curta, mas
transformadora. Tomei contato mais direto com a qualificada produção historiográfica
dos Programas de Pós-graduação em História das Universidades do norte do Brasil e pude
estreitar os laços com a professora Ângela Domingues, que supervisionou o meu estágio
de pesquisa nos arquivos e bibliotecas portuguesas, em janeiro de 2019.
Aos professores que compuseram a banca de qualificação, Aldair Rodrigues e
Lucilene Reginaldo, sou grata pelos caminhos indicados e incentivo tão necessário
naquele momento. Agradeço também aos/as que compuseram a banca de defesa: Iris
Kantor (USP), Patrícia Melo Sampaio (UFAM), Aline Vieira Carvalho (Unicamp) e José
Alves (Unicamp), assim como dois interlocutores fundamentais, Aldair Rodrigues
(Unicamp) e Lorelai Kury (FIOCRUZ), que aceitaram estar na banca, mas não puderam
por motivos de saúde.
Sou, igualmente, grata aos/as professores/as que me receberam em conversas ou
responderam e-mails com sugestões de bibliografia e fontes: Ana Paula Wagner
(Unicentro), Eugénia Rodrigues (Centro de História/Universidade de Lisboa), Patrícia
Melo Sampaio (UFAM), Nelson Sanjad (UFPA) e Magnus Pereira (UFPR). Aos dois
últimos, em especial pelas cartas de recomendação da pesquisa em Portugal endereçada
à Cátedra Jaime Cortesão. À professora Patrícia Melo por ter compartilhado, na reta final
do trabalho, um manuscrito que acabou indo parar na abertura da tese.
Meu muito obrigada aos/as funcionários/as dos arquivos e bibliotecas que passei,
especialmente ao André do CEDOPE/UFPR. Ainda no âmbito da produção do trabalho
ora apresentado, devo mencionar a sorte que tenho de contar com uma rede de
mulheres/amigas extremamente competentes: Gislaine Faria por reservar parte do seu
tempo para elaborar com cuidado e entusiasmo os mapas com os trajetos dos viajantes,
Ligia Guido pela transcrição de um documento, Pauline Freire pela revisão textual,
Camila Frade pelo abstract e a minha irmã Renata Berthou por ajudar na formatação final
do texto.
No campo afetivo a lista é ainda maior e será impossível mencionar o nome de
todos/as. Fica uma tentativa de manifestar gratidão a tanta gente bacana que eu tenho o
prazer de conviver. Ao Marco pelo amor, cuidado, incentivo e companheirismo ao longo
de 13 anos! Por ler e comentar quase toda a tese, me acompanhar em arquivos e
bibliotecas, ajudar a traduzir texto do inglês, além de ser melhor companhia de luta,
viagens, carnavais, bares, festas e comilanças! Mesmo com mestrados, doutorados,
trabalhos mils, concursos e os retrocessos políticos dos últimos anos que tanto nos afetam,
nunca abrimos mão de celebrar juntos a vida.
Aos meus pais, Lenita e Renatinho, por serem desde sempre os maiores
incentivadores dos meus estudos. Para mim é tão bom ver que vocês sentem orgulho das
escolhas que fiz. À Rê, minha irmã, por estar sempre presente e por ser tão alegre, festeira
e amiga. É até difícil de expressar o meu amor e admiração por vocês três! Aos meus
sogros, Cleire e Gustavo, e a tia Ciça pelo apoio e pela torcida ao longo de todos estes
anos.
Aos/as amigos/as de Mariana, Minas Gerais: Natiele Oliveira, Tamires Sacardo,
Vanessa Petruz, Carolina Frade, Bárbara Mançanares, Mariana Fessel, Pauline Freire,
Eventon Pimenta (Qblz), Daniel Precioso (Zangado), Walter Lowande (Warte) e Nayhara
Vieira; aos/as do Paraná: Gisa, Ana Assis, Andréia Rinalt, Kelem Rosso, Aline Miranda,
Jordana e Marcos Tonet (Lili); aos/as da Unicamp: Tiago Pires, Raissa Paz, Ligia Guido,
Rafaela Franklin e Natália Lousada. Sou muito grata pela distância não ser obstáculo para
a manutenção da nossa amizade.
Aos/as amigos/as de Oeiras, Piauí pela calorosa recepção e por contribuírem para
que eu e o Marco nos sentíssemos logo em casa: Pedrina, Lucivando, Pedro, Eliete,
Francisco, Rodrigo, Débora e Xico Carbó. Para Pedrina, Débora, Luci, Rodrigo e
Reginaldo faço um agradecimento especial pelo companheirismo profissional: que
alegria trabalhar com pessoas tão humanas e comprometidas! Por fim, agradeço aos/as
estudantes e professores/as do curso de História da Universidade Estadual do Piauí do
Campus Possidônio Queiroz por tanto aprendizado e pela luta cotidiana pela garantia de
um ensino inclusivo e de qualidade. Vida longa à Universidade pública e gratuita!
Os brancos se dizem inteligentes. Não o
somos menos. Nossos pensamentos se
expandem em todas as direções e nossas
palavras são antigas e muitas. Elas vêm
de nossos antepassados. Porém, não
precisamos, como os brancos, de peles
de imagens para impedi-las de fugir da
nossa mente. Não temos de desenhá-las,
como eles fazem com as suas. Nem por
isso elas irão desaparecer, pois ficam
gravadas dentro de nós. Por isso nossa
memória é longa e forte.
8. Desenho de uma igarité, uma ubá e uma jangada e seus acessórios (Memória sobre
a Marinha interior do Estado do Grão-Pará, 1787) ................................................... p. 144
10. Prospecto da Villa de Cametá e da Entrada que fez o Exmo Sr Martinho de Souza e
Albuquerque Governador e Capitão General do Estado (Original de Joaquim José Freire)
.................................................................................................................................. p. 150
12. O regresso dos negros de um naturalista (Jean Baptiste Debret, Litografia de Thierry
Frères) ...................................................................................................................... p. 185
13. Mapa da África com os poderes africanos instituídos e focos de colonização
portuguesa e inglesa (COQUERY-VIDROVITCH, C.; MONIOT, H. Afrique noire de
1800 nos jours. Paris: P.U.F Nouvelle Clio, 1974.) ................................................... p. 217
14. Refeição dos carregadores (Fotografia de José Velloso de Castro, Angola, 1909)
.................................................................................................................................. p. 237
15. Mapa francês (D´Aville) levado por Francisco José de Lacerda e Almeida para a
travessia (PEREIRA, Magnus; RIBAS, André (orgs). Um astrônomo paulista no sertão
africano. Curitiba: Editora UFPR, 2012.)
.................................................................................................................................. p. 242
Lista de abreviatura e siglas
INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 17
4.1. Entre a Ilha de Moçambique e a vila de Tete: saber navegar pela costa e pelo rio
Zambeze ................................................................................................................ 200
4.2. A vila de Tete como um local de encontro: circulação de conhecimentos sobre
os caminhos e os povos ......................................................................................... 211
4.3. A organização da expedição: estratégias para reunir o pessoal e os suprimentos
............................................................................................................................... 227
4.4. A execução do projeto de travessia: carregadores, guias e línguas no sertão
africano...................................................................................................................237
INTRODUÇÃO
1
A designação como “complexo científico e museológico da Ajuda”, que utilizaremos em outras passagens
da tese, foi retirada do trabalho do historiador português João Brigola. BRIGOLA, João. Colecções,
gabinetes e museus em Portugal no séc. XVIII. Museu, viagem e história natural – expedições científicas
ao Brasil e a África. Saarbrücken. Lisboa: Omni Scriptum-Novas Edições Acadêmicas, 2019.
2
O manuscrito que comprova a atuação de José da Silva no Museu Real e Jardim Botânico da Ajuda foi
localizado por Patrícia Melo no Museu Nacional de História Natural e da Ciência de Lisboa. Agradeço
imensamente a professora pela generosidade em compartilhar o documento conosco.
3
MUHNAC - Acervo Histórico - MUL - AH - EPL - UI – 1863. Livro de Registro dos Decretos, Portarias,
Avisos e Outras Regias Determinações que baixam ao Real Jardim Botânico Laboratório Químico, Museu
e Casa do Risco (Paço em 21 de abril de 1798. Marquês Mordomo-Mor - Domingos Vandelli).
18
4
Os locais de nascimento de José da Silva e Cipriano de Souza também foram localizados pela historiadora
Patrícia Melo Sampaio. Arquivo Público do Pará: Códice 368 – Provisões, Patentes e Nomeações (1780-
1795).
19
5
BICALHO, Fernanda; GOUVEA, Maria de Fátima; FRAGOSO, João. O Antigo Regime nos trópicos. A
dinâmica portuguesa (séculos XVI-XVII), Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001. MONTEIRO, Nuno
G. F., CARDIM, Pedro; CUNHA, Mafalda Soares Optima Pars. Elites Ibero-Americanas do Antigo
Regime, Lisboa, ICS, 2005. BICALHO, Maria Fernanda; FERLINI, Vera Lucia (orgs). Modos de
Governar: ideias e práticas políticas no Império Português (séculos XVI a XIX). São Paulo: Alameda,
2005. BICALHO, Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima; FRAGOSO, João (Orgs). O Antigo Regime nos
trópicos. A dinâmica portuguesa (séculos XVIXVII), Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001.
HESPANHA, Manuel. “Antigo regime nos Trópicos? Um debate sobre o modelo político do Império
colonial português.” In: FRAGOSO, João; GOUVÊA, M. F. (orgs.) Na trama das redes: política e negócio
no império português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
6
FRAGOSO, João Luiz Ribeiro; GOUVEA, Maria de Fátima Silva; BICALHO, Maria Fernanda Baptista.
Uma leitura do Brasil colonial. Bases da materialidade e da governabilidade no império. Penélope. Fazer e
desfazer a História, n. 23, 2000. p. 83
7
Os estudos das Câmaras municipais, por exemplo, permitem notar como esses espaços se constituíram
“em vias de acesso ao conjunto de privilégios que permitiam não apenas nobilitar os colonos, mas ainda
fazê-los participar do governo político do Império.” Idem, p. 83
8
LATOUR, Bruno. Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. São Paulo:
Unesp, 2ª Ed., 2011. p. 345
20
9
Idem, p. 354
10
Quando Dom Rodrigo de Sousa Coutinho assumiu a Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha e
dos Domínios Ultramarinos, ele passou a centralizar as informações e produtos vindos das conquistas. Criou
novos espaços institucionais para este fim e agregou relevância aos estudos cartográficos articulados ao da
história natural. O Complexo da Ajuda, embora continuasse tendo importância, perdeu a centralidade
ocupada até então. Foi ampliado o processo de instalação de Jardins Botânicos e museus de história natural
na América portuguesa, como, por exemplo, o em Belém. No entanto, o reino permaneceu desempenhando
a função de centro até 1808. PATACA, Ermelinda Moutinho. Coletar, preparar, remeter, transportar –
práticas da História natural nas viagens filosóficas portuguesas (1777-1808). Revista brasileira de História
das Ciências, Rio de Janeiro, v. 4, n. 2, p. 125-138, jul-dez., 2011.
11
BRIGOLA, João. Op. Cit.
21
versado, perito”12. Não há fontes para atestar a incorporação dos seus conhecimentos no
processo de análise da coleção que ajudara a formar ou na aclimatação de alguma planta
americana. Mas não é descabido supor que o emprego em atividades como essas também
justifique a sua incorporação como funcionário do Museu Real e Jardim Botânico.
A situação é peculiar: um indígena com atuação profissional em um centro de
produção de conhecimento europeu. É um caso singular em meio à documentação
analisada em nossa pesquisa. Não sabemos nem mesmo se seu companheiro, Cipriano de
Souza, despenhara função semelhante uma vez concluída a Viagem Filosófica na
Amazônia. De todo modo, consideramos que a atuação de José da Silva deve ser
compreendida em diálogo com o protagonismo de outras personagens naturais das
conquistas portuguesas no processo de construção do conhecimento sobre a natureza e os
territórios que habitavam.
Este foi um dos objetivos estabelecidos na presente tese: analisar os
protagonismos das populações não europeias no cotidiano de expedições científicas,
financiadas pela Coroa, realizadas na Amazônia colonial portuguesa e na África oriental
portuguesa nas últimas décadas do setecentos. Embora planejadas na metrópole – a seguir
uma “grade de pensamento” adquirida na Universidade, em academias, laboratórios e
gabinetes – era no ultramar, em regiões desconhecidas pelos viajantes, que os
deslocamentos ocorriam. Ao atuarem como preparadores, remeiros, pilotos, guias,
carregadores, línguas e informantes, os povos das conquistas não eram somente a mão de
obra disponível localmente. Eles dominavam conhecimentos sobre as configurações dos
rios e caminhos por terra e acerca dos animais, dos minerais, dos povos e das plantas que
não podiam ser dispensados pelos letrados em campo.
O emprego de povos das conquistas para designar populações culturalmente
diversas e habitantes de domínios distantes dialoga com as proposições da historiadora
Silvia Lara. Em textos e imagens produzidos por naturalistas e engenheiros militares,
entendidos enquanto agentes da Coroa com formação especializada que associavam saber
e poder, os variados grupos humanos nascidos nas conquistas “apareciam
12
BLUTEAU, Rafael. Vocabulário Português e Latino (Volume 06: Letras O-P). Lisboa: Oficina de
Pascoal da Sylva, Impressor de Sua Majestade, 1720. p. 674. Disponível em:
https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/5442 Consulta em: 20/04/2020
22
13
LARA, Silvia H. Fragmentos Setecentistas: Escravidão, Cultura e Poder na América Portuguesa. São
Paulo: Companhia das Letras, 2007.
14
Idem, p. 263. Silvia Lara analisou minuciosamente duas pranchas, desenhadas, cartografadas e ilustradas
pelo engenheiro militar Carlos Julião. Uma delas contemplava prospectos “da entrada da barra de Goa”,
“da praça do Diu vista do mar”, “da entrada do Rio de Janeiro” e “da Ilha de Moçambique, estando em seu
porto.” Segundo Lara, “o que difere esse trabalho cartográfico de muitos outros produzidos no período é o
fato de que, além do desenho tradicional das perspectivas e das legendas com os nomes das edificações e
principais pontos geográficos, há logo abaixo dos desenhos duas faixas com várias figuras humanas
aquareladas, identificadas por pequenas referências textuais.” Os desenhos das figuras humanas são muito
semelhantes entre si, mudando, grosso modo, somente as vestimentas. Ajudam, assim, a entender o modo
como as autoridades coloniais consideravam as gentes que viviam nas áreas coloniais. “O espaço genérico
das colônias, designado sempre a partir de sua posição política de submissão (Conquistas ou domínios
ultramarinos), impunha uma equivalência que diluía a diversidade permitindo que as figurinhas de Julião
pudessem ser intercambiadas. Está subjacente a essa operação uma divisão do mundo em partes, que separa
“tipos sociais” e culturalmente diversos caracterizados por seus trajes, objetos e situações. Ao mesmo tempo
e não paradoxalmente, essa divisão aproximava os vários tipos identificados, desprezando a sua
multiplicidade para toma-los, de forma simples e genérica, como povos da Conquistas.” Idem, p. 263-264
15
Idem, p. 237
23
dos rios serem os “caminhos móveis”16 das expedições analisadas – as quais se inseriam
no rol das tentativas de territorialização do poder colonial – a palavra é empregada
metaforicamente no título da tese para remeter aos (re)fluxos e à abundância de saberes
construtivos do campo científico. Um rio tem uma nascente e uma foz, mas seu curso não
é retilíneo e uno. É composto por cheias, baixas, quedas d´água, afluentes, além de
segmentos minerais, de troncos de árvores, raízes, animais aquáticos, algas. Sem contar
nas interferências sofridas (e o verbo sofrer é oportuno) quando cruzam com alguns seres
humanos.
Para Raj, muito do que se pensa ser ciência europeia foi, na verdade, constituído
nas margens. Os estudos pós-coloniais empreenderam importantes críticas aos valores e
pretensões morais e políticas do discurso científico europeu.17 Ganhou força a denúncia
da ciência “como uma hegemônica ‘narrativa mestra’ do poder ocidental, uma formação
discursiva através da qual o resto do mundo foi simultaneamente subjugado e relegado ao
papel de ‘outro’ da Europa, binariamente oposto a ela.”18 Mesmo investida de relevância,
a crítica mantém viva “a ideia amplamente aceita de que há algo essencial e unificado
chamado ciência moderna que, como a própria modernidade, teve origem na Europa
ocidental e subsequentemente se espalhou para o resto do mundo”.19
No entanto, o conhecimento não deve ser entendido como “resultado de trocas e
acomodações intra-europeias mas, mais do que isso, de trocas ativas, se bem que inscritas
em relações de poder assimétricas, com as culturas científicas e técnicas de outros
continentes.”20 Um dos desafios consiste em mapear a variedade de “saber-fazer” e a
polifonia de vozes que permeiam os discursos científicos, mesmo quando os registros
históricos foram produzidos por sujeitos despreocupados em dar créditos às informações
16
HOLANDA, Sérgio Buarque. Monções. São Paulo: Editora Alfa-Ômega, 1976.
17
De acordo Matheus Duarte, “pode-se dizer que Kapil Raj é um ‘pós-pós-colonialista’, porque ele faz
críticas importantes a Foucault e a Edward Said, por exemplo.” Raj não esgota a análise na crítica à ciência
moderna como “uma hegemônica narrativa do poder ocidental”. Avança no sentido de compreender outras
racionalidades e lógicas de produzir conhecimentos para além da europeia. Entrevista com Kapil Raj, feita
por Matheus Duarte. Boletim Eletrônico da Sociedade Brasileira de História da Ciência, Número 9 - Junho
de 2016
18
RAJ, Kapil. Além do Pós-colonialismo... e Pós-positivismo. Circulação e a História Global da Ciência.
Tradução de Juliana Freire. Revista Maracanan, Edição: n.13, Dezembro de 2015. p. 168
19
Idem, p. 16
20
Idem, p. 157
24
compartilhadas por populações vistas como subalternas. Não podemos esquecer que umas
das principais premissas científicas do iluminismo europeu consistia na averiguação e
comprovação das informações feitas por sujeitos com formação especializada. A razão,
embora comum aos seres humanos, era cultivada por alguns, os “sábios”, o que, segundo
a visão da época, os alçava a um patamar distinto dos homens e mulheres excluídos do
mundo das letras.
Como sugeriu Silvia Lara, “os nexos que formam um período histórico estão
presentes também no movimento que dá origem às próprias fontes da história.”21 As
analisadas nesta tese carregam o ponto de vista dos viajantes-cientistas, que compunham
uma pequena elite letrada, majoritariamente branca, masculina e integrada aos quadros
da monarquia. Se parte considerável dos documentos históricos do período colonial foram
escritos por sujeitos comprometidos com esse ideário, os estudos historiográficos já
demonstraram que essa não é a única perspectiva possível de ser narrada. “Trabalhando
no interior desses limites e lidando com os filtros das fontes é possível apreender as
tensões presentes em situações nas quais as desigualdades sociais e as diferenças culturais
estavam profundamente imbricadas.”22
A conhecida Viagem Filosófica de Alexandre Rodrigues Ferreira foi um ponto de
partida para uma pesquisadora que, desde a graduação, tinha como uma das suas
preocupações compreender as lógicas do reformismo ilustrado no campo da educação e
da ciência, em particular da filosofia, no Império português. Autores como os de Willian
Simon, Ângela Domingues, Ronald Raminelli e Ermelinda Pataca demonstraram que a
expedição do naturalista não ocorreu de maneira isolada.23 Ao contrário, esteve inserida
em um conjunto de deslocamentos pelas conquistas lusitanas. Como bem demarcado pela
21
LARA, Op. Cit. p. 25
22
Idem, p. 26
23
SIMON, William J. Scientific Expeditions in the Portugueses Overseas Territories. Lisboa: Instituto de
Investigação Científica Tropical, 1983. DOMINGUES, Ângela. Viagens de exploração geográfica na
Amazónia em finais do século XVIII: política, ciência e aventura. Funchal: Centro de Estudos de História
do Atlântico, 1991. PATACA, Ermelinda Moutinho. Terra, água e ar nas viagens científicas portuguesas
(1755-1808). Tese de Doutorado em Ensino e História das Ciências da Terra - Instituto de Geociências,
UNICAMP, Campinas, 2006. RAMINELLI, Ronald. Viagens Ultramarinas; monarcas, vassalos e governo
a distância. São Paulo: Alameda Casa Editorial, 2008.
25
24
Há inúmeros estudos historiográficos, com perspectivas analíticas distintas, sobre o reformismo ilustrado
português a partir do reinado de Dom José I. Para mencionar alguns: NOVAIS, Fernando A. Portugal e
Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1808). 6. ed. São Paulo: Hucitec, 1995. LEXANDRE,
Valentim. Os sentidos do Império. Porto: Afrontamento, 1993. DIAS, Maria Odila da Silva. Aspectos da
ilustração no Brasil. In: A interiorização da metrópole e outros estudos. 2. ed. São Paulo: Alameda, 2005.
MAXWELL, Kenneth. Chocolates, Piratas e Outros Malandros. Ensaios Tropicais. Paz & Terra, São
Paulo, 1999. SANTOS, Catarina Madeira. Um governo "polido" para Angola; reconfigurar dispositivos de
domínio (1750-c. 1800). Dissertação apresentada à Universidade Nova de Lisboa/Faculdade de Ciências
Sociais e Humanas. Lisboa, 2005. RAMINELLI, Ronald. Ilustração e império colonial. História [online].
2012, vol.31, n.2, pp.36-67. POMBO, Nívia. O Palácio de Queluz e o mundo ultramarino: circuitos
ilustrados (Portugal, Brasil e Angola, 1796-1803). Tese (Doutorado em História). Universidade Federal
Fluminense, Niterói, 2013.
25
KURY, Lorelai. “Homens de ciência no Brasil: impérios coloniais e circulação de informações (1780-
1810)”. Revista História, Ciência, Saúde – Manguinhos. Vol. 11 (suplemento 1), 2004.
26
SCHIAVINATTO, Iara. Sobre educar a mocidade: entre saberes, linguagens e sociabilidades letradas.
Educação Sensível. Imagem, política e memória no mundo luso-brasileiro. Campinas: Tese de Livre
Docência, Universidade Estadual de Campinas, 2017.
26
27
SANJAD, Nelson. As fronteiras do ultramar: engenheiros, matemáticos, naturalistas e artistas na
Amazônia, 1750-1820. Anais do colóquio luso-brasileiro de História da Arte, Porto: Faculdade de Letras
da Universidade do Porto, 2007. p. 426
28
REIS, Arthur Cesar Ferreira. A Amazônia vista pelo Dr. Alexandre Rodrigues Ferreira. Lisboa: Separata
do Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, julho/setembro, 1957. DOMINGUES. Op. Cit. 1991.
27
Uma das primeiras decisões em nosso estudo foi a de que o material legado da
Viagem Filosófica de Alexandre Rodrigues Ferreira deveria ser analisado em conjunto
com os escritos de Lacerda e Almeida e Silva Pontes. Em primeiro lugar, parecia oportuno
realizar a análise de documentos de sujeitos com trajetórias conectadas: nascidos em
capitanias da América, acompanharam a reforma da Universidade de Coimbra iniciada
em 1772, compuseram as primeiras turmas das Faculdades de Matemática e Filosofia que
sinalizavam para a inserção de Portugal nos circuitos ilustrados europeus e, tão logo
formados, foram remetidos para as capitanias do Pará, Rio Negro e Mato Grosso e Cuiabá.
Do ponto de vista metodológico, os nomes próprios dos três viajantes-cientistas
funcionaram como fios condutores para reunir uma volumosa e dispersa documentação.29
São correspondências, diários, memórias, desenhos e exemplares da flora, fauna, minerais
e da cultura material remetidos ora para administradores coloniais no reino e nas próprias
conquistas, ora para instituições científicas instaladas em Lisboa. Neste último caso,
devem ser destacados os já citados Jardim Botânico, Casa de Risco e Gabinete de História
Natural da Ajuda, mas também a Academia Real das Ciências de Lisboa e a Sociedade
Real Marítima, Militar e Geográfica.30 Tratam-se de instituições de pesquisa
fundamentais para compreensão dos fluxos das coleções e informações atreladas ao
universo das ciências setecentista.
Como Rodrigues Ferreira, Silva Pontes e Lacerda e Almeida percorreram ao longo
de quase dez anos praticamente o mesmo percurso, os seus textos e imagens se
complementaram e permitiram redesenhar os projetos coloniais voltados ao norte da
América portuguesa. Possibilitaram ainda mapear as presenças dos povos desta conquista,
precisamente dos índios, no cotidiano das expedições. Importante pontuar que não foi
nosso interesse principal analisar as nações indígenas como objeto de estudo dos
29
GINZBURG, Carlo. O nome e o como: troca desigual e mercado historiográfico. In: A micro-história e
outros ensaios. Lisboa, Difel, 1989.; O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido
pela inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
30
Ao aprimoramento dos estudos da cartografia em Portugal esteve associado a fundação, em 1798, da
Sociedade Real Marítima, Militar e Geográfica para o Desenho, Gravura e Impressão das Cartas
Hidrográficas, Geográficas e Militares. Para Iris Kantor, “a institucionalização dos saberes cartográficos
revela a configuração de novas modalidades de exercício da soberania territorial, baseadas na promoção
das comunicações fluviais e terrestres por intermédio da desobstrução fiscal dos fluxos mercantis entre o
interior do continente e os portos transatlânticos.” KANTOR, Iris. Mapas em trânsito: projeções
cartográficas e processo de emancipação política do Brasil (1779-1822). Araucaria – Revista
iberoamericana de filosofía, política y humanidades, Sevilla, ano 12, n. 24, p. 110-123, 2010. p. 117
28
31
PEREIRA, Magnus; RIBAS, André (orgs). Um astrônomo paulista no sertão africano. Curitiba: Editora
UFPR, 2012.
32
KANTOR, Iris. Op. Cit. 2010. p. 113
29
33
AHU, Moçambique, Caixa 77, Doc. nº 41. In: PEREIRA; RIBAS, Op. Cit. p. 182
34
Mary Louise Pratt definiu zonas de contato como “espaços sociais onde culturas díspares se encontram,
se chocam, se entrelaçam uma com a outra, frequentemente em relações bastante assimétricas de dominação
e subordinação – como o colonialismo, o escravagismo, ou seus sucedâneos ora praticados em todo o
mundo”. (p. 27) Para a autora: “ao utilizar o termo contato, procuro enfatizar as dimensões interativas e
improvisadas dos encontros coloniais, tão facilmente ignorados ou suprimidos pelos relatos difundidos da
conquista e dominação. Uma perspectiva de contato põe em relevo a questão de como os sujeitos são
constituídos nas e pelas suas relações uns com os outros. Trata as relações entre colonizadores e
colonizados, ou viajantes e visitados, não em termos de separação e segregação, mas em termos de presença
comum, interação, entendimentos e práticas interligadas, frequentemente dentro de relações radicalmente
assimétricas de poder.” PRATT, Mary Louise. Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação.
Bauru: EDUSC, 1999. p. 27 e 32
35
CRUZ, Ana Lucia. Verdades por mim vistas e observadas oxalá foram Fábulas Sonhadas: Cientistas
brasileiros do Setecentos, uma leitura auto-etnográfica. Curitiba, Tese (Doutorado em História) –
Departamento de História, UFPR, 2004.
36
Além da experiência de Francisco José de Lacerda e Almeida e seus contemporâneos de interiorização
da América por meio dos rios, D. Rodrigo de Sousa Coutinho retomava também o projeto de travessia
pensado pelo diplomata Dom Luís da Cunha e materializado nos mapas do geógrafo francês D´Anville na
primeira metade do século XVIII. O projeto tinha sido recuperado também por Inocêncio de Sousa
Coutinho, pai de Dom Rodrigo, e então governador-general de Angola. FURTADO, Júnia. Oráculos da
Geografia iluminista: Dom Luís da Cunha e Jean Baptiste Bourguignon D´Anville na construção da
cartografia do Brasil. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012.
30
37
SAMPAIO, Patrícia Maria Melo. Espelhos Partidos: etnia, legislação e desigualdade na Colônia.
Manaus: Editora da Universidade Federal do Amazonas, 2011. p. 200
31
38
De acordo com Janaina Amado, “no conjunto da história do Brasil, em termos de senso comum,
pensamento social e imaginário, poucas categorias têm sido tão importantes, para designar uma ou mais
regiões, quanto a de sertão.” Na língua portuguesa o seu uso remete ao séc. XV, quando era empregada
para “nomear espaços vastos, interiores, situados dentro das possessões recém-conquistadas ou contíguos
a elas, sobre os quais pouco ou nada sabiam.” Na centúria seguinte foi utilizada “por numerosos viajantes
e cronistas do nascente império português na África, Ásia e América, com o sentido já apontado, de grandes
espaços interiores, pouco ou nada conhecidos.” Para o ultramar, o termo foi progressivamente construído a
partir da oposição/contraste à ideia de costa/litoral, a qual não remetia somente para uma faixa de terra em
contato com o mar, mas indicava também um local ocupado pelos europeus e por suas instituições
administrativas e religiosas. Neste sentido, os sertões foram também vislumbrados como inacessíveis,
povoado por bárbaros, bravios e hereges. Em muitos relatos, era representado como a linha divisória entre
civilização e barbárie. AMADO, Janaína. Região, sertão e nação. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol.
8, n. 15, 1995. Para André Heráclio Rêgo, é possível verificar a criação de uma “geografia imaginária sobre
os sertões” que abarcava, em ritmos específicos, os dois lados do Atlântico. As projeções geográficas que
conciliavam mito e realidade começaram a ser questionadas no século XVIII, a partir da utilização de
métodos e instrumentos mais precisos para o mapeamento dos territórios. Desse modo, “o conceito de sertão
passou a ser, nesse contexto, muito utilizado na cartografia, mais como qualificativo de lugar que como um
local específico.” Os vazios dos mapas, associados ao desconhecimento de quem os elaborava, passaram a
ser preenchidos e o termo sertão utilizado para caracterizar de forma mais precisa determinados espaços.
RÊGO, André Heráclio do. O sertão e a geografia. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 63. abr.
2016 (p. 42-66). p. 58
32
transposto para o “centro”, tinha a sua origem nas margens e a partir do contato com
populações não europeias. Se constituiu, portanto, a partir da circulação e do
entrecruzamento entre povos culturalmente diversos e cujas relações de poder eram
assimétricas.
36
PARTE I
HISTÓRIAS EM CONEXÃO: PROJETOS E
TRAJETÓRIAS EM UM “MUNDO EM MOVIMENTO”
37
Capítulo 1:
Conhecimentos úteis em domínios incertos: a interiorização da
Amazônia e da África oriental portuguesa em meados do setecentos
39
KURY, Lorelai. Op. Cit. 2008. p. 74.
40
KURY, Lorelai. Les instructions de voyage dans les expéditions scientifiques françaises. Révue
d'Histoire des Sciences, vol. 51, nº 1, 1998, pp. 65-91.
38
41
ARAÚJO, Ana Cristina; FONSECA, Fernando Taveira. A Universidade Pombalina: Ciência, Território
e Coleções Científicas. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2017. p. 7
42
Idem, p. 7
43
Idem, p. 7
44
Para indicar alguns autores importantes nesse debate: CARVALHO, Laerte Ramos. As reformas
pombalinas da instrução pública. São Paulo: Edusp/Saraiva, 1978. ANDRADE, Antonio Alberto Banha de.
A reforma pombalina dos estudos secundários (1759-1771): contribuição para a história da pedagogia em
Portugal. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1984. ARAÚJO, Ana Cristina. O Marquês de Pombal e a
Universidade. Coimbra: Imprensa da Universidade (IU), 2000. CARVALHO, Flávio Rey de. Um
iluminismo português? A Reforma da Universidade de Coimbra (1772). São Paulo: Annablume, 2008.
BOTO, Carlota. “A dimensão iluminista da reforma pombalina dos estudos: das primeiras letras à
universidade”. Revista Brasileira de Educação v. 15 n. 44 maio/agosto, 2010.
39
ensinados e para quais atividades profissionais os sujeitos que nelas se formavam eram
direcionados. Existiam aulas de Matemática e de Filosofia em Coimbra antes da reforma,
no entanto, foi neste contexto que elas foram transformadas em cursos superiores, tal
como eram os de Direito, Medicina e Teologia da antiga Universidade.
O reitor-reformador, Dom Francisco de Lemos, em texto que antecedia os novos
Estatutos da instituição, justificou a criação de um curso de Matemática “fixo e completo”
em decorrência da sua utilidade para o reino. Em sua visão, a matemática era importante
para todos os campos do conhecimento, pois ajudava a “pensar sólida e metodicamente
em qualquer outra matéria.”45 Possuía um conjunto de “doutrinas de maior importância
como era o de regularem-se as épocas e medidas dos tempos, a situação geográfica dos
lugares, as demarcações e as medições dos terrenos.”46 Tinha, igualmente, relevância nas
“manobras e derrotas de pilotagem, nas operações práticas de campanha e da marinha;
nas construções da arquitetura naval, civil e militar; das máquinas, fábricas, artifícios e
aparelhos que ajudam a fraqueza do homem.”47
A Faculdade se constituiu a partir de quatro cadeiras, distribuídas em igual número
de anos. No primeiro, cursava-se a de geometria, ministrada pelo capitão de artilharia Dr.
José Anastácio. No ano seguinte, Miguel Franzini, ex-professor do Colégio dos Nobres,
ficava responsável pela de cálculo. No terceiro, o cônego da Sé de Leira ministrava a de
ciências físico-matemática. No último, o italiano Dr. Miguel Antonio Cierra, que
participou da Comissão de Demarcação de fronteira na América do Sul em decorrência
da assinatura do Tratado de Madri (1750) e foi prefeito dos estudos no Colégio dos
Nobres, oferecia a disciplina de Astronomia. Para o ensino prático da última matéria foi
instituído um Observatório Astronômico em um bom sítio da cidade cortada pelo rio
Mondego.
Para estimular o interesse pelo curso universitário, o reitor alegava ser necessário
a tomada de medidas por parte da Coroa. Uma delas era nomear como Cosmógrafo Mor
do reino somente sujeitos graduados em matemática. Ao profissional cabia criar
45
LEMOS, Dom Francisco de. Memória servindo de introdução à relação do estado da Universidade de
Coimbra de 1772 a 1777 apresentada ao Governo. Introdução: Theófilo Braga. Lisboa: Tipografia da
Academia Real das Ciências, 1894. p. 46
46
Idem, p 46
47
Idem, p. 46
40
48
BUENO, Beatriz Piccolotto Siqueira. Com as mãos sujas de cal e de tinta, homens de múltiplas
habilidades: os engenheiros militares e a cartografia na América Portuguesa (sécs. XVI-XIX). Anais do I
Simpósio Brasileiro de Cartografia Histórica, Passado presente nos velhos mapas: conhecimento e poder,
Paraty, 10 a 12 de maio de 2011.
49
Idem, p. 2
41
50
Idem, p. 1
51
Idem, p. 7
52
Aqui, fazemos menção ao artigo de Robert Darnton acerca da obra paradigmática da ilustração francesa,
a Encyclipédie. DARNTON, Robert. Os filósofos podam a árvore do conhecimento: a estratégia
epistemológica da Encyclopédie. In: O Grande Massacre de Gatos e outros episódios da História Cultural
francesa. Rio de Janeiro: Graal, 1986.
53
Sobre o desenho militar ver: PICOLLI, Valéria. Figurinhas de brancos e negros: Carlos Julião e o mundo
colonial português. Tese de Doutoramento, FAU/USP. 2010. BUENO, B. Desenho e Desígnio: O Brasil
dos Engenheiros Militares. Tese de Doutorado, FAU-USP, 2001.
42
O inventário da fauna, flora, das gentes e dos costumes regionais, dos minerais,
das madeiras, das drogas do sertão e outras espécies nativas interessantes ao
reino tornou-se uma obsessão nas chamadas Viagens Filosóficas, igualmente
contaminando a prática dos engenheiros que, desde o último quartel do século
XVIII, passaram incluir estas tarefas entre as demais.54
54
Idem, p. 7
55
LEMOS, Dom Francisco de. Op. Cit. 1894.
56
VERNEY, Luis A. Verdadeiro Método de Estudar. Volume III, Edição organizada por Antônio Salgado
Junior. Lisboa: Livraria Sá Costa, 1949. p 2
57
SCHIAVINATTO, Iara. Op. Cit. 2017. p. 4
43
58
LEMOS, Dom Francisco de. Op. Cit. p. 58
59
Idem, p 57
60
Idem, p. 57
61
Idem, p. 57
62
O Colégio dos Nobres foi criado em Lisboa na década de 1760. O projeto associava-se ao início a
introdução mais sistemática do ensino de ciências naturais no reino português. Sobre o tema ver:
CARVALHO, Rómulo de. História da Fundação do Colégio Real dos Nobres de Lisboa (1761-1772).
Coimbra: Atlântida, 1759. CARVALHO, Rômulo de. A história natural em Portugal no século XVIII.
Lisboa: Ministério da Educação, 1987.
44
63
LEMOS, Dom Francisco de. Op. Cit. p. 60
64
FERREIRA, Breno. Economia da natureza: a história natural, entre a teologia natural e a economia
política (Portugal e Brasil, 1750-1822). Tese de Doutorado em História, Universidade de São Paulo, 2016.
65
A Academia das Ciência foi criada em 1779 com objetivo de congregar o debate letrado lusitano. Muitos
de seus membros tinham circulado pela Europa e faziam parte de sociedades científicas internacionais. Em
suas salas eram lidas e discutidas propostas voltadas à melhoria da economia, incluindo estudos sobre a
agricultura, indústria e comércio, além de serem abordados temas relacionados à medicina, aos três reinos
45
da natureza, ao solo e ao clima. A instituição era responsável por publicações de Memórias, por fornecer
ensino de ciências e incentivar a realização de expedições científicas. CARVALHO, Rômulo. A atividade
pedagógica da Academia Real das Ciências de Lisboa nos séculos XVIII e XIX. Lisboa: Academia das
Ciências, 1979. Uma análise detida dos textos publicados e apresentados pelos seus membros demonstra
que os homens envolvidos no circuito científico português estavam a par das teorias filosóficas e científicas
em voga, “vários deles não apenas absorviam ideias alheias, mas participavam da República das Letras
como cidadãos ativos.” KURY, Lorelai. Op. Cit. 2004.
66
Os estudos de Brigola recaem sobretudo nas coleções formadas por Vandelli. As avaliando, o historiador
português considerada que o italiano foi mais o mais importante museólogo setecentista do Império
português. Para citar alguns de suas publicações: BRIGOLA, João Carlos. Domenico Agostino Vandelli –
um naturalista italiano a serviço de Portugal e do Brasil. In: O gabinete de curiosidades de Domenico
Vandelli. Rio de Janeiro: Dantes editora, 2008. BRIGOLA, João Carlos. Coleções, gabinetes e museus em
Portugal no século XVIII. Tese de doutoramento, Universidade de Évora, Évora, 2000.
67
KURY, Lorelai. As viagens filosóficas: Vandelli e a História Natural. In: O gabinete de curiosidades de
Domenico Vandelli. Rio de Janeiro: Dantes editora, 2008. p. 73-74
68
Idem, p. 73
69
PRATT, Mary Louise. Op. Cit.
46
70
Idem, p. 42
71
Idem, p. 42
72
KURY, Lorelai. Op. Cit. p. 75
73
PATACA, Ermelinda Moutinho. Op. Cit. p. 137
74
Idem, p. 137
47
Elaborado por Daniel Catoia. Base cartográfica: LEME, Antonio Pires da Silva Ponte. Carta da
Nova Lusitânia... Lisboa, 1798. PATACA, Ermelinda; OLIVEIRA, Cristiane. Escrita de micronarrativas
biográficas de viajantes luso-brasileiros: aproximações entre história das ciências no Brasil e ensino.
Revista Educação e Pesquisa vol.42 no.1, São Paulo, Jan/Mar, 2016.
