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Osmar Piazzi Junior.

A Vida e os Diários de Francisco José de Lacerda e Almeida.

Monografia apresentada ao Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências


Humanas da Universidade Estadual de Campinas.

Professora Doutora Lucilene Reginaldo.


Orientadora.

Campinas, 2015.

1
[Banca]:
Lucilene Reginaldo (Unicamp – Orientadora).
Raquel Gryszczenko Gomes (Unicamp).
Giovani Grillo de Salve (Unicamp).

2
[Resumo]:
Nesta monografia, buscou-se analisar historicamente dois conjuntos de diários escritos
pelo matemático e astrônomo Francisco José de Lacerda e Almeida: o primeiro alusivo às
suas viagens na América portuguesa (1780-1790) e o segundo referente à sua expedição no
interior africano (1797-1798). Grosso modo, pode-se dizer que o primeiro conjunto contém
cinco diários, e o segundo dois. Os documentos em questão datam do final do século XVIII.
Lacerda e Almeida foi um luso-brasileiro que estudou na Universidade de Coimbra
entre os anos de 1772 e 1777. Durante este tempo, formou-se doutor pela Faculdade de
Matemática, e três anos depois foi convocado para participar das Expedições de Demarcação
de Limites na América Portuguesa. Após uma década viajando como explorador pelo Brasil,
retornou para Lisboa no ano de 1790. Durante este período percorreu cinco capitanias: Pará,
Rio Negro, Mato Grosso, Cuiabá e São Paulo. Os diários resultantes destas viagens foram
publicados inicialmente em 1841, pela Assembleia Legislativa da Província de São Paulo.
Esta é a principal publicação dos diários de Lacerda e Almeida na América Portuguesa.
Após retornar para Lisboa, o matemático foi nomeado governador dos Rios de Sena,
em 1797. Além do cargo político, caberia também ao astrônomo realizar a travessia africana
de costa a costa, ou seja: de Moçambique a Angola. Chegou ao continente por Moçambique, e
na ilha permaneceu um mês. Após, retomou sua expedição em direção à Quelimane,
percorrendo posteriormente Sena e Tete, e permaneceu no reino do Cazembe por dias. Neste
local não resistiu à doença, e faleceu: era outubro de 1798. Dois diários surgiram desta
expedição em África: um referente a Moçambique, Quelimane, Sena e Tete, e a continuidade
deste: condizente ao percurso de Tete ao Cazembe.
Por assim ser, a investigação desta monografia caminhou por vários sentidos. Em
ambos os conjuntos de diários buscou-se analisar as publicações, seus problemas e o contexto
sociopolítico da época. Dentro do possível, chamou-se atenção para as questões envolvendo
as transcrições. A leitura interna dos diários demonstrou diferentes possibilidades
historiográficas, e os mapas em anexo no final deste trabalho auxiliam a pensá-los. O uso de
outras fontes transcritas, assim como um diário manuscrito em versão on-line, foi crucial para
o exercício em questão. Estas investigações, assim como a bibliografia consultada, integram
dois anos de estudos sobre o tema.

Palavras chave: Francisco José de Lacerda e Almeida, diários de viajante, século XVIII.

3
[Abstract]:
The present monograph intended to historically analyze two sets of diaries written by
the mathematician and astronomer Francisco José de Lacerda e Almeida: the first one related
to his trips on Portuguese colonization of the Americas (1780-1790) and the second referred
to his expedition in the African countryside (1797-1798). Broadly speaking, the first set has
five diaries and the second has two. The documents in concern are dated in the last of 18th
century.
Lacerda e Almeida was a luso-brazilian who studied in the University of Coimbra
between the years of 1772 and 1777. During this time, he graduated as doctor by the
Mathematic Faculty, and after three years he was invited to participate in The Demarcation
Limits Expeditions on Portuguese colonization of the Americas. After travelling through
Brazil one decade as an explorer, he returned to Lisboa in 1790. During this time he traversed
five captaincies: Pará, Rio Negro, Mato Grosso, Cuiabá and São Paulo. The diaries resulting
from these trips were first published in 1841 by Legislative Assembly of the Province of São
Paulo. This is the main publication of Lacerda and Almeida´s diaries in the Portuguese
colonization of the Americas.
This mathematician was elected governor of Rios de Sena in 1797 after coming back
to Lisboa. More than his political occupation, he also would have to do the African crossing
from coast to coast. He arrived in the Continent by Mozambique and stayed in the island one
month. After that he returned to his expedition right to Quelimane, passing through Sena and
Tete, subsequently and stayed in Kazembe’s reign for days. In this place, he didn’t resisted
against a disease and passed away on October’s 1798. Two diaries came up from this
expedition in Africa: one related to Mozambique, Quelimane, Sena and Tete, and its
continuity: referring to his (Lacerda e Almeida) route from Tete to Kazembe.
Thus, this monograph’s investigation came to many ways. It was intended to analyze
the publications, it’s problematic and social politic context in both sets of diaries. As far as
possible, it was drew attention to the questions about the transcriptions. The inner reading of
the diaries showed different possibilities of historiography and the indexed maps in the last of
the present monograph/work assists to think them. The use of other transcribed sources, as an
on-line version of a manuscript diary, was crucial to the present work. These investigations,
as the consulted bibliography, integrated two years of studies about this subject.

4
[Sumário]:

[Sumário]:................................................................................................................................... 5

[Siglas]: ...................................................................................................................................... 7

[Introdução]: ............................................................................................................................... 8

I- [Capítulo 01] - Francisco José de Lacerda e Almeida, uma biografia: ................................ 11

1.1 A infância em São Paulo: ............................................................................................... 11

1.2 - Os estudos em Coimbra: .............................................................................................. 12

1.3- As Expedições Demarcatórias no Brasil; o retorno para Lisboa:.................................. 17

1.4- A expedição em África: de Moçambique para a vila de Tete. ..................................... 21

1.5- Da vila de Tete ao Reino do Cazembe: ......................................................................... 27

II- [Capítulo 02] Os diários de Lacerda e Almeida no Brasil (1780-1790): ............................ 31

2.1- A publicação de 1841 e seus problemas........................................................................ 31

2.2- Os Mapas sobre as Demarcações: apenas um sobrevivente. ......................................... 36

2.3- O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro - IHGB: ................................................. 39

2.4- Os diários, os trajetos: ................................................................................................... 42

2.4.1- Diário de Lisboa à vila de Barcelos: ...................................................................... 42

2.4.2- Diário do entorno da vila de Barcelos: .................................................................. 45

2.4.3- Diário da vila de Barcelos à vila Bela: .................................................................. 46

2.4.4- Diário da vila Bela à vila de Cuiabá: ..................................................................... 48

2.4.5- Diário da vila de Cuiabá à vila de Santos. ............................................................. 50

5
III- [Capítulo 03]: Os diários de Lacerda e Almeida em África (1797-1798): ........................ 53

3.1- Diário de Moçambique a Tete: histórico documental/ publicações: ............................ 53

3.2- Diário de Moçambique a Tete: leitura interna. ............................................................ 57

3.3- Diário de Tete ao Cazembe: histórico documental/ publicações: ................................ 63

3.4- Diário de Tete ao Cazembe: leitura interna. .................................................................. 69

IV- [Conclusão]: ....................................................................................................................... 79

V- [Bibliografia e Fontes]: ....................................................................................................... 83

5.1- Fontes: ........................................................................................................................... 83

5.2- Bibliografia: .................................................................................................................. 84

VI- [Anexos] – As tabelas das Demarcações. Os Mapas em África. ....................................... 89

6.1- As tabelas das Demarcações de Fronteiras de Limites na América Portuguesa. .......... 89

6.2- Os Mapas em África:..................................................................................................... 93

6
[Siglas]:

 AHU: Arquivo Histórico Ultramarino.


 AMC: Anais Marítimos e Coloniais.
 BNRJ: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
 BPNP: Biblioteca Pública Municipal do Porto.
 CEDOPE: Centro de Documentação e Pesquisa de História dos Domínios
Portugueses, da Universidade Federal do Paraná – UFPR.
 IHGB: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
 RIHGB: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
 SRM: Sociedade Real Marítima.
 UFPR: Universidade Federal do Paraná.

7
[Introdução]:

O interesse em levantar novas informações sobre os diários de Francisco José de


Lacerda e Almeida foi a principal motivação para este trabalho. Escritor dedicado, o
matemático redigiu vários diários, além de memórias e correspondências das mais diversas
naturezas. Empregadas pela historiografia desde o século XIX, suas fontes foram utilizadas
por estudiosos como Francisco Adolfo de Varnhagen, além de exploradores como os ingleses
Thomas Edward Bowdich e o capitão Richard Burton. Na primeira metade do século XX, os
portugueses Gago Coutinho e Manuel Múrias também desenvolveram obras destacando o
matemático, além de fornecerem novos documentos ao público. Sérgio Buarque de Holanda
igualmente colaborou para a divulgação da obra de Lacerda e Almeida, com sua publicação
de 1944, além de frisar a existência dos manuscritos do matemático na Biblioteca Nacional do
Rio de Janeiro.
Duas levas de diários foram elaboradas pelo astrônomo. Com as Expedições
Demarcatórias de Limites na América Portuguesa, entre os anos de 1780 e 1790, Lacerda e
Almeida escreveu um conjunto documental que foi publicado em 1841, pela Assembleia
Legislativa da Capitania de São Paulo. A famosa publicação foi utilizada por toda uma
geração de historiadores, entretanto crítica alguma foi realizada sobre tal publicação. Esta foi
uma questão intrigante e que não foi descartada nesta monografia. Pelo contrário.
No início desta pesquisa não se pretendia investigar os diários do matemático escritos
no Brasil: o objetivo original era analisar somente os dois diários do astrônomo escritos no
interior africano, entre os anos de 1797 e 1798. Porém, durante os estudos, se percebeu que
era preciso conhecer melhor os diários redigidos durante sua expedição no Brasil, por alguns
motivos. O primeiro era que, na documentação escrita por Lacerda e Almeida em África, o
matemático retomava diversas memórias suas da década de 1780. Por exemplo: se o
astrônomo navegava pelos rios africanos, em 1797, e se lembrava das viagens pelos rios
brasileiros, na década anterior, isto merecia ser aqui estudado. Julgou-se assim. Outra é que os
únicos acessos aos diários escritos no Brasil vinham de uma publicação que demonstrava
sérios problemas de transcrição.
Os dois conjuntos de diários escritos pelo matemático são, portanto, o redigido no
Brasil entre os anos de 1780 a 1790 e o elaborado em África durante os anos de 1797 e 1798.
A análise destes documentos é o eixo principal desta monografia. Como o diálogo entre os
diários escritos no Brasil e os narrados em África se mostrou uma opção historiográfica
importante, ambos os conjuntos foram estudados. Um dos objetivos dessa pesquisa é também

8
utilizar seus resultados na elaboração de uma dissertação de mestrado. Mesmo que para a
dissertação de mestrado os diários em África compreenderão a documentação principal, não
será descartada esta relação mnemônica entre o Brasil e a África. Isto explica, em partes, as
escolhas dos estudos feitos aqui.
Como para a análise de seus diários foi importante realizar estudos biográficos sobre o
personagem, um respaldo bibliográfico foi para isto fundamental. Assim, historiadores como
Magnus Roberto de Melo Pereira, Ana Lúcia R. B. da Cruz e Eugénia Rodrigues foram de
grande relevância. Por subsidiar tais profissionais em seus trabalhos, o CEDOPE (Centro de
Documentação e Pesquisa da História dos Domínios Portugueses), da UFPR, influenciou
direta e indiretamente esta monografia. A transcrição mais confiável do Diário da vila de
Cuiabá à vila de Santos, fornecido pela instituição, é um exemplo da importância direta da
instituição nesta pesquisa.
Autoras como Luiza Fernanda G. Martins e Carla da Costa Vieira foram também
importantes. O resultado de suas pesquisas, assim como as transcrições presentes em suas
dissertações de mestrado, auxiliaram esta pesquisa em graus significativos. Se a obra Viagens
Ultramarinas de Ronald Raminelli foi decisiva para introduzir Lacerda e Almeida na
discussão sobre a América Portuguesa, o clássico de Maria Emília M. Santos, Viagens de
Exploração Terrestre dos Portugueses em África, permitiu inúmeros esclarecimentos sobre o
interior africano. Também, as informações sobre a educação em Portugal após a reforma de
1772 tiveram em Rômulo de Carvalho e em Ermelinda Moutinho Pataca respaldo crucial. A
bibliografia consultada se estendeu para além dos mencionados acima, mas os principais
autores foram citados. Frisa-se, entretanto, que as tais obras não somente auxiliaram na
elaboração da biografia do astrônomo, mas ao longo de todo este trabalho.
A investigação sobre seus diários foi realizada por diferentes caminhos, mas certos
questionamentos foram centrais. Por exemplo, a circulação dos originais, na época, foi
trabalhada nesta monografia por meio de transcrições de diversos documentos relacionados a
Lacerda e Almeida, como por exemplo ofícios, cartas, requerimentos, atestações, entre outros.
A prática da Sociedade Real Marítima de elaborar cópias dos diários, logo após a chegada
destes em Lisboa, fez parte desta investigação. Isto foi feito com mais sucesso nos diários
referente à África. Sobre a circulação dos originais de Lacerda e Almeida, da América
Portuguesa para Lisboa, pouco foi descoberto.
Os problemas referentes aos diários do explorador na América Portuguesa foram
trabalhados principalmente no sentido de problematizar suas transcrições. A publicação da
Assembleia Legislativa, em 1841, assim como as publicações do Instituto Histórico e

9
Geográfico Brasileiro (IHGB), foram estudadas com o intuito de verificar seus graus de
confiabilidade. Ademais, as localizações institucionais dos diários e dos documentos
relacionados foram informações que esta monografia considerou relevantes.
As leituras internas dos diários permitiram compreender um pouco de suas
possibilidades historiográficas. Pelo fato de esta pesquisa também se dedicar aos aspectos
externos dos diários (como a circulação documental na época, a elaboração imediata de
cópias, o contexto sociopolítico e/ ou a localização institucional atual das fontes), não foi
priorizada uma análise exclusiva de seus conteúdos. Mesmo que isto possa ter limitado a
leitura das fontes, ela tampouco foi descartada. Dentro do conteúdo documental, diga-se
assim, verificaram-se expectativas possíveis referentes ao contexto econômico, social, cultural
e ambiental, sobretudo estes.
Tabelas e Mapas foram postos em anexo ao final do trabalho. Como não era objetivo
desta monografia a problematização de conteúdos cartográficos anexos aos diários, eles
apenas foram inseridos. Há poucos comentários em cada imagem, pois o intuito era somente
apresentá-los. Os Mapas estarão divididos em Borrões/ Originais e Aquarelas/ Cópias. está errado.
Esta monografia não pretendeu esgotar os problemas referentes à documentação do
matemático, mas almejou colaborar com os estudos que utilizam/ utilizarão estas fontes. Nas
bibliografias consultadas, por exemplo, já foram verificados problemas com o uso equivocado
de informações relacionadas aos tais diários, e que poderiam ser facilmente evitados. Mesmo
que tenha existido uma dedicação intensa para a elaboração desta monografia, há nela muitas
limitações. Certas inquietações forneceram a maioria dos caminhos aqui percorridos, com a
certeza de que ainda há outras que surgirão futuramente.
Por fim, se resume o caminho trilhado. No capítulo 01 foi elaborada uma biografia do
matemático, com uma breve imersão sobre seus diários em seu término. A utilização de vários
documentos transcritos foi uma experiência interessante. No capítulo 02 se estudaram os
diários da Expedição Demarcatória de Limites, entre os anos de 1780 a 1790. Nesta parte da
investigação, o questionamento referente às transcrições foi um caminho que era preciso
realizar. Por exemplo: desconhecem-se autores que realizaram críticas sobre a publicação da
Assembleia Legislativa. No capítulo 03 foram os diários em África o centro do estudo. Aqui,
as tentativas de traçar um histórico para cada documento foi outra experiência importante. E
por fim foram inseridos as Tabelas e Mapas em Anexo ao final da monografia.

10
I- [Capítulo 01] - Francisco José de Lacerda e Almeida, uma biografia:

1.1 A infância em São Paulo:

Francisco
Aos vinte dois dias do mês de agosto de mil sete centos cinquenta e três
anos, batizou e pôs os santos óleos com minha licença o reverendo
cônego Jacinto de Albuquerque Saraiva a Francisco, filho de José
Antonio de Lacerda e de sua mulher Francisca de Almeida Paes. Foram
padrinhos Manuel de Oliveira Cardozo, e sua mulher dona Manoela de
Castro, todos desta freguesia, do que fiz este assento, que assinei.
Manoel José Vasquez 1

No Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo, no Livro de Registros de Batismos


da Paróquia da Sé, encontra-se lançado o batismo de Francisco, realizado no dia 22 de agosto
de 1753. Certamente, a nascença e o batizado ocorreram em datas próximas, pois no ano de
1765 o garoto já desfrutava de seus 12 anos.2 Filho legítimo, o menino conservou o nome dos
avôs e da mãe. 3 A respeito de sua infância, pouco é conhecido. Sabe-se, no entanto, que
possuiu um irmão consanguíneo, José Anastácio da Luz e Lacerda, filho de seu pai com
Maria da Conceição, desposada em um segundo matrimônio.4
Antes do casamento, José Antônio de Lacerda era um boticário lusitano crescido na
Vila de Figueiró dos Vinhos, e Francisca de Almeida Paes era uma viúva nascida na vila de
Itu. 5 A aliança matrimonial do casal é marcada, provavelmente, por uma estratégia familiar
comum no período colonial brasileiro, pela qual se vinculavam matrimonialmente um

1
Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo. Livro de Registros de Batismo da Paróquia da Sé de São Paulo.
Códice 02–02-19, folha 73. Transcrição em: MARTINS, Luisa Fernanda Guerreiro. Francisco José de Lacerda
e Almeida, Travessias Científicas e Povos da África Central (1787-1884). Anexos, 1997. (Dissertação de
Mestrado) – Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Departamento de História, p. 09.
2
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Diários de Viagem. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1944, p. 9-10.
3
Registro de Casamento de José Antônio de Lacerda com Francisca de Almeida, pais de Francisco José de
Lacerda e Almeida. Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo, Livro de Registros de Casamentos da
Paróquia da Sé de São Paulo. Códice 01, 03, 16. Verso da folha 99. Transcrição em: MARTINS, Dissertação
citada, p. 07-08. Documento 02.
4
VIEIRA, Carla da Costa. Os portugueses e a travessia do continente africano: projetos e viagens (1755-
1814). 2006. (Dissertação de Mestrado) – Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Departamento de
História, p. 38. Também: CRUZ, Ana Lúcia Rocha Barbalho da; PEREIRA, Magnus Roberto de Mello.
Apresentação em: PEREIRA, Magnus Roberto de Mello; RIBAS, André Akamine. Francisco José de Lacerda
e Almeida: Um astrônomo paulista no sertão africano. Coleção Ciência e Império, v. 02. Curitiba, PR: Editora
UFPR. 2012, p. 19-21.
5
Na época, a vila de Figueiró dos Vinhos integrava a Comarca de Coimbra, e a vila de Itu localizava-se próxima
à Freguesia de São Paulo. Consultar outras informações em MARTINS, Dissertação citada, Anexos, documentos
01, 02 e 03.

11
estrangeiro português e uma mestiça da elite colonial. É bem possível que o boticário José, e
por não desfrutar de relevantes posses, tenha se aproximado de Francisca por ser esta
integrante de uma família prestigiada, e ambos se beneficiavam com isto: enquanto o marido
se beneficiava materialmente, com prestígios sociais inclusive, a esposa embranquecia sua
estirpe. O casamento ocorreu na Paróquia da Sé de São Paulo, no dia 09 de Junho de 1751,
com algumas testemunhas e sem qualquer impedimento.6
Certamente apoiado por sua família, é bem provável que o jovem Francisco tenha
realizado estudos com mestres particulares, pois não havia na época um sistema oficial de
ensino na região. Para ingressar em uma instituição como a Universidade de Coimbra, na
Faculdade de Matemática, recomendava-se o domínio do latim, assim como o grego, a
retórica e a filosofia. Sabe-se que estas matérias somente surgiram em escolas públicas na
Capitania de São Paulo após 1774, com o subsídio literário. 7 Este déficit educacional na
província influenciou para que o número de paulistas ingressos na Universidade de Coimbra
fosse baixo: entre 1765 e 1822, somente trinta e quatro jovens paulistas obtiveram sucesso
nesta empreitada, um número menor do que baianos, mineiros e cariocas. 8 Mesmo assim,
Lacerda e Almeida esteve entre os noventa e oito brasileiros que se matricularam na
instituição coimbrã, entre os anos de 1772 a 1775. 9 Gozava dos seus dezenove anos quando
cruzou o Atlântico para continuar seus estudos.

1.2 - Os estudos em Coimbra:


Com as reformas políticas nos governos de D. José e de D. Maria ao longo da segunda
metade do século XVIII, a ilustração se fortaleceu em Portugal. O pensamento iluminista
passou a atuar com o reformismo político, e Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de
Pombal, se destacou como político de influência. A fundação da Academia Real das Ciências,
dos Jardins Botânicos, do Museu Nacional da História Natural, assim como os novos

6
CRUZ; PEREIRA. Apresentação em: PEREIRA; RIBAS. Obra citada, p. 18-19. Sobre o casamento dos pais de
Lacerda e Almeida, há uma transcrição do registro em: MARTINS, Dissertação citada, Anexos, p. 07.
7
SILVA, Maria Beatriz Nizza da. (org). História de São Paulo Colonial. São Paulo: Editora Unesp, 2009, p.
203. O Subsídio Literário, obtido mediante a taxação da carne e da aguardente na Capitania de São Paulo, era
destinado ao ensino de “ler escrever e contar, e também aulas de Gramática Latina, Grego, Retórica e Filosofia
[...]”.
8
Idem, p. 212-213.
9
FONSECA, Fernando Taveira da. Scientiae thesaurus mirabilis:estudantes de origem brasileira na
Universidade de Coimbra (1601-1850). Revista Portuguesa de História. XXXIII, 1999, p. 530.

12
Estatutos da Universidade de Coimbra, estão entre as principais marcas da reforma pombalina
no âmbito do ensino.10
A reinauguração da Universidade de Coimbra, em 1772, foi o ápice de um programa
estatal de reformas intelectual e moral. Seus estatutos oficializaram a penetração das ciências
experimentais em Portugal e, conjuntamente, reduziram a influência dos jesuítas na sociedade
portuguesa.11 Somava-se a este programa a fundação da Academia Real das Ciências. Além
de incentivar a ciência, esta instituição adquiria a função de avaliar os “recursos naturais do
Reino e territórios ultramarinos, visando a promoção da agricultura, das artes e da
indústria”. 12 Nos jardins botânicos portugueses se cultivavam os diferentes gêneros de
plantas, para servir à medicina e à agricultura, além de receber várias remessas de espécimes
do Ultramar. Eles se constituíram em importantes locais de “produção de conhecimento,
ensino e pesquisa de História Natural no século XVIII português”, como é o caso do Jardim
Botânico da Ajuda. 13 Para o projeto de um Museu Nacional, almejava-se reunir os elementos
mais notáveis dos reinos mineral, animal e vegetal, além de artefatos de povos oriundos da
metrópole e das colônias.14
No que se refere às Faculdades da Universidade de Coimbra, a reforma pombalina
resultou na seguinte reorganização universitária: Cânones, Filosofia, Leis, Matemática,
Medicina e Teologia. 15 Popularmente intitulado como Escolas Maiores, o ensino superior
português acostumou-se a receber

Filhos de militares, comerciantes e proprietários de terras [e estes]


foram enviados à Universidade com a intenção de receber formação e,
10
RAMINELLI, Ronald. Viagens Ultramarinas: monarcas, vassalos e governo a distância. São Paulo, Sp:
Alameda, 2008, p. 66-69. Também: NOVAIS, Fernando A. Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema
Colonial (1777-1808). 5° Edição. São Paulo: Editora Hucitec, 1989, p. 213-298.
11
CRUZ, Ana Lúcia Rocha Barbalho da; PEREIRA, Magnus Roberto de Mello. Ciência e memória: aspectos da
reforma da universidade de Coimbra de 1772. Revista de História Regional 14 (1): 7-48, Verão, 2009, p. 09.
12
VIEIRA, Dissertação citada, p. 46.
13
CRUZ, Ana Lúcia Rocha Barbalho da. Verdades por mim vistas e observadas oxalá foram fábulas
sonhadas: cientistas brasileiros do setecentos, uma leitura auto-etnográfica. 2004. (Tese de Doutorado) –
CEDOPE, Centro de Documentação e Pesquisa da História dos Domínios Portugueses, Departamento de
História UFPR, p. 84.
14
RAMINELLI, Obra citada, p. 95.
15
CARVALHO, Rômulo de. História do ensino em Portugal: desde a fundação da nacionalidade até o fim do
regime de Salazar-Caetano. 3° edição. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 469. Segundo Ermelinda
Moutinho Pataca, as Faculdades de Teologia, Cânones, Leis e Medicina eram anteriores à reforma de Pombal,
entretanto foram reorganizadas após 1772. Ademais, foram criadas as Faculdades de Matemática e de Filosofia.
A autora afirma também que estas últimas substituíram o antigo Colégio das Artes, antes administrado pelos
jesuítas. Ver: PATACA PATACA, Ermelinda Moutinho. Terra, Água e Ar nas Viagens Científicas
Portuguesas (1755-1808). 2006. (Tese de Doutorado) – Unicamp/Geociências, p. 61.

13
posteriormente, ingressarem na magistratura ou em cargos de prestígio
na administração metropolitana ou colonial. Formava-se, então, uma
elite composta de bacharéis em matemática, filosofia e leis, que deveria
percorrer o ultramar e, em viagens filosóficas, ativar os vínculos entre
as colônias e a metrópole. 16

É o caso de Francisco José de Lacerda e Almeida. Sua matrícula, realizada na


Faculdade de Matemática da Universidade de Coimbra no dia 11 de dezembro de 1772, é
encontrada no acervo histórico desta universidade. O registro é avistado na nona folha do 1°
Livro de Matrículas, ou seja: integrava a turma pioneira em Matemática após as reformas dos
estatutos de tal instituição.17 Saiu Approvado Nenine Discrepante no final dos quatros anos do
curso. Consta, em sua Carta de Formatura e Bacharelado do Curso de Matemática, em
meados de 1776, dados que tratam de sua formatura:

[...] Faço saber, que Francisco José de Lacerda e Almeida, filho de José
Antonio de Lacerda, natural da Cidade de S. Paulo, havendo
conseguido o Grau de Bacharel na Faculdade de Matemática, como
mostrará por sua Carta, com a prova dele se habilitou para fazer, como
fez com efeito, a sua Formatura em 22 de Junho de 1776, conforme os
Novos Estatutos desta Universidade: [...].18

Para a Faculdade de Matemática, a idade de ingresso poderia ser a partir dos 15 anos;
eram necessários quatro anos para obter o grau de bacharel, e mais um para a obtenção da
licenciatura ou doutoramento. Neste último, se retomavam os estudos do terceiro e quarto
anos acadêmicos. A escolha pelo bacharelato preparava os estudantes para o trabalho na
Campanha, na Marinha e no Ensino. 19
Nestes quatro anos de duração, o curso de Matemática estava disposto em seis
cadeiras. No primeiro ano, praticava-se a primeira e a segunda: Geometria e História Natural.
Em Geometria, estudavam-se os seguintes temas: História das Ciências Matemáticas,
Aritmética, Geometria Elementar, Estereotomia e Trigonometria Plana. Já na História
Natural, estudava-se Zoologia, Botânica, Mineralogia e História de Plínio.20 No ano posterior,
eram destinadas a terceira e a quarta cadeiras: Álgebra e Física Experimental. Os estudos
algébricos envolviam Cálculo Literal, Análise, Progressões, Secções Cônicas, Álgebra
16
RAMINELLI, Obra citada, p.08.
17
MARTINS, Dissertação citada, Anexos. Ver documentos de número 04 a 12.
18
Idem, p. 19, documento 13.
19
CARVALHO, Obra citada, p. 477.
20
Idem, p. 477-479. Consultar também: PATACA, Tese citada, p.66-68. Obs: pelo fato de a cadeira de História
Natural dos matemáticos ser realizada na Faculdade de Filosofia, seu conteúdo foi extraído do Curso Filosófico.

