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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

GABRIELA BERTHOU DE ALMEIDA

RIOS DE CONHECIMENTOS: OS POVOS DAS CONQUISTAS E


EXPEDIÇÕES CIENTÍFICAS NA AMAZÔNIA E NA ÁFRICA ORIENTAL
PORTUGUESA (1780-1798)

CAMPINAS
2020
GABRIELA BERTHOU DE ALMEIDA

RIOS DE CONHECIMENTOS: OS POVOS DAS CONQUISTAS E


EXPEDIÇÕES CIENTÍFICAS NA AMAZÔNIA E NA ÁFRICA ORIENTAL
PORTUGUESA (1780-1798)

Tese apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências


Humanas da Universidade Estadual de Campinas
como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do
título de Doutora em História na Área de Política,
Memória e Cidade.

Orientadora: Profa. Dra. Iara Lís Franco Schiavinatto

ESTE TRABALHO CORRESPONDE À VERSÃO


FINAL DA TESE DEFENDIDA PELA ALUNA
GABRIELA BERTHOU DE ALMEIDA E
ORIENTADA PELA PROFA DRA IARA LÍS
FRANCO SCHIAVINATTO.

CAMPINAS
2020
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado, composta pelos


Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 11 de dezembro
de 2020, considerou o(a) candidato(a) Gabriela Berthou de Almeida aprovado(a).

Prafa. Dra. Iara Lís Franco Schiavinatto


Profa. Dra. Iris Kantor
Profa. Dra. Patrícia Maria Melo Sampaio
Prof. Dr. José Alves de Freitas Neto
Profa. Dra. Aline Vieira de Carvalho

A Ata de Defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no


SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertações/Teses e na Secretaria do Programa de Pós-
Graduação em História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.
Ao Marco pela leveza de sempre e pelo amoroso incentivo
Aos meus pais, Lenita e Renatinho, exemplos que sigo na vida
À Rê, minha irmã e melhor amiga
Agradecimentos

A conclusão desta tese fecha um ciclo importante da minha vida. Foram anos de
dedicação à pesquisa na área de História, um tempo vivido com intensidade em
Instituições Públicas de Ensino do Brasil. Diante disso, o meu primeiro agradecimento
vai para todos/as os/as profissionais que dedicam a vida para a construção das
Universidades que tão bem me acolheram e tanto me ensinaram, seja como estudante,
pesquisadora e/ou professora: UFOP no tempo da graduação, UNICAMP no mestrado e
doutorado, IFPR/Paranaguá onde comecei minha vida profissional como professora
substituta e UESPI/Oeiras onde, atualmente, sou professora efetiva do curso de
Licenciatura em História.
Sou grata também aos financiamentos de diferentes agências de fomento
recebidos ao longo deste período. No doutorado, agradeço ao CNPq pela bolsa no país
(processo nº 141832/2016-9) e à Cátedra Jaime Cortesão/USP por oportunizar o estágio
de pesquisa no Centro de História da Universidade de Lisboa. Tenho um orgulho imenso
de dizer que foi graças ao financiamento público de pesquisa e educação – ameaçados
com a redução drástica de investimentos e uma verdadeira campanha de desinformação
– que mais uma filha de trabalhadores/as brasileiros/as pôde se formar.
Para além dos suportes financeiros e institucionais, nesses espaços me formei a
partir da construção de laços fortes de amor e amizade. E foi gente que passou pela minha
vida entre idas e vindas de norte a sul do país! Nominalmente, começo agradecendo a
minha orientadora, Iara Lis Schiavinatto. Do mestrado ao doutorado, foram oito anos de
orientação e de uma relação conquistada com solidez. Além de me apoiar e apontar
caminhos diante dos desafios da pesquisa e da vida profissional, foi sensível e teve
paciência na reta final da tese, quando fomos atravessadas pela pandemia de COVID-19
e tivemos que concluir a escrita com uma sobrecarga de trabalho, demandas pessoais e
sem as conversas presenciais que tanto gostamos.
Aproveito o embalo para agradecer os/as professores/as que foram fundamentais
durantes os anos de doutorado. Aos que cursei disciplinas: Silvana Rubino e Omar
Ribeiro da Unicamp, João Frederico Rickli do Programa de Pós-graduação em
Antropologia da UFPR e Agenor Sarraf e Ângela Domingues (na ocasião, professora
visitante do Programa de Pós-graduação em História Social da Amazônia), por me
acolherem em seus cursos quando estive na UFPA. A passagem por Belém foi curta, mas
transformadora. Tomei contato mais direto com a qualificada produção historiográfica
dos Programas de Pós-graduação em História das Universidades do norte do Brasil e pude
estreitar os laços com a professora Ângela Domingues, que supervisionou o meu estágio
de pesquisa nos arquivos e bibliotecas portuguesas, em janeiro de 2019.
Aos professores que compuseram a banca de qualificação, Aldair Rodrigues e
Lucilene Reginaldo, sou grata pelos caminhos indicados e incentivo tão necessário
naquele momento. Agradeço também aos/as que compuseram a banca de defesa: Iris
Kantor (USP), Patrícia Melo Sampaio (UFAM), Aline Vieira Carvalho (Unicamp) e José
Alves (Unicamp), assim como dois interlocutores fundamentais, Aldair Rodrigues
(Unicamp) e Lorelai Kury (FIOCRUZ), que aceitaram estar na banca, mas não puderam
por motivos de saúde.
Sou, igualmente, grata aos/as professores/as que me receberam em conversas ou
responderam e-mails com sugestões de bibliografia e fontes: Ana Paula Wagner
(Unicentro), Eugénia Rodrigues (Centro de História/Universidade de Lisboa), Patrícia
Melo Sampaio (UFAM), Nelson Sanjad (UFPA) e Magnus Pereira (UFPR). Aos dois
últimos, em especial pelas cartas de recomendação da pesquisa em Portugal endereçada
à Cátedra Jaime Cortesão. À professora Patrícia Melo por ter compartilhado, na reta final
do trabalho, um manuscrito que acabou indo parar na abertura da tese.
Meu muito obrigada aos/as funcionários/as dos arquivos e bibliotecas que passei,
especialmente ao André do CEDOPE/UFPR. Ainda no âmbito da produção do trabalho
ora apresentado, devo mencionar a sorte que tenho de contar com uma rede de
mulheres/amigas extremamente competentes: Gislaine Faria por reservar parte do seu
tempo para elaborar com cuidado e entusiasmo os mapas com os trajetos dos viajantes,
Ligia Guido pela transcrição de um documento, Pauline Freire pela revisão textual,
Camila Frade pelo abstract e a minha irmã Renata Berthou por ajudar na formatação final
do texto.
No campo afetivo a lista é ainda maior e será impossível mencionar o nome de
todos/as. Fica uma tentativa de manifestar gratidão a tanta gente bacana que eu tenho o
prazer de conviver. Ao Marco pelo amor, cuidado, incentivo e companheirismo ao longo
de 13 anos! Por ler e comentar quase toda a tese, me acompanhar em arquivos e
bibliotecas, ajudar a traduzir texto do inglês, além de ser melhor companhia de luta,
viagens, carnavais, bares, festas e comilanças! Mesmo com mestrados, doutorados,
trabalhos mils, concursos e os retrocessos políticos dos últimos anos que tanto nos afetam,
nunca abrimos mão de celebrar juntos a vida.
Aos meus pais, Lenita e Renatinho, por serem desde sempre os maiores
incentivadores dos meus estudos. Para mim é tão bom ver que vocês sentem orgulho das
escolhas que fiz. À Rê, minha irmã, por estar sempre presente e por ser tão alegre, festeira
e amiga. É até difícil de expressar o meu amor e admiração por vocês três! Aos meus
sogros, Cleire e Gustavo, e a tia Ciça pelo apoio e pela torcida ao longo de todos estes
anos.
Aos/as amigos/as de Mariana, Minas Gerais: Natiele Oliveira, Tamires Sacardo,
Vanessa Petruz, Carolina Frade, Bárbara Mançanares, Mariana Fessel, Pauline Freire,
Eventon Pimenta (Qblz), Daniel Precioso (Zangado), Walter Lowande (Warte) e Nayhara
Vieira; aos/as do Paraná: Gisa, Ana Assis, Andréia Rinalt, Kelem Rosso, Aline Miranda,
Jordana e Marcos Tonet (Lili); aos/as da Unicamp: Tiago Pires, Raissa Paz, Ligia Guido,
Rafaela Franklin e Natália Lousada. Sou muito grata pela distância não ser obstáculo para
a manutenção da nossa amizade.
Aos/as amigos/as de Oeiras, Piauí pela calorosa recepção e por contribuírem para
que eu e o Marco nos sentíssemos logo em casa: Pedrina, Lucivando, Pedro, Eliete,
Francisco, Rodrigo, Débora e Xico Carbó. Para Pedrina, Débora, Luci, Rodrigo e
Reginaldo faço um agradecimento especial pelo companheirismo profissional: que
alegria trabalhar com pessoas tão humanas e comprometidas! Por fim, agradeço aos/as
estudantes e professores/as do curso de História da Universidade Estadual do Piauí do
Campus Possidônio Queiroz por tanto aprendizado e pela luta cotidiana pela garantia de
um ensino inclusivo e de qualidade. Vida longa à Universidade pública e gratuita!
Os brancos se dizem inteligentes. Não o
somos menos. Nossos pensamentos se
expandem em todas as direções e nossas
palavras são antigas e muitas. Elas vêm
de nossos antepassados. Porém, não
precisamos, como os brancos, de peles
de imagens para impedi-las de fugir da
nossa mente. Não temos de desenhá-las,
como eles fazem com as suas. Nem por
isso elas irão desaparecer, pois ficam
gravadas dentro de nós. Por isso nossa
memória é longa e forte.

KOPENAWA, Davi. A queda do céu.


Palavras de um xamã yanomami. São
Paulo: Companhia das Letras, 2014.

Enquanto isso, a humanidade vai sendo


deslocada de uma maneira tão absoluta
desse organismo que é a terra. Os
únicos núcleos que ainda
consideram que precisam ficar
agarrados na terra são aqueles que
ficam meio pelas bordas do planeta, nas
margens dos rios, nas beiras dos
oceanos, na África, na Ásia e na
América Latina.

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o


fim do mundo. São Paulo: Companhia
das Letras, 2019.
RESUMO

As expedições científicas de Alexandre Rodrigues Ferreira, Francisco José de Lacerda e


Almeida e Antonio Pires da Silva Pontes no norte da América portuguesa (1780-1792) e
do mesmo Lacerda e Almeida na África oriental portuguesa (1797-1798) estiveram, como
já demarcado pela historiografia, atreladas às tentativas de rever e revisitar as dinâmicas
imperiais a partir do reinado de D. José I. Além de aproveitar experiências acumuladas
em distantes conquistas, as viagens conectavam-se em seus objetivos: inventariar a
natureza e promover a territorialização através dos rios. Dito isso, procurou-se redesenhar
as relações entre os projetos levadas a cabo por letrados luso-brasileiros com formação
nas Faculdades de Filosofia e Matemática da Universidade de Coimbra reformada, bem
como apreender a execução dos deslocamentos no ultramar. Uma atenção especial foi
concedida para as ativas presenças dos povos das conquistas – nomeados nos escritos dos
viajantes como “índios”, “tapuias”, “gentios”, “cafres” – no cotidiano das viagens. Vistos
como “rústicos” e “simples”, não foram somente a mão de obra disponível localmente.
Ao atuarem como remeiros, pilotos, guias, línguas, carregadores e informantes,
colocavam os seus saberes em uso e, consequentemente, em circulação. Desempenhavam,
portanto, papéis importantes no processo de construção do conhecimento sobre o mundo
natural e os territórios que habitavam. Na arena historiográfica posta, dialoga-se com
estudos interessados em pensar que o conhecimento científico foi produzido a partir dos
trânsitos/contatos recíprocos, embora marcados por relações de poder assimétricas, com
sujeitos cuja pretensão era a de subalternizar.

Palavras-chave: História dos conhecimentos; Expedições científicas; Povos das


conquistas; Amazônia colonial portuguesa; África oriental portuguesa.
ABSTRACT:

The scientific expeditions of Alexandre Rodrigues Ferreira, Francisco José de Lacerda e


Almeida and Antonio Pires da Silva Pontes in northern Portuguese America (1780-1792)
and Lacerda e Almeida in Portuguese East Africa (1797-1798) were, as already
demarcated through historiography, linked to the attempts to review and revisit the
imperial dynamics from the reign of D. José I. In addition to taking advantage of
experiences accumulated in distant conquests, the travels were connected in their
objectives: to inventory the nature and to promote the territorialization through the rivers.
That being said, this study sought to redesign the relationships between the projects
carried out by Portuguese-Brazilian scholars graduated in the reformed Philosophy and
Mathematics Faculties of the University of Coimbra, as well as to learn about the
execution of overseas displacements. Special attention was given to the active presence
of the peoples of the conquests - named in the writings of the travelers as "Indians",
"Tapuias", "Gentiles" and “Cafrés" - in the daily travel. Seen as “rustic” and “simple”,
they were not only the labor force available locally. While acting as paddlers, pilots,
guides, languages, carriers and informants, they put their knowledge to use and,
consequently, into circulation. They therefore played important roles in the process of
building knowledge about the natural world and the territories they inhabited. In the
proposed historiographic arena, there is a dialogue with studies interested in thinking that
scientific knowledge was produced from reciprocal transits / contacts, although marked
by asymmetrical power relations, with subjects whose pretension was to subordinate.

Keywords: History of Knowledge; Scientific expeditions; Peoples of Conquests;


Portuguese colonial Amazon; Portuguese East Africa
Lista de ilustração

1. Viagens Filosóficas na América portuguesa (PATACA, E.; OLIVEIRA, C. Escrita de


micronarrativas biográficas de viajantes luso-brasileiros: aproximações entre história das
ciências no Brasil e ensino. Revista Educação e Pesquisa vol. 42, no.1, São
Paulo, Jan/Mar, 2016.) ............................................................................................... p. 47

2. Núcleos coloniais da Amazônia na época do Diretório pombalino (SANTOS, Francisco


Jorge. Além da conquista: guerras e rebeliões indígenas na Amazônia pombalina.
Manaus: Editora da Universidade do Amazonas, 2ª ed., 2002.)
............................................................................................................................... p. 65-66

3. Fortalezas e vilas-capitais na Amazônia colonial portuguesa (FERREIRA, Alexandre


Rodrigues. Diário da Viagem Filosófica pela Capitania de São José do Rio Negro: com a
informação do estado presente. In: FERRÃO; SOARES, (Orgs.). Rio de Janeiro: Kapa
Ed., 2007.) .................................................................................................................. p. 70

4. Mapa da África oriental portuguesa (WAGNER, Ana Paula. A administração da África


Oriental Portuguesa na segunda metade do século XVIII: notas para o estudo da região
de Moçambique. Revista História Unisinos, 11(1):72-83, Janeiro/Abril 2007.) ........ p. 74

5. Mapa com o trajeto da Viagem Filosófica de Alexandre Rodrigues Ferreira nas


capitanias do Pará e São José do Rio Negro (Elaborado por Gislaine Garcia Farias e
Gabriela Berthou de Almeida) .................................................................................... p. 97

6. Mapa com o trajeto da Viagem Filosófica de Alexandre Rodrigues na capitania do


Mato Grosso e retorno para Belém (Elaborado por Gislaine Garcia Farias e Gabriela
Berthou de Almeida) ................................................................................................ p. 104

7. Mapa com o trajeto da expedição científica de Francisco José de Lacerda e Almeida na


África Oriental (Elaborado por Gislaine Garcia Farias e Gabriela Berthou de Almeida)
.................................................................................................................................. p. 131

8. Desenho de uma igarité, uma ubá e uma jangada e seus acessórios (Memória sobre
a Marinha interior do Estado do Grão-Pará, 1787) ................................................... p. 144

9. Prospecto da canoa em que navegaram os empregados da expedição filosófica pelos


rios Cuiabá, S. Lourenço, Paraguai e Jauru (Original de Joaquim José Freire) ......... p. 146

10. Prospecto da Villa de Cametá e da Entrada que fez o Exmo Sr Martinho de Souza e
Albuquerque Governador e Capitão General do Estado (Original de Joaquim José Freire)
.................................................................................................................................. p. 150

11. Duas pranchas de um Cambeba (Memória sobre o gentio Cambeba/Omaguá,


produzida em setembro de 1787) .............................................................................. p. 168

12. O regresso dos negros de um naturalista (Jean Baptiste Debret, Litografia de Thierry
Frères) ...................................................................................................................... p. 185
13. Mapa da África com os poderes africanos instituídos e focos de colonização
portuguesa e inglesa (COQUERY-VIDROVITCH, C.; MONIOT, H. Afrique noire de
1800 nos jours. Paris: P.U.F Nouvelle Clio, 1974.) ................................................... p. 217

14. Refeição dos carregadores (Fotografia de José Velloso de Castro, Angola, 1909)
.................................................................................................................................. p. 237

15. Mapa francês (D´Aville) levado por Francisco José de Lacerda e Almeida para a
travessia (PEREIRA, Magnus; RIBAS, André (orgs). Um astrônomo paulista no sertão
africano. Curitiba: Editora UFPR, 2012.)
.................................................................................................................................. p. 242
Lista de abreviatura e siglas

AHML: Arquivo Histórico Militar de Lisboa

AHU: Arquivo Histórico Ultramarino

BN: Biblioteca Nacional

CU: Conselho Ultramarino

CEDOPE: Centro de Documentação e Pesquisa dos Domínios Portugueses,

Departamento de História da Universidade Federal do Paraná

IHGB: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro

MUHNAC: Museu Nacional de História Natural e da Ciência de Lisboa

RIHGB: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 17

PARTE I - HISTÓRIAS EM CONEXÃO: PROJETOS E TRAJETÓRIAS EM


UM “MUNDO EM MOVIMENTO”

Capítulo 1: Conhecimentos úteis em domínios incertos: a interiorização da


Amazônia e da África oriental portuguesa em meados do setecentos.................. 37

1.1. Ciência e colonização: a formação letrada em Portugal e suas implicações nos


projetos para o ultramar........................................................................................... 37
1.2. Experiências conectáveis em conquistas distantes ........................................... 51
1.3. “Zonas de soberania indecisa”: demarcação de fronteira e viagem filosófica pelo
Grão-Pará, Rio Negro e Mato Grosso e Cuiabá ...................................................... 56
1.4. Entre à costa e contra costa africanas: a travessia do continente a partir da
capitania de Moçambique e Rios de Sena ............................................................... 72

Capítulo 2: Sujeitos em movimento: nascidos no Brasil, formados em Portugal,


em trânsito pelo Império .......................................................................................... 86

2.1 As expedições no ultramar como um divisor de águas nas trajetórias .............. 86


2.2. Alexandre Rodrigues Ferreira: um “observador da máquina do mundo” ........ 90
2.3. Antonio Pires da Silva Pontes Leme: um matemático versado em história natural
............................................................................................................................... 111
2.4. Francisco José de Lacerda e Almeida: um obstinado súdito da monarquia ... 122
PARTE II - PROJETOS EM AÇÃO: OS POVOS DAS CONQUISTAS NO
COTIDIANO DAS EXPEDIÇÕES CIENTÍFICAS

Capítulo 3: Protagonismos indígenas nas expedições científicas realizadas na


Amazônia colonial portuguesa ............................................................................... 134

3.1. Saber navegar é preciso: remeiros, proeiros e jacumaúbas em um território


serpenteado por rios .............................................................................................. 134
3.2. Conhecimentos em circulação: trocas de notícias sobre os territórios e as gentes
............................................................................................................................... 159
3.3. Saberes e usos das plantas e dos animais: registros de oralidades indígenas.....173
3.4. Os índios preparadores Cipriano de Souza e José da Silva: vida e saberes em
trânsito ................................................................................................................... 185

Capítulo 4: Caminhos e lógicas de circulação africanas e as viagens de Lacerda e


Almeida na África oriental portuguesa ................................................................ 200

4.1. Entre a Ilha de Moçambique e a vila de Tete: saber navegar pela costa e pelo rio
Zambeze ................................................................................................................ 200
4.2. A vila de Tete como um local de encontro: circulação de conhecimentos sobre
os caminhos e os povos ......................................................................................... 211
4.3. A organização da expedição: estratégias para reunir o pessoal e os suprimentos
............................................................................................................................... 227
4.4. A execução do projeto de travessia: carregadores, guias e línguas no sertão
africano...................................................................................................................237

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................... 249

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................. 256


17

INTRODUÇÃO

José da Silva foi um Preparador de Produtos Naturais no Museu Real de História


Natural da Ajuda. Instalado em Lisboa, compunha, junto com o Jardim Botânico,
Laboratório Químico, Casa de Risco e Livraria, um complexo científico e museológico
com importância significativa no universo letrado lusitano setecentista.1 Voltado aos
estudos da história natural e para a guarda/aclimatação de exemplares da flora, fauna e de
minerais, foi criado sob a supervisão do italiano Domingos Vandelli. O naturalista-
colecionador-professor de prestígio internacional, radicado em Portugal, assinou um
ofício, em abril de 1798, endereçado à Rainha D. Maria I, para demandar a equiparação
do ordenado de José da Silva ao de outro Preparador do Museu Real, João Peres.2
Ambos desempenhavam a mesma função e tinham igual tempo de serviços
prestados à Coroa, mas havia uma disparidade de 130 réis diários em suas remunerações.
Peres vencia 300 réis por dia, enquanto Silva ganhava 170 réis. Como argumentado na
solicitação, o trabalho de José da Silva com produtos dos três reinos da natureza se iniciou
anos antes e do outro lado do oceano Atlântico. Ele atuou como “Preparador dos Produtos
que se remeteram das capitanias do Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá, pelo espaço
de nove anos que acompanhou a Expedição Filosófica daquele Estado.”3
Assim como Cipriano de Souza, natural Soure, na Ilha Grande de Joanes, José da
Silva, nascido em Alter do Chão, era um dos “índios do Pará” incorporados na equipe do
naturalista luso-brasileiro Alexandre Rodrigues Ferreira quando desembarcou,

1
A designação como “complexo científico e museológico da Ajuda”, que utilizaremos em outras passagens
da tese, foi retirada do trabalho do historiador português João Brigola. BRIGOLA, João. Colecções,
gabinetes e museus em Portugal no séc. XVIII. Museu, viagem e história natural – expedições científicas
ao Brasil e a África. Saarbrücken. Lisboa: Omni Scriptum-Novas Edições Acadêmicas, 2019.
2
O manuscrito que comprova a atuação de José da Silva no Museu Real e Jardim Botânico da Ajuda foi
localizado por Patrícia Melo no Museu Nacional de História Natural e da Ciência de Lisboa. Agradeço
imensamente a professora pela generosidade em compartilhar o documento conosco.
3
MUHNAC - Acervo Histórico - MUL - AH - EPL - UI – 1863. Livro de Registro dos Decretos, Portarias,
Avisos e Outras Regias Determinações que baixam ao Real Jardim Botânico Laboratório Químico, Museu
e Casa do Risco (Paço em 21 de abril de 1798. Marquês Mordomo-Mor - Domingos Vandelli).
18

acompanhado dos dois desenhistas e de um jardineiro botânico, em Belém.4 Merecia,


portanto, maior reconhecimento e a concessão régia. Não é demais lembrar que se trata
de uma das principais expedições científicas oficiais ocorridas no Império colonial
português no período.
Somente pouco tempo antes da conclusão desta tese soubemos do destino
profissional de José da Silva depois que deixara a América. Entretanto, sabíamos, desde
o início da pesquisa, que dois indígenas, promovidos a “oficiais de povoação”, atuaram
como preparadores dos produtos naturais remetidos para Lisboa durante toda a Viagem
Filosófica realizada na Amazônia colonial portuguesa. Em correspondências escritas ao
secretário da Marinha e Ultramar, Matinho de Melo e Castro, e para administradores
locais, Rodrigues Ferreira ressaltava a necessidade de mantê-los empregados nas
diligências da história natural e elogiava o quão zelosos eram ao desempenharem tais
serviços.
Conhecíamos também o registro de que os dois seguiram, junto ao naturalista e
aos riscadores José Codina e Joaquim Freire, para Lisboa uma vez findados os trabalhos
da expedição. Cipriano de Souza e José da Silva colocaram seus corpos e conhecimentos
– tanto quanto a extensa coleção da Amazônia, composta por exemplares da natureza,
objetos da cultura material indígena, diários, memórias e desenhos – em circulação.
Depois de percorrerem por quase uma década os sertões do norte da América portuguesa,
partiram de um território ultramarino para o Reino. O que as vidas em trânsito de Cipriano
e José podem indicar e como o último foi parar no Museu Real de História Natural e
Jardim Botânico de Lisboa?
Como sabemos, Portugal não era detentor da capacidade de centralizar por
completo as redes políticas, econômicas e culturais na Época Moderna. A historiografia
brasileira e portuguesa das últimas décadas, redirecionou de maneira quase decisiva a
visão acerca das relações estabelecidas entre a monarquia e as conquistas no Ultramar.
Os estudos de Manuel Hespanha, Nuno Monteiro, Pedro Cardim, João Fragoso, Manolo
Florentino, Maria de Fátima Gouveia, Maria Fernanda Bicalho, dentre outros,

4
Os locais de nascimento de José da Silva e Cipriano de Souza também foram localizados pela historiadora
Patrícia Melo Sampaio. Arquivo Público do Pará: Códice 368 – Provisões, Patentes e Nomeações (1780-
1795).
19

demonstraram, com alta dose de empirismo, os micropoderes e as complexas tramas


interpessoais construtivos deste universo.5 Segundo concluíram Fragoso, Bicalho e
Gouvêa: “hierarquizando os homens através dos privilégios cedidos em contrapartida à
prestação dos serviços de governo, produziam-se múltiplas espirais de poder, articuladas
entre si, viabilizando uma governabilidade tão característica da forma como se exercia a
soberania portuguesa sobre o seu Império ultramarino.”6 Desse ponto de partida, as
pesquisas se ampliaram de maneira significativa, sobretudo as focadas nos âmbitos locais
e em trajetórias, as quais não perderam de vista as correlações mais amplas.7
De todo modo, no que confere à produção de conhecimento com pretensões
científicas, ao menos até o início do século XIX, as instituições portuguesas
desempenhavam o papel de “centros de cálculos”. Para os laboratórios, gabinetes, museus
e jardins botânicos lusitanos, eram remetidos os materiais e as informações oriundos das
diferentes porções geográficas de um Império pluricontinental. Segundo o antropólogo
Bruno Latour, o “conhecimento não é algo que possa ser descrito por si mesmo ou por
oposição a ignorância ou a crença, mas apenas pelo exame de todo um ciclo de
acumulação.”8 Nisso inclui considerar as etapas deste processo e as condições sócio-
históricas que possibilitam a ocorrência de cada uma delas, num esforço de apreender a
ciência em ação, e não somente ela acabada, em seus resultados finais.
As viagens patrocinadas por reinos europeus no setecentos compunham uma das
fases do ciclo de acumulação que poderia, por exemplo, ter como saldo o reconhecimento

5
BICALHO, Fernanda; GOUVEA, Maria de Fátima; FRAGOSO, João. O Antigo Regime nos trópicos. A
dinâmica portuguesa (séculos XVI-XVII), Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001. MONTEIRO, Nuno
G. F., CARDIM, Pedro; CUNHA, Mafalda Soares Optima Pars. Elites Ibero-Americanas do Antigo
Regime, Lisboa, ICS, 2005. BICALHO, Maria Fernanda; FERLINI, Vera Lucia (orgs). Modos de
Governar: ideias e práticas políticas no Império Português (séculos XVI a XIX). São Paulo: Alameda,
2005. BICALHO, Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima; FRAGOSO, João (Orgs). O Antigo Regime nos
trópicos. A dinâmica portuguesa (séculos XVIXVII), Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001.
HESPANHA, Manuel. “Antigo regime nos Trópicos? Um debate sobre o modelo político do Império
colonial português.” In: FRAGOSO, João; GOUVÊA, M. F. (orgs.) Na trama das redes: política e negócio
no império português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
6
FRAGOSO, João Luiz Ribeiro; GOUVEA, Maria de Fátima Silva; BICALHO, Maria Fernanda Baptista.
Uma leitura do Brasil colonial. Bases da materialidade e da governabilidade no império. Penélope. Fazer e
desfazer a História, n. 23, 2000. p. 83
7
Os estudos das Câmaras municipais, por exemplo, permitem notar como esses espaços se constituíram
“em vias de acesso ao conjunto de privilégios que permitiam não apenas nobilitar os colonos, mas ainda
fazê-los participar do governo político do Império.” Idem, p. 83
8
LATOUR, Bruno. Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. São Paulo:
Unesp, 2ª Ed., 2011. p. 345
20

de uma nova espécie ou a elaboração de um mapa. Para tanto, dependia-se “inteiramente


da possibilidade de levar de volta, para o lugar de onde a expedição foi enviada, alguns
traços obtidos na viagem.”9 Caso a mobilidade estável dos produtos dos três reinos da
natureza e as medidas de latitude e longitude fossem garantidas, zoólogos, botânicos,
mineralogistas e cartógrafos instalados em espaços especializados, os “centros de
cálculo”, poderiam profundar as análises, classificações e nomenclaturas de acordo com
as teorias em voga, dando prosseguimento ao ciclo de acumulação.
A partir da Ajuda, entre a década de 1780 e meados da seguinte, foi coordenado
um ambicioso projeto de inventário da natureza das colônias portuguesas espalhadas
pelas quatro partes do mundo.10 Além de ser o espaço de treinamento dos primeiros
“naturalistas reais” remetidos para as capitanias da América portuguesa, para Angola,
Cabo Verde e Moçambique, o local foi receptor da maior parte dos exemplares e das
informações da natureza e dos territórios ultramarinos. O complexo científico e
museológico teve importância “não só no estágio profissionalizante dos viajantes-
naturalistas, como também em todas as operações decorrentes da construção ideal do
‘Grande Museu, que sirva de depósito e arquivo para estas riquezas dos seus Estados’.”11
Tem-se, assim, pistas para o entendimento do destino de José da Silva. Em
primeiro lugar, ele era reconhecido como um preparador de produtos naturais competente,
segundo atestou a solicitação assinada por Vandelli. Não tinha formação letrada, era um
“prático”, como tantos outros sujeitos com atuação indispensável no cotidiano das
expedições realizadas em diferentes domínios coloniais. No dicionário de Rafael Bluteau,
para a palavra “prático” foi atribuído o seguinte significado: alguém “experimentado,

9
Idem, p. 354
10
Quando Dom Rodrigo de Sousa Coutinho assumiu a Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha e
dos Domínios Ultramarinos, ele passou a centralizar as informações e produtos vindos das conquistas. Criou
novos espaços institucionais para este fim e agregou relevância aos estudos cartográficos articulados ao da
história natural. O Complexo da Ajuda, embora continuasse tendo importância, perdeu a centralidade
ocupada até então. Foi ampliado o processo de instalação de Jardins Botânicos e museus de história natural
na América portuguesa, como, por exemplo, o em Belém. No entanto, o reino permaneceu desempenhando
a função de centro até 1808. PATACA, Ermelinda Moutinho. Coletar, preparar, remeter, transportar –
práticas da História natural nas viagens filosóficas portuguesas (1777-1808). Revista brasileira de História
das Ciências, Rio de Janeiro, v. 4, n. 2, p. 125-138, jul-dez., 2011.
11
BRIGOLA, João. Op. Cit.
21

versado, perito”12. Não há fontes para atestar a incorporação dos seus conhecimentos no
processo de análise da coleção que ajudara a formar ou na aclimatação de alguma planta
americana. Mas não é descabido supor que o emprego em atividades como essas também
justifique a sua incorporação como funcionário do Museu Real e Jardim Botânico.
A situação é peculiar: um indígena com atuação profissional em um centro de
produção de conhecimento europeu. É um caso singular em meio à documentação
analisada em nossa pesquisa. Não sabemos nem mesmo se seu companheiro, Cipriano de
Souza, despenhara função semelhante uma vez concluída a Viagem Filosófica na
Amazônia. De todo modo, consideramos que a atuação de José da Silva deve ser
compreendida em diálogo com o protagonismo de outras personagens naturais das
conquistas portuguesas no processo de construção do conhecimento sobre a natureza e os
territórios que habitavam.
Este foi um dos objetivos estabelecidos na presente tese: analisar os
protagonismos das populações não europeias no cotidiano de expedições científicas,
financiadas pela Coroa, realizadas na Amazônia colonial portuguesa e na África oriental
portuguesa nas últimas décadas do setecentos. Embora planejadas na metrópole – a seguir
uma “grade de pensamento” adquirida na Universidade, em academias, laboratórios e
gabinetes – era no ultramar, em regiões desconhecidas pelos viajantes, que os
deslocamentos ocorriam. Ao atuarem como preparadores, remeiros, pilotos, guias,
carregadores, línguas e informantes, os povos das conquistas não eram somente a mão de
obra disponível localmente. Eles dominavam conhecimentos sobre as configurações dos
rios e caminhos por terra e acerca dos animais, dos minerais, dos povos e das plantas que
não podiam ser dispensados pelos letrados em campo.
O emprego de povos das conquistas para designar populações culturalmente
diversas e habitantes de domínios distantes dialoga com as proposições da historiadora
Silvia Lara. Em textos e imagens produzidos por naturalistas e engenheiros militares,
entendidos enquanto agentes da Coroa com formação especializada que associavam saber
e poder, os variados grupos humanos nascidos nas conquistas “apareciam

12
BLUTEAU, Rafael. Vocabulário Português e Latino (Volume 06: Letras O-P). Lisboa: Oficina de
Pascoal da Sylva, Impressor de Sua Majestade, 1720. p. 674. Disponível em:
https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/5442 Consulta em: 20/04/2020
22

semelhantemente equalizados e subsumidas pela condição colonial.”13 O fato de serem


nascidos no ultramar estimulava as homogeneizações: “criava-se, assim, uma categoria
genérica que atribuía um lugar hierarquicamente inferior àqueles vassalos, considerados
simples e rústicos, que habitavam as conquistas.”14 Para a autora, “trata-se de um olhar
civilizado, que pouco se interessa pelo outro, mas o desdenha e acentua-lhe a barbárie
para enaltecer a sua própria superioridade.”15
Se na perspectiva destes letrados carregava-se de conotação pejorativa tal
denominador comum, o pensamos como uma possibilidade de lançar luz sobre
agenciamentos compartilhados por sujeitos cuja pretensão era a de subalternizar. Embora
não existisse contato direto entre os povos das conquistas estudadas, eles tiveram, no
contexto das expedições, atuações semelhantes. Nas relações estabelecidas com os
viajantes em campo, colocaram os seus saberes, habilidades e técnicas em uso e,
consequentemente, em circulação. Quando se almejava inventariar o mundo natural e
reunir dados cartográficos, em especial em regiões afastadas da costa, protagonizaram
etapas importantes do processo de construção do conhecimento transposto para o Reino.
Tais experiências podem ser pensadas de maneira conectada, tanto quanto eram os
projetos coloniais do período, que visavam, sob a erige ilustrada, melhor conhecer para
melhor dominar e explorar.
Segundo o historiador da ciência Kapil Raj, o conhecimento se constitui
circulando e a partir de encontros, e não se disseminando de um local para o outro. Além

13
LARA, Silvia H. Fragmentos Setecentistas: Escravidão, Cultura e Poder na América Portuguesa. São
Paulo: Companhia das Letras, 2007.
14
Idem, p. 263. Silvia Lara analisou minuciosamente duas pranchas, desenhadas, cartografadas e ilustradas
pelo engenheiro militar Carlos Julião. Uma delas contemplava prospectos “da entrada da barra de Goa”,
“da praça do Diu vista do mar”, “da entrada do Rio de Janeiro” e “da Ilha de Moçambique, estando em seu
porto.” Segundo Lara, “o que difere esse trabalho cartográfico de muitos outros produzidos no período é o
fato de que, além do desenho tradicional das perspectivas e das legendas com os nomes das edificações e
principais pontos geográficos, há logo abaixo dos desenhos duas faixas com várias figuras humanas
aquareladas, identificadas por pequenas referências textuais.” Os desenhos das figuras humanas são muito
semelhantes entre si, mudando, grosso modo, somente as vestimentas. Ajudam, assim, a entender o modo
como as autoridades coloniais consideravam as gentes que viviam nas áreas coloniais. “O espaço genérico
das colônias, designado sempre a partir de sua posição política de submissão (Conquistas ou domínios
ultramarinos), impunha uma equivalência que diluía a diversidade permitindo que as figurinhas de Julião
pudessem ser intercambiadas. Está subjacente a essa operação uma divisão do mundo em partes, que separa
“tipos sociais” e culturalmente diversos caracterizados por seus trajes, objetos e situações. Ao mesmo tempo
e não paradoxalmente, essa divisão aproximava os vários tipos identificados, desprezando a sua
multiplicidade para toma-los, de forma simples e genérica, como povos da Conquistas.” Idem, p. 263-264
15
Idem, p. 237
23

dos rios serem os “caminhos móveis”16 das expedições analisadas – as quais se inseriam
no rol das tentativas de territorialização do poder colonial – a palavra é empregada
metaforicamente no título da tese para remeter aos (re)fluxos e à abundância de saberes
construtivos do campo científico. Um rio tem uma nascente e uma foz, mas seu curso não
é retilíneo e uno. É composto por cheias, baixas, quedas d´água, afluentes, além de
segmentos minerais, de troncos de árvores, raízes, animais aquáticos, algas. Sem contar
nas interferências sofridas (e o verbo sofrer é oportuno) quando cruzam com alguns seres
humanos.
Para Raj, muito do que se pensa ser ciência europeia foi, na verdade, constituído
nas margens. Os estudos pós-coloniais empreenderam importantes críticas aos valores e
pretensões morais e políticas do discurso científico europeu.17 Ganhou força a denúncia
da ciência “como uma hegemônica ‘narrativa mestra’ do poder ocidental, uma formação
discursiva através da qual o resto do mundo foi simultaneamente subjugado e relegado ao
papel de ‘outro’ da Europa, binariamente oposto a ela.”18 Mesmo investida de relevância,
a crítica mantém viva “a ideia amplamente aceita de que há algo essencial e unificado
chamado ciência moderna que, como a própria modernidade, teve origem na Europa
ocidental e subsequentemente se espalhou para o resto do mundo”.19
No entanto, o conhecimento não deve ser entendido como “resultado de trocas e
acomodações intra-europeias mas, mais do que isso, de trocas ativas, se bem que inscritas
em relações de poder assimétricas, com as culturas científicas e técnicas de outros
continentes.”20 Um dos desafios consiste em mapear a variedade de “saber-fazer” e a
polifonia de vozes que permeiam os discursos científicos, mesmo quando os registros
históricos foram produzidos por sujeitos despreocupados em dar créditos às informações

16
HOLANDA, Sérgio Buarque. Monções. São Paulo: Editora Alfa-Ômega, 1976.
17
De acordo Matheus Duarte, “pode-se dizer que Kapil Raj é um ‘pós-pós-colonialista’, porque ele faz
críticas importantes a Foucault e a Edward Said, por exemplo.” Raj não esgota a análise na crítica à ciência
moderna como “uma hegemônica narrativa do poder ocidental”. Avança no sentido de compreender outras
racionalidades e lógicas de produzir conhecimentos para além da europeia. Entrevista com Kapil Raj, feita
por Matheus Duarte. Boletim Eletrônico da Sociedade Brasileira de História da Ciência, Número 9 - Junho
de 2016
18
RAJ, Kapil. Além do Pós-colonialismo... e Pós-positivismo. Circulação e a História Global da Ciência.
Tradução de Juliana Freire. Revista Maracanan, Edição: n.13, Dezembro de 2015. p. 168
19
Idem, p. 16
20
Idem, p. 157
24

compartilhadas por populações vistas como subalternas. Não podemos esquecer que umas
das principais premissas científicas do iluminismo europeu consistia na averiguação e
comprovação das informações feitas por sujeitos com formação especializada. A razão,
embora comum aos seres humanos, era cultivada por alguns, os “sábios”, o que, segundo
a visão da época, os alçava a um patamar distinto dos homens e mulheres excluídos do
mundo das letras.
Como sugeriu Silvia Lara, “os nexos que formam um período histórico estão
presentes também no movimento que dá origem às próprias fontes da história.”21 As
analisadas nesta tese carregam o ponto de vista dos viajantes-cientistas, que compunham
uma pequena elite letrada, majoritariamente branca, masculina e integrada aos quadros
da monarquia. Se parte considerável dos documentos históricos do período colonial foram
escritos por sujeitos comprometidos com esse ideário, os estudos historiográficos já
demonstraram que essa não é a única perspectiva possível de ser narrada. “Trabalhando
no interior desses limites e lidando com os filtros das fontes é possível apreender as
tensões presentes em situações nas quais as desigualdades sociais e as diferenças culturais
estavam profundamente imbricadas.”22
A conhecida Viagem Filosófica de Alexandre Rodrigues Ferreira foi um ponto de
partida para uma pesquisadora que, desde a graduação, tinha como uma das suas
preocupações compreender as lógicas do reformismo ilustrado no campo da educação e
da ciência, em particular da filosofia, no Império português. Autores como os de Willian
Simon, Ângela Domingues, Ronald Raminelli e Ermelinda Pataca demonstraram que a
expedição do naturalista não ocorreu de maneira isolada.23 Ao contrário, esteve inserida
em um conjunto de deslocamentos pelas conquistas lusitanas. Como bem demarcado pela

21
LARA, Op. Cit. p. 25
22
Idem, p. 26
23
SIMON, William J. Scientific Expeditions in the Portugueses Overseas Territories. Lisboa: Instituto de
Investigação Científica Tropical, 1983. DOMINGUES, Ângela. Viagens de exploração geográfica na
Amazónia em finais do século XVIII: política, ciência e aventura. Funchal: Centro de Estudos de História
do Atlântico, 1991. PATACA, Ermelinda Moutinho. Terra, água e ar nas viagens científicas portuguesas
(1755-1808). Tese de Doutorado em Ensino e História das Ciências da Terra - Instituto de Geociências,
UNICAMP, Campinas, 2006. RAMINELLI, Ronald. Viagens Ultramarinas; monarcas, vassalos e governo
a distância. São Paulo: Alameda Casa Editorial, 2008.
25

historiografia, as viagens estiveram atreladas às tentativas de rever e revisitar as


dinâmicas coloniais a partir do reinado de D. José I.24
Na segunda metade do século XVIII, o modelo colonial português abriu lugar a
novas estratégias de poder. Reinos como França, Holanda e Inglaterra constituíram redes
de informação e de redistribuição de exemplares da flora, fauna, minerais e da cultura
material humana em escala global. A historiadora Lorelai Kury assegurou que essa
“espécie de consciência planetária” do período não deve ser subestimada.25 As
informações reunidas eram tomadas como parte integrante das rotinas administrativas e
para elaborar estratégias de exploração econômica e humana, o que justificava os
investimentos nos estudos da natureza do reino e, principalmente, das colônias.
De acordo com Iara Lis Schiavinatto, a história natural articulava-se aos projetos
que visavam combater o “estado de ruína” do Império lusitano. Para resistir a uma
eminente fragmentação da soberania da monarquia, foram criadas “novas engrenagens
políticas entremeadas ao reformismo ilustrado”:

A organicidade entre a estruturação da monarquia e a ilustração, forjando


engrenagens de poder e saber, buscou incorporar efetivamente áreas pouco
exploradas dos domínios da monarquia, ao desvendar sua natureza, demarcar
sua geografia e suas fronteiras com critérios matemáticos precisos, descobrir,
inventariar e propor modos de explorar novos produtos e/ou novas técnicas de
produção da riqueza agrícola associada ao comércio, para maior pujança do
império, a fim de combater seu propalado estado de decadência, debatido e
estudado por vários homens da esfera governativa na corte e nas capitanias do
ultramar. 26

24
Há inúmeros estudos historiográficos, com perspectivas analíticas distintas, sobre o reformismo ilustrado
português a partir do reinado de Dom José I. Para mencionar alguns: NOVAIS, Fernando A. Portugal e
Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1808). 6. ed. São Paulo: Hucitec, 1995. LEXANDRE,
Valentim. Os sentidos do Império. Porto: Afrontamento, 1993. DIAS, Maria Odila da Silva. Aspectos da
ilustração no Brasil. In: A interiorização da metrópole e outros estudos. 2. ed. São Paulo: Alameda, 2005.
MAXWELL, Kenneth. Chocolates, Piratas e Outros Malandros. Ensaios Tropicais. Paz & Terra, São
Paulo, 1999. SANTOS, Catarina Madeira. Um governo "polido" para Angola; reconfigurar dispositivos de
domínio (1750-c. 1800). Dissertação apresentada à Universidade Nova de Lisboa/Faculdade de Ciências
Sociais e Humanas. Lisboa, 2005. RAMINELLI, Ronald. Ilustração e império colonial. História [online].
2012, vol.31, n.2, pp.36-67. POMBO, Nívia. O Palácio de Queluz e o mundo ultramarino: circuitos
ilustrados (Portugal, Brasil e Angola, 1796-1803). Tese (Doutorado em História). Universidade Federal
Fluminense, Niterói, 2013.
25
KURY, Lorelai. “Homens de ciência no Brasil: impérios coloniais e circulação de informações (1780-
1810)”. Revista História, Ciência, Saúde – Manguinhos. Vol. 11 (suplemento 1), 2004.
26
SCHIAVINATTO, Iara. Sobre educar a mocidade: entre saberes, linguagens e sociabilidades letradas.
Educação Sensível. Imagem, política e memória no mundo luso-brasileiro. Campinas: Tese de Livre
Docência, Universidade Estadual de Campinas, 2017.
26

Além da história natural, outro campo do saber se sobressaía nessa conjuntura: a


matemática articulada à cartografia. O conhecimento detido do território e da hidrografia,
garantido pelas medições de latitude e longitude, tornou-se elemento fundamental para
consolidação da posse dos domínios coloniais, principalmente em regiões de fronteiras
ou disputadas. Segundo Nelson Sanjad, no século XVIII, “os países Ibéricos
incorporaram no seu repertório jurídico o princípio da uti possidetis, entidade do Direito
Romano que garantia a posse de uma região a quem comprovasse sua efetiva e mais antiga
ocupação.”27
No caso específico do norte da América portuguesa, o intelectual amazonense
Arthur Cesar Ferreira Reis e, mais recentemente, a historiadora portuguesa Ângela
Domingues salientaram que a escolha do itinerário da Viagem Filosófica de Rodrigues
Ferreira encontrava-se associada ao processo de demarcação das fronteiras das colônias
da Espanha e de Portugal no sul do continente americano.28 As áreas percorridas,
interligadas pelo/ao rio amazonas, correspondiam a um extenso e rico território povoado
por diferentes nações indígenas e em disputa não somente com os espanhóis, mas também
com os holandeses e franceses. Os povos originários, com suas apreensões próprias dos
espaços, também borravam com frequência as delimitações territoriais estabelecidas
pelos reinos europeus.
A assinatura do Tratado de Santo Ildefonso, em 1777, e a designação de
Comissões de Demarcação compostas por matemáticos-astrônomos e engenheiros
espanhóis e portugueses foi uma tentativa de resolver parte dos conflitos. Não se tratava
do único acordo diplomático naquela centúria, mas, pela primeira vez, Portugal conseguia
compor um corpo técnico formado em seus domínios, em especial na Faculdade de
Matemática da Universidade de Coimbra recém reformada. Destacavam-se os
matemáticos-astrônomos Francisco José de Lacerda e Almeida, natural da capitania de
São Paulo, e Antonio Pires da Silva Pontes, da de Minas Gerais.

27
SANJAD, Nelson. As fronteiras do ultramar: engenheiros, matemáticos, naturalistas e artistas na
Amazônia, 1750-1820. Anais do colóquio luso-brasileiro de História da Arte, Porto: Faculdade de Letras
da Universidade do Porto, 2007. p. 426
28
REIS, Arthur Cesar Ferreira. A Amazônia vista pelo Dr. Alexandre Rodrigues Ferreira. Lisboa: Separata
do Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, julho/setembro, 1957. DOMINGUES. Op. Cit. 1991.
27

Uma das primeiras decisões em nosso estudo foi a de que o material legado da
Viagem Filosófica de Alexandre Rodrigues Ferreira deveria ser analisado em conjunto
com os escritos de Lacerda e Almeida e Silva Pontes. Em primeiro lugar, parecia oportuno
realizar a análise de documentos de sujeitos com trajetórias conectadas: nascidos em
capitanias da América, acompanharam a reforma da Universidade de Coimbra iniciada
em 1772, compuseram as primeiras turmas das Faculdades de Matemática e Filosofia que
sinalizavam para a inserção de Portugal nos circuitos ilustrados europeus e, tão logo
formados, foram remetidos para as capitanias do Pará, Rio Negro e Mato Grosso e Cuiabá.
Do ponto de vista metodológico, os nomes próprios dos três viajantes-cientistas
funcionaram como fios condutores para reunir uma volumosa e dispersa documentação.29
São correspondências, diários, memórias, desenhos e exemplares da flora, fauna, minerais
e da cultura material remetidos ora para administradores coloniais no reino e nas próprias
conquistas, ora para instituições científicas instaladas em Lisboa. Neste último caso,
devem ser destacados os já citados Jardim Botânico, Casa de Risco e Gabinete de História
Natural da Ajuda, mas também a Academia Real das Ciências de Lisboa e a Sociedade
Real Marítima, Militar e Geográfica.30 Tratam-se de instituições de pesquisa
fundamentais para compreensão dos fluxos das coleções e informações atreladas ao
universo das ciências setecentista.
Como Rodrigues Ferreira, Silva Pontes e Lacerda e Almeida percorreram ao longo
de quase dez anos praticamente o mesmo percurso, os seus textos e imagens se
complementaram e permitiram redesenhar os projetos coloniais voltados ao norte da
América portuguesa. Possibilitaram ainda mapear as presenças dos povos desta conquista,
precisamente dos índios, no cotidiano das expedições. Importante pontuar que não foi
nosso interesse principal analisar as nações indígenas como objeto de estudo dos

29
GINZBURG, Carlo. O nome e o como: troca desigual e mercado historiográfico. In: A micro-história e
outros ensaios. Lisboa, Difel, 1989.; O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido
pela inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
30
Ao aprimoramento dos estudos da cartografia em Portugal esteve associado a fundação, em 1798, da
Sociedade Real Marítima, Militar e Geográfica para o Desenho, Gravura e Impressão das Cartas
Hidrográficas, Geográficas e Militares. Para Iris Kantor, “a institucionalização dos saberes cartográficos
revela a configuração de novas modalidades de exercício da soberania territorial, baseadas na promoção
das comunicações fluviais e terrestres por intermédio da desobstrução fiscal dos fluxos mercantis entre o
interior do continente e os portos transatlânticos.” KANTOR, Iris. Mapas em trânsito: projeções
cartográficas e processo de emancipação política do Brasil (1779-1822). Araucaria – Revista
iberoamericana de filosofía, política y humanidades, Sevilla, ano 12, n. 24, p. 110-123, 2010. p. 117
28

viajantes, e sim apreender os seus conhecimentos e habilidades postos em circulação uma


vez estabelecido o contato com os matemáticos e naturalista. Considerávamos que as
fontes em foco eram marcadas por lacunas e silenciamentos destes agenciamentos. Um
volume maior de escritos nos parecia, portanto, um caminho para costurar os fragmentos
das suas atuações e conhecimentos no dia-a-dia das viagens.
Com a leitura dos documentos produzidos pelos viajantes, em especial do
matemático Francisco José de Lacerda e Almeida – facilitada pelo extenso trabalho,
coordenado por Magnus Pereira e André Ribas, de reunir, transcrever e publicar
manuscritos de arquivos portugueses e brasileiros31 – observamos ser possível ir além de
uma análise centrada nas viagens realizadas na Amazônia colonial portuguesa. Por um
lado, desde o início da pesquisa de doutorado nos interessávamos em pensar na dimensão
imperial das expedições científicas financiadas pela monarquia portuguesa entre as
décadas de 1780 e 1790. Por outro, esbarrávamos nos riscos de incorrer em generalizações
e na perda das especificidades históricas locais ao analisar documentos produzidos em
regiões e por indivíduos distintos. A trajetória de Lacerda e Almeida trouxe, portanto, a
possibilidade de estabelecer conexões entre expedições ocorridas em conquistas distintas
e distantes.
Alexandre Rodrigues Ferreira e Antonio Pires da Silva Pontes, uma vez concluída
a Viagem Filosófica e os trabalhos da Comissão de Demarcação de Fronteira na
Amazônia, receberam outras missões nos quadros da monarquia. Enquanto o naturalista
foi empregado como diretor do complexo da Ajuda, o matemático coordenou a elaboração
de uma das principais sínteses cartográficas da América portuguesa do período, a Carta
Geográfica de Projeção Esférica da Nova Lusitânia.32 Rodrigues Ferreira faleceu em
Lisboa, em 1815; Silva Pontes foi remetido para a capitania do Espírito Santo, onde atuou
como governador-general até pouco tempo antes de falecer por volta de 1805. De todo
modo, ambos não realizaram novas viagens científicas.
Já Francisco José de Lacerda e Almeida perdeu, oito anos depois de retornar da
América, a vida em outra expedição no ultramar. Em 1797, o matemático foi incumbido

31
PEREIRA, Magnus; RIBAS, André (orgs). Um astrônomo paulista no sertão africano. Curitiba: Editora
UFPR, 2012.
32
KANTOR, Iris. Op. Cit. 2010. p. 113
29

de realizar a travessia da África meridional, interiorizando o continente de tal modo que


se garantisse um corredor de influência lusitana entre Angola e Moçambique. A
recomendação era que fosse descoberto um caminho fluvial entre costa e contra costa.33
O matemático partiu, munido de instrumentos científicos, para uma nova “zona de
contato” em outra conquista lusitana.34 Seus escritos carregam, como apontou Ana Lucia
Cruz, características da “interatividade na grande zona de contato do Império português
e suas representações acerca deste universo reproduzem as trocas e entrelaçamento
culturais que lhe são próprios, mas também deixam entrever os conflitos e contradições
dessa totalidade multifacetada e heterogênea.”35
Para Dom Rodrigo de Sousa Coutinho, então secretário da Marinha e Ultramar e
responsável por emitir tal ordem, pesou a experiência acumulada no norte América
portuguesa na escolha de Lacerda e Almeida para a nova empreitada.36 Não havia no
continente africano comissões oficiais de demarcação de fronteiras ou a demanda pelo
cumprimento de um acordo diplomático. Contudo, o envio do matemático para a capitania
de Moçambique e Rios de Sena estava associado aos projetos da Coroa de aproveitar
homens com formação especializada e acúmulo de vivências ultramarinas para
expandir/consolidar a posse dos territórios e inventariar as potencialidades naturais e
humanas em diferentes colônias.

33
AHU, Moçambique, Caixa 77, Doc. nº 41. In: PEREIRA; RIBAS, Op. Cit. p. 182
34
Mary Louise Pratt definiu zonas de contato como “espaços sociais onde culturas díspares se encontram,
se chocam, se entrelaçam uma com a outra, frequentemente em relações bastante assimétricas de dominação
e subordinação – como o colonialismo, o escravagismo, ou seus sucedâneos ora praticados em todo o
mundo”. (p. 27) Para a autora: “ao utilizar o termo contato, procuro enfatizar as dimensões interativas e
improvisadas dos encontros coloniais, tão facilmente ignorados ou suprimidos pelos relatos difundidos da
conquista e dominação. Uma perspectiva de contato põe em relevo a questão de como os sujeitos são
constituídos nas e pelas suas relações uns com os outros. Trata as relações entre colonizadores e
colonizados, ou viajantes e visitados, não em termos de separação e segregação, mas em termos de presença
comum, interação, entendimentos e práticas interligadas, frequentemente dentro de relações radicalmente
assimétricas de poder.” PRATT, Mary Louise. Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação.
Bauru: EDUSC, 1999. p. 27 e 32
35
CRUZ, Ana Lucia. Verdades por mim vistas e observadas oxalá foram Fábulas Sonhadas: Cientistas
brasileiros do Setecentos, uma leitura auto-etnográfica. Curitiba, Tese (Doutorado em História) –
Departamento de História, UFPR, 2004.
36
Além da experiência de Francisco José de Lacerda e Almeida e seus contemporâneos de interiorização
da América por meio dos rios, D. Rodrigo de Sousa Coutinho retomava também o projeto de travessia
pensado pelo diplomata Dom Luís da Cunha e materializado nos mapas do geógrafo francês D´Anville na
primeira metade do século XVIII. O projeto tinha sido recuperado também por Inocêncio de Sousa
Coutinho, pai de Dom Rodrigo, e então governador-general de Angola. FURTADO, Júnia. Oráculos da
Geografia iluminista: Dom Luís da Cunha e Jean Baptiste Bourguignon D´Anville na construção da
cartografia do Brasil. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012.
30

Consideramos ainda que o próprio Lacerda e Almeida julgou possível aproveitar


as suas vivências nos deslocamentos no interior da Amazônia para projetar a viagem de
travessia na África. As expedições realizadas majoritariamente por rios e a utilizar a mão
de obra e os conhecimentos dos povos indígenas parecem ter alimentado os anseios do
matemático de atingir Angola, partindo da vila de Tete, de maneira semelhante. Lacerda
e Almeida se valia de uma experiência relativamente bem sucedida (embora não
necessariamente estável) de interiorização da América portuguesa e de interligação de
suas capitanias, em especial as do Norte, através dos rios.
Não queremos dizer que no continente americano o empreendimento foi
facilitado. Ao contrário, não faltaram dificuldades impostas pelos caminhos, pelo clima,
por doenças, por privações de alimentos e remédios e principalmente por índios hostis a
presença lusitanas em seus territórios. No caso da capitania de São José do Rio Negro,
como observado pela historiadora Patrícia Melo Sampaio, “falar em paz [...], nesse
período, é uma abstração”:

As administrações coloniais viveram um estado de cerco constante até finais


do século XVIII. Além dos levantes no Negro, pelos rios Madeira e Solimões,
desde meados dos anos de 1725, estavam em pleno movimento de expansão
territorial os Mura que, numa rota centrífuga, se movimentam do Madeira em
direção ao Amazonas, Solimões e alcançaram o Negro. Adversários temíveis,
“índios de corso”, os confrontos com essa etnia só refluiriam com a celebração
da paz em 1784.37

De todo modo, nos sertões da Amazônia colonial portuguesa, os viajantes-


cientistas puderam contar com cursos d´águas navegáveis em significativas extensões.
Outros elementos nos parecem importantes para compreender o relativo sucesso de tais
expedições: as redes de relações anteriormente travadas com os índios aldeados, bem
como as vilas, povoações, fortes e fortalezas lusitanas, que serviram como ponto de apoio
aos letrados em campo. Na África Oriental portuguesa, a estrutura e redes de contatos
prévios eram menos consolidadas, além de serem, posteriormente, comprovados os
equívocos a respeito das malhas hídricas e da distância projetada entre Angola e
Moçambique pelos portugueses.

37
SAMPAIO, Patrícia Maria Melo. Espelhos Partidos: etnia, legislação e desigualdade na Colônia.
Manaus: Editora da Universidade Federal do Amazonas, 2011. p. 200
31

Localmente, Lacerda e Almeida recebeu avisos sobre os riscos de suas pretensões,


mas interpretou o sertão como um “espaço possível”.38 Acompanhado de práticos de
mato, guias, línguas e carregadores, quase todos africanos, se colocou em marcha
continente adentro. A coleta de notícias e os registros feitos durante a viagem demonstram
que os seus interesses giravam em torno dos rios, embora ele tenha, inevitavelmente,
seguido por terra os passos trilhados por experientes guias e carregadores conhecedores
dos caminhos. As lembranças dos deslocamentos nas capitanias do Pará, Rio Negro, Mato
Grosso e Cuiabá e São Paulo (para onde se deslocou por rio, depois de findados os
trabalhos da comissão de demarcação de fronteira no norte da América portuguesa) o
acompanharam tanto quanto esse objetivo.
As expedições científicas realizadas por Rodrigues Ferreira, Lacerda e Almeida e
Silva Pontes na Amazônia colonial já abriam janelas de possibilidades para pensarmos na
indispensabilidade dos conhecimentos e dos trabalhos dos povos das conquistas, em
especial dos indígenas, para circular em regiões serpenteada por rios marcados por
diferentes configurações fluviais. Todavia, a viagem de Lacerda e Almeida no continente
africano demonstrou a dependência em um nível ainda mais extremo e, algumas vezes,
até dramático. O matemático, quando saiu dos territórios onde os portugueses tinham
relações estabelecidas, perdeu por completo o controle da comitiva. Ele não conseguiu

38
De acordo com Janaina Amado, “no conjunto da história do Brasil, em termos de senso comum,
pensamento social e imaginário, poucas categorias têm sido tão importantes, para designar uma ou mais
regiões, quanto a de sertão.” Na língua portuguesa o seu uso remete ao séc. XV, quando era empregada
para “nomear espaços vastos, interiores, situados dentro das possessões recém-conquistadas ou contíguos
a elas, sobre os quais pouco ou nada sabiam.” Na centúria seguinte foi utilizada “por numerosos viajantes
e cronistas do nascente império português na África, Ásia e América, com o sentido já apontado, de grandes
espaços interiores, pouco ou nada conhecidos.” Para o ultramar, o termo foi progressivamente construído a
partir da oposição/contraste à ideia de costa/litoral, a qual não remetia somente para uma faixa de terra em
contato com o mar, mas indicava também um local ocupado pelos europeus e por suas instituições
administrativas e religiosas. Neste sentido, os sertões foram também vislumbrados como inacessíveis,
povoado por bárbaros, bravios e hereges. Em muitos relatos, era representado como a linha divisória entre
civilização e barbárie. AMADO, Janaína. Região, sertão e nação. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol.
8, n. 15, 1995. Para André Heráclio Rêgo, é possível verificar a criação de uma “geografia imaginária sobre
os sertões” que abarcava, em ritmos específicos, os dois lados do Atlântico. As projeções geográficas que
conciliavam mito e realidade começaram a ser questionadas no século XVIII, a partir da utilização de
métodos e instrumentos mais precisos para o mapeamento dos territórios. Desse modo, “o conceito de sertão
passou a ser, nesse contexto, muito utilizado na cartografia, mais como qualificativo de lugar que como um
local específico.” Os vazios dos mapas, associados ao desconhecimento de quem os elaborava, passaram a
ser preenchidos e o termo sertão utilizado para caracterizar de forma mais precisa determinados espaços.
RÊGO, André Heráclio do. O sertão e a geografia. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 63. abr.
2016 (p. 42-66). p. 58
32

ditar o ritmo da marcha, nem os locais de parada, tinha dificuldades de se comunicar e de


se localizar. Em um dado momento levantou a suspeita de que todos lhe contavam
mentiras.
Como se não bastasse, adoeceu, e, depois de sofrer com fortes febres, faleceu nos
domínios de uma liderança africana, o Mwata Kazembe, esperando permissão e mais
informações para seguir viagem. O grupo que liderava regressou para Moçambique
depois da sua morte sem completar a travessia. O bloqueio se justificava pelos poderes e
redes de relações instituídos, nos quais os portugueses não estavam inseridos, mas
também por serem os diferentes povos africanos os detentores dos conhecimentos e das
lógicas de circulação na extensa faixa de terra que separava Moçambique e Angola. A
formação especializada para medir latitudes e longitudes, os instrumentos matemáticos e
a larga experiência de viagens na América portuguesa de Lacerda e Almeida não eram
suficientes para suprir tais demandas.
Em nosso percurso de pesquisa, julgamos necessário, em primeiro lugar,
redesenhar os projetos aos quais as expedições científicas estiveram articuladas, as
especificidades e conexões das conquistas em que ocorreram e as trajetórias dos letrados
responsáveis por executá-los. Em seguida, analisamos os fragmentos dos protagonismos
dos povos das conquistas quando os projetos foram postos em ação, ou seja, no momento
em que as viagens foram realizadas na Amazônia colonial portuguesa e na África oriental
portuguesa. Esse trajeto resultou na estrutura da tese ora apresentada e na sua divisão em
duas partes: I – Histórias em conexão: projetos e trajetórias em um “mundo em
movimento”, composta pelos dois primeiros capítulos, e II – Projetos em ação: os povos
das conquistas no cotidiano das expedições científicas, formada pelos dois últimos.
O capítulo 1: Conhecimentos úteis em domínios incertos: a interiorização da
Amazônia e da África oriental portuguesa em meados do setecentos teve como objetivo
demarcar as relações entre as expedições científicas e os projetos da Coroa voltados ao
ultramar. A reforma da Universidade de Coimbra, em especial a criação das Faculdades
de Filosofia e Matemática, e o treinamento que antecedia os deslocamentos evidenciam
os laços estreitos entre produção de conhecimento e a elaboração de estratégias para o
exercício de poder diante dos territórios e populações numa dimensão imperial. Embora
saibamos que as viagens de letrados com formação especializada ocorreram nas variadas
33

conquistas, procuramos abordar as especificidades, bem como traçar algumas conexões


entre as abordadas nesse estudo. Na Amazônia colonial portuguesa e na África oriental
portuguesa eram estabelecidos diálogos com planos e investidas coloniais anteriores. No
entanto, as ações dos matemáticos e naturalistas em campo representavam uma nova
possibilidade de interiorizar territórios através dos rios e de contribuir com a geração de
riqueza que beneficiaria os agentes da colonização, valendo-se do aprimoramento de
campos dos saberes como a matemática e a história natural.
No capítulo 2: Sujeitos em movimento: nascidos no Brasil, formados em Portugal,
em trânsito pelo Império, foram apresentadas as trajetórias de Alexandre Rodrigues
Ferreira, Antonio Pires da Silva Pontes e Francisco José de Lacerda e Almeida. A ênfase
principal recaiu sobre os períodos em que realizaram as expedições ou que se dedicaram
a sintetizar os resultados de suas experiências. Através dos documentos e dos trabalhos
de outros historiadores reconstruímos os itinerários das viagens. Percebemo-las ainda
como um divisor de água nas trajetórias dos letrados, na medida em que ocuparam uma
centralidade na definição das atividades e funções que eles foram investidos
posteriormente e para a inserção nas redes de privilégios régios. Por fim, é possível dizer
que o trânsito de sujeitos pelo universo das conquistas fornece pistas importantes para
pensarmos no aproveitamento de experiências acumuladas por um pequeno grupo de
letrados que circulavam pelo Império.
O capítulo 3: Protagonismos indígenas na Viagem Filosófica e na Comissão de
Demarcação de Fronteira na Amazônia colonial portuguesa teve como cerne analisar as
presenças dos povos indígenas no cotidiano das expedições de Alexandre Rodrigues
Ferreira, Antonio Pires da Silva Pontes e Francisco José de Lacerda e Almeida. Foram
mapeados a incorporação de seus trabalhos nas comitivas, bem como os conhecimentos
que detinham sobre os caminhos e a natureza amazônica. Dos remeiros, proeiros e
jacumaúbas destacamos os saberes, transmitidos entre gerações, que possuíam sobre os
rios. Observamos a existência de divisões de tarefas no interior dos barcos, as estratégias
para compassar as remadas num jogo de força e técnica e os conhecimentos
especializados articulados às diferentes configurações fluviais.
Sobre os informantes, os entendemos como detentores de conhecimentos postos
em circulação, e não como transmissores de informações brutas a serem lapidados pelos
34

letrados. Sinalizamos como, principalmente, o naturalista Rodrigues Ferreira registrou de


forma escrita conhecimentos sobre as plantas e animais empregados no cotidiano
amazônico para confecção de coberturas impermeáveis, para construções, de objetos,
casas e barcos e para a cura e alimentação. Acompanhamos, por fim, os índios
preparadores Cipriano de Souza e José da Silva nas diferentes etapas de realização da
Viagem Filosófica. Indicamos a quais atividades se dedicavam e lançamos algumas
projeções sobre os seus deslocamentos para Lisboa.
No Capítulo 4 – Caminhos e lógicas de circulação africanas e as viagens de
Lacerda e Almeida na África oriental portuguesa, foram realizadas praticamente as
mesmas reflexões do capítulo anterior. Contudo, o objetivo foi trazer à tona as
especificidades dos deslocamentos de Francisco José de Lacerda e Almeida na costa e no
interior do continente africano partindo de Moçambique. De início, analisamos o primeiro
deslocamento do matemático entre a Ilha de Moçambique e a vila de Tete, situada em um
sítio interiorizado na margem do rio Zambeze. Pontuamos como foi descrita a navegação
pela costa e pelo dito rio. Na sequência, observamos como Lacerda e Almeida coletou
notícias, junto às populações locais, a respeito da travessia do continente e as estratégias
utilizadas para reunir o pessoal e os suprimentos necessários.
Na última parte do capítulo abordamos, enfim, a execução da dificultosa marcha
rumo a Angola que lhe custou a vida. Quando comparamos com as viagens no norte da
América portuguesa, notamos que algumas atividades executadas pelos povos das
conquistas se repetiam, tais como as dos remeiros, línguas e guias. Novas personagens,
porém, surgiram como protagonistas, com destaque para os carregadores africanos.
Detentores de um saber-fazer secular, conhecedores dos caminhos e das lógicas próprias
de circulação no sertão, ocuparam parte dos mais angustiados escritos do matemático. As
situações vividas por Lacerda e Almeida na tentativa de atravessar a África meridional
são emblemáticas no que se confere a dependência do viajante em campo dos
conhecimentos e trabalhos dos povos das conquistas.
Ao longo da pesquisa e escrita da tese, o esforço foi o de compreender o processo
de construção do conhecimento ilustrado setecentista português, marcado por interesses
colonialistas e pelo comprometimento das elites letradas nascidas na América portuguesa,
em sua complexidade. Nisso incluiu pensar que parte deste conhecimento, embora
35

transposto para o “centro”, tinha a sua origem nas margens e a partir do contato com
populações não europeias. Se constituiu, portanto, a partir da circulação e do
entrecruzamento entre povos culturalmente diversos e cujas relações de poder eram
assimétricas.
36

PARTE I
HISTÓRIAS EM CONEXÃO: PROJETOS E
TRAJETÓRIAS EM UM “MUNDO EM MOVIMENTO”
37

Capítulo 1:
Conhecimentos úteis em domínios incertos: a interiorização da
Amazônia e da África oriental portuguesa em meados do setecentos

1.1. Ciência e colonização: a formação letrada em Portugal e suas implicações nos


projetos para o ultramar

As expedições científicas financiadas pela Coroa portuguesa, realizadas por


naturalistas e matemáticos no reino e nas conquistas nas últimas décadas do século XVIII
devem ser compreendidas em diálogo com um redirecionamento das ações da monarquia
e de seus agentes. Nunca é demais destacar, como observou Lorelai Kury, que, “no século
das Luzes, o mundo da ciência não era visto como uma esfera independente da política e
da economia.”39 Portugal não era o único reino europeu a estreitar os laços entre ciência
e colonização. As instruções de viagem a serem seguidas por naturalistas franceses em
atividades de campo, por exemplo, eram investidas da premissa de que o viajante servia
à pátria e à humanidade, e não aos interesses particulares, sendo a produção de
conhecimento inserida em uma esfera de valor utilitário.40
Diferentes campos saberes foram instrumentalizados a fim de consolidar/expandir
a posse e a exploração em domínios ultramarinos marcados por instabilidades, seja em
decorrência das relações estabelecidas com as populações locais, por disputas com outros
reinos europeus ou pelo desconhecimento, por parte dos portugueses, de determinadas
regiões. Em nosso estudo, tomamos como ponto de partida que as relações entre produção
de conhecimento científico e elaboração de estratégias de exercício de poder e geração de
riqueza, patrocinados pela monarquia lusitana a partir de meados do setecentos, geraram
processos desagregadores de modos de vidas e de produção, sobretudo, dos povos
nativos.
O objetivo particular do presente tópico, no entanto, é mapear como os laços entre
ciência e colonização foram tecidos. Trata-se de algo importante para apreensão dos

39
KURY, Lorelai. Op. Cit. 2008. p. 74.
40
KURY, Lorelai. Les instructions de voyage dans les expéditions scientifiques françaises. Révue
d'Histoire des Sciences, vol. 51, nº 1, 1998, pp. 65-91.
38

propósitos das expedições analisadas. Compreender como se deu a formação educacional


e o preparo dos viajantes-cientistas antes de partirem para as expedições nos continentes
americano e africano é uma das entradas possíveis para matizar as relações entre o
universo letrado e os projetos coloniais voltados ao incremento da economia e para
expansão das redes de colonização do Império. Deste modo, é fundamental iniciarmos as
reflexões a partir de um tema conhecido da historiografia portuguesa e brasileira: a
reforma da Universidade de Coimbra, iniciada em 1772.
Para os historiadores portugueses Ana Cristina Araújo e Fernando Taveira da
Fonseca, a reestruturação universitária tem sido lida enquanto um momento de
“institucionalização de um modelo de conhecimento, de matriz racional, experimental e
instrumental.”41 Perspectivas historiográficas mais recentes procuram também
“diferentes motivos de investigação, a fim de se compreender a extensão da ciência e dos
seus campos de aplicação para além do espaço circunscrito em que ela foi praticada e
ensinada.”42 Como observam os autores:

Situada na fronteira entre o transnacional e o local, a Universidade reproduziu


e possibilitou a produção de conhecimento do mundo físico e natural, sem
qualquer limitação ou restrição de tempo e de lugar, e, por outro lado, forneceu
conhecimentos de aplicação imediata, cuja relevância foi testada no plano
cultural e ensaiada, no plano político, à escala territorial e local. 43

Não é nosso objetivo recuperar a vasta bibliografia sobre o tema.44 Interessa-nos


somente tratar de duas Faculdades criadas no contexto do reformismo ilustrado: a de
Filosofia e a Matemática. Como os viajantes analisados por nós fizeram parte das
primeiras turmas desses cursos superiores, nos compete refletir sobre os conteúdos

41
ARAÚJO, Ana Cristina; FONSECA, Fernando Taveira. A Universidade Pombalina: Ciência, Território
e Coleções Científicas. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2017. p. 7
42
Idem, p. 7
43
Idem, p. 7
44
Para indicar alguns autores importantes nesse debate: CARVALHO, Laerte Ramos. As reformas
pombalinas da instrução pública. São Paulo: Edusp/Saraiva, 1978. ANDRADE, Antonio Alberto Banha de.
A reforma pombalina dos estudos secundários (1759-1771): contribuição para a história da pedagogia em
Portugal. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1984. ARAÚJO, Ana Cristina. O Marquês de Pombal e a
Universidade. Coimbra: Imprensa da Universidade (IU), 2000. CARVALHO, Flávio Rey de. Um
iluminismo português? A Reforma da Universidade de Coimbra (1772). São Paulo: Annablume, 2008.
BOTO, Carlota. “A dimensão iluminista da reforma pombalina dos estudos: das primeiras letras à
universidade”. Revista Brasileira de Educação v. 15 n. 44 maio/agosto, 2010.
39

ensinados e para quais atividades profissionais os sujeitos que nelas se formavam eram
direcionados. Existiam aulas de Matemática e de Filosofia em Coimbra antes da reforma,
no entanto, foi neste contexto que elas foram transformadas em cursos superiores, tal
como eram os de Direito, Medicina e Teologia da antiga Universidade.
O reitor-reformador, Dom Francisco de Lemos, em texto que antecedia os novos
Estatutos da instituição, justificou a criação de um curso de Matemática “fixo e completo”
em decorrência da sua utilidade para o reino. Em sua visão, a matemática era importante
para todos os campos do conhecimento, pois ajudava a “pensar sólida e metodicamente
em qualquer outra matéria.”45 Possuía um conjunto de “doutrinas de maior importância
como era o de regularem-se as épocas e medidas dos tempos, a situação geográfica dos
lugares, as demarcações e as medições dos terrenos.”46 Tinha, igualmente, relevância nas
“manobras e derrotas de pilotagem, nas operações práticas de campanha e da marinha;
nas construções da arquitetura naval, civil e militar; das máquinas, fábricas, artifícios e
aparelhos que ajudam a fraqueza do homem.”47
A Faculdade se constituiu a partir de quatro cadeiras, distribuídas em igual número
de anos. No primeiro, cursava-se a de geometria, ministrada pelo capitão de artilharia Dr.
José Anastácio. No ano seguinte, Miguel Franzini, ex-professor do Colégio dos Nobres,
ficava responsável pela de cálculo. No terceiro, o cônego da Sé de Leira ministrava a de
ciências físico-matemática. No último, o italiano Dr. Miguel Antonio Cierra, que
participou da Comissão de Demarcação de fronteira na América do Sul em decorrência
da assinatura do Tratado de Madri (1750) e foi prefeito dos estudos no Colégio dos
Nobres, oferecia a disciplina de Astronomia. Para o ensino prático da última matéria foi
instituído um Observatório Astronômico em um bom sítio da cidade cortada pelo rio
Mondego.
Para estimular o interesse pelo curso universitário, o reitor alegava ser necessário
a tomada de medidas por parte da Coroa. Uma delas era nomear como Cosmógrafo Mor
do reino somente sujeitos graduados em matemática. Ao profissional cabia criar

