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História da Filosofia

do Cardeal Fr. Zeferino Gonzalez, OP

A História da Filosofia de Zeferino González (1831-1894) foi publicada em Madrid em 1878 e 1879,
em três tomos, sendo seu autor Bispo de Córdoba. Depois, publicou-se uma segunda edição ampliada em
1886, em quatro tomos, sendo ele já Arcebispo de Toledo e Cardeal da Santa Igreja. O interesse pela obra
foi imediato e logo se publicou em francês uma tradução do Pe. Georges de Pascal (Lethielleux, París 1890-
1891, 4 tomos).
Trata-se da primeira grande História da Filosofia escrita em espanhol e a primeira grande exposição
católica de uma História da Filosofia que buscava manter-se no horizonte filosófico, com pretensões
sistemáticas e críticas, em plena restauração tomista, processo no qual interveio decisivamente seu autor.
As primeiras edições desta obra são:
Historia de la Filosofía, por el P. Zeferino González, Obispo de Córdoba. Tomo primero, Imprenta de
Policarpo López (Cava Baja 19), Madrid 1878, XXXIX+485 págs. [Filosofía de los pueblos orientales y
Filosofía griega]. Tomo segundo, Imprenta a cargo de D. B. M. Araque (Cava Baja 19), Madrid 1878, 561
págs. [Filosofía cristiana, Crisis escolástico moderna]. Tomo tercero, Imprenta a cargo de D. B. M. Araque
(Balmes 3), Madrid 1879, 519 págs. [Filosofía moderna, Filosofía novísima].
Historia de la Filosofía, por el P. Zeferino González, de la Orden de Santo Domingo, Cardenal
Arzobispo de Toledo. Segunda edición. Tomo primero, Agustín Jubera (Calle de Campomanes 10), Madrid
1886, LI+535 págs. [Filosofía de los pueblos orientales y Filosofía griega]. Tomo segundo, 516 págs.
[Filosofía cristiana]. Tomo tercero, 504 págs. [Crisis escolástico moderna, Filosofía moderna]. Tomo
cuarto [segunda edición considerablemente aumentada], 482 págs. [Filosofía novísima].
Sumário
Prólogo ......................................................................................................................................................... 3
Prólogo da Primeira Edição......................................................................................................................... 3
História da Filosofia ............................................................................................................................... 16
§ 1 Conceito de História da Filosofia ........................................................................................................ 16
§ 2 Limites e auxiliares da História da Filosofia ....................................................................................... 18
§ 3 Matéria e Forma da História da Filosofia ........................................................................................... 19
§ 4 Importância e utilidade da História da Filosofia ................................................................................. 20
Filosofia nos Povos Orientais ................................................................................................................. 22
§ 5 Filosofia na Índia.................................................................................................................................. 22
§ 6 Filosofia especulativo-religiosa na Índia ............................................................................................. 23
§ 7 Filosofia prático-religiosa da Índia ..................................................................................................... 25
§ 8 Filosofia especulativa na Índia. Escolas ortodoxas ............................................................................. 26
§ 9 Filosofia independente e separatista da Índia...................................................................................... 26
§10 Budismo e seu autor ............................................................................................................................. 28
§ 11 Bibliografia búdica ............................................................................................................................. 30
§ 12 Filosofia búdica .................................................................................................................................. 31
§ 13 Moral do budismo ............................................................................................................................... 32
§ 14 Crítica ao Budismo ............................................................................................................................. 34
§ 15 A Filosofia na China ........................................................................................................................... 36
§ 16 Filosofia de Lao-Tze ........................................................................................................................... 37
§ 17 Confúcio e sua Filosofia ..................................................................................................................... 38
§ 18 Zhu Xi e o Neo-Confucionismo ........................................................................................................... 40
§ 19 Crítica ................................................................................................................................................. 41
§ 20 A Filosofia na Pérsia .......................................................................................................................... 42
§ 21 Filosofia ou Doutrina Mazdeísta ........................................................................................................ 44
§ 22 A Filosofia no Egito ............................................................................................................................ 46
§ 23 A Filosofia ética ou moral no Egito.................................................................................................... 48
§ 24 A Filosofia entre os Hebreus .............................................................................................................. 50
§ 25 Doutrina moral e político-social dos Hebreus ................................................................................... 51
Filosofia Grega ....................................................................................................................................... 53
§ 26 Origem e características gerais da Filosofia Grega .......................................................................... 53
§ 27 Divisão Geral de Filosofia Grega ...................................................................................................... 54
Primeiro Período da Filosofia Grega ...................................................................................................... 56
§ 28 Escola Jônica ...................................................................................................................................... 56
§ 29 Tales de Mileto.................................................................................................................................... 57
§ 30 Anaximandro ....................................................................................................................................... 58
§ 31 Anaxímenes e Diógenes de Apolônia .................................................................................................. 60
§ 32 Heráclito ............................................................................................................................................. 61

1
§ 33 Crítica a Heráclito .............................................................................................................................. 62
§ 34 Anaxágoras e seus discípulos .............................................................................................................. 63
§ 35 Escola itálica ou pitagórica ................................................................................................................ 67
§ 36 Pitágoras ............................................................................................................................................. 69
§ 37 Discípulos de Pitágoras ...................................................................................................................... 70
§ 38 Doutrina dos Pitagóricos .................................................................................................................... 72
§ 39 Psicologia e Moral dos Pitagóricos .................................................................................................... 75
§ 40 A Escola Eleática ................................................................................................................................ 77
§ 41 Crítica à Escola Eleática .................................................................................................................... 79
§ 42 A escola atomista................................................................................................................................. 80
§ 43 Demócrito ............................................................................................................................................ 80
§ 44 Crítica ao Atomismo ............................................................................................................................ 82
§ 45 Empédocles .......................................................................................................................................... 83
§ 46 Os sofistas............................................................................................................................................ 86
§47 Protágoras ............................................................................................................................................ 87
§ 48 Górgias ................................................................................................................................................ 88
§ 49 Crítica .................................................................................................................................................. 89
§ 50 Outros sofistas ..................................................................................................................................... 89
§ 51 Crítica geral do Primeiro Período ...................................................................................................... 91
§52 Olhar retrospectivo .............................................................................................................................. 91

2
Prólogo

No prólogo da primeira edição desta obra dizíamos, entre outras coisas, o seguinte: “os defeitos desta
obra – sem contar a parte principal que corresponde à insuficiência do autor – encontrarão atenuantes e
alguma desculpa nas circunstâncias de lugar e tempo em que foi escrita. Foi escrita, é verdade, na pátria de
Sêneca1; mas foi escrita em meio às múltiplas e gravíssimas a tensões próprias do encargo episcopal, o que
vale tanto quanto dizer que foi escrita sem espaço e vagar convenientes e, sobretudo, sem a tranquilidade
de espírito tão necessária para empreender e levar a cabo esta classe de trabalhos”.
A fim de corrigir, em parte, estes defeitos se encaminha esta segunda edição da História da Filosofia,
pois ainda que haja tempo desde que se esgotou a primeira edição, não temos querido dar a segunda até
poder introduzir nela algumas adições e melhoras que reclamava e que não nos era possível realizar antes,
por falta de elementos e de tranquilidade de espírito e, até, de espaço material por causa de nossa
transladação a Dioceses diferentes e das múltiplas e graves atenções próprias do encargo episcopal,
sobretudo durante os primeiros meses e anos do governo de uma Diocese.
Segundo o verão os leitores, as adições e modificações feitas alcançam as diferentes épocas da História
da Filosofia. As adições, contudo, se referem principalmente à filosofia moderna e mais, todavia, à época
da filosofia novíssima porque assim o exige o movimento filosófico, verificado em diferentes direções em
ações várias, durante a precipitada época. A transcendência do movimento realizado nestes últimos anos
no terreno positivista e no campo da psicologia fisiológica e sociológica reclamava de nós maior
desenvolvimento histórico, indicações mais extensas e precisas acerca destas questões.

Prólogo da Primeira Edição

Corria último terço do século XV; vislumbravam-se no horizonte os albores turbulentos e turbados do
XVI e, em meio às lutas apaixonadas do Renascimento, no meio do batalhar incessante das escolas em meio
do tumulto produzido pelo choque violento das idéias cabalísticas e das idéias arábico-judaicas, de sistemas
antigos e de sistemas novos, de correntes pagãs e de correntes cristãs, Pico della Mirandola escreveu as
seguintes palavras: Philophia quaerit, Theologia invenit, Religio possidet veritatem.
Palavras são essas que revestem as características de um verdadeiro apoftegma filosófico que encerra
um fundo incontestável de verdade e que traçam as grandes características, o objeto real, o resultado mais
legítimo e fecundo destas três grandes manifestações do espírito humano.
De fato: se a missão própria da Filosofia é marchar e mover-se em busca da verdade, toda vez que Deus
entrega o mundo às disputas dos homens; se a investigação perseverante, profunda, consciente da realidade
objetiva e da verdade absoluta constitui a função essencial e característica da Filosofia – Philosophia
quaerit veritatem –, não é menos certo que pertence à Teologia descobrir e afirmar essa realidade em seu
sentido mais amplo, por o homem em comunicação íntima e perfeita com essa Verdade Absoluta; porque
a fé divina que lhe serve de ponto de partida – fides quaerens intellectum –, a palavra de Deus que lhe serve
de norma e de luz, derramam vivos esplendores sobre os problemas mais transcendentais que discute a
Filosofia, em atenção a que essa fé divina representa e entranha uma derivação imediata da razão infinita,
que é, ao mesmo tempo, a realidade completa ou ser infinitamente real, ens realissimum, e a verdade
absoluta, a norma primitiva de toda a verdade: Theologia invenit veritatem.
Que a Religião de Jesus Cristo, à qual alude indisputavelmente o autor do apoftegma supracitado, e só
a Religião de Jesus Cristo é a que dá ao homem a posse plena e perfeita da verdade, provam-no juntamente
a razão e a experiência; porque são elas que nos revelam que os homens colocados fora da corrente cristã,

1
“Lúcio Aneu Sêneca (Lucius Annaeus Seneca) de Córdoba, discípulo do estóico Sócion e tio do poeta Lucano, foi um homem de
vida muito continente, o qual eu não colocaria na categoria dos santos se não fossem as epístolas de Paulo a Sêneca e de Sêneca a
Paulo, ‘que são lidas por muitos e me provocam’. Nessas cartas, escritas quando ele era tutor de Nero e o mais poderoso homem
de seu tempo, ele dizia querer ter entre seus concidadãos o mesmo lugar que Paulo tinha entre os cristãos. Ele foi morto por Nero
dois anos antes de Pedro e Paulo serem coroados com o martírio.” (SÃO JERÔNIMO. Vida dos homens ilustres, capítulo 12).
3
ainda que se autonomeiem filósofos e sábios afamados, vivem e morrem agitados pela incerteza e
atormentados pelas dúvidas desgarradoras acerca dos grandes problemas metafísicos, morais e religiosos
e, especialmente, acerca dos problemas formidáveis que se referem às relações do homem com Deus, em
sua origem, em sua vida e, sobretudo, em sua morte, em seu destino final; enquanto o homem da fé divina
e da convicção religiosa marcha com passo firme e seguro até seu final destino, porque a fé e a palavra de
Deus iluminam, com esplendente luz, o grande mistério da realidade divina, da realidade humana e da
realidade cósmica, como iluminam também o mistério obscuro e formidável da vida e da morte do homem:
Religio possidet veritatem.
Além do mais, diga-se de passagem, Pico della Mirandola não fez mais que reapresentar e consignar em
uma fórmula precisa, ou digamos artística, um pensamento que constitui e representa o fundo da idéia cristã
e que, por esta razão, já havia sido apontado e formulado de uma maneira mais ou menos explícita e
compreensiva por alguns Padres e Doutores antigos da Igreja, enquanto primeiros representantes da
Filosofia cristã. Assim, por exemplo, não poucos séculos antes, Lactâncio havia escrito que o sumo do saber
humano consiste e deve buscar-se na reunião da Religião e da ciência, porque a Religião sem ciência é
pouco digna do homem, enquanto a ciência sem Religião é insuficiente e não merece grande estima:
Scientiae summam breviter circumscribo: ut neque Religio ulla sine sapientia suscipienda sit, nec ulla sine
Religione probanda sapientia.
Deveríamos, com isso, pensar que a Filosofia esteja condenada a buscar – quaerit – incessantemente a
verdade sem chegar jamais à sua descoberta e posse real e efetiva? Questão essa que a História da Filosofia
parece resolver e resolve, à primeira vista, em sentido afirmativo.
Opiniões contrárias, com igual vigor e com igual aparência de
verdade, defendidas e atacadas, hipóteses e teorias que se
levantam hoje briosas e prepotentes para desaparecer
amanhã como uma folha levada pelo vento, lutas, vitórias e
derrotas alternadas entre o monismo hilozoísta e o
dualismo cósmico, entre o panteísmo imanente e o teísmo
transcedente, entre a concepção idealista e a concepção
positivista, entre a moral histórica e a moral epicurista,
entre o dogmatismo e o ceticismo, entre a tese materialista e
a tese espiritualista; épocas históricas informadas e dominadas
ora por uma ora por outra destas tendências e teorias tão opostas e
diferentes; escolas que nascem, se desenvolvem, imperam, decaem e
morrem em sucessão monótona e desesperante, sistemas que se levantam, se chocam e se precipitam uns
sobre os outros com rapidez vertiginosa e, de vez em quando, com imponente estrondo: qual é o espetáculo
que oferece à nossa vista a História da Filosofia. Disso vem esta impressão, mais ou menos acentuada, de
ceticismo que se experimenta de primeira ao terminar a leitura da História da Filosofia. Porque, de fato,
nada mais propício a produzir na mente impressões e correntes céticas, que o espetáculo da luta constante,
periódica e não poucas vezes estéril da Filosofia consigo mesma, a consideração da impotência para
descobrir, arraigar e estabelecer, de uma maneira permanente, no seio da humanidade, algum dos sistemas
alguma de suas soluções doutrinais.
Quando se penetra, contudo, no fundo das coisas; quando, através das lutas e contradições internas dos
sistemas filosóficos, observam-se seus efeitos e resultados com olhar escrutinador e penetrante, não é difícil
persuadir-se de que, se é verdade que alguém poderia dizer que a História da Filosofia é a história dos erros
do espírito humano, é também verdade que se deveria dizer que a História da Filosofia é, ao mesmo tempo,
a história dos progressos e desenvolvimentos do espírito humano.
Sem afirmar ou supor – como afirma e supõe a Filosofia racionalista da História – que cada sistema
filosófico representa um momento necessário, lógico e, contudo, legítimo da inteligência da humanidade

4
ou, se se preferir, do Absoluto de Schelling, da Idéia hegeliana; sem pretender que
todos os sistemas filosóficos que se sucederam na História sejam igualmente
verdadeiros e progressivos por sua natureza; sem afirmar que a evolução
ascendente e progressiva do espírito humano, para qual contribuíram em
maior ou menor escala os diferentes sistemas filosóficos, possa ser
representada por uma linha reta e não por uma espiral ou, até, por
desvios e retrocessos mais ou menos consideráveis e pronunciados; bem
se pode afirmar e crer que a mutabilidade, a inconstância e a esterilidade da
Filosofia e seus sistemas não são tão completos e efetivos como se poderia supor à Schelling
primeira vista. Bem refletido, os sistemas filosóficos, pelo menos os que
entranham certo grau superior de importância histórica e científica, deixam
quase sempre vestígios mais ou menos profundos de seu passo pelo espírito
humano e pela sociedade, e quando, depois de reinar por algum tempo sobre
ela, decaem e morrem,
Povo e Massa ao que parece, deixam Hegel
Pio XII sempre atrás de si idéias,
Radiomensagem de Natal de 1944 direções e tendências determinadas, o que poderíamos
chamar sedimentos intelectuais, forças latentes, mas
Povo e multidão amorfa ou, como se
vivas e reais que representam outros tantos fatores
costuma dizer, massa, são dois conceitos
diversos. O povo vive e move-se por vida mais ou menos importantes da evolução progressiva da
própria; a massa é em si mesma inerte e não ciência, da sociedade e do espírito humano em geral.
pode mover-se senão por um elemento Para compreender isso melhor, deve-se ter em
extrínseco. conta que o movimento de progresso da humanidade
O povo vive da plenitude da vida dos deve ser representado e concebido não como uma linha
homens que o compõem, cada um dos quais – resultante do empuxe vigoroso e do caminhar firme
na sua própria situação e do modo que lhe é
para a frente, por assim dizer, da Filosofia e da ciência,
próprio – é uma pessoa cônscia de suas próprias
responsabilidades e de suas próprias convic- em combinação com a inércia própria das massas2 e
ções. A massa, pelo contrário, espera o com a força resistente da humanidade coletiva (sic). Os
impulso que lhe vem de fora, fácil joguete nas homens da Filosofia e da ciência avançam e marcham
mãos de quem quer que lhe explore os instintos adiante descobrindo e afirmando novos princípios,
e as impressões, pronta a seguir, sucessiva- novas máximas, novas direções, novos ideais e novos
mente, hoje esta, amanhã aquela bandeira. cursos; mas as massas, cujo critério único e geral é o
senso comum completado pela experiência,
necessitam, antes do mais, dar-se conta elas mesmas
das novas doutrinas, às quais opõem a resistência
natural do costume e a desconfiança instintiva do
desconhecido e inexperimentado; necessitam
reconhecer a conformidade ou oposição das novas
idéias com o que constitui o critério inato geral da
humanidade, ou seja, com o senso comum 3 e
necessitam sobretudo períodos de tempo mais ou
menos longos para que essas novas idéias, doutrinas e direções penetrem, se infiltrem e se difundam por
todas as camadas sociais até as colocarem em condições para entrar nas novas sendas, para marchar
decididamente atrás dos ideais descobertos e assinalados de antemão pela Filosofia e a ciência. Assim, pois,

2
O Cardeal Zeferino Gonzalez, aqui, não faz a salutar diferença entre povo e massa. Talvez por ter escrito sua História da Filosofia
décadas antes do reinado de Pio XII, a sua compreensão, nesse ponto, carece da amplitude de vistas que lhe permitiriam penetrar
melhor as nuanças de sentido entre os dois termos e os dois conceitos. Se é verdade que muitos se comportam como uma massa, é
verdade que, por sua natureza racional, o homem tende a constituir um povo e não um conglomerado. [N.T.]
3
Aqui o Cardeal Zeferino Gonzalez usa a expressão “senso comum” lato sensu, como uma série de idéias ou posturas mentais
latentes na generalidade dos homens. Tal compreensão entranha algo de depreciativo e não cientificamente bem definido. Nisto ele
não difere dos homens de seu século. [N.T.]
5
os filósofos, sem serem os autores exclusivos do progresso humano, são e merecem ser chamados seus
precursores naturais e contribuem para acelerar seu movimento4.
É certo que, sem os filósofos e seus sistemas, a humanidade continuaria avançando e poderia caminhar
pelos caminhos múltiplos do bem e da perfeição, porque a razão humana, como participação que é da razão
divina, como impressão das idéias eternas – “impressio quaedam rationum aeternarum” –, como derivação
e semelhança da verdade incriada que se reflete e brilha em nós – “participatio luminis increati”, “similitudo
increatae Veritatis in nobis resultantes” – segundo a palavra e o pensamento de Santo Tomás, contém e
entranha uma virtualidade infinita – “intellectus est infinitus in intelligendo”, “potentia quodammodo
infinita”, “potentia ad omnia intelligibilia” – e, por conseguinte, representa um princípio inato de progresso,
é uma força essencialmente progressiva; mas é certo também que com o auxílio da Filosofia e da ciência,
impulsionado e dirigida pelos filósofos, a humanidade caminha ou pode caminhar pelas sendas do progresso
com maior velocidade, ainda que nem sempre com a maior segurança e acerto.
Historia vero testis temporum, lux veritatis, Depreende-se disso que no fundo da Filosofia e de sua
vita memoriae, magistra vitae, nuntia história palpita um dogmatismo real e que, apesar do
vetustatis, qua voce alia nisi oratoris aparente ceticismo e da aparência de esterilidade que
immortalitati commendatur? causa uma primeira impressão da ciência filosófica com os
seus sistemas múltiplos e com suas lutas incessantes,
resolve-se em verdadeira e fecunda vitalidade.
E isso demonstra, ao mesmo tempo, a importância e
utilidade do estudo da História da Filosofia: ora, se é útil e
proveitoso o conhecimento dos estados e nações, se a
História externa dos povos é a luz da verdade e a mestra
A que outra voz senão a do orador é a da vida – conforme o Orador Romano –, será
História confiada à imortalidade? Ela, que é a sobremaneira importante e proveitoso o conhecimento da
verdadeira testemunha dos tempos, a luz da História da Filosofia, como sempre é proveitoso conhecer
verdade, a vida da memória, a mestra da do efeito a causa e do fenômeno externo a lei interna. As
vida, a mensageira do passado? ações do homem nascem de suas convicções; os fatos são
(Cícero, De Oratore, II, 36)
expressão e resultados das idéias, e a História dos povos e
das nações e dos estados e dos indivíduos representa a
História e evoluções do pensamento humano, tanto para as grandes coletividades quanto para os indivíduos.
Obreiras silenciosas mas infatigáveis e ativas, as idéias são as que preparam e afirmam, dirigem e
constituem o movimento dos homens e dos povos; são elas que determinam (sic) e explicam os progressos,
os desvios, os retrocessos parciais, os autos e baixos que se observam nesse grande fato histórico social que
chamamos Civilização. E a Civilização, como forma a mais ampla e compreensiva do progresso humano,
procede, antes de tudo e sobretudo, das idéias. A perfeição, verdade e realidade de uma Civilização se
encontram necessariamente em harmonia e relação com a natureza, importância e verdade das idéias
fundamentais que lhe dão forma e vida, e a diversidade destas idéias fundamentais origina e contém a razão
suficiente (sic) da diversidade de civilizações. A idéia constitui a trama viva e fecunda da História dos
homens e dos povos: a História do fato é e permanece letra morta se não é vivificada e interpretada pela
História da idéia.
Segue-se daí que a História da Filosofia – que, em última instância, não é outra coisa senão a própria
História do pensamento humano, a História das idéias – tem grande importância toda vez que representa
um elemento principalíssimo da Filosofia da História e da Filosofia da Civilização. E não só porque encerra
a razão suficiente primordial do movimento de avanço que se verifica na humanidade de uma maneira lenta
e gradual ou, digamos melhor, solene e compassada; mas também porque representa e explica os
movimentos extraordinários e bruscos que, de vez em quando, manifestam-se no percurso da História e da
Civilização. A ação paulatina e latente, mas perseverante e irresistível das idéias origina e explica o

4
Este parágrafo entranha o mesmo princípio que anima os chamados “filósofos” das “sociedades de pensamento” (sociétés de
pensée) que fizeram a Revolução Francesa: primeiro a idéia é concebida por poucos “iluminados”, que depois a difundem em
peças, artes e panfletos, retirando os demais da obscuridade e do “obscurantismo”. [N.T.]
6
movimento progressivo do primeiro gênero; já a ação extraordinária das idéias – consequência natural ou
da aparição súbita de concepções grandiosas e originais que se chocam vigorosamente contra outras
concepções ou de pensadores dotados de grande atividade e prestígio – origina e explica a segunda espécie
de movimentos. Porque não se pode esquecer que a História da Filosofia, como a História dos povos, tem
suas grandes guerras e suas grandes conquistas, tem seus grandes homens e seus grandes legisladores, tem
seus destronamentos ou mudanças de dinastias filosóficas, como tem, também, suas revoluções e
restaurações.
Não se creia, pelo que escrevi, que, em meu sentir, a Filosofia represente sozinha a origem e a razão
suficiente do que há de perfeição e progresso na História da humanidade e em sua Civilização: longe disso!
Opino, ao contrário, que no Cristianismo está a parte preferencial, a influência transcendental e decisiva da
origem e desenvolvimento da Civilização e do progresso. A História, a razão e a experiência revelam
conjuntamente o que seria esta Civilização de que tanto se envaidece a Europa se ela não tivesse sido
preparada, dirigida e vivificada pelo princípio cristão: a História da Grécia e da Roma Antigas – bem como
da Índia, da China e da África muçulmana – demonstram, com a evidência dos fatos, que a Civilização
produzida e informada só pela Filosofia – ainda quando ela é muito admirável, muito elevada e muito
profunda, como a de Sócrates, Platão, Aristóteles, Zenão e Plotino – é uma Civilização colocada a uma
imensa distância de nossa Civilização europeia. Que toda a civilização que careça da idéia cristã é uma
civilização essencialmente infecunda, estéril e incompleta – como acontece na Índia e na China –, ainda
que esteja informada por determinadas idéias religiosas além das filosóficas. Toda a civilização, enfim,
que, tendo arrancado de seu seio o princípio evangélico e se colocado fora da corrente cristã, fenece e perece
irremediavelmente, como pereceu e feneceu a Civilização na pátria dos Orígenes, Tertuliano e Agostinhos.
O Cristianismo, que foi o primeiro a proclamar em alta voz a igualdade e a fraternidade de todos os
homens perante Deus e a natureza – verdades estas fundamentais e constitutivas de toda Civilização digna
deste nome, mas verdades que nem sequer tinham chegado a vislumbrar o gênio intuitivo de Platão, ou o
talento analítico e enciclopédico de Aristóteles, ou o instinto jurídico de Roma –; o Cristianismo vivo, que,
com seu in principio creavit Deus coelum et terram, resolveu de maneira tão simples quanto filosófica o
grande problema cosmológico que tanto havia atormentado a Filosofia helênica; o Cristianismo que
apresenta soluções completas, fecundas, firmes e precisas para todos os grandes problemas que se impõem
à inteligência e à vontade do homem e, especialmente, para os que se referem à sua origem, ao seu destino
final e eterno, a seu porvir na vida presente e na vida futura, às suas relações com seus semelhantes e com
Deus; este Cristianismo contribuiu antes que a Filosofia – e muito mais que a Filosofia – com a Civilização
europeia no que contém de mais grandioso, elevado e fecundo, no que ela tem de verdadeira Civilização,
no que causa e constitui sua superioridade real sobre as civilizações estranhas à ação e influência do
Evangelho. A Revolução, que parece ter assentado o seu trono no centro desta Civilização, bem pode
imprimir nela tendências anticristãs, socialistas e comunistas, costumes pagãos e sensualistas; bem pode
trabalhar e se esforçar para a retirar das águas salutares do Cristianismo e afoga-la nas águas do antigo
paganismo (Renascimento); bem pode suscitar iras poderosas e acumular ódios profundos contra Cristo e
Sua Igreja, mas jamais poderá persuadir o homem de razão serena e de boa vontade que a origem histórica,
a razão suficiente primordial e os elementos mais importantes e fecundos da Civilização europeia não se
devem ao cristianismo. Como pôr em dúvida que as grandes instituições, as grandes idéias, as grandes
aspirações que caracterizam a Civilização moderna e que lhe dão uma marcada superioridade sobre as
civilizações antigas devem seus princípios, seu desenvolvimento e sua força nativa ao Cristianismo? Cabe
pôr em dúvida que a cultura europeia deve sua incubação, seus primeiros passos e desenvolvimento a este
Cristianismo que semeou a Europa de escolas públicas e gratuitas para o povo e ao mesmo tempo de escolas
superiores ou Universidades para os escolhidos da ciência? Será necessário recordar que o Cristianismo
primeiro enfraqueceu, depois limou e, por último, rompeu as cadeias materiais da escravidão, e isto depois
de limar e romper suas cadeias morais, dando-lhe consciência de sua própria dignidade?
E foi também o Cristianismo que reformou os costumes públicos e privados, que suavizou os costumes
da paz e os costumes da guerra, que transformou paulatinamente a vida civil e a vida pública, as leis, a
gente e as instituições, como foi também o que introduziu e afirmou no seio da sociedade das nações a idéia
de fraternidade e amor universal dos homens, a idéia de liberdade e a idéia de justiça, das quais são
7
corolários legítimos a abolição da escravatura, a reabilitação da mulher, a liberdade da pessoa e do trabalho,
a independência e dignidade da consciência religiosa ante os poderes humanos, a inviolabilidade do direito
e da propriedade. E não é que eu negue a participação real da Filosofia nem na origem nem no
desenvolvimento e aplicações destas grandes idéias: antes o contrário! Reconheço grandíssima importância
e influência decisiva à espontaneidade natural do espírito humano, às configurações luminosas da razão, às
antecipações intuitivas do gênio. Quisera Deus que a razão, a Filosofia e a ciência não tivessem abusado de
suas forças, das forças preparadas e acumuladas pelo princípio cristão, da força recebida e herdada do
cristianismo, para se rebelar contra este e para a blasfemar de seu Fundador divino, para falsear, distorcer
e destruir o movimento da Civilização cristã da antiga Europa e para a colocar nas águas do ateísmo
socialista.
Tenha-se em conta que até ao próprio conceito de progresso humano, até essa idéia que a Filosofia
moderna ou novíssima – e poderíamos dizer a Filosofia revolucionária – reivindica para si de uma maneira
exclusiva, deve ao cristianismo sua germinação inicial e seu primeiro desenvolvimento. Para quem sabe ler
a História e a doutrina cristã, é verdade inconcussa que a teoria ética cristã entranha a idéia do verdadeiro
– e, até, poderíamos dizer, ilimitado – progresso do homem sempre que a sua perfectibilidade ético-
intelectual abrace uma escala ilimitada, cujo termo final e cujo ideal é o próprio Infinito e cuja medida é a
aproximação e a configuração a Deus, Verdade Absoluta, Bondade e Santidade Suprema. Nem é menos
inconteste que a Cidade de Deus de Santo Agostinho, a História de Paulo Orósio 5 e os livros De
Gubernatione Dei de Salviano6 entranham uma idéia mais ou menos explícita do progresso humano social
e histórico, assim como é coisa averiguada que esta lei geral do progresso humano, principalmente no que
se refere à ordem intelectual e científica, foi apontada e defendida por Roger Bacon7 e Durando8 na Idade
Média, foi aplicada em parte depois pelo autor do Novum Organum9 e foi afirmada e desenvolvida mais
tarde por Pascal. É claro que o progresso reconhecido e proclamado por Pascal e pela Filosofia cristã não é
o progresso da perfectibilidade indefinida e palingenésica de Condorcet10; nem o progresso sensualista
libertino de Saint-Simon 11 e de Fourier 12 ; nem tampouco o progresso humanitário de Leroux 13 e

5
Paulo Orósio (sec. IV-V), sacerdote contemporâneo de Santo Agostinho e São Jerônimo, com quem manteve contatos, é originário
de Bracara Augusta (atual Braga, em Portugal). Além de auxiliar S. Agostinho na elaboração da Cidade de Deus (cf. MARTÍNEZ
CAVERO, P. El pensamiento histórico y antropológico de Orosio. Murcia: Universidade. Área de Historia Antigua, 2002. p. 35),
escreveu 3 importantes obras, dentre as quais a citada História contra Pagãos, que exerceu enorme influência sobre a historiografia
medieval.
6
Salviano de Massília (sec. V), originário da Colônia Agripinense (atual Colônia, na Alemanha), foi amigo de São Vicente de
Lérins e autor dos livros De Gubernatione Dei, em que trata da Queda do Império Romano na Gália e das invasões bárbaras.
7
Roger Bacon (1214-1294), frade franciscano e doutor escolástico inglês, conhecido como Doctor Mirabilis, é o autor do Opus
Majus e pai do método científico.
8
Guilherme Durando ou Durandus (1230-1296), Bispo de Mende, na França, téologo, conhecido como Speculateur, por causa de
sua famosa obra Speculum judiciale (Espelho judicial). Compôs importantes comentários sobre as leis civis e canônicas e sobre as
rubricas e participou na elaboração das constituições do II Concílio Ecumênico de Lião (1274).
9
Francis Bacon (1561-1626), cognominado “fundador da ciência moderna”, ocupou-se especialmente da metodologia científica e
do empirismo. Sua principal obra filosófica é o Novum Organum, cujo nome remete às obras de lógica de Aristóteles
10
Marquês de Condorcet (1743-1794), considerado o último dos iluministas, consignou a idéia do progresso do saber em sua obra
Esquisse d'un tableau historique des progres de l'esprit humain (“Ensaio de um quadro histórico do progresso humano”), na qual
imputa à Religião o entrave do progresso, apresentando o teólogo e o sacerdote como detentores exclusivos do saber, como meio
de manutenção de poder.
11
Conde de Saint-Simon (1760-1825), iluminista e precursor do socialismo (considerado “socialista utópico” por Karl Marx),
defendia a idéia de que a ciência e a técnica conseguiriam regenerar a sociedade, levando-a à “verdadeira igualdade” entre os
homens numa sociedade produtiva baseada na “união dos homens engajados em trabalho útil”.
12
Jean-Baptiste Joseph Fourier (1768-1830), matemático e político, caracterizado por defender o ideal republicano, foi membro do
Comité Revolucionário de Auxerre até a condenação de Robespierre à guilhotina. Tendo iniciado a vida religiosa na abadia
beneditina de St. Benoit-sur-Loire em 1787, abandonou tal ideal antes de fazer os votos, animado pela “esperança sublime de
estabelecer entre nós um governo livre, isento de reis e padres e libertar deste duplo jugo o solo usurpado da Europa. Eu apaixonei-
me por esta causa, que é na minha opinião a maior e a mais bela que uma nação pode empreender”. Acompanhou Napoleão em sua
expedição ao Egito.
13
Pierre Leroux (1798-1871) é o criador do termo “socialismo” e foi apoiador da Comuna de Paris até a sua morte. Propunha que
as famílias não tivessem chefe, que os estados fossem governados pelo povo e que as propriedades não estivessem limitadas ao
direito de posse. Para substituir a Religião Cristã, propunha um deísmo nacional.
8
Proudhon14; e muito menos o progresso positivista de Comte15 e Littré16 ou o progresso evolucionista e
transformista de Darwin e Häckel17; nem também o progresso físico fatalista da novíssima escola filosófica
sociológica; mas o progresso da razão e da História, o progresso que compõe e harmoniza a contingência
do fato e a liberdade individual com a causalidade universal e a infalibilidade da Providência divina.
Uma vez indicadas e reconhecidas a importância e a superioridade da História da Filosofia frente à
História externa dos povos e nações – haja vista a importância e superioridade do pensamento sobre a ação
externa, da idéia sobre o fato –, é necessário, agora, determinar as condições científicas e metodológicas
que devem presidir sua apresentação e desenvolvimento, a fim de ser frutífera em resultados e adequada
para seus próprios fins. Em outras palavras, deve-se agora definir o objeto específico da História da
Filosofia – objeto este que é o que propriamente constitui e distingue as diferentes ciências (scientia
specificatur per objeto, os antigos escolásticos afirmaram não sem razão). É necessário fixar o método que
deve ser seguido na exposição e desenvolvimento de seu objeto.
De acordo com Hegel e seus discípulos, a História da Filosofia – bem como as demais ciências históricas
e todas as de natureza positiva – deve ser escrita em submissão ao princípio de identidade radical e real do
fato e da idéia e, portanto, subordinando, ou falando com mais propriedade filosófica, absorvendo o
fenômeno no numeno, a experiência sensível à razão pura, o fato à idéia. Dada essa concepção de História,
concepção esta que, diga-se de passagem, não é mais que uma das muitas aplicações do princípio
fundamental dos hegelianos, a saber, que tudo o que é racional é real, de modo a haver identidade perfeita
ou, pelo menos, paralelismo exato entre a ordem cronológica e a ordem lógica, de modo que os fatos
correspondam aos conceitos da razão pura, nos quais radicam o seu ser e com os quais se identificam de
fundo. E como pretendem que os conceitos da razão pura sejam mais facilmente conhecidos e que os
possuamos de uma maneira mais imediata que os fatos históricos e fenômenos externos, que residem e têm
sua razão de ser no primeiro, concluem daí que a História da Filosofia não seja, nem represente para o
filósofo historiador, mais do que a sucessão dialética de certos momentos da Idéia. Em outras palavras: a
contingência aparente e externa dos sistemas filosóficos é resolvida em uma evolução interna necessária da
razão universal imanente, ou da Idéia, e a História da Filosofia será portanto – e não pode ser outra coisa –
nada mais do que uma síntese a priori da razão pura, uma síntese abrangente, mas arbitrária, como uma
concepção pré-histórica da Filosofia.
Apesar de sua clássica grandeza e unidade fascinante, essa concepção hegeliana é absolutamente
inaceitável, porque equivale a substituir o conteúdo real e a significação histórica dos sistemas filosóficos
pelo conteúdo abstrato de categorias puramente ideais e dialéticas. Além do que, se na ordem lógica do
hegelianismo, são as relações internas e dialéticas dos conceitos racionais que determinam e concretizam a
sucessão cronológica e objetiva dos diferentes sistemas filosóficos, a verdade é que, na ordem histórica e
real, essa sucessão entranha necessariamente um aspecto subjetivo e é determinada, pelo menos em parte,
por influências psicológicas e por influências do meio em que surgem e se desenvolvem. Uma vez admitida
a existência da Idéia Hegeliana, a razão e a experiência demonstram juntas que, se o processo dialético
dessa Idéia puder encontrar e determinar a ordem lógica dos conceitos da razão pura e suas relações internas
ideais, ela nunca será capaz de nos dar com isso a realidade contingente das coisas, nem a ordem
cronológica dos eventos. A História, assim como a natureza física, pede para ser observada, quer ser
questionada e estudada em sua realidade concreta e em suas ações; ela não pede e não deve ser adivinhada
com antecedência, nem construída a priori.
Agora é justo acrescentar que, se não se quiser cair no extremo oposto, essa concepção hegeliana de
História não deve ser rejeitada em todos os seus aspectos, nem muito menos sua aplicação à História da

14
Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865), político e pensador francês, foi o primeiro ideólogo anarquista, sendo considerado um
socialista utópico por Karl Marx. Sustentava que a propriedade privada constituía o roubo: “La propriété, c’est le vol!”
(PROUDHON, O Que É a Propriedade? cap. 1)
15
Auguste Comte (1798-1857) é o autor do positivismo e fundador da sociologia moderna.
16
Émile Littré (1801-1881) foi um lexicógrafo autor do Dictionnaire de la langue française (conhecido como o Littré), instrumento
para a difusão de seu positivismo e ateísmo. Participou da insurreição contra Carlos X, em 1830).
17
Ernst Haeckel (1834-1919) foi um artista, zoologista e eugenista alemão que contribuiu com a divulgação do trabalho de Charles
Darwin. Autor do termo “ecologia”, propôs a teoria da recapitulação, segundo a qual os estados de desenvolvimento embrionário
revelariam os estágios da evolução das espécies. A fraude de sua teoria foi exposta em 1874, quando foi condenado em um tribunal
universitário, em que confessou a falsificação de apenas alguns dos desenhos, forjados para dar maior credibilidade à sua teoria.
9
Filosofia. Pois, se ela nunca pode ser uma construção sistemática e apriorística da razão pura que absorva
e anule a realidade histórica dos fatos, também não pode ser uma narrativa puramente empírica dos sistemas
filosóficos, mas deve estudar, discernir e determinar o vínculo entre eles, sua ação e reação recíprocas, a
influência do meio ambiente, a filiação de doutrinas, investigar e apontar a lei que preside o fato e a sucessão
racional por trás da sucessão histórica. Em nossa opinião, a História da Filosofia deve simultaneamente
abraçar e envolver o elemento empírico e contingente, e o outro elemento racional e necessário. Não é nem
um sistema dialético de conceitos puros, nem uma mera justaposição de doutrinas, ou, como disse o próprio
Hegel, “não é uma série de aventuras de cavaleiros errantes que lutam por uma beleza que nunca viram e
que só deixam em busca de si mesmos a narração divertida de seus empreendimentos ridículos”. Em suma:
a História da Filosofia, sem prejuízo de expor com a devida precisão os sistemas filosóficos, considerados
como produtos contingentes da liberdade e inteligência do indivíduo juntamente com as condições do
ambiente, deve, ao mesmo tempo, investigar e apontar a razão suficiente para esses sistemas, sua lei
geradora, a idéia racional, necessária e única, que existe e se oculta sob a aparente desordem dos fatos, as
relações doutrinárias e genéticas dos sistemas, consideradas como fatores específicos na História da
Filosofia, e a abstração feita da unidade primitiva, remota e indireta, que corresponde à Filosofia por parte
do que é chamado de Filosofia do senso comum.
Porque deve-se notar que a sucessão de sistemas filosóficos, considerada como constituindo o
movimento gerador da Filosofia, e sua História propriamente dito, isto é, como manifestação parcial e
determinada do pensamento refletido, ocorre fora da ação direta do senso comum; mas sem que seja dado
prescindir completamente de sua influência espontânea e latente em relação às aplicações práticas de tais
sistemas. É que essa Filosofia do senso comum representa e constitui o fundo essencial e uno da razão
humana em suas relações inatas com a verdade, que é seu objeto necessário. Em outros termos: a História
da Filosofia, como evolução sistemática e reflexiva da razão humana, caminha e encontra seu movimento
próprio, muitas vezes apartando a vista dessa Filosofia do senso comum que lhe serve de base primitiva,
indireta e, até certo ponto estranha, se preferir; mas que nem por isso deixa de impedir, com sua força nativa
e essencialmente conservadora, que certas idéias tomem conta das multidões ou se enraizem nas diferentes
camadas sociais – como não tomaram por esse motivo, pelo menos na ordem prática, nem a doutrina
nirvânica do budismo, nem as teorias comunistas de Platão, nem os exageros éticos do estoicismo, nem
tantas outras idéias e teorias perigosas e incompatíveis com o bem-estar da humanidade, com as quais nos
deparamos a cada passo da História da Filosofia. Como um conjunto orgânico de sistemas e como uma
evolução histórica especial e concreta, a Filosofia representa e constitui uma esfera relativamente
independente e separada da Filosofia do senso comum, mas sempre mantendo certos e essenciais pontos de
contato com ela, e sujeita à sua força de atração; representa uma construção arquitetônica estabelecida em
uma rocha de granito; é uma concepção refletida do pensamento individual, que pressupõe uma concepção
espontânea da razão universal.
O advento de Jesus Cristo, que é o centro da História universal do gênero humano, também representa
o ponto central da História da Filosofia. Porque o advento do cristianismo naturalmente carrega consigo a
divisão da Filosofia em Filosofia pagã e Filosofia cristã, em Filosofia anterior, ou pelo menos estranha e
independente do cristianismo, e na Filosofia posterior a ele, e mais ou menos influenciada pela idéia cristã.
Mas como, a contar desde os primeiros anos do século XVI, se iniciou um movimento separatista no seio
dessa Filosofia até então quase exclusivamente cristã, que vem se desenvolvendo e crescendo até hoje, um
movimento que é representado por não poucos filósofos racionalistas ou defensores de doutrinas e teorias
incompatíveis com o cristianismo, daí a necessidade de dividir a Filosofia posterior ao advento do
cristianismo propriamente em Filosofia Cristã e Filosofia Moderna, que, a par de autores, princípios,
sistemas e elementos cristãos, contém simultaneamente autores, princípios, sistemas e elementos mais ou
menos heterodoxos e anticristãos.
Nesse sentido, e com essas reservas, aceito e adotei neste trabalho a classificação, geralmente aceita, de
(1) Filosofia Pagã ou Antiga, (2) Filosofia Cristã e (3) Filosofia Moderna. Cada uma delas contém seções
ou subdivisões relacionadas à sua evolução peculiar. Assim, por exemplo, a (2) Filosofia Cristã pode ser
subdividida em Filosofia Patrística e Filosofia Escolástica, que, por sua vez, é suscetível a outras
subdivisões, bem como na (3) Filosofia Moderna podemos apontar ou distinguir a primeira era, que abrange
10
de Bacon, ou se preferir, do Renascimento a Kant, em quem e com o qual o segundo período começa, isto
é, a Filosofia Novíssima. Divisões semelhantes podem ser aplicadas à (1) Filosofia Antiga ou pagã, que
contém e abarca, além da Filosofia dos povos orientais, a Filosofia pré-socrática, a Filosofia pós-socrática
e a Filosofia greco-romana.
No quadro da Filosofia Pagã, achei conveniente e justo trazer a Filosofia dos povos antigos e das
civilizações orientais, uma Filosofia anterior à da Grécia, ou ao menos fora de sua órbita. Tenho para mim
que uma História da Filosofia em que se omita esta parte deve ser considerada como incompleta; porque
essa Filosofia dos povos antigos, embora sem dúvida inferior à grega, não é isenta de importância histórica
e científica; significa algo na evolução progressiva e nas vicissitudes da idéia filosófica, e pode contribuir
para esclarecer os primeiros passos da História e da Civilização. Certamente não seria razoável, nem muito
oportuno, permanecer em silêncio hoje sobre as especulações filosóficas que tinham as margens do Ganges
como teatro, e que deram origem, ou pelo menos serviram como ocasião e ponto de partida, para o
movimento budista, que dominou e domina as vastas e povoadas regiões da Ásia Central e do Sul. E isso é
ainda mais oportuno, se não necessário, já que esse tipo de renascimento budista que testemunhamos hoje,
e a importância intelectual intencional atribuída por alguns ao budismo, tornam essencial expor e discutir a
idéia filosófica doutrinária contida nessa concepção asiática.
Quanto ao que poderia ser chamado de parte externa do método, principalmente no que diz respeito à
natureza e ao uso das fontes, achei apropriado adotar um meio termo, evitando assim dois extremos que
não são incomuns de observar em prejuízo da erudição e da História, e que considero igualmente
condenáveis. Sem sair de nosso assunto, vemos Histórias da Filosofia desprovidas, não apenas de citações,
mas também de todos os tipos de indicações bibliográficas e fontes históricas. Por outro lado, existem
outros livros desse gênero nos quais citações, indicações bibliográficas e fontes preenchem páginas inteiras
e absorvem uma parte muito considerável do trabalho. Essa abundância ou luxo de citações e fontes, que
podem ser justificadas, ou pelo menos toleráveis em uma extensa e volumosa História da Filosofia, podem
muito bem ser descritas como inoportunas e parecem pouco justificadas, quando se trata de uma História
elementar e compendiosa da Filosofia. Por esta e algumas outras considerações, e depois de hesitar por um
tempo, achei apropriado adotar um meio termo neste assunto. Consiste em indicar no início da obra as
principais fontes, ou seja, os escritos e obras mais importantes consultados como fontes, seja para toda a
História da Filosofia, seja para alguns de seus períodos, ou para um ou alguns dos Filósofos mais notáveis.
Tudo isso sem prejuízo de apresentar algumas citações e inserir palavras e frases dos respectivos autores
no corpo do texto, para que o leitor possa julgar por si mesmo a fidelidade e a precisão envolvidas na
exposição de certas idéias e teorias. Como ponto geral, tentei citar essas citações e passagens quando se
tratam de Filósofos e sistemas de grande importância na História da Filosofia, ou obras especiais e
geralmente pouco conhecidas, ou pontos controversos entre historiadores e críticos, ou quando se trata,
finalmente, de opiniões e idéias, ou não mencionadas, ou expostas e julgadas de maneira imprecisa por
historiadores da Filosofia. Em obras históricas elementares, o uso de estudos excessivos, além de comunicar
ao livro um certo caráter pedante, geralmente leva à confusão de idéias e julgamentos. Mas banir deles hoje
todos os tipos de estudos bibliográficos, e não invocar textos e citações, é ignorar a condição e a natureza
adequadas dos livros históricos, nos quais ninguém tem o direito de ser crido só por sua palavra, e é ignorar,
acima de tudo, as demandas da era crítica que estamos atravessando.
Devo acrescentar agora que as principais fontes que usei para conhecer e expor a doutrina dos Filósofos
que têm especial importância histórica e científica foram, de um modo geral e com poucas exceções, seus
próprios escritos. Ainda no que diz respeito a não poucos Filósofos de segunda ordem, acreditei ser o caso
de consultar e ler suas obras no todo ou em parte, porque só assim é possível expor com a fidelidade
necessária e julgar com alguma correção a doutrina e as idéias de certos autores, doutrinas e idéias que
muitos historiadores da Filosofia geralmente expõem e julgam de maneira rotineira e imprecisa, ou cuja
exposição eles omitem completamente, apesar de sua importância relativa, como é o caso de alguns
representantes da Filosofia Escolástica.
A indicação de nomes e a exposição de doutrinas pertencentes a filósofos espanhóis ocupam mais espaço
do que numa História Geral da Filosofia corresponde a eles; mas isso não será atribuído a mim como um

11
grande defeito por parte dos leitores espanhóis, não importa o quanto o seja, e certamente o será pelos
estrangeiros, caso alguns deles leiam este livro.
Os defeitos deste último, sem contar a parte principal que corresponde à insuficiência do autor,
encontrarão mitigação e algum pedido de desculpas nas circunstâncias do lugar e do tempo em que foi
escrito. Foi escrito, é verdade, na terra natal de Sêneca; mas foi escrito em meio às múltiplas e muito sérias
atenções do ofício episcopal, o que vale tanto quanto dizer que foi escrito sem espaço e vagar adequados e,
acima de tudo, sem a tranquilidade de espírito tão necessária para empreender e realizar esse tipo de
trabalho.
Que a História da Filosofia seja talvez o ramo do saber mais negligenciado entre nós, é manifesto. Como
também o é a conveniência de incentivar aqueles meus compatriotas que estejam em melhores condições
do que as minhas para esse fim, a preencher esse grande vazio de nossa literatura. Algo e até muito pesou
esta última consideração em minha mente ao decidir pegar a pena e escrever este ensaio de História da
Filosofia.

