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MEIA-PATACA: A TERCEIRA MARGEM

Uma revista de literatura em Cataguases (1948-49)


JOAQUIM BRANCO
FELIPE FRITIZ
ROBERTO JÚLIO

MEIA-PATACA: A TERCEIRA MARGEM


Uma revista de literatura em Cataguases (1948-49)

edi ic f
EDIÇÕES FIC

Cataguases - 2007
Direitos reservados 2007 Joaquim Branco Ribeiro Filho, Felipe Fritiz de
Carvalho e Roberto Júlio Gonçalves Corrêa

Capa e efeitos visuais: Natália Tinoco (thenatalias@gmail.com)


Projeto editorial e gráfico: Joaquim Branco (joaquimb@gmail.com)
Impressão: Gráfica Líder

Agradecimentos especiais:
Pedro Paulo A. Almeida e
Ana Paula Mendonça da Costa

Apoio Cultural:
ZOLLERN TRANSMISSÕES MECÂNICAS LTDA
CASA DE CULTURA SIMÃO
Cataguases MG

869.903 Branco, Joaquim.


B816m Meia-Pataca, a terceira margem: uma revista de
literatura em Cataguases, 1948-1949 / Joaquim Branco,
Felipe Fritiz e Roberto Júlio. - Cataguases: Edific, 2007.
118 p.

1. LITERATURA BRASILEIRA – HISTÓRIA E


CRÍTICA. 2. LITERATURA BRASILEIRA –
PESQUISA. 3. REVISTA MEIA-PATACA, 1940-. 4.
MODERNISMO - CATAGUASES. I. Carvalho, Felipe
Fritiz de. II. Corrêa, Júlio Roberto Gonçalves. III Título.

Ficha catalográfica elaborada pela Bibliotecária Irenilda B. R. M. Cavalcanti – CRB-4 513

EDIFIC - Edições FIC


Funcec - Fundação Comunitária Educacional de Cataguases
FIC - Faculdades Integradas de Cataguases
Rua Romualdo Menezes, 701
Cataguases MG - tel.(032) 3421-3109
www.fafic.com.br
SUMÁRIO

Abertura e proposta............................................................... 07
1 - Nasce uma revista ............................................................ 09
1.1 - Catalogação dos números da revista............................... 20
1.2 - Participantes e colaboradores......................................... 25
1.3 - Cartas de aconselhamento.............................................. 25
1.4 - Repercussão interna e externa........................................ 29
2 - Francisco Marcelo Cabral................................................ 33
2.1 - Autobiografia mínima.................................................... 33
2.2 - Avaliação da obra........................................................... 37
2.2.1 - Artigo de Joaquim Branco.......................................... 44
2.2.2 - Artigo de Felipe Fritiz................................................. 46
2.2.3 - Artigo de Ronaldo Cagiano ........................................ 49
2.2.4 -. Artigo de Ricardo Alfaya........................................... 51
2.2.5 - Artigo de Ronaldo Werneck........................................ 53
2.2.6 - Artigo de Antônio Jaime Soares.................................. 54
2.3 - Lina sobre Cabral ......................................................... 56
2.4 - Auto-avaliação ............................................................. 62
2.5 - O poeta e sua cidade...................................................... 65
2.6 - Textos selecionados do autor.......................................... 67
3 - Lina Tâmega Peixoto...................................................... 71
3.1 - Biobibliografia.............................................................. 71
3.2 - Avaliação da obra.......................................................... 72
3.2.1 - Artigo de Joaquim Branco........................................... 73
3.2.2 – Artigo de Roberto Júlio.............................................. 75
3.2.3 - Artigo de Álvaro Alves Faria...................................... 77
3.3 - Cabral sobre Lina......................................................... 78
3.4 - Auto-avaliação............................................................... 80
3.5 - A poeta e sua cidade........................................................ 81
3.6 - Entrevista ....................................................................... 84
3.7 - Textos selecionados da autora......................................... 86
4 - Meia-Pataca vista de hoje................................................... 89
5 - Referências bibliográficas................................................. 91
Anexo 1 - Correspondência.................................................... 94
Anexo 2 - Cronologia cultural dos anos 1940........................ 101
Anexo 3 - Iconografia............................................................ 105

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ABERTURA E PROPOSTA
No dia 17 de junho de 1948, vinha à luz o primeiro número da
revista Meia-Pataca , que refletia o movimento de três rapazes e
1

uma moça em seus primeiros passos na literatura cataguasense:


Francisco Marcelo Cabral, Luciano Peixoto Garcia, Francisco
Inácio Peixoto Filho e Lina Tâmega Peixoto. Eram jovens
alunos do Colégio Cataguases que, aproveitando o pendor para
as letras e influenciados pela tradição que se iniciara na cidade
com o Movimento Verde na década de 1920, mostravam suas
experiências na forma de uma publicação.
Os anos 40, após as duas primeiras fases do Modernismo
(1922 e 1930), marcavam-se pelo aparecimento de um grande
número de escritores, alguns remanescentes da própria vertente
modernista, e outros que já faziam parte da sua terceira fase,
como Guimarães Rosa, Clarice Lispector e João Cabral de Melo
Neto, para citar apenas os mais expressivos.
Mesclavam-se a eles os autores da chamada “Geração de 45”
– que propunha equivocadamente uma volta ao passado – e
inúmeros outros independentes de grupamentos a tentar abrir
cada qual o seu próprio caminho.
Com o fim da II Grande Guerra Mundial e o início da
reconstrução da Europa, descortinava-se um novo panorama
internacional com a projeção dos Estados Unidos como futura
potência e do bloco soviético, constituído pela Rússia e os países
do bloco socialista. Nessa ocasião, começavam os primeiros
atritos da Guerra Fria, que iria se prolongar por muitos anos.
No Brasil, mudanças viriam com o término do Estado Novo e
da ditadura Vargas, além da perspectiva promissora para a
democracia, acenada pela proposta de eleições presidenciais.

____________________

1
Meia-Pataca é uma referência ao riacho que corta parte da cidade de
Cataguases. O nome deve-se a um evento histórico: um desbravador do
século XIX encontrou nesse riacho meia pataca de ouro.

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Nesta pesquisa, a escolha do tema “revista Meia-Pataca” se
deu pelo fato de tratar-se de um evento local – o surgimento de
uma publicação literária em Cataguases, uma pequena cidade
do interior mineiro; pela projeção cultural alcançada pelo seu
aparecimento; e pelos frutos colhidos posteriormente, ou seja, a
consolidação dos nomes de dois de seus membros – Francisco
Marcelo Cabral e Lina Tâmega Peixoto – como escritores cujas
obras, escritas no decorrer do tempo, tornaram-se conhecidas e
reconhecidas nacionalmente.
No texto de apresentação da revista, sem assinatura, mas,
segundo esclarece nossa pesquisa, escrito por Lina Tâmega, já
se apresentavam algumas das linhas mestras de direcionamento
do grupo, como o reconhecimento de que faziam parte de um
ciclo histórico que começara com a Verde; a escolha do título da
publicação, identificado ao córrego Meia-Pataca, cuja ligação à
história do município se deu desde a sua fundação; e a abertura
para o recebimento de colaborações de outros partes do país,
desde que de qualidade. O texto termina com referências a
Francisco Inácio Peixoto, Rosário Fusco e Marques Rebelo,
escritores amigos, incentivadores e críticos que apararam as
arestas e deram orientação durante toda a fase do movimento,
como comprovam as diversas cartas e bilhetes recebidos pelos
editores-organizadores.
Na garimpagem e seleção do material pesquisado, exibimos
opiniões críticas de autores consagrados como Carlos
Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Guimarães Rosa e
outros, que recepcionaram positivamente o trabalho de Lina e
Cabral, dos quais mostramos alguns poemas, especialmente os
de homenagem à cidade.
Na conclusão, apresentamos um balanço do trabalho
realizado, com um saldo positivo em que se salienta a
experiência colhida e o esforço da direção das Faculdades
Integradas de Cataguases, notadamente o Neppid, núcleo de
pesquisa que possibilitou a abertura para o início e
concretização desta obra acadêmica.

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1 - NASCE UMA REVISTA
A revista Meia-Pataca, em sua curta existência, teve apenas
dois números, publicados em 1948 e no ano seguinte, mas a
repercussão que desencadeou e o saldo que, no decorrer do
tempo, apresentou, propiciando a Francisco Marcelo e Lina
Tâmega a sua realização como escritores, justificam sua
trajetória.
Uma entrevista de Lina Tâmega para o “Caderno C” do
jornal Cataguases, intitulada “Prazer e mistério de criar uma
revista”, é a melhor radiografia do que foi a revista Meia-
Pataca em várias de suas acepções, já que, segundo essas
pesquisas, trata-se da responsável pela editoria propriamente
dita da publicação. Vamos reproduzi-la integralmente, pois os
pormenores citados pela poeta respondem muitas perguntas
sobre o desenvolvimento de seu trabalho.

JB – Primeiro eu gostaria de saber se o grupo Meia-Pataca


teve algum sentido de ruptura em relação à Verde?
LT – Não. Ao contrário, já na primeira apresentação do
primeiro número de Meia-Pataca nós dizíamos querer
reatar um fio interrompido que havia entre Verde e Meia-
Pataca. Nosso espelho era a Verde. Na época ela era nosso
foco. Não tínhamos pretensão nenhuma, nenhuma,
nenhuma de galgar coisas assim, ou ir contra ou a favor.
Nada. Nós queríamos apenas continuar esse veio
subterrâneo, como eu falo ali na apresentação, que corre
sobre Cataguases. É um veio que a gente não sabe que de
repente explode, como tem explodido aqui em Cataguases
em outras manifestações, mas eu acho hoje, Joaquim,
depois desse tempo todo decorrido e com a visão já
bastante ampla do assunto que não tínhamos pretensão
nenhuma propriamente assim de grupo, de estética, de ir
contra, ou ter um programa literário, nada disso. Era apenas
mesmo uma vontade que tínhamos de publicar as coisas e
tentar projetar Cataguases, era só isso.
JB – Na época você estudava no Colégio Cataguases?
LT – Eu estudava no Colégio Cataguases e o Francisco
Marcelo Cabral fazia o último ano em Leopoldina.
JB – Estava no último ano científico e tinha 18 anos?
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LT – Não, dezessete. Não me lembro bem. Mais ou menos.
Na época era o curso clássico.
JB – A influência maior que vocês tiveram literária foi do
Chico Peixoto e do Gradim?
LT – Olha, do Gradim não, o Gradim engraçado não
participou em nada de Meia-Pataca.
JB – Não teve iniciativa dele?
LT – Nunca perguntei a ele a respeito da revista, nada disso,
engraçado, não? Quer dizer, ele ficou sabendo que nós
íamos publicar etc. Eu comentei, mas nunca pedimos
orientação. Eu pelo menos nunca pedi. Na verdade a minha
ligação maior era com o escritor Marques Rebelo.
JB – E como formação de aluno, ele teve influência, pois
não?
LT – Ah, sim. O Gradim foi uma influência enorme. Tudo o
que eu sei de Português devo ao Gradim. Quando fui fazer
vestibular na PUC, o que pude fazer de análise sintática, de
redação, porque tinha que fazer duas na época, era tudo
escrito não era múltipla escolha e devo ao Gradim. Disso,
não tenha dúvida. Havia Latim no vestibular. Tinha versão e
tradução e, na verdade, se eu não tivesse o Gradim como
professor eu acho que não ia fazer um bom vestibular.
JB – Bom, e além disso, quais os “verdes” que tiveram
influência em você. Assim, pessoalmente. O Fusco? O
Chico ainda mais?
LT – O tio Francisco sempre, porque as matérias todas eram
mostradas a ele. Ele dava palpite etc. O Marques mandava
contribuição, inclusive da revista Sul. Tem até contribuição
da revista Sul, onde eu publiquei também o poema de que eu
te falei.
JB – E o Guilhermino Cesar?
LT – Com o Guilhermino não tínhamos contato não. Na
verdade, a grande figura foi o Marques Rebelo, na minha
visão.
JB – Tanto na correspondência quanto no lado pessoal.
LT – Foi o Marques Rebelo. O Fusco também, é claro, e o tio
Francisco é evidente, que estava aqui em Cataguases. Mas o
Fusco é aquele que pica a gente, põe a gente para frente. Eu
escrevi umas cartas delirantes e ele dizia: Você parece que tá
bêbada (risos). Parece que tá bêbada, Lina. Eu escrevia
cartas delirantes porque eu queria tudo, tudo para a revista.

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Queria que ele mandasse correspondência de fulano, de
sicrano, como eu te contei aqui. Que o Santa Rosa fizesse a
capa da revista e fosse uma coisa muito bonita, que o
logotipo fosse escolhido, dando depois um recadinho
bonito a ele.
JB – E a Cecília Meireles?
LT – Bom, a Cecília é o seguinte. Quando eu estava
conversando com o Marques a respeito da revista, o
Marques falou assim: – Oh Lina, vê se a Cecília, você que
gosta muito dela, tem alguma coisa para contribuir. O
telefone dela é X. Me deu o telefone. Quando eu estive no
Rio liguei para ela e ela disse: – Não, vem aqui conversar.
Eu até achei ótimo. Aí ficamos lá de papo, tomamos um
chá. E depois ela disse: – Não, eu quero que você volte
outras vezes. Na época eu já estava morando e estudando
no Rio, e ela sempre em contato. Toda vez perguntava
assim: – O que você está fazendo? E eu: – Nada. Que eu não
era boba. Então vamos para a Livraria Livros de Portugal,
depois a gente vai à Colombo tomar um chá etc. Esse
contato foi realmente bom. Uma vez ela me disse: – No
momento, Lina, eu não tenho nada para ser publicado,
porque estou com um livro pronto. Bem, mas na próxima...
Isso foi apenas para desencadear uma ótima convivência e
eu até achava que uma garota daquela idade e ela me dando
confiança..., mas eu achei isso uma maravilha. Foi um
contato realmente bom. Fiz duas faculdades. Uma na PUC
e a outra mais importante foi o contato com Marques
Rebelo, no Rio de Janeiro, com o escritor Manuel
Bandeira, a Cecília...
JB – Ah, você morou no Rio?
LT – É, eu fiz Letras. O Manuel Bandeira, a Cecília, o
Marques, Drummond eram a outra faculdade melhor ainda
que a PUC e mais ainda porque o Ernâni Cidade, que era
meu tio, ainda me escrevia, me mandava livros. Uma vez eu
tinha 16 anos, e ele disse: – Você vai escrever sobre a pena
do pavão. Lá vou eu tic tic escrevendo, escrevia bobice,
devia ser bobice na época, e ele mandou uma carta
arrebentando com o texto. – Isso aí é coisa que qualquer um
faz, você, para falar da pena do pavão, tem que dominar o
pensamento lógico, porque, por exemplo, o Picasso sabe
deformar porque sabe formar e por aí me deu uma carta
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viva de explicação, mandou livros etc. Ele também sobre
essa parte de formação intelectual foi muito importante
para mim naquela idade.
JB – Eu não sabia disso.
LT – Tenho correspondência farta dele.
JB – E o contato com outros grupos?
LT – Outro grupo, quem arrumou foi o Marques também. O
pessoal da revista Sul mandou correspondência. Foi o
Marques quem nos forneceu esses endereços.
JB – E aí, você lembra de algum grupo assim importante?
LT – Não, não houve contatos maiores a não ser assim de
acusar recebimento, etc, não houve contato, não.
JB – Por que a revista só teve dois números?
LT – Porque primeiro era feita artesanalmente. Era uma
coisa “ que a gente” ia para a tipografia e eu ajudava até a
colocar os tipos lá naquela reguinha. Eu não sabia paginar.
Na hora de paginar fazia-se um buraco de repente na
página. Lá vinha o Napoleão: – Lina, tem buraco aqui, o
que se faz? E eu fazia uma notinha depressa para enfiar lá
dentro daquele buraco. Era uma coisa de uma agonia que
você não imagina, a agonia que era para se fazer a revista.
JB – Onde era feita a revista?
LT – Na Tipografia Ribeiro (hoje, Monteiro). O Napoleão
era muito atencioso. Havia também o problema de
financiar esta revista. Eu não queria que fosse utilizado
qualquer papel, eu queria papel cuchê e outras coisas. Para
mandar fazer em linotipo tinha que se mandar para o Rio de
Janeiro. Era tudo difícil, tudo caro, complicado e havia
ainda o problema do prazo. Eu não sei se aqui em
Cataguases fazem isso hoje.
JB – Não, não fazem. Na época do Landois, por exemplo,
antes da Verde, havia tipografias e até clicherias em
Cataguases...
LT – É verdade. Então havia esta dificuldade de acesso em
nossa época e a falta de experiência também (eu não tinha
nenhuma). Para fazer o segundo número de Meia-Pataca
eu fiz mesmo porque eu quis fazer, pois financeiramente
ninguém mais queria dar dinheiro.
JB – Quem financiava a revista?
LT – A maior parte foi a fábrica Irmãos Peixoto que dava o
dinheiro e a gente foi ao comércio também, A Nacional e

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essas outras de anúncio de placa davam um pouquinho.
JB – E como é que o público recebia isso? Era vendida a
revista?
LT – Era dada.
JB – Quantos exemplares?
LT – A primeira edição teve 500 exemplares.
JB – E a segunda?
LT – A segunda foram 250. Nós mandávamos para os
endereços que tínhamos, pelo correio.
JB – Distribuíam aqui por perto alguns?
LT – Distribuíamos, mas não havia, repercussão.
JB – E se fosse vendida?
LT – Ninguém iria comprar, Joaquim. Então era distribuída
gratuitamente. A gente tinha aqueles endereços e eu punha
fitinhas e botava no correio.
JB – Você cuidava da correspondência também?
LT – Cuidava de tudo.
JB – E o Cabral ajudava?
LT – Sim.
JB – O grupo era formado por quantos elementos?
LT – Era formado por mim, por Francisco Cabral, por Chico
Filho (Francisco Inácio Peixoto Filho), e mais tarde nós
chamamos o Luciano Peixoto Garcia.
JB – Mas quem cuidava mais da revista era você?
LT – É, porque eu ficava mais aqui.
JB – O Chiquinho não estava aqui, estudava num colégio
em Leopoldina.
LT – Ele fez um artigo interessante. Eu até mandei uma
carta para ele. Fico com pena desta carta não ter sido
publicada, Joaquim. Porque ali ele dizia que eu era mestra
dele e eu achava que era o contrário, que eu era aluna. Então
havia assim essa situação pendular. Mas de qualquer jeito a
convivência foi muito boa. Eu aprendia com ele, ele
aprendia comigo, diz ele, eu não sei o quê que eu ensinei,
mas ele diz que eu ensinei o ritmo da poesia dele. Mas eu
ficava admirada mesmo com a capacidade técnica do verso
que ele tinha, que na época ele já dominava isso. Eu ficava
assombrada com isso, assombrada. Outro dia, no Rio, ele
falou: – Lina, às vezes eu falava assim, tira isso aqui. Não
esse aqui, essa palavra é importantíssima. E eu achava que
depois era. Era uma coisa assim, foi mais como um jogo

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lúdico, uma coisa lúdica literária, foi isso. Aquele prazer de
criar, foi um mistério gozozo fazer aquela revista. Falando
nisso, um dia que eu cheguei à noite e fiquei lá até sete da
noite na tipografia do Napoleão e o primeiro exemplar
ficou pronto e eu levei para casa e eu contemplava aquilo,
achava aquilo, ah! Que filhinho maravilhoso que estava
aquilo! Uma alegria, mas era uma coisa mesmo de
juventude, sabe, como eu falei para você. Um grito de
adolescência.
JB – Bom, depois da revista você foi para o Rio
imediatamente? Quando você foi pro Rio?
LT – Fui pro Rio com 19 anos. Eu tinha 17 para 18 quando
fui parar em São Paulo porque disseram aqui que moça não
podia ir para o Rio estudar sozinha, porque era um horror.
JB – Naquela época o Rio não tinha perigo nenhum.
LT –Aí eu pensei: Ah, vou pra São Paulo. Não vou ficar aqui
em Cataguases, não. Não posso ir pro Rio estudar, então
vou pra São Paulo. Aí fui levando uma carta de
apresentação para o Lourival Gomes Machado, que estava
na Bienal de São Paulo. Ao entregar a carta ao Lourival ele
disse: – Que dia você pode começar? – Agora! Aí comecei a
trabalhar na Bienal. Lá em São Paulo podia ficar.
Engraçado, não é?
JB – Você ficou quanto tempo em São Paulo?
LT – Fiquei mais de 6 meses lá trabalhando na Bienal,
depois eu vim pra Cataguases. Liguei para Maria Julieta
(filha do Carlos Drummond) e falei: – Maria Julieta, eu vou
ter que fazer vestibular, queira ou não queira. E ela disse:
Vem pra PUC, eu estou aqui.
JB – Ah, ela dava aula lá?
LT – Não, ela era estudante, ainda, estava já pra se formar.
Aí fui pro Rio e, na casa da minha tia, falei assim: – Oh,
olha! Eu tô aqui fazendo vestibular escondida. Minha mãe e
meu pai não sabem não. Se você quiser falar, problema seu,
mas ela não falou. Eu fiz, passei e falei.
JB – Que ano era esse em que você começou a faculdade,
50?
LT – Agora você me apertou. Foi 50. Isso mesmo.
JB – Você se formou em que ano?
LT – Foram 4 anos, formei em 54.
JB – Feito isso como é que você chegou a Brasília? Você

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voltou pra Cataguases? Deu aula aqui no Colégio
Cataguases?
LT – Brasília foi em 58. Depois da Faculdade voltei pra
Cataguases. Dei aula em Cataguases, no Colégio
Cataguases. Dei aula de Português e Literatura Brasileira.
JB – E ficou aqui quanto tempo?
LT – Fiquei aqui um ano e pouco; depois fui pro Rio.
JB – Quando voltou pro Rio?
LT – Voltei pro Rio em 57. A Cecília quis vir pra
inauguração do Hotel Cataguases. Quando é que foi a
inauguração do Hotel? A Cecília ligou e disse: – Lina, eu
quero ir a Cataguases na inauguração. Quando é que foi a
inauguração do Hotel Cataguases? Ela foi para a visita de
inauguração. Aí nós viemos de carro com ela. O marido dela
, o Heitor, veio dirigindo. Agora em que ano foi?
JB – Eu lembro da vinda dela aqui.
LT – Na época, nós fomos até o Colégio. Ela já estava
escrevendo o Romanceiro da Inconfidência.
JB – Você era solteira ainda?
LT – Eu era solteira. Ela estava escrevendo o Romanceiro da
Inconfidência e quem financiou o projeto do livro foi o
Juscelino Kubitschek.
JB – Ah, é?
LT – Ele dava o dinheiro para ela mandar buscar
microfilmes na Inglaterra. Você sabe que eu vi? Olha, o
arquivo que ela tinha de microfilme sobre textos...
JB – Oh! Eu não sabia disso não!
LT – É, sim senhor. Juscelino é que pagou pra ela escrever
isso, sabia?
JB – Pô, que pesquisa! Isso vai ser novidade pra muita gente.
Bom, aí depois, então, você casou?
LT – Daí casei em 58 e fui embora pra Brasília, e estou lá até
hoje.
JB – Você deu aula na Universidade?
LT – Quando a Universidade abriu em 62, o Ciro dos Anjos
me chamou pra fazer parte do grupo de professores. Depois
eu saí em 65.
JB – Lá você deu aula de quê?
LT – Eu dava aula de Teoria Literária e Língua Portuguesa.
Eu e a Astrid Cabral éramos assistentes do Oswaldino
Marques. Aprendi muito com ele. Ele é uma pessoa de um

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método, por exemplo: quando o aluno chegava no primeiro
dia de aula, ele apresentava tudo que ele iria aprender no
semestre tim-tim por tim-tim e a bibliografia completa. Era
fantástico! Ele dava a aula maior e eu e a Astrid dávamos as
aulas menores. Mas o Meia-Pataca ficou pra trás, agora...
JB – Não, o que eu quero agora é Brasília.
LT – Bem, aquela era a época da “Redentora” (referia-se à
Revolução de 1964) e, em 65, nós – os professores –
pedimos demissão coletiva.
JB – Ah, então... Isso é muito bom.
LT – Aquele grupo de duzentos e tantos professores, pediu
demissão coletiva, eu também. Aí .... Hoje nós achamos
que deveríamos ter resistido mais.
JB – Você é aposentada pela Universidade?
LT – Não, sou aposentada pelo Sphan. Nós achamos, hoje
em dia, conversando com outros colegas, que a gente fez
um gesto quixotesco, sabe? Que não levou a nada, a gente
saiu, entraram outros professores, a coisa ficou do mesmo
jeito, ninguém tomou conhecimento. Nós devíamos ter
feito...
JB – Pensei que vocês tivessem voltado.
LT – Não, não. Foi todo mundo embora.
JB – E depois da “Revolução”?
LT – Eu só voltei em 72, outra vez pra UnB. Mas, não foi
logo. Depois eu fui trabalhar na Funarte.
JB – Você perdeu esse tempo todo?
LT – Não, eu estava trabalhando na Funarte.
JB – Você logo foi pra Funarte?
LT – Foi ao contrário. Em 60, abriu-se aquela inscrição para
se instalar o Ensino Médio em Brasília. Ensino em Brasília
que não havia, não é? As pessoas iam pra lá, a cidade ia ser
inaugurada e os pais iam levar os filhos e iam estudar onde?
Então houve a montagem do ensino oficial em Brasília.
Houve um concurso em nível nacional, eu estava em
Brasília. Eu sei que nós éramos ao todo, entre professores
primários e de 2º grau, sessenta e quatro. Eu era da CASEB
- Comissão de Administração do Sistema Educacional em
Brasília que pertencia ao Ministério da Educação. O
Ministro da Educação montou esse concurso até que fosse
criada a Fundação Educacional.
JB – Aí depois disso ....