45
LEMOS, Dom Francisco de. Memória servindo de introdução à relação do estado da Universidade de
Coimbra de 1772 a 1777 apresentada ao Governo. Introdução: Theófilo Braga. Lisboa: Tipografia da
Academia Real das Ciências, 1894. p. 46
46
Idem, p 46
47
Idem, p. 46
40

regulamentos de pilotagem e coordenar os trabalhos dos Cosmógrafos Menores. Sobre os


últimos, indicava que em cada Comarca deveria ser instituído um, sendo requisito para o
cargo também a formação universitária. Os Cosmógrafos Menores deveriam ter um
conhecimento detido do território e manter sob a sua posse um mapa com nomes de
caminhos e lugares. Cabia a ele resolver litígios relacionadas a distribuição de terras, bem
como supervisionar obras para construção de pontes, estradas, calçadas e condução de
água.
Além disso, Lemos alertou para a necessidade de serem estabelecidas cadeiras de
Náutica em lugares estratégicos, como em Lisboa, no Porto, no Rio de Janeiro e na Bahia.
Os responsáveis por ministrar as aulas deveriam ser sujeitos formandos na Faculdade de
Matemática. O lente principiaria suas lições pela aritmética, em seguida passaria para
geometria, depois ensinaria cálculo e mecânica “que fossem necessários para bem
entender a teórica da manobra, da construção dos navios, da mareação, do modo de
arrumar a carga”, por fim, trataria da astronomia, um conhecimento útil aos pilotos para
se valerem das “observações da lua para determinação das longitudes”. Outro cargo que
deveria estar restrito aos formandos em matemática era o de Engenheiro mor.
Havia fortes relações entre a formação em matemática e a carreira militar. Durante
todo o período colonial, os militares atuaram no reconhecimento e mapeamento das
diferentes espacialidades do Império, em especial dos coloniais. Beatriz Siqueira Bueno
identificou, entre os séculos XVI e XIX, 247 engenheiros militares com atuação na
América portuguesa. Mas as suas presenças tinham dimensão mais ampla: “Mazagão,
Luanda, Moçambique, Sofala, Mombaça, Diu, Damão, Baçaim, Goa, Cochim, Malaca,
Macau”.48 Como esclareceu a autora, “as mãos sujas de cal e de tinta representam um
perfil profissional que jamais se limitou ao gabinete, orquestrando os canteiros de obras
de perto, melando as botas de lama durante as incursões de campo que precediam a
elaboração de qualquer projeto ou mapa.”49 Os trabalhos desses profissionais não se
restringia a cartografia. Eles eram “homens polivalentes”, construíam edifícios (igrejas,

48
BUENO, Beatriz Piccolotto Siqueira. Com as mãos sujas de cal e de tinta, homens de múltiplas
habilidades: os engenheiros militares e a cartografia na América Portuguesa (sécs. XVI-XIX). Anais do I
Simpósio Brasileiro de Cartografia Histórica, Passado presente nos velhos mapas: conhecimento e poder,
Paraty, 10 a 12 de maio de 2011.
49
Idem, p. 2
41

casas de câmara e cadeira, hospitais, quartéis, etc) e projetavam portos, chafarizes,


aquedutos, estradas, pontes, aterros e jardins botânicos.
A partir do século XVIII, “o mapeamento do território e o projeto de cidades e
vilas, envolvendo expedições de adentramento nas entranhas do sertão, roubaram-lhes
boa parte do tempo.”50 Isso acontecia de maneira simultânea com as transformações na
formação educacional desses profissionais. A reforma universitária de Coimbra
demarcava uma virada: a “laicização do ensino e a ampliação do corpus disciplinar em
moldes enciclopédicos e iluministas, abarcando novas searas do conhecimento.”51 A
instalação do laboratório de um laboratório de física nas repartições da Universidade
serve de exemplo, pois colocava à disposição instrumentos científicos para o ensino de
mecânica, ótica e hidráulica.
A Faculdade de Matemática de Coimbra dialogava com outras instituições
voltadas à formação militar. Entre elas a Academia Militar de Lisboa, Academia Real da
Marinha de Lisboa, Academia Real de Artilharia Lisboa e a Academia de Fortificação e
Desenho do Rio de Janeiro. O nome do último estabelecimento permite lembrar outro
saber fundamental nessa conjuntura de reordenamento da “árvore do conhecimento”: o
desenho.52 Saber desenhar fazia parte das tarefas desempenhadas por quem construía um
forte, uma embarcação ou mapeava um território.53
As transformações pelas quais passou o ensino de matemática, com consequências
para a carreira militar, não devem ser vislumbradas de maneira dissociada da projeção
que a história natural ocupava no século XVIII. No Império português, a proeminência
desse campo do saber associava-se à possibilidade de inventariar as potencialidades
econômicas das colônias, com destaque para a América portuguesa, mas também
envolvendo Cabo Verde, Angola, Moçambique e Goa. Como reconheceu Beatriz Bueno:

50
Idem, p. 1
51
Idem, p. 7
52
Aqui, fazemos menção ao artigo de Robert Darnton acerca da obra paradigmática da ilustração francesa,
a Encyclipédie. DARNTON, Robert. Os filósofos podam a árvore do conhecimento: a estratégia
epistemológica da Encyclopédie. In: O Grande Massacre de Gatos e outros episódios da História Cultural
francesa. Rio de Janeiro: Graal, 1986.
53
Sobre o desenho militar ver: PICOLLI, Valéria. Figurinhas de brancos e negros: Carlos Julião e o mundo
colonial português. Tese de Doutoramento, FAU/USP. 2010. BUENO, B. Desenho e Desígnio: O Brasil
dos Engenheiros Militares. Tese de Doutorado, FAU-USP, 2001.
42

O inventário da fauna, flora, das gentes e dos costumes regionais, dos minerais,
das madeiras, das drogas do sertão e outras espécies nativas interessantes ao
reino tornou-se uma obsessão nas chamadas Viagens Filosóficas, igualmente
contaminando a prática dos engenheiros que, desde o último quartel do século
XVIII, passaram incluir estas tarefas entre as demais.54

A reforma realizada na Universidade de Coimbra transformou as aulas de


Filosofia, antes consideradas preparatórias para o ingresso no ensino superior e oferecidas
no Colégio de Artes gerido pelos jesuítas, em uma Faculdade, assim como fizera com a
de Matemática. Dentre os principais objetivos do curso superior destacavam-se os de
“formar filósofos dignos das luzes do século e oferecer lições subsidiárias aos demais
alunos coimbrãs.”55 Importante pontuar a obrigatoriedade dos estudantes dos demais
cursos de Coimbra de frequentar parte das cadeiras da Faculdade de Filosofia.
Segundo a visão da época, as aulas de filosofia precisavam ser organizadas a partir
de preceitos calcados no uso da razão, da observação, da experimentação e da
comprovação, tendo em vista que, assim como a matemática, exerciam influências nas
outras faculdades. Segundo o letrado setecentista Luís Verney, a partir de uma “má
filosofia” nascia confusões na “Medicina, Teologia e mais Ciências”. 56 Citei em outro
trabalho um trecho recuperado por Iara Lis Schiavinatto do jocoso Palito Métrico e o
menciono novamente por considerá-lo representativo do espaço ocupado pelos estudos
filosóficos, principalmente os relacionados ao mundo natural, nessa conjuntura: “um
doutor em direito em Coimbra, logo senhor de prestígio, recomendava a um calouro: pede
a moda que digamos que a Filosofia excede todas as outras, eu sou do voto que tenha em
sua casa alguns gafanhotos, borboletas petrificados.”57
Como previam os Estatutos, a Faculdade de Filosofia deveria abarcar os estudos
da filosofia racional e moral e da filosofia natural. A racional e moral ocupariam o
primeiro ano do curso e abarcariam as cadeiras de lógica, metafísica e ética. O lente
responsável por ministrá-la era o Dr. Antoni Soares Barbosa e utilizaria o “Compêndio
Genuense.” Os outros três anos do curso seriam preenchidos pelo estudo da filosofia

54
Idem, p. 7
55
LEMOS, Dom Francisco de. Op. Cit. 1894.
56
VERNEY, Luis A. Verdadeiro Método de Estudar. Volume III, Edição organizada por Antônio Salgado
Junior. Lisboa: Livraria Sá Costa, 1949. p 2
57
SCHIAVINATTO, Iara. Op. Cit. 2017. p. 4
43

natural. No segundo ano, os estudantes teriam a cadeira de história natural, ministrada


pelo italiano Domingos Vandelli, tendo como principal referência bibliográfica a obra de
Calos Lineu. O terceiro ano seria destinado ao ensino da cadeira de física experimental
pelo professor (também italiano) Dr. João Antonio Dalla-Bella, por meio do “Compêndio
de Muskaem Broeck”. No último ano, se ensinaria a Química Filosófica e Médica também
pelo Dr. Domingos Vandelli.58
No que confere ao ensino experimental, Francisco de Lemos previa a criação de
um “gabinete de história natural para nele se recolherem os produtos dos três reinos,
animal, vegetal e mineral.”59 Para iniciar o acervo, a ser considerado um verdadeiro
“tesouro público”, a Faculdade de Filosofia recebeu a doação da coleção formada pelo
próprio Vandelli, feita em Portugal e na Itália. Outro sujeito, coronel Varidek, deixou
registrado em testamento a doação dos produtos naturais que possuía para a Universidade.
Ainda para aulas práticas seria instalado nas dependências universitárias um Jardim
Botânico “para a cultura das plantas úteis às artes em geral e em particular à medicina.”60
Um gabinete de máquinas para se fazerem as experiências da física deveria ser
também criado, assim como um laboratório de química para serem realizadas não somente
“as experiências relativas ao curso das lições, mas também [para] trabalhar-se
assiduamente em fazer as preparações que pertencem ao uso das artes em geral e em
particular da medicina”.61 Nos dois casos poderiam ser aproveitados os instrumentos
pertencentes ao Colégio dos Nobres de Lisboa.62
Os cargos públicos a serem ocupados por formandos em Filosofia eram os das
seguintes repartições: “intendências de agricultura, fábricas e manufaturas; ouro nas
minas, provedorias das casas da moeda e outros muitos semelhantes, os quais todos
precisam dos princípios sólidos dessa ciência.” As cadeiras de filosofia moral e racional
espalhadas pelo reino e, na medida do possível, nas conquistas, deveriam ser providas

58
LEMOS, Dom Francisco de. Op. Cit. p. 58
59
Idem, p 57
60
Idem, p. 57
61
Idem, p. 57
62
O Colégio dos Nobres foi criado em Lisboa na década de 1760. O projeto associava-se ao início a
introdução mais sistemática do ensino de ciências naturais no reino português. Sobre o tema ver:
CARVALHO, Rómulo de. História da Fundação do Colégio Real dos Nobres de Lisboa (1761-1772).
Coimbra: Atlântida, 1759. CARVALHO, Rômulo de. A história natural em Portugal no século XVIII.
Lisboa: Ministério da Educação, 1987.
44

com bacharéis em filosofia. Como no caso da Faculdade de Matemática, a garantia de


funções nos quadros da monarquia aumentaria as chances de despertar entre a mocidade
o interesse de se matricular no curso. Segundo o reitor-reformador, era preciso estimular
“o mesmo calor” que o estudo da filosofia adquirira “nas nações civilizadas da Europa e
que deles resultassem as grandes vantagens que todos os dias estão recebendo as mesmas
nações para a sua riqueza, aumento e poder.”63
Os filósofos da natureza poderiam também desempenhar a função de naturalista,
sendo designado para realização de viagens ou para atuar em espaços científicos
institucionais. Nesse ponto é de suma relevância explicitar a atuação de Domingos
Vandelli em Portugal. O italiano transferiu-se de Pádua, na Itália, para Lisboa com o
objetivo de atuar no recém criado Colégio dos Nobres. Com propósito semelhante foi
nomeado, pouco tempo depois, professor da Faculdade de Filosofia em Coimbra. No
período em que esteve à frente do Real Museu e Jardim Botânico anexos ao Palácio da
Ajuda, comandou um programa para a produção da história natural das colônias, através
da supervisão das expedições realizadas por naturalistas (a maioria com formação em
Coimbra) no ultramar.
De acordo com Breno Ferreira, Domingos Vandelli teve papel chave para fazer
prevalecer no universo lusitano uma concepção de história natural que associava a feitura
de um inventário da natureza com “um sentido econômico concernente aos projetos
políticos do Estado.”64 Essa não era a única função para a qual a história natural foi
mobilizada em Portugal entre 1750-1822. O paradigma ilustrado focado na ideia de
utilidade da natureza para o progresso do gênero humano conviveu com, por exemplo, o
da teologia natural. De todo modo, Vandelli colaborou para pautar “uma visão da natureza
diretamente ligada à sua exploração econômica”. Os resultados dessa perspectiva podem
ser vislumbrados na reforma da Universidade de Coimbra, nas ações do Complexo da
Ajuda e nas publicações da Academia Real das Ciências de Lisboa.65

63
LEMOS, Dom Francisco de. Op. Cit. p. 60
64
FERREIRA, Breno. Economia da natureza: a história natural, entre a teologia natural e a economia
política (Portugal e Brasil, 1750-1822). Tese de Doutorado em História, Universidade de São Paulo, 2016.
65
A Academia das Ciência foi criada em 1779 com objetivo de congregar o debate letrado lusitano. Muitos
de seus membros tinham circulado pela Europa e faziam parte de sociedades científicas internacionais. Em
suas salas eram lidas e discutidas propostas voltadas à melhoria da economia, incluindo estudos sobre a
agricultura, indústria e comércio, além de serem abordados temas relacionados à medicina, aos três reinos
45

O historiador português João Carlos Brigola demonstrou que Vandelli colaborou


ainda para inserir o reino português em uma rede internacional de trocas de espécies e
correspondências.66 Um dos mais proeminentes homens da ciência do período com quem
ele trocou inúmeras cartas foi Carlos Lineu. O naturalista sueco viu com grande
entusiasmo a sua transferência para Portugal, principalmente por reconhecer as riquezas
consideradas quase desconhecidas das colônias lusitanas. Lineu fez fama como “o
sistematizador da nomenclatura binominal e o propositor do sistema sexual para a
classificação dos vegetais”, mas foi também “um filósofo da natureza e uma espécie de
consultor do Estado e dos particulares no que se refere à produção agrícola na Suécia.”67
O naturalista sueco atuou, o que pode ser vislumbrado nos seus escritos e de seus
discípulos, na estruturação da concepção moderna de “economia da natureza”, ou seja, a
“adoção da ideia de que tudo na natureza se interconecta e tende a um equilíbrio.”68 A
publicação de sua obra intitulada Sistema da Natureza, em 1735, pode ser concebida
como um marco no campo da história natural por ter proposto um sistema de classificação
e descrição da natureza com pretensão universalizante. Além da instituição de uma
taxonomia a ser rigorosamente seguida, a nomeação em latim evitaria confusões de
traduções e de sobreposições. Segundo Mary Louise Pratt, a obra proporcionou uma nova
consciência planetária e reinventou um projeto global, que serviu, em grande medida,
como base para construção do moderno eurocentrismo.69

da natureza, ao solo e ao clima. A instituição era responsável por publicações de Memórias, por fornecer
ensino de ciências e incentivar a realização de expedições científicas. CARVALHO, Rômulo. A atividade
pedagógica da Academia Real das Ciências de Lisboa nos séculos XVIII e XIX. Lisboa: Academia das
Ciências, 1979. Uma análise detida dos textos publicados e apresentados pelos seus membros demonstra
que os homens envolvidos no circuito científico português estavam a par das teorias filosóficas e científicas
em voga, “vários deles não apenas absorviam ideias alheias, mas participavam da República das Letras
como cidadãos ativos.” KURY, Lorelai. Op. Cit. 2004.
66
Os estudos de Brigola recaem sobretudo nas coleções formadas por Vandelli. As avaliando, o historiador
português considerada que o italiano foi mais o mais importante museólogo setecentista do Império
português. Para citar alguns de suas publicações: BRIGOLA, João Carlos. Domenico Agostino Vandelli –
um naturalista italiano a serviço de Portugal e do Brasil. In: O gabinete de curiosidades de Domenico
Vandelli. Rio de Janeiro: Dantes editora, 2008. BRIGOLA, João Carlos. Coleções, gabinetes e museus em
Portugal no século XVIII. Tese de doutoramento, Universidade de Évora, Évora, 2000.
67
KURY, Lorelai. As viagens filosóficas: Vandelli e a História Natural. In: O gabinete de curiosidades de
Domenico Vandelli. Rio de Janeiro: Dantes editora, 2008. p. 73-74
68
Idem, p. 73
69
PRATT, Mary Louise. Op. Cit.
46

No mesmo ano da publicação do Sistema da Natureza, 1735, tiveram início


expedições científicas internacionais da Europa com esforços de determinação da forma
exata da terra. Um grupo coordenado pelo francês Charles de la Condamine percorreu a
América do Sul, em especial o extenso curso do rio Amazonas, ao longo de quase uma
década. No mesmo momento, Pierre Louis Maupertuis foi enviado para Lapônia. Os
objetivos desses deslocamentos não estavam dissociados, mas procuravam juntar
informações para responder a seguinte questão: “seria a terra uma esfera, como afirmava
a geografia (francesa) cartesiana, ou seria ela como (o inglês) Newton havia conjecturado
um esferoide achatado nos polos.”70
Na leitura de Mary Louise Pratt, a expedição de la Condamine e as que a
sucederam permitem notar “a tendência à exploração do interior e pela construção do
significado em nível global por meio dos aparatos descritivos da história natural.” 71 Por
outro lado, Lorelai Kury destacou como as viagens filosóficas eram vislumbradas como
uma “atividade sumamente importante para o bem estar da humanidade”, tendo em vista
que “o mapeamento de todo o globo permitiria conhecer, coletar e multiplicar produtos
úteis para alimentação, a medicina e a indústria.”72
Atento a esses debates, Domingos Vandelli reforçava a importância da realização
de expedições científicas no Império português, concedendo centralidade a América
portuguesa. O secretário da Marinha e Ultramar Martinho de Melo e Castro (1777-1795)
desempenhava também o papel de pensar e supervisionar as viagens realizadas de
maneira simultânea nos domínios coloniais na América, África e Ásia. Durante o seu
ministério, os “principais regiões exploradas eram promissoras na produção de metais
como ouro e cobre”.73 Em relação aos “produtos vegetais houve um destaque para gêneros
produtores de corantes, como o anil e a cochonilha; bebidas como o café e o cacau; o
algodão, o arroz, o tabaco e vegetais produtores de fibras que substituíssem o cânhamo.”74
Para se ter uma dimensão desse projeto, reproduzimos a seguir um mapa que
permite visualizar as viagens filosóficas realizadas na América portuguesa e que, em sua

70
Idem, p. 42
71
Idem, p. 42
72
KURY, Lorelai. Op. Cit. p. 75
73
PATACA, Ermelinda Moutinho. Op. Cit. p. 137
74
Idem, p. 137
47

maioria, foram supervisionadas por Vandelli. Além das ocorridas no continente


americano, no mesmo ano de início da expedição chefiada por Alexandre Rodrigues
Ferreira na Amazônia, em 1783, os naturalistas luso-brasileiros João da Silva Feijó foi
remetido para Cabo Verde, Joaquim José da Silva para Angola e Manoel Galvão da Silva
para Moçambique, com passagem pela Bahia e por Goa.

Elaborado por Daniel Catoia. Base cartográfica: LEME, Antonio Pires da Silva Ponte. Carta da
Nova Lusitânia... Lisboa, 1798. PATACA, Ermelinda; OLIVEIRA, Cristiane. Escrita de micronarrativas
biográficas de viajantes luso-brasileiros: aproximações entre história das ciências no Brasil e ensino.
Revista Educação e Pesquisa vol.42 no.1, São Paulo, Jan/Mar, 2016.
(https://doi.org/10.1590/S1517-9702201603137074)
48

O êxito das expedições dependia crucialmente de serem seguidas regras e


premissas bem definidas, as quais almejavam uma universalização de procedimentos.
Para tanto, Vandelli elaborou as instruções sobre as regras que o filósofo naturalista
seguiria em suas peregrinações.75 O material foi publicado pela Academia Real das
Ciências de Lisboa, em 1781, e circulou para além dos seus discípulos ou sujeitos que
realizaram viagens sob sua supervisão.76
As instruções contemplavam os referenciais teóricos e práticos das viagens e
deveriam servir de guia para o olhar do viajante em campo. Foram principiadas
destacando a relevância e formato dos diários, tendo em vista que “muito pouca seria a
utilidade das peregrinações filosóficas se o naturalista, fiando-se na sua memória quisesse
fazer as suas relações e descrições.”77 Descrevia, na sequência, em quais elementos os
viajantes deveriam centrar a observação: no conhecimento físico e moral dos povos, na
qualidade e característica do ar, das costas marítimas, da mineralogia, dos rios e lagoas,
do reino das plantas, do reino animal e dos insetos. Na sequência, trazia a maneira
adequada de coletar e preparar os animais, plantas e objetos da cultura material humana
que seriam remetidos para Lisboa.
Dom Rodrigo de Sousa Coutinho sucedeu a Martinho de Melo e Castro como
secretário da Marinha e Ultramar, permanecendo no cargo entre 1796-1802. Ele deu
continuidade ao processo de reconhecimento do mundo natural e da geografia dos
domínios coloniais portugueses. De todo modo, a historiadora Nívia Pombo destacou que
a “sua entrada no ministério marca a mudança de orientação política da Secretaria de
Estado, que passou a apresentar um espírito mais pragmático e menos teórico.”78 A

75
VANDELLI, Domingos. Viagens filosóficas ou dissertações sobre as importantes regras que o filósofo
naturalista, nas suas peregrinações deve principalmente observa (1779). In: O gabinete de curiosidades de
Domenico Vandelli. Rio de Janeiro: Dantes Editora, 2008. p. 93-158.
76
Ermelinda Pataca destacou outras publicações do período com propósitos semelhantes. Era o caso do
texto intitulado Método de recolher, preparar, remeter, e conservar os produtos naturais segundo o plano,
que tem concebido, e publicado alguns naturalistas, para o uso dos curiosos que visitam os sertões e costas
do mar, redigido coletivamente pelos naturalistas e riscadores do Complexo da Ajuda. Este tinha como
objetivo circular entre um público mais amplo. Foram remetidos exemplares para governadores-gerais das
diversas capitanias que compunham o Império, os quais ficaram incumbidos de distribuir por indivíduos
que contribuiriam com as coletas e remessas de produtos. PATACA, Ermelinda. Op. Cit. 2011. p. 129
77
VANDELLI, Domingos. Op. Cit. p. 93
78
POMBO, Nívia. Unidade Política e Territorial nos projetos de D. Rodrigo de Sousa Coutinho. In:
MOTTA, Márcia; SERRÃO, José Vicente; MACHADO, Marina M. (Org.). Em Terras Lusas: conflitos e
fronteiras no Império Português. Vinhedo: Editora Horizonte, 2013. p. 82
49

Memória sobre o melhoramento dos domínios de sua Majestade na América, datado de


1797, sintetiza, na visão da autora, o seu programa de governo. Dentre outros elementos,
Pombo ressaltou a preocupação de Dom Rodrigo com a unidade geopolítica do Império
português, o que dependia de um conhecimento sistematizado e profundo dos domínios
coloniais.79
Além de aproveitar o instrumental teórico e prático, bem como as informações
cartográficas e naturais reunidas entre fins da década de 1770 e meados da de 1790, Dom
Rodrigo organizou novas expedições para a América e África. Como destacou Pataca:

Nesse momento as orientações aos viajantes foram em parte modificadas, de


acordo com novas políticas de Estado e com os resultados obtidos no
ministério anterior. Em linhas gerais, as questões que orientaram os
naturalistas no campo foram sobre as ocorrências de salitre; a introdução de
novos gêneros agrícolas, especialmente a cochonilha, a quina, o anil, o cacau
e o café; o desenvolvimento agroindustrial impulsionado pelas inovações
técnicas introduzidas na agricultura; um minucioso inventário dos recursos
hídricos e de possíveis canais de ligação entre as capitanias.80

Os rios eram vislumbrados por D. Rodrigo como potencialmente úteis para a


consolidar a territorialização da presença lusitana no ultramar. No caso da América
portuguesa, observava que a divisão “natural” entre norte e sul, garantida através dos rios,
deveria espelhar na organização política. As capitanias formadas por leitos d´água que se
comunicavam com o grande Amazonas deveriam ter os vínculos políticos e econômicos
estreitados. Já as que tinham, mais ao centro, cursos d´água com comunicação com o rio
Doce e São Francisco e, mais ao sul, com o rio Paraguai deveriam manter laços com o
Rio de Janeiro. No caso dos domínios lusitanos na África, em especial no Reino de
Angola e na África Oriental portuguesa, se investia igualmente no reconhecimento das
malhas hídricas. Lembremos que D. Rodrigo apostava na possibilidade de descobrir vias
fluviais no interior do continente para viabilizar a ligação entre costa e contra costa.

79
Idem, p. 83
80
PATACA, Ermelinda. Op. Cit. 2011. p. 135. Para uma análise mais detalhada acerca das especificidades
das expedições científicas realizadas durante os Ministérios de Martinho de Melo e Castro e Dom Rodrigo
de Sousa Coutinho, ver o seguinte trabalho da mesma autora: PATACA, Ermelinda Moutinho. Terra, água
e ar nas viagens científicas portuguesas (1755-1808). Tese de Doutorado em Ensino e História das Ciências
da Terra - Instituto de Geociências, UNICAMP, Campinas, 2006.
50

Não era um esforço completamente novo. No próprio manual de viagem,


anteriormente citado, elaborado por Vandelli e seus discípulos existia um tópico
intitulado “dos rios, fontes minerais e lagoas.” O viajante em campo deveria descrever os
cursos dos rios e as suas ligações, incluindo as desembocaduras no oceano, ou seja, as
possibilidades de tornar marítimos conquistas distantes da costa. Se previa que os
viajantes avaliariam as areias e outros materiais carregados pelos rios em busca de
descobrir recursos minerais. Deste modo, eles podiam também “servir de guia para atinar-
se com as ditas minas.”81 As fontes também deveriam receber atenção, do mesmo modo
que as lagoas que poderiam conter “leitos de betume e ainda minas de ferro e cobre.”82
D. Rodrigo de Sousa Coutinho dialogava, aprofundava e tentava operacionalizar
diretrizes anteriores acerca da importância dos rios como um elo entre capitanias e entre
sertão e mar em uma lógica imperial. Algo semelhante pode ser vislumbrado em relação
aos estudos da história natural. De acordo com Pataca, “a coleta de informações sobre a
natureza das colônias voltou a operar com bastante intensidade durante a administração
de D. Rodrigo quando foram despachadas novas expedições científicas e enviadas novas
ordens e patrocínio para naturalistas que já se encontravam nas colônias.”83 A história
natural, articulada a outros campos dos saberes, como os matemáticos, permanecia um
elemento importante para manutenção e criação de propostas para fazer funcionar as
engrenagens coloniais portuguesas.
Mantinham-se e estreitavam-se os vínculos entre ciência e política, entrelaçadas a
partir da perspectiva de um utilitarismo econômico da natureza e dos anseios de
consolidação da posse de territórios ultramarinos. O processo de inventário do mundo
natural e o mapeamento cartográfico tinha, portanto, conotação estratégica e operava em
uma dimensão Imperial, tal como o reformismo ilustrado português. A presente tese
analisou expedições científicas realizadas em duas conquistas específicas: a Amazônia
colonial portuguesa e a África oriental portuguesa. Cabe, então, pensarmos nas conexões
históricas possíveis entre deslocamentos postos em prática por luso-brasileiros

81
VANDELLI, Op. Cit. p. 122
82
Idem, p. 123
83
Idem, p. 135
51

pertencentes às primeiras turmas das Faculdades de Filosofia e Matemática da


Universidade de Coimbra reformada em conquistas distintas e distantes.

1.2. Experiências conectáveis em conquistas distantes

Não é novo o esforço historiográfico de pensar as relações políticas, econômicas


e culturais estabelecidas entre as porções geográficas que compunham o Império
português a partir do século XVI. É reconhecida a obra de Charles Boxer que, no final
dos anos de 1960, procurava se afastar dos quadros analíticos focados em perspectivas
nacionais e nacionalistas, com o objetivo de conceder destaque às experiências dos
portugueses nos oceanos Atlântico e Índico e em territórios por eles banhados. Boxer
procurava articular os projetos levados à cabo em diferentes domínios coloniais e não
deixou de posicionar a importância atribuída à América portuguesa nas engrenagens
desse mundo.84
A obra do historiador britânico Anthony John Russel-Wood também representou
um esforço de “posicionar o Brasil em meio ao vasto contexto do mundo de influência
portuguesa.”85 O autor destacou o papel central desempenhado pelos mares e, por
conseguinte, a circulação por eles como uma força unificadora de um Império disperso
territorialmente. Foi essa perspectiva que o fez denominar a experiência portuguesa, a
qual se entrelaçava necessariamente com a de outros povos e sujeitos nascidos na
América, África e Ásia, como “um mundo em movimento”.86 Ao tratar de um período na
história do Atlântico de fala portuguesa, salientou que os caminhos pelo oceano
desempenharam “o papel de estabelecer os ritmos do império, influenciava a governança,

84
BOXER, Charles R. O império colonial português, (1415-1825). Lisboa: Edições 70, 1981.
85
RUSSEL-WOOD, A.J.R. Um mundo em movimento: os portugueses na África, Ásia e América, (1415-
1808). Lisboa: DIFEL, 1998.
86
Russell-Wood salientou que “uma historiografia mais antiga, dos impérios europeus ultramarinos, tendia
a manter o foco nas conquistas e nos atos de possessão, no povoamento e na colonização, no comércio, na
evangelização, e no processo de governança. Essa historiografia nunca questionou que as habilidades
técnicas, o conhecimento da tecnologia, a inovação e a criatividade fossem exclusivamente europeus.”
RUSSELL-WOOD, A. J. R. Sulcando os mares: Um historiador do império português enfrenta a “Atlantic
History”. HISTÓRIA, São Paulo, 28 (1): 2009. p. 17
52

as comunicações, o comércio, a migração, os intercâmbios culturais, os movimentos de


flora e fauna e até mesmo como os indivíduos se auto identificavam.”87
Do ponto de vista teórico, verifica-se, nas últimas décadas, um crescimento das
“abordagens relacionais”, tais como as histórias transnacionais, cruzadas, conectadas ou
globais. Como sintetizou José Assunção Barros, esses movimentos historiográficos, que
atingem distintas temporalidades e temáticas, constroem caminhos analíticos para
“romper com o padrão unilinear de observação baseado exclusivamente no ponto de vista
eurocêntrico, ou, por extensão, amparados no ponto de vista do Ocidente.”88 Barros traça
um panorama sobre as variadas vertentes dos “estudos relacionais”, situando-os em
distintos espaços acadêmicos.
Segundo Serge Gruzinski, para compreender as espraiadas ações das Monarquias
Ibéricas entre os séculos XVI e XVIII, convém considerar “horizontes muito mais amplos
que não seriam definidos em função de recortes contemporâneos, mas tendo em conta
conjuntos políticos com ambições planetárias que se constituíram em momentos dados da
história.”89 Gruzinski destaca a necessidade de compreender a permeabilidade e o
acoplamento dos mundos que se cruzaram na modernidade. Uma das características dessa
experiência, denominada por ele como mundialização, foi a criação de um conjunto
político de visão global, a monarquia católica, que somente pode ser compreendido
quando consideradas as interligações de culturas e povos para além dos portugueses e
espanhóis.90
Sanjay Subrahmanyam, historiador de origem indiana, propõe analisar as relações
estabelecidas nesse contexto histórico a partir da perspectiva das histórias conectadas.
Para o autor, a denominação é apropriada para evitar generalizações decorrentes dos
conceitos de globalização ou mundialização, pensados como chaves interpretativas para
compreender a circulação de mercadorias, pessoas, culturas e instituições pelas “quatro
partes do mundo”. Quando se considera, por exemplo, a história do mercado, nota-se que

87
Idem, p. 20-21
88
BARROS, José D´Assunção. Histórias Cruzadas – considerações sobre uma nova modalidade baseada
nos procedimentos relacionais. Anos 90, Porto Alegre, v. 21, n. 40, p. 277-310, dez. 2014. p. 5
89
Idem, p. 178
90
GRUZINSKI, Serge. As quatro partes do mundo: história de uma mundialização. Belo Horizonte:
Editora UFMG, São Paulo: Edusp, 2014.
53

ela “não está contida, em todo o caso, na história das experiências imperiais e coloniais.”91
Para Subrahmanyam, parece mais profícuo “observar fenômenos que articulam histórias
para além das tradicionais fronteiras do pensamento, o que nos convida a reunir os objetos
que são comparados – e assim separados – de forma mais banal.”92 Propõe-se, assim,
abordar a natureza multilateral e diversa da vida na época moderna. O foco de análise se
desloca para os fluxos, trânsitos e trocas de pessoas, objetos, produtos que não se davam
em mão única e nem, necessariamente, se articulavam aos projetos coloniais, ainda que
com eles mantivessem algum cruzamento.
Esses estudos historiográficos abrem caminhos profícuos para pensarmos nas
relações entre projetos portugueses de interiorização de conquistas distantes através das
viagens científicas e da atuação de luso-brasileiros com formação letrada semelhante. Um
dos viajantes estudados, o matemático Francisco José de Lacerda e Almeida, que
percorreu os sertões amazônico e africano partindo da costa oriental, acabou por se tornar
o elo mais evidente no que se refere à circulação de ideias e experiências pelos espaços
abordados. Como dito na introdução, a sua indicação como um sujeito capaz de realizar
travessia da África meridional esteve associada à experiência na América portuguesa.
De todo modo, a partir de uma investigação mais detida dos domínios em foco,
percebemos outras conexões históricas, com destaque para o diálogo entre as medidas de
reordenamento político e administrativo propostas pela Coroa portuguesa a partir da
segunda metade do século XVIII. As duas conquistas foram contempladas pelo
reformismo ilustrado lusitano de maneira quase simultânea. Tinham em comum o fato de
não estarem diretamente integradas ao dinâmico eixo econômico e político do Atlântico
Sul. Como já mencionado, a partir do reinado de D. José I com continuidade no de D.
Maria I, verifica-se uma tentativa de revisitar as dinâmicas imperiais, integrando as
diferentes porções geográficas através da consolidação da posse efetiva dos territórios e
de uma exploração econômica ordenada.
Patrícia Sampaio e Francisco Jorge Santos elegeram a década de 1750 como um
“divisor de águas” em termos político-administrativo para a Amazônia portuguesa que

91
SUBRAHMANYAM, Sanjay. Impérios, historiografia, ciências sociais: uma entrevista com Sanjay
Subrahmanyam. Análise Social, n. 226, v. 53, primeiro trimestre, p. 189- 206, 2018. Entrevistadores:
Ângela Barreto Xavier et al. Disponível em: http://analisesocial.ics.ul.pt/documentos/n226a08.pdf p. 200
92
Idem, p. 199-200
54

encerrou uma estrutura em vigor.93 Os autores destacaram cinco medidas legais que
corroboraram para que a porção geográfica deixasse de ser um domínio de pouco interesse
no interior do Império. Todas datam de 1755: a carta régia que criou a capitania do Rio
Negro; o “alvará de lei” que permitia o casamento entre vassalos do reino e índias; a lei
que restitui aos índios a sua liberdade; a criação da Companhia Geral do Comércio do
Grão-Pará e Maranhão; e o Alvará que encerrava “a jurisdição temporal dos Regulares
sobre os índios do Grão-Pará e Maranhão”.94 Posto isto, foi pensado um conjunto de
projetos específicos para o extenso território, com destaque para o seu sertão, com
desdobramentos e revisões nas décadas seguintes.
No caso da África oriental, os focos de ocupação portuguesa situados na costa do
Índico e no vale do rio Zambeze mantiveram-se subordinados política e
administrativamente ao Estado da Índia até 1752. Do ponto de vista dos agentes da
colonização e mercadores, esse domínio desempenhava um papel importante nas relações
comerciais com a Ásia. Mas, principalmente, as povoações, feiras e fortes interiorizados
eram marcados por instabilidades políticas e se modificavam de acordo com as relações
estabelecidas com as populações locais.95 Para Eugénia Rodrigues, com a separação do
Estado da Índia e subordinação das capitanias de Moçambique e Rios de Sena à Lisboa,
intensificaram-se as tentativas de consolidação da soberania da Coroa localmente e de
Atlantização da África oriental portuguesa.
Esse processo pode ser verificado nas tentativas de mudança na forma de
distribuição das terras aos vassalos portugueses e na nomeação de governadores naturais

93
SAMPAIO, Patrícia Maria Melo; SANTOS, Francisco Jorge dos. 1755, o ano da virada na Amazônia
portuguesa. Somanlu, Manaus, vol. 8, n.º 2, p. 79-98, jul./dez. 2008. p. 80
94
Idem, p. 80
95
Como demostrou Edward Alpers, independentemente das relações com Portugal, os diferentes povos que
habitavam o território hoje denominado Moçambique ou que por ele transitavam mantinham intensas e
interiorizadas redes de comércio. A conexão com o Índico foi favorecida pela ligação com o Estado da
Índia, mas também por outros fatores, tais como o desenvolvimento de uma cultura marítima dos habitantes
da costa moçambicana. ALPERS, Edward A. Moçambique marítimo (séculos XIV-XXI). Revista de
História (São Paulo), n. 178, 2019. http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-9141.rh.2019.143950. Alberto da
Costa e Silva também salienta que antes da chegada dos portugueses, romanos, árabes e persas já
frequentavam aquelas costas a fim de “buscar incenso, marfim, carapaças de tartarugas, chifres de
rinoceronte, peles de pantera.” Tratava-se de uma região historicamente marcada por uma cultura marítima
atrelada ao comércio. SILVA, Alberto da Costa e. A Enxada e a Lança: a África antes dos portugueses.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.
55

do reino ou da América portuguesa, e não de Goa.96 No mais, Rodrigues identificou o


envio da carta régia e das instruções normativas da recém criada capitania de São José do
Rio Negro para inspirarem o reordenamento político e administrativo da África oriental
portuguesa nas décadas de 1760 e 1770. Francisco Xavier Mendonça Furtado, na ocasião
secretário da Marinha e do Ultramar, foi um dos responsáveis por remeter as instruções
para Moçambique. Anos antes, ele havia governado o Pará e o Maranhão e participado
do processo de implementação das medidas reais listadas no parágrafo acima.
Para a historiadora, foi “em sua experiência brasileira que ele buscou os contornos
legislativos a aplicar a Moçambique e Rios de Sena, colônias há muito abandonadas
devendo agora ser fundadas de novo.”97 Outro aspecto observado por Rodrigues é que
nas tentativas de criação de câmaras municipais e de vilas em Moçambique e nos Rios de
Sena, em especial nas proximidades do rio Zambeze, no início de 1760, seguia-se as
mesmas premissas definidas para a instalação de lugares, povoações e vilas do Rio
Negro.98 Na esteira das reflexões de Rodrigues, a reforma empreendida na África Oriental
portuguesa “não pode ser desligado do fato de, a partir de meados do século XVIII, a
política da Coroa portuguesa tender a uniformizar a legislação produzida para os vários
espaços do império, mitigando os particularismos administrativos e jurídicos vigentes.”99
Entretanto, com o anseio de sermos mais precisas, destacamos que se aproveitava,
em Moçambique e nos Rios de Sena, parte dos projetos postos em prática na Amazônia
colonial portuguesa. Importante pontuar que São José do Rio Negro e os Rios de Sena
eram capitanias apartadas do litoral e cujas sedes administrativas foram estabelecidas nas

96
RODRIGUES, Eugénia. Portugueses e Africanos nos Rios de Sena: os Prazos da Coroa em Moçambique
nos Séculos XVII e XVIII. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2013. p 649
97
RODRIGUES, Op. Cit. 2013. p 298-299
98
Em artigo recente, cujo objetivo foi analisar a instalação dos Conselhos Municipais na África oriental
portuguesa depois da separação do Estado da Índia, a historiadora Maria Bastião observou igualmente o
aproveitamento da experiência da recém criada capitania de São José do Rio Negro. “Finalmente, as
instruções de 1761-1763 dispunham a transferência de instituições municipais para Moçambique com a
fundação da câmara de Moçambique e, tanto quanto possível, a extensão do processo às restantes povoações
da colónia − para além da Ilha, nos anos seguintes, foram criados municípios em Quelimane, Sena, Tete,
Ibo, Zumbo, Sofala e Inhambane. Repetiam-se, genericamente, os princípios organizadores e as
prerrogativas dos concelhos do reino e demais conquistas ultramarinas. Seguia-se, em particular, os
fundamentos da criação da capitania de São José do Rio Negro e da sua capital fixados na carta régia de 3
de Março de 1755, de que se remetia cópia.” BASTIÃO, Maria. O regime dos prazos na Ilha de
Moçambique, 1763-1800. Ler História, 76, posto online no dia 30 junho 2020. Consultado no dia 26 agosto
2020. URL: http://journals.openedition.org/lerhistoria/6786
99
Idem, p. 295-296
56

margens de rios (Negro e Zambeze) que permitiam saídas para o mar e conexões com
outras capitanias. Procurava-se, assim, consolidar a soberania lusitana, sobretudo em
regiões do interior, a partir de rios estrategicamente situados.
Não é possível desvincular as expedições científicas realizadas entre as décadas
de 1780 e 1790, a incluir as analisadas na presente tese, destes reordenamentos políticos,
administrativos e econômicos fomentados nas décadas anteriores. Os viajantes formados
nas Faculdades de Filosofia e Matemática da Universidade de Coimbra reformada
receberam como missões realizar um inventário da flora, fauna, dos minerais, dos povos
e das espacialidades. Partiam, porém, também incumbidos de avaliar as reformas
iniciadas em meados do setecentos e de executar projetos anteriores que não tinham sido
bem sucedidos. Ocupemo-nos, então, de indicar algumas particularidades do norte da
América portuguesa e da África oriental portuguesa, para as quais, numa tentativa de
interiorização dos continentes, foram remetidos matemáticos e naturalistas equipados dos
instrumentos, técnicas, referências teóricas e metodológicas adquiridos entre Coimbra e
Lisboa.

1.3. “Zonas de soberania indecisa”: demarcação de fronteira e viagem filosófica pelo


Grão-Pará, Rio Negro e Mato Grosso e Cuiabá

Tendo-me chegado a notícia de que S. Majestade pretende


empregar alguns novos matemáticos na expedição que se
deve fazer no Brasil a fim de se estabelecer as
demarcações, me veio logo ao pensamento a grande
utilidade que se seguiria ao Estado e à nação se
mandassem também alguns naturalistas de profissão.100

É na esteira do processo de reordenamento dos laços entre ciência, política e


economia que se tornam inteligíveis as palavras de Domingos Vandelli, endereçadas ao
marquês de Angeja, no ano de 1777. Como observado por Lorelai Kury, Vandelli
“buscava mostrar a importância de se enviar viajantes-naturalistas junto às expedições

100
VANDELLI, Domenico. Carta de Vandelli ao Marquês de Angeja. In: O gabinete de curiosidades de
Domenico Vandelli. Rio de Janeiro: Dantes editora, 2008. p. 85
57

para demarcação das fronteiras brasileiras.”101 Para tanto, eram recuperadas as


experiências dos franceses e ingleses, mas também de dinamarqueses e russos, os quais
“mandaram nestas e noutras ocasiões, em companhia de matemáticos, naturalistas
inteligentes.”102
Enquanto os matemáticos calculariam “as alturas, latitudes e longitudes, os
naturalistas podem seguramente determinar a vantagem que se segue à nação da
demarcação, conhecendo e relatando as verdadeiras riquezas dos terrenos que se
tocam.”103 Descobririam ainda novos ramos do comércio, o que, somado ao inventário da
natureza, ajudaria aos demarcadores na “divisão mais útil e proveitosa ao Estado, talvez
aproveitando o que ignorado a outra parte.”104 A Espanha era a “outra parte”, com a qual
Portugal assinou, no mesmo ano da carta, o Tratado de Santo Ildefonso, que tinha como
objetivo definir a raia fronteiriça que separava os domínios de um e outro reino na
América do Sul.
Marquês de Angeja escreveu à Tomás Xavier de Lima Nogueira Vasconcelos
Telles da Silva, embaixador de Portugal na Espanha, em dezembro de 1777, corroborando
com os dizeres de Vandelli. Ele salientava que para fazer completa a nova expedição no
continente americano seria fundamental remeter alguns filósofos naturalistas e um
desenhador, sujeito capaz de não somente produzir cartas, mas também de contribuir para
desenhos das plantas, animais e da paisagem vistos in loco.
Como asseguram Miguel Faria e Ermelinda Pataca, nesse contexto, as imagens
tornam-se parte da linguagem científica: a “valorização da vista na construção do
conhecimento levou à prática da representação pictórica e o conhecimento natural.”105
Posto isto, para se realizar um inventário da natureza, o desenho era tão fundamental
quanto era para a cartografia ou para outros carpos do serviço militar. Nas instruções para
as viagens filosóficas insistia-se na utilidade do desenho. Como apreendeu Schiavinatto,
“ele permitia duplicar em imagem o que a descrição não conseguia contar, repunha um

101
KURY, Lorelai. As viagens filosóficas: Vandelli e a História Natural. In: O gabinete de curiosidades de
Domenico Vandelli. Rio de Janeiro: Dantes editora, 2008. p. 73
102
VANDELLI, Domenico. Carta de Vandelli ao Marquês de Angeja... p. 86
103
Idem, p. 86
104
Idem, p. 86
105
FARIA, Miguel; PATACA, Ermelinda. Ver para crer: a importância da imagem na gestão do Império
português no final do Setecentos. Lisboa: Anais Série História, volume IX/X, MMV. p. 65
58

ser quando era impraticável de ser embalada e remetida em sua totalidade mesmo para
melhor apreender um animal ou planta embalada.”106
Segundo argumentava o Marquês, os matemáticos deveriam “pelo maior ou
menor número de léguas, relatar a vantagem da demarcação para Portugal, porém só o
naturalista é quem pode avaliar exatamente o preço intrínseco dos terrenos que nos
couberem, por um mapa circunstanciado de suas produções.”107 Para garantia de um
conhecimento mais profundo do que os olhos conseguem enxergar, os filósofos faziam
usos de “processos químicos totalmente ignorados pelos matemáticos”, os quais
poderiam, por exemplo, ser empregados para análise da qualidade e característica de
determinado solo.
Essa miúda observação seria útil, portanto, para o melhoramento da agricultura.
Transformaria em produtivos, na perspectiva colonial, terrenos vistos como incultos,
integrando-os a uma rede de exploração que contribuiria para a integração e
complementariedade econômica das capitanias que compunham o Império. Com a
esperança de alcançar êxito em sua sugestão, o Marquês de Angeja concluía a dizer que
os profissionais atuariam de maneira complementar: os matemáticos se ocupariam de
fazer os mapas geográficos e os filósofos trabalhariam nos “outros mapas histórico-
naturais e mineralógicos.”108
De maneira mais precisa, era para a Amazônia colonial portuguesa, em especial
para as áreas fronteiriças das capitanias do Grão-Pará, São José do Rio Negro e Mato
Grosso, que os matemáticos e naturalista seriam remetidos. Não há dúvidas de que essa
extensa porção geográfica não era a única privilegiada para a realização de expedições
científicas na América portuguesa. O próprio Vandelli sugeriu que enquanto um grupo de
filósofos da natureza, coordenado por Alexandre Rodrigues Ferreira, percorresse o norte
da América portuguesa, Julio Matiazzi, secretário do Complexo da Ajuda, poderia
permanecer no Rio de Janeiro centralizando as remessas de produtos vindos das
capitanias situadas no eixo sul.

106
SCHIAVINATTO, Op. Cit. 2013. Sobre ilustração científica ver também: FARIA, Miguel Figueira. A
imagem útil. Lisboa: Universidade Autônoma de Lisboa, 2001.
107
Carta do marquês de Angeja ao visconde de Vila Nova de Cerveira. In: O gabinete de curiosidades de
Domenico Vandelli. Rio de Janeiro: Dantes editora, 2008. p. 87
108
Idem, p. 87
59

No entanto, se considerarmos as viagens filosóficas ocorridas nas últimas décadas


do século XVIII, notamos que a mais abrangente em termos de território percorrido e
tempo de duração foi a realizada na Amazônia, o que nos leva a pensar nas peculiaridades
da região. Antes de explorarmos quais áreas e interesses estavam em disputa, faz-se
necessário responder duas questões: o que entendemos por Amazônia colonial portuguesa
e quais foram, a partir de meados dos setecentos, as disputas internacionais pela região
que fomentaram o processo de interiorização do seu território a partir do rio Amazonas?
A Amazônia colonial portuguesa, segundo Rafael Chambouleyron, deve ser
entendida como um território heterogêneo e denominado de diferentes formas entre os
séculos XVII e XVIII: Estado do Maranhão e Grão-Pará a partir de 1621, com sede
administrativa em São Luís; Estado do Grão-Pará e Maranhão, de 1751 em diante, com a
mudança da sede para Belém; Estado do Grão-Pará e Rio Negro, com sede em Belém,
Estado do Maranhão e Piauí, com sede em São Luís, a partir da década de 1770.109
Na geografia atual, grosso modo, corresponde a Amazônia legal brasileira, onde
estão incluídos os estados do Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia, Roraima, bem
como o “oeste do Maranhão, o norte de Goiás e o norte do Mato Grosso. Exclui, por outro
lado, aquelas porções da bacia amazônica situadas além das fronteiras do Brasil: partes
da Bolívia, Colômbia, Equador, Peru e Venezuela.”110 Antonio Porro reconheceu as
distinções entre as fronteiras de hoje e as do período colonial. No entanto, considerou a
existência de “traços comuns da geografia humana regional e uma certa concordância

109
Como explicou Rafael Chambouleyron: “a presença europeia na costa norte e na Amazônia,
principalmente, de franceses, ingleses e holandeses, foi o elemento central do esforço português (nessa
época dependente da coroa de Castela), que organizou a conquista da região. Após a tomada de São Luís
aos franceses, em 1615, os portugueses fundaram, na desembocadura do Amazonas, a cidade de Belém do
Pará, em 1616. Sérgio Buarque de Holanda definiu Belém com um “núcleo de expansão”. De fato, para
vários autores, essa cidade representou o centro fundamental da expansão e dominação portuguesa de todo
o vale amazônico. Eidorfe Moreira tinha razão ao afirmar que “no plano histórico, nenhuma região
dependeu tanto de uma cidade como a Amazônia dependeu de Belém. Nada se fez aí senão com base nela
ou através dela”. São Luís, Belém e a fortaleza de Santo Antônio de Gurupá constituíram os três centros
da dominação portuguesa da Amazônia, que, nos anos 1620 se transformou numa região administrativa
independente no interior do império português: o Estado do Maranhão e Grão-Pará.”
CHAMBOULEYRON, Rafael. Plantações, sesmarias e vilas. Uma reflexão sobre a ocupação da Amazônia
seiscentista. Revusta Nuevo Mundo Mundos Nuevos, Debates, maio de 2006. Consultado: 27 março 2020.
110
PORRO, Antonio. O povo das águas. Ensaios de etno-história amazônica. Rio de Janeiro: Vozes, 1996.
p. 11
60

com a jurisdição do antigo Estado do Maranhão e Grão-Pará, ao qual esteve ligado o


começo da atuação luso-brasileira na Amazônia.”111
Como afirmaram Chambouleyron e José Alves de Souza Júnior, “a organização
territorial portuguesa (e no tempo da monarquia Hispânica) deu um sentido e uma (mesmo
que frágil) unidade a uma vasta região que os portugueses não necessariamente
controlavam de forma homogênea.”112 A singularidade administrativa, política e
religiosa, reconhecida no reino e na conquista, reflete na documentação referente ao
período colonial. Há, por exemplo: registros de venda na Câmara de São Luís de
indígenas escravizados

resgatados mais profundos sertões do Pará”, inúmeros “contratos de dízimo do


Maranhão e do Piauí guardados nos códices que compõe o arquivo público do
Pará”, documentos relativos ao Rio Negro no século XVIII encontram-se no
Arquivo do Estado do Pará, do mesmo modo que muitos referentes ao Piauí
estão no Arquivo do Estado do Maranhão.113

O historiador Alírio Cardoso pondera que não é possível usar sem custos a palavra
Amazônia para denominar uma região do período colonial: “a expressão Amazônia
brasileira foi criada no século XX para definir certas áreas do norte do Brasil,
supostamente detentora das mesmas características físicas e socioculturais, e que
abrangeria mais de 40% do atual território nacional brasileiro.”114 De todo modo, a sua
adoção para abordar um contexto histórico mais recuado no tempo tem potencial
explicativo e didático, uma vez que sinaliza para o reconhecimento de características
semelhantes que deram origem a um projeto articulado e específico de colonização.
Foi no século XVII, no contexto de união das coroas Ibéricas (1580-1630), que
tiveram início as investidas mais sistematizadas de reconhecimento da Amazônia. Os
agentes da colonização lusitana e espanhola e os missionários católicos logo perceberam
que a região possuía aspectos que a distinguia e, principalmente, a apartava do Estado do
Brasil. A começar pelo “peculiar regime de ventos ao longo da costa Atlântica da América

111
Idem, p. 11
112
CHAMBOULEYRON, Rafael; SOUZA JUNIOR, José Alves de. (Org.). Novos olhares sobre
a Amazônia colonial. Belém: Editora Paka-Tatu, 2016. p. 6-7
113
Idem, p. 6-7
114
CARDOSO, Alírio. Amazônia na Monarquia Hispânica. Maranhão e Grão-Pará nos tempos da União
Ibérica (1580-1655). São Paula: Alameda, 2017. p. 45
61

do Sul, o qual propiciou uma ligação mais direta entre, por um lado, o Maranhão e o Pará,
e, por outro, a Europa.”115 A separação gerada pelas correntes marítimas e de ventos faz
com que o autor, em diálogo com Chambouleyron, utilize o termo Atlântico Equatorial a
fim de demarcar a separação do Atlântico Sul e para tratar das redes de relações
específicas daí decorrentes.
A esse aspecto somava-se quatro outras peculiaridades da Amazônia colonial: 1)
a imensa capacidade fluvial que garantia uma navegação mais estável se comparada à
possibilitada em outras partes da América; 2) a considerável distância entre as capitanias,
ainda que estivessem interligadas por uma rede fluvial; 3) as atividades econômicas
variavam entre a plantation (em menor escala) e a exploração das drogas da terra, com
destaque para a abertura da possibilidade de aproveitamento das experiências asiáticas no
cultivo de especiarias116; 4) a numerosa população indígena “característica marcante do
comércio, da força de trabalho disponível, das forças militares e, em geral, da sociedade
luso-maranhense.”117
A importância estratégica do rio Amazonas e da rede hídrica a ele atrelada, embora
ainda em grande parte desconhecidas pelos europeus, já era observada no início do século
XVII. Isso ajuda a entender a instalação da cidade de Belém, em 1616, nas proximidades
de sua desembocadura. A grandiosidade das águas amazônicas, associada ao imaginário
do período, corroborou para o surgimento de uma “cartografia mítica”, que se valeu de
crônicas produzidas principalmente por missionários. O mito da Ilha Brasil talvez seja
um dos mais emblemáticos avivado nesse período.118 Como esclareceu Íris Kantor, “o
conceito geográfico de ilha-brasil difunde-se não apenas na cartografia, mas também nas

115
Idem, p. 20
116
Sobre esse assunto, além do trabalho do próprio Alírio Cardoso, ver também os estudos mais recentes
de Rafael Chambouleyron. Em seminário ocorrido na Fiocruz em meados de 2019, o historiador
compartilhou a conferência com o seguinte título: “Posto que de diferente feição, é no sabor quase o mesmo
que o da Índia. O cravo de casca e a Amazônia colonial.” Ver também: CHAMBOULEYRON, R.;
CARDOSO, A. As cores da conquista: produtos tintórios e anil no Maranhão e Grão-Pará (século
XVII). Locus: Revista de História, v. 20, n. 1, 3 maio 2016.
117
CARDOSO, Alírio. Op. Cit. 2017. p. 48
118
Para citar alguns trabalhos que tratam sobre esse tema: CORTESÃO, Jaime. História do Brasil nos
velhos mapas. 2 Vols. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2009.; CORTESÃO, Jaime. A reação
ao tratado de Tordesilhas e o mito da Ilha Brasil. In: Raposo Tavares e a formação territorial do Brasil,
Lisboa, Portugalia, 1966.; HOLANDA, Sérgio Buarque de. Um mito geopolítico: a ilha Brasil. In: Tentativa
de Mitologia. São Paulo: Perspectiva, 1979.
62

crônicas quinhentistas e seiscentistas, nas quais se identifica que as nascentes do Prata,


Amazonas e São Francisco tinham origem num mesmo lago interior.”119
Outro exemplo são as narrativas construídas em torno da região hoje denominada
pantanal, analisadas pela historiadora Maria de Fátima Costa, no livro intitulado História
de um país inexistente: o pantanal entre os séculos XVI e XVIII. A imensa planície
inundável situada no interior da América do Sul foi, no Tratado de Tordesilhas,
transformada em terra pertencente à Coroa espanhola. “Originalmente era território de
diversas nações e povos indígenas, entre outros dos Guarani, Payaguá, Guaxarapos e
Xarayes.”120
Desde o seiscentos, os europeus eram atraídos para a região pela possibilidade de
encontrarem riquezas minerais ou fabulosos tesouros. “Cidades foram nascendo. De
Assunção passaram a sair os conquistadores, sempre pelo rio Paraguai acima, à procura
das contadas riquezas. Nessas estradas começaram a descobrir um lugar intensamente
aquático, nomeando lagoas, rios, baías, montes e portos.”121 Em meio a essas
peregrinações, reconhecimentos e conjecturas, marcados pela realidade e fantasia, surgiu
o “mito da Laguna de los Xarayes”, região habitada hipoteticamente por índios
agricultores e possuidores de metais preciosos.

Como os seus semelhantes, dos lagos do Eldorado, do Paititi e do Eupana, o


de Xarayes é um mito que teve longa vida: surgiu nos primeiros anos de 1600,
quando Antonio de Herrera lhe deu identificação espacial, e já no final da
década de 1620 ganhou contornos cartográficos graças ao empenho dos
neerlandeses, que nas páginas de seus preciosos Atlas fizeram a Laguna de los
Xarayes ter fisionomia própria. Esta imagem foi reproduzida em diferentes
mapas e caracterizou o interior sul-americano até o final do século XVIII.122

No contexto histórico de interesse particular desse estudo, se concluiu que a


suposta Lagoa de Xarayes era, na verdade, a planície alagada pelas águas da Bacia do
Alto do rio Paraguai, sendo a área chamada pelos luso-brasileiros como Pantanal.123

119
KANTOR, Íris. Usos diplomáticos da ilha-Brasil: polêmicas cartográficas e historiográficas. Varia
História, 2007, vol. 23, n.º 37, p. 70-80. p. 71
120
COSTA, Maria de Fátima. A história de um país inexistente: Pantanal entre os séculos XVI e XVIII. São
Paulo: Estação Liberdade/Kosmos, 1999. p. 17
121
Idem, p. 17
122
COSTA, Maria de Fátima. De Xarayes ao Pantanal: a cartografia de um mito geográfico. Revista do
IEB n. 45, p. 21-36, set 2007. p. 21
123
Como destacado por Costa: “sabe-se hoje que o Pantanal é um dos ecossistemas mais significativos do
planeta. Formando um dos maiores sistemas de áreas alagáveis contínuas da América meridional, o sistema
63

Segundo Maria de Fátima Costa, a denominação, que remete para a ideia de “campos
alagados, com várias lagoas e sangradouros”, já era usada pelos monçoeiros, os quais
seguiam as “rotas abertas pelos bandeirantes paulistas” e atingiram o Mato Grosso. Essa
denominação conviveu com a Laguna de Los Xarayes, empregada pelos castelhanos por
algum tempo. Mas “em meados do século XVIII, os demarcadores de limites, com seus
saberes ilustrados, despiram-se das maravilhas quinhentistas e a dimensionaram como um
espaço geograficamente determinado.”124
Impulsionados por novos conhecimentos e pelo avanço para as regiões do interior
da América, principalmente através dos rios, no século XVIII, teve início uma série de
negociações diplomáticas e acordos internacionais com objetivo de delimitar os domínios
coloniais dos reinos europeus continente americano. A caducidade do Tratado de
Tordesilhas (1494) foi endossada, em 1713, com a assinatura por Portugal e pela França
do Tratado de Utrecht. No norte da América portuguesa, o acordo estabelecia a linha
divisória estre o Estado do Maranhão e Grão-Pará e a Guiana Francesa. Dentre outras
definições estabelecidas em Utrecht analisadas por Rafael Ale Rocha, destacamos a
concessão “à Coroa portuguesa do Cabo Norte – definido como a região estabelecida
entre os rios Amazonas e Oiapoque ou Vicente Pinson.”125
Em 1750, Portugal e a Espanha assinaram o Tratado de Madri que previa o
estabelecimento de comissões de demarcação de limites bilaterais para o reconhecimento
da raia que separava a América portuguesa e espanhola. De acordo com Nelson Sanjad,
para a Amazônia foram estabelecidas três partidas de limites: “do lado português o
comando foi dado ao irmão do Marquês de Pombal, Francisco Xavier de Mendonça
Furtado, devidamente instruído a verificar a excelência ou prejuízos do tratado firmado

pantaneiro tem as suas nascentes em terras brasileiras e estende-se, numa fronteira viva, pela região do
Chaco paraguaio-boliviano. Suas águas pertencem à bacia do Alto Rio Paraguai, que é tributário da imensa
bacia do Prata, sendo o Paraguai seu principal formador. O atual estado do Mato Grosso guarda a nascente
de alguns dos seus rios, dentre essas a do rio Paraguai, bem como parte da grande planície inundável. No
entanto, é no Mato Grosso do Sul que os seus rios se espraiam mais extensamente, adentrando as terras
paraguaias e bolivianas. Como o definiu Ab’Saber (1988;9), ‘é um território deprimido situado entre os
domínios dos cerrados, do Chaco e da pré-Amazônia.’” COSTA, Maria de Fátima. Op. Cit. 1999. p. 20
124
Idem.
125
ROCHA, Rafael Ale. “Domínio” e “posse”: as fronteiras coloniais de Portugal e da França no Cabo
Norte (primeira metade do século XVIII). Tempo vol.23 no.3 Niterói Sept./Dec. 2017. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/tem/v23n3/1980-542X-tem-23-03-529.pdf p. 334
64

em 1750.”126 A comissão foi composta quase integralmente por astrônomos, matemáticos


e engenheiros estrangeiros. Os resultados foram limitados por “conflitos com
missionários e [pelo] atraso da comitiva espanhola, que chegou ao rio negro em 1759,
quando os portugueses já o haviam deixado há muito tempo, impossibilitando as
negociações previstas no tratado.”127
A assinatura do Tratado e o envio de expedições não foram as únicas medidas
empreendidas visando a ocupação e garantia da posse da bacia amazônica, a partir de
meados de setecentos. Como já mencionado, a década de 1750 esteve marcada por
medidas legais que propunham novas orientações para a colonização do norte da América
portuguesa. A começar pela criação da capitania de São José do Rio Negro por meio de
carta régia, datada do ano de 1755. Com sede administrativa na vila de Barcelos, antiga
aldeia de missionários, representava a tentativa da Coroa de deslocamento de autoridades
e instituições ligadas à monarquia para o interior da Amazônia.128
Além das demandas demarcatórias amparadas na uti possidetis, reconhecia-se
com a criação da capitania: a) o sertão como um local de celeiro de riquezas, b) a
necessidade de instalação de poderes políticos coloniais em decorrência da distância de
Belém, c) a possibilidade de ocupação pelos holandeses do rio Tacutu/Branco, sendo que
o poder instituído em Barcelos facilitava o vigia da região, d) que os missionários
instalados ao longo do rio Amazonas e de seus afluentes não representavam os interesses
da coroa portuguesa.129 De acordo com a historiadora Patrícia Melo,

Todas estas características são visíveis no desenho que se traçou no século


XVIII para os sertões das Amazonas. O governador e Capitão-General do
Grão-Pará, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, ao destacar a importância
da criação da Capitania do Rio Negro, reforça exatamente a incapacidade da
Coroa em agir naqueles sertões, seja na distribuição das justiças seja
controlando e limitando o espaço de asilo e refúgio de “celerados”, em
particular porque, sem contar com as proteções e apadrinhamentos, “a
larguíssima extensão deste imenso país não permitia que se dessem as eficazes
providências que eram precisas para as evitar”. [...] O sertão como reserva
também é recorrente. É fonte de produtos e matérias primas “úteis”,
necessárias à subsistência e ao comércio. O rio Madeira é definido como “paiol
dos pobres e remédio para pobreza” devido à sua enorme abundância de cacau.

126
SANJAD, Nelson. Op. Cit. 2005. p. 426
127
Idem, p. 426
128
SANJAD, Nelson. Op. Cit. 2012. p. 226
129
SAMPAIO, Patrícia Maria Melo; SANTOS, Francisco Jorge dos. Op. Cit. 2008. p. 81
65

Os sertões do Tocantins e do Xingu abundam de pau cravo assim como os


sertões do Negro eram “fertilíssimos” em salsa, piaçava e outros produtos. 130

Como ressaltaram Beatriz Bueno e Íris Kantor, a delimitação da capitania de São


José do Rio Negro foi acompanhada pela fundação de vilas, lugares e fortalezas em uma
longa faixa que se iniciava na boca do Amazonas, tais como: “Macapá (1752), Chaves
(1758), Santarém (1754), Monte Alegre (1758), Alenquer (1758), Óbidos (1758), Faro
(1758), Maracoatiara (1759), Barcelos (1757), Ega (1759), Olivença (1759), São José do
Javarí (1759).”131 O mapa e o quadro, de autoria do historiador Francisco Jorge Santos,
reproduzidos a seguir permitem vislumbrar essa extensa rede de vilas e povoações que
“assegurou a interiorização de 2400 km ao longo do Rio Amazonas, lembrando que a
virtual linha de Tordesilhas não deveria ultrapassar a Ilha de Marajó.”132

130
SAMPAIO, Patrícia Maria Melo. Op. Cit. 2011. p. 39
131
BUENO, Beatriz; KANTOR, Íris. Op. Cit. 2015. pp. 244-245
132
Idem, pp. 244-245
66

Disponível em: SANTOS, Francisco Jorge. Além da conquista: guerras e rebeliões


indígenas na Amazônia pombalina. Manaus: Editora da Universidade do Amazonas, 2ª
ed., 2002. pp. 112-113
67

Uma nova política indigenista acompanhava esse processo e procurava propiciar


a fixação dos índios nas vilas e lugares, incorporando-os como mão de obra para o cultivo
agrícola e, a depender dos locais onde estavam instalados, como defensores do território
colonial. Em linhas gerais, a Coroa portuguesa procurou acabar com “a jurisdição
temporal dos Regulares sobre os índios do Grão-Pará e Maranhão”133 e tornar as nações
indígenas em “vassalos úteis”.134 Para tanto, restituiu a liberdade dos índios, os
reconheceu como súditos da monarquia e incentivou o casamento entre índias e brancos.
Como esclareceu Mauro Cézar Coelho, o Diretório pombalino ou Diretório dos
Índios (1757-1798) instalava uma rede de poder submetida à Coroa. “Distanciava-se,
assim, dos códigos legais anteriores, que delegavam aos religiosos a organização e
administração das povoações indígenas e a responsabilidade por inseri-los no âmbito da
civilização.”135 Em 1798, o Diretório foi abolido, através de uma carta régia, a qual
Patrícia Sampaio considerou resultado de “reveses e adaptações [...] das diferentes ações
e reações que índios aldeados empregaram no seu cotidiano para fazer frente àquelas
empreendidas no contexto do colonialismo luso.”136 Não é nosso objetivo abarcar a ampla
bibliografia que analisou a implementação e desdobramentos do Diretório, mas somente
recordar como a revisão das fronteiras se desdobrou em um conjunto de medidas políticas
e jurídicas que procurava interiorizar a presença da Coroa na Amazônia colonial
portuguesa e “disciplinar” os habitantes que ali viviam.
Retornando as relações diplomáticas entre Portugal e Espanha, em 1777, foi
firmado uma novo Tratado, o de Santo Ildefonso, para substituir o de Madri, tendo em
vista que os resultados não foram satisfatórios para sanar os conflitos. Permaneciam
embates na Colônia do Sacramento e nas missões dos jesuítas. Esses últimos, como

133
Idem, p. 80
134
DOMINGUES, Ângela. Quando os índios eram vassalos: colonização e relações de poder no Norte do
Brasil durante a segunda metade do século XVIII. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos
Descobrimentos Portugueses, 2000. Dentre os muitos trabalhos sobre o Diretório, gostaria de indicar dois:
COELHO, Mauro Cezar. Do sertão para o mar – Um estudo sobre a experiência portuguesa na América, a
partir da colônia: o caso do Diretório dos Índios (1751 -1798). Tese de doutorado em História Social,
Universidade de São Paulo, 2005.; SAMPAIO, Patrícia Maria Melo. Espelhos Partidos: etnia, legislação
e desigualdade na Colônia. Manaus: Editora da Universidade Federal do Amazonas, 2011.
135
COELHO, Mauro Cezar. “A Civilização da Amazônia – Alexandre Rodrigues Ferreira e o Diretório dos
Índios: a educação de indígenas e luso-brasileiros pela ótica do trabalho”. Revista de História Regional
5(2): 149-74. Universidade Estadual de Ponta Grossa (PR), Departamento de História, 2000. p. 151.
136
SAMPAIO, Patrícia Maria Melo. Op. Cit. 2011. p. 29
68

observou Maria de Fátima Costa em extensa documentação, fizeram “uma série de


denúncias sobre a atividade dos bandeirantes paulistas; historiam os feitos e compromisso
com os indígenas reduzidos nas suas missões e acusam Portugal” de ter ocupado as
melhores terras. Para tanto, destruíam missões e nos seus lugares construíam fortalezas
lusitanas.137
Outro ponto em que as tensões permaneciam era no norte da América portuguesa,
com destaque para as redes hídricas atreladas ao Amazonas e as raias limítrofes das
capitanias de São José do Rio Negro e Mato Grosso e Cuiabá. Pretendia-se que as
fronteiras políticas fossem reforçadas por obstáculos naturais; a partir dessa premissa
foram definidos alguns dos objetivos da Comissão de Demarcação. De acordo com
Ângela Domingues, por parte dos portugueses “as instruções eram dadas no sentido de
estabelecer a região fronteiriça de acordo com o curso do Japurá até à Cordilheira,
abrangendo o território português as povoações sediadas neste rio e no Negro e as
comunicações entre eles.”138
A Coroa se preocupava igualmente “com a delimitação das fronteiras exteriores
da capitania do S. José do Rio Negro – e a consequente navegação nos rios Amazonas,
Branco, Negro, Japurá [...]. A complexa hidrografia, constituída por estes rios e seus
afluentes, era conhecida incipientemente.”139 Adilson Brito destacou, do mesmo modo, a
importância dos rios dessa porção geográfica nas disputas, tanto porque serviam como
barreiras naturais quanto por serem as principais vias de circulação.

A comitiva portuguesa deveria ter claro que a linha divisória a ser traçada sobre
o espaço limítrofe com os domínios hispano-americanos dos rios Amazonas,
Madeira, Japurá, Negro e seus afluentes deveria legitimar o estado do avanço
português no sentido leste-oeste de seus domínios, que já tinha alcançado
pontos longínquos dos rios Amazonas e Negro com as povoações de Tabatinga
e Marabitanas, respectivamente.140

137
COSTA, Maria de Fátima. Op. Cit. 1999. p. 211
138
DOMINGUES, Ângela. Viagens de exploração geográfica na Amazónia em finais do século XVIII:
política, ciência e aventura. Funchal: Centro de Estudos de História do Atlântico, 1991. p. 40
139
Idem, p. 39
140
BRITO, Adilson Junior Ishihara. Domar as águas e os sertões da fronteira intra-americana: a centralidade
dos caminhos fluviais nas disputas luso-espanholas do Tratado de Santo Ildefonso. Revista Brasileira de
História. São Paulo, v. 39, nº 82, 2019. p. 113 . BASTOS, Carlos Augusto de C. No Limiar dos Impérios:
projetos, circulações e experiências na fronteira entre a Capitania do Rio Negro e a Província de Maynas
(c.1780-c.1820). 2013. Tese (Doutorado em História Social) – FFLCH, Universidade de São Paulo (USP).
São Paulo, 2013. BRITO, Adilson Junior Ishihara. Insubordinados sertões: o Império português entre
69

No sentido da capitania do Mato Grosso e Cuiabá, os esforços lusitanos


“relacionava-se com a demarcação do eixo Guaporé-Mamoré-Madeira, na medida em que
a fronteira deveria ser estabelecida a partir de um ponto intermédio entre a confluência
Mamoré-Madeira com a embocadura deste no Amazonas, de onde partiria um rumo para
oeste até encontrar a margem do Javari.”141 Deste modo, estaria reservado “para Portugal
o grande planalto aurífero e as suas vias de acesso, ao mesmo tempo que englobaria nas
linhas de demarcações os territórios do Pará, Rio Negro e Mato Grosso, que iam para
além dos limites estabelecidos pelo tratado de Tordesilhas.”142
Como esclareceu Vanice Siqueira Melo, “localizado na margem direita do
Amazonas, o rio Madeira é o mais longo afluente da bacia amazônica.”143 O estreitamento
dos laços entre o Mato Grosso e o Pará ganhou importância no interior da lógica colonial
em meados do século XVIII. Mendonça Furtado e D. Rolim Moura defendiam a
revogação do alvará régio que proibia a navegação pelo rio Madeira, o que ocorreu em
novembro de 1752. Ambos “estavam preocupados em assegurar os territórios situados
nas áreas de fronteira com a América Espanhola e facilitar o escoamento do ouro de Mato
Grosso por uma rota que consideravam mais segura, evitando o contrabando pelos
caminhos terrestres que tinham como destino São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia.”144
O mapa reproduzido a seguir representa os pontos suscetíveis a disputas
territoriais, o conjunto de fortalezas estabelecidas em regiões limítrofes e o “triângulo
amazônico” formado pelas três sedes de governo portuguesas. Como esclarece Sampaio:

Na zona de disputa com franceses e ingleses, o forte de Macapá (1765); na


fronteira norte com ingleses e holandeses, o Forte de São Joaquim (1777) e na
fronteira com as possessões de Espanha, as fortalezas de São José dos
Marabitanas (1762), S. Gabriel da Cachoeira (1762), São Francisco Xavier de
Tabatinga (1770) e, um pouco mais abaixo, as fortalezas de Bragança e do
Príncipe da Beira.145

guerras e fronteiras no norte da América do Sul – Estado do Grão-Pará, 1750-1820. 2016. Tese (Doutorado
em História Social) – PPGHS, Universidade de São Paulo (USP). São Paulo, 2016.
141
Idem, p. 40
142
Idem, p. 35
143
MELO, Vanice Siqueira. A participação dos indígenas nas expedições da rota Madeira-Guaporé
(segunda metade do século XVIII). In: VEIGA, C.; FERREIRA, E; LISBOA, I.; COSTA, J.;
CENTURIÓN, S. (Org.). História Indígena e do Indigenismo na Amazônia II. São Carlos: Pedro & João
Editores, 2019, v. II. p. 134
144
Idem, p. 137
145
SAMPAIO, Patrícia Melo. Op. Cit. 2011. p. 53-54
70

Disponível em: FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Diário da Viagem Filosófica


pela Capitania de São José do Rio Negro: com a informação do estado presente. In:
FERRÃO; SOARES, (Orgs.). Rio de Janeiro: Kapa Ed., 2007.