(https://doi.org/10.1590/S1517-9702201603137074)
48
75
VANDELLI, Domingos. Viagens filosóficas ou dissertações sobre as importantes regras que o filósofo
naturalista, nas suas peregrinações deve principalmente observa (1779). In: O gabinete de curiosidades de
Domenico Vandelli. Rio de Janeiro: Dantes Editora, 2008. p. 93-158.
76
Ermelinda Pataca destacou outras publicações do período com propósitos semelhantes. Era o caso do
texto intitulado Método de recolher, preparar, remeter, e conservar os produtos naturais segundo o plano,
que tem concebido, e publicado alguns naturalistas, para o uso dos curiosos que visitam os sertões e costas
do mar, redigido coletivamente pelos naturalistas e riscadores do Complexo da Ajuda. Este tinha como
objetivo circular entre um público mais amplo. Foram remetidos exemplares para governadores-gerais das
diversas capitanias que compunham o Império, os quais ficaram incumbidos de distribuir por indivíduos
que contribuiriam com as coletas e remessas de produtos. PATACA, Ermelinda. Op. Cit. 2011. p. 129
77
VANDELLI, Domingos. Op. Cit. p. 93
78
POMBO, Nívia. Unidade Política e Territorial nos projetos de D. Rodrigo de Sousa Coutinho. In:
MOTTA, Márcia; SERRÃO, José Vicente; MACHADO, Marina M. (Org.). Em Terras Lusas: conflitos e
fronteiras no Império Português. Vinhedo: Editora Horizonte, 2013. p. 82
49
79
Idem, p. 83
80
PATACA, Ermelinda. Op. Cit. 2011. p. 135. Para uma análise mais detalhada acerca das especificidades
das expedições científicas realizadas durante os Ministérios de Martinho de Melo e Castro e Dom Rodrigo
de Sousa Coutinho, ver o seguinte trabalho da mesma autora: PATACA, Ermelinda Moutinho. Terra, água
e ar nas viagens científicas portuguesas (1755-1808). Tese de Doutorado em Ensino e História das Ciências
da Terra - Instituto de Geociências, UNICAMP, Campinas, 2006.
50
81
VANDELLI, Op. Cit. p. 122
82
Idem, p. 123
83
Idem, p. 135
51
84
BOXER, Charles R. O império colonial português, (1415-1825). Lisboa: Edições 70, 1981.
85
RUSSEL-WOOD, A.J.R. Um mundo em movimento: os portugueses na África, Ásia e América, (1415-
1808). Lisboa: DIFEL, 1998.
86
Russell-Wood salientou que “uma historiografia mais antiga, dos impérios europeus ultramarinos, tendia
a manter o foco nas conquistas e nos atos de possessão, no povoamento e na colonização, no comércio, na
evangelização, e no processo de governança. Essa historiografia nunca questionou que as habilidades
técnicas, o conhecimento da tecnologia, a inovação e a criatividade fossem exclusivamente europeus.”
RUSSELL-WOOD, A. J. R. Sulcando os mares: Um historiador do império português enfrenta a “Atlantic
History”. HISTÓRIA, São Paulo, 28 (1): 2009. p. 17
52
87
Idem, p. 20-21
88
BARROS, José D´Assunção. Histórias Cruzadas – considerações sobre uma nova modalidade baseada
nos procedimentos relacionais. Anos 90, Porto Alegre, v. 21, n. 40, p. 277-310, dez. 2014. p. 5
89
Idem, p. 178
90
GRUZINSKI, Serge. As quatro partes do mundo: história de uma mundialização. Belo Horizonte:
Editora UFMG, São Paulo: Edusp, 2014.
53
ela “não está contida, em todo o caso, na história das experiências imperiais e coloniais.”91
Para Subrahmanyam, parece mais profícuo “observar fenômenos que articulam histórias
para além das tradicionais fronteiras do pensamento, o que nos convida a reunir os objetos
que são comparados – e assim separados – de forma mais banal.”92 Propõe-se, assim,
abordar a natureza multilateral e diversa da vida na época moderna. O foco de análise se
desloca para os fluxos, trânsitos e trocas de pessoas, objetos, produtos que não se davam
em mão única e nem, necessariamente, se articulavam aos projetos coloniais, ainda que
com eles mantivessem algum cruzamento.
Esses estudos historiográficos abrem caminhos profícuos para pensarmos nas
relações entre projetos portugueses de interiorização de conquistas distantes através das
viagens científicas e da atuação de luso-brasileiros com formação letrada semelhante. Um
dos viajantes estudados, o matemático Francisco José de Lacerda e Almeida, que
percorreu os sertões amazônico e africano partindo da costa oriental, acabou por se tornar
o elo mais evidente no que se refere à circulação de ideias e experiências pelos espaços
abordados. Como dito na introdução, a sua indicação como um sujeito capaz de realizar
travessia da África meridional esteve associada à experiência na América portuguesa.
De todo modo, a partir de uma investigação mais detida dos domínios em foco,
percebemos outras conexões históricas, com destaque para o diálogo entre as medidas de
reordenamento político e administrativo propostas pela Coroa portuguesa a partir da
segunda metade do século XVIII. As duas conquistas foram contempladas pelo
reformismo ilustrado lusitano de maneira quase simultânea. Tinham em comum o fato de
não estarem diretamente integradas ao dinâmico eixo econômico e político do Atlântico
Sul. Como já mencionado, a partir do reinado de D. José I com continuidade no de D.
Maria I, verifica-se uma tentativa de revisitar as dinâmicas imperiais, integrando as
diferentes porções geográficas através da consolidação da posse efetiva dos territórios e
de uma exploração econômica ordenada.
Patrícia Sampaio e Francisco Jorge Santos elegeram a década de 1750 como um
“divisor de águas” em termos político-administrativo para a Amazônia portuguesa que
91
SUBRAHMANYAM, Sanjay. Impérios, historiografia, ciências sociais: uma entrevista com Sanjay
Subrahmanyam. Análise Social, n. 226, v. 53, primeiro trimestre, p. 189- 206, 2018. Entrevistadores:
Ângela Barreto Xavier et al. Disponível em: http://analisesocial.ics.ul.pt/documentos/n226a08.pdf p. 200
92
Idem, p. 199-200
54
encerrou uma estrutura em vigor.93 Os autores destacaram cinco medidas legais que
corroboraram para que a porção geográfica deixasse de ser um domínio de pouco interesse
no interior do Império. Todas datam de 1755: a carta régia que criou a capitania do Rio
Negro; o “alvará de lei” que permitia o casamento entre vassalos do reino e índias; a lei
que restitui aos índios a sua liberdade; a criação da Companhia Geral do Comércio do
Grão-Pará e Maranhão; e o Alvará que encerrava “a jurisdição temporal dos Regulares
sobre os índios do Grão-Pará e Maranhão”.94 Posto isto, foi pensado um conjunto de
projetos específicos para o extenso território, com destaque para o seu sertão, com
desdobramentos e revisões nas décadas seguintes.
No caso da África oriental, os focos de ocupação portuguesa situados na costa do
Índico e no vale do rio Zambeze mantiveram-se subordinados política e
administrativamente ao Estado da Índia até 1752. Do ponto de vista dos agentes da
colonização e mercadores, esse domínio desempenhava um papel importante nas relações
comerciais com a Ásia. Mas, principalmente, as povoações, feiras e fortes interiorizados
eram marcados por instabilidades políticas e se modificavam de acordo com as relações
estabelecidas com as populações locais.95 Para Eugénia Rodrigues, com a separação do
Estado da Índia e subordinação das capitanias de Moçambique e Rios de Sena à Lisboa,
intensificaram-se as tentativas de consolidação da soberania da Coroa localmente e de
Atlantização da África oriental portuguesa.
Esse processo pode ser verificado nas tentativas de mudança na forma de
distribuição das terras aos vassalos portugueses e na nomeação de governadores naturais
93
SAMPAIO, Patrícia Maria Melo; SANTOS, Francisco Jorge dos. 1755, o ano da virada na Amazônia
portuguesa. Somanlu, Manaus, vol. 8, n.º 2, p. 79-98, jul./dez. 2008. p. 80
94
Idem, p. 80
95
Como demostrou Edward Alpers, independentemente das relações com Portugal, os diferentes povos que
habitavam o território hoje denominado Moçambique ou que por ele transitavam mantinham intensas e
interiorizadas redes de comércio. A conexão com o Índico foi favorecida pela ligação com o Estado da
Índia, mas também por outros fatores, tais como o desenvolvimento de uma cultura marítima dos habitantes
da costa moçambicana. ALPERS, Edward A. Moçambique marítimo (séculos XIV-XXI). Revista de
História (São Paulo), n. 178, 2019. http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-9141.rh.2019.143950. Alberto da
Costa e Silva também salienta que antes da chegada dos portugueses, romanos, árabes e persas já
frequentavam aquelas costas a fim de “buscar incenso, marfim, carapaças de tartarugas, chifres de
rinoceronte, peles de pantera.” Tratava-se de uma região historicamente marcada por uma cultura marítima
atrelada ao comércio. SILVA, Alberto da Costa e. A Enxada e a Lança: a África antes dos portugueses.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.
55
96
RODRIGUES, Eugénia. Portugueses e Africanos nos Rios de Sena: os Prazos da Coroa em Moçambique
nos Séculos XVII e XVIII. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2013. p 649
97
RODRIGUES, Op. Cit. 2013. p 298-299
98
Em artigo recente, cujo objetivo foi analisar a instalação dos Conselhos Municipais na África oriental
portuguesa depois da separação do Estado da Índia, a historiadora Maria Bastião observou igualmente o
aproveitamento da experiência da recém criada capitania de São José do Rio Negro. “Finalmente, as
instruções de 1761-1763 dispunham a transferência de instituições municipais para Moçambique com a
fundação da câmara de Moçambique e, tanto quanto possível, a extensão do processo às restantes povoações
da colónia − para além da Ilha, nos anos seguintes, foram criados municípios em Quelimane, Sena, Tete,
Ibo, Zumbo, Sofala e Inhambane. Repetiam-se, genericamente, os princípios organizadores e as
prerrogativas dos concelhos do reino e demais conquistas ultramarinas. Seguia-se, em particular, os
fundamentos da criação da capitania de São José do Rio Negro e da sua capital fixados na carta régia de 3
de Março de 1755, de que se remetia cópia.” BASTIÃO, Maria. O regime dos prazos na Ilha de
Moçambique, 1763-1800. Ler História, 76, posto online no dia 30 junho 2020. Consultado no dia 26 agosto
2020. URL: http://journals.openedition.org/lerhistoria/6786
99
Idem, p. 295-296
56
margens de rios (Negro e Zambeze) que permitiam saídas para o mar e conexões com
outras capitanias. Procurava-se, assim, consolidar a soberania lusitana, sobretudo em
regiões do interior, a partir de rios estrategicamente situados.
Não é possível desvincular as expedições científicas realizadas entre as décadas
de 1780 e 1790, a incluir as analisadas na presente tese, destes reordenamentos políticos,
administrativos e econômicos fomentados nas décadas anteriores. Os viajantes formados
nas Faculdades de Filosofia e Matemática da Universidade de Coimbra reformada
receberam como missões realizar um inventário da flora, fauna, dos minerais, dos povos
e das espacialidades. Partiam, porém, também incumbidos de avaliar as reformas
iniciadas em meados do setecentos e de executar projetos anteriores que não tinham sido
bem sucedidos. Ocupemo-nos, então, de indicar algumas particularidades do norte da
América portuguesa e da África oriental portuguesa, para as quais, numa tentativa de
interiorização dos continentes, foram remetidos matemáticos e naturalistas equipados dos
instrumentos, técnicas, referências teóricas e metodológicas adquiridos entre Coimbra e
Lisboa.
100
VANDELLI, Domenico. Carta de Vandelli ao Marquês de Angeja. In: O gabinete de curiosidades de
Domenico Vandelli. Rio de Janeiro: Dantes editora, 2008. p. 85
57
101
KURY, Lorelai. As viagens filosóficas: Vandelli e a História Natural. In: O gabinete de curiosidades de
Domenico Vandelli. Rio de Janeiro: Dantes editora, 2008. p. 73
102
VANDELLI, Domenico. Carta de Vandelli ao Marquês de Angeja... p. 86
103
Idem, p. 86
104
Idem, p. 86
105
FARIA, Miguel; PATACA, Ermelinda. Ver para crer: a importância da imagem na gestão do Império
português no final do Setecentos. Lisboa: Anais Série História, volume IX/X, MMV. p. 65
58
ser quando era impraticável de ser embalada e remetida em sua totalidade mesmo para
melhor apreender um animal ou planta embalada.”106
Segundo argumentava o Marquês, os matemáticos deveriam “pelo maior ou
menor número de léguas, relatar a vantagem da demarcação para Portugal, porém só o
naturalista é quem pode avaliar exatamente o preço intrínseco dos terrenos que nos
couberem, por um mapa circunstanciado de suas produções.”107 Para garantia de um
conhecimento mais profundo do que os olhos conseguem enxergar, os filósofos faziam
usos de “processos químicos totalmente ignorados pelos matemáticos”, os quais
poderiam, por exemplo, ser empregados para análise da qualidade e característica de
determinado solo.
Essa miúda observação seria útil, portanto, para o melhoramento da agricultura.
Transformaria em produtivos, na perspectiva colonial, terrenos vistos como incultos,
integrando-os a uma rede de exploração que contribuiria para a integração e
complementariedade econômica das capitanias que compunham o Império. Com a
esperança de alcançar êxito em sua sugestão, o Marquês de Angeja concluía a dizer que
os profissionais atuariam de maneira complementar: os matemáticos se ocupariam de
fazer os mapas geográficos e os filósofos trabalhariam nos “outros mapas histórico-
naturais e mineralógicos.”108
De maneira mais precisa, era para a Amazônia colonial portuguesa, em especial
para as áreas fronteiriças das capitanias do Grão-Pará, São José do Rio Negro e Mato
Grosso, que os matemáticos e naturalista seriam remetidos. Não há dúvidas de que essa
extensa porção geográfica não era a única privilegiada para a realização de expedições
científicas na América portuguesa. O próprio Vandelli sugeriu que enquanto um grupo de
filósofos da natureza, coordenado por Alexandre Rodrigues Ferreira, percorresse o norte
da América portuguesa, Julio Matiazzi, secretário do Complexo da Ajuda, poderia
permanecer no Rio de Janeiro centralizando as remessas de produtos vindos das
capitanias situadas no eixo sul.
106
SCHIAVINATTO, Op. Cit. 2013. Sobre ilustração científica ver também: FARIA, Miguel Figueira. A
imagem útil. Lisboa: Universidade Autônoma de Lisboa, 2001.
107
Carta do marquês de Angeja ao visconde de Vila Nova de Cerveira. In: O gabinete de curiosidades de
Domenico Vandelli. Rio de Janeiro: Dantes editora, 2008. p. 87
108
Idem, p. 87
59
109
Como explicou Rafael Chambouleyron: “a presença europeia na costa norte e na Amazônia,
principalmente, de franceses, ingleses e holandeses, foi o elemento central do esforço português (nessa
época dependente da coroa de Castela), que organizou a conquista da região. Após a tomada de São Luís
aos franceses, em 1615, os portugueses fundaram, na desembocadura do Amazonas, a cidade de Belém do
Pará, em 1616. Sérgio Buarque de Holanda definiu Belém com um “núcleo de expansão”. De fato, para
vários autores, essa cidade representou o centro fundamental da expansão e dominação portuguesa de todo
o vale amazônico. Eidorfe Moreira tinha razão ao afirmar que “no plano histórico, nenhuma região
dependeu tanto de uma cidade como a Amazônia dependeu de Belém. Nada se fez aí senão com base nela
ou através dela”. São Luís, Belém e a fortaleza de Santo Antônio de Gurupá constituíram os três centros
da dominação portuguesa da Amazônia, que, nos anos 1620 se transformou numa região administrativa
independente no interior do império português: o Estado do Maranhão e Grão-Pará.”
CHAMBOULEYRON, Rafael. Plantações, sesmarias e vilas. Uma reflexão sobre a ocupação da Amazônia
seiscentista. Revusta Nuevo Mundo Mundos Nuevos, Debates, maio de 2006. Consultado: 27 março 2020.
110
PORRO, Antonio. O povo das águas. Ensaios de etno-história amazônica. Rio de Janeiro: Vozes, 1996.
p. 11
60
O historiador Alírio Cardoso pondera que não é possível usar sem custos a palavra
Amazônia para denominar uma região do período colonial: “a expressão Amazônia
brasileira foi criada no século XX para definir certas áreas do norte do Brasil,
supostamente detentora das mesmas características físicas e socioculturais, e que
abrangeria mais de 40% do atual território nacional brasileiro.”114 De todo modo, a sua
adoção para abordar um contexto histórico mais recuado no tempo tem potencial
explicativo e didático, uma vez que sinaliza para o reconhecimento de características
semelhantes que deram origem a um projeto articulado e específico de colonização.
Foi no século XVII, no contexto de união das coroas Ibéricas (1580-1630), que
tiveram início as investidas mais sistematizadas de reconhecimento da Amazônia. Os
agentes da colonização lusitana e espanhola e os missionários católicos logo perceberam
que a região possuía aspectos que a distinguia e, principalmente, a apartava do Estado do
Brasil. A começar pelo “peculiar regime de ventos ao longo da costa Atlântica da América
111
Idem, p. 11
112
CHAMBOULEYRON, Rafael; SOUZA JUNIOR, José Alves de. (Org.). Novos olhares sobre
a Amazônia colonial. Belém: Editora Paka-Tatu, 2016. p. 6-7
113
Idem, p. 6-7
114
CARDOSO, Alírio. Amazônia na Monarquia Hispânica. Maranhão e Grão-Pará nos tempos da União
Ibérica (1580-1655). São Paula: Alameda, 2017. p. 45
61
do Sul, o qual propiciou uma ligação mais direta entre, por um lado, o Maranhão e o Pará,
e, por outro, a Europa.”115 A separação gerada pelas correntes marítimas e de ventos faz
com que o autor, em diálogo com Chambouleyron, utilize o termo Atlântico Equatorial a
fim de demarcar a separação do Atlântico Sul e para tratar das redes de relações
específicas daí decorrentes.
A esse aspecto somava-se quatro outras peculiaridades da Amazônia colonial: 1)
a imensa capacidade fluvial que garantia uma navegação mais estável se comparada à
possibilitada em outras partes da América; 2) a considerável distância entre as capitanias,
ainda que estivessem interligadas por uma rede fluvial; 3) as atividades econômicas
variavam entre a plantation (em menor escala) e a exploração das drogas da terra, com
destaque para a abertura da possibilidade de aproveitamento das experiências asiáticas no
cultivo de especiarias116; 4) a numerosa população indígena “característica marcante do
comércio, da força de trabalho disponível, das forças militares e, em geral, da sociedade
luso-maranhense.”117
A importância estratégica do rio Amazonas e da rede hídrica a ele atrelada, embora
ainda em grande parte desconhecidas pelos europeus, já era observada no início do século
XVII. Isso ajuda a entender a instalação da cidade de Belém, em 1616, nas proximidades
de sua desembocadura. A grandiosidade das águas amazônicas, associada ao imaginário
do período, corroborou para o surgimento de uma “cartografia mítica”, que se valeu de
crônicas produzidas principalmente por missionários. O mito da Ilha Brasil talvez seja
um dos mais emblemáticos avivado nesse período.118 Como esclareceu Íris Kantor, “o
conceito geográfico de ilha-brasil difunde-se não apenas na cartografia, mas também nas
115
Idem, p. 20
116
Sobre esse assunto, além do trabalho do próprio Alírio Cardoso, ver também os estudos mais recentes
de Rafael Chambouleyron. Em seminário ocorrido na Fiocruz em meados de 2019, o historiador
compartilhou a conferência com o seguinte título: “Posto que de diferente feição, é no sabor quase o mesmo
que o da Índia. O cravo de casca e a Amazônia colonial.” Ver também: CHAMBOULEYRON, R.;
CARDOSO, A. As cores da conquista: produtos tintórios e anil no Maranhão e Grão-Pará (século
XVII). Locus: Revista de História, v. 20, n. 1, 3 maio 2016.
117
CARDOSO, Alírio. Op. Cit. 2017. p. 48
118
Para citar alguns trabalhos que tratam sobre esse tema: CORTESÃO, Jaime. História do Brasil nos
velhos mapas. 2 Vols. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2009.; CORTESÃO, Jaime. A reação
ao tratado de Tordesilhas e o mito da Ilha Brasil. In: Raposo Tavares e a formação territorial do Brasil,
Lisboa, Portugalia, 1966.; HOLANDA, Sérgio Buarque de. Um mito geopolítico: a ilha Brasil. In: Tentativa
de Mitologia. São Paulo: Perspectiva, 1979.
62
119
KANTOR, Íris. Usos diplomáticos da ilha-Brasil: polêmicas cartográficas e historiográficas. Varia
História, 2007, vol. 23, n.º 37, p. 70-80. p. 71
120
COSTA, Maria de Fátima. A história de um país inexistente: Pantanal entre os séculos XVI e XVIII. São
Paulo: Estação Liberdade/Kosmos, 1999. p. 17
121
Idem, p. 17
122
COSTA, Maria de Fátima. De Xarayes ao Pantanal: a cartografia de um mito geográfico. Revista do
IEB n. 45, p. 21-36, set 2007. p. 21
123
Como destacado por Costa: “sabe-se hoje que o Pantanal é um dos ecossistemas mais significativos do
planeta. Formando um dos maiores sistemas de áreas alagáveis contínuas da América meridional, o sistema
63
Segundo Maria de Fátima Costa, a denominação, que remete para a ideia de “campos
alagados, com várias lagoas e sangradouros”, já era usada pelos monçoeiros, os quais
seguiam as “rotas abertas pelos bandeirantes paulistas” e atingiram o Mato Grosso. Essa
denominação conviveu com a Laguna de Los Xarayes, empregada pelos castelhanos por
algum tempo. Mas “em meados do século XVIII, os demarcadores de limites, com seus
saberes ilustrados, despiram-se das maravilhas quinhentistas e a dimensionaram como um
espaço geograficamente determinado.”124
Impulsionados por novos conhecimentos e pelo avanço para as regiões do interior
da América, principalmente através dos rios, no século XVIII, teve início uma série de
negociações diplomáticas e acordos internacionais com objetivo de delimitar os domínios
coloniais dos reinos europeus continente americano. A caducidade do Tratado de
Tordesilhas (1494) foi endossada, em 1713, com a assinatura por Portugal e pela França
do Tratado de Utrecht. No norte da América portuguesa, o acordo estabelecia a linha
divisória estre o Estado do Maranhão e Grão-Pará e a Guiana Francesa. Dentre outras
definições estabelecidas em Utrecht analisadas por Rafael Ale Rocha, destacamos a
concessão “à Coroa portuguesa do Cabo Norte – definido como a região estabelecida
entre os rios Amazonas e Oiapoque ou Vicente Pinson.”125
Em 1750, Portugal e a Espanha assinaram o Tratado de Madri que previa o
estabelecimento de comissões de demarcação de limites bilaterais para o reconhecimento
da raia que separava a América portuguesa e espanhola. De acordo com Nelson Sanjad,
para a Amazônia foram estabelecidas três partidas de limites: “do lado português o
comando foi dado ao irmão do Marquês de Pombal, Francisco Xavier de Mendonça
Furtado, devidamente instruído a verificar a excelência ou prejuízos do tratado firmado
pantaneiro tem as suas nascentes em terras brasileiras e estende-se, numa fronteira viva, pela região do
Chaco paraguaio-boliviano. Suas águas pertencem à bacia do Alto Rio Paraguai, que é tributário da imensa
bacia do Prata, sendo o Paraguai seu principal formador. O atual estado do Mato Grosso guarda a nascente
de alguns dos seus rios, dentre essas a do rio Paraguai, bem como parte da grande planície inundável. No
entanto, é no Mato Grosso do Sul que os seus rios se espraiam mais extensamente, adentrando as terras
paraguaias e bolivianas. Como o definiu Ab’Saber (1988;9), ‘é um território deprimido situado entre os
domínios dos cerrados, do Chaco e da pré-Amazônia.’” COSTA, Maria de Fátima. Op. Cit. 1999. p. 20
124
Idem.
125
ROCHA, Rafael Ale. “Domínio” e “posse”: as fronteiras coloniais de Portugal e da França no Cabo
Norte (primeira metade do século XVIII). Tempo vol.23 no.3 Niterói Sept./Dec. 2017. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/tem/v23n3/1980-542X-tem-23-03-529.pdf p. 334
64
126
SANJAD, Nelson. Op. Cit. 2005. p. 426
127
Idem, p. 426
128
SANJAD, Nelson. Op. Cit. 2012. p. 226
129
SAMPAIO, Patrícia Maria Melo; SANTOS, Francisco Jorge dos. Op. Cit. 2008. p. 81
65
130
SAMPAIO, Patrícia Maria Melo. Op. Cit. 2011. p. 39
131
BUENO, Beatriz; KANTOR, Íris. Op. Cit. 2015. pp. 244-245
132
Idem, pp. 244-245
66
133
Idem, p. 80
134
DOMINGUES, Ângela. Quando os índios eram vassalos: colonização e relações de poder no Norte do
Brasil durante a segunda metade do século XVIII. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos
Descobrimentos Portugueses, 2000. Dentre os muitos trabalhos sobre o Diretório, gostaria de indicar dois:
COELHO, Mauro Cezar. Do sertão para o mar – Um estudo sobre a experiência portuguesa na América, a
partir da colônia: o caso do Diretório dos Índios (1751 -1798). Tese de doutorado em História Social,
Universidade de São Paulo, 2005.; SAMPAIO, Patrícia Maria Melo. Espelhos Partidos: etnia, legislação
e desigualdade na Colônia. Manaus: Editora da Universidade Federal do Amazonas, 2011.
135
COELHO, Mauro Cezar. “A Civilização da Amazônia – Alexandre Rodrigues Ferreira e o Diretório dos
Índios: a educação de indígenas e luso-brasileiros pela ótica do trabalho”. Revista de História Regional
5(2): 149-74. Universidade Estadual de Ponta Grossa (PR), Departamento de História, 2000. p. 151.
136
SAMPAIO, Patrícia Maria Melo. Op. Cit. 2011. p. 29
68
A comitiva portuguesa deveria ter claro que a linha divisória a ser traçada sobre
o espaço limítrofe com os domínios hispano-americanos dos rios Amazonas,
Madeira, Japurá, Negro e seus afluentes deveria legitimar o estado do avanço
português no sentido leste-oeste de seus domínios, que já tinha alcançado
pontos longínquos dos rios Amazonas e Negro com as povoações de Tabatinga
e Marabitanas, respectivamente.140
137
COSTA, Maria de Fátima. Op. Cit. 1999. p. 211
138
DOMINGUES, Ângela. Viagens de exploração geográfica na Amazónia em finais do século XVIII:
política, ciência e aventura. Funchal: Centro de Estudos de História do Atlântico, 1991. p. 40
139
Idem, p. 39
140
BRITO, Adilson Junior Ishihara. Domar as águas e os sertões da fronteira intra-americana: a centralidade
dos caminhos fluviais nas disputas luso-espanholas do Tratado de Santo Ildefonso. Revista Brasileira de
História. São Paulo, v. 39, nº 82, 2019. p. 113 . BASTOS, Carlos Augusto de C. No Limiar dos Impérios:
projetos, circulações e experiências na fronteira entre a Capitania do Rio Negro e a Província de Maynas
(c.1780-c.1820). 2013. Tese (Doutorado em História Social) – FFLCH, Universidade de São Paulo (USP).
São Paulo, 2013. BRITO, Adilson Junior Ishihara. Insubordinados sertões: o Império português entre
69
guerras e fronteiras no norte da América do Sul – Estado do Grão-Pará, 1750-1820. 2016. Tese (Doutorado
em História Social) – PPGHS, Universidade de São Paulo (USP). São Paulo, 2016.
141
Idem, p. 40
142
Idem, p. 35
143
MELO, Vanice Siqueira. A participação dos indígenas nas expedições da rota Madeira-Guaporé
(segunda metade do século XVIII). In: VEIGA, C.; FERREIRA, E; LISBOA, I.; COSTA, J.;
CENTURIÓN, S. (Org.). História Indígena e do Indigenismo na Amazônia II. São Carlos: Pedro & João
Editores, 2019, v. II. p. 134
144
Idem, p. 137
145
SAMPAIO, Patrícia Melo. Op. Cit. 2011. p. 53-54
70
demarcatória anterior e deixa entrever que Portugal investira na formação de quadros para
execução desse tipo de tarefa no Ultramar.
Poucos anos depois, em 1783, teve início a Viagem Filosófica chefiada pelo
naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira, que veio acompanhado de Lisboa de dois
desenhistas e um jardineiro botânico. Depois de permanecer por mais de um ano em
Belém e de fazer deslocamentos pelo rio Tocantins e para a Ilha de Marajó, adentrou o
rio Amazonas. Fez breves paradas em vilas e lugares, inspecionou a boca de rios como o
Tapajós, alcançou a boca do rio Negro e atingiu a vila de Barcelos, sede de governo da
capitania.
Da vila de Barcelos deslocou-se para pontos importantes no processo de
demarcação das fronteiras, tais como a Fortaleza de São José das Marabitanas subindo o
rio Negro e para a Fortaleza de São Joaquim no rio Branco. Em 1787, recebeu ordens de
se deslocar para o Mato Grosso, descendo o rio Madeira até atingir o rio Guaporé, mais
precisamente Vila Bela. Com terreno alagadiço e reconhecido como insalubre, a vila era
um dos principais pontos de apoio dos viajantes depois de percorrer as muitas cachoeiras
do rio Madeira, Mamoré e Guaporé. A localidade tinha função estratégica para a
Demarcação de Fronteira, na medida que se mantinha próxima das missões de Chiquitos
e Moxos.
Voltaremos a tratar, no segundo capítulo da tese, de maneira mais precisa dos
deslocamentos realizados pelo naturalista e matemáticos na medida em que abarcaremos
as suas trajetórias, as atividades a que se dedicaram em campo e os textos que produziram.
Neste tópico procuramos pontuar como a Viagem Filosófica e Comissão de Demarcação
estiveram associadas aos interesses portugueses de interiorização, a utilizar os rios, e de
garantir a posse de um território que ocupava espaço peculiar na lógica Imperial, a
Amazônia colonial portuguesa.
72
No final do século XIX, o francês Paul Barré foi convidado para escrever na
Revista Portuguesa Colonial e Marítima acerca dos “feitos lusitanos no continente
africano”.147 Ele principiou o escrito a reforçar como pensava bem “dos exploradores
portugueses e da sua obra tão bela e por vezes tão pouco conhecida em África.”148
Destacava que “a Inglaterra, insaciável e absorvente, recolheu no continente austral uma
grande parte dos frutos que Portugal legitimamente deveria colher.”149 Na era do
Imperialismo, os ingleses travessaram (literalmente) os anseios lusitanos no extenso
território entre Angola e Moçambique e impediram “para sempre a sua junção para que
formassem uma comprida língua de terra portuguesa do Atlântico ao oceano Índico.”150
As disputas se espraiavam para o campo das narrativas e da construção das
memórias dos dois países europeus. Os ingleses consideravam ser o viajante David
Livingstone, médico escocês que faleceu em 1873 na região do Lago Bangweulu, atual
Zâmbia, o primeiro europeu a adentrar no eixo meridional do continente africano.151 Já
Portugal defendia ser dos seus conterrâneos tal feito. Ao concordar com a última
afirmação, expressando as disputas imperialistas entre franceses e ingleses, Barré
recomendava aos portugueses “elevar, o mais cedo possível, um majestoso monumento
em honra dos primeiros exploradores africanos, e escrever no pedestal: aos exploradores
146
BARRÉ, Paul. A prioridade dos exploradores portugueses nas travessias Africanas. Revista Portuguesa
Colonial e Marítima, Lisboa, 1º ano, vol. 1, n. 3, 1897. p. 145
147
A Revista Portuguesa Colonial e Marítima foi publicada entre 1897 e 1909 sob a proteção do Rei D.
Carlos. Foi dirigida por Ernesto Júlio de Carvalho e Vasconcellos e publicada pela Livraria Ferin, em
Lisboa. Como o título evidencia tratava dos assuntos relacionados ao Ultramar português, com destaque
para as relações colonialistas estabelecidas na África. Tomamos contato com a revista na Sociedade de
Geografia de Lisboa, mas as edições encontram-se digitalizadas em: http://memoria-
africa.ua.pt/Library/RPCM.aspx
148
BARRÉ, Paul. Op. Cit. 1897. p. 145
149
Idem, p. 145
150
Idem, p. 145
151
Sobre a expedição de David Livingstone na África ver: PRATT, Mary Louise. Op. Cit.
73
152
Idem, p. 148
153
FURTADO, Júnia Ferreira. o embaixador, o cartógrafo e o romancista e o projeto português de travessia
da África: entre mapas, fronteiras e livros. In: Atas do VI Simpósio Luso-Brasileiro de Cartografia
Histórica. 2015. p. 177
154
Sobre os diferentes projetos de travessia terrestre, inclusive pensados a partir de Angola, ver: SANTOS,
Maria Emília Madeira. Viagens de Exploração Terrestre dos Portugueses em África. Lisboa: Instituto de
Investigação Científica Tropical, Centro de Estudos de História e Cartografia Antiga, 1988.
74
155
RODRIGUES, Eugénia. Op. Cit. 2012. p. 85
156
De acordo com Alexandre Lobato, em 1635 foi criado um poder local nos Rios de Sena, o qual mantinha-
se subordinado ao vice rei (Estado da Índia). No ano de 1688 foi extinto o governo autônomo e os Rios de
Sena voltava para o domínio do castelão de Moçambique. Com a separação do Estado da Índio, os Rios de
Sena mantinham-se subordinado à Moçambique. LOBATO, Alexandre. Evolução administrativa e
econômica de Moçambique (1752-1763). Lisboa: Publicações Alfa, 1989.
75
157
SILVA, Alberto da Costa e. A Enxada e a Lança: a África antes dos portugueses. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2006.
158
Idem
159
GALLO, Fernanda. Andando à procura dessa vida: dinâmicas de descolamento na província de Tete-
Moçambique, do colonialismo tardio à mineradora Vale. Tese de Doutorado em Antropologia, IFCH,
UNICAMP, Campinas, 2018. p. 29
160
Idem, p. 31
161
Idem, p. 31
76
162
RODRIGUES, Eugénia. Op. Cit. 2012. p. 19
163
HOPPE, Fritz. A África Oriental Portuguesa no tempo do Marquês de Pombal (1750-
1777). Lisboa: Agência Geral do Ultramar, 1970. p. 20
164
RODRIGUES, Eugénia. Op. Cit. 2012. p. 45
165
Para uma discussão detida das especificidades deste modelo de distribuição de terras ver: RODRIGUES,
Op. Cit. 2013.
166
RODRIGUES, Eugénia. Rainhas, princesas e donas: formas de poder político das mulheres na África
Oriental nos séculos XVI a XVIII. Dossiê: História das mulheres, gênero e identidade femininas na África
Meridional, Pagu (49), 2017. p. 53
77
uma eficaz exploração de suas riquezas.”167 Em relação à administração das gentes, por
meio de carta régia datada de abril de 1763, recomentava:
que todos os vassalos nascidos nele, sendo cristãos batizados e não tendo outra
inabilidade de Direito, gozem das mesmas honras, preeminências,
prerrogativas e privilégios de que gozam os naturais deste Reino, sem menor
diferença, havendo-os desde logo por habilitados para todas as honras,
dignidades, empregos, postos, ofícios e jurisdições deles.168
167
WAGNER, Ana Paula. Op. Cit. 2007. p. 79
168
Idem, p. 81
169
RODRIGUES, Eugénia. Op. Cit. 2006. p. 214
170
RODRIGUES, Eugénia. “Nomes e serventia”. Administração e História Natural em Moçambique em
finais de setecentos (c. 1781-1807). In: DORÉ, Andréa; SANTOS, Antonio Cesar de Almeida (org.). Temas
setecentistas. Governos e populações no Império Português. Curitiba: UFPR/CSHLA-Fundação Araucária,
2009. p. 122
171
Idem, p. 212
78
172
AHU, Moçambique, caixa 39, doc. 17: Carta do governador de Moçambique Pedro Saldanha de
Albuquerque para Martinho de Melo e Castro sobre as diligências para a execução das ordens de recolha
de material a incorporar no Museu de História Natural (1782, Agosto, 24). AHU, Moçambique, caixa 42,
doc. 2: Carta do Governador de Rios de Sena, António Manuel de Melo e Castro, para Martinho de Melo e
Castro a informá-lo das dificuldades em encontrar pessoas aptas a quem possa distribuir os exemplares
enviados das instruções da Academia das Ciências de Lisboa (1783, Maio, 5. Tete). In: VIEIRA, Carla
Costa. Op. Cit. 2006. pp. 70 e 72
173
RODRIGUES, Eugénia. Op. Cit. 2017.
174
Idem, p. 212
175
AHU, Moçambique, caixa 42, doc. 2: Carta do Governador de Rios de Sena, António Manuel de Melo
e Castro, para Martinho de Melo e Castro a informá-lo das dificuldades em encontrar pessoas aptas a quem
possa distribuir os exemplares enviados das instruções da Academia das Ciências de Lisboa (1783, Maio,
5. Tete). In: VIEIRA, Carla. Os Portugueses e a travessia do continente africano: projectos e viagens (1755-
1814). Lisboa: Tese Mestrado Hist. dos Descobrimentos e da Expansão Portuguesa, Univ. Lisboa, 2006.
pp. 70 e 72
79
da Costa, cuja missão era “examinar e descrever tudo o que houver nessa capitania,
relativo a História Natural, em recolher, preparar, e remeter a esta Corte tudo o que houver
de dirigir-se a ela, na conformidade dos exemplares das instruções, que a Academia das
Ciências de Lisboa publicou a este respeito.”176
Antes de atingir a costa oriental africana, Manoel Galvão desembarcou na Bahia,
sua capitania natal, onde realizou investigações mineralógicas.177 Depois seguiu para
Goa, localidade que permaneceu por dois meses e sobre a qual escreveu as Observações
sobre a História Natural de Goa. Ao chegar em Moçambique, iniciou os trabalhos como
secretário de governo, fez incursões pelas suas proximidades da Ilha e despachos
exemplares da flora e minerais.
Em 1786, seguiu para o Rios de Sena. Dos deslocamentos realizados a partir da
vila de Tete escreveu dois curtos diários: Diário ou relação das viagens filosóficas, nas
terras da jurisdição de Tete e em algumas dos Maraves e Diário das viagens feitas pelas
terras de Manica. No retorno para a Ilha de Moçambique, Manoel Galvão da Silva
envolveu-se com o tráfico de indivíduos escravizados. A documentação sobre a sua vida
é fragmentada. Possivelmente o comércio, junto com os cargos ocupados na burocracia
local, tenham se tornado prioridade na vida do naturalista depois de encerrada a expedição
nos Rios de Sena.
Na década de 1790, outro sujeito com atuação na recolha de informações sobre o
mundo natural e a geografia local foi Diogo de Sousa, governador-geral entre 1793-1797
e formado na Faculdade de Matemática de Coimbra.178 “D. Diogo de Sousa instou o
governador dos Rios de Sena a remeter uma relação topográfica das minas e uma
avaliação das suas riquezas, que, aduzia, eram de interesse vital para o ‘presente sistema’
176
AHU_CU_Moçambique, Cx. 40, doc. 50
177
Segunda Pataca, “o ponto inicial da viagem na Bahia, foi devido ao local ser um dos entrepostos das
grandes travessias oceânicas empreendidas entre Portugal e as colônias no Oriente.” Na Bahia, Manoel
Galvão recebeu como principal missão identificar se as amostras minerais encontradas na Vila da Cachoeira
“eram de cobre nativo ou se eram resquícios de utensílios de cobre de um antigo engenho de açúcar que
teria existido no local e tinha sido incendiado na época da invasão dos holandeses.” PATACA, Ermelinda.