14
21
Infinitesimal, Cálculo Diferencial e Integral. A cátedra de Física Experimental - assim
como a de História Natural - era realizada na Faculdade de Filosofia, examinando-se

as propriedades gerais dos corpos, equilíbrio e movimentos, gravidade,


propriedades dos fluidos, meteoros, acústica, a água, o fogo, o arco-íris,
espelhos e lentes, magnetes, eletricidade natural e artificial. 22

Os dois primeiros anos do curso de Matemática eram divididos em duas disciplinas


anuais, entretanto o mesmo não ocorre nos últimos. No terceiro, apreendiam-se somente os
conteúdos de Foronomia, debruçando-se, sobretudo, em Mecânica, Estatística, Dinâmica,
Hidráulica, Ótica e Dióptica.23 No ano final do bacharelato em Matemática, realizava-se o
estudo de Astronomia, envolvendo diretamente o estudo da Foronomia com o movimento dos
astros. Assim, enfatizavam-se noções de Gnomónica, Geografia (partes matemáticas),
Hidrografia, Cronologia e Calendário. 24
Dos diversos estudos obrigatórios realizados pelos jovens estudantes da Matemática na
Universidade de Coimbra após a reforma de 1772, certamente Francisco José de Lacerda e
Almeida cumpriu todos. Além de frequentar a Matemática, o paulista conviveu, por um
tempo, a Faculdade de Filosofia, estabelecimento aonde se formavam os consagrados
naturalistas. Estes eram estudantes ordinários de uma grade curricular específica, que o
paulista em questão frequentou pela vigência de apenas duas cadeiras: História Natural e
Física Experimental. Era um estudante obrigado a cursá-las. 25
Entretanto, é indispensável ressaltar que, de acordo com os novos Estatutos da
Universidade de Coimbra, o curso de Matemática e o de Filosofia apresentavam fortes
semelhanças entre si.26 Uma comparação feita entre os tais cursos concluiu que, na prática, os

21
CARVALHO, Obra citada, p. 477.
22
Idem, p. 479. Deve haver uma diferença entre a Física Experimental realizada pelos filósofos da Física
Experimental feita pelos matemáticos, pois estes últimos preocupavam-se, no mesmo ano letivo, com a cadeira
de Álgebra. Já os filósofos não dividiam cadeira alguma com a Física Experimental, ocupando-se dela no
decorrer de todo o ano letivo.
23
PATACA, Tese citada, p. 66.
24
Idem, Ibidem. Também: CARVALHO, Obra citada, p. 479.
25
As expressões ordinários, obrigados e voluntários são melhor tratadas em: CARVALHO, Obra citada, p. 478-
483. Infere-se que estas categorias se referiam às exigências do Estatuto para organizar a circulação dos
estudantes entre os diversos cursos. Por exemplo: no curso de Filosofia os estudantes poderiam ser ordinários
(matriculados no curso), obrigados (matriculados em uma cadeira da Filosofia, mas de outro curso), ou
voluntários (que freqüentavam determinadas cadeiras sem compromisso formal).
26
Porém, afirmar tal semelhança é diferente de publicar que Lacerda e Almeida era formado, também, em
Filosofia, como fizeram Sérgio Buarque de Holanda e Carla da Costa Vieira. HOLANDA, Obra citada, p. 10.
VIEIRA, Dissertação citada, Anexos, p. 38.

15
perfis dos bacharéis se aproximavam bastante, havendo poucos conhecimentos específicos
para cada lado. 27 Mesmo que as afinidades curriculares estivessem postas, para cada cientista
formado caberiam missões variadas. Aos naturalistas, as Viagens Filosóficas estavam mais
apropriadas, principalmente pela experiência em Química.28 Aos Matemáticos, a exatidão era
destinada às questões geográficas e demarcatórias, como orienta os Estatutos de 1772:

Por elas [as matemáticas] se regulam as Épocas, e Medidas dos tempos;


as situações Geográficas dos Lugares; as demarcações e medições dos
Terrenos; as manobras, e derrotas da Pilotagem; as operações táticas da
Campanha, e da Marinha; as construções da Arquitetura naval, Civil, e
Militar; as Máquinas, Fábricas, artifícios, e Aparelhos, que ajudam a
fraqueza do homem a executar, o que de outra sorte seria impossível às
suas forças; e uma infinidade de outros subsídios, que ajudam e
promovem, e aperfeiçoam vantajosamente um grande número de Artes
úteis, e necessárias ao Estado. Por todas estas razões pede o Bem
público dos meus Reinos, e Senhorios, que entre os meus Vassalos haja
sempre matemáticos insignes, de cujas idéias se utilizem os Povos e que
possam ser proveitosamente empregados no meu Real serviço. 29

Esta aproximação entre os jovens matemáticos e filósofos era reforçada através das
aulas práticas. Como os primeiros frequentavam as aulas de História Natural e de Física
Experimental com os segundos, provavelmente a convivência entre eles ocorria também nos
Gabinetes de História Natural, no Jardim Botânico e no Gabinete de Física Experimental. O
convívio prático excludente à formação dos matemáticos referia-se ao Laboratório Químico,
espaço reservado principalmente aos estudantes da Filosofia. Como havia a possibilidade de
ser, além de ordinários e obrigados, também voluntários, possivelmente existiu quem,
matriculado em Matemática, por exemplo, tenha frequentado aulas no Laboratório de
Química.30 Não se sabe se Lacerda e Almeida voluntariou-se nessas atividades.31

27
PATACA, Tese citada, p 67. Nesta pesquisa, conclui-se que a grande ausência para um matemático, em
detrimento de um naturalista, eram os conhecimentos de Química. Para os filósofos naturalistas, o detrimento
residia nos conhecimentos de Geometria, Álgebra, Foronomia e Astronomia.
28
Idem, p. 67. Segundo Pataca, até mesmo Domingus Vandelli defendia estas missões exclusivamente aos
naturalistas, principalmente por obterem tais conhecimentos. As Viagens Filosóficas foram expedições de
investigação dos reinos mineral, vegetal e animal pelos territórios coloniais do Império Português. Os
investigadores, no caso os naturalistas, eram formados em Filosofia pela Universidade de Coimbra, reformada
após o ano de 1772. Ver o capítulo Viagens Filosóficas, em: RAMINELLI, Obra citada.
29
Estatutos da Universidade de Coimbra, 1772. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1972. (edição fac-similar)
v. 3, p. 143. Trecho e referência extraídos de: CRUZ; PEREIRA. Apresentação em: PEREIRA; RIBAS, Obra
citada, p. 33.
30
CARVALHO, Obra citada, p. 477-478.
31
Mesmo que isto seja uma simples suposição, o fato é que a convivência prática em outros espaços foi decisiva
para a aproximação entre os estudantes da Matemática e da Filosofia.

16
Recebidas as Cartas de Formatura do Bacharelado em Matemática em meados 1776, o
matemático prosseguiu com seus estudos pela mesma instituição. No dia 21 de Junho de 1777
recebeu o Grau de Licenciado, permitindo a ele a licença para o título de Doutor, após o
Juramento da Conceição:

[...] prestou o examinando Francisco José de Lacerda e Almeida o


juramento da Conceição e recebeu o Grau de Licenciado que o mesmo
reverendíssimo vice-calendário lhe conferiu autoridade régia, e lhe
concedeu licença para tomar o Grau de Doutor todas as vezes que
quiser e puder [...]. 32

1.3- As Expedições Demarcatórias no Brasil; o retorno para Lisboa:33


Com a assinatura do Tratado de Santo Ildefonso, em setembro de 1777, as Coroas
portuguesa e espanhola decidiram formar quatro comissões demarcadoras para que os limites
entre os territórios pertencentes a cada uma na América do Sul fossem definidos.34 Cada uma
das expedições era formada por dois comissários e dois engenheiros, além de técnicos.
Medições precisas de matemática e a abordagem em História Natural eram conhecimentos
que as comissões estavam aptas a elaborar, além de definir as fronteiras entre os Impérios. O
longo território percorrido pelas expedições é proporcional à extensão dos Impérios Português
e Espanhol, e isto compreendia “desde o Chuí ao Rio Negro, envolvendo da parte portuguesa
o marquês do Lavradio, os governadores de São Paulo, Mato Grosso e Pará”. 35
Após se doutorar, também em 1777, o luso-brasileiro Lacerda e Almeida foi enviado
para uma dessas comissões, na condição de matemático astrônomo. 36 No caso de sua equipe,
percorreu-se um circuito triangular que compreendia

Belém do Pará, Barcelos e Foz do Rio Negro (Manaus), Vila Bela e


Cuiabá; aglomerados populacionais defendidos pelos fortes,
respectivamente de: Macapá, São Joaquim, São José de Marabitanas,
São Gabriel da Cachoeira, Tabatinga, Bragança e Príncipe das Beiras.

32
MARTINS, Dissertação citada, Anexos, p. 22, documentos 15.
33
O trajeto e os diários de Lacerda e Almeida na América portuguesa serão retomados adiante, no segundo
capítulo. Neste momento, apenas foi situada sua expedição no Brasil por preocupações biográficas.
34
CRUZ, Tese citada, p. 05. Nota 07.
35
RAMINELLI, Obra citada, p. 74.
36
MENDONÇA, Marcos Carneiro de. Rios Guaporé e Paraguai: primeiras fronteiras definitivas do Brasil. Rio
de Janeiro: Biblioteca Reprográfica Xerox, 1985, p. 148. Ofício de D. Martinho de Melo e Castro para João
Pereira Caldas, 07 de Janeiro de 1780 – Palácio da N. Senhora Da Ajuda.

17
Fortificações Militares que asseguravam a manutenção das fronteiras
frente às investidas dos franceses e ingleses no litoral nordeste, dos
holandeses na fronteira norte e, finalmente, dos espanhóis ao longo das
fronteiras ocidentais, de norte a sul. 37

Durante dez anos “vasculhou fronteiras, marcou latitudes e viabilizou o trabalho dos
cartógrafos, além de traçar o Plano Geográfico do Rio Negro de 1780”. Preocupou-se em
“localizar rios, rumos, correntes e cachoeiras”; em realizar o reconhecimento de novas
espécies da fauna e da flora, mas também em elaborar “a descrição e localização de minas de
ouro e diamantes, [pois estes] eram também interesses de tais comissões”. 38 Além do trabalho
difícil, sobrevive a um quadro natural perigoso:

A doença e a falta de mantimentos foram outras dificuldades que os


expedicionários enfrentaram. O clima não era favorável à constituição
física daqueles homens e os alimentos reunidos e calculados para a
manutenção da equipa [sic] não eram suficientes para a duração das
viagens ou perdiam-se em naufrágios e roubos. Muitas vezes tornava-se
difícil encontrar alimentos nas margens dos rios já que eram regiões
inóspitas. O clima e os acidentes geográficos eram hostis: cachoeiras,
correntes, pedras dos rios, árvores e ramos quebrados que flutuavam ao
sabor das correntes, punham em risco a vida dos homens, as
embarcações e as mercadorias. 39

Por meio do explorador, a averiguação dos territórios desconhecidos, registrada


através de mapas, inventários e diários, eram efetuadas e subsidiavam as políticas nacionais
europeias, de caráter expansionista.40 Se anteriormente o explorador europeu representava um
perfil predominantemente militar, no final do século XVIII emerge outro: o de estudioso,
preparado intelectualmente para a exploração científica e geográfica em locais distantes. É o
caso do astrônomo luso-brasileiro Francisco José de Lacerda e Almeida:

Explorador. O termo comum é: informador. [...]. Pode acrescentar-se


que a palavra explorador parece prenunciar funções mais nobres e
requintadas do que a de informador. Aplica-se àquele que é enviado às
cortes estrangeiras, para descobrir os sentimentos, o modo de pensar, os
segredos do ministério, etc. [...]. Dá a ideia que se pode aplicar também

37
MARTINS, Dissertação citada, p. 40-41.
38
RAMINELLI, Obra citada, p. 75.
39
MARTINS, Dissertação citada, p. 43.
40
BOURGUET, Marie-Noëlle. O explorador. Em: VOVELLE, Michel (Org.) O Homem do Iluminismo.
Lisboa: Presença, 1997, p. 210-212.

18
nesse caso ao que é enviado à descoberta de um país, para conhecer a
situação, a extensão, etc. 41

As expedições de reconhecimento territorial foram encerradas no final da década de


1790, por ordem do ministro Martinho de Melo e Castro.42 Distintas das expedições surgidas
após o Tratado de Madri, em 1750, nas quais os estudiosos envolvidos eram sobretudo
italianos e alemães, as missões ocorridas após o Tratado de Santo Ildefonso eram integradas
por membros que se formaram na própria Universidade de Coimbra. Além da atenção às
possessões imperiais, a Coroa portuguesa se utilizou desta nova leva de ilustrados para
dimensionar a geografia e a natureza da América do Sul. Assim, o interesse político e o
econômico eram, neste sentido, parte do projeto da reforma pombalina. 43
Além de concluir o extenso período de expedições pela América portuguesa,
finalizava-se também a elaboração de seus respectivos diários. Com a seguinte passagem,
Lacerda e Almeida encerrou o último deles, o Diário da Viagem de Vila Bela Capital da
Capitania de Mato Grosso até Vila e Praça de Santos na Capitania de São Paulo: 44

Demorei-me até 10 de junho, em que me fiz à vela a Lisboa, em cujo


porto dei fundo aos 21 de setembro com dez anos e oito meses e meio
de ausência.45

Uma versão deste diário, junto de um mapa, foi apresentada pelo matemático à Real
Academia de Ciências de Lisboa, neste período, e como resultado disto se tornou sócio da
instituição.46 Após este decênio de aventuras científicas, Lacerda e Almeida amadureceu: não
se tratava mais de um jovem inexperiente formado em Matemática pela Universidade de
Coimbra. A experiência obtida através das Comissões de Demarcações de Limites não foi
pequena; bastou sobreviver para provar isto. Tornar-se-ia, desta maneira, um bom exemplo de
Agente do Império. 47

41
Idem, p. 210. Dictionnaire de Trévoux, 1771. Itálico proposital.
42
CRUZ; PEREIRA. Apresentação em: PEREIRA; RIBAS, Obra Citada, p. 41.
43
RAMINELLI, Obra citada, p. 94.
44
Segundo transcrição feita pelo CEDOPE. Consultar em:
http://www.cedope.ufpr.br/pdf/Lacerda_Azulmss998_MatoGrosso_1788.pdf
45
Diário da Viagem de Vila Bela Capital da Capitania de Mato Grosso até Vila e Praça de Santos na Capitania
de São Paulo. 1790, Maio, dia 13. Transcrição elaborada pelo CEDOPE.
46
HOLANDA, Obra citada, p. 11.
47
A expressão é de Ronald Raminelli. Segundo o historiador, os Agentes do Império eram homens “treinados e
encarregados de encurtar as distâncias entre Lisboa e seus domínios.” O método tradicional de recompensas e

19
Após retornar a Lisboa, foi também nomeado Lente de Matemática da Companhia dos
Guardas Marinha por Martinho de Melo e Castro. 48 “Nesta Academia, fundada em 1779,
ensinava-se Desenho, Arquitetura Naval, Aparelhagem Prática e Manobras, Manejos de
Armas e Exercícios de infantaria, Matemática e Física”.49 Não é inesperado, neste caso, que o
luso-brasileiro tenha sido professor da cadeira de Matemática. 50 Em 1791 o elevam a 1°
Tenente de Mar e em 1795 a Capitão de Fragata.51
Semelhante posição assumiu paralelamente Antônio Pires da Silva Pontes Leme,
amigo de Lacerda e Almeida desde os tempos da Universidade de Coimbra. 52 Pontes Leme,
também doutor em matemática pela mesma instituição, forjou uma curiosa amizade com
Lacerda e Almeida nas expedições pela América do Sul, e nem mesmo a acusação de Lesa
Majestade feita por Lacerda e Almeida contra o amigo de longa data foi suficiente para
romper com esta proximidade.53 Iniciada em Coimbra, ela se constrói de fato em território
luso-americano, e se prorroga após o retorno para Lisboa. Em 1796, quando morreu o
ministro da Marinha e Ultramar Martinho de Melo e Castro (um dos principais responsáveis
pelo percurso semelhante dos dois matemáticos), o futuro destas trajetórias recai nas mãos de
seu filho D. Rodrigo de Melo e Castro. As últimas missões de suas vidas serão ordenadas por
tal sucessor: assim, Pontes Leme seguirá em 1798 à América do Sul para governar a Capitania
do Espírito Santo, e Lacerda e Almeida, após ser nomeado para governador dos Rios de Sena,
irá para Moçambique em 1797.54

privilégios eram ainda a principal maneira de incentivos a estes homens, incluindo viajantes, funcionários régios
e outros. RAMINELLI, Obra citada, p. 67.
48
CRUZ; PEREIRA. Apresentação em: PEREIRA; RIBAS, Obra citada, p. 41.
49
MARTINS, Dissertação citada, p. 24. Nota 41.
50
RODRIGUES, Eugenia. Introdução. Em: PEREIRA; RIBAS, Obra citada, p. 85.
51
FILHO, F. Venâncio. Lacerda e Almeida, precursor de Livingstone, p.17.
52
VARNHAGEM, Francisco Adolfo de. Dr. Antônio Pires da Silva Pontes Leme, Em: VARNHAGEM,
Francisco Adolfo de. Biografia dos Brasileiros Ilustres por Armas, Letras, Virtudes, etc. Dr. Francisco José de
Lacerda e Almeida. Em: Revista Trimensal do Instituto Histórico, Geográphico e Etnographico do Brasil.
Rio de Janeiro: Garnier, 1873, p. 186.
53
“Em 1786, Antônio Pires da Silva Pontes foi denunciado [por Lacerda e Almeida] a Martinho de Melo e
Castro, secretário de Estado para os domínios coloniais, por seus discursos rebeldes, em Mato Grosso. Pontes
havia afirmado que sua terra natal, Minas Gerais, tornar-se-ia ‘a cabeça de um grande reino’. Consultar:
MAXWELL, Kenneth. A geração de 1790 e a ideia do império luso-brasileiro. Em: Chocolate, piratas e outros
malandros: ensaios tropicais. São Paulo, SP: Paz e Terra, 1999, p. 159. Para Magnus Pereira e Ana Lúcia Cruz,
Lacerda e Almeida “aproveitava-se disso para apresentar-se como súdito obediente e fiel, na tentativa de elevar-
se diante dos olhos do ministro.” De: CRUZ; PEREIRA. Apresentação em: PEREIRA; RIBAS, Obra citada, p.
39.
54
CRUZ; PEREIRA. Apresentação em: PEREIRA; RIBAS, Obra citada, p. 45.

20
Antes de se tornar governador dos Rios de Sena, e próximo de seus 40 anos, o
matemático se casa com D. Cecília Craveira Levanche de Faria, natural de Figueiró dos
Vinhos, cidade de seu pai José Antonio de Lacerda. A união foi sacramentada em 31 de
março de 1792, na Igreja Paroquial de Maçãs de D. Maria.55 Deste casamento, duas filhas
nasceram: Isabel Francisco de Faria e Lacerda, a mais velha, e Francisca de Lacerda e
Almeida Pais, esta nascida dia 19 de Janeiro de 1797. 56 A filha mais velha e sua esposa D.
Cecília Craveira acompanharam Lacerda e Almeida para o interior africano. 57

1.4- A expedição em África: de Moçambique para a vila de Tete. 58


A intensa circulação de marfim, ouro e escravos, com destino para o Oceano Índico e
outras localidades, foi uma característica de destaque na África Oriental Portuguesa 59 do
século XVIII. Os portos das capitanias de Moçambique e dos Rios de Sena tiveram papel
fundamental neste processo, sendo a agricultura e a indústria pouco relevantes neste processo.
Este comércio, com a existência de suas feiras, transformou a economia, as questões políticas
e administrativas da região.60 Segundo Ana Paula Wagner,

As terras dos Rios de Sena, compostas por Quelimane, Tete, Sena,


Manica e Zumbo, além das minas e outras feiras, ficariam sob a
responsabilidade de um tenente general, subordinado ao governador-
geral de Moçambique. A sede desse governo subalterno foi em Sena,
até a1767, e depois em Tete [...].61

Lacerda e Almeida, ao ser nomeado governador da Capitania dos Rios de Sena,


tornou-se um destes tenentes generais, sendo assim nomeado no segundo dia de março de
1797. 62 Dona Maria I, na época rainha de Portugal, entregaria para o governador

55
Idem, p. 43.
56
Idem, Ibidem.
57
MARTINS, Dissertação citada, p. 25.
58
O trajeto e os diários de Lacerda e Almeida em África serão retomados adiante, no terceiro capítulo. Neste
momento, apenas foi situada sua expedição no continente africano por preocupações biográficas.
59
A expressão África Oriental Portuguesa será utilizada nesta monografia para descrever a região de influência
portuguesa ao sudeste do continente africano. O uso do itálico se justifica pelas limitações da expressão. De
maneira semelhante ocorrerá com a expressão América Portuguesa.
60
WAGNER, Ana Paula. População no Império Português: recenseamentos na África Oriental Portuguesa na
segunda metade do século XVIII. 2009. (Tese de doutorado) – Ciências Humanas, Ciências e Artes, da
Universidade Federal do Paraná – UFPR, p. 72-73.
61
Idem, p. 89.
62
Idem, p. 26.

21
todas as honras, poderes, mandos, jurisdição e alçada, que tem e de que
usaram os seus antecessores e do mais que por minhas ordens e
instruções lhe for concedido, pelo que mando ao meu governador dos
rios de Sena e aos oficiais da Câmara deles que dêem posse do mesmo
governo ao sobredito e todos os oficiais de Guerra e Justiça e Fazenda.
Ordeno também que em tudo lhe obedeçam, cumpram suas ordens e
mandados e aos tesoureiros ou recebedores de minha Real Fazenda a
quem o recebimento dela lhe tocar façam pagar o dito soldo aos quartéis
por esta carta e somente.63

Sem delongar, o matemático partiu de Lisboa para a América Portuguesa, e do porto


do Rio de Janeiro seguiu para a África Oriental Portuguesa, entre abril e maio de 1797.64 Na
mesma embarcação seguiu sua mulher, sua filha mais velha e “provavelmente outros homens
que iriam fazer parte da expedição”. Francisco Guedes Carvalho Meneses da Costa, novo
governador Geral de Moçambique, também embarcou na mesma nave. 65
Existiam obrigações que os governadores de Moçambique e dos Rios de Sena
deveriam se responsabilizar em efetuá-las. Em um ofício escrito pelo secretário de Estado dos
Negócios da Marinha e Ultramar D. Rodrigo de Sousa Coutinho para o Príncipe D. João, há
ordens que expressam bem os desejos iniciais da realeza para com a tarefa dos
governadores.66 Em data próxima, a rainha D. Maria I escrevia uma carta para o governador
de Moçambique Meneses da Costa, e as instruções eram muito semelhantes às deste ofício
escrito pelo Secretário D. Rodrigo de Sousa Coutinho.67

63
MARTINS, Dissertação citada. Transcrição do Registro Geral de Mercês, cota: D. Maria I, Livro n° 28, fl.
250.
64
Há uma dúvida sobre esta data. Em Mota, a data de partida para a África Oriental é Maio de 1797. Ver:
MOTA, A. Teixeira da. A Cartografia Antiga da África Central e Travessia entre Angola e Moçambique:
1500-1860. Sociedade de Estudos de Moçambique, Editora Lourenço Marques, 1964, p. 127. Em MARTINS
consta 05 de Abril de 1797. Obra citada, p. 26.
65
MARTINS, Dissertação citada, p. 26. Também: RODRIGUES, Introdução citada, p. 88.
66
Ofício do D. Rodrigo de Sousa Coutinho, ao Príncipe D. João contendo as ordens que deveriam ser dadas ao
governador de Moçambique, Francisco Guedes de Carvalho e Menezes da Costa, e ao governados dos Rios de
Sena, Francisco José de Lacerda e Almeida, sobre as tarefas de ambos no governo daquelas colônias e particular
incumbência de verificar a possibilidade da comunicação entre as costas da África, para o que Lacerda e
Almeida deveria fazer todas as tentativas imagináveis. Transcrição em: PEREIRA; RIBAS, Obra Citada, p. 183-
184. Cota Original segundo os autores: Arquivo Histórico Ultramarino, Moçambique, Caixa 77, Documento 41.
Observação: doravante este documento será referenciado como Ofício de Sousa Coutinho ao Príncipe João.
67
Rascunho de CARTA RÉGIA a Francisco Guedes de Carvalho e Meneses da Costa, sobre diversas tarefas de
governo e sobre o plano de travessia da África a ser empreendida pelo Francisco José de Lacerda e Almeida.
Transcrição em: PEREIRA; RIBAS, Obra Citada, p. 185-186. Cota Original segundo os autores: Arquivo
Histórico Ultramarino, Moçambique, Caixa 77, Documento N°. 52. Observação: doravante este documento será
referenciado como Rascunho da Carta Régia a Meneses da Costa.

22
Exigia-se que o matemático fixasse as “exatas divisões dos dois governos”, através de
Cartas Geográficas. 68 Nos dois documentos citados, ordenava-se a precisão nas medições,
sugerindo o quão relevante poderia ser, naquela situação, um matemático no posto de
governador/ explorador. Tampouco foi esquecida a experiência com a demarcação de
fronteiras na América Portuguesa, e sua forte relação com o Ambiente Natural. Ordenava-se,
neste sentido, que os governadores deveriam “informar ambos sobre os limites naturais” de
suas respectivas capitanias. Após o matemático sair de Moçambique para sua expedição,
roteiros e cartas deveriam ser enviados à Metrópole. 69
Um convênio entre os dois governos deveria ocorrer, para que se socorressem em caso
de necessidade e para que dialogassem entre si sobre as questões comerciais. Sobre os
negócios com o exterior, a Menezes da Costa estava delegado a estabelecer uma Companhia
Portuguesa para o Comércio com a Ásia, e a Lacerda e Almeida deveria informar sobre o
consumo destes gêneros no interior. A este caberia, também, “mandar as noções mais exatas
que puder haver sobre as lavras de Ouro, que existem nos territórios de Chicova, Tete, Manica
[...]”,70 e que isto fosse realizado de forma discreta. 71
A possibilidade de se efetuar a travessia entre as costas oriental e ocidental, ou seja, de
Moçambique a Angola, não foi rejeitada. Pelo contrário. Era na realidade uma questão antiga,
que inclusive deve ter influenciado a escolha do matemático para o governo da Capitania dos
Rios de Sena. O assunto, no ofício escrito por Sousa Coutinho, constava da seguinte maneira:

Dar-lhe-á S. M. a particular incumbência de verificar a possibilidade da


Comunicação das duas Costas Oriental e Ocidental da África, e de fazer
para este fim todas as tentativas imagináveis, ocupando-se
imediatamente de reconhecer se no centro da África daquele lado há
Montes que possam servir de Cabeceiras aos Rios que vão em Sentidos
opostos, o de Sena para a Costa Oriental, o Cuneni para a Costa
Ocidental oposta, indo desembocar pouco adiante de Cabo Negro.72

As autoridades lusitanas, provavelmente considerando as experiências do matemático


na América Portuguesa, reconheceram nele competência para realizar todas estas tentativas

68
Ofício de Sousa Coutinho ao Príncipe João, p. 183.
69
Idem, p. 184.
70
Idem, Ibidem.
71
Rascunho da Carta Régia a Meneses da Costa, p. 186.
72
Ofício de Sousa Coutinho ao Príncipe João, p. 184. Itálico proposital.

23
imagináveis.73 A travessia dos sertões africanos pelo explorador, inclusive, já estava aprovada
pela Coroa, antes mesmo dele sair do continente europeu. Semanas antes de ser nomeado
governador, em fevereiro de 1797, escrevia D. Rodrigo de Sousa Coutinho para Lacerda e
Almeida aconselhando-o que continuasse

[...] a empregar no Real Serviço toda a sua eficácia, e zelo, e que


procure executar o Plano da comunicação interior das duas Costas de
África, de que se há de seguir as maiores vantagens à Real Coroa.74

Mesmo que já houvesse rumores sobre a travessia de costa a costa em períodos


anteriores, o primeiro projeto de fato data de 1725, elaborado pelo diplomata português D.
Luís da Cunha e auxiliado pelo geógrafo francês Jean-Baptiste Bourguignon d’Anville.
Arquivada na Biblioteca da Ajuda, a chamada Carta de 1725 resume alguns fundamentos
geográficos sobre a região africana entre Angola e Moçambique, constando um mapa e uma
memória.75 O plano de viagem propunha duas expedições, partindo uma do Rio Cuanza, a
Ocidente, e outra do Rio Zambeze, a Oriente, para posteriormente se encontrarem no interior
africano.76 Entretanto, subestimou-se a expedição: através deste projeto, concluiu-se que “a
travessia seria fácil e poderia ser o primeiro passo para que Portugal estendesse o seu
comércio e domínio a toda África.” 77 Curiosamente, não será o que mostrará a expedição do
governador, e tampouco outras empreitadas.
Após este projeto, almejaram-se algumas tentativas de travessia na África Austral, ou
mesmo outras expedições pelo interior africano. Em 1755, Manuel Correia Leitão, natural de
Luanda, dedicou-se ao reconhecimento do rio Cuango, e percorreu territórios das regiões de

73
É bem provável que tenha sido o ministro D. Rodrigo de Sousa Coutinho o principal responsável por
direcionar Lacerda e Almeida para o Governo dos Rios de Sena, pois se pretenderia com isto dar continuidade no
projeto de seu pai D. Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho, que era realizar a travessia de costa a costa.
74
Registro de cópia de OFÍCIO enviado pelo, D. Rodrigo de Sousa Coutinho, ao Francisco José de Lacerda e
Almeida, dizendo que a Coroa aprova os seus atos e que deve executar o plano de travessia da África. Cota
Original segundo os autores: Arquivo Histórico Ultramarino, Moçambique, Códice 558, folhas, 64 (verso) e 65.
Transcrição em: PEREIRA; RIBAS, Obra Citada, p. 440.
75
MOTA, Obra Citada, p. 86. Sobre este assunto ver também: FURTADO, Junia Ferreira. Oráculos da
Geografia Iluminista: Dom Luis da Cunha e Baptiste Bourguignon D’anville na construção da Cartografia do
Brasil. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2011.
76
SANTOS, Maria Emilia Madeira. Viagens de Exploração Terrestre dos Portugueses em África. Lisboa:
Centro de Estudos de História e Cartografia Antiga e Instituto de Investigação Científica Tropical, 1988, p. 145.
77
Idem, Ibidem.