12
Bibliografia
Em conformidade com o que no Prólogo deixamos indicado, vamos indicar parte dos livros de que
nos temos servido como fontes bibliográficas para escrever esta História da Filosofia, já que citá-las
todas seria impossível ou, ao menos, alargaria demasiadamente esta resenha bibliográfica.
Indicaremos primeiro, sob o título de Fontes Gerais as que se referem a toda ou à maior parte da
História da Filosofia, passando depois a citar as fontes bibliográficas particulares correspondentes aos
diversos períodos parciais da mesma.

Fontes Gerais
¨ Brucker, Historia critica Philosopiae a mundi incunabulis ad nostram usque aetatem
deducta, 1741.
¨ Tennemann, Manuel de l´Histoire de la Philosophie, trad. V. Cousin, 1839.
¨ De Gerando, Histoire comparée des systèmes de Philosophie relativement aux principes des
connaissances humaines, 1823-1847.
¨ Ritter, Histoire de la Philosophie ancienne, trad. Tissot, 1835.
— Histoire de la Philosophie chrétienne, trad. M. Trullard, 1844.
— Histoire de la Philosophie moderne, trad. Challemet-Lacour, 1861.
¨ Cousin, Histoire générale de la Philosophie, 1867.
— Introduction à l´Histoire de la Philosophie. [XXXVIII]
¨ Scholten, Histoire comparée de la Philosophie et de la religion, trad. M. Reville, 1861.
¨ Weber, Histoire de la Philosophie européenne, 1872.
¨ Nourrisson, Tableau des progrès de la pensée humaine depuis Thales jusqu´à Hegel, 1874.
¨ Michelis, Geschichte der Philosophie von Thales bis auf unsere Zeit, 1865.
¨ Uebeerweg, Grundriss der Geschichte der Philosophie, 1870.

Foram consultadas, ademais, Histórias Gerais de certas doutrinas e de sistemas determinados


referentes à Filosofia, dentre as quais, a Historia de las doctrinas morales y políticas, por Janet (1858);
e a mais recente Historia del materialismo, por Lange, publicada em 1865.

Fontes
para a Filosofia anterior à grega, ou dos povos orientais
¨ Encyclopédie du XIX siècle, nos artigos que tratam das religiões dos povos antigos, da Filosofia
e dos sistemas da Índia, do Budismo, do Zend-Avesta, da doutrina filosófica e moral dos
chineses, egípcios e outros povos orientais.
¨ Welte y Wetzer, Dictionnaire encyclopédique de la théologie catholique, trad. Goschler, nos
artigos que tratam da doutrina filosófico-religiosa dos judeus e demais povos antigos, 1858-65.
¨ Gobineau, Les religions et les philosophies dan l´Asie Centrale, 1865.
¨ Colebrooke, Essai sur la philosophie des Indous, trad. Pauthier, 1833.
¨ Burnouf, Introduction à l´Histoire du Boudhisme indien, 1844.
¨ Barthélémy Saint-Hilaire, Le Bouddha et sa religion, 1860.
¨ Regnaud, Études de philosophie indienne, 1876.
¨ Bunsen, Dieu dans l´Histoire, trad. A. Dietz, 1868.
¨ Max Müller, La science de la religion, trad. H. Dietz, 1873. [XXXIX]
¨ Anónimo, De ritibus sinensium erga Confucium philosophum et progenitores mortuos, 1700.
Parece escrito por algún misionero Jesuita, a juzgar por sus ideas acerca de los ritos sinenses.
¨ Navarrete (P. Fr. Domingo), Historia de China, en la cual este célebre misionero expone y
discute la doctrina de los literatos chinos, con motivo de las controversias sobre los ritos
sinenses.
¨ Noel (P. Francisco), Sinensis imperii libri classici sex e sinico idiomate in lat. vers, 1771.
13
¨ Meiners, De Zoroastris vita, institutis, doctrina et libris, 1780.
¨ Harlez, Le Zend-Avesta, ensayo crítico publicado en la Revue catholique de Louvain, 1874.
¨ Wiseman, Discursos sobre las relaciones que existen entre la ciencia y la religión
revelada, 1844.
¨ Lenormant, Manuel d´Histoire ancienne de l’Orient, 1868.
¨ Ruchet, La science et le Christianisme, 1874.
¨ Biblia sacra seu Vetus Testamentum.
¨ Flavii Josephi, Opera, 1726.
¨ Herodoto, Historiarum libri IX: recognovit Guilielmus Dindorfius, 1862.
¨ Ctesiae Cnidii Fragmenta, dissertartione et notis illustrata a Carolo Müller, 1862.

Fontes
para a Filosofia grega
¨ Aurea Carmina Pythagorae, cum commentariis Stephani nigri, edic. de Basilea, sin fecha.
¨ Diógenes Laertius, De vitis, dogmatibus, et apophtegmatibus clarorum philosophorum, 1759.
¨ Ritter y Preller, Historia Philosophiae graeco-romanae ex fontium locis contexta, 1838.
¨ Zeller, Die Philosophie der Griechen, 1856.
¨ Laforet, Histoire de la Philosophie ancienne, 1867. [XL]
¨ Jenofonte, Memorabilia Socratis, trad. Schneider, 1863.
¨ Platón, Opera, Marsilio Ficino interprete, 1556.
¨ Aristóteles, Opera, 1608

As obras de Platão e de Aristóteles, além de serem fontes primárias e diretas de sua própria doutrina,
servem também de fontes as mais autorizadas e seguras a respeito da doutrina e opiniões
correspondentes à Filosofia socrática e às escolas anteriores a Sócrates. Neste conceito, são de muito
valor alguns dos Diálogos de Platão, mas são de maior importância, ainda, os escritos de Aristóteles,
principalmente os três livros De Anima, o Tratado De generatione et corruptione e, sobretudo, o livro
primeiro Metaphysicorum, que contem um verdadeiro resumo da História da Filosofia desde Tales até
Platão e Aristóteles.
O que são as obras destes últimos para a Filosofia socrática e pré-socrática, são as obras de Cícero
para a Filosofia posterior a Sócrates. Além das questões tusculanas e as académicas, são importantes,
nesta matéria, os Tratados De divinatione et de fato, De natura deorum, e o De officiis, os quais contêm
uma espécie de resumo das opiniões e teorias professadas pelos principais filósofos e escolas que
floresceram depois de Sócrates.
Para conhecer e julgar estas mesmas escolas e, por sua vez, as opiniões e doutrinas dos sistemas e
filósofos posteriores a Cícero, são também fontes autorizadas e muito dignas de estudo os escritos de
Clemente de Alexandria, Orígenes e Eusébio de Cesaréia, nos quais se encontram muitas notícias e
indicações curiosas e úteis acerca da matéria. Os Stromata de S. Clemente, o tratado De principiis e o
que escreveu Contra Celsum de Orígenes, e a Praeparatio evangelica de Eusébio, assim como
sua História eclesiástica, são os mais importantes neste sentido.
¨ Soury, L´Ecole d´Athènes, estudo crítico sobre as relações da escola socrática com o
materialismo, publicado na Revue philosophique, 1876. [XLI]
¨ Marsilio Ficino, Theologia platónica de immortalitate animorum, 1559.
¨ Justo Lipsio, Manudictio ad stoicam Philosophiam, 1604.
¨ Séneca, Opera quae extant omnia, a Justo Lipsio emendata, 1605.
¨ Epitecto, Enchiridiom et Cebetis tabula, 1570.
¨ Guyeau, La contingence dans la nature et la liberté dans l´homme selon Epicure, 1877.
¨ Gassendi, Animadversiones in decimum librum Diogenis Laertii, qui est de vita, moribus,
placitisque Epicuri, 1675.
¨ Lucrecio, De rerum natura, 1850.
¨ Filón, Opera omnia, 1613.
¨ Plotini libri in sex Enneades distributi a Marsilio Ficino translati et comment. illustrati, 1559.
14
¨ Porfirio, De diis atque daemonibus.
¨ ______ De abstinentia ab esu animalium.
¨ ______ De anima, Marsilio Ficino interprete, 1552.
¨ Introductio ad universalia, Severino Boetio interprete, 1552.
¨ Jámblico, De mysteriis aegyptiorum, chaldaeorum et assyriorum, 1554.
¨ Proclo, Commentaria in Alcibiadem Platonis primum de Anima et daemone, Marsilio Ficino
interprete, 1552.
¨ Julio Simón, Histoire de l´Ecole de Alexandrie, 1845.

15
História da Filosofia
§ 1 Conceito de História da Filosofia

Aristóteles começa os seus 14 livros da Metafísica com aquela afirmação de todos conhecida, a saber:
“que todos os homens desejam naturalmente saber” (omnes homines natura scire desiderant), ou possuem
natural inclinação à ciência. Afirmação esta que, ainda que pareça simples à primeira vista, encerra
profundo sentido filosófico, segundo se depreende das reflexões luminosas que faz Santo Tomás18 ao expor
e comentar com sua costumeira penetração e segurança esta sentença do Estagirita. E é digno de nota que
o Doutor Angélico supõe e afirma que este desejo natural de saber se refere ao saber em si mesmo, abstração
feita de suas aplicações ulteriores e de sua utilidade possível: quaerere scientiam non propter aliud utilem,
qualis est haec scientia, non est vanum.
A nossa intenção, contudo, na presente ocasião, é só de recordar que esse desejo de saber, espontâneo e
universal no homem, de que nos fala o discípulo de Platão, é o grão de mostarda que cresceu e cresce, se
desenvolveu e se desenvolve, até constituir a ciência filosófica, cuja história tratamos de escrever. Mas o
que se entende por esta ciência filosófica? Que matérias e questões constituem a essência e o ser da
Filosofia, e representa, por conseguinte, o domínio e os limites de sua História?
Essas são perguntas que entranham um problema nada fácil de resolver, pelo menos com segurança e
precisão exata. Isso porque, se nos voltamos para atrás e damos uma breve olhada sobre o sentido e
significado que se deu ao termo “Filosofia” (philosophia - φιλοσοφία) nas diversas épocas e por diferentes
autores, será sumamente difícil para nós determinar, circunscrever e fixar o sentido e a compreensão, e, por
conseguinte, a natureza e o domínio da filosofia e de sua História.
Zeller observa com razão que a palavra “Filosofia” recebeu entre os gregos sentidos e significados muito
diferentes. De fato, se recorremos aos escritos de Heródoto, Xenofonte Platão e Sócrates e alguns outros,
veremos que o nome de filósofo se tomava com frequência como sinônimo de sábio, de sofista, de físico
ou naturalista, e, por vezes, aplicava-se até a poetas e artistas em geral. Em geral, pode-se dizer que, de
princípio, toda cultivação do espírito humano, aplicação ou exercício de sua atividade em qualquer de suas
etapas, a manifestação, enfim, da potência e força nativa da razão humana numa esfera superior à do vulgo
ou generalidade dos homens recebeu tanto o nome de “Filosofia” (φιλοσοφία) quanto de “sabedoria”
(σοφία). Porque é sabido que, de início, estes dois nomes andaram juntos, de modo geral confundidos e
como que identificados e se pode acrescentar ainda que esteve em uso mais o segundo (sábio) que o
primeiro (filósofo) até a época de Pitágoras19 e até o ensinamento de Platão, cujos escritos contribuíram
muito não só para generalizar o uso do termo filósofo, mas também para precisar e fixar seu verdadeiro
sentido.

18
Sem contar outras várias considerações muito filosóficas acerca das aplicações e efeito desse natural desejo de saber que existe
no homem, Santo Tomás busca e aponta a razão suficiente desse fenômeno ou, digamos melhor, deste fato: a) na tendência
espontânea e natural do imperfeito à perfeição, do entendimento em estado de potência ao entendimento em estado de ato, da
inteligência potencial e informe à inteligência atualizada e informada pelas idéias; b) na natural inclinação de toda substância ou
natureza à sua própria operação, à ação correspondente à sua própria essência, que no homem e para o homem não é outra que a
ação do entender, inteligir ou saber – posto que essa é a ação mais própria do homem enquanto homem e que o distingue e separa
dos demais entes – e, por conseguinte, nada mais natural que a inclinação do homem à ciência, o desejo de saber e conhecer as
coisas e suas razões e princípios. «Cujs ratio potest esse triplex: primo quidem quia unaquaeque res naturaliter appetit perfectionem
sui, unde et materia dicitur appetere formam, sicut imperfectum appetit suam perfectionem. Cum igitur intellectus a quo homo est
id quod est, in se consideratus, sit in potentia omnia, nec in actum eorum reducatur nisi per scientiam, quia nihil est eorum quae
sunt, ante intelligere, sic naturaliter unusquisque desiderat scientiam, sicut materia formam. Secundo, quia quaelibet res naturalem
inclinationem habet ad suam propriam operationem; propria autem operatio hominis in quantum homo est intelligere, per hoc enim
ab omnibus aliis differt: unde naturaliter desiderium hominis inclinatur ad intelligendum et per consequens ad
sciendum.» Comment. in 12 lib. Metaphys., lib 1º, lecc.1ª.
Não é menos bela a terceira razão, provando que o homem deseja naturalmente a ciência, ato e perfeição própria do entendimento
humano, porque por meio dela se verifica a união do homem com a Inteligência Suprema e a posse da perfeita felicidade: Non
conjungitur homo nisi per intellectum, unde et in hoc ultima hominis felicitas consistit.
19
Qualquer que seja a exatidão histórica da anedota que atribui a Pitágoras a origem do nome filósofo – exatidão que nem todos
reconhecem –, é certo que esta palavra tomou carta de cidadania, por assim dizer, entre os escritores e homens de letras a partir da
época em que floresceu o fundador da escola itálica.
16
Para o mesmo resultado contribuíram igualmente os escritos e ensinamentos de Aristóteles, pois se bem
seja certo que tanto este como o seu mestre empregam vez ou outra a palavra Filosofia em seu sentido
primitivo e vago, geralmente lhe atribuem uma significação precisa, diferenciada e científica. Se, para
Platão, a Filosofia é o esforço por meio do qual o espírito humano se eleva ao conhecimento objetivo do
ser e da perfeição moral, e distingue o que é do que aparece, o inteligível do sensível e fenomênico; para
seu discípulo, a Filosofia é o conhecimento refletivo e sistemático dos princípios do ser e do conhecer, a
investigação científica do mundo e de suas primeiras causas, e do homem com suas potências, sua origem
e seus fins.
Nas escolas que posteriormente se formaram no calor da restauração socrática, e sob a influência mais
direta e imediata de Platão e Aristóteles, o nome e noção de Filosofia voltam a perder a precisão e o sentido
racional, preciso e científico que haviam recebido da boca e nos escritos daqueles dois grandes filósofos.
Em muitas destas escolas, a Filosofia fica reduzida à investigação ética, ou melhor, à investigação dos bens
nos quais consiste a felicidade do homem e os meios de chegaram a possuí-la. Noutras, a ciência filosófica
é amalgamada e confundida com a erudição histórica, a crítica, a música, a gramática e outras semelhantes.
Em algumas, finalmente, o elemento mitológico, a simbólica, a teurgia e a magia absorvem, se não
dissermos afogam, a filosofia, no sentido próprio do termo.
Em resumo: desde os primeiros tempos históricos até Pitágoras, a denominação de Filósofo e a de sábio
(então equivalente à primeira), dava-se aos que se sobressaiam ou se distinguiam do vulgo por alguma
cultura superior do espírito ou porque possuíam conhecimentos especiais em qualquer ramo, ciências, artes,
literatura governo etc. e também aos que se distinguiam da generalidade pela prática da virtude ou
exercícios das boas obras. A esta primeira época podemos aplicar as palavras de Cícero quando escreve:
Omnis rerum optimarum cognitio atque in his exercitatio Philosophia nominata est20.
De Pitágoras a Aristóteles inclusive, o nome e significado de Filosofia se determinam, especificam e se
fixam paulatinamente até adquirir um significado próprio e diferenciado e, por último, se apresenta – ainda
que de maneira mais ou menos vaga, entre vacilações passageiras e com alguma obscuridade – como a
ciência do mundo, de Deus e do homem, como a investigação científica, consciente e refletida da essência,
das leis e das relações da realidade objetiva. E aqui deve-se destacar que alguns destes filósofos, e
principalmente Sócrates e Platão, reconhecem e confessam que a ciência que o homem pode alcançar destes
objetos é muito imperfeita e como que nada em comparação da ciência de Deus, o único verdadeiro Sábio21
e o único que possui a ciência verdadeira e digna de tal nome.
Nas escolas posteriores, o conceito de Filosofia ou se circunscreve à investigação da felicidade da vida
humana e de suas condições (como nas escolas cínica, cirenaica, epicurista etc.) ou amalgama e confunde
toda a sorte de conhecimentos, desde a retórica e poética até a magia e simbologia (como nos diferentes
ramos e fases do neoplatonismo) ou, enfim, subordina todos estes conhecimentos (e até a especulação
metafísica!) à idéia ética (como aconteceu na escola estóica, para qual não havia mais Filosofia nem mais
investigações metafísicas além do estudo e da prática da virtude, à qual se deveria subordinar todo o
restante, como escrevia Sêneca: Philosophia studium virtutis est, sed per ipsam virtutem).
Disso se depreende que a História da Filosofia nem deve abraçar tudo o que algumas escolas e filósofos
chamaram de Filosofia nem tampouco deve limitar-se àquilo que outras escolas e outros filósofos
designaram com este nome. Deve, contudo, caminhar e se mover em relação e harmonia com a noção ou
conceito própria de Filosofia, que, como fica indicado, abarca ou compreende o conhecimento racional –
ou, ao menos, a investigação científica – da essência leis e relações gerais da realidade. O conceito de
Filosofia e, consequentemente, sua História não descem ao objeto e ao terreno próprios às ciências

20
“Chama-se Filosofia todo o conhecimento das coisas mais excelentes e a exercitação nestas mesmas coisas.” [N.T.]
21
Não uma mas várias vezes insiste Platão neste pensamento que poderíamos chamar filosófico-cristão ora colocando-o na boca
de Sócrates ora o expressando por sua própria conta, como se pode constatar na Apologia de Sócrates, no Banquete, no Fedro , em
Lísias, e até em algumas de suas cartas. Assim por exemplo, na Apologia, Platão, depois de recordar a pergunta feita ao oráculo de
Delfos acerca da sabedoria de Sócrates, põe em sua boca as seguintes palavras: “Interrogavit utique (Cherephon) an esset ullus me
sapientior: respondit Pythia, sapientiorem esse neminem... Quidnam Deus est? aut quid hoc sibi voluit? Ego enim mihi conscius
sum, neque in magnis nec in parvis esse me sapientem. Quid igitur sibi vult cum me asserit sapientissimum?... Videtur autem, o
viri Athenienses revera solus Deus sapiens esse, atque in hoc oraculo id sibi velle, humanam sapientiam parvi, imo nihili
pendendam esse.” Opera plat. Mars. Fic. interp., p. 470.
17
particulares consideradas como tais, mas se mantém nas investigações, conhecimentos e sistemas que, de
uma maneira mais direta e geral, relacionam-se com (1) Deus, (2) o mundo e (3) o homem, que são os três
grandes objetos que integram a realidade objetiva, cuja essência, leis gerais e relações constituem e
representam a matéria e como que o objeto específico da Filosofia.

§ 2 Limites e auxiliares da História da Filosofia

Daquilo que foi dito no parágrafo anterior, vê-se que a História da Filosofia exclui de seu seio as artes
e ciências da erudição, empíricas, históricas, matemáticas e físicas. E até no que diz respeito às ciências
que participam da natureza da Filosofia – como as psicológicas, jurídicas e sociais –, a História da Filosofia
deve se limitar a certos pontos de vista gerais e às suas relações mais íntimas e fundamentais com a Filosofia
propriamente dita.
Por sua própria natureza, estes limites entre a Filosofia e as demais ciências são relativamente vagos.
Por esta razão, não é possível assinalar uma linha precisa, imutável e fixa, seja para separar a Filosofia e
sua História das demais ciências seja para reconhecer e escolher, entre as múltiplas opiniões e idéias dos
filósofos, aquelas que merecem figurar na História da Filosofia. De maneira que o critério objetivo necessita
ser completado e desenvolvido pelo critério subjetivo do autor, o qual, se possui senso filosófico, saberá
discernir as idéias, opiniões e teorias as quais deva conceder lugar mais ou menos preferentes na História
da Filosofia, em vista de seu valor real, de sua influência sobre os espíritos, de sua originalidade e
importância efetivas.
O acerto e segurança do critério, tanto objetivo quanto subjetivo, depende também, em grande parte, dos
materiais de que se lança mão ao escrever uma História da Filosofia. Escusado parece dizer que se deve dar
preferência às obras gerais dos filósofos cuja doutrina se trata de expor, quando conste, ao menos, a
autenticidade dessas obras que chegaram até nós. Faltando estas, devemos recorrer ao testemunho de outros
autores e as notícias subministradas por eles, principalmente quando lhes são contemporâneos ou pouco
posteriores, naquilo que diz respeito à vida, doutrina, discípulos ou influência destes filósofos.
Daqui a utilidade, ou digamos melhor, a necessidade relativa recorrer às ciências histórica, crítica e
filológica para proceder com acerto ao discutir, afirmar e discernir tanto a autenticidade das obras atribuídas
a determinados filósofos quanto a autenticidade ou valor real das notícias de segunda mão e dos dados
subministrados por outros autores. Podem e devem, portanto, considerar-se como auxiliares da História da
Filosofia, a crítica, a filologia, a História dos povos e de sua civilização; como também, ainda que em grau
inferior e de uma maneira menos direta, a gramática, a História das artes e ciências, a biologia, a Religião
e a cronologia.
Ao falar aqui dos limites da História da Filosofia, claro está que nos referimos
aos limites internos da mesma, aos limites inerentes e essenciais ao seu objeto
específico e à sua matéria própria. Acerca dos limites que podemos chamar
externos e cronológicos, já deixamos indicado no prólogo, que os alargamos
até compreender na História da Filosofia os povos orientais, sem que com
isso seja nossa intenção pré-julgar a questão referente à origem da Filosofia.
De outro lado, a resolução deste problema depende em grande parte do
sentido ou significado que se atribua ao termo filosofia: é muito possível que,
uma vez fixado seu sentido, os que buscam e apontam a origem da História da
Filosofia na Índia, se aproximem muito – se é que não coincidam plenamente –
com a opinião de Tennemann22 (imagem ao lado) quando nos diz que “o verdadeiro
princípio da Filosofia se encontra entre os gregos”.

22
Wilhelm (Guilherme) Gottlieb Tennemann (1761-1819), famoso historiador da Filosofia alemão. Tendo estudado em Erfurt, foi
professor de História da Filosofia na Universidade de Jena de 1788 a 1804. Sua obra principal é uma História da Filosofia
(Geschichte der Philosophie) em 11 volumes, completada na Universidade Marburgo, onde foi professor de 1804 até sua morte.
Em 1812, publicou uma breve História da Filosofia (Grundriss der Geschichte der Philosophie für den akademischen Unterricht).
Da escola kantiana, interpretava a História da Filosofia a partir das opiniões de Kant. [N.T.]
Cf. Tennemann, Manuel de l´Histoire de la Philosophie, trad. V. Cousin, 1839.
18
A julgar por esta afirmação, seria preciso supor que, para Tennemann, a Filosofia da Índia e seus
sistemas não representam esforço algum da razão humana para realizar o conceito de Filosofia, ou seja,
para constituir uma concepção mais ou menos sistemática da realidade. Porque é de saber que para o
filósofo alemão, a História da Filosofia “é a ciência que representa os esforços da razão humana para
realizar o conceito de Filosofia, narrando-os ordenadamente”. De fato, ele acrescenta que a História da
Filosofia é “a representação, por meio dos fatos, do desenvolvimento sempre progressivo (sic) da Filosofia
como ciência”. Parece-nos que o espírito hegeliano que informa estas duas definições – espírito que
transparece ainda mais evidentemente na segunda – contém a explicação e a verdadeira razão suficiente do
privilégio que Tennemann concede aos gregos em ordem à origem da Filosofia e da sua História.

§ 3 Matéria e Forma da História da Filosofia

A matéria da História da Filosofia é de duas naturezas ou espécies: (1) interna e (2) externa.
(1) A matéria interna é a própria Filosofia considerada como esforço consciente, sistemático e
progressivo da razão para o conhecimento da realidade concebida desde um ponto de vista geral, em sua
essência, suas leis e suas relações fundamentais. O que foi dito no primeiro parágrafo (§ 1) acerca do
conceito de Filosofia e de sua História, fixa de antemão qual a sua matéria interna. Pode-se dizer, em outras
palavras, que a (1) matéria interna da História da Filosofia são os vários sistemas filosóficos que aparecem
em diferentes pontos do espaço e do tempo, como produtos do esforço da razão, ou melhor, como produtos
e manifestações do trabalho metódico e consciente da inteligência em ordem ao conhecimento geral e
científico da realidade.
A razão, a experiência e ciências históricas demonstram unanimemente que a inteligência do homem se
encontra submetida a certas condições exteriores que influenciam de uma maneira mais ou menos direta e
eficaz em seu desenvolvimento, ora o favorecendo e acelerando, ora contrariando sua energia, ora
comunicando-lhe determinada direção. E isto é o que constitui e representa a (2) matéria externa da História
da Filosofia; porque a verdade é que a História não seria completa nem preencheria seu objeto se, ao ocupar-
se da (1) matéria interna e dos sistemas filosóficos, não fizesse cargo eu não tomasse em consideração os
(2) acontecimentos, circunstâncias e condições que exerceram influência mais ou menos eficaz e decisiva
no desenvolvimento da razão filosófica, na origem, natureza, direções e efeitos dos sistemas.
Pertencem a este género e formam parte da (2) matéria externa da História da Filosofia: a) a pessoa dos
filósofos, com os dados referentes à sua vida e costumes, ao seu caráter moral, à força ou intensidade de
sua inteligência, aos seus estudos, mestres etc.; b) o grau e características da Civilização do povo em que
nasceu ou viveu o filósofo, a religião e a língua do país e a educação recebida; c) o espírito geral da época
e a constituição e idéias políticas reinantes; e, finalmente e em menor escala, o clima, as condições
geográficas e geológicas do país, os desconsertos históricos contemporâneos ou imediatos, as revoluções
etc.
Assim como a combinação oportuna e racional dos termos e proposições constitui a forma do silogismo
segundo os lógicos, assim também a forma da História da Filosofia deve consistir na coordenação metódica,
racional e oportuna do que constitui a sua (1) matéria interna e (2) externa. O elemento principal, a condição
mais indispensável para alcançar esta coordenação metódica que constitui a forma da História da Filosofia,
consiste em não perder de vista que nesta História deve entrar em muito o estudo e conhecimento das causas
e efeitos (i.e. as relações de causalidade) que determinaram o processo dos múltiplos sistemas filosóficos
que nela se apresentam. Em outros termos: pode-se dizer então que a História da Filosofia possui sua
verdadeira e própria forma quando a (1) matéria interna e (2) externa está adequadamente disposta ou
combinada para representar com a possível clareza e exatidão o desenvolvimento sucessivo da razão
filosófica, juntamente com as causas e razões de ordem, alternativas e vicissitudes deste desenvolvimento.
Nisto está pressuposto que não se trata aqui do que poderíamos chamar a forma externa e acidental da
História da Filosofia, ou seja, a forma resultante das qualidades do estilo, divisão por capítulos, livros ou
parágrafos, colocação de textos etc. (mera crítica histórica), mas que se trata da forma interna e substancial,
por assim dizer, por meio da qual a História da Filosofia não somente se distingue essencialmente de todas

19
as demais Histórias e ciências, mas, além disso, que em razão dessa forma ela constitui um verdadeiro
conjunto histórico-científico, com unidade própria e verdadeira.
A forma da História da Filosofia será imperfeita se a disposição oportuna e a combinação adequada dos
materiais não estiver formada e vivificada por um critério fixo, amplo e compreensivo, capaz de perceber
o sentido íntimo e real dos sistemas e doutrinas, comunicando ao mesmo tempo à sua História certa unidade,
certa uniformidade doutrinal, baseada na convicção real no critério filosófico do historiador. Porque não
somos daqueles que crêem que o historiador da Filosofia deva carecer de sistema filosófico, nem sequer
que deva ocultar suas idéias. Longe disso, opinamos ao contrário, que o historiador da Filosofia necessita
ter um sistema, uma concepção sistemática, um critério geral, que possa servir-lhe de guia, de norma e
como que medida para compreender as doutrinas dos filósofos, julgar de sua importância e relações mútuas,
discernir seu valor real e a natureza de seus resultados e influências na História e na Civilização. É óbvio
que o historiador da Filosofia deve ter empenhado cuidado em não se deixar levar por suas afecções ou
convicções pessoais ao julgar e criticar as doutrinas dos filósofos; é óbvio que deve, antes de tudo, expor
com fidelidade e exatidão as opiniões dos sistemas que se sucedem no campo da Filosofia; mas daqui não
se infira que deva carecer de sistema próprio. Para expor com imparcialidade e verdade as opiniões dos
outros, não se necessita ser cético ou carecer de convicções nessa matéria. E é absurdo afirmar ou supor
que o melhor historiador da Filosofia será aquele que carecer de sistema próprio e de convicções fixas em
matéria de Filosofia, como seria absurdo pretender que o melhor historiador do Direito seria um homem
que não professasse opinião alguma determinada e fosse completamente cético nessa matéria. De maneira
geral, nesta matéria, como em tantas outras, os que fazem maior alarde da liberdade de juízo, da amplitude
de vistas e de imparcialidade são os que, na prática, as observam menos e os que mais se apressam em
julgar das doutrinas e sistemas filosóficos não somente a partir de seus critérios pessoais, mas submissos
às suas paixões racionalistas e anticristã antes.

§ 4 Importância e utilidade da História da Filosofia

A importância e a utilidade da História da Filosofia se inferem e resultam da natureza mesma da


Filosofia. Porque, se esta representa a evolução superior da razão humana como faculdade do conhecimento
na ordem natural; se a Filosofia é a maior entre as ciências humanas; se é a base e o coroamento de todas
as demais ciências23 e, até, das artes24; se leva em seu seio íntimas e múltiplas relações com a Religião e o
destino final do homem; se a Filosofia representa e contém um dos elementos mais poderosos, eficazes e
permanentes do movimento histórico e civilizador do gênero humano, evidente será que é muito grande e
incontestável a importância e utilidade de sua História, segundo fica indicado no prólogo. Assim, pois, a
História da Filosofia é uma espécie de complemento da própria Filosofia e, por isso, sua importância e
utilidade vêm a confundir-se e identificar-se com a utilidade e a importância da própria Filosofia. Neste
entendimento, a História da Filosofia se encontra em contato com todos os grandes objetos da atividade
humana e influi de uma maneira direta ou indireta em quase todas as ciências e artes, no conhecimento do
processo e vicissitudes da História humana e facilita o caminho para conhecer, julgar e medir a natureza
das diferentes Civilizações e a das diferentes fases ou manifestações religiosas que predominaram e
predominam entre os homens.

23
Ciência é o conhecimento da coisa pela causa [N.T.]
24
Arte é a reta razão aplicada ao fazer [N.T.]
20
Por outra parte, com o estudo da História da Filosofia, o espírito adquire insensivelmente certa
independência e superioridade para julgar e criticar as doutrinas; põe-se em estado de conhecer e aplicar as
regras mais convenientes para a investigação científica da verdade; descobre novos caminhos e direções
possíveis no desenvolvimento da razão e da ciência, ampliando os seus horizontes. A isto se acrescenta que
A Ditadura do Relativismo no Novo Milênio é auxiliar muito eficaz e
poderoso para caminhar
Homilia do Cardeal Ratzinger, na Missa pro eligendo Romano Pontifice,
segunda-feira, 18 de abril de 2005 com relativa segurança
pelos caminhos da verdade
Em que consiste ser crianças na Fé? Responde São Paulo: significa e da ciência e para conhecer
ser “batidos pelas ondas e levados por qualquer vento da doutrina...” (Ef 4, as aberrações da razão
14). Uma descrição muito actual! humana, suas causas e
Quantos ventos de doutrina conhecemos nestes últimos decénios, efeitos, conhecimento que é
quantas correntes ideológicas, quantas modas do pensamento... A pequena resultado natural e lógico
barca do pensamento de muitos cristãos foi muitas vezes agitada por estas do estudo da História da
ondas, lançada de um extremo ao outro: do marxismo ao liberalismo, até Filosofia. E este estudo
à libertinagem, ao colectivismo radical; do ateísmo a um vago misticismo contribui também, e não
religioso; do agnosticismo ao sincretismo e por aí adiante. Cada dia pouco, a desterrar as
surgem novas seitas e realiza-se quanto diz São Paulo acerca do engano preocupações ou
dos homens, da astúcia que tende a levar ao erro (cf. Ef 4, 14). Ter uma fé preconceitos; a imprimir no
clara, segundo o Credo da Igreja, muitas vezes é classificado como espírito elevação de vistas,
fundamentalismo. Enquanto o relativismo, isto é, deixar-se levar “aqui e a comunicar-lhe certa
e além por qualquer vento de doutrina”, aparece como a única atitude modéstia e sobriedade de
à altura dos tempos hodiernos. Vai-se constituindo uma ditadura do juízo, muito em harmonia
relativismo que nada reconhece como definitivo e que deixa como com as prescrições do
última medida apenas o próprio eu e as suas vontades. Catolicismo e muito em
Ao contrário, nós, temos outra medida: o Filho de Deus, o harmonia também com a
verdadeiro homem. É ele a medida do verdadeiro humanismo. “Adulta” dignidade do homem e da
não é uma fé que segue as ondas da moda e a última novidade; adulta e ciência.
madura é uma fé profundamente radicada na amizade com Cristo. É esta Tenha-se, porém,
amizade que nos abre a tudo o que é bom e nos dá o critério para discernir presente e nunca se esqueça
entre verdadeiro e falso, entre engano e verdade. Devemos amadurecer que a modesta sobriedade
esta fé, para esta fé devemos guiar o rebanho de Cristo. E é esta fé – só
do juízo, que prepara e
esta fé – que gera unidade e se realiza na caridade. São Paulo oferece-nos
a este propósito em contraste com as contínuas peripécias dos que são inspira o estudo reto da
como crianças batidas pelas ondas uma bela palavra: praticar a verdade na História da Filosofia, não
caridade, como fórmula fundamental da existência cristã. Em Cristo, deve se confundir nem com
coincidem verdade e caridade. Na medida em que nos aproximamos de a falsa sobriedade do
Cristo, também na nossa vida, verdade e caridade fundem-se. A caridade ecleticismo – que envolve a
sem verdade seria cega; a verdade sem caridade seria como “um címbalo negação da verdade real e
que retine” (1 Cor 13, 1).
absoluta – nem, muito
menos, com essa
indiferença que alguns
alardeiam e que concede
iguais direitos à verdade e
ao erro, ao bem e ao mal;
indiferença absurda e
imoral que coincide e se
identifica com o ceticismo
absoluto.

21
Filosofia nos Povos Orientais
§ 5 Filosofia na Índia

As províncias meridionais e ocidentais da Ásia – que, segundo as tradições bíblicas presenciaram a


primeira criação do homem e a segunda criação ou dispersão pós-diluviana do gênero humano – foram
também testemunhas das primeiras evoluções filosóficas e
Como animal racional, todo
palco das primeiras Civilizações. Porque toda a Civilização
comportamento exige uma doutrina que o
entranha uma Filosofia, assim como toda a concepção
sustente: “É preciso viver como se pensa, sob
religiosa engendra uma civilização em harmonia com a a pena de acabar por pensar como se viveu”
Religião que lhe serve de base e norma fundamental. Daqui (BOURGET, P. Le Demon de Midi)
a existência, desenvolvimento e características do que
poderíamos chamar Filosofia oriental, e também Filosofia pré-histórico grega, em relação e em harmonia
com a existência, desenvolvimento e características das diversas Religiões que apareceram de maneira tanto
sucessiva quanto simultânea em diferentes regiões da Ásia e da África.
A Índia, o Irã [Pérsia], a China, o Egito, a Palestina, que foram palco e sítio das várias Religiões e
Civilizações, foram-no também de diferentes conceitos e sistemas filosóficos que constituem os
antecedentes históricos da Filosofia Grega.
O brahmanismo e o mazdeísmo representam as duas concepções religiosas conhecidas como mais
antigas, abstração feita da Revelação de Deus ao primeiro homem. Entre os modernos orientalistas, acha-
se bastante generalizada a opinião de que o mazdeísmo não só é posterior ao brahmanismo, mas que deve
sua origem e sua existência a uma reação contra este e representa o movimento de propagação da raça
ariana até o Ocidente enquanto as tribos brahmânicas se dirigiam às províncias meridionais da Ásia e se
estacionavam na Índia.
Seja como for, certo é
que a Índia serviu de Á o
palco aos primeiros
sistemas e trabalhos
propriamente filosó- Á
ficos temas e trabalhos
formados e desenvol-
vidos primeiro sobre
o

as inspirações e o calor
de seus livros sagrados
A
e que mais adiante se
emanciparam mais ou
ˆ

menos desta direção.


A Filosofia da Índia
pode dividir-se, por-
tanto, em (1) Filosofia
religiosa, que é a Á
contida nos livros tidos
por sagrados na Índia,
e (2) Filosofia racional, que é a que deve sua origem à especulação científica, independente de ser ortodoxa
ou heterodoxo, conforme ou não ao conteúdo dos livros indicados.
Os livros tidos por sagrados, e que contêm a Filosofia que chamamos (1) religiosa, são os seguintes:
a) Os quatro Vedas (conhecimento em sânscrito), a saber: o Rig-Veda (ऋग्वेदः hinário védico), o Yadjur-
Veda (यजुवेर्दः rubricas sacrificais védicas), o Sama-Veda (सामवेदः liber cantualis védico) e o Atharva-Veda
(अथवर्वेदः). Contêm, entre outras coisas, certos poemas metafísicos, chamados upanichadas. Os partidários

22
do brahmanismo supõem que o conteúdo original de ditos livros foi revelado por Brahmâ, conservando-se
por tradição até que foram compilados e ordenados por Vyasa, nome que, segundo Colebrooke25, quer dizer
compilador, ainda que alguns o tomem por nome próprio.
b) Atribui-se ao mesmo autor a coleção, ou, melhor dito, a composição dos Puranas ou poemas, em
número de dezoito, destinados a narrar os diferentes fatos, transformações e encarnações da teogonia índica.
A coleção ou conjunto destes dezoito Puranas ou poemas (Vichnu-purana, o poema de Vichna, Bhagavatha-
purana, poema de Krichna etc.), forma um quinto Veda.
c) Atribui-se ao mesmo autor o Mahabaratha, espécie de poema épico em que se narram as guerras que
tiveram lugar entre os Pandos e os Kurus, e no qual se encontra também o famoso episódio conhecido como
Bhag avat-gita, quer dizer, canto de Bhagavan ou Krichna, uma das “encarnações” [avatares] de Vichnu.
O outro grande poema épico, intitulado Ramayana, atribui-se a Valmiki.
d) A coleção das leis de Manú, ou seja Mana-vadharma-sastra, forma a quarta classe ou série de livros
considerados como sagrados pelos povos da Índia, e constituem o que se poderia chamar “a bíblia” do
Brahmanismo.

§ 6 Filosofia especulativo-religiosa na Índia

A doutrina metafísica e cosmológica contida nos livros canônicos do brahmanismo pode resumir-se e
condensar-se nos seguintes pontos: (panteísmo emanacionista)
1º No princípio e desde a eternidade, antes de todo o tempo, de todo o mundo e de toda a criação, não
havia nem ser nem não-ser nas coisas: “Tudo era abismo e trevas e a morte não existia nem a vida
tampouco” 26 . Só existia Brahm, o Ser absoluto, infinito, único existente em si e por si, que nas
profundidades de seu ser encerra a inteligência (Brahmâ), o espírito divino, e a matéria (Mâyâ) os quais
dão origem ao mundo. Brahmâ e Mâyâ, i.e. espírito e matéria, ainda que identificados com Brahm
substancialmente, iniciam e representam nele o desejo de sair de sua profundeza tenebrosa e manifestar-se
por meio da criação do mundo, ou diga-se melhor, por meio da emanação e evolução de sua própria
substância. Em. outros termos: Brahmâ é Brahm como inteligência ou espírito, e Mâyâ é o mesmo Brahm
como matéria ou fundo substancial comum das coisas. (evolucionismo)
2º Acerca do processo primitivo destas manifestações de Brahm (ou ser absoluto 27 ), eis como se
apresenta no livro das leis de Manú: “Este mundo estava submerso na escuridão, imperceptível, privado de
todo atributo, não podendo nem ser reconhecido pelo raciocínio nem se revelar; parecia entregue
completamente ao sono. Então, apareceu o Senhor que existe por si mesmo e dissipou a escuridão, quer
dizer, desenvolveu a Natureza. Tendo decidido, em seu espírito ou pensamento, tirar de sua própria
substância as criaturas, produziu antes de tudo as águas, nas quais depositou uma semente. Esta semente se
converteu em um ovo brilhante como ouro, e dele nasceu o próprio Ser Supremo sob a forma de Brahmâ,
o avô de todos os seres. As águas foram chamadas Nârâs porque foram a produção de Nara (o espírito
divino) e, como estas águas foram o primeiro lugar do movimento de Nara (ou seja do espírito divino), por
isso mesmo este espírito foi chamado Nârayâna, isto é, o que se move sobre as águas. Pelo que é, pela causa
imperceptível, eterna, que existe realmente, mas que não existe para os órgãos, foi produzido este varão
divino, célebre no mundo sob o nome de Brahmâ. Depois de permanecer dentro deste ovo por espaço de
um ano divino, o Senhor, por meio de seu pensamento somente, dividiu este ovo em duas partes com as
quais formou o céu e a terra”. (dualismo aparente)
3º Desse modo, Brahmâ e Mâyâ – primeiras manifestações ou, melhor dizendo, dupla fase de Brahm (o
ser único e absoluto) – constituem a realidade do Universo com todos os seus seres, cuja substância e
realidade são de fundo idênticas com a susbtância e a realidade de Brahm, o Ser Supremos, o espírito divino,

25
Henry Thomas Colebrooke (1765-1837) foi um orientalista e matemático britânico, estudioso do sânscrito. Fundador da Royal
Asiatic Society e da Royal Astronomic Society. [N.T.]
Todas as citações de Colebrooke são retiradas de COLEBROOKE, H.T., Essai sur la philosophie des Hindous, trad. Pauthier, 1833.
26
Palavras do Rig-Veda, segundo Colebrooke.
27
O nome Brahmâ, em sânscrito ब्रह्म, significa literalmente “absoluto”. [N.T.]
23
a alma universal, fora da qual não existe nada a não ser ilusão e aparente pluralidade28. A distribuição e
pluralidade dos seres são “meras transformações das qualidade de Mâyâ, que se apresenta como múltiple”,
ou seja, são fases da grade ilusão, porque “o universo inteiro é o próprio Bhagavat (ou espírito supremo)
multiplicado por Mâyâ”, segundo se expressa o Bhagavata-purana (ou poema de Krichna).
4º Como se vê pelo que foi dito, a Filosofía Brahmânica se reduz a um panteísmo, que se apresenta
algumas vezes como emanacionista outras como idealista. A “criação” que esta Filosofía ensina é uma
verdadeira evolução da substância única, que nada tem em comum com a criação da Bíblia e do
Cristianismo. O mesmo se pode dizer da famosa “trindade” ou Trimurti do Brahmanismo,
porque Brahma, Vishnu e Shiva (o Deus criador,
Quam laudabiliter o Deus conservador e o Deus destruidor do
Carta de S. Leão Magno a Torríbio, Bispo de universo) são três aspectos, formas ou potências
Astorga, 21 de julho de 447 (DH 284)
do mesmo Deus. Aqui não existem três
No primeiro capítulo, portanto, é demonstrado hipóstases ou Pessoas iguais em natureza e
quão ímpio é o conceito que têm da divina Trindade distintas entre se, como na Trindade cristã, mas
os que afirmam que a pessoa do Pai e do Filho e do três formas ou manifestações (modalidades) de
Espírito Santo seja única e a mesma, como se Deus um mesmo ser. O Bhagavata-purana põe na
ora fosse chamado Pai, ora Filho, ora Espírito Santo, boca deste Trimurti as seguintes palavras: “Sabei
e que não seja um o que gerou, outro o que foi gerado que não existe distinção real entre nós (Brahma,
e outro ainda o que procede de ambos, mas que Vishnu e Shiva); o que se afigura como tal é só
afirmam que a singular unidade deva na verdade ser aparente. O Ser único aparece sob três formas,
aceita em três vocábulos, mas não em três pessoas. mediante as ações de criação, conservação e
Eles tiraram este gênero de blasfêmia do conceito de destruição; mas é um só. Dirigir seu culto a uma
Sabélio, cujos discípulos justamente são chamados destas formas, é dirigi-lo às três, ou seja, a um só
patripassionistas, pois se o Filho é o mesmo que o Deus supremo”. Esta concepção trinitária admite
Pai, a Cruz do Filho é a Paixão do Pai, e tudo quanto termo de comparação com a “trindade”
o Filho, na condição de servo, obedecendo ao Pai, sabeliana29, mas não com a do Concílio de Nicéia
suportou, tudo isso o próprio Pai suportou em si. e menos ainda com a do Símbolo de Santo
Isso é, sem dúvida, contrário à fé católica, que Atanásio.
professa a Trindade da divindade de tal modo igual 5º O mundo, que, como se viu, não é mais do
na essência (homousion) que crê que o Pai e o Filho
que uma emanação do ser absoluto (Brahm)
e o Espírito Santo são indivisos sem confusão,
retorna a Brahm ao término de ciclos maiores ou
sempiternos sem tempo, iguais sem diferença, já que
menores. O universo e seus seres, que
não a unicidade de pessoas, mas a da essência realiza
começaram a existir por evolução, deixam de
a unidade na Trindade.
existir como tais por uma espécie de involução
ou reversão a Brahm, para depois evoluir
novamente; de maneira que a série de mundos que nascem e morrem sucessivamente corresponde à série
de evoluções e involuções do ser absoluto e único, representam a vigília e o sono de Brahm, o despertar e
o dormir de Deus. “Quando Deus desperta – está escrito no livro de Manú – este universo realiza seus atos;
se dorme, submerso o espírito em profundo repouso, então o mundo se dissolve. De sorte que o ser imutável
faz reviver ou morrer alternativamente este conjunto ou coleção de criaturas por meio do despertar e do
repouso”.