Op. Cit. 2006. p. 361
178
Depois de atuar em Moçambique Dom Diogo foi nomeado governador-general do Maranhão e Piauí
(1798-1804). Ver: COSTA JÚNIOR, Flávio Pereira. Um Maranhão ilustrado?: história e natureza na
correspondência entre D. Rodrigo de Sousa Coutinho e D. Diogo de Sousa (1798-1801). Dissertação
(Programa de Pós-Graduação em História) - Universidade Federal do Maranhão, São Luís, 2016.
80
do ministério.”179 Além disso, segundo Gehrard Liesegang, Dom Diogo enviou para o
governador de Sofala um conjunto de perguntas que resultou no texto intitulado
“Respostas das questões sobre os cafres”. O documento reúne informações de cunho
etnográfico e a respeito da natureza de Sofala e enquadrava-se também nos esforços de
inventário próprio do campo da história natural setecentista.180
Cabe um parêntese para refletir sobre um termo muito utilizado pelos agentes
coloniais para se referir às populações africanas que residiam na África oriental
portuguesa e nas suas redondezas. No dicionário Rafael Bluteau a palavra “cafre” foi
definida como “homem rude, bárbaro, desumano, como os moradores da cafraria”.
“Cafra” como a “mulher da cafraria” e “cafrice” como “ação própria do cafre [...] suma
ignorância.” Para Charles Boxer, os portugueses “herdaram” a denominação dos árabes,
para os quais “cafre” significava “infiel”.181 Se no século XVIII o uso do termo estava
preenchido de conotação pejorativa, isso se acentuou nos séculos seguintes com a
ampliação dos discursos e práticas racistas na África austral de maneira geral.182 Na
presente tese somente utilizaremos a palavra quando for diretamente citada nas fontes
históricas.
Para o conhecimento cartográfico e das redes fluviais, a atuação de Francisco José
de Lacerda e Almeida (1797-1798) na África oriental portuguesa teve importância
significativa. Além de assumir o governo dos Rios de Sena, Lacerda e Almeida ia
encarregado de dar, como dissemos na introdução, a “particular incumbência de verificar
179
RODRIGUES, Eugénia. Op. Cit. 2017. p. 214
180
“Resposta das questões sobre os cafres” ou notícias etnográficas sobre Sofala do fim do século XVIII.
(Introdução e notas de Gerhard Liesegang). Lisboa: Junta de Investigações do Ultramar/Centro de Estudos
de Antropologia Cultural, 1966.
181
BOXER, Op. Cit. p. 55
182
A pesquisadora Margarita Correia, em artigo publicado em 2006, analisou como a discriminação racial
se faz presente em dicionários de língua portuguesa contemporâneo. Como justificou a autora: “é sabido
que o léxico de uma língua deixa transparecer o modo como a comunidade vê e conceptualiza o mundo que
a rodeia, nas suas diferentes vertentes. Desta forma, não é difícil entender que através do estudo do léxico
podemos ter uma ideia mais clara dos preconceitos de vária ordem (raciais, sexuais, religiosos, etc.) que
permeiam a sociedade.” CORREIA, Margarita. A discriminação racial nos dicionários de língua: tópicos
para discussão a partir de dicionários portugueses contemporâneos. Alfa, São Paulo, 50 (2): 155-171, 2006.
p. 155. Dentre as palavras que expressam o racismo construtivo das sociedades falantes da língua
portuguesa, a autora destaca “cafre”. No Dicionário Electrónico da Língua Portuguesa publicado em 2006
pela editora Porto, “cafre” é definido como “pessoa perversa, bárbara, ignorante ou sovina [...] dj. que não
presta; mal feito; de má qualidade”. Idem, p. 157
81
183
COUTINHO, Dom Rodrigo de Souza. In: PEREIRA, Magnus; RIBAS, André (Org). Francisco José de
Lacerda e Almeida. Um astrônomo paulista no sertão africano. Curitiba: Editora da UFPR (Coleção
Ciência e Império), 2012.
184
SANTOS, Maria Emília Madeira. Op. Cit. 1988.
185
FURTADO, Júnia Ferreira. Oráculos da Geografia iluminista: Dom Luís da Cunha e Jean Baptiste
Bourguignon D’Anville a construção da cartografia do Brasil. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2012.
82
geral.186 Em diálogo com a proposta de Dom Luís, ele produziu uma Memória sobre as
vantagens que poderiam ser alcançadas com o estreitamento dos vínculos entre costa e
contra costa. Propôs a criação de uma Companhia para o comércio da Ásia e da África
oriental, que encaminharia as mercadorias (ouro, marfim, tecidos, missangas) para a costa
atlântica pelo continente, e não por mar. De acordo com Maria Emília Madeira Santos,
acreditava-se que, assim, “voltariam a florescer os estabelecimentos da Ásia e desviava-
se para Europa o ouro de Moçambique.”187
Inocêncio de Sousa Coutinho recuperou uma estratégia aventada pelo seu
antecessor, António de Vasconcelos, no final da década de 1750: investir no
reconhecimento do sul do Reino de Angola, sendo dessa região, e não dos rios Cuango e
Cuanza como previa o plano de Dom Luís, que deveria ter início a travessia.188 Em 1770,
enviou João Pilares da Silva para o litoral sul de Benguela para aprofundar o
conhecimento do território e expecular sobre a presença holandesa nas proximidades.
Dentre as possibilidades abertas por esse reconhecimento, Sousa Coutinho destacou “a
de ter com muita breviedade notícias importantes da Índia e de Moçambique, podendo
por este meio reduzir-se ao melhor governo de todas aquelas úteis regiões.”189
186
Inocêncio de Sousa Coutinho é reconhecido como um “governador ilustrado” que implementou em
Angola reformas econômicas e administrativas com este viés. Sobre o tema ver: SANTOS, Catarina
Madeira. Um governo polido para Angola. Reconfigurar dispositivos de domínio (1750-c.1800).
Dissertação de Doutoramento apresentada à École des Hautes Études en Sciences Sociales e à Faculdade
de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 2005. SANTOS, Catarina Madeira Santos.
De “antigos conquistadores” a “angolenses”. A elite colonial de Luanda no contexto da cultura das Luzes,
entre lugares da memória e conhecimento científico. Cultura [Online], Vol. 24 | 2007, posto online no dia
10 outubro 2013, consultado a 03 maio 2019. Para uma análise recente da implementação das fábrica de
ferro em Nova Oeiras a partir da perspectiva dos trabalhares africanos, bem com as suas conexões com os
projetos ilustrados ver: ALFAGALI, Crislayne Gloss. Ferreiros e fundidores da Ilamba. Uma história social
da fabricação de ferro e da Real Fábrica de Nova Oeiras. Angola, segunda metade do séc. XVIII. Campinas:
Tese de Doutorado em História – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas e Sociais, Unicamp, 2017.
187
SANTOS, Maria Emília Madeira. Viagens de exploração terrestre dos portugueses em África. Lisboa:
Centro de Estudos de História e Cartografia Antiga, 1978.
188
Carla Vieira sugere que poderia ser uma estratégia para fugir da barreira imposta pelo Jaga Caçaje: “As
barreiras impostas pelo Jaga Caçanje eram um entrave ao controlo integral do comércio no sertão pelo
Muatiânvua, o que, segundo refere David Bimingham, seria um dos principais sustentáculos da sua
autoridade. Desde os inícios do Setecentos que este chefe utilizava o comércio de escravos para adquirir
mercadorias de origem europeia, as quais se tornavam em autênticos símbolos de poder, limitando a sua
distribuição ao poder central. Porém, estas não vinham apenas do ocidente, por via do Caçanje e dos outros
sobas intermediários.” VIEIRA, Carla. Op. Cit. p. 97
189
Francisco de Inocência de Sousa Coutinho. Memórias do Reino de Angola e suas conquistas. Apud
VIEIRA, Carla. Op. Cit.
83
190
AHU, códice 1642, ff. 54-61v. Doc. 14: 1785, Maio, 20. Luanda. Ordem do Barão de Moçâmedes para
a tropa transportada na fragata Luanda que se destina à exploração dos sertões de Benguela, foz do rio
Cunene e altura do Cabo Negro. In: VIEIRA, Carla Costa. Op. Cit. 2006. p 78
191
SILVA, Joaquim José da. Notícias sobre Cabo Negro, extraídas dos fragmentos da Viagem do Doutor
Joaquim José da Silva. O PATRIOTA, n 6. 1813.
192
Idem
193
Idem
84
objetos, tais como argolas de cobre, que pareciam ser provenientes do comércio com
povos residentes próximos da costa oriental.
José Maria de Lacerda também produziu um relato sobre a viagem. Ele endossava
a hipótese, recuperada por Francisco José de Lacerda e Almeida anos depois, do rio
Cunene ter ligação com o Zambeze. Bastaria seguir o curso de um ou de outro para, em
algum momento, a ligação se concretizar. Segundo registrou: o “vasto e fértil sertão de
Benguela” tinha como limite ao norte o “rio Aço perto do presídio das Pedras de
Ponguadongo e pelo sul limita no país dos Hotentotes muito além do cabo negro.” Já para
leste se estendia, segunda José Maria, até “Moçambique e Rio de Sena, com perto de
quinhentas léguas, havendo numa e noutra costa boa porção de terreno conhecido e
tratável.”194
José Maria asseverava que era “bem conhecido o rio Sena pela sua grandeza, pela
soberba das suas correntes e pela opulência das suas auríferas areias; mas a sua origem
ainda não está certamente descoberta e dele apenas sabemos, que descendo
do Monomotapa, lá vai desembocar com arrogância na costa de Moçambique onde temos
a nossa Quelimane.” Destacava ser mais conveniente que a “diligência tivesse o seu
princípio antes pelo rio Sena e Moçambique do que por Angola ou por Benguela.” Isso
porque, segundo projetava, o sertão a ser percorrido encontrava-se mais próximo das
povoações portuguesas instaladas na África oriental portuguesa, se comparado com
Luanda e Benguela. Dentre os requisitos para a escolha da pessoa capaz de executar a
missão constava o de saber usar os instrumentos matemáticos “para se tomarem as
dimensões e alturas da derrota.”195
Visconde de Sá da Bandeira afirmou, em 1844, que a Memória de José Maria
“pode ser considerada como um preliminar à relação da viagem feita pelo Dr. Lacerda e
Almeida, de Moçambique ao Cazembe.”196 Dom Rodrigo de Sousa teria se baseado nela
e nas outras informações reunidas a partir da costa ocidental para idealizar a possibilidade
de travessia, a utilizar sobretudo os rios, partindo da capitania dos Rios de Sena. A
194
Todos os trechos entre aspas do parágrafo: LACERDA, José Maria. Observação sobre a viagem da costa
desde Angola à Costa de Moçambique. Lisboa: Anais Marítimo e Coloniais, Imprensa Nacional, n 1, série
4ª, 1844. Disponível em: https://arlindo-correia.com/120109.html
195
Idem
196
Idem
85
197
FURTADO, Júnia Ferreira. Oráculos da Geografia iluminista: Dom Luís da Cunha e Jean Baptiste
Bourguignon D’Anville na construção da cartografia do Brasil. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2011.
198
Idem
86
199
PEREIRA, Magnus. Um Brasil imperfeito ou de como a África foi vista por brasileiros em finais do
século XVIII. Curitiba: Anais da V jornada Setecentista, 26 a 28 de fevereiro, 2003. p. 355
87
200
PEREIRA, Magnus Roberto de Mello e Cruz, Ana Lúcia Rocha. A história de uma ausência: os colonos
cientistas da América portuguesa na historiografia brasileira. In: FRAGOSO, João, Florentino; MANOLO,
Jucá, Antônio Carlos e Campos, Adriana (org.), Nas rotas do Império: eixos mercantis, tráfico e relações
sociais no mundo português. Vitória e Lisboa, EDUFES e IICT, 2006. p. 360.
201
DIAS, Maria Odila da S. Aspectos da Ilustração no Brasil. Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, Rio de Janeiro, v.278, 1968. NOVAIS, Fernando A. Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema
colonial (1777/1808). São Paulo; Hucitec, 1985.
202
PEREIRA, Magnus; CRUZ, Ana Lúcia. Op. Cit. p. 370
203
Idem, p. 368
204
MAXWELL, Kenneth. A geração de 1790 e a ideia do império luso-brasileiro. In: Chocolates, piratas
e outros malandros: ensaios tropicais. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999.
88
205
SCHIAVINATTO, Iara Lis. Entre escritos, impressos, imagens: aspectos da cultura visual. Lisboa/Rio
de Janeiro. 1770-1830. São Paulo: Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH, julho 2011.
p. 18
206
Idem, p. 17
89
expedições científicas para angariar mercês, ordens, pensões e emprego junto à majestade
real.207
Em meio à documentação correspondente às trajetórias dos viajantes estudados, é
possível identificar um esforço de narrar os próprios feitos numa tentativa de promover
“uma ordenação de si”.208 Ganhava destaque nas narrativas a fidelidade à Coroa e,
sobretudo, os feitos nas expedições e os “perigos” aos quais estiveram expostos no
ultramar. Criava-se, assim, um “expediente biográfico”, retomado e repetido a posteriori
quando se reconstruiu a “história oficial” do grupo tido como um dos primeiros sujeitos
nascidos no Brasil a percorrer, com fins científicos e em missão oficial, os domínios
coloniais lusitanos.209
Nesse processo, as expedições científicas realizadas nas décadas de 1780 e 1790
funcionaram e eram recuperadas como um divisor de águas, como um elemento fundante
de suas histórias de vida. As experiências adquiridas nos deslocamentos foram
fundamentais na definição das atividades profissionais para as quais estes letrados foram,
posteriormente, designados. No mais, como destacou Schiavinatto:
207
RAMINELLI, Ronald. Viagens Ultramarinas; monarcas, vassalos e governo a distância. São Paulo:
Alameda Casa Editorial, 2008.
208
Ângela de Castro Gomes considera a “escrita de si” como um fenômeno que ganhou expressão a partir
do século XVIII, associando tal movimento ao processo de individualismo. GOMES, Ângela de Castro
(org). Escrita de si, escrita da História. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004
209
Como “história oficial” pensando, principalmente, na recuperação, no século XIX, do Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro dos luso-brasileiros envolvidos no universo ilustrado português do setecentos.
Vistos a partir da perspectiva da nação em construção, tiveram suas trajetórias narradas e escritos
publicados. As expedições científicas eram recuperadas como centrais em suas trajetórias. Ver as biografias
de Antonio Pires da Silva Pontes, Francisco José de Lacerda e Almeida e Alexandre Rodrigues Ferreira
publicadas na RIHGB. Para uma análise historiográfica sobre o tema, ver: PEREIRA, Magnus R. M. e
CRUZ, Ana Lúcia Rocha Barbalho da. Os colonos cientistas da América Portuguesa: questões
historiográficas. Revista de História Regional 19(1): 7-34, 2014.
210
SCHIAVINATTO, Iara Lis. Op. Cit. 2017.
90
211
SIMON, Willian Joel. Op. Cit. 1983. p. 23
91
212
O texto foi publicado três anos depois do falecimento de Alexandre Rodrigues Ferreira e, além de
enaltecer sua trajetória, procurou reunir a obra do naturalista. No final do elogio há uma lista dos escritos
de Ferreira, os quais foram acessados através de um inventário entregue na ocasião da morte de Ferreira
para o professor de Coimbra Felix Avelar Brotero. SÁ, Manuel José Maria da Costa e. Elogio do doutor
Alexandre Rodrigues Ferreira. Memórias da Academia Real das Sciencias de Lisboa. Lisboa, tomo V, parte
1ª, 1817. p. LVII
213
SIMON, Op. Cit. 1983.
214
COSTA E SÁ, Op. Cit. 1817
215
No ano seguinte, Rodrigues Ferreira retornou para Coimbra para receber o grau de doutor em Filosofia.
216
No Complexo da Ajuda, Rodrigues Ferreira contribuiu com a elaboração do texto intitulado “Método
de recolher, preparar, remeter, e conservar os produtos naturais segundo o plano, que tem conhecido e
publicado alguns naturalistas, para uso dos curiosos que visitam os sertões, e a consta do mar”, sendo
distribuído pelas autoridades coloniais no ultramar. O material visava estimular a recolha e remessa de
produtos naturais por amadores.
92
Realizou também viagens por Portugal: uma delas na companhia do naturalista João da
Silva Feijó, com o objetivo de examinar a mina de carvão em Buarcos, e outra com o
jardineiro chefe do Complexo da Ajuda, Júlio Matiazzi, para as imediações de Setúbal a
fim de empreender investigações mineralógicas.
Em 1780, foi admitido como sócio correspondente da Academia Real das Ciências
de Lisboa. Segundo Manoel José Maria da Costa e Sá, contribuiu com três memórias
antes de seguir viagem: uma sobre as Matas de Portugal, outra sobre o abuso da
cronologia em Lisboa, para servir de introdução a Teologia dos vermes e a terceira com
o título Exame da planta medicinal, que como nova aplica e vende o Licenciado Antonio
Francisco da Costa, Cirurgião Mór do Regime da Cavalaria de Alcantara.217
Dos naturalistas treinados no Complexo da Ajuda, Rodrigues Ferreira foi o único
enviado naquele momento para a Amazônia colonial portuguesa como chefe de uma
expedição composta por dois desenhistas, José Joaquim Codina e Joaquim José Freire, e
um jardineiro botânico, Agostinho do Cabo.218 Em 1783, a bordo do navio Águia e
Coração de Jesus, o grupo, responsável por realizar em quase uma década um inventário
da natureza e dos habitantes das capitanias do Grão-Pará, São José do Rio Negro e Mato
Grosso e Cuiabá, cruzou o oceano Atlântico. Na mesma embarcação seguiram o Frei
Caetano Brandão e Martinho de Souza e Albuquerque, nomeados, respectivamente, bispo
e governador e capitão geral do Grão-Pará.
A equipe composta pelo naturalista, por desenhistas e pelo jardineiro botânico
trouxe consigo “uma cozinha de campanha, um laboratório portátil, apetrechos de caça e
pesca, uma arca de medicamentos e uma biblioteca.”219 Dentre as obras, indispensáveis,
mas consideradas por Ferreira insuficientes para tamanha empreitada científica, “continha
11 livros, um mapa da bacia fluvial amazônica, e uma cópia manuscrita do Diário da
viagem filosófica na Capitania de São José do Rio Negro (1774-75), do ouvidor Francisco
217
SÁ, Manuel José Maria da Costa e. Op. Cit. 1817. p. LXIII
218
O zoólogo suíço Emílio Goeldi, ao referir-se à missão recebida por Rodrigues Ferreira, sustentou que
“uma cadeira na Faculdade de Filosofia lhe estava destinada, mas ao descaso próprio do magistério foi
preferido outra comissão prenhe de trabalhos, eriçada de dificuldade, mas em que o sábio naturalista podia
prestar serviços mais relevantes ao Estado, a ciência e ao seu país natal.” GOELDI, Emílio. Alexandre
Rodrigues Ferreira. Belém: Editores Alfredo Silva & Cª, s/d. p. 6
219
SIMON, Op. Cit. 1983. p. 30
93
Xavier Ribeiro de Sampaio, que foi posteriormente publicada pela Academia Real de
Ciências de Lisboa (1825).220
De história natural da América, carregavam os textos dos viajantes Piso e
Marcgraf e “outros livros contemporâneos sobre agricultura”.221 Destacavam-se ainda os
escritos de Carlos Lineu: “Systema naturae, Genera plantarum e Species plantarum.”222
Durante a viagem, o naturalista teve contato com outros textos, como os escritos do
francês Charles La Condamine e o diário do padre Samuel Fritz, consultados em
Barcelos/Rio Negro, e a Histoire naturelle de Buffon, acessado em vila Bela na biblioteca
do secretário de governo do Mato Grosso.223
Em Belém, Martinho de Souza e Albuquerque acolheu os membros da expedição
no palácio do governador e os proveu em termos materiais o grupo.224 Sem a menor
demora, deu ordens para o deslocamento para a Ilha Grande de Joanes, o que ocorreu em
novembro de 1783. Permitiu ainda que o naturalista e a sua equipe o acompanhasse na
viagem para o rio Tocantins, em janeiro do ano seguinte, com passagens pelas vilas de
Cametá e Alcobaça.225
Valendo-se das observações feitas em Belém e ilhas adjacentes neste momento
inicial da viagem, Rodrigues Ferreira produziu alguns textos, entre eles: Notícias
históricas da Ilha de Joanes ou Marajó, Miscelânia histórica para servir de explicação
ao prospecto da cidade do Pará e Memória sobre os engenhos de branquear arroz no
Estado do Pará. Além disso, realizou investigações sobre a possibilidade do cultivo de
cânhamo na cidade e semeou sementes em locais apropriados.226 Antes de iniciar a
viagem pelo rio Amazonas rumo a capitania de São José do Rio Negro, fez remessas de
produtos naturais para o Complexo da Ajuda, em Lisboa.
220
Idem, p. 30
221
Ibidem, p. 30
222
Ibidem, p. 30
223
RAMINELLI, Ronald. Ciência e colonização - Viagem Filosófica de Alexandre Rodrigues Ferreira. Rio
de Janeiro, Revista Tempo, n.6, p.157-182, 1998. p. 160
224
O governador foi designado por Rodrigues Ferreira como o segundo patrono da viagem filosófica, sendo
o primeiro Martinho de Melo e Castro e o terceiro João Pereira Caldas, nomeado para o governo da capitania
do Mato Grosso e Cuiabá e encarregado da execução do tratado preliminar de limite e demarcação dos reais
domínios. Roteiro das viagens que fez pelas capitanias do Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá...
225
Idem
226
Martinho de Melo e Castro, em ofício ao governador do Pará, destacou que o naturalista levara consigo
sementes de Cânhamo para serem plantadas em locais que julgarem apropriado. AHU_ ACL_CU_013,
Cx.90, D.7340. 29 de agosto de1783.
94
227
Roteiro das viagens que fez pelas capitanias do Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá...
228
Idem
229
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Documentos coligidos e pref. por Américo Pires Lima. Lisboa:
Agência Geral do Ultramar, 1953. p. 130
230
Idem, p. 131
231
“No início dos Setecentos, a cidade já havia assumido uma “função cêntrica [...], posicionada entre
mundo “civilizado” europeu e o interior amazônico.” No entanto, foi com a transferência da sede
administrativa do Estado para a localidade, em 1751, que a centralidade de consolidou. SANJAD, Nelson.
Ciência e poder imperial no Grão-Pará: da expansão à desconstrução (1750-1840). IN: KURY, Lorelai;
95
GESTEIRA, Heloisa (Orgs). Ensaios de História das Ciências no Brasil: das luzes à nação independente.
Rio de Janeiro: EDUERJ, 2012. p. 226
232
PATACA, Ermelinda Coutinho. Mobilidades e permanências de viajantes no Mundo Português. Entre
práticas e representações científicas e artísticas. São Paulo: Tese de Livre Docência, Universidade de São
Paulo/ Faculdade de Educação, 2015. p. 142
233
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Roteiro das viagens que fez pelas capitanias do Pará, Rio Negro,
Mato Grosso e Cuiabá...
234
Idem
96
sobre as variedades de tartarugas que há no Estado do Grão-Pará e do uso que lhe dão,
Memória sobre os jacarés do Estado do Grão-Pará, Memória sobre o peixe-boi e do uso
que lhe dão no Estado do Grão-Pará. Ele fez também recolhas de exemplares dos três
reinos da natureza e de produções humanas. Há o registro de que deixou pronta a quinta
remessa feita do Grão-Pará, no dia 10 de janeiro de 1785, contendo oito caixões de
madeira.
Na capitania de São José do Rio Negro, a expedição recebeu a proteção do então
comissário da quarta divisão de limites de fronteira, João Pereira Caldas, a quem
Rodrigues Ferreira designou como terceiro patrono Viagem Filosófica.235 Pereira Caldas
garantiu “uma decente acomodação para ele e para os mais empregados” e o beneficiou
com os conhecimentos que possuía sobre a região. Ele confiou ao naturalista produtos
naturais que havia recolhido e “editais, portarias, avisos, cartas circulares e particulares
expedidas por S. Exa e pelos seus predecessores sobre as diferentes repartições e
demarcações e dependências da população da agricultura, do comércio, da navegação e
manufatura do Estado.”236 Segundo Ronald Raminelli, para deslocar-se e escrever
pelo/sobre a capitania do Rio Negro, Rodrigues Ferreira “recorreu aos relatórios de
Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio (1774-1775), Teodósio Constantino de Chermont
(1720), José António Landi (1755) e informações transmitidas por Manuel Gama Lobo
d’Almada (1787)”237
O mapa a seguir contempla a viagem entre as capitanias do Pará e do Rio Negro
pelo rio Amazonas, além de demonstrar os deslocamentos realizados a partir de Belém
(1783 e 1784) e partindo de Barcelos (1784 a 1787), dos quais falaremos adiante. Foi
elaborado pela geógrafa Gislaine Faria, tendo como base as informações reunidas a partir
235
João Pereira Caldas teve expressiva atuação política na América portuguesa na segunda metade do
século XVIII. Segundo Fabiano Villaça dos Santos, “na historiografia, aparece como um dos mais ativos
agentes da colonização nas conquistas do Norte, tendo se destacado não só na estruturação da capitania do
Piauí, mas também na execução de um arrojado plano de recuperação econômica do Estado na década de
1770 e, posteriormente, nas demarcações do Tratado de Santo Ildefonso.” SANTOS, Fabiano Villaça. Uma
vida dedicada ao Real Serviço João Pereira Caldas, dos sertões do Rio Negro à nomeação para o Conselho
Ultramarino (1753-1790). VARIA HISTÓRIA, Belo Horizonte, vol. 26, nº 44: p.499-521, jul/dez 2010. p.
501
236
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Expedição Philosophica pelas Capitanias do Pará, Rio Negro, Mato
Grosso e Cuyabá. Documentos do Museu Bocage de Lisboa [antigo Museu da Ajuda]. Introdução por
Carlos Almaça. Lisboa: Kapa Editorial, 2002. p. 209
237
RAMINELLI, Ronald. Op. Cit. 1998. p. 160
97
238
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Expedição Philosophica pelas Capitanias do Pará, Rio Negro, Mato
Grosso e Cuyabá. Documentos do Museu Bocage de Lisboa [antigo Museu da Ajuda].. Kapa Editorial,
2002. p. 210
239
Idem, p. 210
99
240
FERREIRA, Alexandre R. Diário da Viagem Filosófica pela Capitania de São José do Rio Negro: com
a informação do estado presente. In: FERRÃO, Cristina; SOARES, José Paulo Monteiro (Orgs.). Viagem
ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira. Rio de Janeiro: Kapa Ed., 2007. v. 3. p. 84
241
Os escritos de Alexandre Rodrigues Ferreira sobre a forma mais adequada de cultivar o anil na Capitania
do Rio Negro associam-se à premissa “de que a história natural permitiria e instrumentalizaria o
conhecimento de uma determinada planta e, caso ela fosse bem entendida pelo plantador, pelo fazendeiro,
pelo camponês, qualquer um deles saberia como bem aproveitá-la nas devidas condições locais e, dentro
dessa lógica, a geração da riqueza decorreria consequentemente desse conhecimento básico e fundamental,
originado na história natural e que teria máxima utilidade para o estado monárquico.” SCHIVIANATTO,
Iara. Op. Cit. 2017. p. 47-48
242
FERREIRA, Alexandre R. Diário da Viagem Filosófica pela Capitania de São José do Rio Negro: com
a informação do estado presente. Rio de Janeiro: Kapa Ed., 2007. v. 3
243
Idem, p. 161
100
244
SAMPAIO, Patrícia Maria Melo. Op. Cit. 2011.
245
PATACA, Ermelinda. Op. Cit. 2015. p. 198
246
KURY, Lorelai. Op. Cit. 2008. p. 81
101
O seu método consistirá em reunir por escrito o que for perceptível e útil: a
Geografia, a Física, a Litologia, a Botânica, a Zoologia, a Economia, a Política,
os costumes, as antiguidades... O objetivo será conhecer melhor a natureza,
ajustando o conhecimento natural das plantas, dos animais e das pedras ao
influxo do sistema mundano e aos usos da humanidade. (Lineu. Phyl. Bot.)
247
Roteiro das viagens que fez pelas capitanias do Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá...
248
Idem
102
nação Catauixi que habita as margens do rio Purus, Memória sobre o gentio Miranha
que habitam a margem setentrional do rio Solimões, Memória sobre os índios espanhóis
que se apresentaram na vila de Barcelos, Memória sobre as máscaras e farsas que fazem
para os seus bailes dos gentios Yurupixunas.
Instalado na vila-capital do Rio Negro, dedicou-se também a organizar e remeter
as coleções que coletara nos deslocamentos. De Barcelos foram enviados, em diferentes
datas, para Lisboa, um total de noventa e quatro caixões de madeira, oito caixas de folhas
de flandres, um cilindro, dezoito frasqueiras, dezessete barris, quatro gaiolas com cobras
vivas e outros animais, somando um total de centro e quarenta e dois itens.249 Assim como
no período de viagem e permanência no Pará, os riscadores trabalharam de forma intensa
na capitania de São José do Rio Negro. No ano de 1785, foram remetidos da última
localidade para o reino dezessete prospectos, vinte nove animais, cinquenta plantas; em
1786: trinta e oito prospectos, dezessete animais e cento e setenta plantas; em 1787:
dezesseis prospectos, dezoito animais e noventa e nove plantas.
O naturalista permaneceu em Barcelos até receber ordens expressas de partir para
a capitania do Mato Grosso, onde deveria se dedicar, sobretudo, às investigações de cunho
mineralógicos. Além de aventar a possibilidade de retornar para Portugal sob a
justificativa da necessidade de estudar com maior profundeza os materiais reunidos, o
naturalista propôs-se, assim que cumpridas as ordens de percorrer o rio Negro, Branco e
adjacências, a navegar rumo ao rio Japurá ou ao Madeira.250 No entanto, em 30 de janeiro
de 1788, chegou até Barcelos a carta que dava ordens para Rodrigues Ferreira seguir,
acompanhado dos riscadores e jardineiro botânico, para a capitania do Mato Grosso a
partir do rio Madeira.
Em fins de agosto de 1788, a expedição chefiada por Rodrigues Ferreira partiu
para vila Bela, tendo como primeiro desafio percorrer 243 léguas do rio Madeira e vencer
doze cachoeiras. A ordem para dirigir-se da capitania de São José do Rio Negro para a do
Mato Grosso havia chegado do reino meses antes, mas foi necessário mais de um semestre
para a organização da viagem. Como observado pela historiadora Maria de Fátima Costa,
“novas embarcações rigorosamente adequadas às necessidades dos trabalhos naturalistas
249
Idem
250
Roteiro das viagens que fez pelas capitanias do Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá...
103
251
COSTA, M. de Fátima. Alexandre Rodrigues Ferreira e a capitania de Mato Grosso: imagens do interior.
História, Ciências, Saúde. Manguinhos, vol. VIII (suplemento), 993-1014, 2001. p. 1001
252
FERREIRA, Alexandre Rodrigues Ferreira. Documentos coligidos e pref. por Américo Pires Lima.
Lisboa: Agência Geral do Ultramar, 1953. p. 224
104
253
Idem, p. 1001
105
254
Segundo Maria de Fátima Costa, Rodrigues Ferreira fazia “referência com este termo a uma das formas
de cura então usada naquelas remotas paragens.” Idem, p. 1002
255
Correspondências ativa, passava e indireta (1788-1818). Documentos da Fundação Biblioteca Nacional
e Instituto Histórico e Brasileiro. In: FERRÃO, Cristina; SOARES, José Paulo Monteiro (Orgs.). Viagem
ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira. Rio de Janeiro: Kapa Ed., 2007. v. 2. p. 70
256
PATACA, Ermelinda. Op. Cit. 2015. p. 146
257
RAMINELLI, Ronald. Viagens Ultramarinas; monarcas, vassalos e governo a distância. São
Paulo: Alameda Casa Editorial, 2008. pp. 115 e 116
106
258
COSTA, Maria de Fátima. Op. Cit. 2001. p. 1003
259
Idem, p. 1003
260
Gruta do inferno: descrição feita pelo Dr. Alexandre Rodrigues Ferreira, em Cuiabá (1789). Revista
do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, t. 4, 2ª ed. (1863), p. 363-367. p. 383
261
Idem, p. 366
107
Por fim, examinou três grandes baías pantaneiras, Gaiba, Uberava e Mandioré e navegou
pelo rio Jaurú, donde voltou por terra para Vila Bela.262
No retorno para a sede do governo do Mato Grosso, a expedição começou a
organizar a viagem de volta para a cidade do Pará, a qual teve início em outubro de 1791.
Depois de percorrerem “762 léguas de marcha em retirada”, em janeiro de 1792,
atingiram Belém. O retorno para o reino não foi imediato, o naturalista ainda navegou 15
léguas pelo Rio Guamá “para observar o fenômeno da pororoca”, visitou mais uma vez a
Ilha de Joanes e escreveu o texto intitulado Propriedade e posse das terras do Cabo Norte
pela Coroa de Portugal deduzida dos Anais Históricos do Estado do Maranhão e de
algumas memórias e documentos por onde se acham dispersas as suas provas. Com
importante caráter estratégico, buscou comprovar “que as terras do Cabo do Norte,
situadas entre o Rio das Amazonas e o Oyapok ou Vicente Pinçon são privativas da Coroa
de Portugal e soberanamente se mostra de Direito de fato.”263
Em junho de 1801, o documento foi enviado por Rodrigues Ferreira para Dom
Rodrigo de Souza Coutinho, junto com as “cartas originais do canal boreal da entrada do
Rio da Amazonas e da Ilha Grande de Joanes.”264 Ele alertava D. Rodrigo para os riscos
de ocupação por parte dos franceses na entrada do rio Amazonas. Como conhecedor do
território afirmava que, caso isso se efetivasse, Portugal podia dar “adeus a praça de
Macapá, com ela toda a margem boreal do rio das Amazonas, adeus [a] Ilha Grande de
Joanes, com ela toda a subsistência dos moradores da cidade do Pará; e adeus índios,
negros, escravos e soldados descontentes.”265
Concluía que o desenrolar político na Europa demonstrava que Portugal, por si só,
não graduaria “na escala política das nações, se não de uma potência da última ordem.
Porém ali no Brasil, ainda na última extremidade de ser obrigado a refugiar-se nele. Ali,
[...] mutatis mutandis, tem Portugal sobejamente, com que vir a ser um florentíssimo
262
Roteiro das viagens que fez pelas capitanias do Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá. Manuscrito
pertencente a Faculdade de Ciências de Lisboa. Consulta Centro de Documentação e Pesquisa dos
Domínios Portugueses (CEDOPE), Departamento de História, Universidade Federal do Paraná.
263
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Propriedade e posse das terras do Cabo Norte pela Coroa de Portugal
deduzida dos Anais Históricos do Estado do Maranhão e de algumas memórias e documentos por onde se
acham dispersas as suas provas. Por Alexandre Rodrigues Ferreira. Pará, em 24 de abril de 1792. Biblioteca
Nacional do Rio de Janeiro, catálogo da expedição Alexandre Rodrigues Ferreira, nº 10521, nº 160.
264
Idem
265
Idem
108
266
Idem
267
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Correspondências ativa, passiva e indireta (1788-1818).
Documentos da Fundação Biblioteca Nacional e Instituto Histórico e Brasileiro. In: FERRÃO, Cristina;
SOARES, José Paulo Monteiro (Orgs.). Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira. Rio de Janeiro:
Kapa Ed., 2007. v. 2. p. 30
109
Não achava faltar talentos ao letrado luso-brasileiro, mas sim saúde e estabilidade
política no reino, principalmente a partir da ocupação francesa e do início da
fragmentação de seu acervo. Já Emílio Goeldi afirmou que houve, na primeira metade do
século XIX, em Portugal, ao menos uma tentativa de publicação dos resultados da
viagem, ficando prontas, inclusive, algumas gravuras. Mas o zoólogo suíço, mesmo
reconhecendo o pioneirismo da expedição do naturalista, destacou a fragilidade de sua
produção intelectual, o que atribuía a insuficiente formação no campo das ciências da
natureza recebida em Coimbra.269
268
SÁ, Manuel José Maria da Costa e. Op. Cit. 1817.
269
Ronald Raminelli, autor de importante estudo no qual procurou compreender de forma articulada as
Viagens Filosóficas realizadas no Império colonial português na segunda metade do século XVIII, retomou
a ideia da debilidade científica portuguesa. Para o historiador, a “fragilidade científica era recorrente em
quase todos os estudos produzidos no ultramar o que indicava a debilidade das instituições científicas da
metrópole, o esvaziamento da Universidade, museus e academias, particularmente depois dos anos 1790.”
A carreira de Rodrigues Ferreira forneceu a ele “elementos irrefutáveis da mencionada debilidade
científica.” Além disso, Raminelli considerou que as atividades científicas em Portugal estiveram
associadas à busca por mercês e pela inserção na burocracia estatal: “coincidência ou não, Ferreira teve seu
110
período mais produtivo durante a viagem, ou antes de alcançar os títulos e os cargos almejados. Evidencia-
se, então, o emprego da história natural como dom, serviço e crédito para futuras mercês. Depois de alcançar
essas benesses, sua produtividade como naturalista entrou em processo de queda.” RAMINELLI, Op. Cit.
2008. p. 157
270
GOELDI, Emílio. Op. Cit. p. 89
271
KURY, Lorelai. Op. Cit. 2008. p. 81
272
Idem, p. 81
273
Ângela Dominguess, Ermelinda Pataca e Lorelei Kury chamam atenção para este aspecto em suas
reflexões.
111
274
SANJAD, Nelson. Op. Cit. 2012. p. 226
275
Biografias dos Drs. Francisco José de Lacerda Almeida e Antonio Pires da Silva Pontes, por Francisco
Adolfo de Varnhagen. Revista IHGB - Tomo XXXVI - Parte Primeira, 1873.
112
Dias Paes Leme, partiu, em 1674, em busca da “Serra das Esmeraldas” rumo ao lugar no
qual, em 1720, seria criada a Capitania de Minas Gerais, e onde, também, nasceria
Mariana Dias Paes Leme.”276 Tratava-se de uma família envolvida com a interiorização
da colônia, com o enriquecimento associado à mineração e ao angariamento de patentes
militares.277
A seguir o exemplo de outras famílias abastadas, Silva Pontes foi enviado para
Portugal, em 1769, para ter acesso ao ensino superior. Antes, contudo, foi estudante do
Seminário de Mariana, instituição destinada à formação de padres e a fornecer ensino
preparatório para o ingresso na Universidade a quem tivesse condições de custear os
estudos. O estabelecimento de ensino foi fundado pelo primeiro bispo de Mariana, o
jesuíta Dom Frei Manual da Cruz, em 1750, diante da demanda de ter na capitania um
espaço para formar o corpo eclesiástico. Poucos anos depois a Companhia de Jesus foi
expulsa do Império. O Seminário de Mariana funcionou de forma irregular até as
primeiras décadas do século XIX, quando foi tomado como foco de disputas entre
liberais-moderados e conservadores da província.278
Caso Antonio Pires da Silva Pontes não tenha acompanhado o debate em torno do
reformismo ilustrado português em Minas Gerais, certamente ele o acompanhou em
Coimbra. O fato dele ter desistido da Faculdade de Cânones e se matriculado na recém
criada Faculdade de Matemática, a compor junto com Francisco José de Lacerda e
Almeida a primeira turma do curso superior, nos parece um sintoma do momento de
276
DOMINGOS, Flávia Kurunczi. Matemática a serviço do Império: A trajetória do demarcador Antônio
Pires da Silva Pontes Leme (1777-1790), 2008. Dissertação (Mestrado em Mestrado Em História) -
Universidade Federal de Mato Grosso, 2008. p 28
277
“Em Minas Gerais, as atividades da família de Antônio Pires se concentrariam em cargos militares –
capitães de cavalaria – inclusive seu pai e irmão mais velho chegaram ao posto de capitão-mor.” Idem, p.