24
Caçanje e Olos. Sua jornada durou um ano. 78 Em setembro de 1785, o rico comerciante
Gregório José Mendes dirigiu uma expedição à parte sul de Benguela, com a duração de
alguns meses.79 Neste mesmo ano, o naturalista carioca Joaquim José da Silva partiu para uma
Viagem Filosófica nos sertões de Benguela, e percorreu Cabinda, o rio Dande e Massangano.
Retornou em 1787. 80 Nesta mesma década, Manuel Galvão da Silva, também naturalista,
realizou diversos reconhecimentos ambientais na região de Moçambique e dos Rios de Sena,
atingindo inclusive Tete.81 O explorador José Maria de Lacerda participou de uma expedição
ao rio Cunene, entre os anos de 1785 e 1787. 82 Manuel Caetano Pereira, comerciante e
Capitão-Mor de Mixonga, fez diferentes incursões pelo interior oriental da África, e deixou
uma memória sobre sua ida à cidade do Rei Cazembe.83 É neste quadro de viagens na África
Austral que a expedição de Lacerda e Almeida se insere.
Em setembro de 1797 o matemático iniciou sua expedição em África por
Moçambique. Ao chegar nesta vila, se preocupou em cartografar a parte da ilha e continental
próxima. Para “tirar planta desta ilha, e terra firme, que lhe está vizinha”, o matemático
solicitou ao governador Menezes da Costa embarcações, soldados ágeis, machados,
alavancas, entre outras necessidades.84 No mesmo mês, redigiu uma memória sobre algumas
observações e notícias de tal vila. Nesta memória, os produtos naturais comercializados na
vila de Moçambique são descritos abundantemente.

78
LEITÃO, Manuel Correia. Viagem que eu Sargento Mor dos moradores do Distrito do Dande fiz às remotas
partes de Caçanje e Olos. [1755-1756]. Transcrição em: Diversos documentos referentes às Travessias em
África. Textos para a História da África Austral (Século XVIII). Publicações Alfa: Lisboa, 1989, p. 15-32.
79
MENDES, Gregório José. Descrição itinerária da derrota que por ordem dos Srs. da junta de comissão
estabelecida na cidade de S. Filipe de Benguella [...] fez o sargento mor Gregório José Mendes, da mesma cidade
até ao porto de Mossâmedes, na angra do Negro, em 15º de latitude Sul, com o exame dos sertões
compreendidos entre estes pontos, apresentada á mesma junta em 1° de janeiro de 1786. Em: VIEIRA,
Dissertação citada, p. 19-42.
80
SILVA, Joaquim José da. Extracto da viagem, que fez ao sertão de Benguela no ano de 1785 por ordem do
governador e capitão general do Reino de angola, o bacharel Joaquim José da Silva, enviado àquele reino como
naturalista, e depois secretário do Governo. Em: O Patriota, Jornal Literário, Político e Mercantil. N°.1-3, 1813.
81
SILVA, Manoel Galvão da. Diário ou relação das viagens filosóficas, nas terras da jurisdição de Tete e em
algumas dos Maraves. Também: Diário das viagens feitas pelas terras de Manica por Manuel Galvão da Silva em
1790. Ambos em: Diversos documentos referentes à África Oriental Portuguesa. Anais. Estudos de História da
Geografia da Expansão Portuguesa. Volume IX. Tomo I. Ministério do Ultramar, Junta de Investigação do
Ultramar. Lisboa, 1954. Versão online, p. 311-332.
82
LACERDA, José Maria de. Observações sobre a viagem da Costa de Angola à costa de Moçambique.
Transcrição em: Textos para a História da África Austral, p.62-75.
83
PEREIRA, Manuel Caetano. Cópia das notícias dadas por Manuel Caetano Pereira, comerciante que se
entranhou pelo interior da África, até à Povoação ou Cidade do Rei Cazembe. Transcrição em: PEREIRA;
RIBAS, Obra citada, p. 555.
84
LACERDA E ALMEIDA. Cópia do Ofício de Francisco José de Lacerda e Almeida a Francisco Guedes de
Carvalho e Menezes da Costa, solicitando transporte, equipamento e pessoal para a diligência de cartografar a
ilha e a terra firme adjacente. Transcrição em: Transcrição em: PEREIRA; RIBAS, Obra citada, p. 233.

25
Por esta temporada, provavelmente, já se preparava para seguir viagem pelo interior
do continente, pois no final do mês de outubro de 1797 a expedição partia à vela para a vila de
Quelimane. Aqui iniciou seu primeiro diário em África. A princípio, descreve algumas
observações sobre a difícil navegação naquele momento, e como era necessário conhecer
detalhes da natureza para obter sucesso ao navegar. Fez isto observando os práticos, homens
que se ocupavam de determinados ofícios manuais na região.85 Em Quelimane, sua expedição
permaneceu um mês, até o primeiro dia de dezembro. Partiu cedo rumo aos Rios de Sena,
levando em sua companhia

cento e oitenta cafres de serviço de remo, distribuídos em sete cochos


que ia a bagagem, e mantimento e mais três balões, em um dos quais
embarquei com minha mulher, e nos outros o resto da família, cadetes e
soldados.86

Como estavam em dezembro, e presenciavam tempos de chuva, viajaram navegando


por rios. Remados à força braçal de africanos, os balões faziam viagens diurnas, para que se
levantassem os acampamentos à noite. Ao longo da travessia por água é curioso notar como o
explorador não menciona encontros com outras embarcações. Provavelmente porque, em
África, as rotas comerciais eram majoritariamente terrestres. 87
A expedição atingiu o rio Zambeze no dia 07 de dezembro. Não estavam ausentes as
doenças na expedição e, no período, problemas neste sentido já haviam surgido. O governador
descreveu sua preocupação ao sentir sua família debilitada e em “evidentíssimo perigo de
vida, motivado pela febre maligna, podre, ou purpúrea, que as atacou ao terceiro dia de
viagem.” 88 Relatou conjuntamente a lamentável ausência de um médico, principalmente um
espiritual. Nesta hora lembrou-se do antigo amigo, o Dr. Antônio Pires da Silva Pontes, e das
semelhantes formas de se consolar em situações como aquela. Os momentos delicados que
conviveram na pestífera Capitania de Mato Grosso na década de 1780, como estar à beira da
morte, parecem ter sensibilizado o governador neste dia. 89

85
LACERDA E ALMEIDA. Diário da Viagem de Moçambique para os Rios de Sena feito pelo governador dos
mesmos Rios o Doutor Francisco José de Lacerda e Almeida. Cota original segundo os autores: Biblioteca
Nacional do Rio de Janeiro, Seção de Manuscritos, I-28, 28, 8. Transcrição em: PEREIRA; RIBAS, Obra Citada,
p. 508. Observação: doravante, este diário será referenciado como Diário de Moçambique a Tete.
86
Idem, p. 512.
87
Ver: SANTOS, Maria Emilia Madeira. O estudo da hidrografia numa região de civilizações de terra, a
África Austral. Separata do Bol. Bibl. Univ. Coimbra, volume 39, 1984.
88
Diário de Moçambique a Tete. p. 521.
89
Idem, Ibidem.

26
A expedição necessitou de 28 dias para atingir a vila de Sena, entretanto os problemas
de Lacerda e Almeida não se restringiram às doenças e ao perigo da navegação. Para ele, a
expedição estava desembarcando em uma vila socialmente problemática, a ponto de
escandalizá-lo. Segundo ele, deparou-se somente com vícios, não constatando virtude
alguma. E isto não estava restrito somente à vila de Sena: às outras vilas crítica semelhante foi
dirigida. 90
O matemático partiu de Sena no dia 08 de janeiro de 1798, após determinar a posição
da vila e de dar algumas providências referentes a seu cargo. 91 Ao longo deste diário, o
matemático descreveu detalhes políticos, sociais, econômicos e ambientais. A expedição, que
se dirigia pelo rio Zambeze atingiu a vila de Tete no dia 23 de janeiro, tomando o governador
a posse no dia seguinte. Ao concluir este diário, suplicou para que Sua Majestade enviasse
“para estes Rios algum Ministro de Vara branca, contando que fosse homem que respeitasse
as Leis, temesse a Deus e ao Rei [...]”. Estes primeiros meses em África parecem sugerir que
o governador estava um pouco importunado com o que observou. Mas, mesmo incomodado,
não abriu mão de assinar assegurando seu posto: Dr. Francisco José de La Cerda e Almeida -
Governador dos Rios de Sena. 92

1.5- Da vila de Tete ao Reino do Cazembe:


Até este momento, a expedição já havia se conduzido por Moçambique, Quelimane,
Sena e Tete. Mesmo com uma insistente especulação a seus respectivos moradores, eram
irrisórias as informações que os auxiliassem na continuidade da travessia de costa a costa.
Embora com instrumentos para realizá-las, as observações astronômicas também não se
mostravam suficientes para convencer o governador da partida. Neste meio tempo, uma
embaixada enviada pelo rei Cazembe traz as informações necessárias para que a partida
ocorresse. As notícias que o convenceram se referiam aos Caminhos para Angola, mas
93
também firmaram uma amizade e estabeleceram futuros negócios. Neste período, dá-se
início a seu segundo diário em África.94

90
Idem, p. 523.
91
Idem, p. 533.
92
Idem, p. 545.
93
Neste momento, o governador e os embaixadores ataram amizade, planos para futuros comércios, além de
informarem os caminhos sobre a travessia em si.
94
LACERDA E ALMEIDA. Diário da Viagem da Vila de Tete, capital dos Rios de Sena, para o interior da
África. Em: PEREIRA; RIBAS. Obra citada, p. 583-584. Observação: doravante, este diário será referenciado
como Diário de Tete ao Cazembe.

27
Esquivando-se de um inverno por vir, no dia 03 de julho de 1798 a expedição já se
punha a caminho das terras do rei Cazembe. Entretanto, e desde a saída da vila de Tete, um
grande empecilho que terá será obter carregadores, além de mantê-los atuantes, pois fugiam
frequentemente. Poucos dias após a partida, e com alguns já fugidos, adquire algumas
escravas de D. Francisca Josefa de Moura e Meneses: “das negras de D. Francisca, deixadas
95
as velhas, doentes, e pejadas, escolhi perto de duzentas.” Mas isto sequer alivia seu
problema: ao logo da viagem, as fugas para os matos foram constantes, ocorrendo também de
eles decidirem por não carregar em certos dias. 96 Ou ocorria, também, de a expedição ser
furtada por grupos africanos, como os Muízas e os Maraves.97 A travessia enfrentava diversos
contratempos, como o perigo constante de um combate com os naturais. A relação
diplomática entre os membros da expedição com os Maraves,98 por exemplo, habilidosos no
arco e flechas, foi frequentemente difícil. As flechas, se envenenadas, somente eram
99
invalidades através do Óleo de São Pedro, e é bem provável que o explorador não o
conhecia este medicamento.
Após a chegada à região da vila de Tete, a viagem é realizada por terra, e isto facilitou
para que o matemático observasse mais atentamente os terrenos auríferos, as culturas
agrícolas locais e a fertilidade de planícies e vales. Ao longo do trajeto, cruzou diferentes
populações, desenhou mapas e se interou do complexo funcionamento comercial no interior
africano. É constante sua referência a elefantes e marfins, demonstrando um possível impacto
ambiental em razão da alta demanda comercial. Esteve realmente disposto a compreender as
relações sociais e as comerciais pelo sertão adentro, a ponto de, em determinada situação,
escrever: “o maior prático nos usos e costumes cafreais era eu mesmo”. 100
Manteve-se um fiel súdito à Coroa portuguesa, em diferentes situações. Num trecho
interessante deste diário, Lacerda e Almeida demonstra bem a fidelidade ao homenagear a
Rainha Maria I e o Príncipe D. João com a seguinte memória:
95
Idem, p. 588 e 597. Segundo Lacerda e Almeida, D. Francisca Josefa, viúva de dois antigos governadores da
Capitania dos Rios de Sena, tinha o costume “de não negar-se a qualquer coisa que seja necessária para bem do
Real Serviço [...]”. Naquele momento era, para ele, “heroína destes Rios”. Sobre o assunto Escravidão, isto será
tratado adiante.
96
Diário de Tete ao Cazembe, p. 600.
97
Idem, p. 601.
98
Os Maraves, assim como os Muízas, eram naturais pertencentes às diferentes povoações pelas quais a
expedição praticou diplomacia, comércio, além de usufruírem de seus serviços.
99
RODRIGUES, A medicina europeia e a natureza na África Oriental. Em: CORREA, Silvio Marcus de Souza;
NODARI, Eunice Sueli (Orgs). Migrações e Natureza. São Leopoldo: Oikos, 2013, p. 98. Segundo Rodrigues,
o Óleo de São Pedro servia para curar feridas, além de ser um antídoto contra flechas envenenadas.
100
Diário de Tete ao Cazembe, p. 616.

28
Ao sair da povoação [dos Maraves], marchamos em demanda da
Cordilheira que fica para o Nascente, e lhe dei o nome de Cordilheira
Marizane, e a do Poente [de] Joanina, em memória da Nossa Augusta
Soberana, e Sereníssimo Príncipe, autores desta empresa, e diligência,
digna do seu Real ânimo e grandeza. 101

Enfermo, descreveu a situação crítica por ele vivenciada, próxima aos Rios Rui e Bua:
Até agora tem sido tão pobres e miseráveis as terras por onde tenho
passado, que à exceção do milho, batata, e inhames, amendoim, e
poucas bananas não há coisa a que se possa voltar [...] Basta dizer que
na minha moléstia, não tive o mais pequeno frango para alimentar-me, e
não houve outro remédio, que sustentar-me com água de arroz.102

As doenças africanas realmente foram outro problema para o astrônomo. Certamente o


pior. Enquanto buscava superar uma saúde debilitada, chegava-lhe a notícia da morte de sua
jovem esposa, ocorrida no dia 1° de abril, pelo mesmo motivo. Dias antes de terminar seu
diário, em 27 de setembro, ainda se encontrava com febre, e abatido.103 Por assim estar, pouco
descreve sobre o reino do Cazembe, em que atingiram com muita dificuldade no início de
outubro. Este segundo diário termina inesperadamente, e sem sua assinatura. Segundo o
capelão Francisco João Pinto, Lacerda e Almeida faleceu no dia 18 de outubro de 1798, na
corte do Rei Cazembe. 104
Sua tentativa de travessia foi pioneira pelo caráter científico. Entretanto, o cronômetro,
o teodolito, a bússola, o sextante, o telescópio, entre outros instrumentos, não foram
suficientes para superar o desconhecimento português referente ao interior africano. A
travessia foi parcial, mas atingiram distância do litoral: o principal trecho do Vale do Zambeze

101
Idem, Ibidem. Esta fidelidade de Lacerda e Almeida é também percebida em outros momentos. Em um
documento emitido por D. Rodrigo de Sousa Coutinho, o Secretário pediu para que Lacerda e Almeida realizasse
uma “particular averiguação” em Moçambique, com o intuito de adquirir notícias de algumas formas ilícitas de
enriquecimento que estavam ocorrendo na Capitania. Esta sigilosidade da missão é bem sugestiva no que se
refere à confiança remetida pelas autoridades portuguesas à lealdade do governador luso-americano. A própria
denúncia de Lacerda e Almeida contra seu colega Pontes Leme, em nota já citada, resume bem esta obediência
do matemático para com a Coroa Portuguesa. Sobre o documento de D. Rodrigo de Sousa Coutinho, ver:
Instrução dada por D. Rodrigo de Souza Coutinho a Francisco José de Lacerda e Almeida, mandando-o
averiguar as formas ilícitas de enriquecimento usadas pelos agentes da coroa portuguesa em Moçambique. Em:
PEREIRA; RIBAS, Obra Citada, p. 494.
102
Diário de Tete ao Cazembe, p. 611.
103
Idem, p. 639.
104
Diário da Viagem de retorno da Expedição de Travessia da África, do Cazembe a Tetê, após a morte de
Francisco José de Lacerda e Almeida, sob o comando do Padre Francisco João Pinto. Transcrição em:
PEREIRA; RIBAS, Obra Citada, p. 645.

29
é superado e, da vila de Tete ao Cazembe, a expedição interioriza-se, por terra,
aproximadamente 270 léguas. 105

105
SANTOS, Viagens de Exploração Terrestre dos Portugueses em África, p. 200.

30
II- [Capítulo 02] Os diários de Lacerda e Almeida no Brasil (1780-1790):

No ano de 1790, após retornar do Brasil para Portugal, o matemático escrevia à


Academia Real das Ciências, dizendo apresentar

o mapa e o Diário da viagem que [fez] desde vila Bela, capital de Mato
Grosso, até a vila e praça de Santos, onde [deu] fim às [suas] longas e
trabalhosas navegações, indagações, reconhecimentos e observações
feitas desde o ano de 1780 até 1790 nas vastas capitanias do Pará, Rio
Negro, Mato Grosso, Cuiabá e São Paulo. 106

O explorador ainda lamenta a perda de um mapa geral de todas suas viagens do


período, e de outros papéis, que ficaram na capital de Mato Grosso enquanto ele se dirigia à
Lisboa. Segundo Lacerda e Almeida, seus escravos, ao saber que ele não retornaria para seu
quartel, “consumiram os papéis como coisas para eles inúteis [...]”.107 Mesmo lamentando o
ocorrido, ele acrescentou à Academia outro mapa “que somente [servia] de dar suficiente
ideia de toda esta viagem”. Com esta entrega, tornou-se sócio da instituição. 108
Esta versão do diário que o matemático ofereceu à Academia Real das Ciências se
referia, exclusivamente, à viagem de vila Bela à vila de Santos, entre os anos de 1788 e 1790.
Não consta neste documento informações sobre as outras províncias exploradas anteriormente
pelo matemático, entre 1780 e 1788 - como Pará, Rio Negro e Mato Grosso.

2.1- A publicação de 1841 e seus problemas.


A Assembleia Legislativa da Província de São Paulo, em 1841, publicou uma
coletânea importante com todos os diários desta expedição transcritos. Nesta obra, encontram-
se seis diários,109 desde sua chegada ao Brasil até seu retorno para Lisboa (de 1780 a 1790).
Para facilitar a compreensão, abaixo segue a lista dos diários escritos pelo matemático e
contidos na coletânea:

106
Apresentação do Diário que fiz desde Vila Bela, capital de Mato Grosso, até a vila e Praça de Santos à
Academia Real das Ciências. Transcrição em: MARTINS, Dissertação citada, Anexos, p. 25.
107
Idem, p. 25-26.
108
HOLANDA, Obra citada, p. 11.
109
Neste conjunto documental, os dois últimos diários possuem muitas semelhanças entre si, e por este motivo
podem ser considerados o mesmo. Ambos os diários em questão tratam do desfecho da expedição, da vila de
Cuiabá à capitania de São Paulo. Entretanto, o diário de número 05 se limita à cidade de São Paulo, e o de
número 06 à vila de Santos. Isto será tratado adiante, neste mesmo capítulo.

31
1- Cópia do Diário que fez o Dr. Francisco José de Lacerda e Almeida, sendo
mandado por sua Majestade Fidelíssima para as demarcações de Seus Reais
Domínios na America Portuguesa, servindo nela de Astrônomo. [1780].

2- Diário da viagem que fiz com o Capitão Joaquim José Pereira de Barcelos,
até acima do Forte de S. José de Marabitanas, e também pelo Rio Vaupes.
[1780-1781].

3- Copia do Diário que fez o mesmo Dr. Lacerda, de Barcelos para a Capital
de Mato Grosso. [1781-1782].

4- Copia de um Diário que escreveu o Dr. Francisco José de Lacerda e


Almeida, Astrônomo de Sua Majestade na Capitania de Mato Grosso, no
ano de 1786, por ordem do Ilustríssimo e Excelentíssimo General dela Luiz
de Albuquerque de Melo Pereira e Cacêres, desde Vila Bela, pelos Rios
Jaúru e Paraguai, até onde constar do mesmo Diário. [1786].

5- Diário que por ordem do ilustríssimo e excelentíssimo Sr. Luiz de


Albuquerque de Mello Pereira e Cacêres, governador e capitão general da
Capitania de Mato Grosso e Cuiabá, fiz da Vila Bela até a cidade de São
Paulo pela ordinária derrota dos rios. [1788].

6- Diário da viagem de Vila Bela para São Paulo. [1788-1790].

Infelizmente, tal publicação não menciona a localização institucional dos manuscritos


pelos quais as transcrições foram feitas, tampouco os nomes dos técnicos que realizaram a
tarefa. Somente consta que ela foi impressa por ordem de tal Assembleia Legislativa, na
Tipografia de Costa Silveira – Rua S. Gonçalo, número 14. O título fornecido à coletânea de
diários foi: Diário da Viagem do Dr. Francisco José de Lacerda e Almeida pelas capitanias
do Pará, Rio Negro, Mato Grosso, Cuiabá, e São Paulo, nos anos de 1780 a 1790. 110
O contexto social da Publicação de 1841 é de crescimento urbano em São Paulo. Na
primeira metade do século XIX a cidade presenciava inúmeras transformações, e uma
importante se referia ao transporte em um sentido geral. Mesmo que as ferrovias estivessem
em foco, a navegação não estava descartada. Provavelmente, era esta uma justificativa para
que a Assembleia Legislativa publicasse a coletânea de Lacerda e Almeida, pois os diários do
matemático são, de fato, fontes dedicadas sobre este assunto. Assim, diversas publicações

110
Diário da Viagem do Dr. Francisco José de Lacerda e Almeida pelas capitanias do Pará, Rio Negro, Mato
Grosso, Cuiabá, e São Paulo, nos anos de 1780 a 1790. Impresso por ordem da Assembleia Legislativa da
Província de São Paulo, 1841. Observação: doravante esta coletânea de documentos será referenciada como
Publicação de 1841.

32
elaboradas pelas tipografias da época foram fundamentais para a administração econômica,
logística e política das vilas e das cidades da Província. 111
Sobre os problemas da Publicação de 1841, algumas observações foram constatadas a
partir de uma comparação documental. O procedimento principal partiu da análise de duas
versões dos diários sobre o final da longa expedição realizada na América Portuguesa por
Lacerda e Almeida. Ambas descreveram a partida do matemático da vila de Cuiabá - mas uma
se encerra na cidade de São Paulo e a outra termina no porto de Santos. Como existem duas
versões deste desfecho, surgiram as possibilidades de realizar uma comparação entre elas.
Para isto, a Publicação de 1841 é um ponto de partida, pois nesta obra estão publicadas as
duas versões.
A mais extensa, até o porto de Santos, será abordada adiante. A versão menor
provavelmente foi confeccionada pelo matemático por ordem do governador Luis de
Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres, como sugere o próprio título. 112 O texto se limita ao
ano de 1788 e é bem enxuto; sua descrição parte da vila de Cuiabá, porém não abrange o
trajeto até o litoral, pois se encerra na cidade de São Paulo.
A versão escrita para o governador Pereira e Cáceres tem suas peculiaridades. Um
exemplo é este documento fornecer, em detrimento do outro diário, boas notas de rodapé. O
número delas é maior que do outro diário, além de serem mais extensas. Nestas notas o
matemático traduz o significado de vários nomes de rios e povoações escritos em tupi-
guarani. Mesmo que esta versão do diário não descreva sua chegada à vila de Santos, ela é um
documento importante. A elaboração de um diário para o governador Pereira e Cáceres
permitiu a existência de algo ainda mais interessante. Segundo Daniela Fernandes, 113 uma
versão deste diário elaborado para o governador foi parar na Biblioteca Pública Municipal de
114
Porto (BPMP), acompanhado de um mapa. Este será analisado adiante. Sobre o

111
TAUNAY, Afonso de E. História da cidade de São Paulo sob o Império. Volume V (1831-1842). Coleção
do Departamento de Cultura. Publicação da Divisão do Arquivo Histórico. São Paulo, 1961, p. 45-54.
112
A título de esclarecimento, o documento é encabeçado como Diário que por ordem do ilustríssimo e
excelentíssimo Sr. Luiz de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres, governador e capitão general da Capitania
de Mato Grosso e Cuiabá, fiz da Vila Bela até a cidade de São Paulo pela ordinária derrota dos rios.
113
FERNANDES, Daniela. De Mato Grosso a São Paulo: um percurso, duas fontes. IV Simpósio
Lusobrasileiro de Cartografia Histórica. Porto, 09 a 12 de novembro de 2011.
114
Segundo a autora: "Arquivo e Núcleo: Biblioteca Pública Municipal do Porto - Núcleo de Reservados, cotas:
C-M&A-P. 19 (17) (mapa); Ms464 (diário de viagem). A localização destes dois documentos no fundo do
BPMP poderá justificar-se pela ligação existente entre Luís de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres e o 1°
Visconde de Balsemão, seu antecessor no governo da capitania de Mato Grosso. A presença da livraria dos
Viscondes de Balsemão na BPMP remete-nos para a Guerra Civil de 1832-1833, quando a mesma foi integrada
nesta instituição.” FERNANDES, Artigo citado, p. 02. Ainda segundo a autora, há uma variante deste mapa na
Casa da Ínsua (Cota R91, rolo n° 05).

33
manuscrito, infelizmente não foi possível acessá-lo, entretanto saber de sua existência e
localização já é muito positivo.
Ao ler o artigo de Fernandes se constatou que o manuscrito em questão é o mesmo
diário transcrito na edição de 1841, da vila de Cuiabá à cidade de São Paulo, com pequenas
diferenças somente - provavelmente originadas através do trabalho dos copistas.
Sobre a outra versão deste diário presente na Publicação de 1841, a mais extensa, ela
termina com o regresso do matemático para Lisboa, pelo porto de Santos. Possui semelhanças
com a versão há pouco abordada, mas ressaltam diferenças. O que é curioso é que esta versão
mais longa, mesmo aparentando ser completa, também possui omissões. Pois, ao fazer uma
comparação entre estes exemplares de 1841 com uma transcrição do Diário da vila de Cuiabá
à vila de Santos, elaborada recentemente pelo CEDOPE, uma série de outros problemas foi
percebida. A suma é que existe aqui um problema documental delicado. Para melhor elucidar
esta questão, abaixo estão algumas passagens referentes ao dia 29 de setembro de 1786 – dia
tomado apenas para se ter uma noção da variação entre os textos.

Cheguei à vila de Cuiabá, onde me demorei a me aprontar até o dia 14


de outubro.115

Cheguei ao Cuiabá que foi ereta em Vila no ano de 1727 Lat. A. 15°
35’ 59’’, Long. 322° 5’ 15’’. [...].116

Atravessada a serra que beira ao Paraguai em dois dias, e cujas águas


são tão salobras que não há mistura que desfaria o seu mau sabor, e
depois [de] muitas e boas fazendas de gado cheguei à vila do Cuiabá
[...] na Lat. A. 15° 35’ 59’’ [...] e na Long. 322° 5’ 15’’. [...] 117

A primeira passagem é da versão menor, escrita para o governador, e as outras se


referem ao trajeto completo – da vila de Cuiabá à vila de Santos. Outras passagens foram
tomadas para comparação, e mesmo assim o que se verifica é que a transcrição mais fidedigna
e melhor elaborada é a apresentada pelo CEDOPE - extraída dos originais da Academia de

115
Diário que por ordem do ilustríssimo e excelentíssimo Sr. Luiz de Albuquerque de Mello Pereira e Cacêres,
governador e capitão general da Capitania de Mato Grosso e Cuiabá, fiz da Vila Bela até a cidade de São Paulo
pela ordinária derrota dos rios. [1788]. Em: Publicação de 1841, p. 44. O que é preciso dizer aqui é que a
pesquisadora realizou uma investigação criteriosa, tanto sobre o diário como sobre o mapa apresentados. Por
isto, sua pesquisa permitirá o estudo sobre tais documentos, principalmente se referindo ao mapa. O capítulo 04
desta monografia abordará esta questão.
116
Diário da viagem de Vila Bela para São Paulo. [1788-1790]. Em: Publicação de 1841, p. 64.
117
Diário da Viagem de Vila Bela Capital da Capitania de Mato Grosso até Vila e Praça de Santos na Capitania
de São Paulo. 13 de setembro de 1788 a 13 de maio de 1790. CEDOPE, p. 05.