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LT – Então, de qualquer jeito eu estava com emprego. Bem,
voltando à Fundação; então foi criada a Funarte. Depois eu
fui pra Funarte, em seguida para o Departamento de
Cultura da própria Secretaria de Educação. Trabalhei no
Departamento de Cultura, depois me transferi pro Instituto
Nacional do Livro. Olha! Eu andei, rodei um bocado!
Adorei trabalhar no INL, fizemos um monte de projetos,
organizei catálogos de poetas pra Feira de Frankfurt. Fiz o
texto, tudo. Trabalhava com o Wladimir Murtinho que era
um louco, mas fazia coisas. Ele dizia assim: – Olha! Estou
pensando isso, isso e isso. Outro trabalho muito
interessante que a gente fazia lá era dar pareceres, receber
originais, foi ótimo. O contato com escritores era muito
bom. Para terminar o ano, o INL com o Collor, lembra? O
recado que eu recebi do diretor, que a gente chamava
interventor, era parar na vírgula. Manda dizer pra Lina pra
ela parar na vírgula.
JB – O que é parar na vírgula?
LT – Parar na vírgula. Não tem mais nada. Acabou.
JB – Isso foi na época do Collor?
LT – Foi. Ele acabou com o INL. Foi uma coisa estúpida.E
dizer que os portugueses morriam de inveja da gente por
causa do Instituto Nacional do Livro. E ele acabou com
ele...
JB – Dali você foi pra onde?
LT – Dali eu voltei pra Funarte e depois fui requisitada pra
trabalhar no Gabinete da Éster de Figueiredo, em 83.
Trabalhei no Ministério escrevendo discursos. Deus me
perdoe. Fiquei lá um ano e meio. Quase morri.
Fui parar então no Sphan. Eu tinha uma colega que
trabalhava lá e ela me disse: – Olha, Lina, vai pra lá, que tá
ótimo. Os trabalhos interessantes, você fica com bons
projetos. Eu fiquei organizando a revista do Sphan,
trabalhando também nos projetos especiais e o trabalho
realmente era muito bom.
JB – Você aposentou no Sphan?
LT – Aposentei no Sphan.
JB – Agora vamos voltar aos livros seus? Quando você
editou o primeiro livro?
LT – O primeiro livro foi um drama muito grande, porque o
Marques Rebelo é que organizou, ajudou, sabe? Ele disse: –

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Lina, tem uma editora agora muito interessante chamada
Hipocampo, que faz uns livros artesanais, dirigida pelo
Thiago de Melo e Geir Campos. Tá Bom! Então, mandei
pra eles, lá.
JB – Como é que se chamava o livro?
LT – Algum dia. Foi em 52. Eu já estava no Rio estudando.
JB – E o outro livro? O Entretempo?
LT – O outro livro foi com o Herberto Sales, que você
conhece, que era muito amigo do Marques, que o trouxe
pro Rio de Janeiro. Eu o conheci quando fiz uma palestra
sobre o Marques lá em Brasília. O Herberto foi e depois da
palestra disse: – Eu conheci a Lina na casa do Marques
Rebelo quando eu vim da Bahia . E o Herberto aprovou a
publicação do livro.
JB – Qual editora?
LT – Editora Record. Agora estou com um outro livro, e
não sei se publico. Sou muito preguiçosa....
JB – Está com um livro novo então?
LT – Estou, é de poesia. Vamos ver o que que vai ser, vamos
ver. É isso aí. Eu colaboro muito lá em Brasília. Pertenço à
Associação Nacional dos Escritores e toda terça-feira a
gente se reúne. Nós temos sede própria agora.
JB – Eu participo muito do Boletim da ANE e da Revista de
Literatura.
LT – Eu sei, de vez em quando vejo seu nome naqueles
boletins. E toda terça-feira nos reunimos, temos contato
com os colegas, e às vezes eu falo. É uma atividade a que
faço questão de ir. A Branca Bakaj, a presidente, é uma
pessoa fantástica. Com Astrid Cabral, grande amiga, troco
idéias, cartas, poemas. Trocar é muito bom.
JB – Mas antes você ia falar alguma coisa sobre a Meia-
Pataca.
LT – Quando nós recebíamos algumas correspondências
elogiando a revista era um deslumbramento pra mim. O
Alphonsus Guimaraens Filho mandou uma carta muito
bonita que eu publiquei e um artigo. Nós publicávamos,
mas sentíamos que a receptividade era pouca. Até
conversei com o Marques sobre isso, que a gente mandava
tanta revista e a resposta era pouca. Mas isso acontece
mesmo.
JB – É só dez por cento que chegam. Temos que mandar

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200 para chegarem 20 respostas.
LT – Isso. Mas as coisas que chegavam foram muito
simpáticas.
JB – Você tem tudo arquivado?
LT – Tenho tudo lá em Brasília. Pelo menos as
correspondências que na época chegavam pra mim eu
guardei. Tenho as cartas que o Marques mandava dizendo
você põe assim, põe assado, a revista deve ter esse formato
de tanto por tanto. O formato da revista, foi o Marques que
deu a sugestão, eu queria que fosse maior. Porque aquilo era
como se fosse uma febre, sabe? Doida pra aquilo sair. Eu
sonhava com as coisas mais estapafúrdias e o Marques lá,
botando água na...
JB – E o negócio foi a água...
LT – Senão estourava. Era uma labareda só.
JB – E o trabalho de vocês na revista? Era mais ligado a
você e ao Marcelo Cabral?
LT – Eu redigia todas as notinhas que tinha que redigir. O
“Cabruxa” (Cabral) também andou redigindo umas para
mim, mas os outros eram só colaboradores como você
falou, não participavam. Quando chegava correspondência,
eu mostrava a eles.
JB – E quanto à paginação, escolha de tipos etc?
LT – Eu escolhia até os tipos dos artigos e também os tipos
das notas que eram diferentes. Tinha que fazer isso tudo.
Aquelas bolinhas que tinham ali eu imaginei: Vamos
colocar umas bolinhas aqui pra chamar atenção das coisas.
JB – Ficou bom aquilo.
LT – Era uma coisa de... assim toda de fantasia, sem
nenhum equipamento técnico pra lidar com paginação,
nada, nada.
JB – E nós viemos 15 anos depois e tivemos a mesma
tipografia.
LT – A mesma tipografia?
JB – A mesma tipografia, além da do jornal Cataguases.
LT – Ah! Pensei que tinha evoluído.
JB – É, a gente pegou e foi aprendendo ali, só é que eu
sempre tive muito interesse em arte gráfica. E contei
também com a experiência da poesia concreta.
LT – Não tínhamos ninguém para nos ajudar. Mas foi uma
experiência válida. Pena que não havia mais dinheiro, e as

19
pessoas também não estavam entusiasmadas em fazer a
revista. Eu estava até entusiasmada a fazer mais de uma,
mas sozinha também ficou muito difícil.
JB – E esse material, você pretende doar para alguma
entidade daqui? Quando?
LT – Vou trazer tudo para cá, não adianta ficar lá.
JB – Eu estou guardando aqui algumas coisas que o Cabral
me manda.
LT – Eu posso até enviar para você, sabia, Joaquim?
JB – Se você quiser, pode mandar. Eu guardo, até surgir uma
entidade... Aliás, já temos uma, o CDH - Centro de
Documentação Histórica, um departamento ligado à Fafic e
ao Instituto Francisca de Souza Peixoto, que pode abrigar
toda a documentação.
LT – Então fica combinado assim. (BRANCO, 2003, p. 5)

1.1 - Catalogação dos números da revista

Para conhecimento formal dos organizadores e


colaboradores, fizemos uma catalogação completa com a
indicação de todos os artigos, poemas, crônicas, nomes de
autores, anúncios e pormenores que constam dos dois números
da revista.

Revista Meia-Pataca – ano um – nº 1 – Cataguases, 17 de julho


de 1948
Equipe:
Francisco Inácio Peixoto Filho
Francisco Marcelo Cabral
Lina Tâmega Peixoto
Luciano Peixoto Garcia

Página 1 (capa)
Editorial – Título – “Primeiro número” – sem assinatura
Logotipo em caixa baixa, cor preta, fundo laranja.
Página 2
“A arquitetura moderna em Cataguases” – artigo de Luciano
Peixoto Garcia com foto da residência de José Pacheco Filho.

20
Citação em francês de Rilke.
Página 3
“Canção” e “Cantiga do Peito Oculto” - poemas de Francisco
Marcelo Cabral
Citação de fragmento de Carlos Drummond de Andrade.
Página 4
“Inquérito” – entrevista com Carlos Drummond de Andrade.
“Carta inédita de Mário de Andrade” – reprodução de uma
correspondência de Mário de Andrade de 31.03.1928 dirigida a
Francisco Inácio Peixoto.
Página 5
“Fragmento” – conto de Maria Julieta Drummond.
Frase de Marques Rebelo.
Página 6
“Olhos grandes, braços redondos” – conto de Francisco Inácio
Peixoto Filho
Anúncio: A Imperial - armarinho - ferragens - louças.
Texto de créditos da revista.
Página 7
“Pedro” e “Perspectiva” – poemas de Lina Tâmega Peixoto.
Fragmento de Machado de Assis.
Página 8
“A fina espiral” – conto de Waltensir Dutra.
Anúncios: Fábrica de pregos Santa Bárbara ltda. e Padaria
Cabral - panificação e moagem de café.
Fragmento de André Gide.
Página 9
“Eu vi uma rosa” – poema de Manuel Bandeira (reprodução de
manuscrito).
“Contribuição anti-poética”, bilhete de Marques Rebelo;
Fragmento de Ascânio Lopes.
Página 10
“Enigma da música” – artigo de Corrêa de Sá.
“Canto” e “Canta” – poemas de Deocleciana Inácio Peixoto
Anúncio: Tipografia Ribeiro ltda.
Fragmento de Cecília Meireles.
Página 11
“Algumas notas” – artigo de José Silva Gradim, ilustrado por
21
uma xilografia de Aldary Toledo.
Fragmento de Manuel Bandeira.
Página 12
Conclusão de “Enigma da música” da p.10.
Anúncios: Fábrica de Ladrilhos Tupi – A.F. Ramos e Henriques
Felippe & Cia. ltda.
Página 13
Conclusão de “A fina espiral” da p.8.
Conclusão de “A arquitetura moderna em Cataguases” da p.2.
Anúncio: A Nacional – Antônio Rodrigues Gomes & Filhos
ltda. - especialistas em objetos para presentes.
Fragmento de Shakespeare.
Página 14
Conclusão de “Algumas notas” da p.11.
“Naufrágio” – poema de Alberto Parente.
Anúncio: Companhia Interestadual Mineira Automobilística –
agência Chevrolet e Indústrias Irmãos Peixoto S.A.
Fragmento de Murilo Mendes.
Página 15
Publicidade sobre o Colégio Cataguases, com foto.

Revista Meia Pataca – ano dois – nº 2 – Cataguases, junho de


1949
Página 1
(capa) fundo branco, foto do quadro “Flores”, de Jean Lurçat
Logotipo Meia-Pataca em caixa-baixa, indicando Ano 2,
Número 2, Cataguases, Junho de 1949 Minas Gerais, Brasil.
Página 2
Anúncios: CIMA – Companhia Interestadual Mineira
Automobilística, Fábrica de Pregos Santa Bárbara ltda, A
Imperial - Armarinho Ferragens Louças, Indústrias Irmãos
Peixoto S.A., Padaria Cabral – Panificação e Moagem de Café,
A Nacional - Especialistas em objetos para presentes: Artigos
Finos em Geral, Fábrica de Ladrilhos Tupi - Ladrilhos Diversos
Modelos e Cores, Companhia cataguases, Comp. Manufatora
de Tecidos de Algodão.
Página 3
“Meia-Pataca” – Recepção de Alphonsus de Guimaraens Filho
22
ao lançamento da revista.
“Cataguases espera em julho a Concentração dos Teatros de
Estudantes” – comentário sem autoria, continua na p. 14.
Página 4
“Canção” – Poema de Reinaldo Dias, ilustrado por José Maria.
“Bilhete de Alcântara Machado” – bilhete a Rosário Fusco, de
Alcântara Machado, 08.10.1927.
Página 5
“Mulher na Concha” – poema de Fred Pinheiro.
“Equívocos” – conto de Antônio Fraga.
Página 6
“Poema Um” e “Poema Dois” – de Francisco Marcelo Cabral.
Página 7
“Trecho do Capítulo Quatorze, do romance Carta à noiva” –
fragmento de Rosário Fusco.
“Museu de Arte Moderna de Cataguases” – comentário sem
autoria.
Página 8
“Suíte Infantil, Opus 3”, com quatro movimentos (Boneca de
pano, Ciranda, Soldadinho, Bicho Papão) – poemas de Ody F. e
S, de Florianópolis(SC).
“Meu ‘Poema da hora presente’” – de Salim Miguel
Página 9
“Zé Leme” – conto de Francisco Inácio Peixoto Filho
“A Nuvem de Fogo”, “7 Anos de Pastor”, “A Canção de Manhã”
– indicação de leitura, sem autoria.
“Meia-Pataca” – Créditos
Página 10
“Da Conferência do Professor Hernâni Cidade, no Colégio de
Cataguases, sobre os valores estéticos de Os Lusíadas” – artigo
de Hernâni Cidade
Página 11
“Mônica” – Poema de Lina Tâmega Peixoto, com ilustração de
José Maria.
Página 12
“A Menina Sem Paisagem” – conto de Lina Tâmega Peixoto
“Conservatório Lorenzo Fernandez” – comentário sem autoria
Página 13
23
“A Morte Hoje” – poema de Carvalho Filho, ilustrado pelo
quadro “Visita à casa do Doutor”, de Maurice Utrillo
“Sociedade dos Amigos de Augusto dos Anjos” – Comentário-
recepção da sociedade citada, sem autoria.
Página 14
“Paschoal Carlos Magno” – comentário sem autoria, ilustrado
pelo quadro “Le Moulin de la Gallete”, de E. Maclet
(continuação do comentário iniciado na p. 3)
Página 15
(Notas)
“Adelino Magalhães” – artigo sem autoria
notas e comentários diversos
Página 16
Continuação das notas da p. 15; diferentemente do que acontece
entre as p. 3 e p. 14, não há indicação de continuação na página
anterior (p. 15)
Página 17
“Tristeza à Beira da Vida” – Poema de Lina Tâmega Peixoto
“Mulher Nova dos olhos tristes que passas” – Poema de Manuel
Pinto (Portugal)
“Grécia” – poema de Francisco Marcelo Cabral.
Página 18
Anúncio: “Colégio de Cataguases”, com apreciação de várias
personalidades, com foto do colégio
Página 19
Anúncio: Saco-Têxtil Cataguases Ltda, Reembolso Postal de
Tecidos e Armarinhos, Henriques Fellipe & Cia. Ltda, Farmácia
e Drogaria Peixoto – Drogas Perfumes Especialidades
Farmacêuticas, Bar e Restaurante Elite Ltda – Conservas,
Gelados, Biscoitos, Frutas, Bombons, Balas e Artigos para
fumantes, Salgado e Cia. – Fábrica de Macarrão e Massas
Alimentícias – Moagem de fubá e farinha de Mandioca, Bar do
Ponto – Irmãos Marinho e Cia. – Bilhares e Snookers, Bazar
René Ltda – Sedas Calçados Chapéus Perfumarias Louças
Brinquedos e Artigos Dentários, Plissê – Ponto Turco Ponto
Cadeia Ajour Botões Cobertos, Grande Hotel, Farmácia Santa
Rita – Drogas Nacionais e Estrangeiras e Perfumarias em Geral,
Paraíso da Sorte – José Caruso & Cia.
24
(Nota:) está revista foi composta e impressa na Tipografia
Ribeiro Ltda, onde V. S. poderá confiar seus impressos na
certeza de ser bem servido.
Página 20
(contra-capa) fundo branco, ilustrada pelo quadro “Nu
Deitado”, de Marie Laurencin
“Sumário”
Fragmento de um poema de Mario de Sá Carneiro

1.2 - Participantes e colaboradores

A princípio, o grupo “Meia-Pataca” era composto, como se


registra nos créditos da revista, por quatro participantes: Lina
Tâmega Peixoto, Francisco Marcelo Cabral, Francisco Inácio
Peixoto Filho e Luciano Peixoto Garcia, contemporâneos e
estudantes no Colégio de Cataguases, alunos do professor de
português José da Silva Gradim, um mestre e incentivador das
letras que, em sua longa carreira, descobriu e orientou muitos
talentos literários.
Com o encerramento da experiência da revista, após o seu
segundo número, em 1949, a equipe organizadora se separou e
apenas dois de seus participantes continuaram a carreira
literária: Francisco Marcelo e Lina. Francisco Inácio formou-se
em Direito e firmou-se como diretor do Colégio Cataguases, e
Luciano Garcia tornou-se professor no mesmo estabelecimento.

1.3 - Cartas de Aconselhamento

Foram muitas as cartas recebidas pelos editores de Meia-


Pataca de escritores ligados a Cataguases, como Rosário Fusco,
Marques Rebelo, Guilhermino Cesar e Guimarães Rosa. São
exemplos não só da recepção à revista e aos livros editados pelos
então jovens poetas, como de aconselhamento de autores
experientes que eram. Reproduzimos a seguir apenas algumas
delas, outras fazem parte do Anexo 1 que se encontra no final
desta monografia.
25
Cartas de Rosário Fusco para Lina Tâmega

Lina Tâmega Peixoto: bom dia.


Isto que aí vai (um livro e um poema copiado especialmente
para você) é do Manuel Bandeira. O Carlos Drummond de
Andrade lhe enviará, via Chico, em Janeiro, Poesias
Completas dele, que está pronto para sair. Seus poemas
sairão em Sombra (3, nº de janeiro de 48) e Diário Carioca
(neste mês ainda acompanha o suplemento dominical aí).
São todos ótimos e fizeram sucesso. O conto, eu acho muito
ruim. Infelizmente não tenho tempo para lhe explicar por
que ainda não pude pegar a Cecília Meirelles. Mas o resto
da promessa será cumprida. Mandarei, depois, alguns
livros, revistas e o espelho de Meia-Pataca. O poema do
Bandeira merece uma reprodução, um clichê, no Meia-
Pataca ou em O Estudante. Se quiser agradecer ao
Bandeira, o endereço dele é: Av. Beira Mar, 406, aptº 409,
ou, então, Academia Brasileira de Letras, Av. Presidente
Wilson. Não tenho notícias daí, nem lido jornais, mas
espero que seu pai tenha sido eleito: viva o prefeito. Dê-lhe
parabéns por mim e me recomende ao Chico, por favor.
Rosário Fusco 29.01.47
(FUSCO, 1947, n. p.)

Lina:
Recusou o livro do Bandeira?
Mandei, hoje, mais dois:
Poética, de Aristóteles (em espanhol), Cancioneiro, de
García Lorca.
Mande, ao menos, dizer se recebeu os volumes.
Recomendações a seu pai e ao Chico. Rosário 05.12 .47
(IBID.)

Lina Peixoto: bom dia


Infelizmente não tenho coisa alguma pronta que lhe possa
mandar. Também não disponho de tempo, no momento,
para escrever algo especial. Estou terminando meu
romance –“carta à noiva”- e não quero nem posso sair da
atmosfera dele, para não quebrar o tônus da coisa.
Desculpe, obrigado pelo convite, mas fica para outra vez.

26
Se mandar os nomes integrantes do grupo, farei notícias
para os jornais daqui. Acho que devem articular o
aparecimento da revista com as outras existentes por todo
o país. Como Cataguases bem ou mal, possui uma tradição
literária, por que não inauguram uma seção no Meia-
Pataca (“arquivo”, “museu” ou coisa equivalente),
reproduzindo curiosidades de 1927? (uma carta, um
retrato, uma crítica e quaisquer dos livros que daí
saíram...etc.)
Penso que não podem esquecer Ascânio Lopes. Sobre ele
escreverei para um dos próximos números da revista, se a
revista sair. O Chico Peixoto pai (seu tio) poderá lhe
fornecer o material a que me refiro. (trechos de livros
inclusive). Há um livro de Henrique Pongetti (Câmara
lenta) uma excelente, pitoresca crônica sobre Cataguases
lembre isto ao Chico. Os poemas – seus e do Cabral – só
não foram publicados ainda por culpa única e exclusiva
deste seu admirador. Não tenho reclamado. (Sombra,
Diário Carioca, Letras e Artes) e, aqui, a coisa só sai
mesmo se der em cima. Tem escrito muito? Quem é o
prosador do grupo? Crive a colaboração (a partir da dos
amigos) sem dó nem piedade. Faço votos para que Meia-
Pataca faça o sucesso que vocês merecem – não pela
coragem de repetir uma aventura literária aí, mas pelo
talento real de que vêm informados. Recomende-me à
senhora sua mãe. (domingo, ontem, saiu um artigo de
Hernani Cidade – creio que em O Jornal, viu, leu?) e seu
pai. Não deixe de escrever contando o que acontecer com a
revista. Não publicá-la é covardia, publicá-la mal é
burrice. No mais, mande as suas ordens.
Rosário 05.04.1948 (FUSCO, 1948, n. p.)

Cartas de Marques Rebelo para Lina Tâmega

Estou satisfeito com o entusiasmo de vocês.


Envio Revista. E umas colaborações de Alberto Parente -
da África. Do grupo Itinerário. Depois enviarei a revista
deles.
Vou mandar coisa minha também.
Cecília Meireles está em Paris.
Vou mandar uma lista de nomes para você. Mas você pode

27
ir rejeitando os nomes da revista que tenho enviado pois são
de grupos novos.
Bom Natal. Rebelo 16.12.47 (REBELO, 1947, n. p.)

Lina:
Diz o Santa Rosa que não deve mudar a capa nunca. Está
bom. Precisamos é melhorá-la assim:
a)Cada número a barra será de uma cor.
b)A cor deve ser sempre clara para o preto do título realçar.
c)A barra colorida deve sair desde a borda superior até a
linha onde se inscrevem local e data.
d)Na parte branca da capa deve ser sempre em gravura –
nenhum artigo ou poesia.
De maneira que: toque pro pau! 03.11.48 (REBELO,
1948, n. p.)

Carta de Guilhermino César para Marcelo Cabral

Francisco Marcelo Cabral:


Seu livro de estréia me agradou. Penso até que lhe exprimi
isso mesmo. Mas o Inexílio, para ser franco, me deixou de
boca aberta. Sua evolução (não gosto dessa palavra, mas vá
lá) deixou-me realmente maravilhado. A “massa evolutiva”
de sua poesia é simplesmente admirável. Um poeta
autêntico é o que não se deixa surpreender pela sua matéria.
E a matéria-Cataguases, tão funda em v. como vivência
reganhou um relevo que nenhum de nós, nem Ascânio, nem
Enrique, - que ninguém conseguiu captar com tamanha
fluidez, pungência e eficácia estética. Desculpe o uso da
última palavra, que hoje soa falso, por excesso de uso, mas
é assim mesmo; é assim, porque se trata de um poema em
que a beleza (no sentido fulguração tomista) se esparrama
como brasas. Ai que me queimei. Saí da primeira leitura
encantado. Deixei o opúsculo (termo horrível) em cima da
mesa. No dia seguinte, nova leitura, novo delírio. É preciso
agora que v. publique, logo loguinho, o Pedra de Sal. Vi que
foi premiado. Ainda bem que começou bem; e lance-o
quanto antes, que de má poesia estamos cheios. Tem visto o
“Suplemento Literário” do Minas, quanta bobagem vem
publicando? Mate todos esses poetastros com uma pedra
arrancada ao piso de pedra de nossa Cataguases! (Não sente

28
a ressonância do Inexílio?)
Boquiabertamente grato, o velho Guilhermino Cesar
Já leu o Arte de Matar? 1949 (CESAR, 1949, n. p.)