28
278
Em minha dissertação estudei as disputas políticas, religiosas e educacionais em torno do Seminário de
Mariana nas décadas de 1820 e 1830. Verifiquei que os embates estiveram associados à redefinição dos
poderes políticos e religiosos no contexto de autonomização do Brasil, mas também aos conteúdos que
seriam ensinados à mocidade mineira. Antonio José Ribeiro Bhering, padre-político e lente filosofia, foi
expulso do quadro de professores do colégio pelo bispo Dom Frei José da Santíssima Trindade, acusado de
ensinar “novidades filosóficas”. Além de defensor da liberdade de imprensa e do constitucionalismo,
Bhering julgava fundamental que se ensinasse as “ciências modernas”, incluindo a história natural, na
instituição. Sabemos que há rupturas fundamentais entre fins do século XVIII e início do XIX, mas há
também permanências no que confere ao debate em torno da educação e das ciências iluminista.
ALMEIDA, Gabriela Berthou. Jogos de poderes: o Seminário de Mariana como espaço de disputas
políticas, religiosas e educacionais. Campinas, Mestrado em História, Unicamp, 2015.
113
mudanças. Doutorou-se cinco anos mais tarde, quando foi nomeado matemático e
astrônomo real e indicado para integrar a terceira partida da Comissão de Demarcação de
Fronteira na América. Depois de receber treinamento sob a supervisão do professor
Antônio Siera, partiu para Belém, onde chegou em 26 de fevereiro 1780.
No mês de agosto, os comissários seguiram para a capitania de São José do Rio
Negro. Somente a partir da chegada na vila de Barcelos temos notícias do início da
sistematização em forma de diário por Silva Pontes. De Barcelos o matemático partiu, em
janeiro de 1781, conjuntamente com o engenheiro Ricardo Franco de Almeida Serra, para
explorar o curso do rio Branco. Durante a viagem, com duração de cerca de quatro meses,
produziu o texto intitulado Breve diário ou memória do rio Branco e de outros que nele
desaguam e desenhou um mapa.279 O relato foi remetido ao naturalista Alexandre
Rodrigues Ferreira, que o utilizou em suas incursões pelo mesmo rio poucos anos
depois.280
Silva Pontes concedeu especial atenção aos rumos e às medidas do rio Branco e
de seus afluentes e aos desafios referentes à navegação apresentados em trechos
específicos. Não deixou, no entanto, de tratar de outros assuntos, como da moléstia que o
acometeu no percurso, da abundância de peixes, das povoações indígenas com as quais
cruzou e das relações comerciais estabelecidas entre a nação Caripuna e os holandeses.
Lembrou da passagem do viajante francês La Condamine pela região.
Retornou para Barcelos e da localidade partiu quatro meses mais tarde para o Mato
Grosso. Foi a partir do trajeto para essa capitania que ele produziu a maior parte de seus
textos e imagens, a começar pelo detalhado diário no qual narrou o percurso entre a vila
de Barcelos e a vila Bela.281 Neste documento, Silva Pontes dedicou-se a relatar as
medições de latitude e longitude dos locais visitados. No entanto, chama atenção seu
empenho em descrever os animais, as plantas e os minerais, recorrendo ao sistema de
279
Este diário foi publicado em 1841 na coletânea financiada pela Assembleia Legislativa de São Paulo.
280
Breve diário ou memória do Rio Branco e de outros que nele desaguam, consequente a diligência e mapa
que deste rio se fez no ano de 1781. Coleção Alexandre Rodrigues Ferreira proveniente da Coleção [Lagos].
CEHB Nº 148. ABN v 72, p. 128. Cat. ARF nº 145 – cópia do manuscrito, constam correções de Alexandre
Rodrigues Ferreira e anotações Drummond.
281
PONTES, Antonio Pires da Silva. Diário de Viagem de Antônio Pires da Silva Pontes. Vila Bela, 1 de
setembro de 1781. In: MENDONÇA, Marcos Carneiro de (org.). Rios Guaporé e Paraguai: primeiras
fronteiras definitivas do Brasil. Rio de Janeiro: Xerox do Brasil, 1985.
114
282
Idem
283
Estatutos da Universidade de Coimbra. Livro III. Lisboa, Régia Oficina Tipográfica, 1772. Reimpressão
facsimilar: Coimbra, Imprensa da Universidade, 1972.
284
PONTES, Antonio Pires da Silva. Diário de Viagem de Antônio Pires da Silva Pontes. Vila Bela, 1 de
setembro de 1781. In: MENDONÇA, Marcos Carneiro de (org.). Rios Guaporé e Paraguai: primeiras
fronteiras definitivas do Brasil. Rio de Janeiro: Xerox do Brasil, 1985.
285
Idem
286
Idem
115
Albuquerque Pereira Cáceres, que um mês depois partiu, acompanhado dos engenheiros
Ricardo Franco e Joaquim José Ferreira e de Antonio Pires da Silva Pontes para
“observar, reconhecer e marcar, desde a serra fronteira desta vila até o rio Barbados e
outros lugares e lagoas que podiam ser interessantes para a Demarcação dos Reais
Limites.”287
De acordo com Flávia Domingos, Silva Pontes “faria diversas incursões em
direção às cabeceiras dos rios Barbados e Guaporé e suas adjacências, enquanto Lacerda
e Almeida ficaria encarregado de observações em regiões mais ao norte.”288 A partir
desses deslocamentos, o matemático produziu o texto intitulado Relato das viagens
realizadas no rio Guaporé e Barbados (1782-1783). Os recorrentes deslocamentos para
essa região, cerca de sete vezes no espaço de dois anos, estiveram associados ao “fato de
serem esses rios – Guaporé, Barbados, Jaurú, Paraguai – parte de importantes rotas de
comunicação e comércio que, conforme os tratados, estavam na linha de limites.”289
Consistia em região estratégica para a garantia dos vínculos entre duas bacias
hidrográficas, a Amazônica e a do Prata.
Em 1786, todos os membros da terceira partida de demarcação foram
encarregados de se deslocarem até a vila de Cuiabá. Neste momento, Silva Pontes redigiu
um escrito com título de Notícias do Lago de Xarayes. Parte deste texto foi encaminhado
em forma de ofício para Martinho de Melo e Castro e de correspondência ao naturalista
Alexandre Rodrigues Ferreira.290 O manuscrito foi também remetido para a Academia
Real das Ciências de Lisboa, junto com um mapa. O matemático ressaltava que realizou
o reconhecimento do rio Paraguai e dos lagos adjacentes, dentre eles Xarayes, confundido
em diversas ocasiões com a lagoa da Gayva, sobre a qual também produziu uma Memória.
Esta última – Memória físico geográfica acompanhada de um plano das lagoas Gayva,
287
DOMINGOS, Flávia Kurunczi. Op. Cit. p. 75
288
Idem, p. 76
289
Idem, p. 78
290
Notícias do Lago de Xarayes. Cópia Manuscrito. Faz referência aos índios Parabuá, bem como a fauna
e flora da região. Consta paginação de 340 a 349. Coleção Alexandre Rodrigues Ferreira. Proveniente da
Coleção Carvalho. CEHB nº 19.377. ABN v 72, p 129. 21, 1, 007 nº 001.
116
291
Memória físico geográfica acompanhada de um plano das lagoas Gayva, Uberaba e Mandiorem que
oferece ao Sr. Alexandre Rodrigues Ferreira, naturalista a serviço de sua majestade, por seu condiscípulo e
criado obrigadíssimo Dr. Pontes”, 29/05/1790. Manuscrito. Consta nota do bibliotecário na última folha.
Outra versão em 21, 1, 048 nº 001. Coleção Alexandre Rodrigues Ferreira proveniente da Coleção [Lagos].
Cat ARF nº 146. ABN v 72, p 129. CEHB nº 663
292
Notícias do Lago de Xarayes. Cópia Manuscrito. Faz referência aos índios Parabuá, bem como a fauna
e flora da região. Consta paginação de 340 a 349. Coleção Alexandre Rodrigues Ferreira. Proveniente da
Coleção Carvalho. CEHB nº 19.377. ABN v 72, p 129. 21, 1, 007 nº 001.
293
COSTA, Maria de Fátima. História de um País Inexistente - O Pantanal entre os séculos XVI e XVIII.
São Paulo: Estação Liberdade & Kosmos, 1999. p. 221
117
No retorno de Cuiabá para vila Bela, Lacerda e Almeida recebeu ordem de Luiz
de Albuquerque de Melo Pereira Cáceres para deslocar-se até a capitania de São Paulo.
Já Silva Pontes foi incumbido novamente de descer o rio Guaporé e subir o Paraguai até
as balizas praticadas na expedição de demarcação “sem que haja perda de tempo e antes
que as águas diminuam demasiadamente e dificultem ou de todo impossibilitem
semelhantes diligência.”294 O matemático deveria rever as medições e descrever os
“morros soltos e cordilheiras [...] observados de perto ou de longe, marcando o verdadeiro
rumo a que jazerem [...] em razão de não ser certamente uma coisa indiferente nos
ponderados termos que todas estas noções se adquirem.”295 Como esclareceu Flávia
Domingos:
No retorno, ao cair novamente no rio Guaporé, deveria subir até o encontro com
o rio Verde, “o qual desemboca três únicos dias de viagem desta vila.”297 Na carta em que
deu instruções de trabalho para Silva Pontes, o governador concluiu que tratava-se de
mais uma oportunidade dele prestar serviço à Majestade e “para que de uma só cajadada
matemos dois coelhos.”298 A partir dessa experiência, Silva Pontes produziu o Relato de
viagem reconhecimento dos rios Paragaú e Verde (1789).
Em 1790, os trabalhos de demarcação de fronteiras foram encerrados e no mesmo
ano Silva Pontes retornou para Lisboa. Foi nomeado lente de Matemática da Companhia
dos Guardas Marinhas por Martinho de Melo e Castro. Logo em seguida, casou-se com
Caetana Malheiros, natural de Portugal. Um dos filhos do casal, Rodrigo de Sousa da
294
AHU: Mato Grosso_ACL_CU_010, Cx. 26, D. 1540.
295
AHU: Mato Grosso_ACL_CU_010, Cx. 26, D. 1540
296
DOMINGOS, Flávia Kurunczi. Op. Cit. 2008. p. 102
297
AHU: Mato Grosso_ACL_CU_010, Cx. 26, D. 1540
298
AHU: Mato Grosso_ACL_CU_010, Cx. 26, D. 1540
118
299
Biografias dos Drs. Francisco José de Lacerda Almeida e Antonio Pires da Silva Pontes, por Francisco
Adolfo de Varnhagen. Revista IHGB - Tomo XXXVI - Parte Primeira, 1873. p. 186-187
300
PONTES, Antonio Pires da Silva. Memória sobre a utilidade pública em se tirar o ouro das minas, e os
motivos dos poucos interesses dos particulares que atualmente mineram o Brasil. In: Memórias econômicas
inéditas (1780-1808). Coleção de Obras Clássicas do Pensamento Econômico Português. Lisboa, Academia
de Ciências de Lisboa, Banco de Portugal, 1994. No final do século XIX, o texto foi publicado na Revista
do Arquivo Público mineiro.
301
PONTES, Antonio Pires da Silva. Memória Sobre os Homens selvagens da América Meridional que
serve de introdução às viagens de Antonio Pires da Silva Pontes Leme Primeiro Tenente do Mar da Armada
Real, Doutor e Astrônomo, e correspondente da Real Academia de Lisboa, Ano de 1792. O manuscrito foi
consultado no CEDOPE-UFPR.
302
Construção e análise de proposições geométricas e experiencias practicas que servem de fundamento
á Architectura Naval. George Atwood; Traduzida do Inglez Por Antonio Pires da Silva Pontes. - Lisboa:
Officina de João Procopio Correa da Silva, 1798. Disponível em:
(https://ia600706.us.archive.org/3/items/construcaeanalys00atwo/construcaeanalys00atwo_bw.pdf)
119
303
Em abril de 1799, Francisco Maurício de Souza Coutinho informou a D. Rodrigo que recebeu a cópia
da tradução da obra de Jorge Arwood feita por Silva Pontes, ficando a mesmo depositada na Secretaria do
Governo daquele Estado. AHU: Pará_ACL_CU_013, Cx. 114, D. 8839. Do mesmo modo, Fernando
Delgado Freire de Castilho informou a D. Rodrigo que recebeu a cópia da tradução da obra, mandando
imprimir algumas cópias. AHU-Paraíba, mç 19 – AHU_ACL_CU_014, Cx. 34, D. 2485. Seria necessário
um levantamento mais exaustiva para mapear a circulação da obra, o que não é objetivo deste trabalho.
304
FARIAS, P. C. de. Comunicar por via impressa todas as melhores obras. A difusão de conhecimentos
náuticos sob o ministério de D. Rodrigo de Sousa Coutinho. Boletim Eletrônico da Sociedade Brasileira de
História da Ciência, v. 10, p. 1, 2016.
120
305
MENEZES, Paulo. A Cartografia do Império do Brasil. Anais do IV Simpósio Luso-Brasileiro de
Cartografia Histórica, Porto, 9 a 12 de Novembro de 2011. p. 6
306
O decreto de nomeação datou de 11 de dezembro de 1797 e foi assinado por D. João, príncipe regente.
AHU_ACL_CU_007, Cx. 5, D. 422
307
Petição do tenente da marinha e lente de Matemática António Pires da Silva Pontes Leme a D. Maria I
na qual solicita a nomeação para tenente-coronel do regimento de cavalaria de Minas (1796). Originais do
Arquivo Histórico Ultramarino. Minas Gerais, caixa 142, doc. 36. Cópia digital do acervo do CEDOPE -
Centro de Documentação e Pesquisa de História dos Domínios Portugueses. Transcrito por Júlia Maria
Ribeiro e Ana Lúcia Rocha Barbalho da Cruz, em agosto de 2005.
121
308
Idem
309
Demarcação de limites entre Espírito Santo e Minas Gerais – 1800 [ES – CX-3, Arquivo Histórico
Ultramarino, Lisboa, Portugal. In: Pré-Memória do Governador Antônio Pires da Silva Pontes. Vitória:
Editora do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, 1999. p. 17
310
Idem, p. 17 e 18
311
As menções à ameaça dos índios botocudos, designados como “gentios inimigos”, ao estabelecimento
dos projetos coloniais luso-brasileiros por parte de Silva Pontes são recorrentes.
122
balanço de sua atuação na capitania nos últimos dois anos.312 Tratou das possibilidades
abertas pela navegação no rio Doce, a qual em sua visão deveria ser acompanhada por
uma política de povoamento de suas redondezas. Silva Pontes apostava na necessidade
de exploração agrícola “nos matos sem dono” e “abandonado ao corpo do gentio,” além
de propor estratégias para (re)povoar a região, de modo a garantir os interesses coloniais.
De todo modo, é importante deixar claro que Silva Pontes, diferente de Lacerda e
Almeida, não realizou novas expedições e nem chegou a percorrer o rio Doce.
Ao expressar a demanda pela indicação de um sujeito hábil e honrado para
continuar o governo da capitania, conclui o texto afirmando que se encontrava com a
saúde arruinada. Silva Pontes morreu pouco tempo pouco depois, no ano 1807, tendo a
sua trajetória exaltada pelo intelectual do Adolfo de Varnhagen, como um sujeito que se
dedicou aos projetos de demarcação, reconhecimento e interligação dos domínios
portugueses na América. Fazia parte de um grupo maior de letrados com formação no
campo científico cujo conhecimento acumulado em viagens para o interior do continente
foi aproveitado em projetos colonialistas para além do período em que viveu.
312
PONTES, Antonio Pires da Silva. Pré-Memória sobre a capitania do Espírito Santo e objetos do Rio
Doce. Pesquisa original, João Eurípedes Franklin Leal; seleção, Miguel Depes Tallon; introdução e notas,
Renato Pacheco – IHGES, 1999.
313
PEREIRA, Magnus; CRUZ, Ana Lucia. Francisco José de Lacerda e Almeida: Paulista, coimbrão e fiel
súdito da coroa. In: PEREIRA, Magnus; RIBAS, André (orgs). Francisco José de Lacerda e Almeida. Um
astrônomo paulista no sertão africano. Curitiba: Editora UFPR, 2012. p. 20
123
Lacerda e Almeida teve acesso aos estudos iniciais em sua capitania natal.314 No
início da década de 1770, matriculou-se na primeira turma da Faculdade de Matemática
da Universidade de Coimbra e recebeu o grau de doutor, em 1777. Tão logo formado, foi
absorvido pelos serviços da Coroa como astrônomo e matemático real. A partir de então
começou a receber treinamento sob supervisão do professor e astrônomo italiano Miguel
António Siera para integrar a equipe da expedição de Demarcação das Fronteiras no norte
da América portuguesa. Junto com o matemático Antonio Pires Leme Silva Pontes e com
os engenheiros Joaquim José Ferreira e Ricardo Franco de Almeida Serra foi integrado à
“terceira divisão pertencente ao distrito do Governador do Mato Grosso”315
O matemático desembarcou em Belém em fevereiro de 1780 e seis meses depois
partiu para o interior do território amazônico. Percorreu por uma década regiões do Grão-
Pará, Rio Negro e Mato Grosso, munido de instrumentos matemáticos e astronômicos,
tais como agulhas e barras magnéticas, estojo de riscar, instrumento circular, relógio de
segundos.316 Uma vez concluídas as atividades da Comissão de Demarcação rumou,
partindo do Mato Grosso, para São Paulo, sua capitania natal. De acordo com a publicação
da Imprensa Nacional datada de 1944, Lacerda e Almeida produziu, neste período, cinco
diários e pelo menos dois mapas.
No Diário de viagem de Lisboa até a vila de Barcelos, datado de 1780, fez breves
apontamentos do percurso com duração de dois meses e meio traçado entre Belém e
Barcelos sob supervisão de João Pereira Caldas, Comissário Geral das Demarcações no
Rio Negro. Embora o título remeta para o início da expedição no reino, não há, para além
de indicações de datas, notícias da travessia nem do período que permaneceu na capital
do Grão-Pará.
Para aproveitar a passagem pela capitania do Rio Negro, Lacerda e Almeida
realizou incursões por seus arredores. Deslocou-se para o forte de São José de
Marabitanas, de dezembro de 1780 até janeiro do ano seguinte, e redigiu um pequeno
relato intitulado Diário de viagem da Vila de Barcelos até acima do forte de São José de
Marabitanas e também pelo rio Vaupés. Antes de seguir para o Mato Grosso, os membros
314
HOLANDA, Sérgio Buarque (prefácio). Op. Cit. 1944.
315
AHU: Mato Grosso_ACL_CU_010, Cx. 21
316
AHU: Mato Grosso_ACL_CU_010, Cx. 27, D. 1594
124
317
ALMEIDA, Francisco José de Lacerda e. Diários de viagem. Prefácio de Sérgio Buarque de Holanda.
Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1944. p. 31
318
Idem, p 34
319
Ibidem, p. 20
125
320
Idem, p. 40
321
Idem, p. 41
322
Idem, p. 53
323
Idem, p. 50
324
Idem, p. 57
325
AHU: Mato Grosso_ACL_CU_010, Cx. 26, D. 1540
126
326
Idem
327
Idem
328
A abertura dessa rota estava diretamente associada à descoberta de ouro em Cuiabá. “Para o comércio e
a comunicação destas novas minas foram empreendidas expedições fluviais conhecidas como Monções.
Utilizando canoas de tecnologia indígena, os monçoeiros saíam de São Paulo pelo rio Tietê e cruzavam as
águas da bacia paraguaia, até alcançarem as Minas do Cuiabá. Era uma viagem longa, difícil e perigosa.”
COSTA, Maria de Fátima. De Xarayes ao Pantanal: a cartografia de um mito geográfico. Revista do IEB
n. 45, p. 21-36, set 2007. p. 32
329
ALMEIDA, Francisco José de Lacerda e. Op. Cit. 1944. p. 61
127
(assim o posso dizer) cheio de matos altíssimos e ásperos e de algum campo pela maior
parte inundado e pestífero.”330 Noticiou, enfim, a sua chegada em São Paulo no dia 10 de
janeiro de 1789 com grande satisfação, a elogiar o clima, a fertilidade da terra e as gentes
que “viviam na maior felicidade.”
Desconhecemos algum registro em diário sobre a permanência em solo paulista.
A última notícia na América portuguesa foi o deslocamento de São Paulo para Santos, de
onde Lacerda e Almeida partiu novamente para Lisboa no dia 13 de maio de 1790. Vale
lembrar que Pereira Cáceres recomendava o seu retorno à vila Bela para onde havia sido
designado em serviço real. No entanto, não houve tempo hábil. Os membros da Comissão
de Demarcação de Fronteira receberam ordem para retornar ao reino, pois encerraram-se
as partidas portuguesas e espanholas.
Lacerda e Almeida enviou para a Academia Real das Ciências de Lisboa o diário
e um mapa nos quais descreveu o trajeto de vila Bela a São Paulo e foi aceito como sócio
correspondente da instituição. Remeteu também a Memória a respeito dos rios Buares,
Branco, da Conceição, de S. Joaquim, Itonamas e Maxupo e das três missões da
Madalena, da Conceição e de São Joaquim. Tratava-se dos resultados da exploração nos
rios Itomamas e Machupo, afluentes do rio Guaporé – o que fez “sem despertar a atenção
dos espanhóis” que nas proximidades mantinham as missões de Moxos331 – no período
em que estava em vila Bela. Além de navegar pelos rios, visitou as missões da Madalena,
Conceição e de São Joaquim e teceu comentários acerca da população indígena aldeadas
e dos administradores que nelas habitavam.
Logo que pisou novamente em solo lusitano, foi nomeado, assim como Silva
Pontes, lente de Matemática da Companhia dos Guardas Marinhas por Martinho de Melo
e Castro. Em seguida, casou-se com Cecília Craveiro Lavache de Faria, natural de
Figueiró dos Vinhos e filha do metalúrgico José Lavache. De acordo com Magnus Pereira
e Ana Lúcia Cruz, “a Companhia dos Guardas Marinhas funcionava em anexo do Arsenal
onde era fundido material bélico. Lavache e Lacerda circulavam por espaços onde se
desenvolviam as mesmas atividades e não é descabido inferir que os dois houvessem
330
Idem, p. 80
331
PEREIRA, Magnus; CRUZ, Ana Lucia. Op. Cit. 2012. p. 37
128
332
Idem, p. 42
333
Idem, p. 43
334
AHU, Moçambique, Caixa 77, Doc. Nº 41. In: livrão, p 182
335
CRUZ; PEREIRA. In: PEREIRA, Magnus; RIBAS, André (orgs). Op. Cit. 2012. p. 51
129
corrobora com a explicação de Pereira e Cruz acerca do deslocamento para região distante
do reino com mulher e filha.
336
RODRIGUES, Eugenia. As donas de prazos do Zambeze. Políticas imperiais e estratégias locais. IN:
PEREIRA, Magnus. Et. Al (org). VI Jornada Setecentista; Conferência e comunicações. Curitiba: Aos
Quatro Ventos, 2006. pp. 15-34
337
AHU, Moçambique, Caixa 103, Doc. Nº 63. Disponível em: PEREIRA, Magnus; RIBAS, André (orgs).
Op. cit. 2012. p 434
130
338
PEREIRA, Magnus; RIBAS, André (orgs). Op. cit. 2012. p 551. Em 1799 este diário foi depositado na
Sociedade Real Marítima.
339
Idem, p. 523
131
O mapa a seguir foi elaborado pela geógrafa Gislaine Garcia de Faria a partir das
informações reunidas nos diários de Lacerda e Almeida e tendo como base o mapa
publicado no trabalho de Maria Emília Madeira Santos.340 O tracejado em vermelho
indica o deslocamento da vila de Moçambique até a vila de Tete, capital dos Rios de Sena.
O percurso foi trilhado em parte pelo mar e na outra pelo rio Zambeze, como dito
anteriormente. A linha azul corresponde ao início da expedição de travessia e evidencia
que, embora houvesse a recomendação da descoberta de caminhos fluviais, foi por terra
que o percurso foi trilhado. O projeto foi interrompido pelo falecimento de Lacerda e
Almeida, e também pelo bloqueio imposto por Mwata Kazembe, liderança africana com
a qual os agentes da colonização portuguesa tentavam estabelecer relações de amizade.
340
O mapa pode ser consultado na internet. Além do trajeto de Lacerda e Almeida contempla o dos
pombeiros responsáveis por concluir a travessia do continente no início do século XIX. SANTOS, Maria
Emília Madeira. Viagens de Exploração Terrestre dos Portugueses em África. Lisboa: Centro de Estudos
de Cartografia Antiga, 1978.
132
Antes de falecer, Lacerda e Almeida deu ordem ao padre capelão Francisco João
Pinto para tomar frente do grupo na sua ausência. O padre-capelão chegou a estabelecer
contato e trocas de presentes com o Mawta Kazembe, mas a expedição não conseguiu
prosseguir e os sobreviventes retornaram à vila de Tete. Em 1801, o manuscrito da viagem
que lhe custou a vida chegou até D. Rodrigo de Sousa Coutinho. Não houve, como os
textos de outros viajantes contemporâneos, a publicação imediata em Portugal. Parecia
preponderar o esforço de proteger, ou seja, não fazer circular largamente na Europa os
conhecimentos levantados sobre os domínios coloniais.
Os diários escritos no continente africano foram impressos nos Annaes Maritimos
e Colonias pela primeira vez em 1844. Poucos anos depois foram traduzidos para o inglês
e publicados pela Sociedade de Geografia de Londres, a contar com prefácio da autoria
de Richard Burton.341 Como apontamos no capítulo anterior, os escritos de Lacerda e
Almeida foram retormados, ao longo século XIX e XX, por intelectuais portugueses
favoráveis à exploração imperialista na África, para questionar as pretensões inglesas de
se “auto-declarar” como os pioneiros a adentrar o continente africano.
341
BURTON, Richard. The Lands of Cazembe. London: John Murray, 1873. PEREIRA, Magnus; RIBAS,
André (orgs). Op. cit. 2012.
133
PARTE II
PROJETOS EM AÇÃO: OS POVOS DAS CONQUISTAS
NO COTIDIANO DAS EXPEDIÇÕES CIENTÍFICAS
134
Não há nada de novo em dizer que na Amazônia colonial praticamente tudo girava
em torno dos rios, do mesmo modo que não consiste em novidade destacar que os cursos
d´águas foram utilizados de maneira estratégica e com sentidos variados pelos distintos
segmentos sociais ao longo do processo de colonização. Além de fonte básica de
subsistência, eram os “caminhos móveis”, como escreveu Sérgio Buarque de Holanda,
que ligavam as aldeias, vilas e povoações, pelos quais se escoavam os produtos a serem
comercializados, por onde ocorria o descimento e as fugas dos índios e consistiam em
marcos de fronteiras.342 Eram ainda povoados por múltiplas histórias, construtivas de
cosmologias indígenas, as quais escaparam, com raras exceções, aos registros dos
viajantes-cientistas em foco.343
Os laços estreitos com os rios não era uma peculiaridade das capitanias do norte,
embora a pujança de suas águas seja notória. Para os historiadores Rafael Chambouleyron
e José Augusto Pádua, o protagonismo dos rios marcou a história da América portuguesa
e consistiu em elemento fundamental para a construção do Estado e da nação brasileiros.
Amazonas, São Francisco, Paraná e Tietê, entre tantos outros rios, tornaram-
se ícones no imaginário do Brasil. A interação com os rios, que já era essencial
para as sociedades indígenas, transformou-se em aspecto inescapável da vida
concreta das sociedades na América portuguesa e no Brasil enquanto país,
inclusive nos seus espaços litorâneos. 344
342
HOLANDA, Sérgio Buarque. Monções. São Paulo: Editora Alfa-Ômega, 1976.
343
Sabemos, graças à tradição oral e aos escritos de indígenas como Ailton Krenak, Davi Kopenawa, Daniel
Munduruku, dentre outros, que as cosmologias indígenas atreladas aos rios, em particular, e natureza, em
geral, continuam vivas e operaram em uma longa duração, sendo acionadas e ressignificas em múltiplas
temporalidades.
344
CHAMBOULEYRON, Rafael; PÁDUA, José Augusto. Apresentação do dossiê: Rios e Sociedades.
Revista Brasileira de História, vol. 39, n 81. p. 16
135
Nas expedições científicas realizadas pelo Grão Pará, Rio Negro e Mato Grosso e
Cuiabá, entre 1780 e 1793, os rios foram tomados como objeto de interesse investigativo,
sendo reproduzidos em mapas e desenhos, e se constituíram enquanto espaços
privilegiados, em alguns casos únicos, de deslocamento. A documentação legada deixa
ainda outras pistas: “os rios em si mesmos, na sua materialidade” podem ser apreendidos
enquanto complexos nos quais domínios sociotécnicos se construíam e se
transformavam.345 Chambouleyron e Pádua reforçam a relevância da incorporação da
última ótica nas investigações historiográficas, pois os rios não funcionavam somente
como uma “espécie de espelho geográfico” de questões políticas e econômicas. Por meio
deles se constituíam interações de usos, conhecimentos, técnicas e tecnologias. São
caminhos garantidores não somente da circulação de gentes e mercadorias, mas também
são um caleidoscópio de saberes.
O nosso interesse particular é compreender a interação dos conhecimentos e das
técnicas dominados por remeiros, proeiros e jacumaúbas (pilotos), atividades
desenvolvidas majoritariamente por índios aldeados, com as redes fluviais percorridas
nas viagens. Falamos de sujeitos indispensáveis para o trânsito no interior amazônico.
Dito isto, parte-se da premissa de que longe de ser uma aptidão natural ou a única mão de
obra disponível localmente, remeiros, proeiros e pilotos índios possuíam, como notou
Elias Abner Ferreira, “conhecimentos profundos da floresta, seus caminhos e das espécies
arbóreas, fruto da longa experiência, passadas entre gerações e que lhes permitiram
acumular um “saber venatório” caro aos estrangeiros (europeus e africanos).”346 Seremos
norteados pelas seguintes questões: como, no interior das canoas e no cotidiano das
viagens, ocorria uma divisão das tarefas relacionadas à demanda prioritária de mover o
barco? Essa divisão se associava ao domínio de quais conhecimentos?
O pressuposto do qual partimos não é gratuito, ao contrário, se constrói em diálogo
com os estudos que reconhecem os diferentes agentes, para além dos letrados, atuantes
no processo de construção do conhecimento e com a virada fundamental das pesquisas
em história indígena no Brasil. Como observou Manuela Carneiro da Cunha, os estudos
345
Idem, p. 17-18
346
FERREIRA, Elias Abner Coelho. Oficiais canoeiros, remeiros e pilotos jacumaúbas: mão de obra
indígena na Amazônia colonial portuguesa (1733-1777). Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em História Social da Amazônia da Universidade Federal do Pará, 2016.
136
347
A expressão “despertar indígena” é utilizada por Eduardo Viveiros de Castro. Para o antropólogo, Mário
Juruna, Raoni, Angelo Cretã, Marçal de Souza, Ailton Krenak e Davi Copenawa fazem parte de uma
geração de “índios que se descobriram índios, que voltaram a ser índios sem nunca deixar de tê-lo sido”.
Ao romper com a ideia de povos aculturados, passaram a se colocar publicamente como agentes da
indigenização. Se valeram, portanto, justamente de suas identidades enquanto indígenas para reivindicar
direitos historicamente negados. CASTRO, Eduardo Viveiros. Alguma coisa vai ter que acontecer. IN:
COHN, Sérgio (org.). Ailton Krenak – Encontros. Rio de Janeiro: azougue, 2015.
348
CUNHA, Manuela Carneiro da. Introdução a uma história indígena. Índios no Brasil: história, direitos
e cidadania. São Paulo: Claro Enigma, 2012. p. 22
349
MONTEIRO, John Manuel. Negros da Terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São
Paulo: Cia das Letras, 1994. p. 154
350
Idem, p. 170
137
351
Elias Abner Ferreira destacou que desde o início do processo de colonização portuguesa na Amazônia a
necessidade de índios para remar as embarcações era constante: “na expedição que fez à Quito, no Peru,
em 28 de outubro de 1637, o capitão Pedro Teixeira sai do Pará com uma frota composta por quarenta e
sete canoas grandes, e nelas setenta soldados portugueses, mil e duzentos índios remadores e guerreiros,
que com as mulheres e rapazes do serviço ultrapassariam duas mil pessoas... A viagem de Pedro Teixeira
seria a primeira expedição portuguesa a percorrer o rio Amazonas de um extremo ao outro. Nela, chama a
atenção não apenas o grande número de embarcações que compunham o comboio, mas também os mil e
duzentos índios remadores.” Os missionários recorreram igualmente aos conhecimentos dos índios
remeiros e pilotos. FERREIRA, Elias. Op. Cit. p. 102.
352
CHAMBOULEYRON, Rafael; BONIFÁCIO Monique S; MELO, Vanice S. Pelos sertões “estão todas
as utilidades”: Trocas e conflitos no sertão amazônico (Século XVII). Revista de História 162, 1 semestre
de 2010, 13-49. p. 25. Como indicado pelos autores, “a vara de pano circulou como moeda no Estado do
Maranhão até a introdução oficial da moeda metálica em meados do século XVIII”. Sobre o tema ver:
LIMA, Alam da Silva. Do “dinheiro da terra” ao “bom dinheiro”: moeda natural e moeda metálica na
Amazônia colonial (1706-1750). Dissertação de Mestrado, História, Programa de Pós-Graduação em
História Social da Amazônia da UFPA, Belém, 2006.
353
KOK, Glória. Vestígios indígenas na cartografia do sertão da América portuguesa. Anais do Museu
Paulista. São Paulo. N. Sér. v.17. n.2. p. 91-.109 jul.- dez. 2009. p. 97
354
FERREIRA, Elias Abner. Op. Cit. p. 107
138
355
Idem, p. 117
356
Idem, p. 134
357
Idem, p. 134
358
ROLLER, Heather Flynn. Expedições coloniais de coleta e a busca por oportunidades no sertão
amazônico, c. 1750-1800. Revista de História de São Paulo, nº 168, p. 201-243, janeiro/junho de 2013. p.
215.
359
Como destacou Patrícia Sampaio, o alto número de indígenas empregados nas expedições de coleta de
drogas do sertão e nas comissões oficiais, em especial as de demarcação de fronteiras, era visto de forma
crítica por parte de algumas autoridades colônias. Alexandre Rodrigues Ferreira foi um dos que fez coro a
observação. O naturalista considerava que o emprego dos indígenas em sucessivas expedições contribuía
para a ruína das povoações e da agricultura do Rio Negro. SAMPAIO, Patrícia Maria Melo. Espelhos
Partidos: etnia, legislação e desigualdade na Colônia. Manaus: Editora da Universidade Federal do
Amazonas, 2011.
360
ROLLER, Heather Flynn. Op. Cit. p. 203
139
Mesmo perante os eminentes perigos, alguns indígenas “que não eram obrigados
a participar, tais como os oficiais nativos, faziam-no voluntariamente.”361 Para o autor,
tal escolha estava associada ao fato dos deslocamentos aos sertões proporcionarem
oportunidades limitadas em outros tipos de trabalhos compulsórios.362 Mesmo sendo
difícil mapear o que efetivamente ocorria nas expedições quando elas se afastavam das
vilas e povoações, Roller, ao analisar as devassas salvaguardadas no Arquivo Público do
Estado do Pará, observou que os documentos contém “descrições sem paralelo dos
eventos que aconteceram no sertão e retrataram, frequentemente de forma dramática, os
limites do controle colonial naquela esfera.”363
Corroborando com os argumentos de Bárbara Sommer de “que os índios possam
ter encarado as expedições ao sertão como uma trégua nas obrigações mais árduas nos
aldeamentos”364, bem como com os de Mauro Cezar Coelho acerca das possibilidades
abertas pelas “atividades comerciais não supervisionadas no sertão”,365 Roller sugeriu que
os indígenas vislumbravam nas expedições para o interior possibilidades de atuações
independentes.366 O fornecimento espontâneo dos serviços como remeiros ou jacumaúbas
estariam associados à perspectiva de expansão de suas redes sociais, culturais e
econômicas. O sertão era um universo de trocas e comunicação familiar para alguns
nativos e seus conhecimentos e redes de contato eram renovados e exercidos no cotidiano
das matas.
A equipe da Comissão de Demarcação de Fronteira da qual Francisco José de
Lacerda e Almeida e Antônio Pires da Silva Pontes fizeram parte contou, no trecho de
361
Idem, p. 203
362
Numa perspectiva que acompanhava os anseios, como escreveu a historiadora Vanice Siqueira de Melo,
de sujeitos “expulsos da sociedade colonial – como os índios, escravos fugidos, os perseguidos pela justiça
Real e pela Inquisição – o sertão era um espaço de liberdade em relação a uma sociedade que os oprimia e
a esperança de uma vida melhor.” Deste modo, “a imagem acerca do sertão variava conforme o agente do
discurso”. Poderia remeter, mesmo não sendo necessariamente utilizado o termo, a uma possibilidade de
autonomia e de sobrevivência, individual ou coletiva, nas margens do mundo colonial. MELO, Vanice
Siqueira. Cruentas guerras. Índios e portugueses nos sertões do Maranhão e Piauí (primeira metade do
século XVIII. Curitiba: Prisma, 2017. p. 30
363
ROLLER, Op. Cit. p. 204
364
SOMMER, Barbara. Negotiated settlements: Native Amazonians and Portuguese policy in Pará, Brazil,
1758-1798. Tese de doutorado em História, Universidade do Novo México, 2000.
365
COELHO, Mauro Cezar. Do sertão para o mar – um estudo sobre a experiência portuguesa na América,
a partir da colônia: o caso do Diretório dos Índios (1751-1798). Tese de doutorado em História,
Universidade de São Paulo, 2005.
366
ROLLER, Heather Flynn. Op. Cit. p. 241
140
viagem entre a vila de Barcelos e a vila Bela da Santíssima Trindade, com 516 pessoas.
Faziam parte do “estado militar e de seus adjuntos” – capitão-general, coronel de
cavalaria dos reais exércitos, tenente-coronel d'artilharia, sargento-mor engenheiro,
capitão ajudante d'ordens, capitães engenheiros, astrônomos, capitão de infantaria,
ajudante, quartel mestre, alferes, capelães, cirurgiões, ajudantes dos ditos, espingardeiro,
sargentos, furriéis, porta-bandeira, cabos d'esquadra, cadete, soldados, tambores – 86
homens.
Dentre os que compunham o “Estado Civil” – secretário, provedor da fazenda e
escrivão – encontravam-se 3 homens. Em meio aos “familiares, criados e escravos” –
mulheres, filhos, filhas, afilhados, agregados brancos, índios, mameluco e mulato, criados
brancos, mulato e preto e índios, escravos e escravas – somava-se 85 homens e mulheres.
O restante da tripulação, 341 pessoas, era formado por “oficiais índios e de equipagem
das canoas”. Desses, um era sargento-mor e outro capitão e não há especificidade de sua
condição social e cor; outros dois foram designados como “marinheiros brancos”; 21
foram apontados como “pilotos índios” e 316 como “remeiros ditos”.367
Segundo o matemático Francisco José de Lacerda e Almeida, os sujeitos
empregados no serviço do remo distribuídos nas canoas, permaneciam, enquanto
executavam as suas atividades, em pé na parte dianteira do barco.368 Obedeciam às ordens
de um “dos remadores mais antigos e experientes d´elas, com o título de proeiro.” Esse
último era único a possuir “as chaves do caixão das carnes salgadas e das frasqueiras”,
além de ser o responsável pelo “governo da proa”. Era ele quem coordenava as remadas
do grupo de acordo com a demanda de cada trecho do rio, as fazendo “mais ou menos
compassadas [...], conforme bate [...] com calcanhar na canoa, servindo cada pancada
como compasso para cada uma remada.”369
367
Os números foram apresentados por Alexandre Rodrigues Ferreira no Diário da Viagem Filosófico pela
Capitania de São José do Rio Negro.
368
Sérgio Buarque de Holanda identificou a descrição dessa forma de se posicionar nas canoas em relatos
de “paulistas” envolvidos no comércio das monções. No entanto, reconheceu que nem as canoas e nem a
forma de remar eram “peculiar à navegação do Tietê, do Pardo, do Paraguai, do Coxim ou do Taquari; que
em outras regiões brasileiras mais apartadas, sem excluir o extremo norte, onde todos os caminhos eram
fluviais esse modelo estivesse muito generalizado.” Holanda afirmou que “um desses usos, dos tripulantes
remarem sempre em pé, que foi corrente não só no Brasil, como em todo o continente americano.”