34
Ciências de Lisboa. 118 Entretanto, há notas que nas outras versões não constam nesta última
transcrição. Como já dito anteriormente, a primeira versão (endereçada ao governador Pereira
e Cáceres) é o documento com maior número de supressões de informações e de detalhes,
mas contém boas notas explicativas, por exemplo. Para se investigar tal trajetória, portanto,
devem-se considerar os três diários, com críticas e considerações específicas a cada um.
O problema maior agora seria, à vista disto, à ausência de boas transcrições referentes
aos outros diários da expedição. Se da vila de Cuiabá à capitania de São Paulo existem três
diários para serem problematizados/ explorados, os outros quatro (referentes às capitanias do
Grão Pará, Rio Negro e Mato Grosso) se limitam à problemática Publicação de 1841. Uma
explicação para esta desorganização é a intensa circulação de originais e cópias que ocorriam
no período. Coopera o fato de o matemático ter sido uma referência na produção de diários.
Segundo Magnus R. de Melo Pereira, “Lacerda e Almeida foi um prolífico escritor de diários
de viagens, os quais, desde o século XIX, vêm sendo explorados pelos principais historiadores
brasileiros.” 119 O posicionamento do historiador é sem dúvida coerente, pois sabe-se que o
matemático representou bem o modelo de redigir diários para a Coroa portuguesa. Os motivos
são compreensíveis. Para Ronald Raminelli,

produzir conhecimento era forma de estar no centro e desfrutar de


privilégios próprios da corte. Mas o mundo colonial transformado e
transportado em papel não interessava somente à Coroa. Vice-reis e
governadores também recebiam serviços de subordinados e
viabilizavam cargos e mercês, concedidos pelo rei. 120
-
É importante salientar que na publicação da Assembleia Legislativa também existem
dois documentos que não são de autoria de Lacerda e Almeida, porém se relacionam
diretamente com a expedição em questão. São eles:

1- Copia do Diário que ao mesmo tempo fez o Capitão Ricardo Franco de


Almeida Serra com o Dr. Antonio Pires Pontes pelo Rio Branco, que
deságua no Rio Negro, e por outros de que constará este Diário. [1781].

2- Longitudes contadas da ponta mais ocidental da Ilha de Ferro, dos lugares


abaixo declarados pertencentes à Capitania de São Paulo, e Rio de Janeiro,

118
A transcrição foi realizada por Magnus Roberto de Mello Pereira e por Rosângela Maria Ferreira dos Santos,
em março de 2004. O CEDOPE possui, a saber, o documento em microfilme.
119
PEREIRA, Magnus Roberto de Mello. Brasileiros a Serviço do Império: a África vista por Naturais do Brasil,
no século XVIII. Revista Portuguesa de História, XXXIII, Coimbra, 1999, p. 153-190, p. 154. Nota 03.
120
RAMINELLI, Obra citada, p. 20.

35
determinados por Francisco de Oliveira Barbosa e Bento Sanches da Orta.
[sem data].

O documento de número um descreve o itinerário percorrido pelo matemático Pontes Leme


pelo rio Branco, acompanhado do capitão Ricardo Franco de Almeida Serra, no início de
1781. O dia da partida foi 1° de janeiro. Neste mesmo dia, Lacerda e Almeida iniciou um
reconhecimento hidrográfico e fronteiriço com o capitão Joaquim José Pereira, por regiões
próximas.121 Os diários se complementam. A narrativa de Pontes Leme, entretanto, é mais
longa e detalhada, com descrições bem interessantes sobre o cotidiano da expedição. Na sua
embarcação, como poderia se supor, não havia somente o matemático e o capitão, mas
também práticos e até mesmo índios. A relação dos luso-brasileiros com os indígenas era,
sobretudo, de negociação. Em troca de peixes frescos, poderiam forneces sal, facas. 122 Já os
práticos foram consultados em diferentes momentos, principalmente no sentido de orientá-los
na navegação. Indicar a localização dos caminhos, assim como a de facilitar a superação de
cachoeiras, era função dos práticos instruir.
O segundo documento é uma descrição das longitudes e latitudes sobre as capitanias
de São Paulo e Rio de Janeiro, elaborada por Francisco de Oliveira Barbosa e Bento Sanches
d’Orta. Para maiores esclarecimentos, o documento constará em anexo, no final desta
monografia.
-
2.2- Os Mapas sobre as Demarcações: apenas um sobrevivente.
Na elaboração dos diários de Lacerda e Almeida foi prática recorrente a produção
conjunta de mapas referentes às suas viagens. Isto é percebido tanto nas Expedições de
Demarcação de Limites no Brasil como também na travessia em África. Ocorreu, no entanto,
o desaparecimento da maioria dos mapas, sendo eles originais ou cópias. Sobre a Expedição
de Demarcação, o mapa geral que o matemático mencionou ter elaborado foi
lamentavelmente perdido logo após sua confecção. Segundo uma correspondência enviada
por ele à Academia Real das Ciências,

seria completo o meu gosto se me fosse possível fazer oferta de um


mapa geral de todas as viagens; mas com grande mágoa minha não
posso satisfazer a este desejo porque [...] deixei em Mato Grosso todos
os meus papéis que tratavam do referido assunto, e apenas trouxe uma

121
Este diário de Lacerda e Almeida será abordado adiante. Ver o Diário do entorno da vila de Barcelos.
122
Copia do Diário que ao mesmo tempo fez o Capitão Ricardo Franco de Almeida Serra com o Dr. Antonio
Pires Pontes pelo Rio Branco, que deságua no Rio Negro, e por outros de que constará este Diário, p. 14.

36
parte [...]. Estando em São Paulo [...] chegou depois a desagradável
notícia de que os meus escravos, que tinha deixado tomando conta do
meu quartel, sabendo que eu não voltava e que não me tornavam a ver,
consumiram os papéis como coisas para eles inúteis [...]. 123

É provável que tal mapa representasse o trajeto completo de sua participação na


Expedição Demarcatória do Brasil, trazendo informações cartográficas relativas às capitanias
do Pará, Rio Negro, Mato Grosso, Cuiabá e São Paulo. Certamente seria uma característica
principal do mapa a reprodução das trajetórias hidrográficas, com um detalhamento maior
sobre a América Portuguesa e um menor referente à parte espanhola. Outras, como a
descrição do relevo e/ ou as anotações políticas, também poderiam estar presentes.
Não se duvida que Lacerda e Almeida tenha desenvolvido, por meio da Universidade
de Coimbra, potencial para realizar um mapa de grandes proporções e detalhamentos. Por
exemplo. Mesmo que a Carta Geográfica de Projeção Esférica da Nova Lusitânia ou
124
América Portuguesa e Estado do Brasil seja atribuída a Silva Pontes, 125 Lacerda e
Almeida também participou de sua elaboração. Os mapas elaborados por ele em África
também possuem grande importância geográfica e política. 126 Sobre a Carta Geográfica de
Projeção Esférica, ela “[sintetiza] o conhecimento cartográfico obtido nos processos de
demarcação de fronteira resultante dos Tratados de Madri e de Santo Ildefonso, no qual
Pontes e Lacerda estiveram diretamente envolvidos.” 127 Assim, se atualmente o mapa geral
perdido deixa uma lacuna historiográfica, na época certamente causou uma lamentável
infelicidade política e estratégica. Provavelmente isto só foi solucionado com a tal Carta
Geográfica, quase uma década após.
O mapa que o matemático enviou à Academia Real das Ciências, referente ao trajeto
da vila de Cuiabá à vila de Santos, ele também não foi encontrado. Embora nenhuma
informação sobre ele tenha sido descoberta por esta pesquisa, é provável que o mapa ainda
exista. Seria preciso realizar uma busca mais aprofundada em acervos brasileiros e

123
Apresentação do Diário que fiz desde Vila Bela, capital de Mato Grosso, até a vila e Praça de Santos à
Academia Real das Ciências. [1790]. Transcrição em: MARTINS, Obra citada, Anexos, p. 25.
124
A Carta Geográfica de Projeção Esférica da Nova Lusitânia ou América Portuguesa e Estado do Brasil, de
1797, foi elaborada “sob grande sigilo, na casa do Risco, anexa ao Complexo Científico da Ajuda”. Ainda
segundo os autores, “os desenhistas envolvidos foram Manuel Tavares da Fonseca e José Joaquim Freire, que
havia participado da Viagem Filosófica à Amazônia com Alexandre Rodrigues Ferreira”. Em: CRUZ;
PEREIRA. Apresentação em: PEREIRA; RIBAS, Obra citada, p. 44, 45.
125
Idem, p. 44.
126
Os mapas do matemático na África estão em anexo, no final desta monografia.
127
Idem, Ibidem.

37
portugueses. Mas o que foi obtido nesta pesquisa foram informações referentes à existência de
um mapa semelhante, encontrado atualmente em Portugal. O título destinado a este mapa, na
época, foi:

Mapa dos leitos dos rios Taquari, Cuxim, Camapuã, Varador de


Camapuã, Pardo, Paraná, Tietê e o caminho de terra desde a Freguesia
de Nossa Senhora Mãe dos Homens de Araraitaguaba até a cidade de
São Paulo, que por ordem do ilustríssimo e excelentíssimo Senhor Luis
de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres do Conselho de sua
Majestade e Fidelíssima, que Deus Guarde o Governador e Capitão
Geral das Capitanias de Mato Grosso e Cuiabá, e Plenipotenciário das
Reais demarcações de limites nas mesmas capitanias levantou, e fez no
ano de 1788 e 1789/ o doutor astrônomo Francisco José de Lacerda e
Almeida. 128

A historiadora Daniela Fernandes apresentou uma pesquisa referente a tal mapa. O


objetivo da pesquisadora foi realizar uma série de críticas conjunta ao mapa manuscrito e seu
respectivo diário, mas com ênfase no primeiro. Embora lamentavelmente a autora não tenha
inserido a imagem do mapa em seu artigo, informações como o material utilizado, o contexto
da produção e o conteúdo são trabalhadas de maneira aprofundada e inédita. Os fenômenos
físicos e sociais do conteúdo são inseridos em seu trabalho por meio estatístico; a autora,
ainda, examinou a precisão geográfica do mapa. Embora Fernandes não afirme que a
elaboração material deste documento tenha sido, de fato, feita por Lacerda e Almeida, ela é
segura em afirmar que os manuscritos são do final do século XVIII. Isto permite no mínimo
duas interpretações: ou a autoria da confecção dos manuscritos foi diretamente realizada por
Lacerda e Almeida ou os documentos foram produzidos por outro profissional, em um
período muito próximo. 129
Esta breve observação sobre tal mapa é apenas para situar sua existência. Não se
pretende nesta monografia elaborar um estudo sobre a herança cartográfica do matemático: a
pesquisa se deteve sobre os seus diários, sobretudo. No entanto, uma série de mapas que
retrata geograficamente o Diário de Tete ao Cazembe seguirá em anexo. Os mapas estarão
separados por borrões e aquarelas. 130

128
Em: FERNANDES, Artigo citado, p. 02.
129
Idem, p. 04.
130
Os borrões e as aquarelas dos mapas de Lacerda e Almeida que descrevem esse trecho da travessia foram,
originalmente, publicados em: MÚRIAS, Obra citada. Esta pesquisa possui, em anexo, reproduções dos mapas
desta publicação, obtidas em: PEREIRA; RIBAS, Obra citada, p. 763-798. Conferir Anexos, no final desta
monografia.

38
2.3- O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro - IHGB:
Tomado o problema documental da Publicação de 1841 como fator limitante e, ao
mesmo tempo, constituinte da pesquisa, e considerando a inexistência de transcrições
confiáveis referente a estas fontes, tornou-se necessário investigar a possibilidade da
existência de manuscritos. Nos anexos da dissertação de Luiza F. G. Martins há duas imagens
referentes a uma das versões manuscritas dos diários de Lacerda e Almeida sobre sua viagem
na América Portuguesa. A primeira imagem é a capa catalográfica do documento. Através
dela somos informados que o exemplar, localizado no IHGB, integra a Coleção Manuel
Barata. 131 Consta que o diário possui 35 folhas e descreve o trajeto do matemático entre os
anos de 1780 e 1786. O título recebido nesta versão é Diário da viagem que fez sendo
nomeado por S. M. Fidelíssima para as demarcações de seus reais domínios na América
Portuguesa.
A segunda imagem é uma cópia impressa da primeira página do diário. Mesmo que a
definição apresentada nesta imagem não esteja boa, se percebe que o documento está bastante
íntegro e legível. As informações contidas nesta página são exatamente as mesmas do início
da transcrição de 1841. 132 É provável que este documento trate da primeira parte da viagem,
realizada entre as capitanias do Pará, Rio Negro e Mato Grosso, até a chegada à vila do
Cuiabá no primeiro dia de setembro de 1786. Há também a possibilidade de o manuscrito ser
apenas uma cópia da Publicação de 1841, pois tal publicação não era tão acessível no século
XIX. A data do manuscrito não foi fornecida.
Segundo o site do IHGB, no acervo desta instituição há ainda uma cópia manuscrita
do Diário feito por Francisco José de Lacerda e Almeida acerca da demarcação dos reais
domínios na América portuguesa. 133 Além disto, na ficha de catalogação somente consta que
o documento é fruto de doação. Nada consta se o doador foi de fato o Manuel Barata, não
permitindo com isso assegurar que é o mesmo manuscrito utilizado na dissertação de Martins.
A única informação complementar segue assim nos descritores: Leite, Nicolau Rodrigues dos

131
Manuel Barata (1841-1916) foi membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e dos Institutos
Históricos de São Paulo, Bahia e Ceará. O período de sua documentação, encontrada atualmente no IHGB,
abrange de 1627 a 1914, e possui 976 documentos. Informações extraídas do próprio site do IHBG. Segundo
Martins, o manuscrito está localizado na lata 279 - pasta 05. Em: MARTINS, Dissertação citada, Anexos, p. 23.
132
Consultar o Diário de Lisboa à vila de Barcelos, p. 03.
133
Segundo o site, o documento está datado de 1881 e contém, supostamente, 363 páginas. Na ficha
catalográfica deste manuscrito, a parte das referências aparece de tal maneira: 44(63), 363, 1881. Ao comparar
com outras fichas, a sequência das referências é: tombo, volume, páginas e ano. As informações no corpo do
texto foram inferidas neste sentido.

39
Santos França e. 1803-1867; Manuscritos; Doações. Dentro desta situação, há também a
possibilidade de existirem mais três documentos manuscritos no IHGB referentes ao
matemático.134 Eles são:

1- Biografia do Dr. Francisco José de Lacerda Almeida, por Francisco Adolfo


de Varnhagen. Lata 113, documento 17.

2- Diário da Viagem feita de Vila Bela até a Cidade de São Paulo, pela
ordinária derrota dos rios no ano de 1788.

3- Exploração para verificar a possibilidade de comunicação da costa oriental


e da ocidental d’África – 1798. Lata 39, documento 10.

O primeiro certamente se refere a um manuscrito do final do século XIX, escrito pelo


próprio Varnhagen. 135 É bem provável que se trate de um original confeccionado pelo
historiador. 136 Já o segundo chama a atenção pois é o mesmo documento que o CEDOPE
transcreveu em 2004, e que foi tratado há pouco. Provavelmente se trata de uma cópia
realizada através do original enviado à Academia Real das Ciências, pois sua data é bem
posterior à expedição de Lacerda e Almeida: 1899.137 É capaz, inclusive, que tenha sido o
próprio Varnhagem o autor da cópia do documento, pois é sabido sobre a participação do
historiador na formação do perfil nacional na época, em relação com o IHGB. 138 Isto será
tratado adiante. Sobre o terceiro, mesmo insistindo em buscá-lo pelo site, ele não foi
encontrado. Isto fortalece a constatação de que a visita ao acervo do IHGB seria fundamental
para obter mais detalhes sobre o material ali armazenado.
-

134
Essas informações foram gentilmente cedidas pela diretora do arquivo do IHGB Sônia N. de Lima, através de
e-mails, em setembro de 2015. As versões digitalizadas destes manuscritos não foram obtidas tendo como causa
a custosa tarifa cobrada para este serviço.
135
Posteriormente, a biografia foi publicada em: VARNHAGEM, Biografia os Brasileiros Ilustres por Armas,
Letras, Virtudes, etc. Dr. Francisco José de Lacerda e Almeida, p. 177-184. RIHGB.
136
No site se lê: Biografia dos brasileiros ilustres: Dr. Francisco José de Lacerda e Almeida. Varnhagen,
Francisco Adolfo de, 1816-1878. ISSN: 0101-4366. Referências: T. 36, v. 46, pt. 1, p. 177-184, 1873.
Descritores: Almeida, Francisco José de Lacerda e, 1753-1798; Biografia. Em:
http://www.ihgb.org.br/pesquisa.php.
137
No site se lê: Diário da viagem feita de Vila Bela até a cidade de São Paulo pela ordinária derrota dos rios no
ano de 1783 pelo dr. Francisco José de Lacerda Almeida. ISSN: 0101-4366. Referências: T. 62, v. 99, pt. 01, p.
35-59, 1899. Descritores: São Paulo (SP) - Descrições e viagens; Mato Grosso - Descrições e viagens. Em:
http://www.ihgb.org.br/pesquisa.php. Obs: há um erro de data; em vez de 1783, a correta é 1786.
138
GUIMARÃES, Manoel Luis Salgado. O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o Projeto de uma
História Nacional. Em: Estudos Históricos, Rio de janeiro, n° 01, 1988. p. 06.

40
No ano de 1849 a Revista do IHGB (RIHGB) publicou a Memória a respeito dos rios
Baures, Branco, da Conceição, de S. Joaquim, Itonamas, e Maxupo, e das três missões da
Magdalena, da Conceição e de S. Joaquim.139 No texto não consta data, mas infere-se que
trate de um documento posterior ao seu retorno para Lisboa em 1790, pois na abertura do
documento é mencionado um acontecimento deste ano:

Quando tive a honra de oferecer a esta ilustre e sábia Sociedade


[Academia Real das Ciências de Lisboa] o mapa e o diário da viagem
que fiz de vila Bela, capital de Mato Grosso, até a cidade de São Paulo
[...].140

Lacerda e Almeida resgatou este acontecimento para justificar que não descreveria
sobre o rio Guaporé em tal Memória, pois já o havia analisado no diário. Sobre seu conteúdo,
ele se referiu principalmente aos rios e às missões jesuíticas mencionados em seu título.
Segundo o matemático, estes rios se encontravam em território espanhol e, junto de detalhes
de navegação, fez observações referentes à fauna e à flora. A relação entre os religiosos e os
indígenas nas missões de Santa Maria Madalena, da Conceição e de São Joaquim foi descrita
rapidamente. A dimensão/ tamanho das missões, os trabalhos nelas realizados, além de outras
informações específicas, como a conduta religiosa, integravam os dados escritos pelo
matemático. Estas informações foram apresentadas em 13 breves páginas.
O matemático foi lembrado pela RIHGB outras vezes. Francisco Adolfo de
Varnhagen, em 1873, escreveu uma biografia de Lacerda e Almeida, com tons de
homenagem.141 Em 1946 foi publicado o texto de Luiza da Fonseca sobre Lacerda e Almeida
e Felisberto Caldeira Brant Pontes. 142 A historiadora portuguesa se preocupou em destacar a
relevância destes dois indivíduos, enquanto brasileiros, no território africano. Para além disto,
o matemático foi lembrado pela RIHG em outras ocasiões, seja por citações secundárias ou
transcrições de outros documentos seus.
Ao ser tratado com relevância pela RIHGB, Lacerda e Almeida foi inserido em uma
questão maior do século XIX. Após ser criado em 1838, o IHGB empreendeu uma série de
atividades convergentes a um projeto nacional brasileiro, cuja intenção apontava para uma
139
O manuscrito foi doado por José Silvestre Rebelo, sócio efetivo da instituição na época.
140
LACERDA E ALMEIDA. Memória a respeito dos rios Baures, Branco, da Conceição, de S. Joaquim,
Itonamas, e Maxupo, e das três missões da Magdalena, da Conceição e de S. Joaquim, p. 106.
141
VARNHAGEM, Biografia os Brasileiros Ilustres por Armas, Letras, Virtudes, etc. Dr. Francisco José de
Lacerda e Almeida, p. 177-184.
142
FONSECA, Luiza da. Dois Brasileiros em África. Em: Revista Trimestral do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro. Volume 192, 1948, p. 22-37.

41
história sistematizada do Brasil. Assim, buscava-se produzir uma historiografia “capaz de
contribuir para o desenho dos contornos que se [desejavam] definir para a Nação
brasileira”.143 Ainda segundo Manuel L. S. Guimarães,

A fisionomia esboçada para a Nação brasileira e que a historiografia do


IHGB cuidará de reforçar, visa a produzir uma homogeneização da
visão de Brasil no interior das elites brasileiras. É [...] uma postura
iluminista – o esclarecimento, em primeiro lugar, daqueles que ocupam
o topo da pirâmide social, que por sua vez encarregar-se-ão do
esclarecimento do resto da sociedade – que preside o pensar a questão
da Nação no espaço brasileiro. 144

Desta maneira o IHGB almejava delinear um perfil ideológico para a nação brasileira.
Para isto, pressupostos europeus de civilização e progresso se mostravam fundamentais. Os
esforços para este intento não foram pequenos, e para isto a memória de Lacerda e Almeida
não foi descartada.

2.4- Os diários, os trajetos:


2.4.1- Diário de Lisboa à vila de Barcelos: 145
De Lisboa, o matemático chegou à cidade do Grão Pará em fevereiro de 1780,
acompanhado “de todas as pessoas que da dita cidade vinham nomeadas para a [...]
diligência”. 146 A cidade, sede de sua respectiva capitania, possuía na época uma intensa
circulação de mercadorias. Além de produtos coloniais comercializáveis, o tráfico de escravos
147
era fonte de lucros para uma minoria privilegiada da região. Ao chegarem, “foram
148
recebidos com grande agasalho [pelos] seus habitantes.” Junto do matemático, certamente
estavam presentes também comissários, engenheiros, técnicos, práticos e outros. 149 Em um

143
GUIMARÃES, Artigo citado, p. 07.
144
Idem, p. 06.
145
O principal documento para analisar este trajeto é a Cópia do Diário que fez o Dr. Francisco José de Lacerda
e Almeida, sendo mandado por sua Majestade Fidelíssima para as demarcações de Seus Reais Domínios na
America Portuguesa, servindo nela de Astrônomo, localizado em: Publicação de 1841. Para facilitar as citações,
doravante este documento será referenciado como Diário de Lisboa à vila de Barcelos.
146
Na transcrição da Assembleia Legislativa, a única informação que consta sobre esta estadia na cidade do Grão
Pará é que, ao chegarem, foram recebidos “com grande agasalho dos seus habitantes”. O diário em questão é,
lamentavelmente, deficiente de mais informações.
147
RAMINELLI, Obra citada, p. 64.
148
Diário de Lisboa à vila de Barcelos, p. 03.
149
MENDONÇA, Marcos Carneiro de. Rios Guaporé e Paraguai, p. 148. Ofício de D. Martinho de Melo e
Castro para João Pereira Caldas, 07 de Janeiro de 1780 – Palácio da N. Senhora Da Ajuda. Segundo Daniela

42
ofício de Martinho de Melo e Castro ao governador do Pará João Pereira Caldas,
comunicando a partida dos expedicionários, o ministro escreveu:

Para o serviço das demarcações do Japurá e Mato Grosso vão quatro


matemáticos que são José Joaquim Vitório, José Simão de Carvalho,
Francisco José de Lacerda e Almeida e Antônio Pires da Silva Pontes;
os primeiros dois devem ser empregados nas demarcações do Japurá e
os dois últimos na de Mato Grosso: todos os quatro são doutorados na
Universidade de Coimbra, escolhidos entre os melhores. [...] Nesta
corte tiveram um contínuo exercício, e prática de sua profissão debaixo
da inspeção do Snr. Seára. 150

Um dos aspectos curiosos desta passagem é a evidente expectativa de Martinho de


Melo e Castro referente aos doutorados da Universidade de Coimbra. Não somente isto: o
que se compreende também é que os quatro doutores selecionados para a expedição não
foram escolhidos por acaso. Sobre o período dos integrantes na cidade do Grão Pará, nada
consta no diário, lamentavelmente.151 Talvez seja um exemplo dos problemas de transcrição
acima descritos, ou existam outros documentos que tratem mais precisamente das atividades
realizadas pelos expedicionários sobre este período - documentos desconhecidos por esta
pesquisa. De qualquer forma, após seis meses partiram da cidade, navegando por rios como
Matuacú, Mapuá, Tagipurú, Arapijó, Xingú, Amazonas. O potencial hidrográfico, as
moléstias, os variados autóctones e a alimentação são descritos de maneira sucinta.
No dia 18 de setembro chegaram à vila Pauxi, uma aldeia administrada pelos
Religiosos Capuxos de Santa Boa Ventura. 152 A localidade estava “situada em alta barreira,
[e tinha] um forte semelhante ao de Santarém nas ruínas. [Constava] de 500 almas.” 153 Pela
quantia de batizados, certamente não era um povoado muito interiorizado.
Durante a narrativa, foram vários os Fortes descritos no seu diário. Isto,
provavelmente, foi uma prática do explorador visando enviar informações estratégicas e de
interesses políticos à Coroa Portuguesa. Próximo a esta vila, no rio Trombetas, o matemático
relatou a situação dos espanhóis, que haviam se estabelecido anteriormente em Guarupá -

Fernandes, para cada comissão estavam presentes “dois comissários, dois engenheiros, dois astrônomos e dos
práticos do país”. FERNANDES, Artigo citado, p. 05.
150
MENDONÇA, Obra citada, p. 148. Itálico proposital.
151
Diário de Lisboa à vila de Barcelos, p. 04.
152
PATACA, Tese citada, p. 144.
153
Diário de Lisboa à vila de Barcelos, p. 05.

43
mas após se retiraram para a Colônia de Suriname. 154 A referência a estrangeiros não se
limita aos espanhóis. Segundo Lacerda e Almeida, “os índios que [habitavam] as cabeceiras
destes rios [usavam] armas de fogo, [...] vestido de pano, adquirido tudo do comércio dos
155
mesmos com os holandeses.” Neste momento, é interessante observar os interesses
comerciais entre os estrangeiros e os naturais instalados nas cabeceiras deste rio. O mais
curioso, neste caso, é a presença da arma de fogo, potencializando assim as possíveis querelas
entre os diferentes grupos que freqüentavam e disputavam a região.
Apresentou muitas informações relacionadas à navegação. No dia 04 de outubro
registrou o encontro das águas do rio Negro com o rio Amazonas. O fenômeno natural
certamente não passaria despercebido. Relatou: “tendo navegado três léguas chegamos à boca
do rio Negro, e como suas águas são pretas e as do rio Amazonas brancas ou barrentas, fazem
estes dois rios na sua junção uma grande separação de águas.” 156 É pouco provável que o
matemático não tivesse consciência da existência deste encontro de águas, tão peculiar, e visto
ser uma região muito conhecida por naturalistas e exploradores na época. Um exemplo
famoso foram as expedições comandadas pelo naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira, que
explorou a bacia amazônica durante as décadas de 1780 e 1790. Seu trajeto gerou abundante
documentação. 157
Na madrugada do dia 17 de outubro a expedição alcançou a vila de Barcelos, capital
da capitania de São José do Rio Negro. Em Barcelos permaneceram até o dia 25 de dezembro.
A estadia na vila, durante dois meses, provavelmente serviu para reorganizarem seus
mantimentos e equipamentos. Segundo Lacerda e Almeida, na vila ficava a casa do
governador da capitania, além de possuir em torno de 200 soldados de guarnição e vários
fortes. O povoado possuía, também, “ouvidor, vigário geral, boas casas e quartéis para os
oficiais militares e soldados rasos.” 158

154
Idem, p. 05.
155
Idem, p. 05.
156
Idem, p. 06.
157
Para este assunto, consultar: DOMINGUES, Ângela. Viagens de exploração geográfica na Amazônia em
finais do século XVIII: política, ciência e aventura. Funchal: Centro de Estudos de História do Atlântico, 1991.
158
Idem, p. 07.