Carta de Guimarães Rosa para Marcelo Cabral

Meu caro Marcel,


Perdoe-me o tempo roubado de seu livro, o involuntário
seqüestro.
Continuo em férias.
Depois – daqui a 10 dias – conversamos.
O livro é grande.
Sincero o digo, olha: até do “Poema da Identidade” já estou
gostando... Não é engraçado? Poesia é coisa-causa, difícil e
fácil; é uma espécie de contágio.
Depois, conversamos.
Meti, aqui e ali, umas notas, a lápis. Agora, sinto que estava
pecando. Eu não me achava em estado-de-graça receptiva,
sei, e fui exercendo uma lancetação, crítica
excessivamente severa. Suspendi-a. É falsa. Não vale essa
crítica mutilante, fragmentista.
Depois conversamos.
Agora, só o forte abraço, saudoso, do seu
Guimarães Rosa
15.II.54 (ROSA, 1954, n. p.)

1.4 - Repercussão interna e externa

Uma nota intitulada “Meia-Pataca”, do jornal


Cataguases, em seu número 724, de 22 de agosto de 1948, foi a
primeira recepção impressa que registramos. Muito formal e
enaltecedora, demonstra o respeito e a esperança de que o
trabalho dos jovens de então ‘engrandeça’ a cidade entre a
intelectualidade do país.

É este o nome da interessante revista que acaba de surgir


nesta e fundada por um grupo de jovens literatos
contemporâneos, a cuja frente se encontram as figuras
promissoras de Francisco Peixoto Filho, Francisco
29
Marcelo Cabral, Lina Tâmega Peixoto e Luciano Peixoto
Garcia, seus diretores.
Apresentando-se como continuadora do movimento
renovador iniciado há 20 anos em Cataguases pelos
rapazes da Verde e que tão larga repercussão teve no Brasil,
Meia-Pataca, em seu primeiro número, primorosamente
impresso e ilustrado, traz farta colaborações de seus
fundadores e vários vultos de renome nas letras nacionais.
Saudando fraternalmente a nova confreira, esperamos que
o público não lhe faltará com o apoio para que ela possa
prosseguir na sua tarefa nobilitante de tomar a nossa terra
cada vez mais engrandecida nos meios intelectuais do país.
(MEIA-PATACA, 1948, s. p.)

No corpo da revista, em seu segundo número, e sob o


título de “Meia-Pataca”, o poeta Alphonsus de Guimaraens
Filho recepciona a nova publicação fazendo uma referência a
outras revistas que surgiam na época e relembra também o
Movimento Verde.

Joaquim, de Curitiba, cujo título, como solicitamente


informa, constitui uma homenagem a todos os Joaquins do
Brasil: Clã e José de Fortaleza, Ceará, Colégio, e Revista
Brasileira de Poesia de São Paulo, Quixote, de Porto
Alegre, cujo número inicial advertia: “Vamos fazer uma
barbaridade”; Região, de Recife, Orfeu, do Rio, Edifício,
de Belo Horizonte, infelizmente em silêncio, depois de
quatro ou cinco números. São essas as publicações dos
jovens escritores nacionais. Não se me escapou alguma. A
tantas, e tão consideráveis, quero acrescentar, muito
especialmente, Meia-Pataca, modesta revista de
adolescentes da cidade mineira de Cataguases. Está visto
que o aparecimento de Meia-Pataca, imediatamente
recorda a saudosa Verde que alcançou preleção definitiva
na história do movimento modernista brasileiro.
Verde surgiu numa hora em que a necessidade de destruir a
rotina e os cacoetes literários era imperiosa, inadiável.
Nem foi outra a função do modernismo, capaz de efeitos
salutares. Também ela se dispunha a “abrasileirar o Brasil”.
E tudo isso numa intimidade meio desrespeitosa, ao gosto
do tempo: “Aparecemos para um público que não existe.
30
Vamos ser incompreendidos e criticados. Mas, que esse
público ainda virá a existir, é certo também. É certo e é um
consolo... Portanto, conservar muito é bobagem! Somos
novos. E viemos pegar as idéias novas da Nova Arte. E está
acabado. E não precisa mais. Abrasileirar o Brasil – é o
nosso risco. Pra isso é que a “Verde” nasceu. Por isso é que
a Verde vai viver E por isso, ainda, é que a Verde vai morrer.
Ponto. Leitor camarada: muita honra e muito prazer em
conhecê-lo. Disponha”.
Sabe-se que o prestígio de Verde se fez enorme. Os maiores
nomes do movimento lhe enviaram colaborações. E Verde
chegou a criar, na cidade mineira de Cataguases, um grupo
homogêneo de escritores, onde se impuseram nomes como
os de Ascânio Lopes – poeta morto aos 22 anos e autor de
alguns poemas inesquecíveis, Guilhermino Cesar, o
romancista de Sul, e crítico literário, Francisco Inácio
Peixoto, o contista de Dona Flor, Rosário Fusco,
romancista e crítico literário. Para ficar apenas nesses.
O grupo de jovens que agora edita Meia-Pataca liga-se, no
tempo, ao de Verde. E resta uma tradição que já se fez de
Cataguases uma cidade culta, uma cidade de inteligência,
em dia com todas as inovações. Não existisse nela um
ginásio cujo edifício poderia estar em qualquer grande
cidade... Os jovens de hoje prestam a sua homenagem a
Verde: “Esta revista continuará ligando o fio interrompido
há 20 anos, a tradição que Cataguases carrega consigo,
nascida pelos rapazes de então, da Verde. Firma-nos-emos,
não nos mesmos moldes, mas no mesmo espírito que os
animou, porque, reconhecemos que a nossa própria
divulgação é pobre e vacilante, como pobre e vacilante era
o material da Verde. Porém, esperamos que mais tarde
possamos realizar coisas mais concisas e firmes. Seu nome
provém do córrego que passa atrás da cidade como um
abraço, e que foi o primitivo nome de Cataguases. Os
pioneiros acharam, nas águas barrentas, meia-pataca de
ouro, e foi só o que encontraram para o resto da vida”.
Depois de mencionar um poema de Francisco Inácio
Peixoto, publicado no livro Meia-Pataca de 1928, a
introdução adverte: “O nosso maior desejo, contudo, é que
estas páginas exprimam exatamente os nossos
sentimentos, às vezes confusos, e as aspirações de um

31
sangue novo. Confiamos no tempo e naqueles que nos
guiam, para nos conduzir a um terreno sólido, porque há
agora maior confusão e mais sobressaltos para o que
principia do que há tempos atrás. Épocas de realizações
instáveis, mudanças perigosas. Teremos assim de confiar
em nós próprios, nos nossos ideais, permanecendo fiéis “as
nossas próprias convicções”.
Meia-Pataca traz, na maioria, colaborações de jovens de
Cataguases. Alguns veteranos aparecem: Carlos
Drummond de Andrade, respondendo a um inquérito;
Manuel Bandeira, com um autógrafo de seu poema “Eu vi
uma rosa”; ainda “contribuição anti-poética” de Marques
Rebelo. E uma carta inédita de Mário de Andrade, de 1928,
dirigida a Francisco Inácio Peixoto. Carta publicada em
homenagem “ao que mais se apegou o movimento “Verde”.
O mais é dos moços: poemas, ficção, pequenos estudos.
Dentre os poemas, desejaria destacar “Pedro” e as duas
primeiras estrofes de “Perspectiva”, ambos de Lina Tâmega
Peixoto, em quem a expressão, apesar da pouca idade,
alcança pureza promissora.
Mas isto é simples registro, e não devo citar mais. De
passagem façamos uma alusão ao nome de Francisco Inácio
Peixoto, que – como o pai, com Verde – é um dos grandes
animadores de Meia-Pataca e me deixou com sinceras
esperanças. Não lhes vou desejar êxito, nem que consigam
vencer os três números fatais etc., etc. Tudo isso está
implícito no convite para que sigam caminho, com a certeza
de que a sua “aventura” (como lhe chamam) chegou em boa
hora, e deve perseverar. (GUIMARAENS FILHO, 1949, p.
1)

32
2 - FRANCISCO MARCELO CABRAL

2.1 - Autobiografia mínima

Para esses dados, foi colhido material que selecionamos


quando da edição do suplemento “Caderno C”, do jornal
Cataguases, por ocasião da comemoração dos setenta anos do
poeta Francisco Marcelo Cabral, e o depoimento que segue foi
obtido junto ao próprio autor.

MARCELO POR FRANCISCO

Nasci em 1930 em Cataguases, MG, onde freqüentei os


cursos primário no Grupo Escolar Coronel Vieira e ginasial
no antigo Ginásio Municipal de Cataguases (41 a 45),
depois Colégio de Cataguases, onde obtive a honra de, na
qualidade de “representante do corpo discente” falar na
inauguração do “Tiradentes” de Portinari, a quem conheci
durante os trabalhos de instalação e acabamento do grande
painel.
O curso colegial foi feito - dos quinze aos dezessete anos -
na vizinha Leopoldina, no então já decadente Colégio
Leopoldinense.
No período leopoldinense, desfrutei da amizade, iniciada
ainda no Ginásio de Cataguases, de Carlos Araújo Moreira
Neto - hoje um antropólogo de expressão mundial. Juntos
fizemos um jornal(zinho) que já no nome - A Flama (coisa
do Carlos) - pretendia ser um desafio à autoridade - no caso,
o Padre José Domingues, gentil e anódino diretor daquela
caricatura de ateneu. Numa flama não se pisa nem se senta.
Como era de hábito naquela época, o jornal devia ter um
dístico, mas eu não o tenho na memória nem sobrou
nenhum exemplar para consulta.
O ânimo revolucionário da folha, “comprometida” com a
onda de democratização do país - que também contou com
o apoio de Celso Valverde de Lacerda, Francisco José
Ribeiro Junqueira e toda a nossa ardorosa e adolescente
tribo - era insuflado pelo Carlos, mais lido, mais
politicamente informado, mais experiente (vinha de Belo
Horizonte, das rodas da casa de Arduíno Bolivar) e acho

33
que um ano (!) mais velho - a “agitprop” atuando em
nossa roda.
Trazida por ele, publicamos a tradução do famoso e
premonitório poema - “I have a rendez-vous with Death” -
de Alan Seeger, jovem poeta romântico americano (1888-
1916), herói da Legião Estrangeira Francesa, morto em
ação, de uma rajada de metralhadora, em Belloy-en-
Santerre, na I Grande Guerra (nós estávamos saindo da
Segunda).
Na tradução que publicamos, creio que de Abgar Renault,
“rendez vous” era “entrevista”(por que não “encontro”?). O
final comovedor do poema inflava a nossa veia heróica e aí
vai, numa tradução quase literal: “Deus sabe como seria
melhor/ afundar a cabeça em perfumados travesseiros de
seda/ onde o Amor palpita num sono abençoado/pulso com
pulso e hálito com hálito/e onde é doce acordar em
silêncio.../ Mas eu tenho um encontro marcado com a
morte/ à meia noite em alguma aldeia em chamas/ quando
de novo a primavera se for para o norte/ E a minha palavra
de honra eu empenhei/ Jamais a esse encontro faltarei.”
Nessa brilhante folha me lembro que publiquei um soneto
muito bem feitinho, revidando crítica do prof. Geraldo
Vasconcellos Barcelos ao uso “errado” do pronome nuns
versos meus (“Me matei de sombra,/ me pintei de roxo...”)
O dito soneto - de que não me lembro mais nada -
terminava: “Pobre José que, vate em profundezas / por um
pronome certo te deténs/ morram por ti todas as sutilezas /
da gramática: tu, só tu, convéns!”. Como suprema e sutil
malícia e “vingança”, publicamos um soneto do prof.
Barcelos, dedicado a nós. Aí vai o primeiro quarteto: “Vós
sois, – mocidade, alva da vida/ quadra radiosa, esplêndida,
gazil/ plena de sonhos ideais, florida, / a glória futurosa do
Brasil”...
Autor precoce - além do ciclo leopoldinense da Flama,
publiquei versos na Meia-Pataca em 1948 e O centauro em
1949 - fui leitor espontâneo aos 5 anos e credito minha
formação intelectual básica e meu gosto pela literatura a
quatro professores que faço questão de nomear: Ruymar
Branco Ribeiro, com quem aprendi a escrever, no sentido
gráfico do termo, e a ter uma relação estética com a palavra
escrita e os ecos e ritmos da fala nela impregnados; Sílvia

34
Teixeira Villas, que fez das primeiras leituras um prazer
inesperado; Lyra Cunha, e o gosto pelo conhecimento
organizado e metódico; e sobretudo José Silva Gradim, que
despertou e deu suporte teórico e prático ao gosto pela
língua e pela literatura.
Desde a adolescência, contei com a amizade e a influência
de intelectuais como Lina del Peloso (com quem editei a
revista literária Meia-Pataca, em 1948), Francisco Inácio
Peixoto, Rosário Fusco - que saudou com generosidade e
exagero minha estréia em 1949 - Guilhermino Cesar,
Marques Rebelo.
Após a publicação de O centauro, tive poemas divulgados
com grande destaque na imprensa de Ponte Nova, graças à
generosa intervenção de A.Brant Ribeiro. (Me lembro de,
numa visita à casa do jovem Joaquim Branco, ter visto
colado atrás da porta do seu quarto um poema meu - “O
Escorpião” - publicado em página inteira no jornal de Ponte
Nova. Confesso agora: foi uma grande emoção e o
despertar da consciência de que escrever é - também -
escrever pelos outros.
Certa vez em Cataguases, numa rodinha de bar, em 1950
(ou 51) fui abordado por um jovem escritor (três anos
mais novo do que eu) que viera a Cataguases para falar com
Francisco Inácio Peixoto, que o remeteu a mim.
Nem eu nem ele sabíamos que se iniciava ali uma amizade
fecunda que marcou nossas vidas. Alexandre Eulálio foi
um irmão, um amigo, um mestre.
No Rio, a partir de 1950, para o curso de Direito, e já com o
primeiro livro publicado, convivi com intelectuais jovens e
outros já consagrados como Antônio Fraga, Paulo
Armando, Marcílio Marques Moreira, Mário Faustino, José
Lino Grunewald, Aurélio Buarque de Holanda, Antônio
Bulhões, Afonso Félix de Sousa, Antônio da Costa e Silva,
Antônio Olinto, Ledo Ivo.
Em 1952, como funcionário do Serviço de Imprensa do
Ministério das Relações Exteriores, me tornei amigo de
Guimarães Rosa, e fui um dos primeiros leitores de
Grande sertão: veredas e Corpo de baile, em fase final de
elaboração, acompanhando de perto a datilografia dos
manuscritos. Desse período, guardo os originais do não
publicado Pedra de sal, repleto de notas e comentários do

35
autor de Sagarana. (Tenho um exemplar da primeira
edição do livro com a dedicatória a caráter: “Este Sagarana
para o Marcel Francisco Marcelo Cabral, que, na ocasião
(1946) eu ainda não sabia que conhecia; - e que, mesmo por
isso, depois vim a conhecer demais; isto é - Amigo - e, em
muito entendimento de amizade, o Guimarães Rosa. Rio,
1956”.
Nessa época, com a nomeação de Augusto Meyer para
Adido Cultural na Alemanha, passei a dividir o
apartamento do grande poeta e ensaísta gaúcho, com
Alexandre Eulálio e Carlos Sussekind, numa espécie de
“república” freqüentada por Otávio Mora, Ismael Cardim,
Maria Ângela Alvim, Chico Alvim, Davi Neves, Jorge
Laclette, João Urbano Rezende Costa e muitos outros.
Mera curiosidade: o contrato de locação do apartamento
foi feito por mim em decassílabos com variado apoio
rítmico: “Contrato literal e literário/ que fazem entre si
Augusto Meyer/ e Francisco Cabral: um, que se vai/
errando pelas terras da Alemanha/ e outro que fica,
entregue à própria sanha: / Rio, em outubro, ano cinqüenta
e quatro”...e por aí vai. O que confere a essa brincadeira o
teor de documento literário é a assinatura de Augusto
Meyer, na qualidade de “feroz locador”.
Da amizade com Álvaro Sá, resultou o que em breve será
uma nova edição do poema Inexílio, de 1979, enriquecida
com a leitura crítica do grande poeta autor de Poemics.
Atualmente minhas atividades se resumem a inventar e
rabiscar besteiras, corrigir textos alheios e a colaborar
esporadicamente em publicações comandadas volta-e-
meia pela dupla Joaquim Branco e Ronaldo Werneck.
Como outros poetas, ganhei alguns prêmios, o mais
importante dos quais - pelo valor e pela divulgação
nacional - foi o do Ipase, em 1954, cuja comissão de
premiação era liderada por Manuel Bandeira, e que
contemplou o poema “Sextina fabricada sobre as chaves de
Américo Facó” que faz parte de Baile de câmara, poemas.
De minha vida “civil”, quem sabe eu ainda falo qualquer
dia destes... Se é quem tem alguém interessado.
(CABRAL, 2001, p. 3)

36
2.2 - Avaliação da obra

Os textos a seguir foram escritos pelo romancista Guimarães


Rosa com o qual Marcelo Cabral teve contato e de cuja
admiração mútua nasceu uma grande amizade, daí as palavras
de homenagem, a primeira em um telegrama emitido no Rio de
Janeiro, não datado, e os demais em manuscritos
datilografados:

De Guimarães Rosa

Dr. Marcel Ovate Cabral


Praia Botafogo
Cataguases ponto exclamação Nossa Vitória etcetera e
glória ponto Cantado o peixe vivo Exultarei séculos
Guimarães Rosa
(ROSA, telegrama, s. d.)

Òdiamarcel
Quando as luzes e o azul se converterem
em sincera distância, mais que ausência,
e, à paz de frios céus de nova infância,
no suar, floresta e fogo se ajuntarem.

Então, Marcel, poeta, vate insano,


desirmanado e escasso producente,
traduzindo epistáxis e troiano
docemente das lágrimas da gente,

poderás. E, podendo, será mente


e matéria – veneno de serpente,
bagaço mineral incandescente.
Assim, dirão, convém Marcelo tente
acertar a emoção, atentamente,
para que sua musa de alabastros cante
o que na vida val: metal sonante!

Soneto

37
Quando tudo acabar e ficar sendo
nossa ternura apenas a lembrança
de um amor que, passado, ficou sendo
a mais morna e romântica lembrança;

quando o amor acabar, já não havendo


carne para queimar, que o corpo cansa,
e o que é melhor em nós brotar, havendo
uma calma paixão que não descansa

a provocar no peito o mesmo fluxo


– mas manso agora, apenas um reflexo
das altas ondas em que navegamos –

saberemos que o laço não se quebra


o que tudo ficou, e tudo lembra
o que não se acabou, que abandonamos.
I
Quando o fim se fizer novo roteiro
e a ternura que é nossa for diversa:
passado trespassado de esperança,
temperada ilusão, violência mansa,
minha vida na tua se dispersa
e a poesia dá uivos no tinteiro.

II
Marcel – que sejas sempre bom mineiro
navegando mancebo em ondas baixas
e calada a paixão que porventura
te instigue a queimar de uma criatura
o corpo (tarado não és, se achas:
carvão: amor em estado verdadeiro).
(ROSA, s.d., s. p.)

No “Caderno C”, suplemento do Cataguases, de 25.02.2001,


foi publicado um levantamento de opiniões da vários escritores
sobre a obra de Marcelo Cabral, que passamos a reproduzir:

De Carlos Drummond de Andrade


(...)Ainda é cedo para dizer, diante deste seu livro, alguma
coisa de positivo sobre sua poesia. As estréias são isso
38
mesmo, um problema de julgamento. Problema tanto para o
autor como para o crítico ou o simples leitor, que eu sou. O
poema “Homem, cavalo, centauro” ilustra aliás muito bem
essa dificuldade, refletindo-a. A ”trindade do ser eclético”
não é mera imagem, e a declaração deliciosa de que seus
versos são “feitos de usos e abusos” representa uma
verdade: uso das convenções modernistas e
neomodernistas, uso também das velhíssimas convenções
da poesia portuguesa, e abuso de tudo isso, porque esses
recursos são empregados desordenadamente. De qualquer
modo, uma certeza penso ter vislumbrado através do livro:
é que a poesia o interessa como essência e como expressão,
e que você busca exprimir o máximo de si mesmo e de sua
concepção do mundo, na forma artisticamente mais
adequada. Mesmo na desordem da realização, nota-se a
preocupação de chegar a uma ordem. E se seus versos não
estão ainda construídos de maneira satisfatória, sente-se
que não tardarão a apresentar-se com uma estrutura sólida
e exata.
Creio que você tem coisas para nos dizer. Elas já estão
anunciadas neste Centauro. Por exemplo, quando você diz
“Tudo é de tal modo suave/ que me sinto evaporar” ; “a dor
é só instrumento”(conceito que encerra uma verdade
estética admirável), quando usa expressões como “as
dobras do não dizer”, quando, para descrever um homem
sob a chuva, diz que ele vai “vestido de água corrente” -
sinto que aí tem coisa. Não jogue fora essa coisa, Francisco
Marcelo Cabral; cultive-as, apure-as, dê-nos boa poesia;
estamos tão precisados! (09.12.1949)

De Manuel Bandeira:
Autor do belo Centauro,
o Poeta Manuel Bandeira
Envia um ramo de louro,
Saudando-o desta maneira
Ás futuro entre outros ases!
(Rio, 20.XII.49)

De Adelino Magalhães:
Muito agradeço O centauro!
Agradável impressão causou-me a leitura desses versos de

39
moço, especialmente a parte “Líricas”, na qual “Cantiga de
Amor” é verdadeiramente deliciosa!
Moderno, sem excesso, O centauro terá sem dúvida
leitores interessados, que saberão sentir sabor nessa poesia
em que há emoção, o que não é hoje comum. (16.12.1949)

De Hernani Cidade:
Só agora, em férias de Páscoa, me foi dado ler o seu
Centauro. Desculpe-me a demora, mas eu cada vez menos
sou o dono do meu tempo, de mim próprio... (...) Li-o com a
mais perfeita simpatia, num ansioso desejo de sentir em
mim ressonância a quanto ia lendo. Devo dizer-lhe que
houve bastante poemas que não me acordaram o mínimo
eco. De outros gostei. Por exemplo “Não posso te ouvir”,
“Polígono”, “Cântico”, “Grécia”, “Canto do avô morto”.
“Composição”, “Poema meu”, “Serenata romântica”,
“Vilancete da bela morte” e “Os epigramas” agradam-me
como duas floritas brotadas da mesma emoção, ou melhor,
como uma flor que morre - e o arrepio que de tal morte
repercute na alma. Agradou-me o “Improvisador” que
mana da mesma fonte fresca de sensibilidade de que
fluíram os últimos poemas de sabor medievo. Como ontem
se alentava para a luta quando fincava os pés na terra sua
mãe, a Poesia nada perde nestes contatos com as formas
primitivas. de quando ela era pura emoção que se fazia voz
e ritmo.
Fixei essa quadra:
Olha! É o tempo que varia
Ou isto um rondó seria.
As minhas mãos a morrer
e tanta beleza por ser.
Que as suas mãos não morram. E morram, se lhes retira o
poder de criar beleza, entregando-as manietadas ao
subconsciente, que a não sabe criar. Dele apenas se colhem
vaguidades emaranhadas, farrapos de delírio. Creio no seu
futuro de poeta. Creio que a confusão de Homem, cavalo,
centauro seja transitória e dentro de algum tempo esteja
superada. Em cada momento se nos impõe arrancar uma
parte de nosso ser ao subconsciente, aumentar em nós o
homem e diminuir o cavalo, fazer cosmos da confusão
caótica. Isso é o próprio do homem. Assim o há-de ser.
40
Para ser o poeta que escreverá o futuro livro - O Homem
integral - em que a Razão ordenadora, esclarecedora,
comunicativa, colabore, até os limites do posssível, nada
lhe falta. Sensibilidade, funda intuição do poético,
naturalidade espontânea de ritmo - e visão crítica.
Seja esta a sua legenda: cada vez mais homem e menos
centauro. (Lisboa, 10.04.50)
(OPINIÕES SOBRE FMC, 2001, p. 4)

Na contracapa do Livro dos poemas, de Cabral, são


enumeradas impressões por meio de cartas de autores sobre sua
obra, e outras publicadas em jornal, que vale transcrever:

Que o livro é bom, não há dúvida: um bom mais que


relativo. Ainda outro dia, fornecendo um flash ao Condé,
incluí v. entre os meus poetas: se quer mais, peça ao Pedro
Cabral. Rosário Fusco. 19.09.48

(...) porque se trata de um poema em que a beleza (no


sentido da fulguracão tomista) se esparrama como brasas.
Ai, me queimei. Saí da primeira leitura encantado. Deixei o
opúsculo (termo horrível) em cima da mesa. No dia
seguinte, nova leitura, novo delírio. (...) Guilhermino
Cesar. 12.5.79

Meu caro Francisco Marcelo


que beleza o seu poema! Acabo de lê-lo, num impulso,
nesta manhã tão diferente e tão igual à Cataguases que nele
passa: cheia de luz e de invisível e pungente treva.
Chico Alvim. 2.10.79

O livro é grande.
Sincero o digo, olha: até do “Poema da Identidade” já estou
gostando... Não é engraçado? Poesia é coisa-causa, difícil e
fácil; é urna espécie de contágio. Guimarães Rosa. 15.11.54

Rigoroso, inventivo, impecável. (José Lino Grünewald.