Para percorrer, mapear e demarcar os pontos estratégicos foi montada, portanto, a


Comissão de Demarcação portuguesa, em 1780. Composta por 516 pessoas e 25 barcos,
a comitiva partiu de Belém e se direcionou até o pantanal mato-grossense, com paragem
na Vila de Barcelos e suas intermediações. Dentre os seus membros, encontramos os
matemáticos formados na recém-criada Faculdade de Matemática, Francisco José de
Lacerda e Almeida e Antonio Pires da Silva Pontes Leme. O fato de abarcar sujeitos com
formação adquirida no reino português sinaliza para uma diferença em relação à comissão
71

demarcatória anterior e deixa entrever que Portugal investira na formação de quadros para
execução desse tipo de tarefa no Ultramar.
Poucos anos depois, em 1783, teve início a Viagem Filosófica chefiada pelo
naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira, que veio acompanhado de Lisboa de dois
desenhistas e um jardineiro botânico. Depois de permanecer por mais de um ano em
Belém e de fazer deslocamentos pelo rio Tocantins e para a Ilha de Marajó, adentrou o
rio Amazonas. Fez breves paradas em vilas e lugares, inspecionou a boca de rios como o
Tapajós, alcançou a boca do rio Negro e atingiu a vila de Barcelos, sede de governo da
capitania.
Da vila de Barcelos deslocou-se para pontos importantes no processo de
demarcação das fronteiras, tais como a Fortaleza de São José das Marabitanas subindo o
rio Negro e para a Fortaleza de São Joaquim no rio Branco. Em 1787, recebeu ordens de
se deslocar para o Mato Grosso, descendo o rio Madeira até atingir o rio Guaporé, mais
precisamente Vila Bela. Com terreno alagadiço e reconhecido como insalubre, a vila era
um dos principais pontos de apoio dos viajantes depois de percorrer as muitas cachoeiras
do rio Madeira, Mamoré e Guaporé. A localidade tinha função estratégica para a
Demarcação de Fronteira, na medida que se mantinha próxima das missões de Chiquitos
e Moxos.
Voltaremos a tratar, no segundo capítulo da tese, de maneira mais precisa dos
deslocamentos realizados pelo naturalista e matemáticos na medida em que abarcaremos
as suas trajetórias, as atividades a que se dedicaram em campo e os textos que produziram.
Neste tópico procuramos pontuar como a Viagem Filosófica e Comissão de Demarcação
estiveram associadas aos interesses portugueses de interiorização, a utilizar os rios, e de
garantir a posse de um território que ocupava espaço peculiar na lógica Imperial, a
Amazônia colonial portuguesa.
72

1.4. Entre à costa e contra costa africanas: a travessia do continente a partir da


capitania de Moçambique e Rios de Sena

E a Inglaterra tão bem se saiu que se fez acreditar que os


portugueses não exploraram senão as costas e que o primeiro a
atravessar o continente negro foi um seu conterrâneo patriota,
David Livingstone.146

No final do século XIX, o francês Paul Barré foi convidado para escrever na
Revista Portuguesa Colonial e Marítima acerca dos “feitos lusitanos no continente
africano”.147 Ele principiou o escrito a reforçar como pensava bem “dos exploradores
portugueses e da sua obra tão bela e por vezes tão pouco conhecida em África.”148
Destacava que “a Inglaterra, insaciável e absorvente, recolheu no continente austral uma
grande parte dos frutos que Portugal legitimamente deveria colher.”149 Na era do
Imperialismo, os ingleses travessaram (literalmente) os anseios lusitanos no extenso
território entre Angola e Moçambique e impediram “para sempre a sua junção para que
formassem uma comprida língua de terra portuguesa do Atlântico ao oceano Índico.”150
As disputas se espraiavam para o campo das narrativas e da construção das
memórias dos dois países europeus. Os ingleses consideravam ser o viajante David
Livingstone, médico escocês que faleceu em 1873 na região do Lago Bangweulu, atual
Zâmbia, o primeiro europeu a adentrar no eixo meridional do continente africano.151 Já
Portugal defendia ser dos seus conterrâneos tal feito. Ao concordar com a última
afirmação, expressando as disputas imperialistas entre franceses e ingleses, Barré
recomendava aos portugueses “elevar, o mais cedo possível, um majestoso monumento
em honra dos primeiros exploradores africanos, e escrever no pedestal: aos exploradores

146
BARRÉ, Paul. A prioridade dos exploradores portugueses nas travessias Africanas. Revista Portuguesa
Colonial e Marítima, Lisboa, 1º ano, vol. 1, n. 3, 1897. p. 145
147
A Revista Portuguesa Colonial e Marítima foi publicada entre 1897 e 1909 sob a proteção do Rei D.
Carlos. Foi dirigida por Ernesto Júlio de Carvalho e Vasconcellos e publicada pela Livraria Ferin, em
Lisboa. Como o título evidencia tratava dos assuntos relacionados ao Ultramar português, com destaque
para as relações colonialistas estabelecidas na África. Tomamos contato com a revista na Sociedade de
Geografia de Lisboa, mas as edições encontram-se digitalizadas em: http://memoria-
africa.ua.pt/Library/RPCM.aspx
148
BARRÉ, Paul. Op. Cit. 1897. p. 145
149
Idem, p. 145
150
Idem, p. 145
151
Sobre a expedição de David Livingstone na África ver: PRATT, Mary Louise. Op. Cit.
73

portugueses que primeiro atravessaram a África e abriram caminho a todas as outras


nações.”152
Evidentemente não é nosso objetivo reforçar o tom laudatório acerca da
interiorização por parte dos lusitanos do continente africano, fruto da violência, da
exploração e escravização humana, da espoliação dos recursos naturais, das invasões de
territórios e de um longo processo de colonização somente findado na década de 1970.
Gostaríamos somente de destacar que a expedição do matemático Francisco José de
Lacerda e Almeida compõe parte das tentativas lusitanas de adentrar o sertão da África
meridional, antes do século XIX. A viagem se atrelava ao sonhado trânsito a ser
concretizado por agentes coloniais lusitanos através da inserção em redes de comércio e
poder africanas na extensa faixa de terra que separa Moçambique e Angola.
O projeto de travessia do continente era antigo, mas os novos investimentos no
campo científico poderiam finalmente concretizá-lo. Além de contornar os perigos
marítimos nos oceanos Índico e Atlântico, acreditava-se que a “ligação terrestre entre
Angola-Benguela e Moçambique-Sofala-Sena viabilizaria ainda a retirada do ouro e do
marfim que abundavam na região interior entre as duas possessões portuguesas,
especialmente no império do Monomotapa e na Butua.”153 Mesmo não tendo completado
o percurso e atingido a costa centro-ocidental, Lacerda e Almeida avançou para além do
domínio colonial português mais interiorizado na África oriental portuguesa, a vila de
Tete e a feira do Zumbo.154Antes da viagem do matemático foram feitas especulações a
respeito da possibilidade de iniciar a travessia a partir de Angola. Destas investigações,
como trataremos adiante, se concluiu que poderia ser mais profícuo iniciar o trajeto a
partir dos Rios de Sena, mais precisamente do rio Zambeze.
Em meados do século XVIII, a África oriental portuguesa era formada pelo
“arquipélago das Quirimbas ou Cabo Delgado, pela Ilha de Moçambique e mais uma faixa
litorânea no continente, pelas vilas de Inhambane e Sofala, por um presídio na baía de

152
Idem, p. 148
153
FURTADO, Júnia Ferreira. o embaixador, o cartógrafo e o romancista e o projeto português de travessia
da África: entre mapas, fronteiras e livros. In: Atas do VI Simpósio Luso-Brasileiro de Cartografia
Histórica. 2015. p. 177
154
Sobre os diferentes projetos de travessia terrestre, inclusive pensados a partir de Angola, ver: SANTOS,
Maria Emília Madeira. Viagens de Exploração Terrestre dos Portugueses em África. Lisboa: Instituto de
Investigação Científica Tropical, Centro de Estudos de História e Cartografia Antiga, 1988.
74

Lourenço Marques e pelos Rios de Sena, onde se localizavam as vilas de Tete e


Quelimane”.155 A sede da administração colonial estava instalada na Ilha de
Moçambique, que ocupava um papel estratégico de entreposto para a navegação no
oceano Índico e para a chegada das naus na Ásia. Nos Rios de Sena havia também um
governador estabelecido na vila de Tete, que se mantinha submetido ao de
Moçambique.156 No mapa a seguir pode ser vislumbrada, através da linha tracejada, o
território da África oriental portuguesa ou da capitania de Moçambique e Rios de Sena,
como era denominada no setecentos.

155
RODRIGUES, Eugénia. Op. Cit. 2012. p. 85
156
De acordo com Alexandre Lobato, em 1635 foi criado um poder local nos Rios de Sena, o qual mantinha-
se subordinado ao vice rei (Estado da Índia). No ano de 1688 foi extinto o governo autônomo e os Rios de
Sena voltava para o domínio do castelão de Moçambique. Com a separação do Estado da Índio, os Rios de
Sena mantinham-se subordinado à Moçambique. LOBATO, Alexandre. Evolução administrativa e
econômica de Moçambique (1752-1763). Lisboa: Publicações Alfa, 1989.
75

Disponível em: WAGNER, Ana Paula. A administração da África Oriental


Portuguesa na segunda metade do século XVIII: notas para o estudo da região de
Moçambique. Revista História Unisinos, 11(1):72-83, Janeiro/Abril 2007.

Alberto da Costa e Silva chamou atenção para a diversidade dos contatos


comerciais e culturais na costa e no hinterland dos territórios que viriam a ser domínios
coloniais portugueses. Para o africanista, “quando [...] os bantos começaram a se espalhar
pelas praias do Índico, ali já existiam, sobretudo nas ilhas contíguas à terra firme,
pequenos entrepostos comerciais, onde vinham ter navios de nações distantes – romanos,
árabes, persas.”157 Tais povos travaram trocas de mercadorias com os bantos vindos do
interior e “alguns terão subido os rios e outros se instalado em acampamentos
semipermanentes no sertão, pois, em 1531, os portugueses encontraram uma comunidade
de ‘mouros’ em Sena, a boa distância do litoral.”158
De acordo com a antropóloga Fernanda Gallo, as relações antes e depois da
chegada dos portugueses na região não se restringia ao comércio, mas se estruturava
também através de redes de matrimônio. As relações de parentesco “garantiam as
necessárias alianças e apoio para o funcionamento dos entrepostos comerciais, que
dependiam do acesso seguro às rotas e feiras de ouro e também à agricultura do
interior.”159 Uma descendência comum não consegue dar conta de explicar as sociedades
do vale do Zambeze, na medida em que elas se caracterizaram historicamente pela
mobilidade e “não se desenvolvem de forma isolada mas, em geral, derivam de
características dos vizinhos.”160 No mais, “o deslocamento está no cerne deste processo
de interação e o caso dos povos do complexo zambeziano no comércio internacional
aponta justamente esta direção.”161

157
SILVA, Alberto da Costa e. A Enxada e a Lança: a África antes dos portugueses. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2006.
158
Idem
159
GALLO, Fernanda. Andando à procura dessa vida: dinâmicas de descolamento na província de Tete-
Moçambique, do colonialismo tardio à mineradora Vale. Tese de Doutorado em Antropologia, IFCH,
UNICAMP, Campinas, 2018. p. 29
160
Idem, p. 31
161
Idem, p. 31
76

A região fértil e com abundância de água do vale do rio Zambeze – denominada


na documentação colonial como “Rios de Sofala, Rios de Moçambique, Rios de Cuama,
Rios de Sena e, finalmente no século XIX, por Zambézia”162 – atraía os portugueses desde
meados do século XVI. Para Flitz Hoppe, além do local estratégico da Ilha de
Moçambique, “era sobre o comércio do ouro da África oriental que recaía o interesse dos
portugueses, portanto sobre Sofala e o seu hinterland constituído pelos territórios
auríferos de Manica, Massapa e Abutua, ao sul do Zambeze.”163 Ao norte do rio, habitado
principalmente por sociedade matrilineares, como os Maraves, a expansão portuguesa se
deu principalmente em torno das vilas de Sena e Tete e da feira do Zumbo.
O rio Zambeze, com extensão de 2.750 km e desembocadura no oceano, foi “uma
importante via de comunicação entre os povos do sertão e o Índico, podendo mesmo ser
equiparado a uma língua de mar que penetra na planície.”164 Diferente da América
portuguesa e de Angola, em que a concessão de terras por parte da Coroa baseava-se no
sistema de capitania e sesmarias, na África Oriental portuguesa preponderou a doação de
extensões de terra, denominados prazos, regulada por um regime jurídico próprio.165
Destacamos duas especificidades: muitas mulheres eram receptoras dos prazos e eles não
eram hereditários, “o mais frequente [era] que fossem dados por três vidas, ou seja, o
beneficiário, que as transmitia a um filho e, depois, a um neto.”166
A separação do Estado da Índia, em 1752, esteve associada ao reordenamento das
políticas lusitanas para o ultramar e uma valorização da consolidação da soberania
portuguesa nos territórios coloniais. Como observou a historiadora Ana Paula Wagner, a
colonização da contra costa africana recebeu novo impulso neste período. “Se, antes,
Moçambique era visto como um entreposto comercial, a partir do setecentos, procurou-
se enquadrar aquele domínio numa política voltada à efetivação da posse da região e a

162
RODRIGUES, Eugénia. Op. Cit. 2012. p. 19
163
HOPPE, Fritz. A África Oriental Portuguesa no tempo do Marquês de Pombal (1750-
1777). Lisboa: Agência Geral do Ultramar, 1970. p. 20
164
RODRIGUES, Eugénia. Op. Cit. 2012. p. 45
165
Para uma discussão detida das especificidades deste modelo de distribuição de terras ver: RODRIGUES,
Op. Cit. 2013.
166
RODRIGUES, Eugénia. Rainhas, princesas e donas: formas de poder político das mulheres na África
Oriental nos séculos XVI a XVIII. Dossiê: História das mulheres, gênero e identidade femininas na África
Meridional, Pagu (49), 2017. p. 53
77

uma eficaz exploração de suas riquezas.”167 Em relação à administração das gentes, por
meio de carta régia datada de abril de 1763, recomentava:

que todos os vassalos nascidos nele, sendo cristãos batizados e não tendo outra
inabilidade de Direito, gozem das mesmas honras, preeminências,
prerrogativas e privilégios de que gozam os naturais deste Reino, sem menor
diferença, havendo-os desde logo por habilitados para todas as honras,
dignidades, empregos, postos, ofícios e jurisdições deles.168

Para a garantia da posse e ocupação efetiva dos territórios era de suma


importância, tal como no caso da Amazônia colonial e em outras partes do império, um
investimento no reconhecimento geográfico e das potencialidades naturais da região. É
isso que justifica, como argumentou Eugénia Rodrigues, o desenvolvimento, sobretudo a
partir das décadas de 1780 e 1790, na África oriental portuguesa de “dois centros
dinamizadores da produção do saber: a ilha de Moçambique, enquanto sede do governo-
geral da capitania, e Tete, então a capital da vasta região continental dos Rios de Sena, no
vale do rio Zambeze.”169
O processo de recolha e estudo de produtos dos três reinos da natureza foi iniciado
pelos administradores coloniais, em especial os governadores-gerais, por iniciativa
própria ou respondendo as demandas da Coroa. Deste modo, “o conhecimento da natureza
alimentou, a partir de cerca de 1781, uma abundante correspondência entre o reino e os
altos funcionários da colônia.”170 Nesse ano, há notícias do despacho feito pelo
governador interino, Vicente Caetano da Maia Vasconcelos, “para Lisboa de uma caixa
com conchas e arbustos marinhos, presumivelmente recolhidos no litoral da ilha de
Moçambique.”171
Em 1782, o secretário da Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro, enviou
para o então governador de Moçambique, Pedro Saldanha de Albuquerque, vinte e seis
exemplares das Instruções da Academia que ensinava como preparar e remeter

167
WAGNER, Ana Paula. Op. Cit. 2007. p. 79
168
Idem, p. 81
169
RODRIGUES, Eugénia. Op. Cit. 2006. p. 214
170
RODRIGUES, Eugénia. “Nomes e serventia”. Administração e História Natural em Moçambique em
finais de setecentos (c. 1781-1807). In: DORÉ, Andréa; SANTOS, Antonio Cesar de Almeida (org.). Temas
setecentistas. Governos e populações no Império Português. Curitiba: UFPR/CSHLA-Fundação Araucária,
2009. p. 122
171
Idem, p. 212
78

espécies.172 Como mencionado em outra passagem da tese, o documento foi elaborado no


âmbito da Academia Real das Ciências de Lisboa e tinha como objetivo difundir
informações no reino e nas conquistas acerca dos necessários cuidados a serem tomados
para que os exemplares da flora, fauna, minerais e produções humanas chegassem em
boas condições em Lisboa.
No ano seguinte, Saldanha de Albuquerque informou a Melo e Castro que
distribuiu “pelas pessoas desta capitania, que puderem dar-lhe melhor uso” as instruções
para a recolha de produtos e objetos a serem incorporados ao Museu de História Natural.
Seguindo as indicações, o governador-geral de Moçambique solicitou desenhos de
espécies de pássaros e exemplares dos povos da colônia, “mouros e cafres trajados em
seus moldes”.173 As instruções não ficaram restritas à Ilha de Moçambique, foram
remetidas “ao governador dos Rios de Sena, António Manuel de Melo e Castro (1779-
1786), subordinado ao governo-geral de Moçambique.”174 Melo e Castro cumpriu as
ordens, mas não deixou de notar a “incrível falta” nos Rios de Sena de gente instruída
para compreender as instruções.175
Em 1784, chegou um sujeito com formação especializada para colaborar no
projeto de inventariar a natureza de moçambicana. Tratava-se de Manoel Galvão da Silva,
naturalista formado na Faculdade de Filosofia de Coimbra e treinado por Vandelli, junto
com Alexandre Rodrigues Ferreira, João da Silva Feijó e Joaquim José da Silva no
Complexo da Ajuda para a realização de uma Vigem Filosófica. Através de ofício foi
informado que Galvão atuaria como secretário de governo e naturalista. Era responsável
por coordenar uma equipe formada pelo riscador António Gomes e pelo jardineiro José

172
AHU, Moçambique, caixa 39, doc. 17: Carta do governador de Moçambique Pedro Saldanha de
Albuquerque para Martinho de Melo e Castro sobre as diligências para a execução das ordens de recolha
de material a incorporar no Museu de História Natural (1782, Agosto, 24). AHU, Moçambique, caixa 42,
doc. 2: Carta do Governador de Rios de Sena, António Manuel de Melo e Castro, para Martinho de Melo e
Castro a informá-lo das dificuldades em encontrar pessoas aptas a quem possa distribuir os exemplares
enviados das instruções da Academia das Ciências de Lisboa (1783, Maio, 5. Tete). In: VIEIRA, Carla
Costa. Op. Cit. 2006. pp. 70 e 72
173
RODRIGUES, Eugénia. Op. Cit. 2017.
174
Idem, p. 212
175
AHU, Moçambique, caixa 42, doc. 2: Carta do Governador de Rios de Sena, António Manuel de Melo
e Castro, para Martinho de Melo e Castro a informá-lo das dificuldades em encontrar pessoas aptas a quem
possa distribuir os exemplares enviados das instruções da Academia das Ciências de Lisboa (1783, Maio,
5. Tete). In: VIEIRA, Carla. Os Portugueses e a travessia do continente africano: projectos e viagens (1755-
1814). Lisboa: Tese Mestrado Hist. dos Descobrimentos e da Expansão Portuguesa, Univ. Lisboa, 2006.
pp. 70 e 72
79

da Costa, cuja missão era “examinar e descrever tudo o que houver nessa capitania,
relativo a História Natural, em recolher, preparar, e remeter a esta Corte tudo o que houver
de dirigir-se a ela, na conformidade dos exemplares das instruções, que a Academia das
Ciências de Lisboa publicou a este respeito.”176
Antes de atingir a costa oriental africana, Manoel Galvão desembarcou na Bahia,
sua capitania natal, onde realizou investigações mineralógicas.177 Depois seguiu para
Goa, localidade que permaneceu por dois meses e sobre a qual escreveu as Observações
sobre a História Natural de Goa. Ao chegar em Moçambique, iniciou os trabalhos como
secretário de governo, fez incursões pelas suas proximidades da Ilha e despachos
exemplares da flora e minerais.
Em 1786, seguiu para o Rios de Sena. Dos deslocamentos realizados a partir da
vila de Tete escreveu dois curtos diários: Diário ou relação das viagens filosóficas, nas
terras da jurisdição de Tete e em algumas dos Maraves e Diário das viagens feitas pelas
terras de Manica. No retorno para a Ilha de Moçambique, Manoel Galvão da Silva
envolveu-se com o tráfico de indivíduos escravizados. A documentação sobre a sua vida
é fragmentada. Possivelmente o comércio, junto com os cargos ocupados na burocracia
local, tenham se tornado prioridade na vida do naturalista depois de encerrada a expedição
nos Rios de Sena.
Na década de 1790, outro sujeito com atuação na recolha de informações sobre o
mundo natural e a geografia local foi Diogo de Sousa, governador-geral entre 1793-1797
e formado na Faculdade de Matemática de Coimbra.178 “D. Diogo de Sousa instou o
governador dos Rios de Sena a remeter uma relação topográfica das minas e uma
avaliação das suas riquezas, que, aduzia, eram de interesse vital para o ‘presente sistema’

176
AHU_CU_Moçambique, Cx. 40, doc. 50
177
Segunda Pataca, “o ponto inicial da viagem na Bahia, foi devido ao local ser um dos entrepostos das
grandes travessias oceânicas empreendidas entre Portugal e as colônias no Oriente.” Na Bahia, Manoel
Galvão recebeu como principal missão identificar se as amostras minerais encontradas na Vila da Cachoeira
“eram de cobre nativo ou se eram resquícios de utensílios de cobre de um antigo engenho de açúcar que
teria existido no local e tinha sido incendiado na época da invasão dos holandeses.” PATACA, Ermelinda.
Op. Cit. 2006. p. 361
178
Depois de atuar em Moçambique Dom Diogo foi nomeado governador-general do Maranhão e Piauí
(1798-1804). Ver: COSTA JÚNIOR, Flávio Pereira. Um Maranhão ilustrado?: história e natureza na
correspondência entre D. Rodrigo de Sousa Coutinho e D. Diogo de Sousa (1798-1801). Dissertação
(Programa de Pós-Graduação em História) - Universidade Federal do Maranhão, São Luís, 2016.
80

do ministério.”179 Além disso, segundo Gehrard Liesegang, Dom Diogo enviou para o
governador de Sofala um conjunto de perguntas que resultou no texto intitulado
“Respostas das questões sobre os cafres”. O documento reúne informações de cunho
etnográfico e a respeito da natureza de Sofala e enquadrava-se também nos esforços de
inventário próprio do campo da história natural setecentista.180
Cabe um parêntese para refletir sobre um termo muito utilizado pelos agentes
coloniais para se referir às populações africanas que residiam na África oriental
portuguesa e nas suas redondezas. No dicionário Rafael Bluteau a palavra “cafre” foi
definida como “homem rude, bárbaro, desumano, como os moradores da cafraria”.
“Cafra” como a “mulher da cafraria” e “cafrice” como “ação própria do cafre [...] suma
ignorância.” Para Charles Boxer, os portugueses “herdaram” a denominação dos árabes,
para os quais “cafre” significava “infiel”.181 Se no século XVIII o uso do termo estava
preenchido de conotação pejorativa, isso se acentuou nos séculos seguintes com a
ampliação dos discursos e práticas racistas na África austral de maneira geral.182 Na
presente tese somente utilizaremos a palavra quando for diretamente citada nas fontes
históricas.
Para o conhecimento cartográfico e das redes fluviais, a atuação de Francisco José
de Lacerda e Almeida (1797-1798) na África oriental portuguesa teve importância
significativa. Além de assumir o governo dos Rios de Sena, Lacerda e Almeida ia
encarregado de dar, como dissemos na introdução, a “particular incumbência de verificar

179
RODRIGUES, Eugénia. Op. Cit. 2017. p. 214
180
“Resposta das questões sobre os cafres” ou notícias etnográficas sobre Sofala do fim do século XVIII.
(Introdução e notas de Gerhard Liesegang). Lisboa: Junta de Investigações do Ultramar/Centro de Estudos
de Antropologia Cultural, 1966.
181
BOXER, Op. Cit. p. 55
182
A pesquisadora Margarita Correia, em artigo publicado em 2006, analisou como a discriminação racial
se faz presente em dicionários de língua portuguesa contemporâneo. Como justificou a autora: “é sabido
que o léxico de uma língua deixa transparecer o modo como a comunidade vê e conceptualiza o mundo que
a rodeia, nas suas diferentes vertentes. Desta forma, não é difícil entender que através do estudo do léxico
podemos ter uma ideia mais clara dos preconceitos de vária ordem (raciais, sexuais, religiosos, etc.) que
permeiam a sociedade.” CORREIA, Margarita. A discriminação racial nos dicionários de língua: tópicos
para discussão a partir de dicionários portugueses contemporâneos. Alfa, São Paulo, 50 (2): 155-171, 2006.
p. 155. Dentre as palavras que expressam o racismo construtivo das sociedades falantes da língua
portuguesa, a autora destaca “cafre”. No Dicionário Electrónico da Língua Portuguesa publicado em 2006
pela editora Porto, “cafre” é definido como “pessoa perversa, bárbara, ignorante ou sovina [...] dj. que não
presta; mal feito; de má qualidade”. Idem, p. 157
81

a possibilidade de comunicação das duas costas oriental e ocidental d´África.”183 Segundo


Maria Emília Madeira, até então a maioria das tentativas de travessia lusitanas tinham se
iniciado em Angola.184
O diplomata Dom Luís da Cunha foi o primeiro funcionário da Coroa portuguesa
a investir de maneira mais sistematizada no projeto de travessia do continente. Em 1725,
atuava como embaixador em Paris e chegaram-lhe notícias acerca das investidas
holandesas e inglesas na África Meridional, até então explorada de maneira quase
privativa pelos lusitanos. Como destacou Júnia Furtado, diante de uma preocupação que
lhe tirava o sono, reuniu textos de marinheiros, administradores coloniais, missionário,
dentre eles o de jesuíta Manuel Godinho intitulado Relação do Novo Caminho que fez por
Terra e Mar vindo da Índia para Portugal no ano de 1663. Em seguida, recorreu ao jovem
geógrafo francês Jean Baptiste Bourguignon D’Anville para a produção de um mapa que
projetasse a distância entre costa e contra costa africanas.
O geógrafo não visitou Angola, Moçambique e muito menos a porção de terra que
separava os dois domínios coloniais, mas valeu-se de informações de terceiros para a
produção da carta.185 D´Anville e Dom Luís apostavam na possibilidade de conexão
através dos rios. Levantaram a hipótese de que apenas cerca de 150 léguas ainda não
tinham sido percorridas pelos portugueses entre uma costa e a outra. Para Furtado, a
síntese cartográfica representa uma ruptura se comparada com antigos mapas, sendo
responsável por abrir as portas para o Imperialismo no século XIX na África. Amparado
na perspectiva de que somente poderiam ser incluídos dados que resultassem de
investigações in loco e da utilização de instrumentos matemáticos, o mapa deixou um
vasto espaço em branco no interior do continente, o que corroborou para a construção da
ideia de um suposto vazio a ser ocupado e explorado pelos países europeus.
Na década de 1770, o projeto foi retomado por Francisco de Inocêncio de Sousa
Coutinho, pai de Dom Rodrigo, quando se estabeleceu em Angola como governador-

183
COUTINHO, Dom Rodrigo de Souza. In: PEREIRA, Magnus; RIBAS, André (Org). Francisco José de
Lacerda e Almeida. Um astrônomo paulista no sertão africano. Curitiba: Editora da UFPR (Coleção
Ciência e Império), 2012.
184
SANTOS, Maria Emília Madeira. Op. Cit. 1988.
185
FURTADO, Júnia Ferreira. Oráculos da Geografia iluminista: Dom Luís da Cunha e Jean Baptiste
Bourguignon D’Anville a construção da cartografia do Brasil. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2012.
82

geral.186 Em diálogo com a proposta de Dom Luís, ele produziu uma Memória sobre as
vantagens que poderiam ser alcançadas com o estreitamento dos vínculos entre costa e
contra costa. Propôs a criação de uma Companhia para o comércio da Ásia e da África
oriental, que encaminharia as mercadorias (ouro, marfim, tecidos, missangas) para a costa
atlântica pelo continente, e não por mar. De acordo com Maria Emília Madeira Santos,
acreditava-se que, assim, “voltariam a florescer os estabelecimentos da Ásia e desviava-
se para Europa o ouro de Moçambique.”187
Inocêncio de Sousa Coutinho recuperou uma estratégia aventada pelo seu
antecessor, António de Vasconcelos, no final da década de 1750: investir no
reconhecimento do sul do Reino de Angola, sendo dessa região, e não dos rios Cuango e
Cuanza como previa o plano de Dom Luís, que deveria ter início a travessia.188 Em 1770,
enviou João Pilares da Silva para o litoral sul de Benguela para aprofundar o
conhecimento do território e expecular sobre a presença holandesa nas proximidades.
Dentre as possibilidades abertas por esse reconhecimento, Sousa Coutinho destacou “a
de ter com muita breviedade notícias importantes da Índia e de Moçambique, podendo
por este meio reduzir-se ao melhor governo de todas aquelas úteis regiões.”189

186
Inocêncio de Sousa Coutinho é reconhecido como um “governador ilustrado” que implementou em
Angola reformas econômicas e administrativas com este viés. Sobre o tema ver: SANTOS, Catarina
Madeira. Um governo polido para Angola. Reconfigurar dispositivos de domínio (1750-c.1800).
Dissertação de Doutoramento apresentada à École des Hautes Études en Sciences Sociales e à Faculdade
de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 2005. SANTOS, Catarina Madeira Santos.
De “antigos conquistadores” a “angolenses”. A elite colonial de Luanda no contexto da cultura das Luzes,
entre lugares da memória e conhecimento científico. Cultura [Online], Vol. 24 | 2007, posto online no dia
10 outubro 2013, consultado a 03 maio 2019. Para uma análise recente da implementação das fábrica de
ferro em Nova Oeiras a partir da perspectiva dos trabalhares africanos, bem com as suas conexões com os
projetos ilustrados ver: ALFAGALI, Crislayne Gloss. Ferreiros e fundidores da Ilamba. Uma história social
da fabricação de ferro e da Real Fábrica de Nova Oeiras. Angola, segunda metade do séc. XVIII. Campinas:
Tese de Doutorado em História – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas e Sociais, Unicamp, 2017.
187
SANTOS, Maria Emília Madeira. Viagens de exploração terrestre dos portugueses em África. Lisboa:
Centro de Estudos de História e Cartografia Antiga, 1978.
188
Carla Vieira sugere que poderia ser uma estratégia para fugir da barreira imposta pelo Jaga Caçaje: “As
barreiras impostas pelo Jaga Caçanje eram um entrave ao controlo integral do comércio no sertão pelo
Muatiânvua, o que, segundo refere David Bimingham, seria um dos principais sustentáculos da sua
autoridade. Desde os inícios do Setecentos que este chefe utilizava o comércio de escravos para adquirir
mercadorias de origem europeia, as quais se tornavam em autênticos símbolos de poder, limitando a sua
distribuição ao poder central. Porém, estas não vinham apenas do ocidente, por via do Caçanje e dos outros
sobas intermediários.” VIEIRA, Carla. Op. Cit. p. 97
189
Francisco de Inocência de Sousa Coutinho. Memórias do Reino de Angola e suas conquistas. Apud
VIEIRA, Carla. Op. Cit.
83

Na década seguinte, ainda partindo da costa ocidental, Barão de Moçâmedes


enviou, junto com uma expedição militar, os naturalistas José Maria de Lacerda e Joaquim
José da Silva também para o sul de Angola. Dentre as missões dos dois encontrava-se a
de investigar os rumos do rio Cunene, pois acreditava-se que ele poderia servir como via
para penetração para o sertão. Barão de Moçâmedes elaborou um roteiro detalhado a ser
seguido pelo grupo, deixando clara a articulação dos interesses políticos com os estudos
no campo da história natural e com as investigações acerca da possibilidade de realização
da travessia. Chegou, inclusive, a citar o antigo plano de Inocêncio de Souza Coutinho.190
Joaquim José da Silva foi despachado para Angola como naturalista e secretário
de governo no mesmo momento que Manoel Galvão seguiu para Moçambique, Alexandre
Rodrigues Ferreira para Amazônia colonial portuguesa e João da Silva Feijó para Cabo
Verde. Nos textos produzidos a partir da viagem para o sul de Angola, Joaquim José da
Silva questionou um mapa “não há muito tempo” publicado pelos holandeses que dava
“o nome de Cunene ao rio que desemboca ao sul de Cabo Negro, querendo dar a entender
que aquele rio corta este Cabo com uma largura própria dos grandes rios.”191
Argumentava que o autor da carta se enganara “sobre a posição geográfica da sua
desembocadura”, tendo ele “muitas razões” para persuadir-lhe do equívoco.
O naturalista não atingiu o rio Cunene, feito que lhe alçaria a condição de
testemunha ocular e daria mais crédito para questionar o mapa holandês, mas recorreu
aos conhecimentos dos naturais da terra para endossar a sua argumentação. Somando tais
notícias com conjecturas próprias do seu ofício, concluiu que só seria cabível supor que
a foz do rio Cunene “se ela existe nesta costa ou é muito ao sul de Cabo Negro ou cortando
aquele rio o país dos Hotentotes.”192 Em outro momento seria conveniente avançar mais
a marcha rumo ao sul para que “se consigam mais certas notícias do Cunene e da contra
costa.”193 Não deixou de notar que os habitantes com os quais teve contato utilizavam

190
AHU, códice 1642, ff. 54-61v. Doc. 14: 1785, Maio, 20. Luanda. Ordem do Barão de Moçâmedes para
a tropa transportada na fragata Luanda que se destina à exploração dos sertões de Benguela, foz do rio
Cunene e altura do Cabo Negro. In: VIEIRA, Carla Costa. Op. Cit. 2006. p 78
191
SILVA, Joaquim José da. Notícias sobre Cabo Negro, extraídas dos fragmentos da Viagem do Doutor
Joaquim José da Silva. O PATRIOTA, n 6. 1813.
192
Idem
193
Idem
84

objetos, tais como argolas de cobre, que pareciam ser provenientes do comércio com
povos residentes próximos da costa oriental.
José Maria de Lacerda também produziu um relato sobre a viagem. Ele endossava
a hipótese, recuperada por Francisco José de Lacerda e Almeida anos depois, do rio
Cunene ter ligação com o Zambeze. Bastaria seguir o curso de um ou de outro para, em
algum momento, a ligação se concretizar. Segundo registrou: o “vasto e fértil sertão de
Benguela” tinha como limite ao norte o “rio Aço perto do presídio das Pedras de
Ponguadongo e pelo sul limita no país dos Hotentotes muito além do cabo negro.” Já para
leste se estendia, segunda José Maria, até “Moçambique e Rio de Sena, com perto de
quinhentas léguas, havendo numa e noutra costa boa porção de terreno conhecido e
tratável.”194
José Maria asseverava que era “bem conhecido o rio Sena pela sua grandeza, pela
soberba das suas correntes e pela opulência das suas auríferas areias; mas a sua origem
ainda não está certamente descoberta e dele apenas sabemos, que descendo
do Monomotapa, lá vai desembocar com arrogância na costa de Moçambique onde temos
a nossa Quelimane.” Destacava ser mais conveniente que a “diligência tivesse o seu
princípio antes pelo rio Sena e Moçambique do que por Angola ou por Benguela.” Isso
porque, segundo projetava, o sertão a ser percorrido encontrava-se mais próximo das
povoações portuguesas instaladas na África oriental portuguesa, se comparado com
Luanda e Benguela. Dentre os requisitos para a escolha da pessoa capaz de executar a
missão constava o de saber usar os instrumentos matemáticos “para se tomarem as
dimensões e alturas da derrota.”195
Visconde de Sá da Bandeira afirmou, em 1844, que a Memória de José Maria
“pode ser considerada como um preliminar à relação da viagem feita pelo Dr. Lacerda e
Almeida, de Moçambique ao Cazembe.”196 Dom Rodrigo de Sousa teria se baseado nela
e nas outras informações reunidas a partir da costa ocidental para idealizar a possibilidade
de travessia, a utilizar sobretudo os rios, partindo da capitania dos Rios de Sena. A

194
Todos os trechos entre aspas do parágrafo: LACERDA, José Maria. Observação sobre a viagem da costa
desde Angola à Costa de Moçambique. Lisboa: Anais Marítimo e Coloniais, Imprensa Nacional, n 1, série
4ª, 1844. Disponível em: https://arlindo-correia.com/120109.html
195
Idem
196
Idem
85

experiência acumulada por Lacerda e Almeida nos sertões da América e a formação


científica foram determinantes para que lhe fosse confiada a missão. A
expansão/demarcação das fronteiras coloniais e o estreitamento dos vínculos entre as
capitanias ocupavam uma centralidade nos projetos de interiorização, tanto quanto a
recorrência a sujeitos com formação especializada para viabilizar tais projetos. Neste
processo, os rios eram protagonistas e havia um aproveitamento de experiências atreladas
a eles e aos conhecimentos que os circunscreviam. Posto isto, o projeto de travessia da
África Meridional dialogava não somente com os projetos anteriores com pretensões
semelhantes, mas também com as experiências de interiorização por rios levadas à cabo
na América.
A respeito dos “caminhos móveis” que supostamente permitiriam cruzar o
continente, segundo Júnia Furtado, ainda no século XVII “os portugueses atingiram a
nascente do rio Cunene, (1638) situada mais para o interior, na mesma altura do
estabelecimento situado na costa”197. Entretanto, houve dificuldade em definir o seu
curso. Até o século XIX acreditou-se ser possível penetrar rumo ao interior e atingir “as
cabeceiras do rio Zambeze, que, por sua vez, desaguava na costa oriental, em Quelimane,
um pouco ao norte de Sofala.”198 Francisco José de Lacerda e Almeida morreu sem saber
que o Cunene, na verdade, derramava suas águas no próprio Atlântico, e não dava acesso,
consequentemente, ao Zambeze.

197
FURTADO, Júnia Ferreira. Oráculos da Geografia iluminista: Dom Luís da Cunha e Jean Baptiste
Bourguignon D’Anville na construção da cartografia do Brasil. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2011.
198
Idem
86

Capítulo 2: Sujeitos em movimento: nascidos no Brasil, formados em


Portugal, em trânsito pelo Império

2.1 As expedições no ultramar como um divisor de águas nas trajetórias

O deslocamento pelas porções geográficas do Império colonial português marcou


a trajetória de inúmeros luso-brasileiros na época moderna. As rotas do comércio e a
nomeação para cargos na malha administrativa da Coroa ou na hierarquia da Igreja
católica motivou os deslocamentos destes sujeitos para o reino, para as conquistas em
África e Ásia ou entre as distintas capitanias da América portuguesa. Como observou o
historiador Magnus Pereira, os comerciantes, eclesiásticos, militares e administradores
“tinham em seu universo de referências um quadro espacial muito maior e completamente
diferente daquele que a historiografia dos séculos XIX e XX nos acostumou.”199
Na segunda metade do setecentos, a circulação de um grupo pequeno de homens
com formação no campo científico – adquirida nas Faculdades de Matemática e Filosofia
da Universidade Coimbra reformada e com trânsito nas academias militares e de ciência,
nos laboratórios de física e química, nos gabinetes de história natural e nos jardins
botânicos – tornou-se frequente e estratégica. O domínio da linguagem, de técnicas e
ferramentas provenientes de campos como o da história natural, matemática, astronomia,
geometria foram transformados em requisitos valorizados para a formação dos quadros
administrativos.
Tratava-se de um perfil desejado pela burocracia da Coroa, onde ganhava
destaque, além da formação de cunho ilustrado, o envio de gente nascida na própria
colônia para atuar no universo das conquistas. No entanto, segundo Magnus Pereira e Ana
Lucia Cruz, com exceção de alguns, como Alexandre Rodrigues Ferreira que foi foco de
estudos aprofundados, a documentação legada pelos letrados luso-brasileiros fora
utilizada com frequência, mas de forma pouco específica, “no mais das vezes em citações

199
PEREIRA, Magnus. Um Brasil imperfeito ou de como a África foi vista por brasileiros em finais do
século XVIII. Curitiba: Anais da V jornada Setecentista, 26 a 28 de fevereiro, 2003. p. 355
87

como o intuito de descrever alguma vila, ilustrar as atividades econômicas ou ressaltar os


costumes do passado de uma dada região do país.”200
Além disso, ganharam vulto as interpretações que associaram os desdobramentos
da atuação desses luso-brasileiros com a Independência do Brasil. Os trabalhos de Maria
Odila da Silva Dias e Fernando Novais encontram-se entre os que, se valendo dessa
associação, alcançaram importante projeção no universo acadêmico brasileiro.201 Novais,
ao abordar alunos egressos de Coimbra, considerou que as “reformas ilustradas” não
deram conta de aliviar as crescentes tensões sociais e acabaram por estimular o
inconformismo dos colonos.
Como alertou Magnus Pereira, “se o conhecimento acumulado sobre o Brasil,
nesse período, e os diagnósticos produzidos sobre suas potencialidades viriam a fomentar,
posteriormente as ideias de Independência, não é verdade que esta perspectiva estivesse
colocada desde o início.”202 Os letrados nascidos no América portuguesa estiveram
afinados com as políticas metropolitanas, as quais “sem perder de vista a questão do
aproveitamento econômico dos produtos coloniais, visava ao objetivo mais amplo de
alinhar-se às demais potências europeias em termos de produção de conhecimento
científico sobre o mundo natural.”203
Ainda relacionando à atuação dos primeiros grupos formados em Coimbra com a
emancipação política brasileira, encontram-se os estudos de Kenneth Maxwell. Ao se
valer do conceito de “geração de 1790”, vinculando-o aos letrados que tiveram sua
formação no contexto da ilustração europeia, destacaram a atuação dos mesmos no
reconhecimento das potencialidades naturais do Brasil e no desenvolvimento de ideias
separatistas.204 Ao se ancorarem nos feitos políticos desses homens, demarcada pela

200
PEREIRA, Magnus Roberto de Mello e Cruz, Ana Lúcia Rocha. A história de uma ausência: os colonos
cientistas da América portuguesa na historiografia brasileira. In: FRAGOSO, João, Florentino; MANOLO,
Jucá, Antônio Carlos e Campos, Adriana (org.), Nas rotas do Império: eixos mercantis, tráfico e relações
sociais no mundo português. Vitória e Lisboa, EDUFES e IICT, 2006. p. 360.
201
DIAS, Maria Odila da S. Aspectos da Ilustração no Brasil. Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, Rio de Janeiro, v.278, 1968. NOVAIS, Fernando A. Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema
colonial (1777/1808). São Paulo; Hucitec, 1985.
202
PEREIRA, Magnus; CRUZ, Ana Lúcia. Op. Cit. p. 370
203
Idem, p. 368
204
MAXWELL, Kenneth. A geração de 1790 e a ideia do império luso-brasileiro. In: Chocolates, piratas
e outros malandros: ensaios tropicais. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999.
88

inserção na burocracia estatal, foram colocadas em segundo plano suas contribuições no


campo das ciências.
Para Iara Lis Schiavinatto, consolidou-se a tendência de demarcar as conexões
“com a Economia Política, com a razão de Estado, com suas formas de sistematização e
de encarar o mundo e menos com a história natural e o apreço despertado por ela ao
constituir também e consistentemente um sistema de interpretação do universo que ia da
natureza à civilização.”205 Trata-se “de não recusar o conceito geração de 1790, mas de
não retomá-lo enquanto chave interpretativa única a delimitar a sociabilidade e as relações
desta camada luso-brasileira.”206
Nos interessa analisar os documentos legados das expedições científicas de
Alexandre Rodrigues Ferreira, Francisco José de Lacerda e Almeida e Antônio Pires da
Silva Pontes os inserindo em uma lógica de produção de conhecimento que estava
articulada, como abordado no capítulo anterior, às demandas políticas e econômicas
coloniais. Entendemo-los como parte deste projeto. E não somente como consequência,
ou seja, como produções intelectuais que tiveram seus resultados “sacrificados” pelas
atuações nos quadros burocráticos da monarquia. Estamos diante de homens integrados
aos anseios de elaborar, recorrendo ao estudo da natureza e dos territórios, estratégias
para garantia da pujança do Império.
Embora do ponto de vista da historiografia essas afirmações não sejam
inovadoras, é relevante que estejam evidentes ao leitor, pois são “filtros” construtivos e
articuladores das fontes em foco. Os matemáticos e o naturalista inseriam-se num
emaranhado de forças e relações características de uma sociedade de Antigo Regime. Não
eram eles os únicos envolvidos na reunião de informações acerca da flora, fauna,
populações, minerais, dos rios e das terras. De todo modo, desempenhavam um papel de
destaque na cadeia produtora de conhecimento. Sabedores do papel desempenhado
recorreram, sempre que precisaram ou desejavam, às experiências acumuladas nas

205
SCHIAVINATTO, Iara Lis. Entre escritos, impressos, imagens: aspectos da cultura visual. Lisboa/Rio
de Janeiro. 1770-1830. São Paulo: Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH, julho 2011.
p. 18
206
Idem, p. 17
89

expedições científicas para angariar mercês, ordens, pensões e emprego junto à majestade
real.207
Em meio à documentação correspondente às trajetórias dos viajantes estudados, é
possível identificar um esforço de narrar os próprios feitos numa tentativa de promover
“uma ordenação de si”.208 Ganhava destaque nas narrativas a fidelidade à Coroa e,
sobretudo, os feitos nas expedições e os “perigos” aos quais estiveram expostos no
ultramar. Criava-se, assim, um “expediente biográfico”, retomado e repetido a posteriori
quando se reconstruiu a “história oficial” do grupo tido como um dos primeiros sujeitos
nascidos no Brasil a percorrer, com fins científicos e em missão oficial, os domínios
coloniais lusitanos.209
Nesse processo, as expedições científicas realizadas nas décadas de 1780 e 1790
funcionaram e eram recuperadas como um divisor de águas, como um elemento fundante
de suas histórias de vida. As experiências adquiridas nos deslocamentos foram
fundamentais na definição das atividades profissionais para as quais estes letrados foram,
posteriormente, designados. No mais, como destacou Schiavinatto:

Tais viagens filosóficas no mundo português neste período levantaram um


volume impressionante de objetos naturais, artefatos, escritos, relatórios,
mapas, planos de população e desenhos no ciclo de acumulação de
conhecimento que denota a importância do trabalho de campo e não se
restringe à avaliação do conhecimento apenas em função de seus resultados -
nos termos de Bruno Latour. Em Lisboa e em Coimbra, não tiveram
necessariamente as informações coligidas, retrabalhadas e reprocessadas em
seu todo. Produziram, contudo, um novo patamar de observação e informação
que alterou a percepção do mundo das conquistas e ajudou a formar uma
consciência da natureza brasílica em várias suas localidades e, em simultâneo,
uma consciência planetária.210

207
RAMINELLI, Ronald. Viagens Ultramarinas; monarcas, vassalos e governo a distância. São Paulo:
Alameda Casa Editorial, 2008.
208
Ângela de Castro Gomes considera a “escrita de si” como um fenômeno que ganhou expressão a partir
do século XVIII, associando tal movimento ao processo de individualismo. GOMES, Ângela de Castro
(org). Escrita de si, escrita da História. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004
209
Como “história oficial” pensando, principalmente, na recuperação, no século XIX, do Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro dos luso-brasileiros envolvidos no universo ilustrado português do setecentos.
Vistos a partir da perspectiva da nação em construção, tiveram suas trajetórias narradas e escritos
publicados. As expedições científicas eram recuperadas como centrais em suas trajetórias. Ver as biografias
de Antonio Pires da Silva Pontes, Francisco José de Lacerda e Almeida e Alexandre Rodrigues Ferreira
publicadas na RIHGB. Para uma análise historiográfica sobre o tema, ver: PEREIRA, Magnus R. M. e
CRUZ, Ana Lúcia Rocha Barbalho da. Os colonos cientistas da América Portuguesa: questões
historiográficas. Revista de História Regional 19(1): 7-34, 2014.
210
SCHIAVINATTO, Iara Lis. Op. Cit. 2017.
90

Nos tópicos a seguir serão abordadas as trajetórias dos viajantes-cientistas em


foco. A ênfase recairá nos períodos em que realizaram os deslocamentos analisados ou se
dedicaram a sintetizar os resultados destas experiências. O mapeamento dos documentos
produzidos nas expedições científicas serviu como estratégia para recompor os itinerários
das viagens. Como já mencionado, os nomes próprios de Alexandre Rodrigues Ferreira,
Francisco José de Lacerda e Almeida e Antonio Pires da Silva Pontes funcionaram ainda
como fios condutores para reunirmos fontes históricas dispensas em publicações e
manuscritos salvaguardados em arquivos portugueses e brasileiros. Na medida do
possível, procuramos identificar quando e onde cada texto foi produzido.

2.2. Alexandre Rodrigues Ferreira: um “observador da máquina do mundo”

Dentre os letrados contemplados nesta tese, Alexandre Rodrigues Ferreira foi o


que mais atenção recebeu de estudiosos de distintas áreas. Desde o século XIX, a
trajetória do naturalista tem sido foco de reflexões, sendo variadas as perspectivas e os
propósitos assumidos pelos autores que sobre ela dissertaram. Não cabe aqui mapear tudo
o que foi produzido sobre Rodrigues Ferreira, mas sim trazer elementos de sua vida, em
diálogo com parte dessa produção, que contribuam para o entendimento dos seus escritos,
deslocamentos pelas capitanias do Pará, Rio Negro e Mato Grosso e Cuiabá e do diálogo
estabelecido com as demais trajetórias abordadas neste estudo.
Nascido em 27 de abril de 1756, pertencia a uma próspera família de comerciantes
da Bahia. Segundo William Simon, “seu pai, Manoel Rodrigues Ferreira, era um
negociante e possivelmente um mercador de escravos.”211 Foi na capitania de seu
nascimento que teve acesso ao estudo das primeiras letras, bem como aos ensinamentos
religiosos que o encaminhavam ao sacerdócio. De acordo com o sócio da Academia Real
das Ciências de Lisboa, Manoel José Maria da Costa e Sá, um dos primeiros a escrever
sobre a sua vida e obra, vendo o pai “que os talentos do filho mereciam mais ampla
desenvolução, assentou promove-lo fazendo-o seguir os estudos maiores: para o que teve

211
SIMON, Willian Joel. Op. Cit. 1983. p. 23
91

que atravessar o oceano a fim de na Universidade de Coimbra seguir o curso


Acadêmico.”212
Rodrigues Ferreira chegou a Lisboa em julho de 1770, junto com o irmão
Bartolomeu Rodrigues Ferreira.213 Meses depois seguiu para Coimbra onde inscreveu-se
na cadeira do Instituto, curso preparatório para o ingresso nos estudos maiores. 214 Teve
as aulas interrompidas no ano seguinte devido à reforma universitária que, dentre tantas
outras coisas, definiria os futuros rumos de sua vida profissional e inserção nos quadros
da burocracia da Coroa. Reaberta a Universidade, optou por se matricular na recém-criada
Faculdade de Filosofia, sendo um dos estudantes da primeira turma. Tal como seus
contemporâneos Silva Pontes e Lacerda e Almeida, acompanhou parte das discussões
sobre a reforma universitária e possivelmente a escolha da profissão estivesse atrelada à
expansão dos interesses pela história natural em Portugal, em particular, e na Europa, de
forma geral.
Em Coimbra, o futuro naturalista foi indicado pelo mestre Domingos Vandelli
para atuar como Demonstrador de História Natural na Universidade de Coimbra, função
desempenhada até concluir o curso, em 1778.215 No mesmo ano, Vandelli o apontou como
um dos sujeitos habilitados a receber treinamento para a realização de uma Viagem
Filosófica nos domínios coloniais portugueses. A princípio seria ele o responsável por
chefiar uma equipe formada por outros naturalistas, riscadores e jardineiros, a qual
percorreria o norte da América portuguesa. Antes de partir permaneceu cinco anos em
Lisboa, envolvido na organização das coleções de história natural remetidas de distintas
regiões do reino e das conquistas coloniais para o Museu e Jardim Botânico da Ajuda.216

212
O texto foi publicado três anos depois do falecimento de Alexandre Rodrigues Ferreira e, além de
enaltecer sua trajetória, procurou reunir a obra do naturalista. No final do elogio há uma lista dos escritos
de Ferreira, os quais foram acessados através de um inventário entregue na ocasião da morte de Ferreira
para o professor de Coimbra Felix Avelar Brotero. SÁ, Manuel José Maria da Costa e. Elogio do doutor
Alexandre Rodrigues Ferreira. Memórias da Academia Real das Sciencias de Lisboa. Lisboa, tomo V, parte
1ª, 1817. p. LVII
213
SIMON, Op. Cit. 1983.
214
COSTA E SÁ, Op. Cit. 1817
215
No ano seguinte, Rodrigues Ferreira retornou para Coimbra para receber o grau de doutor em Filosofia.
216
No Complexo da Ajuda, Rodrigues Ferreira contribuiu com a elaboração do texto intitulado “Método
de recolher, preparar, remeter, e conservar os produtos naturais segundo o plano, que tem conhecido e
publicado alguns naturalistas, para uso dos curiosos que visitam os sertões, e a consta do mar”, sendo
distribuído pelas autoridades coloniais no ultramar. O material visava estimular a recolha e remessa de
produtos naturais por amadores.
92

Realizou também viagens por Portugal: uma delas na companhia do naturalista João da
Silva Feijó, com o objetivo de examinar a mina de carvão em Buarcos, e outra com o
jardineiro chefe do Complexo da Ajuda, Júlio Matiazzi, para as imediações de Setúbal a
fim de empreender investigações mineralógicas.
Em 1780, foi admitido como sócio correspondente da Academia Real das Ciências
de Lisboa. Segundo Manoel José Maria da Costa e Sá, contribuiu com três memórias
antes de seguir viagem: uma sobre as Matas de Portugal, outra sobre o abuso da
cronologia em Lisboa, para servir de introdução a Teologia dos vermes e a terceira com
o título Exame da planta medicinal, que como nova aplica e vende o Licenciado Antonio
Francisco da Costa, Cirurgião Mór do Regime da Cavalaria de Alcantara.217
Dos naturalistas treinados no Complexo da Ajuda, Rodrigues Ferreira foi o único
enviado naquele momento para a Amazônia colonial portuguesa como chefe de uma
expedição composta por dois desenhistas, José Joaquim Codina e Joaquim José Freire, e
um jardineiro botânico, Agostinho do Cabo.218 Em 1783, a bordo do navio Águia e
Coração de Jesus, o grupo, responsável por realizar em quase uma década um inventário
da natureza e dos habitantes das capitanias do Grão-Pará, São José do Rio Negro e Mato
Grosso e Cuiabá, cruzou o oceano Atlântico. Na mesma embarcação seguiram o Frei
Caetano Brandão e Martinho de Souza e Albuquerque, nomeados, respectivamente, bispo
e governador e capitão geral do Grão-Pará.
A equipe composta pelo naturalista, por desenhistas e pelo jardineiro botânico
trouxe consigo “uma cozinha de campanha, um laboratório portátil, apetrechos de caça e
pesca, uma arca de medicamentos e uma biblioteca.”219 Dentre as obras, indispensáveis,
mas consideradas por Ferreira insuficientes para tamanha empreitada científica, “continha
11 livros, um mapa da bacia fluvial amazônica, e uma cópia manuscrita do Diário da
viagem filosófica na Capitania de São José do Rio Negro (1774-75), do ouvidor Francisco

217
SÁ, Manuel José Maria da Costa e. Op. Cit. 1817. p. LXIII
218
O zoólogo suíço Emílio Goeldi, ao referir-se à missão recebida por Rodrigues Ferreira, sustentou que
“uma cadeira na Faculdade de Filosofia lhe estava destinada, mas ao descaso próprio do magistério foi
preferido outra comissão prenhe de trabalhos, eriçada de dificuldade, mas em que o sábio naturalista podia
prestar serviços mais relevantes ao Estado, a ciência e ao seu país natal.” GOELDI, Emílio. Alexandre
Rodrigues Ferreira. Belém: Editores Alfredo Silva & Cª, s/d. p. 6
219
SIMON, Op. Cit. 1983. p. 30
93

Xavier Ribeiro de Sampaio, que foi posteriormente publicada pela Academia Real de
Ciências de Lisboa (1825).220
De história natural da América, carregavam os textos dos viajantes Piso e
Marcgraf e “outros livros contemporâneos sobre agricultura”.221 Destacavam-se ainda os
escritos de Carlos Lineu: “Systema naturae, Genera plantarum e Species plantarum.”222
Durante a viagem, o naturalista teve contato com outros textos, como os escritos do
francês Charles La Condamine e o diário do padre Samuel Fritz, consultados em
Barcelos/Rio Negro, e a Histoire naturelle de Buffon, acessado em vila Bela na biblioteca
do secretário de governo do Mato Grosso.223
Em Belém, Martinho de Souza e Albuquerque acolheu os membros da expedição
no palácio do governador e os proveu em termos materiais o grupo.224 Sem a menor
demora, deu ordens para o deslocamento para a Ilha Grande de Joanes, o que ocorreu em
novembro de 1783. Permitiu ainda que o naturalista e a sua equipe o acompanhasse na
viagem para o rio Tocantins, em janeiro do ano seguinte, com passagens pelas vilas de
Cametá e Alcobaça.225
Valendo-se das observações feitas em Belém e ilhas adjacentes neste momento
inicial da viagem, Rodrigues Ferreira produziu alguns textos, entre eles: Notícias
históricas da Ilha de Joanes ou Marajó, Miscelânia histórica para servir de explicação
ao prospecto da cidade do Pará e Memória sobre os engenhos de branquear arroz no
Estado do Pará. Além disso, realizou investigações sobre a possibilidade do cultivo de
cânhamo na cidade e semeou sementes em locais apropriados.226 Antes de iniciar a
viagem pelo rio Amazonas rumo a capitania de São José do Rio Negro, fez remessas de
produtos naturais para o Complexo da Ajuda, em Lisboa.

220
Idem, p. 30
221
Ibidem, p. 30
222
Ibidem, p. 30
223
RAMINELLI, Ronald. Ciência e colonização - Viagem Filosófica de Alexandre Rodrigues Ferreira. Rio
de Janeiro, Revista Tempo, n.6, p.157-182, 1998. p. 160
224
O governador foi designado por Rodrigues Ferreira como o segundo patrono da viagem filosófica, sendo
o primeiro Martinho de Melo e Castro e o terceiro João Pereira Caldas, nomeado para o governo da capitania
do Mato Grosso e Cuiabá e encarregado da execução do tratado preliminar de limite e demarcação dos reais
domínios. Roteiro das viagens que fez pelas capitanias do Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá...
225
Idem
226
Martinho de Melo e Castro, em ofício ao governador do Pará, destacou que o naturalista levara consigo
sementes de Cânhamo para serem plantadas em locais que julgarem apropriado. AHU_ ACL_CU_013,
Cx.90, D.7340. 29 de agosto de1783.
94

A primeira, em outubro de 1783, de um caixão de madeira. A segunda no mês de


dezembro do mesmo ano de quatro caixões grandes de madeira, duas frasqueiras e uma
gaiola com uma anta e uma capivara vivas; a terceira, em 24 de março de 1784, de dois
caixões de madeira e oito barris; a quarta, em 2 de setembro, de dois caixões, uma caixa
de folha de flandres, um cilindro e uma frasqueira.227 Os produtos foram preparados com
o auxílio do jardineiro Agostinho do Cabo e dos indígenas Cipriano de Souza e José da
Silva, os quais, devido aos serviços prestados foram promovidos “em Alferes dos índios
das suas povoações.”228
Em carta direcionada a Martinho de Melo e Castro, datada de meados de 1784,
quando permanecia em Belém à espera da embarcação e dos índios remadores para seguir
para o Rio Negro, Rodrigues Ferreira destacou a intensidade dos seus trabalhos, o que
vinha lhe gerando danos à saúde. Depois de uma longa caminhada debaixo de um “calor
ardentíssimo” sobreveio-lhe uma “sufocação”, seguida de palpitações e dores no
estômago. Lamentava-se do fato de alguns sujeitos colocarem em dúvida a sua moléstia:
“no parecer do médico do hospital eu não tinha outra coisa mais que melancolia”, notícia
que se espalhou pela cidade, chegando alguns moradores a tê-lo por “cismático, outros
por melancólico e alguns por pateta.”229 Ferreira, porém, atribuía ao excesso
“curiosidade” a sua moléstia: “quero saber tudo em tão pouco tempo, dizem os Oráculos,
quero pedras, quero plantas, quero animais, quero histórias.”230
As atividades dos riscadores José Joaquim Codina e Joaquim José Freire foram
igualmente intensas no período de permanência em Belém. Segundo Ermelinda Pataca,
na estadia de um ano, produziram vinte e quatro prospectos, dezoito desenhos de animais
e sessenta e nove de plantas. O traçado urbano e as edificações da cidade ocuparam um
tempo estendido dos desenhistas, o que estava articulado ao projeto de transformar Belém
em uma cidade com papel chave na administração da região amazônica.231 Para a autora,

227
Roteiro das viagens que fez pelas capitanias do Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá...
228
Idem
229
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Documentos coligidos e pref. por Américo Pires Lima. Lisboa:
Agência Geral do Ultramar, 1953. p. 130
230
Idem, p. 131
231
“No início dos Setecentos, a cidade já havia assumido uma “função cêntrica [...], posicionada entre
mundo “civilizado” europeu e o interior amazônico.” No entanto, foi com a transferência da sede
administrativa do Estado para a localidade, em 1751, que a centralidade de consolidou. SANJAD, Nelson.
Ciência e poder imperial no Grão-Pará: da expansão à desconstrução (1750-1840). IN: KURY, Lorelai;
95

“a urbanização se associa a todo um contexto reformista, englobando a agricultura, o


comércio, as manufaturas, a náutica, envolvendo a população nas demandas por mão-de-
obra. A cidade sintetizava as relações sociais e culturais, assim como projetos políticos e
econômicos do Estado do Grão-Pará.”232
Uma vez concluída a construção de uma embarcação própria para realização da
Viagem Filosófica para a capitania de São José do Rio Negro, o naturalista seguiu junto
aos demais membros da expedição, em julho de 1784, de Belém até a baía de Marajó.
Cerca de três meses depois iniciou a navegação para o interior por meio do rio Amazonas
– passando por povoações situadas em suas margens e deslocando-se para rios menores,
igarapés e furos – até alcançar a vila de Monte Alegre. Ali permaneceu por dezenove dias,
“tendo visitado por terra a Serra do Payotuna e todas as imediações daquele distrito.”233
Em seguida, partiu para a vila de Santarém e atingiu a foz do rio Tapajós no dia
10 de dezembro, onde explorou as suas imediações. Continuou a navegar pelo rio
Amazonas, até atingir a boca do rio Madeira. Daí partiu para a foz do rio Negro, onde
visitou a Fortaleza da Barra. Em fins de fevereiro de 1785, passou pela vila de Moura e
no mês seguinte pela de Poyares. Recolheu-se em março na vila de Barcelos, capital do
Rio Negro. Permaneceu por cinco meses na localidade, tempo que dedicou em
“acondicionar os produtos recolhidos durante a viagem” e a organizar seus escritos.234
No percurso trilhado pelo rio Amazonas e suas imediações, Alexandre Rodrigues
Ferreira fez anotações sobre a flora, a fauna e os grupos indígenas. Parte destas
observações foram posteriormente transformadas em Memórias, ou seja, em reflexões
mais elaborados e detidas em único tema. Pode-se citar a Memória sobre as cuias que
fazem as índias de Monte Alegre e Santarém, Memória sobre as salvas de palhinha que
fazem as índias da vila de Santarém, Memória sobre o peixe pirarucu, de que já se
remeteram dois da vila de Santarém para o Real Gabinete de História Natural, Memória

GESTEIRA, Heloisa (Orgs). Ensaios de História das Ciências no Brasil: das luzes à nação independente.
Rio de Janeiro: EDUERJ, 2012. p. 226
232
PATACA, Ermelinda Coutinho. Mobilidades e permanências de viajantes no Mundo Português. Entre
práticas e representações científicas e artísticas. São Paulo: Tese de Livre Docência, Universidade de São
Paulo/ Faculdade de Educação, 2015. p. 142
233
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Roteiro das viagens que fez pelas capitanias do Pará, Rio Negro,
Mato Grosso e Cuiabá...
234
Idem
96

sobre as variedades de tartarugas que há no Estado do Grão-Pará e do uso que lhe dão,
Memória sobre os jacarés do Estado do Grão-Pará, Memória sobre o peixe-boi e do uso
que lhe dão no Estado do Grão-Pará. Ele fez também recolhas de exemplares dos três
reinos da natureza e de produções humanas. Há o registro de que deixou pronta a quinta
remessa feita do Grão-Pará, no dia 10 de janeiro de 1785, contendo oito caixões de
madeira.
Na capitania de São José do Rio Negro, a expedição recebeu a proteção do então
comissário da quarta divisão de limites de fronteira, João Pereira Caldas, a quem
Rodrigues Ferreira designou como terceiro patrono Viagem Filosófica.235 Pereira Caldas
garantiu “uma decente acomodação para ele e para os mais empregados” e o beneficiou
com os conhecimentos que possuía sobre a região. Ele confiou ao naturalista produtos
naturais que havia recolhido e “editais, portarias, avisos, cartas circulares e particulares
expedidas por S. Exa e pelos seus predecessores sobre as diferentes repartições e
demarcações e dependências da população da agricultura, do comércio, da navegação e
manufatura do Estado.”236 Segundo Ronald Raminelli, para deslocar-se e escrever
pelo/sobre a capitania do Rio Negro, Rodrigues Ferreira “recorreu aos relatórios de
Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio (1774-1775), Teodósio Constantino de Chermont
(1720), José António Landi (1755) e informações transmitidas por Manuel Gama Lobo
d’Almada (1787)”237
O mapa a seguir contempla a viagem entre as capitanias do Pará e do Rio Negro
pelo rio Amazonas, além de demonstrar os deslocamentos realizados a partir de Belém
(1783 e 1784) e partindo de Barcelos (1784 a 1787), dos quais falaremos adiante. Foi
elaborado pela geógrafa Gislaine Faria, tendo como base as informações reunidas a partir

235
João Pereira Caldas teve expressiva atuação política na América portuguesa na segunda metade do
século XVIII. Segundo Fabiano Villaça dos Santos, “na historiografia, aparece como um dos mais ativos
agentes da colonização nas conquistas do Norte, tendo se destacado não só na estruturação da capitania do
Piauí, mas também na execução de um arrojado plano de recuperação econômica do Estado na década de
1770 e, posteriormente, nas demarcações do Tratado de Santo Ildefonso.” SANTOS, Fabiano Villaça. Uma
vida dedicada ao Real Serviço João Pereira Caldas, dos sertões do Rio Negro à nomeação para o Conselho
Ultramarino (1753-1790). VARIA HISTÓRIA, Belo Horizonte, vol. 26, nº 44: p.499-521, jul/dez 2010. p.
501
236
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Expedição Philosophica pelas Capitanias do Pará, Rio Negro, Mato
Grosso e Cuyabá. Documentos do Museu Bocage de Lisboa [antigo Museu da Ajuda]. Introdução por
Carlos Almaça. Lisboa: Kapa Editorial, 2002. p. 209
237
RAMINELLI, Ronald. Op. Cit. 1998. p. 160
97

do roteiro da viagem da expedição de Rodrigues Ferreira e o mapa elaborado para o


trabalho de Willian Simon na década de 1980. Parte dos trajetos, tracejados e
diferenciados por cores e datas, foram percorridos também por Lacerda e Almeida,
Antonio Pires da Silva Pontes e/ou outros membros da Comitiva de Demarcação de
Fronteira entre 1780 e 1781. A exceção mais substancial refere-se à ida do naturalista
para o rio Tocantins, a acompanhar o governador da capitania e demais autoridades,
enquanto esperava que fossem reunidas as condições materiais para o início da incursão
para o sertão.

Elaborado pela geógrafa Gislaine Garcia de Faria utilizando o Software Qgis.


Informações reunidas pela autora da tese, tendo como base a cópia do roteiro de viagem
das viagens que fez pelas capitanias do Pará, Rio Negro e Mato Grosso e o mapa
elaborado por Willian Simon, em 1983.
98

Em meados de 1785, João Pereira Caldas recomendou que a expedição se


deslocasse da vila-capital de Barcelos para a parte superior do rio Negro até atingir a
Fortaleza de São José de Marabitanas. As instruções recomendavam ainda a navegação
pelos rios “o Aracá, pouco superior a esta vila da parte setentrional; o Padauari e o
Cauaburis, da mesma parte; e o Uaupés, Içana e Ixié da parte meridional; e dela os dois
últimos vizinhos à nossa fronteira e fortaleza de Marabitanas.”238 No início do ano
seguinte, o naturalista recebeu a ordem de percorrer a parte inferior do mesmo rio, até
atingir a sua foz, de modo a ficar completa a “história de todo o rio Negro.” A expedição
aproveitaria a “conjuntura [para] passar ao rio Branco” e, ao percorrê-lo, observaria as
povoações situadas em suas margens.239
Rodrigues Ferreira descreveu a viagem de Barcelos para a Fortaleza de
Marabitanas na primeira parte no Diário da Viagem Filosófica pela capitania de São José
do Rio Negro. Subdividiu tal relato em sete participações, nas quais contemplou os
percursos majoritariamente por vias fluviais e os pontos de parada. Na primeira delas,
narrou o deslocamento entre Barcelos e a povoação de Moreira, na segunda de Moreira
para Thomar, na terceira de Thomar para Lamalonga, na quarta de Lamalonga para Santa
Isabel, na quinta de Santa Isabel para Fortaleza de São Gabriel, na sexta desta Fortaleza
para a de Marabitanas e na sétima o retorno para a capital da capitania do Rio Negro.
Depois de permanecer cerca de um trimestre em Barcelos – a organizar os diários
e produtos recolhidos – o naturalista colocou-se novamente em movimento, com objetivo
de dar prosseguimento às ordens de João Pereira Caldas. O trajeto para a parte inferior do
rio Negro e para o rio Branco foi executado entre abril e julho de 1786. Resultou na
segunda parte Diário da Viagem Filosófica pela capitania de São José do Rio Negro,
dividida em seis participações. A primeira, que ocupou praticamente metade do
manuscrito, foi dedicada a traçar uma detalhada análise das condições históricas e naturais
da vila de Barcelos, concedendo destaque ao papel central ocupado nos processos de
interiorização dos interesses coloniais e de demarcação de fronteira. Nas demais
participações (da segunda a quinta), o naturalista utilizou estratégia narrativa semelhante

238
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Expedição Philosophica pelas Capitanias do Pará, Rio Negro, Mato
Grosso e Cuyabá. Documentos do Museu Bocage de Lisboa [antigo Museu da Ajuda].. Kapa Editorial,
2002. p. 210
239
Idem, p. 210
99

à apresentada na primeira parte do diário, ou seja, demarcou o seu deslocamento de


povoação a povoação: de Barcelos a Poiares, de Poiares a Carvoeiro, de Carvoeiro a
Moura, de Moura a Airão, de Airão a Fortaleza da Barra.
Nas duas partes do diário forneceu “uma breve, se bem que circunstanciada
informação do estado presente de cada vila ou lugar.”240 Narrou as condições de vida e
as atividades dos habitantes das povoações visitadas (índios, brancos e negros), as
moradas e demais construções (como as igrejas), o perfil das autoridades locais
(principalmente dos vigários e diretores), as práticas agrícolas, de comércio e as
manufaturas. Apresentou ainda, de cada uma delas, um mapa populacional. Ao seguir a
recomendação de Pereira Caldas, concedeu especial atenção à produção de anil,
destacando que este deveria ser um dos produtos privativos da capitania, junto com o café
e o tabaco.241
Ganharam igualmente destaque as críticas tecidas à política de descimento dos
índios levada a cabo pela Coroa portuguesa desde a instituição do Diretório pombalino.
Rodrigues Ferreira considerava problemática a instalação de povoações próximas aos
locais originários dos índios descidos, uma vez que “como está posto a povoação na boca
do rio de onde desceu, sobe a dissuadir os outros que ficaram”242. Além de alegar que a
liberdade não era algo atraente para tais povos, pois “absolutos e livres em todo o sentido
são eles no mato; quanto ao sustento e vestido corre por conta da natureza.”243 Como
destacado pela historiadora Patrícia Melo,

Nas últimas décadas do século XVIII, o estado de decadência da Capitania do


Rio Negro já havia sido atestado pelo naturalista Alexandre Rodrigues
Ferreira, que o atribuiu, em primeiro lugar, à indolência dos naturais e à falta

240
FERREIRA, Alexandre R. Diário da Viagem Filosófica pela Capitania de São José do Rio Negro: com
a informação do estado presente. In: FERRÃO, Cristina; SOARES, José Paulo Monteiro (Orgs.). Viagem
ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira. Rio de Janeiro: Kapa Ed., 2007. v. 3. p. 84
241
Os escritos de Alexandre Rodrigues Ferreira sobre a forma mais adequada de cultivar o anil na Capitania
do Rio Negro associam-se à premissa “de que a história natural permitiria e instrumentalizaria o
conhecimento de uma determinada planta e, caso ela fosse bem entendida pelo plantador, pelo fazendeiro,
pelo camponês, qualquer um deles saberia como bem aproveitá-la nas devidas condições locais e, dentro
dessa lógica, a geração da riqueza decorreria consequentemente desse conhecimento básico e fundamental,
originado na história natural e que teria máxima utilidade para o estado monárquico.” SCHIVIANATTO,
Iara. Op. Cit. 2017. p. 47-48
242
FERREIRA, Alexandre R. Diário da Viagem Filosófica pela Capitania de São José do Rio Negro: com
a informação do estado presente. Rio de Janeiro: Kapa Ed., 2007. v. 3
243
Idem, p. 161
100

de trabalhadores provocada pelo reduzido número de escravos negros, pela


grande quantidade de expedições de índios, pela interrupção dos descimentos
e, por fim, pelo impacto das epidemias. Além destas, acrescentava a recusa dos
europeus em dedicar-se ao trabalho, aos movimentos das demarcações, à
hostilidade dos índios, às prioridades para os negócios do sertão, à
multiplicidade dos gêneros e à inutilidade dos administradores. 244

O naturalista ressaltava, assim, a necessidade de se elaborar estratégias mais


eficazes para a instalação “definitiva” dos índios nas povoações portuguesas e do aumento
dos escravos africanos nas capitanias interioranas. Como constatou Ermelinda Pataca, a
decadência das povoações da capitania do Rio Negro foi diagnosticada por Ferreira, sendo
que “a polaridade entre o estado de abandono que conduzia à degeneração e ruína, poderia
ser redimida num processo civilizatório de domesticação e ordenamento natural, assim
como de inserção dos indígenas no trabalho agrícola.”245
Embora as informações de cunho político e administrativo ocupem um espaço
preponderante no diário, Alexandre Rodrigues Ferreira não abandonou as atribuições de
naturalista. Lorelai Kury, ao destacar os debates fomentados por pesquisadores da história
da ciência, rebateu interpretações que consideram que o acúmulo de atividades e a
imbricada relação com os assuntos políticos e econômicos atrapalharam os resultados
científicos das viagens financiadas por Portugal.246 Há no diário de viagem pelo Rio
Negro registros de recolhas de produtos naturais e produções humanas, de recomendações
dadas aos riscadores para realizarem desenhos de plantas e animais, de instruções de
técnicas de plantio e de avaliações a respeito de tentativas de cultivo e de aclimatação de
plantas na Amazônia.
Ainda que ganhe destaque a interlocução com obras como a do ouvidor e
intendente Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio, Rodrigues Ferreira recorreu ao sistema
de classificação de Lineu e citou o diário de viagem do naturalista francês La Condamine.
O trecho da obra de Lineu escolhido para principiar o diário, a partir do qual expressava
o “método e os objetivos” da viagem, nos parece representativo dos anseios do naturalista
de contribuir com os progressos das ciências, articulando-os aos interesses políticos e
econômicos, como era de praxis:

244
SAMPAIO, Patrícia Maria Melo. Op. Cit. 2011.
245
PATACA, Ermelinda. Op. Cit. 2015. p. 198
246
KURY, Lorelai. Op. Cit. 2008. p. 81
101

O seu método consistirá em reunir por escrito o que for perceptível e útil: a
Geografia, a Física, a Litologia, a Botânica, a Zoologia, a Economia, a Política,
os costumes, as antiguidades... O objetivo será conhecer melhor a natureza,
ajustando o conhecimento natural das plantas, dos animais e das pedras ao
influxo do sistema mundano e aos usos da humanidade. (Lineu. Phyl. Bot.)