44
2.4.2- Diário do entorno da vila de Barcelos: 159
No final de dezembro, o matemático e o capitão Joaquim José Pereira saíram para uma
diligência pelos arredores da vila de Barcelos. Viraram o ano de 1780 na tarefa, realizando
diversos reconhecimentos hidrográficos da região. A expedição viajou três léguas e meia para
além do Forte de São José de Marabitanas, povoação que fazia fronteira com o Império
Espanhol, ao noroeste. Entre os principais problemas de navegar na região estava o alto
número de cachoeiras e a dificuldade de atravessá-las.
De acordo com Luiza F. G. Martins, o “autor do diário [seguiu] a prática normal de
um expedicionário em missão, anotando latitudes, correntes das águas dos rios, maiores ou
160
menos dificuldades nos percursos mais sinuosos, as escarpas dos rios [...]”. Nas serras
próximas ao rio Curicuriau chamou-lhe a atenção o costume de alguns naturais que retiravam
o visgo de determinadas árvores para a caça. No diário, a passagem infelizmente está
incompleta, mas se infere que eram utilizadas para a captura de certas aves. Para um
explorador da época, certamente muitas técnicas de subsistência eram aprendidas na prática,
através de observações como esta. Sobre a substância, o visgo, ela é descrita no dicionário de
Rafael Bluteau como “grude vegetal com o qual os caçadores untam as varas para prenderem
as aves que nela pousam [...]”. 161 Talvez se tratasse de uma borracha como a extraída
posteriormente das seringueiras. Mesmo que a passagem ofereça problemas de leitura, se
entende que o matemático estava se referindo aos galos da serra, que eram aves “do tamanho
de uma pomba grande.” 162
No final do mês de janeiro de 1781 retornaram para a vila de Barcelos. 163 Esta
diligência se difere das outras por ter como objetivo somente o reconhecimento dos arredores
da vila de Barcelos, sendo por isto de curta duração e por retornarem ao mesmo local de

159
O principal documento para analisar este trajeto é o Diário da viagem que fiz com o Capitão Joaquim José
Pereira de Barcelos, até acima do Forte de S. José de Marabitanas, e também pelo Rio Vaupes, localizado em:
Publicação de 1841. Para facilitar as citações, doravante este documento será referenciado como Diário do
entorno da vila de Barcelos.
160
MARTINS, Dissertação citada, p. 42.
161
BLUTEAU, Rafael. Dicionário da Língua Portuguesa composto pelo padre D. Rafael Bluteau,
reformado, e acrescentado por Antonio de Moraes Silva Natural do Rio de Janeiro. Verbetes de L-Z. Tomo
Segundo. Lisboa: Oficina de Simão Tadeu Ferreira, 1789, p. 530.
162
Diário do entorno da vila de Barcelos, p.08. Citação da passagem completa: “Dista o rio Curicuricuriaú deste
pouso 05 léguas, e entrando por ele têm nas suas margens umas serras, onde os índios costumam pegar com
visgo, que nas árvores deitam, os galos chamados da serra do tamanho de uma grande pomba, e muitos vistosos
[...].”
163
Diário do entorno da vila de Barcelos, p. 07-09.

45
partida. O retorno não foi descrito. Segundo Luiza F. G. Martins, o “que era conhecido já não
se tornava notável aos olhos do expedicionário e não necessitava de atenção.” 164

2.4.3- Diário da vila de Barcelos à vila Bela: 165


No começo de setembro de 1781 partiram para vila Bela, sede da capitania do Mato
Grosso. Neste período, se preocupou em analisar a questão fronteiriça, além de realizar alguns
registros do ambiente natural pelo qual viajavam. O astrônomo e a equipe chegaram à boca do
rio Madeira no dia 09 de setembro de 1781, e trataram de registrar as coordenadas
geográficas pelas quais acreditavam ser a posição extrema “do ponto intermédio da divisão
com os espanhóis: Latitude Austral 3° 22’ 45’’. Longitude 318° 52’ 53’’. Variação Nordeste
6° 44’.” 166
No dia 23 do mesmo mês foram surpreendidos com ataques de indígenas próximo ao
rio Anhangatini, envolvendo grande risco de vida:

Tendo navegado uma légua e meia [do dito rio] fomos atacados pelo
Gentio, que do mato, e sem serem vistos, despediram imensas flechas
sobre minha canoa, com tal felicidade nossa que nem um feriram,
escapando muitos pelas voltas que davam ao corpo, quando viam em
direitura a si: eu escapei de ser atravessado por uma no pescoço.167

A viagem hora fornecia extremo perigo, hora não. Na praia do Tamanduá, por
exemplo, a situação era diferente: a abundância de tartarugas na praia foi motivo de anotação.
A desova noturna dos répteis gerou espanto nos expedicionários, principalmente pela
quantidade delas. Neste fenômeno natural, a expedição se deparou com muitos espécimes
virados, de barriga para cima, por motivo desconhecido. Somente as viradas somavam um
número de 360, permitindo inferir que o número total delas era alto. Não há menção se
apanharam algumas para a alimentação. Após as desvirarem, retornaram à viagem; era dia 14
de outubro. 168

164
MARTINS, Dissertação citada, p. 42.
165
O principal documento para analisar este trajeto é a Copia do Diário que fez o mesmo Dr. Lacerda, de
Barcelos para a Capital de Mato Grosso, encontrado em: Publicação de 1841. Para facilitar as citações,
doravante esta obra será referenciada como Diário da vila de Barcelos à vila Bela.
166
Diário da vila de Barcelos à vila Bela, p.21,
167
Idem, p. 22.
168
Idem, p. 23.

46
O número de integrantes da expedição não foi apresentado nos diários. Entretanto, é
possível inferir que não se travava de um grupo pequeno, pois no dia 21 de outubro o
astrônomo descreveu possuir em torno de 30 expedicionários doentes, além da falta de
alimentos que sofriam.169 Acredita-se que dentro deste grupo os trabalhadores braçais eram
maioria. Mesmo que o corpo técnico de uma Expedição Demarcatória se diferisse de uma
Viagem Filosófica, por exemplo, certamente havia semelhanças. A passagem é válida para se
pensar as qualidades de um viajante:

A seleção do corpo técnico das Viagens Filosóficas portuguesas foi


realizada de acordo com algumas qualidades dos viajantes. José
Antônio de Sá [...] em sua instrução para as viagens empreendidas no
Reino, se refere em um capítulo às “qualidades do viajante”, que o
autor classificou em quatro tipos: qualidades do corpo, dotes da alma,
instrução política e instrução filosófica.170

Nesta parte da expedição, da vila de Barcelos à vila Bela, Lacerda e Almeida não era o
único matemático da comitiva: seu companheiro acadêmico Antônio Pires da Silva Pontes
também integrava o grupo. Além dos matemáticos, seguiram no corpo técnico

Três engenheiros militares, os capitães Pedro Alexandrino, Joaquim


José Ferreira e Ricardo Franco de Almeida Serra, jovens oficiais
formados pela Academia Militar e que já se dedicavam à topografia.
Um quarto engenheiro, o sargento-mor Euxébio Antônio de Ribeiros,
que era lente da Aula do Regimento da Artilharia no Rio de Janeiro, iria
juntar-se ao grupo.171

As inúmeras referências às cachoeiras é um traço marcante deste diário. No dia 28 de


outubro de 1781, por exemplo, chegaram à cachoeira Caldeirão do Inferno, demasiadamente
perigosa em períodos de cheia. Não tiveram grandes problemas, pois o baixo volume de água
ajudou. Dezessete outras cachoeiras foram superadas até o dia 27 de dezembro de 1781,
quando o astrônomo relatou a travessia da última delas. Ao descrever seus nomes, acabou por
sugeriu os respectivos graus de dificuldade: cachoeira do Paredão, da Misericórdia; Salto do

169
Idem, p. 25.
170
PATACA, Tese citada, p. 11.
171
CRUZ; PEREIRA. Apresentação em: PEREIRA; RIBAS. Obra citada, p. 36.

47
Girão são alguns exemplos. No dia seguinte, deu “graças por se ter acabado o trabalho das
cachoeiras [...].” 172
No final de fevereiro de 1782 atingiram vila Bela da Santíssima Trindade, onde foram
recebidos pelo governador e capitão general da capitania do Mato Grosso Luís de
Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres. Sobre a viagem, cerca de “setenta e três dias e cerca
de trezentos e cinquenta quilômetros [foram] percorridos.” 173

2.4.4- Diário da vila Bela à vila de Cuiabá: 174


Partiram de vila Bela no final de abril de 1786. Neste momento, formavam a mesma
comitiva o capitão Ricardo Franco de Almeida Serra, Lacerda e Almeida e seu companheiro
acadêmico Silva Pontes. Navegaram pelos rios Jaúru e Paraguai, preocupando-se em
investigar as cabeceiras de tais rios, além do Tapuios, e para isto realizaram um estudo nas
cordilheiras da região do campo do Pereci.175 Mas neste percurso a situação se agravou ainda
mais. Para Luiza F. G. Martins, esta teria sido

a viagem mais rigorosa para os expedicionários. Terrenos lodosos,


pantanosos, sem terra firme, forçavam-os a dormir em redes atada nas
árvores, a comer e a trabalhar dentro das embarcações. Quando a
caminhada era imperiosa ficavam atolados na lama, até à cintura, sem
ver onde punham os pés, feridos pelos espinhos, paus e pedras do fundo
do pântano. E, quando a navegação ficava dificultada pela falta de
vento ou pela intensidade da lama, caberia aos carregadores, escravos,
puxar as canoas com cordas, ao longo das margens ou, quando estas
não existiam, puxá-las ao mesmo tempo que tentavam andar ou nadar.
[...] 176

Os empecilhos naturais e os conflitos com os autóctones não foram as únicas


dificuldades. O desentendimento entre Lacerda e Almeida com Silva Pontes é outro ponto
problemático do trajeto. Segundo Lacerda e Almeida,

172
Diário da vila de Barcelos à vila Bela, p. 26.
173
MARTINS, Dissertação citada, p. 42.
174
O principal documento para analisar este trajeto é a Copia de um Diário que escreveu o Dr. Francisco José de
Lacerda e Almeida, Astrônomo de Sua Majestade na Capitania de Mato Grosso, no ano de 1786, por ordem do
Ilustríssimo e Excelentíssimo General dela Luiz de Albuquerque de Melo Pereira e Cacêres, desde Vila Bela,
pelos Rios Jaúru e Paraguai, até onde constar do mesmo Diário, [1786], encontrada em: Publicação de 1841.
Para facilitar as citações, doravante este diário será referenciado como Diário da vila Bela à vila de Cuiabá.
175
Diário da vila Bela à vila de Cuiabá, p. 31.
176
MARTINS, Dissertação citada, p. 45.

48
como meu companheiro e colega, o Dr. Pontes, ia distraído com suas
filosofias, gastando muita parte do dia em copiar macacos, ratos, etc.
deixava por este motivo passar em claro muitos rumos, dando ao rio
curso diferente do que na realidade tinha, resolvi-me desde este dia a
configurá-lo diariamente.177

No diário, a crítica ao companheiro e colega se limita a isto. Entretanto, em uma carta


escrita por Lacerda e Almeida para Martinho de Melo e Castro, de 24 de setembro de 1796, o
incômodo se transforma em denúncia. A passagem abaixo é do historiador Kenneth Maxwell:

Em 1786, Antônio Pires da Silva Pontes foi denunciado a Martinho de


Melo e Castro, secretário de Estado para os domínios coloniais, por
seus discursos rebeldes, em Mato Grosso. Pontes havia afirmado que
sua terra natal, Minas Gerais, tornar-se-ia "a cabeça de um grande
reino”. 178

O cansaço ou a disputa profissional poderia contemplar uma resposta sobre esta


querela. Entretanto, segundo Cruz; Pereira “melhor seria pensar que, cedo, esse jovem doutor
manifestara ser arguto observador e praticante do denuncismo que graçava entre servidores
régios.” E complementam: “aproveitava-se disso para apresentar-se como súdito obediente e
fiel, na tentativa de elevar-se diante dos olhos do ministro.” 179 A delação se referia ao temido
crime de Lesa Majestade. Assim, a situação é curiosa por no mínimo dois motivos. O
primeiro se refere à relação ambígua entre os dois matemáticos. Por exemplo: passados alguns
anos, Lacerda e Almeida descreveu novamente que considerava Pontes Leme como seu
“parente, camarada e amigo”.180 Com isto, fica difícil compreender o porquê da delação. O
outro motivo é que, mesmo sendo uma denúncia de Lesa Majestade, Silva Pontes não foi
retaliado por isto. O que se sabe é que Pontes Leme recebeu títulos semelhantes aos de
Lacerda e Almeida, quando retornaram para Lisboa após esta expedição.
Atingiram a vila de Cuiabá no dia 1° de setembro de 1786. No vilarejo, elaboraram
uma planta da vila, e foram muito bem recebidos por alguns moradores. Integrava a recepção
o amigo e patrício Juiz de Fora Diogo de Toledo Lara Ordonhes. A posição social do anfitrião
sugere, em partes, o grau de importância da expedição. Antes de finalizar o diário, observou

177
Idem, p. 33.
178
MAXWELL, Obra citada, p. 159. Nota do autor: “De José de Lacerda e Almeida para Martinho de Melo e
Castro, 24 de setembro de 1796, Mato Grosso, maço 12. Agradeço a David Davidson, da Universidade de
Cornell, por ter chamado minha atenção para essa importante carta.”
179
CRUZ; PEREIRA, Apresentação citada, em: PEREIRA; RIBAS, Obra citada, p. 39.
180
Diário de Moçambique a Tete, p. 521.

49
algumas características da vila, como a de estar ela muito mal arrumada, além da abundância
de carne e de peixe.181 Lá permaneceram dois anos.

2.4.5- Diário da vila de Cuiabá à vila de Santos. 182


Sobre este diário, é curioso notar um perfil diferente dos outros já apresentados. Não
coincidentemente, esta foi a versão remetida pelo próprio matemático à Academia Real das
Ciências, que resultou no título de sócio de tal instituição. 183 Nesta versão, o matemático
detalhou aspectos ambientais ao longo de todo o texto, em quantidade e qualidade maior que
nas anteriores. Lacerda e Almeida escreveu sobre as possibilidades de se extrair pedras
preciosas, sobre aspectos da navegação da região e outros assuntos. No dia 21 de setembro de
1788, por exemplo, explicou um pouco da técnica dos índios para afastar os mosquitos
chamados Caraponás, e para isso “pequenos fogos [eram] ateados em matéria, que [faziam]
muito fumo”. Determinados assuntos, como este, interessavam mais aos futuros exploradores
da região, que poderiam ler suas anotações, do que à própria Coroa portuguesa. Ou para além
disto, no mesmo dia, contou sobre a caça às onças na região do rio Paraguai:

Na margem ocidental deste mesmo rio [Paraguai] está fundada uma


fazenda de gado vacum pertencente à Fazenda Real, cujo administrador
ao tempo desta minha passagem tem morto cento e trinta e tantas
Onças, e de cujas garras têm por vezes felizmente escapado; e segundo
se explica, deve a vida a um escravo, que no bote que lhe [deu] a onça
já depois de ferido, a atravessou com um (ilegível). A esta cassada tão
arriscada o incita não só o zelo da Real Fazenda, e utilidade que das
suas peles tira depois de curtidas, como a sua natural inclinação, que o
obriga a ter uma multidão de cães onceiros quase todos bem
maltratados das unhas das Onças, e comprados pela maior parte cada
um por quatro e cinco moedas às pessoas que de Albuquerque e [de]
Coimbra os trazem, e onde há os da melhor raça.184

181
Diário da vila Bela à vila de Cuiabá, p. 43.
182
O diário mais confiável para o estudo deste trajeto é o Diário da Viagem de Vila Bela Capital da Capitania de
Mato Grosso até Vila e Praça de Santos na Capitania de São Paulo. 13 de setembro de 1788 a 13 de maio de
1790. Originais da Academia de Ciências de Lisboa. Transcrição: CEDOPE. 2004. Entretanto, isto não impede a
consulta/ comparação com as outras versões que a seguir serão apresentadas. Sobre vila Bela, pouco é abordado
no diário, por isso será considerada aqui a partida da vila de Cuiabá. De qualquer forma, e para facilitar as
citações, doravante este diário (versão do CEDOPE) será referenciado como Diário da vila de Cuiabá à vila de
Santos.
183
HOLANDA, Obra citada, p. 11.
184
Diário da Viagem de Vila Bela Capital da Capitania de Mato Grosso até Vila e Praça de Santos na Capitania
de São Paulo, p. 03.

50
O trecho é cativante por fornecer informações a respeito da interação socioambiental
entre um administrador, um escravo, as onças, os cães e entre os vendedores destes. O curioso
é que este pavor das garras das onças é, no mesmo diário, lembrado outras vezes. Com
assombro semelhante, são descritas as piranhas, as arraias, os dourados, entre outros seres.
Além disto, informou sobre algumas frutas, como a Mangaba. Por conter muitas informações
neste sentido, como também sobre as moléstias, a alimentação, entre outras, a investigação
através da História Ambiental com este documento forneceria observações muito
produtivas.185
No dia 24 de novembro de 1788 se deparou com um chapadão que o entusiasmou
profundamente. No local havia colinas e rios, e a felicidade de se locomover com facilidade
na região demonstrou que isto não ocorria durante anos. Também elogiou o ar temperado,
“puro e alegre que aquele terreno todo” possuía, e ousou afirmar que não tinha visto nada
igual desde que havia saído de Portugal. Segundo o matemático, renasceu nele “toda uma
alegria, que [poderia] causar um país aprazível, e que tinha perdido vivendo oito anos em um
sertão [...] cheio de matos altíssimos, ásperos, e de algum campo pela maior parte inundado e
pestífero.” Provavelmente não foi somente a questão ambiental que o agradou: estava
próximo de sua terra natal, a cidade de São Paulo, e isto pode ter influenciado positivamente
em suas emoções.
Outra passagem curiosa se refere ao rio Tiete. Segundo ele, “todo este rio Tiete tem
muita abundância de cobras que não são venenosas, mas monstruosas em grossura e
comprimento [...].” 186 Mesmo que certos trechos do atual rio Tietê ainda estejam limpos,
dificilmente a oferta de tais répteis tenha se mantido alta. Assim, a observação pode informar
aspectos da degradação ambiental a partir do final do XVIII, na região. Sobre a vila de Santos,
também saltou aos olhos a descrição sobre sua situação natural no final do século XVIII: “[...]
cheguei à vila e Praça de Santos, fundada na margem meridional de uma espaçosa e limpa
Bahia [...].” 187 Como dito anteriormente, é um documento com muitas passagens ambientais,
sugestivas de diversificadas interpretações historiográficas.

185
A História Ambiental é a interação entre a História Social e a História Natural; ela é a vertente historiográfica
que investiga esta associação. Ela introduz os grupos humanos no ambiente natural, e/ ou fornece “às forças da
natureza um estatuto de agente condicionador ou modificador da cultura.” Para o tema, consultar:
DRUMMOND, José Augusto. A História Ambiental. Em: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol.4, n° 8. 1997.
Também, na mesma publicação: WORSTER, Donald. Para fazer História Ambiental.
186
Idem, p. 24. Trecho interessante principalmente no sentido de comparar as condições ambientais entre o
passado e o presente.
187
Idem, p. 32. Itálico proposital.

51
No final deste diário ainda se encontram as seguintes tabelas, com dados
complementares de seus escritos, e assinadas por ele. Serão inseridas como anexo no final
desta monografia. Seguem em lista abaixo:

1- Longitudes, latitudes e variações da Bússola, dos lugares abaixo


declarados, dos quais se faz menção neste diário, supondo a Ilha do Ferro
20’ 30’ para o ocidente de Paris. [sem data].

2- Número de léguas de caminho de terra e de cada um rio que naveguei. [sem


data].

3- Número das cachoeiras de cada um dos rios. [sem data].

Por meio destes documentos somos informados que, partindo de vila Bela, o
matemático levou 648 léguas e meia para chegar à cidade de São Paulo, passando por rios
como o Porrudos, o Pardo, o Grande e o Tietê. O matemático contabilizou os caminhos de
terra conjuntamente percorridos. Por exemplo: do rio Tietê à cidade de São Paulo foram
percorridos vinte e três léguas e meia. O número de cachoeiras superadas nestes dez anos
também não foi pequeno: somente nos rios Cuxim, Pardo e Tietê, Lacerda e Almeida relatou
a presença de 112 delas. Informou, ademais, as longitudes, latitudes e as variações da bússola
em dezesseis localidades. A título de curiosidade, os extremos atingidos pela expedição
foram:

 De longitude: a Barra do rio Guaporé (312. ° 58. ’ 30’’) e a Barra Grande da vila de
Santos (331. ° 40. ’ 00’’).
 De latitude: a Barra do rio Guaporé (11. ° 58. ’ 30’’) e vila Bela (25. ° 00. ’ 08’’).

52
III- [Capítulo 03]: Os diários de Lacerda e Almeida em África (1797-1798):

O primeiro, o Diário de Moçambique a Tete, foi escrito entre os dias 30 de outubro de


1797 ao dia 24 de janeiro de 1798, ao percorrer Moçambique, Quelimane, Sena e Tete.
Contém pouco mais de 20 folhas manuscritas. O segundo, o Diário de Tete ao Cazembe,
descreve o itinerário da expedição entre 10 de março de 1798 a 03 de outubro do mesmo ano.
O manuscrito contém pouco mais de 33 folhas, e não possui um desfecho. A doença do
governador, seguida de sua morte, não permitiu que mais informações fossem acrescentadas.
Para o estudo desta documentação, o capítulo está dividido de tal forma que, para trabalhar
cada um dos diários, abordar-se-á o histórico dos manuscritos e das publicações, como
também o conteúdo de seus diários.

3.1- Diário de Moçambique a Tete: histórico documental/ publicações: 188


Atendendo às ordens régias do dia 12 de março de 1797, 189 Lacerda e Almeida
remeteu para o secretário D. Rodrigo de Souza Coutinho um ofício com data de 21 de março
de 1798, junto do diário da viagem de Moçambique para a vila de Tete e de um mapa. 190
Dificilmente se tratavam dos rascunhos originais: é mais provável que fossem cópias melhor
acabadas feitas pelo próprio governador. Sobre esta remessa, Eugénia Rodrigues descreveu
alguns procedimentos. Segundo ela, “o mapa estava lacrado, tal como decerto estaria fechado
o saco de cartas em que o Diário foi enviado”. 191 Talvez fosse esta uma conduta que estivesse
ligada às querelas entre os governadores, pois dessa forma o matemático ocultava do
governador Meneses da Costa os resultados políticos/ científicos das viagens até então
obtidos.192

188
LACERDA E ALMEIDA, Francisco José de. Diário da Viagem de Moçambique para os Rios de Sena feito
pelo Governador dos mesmos Rios o Doutor Francisco José de Lacerda e Almeida. [1797]. Em: PEREIRA;
RIBAS, Obra citada, p. 507-545. Documento nesta monografia referenciada como Diário de Moçambique a
Tete.
189
Rascunho de Carta Régia a Francisco Guedes de Carvalho e Meneses da Costa, sobre diversas tarefas de
governo e sobre o plano de travessia da África a ser empreendida pelo Francisco José de Lacerda e Almeida.
Transcrição em: PEREIRA; RIBAS, Obra citada, p. 185-186.
190
Ofício do governador dos Rios de Sena, Francisco José de Lacerda e Almeida, ao Secretário de Estado dos
Negócios da Marinha e Ultramar, D. Rodrigo de Souza Coutinho, remetendo o seu Diário de Viagem da vila de
Moçambique a vila de Tete. Transcrição em: PEREIRA; RIBAS, Obra citada, p. 551. Uma cópia da imagem do
original deste manuscrito (não transcrita) se encontra em: MARTINS, Dissertação citada, Anexos, entre as
páginas 31 e 32. A saber, o documento utilizado, tanto para a transcrição em PEREIRA/ RIBAS como para a
imagem em MARTINS, foi exatamente o mesmo. Este em: BNRJ, Seção de Manuscritos, cota I: 28, 28, 08.
191
RODRIGUES, Introdução citada. Em: PEREIRA; RIBAS, Obra citada, p. 103. Citação da autora: Carta do
Governador-geral Francisco G.C. Meneses da Costa para o Secretário de Estado D. Rodrigo de Sousa Coutinho,
7 de novembro de 1798, AHU, Caixa 81, Documento 95.
192
RODRIGUES, Introdução citada. Em: PEREIRA; RIBAS, Obra citada, p. 103.

53
No final de outubro de 1799 o secretário Sousa Coutinho escrevia para Lacerda e
Almeida uma carta anunciando o recebimento dos documentos. 193 Como não estava ciente da
morte do matemático, ocorrida em outubro de 1798, o diário e o mapa foram honrosamente
elogiados na correspondência. Se estivesse informado do falecimento do governador,
certamente agiria de outra forma. Segundo Sousa Coutinho, o príncipe regente recebeu os
documentos com muito prazer e grande satisfação, e os enviou à Sociedade Real Marítima
para que cópias fossem elaboradas. Através desta instituição, das informações recebidas e das
ainda por vir, esperava-se que as Cartas Topográficas do interior africano utilizadas
costumeiramente pelo Império Português fossem aperfeiçoadas. 194 Além disto, esperava-se
receber outras notícias do explorador quando este atingisse São Paulo de Luanda, entre
fevereiro e março de 1800, o que tragicamente não ocorre.
Pouco tempo após o envio dos documentos à Sociedade Real Marítima, o secretário
Manuel Travassos da Costa Araújo escrevia a Sousa Coutinho informando que uma cópia do
diário já havia sido realizada, e que o original estava sendo devolvido ao remetente. 195
Segundo Manuel T. da Costa Araújo, a cópia foi depositada em tal Sociedade, cumprindo as
ordens do próprio Sousa Coutinho. Após esta operação, os originais provavelmente
retornaram à Secretaria do Governo, e nesta instituição devem ter permanecido até a ida de
Sousa Coutinho para o Brasil no ano de 1807. Na Secretaria, a documentação do matemático
estava temporariamente assegurada, e poderia servir de subsídio para a investigação de outras
diligências semelhantes caso fosse necessário. 196
No malote enviado por Lacerda e Almeida para Sousa Coutinho, contendo o ofício, o
diário e o mapa, certamente estavam presentes também outros documentos em anexo. Estes

193
Cópia de Carta de D. Rodrigo de Sousa Coutinho a Lacerda e Almeida. Comunica ter levado à presença real
ofícios do governador dos Rios de Sena, com o Diário da Viagem de Moçambique para os Rios de Sena e o
mapa correspondente. Relata o bom acolhimento que tiveram esses junto ao príncipe regente. Transcrição em:
PEREIRA; RIBAS, Obra citada, p. 254.
194
Idem, Ibidem.
195
Ofício de Manuel Travassos da Costa Araújo dizendo que uma cópia do diário foi depositada na Sociedade
Real Marítima, e os originais remetidos ao destinatário. Transcrição em: PEREIRA; RIBAS, Obra citada, p. 551-
552. Este ofício é de novembro de 1799.
196
Em uma passagem da Cópia de fragmento do registro da Carta de Rodrigo de Sousa Coutinho a Antônio
Lemos Pereira de Lacerda, incumbindo-o de dar continuidade à tentativa de travessia da África feita por Lacerda
e Almeida, as seguintes informações são encontradas: “[E quando] entrareis nesta importante empresa tirareis
proveito das [noções] que o vosso antecessor havia já alcançado, e que hão de [existir] na Secretaria do
Governo, servindo-vos de delas para mais facilmente, e em menos tempo, adiantareis as vossas diligências [...].
Na transcrição consultada, no lugar da palavra noções, se encontra a de nações. Isto mudaria todo o sentido da
leitura. Entretanto, o contexto permite inferir que a transcrição está equivocada, ou até mesmo um erro de cópia
na época pode ter ocorrido. Transcrição em: PEREIRA; RIBAS, Obra citada, p.442. Documento 111. Segundo
os autores: Cota original em: AHU, Moçambique, Códice 558, verso da folha 79 e frente da 80.

54
foram escritos poucos meses anteriores ao envio, datados de janeiro de 1798/ vila de Sena. No
diário eles são tratados como Cópia do Termo A e Cópia do Termo B. Eles são:

1- Cópia de Ata de Reunião em que o governador dos Rios de Sena Lacerda e Almeida e
os moradores da vila de Sena receberam uma embaixada do Rei Macombe Sarua. O
enviado do Rei pede absolvição para João Manuel Pereira, fugitivo de prisão onde
esteve encarcerado por ter assassinado um negro. [05 de janeiro de 1798].197

2- Pedido de absolvição de João Manuel Pereira, feito pelo Rei Macombe Sarua. [09 de
janeiro de 1798].198

Ambos os documentos tratam da morte de um negro, atribuída ao morador da vila de


Sena João Manuel Pereira, por ordem do rei Macombe Sarua. O primeiro documento expõe o
encontro de moradores convocados pelo governador Lacerda e Almeida para receber um
embaixador de Sarua. O enviado do rei solicitava a absolvição oficial do Estado português ao
criminoso, e para isto trazia marfim e ouro. O documento foi escrito pelo escrivão e tabelião
do judicial Manuel da Silva Gonçalves. Já o segundo documento é a resposta. Mesmo
considerando as diferentes instâncias de poder judicial, a assembléia decidiu pelo livramento
do réu, tendo como argumento principal a boa relação do reino de Sarua para com os
portugueses. 199.
É bem provável que outros documentos pudessem também compor o malote. No
diário de Lacerda e Almeida, por exemplo, há a menção de um Termo C, entretanto o
200
documento não foi encontrado na bibliografia consultada. Tampouco foi encontrado o
mapa que seguiu em anexo ao diário. Segundo Gago Coutinho, “este mapa, lamentavelmente,
não se sabe onde está. Ele seria um interessantíssimo desenho representando, com a exatidão
que se nota nas cartas brasileiras do Dr. Lacerda, o seu itinerário [...].” 201
-

197
Transcrição em: PEREIRA; RIBAS, Obra citada, p.546-548. Documento 159. Segundo os autores, cota
original em: BNRJ, Seção de Manuscritos, I-28-28-08.
198
Transcrição em: PEREIRA; RIBAS, Obra citada, p.549-550. Documento 160. Segundo os autores, cota
original em: BNRJ, Seção de Manuscritos, I-28-28-08.
199
Termo A e Termo B, respectivamente: Transcrição em: PEREIRA; RIBAS, Obra citada, p.546-548. Também:
PEREIRA; RIBAS, Obra citada, p.549-550. De uma forma geral, os documentos são interessantes para o estudo
da relação diplomática e judicial entre os portugueses e os africanos.
200
Diário de Moçambique a Tete, p. 532.
201
COUTINHO, Gago. Travessia da África pelo Dr. Lacerda e Almeida. Nota explicativa pelo Almirante
Gago Coutinho. Boletim da Agência Geral das Colônias. Ano 02, n° 15, 1926, p.07.