28
“O universo – está escrito no livro de Manú – descansa na Alma suprema: esta alma produz a série dos atos que se realizam nos
seres animados”. No Bhagavat-gita, Krishna diz: “Eu existo desde sempre, como você e tudo o que existe: eu sou tudo o que existe,
e fora de mim não há mais que ilusão”. E, por fim, numa passagem do Yadjur-Veda, ensina-se terminantemente que conhece a
verdade quem sabe e afirma que todos os seres são esta Alma universal, e, sobretudo, quem descobre e afirma a identidade de
todas as coisas.
29
“Sabélio era de Ptolemais, na Líbia, e morreu no ano de 257. Ele explicou melhor a heresia do seu mestre [Noeto]; assim, daí em
diante, a seita ímpia foi chamada dos sabelianos. Negava a distinção das três Pessoas divinas na Santíssima Trindade, dizendo
serem três nomes num só Deus, inventados para declarar os efeitos diversos da divindade.” (SANTO ANFOSO. História das
Heresias e suas refutações. Campinas: CEDET, 2020. p. 38) Acerca da heresia sabeliana, cf. Denzinger (DH), n. 41, 112, 150, 151,
154, 284, 451, 519 e 1332. [N.T.]
24
§ 7 Filosofia prático-religiosa da Índia

1º O fim último e perfeição suprema da alma humana consiste em sua deificação, quer dizer, em sua
união íntima e identificativa com Brahm. A via para chegar a esta absorção em Deus é separar-se cada vez
mais das condições e exigências do corpo e dos sentidos, apagando e destruindo seus ardores, matando a
atividade da vida em todas as suas manifestações até despojar-se de si e perder o sentimento do “eu” e do
mundo. As práticas morais, a mortificação absoluta e o ascetismo mais rígido são os meios para merecer e
alcançar esta identificação e absorção em Deus depois da morte.
2º Este é também o meio e o único caminho para livrar-se não só das vicissitudes da vida presente e das
ilusões do erro, mas também das transmigrações sucessivas da alma através de diferentes corpos em
proporção à bondade ou maldade de suas ações na incorporação (ou encarnação) anterior. A cessação destas
transmigrações por meio da reunião íntima com Brahm (ou ser absoluto) constitui o fim último, a perfeição
suprema; e o destino final do homem consiste em livrar-se da necessidade fatal da transmigração por meio
da absorção ou união identificativa com Deus.
3º As almas dos que morrem sem estar suficientemente preparados para a absorção em Deus, caem sob
o domínio de Yama (यम), o deus dos mortos e dos espíritos infernais, o qual, depois de os castigar em
porporçao às suas culpas, entrega-as ao deus dos destinos futuros (Sani – शिन), cuja missão é preparar para
tais almas os instrumentos ou corpos de sua nova transmigração.
4º Ainda que os homens sejam iguais na aparência exterior do corpo (materialiter), não são iguais em
sua origem, dignidade e natureza (formaliter), pois se dividem em quatro classes ou castas30: (a) casta
sacerdotal ou dos brâmanes, originados da cabeça de Brahmâ; (b) militar ou dos xátrias, nascidos do peito
de Brahmâ; (c) comerciante ou dos vaixás, oriundos do ventre de Brahmâ; e por fim, (d) os servos ou
sudras, que se originam dos pés da divindade brahmânica. Os direitos e os deveres destas quatro castas são
proporcionais à sua nobreza e dignidade. Segundo o código de Manú, pertence aos brâmanes “o estudo e o
ensinamento dos Vedas, a execução dos próprios sacrifícios e o direcionamento das oferendas dos outros,
o direito de dar e o de receber”; o dever da segunda casta, a militar, é “proteger o povo, exercer a caridade,
sacrificar, ler os livros sagrados e não se entregar aos prazeres dos sentidos; cuidar dos animais, dar esmola,
estudar os livros sagrados, trabalhar a terra são as funções que correspondem aos vaixás. Mas o Senhor
Supremo assinalou ao sudras uma só função, que é de servir às três castas anteriores”.

30
Há-que se notar que as castas são somente quatro, originalmente; e que os famosos dalits ou intocáveis não têm casta. [N.T.]
25
§ 8 Filosofia especulativa na Índia. Escolas ortodoxas

Ao lado e depois da Filosofia religiosa e puramente tradicional da Índia, apareceu, como era natural, um
movimento mais ou menos racional e científico relacionado com as idéias contidas nos livros tidos por
sagrados. Este movimento, que deu origem a toda a classe de sistemas, teorias e tendências doutrinais
caracteriza-se por duas direções fundamentais; pois, enquanto alguns desses sistemas filosóficos procedem
com inteira independência da idéia tradicional e se atêm unicamente à razão individual, outros entranham
e conservam conformidade e harmonia com a doutrina e ensinamentos dos livros canônicos ou sagrados.
Pertencem a esta última classe e constituem, por conseguinte, as escolas ortodoxas da Filosofia indiana,
as que levam o nome de Mimansa e de Vedanta.
A escola de Mimansa (sânscrito मीमांसा, “investigação”), cuja fundação e origem se atribuem a Djaimini
(que viveu entre os séculos IV e II a.C.), tem por objeto preferencial a exposição e ensinamento dos deveres
morais do homem em conformidade com o que se prescreve e ensina nos Vedas, podendo dizer-se que
ordena e dirige a este fim sua doutrina e especulações lógicas e dialéticas. Colebrooke observa com razão
que a escola Mimansa ensina a arte do raciocínio com a intenção explícita de facilitar a interpretação dos
Vedas.
A escola de Vedanta concorda com a primeira quanto à ortodoxia védica e se em algo se distingue
daquela é que, enquanto Mimansa se ocupa preferencialmente das questões e teorias dialéticas, a escola
Vedanta concede maior importância e atenção às questões psicológicas. Diz-se que seu fundador foi Vyasa
e o citado Colebrooke escreve sobre ela que “deduz do texto das escrituras indianas uma psicologia refinada
que chega até a negar a existência do mundo material”.
Não se creia, por isso, que a escola Vedanta exclua nem sequer atenue o horror panteísta que constitui
o fundo e a essência da doutrina védica. Para a Filosofia Vedanta, “não existe nada além de Deus mesmo”.
Nesta, como em outras passagens, se descobre a idéia fundamental desta escola, que não é outra senão a de
conservar e até levar ao extremo o conteúdo do ensinamento religioso. Convém advertir aqui que, ainda
que Vyasa, o compilador dos Vedas, seja chamado ou considerado geralmente como autor da Filosofia
Vedanta, esta opinião não parece muito fundamentada, uma vez que nos livros e aforismos desta Filosofia
Vedanta se encontra a refutação da maior parte das doutrinas heterodoxas contidas nos sistemas
independentes de que vamos nos ocupar. [Como Vyasa pode ser o autor, se refuta teses que surgiram após
e em contraposição aos Vedas, dos quais é compilador?]

§ 9 Filosofia independente e separatista da Índia

Além da Filosofia Mimansa e de Vedanta, surgiram na Índia outros sistemas filosóficos que, ao contrário
de tentar harmonizar suas conclusões e teorias com a doutrina e as tradições védicas, que se notabilizaram
por dar origem a um movimento independente mais ou menos separatista. Todos eles podem reduzir-se a
quatro direções ou escolas principais que são as seguintes:

A) A escola Nyaya, cujo autor ou fundador foi Akṣapāda Gautama. A característica principal da
Filosofia Nyaya, é a importância que dá à lógica e a sua teoria psicológica. Gautama pode ser considerado
como o Aristóteles da Índia, em atenção a seus trabalhos e especulações sobre os termos, as idéias, as
categorias e as argumentações ou modos de demostrar. A exemplo de Aristóteles, reduz os conceitos a
certas idéias ou categorias fundamentais, que são para o filósofo indiano 1substância, 2qualidade, 3relação,
4
geral, 5própio ou específico e a 6ação. A indução e uma espécie de silogismo, se não idêntico, ao menos
parecido ao de Aristóteles, representam os principais meios de investigação e demonstração da verdade.
A teoria psicológica contida no sistema Nyaya é espiritualista e muito superior a que encontramos
noutros sistemas da Índia. Assim se depreende ao menos dos termos em que se expressa o já citado
Colebrooke ao expor e resumir a psicologia de Gautama. Segundo este, “a alma é inteiramente distinta do
corpo: ainda que seja infinita em seu princípio é ao mesmo tempo uma substância especial diferente em
26
cada indivíduo”. Possui esta alma atributos especiais como são o conhecimento, a vontade, o desejo,
atributos que não convêm a todas as substâncias e que constituem uma existência especial para os seres que
as possuem.
Tenha-se presente, contudo, que esse espiritualismo psicológico da escola Nyaya entranha em seu seio
o princípio panteísta que está no fundo da Filosofia indiana. Para esta escola, a alma humana, a alma
pequena (djivatma), no fundo e na realidade é idêntica à alma divina universal, princípio cósmico de todas
as coisas.

B) A escola Vaisheshika (वैशॆिषक), cuja origem e desenvolvimento se atribuem a Kanada (literalmente,


“comedor de átomos”). Esta é uma escola essencialmente atomística mais parecido com o de Demócrito do
que com o de Epicuro e de Lucrécio. Kanada, longe de negar a existência de Deus como estes últimos,
afirma que de Deus emanam os átomos que constituem as coisas. Além disso, os átomos do filósofo indiano
não possuem somente movimento e solidez, como o de Epicuro, mas alguns deles são átomos dotados de
vida e pensamento.

C) A escola de Yoga, cujo fundador e principal representante é Patandjali, é uma escola essencialmente
mística, e entranha, por isso, as tendências e afirmações que caracterizam geralmente os misticismos
pagãos. A Yoga, de fato, não somente prefere e antepõe a contemplação à ciência, a inação extática às
obras, mas ainda pretende alcançar – e se gaba de o fazer – por estes meios, um poder prodigioso e mágico
sobre a natureza. “Este poder – escreve Colebrooke – consiste na faculdade de tomar todo tipo de formas:
umas tão pequenas e sutis que podem atravessar todo o tipo de corpos, outras de magnitude tão gigantesca
que podem chegar até ao disco solar e tocar a lua com a ponta do dedo. Por meio desta força, pode-se ver
no interior da Terra e da água, mudar o curso da natureza e obrar sobre as coisas inanimadas bem como
sobre as coisas animadas”. Fácil é reconhecer, por estas indicações, que a doutrina da Yoga pode considerar-
se como antecedente histórico doutrinal dos misticismos pagãos e especialmente do alexandrino ou
neoplatônico, sem excluir as operações mágicas e as pretensões teúrgicas31 tão preconizadas por Jâmblico.
No âmbito metafísico ou especulativo a escola de Yoga caracteriza-se por uma espécie de panteísmo
idealista que tem pontos de contato e de analogia com o panteísmo neoplatônico e com o de Schelling.
Para o yogue (ou partidário da Yoga), Deus é o ser único e absoluto que constitui a substância e essência
de todas as coisas sem ser nenhuma delas nem possuir nenhum atributo determinado: não é nem matéria
nem espírito, nem vida nem inanimado, nem pensamento nem inconsciente, é o ser puro, a abstração do
ser, a substância ou essência sem nenhum atributo; algo parecido, enfim, ao Unum dos neoplatônicos de
Alexandria e ao Absoluto neutro e indiferente de Schelling e também, até certo ponto, à Idéia pura e abstrata
de Hegel.

D) A quarta e talvez mais expandida das escolas filosóficas da Índia é a que se chama Sânquia (सांख्य),
cujo autor, Kapila, pode ser considerado como o pai dos sistemas e teorias sensualistas, materialistas e
ateístas que se vêm sucedendo na História da Filosofia. Segundo Kapila – escreve Cousin32 e, a partir dele,
Colebrooke e Burnouf33 – “há dois meios de conhecer: o primeiro é a sensação ou percepção dos objetos
externos; o segundo é a indução ou procedimento que conduz de uma coisa à outra, do efeito à causa, ou
da causa ao efeito(...) O primeiro princípio das coisas, do qual se derivam todos os demais princípios, é
prakriti (प्रकृित) ou mulaprakriti, a natureza, a matéria eterna, sem formas, sem partes, a causa material
universal à qual se chega por indução de seus efeitos, que produz e não é produzida”. Nestes termos se
expressa Colebrooke. O segundo princípio é budhi (बुिद्ध), a inteligência, “a primeira produção da natureza,
que, por sua vez, produz outros princípios”. Logo, o primeiro princípio de Kapala não é a inteligência: esta
ocupa o segundo lugar e procede da matéria e é obra desta.

31
Teurgia é a arte de operar prodígios. [N.T.]
32
Cf. Cousin, Histoire générale de la Philosophie, 1867.
33
Cf. Burnouf, Introduction à l´Histoire du Boudhisme indien, 1844.
27
Em relação a esta cosmologia essencialmente materialista, o fundador da escola Sânquia ensina que a
alma é o resultado atômico da combinação de outros princípios anteriores, que ela reside no cérebro e que
“se estende abaixo do crânio ao modo de uma chama que se eleva sobre a mecha”. Colebrooke acrescenta
que alguns partidários da escola Sânquia negam explicitamente toda a distinção entre alma e corpo. Em
todo caso, é certo que, para dita escola, a alma e o pensamento são resultado da combinação de outros
elementos ou princípios das coisas e que desaparecem com a morte ou dissolução do corpo.
Por fim Kapila – que, se não se distingue pela verdade e nobreza de doutrinas, sói ser lógico em suas
deduções aplicações – nega a existência de Deus e professa ateísmo. Não se pode alegar contra isso que ele
fale da inteligência como um dos princípios das coisas, porque, como vimos esta inteligência não é o
primeiro princípio e nem é sequer espiritual, posto que procede da prakriti ou natureza material. Além do
que, tal inteligência mal poderá ser Deus no conceito de Kapila, uma vez que ele ensina terminantemente
que ela é finita, que é contemporânea dos demais corpos e que se desenvolve e perecerá com o mundo de
que forma parte.

§10 Budismo e seu autor

Sidarta Gautama (em sânscrito, िसद्धाथर् गौतम), o


fundador do budismo, nasceu cerca do século VI a.C. em
Bengala do Norte, na província de Behar. Filho de
Suddhodana, rei de Kapilavistu, viveu os primeiros anos
de sua vida nos exercendo as funções de seu estado e da
casta xátria ou militar, à qual pertencia, e quando já tinha
vários filhos de três mulheres34, deixou a corte aos vinte e
nove anos, “desagradado com o mundo – segundo a Assim como o termo grego “Cristo” (em
legenda – pela visão de um velho, de um doente e de um hebraico “Messias”, em português “Ungido”)
cadáver”. não é originalmente um nome próprio, mas um
Após passar alguns anos na companhia e sob a direção título; a palavra “Buda” significa “iluminado”
dos brâmanes, devotado à contemplação e às práticas da ou “desperto” em sânscrito e não é o nome
vida ascética – o que lhe valeu o nome de Sakyamuni ou próprio do fundador do budismo, mas um
Solitário dos Sakyas –, passou a ensinar e pregar por toda título atribuído aos que “despertaram”
parte uma doutrina religiosa-moral, doutrina a qual, sem plenamente para a verdadeira natureza dos
combater diretamente o bramanismo, minou seus fenômenos.
fundamentos e dele se afastou em pontos fundamentais. À diferença do cristianismo, no qual só
Um dos foi a igualdade dos direitos e deveres dos homens existe um Cristo, Jesus nascido de Maria; no
– ao menos do ponto de vista moral – e a conseqüente budismo, existem vários Budas, sendo o mais
anulação da superioridade e distinção das castas. Buda famoso Sidarta Gautama ou o “Buda
ensinava sua lei, admitia em sua companhia e concedia histórico”. Mencionam-se, pelo menos, 24
todos os graus de vida ascética tanto ao brâmane e ao xátria
Budas anteriores a este, mas só 4 do mundo
quanto ao sudra e ao candala, as castas mais baixas e
atual. O famoso gorducho sentado sempre
vilipendiadas da época em sua sociedade. Sem ser a única,
sorrindo não é nenhum desses.
esta foi uma das causas que mais efetivamente contribuiu
para a propagação e rápido progresso do budismo, bem
como para a guerra e perseguição que os brâmanes lhe
fizeram, guerra e perseguição que o obrigaram a buscar
asilo e proteção nos reinos e impérios circundantes,
contribuindo assim para a propagação da nova religião na
maior parte da Ásia.
Enquanto os brâmanes faziam segredo de sua doutrina,
comunicando-a apenas a certas castas e aos iniciados ou
escolhidos, Sidarta, já cognominado de Buda (o iluminado, o sábio), comunicava toda a sua doutrina a

34
Além dessas três mulheres, que parecem históricas, as lendas budistas nos falam do aposento e lugar em que Buda, antes de sua
conversão, “era cercado por cem mil divindades, e se entregava aos prazeres com suas sessenta mil mulheres”. Esse é um dos
muitos pontos que os racionalistas filo-búdicos podem aproveitar para seus propósitos, já que insistem em apresentar Jesus Cristo
como uma espécie de discípulo oculto e imitador do Sakyamuni da Índia.
28
todos que quisessem ouvi-la, e servia-se da pregação popular para que chegasse ao conhecimento de todos.
Esse modo de propaganda, empregado por seus discípulos e sucessores, também contribuiu para o rápido
crescimento do budismo.
Embora o ano certo de sua morte seja desconhecido, assim como o ano de seu nascimento, sabe-se que
ele tinha mais de cinquenta e cinco anos de idade e que morreu nas proximidades da cidade de Cussínara,
na Índia.
Algumas das causas do proselitismo búdico já foram apontadas, às quais se pode acrescentar sua
adaptabilidade doutrinal e religiosa; porque o budismo, como se propagou e se espalhou pelas regiões do
Nepal, Ceilão, China e especialmente Tibete e Mongólia, facilmente se acomodou ao culto e às
divindades nacionais de cada região. Assim o vemos assumir diferentes formas nos diferentes países, e se
amalgamar com todos os cultos e todos os deuses, sem excluir as divindades femininas e o culto obsceno
dos xivaístas. De resto, é necessário reconhecer que os discípulos e sucessores de Buda seguiram nesta
parte as tradições e o exemplo de seu mestre, que permitia que todo o Olimpo de deuses bramânicos que
ele encontrou em sua terra natal subsistisse. Esta é mais uma prova da alucinação, se não da má fé, de
quem busca no Budismo a origem e o modelo do Cristianismo, com o qual não há nada que se assemelhe,
não só às abominações do xivaísmo, mas à idolatria do culto que acompanha o budismo desde sua
origem, em todas as suas manifestações e em todos os países em que domina35. Sob este ponto de vista,
como sob vários outros, longe de existir harmonia e semelhança, pode-se dizer que o budismo e o
cristianismo são essencialmente antitéticos.

35
Entre os argumentos que os racionalistas que tentam provar a todo custo a origem humana do cristianismo costumam apresentar
em favor de suas teses, está a analogia e semelhança que certos ritos e cerimônias dos lamas do Tibete oferecem com algumas
práticas cristãs. Para reconhecer a grande força demonstrativa de tal argumento, basta ter em mente: 1º, que essa analogia se limita
a certas cerimônias e práticas de pouca importância relativa, como o uso por monges ou bonzos de roupas mais ou menos
semelhantes às episcopais e sacerdotais, a oração em comunidade, o uso de incenso, sinos, genuflexões e reverências, com outras
práticas semelhantes, que não afetam a substância ou a essência do cristianismo; 2º, que o budismo lamaísta do Tibete em sua
forma atual teve sua origem no final do século XIV e, conseqüentemente, quando as tradições cristãs mais ou menos desfiguradas
poderiam e deveriam ter chegado até lá, seja pelos missionários franciscanos e dominicanos que percorreram grande parte da Ásia
no século XIII, seja especialmente pelas frequentes relações comerciais e religiosas que os nestorianos mantinham com os povos
da Ásia Central e do Norte.
Confirmando isso, as tradições tibetanas dizem que Dsong'khaba, autor do Lamaísmo atual e mestre do primeiro Dalai Lama nos
últimos anos do século XIV, foi discípulo em sua juventude de um mestre vindo do Ocidente, que possuía grande sabedoria, e tinha
um nariz comprido, ao contrário dos mongóis. Esses detalhes indicam claramente que se trata de um cristão de países ocidentais e
pertencente à raça caucasiana.
29
§ 11 Bibliografia búdica

A bibliografia búdica é uma das mais abundantes e extraordinárias conhecidas. Os budistas afirmam que
sua literatura sagrada compreende nada menos que oitenta mil livros; mas por essas obras ou livros devem
ser entendidos capítulos ou artigos, segundo a opinião de Burnouf. De qualquer forma, não há dúvida de
que sua bibliografia é bastante extensa, pois Brian Hodgson enviou para a Europa 84 volumes em sânscrito,
que contêm a maior parte da literatura sagrada budista e constituem grande parte da coleção nepalesa36, que
é a de maior autoridade e que provavelmente serviu de base para as traduções e coleções que existem em
outras regiões, como China e Tibete.
A coleção sagrada escriturística do budismo compreende três classes de livros e, tomada coletivamente,
é chamada de Tripitaka, ou cesta tripla: [1] o Sutra pitaka ou discursos do Buda constituem a primeira
cesta; já [2] a segunda é chamada de Vinaya pitaka e abrange a parte disciplinar e ascética; por fim, [3] a
terceira, que leva o nome de Abhidharma pitaka, contém a parte filosófica, ou o que poderíamos chamar de
metafísica do budismo. Os Sutras são geralmente considerados pelos budistas e escritores indianistas como
o resumo e a essência da pregação e doutrina do Buda. Esses discursos foram coletados e registrados por
escrito por seu fiel e principal discípulo Ananda, razão pela qual são justamente considerados como a
expressão autêntica do pensamento do Buda. Os livros do Vinaya foram escritos por Upali, e a escrita do
Abhidharma é atribuída a Kaxyapa. Isso, contudo, deve-se entender da escrita inicial ou compilação desses
livros, que se deu logo após a morte de Buda, em um concílio de quinhentos ascetas. Esta compilação inicial
foi modificada e acrescentada em dois concílios ou assembléias posteriores, o primeiro dos quais foi
realizado cento e dez anos após a morte de Buda, e o outro quatrocentos anos após esse evento. Nâgârdjuna,
defensor do niilismo absoluto, participou deste terceiro concílio e foi seu principal autor.
Deve-se notar que, além dos livros mencionados, que compõem a literatura autorizada e canônica do
budismo, existe também outra classe de tratados ou livros chamados Tantras, que não são parte integrante
do Tripitaka, mas são uma espécie de rituais, que contêm uma estranha mistura das fórmulas ascéticas do
budismo e as práticas obscenas e idólatras do xivaísmo.
Sabe-se que o inglês Hodgson encontrou no vale do Nepal, no ano de 1822, um exemplar da Tripitaka
em sânscrito, achado que contribuiu poderosamente para facilitar o conhecimento da doutrina búdica. Na
opinião de Burnouf, um juiz muito competente no assunto, as verdadeiras fontes para o conhecimento do
budismo, as fontes originais e mais puras, são os textos sânscritos do Nepal e os livros páli do Ceilão.

36
Observe-se que, além desta coleção do Nepal, existem várias outras, pertencentes às principais regiões em que o budismo domina,
como as coleções tibetanas, chinesas, do Ceilão, etc., que têm menos autoridade canônica do que as nepalesas, seja porque são
posteriores, seja porque estão amalgamados e mais ou menos desfigurados pela literatura e ideias dos respectivos países.
30
§ 12 Filosofia búdica

A idéia fundamental do budismo e do bramanismo é a mesma: o problema que serve de ponto de partida,
de substância e de culminação para um e outro, é fundamentalmente idêntico. O bramanismo e o budismo
colocam o seguinte problema: “a existência humana é sofrimento; este sofrimento é o resultado e a
consequência de transmigrações passadas, e o antecedente e causa de outras transmigrações subsequentes
da alma através de todos os tipos de corpos, lugares e condições. A suprema perfeição e felicidade do
homem consiste em livrar-se dessas transmigrações ou mudanças no modo de ser”. Até este ponto,
Bramanismo e Budismo concordam, e sua oposição aparece apenas quando se trata da solução final do
problema. Enquanto o primeiro diz que “a cessação da transmigração e dos sofrimentos que a acompanham,
e consequentemente a suprema perfeição ou felicidade do homem, verifica-se pela absorção em Brahma,
pela reversão ou reentrada do homem no Ser Absoluto, único e supremo”; o segunda diz que “essa cessação
ou libertação da transmigração e do sofrimento é verificada por meio do Nirvana, isto é, através da extinção
ou aniquilação da existência individual.
Por mais que nossa consciência cristã resista instintivamente a tal conclusão, e por mais que alguns
budófilos se esforcem para provar o contrário, não há dúvida de que este e nenhum outro é o real significado
do Nirvana, por parte do budismo original e primitivo, segundo todas as indicações internas e segundo o
testemunho dos indianistas mais autorizados. “Como [Buda] nunca fala de Deus, o Nirvana não pode ser
para ele a absorção da alma individual no seio de um Deus universal, como acreditavam os brâmanes
ortodoxos: como ele também não fala de matéria, seu Nirvana não pode ser nem a dissolução da alma
humana dentro dos elementos físicos. A palavra vazio, que já aparece nos monumentos que, segundo todos
os tipos de indícios de peso, são os mais antigos do budismo, leva-me a pensar que Sakya viu o bem maior
na completa aniquilação do princípio pensante. Foi representado, segundo uma comparação freqüentemente
usada pelo próprio Buda, como o escurecimento ou desaparecimento da luz de uma lâmpada que se
apaga”37.
Por outro lado, este significado e significado do Nirvana estão em perfeita harmonia com o ateísmo, que
constitui uma das características fundamentais do budismo primitivo. E dizemos do budismo primitivo,
porque se sabe que, com o passar do tempo, e por uma espécie de reação natural do espírito humano contra
a negação de Deus, surgiu dentro do budismo uma escola teísta, que proclamava a existência de Adibudha
ou Deus supremo. Mas quando essa concepção apareceu, mil e quinhentos anos haviam se passado sobre o
budismo, posto que o famoso indianista húngaro Csoma de Cörös demonstrou, com a autoridade e os textos
dos livros budistas da coleção tibetana, que a crença em um Adibudha foi introduzida na Índia Central após
o século X da era cristã.
Apesar das negações e atenuações de A. Remusat, Bunsen e alguns outros, o testemunho quase unânime
dos orientalistas mais credenciados não nos permite duvidar do ateísmo búdico. Schmidt, assim como
Hodgson, Csoma de Cörös e Burnouf, concordam que nos monumentos mais autênticos do budismo
primitivo não há nada que se assemelhe à concepção ou afirmação de um Deus supremo, muito menos um
Deus pessoal e transcendente. Os sutras, ou discursos de Buda, a expressão mais genuína de suas idéias e
pregações, dispensam completamente todo o teísmo, e se contentam em deixar o caminho livre às diferentes
divindades bramânicas, inferiores ao Ser primitivo ou Brahm, sem prejuízo de rebaixá-las de forma gradual
e insensível ao papel de gênios e manifestações humanas.
Burnouf observa corretamente que a doutrina de Buda é uma doutrina que se opõe ao bramanismo, como
moral sem Deus e como ateísmo sem natureza; isto é, o budismo nega e exclui ou, pelo menos, prescinde
do mundo externo. Buda admite, de fato, a pluralidade e a individualidade das almas humanas como
ensinado pelos sânquias; admite também a transmigração das almas, como ensinado pelos brâmanes; mas,
ao mesmo tempo, rejeita e nega o Deus eterno deste último, e também rejeita a natureza eterna da escola
sânquia. Todos os seus desejos e esforços são direcionados para buscar e apontar os meios propícios para
libertar a alma humana dos sofrimentos inerentes à existência, que é o problema fundamental e geral para
todas as escolas e religiões da Índia. Buda não apela, para resolver o grande problema, nem para a doutrina

37
Burnouf, Introduction a l'hist. du Budhisme indien, p. 520.
31
dos sânquias, que buscava a redenção final da alma em sua completa separação da natureza, ou se se
preferir, de toda realidade objetiva; nem para a perfeita absorção de si mesmo no seio e substância de
Brahma, que constituía a solução dos brâmanes, mas busca a solução do problema, a redenção da alma, sua
verdadeira e absoluta libertação do mal, na aniquilação de sua existência relativa, que ela se extingue e
desaparece no Vazio absoluto e infinito. Essa observação de Burnouf, além de outros motivos que a
sustentam e confirmam, está em perfeita harmonia com o sistema niilista que representa uma das mais
importantes escolas do budismo, como veremos.
Agora acrescente-se que, se é verdade que entre as várias seitas ou escolas que nasceram e se
desenvolveram em tempos posteriores dentro do budismo existe algum teísta, não é menos incontestável
do que a escola dos Svabhavikas, considerada por Hodgson, Burnouf e os indianistas de maior autoridade,
como a mais antiga escola filosófica do budismo, e como expressão genuína de seu pensamento metafísico,
seja completamente atéia e materialista. Para os Svabhavikas não há outro Deus além da Natureza, com
suas energias ou forças inatas (a Força e a Matéria de Büchner ou do positivismo contemporâneo), uma das
quais é o que chamamos de inteligência, sem nenhum princípio ou ser espiritual.
O que dissemos até agora sobre o Nirvana e o ateísmo, como características fundamentais e primitivas
do Budismo, recebe confirmação e está de acordo com sua ideia metafísica, com as afirmações mais
importantes e explícitas da Filosofia Búdica. Aqueles que trataram desses assuntos sabem que o Pradjñâ
paramita contém o mais autorizado – canônico, por assim dizer – fundo doutrinário da metafísica budista,
e eles também sabem que nas quatro seções e nos vários compêndios desta obra tropeçamos a cada passo
com passagens nas quais o niilismo mais absoluto é terminantemente ensinado. “A sensação – lê-se em
uma dessas passagens –, a idéia e os próprios conceitos, ó Bhagavat!, são ilusão. Não, Bhagavat, a ilusão
não é uma coisa e o conhecimento outra coisa: o próprio conhecimento, ó Bhagavat!, é a ilusão, e a própria
ilusão é o conhecimento”38. E mais tarde acrescenta-se: “Não há criaturas que possam ser conduzidas ao
Nirvana, nem criaturas que conduzam ao Nirvana”. Burnouf sustenta com razão, após citar várias passagens
do Pradjñâ pâramita, que o conteúdo real e o fim apropriado desses livros não é outro senão “estabelecer
que o objeto cognoscível ou a perfeição da sabedoria não tem existência real, como não o tem nem o objeto
que se trata de conhecer nem o sujeito que o conhece, quer dizer o Buda. Essa é, de fato, a tendência comum
de todas as redações do Pradjñâ. Qualquer que seja a diferença de desenvolvimentos e circunlóquios em
que o pensamento fundamental esteja envolvido, todos eles terminam na igual negação do sujeito e do
objeto”39.
Também é ensinado no Pradjñâ paramita que a existência dos seres se deve à ignorância, que não sabe
que não tem existência real. Se a isso se acrescentar que a escola Madhyamika professa o vazio ou o nada
absoluto como seu dogma principal, teremos que o ateísmo e o niilismo representam os sistemas
fundamentais e mais genuínos do budismo primitivo, e que podem ser considerados, por sua vez, como
premissa e consequência do Nirvana, no sentido de aniquilação ou extinção da existência. E é de se pontuar
que a essa escola Madhyamika – a qual tem como dogma fundamental o nada ou a negação de toda realidade
– pertenceu o famoso Nâyârdjuna, autor ou compilador do Tripitaka, que faz as vezes de escritura búdica.
Como o materialismo sempre acompanha o ateísmo, é desnecessário salientar que também entre os
budistas encontrou muitos adeptos, a ponto de Hodgson poder dizer com verdade que “na opinião da
maioria dos budistas, e principalmente dos naturalistas, o espírito não é nada mais do que uma modificação
da matéria”.

§ 13 Moral do budismo

Apresentadas as doutrinas ou teorias metafísicas que, como se viu, o budismo comporta, pelo menos em
seus primórdios, e que formam o fundo de seus principais sistemas filosóficos, parecia natural e lógico que
sua moral se assemelhasse mais à dos cirenaicos e epicuristas do que com a dos estóicos. Mas não é assim

38
Em outro parte, aludindo a Bhagavat ou o sábio e bem-aventurado, é dito: “Ele ensinará a Lei para destruir essas grandes doutrinas
e outras, a saber, a doutrina do eu, a das criaturas, a da vida, a da individualidade, a do nascimento... a da eternidade do corpo”.
39
Introduc. à l’hist. du Bud, p. 483.
32
que se dá, porque, na verdade, a doutrina moral do budismo primitivo – pois não estamos falando aqui de
suas formas posteriores e de sua fusão com outras idéias em vários países – é pelo menos tão perfeita quanto
a dos antigos estóicos, e talvez seja a que mais se aproxime da cristã. Não obstante, acreditamos, de nossa
parte, que a contradição entre a teoria metafísica ou especulativa e a doutrina moral do budismo não é tão
radical e completa como parece à primeira vista.
Sabe-se que a chave do budismo, sua concepção fundamental, sua tese mais essencial e abrangente, é a
necessidade de acabar com a transmigração da alma para acabar com seu sofrimento ou com o mal
inseparável de sua existência, através do Nirvana absoluto ou cessação de ser. Ora, se a transmigração, o
movimento e a ação que acompanham a alma são a causa e a razão do mal e do seu sofrimento, é claro que
a única maneira de atenuar, diminuir e acabar com o mal e os sofrimentos da alma , bem como chegar ao
Nirvana, verdadeiro desideratum e destino fatal do mesmo, é, e não pode ser outro, senão atenuar, diminuir
e aniquilar, tanto quanto possível, as manifestações da atitude individual. Daí a ideia principal que palpita
no fundo da moral búdica, e que lhe serve de base e ponto de partida: a negação ou extinção da atividade
até chegar à mais absoluta impassibilidade.
A moralidade primitiva do budismo é reduzida aos seguintes cinco preceitos:
1º Não matar nenhum ser vivo.
2º Não roubar.
3º Não cometer impureza.
4º Não mentir
5º Não beber nada capaz de intoxicar.
Esses são os únicos preceitos, pelo menos negativos, que Buda deu a seus discípulos. Na opinião de
alguns autores, ele também ensinou e promulgou seis preceitos positivos, ou melhor, apontou como meios
e manifestações da perfeição moral do homem:
a) a esmola, ou a prática de beneficência em favor dos seus pares;
b) a virtude, isto é, o cumprimento e observância da lei;
c) a paciência, que é a abstenção das paixões perturbadoras, como ambição, vingança ou, melhor dito,
a insensibilidade e indiferença de espírito;
d) a aplicação, ou cuidado em promover e desenvolver os germes da virtude e do bem inatos ao
homem;
e) a contemplação ou quietismo ascético da alma, mesmo considerado a partir de sua atividade
superior e intelectual; e
f) a sabedoria, que representa a ausência ou isenção de qualquer erro, qualquer imperfeição moral,
qualquer ignorância, qualquer defeito ou pecado, e, portanto, o último grau que o homem pode alcançar por
seus esforços, o mesmo que serve de disposição próxima entrar no Nirvana, termo e aspiração final da
existência.
Esses preceitos e máximas morais do budismo primitivo sofreram, ao longo do tempo, acréscimos e
alterações mais ou menos importantes, que também revelam a fragilidade inerente a todo trabalho religioso
puramente humano. Além dos preceitos relacionados ao culto idolátrico, que tomou grandes proporções no
budismo desde seus primeiros passos; além das regras e práticas relacionadas ao culto obsceno e
vergonhoso de xiva, a moral pregada e ensinada por Buda logo foi desfigurada com preceitos mais ou
menos estranhos e até ridículos, como não beber leite após as refeições, não manter o sal em casa por mais
de dez dias, e outros similares. É verdade que o germe dessas alterações, acréscimos e deformações já se
encontra na doutrina e nos exemplos do próprio Buda, tanto quanto pesem seus panegiristas indianos;
porque é de se ressaltar que ele, em seu primeiro preceito negativo, proibia não apenas matar homens, mas
também matar ou destruir qualquer tipo de animal; e, no que diz respeito aos preceitos e práticas idolátricos
dos budistas posteriores, eles são justificados pelo exemplo de seu fundador e mestre, que, como indicado,
conformou-se ao Olimpo dos deuses bramânicos, e permitiu subsistir e praticar seu culto costumeiro.

33
§ 14 Crítica ao Budismo

Tem-se dito e repetido muitas vezes que a moral búdica é tão pura e perfeita quanto a moral cristã, e até
se aventou a idéia de que a Religião de Jesus Cristo tem sua origem e deriva do budismo por caminhos
ocultos e desconhecidos. Aqueles que, em seu ódio inconcebível ao cristianismo, estão dispostos a ver
perfeições, belezas e verdades em todos os lugares e em todas as religiões, exceto na Religião cristã, exaltam
persistentemente as perfeições e belezas da moral búdica, apresentando-a ao mesmo tempo como
demonstração seja da possibilidade da origem humana do cristianismo seja do poder e força da razão
humana para formular e constituir um sistema moral tão perfeito e acabado como aquele que a Religião
católica comporta.
Que essas afirmações dos budófilos – ou melhor, dos inimigos do Cristianismo –, além de exageradas,
são desprovidas de um fundamento sólido é provado muito claramente pela exposição sumária das doutrinas
búdicas que fizemos nos parágrafos anteriores. Sem dúvida, a doutrina moral do budismo, pelo menos
durante seus primeiros anos, é impressionante por sua relativa pureza e elevação, quando comparada com
a professada pelos Filósofos de primeira linha; mas isso não dá nenhum direito de igualá-la à moral cristã,
nem em seu fundo ou essência, nem em seus meios, nem em seu princípio racional, nem em seu termo ou
destino.
Em seu fundo ou essência, porque, afinal, a moral búdica nada mais é do que a reprodução ou expressão
incompleta da lei natural. Os dez preceitos da lei natural são reduzidos a cinco, eliminando justamente o
principal de todos, aquele que serve de base aos demais, que é o amor de Deus sobre todas as coisas.
Acrescente a isso primeiro, que o preceito búdico de não matar entranha um sentido irracional e até ridículo,
muito estranho e contrário ao sentido cristão; e segundo, que a moral católica inclui preceitos e máximas
não só gerais e fundamentais, mas específicos e superiores, como a Confissão auricular, recepção da
Eucaristia, Missa, guardar os dias santos, entre outros, que são completamente estranhos à moral do
budismo.
Em seus meios, segundo se colige do que acaba de ser dito da Eucaristia, Confissão e outros
Sacramentos, concluindo-se também que entre estes meios de moral e santificação ocupam um lugar
preferencial, não a contemplação apática e estúpida do budista que a toma e usa como meio de diminuir e
matar sua atividade, seu pensamento e até sua consciência; mas a contemplação que tem por objeto Deus
como Suprema Bondade e infinita Santidade a imitar. Se a isso se somar que o budista é incapaz mesmo de
usar a oração e a graça divina como meio de moralidade, uma vez que não reconhece a existência de um
Deus a quem possa orar, em cuja ajuda ou graça possa confiar, cuja santidade deva imitar, pode-se constatar
claramente que só sob este aspecto a moral do Catolicismo, cujas principais asas são a oração e a graça, é
posta a uma imensa distância da moral budista
Em seu princípio racional, porque o princípio racional de toda moral é antes de tudo a idéia de Deus, e
depois a idéia metafísica do bem, e já vimos que a moralidade própria, primitiva e genuína do budismo ou
nega a existência de Deus ou dela prescinde, enquanto, de outra parte – isto é, na ordem metafísica –
encontra-se em íntimas relações com o niilismo e o materialismo, sistemas professados, defendidos e, mais
ainda, postos em prática pelas principais escolas do budismo.
Em seu termo, porque o Nirvana absoluto, a aniquilação do ser pessoal, a extinção da existência relativa
da alma, destino final e aspiração suprema da moralidade búdica, nem sequer merece ser posto ao lado do
que constitui o prêmio, a aspiração e o destino final da moral cristã, a posse do Deus vivo e pessoal pela
visão de Sua essência infinita, Verdade transcendental na qual todas as verdades se encontram, e pelo amor
fruitivo da Bondade infinita, essência e fonte de todos os bens possíveis. Que comparação cabe entre uma
moral essencialmente teísta em seu princípio, em seus meios e em seu fim, que é aquela ensinada por Jesus
Cristo, e a moral búdica que não apenas ignora Deus, mas ensina a fazer o bem por amor do nada final?
E tenha-se em mente que estamos aqui comparando a moral cristã com o budismo, tomando este último
em seu sentido mais favorável e em sua manifestação mais pura; porque já foi dito que em diferentes países
e em épocas posteriores, recebeu acréscimos e alterações que rebaixam muito seu valor original, o que

34
destaca também a superioridade da moral cristã, que foi preservada e permanece idêntica no espaço, no
tempo e em todas as vicissitudes da História.
Finalmente: a doutrina do budismo sobre o suicídio bastaria, na ausência de outras evidências, para
demonstrar a inferioridade de sua moral em relação à do cristianismo. De acordo com numerosos e
explícitos textos apresentados por Burnouf, é claro – e o indianista francês reconhece isso – que o budismo
admite não apenas a legalidade, mas também a santidade do suicídio em certos casos e por motivos
religiosos.
E o que acontecerá se ao que foi dito for acrescida o que poderíamos chamar de demonstração a
posteriori, a superioridade da civilização cristã sobre a civilização budista? Não há necessidade de lembrar
que em cada civilização e para cada civilização, a moral representa e entranha um de seus elementos mais
poderosos e importantes. Compare agora a civilização produzida, informada e vivificada pela moralidade
do Evangelho, pelo princípio ético do cristianismo, e pergunte-se se esta civilização não oferece
características de inegável superioridade em relação à civilização produzida, informada e vivificada pela
moral do budismo. Se a árvore é conhecida antes de tudo por seus frutos, certamente os produzidos pela
árvore búdica, mesmo se concretizando no campo moral e prático, são muito inferiores aos produzidos pela
árvore cristã, e não abonam de forma alguma as pretensões do racionalismo ou dos interessados budófilos.
A constância do pagão brota do orgulho
(“Catolicismo” Nº 152 - Agosto de 1963)

Em Saigon, no dia 11 de junho de 1963, ocorreu um fato que alcançou rapidamente repercussão mundial.
No momento em que se celebrava na Catedral uma Missa solene por alma de João XXIII, os sacerdotes budistas saíram
indignados de um pagode onde haviam realizado uma cerimônia religiosa. Um dos bonzos que descera do carro, o
setuagenário Tchich Quang-duc, sentou-se com as pernas cruzadas e as mãos postas. Seus dois companheiros derramaram
gasolina sobre ele. Quang-duc então ateou tranqüilamente fogo a seus próprios trajes, e o bonzo suicida se converteu assim
em tocha viva, permanecendo imóvel até que seu corpo ficasse inteiramente carbonizado, quando então caiu para trás.
Terminada a queima do cadáver, oito monges desfraldaram uma bandeira budista, que levaram em passeata pelas ruas.
Abstemo-nos de comentar aqui o furor contra a Santa Igreja de Deus, que levou o bonzo a matar-se. Consideramos o
simples fato do suicídio. Quem quer que conserve algum senso moral não pode deixar de ter horror ao assassínio. E isto
máxime quando o assassino, numa verdadeira aberração, volta contra si mesmo a arma mortífera.
Ora, esse crime foi praticado pelo bonzo Quang-duc em um ato plenamente aprovado pela sua seita. Com efeito, foi
como que em um desdobramento da cerimônia realizada no pagode, que a lúgubre ação foi efetuada. O suicida era bonzo,
bonzos eram os dois cúmplices incumbidos de embeber de gasolina as vestes do ancião. Budista foi a bandeira que em sinal
de triunfo se desfraldou, consumada a incineração. E era a alma do budismo que se manifestava nas canções das monjas e
demais mulheres que depois exaltaram o feito ignóbil.
É boa uma religião que faz do suicídio um uso destes? Mas, dirá alguém, esse bonzo não revelou real heroísmo? Não
tinha razão a mídia que o qualificou de mártir? Para demonstrar quanto é errado este modo de entender, apelamos para a
autoridade do grande Doutor da Igreja, São Bernardo. Eis a resposta do Santo: “Alguns fiéis ficaram espantados de ver esses
hereges irem para a morte com júbilo e alegria. Mas esse espanto torna manifesto que eles não se compenetraram
suficientemente de quão grande é a força de Satanás tanto sobre os espíritos e corações quanto sobre os corpos daqueles
que já se entregaram a ele. Não é mais estranho para um homem lançar mãos violentas em si mesmo, do que voluntariamente
submeter-se à violência de outrem? E, no entanto, o demônio pode prevalecer sobre muitos para que façam isto. Pois muito
freqüentemente ouvimos de pessoas que miseravelmente se afogaram ou se enforcaram por sugestão sua. Foi sem dúvida o
demônio que persuadiu o infeliz Judas a pôr fim à vida. Parece-me, todavia, maior e mais espantosa manifestação de força
que ele pudesse colocar no coração do Apóstolo infiel o desígnio de trair seu Mestre, do que induzi-lo depois a se enforcar.
Não há conseqüentemente comparação entre a constância dos santos mártires e a obstinação demonstrada por esses
hereges. No caso dos primeiros, o desprezo pela morte foi um efeito da piedade; nos últimos, procedeu esse desprezo da
dureza do coração. O sofrimento foi o mesmo para todos, mas as disposições variaram largamente” ("Life and Teaching of St. Bernard",
Aibe J. Luddy O.Cist. - Dublin, 1927 - p. 492 )
. A tal propósito, o autor da obra aqui citada acrescenta: “Santo Agostinho explica do mesmo
modo a diferença entre a fortaleza revelada pelos mártires cristãos e a dos infiéis: “A constância do pagão brota do
orgulho; a do cristão, da caridade” (Contra Juliano, I, I). “Não é o sofrimento, mas a causa que faz o mártir” (In Ps. LXXXIV). E
daqueles que morreram pelo erro diz ele: “Correram bem, mas fora da pista – Bene cucurrerunt sed extra viam”.
35
§ 15 A Filosofia na China

Entre os fenômenos mais notáveis que distinguem e caracterizam o povo chinês, ocupa lugar
A China Moderna preferencial o seu completo, tenaz e perseverante
(Catolicismo n° 92, agosto de 1958) isolamento, em relação a outros povos e nações.
O nacionalismo chinês, em suas relações com a Um povo de trezentos milhões de almas, que
Religião, foi estudado pelo «Osservatore Romano» em através de guerras, conquistas, revoluções e
30 de janeiro de 1955 e, mais recentemente, em 14 de
março deste ano [1958], em artigos longos e bem mudanças de dinastias, se preservou depois de
documentados. muitos séculos de existência em completo
Foi em 1920 que o marxismo-leninismo se isolamento das raças e povos que o cercam,
introduziu na China, por meio de agentes pagos pela constitui um dos mais extraordinários fenômenos
Rússia. Em trinta anos conseguiu ele impor sua ditadura
a meio bilhão de almas, aproveitando-se da situação históricos. Nossa civilização e nossas raças, cujas
caótica da política interna do país e das perturbações primeiras raízes buscamos na região dos Ários e na
internacionais que desde antes da última guerra mundial Índia, tão perto da China, nada devem a esta.
têm ocorrido no Extremo Oriente. Excetuando-se a invasão búdica, que apenas se fez
Fundado em Xangai, em 1921, sob a chefia de Mao
Tsé-Tung, o Partido Comunista Chinês recebeu um sentir nas camadas sociais inferiores, limitando
auxílio valioso da missão de técnicos e militares russos também a sua ação sobre elas à introdução de certas
que se encontrava no país havia um ano. Desde logo, o fórmulas e práticas religiosas, o povo chinês
espantalho da guerra sino-japonesa foi um instrumento
manteve-se desde a mais remota antiguidade em
precioso nas mãos dos bolchevistas indígenas, ansiosos
por dominar inteiramente sua pátria. Sob pretexto de completo isolamento, sem conseguir tirá-lo desse
combater o inimigo externo, fundaram um Estado estado nem seu contato com os filhos de Ormuzd e
independente, o Yenan, ao norte da China. Divulgando Brahma, nem mesmo suas relações religiosas e
o «slogan»: «Um chinês não combate outro chinês,
comerciais com os povos europeus, a partir do
quando japoneses estão dentro de suas muralhas»,
conseguiram que o chefe do governo legal, Chang Kai- século XVI. Sem alianças com estrangeiros, sem
Chek, fosse preso pelos seus próprios generais, sob exercer atração ou expansão sobre seus vizinhos,
acusação de entendimentos com o inimigo. Como preço vivendo sua própria vida e concentrando-se em sua
de seu resgate, obtiveram plena liberdade de ação para
o Partido, e o compromisso de Chang de responder
própria ação, esse vasto e antigo Império forma ou
pelas armas ao primeiro ataque japonês que houvesse. representa uma espécie de episódio no quadro vivo
Os japoneses atacaram em 1937, obrigando, por e harmonioso da História Universal. [Tal
força desse acordo, o governo nacionalista a entrar imutabilidade chinesa viria a ser totalmente
em uma guerra longa e dura, para a qual a China
não estava preparada e que a debilitou material e abalada em menos de meio século após a análise
moralmente. Os comunistas, ao contrário, graças a um do Cardeal Zeferíno, como se pode constatar no
plano bem concebido, pelo qual suas forças nunca quadro ao lado.]
enfrentavam abertamente o inimigo, conseguiram Podia-se dizer que sua Filosofia é
consolidar seu regime nas regiões do norte. Suas
guerrilhas lhes permitiram, sem muito esforço, manter proporcionada a esse isolamento nacional; pois,
em reserva tropas descansadas e sovietizar, sem longe de corresponder à antiguidade e grandeza da
maiores perigos, o território por eles ocupado. Por outro nação, é de pouco valor intrínseco. O próprio
lado, durante a segunda guerra mundial, os aliados Confúcio, “o filósofo e sábio por excelência”,
fizeram pressão sobre Chang Kai-Chek para que
aceitasse a colaboração dos comunistas no alto como lhe chamam os seus compatriotas; “o maior
comando, o que conferiu ao movimento vermelho um tutor dos povos que já viram os séculos”, na
caráter legal em toda a China. expressão deles, que também costumam chamá-lo
O fim das hostilidades em 1945, com a ocupação de auge da santidade e pináculo da raça humana,
russa da Manchúria e da Coréia do Norte, trouxe novo
e poderoso auxílio para os planos revolucionários de não passa de um moralista mediano, e dificilmente
Mao Tsé-Tung: seus dois milhões de soldados merece o nome de Filósofo no sentido próprio da
beneficiaram-se com o armamento japonês e com palavra. Hegel observa, com razão, que a tão
intensa ajuda russa.
louvada Filosofia de Confúcio se reduz a uma
O exército nacionalista, esgotado e desfalcado, entrou
então em luta com os comunistas pela posse do moralidade que não comporta méritos especiais, e
território chinês. Em outubro de 1949, depois de que não passa de um conjunto de máximas
quatro anos de guerra civil, os bolchevistas, senhores de vulgares. Os deístas e incrédulos do século de
toda a China continental, proclamaram em Pequim a
República Popular Chinesa.
Rousseau e Voltaire exaltavam a moral confuciana
aos céus, assim como os racionalistas de nossos
36
dias advogam a moralidade búdica, movidos pelo desejo ávido de equiparar e mesmo sobrepor aquelas
teorias à moralidade de Jesus Cristo. Tais exageros hoje só encontram eco entre pessoas que desconhecem
completamente o conteúdo dos livros atribuídos ao Filósofo chinês, ou melhor, escritos por seus discípulos;
porque a verdade é que quem tem conhecimento destes livros não pode negar que a moral ensinada por
Confúcio está a uma distância imensa, não só da moral cristã, mas também daquela ensinada por algumas
escolas filosóficas do paganismo. A moralidade contida no De Officiis de Cícero é mais pura e mais
completa do que a contida nos Sse-chou, ou livros clássicos de moralidade confuciana. Parece desnecessário
acrescentar que a teoria ética do Pórtico e as máximas morais de Epiteto e Sêneca valiam muito mais do
que a moral professada e ensinada pelos Filósofos da China.