HOLANDA, Op. Cit. p. 32-33
369
Lacerda e Almeida escreveu a descrição na África oriental portuguesa, quando comparou como os
remeiros do continente americano e africano executavam os trabalhos com o remo. ALMEIDA, Francisco
141
José de Lacerda. Diário de viagem entre a Ilha de Moçambique e a vila de Tete. Disponível em: PEREIRA;
RIBAS. Op. Cit. 2012.
370
Idem.
371
ALMEIDA, Francisco José. Diário de Viagem de Moçambique para os Rios de Sena feito pelo
governando dos mesmos rios o Dr. Francisco José de Lacerda e Almeida. In: PEREIRA; DORÉ, Op. Cit.
2012. p. 511-512
372
Idem, p. 539
142
poderia ser mostrada para alguém que não fosse necessariamente letrado. Nem
por isso, a imagem perdia seu senso de uso, na medida em que portava uma
373
De acordo com as tradições artísticas e políticas do contexto, Ermelinda Pataca recuperou as
características de um prospecto. “Alguns tratados de engenharia e de arquitetura militar portugueses do
século XVIII caracterizavam os prospectos como um tipo de “planta militar” que “se distingue da pintura,
ou miniatura” consideração de extrema importância no entendimento destas imagens. Eram utilizadas
técnicas de pintura em aquarela, como a preparação e a caracterização sobre o uso dos pigmentos, técnica
na pincelada para obter determinado efeito, etc. Apesar das congruências com a pintura, notamos que os
prospectos já se caracterizavam através de padronizações como o uso de caracteres, a simbologia das cores,
etc. A singularidade das plantas militares é devida as suas atribuições simbólicas para designar conceitos,
como as cores: “toda obra de terra se deve riscar e lavar de preto”, ou “em tudo o que é mar, rio, ribeiras,
se deve dar aguada adoçada de verdete líquido, chamado aguada de rios”, regras inexistentes nos manuais
de pintura e próximos a tradições cartográficas. As padronizações científicas também eram expressas no
uso de legendas explicativas. Aqui texto e imagem se complementam para ampliar o caráter informativo e
explicativo através do destaque a destaques da imagem explicados nas legendas. A maneira cartográfica de
representar a natureza também se associava à elaboração dos prospectos através da complementaridade de
informações entre as representações conferindo a tridimensionalidade aos objetos pela complementaridade
de visões verticais (como os mapas, cartas geográficas, plantas, etc.) e horizontais (como os prospectos e
perfis).” PATACA, Ermelinda. Arte e ciência na Amazônia no século XVIII: o Prospecto da Vila de
Cametá. Caiana #5, segundo semestre 2014, 62-79.
143
informação quanto aos modos de manejar uma dada planta no dia a dia. Daí, a
força didática desse tipo de imagem avulsa ou encadernada, porque atingia um
leitor/usuário com possível eficácia.374
Recuperamos outra imagem que compõe a Memória sobre a Marinha para ajudar
na apreensão do argumento de Schiavinatto. No desenho de José Codina, foi contemplada
uma canoa, como chamavam os portugueses ou, segundo o naturalista, um igari ou igarité
(“que é a contração de iagira + reté que quer dizer canoa verdadeira”), como
denominavam os índios do Pará. Uma canoa ou igarité era “toda e qualquer embarcação
sem quilha, formada do casco simplesmente ou com obras superiores”, ou seja, poderia
ser coberta ou não.
374
SCHIAVINATTO Iara Lis. Sobre educar a mocidade: entre saberes, linguagens e sociabilidades
letradas. Educação Sensível. Imagem, política e memória no mundo luso-brasileiro. Campinas: Tese de
Livre Docência, Universidade Estadual de Campinas, 2017. p. 94-95
144
A imagem original contempla “uma igarité, uma ubá e uma jangada e seus
acessórios.” Disponível em:
https://www.brasilianaiconografica.art.br/obras/searchAll/igarit%C3%A9
375
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Memória sobre a Marinha interior do Estado do Grão-Pará, 1787.
Manuscrito. Consta anotações: Drummond nº 2. Assinatura autografada. Consta apenso. Coleção
Alexandre Rodrigues Ferreira. Proveniente da Coleção Lagos. ABN v 1, p 118. CEHB nº 11.
http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_manuscritos/mss1456738/mss1456738.pdf
145
376
Iara Lis Schiavinatto verificou uma “diversificação da retratística entre fins do século XVIII e início do
XIX no mundo letrado e governativo português, com uma desejada laicização das figuras”, o que ajuda a
compreender o surgimento de um “rol de figurações humanas” contempladas em “um conjunto de gravuras
e figurinhas: os tipos reinóis e aqueles do mundo colonial, dotando de materialidade e iconografia as gentes
das camadas populares e dos mundos da conquista, onde pontificam as figurinhas de Carlos Julião.” Para a
autora, “pode-se então falar de uma emergência de retratos de tipos, de ofícios e de sujeitos individuais, de
maneira inédita e impressionante pelo volume encontrado no todo.” Entre os ofícios retratados verifica-se
o do naturalista, retratado em mais de uma ocasião, como na plancha exposta, em “exercício metódico,
atento, detalhista.” SCHIAVINATTO, Iara. Retrato e biografia. Lisboa/Rio de Janeiro. 1770-1820. História
(São Paulo) v.33, n.1, p. 3-26, jan./jun. 2014. p. 10 e 11
146
377
PATACA, Ermelinda Moutinho. Mobilidades e permanências de viajantes no Mundo Português. Entre
práticas e representações científicas e artísticas. São Paulo: Tese de Livre Docência, Universidade de São
Paulo/ Faculdade de Educação, 2015. p. 276
378
Idem, p. 341
379
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Observações gerais e particulares sobre a classe dos mamíferos
observados nos territórios dos três rios, das Amazonas, Negro e da Madeira: com descrições
148
circunstanciadas que quase todos eles deram os antigos e modernos naturalistas, e principalmente dos
tapuios [1790]. In: Viagem Filosófica pelas capitanias do Grão Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá.
Conselho Federal de Cultura, 1972.
380
Idem
381
Idem, p. 84
382
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Memória sobre a Marinha interior do Estado do Grão-Pará, 1787.
Manuscrito. Consta anotações: Drummond nº 2. Assinatura autografada. Consta apenso. Coleção
Alexandre Rodrigues Ferreira. Proveniente da Coleção Lagos. ABN v 1, p 118. CEHB nº 11.
http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_manuscritos/mss1456738/mss1456738.pdf
149
383
PATACA, Ermelinda. Op. Cit. 2014, 62-79.
150
384
PATACA, Ermelinda. Op. Cit. 2014.
151
direta da realidade para posterior reflexão e síntese [...], legitimidade pela inspeção
ocular.”385 Em volta da canoa do “riscador-observador”, em aparente intimidade, há
alguns indígenas. Segundo Pataca, procurava-se enfatizar a tendência ao “ócio natural”
dos índios que não tinham sido “civilizados” pelos portugueses por meio do trabalho e da
religião.
Conforme informação explicitada na legenda, a primeira canoa vermelha,
nomeada Nossa Senhora da Piedade, servia ao transporte do Governador do Grão Pará;
em seguida, com a mesma cor, aparece a canoa Nossa Senhora da Vitória de transporte
do Ajudante das Ordens e do Tenente; depois dela a canoa S. Marta que servia de cozinha;
seguida da canoa S. Francisco Xavier de transporte do naturalista Alexandre Rodrigues
Ferreira e seus acompanhantes; por fim, vinha a canoa Nossa Senhora da Redenção, de
cor verde, do transporte do Dr. Ouvidor e do Sargento Mor. Há ainda três barcos menores,
as montarias, “que transportavam gêneros necessários para os expedicionários de cada
embarcação.”386 Na margem da povoação encontram-se duas ubás. Nota-se o esforço de
retratar uma variedade de embarcações e usos de maneira ordenada e harmoniosa.
385
Idem
386
Idem
152
387
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Memória sobre a Marinha interior do Estado do Grão-Pará, 1787.
Manuscrito. Consta anotações: Drummond nº 2. Assinatura autografada. Consta apenso. Coleção
Alexandre Rodrigues Ferreira. Proveniente da Coleção Lagos. ABN v 1, p 118. CEHB nº 11.
http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_manuscritos/mss1456738/mss1456738.pdf
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montaria, situada à frente, os índios remeiros também são retratados a seguir as ordens de
um homem branco com vestes europeias. Pataca, cotejando imagem e texto, conclui que
o naturalista e o riscador concediam destaque a necessidade do comando por parte de um
homem branco, apresentado por Alexandre Rodrigues Ferreira como a “alma da
navegação.”
Há nítidas diferenças entre a forma que os remeiros do barco oficial e os da
montaria foram desenhados. A primeira consiste na falta de vestimenta dos sujeitos que
remavam a montaria; a segunda relaciona-se à estatura dos mesmos que parecem ser
menores; a terceira ao fato da execução das atividades na montaria parecer menos
disciplinadas. Imagem e texto se conectam no sentido de destacar como os remeiros das
embarcações oficiais, no caso analisado a da mais alta autoridade política do Grão-Pará,
eram escolhidos entre os mais fortes, habilidosos e, acrescento, disciplinados. De acordo
com o naturalista, “os índios mais valentes no remo” eram os naturais da Ilha de Marajó
conhecedores da bravura da boca do rio Amazonas. Em paralelo, a imagem alude para
capacidade de uma autoridade se impor em uma território visto ao fundo de forma tão
ordenada. O retilíneo retrato remete ao curso civilizacional almejado pelos agentes
coloniais, que justificava a derrubada da mata e dos povos não “domesticados”.
Rodrigues Ferreira também observou e tomou nota das diferentes tarefas
desempenhadas pelos remeiros que atuavam em uma mesma embarcação. “Os dois
primeiros que remam cada um a seu lado do tombadilho” e os dois últimos eram
escolhidos entre os “mais valentes e mais práticos.” Eram eles os responsáveis por avisar
o piloto “de algum obstáculo que se lhe oferece ou de alguma pedra, ou pau ou baixo que
ele não pode ver da popa, mormente, que quando se navega de noite.” Outros dois, que
ficaram dispostos ao lado “das escotilhas do esgotadouro”, tinham a obrigação de dar
vazão à água acumulada de tempos em tempos. Os demais remavam “sem outra pensão
alguma.”
Segundo o naturalista, os índios empregados nesse ofício denominavam com
nomes de aves ou de outros animais os diferentes modos de remar e, assim, sincronizavam
as suas ações. Quando era necessário amiudar a remadela, um dos dois últimos homens
que compunham a equipe proferiam a palavra Parauá, “que entre nós significa papagaio.”
A analogia era feita, pois os papagaios “que são aves de asas curtas, amiúdam os
154
movimentos delas quando voam.” De maneira distinta, quando se ouvia estourar a voz
com a palavra Maguary, “que é uma ave de asas e perna longas e tem voo plácido e sereno,
todos eles remam a imitação do seu voo.” Assim, seguiam-se remadas longas e
tranquilamente compassadas. Nenhum remeiro descansava ou mudava a ritmo até que o
proeiro lhes desse sinal, “sob pena de logo ser apregoado pelos companheiros que o
injuriam de fraco.” No mais, “para desenfado do seu, algumas vezes trabalham rindo do
seu trabalho, quando imitam o macaco, que dizem eles que os arremeda; o que escutam
os remeiros, dando três remadas juntas e uma compassada com um pequeno intervalo que
medeia.”388
Rodrigues Ferreira tratou na mesma Memória das atribuições, conhecimentos e
habilidades dos pilotos. Esclareceu que “ao índio que governa o leme, os brancos chamam
piloto e outros índios jacumaúbas = quer dizer entre nós no braço do leme.” Era ele,
portanto, o responsável por estar atento ao regime dos ventos e aos possíveis obstáculos
e por coordenar o trabalho coletivo de força, ritmo e direção dos remeiros. Além do
governo da canoa, os pilotos tinham a seu cargo “a repartição das rações diárias para o
sustento dos remeiros.”
Ele deveria fazer a solicitação ao Cabo encarregado, como dito anteriormente, um
homem branco, o qual liberava os alimentos “uma só vez no dia, para dois comeres.”389
Portava-se, assim, como um intermediário entre “mundo indígena” e “mundo do branco”
no interior do barco. No caso da expedição de Demarcação de Fronteira da qual faziam
parte 21 “pilotos índios” e 316 remeiros, a ração diária consistia em um alqueire farinha,
“na sua falta oito pacovas ou seis raízes de macaxeira, uma libra de carne ou peixe seco,
na falta de carne ou peixe, uma libra de legumes.” 390
Tanto na Viagem Filosófica quando na Expedição de Demarcação de Fronteira,
os rios que ligavam Barcelos, na capitania de São José do Rio Negro, e vila Bela, no Mato
388
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Memória sobre a Marinha interior do Estado do Grão-Pará, 1787.
Manuscrito. Consta anotações: Drummond nº 2. Assinatura autografada. Consta apenso. Coleção
Alexandre Rodrigues Ferreira. Proveniente da Coleção Lagos. ABN v 1, p 118. CEHB nº 11.
http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_manuscritos/mss1456738/mss1456738.pdf
389
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Copiada na Vila de Barcelos, capital do Rio Negro, aos 7 de julho
de 1785, etc. In: Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira: a expedição philosophica pelas
capitanias do Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuyabá. [S.l.]: Kapa, 2002. p. 289
390
Idem
155
Grosso, foram apresentados como perigosos, devido ao “clima doentio” que dava baixa
em parte da tripulação, mas também em decorrência das arriscadas cachoeiras a serem
derrotadas, principalmente no rio Madeira, o qual permitia o acesso aos rios Mamoré e
Guaporé. Há relatos do período que alertavam para dificuldade em encontrar mão de obra
para empregar na rota do Amazonas-Madeira-Guaporé.
Eram registradas queixas das autoridades coloniais que alegavam não conseguir
índios remeiros nas povoações e vilas portuguesas, pois muitos estavam empregados nas
expedições de coleta de drogas no sertão. Vanice Siqueira sugere que havia uma
resistência dos próprios índios de participar das viagens rumo ao Mato Grosso, era um
trajeto que lhes oferecia poucas vantagens e muitos riscos. 391 Não é descabido supor que
a circulação de notícias acerca dos adoecimentos constantes e das dificuldades nas
derrotas das cachoeiras impulsionavam a recusa por parte dos remeiros.
Lacerda e Almeida enumerou e nomeou cada um dos obstáculos naturais para a
navegação fluvial entre Barcelos e vila Bela. De acordo com o matemático, em setenta e
três dias o grupo percorreu setenta léguas e “varou” dezessete cachoeiras, sendo treze no
rio Madeira e quatro no Guaporé. Por guardar diferenças se comparadas com as demais,
na quinta cachoeira, denominada Salto do Girão, apontou a técnica utilizada para derrota-
la. Nesse trecho, “se varavam as canoas por terra na distância de 350 braças.” Foram
gastos dez dias na empreitada por terra firme, embora lhe disseram ser possível fazê-la
em oito. O tempo excedido havia sido gasto no concerto das canoas.
Além dos trabalhadores da própria expedição, a Comissão de Demarcação contou
com o socorro dos índios aldeados Pamã, os quais “na ocasião de haver canoas n´aquela
cachoeira [...] não só as vem ajudar a varar, como também trazem refrescos de sua
lavoura, que consta de bananas, mandiocas, batatas, carás, etc.”392 A mesma
“cordialidade” com o viajante não se verificava com “o gentio Caripuna”, que habitava a
391
MELO, Vanice Siqueira. A participação dos indígenas nas expedições da rota Madeira-Guaporé
(segunda metade do século XVIII). In: VEIGA, C.; FERREIRA, E; LISBOA, I.; COSTA, J.;
CENTURIÓN, S. (Org.). História Indígena e do Indigenismo na Amazônia II. São Carlos: Pedro & João
Editores, 2019, v. II. p. 140
392
ALMEIDA, Francisco José de Lacerda. Cópia do diário que fez o mesmo Dr. Lacerda de Barcelos para
a capital do Mato Grosso (1781-1782). In: Diário da Viagem do Dr. Francisco José de Lacerda e Almeida
pelas capitanias do Pará, Rio Negro, Mato Grosso, Cuiabá e São Paulo, nos anos de 1780 a 1790. São Paulo:
na Tipografia de Costa Silveira, 1841. Disponível em: http://bd.camara.gov.br/bd/handle/bdcamara/1941
156
outra parte do rio. Esses foram descritos como “mansos, porém tão ladrões que furtam
quanto podem.”393
Antonio Pires da Silva Pontes Leme também tomou nota sobre a descida da
mesma cachoeira, qualificada como “sumamente trabalhosa, por ser preciso arrastar as
canoas por 2.000 passos.” Embora não tenha dito que a nação Pumã ajudou a expedição,
descreveu as suas roças de mandioca e milho, a cerveja de “milho pisado”, o algodão
tecido para atar as flechas e as zarabatanas usadas com destreza para a caça de aves,394
Silva Pontes destacou igualmente a presença do gentio Caripuna e foi mais detalhista do
que Lacerda e Almeida. Ele chamou atenção para a necessidade de estabelecer amizade
com a nação e de tratá-los com prudência.
Isso porque “nenhuma defesa há nos meios das cachoeiras, se eles nos atacarem,
como fazem os Mura no rio, desembarcados em que basta lançar a canoa para fora da
barreira para lhes escapar.”395 O conhecimento dos indígenas era necessário para varar as
cacheiras, mas a sua amizade era também fundamental para a garantia de passagem sem
maiores riscos. Havia prudência por parte dos portugueses e luso-brasileiros em deslocar-
se por rios que não possuíam o “direito de passagem” franqueado. Por isso era preciso
alimentar e renovar os vínculos e relações com as nações que habitavam as suas voltas.
Passados alguns dias – após enfrentar “muitas correntezas que formam o rio contra
as pedras que acompanham ambas as margens opostas na cachoeira das Araras” – Silva
Pontes voltou a tomar nota acerca dos trabalhadores indígenas. A comissão foi atingida
por forte chuva. Muitos remeiros adoeceram e ficaram incapazes para os serviços. Havia
ainda outra dificuldade: a de conseguir alimentos. A tempestade dificultava a caça e a
pesca e obrigava o grupo ter nas refeições quase exclusivamente a “farinha corrupta da
mandioca.” A escassez de víveres “produzia mais que danos e moléstia no penosíssimo
trabalho de virem nadando contra a correnteza a cada passo que é necessário e puxar por
sirgas a canoas nas contínuas correntezas. Outras vezes aos braços e ombros, metidos nas
correntezas até os peitos e pescoços.”396
393
Idem.
394
PONTES. Antonio Pires da Silva. Diário de Viagem de Antônio Pires da Silva Pontes. Vila Bela, 1 de
setembro de 1781. In: MENDONÇA, Marcos Carneiro de (org.). Rios Guaporé e Paraguai: primeiras
fronteiras definitivas do Brasil. Rio de Janeiro: Xerox do Brasil, 1985. p. 162-163
395
Idem, p. 163
396
Idem, p. 167
157
Mais adiante, atingiram uma das cachoeiras mais penosas, chamada de Ribeirão.
Na passagem por ela, “que por espaço de duas léguas tem três saltos”, foi possível,
segundo Silva Pontes, “fazer três vezes observações de latitude e longitude, achando a
cauda dela em 1º 22’ e 1’’ de latitude de 46º 28’’ e meio de longitude ocidental do
meridiano da ilha do Ferro, supondo de 20º 30’ a ocidental Paris, o dito meridiano do
Ferro.” Parte do trajeto teve, novamente, de ser feito por terra: “descarregam por vezes as
canoas e se conduzem as cargas, no meio de 3.000 passos de terra sobre a margem
oriental.” O trecho era ainda conhecido como um marco da intensificação das “temíveis
sezões de Mato Grosso.” O relato foi marcado pela dramaticidade de um percurso
conhecido por índios e brancos pela alta mortandade:
Silva Pontes não deixava de pontuar que “estes ares e águas não costumam
perdoar qualidade ou tratamento”, deixando evidente que todos os membros da tripulação
estavam expostos a sofrer com as doenças. Por esse motivo definiu a comissão de
demarcação como “uma tropa de hepáticos”. Ainda assim destacou que eram “os índios
do rio Negro os mais expostos pelas consequências das diarreias e corrutíveis que os
conduzem rapidamente a morte, se não houver cuidado de usar muito de hypecacuanha e
ipekakonha.”398
Anos depois, Alexandre Rodrigues Ferreira valeu-se da experiência da Comissão
de Demarcação para organizar o deslocamento de sua equipe da capitania do Rio Negro
para a de Mato Grosso e Cuiabá. Tão logo recebida a ordem de que o grupo deveria partir
397
Idem, p. 164
398
Idem, p. 166
158
rumo à vila Bela, João Pereira Caldas informou o naturalista que algumas dificuldades
precisariam ser superadas para viabilizar a partida. A primeira se atrelava à escassez de
farinha de mandioca que experimentava a capitania do Rio Negro; tratava-se de um dos
alimentos dos índios remeiros, proeiros e pilotos.
A segunda se relacionava ao fato dos índios da mencionada capitania, “além de
poucos para tão multiplicadas expedições, [eram] menos vigorosos e hábeis para
passagem das cachoeiras do Madeira.” A fim de solucionar o problema, Pereira Caldas
informava ter solicitado junto ao governador do Grão Pará “para um e outro socorro se
fazerem vir [remeiros] das povoações do rio Tapajós em semelhança que assim mesmo
se praticou na outra expedição.”399 Aproveitava-se, assim, experiências anteriores
acumuladas tanto pelos índios dos aldeamentos do dito rio quanto por viajantes luso-
brasileiros. Somente depois de tomar essas medidas o grupo chefiado por Alexandre
Rodrigues partiu para o Mato Grosso e vivenciou uma experiência marcada pelos
obstáculos fluviais, por adoecimentos e fugas de índios empregados no serviço dos remos.
Remeiros, proeiros e jacumaúbas desempenharam, como procuramos demonstrar,
papel fundamental nos deslocamentos pelos rios amazônicos. Eram eles conhecedores
das diferentes configurações fluviais e detentores de lógicas próprias para organização de
seus ofícios. Seus conhecimentos e habilidades eram marcados pelo empirismo e
transmitidos entre as gerações. De acordo com Elias Ferreira, “não raro os pais
jacumaúbas costumavam levar os filhos durante as viagens, de forma a aprenderem desde
cedo os “segredos” do ofício.”400 No interior do barco, distintos saberes podem ser
vislumbrados quando comparamos as atuações de remeiros e pilotos. Mas havia
igualmente gradações internas entre os trabalhos dos remeiros, tendo em vista que cada
um tinha uma função, tais com a de sinalizar com nomes de aves a mudança do ritmo da
remadela ou de dar vazão à água que por ventura invadia a embarcação.
A transmissão da sabedoria entre os mais velhos e mais novos – garantida pela
oralidade e através do uso/prática – se fazia presente também entre os índios aldeados.
Eram nas povoações, vilas e lugares estabelecidos pela Coroa portuguesa que os indígenas
399
Carta de João Pereira Caldas para Alexandre Rodrigues Ferreira, 30 de janeiro de 1788. In: In: FERRÃO,
Cristina; SOARES, José Paulo Monteiro (Orgs.). Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira. Rio
de Janeiro: Kapa Ed., 2007. p. 224-225
400
FERREIRA, Elias Abner. Op. Cit. p. 133-134
159
eram “recrutados”, ou como nos casos analisados por Roller se “voluntariavam” para
atuar em expedições oficiais ou de coleta de drogas. O sertão, além de ser espaço
garantidor de alguma autonomia e liberdade, eram onde os seus conhecimentos eram
praticados e atualizados. Deste modo, remeiros, pilotos e proeiros indígenas tinham,
necessariamente, de ser incorporados nas equipes e isso não se justificava somente por
serem a mão de obra disponível. Eles atuavam, antes, como “guardiões” de saberes
(acumulados, recriados e ensinados ao longo do tempo) sobre os rios e as matas.
A ilha, no seu princípio, diz ele, não tinha estes rios. Mas tinha,
pela terra dentro, infinitas cobras. Estas, obrigadas das secas,
corriam do centro para a costa a buscar a água. No caminho
que faziam de rastos pela terra, deixavam, com o peso e
grandeza dos corpos, impressas nela as suas figuras, assim
mesmo tortuosas e implicadas em torcicolos, como elas são.
Caíram as águas das chuvas sobre este rasto que achavam feito
e, no seu princípio, abriram regatos. Engrossaram depois os
regatos e ficou sendo o total, o grande rio, o que não fora no
princípio mais que um regato da grossura de uma grande
cobra.401
401
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Notícia Histórica da Ilha de Joanes ou Marajó. In: Viagem ao Brasil
de Alexandre Rodrigues Ferreira. Rio de Janeiro: Kappa, 2007. p. 66. Segundo consta em nota da
publicação: “esse documento parece ser o texto final, de que são rascunhos ou primeiras anotações os que
se encontram no códice 21,2,2,16 e 21,2,2,17. Não se sabe do original desta versão.” De acordo com
Ermelinda Pataca “este texto, escrito posteriormente à expedição para a ilha do Marajó em 20 de dezembro
de 1783, é uma espécie de diário de viagem. [...] Ferreira concentrou-se em narrar diversas observações
históricas e naturalísticas da ilha.” A Notícia Histórica serviu para a elaboração de outros escritos, tal como
a “Notícia da Nação Juioana a que chamam hoje Sacaca”, e imagens, como: “Prospecto da Villa de
Monforte na Ilha Grande de Joannes”, de Freire. PATACA, Ermelinda. A Ilha do Marajó na Viagem
Philosophica (1783-1792) de Alexandre Rodrigues Ferreira. Boletim Museu Paraense Emílio Goeldi, sér.
Ciências Humanas, Belém, v. 1, n. 1, p. 149-169, jan-abr. 2005. p. 153. Disponível em:
http://scielo.iec.gov.br/pdf/bmpegch/pv1n1/v1n1a07.pdf
160
Rodrigues Ferreira não especificou a qual nação pertencia o índio que lhe concedeu o
relato, mas não é descabido supor que a explicação advinha de antigas ocupações e
relações estabelecidas com a espacialidade em questão, contadas através da oralidade.
A indicação de uma temporalidade, “no seu princípio”, remete para outrora. Se,
por um lado, não são especificados como a ilha surgiu e quem foram os primeiros seres a
habitá-la, por outro a narrativa nos leva a pensar na ocupação do espaço antes da chegada
dos europeus. Na totalidade da Notícia Histórica da Ilha de Joanes, este foi um dos poucos
trechos em que o naturalista escreveu sobre algo que não remetesse para os usos do
terreno por colonos e missionários ou, num olhar mirando o futuro, para as
potencialidades do local. A preocupação principal do seu escrito era, portanto, a de
demonstrar como os vassalos da monarquia interviram nas redondezas do rio Arari com
a instalação de fazendas, casas, igrejas, engenhos de descascar arroz, roças e olarias.
De todo modo, ainda que nas entrelinhas, a “galante história do rio”, aliada à
necessária atuação de remeiros e dos jacumaúbas com seus conhecimentos
geograficamente circunscritos, deixa transparecer a coexistência de diferentes
concepções de espaços – entendidos enquanto resultados das experiências sociais de
diversos agentes históricos – na Amazônia colonial portuguesa.402 Como observou
Vanice Melo Siqueira, “a denominação Estado do Maranhão e Grão-Pará pode ser um
exemplo de representação de uma (re)significação do espaço que era inteligível aos
portugueses como entidade política e geográfica e provavelmente a mesma compreensão
não se deu entre os índios.”403 Não somente as disputas com os reinos europeus
dificultavam a definição das fronteiras coloniais, mas elas também eram “constantemente
borradas pelas práticas e trocas indígenas.”404
Principalmente quando se colocavam em marcha pelos sertões, os estrangeiros e
luso brasileiros não podiam dispensar os modos de apreender o território dos seus mais
antigos habitantes. Assim como no caso dos remeiros e jacumaúbas, através da prática e
do uso, ou seja, movendo seus próprios corpos e elaborando estratégias para reconhecer
os caminhos, os naturais da terra elaboravam e faziam circular seus “conhecimentos
402
MELO, Vanice Siqueira. Op. Cit. 2017.
403
Idem, p. 27
404
Idem, p. 28
161
geográficos”. Não somente, na medida que travavam contato com os viajantes, colocavam
em circulação também os saberes etnográficos e linguísticos acumulados e adquiridos
pelas vivências em territórios circunscritos.
Importante esclarecer que, como nos ensinou Kapil Raj, “por circulação não
entendamos a disseminação, transmissão, ou comunicação de ideias, mas os processos de
encontro, poder e resistência, negociação e reconfiguração que ocorrem em interações
entre culturas.”405 Um sujeito, ao compartilhar o que sabe sobre um caminho, um curso
d´água, um obstáculo geográfico, um povo ou uma língua, não simplesmente responde às
perguntas feitas pelo letrado. Não deve, portanto, ser apreendido apenas como “vetores
de transmissão” de informação bruta a ser lapidada e transformada em “saber erudito”
por pessoa supostamente mais capacitada. As notícias que compartilhavam já eram, em
si, conhecimentos, os quais poderiam ser reelaborados em contato com outras ideias e
formas de pensar.
Para a antropóloga Glória Kok, “nos três primeiros séculos da colonização da
América portuguesa, a cartografia indígena auxiliou no processo de decodificação do
espaço convencionalmente chamado “sertão” pelos adventícios.”406 Interessada em
perceber as técnicas e estratégias para transitar pelo interior da capitania de São Paulo, a
autora assegurou que “as contribuições dos grupos nativos foram imprescindíveis no que
se refere a fornecer informações detalhadas não só sobre a topografia e a geografia, bem
como outros conhecimentos, necessários à elaboração de mapas, esboços, técnicas de
representação e orientação nos caminhos terrestres e fluviais.”407
São esses conhecimentos, ancorados em “um acervo de informações espaciais”,
que a autora denominou cartografia indígena.408 Como já destacado, as nações indígenas
tinham redes de ligações nas regiões interioranas atreladas ao comércio, abastecimento
de alimentos, à pesca e à caça, anteriores à chegada dos europeus que não foram
completamente desagregadas no mundo colonial.
405
RAJ, Kapil. Op. Cit. 2015. p. 170
406
KOK, Glória. Vestígios indígenas na cartografia do sertão da América portuguesa. Anais do Museu
Paulista. São Paulo. N. Sér. v.17. n.2. p. 91-.109 jul-dez. 2009. p. 91
407
Idem, p. 92
408
Idem, p. 93
162
409
Idem, p. 102
410
Idem, p. 92
411
FARAGE, Nádia; SANTILLI, Paulo. Estado de sítio: territórios e identidades no vale do Rio Branco.
In: CUNHA, Manuela Carneiro da. (Org.). História dos Índios no Brasil. São Paulo: Companhia das
Letras/Secretaria Municipal de Cultura/FAPESP, 1992, pp. 267- 278. p. 268
412
Idem, p. 268
163
com a ponta pôs-se a riscar na areia do pavimento uma encadeação de grandes e pequenos
rios. Na foz do Arauru, segundo ele, o que para nós é Tacutu, riscou a fortaleza de S.
Joaquim e tantos quadrados quantas eram as palhoças a ela anexadas.” O índio produziu
um desenho “onde as cordilheiras eram marcadas por sucessivas séries de ângulos, mais
ou menos agudos, e malocas dos gentios por círculos maiores e menores.”413 Rodrigues
Ferreira direcionou, então, a seguinte indagação ao leitor: “o que faria um europeu criado
como um destes tapuias, ignorantes da existência da geometria, geografia, hidrologia,
etc., se lhe fosse perguntado a respeito de um rio, sua direção, confluentes, número de
aldeias situadas?” E expôs ao seu interlocutor a solução apresentada pelo “gentio
Mucuxi”:
Posto isto, “sem adicionar coisa alguma além dos nomes que me dizia, mostrei a
carta a sua Excia. o Sr. João Pereira Caldas, ao Governador da capitania, ao Dr.
Astrônomo José Simões de Carvalho e muitos outros.”415 O território onde a cena
transcorreu era uma região de fronteira, com proximidade dos domínios não só espanhóis,
mas também holandeses com os quais os índios, como os Caripuna, mantinham redes
comerciais. Segundo Gregório Gomes Filho e Jaci Vieira, “a importância do rio Branco
para a Coroa portuguesa estava justamente nesse ponto, era a barreira na área limítrofe
entre os domínios portugueses e os vizinhos holandeses e espanhóis, essa seria a primeira
vantagem que os portugueses poderiam ter da região.”416
413
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Observações gerais e particulares, sobre a classe dos mamíferos
observados nos territórios. In: FERREIRA, Viagem Filosófica pelas capitanias do Grão-Pará, Rio Negro,
Mato Grosso e Cuiabá. Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura, 1972. (Memórias, Zoologia/Botânica).
414
Idem
415
Idem
416
GOMES FILHO, Gregório Ferreira; VIEIRA, Jaci Guilherme. Forte de São Joaquim: da ocupação
portuguesa do vale do rio Branco às Batalhas da Memória – século XVIII ao XX. Revista textos e debates,
Boa Vista, n.28, p. 117-136, jul./dez. 2015. p. 127
164
Anos antes, depois de percorrer o mesmo rio Banco, Antonio Pires da Silva Pontes
elaborou um roteiro e uma carta que poderiam auxiliar o viajante a atingi-lo partindo da
vila de Barcelos, bem como a navegar pelas suas adjacências. Parte das informações,
principalmente a respeito da navegação pelos afluentes do rio Branco, foram fornecidas
por indígenas que habitavam a região. Isso pode ser verificado quando o matemático
atingiu o “rio Anaoaû que deságua no Branco pela sua margem oriental.” Segundo
registrou, tratava-se de um “rio de grande extensão e de difícil navegação. Dizem os
índios, que habitam nas suas margens, que se gastam dois meses até as suas cabeceiras,
que constam de dois braços nas serras que chamam de Acary.” De acordo com as
informações coletadas localmente, nas mesmas serras se “formam igualmente as
cabeceiras do rio Repumuny; e que da Serra do Aracary até o chamado rio Repumuny
serão 20 léguas.”417
No dia seguinte, o matemático saiu pela manhã acompanho de “3 pessoas, 2
práticos e índios e com mantimentos para 6 dias na diligencia de chegarmos ao rio
Repuauny.” Ele dizia não saber o caminho e contava apenas com a indicação da direção
indicada pelos práticos. O grupo seguiu pelo rumo sugerido e passaram “pelo meio de
um largo campo, indo admirando duas cordilheiras de montes que o fecham de N [norte]
para uma parte e de S [sul].” Registrou ainda que “as duas pontas de nascentes d´estas
serras paralelas, asseguravam os índios, que iam terminar nas do Repumuny, continuando
a formar as suas margens.”418 A fragilidade do domínio português na região do rio Branco
foi celada, em 1790, poucos anos depois da passagem de Rodrigues Ferreira e Silva
Pontes, por uma de revolta indígena que desestabilizou ainda mais a região de fronteira.419
Na Memória sobre a Marinha do Pará, anteriormente citada, não fugiu à
observação de Alexandre Rodrigues Ferreira duas características dos jacumaúbas: 1)
eram “índios já provectos em idade e experiência”; 2) eram práticos “para a navegação
que se fazem pelos distritos das povoações donde são naturais ou aonde se acham
417
PONTES, Antonio Pires da Silva. Breve diário ou memória do Rio Branco e de outros que nele
desaguam, consequente a diligência e mapa que deste rio se fez no ano de 1781. Coleção Alexandre
Rodrigues Ferreira proveniente da Coleção [Lagos]. CEHB Nº 148. ABN v 72, p. 128. Cat. ARF nº 145 –
cópia do manuscrito, constam correções de Alexandre Rodrigues Ferreira e anotações Drummond.
418
Idem
419
FARAGE, Nádia. As muralhas dos sertões: povos indígenas no Rio Branco e a colonização. Rio de
Janeiro: Paz e Terra; Anpocs, 1991.
165
Eram por este tempo, em consequência da lua, as cabeças de águas, como aqui
chamam os práticos. Ventava da terra um vento fresco, estavam bem fundadas
as esperanças de felizmente atravessarmos a baía; esperanças então que em
pouco menos de uma hora todas se trocaram em sustos no meio de perigos que
até aos mesmos práticos aterrorizavam. Tinha a canoa uma proa tão baixa que
cada cancra o soçobrava; de minuto em minuto, fez-se tão rijo o vento, com
trovoada seca, que mal o podiam sofrer as velas. Mais de três vezes, adormeceu
de todo a embarcação, que pela furiosa impressão do vento sobre as velas era
arrancada das ondas. Rompeu-se, finalmente, uma delas; e eu cuido que umas
das minhas maiores felicidades é a de haver escapado das nove correntezas que
nesta baía atravessamos.420
Não era o caso da travessia para Ilha de Marajó, mas, em viagens de longa
distância, como as empreendidas entre o Pará e o Mato Grosso, era necessário fazer
“mudas” dos jacumaúbas, assim como era feito com os remeiros. No entanto, enquanto a
troca dos sujeitos responsáveis pela atividade de remo se justificava principalmente pelo
desgaste físico – o que levava alguns a fugirem a nado, Sérgio Buarque afirmou que
untavam o corpo com óleo para não serem agarrados no momento da fuga –, a dos
jacumaúbas ocorria por ser “impossível que um só seja prático de tantas e tão diferentes
costas, enseadas e travessias.”421 Como observou Elias A. Ferreira, enquanto os remeiros
“eram a força motriz que impulsionava as canoas”, os jacumaúbas apresentavam-se como
420
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Notícias da Ilha Grande de Joanes dos rios e igarapés que tem na
sua circunferência; de alguns lagos que se têm descoberto e de algumas coisas curiosas. In: Viagem ao
Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira. Rio de Janeiro: Kapa Ed., 2007. Como informado em nota: o texto
de base para esta edição é o códice 10,1,26 da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
421
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Memória sobre a Marinha interior do Estado do Grão-Pará, 1787..
Op. Cit.
166
422
FERREIRA, Elias Abner. Op. Cit. p. 100
423
COSTA, Maria de Fátima. Entre Xarai, Guaikurú e Payaguá: ritos de vida no Pantanal. In: Mary del
Priore; Flavio dos Santos Gomes. (Org.). Os senhores dos rios - Amazônia, margens e histórias. 01ed.Rio
de Janeiro: Elsevier/ Campus, 2003. p. 83
167
424
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Memória sobre o gentio Cambeba que habitava as margens e nas
ilhas do Solimões. In: Viagem Filosófica pelas capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá.
Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura, 1974. (Memórias, Antropologia). p. 52
425
Idem, p. 52
426
Idem, p. 53
427
Idem, p. 54
168
Prancha 1 Prancha 2
Indagado sobre o estado atual de sua povoação e das manufaturas que produziam,
Dionísio respondeu que “eram índios fabricantes”, sendo uma distinção que os dispensava
“do exercício de remeiros das canoas.” A afirmação de que eram dispensados do serviço
do remo se contradiz com a seguinte. De acordo com Ferreira, Dionísio alegou que a sua
nação havia diminuído muito em decorrência das guerras contra os Tikuna e as
169
expedições para o Pará, Mato Grosso e “outros rios doentios.” Na ocasião “dos antigos
Cambeba com cabeça chata” restavam apenas um número de 18 ou 20, “e dos filhos
daqueles, já hoje sem a cabeça chata, não excederiam muito a soma total de 100.”
Dionísio afirmava estar vivo por ter se colocado em fuga de uma expedição rumo ao Mato
Grosso para a qual fora convocado em 1765. A deserção era justificava pelo risco
eminente da morte.