55
A primeira publicação deste diário data de 1889, por meio da Imprensa Nacional. A
instituição lisboeta, na época, publicou trabalhos de variados gêneros, através de suas oficinas
de tipografia, de litografia e de cromolitografia.202 O Diário de Moçambique a Tete não foi
escolhido por acaso: faziam parte destas publicações “exemplares de obras saídas da
Impressão Régia e da Régia Oficina Tipográfica, desde sua criação até os fins do século
203
XVIII.” Certamente impresso pela oficina tipográfica, o diário integrou a coleção
Documentos para a História das Colônias Portuguesas, sendo um folheto de 31 páginas. 204
De uma maneira geral, a produção do conhecimento na época era marcada por um
peso colonial forte. Na historiografia e nos estudos relacionados, a política e a história
colonial estreitaram-se, justificando o interesse português na publicação de uma série de
documentos relacionados a seu passado. É provável, inclusive, que as publicações da época
tenham sido um posicionamento oficial para melhor assegurar suas colônias, visto que os
documentos em questão eram em grande parte referentes a África. 205
De qualquer forma, é curioso como este documento somente veio a público 45 anos
após a publicação do segundo diário do matemático em África,206 impresso pela Associação
Marítima e Colonial em 1844 e 1845.207 Passado um período ainda mais longo, a segunda
edição do Diário de Moçambique a Tete ocorreu apenas em 1936, com o livro de Manuel
Múrias. 208 Assim como a obra de M. Múrias, a famosa publicação de Sérgio Buarque de
Holanda também reuniu os dois diários em uma mesma obra, entretanto seu destaque aqui
foram as fontes para a transcrição. Segundo Sérgio B. de Holanda, preferiram-se

como base do texto impresso neste volume não as versões portuguesas


ultimamente republicadas em Lisboa pela Agência Geral das Colônias
[...], mas os originais manuscritos existentes na Biblioteca Nacional do
Rio de Janeiro, que permitem corrigir aquelas versões em vários pontos.

202
RIBEIRO, José Vitorino. A Imprensa Nacional de Lisboa. 1768-1912. Imprensa Nacional de Lisboa, 1912,
p. 138-141.
203
Idem, p. 139.
204
HOLANDA, Obra citada, p. 14.
205
ALEXANDRE, Valentim. Origens do colonialismo português moderno (1822-1891). Lisboa: Editora Sá da
Costa, 1979, p. 05.
206
O documento em questão é o Diário de Tete ao Cazembe, que será tratado adiante.
207
Anais Marítimos e Coloniais. Associação Marítima e Colonial: Lisboa, 4° e 5° série, parte não oficial, 1844
e 1845.
208
MÚRIAS, Manuel. (Ed.). Travessia da África pelo Dr. Lacerda e Almeida. Lisboa: Agência Geral das
Colônias, 1936. Nesta obra foram publicados, pela primeira vez, os mapas que estão em anexo nesta monografia.

56
Esses manuscritos trazem, respectivamente, as seguintes indicações de
catálogo: I-28-28-08 e I-28-29-13. 209

Esta numeração é confirmada através da obra de Pereira; Ribas, aonde também são
210
encontradas transcrições completas por meio destes manuscritos. Gago Coutinho foi
informado, na época em que pesquisava sobre o assunto, que os manuscritos entraram na
BNRJ como “espólio da biblioteca de Francisco António Martins, que foi conservador da
Biblioteca Fluminense”. 211 Neste sentido, é provável que sejam eles as versões (originais/
primárias) trazidas por D. Rodrigo de Sousa Coutinho quando este veio para o Brasil, fugido
de Napoleão Bonaparte e junto da família real. Segundo Luiza F. G. Martins, os manuscritos
que

se encontram no Brasil resultam da medida tomada por D. Rodrigo de


Sousa Coutinho, que ordenou o envio para o Rio de Janeiro de
documentos considerados mais importantes política, militar e
cientificamente, esquivando-se das mãos dos oficiais franceses, quando
estes preparavam a ocupação do território português.212

3.2- Diário de Moçambique a Tete: leitura interna. 213

Canto
Verdades por mim vistas, e observadas:
Oxalá foram fábulas sonhadas.

Lacerda e Almeida inicia o Diário de Moçambique a Tete com este cabeçalho. Talvez
estivesse se recordando dos inúmeros obstáculos vivenciados pela expedição ao navegar pela
região, ou se referia de alguma forma às divergências religiosas e morais que o incomodaram
ao longo da travessia. Entretanto, é interessante observar que o documento não se limita a
problemas. As descrições nele contidas relativas ao interior natural africano apresentam, em

209
HOLANDA, Obra citada, p. 266.
210
A obra de Pereira/ Ribas também é generosa por oferecer centenas de documentos transcritos referentes à
vida política e social de Lacerda e Almeida e, para isto, foram vários os arquivos consultados para os trabalhos
de transcrição. Sobre a confirmação da numeração catalográfica dos manuscritos, ver páginas 507 e 577.
211
COUTINHO, Obra citada, p. 07.
212
MARTINS, Dissertação citada, p. 11.
213
LACERDA E ALMEIDA. Diário da Viagem de Moçambique para os Rios de Sena feito pelo Governador
dos mesmos Rios o Doutor Francisco José de Lacerda e Almeida. [1797]. Em: PEREIRA; RIBAS, Obra citada,
p. 507-545. Observação: o documento nesta monografia será referenciado como Diário de Moçambique a Tete.

57
alguma medida, certo entusiasmo por parte do matemático. É o caso, por exemplo, de sua
estadia nos arredores de Quelimane. Segundo ele, a partir desta vila nasciam “a abundância e
a frescura das relvas para [o] sustento do gado vacum: em Moçambique tudo estava torrado, e
aqui tudo está verde [...]”.214
Ao longo do diário é descrito o trajeto realizado entre o dia 30 de outubro de 1797 ao
dia 24 de janeiro de 1798. O itinerário principal percorreu Moçambique, Quelimane, Sena e
Tete. Nele, pouco é descrito sobre a vila de Moçambique, pois o governador reservou uma
Memória para tratar desta vila com mais dedicação.215 A navegação de Moçambique para a
vila de Quelimane foi rapidamente mencionada, entretanto um conjunto de documentos
adicionais, com uma série de outras informações, complementa esta passagem. 216 Em
Quelimane a expedição permaneceu por aproximadamente um mês. A vila possuía,
basicamente, uma economia comercial, além da grande circulação de africanos, portugueses e
indo-portugueses.217 Neste meio tempo observou diversas questões ambientais, com atenção
principalmente às questões do comércio, da subsistência e das enfermidades. Neste sentido, se
referiu à sarna, ao carrapato, ao calor, à umidade; ao arroz, ao milho, às frutas; ao trigo, aos
azeites. Os rios de maneira alguma eram somente dedicados ao transporte. Sobre a pesca, ele
destacou que

o mar abunda de bom peixe, camarões e caranguejos; e os campos, que


são vastíssimos, de excelentes aves e quadrúpedes. Um bom pescador e
outro caçador sustentam uma numerosa família de carne e peixe
apanhados (para assim dizer) ao pé da porta.218

214
Diário de Moçambique a Tete, p. 509.
215
Ver: Breve Memória das observações, e notícias que adquiri em Moçambique no ano de 1797. Transcrição
em: PEREIRA; RIBAS, Obra citada, p. 495-507.
216
Para isto, consultar: Requerimento de Lacerda e Almeida referente às condições de navegação de
Moçambique para Quelimane, no qual pede atestações por navegadores experimentados, p. 236-237. Atestação
de Francisco de Paula, Capitão Tenente, a respeito das navegações de Moçambique para Quelimane, p. 237-238.
Cópia da Atestação de João Alves Pereira, Capitão Tenente, a respeito das condições de navegação de
Moçambique para Quelimane, p. 238-239. Cópia da atestação de Joaquim Geraldes Rosa, Tenente do Mar, a
respeito das condições de navegação de Moçambique para Quelimane, p. 239-240. Cópia da Atestação de João
da Luz Pereira, Tenente da Marinha, a respeito das condições de navegação de Moçambique para Quelimane, p.
240-241. Cópia da atestação de José Gomes Torres, piloto, a respeito das condições de navegação de
Moçambique para Quelimane, p. 241-242. Em: Pereira; Ribas, Obra citada.
217
Consultar: Moçambique. Por: Luis Frederico Dias Antunes e Manuel Lobato. Em: LOPES, Maria de Jesus
dos Mártires (Coord.). O Império Oriental (1660-1820). Col. Nova História da Expansão Portuguesa. Volume
V. Tomo I. Lisboa: Estampa, 2006, p. 300-301
218
Diário de Moçambique a Tete, p. 511.

58
Ali residiram até o dia 1° de dezembro, quando partiram em direção à vila de Sena.
Neste trecho da expedição, a navegação foi a principal condição de transporte. As bacias do
Zambeze e do Zaire já eram, em parte, conhecidas pelos exploradores portugueses, mas para
navegarem com mais segurança necessitavam consultar os práticos africanos. Isto ocorria
frequentemente. Embora existisse o interesse dos lusitanos pela interiorização via
hidrográfica, em África o funcionamento não necessariamente ocorria desta forma. Segundo
Maria E. M. Santos, mesmo com

[...] o aproveitamento da experiência africana, complementada com


alguns elementos da civilização européia (armas de fogo, disciplina), o
avanço para o interior fez-se de preferência por terra. As redes
comerciais visavam o contato com as terras e as populações, não
[visavam] o esclarecimento da hidrografia. Pouca atenção concediam
aos cursos de água, uma vez que não eram uma via de acesso:
constituíam muito mais um obstáculo. [...] 219

Enquanto navegavam, se recordou dos tempos da exploração por rios na América


Portuguesa.

A beleza do dia, que sucedeu ao tenebroso de ontem, a largura do Rio,


que corre represado entre margens de quatro, e cinco braças de altura, a
inumerável quantidade de Patos, Marrecas, Gansos, Garças, e outras
aves que pela variedade e beleza das cores das suas plumas, alegravam
os olhos, e estavam aos bandos sobre as ilhas, me fizeram recordar com
saudades de outros semelhantes dias, que passei nos vastíssimos sertões
do Brasil [...]. 220

O temor às doenças africanas surgiu já no terceiro dia da viagem, reclamando o


governador pela “falta de um médico, principalmente [de] um espiritual”. 221 Mesmo que os
exploradores estivessem “devidamente preparados, equipados e defendidos pelo quinino
contra as febres endêmicas [das] regiões tropicais”, 222 a imunidade dos portugueses era frágil
diante deste quadro de enfermidades. Ademais, para a África Oriental Portuguesa viajaram
poucos especialistas europeus interessados na cura, e isto agravou os socorros a seus
conterrâneos. Os africanos especialistas em cura sem dúvida existiam, como é o caso dos

219
SANTOS, O estudo da hidrografia, p. 06.
220
Diário de Moçambique a Tete, p. 518.
221
Idem, p. 521.
222
SANTOS, O estudo da hidrografia, p.05.

59
herbalistas Gangas, 223 entretanto duas questões limitavam seus acessos: viajavam neste
momento por embarcações, restringindo seus acessos a especialistas em terra, além de a
medicina africana ser demasiadamente mal vista pelos europeus. 224
No dia 28 do mesmo mês chegaram à vila de Sena, um local habitado
majoritariamente por mestiços afro-portugueses. 225 Para o matemático, Sena era uma vila “de
levantados, desobedientes, de mal criados, de inimigos recíprocos do Estado e de Deus, de
supersticiosos no último grau de perfeição, de invejosos, de ladrões, enfim: um distrito onde
se acham todos os vícios e nenhuma virtude.” 226 Região de muitos Prazos, aproveitou para
questionar suas distribuições sob a tutela da Coroa, e as formas de enriquecimento
consideradas ilícitas que ocorriam frequentemente em Sena.
Os prazos foram concessões de terras efetivadas juridicamente pela Coroa, e que na
África Oriental Portuguesa a ocorrência deles foi elevado. O emprazamento das terras da
Zambézia 227 objetivava, sobretudo, o povoamento da região com reinóis, mas obteve sucesso
parcial. Em resposta a isto, o que ocorreu foi uma miscigenação intensa, entre africanos,
portugueses e indianos. 228
Partiu de Sena no dia 08 de janeiro de 1798, após determinar a posição da vila e de dar
providências referentes a seu cargo. 229 Como navegavam pelo rio Zambeze, descreveu
características próprias deste trecho, como o sustento dos marinheiros, as cheias, as
povoações próximas, os diferentes perigos e outras particularidades do rio. Provavelmente
durante este período passou-lhe à cabeça indagações sobre a extração de ouro em tal rio, pois
era “célebre a alegada riqueza aurífera do rio Zambeze.” 230

223
Segundo Rodrigues, “Esta última designação [Ganga] derivava de n’ganga, que correspondia, na verdade, aos
herbalistas, cuja manipulação do sobrenatural era mínima.” Em: RODRIGUES. A medicina europeia e a
natureza na África Oriental. Em: CORREA; NODARI (Orgs). Migrações e Natureza, p. 97.
224
Idem, p.95-97.
225
Consultar: Moçambique, por ANTUNES; LOBATO. Em: LOPES, Obra citada, p. 300-301.
226
Idem, p. 523. É curioso observar que nesta parte do diário, no decorrer de doze páginas, o governador expôs
uma denúncia sem interrupção sobre os inúmeros problemas da vila. Seu questionamento foi, sobretudo, de
ordem moral.
227
Pelo fato de o trajeto de Lacerda e Almeida percorrer os territórios de Moçambique, Quelimane, Sena, Tete e
do Reino do Cazembe, o termo Zambézia é digno de atenção. Entretanto, para esta monografia, seu uso seria
anacrônico, além de insuficiente. Além do fato de o termo surgir em meados do XIX, o espaço geográfico
referido ao termo seria Tete, Manica e Sofala. Ver: CAPELA, José. Donas, Senhores e Escravos. Porto:
Afrontamento, 1995, p. 15-18.
228
CAPELA, Obra citada, p. 19-24.
229
Diário de Moçambique a Tete, p. 533.
230
VIEIRA, Dissertação citada, p. 39.

60
Atingiram vila de Tete no dia 23 de janeiro, tomando o governador a posse no dia
seguinte. Tete, na época, era uma cidade fortificada e circundada por um muro, aonde
231
residiam muitos mercadores indianos do Guzerate. Assim como em Sena, certo tom
pessimista também esteve presente em sua descrição referente à vila/ cidade. Sobre a fome
que havia arrasado a região nos últimos anos, foi enfatizada a situação deplorável vivenciada
pelos escravos, agravada no espaço de quatro anos. Segundo ele, “as fomes que principiaram
no ano de 1792, e [que] continuaram até 1796, assolaram o distrito. Os inumeráveis rebanhos
de vacas, ovelhas, cabras quase se extinguiram.” 232
O matemático também chamou a atenção para alguns ofícios ali realizados, como a
carpintaria, a serralheria e ourivesaria. Entretanto descreveu que os serviços oferecidos em
Tete não se aproximavam do padrão técnico português, certamente com o objetivo de
menosprezar o trabalho dos africanos. A falta de quem confeccionasse parafusos ou fechos
impedia, por exemplo, que as armas de fogo portuguesas fossem concertadas. Talvez isto
ocorresse propositalmente, para prejuízo lusitano. Difícil saber. Para além disto, fez
comparações climáticas entre Tete, Sena e Quelimane. A partir deste posicionamento, fez as
seguintes observações:

Sena e Quelimane estão na mesma proporção a respeito da salubridade


do clima. Em Tete, porém, não obstante confessarem todos que é mais
sadio do que as duas sobre ditas vilas, contudo nos meses de dezembro
a abril reinam muitas febres ordinariamente terçans dobles, e não são de
mal caráter, depois seguem as catarrais. O escorbuto ataca a quase todas
as pessoas. Desde que cheguei até agora tenho observado que poucas
pessoas, ainda das mais veteranas do país, tem escapado das ditas
febres. A falta de medicamento, e de quem cure [...] contribui para os
homens e as mulheres serem obstruídas e por isto pouco fecundas.
[...].233

As diferentes camadas sociais apresentadas no documento fornecem complexidade à


narrativa, e são tratadas, obviamente, de maneiras distintas. Aos africanos de uma maneira
geral a designação cafres é recorrente, e o viés pejorativo é percebido ao longo dos diários.
Segundo Rafael Bluteau, o termo cafre realmente era depreciativo para os portugueses:
“Cafre, [...] homem rude, bárbaro, desumano, como os moradores da cafraria”. 234 Ocorria,

231
Consultar: Moçambique. Dias Antunes e Manuel Lobato, obra citada, p. 300-301
232
Diário de Moçambique a Tete, p. 541.
233
Idem, p. 544.
234
BLUTEAU, Dicionário citado, a-k, p. 212.

61
entretanto, de os africanos serem interpretados exclusivamente por padrões e pressupostos
europeus, e com isto, obviamente, se distorciam os pressupostos culturais africanos. É o caso
do governador de Sofala Carlos José dos Reis e Gama. Em 1796, o governador escreveu,
entre outras, a passagem: “[os cafres] não tem memória alguma, nem tradição dos tempos
passados”. 235
Na tentativa de travessia de Lacerda e Almeida, uma centena de africanos estava
incluída, seja na condição de escravos ou na de contratados. A tarefa principal era o
carregamento dos utensílios da expedição, mas poderiam servir também como guias,
informantes e/ ou intérpretes. Segundo B. Heintze, “fora das zonas de influência direta
portuguesa, os carregadores eram indispensáveis ao transporte de artigos europeus para o
interior do território [...].” 236 Os carregadores poderiam ser moradores ou comerciantes da
região, e para esta relação ocorrer eram usadas miçangas e velórios como moedas de trocas.
Outra meio de troca importante era, obviamente, o marfim.
Em obras historiográficas recentes, a participação dos africanos tem sido
reconsiderada. Eugenia Rodrigues, por exemplo, descreve que as informações autóctones
foram cruciais para as autoridades portuguesas, e obscurecidas por elas neste mesmo tempo:

De fato, para descortinar as suas próprias possibilidades de chegar ao


Atlântico e projetar essa viagem, Lacerda e Almeida interrogou
longamente os membros da caravana chegada a Tete. Os registros
desses inquéritos foram enviados a Lisboa e ao longo do diário que
escreveu Lacerda e Almeida fez bastas referências às notícias
recolhidas antes da partida junto desses informantes africanos. Desse
modo, eles não foram exatamente informantes silenciosos, como outros
cujo papel foi obscurecido pelos administradores coloniais nos seus
relatórios. Embora representados como atores marginais, estes africanos
adquiririam visibilidade em todos os produtos narrativos das viagens de
ida e regresso da expedição de Lacerda e Almeida.237

Deste modo, mesmo sem reconhecer a importância africana para a expedição, a


presença dos autóctones na documentação de Lacerda e Almeida é constante. O matemático

235
Reposta das questões sobre os cafres: ou notícias etnográficas sobre Sofala do fim do século XVIII.
Introdução e Notas de Gerhard Liesegang. Junta de Investigação do Ultramar. Centro de estudos de antropologia
cultural. Lisboa, 1966, p. 20.
236
HEINTZE, Beatrix. Pioneiros africanos: caravanas de carregadores na África Centro-Ocidental (entre 1850 e
1890). Lisboa: Caminho, 2004, p. 56.
237
RODRIGUES, Eugénia. Ciência européia e exploradores africanos: a viagem de Francisco José de Lacerda e
Almeida ao Kazembe. Em: Africana Studia. Revista Internacional de Estudos Africanos. N° 17. 2° Semestre de
2011, p. 86.

62
concluiu o diário relatando que lhe “parecia muito necessário que a Senhora Majestade se
servisse mandar para estes Rios algum ministro de vara branca, contanto que fosse homem
que respeitasse as leis, temesse a Deus e ao Rei [...]”. 238 Assim dito, certamente Lacerda e
Almeida sugeria à Coroa para que as autoridades portuguesas instalassem suas práticas no
interior africano com maior eficiência. Para um homem ilustrado da Universidade de Coimbra
não passou despercebida a ignorância dos habitantes daquelas vilas, mesmo possuindo eles a
função de escrivães ou juízes. Para isto, escreveu: “os juízes ordinários destas vilas são
ignorantíssimos e apaixonados, e não há um só homem letrado que os encaminhe e [os]
dirija.” 239

3.3- Diário de Tete ao Cazembe: histórico documental/ publicações: 240


Em julho de 1800 o governador de Moçambique Meneses da Costa escrevia para o
secretário de Estado da Marinha e dos Domínios Ultramarinos Rodrigo de Sousa Coutinho
informando sobre o desfecho da expedição de Lacerda e Almeida. O falecimento do
matemático até então não era novidade, mas faltavam informações sobre a expedição em si.
Como os principais responsáveis pelo retorno da expedição necessitaram aguardar o inverno
de 1798 para o regresso, atingiram Moçambique somente em meados de 1800. Os
responsáveis pelo retorno da expedição de Lacerda e Almeida foram o padre Francisco João
Pinto e o tenente de milícias Pedro Nolasco de Araújo. 241 Sujeitos de boa inteligência e
confiança, não traziam exatamente os diários do matemático, mas sim seus papéis.
Ao compreender a situação, Meneses da Costa encarregou-os

[...] de fazerem os seus diários, servindo-se também de alguns


rascunhos que restaram do falecido governador, ele [eles] os não tem
podido aprontar para remeter a Vossa Excelência para levar à Real
presença de Sua Alteza Real na presente ocasião, por não ser justo fazer
demorar este navio por onde os devia dirigir.242

238
Diário de Moçambique a Tete, p. 545.
239
Idem, p. 545.
240
O título da principal transcrição deste diário utilizada nesta monografia é: O Diário da Viagem de
Moçambique para os Rios de Sena feito pelo Governador dos mesmos Rios o Doutor Francisco José de Lacerda
e Almeida. Em: PEREIRA; RIBAS, Obra citada. Doravante, este documento será referenciado como Diário de
Tete ao Cazembe.
241
Carta de Francisco Guedes de Carvalho e Menezes da Costa para D. Rodrigo de Sousa Coutinho, em que
participa algumas notícias relativas à expedição de Lacerda e Almeida. Transcrição em: VIEIRA, Dissertação
citada, Anexos, p. 120-122. Cota original, segundo a autora, em: AHU, códice 1366, folhas 95-96.
242
Idem, Ibidem.

63
Era o momento de o governador de Moçambique escrever às pressas para Sousa
Coutinho informando-o das novidades. Fazia poucos dias que o padre e o tenente de milícias
haviam chegado de viagem, e as autoridades portuguesas tinham pouco conhecimento sobre
os rumos da expedição de Lacerda e Almeida. Antes de enviar a versão final dos diários,
Meneses da Costa antecipa para o secretário informações sobre os territórios atravessados
pelo matemático. As minas de ouro, os riscos do rio Zambeze, o comércio do marfim, entre
outros assuntos, são adiantados por ele. Sobre a versão definitiva dos diários, escritas pelo
capelão e pelo tenente, o governador esperava remetê-la

em um navio da praça de Lisboa, proprietário José Antônio Pereira, que


vindo aqui arribado de Bengala se dirige a essa corte, contando sair
desta capital no mês de outubro [de 1800], e por onde tenciona também
dirigir a Vossa Excelência alguns ofícios que agora não pude aprontar,
e outros que dizem respeito a respostas que recebi no sobredito navio
Balsemão, que na sua derrota para a costa de Malabar tem tocado este
porto.243

Os diários foram enviados em novembro de 1800, juntos de um ofício assinado pelo


governador Menezes da Costa. Remetido ao secretário Souza Coutinho, o ofício informava
que não havia sido possível elaborar “uma exata e fiel cópia”, tendo em vista a caligrafia
pouco legível do matemático. Segundo ele, as instruções, o diário e os mapas de Lacerda e
Almeida, “ainda que escritos tudo em um rascunho bem pouco inteligível”, foram copiados e
estavam sendo remetidos para a Europa. 244 Menezes da Costa armazenava os originais como
medida cautelosa para que não se arriscasse perdê-los no translado. O mesmo foi feito com os
diários do retorno do reino do Cazembe a Tete comandado pelo capelão Francisco João Pinto,
onde o padre descreveu um prolongado quadro de tensão social ocorrido após a morte do
governador.245 Após passar pelas mãos de Souza Coutinho, a prática recorrente era que as
cópias chegassem ao Príncipe Regente.

243
Idem, Ibidem.
244
2° via de Ofício do governador de Moçambique Francisco Guedes de Carvalho e Menezes da Costa ao
Secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar D. Rodrigo de Souza Coutinho, remetendo cópias das
instruções e diários e os mapas referentes à expedição de travessia da África, comandada por Francisco José de
Lacerda e Almeida, e os diários originais do retorno da expedição, sob o comando do capelão Francisco João
Pinto. Transcrição em: PEREIRA; RIBAS, Obra citada, p. 365, Documento 83. Este Ofício data de 03 de
novembro de 1800, e está localizado, segundo os autores, no AHU – Moçambique, Caixa 86, Documento 41.
245
Diário da Viagem de Retorno da Expedição de Travessia da África, do Cazembe a Tete, após a morte de F.
José de Lacerda e Almeida, sob o comando do Padre Francisco João Pinto. Em: PEREIRA; RIBAS. Obra
citada, p. 645-738.

64
É curioso notar que o governador de Moçambique alerta Souza Coutinho para a
impossibilidade da exatidão e da fidelidade das cópias. Considerando-se as querelas que havia
entre o governador Lacerda e Almeida e o governador Menezes da Costa, é questionável se o
último não influenciou para que se extraíssem/ alterassem as passagens nas quais pudessem
haver críticas ou denúncias. 246 Difícil saber. De qualquer forma, o diário “cujo texto é
conhecido resulta de uma recomposição dos apontamentos do matemático feita na secretaria
do governo de Moçambique [...].” 247
Sobre a localização atual dos rascunhos, há dúvidas. Segundo Rodrigues, “os
apontamentos manuscritos relativos à viagem entre Tete e o Kazembe ficaram guardados na
248
secretaria do governo de Moçambique e encontram-se atualmente ignorados.” Já para
Guerreiro Martins, o manuscrito original do Diário da Vila de Tete ao interior da África está
armazenado na Biblioteca da Ajuda.249 Segundo Eugénia Rodrigues, se trata do único diário
original de Lacerda e Almeida localizado em Portugal, pois todo o restante se encontraria no
Brasil, na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BNRJ). É bem provável que a autora tenha
se equivocado. No momento em que Luiza F. G. Martins informa isto, nota-se que sua
inspiração foi uma passagem imprecisa escrita pelo almirante português Gago Coutinho.
Segundo ele,

Acerca do troço da viagem desde Tete para o Noroeste, há também


muitas informações. É de supor que o diário original, que o Dr.
Lacerda ia escrevendo durante sua viagem, enquanto a saúde lhe
permitiu, existisse, pelo menos em cópia, em 1844, na livraria do Conde
de Linhares, de onde foi tirada uma nova cópia, que foi oferecida à
Associação Marítima e Colonial pelo seu presidente, Visconde de Sá da
Bandeira.250

A passagem é pouco elucidativa, pois Coutinho não deixa claro qual a procedência do
material. Mas, de qualquer forma, pode-se sugerir que os originais permaneceram durante um
tempo na secretaria do governo de Moçambique. Já esta versão do manuscrito encontrada na
Biblioteca da Ajuda é completamente desconhecida por esta pesquisa. Em nota, Guerreiro

246
Estas querelas foram uma série de atritos ocorridos entre os governadores tendo por causa desentendimentos
referentes à jurisdição. Como a Capitania dos Rios de Sena era subordinada à de Moçambique, Lacerda e
Almeida acusa Menezes da Costa, em diversos momentos, de práticas arbitrárias contra seu governo.
247
RODRIGUES, Introdução citada. Em: PEREIRA, RIBAS, Obra citada, p. 124.
248
Idem, p. 131.
249
MARTINS, Dissertação citada, p. 11.
250
COUTINHO, Obra citada, com nota explicativa, p. 07. Itálico proposital.