21.3.93)

(...) Ah! A magia oral que há, adormecida, por assim dizer,
na escrita dos alexandrinos do soneto final, “Sobre os
41
ramos...! beleza adormecida que redesperta, requerendo-a,
a leitura em voz alta. Obra-prima! Fecho de fechos!
Octávio Mora. 22.04.93

Não há prazer intelectual igualável ao que


experimentamos, enquanto caminhamos pelas sendas de
um poema corno Balada da Boba. Os episódios
energizados em cada verso nos guiam através do gozo
estético semeado pela tragédia do personagem. Nietzsche
presente.
Victor Giudice. s. d. (CABRAL, 2003, s. p.)

De Salim Miguel:
“Círculo de Arte Moderna
Fpolis,26/2/49
Meu caro F.M.Cabral:
Recebemos seu livro de poemas. (...) É uma alegria poder
de vez em quando, dentro desta enxurrada tremendérrima
de livros, cadernos etc, de poesias que estão surgindo
ininterruptamente por este Brasil afora, se encontrar uma
estréia tão auspiciosa e promissora quanto a sua.
Logicamente, como estréia que é, ressente-se de uma
depuracão maior, mas está mais do que claro que isto virá
com o tempo. O que é inegável é o seguinte: seu volume de
poesias possui muito mais valor do que grande nœmero de
livros ultimamente publicados, de nomes feitos, e tidos
como extraordinarios. Então a segunda parte, as
“Líricas”, com poemas de uma pureza, uma leveza, com
um senso exato do estado, da coisa poética em si... Mas
desculpe estas “mal alinhavadas linhas” ditadas pela
admiração, saídas logo após terminar a leitura.(...)”

De Antônio Olinto
“O Globo nas Letras”,(O Globo, 26.12.1949)
UM POETA
(...)Há uma busca de novos caminhos nos versos de
Marcelo Cabral. Afastou-se do poema-anedota tão
comum em nossa literatura dos últimos tempos. Penetrou
mais a sério no fenômeno poético, na tentativa de alcançar
“o rosto velado das coisas sem dono”. Nessa pesquisa

42
pela poesia a dentro, Marcelo Cabral encontrou a técnica,
descobriu o ritmo. E deles ficou enamorado. Os versos (...)
têm um ritmo fácil, dessa facilidade do primeiro encontro
com a poesia. (....) Apesar da constância desse ritmo na
maioria de seus poemas, ou mesmo por causa dela,
Marcelo Cabral revela a existência de um forte acento
poético em todos os seus versos. (....)
Já se nota em O Centauro alguma preocupação metafísica,
que é a principal característica dos artistas de nosso tempo.
Em certos poemas, o molde comum da técnica, que adotou,
se dissolve e surgem então lampejos de liberdade, em que o
pensamento atravessa a estrutura material do verso para
impor a força de sua presença.
Depois deste livro, Francisco Marcelo Cabral ficará livre
do que fez até hoje.(..) Superando esta fase de emoção
diante do aspecto formal da poesia, Marcelo Cabral
atingirá um plano poético muito mais vivo e dotado de
autenticidade.
NOTA: Mais tarde, comentando a edição da Nova Poesia
Brasileira(Escritório de Propaganda e Expansão
Comercial do Brasil em Lisboa, 1960) - antologia
organizada pelo poeta e diplomata Alberto da Costa e Silva
- Antônio Olinto voltou à carga: “Vale a pena ler de novo os
versos do poeta Francisco Marcelo Cabral cuja estréia em
1949 eu saudei como a revelação do ano”.

De Campomizzi Filho (Folha do Povo, Ubá, fev.1950)


A muitos causou surpresa a afirmação de Rosário Fusco(...)
reconhecendo em Francisco Marcelo Cabral um dos poetas
novos que mais lhe agradavam(...) Agora a revelação aí
está. O ensaísta de Política e Letras não errou. O Centauro
nos dá uma mostra verdadeira da arte de um jovem que tem
alguma coisa para dizer (....) Sem falso hermetismo, sem a
preocupação de escrever apenas para uns poucos amigos,
mas cioso da função social de um poema a serviço da
aproximação dos homens (...) Sem dúvida alguma que O
Centauro nos apresenta um grande poeta. Muito moço e
com toda a estrada a percorrer, a estréia de Francisco
Marcelo Cabral é das mais promissoras(...)
NOTAS em A Manhã (12/2/50), Diário de Minas
(19/2/50), revista Sombra (nº 96, nov/dez 1949), revista A

43
Cigarra(janeiro 1950), Minas Gerais (4/12/49)
registraram o lançamento de O Centauro atribuindo ao A.,
entre outras folhas de louro de sua coroa de artista: um
talento invulgar para a poesia, o entusiasmo fora do
comum pela literatura, a verdadeira sublimação poética, o
tratamento esmerado dispensado ao verso quase sempre
trabalhado com finura e sensibilidade, intuição do
verdadeiro lirismo e muito mais, que - honra seja feita - o
agraciado lia com certa vaidade (claro!) mas com a
sensação bem humorada de que estavam falando de outra
pessoa. (CABRAL, 2003, p. 155-165)

2.2.1 - Artigo de Joaquim Branco

UM RIO IMITA A VIDA

Heráclito disse, certa vez, que não se banha mais de uma


vez num mesmo rio.
Sabe-se que, na literatura, enquanto uns rios são caminhos
que imitam a vida, outros – como o Aqueronte na Divina
comédia – levam os mortos em embarcações para o
Inferno, e outros ainda – como veias – são canais da
memória que irrigam o nosso passado.
O poeta Marcelo Cabral recorda o córrego “Lava-pés”, que
passa por algumas avenidas de Cataguases com sua ‘água
rasa’ e fugidia. Vale a pena conhecer esta visão poético-
reflexiva sobre um riacho que marcou a infância do poeta e
que hoje corre inglório, custando a vencer as imundícies
com que a população retribui a singeleza e o frescor já
ofertados por suas águas.
Literatura e metáforas à parte, nada melhor do que ler o
poema que segue:

Outras Águas

(…)do arroio Lava-pés (…) coxo

em seu leito de lama


Lina Tâmega Peixoto

44
um talho doce (…)
num trecho sua vaginavenida
os lábios de cimento o musgo

aveluda
em verde(…) (Antonio Jaime)

Lavo os pés
no córrego que risca a avenida
e paralelo à linha férrea
vê casas e pessoas como num curta metragem
Seu destino: o das águas serpentes,
Sua cor, o azul lamento do céu refletido
onde o sol é uma lâmpada bamba
que ofusca e entorpece os peixes.
Lavo os pés e faço concreto
seu nome jovial e simples.

Água rasa
que mal toca o tornozelo
ou jorro do gomil na bacia de porcelana
e o alvo pano de cambraia
secando o pé livre do pó do chão
- qual celebro, nesta manhã verde,
à sombra úmida e perfilada das cássias?
Aonde irão meu pés lavados
por essa água pouca da fonte que bem conheço?
Aonde me trouxeram, ao longo dos já muitos
anos de minha vida?
De que me lavou o Lava-pés,
naquele instante de ousadia e prazer, cimento e limo
em que minha mão tocou seu corpo líquido e fresco?

Por que esse anseio pela água da infância,


como se ser feliz fosse então?
Por quê, se o ubre do tempo
seca seu leite e afasta a boca habituada a sugá-lo na
memória
- esse lixo da vida, essa torrente de coisas frias
que se afasta como um córrego minguado e lento

45
Salve as águas meninas de passagem
e seu doce arrulhar de pomba-rola
e salve a lasca de madeira leve
que nelas lanço esperando reavê-la mais adiante
não sei quando, nem se, nem onde
mas certamente no poema
em que dança essa brisa olente familiar.
(BRANCO, 2006, p. 6)

2.2.2 – Artigo de Felipe Fritiz

PSICOLOGIA DA CONFUSÃO

Há uma grande confusão que se alonga no texto “Homem,


cavalo, centauro”, de Francisco Marcelo Cabral. Um jogo
entre consciência, essência, e um estado misto dos dois. No
primeiro terceto, a confusão do eu-lírico já está instalada.
Vejamos: “É esta a minha natureza/ e este o meu ser
confuso/ em que me contorço e estou. (CABRAL, 1949, p.
9)
Com grifos nossos, é possível perceber que a própria voz do
poema se declara como um “ser confuso” e que se contorce,
ou seja, não há conforto nesse estado de confusão. No
terceiro terceto, a confusão toma forma mais concreta e
menos obscura ao entendimento, pois a voz diz: “Pratico
esta indecisão/ como um ritual no espelho/ onde acerto e
erro existem”. Assim, sempre com grifos nossos, a
confusão anterior e que estará presente ao longo de todo o
texto torna-se indecisão e já é um ritual, ou seja, prática
habitual de um ser, onde acerto e erro coexistem. Sempre
oscilante entre certo e errado, aquém do bem e do mal.
Mas, a partir de agora ocorrerá no poema uma série de
transformações, ou evoluções. A primeira fase é a do
cavalo: “Ontem moro pelos campos/ e entre flores
pontifico,/ à minha essência retorno.”(IBID.).
Consideremos aqui a palavra “essência”: é estado natural,
em contato com o ser mais primitivo dentro de nós,
psicologicamente. É um estado no qual há ausência de
razão, é um estado puro, natural e primitivo, metáfora do
bom selvagem. O cavalo não poderia ser diferente, um
46
animal irracional.
Duas estrofes depois e parece ocorrer um tipo hibridação,
mas não há uma completa fusão: “Mistura correta e
mística,/ não venha a forma tolher/ minha arte em que me
desvelo.” (IBID.) Uma “mistura correta e mística” acaba de
acontecer, mas em que é que se transformou? Não se sabe,
ainda. Mas logo depois, na estrofe seguinte, a imagem
começa a clarear, mas apenas nos entregando uma pista,
que também irá clarear aos poucos. A voz se encontra agora
num estado em que “não há razão e há razão”, ou seja, numa
luta entre essência e consciência, animal e homem racional.
O conflito inicial parece ter se desgastado, ou melhor,
amenizado, ante uma nova fase do conflito que abarca o
texto como um todo. Mas, se amenizou, não esmoreceu
completamente. Agora existe um estado de “paralisada
inquietude” e que a voz continua o lamento num “só eu não
tenho fusão”. Note-se: ocorreu uma mistura, mas não uma
fusão. O que isso quer dizer? Isso significa que a confusão
persiste entre homem e cavalo, que é a nossa mistura, e não
chegamos ao fim que seria o centauro.
Logo em seguida, outro processo místico parece acontecer,
“caem-me os pesos dos braços/ pressentida
liberdade”(Ibid.), ou seja, uma nova fase ainda mais amena
que a anterior. Na “pressentida liberdade”, o ser ainda
difuso começa uma integração com a natureza de certa
forma bem mais forte que aquela que ocorria até então,
onde “tudo é nada, tudo é nada,/ só eu sou tudo, só eu.”
(IBID., p. 10). E nessa integração parece iniciar sua fusão,
num “cruzar inquieto”.
Agora, a mesma imagem que dá nome ao poema se vê
transformada numa gradação, interpretada como sendo
“Homem, cavalo, centauro”, consciência, essência, e um
estado híbrido, respectivamente. Exemplificando:
“Homem, cavalo, centauro/ trindade do ser incerto,/ esta a
minha natureza”. (IBID.)
Podemos perceber que agora o ser está em estado híbrido.
Mas logo ocorrerá a separação. E a primeira menção ao
último estado de transformação é quando a voz nos diz:
“Morrerei quando nascer,/ este é o meu padecer/ esta a
minha liberdade.” (IBID.). O paradoxo de morrer ao nascer
torna-se perfeitamente lógico, tratando-se da

47
transformação, pois, ao terminar sua metamorfose, o ser
antigo sucumbirá para que o novo possa viver
completamente, é o término da jornada.
Aqui, a imagem se torna mais clara e possível: “Homem e
cavalo prossigo,/ centauro em busca de ser,/ para comigo
ficar.” (IBID.). A fusão aconteceu entre homem e cavalo,
consciência e essência, que conjuntas, formarão um novo
ser. Mas há ainda uma busca nesse “para comigo ficar”,
pois há um distanciamento de si mesmo encoberto nesse
verso. E a verdade da afirmação é comprovada no quarteto
“Esta é a minha liberdade,/ esta é a minha natureza,/ minha
aparência serena/ encobre meu ser confuso.” (IBID.). A
confusão persiste ainda, pois não terminou nossa confusa
expedição, e talvez não terminará, pois o poema termina
em “Outros lábios me repitam./ Meus versos fiz para dar./
Buscando incerto infinito,/ misto, centauro, aqui fico.”
(IBID.)
Centauro é a mistura entre homem e cavalo, consciência-
essência de um animal a um só tempo irracional e racional.
Este é o drama não só do poeta, um ser confuso, mas
também de toda raça humana, que habita a região confusa
entre racionalidade e irracionalidade. Há ainda uma
análise um tanto freudiana que não apreciamos totalmente
devido à conseqüente limitação dos processos ocorridos,
simples caracterização que retiraria toda a beleza e
confusão necessárias para a composição do poema,
reduzidos a termos puramente classificatórios: considere-
se o Homem como racional, a influência social e
conservadora, teremos um superego; o cavalo como a
nossa parte mais primitiva, essencial e que não segue nada
senão a própria vontade de satisfação, o id está construído;
por fim, chegamos à mistura do centauro, nosso ser
mitológico, que oscila como um pêndulo entre o racional e
o primitivo, equilibrado na confusão necessária a sua
sobrevivência, teremos o ego.
Aqui ficamos: humanos, sem sermos Homem, mas sim
centauro. A ponte que Nietzsche viu entre o animal e o
Super-Homem. Travessia. (FRITIZ, 2007, n. p.)

48
2.2.3 - Artigo de Ronaldo Cagiano

Outros críticos publicaram artigos sobre sua obra, entre eles


Ronaldo Cagiano, cuja transcrição integral esclarecerá muitos
pontos sobre a produção do autor.

A ARTE DA DEPURAÇÃO

Nos cinqüenta anos de O centauro celebra-se, também, em


Francisco Marcelo Cabral, o que a poesia carrega de
essencial para atingir a plena comunicação: o equilíbrio
entre a forma e o conteúdo. Só mesmo quem alcançou,
ainda nos seus primeiros cantos, o entendimento de que
poesia é, em suma, exercício de burilamento e contenção,
sem o que a arte poética seria um mera redução do discurso
laudatório da ficção, pode dar-se à fascinante tarefa de
fazer da palavra um pólo permanente de decantação, cujo
ponto ideal, para o autor, está sempre por atingir, pois sua
concepção de arte poética é a do estilete em punho.
Para endossar essa percepção, colho em uma de suas obras,
que o autor generosamente me enviou, há tempos, por e-
mail, esta importante advertência: “nos quarenta e três anos
em que não foi publicada, foram retirados poemas; de
alguns poemas, versos; de certos versos, palavras.
Certamente se poderia retirar mais. Uma outra
denominação lhe poderia ser dada já que a metáfora que a
define, ao menos do ponto de vista de quem a publica, é
expressa pela inexistente expressão anesfera, concreta
imperfeição.” Retirar, cortar, mutilar, até que se encontre o
momento em que a palavra, em sua condição poética, não
necessite de outro adereço, senão sua solidez despojada,
coluna dorsal do poema.
O Centauro(1949), Inexílio (1979), Pedra de sal
transmutada em Baile de câmara (1993), que delimitam a
produção de F. M. Cabral nestas cinco décadas, refletem a
preocupação do autor não com a prolixidade, mas com o
nível, por isso escreveu pouco e disse muito. Quem quiser
desvendar sua responsabilidade estética (e um bom
começo é ler, reler, tresler Inexílio, essa obra de mergulho,
humaníssima) vai encontrar um autor criterioso, com um
rigor técnico levado às últimas consequências. Esse
49
respeito pela arte e pelo leitor é a pedra angular de sua
poesia, o que deveria ser compreendido como parâmetro
para uma poética da depuração, de que muito nos
ressentimos nos autores hodiernos, despreocupados com o
acabamento.
“Matar a palavra, eis quanto/ vou ensaiando fazer” - esta
concepção do ato criativo em FMC, deveria nortear, a
priori, o fazer literário de qualquer escritor, os incipientes e
os veteranos, pois o sentido da literatura é a comunicação. E
esta – que rejeita os colesteróis da linguagem, os lixos
estilísticos, as exacerbações palavrosas – é diretamente
proporcional à capacidade que temos de atingir
objetividade e clareza, porque o escritor, como diria o
saudoso Guanabaro Rossi, deve ser, necessariamente, um
comunicador. E para dizer plenamente o que pretende, o
poeta deve ser um alquimista, ter, como Cabral (não o
descobridor, mas o filho do padeiro, que soube como seu
homônimo patrício descobrir a verdadeira magia do pão), o
sentido de “pureza devolvida/ de sua essência primeira”,
como é o princípio basilar da homeopatia, que vai fundo,
até retirar do veneno sua poção exata para curar o mal que
ele próprio causa. Poesia é isso: extrair-lhe, com bateia de
garimpeiro, em apurado ofício, o ouro de aluvião. Ou
ainda, para ficarmos na singela e bela imagem, tão
recorrente na vida do autor, do panificador cioso de seu
ofício: poesia, como pão, fermento hierático de nossas
expansões estéticas, não pode sair do forno antes da hora.
Chiquinho Cabral sabe disso, desossa o poema à exaustão,
deixando-lhe o filé conceitual e filosófico, cuida da palavra
como um meticuloso artesão e vem construindo uma obra
da maior qualidade, entre as melhores do gênero dentre os
autores contemporâneos, do Brasil e do mundo.
Se Octavio Paz nos diz que “o poema é uma obra sempre
inacabada, sempre disposta a ser completada e vivida por
um novo leitor”, F. M. Cabral nos oferece o poema em sua
condição de esmero e eficácia, porque sentimos, ao ler sua
poesia, que ela diz o que queríamos, nada ou quase nada
cabe ao leitor completar. (Brasília, novembro de 1999)
(CAGIANO, 2003, p. 11)

50
2.2.4 - Artigo de Ricardo Alfaya

FRANCISCO MARCELO CABRAL: UM CADERNO


CINCO ESTRELAS

Francisco Marcelo Cabral, poeta nascido em 1930. Dele


muito ouvira falar, desde o início dos anos 90, em razão de
minha correspondência com Joaquim Branco, P. J. Ribeiro,
Ronaldo Cagiano, Lina Tâmega Peixoto e Ronaldo
Werneck, excelentes escritores que, juntamente com
Francisco Marcelo, têm em comum o original fato de
serem todos naturais de Cataguases, cidade do interior de
Minas Gerais.
O contato se tornaria mais próximo a partir de 2003,
quando finalmente surge a oportunidade de conhecer-lhe a
obra. O autor gentilmente me encaminha o belo Livro dos
Poemas, editado naquele ano pelo Instituto Francisca de
Souza Peixoto, de Cataguases, 208 páginas.
Trata-se de edição cuidadosa, com luminosa capa de
Ronaldo Werneck, papel de boa qualidade, acabamento de
primeira. Enfim, uma obra à altura do mérito de seu
criador. Reúne livros de poemas anteriores de Francisco
Marcelo: O centauro, Inexílio, Baile de câmara, “Poema
em 3 Cantos” e “Pedra de Sal”. Importante também por
conter expressiva fortuna crítica: estudo de Álvaro de Sá,
um dos principais nomes do poema processo, prefácio do
consagrado Antonio Olinto, comentários favoráveis de
autores diversos, como Carlos Drummond de Andrade,
Manuel Bandeira, Adelino Magalhães, Rosário Fusco,
Lina Tâmega Peixoto, Guilhermino César, Ivan Junqueira,
Roberto Menna Barreto, Guimarães Rosa, Joaquim
Branco, Chico Alvim, José Lino Grünewald, Octávio
Mora, Sebastião Nunes, Ismael Cardim, Antônio Bulhões,
Victor Giudice e outros.
Agora o poeta me brinda com novo livro: Caderno número
cinco, por enquanto, apenas em feitio virtual, estilo “e-
book”. A obra se divide em duas partes: “City-Tour” e
“Metal Polido”.
“City-Tour” constitui a seção maior, ocupando 32 das 44
páginas do conjunto. Traz um grupo de poemas, quase
todos curtos, minimalistas, dedicados a diversas cidades.
51
São toques, flashes e impressões a respeito de aspectos
variados das localidades em foco. O formato propicia
deveras uma impressão de “tour”. O leitor percorre os
diversos poemas e realmente experimenta uma sensação
de deslocamento no tempo e no espaço, uma vez que cada
escrito contém acentuada presença da região que o
inspirou. Nesse particular, diria que Francisco Marcelo
proporciona uma experiência singular e inovadora ao
apreciador. Assim, em instantes, passeamos por inúmeras
cidades e pontos do Brasil e do mundo, em mágico
transporte.
Já a segunda parte, “Metal Polido”, ocupa as 12 páginas
finais. São poemas de matéria variada, muitos deles
inspirados na mitologia grega, na natureza e em pontos
geográficos, de modo que o segundo repertório termina
por harmonizar-se bem com a temática do primeiro. Aqui
também predominam trabalhos polidos e lapidados,
esculturas poéticas despidas de excesso.
Além dos aspectos já mencionados, a poesia de Francisco
Marcelo Cabral se distingue por apresentar,
simultaneamente, duas características que somente andam
juntas nos melhores escritores: gravidade e leveza. O
autor, assim, consegue imprimir um tom informal, tão ao
gosto contemporâneo, sem resvalar para o vulgar. É uma
escrita refinada, que, ao mesmo tempo, sabe tornar-se
próxima, íntima de quem a lê. Quanto ao ritmo, flui
naturalmente, como as águas dos tantos rios que se fazem
assunto constante em sua poesia.
Para concluir, um exemplo de Caderno número cinco,
extraído da primeira parte, “City-Tour”. Nele, o poeta
demonstra todo seu poder de aguda observação,
apresentando-nos a famosa escultura “Davi”, de
Michelangelo, por um prisma totalmente inesperado e
revelador:

ACADEMIA
É preciso sobrepassar os testículos de Davi
para ver o seu rosto zangado
e sua terrífica beleza.
Quatro metros sobre o pedestal, ele é o Golias
No chão a mirá-lo, nós, o pequeno pastor.

52
(Francisco Marcelo Cabral, p. 17, op. cit.)
(ALFAYA, 2006, n. p.)