§ 16 Filosofia de Lao-Tze

Para que tudo seja original na China, os dois únicos filósofos dignos
desse nome são quase contemporâneos. Com exceção de Zhu Xi40, que
no século XII da era cristã tentou uma espécie de reconciliação entre a
doutrina de Lao-Tze e a de K'ung-fu-tzŭ (vulgo Confúcio, como veremos
adiante), nenhum nome de Filósofo ou Escola importante aparece na
História sina.
Lao-Tze 41 , nascido no século VI a.C., pode ser chamado de
representante da metafísica chinesa, assim como Confúcio é o
representante da direção moral. De acordo com Lao-Tze, Tao
(literalmente, o grande caminho) é o começo, o fundo e a essência de
todas as coisas. Esse Tao, ou ser primitivo, também chamado pelo
Filósofo chinês de razão primeira, é tanto o não-ser quanto o ser, porque
é o ser virtual, latente e potencial, e é ao mesmo tempo o atual, explícito
e manifesto (Hegel, Schelling); é ideal e fenomênico, indistinto e distinto,
ilimitado e finito, em uma palavra, o Tao de Lao-Tze é a Substância
única, o Todo, a Essência absoluta de todo panteísmo.
Este Ser absoluto, indistinto e inominável na sua origem, torna-se
contingente e material, diferenciado e nomeável, à medida que produz ou
tira do fundo de si a coisas, isto é, à medida que se divide e se manifesta, assumindo diferentes formas. “O
Tao ou a razão suprema – lê-se no Tao Te Ching (a obra capital ou livro principal de Lao-Tze) – considerado
no seu estado de imobilidade, carece de nome... Só quando começou a dividir e vestir as formas corpóreas
teve nome... O Tao ou Razão Suprema existe em todo o universo, e nele penetra com toda a sua existência,
da mesma forma que os rios e torrentes dos vales se estendem aos rios e aos mares”.
Quanto ao processo das coisas do Tao ou Ser Absoluto, a doutrina deste Filósofo apresenta bastante
analogia com a dos neoplatônicos de Alexandria, dos quais se distingue, porém, pela importância ou papel
especial que neste processo, atribui-se ao princípio feminino yin, e ao princípio masculino, denominado
yang. Segundo o testemunho dos próprios discípulos e intérpretes chineses de Lao-Tze, a sua teoria sobre
este ponto pode ser condensada nos seguintes termos: “O Tao ou a primeira Razão produziu o Uno, isto é,
passou do estado de não-ser ao estado de ser. O Uno (1) produziu a Diáde (2), dividindo-se no princípio
feminino (yin) e no princípio masculino (yang). Esta Díade produziu a Tríade (3), quer dizer, os princípios
feminino e masculino, unindo-se, produziram a harmonia. A Tríade produziu a universalidade dos seres”.
Daí a importância que Lao-Tze, e a Filosofia Chinesa em geral, atribuem ao número, aproximando-se
com isso em algo da doutrina dos pitagóricos. Para Lao-Tze e seus compatriotas, a ordem, o processo e as
relações do universo e suas partes correspondem à ordem, ao processo e às relações dos números. Como

40
[N.T.] Zhu Xi (ou, na referência francesa tomada pelo Cardeal, Tchou-hi) também pode ser encontrado como Chu
Hsi, Zhuzi ou Zhufuzi (朱熹).
41
[N.T.] Lao-Tze (ou, na grafia espanhola do Cardeal, Lao-Tseu) também pode ser encontrado como Lao Zi ou Laozi (老子: Lǎozǐ),
Lao-Tzu e Lao-Tze.
37
estes são divididos em pares e ímpares, assim as substâncias cósmicas são divididas em celestiais e
terrenais: o número ímpar (como mais perfeito) corresponde ao celestial; o número par (porque é menos
perfeito que o ímpar) corresponde ao terreno. A Década (10) é um dos números mais importantes, por causa
de suas aplicações aritméticas.
A teoria da vida e da morte de Lao-Tze está de acordo com sua concepção panteísta da origem e do
processo das coisas. “Todos os seres – reza o citado livro Tao-te-king – aparecem na vida em um movimento
contínuo. Vemos que eles seguem um ao outro, aparecendo e desaparecendo alternadamente. Esses seres
corpóreos, em seu movimento contínuo, assumem diferentes formas externas; mas cada um volta à sua raiz
e ao seu começo. Voltar à sua raiz e ao seu início significa entrar novamente na imobilidade absoluta”.
A moral de Lao-Tze – de que versou muito pouco, como indicado – consiste na negação e desapego de
toda atividade, de toda mudança, de toda paixão ou alteração; consiste, em uma palavra, na indiferença
absoluta e no não agir, como meio de alcançar a absorção e a identificação bramânica com o Tao ou Ser
imutável, indistinto e sem nome. “O último termo da perfeição – escreve o Filósofo chinês – é a inação e o
cúmulo do vazio”.
Parece que Lao-Tze, querendo sancionar essa teoria moral com sua própria conduta, abandonou suas
honras, seu lar e sua riqueza, e morreu levando uma vida solitária nas selvas. Após sua morte, sua memória
foi muito venerada e elogiada por seus discípulos e admiradores, que fizeram dele uma encarnação do Tao
ou Razão suprema, e até lhe atribuíram uma existência anterior. Porém, seu nome não alcançou a
celebridade popular nem as honras divinas que foram e são prestadas ao seu compatriota Confúcio.

§ 17 Confúcio e sua Filosofia

Nasceu cinquenta anos depois de Lao-Tze, e em seus escritos – ou melhor,


em seus discursos filosófico-populares – seguiu uma orientação
essencialmente prática e moral, oposta à especulativa e metafísica de Lao-
Tze. Parece que Confúcio usou conversas familiares para ensinar e propagar
sua doutrina, que foi coletada e compilada por seus discípulos em Quatro
Livros, que são (1) o Dà Xué (大學) ou Grande Estudo; (2) o Zhōng Yóng
(中庸) ou A Doutrina do Meio; (3) o Lu-Yun ou Diálogos de Confúcio; e (4)
o Mêncio ( 孟 子 ), assim chamado pelo nome do discípulo compilador
(Mèngzǐ ou Meng Tzŭ, que significa literalmente “Mestre Meng” é o
pseudônimo de Ji Mèngkē). Em um desses livros, põe-se na boca de
Confúcio o seguinte discurso, que resume e sintetiza sua teoria moral no que
há de mais racional e sólido:
“Os nossos antigos sábios – disse K'ung-fu-tzŭ (Confúcio) – praticaram
perante nós o que acabei de vos explicar: e esta prática, geralmente adoptada
nos tempos antigos, reduz-se à observância das três leis fundamentais do
relacionamento, [1º] entre os soberanos e súditos, [2º] entre pais e filhos, [3º] entre marido e mulher, e à
prática exata das cinco virtudes capitais, que basta nomeá-las para fazer compreender sua excelência e
necessidade. Estas são as virtudes, [I] a humanidade, ou seja, o amor universal entre todos os de nossa
espécie sem distinção; [II] a justiça, que dá a cada indivíduo o que lhe é devido, sem favorecer um sobre o
outro; [III] a conformidade com os ritos prescritos e com os usos estabelecidos, para que os membros da
sociedade tenham o mesmo modo de vida e igual participação nas vantagens e desvantagens do mesmo;
[IV] a honestidade, isto é, aquela retidão de espírito e de coração que nos leva a buscar a verdade em tudo
e a desejá-la sem querer enganar a nós mesmos ou aos outros; e, finalmente, [V] a sinceridade ou boa fé,
ou seja, aquela franqueza de coração misturada com confiança que exclui todo fingimento e disfarce, tanto
na conduta quanto nas palavras. Aqui está o que tornou nossos primeiros mestres respeitáveis durante suas
vidas e o que imortalizou seu nome após a morte. Tomemo-los como modelos; usemos todos os nossos
esforços para imitá-los.”

38
A julgar apenas por essa passagem, pode-se Confúcio e o PC Chinês
dizer que a moral confuciana está mais próxima da (Folha de São Paulo, 1º julho de 2021)
moral evangélica do que qualquer outra. É verdade No auge da Revolução Cultural, em 1966, o túmulo
que, mesmo deste ponto de vista, seria sempre do Filósofo chinês Confúcio foi vandalizado, os restos
muito inferior à moral de Jesus Cristo, porque a mortais de seus descendentes, exumados e pendurados
estas virtudes confucionistas falta a eficácia, a em forcas, e a estátua em homenagem ao sábio acabou
incinerada por jovens da Guarda Vermelha.
elevação e o aroma inerentes ao amor de Deus,
Na época, adolescentes imbuídos de fúria
fundamento e condição da perfeição moral, seja
revolucionária se empenhavam para destruir os
porque a exposição e o ensino puramente humano chamados “quatro velhos”: as velhas ideias, a velha
dessas virtudes naturais e racionais não entranham cultura, os velhos costumes e os velhos hábitos.
em si nem seu amor eficaz nem sua prática, amor e Confúcio, na visão do líder comunista Mao Tse-Tung,
prática que só podem ser alcançados sob o influxo era um dos maiores símbolos do entulho feudal que
da Fé divina e da graça que fortalece. Testemunha impedia a China de ser verdadeiramente revolucionária.
desta verdade é a terrível corrupção dos costumes Cinquenta e cinco anos depois, o Filósofo não foi
que se observa entre os chineses, apesar da pureza apenas resgatado: suas ideias foram alçadas a doutrina
da moral e das virtudes ensinadas por Confúcio; e de Estado e têm sido usadas para legitimar o governo,
cujo poder é mais concentrado na figura do principal
que a veneração à pessoa e doutrina deste, longe de
dirigente, Xi Jinping, do que em gestões anteriores.
diminuir, aumentou até receber honras divinas por
Xi foi o primeiro líder a participar formalmente de
parte de todos os habitantes daquelas regiões, uma comemoração do aniversário de Confúcio, em
desde o Imperador e os literatos até as últimas 2014, quando foi celebrado o 2.565° ano de nascimento
classes da sociedade. do sábio.
Mas à parte disto, e desconsiderando esta ordem Naquele ano, o Partido Comunista Chinês
de considerações, basta atentar para os outros determinou que seus filiados assistissem a aulas sobre
pontos da doutrina, tanto moral como especulativa, o Filósofo e outros pensadores clássicos.
de Confúcio, para se convencer de que a razão Assim, livros didáticos também passaram a
incorporar textos tradicionais, e Confúcio ganhou
humana, entregue a seus próprios artifícios, põe e grande destaque nos currículos escolares. O dirigente
porá sempre erros e distorções a par das verdades chinês, que frequentemente cita pensamentos
e belezas. confucionistas, afirma que a cultura tradicional é a alma
Bunsen resume alguns dos principais pontos da da nação.
doutrina de Confúcio nos seguintes termos:
1966
“O céu (tiān) é, para Confúcio, sinônimo de
divindade, da qual a expressão mais sublime é o
mundo das estrelas. A palavra Deus não é para ele
um som vazio, oco, desprovido de significado real,
mas exprime o conjunto dos corpos.
“O espírito (shén) não tem realidade para o
filósofo chinês, senão no sentido de gênio, de
sombra dos ancestrais, em homenagem aos quais
este excelente homem instituiu um culto de
reconhecimento. Mas o que é o espírito? A força
que reside na matéria. E o que é a matéria? O
produto de duas substâncias primitivas. Eis aqui,
em substância, com mais alguns preceitos morais,
o que constitui a religião popular que Confúcio
ensinou aos chineses”.
Essas apreciações de Bunsen são corroboradas
pela História e pela experiência atual, sendo bem
sabido que as classes esclarecidas e os literatos da
China, ou seja, aqueles que representam as
2014
tradições e os ensinamentos de Confúcio, a quem

39
reconhecem e reverenciam como legislador e mestre, professam o ateísmo e o materialismo.
As respostas evasivas que o Filósofo chinês costumava dar aos que o questionavam de forma direta e
concreta sobre a imortalidade da alma são mais uma prova de seu pensamento materialista42, talvez até
mesmo o medo de confrontar e ferir as crenças do povo lhe tenham imposto certa reserva.
Outro dos pontos de sua moral que revela sua imperfeição, assim como a fraqueza da razão humana
entregue a si mesma – mesmo em homens dotados de inteligência superior e aptidões especiais na ordem
moral! – é sua doutrina acerca dos vaticínios, augúrios e sorte por meios pueris e supersticiosos. O Padre
Vudelou, na sua Noticia del Y-king, que é precisamente o livro que trata das fortunas, da quiromancia e
dos auspícios Sínicos, escreve: “Confúcio não só aprova estas fortunas, mas também ensina em termos
formais, no seu comentário sobre o Y-king, a arte de usá-los. É certo que a técnica a que se dedica este livro
é deduzida do que o próprio Confúcio disse sobre ela”.

§ 18 Zhu Xi e o Neo-Confucionismo

Após a morte e sucessiva apoteose de Lao-Tze e Confúcio, a Filosofia na China seguiu as suas vias, e
sobretudo deste último, sem produzir escolas ou Filósofos que merecessem menção especial. Somente no
século XII d.C., quando já haviam passado dezessete séculos sobre o túmulo de Confúcio, surgiu uma nova
escola, cujo fundador foi Zhu-lien-Ki ou Zhu-Tze, mas cujo principal representante é Zhu Xi.
Já foi indicado acima que a Filosofia de Confúcio prevaleceu sobre a de Lao-Tze. Mas a Filosofia de
Confúcio, mais do que Filosofia é um sistema político-moral, é uma Filosofia essencialmente incompleta e
parcial, porque carece de uma base metafísica e mesmo psicológica, enquanto a Filosofia de Lao-Tze é
metafísica e quase puramente especulativa. Diante disso, nada mais natural do que as pôr em contato
recíproco e se completarem. Essa foi a empreitada dos citados Filósofos, cuja escola, portanto, vem a ser
uma espécie de ensaio ou sistema eclético, que poderia ser chamado de neo-confucionismo, tendo em vista
que a doutrina político-moral de Confúcio, universalmente recebida e praticada pela nação, constitui o pano
de fundo e o enredo principal de sua concepção filosófica.
As principais modificações introduzidas por esta escola na doutrina de Confúcio, combinando-a com
alguns dos elementos metafísicos de Lao-Tze, podem ser condensadas e resumidas nos seguintes termos:

a) O Ser Supremo, chamado de Taï-ki pelos discípulos de Confúcio, é o Ser latente e inominável de
Lao-Tze, é o grande Todo deste filósofo, céu e terra ao mesmo tempo, espírito e matéria, etc., pois embora
“cada um desses seres – diz o fundador do neo-confucionismo, Zhu-Tze – tenha sua própria natureza
individual, no entanto, todos os seres do universo juntos são o Taï-ki”.

b) O Tao ou Razão suprema de Confúcio, é para a nova escola o próprio Taï-ki, considerado enquanto
substratum e razão eficiente de suas evoluções e ações, ou seja, dos seres dos quais procede por emanação
da sua própria e único substância. “Embora existam dois nomes – diz o principal representante desta escola,
Zhu Xi, originalmente não existem duas substâncias”.

c) O Taï-ki ou Substância absoluta – que, como já foi dito, possui em si o Tao ou Razão
suprema e eficiente – manifesta-se no espaço e no tempo sob as duas formas de ying e yang, isto é, como
matéria (ying) e como espírito (yang). Mas não se pense que matéria e espírito têm neste contexto o mesmo
significado que entre os europeus. Para a Filosofia neo-confuciana – e, em geral, para a Filosofia Chinesa

42
Quando questionado sobre sua opinião sobre a morte, costumava responder: “Como vou saber o que é a morte, se ainda não
conheço a vida?” Noutra ocasião, quando os seus ouvintes lhe perguntaram se os antepassados venerados o sabiam, respondeu-lhes
nos seguintes termos: “Não me convém exprimir claramente a minha opinião sobre este ponto. Se eu dissesse que os pais são
sensíveis às homenagens que lhes são prestadas, que veem, ouvem e sabem o que se passa aqui na terra, seria temeroso que seus
descendentes, levados por uma piedade filial muito viva, negligenciassem a própria vive para cuidar da de seus antepassados. Se,
pelo contrário, dissesse que os mortos não sabem o que fazem os vivos, seria de se temer que os deveres de piedade filial fossem
negligenciados, que cada qual se fechasse em um egoísmo estreito e que seriam quebrantados, dessa maneira, os laços mais sagrados
que unem as famílias entre si”.
40
–, o espírito é uma matéria mais sutil do que o corpo grosseiro e visível. Às vezes recebe o nome de matéria
celeste, masculino celeste, em contraposição ao feminino terrestre ou matéria inferior.

d) Da união e combinação destes dois modos ou formas de ser, o yang e o ying, resultam cinco
elementos, que são [1] a madeira, [2] a terra, [3] o metal, [4] a água e [5] o fogo, que engendram e
constituem todos os outros seres do universo, incluindo o homem com suas faculdades físicas, intelectuais
e morais. Assim é que [1] o amor ou a benevolência vem da madeira, [2] a fidelidade vem da terra, [3] a
justiça do metal, [4] a prudência da água e [5] a civilização do fogo.
Esses mesmos elementos são representados no céu por cinco gênios (ch’an-ting), que dirigem a marcha
geral das causas naturais, sem prejuízo de outros espíritos (aeriformes) e gênios inferiores, que presidem
os diversos fenômenos da natureza, como o trovão, a chuva, ventos.

e) No homem, há três coisas, a saber: [I] a inteligência, que é uma derivação ou manifestação do Tao ou
Razão suprema, na qual deve reentrar quando separada do corpo – muito embora o neo-confucionismo não
explique este ponto –; [II] o princípio sutil do elemento material ou corpóreo; e [III] a parte mais grosseira
deste mesmo elemento, isto é, o corpo humano. Quando ocorre a morte, o princípio sutil (höen) retorna ao
céu e torna-se espírito (shén, ou espírito aeriforme, corpo sutil); a parte inferior e mais grosseira do corpo,
chamada phe, retorna à terra e torna-se koueï, ou gênio, que é um grau inferior ao shén (o que se chama
espírito), embora nem um nem o outros sejam verdadeiramente espíritos, mas graus e modos de ser mais
ou menos sutis da matéria.

Como se depreende dessas indicações, o neo-confucionismo ou Filosofia de Zhu Xi reduz-se a um


amálgama informe e às vezes até contraditório da concepção panteísta de Lao-Tze, com as tendências
cético-ateístas e com as idéias materialistas confucianas. Esta Filosofia neo-confucionista de Zhu Xi, é hoje
[antes da Revolução] a Filosofia oficial e nacional da China, e são bem conhecidas as opiniões negativas
dos literatos chineses quanto à existência de um Deus pessoal, vivo e providente, bem como quanto à
imortalidade de a alma

§ 19 Crítica

Se desconsiderarmos a doutrina filosófica de Zhu Xi – que acabamos de expor e que, como já foi dito,
nada mais é do que uma fusão ou amálgama de certas idéias de Lao-Tze e Confúcio –, se abstrairmos desse
sistema sincrético para voltar aos elementos que constituem seu conteúdo substancial, se olharmos,
finalmente, para a doutrina dos já citados Lao-Tze e Confúcio – doutrina que representa, por assim dizer, a
Filosofia primitiva, nacional, característica dos chineses –, vemos claramente que essa Filosofia,
considerada a ética, que é o seu aspecto mais importante, é resolvido, de fato, em um conjunto de máximas
morais, algumas boas, outras medíocres e outras ainda execráveis.
Porque, de fato, as máximas morais ensinadas por Confúcio carecem de base metafísica e, portanto, não
constituem e não têm como constituir um todo sistemático, um organismo científico. Daí o desacordo e
mesmo as contradições que se verificam nas referidas máximas; pois enquanto algumas parecem entranhar
certas idéias espiritualistas e um certo assentimento ao teísmo transcendente, outras implicam tendências
ateístas e materialistas. Daqui também as grandes aberrações e as muitas falhas que se encontram na moral
confuciana, tais como, além das que deixamos assinaladas ao expor sua Filosofia, as práticas e evocações
supersticiosas; porque Confúcio ensina, por exemplo, a forma de investigar e conhecer a opinião dos
espíritos ou gênios e obter sua por meio da inspeção de uma tartaruga queimada (Zhou) e das figuras que
resultam da combinação das folhas e filamentos da mil-folhas (I-Ching).
Estas não são as únicas falhas da moral de Confúcio, tão decantadas e analisadas pelos deístas e
incrédulos do século XIX. Esta moral, longe de reabilitar a mulher, nem de a constituir na sua própria
dignidade, deixa-a submersa num estado de servidão perpétua; pois ela não está apenas inteiramente sujeita
ao pai e ao marido, mas também ao filho quando o marido está ausente. A isto se soma a poligamia, admitida

41
na moral confuciana, e o repúdio, permitido por muitos motivos fáceis, bastando, entre outros, a suspeita
de infidelidade conjugal, ou o furto de algo da casa por qualquer motivo.
Na ordem especulativa, a filosofia primitiva dos chineses se resolve, como se viu, numa espécie de
panteísmo emanacionista, com acentuadas tendências ao materialismo na psicologia.
Do que foi dito, pode-se deduzir que as relações e analogias que alguns historiadores da Filosofia
quiseram ver entre o sistema filosófico da China antiga e alguns sistemas filosóficos da Grécia antiga
carecem de um fundamento sólido. O historiador Gladisch, sobretudo, fez questão de levar tão longe as
relações sino-gregas no campo da Filosofia que não tem medo de afirmar e tenta mesmo demonstrar que a
doutrina dos pitagóricos é uma reprodução completa e exata da doutrina filosófica do chinês. A verdade,
porém, é que há poucos pontos de contato entre uma doutrina e outra, que as analogias entre as duas são
externas e superficiais, e que a concepção chinesa e a concepção pitagórica estão separadas por pontos
muito importantes, por ideias e afirmações da maior importância. Em vão buscaremos na doutrina chinesa
a idéia e a afirmação de que os números constituem a própria substância das coisas, seus elementos
essenciais e internos; e, no entanto, veremos mais adiante que esta informação constitui a tese fundamental,
a ideia mãe da doutrina pitagórica. Os antigos Filósofos da China consideram o número ímpar como perfeito
ou celestial, e o número par como imperfeito e terrestre, e se ocupam da natureza e das proporções
aritméticas de certos números; mas pode-se dizer que aqui termina a analogia ou semelhança entre sua
doutrina e a dos pitagóricos. Em vão se buscará naqueles Filósofos seja a tese fundamental do sistema
pitagórico seja sua teoria astronômica, muito superior à dos chineses, nem sua moral relativamente
sistemática e racional, nem sua doutrina das categorias. Mesmo no terreno político-social e doméstico, a
concepção pitagórica e suas ideias e práticas de associação estão longe da organização estreita e da
regularidade mecânica que regem a vida doméstica e política entre os chineses. Por outro lado, os
pitagóricos nunca ensinaram ou professaram a identificação da Divindade com o céu material, e sabe-se
que esta identificação constitui uma concepção fundamental, uma das bases da doutrina chinesa.
Parece desnecessário sublinhar que a Filosofia dos chineses participou e participa da imobilidade
inerente a seus costumes, suas leis, suas instituições e suas artes, e que, a partir de Zhu Xi, ou melhor, de
Lao-Tze e Confúcio, permaneceu e permanece em completo estado de petrificação.

§ 20 A Filosofia na Pérsia

Quando falamos de Filosofia na Pérsia, não nos referimos apenas à persa, mas também
à sogdiana43, margiana44, susiana45, com várias outras províncias ocupadas pelos iranianos,

Frâda, Rei da Margiana


e sobretudo à Báctria46, pátria de Zoroastro e foco primitivo do
mazdeísmo (ciência universal), isto é, da religião que ele
iniciou, ou pelo menos difundiu e afirmou.
A julgar por algumas indicações históricas e afinidades
védico-doutrinárias, o mazdeísmo e o bramanismo tiveram
contato nas planícies da Báctria, e o primeiro representaria uma
espécie de reforma religiosa e uma progressiva regeneração do
segundo.

43
Soguediana ou Sogdiana foi uma civilização que floresceu no vale do Zarafexã, no atual Usbequistão.
44
Margiana (Μαργιανή ou Marguš) é uma região histórica centrada no oásis de Merv e foi uma satrapia menor dentro da satrapia
aquemênida da Báctria, localizada no vale do rio Murghab, que tem suas nascentes nas montanhas do atual Afeganistão. Margiana
fazia fronteira com a Pártia a sudoeste, Aria ao sul, Báctria a leste e Sogdia ao norte.
45
Susiana ou Elão (Elam, ‫ )اﯾﻼم‬foi uma civilização localizada no território que corresponde ao atual sudoeste do Irã, estendendo-
se desde as terras baixas do Cuzestão à atual província de Ilam, bem como uma pequena parte do sul do Iraque. Sua capital, Susa,
é mencionada no Livro de Ester.
46
Báctria ou Bactriana(grego: Βακτριανή; latim: Bactria; persa: Bākhtar) fazia parte da região persa do Coração e hoje integra
o Afeganistão, Tajiquistão, Uzbequistão, Paquistão e China. Foi lar dos povos indo-iranianos que se deslocaram para o Irã e para a
Índia por volta de 2500–2000 a.C. Posteriormente, tornou-se província norte do Império Aquemênida. Nesta região nasceu
Zoroastro. A língua avéstica, na qual foram escritos os trechos mais antigos do Avestá zoroastriano, foi uma das velhas línguas
iranianas, e tida como a mais velha das línguas iranianas do leste.
42
A oposição de princípios e tendências
observada entre o mazdeísmo e o bramanismo
confirma e explica a violenta ruptura entre essas
duas concepções. Em oposição ao panteísmo
ensinado nos Vedas, os Naçkas ou livros
sagrados do mazdeísmo proclamam o dualismo.
Enquanto Brahma é a essência única e, portanto,
o princípio do bem e do mal; para o mazdeísmo,
Deus – o Ormuzd dos escritores gregos e latinos
– é o princípio do bem, mas não do mal, que é
apenas um acidente, uma coisa completamente
estranha com relação a Ahoura-mazda ou
Ormuzd, que é o verdadeiro Deus da teologia Diz Santo Epifânio que “os quatro Anjos situados no
mazdeísta. Em oposição ao panteísmo Eufrates de que fala São João no capítulo nono do
emanacionista da Índia, Ormuzd aparece no Apocalipse são tantos quanto as nações situadas nas
mazdeísmo, como o primeiro criador de todas as margens deste rio, a saber, os assírios, os babilônios, os
outras coisas, que, assim como tiveram todas um medos e os persas”. Daniel lista, nesta ordem, esses quatro
impérios. Os assírios reinaram primeiro, seguidos pelos
começo, terão todas um fim, inclusive o próprio
babilônios; os medos vieram depois e, finalmente, os
Ahriman, apesar de não proceder ou receber o
persas, dos quais Ciro foi o primeiro rei. Ora, segundo o
ser de Ormuzd, como os demais. testemunho de Moisés citado acima, as nações estão
Parece desnecessário salientar que isso se sujeitas aos Anjos. É com razão, então, que a “voz dos
refere ao mazdaísmo, considerado em sua pureza quatro chifres do grande altar, que está diante dos olhos de
primitiva e antes de ser adulterado, como o foi Deus, diz ao sexto Anjo, que tinha a trombeta: ‘Solte os
em tempos posteriores, com a concepção quatro Anjos, que estão presos no grande rio Eufrates’ (Ap
panteísta de Zervân-Akéréné (o tempo eterno) 9,13-14). Eles foram retidos lá para que estas nações lutem
como princípio e substrato comum de Ormuzd e entre si até o momento em que Deus quiser usá-los para
de Ahriman. Nos fragmentos autênticos e vingar as injustiças feitas aos Seus santos”. (SOYER, E.
Saint Michel e les Saints Anges considerés dans leurs
antigos do Zend-Avesta não há vestígios dessa
relations avec le monde visible. Imprimatur: + Jean-Pierre
concepção verdadeiramente monstruosa, e está
Bravard)
em óbvia contradição com o papel de criador que
ali é atribuído ao mencionado Ahoura-mazda.
Assim é que a ciência moderna suspeita, com
razão, que o Zervân-Akéréné ou tempo
ilimitado, como um ser anterior e superior a
Ormuzd e Ahriman, é uma concepção estranha
ao primitivo mazdeísmo iraniano. Spiegel,
Lenormant, Oppert, juntamente com outros
historiadores e orientalistas, também acreditam
que esta ideia é uma infiltração do panteísmo
materialista caldeu e como uma verdadeira
infiltração na concepção religiosa mazdeísta.

43
§ 21 Filosofia ou Doutrina Mazdeísta

O mazdeísmo ou reforma religiosa de que acabamos de falar deve sua origem – ou, pelo menos, seu
nome e consolidação – ao Zoroastro dos gregos, que é o Zaratustra dos persas e dos naçkas. Quase todos
os historiadores concordam que esse famoso legislador religioso nasceu e viveu na Báctria; mas o mesmo
não acontece quando se trata de fixar seu caráter social e a época de seu nascimento; pois enquanto alguns
supõem que ele não teve nenhuma representação política, considerando-o um simples reformador religioso,
outros acrescentam a essa característica a de chefe e até rei da Báctria, tornando-o uma espécie de Moisés
da raça iraniana. Não falta quem diga que ele morreu de morte violenta numa invasão das tribos tourânicas,
inimigas do mazdeísmo. Não é menor a discordância de opiniões acerca da época em que floresceu. Muito
remota é a antiguidade que lhe atribui São Justino, que fala de suas guerras com Nino. Eusébio de Cesárea
e Santo Agostinho supõem que ele seja contemporâneo de Abraão. De acordo com Aristóteles, Hermipo,
Plutarco e alguns outros, ela floresceu cinco mil anos antes da Guerra de Tróia. A opinião mais provável, e
a seguida por Burnouf, Spiegel, Oppert e outros críticos modernos dos mais credenciados, é que Zoroastro
viveu dois mil e quinhentos anos antes de Jesus Cristo, com pequena margem de erro47.
Já foi indicado que o ponto culminante e capital
da doutrina de Zoroastro é a negação do panteísmo
brâmane. O Ormuzd do legislador bactriano tem
muita analogia com o IHWH dos hebreus, a julgar
por várias passagens dos Naçkas ou livros
canônicos do mazdeísmo que conhecemos, nos
quais Ahoura-Mazda (o Ormuzd dos gregos e
latinos) é chamado luminoso, resplandecente,
eminente em grandeza e bondade, perfeitíssimo,
mui poderoso e mui inteligente, e acima de tudo é
chamado o espírito santíssimo, criador dos mundos
existentes. Assim é que a doutrina zoroastriana sobre a origem das coisas é a que mais se aproxima da
criação do Gênesis mosaico.
Outra das analogias – e, poderíamos dizer, reminiscências que o mazdeísmo apresenta a respeito da
revelação primitiva registrada no Pentateuco Mosaico – é a afirmação da queda original do homem. No
Boundehesch (um dos livros canônico-religiosos ou fragmentos do mazdaísmo), depois de narrar a tentação
e a queda do primeiro homem e da primeira mulher, em termos bastante semelhantes basicamente à narração
de Moisés, é dito: “Dev (o gênio ou espírito maligno) que fala a mentira, tornado mais ousado, apareceu
uma segunda vez, e trouxe-lhes frutas que comeram, e para isso, de uma centena de vantagens que tinham
antes, só lhes restou uma”.
Num cântico ou hino, considerado pelos orientalistas como um dos fragmentos mais autênticos de
Zoroastro, as principais ideias deste último são sintetizadas nos seguintes termos:
“Há ou existem dois gênios, o bom e mau, os quais são igualmente livres e reinam sobre o pensamento,
a palavra e a ação. É preciso escolher entre os dois: escolha, então, o Gênio Bom. Por meio e por causa
de sua oposição, esses dois gênios produzem todas as ações humanas: ser e não ser, o primeiro e o
último, são os efeitos que correspondem a esses dois gênios ou Deuses.”
“Os homens mentirosos serão miseráveis; os verazes serão salvos. Faz a tua escolha: seguindo o Gênio
mentiroso e mau, preparas para ti um destino infeliz: os que seguem o partido e a direção de Ahura-
Mazda, o Deus santo e verdadeiro, devem honrá-lo através da verdade e das ações santas...”
“Ó Mazda, quando é desgraçada a virtude na terra, sois vós que vindes em seu auxílio; vós dais ao
piedoso o governo da terra e punis por suas palavras o homem cuja promessa é mentirosa. Procuremos
merecer essa vida feliz por meio de esforços contínuos. Pratiqueis as máximas que saem da própria boca
de Mazda (o Deus bom, criador e onisciente), máximas mortais para os mentirosos, mas favoráveis ao
homem sincero: nessas máximas deves buscar tua salvação.”

47
[N.T.] Meio milênio antes de Abraão, portanto.
44
O mazdeísmo fazia consistir a moral na pureza de pensamento, palavra e ação; admitia a existência de
penalidades e recompensas na vida após a morte e rejeitava a idolatria e o antropomorfismo. Assim, de
acordo com o testemunho de Heródoto, seus seguidores não tinham templos, nem altares, nem estátuas dos
deuses. O culto que prestavam ao fogo era apenas um culto simbólico, dirigido a Ormuzd como o deus do
bem e da luz, ou seja, como o verdadeiro e único deus. Único, pois é bem sabido que Ahriman não possui
todos os atributos da divindade propriamente dita, uma vez que lhe falta a eternidade.
Tudo isso, no entanto, deve ser entendido a partir do
zoroastrismo propriamente dito ou do mazdeísmo primitivo, Questões Hebraicas
como já indicamos; porque, com o passar do tempo, e depois de São Jerônimo
das guerras entre os medos e os persas e, sobretudo, graças
“Aran morreu enquanto seu pai estava vivo
ao contato com as tribos assírio-caldeias, o mazdeísmo na terra onde ele nasceu, na região dos
sofreu grandes mudanças na parte filosófica ou caldeus” (Gn 11, 27). Ao invés do que lemos
especulativa, e mais ainda na parte prática, através do “na região dos caldeus”, em hebraico aparece
recurso à magia e do culto às divindades assírias e caldeias. em “Ur Chesdim”, ou seja, no fogo dos
A dificuldade de entender e explicar a origem e a caldeus. Aproveitando a oportunidade
existência do mal foi o que levou Zoroastro a abandonar oferecida pelo versículo, os hebreus
suas tendências e, por assim dizer, suas sugestões transmitem, ao modo de fábula, que Abraão foi
monoteístas, que aparecem claramente em seus livros e em lançado ao fogo, porque não quis adorar o fogo
suas concepções, para abraçar o dualismo, erro fundamental que os caldeus veneram e, liberto pela ajuda de
Deus, escapou do fogo da idolatria. (…)
de sua doutrina. Ao lado de Ormuzd (princípio do bem),
Assim, é verdadeira aquela tradição hebraica
aparece independente e frente ao deus bom, Ahriman
que apontamos antes, segundo a qual Taré saiu
(princípio e causa do mal). A luta entre esses dois seres com seus filhos do fogo dos caldeus e que
representa e causa as vicissitudes dos seres e o movimento Abraão, cercado pelo fogo da Babilônia –
da História, até que no final dos tempos o deus do mal é porque não queria adorá-lo – foi libertado com
derrotado e anulado pelo deus do bem e eterno. a ajuda de Deus. (Traduzido de: SAN
Mesmo assim, e tomada em seu conjunto, a concepção JERÓNIMO. Obras Completas. t. IV BAC:
de Zaratustra pode muito bem ser considerada como uma Madrid, 2004. p. 32-35)
das mais nobres e perfeitas que a razão humana produziu,
abandonada à própria força, ou, pelo menos, sem o auxílio da Revelação divina conservada em toda a sua
pureza. Isto, porque no mazdaísmo se descobrem traços evidentes, embora obscuros, dessa mesma
Revelação divina. As seguintes palavras de Lenormant contêm, em nossa opinião e em resumo, a crítica
geral mais exata do zoroastrismo ou mazdeísmo primitivo:
“A doutrina de Zoroastro é, sem contradição, o esforço mais poderoso do espírito humano em direção
ao espiritualismo e à verdade metafísica, sobre o qual se tentou fundar uma religião, desconsiderando
toda Revelação e apenas pelas forças da razão natural: é a doutrina mais pura, nobre e próxima da
verdade entre todas as da Ásia e de todo o mundo antigo, com exceção da dos hebreus, baseada na
palavra divina. É a reação dos mais nobres instintos da raça jafética, raça espiritualista e filosófica por
excelência entre os descendentes de Noé, contra o panteísmo e o politeísmo naturalistas, sua
consequência inevitável, que gradualmente penetraram nas crenças dos ários, adulterando as
reminiscências da primitiva Revelação. Em sua indignação contra o politeísmo e a idolatria, Zoroastro
transmite por um procedimento semelhante ao dos Profetas de Israel e dos Padres da Igreja, os nomes
dos personagens divinos da religião védica aos espíritos malignos. Os deuses desta religião, Devas,
tornam-se demônios; dois dos mais importantes, Indra e Shiva, são transformados em ministros do
princípio do mal. Zoroastro em sua doutrina religiosa tende ao monoteísmo puro; levanta-se com grande
vôo em direção a este dogma da verdade eterna; mas apelando apenas para as forças da sua razão,
privado da ajuda sobrenatural da Revelação, Zoroastro tropeça no formidável problema da origem do
mal: esta é a pedra de tropeço que impede seu vôo; incapaz de salvá-lo, ele cai na concepção funesta do
dualismo.”

A doutrina mazdeísta, de fato, considerada na sua pureza primitiva e anterior à sua fusão com o magismo
e com as teorias e práticas assírias e caldeus, corresponde à elevação e profundidade das ideias e, sobretudo,
45
à tendência espiritualista que caracteriza e distingue a raça ária. No fundo da concepção zoroastra dominam
e superam, por assim dizer, a consciência moral e a razão, a ideia do verdadeiro e do bem, a tendência ético-
espiritualista e a especulação metafísica. É provável que essa elevação e pureza da doutrina mazdeísta se
devam em parte à Revelação primitiva, quer dizer, a uma reação e restauração dela. Mas nem por isso se
deve rejeitar ou negar a parte legítima da influência que corresponde à força nativa do gênio dos ários.
Ademais, a obra de Zaratustra, como todas as obras humanas, padece de graves defeitos, principalmente
do ponto de vista religioso. Além de sua monstruosa concepção dos dois princípios, isto é, do princípio
divino do mal, Zoroastro ou não sabia ou não ousava romper com o politeísmo naturalista de seus
concidadãos, contentando-se em modificar e moderar sua cultura popular, suas práticas e superstições.
Assim é que, com o passar do tempo, a religião de Zoroastro, relativamente pura e elevada em sua origem,
degenerou facilmente até se reduzir ao culto do fogo e às ridículas e supersticiosas fórmulas de magia.

§ 22 A Filosofia no Egito

Na realidade, nem no Egito, nem na Báctria, Pérsia e outras regiões dominadas pelo mazdeísmo, havia
Filosofia no sentido próprio da palavra. A Filosofia lá não era conhecida como uma ciência ou investigação
racional e sistemática das coisas e suas causas, nem havia uma variedade de escolas, nem as diferentes
partes da Filosofia especulativa eram conhecidas ou cultivadas separadamente. Nas províncias do Irã, como
no Egito, pode-se dizer que não há Filosofia senão a Filosofia religiosa, as concepções que servem de base
à religião e ao culto, e as consequências ou aplicações que delas derivam.
Daí a extrema dificuldade de separar a ideia filosófica da ideia religiosa, dificuldade que adquire maiores
proporções quando esta ideia assume duas formas muito diferentes e até contraditórias, como acontece
precisamente no Egito, onde a ideia religiosa apresenta a forma popular e rude ao lado da forma esotérica
e hierática.
Porque, com efeito, a julgar pelo testemunho de Heródoto e Diodoro com vários outros autores, inclusive
alguns escritores eclesiásticos; a julgar por algumas inscrições interpretadas por Champollion e outros
egiptólogos, e a julgar, sobretudo, por algumas passagens dos livros herméticos, a concepção religiosa
primitiva e real do país dos faraós comporta um teísmo espiritualista, embora um tanto distorcido por
desvios panteístas.
“Para o pensamento é difícil – lê-se nestes livros – conceber a Deus, e para a língua, falar dele. Uma
coisa imaterial não pode ser descrita com meios materiais, e o que é eterno dificilmente pode se aliar ao
que está sujeito ao tempo... O que não pode ser conhecido pelos olhos e pelos sentidos, como os corpos
visíveis, pode ser expresso através da linguagem; o que é incorpóreo, invisível, imaterial, sem forma,
não pode ser conhecido pelos nossos sentidos. Entendo, então, ó Thoth!, entendo que Deus é inefável...
Ele não é limitado ou finito; não tem cor nem figura; é a bondade eterna e imutável, o princípio do
Universo, razão, natureza, ato, necessidade, número, renovação: é mais forte que toda força, mais
excelente que toda excelência, superior a todo louvor, e somente ela deve ser adorada com adoração
silenciosa. Está oculto, porque para existir não precisa aparecer. O tempo se manifesta, mas a eternidade
está escondida. Considere a ordem do universo; deve ter um autor, um único autor, porque no meio de
inúmeros corpos e movimentos variados, há uma só ordem. Se houvesse muitos criadores, o mais fraco
teria inveja do mais forte e a discórdia teria trazido o caos. Existe apenas um mundo, um sol, uma lua,
um Deus. Esta é a vida de cada um, sua origem, seu poder, sua luz, sua inteligência, seu espírito e sua
respiração. Tudo existe nele, através dele, sob ele, e fora dele não há nada, nem deus, nem anjo, nem
demônio, nem substância; pois um só é Tudo, e Tudo é apenas um.”

Em harmonia com essas passagens dos livros herméticos ou sagrados dos egípcios, eles supunham ou
afirmavam que o Deus supremo, isto é, Amon-Rá, é anterior e superior a todas as coisas, e que essas e todas
as existências são emanações dele:
“Permanece imutável em sua unidade – diz o famoso livro De mysteriis Aegyptiorum, atribuído ao
neoplatônico Jâmblico – ele é o primeiro, o maior e a fonte de todas as coisas (major, et primus, et fons
46
omnium). Ele é o pai do primeiro Deus e o Deus dos deuses (pater est primi Dei... Deus deorum), o
mesmo que em sua unidade primitiva e solitária é anterior e superior a todos os seres, é o princípio e o
pai de toda essência, de toda existência, de toda inteligência; e, finalmente, é o primeiro inteligível, cujo
culto próprio é apenas o silêncio: Intelligibile primum quod solo silentio colitur”.