Para a escrita, possivelmente em novembro 1793 na vila de Monforte na Ilha de
Marajó, da Memória da nação Juioana a que chama hoje Sucaca, Rodrigues Ferreira
utilizou-se de estratégia semelhante. Recorreu às informações fornecidas pelo “Sakaka
Severino dos Santos, sargento mor da ordenança dos ditos índios da vila de Monforte.”428
Tratava-se de um índio “suficientemente versado nas coisas do país, civilizado já pelo
menos com a civilidade de ter aprendido a ler e escrever.” Contava com a “idade de
setenta e tantos anos, fala expeditamente e assim entende a língua portuguesa e, portanto,
nenhum escrúpulo faço de subscrever as suas informações.” Tais elementos serviam
como contributo para o naturalista se fiar nas informações recebidas.
A primeira notícia que lhe deu Severino do Santos foi a respeito do nome da Ilha
Grande de Joanes: “havendo sido povoada de diversas nações de índios [aruans, moconos,
ingahíbas, mariaoa e karipunas] entre estas a povoou também a nação Juioana; eis aqui o
nome que depois com o tempo a converteu no que hoje tem Joanes.” Posteriormente, a
mesma nação passou a ser chamada de Sacaca. A mudança ocorreu, pois muitos desses
índios foram trabalhar na construção da Fortaleza da Barra com outras nações. “O feitor
dos índios que eles levaram era austero, dizia sempre aos seus que governava pela gíria
Sacacon. Esta palavra quer dizer aviar com o trabalho. As mais nações que ouviram dizer
[...] aquela palavra, entraram a chamar-lhes Sakaka, com este nome ficaram até hoje.”429
Ainda de acordo com o que informou Severino, a nação “sempre habitou pelos
centros desta ilha”. Através dos karipúna tiveram notícias que “se achava gente branca na
428
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Memória da nação Juioana a que chama hoje Sucaca. In: Viagem
Filosófica pelas capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá. Conselho Federal da Cultura
da Cultura, 1974.
429
Idem, p. 99
170
parte onde hoje é a cidade do Pará.” Os sakaka cruzaram, então, a baía “em canoas que
lhes deram os ditos seus camaradas karipúna.”430
430
Idem, p. 100
431
Idem, p. 100
432
A historiadora e cientista política Dejanirah Couto analisou “as diferentes categorias de intérpretes (ou
línguas), os tipos de recrutamento a que eram submetidos e as estratégias de uso dos seus serviços no
Império Português na Ásia na primeira metade do século XVI.” Do ponto de vista prático, os sujeitos que
contratavam tais serviços “se tornavam totalmente dependentes do língua para entender a outra língua
escrita e falada, sabendo de antemão que o língua poderia, de acordo com a fórmula consagrada do
‘traduttore, traditore’, manipulá-la e distorcê-la de acordo com os seus interesses.” COUTO, Dejanirah.
The role of interpreters, or Linguas in the Portuguese Empire during the 16th century. E-JPH, Vol. 1,
Number 2, Winter 2003. (http://hdl.handle.net/10316.2/25479) pp.1-2
433
BARROS, Maria Cândida. Intérpretes e confessionários como expressões de políticas linguísticas da
Igreja voltadas à confissão. D.E.L.T.A., 27:2, 2011.
434
Segundo Dias, “na análise da documentação se percebe que muitos índios ladinos eram tratados com a
alcunha de bastardos ou cabras (indígena com branco), caburés (negro e indígena), carijós (índio
administrado), vermelhos, mestiços e administrados. Todas essas designações apresentadas variavam
171
Esses sujeitos, em muitos casos, eram “os primeiros a contatar os outros de sua
nação com o intuito de descê-los para aldeamentos.”435 Eles envolviam-se nas
“negociações de paz” e comprometiam-se a convencer outros indígenas a se instalarem
próximos às povoações. No entanto, se valiam de seus conhecimentos “para administrar
as perdas envolvidas no processo colonial e conduzir os seus interesses e de seu grupo
familiar.”436 A “capacidade de agência dos línguas estaria em um jogo duplo, no qual
deveria atender aos mandos dos agentes coloniais, enquanto mantinham sua legitimidade
entre indígenas como interlocutor.”437
Alexandre Rodrigues Ferreira, no período em que percorreu as capitanias de São
José do Rio Negro e do Mato Grosso, presenciou o estabelecimento de “amizade e paz”
entre portugueses e duas nações indígenas, os Mura e os Guaiakuru. Os primeiros, em
meados de novembro de 1786, “aportaram no lugar de Airão, situado na margem austral
do rio Negro, vindos embarcados, que eram 21 e mais 22 mulheres, 9 rapazes, 7 raparigas,
em diferentes cascas de paus, que são as suas canoas e vulgarmente chamadas de ubás.”438
Apresentaram-se ao diretor dos índios, Raimundo Guedes, “a quem, em nome de todos,
disseram os dois línguas de sua comitiva que ali queriam se aldear e estabelecer
juntamente com os outros índios domesticados.”439 Segundo Ferreira, eles justificaram o
descimento “em virtude da nova estipulação de Paz e Amizade, que todos eles acabavam
de combater com os brancos e com os índios estabelecidos nas margens dos rios Jupurá,
dos Solimões, das Amazonas e da Madeira.”440 Nesse caso, eram os próprios Mura que
desfrutavam dos serviços de um intérprete.
Além de redigir a Memória sobre o “gentio” Mura, da qual foram tirados os
excertos supracitados, Rodrigues Ferreira preocupou-se em reunir as correspondências
dependendo de quem escrevia e para quem era endereçado o documento, mudavam com o passar dos anos
e tinham características locais.” DIAS, Thiago Cancelier. O língua e as línguas: aldeamentos e mestiçagens
entre manejos de mundo indígenas em Goiás (1721-1832). Tese de Doutorado – Programa de Pós-
graduação em História - Universidade Federal de Goiás, 2017. p. 19
435
Idem, p. 25
436
Idem, p. 26
437
Idem, p. 302-303
438
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Memória sobre o gentio Mura. In: Viagem Filosófica pelas
capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá. Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura,
1974. (Memórias Antropologia).
439
Idem, grifo nosso.
440
Idem
172
trocadas entre autoridades coloniais acerca do assunto. Em carta escrita três meses depois
do descimento dos Mura, o Vigário de Airão Fr. José da Conceição informou a João
Pereira Caldas que os índios permaneciam ali. O Vigário destacou que eles trouxeram
consigo dois línguas, como indicado pelo naturalista, sendo um deles natural daquela
mesma povoação, “o qual apanharam em pequeno aqui”, e o outro da vila e Tomar, “por
nome de Alexandre, que o apanharam no Rio Solimões.”441 Em uma segunda carta, datada
de março de 1787, informou a chegada de mais um grupo de Mura à povoação. Mais uma
vez os línguas que os acompanhavam prometeram ir ao “rio dos Purus buscar mais gente
que ainda está no centro do mato.”442
Anos depois, já no Mato Grosso, Rodrigues Ferreira foi testemunha do
“importante negócio da redução do gentio Guaikuru”, fato que noticiou ao Governador e
capitão general João de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres. O naturalista ressaltava
os ganhos gerados para a sua Majestade “por mais aqueles vassalos, que reduz a sua
obediência antes que contra nós os revoltem os espanhóis”, para Deus “pelo considerável
número de almas que mediante o batismo podem ser chamados ao grêmio de sua Igreja”
e ao bem público “pela segurança e liberdade do comércio interno e da navegação
mercantil.”443
Destacando a sua legitimidade como observador, informou que teve o gosto de
ver os onze índios, a incluir um “cacique seu, que entre eles se chama Caimá e entre nós,
João Queima de Albuquerque, o qual vinha acompanhado de uma famosa tapuia, sua
mulher, já então denominada D. Joaquina Ferreira de Albuquerque.”444 Caimá esclareceu,
“segundo se exprime uma negra crioula nossa [sic] que eles cativaram, quando rapariga
e presentemente serve de língua”, que era governador geral de todos os Guaikuru e que o
grupo desejava “aldear-se nas margens deste rio.”445
Em relação ao estatuto social dos intérpretes é interessante notar, como indicado
por Dejanirah Couto, que havia distinções. Enquanto os línguas que serviram aos Mura
eram provavelmente “índios administrados”, que viviam em aldeamentos da capitania de
441
Idem
442
Idem
443
Idem
444
Idem, p. 75
445
Idem, p. 76
173
São José do Rio Negro, o dos Guaikurú era uma “negra crioula”. Em ambos os casos,
Rodrigues Ferreira destacou que eles tinham sido sequestrados das povoações
portuguesas, o que os colocava na condição de mediadores entre mundos diversos.
Os línguas, assim como os informantes sobre os territórios e os povos, eram
sujeitos fronteiriços. Se colocando de maneira ativa em “zonas de contato”, constituídas
por assimetrias de poderes e por relações de opressão, como não deixou de notar Mary
Louise Pratt, faziam os conhecimentos e técnicas que dominavam circular. No cotidiano
das expedições desempenhavam papéis distintos se comparados com os remeiros e
jacumaúbas. Mas tinham em comum o acúmulo de saberes e experiências que os
alcançavam à condição de essenciais em determinadas situações vividas pelos viajantes
no ultramar português.
3.3. Saberes e usos das plantas e dos animais: registros de oralidades indígenas
446
VANDELLI, Domingos Viagens filosóficas ou dissertações sobre as importantes regras que o filósofo
naturalista, nas suas peregrinações deve principalmente observa (1779). In: O gabinete de curiosidades de
Domenico Vandelli. Rio de Janeiro: Dantes Editora, 2008. p. 126.
174
447
A antropóloga Manuela Carneiro da Cunha tem coordenado projetos importantes acerca do papel dos
povos indígenas na preservação da biodiversidade no Brasil, tais como: “Povos Indígenas e Comunidades
Locais Tradicionais no Brasil: Contribuições para a biodiversidade, ameaças e políticas públicas (2018-)”,
“Bases para um programa brasileiro de pesquisa intercultural e de fortalecimento da produção local de
conhecimentos (2013-)”, “Populações, Agrobiodiversidade e Conhecimentos Tradicionais Associados
(2009-2013)”. Disponível em:http://lattes.cnpq.br/0463124533515635
448
POSEY, D. Introdução - etnobiologia: teoria e prática. In: RIBEIRO, Berta (Coord./Org.). Suma
etnológica brasileira. 1 etnologia. Petrópolis: Vozes/FINEP, 1987. p. 21
449
CARNEIRO, Henrique. O saber indígena e os naturalistas europeus. Trajetos, Revista de História UFC,
Dossiê: natureza e cultura, vol. 7, nº 13, 2009. p. 47
450
Idem, p. 54
451
Idem, p. 54 e 55
175
452
AHU-ACL-N-Pará, Nº Catálogo: 7375. 20 de Abril, 1786,
453
Idem.
454
ALMEIDA, Danielle Sanches de. O trato das plantas: os intermediários da cura e o comércio de drogas
na América portuguesa, 1750-1808. Tese desenvolvida em regime de cotutela, Programa de Pós-Graduação
em História da Ciência e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz-Fiocruz e ao Centro Alexandre Koyré da
École des Hautes Etudes em Sciences Socialel, Paris-Rio de Janeiro, 2017. p. 230
176
com Mal de São Lázaro ser curado com o uso da erva.”455 Apontou ainda um segundo
aspecto: “a dificuldade dos índios mais velhos em quererem revelar os segredos de suas
curas e os remédios que usavam a um elemento exógeno ao grupo.”456
A identificação científica da planta foi foco de disputas no universo letrado
Europeu. Em 1801, o botânico francês Etienne-Pierre Vantenat, depois de realizar
experiencias com a espécie, a denominou como Eupatorium Ayapana, enquadrando-a no
gênero Eupatorium, segundo a classificação de Lineu. Dois anos depois, Dom Rodrigo
de Sousa Coutinho escreveu para Domingos Vandelli a fim de remeter os papéis que
atestavam ser Alexandre Rodrigues Ferreira o primeiro a acertar o gênero da Ayapana.
Como citamos acima, na descrição de 1786, o naturalista dizia “ser uma espécie de
Eupatorium de Lineo”. Por outro lado, Danielle de Almeida identificou que, com
diferentes nomes, a mesma planta americana era, a essa altura, utilizada na medicina
asiática e tinha sido aclimada na na Ile-de-France e na Ile de la Réunion.457 No que mais
nos interessa, há, em mais de um caso contemplado pela autora, o reconhecimento do
emprego antigo por diferentes nações indígenas da erva para fins medicinais e o esforço
de proteger tais informações
Na notícia histórica da Ilha Grande de Joanes, Alexandre Rodrigues Ferreira
também discriminou uma erva utilizada contra a picada de cobra e outros bichos. Desta
vez, a informação foi coletada junto ao “sacaca Severino dos Santos, sargento-mor da
ordenança dos índios da vila de Monforte.”458 Como mencionado no tópico anterior, era
um índio de setenta e tantos anos, versado nas coisas do país e falante da língua
portuguesa, o que o deixava confiante nas notícias recebidas. Ferreira registrou que em
uma ilhota que ficava nas adjacências da Ilha de Joanes existia uma “erva a que chamam
mucuracaá.”
Segundo informaram-no, aos nacionais ela serve de “contraveneno [...] quando
morder qualquer cobra ou outro bicho venenoso.”459 O modo de utilizá-la era bebendo “o
sumo da folha em quantidade que possa levar uma chávena” e repousando o “bagaço que
455
Idem, p. 232
456
Idem, p. 233
457
Idem, p. 251
458
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Notícia Histórica da Ilha Grande de Joanes ou Marajó. IN: Viagem
ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira. Rio de Janeiro: Kapa Ed., 2007. p. 50
459
Idem, p. 69
177
fica da folha” sobre o ferimento. A planta tinha também um emprego ritualístico, o que
demonstra que um mesmo recurso natural poderia ter diferentes usos, não se restringindo
à alimentação, à cura ou à construção. Segundo ouviu dizer o naturalista, “contra os
feitiços, muitos a costumam mastigar pela manhã, em jejum, só para se preservarem
deles.”460
Rodrigues Ferreira também recorreu aos conhecimentos locais acerca das
diferentes espécies arbóreas com o objetivo de identificar as madeiras mais apropriadas
para a construção, principalmente de embarcações. Na Memória sobre as madeiras mais
usadas de que costumam fazer canoas tanto os índios como os mazombos do Estado do
Grão-Pará elencou as propriedades relativas à durabilidade e ao “peso e dureza”. As
madeiras eram empregadas “pelos índios no fabrico de suas canoas, sem que seja preciso
gasto algum, porque todo o material necessário é retirado da mata.”461 A seleção e o
emprego dos diferentes paus estavam associados às demandas e aos usos específicos.
Para pescar, circular em igarapés, em rios menos caudalosos ou em cursos d´água
demasiadamente acidentados, as embarcações utilizadas na travessia Atlântica se
mostravam pouco úteis. Era necessário, portanto, recorrer às canoas indígenas e aos
materiais empregados na sua confecção. Rodrigues Ferreira tomou nota sobre a madeira
denominada jacaré-yúa, a qual era “leve e porosa servindo apenas para canoas de pesca.”
O tronco lenhoso da tauá era igualmente leve e durava pouco tempo, sendo, por isso,
usado apenas para fabricar canoas de pequeno porte. Da árvore de jutáy, “o gentio pagão”
retirava somente a casca para construir canoas, o que as tornavam menos duradouras.
A canoa feita somente com a casca de pau – a qual ele diz ser usada pelo “gentio
pagão” a sugerir “menor engenho e civilização” – não poderia ser dispensada pelos
portugueses e luso-brasileiros. Ela poderia ser útil para um uso efêmero, sendo em seguida
abandonada e substituída com facilidade. Sérgio Buarque de Holanda observou que “a
canoa de casca” era indicada para rios com cachoeira. “Entre as populações banhadas
pelo Madeira, se verificou existir uma perfeita coincidência da área primitiva de
460
Idem, p. 69
461
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Memória sobre as madeiras mais usadas de que costumam fazer
canoas, tanto os índios como os mazombos do Estado do Grão-Pará. In: Viagem Filosófica pelas Capitanias
do Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá. Memórias Antropologia. Publicação Conselho Federal
de Cultura, 1974.
178
distribuição de tais embarcações com as partes mais acidentadas deste rio.”462 Seu fabrico
era simples e não ocupava tempo: “escolhido o tronco lenheiro e com seiva abundante, é
bastante despir-lhe a casca do topo à raiz, unindo depois as pontas, com auxílio de cipós
e mantendo aberto o bojo, por meio de travessões de pau; ou então aquecendo-a em fogo
brando, de maneira a faze-la bem flexível e dar-lhe, assim, a conformação desejada.”463
Outras madeiras foram qualificadas como mais pesadas e com maior durabilidade,
sendo empregadas, embora Alexandre Rodrigues Ferreira não aprofunde no assunto, na
construção de embarcações maiores. Era o caso das de argelim preto, vermelho e de
pedra, que eram pesadas e tinham duração de três a quatro anos. As do pau-rosa, dos
louros, vermelhos, pretos e amarelos eram mais leves, mas também duravam cerca de
quatro anos. As da Paracuúba, patajuba e embirarema eram duráveis, “sendo a primeira
pesada e a segunda tendo a propriedade de não afundar.”464
Das matas eram retiradas também as amarras necessárias para a construção dos
barcos, tais como “o cipó do murukitica, o cipó paranâ-rêmbo, além das embiras das
mungúbas branca e amarela, do timbó titica, do guambé, etc.” Assim como para a estopa
da calafetagem era usada a “entrecasca do castanheiro ou a do cumaty ou do macucu.”
Para os mastros usavam o “tronco da embira branca por ser leve e durável.” Os remos
eram “fabricados da madeira vulgarmente chamado yapucuitanaiúa, que significa pau de
remo ou aquelas chamadas carapanayúa, apitajica, amapá e mangá-uarâna.”465
Segundo a historiadora Regina Célia Corrêa Batista, “as madeiras eram escolhidas
de acordo com a parte da embarcação que ia ser fabricada, por exemplo, o pau-roxo servia
para fabricação de quilhas, sobrequilhas, cadastes, vãos e cintas; o jutaí, para fazer cintas,
sobrequilhas e vãos.”466 Parte das espécies arbóreas listadas por Rodrigues Ferreira eram
“paus reais”, ou seja, a sua exploração era monopólio da Coroa portuguesa. Era o caso do
462
HOLANDA, Sérgio Buarque. Op. Cit. 1946. p. 24
463
Idem, p. 23-24
464
Idem.
465
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Memória sobre as madeiras mais usadas de que costumam fazer
canoas, tanto os índios como os mazombos do Estado do Grão-Pará. Op. Cit
466
BATISTA, Regina Célia Corrêa. Dinâmica populacional e atividade madeireira em uma Vila da
Amazônia: a vila de Moju (1730-1778). Dissertação em História, Programa de Pós-graduação em História
Social da Amazônia, UFPA, Belém, 2013. p. 28
179
467
Idem, p. 28
468
BATISTA, Regina Célia Corrêa. Gestão florestal e comercialização de madeira no Grão-Pará do século
XVIII. SÆculum – Revista de História, [29]; João Pessoa, jul./dez. 2013. p. 30
469
Idem, p. 30
180
470
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Memória sobre as palmeiras, são as palmeiras que eu vi e me
informaram os práticos de mato que haviam nas matas do Estado do Grão Pará. In: Viagem Filosófica
pelas Capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá. Memórias Antropologia. Publicação
Conselho Federal de Cultura, 1974.
181
“desfiadas e torcidas a mão, formando linhas que tem todas as aplicações de barbante,
servindo para pescar e lancear peixes e tartarugas, redes de dormir ou maquiras, etc.”
A palmeira de murutim crescia em “lugares úmidos e baixos que conservam a
água durante o verão; por essa razão os muritizais são procurados pelos caminhantes para
saciarem a sede.” As suas folhas cresciam no ápice do tronco – o qual era liso e oco –
sendo “grandes, redondas, fendidas até o meio e dispostas em forma de aureolo.” O
período de frutificação era entre fevereiro e abril. Dos seus frutos, que tinham consistência
e aspecto do pinheiro europeu, era feito do vinho de murutim. De cor amarelado e gosto
de erva, era extraído a partir da seguinte técnica: “coloca-se os frutos em infusão até
amolecer a casca; depois são descascadas e as polpas que cobrem as sementes são
espremidas e amassadas com as mãos, em uma vasilha com água; o líquido é coado numa
peneira ou gurupema.” A bebida era ingerida “simples ou engrossada com a farinha.”
Os pecíolos da palmeira murutim mediam de três a quatro centímetros e, depois
de descascados, cortados e amarrados da maneira adequada, eram aproveitados como
velas de embarcações pequenas ou igaratés. Eram ainda, uma vez descascados,
empregados para fazer rolhas e outros objetos que a sua flexibilidade permitisse,
mostrando-se mais porosos e maleáveis que as cortiças. As cascas dos pecíolos eram
aproveitadas para se tecer as paneiros (vasilha para guardar sal, arroz farinha) e os “tipitis
que são cilindros utilizados para espremer a massa da mandioca” e os “tupés que servem
como esteira.”
Alexandre Rodrigues Ferreira se alongou na descrição das palmeiras por
considerar que os usos empregados pelos indígenas poderiam ser ampliados nas
povoações portuguesas. Seria uma forma de disciplinar o trabalho e de estimular a fixação
dos índios nestes lugares. Era o caso, por exemplo, do que ocorria nas vilas de Santarém,
Franca e Alter do chão. Os chapéus, pacarás e tabuleiros feitos pelas índias através do
trançado e tingimento das salvas de palhinha eram comercializado pelos Diretores.
No entanto, na visão do naturalista, havia uma má distribuição do que era
arrecadado com a venda dos produtos. Se uma índia notasse a desigualdade e se recusasse
a manter a produção era logo castigada. Indagava: “qual é o estímulo que deve ter esta
gente para aumentar a sua indústria, vendo ela que todo o seu trabalho cede em proveito
182
dos brancos e, se não cede, é punida como incúria própria.”471 Era, portanto, preciso
ampliar a manipulação das palmeiras e outros vegetais rentáveis nas vilas, mas também
reordenar as relações estabelecidas entre indígenas aldeados, diretores e demais
autoridades.
Nas Memórias sobre as madeiras e das palmeiras, Alexandre Rodrigues Ferreira
não recorreu ao modelo taxonômico elaborado por Lineu para a nomeação e classificação
das árvores. Na segunda, ele ampliou a descrição no que se refere ao tempo de
florescimento, local apropriado para cultivo, tamanho médio, características do caule,
folhas e frutos. Talvez fosse mais viável de “replantio” e aclimatação em outros locais, a
incluir em Portugal, das palmeiras do que das grandes espécies árvores empregadas na
construção de embarcações. Ao menos pelo que é sinalizado na Memória, o interesse
nesta última recaía sobretudo sobre o caule e possivelmente houve a prevalência do
extrativismo sem preocupação com a reposição. Já das palmeiras eram aproveitados os
também frutos e folhas, o que poderia ser extraído de um vegetal, ainda que em menor
quantidade, com menor tempo de vida.
De todo modo, nas duas produções textuais foram mantidos os “nomes vulgares”
das palmeiras, árvores e cipós, assim como há uma predominância da descrição de usos
e saberes dos povos indígenas. Nas instruções de Vandelli isso era recomendado, como
dissemos no início do tópico, mas também sempre que “achada alguma planta (isto se
deve entender do mais rasteiro musgo até a maior árvore), deve-se recolher e por-lhe o
nome da arte, reduzindo-a pela sua classe e ordem ao gênero e espécie.”472 Talvez fosse
objetivo de Rodrigues Ferreira completar a classificação e nomeação das árvores,
palmeiras e demais plantas amazônicas de acordo com o sistema lineliano em gabinete,
ou seja, quando retornasse à Lisboa e tivesse a sua disposição livros e equipamentos
científicos. Mas, até onde temos notícia, isso não aconteceu.
No que se refere aos animais, Alexandre Rodrigues Ferreira adotou procedimento
semelhante ao das plantas: recorreu largamente aos conhecimentos indígenas. Os textos
471
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Memória sobre as salvas de palhinha pintadas pelas índias da vila
de Santarém, as quais foram remetidas no caixão nº 3 da primeira remessa do Rio Negro. Op. Cit. 1974.
p. 48
472
VANDELLI, Domenico. Viagens filosóficas ou dissertações sobre as importantes regras que o filósofo
naturalista, nas suas peregrinações deve principalmente observa (1779). Op. Cit. p. 126
183
intitulados Relação dos animais quadrupedes silvestres que habitam nas matas de todo o
continente do Estado do Grão-Pará e Relação dos peixes dos Sertões do Pará
demonstram um esforço de mapeamento amplo e generalista dos animais amazônicos.
Em outras Memórias, tal como a sobre o peixe-boi, o pirarucu e as tartarugas, exemplares
da estudados pela zoologia foram abordadas em separado e com riqueza de detalhes
A Relação dos animais quadrupedes silvestres foi dividida em três partes. Na
primeira foram apontados os nomes e usos locais dos animais “que se apresentam na mesa
por melhores”. Na segunda, foram contemplados os “que comem os índios em geral e
alguns brancos quando andam em diligência pelo sertão.” Na terceira foram nomeados e
descritos os “que não se comem.” Na publicação da Memória pelo Conselho Federal da
Cultura de 1972, os editores reconheceram que a maior parte das “suas observações são
colhidas dos nativos” e que vários animais citados por Rodrigues Ferreira “teriam sua
autoria se os tivesse descrito no sistema lineliano.”473
Dentre os mais apreciados na alimentação foram apontados a queixada, queixada-
branca, caitetu, paca, veado-branco, suaçucaruaçu, suaçuanhanga, suaçurete, suaçuapara,
sualucaatinga, cutia-loura, cutia-preta, cutia-de-rabo e anta ou vaca-do-mato. A queixada
e queixada branca foram descritas como um “porco bravo ou do mato, que nunca atinge
o tamanho do porco doméstico”; a carne foi qualificada como excelente, sendo consumida
de qualquer forma: “cozida, assada, frita ou afogada.” O caitetu também era um porco do
mato de porte menor, se comparado aos anteriores. A paca era um animal “com pele toda
pintada de branco e carne muito gostosa.”
Sobre outros usos, para além da alimentação, destacou que com as peles curtidas
dos veados eram produzidos assentos de cadeira e os sertanejos as usam para vestimenta
e solas de sapatos. Com as peles das cutias eram confeccionados “cordovões [sic] para
sapatos que duram muito e são mais macios do que os que vem de Lisboa.” Os seus
dentes, assim como os do caitetu, eram empregados pelos indígenas para fazer brincos,
braçangas e “outros enfeites.”
A maior parte do texto foi ocupada pela segunda parte, ou seja, para a descrição
dos animais que os índios e alguns brancos que andavam pelos sertões comiam. Foram
473
In: Viagem Filosófica pelas Capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá. Memórias
Antropologia. Publicação Conselho Federal de Cultura, 1974. p. 55
184
474
Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/3735
186
“É fácil reconhecer o negro do naturalista, tanto pelo seu modo de carregar uma
serpente viva como pelo enorme chapéu de palha eriçado de borboletas e insetos
espetados em compridos alfinetes. Anda sempre armado de fuzil e com sua caixa de
insetos a tiracolo.”475 Assim, Jean Batista Debret descreveu a prancha na qual contemplou
uma das tantas ocupações dos escravizados e libertos no Brasil oitocentista: a
desempenhada pelos sujeitos que atuavam em conjunto ou sob orientação de naturalistas
em campo. Retratado ao lado de outros homens que retornavam de uma caçada – atividade
aprendida “desde a infância para acompanhar as tropas ou simplesmente o seu senhor nas
longas e penosas viagens” –, diferia-se por saber carregar um animal e pelos insetos que
trazia no chapéu com o necessário cuidado para chegarem até o destino final o mais
próximo possível do que foram encontrados na natureza.
Além de carregar uma caixa a tiracolo e uma rede para a captura de insetos,
sustentada por um longo cabo de madeira, vinha acompanhado de um auxiliar. O garoto,
situado poucos passos atrás dele, trazia em seu ombro um conjunto variado de plantas, a
sugerir que um dos objetivos era a coleta de diferentes espécies botânicas. Chamam
atenção ainda as vestimentas utilizadas e um certo distanciamento mantido em relação
aos outros caçadores. Todos foram desenhados com os pés descalços, o que revela a
condição de escravizado. No entanto, enquanto os “caçadores comuns” vestiam calções e
batas folgados no corpo e chapéus ou tecidos sem cuidado de acomodação na cabeça, ele
vinha de calça, camisa e casaco justos e um chapéu muito bem aplumado. Parece-nos que
Debret frisou que o “escravo do naturalista” não somente desempenhava um ofício
específico, a dominar saberes e técnicas para tanto, mas também se distinguia socialmente
dos demais em uma sociedade marcadamente hierarquizada.
A obra de Debret deve ser lida em diálogo com as condições de produção,
circulação e relações de poder próprias do período em que foi produzida. De todo modo,
a prancha nos estimulou a pensar como seria o cotidiano de Cipriano de Souza e José da
Silva, indígenas que atuaram como preparadores ao longo dos dez anos da Viagem
Filosófica chefiada por Alexandre Rodrigues Ferreira. As cenas (uma desenhada, a outra
475
Voyage pittoresque et historique au Brésil, ou séjour d'un artiste français au Brésil, depuis 1816 jusqu'en
1831 inclusivement, epoques de l'avènement et de l'abdication de S. M. D. Pedro 1er, fondateur de l'empire
brésilien. Disponível em: http://200.159.250.2:10358/handle/acervo/9459
187
imaginada) nos dão a ver as populações não europeias atuando nas expedições científicas
em um campo, o de preparador ou jardineiro botânico, que exigia a imersão nos modos
de produção de conhecimento e de coleta próprios da história natural europeia. Além do
mais, um aspecto nos intrigou profundamente: Cipriano e José, depois de circularem pelas
capitanias do Pará, Rio Negro e Mato Grosso, cruzaram o Atlântico junto com o
naturalista e, ao menos este último, atuou profissionalmente no Jardim Botânico e Museu
de História Natural da Ajuda, em Lisboa.
Qual era a função de um preparador no cotidiano das expedições? Na dissertação
sobre as regras a serem seguidas pelo filósofo naturalista em suas peregrinações, há um
tópico para instruir sobre como os animais e plantas remetidos para as “centrais de
cálculo” deveriam ser preparados. Diante da possível e frequente deterioração de produtos
naturais coletados in loco, era necessário utilizar técnicas de acondicionamento que
viabilizassem a travessia oceânica e, quando era o caso de recolhas feitas nos sertões, os
longos trechos de viagem por rio e terra antes de atingir o mar. Havia, deste modo, regras
específicas para preparo de aves, peixes, vermes, insetos, quadrupedes e vegetais. Na
situação delas não serem rigorosamente seguidas, seja por falta de cuidado dos
naturalistas e seus ajudantes ou por ausência de algum aditivo de conservação, os
exemplares da flora ou fauna seriam perdidos e o ciclo de acumulação do conhecimento
interrompido.
Por exemplo, os quadrúpedes grandes que não podiam ser enviados vivos para
Lisboa, “não hão de ser mortos de modo que se lhes faça rotura na pele; seria para desejar
que se apanhassem em laços ou de outro modo que dispensasse, pela rotura da pele, a
efusão de sangue.” Uma vez capturado e abatido, o animal deveria ser integralmente
limpo. Para tanto, se fazia “uma incisão no corpo do animal que desça um pouco abaixo
do ventre, pelo comprido, até o ânus. Por ele se devem fazer sair as coxas, tendo o cuidado
de deixar ficar as unhas nos seus dedos, as quais tiradas juntamente com a cauda e mais
o resto do corpo até a metade da cabeça.”476
Feito isto, se entrava em outra etapa da preparação: a de “vazar o cérebro”. Isso
era realizado “pelo forame occipital ou fazendo-lhe outro na parte superior do palato que
476
VANDELLI, Domenico. Viagens filosóficas ou dissertações sobre as importantes regras que o filósofo
naturalista, nas suas peregrinações deve principalmente observa (1779). Op. Cit. p. 151.
188
penetra o crânio, cuja cavidade, limpa que seja pelo alúmen calcinado, então se enchera
ou de algodão ou de estopa.” A fim de evitar o mau odor, deveria “introduzir lhe matéria
de um cheiro forte e penetrante, plantas aromáticas, pimenta, tabaco, cânfora, embebendo
tudo na essência de terebintina.” O mesmo preparo da cabeça deveria ser aplicado à pele
toda. Antes, contudo, o corpo deveria ser “descarnado, a fim de não ficar coisa que
apodreça.” Para tanto, se esfregava em “toda a pele por dentro, onde houver carne, com
cal extinta e pulverizada em lugar úmido.”477
A língua e os olhos eram “arrancados, descarnando-se com o escalpelo os queixos
quando for possível, contanto que se não lhes tire um só dente, donde segundo o sistema
de Lineu se tiram os caracteres para as ordens.” Para finalizar, o animal seria colocado
em “postura natural”, podendo serem utilizados arames para sustentação. Não poderiam
faltar os “olhos artificiais, ou de vidro, em que esteja pintado a cor natural” e os “cabelos”
deveriam ser penteados levemente, “não lhes deixando nódoas de sangue e o que é
principal, extirpando nele tudo o que for princípio de umidade”. 478
Não nos alongaremos na explanação sobre as formas de preparar outros animais,
basta apenas pontuar que a técnica adotada para os quadrúpedes grandes era uma delas.
Os pequenos, como ratinhos, deveriam ser enviados em licores espirituosos, tirando-os
antes as vísceras. As aves deveriam ser apanhadas a laço ou a mão e serem mortas
afogadas ou de fome; para serem “descarnadas e preenchidas” era necessário conhecer a
sua anatomia. Os insetos pequenos devem ser postos primeiro em aguardente e depois
fixados com alfinetes nas coxas; os grandes seriam antes descarnados. As borboletas, uma
vez capturadas em rede, eram estendidas de modo que não rompessem as asas em folhas
de papel e depois de bem secas eram remetidas em caixas bem fechadas. Os vermes
também seriam metidos em aguardente, sendo enviados em maior número para suprir
possíveis perdas.
A primeira menção que localizamos de Rodrigues Ferreira aos nomes Cipriano
Souza e José da Silva foi no Extrato do diário da Viagem Filosófica pelo Estado do Grão-
Pará, documento no qual foram listadas cronologicamente os deslocamentos realizados
477
Idem, p. 151
478
Idem, p. 151
189
479
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Cópia do Roteiro das viagens que fez [Alexandre Rodrigues
Ferreira] pelas capitanias do Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá. Manuscrito originalmente pertencente
a Faculdade de Ciências de Lisboa. Consulta feita no CEDOPE/UFPR.
480
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Documentos coligidos e pref. por Américo Pires Lima. Lisboa:
Agência Geral do Ultramar, 1953. p. 220
190
Cipriano de Souza e José da Silva não eram exceções, embora fossem casos
bastante particulares, tendo em vista que atuaram junto a um filósofo da natureza com
formação universitária. Um fragmento setecentista revela outra situação em que foram
empregados indígenas em atividades de recolha e preparo dos produtos da natureza na
capitania de São José do Rio Negro. Possivelmente, a situação se repetia em outras
capitanias. Num mapa populacional elaborado por Rodrigues Ferreira acerca dos cargos
e serviços dos índios da vila de Barcelos, datado de 30 de outubro de 1786, entre os
“oficiais da povoação” aparecem seis principais, um capitão, um alferes e dois abalizados.
Como “oficiais de ofícios” foram citados carpinteiros, calafates, jacumaúbas, ourives,
sapateiros, ferreiros, oleiros e, um deles, foi apontado como acompanhante “das pessoas
empregadas nas diligências da história natural”.481
No documento não foi descrita exatamente a atividade do último, mas Ferreira o
enquadrou ao lado dos índios “empregados em pescadores”, seja em serviços reais, como
os levados a cabo “no pesqueiro do Rio Branco”, ou a acompanhar oficiais militares,
“empregados nas demarcações reais”, “o reverendo vigário”, “o Diretor”, “alguns
Principais” e “alguns moradores.” Ao considerarmos o incentivo por parte da coroa e de
letrados para que em todo o Império português “amadores” fizessem descrições e recolhas
de produtos naturais, não é descabido supor que o índio da vila de Barcelos contemplado
no mapa acompanhasse alguém inserido nessa rede ou mesmo que ele próprio era um
colaborador.
Embora fosse da vontade de Rodrigues Ferreira retornar para o Portugal e encerrar
no Rio Negro a sua relação com Cipriano de Souza e José da Silva, não foi o que ocorreu.
Em 1789, chegou de Lisboa a ordem de que a expedição deveria seguir para o Mato
Grosso com a maior brevidade possível. Para tanto, o naturalista elaborou, a considerar
os suprimentos demandados pela Comissão de Demarcação, uma relação de providências
indispensáveis para o novo deslocamento. Na lista foram contemplados embarcações,
mantimentos, armamentos, itens para a botica e o pessoal.
Dentre os homens necessários, ganhavam destaque os que comporiam a guarnição
militar, a incluir “dois carpinteiros para construírem, durante a viagem, os caixões dos
481
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Viagem Filosófica pelas Capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato
Grosso e Cuiabá. Memórias Antropologia. Publicação Conselho Federal de Cultura, 1974. p. 21
191
produtos”, um capelão para que não faltasse “remédios para as almas” em tão arriscada
viagem, um “ajudante de cirurgia ou pelo menos quem saiba sangrar”, índios remeiros,
um índio para os serviços pessoais de cada um dos empregados da expedição e “os dois
índios preparadores que são os mesmos que vieram da capitania do Pará e continuam dito
exercício.”482
Em documento com conteúdo semelhante, escrito quando a expedição se
encontrava em vila Bela, Rodrigues Ferreira fez igual solicitação. Junto com canoas e
montarias, munições de guerra e caça, uma botica e homens para compor a guarnição
militar e para atuarem como remeiros, solicitou que “os dois índios alferes que com o
emprego de preparadores dos produtos naturais acompanham a expedição fizessem parte
do contingente que percorreria os rios Cuiabá, Paraguai e Jauru. 483 Mais uma vez, o
naturalista sabia que não poderia abrir mão da companhia, dos trabalhos e,
principalmente, dos conhecimentos, a incluir os que possuíam e os que adquiriram em
contato com os membros da expedição científica, dos índios preparadores.
Não se pode deixar de pontuar que logo que a expedição chegou à vila Bela foi
anunciada a primeira baixa na equipe: faleceu o jardineiro botânico Agostinho do Cabo.
Era ele um dos sujeitos empregados no preparo dos produtos. Com a sua morte no Mato
Grosso, os índios Cipriano de Souza e José da Silva ocuparam o papel central na recolha
e no preparo das remessas feitas para Lisboa. Desconhecemos qualquer reclamação do
naturalista a respeito da falta de pessoal especializado para auxiliá-lo nas descrições,
recolhas, preparos e remessas. Não era incomum esse tipo de queixa vindas de filósofos
da natureza em campo.
Uma vez cumpridas as ordens na capitania de Mato Grosso e Cuiabá, os
integrantes da expedição científica voltaram para Belém e, passados alguns meses,
retornaram em definitivo para Lisboa. No documento que anunciava a partida,
localizamos mais um vestígio da vida dos indígenas Cipriano de Souza e José da Silva. O
governador do Pará, Francisco de Souza Coutinho, noticiou, em carta datada de outubro
de 1792: “em o navio Príncipe da Beira, de que é comandante o tenente Manoel da Silva
482
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Documentos coligidos e pref. por Américo Pires Lima. Lisboa:
Agência Geral do Ultramar, 1953.