65
Martins afirma lá existir um manuscrito disponível para consulta, provavelmente resultado
“do leilão [em 1895, da coleção do Conde de Linhares, Lisboa] ou vindo da Associação
Marítima e Colonial.” 251
-
Os diários e os mapas elaborados pelo capelão e pelo tenente chegaram às mãos de
Sousa Coutinho em 1801.252 Da mesma maneira que fez com o Diário de Moçambique à Tete,
o secretário remeteu a versão do Diário de Tete ao Cazembe à Sociedade Real Marítima, para
que fosse copiada. 253 Com a transferência da Corte Real para o Rio de Janeiro, em 1807, uma
remessa de documentos a acompanha, e para cada um desses diários existiu uma versão
inclusa. Sérgio B. de Holanda, em Diários de Viagem, sugere o caráter primário destas fontes:

Quanto aos diários da viagem de Moçambique aos rios de Sena e da


vila de Tete ao interior da África, preferiram-se, como base do texto
impresso neste volume, não as versões portuguesas ultimamente
republicadas em Lisboa pela Agência Geral das Colônias [...] mas os
originais manuscritos existentes na Biblioteca Nacional do Rio de
Janeiro, que permitem corrigir aquelas versões em vários pontos.254

Segundo Carla da C. Vieira, durante este período Sousa Coutinho remeteria uma
versão do Diário de Tete ao Cazembe para o governador de Angola D. Miguel Antônio de
Melo, provavelmente após ser copiado pela Sociedade Real Marítima. A autora informa ainda
que Antônio de Melo prometeu destinar uma cópia para o governador de Benguela, e também
ao diretor da feira de Caçanje. 255 Infelizmente a autora é breve neste ponto, e acrescenta
apenas que as informações dos diários eram estratégicas para o planejamento de futuras
expedições de comunicação entre as duas costas. O ofício utilizado por ela, onde constaria a
circulação desta cópia, não foi encontrado por esta pesquisa. Tratar-se-ia de um ofício de 23
de março de 1802.256

251
MARTINS, Dissertação citada, p. 11. Nota 03. É interessante notar que na transcrição de tal diário nos
Textos para a História da África Austral, há uma passagem de esclarecimento logo no início que consta:
copiado do manuscrito que se acha na livraria do excelentíssimo Conde de Linhares [Rodrigo de Sousa
Coutinho] e oferecido à Associação Marítima pelo seu ex-presidente, o excelentíssimo Senhor Visconde de Sá
da bandeira.”
252
SANTOS, Viagens de Exploração, p. 200.
253
RODRIGUES, Introdução citada, Em: PEREIRA; RIBAS, Obra citada, p. 131.
254
HOLANDA, Obra citada, p. 265-266. Itálico proposital.
255
VIEIRA, Dissertação citada, Anexos, p. 50.
256
Segunda a autora, o ofício se encontra em: COIMBRA, Carlos. Ofícios para o Reino (1801-1819). 2º
volume, Luanda: Instituto de Investigação Científica de Angola, 1965.

66
Junto deste diário foi incorporada uma espécie de introdução denominada Instruções.

ou pelo go Provavelmente incluída pelo capelão e pelo tenente de milícias na versão final, em 1800, esta
vernador de introdução tem estado presente também nas transcrições. O documento certamente integrava
moçambique
os papéis do matemático: está assinado por ele e foi datado de 18 de junho de 1798. Neste
período, a expedição aguardava informações para a continuidade da travessia, e Lacerda e
Almeida provavelmente se aproveitou disto para elaborar o texto. O documento não era
apenas instrutivo: era uma ferramenta oficial pela qual o governador remetia ordens aos
expedicionários para que a expedição continuasse, com sua presença ou não.
O matemático inicia suas ordens referenciando a carta régia de 12 de março de 1797,
onde consta que
[...] sem perda de tempo [fossem realizadas] todas as tentativas
imagináveis para ver se no centro de África há montes que sirvam de
vertente ao grande rio Cuneni, que despeja suas águas no mar pela costa
ocidental da África, pouco abaixo do Cabo Negro, para ver a
possibilidade da fácil e breve comunicação com Portugal com estes
Rios de Sena, e poder-se tirar do centro da mesma África por meio do
comércio com os seus habitantes as utilidades que o terreno e a
indústria podem dar [...].257

Este era o objetivo principal da expedição, apontado no documento: comunicar o


centro da África com Portugal. Como havia a possibilidade de o governador não sobreviver às
adversidades africanas, ele mesmo elencou dezesseis procedimentos com o objetivo de serem
executados em caso de imprevistos como este. Alguns eram fundamentais. A expedição, por
exemplo, deveria manter o respeito à hierarquia, elaborar diários bem descritivos e fundar
uma povoação em bom terreno, quando atingisse o rio Aruangoa. Para o sucesso da travessia,
deveriam desconsiderar os insultos dos africanos, aplicar boa relação diplomática com o
Muata Cazembe, além de divulgar os princípios das Instruções. A principal estratégia para a
comunicação entre o interior africano com a Europa era através de rios, e para isto diversas
informações sobre a hidrografia em questão também eram requisitadas.
Entre as Instruções e o diário ocorreria, portanto, uma espécie de unificação
documental. No manuscrito da BNRJ, por exemplo, esta ligação ocorre entre o verso da folha
três e o início da folha quatro. 258 Ou seja: mesmo com características distintas, os dois textos

257
Diário de Tete ao Cazembe, p. 577.
258
Os manuscritos da BNRJ são, provavelmente, os mesmos que vieram com Sousa Coutinho em 1807 para o
Rio de Janeiro. Também são os mesmos que Sérgio Buarque de Holanda transcreveu para colocá-los em sua
obra. Na BNRJ há uma versão on-line do Diário de Tete ao Cazembe, entretanto não há do Diário de
Moçambique a Tete. Existem outros indícios para acreditar que estes manuscritos são as cópias elaboradas na

67
se tornaram um só documento. Já com outros documentos citados no diário o mesmo não
ocorre. As cópias A, B, C e D, assim denominadas por Lacerda e Almeida, não foram
incluídas no diário em questão, embora sejam fontes relevantes para o estudo de sua travessia.
Os documentos referidos se tornaram anexos, eles são: uma cópia de Ata, uma de Notícias e
duas de Depoimentos.
Ao analisar as informações no cabeçalho das transcrições destes documentos indicadas
por Pereira/ Ribas, percebe-se que o conjunto das quatro cópias parece também ter sido
transferido para um só documento/ manuscrito. Mesmo que cada cópia esteja apresentada
separadamente nestas transcrições, o número institucional de cada uma delas é igual, somente
variando de arquivo para arquivo.259 Não se sabe se isto foi feito por Lacerda e Almeida ou
por um copista, nem o momento disto. De qualquer maneira, existem três manuscritos desta
260
união de cópias: um na BNRJ, outro no IHGB e o terceiro em Portugal, no AHU. As
transcrições existentes reúnem as quatro cópias em sequência. A publicação pioneira destas
foi realizada pela Associação Marítima e Colonial, nos Anais Marítimos e Coloniais (AMC)
no ano de 1844.261 A segunda está na obra de Judice Biker de 1885 e em 1936 surgiu outra
publicação, na obra de Manuel Múrias. 262
A cópia A é a Ata do encontro do governador com os embaixadores do Rei Cazembe.
Datado de 27 de fevereiro de 1798, e escrito pelo escrivão público José Sebastião de Ataíde, o
documento informa brevemente a respeito desta reunião, realizada na própria residência do
governador. Vinte e quatro embaixadores assinaram o termo da ata, onde o grupo registrou ter
realizado amizades para futuros comércios. 263 A cópia B é um texto em que o sertanejo
Manuel Caetano Pereira descreveu algumas informações estratégicas da região. Suas Notícias
se referem, principalmente, ao Reino do Cazembe, à travessia para Angola e ao comércio do

Sociedade Real Marítima, por supervisão de Manuel Travassos da Costa Araújo. Para afirmar isto, seria
necessário uma investigação mais primorosa.
O link para a visualização do Diário de Tete ao Cazembe, assim como os mapas em anexo nesta monografia, é:
http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_cartografia/cart1095065/galeria/index.htm Importante ressaltar,
entretanto, que as páginas dos diários não estão em ordem.
259
Esta informação é baseada nas transcrições de PEREIRA; RIBAS. Documentos 165, 166, 167 e 168.
260
Idem, Ibidem. A localização dos manuscritos é: BNRJ, Seção de Manuscritos, I-28-31-47. IHGB, Lata 39,
Documento 10. AHU, Moçambique, Caixa 81, Documento 116.
261
Anais Marítimos e Coloniais (AMC), 4° série, n° 8, 1844. Páginas 297-298.
262
MÚRIAS, Obra citada, p. 383-384.
263
Cópia da Ata do encontro de Francisco José de Lacerda e Almeida com os embaixadores do Rei Cazembe, em
que foi pactuada a amizade entre os portugueses e o dito rei. Transcrição em: PEREIRA; RIBAS, Obra citada, p.
569-570.

68
264
interior africano. Foi assinado pelo matemático com a data de 22 de março de 1798.
Segundo a transcrição de Pereira/ Ribas, há um bilhete anexado no verso da primeira página
do manuscrito da BNRJ que consta: “o original desta carta pára no gabinete do Senhor D.
Rodrigo [de Sousa Coutinho]. Na versão manuscrita do AHU não se encontra bilhete
algum.265 O Depoimento de Bandásio do Cazembe é a Cópia C, aonde é descrito o caminho
da vila de Tete para o Reino do Cazmbe. A hidrografia, além dos locais por Bandásio
pernoitados, foi descrita em poucas folhas. O autor do documento é Dionísio Rebelo Curvo -
um dos embaixadores que assinaram o termo da Ata. 266 Na Cópia D é descrita a travessia
para Angola através do depoimento de um africano, e novamente a hidrografia é destacada.
Informações detalhadas das povoações e dos limites entre elas foram igualmente narrados. A
assinatura é do governador, em 19 de Março de 1798. 267
O Diário de Tete ao Cazembe possui, portanto, uma espécie de introdução e quatro
documentos em anexos. O acesso a estes é crucial para a compreensão da expedição de
Lacerda e Almeida. Correspondências das mais diversas, como Cartas, Atas, Ofícios, Ordens,
Requerimentos, Avisos, entre outros tipos, integram também a totalidade do conjunto
documental referente ao governador, porém não serão aqui diretamente abordados.

3.4- Diário de Tete ao Cazembe: leitura interna.

Dirige, domine deus meus, in conspectu tuo viam


meam, ut cognoscatur in terra viam tuam, et in
omnibus gentibus salutare tuum.268

264
Cópia das Notícias dadas por Manuel Caetano Pereira, comerciante que se entranhou pelo interior da África,
até à povoação ou cidade do Cazembe. Transcrição em: PEREIRA; RIBAS, Obra citada, p. 555-568.
265
Idem, Ibidem.
266
Cópia do Depoimento do Bandásio do Cazembe, sobre o caminho entre a vila de Tete e as terras do Rei
Cazembe. Transcrição em: PEREIRA; RIBAS, Obra citada, p. 570-573.
267
Cópia do Depoimento de um cafre Muiza sobre os caminhos para Angola. Transcrição em: PEREIRA;
RIBAS, Obra citada, p. 573-574.
268
Tradução da citação: Oriente, ó Senhor meu Deus, diante de tua face, para que possamos conhecer o teu
caminho sobre a terra, e a tua salvação entre todas as nações. Através da obra Cerimonial Monástico
Reformado da Congregação de São Bento de Portugal, de 1820, toma-se conhecimento que o início de tal
cabeçalho é uma antífona que, no caso desta Congregação, servia para dizer “quando [se] vai para a sacristia, ou
lugar onde há de paramentar-se [...].” Ver: Cerimonial Monástico Reformado da Congregação de São Bento
de Portugal. Lisboa: Imprensa Régia, 1820, p. 91. Segundo o historiador medievalista Paul Binski, se trata de
uma antífona solene, do conjunto de orações medievais intitulado Office for the Dead. Segundo o autor,
“[Dirige] is from the solemn antiphon of the first nocturn of the Office for Matins, Dirige, domine deus meus, in
conspectu tuo viam meam, that we derive the word Dirge. The Office of the Dead draws upon the type of
imagery we saw included in the Ordo defunctorum. Em: BINSKI, Paul. Medieval Death: Ritual and
Representacion. Ithaca, New York, 1996, p. 53-54.

69
Neste documento, o cabeçalho em latim retoma a uma frase religiosa medieval, mas
acrescida de uma menção particular referente à expedição. Ademais, a frase original (Dirige,
domine deus meus, in conspectu tuo viam meam) possui significado funéreo, e este acréscimo
(ut cognoscatur in terra viam tuam, et in omnibus gentibus salutare tuum) menciona
especificamente a travessia por terra e ao estranhamento do português diante das nações
africanas. Pelo fato de a passagem possuir cunho fúnebre, isto sugere que ela foi incluída após
a morte do matemático. Como dito anteriormente, a participação do padre na elaboração desta
versão do diário foi fundamental, e é bem provável que passagens como esta foram
acrescentadas pelo capelão.
Em seguida, o diário descreve a situação problemática referente ao comércio dos fatos
e capotins. 269 Mesmo que Lacerda e Almeida viajasse como um vassalo da coroa portuguesa
(ou por este motivo), a negociação com os feitores não obteve o resultado por ele esperado.
Os preços exorbitantes das mercadorias em Tete, além da má qualidade destas, incomodaram-
no profundamente. Sua reação como viajante oficial da rainha foi descrever tal situação
minuciosamente. A utilização dos fatos era fundamental para a continuidade da travessia, pois
na região percorrida o pagamento para o desbloqueio dos caminhos era prática recorrente. Por
este motivo, escreveu o matemático: “sem [os fatos] não se pode viajar entre [os] cafres”.270
O comércio e a diplomacia foram duas importantes estratégias portuguesas para
manter as relações na região. Isto os permitiu requererem com certa exclusividade o marfim, e
outras mercadorias, após os processos de negociação com as diferentes partes. Até, por que,

Escravos, marfim, ouro, cobre eram mercadorias que se julgava


abundarem no interior e que, pelas intermediações impostas por alguns
potentados africanos chegavam à costa a um custo superior ao praticado
junto dos grandes fornecedores.271

A existência de tradutores e/ou de guias era fundamental para este diálogo. Os


Línguas, como são mencionados os tradutores nos diários, assim como os guias, “atuavam
como os principais intermediários entre as sociedades locais e os estrangeiros, [e eram]

269
Os fatos eram “bens móveis, como roupas e outros.” Já capote era uma espécie de manto, que cobre os
homens do pescoço ao calcanhar, ou mais curto [...]. Disfarce, capa, véu, “embuço.” Em: BLUTEAU, Dicionário
citado, p. 601 e 231, respectivamente.
270
Diário de Tete ao Cazembe, p. 585.
271
VIEIRA, Dissertação citada, p. 62.

70
especialmente importantes em zonas de contato”. 272 O mesmo indivíduo poderia, inclusive,
congregar as diferentes funções. Através destes se conhecia melhor os costumes africanos,
além de se obterem informações específicas necessárias à expedição. Isto é explicado por
possuírem eles, além do interesse remunerativo, “um conhecimento, mesmo que não muito
profundo, sobre sua geografia e os seus habitantes e, evidentemente, sobre a sua cultura e
273
língua.” Já outros poderiam até mesmo dominar a língua portuguesa. Por exemplo.
Segundo Ana Paula Tavares e Catarina Madeira Santos, em sua investigação sobre expansão e
apropriação da língua na região de Angola, “todos estes comerciantes: pombeiros, sertanejos,
ou ainda aviados, sabiam ler e escrever”. 274
Antes mesmo de partir de Tete, o matemático já mencionava a dificuldade de manter
os cafres carregadores em atividade. A travessia de costa a costa não era uma empreitada bem
recebida por muitos africanos, tendo por causa principalmente “a impossibilidade e [os]
perigos desta empresa”. 275 Isto certamente influenciou-os a serem ainda mais desconfiados.
Como destacou Eugênia Rodrigues, “as fugas, [tanto] na fase de recrutamento [como] durante
276
o trajeto, constituíram uma regularidade.” É sabido pelos estudiosos e também pelos
contemporâneos que o conhecimento africano foi um fator bastante relevante para o progresso
da ciência européia, pois era apropriado - e reelaborado - pelo viajante para ser utilizado à sua
maneira. 277
De fato, é um traço marcante deste diário as inúmeras fugas dos carregadores. Fugiam
para os matos. Para buscar solucionar este problema, o matemático recorreu até mesmo ao
padre capelão Francisco João Pinto, homem que assumiu a expedição após sua morte. Para
isto, foi declarado “in verbo sacerdotis os pacíficos meios de que tinha [me] servido por meio
do mesmo padre” para que a D. Paulina Ana de Sousa Bragança cedesse alguns escravos à

272
RODRIGUES, Ciência européia e exploradores africanos, p. 95. Itálico proposital, por se tratar de uma
expressão de Mary Pratt Louise. Para isto, consultar: PRATT, Mary Louise. Os Olhos do Império: relatos de
viagem e transculturação. Bauru: EDUSC, 1999. Segundo a autora, zonas de contacto são “espaços sociais onde
culturas díspares se encontram, se chocam, se entrelaçam uma com a outra, frequentemente em relações
extremamente assimétricas de dominação e subordinação - como colonialismo, o escravagismo, ou seus
sucedâneos ora praticados em todo o mundo”. Consultar p. 27 de sua obra.
273
Idem, p. 95.
274
TAVARES, Ana Paula; SANTOS, Catarina Madeira. Fontes escritas africanas para a história de Angola. Em:
Africae Monumenta: a apropriação da escrita pelos africanos. Volume I. Lisboa: Instituto de Investigação
Cientifica Tropical, 2002. Mesmo que as autoras estejam mais preocupadas com a Africa Central, mais
precisamente a Angola do XIX, não se descarta esta possibilidade.
275
Diário de Tete ao Cazembe, p. 587.
276
RODRIGUES, Ciência européia e exploradores africanos, p. 90.
277
Idem, p. 99.

71
expedição. Bragança era uma senhora dona de escravos, prazeira, assim como Dona
Francisca Josefa de Moura e Meneses, ambas procuradas pelo governador para lhe fornecer
mão de obra escrava. 278
No dia 03 de julho de 1798 a expedição se pôs em marcha em direção ao reino do
Cazembe. Preocupado em detalhar o caminho pela expedição traçado, foi escrito sobre a
geografia e sobre a flora do local:

De Sonte para diante, o terreno é montuoso, e quando é possível a


estrada se dirige pelos estreitos vales que há entre os montes. Só quando
chegava a pouca distância das casas, ou palhoças das casas referidas
terras, me parecia que estava em país povoado, pois todo o espaço que
hoje andei é cheio de espinheiros, com grave incômodo dos passageiros
[...]. 279

Comandou a expedição como pôde. Durante este tempo, observou a fertilidade das
terras, a qualidade das águas, os climas, as diferentes povoações. Descreveu aspectos
agrícolas, como o plantio do milho, da cana, do anil, além de tratar dos produtos derivados
280
destes – como o pombe, o açúcar/ melaço e a tintura, respectivamente. Relatou
dificuldades de convivência principalmente com os Maraves. 281 Estes eram “amigos fingidos,
e verdadeiros inimigos [por só procurarem] meios e pretextos de roubarem o fato dos
portugueses [...]”. 282 Ademais, analisou o fluxo das águas das chuvas, e a necessidade de
conhecê-lo para trafegar com sucesso pela região.
No dia 08 do mesmo mês, em Maxinga, mencionou a mineração realizada pelas negras
escravas de D. Josefa de Moura e Meneses. Provavelmente se tratava de ouro. A relação entre
os portugueses e os escravos africanos está mencionada várias vezes no diário. A marcha da
expedição dependia de seus serviços, a ponto de ela não ocorrer caso eles não estivessem
dispostos.
A escravidão no interior se expandia ao ponto de envolver praticamente todas as
instâncias sociais naquela região africana. Para José Capela, Lacerda e Almeida foi um dos
únicos que se incomodou com a naturalização da prática no interior africano. Para ele, o

278
Diário de Tete ao Cazembe, p. 588 e 590.
279
Idem, p. 589.
280
Bebida alcoólica derivada do milho.
281
Os Maraves, assim como os Muízas, eram naturais pertencentes às diferentes povoações pelas quais a
expedição praticou diplomacia, comércio, além de usufruírem de seus serviços.
282
Diário de Tete ao Cazembe, p. 593.

72
astrônomo teria sido “quem mais se espantou com a iniqüidade das relações sociais na
Zambézia [... entretanto], também ele, apesar de possuir uma posição crítica até então
inexistente, [coincidia] com todos os outros em quanto respeita à escravatura.” 283 O desgosto
do matemático diante da escravidão não foi suficiente para que ele providenciasse outra opção
de mão de obra. A prática estava demasiadamente enraizada na África Oriental Portuguesa e,
na época, outras maneiras de carregamento eram praticamente inviáveis para suprir a
proporção de uma expedição como a de Lacerda e Almeida. Para além disto, crescia a
conexão comercial escravagista que interligava os portos portugueses, brasileiros e
284
moçambicanos. Isto certamente colaborou para que a escravidão no interior africano
crescesse e se naturalizasse ainda mais.
O aumento da circulação do marfim, do ouro e dos escravos estava transformando as
capitanias de Moçambique e dos Rios de Sena. Com isto, a interiorização do continente se
intensificou, e as medidas da Coroa portuguesa para remediar o contrabando na região
influenciaram para oficializar a atividade. A busca por estes produtos era tal que escreveu
Alexandre Lobato: “não interessava ao colono [as práticas agrícolas] porque não se ia para
África para fazer plantações.” 285
Através de algumas passagens do diário, e também de uma relação de despesas da
expedição, é possível inferir aproximadamente a dimensão da carga que os carregadores
levavam. Para se ter uma noção, a relação consta, em seis páginas de manuscrito, mais de 100
conjuntos de itens. 286 Panos, velórios, miçangas, tesouras, agulhas, são as mercadorias que
estão descritas logo no início do documento. Há outras dezenas delas ao longo do documento,
como 47 resmas de papel - provavelmente para a elaboração de sua documentação e
diários.287
Integrava também a expedição alguns comerciantes sertanejos. Lembrados por seus
próprios nomes no diário, recebiam tratamento diferenciado. Como frisa Carla da C. Vieira,

283
CAPELA, Obra citada, p. 207.
284
HENRIQUES, Isabel de Castro. Os pilares da diferença: relações Portugal-África, séculos XV-XX. Lisboa:
Caleidoscópio, 2004, p. 271-283.
285
LOBATO, Alexandre. Evolução administrativa e econômica de Moçambique (1752-1763). Agência Geral
do Ultramar, 1957, p. 237.
286
Consultar: Atestado passado pelo escrivão deputado da Real Fazenda de Moçambique, José Vicente da Silva
Negrão, a pedido do governador de Moçambique, Isidro de Almeida de Sousa e Sá, das despesas feitas pela
expedição da travessia da África. Em anexo está a Relação da despesa feita no ano de 1798 na expedição do
interior de África para o descobrimento da comunicação das duas costas oriental e ocidental da mesma África,
tirada do Livro da Receita e Despesa dos Feitos da Fazenda Real da Vila de Tete. Cota original, segundo os
autores: AHU, Moçambique, Caixa 93, Documento n° 87. Em: PEREIRA; RIBAS, Obra citada, p. 402-409.
287
Idem, p. 405.

73
As suas origens diferiam: degredados, altos funcionários, militares de
baixo patente, comerciantes oriundos de outros espaços coloniais
portugueses. Este último caso era particularmente visível em Rios de
Sena, onde o comércio se encontrava majoritariamente na mão de
negociantes originários da Índia.288

Mesmo que Lacerda e Almeida duvidasse das informações obtidas por estes práticos
(outra dominação a eles dirigida), ele os consultou inúmeras vezes. Em uma destas consultas,
foi informado que as “minas da Java, ou Bar / como aqui lhe chamam / foram descobertas há
sete anos por Gonçalo Caetano”. 289 Sua função, mesmo depreciada, mostrou-se fundamental
para o explorador. Segundo Maria E. M. Santos, “ao supor-se que era possível dispensar o
contributo direto dos práticos, menosprezou-se a dificuldade da empresa e arriscou-se a vida
do explorador.” 290 Assim, e por serem

integrados entre a sociedade africana, senhores de uma considerável


facilidade de movimento num espaço normalmente hostil à presença
europeia, os negociantes sertanejos eram, entre a população portuguesa
e luso-africana, quem melhor conhecia as redes autóctones de
circulação de mercadorias e as vias de entrada no interior do
continente. O exercício da sua atividade leva-os, inclusivamente, a
estabelecerem alianças de comércio e a manterem um contacto
privilegiado com os sobas locais, o qual chegava a superar o
relacionamento que estes últimos conservavam com as autoridades
portuguesas na região. Ora, a exploração do interior africano não
poderia ficar incólume a essa experiência sertaneja. 291

Neste cenário social, a sensação era de desconfiança. O governador dos Rios de Sena
confiou em poucos integrantes, como é o caso do prático Pedro Nolasco de Araúlo e do padre
Pinto, mas não se acostumou a descartar as informações recebidas por pessoa alguma. Desta
forma, seus problemas como comandante da expedição não se restringiram à falta de
carregadores, ou à fragilidade que o acometeu por razões nutricionais, emocionais e
climáticas: o matemático também vivenciou problemas sérios com os Mozungos. 292 Segundo
ele, estes senhores africanizados eram

288
VIEIRA, Dissertação citada, p. 58-59.
289
Diário de Tete ao Cazembe, p. 604. Gonçalo Caetano era Capitão Mor da Mixonga e comandante da segunda
divisão da expedição. No Diário do padre, Gonçalo Caetano Pereira é tratado como “primeiro prático dos
matos”, outra forma de categorizar os sertanejos. Ver: PEREIRA; RIBAS, Obra citada, p. 651.
290
SANTOS, Viagens de Exploração, p. 203.
291
VIEIRA, Dissertação citada, p. 60.
292
Segundo José Capela, “Mozungo é um vocábulo da língua chisena que, segundo conjectura Almeida de Eça,
viria do verbo ku-sunga: passear, jornadear, deambular. Corresponde ao português Senhor. [...] Mais tarde,

74
[...] os culpados destas desordens são alguns indivíduos da comitiva,
contra os quais procederei a seu tempo, por tudo por agora devo sofrer,
e disfarçar, só para que se conclua o fim da diligência, visto eu não ter
poder de dar um exemplar castigo, mandando enforcar algum cafre, ou
branco, e serem estes tão poucos que é necessário disfarçar para haver
quem trabalhe.293

Mesmo sendo governador dos Rios de Sena, Lacerda e Almeida não usufruía de plena
autonomia para comandar a expedição. A necessidade de consultar os práticos, por serem
estes considerados inteligentes nos “usos e costumes cafreais”, percorreu toda a expedição. O
momento era tal que escreveu sobre a africanização destes brancos.

[sobre] estes chamados práticos, eu ainda não descobri neles outra


[inteligência] do que terem adotado os seus usos, costumes, religião,
superstição, e todos seus abomináveis vícios, que unidos aos próprios
os fazem detestáveis. O tenente coronel Pedro Nolasco e o sargento mor
Pedro Xavier Velasco são os únicos indivíduos que aqui vêm fiéis, e
capazes de desabafar com eles, e nisto acho tal qual alívio.294

Para atenuar os problemas gerados pela falta de carregadores, o matemático decidiu


por dispensar boa parte da carga. A falta de seus serviço seria facilmente solucionada se os
Maraves não tivessem exigido valor demasiadamente alto pelo trabalho. Incluíam-se nesta
distribuição da carga os próprios mantimentos, ocasionando outra questão delicada: a da
alimentação. A frustração para com os carregadores, somada neste momento com um prejuízo
nutricional, certamente debilitou a saúde do explorador – e de outros. A princípio, não se deu
conta disto, mas no prazo de poucos dias adoeceria.
Com as febres que vieram, seu entusiasmo pela travessia reduziu-se drasticamente.
Achava-se ele “com notável abatimento, veementes dores de cabeça, e absolutamente
impossibilitado de voltar [...].” 295 Recorreu à água da Inglaterra, mesmo contra a vontade
dos médicos que vinham na comitiva. Sobre estes, segundo o governador, “apenas [sabiam]
ler. Para eles não [havia] mais que três moléstias neste mundo, que [vinham] a ser
constipação, mordexim e fraqueza”.296 A falta de sal, certamente, agravou sua situação.297

Mozungo passou a ser empregado no sentido exclusivo de branco. Mas esta não foi a aplicação do termo durante
séculos”. Em: CAPELA, Obra citada, p. 103.
293
Diário de Tete ao Cazembe, p. 613. Itálico proposital.
294
Idem, p. 614.
295
Idem, p. 609.
296
Idem, p. 611.