A respeito do deslocamento ao rio Branco, Rodrigues Ferreira produziu os textos


intitulados Diário do Rio Branco e o Tratado Histórico do Rio Branco. No primeiro,
narrou a navegação pelo rio e seus afluentes, apontou a passagem pelo pesqueiro da real
demarcação, as povoações situadas em suas margens e as nações indígenas que habitavam
as redondezas. No segundo, realizou uma análise dos estabelecimentos portugueses na
região do alto rio Branco, onde foi instalada a Fortaleza de São Joaquim, com localização
estratégica para barrar a passagem de estrangeiros.
Segundo o documento de registros das partidas e chegadas de Rodrigues Ferreira,
entre março e maio de 1787, ele deslocou-se somente para os rios Aracá e Solimões. No
último, percorreu 60 léguas de modo a reconhecer as “produções naturais da parte inferior
daquele rio, evitando encontrar com a partida espanhola que estava na parte superior para
objeto das Demarcações.”247 Retornou a Barcelos e por cerca de um ano dedicou-se a
“escrever não só as observações botânicas e zoológicas, senão também algumas
produções geográficas e hidrográficas de todas as sobreditas viagens.”248 Parece ter sido
esse um dos momentos mais produtivos da vida de Rodrigues Ferreira no que se refere à
escrita de Memórias.
Chamam atenção em especial os inúmeros textos, acompanhados de desenhos, a
respeito das diferentes nações indígenas que habitavam a Amazônia: Memória sobre o
gentio Cambeba que habitava as margens e nas ilhas do Solimões, Memória sobre os
gentios Uerequena que habitam os rios Içana e Xiê, afluentes do rio Negro, Memória
sobre o gentio Caripuna que habitava na margem ocidental do rio Jatapu, Memória
sobre a figura que tem os gentios Mahuas, habitadores do rio Cumiari e seus confluentes,
Memória sobre o gentio Mura, Memória sobre explicações de ambos os desenhos da
planta do alçado em perspectiva de cada uma das malocas dos gentios Curutus, Memória
sobre as máscaras e camisetas que fazem os gentios Yurupixunas, Memória sobre a

247
Roteiro das viagens que fez pelas capitanias do Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá...
248
Idem
102

nação Catauixi que habita as margens do rio Purus, Memória sobre o gentio Miranha
que habitam a margem setentrional do rio Solimões, Memória sobre os índios espanhóis
que se apresentaram na vila de Barcelos, Memória sobre as máscaras e farsas que fazem
para os seus bailes dos gentios Yurupixunas.
Instalado na vila-capital do Rio Negro, dedicou-se também a organizar e remeter
as coleções que coletara nos deslocamentos. De Barcelos foram enviados, em diferentes
datas, para Lisboa, um total de noventa e quatro caixões de madeira, oito caixas de folhas
de flandres, um cilindro, dezoito frasqueiras, dezessete barris, quatro gaiolas com cobras
vivas e outros animais, somando um total de centro e quarenta e dois itens.249 Assim como
no período de viagem e permanência no Pará, os riscadores trabalharam de forma intensa
na capitania de São José do Rio Negro. No ano de 1785, foram remetidos da última
localidade para o reino dezessete prospectos, vinte nove animais, cinquenta plantas; em
1786: trinta e oito prospectos, dezessete animais e cento e setenta plantas; em 1787:
dezesseis prospectos, dezoito animais e noventa e nove plantas.
O naturalista permaneceu em Barcelos até receber ordens expressas de partir para
a capitania do Mato Grosso, onde deveria se dedicar, sobretudo, às investigações de cunho
mineralógicos. Além de aventar a possibilidade de retornar para Portugal sob a
justificativa da necessidade de estudar com maior profundeza os materiais reunidos, o
naturalista propôs-se, assim que cumpridas as ordens de percorrer o rio Negro, Branco e
adjacências, a navegar rumo ao rio Japurá ou ao Madeira.250 No entanto, em 30 de janeiro
de 1788, chegou até Barcelos a carta que dava ordens para Rodrigues Ferreira seguir,
acompanhado dos riscadores e jardineiro botânico, para a capitania do Mato Grosso a
partir do rio Madeira.
Em fins de agosto de 1788, a expedição chefiada por Rodrigues Ferreira partiu
para vila Bela, tendo como primeiro desafio percorrer 243 léguas do rio Madeira e vencer
doze cachoeiras. A ordem para dirigir-se da capitania de São José do Rio Negro para a do
Mato Grosso havia chegado do reino meses antes, mas foi necessário mais de um semestre
para a organização da viagem. Como observado pela historiadora Maria de Fátima Costa,
“novas embarcações rigorosamente adequadas às necessidades dos trabalhos naturalistas

249
Idem
250
Roteiro das viagens que fez pelas capitanias do Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá...
103

foram construídas; porém, a grande dificuldade consistia em arregimentar uma tripulação.


Não se conseguiam os índios remeiros.”251
No mapa a seguir foi abordado o trajeto trilhado entre Barcelos e vila Bela entre
1787 e 1788. Para a sua elaboração pela geógrafa Gislaine Faria foram reunidas
informações a partir do roteiro da viagem da expedição de Rodrigues Ferreira e do mapa
elaborado para o trabalho de Willian Simon na década de 1980. Anos antes, entre fins de
1781 e início de 1782, a Comissão de Demarcação de Fronteira fizera o mesmo percurso.
Para organização do novo deslocamento Rodrigues Ferreira recorreu os suprimentos,
pessoal e embarcações utilizados pelos demarcadores.252 O tracejado em preto demonstra
uma viagem entre vila Bela, situada bem na fronteira, e Cuiabá. A linha vermelha mostra
o retorno da equipe para Belém, uma vez completa a Viagem Filosófica.

251
COSTA, M. de Fátima. Alexandre Rodrigues Ferreira e a capitania de Mato Grosso: imagens do interior.
História, Ciências, Saúde. Manguinhos, vol. VIII (suplemento), 993-1014, 2001. p. 1001
252
FERREIRA, Alexandre Rodrigues Ferreira. Documentos coligidos e pref. por Américo Pires Lima.
Lisboa: Agência Geral do Ultramar, 1953. p. 224
104

Elaborado pela geógrafa Gislaine Garcia de Faria utilizando o Software Qgis.


Informações reunidas pela autora da tese, tendo como base a cópia do roteiro de viagem
das viagens que fez pelas capitanias do Pará, Rio Negro e Mato Grosso e o mapa
elaborado por Willian Simon, em 1983.

A experiência demonstrava que se tratava de um trecho com alto índice de


mortalidade. Diante disso, João Pereira Caldas, além de comunicar-se com o governador
e capitão geral do Mato Grosso, preocupou-se em criar uma rede de apoio para acudir o
grupo com suprimentos e pessoal: “todos os núcleos populacionais do trajeto, desde a
Vila de Barcelos, localizada às margens do rio Negro, até Forte Príncipe da Beira, última
parada antes de chegar a vila Bela, foram informados da passagem da expedição.”253 Sem
essa rede a viagem dificilmente se completaria.

253
Idem, p. 1001
105

Uma vez vencidas as cachoeiras do rio Madeira, a expedição de Rodrigues


Ferreira ainda enfrentou mais cinco delas no rio Mamoré, até finalmente atingir a foz do
rio Guaporé e o Forte do Príncipe da Beira. Daí o grupo seguiu rumo à vila Bela, onde
chegou em 3 de outubro de 1789. Foram 13 meses e 18 dias de viagem marcados por
inúmeros percalços, dentre eles o adoecimento da tripulação e as inúmeras deserções dos
índios que compunham a tripulação.
Em relação às enfermidades, o naturalista relatou em carta destinada a Martinho
de Melo e Castro que o riscador Joaquim José Codina foi o primeiro que sofreu de graves
sezões logo na entrada do Mamoré. Na sequência, ele próprio e o outro desenhista José
Joaquim também adoeceram chegando aos termos de ficarem “ambos sepultados no
barreiro do sítio dos Garajus.”254 Por fim, depois de seis dias da chegada à vila Bela,
“acometido de uma tão forte corrupção que a nenhum remédio da arte obedeceu”, faleceu
Joaquim do Cabo, o jardineiro botânico.255
No Mato Grosso, Rodrigues Ferreira empreendeu três deslocamentos centrais,
além de dedicar-se à organização do material e à escrita de textos, dentre eles as
Observações gerais e particulares sobre a classe dos mamais observados nos territórios
dos três rios das Amazonas, Negro e da Madeira. Ermelinda Pataca destacou que
“consiste na síntese de tudo o que já havia observado no que respeita à zoologia em sua
expedição, com uma avaliação sobre o grau civilizacional dos indígenas, incluindo-os
numa cadeia geral dos seres.”256
O historiador Ronald Raminelli corrobora com tal visão: “as observações sobre os
mamíferos são, sem dúvida, o mais aprofundado e erudito estudo do naturalista.
Alexandre Rodrigues Ferreira recorreu às principais autoridades da História Natural, além
de diversos relatos e crônicas sobre a América.”257 Na parte específica que abarcou os

254
Segundo Maria de Fátima Costa, Rodrigues Ferreira fazia “referência com este termo a uma das formas
de cura então usada naquelas remotas paragens.” Idem, p. 1002
255
Correspondências ativa, passava e indireta (1788-1818). Documentos da Fundação Biblioteca Nacional
e Instituto Histórico e Brasileiro. In: FERRÃO, Cristina; SOARES, José Paulo Monteiro (Orgs.). Viagem
ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira. Rio de Janeiro: Kapa Ed., 2007. v. 2. p. 70
256
PATACA, Ermelinda. Op. Cit. 2015. p. 146
257
RAMINELLI, Ronald. Viagens Ultramarinas; monarcas, vassalos e governo a distância. São
Paulo: Alameda Casa Editorial, 2008. pp. 115 e 116
106

seres humanos, deu ênfase às características do homem americano (tapuia), estabelecendo


diálogo com autores como Lineu, Buffon e Robertson.
Como um dos principais propósitos da viagem ao Mato Grosso era empreender
investigações no campo da mineralogia, em fevereiro de 1790, Ferreira deslocou-se para
Serra de São Vicente e examinou as lavras de ouro localizadas em suas proximidades. A
partir dessa experiência foi produzido um prospecto da serra e “um minucioso relatório
no qual descreveu a qualidade dos diversos tipos de ouro, as formas de extração, assim
como as condições gerais de cada lugar, fornecendo dados sobre população, condições de
saúde e formas de produção agrícola.”258 Em meados do mesmo ano deu início ao
deslocamento por terra rumo a Cuiabá, cumprindo as ordens de João de Albuquerque
Pereira Cáceres. “No caminho, deveria visitar os arraiais auríferos de Lavrinha, São Pedro
Del-Rei (Poconé) e minas circunvizinhas, Cocais e Lavras do Jessé, analisando-as e
recolhendo amostras para as reais coleções portuguesas.”259 Ao concluir as investigações
nas regiões auríferas, seguiu para o presídio de Nova Coimbra a utilizar embarcações
específicas para navegar em região pantanosa. Quando atingiu o presídio notou que, além
da sua edificação ser ruim, a localização não era apropriada para defender o território
português das possíveis penetrações espanholas: “como V. Exe. me tem sempre permitido
a liberdade de falar na sua presença o que filosoficamente sinto, até eu mesmo, que de
fortificação nada entendo, notei os inauferíveis defeitos que aquela tem.”260
Próximo ao presídio, visitou uma gruta descoberta pelos demarcadores anos antes,
a respeito da qual produziu um pequeno texto que foi acompanhado por um desenho. A
gruta, denominada de inferno, impressionou o naturalista que comparou o local com um
teatro ornado “no gosto da arquitetura gótica”, chegando a dizer que ali a natureza “tinha
preparado o maravilhoso espetáculo” que recompensava o perigo que corria com o seu
trabalho.261 No mesmo deslocamento, o naturalista e o grupo que coordenava cruzaram
com onze índios Guaikuru, reconhecidos pela habilidade em cavalgar. Deu notícias a João
Pereira Cáceres sobre a propensão da nação em estabelecer amizade com os portugueses.

258
COSTA, Maria de Fátima. Op. Cit. 2001. p. 1003
259
Idem, p. 1003
260
Gruta do inferno: descrição feita pelo Dr. Alexandre Rodrigues Ferreira, em Cuiabá (1789). Revista
do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, t. 4, 2ª ed. (1863), p. 363-367. p. 383
261
Idem, p. 366
107

Por fim, examinou três grandes baías pantaneiras, Gaiba, Uberava e Mandioré e navegou
pelo rio Jaurú, donde voltou por terra para Vila Bela.262
No retorno para a sede do governo do Mato Grosso, a expedição começou a
organizar a viagem de volta para a cidade do Pará, a qual teve início em outubro de 1791.
Depois de percorrerem “762 léguas de marcha em retirada”, em janeiro de 1792,
atingiram Belém. O retorno para o reino não foi imediato, o naturalista ainda navegou 15
léguas pelo Rio Guamá “para observar o fenômeno da pororoca”, visitou mais uma vez a
Ilha de Joanes e escreveu o texto intitulado Propriedade e posse das terras do Cabo Norte
pela Coroa de Portugal deduzida dos Anais Históricos do Estado do Maranhão e de
algumas memórias e documentos por onde se acham dispersas as suas provas. Com
importante caráter estratégico, buscou comprovar “que as terras do Cabo do Norte,
situadas entre o Rio das Amazonas e o Oyapok ou Vicente Pinçon são privativas da Coroa
de Portugal e soberanamente se mostra de Direito de fato.”263
Em junho de 1801, o documento foi enviado por Rodrigues Ferreira para Dom
Rodrigo de Souza Coutinho, junto com as “cartas originais do canal boreal da entrada do
Rio da Amazonas e da Ilha Grande de Joanes.”264 Ele alertava D. Rodrigo para os riscos
de ocupação por parte dos franceses na entrada do rio Amazonas. Como conhecedor do
território afirmava que, caso isso se efetivasse, Portugal podia dar “adeus a praça de
Macapá, com ela toda a margem boreal do rio das Amazonas, adeus [a] Ilha Grande de
Joanes, com ela toda a subsistência dos moradores da cidade do Pará; e adeus índios,
negros, escravos e soldados descontentes.”265
Concluía que o desenrolar político na Europa demonstrava que Portugal, por si só,
não graduaria “na escala política das nações, se não de uma potência da última ordem.
Porém ali no Brasil, ainda na última extremidade de ser obrigado a refugiar-se nele. Ali,
[...] mutatis mutandis, tem Portugal sobejamente, com que vir a ser um florentíssimo

262
Roteiro das viagens que fez pelas capitanias do Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá. Manuscrito
pertencente a Faculdade de Ciências de Lisboa. Consulta Centro de Documentação e Pesquisa dos
Domínios Portugueses (CEDOPE), Departamento de História, Universidade Federal do Paraná.
263
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Propriedade e posse das terras do Cabo Norte pela Coroa de Portugal
deduzida dos Anais Históricos do Estado do Maranhão e de algumas memórias e documentos por onde se
acham dispersas as suas provas. Por Alexandre Rodrigues Ferreira. Pará, em 24 de abril de 1792. Biblioteca
Nacional do Rio de Janeiro, catálogo da expedição Alexandre Rodrigues Ferreira, nº 10521, nº 160.
264
Idem
265
Idem
108

Império.”266 Esse contato evidencia como D. Rodrigo recorreu ao conhecimento


acumulado na Viagem Filosófica para levar a cabo seu projeto de Império, no qual a
manutenção do mundo colonial era essencial.
Antes de retornar para Lisboa, Rodrigues Ferreira casou-se com Germana Pereira
de Queiroz. Era ela filha do capitão Luiz Pereira da Cunha, seu correspondente e
responsável por enviar remessas de produtos da natureza coletados no interior amazônico
para corte. Em carta endereçada a Martinho de Melo e Castro, Ferreira descreveu seu
futuro sogro como um homem “muito bem versado nas coisas do país, onde está há trinta
anos, com notável curiosidade e paixão por essas averiguações”, além de ser “dono do
melhor engenho de descascar arroz” da capitania do Pará, localizado na Ilha de Cotijuba
e cujo desenho havia remetido. Com Dona Germana, Rodrigues Ferreira viveu até a morte
e teve três filhos, sendo ela a responsável por repassar para Félix Avellar Brotero os
escritos do naturalista na ocasião de seu falecimento.
Em outubro de 1792, o governador do Grão Pará informou que no navio Príncipe
da Beira embarcou o naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira depois de uma década de
permanência na América. Seguiram com ele os dois desenhadores, José Joaquim Freire e
Joaquim José Codina, e “os dois índios capitães das suas povoações e que acompanharam
esta expedição como preparadores, indo agora a buscar na proteção de Vossa Excelência
a remuneração que devem esperar.”267 Em janeiro do ano seguinte o grupo aportou em
Lisboa.
Alexandre Rodrigues Ferreira foi nomeado oficial da Secretaria do Estado dos
Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos, na sequência foi liberado dos serviços
para se dedicar à administração e à direção do Real Gabinete de História Natural e Jardim
Botânico da Ajuda e mais estabelecimentos anexos. Recebeu a condecoração do hábito
da Ordem de Cristo; no documento, assinado por D. Maria, foram reconhecidos os seus
feitos no norte do Brasil e admitiu-o como o “primeiro vassalo português, que exercitara
a empresa de naturalista”. No início do oitocentos foi designado, sem abandonar as

266
Idem
267
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Correspondências ativa, passiva e indireta (1788-1818).
Documentos da Fundação Biblioteca Nacional e Instituto Histórico e Brasileiro. In: FERRÃO, Cristina;
SOARES, José Paulo Monteiro (Orgs.). Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira. Rio de Janeiro:
Kapa Ed., 2007. v. 2. p. 30
109

atividades no complexo da Ajuda, administrador das Reais Quintas de Queluz, Caxias e


Bemposta e Deputado da Real Junta de Comércio.
Um dos temas de discussão entre os estudiosos que se debruçaram sobre a
trajetória de Rodrigues Ferreira relaciona-se à não publicação do seu extenso legado após
o retorno para Lisboa. José Maria de Costa Sá considerou que quando o naturalista
retornou a Portugal “as ciências na Europa já não se achavam no mesmo ponto que
deixara”. Enquanto o naturalista “gastara o melhor dos anos no estudo nos desertos da
América”, muito se avançou no estudo da natureza.

Os Buffons e Lineos tinham herdeiros, se não êmulos do seu espírito. A


química na revolução nova que fizera, aparecia com outro talhe, rica em
descobertas decisivas e grandes: os três reinos da natureza achavam-se
consideravelmente aumentados. Os resultados da terceira e infeliz expedição
do Capitão Cook, os fragmentos de outra não menos desgraçada La Peyrouse,
as pesquisas curiosas e sábias de um Dr. Pellas nos vastíssimos territórios do
Império Russiano [sic]; as viagens de Sparman, Peterson, Tumberg e Vaillant
na extremidade meridional da África; as de um Bertrand ao Septentrião da
América, as que os Espanhóis fizeram nas suas duas Américas; os trabalhos
científicos das Sociedades Literárias e de todos os sábios da Europa; e tantas
outras obras haviam aparecido, que o vasto domínio das ciências naturais se
tinha extraordinariamente dilatado, e tomando um aspecto mais vivo, novo e
desconhecido. 268

Não achava faltar talentos ao letrado luso-brasileiro, mas sim saúde e estabilidade
política no reino, principalmente a partir da ocupação francesa e do início da
fragmentação de seu acervo. Já Emílio Goeldi afirmou que houve, na primeira metade do
século XIX, em Portugal, ao menos uma tentativa de publicação dos resultados da
viagem, ficando prontas, inclusive, algumas gravuras. Mas o zoólogo suíço, mesmo
reconhecendo o pioneirismo da expedição do naturalista, destacou a fragilidade de sua
produção intelectual, o que atribuía a insuficiente formação no campo das ciências da
natureza recebida em Coimbra.269

268
SÁ, Manuel José Maria da Costa e. Op. Cit. 1817.
269
Ronald Raminelli, autor de importante estudo no qual procurou compreender de forma articulada as
Viagens Filosóficas realizadas no Império colonial português na segunda metade do século XVIII, retomou
a ideia da debilidade científica portuguesa. Para o historiador, a “fragilidade científica era recorrente em
quase todos os estudos produzidos no ultramar o que indicava a debilidade das instituições científicas da
metrópole, o esvaziamento da Universidade, museus e academias, particularmente depois dos anos 1790.”
A carreira de Rodrigues Ferreira forneceu a ele “elementos irrefutáveis da mencionada debilidade
científica.” Além disso, Raminelli considerou que as atividades científicas em Portugal estiveram
associadas à busca por mercês e pela inserção na burocracia estatal: “coincidência ou não, Ferreira teve seu
110

O que A. R. Ferreira deixou de manuscrito sobre zoologia e botânica é de


pequeno calado científico. Nota-se a mesma cousa como nas memórias
etnográficas: não há eixo fixo, sólido, ao redor do qual se agrupem e se
coordenem naturalmente as ideias. Nunca aprofunda qualquer questão de
anatomia, de embriologia, de sistemática ou de distribuição geográfica. Não
pode passar por especialista nem em zoologia, nem em botânica, nem em
mineralogia ou geologia.270

De acordo com Lorelai Kury, “a especialização do trabalho dos naturalistas


acompanha as formações de um campo científico com características modernas, que se
dá exatamente no final do século XVIII e início do XIX.”271 Posto isto, Goeldi, ao
escrever entre fins do oitocentos e início do novecentos, possuía clareza das divisões
disciplinares, o que não estava posto para Rodrigues Ferreira em fins do setecentos. Nos
escritos do luso brasileiro, como de outros estudiosos do período, os diferentes campos
dos saberes sobrepunham-se e tinham um caráter enciclopédico, pois “os homens da
ciência daquela época não possuíam um ethos que os afastasse, por exemplo, da
política.”272
Outros dois argumentos nos parecem mais produtivos para explicar o adiamento
da publicação dos escritos de Rodrigues Ferreira. No primeiro deles, aventa-se a
possibilidade dos textos terem permanecido em manuscritos para “esconder” a Amazônia
portuguesa da cobiça dos estrangeiros.273 O segundo relaciona-se à conjuntura política,
marcada pela ocupação francesa e transferência da Corte para o Rio de Janeiro, em 1808.
Como assegurou Neslon Sanjad, neste momento ocorreu uma redefinição do projeto
Imperial.
A centralização política e administrativa no centro-sul, “onde os interesses eram
outros e havia questões mais pungentes a merecer atenção, com a unidade do Império e
as relações internacionais, significou, a um só tempo, o esvaziamento político do Grão-

período mais produtivo durante a viagem, ou antes de alcançar os títulos e os cargos almejados. Evidencia-
se, então, o emprego da história natural como dom, serviço e crédito para futuras mercês. Depois de alcançar
essas benesses, sua produtividade como naturalista entrou em processo de queda.” RAMINELLI, Op. Cit.
2008. p. 157
270
GOELDI, Emílio. Op. Cit. p. 89
271
KURY, Lorelai. Op. Cit. 2008. p. 81
272
Idem, p. 81
273
Ângela Dominguess, Ermelinda Pataca e Lorelei Kury chamam atenção para este aspecto em suas
reflexões.
111

Pará e o abandono da expansão e consolidação das fronteiras imperiais.”274 A extensa


coleção que resultou da Viagem Filosófica pode, ao menos nas primeiras décadas do
século XIX, ter perdido a centralidade ocupada em outrora. Alexandre Rodrigues Ferreira
faleceu em Lisboa, em 1815, num período ainda marcado por instabilidades no mundo
luso-brasileiro. Não viu, portanto, as publicações de seus escritos iniciadas na segunda
metade do oitocentos.

2.3. Antonio Pires da Silva Pontes Leme: um matemático versado em história


natural

Francisco Adolfo de Varnhagen, no final do oitocentos, em duas breves biografias


de “letrados ilustres” nascidos na América portuguesa no século anterior, chamou atenção
para a imbricada relação entre as trajetórias de Francisco José de Lacerda e Almeida e
Antonio Pires da Silva Pontes Leme. Há de se concordar com o membro do IHGB que
falar de um era também falar do outro, pois parte suas vidas foram compartilhados.275 De
todo modo, não se pode perder de vista que Varnhagen escrevia em um contexto fundante
da história oficial do Brasil. Dar um lustre nacional às histórias de vida de luso-brasileiros
que atuaram no período colonial, sobretudo os que transitaram por circuitos ilustrados,
fazia parte das estratégias mobilizadas nas narrativas historiográficas que correspondiam
aos interesses das elites, na ocasião, já brasileiras.
Nascido em 1749, na freguesia de Nossa Senhora do Rosário, comarca de
Mariana/Minas Gerais, Antonio Pires da Silva Pontes era filho do capitão José da Silva
Pontes e de Mariana Dias Paes Leme, ambos naturais de Minas. Deste casamento, além
do personagem abordado, nasceram mais três filhos: José Pires da Silva Pontes, Ignácia
Feliciana da Silva Pontes e Maria da Silva Pontes. Sua mãe teve a origem familiar
identificada por Flávia Kurunczi Domingos.
Um de seus antepassados, Pedro Leme, deslocou-se de Portugal para São Vicente.
Desta localidade, “outro descendente da família, o bandeirante e Capitão-Mor Fernão

274
SANJAD, Nelson. Op. Cit. 2012. p. 226
275
Biografias dos Drs. Francisco José de Lacerda Almeida e Antonio Pires da Silva Pontes, por Francisco
Adolfo de Varnhagen. Revista IHGB - Tomo XXXVI - Parte Primeira, 1873.
112

Dias Paes Leme, partiu, em 1674, em busca da “Serra das Esmeraldas” rumo ao lugar no
qual, em 1720, seria criada a Capitania de Minas Gerais, e onde, também, nasceria
Mariana Dias Paes Leme.”276 Tratava-se de uma família envolvida com a interiorização
da colônia, com o enriquecimento associado à mineração e ao angariamento de patentes
militares.277
A seguir o exemplo de outras famílias abastadas, Silva Pontes foi enviado para
Portugal, em 1769, para ter acesso ao ensino superior. Antes, contudo, foi estudante do
Seminário de Mariana, instituição destinada à formação de padres e a fornecer ensino
preparatório para o ingresso na Universidade a quem tivesse condições de custear os
estudos. O estabelecimento de ensino foi fundado pelo primeiro bispo de Mariana, o
jesuíta Dom Frei Manual da Cruz, em 1750, diante da demanda de ter na capitania um
espaço para formar o corpo eclesiástico. Poucos anos depois a Companhia de Jesus foi
expulsa do Império. O Seminário de Mariana funcionou de forma irregular até as
primeiras décadas do século XIX, quando foi tomado como foco de disputas entre
liberais-moderados e conservadores da província.278
Caso Antonio Pires da Silva Pontes não tenha acompanhado o debate em torno do
reformismo ilustrado português em Minas Gerais, certamente ele o acompanhou em
Coimbra. O fato dele ter desistido da Faculdade de Cânones e se matriculado na recém
criada Faculdade de Matemática, a compor junto com Francisco José de Lacerda e
Almeida a primeira turma do curso superior, nos parece um sintoma do momento de

276
DOMINGOS, Flávia Kurunczi. Matemática a serviço do Império: A trajetória do demarcador Antônio
Pires da Silva Pontes Leme (1777-1790), 2008. Dissertação (Mestrado em Mestrado Em História) -
Universidade Federal de Mato Grosso, 2008. p 28
277
“Em Minas Gerais, as atividades da família de Antônio Pires se concentrariam em cargos militares –
capitães de cavalaria – inclusive seu pai e irmão mais velho chegaram ao posto de capitão-mor.” Idem, p.
28
278
Em minha dissertação estudei as disputas políticas, religiosas e educacionais em torno do Seminário de
Mariana nas décadas de 1820 e 1830. Verifiquei que os embates estiveram associados à redefinição dos
poderes políticos e religiosos no contexto de autonomização do Brasil, mas também aos conteúdos que
seriam ensinados à mocidade mineira. Antonio José Ribeiro Bhering, padre-político e lente filosofia, foi
expulso do quadro de professores do colégio pelo bispo Dom Frei José da Santíssima Trindade, acusado de
ensinar “novidades filosóficas”. Além de defensor da liberdade de imprensa e do constitucionalismo,
Bhering julgava fundamental que se ensinasse as “ciências modernas”, incluindo a história natural, na
instituição. Sabemos que há rupturas fundamentais entre fins do século XVIII e início do XIX, mas há
também permanências no que confere ao debate em torno da educação e das ciências iluminista.
ALMEIDA, Gabriela Berthou. Jogos de poderes: o Seminário de Mariana como espaço de disputas
políticas, religiosas e educacionais. Campinas, Mestrado em História, Unicamp, 2015.
113

mudanças. Doutorou-se cinco anos mais tarde, quando foi nomeado matemático e
astrônomo real e indicado para integrar a terceira partida da Comissão de Demarcação de
Fronteira na América. Depois de receber treinamento sob a supervisão do professor
Antônio Siera, partiu para Belém, onde chegou em 26 de fevereiro 1780.
No mês de agosto, os comissários seguiram para a capitania de São José do Rio
Negro. Somente a partir da chegada na vila de Barcelos temos notícias do início da
sistematização em forma de diário por Silva Pontes. De Barcelos o matemático partiu, em
janeiro de 1781, conjuntamente com o engenheiro Ricardo Franco de Almeida Serra, para
explorar o curso do rio Branco. Durante a viagem, com duração de cerca de quatro meses,
produziu o texto intitulado Breve diário ou memória do rio Branco e de outros que nele
desaguam e desenhou um mapa.279 O relato foi remetido ao naturalista Alexandre
Rodrigues Ferreira, que o utilizou em suas incursões pelo mesmo rio poucos anos
depois.280
Silva Pontes concedeu especial atenção aos rumos e às medidas do rio Branco e
de seus afluentes e aos desafios referentes à navegação apresentados em trechos
específicos. Não deixou, no entanto, de tratar de outros assuntos, como da moléstia que o
acometeu no percurso, da abundância de peixes, das povoações indígenas com as quais
cruzou e das relações comerciais estabelecidas entre a nação Caripuna e os holandeses.
Lembrou da passagem do viajante francês La Condamine pela região.
Retornou para Barcelos e da localidade partiu quatro meses mais tarde para o Mato
Grosso. Foi a partir do trajeto para essa capitania que ele produziu a maior parte de seus
textos e imagens, a começar pelo detalhado diário no qual narrou o percurso entre a vila
de Barcelos e a vila Bela.281 Neste documento, Silva Pontes dedicou-se a relatar as
medições de latitude e longitude dos locais visitados. No entanto, chama atenção seu
empenho em descrever os animais, as plantas e os minerais, recorrendo ao sistema de

279
Este diário foi publicado em 1841 na coletânea financiada pela Assembleia Legislativa de São Paulo.
280
Breve diário ou memória do Rio Branco e de outros que nele desaguam, consequente a diligência e mapa
que deste rio se fez no ano de 1781. Coleção Alexandre Rodrigues Ferreira proveniente da Coleção [Lagos].
CEHB Nº 148. ABN v 72, p. 128. Cat. ARF nº 145 – cópia do manuscrito, constam correções de Alexandre
Rodrigues Ferreira e anotações Drummond.
281
PONTES, Antonio Pires da Silva. Diário de Viagem de Antônio Pires da Silva Pontes. Vila Bela, 1 de
setembro de 1781. In: MENDONÇA, Marcos Carneiro de (org.). Rios Guaporé e Paraguai: primeiras
fronteiras definitivas do Brasil. Rio de Janeiro: Xerox do Brasil, 1985.
114

nomenclatura e classificação elaborado pelo naturalista sueco Carlos Lineu. Além de


descrever os produtos naturais, fez menção ao professor Domingos Vandelli. Recuperou
uma frase escrita em carta trocada entre ele e Lineu: “Bom Deus! Como seriam
desgraçadas as nações que não possuem terras ultramarinas, se a gente portuguesa se
soubesse aproveitar do que tem!” Em tom de concórdia e com a autoridade de quem
observava, concluiu: “verdade que a cada passo que se dá neste país, se encontra
verificada.”282
Por um lado, Silva Pontes tinha formação para mobilizar este tipo de
conhecimento, uma vez que os estudantes do curso de Matemática de Coimbra eram
obrigados a frequentar as aulas da Faculdade de Filosofia.283 Por outro, Lacerda e
Almeida, sujeito com a mesma formação acadêmica, não parecia nutrir muito entusiasmo
pelo sistema de classificação próprio da botânica, mineralogia e zoologia. Ele chegou
mesmo a denunciar Silva Pontes que, na sua visão, seguia “distraído com as suas
filosofias”.
Um segundo elemento digno de destaque no diário que narrou o trajeto entre
Barcelos e vila Bela consistiu na abordagem das nações indígenas viventes nos territórios
percorridos. Vale mencionar um evento narrado também por Lacerda e Almeida: o ataque
de fechas do qual foram vítimas quando adentravam a capitania do Mato Grosso. Ele
especificou a nação que promoveu o ataque, os Jura, e caracterizou as flechas como “bem
feitas, de sete palmos de comprimento, ligadas com algodão finíssimo, torcido e de três
fios e com tinta de orucu [sic] ou raixa, da história natural.”284 Ainda as distinguiu das
fabricadas pela nação Mura, “porque esses últimos usam de muito maiores flechas e
atadas as hastes com uma espécie de vime de que há infinidade por estas terras.”285
Ao chegar em vila Bela, em janeiro de 1782, afirmou respirar “aliviado por estar
em meio a pessoas civilizadas.”286 A expedição foi recebida pelo governador Luís de

282
Idem
283
Estatutos da Universidade de Coimbra. Livro III. Lisboa, Régia Oficina Tipográfica, 1772. Reimpressão
facsimilar: Coimbra, Imprensa da Universidade, 1972.
284
PONTES, Antonio Pires da Silva. Diário de Viagem de Antônio Pires da Silva Pontes. Vila Bela, 1 de
setembro de 1781. In: MENDONÇA, Marcos Carneiro de (org.). Rios Guaporé e Paraguai: primeiras
fronteiras definitivas do Brasil. Rio de Janeiro: Xerox do Brasil, 1985.
285
Idem
286
Idem
115

Albuquerque Pereira Cáceres, que um mês depois partiu, acompanhado dos engenheiros
Ricardo Franco e Joaquim José Ferreira e de Antonio Pires da Silva Pontes para
“observar, reconhecer e marcar, desde a serra fronteira desta vila até o rio Barbados e
outros lugares e lagoas que podiam ser interessantes para a Demarcação dos Reais
Limites.”287
De acordo com Flávia Domingos, Silva Pontes “faria diversas incursões em
direção às cabeceiras dos rios Barbados e Guaporé e suas adjacências, enquanto Lacerda
e Almeida ficaria encarregado de observações em regiões mais ao norte.”288 A partir
desses deslocamentos, o matemático produziu o texto intitulado Relato das viagens
realizadas no rio Guaporé e Barbados (1782-1783). Os recorrentes deslocamentos para
essa região, cerca de sete vezes no espaço de dois anos, estiveram associados ao “fato de
serem esses rios – Guaporé, Barbados, Jaurú, Paraguai – parte de importantes rotas de
comunicação e comércio que, conforme os tratados, estavam na linha de limites.”289
Consistia em região estratégica para a garantia dos vínculos entre duas bacias
hidrográficas, a Amazônica e a do Prata.
Em 1786, todos os membros da terceira partida de demarcação foram
encarregados de se deslocarem até a vila de Cuiabá. Neste momento, Silva Pontes redigiu
um escrito com título de Notícias do Lago de Xarayes. Parte deste texto foi encaminhado
em forma de ofício para Martinho de Melo e Castro e de correspondência ao naturalista
Alexandre Rodrigues Ferreira.290 O manuscrito foi também remetido para a Academia
Real das Ciências de Lisboa, junto com um mapa. O matemático ressaltava que realizou
o reconhecimento do rio Paraguai e dos lagos adjacentes, dentre eles Xarayes, confundido
em diversas ocasiões com a lagoa da Gayva, sobre a qual também produziu uma Memória.
Esta última – Memória físico geográfica acompanhada de um plano das lagoas Gayva,

287
DOMINGOS, Flávia Kurunczi. Op. Cit. p. 75
288
Idem, p. 76
289
Idem, p. 78
290
Notícias do Lago de Xarayes. Cópia Manuscrito. Faz referência aos índios Parabuá, bem como a fauna
e flora da região. Consta paginação de 340 a 349. Coleção Alexandre Rodrigues Ferreira. Proveniente da
Coleção Carvalho. CEHB nº 19.377. ABN v 72, p 129. 21, 1, 007 nº 001.
116

Uberaba e Mandiorem – foi igualmente escrita a partir da experiência de viagem até


Cuiabá e remetida para Alexandre Rodrigues Ferreira.291
Os desafios de deslocamento, a incluir a dificuldade de encontrar local para dormir
e se alimentar, na região pantanosa ganharam destaque na descrição da viagem pelo Mato
Grosso: “navegamos 18 léguas a mais, sem ter sítio em que pudéssemos portar com terra
descoberta [...] senão em uma pequena ilha de árvores grossíssimas”, “em todos estes dias
não se pode fazer cozinha, por não se encontrar palmo de terra [...] só pelas 9 horas da
noite porque nos achamos na serra, aonde [...] facilitou ganhar um prodigioso assento,
rodeado de belas e grossas árvores, muita lenha e chão limpo.”292
Em uma das passagens concluiu que as cheias do rio Paraguai invadiam as
planícies do lago chamado Xarayes, “ou para falar na frase daquele país, se achava nos
Pantanais, nome que dão os portugueses paulistas ao que as cartas chamam de Logo
Xarayes”. Parecia, assim, conhecer a polêmica que circunscrevia a região e corroborou
com o argumento de que eram enchentes do rio Paraguai as formadoras de lagos em
determinadas planícies e de “bosques flutuantes”, os quais exigiam grande prática para a
navegação.
Se valendo da observação in loco preencheu de mais detalhes o interior do
território pantaneiro, a incluir a descrição da fauna, da flora, dos minerais e dos povos.
Recorreu novamente ao sistema de classificação de Lineu e sugeriu a possibilidade da
exploração de prata próximo à lagoa de Uberaba. Segundo Maria de Fátima Costa, seus
“manuscritos oferecem o primeiro inventário científico até agora conhecido dos animais
e plantas que povoam as águas pantaneiras entre o rio Jauru e as grandes lagoas.”293 Sobre
as populações indígenas teceu considerações sobre as relações estabelecidas com os
portugueses e acerca de suas características culturais e morais.

291
Memória físico geográfica acompanhada de um plano das lagoas Gayva, Uberaba e Mandiorem que
oferece ao Sr. Alexandre Rodrigues Ferreira, naturalista a serviço de sua majestade, por seu condiscípulo e
criado obrigadíssimo Dr. Pontes”, 29/05/1790. Manuscrito. Consta nota do bibliotecário na última folha.
Outra versão em 21, 1, 048 nº 001. Coleção Alexandre Rodrigues Ferreira proveniente da Coleção [Lagos].
Cat ARF nº 146. ABN v 72, p 129. CEHB nº 663
292
Notícias do Lago de Xarayes. Cópia Manuscrito. Faz referência aos índios Parabuá, bem como a fauna
e flora da região. Consta paginação de 340 a 349. Coleção Alexandre Rodrigues Ferreira. Proveniente da
Coleção Carvalho. CEHB nº 19.377. ABN v 72, p 129. 21, 1, 007 nº 001.
293
COSTA, Maria de Fátima. História de um País Inexistente - O Pantanal entre os séculos XVI e XVIII.
São Paulo: Estação Liberdade & Kosmos, 1999. p. 221
117

No retorno de Cuiabá para vila Bela, Lacerda e Almeida recebeu ordem de Luiz
de Albuquerque de Melo Pereira Cáceres para deslocar-se até a capitania de São Paulo.
Já Silva Pontes foi incumbido novamente de descer o rio Guaporé e subir o Paraguai até
as balizas praticadas na expedição de demarcação “sem que haja perda de tempo e antes
que as águas diminuam demasiadamente e dificultem ou de todo impossibilitem
semelhantes diligência.”294 O matemático deveria rever as medições e descrever os
“morros soltos e cordilheiras [...] observados de perto ou de longe, marcando o verdadeiro
rumo a que jazerem [...] em razão de não ser certamente uma coisa indiferente nos
ponderados termos que todas estas noções se adquirem.”295 Como esclareceu Flávia
Domingos:

as repetidas viagens para uma mesma localidade eram, muitas vezes,


importantes para se chegar a uma averiguação astronômica mais precisa. Ao
repetir os procedimentos, em dias diferentes, obtinha-se uma série de dados
comparativos, possibilitando chegar a uma média mais próxima do real, e
formar, portanto, uma carta topográfica mais precisa. Além do mais, era
necessária a averiguação de vários pontos para determinar os rumos dos rios e
suas posições sobre um plano de uma carta, e a depender das condições da
viagem, como chuva, seca ou escassez de alimentos, algumas vezes os
demarcadores não conseguiam completar os trechos destinados a percorrer.296

No retorno, ao cair novamente no rio Guaporé, deveria subir até o encontro com
o rio Verde, “o qual desemboca três únicos dias de viagem desta vila.”297 Na carta em que
deu instruções de trabalho para Silva Pontes, o governador concluiu que tratava-se de
mais uma oportunidade dele prestar serviço à Majestade e “para que de uma só cajadada
matemos dois coelhos.”298 A partir dessa experiência, Silva Pontes produziu o Relato de
viagem reconhecimento dos rios Paragaú e Verde (1789).
Em 1790, os trabalhos de demarcação de fronteiras foram encerrados e no mesmo
ano Silva Pontes retornou para Lisboa. Foi nomeado lente de Matemática da Companhia
dos Guardas Marinhas por Martinho de Melo e Castro. Logo em seguida, casou-se com
Caetana Malheiros, natural de Portugal. Um dos filhos do casal, Rodrigo de Sousa da

294
AHU: Mato Grosso_ACL_CU_010, Cx. 26, D. 1540.
295
AHU: Mato Grosso_ACL_CU_010, Cx. 26, D. 1540
296
DOMINGOS, Flávia Kurunczi. Op. Cit. 2008. p. 102
297
AHU: Mato Grosso_ACL_CU_010, Cx. 26, D. 1540
298
AHU: Mato Grosso_ACL_CU_010, Cx. 26, D. 1540
118

Silva Pontes, recebeu o nome em homenagem ao novo Secretário do Ultramar, D.


Rodrigo de Sousa Coutinho. Na breve biografia de Silva Pontes, Varnhagen afirmou que
seu filho era um “muito estimado amigo” com quem trocou inúmeras correspondências e
“que honrou com alguns trabalhos de sua pena esta Revista [...] e, como ministro do
Império no Rio da Prata, veio a prestar a queda de Rosas serviços de alta importância.”299
Seguindo os passos do pai, o filho se inseriu nas redes políticas e letradas do nascente
Império brasileiro.
Além de atuar como lente de Matemática no reino, Silva Pontes dedicou-se de
outros modos ao mundo das letras. Apresentou na Academia Real das Ciências de Lisboa,
da qual era sócio correspondente, a Memória sobre a utilidade pública em se tirar o ouro
das minas, e os motivos dos poucos interesses dos particulares que atualmente mineram
o Brasil300 e a Memória Sobre os Homens selvagens da América Meridional.301 O último
texto servia como introdução aos diários de viagem e às cartas cartográficas produzidos
sobre a América.
Outra atividade letrada que realizou em Lisboa foi a tradução da obra do inglês
George Atwood, Construção e análise de proposições geométrica e experiências práticas
que servem de fundamento a arquitetura naval, impressa em 1789. Como expressou nas
notas introdutórias, o tratado de construção naval contribuiria para “o adiantamento das
artes, e especialmente, as que tem imediata conexão com a grandeza dos Reinos e
Domínios de Vossa Alteza Real, quais são as da Marinha, tanto de Guerra, como
Mercante”, bem como serviria “para coadjuvar a instrução dos alunos da nova classe de
engenheiros construtores.”302

299
Biografias dos Drs. Francisco José de Lacerda Almeida e Antonio Pires da Silva Pontes, por Francisco
Adolfo de Varnhagen. Revista IHGB - Tomo XXXVI - Parte Primeira, 1873. p. 186-187
300
PONTES, Antonio Pires da Silva. Memória sobre a utilidade pública em se tirar o ouro das minas, e os
motivos dos poucos interesses dos particulares que atualmente mineram o Brasil. In: Memórias econômicas
inéditas (1780-1808). Coleção de Obras Clássicas do Pensamento Econômico Português. Lisboa, Academia
de Ciências de Lisboa, Banco de Portugal, 1994. No final do século XIX, o texto foi publicado na Revista
do Arquivo Público mineiro.
301
PONTES, Antonio Pires da Silva. Memória Sobre os Homens selvagens da América Meridional que
serve de introdução às viagens de Antonio Pires da Silva Pontes Leme Primeiro Tenente do Mar da Armada
Real, Doutor e Astrônomo, e correspondente da Real Academia de Lisboa, Ano de 1792. O manuscrito foi
consultado no CEDOPE-UFPR.
302
Construção e análise de proposições geométricas e experiencias practicas que servem de fundamento
á Architectura Naval. George Atwood; Traduzida do Inglez Por Antonio Pires da Silva Pontes. - Lisboa:
Officina de João Procopio Correa da Silva, 1798. Disponível em:
(https://ia600706.us.archive.org/3/items/construcaeanalys00atwo/construcaeanalys00atwo_bw.pdf)
119

Ao menos duas autoridades do Ultramar acusaram o recebimento da obra


traduzida – os governadores da Paraíba e do Grão-Pará, respectivamente Fernando
Delgado Freire de Castilho e Francisco Maurício de Sousa Coutinho – o que nos fornece
um indicativo da sua relevância e circulação.303 Poliana Faria destacou a importância da
obra, que havia sido publicada há pouco na Inglaterra:

George Atwood apresentara as regras para se conseguir a estabilidade de um


navio, com base nas leis da mecânica e princípios da geometria, exprimindo as
proporções e disposições das embarcações em linguagem matemática. Nas
notas que Pontes Leme inseriu na tradução da referida obra fica explícita a
importância e ineditismo do trabalho do ilustrado inglês, pois, embora
houvesse grande número de textos escritos sobre a arquitetura naval desde a
época das grandes navegações, eram insatisfatórios, por constituírem-se
essencialmente teóricos ou essencialmente práticos.304

Ainda que sejam dignas de reparo as mencionadas produções, seu trabalho de


maior envergadura no retorno para Portugal foi a elaboração da Carta Geográfica de
Projeção Esférica da Nova Lusitânia ou América Portuguesa e Estado do Brasil,
encomendada por Dom Rodrigo de Sousa Coutinho. O projeto foi desenvolvido nos
quadros da Sociedade Real Marítima, Militar e Geográfica para o Desenho, Gravura e
Impressão das Cartas Hidrográficas, Geográficas e Militares. Fundada em 1798, a
instituição tinha como propósito o aprimoramento do conhecimento cartográfico dos
domínios coloniais portugueses a partir da correção de mapas existentes e da confecção
de novos. Indicava para um “modo de governar” mais preocupado com o controle direto
dos territórios, recursos naturais e das populações.
Dentre os sujeitos que contribuíram para a elaboração do mapa, destacaram-se o
desenhista José Joaquim Freire (membro da viagem filosófica coordenada por Alexandre
Rodrigues Ferreira e funcionário da Casa do Risco), o Manoel Tavares da Fonseca
(desenhista da Caso do Risco e que participou do aperfeiçoamento dos desenhos da

303
Em abril de 1799, Francisco Maurício de Souza Coutinho informou a D. Rodrigo que recebeu a cópia
da tradução da obra de Jorge Arwood feita por Silva Pontes, ficando a mesmo depositada na Secretaria do
Governo daquele Estado. AHU: Pará_ACL_CU_013, Cx. 114, D. 8839. Do mesmo modo, Fernando
Delgado Freire de Castilho informou a D. Rodrigo que recebeu a cópia da tradução da obra, mandando
imprimir algumas cópias. AHU-Paraíba, mç 19 – AHU_ACL_CU_014, Cx. 34, D. 2485. Seria necessário
um levantamento mais exaustiva para mapear a circulação da obra, o que não é objetivo deste trabalho.
304
FARIAS, P. C. de. Comunicar por via impressa todas as melhores obras. A difusão de conhecimentos
náuticos sob o ministério de D. Rodrigo de Sousa Coutinho. Boletim Eletrônico da Sociedade Brasileira de
História da Ciência, v. 10, p. 1, 2016.
120

expedição coordenada por Rodrigues Ferreira) e o astrônomo Miguel António Siera


(membro da terceira partida de demarcação de fronteira ocorrida em desdobramento do
Tratado de Madri e contribuiu para treinar Lacerda e Almeida e Silva Pontes, antes de
seguirem para a Amazônia).
Como observado por Paulo M. L. de Menezes, há ainda “a menção a trinta e quatro
autoridades cartográficas que a abonam, entre padres, doutores, militares, cientistas,
exploradores, caracterizando uma relação importante de nomes ligados à Cartografia de
Portugal e do Brasil.” 305
Foram compiladas dezenas de cartas regionais elaborados nas
décadas anteriores, sobretudo por matemáticos, astrônomos e engenheiros militares.
Certamente, a experiência de viagem na América portuguesa contribuíram para que D.
Rodrigo vislumbrasse em Silva Pontes as qualificações necessárias para estar à frente de
uma missão com tamanha importância.
Na ocasião em que Lacerda e Almeida foi enviado para África oriental portuguesa,
Silva Pontes foi nomeado governador do Espírito Santo.306 A capitania era até então
gerida por capitães mor, ou seja, pela primeira vez passaria a ser administrada por um
governador. Silva Pontes nutria o interesse de retornar para a América portuguesa, como
demonstrou a petição encaminhada à rainha D. Maria, datada de 1796, na qual requereu
a nomeação para tenente-coronel do regimento de cavalaria de Minas Gerais. A fim de
embasar a solicitação recuperou a passagem pela Faculdade de Matemática – destacando
que “se empregou naqueles estudos na intenção declarada pelos Estatutos da Fundação
da Universidade de ser admitido com vantagem ao Real Serviço das Armas de V.
Majestade” –, bem como os serviços prestados a partir do seu doutoramento.307
Lembrou que o regimento da cavalaria de Minas Gerais encontrava-se sem lente
de matemática. Como a disciplina oferecia “grande vantagem ao serviço de V. Majestade
pelas fábricas dos Mineiros, toasamentos [sic] dos seus trabalhos, níveis e conduções

305
MENEZES, Paulo. A Cartografia do Império do Brasil. Anais do IV Simpósio Luso-Brasileiro de
Cartografia Histórica, Porto, 9 a 12 de Novembro de 2011. p. 6
306
O decreto de nomeação datou de 11 de dezembro de 1797 e foi assinado por D. João, príncipe regente.
AHU_ACL_CU_007, Cx. 5, D. 422
307
Petição do tenente da marinha e lente de Matemática António Pires da Silva Pontes Leme a D. Maria I
na qual solicita a nomeação para tenente-coronel do regimento de cavalaria de Minas (1796). Originais do
Arquivo Histórico Ultramarino. Minas Gerais, caixa 142, doc. 36. Cópia digital do acervo do CEDOPE -
Centro de Documentação e Pesquisa de História dos Domínios Portugueses. Transcrito por Júlia Maria
Ribeiro e Ana Lúcia Rocha Barbalho da Cruz, em agosto de 2005.
121

d’águas, e topografia do rumo do ouro”308, colocava-se à disposição para ministrá-la. Ele


não retornou para Minas Gerais, mas nem por isso as atividades desempenhadas no
Espírito Santo estiveram totalmente desconectadas de sua capitania natal.
Em março de 1800, Silva Pontes tomou posse do governo do Espírito Santo. Entre
as suas tarefas prioritárias destacaram-se a de demarcar os limites da capitania e,
principalmente, a de viabilizar a navegação pelo rio Doce, a fim de promover uma segura
ligação com os centros produtores mineiros. A relação próxima com Dom Rodrigo de
Sousa Coutinho ficou clara em diversas correspondências nas quais deu notícias de seus
feitos no Ultramar. Ficava evidente ainda o aproveitamento por parte do hábil Ministro
dos indivíduos com experiência de viagem, bem como o seu empenho em estreitar os
laços entre os domínios coloniais, principalmente a partir das redes hidrográficas.
Sete meses após se estabelecer na vila de Vitória assinou, junto com o Tenente
Coronel do 3º Regimento de Cavalaria de Milícias João Batista dos Santos e Araújo,
representante do governador e capitão geral de Minas Gerais, o “auto de demarcação entre
a capitania de Minas Gerais, e a nova província do Espírito Santo para efeito de se
estabelecerem os registros e destacamentos respectivos.”309 O local no qual o termo foi
firmado – “no quartel do Porto de Souza por baixo da foz do Rio Guandú, que entra no
rio Doce, também por baixo do último degrau da Cachoeira das Escadinhas” – expressava
um dos objetivos centrais da demarcação: estabelecer a “comunicação de correios para os
povos do interior com as regiões marítimas”, que se tornaria possível graças “a real
abertura da navegação do Rio Doce.”310 Por fim, no documento foi expresso que o
transporte seguro das mercadorias entre as capitanias dependia ainda da consolidação das
forças contra o “gentio Botocudo.”311
Em agosto de 1802, Silva Pontes produziu um breve escrito intitulado Pré-
Memória sobre a capitania do Espírito Santo e objetos do Rio Doce no qual fez um

308
Idem
309
Demarcação de limites entre Espírito Santo e Minas Gerais – 1800 [ES – CX-3, Arquivo Histórico
Ultramarino, Lisboa, Portugal. In: Pré-Memória do Governador Antônio Pires da Silva Pontes. Vitória:
Editora do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, 1999. p. 17
310
Idem, p. 17 e 18
311
As menções à ameaça dos índios botocudos, designados como “gentios inimigos”, ao estabelecimento
dos projetos coloniais luso-brasileiros por parte de Silva Pontes são recorrentes.
122

balanço de sua atuação na capitania nos últimos dois anos.312 Tratou das possibilidades
abertas pela navegação no rio Doce, a qual em sua visão deveria ser acompanhada por
uma política de povoamento de suas redondezas. Silva Pontes apostava na necessidade
de exploração agrícola “nos matos sem dono” e “abandonado ao corpo do gentio,” além
de propor estratégias para (re)povoar a região, de modo a garantir os interesses coloniais.
De todo modo, é importante deixar claro que Silva Pontes, diferente de Lacerda e
Almeida, não realizou novas expedições e nem chegou a percorrer o rio Doce.
Ao expressar a demanda pela indicação de um sujeito hábil e honrado para
continuar o governo da capitania, conclui o texto afirmando que se encontrava com a
saúde arruinada. Silva Pontes morreu pouco tempo pouco depois, no ano 1807, tendo a
sua trajetória exaltada pelo intelectual do Adolfo de Varnhagen, como um sujeito que se
dedicou aos projetos de demarcação, reconhecimento e interligação dos domínios
portugueses na América. Fazia parte de um grupo maior de letrados com formação no
campo científico cujo conhecimento acumulado em viagens para o interior do continente
foi aproveitado em projetos colonialistas para além do período em que viveu.

2.4. Francisco José de Lacerda e Almeida: um obstinado súdito da monarquia

Nascido na capitania de São Paulo, em 1753, Francisco José Lacerda e Almeida


era filho do português José António de Lacerda e Francisca de Almeida Paes, sendo mãe
e filho naturais de Itu. Segundo Magnus Pereira e Ana Lúcia Cruz, sua mãe “pertencia ao
agregado familiar dos Taques, Pompeus e Laras, que o genealogista paulista Pedro
Taques colocara em posição de destaque em seu projeto de nobilitação da elite
paulista.”313 No entanto, os autores ressaltaram que sua família não estava entre as mais
abastadas; ainda assim seu pai, boticário em São Paulo, gozou de algum prestígio político
e social, tendo em vista que chegou a ser eleito vereador da localidade.

312
PONTES, Antonio Pires da Silva. Pré-Memória sobre a capitania do Espírito Santo e objetos do Rio
Doce. Pesquisa original, João Eurípedes Franklin Leal; seleção, Miguel Depes Tallon; introdução e notas,
Renato Pacheco – IHGES, 1999.
313
PEREIRA, Magnus; CRUZ, Ana Lucia. Francisco José de Lacerda e Almeida: Paulista, coimbrão e fiel
súdito da coroa. In: PEREIRA, Magnus; RIBAS, André (orgs). Francisco José de Lacerda e Almeida. Um
astrônomo paulista no sertão africano. Curitiba: Editora UFPR, 2012. p. 20
123

Lacerda e Almeida teve acesso aos estudos iniciais em sua capitania natal.314 No
início da década de 1770, matriculou-se na primeira turma da Faculdade de Matemática
da Universidade de Coimbra e recebeu o grau de doutor, em 1777. Tão logo formado, foi
absorvido pelos serviços da Coroa como astrônomo e matemático real. A partir de então
começou a receber treinamento sob supervisão do professor e astrônomo italiano Miguel
António Siera para integrar a equipe da expedição de Demarcação das Fronteiras no norte
da América portuguesa. Junto com o matemático Antonio Pires Leme Silva Pontes e com
os engenheiros Joaquim José Ferreira e Ricardo Franco de Almeida Serra foi integrado à
“terceira divisão pertencente ao distrito do Governador do Mato Grosso”315
O matemático desembarcou em Belém em fevereiro de 1780 e seis meses depois
partiu para o interior do território amazônico. Percorreu por uma década regiões do Grão-
Pará, Rio Negro e Mato Grosso, munido de instrumentos matemáticos e astronômicos,
tais como agulhas e barras magnéticas, estojo de riscar, instrumento circular, relógio de
segundos.316 Uma vez concluídas as atividades da Comissão de Demarcação rumou,
partindo do Mato Grosso, para São Paulo, sua capitania natal. De acordo com a publicação
da Imprensa Nacional datada de 1944, Lacerda e Almeida produziu, neste período, cinco
diários e pelo menos dois mapas.
No Diário de viagem de Lisboa até a vila de Barcelos, datado de 1780, fez breves
apontamentos do percurso com duração de dois meses e meio traçado entre Belém e
Barcelos sob supervisão de João Pereira Caldas, Comissário Geral das Demarcações no
Rio Negro. Embora o título remeta para o início da expedição no reino, não há, para além
de indicações de datas, notícias da travessia nem do período que permaneceu na capital
do Grão-Pará.
Para aproveitar a passagem pela capitania do Rio Negro, Lacerda e Almeida
realizou incursões por seus arredores. Deslocou-se para o forte de São José de
Marabitanas, de dezembro de 1780 até janeiro do ano seguinte, e redigiu um pequeno
relato intitulado Diário de viagem da Vila de Barcelos até acima do forte de São José de
Marabitanas e também pelo rio Vaupés. Antes de seguir para o Mato Grosso, os membros

314
HOLANDA, Sérgio Buarque (prefácio). Op. Cit. 1944.
315
AHU: Mato Grosso_ACL_CU_010, Cx. 21
316
AHU: Mato Grosso_ACL_CU_010, Cx. 27, D. 1594
124

da terceira partida de demarcação ainda realizaram outras viagens, mas Lacerda e


Almeida, ao que tudo indica, permaneceu em Barcelos. Segundo escritos de Silva Pontes,
ele não o acompanhou até o rio Branco, pois achava-se muito doente.
Entre setembro de 1781 e fevereiro de 1782, Lacerda e Almeida registrou a
viagem da capital da capitania de São José do Rio Negro para a do Mato Grosso, a
conceder destaque para as navegações nos rios Madeira, Mamoré e Guaporé. Ao chegar
em vila Bela de Santíssima Trindade, registrou que os membros da expedição foram “bem
recebidos pelo Exmo. Sr. Luiz de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres, governador e
Capitão Geral daquela capitania e das mais pessoas dela.”317 Era desse sujeito que os
comissários receberiam ordens a partir de então. Como mencionado no capítulo anterior,
vila Bela encontrava-se estrategicamente situada nas proximidades com domínios
espanhóis, mais precisamente com missões jesuíticas.
Os três primeiros relatos escritos por Lacerda e Almeida na América portuguesa
tratam quase exclusivamente do cotidiano da navegação pelos rios e das demandas e
medições atreladas a tal prática. O matemático não se deteve nas descrições da flora, da
fauna e dos minerais, como dissemos, criticou Silva Pontes por gastar “muita parte do dia
em copiar macacos, ratos, etc, a deixar por este motivo passar em claro muitos rumos,
dando ao rio curso diferente do que na realidade tinha.”318 Há algumas menções às
populações indígenas que cruzou no caminho. Uma delas refere-se ao ataque por parte do
“gentio, que, do mato sem serem vistos, despediram imensas flechas sobre a [...] canoa”,
disse ter escapado por pouco de “ser atravessado por uma pelo pescoço.”319
No ano de 1786, Lacerda e Almeida voltaria a sistematizar em forma de diário as
suas experiências. Neste momento, ele recebeu ordem do capitão-geral e governador do
Mato Grosso para percorrer o trajeto de vila Bela até Cuiabá, seguindo pelos rios Jauru e
Paraguai. O diário foi marcado pelos momentos difíceis vividos pelo grupo. Foram vários
os períodos de adoecimento, além dos ataques de formigas, mosquitos e carrapatos que,
não obstante estarem eles “banhados com aguardente e fumo”, os deixavam desesperados.

317
ALMEIDA, Francisco José de Lacerda e. Diários de viagem. Prefácio de Sérgio Buarque de Holanda.
Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1944. p. 31
318
Idem, p 34
319
Ibidem, p. 20
125

Além disso, o frio, a “nevoada”, a chuva e o vento os acompanharam em parte


considerável do percurso feito por terra e rio.
O terreno pantanoso ganhou destaque na narrativa, uma vez que impunha
obstáculos a serem vencidos tanto a remo quanto a pé, além de tornar dificultosa a
descrição precisa do terreno devido às frequentes alterações provocadas por alagamentos.
O matemático chamava atenção para o desafio de encontrar locais apropriados para
dormir e se alimentar: um dos dias tiveram que passar a “noite uns em árvores, outros na
canoa por falta de terra”320, em outro “pernoitaram todos na canoa, pois nem terra houve
para se fazer ceia”321, em um terceiro fizeram pouso em um pequeno trecho de terra firme
“que serviu a toda gente de grande consolação, pois já ia bastantemente [sic] fatigada,
não só por não poderem dormir bem, por falta de terra, como por cortada de uma grande
friagem, que por todo este pantanal nos perseguiu.”322
Tratou também dos enganos provocados pelas sazonalidades dos rios, como o
cometido por um “prático” encontrado próximo à povoação de Albuquerque, o qual
localizava o rio Tamengos em uma região que, na visão de Lacerda e Almeida, não
passava de “um campo alagado.”323 Quando finalmente chegaram em Cuiabá, foram
recebidos pelo Juiz de Fora Diogo de Toledo Lara Ordonhes e mais pessoas. Iniciaram,
então, os trabalhos para tirar a planta da vila, que julgou “muito mal arruada”, mas com
boas casas, com “clima calidíssimo” e abundância de carne e peixe.324
Não identificamos o período exato de retorno de Lacerda e Almeida para vila Bela,
mas, em 1789, o governador do Mato Grosso voltou a lhe dar instruções para a realização
de uma nova viagem, desta vez para a capitania de São Paulo. Em carta endereçada a
Martinho de Melo e Castro, Luís de Albuquerque de Melo Pereira Cáceres justificou a
retirada do matemático do território de negociação de fronteira. Ele assegurava que “em
todo o ano próximo passado e na maior parte deste presente não apareceram espanhóis
alguns nestas Fronteiras para tratarem sobre o negócio eternizado das demarcações.”325
Para não ficarem ociosos, os matemáticos da expedição decidiram aproveitá-los para dar

320
Idem, p. 40
321
Idem, p. 41
322
Idem, p. 53
323
Idem, p. 50
324
Idem, p. 57
325
AHU: Mato Grosso_ACL_CU_010, Cx. 26, D. 1540
126

prosseguimento ao seu projeto de construção “de um grande mapa geográfico de quase


toda esta vastíssima península da América Meridional sujeito às mais recentes
observações astronômicas, com vários outros monumentos e notícias importantes.”326
Pereira Cáceres ressaltava os avanços já alcançados para viabilizar o projeto,
contudo, julgava ser necessário registrar a “navegação que se faz anualmente desde São
Paulo até a vila de Cuiabá, descendo uns rios e subindo outros.”327 Posto isto, indicava
que o Tietê, assim como o Taquari e parte do Paraná deveriam ser medidos com
precisão.328 Ao chegar em São Paulo, o matemático passaria dois ou três meses na
residência de seus familiares para se recuperar da viagem e colocar em ordem as
observações e mapas. Em seguida, retornaria para vila Bela, desta vez com foco no
mapeamento das vias terrestres.
Lacerda e Almeida partiu para São Paulo em setembro de 1788 e produziu o
Diário de Vila Bela até São Paulo pela ordinária derrota dos rios. Logo de início, faz
um esclarecimento que articulava-se com a ordem emitida por Pereira Cáceres de mapear
o trajeto fluvial de Cuiabá até São Paulo, ainda que o ponto inicial da viagem fosse vila
Bela. Afirmou já ter percorrido os rios Jauru, Paraguai, dos Porrudos até chegar no rio
Cuiabá, além de ter realizado o “reconhecimento das grandes e alta serras, lagos e baías,
que estão nessa parte do Paraguai, a que denominam lago Xarais.”329
Da vila de Cuiabá até a de São Paulo, a sua narrativa é permeada por detalhes.
Além da navegação fluvial que continuou a ocupar um espaço central em seu diário,
ganham algum espaço as descrições de animais e plantas, principalmente os utilizados na
alimentação. Na medida em que se aproximava de São Paulo, a narrativa de Lacerda e
Almeida foi tomada por um tom elogioso. Nota-se o entusiasmo em deslocar-se por
terrenos mais firmes e em período menos chuvoso: “renasceu em mim toda a alegria que
um país aplausível pode causar e que tinha perdido vivendo por oito anos em um sertão

326
Idem
327
Idem
328
A abertura dessa rota estava diretamente associada à descoberta de ouro em Cuiabá. “Para o comércio e
a comunicação destas novas minas foram empreendidas expedições fluviais conhecidas como Monções.
Utilizando canoas de tecnologia indígena, os monçoeiros saíam de São Paulo pelo rio Tietê e cruzavam as
águas da bacia paraguaia, até alcançarem as Minas do Cuiabá. Era uma viagem longa, difícil e perigosa.”
COSTA, Maria de Fátima. De Xarayes ao Pantanal: a cartografia de um mito geográfico. Revista do IEB
n. 45, p. 21-36, set 2007. p. 32
329
ALMEIDA, Francisco José de Lacerda e. Op. Cit. 1944. p. 61
127

(assim o posso dizer) cheio de matos altíssimos e ásperos e de algum campo pela maior
parte inundado e pestífero.”330 Noticiou, enfim, a sua chegada em São Paulo no dia 10 de
janeiro de 1789 com grande satisfação, a elogiar o clima, a fertilidade da terra e as gentes
que “viviam na maior felicidade.”
Desconhecemos algum registro em diário sobre a permanência em solo paulista.
A última notícia na América portuguesa foi o deslocamento de São Paulo para Santos, de
onde Lacerda e Almeida partiu novamente para Lisboa no dia 13 de maio de 1790. Vale
lembrar que Pereira Cáceres recomendava o seu retorno à vila Bela para onde havia sido
designado em serviço real. No entanto, não houve tempo hábil. Os membros da Comissão
de Demarcação de Fronteira receberam ordem para retornar ao reino, pois encerraram-se
as partidas portuguesas e espanholas.
Lacerda e Almeida enviou para a Academia Real das Ciências de Lisboa o diário
e um mapa nos quais descreveu o trajeto de vila Bela a São Paulo e foi aceito como sócio
correspondente da instituição. Remeteu também a Memória a respeito dos rios Buares,
Branco, da Conceição, de S. Joaquim, Itonamas e Maxupo e das três missões da
Madalena, da Conceição e de São Joaquim. Tratava-se dos resultados da exploração nos
rios Itomamas e Machupo, afluentes do rio Guaporé – o que fez “sem despertar a atenção
dos espanhóis” que nas proximidades mantinham as missões de Moxos331 – no período
em que estava em vila Bela. Além de navegar pelos rios, visitou as missões da Madalena,
Conceição e de São Joaquim e teceu comentários acerca da população indígena aldeadas
e dos administradores que nelas habitavam.
Logo que pisou novamente em solo lusitano, foi nomeado, assim como Silva
Pontes, lente de Matemática da Companhia dos Guardas Marinhas por Martinho de Melo
e Castro. Em seguida, casou-se com Cecília Craveiro Lavache de Faria, natural de
Figueiró dos Vinhos e filha do metalúrgico José Lavache. De acordo com Magnus Pereira
e Ana Lúcia Cruz, “a Companhia dos Guardas Marinhas funcionava em anexo do Arsenal
onde era fundido material bélico. Lavache e Lacerda circulavam por espaços onde se
desenvolviam as mesmas atividades e não é descabido inferir que os dois houvessem

330
Idem, p. 80
331
PEREIRA, Magnus; CRUZ, Ana Lucia. Op. Cit. 2012. p. 37
128

travado relações.”332 Na semelhança de Alexandre Rodrigues Ferreira, Lacerda e Almeida


teve suas relações matrimoniais balizadas pelas redes de relações que permeavam sua
atuação profissional e os serviços prestados à monarquia. Deste casamento nasceram duas
filhas, Isabel e Francisca. A última foi batizada por Diogo Toledo Lara Ordonhes,
conhecido dos tempos de Coimbra e com quem encontrou na vila de Cuiabá e Caetana de
Souza, esposa de Antonio Pires da Silva Pontes.333
Como já mencionado em outras passagens desta tese, mais tarde Lacerda e
Almeida foi nomeado governador dos Rios de Sena e incumbido de fazer novas viagens.
Em ofício encaminhado ao príncipe D. João, datado de março de 1797, o então Secretário
dos Negócios da Marinha e do Ultramar, D. Rodrigo de Sousa Coutinho nomeou, além
de Lacerda e Almeida, Francisco Guedes de Carvalho e Menezes da Costa como novo
governador de Moçambique. Ambos tinham a missão de viabilizar a produção de “boas
cartas cartográficas daqueles Estados”, definir as “noções exatas da divisão dos dois
governos” e elaborar um plano que garantisse o socorro mútuo entre capitanias,
estreitando seus vínculos e melhorando as rendas da Fazenda Real.
Lacerda e Almeida recebeu a missão de verificar a possibilidade de comunicação
entre Moçambique e Angola. A ordem expressava que as investigações deveriam girar
em torno dos rios: depois de atingir a vila de Tete, instalada na margem do rio Zambeze,
ele deveria ocupar-se “de reconhecer se no centro da África d´aquele lado há montes que
possam servir de cabeceiras aos rios que vão em sentido aposto, o de Sena para a costa
oriental, o Cunene para a costa ocidental oposta, indo desembocar pouco adiante do Cabo
Negro.”334
O matemático partiu para o território africano na companhia de parte do seu grupo
familiar, a incluir a esposa e a filha mais velha. Pereira e Cruz sugerem que a companhia
das duas mulheres esteve associada aos anseios de ser agraciado (em decorrência dos
serviços prestados) com um prazo na África oriental portuguesa.335 A historiadora
Eugênia Rodrigues salientou a importância das mulheres na distribuição e manutenção
das terras concedidas pela Coroa principalmente na região do Rios de Sena, o que

332
Idem, p. 42
333
Idem, p. 43
334
AHU, Moçambique, Caixa 77, Doc. Nº 41. In: livrão, p 182
335
CRUZ; PEREIRA. In: PEREIRA, Magnus; RIBAS, André (orgs). Op. Cit. 2012. p. 51
129

corrobora com a explicação de Pereira e Cruz acerca do deslocamento para região distante
do reino com mulher e filha.