483
Idem, p. 341
192
Thomaz, embarca o doutor Alexandre Rodrigues Ferreira com os dois desenhadores, José
Joaquim Freire e Joaquim José Codina, levando também os dois índios capitães das suas
povoações e que acompanharam esta expedição como preparadores.”484
Para Corrêa Filho, “estes iam pleitear recompensas a dedicação com que, em tão
longa jornada, serviram inteligentemente ao naturalista.”485 É difícil mensurar quais
foram as motivações de José e Cipriano para se deslocarem, a acompanhar a extensa
coleção de plantas, minerais, animais e artefatos humanos amazônicos que a ajudaram a
formar, para a “centro de cálculo”, onde todo o material seria estudado a seguir as
diretrizes da ciência europeia. Embora não fosse algo necessariamente corriqueiro, eles
não foram os únicos a vivenciar a experiência de serem arrancados de suas terras e levados
para a Europa. Mulheres, homens e crianças naturais da América e da África, tidas como
“exemplares exóticos” ou possuidoras de características físicas ou culturais que
despertassem a “curiosidade” em reis, rainhas e mesmo na população comum,
experienciaram situações semelhantes durante toda a época moderna.486
Na segunda metade do setecentos, em conjunto com descrições textuais, imagens,
exemplares da cultura material e de ossadas, os corpos não europeus passavam também a
ser tomados como objeto de investigação científica. Com o advento das ciências
modernas, o estudo das diferenças humanas, explicadas a partir das características físicas,
da cor da pele e do local de nascimento ganhava espaço no mundo letrado europeu. A
484
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Documentos coligidos e pref. por Américo Pires Lima. Lisboa:
Agência Geral do Ultramar, 1953
485
CORRÊA FILHO, V. Alexandre Rodrigues Ferreira, vida e obra do grande naturalista brasileiro. São
Paulo: Companhia Editora Nacional, 1939. p. 146
486
De acordo com Patrícia Melo Sampaio “em 1756, o capitão-general do Grão-Pará, Mendonça Furtado,
enviou a Portugal uma encomenda especial; tratava-se de uma menina índia, de tenra idade e muito esperta,
que deveria ser entregue à Rainha como um presente. Dizia que a criança era filha de uma índia aldeada na
Vila de Borba e lhe tinha sido entregue pela mãe, depois que seu casamento com um soldado, morador
daquela vila, tinha lhe dado “muitos desgostos”. Mendonça Furtado fez questão de sublinhar o futuro feliz
reservado à menina na corte porque a saída do Grão-Pará a libertaria do destino miserável e da
“prostituidíssima vida” para a qual “todas estas mulheres desgraçadas nasceram”. A menina sem nome
seria, na visão do governador, a “única índia ditosa entre as infinitas destes sertões”. Sem quaisquer outras
referências, senão esta brevíssima carta, é impossível saber o que aconteceu com aquela que deveria ser a
única índia feliz da Amazônia.” SAMPAIO, Patrícia Maria Melo. Op. Cit. 2011. p. 299-300. Já a
historiadora Silvia Lara identificou o envio para o reino na década de 1780 de um casal de anões naturais
de Moçambique. Ana e Sebastião deveriam ser entregues ao secretário da Marinha e Ultramar que os
remeteriam como “presentes” para a rainha. No mesmo navio eram enviadas caixas com produtos dos três
reinos da natureza endereçados ao Gabinete de História Natural da Ajuda. LARA, Silvia. Op. Cit. 2007. p.
219. Ressaltamos que não se tratam de casos isolados, são citados aqui para ilustrar a terrível prática.
193
487
SELA, Eneida Maria Mercadante. Modos de ser e modos de ver- viajantes europeus e escravos africanos
no Rio de Janeiro (1808-1850). Campinas: Editora da Unicamp, 2008. p. 46
488
Idem. pp. 33-34
489
“Este preceito de Montesquieu, por si, evidencia a forte conotação política de sua teoria, ao articular
sociabilidades, modos de governar, economia das paixões e natureza.” SCHIAVINATTO, Iara Lis.
Apontamentos sobre a ilustração científica no mundo luso-brasileiro, 1750-1820. Texto inédito, consulta
em 2013. p. 14
194
pluralidade dos costumes e leis era explicada a partir “da influência do clima, pela
diferença na alimentação, pela maneira de viver, pelas doenças e epidemias, e pela
mistura de indivíduos mais ou menos parecidos.”490 Sobre a população nativa da América
defendeu que ela era degenerada, assim como a sua natureza em geral, devido aos efeitos
maléficos do clima. Como afirmam Ronald Raminelli e Bruno Silva, “Buffon teve
enorme responsabilidade na divulgação das teses sobre a inferioridade dos homens
americanos.”491
Não eram somente essas balizas teóricas que guiavam os escritos dos cientistas-
viajantes quando tomavam os povos das conquistas como objeto de estudo. Outras
características, como as atividades produtivas e comerciais, ganharam relevo em seus
escritos. Além disso, a essa altura já deve ter ficado claro que tais populações não
aparecem nos relatos dos matemáticos e naturalistas somente como um dos temas de
investigação que inventariavam e analisavam. Elas eram, antes, protagonistas ativas no
processo de construção do conhecimento sobre os territórios que habitavam. De todo
modo, Alexandre Rodrigues Ferreira, Antonio Pires da Silva Pontes e Francisco José de
Lacerda e Almeida estavam em contato com tais debates.
Antonio Pires da Silva Pontes não hesitou em apresentar no seu primeiro discurso
na Academia Real das Ciências, quando retornou da expedição na Amazônia, a Memória
sobre os Homens Selvagens a América Meridional. O texto servia como introdução aos
seus relatos de viagem igualmente apresentado aos acadêmicos. O matemático principiou
o escrito a ressaltar que “o português iluminado” era um homem “de todas as nações, de
todos os continentes, branco da Europa, preto em Guiné e cor de terra na América.” Neste
“quebra cabeça humano”, argumentava, Portugal era uma peça fundamental, tendo em
vista que “nessa parte do mundo vegeta o coração dos homens com o cotyledon de todas
as virtudes sociáveis.”492
490
RAMINELI, Ronald; SILVA, Bruno. Teorias e imagens antropológicas na Viagem Filosófica de
Alexandre Rodrigues Ferreira (1783-1792). Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 9, n. 2,
p. 323-342, maio-ago. 2014. p. 333
491
Idem, p. 336
492
PONTES, Antonio Pires da Silva. Memória Sobre os Homens selvagens da América Meridional que
serve de introdução às viagens de Antonio Pires da Silva Pontes. Primeiro Tenente do Mar da Armada
Real, Doutor e Astrônomo, e correspondente da Real Academia de Lisboa, Ano de 1792.
195
493
FERNANDES, Rosette Batarda. Glossário de Termos Botânicos. Anuário da Sociedade Broteriana, 38:
181-292, 1972. Disponível em: https://www.uc.pt/herbario_digital/learn_botany/glossario/#c
494
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Observações gerais e particulares, sobre a classe dos mamíferos
observados nos territórios... p. 74
196
europeus “no exercício da potência e faculdade intelectual.”495 Sobre a “sua razão não é
mais iluminada nem mais previdente que o instinto dos animais”, escrevia.496 Tinham cor
de cobre ou de castanho, sendo algumas nações “mais ou menos retidas que a outra”, o
que explicava pela maior ou menor exposição ao sol e a altitude dos terrenos que
habitavam. À primeira vista pareciam tratáveis, mas quando examinados de perto
revelavam o seu ar selvagem e de desconfiança.
Ainda assim não havia dúvida sobre a sua humanidade: os “índios tapuias” não
deveriam ser considerados “menos gente do que nós”, afirmava o naturalista. Porém era
preciso “reconhecer que estão em outro estado da sociedade, em outra ordem das coisas,
em outro país e com diferentes necessidades, pelas quais perdem grande parte de sua
energia.”497 Do mesmo modo que Antonio Pires da Silva Pontes, mas acrescido de uma
dose de “determinismo climático”, Alexandre Rodrigues Ferreira não somente procurava
discriminar as diferenças físicas e culturais existentes entre os povos, mas corroborava
com a suposta superioridade dos homens europeus.
Antes da escrita do texto sobre os homens americanos, o naturalista remeteu para
o Real Gabinete de História Natural de Lisboa “a cabeça de um índio, o qual foi achado
entre os outros muitos troféus que possuía o gentio Munduruku, que habita nos dois rios
do Tapajós e do Xingu e, ao dia de hoje, se vem aproximando do Madeira.”498 No mesmo
momento enviou uma gargantilha de dentes. E, dentro de um cestinho, uma massa untuosa
e incorporada com urucu, a qual disseram alguns práticos ser de “cérebro humano que
lhes servia de unguento para as suas unções.”
O assunto não se encerrou em cérebro, dentes e cabeça, Rodrigues Ferreira
registrou ter visto “algumas gaitas que são tíbias de pernas de homens”. 499 As passagens
495
Idem, p. 75
496
Idem, p. 87
497
Idem, p. 89
498
Patrícia Melo Sampaio demarca o processo de deslocamento dos Mundurucu mencionado pelo
naturalista. “Mal iniciado o aldeamento dos Mura, é a vez do confronto com os Mundurucu, população
estabelecida no baixo Tapajós e baixo Madeira, que aparece em expansão territorial no início do século
XVIII, primeiro em direção ao Pará, chegando às proximidades de Belém, perturbando não só os incipientes
núcleos coloniais, mas também os seus vizinhos Parintintin, Arara, Mawé e Mura. Entre 1770 - 1790, o
movimento expansionista Mundurucu muda de direção e assume a rota oeste na direção do Madeira e
chegam até Autazes, literalmente ‘empurrando’ os Mura para os aldeamentos portugueses. A paz com os
Mundurucu só é celebrada em 1795.” SAMPAIO, Patrícia Melo. Op. Cit. 2011. p. 200
499
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Memória sobre o gentio Mura. Op. Cit. p. 63
197
compõem a Memória sobre o gentio Mura, na qual foi narrada “redução de paz e
amizade” com os portugueses. O naturista supunha ser ossos desta nação, concebida pelos
colonizadores como “índios de corso”, mas que começava a apresentar sinais de inserção
nos “trilhos da civilização”. As Observações sobre os Mamífero da América Meridional,
o envio de uma cabeça, de dentes e de um possível cérebro para Lisboa e a menção a
ossadas humanas não são fatos desconectados. Ao contrário, sinalizam para um interesse
comum de investigação, o ser humano, mais precisamente o que habitava o continente
americano.
Diante do exposto não é descabido supor que os indígenas Cipriano de Souza e
José Silva acompanhavam o naturalista para Lisboa para serem incorporados como objeto
de investigação científica em conjunto com a flora, fauna, minerais e a cultura material
das nações americanas. Dentre os muitos corpos, sejam eles próprios ou suas fotografias,
arrancados de suas “pátrias” para serem expostos na Europa e na América do norte no
século XIX, a pesquisadora Sandra Koutsoukos analisou a história do rapaz Botocudo
(Quacke). Depois de servir de ajudante do naturalista, etnologista e príncipe prussiano
Maximiliano de Wied-Neuwied, que viajou pelo Brasil entre 1815 e 1817, o jovem
Quacke foi levado para a Europa.
Além da coleção formada com o auxílio de seu trabalho e conhecimentos, ia
acompanhado do “crânio de um jovem Botocudo (que ele [Maximiliano] mesmo
desenterrara e roubara de uma floresta, após assistir de longe a seu sepultamento), além
de artefatos, desenhos, rabiscos e apontamentos.”500 O possessivo Maximiliano julgava o
Quecke “tão seu que o levou consigo para ser apresentado como objeto de curiosidade
científica às cortes europeias; tão seu que o Botocudo nunca retornaria a sua própria terra,
permanecendo como peça viva de museu no palácio do príncipe até morrer.”501 Sandra
Koutsoukos indaga:
Imagine como deve ter sido contada a história de Quacke naquela corte na
época e nos anos seguintes: um selvagem canibal fora resgatado de uma selva
cheia de perigos, por um príncipe destemido. Um selvagem que, sendo alvo da
benevolência e do espírito humanitário do príncipe (caso não negassem a
humanidade do Botocudo), fora trazido para a civilização. E sabe o que mais?
Que fora levado a viver no palácio real dos Wied-Neuwied, não menos que
500
KOUTSOUKOS, Sandra Sofia Machado. Zoológicos Humanos. Gente em exibição na era do
imperialismo. Campinas: editora da Unicamp, 2020.
501
Idem.
198
isso! Que ali ele tinha podido se educar e até travar conhecimento com as
mentes mais sábias e ilustradas da sociedade da época.502
Embora a autora faça tal projeção pensando nos Botocudo – considerados pelos
colonizadores como uma nação avessa à civilização e contra a qual a coroa portuguesa
decretou uma guerra a partir de 1808 – talvez seja possível supor que as trajetórias de
Cipriano de Souza e José da Silva tenham sido marcadas por narrativas semelhantes.
Koutsoukos não deixou conjecturar como teria vivido o jovem botocudo em terras
europeias. Recuperou, para tanto, um comentário de Câmara Cascudo: “vivendo no
castelo do príncipe de Wied, o índio logo perdeu alguns hábitos. Ele apenas atirava suas
flechas e cantava as canções de sua tribo distante em troca de pagamento.” Além disso,
bebia de maneira recorrente. Na avaliação de Sandra Koutsoukos, o folclorista
não disfarça o preconceito contra o índio, que fora, ora bolas, tirado de sua
terra, de sua gente, de sua língua, e levado para ser exibido e estudado ao vivo
indefinidamente. Com o tempo, já um tanto integrado na civilização, aquele
índio aprendera o valor do trabalho em troca de dinheiro, e sobre o valor e o
gosto da bebida – que, provavelmente, ele comprava com o que conseguia em
pagamento por suas apresentações. Uma bebida que o aquecia naquele país de
clima gelado, ajudava-o a esquecer e lhe dava coragem, até para enfrentar as
possíveis punições. Enquanto peça viva de museu, Quacke não tinha o direito
de ter vontade própria.503
Por volta de 1834, o Quake faleceu: “como era de esperar, seu corpo foi usado
como objeto de estudo; e o crânio de mais um Botocudo virou item de coleção e exibição
do Museu de Anatomia de Bonn.”504 Podemos imaginar que Cipriano e José tenham tido
destinos semelhantes. Mas há um vestígio que distingue a história de vida, ao menos do
último, depois da partida da América. Como dissemos na introdução deste trabalho, José
da Silva, em Lisboa, não ocupou somente a posição de objeto de estudo ou da
“curiosidade” europeia. Ele atuou profissionalmente, a desempenhar a função de
preparador de produtos naturais, no Complexo da Ajuda. Era reconhecido como um
prático e as experiências de uma década na Viagem Filosófica na Amazônia eram
lembradas. Trata-se de um deslocamento não somente dos conhecimentos e habilidades
502
Idem
503
Idem
504
Idem
199
para o “centro de cálculo”, mas do próprio corpo e da mente que os detinham. Concluo o
capítulo com alguns pensamentos que me rondam desde quando tive notícia de que José
da Silva chegara vivo em Portugal e manteve-se a trabalhar do Museu e Jardim Botânico
Real.
O que sentia, com seu corpo indígena, em meio aqueles letrados de casaca
envoltos com plantas, animais, rochas? Onde e com quem morava, o que comia, o que
vestia? Qual o sentimento de estar em contato com a coleção levada, tanto quanto ele,
para um local estranho? Como manifestava a falta sentida da sua terra e do seu povo? Não
temos respostas empiricamente comprováveis, o único registro de sua vida em Lisboa é
mesmo a solicitação de aumento do ordenado assinada por Vandelli. Arriscamos, tão
somente, umas linhas conclusivas. Batizado com o nome português José da Silva, teve
sua etnia, língua, origens culturais e históricas silenciadas. Arrancado de seu território e
separado da sua gente, personifica e materializa uma das tantas violências colonialistas
da época moderna, infelizmente, atualizadas e preenchidas de novos usos políticos e
ideológicos nos séculos XIX e XX.
200
4.1. Entre a Ilha de Moçambique e a vila de Tete: saber navegar pela costa e pelo
rio Zambeze
505
ALMEIDA, Francisco José de Lacerda. Diário de viagem de Moçambique para os Rios de Sena. In:
PEREIRA; RIBAS. Op. Cit. 2012. p. 513
506
COUTO, Mia. “Zambeziando”. In: Pensageiro frequente. Lisboa: Caminho, 2010. p. 49
507
PEREIRA, Magnus R. M. Brasileiros a serviço do Império; A África vista por naturais do Brasil, no
Século XVIII. Revista Portuguesa de História, Coimbra, v. 1, n.33, p. 153-190, 2000.
201
508
CRUZ, Ana Lucia. Verdades por mim vistas e observadas oxalá foram Fábulas Sonhadas: Cientistas
brasileiros do Setecentos, uma leitura auto-etnográfica. Curitiba, Tese (Doutorado em História) –
Departamento de História, UFPR, 2004. p. 25
202
situada na margem do rio Negro, afluente do Amazonas, vila Bela na margem do Guaporé
com ligação com o Madeira-Amazonas e a vila de Tete na do Zambeze.
Francisco José de Lacerda e Almeida, vindo de Lisboa, desembarcou na Ilha de
Moçambique. Pouco tempo depois seguiu para a capitania dos Rios de Sena. O primeiro
ponto de parada foi a vila de Quelimane, de onde iniciou a navegação pelo rio Zambeze.
Como o período de permanência em Belém pelos membros da Comissão de Demarcação
e da Viagem Filosófica, o tempo de estadia na sede do governo da África oriental
portuguesa, após uma longa peregrinação oceânica, servia para organizar o novo
deslocamento, desta vez para o interior. Importante observar o papel estratégico
desempenhado pelas vilas portuguesas instaladas na costa como ponto de partida e apoio
logístico para a imersão no sertão.
Antes de seguir para os Rios de Sena, onde assumiria a função de governador,
Lacerda e Almeida fez observações sobre as coordenadas geográficas, as populações e as
atividades comerciais da Ilha de Moçambique.509 Em ofício encaminhado ao governador-
general de Moçambique, Francisco Guedes de Carvalho Menezes, o matemático diz ter
recebido ordem vocal do secretário da Marinha e Ultramar, Dom Rodrigo de Sousa
Coutinho, para tirar a “planta desta ilha e da terra firme que lhe está vizinha.” O mesmo
deveria ser feito para a faixa costeira entre Moçambique e a vila de Quelimane.
Para tanto, solicitou “um escaler e duas mais pequenas embarcações com a sua
competente equipagem, oito ou dez soldados mais desembaraçado e ágeis, doze a quinze
bandeirolas e outras tantas mais pequenas, além de alguns machados, alavancas ou cousas
que possam suprir a falta deles.”510 Requereu ainda informações junto aos práticos locais
acerca das condições de navegabilidade próxima à costa do Índico, bem como dos
possíveis riscos de ataques de corsários. A figura dos sujeitos versados nos assuntos do
“país” perpassa a documentação produzida pelos viajantes no Ultramar. As demandas
foram repassadas por Menezes da Costa a “todos os pilotos aqui assistentes práticos da
navegação dessa costa.”511
509
ALMEIDA, Francisco José de Lacerda. Breve Memórias das observações e notícias que adquiri em
Moçambique no ano de 1797. In: PEREIRA; RIBAS. Op. Cit. 2012.
510
ALMEIDA, Francisco José de Lacerda em ofício para Francisco Guedes de Carvalho Menezes. In:
PEREIRA; RIBAS. Op. Cit. 2012. p. 233
511
COSTA, Francisco Guedes de Carvalho e Menezes. In: PEREIRA; RIBAS. Op. Cit. 2012. p. 231
203
512
ALMEIDA, Francisco José em ofício para Francisco Guedes de Carvalho Menezes. In: PEREIRA;
RIBAS. Op. Cit. 2012. p. 237
513
PEREIRA, João da Luz (atestação). In: PEREIRA; RIBAS. Op. Cit. 2012. pp. 240-241
204
houvesse calmaria nas águas, poderiam ir “com remos correndo costa abaixo com ajuda
das revezas das águas”.
Por outro lado, alertava sobre os riscos oferecidos principalmente por uma grande
ponta de terra conhecida como “saco de Mulale” que fazia muito trabalhosa a saída de
qualquer embarcação que nele se metia. Como se não bastasse, os ventos também
empurravam as “águas muito para dentro, que com a ajuda dos grandes mares que se
levantam com o vento em breve espaço de tempo” a embarcação, se fosse maior e de
cobertura, ia parar na praia. Caso se tratasse de uma lancha enchia logo de água a proa.
Para fugir deste perigo eminente era preciso passar a pelo menos oito braças de distância
da terra. No entanto, tal recuo não permitiria descobrir cousa alguma não só “porque a
costa deixa de ter neste lugar altura suficiente, mas porque geralmente se acha [...]
enfumaçada.”514
É difícil precisar qual era a origem social dos sujeitos que emitiram os pareceres,
dada a presença antiga dos portugueses e indianos na costa Índica. Todos tiveram as
patentes militares discriminadas, com exceção do “piloto de Moçambique.” Mas esse
aspecto também não serve para revelar de onde eram, pois a Coroa portuguesa distribuía
patentes e títulos aos vassalos nascidos no Ultramar. Os sujeitos que compartilharam os
conhecimentos com Lacerda e Almeida poderiam ser naturais do Reino, da África ou da
Ásia. O que havia de comum entre eles consistia no fato de serem vistos como “práticos”
da navegação pela costa, o que nos leva a crer que, caso não fossem nascidos em
Moçambique, eram homens que fizeram carreira no oceano Índico.
Como observou o historiador Edward Alpers, a constituição política e histórica de
Moçambique contribuiu para a sua inserção nas redes de circulação oceânicas. No
entanto, em sua visão, os historiadores tendem a focar as análises nas ligações comerciais
forjadas a partir da exportação/importação de ouro, marfim, de indivíduos escravizados e
de tecidos indianos. Sem diminuir a relevância destas ativas trocas comerciais, Alpers
considera existir outros elementos que ajudam a compreender as relações entre
Moçambique, cujo o litoral é um dos maiores da contra costa, e o oceano Índico.
514
TORRES, José Gomes (atestação) In: PEREIRA; RIBAS. Op. Cit. 2012. p. 241-242. Todos os trechos
entre aspas do parágrafo fazem parte do documento.
205
Do rio Zambeze para cima, “a inclusão das estruturas de proteção nas canoas”,
bem como a inserção de velas estiveram associadas à cultura austronésia e datam
aproximadamente 400 d.C. A incorporação da cobertura “permitiu comunicações
oceânicas mais seguras ao longo da costa, enquanto a adição de velas melhorou ainda
mais tais viagens e, provavelmente, facilitou o transporte em todo o canal de Moçambique
para as ilhas Comores e para o noroeste de Madagascar.”516 Tais barcos eram pequenos,
o que “também facilitava a comunicação de curta distância com os povoados vizinhos ao
longo da costa e o transporte marítimo de pequena escala persiste até o século atual.”517
Para Alpers:
515
ALPERS, Edward. Moçambique Marítimo (séculos XIV – XXI). Revista História (São Paulo), n.178,
a03018, 2019. http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-9141.rh.2019.143950 p. 7.
516
Idem. p. 3-4
517
Idem, p. 3-4
518
Idem, p. 3
206
XIX.”519 De todo modo, “no momento em que os portugueses entraram no oceano Índico,
no fim do século XV, a construção de barcos moçambicana tinha se desenvolvido para
além das canoas.”520 Denominados “bangwas ou pagaios” eram construídos “com as
tábuas uma ao lado da outra fixadas com fibra da casca do coco ou corda de junco e
seladas com material vegetal.”521 Essa estrutura era empregada em embarcações menores
e nas de maior porte “que transportavam os bens entre os maiores portos de Moçambique
e aqueles do mundo mais amplo do oceano Índico.”522
A cultura marítima da costa Índica se manteve conectada com rotas mercantis no
interior do continente. O comércio ativo, que antecedeu a chegada dos europeus,
alimentava uma ida e vinda de pessoas e mercadorias “entre o litoral e o mais remoto
interior, passando de tribo em tribo e de aldeia em aldeia, num sucessivo e continuado
escambo.”523 Para o transporte dos produtos nas proximidades da costa, bem como nas
lagoas e nos rios eram utilizados “pequenos barcos – pirogas com flutuador, zambucos,
pangaios –, os mesmos barcos que ligavam entre si os portos da Azânia e de
Madagáscar.”524 Acerca da construção dos zambucos e os pangaios, Alberto da Costa e
Silva informou que eram confeccionados com “pranchas de madeira leves amarradas com
corda ou tamiça de coco. Não tinham qualquer pregadura metálica e calafetavam-se com
massa de algodão e gordura.”525 Ambos possuíam dois mastros de vela “de esteira ou
empreita de palma.” O autor compara o pangaio a uma jangada; já o zambuco era uma
“embarcação veloz, de fundo chato e proa aguda.”526
Lacerda e Almeida, para tirar a planta de parte da costa de Moçambique, recorria
aos conhecimentos e técnicas de navegação dominados localmente que circulavam
através de antigos usos. Em decorrência dos pareceres negativos e/ou contraditórios
recebidos dos práticos, o matemático decidiu seguir por alto mar, sem se aproximar muito
da borda do continente, direto para a vila de Quelimane. Segundo Eugénia Rodrigues,
519
Idem, p. 4
520
Idem, p. 14
521
Idem, p. 14
522
Idem, p. 14
523
SILVA, Alberto da Costa e. A Enxada e a Lança: a África antes dos portugueses. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2006. p. 354
524
Idem, p. 36
525
Idem, p. 36
526
Idem, p. 36
207
havia os emitentes riscos de uma viagem mais demorada pela costa, mas “tudo indica que
nessa decisão pesaram, mormente, fatores políticos.” A pressa para chegar na vila de Tete,
onde assumiria a função de governador-general, era uma estratégia “para legitimar a
autoridade que o governador-general [de Moçambique] lhe cerceava.” 527
Lacerda e Almeida registrou, em diário, que, no dia 30 de outubro de 1797, pela
manhã, partiu rumo à vila de Quelimane. Um prático lhe informou que pelas seis horas
do dia seguinte estariam a sete léguas ao norte do porto de destino. No percurso, o grupo
enfrentou a passagem por um arriscado banco de areia. Tomados pela violência do vento
e correnteza, o matemático disse não deixar de temer algum desastre. Enquanto “o prático
do alto da gávea mandava orçar, um mulato antigo marinheiro nesta carreira e vinha com
o prumo na mão, mandava arribar e vice versa, ajuntado estas palavras dirigidas ao piloto
= Vmce quer encalhar a Pala e que tudo nós percamos?” O matemático notou “que os
marinheiros do leme obedeciam ao mulato e quando assim o faziam não diminuía o
fundo.”528
Depois de descrever com algum detalhe o banco de areia responsável por semear
discórdia no barco e colocá-los em perigo, informou que aportaram em Quelimane.
Situada na costa e próxima ao rio, a vila – construída sem regularidade, pois “os
moradores fazem suas casas onde querem, com a frente para onde lhes convém, ficando
cada uma propriedade cercada de palmares, mangueiras, laranjeiras” – tinha o terreno
alagadiço. No tempo das águas, sofria com as inundações, o que fazia com que um
indivíduo dotado de privilégio só saísse de casa carregado em Manxila, ou seja, imerso
em rede. Era “muitas vezes necessário que os cafres as sustentem sobre a cabeça para que
se não molhe quem vai nela.”529
527
RODRIGUES. Op. Cit. 2013. p. 101
528
ALMEIDA, Francisco José de Lacerda. Diário de viagem de Moçambique para os Rios de Sena. In:
PEREIRA; RIBAS. Op. Cit. 2012. p. 508
529
Idem, p. 509. Abordaremos a utilização de carregadores para transportar não somente cargas, mas
também os próprios viajantes em manxilas nas caravanas de comércio no tópico seguinte. Mas, a partir
dessa passagem, é possível ver que a recorrência a esse tipo de transporte se dava também no cotidiano das
vilas e não só em percursos mais distantes. Segundo Ana Paula Wagner “o termo ‘manxilas’ era utilizado
para identificar tantos os tecidos quanto as redes feitas com eles e empregadas no transporte de pessoas.”
WAGNER, Ana Paula. População no Império Português: recenseamentos na África Oriental Portuguesa na
segunda metade do século XVIII. Tese (Doutorado em História). Universidade Federal do Paraná, Curitiba,
2009. p. 84
208
530
ALMEIDA, Francisco José de Lacerda. Diário de viagem de Moçambique para os Rios de Sena. In:
PEREIRA; RIBAS. Op. Cit. 2012. p. 511
531
Idem, p. 512
532
Idem, p. 512
209
com o acréscimo de “uma braça de tecido.” Assim como nos registros de viagem na
Amazônia colonial portuguesa, é possível verificar um microuniverso no interior da
canoa, caracterizado por uma organização do mundo do trabalho e especialização em
ofícios.
A tripulação foi distribuída “em sete coxos em que iam a bagagem e mantimentos;
e mais três balões”, em um embarcou com sua mulher, nos outros “o resto da família,
cadetes e soldados” distribui-se.533 Os coxos eram “umas canoas como lhe chamam no
Brasil, feitos de um pau e somente destinado para conduzirem fazendas, mantimentos, e
tudo que padece avaria.” Os balões eram igualmente fabricados de um único tronco, mas
diferiam-se por terem toldo. Eram usados para conduzir os passageiros e “poucas cousas
mais”. Segundo informou, não tinham as comodidades de embarcações do Pará, utilizadas
duplamente para transportar pessoas e cargas. O balão no qual seguiu tinha quarenta e
oito palmos de comprimento e oito e meio de largura, podendo com facilidade “servir
para tudo”, como “disse e fez ver os seus possuidores.”534
Um episódio narrado por Lacerda e Almeida deixou transparecer o fluxo de
barcos, diferentes dos balões e coxos, que também circulavam pelo Zambeze. Tratava-se
de um tipo de embarcação supracitada: as almadias. O excerto é interessante ainda por
dar a ver a presença de um língua, ou seja, um sujeito conhecedor do português e dos
idiomas locais, a “língua cafreal”, como denominava, na equipe que o acompanhava.
Numa dada altura da viagem observou que alguns remeiros “se deitaram na água e faziam
algum rumor.” Ao indagar o motivo daquela novidade, recebeu a seguinte resposta de um
“criado”:
os cafres estavam tirando do rio panelas, galinhas e peixe seco; isto dizia,
porque não via que uma pequena canoa ou almadia (como aqui chamam)
estava escondida com a proa do balão. Não pude deixar de rir com a
simplicidade do criado que o rio dava panelas, galinhas e peixes secos.
Informando-me da causa disse o língua, que os cafres tinham por costume,
roubar todas as almadias que encontravam, quando tinham fortuna de andar na
companhia do Illmo Sr Governador: mandei logo fazer fiel entrega do que
tinha sido roubado e fui obedecido de muita má vontade. [...] A mesma
almandia foi outra vez roupada pelos cafres do balão que se seguia. 535
533
ALMEIDA, Francisco José de Lacerda. Diário de viagem de Moçambique para os Rios de Sena. In:
PEREIRA; RIBAS. Op. Cit. 2012. p. 511-512
534
Idem, p. 511-512
535
Idem, p. 513-514
210
Outro aspecto diferia as embarcações usadas para viajar pelos interiores dos
continentes africano e americano: a técnica e disposição empregadas pelos sujeitos
responsáveis por assegurar a locomoção dos barcos. Nos balões, os remeiros distribuíam-
se sentados pelo seu comprimento, “como se pratica nos escaleres”; utilizavam remos
curtos, com as mãos posicionadas em seu centro a servir de apoio e “potência nesta
alavanca.” Nos coxos, os remeiros mantinham-se sentados na popa (traseira do barco) e
dois homens se posicionavam na proa (parte dianteira) também a remar, mas,
principalmente, para ajudarem na ação do leme e “avisarem o piloto dos obstáculos que
se oferecem.” Lembremo-nos, como fez Lacerda Almeida, que os remeiros da Amazônia
se mantinham em pé e a ocupar a proa do barco.
Em um trecho do rio Zambeze, considerado perigoso devido às correntezas e às
pontas de pedras, Lacerda e Almeida ressaltou que os remeiros do continente americano
eram mais prudentes quando comparados com os daquela parte da África. Nas muitas e
arriscadas cachoeiras derrotadas nos rios Madeira, Mamoré, Taquari, Cuxim, Pardo e
Tietê teve menos medo do que no rio Zambeze. Os sujeitos “que navegam por aqueles
mencionados rios são homens que procuram evitar o perigo quando os veem sem que
sejam mandados”, enquanto os remeiros africanos esperavam o piloto dar a ordem para
desviarem dos obstáculos. Como muitas vezes o piloto estava com a “atenção dividida a
tantos objetos”, seguiam inúmeras “balrroadas [sic] tão fortes que só a grossura dos balões
e a tenacidade da madeira podia resistir.”536
Além de remar e pilotar, os trabalhadores dos balões e coxos tinham, em alguns
momentos da viagem marcados pela baixa do rio, que arrastar as embarcações, bem como
alargar a partir da retirada de galhos, folhas, areia e pedras de trechos para a água circular
e mover o barco. Num dia, dois balões se distanciaram do de Lacerda e Almeida. Logo
lhe chegou a notícia de que acabaram por encalhar, sendo necessário esperar pela
enchente. Enquanto isso, “a gente dos balões trabalhou a todo o dia e noite passada em
arrancar troncos de árvores e aprofundar a vala para poderem sair fora dela.”537 Em outro
momento, as embarcações quase viraram em decorrência dos trocos d´árvores espalhados
536
Idem, p. 539
537
Idem, p. 516
211
pelo rio e por seus canais. Foi aí que veio uma nova lembrança da América: a navegação
no rio Taquari, “que deposita as suas águas no Paraguai”, no qual sofreu repetidos
encalhes.
Vencidos os obstáculos, a expedição de Lacerda e Almeida atingiu a vila de Tete:
“situada na margem ocidental do Zambeze, pouco abaixo da vila e na margem oposta
principiam umas baixas serras que correm ao longo do rio, fazendo-se logo mais
grossas.”538 Quem o recebeu foi o padre da igreja que servia de matriz. Depois de lhe
“ensopar com uns asperges e o incensar”, entoou, em sua visão, muito mal o hino Te
Deum Laudamos. Os moradores presentes lhe responderam com o mesmo mau gosto.
Como dito no segundo capítulo, ele não deixou de registrar que o domínio na região mais
interiorizada da África oriental portuguesa estava em péssimas condições do ponto de
vista material e humano. Tão logo instalado na vila de Tete, deu início a coleta de
informação para uma nova viagem, desta vez a travessia do continente. Ocupemo-nos,
então, dessa empreitada que lhe custou a vida.
538
Idem, p. 523
539
PEREIRA, Jerônimo para Francisco Guedes de Carvalho e Menezes da Costa. In: PEREIRA; RIBAS.
Op. Cit. 2012. p. 333-334
212
540
Idem, p 482.
541
Idem, p. 336-337
542
Idem, p. 337
543
Idem, p. 338
213
daquele continente tinha “certas leis, privilégios e aduanas que se assemelham bem em
seus interesses com o que se praticam as nações de Europa, Arábios e Egípcios.”544
Algum tempo depois, em agosto de 1802, o sucessor de Carvalho e Menezes da
Costa no governo de Moçambique, Isidro de Almeida Souza e Sá, disse saber que Lacerda
e Almeida “querendo dar execução as reais determinações, se entranhou com toda
resolução para dentro do sertão duzentas e cinquenta e seis léguas até o reino do
Cazembe.” Diante da “falta de todo o necessário” e da “desordem de tudo contínuo”, “não
teve outra saída senão exalar o espírito naquele mesmo lugar.”545 Ele não repetiu a tese
de que a expedição não alcançou êxito em decorrência do seu idealizador se mostrar
pouco receptivo às considerações vocalizadas localmente.
Ainda assim Isidro de Souza e Sá concordava com o fato da tentativa de travessia
ter gerado gastos demasiados à Coroa. Ele dizia ser necessário reunir, antes de empenhar
novos recursos, informações mais precisas sobre o trajeto. Para tanto, mandaria “por
várias vias correios cafres a que chamam patamares pelo caminho do Zumbo e entranham-
se sertão a dentro até chegar a Angola [...] para por meio desses correios se vir no
conhecimento do tempo que gastam, por onde transitaram para então intentarem maiores
projetos.”546
A documentação produzida ou reunida por Lacerda e Almeida nos revela que ele
não ignorou por completo as informações recebidas em Moçambique e, sobretudo, nos
Rios de Sena. Não deixamos de relacionar a convicção acerca da possibilidade de
travessia do continente com as experiências de uma década nos sertões da América
portuguesa. Havia também um acúmulo de projeções por parte dos portugueses sobre a
ligação entre Angola e Moçambique, as quais o matemático e Dom Rodrigo também
consideravam. Mas não foram as vivências de outrora e o diálogo com projetos anteriores
as únicas molas propulsoras para que a expedição que visava atingir a costa ocidental
fosse iniciada.
A vila de Tete funcionou como um ponto de encontro para a troca de
conhecimentos entre os vassalos da monarquia portuguesa e as nações do sertão, em
544
COSTA, Francisco Guedes de Carvalho e Menezes para Dom Rodrigo de Sousa Coutinho. In:
PEREIRA; RIBAS, André (orgs). Op. Cit. 2012. p. 334
545
SÁ, Isidro de Almeida Souza. In: PEREIRA; RIBAS, André (orgs). Op. Cit. 2012. p. 413.
546
Idem, p. 413
214
547
ALMEIDA, Francisco José de Lacerda para Dom Rodrigo de Sousa Coutinho. In: PEREIRA; RIBAS.
Op. Cit. 2012. p. 553
215
que os conduziam a Ilha de Moçambique, mas cada vez mais dirigiam as suas rotas para
o Zanzibar e Quíloa.”548
Para o historiador Isidore Ndaywel è Nziem, a formação do reino do Kazembe
esteve associada ao processo de expansão política e territorial Luda e Lunda, grosso
modo, entre o atual território da “República Democrática do Congo, antes de alcançar
uma grande parte da savana meridional, praticamente do rio Cuango ao rio Zambeze.”549
Tratava-se de um “mosaico étnico”, ligado por redes de parentesco, políticas e comerciais,
o que “constitui uma forma de demonstração da capacidade de unificação dos povos
africanos que já existia na idade pré-colonial.”550 De acordo com Nziem:
548
RODRIGUES, Eugénia. Op. Cit. 2013. p. 107
549
NZIEM, Ndaywel è. O sistema político luba e lunda: emergência e expansão. In OGOT, B.A. (ed.).
História geral da África V - África do século XVI ao XVIII. Brasília: UNESCO, 2010. p. 695
550
Idem, p. 695
551
Idem, p. 695
552
Idem, p. 710-711
553
Idem, p. 711
216
554
Idem, p. 711
555
RODRIGUES, Eugénia. Ciência europeia e exploradores africanos: a viagem de Francisco José de
Lacerda e Almeida ao Kazembe. Africana Studia, n.º 17, 2011, edição do Centro de Estudo Africanos da
Universidade do Porto. p. 84
556
Idem, p 713-714
217
filhos do Kazembe a respeito dos trânsitos pelo sertão. Segundo Eugénia Rodrigues, a
designação de filhos pelos agentes da colonização lusitana era uma tentativa de tradução
das relações de parentesco que ligavam diferentes poderes africanos. Ndaywel è Nziem
descreveu estas relações, corroborando com a observação de Rodrigues:
557
NZIEM. Op. Cit. 2010. p. 710
558
ALMEIDA, Francisco José de Lacerda para Dom Rodrigo de Sousa Coutinho. In: PEREIRA; RIBAS.
Op. Cit. 2012. p. 558
559
Idem, p. 552
219
o título real Luba Mulupwe, também usado pelo Mwant Yaav e então bastante
divulgado.”560 O matemático asseverou possuir motivos para acreditar nas informações,
pois quando perguntou se o Mouiza tinha conhecimento de algum rio que passava em
Angola, ele respondeu que havia um chamado Quanza.561 Convicto, concluiu indagando
se ainda existiriam incrédulos sobre o projeto de travessia.
O segundo emissário a partilhar informações foi um grande do reino de Kazembe,
nomeado de Catara. Esse relatou que “o Kazembe ou os seus antecedentes, vindos das
partes de Angola, conquistou o reino que presentemente ocupa”. A partir dele poder-se-
ia alcançar o de Moropóe, onde chegavam “canoas de Angola ou suas vizinhanças para
conduzir escravos” em sessenta dias. Para tanto, era necessário atravessar “quatro rios,
que correm para a mão esquerda e por consequência vão ter na costa ocidental. Um deles
é tão largo que se gasta um dia em se atravessar.” O matemático indagou: “será por
ventura o [Cunene?] chamado por outro nome, segundo alguns mapas, rio grande ou
grande rio?”562 Para sanar a dúvida deveria ele mesmo ir conferir.