2.2.5 - Artigo de Ronaldo Werneck

LIVRE DOS POEMAS

Flor esplendente da Mata. É das coisas mais importantes


dos festejos da pátria e do município o lançamento do
“Livro dos Poemas de Francisco Marcelo Cabral” (sábado,
06 de setembro, no Instituto Francisca de Souza Peixoto).
Ele nos traz de volta O centauro, 1949, Inexílio, 1979, Baile
de câmara, 1992 e Poema em 3 cantos, 2000. De quebra,
Pedra de sal, datado de 2003, título novelhíssimo (deveria
ser seu segundo livro) para a produção mais recente. “Este é
o meu primeiro livro”, diz ele no texto de orelha, em tom de
blague. E não deixa de ter razão, pois é seu primeiro livro
editado com toda a pompa e circunstância que há muito
estavam por merecer seus poemas-mais-que-perfeitos.
Esse “Livre des Poèmes” é um limpar de gavetas: Marcelo
está finalmente livre de seus poemas, que agora nos
pertencem, enquanto o poeta dá por cumprido o seu ofício:
“Necessário dar ao poema/ endereço e compromisso/ e não
o deixar à solta/ – nave de papel e tinta/ que a água do tempo
dissolve.//...// O poeta habite o poema/ ou dele se
distancie/...// Se não lhe dá uma rota/ ao poema, largado à
sorte/ das coisas que só flutuam/ sem a nitidez das naus, / / o
poeta voga à matroca,/ e o poema atraca no caos.” (“Doca”,
in Pedra de sal).
“Idéia de fazer o volume em Cataguases: pêsames. E não
voltemos ao assunto (...)”, dizia Rosário Fusco ao jovem
Francisco Marcelo em carta de 1948, numa possível
primeira leitura de O centauro, lançado no ano seguinte.
Engraçado que o volume acabou mesmo sendo editado, e
muito bem editado, em Cataguases: “(...) Me matei de
sombra/ me pintei de roxo/ fiz um metro, um canto// para o
meu amor.// Que lucrei? um verso./ Que fazer? cantar./ Mas
se há dor? que importa!/ A dor é só instrumento.”
(“Canção”, in O centauro).
Aplausos em vez de pêsames: o mesmo Rosário Fusco logo
53
colocaria o jovem poeta entre seus prediletos. Para espanto
de muitos, inclusive do não identificado autor dos dizeres
desditos logo a seguir: “Rosário Fusco não perde o bom
humor. Perguntado por José Condé qual o poeta de sua
preferência, respondeu: ´Francisco Marcelo Cabral, um
rapaz lá de Cataguases”. E não é que era? Anos mais tarde,
Fusco me diria quase a mesma coisa, canonizando Chico
Cabral logo após Murilo (Mendes), seu predileto, e
deixando-o num patamar bem próximo a Drummond
(“Murilo é maior que o Carlos”).
“Não há poetas/ há poemas” (“Toques”, in Pedra de sal).
Nada mais “poema processo”: este, que deveria ser o
dedicado a Álvaro de Sá, e não aquele de “A alva rosa
artificial da palavra” (p. 126). Há muitos e muito bons
poemas que passam agora às mãos do leitor. Marcelo
aparentemente deles se livra para fazer outro, outros: como
o poeta, também o poema “à noite existe/ açoite/ que retalha
o sonho, e então(...)” ressurge pleno de força e surpresa:
“Que há num nome? que vale?/ Que vale um nome tupi?/
Cataguases: cataguases/ nunca pisaram aqui” (“Betas
estéreis”, Pedra de sal). Certa vez, constatei o óbvio: “nem
mesmo consegui ser o melhor poeta de minha rua: na Dr.
Sobral também nasceu Francisco Marcelo Cabral”. Pois é,
mon cher Chico Marcel, como queria ter escrito coisas
assim como as desse Soneto III: “olha o mar, olha o mar
como é imenso,/ olha como é belo o seu balanço!/ quero te
amar amargurado e denso/ com inventos de vento e sem
descanso.” Inveja? Não! Orgulho, muito orgulho por ser
meu amigo o poeta que queria ser. (WERNECK, 2003, p.
6)

2.2.6 - Artigo de Antônio Jaime Soares

POETA RARO, CONCISO, ESSENCIAL

Eu poderia brincar, dizendo que Francisco Marcelo Cabral


é o nosso Mister M, pois conhece todos os truques do verso.
Poesia, porém, requer mais que isso, requer talento, e para
este não há truque eficaz. Talento é um privilégio, inato ou
não, que Marcelo possui na justa medida.
54
Também não cairei na tentação de lamentar o exíguo
espaço que seus livros ocupam nas estantes, obra mínima,
obra-prima. Ele poderá responder que cada autor ocupa o
espaço que lhe convém, mesmo quando portador de uma
cultura enciclopédica, como é o seu caso. E a essa cultura
soma a convivência com inúmeros luminares das letras e
artes brasileiras, o que lhe garantiria, sem muito esforço,
um fardão acadêmico. Não é do seu feitio e ele tem mais
com o que se preocupar.
Gloríolas e brilharecos decididamente não lhe apetecem.
Sim, o convívio com amigos, o que o traz com freqüência a
Cataguases, prestigiando um ou outro evento cultural. Só
reclama do calor da cidade. E parece gostar mais, mesmo, é
de vida caseira e hábitos frugais. Numa das visitas que lhe
fiz, no Rio, ele serviu um uísque e, para si, pediu um café
fumegante, com pedaços de queijo derretendo-se lá dentro.
Que sorveu, por certo, com aquele prazer que inebriou
Marcel Proust, com suas “Madeleines”.
Ali estava o menino mineiro, que nunca deixou de ser,
menino que começou a poetar aos seis anos. O gosto
cosmopolita do adulto desenvolveu-se a partir das
revelações (e revoluções) do modernismo, quando
Drummond e Portinari ainda causavam certa estranheza. E
não parou mais de se desenvolver. Ouso até associar a ele
os atributos que George Bernard Shaw creditou a seu
personagem John Tanner, na peça Homem e super-homem.
Tanner teria educado seus olhos nos melhores museus, os
ouvidos nas maiores casas de música, o paladar em bons
restaurantes, o olfato nas essências mais finas. Sem
maiores semelhanças com Cabral, até porque Tanner era
um dissoluto.
Razão e sensibilidade, o belo como medida de todas as
coisas. Isso é evidente em todo texto que Marcelo produz, e
só vou comentar os editados O centauro, “Sextina
fabricada sobre as chaves de Américo Facó” e Inexílio.
Também gosto de observar nele uma queda por vocábulos
como buril, cinzel, farnel, gradil, redil. Sutilezas de poeta.
Curioso ele escrever sextina fabricada. O que lembra uma
palestra sua a que chamou “O poema como artefato”.
Exige um tempo de preparação, outro de execução, outro
de acabamento.

55
Sextina é um gênero provençal, provavelmente criado por
Arnaut Daniel, lá por 1200. Tempos em que os poetas
inauguravam linguagens, vide Dante, com sua terza rima.
Dolce stil nuovo, dizia-se do soneto, outra invenção da
época. A sextina, para simplificar, é uma variação sobre seis
rimas, em seis estrofes de seis versos, com um terceto, à
guisa de ofertório. Terceto que Facó omitiu e Marcelo, não.
Sua sextina é completa, fato que, somado ao seu talento,
rendeu-lhe um valioso prêmio, em 1954. Creio que só esses
dois a praticaram, no Brasil.
Inexílio é onde, a meu ver, o nosso poeta atingiu o seu
clímax, em livro. Partindo de uma frase-homenagem a
Cataguases, “nada me faz te amar menos”, ele desmonta a
própria frase, revolve seu, por assim dizer, “baú de ossos” e
traz à tona gratas e ingratas lembranças. Livro coalhado de
notas explicativas, o que me faz suspeitar de que também
inventou um dolce stil nuovo. Basta um exemplo, neste
caso, o narrador, perplexo, ao recordar um suicídio:
“e será chuva essas gotas que se alongam
pela base do meu nariz até a comissura amarga
de minha boca aberta para nenhuma palavra?”
A seguir, na nota correspondente, ele aponta as causas e
efeitos do tiro que estourou os miolos do morto, numa
sucessão de metáforas, em que os móveis da casa “se
encolheram sob o pudor do inesperado mênstruo”. E por aí
vai fazendo mágicas com as palavras, uma surpresa atrás da
outra. Perto de Marcelo, procuro ser só ouvidos. Como
numa recente entrevista, em que, ao final, ele disse que eu
não o havia questionado. Questionar, o quê, diante de quem
só tem o que me ensinar?
E vim para casa, cavalgando o seu Centauro, de onde extraí
este verso, que incorporei à minha antologia pessoal:
“O instante é breve e eu já cantei todos os hinos
Que devia fazer de tudo que é poesia.” (SOARES, 2001, p.
4)

2.3 - Lina sobre Cabral

Neste subcapítulo, registramos duas leituras críticas em que

56
Lina Tâmega revela, na primeira, impressões sobre o primeiro
livro de Marcelo Cabral, O centauro, e, na segunda, fala sobre
seu perfil poético e sua obra em geral:

UMA RELEITURA DE O CENTAURO

“todo intento de apoderarse de la unicidad de la criatura


literaria, es decir, del poema, ha de empezar por la intuicion
y ha de rematar en la intuicion tambien. En medio queda
uma faja abierta ao trabajo científico...” Dámaso Alonso.

A releitura de O centauro, obra publicada em 49, pela


Edição Meia-Pataca, Cataguases, Minas Gerais, mostra
que o tempo, um dos critérios estéticos, medida de valor,
não diluiu a beleza e a força dos poemas. Francisco Marcelo
Cabral, muito jovem ainda, demonstra um apurado
conhecimento formal do fazer poético, com domínio das
técnicas do verso e das composições poéticas.
De imediato, nos chama a atenção o poema que abre o livro,
“Homem, cavalo, centauro”, organizado em redondilha
maior. O emprego da figura mítica nos leva a uma possível
interpretação, centrada no corpo do poema. O centauro
representaria a dualidade e as contradições a que é levado o
ser poético, na sua busca de resolver o conflito da fusão.
Esta procura de uma síntese é, na verdade, índice de uma
situação caótica, de uma desumanização dolorosa. Não me
lembro, no momento, de autores brasileiros
contemporâneos que expressaram o mito do centauro.
O poema se estrutura, significativamente, em três
sintagmas que se repetem ao longo dos versos: “É esta a
minha natureza”, “É este o meu ser confuso”, “possa a
poesia evolar-se”. Há nestas repetições uma acumulada
exacerbação do conflito. A passagem mítica do homem ao
cavalo exprime a experiência necessária ao poeta, por se
saber preso à condição humana, limitado no tempo,
condenado a viver sem a unidade desejada e, por outro lado,
o mergulho na região do inconsciente irracional, no mais
profundo de si mesmo. Este movimento dual, com
ondulada dramaticidade, procura a perfeita absorção dos
dois fragmentos em um “incerto infinito misto”.
57
Inserido dentro do mito, o tempo anula-se. O emprego dos
advérbios de tempo “ontem” e “hoje”, modificando
respectivamente os tempos verbais “moro” e “rolava”,
invertem a função determinante e passam a significar uma
eternidade de dias ou dia nenhum ou anulação do tempo
para um valor absoluto.
O poema reflete a luta do poeta em busca de sua identidade,
de sua arte, onde a poesia possa evolar-se do “pobre ser
confuso”, “livre, alada, sem palavra”. O centauro é a
“mistura correta e mística”, é enfim “trindade do ser
eclético”.
Os poemas de O centauro são, predominantemente, matéria
de exultação do existir, com marginalidades de sombra e
negação e, paradoxalmente, do sofrimento como poder de
salvação e, reiterado motivo, do valor do canto em resposta
às perplexidades da vida. Podemos citar, entre outros, os
versos: “o instante é breve e eu cantei os hinos todos/ que
deveria fazer de tudo que é poesia”; “Ai! tudo eu morro no
verso/ que é poder que me concedo”; “Que lucrei? um
verso/ que fazer? cantar/ Mas se há dor? que importa/ A dor
é só instrumento”.
O poeta faz uso de um recurso lingüístico de surpreendente
beleza. Quando o poema desliza para o sofrimento, a
salvação se dá não com derramamento de lágrimas, mas na
armação de palavras que provoca o inesperado, um golpe
com força musical, levando o leitor a um novo movimento
metafórico, como nos versos: “fonemas solventes em dó,
Debussy” e “mais morto, porém, mais eu”.
Na releitura da obra, mostra-se adensada a força poética de
Francisco Marcelo Cabral, a sensibilidade que arranca do
sonho e do nada as palavras que são seu canto e, acima de
tudo, a voluptuosa luminosidade da vida com que
engendrou a poesia. (PEIXOTO, 2001, p. 4)

TÉCNICA E TRANSCENDÊNCIA NA POÉTICA


DE FRANCISCO MARCELO CABRAL

O lançamento das obras completas de Francisco Marcelo


Cabral, que irá acontecer em setembro deste ano, em
Cataguases, reavivou minha lembrança e moveu meu
desejo de reler Baile de câmara (ed. Sub Rosa, Rio, 1993).

58
Lembro-me de que havia permanecido em estado de
profunda e feliz solidão, após a leitura dos poemas. Agora,
procuro, se possível, reconstruir e renovar a sensação e a
polaridade de forças anímicas que as imagens dessa poesia
me provocaram. Há uma fronteira do tempo (cujo início é
marcado com as obras do autor: O centauro, 1949 e Inexílio,
1979 e se prolonga até este instante) que representa, para
mim, fonte de conhecimento e apreensão estética. É neste
estado de adesão à memória que me aproximo, novamente,
de Baile de câmara.
O princípio criador de Francisco Marcelo Cabral é de uma
riqueza finamente elaborada, fonte de ressonâncias de
mágicas imagens que projetam a expressão do sonho e do
êxtase, nos elementos musicais dos versos, nas metáforas
da morte e da vida.
O processo de criação poética do autor se revela em dois
poemas: “Roteiro I” e “Roteiro II”, com realce neste último.
A linguagem que explica as etapas do fazer poético tece o
próprio poema. A palavra, instrumento de construção, deve
queimar, se aniquilar até atingir o resíduo de pureza. “Matar
a palavra, eis quanto/vou ensaiando fazer”; “decantaremos
o excesso/ e restará cristalina/ à pureza devolvida/ de sua
essência primeira.”; “busca a palavra em que a chama/ de
sua essência mais queime.” Para que encontre a substância
profunda, a essência primeira, é preciso percorrer os
labirintos onde se oculta a palavra que permanece em
oferta, pronta para ser colhida. É preciso para isso descer ao
inferno da criação, é preciso mergulhar e viver o seu próprio
inferno da criação poética. Após a luta desta conquista, de
sentido único e íntimo, a paisagem noturna se abre em
claridade. A palavra é luz, cristal que se transforma em ilha
da poesia, imagem de perfeita e exata tensão, à espera que
lhe dêem forma, interior e exterior. “Leva o cristal como
tocha”; “E incandescente ressurge/ trazendo o cristal na
mão”. Por fim, aguarda “que na polpa de teus dedos/
desponte a flor de uma chaga./ E assoma, em bafos de
incêndio.” A metáfora “flor de uma chaga” representa a
chama que se desmaterializa e se faz espírito, levando à
purificação do poeta e lhe apontando os caminhos do fazer e
da intuição para formar o poema, que se lança na imagem
e”... explode, e congela/ a flor do lugar-comum.”

59
Os três poemas, com os títulos de “Os ventos”, se situam na
linha da atmosfera noturna, onde a obscuridade é matéria
de transfiguração. Com referências a Emily Brontë, os
poemas deixam entrever um lastro de impressões afetivas,
talvez reminiscências de leituras ou associações de cunho
espiritual. A pressão desse passado difuso sobre o discurso
poético de Francisco Marcelo Cabral exerce uma força de
conflito, capaz de levar à construção de uma das mais
significativas expressões de seu universo criador: a
ascensão do espírito. As fortes metáforas, “vento”, “lua”,
“barco” derivam de uma mesma fonte semântica: a noite
que instiga, o vôo para o alto e a morte em contínua
renovação. A lua rege o espaço de penumbra e sonho. A lua,
barca lunar, “barco demente” se reflete nas águas e nelas
viaja por caminhos que projetam os planos do real e do
irreal. “Não procures a lua./ Sob teus pés vai-se o rio em
prata móvel/ e é preto o pássaro pousado no teu rosto:/suas
asas, teus cabelos, os longos olhos que te espiam/ de dentro
sobre as águas.”
Os ventos que perpassam nos versos são elementos
indicativos de movimento e, portanto, de metamorfoses.
Não há indícios de violência ou fúria, ao contrário, os ventos
são brandos e carregam a noite por onde sopram. Diz: “Só o
vento viaja, Emily Brontë,/ os longos corredores, sem
apego ao terreno,/ e são ricos de pátria e nunca pousam”, e
ainda: “Olhas a ti mesma, Emily Brontë/ e aspiras o
generoso arfar da noite./ Conter o vento? Debaixo do teu
corpo/ as rochas e as sementes se misturam”. Os ventos se
aproximam mais da idéia de sopro. No pensamento indiano,
o sopro estabelece uma relação do homem com o universo e,
neste rito, participa por inteiro, das coisas infinitas.
Emily Brontë se confunde com a sombra da lua (o pássaro)
sobre as águas. Por isso “os longos olhos que te espiam/ de
dentro sobre as águas.” (grifo meu) . Chama nossa atenção o
uso do advérbio “dentro”, semeado nestes versos, assim
como em outros. Ele reforça a impressão de profundidade,
de calor, do poder de penetrar nas coisas do mundo em
completa aderência aos espaços interiores. Assim: “não
sentes que no chão, dentro dele, se formam/ as delicadas
vias de acesso?” (“Baile de Câmara”); “Eu durmo do teu
lado de (dentro)/ e estou perto agora,/ desperto agora.”,

60
versos que pertencem ao belíssimo poema amatório,
“Noturno II”.
A capacidade técnica do autor no manejo da linguagem a
serviço da estética do discurso pode ser exemplificada no
“Soneto I”, em quea estrutura fono-semântica tem uma
importante função ordenadora. As terminações dos versos,
em posições de rimas, além de organizar as formas
estróficas, estabelecem uma relação de significados, de
sentido explicativo, distribuídas no esquema abcd abcd.
Transcrevemos as duas primeiras estrofes para verificação
de nossa afirmativa. “Vê que o tempo não passe, antes que
a marca/ do teu selo - o teu sol de lacre e fogo/ - se imponha
ao mundo rápido que escapa/ entre os dedos de tua mão
efêmera”. “No segundo que flui planta teu marco/ que
esvanece e se esvai, e tua sombra/ suje as rochas que o
vento desintegra,/ turve as algas, e creste alguma flor.”
O “Soneto VII” nos revela, do mesmo modo, o perfeito
domínio das técnicas do verso e seu conseqüente efeito
poético. O soneto é arrastado por uma violenta inversão
lógica das palavras, provocando o hipérbato um clímax de
aturdimento e beleza. Aparentemente desconexo, o soneto
é atado por uma linha suave de canto (do pássaro) que
separa e ajusta as palavras dispersas a fim de estabelecer o
necessário vínculo sintático e o semântico. O resultado é a
percepção de uma paisagem construída de elementos
rítmicos e musicais. Para exemplo, se lê: “Sobre os ramos,
esse que, pássaro canoro,/ pousado, dessa, está, rara cássia
crisântema,/ pulsa, sustenido, um si nele, ínfimo e intenso,/
que faz vibrar na rubra língua o trino de ouro.”
Francisco Marcelo Cabral é um poeta que nos surpreende e
nos submete ao universo de seu eixo criador. Os traços
mais eriçados de sua poesia se referem ao conflito de
ordem intimista, o desconcerto construtivo da atmosfera
noturna que se abre em claridade e luz, uma certa postura
mística frente à vida, os recursos da rima e do ritmo
capazes de provocar inusitados movimentos da alma.
Dono de um rico e poderoso sistema de pensamento, o
poeta extrai da linguagem uma peculiar experiência
sensória, única, provocativa, instigante, que lhe dá não só a
dimensão da beleza e do sonho, mas também a ação com
que insufla e constrói sua poesia.

61
Brasília, agosto de 2003 (PEIXOTO, 2003, p. 10)

2.4 - Auto-avaliação

Aqui registramos um texto publicado no suplemento


“Cataguarte”, de 1999, em que o poeta refaz a trajetória da
revista, percorrendo os caminhos do final da década de 1940
em seus momentos mais marcantes.

MEIA-PATACA - QUEM SE LEMBRA?


Francisco Marcelo Cabral

Não tenho nenhum exemplar meu. Mas foi uma bela


revista, impressa em papel “couché”, que serviu de berço
a dois poetas: Lina Tâmega del Peloso e eu, nesta ordem
de importância.
Mas é preciso que se diga: embora o poeta Ronaldo
Werneck em seu poema-exaltação Pomba poema
visualize um “Chico Cabral compondo lina por lina sua
Meia-Pataca, belo verso de um belo poema, Meia-Pataca
inteira foi obra da Lina. Era ela que, além do parentesco
ilustre – Peixoto, ilustre por causa do Francisco Inácio –
tinha a verdadeira vocação das letras, tão consistentemente
confirmada depois.
Digo mesmo – e disse-o em Inexílio – Lina foi minha
mestra. Sua escritura sutil, sua sensibilidade irredutível às
platitudes do discurso trivial, marcaram para mim a
extensão e as fronteiras do território em que viceja o
poema – essa infração, essa refração, essa contínua
derrapagem nas estradas do idioma, esse artefato como
todos inútil, mas capaz de deflagrar a centelha da
desbanalização e reavivar a fala e suas falsetas.
Sem metáforas: Meia-Pataca inteira foi obra da Lina.
Edição, diagramação (com umas dicas do Fusco),
secretaria, redação de sueltos e resenhas, enfim, ela estava
em todas. Eu fui o bói da redação e fiz algumas resenhas por
ordem dela.
À nossa volta, torcendo para que déssemos certo: Marques
Rebelo e Fusco (em cuja casa conheci Antônio Fraga, de
quem obtive o fragmento publicado num dos números de
62
Meia-Pataca; o velho Fraga que, antes de qualquer outro,
me falou de Gomringer e seu Kindgarten – concretismo
avant la lettre – a revelação de uma nova concepção
estética que só muito depois assimilei.
Uma colaboração de Marques Rebelo – transcrevendo um
trecho de Verlaine em que ressalta a técnica de composição
nas alterações introduzidas no texto – foi para mim a
evidência de que o poema é um construto passível de
aprimoramento, como eu percebia em Manuel Bandeira e
Murilo Mendes (quando “ainda não havia para mim” João
Cabral de Melo Neto).
Vejamos o trecho de Verlaine e suas alterações:

“Au calme clair de lune de Watteau (tirou “Watteau”


e pôs “triste et beau”)
Qui fait rêver les oiseaux dans les marbres (tirou o m,
ficou “arbres”
Et sangloter d’extase les jets d’eaux
Les beaux jets d’eaux sveltes parmi les arbres ( pôs
um m, ficou marbres)

Resultado: Au calme clair de lune triste et beau


Qui fait rêver les oiseaux dans les arbres
Et sangloter d’extase les jets d’eaux
Les beaux jets d’eaux, sveltes parmi les
marbres

(Num arrremedo de tradução, onde não repercutem as


ondas de som dos muitos “esses” e “ôs” (“eaux”): “Ao
calmoclaro luar belo e triste/ que faz sonhar os pássaros nas
árvores/ e soluçar de gozo os chafarizes/ belos esguichos,
esbeltos entre os mármores”.