Distintamente de outros espaços de colonização portuguesa, as mulheres


adquiriram um notável protagonismo na região, geralmente associado à posse
destas terras, quer por concessão direta da coroa, quer por sucessão. Alguns
historiadores, baseados sobretudo nos textos oficiais do final do Antigo
Regime e na literatura memorialista, consideraram a concessão de prazos às
mulheres e a sucessão por via feminina um elemento central do regime jurídico
dos prazos dos Rios de Sena.336

O primeiro registro detalhado de Lacerda e Almeida em terras africanas consistiu


em um texto acerca da Ilha de Moçambique, intitulado Breve Memória das observações
e notícias que adquiri em Moçambique no ano de 1797. Ele preocupou-se em descrever
as atividades com potencial econômico, com destaque para a agricultura, o trabalho nas
minas e o comércio, e em apresentar caminhos para aumentar os rendimentos da Coroa.
Concedeu especial atenção a uma das nações que habitavam o território, os Baneanes,
ricos comerciantes de origem goesa, que mantinham consistentes redes de crédito e
comércio espalhadas pelo interior e pelo oceano Índico, atrapalhando os negócios da
Coroa e dos portugueses na região.
Em seguida, destacou os gêneros alimentícios cultivados na Ilha, como a
mandioca, a cana de açúcar, o milho, o arroz e o gergelim. Há constantes comparações
com os produtos da América portuguesa, entretanto, o conteúdo e o formato dos relatos
escritos sobre um e outro domínio têm distinções acentuadas, provavelmente pelas
instruções recebidas em cada um dos territórios. Enquanto nas viagens feitas pelo Grão
Pará, Rio Negro, Mato Grosso e São Paulo verifica-se o empenho em descrever e fazer
as exatas medições dos rios, na Ilha de Moçambique o esforço maior foi de fazer um
diagnóstico das condições políticas e econômicas da conquista.
Em outubro de 1797, Lacerda e Almeida partiu para a capitania dos Rios de Sena.
Levou consigo instrumentos científicos tais como óculos acromático, sextante, agulha de
marear, barras magnéticas, telescópio, relógio de algibeira, além de um Atlas Celestes337

336
RODRIGUES, Eugenia. As donas de prazos do Zambeze. Políticas imperiais e estratégias locais. IN:
PEREIRA, Magnus. Et. Al (org). VI Jornada Setecentista; Conferência e comunicações. Curitiba: Aos
Quatro Ventos, 2006. pp. 15-34
337
AHU, Moçambique, Caixa 103, Doc. Nº 63. Disponível em: PEREIRA, Magnus; RIBAS, André (orgs).
Op. cit. 2012. p 434
130

e de o mapa de autoria de Jean Baptiste Bourguignon d’Anville. Produziu, a partir deste


percurso seu segundo relato sistematizado sobre o continente, o Diário de Viagem de
Moçambique para os Rios de Sena, remetido para D. Rodrigo de Sousa Coutinho junto
com um mapa.338
O trecho entre a Ilha de Moçambique e o delta do rio Zambeze, acessado em
Quelimane, foi percorrido por mar. Em seguida, o matemático iniciou o deslocamento
pelo dito rio, acompanhado por 108 remeiros e pilotos contratados em Quelimane. A
navegação fluvial e as medições e conhecimentos atrelados a essa prática tiveram, na
semelhança dos diários escritos na América portuguesa, relevo neste diário. As
lembranças e comparações com os tempos vividos nos sertões do continente americano
ganharam também relevo.
Ao chegar na vila de Tete destacou que as possessões reais estavam em péssimas
condições, sendo administradas por “levantados, malcriados, inimigos recíprocos do
Estado e de Deus, supersticiosos no último grau de perfeição, invejosos, ladrões, enfim
um distrito onde se acham todos os vícios e nenhuma virtude.”339 Diante do quadro
indagou: como era “possível que devendo nós ser os mestres dos cafres procurando-os
desabusar das suas superstições, e reduzi-los ao grêmio da Igreja sejamos os mesmos que
bebemos a sua doutrina e os imitemos nas mesmas superstições e vícios?”
No mais, tão logo instalado na vila de Tete deu início às especulações para a
travessia continental. Além de escrever ao secretário da Marinha e Ultramar a fim de
compartilhar as notícias sobre os caminhos coletadas localmente, começou a reunir os
recursos humanos e materiais para viabilizar a expedição. Encontrou dificuldades de
angariar apoio dos vassalos portugueses, que consideravam inviável o seu plano. Ainda
assim, em julho de 1798, partiu da vila de Tete rumo ao interior, acompanhado de guias,
carregadores, línguas e alguns poucos oficiais, com objetivo de cruzar o continente. O
Diário de viagem da Vila do Tete capital dos Rios de Sena para o interior da África é
marcado pelos momentos difíceis vividos pelo matemático.

338
PEREIRA, Magnus; RIBAS, André (orgs). Op. cit. 2012. p 551. Em 1799 este diário foi depositado na
Sociedade Real Marítima.
339
Idem, p. 523
131

O mapa a seguir foi elaborado pela geógrafa Gislaine Garcia de Faria a partir das
informações reunidas nos diários de Lacerda e Almeida e tendo como base o mapa
publicado no trabalho de Maria Emília Madeira Santos.340 O tracejado em vermelho
indica o deslocamento da vila de Moçambique até a vila de Tete, capital dos Rios de Sena.
O percurso foi trilhado em parte pelo mar e na outra pelo rio Zambeze, como dito
anteriormente. A linha azul corresponde ao início da expedição de travessia e evidencia
que, embora houvesse a recomendação da descoberta de caminhos fluviais, foi por terra
que o percurso foi trilhado. O projeto foi interrompido pelo falecimento de Lacerda e
Almeida, e também pelo bloqueio imposto por Mwata Kazembe, liderança africana com
a qual os agentes da colonização portuguesa tentavam estabelecer relações de amizade.

Elaborado pela geógrafa Gislaine Garcia de Faria utilizando o Software Qgis.


Informações reunidas por Gabriela Berthou de Almeida a partir dos Diários De Viagem
de Moçambique para os Rios de Sena e da vila de Tete para o interior da África.

340
O mapa pode ser consultado na internet. Além do trajeto de Lacerda e Almeida contempla o dos
pombeiros responsáveis por concluir a travessia do continente no início do século XIX. SANTOS, Maria
Emília Madeira. Viagens de Exploração Terrestre dos Portugueses em África. Lisboa: Centro de Estudos
de Cartografia Antiga, 1978.
132

Antes de falecer, Lacerda e Almeida deu ordem ao padre capelão Francisco João
Pinto para tomar frente do grupo na sua ausência. O padre-capelão chegou a estabelecer
contato e trocas de presentes com o Mawta Kazembe, mas a expedição não conseguiu
prosseguir e os sobreviventes retornaram à vila de Tete. Em 1801, o manuscrito da viagem
que lhe custou a vida chegou até D. Rodrigo de Sousa Coutinho. Não houve, como os
textos de outros viajantes contemporâneos, a publicação imediata em Portugal. Parecia
preponderar o esforço de proteger, ou seja, não fazer circular largamente na Europa os
conhecimentos levantados sobre os domínios coloniais.
Os diários escritos no continente africano foram impressos nos Annaes Maritimos
e Colonias pela primeira vez em 1844. Poucos anos depois foram traduzidos para o inglês
e publicados pela Sociedade de Geografia de Londres, a contar com prefácio da autoria
de Richard Burton.341 Como apontamos no capítulo anterior, os escritos de Lacerda e
Almeida foram retormados, ao longo século XIX e XX, por intelectuais portugueses
favoráveis à exploração imperialista na África, para questionar as pretensões inglesas de
se “auto-declarar” como os pioneiros a adentrar o continente africano.

341
BURTON, Richard. The Lands of Cazembe. London: John Murray, 1873. PEREIRA, Magnus; RIBAS,
André (orgs). Op. cit. 2012.
133

PARTE II
PROJETOS EM AÇÃO: OS POVOS DAS CONQUISTAS
NO COTIDIANO DAS EXPEDIÇÕES CIENTÍFICAS
134

Capítulo 3: Protagonismos indígenas nas expedições científicas


realizadas na Amazônia colonial portuguesa

3.1. Saber navegar é preciso: remeiros, proeiros e jacumaúbas em um território


serpenteado por rios

Não há nada de novo em dizer que na Amazônia colonial praticamente tudo girava
em torno dos rios, do mesmo modo que não consiste em novidade destacar que os cursos
d´águas foram utilizados de maneira estratégica e com sentidos variados pelos distintos
segmentos sociais ao longo do processo de colonização. Além de fonte básica de
subsistência, eram os “caminhos móveis”, como escreveu Sérgio Buarque de Holanda,
que ligavam as aldeias, vilas e povoações, pelos quais se escoavam os produtos a serem
comercializados, por onde ocorria o descimento e as fugas dos índios e consistiam em
marcos de fronteiras.342 Eram ainda povoados por múltiplas histórias, construtivas de
cosmologias indígenas, as quais escaparam, com raras exceções, aos registros dos
viajantes-cientistas em foco.343
Os laços estreitos com os rios não era uma peculiaridade das capitanias do norte,
embora a pujança de suas águas seja notória. Para os historiadores Rafael Chambouleyron
e José Augusto Pádua, o protagonismo dos rios marcou a história da América portuguesa
e consistiu em elemento fundamental para a construção do Estado e da nação brasileiros.

Amazonas, São Francisco, Paraná e Tietê, entre tantos outros rios, tornaram-
se ícones no imaginário do Brasil. A interação com os rios, que já era essencial
para as sociedades indígenas, transformou-se em aspecto inescapável da vida
concreta das sociedades na América portuguesa e no Brasil enquanto país,
inclusive nos seus espaços litorâneos. 344

342
HOLANDA, Sérgio Buarque. Monções. São Paulo: Editora Alfa-Ômega, 1976.
343
Sabemos, graças à tradição oral e aos escritos de indígenas como Ailton Krenak, Davi Kopenawa, Daniel
Munduruku, dentre outros, que as cosmologias indígenas atreladas aos rios, em particular, e natureza, em
geral, continuam vivas e operaram em uma longa duração, sendo acionadas e ressignificas em múltiplas
temporalidades.
344
CHAMBOULEYRON, Rafael; PÁDUA, José Augusto. Apresentação do dossiê: Rios e Sociedades.
Revista Brasileira de História, vol. 39, n 81. p. 16
135

Nas expedições científicas realizadas pelo Grão Pará, Rio Negro e Mato Grosso e
Cuiabá, entre 1780 e 1793, os rios foram tomados como objeto de interesse investigativo,
sendo reproduzidos em mapas e desenhos, e se constituíram enquanto espaços
privilegiados, em alguns casos únicos, de deslocamento. A documentação legada deixa
ainda outras pistas: “os rios em si mesmos, na sua materialidade” podem ser apreendidos
enquanto complexos nos quais domínios sociotécnicos se construíam e se
transformavam.345 Chambouleyron e Pádua reforçam a relevância da incorporação da
última ótica nas investigações historiográficas, pois os rios não funcionavam somente
como uma “espécie de espelho geográfico” de questões políticas e econômicas. Por meio
deles se constituíam interações de usos, conhecimentos, técnicas e tecnologias. São
caminhos garantidores não somente da circulação de gentes e mercadorias, mas também
são um caleidoscópio de saberes.
O nosso interesse particular é compreender a interação dos conhecimentos e das
técnicas dominados por remeiros, proeiros e jacumaúbas (pilotos), atividades
desenvolvidas majoritariamente por índios aldeados, com as redes fluviais percorridas
nas viagens. Falamos de sujeitos indispensáveis para o trânsito no interior amazônico.
Dito isto, parte-se da premissa de que longe de ser uma aptidão natural ou a única mão de
obra disponível localmente, remeiros, proeiros e pilotos índios possuíam, como notou
Elias Abner Ferreira, “conhecimentos profundos da floresta, seus caminhos e das espécies
arbóreas, fruto da longa experiência, passadas entre gerações e que lhes permitiram
acumular um “saber venatório” caro aos estrangeiros (europeus e africanos).”346 Seremos
norteados pelas seguintes questões: como, no interior das canoas e no cotidiano das
viagens, ocorria uma divisão das tarefas relacionadas à demanda prioritária de mover o
barco? Essa divisão se associava ao domínio de quais conhecimentos?
O pressuposto do qual partimos não é gratuito, ao contrário, se constrói em diálogo
com os estudos que reconhecem os diferentes agentes, para além dos letrados, atuantes
no processo de construção do conhecimento e com a virada fundamental das pesquisas
em história indígena no Brasil. Como observou Manuela Carneiro da Cunha, os estudos

345
Idem, p. 17-18
346
FERREIRA, Elias Abner Coelho. Oficiais canoeiros, remeiros e pilotos jacumaúbas: mão de obra
indígena na Amazônia colonial portuguesa (1733-1777). Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em História Social da Amazônia da Universidade Federal do Pará, 2016.
136

historiográficos e antropológicos foram tensionados pela pressão dos movimentos sociais


indígenas, articulados em nível nacional desde fins dos anos de 1970. O “despertar
indígena”347 pôs abaixo tanto a ideia de aculturação, que via os índios como povos em
vias de extinção, quanto a que lhes atribuía o lugar de “vítimas do sistema mundial,
vítimas de uma política e de práticas que lhes eram externas e que os destruíram”. 348
Como saldo de uma suposta eliminação física e étnica, sobrou pouco espaço nos estudos
historiográficos do século XX, mesmo os bem posicionados diante da causa, para
apreensão dos povos indígenas enquanto sujeitos ativos da história colonial e pós-
colonial.
No conjunto de sua obra, John Monteiro é referência obrigatória para
compreensão dos índios enquanto agentes da história. Ao fazerem escolhas,
estabelecerem negociações e acomodações, tais grupos valiam-se de interesses
particulares e de seus grupos. Garantiam, quando possível, vantagens em um universo
marcado pelo trabalho escravo e compulsório, pela violência física e simbólica e
espoliação de seus territórios e modos de vida. Para Monteiro, a estrutura de dominação
forjada na sociedade colonial “foi marcada pela presença ativa dos índios que, por seu
turno, enfrentaram a subordinação colonial e o cativeiro de formas múltiplas.”349 Diante
da impossibilidade de retomar por completo as relações e modos de vida de antes da
chegada dos europeus, os indígenas “procuravam forjar espaços próprios no interior da
sociedade colonial. Esta busca, embora produzisse resultados no mais das vezes
ambíguos, manifestava-se tanto na luta cotidiana pela sobrevivência quanto nas múltiplas
formas de resistência.”350

347
A expressão “despertar indígena” é utilizada por Eduardo Viveiros de Castro. Para o antropólogo, Mário
Juruna, Raoni, Angelo Cretã, Marçal de Souza, Ailton Krenak e Davi Copenawa fazem parte de uma
geração de “índios que se descobriram índios, que voltaram a ser índios sem nunca deixar de tê-lo sido”.
Ao romper com a ideia de povos aculturados, passaram a se colocar publicamente como agentes da
indigenização. Se valeram, portanto, justamente de suas identidades enquanto indígenas para reivindicar
direitos historicamente negados. CASTRO, Eduardo Viveiros. Alguma coisa vai ter que acontecer. IN:
COHN, Sérgio (org.). Ailton Krenak – Encontros. Rio de Janeiro: azougue, 2015.
348
CUNHA, Manuela Carneiro da. Introdução a uma história indígena. Índios no Brasil: história, direitos
e cidadania. São Paulo: Claro Enigma, 2012. p. 22
349
MONTEIRO, John Manuel. Negros da Terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São
Paulo: Cia das Letras, 1994. p. 154
350
Idem, p. 170
137

As viagens ocorridas no interior amazônico – tais como as que tinham como


objetivo a coleta de “drogas do sertão”, missões religiosas, diplomáticas ou de busca de
informações acerca do mundo natural – tinham parte expressiva de sua tripulação
composta por índios empregados no serviço do remo.351 Remeiros, proeiros e pilotos, por
sua vez, formavam, como chamou atenção do historiador Elias Abner Ferreira, um
“microuniverso das canoas”, marcado por hierarquias e pela execução de distintas tarefas.
De acordo com Rafael Chambouleyron, Monique Bonifácio e Vanice Melo, nas
viagens de coleta de drogas havia diferentes remunerações aos índios que compunham a
tripulação: “aos remeiros pagavam-se duas varas de pano por mês; aos proeiros, três
varas; e aos jacumaúbas, ou pilotos, quatro varas de pano.”352 A antropóloga Glória Kok,
ao referir-se a viagem entre São Paulo e Cuiabá do D. Antônio Rolim de Moura, o Conde
de Azambuja, em 1751, destacou que “o conhecimento das técnicas de navegação,
acumuladas durante os anos, e uma acurada capacidade de observação do movimento das
águas, da localização das pedras e do curso dos rios conferiram aos pilotos das canoas um
estatuto diferenciado dos demais marujos, visível no luxo das vestimentas.”353
Para além da questão da geração de riqueza, os conhecimentos acumulados pelos
jacumaúbas contribuíam para que eles desfrutassem de reconhecimentos entre os próprios
indígenas. Se destacavam “sobre os remeiros e até mesmo sobre os Principais
indígenas.”354 Eles desempenhavam atividades menos penosas: sua “função consistia,

351
Elias Abner Ferreira destacou que desde o início do processo de colonização portuguesa na Amazônia a
necessidade de índios para remar as embarcações era constante: “na expedição que fez à Quito, no Peru,
em 28 de outubro de 1637, o capitão Pedro Teixeira sai do Pará com uma frota composta por quarenta e
sete canoas grandes, e nelas setenta soldados portugueses, mil e duzentos índios remadores e guerreiros,
que com as mulheres e rapazes do serviço ultrapassariam duas mil pessoas... A viagem de Pedro Teixeira
seria a primeira expedição portuguesa a percorrer o rio Amazonas de um extremo ao outro. Nela, chama a
atenção não apenas o grande número de embarcações que compunham o comboio, mas também os mil e
duzentos índios remadores.” Os missionários recorreram igualmente aos conhecimentos dos índios
remeiros e pilotos. FERREIRA, Elias. Op. Cit. p. 102.
352
CHAMBOULEYRON, Rafael; BONIFÁCIO Monique S; MELO, Vanice S. Pelos sertões “estão todas
as utilidades”: Trocas e conflitos no sertão amazônico (Século XVII). Revista de História 162, 1 semestre
de 2010, 13-49. p. 25. Como indicado pelos autores, “a vara de pano circulou como moeda no Estado do
Maranhão até a introdução oficial da moeda metálica em meados do século XVIII”. Sobre o tema ver:
LIMA, Alam da Silva. Do “dinheiro da terra” ao “bom dinheiro”: moeda natural e moeda metálica na
Amazônia colonial (1706-1750). Dissertação de Mestrado, História, Programa de Pós-Graduação em
História Social da Amazônia da UFPA, Belém, 2006.
353
KOK, Glória. Vestígios indígenas na cartografia do sertão da América portuguesa. Anais do Museu
Paulista. São Paulo. N. Sér. v.17. n.2. p. 91-.109 jul.- dez. 2009. p. 97
354
FERREIRA, Elias Abner. Op. Cit. p. 107
138

basicamente, em controlar o leme da embarcação, o jacumã”. Já os remeiros tinham


prolongadas horas de trabalho que exigiam grandes esforços físicos.355 Nas expedições
para coletas de drogas, “enquanto os remeiros remavam por toda a viagem até as feitorias
e ainda tinham que se embrenhar na mata à coleta das drogas do sertão, os pilotos
jacumaúbas repartiam os índios para a coleta e ficavam nas feitorias na companhia dos
Cabos de Canoas.”356 Evitava-se os riscos da entrada na mata, devido ao receio de perder
o piloto, o que evidencia o papel estratégico ocupado nas expedições.357
Heather Roller também verificou a existência de hierarquias entre os membros das
expedições de coleta de drogas no sertão ocorridas no período de vigência do Diretório
dos Índios, manifestas para além da remuneração. Quando havia suspeita de desvios dos
produtos coletados na floresta, “os pilotos da expedição (jacumaúbas) forneciam os
primeiros depoimentos, seguidos pelos arqueiros (proeiros), em razão de seu status mais
elevado entre os tripulantes.”358As atividades de coleta, bem como as de remar e pilotar
eram executadas pelos índios aldeados, a princípio pelos missionários e, posteriormente,
pela coroa. As expedições de coleta de drogas ocupavam parte expressiva da mão de obra
dos aldeamentos.359 Segundo o autor,

anualmente, durante a segunda metade do século XVIII, conforme os níveis do


rio baixavam, uma média de 1.500 tripulantes indígenas partia de cerca de
cinquenta aldeias para as florestas remotas do sertão amazônico. Pelos
próximos seis a oito meses, conforme procuravam por cacau, salsaparrilha,
castanhas ou ovos de tartaruga, eles podiam passar por todo tipo de dificuldade
– epidemias, ataques de povos indígenas, fome, motins ou a perda da canoa da
aldeia e sua carga, para indicar apenas algumas.360

355
Idem, p. 117
356
Idem, p. 134
357
Idem, p. 134
358
ROLLER, Heather Flynn. Expedições coloniais de coleta e a busca por oportunidades no sertão
amazônico, c. 1750-1800. Revista de História de São Paulo, nº 168, p. 201-243, janeiro/junho de 2013. p.
215.
359
Como destacou Patrícia Sampaio, o alto número de indígenas empregados nas expedições de coleta de
drogas do sertão e nas comissões oficiais, em especial as de demarcação de fronteiras, era visto de forma
crítica por parte de algumas autoridades colônias. Alexandre Rodrigues Ferreira foi um dos que fez coro a
observação. O naturalista considerava que o emprego dos indígenas em sucessivas expedições contribuía
para a ruína das povoações e da agricultura do Rio Negro. SAMPAIO, Patrícia Maria Melo. Espelhos
Partidos: etnia, legislação e desigualdade na Colônia. Manaus: Editora da Universidade Federal do
Amazonas, 2011.
360
ROLLER, Heather Flynn. Op. Cit. p. 203
139

Mesmo perante os eminentes perigos, alguns indígenas “que não eram obrigados
a participar, tais como os oficiais nativos, faziam-no voluntariamente.”361 Para o autor,
tal escolha estava associada ao fato dos deslocamentos aos sertões proporcionarem
oportunidades limitadas em outros tipos de trabalhos compulsórios.362 Mesmo sendo
difícil mapear o que efetivamente ocorria nas expedições quando elas se afastavam das
vilas e povoações, Roller, ao analisar as devassas salvaguardadas no Arquivo Público do
Estado do Pará, observou que os documentos contém “descrições sem paralelo dos
eventos que aconteceram no sertão e retrataram, frequentemente de forma dramática, os
limites do controle colonial naquela esfera.”363
Corroborando com os argumentos de Bárbara Sommer de “que os índios possam
ter encarado as expedições ao sertão como uma trégua nas obrigações mais árduas nos
aldeamentos”364, bem como com os de Mauro Cezar Coelho acerca das possibilidades
abertas pelas “atividades comerciais não supervisionadas no sertão”,365 Roller sugeriu que
os indígenas vislumbravam nas expedições para o interior possibilidades de atuações
independentes.366 O fornecimento espontâneo dos serviços como remeiros ou jacumaúbas
estariam associados à perspectiva de expansão de suas redes sociais, culturais e
econômicas. O sertão era um universo de trocas e comunicação familiar para alguns
nativos e seus conhecimentos e redes de contato eram renovados e exercidos no cotidiano
das matas.
A equipe da Comissão de Demarcação de Fronteira da qual Francisco José de
Lacerda e Almeida e Antônio Pires da Silva Pontes fizeram parte contou, no trecho de

361
Idem, p. 203
362
Numa perspectiva que acompanhava os anseios, como escreveu a historiadora Vanice Siqueira de Melo,
de sujeitos “expulsos da sociedade colonial – como os índios, escravos fugidos, os perseguidos pela justiça
Real e pela Inquisição – o sertão era um espaço de liberdade em relação a uma sociedade que os oprimia e
a esperança de uma vida melhor.” Deste modo, “a imagem acerca do sertão variava conforme o agente do
discurso”. Poderia remeter, mesmo não sendo necessariamente utilizado o termo, a uma possibilidade de
autonomia e de sobrevivência, individual ou coletiva, nas margens do mundo colonial. MELO, Vanice
Siqueira. Cruentas guerras. Índios e portugueses nos sertões do Maranhão e Piauí (primeira metade do
século XVIII. Curitiba: Prisma, 2017. p. 30
363
ROLLER, Op. Cit. p. 204
364
SOMMER, Barbara. Negotiated settlements: Native Amazonians and Portuguese policy in Pará, Brazil,
1758-1798. Tese de doutorado em História, Universidade do Novo México, 2000.
365
COELHO, Mauro Cezar. Do sertão para o mar – um estudo sobre a experiência portuguesa na América,
a partir da colônia: o caso do Diretório dos Índios (1751-1798). Tese de doutorado em História,
Universidade de São Paulo, 2005.
366
ROLLER, Heather Flynn. Op. Cit. p. 241
140

viagem entre a vila de Barcelos e a vila Bela da Santíssima Trindade, com 516 pessoas.
Faziam parte do “estado militar e de seus adjuntos” – capitão-general, coronel de
cavalaria dos reais exércitos, tenente-coronel d'artilharia, sargento-mor engenheiro,
capitão ajudante d'ordens, capitães engenheiros, astrônomos, capitão de infantaria,
ajudante, quartel mestre, alferes, capelães, cirurgiões, ajudantes dos ditos, espingardeiro,
sargentos, furriéis, porta-bandeira, cabos d'esquadra, cadete, soldados, tambores – 86
homens.
Dentre os que compunham o “Estado Civil” – secretário, provedor da fazenda e
escrivão – encontravam-se 3 homens. Em meio aos “familiares, criados e escravos” –
mulheres, filhos, filhas, afilhados, agregados brancos, índios, mameluco e mulato, criados
brancos, mulato e preto e índios, escravos e escravas – somava-se 85 homens e mulheres.
O restante da tripulação, 341 pessoas, era formado por “oficiais índios e de equipagem
das canoas”. Desses, um era sargento-mor e outro capitão e não há especificidade de sua
condição social e cor; outros dois foram designados como “marinheiros brancos”; 21
foram apontados como “pilotos índios” e 316 como “remeiros ditos”.367
Segundo o matemático Francisco José de Lacerda e Almeida, os sujeitos
empregados no serviço do remo distribuídos nas canoas, permaneciam, enquanto
executavam as suas atividades, em pé na parte dianteira do barco.368 Obedeciam às ordens
de um “dos remadores mais antigos e experientes d´elas, com o título de proeiro.” Esse
último era único a possuir “as chaves do caixão das carnes salgadas e das frasqueiras”,
além de ser o responsável pelo “governo da proa”. Era ele quem coordenava as remadas
do grupo de acordo com a demanda de cada trecho do rio, as fazendo “mais ou menos
compassadas [...], conforme bate [...] com calcanhar na canoa, servindo cada pancada
como compasso para cada uma remada.”369

367
Os números foram apresentados por Alexandre Rodrigues Ferreira no Diário da Viagem Filosófico pela
Capitania de São José do Rio Negro.
368
Sérgio Buarque de Holanda identificou a descrição dessa forma de se posicionar nas canoas em relatos
de “paulistas” envolvidos no comércio das monções. No entanto, reconheceu que nem as canoas e nem a
forma de remar eram “peculiar à navegação do Tietê, do Pardo, do Paraguai, do Coxim ou do Taquari; que
em outras regiões brasileiras mais apartadas, sem excluir o extremo norte, onde todos os caminhos eram
fluviais esse modelo estivesse muito generalizado.” Holanda afirmou que “um desses usos, dos tripulantes
remarem sempre em pé, que foi corrente não só no Brasil, como em todo o continente americano.”
HOLANDA, Op. Cit. p. 32-33
369
Lacerda e Almeida escreveu a descrição na África oriental portuguesa, quando comparou como os
remeiros do continente americano e africano executavam os trabalhos com o remo. ALMEIDA, Francisco
141

Um dos desafios principais da viagem entre as capitanias do Rio Negro e do Mato


Grosso era a passagem pelas cachoeiras, com destaque para as do rio Madeira, Mamoré
e Guaporé. O proeiro tinha um importante papel nas descidas das cachoeiras, quando
levava “a vida em muito perigo e risco”, o que fazia com que Lacerda e Almeida afirmasse
que ele merecia toda a contemplação. Como nas quedas a água corria “como a bala
despedida da peça”, era necessário que o proeiro permanecesse de pé na dianteira da
canoa a segurar um grande e forte remo nas mãos, utilizado para desviar das pedras. Era
“necessário mudar o remo para um e outro lado da canoa, conforme a necessidade o pede
e com grande presteza.” Se nas “rápidas mudanças sucede[sse] de escorregar ou roçar a
canoa em alguma pedra ainda que seja levemente, [iria] ao rio e se faz[ia] em pedaços ou
ao menos morr[ia] afogado.” O proeiro, pelas habilidades que possuía, era uma figura
respeitada entre os seus companheiros. Tinha “toda a chibanca de um vilão obsequiado e
respeitado.”370
Quando se encontrava em viagem no continente africano, anos depois, Lacerda e
Almeida recuperou a sua experiência nas capitanias de São José do Rio Negro, Mato
Grosso e Cuiabá e São Paulo (para onde deslocou-se depois de se separar da comitiva de
demarcação de fronteira). Ao navegar por um trecho “cheio de escabrosidades” e
“asperezas” do rio Zambeze, todos o julgavam ser passagens dificultosas, pois nunca
“viram cousa pior neste gênero”, lembrou das “medonhas cachoeiras” derrotadas nos rios
Madeira, Mamoré, Taquari, Cuxim, Pardo e Tietê.371
Na medida em que ativava as suas lembranças, mencionou a habilidade dos
remeiros e dos proeiros americanos. Ele dizia ter sentido mais medo no Zambeze, mesmo
sendo trechos menos tortuosos. Na Amazônia e em São Paulo, “os marinheiros que
navegam por aqueles mencionados rios são homens que procuram evitar o perigo.”372
Lacerda e Almeida também observava as diferentes disposições que os remeiros

José de Lacerda. Diário de viagem entre a Ilha de Moçambique e a vila de Tete. Disponível em: PEREIRA;
RIBAS. Op. Cit. 2012.
370
Idem.
371
ALMEIDA, Francisco José. Diário de Viagem de Moçambique para os Rios de Sena feito pelo
governando dos mesmos rios o Dr. Francisco José de Lacerda e Almeida. In: PEREIRA; DORÉ, Op. Cit.
2012. p. 511-512
372
Idem, p. 539
142

adotavam nos dois continentes: enquanto os naturais da América permaneciam, como


dito, em pé, os da África remavam sentados.
Talvez a disposição dos remeiros descritas e lembradas por Lacerda e Almeida
possa ser observada no Prospecto das canoas em que navegaram os empregados da
expedição filosófica pelos rios Cuiabá, São Lourenço, Paraguai e Jauru, do riscador
Joaquim José Freira.373 A imagem reproduzida mais abaixo deve ser lida em conjunto
com a Memória sobre a Marinha e interior do Pará, de autoria de Ferreira. O
deslocamento por regiões costeiras, rios, igarapés do território amazônico exigia
constantes aprimoramentos náuticos e técnicas de construção de embarcações específicas,
em partes contemplados na memória do naturalista e nas imagens dos riscadores.
Antes de abordá-la cabe um importante parêntese. Os registros visuais dos barcos
descritos na Memória sobre a Marinha tinham, em grande medida, um caráter
pedagógico, cujo objetivo era possibilitar a reprodução dos objetos por terceiros e em
outros contextos. Em algumas pranchas, as embarcações foram desmontadas, sendo
retratadas suas peças, lados distintos, partes interiores, traseiras, dianteiras e as formas de
se posicionar dentro delas. Como ressaltou Iara Lis Schiavinatto, uma imagem como esta,
tal como o desenho de um maquinário com suas engrenagens, peças e usos ou de uma
planta ou animal dissecados

poderia ser mostrada para alguém que não fosse necessariamente letrado. Nem
por isso, a imagem perdia seu senso de uso, na medida em que portava uma

373
De acordo com as tradições artísticas e políticas do contexto, Ermelinda Pataca recuperou as
características de um prospecto. “Alguns tratados de engenharia e de arquitetura militar portugueses do
século XVIII caracterizavam os prospectos como um tipo de “planta militar” que “se distingue da pintura,
ou miniatura” consideração de extrema importância no entendimento destas imagens. Eram utilizadas
técnicas de pintura em aquarela, como a preparação e a caracterização sobre o uso dos pigmentos, técnica
na pincelada para obter determinado efeito, etc. Apesar das congruências com a pintura, notamos que os
prospectos já se caracterizavam através de padronizações como o uso de caracteres, a simbologia das cores,
etc. A singularidade das plantas militares é devida as suas atribuições simbólicas para designar conceitos,
como as cores: “toda obra de terra se deve riscar e lavar de preto”, ou “em tudo o que é mar, rio, ribeiras,
se deve dar aguada adoçada de verdete líquido, chamado aguada de rios”, regras inexistentes nos manuais
de pintura e próximos a tradições cartográficas. As padronizações científicas também eram expressas no
uso de legendas explicativas. Aqui texto e imagem se complementam para ampliar o caráter informativo e
explicativo através do destaque a destaques da imagem explicados nas legendas. A maneira cartográfica de
representar a natureza também se associava à elaboração dos prospectos através da complementaridade de
informações entre as representações conferindo a tridimensionalidade aos objetos pela complementaridade
de visões verticais (como os mapas, cartas geográficas, plantas, etc.) e horizontais (como os prospectos e
perfis).” PATACA, Ermelinda. Arte e ciência na Amazônia no século XVIII: o Prospecto da Vila de
Cametá. Caiana #5, segundo semestre 2014, 62-79.
143

informação quanto aos modos de manejar uma dada planta no dia a dia. Daí, a
força didática desse tipo de imagem avulsa ou encadernada, porque atingia um
leitor/usuário com possível eficácia.374

Recuperamos outra imagem que compõe a Memória sobre a Marinha para ajudar
na apreensão do argumento de Schiavinatto. No desenho de José Codina, foi contemplada
uma canoa, como chamavam os portugueses ou, segundo o naturalista, um igari ou igarité
(“que é a contração de iagira + reté que quer dizer canoa verdadeira”), como
denominavam os índios do Pará. Uma canoa ou igarité era “toda e qualquer embarcação
sem quilha, formada do casco simplesmente ou com obras superiores”, ou seja, poderia
ser coberta ou não.

374
SCHIAVINATTO Iara Lis. Sobre educar a mocidade: entre saberes, linguagens e sociabilidades
letradas. Educação Sensível. Imagem, política e memória no mundo luso-brasileiro. Campinas: Tese de
Livre Docência, Universidade Estadual de Campinas, 2017. p. 94-95
144

A imagem original contempla “uma igarité, uma ubá e uma jangada e seus
acessórios.” Disponível em:
https://www.brasilianaiconografica.art.br/obras/searchAll/igarit%C3%A9

Como explicava Ferreira, em complemento à imagem, “o que os canoeiros


chamam quilha da canoa são os dois talões de popa e proa.”375 A ausência dos talões era
útil para a circulação em rios e costas com baixa de areia, pedra ou raízes de árvores,
facilitando o desencalhe. Aspecto semelhante era considerado na escolha dos remos. Nas
navegações “pelas beiradas dos rios”, contra a correnteza e “para muito igarapés” eram
usados remos curtos. Os mais longos tinham préstimo “nas viagens de água abaixo”, feitas

375
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Memória sobre a Marinha interior do Estado do Grão-Pará, 1787.
Manuscrito. Consta anotações: Drummond nº 2. Assinatura autografada. Consta apenso. Coleção
Alexandre Rodrigues Ferreira. Proveniente da Coleção Lagos. ABN v 1, p 118. CEHB nº 11.
http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_manuscritos/mss1456738/mss1456738.pdf
145

pelo meio de rios com profundidade e ajudadas pela correnteza. No desenho,


resumidamente, corpo, embarcação sem quilha e remos curtos se juntam. Podia servir
para demonstrar/ensinar o uso específico da canoa e seus remos, mas permite também ver
o necessário jogo de força e equilíbrio entre eixo reto, vela, vento e corpo humano.
Tratemos, então, do Prospecto das canoas em que navegaram os empregados da
expedição filosófica. Em uma embarcação de “meia coberta”, utilizada para transporte de
pessoas e mercadorias, foi retratada parte da equipe de Alexandre Rodrigues Ferreira,
contemplado em ação na única parte coberta da embarcação.376 Quatro homens brancos
ocupam a parte traseira, onde encontra-se fixada a bandeira com o brasão Real. Dois deles
parecem contribuir com o rumo e movimento do barco, na medida em que seguravam
remos longos – úteis para rios com profundidade, observem como o comprimento maior
se comparado com o remo da imagem anterior – mantinham-se atentos ao curso do rio.
Outros, sentados, observavam as redondezas.
Os cinco remeiros, vestidos com calção branco na altura dos joelhos e chapéu para
proteção em longas jornadas no sol, encontram-se na parte dianteira do barco, separados
dos demais pelo toldo e por uma cobertura que servia de abrigo para as cargas.
Mantinham-se em pé, a segurar os remos longos, e dispostos sucessivamente um para
direita e outro para a esquerda.

376
Iara Lis Schiavinatto verificou uma “diversificação da retratística entre fins do século XVIII e início do
XIX no mundo letrado e governativo português, com uma desejada laicização das figuras”, o que ajuda a
compreender o surgimento de um “rol de figurações humanas” contempladas em “um conjunto de gravuras
e figurinhas: os tipos reinóis e aqueles do mundo colonial, dotando de materialidade e iconografia as gentes
das camadas populares e dos mundos da conquista, onde pontificam as figurinhas de Carlos Julião.” Para a
autora, “pode-se então falar de uma emergência de retratos de tipos, de ofícios e de sujeitos individuais, de
maneira inédita e impressionante pelo volume encontrado no todo.” Entre os ofícios retratados verifica-se
o do naturalista, retratado em mais de uma ocasião, como na plancha exposta, em “exercício metódico,
atento, detalhista.” SCHIAVINATTO, Iara. Retrato e biografia. Lisboa/Rio de Janeiro. 1770-1820. História
(São Paulo) v.33, n.1, p. 3-26, jan./jun. 2014. p. 10 e 11
146

Prospecto da canoa em que navegaram os empregados da expedição filosófica pelos rios


Cuiabá, S. Lourenço, Paraguai e Jauru
Original de Joaquim José Freire

Há uma divisão do trabalho no interior da canoa. Da proa, os remeiros moviam o


barco com a pulsão dos remos. Da popa, mais perto do símbolo real, homens brancos
garantiam a segurança. Era conhecido o “perigo” vindo da mata, Silva Pontes e Lacerda
e Almeida quase foram atravessados por flechas disparadas, segundo os matemáticos,
pelos Jura quando viajavam entre Barcelos e vila Bela. Da cabine, protegido do sol e do
risco de ter seus cadernos de anotação molhados, o naturalista tomava nota do que via.
Parecia escrever de maneira contínua e árdua o que observava ou talvez aproveitasse a
proteção da canoa para organizar o diário. Colocada no rio, a canoa sugere uma boa
relação entre portugueses e indígenas. A manutenção da ordem não podia ser dispensada
no conjunto, pois cada um dava conta de uma demanda.
147

Quando as coisas saíam do controle (com fugas de remeiros, ataques de grupos


hostis e informações imprecisas sobre os percursos), os resultados da expedição eram
comprometidos. Nos prospectos, cujo objetivo era dar a ver o naturalista em ação, como
nesse e no que trataremos adiante, a ordenação da tripulação e da natureza se faziam
presentes. Nos parece uma estratégia para construir uma narrativa imagética que apontava
para o sucesso da atuação dos agentes coloniais no ultramar. No interior desta lógica, não
seria interessante “pintar” um naturalista, sujeito incumbido de colocar em prática o
projeto de inventariar e “domar” o meio natural e seus seres, em apuros, a menos que a
cena corroborasse com a edificação da bravura do viajante ao enfrentar os “bravios
sertões”. Como os desenhos eram acabados nas “centrais de cálculo”, ou seja, em Lisboa,
havia brecha para o “ordenamento do cotidiano.” Mas as fugas e os conflitos escapavam
nos diários e nas correspondência, esses sim relatos feitos “no calor da hora”.
Para Ermelinda Pataca, “é provável que os remeiros que aparecem na canoa sejam
negros escravizados, pois, de acordo com a provisão de pessoas e equipamentos para a
viagem realizada entre vila Bela e Cuiabá, foram encarregados ‘pretos de serviço’.”377 Na
Relação do que se faz preciso aprontar de homens, canoas, mantimentos e outros
preparativos necessários para o transporte do Dr. naturalista e mais empregados da
Expedição Filosófica, em viagem pelos rios Cuiabá abaixo, Paraguai acima até o Porto
do Registro do Jauru foi descrito que “para remeiros das canoas grandes são preciso
vinte, porque com os quatro negros escravos de sua Majestade que tem acompanhada a
mesma expedição se completa a precisa conta de vinte e quatro remeiros para quatro
canoas.”378
A partir da prancha não é possível precisar a origem social dos cinco remeiros. No
entanto, Rodrigues Ferreira salientou em suas Observações gerais e particulares sobre a
classe dos mamíferos observados no território dos três rios da Amazonas, Negro e da
Madeira que os índios eram preferidos, se comparados aos negros e brancos, no serviço
do remo, pois eram mais ágeis e resistentes.379 Em uma análise que combinava fatores

377
PATACA, Ermelinda Moutinho. Mobilidades e permanências de viajantes no Mundo Português. Entre
práticas e representações científicas e artísticas. São Paulo: Tese de Livre Docência, Universidade de São
Paulo/ Faculdade de Educação, 2015. p. 276
378
Idem, p. 341
379
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Observações gerais e particulares sobre a classe dos mamíferos
observados nos territórios dos três rios, das Amazonas, Negro e da Madeira: com descrições
148

climáticos, geográficos e culturais, dentre os quais destacava-se o pressuposto da suposta


e pretensa superioridade civilizacional do europeu, afirmou que entre os indígenas “a
agilidade excedia a força”.
Para ele, enquanto o negro era mais apto ao trabalho com a enxada e com o
machado, os índios destacavam-se “para o serviço das canoas e em tudo que relacione a
pescar, nadar, remar.”380 Ficava impressionado com as canoas que saíam do porto do Pará
rumo à capitania de São Paulo. Os remeiros empregados em tais diligências demostravam
tamanha resistência que não se encontraria “uma só equipe que seja, tanto de brancos
como de pretos, resistente a uma fadiga semelhante; os portugueses bem o podem dizer.
E todos os dias vemos índios desta maneira, assim estão habituados desde a infância.”381
Ainda que todos os índios demonstrassem destreza para atividades das águas e
suportassem as agruras do remo, na perspectiva do naturalista, havia diferenciações entre
os conhecimentos que dominavam. Na Memória sobre a marinha interior do Estado do
Grão Pará, Rodrigues Ferreira descreveu as peculiaridades dos incorporados nas canoas
das mais altas autoridades, como na do Governador do Grão Pará. Em viagens oficiais
eram priorizados os índios “mais valentes”, tais como os “Cametauanos ou índios de
Cametá e os Aruanos e Sacacas e outros índios da Ilha Grande de Joanes.” No caso desses
últimos, Rodrigues Ferreira salientava a experiência acumulada com correntes marítimas
e “mareação”.
Isso fazia com que eles se tratassem “entre si de marinheiros do salgado, em
desprezo dos outros índios do sertão”, nomeados como “remeiros de água doce.” Em
contrapartida, os “índios do sertão” possuíam maior domínio em percorrer rios
encachoeirados. “Canicarú” era a palavra que os índios do sertão, segundo o naturalista,
usavam para nomear em “remeiros de maré”, “que fora dela davam fundo”, tendo em
vista que não eram destros para lidar com baixas de rios, correntezas e quedas d´águas.382

circunstanciadas que quase todos eles deram os antigos e modernos naturalistas, e principalmente dos
tapuios [1790]. In: Viagem Filosófica pelas capitanias do Grão Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá.
Conselho Federal de Cultura, 1972.
380
Idem
381
Idem, p. 84
382
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Memória sobre a Marinha interior do Estado do Grão-Pará, 1787.
Manuscrito. Consta anotações: Drummond nº 2. Assinatura autografada. Consta apenso. Coleção
Alexandre Rodrigues Ferreira. Proveniente da Coleção Lagos. ABN v 1, p 118. CEHB nº 11.
http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_manuscritos/mss1456738/mss1456738.pdf
149

Estamos, portanto, diante de domínio de técnicas e conhecimentos especializados e de


fortes elementos estruturantes de um mundo do trabalho, constituídos a partir de
sabedorias plurais.
Um registro visual feito pelo riscador Freire nos permite ter contato com os
remeiros representados em ação em uma embarcação oficial. A canoa em questão compõe
o prospecto da vila de Cametá, produzido na viagem pelo rio Tocantins a convite do
governador Martinho de Souza e Albuquerque. De acordo com Pataca, para compreender
a imagem é necessário abordar “referenciais nos campos da engenharia militar, da
arquitetura e da história natural luso-brasileira no final do século XVIII e a definição dos
projetos políticos desenvolvidos na Amazônia para urbanização, agricultura e náutica.”383
Do mesmo modo que o desenho anterior, este deve ser cotejado com a Memória
sobre a marinha interior do Estado do Grão-Pará, tendo em vista que as embarcações
retratadas – desde os pequenos ubás, passando pelas montarias até as canoas do
governador, dos militares, do naturalista e do ouvidor – foram descritas no texto redigido
por Ferreira.

383
PATACA, Ermelinda. Op. Cit. 2014, 62-79.
150

Prospecto da Vila de Cametá e da Entrada que fez o Exmo Sr Martinho de Souza e


Albuquerque Governador e Capitão General do Estado, na tarde do dia 19 de janeiro de
1784

O prospecto foi minuciosamente analisado por Ermelinda Pataca, que o


considerou como um exemplar “das associações entre arte, ciência e técnica no conjunto
das imagens da Viagem Filosófica.”384 Enquanto a vila de Cametá e suas instituições
administrativas e religiosas – a seguir a lógica de ordenação do espaço urbano levado a
cabo no período pombalino – foram contempladas pelo riscador ao fundo, as embarcações
da comitiva de Martinho de Souza e Albuquerque e demais autoridades régias ocupam o
primeiro plano. É seguida a perspectiva de observação do próprio riscador, que se
autorretratou a desenhar de costas na primeira canoa situada à esquerda.
Como no caso de Rodrigues Ferreira, representado “em ação” na prancha anterior,
era conferido, “em consonância com a ciência moderna que demandava a observação

384
PATACA, Ermelinda. Op. Cit. 2014.
151

direta da realidade para posterior reflexão e síntese [...], legitimidade pela inspeção
ocular.”385 Em volta da canoa do “riscador-observador”, em aparente intimidade, há
alguns indígenas. Segundo Pataca, procurava-se enfatizar a tendência ao “ócio natural”
dos índios que não tinham sido “civilizados” pelos portugueses por meio do trabalho e da
religião.
Conforme informação explicitada na legenda, a primeira canoa vermelha,
nomeada Nossa Senhora da Piedade, servia ao transporte do Governador do Grão Pará;
em seguida, com a mesma cor, aparece a canoa Nossa Senhora da Vitória de transporte
do Ajudante das Ordens e do Tenente; depois dela a canoa S. Marta que servia de cozinha;
seguida da canoa S. Francisco Xavier de transporte do naturalista Alexandre Rodrigues
Ferreira e seus acompanhantes; por fim, vinha a canoa Nossa Senhora da Redenção, de
cor verde, do transporte do Dr. Ouvidor e do Sargento Mor. Há ainda três barcos menores,
as montarias, “que transportavam gêneros necessários para os expedicionários de cada
embarcação.”386 Na margem da povoação encontram-se duas ubás. Nota-se o esforço de
retratar uma variedade de embarcações e usos de maneira ordenada e harmoniosa.

385
Idem
386
Idem
152

Canoa Nossa Senhora da Piedade do transporte do Governador e Capitão


General (recorte feito pela autora do Prospecto da vila de Cametá)

Na canoa Nossa Senhora da Piedade foram contemplados nove índios remeiros,


devidamente vestidos com blusas brancas. Mais uma vez, eles são retratados em pé,
enfileirados possivelmente “num intervalo de 3 palmos uns dos outros”387 e a segurar os
remos longos de forma claramente compassada. Os remeiros obedeciam a ordem de um
cabo, homem branco situado na parte superior da embarcação com uma das mãos
levantadas. Outro sujeito vestido com blusa branca e calça vermelha, possivelmente um
índio piloto (jacumaúba) responsável pelo governo do leme, aparece logo atrás dele. Na

387
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Memória sobre a Marinha interior do Estado do Grão-Pará, 1787.
Manuscrito. Consta anotações: Drummond nº 2. Assinatura autografada. Consta apenso. Coleção
Alexandre Rodrigues Ferreira. Proveniente da Coleção Lagos. ABN v 1, p 118. CEHB nº 11.
http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_manuscritos/mss1456738/mss1456738.pdf
153

montaria, situada à frente, os índios remeiros também são retratados a seguir as ordens de
um homem branco com vestes europeias. Pataca, cotejando imagem e texto, conclui que
o naturalista e o riscador concediam destaque a necessidade do comando por parte de um
homem branco, apresentado por Alexandre Rodrigues Ferreira como a “alma da
navegação.”
Há nítidas diferenças entre a forma que os remeiros do barco oficial e os da
montaria foram desenhados. A primeira consiste na falta de vestimenta dos sujeitos que
remavam a montaria; a segunda relaciona-se à estatura dos mesmos que parecem ser
menores; a terceira ao fato da execução das atividades na montaria parecer menos
disciplinadas. Imagem e texto se conectam no sentido de destacar como os remeiros das
embarcações oficiais, no caso analisado a da mais alta autoridade política do Grão-Pará,
eram escolhidos entre os mais fortes, habilidosos e, acrescento, disciplinados. De acordo
com o naturalista, “os índios mais valentes no remo” eram os naturais da Ilha de Marajó
conhecedores da bravura da boca do rio Amazonas. Em paralelo, a imagem alude para
capacidade de uma autoridade se impor em uma território visto ao fundo de forma tão
ordenada. O retilíneo retrato remete ao curso civilizacional almejado pelos agentes
coloniais, que justificava a derrubada da mata e dos povos não “domesticados”.
Rodrigues Ferreira também observou e tomou nota das diferentes tarefas
desempenhadas pelos remeiros que atuavam em uma mesma embarcação. “Os dois
primeiros que remam cada um a seu lado do tombadilho” e os dois últimos eram
escolhidos entre os “mais valentes e mais práticos.” Eram eles os responsáveis por avisar
o piloto “de algum obstáculo que se lhe oferece ou de alguma pedra, ou pau ou baixo que
ele não pode ver da popa, mormente, que quando se navega de noite.” Outros dois, que
ficaram dispostos ao lado “das escotilhas do esgotadouro”, tinham a obrigação de dar
vazão à água acumulada de tempos em tempos. Os demais remavam “sem outra pensão
alguma.”
Segundo o naturalista, os índios empregados nesse ofício denominavam com
nomes de aves ou de outros animais os diferentes modos de remar e, assim, sincronizavam
as suas ações. Quando era necessário amiudar a remadela, um dos dois últimos homens
que compunham a equipe proferiam a palavra Parauá, “que entre nós significa papagaio.”
A analogia era feita, pois os papagaios “que são aves de asas curtas, amiúdam os
154

movimentos delas quando voam.” De maneira distinta, quando se ouvia estourar a voz
com a palavra Maguary, “que é uma ave de asas e perna longas e tem voo plácido e sereno,
todos eles remam a imitação do seu voo.” Assim, seguiam-se remadas longas e
tranquilamente compassadas. Nenhum remeiro descansava ou mudava a ritmo até que o
proeiro lhes desse sinal, “sob pena de logo ser apregoado pelos companheiros que o
injuriam de fraco.” No mais, “para desenfado do seu, algumas vezes trabalham rindo do
seu trabalho, quando imitam o macaco, que dizem eles que os arremeda; o que escutam
os remeiros, dando três remadas juntas e uma compassada com um pequeno intervalo que
medeia.”388
Rodrigues Ferreira tratou na mesma Memória das atribuições, conhecimentos e
habilidades dos pilotos. Esclareceu que “ao índio que governa o leme, os brancos chamam
piloto e outros índios jacumaúbas = quer dizer entre nós no braço do leme.” Era ele,
portanto, o responsável por estar atento ao regime dos ventos e aos possíveis obstáculos
e por coordenar o trabalho coletivo de força, ritmo e direção dos remeiros. Além do
governo da canoa, os pilotos tinham a seu cargo “a repartição das rações diárias para o
sustento dos remeiros.”
Ele deveria fazer a solicitação ao Cabo encarregado, como dito anteriormente, um
homem branco, o qual liberava os alimentos “uma só vez no dia, para dois comeres.”389
Portava-se, assim, como um intermediário entre “mundo indígena” e “mundo do branco”
no interior do barco. No caso da expedição de Demarcação de Fronteira da qual faziam
parte 21 “pilotos índios” e 316 remeiros, a ração diária consistia em um alqueire farinha,
“na sua falta oito pacovas ou seis raízes de macaxeira, uma libra de carne ou peixe seco,
na falta de carne ou peixe, uma libra de legumes.” 390
Tanto na Viagem Filosófica quando na Expedição de Demarcação de Fronteira,
os rios que ligavam Barcelos, na capitania de São José do Rio Negro, e vila Bela, no Mato

388
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Memória sobre a Marinha interior do Estado do Grão-Pará, 1787.
Manuscrito. Consta anotações: Drummond nº 2. Assinatura autografada. Consta apenso. Coleção
Alexandre Rodrigues Ferreira. Proveniente da Coleção Lagos. ABN v 1, p 118. CEHB nº 11.
http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_manuscritos/mss1456738/mss1456738.pdf
389
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Copiada na Vila de Barcelos, capital do Rio Negro, aos 7 de julho
de 1785, etc. In: Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira: a expedição philosophica pelas
capitanias do Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuyabá. [S.l.]: Kapa, 2002. p. 289
390
Idem
155

Grosso, foram apresentados como perigosos, devido ao “clima doentio” que dava baixa
em parte da tripulação, mas também em decorrência das arriscadas cachoeiras a serem
derrotadas, principalmente no rio Madeira, o qual permitia o acesso aos rios Mamoré e
Guaporé. Há relatos do período que alertavam para dificuldade em encontrar mão de obra
para empregar na rota do Amazonas-Madeira-Guaporé.
Eram registradas queixas das autoridades coloniais que alegavam não conseguir
índios remeiros nas povoações e vilas portuguesas, pois muitos estavam empregados nas
expedições de coleta de drogas no sertão. Vanice Siqueira sugere que havia uma
resistência dos próprios índios de participar das viagens rumo ao Mato Grosso, era um
trajeto que lhes oferecia poucas vantagens e muitos riscos. 391 Não é descabido supor que
a circulação de notícias acerca dos adoecimentos constantes e das dificuldades nas
derrotas das cachoeiras impulsionavam a recusa por parte dos remeiros.
Lacerda e Almeida enumerou e nomeou cada um dos obstáculos naturais para a
navegação fluvial entre Barcelos e vila Bela. De acordo com o matemático, em setenta e
três dias o grupo percorreu setenta léguas e “varou” dezessete cachoeiras, sendo treze no
rio Madeira e quatro no Guaporé. Por guardar diferenças se comparadas com as demais,
na quinta cachoeira, denominada Salto do Girão, apontou a técnica utilizada para derrota-
la. Nesse trecho, “se varavam as canoas por terra na distância de 350 braças.” Foram
gastos dez dias na empreitada por terra firme, embora lhe disseram ser possível fazê-la
em oito. O tempo excedido havia sido gasto no concerto das canoas.
Além dos trabalhadores da própria expedição, a Comissão de Demarcação contou
com o socorro dos índios aldeados Pamã, os quais “na ocasião de haver canoas n´aquela
cachoeira [...] não só as vem ajudar a varar, como também trazem refrescos de sua
lavoura, que consta de bananas, mandiocas, batatas, carás, etc.”392 A mesma
“cordialidade” com o viajante não se verificava com “o gentio Caripuna”, que habitava a

391
MELO, Vanice Siqueira. A participação dos indígenas nas expedições da rota Madeira-Guaporé
(segunda metade do século XVIII). In: VEIGA, C.; FERREIRA, E; LISBOA, I.; COSTA, J.;
CENTURIÓN, S. (Org.). História Indígena e do Indigenismo na Amazônia II. São Carlos: Pedro & João
Editores, 2019, v. II. p. 140
392
ALMEIDA, Francisco José de Lacerda. Cópia do diário que fez o mesmo Dr. Lacerda de Barcelos para
a capital do Mato Grosso (1781-1782). In: Diário da Viagem do Dr. Francisco José de Lacerda e Almeida
pelas capitanias do Pará, Rio Negro, Mato Grosso, Cuiabá e São Paulo, nos anos de 1780 a 1790. São Paulo:
na Tipografia de Costa Silveira, 1841. Disponível em: http://bd.camara.gov.br/bd/handle/bdcamara/1941
156

outra parte do rio. Esses foram descritos como “mansos, porém tão ladrões que furtam
quanto podem.”393
Antonio Pires da Silva Pontes Leme também tomou nota sobre a descida da
mesma cachoeira, qualificada como “sumamente trabalhosa, por ser preciso arrastar as
canoas por 2.000 passos.” Embora não tenha dito que a nação Pumã ajudou a expedição,
descreveu as suas roças de mandioca e milho, a cerveja de “milho pisado”, o algodão
tecido para atar as flechas e as zarabatanas usadas com destreza para a caça de aves,394
Silva Pontes destacou igualmente a presença do gentio Caripuna e foi mais detalhista do
que Lacerda e Almeida. Ele chamou atenção para a necessidade de estabelecer amizade
com a nação e de tratá-los com prudência.
Isso porque “nenhuma defesa há nos meios das cachoeiras, se eles nos atacarem,
como fazem os Mura no rio, desembarcados em que basta lançar a canoa para fora da
barreira para lhes escapar.”395 O conhecimento dos indígenas era necessário para varar as
cacheiras, mas a sua amizade era também fundamental para a garantia de passagem sem
maiores riscos. Havia prudência por parte dos portugueses e luso-brasileiros em deslocar-
se por rios que não possuíam o “direito de passagem” franqueado. Por isso era preciso
alimentar e renovar os vínculos e relações com as nações que habitavam as suas voltas.
Passados alguns dias – após enfrentar “muitas correntezas que formam o rio contra
as pedras que acompanham ambas as margens opostas na cachoeira das Araras” – Silva
Pontes voltou a tomar nota acerca dos trabalhadores indígenas. A comissão foi atingida
por forte chuva. Muitos remeiros adoeceram e ficaram incapazes para os serviços. Havia
ainda outra dificuldade: a de conseguir alimentos. A tempestade dificultava a caça e a
pesca e obrigava o grupo ter nas refeições quase exclusivamente a “farinha corrupta da
mandioca.” A escassez de víveres “produzia mais que danos e moléstia no penosíssimo
trabalho de virem nadando contra a correnteza a cada passo que é necessário e puxar por
sirgas a canoas nas contínuas correntezas. Outras vezes aos braços e ombros, metidos nas
correntezas até os peitos e pescoços.”396

393
Idem.
394
PONTES. Antonio Pires da Silva. Diário de Viagem de Antônio Pires da Silva Pontes. Vila Bela, 1 de
setembro de 1781. In: MENDONÇA, Marcos Carneiro de (org.). Rios Guaporé e Paraguai: primeiras
fronteiras definitivas do Brasil. Rio de Janeiro: Xerox do Brasil, 1985. p. 162-163
395
Idem, p. 163
396
Idem, p. 167
157

Mais adiante, atingiram uma das cachoeiras mais penosas, chamada de Ribeirão.
Na passagem por ela, “que por espaço de duas léguas tem três saltos”, foi possível,
segundo Silva Pontes, “fazer três vezes observações de latitude e longitude, achando a
cauda dela em 1º 22’ e 1’’ de latitude de 46º 28’’ e meio de longitude ocidental do
meridiano da ilha do Ferro, supondo de 20º 30’ a ocidental Paris, o dito meridiano do
Ferro.” Parte do trajeto teve, novamente, de ser feito por terra: “descarregam por vezes as
canoas e se conduzem as cargas, no meio de 3.000 passos de terra sobre a margem
oriental.” O trecho era ainda conhecido como um marco da intensificação das “temíveis
sezões de Mato Grosso.” O relato foi marcado pela dramaticidade de um percurso
conhecido por índios e brancos pela alta mortandade:

Os capitães e engenheiros e o padre capelão, o mercador agregado que nos


acompanha, os soldados, quase todos caíram com as febres, as mais delas
trouxeram os índios que são os mais opostos a sentir estes acessos
violentamente. Se puseram quase todos caquéticos e se purgaram aos 20 juntos,
e toda a amenidade que oferecia este lugar da cachoeira do Ribeirão, um rio
assaz cabedal, de boa água, com laje de mais de 500 passos em quadra de
Saxum Rupestre azulado; com todas essas circunstancias foi o aquartelamento
mais penoso que tivemos por serem as saudações dos climas novos em que nos
víamos; muito correspondentes às notícias que trazíamos e daqui em diante se
costuma continuar a derrota para cima, mais como uma romagem de decrépitos
ou de inválidos que caminham à sepultura, do que como gente que vai melhorar
de fortuna ao país em que vegeta o ouro.397

Silva Pontes não deixava de pontuar que “estes ares e águas não costumam
perdoar qualidade ou tratamento”, deixando evidente que todos os membros da tripulação
estavam expostos a sofrer com as doenças. Por esse motivo definiu a comissão de
demarcação como “uma tropa de hepáticos”. Ainda assim destacou que eram “os índios
do rio Negro os mais expostos pelas consequências das diarreias e corrutíveis que os
conduzem rapidamente a morte, se não houver cuidado de usar muito de hypecacuanha e
ipekakonha.”398
Anos depois, Alexandre Rodrigues Ferreira valeu-se da experiência da Comissão
de Demarcação para organizar o deslocamento de sua equipe da capitania do Rio Negro
para a de Mato Grosso e Cuiabá. Tão logo recebida a ordem de que o grupo deveria partir

397
Idem, p. 164
398
Idem, p. 166
158

rumo à vila Bela, João Pereira Caldas informou o naturalista que algumas dificuldades
precisariam ser superadas para viabilizar a partida. A primeira se atrelava à escassez de
farinha de mandioca que experimentava a capitania do Rio Negro; tratava-se de um dos
alimentos dos índios remeiros, proeiros e pilotos.
A segunda se relacionava ao fato dos índios da mencionada capitania, “além de
poucos para tão multiplicadas expedições, [eram] menos vigorosos e hábeis para
passagem das cachoeiras do Madeira.” A fim de solucionar o problema, Pereira Caldas
informava ter solicitado junto ao governador do Grão Pará “para um e outro socorro se
fazerem vir [remeiros] das povoações do rio Tapajós em semelhança que assim mesmo
se praticou na outra expedição.”399 Aproveitava-se, assim, experiências anteriores
acumuladas tanto pelos índios dos aldeamentos do dito rio quanto por viajantes luso-
brasileiros. Somente depois de tomar essas medidas o grupo chefiado por Alexandre
Rodrigues partiu para o Mato Grosso e vivenciou uma experiência marcada pelos
obstáculos fluviais, por adoecimentos e fugas de índios empregados no serviço dos remos.
Remeiros, proeiros e jacumaúbas desempenharam, como procuramos demonstrar,
papel fundamental nos deslocamentos pelos rios amazônicos. Eram eles conhecedores
das diferentes configurações fluviais e detentores de lógicas próprias para organização de
seus ofícios. Seus conhecimentos e habilidades eram marcados pelo empirismo e
transmitidos entre as gerações. De acordo com Elias Ferreira, “não raro os pais
jacumaúbas costumavam levar os filhos durante as viagens, de forma a aprenderem desde
cedo os “segredos” do ofício.”400 No interior do barco, distintos saberes podem ser
vislumbrados quando comparamos as atuações de remeiros e pilotos. Mas havia
igualmente gradações internas entre os trabalhos dos remeiros, tendo em vista que cada
um tinha uma função, tais com a de sinalizar com nomes de aves a mudança do ritmo da
remadela ou de dar vazão à água que por ventura invadia a embarcação.
A transmissão da sabedoria entre os mais velhos e mais novos – garantida pela
oralidade e através do uso/prática – se fazia presente também entre os índios aldeados.
Eram nas povoações, vilas e lugares estabelecidos pela Coroa portuguesa que os indígenas

399
Carta de João Pereira Caldas para Alexandre Rodrigues Ferreira, 30 de janeiro de 1788. In: In: FERRÃO,
Cristina; SOARES, José Paulo Monteiro (Orgs.). Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira. Rio
de Janeiro: Kapa Ed., 2007. p. 224-225
400
FERREIRA, Elias Abner. Op. Cit. p. 133-134
159

eram “recrutados”, ou como nos casos analisados por Roller se “voluntariavam” para
atuar em expedições oficiais ou de coleta de drogas. O sertão, além de ser espaço
garantidor de alguma autonomia e liberdade, eram onde os seus conhecimentos eram
praticados e atualizados. Deste modo, remeiros, pilotos e proeiros indígenas tinham,
necessariamente, de ser incorporados nas equipes e isso não se justificava somente por
serem a mão de obra disponível. Eles atuavam, antes, como “guardiões” de saberes
(acumulados, recriados e ensinados ao longo do tempo) sobre os rios e as matas.

3.2. Conhecimentos em circulação: trocas de notícias sobre os territórios e as gentes

A ilha, no seu princípio, diz ele, não tinha estes rios. Mas tinha,
pela terra dentro, infinitas cobras. Estas, obrigadas das secas,
corriam do centro para a costa a buscar a água. No caminho
que faziam de rastos pela terra, deixavam, com o peso e
grandeza dos corpos, impressas nela as suas figuras, assim
mesmo tortuosas e implicadas em torcicolos, como elas são.
Caíram as águas das chuvas sobre este rasto que achavam feito
e, no seu princípio, abriram regatos. Engrossaram depois os
regatos e ficou sendo o total, o grande rio, o que não fora no
princípio mais que um regato da grossura de uma grande
cobra.401

Assim respondeu, segundo Alexandre Rodrigues Ferreira, um indígena da Ilha


Grande de Joanes quando foi indagado a respeito das muitas voltas e rodeios que
formavam o rio Arari. De acordo com a “galante história” ou “teoria do rio”, como o
naturalista designou, as cobras deslocavam-se do interior da ilha por uma necessidade
vital: para buscar água. Com seus corpos grandes e pesados deixavam marcas “tortuosas”
na terra firme. As brechas nada retilíneas, preenchidas pela chuva, formaram o rio.

401
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Notícia Histórica da Ilha de Joanes ou Marajó. In: Viagem ao Brasil
de Alexandre Rodrigues Ferreira. Rio de Janeiro: Kappa, 2007. p. 66. Segundo consta em nota da
publicação: “esse documento parece ser o texto final, de que são rascunhos ou primeiras anotações os que
se encontram no códice 21,2,2,16 e 21,2,2,17. Não se sabe do original desta versão.” De acordo com
Ermelinda Pataca “este texto, escrito posteriormente à expedição para a ilha do Marajó em 20 de dezembro
de 1783, é uma espécie de diário de viagem. [...] Ferreira concentrou-se em narrar diversas observações
históricas e naturalísticas da ilha.” A Notícia Histórica serviu para a elaboração de outros escritos, tal como
a “Notícia da Nação Juioana a que chamam hoje Sacaca”, e imagens, como: “Prospecto da Villa de
Monforte na Ilha Grande de Joannes”, de Freire. PATACA, Ermelinda. A Ilha do Marajó na Viagem
Philosophica (1783-1792) de Alexandre Rodrigues Ferreira. Boletim Museu Paraense Emílio Goeldi, sér.
Ciências Humanas, Belém, v. 1, n. 1, p. 149-169, jan-abr. 2005. p. 153. Disponível em:
http://scielo.iec.gov.br/pdf/bmpegch/pv1n1/v1n1a07.pdf
160

Rodrigues Ferreira não especificou a qual nação pertencia o índio que lhe concedeu o
relato, mas não é descabido supor que a explicação advinha de antigas ocupações e
relações estabelecidas com a espacialidade em questão, contadas através da oralidade.
A indicação de uma temporalidade, “no seu princípio”, remete para outrora. Se,
por um lado, não são especificados como a ilha surgiu e quem foram os primeiros seres a
habitá-la, por outro a narrativa nos leva a pensar na ocupação do espaço antes da chegada
dos europeus. Na totalidade da Notícia Histórica da Ilha de Joanes, este foi um dos poucos
trechos em que o naturalista escreveu sobre algo que não remetesse para os usos do
terreno por colonos e missionários ou, num olhar mirando o futuro, para as
potencialidades do local. A preocupação principal do seu escrito era, portanto, a de
demonstrar como os vassalos da monarquia interviram nas redondezas do rio Arari com
a instalação de fazendas, casas, igrejas, engenhos de descascar arroz, roças e olarias.
De todo modo, ainda que nas entrelinhas, a “galante história do rio”, aliada à
necessária atuação de remeiros e dos jacumaúbas com seus conhecimentos
geograficamente circunscritos, deixa transparecer a coexistência de diferentes
concepções de espaços – entendidos enquanto resultados das experiências sociais de
diversos agentes históricos – na Amazônia colonial portuguesa.402 Como observou
Vanice Melo Siqueira, “a denominação Estado do Maranhão e Grão-Pará pode ser um
exemplo de representação de uma (re)significação do espaço que era inteligível aos
portugueses como entidade política e geográfica e provavelmente a mesma compreensão
não se deu entre os índios.”403 Não somente as disputas com os reinos europeus
dificultavam a definição das fronteiras coloniais, mas elas também eram “constantemente
borradas pelas práticas e trocas indígenas.”404
Principalmente quando se colocavam em marcha pelos sertões, os estrangeiros e
luso brasileiros não podiam dispensar os modos de apreender o território dos seus mais
antigos habitantes. Assim como no caso dos remeiros e jacumaúbas, através da prática e
do uso, ou seja, movendo seus próprios corpos e elaborando estratégias para reconhecer
os caminhos, os naturais da terra elaboravam e faziam circular seus “conhecimentos

402
MELO, Vanice Siqueira. Op. Cit. 2017.
403
Idem, p. 27
404
Idem, p. 28
161

geográficos”. Não somente, na medida que travavam contato com os viajantes, colocavam
em circulação também os saberes etnográficos e linguísticos acumulados e adquiridos
pelas vivências em territórios circunscritos.
Importante esclarecer que, como nos ensinou Kapil Raj, “por circulação não
entendamos a disseminação, transmissão, ou comunicação de ideias, mas os processos de
encontro, poder e resistência, negociação e reconfiguração que ocorrem em interações
entre culturas.”405 Um sujeito, ao compartilhar o que sabe sobre um caminho, um curso
d´água, um obstáculo geográfico, um povo ou uma língua, não simplesmente responde às
perguntas feitas pelo letrado. Não deve, portanto, ser apreendido apenas como “vetores
de transmissão” de informação bruta a ser lapidada e transformada em “saber erudito”
por pessoa supostamente mais capacitada. As notícias que compartilhavam já eram, em
si, conhecimentos, os quais poderiam ser reelaborados em contato com outras ideias e
formas de pensar.
Para a antropóloga Glória Kok, “nos três primeiros séculos da colonização da
América portuguesa, a cartografia indígena auxiliou no processo de decodificação do
espaço convencionalmente chamado “sertão” pelos adventícios.”406 Interessada em
perceber as técnicas e estratégias para transitar pelo interior da capitania de São Paulo, a
autora assegurou que “as contribuições dos grupos nativos foram imprescindíveis no que
se refere a fornecer informações detalhadas não só sobre a topografia e a geografia, bem
como outros conhecimentos, necessários à elaboração de mapas, esboços, técnicas de
representação e orientação nos caminhos terrestres e fluviais.”407
São esses conhecimentos, ancorados em “um acervo de informações espaciais”,
que a autora denominou cartografia indígena.408 Como já destacado, as nações indígenas
tinham redes de ligações nas regiões interioranas atreladas ao comércio, abastecimento
de alimentos, à pesca e à caça, anteriores à chegada dos europeus que não foram
completamente desagregadas no mundo colonial.