Novamente, afirmou ter motivos para crer no que lhe dizia, pois “o Catara e outro
seu escravo ou companheiro vendo a bússola dissera[m] que tinha[m] visto aquela cousa
em Gora, Angola.” Aproveitando-se do momento, Lacerda e Almeida indagou novamente
em quanto tempo se podia chegar da sua terra até a costa africana banhada pelo Atlântico.
Recebeu um retorno com tamanha vivacidade: “em três meses e que os brancos podiam
ir em menos tempo” que o “obrigou a dar-lhes crédito.” Por fim, os informantes
mencionaram o nome do “rio Lucuele, o qual conflui no rio Cuanza, segundo alguns
mapas.”563
560
RODRIGUES, Eugénia. In: PEREIRA; RIBAS. Op. Cit. 2012. p. 106
561
Segundo Elaine Ribeiro, no decorrer do tempo, o rio Kwanza agregou o importante significado de
definidor do espaço colonial português, a que estes chamaram de Angola, especialmente no que concerne
à divisão regional da administração, grosso modo, no norte, de Cabinda até as regiões do rio Zaire; no
centro, de Luanda até Ambaca (Mbaka) e seguindo a linha do Kwanza até Kasange; e, no sul, de Benguela
até o Bié.” RIBEIRO, Elaine. “Expedição portuguesa ao Muatiânvua” como fonte para a história social dos
grupos de carregadores africanos do comércio de longa distância na África centro-ocidental. REVISTA DE
HISTÓRIA, São Paulo, nº 169, p. 349-380, julho/dez. 2013. p. 362. Ver também: SILVA, Rosa Cruz e. “O
Corredor do Kwanza: A Reurbanização dos espaços – Macunde, Kalumbo, Massangano, Muxima, Dondo
e Kambambe. Séc. XIX”, in: Maria Emília Madeira Santos (ed.), A África e a Instalação do Sistema
Colonial (c. 1885 – c. 1930). III Reunião Internacional de História de África – Actas. Lisbon 2000, pp.
157-173
562
ALMEIDA, Francisco José de Lacerda para Dom Rodrigo de Sousa Coutinho. In: PEREIRA; RIBAS.
Op. Cit. 2012. p. 562
563
Idem, p. 560
220
564
ALMEIDA, Francos José de Lacerda para Dom Rodrigo de Sousa Coutinho. In: PEREIRA; RIBAS.
Op. Cit. 2012. p. 555
565
Idem, p. 556
566
Idem, p. 556
567
De acordo com Eugénia Rodrigues, “os moradores dos Rios de Sena estavam habituados a preparar
caravanas comerciais com o auxílio dos seus escravos. Os elementos que compunham cada uma dessas
caravanas eram os vashambadzi, cujas funções consistiam particularmente em carregar e negociar as
mercadorias, e os achikunda, com a tarefa principal de defender os viajantes e as suas mercadorias. Os
membros dessas expedições eram principalmente os escravos, mas também podiam ser recrutados homens
livres. RODRIGUES, Eugénia. Ciência europeia e exploradores africanos: a viagem de Francisco José de
Lacerda e Almeida ao Kazembe. Africana Studia, nº 16, 2011, p. 81-102. p. 90
568
ALMEIDA, Francos José de Lacerda. In: PEREIRA; RIBAS. Op. Cit. 2012. p. 556
221
sítio distante três dias da vila de Tete, ele cruzou o domínio territorial dos “Régulos
Maraves, chamados Bive”, onde conseguiu autorização de passagem depois de pagar com
fato.569 Levou quarenta e cinco dias até atingir o rio Aruângua, o qual desaguava no
Zambeze, próximo à feira do Zumbo. Depois de atravessar o rio “em canoas que ali estão
para esse fim por pequena paga” eram as terras dos Mouizas. Segundo Elaine Ribeiro, em
rotas de comércio consolidadas era comum existir uma infraestrutura para receber os
viajantes. Quando “alguns destes pontos estavam instalados próximos de cursos d’água,
onde as populações que os controlavam disponibilizavam o serviço de canoas com pilotos
para a passagem dos carregadores e suas cargas.”570
Colocou-se novamente em marcha por terra até atingir, depois de vinte dias de
viagem, outro rio. De acordo com Manoel Caetano, os Mouizas chamavam esse curso
d´água de “Zambezi”, mas Lacerda e Almeida, ao levar em conta o que lhe diziam,
atrevia-se a afirmar que não se tratava do “nosso Zambeze ou de qualquer rio que nele
despeje suas águas do rio Xire para cima, porque este Zambeze dos Mouizas corre para a
parte da mão direita a respeito de quem o atravessa indo dessa parte e cai [...] em outro
rio de que adiante falarei.”571
De todo modo, para além deste último rio se encontravam “as terras do Kazembe,
conquistadas por seu pai Murupóe, assim como a dos Mouizas pelo Kazembe.”572 Ainda
foi necessária uma marcha de trinta dias para alcançar a “povoação ou cidade em que
reside o rei Kazembe”, sendo o trecho formado por desertos e uma “lagoa de considerável
grandeza e pouca profundidade, pois gastou um dia inteiro em a passar com água na
cintura.” Arguto, Lacerda e Almeida procurava comparar e cruzar as notícias:
Esta lagoa, segundo dizem os cafres, despejam suas águas por dois diferentes
canais, um deles vai ter ao denominado outro ao rio Murusura, em cuja margem
569
No dicionário de língua portuguesa de Raphael Bluteau a palavra “fato” aparece com o seguinte
significado: “a roupa, vestidos e móveis portáteis do nosso uso.” Na documentação de Lacerda e Almeida
ela parece referir-se a tecido, embora não tenhamos conseguido definir se algum em específico.
BLUTEAU, Rafael. Vocabulario portuguez e latino... Coimbra: no Collegio das Artes da Companhia de
Jesus, 1728. (http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/1/fato)
570
SANTOS, Elaine Ribeiro da Silva dos. Sociabilidades em trânsito: os carregadores do comércio de longa
distância na Lunda (1880-1920). Tese de Doutorado em História Social, Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2016. p. 25
571
ALMEIDA, Francos José de Lacerda para Dom Rodrigo de Sousa Coutinho. In: PEREIRA; RIBAS.
Op. Cit. 2012. p. 558
572
Idem, p. 559
222
tem seu assento o referido rei. Este rio Murusura passa por trás da serra
Morembàla [...] e na margem oposta ao qual alguns dos nossos chamam
Narjáya-Matope e outros Xire, e gastam três dias em o atravessar na referida
cidade do Cazembe, pernoitando-se em ilhas. Dizem também que o seu
Zambeze conflui neste rio muito abaixo da povoação.573
573
Idem, p. 560
574
Idem, pp. 560-561
575
Idem, p. 561
576
Idem, p. 559
223
força tem para fazer soar mais”. Além disso, “tanto homens como mulheres dançam com
muita desonestidade.”
Os tambores dos “nossos hóspedes são tocados a maneira dos nossos Zabumbas,
com muita suavidade e brandura, com eles acompanham suas cantigas, danças honestas
e graciosas.”577 A diferença era, igualmente, notada na maneira de falar. Em outra
ocasião, dizia ter presenciado a visita de “um embaixador do rei Baroe”, o qual “para dar
um pequeno recado, falou boa meia hora em voz alta acompanhando-a de ações
descomedidas.” Lacerda e Almeida via na postura dos representantes do Kazembe algo
diferente, tendo em vista que falaram “muito pouco, com muita civilidade, ao que me
representava e tão submissamente que pouco se deixava ouvir.”
A mensagem trazida do sertão foi traduzido por “um cafre de Gonçalo Caetano”,
que serviu como língua. “Antes de falar, acomodando-se aos seus estilos, ajuntou com os
dedos uma pequena porção de terra e com ela esfregou a parte superior dos braços,
vulgarmente, lagartos, e também no peito, e fez a mesma cerimônia quando acabou de
traduzir a embaixada.” Ao final, “o Catara e o espião dançaram, antes de subir para dar a
sua embaixada, vieram cumprimenta-lo abraçando uns e outros por seres talvez de inferior
qualidade, tocando-lhes a faca ou lança, que tinham na mão com umas varinhas.”578
Lacerda e Almeida destacou que o Kazembe tinha redes de relações estabelecidas
em dois sentidos do continente: para a costa ocidental e para a oriental, ocupando, assim,
lugar estratégico. O elo com as terras mais próximas do oceano Atlântico se dava pelo
comércio de escravizados, os quais eram remetidos para o “seu pai” (alusão ao Murupóe)
e por intermédio dele eram vendidos nos portos de Angola. O retorno vinha em fato de
lã. Para o rumo dos Rios de Sena alegava não comercializarem indivíduos escravizados,
pois “nem os portugueses o querem comprar, porque não fazem conta nem um nem ao
outro”. Era o marfim que despertava o interesse de ambos. Deste comércio poderia se
tirar grande lucro. Para tanto, seria fundamental descobrir uma via fluvial segura, “pois o
seu transporte por terra é trabalhoso e dispendioso.”579
577
Idem, p. 566
578
Idem, p. 556
579
Idem, p. 562
224
580
Idem, p. 559
581
Idem, p. 563
582
Idem, p. 564
225
583
Idem, p. 583
584
ALMEIDA, Francisco José de Lacerda. Instruções que antecedem o Diário de viagem da vila do Tete
capital dos Rios de Sena para o interior da África. In: PEREIR; RIBAS. Op. Cit. 2012. p. 577
226
Kazembe”, iriam descer por ele com os instrumentos científicos necessários para o seu
reconhecimento. Não deixou de traçar hipóteses: “este rio, segundo dizem, é o Xire ou
braço dele, o qual sai no nosso Zambeze pouco abaixo do Sena; e se não for este há de
ser aquele que cai pouco acima de Quelimane”. Deste local deveriam remeter para o
“Comandante e General do Estado cópia do seu diário e tudo que observar relativamente
também a facilidade do transporte de gêneros que se podem tirar do interior da África e
terras dos Mouizas.”585
Em relação ao rio no qual a cidade do Kazembe estava fundada em sua margem,
Lacerda e Almeida recomendava ações semelhantes. Embora os Mouizas o tenham
informado que este corria para a “mão direita”, Lacerda e Almeida suspeitava que poderia
correr para o lado esquerdo e permitir a ligação, mesmo que não fosse direta, com o rio
Cunene, situado ao sul do reino de Angola. Se assim fosse, dois membros da expedição,
o capitão João da Cunha e o piloto Bernardino, deveriam navegar pelo mesmo munidos
de uma agulha de marear e um sextante. Tomariam nota da quantidade de léguas
percorridas por dia, da distância entre as “povoações de cafres” instaladas nas margens e
das barras e canais.
Ao chegar “na boca do rio e costa do mar” tomariam nota acerca da “capacidade
que tem para nela entrarem navios, declarando o número de suas toneladas”, sem deixar
de sondar os possíveis canais ao seu redor. Seriam conferidas a latitude e longitude,
sabendo previamente que o “Cabo Negro está em 16º-8’ de latitude austral.” Uma vez
examinada a barra do rio, o piloto Bernardino, “em jangada ou em qualquer
embarcações”, seguiria rumo a Benguela, “viagem que se dará em dois ou três dias.” Dali
seguiria para Luanda, onde prestaria contas ao governador-general de Angola. Como era
uma hipótese, Lacerda e Almeida considerou a possibilidade do piloto não atingir a costa
ocidental. Neste caso, a ordem era para retornar à cidade do Kazembe e de lá remeter para
Luanda, recorrendo aos “correios cafres”, as notícias reunidas. Não sendo possível
realizar a travessia por via fluvial, depois de esgotadas todas as possibilidades, a comitiva
seguiria por terra rumo a Angola, “sendo conduzidos pelos cafres daquele continente que
dizer serem mansos e que frequentam o comércio com os portugueses de Angola.”
585
Idem, p. 579
227
Francisco José de Lacerda e Almeida fazia jus a uma característica atribuída pelos
governadores dos Rios de Sena e de Moçambique sobre a sua conduta: era obstinado. Não
mediu esforços para iniciar, às pressas, a travessia do continente. Utilizou da autoridade
como governador-general dos Rios de Sena para coagir os moradores da vila de Tete a
colaborarem como suprimentos e pessoal. Não se furtou ainda de contrair um novo
matrimônio, poucos meses depois do falecimento de sua esposa portuguesa, a fim de
angariar apoio da poderosa prazeira, viúva de dois governadores, Dona Francisca Josefa
Menezes.586 Vale lembrar que era nas vilas e povoações instaladas no ultramar que parte
importante dos suprimentos materiais e humanos necessários para as expedições eram
garantidos.
Numa comparação com a Viagem Filosófica e Comissão de Demarcação de
Fronteira realizadas na Amazônia colonial portuguesa, quando os viajantes-cientistas
chegaram em campo já existia uma rede de apoio costurada com os administradores
locais, em especial com os governadores das capitanias. Embora Lacerda e Almeida se
Sobre Dona Francisca Josefa Menezes ver: RODRIGUES, Eugénia. Chiponda, a “senhora que tudo pisa
586
com os pés”. Estratégias de poder das donas dos prazos do Zambeze no século XIII. Anais de História de
Além-mar, n. 1, 2000. https://run.unl.pt/bitstream/10362/16062/1/AHAM%20I_2000.pdf
228
587
CARVALHO, João Felipe para Francisco José de Lacerda e Almeida. In: PEREIR; RIBAS. Op. Cit.
2012. p. 213
229
588
XAVIER, Angela. HESPANHA, Antônio M. Redes Clientelares, In: HESPANHA, Antônio M.
(Coord.). História de Portugal. O Antigo Regime. Vol. 4. Lisboa, Editorial Estampa, 1998.
589
CRUZ, Ana Lucia. Op. Cit. p. 195
590
Idem, p. 195
591
Idem, p 195-196
230
intermediários e lucrar com a exportação no litoral do Oceano Índico. Por isso convocava
“todos os moradores para deixarem o receio que tem de ficarem prejudicados, se resolvam
a mandar seu negócio nesta ocasião em que eu me dirijo ao mesmo reino, certificando-
lhes que todo ele será feito em baixo de minha inspeção.” Assumia o compromisso de
estar atento às translações comerciais, todavia afirmou não ser o único “responsável pelas
perdas que poderão ter, pois a tudo está exposto o negociante.” Solicitava, por fim, a
“todos os negociantes que resolverem mandar os seus negócios na presente expedição,
me dirijam uma relação do fato, da sua qualidade de velório, etc. que mandarão [...] até
cinco do futuro mês de junho.”592
Passado o prazo, Lacerda e Almeida lamentou a permanência das dificuldades e
falta dos recursos e de gente para iniciar a viagem. Mesmo assim dizia manter vivo o
desejo de “vencer todos os obstáculos que se ofereceram e a falta de meios que pudessem
ajudar e facilitar a [sua] entrada para o centro da África.” Mais uma vez destacava os
desafios a serem superados em pouco tempo: “a penúria de fato cafreal, missanga e
velório, única moeda que se corre nesses rios e entre os cafres”; a ausência do pretexto de
guerra, o que dificultava o alcance de apoio financeiro dos moradores daqueles Rios; e a
falta de condutores das cargas e soldados nos quais pudesse se fiar.
Tomou, então, a decisão de despachar uma nova ordem, desta vez, mais dura. Os
vassalos da monarquia foram obrigados a enviar os tecidos e demais suprimentos que
tivessem disponíveis debaixo da promessa de serem restituídos pela Fazenda Real quando
desse. Ainda assim, a resistência continuou e se manifestou no envio de tecido de baixa
qualidade, atitude que deixou o matemático e governador enfurecido. Ele citava o caso
do coronel de Manica, região de mineração dos Rios de Sena, Jerônimo Pereira, o qual
lhe remeteu tecido de pouco ou nenhum préstimo.
Diante do ocorrido, deu ordens para “abrir os armazéns do dito Jerônimo Pereira
e tirar as boas [peças de tecido] que neles achassem, para as receber nos mesmos gêneros
quando viesse de Moçambique, em castigo de sua ambição, dolo, malícia e nenhum
interesse ao Real serviço e bem público.”593 O matemático reclamava, igualmente, da
demora no transporte das fazendas vindas de Quelimane. O atraso se justificava não
592
ALMEIDA, Francisco José de Lacerda. In: PEREIR; RIBAS. Op. Cit. 2012. p. 229
593
Idem, p. 585
231
somente pelo tempo gasto com “os coxos por causa da grande enchente do rio, preguiça
dos cafres quando não tem quem os desperte e aplique”, mas também “pela inércia e
indolência dos habitantes destes Rios.”594
Além dos suprimentos, outra demanda lhe tirava o sono: a falta de carregadores.
Enquanto esperava poder contar com 400 Mouizas da comitiva do Kazembe para pegar
em cargas, só encontrou disponíveis cerca de 100. “Uns tinham padecido, outros ido para
longe e outros finalmente não queriam pegar em cargas.”595 Além disso, alguns
moradores da vila de Tete e dos prazos da Coroa diziam estar à disposição os “seus
escravizados” para o emprego de carregadores. Mas, na leitura de Lacerda e Almeida, os
incentivavam, pelas suas costas, a fugirem antes mesmo da expedição começar.
Na sua leitura, tratava-se de pessoas desinteressadas nos progressos dos negócios
da Majestade e, em decorrência disso, divulgavam notícias a respeito da “impossibilidade
e perigos dessa empresa, o que se transmitia pelos cafres e os atemoriza.” 596 Não
localizamos fontes, além das palavras do próprio Lacerda e Almeida, de que existia um
estímulo para as deserções, algo que poderia ocorrer, pois não havia consenso sobre o
projeto da expedição. Por outro lado, podemos inferir também que as fugas ocorriam por
iniciativa e vontade dos próprios sujeitos designados como carregadores. Atitude
semelhante tomaram os Mouizas: alguns deles, como dito, depois de cumprir os
compromissos assumidos com o Mwata Kazembe ou os interesses comerciais particulares
e de sua nação, “foram para longe.”
Há a possibilidade da proposta de Lacerda e Almeida não ter oferecido vantagens
aos homens e mulheres dos Rios de Sena, os quais seriam submetidos a um trabalho
arriscado e apartado do local que habitavam. O mesmo vale para os Mouizas, não
sabemos exatamente qual o acordo estabelecido para participarem da comitiva do
Kazembe, mas certamente lhes garantiam ganhos comerciais e de proteção, além de
alimentar relações de trocas recíprocas estabelecidas antes da viagem. Como sugeriu a
historiadora Breatrix Heintze, na África centro-ocidental a partida de uma “caravana de
594
Idem, p. 586
595
Idem, p. 548
596
ALMEIDA, Francisco José de Lacerda. In: PEREIR; RIBAS. Op. Cit. 2012. p. 587
232
comércio de longa distância era sempre um acontecimento moroso que se arrastava por
vários dias.”597
A delonga associava-se, sobretudo, à tentativa de compor a equipe executora dos
planos e anseios pré-estabelecidos, em especial de arregimentar número suficiente de
carregadores. As diferenças entre anseios e práticas locais e os planos dos estrangeiros
eram resolvidos, como argumentou a historiadora Elaine Ribeiro, depois de extensas
negociações. Isso demonstrava como a barganha, muitas vezes realizada de maneira
coletiva, constituía-se enquanto aspecto central na contratação dos carregadores.
É preciso considerar a complexidade das negociações, marcadas por receios de
ambas as partes de descumprimentos dos acordos e por interesses, muitas vezes,
antagônicos. Para Ribeiro, havia um elemento importante para os carregadores ganharem
protagonismo neste processo, eles eram detentores de um “saber-fazer” específico.
Existiam modus operandi próprios dos agentes que pegavam em carga: “os carregadores
não só exigiam que as cargas fossem organizadas ao seu modo, como recusavam aquelas
excessivamente pesadas. Essa recusa podia se dar no momento do contrato ou quando
mesmo assim obrigados a carregar o fardo pesado o abandonavam pelo caminho.”598
O militar português Henrique Carvalho, por exemplo, em diário da Expedição
portuguesa de Angola ao Muatiânvua (1884-1888), registrou que, no momento do
recrutamento, os carregadores “pediam uma carga, olhavam para ela, gastavam tempo em
experiências só para arrastar e quando achavam pesada faziam caretas e acionados de
espanto, mostrando assim, aos companheiros que os observavam, que eram muito pesadas
e desanimando-os de tentarem também reconhecer-lhe peso.”599 Se a expedição guardava
entre os seus objetivos os de cunho científico, um necessário cuidado haveria ter para o
transporte dos instrumentos. Henrique Carvalho mencionou “a organização dos volumes
que os carregadores do comércio não estavam acostumados a transportar, como as caixas
científicas dos exploradores europeus com seus livros, instrumentos, materiais de
597
HEINTZE, Beatrix. Pioneiros africanos. Caravanas de carregadores na África centro-ocidental (entre
1850 e 1890). Lisboa: Editorial Caminho, 2004. p. 351
598
SANTOS, Elaine Ribeiro da Silva dos. Op. Cit. 2010. p. 45
599
Idem, p. 46
233
fotografia, remédios, entre outros; tudo embalado em volumes que dificultavam o seu
transporte.”600
Cedo os portugueses perceberam a importância dos carregadores para a
interiorização do comércio no continente. Do mesmo modo, sabiam dos desafios de se
controlar os seus recrutamentos. Para Alfredo Margarido, no caso do Reino de Angola,
em meados do século XVII, se manifestava uma preocupação entre os funcionários da
monarquia portuguesa: o despovoamento de seus domínios em decorrência do
aliciamento de carregadores por comerciantes e sobas locais. A essa inquietação
associava-se “as instruções dadas, em 1666, pelo governador Tristão da Cunha na
tentativa de proibir o serviço gratuito prestado aos comerciantes (feirantes) por
carregadores, porque leva um grande número de africanos a procurar refúgio com
chefias (sobados) independente.”601 Em linhas gerais, o que preocupava os portugueses
não eram as duras condições de trabalho dos carregadores, e sim os empecilhos que
poderiam ser gerados ao tráfico de escravizados, na medida em que os africanos se
distanciavam do litoral.
Outra desvantagem aos agentes coloniais se associava à necessidade de braços
para as atividades econômicas, como a agricultura e a mineração. Em particular em
relação a mineração, Margarido associou as investidas de “governadores ilustrados” de
proibir a arregimentação de carregadores nos domínios lusos a partir de meados do
setecentos. Destaca-se o caso de Inocêncio de Souza Coutinho, o qual foi “confrontado
com os problemas relacionados ao que julgava ser abuso de colonos e soba” no
recrutamento de carregadores. Em decorrência da baixa populacional, havia dificuldades
de conseguir trabalhadores para atuar, por exemplo, na Fábrica de Ferro de Nova Oeiras,
tendo em vista que “muitos desses deixavam o território sem ninguém para entranhar-se
no comércio do sertão.”602
No século XIX, o que era identificado como um obstáculo pelos administradores
coloniais permanecia: Antonio Saldanha de Gama, em 1814, também reclamava do
600
Idem, p. 47
601
MARGARIDO, Alfredo. Les Porteurs: forme de domination et agents de changement en Angola (XVIIe-
XIXe siècles). Revue française d'histoire d'outre-mer, tome 65, n°240, 3e trimestre 1978. pp. 377-400.
Disponível em: https://www.persee.fr/doc/outre_0300-9513_1978_num_65_240_2133. Acesso em
02/05/2020. p. 378
602
Idem. Os trechos entre aspas são traduções livres feitas pela autora.
234
603
Idem, p. 382
235
o timbre de não negar-se a qualquer coisa que seja necessário para o bem do
Real Serviço, e nisto tem a sua vaidade». O apoio dispensado pela viúva servia,
no entanto, o mesmo objectivo de preservação do seu estatuto na sociedade dos
Rios. Com efeito, ela terá visto a sua participação no plano régio de ligação
das duas costas de África como uma ocasião de enorme prestígio cujos ecos
chegariam à corte.604
604
RODRIGUES, Eugénia. Chiponda, a “senhora que tudo pisa com os pés”. Estratégias de poder das donas
dos prazos do Zambeze no século XIII. Anais de História de Além-mar, n. 1, 2000.
https://run.unl.pt/bitstream/10362/16062/1/AHAM%20I_2000.pdf
605
Idem, p. 589
236
606
HEINTZE, Beatrix. A África Centro-ocidental no século XIX (c. 1850-1890): intercâmbio com o mundo
exterior - apropriação, exploração e documentação. Luanda: Kilombelombe, 2014. p. 200-201
607
RODRIGUES, Eugénia. Op. Cit. 2013. p. 117
237
Através dos estudos da historiadora Elaine Ribeiro, tive contato pela primeira vez
com fotografias que, tal como a reproduzida acima, contemplavam uma categoria
específica de trabalhadores africanos: os carregadores.609 Desde quando esta pesquisa foi
iniciada os agentes responsáveis por levar as cargas no sertão africano ocupavam, junto
com os remeiros indígenas da Amazônia colonial portuguesa, os quais não deixavam, em
608
Arquivo Histórico Militar de Lisboa: PT AHM-FE-CAVE-VC-A10-0896. Coleção: José Veloso de
Castro. Link: https://arqhist.exercito.pt/details?id=159716
609
SANTOS, Elaine Ribeiro da Silva dos. Barganhando sobrevivências: os trabalhadores centro-africanos
da expedição de Henrique de Carvalho a Lunda (1884-1888). Dissertação de Mestrado em História Social
da Universidade de São Paulo, 2010. SANTOS, Elaine Ribeiro da Silva dos. Sociabilidades em trânsito: os
carregadores do comércio de longa distância na Lunda (1880-1920). Tese de Doutorado em História Social,
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2016.
238
carregadores. Um deles, situado mais perto da árvore com chapéu sem aba, vestido de
camisa e de um tecido estampado da cintura aos pés, parece estar manipulando uma arma
de fogo. É possível que fosse o responsável pela segurança da comitiva, e não um
carregador. Os outros também podiam desempenhar atribuições variadas, como as de
guias ou línguas, distinguindo-se dos homens que pegavam em cargas.
Na árvore encontram-se apoiadas os carregamentos, devidamente embaladas e no
topo de um suporte comprido. Segundo Elaine Ribeiro, na África centro-ocidental eram
utilizados cestos para acomodar as cargas, feitos a partir do trançado de fibras e
denominados, em kibundu ou muussassa, muianga. O cesto e vara de sustentação
formavam um único instrumento, chamado de muhamba/moamba/muamba. “O fato das
varas excederem para um dos lados do cesto, ajudava o carregador a levantar sozinho o
fardo. [...] A estratégia das varas mais longas também valia para mudar a carga de ombro
ao longo da caminhada.”610 Para a autora, a elaboração de estratégias para acomodar os
fardos atestam que os carregadores não executavam tarefas meramente mecânicas, mas
detinham um saber-fazer específico.
Mesmo sendo relevante uma análise aprofundada da fotografia, inserindo-a em
seu contexto cultural, político e técnico de produção e circulação, não a faremos. O
exercício de trazê-la à tona relaciona-se a dois objetivos: 1) ajudar-nos a projetar,
mentalmente, como era o cotidiano de uma expedição formada principalmente por
carregadores no continente africano; 2) demarcar a longevidade da atuação destes
trabalhares nas regiões onde a soberania portuguesa tentou se fazer presente.611
De acordo com Elaine Ribeiro, as caravanas de comércio – formadas
majoritariamente por sujeitos responsáveis por transportar mercadorias e pessoas – teve
610
RIBEIRO, Elaine. Op. Cit. p. 42-43
611
Paul Lovejoy, ao fazer uso de fontes diversificadas, especialmente relatos de viajantes, analisou as
atividades realizadas por mercadores e carregadores das caravanas do Sudão Central no século XIX. Trata-
se, assim, de região diferentes das que os portugueses se fizeram presentes. Uma das conclusões do autor é
que o comércio de longa distância africano era uma atividade altamente especializada e dependia de
relações políticas complexas, garantias de passagem, de acesso à informação e alimentos. O transporte de
cargas ser visto como uma ocupação dos segmentos mais pobres. Nos períodos em que outras atividades,
como a agricultura, geravam boas rendas, era mais difícil de encontrar sujeitos dispostos a pegar em cargas:
“o carregamento era uma atividade perigosa, as jornadas de trabalho eram longas e extenuantes e as
caravanas costumavam sofrer ataques ao longo do caminho, o que, com frequência, resultava na morte ou
na escravização de seus componentes. Os comerciantes algumas vezes escravizavam trabalhadores livres
indevidamente, ou os exploravam além do contratado.” LOVEJOY, Paul E. Mercadores e carregadores das
Caravanas do Sudão Central, século XIX. Tempo [online], vol.10, n.20, 2006.
240
importância pelo menos até as primeiras décadas do século XX. Houve tentativas de
substituí-los por animais (camelos e mulas, por exemplo), mas em decorrência da mosca
tsé-tsé, dos acidentes dos terrenos e dos conhecimentos dominados pelos carregadores
não foi possível. Esses sujeitos, ativos conhecedores dos caminhos e dos pontos de apoio
disponíveis no sertão, somente foram suprimidos quando construídas as linhas férreas.
Posto isto, nas redes de comércio terrestres,
612
SANTOS, Elaine Ribeiro da Silva dos. Op. Cit. 2016. p. 14
613
THORNTON, John K. A África e os africanos na formação do mundo atlântico (1400-1800). Rio de
Janeiro, Editora Campus /Elsivier, 2004. p. 99
241
614
VIEIRA, Carla. Os Portugueses e a travessia do continente africano: projectos e viagens (1755-1814).
Lisboa: Mestrado en História dos Descobrimentos e da Expansão Portuguesa, Universidade de Lisboa,
2006. p. 90
615
Idem, p. 90
242
Lacerda e Almeida partiu da vila de Tete no sentido norte. Grosso modo, passou
por dois terrenos mineradores cuja exploração do ouro era feita por moradores dos Rios
de Sena: a) Maxinga: onde mineravam as mulheres escravizadas por Dona Josefa; b) Java:
local em que a família de Gonçalo Caetano Pereira recebeu a primeira proposta comercial
dos Mouizas e do Kazembe. Cruzou as povoações dos Maraves, com extensão até o rio
Aruângua. Depois de atravessar este curso d´água e de abandonar a ideia de fazer as suas
medições, atingiu e percorreu o território dos Mouizas até chegar nas proximidades do
rio denominado “Chambezi”. Provavelmente, era este o rio que o matemático identificou
como o “Zambeze dos Mouizas”, mas que desconfiava não ser o mesmo que cortava os
Rios de Sena. No dia 2 de outubro de 1798, registrou o primeiro contato, mediado por
mensageiros, com o Mwata Kazembe. No dia seguinte, constam as suas últimas anotações
em diário, interrompido bruscamente. É interessante notar como o suposto curso do rio
243
616
Idem, p. 593
244
as mais fortes. Mas o contentamento durou pouco. No mesmo tempo fora surpreendido
pela fuga de mais 80 carregadores dos vindos da vila de Tete. Diante da impossibilidade
de abandonar outras cargas se viu obrigado a contratar, mediante pagamento, os Maraves
como carregadores. Esses não quiseram pegar nos volumes sem antes receber a paga,
“cujo o ajuste foi bem trabalhado de parte a parte e por fim cada um deles recebeu um
capotim/dois panos.”617 Não descartou o risco de mesmo assim fugirem e interpretou a
exigência por terem se aproveitado de seu desespero e urgência.
Nas povoações dos Maraves, “nossos amigos fingidos”, tendo em vista que, como
registrava o matemático, exigiam dos mercadores portugueses tributos para atravessarem
as suas terras, os viu “repetidas vezes feito expectadores” nas beiras das estradas. O língua
traduziu o motivo dos olhares de espanto: Lacerda e Almeida vinha carregado em um
pequeno palanquim, o que não era prática nem entre o “muito poderoso rei” da
povoação.618 Além da presença do língua, a passagem evidencia que os carregadores não
transportavam somente as mercadorias, mas também o próprio viajante.
Não demorou muito para a expedição fazer uma parada forçada pelos
carregadores. Ao indagar os soldados o porquê de não os obrigarem a seguir, recebeu a
resposta de que foram ameaçados com arcos e flechas. Conformou-se, pois se ordenasse
castigos aos “mais culpados” corria o risco de fugirem todos.619 Além disso, registrou que
a marcha curta e a exigência de parada em pontos específicos se davam, “pois assim estão
criados.” Nas caravanas de comércio eram remetidos pelos senhores como negociantes
aos sertões e desfrutavam de liberdade: andavam “quanto tempo queriam e tomavam
muitas mulheres à custa do amo, finalmente faziam quanto desejavam.”
Numa tentativa de negociação, convocou os “mocazambos, cafres que governam
um certo número de cafres cativos e eles também o são”. Mediado pelo língua, expressou
as suas ordens para apressarem a caminhada e diminuírem as paradas. 620 A passagem
evidencia a existência de hierarquias e divisões internas na organização entre os
617
ALMEIDA, Francisco José de Lacerda. Diário de viagem da vila de Tete capital dos Rios de Sena para
o interior da África. In: PEREIR; RIBAS. Op. Cit. 2012. p. 598
618
Idem, p. 596
619
Idem, p. 599
620
Idem, p. 600
245
621
Idem, p. 600
622
LOVEJOY. Paul. Op. Cit. pp. 69-70
246
623
Idem, p. 70
624
Idem, p. 631
247
625
PINTO, Francisco João. Diário da Viagem de retorno da Expedição de Travessia da África, do Cazembe
a Tetê, após a morte de Francisco José de Lacerda e Almeida, sob o comando do Padre Francisco João
Pinto. In: PEREIRA; RIBAS, Op. Cit. 2012, p. 645
626
HEINTZE, Beatrix. A África Centro-ocidental no século XIX (c. 1850-1890): intercâmbio com o mundo
exterior - apropriação, exploração e documentação. Luanda: Kilombelombe, 2014. p 204- 205
627
Idem, p. 199
248
CONSIDERAÇÕES FINAIS
a partir dos instrumentos científicos ou das projeções astronômicas. Deste modo, ele se
viu confrontado com o ritmo estabelecido pelos carregadores e guias africanos,
habituados a percorrer o trajeto para comercializar.
Uma contribuição pequena deste estudo, perante tantas vidas e histórias
desintegradas e interrompidas pela violência colonialistas, foi evidenciar os
conhecimentos dos povos originários perceptíveis mesmo diante de relações de poder
assimétricas, como eram as estabelecidas com os viajantes-cientistas em campo. Saberes,
técnicas, tecnologias e modos de existência que, para a nossa sorte, resistiram e
mantiveram-se vivos numa longa duração, sendo guardados e recriados por gente com
sabedoria. Os usos desses conhecimentos, uma vez transpostos aos centros e integrados a
outras culturas científicas, estiveram, quase sempre, associados à exploração econômica
e humana. Grosso modo, se consome o que tais povos sabem sobre o mundo natural e
acerca de seus territórios tradicionalmente ocupados, mas desprezava-se os seus variados
modos de vida e existência.
Trata-se de uma lógica de geração de riqueza cara ao ideário iluminista de
progresso civilizacional, operada através da derrubada da mata, da extração de minérios,
de resinas, óleos, da poluição dos rios e de um modelo de desenvolvimento no qual
natureza e cultura estão apartadas. Nos dias atuais, tais engrenagens permanecem sendo
recriadas e replicadas. Diante disso, como observado por Bruno Latour, “somos forçados
a trazer nosso olhar de volta à Gaia sublunar, tão ativamente modificada pela ação humana
que ingressou em um novo período, que os geólogos-feitos-filósofos propõem chamar de
Antropoceno.”628
O ano de 2020, quando a presente tese foi concluída, tem sido emblemático dos
altos custos das escolhas “de uma” humanidade, como escreveu Ailton Krenak, que
deslocou os seres humanos da Terra, a fim de levá-los para viver em uma “abstração
civilizatória.” Diante dos indícios concretos dos altos custos desta escolha, seria hora de
exercitarmos a escuta séria das “ideias para adiar o fim do mundo” de sociedades que
vivem “agarradas” em seus territórios “pelas bordas do planeta, nas margens dos rios, nas
628
LATOUR, Bruno. Para distinguir amigos e inimigos no tempo do Antropoceno. Revista De
Antropologia, 57(1), 11-31, 2014. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/ra/article/view/87702
255
beiras dos oceanos, na África, na Ásia ou na América Latina.”629 E que sabem que a flora,
a fauna, os minerais e as águas são muito mais do que “recursos” a serem apropriados e
transformado em mercadorias.
629
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
256
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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uma relação cronológica.” Barcelos, 31/10/1787, 48 p. Original Manuscrito. Consta
anotações nº 8. Coleção Alexandre Rodrigues Ferreira. CEHB nº 1.006. ABN v. 1.
___. Propriedade e posse das terras do Cabo Norte pela Coroa de Portugal deduzida dos
Anais Históricos do Estado do Maranhão e de algumas memórias e documentos por onde
se acham dispersas as suas provas. Por Alexandre Rodrigues Ferreira. Pará, em 24 de
abril de 1792. Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, catálogo da expedição Alexandre
Rodrigues Ferreira, nº 10521, nº 160.
___. Breve diário ou memória do Rio Branco e de outros que nele desaguam, consequente
a diligência e mapa que deste rio se fez no ano de 1781. Coleção Alexandre Rodrigues
Ferreira proveniente da Coleção [Lagos]. CEHB Nº 148. ABN v 72, p. 128. Cat. ARF nº
145 – cópia do manuscrito, constam correções de Alexandre Rodrigues Ferreira e
anotações Drummond.
PONTES, Antonio Pires da Silva. Notícias do Lago de Xarayes. Cópia Manuscrito. Faz
referência aos índios Parabuá, bem como a fauna e flora da região. Consta paginação de
340 a 349. Coleção Alexandre Rodrigues Ferreira. Proveniente da Coleção Carvalho.
CEHB nº 19.377. ABN v 72, p 129. 21, 1, 007 nº 001.
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Cópia do Roteiro das viagens que fez [Alexandre
Rodrigues Ferreira] pelas capitanias do Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá.
Manuscrito pertencente a Faculdade de Ciências de Lisboa. [Manuscrito]
259
Melo e Castro em que reclama dos insultos e impropérios de Antônio Pires da Silva
Pontes para com os companheiros das Demarcações. 1786, Setembro, 24. Anexo:
catálogo da verdadeira posição de alguns lugares
AHU_ACL_CU_Mato Grosso_010, Cx. 26, D. 1540 – Ofício do [governador e capitão
general da capitania de Mato Grosso] Luis de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres ao
[secretário de estado da Marinha e Ultramar] Martinho de Melo e Castro em que informa
sobre as ordens que deu ao matemático Francisco José de Lacerda e ao astrônomo
Antônio Pires da Silva Pontes para aprofundar o reconhecimento e configuração do rio
Paraguai e dos seus afluentes. Anexo: 4 documentos.
AHU_ACL_CU_Mato Grosso_ 010, Cx. 27, D. 1594 – Ofício do [governador e capitão
general da capitania de Mato Grosso] João de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres ao
[secretário de estado da Marinha e Ultramar] Martinho de Melo e Castro sobre ter o
astrônomo Francisco José de Lacerda ter devolvido os instrumentos matemáticos que
tinha levado para São Paulo, e os instrumentos que o astrônomo Antônio Pires da Silva
Pontes entregou na capital. Anexo: 3 documentos.
AHU_ACL_CU_Mato Grosso_010, Cx. 40, D. 1996 – Ofício do naturalista Alexandre
Rodrigues Ferreira para o [secretário de Estado e da Marinha e do Ultramar], visconde de
Anadia, enviando as cartas cartográficas de São Paulo até a vila de Cuiabá; cópia do
Diário de Viagem do astrônomo Francisco José de Lacerda e Almeida e cópia de seu
trabalho “Prospecto Filosófico e Político da Serra de São Vicente”. 1802, outubro, 23.
Anexo: lembrete.
AHU, códice 1642, ff. 54-61v. Doc. 14: 1785, Maio, 20. Luanda. Ordem do Barão de
Moçâmedes para a tropa transportada na fragata Luanda que se destina à exploração dos
sertões de Benguela, foz do rio Cunene e altura do Cabo Negro. In: VIEIRA, Carla Costa.
Op. Cit. 2006. p 78
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