Embora seja bem possível que Jâmblico, ou quem quer que seja o autor do tratado De mysteriis
Aegyptiorum, possa ter distorcido a concepção teológica do Egito um pouco sob a influência de suas
próprias idéias neoplatônicas, não se pode duvidar do pano de fundo monoteísta dessa concepção. Esta
concepção unitária da divindade, seguramente um resto e reminiscência da Revelação primitiva, conservou-
se na classe sacerdotal mais ou menos pura durante vários séculos, sendo também muito provável que este
ensinamento constituísse o pano de fundo principal dos mistérios egípcios e da sabedoria de seus sacerdotes,
tão elogiado e utilizado pelos filósofos gregos, e principalmente por Pitágoras e Platão. No entanto, o
costume de expressar por meio de certos símbolos as ações, propriedades e diferentes atributos da divindade
e, por outro lado, as necessidades e exigências ou condições do culto público, foram a causa da introdução
e adoção de muitos e mui diversos símbolos, mais ou menos adequados, para representar e distinguir os
atributos, propriedades e efeitos atribuídos à Divindade. Sob a influência da imaginação grosseira do vulgo,
graças também à ignorância das classes populares e suas tendências antropomórficas, esses símbolos não
tardaram a se tornar divindades e objeto de cultos idolátricos de todos os tipos. Daí essa multidão de deuses,
essa extravagância de cultos e adorações, que fizeram do Egito o país clássico da superstição; esse acúmulo
monstruoso de divindades e práticas antropomórficas e fetichistas.
Assim vemos que a mitologia egípcia, que começa com a tríade primordial Amon
(o ser supremo, o fundo divino), Nesth (natureza) e Kneph ou Knouphis
(inteligência), desce por um processo sem fim e de múltiplas tríades até animais,
plantas e os elementos mais inanimados. O carneiro, símbolo hierático de Amon,
tornou-se mais tarde um ídolo ou encarnação divino-idólatra do mesmo [a título de
ilustração, a seqüência de imagens ao lado mostra o hieróglifo, depois
as esfinges em Kemet e, por fim, um busto de Zeus-Amon do
período alexandrino]; o touro, símbolo de Osíris, tornou-
se uma divindade para o povo, que também adorava e
prestava culto divino ao chacal e ao cão, símbolos de
Anúbis; ao gato, símbolo da lua; ao crocodilo,
símbolo do tempo; ao íbis, símbolo de Hermes; ao
besouro, símbolo do princípio ativo na geração; à
serpente, símbolo de Kneph; à palmeira, símbolo do
ano; à cebola, símbolo do universo, por suas películas
concêntricas e esféricas. Essa estranha divindade, que tinha
um templo em Pelusa, é quem motivou a conhecida e célebre
apóstrofe do poeta latino. O sol, a lua, o zodíaco, o Nilo, juntamente com vários
outros corpos, também foram objeto do culto idolátrico do povo egípcio.
É muito possível e bastante provável, porém, que esses diferentes símbolos, que a
ignorância e a superstição popular transformaram em divindades e em culto idolátrico,
continham originalmente certas verdades doutrinárias que a Filosofia grega mais tarde apresentou como
fruto de suas próprias especulações, tendo-os recebido das tradições hieráticas e herméticas do Egito.
Descobriremos vestígios evidentes e múltiplos disso em Tales, Pitágoras, Platão e muitos outros
representantes da filosofia helênica. Até o éter ou fogo divino e animado dos estóicos parece partir do Egito,
a julgar pelo que nos diz ou indica Heródoto a esse respeito.

47
§ 23 A Filosofia ética ou moral no Egito

Se alguma parte da antiga doutrina egípcia merece o nome de filosófica, é sua parte ética. Sem constituir
um todo sistemático ou uma ciência racional, a moral egípcia é uma das mais puras e completas que o
paganismo apresenta, podendo-se dizer que nela, como na concepção unitária da divindade, não é possível
ignorar certos vestígios da Revelação adâmica ou paradisíaca.
Pelo conteúdo do Ritual Fúnebre [ou Livro dos Mortos], um dos livros sagrados do Egito, e do qual
foram encontrados vários exemplares ao lado das múmias, sabemos com certeza que a moral egípcia proibia
blasfemar, enganar outro homem, roubar, matar traiçoeiramente, provocar tumultos ou turbulências, tratar
alguém com crueldade, mesmo que fosse seu próprio escravo. Embriaguez, preguiça, curiosidade
indiscreta, inveja, maltratar os outros com atos ou palavras, falar mal ou fofocar sobre os outros; acusar
falsamente, fazer aborto, falar mal do rei ou dos pais também eram proibidos. A proibição destas coisas
como más, foi acompanhada de vários preceitos sobre o bom trabalho, entre os quais se destacam os de
fazer as devidas oferendas a Deus, alimentar os famintos, vestir os nus e alguns outros semelhantes.
Como base e sanção dessas prescrições morais, os egípcios admitiam a imortalidade da alma e o
julgamento divino após a morte, com as recompensas ou penalidades correspondentes às ações praticadas
em vida. Segundo Heródoto, os egípcios foram os primeiros a professar o dogma da imortalidade da alma,
pois afirmavam que quando o corpo se decompõe ou morre, a alma passa sucessivamente a outros corpos
através de nascimentos ou encarnações, viajando e animando os corpos de quase todos os animais da terra,
do ar e do mar, até entrarem novamente em um corpo humano em um determinado tempo ou momento.
Essa evolução ou transmigração da alma ocorre no espaço de três mil anos, doutrina que, como é sabido e
o próprio Heródoto aponta, foi adotada e até apresentada como original e própria por alguns filósofos
gregos.
É verdade que nesta doutrina, bem como naquela que se refere ao teísmo unitário, se detectam desvios
panteístas, e que ela também é adulterada ou desfigurada pela hipótese da metempsicose, hipótese que por
sua vez pode ser considerada como uma reminiscência adulterada do dogma da ressurreição final dos
corpos.
Aqui está o resumo de toda esta doutrina apresentada pelo citado Lenormant, resumo que acreditamos
ser o mais fiel à verdade e às conclusões da crítica histórico-egípcia:
“A crença na imortalidade nunca se separou da ideia de uma futura remuneração das ações humanas,
algo que se observa particularmente no antigo Egito. Embora todos os corpos tenham descido ao mundo
infernal, o Neter-khertet, como o chamavam, nem todos tinham certeza de alcançar a ressurreição. Para
consegui-la, era preciso não ter cometido nenhuma falta grave, nem na ação nem no pensamento, como
se depreende da cena da psicostasia, ou ação de pesagem da alma [vide o Papiro de Hunefer (c. 1275
a.C.) abaixo], cena representada no Ritual Fúnebre e em muitos túmulos de múmias. O falecido seria
julgado por Osíris, acompanhado por seus quarenta e dois conselheiros: seu coração foi colocado em
uma das balanças seguradas em sua mão por Hórus e Anúbis; no outro é vista a imagem da justiça; o
deus Thoth anotou o resultado. O destino irrevogável da alma dependia desse julgamento, que ocorreu
no “salão da dupla justiça”. Se o defunto fosse encontrado com faltas irremissíveis, era presa de um

48
monstro infernal com cabeça de hipopótamo, era decapitado por Hórus ou por Smow, uma das formas
de Set, no cadafalso infernal. A aniquilação do ser era considerada pelos egípcios como o castigo
reservado aos ímpios. Quanto ao justo, purificado de seus pecados veniais por um fogo guardado por
quatro gênios com cara de macaco, entrava no pleroma ou bem-aventurança, e, agora companheiro de
Osíris, ser bom por excelência, era por ele alimentado e recriado com deliciosos manjares”.
“No entanto, o próprio justo, visto que, como homem, tinha sido necessariamente um pecador, não
chega à posse da bem-aventurança final, a não ser por meio de várias provações: falecido, descendo e
entrando no Neter-khertet, é forçado a cruzar quinze portões guardados por gênios armados com
espadas; não lhe é permitido passar antes de ter provado suas boas ações e seu conhecimento das coisas
divinas, isto é, sua iniciação. Ele, ainda, é submetido a um trabalho duro antes de chegar ao julgamento
final; tem que cultivar os vastos campos da região infernal, considerada uma espécie de Egito
subterrâneo, cortado por rios e canais. É obrigado a travar terríveis combates contra monstros e animais
fantásticos, dos quais só triunfa munindo-se de fórmulas sacramentais e de certos exorcismos que
“Do Egito chamei Meu Filho”

São João Crisóstomo crê que, com sua ida para o Egito, “o Senhor anunciava a toda a terra uma espécie de prelúdio
de bons esperanças. Como na Babilônia e no Egito ardia o incêndio da impiedade, mais que em outras partes, ao
mostrar o Senhor, desde o princípio, que os haverá de corrigir e melhorar, persuade a terra inteira a ter boa esperança.
Por isso manda os Magos para as terras da Babilônia e Ele mesmo, com sua Mãe, vai para o Egito” (SÃO JOÃO
CRISÓSTOMO, Obras, n.2, p.149).
Considero o Egito como a mais gloriosa das nações antigas. Dele os gregos tiraram grande parte de sua cultura, e
os romanos, por sua vez, foram colher na Grécia muito de sua civilização. De outro lado, a moral do povo egípcio
era superior em vários pontos à de outros povos da antiguidade. Por exemplo, ao contrário de outros povos
contemporâneos seus, recomendava ele a benignidade, o respeito do filho ao pai, da mulher ao marido e vice-versa,
do inferior para o superior etc.
No entanto, como no restante do mundo antigo, reinava na sociedade egípcia uma desigualdade desproporcionada
entre os homens. Assim, o faraó e as duas primeiras classes sociais – a sacerdotal e a guerreira – possuíam a
totalidade do território nacional, na razão de um terço para cada. Já os elementos da classe popular, embora
considerados livres (isto é, podiam mudar de emprego, de casa, etc.), não tinham qualquer possibilidade de manter
uma propriedade. Além disso, eram muito mal remunerados e viviam miseravelmente. (...) Abaixo desta última,
havia ainda um quarto grupo, que não era considerado classe social: o dos escravos. Viviam em situação pior que a
dos animais. Não usufruíam de direito algum, podiam ser maltratados à vontade pelo se- nhor, separados da família,
e votados a trabalhos penosos. (CORRÊA DE OLIVEIRA, P. Revista. n. 38 p. 16-17)
O Egito sempre se distinguiu como uma nação muito carismática, capaz de atrair e quase hipnotizar aqueles que a
analisam detidamente, quer ao contemplar suas qualidades naturais e paisagens, quer ao se deparar com os arcanos
de seu passado.
Não por acaso Deus quis que Abraão morasse durante algum tempo no Egito (cf. Gn 12, 10-20) e que José, o filho
predileto de Jacó, para lá fosse levado pelos ismaelitas e vendido como escravo a um alto funcionário real (cf. Gn
37, 1-36). O próprio Jacó se dirigiu àquelas terras com os seus a convite de José, que se tornara ministro
plenipotenciário do faraó (cf. Gn 46, 1-30). Ao longo dos quatrocentos e trinta anos de permanência no país (cf. Ex
12, 40), sua família cresceu a ponto de transformar-se numa grande nação, em condições de receber das mãos de
Moisés as Leis Divinas pelas quais deveria se reger. (…)
A nação egípcia era, pois, a mais chamada depois da nação judaica. A esse povo competia a missão de ser para a
Sagrada Família, exilada em seu território, o que a Betânia dos irmãos Lázaro, Marta e Maria seria para o Mestre
em sua vida pública, ou seja, um lugar de refúgio e descanso. E sua capacidade de atração e acolhida carismática
explica-se em função de tal desígnio divino. (CLÁ DIAS, J. S. Maria Santíssima: o Paraíso de Deus revelado aos
homens. vol. II. p.341-342)
Cada nação da Antiguidade possuía uma vocação específica com vistas a reparar o plano primeiro de Deus rompido
com o pecado original. Se os gregos reluziam por um chamado peculiar para a filosofia, os romanos para o direito,
e os hebreus eram o povo depositário da Revelação, aos egípcios, por particular dileção divina, coube receber a
herança de determinados conhecimentos científicos do Paraíso, transmitidos por Adão e Eva a seus descendentes.
Testemunha a favor dessa hipótese de Dr. Plinio o fato de ser “um povo que nunca é considerado em estado de pré-
história. Não se descobriu um estado intermediário entre o homem da caverna e o Egito organizado”. Eles, portanto,
deveriam “guardar tudo quanto sabiam de sapiencial sobre a ordem do universo, vindo do tempo do Paraíso, e partir
disso para construírem uma ordem temporal perfeita”.
Não é preciso ressaltar o quanto as fantásticas realizações dos egípcios, até hoje enigmáticas para a ciência em
seus pormenores, ganham sentido com essas afirmações. Por sua vez, a inegável atração exercida pelos mistérios do
Egito provinha do encanto natural desse povo, mais tarde, infelizmente, muitíssimo aproveitado pelo demônio para
conduzir certo filão de almas para o ocultismo. (CLÁ DIAS, J. S. São José: Quem o conhece? p. 285-286)

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preenchem onze capítulos do referido Livro dos Mortos. Por sua vez, os ímpios, antes de serem
aniquilados, eram condenados a sofrer mil tipos de tormentos, e voltavam à terra na forma de espíritos
malignos, para perturbar e destruir os homens: eles também entravam no corpo de animais impuros”.

A relativa pureza e perfeição da moral entre os egípcios não fora forte o suficiente para impedir a
introdução, se não de castas propriamente ditas, como as da Índia, mas de classes tão privilegiadas que se
igualavam ou se assemelhavam a castas. Sabemos, pelo testemunho de Heródoto, Diodoro e outros
historiadores antigos, confirmados por descobertas modernas, que a influência política e social, os
empregos, o governo e até a propriedade são monopolizados pelas classes sacerdotal e militar. Os pastores,
artesãos e lavradores, que compunham o povoado, e, digamos, o terceiro Estado, dificilmente tinham
participação em funções públicas, nem na titularidade de terras ou imóveis, sendo sua condição bastante
semelhante àquela dos vaixás e sudras da Índia.
O grande princípio da igualdade dos homens, assim como o grande princípio da dignidade individual e
da independência, eram desconhecidos das sociedades pagãs, ainda que algumas delas vislumbrassem algo
dessas grandes verdades. Movendo-se fora da órbita da Revelação divina, eles ignoraram o que ela ensina
sobre a unidade da origem e destino final da espécie humana. É por isso que vemos que em todas as
sociedades antigas ou pagãs, seja qual for o seu grau de civilização, ou domina a instituição anti-humana e
anti-social das castas, ou domina a concepção político-socialista, ou seja, a absorção do indivíduo e até da
família pelo Estado. O duplo princípio da dignidade e independência pessoal e da igualdade dos homens,
princípio que constitui o fundamento da civilização cristã, e que é uma das razões suficientes para a sua
fecundidade indefinida e a sua poderosa força de expansão, só encontrou aceitação na antiguidade no povo
depositário da revelação divina, no povo de Abraão, de Moisés e dos Profetas.

§ 24 A Filosofia entre os Hebreus

Filosofia racional e científica, Filosofia propriamente dita ou sistematizada, não existia entre os hebreus,
nem entre os egípcios, nem entre os seguidores do mazdeísmo, exceto nos últimos séculos de sua História
nacional, em que aparecem alguns ensaios mais ou menos sistemáticos. Contudo, e graças à Revelação
divina, o povo hebreu conhecia e possuía um conjunto de verdades teológicas, metafísicas, morais e
político-sociais, que constituem uma Filosofia e uma ciência muito superiores, em termos de verdade e
pureza de doutrina, a todas as ciências e a todos os sistemas filosóficos das antigas nações e civilizações,
sem excluir as da Grécia e de Roma. Para se convencer disto, bastará expor sumariamente este conjunto de
verdades, comparando-as à medida com as ideias, máximas e práticas de outras nações e povos.

a) Frente ao panteísmo indiano, ao dualismo iraniano, ao ateísmo búdico e chinês e do politeísmo egípcio
e greco-romano, o povo hebreu, ensinado pela palavra divina, afirma a existência de um Deus único,
pessoal, vivo, eterno, transcendente, distinto e superior ao mundo, inteligente, livre, onipotente,
infinitamente santo, justo e misericordioso para com o homem.

b) O deus do bramanismo produz o homem de sua própria substância, ou melhor, o mundo e os entes
são fenômenos e evoluções da substância divina. O deus de Zoroastro e da Filosofia grega ou substitui a
unidade pelo dualismo, ou degenera em naturalismo, e, em todo caso, ou apenas vislumbra ou ignora
completamente e nega a criação ex nihilo. Somente o povo hebreu, iluminado por Deus, sabe e afirma que
o mundo e os seres que o constituem foram produzidos e tirados do nada em toda a sua substância, pela
ação onipotente, livre e infinita de Deus.

c) Deus é, pois, o Princípio e Causa do mundo e de todos os seres, não apenas em termos de sua forma,
distinção e ordem, mas também em termos de matéria, e, portanto, é causa, princípio e razão suficiente para
tudo o que constitui o mundo-universo, sem que por isso o mundo faça parte de Sua substância, nem Deus
dependa em nada ou para nada do mundo, sem o qual Ele é desde a eternidade. Até os próprios nomes e as
50
definições que as Escrituras atribuem a Deus – Qui est – Ego sum qui sum – incorporam e revelam um
conceito muito elevado e superior da divindade sobre todos os outros povos, mesmo os mais civilizados.

d) Deus é o autor, criador e pai comum de todos os homens, que, sem distinção de raça, povo ou pessoa,
são iguais entre si, porque feitos à imagem e semelhança de Deus (faciamus hominem ad imaginem et
similitudem nostram – Ad imaginem quippe Dei factus est homo); são irmãos e iguais, porque são filhos do
mesmo pai terreno e celestial, trazem o selo divino e estão todos destinados à vida eterna em Deus. É
desnecessário chamar a atenção para a imensa superioridade desta doutrina, sobre a doutrina, teorias e
máximas dos outros povos contemporâneos aos hebreus, nos quais, além da escravidão, o sistema de castas
dominava de uma forma ou de outra.

e) A imortalidade da alma e sua recompensa ou punição após a morte, e mesmo a ressurreição do corpo,
são verdades que, além de destacadas e logicamente inferidas de outros dogmas, princípios e sentenças da
Bíblia Hebraica, são consignadas explicitamente em várias de suas passagens: basta recordar e citar para o
efeito, o que se lê no Eclesiástico, no livro de Jó e no dos Macabeus, principalmente ao narrar neste último
o martírio dos sete irmãos.

f) Para Manu, e em geral para o panteísmo, o mal se origina de Deus; Zoroastro busca sua origem em
um segundo deus oposto ao Deus do bem. Moisés ensina que o mal se origina da vontade finita e criada,
ou seja, do abuso da liberdade concedida aos Anjos e ao homem, única teoria que pode ser conciliada com
a bondade infinita e criativa de Deus, a existência e origem do mal moral.

§ 25 Doutrina moral e político-social dos Hebreus

A moral dos outros povos antigos, salvo alguns preceitos puros e elevados, contém sempre máximas e
regras ora imorais ora ridículas ora tendentes à idolatria. A moral do povo judeu, resumida nos dez preceitos
do Decálogo, é a expressão mais filosófica e prática da lei natural; exclui toda imoralidade e todas as
tendências idólatras ou politeístas, e se coloca a uma distância imensa de todos os códigos morais dos outros
povos, estabelecendo como primeiro preceito e base de todos os outros, o amor de Deus acima de todas as
coisas e a regra geral do amor ao próximo
Na Índia, no Egito e mesmo em Roma, a propriedade e o domínio da terra tornaram-se direitos quase
exclusivos de certas castas ou classes. Na nação de Judá foi dividido entre todas as tribos e famílias com
perfeita igualdade: “O país – diz Deus a Moisés e ele ao povo – será dividido e distribuído por sortes entre
todos os filhos de Israel, por famílias e tribos, de modo que uma porção maior será dada aos que estiverem
em maior número, e uma porção menor para aqueles que estão em menor número”. E para que essa
igualdade não desaparecesse com o tempo, foi instituído o ano sabático ou quinquagésimo, em que as
propriedades alienadas voltavam aos seus primeiros proprietários.
É muito comum dizer que o governo do povo israelita era teocrático: esta é certamente uma afirmação
muito imprecisa, a menos que por teocracia se entenda o reconhecimento do domínio supremo de Deus
sobre todos os reinos, como Ele tem sobre o mundo inteiro. Com mais propriedade e verdade do que no
povo de Israel, a teocracia deve ser buscada no Egito, na Assíria, na Caldéia e em outras nações, cujos reis
receberam apoteose em vida e receberam culto divino, com estátuas, templos e outras manifestações
idólatras-teístas. Isso não aconteceu com os chefes e reis do povo de Judá.
“É muito estranho – escreve o pastor protestante Brunel – que o mosaismo seja chamado de teocracia,
já que é a única verdadeira democracia da Antiguidade. É verdade que somente Deus reina em Israel;
mas Seu representante humano, Seu oráculo, por assim dizer, não é o sacerdócio, mas o povo; não é o
sacerdote, mas o cidadão... Quem governa é o povo, ou por si mesmo, ou por meio de delegados leigos,
ora com o nome de Juízes, ora com o caráter de Reis... Enquanto o sacerdote egípcio tudo possui, o
sacerdote judeu, – coisa notável! – nada possui, e, longe de alimentar os outros homens, espera e recebe
deles a sua subsistência”.
51
Parece desnecessário acrescentar, porque é
Ecclesia ex Circumcisione
bem sabido, que a condição da mulher, da criança
e mesmo do escravo entre os judeus era muito Os povos dispersos constituíram a gentilidade. Em
superior e muito diferente daquela que tinham vez de se corrigirem, tais povos resultaram nessas
entre as nações que careciam da luz da Revelação nações pagãs que conhecemos. Então Deus constitui
mosaica, e que tanto nesta parte como em muitos um povo para Si, a fim de, por meio dele, construir
outros pontos, o mosaismo foi a preparação do uma ordem reta. Suscita então o povo hebraico, e logo
cristianismo e o prólogo do Evangelho. opera uma maravilha maior do que a anterior: nesse
povo nascerá o Messias.
Note-se bem que esta moral, tão pura e superior
Em tal povo também nascerá Nossa Senhora. A
à de outras nações, e sobretudo, que esta grande
história do Antigo Testamento é a de um povo na
ideia monoteísta, assim como as elevadas ideias Terra que, pelo menos ele, conhecia a Lei divina,
religiosas que a acompanham no povo judeu, prestava culto ao verdadeiro Deus e conhecia uma
partem do terreno histórico de um homem que ordem de coisas bem constituída. Entretanto, tal povo
nasceu, foi educado e criado no meio de um povo várias vezes viola essa ordem. Revolta-se contra
cuja moral e costumes eram a antítese do Deus, verificando-se uma decadência contínua do
Decálogo, assim como suas idéias e práticas povo eleito até o momento do nascimento do Messias.
religiosas eram a antítese do monoteísmo judaico. Portanto, outra vez um plano que não se realiza. E
As descrições que encontramos em Heródoto e em Deus aplica sua justiça. Dispersa o povo hebraico,
castiga-o, mas serve-se dos restos fiéis do povo
outros historiadores antigos sobre a moral e a
hebraico para fundar a verdadeira Igreja. E surge
religião dos povos caldeus demonstram
então a obra-prima das obras-primas da criação –
claramente que quando o ilustre emigrante de Ur excetuando a natureza humana de Nosso Senhor
Chaldaeorum abandonou sua pátria e se separou Jesus Cristo e Nossa Senhora – a Santa Igreja
de seus concidadãos, eles não estavam lá incutindo Católica, Apostólica, Romana.
nele as idéias morais e religiosas que ensinou a
seus filhos e descendentes.
A verdade é que este fenômeno histórico, a vocação de Abraão, constitui a prova mais convincente da
realidade e existência da Revelação divina. É preciso que aqui interviesse uma iluminação divina e superior,
uma influência sobrenatural; porque só assim é possível compreender como o homem vindo do ambiente
do fetichismo, o homem nascido e educado em meio à mais grosseira idolatria, de repente se torne o Pai
dos crentes, progenitor de um povo que afirma, defende e pratica a ideia monoteísta, cercado, perseguido e
acoçado por povos e nações politeístas.
A moral pura e o culto monoteísta do povo de Abraão só decaem e degeneram de forma permanente,
ostensiva, doutrinária, por assim dizer, como resultado do longo contato com nações estrangeiras durante
o cativeiro babilônico. A partir de então, germes visíveis de decomposição aparecem no seio do povo judeu,
encarnados permanentemente no culto da letra e no formalismo externo dos fariseus; no ascetismo
ultramístico dos essênios, e ainda mais na seita dos saduceus com suas doutrinas negativas e sua indiferença
religiosa.
A Religião e a moral do povo de Abraão, de Moisés e dos Profetas foram seriamente ameaçadas em sua
existência, quando o Verbo de Deus Se fez carne e habitou entre nós, para restaurá-los à sua pureza
primitiva e, sobretudo, para desenvolvê-los e completá-los, para colocar a humanidade no caminho da
verdade e da vida eterna, para ensinar o homem a adorar a Deus em espírito e em verdade. Do céu à terra
desceram então no Verbo e com o Verbo novas ideias, grandes e férteis, a cujo contato a humanidade
estremeceu, abatida na hora e prostrada no leito de dor e morte. Mas a augusta voz do Salvador ressoou em
seus ouvidos, dizendo-lhe: Surge et ambula, levanta-te e anda. E a humanidade caminhou desde então,
marcha hoje e marchará sempre, para a vitória contra o mal na vida presente, para a conquista do bem
supremo na vida futura.

52
Filosofia Grega
§ 26 Origem e características gerais da Filosofia Grega

Dotada raça grega de aptidão incontestável para a especulação filosófica, e possuindo um gênio original
independente, não tardou em dar claras mostras de sua energia intelectual e de suas tendências e aspirações
a uma civilização superior a quantas a tinham precedido na História. Assim é que, mal se tinham instalado
em sua nova pátria – depois das migrações por outros países e do contato com outras raças, como se
depreende da História –, as tradições religiosas e místicas que de outros povos herdaram os gregos
transformam-se em sistemas cosmogônicos que, junto aos mistérios religiosos, podem considerar-se
verdadeiras iniciações científicas. Aparecem, também, sentenças morais que revelam certa inspiração ao
sistema ético social, que a seu tempo receberá oportunos desenvolvimentos.
Além dos poemas homéricos, que contribuíram indubitavelmente com o movimento civilizador dos
gregos, os hinos religiosos, as sentenças morais e as concepções cosmogônicas de Orfeu, demonstram que
1200 anos antes da era cristã já existia na Grécia um corpo de doutrinas, que pode ser considerado como
uma pré-formação mais ou menos sistemática, ainda que rudimentar, da Filosofia. Quatrocentos anos
depois, esta Filosofia dava um passo a mais, graças às idéias cosmogônicas e teogônicas de Hesíodo (800
a.C.), cujas sentenças morais, bem como as sentenças ético-sociais e políticas de Epimênides48, de Ferécides
de Siro e dos sete sábios da Grécia robusteciam a
originalidade do pensamento helênico e alargavam os
horizontes da especulação filosófica.
Este período de incubação e preparação da
Filosofia Grega, contém duas manifestações ou fases
parciais: a (1) manifestação teogônica, envolta em
mitos e lendas poéticas, que alguns chamam por
essa razão Filosofia mítica, e (2) a manifestação
ético-política, chamada, não sem fundamento, por
alguns, Filosofia Sentenciária ou Filosofia
gnômica, devido à forma de seu ensino por meio
de versos e sentenças aforísticas.
Era uma opinião bem aceita entre os neoplatônicos,
entre muitos Padres da Igreja e, em geral, entre os antigos cristãos,
que o movimento inicial da Filosofia Grega – e não poucos de seus elementos – deve sua origem às religiões
e literaturas de outros povos mais antigos, e principalmente às que floresceram na Índia, Pérsia e Egito.
Alguns deles, sem dúvida, exageraram a influência das religiões asiáticas sobre a Filosofia Grega e,
também, as semelhanças entre o pensamento grego e o pensamento oriental; e, ao contrário, não poucos
historiadores e críticos modernos, defensores da originalidade absoluta da Filosofia Grega, caíram no
extremo oposto. As opiniões conflitantes de Roeth e Zeller, e os fundamentos respeitáveis nos quais ambos
se baseiam, demostram que a questão não está definida. É verdade que, de acordo com Ueberweg, este é
um problema cuja solução plena e segura depende das investigações e trabalhos relacionados ao Oriente e
ao Egito, investigações e trabalhos que ainda deixam muito a desejar.
Enquanto isso – e dadas as evidências apresentadas pelos antigos e os resultados da crítica moderna ao
assunto –, não devemos admitir uma influência imediata e direta entre o pensamento oriental e o
pensamento grego, afirmando absolutamente, como fazem alguns, que a doutrina filosófica de Pitágoras se
origina da Filosofia chinesa, como uma mera derivação desta ou que os representantes da escola eleática
são meros repetidores das escolas panteístas da Índia. Não obstante isso, pode-se muito bem pensar e
afirmar que as tradições religiosas do Oriente, as especulações astronômicas dos caldeus, os mitos e
doutrinas zoroastristas e as iniciações hieráticas do Egito, entraram muito nos sistemas da Filosofia Grega

48
Epimênides (gr. Ἐπιμενίδης), poeta, filósofo e místico grego, viveu cerca de 600 a.C. É citado por S. Paulo em sua Epístola a
Tito (1,12), chamando-o de “profeta”.
53
durante seu primeiro desenvolvimento. E pode-se, até, suspeitar que eles influenciaram de maneira mais ou
menos direta e sensível na variedade das escolas e sistemas que apareceram neste período.
É muito provável, de fato, que a comunicação de Tales com os assírios e persas, bem como suas viagens
ao Egito, tenham influenciado não pouco a origem, as tendências e características da escola jônica, iniciada
pelo filósofo de Mileto.
Por outro lado, as opiniões, costumes e práticas da escola pitagórica apresentam uma afinidade notável
com certas opiniões, frases e práticas dos egípcios: o que é muito natural, dadas as relações de Pitágoras
com os sacerdotes do Egito, verdadeiros repositórios de ciência naquela época. Esta conjectura é
corroborada pela afinidade que existe entre o pitagorismo e o platonismo, cujos fundadores foram os que
mais cultivaram e frequentaram a comunicação com os sacerdotes egípcios. É conhecida a importância que
naquele país se dava à iniciação em certos mistérios religiosos, uma iniciação que provavelmente tinha
como objetivo principal, se não único, comunicar aos adeptos o significado filosófico e científico de certos
mitos populares e cultos religiosos. Isso porque, como observa M. Cousin, “é impossível que nos mistérios
não se fizesse nada mais que repetir a lenda; uma vez que repugna à lógica que se faça uma espécie de
sociedade secreta, com severas condições de admissão, para dizer lá as mesmas coisas que se dizem de
público. É necessário, portanto, que os mistérios contenham alguma coisa a mais, seja uma exposição mais
regular, seja quiçá alguma explicação, física ou moral, dos mitos populares”.
Em suma: se Zeller parece se afastar do caminho certo e da realidade histórica, negando, ou pelo menos
restringindo demais, a influência das idéias orientais na origem e no desenvolvimento da Filosofia Grega,
Roeth e, mais ainda Gladisch, evidentemente exageram essa influência. Para Zeller, a Filosofia dos gregos,
considerada em sua origem, em sua marcha e em suas evoluções, é um produto imediato e espontâneo do
espírito helênico, uma manifestação cuja razão suficiente e verdadeira deve ser buscada na reflexão
independente e pessoal dos filósofos gregos, com exclusão de qualquer influência oriental que mereça ser
levada em consideração. Não há dúvida de que esta tese do autor de “A Filosofia dos Gregos” é contestável
e relativamente exclusivista e exagerada. Mas é ainda mais exagerada a tese do Gladisch acima mencionado,
quando, depois de afirmar e provar a seu modo a influência decisiva e predominante da Filosofia Oriental
na origem e desenvolvimento da Filosofia Grega, ele a considera, especialmente em seu período pré-
socrático, como uma espécie de reprodução dos sistemas orientais. Porque, para Gladisch, a Filosofia
eleática nada mais é do que a renovação da Filosofia do Hindustão; a doutrina de Anaxágoras foi tomada
dos judeus; Heráclito reproduz o sistema zoroastrista; a teoria cosmológica de Empédocles traz sua origem
no Egito e reproduz o sistema hierático e, finalmente, a doutrina pitagórica é uma segunda edição corrigida
e aumentada da doutrina filosófica e moral dos chineses.
Os argumentos alegados por Zeller contra a tese de Gladisch demostram que está é uma tese
evidentemente exagerada e imprecisa, assim como a de Roeth, que basicamente coincide com Gladisch, se
bem que sem admitir o paralelismo greco-oriental defendido por ele, e conceder às idéias e à literatura do
Egito influência predominante na origem e desenvolvimento da Filosofia helênica.

§ 27 Divisão Geral de Filosofia Grega

Quase todos os historiadores dividem a Filosofia Grega em três períodos, mas nem todos concordam
quando se trata de indicar o tempo que abrange cada um desses períodos e as características que
correspondem a cada um. De acordo com Tennemann, (1º) o primeiro período vai de Tales de Mileto a
Sócrates, e abrange a Filosofia pré-socrática, como a chama Ritter; (2º) o segundo compreende de Sócrates
à comunicação e disseminação da Filosofia Grega entre os romanos, ou seja, todas as escolas originadas e
representadas no movimento socrático, incluindo os estoicos e epicuristas; (3º) o terceiro abrange o estado
e as vicissitudes da Filosofia Grega sob o domínio romano até seu fim no século VIII d.C., ou seja, até São
João Damasceno. Com esta classificação e idéia geral da Filosofia Grega, concordam no fundo, e com
pouca variação, Ritter e Schleiermacher.
A classificação e divisão propostas e seguidas por Hegel, cotudo, se afastam um pouo mais da de
Tennemann; porque, de acordo com esse filósofo, (1º) o primeiro período vai de Tales a Aristóteles; (2º) o
54
segundo é caracterizado pela propagação e estado da Filosofia Grega no mundo romano; e (3º) o terceiro
compreende apenas a Filosofia Neoplatônica.
Sem entrar em discussão acerca do fundamento dessas opiniões, nem tampouco das de Brandis, Zeller
e outros, que se distanciam ora mais ora menos dos indicados acima, achamos a divisão adotada por
Tennemann e Ritter muito razoável e fundamentada, mas limitando a duração ou o período de tempo
indicado para (3º) o terceiro período, que, em nossa opinião, deve terminar com a escola neoplatônica de
Atenas até meados do século VI d.C.
Assim, dividiremos a Filosofia Grega em três períodos, dos quais (1º) o primeiro abrange as escolas pré-
Sócrates a partir de Tales; (2º) o segundo, as escolas desde Sócrates até sua disseminação e propagação
entre os romanos; (3º) o terceiro, o estado e as vicissitudes dessas escolas e da Filosofia Grega até o
fechamento da escola filosófica de Atenas no tempo de Justiniano. O primeiro período abrange dois séculos,
ou seja, de 600 a 400 a.C.; o segundo termina com a união ou fusão do Pórtico e da Academia, dando início
ao sincretismo alexandrino, precedido e acompanhado pelo movimento cético; sincretismo este que
representa e constitui o terceiro período da Filosofia Grega, que coexiste com a Filosofia cristã pelo período
de alguns séculos. O conjunto desses três períodos da Filosofia Grega, portanto, compõe um período total
de mil e duzentos anos aproximadamente.
Do ponto de vista doutrinário, (1º) o primeiro período da filosofia grega pode ser chamado de período
cosmológico, uma vez que as escolas de então se ocupam preferencialmente na solução do problema
cosmológico. Durante (2º) o segundo período, os filósofos, sem negligenciar a cosmologia, que também
adquire um certo tom metafísico, direcionam suas pesquisas para a lógica, a psicologia e a moralidade, ou
seja, as ciências que estão mais diretamente relacionadas ao homem; portanto, um período antropológico
pode ser chamado. (3º) Além do ceticismo e do movimento sincrético observados no terceiro período, ele
é caracterizado pela investigação do problema de Deus ou do Absoluto, ou seja, pela tendência teosófica,
representada principalmente pela escola neoplatônica. Com isso, não se trata de afirmar características
exclusivas, mas de apontar a tendência predominante e mais notável em cada um dos três períodos,
podendo-se dizer que em todos eles pulularam todos os problemas fundamentais da Filosofia, e que em
todos eles apareceram representantes mais ou menos explícitos da maior parte dos diversos sistemas
filosóficos que vemos surgindo ao longo dos séculos, se bem que mudando de fisionomia ou de roupagens
e adornos externos.
Sob outro ponto de vista, (1º) o primeiro período da Filosofia Grega pode ser chamado de período de
formação e juventude; (2º) o segundo, um período de perfeição e virilidade; (3º) o terceiro, um período
de decadência ou senilidade.
A (1º) natureza [em grego, Φύσις (physis)], ou mundo exterior, constitui o principal objeto da Filosofia
Grega durante seu primeiro período; já (2º) durante o segundo período, o principal objeto da Filosofia é o
homem [em grego, ἄνθρωπος (anthropos)] em todas as suas relações; e (3º) durante o terceiro período, a
escola mais importante e a única que apresenta uma certa originalidade, tem por objeto a Deus [em grego,
θεός (Theos)]. Portanto, pode-se dizer que os três períodos da Filosofia Grega correspondem aos três
objetos fundamentais da Filosofia.
A forma e o método científicos também estão em relação e em harmonia com os três períodos expressos.
Durante (1º) o primeiro período, predomina a observação sensível e externa; durante (2º) o segundo,
predomina a reflexão psicológica e racional; e (3º) no terceiro, ou pelo menos em sua escola principal,
predomina a intuição intelectual do misticismo panteísta.

Filosofia Grega
1º período Tales- 600a.C.- formação e natureza cosmológico observação sensível e
Sócrates 400 a.C juventude externa
2º período Sócrates- 400a.C.- perfeição e homem antropológico reflexão psicológica e
Roma 200 a.C. virilidade racional
3º período Roma- 200a.C.- decadência e Deus teosófico intuição intelectual
Justiniano 529 d.C. senilidade
55
Primeiro Período da Filosofia Grega
§ 28 Escola Jônica

Sem contar a escola ou seita dos sofistas, que pode ser considerada como a transição para o segundo
período helênico iniciado por Sócrates, o primeiro período da Filosofia Grega abrange quatro escolas
principais, que são (1) a jônica, (2) a itálica ou pitagórica, (3) a eleática e (4) a atomista, embora esta
última seja considerada por alguns, não sem fundamento, como um prolongamento e extensão da (1) escola
jônica.
De todo modo, não se pode ignorar que durante este primeiro período da Filosofia Helênica, apareceram
alguns filósofos que, sem pertencer de maneira exclusiva e sistemática a nenhuma das escolas acima
mencionadas, contribuíram para o movimento geral da Filosofia durante esse período, seja iniciando uma
nova evolução em qualquer uma das escolas acima mencionadas (Heráclito, Anaxágoras), ou inspirados
por várias delas (Empédocles), e formulando uma espécie de concepção sincrética e conciliatória.
Já indicamos acima que o caráter geral e comum a todas essas escolas e suas derivações parciais é a
predominância do pensamento cosmológico ou, se preferir, do problema físico. Os jônios e atomistas, bem
como os eleáticos e pitagóricos, não menos que Heráclito, Anaxágoras e Empédocles, se empenham,
primeiramente e sobretudo, em conhecer e determinar a matéria, a essência, a realidade que constitui o ser
ou substância das coisas particulares e, consequentemente, do Mundo-Universo. Porque é de se notar que,
para todas essas escolas e filósofos do primeiro período – exceção feita a Anaxágoras –, as substâncias
materiais e sensíveis abrangem a universalidade do ser: a realidade se identificada, no fundo, com a natureza
ou mundo visível. Nem o número dos pitagóricos, nem o ser abstrato dos eleáticos, nem o fogo de Heráclito,
representam e significam uma realidade ou substância espiritual distinta da realidade material. E essa
negação, ou melhor, essa ausência da concepção de um ser espiritual, constitui outra das características
gerais da especulação helênica em seu primeiro período.
Concentrando, agora, especificamente na escola jônica, ela se distingue pelo modo essencialmente
materialista com que planteia e resolve o problema cosmológico. O ser substancial, a essência de todas as
coisas, consiste em uma primeira matéria, água, ar, fogo, terra, ora sós ora unidas. Mas como a matéria é
de si inerte e imóvel, e as coisas variam, se transformam e se distinguem umas das outras, é necessário que
essa matéria entranhe ou um princípio interno de vida (hilozoismo) ou, pelo menos, de movimentos
(mecanismo) vários e, portanto, as nuances e variantes que aparecem nos apoiadores e representantes desta
escola.

56
Mas, além dessas características e diferenças, a escola jônica, ainda que prescindido da escola atomística
como um ramo ou prolongamento seu, pode e deve ser dividida em duas seções, (1ª) a primeira das quais é
representada pelos três primeiros filósofos jônicos, Tales, Anaximandro, Anaxímenes e (2ª) a segunda por
Heráclito, Anaxágoras e seus sucessores. Porque se é verdade que ambos pertencem de fundo à escola
jônica por causa da matéria que reconhecem como princípio essencial e substância real do mundo, não é
menos verdade que eles colocaram o problema cosmológico em um terreno relativamente novo e especial.
Até então, só se havia tentado saber em que consiste a essência e a substância das coisas, assumindo que é
uma coisa permanente e fixa. Heráclito questiona essa segunda tese e se esforça para provar que a essência,
o ser e a substância das coisas, longe de ser uma coisa permanente, consiste precisamente na mutação, no
fieri; essa variação é a única lei invariável, movimento contínuo e incessante, a real essência das coisas.
Por sua vez, Anaxágoras inicia e resolve, embora de maneira vaga e confusa, o problema espiritualista.
Com o filósofo de Clazomene, o mundo deixa de ser uma combinação fatal de força e matéria, para se
converter em produto de uma inteligência, o resultado e a manifestação da idéia, o efeito e simultaneamente
a evidência de um ser imaterial, metafísico e transcendente ao mundo.
Ao hilozoísmo primitivo da escola jônica em seus primeiros passos, Heráclito substitui o princípio
dinâmico e a lei universal do fieri; os atomistas e Empédocles substituem o princípio mecânico; Anaxágoras
tende a desenvolver e coroar os princípios anteriores e a concepção geral da escola jônica por meio de um
princípio espiritualista.

§ 29 Tales de Mileto
ÁGUA
Tales (Θαλῆς ὁ Μιλήσιος), chamado de Príncipe da Filosofia por
Aristóteles (hujus philosophiae princeps) ou fundador da escola
jônica, nasceu em Mileto na década de 640 a.C. Se dermos crédito
a Aristóteles, sustentava que a água é o princípio, a causa e o
substrato primário de todas as coisas. Fundamentava sua opinião
no fato de que a água é a que fornece alimento e nutrição a todos
os entes. Mesmo o calor vital dos animais depende, para sua
produção e conservação, da umidade produzida pela água. No
sangue, com os demais humores e líquidos que são observados na
economia animal, bem como nos sucos e seiva das plantas, a umidade
ou o princípio aquoso predominam em
todos eles.
Aristóteles também atribui as seguintes opiniões a ele:
a) Que a terra flutua na água ou está imersa nesse elemento.
b) Que o ímã é um ser animado, já que atrai o ferro.
Cícero afirma que, além da água como um princípio material
das coisas e como um substrato geral da natureza, Tales admitiu
a existência de uma inteligência ou mente 49 , como uma força
organizadora dos entes formados ou compostos de água. Mas
nesta parte, Aristóteles merece mais crédito, ao atribuir essa
doutrina a Anaxágoras, posterior a Tales, opinião essa que tem a seu
favor o sufrágio dos críticos e historiadores mais autorizados da Filosofia.
O filósofo de Mileto também cultivou a matemática e a astronomia, um
estudo muito em harmonia e muito propício ao progresso e consolidação de sua doutrina filosófica, levando
em conta seu caráter físico-cosmológico. A ele se atribui a descoberta e primeira solução de alguns
problemas geométricos dos mais importantes, e não faltam autores a sustentar que ele previu o eclipse solar

49
Thales Milesius aquam dixit esse initium rerum, Deum autem eam mentem, quae ex aqua cuncta fingeret". De Nat. Deor, lib. I,
cap. 10.
57
que ocorreria em 585 a.C. Isso mostra que nosso filósofo possuía conhecimento astronômico nada vulgar
para o tempo e explica por que ele era geralmente considerado nos tempos antigos, não apenas como o
primeiro filósofo, mas como o primeiro geômetra e o primeiro astrônomo. Heródoto e Diógenes Laércio
falam dele como um notável homem político e, entre outros, invocam como evidência o conselho que dera
aos seus concidadãos, dissuadindo-os de formar uma aliança com Creso contra Ciro.
Tales, como quase todos os representantes da escola jônica durante seus primeiros passos, considerava
a natureza ou matéria [em grego, ὕλη (hile)] como tendo vida [em grego, ζωή (zoe)] ou animadas
(hilozoísmo) por uma força intrínseca e essencial; e povoava o mundo-universo de divindades, as quais
provavelmente não passavam para ele de manifestações mais ou menos perfeitas, mais ou menos sutis dessa
força viva, intrínseca é essencial de toda matéria, a qual constituiria para o Milésio o substrato ou realidade
de fundo de todas as coisas. Em outras palavras, os deuses de Tales são os deuses do politeísmo helênico;
diversas personificações das forças e fenômenos da natureza, o que é compatível com a teoria hilozoísta.
Além disso, seu conhecimento astronômico e meteorológico, que deve ter sido bastante notável para aqueles
tempos, a julgar pelo testemunho de alguns autores antigos 50 , se prestam à concepção naturalista do
politeísmo grego.
A teoria concreta de Tales sobre a água como princípio e substrato das coisas foi mais tarde seguida por
Hípon – natural de Samos, segundo alguns, ou de Régio, segundo outros, o qual morava em Atenas na
época de Péricles. A julgar por certas passagens de Aristóteles51, Hípon era um homem de pouco mérito
como filósofo.

§ 30 Anaximandro
ÁPEIRON
Compatriota, amigo e – segundo alguns, mas sem suficiente
fundamento – discípulo de Tales, foi Anaximandro
(Ἀναξίμανδρος) quem deu uma certa forma unitária e
panteísta à teoria cosmológica da escola jônica, afirmando
que o princípio das coisas não é a água, como Tales queria,
mas o infinito, isto é, a natureza material considerada
como unidade primitiva, potencial e indiferente em
relação aos vários entes que saem dela como de seu fundo
ou substrato comum à maneira de desenvolvimentos
parciais. Graças à antítese e oposição do calor e do frio,
umidade e secura, do fundo desse infinito, vão surgindo os
diferentes seres que aparecem no Universo sucessivamente,
para depois reentrarem nesse infinita-matéria, que vem a ser,
assim, como um substratum geral da circulação do ser e da vida, que
aparecem, desaparecem e reaparecem sob novas formas, ora similares ora diferentes. Em suma: o infinito-
princípio de Anaximandro, carrega consigo a explicação do mundo e da natureza por meio de uma espécie
de emanação e re-emanação panteísta-materialista, e apresenta alguma analogia com o Unum dos
neoplatônicos; mas mais ainda com o éter divino dos estóicos e com o fogo de Heráclito.
Deve-se ter presente que o infinito, ou melhor, o indefinido [em grego ἄπειρον (ápeiron)] de
Anaximandro, embora seja propriamente infinito por parte da quantidade ou extensão, por parte da
qualidade é apenas indefinido ou indeterminado e indiferente. As coisas têm sua origem no indefinido como
de seu primeiro e único princípio [causa material]; e isto não por uma produção, mas por uma evolução, de
modo que o mundo-universo, considerado em sua totalidade, representa um conjunto de desenvolvimentos

50
Apuleio, entre outros, diz que Tales conhecia temporum ambitus, ventorum flatus, stellarum meatus, tonitruum sonora miracula,
siderum obliqua curricula, solis annua reverticula, palavras que revelam a alta opinião que se tinha sobre o conhecimento e o
conhecimento especial do fundador da escola jônica.
51
Depois de mencionar a teoria de Tales e outros sobre o princípio das coisas, ele acrescenta: “Hipponem etenim nemo dignabitur
cum istis connumerase, propter intellectus ejus simplicitatem”. Metaphys, lib. I, cap. II
58
e reversões, – uma série indefinida de evoluções e involuções, – à essência concreta e íntima do indefinido
ou ápeiron52, do qual procedem todas as coisas.
De acordo com Anaximandro, a terra, com sua atmosfera, está
situada no centro do mundo, à igual distância dos pontos da
esfera celeste, e cercada por todos os lados e como que
imersa em uma substância sutil ou etérea. As estrelas e
as divindades celestes seriam formadas de fogo e de
ar; já a terra, em seu estado original e formação,
encontrar-se-ia em um estado líquido. A alma
humana seria uma substância aérea ou etérea
(materialismo), e todos os animais teriam sua
origem na água, de onde teriam surgido as
primeiras espécies animadas, a partir das quais
as espécies superiores – incluindo o homem –
surgiriam por sucessivas transformações
(darwinismo, transformismo), tendo origem do
peixe. Só é permanente o infinito ou ápeiron, isto é, o princípio material, que possui a vitalidade perpétua:
tanto os indivíduos quanto as espécies que saem de seu seio variam incessantemente.
Por essas indicações, pode-se ver que a escola jônica já contém germes panteístas e materialistas desde
seus primeiros passos, e germes também bastante explícitos do darwinismo contemporâneo, apesar de suas
reivindicações de novidade e originalidade.
Se dermos crédito a Cícero, Anaximandro identificava os deuses com as estrelas ou céus, e vislumbrava
uma série infinita de mundos53, muito embora críticos e historiadores da filosofia ignorem e disputem acerca
do sentido em que Anaximandro admitia a pluralidade ou série infinita de mundos. Alguns assumem, não
sem algum fundamento, que o filósofo jônico entendia por pluralidade de mundos, a pluralidade de céus.
Santo Agostinho, contudo, era da opinião – embora sua autoridade esteja longe de ser irrefragável nesta
matéria – que Anaximandro estivesse falando de mundos verdadeiros e que se referisse a uma pluralidade
sucessiva e não simultânea: Innumerabiles mundos gignere et quaecumque in eis oriuntur, eosque mundos
modo dissolvi, modo iterum gigni existimavit.
A concepção de Anaximandro é essencialmente hilozoísta, como a de Tales, já que sua matéria universal
e indefinida carrega em suas entranhas um princípio vital, uma
força motriz. Suas idéias sobre o estado primitivo, isto é,
sobre o estado líquido e úmido da terra, parecem apoiar a
opinião daqueles que fazem de Anaximandro um
discípulo de Tales, ou, no mínimo, demonstram que
as idéias do Príncipe dos Filósofos exerceram
alguma influência na teoria de seu compatriota.
Além de filósofo, Anaximandro era astrônomo e
geógrafo. Conta-se que ele construiu uma esfera para
explicar os movimentos das estrelas, e também um
mapa descritivo da terra. Não falta quem que lhe
atribua a invenção dos relógios de sol, embora seja
mais provável que o que ele fez tenha sido introduzir
entre os gregos o uso de tais relógios, conhecidos e usados
desde os tempos antigos pelos babilônios.