405
RAJ, Kapil. Op. Cit. 2015. p. 170
406
KOK, Glória. Vestígios indígenas na cartografia do sertão da América portuguesa. Anais do Museu
Paulista. São Paulo. N. Sér. v.17. n.2. p. 91-.109 jul-dez. 2009. p. 91
407
Idem, p. 92
408
Idem, p. 93
162

...ramificada na experiência, nos sentidos, na tradição, na memória e na


narração – e tendo como características a transmissão oral e gestual, o sentido
polissêmico do espaço, a preocupação com a forma e a representação do espaço
feita em desenhos, bidimensionais ou tridimensionais, impressos sobre
múltiplos suportes: areia, papel, pele, tecido, cipó, entre outros – a cartografia
indígena, contribuiu de modo incisivo para que, durante os três primeiros
séculos da colonização portuguesa, os paulistas conseguissem decifrar o sertão
americano.409

Glória Kok recuperou narrativas de estrangeiros “surpreendidos” pelo domínio de


tais conhecimentos. Na primeira cena, “o médico naturalista alemão Karl Von den Steinen
[...] conta que um capitão da etnia Suiá desenhou na areia parte do curso do Alto Xingu,
com numerosos afluentes, indicando treze tribos ribeirinhas.” Numa outra, os “esboços
minuciosos da localização de tribos dos Tapirapé, desenhados por um carajá, foram
utilizados pelo etnólogo Fritz Krause como fonte para a localização de tribos do sertão
do Mato Grosso.” Em uma terceira, o capuchinho francês Yves d´Évreux ficou
impressionado com a memória dos Tupinambá do Maranhão: “lembram‑se sempre do
que viram e ouviram com todas as circunstancias do lugar, de tempo, das pessoas, quando
o caso se disse ou se executou, fazendo uma geografia ou descrição natural com a ponta
dos seus dedos na areia, do que estão contando.”410
Há também um instigante escrito de Alexandre Rodrigues Ferreira que permite
notar vestígios da cartografia indígena, já contemplado por outros autores, como
Ermelinda Pataca e também por Glória Kok. O ocorrido se deu no rio Branco a partir de
um diálogo do naturalista com um indígena da nação Macuxi. Segundo Nádia Farage e
Paulo Santilli, junto com os Taurepang, Ingarikú e Wapixana, os Macuxi “são povos
remanescentes de uma maior diversidade étnica, atestada pelas fontes setecentistas para
o rio Branco.”411 Habitavam o “território contíguo, nas serras que se estendem do
Rupununi em direção ao oeste, até as vertentes do rio Surumu.”412
O índio observou que o naturalista “estava a riscar” um “pequeno mapa de
população que ele supôs ser o rio Branco.” Imediatamente, lançou mão de um bastão “e

409
Idem, p. 102
410
Idem, p. 92
411
FARAGE, Nádia; SANTILLI, Paulo. Estado de sítio: territórios e identidades no vale do Rio Branco.
In: CUNHA, Manuela Carneiro da. (Org.). História dos Índios no Brasil. São Paulo: Companhia das
Letras/Secretaria Municipal de Cultura/FAPESP, 1992, pp. 267- 278. p. 268
412
Idem, p. 268
163

com a ponta pôs-se a riscar na areia do pavimento uma encadeação de grandes e pequenos
rios. Na foz do Arauru, segundo ele, o que para nós é Tacutu, riscou a fortaleza de S.
Joaquim e tantos quadrados quantas eram as palhoças a ela anexadas.” O índio produziu
um desenho “onde as cordilheiras eram marcadas por sucessivas séries de ângulos, mais
ou menos agudos, e malocas dos gentios por círculos maiores e menores.”413 Rodrigues
Ferreira direcionou, então, a seguinte indagação ao leitor: “o que faria um europeu criado
como um destes tapuias, ignorantes da existência da geometria, geografia, hidrologia,
etc., se lhe fosse perguntado a respeito de um rio, sua direção, confluentes, número de
aldeias situadas?” E expôs ao seu interlocutor a solução apresentada pelo “gentio
Mucuxi”:

Tomada uma corda, a estendeu pela terra de forma a representar as voltas do


rio principal. A referida corda, lateralmente, da direita e da esquerda foram
atadas outros tantos cordões quantos eram os confluentes a representar, a
justando-os às distâncias que a sua mente tinham uns dos outros e também de
forma a figurar as suas voltas. Finalmente, em cada um dos cordões laterais,
deu tantos nós mais ou menos aproximados quantos eram as aldeias dos índios
e suas distâncias umas das outras. Assim o problema que se lhe propôs foi
resolvido sem ser preciso levantar qualquer carta.414

Posto isto, “sem adicionar coisa alguma além dos nomes que me dizia, mostrei a
carta a sua Excia. o Sr. João Pereira Caldas, ao Governador da capitania, ao Dr.
Astrônomo José Simões de Carvalho e muitos outros.”415 O território onde a cena
transcorreu era uma região de fronteira, com proximidade dos domínios não só espanhóis,
mas também holandeses com os quais os índios, como os Caripuna, mantinham redes
comerciais. Segundo Gregório Gomes Filho e Jaci Vieira, “a importância do rio Branco
para a Coroa portuguesa estava justamente nesse ponto, era a barreira na área limítrofe
entre os domínios portugueses e os vizinhos holandeses e espanhóis, essa seria a primeira
vantagem que os portugueses poderiam ter da região.”416

413
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Observações gerais e particulares, sobre a classe dos mamíferos
observados nos territórios. In: FERREIRA, Viagem Filosófica pelas capitanias do Grão-Pará, Rio Negro,
Mato Grosso e Cuiabá. Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura, 1972. (Memórias, Zoologia/Botânica).
414
Idem
415
Idem
416
GOMES FILHO, Gregório Ferreira; VIEIRA, Jaci Guilherme. Forte de São Joaquim: da ocupação
portuguesa do vale do rio Branco às Batalhas da Memória – século XVIII ao XX. Revista textos e debates,
Boa Vista, n.28, p. 117-136, jul./dez. 2015. p. 127
164

Anos antes, depois de percorrer o mesmo rio Banco, Antonio Pires da Silva Pontes
elaborou um roteiro e uma carta que poderiam auxiliar o viajante a atingi-lo partindo da
vila de Barcelos, bem como a navegar pelas suas adjacências. Parte das informações,
principalmente a respeito da navegação pelos afluentes do rio Branco, foram fornecidas
por indígenas que habitavam a região. Isso pode ser verificado quando o matemático
atingiu o “rio Anaoaû que deságua no Branco pela sua margem oriental.” Segundo
registrou, tratava-se de um “rio de grande extensão e de difícil navegação. Dizem os
índios, que habitam nas suas margens, que se gastam dois meses até as suas cabeceiras,
que constam de dois braços nas serras que chamam de Acary.” De acordo com as
informações coletadas localmente, nas mesmas serras se “formam igualmente as
cabeceiras do rio Repumuny; e que da Serra do Aracary até o chamado rio Repumuny
serão 20 léguas.”417
No dia seguinte, o matemático saiu pela manhã acompanho de “3 pessoas, 2
práticos e índios e com mantimentos para 6 dias na diligencia de chegarmos ao rio
Repuauny.” Ele dizia não saber o caminho e contava apenas com a indicação da direção
indicada pelos práticos. O grupo seguiu pelo rumo sugerido e passaram “pelo meio de
um largo campo, indo admirando duas cordilheiras de montes que o fecham de N [norte]
para uma parte e de S [sul].” Registrou ainda que “as duas pontas de nascentes d´estas
serras paralelas, asseguravam os índios, que iam terminar nas do Repumuny, continuando
a formar as suas margens.”418 A fragilidade do domínio português na região do rio Branco
foi celada, em 1790, poucos anos depois da passagem de Rodrigues Ferreira e Silva
Pontes, por uma de revolta indígena que desestabilizou ainda mais a região de fronteira.419
Na Memória sobre a Marinha do Pará, anteriormente citada, não fugiu à
observação de Alexandre Rodrigues Ferreira duas características dos jacumaúbas: 1)
eram “índios já provectos em idade e experiência”; 2) eram práticos “para a navegação
que se fazem pelos distritos das povoações donde são naturais ou aonde se acham

417
PONTES, Antonio Pires da Silva. Breve diário ou memória do Rio Branco e de outros que nele
desaguam, consequente a diligência e mapa que deste rio se fez no ano de 1781. Coleção Alexandre
Rodrigues Ferreira proveniente da Coleção [Lagos]. CEHB Nº 148. ABN v 72, p. 128. Cat. ARF nº 145 –
cópia do manuscrito, constam correções de Alexandre Rodrigues Ferreira e anotações Drummond.
418
Idem
419
FARAGE, Nádia. As muralhas dos sertões: povos indígenas no Rio Branco e a colonização. Rio de
Janeiro: Paz e Terra; Anpocs, 1991.
165

estabelecidos.” O naturalista queria dizer que os pilotos indígenas eram conhecedores da


geografia e hidrografia do território que viviam ou circulavam com frequência.
Num momento de dificuldade, quando atravessava a baía rumo à Ilha de Marajó,
o naturalista destacava a importância do mesmo na equipe da expedição. Pode haver uma
dose de exagero na narrativa de Rodrigues Ferreira, o qual não perdia oportunidade de
destacar os perigos que correra, mas, ao que tudo indica, os riscos foram grandes, tendo
em vista que assustaram até mesmo os práticos! O trecho é um pouco longo, mas vale a
reprodução:

Eram por este tempo, em consequência da lua, as cabeças de águas, como aqui
chamam os práticos. Ventava da terra um vento fresco, estavam bem fundadas
as esperanças de felizmente atravessarmos a baía; esperanças então que em
pouco menos de uma hora todas se trocaram em sustos no meio de perigos que
até aos mesmos práticos aterrorizavam. Tinha a canoa uma proa tão baixa que
cada cancra o soçobrava; de minuto em minuto, fez-se tão rijo o vento, com
trovoada seca, que mal o podiam sofrer as velas. Mais de três vezes, adormeceu
de todo a embarcação, que pela furiosa impressão do vento sobre as velas era
arrancada das ondas. Rompeu-se, finalmente, uma delas; e eu cuido que umas
das minhas maiores felicidades é a de haver escapado das nove correntezas que
nesta baía atravessamos.420

Não era o caso da travessia para Ilha de Marajó, mas, em viagens de longa
distância, como as empreendidas entre o Pará e o Mato Grosso, era necessário fazer
“mudas” dos jacumaúbas, assim como era feito com os remeiros. No entanto, enquanto a
troca dos sujeitos responsáveis pela atividade de remo se justificava principalmente pelo
desgaste físico – o que levava alguns a fugirem a nado, Sérgio Buarque afirmou que
untavam o corpo com óleo para não serem agarrados no momento da fuga –, a dos
jacumaúbas ocorria por ser “impossível que um só seja prático de tantas e tão diferentes
costas, enseadas e travessias.”421 Como observou Elias A. Ferreira, enquanto os remeiros
“eram a força motriz que impulsionava as canoas”, os jacumaúbas apresentavam-se como

420
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Notícias da Ilha Grande de Joanes dos rios e igarapés que tem na
sua circunferência; de alguns lagos que se têm descoberto e de algumas coisas curiosas. In: Viagem ao
Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira. Rio de Janeiro: Kapa Ed., 2007. Como informado em nota: o texto
de base para esta edição é o códice 10,1,26 da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
421
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Memória sobre a Marinha interior do Estado do Grão-Pará, 1787..
Op. Cit.
166

“os guias dos caminhos fluviais, os pilotos “práticos”, os “peritos insubstituíveis da


geografia fluvial”.422
Não bastava saber técnicas gerais de pilotagem, como indicar o desvio de um
obstáculo visto do barco ou saber administrar o leme, mas era preciso ser detentor de
conhecimentos especializados e circunscritos geograficamente, por exemplo, saber
antecipar a uma queda num rio. Um piloto dominava as mudanças dos cenários com as
cheias e baixas dos rios a fim de evitar o encalhe em bancos de areia e os locais
apropriados e seguros para a expedição fazer alto. O caso do pantanal mato-grossense,
marcado pela sazonalidade, era um exemplo emblemático neste sentido.
Ao viajar por esse território, Antonio Pires da Silva Pontes destacou a perícia dos
práticos dos rios, os iam “buscar passagem pelas margens arriscadíssimas das ervas
flutuantes e buscavam por entre os fechados bosques dos arbustos que figuravam uma
ilha estável.” Segundo a historiadora Maria de Fátima Gomes Costa, espanhóis e
portugueses impressionavam-se com a destreza das populações indígenas em navegar por
terrenos pantanosos. Os payagua, por exemplo, “povo nômade, passava a maior parte do
tempo dentro de suas canoas monóxilas em grandes correrias aquáticas”, ocuparam
relatos dos que com eles tomaram contato, sobretudo, por conta do domínio que
mostravam ter das águas.423
Como sinalizamos no início deste tópico, a recorrência por parte dos matemáticos
e do naturalista aos conhecimentos que detinham as nações indígenas não se verificou
somente no que conferia aos anseios de circulação e mapeamento dos espaços. Os
viajantes se valeram igualmente das notícias de cunho etnográfico fornecidas pelos
indígenas, além de recorrerem aos conhecimentos linguísticos dos mesmos, seja para
comunicar-se durante os deslocamentos ou para resolução de assuntos diplomáticas.
Deste modo, além de fazer circular saberes territoriais, também contribuíram para a
construção do conhecimento sobre os povos habitantes do vale Amazônico e da região
pantaneira.

422
FERREIRA, Elias Abner. Op. Cit. p. 100
423
COSTA, Maria de Fátima. Entre Xarai, Guaikurú e Payaguá: ritos de vida no Pantanal. In: Mary del
Priore; Flavio dos Santos Gomes. (Org.). Os senhores dos rios - Amazônia, margens e histórias. 01ed.Rio
de Janeiro: Elsevier/ Campus, 2003. p. 83
167

Na Memória sobre o gentio Cambeba/Omaguá, produzida em setembro de 1787


na vila de Barcelos, Rodrigues Ferreira recorreu a relatos de terceiros e as informações
fornecidas por um índio para descrever as características físicas, sociais e culturais da dita
nação. Segundo o naturalista, o capitão-mor Pedro Teixeira, quando voltava do Quito para
o Pará, pelos anos de 1639, informou que os Cambeba ocupavam o espaço de duzentas
léguas das margens e ilhas na parte superior do rio Amazonas. O governador e capitão-
general do Grão Pará e Maranhão, Bernardo Pereira Barrêdo também registrou que “a
província dos Cambeba [...] é a mais dilatada de todo o gentilismo, porque compreende
200 léguas de longitude.”
João Pereira Caldas percebeu a curiosidade de Rodrigues Ferreira em ver um
“Cambeba original” e ordenou ao sargento mor Henrique Willkeins “que fizesse vir a sua
presença alguns do antigos Cambeba de cabeça chata.” Com esse objetivo, foi enviado
para vila de Barcelos o índio Dionísio da Cruz, “único desta nação que se acha ainda com
a testa chata.”424 Dionísio poderia “dar uma exata relação dos ritos e mais cerimonias que
usavam os Cambeba”. Além disso, para o naturalista, era possível crer em seus relatos,
pois “o dito índio é civilizado e tem servido honradamente, sem nota nem fuga, desde que
na expedição de Barcelos saiu em piloto, e aqui [atua] na construção de canoas.”425
Dionísio era “curioso de carpinteiro”. Se valendo de suas habilidades como
construtor, demonstrou como confeccionavam e expediam a “flecha não pelo meio do
arco”, e sim “mediante o instrumento da invenção dos antigos Cambeba, a que nós outros
damos o nome de palheta.” A cena foi registrada pelo riscador José Joaquim Freire “ao
natural; sem outra diferença alguma além da do vestido, o que ele mesmo explicou que
era a forma em que vai copiado.”426 (prancha 1). A respeito das túnicas esclareceu que os
mais antigos “não usavam camisas, assim como é verdade que as primeiras que depois se
usaram não tinham mangas; porém já no tempo em que nasceu, no mato [...] todos usavam
camisas com mangas, com a diferença somente de não serem cosidas e ajuntadas nos
ombros, como as nossas.”427

424
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Memória sobre o gentio Cambeba que habitava as margens e nas
ilhas do Solimões. In: Viagem Filosófica pelas capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá.
Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura, 1974. (Memórias, Antropologia). p. 52
425
Idem, p. 52
426
Idem, p. 53
427
Idem, p. 54
168

Outra informação fornecida e demonstração feita por Dionísio correspondiam à


tala utilizada para comprimir e dar um formato específico para as suas cabeças. Como o
naturalista pôde constatar, não “eram logo duas tábuas, como se tem escrito”, mas sim
uma confeccionada “das costaneiras das flechas ou das canas.” (prancha 2) Para não
“magoar muito a criança”, dizia Dionísio, entre a cabeça e a tala era inserida uma
almofadinha “e com razão, porque sendo certo que o osso coronal e os dois parietais,
assim como os outros são nessa idade cartilaginosos.” Em idade adulta um “Cambeba
original” ficava com a testa na altura de um palmo. De acordo com o naturalista, a nação
abandonou “semelhante costume depois de instruídos e civilizados em nossas
povoações.”

Prancha 1 Prancha 2

Indagado sobre o estado atual de sua povoação e das manufaturas que produziam,
Dionísio respondeu que “eram índios fabricantes”, sendo uma distinção que os dispensava
“do exercício de remeiros das canoas.” A afirmação de que eram dispensados do serviço
do remo se contradiz com a seguinte. De acordo com Ferreira, Dionísio alegou que a sua
nação havia diminuído muito em decorrência das guerras contra os Tikuna e as
169

expedições para o Pará, Mato Grosso e “outros rios doentios.” Na ocasião “dos antigos
Cambeba com cabeça chata” restavam apenas um número de 18 ou 20, “e dos filhos
daqueles, já hoje sem a cabeça chata, não excederiam muito a soma total de 100.”
Dionísio afirmava estar vivo por ter se colocado em fuga de uma expedição rumo ao Mato
Grosso para a qual fora convocado em 1765. A deserção era justificava pelo risco
eminente da morte.
Para a escrita, possivelmente em novembro 1793 na vila de Monforte na Ilha de
Marajó, da Memória da nação Juioana a que chama hoje Sucaca, Rodrigues Ferreira
utilizou-se de estratégia semelhante. Recorreu às informações fornecidas pelo “Sakaka
Severino dos Santos, sargento mor da ordenança dos ditos índios da vila de Monforte.”428
Tratava-se de um índio “suficientemente versado nas coisas do país, civilizado já pelo
menos com a civilidade de ter aprendido a ler e escrever.” Contava com a “idade de
setenta e tantos anos, fala expeditamente e assim entende a língua portuguesa e, portanto,
nenhum escrúpulo faço de subscrever as suas informações.” Tais elementos serviam
como contributo para o naturalista se fiar nas informações recebidas.
A primeira notícia que lhe deu Severino do Santos foi a respeito do nome da Ilha
Grande de Joanes: “havendo sido povoada de diversas nações de índios [aruans, moconos,
ingahíbas, mariaoa e karipunas] entre estas a povoou também a nação Juioana; eis aqui o
nome que depois com o tempo a converteu no que hoje tem Joanes.” Posteriormente, a
mesma nação passou a ser chamada de Sacaca. A mudança ocorreu, pois muitos desses
índios foram trabalhar na construção da Fortaleza da Barra com outras nações. “O feitor
dos índios que eles levaram era austero, dizia sempre aos seus que governava pela gíria
Sacacon. Esta palavra quer dizer aviar com o trabalho. As mais nações que ouviram dizer
[...] aquela palavra, entraram a chamar-lhes Sakaka, com este nome ficaram até hoje.”429
Ainda de acordo com o que informou Severino, a nação “sempre habitou pelos
centros desta ilha”. Através dos karipúna tiveram notícias que “se achava gente branca na

428
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Memória da nação Juioana a que chama hoje Sucaca. In: Viagem
Filosófica pelas capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá. Conselho Federal da Cultura
da Cultura, 1974.
429
Idem, p. 99
170

parte onde hoje é a cidade do Pará.” Os sakaka cruzaram, então, a baía “em canoas que
lhes deram os ditos seus camaradas karipúna.”430

Chegando à cidade tiveram a fortuna de acharem lá um parente seu o qual lhes


serviu de intérprete para falarem com ao branco que governava o Pará, o qual
era o sargento mor. Esse dito seu parente estava feito capitão da nação
Tupinambá, o qual tinham apanhado no campo desta ilha sendo ainda rapaz e
depois o batizaram e lhe puseram o nome de João; tinha a alcunha de Sapatú.431

Como evidencia o trecho acima, para alguns casos era necessário um


intermediário para garantir a comunicação entre sujeitos provenientes de contextos
linguísticos distintos. Os intérpretes, também chamados de línguas, atuavam como
tradutores em diálogos entre sujeitos que falavam diferentes idiomas, mas, mais que isso,
portavam-se como tradutores das práticas sociais, econômicas e políticas locais.432 Se,
por um lado, neste caso foram os Sakaka que recorreram a um “parente” para se
comunicar com os brancos, por outro, desde o início da colonização, os línguas eram
utilizados por colonos e missionários nas diferentes porções geográficas que compunham
o Império português.433
De acordo com o historiador Thiago Cancelier Dias, os línguas tiveram papel
importante nas políticas indígenas e indigenistas. Tendo como cerne de investigação as
tentativas de aldeamentos das nações Iny (Karajá e Javaés), Akwén (Akroâ, Xacriabá e
Xavante), Boé (Bororó) e Paraniá (Kayapó do sul), na capitania de Goiás, entre 1721 e
1832, observou que as atribuições de intérpretes recaíam, principalmente, sobre os “índios
ladinos”.434

430
Idem, p. 100
431
Idem, p. 100
432
A historiadora e cientista política Dejanirah Couto analisou “as diferentes categorias de intérpretes (ou
línguas), os tipos de recrutamento a que eram submetidos e as estratégias de uso dos seus serviços no
Império Português na Ásia na primeira metade do século XVI.” Do ponto de vista prático, os sujeitos que
contratavam tais serviços “se tornavam totalmente dependentes do língua para entender a outra língua
escrita e falada, sabendo de antemão que o língua poderia, de acordo com a fórmula consagrada do
‘traduttore, traditore’, manipulá-la e distorcê-la de acordo com os seus interesses.” COUTO, Dejanirah.
The role of interpreters, or Linguas in the Portuguese Empire during the 16th century. E-JPH, Vol. 1,
Number 2, Winter 2003. (http://hdl.handle.net/10316.2/25479) pp.1-2
433
BARROS, Maria Cândida. Intérpretes e confessionários como expressões de políticas linguísticas da
Igreja voltadas à confissão. D.E.L.T.A., 27:2, 2011.
434
Segundo Dias, “na análise da documentação se percebe que muitos índios ladinos eram tratados com a
alcunha de bastardos ou cabras (indígena com branco), caburés (negro e indígena), carijós (índio
administrado), vermelhos, mestiços e administrados. Todas essas designações apresentadas variavam
171

Esses sujeitos, em muitos casos, eram “os primeiros a contatar os outros de sua
nação com o intuito de descê-los para aldeamentos.”435 Eles envolviam-se nas
“negociações de paz” e comprometiam-se a convencer outros indígenas a se instalarem
próximos às povoações. No entanto, se valiam de seus conhecimentos “para administrar
as perdas envolvidas no processo colonial e conduzir os seus interesses e de seu grupo
familiar.”436 A “capacidade de agência dos línguas estaria em um jogo duplo, no qual
deveria atender aos mandos dos agentes coloniais, enquanto mantinham sua legitimidade
entre indígenas como interlocutor.”437
Alexandre Rodrigues Ferreira, no período em que percorreu as capitanias de São
José do Rio Negro e do Mato Grosso, presenciou o estabelecimento de “amizade e paz”
entre portugueses e duas nações indígenas, os Mura e os Guaiakuru. Os primeiros, em
meados de novembro de 1786, “aportaram no lugar de Airão, situado na margem austral
do rio Negro, vindos embarcados, que eram 21 e mais 22 mulheres, 9 rapazes, 7 raparigas,
em diferentes cascas de paus, que são as suas canoas e vulgarmente chamadas de ubás.”438
Apresentaram-se ao diretor dos índios, Raimundo Guedes, “a quem, em nome de todos,
disseram os dois línguas de sua comitiva que ali queriam se aldear e estabelecer
juntamente com os outros índios domesticados.”439 Segundo Ferreira, eles justificaram o
descimento “em virtude da nova estipulação de Paz e Amizade, que todos eles acabavam
de combater com os brancos e com os índios estabelecidos nas margens dos rios Jupurá,
dos Solimões, das Amazonas e da Madeira.”440 Nesse caso, eram os próprios Mura que
desfrutavam dos serviços de um intérprete.
Além de redigir a Memória sobre o “gentio” Mura, da qual foram tirados os
excertos supracitados, Rodrigues Ferreira preocupou-se em reunir as correspondências

dependendo de quem escrevia e para quem era endereçado o documento, mudavam com o passar dos anos
e tinham características locais.” DIAS, Thiago Cancelier. O língua e as línguas: aldeamentos e mestiçagens
entre manejos de mundo indígenas em Goiás (1721-1832). Tese de Doutorado – Programa de Pós-
graduação em História - Universidade Federal de Goiás, 2017. p. 19
435
Idem, p. 25
436
Idem, p. 26
437
Idem, p. 302-303
438
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Memória sobre o gentio Mura. In: Viagem Filosófica pelas
capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá. Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura,
1974. (Memórias Antropologia).
439
Idem, grifo nosso.
440
Idem
172

trocadas entre autoridades coloniais acerca do assunto. Em carta escrita três meses depois
do descimento dos Mura, o Vigário de Airão Fr. José da Conceição informou a João
Pereira Caldas que os índios permaneciam ali. O Vigário destacou que eles trouxeram
consigo dois línguas, como indicado pelo naturalista, sendo um deles natural daquela
mesma povoação, “o qual apanharam em pequeno aqui”, e o outro da vila e Tomar, “por
nome de Alexandre, que o apanharam no Rio Solimões.”441 Em uma segunda carta, datada
de março de 1787, informou a chegada de mais um grupo de Mura à povoação. Mais uma
vez os línguas que os acompanhavam prometeram ir ao “rio dos Purus buscar mais gente
que ainda está no centro do mato.”442
Anos depois, já no Mato Grosso, Rodrigues Ferreira foi testemunha do
“importante negócio da redução do gentio Guaikuru”, fato que noticiou ao Governador e
capitão general João de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres. O naturalista ressaltava
os ganhos gerados para a sua Majestade “por mais aqueles vassalos, que reduz a sua
obediência antes que contra nós os revoltem os espanhóis”, para Deus “pelo considerável
número de almas que mediante o batismo podem ser chamados ao grêmio de sua Igreja”
e ao bem público “pela segurança e liberdade do comércio interno e da navegação
mercantil.”443
Destacando a sua legitimidade como observador, informou que teve o gosto de
ver os onze índios, a incluir um “cacique seu, que entre eles se chama Caimá e entre nós,
João Queima de Albuquerque, o qual vinha acompanhado de uma famosa tapuia, sua
mulher, já então denominada D. Joaquina Ferreira de Albuquerque.”444 Caimá esclareceu,
“segundo se exprime uma negra crioula nossa [sic] que eles cativaram, quando rapariga
e presentemente serve de língua”, que era governador geral de todos os Guaikuru e que o
grupo desejava “aldear-se nas margens deste rio.”445
Em relação ao estatuto social dos intérpretes é interessante notar, como indicado
por Dejanirah Couto, que havia distinções. Enquanto os línguas que serviram aos Mura
eram provavelmente “índios administrados”, que viviam em aldeamentos da capitania de

441
Idem
442
Idem
443
Idem
444
Idem, p. 75
445
Idem, p. 76
173

São José do Rio Negro, o dos Guaikurú era uma “negra crioula”. Em ambos os casos,
Rodrigues Ferreira destacou que eles tinham sido sequestrados das povoações
portuguesas, o que os colocava na condição de mediadores entre mundos diversos.
Os línguas, assim como os informantes sobre os territórios e os povos, eram
sujeitos fronteiriços. Se colocando de maneira ativa em “zonas de contato”, constituídas
por assimetrias de poderes e por relações de opressão, como não deixou de notar Mary
Louise Pratt, faziam os conhecimentos e técnicas que dominavam circular. No cotidiano
das expedições desempenhavam papéis distintos se comparados com os remeiros e
jacumaúbas. Mas tinham em comum o acúmulo de saberes e experiências que os
alcançavam à condição de essenciais em determinadas situações vividas pelos viajantes
no ultramar português.

3.3. Saberes e usos das plantas e dos animais: registros de oralidades indígenas

Os índios, como são os mais inteligentes práticos daquele continente, são


também os melhores mestres para nos ensinar os nomes das plantas e seu uso,
principalmente das que se podem extrair cores e das que servem nas doenças
próprias daquela parte da América onde eles morarem. 446

O professor de história natural e química Domingos Vandelli, ao instruir os


cientistas-viajantes sobre as atividades em campo, destacou a necessária escuta e registro
dos conhecimentos e usos indígenas sobre as plantas dos territórios percorridos. O
naturalista deveria ao nome artificial do sistema, ou seja, a nomenclatura binomial em
latim proposta por Lineu, tomar nota das denominações empregadas pelos “nacionais.”
O mesmo deveria ser feito para os animais: nomes, modos de caça, empregos de peles e
práticas alimentares seriam registrados textualmente. Reconhecia-se ainda que os índios
elaboravam estratégias e instrumentos para domesticar, cultivar, atrair, afastar, curtir,
secar, extrair remédios, venenos, óleos e tintas.

446
VANDELLI, Domingos Viagens filosóficas ou dissertações sobre as importantes regras que o filósofo
naturalista, nas suas peregrinações deve principalmente observa (1779). In: O gabinete de curiosidades de
Domenico Vandelli. Rio de Janeiro: Dantes Editora, 2008. p. 126.
174

Segundo o biólogo e antropólogo Darrell Posey, os povos indígenas estabelecem


taxonomias próprias, as “etnotaxonomias”, e elaboram sistemas de manejo dos recursos
naturais. Administram o extrativismo de madeiras, ceras, breus, fibras, ervas para
cobertura, cura ou alimentação. A agricultura é desenvolvida a partir de técnicas de
cultivo específicas, tais como o plantio itinerante das roças e a manutenção de uma
variedade de espécies e sementes.447 Possuem um sistema ativo de caça de mamíferos,
aves, peixes e outros animais aquáticos e detém o domínio “de detalhes importantes a
respeito do comportamento dos animais, dentre os quais seus urros, os alimentos de que
preferencialmente se nutrem, características de excrementos, marcas de dentes nas frutas,
etc.”448
O historiador Henrique Carneiro analisou como o saber fitoterápico dos povos
originários foram contemplados na obra de Guilherme Piso, para quem em “muitos
campos a medicina dos indígenas curavam melhor.”449 Segundo Carneiro, em meio ao
vasto espólio vegetativo americano e seus diferentes usos, um dos campos que Piso
lançou luz foi acerca do domínio dos índios sobre os venenos e antídotos extraídos das
plantas. O médico holandês é “considerado o primeiro a estabelecer que o veneno ofídico
é produzido pelos dentes das cobras.”450 Junto com seu companheiro astrônomo e
cartógrafo Jorge Macgrave, “registraram o curare, um poderoso paralisante muscular,
usado nas pontas de flechas, e o timbó, usado nas pescas em rios e lagoas, onde adormece
os peixes após ser dissolvido nas águas.”451
Alexandre Rodrigues Ferreira trouxe em sua bagagem escritos de Jorge Macgrave
e Guilherme Piso e também registrou o uso de ervas como “contraveneno” pelas nações
indígenas. Em uma correspondência remetida ao governador e capitão general do Estado

447
A antropóloga Manuela Carneiro da Cunha tem coordenado projetos importantes acerca do papel dos
povos indígenas na preservação da biodiversidade no Brasil, tais como: “Povos Indígenas e Comunidades
Locais Tradicionais no Brasil: Contribuições para a biodiversidade, ameaças e políticas públicas (2018-)”,
“Bases para um programa brasileiro de pesquisa intercultural e de fortalecimento da produção local de
conhecimentos (2013-)”, “Populações, Agrobiodiversidade e Conhecimentos Tradicionais Associados
(2009-2013)”. Disponível em:http://lattes.cnpq.br/0463124533515635
448
POSEY, D. Introdução - etnobiologia: teoria e prática. In: RIBEIRO, Berta (Coord./Org.). Suma
etnológica brasileira. 1 etnologia. Petrópolis: Vozes/FINEP, 1987. p. 21
449
CARNEIRO, Henrique. O saber indígena e os naturalistas europeus. Trajetos, Revista de História UFC,
Dossiê: natureza e cultura, vol. 7, nº 13, 2009. p. 47
450
Idem, p. 54
451
Idem, p. 54 e 55
175

do Pará e Rio Negro, Martinho de Sousa e Albuquerque, e ao Secretário de Estado da


Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro, o naturalista descreveu o potencial de
uma planta que viu “propagar-se nos quintais dos curiosos.” Denominada “na língua
geral dos índios” Aiapána/Ayapana parecia “ser uma espécie de Eupatorium de Lineo”.
Ela era “usada pelos índios como antídoto ao veneno de algumas cobras” e para salvarem-
se do “veneno das fechas que recebem dos inimigos.”452
Em Belém, ficou conhecida como “erva do ouvidor”, pois o cabo de canoa Álvaro
Sanches de Brito, depois de recolhê-la no sertão, entregou-a ao ouvidor geral Mathias
José Ribeiro, responsável por distribui-la entre os moradores. O primeiro a comprovar a
sua eficácia “dizem ter sido o médico Bento Vieira Gomes.” A história contada
localmente e registrada por Rodrigues Ferreira era um pouco mais longa. O cabo da canoa
teve acesso ao potencial da erva graças à relação estabelecida com “uma índia sua
apaixonada.” Ao indagá-la sobre o vegetal, obteve como resposta que caso
compartilhasse a informação seria morta pelos “seus parentes logo que soubessem que
ela a tinha dado ou ensinado qual era.” A única forma de ter a informação era se “ele a
trouxesse consigo.” O cabo concordou e a índia “não faltou com a palavra porque meteu
na canoa um cesto com terra, onde vinha disposto esta planta.”453
Interessada em pensar no papel dos intermediários no trato e no comércio das
plantas, entre 1750 e 1808, na América portuguesa, Daniela Sanches de Almeida mapeou
a instigante história de circulação da Ayapana numa dimensão global. Em carta
endereçada ao Ministro Ultramarino, em 1801, o capitão de milícias Manoel José da Silva
Castro informou que “José Joaquim Roiz ‘muito observador e prático dos sertões da
capitania de Pernambuco, e de suas indígenas produções’ conseguiu descobrir, transportar
e trazer ao conhecimento de todos a preciosa erva chamada Ayapana.”454 O prático
revelou “que durante as suas andanças pelos sertões de Pernambuco ele havia parado na
aldeia Badabuãa, localizada nas margens do rio Piancó, onde observou um índio tapuio

452
AHU-ACL-N-Pará, Nº Catálogo: 7375. 20 de Abril, 1786,
453
Idem.
454
ALMEIDA, Danielle Sanches de. O trato das plantas: os intermediários da cura e o comércio de drogas
na América portuguesa, 1750-1808. Tese desenvolvida em regime de cotutela, Programa de Pós-Graduação
em História da Ciência e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz-Fiocruz e ao Centro Alexandre Koyré da
École des Hautes Etudes em Sciences Socialel, Paris-Rio de Janeiro, 2017. p. 230
176

com Mal de São Lázaro ser curado com o uso da erva.”455 Apontou ainda um segundo
aspecto: “a dificuldade dos índios mais velhos em quererem revelar os segredos de suas
curas e os remédios que usavam a um elemento exógeno ao grupo.”456
A identificação científica da planta foi foco de disputas no universo letrado
Europeu. Em 1801, o botânico francês Etienne-Pierre Vantenat, depois de realizar
experiencias com a espécie, a denominou como Eupatorium Ayapana, enquadrando-a no
gênero Eupatorium, segundo a classificação de Lineu. Dois anos depois, Dom Rodrigo
de Sousa Coutinho escreveu para Domingos Vandelli a fim de remeter os papéis que
atestavam ser Alexandre Rodrigues Ferreira o primeiro a acertar o gênero da Ayapana.
Como citamos acima, na descrição de 1786, o naturalista dizia “ser uma espécie de
Eupatorium de Lineo”. Por outro lado, Danielle de Almeida identificou que, com
diferentes nomes, a mesma planta americana era, a essa altura, utilizada na medicina
asiática e tinha sido aclimada na na Ile-de-France e na Ile de la Réunion.457 No que mais
nos interessa, há, em mais de um caso contemplado pela autora, o reconhecimento do
emprego antigo por diferentes nações indígenas da erva para fins medicinais e o esforço
de proteger tais informações
Na notícia histórica da Ilha Grande de Joanes, Alexandre Rodrigues Ferreira
também discriminou uma erva utilizada contra a picada de cobra e outros bichos. Desta
vez, a informação foi coletada junto ao “sacaca Severino dos Santos, sargento-mor da
ordenança dos índios da vila de Monforte.”458 Como mencionado no tópico anterior, era
um índio de setenta e tantos anos, versado nas coisas do país e falante da língua
portuguesa, o que o deixava confiante nas notícias recebidas. Ferreira registrou que em
uma ilhota que ficava nas adjacências da Ilha de Joanes existia uma “erva a que chamam
mucuracaá.”
Segundo informaram-no, aos nacionais ela serve de “contraveneno [...] quando
morder qualquer cobra ou outro bicho venenoso.”459 O modo de utilizá-la era bebendo “o
sumo da folha em quantidade que possa levar uma chávena” e repousando o “bagaço que

455
Idem, p. 232
456
Idem, p. 233
457
Idem, p. 251
458
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Notícia Histórica da Ilha Grande de Joanes ou Marajó. IN: Viagem
ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira. Rio de Janeiro: Kapa Ed., 2007. p. 50
459
Idem, p. 69
177

fica da folha” sobre o ferimento. A planta tinha também um emprego ritualístico, o que
demonstra que um mesmo recurso natural poderia ter diferentes usos, não se restringindo
à alimentação, à cura ou à construção. Segundo ouviu dizer o naturalista, “contra os
feitiços, muitos a costumam mastigar pela manhã, em jejum, só para se preservarem
deles.”460
Rodrigues Ferreira também recorreu aos conhecimentos locais acerca das
diferentes espécies arbóreas com o objetivo de identificar as madeiras mais apropriadas
para a construção, principalmente de embarcações. Na Memória sobre as madeiras mais
usadas de que costumam fazer canoas tanto os índios como os mazombos do Estado do
Grão-Pará elencou as propriedades relativas à durabilidade e ao “peso e dureza”. As
madeiras eram empregadas “pelos índios no fabrico de suas canoas, sem que seja preciso
gasto algum, porque todo o material necessário é retirado da mata.”461 A seleção e o
emprego dos diferentes paus estavam associados às demandas e aos usos específicos.
Para pescar, circular em igarapés, em rios menos caudalosos ou em cursos d´água
demasiadamente acidentados, as embarcações utilizadas na travessia Atlântica se
mostravam pouco úteis. Era necessário, portanto, recorrer às canoas indígenas e aos
materiais empregados na sua confecção. Rodrigues Ferreira tomou nota sobre a madeira
denominada jacaré-yúa, a qual era “leve e porosa servindo apenas para canoas de pesca.”
O tronco lenhoso da tauá era igualmente leve e durava pouco tempo, sendo, por isso,
usado apenas para fabricar canoas de pequeno porte. Da árvore de jutáy, “o gentio pagão”
retirava somente a casca para construir canoas, o que as tornavam menos duradouras.
A canoa feita somente com a casca de pau – a qual ele diz ser usada pelo “gentio
pagão” a sugerir “menor engenho e civilização” – não poderia ser dispensada pelos
portugueses e luso-brasileiros. Ela poderia ser útil para um uso efêmero, sendo em seguida
abandonada e substituída com facilidade. Sérgio Buarque de Holanda observou que “a
canoa de casca” era indicada para rios com cachoeira. “Entre as populações banhadas
pelo Madeira, se verificou existir uma perfeita coincidência da área primitiva de

460
Idem, p. 69
461
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Memória sobre as madeiras mais usadas de que costumam fazer
canoas, tanto os índios como os mazombos do Estado do Grão-Pará. In: Viagem Filosófica pelas Capitanias
do Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá. Memórias Antropologia. Publicação Conselho Federal
de Cultura, 1974.
178

distribuição de tais embarcações com as partes mais acidentadas deste rio.”462 Seu fabrico
era simples e não ocupava tempo: “escolhido o tronco lenheiro e com seiva abundante, é
bastante despir-lhe a casca do topo à raiz, unindo depois as pontas, com auxílio de cipós
e mantendo aberto o bojo, por meio de travessões de pau; ou então aquecendo-a em fogo
brando, de maneira a faze-la bem flexível e dar-lhe, assim, a conformação desejada.”463
Outras madeiras foram qualificadas como mais pesadas e com maior durabilidade,
sendo empregadas, embora Alexandre Rodrigues Ferreira não aprofunde no assunto, na
construção de embarcações maiores. Era o caso das de argelim preto, vermelho e de
pedra, que eram pesadas e tinham duração de três a quatro anos. As do pau-rosa, dos
louros, vermelhos, pretos e amarelos eram mais leves, mas também duravam cerca de
quatro anos. As da Paracuúba, patajuba e embirarema eram duráveis, “sendo a primeira
pesada e a segunda tendo a propriedade de não afundar.”464
Das matas eram retiradas também as amarras necessárias para a construção dos
barcos, tais como “o cipó do murukitica, o cipó paranâ-rêmbo, além das embiras das
mungúbas branca e amarela, do timbó titica, do guambé, etc.” Assim como para a estopa
da calafetagem era usada a “entrecasca do castanheiro ou a do cumaty ou do macucu.”
Para os mastros usavam o “tronco da embira branca por ser leve e durável.” Os remos
eram “fabricados da madeira vulgarmente chamado yapucuitanaiúa, que significa pau de
remo ou aquelas chamadas carapanayúa, apitajica, amapá e mangá-uarâna.”465
Segundo a historiadora Regina Célia Corrêa Batista, “as madeiras eram escolhidas
de acordo com a parte da embarcação que ia ser fabricada, por exemplo, o pau-roxo servia
para fabricação de quilhas, sobrequilhas, cadastes, vãos e cintas; o jutaí, para fazer cintas,
sobrequilhas e vãos.”466 Parte das espécies arbóreas listadas por Rodrigues Ferreira eram
“paus reais”, ou seja, a sua exploração era monopólio da Coroa portuguesa. Era o caso do

462
HOLANDA, Sérgio Buarque. Op. Cit. 1946. p. 24
463
Idem, p. 23-24
464
Idem.
465
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Memória sobre as madeiras mais usadas de que costumam fazer
canoas, tanto os índios como os mazombos do Estado do Grão-Pará. Op. Cit
466
BATISTA, Regina Célia Corrêa. Dinâmica populacional e atividade madeireira em uma Vila da
Amazônia: a vila de Moju (1730-1778). Dissertação em História, Programa de Pós-graduação em História
Social da Amazônia, UFPA, Belém, 2013. p. 28
179

argelim, bacuri, pau-amarelo, pau-preto e jutaí.467 Um dos negócios reais no Grão-Pará e


Maranhão no período colonial esteve voltado para os seus recursos lenhosos.
“Primeiro, o interesse do colonizador foi despertado pela quantidade e variedade
das madeiras na colônia concomitantemente à aparente facilidade em obtê-las, impressões
que aguçaram ainda mais o interesse pela região.”468 Em seguida, foram tomadas medidas
para aproveitamento e gestão do recurso, tais como: “a instalação da primeira fábrica de
madeiras e canoas na capitania do Pará, na Ribeira de Moju, na primeira metade do século
XVIII e mais tarde, a fomentação da exportação da madeira pela Companhia de Comércio
do Grão-Pará e Maranhão, na segunda metade do século XVIII.”469 Se na fábrica era
priorizada a construção de embarcações, a utilizar a mão de obra e os conhecimentos
nativos, na segunda metade do setecentos o emprego da madeira amazônica em
construções se expandiu, sendo intensificado o seu envio para o Reino.
Num segundo texto, com o título Memória sobre as palmeiras, são as palmeiras
que eu vi e me informaram os práticos de mato que haviam nas matas do Estado do Grão
Pará, Alexandre Rodrigues Ferreira também deteve na denominação e descrição utilitária
da flora amazônica. Mais uma vez, o naturalista deixava entrever a recorrência aos
práticos, sujeitos versados, experimentados e conhecedores da natureza local. Além de
discriminar os usos locais, acrescentou os lugares onde nasciam, o tamanho que atingiam,
as fases de desenvolvimento, as características dos caules e folhas e o período de
frutificação. As denominações e manipulações por parte das populações locais
prevalecem no escrito.
A palmeira de ussahy-uaçú nasciam nas “várzeas e lugares úmidos nas margens
dos rios” e atingiam 15 metros de altura e 44 a 66 centímetros de diâmetro. As suas folhas
estreitas eram utilizadas na cobertura das casas e das suas bainhas eram retirados o
palmito. Esse tinha “gosto de erva, um pouco adocicado e admite toda qualidade de
tempero”. O vinho de ussahy, bebida de notável consumo, era extraído do seu fruto a
partir do seguinte procedimento:

467
Idem, p. 28
468
BATISTA, Regina Célia Corrêa. Gestão florestal e comercialização de madeira no Grão-Pará do século
XVIII. SÆculum – Revista de História, [29]; João Pessoa, jul./dez. 2013. p. 30
469
Idem, p. 30
180

esfregam-se os coquinhos em água fria ou morna para maior rapidez da


operação e obtém-se uma tinta vinosa [sic], que adoçada ou não com açúcar,
produz uma bebida oleosa e amarga, com sabor de erva e que tomada em
grande quantidade depois do jantar, causava indigestão. Havia uma variação
dessa palmeira, a uassahy-mirim, que se distinguia apenas por não crescer tanto
e pelos seus frutos serem um pouco menores.470

A palmeira de patauá crescia em terra firme e frutificava entre março e maio. O


seu troco jovem era “crivado de agudíssimos espinhos”, só tendo serventia, segundo o
naturalista, para confeccionar “flechas ou setas envenenadas disparadas pelas
zarabatanas”. Do seu fruto se produzia azeite e vinho. O azeite era extraído dos coquinhos
cozidos e escorridos de um dia para o outro a fim de extirpar a umidade. Em seguida,
eram socados no pilão até “serem reduzidos a uma massa que é espremida no tipiti”; por
fim, escorria-se o óleo. O vinho de patauá era extraído do mesmo modo que o do uassay.
A palmeira de tucumá-uaçú nascia nas matas de terra firme, frutificava de março
a maio, tinha o tronco cheio de espinhos e seus frutos maduros tinham cor amarela.
Quando novas as folhas não eram aproveitadas pera a cobertura das casas, pois tinham
“agudíssimos espinhos nas margens”, mas eram manipuladas com engenho para a
confecção de baús, cestos, tabuleiros, bandejas, chapéus, balaios pelas índias que viviam
nas proximidades do rio Tapajós. Os espinhos de outra planta, o jaramacarú, que é uma
variedade de “cactos de linz”, são usadas por essas rendeiras como alfinetes.” As
sementes dos frutos também eram aproveitadas “pelas índias para fazerem bilros para o
fabrico das suas rendas, que das mesmas são utilizadas pelas mulheres brancas.”
O vinho de tucumá era extraído dos frutos a seguir o seguinte processo: os
coquinhos eram enterrados cobertos de cinza e, uma vez amolecidos, eram “pisados” no
pilão. A “massa era desfeita em água e coada numa peneira ou gurapena, formando uma
bebida amarela e adocicada muito apreciada na cidade do Pará e vendida nas ruas pelas
mulheres negras.” A palmeira de tucúm tinha características semelhantes às de tucumá.
Nascia em terra firme, sendo mais encontrada na parte superior do rio Negro, frutificava
entre março e maio e tinha o tronco e as folhas espinhosas. Quando novas, as folhas eram

470
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Memória sobre as palmeiras, são as palmeiras que eu vi e me
informaram os práticos de mato que haviam nas matas do Estado do Grão Pará. In: Viagem Filosófica
pelas Capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá. Memórias Antropologia. Publicação
Conselho Federal de Cultura, 1974.
181

“desfiadas e torcidas a mão, formando linhas que tem todas as aplicações de barbante,
servindo para pescar e lancear peixes e tartarugas, redes de dormir ou maquiras, etc.”
A palmeira de murutim crescia em “lugares úmidos e baixos que conservam a
água durante o verão; por essa razão os muritizais são procurados pelos caminhantes para
saciarem a sede.” As suas folhas cresciam no ápice do tronco – o qual era liso e oco –
sendo “grandes, redondas, fendidas até o meio e dispostas em forma de aureolo.” O
período de frutificação era entre fevereiro e abril. Dos seus frutos, que tinham consistência
e aspecto do pinheiro europeu, era feito do vinho de murutim. De cor amarelado e gosto
de erva, era extraído a partir da seguinte técnica: “coloca-se os frutos em infusão até
amolecer a casca; depois são descascadas e as polpas que cobrem as sementes são
espremidas e amassadas com as mãos, em uma vasilha com água; o líquido é coado numa
peneira ou gurupema.” A bebida era ingerida “simples ou engrossada com a farinha.”
Os pecíolos da palmeira murutim mediam de três a quatro centímetros e, depois
de descascados, cortados e amarrados da maneira adequada, eram aproveitados como
velas de embarcações pequenas ou igaratés. Eram ainda, uma vez descascados,
empregados para fazer rolhas e outros objetos que a sua flexibilidade permitisse,
mostrando-se mais porosos e maleáveis que as cortiças. As cascas dos pecíolos eram
aproveitadas para se tecer as paneiros (vasilha para guardar sal, arroz farinha) e os “tipitis
que são cilindros utilizados para espremer a massa da mandioca” e os “tupés que servem
como esteira.”
Alexandre Rodrigues Ferreira se alongou na descrição das palmeiras por
considerar que os usos empregados pelos indígenas poderiam ser ampliados nas
povoações portuguesas. Seria uma forma de disciplinar o trabalho e de estimular a fixação
dos índios nestes lugares. Era o caso, por exemplo, do que ocorria nas vilas de Santarém,
Franca e Alter do chão. Os chapéus, pacarás e tabuleiros feitos pelas índias através do
trançado e tingimento das salvas de palhinha eram comercializado pelos Diretores.
No entanto, na visão do naturalista, havia uma má distribuição do que era
arrecadado com a venda dos produtos. Se uma índia notasse a desigualdade e se recusasse
a manter a produção era logo castigada. Indagava: “qual é o estímulo que deve ter esta
gente para aumentar a sua indústria, vendo ela que todo o seu trabalho cede em proveito
182

dos brancos e, se não cede, é punida como incúria própria.”471 Era, portanto, preciso
ampliar a manipulação das palmeiras e outros vegetais rentáveis nas vilas, mas também
reordenar as relações estabelecidas entre indígenas aldeados, diretores e demais
autoridades.
Nas Memórias sobre as madeiras e das palmeiras, Alexandre Rodrigues Ferreira
não recorreu ao modelo taxonômico elaborado por Lineu para a nomeação e classificação
das árvores. Na segunda, ele ampliou a descrição no que se refere ao tempo de
florescimento, local apropriado para cultivo, tamanho médio, características do caule,
folhas e frutos. Talvez fosse mais viável de “replantio” e aclimatação em outros locais, a
incluir em Portugal, das palmeiras do que das grandes espécies árvores empregadas na
construção de embarcações. Ao menos pelo que é sinalizado na Memória, o interesse
nesta última recaía sobretudo sobre o caule e possivelmente houve a prevalência do
extrativismo sem preocupação com a reposição. Já das palmeiras eram aproveitados os
também frutos e folhas, o que poderia ser extraído de um vegetal, ainda que em menor
quantidade, com menor tempo de vida.
De todo modo, nas duas produções textuais foram mantidos os “nomes vulgares”
das palmeiras, árvores e cipós, assim como há uma predominância da descrição de usos
e saberes dos povos indígenas. Nas instruções de Vandelli isso era recomendado, como
dissemos no início do tópico, mas também sempre que “achada alguma planta (isto se
deve entender do mais rasteiro musgo até a maior árvore), deve-se recolher e por-lhe o
nome da arte, reduzindo-a pela sua classe e ordem ao gênero e espécie.”472 Talvez fosse
objetivo de Rodrigues Ferreira completar a classificação e nomeação das árvores,
palmeiras e demais plantas amazônicas de acordo com o sistema lineliano em gabinete,
ou seja, quando retornasse à Lisboa e tivesse a sua disposição livros e equipamentos
científicos. Mas, até onde temos notícia, isso não aconteceu.
No que se refere aos animais, Alexandre Rodrigues Ferreira adotou procedimento
semelhante ao das plantas: recorreu largamente aos conhecimentos indígenas. Os textos

471
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Memória sobre as salvas de palhinha pintadas pelas índias da vila
de Santarém, as quais foram remetidas no caixão nº 3 da primeira remessa do Rio Negro. Op. Cit. 1974.
p. 48
472
VANDELLI, Domenico. Viagens filosóficas ou dissertações sobre as importantes regras que o filósofo
naturalista, nas suas peregrinações deve principalmente observa (1779). Op. Cit. p. 126
183

intitulados Relação dos animais quadrupedes silvestres que habitam nas matas de todo o
continente do Estado do Grão-Pará e Relação dos peixes dos Sertões do Pará
demonstram um esforço de mapeamento amplo e generalista dos animais amazônicos.
Em outras Memórias, tal como a sobre o peixe-boi, o pirarucu e as tartarugas, exemplares
da estudados pela zoologia foram abordadas em separado e com riqueza de detalhes
A Relação dos animais quadrupedes silvestres foi dividida em três partes. Na
primeira foram apontados os nomes e usos locais dos animais “que se apresentam na mesa
por melhores”. Na segunda, foram contemplados os “que comem os índios em geral e
alguns brancos quando andam em diligência pelo sertão.” Na terceira foram nomeados e
descritos os “que não se comem.” Na publicação da Memória pelo Conselho Federal da
Cultura de 1972, os editores reconheceram que a maior parte das “suas observações são
colhidas dos nativos” e que vários animais citados por Rodrigues Ferreira “teriam sua
autoria se os tivesse descrito no sistema lineliano.”473
Dentre os mais apreciados na alimentação foram apontados a queixada, queixada-
branca, caitetu, paca, veado-branco, suaçucaruaçu, suaçuanhanga, suaçurete, suaçuapara,
sualucaatinga, cutia-loura, cutia-preta, cutia-de-rabo e anta ou vaca-do-mato. A queixada
e queixada branca foram descritas como um “porco bravo ou do mato, que nunca atinge
o tamanho do porco doméstico”; a carne foi qualificada como excelente, sendo consumida
de qualquer forma: “cozida, assada, frita ou afogada.” O caitetu também era um porco do
mato de porte menor, se comparado aos anteriores. A paca era um animal “com pele toda
pintada de branco e carne muito gostosa.”
Sobre outros usos, para além da alimentação, destacou que com as peles curtidas
dos veados eram produzidos assentos de cadeira e os sertanejos as usam para vestimenta
e solas de sapatos. Com as peles das cutias eram confeccionados “cordovões [sic] para
sapatos que duram muito e são mais macios do que os que vem de Lisboa.” Os seus
dentes, assim como os do caitetu, eram empregados pelos indígenas para fazer brincos,
braçangas e “outros enfeites.”
A maior parte do texto foi ocupada pela segunda parte, ou seja, para a descrição
dos animais que os índios e alguns brancos que andavam pelos sertões comiam. Foram

473
In: Viagem Filosófica pelas Capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá. Memórias
Antropologia. Publicação Conselho Federal de Cultura, 1974. p. 55
184

apontados trinta e dois animais, quais sejam: tamanduá-grande, tamanduá-peqeno,


tamanduá-mirim, tatu-grande, tatu-chato, tatu-branco, tatu-bola, preguiça-grande,
preguiça-de-fogo, preguiça-pequena, cuandu-grande, cuandu-pintado, guariba-ruivo,
guariba preto, cuxiu, macaco-prego, macaco-de-barriga, caiarara, parauacu, boca-prea,
boca-preta-pequena, macaco-uaiapuça, macaco-jupara, macaco-iá, coata, irara, guaxini,
quati-mundéu, quati-í, sagui-preto, sagui-branco, onça-grande e maracajá.
Para demonstrar como a descrição foi feita pelo naturalista abordaremos apenas
um dos animais: as preguiças. Os demais foram descritos em suas particularidades, mas
contemplando as mesmas premissas. A preguiça-grande era a maior “das três espécies do
gênero”, possuía pelo cinzento e áspero. As outras duas eram a preguiça-de-fogo, a qual
tinha pelo cinzento e mais macio e as costas com um escudo amarelo e preto, e a preguiça-
pequena, que se diferia por ser a de menor porte.
Tratava-se de um bicho que manifestava poucas reações aos estímulos externos,
“a ponto de que se recebe pauladas quando dormindo, resiste a elas com insensibilidade
pasmosa”. Para ser apanhada viva, era necessário aproveitar enquanto dormiam
“abraçadas aos troncos das árvores, possuindo tal força nos pés e nas mãos que, se não
lhe batessem com o pau, resiste-se aos puxões de um só homem.” Os indígenas e
sertanejos comiam sua carne que era dura, seca e preta. De acordo com a observação e
testes feitos pelo naturalista, que capturou alguns desses animais, sustentavam-se
principalmente das folhas de embaubeira.
A última parte da Memória foi dedicada à nomeação e à descrição dos animais
que não serviam de alimento. Eram eles: onça-preta, veado-legítimo, onça-de-cutia, cão-
do-mato, raposa, mucura-uaçu, mucura-xixica, acutipuru-preto, acutipuru-loira,
acutipuru-pardo e capivara. Nesta parte, chama atenção as comparações feitas com as
denominações destes animais feitas na Europa. A onça-preta era um animal parecido com
a onças pintadas, mas diferia-se por ser menos comum e “ser todo preto, ao que ouvi
chamar na Europa de tigre.” Já o veado-legítimo era todo pardo e seu corpo parecia
também com o da onça. Era chamado assim localmente, pois tinha cor parecida com a do
veado, mas diz ter ouvido chamar o mesmo animal de leopardo no Real Gabinete de
História Natural.
185

O naturalista recorreu muito pouco ao modelo classificatório de Lineu no que se


refere aos animais e às plantas. Em ambos os casos, é possível supor, como pontuamos,
ser seu objetivo aprofundar o estudo e a nomeação das espécies quando retornasse para
Lisboa e tivesse amparado por livros e equipamentos. De todo modo, os escritos – tal
como chegam até nós, sem ocorrer substituição/sobreposição dos empregos e nomes
científicos conforme ditava o mundo letrado europeu – permitem vislumbrar a recorrência
e o registro textual das oralidades indígenas, responsáveis, como já dissemos, junto com
o uso/prática, pela garantia da circulação dos conhecimentos dos povos indígenas entre
as gerações, mas também entre os estrangeiros.

3.4. Os índios preparadores Cipriano de Souza e José da Silva: vida e saberes em


trânsito

Negros caçadores voltando para a cidade. O regresso dos negros de um


naturalista
Autor: Debret, Jean Baptiste
Litografia de: Frères, Thierry 474

474
Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/3735
186

“É fácil reconhecer o negro do naturalista, tanto pelo seu modo de carregar uma
serpente viva como pelo enorme chapéu de palha eriçado de borboletas e insetos
espetados em compridos alfinetes. Anda sempre armado de fuzil e com sua caixa de
insetos a tiracolo.”475 Assim, Jean Batista Debret descreveu a prancha na qual contemplou
uma das tantas ocupações dos escravizados e libertos no Brasil oitocentista: a
desempenhada pelos sujeitos que atuavam em conjunto ou sob orientação de naturalistas
em campo. Retratado ao lado de outros homens que retornavam de uma caçada – atividade
aprendida “desde a infância para acompanhar as tropas ou simplesmente o seu senhor nas
longas e penosas viagens” –, diferia-se por saber carregar um animal e pelos insetos que
trazia no chapéu com o necessário cuidado para chegarem até o destino final o mais
próximo possível do que foram encontrados na natureza.
Além de carregar uma caixa a tiracolo e uma rede para a captura de insetos,
sustentada por um longo cabo de madeira, vinha acompanhado de um auxiliar. O garoto,
situado poucos passos atrás dele, trazia em seu ombro um conjunto variado de plantas, a
sugerir que um dos objetivos era a coleta de diferentes espécies botânicas. Chamam
atenção ainda as vestimentas utilizadas e um certo distanciamento mantido em relação
aos outros caçadores. Todos foram desenhados com os pés descalços, o que revela a
condição de escravizado. No entanto, enquanto os “caçadores comuns” vestiam calções e
batas folgados no corpo e chapéus ou tecidos sem cuidado de acomodação na cabeça, ele
vinha de calça, camisa e casaco justos e um chapéu muito bem aplumado. Parece-nos que
Debret frisou que o “escravo do naturalista” não somente desempenhava um ofício
específico, a dominar saberes e técnicas para tanto, mas também se distinguia socialmente
dos demais em uma sociedade marcadamente hierarquizada.
A obra de Debret deve ser lida em diálogo com as condições de produção,
circulação e relações de poder próprias do período em que foi produzida. De todo modo,
a prancha nos estimulou a pensar como seria o cotidiano de Cipriano de Souza e José da
Silva, indígenas que atuaram como preparadores ao longo dos dez anos da Viagem
Filosófica chefiada por Alexandre Rodrigues Ferreira. As cenas (uma desenhada, a outra

475
Voyage pittoresque et historique au Brésil, ou séjour d'un artiste français au Brésil, depuis 1816 jusqu'en
1831 inclusivement, epoques de l'avènement et de l'abdication de S. M. D. Pedro 1er, fondateur de l'empire
brésilien. Disponível em: http://200.159.250.2:10358/handle/acervo/9459
187

imaginada) nos dão a ver as populações não europeias atuando nas expedições científicas
em um campo, o de preparador ou jardineiro botânico, que exigia a imersão nos modos
de produção de conhecimento e de coleta próprios da história natural europeia. Além do
mais, um aspecto nos intrigou profundamente: Cipriano e José, depois de circularem pelas
capitanias do Pará, Rio Negro e Mato Grosso, cruzaram o Atlântico junto com o
naturalista e, ao menos este último, atuou profissionalmente no Jardim Botânico e Museu
de História Natural da Ajuda, em Lisboa.
Qual era a função de um preparador no cotidiano das expedições? Na dissertação
sobre as regras a serem seguidas pelo filósofo naturalista em suas peregrinações, há um
tópico para instruir sobre como os animais e plantas remetidos para as “centrais de
cálculo” deveriam ser preparados. Diante da possível e frequente deterioração de produtos
naturais coletados in loco, era necessário utilizar técnicas de acondicionamento que
viabilizassem a travessia oceânica e, quando era o caso de recolhas feitas nos sertões, os
longos trechos de viagem por rio e terra antes de atingir o mar. Havia, deste modo, regras
específicas para preparo de aves, peixes, vermes, insetos, quadrupedes e vegetais. Na
situação delas não serem rigorosamente seguidas, seja por falta de cuidado dos
naturalistas e seus ajudantes ou por ausência de algum aditivo de conservação, os
exemplares da flora ou fauna seriam perdidos e o ciclo de acumulação do conhecimento
interrompido.
Por exemplo, os quadrúpedes grandes que não podiam ser enviados vivos para
Lisboa, “não hão de ser mortos de modo que se lhes faça rotura na pele; seria para desejar
que se apanhassem em laços ou de outro modo que dispensasse, pela rotura da pele, a
efusão de sangue.” Uma vez capturado e abatido, o animal deveria ser integralmente
limpo. Para tanto, se fazia “uma incisão no corpo do animal que desça um pouco abaixo
do ventre, pelo comprido, até o ânus. Por ele se devem fazer sair as coxas, tendo o cuidado
de deixar ficar as unhas nos seus dedos, as quais tiradas juntamente com a cauda e mais
o resto do corpo até a metade da cabeça.”476
Feito isto, se entrava em outra etapa da preparação: a de “vazar o cérebro”. Isso
era realizado “pelo forame occipital ou fazendo-lhe outro na parte superior do palato que

476
VANDELLI, Domenico. Viagens filosóficas ou dissertações sobre as importantes regras que o filósofo
naturalista, nas suas peregrinações deve principalmente observa (1779). Op. Cit. p. 151.
188

penetra o crânio, cuja cavidade, limpa que seja pelo alúmen calcinado, então se enchera
ou de algodão ou de estopa.” A fim de evitar o mau odor, deveria “introduzir lhe matéria
de um cheiro forte e penetrante, plantas aromáticas, pimenta, tabaco, cânfora, embebendo
tudo na essência de terebintina.” O mesmo preparo da cabeça deveria ser aplicado à pele
toda. Antes, contudo, o corpo deveria ser “descarnado, a fim de não ficar coisa que
apodreça.” Para tanto, se esfregava em “toda a pele por dentro, onde houver carne, com
cal extinta e pulverizada em lugar úmido.”477
A língua e os olhos eram “arrancados, descarnando-se com o escalpelo os queixos
quando for possível, contanto que se não lhes tire um só dente, donde segundo o sistema
de Lineu se tiram os caracteres para as ordens.” Para finalizar, o animal seria colocado
em “postura natural”, podendo serem utilizados arames para sustentação. Não poderiam
faltar os “olhos artificiais, ou de vidro, em que esteja pintado a cor natural” e os “cabelos”
deveriam ser penteados levemente, “não lhes deixando nódoas de sangue e o que é
principal, extirpando nele tudo o que for princípio de umidade”. 478
Não nos alongaremos na explanação sobre as formas de preparar outros animais,
basta apenas pontuar que a técnica adotada para os quadrúpedes grandes era uma delas.
Os pequenos, como ratinhos, deveriam ser enviados em licores espirituosos, tirando-os
antes as vísceras. As aves deveriam ser apanhadas a laço ou a mão e serem mortas
afogadas ou de fome; para serem “descarnadas e preenchidas” era necessário conhecer a
sua anatomia. Os insetos pequenos devem ser postos primeiro em aguardente e depois
fixados com alfinetes nas coxas; os grandes seriam antes descarnados. As borboletas, uma
vez capturadas em rede, eram estendidas de modo que não rompessem as asas em folhas
de papel e depois de bem secas eram remetidas em caixas bem fechadas. Os vermes
também seriam metidos em aguardente, sendo enviados em maior número para suprir
possíveis perdas.
A primeira menção que localizamos de Rodrigues Ferreira aos nomes Cipriano
Souza e José da Silva foi no Extrato do diário da Viagem Filosófica pelo Estado do Grão-
Pará, documento no qual foram listadas cronologicamente os deslocamentos realizados

477
Idem, p. 151
478
Idem, p. 151
189

até setembro de 1787. Trata-se de um documento citado quando destacamos os apoios


recebidos pelo naturalista e quais indivíduos ele elegeu como “os patronos da expedição”.
Um deles era Martinho de Souza Albuquerque, governador e capitão general do
Grão-Pará. Depois de agradecer a acolhida em seu palácio e as medidas tomadas para
viabilizar o início dos trabalhos da expedição, Rodrigues Ferreira exaltou o fato dele ter
promovido “em alferes dos índios das suas povoações os dois índios, Cipriano de Souza
e José da Silva, por terem servido de preparadores dos referidos produtos, com a
habilidade e sujeição.”479 Como dito na introdução da tese, Cipriano era natural de Soure;
possivelmente foi incorporado à equipe no primeiro deslocamento do naturalista para Ilha
Grande de Joanes. Já José da Silva, nascido em Alter do Chão, pode ter se juntado ao
grupo quando iniciada a viagem pelo rio Amazonas rumo a capitania de São José do Rio
Negro.
Em carta direcionada a Martinho de Melo e Castro, escrita na vila Barcelos, em
setembro de 1789, Rodrigues Ferreira voltou a dar visibilidade aos trabalhos dos índios
preparadores. O naturalista expunha que aguardava as ordens a respeito dos rumos da
expedição, mas não deixou de manifestar o desejo de retornar à Lisboa para dar início ao
estudo das coleções reunidas entre o Pará e Rio Negro. Ele elogiou as recolhas de
produtos naturais, “em cujo preparo estão magistralmente empregados dois índios
Cipriano de Souza e José da Silva”, empregados em um “novo gênero de serviço, que se
diferia dos que fazem os remeiros das canoas.”
A “boa conduta e constância dos mesmos no trabalho” o fez concluir que a Coroa
portuguesa poderia continuar, depois de findada a expedição, a contar com os serviços
dos ditos índios no que se refere às recolhas e às remessas de produtos dos três reinos.
Para tanto, alegava que bastava adicionar a letra das patentes de alferes “a seguinte
cláusula”: ficam “obrigados a continuarem a servir com o mesmo exercício de
preparadores dos produtos desta expedição enquanto ela durasse e a prepararem, depois
dela concluída, os produtos que se lhes ordenasse.”480

479
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Cópia do Roteiro das viagens que fez [Alexandre Rodrigues
Ferreira] pelas capitanias do Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá. Manuscrito originalmente pertencente
a Faculdade de Ciências de Lisboa. Consulta feita no CEDOPE/UFPR.
480
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Documentos coligidos e pref. por Américo Pires Lima. Lisboa:
Agência Geral do Ultramar, 1953. p. 220
190

Cipriano de Souza e José da Silva não eram exceções, embora fossem casos
bastante particulares, tendo em vista que atuaram junto a um filósofo da natureza com
formação universitária. Um fragmento setecentista revela outra situação em que foram
empregados indígenas em atividades de recolha e preparo dos produtos da natureza na
capitania de São José do Rio Negro. Possivelmente, a situação se repetia em outras
capitanias. Num mapa populacional elaborado por Rodrigues Ferreira acerca dos cargos
e serviços dos índios da vila de Barcelos, datado de 30 de outubro de 1786, entre os
“oficiais da povoação” aparecem seis principais, um capitão, um alferes e dois abalizados.
Como “oficiais de ofícios” foram citados carpinteiros, calafates, jacumaúbas, ourives,
sapateiros, ferreiros, oleiros e, um deles, foi apontado como acompanhante “das pessoas
empregadas nas diligências da história natural”.481
No documento não foi descrita exatamente a atividade do último, mas Ferreira o
enquadrou ao lado dos índios “empregados em pescadores”, seja em serviços reais, como
os levados a cabo “no pesqueiro do Rio Branco”, ou a acompanhar oficiais militares,
“empregados nas demarcações reais”, “o reverendo vigário”, “o Diretor”, “alguns
Principais” e “alguns moradores.” Ao considerarmos o incentivo por parte da coroa e de
letrados para que em todo o Império português “amadores” fizessem descrições e recolhas
de produtos naturais, não é descabido supor que o índio da vila de Barcelos contemplado
no mapa acompanhasse alguém inserido nessa rede ou mesmo que ele próprio era um
colaborador.
Embora fosse da vontade de Rodrigues Ferreira retornar para o Portugal e encerrar
no Rio Negro a sua relação com Cipriano de Souza e José da Silva, não foi o que ocorreu.
Em 1789, chegou de Lisboa a ordem de que a expedição deveria seguir para o Mato
Grosso com a maior brevidade possível. Para tanto, o naturalista elaborou, a considerar
os suprimentos demandados pela Comissão de Demarcação, uma relação de providências
indispensáveis para o novo deslocamento. Na lista foram contemplados embarcações,
mantimentos, armamentos, itens para a botica e o pessoal.
Dentre os homens necessários, ganhavam destaque os que comporiam a guarnição
militar, a incluir “dois carpinteiros para construírem, durante a viagem, os caixões dos

481
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Viagem Filosófica pelas Capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato
Grosso e Cuiabá. Memórias Antropologia. Publicação Conselho Federal de Cultura, 1974. p. 21
191

produtos”, um capelão para que não faltasse “remédios para as almas” em tão arriscada
viagem, um “ajudante de cirurgia ou pelo menos quem saiba sangrar”, índios remeiros,
um índio para os serviços pessoais de cada um dos empregados da expedição e “os dois
índios preparadores que são os mesmos que vieram da capitania do Pará e continuam dito
exercício.”482
Em documento com conteúdo semelhante, escrito quando a expedição se
encontrava em vila Bela, Rodrigues Ferreira fez igual solicitação. Junto com canoas e
montarias, munições de guerra e caça, uma botica e homens para compor a guarnição
militar e para atuarem como remeiros, solicitou que “os dois índios alferes que com o
emprego de preparadores dos produtos naturais acompanham a expedição fizessem parte
do contingente que percorreria os rios Cuiabá, Paraguai e Jauru. 483 Mais uma vez, o
naturalista sabia que não poderia abrir mão da companhia, dos trabalhos e,
principalmente, dos conhecimentos, a incluir os que possuíam e os que adquiriram em
contato com os membros da expedição científica, dos índios preparadores.
Não se pode deixar de pontuar que logo que a expedição chegou à vila Bela foi
anunciada a primeira baixa na equipe: faleceu o jardineiro botânico Agostinho do Cabo.
Era ele um dos sujeitos empregados no preparo dos produtos. Com a sua morte no Mato
Grosso, os índios Cipriano de Souza e José da Silva ocuparam o papel central na recolha
e no preparo das remessas feitas para Lisboa. Desconhecemos qualquer reclamação do
naturalista a respeito da falta de pessoal especializado para auxiliá-lo nas descrições,
recolhas, preparos e remessas. Não era incomum esse tipo de queixa vindas de filósofos
da natureza em campo.
Uma vez cumpridas as ordens na capitania de Mato Grosso e Cuiabá, os
integrantes da expedição científica voltaram para Belém e, passados alguns meses,
retornaram em definitivo para Lisboa. No documento que anunciava a partida,
localizamos mais um vestígio da vida dos indígenas Cipriano de Souza e José da Silva. O
governador do Pará, Francisco de Souza Coutinho, noticiou, em carta datada de outubro
de 1792: “em o navio Príncipe da Beira, de que é comandante o tenente Manoel da Silva

482
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Documentos coligidos e pref. por Américo Pires Lima. Lisboa:
Agência Geral do Ultramar, 1953.
483
Idem, p. 341
192

Thomaz, embarca o doutor Alexandre Rodrigues Ferreira com os dois desenhadores, José
Joaquim Freire e Joaquim José Codina, levando também os dois índios capitães das suas
povoações e que acompanharam esta expedição como preparadores.”484
Para Corrêa Filho, “estes iam pleitear recompensas a dedicação com que, em tão
longa jornada, serviram inteligentemente ao naturalista.”485 É difícil mensurar quais
foram as motivações de José e Cipriano para se deslocarem, a acompanhar a extensa
coleção de plantas, minerais, animais e artefatos humanos amazônicos que a ajudaram a
formar, para a “centro de cálculo”, onde todo o material seria estudado a seguir as
diretrizes da ciência europeia. Embora não fosse algo necessariamente corriqueiro, eles
não foram os únicos a vivenciar a experiência de serem arrancados de suas terras e levados
para a Europa. Mulheres, homens e crianças naturais da América e da África, tidas como
“exemplares exóticos” ou possuidoras de características físicas ou culturais que
despertassem a “curiosidade” em reis, rainhas e mesmo na população comum,
experienciaram situações semelhantes durante toda a época moderna.486
Na segunda metade do setecentos, em conjunto com descrições textuais, imagens,
exemplares da cultura material e de ossadas, os corpos não europeus passavam também a
ser tomados como objeto de investigação científica. Com o advento das ciências
modernas, o estudo das diferenças humanas, explicadas a partir das características físicas,
da cor da pele e do local de nascimento ganhava espaço no mundo letrado europeu. A

484
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Documentos coligidos e pref. por Américo Pires Lima. Lisboa:
Agência Geral do Ultramar, 1953
485
CORRÊA FILHO, V. Alexandre Rodrigues Ferreira, vida e obra do grande naturalista brasileiro. São
Paulo: Companhia Editora Nacional, 1939. p. 146
486
De acordo com Patrícia Melo Sampaio “em 1756, o capitão-general do Grão-Pará, Mendonça Furtado,
enviou a Portugal uma encomenda especial; tratava-se de uma menina índia, de tenra idade e muito esperta,
que deveria ser entregue à Rainha como um presente. Dizia que a criança era filha de uma índia aldeada na
Vila de Borba e lhe tinha sido entregue pela mãe, depois que seu casamento com um soldado, morador
daquela vila, tinha lhe dado “muitos desgostos”. Mendonça Furtado fez questão de sublinhar o futuro feliz
reservado à menina na corte porque a saída do Grão-Pará a libertaria do destino miserável e da
“prostituidíssima vida” para a qual “todas estas mulheres desgraçadas nasceram”. A menina sem nome
seria, na visão do governador, a “única índia ditosa entre as infinitas destes sertões”. Sem quaisquer outras
referências, senão esta brevíssima carta, é impossível saber o que aconteceu com aquela que deveria ser a
única índia feliz da Amazônia.” SAMPAIO, Patrícia Maria Melo. Op. Cit. 2011. p. 299-300. Já a
historiadora Silvia Lara identificou o envio para o reino na década de 1780 de um casal de anões naturais
de Moçambique. Ana e Sebastião deveriam ser entregues ao secretário da Marinha e Ultramar que os
remeteriam como “presentes” para a rainha. No mesmo navio eram enviadas caixas com produtos dos três
reinos da natureza endereçados ao Gabinete de História Natural da Ajuda. LARA, Silvia. Op. Cit. 2007. p.
219. Ressaltamos que não se tratam de casos isolados, são citados aqui para ilustrar a terrível prática.
193

historiadora Eneida Mercadante Sela recorreu às teorias científicas elaboradas no século


XVIII para entender como as diferenças humanas foram descritas por viajantes europeus
que visitaram o Rio de Janeiro na primeira metade do oitocentos. De acordo com a autora,
foram formuladas no período três grandes teorias explicativas:

As chamadas “teorias climáticas” apostavam nas condições geográficas como


fator determinante da natureza das gentes; já as de “subsistência” dividiam a
população da Terra de acordo com o estágio de desenvolvimento social
baseados em seus meios de sustento e sobrevivência. A terceira categoria é a
taxonômica de Lineu.487

No sistema taxonômico de Lineu, o gênero Homo foi dividido em seis grupos:


homo europaeus, homo asiaticus, homo after e homo americanos, além dos “selvagens”
e dos “monstruosos”. O europeu foi descrito como “claro, sanguíneo, musculoso, cabelo
louro, castanho, ondulado, olhos azuis, delicado, perspicaz, inventivo, coberto por vestes
justas e governado por leis”. O asiático como “escuro, melancólico, rígido, cabelos
negros, olhos escuros, severo, orgulhoso, cobiçoso, coberto por vestimentas soltas,
governado por opiniões”.
O americano como “cor de cobre, colérico, ereto, cabelo negro, liso e espesso,
narinas largas, semblante rude, barba rala, obstinado, alegre, livre, pinta-se com finas
linhas vermelhas e guia-se por costumes”. E o africano como “negro, fleumático,
relaxado, cabelos negros e crespos, pele acetinada, nariz achatado, lábios túmidos,
engenhoso, indolente, negligente, unta-se com gordura e governado pelo capricho”.488 O
uso de adjetivos que se sobressaiam ao apontamento de características e descrições
objetivas, atrelam-se, como não é surpresa, ao pressuposto de que o homem branco
europeu ocupava o mais alto estágio na escala civilizacional.
Outro importante autor do período que ensaiou explicações sobre as diferenças
humanas foi o Conde Buffon, alinhando seus estudos à importância conferida ao clima
elaborada por Montesquieu.489 O naturalista francês arquitetou uma teoria na qual a