Talvez eu esteja exagerando um pouco a eficácia dessa


lição, mas foi um “toque” precioso para mim.
Humor malicioso do Marques Rebelo, observando os
sobrenomes dos “escritores” publicados em Meia-Pataca –
Lina Peixoto, Francisco Inácio Peixoto Filho, Luciano
Peixoto Garcia, Dedé Peixoto e Alberto Parente (um poeta
angolano, eu acho, cuja colaboração foi o próprio Marques
que nos enviou) – na Meia-Pataca quem não é Peixoto é

63
parente (Nota: e muita gente desconfiava que o Francisco
Marcelo Cabral omitia por modéstia um P em seus
sobrenomes).
O ninho de Meia-Pataca foi a casa de Francisco Inácio
Peixoto, melhor dizendo o seu “salão” onde resplandecia,
ao lado do dono da casa, o gênio carioca de Marques Rebelo
(cuja amizade sempre me honrou e durou até sua morte) e
que foi freqüentado por gente como Walter Benevides, João
Cabral de Melo Neto, José Morais, Luciano Maurício,
Cecília Meireles e tantos mais.
As duas figurinhas de jovens poetas – Lina e eu, vamos
reconhecer: talentosos ou, pelo menos, promissores –
despertaram a solidariedade desse grupo de intelectuais
que andava pela casa dos 40 ou 50 anos, talvez menos.
E foi assim que nasceu a revista, extremamente cuidada
graficamente, sem qualquer “agressividade” de gente
jovem. Sem qualquer malícia na seleção das colaborações
que nos chegaram, Lina e eu fomos os melhores poetas
publicados por Meia- Pataca. Quem quiser que confira.
E assim como o salão de Francisco Inácio Peixoto gerou
Meia- Pataca, Meia-Pataca gerou O centauro, edição de
1000 exemplares (que eu levei anos e anos para esgotar sob
a forma de presente compulsório) composto e impresso na
Tipografia Ribeiro, em 1949, para a inexistente Editora
Meia-Pataca (leia-se Edição (do Pai) do Autor). E o livro de
Lina, Algum dia, editado lindamente em 1952 pela Editora
Hipocampo, do poeta Thiago de Melo, e de que eu
infelizmente não tenho nenhum exemplar .
Lina e eu construímos uma obra pequena (Guimarães Rosa
me chamava de “escasso producente”, com amizade e
cobrança).
Pelo prazer e por compromisso intelectual, Lina é uma
leitura obrigatória.
E para terminar, permitam-me os dois leitores – Joaquim
e Ronaldo – relatar a cômica experiência de súbita e subida
honra e posterior desabamento vivida pelo escritor que vos
fala.
Publicado O centauro, num rompante de generosidade e
hipérbole, Rosário Fusco declara – numa entrevista
concedida a José Condé e publicada no suplemento literário
de A Manhã – que o poeta de sua preferência era Francisco

64
Marcelo Cabral (depois vinham Carlos Drummond de
Andrade e Emílio Moura), um poeta de 19 anos, autor de O
centauro...
A modéstia me impede de mencionar o tipo de comedida
alegria que se apossou deste humilde bardo (que isso?,
bardo é Shakespeare!), temperada pelo sadio orgulho de
ver seu ainda desconhecido nome estampado num jornal
de ampla circulação (menos em Cataguases, é claro).
Vocês podem imaginar o barato!
Agora o revertério: numa pequena nota (pequena para
você, filho ingrato, não para um artista – este – sensível,
antenado nas primícias de uma merecida fama) alguém
cujo nome esqueci (até Freud, etc. ...) comentando a
entrevista, sai-se com esse despautério (estou citando de
cor, embora não de coração): “Rosário Fusco é mesmo um
gozador (espero que não tenha sido algo tão demolidor
assim). Perguntado sobre qual o poeta de sua preferência,
respondeu: Francisco Marcelo Cabral, um rapaz lá de
Cataguases.
Vocês podem calcular o impacto desse advérbio de lugar?
“Lá de Cataguases”.
Leiam a frase sem esse monossílabo tônico: “um poeta de
Cataguases”. Soa bem melhor, não?
Então, até lá. Quer dizer, até aí em Cataguases, qualquer dia
desses. (CABRAL, 1999, p. 2)

2.5 - O poeta e sua cidade

É a vez de o poeta revelar suas fantasias e seus medos em


relação a sua Cataguases, por isso transcrevemos alguns de
seus textos em que se refere à cidade:

É onde os medos
convocam fantasias e sombras
e apagam as luzes das ruas
e ao fraco luar se tropeça
nos bois dormitando
e mal se ouve a respiração do sonho
os gritos dos pesadelos
os gemidos de prazer
65
- uma cidade para sempre estacionada
na memória
- falsa e inesquecível

A PONTE
O camarada que a mandou fazer conhecia latim
e parecia que gostava de poesia
(aliás, em Cataguases,
Só eu não gosto de falar
Latim e recitar poesia).
Na entrada, ele mandou botar
O letreiro – (da paz, como o considero):
– É pacífica a sua entrada?
e também do bom acolhimento.
E na saída foi posto
o testemunho da nossa hospitalidade:
– Volta para mim que eu te receberei:
Nessa ponte passa ônibus
passa gente
passa quatro
passa rio
passa cachorro
passa o tempo
passa o progresso de Cataguases
num convite para as outras cidades progredirem.
Ela liga Cataguases a Cataguases
e liga tanto a gente
que costuma balançar em sinal de satisfação.
É suja, mas é boa
é alta, mas é uma tentação
Outro dia a mulher
resolveu acabar com as mágoas
e logo que as afogou na pinga,
foi-se afogar no Pomba que corre em baixo
E o letreiro risonho
como um convite à cessação da eternidade, dizia:
VOLTA A MIM, EU TE RECEBEREI.
(CABRAL, 1947, n. p.)

66
2.6 - Textos selecionados do autor

Os poemas a seguir foram publicados no “Caderno C” de nº 2,


jornal Cataguases, de 25 de fevereiro de 2001, quando foi feita
uma homenagem ao aniversário de setenta anos do autor.

NARCISO IV

O sol delirava suas jóias de luz


contra um céu de cobalto
e eu era um convite azul
de águas claras e tépidas

e ele chegou agitando as folhas mortas


com a brisa do seu corpo em fuga
e pela primeira vez me olhou.
POEMAS AVULSOS

Ninho em fogo a tarde:


o ovo dourado do sol
- só gema - se pondo
_________________

O veneno dorme.
Súbito, distensa corda
verde – o bote: cobra
__________________

Na tarde que esfria


o outono chega em silêncio
uma folha cai.....
_____________________

O leitor se assenta
o poeta puxa a cadeira
a poesia é o tombo

O leitor se enleva
o poeta o empurra no abismo
a poesia é o vôo

67
o leitor se esquece
o poeta o sacode aos berros
a poesia é o susto

o leitor é a ninfa
o poeta, o fauno no cio
a poesia é o gozo
___________________

Do fundo do teu olho


alguém
olha
alguém
no fundo do meu olho
quem?
assim
tão si
tão sim
tão símil
quem?
assim
tão meu
tão eu
assim
tão
íntimo
e só?...
(CABRAL, 2001, p. 4)

INEXÍLIO (fragmentos) 1978

NADA, Cataguases, nem teu rio pobre,


pomba sem vida, mudo e sujo
rebanho cabisbaixo, a correr apertado
na calha entre morros,
onde morre o teu casario
e brincam crianças mal nutridas
mulheres estéreis
tentam o inútel orgasmo

68
nada, Cataguases, nem teus morros feridos,
prestes a desabar sob a chuva alcalina
e sulfurosa

nada, nem o piso de pedra de tuas ruas


essas vias de descaminhos
que enovelam fachadas e beirais
e varandas desocupadas das moças lindas,
agora afugentadas e escondidas,
não em alcovas ciumentas cautelosas,
mas na sala, em frente à televisão
[...]
nada, nem Francisco Inácio
Peixoto se acostumando a perder
amores, amizades e ambições,
nem a morte de Rosário, ai de nós, ai de ti,
merda de morte igual a todas inesperada
colhedora do tigre e do joio
[...]
nada, nem Lina, esse rio primal,
com suas lições de luz e ventos e esmeraldas
[...]
nada, Cataguases, nem a tua indiferença ou desprezo
pelos teus poetas e teus loucos, únicos
que te conferem a glória de não seres
como outra qualquer um simples mercado
mas uma cidade, oh sim, uma cidade
[...]
enquanto os rapazes da Verde não faziam versos
e contavam poemas-piadas de que ninguém ria
(é deles que todos riam)
soavam flautas em cavatinas nas salas endomingadas
e o Fusco usava gravata plastrom,
Francisco Inácio se apertava num fato de elegante talho
/carioca,
Enrique suspirava seus símbolos, ancestrais,
Guilhermino ensaiava o concreto em sua arte
sutil pedra porosa de Antares
e Ascânio morria de riqueza interior e tísica,
bravos rapazes, de uma cidade que valsava
ou ia ao cinema ver os movietones

69
e eva nihil — rápida supernova e puro mito;
Lina ainda não tinha nascido, nem eu, nem Celina
e quando os descobrimos
o rádio tocava alto e sabíamos
bastante francês para ler e cantar
e fazíamos de novo versos
enquanto os domingos se enchiam de samba-canção
e ninguém nos lia;
quando a televisão chegou, visual, sincrônica, não
conceitual
Joaquim Branco acordou, Ronaldo, Plínio, Pedro, Aquiles,
/acordaram
Paulo Martins despertou, o Moura abriu o olho,
tocaram rock nos festivais
reinventaram Dada
e cuidaram de montar o poema como um carro,
/um eletrodoméstico
para ser consumito
(enquanto a cidade viajava para fora a fazer turismo
e pouco se importava, outra vez, com todos nós)
[...]
NADA ME FAZ
[...]
TE AMAR
[...]
AMAR MENOS
[...]
MENOS
que nada
é o pó do poema
que aqui sobrenada
sobre tudo
(que nada!)
sobretudo
sobre nada
[...]
(CABRAL, 1979, s. p.)

70
3 - LINA TÂMEGA PEIXOTO

3.1 - Biobibliografia

Lina Tâmega Peixoto nasceu em Cataguases a 5 de junho


de 1931. Fez o curso secundário no Colégio Cataguases e o
curso de Letras no Rio de Janeiro. Casando-se com José
Francisco Del Peloso, transferiu-se para Brasília, em 1958,
acompanhando o marido, arquiteto, que iria trabalhar na
construção da cidade. Publicou Algum dia (Edições
Hipocampo, Rio, 1952) e Entretempo (Editora Record/INL,
Rio, 1984). Em sua terra natal, juntamente com Francisco
Marcelo Cabral, funda a revista Meia-Pataca (1948/49).
Participa das antologias Poetas de Brasília (Editora Dom
Bosco, Brasília, 1962) e Antologia dos poetas de Brasília
(Coordenada Editora de Brasília, 1971), organizadas por
Joanyr de Oliveira. Integrou, em 1960, o grupo de
professores que se encarregou de implantar o ensino oficial
na capital do país. Exerceu o magistério, lecionando na
Universidade de Brasília e na rede oficial de ensino do
Distrito Federal. Artigos e poemas têm sido publicados em
revistas e jornais do país. Conferencista em instituições
culturais e universidades do Brasil e Portugal. Sobre ela se
manifestou Walmir Ayala, no Jornal do Commercio (Rio,
27.8.63):

Há qualquer coisa de dança, de gesto, de abandono


nestes poemas rigorosos de Lina del Peloso. Trata-se de
um, poeta que precisa urgentemente se projetar, aparecer
na capital cultural do país, este Rio de Janeiro imortal.
Talvez seja o dom maior deste livro de poetas exilados
em Brasília (Antologia dos poetas de Brasília), o de
revelar, para alguns pelo menos, a poesia de Lina del
Peloso. Esta poetisa integra-se, desde já, na linha dos
melhores do Brasil, com Marly de Oliveira, Lélia Coelho
Frota, Hilda Hilst, Lupe Cotrim Garaude, Celina
Ferreira, Renata Pallottini etc. (AYALA, 1963, s. p.)

71
3.2 - Avaliação da obra

Professores de literatura e críticos se pronunciaram, ao longo


do tempo, sobre a obra de Lina Tâmega, sempre realçando a
qualidade e o cuidadoso trabalho artesanal de sua produção
poética, e algumas de suas opiniões foram registradas na
contracapa do livro Dialeto do corpo.

Gostei dos teus versos. Têm poder sugestivo e beleza


intrínseca. Tudo brotou do fundo de tua alma de mulher.
São versos que emergem das finuras da sensibilidade. A tua
poesia resiste ao mundo das impressões e sensações porque
é forte e soube suprir à delicadeza pelo excepcional do
vigor. Parece que se desenha nos teus versos uma forma de
contorno mais preciso, mais iluminada de luz da
consciência, de mais funda vibração e ressonância.
Hernani Cidade

... não há o menor exagero em enquadrar a poesia de Lina


Tâmega Del Peloso no que eu chamaria de orfismo sem
Orfeu, profano rito da fusão da fábula e do banal, aliás
marca de modernidade desde Jules Laforgue... Há a ironia.
Há alumbramentos. Há finezas. Há arremessos dos
sentidos. Há revoadas de surpresas. E sobretudo uma
audácia vivencial que desnorteia, mas nos suga para o alto,
para a intimidade do silêncio da música das esferas.
Oswaldino Marques

Na poesia de L.P. a consciência do verbo não se restringe a


eventuais momentos, nem a convencionais profissões de
fé. Evidente ou subliminar ela permeia o livro todo,
aflorando na originalidade de uma dicção mais onírica que
lógica, assumindo complexidades e paradoxos (“minha
fala só é lume quando escura”), reconhecendo os vínculos
emotivos (“As palavras são rascunhos do meu sentir”) e
aludindo ao projeto estético (“A beleza é o pavio das
palavras.”).
Astrid Cabral

Você alcança a maturidade poética, não há tremura ou

72
indecisão de traço, tudo é firme, quando necessário, sutil e
sempre lúcido e ardendo de uma chama interior... Mas que
beleza de dignidade erótica em “Vórtice”. É das coisas
mais puras e nobres que tenho lido no gênero... Tenho
confiança em você, Lina. Continue sendo agreste e
furiosamente você mesma, com a sua esquerdice natural e
sua insatisfação das fórmulas feitas.
Carlos Drummond de Andrade
(PEIXOTO, 2006, s. p.)

3.2.1. Artigo de Joaquim Branco

VÔO ENLAÇADO À MEMÓRIA

Saio do novo livro de Lina Tâmega Peixoto com a sensação


de leveza que raras vezes experimentei ultimamente. Um
mundo poético, e não só isso, um passado e um presente
transmitidos pelo eu-lírico com toques e sutilezas de
“rabiscos azuis”, quase ‘nadas’ que, no entanto, penetram
aos poucos a sensibilidade do leitor e ao final deixam-no
senão modificado, arrebatado por intensa música.
Desse modo, fica fácil identificar Lina Tâmega, entre as
damas da poesia de Cataguases, como a prima-dona. Não
apenas por ser das vozes femininas talvez a primeira
cronologicamente, mas muito mais pela significação de
seu contributo poético para nossas letras.
Em 1948, criou, ao lado de Francisco Marcelo Cabral e
outros, a revista Meia-Pataca. Naquela época, teve grande
atuação dirigindo a publicação e mantendo contato com
escritores como Marques Rebelo, Carlos Drummond de
Andrade e Cecília Meireles.
Mudando-se para Brasília, tornou-se professora da
Faculdade de Letras da Universidade de Brasília.
Publicou seu primeiro livro Algum dia em 1952 e o
segundo Entretempo em 1968, ambos de poesia.
Esta terceira obra recém-publicada – Dialeto do corpo –
continua e aperfeiçoa uma trajetória em que a sensibilidade
se junta a um natural refinamento da linguagem.
De sua “varanda” literária, situada às vezes em um
“pretérito espaço”, Lina Tâmega é a menina que “borda
73
palavras no papel”, e vai “percorrendo as constelações do
mundo” que a “entrelaça em ilhas do tempo”.
Sua lira extrai das coisas que vê e a impressionam –
principalmente da paisagem que não é um pano de fundo
mas um suporte – os elementos concretos com que
abstratiza e reelabora o seu material, indo do presente ao
passado e daí de volta, como em “A criação do mundo”, em
que a poeta parte de uma “coisa insone” para depois
‘construir’:

Coloco dentro de uma rua


e nela uma casa
com vidraças na varanda.
Trago um endereço na mão
e paro defronte à porta,
mas não posso abri-la.
(PEIXOTO, 2006, p. 33)

De repente, está diante da “parede de chumbo da infância.”


A tematização do tempo – recorrente – é sua matéria,

na espessa lembrança
de um barco que viajava
preso ao cais do horizonte
(IBID., p. 32)

onde busca os ancestrais na ”árida terra açoriana”. Ali as


imagens ainda mais crescem e

nada escapa do coração


por mais que o sacuda
nas grades da varanda.
(IBID., p. 31)

Numa excêntrica e imaginosa viagem, a poeta leva o leitor


a acompanhá-la aonde quer que sua imaginação conduza,
como neste excerto:

Amo minhas imagens


consagradas nas dádivas do tempo:
o rio Pomba de Cataguases

74
a voar dentro de um sonho alagado
e se extinguindo em um nome sem asas;
os músculos da água que distendem Veneza
as cruzadas ondas do Tejo em Lisboa
e o Egeu em azul margem de Atenas,
criados pelo marulhar das lágrimas
afluentes de minhas lendas.
(IBID., p. 28-29)

As imagens recorrentes da infância passam e voltam


intermitentemente e às vezes esbarram numa “parede de
chumbo”, mas o que fica é a ponte, o rio, a janela por onde
vê não apenas um retrato na parede, mas as coisas que vai
dispondo a seu bel-prazer:

Junto à janela
margaridas colorem
as conversas lá fora.
O vento remexe
a cortina de renda
com rude balanço.
Em cima da mesa
o retrato vigia a sala
e espreita se nos cantos
ficou esquecida a morte
dos que se sentam à mesa.
(IBID., p. 47)

Assim, Lina navega e voa por lugares que não se situam em


países conhecidos ou distintos por fronteiras: eles
pertencem a um mapa onírico, e só podem ser percorridos
poeticamente, como nesta insólita geografia que –
maravilhados – contemplamos. (BRANCO, 2006, p. 5)

3.2.2 - Artigo de Roberto Júlio

NAS PROFUNDEZAS DA POESIA

Cada palavra, cada verso onde eu me afogava, trazia à tona,


para a margem do mundo de onde eu fugia, deleite e
75
inquietação das profundezas que inundavam o real. Cada
vez mais submerso, tentava respirar, mas era como se
ouvisse um canto desesperadamente doce, que me puxava,
como um ímã, para o fundo.
Era um canto sutil, porém, devastador. Aquela melodia
saíra não da boca, mas da alma de uma mulher cuja beleza
era tamanha, que não conseguia ser vista por ninguém. Era
linda, mas vê-la, de fato, não era privilégio para os olhos da
carne. Quanto mais ela entoava seu canto de saudade, mas
eu descia ao fundo de seus mistérios, que por mais que eu
tentasse, não conseguiria desvendar.
Mas era melhor assim. Seus mistérios tinham a pura
essência do mistério. Não tinham que ser desvendados, mas
acolhidos, absorvidos, como um alento.
Essa linda sereia não falava a língua dos homens, mas o
dialeto do corpo. Entendê-la era mais que palavras jogadas
ao léu. Tinha que ser sentida, tocada, beijada e acariciada
pelas almas capturadas, pois, sinestésica e só, o prazer que
ela dava em troca, era a vontade de nunca mais sair de seus
braços.
Em meus ouvidos, balbuciava palavras fortes, castas,
hipnotizadoras, que me ancoravam na noite do fundo do seu
rio quieto e feroz. Mas não eram apenas palavras. Falava-
me de uma poesia que em tudo via, pois ali, do fundo,
enxergava além de qualquer coisa que ali não estivera.
Deitado em seu colo, pude ouvir em seu canto a lembrança
de uma cidade que não tinha sido deixada para trás, pois
outros entes fantásticos lá tinham deixado um legado
cravado em seu céu. Pude ouvir que, nessa cidade, esses
seres deixaram aberto um portal que levava aqueles que
ouviam as almas para lugares estranhamente lindos.
Ela me falou também, cantando, de uma menina que
cresceu junto com as borboletas e voou, um dia, para longe,
deixando bordados e porcelanas. Falou-me de amor,
devaneio, dor, mas nada tão claro quanto sua presença. Pois
tudo era um mistério, como eu disse, e os mistérios já falam
por si.
Então me vi completamente apaixonado. Mas era
impossível. Seres dessa envergadura não pertencem a um
só, não pertencem a ninguém. As pessoas é que pertencem
ao seu mundo. Um mundo que ela escreveu à tinta, em suas

76
profundezas, onde quem mergulha e se afoga, desperta no
mundo da poesia – a verdadeira vida.
De repente, sinto minha cabeça tontear, me sinto maior que
meu corpo e minha visão começa a escurecer. Ouço uma
voz a gritar meu nome na superfície. Acordo pasmo,
sentado em minha cama, i(nu)ndado e febril. Mas, atônito,
só consigo pensar: Quem seria aquela mulher que me levou
para o seu mundo, para suas profundezas e me encantou?
Do meu lado, na cama, percebo um livro o qual me recordo
ter em mãos há não muito. Minha vista ainda embaçada
consegue ler um nome gravado na capa: Lina Tâmega
Peixoto: Poeta. Cataguasense. Mulher. (JÚLIO, 2007, n.
p.)

3.2.3 - Artigo de Álvaro Alves de Faria

FORA DA PLÊIADE
Nove poetas brasileiros esquecidos pela mídia.

A turma está unida. Basta uma palavra contrária e pode


haver até passeata com cartazes e palavras de ordem. A
turma está sempre alerta. Mas deve-se admitir: a turma tem
força junto à chamada mídia cultural. Viva a leviandade.
Este é o país da mentira, a começar pelo mandatário-mor. O
cinismo também tem limite. Essa melancolia atinge tudo,
incluindo aí a literatura — a poesia, o conto, o romance, o
ensaio literário, a crítica. Este é o país que enaltece a
mediocridade. O país do conchavo. Está cada vez mais
provado que no país da mentira, no que diz respeito à
poesia, o que vale mesmo é o marketing. Na prosa também.
Mas há momentos mais leves na agonia de todos os dias,
como, por exemplo, ver sobre a mesa alguns livros de
poesia que merecem atenção. Livros de poetas, não de
marqueteiros.
Dialeto do corpo, de Lina Tâmega Peixoto, é outro livro
que merece atenção dos que admiram a poesia como forma
de estar no mundo, se isso de fato for ainda possível. Lina
vive em Brasília, seu livro é da Editora Empresa, do
Instituto Francisca de Souza Peixoto, de Cataguases,
Minas Gerais. Uma poeta completa, que conhece esse
77
ofício de escrever poemas, tirando da palavra tudo que essa
palavra pode oferecer ao ser poético: “Para mim, poesia é,
antes de tudo, artefato, coisa a ser fabricada, objeto em que
se trabalha toda as potencialidades das estruturas da
linguagem, como, por exemplo, a vocabular, a semântica, a
fônica, a rítmica, inseridas num contexto muito próprio e
peculiar da criatura em sua vivência. Assim se refaz, se
corta, se modifica o texto poético até que dele emane a
chama da vida em seu movimento de dor e êxtase”. Autora
de dois outros livros de poemas, teve sua poesia lida por
Carlos Drummond de Andrade, que escreveu: “Você
alcança a maturidade poética, não há tremura ou indecisão
de traço, tudo é firme, quando necessário, sutil e sempre
lúcido ardendo de uma chama interior”. Três pequenos
trechos de poemas dão a idéia clara de sua poesia. Alquimia
do verso: “Procuro um objeto/ para ser poesia./ Meia-
tristeza, meio-amor,/ meio-mundo, meia-metafísica,/
serviriam para sustentar o poema”. Biografia: “Que traço
do tempo/ se prende ao caule de minha palavra,/ dardo que
vibra/ no arfar do coração frágil?”. Elegia: “A noite enruga
as palavras/ cansadas de estar de pé./ A medida com que
sustento a cantiga/ é tão triste,/ tantas vezes repetida,/que,
num sopro, se desgasta”. (FARIA, 2006, p.15).

3.3 - Cabral sobre Lina

Do mesmo modo como Lina comentou sobre o trabalho de


Cabral, este também realiza um levantamento sobre a obra de
Lina Tâmega no artigo seguinte.

LINA LINÁPTERA

Em Inexílio, criei para ela essa sonora aliteração que –


Astrid Cabral me desculpe – nada tem de enigmática. Mas
contém uma avaliação da natureza dos vôos poéticos de
quem desde logo usou asas próprias, com um talento
precoce e certeiro para o exercício do poema.
A revista Meia-Pataca (1948) foi seu território natal, por
onde escoou o que eram ainda apenas amostras da rica
jazida mineirada depois em Algum dia (ed.Hipocampo,
78
1952) e Entretempo ( Ed. Record/INL, 1984), tesouros da
literatura brasileira, pouco desfrutados em Minas e nada à
beira do Pomba.
Por questões rítmicas gostava mais quando ela se assinava
Lina Tâmega Peixoto (redondilha-maior bem coloquial) –
uma sequência de pés troqueu, dáctilo e iâmbico – longo-
breve/ longo-breve-breve/ breve-longo.
Lina Tâmega del Peloso rompe com a redondilha (e que leio
como breve-breve-longo/breve-breve-longo/breve-longo)
– e tem apoio rítmico nas 3ª, 6ª e 8ª sílabas.
Besteira minha. Seu nome literário (e de casada) tem uma
bela visada gráfica, e é de fato muito bonito. Na verdade,
todas essas “considerações” impertinentíssimas são pura
provocação e implicância minha, para esconder
mineiramente a admiração mais deslavada.
Quando lembro que Lina devia ter 16 anos, ou talvez
menos, ao editar Meia-Pataca, e que eu, 3 anos mais velho,
me acercava dela, como até hoje o faço, como um aprendiz,
mais ainda me espanta e admira a sua precoce/ madura
vocação literária, da qual me abeberei em estado de puro
encantamento, assistindo como a um milagre e uma
revelação ao seu processo de criação, sempre fundado na
invenção rítmica e de imagens que me perturbavam e me
arrancavam do estar-a-cômodo com meus poemas de vôo
rasteiro.
Sempre me refiro a ela como mestre e ela rejeita essa função
que sempre lhe coube no meu aprendizado que desaguou na
publicação de O centauro.
Da amiga Cecília Meireles, com quem ela conviveu com
intimidade, creio que há poucos traços em seus poemas, em
que pretendo ver mais certa Henriqueta Lisboa e certo
Murilo Mendes, cujos textos econômicos e imagens
infratoras das fáceis previsibilidades, encontram eco
principalmente nos poemas de Entretempo e nos mais
recentes.
Dediquei-lhe – no que estou querendo que seja o “Livro dos
Poemas de Francisco Marcelo Cabral”, programado para
ser editado neste 2003 – o poema cuja publicação antecipo
aqui:
“Suerte Suprema”
Para Lina del Peloso

79
Picar o poema
até que
– exausto –
estaque.

“Cuadrar” o poema
para o estoque
que o penetre
e libere
o jorro incruento da poesia.