75
Quando estavam entre a região de Mocanda e de Aruangua, o explorador fez algumas
observações referentes à nação Mutumbuca. Traçou características físicas, costumes, entre
outras informações. Com outras povoações fez semelhante, como a dos Moízas, dos
Caperemeras, dos Mocazambos e dos Manguros. Mesmo sabendo da morte de sua esposa no
dia 1° de abril, buscou no mesmo dia se informar de como se matavam os elefantes, para a
extração do marfim. Talvez tenha lhe passado à cabeça buscar assuntos que o distraíssem de
tal dor, ou simplesmente duvidou da informação recebida. De qualquer forma, entre as
diferentes maneiras de caçá-los, uma delas utilizava “cães já industriados, os quais a certa
distância dos elefantes os entretém ladrando; os cafres, se aproveitando desta situação [...] os
matam com flechadas.” 298 Ademais, para o governador, a informação era digna de registro.
Outro traço relevante do diário é a representação dos rios. A preocupação do
matemático em descrever a complexidade hidrográfica é resposta de um dos pedidos da carta
régia de 12 de março de 1797. Nesta correspondência, a rainha pedia para Lacerda e Almeida
que

[...] sem perda de tempo [fizesse] todas as tentativas imagináveis para


ver se no centro da África há montes que sirvam de vertentes ao grande
rio Cuneni, que despeja suas águas no mar pela costa ocidental da
África pouco abaixo do Cabo Negro, para ver se há possibilidade da
fácil e breve comunicação de Portugal com estes Rios de Sena [...].299

Entre o século XVIII e XIX houve um avanço importante dos conhecimentos sobre o
interior africano. A hidrografia integrou parte da estratégia dos portugueses para sua
interiorização no continente, entretanto a opção fluvial não foi o que se esperava. Em África,
o comércio de longa distância era feito por sertanejos, com longos itinerários caravaneiros.
Isto influenciou para que o reconhecimento hidrográfico do continente africano fosse ainda
mais lento. De qualquer forma, e mesmo que o avanço para o interior tenha sido feito,
sobretudo, por terra, havia o interesse em conhecer os rios da região. 300

297
Idem, p. 612.
298
Idem, p. 621.
299
Idem, p. 577. Instruções. Itálico proposital.
300
SANTOS, O estudo da hidrografia, p. 01, 03.

76
Os rios também poderiam fornecer peixes. É o que ocorre no dia 23 de agosto, através
do rio Remimba. Como estavam com pouco mantimento, aproveitaram para apanhar alguns
“peixes chamados Pendes, pequenos porém saborosos.” 301
Mesmo tendo oportunidades de se alimentar, no final do mês de agosto Lacerda e
Almeida foi novamente acometido de febres, e buscou tratamento com quina. Este era o
quarto ataque febril sofrido pelo matemático desde março do mesmo ano. A situação era ainda
pior, pois a alimentação neste período estava precária. 302 Somente após dez dias de marcha
conseguiram se alimentar melhor, em uma povoação Muíza. Na refeição obtida havia “meio
alqueire de farinha, um pinto e um cestinho de batatas” - presente destinado ao governador
303
pelo poderoso Morungabambara. Com esforços, comparam mais “dez frangos magros,
que [na situação lhes] pareceram dez Perus bem cevados”. 304
No dia 10 atingiram o rio Zambezi, aonde encerravam “as famintas terras destes
homens de altos penteados e espertaduras.” 305 Ao chegar neste ponto, buscou informações
sobre as características naturais do rio, como a direção em que ele corria e sua profundidade.
Estas informações, e outras, auxiliariam o desejado projeto português de interiorização
africana por navegação. Diferente da região anterior atravessada pela expedição, a localização
próxima ao Zambezi “trazia muitas pegadas de elefantes, e os matos [constavam] já de
árvores mais altas e grossas.” 306
Estavam próximos à região do reino do Muata Cazembe. Este era “um potentado
sediado no vale do rio Luapula, no nordeste da atual Zâmbia, cujos governantes ostentavam o
título de mwata kazembe.” O reino surgiu na primeira metade do século XVIII, e controlava
uma área ampla que abrangia do sul da atual Catanga à zona ocidental do rio de mesmo nome.
307
Segundo Avelino T. da Mota, “o Muata Cazembe era o descendente de um chefe que não
muito antes o Muatiânvua [soba dos Moluas] enviara a conquistar a região.” 308 Para Maria E.
M. Santos, inclusive, o Cazembe e o Muatiânvua “formavam dois impérios politicamente
fortes, que poderiam proporcionar [...] certa segurança e até proteção, em troca de vantagens

301
Diário de Tete ao Cazembe, p. 624.
302
Idem p. 625
303
Idem, p. 632. Em sua documentação há somente duas menções sobre este indivíduo, entretanto se infere tratar
de um chefe Muíza.
304
Idem, p. 632.
305
Idem, Ibidem.
306
Idem, p. 639.
307
RODRIGUES, Introdução citada. Em: PEREIRA; RIBAS, Obra citada, p. 106.
308
MOTA, Obra citada, p. 128.

77
comerciais.” 309 Com o reino do Cazembe e com o Muatiânvia ocorreria, portanto, uma forte
relação de parentesco político. Ademais, o reino do Cazembe possuía uma importante
participação no comércio de cobre e de escravos, e recebia mercadorias europeias que vinham
por Angola. Isto explica, em partes, o interesse português pela travessia de costa a costa por
esta região.
No dia 1° de outubro Lacerda e Almeida destacou que “os matos se [assemelhavam] a
muitos do Brasil, pois as árvores são grossas e altas.” 310 Provavelmente porque estavam sob
influência climática das proximidades do rio Zambeze. Após saírem de Moçambique em
outubro de 1797, e atravessar parte da região desértica da savana africana, concretizaram parte
do objetivo no decorrer de um ano. Por este período, e com muita dificuldade, atingiram as
tais terras do Cazembe. 311 Faleceu no mesmo mês, dia dezoito.
Suas anotações contribuíram principalmente para orientar os futuros exploradores
portugueses que viriam para a região. Não somente lusitanos: os ingleses Thomas Edward
Bowdich e o capitão Richard Burton são exemplos diferentes. Também foi fundamental para
a Coroa portuguesa, no sentido de fornecer informações estratégicas sobre o continente.
Mesmo formado em Matemática pela Universidade de Coimbra, sua função principal esteve a
todo momento relacionada com o comércio. Para isto, se se utilizou de dois caminhos
principais: a autoridade de um governador enviado pela Coroa e a diplomacia para com os
povos africanos.

309
SANTOS, Viagens de Exploração, p. 201.
310
Diário de Tete ao Cazembe, p. 641.
311
Por chegar beirando à morte no reino do Cazembe, o matemático pouco escreveu a respeito do potentado.
Entretanto o padre Francisco João Pinto, nomeado comandante por Lacerda e Almeida, escreveu muitas
informações sobre os acontecimentos no reino. Consultar: PINTO, Francisco João. Diário da Viagem de Retorno
da Expedição de Travessia da África, do Cazembe a Tete, após a morte de F. José de Lacerda e Almeida, sob o
comando do Padre Francisco João Pinto. [1798]. Em: PEREIRA; RIBAS. Obra citada, p. 645-738

78
IV- [Conclusão]:

Não se deve esperar de Lacerda e Almeida, obviamente, inocência e puro desinteresse


no que se refere à produção de seus diários. Ou seja, eles não eram confeccionados por
alguém desprovido de interesse próprio. Pelo contrário: é seguro afirmar que o luso-brasileiro
possuía seus projetos pessoais na expedição e na elaboração dos diários, além, é claro, dos
interesses maiores de Portugal que informavam e orientavam sua atuação nos continentes
americano e africano. É mais provável que, “como qualquer serviço prestado à realeza, o
conhecimento [fosse] parte de uma troca, de um negócio entre o rei e seus súditos.” 312 Para
isto, Lacerda e Almeida escrevia sob as ordens de sua soberana, a rainha D. Maria, como
demonstra um trecho do Diário de Moçambique a Tete:

[...] e como quem tem a honra de falar com a Sua Soberana, pois sendo
feito este diário por ordem da mesma Senhora, devo dizer as coisas
como elas são, para que Sua Majestade faça uma ideia do que é esta
conquista, e do caráter dos seus habitantes, para que remedeie com as
suas paternas providências a decadência, em que ela está [...] 313

Quando escreveu as Instruções do Diário de Tete ao Cazembe, em que aconselhava ao


comandante e outros sucessores da expedição algumas diretrizes, caso viesse a falecer, frisou
conselhos para a redação dos possíveis diários por virem:

[...] não deverão vocês voltar, antes seguirão sua viagem fazendo todos
os dias seu competente e circunstanciado Diário, no qual devem
declarar com toda verdade / a qual muito lhes recomendo, livre de
exagerações para fazerem grandes os seus serviços / todas as novidades
que acontecerem, relativamente à comitiva, qualidade do terreno por
onde passarem, suas produções, minas, população, caráter, e costumes
dos seus habitantes; rios que encontrarem, largura, profundidade, e
parte para onde correm, relativamente a quem vai destes rios; quais são
seus gêneros, e efeitos que os portugueses poderão introduzir para
permutação dos próprios do país; e finalmente tudo quanto virem deve
ser notado, ainda [que] as mesmas coisas que lhe pareçam ser
insignificantes e de pouca consideração, devendo vocês antes perder por
difusos do que por concisos [...].314

312
RAMINELLI, Obra citada, p. 20.
313
Diário de Moçambique a Tete, p. 524. Itálico proposital.
314
Diário de Tete ao Cazembe, Instruções, p. 578.

79
Não há neste trecho somente conselhos para a elaboração de futuros diários, caso o
matemático falecesse. Além disso, a passagem também descreve o que Lacerda e Almeida
carregava em mente sobre a confecção de seus próprios diários. Não é por acaso que as
preocupações acima detalhadas são, em suma, as mesmas encontradas em suas anotações -
também na América Portuguesa, mas principalmente na travessia em África.
Isto chama a atenção sobre o perfil de seus diários. Em uma taxonomia sugerida por
Fernanda Carrilho, que classifica as viagens históricas em expedições de peregrinação, de
erudição, imaginárias, de comércio e de expansão, é certamente mais provável que a de
Lacerda e Almeida se aplique às duas últimas. Os fatores políticos, científicos e de
negociação encontrados em suas anotações reforçam este perfil. 315
Sobre os diários em África, outro ponto merece ser aqui destacado. A existência de
uma versão online do Diário de Tete ao Cazembe, fornecida pela BNRJ, permite investigar no
mínimo dois caminhos relevantes sobre sua documentação: o acesso ao Diário e aos seus
respectivos Mapas - ambos na versão manuscrita. Mesmo que esta monografia tenha
constatado que o Diário e os Mapas se tratem de cópias, destaca-se que elas são fontes
primárias, originadas logo após a expedição do matemático. A versão online permite,
inclusive, analisar como era o produto final das tais cópias, elaboradas, sobretudo, pela
Sociedade Real Marítima.
-
As melhores transcrições dos diários de Lacerda e Almeida foram obtidas na obra de
Magnus Roberto de Melo Pereira e de André Akamine Ribas. 316 Pelo que se diagnosticou, os
técnicos transcritores mantiveram-se fiéis ao conteúdo e ao estilo da escrita, do final do
século XVIII. Assim, quanto aos diários escritos pelo matemático no interior africano, não
existem grandes problemas quanto à obtenção de boas fontes transcritas. Há inclusive, outras
transcrições bastante seguras sobre tais viagens, e que permitem inclusive comparações entre
elas. O problema maior, que esta monografia constatou, se refere aos diários da Expedição
Demarcatória de Limites, na América Portuguesa, entre os anos de 1780 a 1790.
As principais instituições que transcreveram os diários de Lacerda e Almeida
referentes à Expedição Demarcatória de Limites foram a Assembleia Legislativa da Província
de São Paulo e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – ambas durante o século XIX.
Mesmo que o CEDOPE tenha publicado a transcrição do Diário da vila de Cuiabá à vila de

315
CARRILHO, Fernanda. Como eu atravessei a África: um texto sobre literatura de viagens. Em: Africana
Studia, p. 66.
316
PEREIRA; RIBAS. Obra citada.

80
Santos, em 2004, esta foi a única publicação sobre os tais diários encontrada. Entretanto, há
no mínimo outros quatro diários sobre a expedição que não foram republicados. A
importância destes documentos, em contrapartida aos problemas de transcrição encontrados,
reforça a necessidade de uma revisão sobre a disponibilidade destas fontes. Uma visita ao
IHGB permitiria apresentar, de maneira mais clara, se há possibilidades de acesso a
manuscritos referentes a esta expedição. Esta foi uma das indagações centrais desta pesquisa.
Mesmo que o universo bibliográfico para o estudo acerca de Lacerda e Almeida tenha
se mostrado abundante, não foram encontrados autores que questionassem a legitimidade das
transcrições feitas no século XIX. Isto fomenta a importância de se elaborar novas
transcrições referentes a estes diários, e de disponibilizá-las.
-
É bem possível que ainda existam documentos relativos ao matemático desconhecidos
pelos estudiosos. Ou de outras naturezas e autores, mas no sentido de serem referentes à
África Oriental Portuguesa. Naturalistas, matemáticos, religiosos, governadores e até mesmo
africanos podem estar inseridos aqui. Pelo fato de Lacerda e Almeida ter vivido, ao longo de
sua vida, em diferentes partes do Império Português, sua documentação foi fragmentada entre
os continentes americano, europeu e africano. O fato é que, com a propulsão recente da
internet, muita documentação sobre Portugal está sendo encontrada de maneira facilitada. Isto
cooperou com esta monografia, além de ter auxiliado o trabalho dos historiadores nos tempos
atuais.
Na África Oriental do final do século XVIII a escravidão cresceu em proporção
significativa nas capitanias de Moçambique e Rios de Sena, e a circulação de escravos saindo
pelo hemisfério oriental africano se tornou questão importante sobre o tema. Em 1811, por
exemplo, somente treze anos após a morte do matemático, Rio de Janeiro, São Paulo e Minas
Gerais já recebiam em torno de 20% de escravos vindos dos portos de Moçambique. 317 O
tema da escravidão, da escravização e do tráfico podem ser destacados e explorados nos
diários africanos de Lacerda e Almeida, como buscamos apontar neste trabalho.
Enfim, a questão é que Lacerda e Almeida, por meio de seus diários e de diversos
outros documentos, se relaciona, à sua maneira, com um panorama bem maior. Um contexto,
inclusive, que circunda uma amplitude Atlântica. Assim, o objetivo deste estudo foi,

317
SLENES, Robert. A Grande Greve do Crânio do Tucuxi: espírito das águas centro-africanas e identidade
escrava no início do século XIX no Rio de Janeiro. Em: HEYWOOD, Linda M. (Org.). Diáspora Negra no
Brasil. São Paulo: Contexto, 2008, p. 196.

81
sobretudo, exploratório. Ao ensaiar uma leitura exaustiva dos diários de Lacerda e Almeida,
do ponto de vista da crítica externa e interna, buscou-se chamar a atenção para as
potencialidades destes escritos para a história do Brasil e da África na passagem do século
XVIII para o século XIX, particularmente para o estudo das explorações terrestre, tanto numa
perspectiva política, quanto da história dos conhecimentos científicos.

82
V- [Bibliografia e Fontes]:

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83
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ordem do Ilustríssimo e Excelentíssimo General dela Luiz de Albuquerque de Melo Pereira e
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87
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WORSTER, D. Para fazer História Ambiental. Em: Estudos Históricos, vol. 4, n. 8, 1991.

88
VI- [Anexos] – As tabelas das Demarcações. Os Mapas em África.
6.1- As tabelas das Demarcações de Fronteiras de Limites na América Portuguesa.
Como já dito anteriormente, a documentação resultante das viagens das Expedições
Demarcatórias de Limites feitas por Lacerda e Almeida, entre 1780 e 1790, trouxe em anexo
(na Publicação de 1841) algumas tabelas. Por exemplo. Um quadro das longitudes, latitudes e
variações, confeccionadas por Francisco de Oliveira Barbosa e Bento Sanches da Orta sobre
São Paulo e Rio de Janeiro, é contemporâneo à documentação do matemático e também se
encontra na obra. Assim, estará em anexo uma cópia deste quadro extraído desta publicação.
Mesmo que as tabelas elaboradas por Lacerda e Almeida estejam também disponíveis na
Publicação de 1841, nesta monografia elas estarão sendo extraídas da transcrição do
CEDOPE, de 2004. São as tabelas brancas. A qualidade destas é superior às presentes na
Publicação de 1841, principalmente por não apresentar fragmentação no conteúdo. Abaixo
seguem suas imagens, com suas devidas referências:

89
Longitudes, latitudes e variações da Bússola, dos lugares abaixo declarados, dos quais se faz menção neste
diário, supondo a Ilha do Ferro 20’ 30’ para o ocidente de Paris. Extraído de: Diário da Viagem de Vila Bela
Capital da Capitania de Mato Grosso até Vila e Praça de Santos na Capitania de São Paulo, p. 33.

90
Número de léguas de caminho de terra e de cada um rio que naveguei. [sem data]. Também: Número das
cachoeiras de cada um dos rios. [sem data]. Extraídas de: Diário da Viagem de Vila Bela Capital da Capitania
de Mato Grosso até Vila e Praça de Santos na Capitania de São Paulo, p. 34.

91
Longitudes contadas da ponta mais ocidental da Ilha de Ferro, dos lugares abaixo declarados pertencentes à
Capitania de São Paulo, e Rio de Janeiro, determinados por Francisco de Oliveira Barbosa e Bento Sanches da
Orta. [sem data]. Extraído de: Publicações de 1841, p. 88.

92
6.2- Os Mapas em África:
Os mapas-itinerários, como Eugénia Rodrigues os denomina, foram confeccionados
por Lacerda e Almeida durante o percurso da vila de Tete ao reino do Cazembe, no ano de
1798. 318 Eles foram elaborados em preto e branco, sem muita preocupação com perspectiva
ou estética. Entretanto, seus borrões, como são referenciados em algumas bibliografias,
possuem detalhamento e precisão cartográfica. Os rios, as povoações, o relevo, os pantanais,
entre outras esferas socioambientais, são informações constitutivas e importantes de seus
documentos. Já sobre os mapas anteriores a este percurso, eles não foram encontrados e talvez
até não existam.
O conjunto de mapas é, originalmente, composto por vinte e três folhas. Em cada uma
são acrescentados o norte da agulha e o norte verdadeiro, além dos dias condizentes às suas
respectivas descrições. Os desenhos seguem a escala de uma polegada francesa para uma
légua percorrida, ou seja: cada 2.7 centímetros do mapa correspondem a seis quilômetros de
travessia, aproximadamente. 319 Ademais, as longitudes e as latitudes foram acrescentadas nos
esboços, além de outros detalhes específicos. É preciso informar, no entanto, que esta
pesquisa não possui as vinte e três folhas dos borrões: foram conseguidas apenas doze
imagens dos originais.
A partir destes, armazenados atualmente no Arquivo Histórico Ultramarino, a
Sociedade Real Marítima elaborou, na época, uma série de cópias. Estas reproduções foram
certamente confeccionadas por ordem do secretário Sousa Coutinho, logo após a remessa
enviada pelo governador Menezes da Costa chegar às suas mãos, em 1801. Estas reproduções,
denominadas por Pereira; Ribas como aquarelas, possuem acabamento cartográfico
aprimorado, além de serem coerentes com os originais. Encontram-se, atualmente, na
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. 320
Não é o objetivo desta monografia aprofundar as investigações referentes aos tais
mapas. Por assim ser, somente constarão nos anexos algumas informações básicas sobre cada
imagem. A título de esclarecimento, todas as imagens dos borrões foram retiradas da obra de
Magnus Roberto de Mello Pereira e de André Akamine Ribas. 321 Já as imagens das aquarelas
foram conseguidas através do site da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.322 Os borrões/

318
RODRIGUES, Introdução citada. Em: PEREIRA; RIBAS, Obra citada, p. 126-127.
319
Idem, p. 126.
320
Segundo PEREIRA; RIBAS, Cota original em: BNRJ, Seção de Manuscritos, I-28, 29, 13.
321
PEREIRA; RIBAS, Obra citada, p. 764-798.
322
Conferir em: http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_cartografia/cart1095065/galeria/index.htm

93
manuscritos dos mapas contêm diversas informações escritas pelo matemático, e para suas
transcrições os manuscritos foram cotejados com as aquarelas da BNRJ, além de consultas
freqüentes no Diário de Tete ao Cazembe. Assim, seguem abaixo as imagens - primeiro dos
mapas originais para, posteriormente, seguirem as imagens das cópias.

94
Originais/ Borrões: 1° folha. Trajeto percorrido pela expedição entre 03 a 07 de julho de 1798. Partida da
expedição ocorrida nas proximidades da vila de Tete. Na parte inferior se lê: “vila de Tete; Latitude Austral 16 °
10’. Acima: [...] partida no dia 03 de julho de 1798”. Do lado superior direito: “Neste regato principiam as terras
dos Maraves”. Do lado esquerdo superior: “[...] uma polegada francesa, equivale a uma légua”.

95
Originais/ Borrões: 2° folha. Continuidade da expedição. Trajeto percorrido entre 07 e 08 de julho. Na parte
superior se lê: “Latitude Austral = 15° 19’ 15’’. Maxinga”. Ao lado direito, como em todos os mapas, Lacerda e
Almeida informou: “norte verdadeiro”.

96
Originais/ Borrões: 3° folha. Trajeto percorrido pela expedição entre 14 e 19 de julho. Do lado esquerdo se lê:
“Cordilheira de São João” e do lado direito “Cordilheira Mariana”. Os nomes às cordilheiras foram dados pelo
próprio Lacerda e Almeida. Ver: Diário de Tete ao Cazembe, p. 601.

97
Originais/ Borrões: 4° folha. Trajeto percorrido pela expedição entre 19 a 26 de julho. Entre o dia 19 e o dia 20
Lacerda e Almeida apontou: “Murambalo” (região aurífera, descrita pelo matemático no diário). Mais adiante,
anotou: “extremo ou limite do rio ou ribeirão Carazipire” (maior ribeirão que havia encontrado até aquele
momento). Acima: “rio Chigumuquire pequeno”. Ver: Diário de Tete ao Cazembe, p. 602-603.

98
Originais/ Borrões: 5° folha. Trajeto percorrido pela expedição entre 27 de julho e 03 de outubro. Abaixo se lê:
“rio Chigumuquiri”. Ao centro da imagem: “Rio Rui. Não pronunciam com o R dobrado”. Ao lado: “Dia 1° de
agosto. Rio Mufe.”

99
.”

Originais/ Borrões: 6° folha. Trajeto percorrido pela expedição entre 03 a 07 de outubro. No centro da imagem
se lê: “Rio Bua Caeno. Rio Xiri é pequeno, e estreito, porém fundo. Dia 04 [de outubro].”

100
Originais/ Borrões: 7° folha. Trajeto percorrido pela expedição entre 07 e 11 de outubro. Ao centro se lê:
“povoação do Mocanda. Rio Vireze. Dia 8”. Na parte superior: “povoação Chitenga”.

101
Originais/ Borrões: 8° folha. Trajeto percorrido pela expedição entre 12 e 17 de outubro. De baixo para cima se
lê: “Tem salitre. Tem ouro. Água estagnada.” No centro da imagem: “Rucurue Rio. Não carregam na letra R.
Conflui no Aruangua, não merece o nome de ribeirão quanto mais de rio.” Ao lado esquerdo: Povoação do
Caperemera, filho do Mocanda”.

102
Originais/ Borrões: 9° folha. Trajeto percorrido pela expedição entre 18 e 19 de outubro. Abaixo se lê: “regato
Combo”. Ao lado: “limite das terras do Caperemera, principiam as do Régulo Masse”. Ao centro: “tem muitos
leões.” Na parte superior: “rio Ircuçuze”.

103
Originais/ Borrões: 10° folha. Trajeto percorrido pela expedição entre 20 e 25 de outubro. Na parte inferior se lê:
“água estagnada. Povoação do Mozavaranda [...]”. No dia 24: “rio Remimba”. Na parte superior: “povoação do
Capanzara”.

104
Originais/ Borrões: 11° folha. Trajeto percorrido pela expedição entre 25 de outubro a 03 de setembro de 1798.
Na parte inferior Lacerda e Almeida destacou: “Rio Aruangua”. Ao centro: “rio Moareze” (com sentido do fluxo
de água para o sudeste). Na parte superior escreveu: “povoação de Capassampende”.

105
Originais/ Borrões: 12° folha. Trajeto percorrido pela expedição entre 03 e 04 de setembro. Ao lado esquerdo
inferior se lê: “serras altas e grossas”. Acima: “dizem que vão ter ao Zumbo, e ao Rio Chui”. Do lado inferior
direito: serra Muxinga, ou Cordilheira Antonina. Ao centro: “povoação do Mocongure, a maior das Muizas e
mais poderoso.”

106
Aquarelas/ cópias: reprodução da 1° folha dos borrões de Lacerda e Almeida, feita pela Sociedade Real
Marítima, em 1801. Localização atual: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Seção de Manuscritos, I-28, 29,
13. Consultar: http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_cartografia/cart1095065/galeria/index.htm
As demais imagens pertencem ao mesmo conjunto documental. As anotações do original da folha 01 são as
mesmas que estas.

107
Aquarelas/ cópias: reprodução da 2° folha dos borrões de Lacerda e Almeida. As anotações do original da folha
02 são as mesmas que estas.

108
Aquarelas/ cópias: reprodução da 3° folha dos borrões de Lacerda e Almeida. As anotações do original da folha
03 são as mesmas que estas.

109
Aquarelas/ cópias: reprodução da 4° folha dos borrões de Lacerda e Almeida. As anotações do original da folha
04 são as mesmas que estas..

110
Aquarelas/ cópias: reprodução da 5° folha dos borrões de Lacerda e Almeida. As anotações do original da folha
05 são as mesmas que estas.

111
Aquarelas/ cópias: reprodução da 6° folha dos borrões de Lacerda e Almeida. As anotações do original da folha
06 são as mesmas que estas.

112
Aquarelas/ cópias: reprodução da 7° folha dos borrões de Lacerda e Almeida. As anotações do original da folha
07 são as mesmas que estas.

113
Aquarelas/ cópias: reprodução da 8° folha dos borrões de Lacerda e Almeida. As anotações do original da folha
08 são as mesmas que estas.

114
Aquarelas/ cópias: reprodução da 9° folha dos borrões de Lacerda e Almeida. As anotações do original de folha
09 são as mesmas que estas.

115
Aquarelas/ cópias: reprodução da 10° folha dos borrões de Lacerda e Almeida. As anotações do original de folha
10 são as mesmas que estas.

116
Aquarelas/ cópias: reprodução da 11° folha dos borrões de Lacerda e Almeida. As anotações do original da folha
11 são as mesmas que estas.

117
Aquarelas/ cópias: reprodução da 12° folha dos borrões de Lacerda e Almeida. As anotações do original da folha
12 são as mesmas que estas.

118
Aquarelas/ cópias: reprodução da 13° folha dos borrões de Lacerda e Almeida. No canto superior esquerdo se lê:
“serra Rodrigo”.

119
Aquarelas/ cópias: reprodução da 14° folha dos borrões de Lacerda e Almeida.

120
Aquarelas/ cópias: reprodução da 15° folha dos borrões de Lacerda e Almeida. Do lado esquerdo se lê:
“povoação de Morungambara”.

121
Aquarelas/ cópias: reprodução da 16° folha dos borrões de Lacerda e Almeida. No canto direito inferior se lê:
“rio Zambezi de 25 braças de largo, e de [ilegível] de fundo no dia de hoje [...]. Acima: “rio Ricuirue de 15
braças de [...] mais fundo do que o Zambezi no que conflue”.

122
Aquarelas/ cópias: reprodução da 17° folha dos borrões de Lacerda e Almeida. No canto inferior se lê: “grande e
populosa povoação do Chinimba Campeze”. Acima: “povoação do fumo, mais povoada do que a do Chimimba
Campeze”.

123
Aquarelas/ cópias: reprodução da 18° folha dos borrões de Lacerda e Almeida. Ao centro se lê: rio Ruure
pequeno”.

124
Aquarelas/ cópias: reprodução da 19° folha dos borrões de Lacerda e Almeida. No canto inferior se lê: “rio
Ruanzeze de 10 braças e 03 palmos e meio na sua maior profundidade e cheio de pedras”. Ao centro: “povoação
do fumo Miuroalanto [...]”.

125
Aquarelas/ cópias: reprodução da 20° folha dos borrões de Lacerda e Almeida. Ao centro: “ribeirão Ruvao”.

126
Aquarelas/ cópias: reprodução da 21° folha dos borrões de Lacerda e Almeida.

127
Aquarelas/ cópias: reprodução da 22° folha dos borrões de Lacerda e Almeida. Ao centro se lê: “povoação do
fumo Moiro”.

128
Aquarelas/ cópias: reprodução da 23° folha dos borrões de Lacerda e Almeida. No canto inferior se lê:
“pequeno rio Buereze”. Ao centro: “Zimboe do rei Cazembe”.

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