487
SELA, Eneida Maria Mercadante. Modos de ser e modos de ver- viajantes europeus e escravos africanos
no Rio de Janeiro (1808-1850). Campinas: Editora da Unicamp, 2008. p. 46
488
Idem. pp. 33-34
489
“Este preceito de Montesquieu, por si, evidencia a forte conotação política de sua teoria, ao articular
sociabilidades, modos de governar, economia das paixões e natureza.” SCHIAVINATTO, Iara Lis.
Apontamentos sobre a ilustração científica no mundo luso-brasileiro, 1750-1820. Texto inédito, consulta
em 2013. p. 14
194

pluralidade dos costumes e leis era explicada a partir “da influência do clima, pela
diferença na alimentação, pela maneira de viver, pelas doenças e epidemias, e pela
mistura de indivíduos mais ou menos parecidos.”490 Sobre a população nativa da América
defendeu que ela era degenerada, assim como a sua natureza em geral, devido aos efeitos
maléficos do clima. Como afirmam Ronald Raminelli e Bruno Silva, “Buffon teve
enorme responsabilidade na divulgação das teses sobre a inferioridade dos homens
americanos.”491
Não eram somente essas balizas teóricas que guiavam os escritos dos cientistas-
viajantes quando tomavam os povos das conquistas como objeto de estudo. Outras
características, como as atividades produtivas e comerciais, ganharam relevo em seus
escritos. Além disso, a essa altura já deve ter ficado claro que tais populações não
aparecem nos relatos dos matemáticos e naturalistas somente como um dos temas de
investigação que inventariavam e analisavam. Elas eram, antes, protagonistas ativas no
processo de construção do conhecimento sobre os territórios que habitavam. De todo
modo, Alexandre Rodrigues Ferreira, Antonio Pires da Silva Pontes e Francisco José de
Lacerda e Almeida estavam em contato com tais debates.
Antonio Pires da Silva Pontes não hesitou em apresentar no seu primeiro discurso
na Academia Real das Ciências, quando retornou da expedição na Amazônia, a Memória
sobre os Homens Selvagens a América Meridional. O texto servia como introdução aos
seus relatos de viagem igualmente apresentado aos acadêmicos. O matemático principiou
o escrito a ressaltar que “o português iluminado” era um homem “de todas as nações, de
todos os continentes, branco da Europa, preto em Guiné e cor de terra na América.” Neste
“quebra cabeça humano”, argumentava, Portugal era uma peça fundamental, tendo em
vista que “nessa parte do mundo vegeta o coração dos homens com o cotyledon de todas
as virtudes sociáveis.”492

490
RAMINELI, Ronald; SILVA, Bruno. Teorias e imagens antropológicas na Viagem Filosófica de
Alexandre Rodrigues Ferreira (1783-1792). Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 9, n. 2,
p. 323-342, maio-ago. 2014. p. 333
491
Idem, p. 336
492
PONTES, Antonio Pires da Silva. Memória Sobre os Homens selvagens da América Meridional que
serve de introdução às viagens de Antonio Pires da Silva Pontes. Primeiro Tenente do Mar da Armada
Real, Doutor e Astrônomo, e correspondente da Real Academia de Lisboa, Ano de 1792.
195

É particularmente revelador da formação letrada e de um esforço de analisar o


mundo a partir deste espaço o fato de Silva Pontes mobilizar uma linguagem das ciências
naturais para explicar as gradações sociais. Ele fazia um esforço de situar o lugar dos
portugueses em relação aos indígenas da América e da África que eram, como escreveu,
“irmãos de um mesmo pai e de uma mesma família que somos sobre a face da terra.” De
acordo com o dicionário de termos botânicos, cotyledon ou cotilédone corresponde a
“folha embrionária (ou seminal) com reservas nutritivas”493 e desempenha o papel
fundamental de fornecer nutrientes ao vegetal enquanto ele ainda não produz quantidade
suficiente através da fotossíntese.
Ao fazer analogia com as relações entre os povos, o matemático deixava entrever
que acreditava ser naquela parte do mundo, no continente europeu, onde estavam
armazenadas as virtudes sociais responsáveis por nutrir os “homens selvagens”. Estes,
por sua vez, eram sujeitos capazes de serem educados, pois “o caráter do próprio homem
é nada saber, sem que o aprenda, exceto chorar, não fala, não anda, não come sem ser
ensinado.” Em suma, como não era estranho no universo letrado do período, Antonio
Pires da Silva Pontes considerava que os portugueses carregavam consigo a missão de
civilizar as populações americanas e africanas.
Em um diálogo mais denso com os teóricos do período, tais como Lineu, Buffon
e Robertson, que procuravam explicar as diferenças humanas a partir dos pressupostos
científicos, Alexandre Rodrigues Ferreira produziu, ainda enquanto estava na América,
as Observações gerais e particulares sobre a classe dos mamíferos observadas nos três
rios da Amazonas, Negro e da Madeira. Segundo o naturalista, tratava-se da primeira das
seis classes em que Lineu dividiu o reino animal. Nela, o ser humano ocupava a primeira
ordem, distinguindo-se por ter conhecimento de si mesmo. A “diversidade de sua cor, os
diversos lugares em que habita, o seus usos e faculdades corporais indicam que, como em
outros animais, também a sua espécie apresenta variedades.”494
O homem americano, designado como “índio tapuia”, era uma dessas variações.
Segundo Rodrigues Ferreira, além das características físicas, eles se diferiam dos

493
FERNANDES, Rosette Batarda. Glossário de Termos Botânicos. Anuário da Sociedade Broteriana, 38:
181-292, 1972. Disponível em: https://www.uc.pt/herbario_digital/learn_botany/glossario/#c
494
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Observações gerais e particulares, sobre a classe dos mamíferos
observados nos territórios... p. 74
196

europeus “no exercício da potência e faculdade intelectual.”495 Sobre a “sua razão não é
mais iluminada nem mais previdente que o instinto dos animais”, escrevia.496 Tinham cor
de cobre ou de castanho, sendo algumas nações “mais ou menos retidas que a outra”, o
que explicava pela maior ou menor exposição ao sol e a altitude dos terrenos que
habitavam. À primeira vista pareciam tratáveis, mas quando examinados de perto
revelavam o seu ar selvagem e de desconfiança.
Ainda assim não havia dúvida sobre a sua humanidade: os “índios tapuias” não
deveriam ser considerados “menos gente do que nós”, afirmava o naturalista. Porém era
preciso “reconhecer que estão em outro estado da sociedade, em outra ordem das coisas,
em outro país e com diferentes necessidades, pelas quais perdem grande parte de sua
energia.”497 Do mesmo modo que Antonio Pires da Silva Pontes, mas acrescido de uma
dose de “determinismo climático”, Alexandre Rodrigues Ferreira não somente procurava
discriminar as diferenças físicas e culturais existentes entre os povos, mas corroborava
com a suposta superioridade dos homens europeus.
Antes da escrita do texto sobre os homens americanos, o naturalista remeteu para
o Real Gabinete de História Natural de Lisboa “a cabeça de um índio, o qual foi achado
entre os outros muitos troféus que possuía o gentio Munduruku, que habita nos dois rios
do Tapajós e do Xingu e, ao dia de hoje, se vem aproximando do Madeira.”498 No mesmo
momento enviou uma gargantilha de dentes. E, dentro de um cestinho, uma massa untuosa
e incorporada com urucu, a qual disseram alguns práticos ser de “cérebro humano que
lhes servia de unguento para as suas unções.”
O assunto não se encerrou em cérebro, dentes e cabeça, Rodrigues Ferreira
registrou ter visto “algumas gaitas que são tíbias de pernas de homens”. 499 As passagens

495
Idem, p. 75
496
Idem, p. 87
497
Idem, p. 89
498
Patrícia Melo Sampaio demarca o processo de deslocamento dos Mundurucu mencionado pelo
naturalista. “Mal iniciado o aldeamento dos Mura, é a vez do confronto com os Mundurucu, população
estabelecida no baixo Tapajós e baixo Madeira, que aparece em expansão territorial no início do século
XVIII, primeiro em direção ao Pará, chegando às proximidades de Belém, perturbando não só os incipientes
núcleos coloniais, mas também os seus vizinhos Parintintin, Arara, Mawé e Mura. Entre 1770 - 1790, o
movimento expansionista Mundurucu muda de direção e assume a rota oeste na direção do Madeira e
chegam até Autazes, literalmente ‘empurrando’ os Mura para os aldeamentos portugueses. A paz com os
Mundurucu só é celebrada em 1795.” SAMPAIO, Patrícia Melo. Op. Cit. 2011. p. 200
499
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Memória sobre o gentio Mura. Op. Cit. p. 63
197

compõem a Memória sobre o gentio Mura, na qual foi narrada “redução de paz e
amizade” com os portugueses. O naturista supunha ser ossos desta nação, concebida pelos
colonizadores como “índios de corso”, mas que começava a apresentar sinais de inserção
nos “trilhos da civilização”. As Observações sobre os Mamífero da América Meridional,
o envio de uma cabeça, de dentes e de um possível cérebro para Lisboa e a menção a
ossadas humanas não são fatos desconectados. Ao contrário, sinalizam para um interesse
comum de investigação, o ser humano, mais precisamente o que habitava o continente
americano.
Diante do exposto não é descabido supor que os indígenas Cipriano de Souza e
José Silva acompanhavam o naturalista para Lisboa para serem incorporados como objeto
de investigação científica em conjunto com a flora, fauna, minerais e a cultura material
das nações americanas. Dentre os muitos corpos, sejam eles próprios ou suas fotografias,
arrancados de suas “pátrias” para serem expostos na Europa e na América do norte no
século XIX, a pesquisadora Sandra Koutsoukos analisou a história do rapaz Botocudo
(Quacke). Depois de servir de ajudante do naturalista, etnologista e príncipe prussiano
Maximiliano de Wied-Neuwied, que viajou pelo Brasil entre 1815 e 1817, o jovem
Quacke foi levado para a Europa.
Além da coleção formada com o auxílio de seu trabalho e conhecimentos, ia
acompanhado do “crânio de um jovem Botocudo (que ele [Maximiliano] mesmo
desenterrara e roubara de uma floresta, após assistir de longe a seu sepultamento), além
de artefatos, desenhos, rabiscos e apontamentos.”500 O possessivo Maximiliano julgava o
Quecke “tão seu que o levou consigo para ser apresentado como objeto de curiosidade
científica às cortes europeias; tão seu que o Botocudo nunca retornaria a sua própria terra,
permanecendo como peça viva de museu no palácio do príncipe até morrer.”501 Sandra
Koutsoukos indaga:
Imagine como deve ter sido contada a história de Quacke naquela corte na
época e nos anos seguintes: um selvagem canibal fora resgatado de uma selva
cheia de perigos, por um príncipe destemido. Um selvagem que, sendo alvo da
benevolência e do espírito humanitário do príncipe (caso não negassem a
humanidade do Botocudo), fora trazido para a civilização. E sabe o que mais?
Que fora levado a viver no palácio real dos Wied-Neuwied, não menos que

500
KOUTSOUKOS, Sandra Sofia Machado. Zoológicos Humanos. Gente em exibição na era do
imperialismo. Campinas: editora da Unicamp, 2020.
501
Idem.
198

isso! Que ali ele tinha podido se educar e até travar conhecimento com as
mentes mais sábias e ilustradas da sociedade da época.502

Embora a autora faça tal projeção pensando nos Botocudo – considerados pelos
colonizadores como uma nação avessa à civilização e contra a qual a coroa portuguesa
decretou uma guerra a partir de 1808 – talvez seja possível supor que as trajetórias de
Cipriano de Souza e José da Silva tenham sido marcadas por narrativas semelhantes.
Koutsoukos não deixou conjecturar como teria vivido o jovem botocudo em terras
europeias. Recuperou, para tanto, um comentário de Câmara Cascudo: “vivendo no
castelo do príncipe de Wied, o índio logo perdeu alguns hábitos. Ele apenas atirava suas
flechas e cantava as canções de sua tribo distante em troca de pagamento.” Além disso,
bebia de maneira recorrente. Na avaliação de Sandra Koutsoukos, o folclorista

não disfarça o preconceito contra o índio, que fora, ora bolas, tirado de sua
terra, de sua gente, de sua língua, e levado para ser exibido e estudado ao vivo
indefinidamente. Com o tempo, já um tanto integrado na civilização, aquele
índio aprendera o valor do trabalho em troca de dinheiro, e sobre o valor e o
gosto da bebida – que, provavelmente, ele comprava com o que conseguia em
pagamento por suas apresentações. Uma bebida que o aquecia naquele país de
clima gelado, ajudava-o a esquecer e lhe dava coragem, até para enfrentar as
possíveis punições. Enquanto peça viva de museu, Quacke não tinha o direito
de ter vontade própria.503

Por volta de 1834, o Quake faleceu: “como era de esperar, seu corpo foi usado
como objeto de estudo; e o crânio de mais um Botocudo virou item de coleção e exibição
do Museu de Anatomia de Bonn.”504 Podemos imaginar que Cipriano e José tenham tido
destinos semelhantes. Mas há um vestígio que distingue a história de vida, ao menos do
último, depois da partida da América. Como dissemos na introdução deste trabalho, José
da Silva, em Lisboa, não ocupou somente a posição de objeto de estudo ou da
“curiosidade” europeia. Ele atuou profissionalmente, a desempenhar a função de
preparador de produtos naturais, no Complexo da Ajuda. Era reconhecido como um
prático e as experiências de uma década na Viagem Filosófica na Amazônia eram
lembradas. Trata-se de um deslocamento não somente dos conhecimentos e habilidades

502
Idem
503
Idem
504
Idem
199

para o “centro de cálculo”, mas do próprio corpo e da mente que os detinham. Concluo o
capítulo com alguns pensamentos que me rondam desde quando tive notícia de que José
da Silva chegara vivo em Portugal e manteve-se a trabalhar do Museu e Jardim Botânico
Real.
O que sentia, com seu corpo indígena, em meio aqueles letrados de casaca
envoltos com plantas, animais, rochas? Onde e com quem morava, o que comia, o que
vestia? Qual o sentimento de estar em contato com a coleção levada, tanto quanto ele,
para um local estranho? Como manifestava a falta sentida da sua terra e do seu povo? Não
temos respostas empiricamente comprováveis, o único registro de sua vida em Lisboa é
mesmo a solicitação de aumento do ordenado assinada por Vandelli. Arriscamos, tão
somente, umas linhas conclusivas. Batizado com o nome português José da Silva, teve
sua etnia, língua, origens culturais e históricas silenciadas. Arrancado de seu território e
separado da sua gente, personifica e materializa uma das tantas violências colonialistas
da época moderna, infelizmente, atualizadas e preenchidas de novos usos políticos e
ideológicos nos séculos XIX e XX.
200

Capítulo 4: Caminhos e lógicas de circulação africanas e as viagens de


Lacerda e Almeida na África oriental portuguesa

4.1. Entre a Ilha de Moçambique e a vila de Tete: saber navegar pela costa e pelo
rio Zambeze

Acontece neste rio, o mesmo que se vê no Pará: as águas do


Amazonas vão sair ao mar entre o Cabo Norte e a Ilha de
Joanes. Para sair-se ao Amazonas partindo da Cidade do Pará,
é necessário atravessar o rio Mojú, Capim e Tocantins (todos
estes três rios unidos com o Amazonas fazem a grande barra do
mesmo nome) passando de uns para os outros para canais de
comunicação, que fazem um labirinto de ilhas, navegando-se
para uns com a enchente, por outros com a vazante e por outros
finalmente com estas duas alternativas.505

Em um processo de retomada e lembrança do tempo vivido e das experiências


acumuladas na Amazônia colonial portuguesa, Francisco José de Lacerda e Almeida
estabeleceu um paralelo entre as características dos deltas de dois grandes rios com papel
capital nos projetos coloniais lusitanos e na vivência de muitos povos em diferentes
temporalidades. O rio Amazonas, com desembocadura no oceano Atlântico, percorre uma
extensa faixa da América do sul. O Zambeze, com deságue no oceano Índico, corta o
atual território de Moçambique ao meio e o escritor Mia Couto o define como uma “faca
azul” ou como o verdadeiro alfaiate a remendar a terra.506
Como asseverou o historiador Magnus Pereira, os luso-brasileiros quando
percorriam os domínios portugueses na África recorriam com frequência a comparações
com o continente americano.507 Os paralelos se verificavam no Reino de Angola, onde os
laços firmados através do Atlântico Sul eram intensos, mas também na costa oriental. Ao
analisar a geração de “cientistas-colonos”, da qual Francisco José de Lacerda e Almeida,
Alexandre Rodrigues Ferreira e Antonio Pires da Silva Pontes fazem parte, Ana Lúcia
Cruz também nota os constantes paralelos feitos pelos viajantes entre as capitanias que

505
ALMEIDA, Francisco José de Lacerda. Diário de viagem de Moçambique para os Rios de Sena. In:
PEREIRA; RIBAS. Op. Cit. 2012. p. 513
506
COUTO, Mia. “Zambeziando”. In: Pensageiro frequente. Lisboa: Caminho, 2010. p. 49
507
PEREIRA, Magnus R. M. Brasileiros a serviço do Império; A África vista por naturais do Brasil, no
Século XVIII. Revista Portuguesa de História, Coimbra, v. 1, n.33, p. 153-190, 2000.
201

percorriam. A título de exemplo, Cruz recuperou que “Alexandre Rodrigues Ferreira


recomendava aos lavradores do Amazonas que adotassem a técnica de ralar a mandioca
utilizada por baianos e pernambucanos.” Citou igualmente Lacerda e Almeida a fim de
demonstrar como os paralelos “ultrapassaram o âmbito do continente americano.” O
parâmetro para a comparação, ou melhor para a conexão, era forjado a partir dos
“conhecimentos próprios da zona de contato da qual ele era oriundo, servia de modelo
para ele indicar “correções” a serem aplicadas a uma outra região da zona de contato, a
África.”508
Pode parecer natural Rodrigues Ferreira estabelecer relações entre o que via na
Amazônia com experiências postas em prática em sua capitania natal; o mesmo vale para
Lacerda e Almeida. No entanto, como procuramos evidenciar em outras passagens da
tese, ainda que as conexões espontâneas e com uma dose de afetividade pudessem se
manifestar, como Magnus Pereira percebeu nas lembranças das “pátrias chicas”, existiam
anseios “oficiais” de interligar as capitanias de um Império pluricontinental e de replicar
projetos nas diferentes partes que o compunham. A própria seleção dos viajantes
incumbidos de percorrer determinados territórios associava-se às missões anteriormente
desempenhadas.
A comparação das malhas hídricas feita pelo matemático luso-brasileiro atrelava-
se ao desejo de tornar marítimas capitanias sem saída direta para o mar e de utilizar os
rios para interiorização de territórios, como já pontuado. Registrado em diário remetido
para o Ministro do Ultramar, não era, portanto, somente resultado de uma memória
recente ou de subjetividades a comparação feita por Lacerda e Almeida entre os rios
Amazonas e o Zambeze. No dois domínios coloniais, na África oriental e na Amazônia
portuguesa, os conhecimentos sobre os rios não podiam ser dispensados. Ao contrário,
eram de centrais para interiorização dos territórios.
Quando consideradas as capitanias de São José do Rio Negro, Mato Grosso e
Cuiabá e dos Rios de Sena, cujas sedes administrativas não estavam voltadas diretamente
para o oceano, os rios figuravam mesmo como protagonistas. A vila de Barcelos estava

508
CRUZ, Ana Lucia. Verdades por mim vistas e observadas oxalá foram Fábulas Sonhadas: Cientistas
brasileiros do Setecentos, uma leitura auto-etnográfica. Curitiba, Tese (Doutorado em História) –
Departamento de História, UFPR, 2004. p. 25
202

situada na margem do rio Negro, afluente do Amazonas, vila Bela na margem do Guaporé
com ligação com o Madeira-Amazonas e a vila de Tete na do Zambeze.
Francisco José de Lacerda e Almeida, vindo de Lisboa, desembarcou na Ilha de
Moçambique. Pouco tempo depois seguiu para a capitania dos Rios de Sena. O primeiro
ponto de parada foi a vila de Quelimane, de onde iniciou a navegação pelo rio Zambeze.
Como o período de permanência em Belém pelos membros da Comissão de Demarcação
e da Viagem Filosófica, o tempo de estadia na sede do governo da África oriental
portuguesa, após uma longa peregrinação oceânica, servia para organizar o novo
deslocamento, desta vez para o interior. Importante observar o papel estratégico
desempenhado pelas vilas portuguesas instaladas na costa como ponto de partida e apoio
logístico para a imersão no sertão.
Antes de seguir para os Rios de Sena, onde assumiria a função de governador,
Lacerda e Almeida fez observações sobre as coordenadas geográficas, as populações e as
atividades comerciais da Ilha de Moçambique.509 Em ofício encaminhado ao governador-
general de Moçambique, Francisco Guedes de Carvalho Menezes, o matemático diz ter
recebido ordem vocal do secretário da Marinha e Ultramar, Dom Rodrigo de Sousa
Coutinho, para tirar a “planta desta ilha e da terra firme que lhe está vizinha.” O mesmo
deveria ser feito para a faixa costeira entre Moçambique e a vila de Quelimane.
Para tanto, solicitou “um escaler e duas mais pequenas embarcações com a sua
competente equipagem, oito ou dez soldados mais desembaraçado e ágeis, doze a quinze
bandeirolas e outras tantas mais pequenas, além de alguns machados, alavancas ou cousas
que possam suprir a falta deles.”510 Requereu ainda informações junto aos práticos locais
acerca das condições de navegabilidade próxima à costa do Índico, bem como dos
possíveis riscos de ataques de corsários. A figura dos sujeitos versados nos assuntos do
“país” perpassa a documentação produzida pelos viajantes no Ultramar. As demandas
foram repassadas por Menezes da Costa a “todos os pilotos aqui assistentes práticos da
navegação dessa costa.”511

509
ALMEIDA, Francisco José de Lacerda. Breve Memórias das observações e notícias que adquiri em
Moçambique no ano de 1797. In: PEREIRA; RIBAS. Op. Cit. 2012.
510
ALMEIDA, Francisco José de Lacerda em ofício para Francisco Guedes de Carvalho Menezes. In:
PEREIRA; RIBAS. Op. Cit. 2012. p. 233
511
COSTA, Francisco Guedes de Carvalho e Menezes. In: PEREIRA; RIBAS. Op. Cit. 2012. p. 231
203

Era preciso saber, a partir de atestações de pessoas experientes, se era praticável


seguir viagem da Ilha de Moçambique até Quelimane no mês de setembro em
“embarcações de coberta lavada e aproximar-se da costa de modo que se possa clara e
distintamente descobrir não só todas as pontas de enseadas e baías, mas também algum
objeto mais remarcáveis.”512 Perguntava também se era indicado o uso de barcos maiores
ou menores como “lanchas, sem maior risco de naufrágio.” A indagação girou, por fim,
em torno do regime de ventos, principalmente os vindos do norte.
Foram reunidas cinco atestações, segundo remeteu o governador de Moçambique
para Dom Rodrigo. Três dos pareceres – dois emitidos pelos capitães tenentes João
Álvares Pereira, com experiência de vinte e quatro anos de viagem da Ilha de
Moçambique para os portos do sul, e Francisco de Paula, com experiência adquirida em
quinze viagens, e um pelo tenente de mar Joaquim Geraldo Rosa, com experiência de
quinze anos de deslocamento naquele percurso – tiveram iguais conteúdo. Eles não
recomendavam a navegação tão próxima à costa em embarcações de gávea para tomar
conhecimentos dos rios, enseadas e baías, como desejava o matemático, em decorrência
das restingas e das violentas correntes comuns no canal de Moçambique.
Uma possível solução seria recorrer aos barcos menores e movidos a remo,
designados por um deles como lancha, para poder tomar notas mais próximo da terra. O
tenente da marinha João Luz Pereira era da mesma opinião, mas foi um pouco mais
preciso acerca da violência dos ventos, além de destacar que as embarcações ali existentes
não resistiriam, inclusive as movidas a remo, discordando da indicação anterior, por
serem “mal construídas”. Ele alegava serem os ventos fortes, irregulares e não haver
“colheita de rios que possa se recolher caso encontre os ditos contratempos.”513
José Gomes Torres, designado como “piloto de Moçambique”, foi o mais preciso
na atestação. Segundo destacou, o deslocamento até “as ilhas chamadas rasas e das
árvores” poderia ser feito mais facilmente em uma lancha, “porque nesta se pode
aproximar melhor a algumas restingas” e descobrir “todos os objetos que se fazem
remascáveis” e também “as bocas de alguns rios que por este caminho se encontram.” Se

512
ALMEIDA, Francisco José em ofício para Francisco Guedes de Carvalho Menezes. In: PEREIRA;
RIBAS. Op. Cit. 2012. p. 237
513
PEREIRA, João da Luz (atestação). In: PEREIRA; RIBAS. Op. Cit. 2012. pp. 240-241
204

houvesse calmaria nas águas, poderiam ir “com remos correndo costa abaixo com ajuda
das revezas das águas”.
Por outro lado, alertava sobre os riscos oferecidos principalmente por uma grande
ponta de terra conhecida como “saco de Mulale” que fazia muito trabalhosa a saída de
qualquer embarcação que nele se metia. Como se não bastasse, os ventos também
empurravam as “águas muito para dentro, que com a ajuda dos grandes mares que se
levantam com o vento em breve espaço de tempo” a embarcação, se fosse maior e de
cobertura, ia parar na praia. Caso se tratasse de uma lancha enchia logo de água a proa.
Para fugir deste perigo eminente era preciso passar a pelo menos oito braças de distância
da terra. No entanto, tal recuo não permitiria descobrir cousa alguma não só “porque a
costa deixa de ter neste lugar altura suficiente, mas porque geralmente se acha [...]
enfumaçada.”514
É difícil precisar qual era a origem social dos sujeitos que emitiram os pareceres,
dada a presença antiga dos portugueses e indianos na costa Índica. Todos tiveram as
patentes militares discriminadas, com exceção do “piloto de Moçambique.” Mas esse
aspecto também não serve para revelar de onde eram, pois a Coroa portuguesa distribuía
patentes e títulos aos vassalos nascidos no Ultramar. Os sujeitos que compartilharam os
conhecimentos com Lacerda e Almeida poderiam ser naturais do Reino, da África ou da
Ásia. O que havia de comum entre eles consistia no fato de serem vistos como “práticos”
da navegação pela costa, o que nos leva a crer que, caso não fossem nascidos em
Moçambique, eram homens que fizeram carreira no oceano Índico.
Como observou o historiador Edward Alpers, a constituição política e histórica de
Moçambique contribuiu para a sua inserção nas redes de circulação oceânicas. No
entanto, em sua visão, os historiadores tendem a focar as análises nas ligações comerciais
forjadas a partir da exportação/importação de ouro, marfim, de indivíduos escravizados e
de tecidos indianos. Sem diminuir a relevância destas ativas trocas comerciais, Alpers
considera existir outros elementos que ajudam a compreender as relações entre
Moçambique, cujo o litoral é um dos maiores da contra costa, e o oceano Índico.

514
TORRES, José Gomes (atestação) In: PEREIRA; RIBAS. Op. Cit. 2012. p. 241-242. Todos os trechos
entre aspas do parágrafo fazem parte do documento.
205

Um dos principais é a “cultura marítima dos habitantes da costa moçambicana”,


presente ainda na atualidade, que esteve associada a um antigo interesse pela pesca e por
outros produtos vindos do mar, como casco de tartaruga, cauris, pérolas e âmbar cinza.

A ilha de Quirimba e a costa de Sofala eram igualmente reconhecidas como


importantes fontes desses produtos no fim do século XVIII. Um relato do
período também menciona uma remessa de “boas pérolas e uma quantidade de
pérolas arroz” de Sofala para Goa, em 1696, enquanto outro relato afirma que
a qualidade delas era igual à das mais conhecidas como pérolas do Ceilão. Os
cauris eram um importante item de exportação tanto para a Índia (Bengala e
Surate eram identificados especificamente) quanto para a África Ocidental,
sendo a maioria adquirida na ilha de Quirimba e ao longo da costa. 515

Do rio Zambeze para cima, “a inclusão das estruturas de proteção nas canoas”,
bem como a inserção de velas estiveram associadas à cultura austronésia e datam
aproximadamente 400 d.C. A incorporação da cobertura “permitiu comunicações
oceânicas mais seguras ao longo da costa, enquanto a adição de velas melhorou ainda
mais tais viagens e, provavelmente, facilitou o transporte em todo o canal de Moçambique
para as ilhas Comores e para o noroeste de Madagascar.”516 Tais barcos eram pequenos,
o que “também facilitava a comunicação de curta distância com os povoados vizinhos ao
longo da costa e o transporte marítimo de pequena escala persiste até o século atual.”517
Para Alpers:

No nível mais básico, os habitantes da costa moçambicana compartilham


uma antiga cultura de construção de barcos, produzindo uma variedade de
canoas escavadas em troncos de árvores, algumas com estruturas de proteção,
outras sem, que, inicialmente, teriam se limitado ao transporte marítimo para
o litoral local e a comunicação ao longo de muitos rios vindos do interior que
deságuam no oceano Índico.518

Na documentação colonial, as canoas “com estrutura de proteção e velas


triangulares” são denominadas como almadias. Já as lanchas – ao que nos parece o barco
movido a remo apontado nos documentos acima – foram introduzidas “pelos portugueses
como embarcações mais leves utilizadas por estes, ao menos, até o começo do século

515
ALPERS, Edward. Moçambique Marítimo (séculos XIV – XXI). Revista História (São Paulo), n.178,
a03018, 2019. http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-9141.rh.2019.143950 p. 7.
516
Idem. p. 3-4
517
Idem, p. 3-4
518
Idem, p. 3
206

XIX.”519 De todo modo, “no momento em que os portugueses entraram no oceano Índico,
no fim do século XV, a construção de barcos moçambicana tinha se desenvolvido para
além das canoas.”520 Denominados “bangwas ou pagaios” eram construídos “com as
tábuas uma ao lado da outra fixadas com fibra da casca do coco ou corda de junco e
seladas com material vegetal.”521 Essa estrutura era empregada em embarcações menores
e nas de maior porte “que transportavam os bens entre os maiores portos de Moçambique
e aqueles do mundo mais amplo do oceano Índico.”522
A cultura marítima da costa Índica se manteve conectada com rotas mercantis no
interior do continente. O comércio ativo, que antecedeu a chegada dos europeus,
alimentava uma ida e vinda de pessoas e mercadorias “entre o litoral e o mais remoto
interior, passando de tribo em tribo e de aldeia em aldeia, num sucessivo e continuado
escambo.”523 Para o transporte dos produtos nas proximidades da costa, bem como nas
lagoas e nos rios eram utilizados “pequenos barcos – pirogas com flutuador, zambucos,
pangaios –, os mesmos barcos que ligavam entre si os portos da Azânia e de
Madagáscar.”524 Acerca da construção dos zambucos e os pangaios, Alberto da Costa e
Silva informou que eram confeccionados com “pranchas de madeira leves amarradas com
corda ou tamiça de coco. Não tinham qualquer pregadura metálica e calafetavam-se com
massa de algodão e gordura.”525 Ambos possuíam dois mastros de vela “de esteira ou
empreita de palma.” O autor compara o pangaio a uma jangada; já o zambuco era uma
“embarcação veloz, de fundo chato e proa aguda.”526
Lacerda e Almeida, para tirar a planta de parte da costa de Moçambique, recorria
aos conhecimentos e técnicas de navegação dominados localmente que circulavam
através de antigos usos. Em decorrência dos pareceres negativos e/ou contraditórios
recebidos dos práticos, o matemático decidiu seguir por alto mar, sem se aproximar muito
da borda do continente, direto para a vila de Quelimane. Segundo Eugénia Rodrigues,

519
Idem, p. 4
520
Idem, p. 14
521
Idem, p. 14
522
Idem, p. 14
523
SILVA, Alberto da Costa e. A Enxada e a Lança: a África antes dos portugueses. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2006. p. 354
524
Idem, p. 36
525
Idem, p. 36
526
Idem, p. 36
207

havia os emitentes riscos de uma viagem mais demorada pela costa, mas “tudo indica que
nessa decisão pesaram, mormente, fatores políticos.” A pressa para chegar na vila de Tete,
onde assumiria a função de governador-general, era uma estratégia “para legitimar a
autoridade que o governador-general [de Moçambique] lhe cerceava.” 527
Lacerda e Almeida registrou, em diário, que, no dia 30 de outubro de 1797, pela
manhã, partiu rumo à vila de Quelimane. Um prático lhe informou que pelas seis horas
do dia seguinte estariam a sete léguas ao norte do porto de destino. No percurso, o grupo
enfrentou a passagem por um arriscado banco de areia. Tomados pela violência do vento
e correnteza, o matemático disse não deixar de temer algum desastre. Enquanto “o prático
do alto da gávea mandava orçar, um mulato antigo marinheiro nesta carreira e vinha com
o prumo na mão, mandava arribar e vice versa, ajuntado estas palavras dirigidas ao piloto
= Vmce quer encalhar a Pala e que tudo nós percamos?” O matemático notou “que os
marinheiros do leme obedeciam ao mulato e quando assim o faziam não diminuía o
fundo.”528
Depois de descrever com algum detalhe o banco de areia responsável por semear
discórdia no barco e colocá-los em perigo, informou que aportaram em Quelimane.
Situada na costa e próxima ao rio, a vila – construída sem regularidade, pois “os
moradores fazem suas casas onde querem, com a frente para onde lhes convém, ficando
cada uma propriedade cercada de palmares, mangueiras, laranjeiras” – tinha o terreno
alagadiço. No tempo das águas, sofria com as inundações, o que fazia com que um
indivíduo dotado de privilégio só saísse de casa carregado em Manxila, ou seja, imerso
em rede. Era “muitas vezes necessário que os cafres as sustentem sobre a cabeça para que
se não molhe quem vai nela.”529

527
RODRIGUES. Op. Cit. 2013. p. 101
528
ALMEIDA, Francisco José de Lacerda. Diário de viagem de Moçambique para os Rios de Sena. In:
PEREIRA; RIBAS. Op. Cit. 2012. p. 508
529
Idem, p. 509. Abordaremos a utilização de carregadores para transportar não somente cargas, mas
também os próprios viajantes em manxilas nas caravanas de comércio no tópico seguinte. Mas, a partir
dessa passagem, é possível ver que a recorrência a esse tipo de transporte se dava também no cotidiano das
vilas e não só em percursos mais distantes. Segundo Ana Paula Wagner “o termo ‘manxilas’ era utilizado
para identificar tantos os tecidos quanto as redes feitas com eles e empregadas no transporte de pessoas.”
WAGNER, Ana Paula. População no Império Português: recenseamentos na África Oriental Portuguesa na
segunda metade do século XVIII. Tese (Doutorado em História). Universidade Federal do Paraná, Curitiba,
2009. p. 84
208

Tomou nota sobre os gêneros agrícolas cultivados na localidade (milho, arroz,


amendoim, abóbora, laranja, pepino, melancia, batata, inhame, caju, manga, banana e
goiaba) e estabeleceu comparações com a América portuguesa. As frutas de caroço
tinham o inconveniente de tê-los muito grande, disse ter ensinado os moradores a enxertar
para diminuir o tamanho dos mesmos. Preocupou-se, igualmente, em apresentar
caminhos para melhorar pecuária, a considerar que a carne fresca, salgada ou seca, a
manteiga e o queijo poderiam ser aproveitados no comércio com a Ilha de Moçambique.
Para evitar o adoecimento dos animais, causado por ficarem deitados em terrenos
demasiadamente úmidos, sugeriu a construção de um aterro nos currais onde o gado possa
estar fora da lama. A fim de diminuir os carrapatos, indicava que fossem lavados os
corpos das vacas repetidas vezes com água e tabaco. Sobre a atividade pesqueira,
registrou que abundavam peixes, camarões e caranguejos. Um bom pescador seria capaz
de sustentar numerosa família com “peixes apanhados (para assim dizer) ao pé da
porta.”530
Passado cerca de um mês na vila, se pôs novamente em viagem pela manhã do dia
1 de dezembro de 1797, dessa vez, a partir do delta do rio Zambeze. A comitiva foi posta
em movimento no “caminho móvel” que levaria até a vila de Tete, a partir da pulsão de
cento e oito homens empregados no serviço de remo e de pilotagem. Contratados em
Quelimane, os remeiros eram “homens fortíssimos, robustos e de uma paciência e
sofrimento incríveis.” Resistiam a um “trabalho de dias e violentíssimo [...] expostos ao
intenso ardor do sol, nus e sem chapéus na cabeça.” Ainda assim seguiam “cantando e
comendo milho cru apenas inchado na água fria.” Cada remeiro ganhava do delta do
Zambeze até a vila de Tete, “o valor de mil e seiscentos a mil e setecentos reis fortes em
quatro chuabos ou braças de pano e seu sustento.”
As embarcações foram alugadas “fazendo conta pelo número dos seus bancos.”531
O barco de Lacerda e Almeida, chamado localmente de balão, “tinha nove bancos e
dezoito marinheiros, além do piloto e do proeiro”.532 O piloto era denominado como
Malemo e o proeiro Mucadão. Pelos seus serviços era pago o mesmo que aos remeiros

530
ALMEIDA, Francisco José de Lacerda. Diário de viagem de Moçambique para os Rios de Sena. In:
PEREIRA; RIBAS. Op. Cit. 2012. p. 511
531
Idem, p. 512
532
Idem, p. 512
209

com o acréscimo de “uma braça de tecido.” Assim como nos registros de viagem na
Amazônia colonial portuguesa, é possível verificar um microuniverso no interior da
canoa, caracterizado por uma organização do mundo do trabalho e especialização em
ofícios.
A tripulação foi distribuída “em sete coxos em que iam a bagagem e mantimentos;
e mais três balões”, em um embarcou com sua mulher, nos outros “o resto da família,
cadetes e soldados” distribui-se.533 Os coxos eram “umas canoas como lhe chamam no
Brasil, feitos de um pau e somente destinado para conduzirem fazendas, mantimentos, e
tudo que padece avaria.” Os balões eram igualmente fabricados de um único tronco, mas
diferiam-se por terem toldo. Eram usados para conduzir os passageiros e “poucas cousas
mais”. Segundo informou, não tinham as comodidades de embarcações do Pará, utilizadas
duplamente para transportar pessoas e cargas. O balão no qual seguiu tinha quarenta e
oito palmos de comprimento e oito e meio de largura, podendo com facilidade “servir
para tudo”, como “disse e fez ver os seus possuidores.”534
Um episódio narrado por Lacerda e Almeida deixou transparecer o fluxo de
barcos, diferentes dos balões e coxos, que também circulavam pelo Zambeze. Tratava-se
de um tipo de embarcação supracitada: as almadias. O excerto é interessante ainda por
dar a ver a presença de um língua, ou seja, um sujeito conhecedor do português e dos
idiomas locais, a “língua cafreal”, como denominava, na equipe que o acompanhava.
Numa dada altura da viagem observou que alguns remeiros “se deitaram na água e faziam
algum rumor.” Ao indagar o motivo daquela novidade, recebeu a seguinte resposta de um
“criado”:

os cafres estavam tirando do rio panelas, galinhas e peixe seco; isto dizia,
porque não via que uma pequena canoa ou almadia (como aqui chamam)
estava escondida com a proa do balão. Não pude deixar de rir com a
simplicidade do criado que o rio dava panelas, galinhas e peixes secos.
Informando-me da causa disse o língua, que os cafres tinham por costume,
roubar todas as almadias que encontravam, quando tinham fortuna de andar na
companhia do Illmo Sr Governador: mandei logo fazer fiel entrega do que
tinha sido roubado e fui obedecido de muita má vontade. [...] A mesma
almandia foi outra vez roupada pelos cafres do balão que se seguia. 535

533
ALMEIDA, Francisco José de Lacerda. Diário de viagem de Moçambique para os Rios de Sena. In:
PEREIRA; RIBAS. Op. Cit. 2012. p. 511-512
534
Idem, p. 511-512
535
Idem, p. 513-514
210

Outro aspecto diferia as embarcações usadas para viajar pelos interiores dos
continentes africano e americano: a técnica e disposição empregadas pelos sujeitos
responsáveis por assegurar a locomoção dos barcos. Nos balões, os remeiros distribuíam-
se sentados pelo seu comprimento, “como se pratica nos escaleres”; utilizavam remos
curtos, com as mãos posicionadas em seu centro a servir de apoio e “potência nesta
alavanca.” Nos coxos, os remeiros mantinham-se sentados na popa (traseira do barco) e
dois homens se posicionavam na proa (parte dianteira) também a remar, mas,
principalmente, para ajudarem na ação do leme e “avisarem o piloto dos obstáculos que
se oferecem.” Lembremo-nos, como fez Lacerda Almeida, que os remeiros da Amazônia
se mantinham em pé e a ocupar a proa do barco.
Em um trecho do rio Zambeze, considerado perigoso devido às correntezas e às
pontas de pedras, Lacerda e Almeida ressaltou que os remeiros do continente americano
eram mais prudentes quando comparados com os daquela parte da África. Nas muitas e
arriscadas cachoeiras derrotadas nos rios Madeira, Mamoré, Taquari, Cuxim, Pardo e
Tietê teve menos medo do que no rio Zambeze. Os sujeitos “que navegam por aqueles
mencionados rios são homens que procuram evitar o perigo quando os veem sem que
sejam mandados”, enquanto os remeiros africanos esperavam o piloto dar a ordem para
desviarem dos obstáculos. Como muitas vezes o piloto estava com a “atenção dividida a
tantos objetos”, seguiam inúmeras “balrroadas [sic] tão fortes que só a grossura dos balões
e a tenacidade da madeira podia resistir.”536
Além de remar e pilotar, os trabalhadores dos balões e coxos tinham, em alguns
momentos da viagem marcados pela baixa do rio, que arrastar as embarcações, bem como
alargar a partir da retirada de galhos, folhas, areia e pedras de trechos para a água circular
e mover o barco. Num dia, dois balões se distanciaram do de Lacerda e Almeida. Logo
lhe chegou a notícia de que acabaram por encalhar, sendo necessário esperar pela
enchente. Enquanto isso, “a gente dos balões trabalhou a todo o dia e noite passada em
arrancar troncos de árvores e aprofundar a vala para poderem sair fora dela.”537 Em outro
momento, as embarcações quase viraram em decorrência dos trocos d´árvores espalhados

536
Idem, p. 539
537
Idem, p. 516
211

pelo rio e por seus canais. Foi aí que veio uma nova lembrança da América: a navegação
no rio Taquari, “que deposita as suas águas no Paraguai”, no qual sofreu repetidos
encalhes.
Vencidos os obstáculos, a expedição de Lacerda e Almeida atingiu a vila de Tete:
“situada na margem ocidental do Zambeze, pouco abaixo da vila e na margem oposta
principiam umas baixas serras que correm ao longo do rio, fazendo-se logo mais
grossas.”538 Quem o recebeu foi o padre da igreja que servia de matriz. Depois de lhe
“ensopar com uns asperges e o incensar”, entoou, em sua visão, muito mal o hino Te
Deum Laudamos. Os moradores presentes lhe responderam com o mesmo mau gosto.
Como dito no segundo capítulo, ele não deixou de registrar que o domínio na região mais
interiorizada da África oriental portuguesa estava em péssimas condições do ponto de
vista material e humano. Tão logo instalado na vila de Tete, deu início a coleta de
informação para uma nova viagem, desta vez a travessia do continente. Ocupemo-nos,
então, dessa empreitada que lhe custou a vida.

4.2. A vila de Tete como um local de encontro: circulação de conhecimentos sobre os


caminhos e os povos

Segundo aqui se diz e contam as pessoas da mesma expedição


que o referido governador quando empreendeu a sua digressão
para o descobrimento da comunicação entre esta costa oriental
e a costa ocidental d´África não quisera admitir o parecer que
davam os moradores mais antigos; porque lhe diziam que mais
conveniente era [...] se fazer descobrimento por três ou quatro
pessoas, em cuja a conta entrasse um piloto, e armados todos a
maneira de negociantes, porque sendo por este modo não
haveria impedimento pelo caminho dos Regulas, antes lhe
dariam passagem franca a troco de algumas peças de fato [...]
o que também serviria de adquirir amizade dos mesmos. 539

Com o argumento exposto no excerto acima, Jerônimo Pereira, governador dos


Rios de Sena, avaliou os motivos do fracassado projeto de travessia arquitetado e

538
Idem, p. 523
539
PEREIRA, Jerônimo para Francisco Guedes de Carvalho e Menezes da Costa. In: PEREIRA; RIBAS.
Op. Cit. 2012. p. 333-334
212

realizado por Francisco José de Lacerda e Almeida.540 A carta, direcionada a Francisco


Guedes de Carvalho e Menezes da Costa, governador-general de Moçambique, datada de
10 de janeiro 1800, informava ter retornado para vila de Tete parte dos membros da
expedição e da tropa que acompanhara o matemático, falecido a essa altura. Pereira reuniu
os relatos dos mesmos, os transmitiu para Moçambique e, em seguida, para Lisboa.541
O novo governador dos Rios de Sena atribuiu as hostilidades sofridas e os
bloqueios impostos à teimosia de Lacerda e Almeida. Ao desprezar “conselhos tão
concernentes”, preferiu armar-se “de tropa, cafraria e mais pretextos de guerra, [e] seguiu
obstinadamente a sua viagem tão estrondosa, [...] correndo esta notícia pelos sertões que
o mesmo governador levava o intento a eles perniciosos.”542 Para Jerônimo Pereira, a
propagação continente adentro de boatos contribuiu para a expedição ser
sistematicamente bloqueada e saqueada.
Noticiava-se ainda ter sido furtado todo o espólio pessoal de Lacerda e Almeida,
não restando nem os instrumentos científicos da Faculdade de Matemática de Coimbra.
Em oposição ao que julgava ser “a estrondosa expedição” do matemático, Pereira sugeriu
“um novo expediente sobre o mesmo objeto com parecer de algumas pessoas prudentes,
atentar o descobrimento por outro e diferente caminho, destinado para esse fim um piloto,
acompanhado de mais alguns sujeitos para irem no estado de negociante”, sem que fosse
necessário gerar novos gastos para a Fazenda Real.543
Um ano depois, em 10 de janeiro de 1801, Francisco Guedes de Carvalho Menezes
da Costa, antigo desafeto de Lacerda e Almeida, escreveu para Dom Rodrigo de Sousa
Coutinho endossando tais percepções. As decisões tomadas por Lacerda e Almeida e,
principalmente, sua suposta incapacidade de dar ouvidos às pessoas mais experientes e
conhecedoras do percurso da viagem (ou ao menos das notícias que circulavam sobre o
mesmo) eram apontadas, mais uma vez, como centrais para a falta de sucesso da
expedição. Em sua opinião, o matemático não foi capaz de compreender que o interior

540
Idem, p 482.
541
Idem, p. 336-337
542
Idem, p. 337
543
Idem, p. 338
213

daquele continente tinha “certas leis, privilégios e aduanas que se assemelham bem em
seus interesses com o que se praticam as nações de Europa, Arábios e Egípcios.”544
Algum tempo depois, em agosto de 1802, o sucessor de Carvalho e Menezes da
Costa no governo de Moçambique, Isidro de Almeida Souza e Sá, disse saber que Lacerda
e Almeida “querendo dar execução as reais determinações, se entranhou com toda
resolução para dentro do sertão duzentas e cinquenta e seis léguas até o reino do
Cazembe.” Diante da “falta de todo o necessário” e da “desordem de tudo contínuo”, “não
teve outra saída senão exalar o espírito naquele mesmo lugar.”545 Ele não repetiu a tese
de que a expedição não alcançou êxito em decorrência do seu idealizador se mostrar
pouco receptivo às considerações vocalizadas localmente.
Ainda assim Isidro de Souza e Sá concordava com o fato da tentativa de travessia
ter gerado gastos demasiados à Coroa. Ele dizia ser necessário reunir, antes de empenhar
novos recursos, informações mais precisas sobre o trajeto. Para tanto, mandaria “por
várias vias correios cafres a que chamam patamares pelo caminho do Zumbo e entranham-
se sertão a dentro até chegar a Angola [...] para por meio desses correios se vir no
conhecimento do tempo que gastam, por onde transitaram para então intentarem maiores
projetos.”546
A documentação produzida ou reunida por Lacerda e Almeida nos revela que ele
não ignorou por completo as informações recebidas em Moçambique e, sobretudo, nos
Rios de Sena. Não deixamos de relacionar a convicção acerca da possibilidade de
travessia do continente com as experiências de uma década nos sertões da América
portuguesa. Havia também um acúmulo de projeções por parte dos portugueses sobre a
ligação entre Angola e Moçambique, as quais o matemático e Dom Rodrigo também
consideravam. Mas não foram as vivências de outrora e o diálogo com projetos anteriores
as únicas molas propulsoras para que a expedição que visava atingir a costa ocidental
fosse iniciada.
A vila de Tete funcionou como um ponto de encontro para a troca de
conhecimentos entre os vassalos da monarquia portuguesa e as nações do sertão, em

544
COSTA, Francisco Guedes de Carvalho e Menezes para Dom Rodrigo de Sousa Coutinho. In:
PEREIRA; RIBAS, André (orgs). Op. Cit. 2012. p. 334
545
SÁ, Isidro de Almeida Souza. In: PEREIRA; RIBAS, André (orgs). Op. Cit. 2012. p. 413.
546
Idem, p. 413
214

especial, as submissas ao Kazembe. Lacerda e Almeida se valeu largamente das


informações coletadas na sede de governo dos Rios de Sena, inclusive, abandonou o seu
plano inicial e elaborou um novo a partir delas. Talvez tenha se entusiasmado
excessivamente e tomado decisões precipitadas, não lhe faltaram alertas neste sentido,
mas não houve um descrédito de sua parte a respeito do que lhe disseram localmente.
Em correspondência encaminhada a Dom Rodrigo de Sousa Coutinho, Lacerda e
Almeida assumiu ter o anseio de dar “a mais pronta execução da determinação de S.
Majestade” de abrir uma via segura de comunicação dos portugueses de Moçambique a
Angola. Mas estava “perplexo sobre o meio mais próprio de fazer, flutuando em
considerações, porque ignorava os verdadeiros caminhos por onde deveria transitar de
modo que os [seus] passos fossem acompanhados de esperança de produzirem bons
feitos.”547
Seu horizonte de expectativa se transformou radicalmente quando, em fevereiro
de 1798, recebeu, na vila de Tete, a visita de uma comitiva enviada pelo Mwata Kazembe,
cujo objetivo era o estabelecimento de amizade e comércio com os portugueses.
Composta por “um filho de um rei dos Mouizas”, “um grande do reino do Kazembe, por
nome Catara” e “um rapaz de 16 ou 18 anos, escravo estimado do Kazembe”. Segundo o
matemático, o último vinha como espião para saber se os embaixadores o enganavam ou
se mentiriam na transmissão de sua resposta. Há registro de um segundo espião que não
chegou vivo à Tete.
A caravana era ainda composta por cerca de 300 Mouizas empregados como
carregadores. Os Mouizas tinham as suas terras conquistadas pelo Kazembe e, por isso,
pagavam-lhe regulamente tributo e prestavam-lhe serviços, dentre eles, os de pegar em
cargas nas caravanas comerciais. Desempenhavam, igualmente, papel estratégico na
abertura de comércio para o Kazembe no sentido da costa oriental. Segunda Eugénia
Rodrigues, denominados também como “bisas”, “conduziam as caravanas até ao sul e
este do lago Maraves (Niassa) para negociar escravos e marfim com os mujaus (ajauas)

547
ALMEIDA, Francisco José de Lacerda para Dom Rodrigo de Sousa Coutinho. In: PEREIRA; RIBAS.
Op. Cit. 2012. p. 553
215

que os conduziam a Ilha de Moçambique, mas cada vez mais dirigiam as suas rotas para
o Zanzibar e Quíloa.”548
Para o historiador Isidore Ndaywel è Nziem, a formação do reino do Kazembe
esteve associada ao processo de expansão política e territorial Luda e Lunda, grosso
modo, entre o atual território da “República Democrática do Congo, antes de alcançar
uma grande parte da savana meridional, praticamente do rio Cuango ao rio Zambeze.”549
Tratava-se de um “mosaico étnico”, ligado por redes de parentesco, políticas e comerciais,
o que “constitui uma forma de demonstração da capacidade de unificação dos povos
africanos que já existia na idade pré-colonial.”550 De acordo com Nziem:

A expressão do que aproxima e do que diferencia os Estados Luba e Lunda é


entendida por meio de seus próprios nomes, os quais mais designam duas redes
político-culturais, no seio das quais surgiu uma multiplicidade de referências
étnicas distintas, do que fatos étnicos precisos. Deste modo, a história luba,
quando evocada, recobre tanto as realidades concernentes aos luba atuais do
Shaba (os luba shankadi) e do Kasaï (os luba lubilanji), quanto às relativas aos
songye, kanyok, kete, sala, mpasu, bindji e lulua; a história lunda, por sua vez,
invoca tanto agrupamentos rund (os lunda, no sentido restrito) quanto
agrupamentos lozi, ndembo, luena, imbangala etc (os lunda, no sentido
amplo).551

A expansão Lunda para a costa oriental do continente africano ocorreu em meados


do século XVIII: “poderosos reinos se constituíram a partir do país Yaka, no Cuango, até
o país Kazembe, no Luapula, ao longo de um eixo leste-oeste onde eram encontrados os
recursos minerais do Shaba e que permitia o acesso aos mercados portugueses no
Zambeze.”552 Estruturou-se um reino central, cuja liderança era exercida pelo Mwant Yav
e “outros reinos periféricos, cujos chefes limitavam-se, às vezes, a pagar um tributo à
corte.”553 Para garantir a manutenção das redes de relações e a arrecadação de tributos
existiam sujeitos com atribuições específicas, dentre os quais o Kazembe. “Designado

548
RODRIGUES, Eugénia. Op. Cit. 2013. p. 107
549
NZIEM, Ndaywel è. O sistema político luba e lunda: emergência e expansão. In OGOT, B.A. (ed.).
História geral da África V - África do século XVI ao XVIII. Brasília: UNESCO, 2010. p. 695
550
Idem, p. 695
551
Idem, p. 695
552
Idem, p. 710-711
553
Idem, p. 711
216

para dirigir os corpos expedicionários enviados às regiões longínquas, [...] o kazembe


tinha todos os poderes em seu próprio terreno de operações, fora do centro do Império.”554
Em uma das campanhas de expansão foi atingido o rico vale do rio Luapula. Ao
conseguir sujeitar “os chefes do Shaba (dos quais um deles portava o nome Katanga),
bem como o Estado shila do Luapula”, Kazembe do Luapula constituiu um domínio
político e territorial autônomo. A liberdade em relação ao governo central, Mwant Yav,
foi expressa na substituição do pagamento de tributos pela troca igualitária de presentes.
Numa marcha rumo à vila de Tete, o Kazembe entrou em contato com os portugueses e
goeses. Tratava-se da ação do Kazembe Lukwesa Ilunga, o terceiro da dinastia, segundo
Eugénia Rodrigues.555
Para Nziem, a expedição conduzida por Francisco José de Lacerda e Almeida,
mesmo que tenha levado ao seu falecimento, inaugurou “um período de intensas relações
comerciais entre o Kazembe e o baixo Zambeze.”556 O mapa a seguir, elaborado por
Catherine Coquery-Vidrovitch e Henri Moniot, dão a ver os domínios políticos citados
acima. Demarca ainda a faixa de terra colonizada pelos portugueses na costa e contra
costa africana. Corrobora para projetar espacialmente a distância entre os Rios de Sena e
o reino do Kazembe.

554
Idem, p. 711
555
RODRIGUES, Eugénia. Ciência europeia e exploradores africanos: a viagem de Francisco José de
Lacerda e Almeida ao Kazembe. Africana Studia, n.º 17, 2011, edição do Centro de Estudo Africanos da
Universidade do Porto. p. 84
556
Idem, p 713-714
217

COQUERY-VIDROVITCH, Catherine; MONIOT, Henri. Afrique noire de 1800 nos


jours. Paris: P.U.F Nouvelle Clio, 1974.

Entusiasmado com os visitantes, Lacerda e Almeida informou ao governador de


Moçambique que na “residência do Ilmo Senhor Governador destes Rios [...] apareceram
os embaixadores do Kazembe para [...] dizer que queriam amizade com o governador e
com todos os moradores da vila.” Se comprometiam a limpar o caminho, caso existisse
alguns obstáculos impostos aos portugueses entre Tete e o Kazembe. Além de receber
com agrado a proposta, aproveitou a ocasião para fazer um verdadeiro inquérito com
218

filhos do Kazembe a respeito dos trânsitos pelo sertão. Segundo Eugénia Rodrigues, a
designação de filhos pelos agentes da colonização lusitana era uma tentativa de tradução
das relações de parentesco que ligavam diferentes poderes africanos. Ndaywel è Nziem
descreveu estas relações, corroborando com a observação de Rodrigues:

A organização do império [Lunda], baseada no modelo familiar, tinha


automaticamente por efeito a regulação das relações entre funcionários. A
divisão fundada na noção de geração era rigorosa. Assim, todos os “filhos” e
“sobrinhos” deviam obediência a todos os “pais” e a todos os “tios”; e todos
os “netos” eram os aliados de seus “avós”. Uma divisão ligada à ascendência
direta ou a uma situação que pudesse engendrar uma afinidade juntava-se à
precedente. Os “enteados” eram os subordinados de seus “padrastos” e, assim,
os “filhos da irmã” tinham uma posição ambígua frente aos seus “tios
maternos”.557

Na sequência, escreveu ao Ministro do Ultramar a fim de transmitir as notícias


reunidas. Um dos relatos remetidos para Lisboa foi concedido pelo filho de um rei dos
Mouizas. Nos escritos de Lacerda, essa nação foi descrita como composta por gentes
agradáveis, benignas e comerciantes, submetidas ao Kazembe, o qual quase sempre lhes
recompensa com marfim.558 Segundo lhe contou o dito Mouiza, da “vila de Tete até o rio
Aruangua (Luangua) os habitantes são os [Maraves] nossos inimigos”; as terras seguintes
eram controladas por seu povo. Para atravessá-las e atingir sede do Kazembe, eram
necessários aproximadamente dois meses de viagem por “terra bastantemente [sic]
deserta, que não se encontra povoada senão na borda de quatro rios distantes uns dos
outros e se passam em canoas.”559
Do reino do Kazembe para Angola “poder-se-á gastar [um] mês e meio até uma
enseada ou baía, donde ficam ancorados navios, que eles dizem, são maiores que essas
casas dos brancos, muito grandes.” Segundo destacou, “CaCundá [sic] é a nação que fica
mais entranhada no sertão e faz limite com Moropoé e Cazembe; e quando necessitam de
escravos lhe dão guerra e os mandam vender em Angola.” Para Eugénia Rodrigues, “os
portugueses da África oriental, e também Lacerda e Almeida no seu diário e
correspondência, designavam a Lunda e o seu governante de Murupoé, aportuguesando

557
NZIEM. Op. Cit. 2010. p. 710
558
ALMEIDA, Francisco José de Lacerda para Dom Rodrigo de Sousa Coutinho. In: PEREIRA; RIBAS.
Op. Cit. 2012. p. 558
559
Idem, p. 552
219

o título real Luba Mulupwe, também usado pelo Mwant Yaav e então bastante
divulgado.”560 O matemático asseverou possuir motivos para acreditar nas informações,
pois quando perguntou se o Mouiza tinha conhecimento de algum rio que passava em
Angola, ele respondeu que havia um chamado Quanza.561 Convicto, concluiu indagando
se ainda existiriam incrédulos sobre o projeto de travessia.
O segundo emissário a partilhar informações foi um grande do reino de Kazembe,
nomeado de Catara. Esse relatou que “o Kazembe ou os seus antecedentes, vindos das
partes de Angola, conquistou o reino que presentemente ocupa”. A partir dele poder-se-
ia alcançar o de Moropóe, onde chegavam “canoas de Angola ou suas vizinhanças para
conduzir escravos” em sessenta dias. Para tanto, era necessário atravessar “quatro rios,
que correm para a mão esquerda e por consequência vão ter na costa ocidental. Um deles
é tão largo que se gasta um dia em se atravessar.” O matemático indagou: “será por
ventura o [Cunene?] chamado por outro nome, segundo alguns mapas, rio grande ou
grande rio?”562 Para sanar a dúvida deveria ele mesmo ir conferir.
Novamente, afirmou ter motivos para crer no que lhe dizia, pois “o Catara e outro
seu escravo ou companheiro vendo a bússola dissera[m] que tinha[m] visto aquela cousa
em Gora, Angola.” Aproveitando-se do momento, Lacerda e Almeida indagou novamente
em quanto tempo se podia chegar da sua terra até a costa africana banhada pelo Atlântico.
Recebeu um retorno com tamanha vivacidade: “em três meses e que os brancos podiam
ir em menos tempo” que o “obrigou a dar-lhes crédito.” Por fim, os informantes
mencionaram o nome do “rio Lucuele, o qual conflui no rio Cuanza, segundo alguns
mapas.”563

560
RODRIGUES, Eugénia. In: PEREIRA; RIBAS. Op. Cit. 2012. p. 106
561
Segundo Elaine Ribeiro, no decorrer do tempo, o rio Kwanza agregou o importante significado de
definidor do espaço colonial português, a que estes chamaram de Angola, especialmente no que concerne
à divisão regional da administração, grosso modo, no norte, de Cabinda até as regiões do rio Zaire; no
centro, de Luanda até Ambaca (Mbaka) e seguindo a linha do Kwanza até Kasange; e, no sul, de Benguela
até o Bié.” RIBEIRO, Elaine. “Expedição portuguesa ao Muatiânvua” como fonte para a história social dos
grupos de carregadores africanos do comércio de longa distância na África centro-ocidental. REVISTA DE
HISTÓRIA, São Paulo, nº 169, p. 349-380, julho/dez. 2013. p. 362. Ver também: SILVA, Rosa Cruz e. “O
Corredor do Kwanza: A Reurbanização dos espaços – Macunde, Kalumbo, Massangano, Muxima, Dondo
e Kambambe. Séc. XIX”, in: Maria Emília Madeira Santos (ed.), A África e a Instalação do Sistema
Colonial (c. 1885 – c. 1930). III Reunião Internacional de História de África – Actas. Lisbon 2000, pp.
157-173
562
ALMEIDA, Francisco José de Lacerda para Dom Rodrigo de Sousa Coutinho. In: PEREIRA; RIBAS.
Op. Cit. 2012. p. 562
563
Idem, p. 560
220

Outra personagem fundamental na coleta de notícias sobre os terrenos


desconhecidos foi Gonçalo Caetano Pereira, natural do Goa, mas morador há mais de
quarenta anos naqueles sertões. Segundo Lacerda e Almeida, trava-se de um “homem
descarnado, mas de grande espírito”, conhecido localmente por “Dombo dombo, isto é, o
Terror”. Vivia do ouro tirado das minas e do comércio realizado com os “cafres, como
fazem todos os moradores destes Rios.”564
Em 1793, quando encontrava-se em Java, “lugar onde minerava além do rio
Zambeze, distante dessa vila cinco dias de viagem”, recebeu uma oferta, através dos
Mouizas, de compra de marfim do seu “amo Kazembe”, o qual “estimaria muito a sua
correspondência.” Gonçalo Caetano “arriscou algum fato, sem outra alguma segurança
mais do que a palavra dos ditos Mouizas, que não o enganaram, pois foi bem-sucedido
no resgate ou venda.”565 Neste primeiro momento, os Mouizas atuaram, portanto, como
intermediários da relação comercial.
Como alcançou sucesso, na sequência, remeteu “seus muzambazes, cafres cativos
que por conta de seus amos vão comercializar no interior” para comprar, novamente,
marfim na “cidade do Rei Kazembe.”566 Obteve igual fortuna e compartilhou a
experiência com outros moradores da vila de Tete. Esses confiram os seus “muzambazes”
para irem na companhia de Manoel Caetano Pereira, filho de Gonçalo Caetano e natural
dos Rios de Sena, para nova translação comercial.567 No mês de maio de 1796, Manoel
“se pôs em marcha [...], acompanhado de seus escravos e Mouizas que das suas terras no
ano antecedente mandado pelo Cazembe na segunda viagem.”568
A descrição feita por Manoel Caetano Pereira convergia com as informações
coletadas junto aos emissários do Kazembe, além de complementá-las. Ao partir de um

564
ALMEIDA, Francos José de Lacerda para Dom Rodrigo de Sousa Coutinho. In: PEREIRA; RIBAS.
Op. Cit. 2012. p. 555
565
Idem, p. 556
566
Idem, p. 556
567
De acordo com Eugénia Rodrigues, “os moradores dos Rios de Sena estavam habituados a preparar
caravanas comerciais com o auxílio dos seus escravos. Os elementos que compunham cada uma dessas
caravanas eram os vashambadzi, cujas funções consistiam particularmente em carregar e negociar as
mercadorias, e os achikunda, com a tarefa principal de defender os viajantes e as suas mercadorias. Os
membros dessas expedições eram principalmente os escravos, mas também podiam ser recrutados homens
livres. RODRIGUES, Eugénia. Ciência europeia e exploradores africanos: a viagem de Francisco José de
Lacerda e Almeida ao Kazembe. Africana Studia, nº 16, 2011, p. 81-102. p. 90
568
ALMEIDA, Francos José de Lacerda. In: PEREIRA; RIBAS. Op. Cit. 2012. p. 556
221

sítio distante três dias da vila de Tete, ele cruzou o domínio territorial dos “Régulos
Maraves, chamados Bive”, onde conseguiu autorização de passagem depois de pagar com
fato.569 Levou quarenta e cinco dias até atingir o rio Aruângua, o qual desaguava no
Zambeze, próximo à feira do Zumbo. Depois de atravessar o rio “em canoas que ali estão
para esse fim por pequena paga” eram as terras dos Mouizas. Segundo Elaine Ribeiro, em
rotas de comércio consolidadas era comum existir uma infraestrutura para receber os
viajantes. Quando “alguns destes pontos estavam instalados próximos de cursos d’água,
onde as populações que os controlavam disponibilizavam o serviço de canoas com pilotos
para a passagem dos carregadores e suas cargas.”570
Colocou-se novamente em marcha por terra até atingir, depois de vinte dias de
viagem, outro rio. De acordo com Manoel Caetano, os Mouizas chamavam esse curso
d´água de “Zambezi”, mas Lacerda e Almeida, ao levar em conta o que lhe diziam,
atrevia-se a afirmar que não se tratava do “nosso Zambeze ou de qualquer rio que nele
despeje suas águas do rio Xire para cima, porque este Zambeze dos Mouizas corre para a
parte da mão direita a respeito de quem o atravessa indo dessa parte e cai [...] em outro
rio de que adiante falarei.”571
De todo modo, para além deste último rio se encontravam “as terras do Kazembe,
conquistadas por seu pai Murupóe, assim como a dos Mouizas pelo Kazembe.”572 Ainda
foi necessária uma marcha de trinta dias para alcançar a “povoação ou cidade em que
reside o rei Kazembe”, sendo o trecho formado por desertos e uma “lagoa de considerável
grandeza e pouca profundidade, pois gastou um dia inteiro em a passar com água na
cintura.” Arguto, Lacerda e Almeida procurava comparar e cruzar as notícias:

Esta lagoa, segundo dizem os cafres, despejam suas águas por dois diferentes
canais, um deles vai ter ao denominado outro ao rio Murusura, em cuja margem

569
No dicionário de língua portuguesa de Raphael Bluteau a palavra “fato” aparece com o seguinte
significado: “a roupa, vestidos e móveis portáteis do nosso uso.” Na documentação de Lacerda e Almeida
ela parece referir-se a tecido, embora não tenhamos conseguido definir se algum em específico.
BLUTEAU, Rafael. Vocabulario portuguez e latino... Coimbra: no Collegio das Artes da Companhia de
Jesus, 1728. (http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/1/fato)
570
SANTOS, Elaine Ribeiro da Silva dos. Sociabilidades em trânsito: os carregadores do comércio de longa
distância na Lunda (1880-1920). Tese de Doutorado em História Social, Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2016. p. 25
571
ALMEIDA, Francos José de Lacerda para Dom Rodrigo de Sousa Coutinho. In: PEREIRA; RIBAS.
Op. Cit. 2012. p. 558
572
Idem, p. 559
222

tem seu assento o referido rei. Este rio Murusura passa por trás da serra
Morembàla [...] e na margem oposta ao qual alguns dos nossos chamam
Narjáya-Matope e outros Xire, e gastam três dias em o atravessar na referida
cidade do Cazembe, pernoitando-se em ilhas. Dizem também que o seu
Zambeze conflui neste rio muito abaixo da povoação.573

Depois de estabelecidas as trocas comerciais, Gonçalo Caetano disse somente ter


conseguido licença para regressar para a capitania dos Rios de Sena de baixo da promessa
de que havia de voltar. Caso não honrasse a palavra, o Kazembe passaria a tratar os
portugueses como inimigos, “mataria todos os que lá fossem e tomaria por perdidas todas
as fazendas que levassem”.574 Outra prova do interesse na amizade consistiu na
concessão, nos seis meses que Gonçalo Caetano permaneceu em território de seu
domínio, de um terreno amplo com mandioca plantada, além de ter lhe livrado de
qualquer castigo.575
Lacerda e Almeida procurou reunir informações não somente sobre os caminhos,
mas também acerca das características políticas, culturais e econômicas do Mwata
Kazembe. Na carta encaminhada a Dom Rodrigo questionou a visão dos “geógrafos de
vidraça” sobre “aqueles cafres” do interior da África. Ele se referia aos cartógrafos,
desenhistas e outros letrados de gabinete. Mesmo antes de iniciar a expedição, afirmava
que os “súditos do Kazembe” não eram “tão bárbaros”, assim como não eram os peruanos
e mexicanos com os quais travaram contato os espanhóis ao chegarem na América. Em
sua visão, tais povos eram até “mais civilizados e polidos que os mesmos espanhóis
naquele tempo.”576
O argumento de não serem os “filhos do Kazembe tão bárbaros” embasava-se não
somente nos relatos de terceiros recolhidos localmente e descritos acima, mas também se
construía a partir do que o matemático presenciou na vila de Tete. Para Lacerda e
Almeida, havia uma “diferença tão considerável [...] entre o comedimento, porte, danças,
cantigas e toques dos tambores entre estes cafres e os dos Rios de Sena!” Para ele, “os
tambores dos nossos cafres fazem uma horrenda trovoada e toca bem aquele que mais

573
Idem, p. 560
574
Idem, pp. 560-561
575
Idem, p. 561
576
Idem, p. 559
223

força tem para fazer soar mais”. Além disso, “tanto homens como mulheres dançam com
muita desonestidade.”
Os tambores dos “nossos hóspedes são tocados a maneira dos nossos Zabumbas,
com muita suavidade e brandura, com eles acompanham suas cantigas, danças honestas
e graciosas.”577 A diferença era, igualmente, notada na maneira de falar. Em outra
ocasião, dizia ter presenciado a visita de “um embaixador do rei Baroe”, o qual “para dar
um pequeno recado, falou boa meia hora em voz alta acompanhando-a de ações
descomedidas.” Lacerda e Almeida via na postura dos representantes do Kazembe algo
diferente, tendo em vista que falaram “muito pouco, com muita civilidade, ao que me
representava e tão submissamente que pouco se deixava ouvir.”
A mensagem trazida do sertão foi traduzido por “um cafre de Gonçalo Caetano”,
que serviu como língua. “Antes de falar, acomodando-se aos seus estilos, ajuntou com os
dedos uma pequena porção de terra e com ela esfregou a parte superior dos braços,
vulgarmente, lagartos, e também no peito, e fez a mesma cerimônia quando acabou de
traduzir a embaixada.” Ao final, “o Catara e o espião dançaram, antes de subir para dar a
sua embaixada, vieram cumprimenta-lo abraçando uns e outros por seres talvez de inferior
qualidade, tocando-lhes a faca ou lança, que tinham na mão com umas varinhas.”578
Lacerda e Almeida destacou que o Kazembe tinha redes de relações estabelecidas
em dois sentidos do continente: para a costa ocidental e para a oriental, ocupando, assim,
lugar estratégico. O elo com as terras mais próximas do oceano Atlântico se dava pelo
comércio de escravizados, os quais eram remetidos para o “seu pai” (alusão ao Murupóe)
e por intermédio dele eram vendidos nos portos de Angola. O retorno vinha em fato de
lã. Para o rumo dos Rios de Sena alegava não comercializarem indivíduos escravizados,
pois “nem os portugueses o querem comprar, porque não fazem conta nem um nem ao
outro”. Era o marfim que despertava o interesse de ambos. Deste comércio poderia se
tirar grande lucro. Para tanto, seria fundamental descobrir uma via fluvial segura, “pois o
seu transporte por terra é trabalhoso e dispendioso.”579

577
Idem, p. 566
578
Idem, p. 556
579
Idem, p. 562
224

Segundo Lacerda e Almeida, o “negócio do marfim era privativo do rei e os


grandes do reino só vendiam pequena porção com permissão sua.”580 Uma das estratégias
adotadas pelos portugueses para comercializar direto com o Kazembe, eliminando os
intermediários, seria oferecer peças inteiras e de boa qualidade de fato. Era, no entanto,
tomar um cuidado. Se as circunstâncias fossem como as que lhe pintavam, cuja
veracidade iria pessoalmente averiguar, o Mwata Kezembe não recebia fazendas como
vendidas, mas sim como presente. Uma vez satisfeito, recompensava muito bem com
marfim. No território que exercia domínio tinha também “minas de ferro e cobre; e
presentemente traz guerra com um Rei que tem latão nos seus distritos.” Ao mostrar ouro
em pó “aos cafres nossos hóspedes”, responderam que não existiam em suas terras.
A partir do que lhe contara Gonçalo Caetano, o tratamento recebido pelo Kazembe
era majestoso. Possuía um grande número de criados domésticos e “conserva[va] com
muito recato as muitas mulheres que tem, permitindo-lhes somente que falem aos seus
confidentes.” Vestia-se com “pano de seda apanhado à roda da cintura, com um boldrié,
formado para cima dos mesmos muitas pregas”, o que, para o matemático, parecia o
“modo de trajar dos Cabindas.” Sobre a cabeça usava “um barrete ornado de plumas
encarnadas e as pernas com diferentes ornatos feitos de Cauris, Velório, Canutilho, que
entre eles tem grande estimação missangas e outras massas de diferentes cores.”581
Era muito respeitado entre “os seus vassalos”. Fazia “assembleia aos grandes do
reino, oferecendo-lhes em lugar do chá, café ou chocolate, não obstante ter os aparelhos
próprios para essas bebidas, o vinho chamado Pombe.” Prescrevia tempos próprios para
os divertimentos, cuidando para não deixar os soldados e agricultores descuidados dos
trabalhos. Dentre os seus oficiais mecânicos destacavam-se os ferreiros e alfaiates. Tinha
uma tropa grande e bem treinada “a imitação das nações civilizadas.”
O sítio que habitavam era circundado por uma vala profunda para abrigar os
moradores nas ocasiões de guerra ou outros perigos. Destacava, porém, não ter notícias
de que “príncipe algum lhe queira disputar superioridade ou igualdade de força.”582 Suas
armas eram lanças, facas “otimamente trabalhadas” e escudos para defesa. Não é demais

580
Idem, p. 559
581
Idem, p. 563
582
Idem, p. 564
225

destacar que as impressões de Lacerda e Almeida permitem vislumbrar a conhecida e


pretensa superioridade civilizacional europeia, mesmo quando tinha como anseio
ressaltar os atributos positivos do povo africano com o qual pretendia estabelecer contato.
Na conclusão da carta remetida ao secretário da Marinha e Ultramar, salientou
que, antes de chegar a Tete e de ter ouvido estes homens, era a sua “intenção atravessar a
África partindo do Zumbo, por ser estabelecimento que temos mais para o interior
dela.”583 O plano inicial foi alterado justamente depois de Gonçalo Caetano Pereira, seu
filho Manoel Gonçalo Caetano e da comitiva do Mwata Kazembe terem compartilhado
os conhecimentos acerca dos caminhos e das suas gentes acima expostos.
As instruções que antecedem o diário de Lacerda e Almeida da viagem da vila de
Tete até o Kazembe explicitam a importância concedida aos relatos anteriormente
mencionados. Ele justificava ter deixado por escrito o plano, pois poderia “suceder que
nesses desertos Deus seja servido” a levá-lo para si. Caso isso ocorresse, não ficariam
sem ordens os membros da expedição e nem “frustradas as intenções de S. Majestade [...]
e perdida a não pequena despesa que a Fazenda Real tem feito.” O matemático parecia
tentar dividir os riscos e atribuir ao grupo a responsabilidade de dar continuidade ao plano
na sua ausência.584
No preambulo do diário contemplou uma das exigências feitas pelo Kazembe,
transmitida pelos seus representantes: quando o grupo atingisse o rio Aruângua (Luangua)
deveria criar, no terreno mais próprio e salubre, uma povoação. Tratava-se, grosso modo,
do meio do caminho entre o Kazembe e a vila de Tete e, possivelmente, se almejava criar
um ponto de apoio para as caravanas de comércio que partiam de um ou outro lugar.
Aproveitariam a ocasião para observar e tomar nota de todas as vantagens que poderiam
tirar “daquele estabelecimento, por meio do comércio com os Mouizas, cujas possessões
e terras ali tem seu princípio.” E não perderiam a oportunidade de percorrer “rio abaixo
[...] embarcando em almadias ou embarcações mais próprias”.
Instruía-se ainda que “se o rio que os Mouizas chamam Zambeze” fosse navegável
no tempo da seca e “correr para a parte da mão direita a respeito de quem vai para o

583
Idem, p. 583
584
ALMEIDA, Francisco José de Lacerda. Instruções que antecedem o Diário de viagem da vila do Tete
capital dos Rios de Sena para o interior da África. In: PEREIR; RIBAS. Op. Cit. 2012. p. 577
226

Kazembe”, iriam descer por ele com os instrumentos científicos necessários para o seu
reconhecimento. Não deixou de traçar hipóteses: “este rio, segundo dizem, é o Xire ou
braço dele, o qual sai no nosso Zambeze pouco abaixo do Sena; e se não for este há de
ser aquele que cai pouco acima de Quelimane”. Deste local deveriam remeter para o
“Comandante e General do Estado cópia do seu diário e tudo que observar relativamente
também a facilidade do transporte de gêneros que se podem tirar do interior da África e
terras dos Mouizas.”585
Em relação ao rio no qual a cidade do Kazembe estava fundada em sua margem,
Lacerda e Almeida recomendava ações semelhantes. Embora os Mouizas o tenham
informado que este corria para a “mão direita”, Lacerda e Almeida suspeitava que poderia
correr para o lado esquerdo e permitir a ligação, mesmo que não fosse direta, com o rio
Cunene, situado ao sul do reino de Angola. Se assim fosse, dois membros da expedição,
o capitão João da Cunha e o piloto Bernardino, deveriam navegar pelo mesmo munidos
de uma agulha de marear e um sextante. Tomariam nota da quantidade de léguas
percorridas por dia, da distância entre as “povoações de cafres” instaladas nas margens e
das barras e canais.
Ao chegar “na boca do rio e costa do mar” tomariam nota acerca da “capacidade
que tem para nela entrarem navios, declarando o número de suas toneladas”, sem deixar
de sondar os possíveis canais ao seu redor. Seriam conferidas a latitude e longitude,
sabendo previamente que o “Cabo Negro está em 16º-8’ de latitude austral.” Uma vez
examinada a barra do rio, o piloto Bernardino, “em jangada ou em qualquer
embarcações”, seguiria rumo a Benguela, “viagem que se dará em dois ou três dias.” Dali
seguiria para Luanda, onde prestaria contas ao governador-general de Angola. Como era
uma hipótese, Lacerda e Almeida considerou a possibilidade do piloto não atingir a costa
ocidental. Neste caso, a ordem era para retornar à cidade do Kazembe e de lá remeter para
Luanda, recorrendo aos “correios cafres”, as notícias reunidas. Não sendo possível
realizar a travessia por via fluvial, depois de esgotadas todas as possibilidades, a comitiva
seguiria por terra rumo a Angola, “sendo conduzidos pelos cafres daquele continente que
dizer serem mansos e que frequentam o comércio com os portugueses de Angola.”