52
Os filósofos e historiadores não estão de acordo sobre este ponto. Alguns acreditam que o indefinido, apontado por Anaximandro
como o princípio das coisas, era um tipo de matéria caótica que contém em si os diferentes elementos da natureza material. Outros
acreditam que, na mente de Anaximandro, era um corpo intermediário entre a água e o ar.
53
“Anaximandri autem opinio est nativos esse deos, longis intervallis orientes occidentesque eos innumerabiles esse mundos”. De
Nat. Deor, lib. I, cap. X.
59
§ 31 Anaxímenes e Diógenes de Apolônia
AR
Ainda que alguns tomem Anaxímenes (Άναξιμένης) por discípulo de Anaximandro, Aristóteles – a
quem devemos supor estar mais bem informado – o apresenta como discípulo de Tales. A verdade é que
sua doutrina, se bem que tenha certa analogia com a de Anaximandro, também oferece pontos de contato e
semelhança com a de Tales.
Para Anaxímenes, o ar é a primeira causa e o substrato primeiro de todas as coisas, que nada mais são
do que modificações e transformações dessa substância, seja ela uma substância aérea sui
generis, seja o ar comum ou atmosférico, o que é difícil de precisar com certeza. Nessas
transformações, ou seja, na origem, constituição e distinção das coisas, a condensação
e a dilatação do ar desempenham um papel importante, uma vez que a formação, as
mudanças e as diferentes fases dos corpos devem sua origem a esse movimento perpétuo
de condensação e dilatação. Assim, por exemplo, o fogo nada mais é do que ar rarefeito
ou dilatado; a água e seus vários estados e derivações, como neve, nuvens, gelo, etc., são
ar em diferentes graus de condensação; e essa mesma condensação, levada a certos graus, dá origem e
explica à formação da terra, pedras e metais.
Parece que não há necessidade de dizer que, para Anaxímenes, a alma humana nada mais é do que uma
modificação ou transformação do ar, como substrato e causa primeira de todas as coisas; porque uma das
características da escola jônica em sua primeira época é o materialismo psicológico, consequência
inevitável de seu monismo material e hilozoísta.
Em conformidade com essas idéias e, acima de tudo, em relação com o princípio fundamental de sua
teoria cosmológica, a divindade se identifica com o ar imenso, infinito e em perpétuo movimento –
“immensum, et infinitum, et semper in motu”, na expressão de Cícero –, que dá origem, existência e
propriedades ou atributos a todas as coisas, e que constitui seu fundo essencial é real. Assim, conforme o
supracitado Cícero, para Anaxímenes, o princípio-ar é o Sumo Deus. Cremos, contudo, que quando Santo
Agostinho diz que, para Anaxímenes, os deuses procedem ou são feitos de ar 54 , tenha expressado o
pensamento do filósofo jônico com mais precisão e exatidão.
Alguns escritores antigos atribuíram a Anaxímenes a descoberta da obliquidade da elíptica. O certo é
que ele considerava a terra como um corpo de figura plana, colocado no centro do mundo, cercado e
transportado pelo ar, assim como os astros.
O cretense Diógenes de Apolônia (Διογένης ὁ Ἀπολλωνιάτης) floresceu depois
de Anaxímenes, reconhecendo ou afirmando, como este, que o ar é a causa primeira
e universal e substrato de todas as coisas. Foi contemporâneo de Anaxágoras e,
enquanto este comunicava à escola jônica uma direção espiritualista com
tendências ao verdadeiro teísmo, Diógenes se esforçava para preservar a
tradição essencialmente hilozoísta e materialista que predominava naquela
escola desde a sua origem.
Diógenes, como Anaxímenes, apontava o ar como a origem e essência de todas
as coisas, sem excluir a alma humana, que ele considerava como uma derivação muito sutil desse primeiro
princípio. A julgar pelas indicações de Aristóteles, o filósofo de Apolônia era da opinião de que nossa alma,
só conheça as outras coisas, na medida em que e porque contenha em si o ar, primeiro princípio e substrato
de tudo55, o qual, em razão de sua própria sutileza, é a causa dos movimentos vitais.
Simplício e alguns outros comentadores de Aristóteles supõem que Diógenes considerasse a razão ou
pensamento como uma propriedade ou força inerente ao princípio-ar das coisas. Esse fato provaria que a
concepção espiritualista de Anaxágoras teria exercido alguma influência sobre Diógenes, e que este teria
tentado conciliar as idéias do filósofo de Clazomenes com a doutrina geral da escola jônica.

54
“Omnes rerum causas (Anaximenes) infinito aeri dedit; nec Deos negavit aut tacuit; non tamen ab ipsis aerem factum, sed ipsos
ex aere factos credidit.” De Civit. Dei, lib. VIII, cap. II.
55
“Diogenes autem, sicut et alii quidem, aerem hunc opinatur omnium subtilissimarum partium esse et principium, et propter hoc
cognoscere et movere animam; secundum quidem quod primum est, et ex hoc reliqua cognoscere; secundum quod vero
subtilissimum est, motivum esse”. De Anima, lib. I, cap. III
60
Sexto Empírico e alguns outros mencionam um tal Ideo de Himera, do qual pouco mais se sabe além de
que sua doutrina coincidia com a de Anaxímenes, acerca da solução do problema fundamental da Filosofia
naquela época. Ideo, como Anaxímenes, considerava o ar como o princípio essencial e primitivo das coisas,
embora não se saiba se ele se referisse ao ar comum, ou mais precisamente, a um fluido intermédio entre o
ar atmosférico e o fogo.

§ 32 Heráclito
FOGO
Este notável filósofo, que floresceu em Éfeso nos anos 500 a.C., pertence à escola jônica tanto por sua
terra natal quanto pela essência de sua doutrina; embora tenha semeado nela sementes que seus sucessores
desenvolveram, e pensamentos novos e superiores àqueles que até então haviam predominado nesta escola.
E, de fato, segundo Heráclito:
1º. A substância comum e o elemento primordial de todas as coisas é o fogo, ou uma substância etérea,
LÁGRIMAS DE HERÁCLITO ardente e sutil, uma substância que, a julgar pelas
defendidas em Roma pelo Pe. Antonio Vieira propriedades e efeitos que atribui a ela, é o começo, meio
contra o riso de Demócrito e fim das coisas. Deste ponto de vista, a doutrina do
filósofo de Éfeso coincide com a da escola jônica.

2º. Todos os seres deveriam ser considerados, e o


seriam de fato, meras transformações e derivações desse
fogo primordial; e, a seu tempo, esses mesmos seres ou
substâncias converter-se-iam em fogo etéreo, por meio de
várias combinações e transformações, ora depurativas ora
descendentes.

3º. Essas transformações são fatais e universais: fatais,


porque estão sujeitas ao Destino, isto é, a uma lei fatal e
indeclinável, que é independente dos deuses e dos
homens; elas são universais, porque se estendem a todos
os seres sem exceção. O universo pode, portanto, ser
considerado como o resultado de duas grandes correntes;
uma cujo processo é de cima para baixo (transformação
do fogo primevo em ar, vapor, água, terra etc.), e outra
cujo processo é de baixo para cima (transformação de
“Entrando, pois, na questão, se o mundo é pedras e metais em água, disso em vapor, disso em ar,
mais digno de riso ou de pranto, e se à vista do disso em fogo etc.); de maneira que todas as coisas
mesmo mundo tem mais razão quem ri, como surgiriam do fogo ou éter primevo e retornariam a ele em
ria Demócrito, ou quem chora, como chorava períodos determinados.
Heráclito, eu, para defender, como sou
obrigado, a parte do pranto, confessarei uma
coisa e direi outra. Confesso que a primeira 4º. O éter ou fogo, que é o próprio Deus, e que constitui
propriedade do racional é o risível, e digo que o fundo essencial e a substância primeira do mundo,
a maior impropriedade da razão é o riso. O permanece eternamente, mas a coleção ou conjunto dos
riso é o sinal do racional, o pranto é o uso da seres que compõem o universo periodicamente aparece e
razão. Para confirmação desta, que julgo
desaparece: deste ponto de vista, o mundo nasce e morre,
evidência, não quero mais prova que o mesmo
mundo, nem menor prova que o mundo todo. começa e termina a intervalos predeterminados e
Quem conhece verdadeiramente o mundo, periódicos.
precisamente há de chorar, e quem ri, ou não
chora, não o conhece”. 5º. Assim como naquele instante que pensamos pro
priori como a primeira derivação, isto é, o
desenvolvimento do primeiro mundo, havia apenas fogo primevo, eterno e divino (Deus), assim também
61
toda vez que um mundo desaparece pela combustão, uma vez que sua evolução periódica é concluída
(Estóicos), apenas Deus permanece, isto é, o fogo divino e eterno em seu estado primevo, no qual e por
meio do qual surge o segundo mundo, ao qual sucederá um terceiro e assim por diante desde toda eternidade
para toda eternidade. Disso se infere que a essência das coisas – não do fogo primevo, mas o ser do
Universo, enquanto conjunto de naturezas finitas, determinadas e especiais – consiste no fluxo e refluxo
perpétuos, no movimento contínuo delas; é um ser-movimento, fluens semper, como escreve Aristóteles.
O mundo, como um ser permanente, é uma mera ilusão dos sentidos. A essência das coisas consiste na
mudança contínua, no devir (fieri), no trânsito perene do não-ser para o ser e do ser para o não-ser, ou
melhor, na amálgama passageira e a cada instante variada do ser e do não-ser.

6º. A vida vegetal, a vida animal e a intelectual, são diferentes manifestações de fogo celestial ou
primevo, resultantes do choque e da combinação das duas correntes (de cima para baixo e vice-versa) que
se desenvolvem dentro dessa substância primordial e que constituem sua lei geral. O bem e o mal, a vida e
a morte, o ser e o não-ser, são confundidos e identificados em harmonia universal (hegelianismo, a idéia =
fogo primevo; a lei dialética = destino), que resulta da luta e contradição das duas correntes contrárias já
indicadas, das quais uma tende a transformar o éter em matéria terrena, e a outra tende a transformar a
matéria em fogo etéreo, em ser divino.

7º. A alma humana é uma emanação superior do fogo celestial e primevo; é mais perfeita, pois é mais
seca, etérea e sutil, e se renova, desenvolve e conserva junto a esse fogo primevo através da sensação e da
respiração. O mesmo, em proporção, deve ser dito dos deuses, gênios e demônios que povoam o mundo.

8º. Além dos sentidos, a alma humana possui a razão, que é como uma semelhança e derivação imediata
da razão divina (o fogo primevo) e um órgão perceptivo superior aos sentidos.

9º. Por meio da razão, o homem pode perceber o verdadeiro, o que é eterno e permanente no fluxo
perpétuo das coisas, isto é, o fogo primevo e a lei fatal do Destino, as únicas coisas que podem ser chamadas
de permanentes na teoria de Heráclito.

10º. Como os sentidos percebem apenas as coisas que acontecem ou variam sem cessar, eles são
incapazes de perceber a verdade, e todo conhecimento que se baseia no testemunho e na percepção dos
sentidos é falso e enganoso em si mesmo.

§ 33 Crítica a Heráclito

A doutrina de Heráclito coincide no fundo e substancialmente com a que caracteriza a escola jônica. O
fogo ou éter primevo está para o filósofo de Éfeso, como a água para Tales e o ar para Anaxímenes. No
entanto, sua doutrina sobre o fluxo perpétuo ou fieri das coisas, sobre a inadequação e impotência dos
sentidos para perceber a verdade acerca da verdadeira unidade do ser ou substância primitiva, em meio e
apesar da pluralidade de fenômenos do mundo, denota e revela que a escola eleática exerceu alguma
influência em seu espírito e na elaboração de suas teorias. Mas essa influência parcial não exclui a
predominância do pensamento cosmológico da escola jônica, e é por isso que nos parece pouco fundada a
opinião de alguns autores, entre os quais Hegel, que só veem na Filosofia de Heráclito um ensaio de
conciliação ou harmonia entre o ser e o não-ser, tão brutalmente opostos na teoria eleática.
Já está indicado que a doutrina de Heráclito contém o germe de vários sistemas filosóficos posteriores
e apresenta afinidades e analogias notáveis com o estoicismo e o hegelianismo. Basta lembrar, para esse
fim, a doutrina dos estoicos sobre a origem e o fim do mundo pelo fogo, sobre o destino e sobre a alma do
universo e das almas particulares. No que diz respeito ao hegelianismo, basta olhar para a doutrina de
Heráclito acerca da formação dos seres por meio da oposição, luta e mistura de ser e não-ser; sobre a lei ou
destino fatal que governa essa luta, e sobre a transformação evolutiva e progressiva, através da qual as
62
substâncias terrestres chegam por gradações sucessivas e ascendentes até se converterem em éter ou fogo
primevo, que é o deus do Filósofo de Éfeso.
Heráclito fecundou, também, o pensamento grego, depositando nele as sementes, ainda que
rudimentares e muito incompletas, da psicologia e da fisiologia. O que, juntamente com a nova fase e o
notável desenvolvimento que ele comunicou à escola jônica, levantando ao mesmo tempo o problema da
pluralidade e da distinção dos seres, demonstra a relativa originalidade de seu gênio, e que não sem razão
ocupa um lugar de destaque entre os filósofos do período pré-socrático.
É necessário reconhecer, no entanto, que o que distingue e caracteriza a doutrina de Heráclito, o que
constitui e representa a idéia central de sua concepção filosófica, é o fieri das coisas, é a luta e a contradição
perpétua do ser e do não-ser, como a lei necessária da existência de seres cósmicos e medida de sua
realidade. Por outro lado, esse movimento perpétuo dos entes, em meio à permanência, imutabilidade e
eternidade do Ser; essa percepção de objetos fugazes e ilusórios por parte dos sentidos, entranha o
pleiteamento implícito e inicial do problema crítico, por causa da profunda distinção que ele supõe e
estabelece entre a percepção sensível e a racional, entre os sentidos e a razão e, consequentemente, entre a
aparência e a realidade, entre o fenômeno e o númeno. Os sofistas, que mais tarde deram trabalho a Sócrates,
aproveitaram essa doutrina de Heráclito para estabelecer e propagar suas conclusões céticas.
Além disso, a teoria de Heráclito tem, por assim dizer, o mérito de ter servido de pretexto e de ponto de
partida para Platão formular sua grande teoria das idéias. Porque – como Aristóteles56 indica com suficiente
clareza – o que principalmente induziu Platão a excogitar sua teoria das idéias foi a consideração da
mobilidade e do fluxo perpétuo de coisas sensíveis, e a consequente impossibilidade do sensível servir
como objeto e matéria para a ciência.

§ 34 Anaxágoras e seus discípulos

A partir de Heráclito, e graças em parte às suas teorias e aos novos problemas que planteou de maneira
mais ou menos explícita no campo da Filosofia, aparecem duas direções diferentes na
escola jônica, a saber: [1] uma teísta-espiritualista, representada por
Anaxágoras, e [2] outra atomista-materialista, representado por Leucipo e
Demócrito.
O fundador da [1] primeira escola foi Anaxágoras (Ἀναξαγόρας),
natural de Clazomenes, nascido cerca de 494 a.C. Manifestou ao longo
de sua vida um zelo extraordinário pela ciência, a ponto de fazer consistir
o destino e a perfeição suprema do homem na contemplação das coisas
celestiais e no conhecimento da natureza. Depois de ter filosofado em sua
terra natal, estabeleceu residência em Atenas, centro da civilização helênica em
sua época. Supõe-se que ele tenha sido o primeiro filósofo a ensinar publicamente na cidade de Minerva,
tornando-se, por esse motivo, o fundador das grandes escolas filosóficas que mais tarde brilharam na terra
natal de Platão. Pode-se até mesmo afirmar que foi Anaxágoras quem transplantou a Filosofia Grega para
Atenas, que até então tinha sua sede principal nas cidades da Jônia. Todos esses méritos não foram
suficientes para evitar perseguições e calúnias causadas pela inveja, ignorância e superstição. Acusado de
favorecer os persas e acusado, principalmente, de impiedade – porque não reconhecia a divindade do sol,
nem aprovava as populares crenças e práticas politeístas e supersticiosas – chegou a ser preso, apesar dos
esforços de seu amigo Péricles57 em salvá-lo, e mal conseguiu escapar para Lampsaco, onde morreria cerca

56
Acerca deste ponto, eis como expõe o Estagirita: “Post dictas philosophias, disciplina Platonis supervenit. Cum Cratillo namque
ex recenti adolescentia conversatus, et Heracliti opinionibus assuetus, tanquam omnibus sensibilitus semper defluentibus, et de eis
nonexistent scientia, haec quidem postea ita arbitratus est... Impossibile enim (putavit), definitionem communem cujuspiam
sensibilium esse, quae semper mutantur; et sic talia entium ideas appellavit”. Metaphys, lib. I, cap. V.
57
O mais célebre estadista ateniense, Péricles (495-429 a.C.) foi um dos principais partidários da politéia em Atenas e a maior
personalidade política do século V a.C.
63
de 428 a.C. Diógenes Laércio afirma que sua memória era celebrada com feriados religiosos pelos
habitantes de Lampsaco.
Embora, como veremos mais adiante, Anaxágoras não pertença em rigor à escola jônica, sobre a qual e
fora da qual paira sua teoria cosmogônica e teológica; ele, no entanto, recebe esse apelativo e entra na série
dos representantes dessa escola, não apenas por causa de sua terra natal e professores, mas também porque,
a exemplo dos característicos representantes dessa escola, ocupa-se quase exclusivamente das coisas físicas
e dá soluções análogas às dos demais jônicos aos problemas referentes à origem intrínseca imediata e à
constituição substancial dos corpos.

Para o Filósofo de Clazomenes:

a) os corpos seriam compostos de elementos primitivos, simples e indivisíveis [N. T. note-se já que
indivisível em grego é átomo], os quais difeririam entre si em essência e qualidade (ainda que alguns
historiadores da Filosofia, suponham que sejam semelhantes entre si). Anaxágoras vero – afirma Aristóteles
– infinitatem similium partium. De todo modo, parece verdade – a julgar por algumas passagens do próprio
Aristóteles, entre as quais se destaca a encontrada no primeiro livro De Generatione et Corruptione – que
para Anaxágoras e seus discípulos, os elementos ou primeiros princípios das substâncias, são mais simples
e primitivos, menos compostos do que a terra, a água, o ar e o fogo, os quais Empédocles e outros jônicos
consideravam como princípios simples58 e primeiros elementos dos corpos: Illi autem [anaxagorici], hæc
quidem simplicia et elementa esse; terram autem, aquam, et ignem, et āerem, composita. Seja o que for que
isso signifique, é muito provável que, na opinião de Anaxágoras, a variedade das substâncias materiais, não
menos do que as diferenças e a diversidade de suas propriedades e atributos, resulta da variada combinação
desses elementos primitivos, dotados de diferentes qualidades: a predominância de certos elementos e as
qualidades que são inatas a eles, determine a existência e manifestação dessas ou daquelas propriedades no
corpo. Portanto, de acordo com Anaxágoras, a composição e a decomposição são a origem imediata da
existência e destruição de todas as substâncias e representam as duas grandes leis gerais da natureza. Em
seu estado original, os elementos primitivos das coisas eram confusamente misturados e como que
constituindo uma massa ou substância caótica, até serem ordenados por Deus, isto é, pela Inteligência
Suprema59.

b) o pensamento psicológico de Anaxágoras é bastante obscuro e duvidoso. De acordo com alguns, ele
ensinou que a Inteligência Suprema é o princípio comum e formal da vida, sensibilidade e razão, de modo
que a razão do homem, o conhecimento sensível dos animais e a vida das plantas, são coisas idênticas em
essência, e só se diferenciam e distinguem em seus modos de manifestação, por causa da organização
diferente das substâncias. Em nosso sentir, contudo, é mais verdadeira, porque mais conforme ao espírito
geral de sua Filosofia teístico-espiritualista, a opinião daqueles que afirmam que, para Anaxágoras: (1º), a
Inteligência Suprema é o princípio, não formal, mas eficiente60 da vida nas plantas, do conhecimento nos
animais e da razão no homem; (2º), que quando ele diz que a organização é o que determina as diferentes
manifestações dessas substâncias, significa apenas que elas convêm ou se assemelham em possuir um
princípio vital, isto é, em serem substâncias animadas. Isso é ainda mais provável, já que nosso filósofo
distingue entre alma, que ele reconhece e chama de princípio de vida, e razão propriamente dita, a qual
considera como um atributo do espírito. Além do que,

58
Simples significa aquilo que não é composto. [N.T.]
59
Note-se a distinção do conceito revelado de criação, segundo o qual Deus não ordena o que estava em caos; mas imprime ordem
às coisas na medida em que as cria ex nihilo i.e. do nada. O conceito de criação não aparecerá propriamente na Filosofia sem o
influxo da Revelação; o que dá uma originalidade à Filosofia Cristã ou mesmo vetero-testamentária na medida em que a há. [N.T.]
60
Note-se que somente em Aristóteles serão distintamente explicitados os quatro modos de causar, a saber, formal, material,
eficiente e final. De modo que a confusão das causas se explica pela carência de explicitação. [N.T.]
64
c) sua doutrina sobre a verdade e seu critério, torna esta segunda opinião mais fundamentada, já que, de
acordo com Anaxágoras, pertence apenas à razão e não aos sentidos julgar das coisas, reconhecendo a razão
como critério de verdade61.

No entanto, o verdadeiro mérito de Anaxágoras, sua especial glória como Filósofo, é ter arrancado a
escola jônica das correntes panteísta-materialistas, em cujo fundo vinha-se agitando de uma maneira mais
ou menos inconsciente, para colocá-la nas correntes mais puras do teísmo-espiritualista. Até então, a escola
jônica não conhecia outra divindade além de uma força cósmica inerente à matéria e nela inata, princípio
seu necessário de movimento e de vida, assim como de suas combinações e transformações, uma espécie
de alma universal que, em união com a matéria, constitui o mundo, ser único informado, movido, vivificado
e animado exclusivamente por essa força imanente que se assemelha à Força de Büchner 62 e dos
materialistas nossos contemporâneos. A esta lei que determinaria os movimentos da matéria e suas várias
transformações operadas por essa força imanente, foi chamada por uns causalidade e por outros destino, o
qual, seja dito, como lei de transformação cósmica, tem muita analogia com a lei dialética hegeliana.
Anaxágoras, depois de demonstrar que o acaso e o destino representam uma hipótese absurda que carece
de significado, estabelece e demonstra que a ordem e a harmonia que reinam no mundo exigem a existência
de uma Inteligência Superior ao mundo e independente dele em Seu ser e essência. Essa inteligência não
tem nada em comum com outros seres; é eterna, possui poder infinito, e é a ordenadora do mundo com
todos os seus seres por meio dos elementos primitivos, eternos e indivisíveis, e que rege e governa esses
mesmos seres. Não é preciso dizer que, sem o conceito de criação, o filósofo de Clazomenes foi capaz de
deixar o terreno panteísta-materialista da escola jônica, elevando-se ao conceito de um Deus pessoal e
inteligente, ordenador do mundo, superior a ele e a causa primeira de seu movimento, ordem e conservação,
mas não pôde sair do terreno dualista, admitindo a existência de uma matéria eterna em estado de caos, à
qual Deus teria comunicado movimento, ordem e vida.
É justo acrescentar, no entanto, que o pensamento do filósofo de Clazomenes sobre este ponto-chave de
sua doutrina não é tão explícito e completo quanto seria de se desejar, ao menos se tomarmos por base o
testemunho tão autorizado e competente de Aristóteles. Este supõe e indica às vezes que a Inteligência
Suprema admitida por Anaxágoras seria o primeiro princípio de movimento (dicens intellectum movisse
omnia), o primeiro motor ou agente, o verdadeiro princípio de todas as coisas (principium maxime omnium)
e, além disso, o princípio mais simples entre todos, princípio transcendente e puro63; mas, ao mesmo tempo,
vemo-lo outras vezes levantando dúvidas acerca do pensamento genuíno de Anaxágoras, e até mesmo
censurando-o por fazer um uso ex machina da Inteligência divina para explicar a origem e a constituição
do mundo: Nam et Anaxagoras, tanquam machina utitur intellectu ad mundi generationem.
Quanto à origem imediata e à constituição interna dos seres, Anaxágoras professava opiniões que
revelam um estado imperfeito das ciências físicas e que não se elevam muito acima das opiniões comuns à
escola jônica. Assim vemo-lo afirmar que:
a) a lua seria habitada da mesma forma que a terra;
b) o sol seria uma massa de pedra incandescente;
c) o céu estaria cheio de pedras, algumas das quais às vezes cairiam sobre a terra, explicando, assim,
a existência e a queda dos aerólitos;
d) as plantas nasceriam espontaneamente de germes e sementes contidos na atmosfera que rodeia a
terra; e
e) os animais, de modo análogo, teriam sua origem de germes ou princípios vitais, que, em vez de
estarem contidos no ar, teriam caído do céu.
Sobre esse assunto, o testemunho de Diógenes Laércio e de outros historiadores da Filosofia é
confirmado pelo de Santo Ireneu, quando ele escreve: Anaxágoras dogmatizavit, facta animalia

61
Já entramos, com Heráclito, no problema dos sentidos como critério de verdade. [N.T.]
62
Ludwig Büchner (1824-1899) propunha um materialismo radical em que a evolução, aos moldes darwinianos, seria
condicionada por processos mecânicos, excluindo toda causa final.
63
“Verutamem, intellectum ponit (Anxágoras) principium maxime omnium; solum enim dicit ipsum, eorum quæ sunt, simplicem
esse, et immixtum et purum”. De Anima, lib. I, cap. III.
65
decidentibus e coelo in terram seminibus. Contudo, mesmo nisso, Anaxágoras sabia como se elevar acima
da generalidade de seus predecessores e contemporâneos; porque, enquanto estes confundiam e
identificavam a alma sensível dos animais com a intelectual, Anaxágoras distinguia as duas, a julgar por
várias passagens de Aristóteles64.
Os discípulos e sucessores de Anaxágoras, Arquelau de Mileto e Metrodoro de Lampsaco, não quiseram
ou não souberam preservar pura a tradição de sua doutrina teísta-espiritualista, formando uma espécie de
sincretismo e fusão entre a doutrina de seu mestre Anaxágoras e a panteísta-materialista da escola jônica.
Essa degeneração e afastamento das doutrinas e tendências de seu mestre é manifesta especialmente em
Arquelau, cuja doutrina sobre a moral e o direito resume Diógenes Laércio na seguinte proposição: “Os
homens nasceram espontaneamente da terra; eles imediatamente fundaram cidades, criaram as artes e
estabeleceram as leis: a diferença entre o justo e o injusto não está fundada na natureza das coisas, mas
unicamente nas leis positivas”. Como se pode constatar, essa proposição tira o mérito de originalidade do
famoso Hobbes e dos ateus e materialistas de nossos dias.
De todo modo, a escassa influência que o princípio espiritualista exerceu sobre seus discípulos de escola
é vantajosamente compensada pela influência poderosa e eficaz que exerceu sobre Péricles, Eurípides e,
mais ainda, sobre Sócrates, cujo principal mérito é de ter se apropriado e desdobrado o princípio teísta-
espiritualista de Anaxágoras, aplicando-o, não apenas à ordem física, mas à metafísica e à moral.

64
Entre as quais, merece ser citada a seguinte: “Anaxagoras autem videtur quidem aliud dicere animam et intellectum... Solum
enim ipsum (intellectum) dicit, eorum, quae sunt, simplicem, esse, et immixtum, et purum”. De Anima, lib. I, cap. II.
66
§ 35 Escola itálica ou pitagórica

Esta escola chama-se itálica por ter tido sua sede na Itália, ou seja, naquela parte da península italiana
que nos tempos antigos era chamada de Magna Grécia, por causa das muitas cidades que os gregos
fundaram lá. A denominação de pitagórica vem de seu fundador Pitágoras, Filósofo mui célebre
antiguidade, sobre o qual muito se escreveu tanto nos tempos antigos quanto nos modernos, sem que esses
escritos tenham conseguido dissipar a obscuridade e as dúvidas que existem sobre seus feitos e doutrinas.
Funda-se a dúvida sobre o fato de não existirem escritos que tragam um selo de indubitável autenticidade
em relação a Pitágoras e nem sequer a seus primeiros discípulos. Mesmo que admitamos a autenticidade
dos Fragramentos de Filolau – autenticidade que não poucos críticos rechaçam ou põem em cheque – deve-
se recordar que ele floresceu quase um século depois de Pitágoras. Nem os famosos Versos Áureos, nem os
escritos atribuídos a Timeu de Lócrida65, a Arquitas66 e a Ocelo Lucano67 têm a autenticidade suficiente
para servirem de guia seguro nessa matéria.
Por isso – como observa oportunamente Nourrison – “não existe, na primeira Antiguidade, uma
personagem menos conhecida e, ao mesmo tempo, mais popular do que Pitágoras. Seu nome recorda em
todos os espíritos a ideia de metempsicose, ao mesmo tempo em que nos lembra o preceito que proíbe
comer carne animal. Todos os séculos prestaram homenagens brilhantes à sua memória. Platão e Aristóteles
acatam sua grande sabedoria. Ao declinar o paganismo, Porfírio e Jâmblico68 tomam seu nome para contra-
arrestar as novas crenças que tomam tudo. O cardeal Nicolau de Cusa69, no século XV, e Jordano Bruno70
no próximo, adotam e propagam seus ensinamentos. Leibnitz descobre em sua doutrina a substância mais
pura e sólida da Filosofia dos antigos”.
A Franco-maçonaria – acrescenta Nourrison – e, no século XVIII as Sociedades de
Harmonia, anunciavam a restauração do pitagorismo. Finalmente, entre nossos
contemporâneos há sonhadores que se apresentam com esta doutrina duvidosa e oculta,
mas, uma vez que ela não se encontra consignada em nenhum escrito autêntico, e nem
sequer nos Versos áureos, atribuídos ordinariamente a Filolau, não conseguem

65
Filósofo pitagórico do século V a.C., natural de Lócrida, é a personagem título de um dos Diálogos de Platão.
66
Arquitas de Taranto foi um pitagórico do século V a.C., discípulo de Filolau e amigo de Platão. É considerado o pai da
mecânica.
67
Um dos 218 pitagóricos listados por Jâmblico. Floresceu no século VI a.C.
68
Jâmblico da Calcedônia (245-325 d.C.) é famoso por seu compêndio da filosofia pitagórica; e Porfírio de Tiro (234-304 d.C.)
foi discípulo e sucessor de Plotino na direção do neoplatonismo. São contemporâneos e se associaram em Roma, dado o interesse
de Jâmblico nos trabalhos de Porfírio.
69
Cardeal alemão grande propulsor do humanismo renascentista.
70
Ocultista hermético, foi religioso dominicano. Condenado por heresia pelo Santo Ofício, foi executado no Campo de’Fiori no
ano de 1600. Sua fama deve-se mais à sua condenação do que a seu pensamento.
67
fundamentar-se com certeza neste discípulo de Pitágoras. Ao falarem, pois, de Pitágoras,
seguem a tradição filosófica, o dito comum, quase a fábula, mais propriamente que os
testemunhos autênticos e os textos irrecusáveis71.

De todo modo – e concedendo, desde já, que a escola pitagórica entranha obscuridade, dúvidas e
incertezas acerca do significado concreto de suas doutrinas e teorias –, o pitagorismo indubitavelmente
representa e manifesta certo progresso em relação à escola jônica e já traz em si uma nova fase na
abordagem do problema filosófico durante este primeiro período da Filosofia Grega. A escola jônica
levantou e resolveu o problema cosmológico – o qual problema coincide com o problema filosófico durante
o período pré-socrático – no campo material, sensível e contingente e suas especulações foram limitadas e
circunscritas ao mundo externo, sem que o homem e Deus, sem que a psicologia, a moralidade e a teodiceia
atraíssem sua atenção. A escola itálica eleva o problema cosmológico do terreno puramente material e
sensível ao campo matemático, dando-lhe um aspecto mais racional e profundo, um modo de ser mais
universal e científico.
Como resultado e consequência dessa maneira superior de colocar e resolver o problema filosófico da
época, a escola itálica também se distingue e se sobressai à jônica pela universalidade de suas soluções,
formulando uma espécie de sistema relativamente filosófico, geral e complexo, no qual, ao lado das noções
cosmogônicas, aparecem idéias e noções relacionadas com a psicología, a moral e a teodicéia, por mais que
essas idéias sejam em extremo
confusas, incompletas e, sobretudo,
pouco científicas. Porque a verdade
é que essas idéias, em sua maior
parte, trazem sua origem não da
especulação filosófica, mas das
tradições religiosas e do ensino
hierático nos quais o fundador desta
escola provavelmente se inspirou,
graças às suas viagens pelo Egito.
Assim, alguns consideraram a
doutrina ou Filosofia da escola
itálica como uma concepção
sincrética resultante da amálgama e
da combinação do elemento grego
com o elemento oriental. Apreciação
esta que não é sem fundamento,
como veremos mais adiante, se se
levam em conta certas opiniões e
teorias dos pitagóricos. Esta
amálgama de tradições hieráticas e
idéias filosóficas, a exposição destas
últimas por meio de reminiscências
mitológicas e, sobretudo, o abuso de
fórmulas matemáticas, representam
os defeitos capitais, ou, pelo menos,
os mais generalizados e
característicos da escola fundada por
Pitágoras.

71
NOURISSON. Tableau des progrès de la Pensée humaine depuis Thales juqu’à Hegel, pag. 24.
68
§ 36 Pitágoras

Descartando, na medida do possível, as fábulas das quais ele foi objeto, depurando a tradição histórico-
filosófica, e aderindo principalmente aos dados e notícias que encontramos nas obras de Platão e Aristóteles,
podemos afirmar e estabelecer com bastante segurança o que se segue.
Pitágoras nasceu em Samos, pelo ano de 582 a.C., e, depois de
ter escutado as lições de Tales de Mileto ou, mais
provavelmente, de Ferécides e Anaximandro, viajou pelo
Egito, a Pérsia e até pela Índia ou a China (como alguns
autores pretendem), estudando a Filosofia e as ciências
desses povos, e sendo iniciado em seus mistérios
religiosos; após o que, não querendo ou não podendo
fundar escola em sua terra natal, tiranizada por
Polícrates, foi para a Itália e se estabeleceu em Crotona.
Fundou e organizou nesta cidade uma escola, ou
melhor, uma sociedade, que, sendo filosófica, política e
religiosa, adquiriu uma grande celebridade e até parece
ter exercido uma influência notável e decisiva nas
vicissitudes políticas das principais cidades da Grande
Grécia.
Não há dúvida de que, na escola de Pitágoras, além da doutrina
exotérica ou pública e geral, havia outra doutrina esotérica, cuja
iniciação foi concedida apenas aos privilegiados, depois de passar por vários testes e purificações
estabelecidos para esse fim. O que não se sabe, nem é fácil de descobrir, é o que constituía o objeto próprio
da iniciação, duvidando se se abraçavam adequadamente verdades e doutrinas filosóficas, ou se seu objeto
era puramente político-moral e até religioso. Este último parece mais provável, se se levar em conta as
práticas que os historiadores antigos e modernos geralmente atribuem aos pitagóricos iniciados no segredo
da escola, práticas entre as quais estão listadas, além de um regulamento minucioso de ocupações diárias,
a comunidade de bens, vestir-se de linho, não comer carne, abster-se de qualquer sacrifício sangrento, não
faltando que lhes atribua mesmo a observância do celibato. Krische, que tratou ex professo essa questão em
seu tratado De societate a Pythagora condita, opina com bastante fundamento que o objetivo ou fim
principal de Pitágoras, ao estabelecer e organizar sua sociedade, era político (societatis scopus fuit mere
politicus), sem prejuízo de se propor a moral e o cultivo das letras, como fins secundários e meios que
conduzissem ao logro do objetivo principal ou político: Cum summo hoc scopo duo conjuncti fuerunt,
moralis alter, alter ad litteras spectans.
Conta-se que Pitágoras, antes de receber um discípulo em sua escola, examinava cuidadosamente seus
traços fisionômicas; que este devia permanecer em silêncio por um longo tempo; que era submetido à
perfeita obediência entre outros testes mais ou menos rigorosos. O que parece inquestionável é que na
escola pitagórica havia uma variedade de graus e classificações correspondentes para os discípulos. Nem
tão certa é a proibição de comer favas e carne que, em lendas e tradições, é atribuída ao filósofo de Samos,
como observado. Aristóxeno72 afirma que Pitágoras, em vez de proibir, recomendava que se comessem
favas e, no que diz respeito a comer carne, Aristóteles assume que a proibição se referia apenas a certas
partes dos animais.

72
Aristóxeno de Tarento (354-300 a.C.) foi um filósofo, músico e teórico da música pertencente à escola peripatética, i.e.,
aristotélica.
69
A escola ou associação fundada e governada por Pitágoras em Crotona participou ativamente das
questões políticas, e parece que chegou mesmo a adquirir uma notável influência sobre as colônias gregas
do país. Isso fez com que a associação fosse perseguida e dispersa, levando, ao que se supõe, à morte de
Pitágoras. Atesta-se, de fato, que os habitantes de Crotona, influenciados pelos pitagóricos e comandados
por um deles, chamado Milón, guerrearam contra os sibaritas, ou melhor, contra o partido democrático de
Síbaris73, em favor do partido aristocrático, perseguido pelo tirano Thelis. Vencidos os sibaritas e destruída
a cidade pelos de Crotona, surgiram rixas e intrigas entre os vencedores por causa da repartição dos
despojos. O partido popular ou democrático, liderado por Cílon, inimigo dos pitagóricos, atacou-os,
reunindo-os na casa de Milón, e, degolando muitos deles, forçou os demais a fugirem e se refugiarem em
várias cidades. Entre estes, conta-se Pitágoras, que se refugiou em Metaponte e lá morreu, não se sabe se
de causa natural ou violenta, sendo esta mais provável, uma vez que a perseguição a sua escola estendeu-
se desde Crotona a outras cidades na Itália. Cícero relata que, quando esteve em Metaponte, apresentaram-
lhe o lugar onde Pitágoras sucumbiu. Como costuma nesses casos, sua memória foi altamente venerada nas
colônias gregas da Itália pelos descendentes dos mesmos que causaram sua morte e maltrataram seus
discípulos.

§ 37 Discípulos de Pitágoras

A obscuridade e as dúvidas que pairam sobre Pitágoras pairam igualmente sobre seus discípulos.
Primeiramente, deve-se advertir que há muitos que, ainda que levem o nome de pitagóricos, não devem e
não podem ser contados entre os discípulos de Pitágoras como Filósofo. Nos últimos séculos do paganismo
greco-romano e nos primeiros séculos do cristianismo, apareceram em cena não poucos dos chamados
filósofos pitagóricos, que de tal não tinham mais do que o nome. Amalgamando algumas idéias vagas e
algumas tradições mais ou menos lendárias de sua escola e das antigas associações pitagóricas com mitos
orientais, com os mistérios e iniciações das divindades pagãs, com operações mágicas e cabalísticas, eles
se apresentavam ao povo, cuja credulidade e superstição exploraram, como possuidores de uma ciência
oculta, misteriosa e divina, que tinha de tudo menos de filosófica, já que, em vez de especulações e máximas
científicas, eles só possuíam e ostentavam fórmulas cabalísticas, operações mágicas e comunicações
teúrgicas. Além de outros nomes menos conhecidos, basta mencionar, como tipos desta classe de
“pitagóricos”, Sótion de Alexandria, Euxeno de Heracleia, Apolônio de Tiana e Anaxilau de Larissa.

73
Cidade da Lucânia, na Magna Grécia, na confluência dos rios Crátis e Síbaris.
70
Deixando de lado esses discípulos espúrios de Pitágoras, e nos concentrando naqueles que disseminaram
e preservaram com maior ou menor pureza o espírito e as tradições científicas do filósofo de Samos,
diremos, com Ritter, que a tradição relacionada aos filósofos pitagóricos somente na época de Sócrates
adquire algum grau de certeza histórica. “Essa certeza – acrescenta ele74 – refere-se particularmente a quatro
ou cinco homens, que são Filolau, Lísias, Clínias, Eurites e Arquitas. Aristóteles fala de três deles, quais
sejam Filolau, Eurites e Arquitas: a existência do primeiro e da do terceiro é atestada pela História de
maneira indubitável. Quanto a Lísias, sabemos que viveu em Tebas e que foi mestre de Epaminondas75; e
se o que se conta de Clínias não é muito certo, é ao menos bastante plausível.
Acerca da época em que esses filósofos viveram, pode-se afirmar que Filolau em Tebas foi
mestre de Sinmias e Cebes, antes que fossem para Atenas ouvir as lições de Sócrates; que
Lísias, pouco tempo depois, foi mestre de Epaminondas; e que Arquitas foi contemporâneo
de Dionísio, o Jovem, e de Platão. A época em que viveram os demais se determina por
estes dados, já que todos eles tinham relações uns com os outros. Inclino, mesmo, a dar
algum crédito à tradição segundo a qual Filolau, Clínias, Eurites e ainda outros foram
discípulos de Aresas, o qual aprendera a Filosofia pitagórica na Itália. Em harmonia com
essa opinião, é necessário afirmar que o cultivo da doutrina que chamamos de pitagórica
entranha maior antiguidade, sem que seja negado que os primeiros rudimentos dessa
Filosofia existiam já antes de Aresas no instituto pitagórico. De todo modo, essa Filosofia
não nos é conhecida a não ser no estado em que Filolau, Eurites e Arquitas no-la
transmitiram, porque, ainda que haja um fragmento com o nome de Aresas, seu conteúdo
não deve ser considerado autêntico.
Por outro lado – acrescenta Ritter – também não se conta que Aresas tenha escrito alguma
coisa, antes o contrário: há uma tradição antiga, que parece bastante fundamentada,
segundo a qual os primeiros a publicar escritos referentes à Filosofia Pitagórica foram
Filolau e seus contemporâneos. Dos cinco filósofos mencionados acima, parece que Lísias
e Clínias não escreveram nada para o público... Pelo contrário, de Filolau temos alguns
fragmentos cuja autenticidade Boeckh demonstrou. Também não se pode pôr em dúvida
que Arquitas deixou muitas obras, ainda que muitas que ele não escreveu lhe sejam
atribuídas76.

Após esses cinco pitagóricos aqui citados por Ritter, floresceram ainda Xenófilo da Trácia, Fanto
(Φάντων) de Flio, Diocles e Polimnasto, cuja terra natal parece ter sido Fliunte. Embora Ritter pareça
excluir Ocelo da Lucânia e Timeu de Lócrida do número de discípulos de Pitágoras e sua escola, outros
historiadores respeitáveis, e entre eles Ueberweg, os listam entre os apoiadores e representantes da escola
pitagórica77, acrescentando ainda os nomes de Hipaso, Hipodamo, Epicarmo e alguns outros adeptos mais
ou menos fiéis da doutrina pitagórica.
Pelo que foi dito até aqui, conclui-se que os dados acerca dos discípulos e representantes genuínos da
escola pitagórica não são menos obscuros e incertos do que os referentes à vida do próprio Pitágoras e à
autenticidade de sua doutrina. Também se pode concluir que a escola pitagórica, considerada como um
todo, apresenta três etapas ou fases históricas: (1ª) a primeira corresponde à vida e à doutrina do próprio
Pitágoras; (2ª) a segunda, não aos discípulos imediatos de Pitágoras, mas aos mediatos ou que floresceram
muitos anos depois, como Filolau e Arquitas; (3ª) na terceira fase estão todos os neopitagóricos que
floresceram antes ou depois de Cristo.

74
Ritter, Histoire de la Philos. anc., I. IV, cap. I.
75
Epaminondas (418-362 a.C.), general e político grego, considerado “o primeiro entre os gregos” por Cícero, foi o responsável
por redesenhar o mapa geopolítico da Grécia Antiga, libertando Tebas do domínio espartano e iniciando uma série de hegemonias
que culminaria no Império Alexandrino.
76
Ritter, Histoire de la Philos. anc., I. IV, cap. I.
77
É curioso e digno de nota escreve A. Gelio, contando com o testemunho de Timão, a saber, que Platão, para escrever seu Timeu,
valeu-se de um livro pelo qual deu muito dinheiro, o qual se supõe escrito por um dos filósofos pitagóricos. Hermipo afirma também
que Filolau escreveu um livro que Platão adquiriu por grande preço, e do qual copiou seu diálogo intitulado Timeu.
71
Quanto à (1ª) primeira fase, pode-se dizer que carece de dados e documentos perfeitamente autênticos.
Aristóteles, apesar de sua precisão, ou melhor, por causa de sua precisão em citar as opiniões dos outros,
muitas vezes expõe as dos pitagóricos, mas em nenhum lugar afirma que elas realmente pertençam a
Pitágoras, nem sequer expõe a doutrina própria dele; o que parece indicar que o Estagirita não tinha certeza
de que as opiniões e teorias pitagóricas correntes em seu tempo realmente pertencessem ao fundador da
escola.
Quanto à (2ª) segunda e à (3ª) terceira fases da escola pitagórica, abundam documentos mais ou menos
autênticos que nos permitem conhecer as opiniões de seus respectivos representantes, mas sobrecarregados
e misturados com uma infinidade de lendas e tradições fabulosas referentes a Pitágoras e sua doutrina.
Assim, como observa Zeller, a tradição acerca do sistema pitagórico e de seu fundador cresce em detalhes
à medida que se distancia no tempo ao que se refere; e, ao contrário, à medida que nos aproximamos do
tempo de origem do pitagorismo, a tradição e os detalhes se tornam cada vez mais escassos 78 até
desaparecerem quase por completo.