Creio que expresso bem neste poema “a palo seco” sua arte
poética, em que ressalta o que eu chamaria de poemaquia
(palavra que invento por semelhança com tauromaquia)
que, para manter o tom andaluz – é o conjunto de faenas
que conduz à “suerte suprema” da dominação da emoção
pelo texto, e ao artefacto do poema desde então entregue à
fruição do leitor.
E como o espaço que me reservaram nesse número especial
a ela dedicado chegou ao fim, arremato com uma
explicação sobre a aliteração Lina lináptera que tanto
ocupou o tempo de Astrid Cabral.
Lináptera é claramente composta de lina+ptera (voz grega
para asa) e significa no meu dicionário particular com asas
de Lina. Lina lináptera, Lina que voa com asas de Lina,
com as próprias asas, num alto vôo que acompanho de
baixo. (CABRAL, 2003, p. 6)

3.4 - Auto-Avaliação

A auto-avaliação para este subcapítulo deve ser lida na


entrevista contida no primeiro capítulo desta monografia
intitulado “Nasce uma revista”, em que Lina faz um balanço da
produção da revista, discorre sobre todas as etapas de sua
organização e confecção e comenta sobre alguns pormenores
de sua obra.

80
3.5 - A poeta e sua cidade

Lina, neste subcapítulo, discorre sobre sua Cataguases, na


época do centenário do município, no melhor tom de sua prosa
poética.

CATAGUASES - EXERCÍCIO DE AMOR

E, porque escrevo sobre Cataguases, perto de seu


centenário teço a minha própria memória e meu estado
mítico: vozes baças, sonho desmedido, a madrugada dos
poemas, a fragilidade triste do que me arrependo, os outros,
a casa, o silêncio.
A memória vai buscar uma menina de treze anos,
improvisando uns versos que teimavam em ser música. De
súbito, ela descobre que tocava a poesia. Foi uma
descoberta terrível e encantadora, porque sua infância
acabara naquele instante, quando assumia um
compromisso com a vida. E foi lá, naquele
desmesuradamente fundo, que criei minha própria
mitologia. Com ela fabrico as palavras com que sei o
mundo. E com palavras, armo a minha cidade, mas me
faltam alguns apoios, talvez os passos dos que não pisam
mais as varandas da casa.
A imaginação vigia a alma, mas persiste o encanto de
reviver o lugar onde estou, o meu passado, longe, onde
batem as ondas açorianas e longe, onde batem as ondas de
uma outra ilha – escudo de mim.
Quem realmente amou Cataguases, com todos os absurdos
doces e perfeitos do amor, foi meu pai, João Inácio Peixoto.
Com amor que não procura no horizonte formas de beijar
ou margem em que se agarre o coração. Amar Cataguases
era para meu pai a liberdade que nele existia por estar
liberto dentro das grades de sua cidade. Eu a usufruo com
certo jeito de lado, analiso-a como um nome que me
possuía e com o qual agora faço o meu diálogo.
Ser mineira de Cataguases é o que não me faz ser
estrangeira em Brasília, é o que me faz ser habitante de
qualquer rua do mundo, o que me faz ser humana e
permanecer ilesa, e nunca ser traída no meu jeito de viver.
E, no breve instante que sei presa em versos minha cidade,
81
ou estonteada na força da poesia, vêm ecos longos,
múltiplos, que me denunciam, apelo permanente de
distância, o que me enlaça e me confunde, uma quase
lágrima de ternura. Não transbordo nada porque nunca me
saciei demais, nunca estou em demasiado sossego porque
resisto a que a vida não se torne mais mistério em mim.
No universo das palavras que habito, digo – não defino – o
nome de Cataguases: e sou bicho-da-seda que tece o seu
próprio casulo em que se abriga e se transforma.
Brasília, junho de 1977. (PEIXOTO, 1977, p. 3)

Complementa o tema o poema “Carta de Cataguases”, em


que a autora homenageia sua mãe e ao mesmo tempo a terra
natal:

CARTA DE CATAGUASES

Nada afasta o atordoado e leso dia


em que senti se apagarem as margens do mundo
onde cavas as águas do sonho.
Nada redime as formas de amor
e feições de encantamento, transcritas
por muitos anos em teu amargo e doce silêncio.
Eu estava lá e não soube arrancar de teus ombros
o manto de montanhas que tolhia
tua esperança, graça e brilho
e a sabedoria com que reordenavas as coisas
da natural existência.
Agora, em penitência e dádiva, desejo tua morte diferente
atenta à glória e levantada do pranto
buscando-te para um passeio em tua casa.
Aflora o coração nos vasos de flores e orquídeas
concebidas como lanternas de jardim
e toma posse do que está aquecido
sob o chão duro do quintal.

Estás tão próxima, submersa no poço da insônia


que louvo tua miragem e a cerco de filhos
que acariciam teu cabelo e o enrolam
como botões de rosa.
82
Vejo-te sentada na cadeira da varanda
espalhando no colo meadas de cores
e conduzindo com a mão o rebanho de linhas
para cintilar na toalha sinos de Natal.

Pelo que lembres do que construí


camuflada no caos da infância.
Enclausurada nas palavras
deixei-as emendadas na garganta
e fiapos de voz, canto crepuscular
ficaram à deriva das constelações do medo.

Deposito em teus ossos


- reino de herança ao abrigo da terra –
o óleo suave e espesso da lembrança
que ultrapassa a viagem circunscrita
a nascimentos e mortes.
Recorto na envelhecida porta da memória
as festas de aniversário,
a de borboletas de papel, pregadas nas árvores,
que apanhávamos com redes de filó
e a dos balões crepitando com iscas de fogo
na negrura do céu.
Os rumores de outrora renovam, como armadilhas de sol,
a compassiva alegria no teu rosto.
Amarguro a perda dos signos do passado
que, indistinto, reconstruo com visitas à tua cidade
e com linguagens de lastro e palha
que contam à tua gente
como salvar-se da solidão.
Não me inclinei sobre tua imagem insulada no tempo
para juntas deitarmos sobre a pedra,
adamantina pedra da pele e das fraturas do corpo,
que se aquieta em mim
à luz frouxa da meia lua.

Procuro falas de tua vida


na seiva escura do barro que escreve
teu infindo repouso
arremessado às imprecisas raízes maternas.
Tanto mistério me consola e de tal modo

83
ordena o emaranhado da alma
que não percebo que lateja nos olhos
a mansa demência da tua morte, mãe.
(BRANCO, 2007, p. 6)

3.6 - Entrevista

LINA ENTRE/VISTA POR JOAQUIM BRANCO

- O que representou o movimento Meia-Pataca tendo em


vista o ano de 1948? O que pretendia o grupo? Qual o
relacionamento que se pode fazer entre vocês e o pessoal da
Verde?
- As perguntas que me fazem geram outras e penso mesmo
qual delas se aproximaria mais para atar a realidade daquele
tempo. Eu poderia rever Meia-Pataca numa perspectiva
histórico-cultural, mas falsearia a fisionomia da revista. Ela
foi puro grito de deslumbramento de adolescentes que
éramos. A poesia me parecia e me parece agora mais do que
nunca um apelo permanente de distância, a que está além da
vida e do mundo, a encantação das coisas, de tudo. Dentro
dessa atmosfera não pretendíamos superar ninguém e nada.
Estávamos apenas conservando resíduos que nos deixaram.
É claro que os de Verde também e do resto que carregamos
como lastro humano. Fomos ajudados e muito por
Francisco Inácio Peixoto, Rosário Fusco, Marques Rebelo,
que apesar de não pertencer ao grupo sempre esteve ligado
umbilicalmente a Cataguases. Nós cheirávamos a leite e a
sonho. Eles nos ouviam e nos escreviam, discutiam conosco
coisas que eram enormes para nós: o formato da revista, tipo
de letra, como buscar anúncio, como pagar a tipografia.
Eram práticos e lúcidos no meio da nossa ânsia e do nosso
medo.
Na apresentação do 1º n.º em 1948 escrevemos com certa
ingenuidade que Meia-Pataca nasceu da necessidade de
religar cada um a si próprio, mais do qualquer preocupação
com o fazer literário. Repito: foi um grito de adolescente e
ficamos de repente todos encantados.

- Houve influência de Cecília Meireles ou de Manuel


84
Bandeira em sua obra? Qual a importância do movimento
Verde, visto de hoje? E a relação entre Meia-Pataca e os
outros grupos da época?
- Não contesto a influência de Cecília Meireles no pouco que
tenho escrito. Influência mais no jeito de viver mais do que
no fazer poemas. Era evidente demais. Mas Manuel
Bandeira me surpreende, a não ser que haja influência na
pesquisa formal da linguagem ou no aspecto propriamente
artesanal.
É claro que sabíamos o que Verde havia representado, o
lugar que lhe cabia na história do Movimento Modernista
Brasileiro. Mas uma análise maior, crítica, foi em nível
universitário, quando tínhamos amadurecido outros valores.
A lição de Verde não me parece pouco amadurecida. Ela
acabou no momento certo, como Meia-Pataca também,
guardando evidentemente as proporções literárias, porque
ela continua a inquietar, a provocar. Cataguases inteira está
presa culturalmente à Verde, como nós estivemos. É ela
quem sustenta certo veio criativo desconhecido perturbador
que passa sob as casas. E isto assusta, não?
Meia-Pataca existiu sem armar situações polêmicas, sem se
aproximar de nenhum outro grupo para defender ou
contestar posições, como por exemplo, a geração de 45. Nós
fomos conhecê-la mais tarde em aulas de Português do curso
colegial, então assim chamado, ou nos livros de literatura do
curso universitário.

- Como vê os novos grupos que surgiram em Cataguases


após o movimento de vocês? Por que Cataguases? Verde
também influencia os novíssimos?
- Cataguases está longe, distante no tempo e no espaço, para
mim que vivo em Brasília desde 1958. Por isso pouco sei dos
novíssimos de lá. Conheço o esforço criativo de Joaquim
Branco e de Paulo Martins e acredito que peco apenas por
mencionar estes dois. Se Verde influencia os novíssimos?
Marcelo Cabral poderia responder melhor. É apenas
intuitiva a minha informação de que Verde me influencia.
Sinto uma leve e agradável sensação do sim. Não vejo como
chamar de sentimental a breve história de Cataguases. Isso
seria dar ao ato sentimental um valor crítico seletivo para
tudo que se fez ou se fará lá de válido em termos de cultura.

85
As minhas palavras sim podem estar carregadas de um
sentimento da memória afetiva porque não cabe a mim
fazer um trabalho crítico de análise sobre Cataguases. Me
parece mais válido a minha participação sentimental.
Cataguases ainda hoje é um enigma para mim e eu me sinto
parte desse enigma. (BRANCO, 1977, p.3)

3.7 - Textos selecionados da autora

MURALHAS DO TEMPO

Recolho das cartas antigas conversas


infladas de compaixão e esperança
e de embaçados horizontes e desejos.
Elas celebram, para sempre, a amizade
que se move nas calhas da memória
e entrecruzam-se na mineira sombra da mangueira
e na preguiça do sol sobre o Guaíba.
Apelos de solidão e presença
prendem-se a versos, contos e romances
fechados, agora, em envelopes.

Dois amigos tentam no encontro


decifrar o alimento,
colhido na juventude, na sede madura
e na concha meio encardida da velhice.
Escrevem com tão fortes golpes da caneta
que marcam, docemente, a pele da mão
e enfeitam a boca a soletrar o recado.
De perfil, eles são um só traço
e entreolham-se na mudança do desenho,
riscado por dentro e por fora da infância,
em argilas de arte
e em vitrais escritos pela poesia.

Tento com cercas de amor


juntar as rajadas de folhas,
misturadas à lida do meu dia
e à angústia que escama o corpo,
para contemplar o aprendizado
86
de raspar com as palavras
as fronteiras do mundo.
Folheio as verdes linguagens
que fabricam os livros
abertos ao vôo de dois nomes:
Francisco Inácio Peixoto
e
Guilhermino Cesar.

Armados no contentamento do olhar,


novos sentidos e formas
enrolam as páginas
ao jeito do coração,
de árvore de pinho ou de poema
e constroem esculturas de cartas
nas muralhas do tempo.
(inédito, 2007)

A JANELA
O que se rende à contemplação retorna não aos olhos
mas à complacência da pele embrenhada em tatos e pêlos
para que a liturgia da janela não se desfaça em horizonte.
No cuidado com as formas da vida feitas à mão
manuscrevo o cheiro quebradiço do tempo
que submisso ao afadigado coração decompõe em cotos de
cavilhas e sopros o bambo lume das veias.
Há um dália de sol abrindo a janela tão perfeita em seu
d i s f a r c e
que não divide espaços - dique a segurar o corpo.
(inédito, 2007)

O QUE É POESIA?

O que é poesia, me pergunta o poeta Álvaro Alves de Faria.


A visão crítica ao ofício da criação poética pode, às vezes,
parecer um intrincado desenho que não revela a verdadeira
face da poesia.
Para mim, poesia é, antes de tudo, artefato, coisa a ser
fabricada, objeto em que você trabalha todas as
potencialidades das estruturas da linguagem, como, por

87
exemplo, a vocabular, a semântica, a fônica, a rítmica,
inseridas num contexto muito próprio e peculiar da criatura
em sua vivência. Assim se refaz, se corta, se modifica o
texto poético até que dele emane a chama da vida em seu
movimento de dor e êxtase.
A poesia bate em nós com força avassaladora e eis que de
fundos subterrâneos desconhecidos chegam ecos
múltiplos, complexos, e estranhos a nos denunciar e a nos
oferecer a realidade que inventamos em perturbadora
angústia, solidão e silêncio.
Segrego a poesia do fundo de minha alma como o bicho-da-
seda o casulo em que se abriga e se transforma. (PEIXOTO,
2006, p. 15)

88
4 - MEIA-PATACA VISTA DE HOJE

Depois de aproximadamente seis meses de pesquisas,


examinando e analisando o material sobre a revista Meia-
Pataca, a que tivemos acesso graças à gentileza de seus
principais componentes – Francisco Marcelo Cabral e Lina
Tâmega Peixoto – e de arquivos pessoais e de jornais locais,
muitas foram as constatações e mesmo surpresas.
O grupo organizador da publicação, a princípio constituído
por quatro estudantes, na época na faixa dos dezoito anos, cedo
amadureceu e se consolidou em torno da dupla acima referida.
Como vimos no desenvolvimento deste trabalho, os encargos
de edição se concentraram na pessoa de Lina Tâmega que,
residindo ainda em Cataguases, pôde com mais facilidade
selecionar o material que chegava, dar curso à correspondência,
tomar as providências na gráfica e colocar enfim a revista na
rua.
Nas matérias publicadas, pudemos observar o número de
seus colaboradores de renome como Alphonsus de Guimaraens
Filho, Carlos Drummond de Andrade, Guimarães Rosa,
Hernâni Cidade, Manuel Bandeira, Cecília Meireles, Waltencir
Dutra, Maria Julieta Drummond, Antônio Fraga, José Maria
Dias da Cruz, Salim Miguel, que dialogaram com o grupo, às
vezes enviando trabalhos ou remetendo correspondência de
incentivo e interesse.
Outro ponto em destaque foi o apoio inicial de Francisco
Inácio Peixoto, secundado por Rosário Fusco e Marques
Rebelo que, nos encontros e inúmeras cartas e bilhetes
enviados, deram provas de boa vontade na orientação e no
acerto de rumos, bem como no incentivo aos jovens poetas.
Foram poucos os exemplares publicados – apenas dois –,
mas ambos mostraram, pela qualidade do material divulgado,
tanto do produzido pelos organizadores como dos
colaboradores, e também pela calorosa recepção alcançada,
que efetivou-se um movimento literário e artístico digno de
registro e atenção.
Contos, poemas, desenhos, cartas, entrevistas, notas,
comentários críticos – tudo isso constitui material de que se
89
compõem os números da revista, e que levaram aos leitores as
novidades literárias que se produziam no país.
Nesta avaliação, procuramos reunir textos de escritores que
opinaram não só sobre a revista como também sobre a obra que
Francisco Marcelo Cabral e Lina Tâmega Peixoto produziram
posteriormente, desde o primeiro livro – O centauro –, de 1949,
até o mais recente – Dialeto do corpo –, de 2006.
Desse modo, colhemos opiniões avaliativas de Ronaldo
Cagiano, Ricardo Alfaya, Antônio Jaime Soares, Ronaldo
Werneck, Felipe Fritiz, Roberto Júlio e Joaquim Branco, que
atestam e confirmam a boa safra que surgiu nos anos 40.
Cada um dos dois poetas – Lina e Francisco – avaliou a obra
do outro, e ambos fizeram homenagens à cidade de Cataguases,
em subcapítulos específicos. No final, selecionamos alguns de
seus textos para conhecimento maior dos leitores.
Assim, a aventura Meia-Pataca apenas começou em meados
de 1948, pois o caminho percorrido – hoje, longo e cheio de
conquistas – vem deixando seus frutos para nós e para as
gerações futuras que precisam dessas experiências para traçar
suas novas e promissoras metas.

90
5 - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALFAYA, Ricardo. FMC: um caderno cinco letras. In: Nozarte. Rio
de Janeiro, 06.05.2006, n. p.
AYALA, Walmir. Coluna literária. Rio de Janeiro, Jornal do
Commercio, ago.1963, s. p.
BRANCO, Joaquim. Lina entre/vista. Totem. Suplemento.
Cataguases, Cataguases, setembro 1977, p. 3.
______. Lanternas além dos jardins. Cataguases, Cataguases,
20.05.2007, p. 6.
______. Prazer e mistério de criar uma revista. Caderno C.
Suplemento. Entrevista com Lina Tâmega Peixoto. Cataguases,
Cataguases, 12.jan.2003, p. 05.
______. Retrato do artista. Caderno C. Suplemento. Cataguases,
Cataguases, 25.02.2001, p. 03.
______. Um rio imita a vida. Caderno C. Suplemento. Cataguases,
Cataguases, 2006, p. 6.
______. Vôo enlaçado à memória. Caderno C. Suplemento.
Cataguases, Cataguases, 29.10.2006, p. 5.
CABRAL, Francisco Marcelo. Alguns poemas de Marcelo Cabral”.
Caderno C. Suplemento. Cataguases, Cataguases, 25.02.2001, p.
4.
______. A ponte. Poemas da minha terra. Cataguases nº 639,
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______. Baile de câmara: poemas. Rio de Janeiro: Ed. Sub Rosa,
1993.
______. Carta a Lina Tâmega, de 30.03.2007.
______. Carta a Lina Tâmega, de 11.04.2007 (por e-mail).
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______. Lina Lináptera. Caderno C. Suplemento. Cataguases,
Cataguases, 12.01.2003, p. 6.
______. Livro dos poemas. Cataguases: Instituto Francisca de Souza
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______. Marcelo por Francisco. Caderno C. Suplemento.
Cataguases, Cataguases, 25.02.2002, p. 3.
______. Meia-Pataca: quem se lembra? Cataguarte. Suplemento.
Cataguases, Cataguases, 06.jul.1999, p. 2.
______. O centauro. Cataguases: Edição Meia-Pataca, 1949.
______. Pequena fortuna crítica e epistolar. In: ______. Livro dos
poemas, Cataguases: Instituto Francisco de Souza Peixoto, 2003,
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91
CAGIANO, Ronaldo. A arte da depuração. Caderno C. Suplemento.
Cataguases, Cataguases, 31.08.2003, p. 11.
CESAR, Guilhermino. Carta a Francisco Marcelo Cabral, de 1949.
FARIA, Álvaro Alves de. Fora da plêiade. Rascunho nº 69, Curitiba,
jan. 2006, p.15.
FRITIZ, Felipe. E-mail de 18.07.2007, n. p.
FUSCO, Rosário. Carta a Lina Tâmega, de 05.12.1947.
______. Carta a Lina Tâmega, de 08.01.1948.
______. Carta a Lina Tâmega, de 14.02.1948.
______. Carta a Lina Tâmega, de 05.04.1948.
______. Carta a Lina Tâmega, de 09.06.1948.
______. Carta a Lina Tâmega, de 02.07.1948.
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GUIMARAENS FILHO, Alphonsus de. Meia-Pataca. In: Meia
Pataca nº 2, Cataguases, jun.1949, p. 1.
JÚLIO, Roberto. E-mail de 14.07.2007, n. p.
MEIA-PATACA. Revista. Coleção completa - números 1 e 2. Lina
Tâmega Peixoto et ali i(ed.). Cataguases: 17.07.1948 e jun.1949.
MEIA-PATACA. Cataguases, Cataguases, nº 724, 22.08.1948, n. p.
O DEMOCRATA. Nº 1, Ano 1. Francisco Marcelo Cabral, José do
Carmo Barbosa Filho, Dounê Rezende Spínola. Cataguases:
01.12.1962.
OPINIÕES SOBRE FMC. Cataguases, Cataguases, 25.02.2001, p.
4.
PEIXOTO, Lina Tâmega. Carta a Joaquim Branco, de 22.03.2007
(por e-mail).
______. Cataguases: exercício de amor. Totem nº 9. Suplemento.
Cataguases, Cataguases, set. 1977, p. 3.
______. Dialeto do corpo. Cataguases: Instituto Francisca de Souza
Peixoto, 2005.
______. Entretempo. Rio de Janeiro: Pró-memória/INL/Record,
1983.
______. O que é poesia. Rascunho, Curitiba, Rascunho nº 69, jan.
2006, p.15.
______. Recado para Francisco Marcelo Cabral. Caderno C.
Suplemento. Cataguases, Cataguases, 23.02.2003, p. 8.
______. Técnica e transcendência na criação poética de Francisco
Marcelo Cabral. Caderno C. Suplemento. Cataguases,
Cataguases, 31.08.2003, p.10.
______. Uma releitura de ‘O centauro’. Cataguases, Cataguases,
92
25.02.2001, p. 4.
PENSAMINTO. Nº 5. Ed. Idalina de Carvalho. Cataguases,
set./out.1995, p. 1.
REBELO, Marques. Carta a Lina Tâmega, de 29.01.1947.
______. Carta a Lina Tâmega, de 16.12.1947.
______. Carta a Lina Tâmega, de 08.04.1948.
______. Carta a Lina Tâmega, de 16.09.1948.
______. Carta a Lina Tâmega, de 27.10.1948.
______. Carta a Lina Tâmega, de 03.11.1948.
ROSA, Guimarães. Carta a Francisco Marcelo Cabral, de
15.02.1954.
______. Telegrama a Francisco Marcelo Cabral, Rio de Janeiro, s. d.
SOARES, Antônio Jaime. Poeta raro, conciso, essencial. Caderno C.
Suplemento. Cataguases, Cataguases, 25.02.2001, p. 4.
WERNECK, Ronaldo. Livre dos poemas. Caderno C. Suplemento.
Cataguases, Cataguases, 07.09.2003, p. 6.

93
ANEXO 1 - CORRESPONDÊNCIA

Cartas de Rosário Fusco para Lina Tâmega

Lina Tâmega: Bom dia. Cumpro, com 12 dias de atraso, parte de


minha promessa. Deixo de mandar autógrafos do resto do pessoal
porque não encontrei ninguém e, ontem, passei o dia de cama, com
febre, em função de um dente cataguasense extraído. Você poderá,
porém, depois, me mandar o álbum, para que eu, de asas, ajude-a a
enchê-lo. Enviarei, mais tarde, o artigo original para a revista.
Devolvo o conto do Cabral: fico com os poemas. Segue o livro da
Cecília prometido e outro que deve ler. Vai também o bilhete para o
Bandeira. Desculpe a demora de tudo: tirarei a diferença até dia 28,
quando irei a Cataguases levar a Regina Maria. Até lá, abraços ao seu
pai, aos dois Chico Peixoto e parabéns ao Sr. Chico: Cabral.
Recomende-me à senhora sua mãe e peça-lhe que pergunte ao seu avô
sobre o Manuel Torga.
Mande mais versos, Rosário. 14.02.1948

Lina Tâmega Peixoto:


- estive rapidamente em Cataguases (chegada num dia, partida no
outro), nem pude ver o Chico, falar com você ou conhecer o Cabral.
Espero que já tenha visto seu poema na Sombra. Aliás, pelo telefone,
aqui no Rio, o Chico me disse que você já sabia da novidade: por isso,
não lhe mandei exemplares da revista, o que farei, entretanto, se
quiser. Ou precisar. O poema fez sucesso: parabéns. O que ambos
vocês – você e Cabral – publicaram no último número de O estudante
é muito ruim. Temo que descambem para esse hermetismo
inconseqüente, tomando-o como poesia: não basta um pouco de louça
e meia dúzia de anjinhos além de associações misteriosas para que o
poema apareça. Na verdade, verso se faz com palavras, mas a poesia
mora debaixo delas, como os gnomos da história residem sob orelhas
de pau. A gente vê os guarda-sóis (como aí se chamavam os
champignons no meu tempo de menino), mas não pressente os
anõezinhos. Vocês revelam o truque demasiadamente: não vale. Os
velhos poetas (Carlos, Bandeira, Murilo, Schmidt, Cecília, Cassiano,
Ribeiro Couto) se repetem, estão cansados, e vocês continuam
querendo plantar café em terreno arenoso que só dá amendoim: é um
erro. Invente receitas novas (para começar). Liberte-se da receita,
depois, depois (como a cozinheira que abandona o “coma e
emagreça”) invente novos pratos líricos por conta própria. Do

94
contrário, fracasso. Os rapazes e moças da sua geração são muito
burros. Você e o Cabral têm um grande ar diferente, que me
entusiasmou de verdade. Mas acho que já estão importantes. Aquilo
da irmã Filomena do seu amigo é uma asnidade. Faça como a sua
admirada Cecília Meireles: vá às fontes (como no vira lusa), grude
nos portugas do quinhentos, que usam uma língua maravilhosamente
bonita, seca, desidratada e lógica... Pensar que o ilogismo é poesia é
besteira. Até eu, que perdi, com a velhice, a frescura lírica, sou capaz
de improvisar um poema ao jeito de vocês, aqui mesmo na máquina,
sem parar, sem pensar, por conta dos dedos catando teclas. Quer ver?