585
Idem, p. 579
227

Otimista, Francisco José de Lacerda e Almeida deu início à organização da


expedição. Em sua visão, era preciso acelerar a partida para aproveitar os guias e
carregadores da comitiva do Kazembe, tendo em vista que uma nova visita, se viesse a
ocorrer, poderia levar até dois anos. A certeza de ser o momento oportuno, não era
compartilhada pelos moradores da vila de Tete. Esses se recusavam a colaborar com
mercadorias (em especial tecidos), demais suprimentos e com carregadores para a
expedição. Outro balde de água fria levado pelo matemático esteve associado ao fato de
cerca de três quartos dos carregadores Mouizas da comitiva do Mwata Kazembe, com os
quais acreditava poder contar, terem se colocado em fuga ou se recusado a pegar nas
cargas de sua expedição. Parecia ser um prelúdio do que o esperava...

4.3. A organização da expedição: estratégias para reunir o pessoal e os suprimentos

Francisco José de Lacerda e Almeida fazia jus a uma característica atribuída pelos
governadores dos Rios de Sena e de Moçambique sobre a sua conduta: era obstinado. Não
mediu esforços para iniciar, às pressas, a travessia do continente. Utilizou da autoridade
como governador-general dos Rios de Sena para coagir os moradores da vila de Tete a
colaborarem como suprimentos e pessoal. Não se furtou ainda de contrair um novo
matrimônio, poucos meses depois do falecimento de sua esposa portuguesa, a fim de
angariar apoio da poderosa prazeira, viúva de dois governadores, Dona Francisca Josefa
Menezes.586 Vale lembrar que era nas vilas e povoações instaladas no ultramar que parte
importante dos suprimentos materiais e humanos necessários para as expedições eram
garantidos.
Numa comparação com a Viagem Filosófica e Comissão de Demarcação de
Fronteira realizadas na Amazônia colonial portuguesa, quando os viajantes-cientistas
chegaram em campo já existia uma rede de apoio costurada com os administradores
locais, em especial com os governadores das capitanias. Embora Lacerda e Almeida se

Sobre Dona Francisca Josefa Menezes ver: RODRIGUES, Eugénia. Chiponda, a “senhora que tudo pisa
586

com os pés”. Estratégias de poder das donas dos prazos do Zambeze no século XIII. Anais de História de
Além-mar, n. 1, 2000. https://run.unl.pt/bitstream/10362/16062/1/AHAM%20I_2000.pdf
228

deslocara para a África com a missão de especular as possibilidades de travessia do


continente, ele não contava com semelhante estrutura na localidade. Sua decisão de iniciar
o deslocamento rumo à costa ocidental foi, como dissemos no tópico anterior, interpretada
pelos vassalos dos Rios de Sena como precipitada e inviável.
Dito isto, eram dois os desafios principais a serem superados para iniciar a
expedição: a) compor uma equipe formada por carregadores, guias, línguas, oficiais
mecânicos, “práticos de cura”, militares e soldados; b) reunir os suprimentos para
subsistência e garantia de circulação, com destaque para tecidos de boa qualidade e
missangas. Lacerda e Almeida sabia ser indispensável contar com o financiamento dos
vassalos da Monarquia portuguesa instalados nas capitanias de Moçambique e Rios de
Sena. Imaginava não ter recusas, tendo em vista que, em sua perspectiva, todos seriam
beneficiados com as redes de relações e comércio abertas no interior do continente.
Contrariando as expectativas iniciais, a falta de disposição para colaborar com o
projeto logo veio à tona. João Felipe Carvalho, encarregado de arrecadar os produtos e o
pessoal para a expedição, em carta resposta ao matemático, datada de março de 1798,
destacava a resistência dos moradores da capitania dos Rios de Sena em contribuir com
o que lhes era solicitado. O morador Joaquim de Morais, por exemplo, não disponibilizou
o seu “escravo ferreiro” para acompanhar Lacerda e Almeida. Ofereceu, no lugar, outro
homem considerado um bom serralheiro. A segunda e mais grave acusação era a de ter
superfaturado os preços dos remédios para servirem durante a viagem. João Felipe
Carvalho disse ter visto com os próprios olhos os medicamentos serem entregues pelo
“cirurgião mor novo de sua botica” na residência de Joaquim Morais. Esse, aproveitou-
se da ocasião e alterou com borrões os valores. Com o objetivo de resolver a celeuma,
solicitou uma avaliação dos preços “pelo cirurgião mor e por um boticário que aqui há
para remeter a Vossa Senhoria.”587
Sem sucesso, no mês de maio, Lacerda e Almeida elaborou um “bando” a ser
divulgado “nos lugares públicos e costumados dessa desta vila” e nas feiras e prazos a ela
vinculados. Iniciou o documento expondo todos os seus títulos: Cavaleiro da Ordem de
Cristo, Doutor em Matemática pela Universidade de Coimbra, Lente da mesma

587
CARVALHO, João Felipe para Francisco José de Lacerda e Almeida. In: PEREIR; RIBAS. Op. Cit.
2012. p. 213
229

Universidade e da Real Academia dos Guardas da Marinha em Lisboa, Sócio da


Academia da Academia Real das Ciências da mesma cidade, Capitão da Fragata da Real
Armada de Alto Bordo de Portugal e, por fim, Governador dos Rios de Sena e de suas
conquistas.
Ostentar títulos e honrarias não era novidade em uma sociedade de Antigo
Regime, cujas relações se firmavam tendo como base a “economia do dom.”588 De todo
modo, Lacerda e Almeida parecia se preocupar em reforçar a sua identidade enquanto
homem das letras, talvez com o objetivo de persuadir sobre o preparo e capacidade para
realizar uma viagem de tamanha envergadura. A historiadora Ana Lúcia Cruz observou
as transformações pelas quais passavam os doutores de Coimbra quando saíam do Reino
e inseriam-se na intrincada rede de hierarquias do Império. “Se, na metrópole, carregar
um título de doutor ou de licenciado em Coimbra significava fazer parte da restrita elite
intelectual, é de crer que esse ‘trunfo’, e a vaidade por ostentá-lo, constituísse, no
longínquo ultramar, mais um empecilho que uma vantagem.”589
Multiplicam-se na documentação as “queixas contra a prepotência dos ouvidores
e magistrados das colônias que, fiados na sua condição de homens de letras, abusavam de
sua autoridade, criando todo tipo de conflito.”590 Ainda que fora dos circuitos científicos
europeus não fosse um dado o espaço ocupado pela figura do naturalista, matemático e
astrônomo e outros letrados, “para a maioria dos nossos cientistas, entretanto, essa parecia
ser uma situação inesperada e a falta de traquejo para enfrentar esse tipo de adversidade
certamente contribuiu para o surgimento dos conflitos entre estes, seus superiores
imediatos e os demais servidores.”591
Acompanhando o seu currículo, o argumento central mobilizado para persuadir os
moradores eram as vantagens comerciais. Lacerda e Almeida afirmava que o reino do
Kazembe, “segundo todas as informações e probabilidades e bem fundadas conjecturas”,
controlava o trânsito de grande quantidade de marfim. Com sucesso, os vassalos da
monarquia instalados da capitania de Moçambique e Rios de Sena poderiam eliminar

588
XAVIER, Angela. HESPANHA, Antônio M. Redes Clientelares, In: HESPANHA, Antônio M.
(Coord.). História de Portugal. O Antigo Regime. Vol. 4. Lisboa, Editorial Estampa, 1998.
589
CRUZ, Ana Lucia. Op. Cit. p. 195
590
Idem, p. 195
591
Idem, p 195-196
230

intermediários e lucrar com a exportação no litoral do Oceano Índico. Por isso convocava
“todos os moradores para deixarem o receio que tem de ficarem prejudicados, se resolvam
a mandar seu negócio nesta ocasião em que eu me dirijo ao mesmo reino, certificando-
lhes que todo ele será feito em baixo de minha inspeção.” Assumia o compromisso de
estar atento às translações comerciais, todavia afirmou não ser o único “responsável pelas
perdas que poderão ter, pois a tudo está exposto o negociante.” Solicitava, por fim, a
“todos os negociantes que resolverem mandar os seus negócios na presente expedição,
me dirijam uma relação do fato, da sua qualidade de velório, etc. que mandarão [...] até
cinco do futuro mês de junho.”592
Passado o prazo, Lacerda e Almeida lamentou a permanência das dificuldades e
falta dos recursos e de gente para iniciar a viagem. Mesmo assim dizia manter vivo o
desejo de “vencer todos os obstáculos que se ofereceram e a falta de meios que pudessem
ajudar e facilitar a [sua] entrada para o centro da África.” Mais uma vez destacava os
desafios a serem superados em pouco tempo: “a penúria de fato cafreal, missanga e
velório, única moeda que se corre nesses rios e entre os cafres”; a ausência do pretexto de
guerra, o que dificultava o alcance de apoio financeiro dos moradores daqueles Rios; e a
falta de condutores das cargas e soldados nos quais pudesse se fiar.
Tomou, então, a decisão de despachar uma nova ordem, desta vez, mais dura. Os
vassalos da monarquia foram obrigados a enviar os tecidos e demais suprimentos que
tivessem disponíveis debaixo da promessa de serem restituídos pela Fazenda Real quando
desse. Ainda assim, a resistência continuou e se manifestou no envio de tecido de baixa
qualidade, atitude que deixou o matemático e governador enfurecido. Ele citava o caso
do coronel de Manica, região de mineração dos Rios de Sena, Jerônimo Pereira, o qual
lhe remeteu tecido de pouco ou nenhum préstimo.
Diante do ocorrido, deu ordens para “abrir os armazéns do dito Jerônimo Pereira
e tirar as boas [peças de tecido] que neles achassem, para as receber nos mesmos gêneros
quando viesse de Moçambique, em castigo de sua ambição, dolo, malícia e nenhum
interesse ao Real serviço e bem público.”593 O matemático reclamava, igualmente, da
demora no transporte das fazendas vindas de Quelimane. O atraso se justificava não

592
ALMEIDA, Francisco José de Lacerda. In: PEREIR; RIBAS. Op. Cit. 2012. p. 229
593
Idem, p. 585
231

somente pelo tempo gasto com “os coxos por causa da grande enchente do rio, preguiça
dos cafres quando não tem quem os desperte e aplique”, mas também “pela inércia e
indolência dos habitantes destes Rios.”594
Além dos suprimentos, outra demanda lhe tirava o sono: a falta de carregadores.
Enquanto esperava poder contar com 400 Mouizas da comitiva do Kazembe para pegar
em cargas, só encontrou disponíveis cerca de 100. “Uns tinham padecido, outros ido para
longe e outros finalmente não queriam pegar em cargas.”595 Além disso, alguns
moradores da vila de Tete e dos prazos da Coroa diziam estar à disposição os “seus
escravizados” para o emprego de carregadores. Mas, na leitura de Lacerda e Almeida, os
incentivavam, pelas suas costas, a fugirem antes mesmo da expedição começar.
Na sua leitura, tratava-se de pessoas desinteressadas nos progressos dos negócios
da Majestade e, em decorrência disso, divulgavam notícias a respeito da “impossibilidade
e perigos dessa empresa, o que se transmitia pelos cafres e os atemoriza.” 596 Não
localizamos fontes, além das palavras do próprio Lacerda e Almeida, de que existia um
estímulo para as deserções, algo que poderia ocorrer, pois não havia consenso sobre o
projeto da expedição. Por outro lado, podemos inferir também que as fugas ocorriam por
iniciativa e vontade dos próprios sujeitos designados como carregadores. Atitude
semelhante tomaram os Mouizas: alguns deles, como dito, depois de cumprir os
compromissos assumidos com o Mwata Kazembe ou os interesses comerciais particulares
e de sua nação, “foram para longe.”
Há a possibilidade da proposta de Lacerda e Almeida não ter oferecido vantagens
aos homens e mulheres dos Rios de Sena, os quais seriam submetidos a um trabalho
arriscado e apartado do local que habitavam. O mesmo vale para os Mouizas, não
sabemos exatamente qual o acordo estabelecido para participarem da comitiva do
Kazembe, mas certamente lhes garantiam ganhos comerciais e de proteção, além de
alimentar relações de trocas recíprocas estabelecidas antes da viagem. Como sugeriu a
historiadora Breatrix Heintze, na África centro-ocidental a partida de uma “caravana de

594
Idem, p. 586
595
Idem, p. 548
596
ALMEIDA, Francisco José de Lacerda. In: PEREIR; RIBAS. Op. Cit. 2012. p. 587
232

comércio de longa distância era sempre um acontecimento moroso que se arrastava por
vários dias.”597
A delonga associava-se, sobretudo, à tentativa de compor a equipe executora dos
planos e anseios pré-estabelecidos, em especial de arregimentar número suficiente de
carregadores. As diferenças entre anseios e práticas locais e os planos dos estrangeiros
eram resolvidos, como argumentou a historiadora Elaine Ribeiro, depois de extensas
negociações. Isso demonstrava como a barganha, muitas vezes realizada de maneira
coletiva, constituía-se enquanto aspecto central na contratação dos carregadores.
É preciso considerar a complexidade das negociações, marcadas por receios de
ambas as partes de descumprimentos dos acordos e por interesses, muitas vezes,
antagônicos. Para Ribeiro, havia um elemento importante para os carregadores ganharem
protagonismo neste processo, eles eram detentores de um “saber-fazer” específico.
Existiam modus operandi próprios dos agentes que pegavam em carga: “os carregadores
não só exigiam que as cargas fossem organizadas ao seu modo, como recusavam aquelas
excessivamente pesadas. Essa recusa podia se dar no momento do contrato ou quando
mesmo assim obrigados a carregar o fardo pesado o abandonavam pelo caminho.”598
O militar português Henrique Carvalho, por exemplo, em diário da Expedição
portuguesa de Angola ao Muatiânvua (1884-1888), registrou que, no momento do
recrutamento, os carregadores “pediam uma carga, olhavam para ela, gastavam tempo em
experiências só para arrastar e quando achavam pesada faziam caretas e acionados de
espanto, mostrando assim, aos companheiros que os observavam, que eram muito pesadas
e desanimando-os de tentarem também reconhecer-lhe peso.”599 Se a expedição guardava
entre os seus objetivos os de cunho científico, um necessário cuidado haveria ter para o
transporte dos instrumentos. Henrique Carvalho mencionou “a organização dos volumes
que os carregadores do comércio não estavam acostumados a transportar, como as caixas
científicas dos exploradores europeus com seus livros, instrumentos, materiais de

597
HEINTZE, Beatrix. Pioneiros africanos. Caravanas de carregadores na África centro-ocidental (entre
1850 e 1890). Lisboa: Editorial Caminho, 2004. p. 351
598
SANTOS, Elaine Ribeiro da Silva dos. Op. Cit. 2010. p. 45
599
Idem, p. 46
233

fotografia, remédios, entre outros; tudo embalado em volumes que dificultavam o seu
transporte.”600
Cedo os portugueses perceberam a importância dos carregadores para a
interiorização do comércio no continente. Do mesmo modo, sabiam dos desafios de se
controlar os seus recrutamentos. Para Alfredo Margarido, no caso do Reino de Angola,
em meados do século XVII, se manifestava uma preocupação entre os funcionários da
monarquia portuguesa: o despovoamento de seus domínios em decorrência do
aliciamento de carregadores por comerciantes e sobas locais. A essa inquietação
associava-se “as instruções dadas, em 1666, pelo governador Tristão da Cunha na
tentativa de proibir o serviço gratuito prestado aos comerciantes (feirantes) por
carregadores, porque leva um grande número de africanos a procurar refúgio com
chefias (sobados) independente.”601 Em linhas gerais, o que preocupava os portugueses
não eram as duras condições de trabalho dos carregadores, e sim os empecilhos que
poderiam ser gerados ao tráfico de escravizados, na medida em que os africanos se
distanciavam do litoral.
Outra desvantagem aos agentes coloniais se associava à necessidade de braços
para as atividades econômicas, como a agricultura e a mineração. Em particular em
relação a mineração, Margarido associou as investidas de “governadores ilustrados” de
proibir a arregimentação de carregadores nos domínios lusos a partir de meados do
setecentos. Destaca-se o caso de Inocêncio de Souza Coutinho, o qual foi “confrontado
com os problemas relacionados ao que julgava ser abuso de colonos e soba” no
recrutamento de carregadores. Em decorrência da baixa populacional, havia dificuldades
de conseguir trabalhadores para atuar, por exemplo, na Fábrica de Ferro de Nova Oeiras,
tendo em vista que “muitos desses deixavam o território sem ninguém para entranhar-se
no comércio do sertão.”602
No século XIX, o que era identificado como um obstáculo pelos administradores
coloniais permanecia: Antonio Saldanha de Gama, em 1814, também reclamava do

600
Idem, p. 47
601
MARGARIDO, Alfredo. Les Porteurs: forme de domination et agents de changement en Angola (XVIIe-
XIXe siècles). Revue française d'histoire d'outre-mer, tome 65, n°240, 3e trimestre 1978. pp. 377-400.
Disponível em: https://www.persee.fr/doc/outre_0300-9513_1978_num_65_240_2133. Acesso em
02/05/2020. p. 378
602
Idem. Os trechos entre aspas são traduções livres feitas pela autora.
234

“despovoamento atrelado aos africanos empregados em atividades comerciais.” 603


De
todo modo, os portugueses e outros estrangeiros não conseguiam exercer por completo o
controle do mundo do trabalho africano. Além de manterem-se como indispensáveis não
somente na época moderna, mas até o início do século XX, os carregadores permaneciam
como detentores dos conhecimentos especializados, bem como agentes no processo de
contratação dos seus serviços.
E Francisco José Lacerda e Almeida, o que oferecia aos carregadores em troca do
penoso trabalho de carregar tecidos, missangas, instrumentos científicos, cadernos,
alimentos, remédios, armas e os próprios membros da expedição metidos em rede ou
palanquim? Em quais termos foram selados os acordos entre ele e trabalhadores(as)
africanos(as)? Somente encontramos notícias de negociação com este caráter quando a
expedição já estava em curso, como trataremos adiante. Nos parece, portanto, que o
matemático não compreendeu, ao menos não no período de permanência na vila de Tete
e de montagem da equipe da expedição, as regras locais de arregimentação de
carregadores, o que não deixava de estar associado ao fato de ser necessário redes de
relações previamente para garantia da circulação. Corrobora com a afirmação o fato dele
querer contar de maneira espontânea com os serviços dos Mouizas da comitiva do
Kazembe. Também é representativa a acusação de serem os moradores dos Rios de Sena
os incentivadores das fugas, antes mesmo da viagem ter início, não considerando que isso
podia ocorrer por iniciativa dos próprios carregadores.
Como dissemos no início do tópico, somente foi possível, depois de
aproximadamente três meses, compor por completo o pessoal que atuou na expedição de
Lacerda e Almeida com o apoio de Dona Francisca Josefa de Moura e Menezes. O
matemático se casou com uma de suas sobrinhas, Dona Leonarda Octaviano dos Reis e
Moreira, natural da vila de Tete. Em contrapartida, recebeu cerca de 100 carregadores
para lhe acompanhar pelo sertão. Dona Francisca assegurou que, com exceção de poucos,
não fugiriam. De acordo com Eugénia Rodrigues:

A cooperação colhida pelo governador, em contraste com a oposição da


maioria dos foreiros pouco interessados em desviar os seus escravos para
actividades consideradas incertas, conduziu-o a opinar que D. Francisca «tem

603
Idem, p. 382
235

o timbre de não negar-se a qualquer coisa que seja necessário para o bem do
Real Serviço, e nisto tem a sua vaidade». O apoio dispensado pela viúva servia,
no entanto, o mesmo objectivo de preservação do seu estatuto na sociedade dos
Rios. Com efeito, ela terá visto a sua participação no plano régio de ligação
das duas costas de África como uma ocasião de enorme prestígio cujos ecos
chegariam à corte.604

D. Francisca dizia não disponibilizar mais carregadores, pois “o maior número da


sua escravatura era de negras que se achavam espalhadas por diversas partes, em
diferentes trabalhos, e a maior parte minerando em Maxinga.” Tais palavras
reascenderam o ânimo de Lacerda e Almeida, que lembrou de ser Maxinga um ponto de
passagem e onde estava todo o arroz para subsistência da comitiva durante a viagem.
Indagou se, “em caso de necessidade e falta de cafres poderia servir das negras, pois se
constava que elas trabalhavam mais do que os mesmos cafres.”
Com resposta positiva, a prazeira complementou: servindo-se “de negras iria
senão melhor, pelo menos tão bem servido como com cafres.” Ela ainda ofereceu mais
um auxílio fundamental para a partida da expedição da vila de Tete. Ordenou que seus
“butongas/cafres libertos que assistem e moram nos prazos da coroa” e algumas “negras
de serviço de sua casa” conduzissem os itens sem carregadores até Maxinga. Dali em
diante o transporte seria feito pelas mulheres escravizadas e, até então, empregadas na
mineração.605
Além dos carregadores, a equipe formada na vila de Tete contava com línguas,
guias, soldados, militares e um capelão, o reverendo padre Francisco João Pinto. Dentre
os militares destacavam-se o tenente coronel Pedro Nolasco Vieira de Araújo, o tenente
de Sena José Vicente Pereira Salema e o Sargento Mor Pedro Xavier Velasco. Os guias
principais eram os dois enviados da embaixada do Kazembe e o mestiço Manoel Caetano
Pereira. Esse último era também designado como “prático de mato”, do mesmo modo que
o reinol José Rodrigues Celeja. Beatriz Heintze destacou que os sujeitos que indicavam
os caminhos, além de conhecimentos sobre os territórios, tinham contatos políticos: “os
guias das caravanas trocavam entre si, com os chefes das aldeias e dirigentes regionais,

604
RODRIGUES, Eugénia. Chiponda, a “senhora que tudo pisa com os pés”. Estratégias de poder das donas
dos prazos do Zambeze no século XIII. Anais de História de Além-mar, n. 1, 2000.
https://run.unl.pt/bitstream/10362/16062/1/AHAM%20I_2000.pdf
605
Idem, p. 589
236

notícias, conhecimentos geográficos e experiências. Foi assim que os viajantes europeus


conseguiram avançar em direção interior.”606
Eugénia Rodrigues observou que Tomás Gomes da Silva, natural do Rio de
Janeiro, somava-se ao grupo e atuava como língua da comitiva, pois demonstrava
habilidade para aprender idiomas locais. Além dele, “Lacerda viajava igualmente com
intérpretes africanos, por meio dos quais se comunicava com os embaixadores do Mwata
Kazembe, certamente indivíduos que já tinham se deslocado à corte deste chefe.”607 Como
percorreram regiões que extrapolavam os domínios coloniais portugueses, a garantia da
comunicação – seja para solicitar a permissão de passagem e informações, negociar
mercadorias, conseguir alimentos, estabelecer relações de amizade – era uma questão
essencial da expedição.
O grupo iniciou a viagem em junho de 1798, a seguir o mesmo caminho feito pela
comitiva do Mwata Kazembe e por Manoel Caetano Pereira anos antes. Como trataremos
a seguir, se desde a partida Lacerda e Almeida precisou recorrer as informações e lógicas
de circulação definidos pelas populações locais, isso se acentuou no cotidiano da viagem.
Ao se afastar da vila de Tete, o último núcleo mais estável de colonização portuguesa nos
Rios de Sena, o matemático perdeu quase por completo o comando da expedição e ficou,
como ele mesmo afirmava, “à serviço da vontade dos cafres.”

606
HEINTZE, Beatrix. A África Centro-ocidental no século XIX (c. 1850-1890): intercâmbio com o mundo
exterior - apropriação, exploração e documentação. Luanda: Kilombelombe, 2014. p. 200-201
607
RODRIGUES, Eugénia. Op. Cit. 2013. p. 117
237

4.4. A execução do projeto de travessia: carregadores, guias e línguas no sertão


africano

“Refeição dos carregadores”, José Velloso de Castro, Angola, 1909.608

Através dos estudos da historiadora Elaine Ribeiro, tive contato pela primeira vez
com fotografias que, tal como a reproduzida acima, contemplavam uma categoria
específica de trabalhadores africanos: os carregadores.609 Desde quando esta pesquisa foi
iniciada os agentes responsáveis por levar as cargas no sertão africano ocupavam, junto
com os remeiros indígenas da Amazônia colonial portuguesa, os quais não deixavam, em

608
Arquivo Histórico Militar de Lisboa: PT AHM-FE-CAVE-VC-A10-0896. Coleção: José Veloso de
Castro. Link: https://arqhist.exercito.pt/details?id=159716
609
SANTOS, Elaine Ribeiro da Silva dos. Barganhando sobrevivências: os trabalhadores centro-africanos
da expedição de Henrique de Carvalho a Lunda (1884-1888). Dissertação de Mestrado em História Social
da Universidade de São Paulo, 2010. SANTOS, Elaine Ribeiro da Silva dos. Sociabilidades em trânsito: os
carregadores do comércio de longa distância na Lunda (1880-1920). Tese de Doutorado em História Social,
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2016.
238

situações específicas, de desempenhar também a função de carregadores, uma


centralidade em minhas reflexões.
Chamava-me atenção, sem dúvida, a expressividade numérica dos dois grupos nas
comitivas que percorriam os continentes americano e africano, mas também como se
faziam presentes nos relatos quando o assunto era desestabilização, gerada
principalmente por fugas, dos planos dos viajantes. Remeiros e carregadores eram os
responsáveis por colocar em movimento as expedições, fossem elas realizadas por terra
ou rio. No cotidiano das viagens desempenhavam um papel essencial, o que lhes dava o
poder de ditar o ritmo da marcha. Em alguns momentos, seja por acordos descumpridos
ou riscos eminentes, chegavam a interrompê-la. A dificuldade de manter o comando sobre
a equipe se acentuava na medida em que os viajantes se afastavam dos núcleos de
colonização estáveis.
A fotografia denominada “refeição dos carregadores”, datada de 1909, faz parte
da coleção de José Velloso de Castro, alferes de infantaria português com serviços
prestados por quase quarenta anos em Angola. Além dos encargos próprios da sua
profissão, dedicou-se ao registro visual da flora, fauna, geografia e das populações centro-
africanas. Em uma pesquisa no acervo do Arquivo Militar de Lisboa localizamos
fotografias em que Velloso de Castro registrou os carregadores em atividades variadas:
em processo de recrutamento, a receber alimentos, em momento de descanso,
caminhando carregados de produtos (como borracha, sal e marfim) e acampados.
Na imagem reproduzida acima, o “fotógrafo-militar” optou por focar as lentes nos
carregadores enquanto se alimentavam. Separados em dois grupos, talvez a manter a
mesma organização adotada durante a marcha, alguns homens encontram-se sentados no
chão. Segundo Eugénia Rodrigues, a divisão da caravana em subgrupos facilitava no
momento de conseguir alimentos e distribuí-los. Com tigelas dispostas no meio dos quase
completos círculos, comiam, possivelmente “a ração diária”, cuja quantidade e horários
eram acordados previamente. Vestiam-se com tecidos de uma única cor que cobria da
cintura para baixo e os com as costas à vista ostentavam uma marcação corporal.
Os demais sujeitos mantinham-se em pé. Dois deles usavam roupas que cobriam
também a parte superior do corpo e chapéus, o que talvez indique os diferentes status e
marcadores sociais que formavam, como no caso dos remeiros e pilotos, o grupo de
239

carregadores. Um deles, situado mais perto da árvore com chapéu sem aba, vestido de
camisa e de um tecido estampado da cintura aos pés, parece estar manipulando uma arma
de fogo. É possível que fosse o responsável pela segurança da comitiva, e não um
carregador. Os outros também podiam desempenhar atribuições variadas, como as de
guias ou línguas, distinguindo-se dos homens que pegavam em cargas.
Na árvore encontram-se apoiadas os carregamentos, devidamente embaladas e no
topo de um suporte comprido. Segundo Elaine Ribeiro, na África centro-ocidental eram
utilizados cestos para acomodar as cargas, feitos a partir do trançado de fibras e
denominados, em kibundu ou muussassa, muianga. O cesto e vara de sustentação
formavam um único instrumento, chamado de muhamba/moamba/muamba. “O fato das
varas excederem para um dos lados do cesto, ajudava o carregador a levantar sozinho o
fardo. [...] A estratégia das varas mais longas também valia para mudar a carga de ombro
ao longo da caminhada.”610 Para a autora, a elaboração de estratégias para acomodar os
fardos atestam que os carregadores não executavam tarefas meramente mecânicas, mas
detinham um saber-fazer específico.
Mesmo sendo relevante uma análise aprofundada da fotografia, inserindo-a em
seu contexto cultural, político e técnico de produção e circulação, não a faremos. O
exercício de trazê-la à tona relaciona-se a dois objetivos: 1) ajudar-nos a projetar,
mentalmente, como era o cotidiano de uma expedição formada principalmente por
carregadores no continente africano; 2) demarcar a longevidade da atuação destes
trabalhares nas regiões onde a soberania portuguesa tentou se fazer presente.611
De acordo com Elaine Ribeiro, as caravanas de comércio – formadas
majoritariamente por sujeitos responsáveis por transportar mercadorias e pessoas – teve

610
RIBEIRO, Elaine. Op. Cit. p. 42-43
611
Paul Lovejoy, ao fazer uso de fontes diversificadas, especialmente relatos de viajantes, analisou as
atividades realizadas por mercadores e carregadores das caravanas do Sudão Central no século XIX. Trata-
se, assim, de região diferentes das que os portugueses se fizeram presentes. Uma das conclusões do autor é
que o comércio de longa distância africano era uma atividade altamente especializada e dependia de
relações políticas complexas, garantias de passagem, de acesso à informação e alimentos. O transporte de
cargas ser visto como uma ocupação dos segmentos mais pobres. Nos períodos em que outras atividades,
como a agricultura, geravam boas rendas, era mais difícil de encontrar sujeitos dispostos a pegar em cargas:
“o carregamento era uma atividade perigosa, as jornadas de trabalho eram longas e extenuantes e as
caravanas costumavam sofrer ataques ao longo do caminho, o que, com frequência, resultava na morte ou
na escravização de seus componentes. Os comerciantes algumas vezes escravizavam trabalhadores livres
indevidamente, ou os exploravam além do contratado.” LOVEJOY, Paul E. Mercadores e carregadores das
Caravanas do Sudão Central, século XIX. Tempo [online], vol.10, n.20, 2006.
240

importância pelo menos até as primeiras décadas do século XX. Houve tentativas de
substituí-los por animais (camelos e mulas, por exemplo), mas em decorrência da mosca
tsé-tsé, dos acidentes dos terrenos e dos conhecimentos dominados pelos carregadores
não foi possível. Esses sujeitos, ativos conhecedores dos caminhos e dos pontos de apoio
disponíveis no sertão, somente foram suprimidos quando construídas as linhas férreas.
Posto isto, nas redes de comércio terrestres,

produto de um processo de longa duração caracterizado por relações de poder


entre agentes de diferentes origens continentais, os carregadores contribuíram
ativamente, com sua força de trabalho, para o desenvolvimento de uma
estrutura comercial, da qual o comércio Atlântico muito se beneficiou, desde
o século XVI.612

Na época moderna, o interior do continente africano abrigava diversificadas e


complexas redes de comércio, as quais mantiveram-se em grande maioria sob o domínio
dos próprios naturais daquele continente. Para John Thornton, as importações de
mercadorias não devem ser interpretadas pelo viés da falta, como se algumas manufaturas
e gêneros só pudessem ser acessadas a partir do contato com os europeus. Os produtos
africanos eram igualmente cobiçados no mercado internacional. Para ficar em apenas
alguns itens: esteiras de palha da Senegâmbia foram “exportadas para o mercado europeu
em grande quantidade [...], frequentemente usadas na Europa como cobertas de cama” e
o marfim, vendidos “na maioria em forma de colheres, mas também canetas e saleiros.”613
A essa altura é válido lembrar que a ordem dada por Dom Rodrigo de Sousa
Coutinho para Francisco José de Lacerda e Almeida foi a de reconhecer se nas
proximidades da vila de Tete existiam rios que corriam para a costa ocidental, mais
precisamente para o rumo do rio Cunene. A aposta era no mapeamento dos “caminhos
móveis” que poderiam dar acesso à Angola, como já dissemos. Para a historiadora
portuguesa Carla Vieira, a insistência “na possibilidade de uma comunicação fluvial entre

612
SANTOS, Elaine Ribeiro da Silva dos. Op. Cit. 2016. p. 14
613
THORNTON, John K. A África e os africanos na formação do mundo atlântico (1400-1800). Rio de
Janeiro, Editora Campus /Elsivier, 2004. p. 99
241

as duas costas”614 se relacionava à tentativa de diminuir a dependência das caravanas


terrestres de comércio.
Os rios apresentavam-se como uma alternativa para se desvincular das lógicas de
circulação por terra construídas, alimentadas e controladas por lideranças africanas.
Mesmo não sendo navegáveis em toda a extensão, como observou Vieira, as margens dos
rios serviriam de “um guia fiável”, diminuindo a dependência dos guias e práticos nativos.
Posto isto, as malhas hídricas eram vislumbradas como “um meio de permeabilizar os
limites colocados à circulação no sertão e, ao invés de uma barreira, tornava-se uma
garantia de mobilidade.”615 Embora se empenhara em reunir informações sobre os rios,
foi por terra e na companhia de guias, carregadores, línguas (em sua maioria africanos)
e submetido às regras locais que a viagem de Lacerda e Almeida transcorreu.
O mapa reproduzido a seguir foi levado pelo matemático na tentativa de travessia
e é útil para acompanhar o trajeto trilhado entre os Rios de Sena e o Reino do Kazembe.
Trata-se da carta de autoria do geógrafo francês D´Anville, encomendado pelo diplomata
Dom Luís da Cunha. Mesmo sendo de meados de setecentos, segundo Júnia Furtado, o
mapa teve papel central no contexto de partilha da África do século XIX. Para a autora,
o imenso “vazio” ou espaço em branco no interior do continente – elemento que fomentou
os anseios imperialistas – correspondia aos territórios desconhecidos dos europeus.
Também remetia para a lógica de produção de conhecimento iluminista, na qual somente
se incorporava aos mapas os espaços nos quais um sujeito com formação especializada,
como era o caso de Lacerda e Almeida, tivesse feito medidas precisas.

614
VIEIRA, Carla. Os Portugueses e a travessia do continente africano: projectos e viagens (1755-1814).
Lisboa: Mestrado en História dos Descobrimentos e da Expansão Portuguesa, Universidade de Lisboa,
2006. p. 90
615
Idem, p. 90
242

Disponível em: PEREIRA; RIBAS. Op. Cit. 2012. p. 763

Lacerda e Almeida partiu da vila de Tete no sentido norte. Grosso modo, passou
por dois terrenos mineradores cuja exploração do ouro era feita por moradores dos Rios
de Sena: a) Maxinga: onde mineravam as mulheres escravizadas por Dona Josefa; b) Java:
local em que a família de Gonçalo Caetano Pereira recebeu a primeira proposta comercial
dos Mouizas e do Kazembe. Cruzou as povoações dos Maraves, com extensão até o rio
Aruângua. Depois de atravessar este curso d´água e de abandonar a ideia de fazer as suas
medições, atingiu e percorreu o território dos Mouizas até chegar nas proximidades do
rio denominado “Chambezi”. Provavelmente, era este o rio que o matemático identificou
como o “Zambeze dos Mouizas”, mas que desconfiava não ser o mesmo que cortava os
Rios de Sena. No dia 2 de outubro de 1798, registrou o primeiro contato, mediado por
mensageiros, com o Mwata Kazembe. No dia seguinte, constam as suas últimas anotações
em diário, interrompido bruscamente. É interessante notar como o suposto curso do rio
243

Cunene, marcado em linha forte, converge com a direção da expedição. O matemático


imaginava realmente ser possível atingi-lo depois de transpostos os domínios do
Kazembe, além de projetar não estar tão distante da costa banhada pelo Atlântico.
Como abarcamos no tópico anterior, um dos desafios centrais para a viagem de
travessia foi arregimentar os carregadores. Com o princípio efetivo da marcha, o diário
de Lacerda e Almeida foi tomado por lamentos sobre as deserções, o ritmo considerado
lento da marcha e as morosas negociações, acompanhadas de gastos não previstos, na
contratação de carregadores para suprir a falta dos que se punham em fuga. O viajante
experimentou inúmeros dissabores em decorrência do indesejado protagonismo dos
carregadores. Às demandas para administrar os trabalhos dos homens e mulheres do
transporte de cargas, somavam-se as desconfianças acerca dos caminhos apontados pelos
guias e as dificuldades de comunicação.
Antes mesmo de sair das jurisdição da capitania dos Rios de Sena as deserções se
iniciaram. Tendo percorrido cerca de três quartos de léguas da vila Tete, tomou nota das
primeiras e, embora furioso, se consolou por terem deixado em abandono os fardos. Mais
uma vez, atribuiu o motivo da fuga ao estímulo de uma moradora dos Rios Sena, Dona
Paulina de Souza Bragança. Vinte dos fugitivos tinham sido cedidos com muita má
vontade por ela. Para contornar o problema, seguiu o exemplo dos “navegantes em um
rijo temporal: arrojam as cargas no mar para não naufragarem”. Repartiu o sal da cozinha
entre os soldados e pelos oficiais uma frasqueira de chá e as garrafas de aguardente. Cada
um transportaria os itens para consumo próprio.
Ao anoitecer praticamente não pregou os olhos diante do temor de novas fugas, o
que não as evitou: desertaram 34 carregadores. Fez nova divisão das cargas e, dessa vez,
foi necessário abandonar algumas: um caixão de louça e três poltronas destinadas ao
Kazembe, uma frasqueira de manteiga e um barril de pólvora de péssima qualidade.
Seguiu desfalcado de carregadores e produtos. Não deixou de registrar ser seu estímulo
“o consolo do porto de chegada.616
Em Maxinga, Lacerda e Almeida finalmente recompôs a comitiva. Foram
arregimentadas perto de 200 mulheres que mineravam para Dona Josefa, escolhidas entre

616
Idem, p. 593
244

as mais fortes. Mas o contentamento durou pouco. No mesmo tempo fora surpreendido
pela fuga de mais 80 carregadores dos vindos da vila de Tete. Diante da impossibilidade
de abandonar outras cargas se viu obrigado a contratar, mediante pagamento, os Maraves
como carregadores. Esses não quiseram pegar nos volumes sem antes receber a paga,
“cujo o ajuste foi bem trabalhado de parte a parte e por fim cada um deles recebeu um
capotim/dois panos.”617 Não descartou o risco de mesmo assim fugirem e interpretou a
exigência por terem se aproveitado de seu desespero e urgência.
Nas povoações dos Maraves, “nossos amigos fingidos”, tendo em vista que, como
registrava o matemático, exigiam dos mercadores portugueses tributos para atravessarem
as suas terras, os viu “repetidas vezes feito expectadores” nas beiras das estradas. O língua
traduziu o motivo dos olhares de espanto: Lacerda e Almeida vinha carregado em um
pequeno palanquim, o que não era prática nem entre o “muito poderoso rei” da
povoação.618 Além da presença do língua, a passagem evidencia que os carregadores não
transportavam somente as mercadorias, mas também o próprio viajante.
Não demorou muito para a expedição fazer uma parada forçada pelos
carregadores. Ao indagar os soldados o porquê de não os obrigarem a seguir, recebeu a
resposta de que foram ameaçados com arcos e flechas. Conformou-se, pois se ordenasse
castigos aos “mais culpados” corria o risco de fugirem todos.619 Além disso, registrou que
a marcha curta e a exigência de parada em pontos específicos se davam, “pois assim estão
criados.” Nas caravanas de comércio eram remetidos pelos senhores como negociantes
aos sertões e desfrutavam de liberdade: andavam “quanto tempo queriam e tomavam
muitas mulheres à custa do amo, finalmente faziam quanto desejavam.”
Numa tentativa de negociação, convocou os “mocazambos, cafres que governam
um certo número de cafres cativos e eles também o são”. Mediado pelo língua, expressou
as suas ordens para apressarem a caminhada e diminuírem as paradas. 620 A passagem
evidencia a existência de hierarquias e divisões internas na organização entre os

617
ALMEIDA, Francisco José de Lacerda. Diário de viagem da vila de Tete capital dos Rios de Sena para
o interior da África. In: PEREIR; RIBAS. Op. Cit. 2012. p. 598
618
Idem, p. 596
619
Idem, p. 599
620
Idem, p. 600
245

carregadores, além da tentativa de Lacerda e Almeida de dialogar com os representantes


do grupo se mais um indício da organização coletivizadas dos trabalhadores.
Embora tentasse, o matemático definitivamente não conseguia impor o ritmo que
desejava. Em uma dada situação, os membros da expedição pararam para descanso no
distrito do Régulo Bive, uma das povoações dos Maraves. No amanhecer, os
carregadores, em mais uma ação coletiva, se juntaram e comunicaram que não seguiriam
viagem naquele dia. Lacerda e Almeida tentou convencê-los, argumentou estar doente e
tentou negociar uma marcha mais curta (até o meio do dia), mas não houve remédio. O
prático José Roiz Caleja disse ser melhor aceitar ou corria-se o risco de novas deserções.
Depois de marcar “quatro cabeças mais teimosas”, se recolheu para pensar no modo de
“evitar essas demoras, tão prejudiciais ao serviço de S. Majestade.” 621
Outro aspecto motivador do descontentamento de Lacerda e Almeida consistia no
fato dos carregadores se recusarem a seguirem juntos. Eles se dividiam em grupos
menores o que, em sua perspectiva, fragilizava e expunha a comitiva aos furtos das cargas.
Pontuamos no início deste tópico o que a historiadora Eugénia Rodrigues destacou ser
uma prática das caravanas comerciais. As subdivisões facilitavam, por exemplo, na busca
por alimentos. Lacerda e Almeida definitivamente não conseguia entender as decisões e
exigências dos carregadores. As interpretava como “capricho”, “preguiça”, “excesso de
liberdade”, “falta de razão”. Dizia, por outro lado, estarem “acostumados a agir assim”,
o que evidencia não serem principiantes, como ele era, no processo de adentrar o sertão
transportando mercadorias.
O historiador Paul Lovejoy expôs uma situação semelhante à vivida pelo
matemático luso-brasileiro. O viajante prussiano Von Uechtritz, ao contratar carregadores
Haussá em viagem pelo Sudão, exigia que eles seguissem “em fila indiana, com uma
parada de descanso de dez minutos, a cada hora.” Mas os Haussá estavam “acostumados
ao contrato por empreitada, onde se garantia a entrega da carga em determinado prazo,
mas não as condições da viagem.”622 As diferenças entre práticas locais e anseios
estrangeiros precisavam necessariamente serem negociadas. Os carregadores, por sua
vez, “mantinham uma atitude corporativa, permitindo dizer que a emergência de uma

621
Idem, p. 600
622
LOVEJOY. Paul. Op. Cit. pp. 69-70
246

consciência coletiva, da parte deles, era um fator importante na organização e na


condução do comércio.”623
Quando a expedição completava quase dois meses de marcha, Lacerda e Almeida
começou a desconfiar das informações reunidas na vila de Tete e das pessoas que o
acompanhavam. A essa altura encontrava-se com fortes febres, podendo recorrer somente
a quina e com privação de alimentos, e profundamente descontente com perda quase
completa do comando da comitiva. Sobre os “práticos de mato”, Manoel Caetano Pereira
e José Caleja afirmaram que não cumpriam as suas ordens, alegando não estarem de
acordo com “usos e costumes dos cafres”. Acerca das notícias reunidas a partir dos relatos
de Manoel Caetano e dos emissários do Kazembe, achava tudo “alheio a verdade” e dizia
que, se possível fosse, queimaria os manuscritos nos quais as registrou. Lembrou-se da
experiência no Mato Grosso e dos “muitos depoimentos falsos” recebidos. Por seis meses
foi obrigado a fazer diligência no lago Xarais e nenhuma das informações se confirmou.
Ainda assim, a situação na África parecia pior, pois se tratava de territórios menos
conhecidos pelos portugueses se comparado com os do Mato Grosso.
Desconfiado, depois de adentrar no território dos Mouizas, resolveu coletar novas
informações. Mais uma vez, suas indagações giravam em torno do curso dos rios. Para
“dois cafres já velhos” mandou tirar informações sobre o rio Xire. Esses responderam
“que eles e a sua nação nunca viajaram, que agora depois das guerras e vitória que contra
eles alcançou o Kazembe é que tem saído da sua, mas só para o Zimbôe daquele rei.” Ao
menos foi essa a tradução fornecida pelo intérprete. Lacerda e Almeida não deixava de se
lamentar da “dificuldade de achar homem inteligente” nas línguas locais e reclamou da
“pertinaz teima que estes intérpretes tem em acomodar as suas questões.” 624
Mesmo
fazendo perguntas mais de uma vez e de diferentes modos, ele não ficava totalmente
convencido. Mas a sua única opção, naquele momento, era seguir viagem com seus guias
e informantes locais. Caso contrário, teria de voltar para a vila de Tete e presenciar as
pessoas mais conhecedoras daqueles sertão a dizer que alertaram ser inviável a expedição.
Decidiu não regressar e seguiu a sua dramática marcha entre adoecimento, saques e
deserções de carregadores.

623
Idem, p. 70
624
Idem, p. 631
247

No início de outubro de 1798, à beira da morte, atingiu as terras do Kazembe.


Dizia somente conseguir sair do palanquim para cama. Não deixou de tomar nota de uma
lembrança: as árvores grossas e altas diferiam-se do que tinha visto até então e pareciam
as que viu na América. Tentou avançar para mais perto de onde vivia o Mwata Kazembe,
mas recebeu a notícia, através de dois enviados, para não se adiantar. Segundo registro
do matemático, argumentavam que o Kazembe, antes de recebê-lo, precisava prestar
homenagens aos seus finados. Lacerda e Almeida não resistiu a espera e faleceu naquele
mesmo lugar poucos dias depois.
O Mwata Kazembe foi eficaz em bloquear a passagem no sentido de Angola,
obrigando os sobreviventes da expedição a retornar para a vila de Tete. O
capelão Francisco João Pinto passou a liderar o grupo e registou em diário o regresso
para os Rios de Sena, concedendo destaque aos intensos conflitos travados entre os
membros da expedição, em especial os que, a princípio, eram próximos de Lacerda e
Almeida.625 Parte das análises acerca da tentativa da travessia do continente africano
destacou tais disputas como um elemento que comprometeu os resultados da expedição.
Parece-nos, por outro lado, ser crucial observar com cuidado as lógicas de circulação por
terra, dominadas por povos africanos, para matizar as dificuldades e bloqueios impostos.
Beatrix Heintze observou que barreiras como a encontrada, de fato, impediram a
penetração europeia mais sistemática ao menos até o século XIX na África centro-
ocidental. Controlar o direito de passagem e circulação de notícias garantia vantagens nas
relações estabelecidas com os estrangeiros. Os focos de domínio “por um lado, eram
encarados de forma positiva, como locais de convergência e divulgação de notícias de
todo gênero e de realização de importantes acordos comerciais a longo prazo.”626 Mas,
“por outro, os tributos particularmente elevados e a estadia involuntária por tempo
indeterminado, que a permanência das caravanas nesses centros de informação e poder
implicava (e que frequentemente assumia a forma de chantagem), faziam com que elas
preferissem muitas vezes contornar essas regiões.”627

625
PINTO, Francisco João. Diário da Viagem de retorno da Expedição de Travessia da África, do Cazembe
a Tetê, após a morte de Francisco José de Lacerda e Almeida, sob o comando do Padre Francisco João
Pinto. In: PEREIRA; RIBAS, Op. Cit. 2012, p. 645
626
HEINTZE, Beatrix. A África Centro-ocidental no século XIX (c. 1850-1890): intercâmbio com o mundo
exterior - apropriação, exploração e documentação. Luanda: Kilombelombe, 2014. p 204- 205
627
Idem, p. 199
248

Dentre as expedições estudadas, a de Lacerda e Almeida foi a mais emblemática


no que se refere ao trânsito de informações e à indispensabilidade dos conhecimentos dos
povos das conquistas para a execução das viagens no ultramar. Foi ele também o que
percorreu regiões menos conhecidas pelos portugueses e mais afastadas de núcleos de
colonização estáveis. É oportuno recuperar uma afirmação feita em outras passagens da
tese: embora o experiente matemático procurasse descobrir um caminho através das vias
fluviais – a seguir uma estratégia de territorialização do poder colonial através dos rios –
foi por terra e dependendo das indicações dos guias e carregadores locais que ele seguiu.
Mesmo incompleto e interrompido bruscamente, o matemático produziu um diário
remetido para Lisboa. Esse escrito, publicado e retomado posteriormente, contou com
saberes partilhados e os modos particulares de circulação no sertão foram fundamentais
para a construção de um inventário cartográfico, humano e da natureza sobre o continente
africano.
249

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os diários, correspondências, memórias e desenhos legados dos deslocamentos de


Alexandre Rodrigues Ferreira, Francisco José de Lacerda e Almeida e Antonio Pires da
Silva Pontes no norte da América portuguesa (1780-1792) e do mesmo Lacerda e Almeida
na África oriental portuguesa (1797-1798) foram as fontes priorizadas no estudo. As
perspectivas analíticas do campo das histórias conectadas nos permitiram pensar nos
objetivos comuns das expedições e entendê-las enquanto um projeto pensado para ser
aplicado numa dimensão pluricontinental. Na esteira do reformismo ilustrado, eram
elaboradas estratégias para demarcar ou expandir a presença colonial lusitana em regiões
afastadas da costa e marcadas por instabilidades. Almejava-se inserir nas redes políticas
e econômicas conquistas ainda pouco integradas às dinâmicas imperiais ou distantes da
soberania lusitana.
Para tanto, era preciso estabelecer ou projetar possíveis vínculos entre as
capitanias mais próximas, inclusive tornando marítimas as que não tinham saída direta
para o oceano. Neste processo, os rios eram verdadeiros protagonistas, sendo nos seus
cursos principais instaladas vilas, povoações, lugares, feiras, fortalezas portuguesas.
Além disso, eram os “caminhos móveis” por onde ocorriam parte das marchas para o
interior dos continentes e objeto de investigação dos matemáticos e naturalista. Levadas
a cabo por sujeitos com formação especializada, as viagens revelam os laços estreitos
entre ciência e colonização mobilizados por Portugal no setecentos. É preciso reconhecer
que, no mundo português, as expedições do período elevaram a outro patamar os estudos
sobre a América e a África. Posto isto, observações e informações reunidas
transformaram a percepção da natureza e das espacialidades das conquistas ultramarinas.
Basta pensar no Museu Real de História Natural da Ajuda, que teve um
significativo incremento de suas coleções com os trabalhos de campo dos naturalistas
luso-brasileiros. Algo semelhante pode ser pensado para a Sociedade de Geografia, que
reviu e corrigiu cartas, desfez mitos e produziu sínteses cartográficas a partir de dados
reunidos com maior precisão por matemáticas que tiveram carreiras não restritas aos
gabinetes. As viagens e as múltiplas fontes geradas a partir delas carregam igualmente
250

chaves importantes para se pensar nos trânsitos de saberes construtivos da ciência


moderna. Estes trânsitos podem ser vislumbrados nos diálogos estabelecidos com autores
europeus contemporâneos, mas também com populações não europeias e excluídas do
mundo das letras.
A Amazônia colonial e a África oriental portuguesa – embora com especificidades
culturais e naturais que obrigavam a Coroa portuguesa a adequar os seus anseios à luz das
realidades locais – passaram por reordenamentos políticos e jurídicos a partir da década
de 1750, com os quais as expedições científicas analisadas não estavam completamente
dissociadas. Especialmente Alexandre Rodrigues Ferreira na capitania de São José do Rio
Negro e Francisco José de Lacerda e Almeida nos Rios de Sena avaliaram, em grande
parte de maneira negativa demonstrando a dificuldade da soberania lusa se estabelecer
em domínios interiorizados, projetos anteriores. Naturalista e matemático procuravam
apresentar novos caminhos para geração de riqueza e consolidação de poder monárquico
se valendo da formação intelectual e do treinamentos recebidos entre Lisboa e Coimbra.
Pensamos também a respeito dos aspectos comuns das trajetórias dos viajantes em
foco. O fato de serem pertencentes às elites da América, a formação nas recém criadas
Faculdades de Matemática e Filosofia e a inserção no circuito letrado luso-brasileiro
guardavam vínculos com um perfil desejado pela burocracia da Coroa. Aproveita-se
homens das letras naturais da colônia para atuar no universo das conquistas, seja como
administradores ou para reunir informações que indicavam possibilidades de uma
exploração ordenada da natureza. Além disso, o trânsito de sujeitos nesse “mundo em
movimento” criava articulações entre diferentes porções geográficas e nos abrem
perspectivas para vislumbrar o reaproveitamento de experimentos em domínios coloniais
distintos e distantes.
Francisco José de Lacerda e Almeida, que percorreu os sertões amazônico e
africano partindo da costa oriental, acabou por se tornar o elo mais evidente no que se
refere à circulação de ideias e experiências pelos espaços abordados em nossa pesquisa.
Como dito em mais de uma passagem desta tese, o acúmulo de vivências no interior da
América, foi um elemento fundamental para a sua atuação no continente africano, em
especial na tentativa de viabilizar a ligação por terra e rios entre Moçambique e Angola.
Evidentemente, o projeto de travessia continental vinha sendo construído ao menos desde
251

Dom Luís da Cunha e o matemático também levava em conta as projeções que o


antecederam. De todo modo, era da América que vinham os empreendimentos concretos
dos portugueses e luso-brasileiros.
Na segunda parte da tese, nos deslocamos dos projetos coloniais e das trajetórias
dos sujeitos incumbidos de colocá-los em prática para o ultramar, ou seja, para a execução
das viagens em regiões circunscritas. Se os letrados traziam consigo objetivos e uma
“grade de pensamento” previamente estabelecidos, ao longo dos deslocamentos eram
tensionados por questões de múltiplas ordens que impactavam diretamente nos resultados
alcançados. Para se concretizarem em terrenos pisados pela primeira vez pelos viajantes,
era preciso construir uma rede de apoio local. Administradores coloniais desempenhavam
um papel fundamental. Eram responsáveis por acolher os letrados e suas equipes, garantir
equipamentos, embarcações, pessoal, alimentos, medicamentos.
Governadores, militares, ouvidores, juízes de fora, religiosos instalados nas
conquistas também faziam, portanto, parte da construção do conhecimento sobre a
natureza e os territórios coloniais. Mas os sujeitos atrelados diretamente à malha
administrativa da monarquia não eram os únicos a desempenhar papéis chaves para a
concretização do trabalho de campo. Os povos das conquistas – equalizados nos discursos
das autoridades lusitanas em decorrência da condição colonial e entendidos como
vassalos hierarquicamente inferiores – foram igualmente protagonistas durante a
realização das viagens. A afirmação é parte da compreensão de que o conhecimento foi
produzido a partir dos trânsitos e dos contatos recíprocos com sujeitos cuja pretensão era
de subalternizar. Em linhas gerais, os viajantes-cientistas em campo recorriam tanto aos
saberes de experiência, ou seja, de manejo da natureza acumulados pelos povos das
conquistas, quanto aos que abriam um intercâmbio direto com a produção da ciência
europeia, por exemplo a botânica e a zoologia.
Procuramos, portanto, subverter a perspectiva pejorativa acerca destas populações
presente nos documentos e com a qual Alexandre Rodrigues Ferreira, Francisco José de
Lacerda e Almeida e Antonio Pires da Silva Pontes compactuavam e ajudavam a construir
com seus textos autorizados como científicos. Nos valemos da chave interpretativa de um
império descontínuo territorialmente para pensar nos agenciamentos compartilhados
pelas populações não europeias nas relações estabelecidas com os agentes coloniais. Ao
252

focar no cotidiano das expedições, pensamos nos protagonismos conectados, mesmo


indiretamente, pelos povos das conquistas em contato com os viajantes-cientistas em
campo. O recorte em dois domínios específicos, a Amazônia colonial e a África oriental
portuguesa, permitiu uma redução da escala de análise para compreensão de quais papéis
tais povos executavam no dia-dia dos deslocamentos.
Não esgotamos, evidentemente, as possibilidades de compreensão destes saberes.
Cada um deles carrega constituições históricas próprias e marcadas por complexidades,
que merecem investigações ainda mais acuradas. De todo modo, percebemos como as
presenças constantes de remeiros, proeiros, pilotos, guias, carregadores, línguas e
informantes se justificavam para além de serem a mão de obra disponível localmente.
Estavam atreladas aos conhecimentos e habilidades que possuíam sobre o meio natural,
dos caminhos e acerca das relações políticas localmente instituídas. Em contato com os
viajantes, os quais remetiam para os “centros de cálculos” as informações reunidas, os
povos das conquistas colocavam em circulação saberes locais que ganhavam uma
dimensão global.
Alguns fragmentos de documentos relativos às expedições científicas de
Rodrigues Ferreira, Lacerda e Almeida e Silva Pontes na Amazônia, permitiram
vislumbrar a atuação dos remeiros, proeiros e jacumaúbas nos deslocamentos em
territórios serpenteado por rios. As atividades eram executadas majoritariamente por
índios aldeados que se revelavam, em alguns casos a surpreender os letrados, como
verdadeiros peritos da geografia fluvial, seja dos caudalosos rios amazônicos ou do
pantanal mato-grossense. Os conhecimentos e as habilidades que detinham, atualizados
constantemente e transmitidos entre as gerações, variavam de acordo com os cursos
d´água percorridos. Trata-se de saberes especializados e responsáveis por garantir o
movimento da comitiva.
Os domínios das especificidades dos “caminhos móveis”, fundamentais para a
marcha para o sertão, somavam-se aos saberes sobre as espacialidades que estavam
atrelados a um acervo de informações acumulados pelas nações indígenas. O mesmo pode
ser verificado em relação aos usos feitos da flora e fauna locais e os conhecimentos sobre
os povos em suas variedades culturais. Não estamos diante de informações brutas a serem
lapidadas por matemáticos e naturalistas, e sim de conhecimentos em si, os quais
253

poderiam ser reelaborados e incorporados a outras formas de se compreender o mundo.


Era o que ocorria, por exemplo, quando as latitudes, longitudes e exemplares dos três
reinos naturais eram estudados/compilados, a posteriori e em gabinete, por filósofos da
natureza ou cartógrafos.
Nos diários e correspondências de Francisco José de Lacerda e Almeida escritos
no período de permanência na África oriental, encontramos situações semelhantes. Logo
quando chegou à Ilha de Moçambique, solicitou informações junto aos práticos acerca da
viabilidade de percorrer de maneira aproximada a costa até atingir o delta do rio Zambeze.
Considerando tais pareceres, se convenceu dos riscos da empreitada e desistiu de produzir
uma carta da região costeira, como havia lhe sido recomendada. Seguiu logo para a vila
de Tete, percorreu o rio Zambeze em balões e coxos, colocados em movimento pela
pulsão de remeiros e pilotos contratados na vila de Quelimane. Tomou nota das
configurações fluviais, da forma pela qual executavam as atividades de remo e
estabeleceu comparações com o que vivera na América.
Nos Rios de Sena reuniu os conhecimentos sobre os caminhos para circulação no
interior que possuíam os membros da comitiva enviada pelo Mwata Kazembe.
Comparou-os com as notícias fornecidas por um Goês e pelo seu filho nascido naqueles
Rios e elaborou um roteiro de viagem. Embora ninguém lhe confirmasse, julgava ser
possível descobrir uma ligação fluvial, ainda que parcial, no percurso entre a vila de Tete
e Angola. Compôs uma equipe formada em sua maioria por guias, línguas, soldados e
carregadores africanos. Depois de perder por completo o controle da expedição, em
especial da marcha dos homens e mulheres que pegavam em cargas, adoeceu e faleceu à
espera de permissão de passagem do Kazembe e de novas informações para seguir até a
costa centro-ocidental.
Ao estabelecer um paralelo com as expedições realizadas na Amazônia,
concluímos que Francisco José de Lacerda e Almeida viveu as situações mais extremas
no que confere a dependência dos saberes e das lógicas próprias de circulação de
populações que se colocavam dentro e fora do mundo colonial lusitano de acordo com os
seus interesses. Isso estava associado ao fato dele percorrer regiões nas quais a soberania
portuguesa não estava (mesmo que minimamente) estabelecida. Somava-se ainda o
desconhecimento dos terrenos e dos rios, o que era impossível de ser alcançado somente
254

a partir dos instrumentos científicos ou das projeções astronômicas. Deste modo, ele se
viu confrontado com o ritmo estabelecido pelos carregadores e guias africanos,
habituados a percorrer o trajeto para comercializar.
Uma contribuição pequena deste estudo, perante tantas vidas e histórias
desintegradas e interrompidas pela violência colonialistas, foi evidenciar os
conhecimentos dos povos originários perceptíveis mesmo diante de relações de poder
assimétricas, como eram as estabelecidas com os viajantes-cientistas em campo. Saberes,
técnicas, tecnologias e modos de existência que, para a nossa sorte, resistiram e
mantiveram-se vivos numa longa duração, sendo guardados e recriados por gente com
sabedoria. Os usos desses conhecimentos, uma vez transpostos aos centros e integrados a
outras culturas científicas, estiveram, quase sempre, associados à exploração econômica
e humana. Grosso modo, se consome o que tais povos sabem sobre o mundo natural e
acerca de seus territórios tradicionalmente ocupados, mas desprezava-se os seus variados
modos de vida e existência.
Trata-se de uma lógica de geração de riqueza cara ao ideário iluminista de
progresso civilizacional, operada através da derrubada da mata, da extração de minérios,
de resinas, óleos, da poluição dos rios e de um modelo de desenvolvimento no qual
natureza e cultura estão apartadas. Nos dias atuais, tais engrenagens permanecem sendo
recriadas e replicadas. Diante disso, como observado por Bruno Latour, “somos forçados
a trazer nosso olhar de volta à Gaia sublunar, tão ativamente modificada pela ação humana
que ingressou em um novo período, que os geólogos-feitos-filósofos propõem chamar de
Antropoceno.”628
O ano de 2020, quando a presente tese foi concluída, tem sido emblemático dos
altos custos das escolhas “de uma” humanidade, como escreveu Ailton Krenak, que
deslocou os seres humanos da Terra, a fim de levá-los para viver em uma “abstração
civilizatória.” Diante dos indícios concretos dos altos custos desta escolha, seria hora de
exercitarmos a escuta séria das “ideias para adiar o fim do mundo” de sociedades que
vivem “agarradas” em seus territórios “pelas bordas do planeta, nas margens dos rios, nas

628
LATOUR, Bruno. Para distinguir amigos e inimigos no tempo do Antropoceno. Revista De
Antropologia, 57(1), 11-31, 2014. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/ra/article/view/87702
255

beiras dos oceanos, na África, na Ásia ou na América Latina.”629 E que sabem que a flora,
a fauna, os minerais e as águas são muito mais do que “recursos” a serem apropriados e
transformado em mercadorias.

629
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
256

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

6.1. Fontes:
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Viagem do Doutor Joaquim José da Silva. O PATRIOTA, n 6. 1813.
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Domenico Vandelli. Rio de Janeiro: Dantes editora, 2008.
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século XVIII. (Introdução e notas de Gerhard Liesegang). Lisboa: Junta de Investigações
do Ultramar/Centro de Estudos de Antropologia Cultural, 1966.
258

6.1.2. Biblioteca Nacional:

FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Memória sobre a Marinha interior do Estado


do Grão-Pará, 1787. Manuscrito. Consta anotações: Drummond nº 2. Assinatura
autografada. Consta apenso. Coleção Alexandre Rodrigues Ferreira. Proveniente da
Coleção Lagos. ABN v 1, p 118. CEHB nº 11.

___. Extrato do diário de viagem filosófica pelo estado do Grão Pará, no qual se contém
uma relação cronológica.” Barcelos, 31/10/1787, 48 p. Original Manuscrito. Consta
anotações nº 8. Coleção Alexandre Rodrigues Ferreira. CEHB nº 1.006. ABN v. 1.
___. Propriedade e posse das terras do Cabo Norte pela Coroa de Portugal deduzida dos
Anais Históricos do Estado do Maranhão e de algumas memórias e documentos por onde
se acham dispersas as suas provas. Por Alexandre Rodrigues Ferreira. Pará, em 24 de
abril de 1792. Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, catálogo da expedição Alexandre
Rodrigues Ferreira, nº 10521, nº 160.
___. Breve diário ou memória do Rio Branco e de outros que nele desaguam, consequente
a diligência e mapa que deste rio se fez no ano de 1781. Coleção Alexandre Rodrigues
Ferreira proveniente da Coleção [Lagos]. CEHB Nº 148. ABN v 72, p. 128. Cat. ARF nº
145 – cópia do manuscrito, constam correções de Alexandre Rodrigues Ferreira e
anotações Drummond.
PONTES, Antonio Pires da Silva. Notícias do Lago de Xarayes. Cópia Manuscrito. Faz
referência aos índios Parabuá, bem como a fauna e flora da região. Consta paginação de
340 a 349. Coleção Alexandre Rodrigues Ferreira. Proveniente da Coleção Carvalho.
CEHB nº 19.377. ABN v 72, p 129. 21, 1, 007 nº 001.

6.1.2. Centro de Documentação e Pesquisa dos Domínios Portugueses (CEDOPE),


UFPR

FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Cópia do Roteiro das viagens que fez [Alexandre
Rodrigues Ferreira] pelas capitanias do Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá.
Manuscrito pertencente a Faculdade de Ciências de Lisboa. [Manuscrito]
259

PONTES, Antonio Pites da Silva. Memória Sobre os Homens selvagens da América


Meridional que serve de introdução às viagens de Antonio Pires da Silva Pontes. Primeiro
Tenente do Mar da Armada Real, Doutor e Astrônomo, e correspondente da Real
Academia de Lisboa, Ano de 1792. [Manuscrito]
___. Petição do tenente da marinha e lente de Matemática António Pires da Silva Pontes
Leme a D. Maria I na qual solicita a nomeação para tenente-coronel do regimento de
cavalaria de Minas (1796). Originais do Arquivo Histórico Ultramarino. Minas Gerais,
caixa 142, doc. 36.

6.1.3 Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), Conselho Ultramarino (CU)

AHU_ACL_CU_Pará_ 013_Cx. 86, D. 6996 – Ofício do governador do Estado do Pará


e Rio Negro, José Nápoles Telo de Meneses, para Melo e Castro, datado de junho de
1780, sobre a chegada de Silva Pontes, a bordo do navio Santo Antônio de Pádua, assim
como de instrumentos matemáticos.
AHU_ACL_CU_Paraíba_014, Cx. 34, D. 2485 - Fernando Delgado Freire de Castilho
informou à D. Rodrigo em fevereiro de 1799 que recebera a cópia da tradução da obra de
Jorge Arwood feita por Silva Pontes.
AHU_ACL_CU_Pará_013, Cx. 114, D. 8839 - D. Francisco Maurício de Souza Coutinho
informou, em abril de 799, à D. Rodrigo em que recebera a cópia da tradução da obra de
Jorge Arwood feita por Silva Pontes – Ficará depositada na Secretaria do Governo
daquele Estado.
AHU_ACL_CU_Mato Grosso_010, Cx. 21, D. 1282 – Ofício do governador nomeado
para Mato Grosso e [comissário para As Demarcações no Rio Negro] Joio Pereira Caldas
ao [secretário de estado da Marinha e Ultramar] Martinho de Melo e Castro com que
envia requerimentos dos matemáticos Francisco José de Lacerda e Almeida e Antonio
Pires da Silva Pontes a pedirem o pagamento da parte do ordenado que deixaram
aplicadas na Corte.
AHU_ACL_CU_Mato Grosso_ 010, Cx. 25, D. 1489 – Ofício do astrônomo Francisco
José de Lacerda e Almeida ao [secretário de estado da Marinha e Ultramar] Martinho de
260

Melo e Castro em que reclama dos insultos e impropérios de Antônio Pires da Silva
Pontes para com os companheiros das Demarcações. 1786, Setembro, 24. Anexo:
catálogo da verdadeira posição de alguns lugares
AHU_ACL_CU_Mato Grosso_010, Cx. 26, D. 1540 – Ofício do [governador e capitão
general da capitania de Mato Grosso] Luis de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres ao
[secretário de estado da Marinha e Ultramar] Martinho de Melo e Castro em que informa
sobre as ordens que deu ao matemático Francisco José de Lacerda e ao astrônomo
Antônio Pires da Silva Pontes para aprofundar o reconhecimento e configuração do rio
Paraguai e dos seus afluentes. Anexo: 4 documentos.
AHU_ACL_CU_Mato Grosso_ 010, Cx. 27, D. 1594 – Ofício do [governador e capitão
general da capitania de Mato Grosso] João de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres ao
[secretário de estado da Marinha e Ultramar] Martinho de Melo e Castro sobre ter o
astrônomo Francisco José de Lacerda ter devolvido os instrumentos matemáticos que
tinha levado para São Paulo, e os instrumentos que o astrônomo Antônio Pires da Silva
Pontes entregou na capital. Anexo: 3 documentos.
AHU_ACL_CU_Mato Grosso_010, Cx. 40, D. 1996 – Ofício do naturalista Alexandre
Rodrigues Ferreira para o [secretário de Estado e da Marinha e do Ultramar], visconde de
Anadia, enviando as cartas cartográficas de São Paulo até a vila de Cuiabá; cópia do
Diário de Viagem do astrônomo Francisco José de Lacerda e Almeida e cópia de seu
trabalho “Prospecto Filosófico e Político da Serra de São Vicente”. 1802, outubro, 23.
Anexo: lembrete.
AHU, códice 1642, ff. 54-61v. Doc. 14: 1785, Maio, 20. Luanda. Ordem do Barão de
Moçâmedes para a tropa transportada na fragata Luanda que se destina à exploração dos
sertões de Benguela, foz do rio Cunene e altura do Cabo Negro. In: VIEIRA, Carla Costa.
Op. Cit. 2006. p 78

6.1.6. Arquivo Histórico do Museu Bocage – Universidade de Lisboa

AHMB, ARF 5 (cofre) - PT‐MUL‐RMJBA‐TC‐ 03‐01‐0019 - Correspondência trocada


entre Alexandre Rodrigues Ferreira a António Vilela do Amaral, em que o último remete
um catálogo de plantas (solicita uma descrição das “plantas indígenas)
261

AHMB, ARF 6 (cofre) - PT‐MUL‐RMJBA‐TC‐ 03‐01‐0020 - Cópia de carta de


Alexandre Rodrigues Ferreira dirigida a João Pereira Caldas, sobre a expedição na
Cachoeira do Caldeirão no Rio Madeira
AHMB, Div.16c - PT‐MUL‐RMJBA‐TC‐ 01‐0014 - Relação dos productos naturaes que
por ordem do General Junot levou deste Real Museu Mr Geoffroy de Saint Hilaire, 12 de
Junho de 1808 e 1 de Agosto de 1808.
MUHNAC, Acervo Histórico - MUL - AH - EPL - UI – 1863. Livro de Registro dos
Decretos, Portarias, Avisos e Outras Regias Determinações que baixam ao Real Jardim
Botânico Laboratório Químico, Museu e Casa do Risco (Paço em 21 de abril de 1798.
Marquês Mordomo-Mor - Domingos Vandelli).

6.2. Bibliografia:

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