§ 38 Doutrina dos Pitagóricos

“Os que levavam e ainda levam – escreve Aristóteles79 – o nome dos pitagóricos, sendo por sua vez os
primeiros a cultivar a matemática, deram-lhe a preferência sobre todas as coisas e, embebidos nessas
especulações, pensavam que os princípios matemáticos eram também os princípios de todas as coisas”.
Estas palavras do Filósofo de Estagira, cujo testemunho é de grande peso nesta matéria, como sempre
que se trata de conhecer a doutrina dos Filósofos antigos, descobrem e expressam ao mesmo tempo a
carcaterística fundamental da escola pitagórica, a qual consiste precisamente no exagero da importância
das ciências matemáticas e na aplicação forçada e irracional de princípios e fórmulas matemáticas a todas
as ordens do ser e do conhecer. Daí o princípio fundamental desta escola, segundo o qual os números são
os princípios e a essência das coisas; e, consequentemente, a tendência e o empenho em explicar a origem,
a essência e as propriedades das coisas, pela origem, essência e propriedades do número e da quantidade.
Veja-se, para esclarecer, o seguinte resumo da doutrina pitagórica:

Noções gerais

1ª O número, o princípio geral das coisas, é dividido em ímpar e par. Os primeiros são mais perfeitos
do que os segundos, porque eles têm um começo, um meio e um fim, enquanto os números pares são
indeterminados e incompletos. O número par representa e contém o finito, o determinado; o número ímpar
representa e contém o ilimitado, o indefinido.

2ª Os números, além de constituir a essência real, o princípio imanente das coisas, também são seus
modelos ou arquétipos, tendo em vista que a ordem hierárquica dos seres corresponde à ordem e proporções
dos números, cujas propriedades, harmonia e relações estão encarnadas nas substâncias e entes que
constituem o mundo-universo.

78
“Com a extensão dos documentos – acrescenta o mencionado Zeller – muda também sua natureza. Correram desde o início
lendas maravilhosas acerca de Pitágoras; mas, com o passar do tempo, toda a sua história é transformada em uma série ininterrupta
de eventos extraordinários. Em sua origem, o sistema pitagórico apresentava o caráter de simplicidade e antiguidade, e estava em
harmonia com a carcaterística ou direção geral da Filosofia pré-socrática. Nas exposições posteriores, aproxima-se cada vez mais
das teorias platônicas e aristotélicas, a tal ponto que os pitagóricos da era cristã passaram a argumentar que Platão e Aristóteles
haviam recebido suas idéias de Pitágoras e lhe deviam suas descobertas... Portanto, essas exposições (dos filósofos pitagóricos, e
principalmente as dos neoplatônicos), não podem ser tomadas como fontes históricas dignas de fé, mesmo quanto ao fundo das
coisas. Devemos rejeitar as indicações que contêm, mesmo quando, consideradas em si mesmas, não careçam de plausibilidade...
E, no fundo, como podemos confiar, para circunstâncias acessórias, em escritores que nos enganam grosseiramente acerca do
essencial?” Die Philos. der Griechen, per. I, cap. II, § 1º.
79
“Qui appellati Pythagorici primi mathematicis operam dederunt, haec praeponebant, et in eis nutriti, eorum principia, entium
quoque cunctorum esse putarunt principia”. Metaphys., l. I, cap. III.
72
Em conformidade e como aplicação desta doutrina, os pitagóricos
a) estabeleceram uma espécie de correspondência matemática entre os entes do cosmos e os números.
O ponto [1], a linha [2], a superfície [3] e o sólido [4] correspondem e se referem aos quatro
primeiros números respectivamente; a natureza física ou puramente material corresponde ao número
cinco [5]; a alma, ao número seis [6]; a razão, a saúde e a luz, ao número sete [7]; o amor, a amizade,
a prudência e a imaginação, correspondem ao número oito [8]; a justiça responde ao número nove
[9]. Sabe-se também que os pitagóricos, aplicando essa relação cósmico-matemática ao mundo
astronômico, assumem que este consista em dez esferas celestes ou corpos que se movem em torno
de um fogo central (in medio enim ignem esse inquiunt), sendo um deles a terra, cujo movimento dá
origem à sucessão ordenada de días e noites, como diz Aristóteles: circulariter latam circa medium,
noctem et diem facere.
b) consideravam a harmonia como um dos atributos gerais dos seres; pois, assim como os números
implicam harmonia, isto é, unidade no múltiplo, a concordância de elementos diversos, também as
substâncias entranham ou contêm em si mesmas a pluralidade de elementos reduzidos à unidade.
Nesse sentido, pode-se dizer, e diziam os pitagóricos, que tudo é harmonia no mundo; que a
harmonia é uma propriedade de todas as coisas, tanto terrestres quanto celestiais.

3ª A unidade, princípio essencial e primitivo do número, também é o princípio essencial e primitivo das
coisas ou do Universo. É, portanto, imutável, semelhante a si mesmo, a causa universal de todas as coisas,
a origem e a razão suficiente para a perfeição delas. Esta unidade primitiva ou mônada [1], respirando o
vazio, produz a díade [2], a qual, por ser produzida e composta, é imperfeita e origem da imperfeição
inerente aos números pares e seres compostos. A díade representa ou simboliza para a Filosofia Pitagórica,
a matéria, o caos, o princípio passivo das coisas. É muito provável, no entanto, que essa doutrina não
pertencesse a Pitágoras, nem mesmo a seus discípulos antigos, como Filolau e Arquitas, mas seja uma
adição dos neopitagóricos, que amalgamaram as idéias e tradições de sua escola com as platônicas e
orientais.

4ª A tríade [3], a tétrade [4] e a década [10] representam também, para os pitagóricos, essências e
atributos das coisas. Mas entre esses, a década [10] constitui um dos símbolos pitagóricos mais importantes,
seja porque é a soma dos quatro primeiros números [1+2+3+4=10], seja porque expressa o conjunto de
todos os seres, ou do que poderíamos chamar de categorias da escola pitagórica, que são:
finito – infinito (ou, melhor, indefinido)
ímpar – par
uno – múltiplo
direita – esquerda
masculino – feminino
em repouso – em movimento
luz – trevas
bom – mau
quadrado (de mesma medida – não-quadrado (não perfeito, irregular)
Essas categorias põem em destaque a tendência dos pitagóricos de subordinar os seres e sua classificação
aos números e fórmulas matemáticas, aplicando-as a todos os tipos de seres e objetos, sejam morais ou
físicos, sensíveis ou puramente inteligíveis.

FOGO TERRA AR ÁGUA

73
5ª A unidade está para o número como o ponto está para a quantidade contínua: um ponto somado a
outro constitui a linha; um terceiro gera a superfície; e se a esses se acrescenta e sobrepõe um outro, têm-
se o sólido. As afixações matemáticas dos pitagóricos levaram-nos também a atribuir diferentes figuras
geométricas aos quatro elementos: assim, vemos que Filolau atribui ao fogo a forma tetraédrica, à terra a
forma cúbica, ao ar a forma octaédrica, à água a forma icosaédrica. Nesse sentido e desse ponto de vista,
os pitagóricos podem ser considerados precursores da escola atomística de Leucipo e Demócrito.

Deus e o mundo.

1º Nada há de mais sombrio e duvidoso do que a opinião dos pitagóricos acerca de Deus. A julgar por
algumas indicações e passagens, parece que eles admitiam a existência de um Deus pessoal, superior ao
mundo e independente dele; mas a julgar por outras passagens e testemunhos – certamente mais autênticos
e numerosos – é mais provável que eles não soubessem se elevar a essa noção de um Deus espiritual e
transcendente. Suas doutrinas sobre a alma universal do mundo, sobre a mônada (elemento essencial e
interno dos seres), sobre o mundo ou cosmos (que eles representam e explicam como um deus engendrado),
sobre o sol ou fogo central como o lugar ou residência da divindade (conforme o testemunho de Aristóteles),
tudo isso revela e nos faz suspeitar que a concepção pitagórica de Deus seja essencialmente panteísta, e que
o fundo dessa concepção seria a idéia emanatista que Pitágoras deve ter recolhido de suas viagens e
expedições ao Egito e ao Oriente. Confirma também esta opinião a idéia ou conceito de Deus que Cícero
atribui a Pitágoras80, a mesma que devemos presumir em seus discípulos mais antigos, ainda que os mais
modernos, isto é, os neopitagóricos dos primeiros séculos da Igreja, tenham se expressado com mais
precisão sobre esse ponto.

2º Para os pitagóricos, o mundo forma um conjunto


ordenado e um todo bonito e harmonioso, como já
sugerimos acima, sendo os primeiros a aplicarem
ao mundo-universo o belo e adequado nome de
cosmos (κόσμος), se se der crédito a Plutarco.
No centro deste mundo estaria o chamado
fogo central, em torno do qual se moveriam
dez grandes corpos celestes, dentre os
quais a Terra (em grego χθών) e outro
que eles chamam de contra-Terra81 (em
grego ἀντίχθων), contra a opinião geral
que faz da terra o centro imóvel do
mundo. Tenha em mente que, para os pitagóricos, o fogo central, e não o sol, como alguns acreditam
erroneamente, representavam o centro do mundo, o centro real do movimento da terra e do próprio sol.
A perfeição que eles atribuíram ao número dez e ao movimento circular determinou que os pitagóricos
atribuíssem esse número e esse movimento aos corpos e esferas celestes. O movimento regular e
compassado dessas esferas também produziria um som harmônico ou musical, que não é percebido e do
qual não se toma consciência, porque nosso ouvido seria acostumado a ele desde o nascimento, e também
porque o som, quando continuado, precisa de interrupção para ser percebido.

80
Assim se expressa Cícero: “Pythagoras, qui censuit (Deum) animum esse per naturam rerum omnem intentum, et commeantem,
ex quo nostri animi carperentur”. De Nat. Deor, lib. I, cap. XI.
81
Aristóteles, depois de citar a opinião daqueles que colocam a terra no centro do mundo, acrescenta: “Contra dicunt qui circa
Italiam incolunt, vocanturque Pythagorei: in medio enim, ignem esse inquiunt; terram autem astrorum unum existentem, circulariter
latam circa medium, noctem et diem facere. Amplius autem, oppositam aliam huic conficiunt terram, quam antichthona nomine
vocant, non ad apparentia rationes et causas quarentes, sed ad quasdam opiniones et rationes suas, apparentia attrahentes et tentantes
adornare...” De coelo, lib. IX, cap. XIII.
Pode-se ver por essas últimas palavras de Aristóteles que os pitagóricos de seu tempo tentaram preencher com hipóteses gratuitas
a lacuna que havia entre os fatos ou fenômenos da astronomia real e as teorias a priori de sua escola.
74
O mundo não é apenas um todo harmonioso e ordenado, mas também um todo animado, ou pelo menos
animado através da alma universal, que emana, por sua vez, do fogo central. Portanto, todos os seres
participam da vida em qualquer um de seus graus. É verdade que as notícias que temos sobre a autêntica
doutrina de Pitágoras e seus primeiros discípulos sobre a vitalidade de todos os seres, e até mesmo sobre a
existência e natureza da alma universal, são muito escassas e não menos confusas e inseguras.

§ 39 Psicologia e Moral dos Pitagóricos

1º A alma humana, que é uma emanação da alma universal, de acordo com a teoria da escola de
Pitágoras, não é engendrada ou produzida com o corpo, mas vem de fora; pode animar sucessivamente
corpos diferentes e também existir nas regiões etéreas por algum tempo sem estar ligada a nenhum corpo
humano ou animal, já que se sabe que os pitagóricos admitiam a mentepsicósis. Essa teoria, apesar da
natureza estranha e não científica de sua forma, contém e carrega dentro de si duas grandes idéias: a idéia
da imortalidade da alma humana e a de penalidades e recompensas após a morte.
Por outro lado, é muito possível que para a escola pitagórica, ou pelo menos para alguns de seus
representantes, não tenha sido nada mais do que a forma exotérica e como o símbolo de uma concepção
psicologicamente moral, a saber: que grande parte dos homens, em vez de subir para as regiões superiores,
inteligíveis e divinas através do exercício da razão, da livre vontade e da prática das virtudes, desce às
regiões inferiores, sensíveis e animais, mercê ao abuso de sua liberdade e, arrastados por seus vícios e
paixões , fazendo-se semelhantes a certos animais e assumindo, por assim dizer, a natureza destes, em
relação aos vícios e paixões predominantes. Neste conceito, a alma do homem que se distingue por sua
rapacidade, é a alma de um lobo; de um homem notável por seus instintos e atos de crueldade, dizemos que
é de um tigre e, portanto, das qualidades, vícios e paixões que carregam consigo a degeneração do homem
como um ser inteligente e livre, e sua assimilação moral com os animais.

2º É bem provável que os pitagóricos tenham distinguido duas partes da alma humana: uma superior,
pertencente à ordem inteligível, origem e sede da inteligência e vontade; outra inferior, pertencente à ordem
sensível, origem e razão dos sentidos e paixões. A primeira, isto é, a parte racional da alma, tem seu assento
na cabeça; a inferior reside em certas vísceras, mas principalmente no coração, ao qual atribuíram as
manifestações do apetite irascível, e no fígado, onde colocaram as paixões da parte concupiscível.

3º De acordo com o testemunho de Aristóteles, os pitagóricos definiram a alma como um número que
se move. É provável que, com essa definição, eles quisessem significar que a alma humana é uma essência
simples que tem em si o princípio de seus atos, ou seja, uma unidade dotada de atividade espontânea.

4º Em relação às suas preocupações constantes e afixações matemáticos, os pitagóricos costumavam


dizer que a virtude é uma harmonia que deve ser preservada através da música e da ginástica. A justiça é
um número perfeitamente igual, ou um número quadrado, dependendo da versão dos outros. Na ordem
político-social, o homem é a mônada ou a unidade [1], a família é a díade [2], a aldeia é representada pela
tríade [3] e à cidade corresponde a tétrade [4]. No entanto, através dessas fórmulas mais ou menos obscuras,
parece muito verdade que a escola pitagórica professava máximas morais bastante dignas e elevadas,
ensinando, entre outras coisas, que o bem consiste na unidade e harmonia das operações do homem e o mal
na falta dessa unidade; que o fim da vida é assimilação com Deus através da virtude; que o suicídio é
essencialmente mau; que o homem deve frequentemente examinar suas ações e que ele não deve se render
ao sono82, sem ter examinado suas ações durante o dia.

82
Na Carmina aurea Pythagorae, traduzida e comentada por Esteban ou Estefano Níger, diz-se: Nec somnum mollibus oculis jusus
inducas quam ter operum diurnorum singula animo percurras: quo profectus? libra, egi? quid imperfectum reliqui?
75
Jâmblico atribui também a Pitágoras a frase de que o amor à verdade e o zelo do bem são o maior
benefício que Deus foi capaz de conceder ao homem; mas é muito possível que esse belo pensamento se
deva, em vez de a Pitágoras, à atmosfera cristã que cercundava o discípulo que a põe em sua boca.
Parece, no entanto, que nem Pitágoras nem seus discípulos deveriam ter tido ideias muito precisas e
racionais sobre a liberdade humana, já que, se nos atermos aos monumentos pitagóricos mais ou menos
autênticos e, principalmente, ao conteúdo dos Versos de Ouro, devemos atribuir ao destino inexorável, não
apenas à morte (omnibus mortem fatu statutam cognosce), mas os demais acontecimentos da vida: ex
calamitatibus quas mortales fato patiuntur.

76
§ 40 A Escola Eleática

Xenófanes, contemporâneo de Pitágoras e natural de Cólofon na Lídia (atual Turquia), estabeleceu-


se na cidade de Velia ou Eleia cerca do ano 536 a.C., e daí a denominação de escola eleática à que ele
fundou e que foi continuada e desenvolvida por Parmênides e Zenão de Elea (460 a.C.), e depois por Meliso
de Samos (445 a.C), os principais discípulos de Xenófanes e os representantes mais notáveis desta escola.
Enquanto os filósofos da escola jônica tinham se proposto a investigar e resolver o como da existência
das coisas; os eleáticos tentaram investigar e resolver o porquê dessa existência, sua razão. Os primeiros,
dando por suposta a multiplicidade dos seres e a
realidade dos fenômenos, investigaram a razão As Vinte e Quatro Teses Tomistas
suficiente dessa multiplicidade e tentaran explicar Decreto da Sagrada Congregação dos Estudos,
sua geração e transformações; já os segundos se 27 de julho de 1914 (DH 3601-3604)
propuseram a investigar a própria existência da
multiplicidade real dos seres e a razão suficiente 1ª Tese
do devir (fieri) das coisas, se houver. O ato e a potência dividem o ente de tal modo que
A solução dada pela escola eleática para o tudo o que é, ou será Ato Puro ou necessariamente
problema filosófico posto dessa maneira é uma composto de potência e ato como princípios
solução essencialmente panteísta e idealista, se primeiros e intrínsecos.
nos ativermos sobretudo à doutrina de
Parmênides, que é, sem dúvida, o representante
2ª Tese
mais genuíno, lógico e completa da escola
eleática, como escola metafísica. O ato, porque é perfeição, não é limitado senão
O ser, se existe, dizia Parmênides, é pela potência (que é uma capacidade de perfeição).
necessariamente uno, eterno, absolutamente Por isso, na ordem onde o ato é puro, ele não pode
imutável e o próprio conceito de ser excluiria e ser senão ilimitado e único; onde o ato é finito e
negaria a possibilidade de toda geração, de toda múltiplo, ele entra em verdadeira composição com a
novidade no ser ou na substância, de toda potência.
pluralidade real83. A razão é a que se segue: o ser,
que se supõe ter começado a existir, ou surgiu do ser ou do não-ser. No primeiro caso, o ser geraria a si
mesmo, o ser surgiria de si mesmo, o que é impossível. No segundo caso, o ser sairia do não-ser, o que é
igualmente absurdo. Se o ser é mudado ou transformado em ser, é equivalente a dizer que, na realidade,
não muda, mas permanece sendo. Assim, só pode haver um Ser eterno e absolutamente imutável, e as
mudanças, transformações e multiplicação de seres são meras aparências às quais nenhuma realidade
responde. Nada pode recomeçar ou perecer. O ser (o mundo-universo) é um todo contínuo, eterno,
indivisível e incapaz de se mover no todo ou em parte; porque repugna o vazio, sem o qual o movimento
não é possível.
Este Ser único (o universo, o cosmos), assim como é eterno e único, é também absoluto, sem ter nada
que desejar ou receber fora de si mesmo84. Uma vez que a existência de dois seres realmente distintos seria
impossível, segue-se daí que o pensamento e a realidade são a mesma coisa, que pensar e ser são idênticos
(Fichte), e que a razão ou pensamento é a medida, ou melhor, a essência das coisas.
“O pensamento e o objeto do pensamento – escreve Parmênides em seu famoso poema – são a mesma
coisa... São, portanto, palavras vazias de sentido as que emprega a preocupação humana, quando fala de
nascimento e fim, de mudança de lugar, de transformação. A forma do Todo é perfeita: assemelha-se à
esfera em que o centro está igualmente distante de todos os pontos da circunferência85. Não há nada que
possa interromper a continuidade do real: não há vazio algum: não é possível tirar nenhuma parte do Todo,
porque em todas as partes é semelhante a si mesmo e sempre ao Todo.”
A teoria do conhecimento da escola elíática, e particularmente a de Parmênides, está perfeitamente
de acordo com sua teoria metafísica. Somente a razão conhece a verdade e a realidade: os sentidos nos

83
A essa teoria de Parmênides e sua escola, alude provavelmente Aristóteles quando diz: “Quaerentes enim philosophi primi
veritatem et naturam entium... dicuntque neque fieri eorum quae sunt, ullum, neque corrumpi, propterea quod necessarium est fieri
quod fit, aut ex eo quod est, aut ex eo quod non est: his autem utrisque impossibile esse; neque enim quod est fieri (est possibile),
st enim jam; et ex eo quod non est, nihil utique fieri, subjici enim quidpiam oportet. Et sic, neque esse multa dicunt, sed tantum
ipsum quod est”. Physic., lib. I, cap. X.
84
[N.T.] No que se aplica ao Próprio Ser Subsistente, a tese eleática é perfeitamente lógica e acabada e se encontra confirmada no
Decreto da Sagrada Congregação dos Estudos, como se pode constatar no quadro acima. Como carecia das noções aristotélicas de
ato e potência, Parmênides e sua escola não concebiam a possibilidade do movimento e estão certos: o movimento é, propriamente,
a passagem da potência (capacidade de perfeição) ao ato (perfeição); e onde não há potência não pode haver, igualmente,
movimento.
85
Talvez por esta comparação, Aristóteles, ao falar dos eleáticos, afirma que atribuíam a Deus a figura esférica.
77
fornecem uma representação falsa e aparente das coisas. O que se conhece pela razão constitui a ciência
(episteme), isto é, o pensamento verdadeiro e real das coisas: já o conhecimento aparente dos sentidos é a
opinião (doxa), que comunica às percepções sensíveis certa unidade e vínculo. Para os sentidos, o Universo
consta de dois elementos opostos representados pela luz e pelas trevas, pelo calor e pelo frio; mas, para a
razão, esse mesmo Universo é um ser único, uma unidade indivisível. Para os sentidos, há produções,
transformações e gerações de coisas através da combinação dos dois elementos mencionados, por causa da
vitória sucessiva da luz sobre as trevas: para a razão, e na realidade, essas transformações são meras
aparências e ilusões, porque o Universo, que é o único ser, não tem começo nem fim.
Zenão, amigo, discípulo e compatriota de
O ARGUMENTO DE AQUILES Parmênides, encarregou-se de consolidar e desenvolver o
(Simplício. Comentário à Física de caráter idealista do panteísmo eleático, um trabalho que
Aristóteles, 1014.10) ele realizou maravilhosamente, graças às armas
fornecidas por sua tão temida quanto sutil dialética.
O argumento é chamado de “Aquiles”, pelo Usando às vezes o diálogo, às vezes a forma silogística e,
fato de que Aquiles foi nele proposto, e o mais frequentemente, a redução ad absurdum, ele
argumento diz que é impossível para ele assumiu a tarefa de afirmar e defender a doutrina da
ultrapassar a tartaruga ao persegui-la. Pois, de unidade absoluta do ser contra todos os tipos de objeções
fato, é necessário que o que deve ultrapassar e inimigos. Passando da defesa ao ataque, comprazia-se
algo, antes de ultrapassá-lo, chegue primeiro em reduzir seus adversários ao silêncio por meio de
ao limite do qual o que está fugindo partira. procedimentos dialéticos, que, por sofísticos que fossem
Mas quando o que está perseguindo chegar a em parte, não deixavam de colocar os defensores da
esse ponto, o que está fugindo terá avançado multiplicidade de seres em sérios problemas.
um certo intervalo, ainda que seja menor do Com base na hipótese de que a linha e o espaço são
que o que está perseguindo avançou... E no compostos de pontos, ele negou a existência ou a
momento, novamente, em que o perseguidor realidade deste último, uma vez que deveria ser
tiver atravessado este [intervalo] que o
infinitamente grande e infinitamente pequeno; seria
perseguido avançou, neste momento,
infinitamente grande, porque é composto de partes
novamente, o perseguido terá atravessado
outro intervalo... E assim, cada vez que o infinitas, uma vez que é divisível in infinitum; também
perseguidor tiver atravessado o [intervalo] seria infinitamente pequeno, porque deveria ser composto
que o perseguido, por mais lento que seja, já de pontos, que, sendo indivisíveis, não poderiam formar
avançou, este também já terá avançado mais nenhuma extensão. Essa mesma divisibilidade infinita do
um pouco. espaço também lhe serviu como ponto de partida para
negar a existência e até mesmo a possibilidade de
movimento, fazendo uso, entre outros, do argumento de
Aquiles 86 . Não há necessidade de acrescentar que o
terrível polemista atacou com igual energia a realidade
objetiva dos fenômenos sensíveis, bem como a autoridade
e o valor dos sentidos em termos de conhecimento.
Parmênides é o representante mais genuíno e
completo da escola elíática, como dissemos acima, porque ele desenvolveu e sistematizou sua doutrina,
comunicando a ele ao mesmo tempo a forma metafísico-panteísta que constitui o traço característico e o
fundo essencial dessa escola. Mas nem por isso se deve esquecer que ao fundador, Xenófanes, cabe o mérito
de ter feito sérios esforços para purificar a idéia de Deus. É verdade que tais esforços foram relativamente
estéreis, por causa do princípio panteísta que informava o pensamento de Xenófanes; mas não é menos
verdade que o Filósofo de Colofonte descarregou golpes duros e acertados contra o politeísmo e o
antropomorfismo que o rodeavam.
A verdade é que, de fato, Xenófanes parece ter confundido a divindade com o céu (ad totum coelum
respiciens ipsum unum ait esse Deum), se dermos crédito ao testemunho de Aristóteles; a verdade é que ele
também ensinou que Deus não está nem em movimento nem em repouso, que não é finito nem infinito;
mas qual seja o significado dessas afirmações – que parecem obedecer às exigências do princípio panteísta
– é indubitável que o fundador da escola eleática ensinava explicitamente que Deus não é nem pode ser
mais que um só, entre outras razões, porque Deus é o mais perfeito e o melhor entre todos os possíveis, e

86
Esse argumento consistia em afirmar que, apesar de toda a sua ligeireza e de sua velocidade na corrida, o herói da Ilíada, não
conseguiria alcançar uma tartaruga colocada a curta distância de si e que começasse a se mover ao mesmo tempo. Suponha-se que
a distância que separa Aquiles da tartaruga seja de duas varas: ele não poderá alcançar a tartaruga, sem primeiro percorrer a primeira
vara; e não poderá percorrer esta, sem ter percorrido primeiro a metade dela, nem poderá percorrer essa metade sem ter percorrido,
antes, a metade desta última metade. Então, como a linha que representa a suposta distância entre Aquiles e a tartaruga consiste em
partes infinitas, uma vez que é divisível por metades in infinitum, verifica-se que, apesar de toda a sua velocidade, Aquiles nunca
poderia alcançar a tartaruga.
78
se houvesse muitos, não seria mais o mais perfeito; que Deus é eterno e imutável, incapaz de começo e de
término; que Deus é, por sua própria essência, razão e conhecimento, e também onipotente; e, por fim, ele
não apenas rejeitava, mas zombava, tanto daqueles que admitiram muitos deuses quanto daqueles que
atribuíram a eles a forma ou figura humana e, sobretudo, as paixões e os vícios dos homens. Daí sua
zombaria e sarcasmo contra poetas e não poetas que desonravam os deuses, atribuindo-lhes roubo, traições
e adultérios.

§ 41 Crítica à Escola Eleática

Já indicamos anteriormente a diferença de modo pelo qual a escola eleática levantou e resolveu o
problema filosófico em relação à escola jônica. Agora devemos acrescentar que o método científico também
é diferente e relativamente oposto nas duas escolas; porque enquanto o jônico é baseado principalmente na
observação e emprega o raciocínio a posteriori, o eleático procede a priori e é guiado por especulações
dialéticas da mais pura abstração. Naturalmente, a solução eleática, em harmonia com esse método e com
essa maneira de colocar o problema, é uma solução panteísta-idealista, que tem pouco em comum com a
solução jônica. A concepção da escola de Eléia é, de fato, um panteísmo idealista, cuja base fundamental,
cujo princípio gerador, é o mesmo de todos os sistemas panteístas, ou seja, a negação da multiplicidade de
um ser produzindo ou gerando outro ser.
A escola eleática, com sua absoluta unidade do Ser e a consequente negação da pluralidade real e das
gerações ou transformações substanciais, representa a antítese mais ou menos completa da escola jônica,
mas é principalmente antitética à Filosofia de Heráclito, cuja tese fundamental é a negação do ser e a
afirmação exclusiva do fieri, a afirmação do fluxo ou transformação perpétua da existência.
A concepção fundamental e a ideia mãe da Filosofia eleática é a unidade absoluta do Ser, embora
quando se trate de fixar a natureza e os atributos desse Ser único, o pensamento da escola pareça vago e
incerto; porque enquanto alguns a chamam e a explicam como divindade, outros dispensam esse aspecto e
tendem a identificá-lo com o mundo ou cosmos. Deste ponto de vista, a teoria eleática tem grande afinidade
e semelhança com a teoria de Vacherot. Em nossa opinião, o Ser único da escola eleática é o ser puro e
abstrato, concebido como real ou objetivado, mas sem atributos ou determinações de qualquer tipo: não é
nem matéria, nem espírito, nem inteligência, nem sentidos, nem corpo, nem alma; é Ser e nada mais do que
Ser, e neste conceito oferece bastante analogia com o Absoluto indiferente de Schelling.
Entre os principais representantes desta escola, Xenófanes se dedicou a combater o antropomorfismo
que os gregos atribuíram à divindade, ao mesmo tempo em que atacava seu politeísmo através da afirmação
do ser divino como uno; Parmênides desenvolveu e sistematizou, se bem que em um sentido idealista, a
concepção da unidade absoluta do ser; Meliso aplicou essa idéia ao mundo físico ou material, e Zenão a
defendeu contra os adversários e impugnadores. Xenófanes era o teólogo da escola eleática, Parmênides, o
metafísico, Meliso, o naturalista, e Zenão, o dialético.
Já vimos que este último adquiriu grande celebridade entre os antigos, por causa de seus famosos
argumentos contra a pluralidade dos seres, contra a veracidade dos sentidos, contra a realidade do espaço
e, sobretudo, contra a existência do movimento. Agora devemos acrescentar que as contradições que o
dialético de Eléia descobriu nessas coisas têm muita analogia com as famosas antinomias cosmológicas de
Kant nos tempos modernos. Assim como Zenão é o representante mais genuíno da escola eleática na ordem
dialética, Parmênides o é na ordem metafísica, como já foi dito, já que, como indicado pelo próprio
Aristóteles87, ele foi o único que se elevou à concepção racional e superior da unidade do ser, enquanto
Meliso buscava unidade na matéria, e Xenófanes se agitava em uma concepção vaga e confusa da mesma.

87
“Parmenides etenim, Unum secundum rationem attigisse videtur; Melissus vero, secundum materiam; Xenophanes autem,
quamquam prior istis (nam Parmenides ejus auditor fuisse dicitur), unum posuerat, nihil tamen clarunt dixit, et neutrius horum
naturam attigisse videtur, sed ad totum coelum respiciens, ipsum unum ait et esse Deum.” Metaphys, lib. I, cap. IV.
79
§ 42 A escola atomista

Já dissemos antes que, desde Heráclito, e em parte devido às suas doutrinas, ao lado da direção
espiritualista, representada por Anaxágoras, manifestou-se outra direção materialista representada por
Leucipo e Demócrito.
Leucipo (cujo nascimento e pátria são duvidosos88) iniciou, de fato, ou pelo menos impulsionou uma
verdadeira reação contra o idealismo eleático, acontecendo aqui o que geralmente acontece em casos
semelhantes: para combater e atacar o idealismo da escola eleática, Leucipo se colocou em um terreno
materialista, pretendendo explicar todas as coisas, sem exceção, através de átomos e movimentos. Em vez
de simplesmente restabelecer os privilégios da experiência contra as pretensões exclusivas das especulações
metafísicas e a priori, restaurando ao mesmo tempo ou preservando a pluralidade dos seres afirmada pela
escola jônica, Leucipo vê no mundo nada mais do que vazio e movimento, átomos indivisíveis e invisíveis
(sem prejuízo de possuírem diferentes formas ou figuras) e, por fim, substâncias materiais produzidas pela
composição e decomposição, união e separação desses átomos. A alma humana, como os outros seres, nada
mais seria do que uma substância composta de átomos brilhantes, esféricos e sutis, dos quais o calor, a vida
e o pensamento resultam no homem, fenômenos que são apenas diferentes manifestações do movimento, o
qual é inerente e como que essencial aos átomos de figura esférica.
De acordo com Diógenes Laércio, concedia Leucipo a todos os átomos um movimento essencial, e
as combinações que dão origem aos diferentes corpos se verificariam por meio de redemoinhos. Assim,
Bayle e Huet apontaram, não sem fundamento, que o sistema físico de Descartes tem sua origem na doutrina
de Leucipo. Este último, esquecendo que os átomos e seu movimento supõem e exigem uma causa primeira,
prescindia dela por completo, contentando-se em afirmar que o movimento dos átomos está sujeito a leis
necessárias e imutáveis. É bem sabido que, apesar de suas pretensões e alardes científicos, os positivistas e
materialistas nossos contemporâneos repetem a lição a deste antigo mestre, sem nenhum progresso neste
campo. A propósito, Aristóteles já chamava a atenção, em seu tempo, sobre essa hipótese arbitrária e
essencialmente não científica de um movimento que existe sem saber como, nem porquê (De motu vero
unde vel quomodo existentibus inest, omisserunt); sobre uma hipótese na qual não se levou em conta que,
para explicar a origem, constituição e transformação do mundo, não bastam o cheio e o vazio89, nem os
átomos com suas diferenças de ordem, figura e lugar, que é o que afirmava e supunha a escola atomista,
seguindo a seu fundador, Leucipo.
Em conformidade com essa teoria, Leucipo explicou a geração substancial e a corrupção – ou seja, a
formação e destruição de novas substâncias – por meio da união e separação de certos átomos: se houvesse
somente mudança de posição entre eles, resultariam alterações e mutações acidentais, segundo o
testemunho do supracitado Aristóteles: segregatione quidem et congregetione, generationem et
corruptionem; ordine autem et positione, alterationem.

§ 43 Demócrito

Demócrito se encarregou de completar e desenvolver a doutrina de Leucipo, fazendo aplicações à


psicologia e à moral. Abdera, uma colônia jônica, parece ter sido a pátria deste Filósofo, nascido cerca 460
a.C. Pondo de lado tradições e lendas sobre sua vida e vicissitudes, cuja veracidade histórica é difícil de
discernir90, o que parece indubitável é que seu amor pela ciência o levou a realizar longas e dolorosas

88
A opinião mais provável situa seu nascimento nos anos 500 a.C. E Mileto parece ser a cidade que com mais direito pretende ser
sua pátria.
89
“Leucippus vero ac ejus socius Democritus, elementa (rerum) quidem plenum et vacuum esse ajunt, dicentes hoc quidem ens,
hoc vero non ens; et rursus, ens quidem plenum et solidum, non ens autem vacuum Quare nihilo magis ipsum ens, quam ipsum
non ens esse ajunt; quia nec vácuo quam corpus. Haec autem causas entium esse, ut materiam. Et quemadmodum qui unum faciunt
subjectam substantiam, caetera passionibus ejus generant, rarum et densum, passionum (proprietatum) statuentes principia, simili
modo hi quoque differentias, causas caeterorum ajunt esse. Tem autem tres esse ajunt, figuram, ordinem, et situm.” Metaphys, lib.
I, cap. III
90
Entre outras, são dignas de nota as seguintes, às quais diversos historiadores e escritores antigos fazem alusão: O pai de Demócrito
era tão rico que hospedou em casa e obsequiou a Xerxes quando de seu retorno da expedição contra os gregos. Alguns supõem que,
para recompensar sua hospitalidade, o Rei da Pérsia lhe deixou alguns magos para servir de mestres a seu filho Demócrito. Diz-se
também que quando esse Filósofo retornou à sua terra natal, depois de longas peregrinações e viagens em busca da ciência, seus
compatriotas quiseram declará-lo louco, por ter dissipado sua grande fortuna em tais viagens; mas que, tendo lido publicamente
um de seus escritos, os que tentavam declará-lo louco e insensato ficaram possuídos de tanta admiração ao ouvir a leitura de sua
obra, que devotaram pensões e estátuas em sua honra. É possível que essa tradição seja a que deu origem à lenda, segundo a qual
80
peregrinações a países distantes e climas muito diferentes. São Clemente de Alexandria e outros autores
respeitáveis colocaram na boca deste Filósofo uma passagem na qual ele se congratula e orgulha de ter
viajado por mais países do que qualquer um de seus contemporâneos: “Eu vi – di-lo na tal passagem – a
maioria dos climas e nações. Eu ouvi os homens mais sábios, e ninguém me superou na demonstração da
composição das linhas, nem mesmo os egípcios, que se chamam arpedonaptas, entre os quais residi por
espaço de oito anos”. Graças a essas viagens científicas, à sua vocação determinada para a ciência e à
constância de seus estudos, Demócrito adquiriu uma grande riqueza de conhecimento, do qual é também
evidente indício o número prodigioso de escritos atribuídos a ele e citados por Diógenes Laércio.
Infelizmente, a elevação, pureza e verdade desse conhecimento não estão relacionadas à sua
quantidade. Sua teoria cosmológica coincide com a de Leucipo: átomos e vazio são os princípios de todas
as coisas; o primeiro como um princípio positivo; o segundo como um princípio privativo e condição do
movimento atomístico, o qual contém a razão imediata suficiente para a existência, diversidade, atributos
e qualidades dos seres. Para não se ver na necessidade de apontar uma causa para o movimento, dizia que
o tempo é infinito e o movimento eterno, independentemente do absurdo e contraditório desses conceitos.
Certamente para que houvesse proporção e harmonia entre espaço e tempo, como havia entre o átomo e o
movimento, um e outro eternos para Demócrito, ele teria afirmado – se dermos crédito a Cícero – que o
espaço em que o movimento dos átomos ocorre também é infinito91 ou absolutamente ilimitado.
De acordo com esses princípios – e se dermos crédito ao testemunho e às diversas passagens de
Aristóteles, Sexto Empírico, Cícero e Plutarco –, Demócrito também ensinou:
a) que a realidade primitiva, o verdadeiro e único ser, é o átomo;
b) que todos os seres e substâncias visíveis são corpos ou agregados de átomos;
c) que a constituição, origem e desaparecimento ou morte dessas substâncias depende
exclusivamente da união, várias combinações e separação de átomos e, portanto, que o que é
chamado de geração e corrupção de substâncias não existe no sentido próprio da palavra;
d) que o que é chamado de nascimento e morte em animais e no homem, não tem mais fundamento
ou significado mais real do que a reunião e separação de átomos sob certas condições de número,
relacionamento e movimento.
À dupla hipótese do tempo infinito e do movimento eterno, Demócrito acrescentou a do número
infinito de átomos e suas figuras. E confiando ou partindo dessa tripla hipótese, o Filósofo de Abdera
afirmou que existem muitos mundos, entre os quais alguns eram semelhantes entre si e outros
dessemelhantes, que alguns não tinham sol para iluminá-los, enquanto outros tinham muitos sóis. Também
supunha que esses mundos estariam sujeitos a vicissitudes análogas às experimentadas pelos animais e pelo
homem, de modo que, em um determinado momento no tempo, alguns desses mundos estariam em seu
período de crescimento, outros no auge de sua grandeza e perfeição, outros em um estado de declínio e em
processo de dissolução.
Embora alguns críticos e historiadores da Filosofia, tanto antigos quanto modernos, tenham
acreditado que Demócrito considerava o vazio como uma entidade real e positiva, é muito mais provável,
se não verdade, que ele só quisesse sugerir que o vazio realmente existe, ou seja, que a existência do vazio
absoluto é uma verdade.
Na ordem psicológica, Demócrito ensina que a alma do homem é uma substância composta de átomos
sutis e de figura esférica, como aqueles que constituem o fogo (infinitis enim existentibus figuris et atomis,
quae speciei rotundae, ignem et animam dicit), segundo afirma Aristóteles. A alma deve ser concebida
como um corpo sutil que existe dentro de um corpo mais grosseiro, isto é, dentro do corpo humano,
espalhando e penetrando em todas as partes dele, sem prejuízo de produzir diferentes funções vitais em
seus diferentes órgãos e membros. O calor vital e a mobilidade perpétua que acompanham a alma são
devidos à figura esférica dos átomos que entram em sua composição92, porque esta é a figura que mais se
presta ao calor e ao movimento.
O pensamento, a consciência e a sensação são o resultado da agregação ou combinação diversificada
dos átomos que constituem a substância da alma, e também são a razão e a origem suficientes de suas
variações, de modo que os diferentes fenômenos psíquicos estão relacionados a essas combinações
atômicas. Assim, por exemplo, quando alguns dos átomos que compõem a substância da alma deixam o

os de Abdera imploraram a Hipócrates que curasse a loucura de seu concidadão Demócrito. De acordo com outra lenda, esse
Filósofo arrancou seus olhos para evitar melhor as distrações.
91
Eis aqui suas palavras, referindo-se a Demócrito: “Ille atomos quas appellat, id est, corpora individua propter soliditatem, censet
in infinitio inani, in quo nihil summum, nec infimum, nec medium, nec ultimum, nec extremum sit, ita ferri, ut concursionibus inter
se cohaerescant.” De finib., lib. I, cap. VI
92
Referindo-se a este ponto da teoria de Demócrito, o já mencionado Aristóteles escreve: “Harum atomorum autem sphaerica,
animam (constituunt), propterea quod maxime possunt per totum penetrare hujusmodi figurae, et movere reliqua, cum moventur et
ipsa.” De Anima, lib. I, cap. III.
81
corpo, sobrevêm os sonhos e os estados morbosos, que carregam consigo a falta de consciência. Enquanto
os átomos de alma residem dentro do corpo, o homem tem perfeita consciência de si mesmo;
consequentemente, quando todos esses átomos se separam e fogem do corpo, o que chamamos de morte
acontece. Como o pensamento, a consciência e a sensação não pertencem aos átomos por si mesmos e em
si mesmos, mas são o resultado de sua combinação e agregação, quando os átomos das almas se separam
uns dos outros e do corpo em que residiam anteriormente e para o qual viviam, esses poderes e atributos
desaparecem e, com eles, a personalidade humana. Porque não é sem fundamento que Ueberweg afirma
que o movimento circulatório da alma e dos átomos luminosos sustentados pela inspiração e expiração,
representa e constitui o processo e a duração da vida e suas manifestações93, segundo a teoria de Demócrito.
Em boca de Demócrito, a palavra espírito não significa nem uma força suprema e criadora do mundo,
nem mesmo um princípio da natureza superior ao movimento mecânico, essencialmente diferente dele, mas
como que uma matéria mais sutil e brilhante, a par de outras mais grosseiras, ou, se preferir, um fenômeno
que resulta das propriedades matemáticas de certos átomos, considerados em suas relações com outros de
diferentes naturezas e figuras.
Os deuses são para o Filósofo de Abdera, seres análogos à alma em sua origem e composição, sem
outra diferença a não ser serem organizados de forma mais sólida e ter uma vida útil mais longa, sem
estarem livres de decomposição e morte. Esses deuses, embora sejam superiores ao homem e às vezes se
comuniquem com ele através de sonhos, não devem inspirar nenhum medo, já que, além de serem mortais
como nós, estariam sujeitos, como os demais seres, à lei suprema e fatal do destino (fatum), isto é, à lei
imutável do movimento atomístico eterno, necessário e universal ao qual todas as coisas estão sujeitas.
Aristóteles afirma que Demócrito identificava o entendimento com os sentidos: afirmação que está
em perfeito acordo com a doutrina exposta até agora, não menos que com sua teoria do conhecimento.
Verifica-se isso, na opinião de Demócrito, por meio de imagens sutis que passam dos objetos para nossos
sentidos e destes para a alma, determinando no primeiro as sensações ou percepção sensível dos corpos e,
no segundo, o que chamamos de conhecimento intelectual. Não sabemos nada sobre a verdadeira essência
das coisas; pois, através da compreensão, conhecemos apenas a existência dos átomos e do vazio. As
percepções dos sentidos são meras modificações ou afeições subjetivas, e nada nos ensinam acerca da
realidade objetiva das propriedades que atribuímos aos corpos. Calor, frio, amargo, doce, etc. não são nada
mais do que nomes que damos às modificações de nossos sentidos (Locke - Descartes - Kant), mas não
qualidades reais dos corpos. Perceber ou conhecer as próprias coisas, conhecer a realidade objetiva pertence
exclusivamente à razão, a única capaz de perceber e demonstrar a essência e a existência dos átomos, do
movimento e do vazio.
A moral deste Filósofo está toda em uma tranquilidade mental egoísta, isto é, no amor bem
compreendido e no prazer dos prazeres. Evitar e apartar de si tudo o que possa perturbar o ânimo, ou que
possa levar a algum trabalho, algum desgosto, alguma tristeza, alguma comoção violenta, é isso que
constitui o bem para o homem: aqui está em que consiste a virtude. A intemperança e os prazeres sensuais
são vituperáveis, mas é porque e na medida em que produzem satisfação temporária, seguida de desgosto e
saciedade, que excluem a tranquilidade e a plena satisfação do espírito. Daí também que, se ações injustas
devem ser evitadas, é por causa do medo da punição e do sentimento de tristeza interna que eles deixam
para trás. Deve-se dizer que Demócrito também rejeitou o casamento e o amor à pátria, tendo em vista os
desgostos, empregos, cuidados e ansiedade que essas coisas carregam consigo. É sabido que as escolas
revolucionárias e os ateus do nosso século, defensores do amor livre e da pátria universal, sem fronteiras
ou separação de nações e estados, fizeram tanto progresso a ponto de não fazer mais que reproduzir as
doutrinas do Filósofo ateu e materialista, sobre cujo túmulo mais de vinte séculos já se passaram.

§ 44 Crítica ao Atomismo

A escola atomista representa, como indicado, uma reação natural contra os exageros idealistas,
dialéticos e panteístas da escola eleática. Ela poderia ter ocupado um lugar mais honroso na História da
Filosofia, se depois de rejeitar o panteísmo e o abuso do método puramente idealista e apriorístico dos
eleatas, tivesse se dedicado a concluir a Filosofia e as ciências em harmonia com o impulso e as correntes
de Anaxágoras. Em vez de adotar a marcha e a direção teísta-espiritualista do Filósofo de Clazomenes,
Demócrito apenas abandonou a concepção hilozoísta dos antigos jônios e rejeitou a concepção monista e
idealista de Eléia, para a substituir por uma concepção essencialmente materialista e atéia.

93
“Durch das Einathmen schöpfen wir Seelenatome aus der Luft, durch das Ausathmen geben wir welche an sie ab, und das Leben
besteht so lange, als dieser Process andauert.” Grundriss der Geschich. der Phil., Tomo I, p. 74.
82
Embora a teoria do conhecimento ensinada por esta escola, e principalmente por Demócrito, encerre
germes e tendências de ceticismo, o Filósofo de Abdera não pode ser contado de forma justa entre os céticos
absolutos, já que seu ceticismo se refere apenas à objetividade de certas qualidades94, enquanto percebidas
pelos sentidos. Cícero ou modificou ou entendeu mal o pensamento de Demócrito, quando escreveu a seu
respeito: Ille, verum esse plane negat.
Se é pouco exato o juízo daqueles que fizeram de Demócrito um defensor do ceticismo, a opinião
daqueles que assumem que a sua teoria do conhecimento seja essencialmente sensualista é ainda menos
precisa e mais arriscada. Pelo que apontamos acima acerca desse assunto, é fácil reconhecer que a
concepção de Demócrito sobre esse ponto é mais apriorística e racional ou inteligível do que sensual e
empírica. Para ele, os sentidos só percebem impressões subjetivas e, no máximo, fenômenos e efeitos dos
corpos, mas não conhecem a essência e os atributos destes, muito menos os elementos primitivos da
realidade cósmica; porque essa realidade consiste em átomos e movimentos condicionados pelo vazio, e só
a razão é capaz de conhecer a existência, a essência e os atributos desses três princípios cósmicos.
Acrescente a isso que não é crível que Demócrito, que rebaixava o alcance dos sentidos e das faculdades
do conhecimento, tenha atribuído a eles força suficiente para perceber a eternidade do movimento e a
infinitude do vazio.
Não é necessário explicar que o vício capital da escola atomística de Leucipo e Demócrito é o mesmo
que sempre palpita e palpitará no fundo de toda escola materialista e atéia, ou seja, a hipótese gratuita de
um movimento sem começo, sem causa e sem qualquer razão suficiente95, unida a outras hipóteses não
menos gratuitas nem menos racionais. De fato, a base geral, a essência da Filosofia de Leucipo e Demócrito
– como geralmente é o caso de toda a Filosofia materialista – reduz-se a uma dupla hipótese arbitrária: a
existência do átomo com tais ou quais propriedades e atributos – propriedades e atributos que ninguém viu
ou pôde ver – e a existência do vazio absoluto como elemento ou, ao menos, como condição essencial dos
seres – hipótese tão contrária à razão e à experiência como a dos átomos – e, por conseguinte, a existência
de um movimento que entra repentinamente em cena sem se saber por que e sem que se lhe assinale uma
origem ou razão suficiente. De resto, esta escola é lógica em suas deduções e na aplicação de seus
princípios, negando a existência de Deus, a providência, a espiritualidade e a imortalidade da alma humana,
assim como reduzindo a moral a uma questão de cálculo, e ao confundir e identificar a vida e o pensamento
com o movimento dos átomos.
A teoria psicológica de Demócrito apresenta, além de seu materialismo, o sério defeito de tornar a
alma meramente passiva na formação do conhecimento, que vem até nós e nos é imposto por natureza
externa, sem a intervenção da espontaneidade do nosso espírito.
Embora Laércio afirme que Demócrito tenha tido muitos discípulos e seqüazes de sua doutrina,
nenhum homem notável aparece entre eles até o advento de Epicuro, que já pertence a outra época
filosófica. Metrodoro de Quio e Diágoras de Melos, que são os mais famosos discípulos e partidários de
Demócrito, só se fizeram notar por terem desenvolvido os germes do ateísmo e do ceticismo contidos na
doutrina de seu mestre.