Entre rosas, cravos rubros,


o meu quarto se engalana
No suspiro o anjo geme,
Come tampas de garrafas.
adeja no cílio da madona
pendurada na parede.
Gioconda ficou séria, fria,
vai morrer de desgosto.
Não sorri? Não sorrirá.
Para mim jamais e nunca,
se fará real no seu rosto.
Que pena... se há lençóis de linho
travesseiros de macela
flores de maio e céu,
boninas e dálias alvas
para coroá-la.
Gioconda destronada,
sem guirlanda
mais brocoió que ximbica,
mexirica
de quitanda, vale algo?
Vale nada.

Você dirá que isto é uma besteira, um amontoado de tolices: dir-vos-


ei, no entanto, minha senhora, que é, precisamente, o que fazeis.
Associar coisas imprevistas não é poesia: veja o Ascânio da
Antologia que saiu no jornal do Colégio. Simples, sóbrio, lógico,
“gramatical”. Que beleza. Leia o Camões (os sonetos líricos, o canto
quinto de Os Lusíadas, as comédias) e sinta o que é poetar. Bem,
afinal de contas, estou escrevendo demais e nem mesmo sei por quê.

95
Acho que por influência de uma imbecil carta comprida que recebi:
escrevo a você como se a respondesse, quando apenas tenho para lhe
dizer o seguinte:
a)quando sairá Meia-Pataca?
b)Viu as notícias de A Manhã, O Jornal, Diário Carioca, Correio?
c)Não lhe posso devolver o poema prometido porque mandei para o
Clã, do Ceará.
d)Esse orgulho tolo de não permitir que se toque no Boi no quadrado
revela uma carrancice que não vai com o jeito democrático de seu pai
e a inteligência da sua mãe, sobre ser falta de humanidade, coisa de
artista e de santos.
e)Se quiser alguns exemplares da revista que trouxe – O Naufrágio,
mande falar.
f)Seu tio Hernani Cidade acaba de publicar um excelente ensaio sobre
Gil Vicente. Li a notícia num jornal português. O livro ainda não
chegou aqui, mas sei que é bom pelos trechos dele reproduzidos no O
Século. Peça à sua mãe que escreva ao parente reclamando um
exemplar em nome da família.
O artigo do seu primo Chico Filho, “Metamorfosis”, é besta também.
O Linhares, presidente do Grêmio, é incrível. O que escreveu o
Henrique Oswaldo (filho do Enrique de Resende e, aliás, meu
afilhado) é horroroso. O Lana (parente do José Lana, que tinha uma
venda perto da Igreja?) é simplesmente cretino. O Equi, com uma
piada existencialista (coisa que ele não sabe o que é), a propósito de
Rabelais, também é besta. Você dirá que eu também sou besta, mas a
questão é a seguinte: falta ingenuidade a esses sujeitos. A suficiência
deles mostra que não serão nada. Quem é formidável nem sabe que é:
e eles, todos, pensam que já são. De todos, faço fé, por isso, no
repórter mirim.
Para aproveitar o correio, mando-lhe um livro do Marcos Konder
Reis, Menino de luto. Ele é muito cotado aqui com as meninas da sua
idade. Vale a pena lê-lo para você ver que não está tão errada assim,
mas, apenas, espicaçada pelo demônio da vaidade, que não é apenas
feminino, como dizem. Creia, minha filha, que os homens são piores.
Entre eles, me incluo, na companhia de seu pai (o da entrevista de O
estudante) e, tão só, elimino o “doce” Marques Rebelo, mais cocada
do que gente. Rosário 09.06.1948

* Se puder, mande-me vinte poemas escolhidos e datilografados, sem


que eu tenha de devolvê-los depois. Arranje outro tanto com o Cabral.
O Instituto do Livro vai organizar uma Antologia Nacional e eu
96
gostaria que Cataguases figurasse nela. Veja se arranja um prosador
por aí e mande, também, mostras da coisa. Rosário.

Lina Tâmega Peixoto:


Este rápido bilhete ainda não é uma resposta a sua carta de outro dia,
mas um aviso. O Jornal (talvez o de domingo, depois de amanhã)
deverá publicar dois poemas: um seu, outro do Cabral. Então, verá a
modificação que ousei fazer no quadrado do boi e a pequena
interferência (uma nota nova) na Serenata do seu colega. Estou
aguardando a revista.
Peçam notícias do aparecimento da revista, daí mesmo (é mais
simpático e menos político) a:
Otto Lara Resende (red. de O Jornal, Av. Venezuela)
Prudente de Moraes Neto (red. do Diário Carioca, Pça. Tiradentes)
Eloy Pontes (redação de O Globo, Rua Bittencourt da Silva)
Valdemar Cavalcante (redação de O Jornal)
Raul Lima (Re. do Diário de Notícias, Constituição, 11)
Contem o plano da revista e o que pretendem fazer. Forneçam uma
lista da turma. Estabeleçam contatos. O comércio literário a distância
é sempre agradável e os sujeitos ficam melhores do que de perto. Seu
conto não é bom: certamente por isso não saiu. Se sair, porém, não se
iluda: quiseram protegê-la, através do Marques. Mande outros. Prosa
exige uma maturidade intelectual que você não pode ter ainda e uma
paciência de velho. Isto significa que não deve parar. Até o dia 15 lhe
mandarei um punhado de livros: espere sentado, deitada, de pé –
como quiser – mas espere: não falharei. Você lê bem francês? E
italiano? Há por aqui excelentes revistas dos novos de França e Itália,
que eu poderia mandar parar ver como são menos inteligentes do que
vocês, e sem exagero.
Rosário 02.07.1948

Lina: muito obrigado pelos votos de Boas Festas, que retribuo


cordialmente, extendendo-os a sua ótima gente. Na verdade, a
tromba d’água me reteve aí uns três ou quatro dias, mas como sempre,
não saí de casa (levei um terno que ficou em petição de miséria) e
voltei correndo. Gostaria de ter conversado com você e o Cabral,
porém só a este vi, assim mesmo rapidamente, num encontro de
janela, aliás, de que gosto muito. Dei-lhe o Livro de João que não lhe
peço para me honrar com a leitura dele porque me parece tanto quanto
impróprio para menores... e maiores de brio. Não que eu seja
moralista ou ache que arte tenha isso como finalidade: vocês é que
97
podem se chocar e não desejo tal coisa. O Cabral me mandou uma
excelente carta, e pelo lido nela, acho que gostou do livro e,
sobretudo, foi além dele: pois descobriu nas podres páginas coisas
que eu nem de leve pressenti que lá houvesse. Não lhe mando Carta à
noiva porque o livro ainda não foi impresso: está apenas em provas e
isso de provas, como sabe, é nada: só daqui a meio ano o livro
aparecerá de fato. Mandei ao Cabral, entretanto, um trecho do
romance para Meia-Pataca. Migalha de texto sempre dá péssima
impressão. Em todo o caso, se vocês gostarem, que publiquem. Se
não, azar meu. Como já lhe disse, escrevendo especialmente para
Meia, gostaria de fazê-lo a propósito do Ascânio, satisfazendo velho
projeto e aspiração. Mas atualmente é mesmo impossível: estou
cheio de encrencas, muito trabalho e muita burrice. O Chico Peixoto,
com quem estive um pedaço maior, me deu notícia de vocês. Seu pai
bem que poderia promover com os vereadores um prêmio municipal,
anual, de literatura, com o nome de Ascânio, ou no mínimo, arranjar
um beco com o nome do rapaz. Você sabe muito bem que só a espécie
de glória da memória dele é a “que fica, honra e consola” e
Cataguases já tem idade para se ir acostumando ao tamanho de seus
filhos, natos ou não, que ela desdenha tanto. Acho que a
irregularidade no lançamento da revista depõe contra vocês e empana
o heroísmo da publicação. Meia-Pataca, ao que saiba, não é anuário,
mas está com um grande jeito. Enquanto isso, os rapazes daqui, de
Pernambuco, do Rio Grande, do Ceará, de Curitiba, comparecem,
regular e fervorosamente, todos os meses. E a poesia como vai: em
paz com a poetisa? E a prosadora: ficou no tinteiro ou nas teclas da
máquina? Me disse o Cabral que virá ao Rio em Janeiro, este mês. Se
isso acontecer, lhe mandarei, por ele, o Anel de Saturno, teatro, que
está pronto. Uma edição fora do comércio, pequena e ruim, só para
embalar a vaidade. Que 49 lhe dê um verso perfeito em cada mês e...
você ficará eterna, amém. Rosário 04.01.1949.

Lina: não tenho visto o Cabral, há muito que ele não aparece lá em
casa. A impressão que tenho é que ele anda apertado com os exames.
O livro dele, ao que eu saiba, não obteve nenhuma repercussão por
aqui: em parte, culpa do autor, não dos versos, pois que o poeta não
fez a distribuição devida. E você? Tem escrito? A revista gorou?
Recomendações ao seu pessoal. Ainda agorinha escrevo ao Chico:
acho que irei aí pelas alturas de março. Gostou do livro da Cecília
Meireles, Retrato natural? Achei uma beleza. Não conheço ninguém
que domine melhor o verso em língua portuguesa.

98
(e rima). Rosário 27.02 .1950

Cartas de Marques Rebelo para Lina

Boa Amiga Lina:


Voltei muito cansado da Bahia, onde aliás fui feliz tanto na exposição
quanto nas conferências. Encontrei carta sua e estava ansioso por ver
a revista na rua. Tem reparado quantas revistas de jovens estão
brotando no Brasil? Bom sinal.
Mas estou tão ocupado que não será possível fazer nada de bom para o
1º número de Meia-Pataca. Ficarei para o outro. Aliás vocês não
precisam. Basta que nas notas gerais da revista manifestem o meu
interesse pelas coisas cataguasenses e por vocês.
Tenho muita fé em vocês.
Você me desculpe e como prova de carinho junto uma lista de pessoas
a quem vocês devem enviar a revista.
Pergunte a D. Zélia se ela não se interessa por uma linda moldura de
Teruz. O Cristo que v. gostou ficou na Bahia. Comprei-o do Otávio
Mangabeira para a Capela do Palácio Fiquei muito contente.
Me escreva respondendo isso pois quero devolver o quadro ao
pintor Seu Rebelo 08.04.1948
Abraços ao Prefeito

Lina:
Minha vida é um embrulho tão grande que já perdi a esperança de pô-
la em ordem. Mas aqui estou.
A minha ida a Florianópolis permitirá estabelecer relações mais
próximas entre Meia-Pataca e Sul. Este grupo me telegrafou
apoiando minha iniciativa lá com grande entusiasmo.
O quadro do Dacosta chama-se simplesmente “Pintura”. Assim você
poderá balizá-lo verdadeiramente. E “Mônica” está muito bom.
Mande o conto para ler.
A colaboração de pessoa tão importante como Portinari será
magnífica para a revista.
A capa pedida só poderá ser enviada depois de minha volta. São só 15
dias. Mas você me relembre.
Estou organizando um Museu de Arte Popular que mencionei em
Cataguases. Lá para janeiro creio estar pronto.
Aldari vai sábado. Leve um projeto de urbanização para a cidade. Se
João fizer isso terá feito o que “nenhum prefeito fez no Brasil”.
Não entendi isso: Quem é Van Jafa?

99
Explique-se e faça letra de imprensa.
Até a volta.
Rebelo 16.09.1948 Abraços a todos.

Lina:
Cheguei do Sul, apanhei uma boa gripe e não respondi a D. Zélia, nem
te escrevi.
Hoje, melhor, aqui estou. Recebi sua carta de 22.
D. Zélia: diga-lhe que recebi dois cheques, e que agradeço. Um de
2.500 e um de 3000. Se mandou mais não chegou. Frizo: a carta com o
último cheque chegou aberta! Diga a D. Zélia para passar mais cuspe.
João – Diga-lhe que eu fiquei satisfeito por saber que vai fazer a
urbanização com o Pedro.
Meia-Pataca – Boa idéia a da sociedade. Quero tomar parte.
Livros – Vou enviar este mês mais uns 300 volumes para a Biblioteca
do Grêmio. Doação também do Josias Leão.
Da Costa – Faça como você quiser. Eu já paguei o quadro. Ando muito
rico. Ganhei muito no Sul.
Na próxima Meia-Pataca você dê notícia que em Florianópolis o
Governo atendeu a uma solicitação minha de se fundar um pequeno
Museu de Arte Contemporânea. E que atendeu também ao pedido dos
jovens para que a esta sala fosse dado o meu nome. Estou muito
vaidoso e dia 9 voltarei lá para inaugurar o retrato do Degas e a
competente placa na parede!
Gostei muito do seu conto em O Estudante. Gostei mesmo.
A poesia é muito bonita. O José Maria vai ilustrá-la. Já me mostrou um
esboço. Está grato. Ele agradece a gentileza do convite e estará sempre
pronto para servir vocês. Aliás quem ficou mais satisfeito fui eu,
porque gostaria muito que o meu garoto (que não é burro) formasse ao
lado de vocês.
Capa – O Santa vai fazer. Vou mandar logo. Deixemos ao gosto dele. É
craque!
Sul – Gente muito boa. Troquem colaboração. Eu consegui dar jeito
melhor na revista deles. Vai ver. Irão a Cataguases no congresso.
Pascoal atendeu meu pedido.
Congresso – Vai ser um sucesso.
Portinari e Schimidt são valores importantes. E será interessante a
colaboração deles. Mas o mais importante é que Meia-Pataca ponha
nas suas páginas gente nova. De todo o Brasil.
[...]
Junto a ilustração do seu poema feito pelo José Maria. Está bastante

100
bom para ele.
Junto também um poema “Canção” de Reinaldo Dias, pupilo de
Rebelo. Faço questão da publicação. Tem ilustrações também do Zé.
Muito obrigado do Rebelo. - Mostre ao Peixoto as
ilustrações. 27.10.1948

Carta de Guimarães Rosa para Marcelo Cabral

Meu caro Marcel,


Perdoe-me o tempo roubado de seu livro, o involuntário seqüestro.
Continuo em férias.
Depois – daqui a 10 dias – conversamos.
O livro é grande.
Sincero o digo, olha: até do “Poema da Identidade” já estou
gostando... Não é engraçado? Poesia é coisa-causa, difícil e fácil; é
uma espécie de contágio.
Depois, conversamos.
Meti, aqui e ali, umas notas, a lápis. Agora, sinto que estava pecando.
Eu não me achava em estado-de-graça receptiva, sei, e fui exercendo
uma lancetação, crítica excessivamente severa. Suspendi-a. É falsa.
Não vale essa crítica mutilante, fragmentista.
Depois conversamos.
Agora, só o forte abraço, saudoso, do seu
Guimarães Rosa
15.II.54

ANEXO 2 - CRONOLOGIA CULTURAL DOS ANOS 1940-1950

1940
- Alemanha invade a Dinamarca, Noruega, Holanda, Bélgica e
Luxemburgo (II Grande Guerra Mundial)
- Churchill é indicado 1º ministro na Grã-Bretanha.
- Itália invade a Grécia.
- Cinema: Chaplin (O grande ditador); Disney (Pinóquio e
Fantasia).
- Literatura: Hemingway (Por quem os sinos dobram).
• No Brasil: Encampação do jornal O Estado de S.Paulo e da Rádio
Nacional pela Ditadura Vargas.
- Empréstimo norte-americano para construção da Usina de Volta
Redonda.

101
-Literatura: Drummond (Sentimento do mundo); Mário Quintana
(Rua dos cataventos).
1941
- Alemanha invade Iugoslávia, Grécia e Rússia.
- Inglaterra invade Etiópia e expulsa os italianos.
- Assinatura do Pacto Atlântico, após encontro Churchill-Roosevelt.
- Ataque japonês a Pearl Harbour, nos EUA.
- Primeiros testes com aviões a jato (EUA).
Cinema: Orson Welles (Cidadão Kane) (EUA).
Literatura: Scott Fitzgerald (The last Tycoon) (EUA).
Teatro: Eugene O’Neill (Longa jornada noite a dentro) (EUA).
• No Brasil: Fundação da Cia. Siderúrgica Nacional.
- Literatura: Érico Veríssimo (O resto é silêncio).
1942
- Começo da Batalha de Estalingrado (Alemanha x Rússia).
- Aliados desembarcam na Argélia e Marrocos.
- Alemães ocupam a França.
-Descoberta da penicilina (EUA).
- Fermi constrói a primeira pilha nuclear.
• No Brasil: declaração de guerra à Alemanha e à Itália.
- Literatura: Cecília Meireles (Vaga música); Monteiro Lobato (A
chave do tamanho);
- João Cabral de Melo Neto (Pedra do sono).
1943
- Rendição final dos alemães em Estalingrado (Rússia).
- A Itália capitula e Mussolini renuncia como 1º Ministro.
- Teatro: Rodgers e Hammerstein (Oklahoma!) (EUA).
• No Brasil: Nélson Rodrigues (Vestido de noiva).
- J.Lins do Rego (Fogo morto); Henriqueta Lisboa (O menino
poeta).
1944
- Russos avançam e invadem a Romênia e a Polônia.
- Aliados retomam Roma.
- “Dia D”: aliados desembarcam na Normandia (França).
- Libertação de Paris dos alemães.
- Plano para criação do FMI.(EUA).
-Fabricação do foguete V-2 (EUA).
- 1ª máquina de computação mecânica (EUA).
- Invenção do DDT (EUA).
- Cinema: Eisenstein (Ivã, o terrível) (Rússia).
- Literatura: T. S. Eliot (Quatro quartetos) (Inglaterra).
102
- Teatro: Sartre (Entre quatro paredes) (França).
• No Brasil:
- Envio de tropas da FEB para o teatro de operações de guerra.
- Literatura: Clarice Lispector (Perto do coração selvagem).
1945
- Conferência de Yalta, com Roosevelt, Churchill e Stalin.
- Mussolini é executado na Itália.
- Morre Roosevelt e é substituído por Truman (EUA).
- Hitler se suicida na Alemanha. Rendição dos alemães.
- Lançamento de bombas atômicas pelos EUA em Hiroxima e
Nagasáki (Japão). Fim da guerra.
- Projeto para o primeiro computador (EUA).
- Música: Frank Sinatra torna-se o maior ídolo popular (EUA).
- Literatura: G.Orwell (A revolução dos bichos) (Inglaterra).
- Teatro: Brecht (O círculo de giz caucasiano) (Alemanha).
• No Brasil: - Fim da ditadura Vargas.
- Literatura: -Drummond (A rosa do povo). - João Cabral de Melo
Neto (O engenheiro).
1946
- Ditadura de Perón (Argentina).
- Condenação de nazistas no Tribunal de Nuremberg (Alemanha).
- Início da técnica de ressonância nuclear magnética (EUA).
- Corte declara inconstitucional a segregação racial nos ônibus
(EUA).
- Literatura: - Sartre (Existencialismo e Humanismo) (França).
• No Brasil: -Posse do novo presidente da República: Gaspar Dutra.
- Literatura: Guimarães Rosa (Sagarana); Jorge Amado (Seara
vermelha).
1947
- Fim do império (Índia).
- Comercialização das câmeras polaroids (Austrália).
- Plano Marshall para a recuperação da Europa (EUA).
- Libby usa o carbono radioativo para datar objetos pré-históricos
(EUA).
- Primeiros vôos supersônicos (EUA).
- Arquitetura: Le Corbusier (França).
- Literatura: Albert Camus (A peste) (França).
- Teatro: Tenessee Williams (Um bonde chamado desejo) (EUA).
• No Brasil: - Proibição do PCB e fechamento da CGT.
- Rompimento diplomático com a União Soviética.
1948

103
- Assassinato de Gandhi (Índia).
- Independência do Estado de Israel.
- Levantamento do Muro de Berlim (Alemanha).
- Tensões raciais na África do Sul.
- Criação da OMS (Organização Mundial de Saúde) (EUA).
- Criação da OCEE (Organização da Comunidade Econômica
Européia).
- Invenção do transistor (EUA).
- Criação do disco long-playing (EUA).
- Cinema: De Sica (Ladrão de bicicleta) (Itália).
- Literatura: Thomas Mann (Doutor Fausto) (Alemanha).
- Pintura: Braque (Estudos); Pollock (Expressionismo Abstrato)
(Alemanha).
• No Brasil: - Cassação de parlamentares do PCB.
- Criação da Escola Superior de Guerra.
- Inauguração do MAM, de São Paulo.
- Fundação do TBC(Teatro Brasileiro de Comédias), em S.Paulo.
- Lançamento da revista de literatura Meia-Pataca em Cataguases.
1949
- Assinatura do Tratado do Atlântico Norte.
- Proclamação da República Popular da China.
- Criação da RDA - República Democrática Alemã.
- Início do Apartheid (África do Sul).
- Arquitetura: Le Corbusier e Niemeyer projetam prédio da ONU em
Nova York.
- Literatura: - George Orwell (1984) (Inglaterra).
-Simone de Beauvoir (O segundo sexo) (França).
- Teatro: Arthur Miller (A morte do caixeiro-viajante) (EUA).
• No Brasil: - Candidatura Vargas à presidência da República.
- Criação da Cia. Cinematográfica Vera Cruz.
- Lançamento do 2º nº da revista Meia-Pataca em Cataguases.
- Literatura: Érico Veríssimo (O tempo e o vento).
1950
- Início da Guerra da Coréia.
- Ascensão econômica da Alemanha Ocidental.
- Cinema: Jean Cocteau (Orfeu) (França).
- Teatro: Ionesco (A cantora careca) (França).
• No Brasil: Vargas é eleito presidente da República.
- Literatura: João Cabral de Melo Neto (O cão sem plumas).

104
ANEXO 3 - ICONOGRAFIA

Capa de Meia-Pataca nº 1 (1948)

105
Lina e Francisco Marcelo no Rio de Janeiro (2004)

Maria do Carmo Campos, Ronaldo Werneck, Lina Tâmega,


Vânnbia Chaves, Mariana Cardoso, Joaquim Branco (2004)

106
Joaquim, Roberto e Felipe, na pesquisa sobre Meia-Pataca (2007)
(foto Natália Tinoco)

Francisco Marcelo Cabral na residência de Francisco Inácio (1977)


(foto Adriana Monteiro)

107
Lina recebe o escritor Hernani Cidade, em Brasília

O menino Francisco Marcelo, 1945


108
Lina com o filho Marcelo

109
Maria do Carmo, Lina e Vânia Chaves na FIC (2003)

Lina Tâmega 2007


110
Francisco em viagem ao exterior (1992)

Felipe, Lina, Joaquim e Roberto na FIC (2007) (foto Natália Tinoco)

111
Francisco com a poeta Celina Ferreira (anos 1970)

Lina nos anos 1970

112
A tradicional Padaria Cabral dos anos 1940-50, ao lado da qual se
localiza a residência da família de Francisco Marcelo Cabral

Mansão João Inácio Peixoto, em Cataguases, onde residiu Lina


Tâmega (foto Natália Tinoco)

113
Lina em desenho de Francisco Otaviano

Francisco em viagem ao exterior (1990)

114
Francisco Marcelo em uma festa, nos anos 1970

115
Lina em sua biblioteca, anos 1950

Marcelo em seu escritório, anos 1950

116
Cabral em foto de Victor Giudice (1980)

Lina e Joaquim, na sala de professores da FIC (2007)


117
Capa de Meia-Pataca nº 2 (1949)

118

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