§ 45 Empédocles

Empédocles, que, além de Filósofo, foi médico e poeta, nasceu em Agrigento, na Sicília, e buscou a
morte precipitando-se no Etna, desejando ser tido por uma divindade, conforme a tradição popular, apoiada

94
O próprio Sexto Empírico, apesar de seu ceticismo e do interesse natural que deveria ter em autorizar seu sistema com nomes
respeitáveis, reconhece que Demócrito não pertence propriamente à escola cética. “Parece a alguns – escreve ele – que Demócrito
raciocina como os céticos, porque ele diz que o mel parece doce para alguns e amargo para outros; mas a escola de Demócrito dá
a essas expressões um significado muito diferente do dos céticos: isso significa apenas que nenhuma qualidade reside no próprio
mel, enquanto nós [os céticos] entendemos que o homem ignora se essas mesmas qualidades ou algunas delas pertençam às coisas
aparentes. Há ainda outra diferença ainda maior entre esta escola e a nossa, já que esta escola, embora comece por apontar a
contradição e a incerteza que reinam no testemunho dos sentidos, afirma, no entanto, de maneira explícita, que os átomos e o vazio
realmente existem."” Hipot. Pyrrhon, lib. I, cap. XXX.
95
Ao talento perspicaz de Aristóteles não poderia passar despercebido esse vício radical das escolas materialistas. Assim, ele
chamava a atenção de seus contemporâneos para a gratuidade das afirmações da escola atomista quanto à existência fortuita e sem
origem do movimento cósmico, enquanto, por outro lado – e por uma óbvia inconsistência – pretendia explicar certas mutações
particulares por meio de movimentos fixos e até mesmo através da influência ou ação da inteligência. “Sunt autem quidam, qui et
coeli hujus, et mundanorum omnium causam esse ponunt Casum; a casu enim fieri dicunt revolutionem et motum qui discrevit et
constituit in hunc ordinem Universum. Et valde hoc ipsum admiratione dignum est, quod dicant ipsa quidem animalia ac plantas a
fortuna nec esse, nec fieri, sed aut naturam, aut intellectum, aut quidpiam tale aliud esse causam; non enim quodvis ex semine
unoquoque fit, sed ex tali quidem olea, ex tali autem homo: coelum autem et diviniora sensibilium a casu fieri.” Physic., lib. I, cap.
II.
83
pelo testemunho de alguns escritores, uma tradição aparentemente aceita por Horácio, o poeta de Venúsia,
quando escreve:
Deus immortalis haberi
Dum cupit Empedocles, ardentem frigidus Aetnam
Insiluit.

Alguns o tomam por discípulo de Pitágoras e outros de Parmênides; mas seja como for, certo é que
sua Filosofia representa uma espécie de fusão sincrética entre o elemento pitagórico, o eleático e o jônico,
interpretado este último no sentido e com as modificações que recebeu de Heráclito. Aproxima-se dos
eleáticos, negando o fluxo perpétuo de Heráclito; rejeitando, como Xenófanes, o antropomorfismo da
divindade, negando todo valor e importância ao conhecimento sensível e até concebendo o mundo como
um ser universal, esférico, único e imóvel em si mesmo, embora ao mesmo tempo dando origem às
transformações mais ou menos reais das coisas através do amor e da discórdia, que produzem e determinam
as transformações sensíveis e a pluralidade física do único Mundo.
Com os pitagóricos, admitia uma inteligência divina e uma alma universal espalhada por todo o
cosmos e origem das almas humanas, bem como a transmigração das almas e a existência de diferentes
tipos de gênios ou demônios. Ele também concorda com Pitágoras e sua escola por causa da importância
que atribuiu à unidade, considerada por Empédocles como o primeiro princípio das coisas e como o
continente dos quatro elementos, princípios secundários e materiais das coisas, e também por causa de suas
afixações pelo simbólico. Como os pitagóricos, o Filósofo de Agrigento gosta de formas simbólicas e
geralmente faz uso de expressões mitológicas na ciência, dando, por exemplo, o nome de Juno à Terra, o
de Nestis à água, chamando Plutão ao ar e Júpiter ao fogo.
Finalmente, em harmonia com a direção e as tendências da escola jônica, ele admitiu a existência de
quatro elementos primitivos das coisas, terra, água, ar e fogo; e, seguindo o exemplo de Heráclito, deu a
este último um papel muito importante e preferencial na produção das coisas. De resto, a linguagem
simbólica e a maneira poética com que o Filósofo de Agrigento registrou suas ideias, não permitem discernir
com total certeza suas verdadeiras opiniões sobre certas questões, que parecem resolvidas mesmo em um
sentido contraditório96, ou pelo menos de difícil conciliação. Assim, nós o vemos, por um lado, falando
sobre os quatro elementos e até mesmo dando-lhes nomes divinos (Júpiter, Juno etc.), atribuindo a eles, em
união com o amor e o ódio, a produção e a pluralidade de substâncias; e, por outro lado, o vemos se referir
e como que absorver e identificar todas as coisas em uma unidade superior.
De resto, não é de surpreender que encontremos contradições na doutrina de Empédocles, já que
Aristóteles97 também as encontrou, apesar de estar em condições mais favoráveis do que nós para conhecer
seu pensamento.
Mesmo no que diz respeito às ideias e afirmações que constituem, por assim dizer, a base e o fundo
essencial de sua teoria cosmológica, o pensamento de Empédocles não era constante, muito menos lógico,
a julgar pelo que relata o Estagirita, excepcional testemunha na matéria. Este, depois de afirmar que, para
Empédocles, os quatro elementos são a matéria ou substância das coisas, assim como que a amizade e a
inimizade, ou concórdia e discórdia, representam a causa eficiente de suas mutações e diferenças, e depois
de assumir que a função da amizade é unir, e a da inimizade ou discórdia é separar e dissolver, ainda assim,
em outros lugares de seus escritos, vem a dizer que a amizade separa e a inimizade ou discórdia une: Multis
enim in locis apud eum(Empedocles), amicitia quidem disjungit, contentio vero conjungit.

Parece mais provável, contudo, que – deixando de lado certas idéias sobre a origem, queda e
transmigração das almas, idéias que pertencem mais às tradições místico-religiosas que Pitágoras trouxe do
Oriente do que a seu sistema filosófico – a tese doutrinal e filosófica de Empédocles seja resolvida em um
mecanismo materialista. Segundo ele, não é apenas o conjunto dos corpos que é composto e resulta dos
quatro elementos, mas também o dos espíritos, ou, pelo menos, a alma humana, que conhece na medida em

96
É sabido que Empédocles expôs seu sistema em um ou mais poemas, dos quais conhecemos apenas alguns fragmentos,
preservados por escritores antigos. Supõe-se geralmente que o que temos hoje com o título de Expiações faça parte de um grande
poema sobre a Natureza. Alguns críticos atribuíram a ele os famosos Versos Áureos, relacionados à doutrina pitagórica; mas essa
opinião carece de uma base sólida.
97
Veja-se como prova uma das várias passagens em que ele destaca as contradições do filósofo siciliano: “Empedocles igitur ipse,
videtur contraria dicere, et ad apparentia, et ad seipsum. Simul enim dicit alterum ex altero non fieri elementorum ullum, sed alia
omnia ex his: simul autem, in unum cum junxerit naturam omnem, praeter litem, ex uno fieri rursus unumquodque.” De Gener. et
Corrupt., lib. I, cap. I.
84
que contém em si os quatro elementos (dos quais consistem as coisas conhecidas) e as duas causas
motoras98, ou seja, amizade e discórdia.
Acreditamos, portanto, que não é muito fundamentada nem muito exata a opinião de Lange quando
escreve:
Empédocles de Agrigento não deve ser considerado como materialista, porque em sua teoria
a força e a matéria ainda estão sistematicamente separadas. Ele foi provavelmente o primeiro,
entre os gregos, a dividir a matéria em quatro elementos, teoria que deve a Aristóteles
vitalidade tão tenaz, que até hoje se encontram vestígios dela na ciência. Além desses
elementos, Empédocles admitiu duas forças fundamentais, o amor e o ódio, encarregadas, na
formação e destruição do mundo, uma delas de atração e outra de repulsa. Se Empédocles
tivesse considerado essas forças como qualidades dos elementos, poderíamos facilmente
colocá-lo entre os materialistas... mas essas forças fundamentais são independentes da matéria,
que triunfam alternadamente em grandes intervalos. Quando o amor reina como mestre
absoluto, todos os elementos reunidos desfrutam de paz harmoniosa e formam uma imensa
esfera: se o ódio prevalecer, tudo é separado e disperso99.
Parece-nos muito duvidoso que Empédocles tenha considerado essas duas forças separadas e
independentes da matéria, como Lange supõe, sendo muito mais natural e mais conforme ao conjunto e às
aplicações do sistema deste Filósofo supor que ele só designou com os nomes de amor e ódio – em harmonia
com seu estilo poético e figurativo – as forças de atração e repulsa inerentes à matéria e não separadas dela.
De outra parte, e com maior abundância, nosso modo de ver neste ponto é confirmado pelas ideias
cosmogônicas do Filósofo de Agrigento, idênticas em substância às que as várias escolas materialistas
professaram. Na teoria de Empédocles, o amor e o ódio, quer dizer as forças que produzem a união e a
separação dos elementos e seres, a formação e destruição dos mundos, funcionam cegamente e sem sujeição
a um determinado plano ou propósitos preconcebidos. A formação dos corpos se deve à colisão acidental
dos elementos produzidos e determinados pelas duas forças mencionadas. Os organismos representam
ensaios casuais e combinações da natureza, que alternadamente formam e destroem suas partes e órgãos,
até que se unam acidentalmente da maneira apropriada a constituir um organismo capaz de se reproduzir,
em cujo caso se conserva, perecendo e desaparecendo os seres que representam como que suas tentativas e
ensaios (Lamarck - Darwin), os organismos anteriores e imperfeitos.
A julgar pelo que Aristóteles indica em seu tratado De sensu et sensato, Empédocles cria que a visão
se verifica por meio da luz, que, saindo do olho, ilumina os corpos externos – opinião que S. Alberto Magno
também atribui a Empédocles100 em termos ainda mais explícitos, quando afirma que, para ele, a luz que
sai da nossa vista preencheria todo o hemisfério que está acima do horizonte do espectador: Concessit…
quod a visu egreditur pyramis luminis, quae implet totum haemispherium et sufficit ad omnia visibilia
contuenda.

98
Este ponto não deixa dúvidas, segundo o testemunho terminante de Aristóteles, que cita as próprias palavras do Filósofo de
Agrigento: “Empedocles quidem ex elementis omnibus esse autem et unumquodque horum animam, sic dicens: Terra quidem
terram cognoscimus, aqua autem aquam, aethere vero aethera Divuum, sed igne ignem lucidum: concordiam autem concordia,
discordiam vero discordia tristi.” De Anima, lib. I, cap. III.
99
Histoire du Material., trad. Pommerol, Tomo I, cap. I.
100
“Et opinio quidem, escribe este, Empedoclis fuit haec, quod dixit visum (organum visus) esse ignis naturae, a quo continuo
emittitur lumen sufficiens ad omnium visibilium discretionem. Cum autem, ab omni luminoso egrediatur lumen ad modum
pyramidis formatum, dicebat quos ab oculis egrediuntur tot pyramides, quot visibilia videntur; basis autem illius pyramidis, ut
dixit, est res visa, et conus est in puncto oculi.” Opera omn., tomo V, trat. I, cap.V.
85
§ 46 Os sofistas

Originalmente, o nome de sofista não trazia consigo a ideia desfavorável que hoje lhe atribuímos,
pois esta denominação era dada àqueles que faziam profissão de ensinar a sabedoria ou a eloqüência.
Contando apenas a partir do tempo de Sócrates e Platão, o sofista tornou-se um homem que faz ostentação
e profissão de enganar os outros por meio de malandragem e sofisma; que considera e pratica a eloqüência
como meio de lucro; que se gaba de defender todas as causas, e que procede em seus discursos e em suas
ações como se a verdade e o erro, o bem e o mal, a virtude e o vício fossem coisas, ou inatingíveis, ou
convencionais, ou indiferentes. Tais eram os que na era socrática apareciam em Atenas, depois de percorrer
vilas e cidades, ostentando sua profissão e sua habilidade sofística.
Por uma combinação de circunstâncias especiais, Atenas tornou-se o ponto de encontro e o lar adotivo
dos sofistas: a maneira solene, pública e ruidosa com que expunham suas teorias, o brilho de sua eloqüência,
os aplausos que os seguiam de todos os lados, as máximas morais – ou melhor, imorais –
que professavam, tudo estava em perfeita harmonia e relação. O estado social, religioso
e moral da cidade de Minerva; a heróica luta que travara em defesa da liberdade dos
gregos; os nomes de Miltíades e Temístocles; os dias de Maratona e de Platéia; o
triunfo de Salamina excitaram maravilhosamente o entusiasmo dos atenienses,
desenvolvendo a sua atividade em todos os sentidos, despertando e animando o
gênio da ciência, da indústria e das artes, fizeram da pátria de Sólon101 (imagem ao lado)
a pátria comum e a capital intelectual e moral de toda a Grécia. As riquezas e
tesouros da Ásia e da Pérsia, do continente helênico, das ilhas confederadas
afluíram para ela, derramando em seu seio a opulência e, com isso, o luxo, a
facilidade e o relaxamento dos costumes públicos e privados. Os últimos
representantes da escola fundada por Tales também acorreram a ela, deixando a Jônia,
ameaçada tanto pelo despotismo persa quanto pelas extorsões dos próprios gregos. Os
sucessores de Demócrito, os de Parmênides e os últimos resquícios do pitagorismo também se aglomeraram
em Atenas, alguns atraídos pelo brilho e cultura da metrópole intelectual da Grécia, e outros forçados pela
discórdia civil em sua terra natal. Acrescente-se a isso a supremacia política exercida por Atenas, o prestígio
da vitória que acompanhou suas armas por toda parte e o esplendor com que ungiram sua fronte
historiadores como Heródoto e Tucídides, poetas como Sófocles e Eurípides, artistas como Fídias e
Praxíteles. Acima de tudo, tenha-se em mente que foi o foco de todas as intrigas políticas, e reconhecer-se-
á que aquela cidade estava nas condições mais favoráveis para ser visitada e explorada pelos sofistas, e para
servir de palco aos seus empreendimentos.
Entre as principais causas que contribuíram para o surgimento dos sofistas nesta época, pode-se
contar também o estado da Filosofia então: a luta entre as escolas jônica e pitagórica, entre a eleática e a
atomística; a contradição e oposição de suas doutrinas, direções e tendências; as fórmulas matemáticas, o
esoterismo e as doutrinas simbólicas da escola de Pitágoras; as especulações abstratas e apriorísticas dos
eleatas, bem como sua negação radical da experiência e dos sentidos; a doutrina diametralmente oposta dos
atomistas e de Heráclito, juntamente com as sutilezas dialéticas de Zenão, não tinha como não conduzir –
e, de fato, conduziu – ao ceticismo em uma sociedade predisposta a prescindir da verdade e da virtude,
pelas diversas causas que existem. Assim sucedeu na realidade, e o estrondo das lutas entre pitagóricos e
jônios, entre eleatas e atomistas ainda não havia cessado, quando já ressoava a voz de Protágoras, Górgias
e diversos outros sofistas que andavam pelas ruas da cidade de Sólon, seguidos por numerosos e brilhantes
jovens, ansiosos por ouvir seus discursos pomposos, e mais ainda por ouvir e aplaudir suas máximas
morais102, que estavam em perfeita harmonia com os gostos e costumes da sociedade ateniense da época.
Sabe-se que, desde Platão, o nome sofista representa para todos os escritores em todas as épocas e
escolas filosóficas, a imoralidade sistemática, o caráter venal, o charlatanismo filosófico, a dialética e as
teorias falaciosas. Em nosso século, Hegel, que não sem razão foi chamado por alguns de o grande sofista

101
[N.T.] Alcunhado de “árbitro da constituição” por Aristóteles, Sólon (Σόλων, 638 a.C. – 558 a.C.) é um dos Sete Sábios e
configurou, como estadista, a estrutura da democracia ateniense com a criação da Eclésia (Εκκλησία).
102
Em um de seus diálogos, Platão nos apresenta o sofista Protágoras, comovendo toda a pólis com sua chegada. Cálias, um dos
principais cidadãos de Atenas, o recebe e o apresenta em sua casa, que se mostra repleta de convidados que acompanham o
renomado sofista. Ele é cercado e seguido o tempo todo e por todos os lados por vários outros sofistas, entre eles Hípias de Eléia e
Pródico de Chios; não poucos estrangeiros vieram com ele ou atraídos pela fama; multidão de cidadãos, os mais ilustres de Atenas,
entre os quais dois filhos de Péricles e o jovem Alcibíades: “Atrás deles – acrescenta Platão – marchava uma multidão de pessoas,
a maioria estrangeiras que Protágoras sempre carrega consigo e que, como outro Orfeu, arrasta com o encanto de sua voz ao passar
pelas cidades. Ao ver aquela multidão, experimentei um prazer especial, observando com que discrição e respeito ele andava
sempre de costas: quando Protágoras se virava no passeio, eu os via espalhados em silêncio religioso, esperando que ele passasse
para segui-lo. » Opera Plat. Protag. seu de Soph.
86
de nosso tempo, tentou reabilitar o nome e a memória dos
antigos sofistas, tarefa na qual foi imitado e
seguido por muitos de seus seguidores,
apoiadores e também por alguns outros
críticos e historiadores, entre os quais se
destacam Grote em sua História da Grécia e
Lewes em sua História da Filosofia. É possível
que a gravidade austera de Platão, superexcitada
pela morte injusta de seu mestre, tenha
sobrecarregado um pouco as cores ao falar dos
sofistas em seus diálogos, e principalmente ao
tratar das lutas de Sócrates contra eles; mas disso não
se segue de forma alguma que devam ser considerados
quase como modelos e genuínos representantes da
Filosofia, de seu método e de seus princípios morais,
como afirmavam Hegel, Lewes e Grote.
Além disso, mesmo assumindo algum exagero contra
os sofistas na pintura que deles fez o discípulo de Sócrates, não é crível que esse
exagero tenha degenerado em calúnia, especialmente quando ele os apresenta como corruptores dos
costumes públicos e privados, já que quando Platão publicou seus diálogos, ainda viviam muitas pessoas
que conheceram e trataram com os sofistas acusados.

§47 Protágoras
“O homem é a medida de todas as coisas”
O mais famoso, e talvez o mais filosófico dos sofistas, foi Protágoras, nascido em Abdera e
contemporâneo de Sócrates. Depois de percorrer várias cidades da Itália e da Grécia,
ele se estabeleceu em Atenas, provavelmente por volta de 450 a.C. Depois de alguns
anos, pereceu em um naufrágio, fugindo de Atenas, onde havia sido condenado à
morte por causa de suas visões semiateístas.
A doutrina de Protágoras está suficientemente exposta, ou pelo menos
indicada, na seguinte passagem de Sexto Empírico: “O homem é a medida de
todas as coisas. Protágoras faz do homem o critério, que aprecia a realidade
dos seres, enquanto existem, e do nada, enquanto não existe. Protágoras não
admite mais do que aquilo que se manifesta aos olhos de cada um. Tal é, em
sua teoria, o princípio geral do conhecimento... A matéria, de acordo com
Protágoras, está em fluxo ou mudança contínua; enquanto ela experimenta
acréscimos e perdas, os sentidos também mudam em relação à idade e outras
modificações do corpo. O fundamento de tudo o que aparece aos sentidos reside na
matéria; de modo que ela, considerada em si, seja tudo o que a cada qual se apresenta.
Por outro lado, os homens, em diferentes momentos, possuem diferentes percepções, em relação às
transformações que as coisas percebidas experimentam. O que se encontra em estado natural percebe na
matéria as coisas como elas podem aparecer aos que se encontram em tal estado; aqueles que se encontram
em um estado contrário à natureza, percebem as coisas que podem aparecer nesta outra condição. O mesmo
fenômeno ocorre em diferentes idades, no sono, na vigília e em outras disposições. Portanto, segundo este
filósofo, o homem é o critério daquilo que ele é, e tudo o que aparece como tal ao homem existe: o que não
aparece ou se apresenta aos homens não existe”103: Est Est ergo, secundum ipsum, homo criterium rerum
quae sunt; omnia enim quae apparent hominibus, etiam sunt, quae autem nulli hominum apparent, nec sunt
quidem.
Desta passagem e do que Platão, Aristóteles e alguns outros escreveram sobre Protágoras, fica
bastante claro que o sistema deste sofista era uma espécie de subjetivismo sensualista, que se resolve nas
seguintes afirmações: 1º não há verdade absoluta, mas verdade relativa; 2º a percepção sensível é para o
homem a medida e mesmo a razão ou causa da realidade objetiva das coisas: o que o homem percebe pelos
sentidos é tudo verdadeiro.
Quanto à existência de Deus, é natural que Protágoras a negue ou questione, já que não é objeto dos
sentidos. Por isso dizia que a obscuridade da matéria e a brevidade da vida não lhe permitiam afirmar se

103
Hypot. Pyrrhon., cap. XXXII.
87
os Deuses existem ou não, e qual é a sua natureza, se é que existem. Não é estranho, em vista disso, que
alguns autores o tenham contado entre os partidários do ateísmo e que os atenienses o perseguissem104 e o
acusassem por causa disso.
Apesar das aparências em contrário, o sistema de Protágoras se resolve no puro ceticismo: afirmar
que todas as percepções dos sentidos são verdadeiras, embora reconheça que muitas vezes são opostas e
contraditórias, não apenas em diferentes sujeitos, mas no mesmo em relação ao que é diverso, ou às
mudanças de idade, de influências externas e disposição do corpo, equivale a dizer que são todas igualmente
falsas, pois não há verdade na contradição; equivale a reconhecer que não podemos discernir entre verdade
e erro, entre aparência e realidade. Existe, portanto, no fundo desse sistema um verdadeiro ceticismo, que
poderíamos chamar de ceticismo per excessum. Se as várias e contraditórias
percepções dos homens são a medida da realidade e verdade das coisas, realidade e
verdade são palavras vazias e representam algo inatingível para o homem.
O sistema ou teoria de Protágoras oferece alguma analogia com a teoria de
Fichte105 (imagem ao lado). Assim como para este o pensamento é a medida e a causa da
realidade objetiva ou do não-eu [Nicht-Ich] – o qual existe na medida em que é
pensado e posto pelo eu [Ich] –, para o sofista, a percepção dos sentidos, o eu
sensitivo, põe, determina e regula a realidade. Ao subjetivismo intelectualista e
idealista do filósofo alemão corresponde o subjetivismo sensualista do sofista grego.

§ 48 Górgias

No ano 427 a.C., os habitantes de Leôncio, na Sicília, enviaram a Atenas,


como embaixador, seu compatriota Górgias, que, como Protágoras, fez profissão
de sofista, chamando também a atenção dos atenienses com seus discursos e
eloquência. Górgias fazia profissão de ser retórico, mas sem incluir nela a
ciência universal [i.e. a Filosofia]. No diálogo que leva o nome de Gorgias seu
de Rethorica, Platão nos apresenta este sofista vangloriando-se de ter respondido
a todas as questões que lhe foram propostas, oferecendo-se, claro, para verificar
as mesmas então106.
A doutrina de Górgias é uma espécie de ceticismo niilista, contido nas três
proposições a seguir:

1º Nada existe.
2º No caso de algo existir, não poderia ser conhecido pelo homem.
3º Na hipótese de que algum homem sabia disso, ele não poderia explicá-lo e torná-lo conhecido a
outros homens.

Sexto Empírico, a quem não se pode negar competência nestes assuntos, especialmente quando se
trata de teorias mais ou menos céticas, resume os argumentos de Górgias em apoio à primeira proposição
nos seguintes termos:
“[1º] Primeira proposição: Nada existe. Em primeiro lugar, o nada não existe, pela própria razão de
que nada é. Em segundo lugar, a realidade também não existe; porque esta realidade seria ou [1] eterna ou
[2] produzida, ou [3] ambas ao mesmo tempo. Se [1] é eterno, não teve começo e seria infinito, mas o
infinito não existe em parte alguma; porque se existisse em algum lugar, seria distinto do recipiente, estando
incluído no espaço que o recebe: portanto, esse espaço é diferente do infinito e maior do que o infinito, o
que repugna à noção de infinito. Se [2] foi produzido, ou [2a] o foi de uma coisa existente, ou [2b] de uma
coisa inexistente: no [2a] primeiro caso, não é produzido, porque já existiria no que o engendrou; mas é

104
“Protagoras autem dissertis verbis scripsit: de Diis autem, nec an sint, neque quales sint, possum dicere; multa enim sunt quae
me prohibent. Quam ob causam, cum eum capitis damnassent Athenienses, fugiens in mari periit naufrágio”. Sextus
Empir., Adversus Mathemat., lib. VIII.
105
[N.T.] Johann Gottlieb Fichte (1762-1814), é considerada como uma ponte entre as ideias de Kant e as de Hegel. Em
gnosiologia, versou sobre o problema da subjetividade e da consciência. Em política, foi um dos fundadores do nacionalismo
germânico, que viria a se tornar um dos pilares da política externa do Reich nazista.
106
“Jussit ergo paulo ante, omnes qui intus aderant, ut quam quisque vellet quaestionem induceret, se singulis responsurum
promittens... dic mihi, o Gorgia, num vere dicit Calicles te profiteris responsurum ad omnia, de quibus quilibet sciscitetur?
“Gorg.: Vere ait, o Cherepho: nempe, modo id ipsum praedicabam, atque adeo nihil novi a me quemquam multis annis perconctatum
esse dico”. Op. Plat. Mars. Fic. interpr., pag. 337.
88
contraditório dizer que uma coisa foi produzida e não produzida. A [2b] segunda hipótese é absurda...
Enfim; a realidade e o nada não podem existir ao mesmo tempo em relação à mesma coisa”.
Em defesa da [2º] segunda proposição, Górgias argumentou que, para que possamos conhecer a
existência e a realidade das coisas, seria necessário que houvesse uma relação necessária entre nossos
conceitos e a realidade, ou seja, que a representação de nosso pensamento como sendo idêntica à própria
realidade e existindo como a concebemos e sob a mesma forma de nossa concepção; o que certamente é
um absurdo, porque senão seria preciso admitir que se eu concebo, por exemplo, que um homem voe pelo
ar, realmente aconteceria assim.
Dado o caso de [3º] que o homem pudesse ou viesse a conhecer algo, seria impossível para ele
comunicar esse conhecimento a outros; porque o meio de comunicação que possuímos com relação aos
outros homens é a linguagem, e esta não é idêntica aos objetos, isto é, às coisas reais que se supõem
conhecidas. Assim como o que é percebido pela visão (como a luz e as cores) não é percebido pelo ouvido,
e vice-versa, também o que existe fora de nós é diferente da linguagem. Transmitimos a outros homens
nossas próprias palavras, mas não coisas reais: a linguagem e a realidade objetiva constituem duas esferas
inteiramente diferentes; o domínio de um não atinge o outro.

§ 49 Crítica

Górgias representa a última evolução da escola eleática, considerada em sua fase dialética e em seu
elemento criteriológico. Discípulo de Zenão, o temível dialético dessa escola, Górgias aplicou ao ser único,
à realidade abstrata dos eleatas, os argumentos que seu mestre usara para combater a existência do espaço,
do movimento e, em geral, do mundo sensível, transformando, assim, em niilismo cético o idealismo
absoluto de Parmênides e Zenão. Como forma de estabelecer e consolidar sua tese cética, Górgias insiste
principalmente na independência e separação entre o sujeito e o objeto, entre o real e a faculdade de
conhecer. Vemos a cada passo, diz ele, que um sentido não percebe o que outro sentido percebe; vemos,
ainda, que o entendimento concebe coisas ou noções que não são alcançadas pela percepção dos sentidos:
portanto, não há relação necessária entre nossas representações cognitivas e os objetos ou coisas a que se
referem, pois essas coisas existem ou parecem existir sem serem percebido pelas faculdades de
conhecimento.
Já destacamos antes que há certa afinidade entre o sistema de Protágoras e o de Fichte, e agora
devemos acrescentar que a doutrina de Górgias tem uma afinidade semelhante e mais palpável com a teoria
crítica de Kant. Para o sofista siciliano, a ordem sensível não existe para nós como real e objetiva, mas
como uma aparência fenomênica: para o filósofo alemão, a realidade objetiva do mundo sensível [númeno]
é igualmente desconhecida para nós; percebemos apenas as modificações internas que os corpos
determinam em nós, os fenômenos e as aparências, e mesmo isso sujeito às formas subjetivas do espaço e
do tempo. Ambos estabelecem, não a distinção real, mas a cisão entre a ordem ideal e a ordem real, entre a
percepção e o objeto, entre a ordem subjetiva e a ordem objetiva. Sem dúvida, a argumentação filosófica,
o procedimento crítico e as obras científicas do filósofo de Koenisberg valem muito mais,
incomparavelmente mais do que a argumentação e as obras do sofista leontino; mas isso não significa que
não haja grande afinidade – para não dizer mesmo identidade – entre um sistema e outro, afinidade que se
revela até naquilo que constitui o princípio fundamental, o carácter essencial do antigo sistema, isto é, a
separação absoluta e cisão entre a ordem subjetiva e a ordem objetiva. Deste ponto de vista, Górgias pode
ser justamente considerado o ancestral do autor da Crítica da Razão Pura, com suas intuições a priori, com
seu esquematismo da razão e com suas categorias e noções a priori. Também vale notar que o argumento
usado por Górgias em favor de sua primeira tese é basicamente idêntico ao usado por Kant ao expor a
primeira de suas antinomias cosmológicas.

§ 50 Outros sofistas

Entre os muitos sofistas que pulularam na Grécia, e especialmente em Atenas, na mesma época, os
seguintes são considerados os mais notáveis:

a) Hípias de Elis, que, além da eloqüência, possuía conhecimentos especiais sobre matemática e
astronomia. Segundo Platão, ele ensinou que as leis são tiranas dos homens, porque os obrigam a agir contra

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as inclinações da natureza. Esta tese está em harmonia com aquela que Tucídides atribui a outros sofistas,
a saber: que a única regra do que é justo e verdadeiro é que o forte deve comandar o fraco.

b) Pródico de Ceos [Κέως], o qual – segundo Sexto Empírico – ensinava que “o sol, a lua, os rios, as
fontes e, em geral, tudo o que é útil à nossa vida, foi endeusado pelos povos antigos por causa da utilidade
que essas coisas relataram”; ele professava a opinião de que a alma humana é o resultado da organização.
Tanto ele quanto Diágoras e alguns outros sofistas eram considerados ateus, embora o medo das leis os
obrigasse a esconder suas opiniões sobre o assunto.

Os Trinta Tiranos c) Crítias, um dos Trinta Tiranos 107 de


Atenas, dizia que os deuses e a religião eram
Platão (Carta VII)
invenções da política para manter o povo sujeito,
O regime de governo existente, sujeito a críticas e que a alma humana reside no sangue e se
diversas, conduziu a uma revolução. À testa da novo identifica com ele.
regime, 51 cidadãos foram eleitos chefes: 11 na Pólis, 10
no Pireu (estes dois grupos foram encarregados da Ágora
d) Contemporâneos e sucessores destes
e de tudo o que concernia à administração); e trinta
constituíam a autoridade superior com poder absoluto.
foram Polo, um discípulo de Górgias;
Vários dentre eles, sendo ou meus familiares ou Trasímaco, nativo de Calcedônia; Eutidemo, de
conhecidos, logo me atraíram a si, para tarefas que me Quio, com alguns outros de que se faz menção nos
convinham. Alimentei ilusões que não tinham nada de diálogos de Platão e nas obras do Sexto Empírico.
espantoso devido à minha juventude. Imaginava, de fato,
que eles governariam a Pólis, desviando-a dos caminhos As doutrinas morais e religiosas dos
da injustiça para os da justiça. Observava também com sofistas correspondiam às suas ideias céticas e
ansiedade o que iriam fazer. Ora, vi aqueles homens, em ateístas. A base de sua moralidade não era a ideia
pouco tempo, fazerem lamentar os tempos do antigo do que era justo e bom, mas o que era útil e
regime, como uma idade de ouro. Entre outros, ao meu
agradável. É por isso que subordinaram a moral à
querido e velho amigo Sócrates, que não me canso de
proclamar como o homem mais justo do seu tempo,
política, em vez de fundar esta na primeira. O que
quiseram associá-lo à tentativa de levar pela força um indicamos em relação às suas teorias filosóficas e
cidadão a ser condenado à morte, isto com o objetivo de, às suas ideias religiosas, está em harmonia com a
por alguma forma, o comprometerem na sua política. doutrina que Cícero atribui aos sofistas em geral,
Sócrates não obedeceu: preferiu expor-se aos maiores a saber: que tudo o que existe é resultado do
perigos, a tornar-se cúmplice de ações criminosas. Face a acaso, e que as coisas humanas não tem nada a
todas estas coisas e a outras do mesmo gênero, e de não ver com uma providência divina. Por fim, sabe-se
menos importância, fiquei indignado e afastei-me das que Platão em suas obras, e principalmente no
misérias dessa época. Depressa os trinta caíram e, com diálogo Teeteto, apresenta os sofistas como
eles, todo o seu regime. De novo, e ainda que com maior
negadores da distinção entre virtude e vício, como
prudência, estava desejoso de me ocupar das tarefas do
Estado. Ocorriam então, já que era um período
inimigos da moralidade, e como corruptores dos
perturbado, muitos fatos revoltantes e não é de admirar costumes públicos e privados.
que as revoluções tenham servido para multiplicar os atos
de vingança pessoal. Entretanto, os que regressaram
usaram de bastante mais moderação. Mas, sem que eu me
desse conta de como acontecia, cidadãos poderosos
conduzem aos tribunais este mesmo Sócrates, nosso
amigo, e fizeram-lhe uma acusação das mais graves, que
de forma alguma ele merecia: é por impiedade que uns o
acusam diante do tribunal e outros o condenam e fazem
morrer o homem que, quando eles próprios afastados do
poder e caídos em desgraça, não quis participar na
criminosa prisão de um dos seus amigos, então banido.

107
[N.T.] Os Trinta Tiranos (οἱ τριάκοντα τύραννοι) foram os magistrados que, oligarquicamente, governaram Atenas no ano
de 404 a.C., após a derrota para Esparta na Guerra do Peloponeso. Segundo o geógrafo Pausânias, eles aquiesceram à condição
imposta pelos espartanos de destruir a famosa muralha de Atenas construída por Temístocles após a retirada dos persas. Segundo
Plutarco, os tiranos foram estabelecidos sobre Atenas pelos aliados de Esparta e mantidos por guarnição espartana que sitiava a
Acrópole. Encabeçados pelo sofista Crítias – que fazia avant la letre, as vezes de Robespierre –, executaram mil e quinhentos
homens sem julgamento, conforme o testemunho de Aristóteles e Isócrates Foram depostos por Trasíbulo, que invadira a cidade
com 60 soldados de Tebas.

90
§ 51 Crítica geral do Primeiro Período

Como já indicamos, o que distingue e caracteriza esse período pré-socrático da Filosofia grega é a
predominância da ideia cosmológica. A origem, formação e constituição do mundo constituem o objeto
preferencial e quase exclusivo de todas as escolas filosóficas que nele aparecem, apesar de seus métodos
muito diversos e de suas direções conflitantes. O empirismo jônico, o materialismo dos atomistas, as
fórmulas matemáticas dos pitagóricos e as especulações idealistas dos eleatas representam esforços,
caminhos e métodos diferentes da razão filosófica, mas todos subordinados ao pensamento cosmológico.
Este pensamento absorve tanto a atenção do espírito humano neste período que dificilmente se pode
encontrar em suas escolas e filósofos algumas máximas morais, alguns princípios teológicos, algumas
idéias psicológicas incompletas e talvez semeadas.
Ademais, este fenômeno está em perfeita concordância com a própria natureza do espírito humano,
ou, se preferir, com as leis que regem e presidem o desenvolvimento da atividade espiritual ou mental: o
espírito se dirige espontaneamente ao objeto antes que ao sujeito; porque o ato direto é naturalmente anterior
ao ato reflexo. Por outro lado, é certo que o conhecimento sensível – chame-se este de ocasião, origem ou
condição do conhecimento intelectivo – é anterior a ele e determina em parte sua gênese e suas
manifestações. Sendo, então, o mundo externo e material que solicita a ação dos sentidos, é também o
primeiro objeto que solicita e concentra a atividade intelectual.
Os sofistas iniciam um movimento de inversão do objeto para o sujeito. O pensamento, que até então
só se ocupava com o mundo exterior, fecha-se sobre si mesmo e começa a fixar o olhar no mundo interior.
A Filosofia anterior aos sofistas havia investigado, meditado, feito uso da lógica, usado diferentes formas
de argumentação, seguido uma variedade de métodos; mas sem refletir sobre essas formas e métodos de
conhecimento, sem ter consciência reflexa disso; em uma palavra: sem fixar a atenção e sem examinar as
condições do conhecimento humano. Os sofistas, depois de atacar e demolir os sistemas cosmológicos da
Filosofia de então, opondo-se, colocaram o problema crítico, e se é verdade que não souberam dar-lhe a
solução certa, também é verdade que a sua mera abordagem comunicava um novo rumo ao pensamento
humano, que desde então passou a ser estudado, afirmado e conhecido como sujeito diante de um objeto.
Deste ponto de vista, e neste sentido, não há dúvida de que os sofistas – no que nos interessa –
representam um movimento de progresso, pois com eles e por meio deles o elemento subjetivo recebe
direito de existência na especulação filosófica, e ocupa o seu lugar na História da Filosofia ao lado do
elemento objetivo. Disso se pode verdadeiramente dizer que os sofistas prepararam o terreno que Sócrates
viria a cultivar, e representam a transição do período cosmológico para o período psicológico ou
antropológico, iniciado por Sócrates, desenvolvido e aperfeiçoado pelas escolas e Filósofos que constituem
o movimento socrático.
Tenha-se presente, contudo, a fim de não exagerar o mérito ou o progresso que corresponde aos
sofistas, que, muito embora tenham levantado o problema crítico, o fizeram de forma indireta, pela negação
da realidade e da verdade objetiva. Já quanto à forma de resolvê-lo, longe de dar a solução certa, só
souberam fechar-se num ceticismo estreito e individualista.
Entre as características gerais da Filosofia no período pré-socrático, figuram a obscuridade da
expressão e a consequente obscuridade dos conceitos. Heráclito é chamado por seus contemporâneos de
Obscuro, por causa daquela falta de clareza que reina em seus escritos. Dos antigos jônios e pitagóricos,
restam pouco mais do que frases lacônicas, máximas soltas, vagas indicações históricas, fórmulas de
significado duvidoso. Parmênides e Empédocles expõem, ou melhor, sugerem suas doutrinas em poemas
alegóricos e com palavras metafóricas de significado duvidoso. Assim é que também deste ponto de vista,
os sofistas representam um progresso, visto que expunham seus conceitos em prosa e em termos claros e
precisos. Os sofistas prejudicaram a Filosofia, fazendo-a perder sua profundidade e atacando todas as suas
verdades; contribuíram, porém, para a divulgação dos conhecimentos científicos, e para difundir ideias
filosóficas em todas as classes sociais. Se a solidez ou substância da doutrina correspondesse à forma, os
sofistas teriam prestado um verdadeiro serviço à ciência e à sociedade.

§52 Olhar retrospectivo

Antes de entrar no segundo período da Filosofia Grega, será bom dar uma olhada rápida no caminho
que acabamos de percorrer. Isto é tanto mais necessário quanto se trata aqui do primeiro período da Filosofia
Helênica, e, consequentemente, de um período que envolve certa confusão e padece das hesitações inerentes
e comuns a tudo o que se inicia.
91
Quais são os traços dominantes e característicos desse período? Quais são as evoluções e o processo
da ideia filosófica através dos nomes e das escolas cuja história acabamos de esboçar?
Prescindimos aqui da Filosofia Grega considerada em seu estado primitivo e rudimentar, em seu
estado pré-filosófico, por assim dizer, em seu estado de incubação; porque não se pode falar de escolas, de
personagens e de sistemas filosóficos quando se chamava de Filosofia o mero conhecimento e prática das
coisas boas; quando o nome de Filósofos foi dado a pessoas que se distinguiam do vulgo ou da generalidade
dos homens por algum conhecimento e prática do bem: Omnis rerum optimarum cognitio, atque in his
exercitatio, philosophia nominata est, segundo Cícero, e conforme indicado antes dele por Heródoto e
Tucídides.
Atendo-nos, então, ao período propriamente filosófico que se inicia com Tales e termina com os
sofistas, período em que a Filosofia Helênica já oferece um certo organismo científico e aspecto sistemático,
diremos que

a) Para a escola jônica, a matéria é o ser-todo e o princípio dos seres particulares, cujos germes –
inclusive o da vida animal (hilozoísmo) – e cujas virtualidades carrega em si: a observação sensível e a
experiência representam o conhecimento (empirismo) e os princípios do saber para esta escola.

b) Para a escola de Heráclito – derivação parcial e ascendente da escola jônica –, o universo é a


combinação, ou melhor, a sucessão eterna e deficiente do ser e do não-ser; toda a escola é de si
“fenomenalista” e transitória; e o ser se identifica com o fazer, com o mover, ser e não-ser. O Ser (o mundo
universo) é uma unidade (monismo); mas uma unidade de movimento, uma série de fenômenos que
aparecem e desaparecem sujeitos a uma lei eterna e absolutamente necessária. Resumindo: realmente não
existe o ser, o absoluto, e apenas o fieri, a sucessão, o moveri.

c) Para a escola de Leucipo e Demócrito, o ser, o mundo universo, não é nem o princípio-matéria da
escola jônica, nem o movimento contínuo ou a sucessão alternada e fugaz dos fenômenos, mas um
agregado, uma aglomeração de seres particulares (atomismo), diferentes e opostos entre si, infinitos em
número, eternos em duração e sujeitos a choques e combinações acidentais ou fatais. O conhecimento ou
percepção desses agregados de átomos que constituem os corpos da natureza – ou melhor, todas as coisas
– verifica-se por meio dos sentidos, excitados e impressos pelos átomos que se desprendem dos corpos;
mas essa percepção é mais subjetiva do que objetiva. Na verdade, só à inteligência pertence perceber e
conhecer a essência real; porque o que há de real e essencial nas coisas são os átomos e o movimento, e
conhecer os átomos e o movimento é função própria e exclusiva da razão pura.

d) Para a escola pitagórica, o ser, a universalidade das coisas, implica algo mais do que a matéria dos
jônios, mais do que o fieri ou sucessão perpétua de Heráclito, e mais do que agregados ou combinações
mecânicas de átomos. Implica um princípio transcendente e superior à natureza material e, acima de tudo,
implica e exige um princípio inteligível, uma ideia racional imanente ao Universo, como razão suficiente
da existência e essência do Universo, com suas formas particulares e existências. Em outras palavras: a
escola pitagórica representa a introdução da ideia no campo da Filosofia, bem como a afirmação implícita
e indireta do princípio espiritualista, em oposição às afirmações materialistas e mecânicas das escolas de
Tales, Heráclito e Demócrito.

c) A escola eleática representa a antítese completa e abrangente das escolas jônica, atomista e de
Heráclito, que acabamos de citar. Desenvolvendo e ampliando o princípio unitário e inteligível de Pitágoras,
a escola de Elea chega finalmente à seguinte conclusão: o ser é a unidade absoluta e pura; o mundo externo
com seus corpos, átomos e mutações é pura aparência ou ilusão, porque toda pluralidade real é impossível,
e isso se verifica, não só na ordem sensível, mas também na ordem puramente inteligível, de modo que o
sujeito e o objeto, o pensamento e a coisa pensada são a mesma coisa, são Deus (panteísmo), o único ser, a
única substância real e toda substância real. Este ser é pensamento puro, é substância ideal-real,
absolutamente inacessível aos sentidos (idealismo), e objeto apenas do pensamento puro.

f) Com os sofistas – ou, se se preferir, por ocasião dos sofistas –, um novo e importante elemento
passa a fazer parte da Filosofia. As escolas anteriores haviam lidado quase exclusivamente com o Universo,
com a realidade externa, deixando escapar apenas ocasionalmente a ideia sobre a forma e as condições do
conhecimento. A escola jônica e suas derivações, a pitagórica, assim como a eleática, concentram toda a
sua atenção no mundo objetivo; o mundo subjetivo, considerado como elemento e princípio da especulação
filosófica, pouco atrai sua atenção. Com os sofistas, esse estado de coisas se modifica. A especulação

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filosófica, até então meramente objetiva, passa a centrar-se no sujeito cognoscente enquanto cognoscente.
As questões que se referem ao valor e legitimidade dos sentidos e da razão como faculdades de
conhecimento, aos limites da ciência, às condições de certeza científica são levantadas, discutidas e
resolvidas com maior ou menor sucesso. Em uma palavra: o problema crítico se apresenta iniciado –
somente iniciado, pois não foi nem colocado em seu verdadeiro terreno, nem discutido em sua importância
e em seus diferentes aspectos, nem resolvido de forma profunda e verdadeiramente filosófica. Já
assinalamos que neste conceito, e deste ponto de vista, os sofistas prestaram um serviço à Filosofia e
representam uma evolução progressiva na História desta ciência.

Ignoramos, neste olhar retrospectivo, Anaxágoras e Empédocles, por representarem apenas


variedades ou aspectos parciais de uma das escolas mencionadas. A escola jônica ascende em Anaxágoras
ao pressentimento ou concepção rudimentar do teísmo transcendental, mas sem sair do terreno cosmológico
e mecânico, e transformando o conceito hilozoísta em um conceito parcialmente dualista e espiritualista.
A concepção ou sistema de Empédocles chega a ser uma espécie de ensaio de conciliação entre as
várias escolas que se agitavam em torno dele. Para o Filósofo de Agrigento, o Universo é ao mesmo tempo
unidade e pluralidade, essencialidade una e agregação de substâncias ou atomismo, ser permanente e
imutável e sucessão contínua ou fieri.
Alguns historiadores da Filosofia consideram a especulação ética como uma nota característica da
escola pitagórica, e o estudo da lógica ou dialética como uma nota da escola eleática. Embora haja alguma
verdade nisso – tendo em vista que essas duas escolas iniciaram uma certa direção ética e lógica
respectivamente –, não se pode e não se deve admitir que isso constitua seu caráter fundamental, longe
disso. Em ambas as escolas domina o pensamento cosmológico, o que constitui, sem dúvida, sua verdadeira
característica e seu conteúdo essencial. Só que esse pensamento cosmológico aparece envolto em fórmulas
matemáticas e algumas aplicações éticas na escola pitagórica, assim como na escola eleática adentra no
campo das aplicações lógicas. Mas nem a escola de Pitágoras contém a teoria ética adequada, nem a de
Elea uma verdadeira teoria lógica.

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